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A Dinâmica Da Cultura

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A dinâmica da cultura

Eunice Ribeiro Durham

A dinâmica da cultura
ensaios de antropologia

Organização de Omar Ribeiro Thomaz Prefácio de Peter Fry


 Apresentação, por Omar Ribeiro Thomaz
 Prefácio, por Peter Fry

 

 
 A difusão do Adventismo da Promessa no Catulé

 
 Imigrantes italianos

 
 As comunidades rurais tradicionais e a migração

 
 Migrantes rurais

 
 Malinowski: uma nova visão da antropologia

 
 Comunidade

 
 A dinâmica cultural na sociedade moderna

 
 A família operária: consciência e ideologia

 
 Cultura e ideologia

 
 Movimentos sociais: a construção da cidadania

 
 O lugar do índio
 
   anos

 
 Família e reprodução humana

 
 A pesquisa antropológica com populações urbanas

 
 A sociedade vista da periferia

 
 Chimpanzés também amam

 Bibliografia geral


 Sobre o autor
 Índice onomástico
Apresentação

Faço parte de um grupo privilegiado de antropólogos que teve Eunice


Durham como professora. Foi a lembrança de seu entusiasmo em sala de
aula, aliada a uma convivência cotidiana em atividades de pesquisa e à
leitura sistemática de alguns de seus textos já clássicos (não só por terem
se tornado referência obrigatória em cursos e teses de antropologia de-
fendidas no Brasil, mas ainda por, ao longo destes anos, terem circulado
na forma de fotocópias entre alunos de ciências sociais), que me levou à
aventura de organizar esta publicação. Localizar seus textos, lê-los cuida-
dosamente, discuti-los com a autora, definir o corpo do que viria a ser
este volume concentrou parte das minhas atividades nos últimos anos.
Esta coletânea, que reúne ensaios dispersos em diferentes revistas
nacionais, trechos selecionados de seus livros e até um verbete de enci-
clopédia, cobre boa parte do campo que se convencionou denominar de
antropologia das sociedades complexas no Brasil. Ao redescobrimento
de um país em constante mutação, some-se a leitura densa dos mestres da
disciplina, que sempre caracterizou o dia-a-dia dos cursos de Eunice.
Para além da própria antropologia, surpreende o diálogo sistemático com
outras disciplinas, como a sociologia, a ciência política e a biologia.
Enfim, o interesse de A dinâmica da cultura é múltiplo: aos estu-
dantes, particularmente de antropologia, o livro revela o desenvolvi-
mento da disciplina no Brasil e a importância da leitura rigorosa dos
clássicos aliada à pesquisa de campo, que, necessariamente, oferece
novos desafios e problemas; a todos os cientistas sociais e pensadores da
cultura, para além de desvendar a trajetória de uma certa antropologia
no país, esta coletânea não deixa de provocar por sua atualidade na
maneira de abordar temas tão relevantes quanto a periferia, o ensino
superior, a questão indígena e a família. Afinal, o conceito de cultura e
sua dinâmica continuam perseguindo a todos aqueles que nos lançamos
avidamente no real, no exercício concreto da pesquisa de campo.


Se é evidente que a obra de Eunice Durham não se esgota nesta
publicação, a sensação de que boa parte dos temas que dizem respeito à
antropologia brasileira nestes últimos cinqüenta anos está aqui reunida
é inevitável. Tornar seus textos disponíveis é uma imensa satisfação.

Omar Ribeiro Thomaz


São Paulo – Campinas, setembro de 

 Apresentação
Prefácio

Quando li o livro de Eunice Durham, A caminho da cidade, que ressalta


a importância do parentesco para os migrantes rurais na cidade de São
Paulo, entendi que havia lições importantes para mim mesmo. Sem
família no Brasil (e com poucos parentes vivos na Inglaterra), logo per-
cebi que a boa sobrevivência em meu país adotivo dependeria da minha
capacidade de fazer amizades que pudessem de certa forma tomar o
lugar dos ausentes laços de parentesco. É verdade que pude “comprar”
a mediação com os serviços do Estado através do exército de despa-
chantes que naquela altura se congregava nas portas dos departamentos
de trânsito, do  etc., mas para navegar pelos meandros da vida
social mais ampla, precisava de amigos que apontassem os caminhos
onde não havia placa alguma. Eunice Ribeiro Durham foi uma das pri-
meiras grandes amizades que tive o prazer de fazer no Brasil. Professo-
ra de antropologia na , ela logo se tornou um ponto cardeal no meu
mapa do Brasil. Se foi com os meus amigos de Campinas que aprendi a
falar, a cozinhar e a negociar a vida campineira, foi com a Eunice que
ganhei acesso a um mundo maior, em particular à vetusta Universidade
de São Paulo. Graças a ela, fui conhecendo quase todos os cientistas
sociais da época, que, pela transitividade da amizade, foram me incor-
porando numa rede social generosa e cada vez mais ampla. Como obser-
va Eunice neste livro, éramos poucos. Agora,  anos mais tarde, recebo
o convite para escrever o prefácio de um livro que reúne artigos de toda
a carreira da doyenne da antropologia da , Eunice Ribeiro Durham.
Que honra. Que responsabilidade.
Esta coletânea de artigos ordenada mais ou menos cronologica-
mente é, além de uma espécie de autobiografia intelectual da autora,
uma história da antropologia no Brasil, mais precisamente em São
Paulo, deste último meio século. Do primeiro ao último trabalho encon-
tramos Eunice dialogando com os grandes paradigmas da antropologia:


o culturalismo americano; a tradição etnográfica fundada por Mali-
nowski, o estrutural-funcionalismo britânico, o marxismo, o estrutura-
lismo de Claude Lévi-Strauss, o pós-modernismo e, no último ensaio, a
etologia e a primatologia. Ao mesmo tempo, encontro-a às voltas com
o desafio de entender as imensas transformações por que passou a socie-
dade brasileira. Nesse período, o Brasil deixou de ser majoritariamente
rural para se tor nar uma sociedade predominantemente urbana. Eis o
seu interesse pela migração rural-urbana, e as condições de vida das
populações habitando a periferia de São Paulo. Nesses cinqüenta anos o
Brasil passou da democracia para uma ditadura militar, que finalmente
cedeu para uma nova democracia pautada na crescente organização da
sociedade civil. Eis seu interesse pela participação política das perife-
rias, bem como pelos novos movimentos sociais impulsionados pelos
negros, mulheres e homossexuais. E, finalmente, é nesse período tam-
bém que ocorrem enormes mudanças no campo do ensino superior. As
universidades se multiplicam e se diferenciam para absorver uma
demanda cada vez maior de educação universitária. Os cursos de pós-
graduação em antropologia nascem e florescem. Mas cresce um mal-
estar profundo nas universidades públicas, que têm maior dificuldade
para se adaptar aos novos tempos. Eis seu duradouro interesse pela uni-
versidade pública como pesquisadora e como ativista.
Dividi seu trabalho em três conjuntos que correspondem a três
fases na vida da autora. A primeira fase, que chamo de “inocência”,
inclui os trabalhos iniciáticos de Eunice, escritos antes do aperto da
ditadura militar em ; a segunda, que chamo de “heróica”, reúne os
trabalhos escritos durante a ditadura militar, quando a autora se estabe-
lece como professora e intelectual, e a terceira, que chamo de “liberta-
ção”, é a dos trabalhos escritos após a restauração da democracia e na
plenitude de uma aposentadoria de jure que nunca parece se realizar de
facto. Essas “fases”, que de fato se sobrepõem aqui e acolá, correspon-
dem também a distintas configurações das ciências sociais em São Paulo.
A primeira fase é marcada pela hegemonia do estrutural-funcionalismo,
a segunda pela hegemonia do marxismo e do estruturalismo, e a terceira
pela do pós-modernismo e dos estudos pós-coloniais.
Chamei a primeira fase de “inocência” porque os primeiros quatro
trabalhos da coletânea, fruto de pesquisas que levaram ao seu mestrado
e doutorado na , foram efetuados dentro do relativo conforto inte-
lectual de um paradigma seguro e hegemônico, ou seja o funcionalismo

 Prefácio
de Malinowski e Radcliffe-Brown. Com uma notável fé na validade da
observação participante, e na busca por relações de sentido entre for -
mas de sociabilidade, ação e representação, Eunice vai desvendando um
movimento messiânico pentecostal num pequeno município de Minas
Gerais, a saga da migração italiana num município do interior paulista,
as principais características da sociedade tradicional rural paulista, e o
processo de migração rural-urbana que vai proporcionar o crescimen-
to da cidade de São Paulo e a formação de um proletariado nos bairros
da periferia da capital. As fortes relações de aliança entre a antropolo-
gia e a sociologia são ressaltadas pela autora. As duas disciplinas com-
partilharam uma abordagem estrutural-funcionalista nos estudos de
comunidade sob a liderança de Emílio Willems e Donald Pierson, que
inspiraram os trabalhos de Antonio Candido, Oracy Nogueira e Maria
Isaura Pereira de Queiroz. Também compartilharam um interesse tra-
zido por Florestan Fernandes em desvendar os processos de desintegra-
ção da vida tradicional rural e a formação de uma sociedade capitalista.
Nesses primeiros trabalhos, Eunice estabelece princípios que vão nortear
toda a sua carreira de pesquisadora: uma metodologia que privilegia
a etnografia baseada na observação participante; uma preocupação
em entender a dinâmica cultural no contexto mais amplo das macro-
transfor mações econômicas e políticas; e a busca constante do que
Malinowski chamava de “ponto de vista nativo”. Assim fazendo, ela é
levada a perceber com clareza o quanto a família e os laços de paren-
tesco são cruciais para a ordenação da vida social nesses momentos de
forte mudança. Os que migraram das zonas rurais à procura de uma
vida melhor nas cidades mobilizaram os laços de parentesco e logo res-
tauraram as suas famílias nas periferias urbanas onde for maram redes
de informação e segurança social que os fortaleceram perante um Estado
sempre visto como distante e potencialmente hostil.
Poderia ter chamado a segunda fase de “resistência”, mas a deno-
minei de “heróica” porque é caracterizada por uma coragem intelectual
e política notável e porque, no embate com o marxismo, efetivamente
produz a antropologia que hoje conhecemos. É nesse período que a
antiga aliança entre a sociologia e a antropologia na  se rompe
com a crescente hegemonia do marxismo, não apenas como inspira-
ção pela desejada revolução socialista no Brasil, mas como paradigma
de interpretação para os sociólogos e cientistas políticos. Os antropó-
logos começaram a ser vistos como, na melhor das hipóteses, “meros


empiristas” e, na pior, mercadores de uma ciência social burguesa.
Como afirma Eunice,

a ascendência do marxismo nas ciências sociais da USP a partir do final da


década de , e o dogmatismo que muitas vezes o acompanhou, deixaram a
antropologia numa posição singularmente marginal, e os antropólogos numa
situação um tanto esquizofrênica. Afinal, no ambiente de intensa politização
que marca esse período, éramos todos esquerdistas, empenhados em promover
a revolução socialista para a qual Marx oferecia o fundamento, a justificação
e a receita. [...] Mas o método dialético e os conceitos marxistas básicos, como
os de luta de classes, contradição, forças produtivas, materialismo histórico,
ideologia e capital, dificilmente se aplicavam e certamente não elucidavam os
fenômenos microssociais que os antropólogos estudavam, quer se tratasse de
povos “primitivos”, quer de grupos, segmentos ou categorias da nossa própria
sociedade. (p. )

Eunice descreve a sua posição como “particularmente difícil” pela im-


portância que ela atribuía à família, que, do ponto de vista dos sociólo-
gos e cientistas políticos à sua volta, era vista como uma instituição
retrógrada, condenada a ser destruída na sociedade socialista e inteira-
mente irrelevante do ponto de vista teórico – as forças transformadoras
da sociedade residiam no operariado, na constituição de uma consciência
de classe, na organização sindical.
Não era possível ignorar essa mudança de paradigma, portanto, e,
mais ainda porque, desde a reforma universitária de , Eunice Durham
e sua amiga e colega Ruth Cardoso se encontraram alocadas como pro-
fessoras do departamento de Ciência Política, vivendo ombro a ombro,
por assim dizer, com os arautos do marxismo. Não obstante, em vez de
recuar diante da potência do marxismo à sua volta, Eunice se pôs a traba-
lhar empírica e teoricamente no sentido de “identificar e valorizar a espe-
cificidade da antropologia, seus métodos de investigação e o conceito de
cultura”. Os capítulos , ,  e  são os trabalhos mais importantes escri-
tos nessa fase heróica. Em “A dinâmica cultural na sociedade moderna”
(cap. ), escrito para guiar uma mesa redonda que ela convocou na reu-
nião anual da  em , Durham examina a relevância do conceito
de cultura utilizado na antropologia das sociedades “primitivas” para a
compreensão das sociedades capitalistas contemporâneas. Mais uma vez,
insiste na estreita relação entre ação e representação:

 Prefácio
toda a análise de fenômenos culturais é necessariamente análise da dinâmica
cultural, isto é, do processo permanente de reorganização das representações
na prática social, representações estas que são simultaneamente condição e
produto desta prática. (p. )

Ela estuda as circunstâncias que produzem a heterogeneidade cultural e


aproveita a oportunidade de se posicionar contra os althusserianos de
plantão que viam a família, a escola e a indústria cultural apenas como
“aparelhos ideológicos do estado”. Sem perder de vista as relações de
poder entre produtores e consumidores da “cultura de massa”, propõe
uma análise pautada numa relação dialógica (se não dialética) entre
ambos. Os diversos grupos e segmentos interpretam e reelaboram aqui-
lo que os produtores da cultura de massa lhes oferecem ou impõem,
enquanto que os produtores

têm que considerar, para a eficácia da mensagem, os gostos, preferências e


valores da população à qual se dirigem, necessidade esta que reintroduz uma
heterogeneidade nos produtos culturais oferecidos em termos do público que
pretendem atingir. (p. )

Oito anos mais tarde e depois de adquirir uma notável erudição no


campo marxista, Eunice publicou um segundo ensaio em defesa do
conceito antropológico de cultura, que logo se tornou leitura obrigató-
ria para todos os cursos de pós-graduação. De novo é o marxismo na
interpretação de Louis Althusser o alvo de sua crítica. Mas Eunice não
descarta o marxismo através de uma demolição exter na à teoria. Não
procura questionar a visão de uma sociedade de classes pautada pelas
estruturas de produção e nem tampouco dissolver por completo a dis-
tinção analítica entre superestrutura e infra-estrutura. Pelo contrário.
Traz todo seu conhecimento do marxismo, em particular o pensamento
de Antonio Gramsci, para a defesa do conceito de cultura e para rom-
per “com uma visão mecanicista do modelo topográfico infra-estrutura/
superestrutura, e aponta[r] para a complexa articulação da for mação
social, evitando uma separação de ‘instâncias’” (p. ). O artigo termi-
na num tom de reconciliação, propondo que os antropólogos prestem
mais atenção à dimensão política dos processos culturais e que os soció-
logos e cientistas políticos incorporem a dimensão cultural do processo
de dominação política.


Em “A família operária: consciência e ideologia” (cap. ), encon-
tramos Eunice Durham insistindo na singular importância da família,
em particular para a classe trabalhadora, em oposição àqueles que a
viam como uma imposição da “ideologia dominante”, fadada a desapa-
recer junto com o capitalismo. Longe disso, a família, ela afirma, pode-
ria em si ser revolucionária! Seria

uma base a partir da qual as pessoas tomam consciência das deficiências e


injustiças próprias de sua condição, e ponto de partida necessário em relação
ao qual se podem erigir tentativas individuais e parciais ou coletivas e orga-
nizadas para superar essa condição, transformando a sociedade. (p. )

O quarto trabalho da fase heróica, escrito em  durante a transição


do autoritarismo para a democracia no país, marca de fato a transição para
a fase da libertação de Eunice Durham como antropóloga sem arestas.
Escrito no contexto de uma grande pesquisa sobre movimentos sociais
que ela coordenou junto com Ruth Cardoso, “Movimentos sociais: a cons-
trução da cidadania” (cap. ) explicita e celebra uma posição teórica
com duas perspectivas: uma que a autora atribui à sociologia e à ciência
política e outra mais “antropológica”. Através da primeira perspectiva,
“de fora” e “para fora” dos movimentos, procura-se entender a relevân-
cia dos movimentos para a ação partidária, a sua relação com o Estado e
“a sua eventual importância como instrumento de contestação do regi-
me”. A perspectiva “antropológica” seria “de dentro” dos movimentos,
procurando, sobretudo, o seu significado para os participantes. Mas, efe-
tivamente, o que acontece nesse artigo é que a perspectiva “de dentro”,
adquirida por meio da pesquisa baseada na observação participante ou
da participação observante (há ao longo do livro uma interessante dis-
cussão distinguindo entre observadores militantes e antropológicos),
produz o necessário para entender melhor o que seria em princípio o
interesse maior dos “sociólogos” e “cientistas políticos”. O artigo termi-
na com uma reflexão sobre as potencialidades e limitações dos movi-
mentos em termos da construção de uma sociedade democrática.

De um lado, eles criam um espaço (restrito) onde é possível a vivência da


igualdade, permitindo a representação da utopia, e elaboram os direitos que
definem uma nova cidadania. Mas, por outro lado, restringem a experiência
democrática à prática da democracia direta nos pequenos grupos. Como não

 Prefácio
desenvolvem mecanismos para reconhecer posições divergentes,[...] deslegiti-
mam a negociação [...] e podem ainda resvalar para mecanismos autoritários
de imposição de um consenso que deve ser obtido a qualquer custo como única
base legítima de atuação coletiva. (p. )

Palavras proféticas, alguns vão achar!


Chamei a segunda fase de “heróica” pensando primeiro no heroís-
mo individual de Eunice Durham. Mas o que fica cada vez mais claro é
que essa foi uma fase heróica para a própria antropologia brasileira. Um
dos paradoxos do regime militar brasileiro é que ao mesmo tempo em
que perseguiu uma geração de cientistas sociais, fez nascer e crescer os
programas de pós-graduação no país. E foi no embate entre a “antropo-
logia” e o “marxismo” na  que a antropologia moder na emergiu
transfor mada e fortalecida graças ao trabalho acumulado de Eunice
Durham e outros de sua geração que apostaram na tradição etnográfica
de nossa disciplina, desenvolvendo as suas próprias pesquisas e treinan-
do novas gerações de antropólogos que agora povoam não apenas as
universidades públicas e privadas no Brasil e no exterior, mas que
podem também ser encontrados nas organizações não-governamentais,
nas instituições de pesquisa e numa miríade de lugares de uma socieda-
de cada vez mais diferenciada. Os programas de pós-graduação em
antropologia se multiplicaram, a Associação Brasileira de Antropolo-
gia [] se tor nou uma das mais importantes associações acadêmicas
das ciências sociais, e em alguns círculos a antropologia hoje goza de
um prestígio e respeitabilidade até assustadores para aqueles de nós
mais acostumados a pertencer a uma disciplina minoritária e orgulho-
samente iconoclasta.
É esse o contexto “libertador” da terceira fase da nossa autora.
Nos últimos trabalhos desta coletânea, encontramos Eunice Durham
liberta da necessidade de nos convencer da legitimidade da sua aborda-
gem antropológica; livre, portanto, para desenvolver os seus argumen-
tos na sua plenitude. Nos capítulos  e  encontramo-la de volta ao
interior de São Paulo com uma pesquisa sobre as classes populares e
com um importante trabalho teórico sobre a pesquisa antropológica no
contexto urbano. No capítulo , a autora retorna à questão da família,
incorporando uma importante discussão sobre a reprodução biológica,
lembrando a sua formação numa antropologia não apenas social e cul-
tural mas também física. E no último texto desta coletânea, ela vai mais


longe nesse sentido. Em “Chimpanzés também amam”, ela embarca
numa erudita incursão nos trabalhos recentes de primatologia e etolo-
gia para analisar à luz da antropologia e da psicanálise as emoções e os
possíveis imperativos genéticos por detrás do nosso sexo, amor e afeto.
Dois ou três trabalhos não cabem nas “fases” nas quais dividi os
ensaios deste volume: “O lugar do índio”; “  anos”; e “Malinowski:
uma nova visão da antropologia”. Cada um deles exemplifica facetas
importantíssimas da vida intelectual e política de Eunice Durham. “O
lugar do índio”, publicado em , reflete sobre a situação política das
populações indígenas após os seus dois anos como presidente da .
Uma das tarefas tradicionais da presidência da  foi (e continua sendo)
a de representar a opinião da Associação sobre assuntos relacionados ao
bem-estar das populações indígenas. Com o seu entusiasmo e capaci-
dade de trabalho como que inesgotáveis, Eunice logo se prontificou a
aprender tanto quanto pôde sobre a etnologia indígena e sobre os pontos
de fricção entre as sociedades indígenas, os antropólogos e o Estado. E foi
com muita força e determinação que ela levava pessoalmente as posições
da  contrárias à política indigenista do governo militar. Nunca vou
esquecer ter testemunhado (eu era tesoureiro da Associação na época) o
general-chefe da  tendo que ouvir as críticas diretas da presidente da
, muito menos alta que ele mas muito mais determinada!
Durante a última década ou mais, Eunice Durham tem se dedicada
ao estudo da educação superior no Núcleo de Pesquisas sobre Ensino
Superior (), que fundou com Simon Schwartzman e Elisa Wollineck
no final dos anos . “  anos”, escrito em , é infelizmente o
único trabalho da autora sobre a educação superior neste volume. En-
quanto escrevo estas palavras, uma “reforma universitária” promovida
pelo governo federal está em discussão. O que me impressiona é que os
problemas identificados por Eunice exatos vinte anos atrás, inclusive e
sobretudo o envelhecimento precoce e a imobilidade institucional das
universidades públicas, continuam sem que se tenha caminhado um
passo em direção à sua solução.
O terceiro trabalho que independe das “fases” é um pequeno
ensaio sobre Bronislaw Malinowski. Sem dúvida, Eunice o incluiu como
homenagem ao antropólogo que mais a inspirou ao longo da sua vida.
É assim que ela descreve Malinowski: “Professor brilhante, crítico
impiedoso, simultaneamente compreensivo e intransigente, Malinowski
despertou, ao longo de sua carreira, admiração fervorosa e oposição

 Prefácio
implacável, influindo, de um modo ou de outro, em toda uma geração
de antropólogos”. Que a Eunice me perdoe, mas não poderia achar
palavras melhores para descrever ela mesma.
Os achados etnográficos de ambos os impulsionaram a questionar
as certezas dos seus colegas confortavelmente bem-pensantes. Na retó-
rica malinowskiana, os trobriandeses figuravam como uma prova da
humanidade única por detrás das nossas imensas diferenças culturais,
mas também, na sua diferença, como uma ameaça à complacência do
etnocentrismo colonial. Malinowski utilizou seus dados sobre a matrili-
nearidade trobriandesa para desafiar as teorias ocidentais sobre a família
e a universalidade do complexo de Édipo. A etnografia sobre o kula veio
para demonstrar a racionalidade econômica dos trobriandeses e a inte-
gridade do seu sistema social, pondo em dúvida as certezas “civilizató-
rias” dos administradores coloniais e os missionários. Movida, como
Malinowski, pelo respeito do ponto de vista dos vários “nativos” que
ela conheceu, Eunice nunca se furtou em confrontar os bem-pensantes
com os resultados da sua pesquisa. Insistiu sobre a importância do
parentesco e da família para os migrantes pobres e habitantes da perife-
ria paulista para questionar as certezas das teorias sociológicas que só
viam nessas instituições alienação e ausência de “consciência”. E, hoje
em dia, ela vai revelando os meandros das universidades no sentido de
questionar os lugares-comuns e palavras de ordem que dominam o
debate sobre a “reforma universitária”.
Num ponto importante, porém, Eunice Durham em nada se asse-
melha a Bronislaw Malinowski. Há um consenso na literatura sobre a
história da disciplina que o antropólogo polonês era muito arrogante,
querendo ser reconhecido como um líder antropológico, fundador da
“escola funcionalista”. Eunice Durham comanda o nosso respeito e
admiração pela sua obra, pelos seus alunos, por sua integridade, pela
força das suas convicções, pelo senso de humor, e pelo papel crucial que
desempenhou na construção da moderna antropologia em São Paulo e
no Brasil como um todo.

Peter Fry
Rio de Janeiro, julho de 


Introdução
uma história muito pessoal de meio século de antropologia na USP

Os trabalhos reunidos neste livro representam quase cinqüenta anos


dedicados à pesquisa e ao ensino da antropologia. Esta minha carreira
tão longa cobre boa parte do desenvolvimento das ciências sociais no
Brasil após a Segunda Guerra Mundial, e por isso mesmo esta coletânea
reveste-se de um certo valor histórico, uma vez que acompanha as
sucessivas transfor mações da antropologia neste último meio século.
Durante esses anos, graças ao enorme crescimento do ensino superior,
à multiplicação das universidades e à institucionalização da pós-gradua-
ção, a pesquisa nas ciências humanas consolidou-se. Os antropólogos e
suas publicações multiplicaram-se de poucas dezenas para muitas cen-
tenas. Foi também uma época de grandes debates e de sucessivas reno-
vações teóricas e metodológicas, dos quais participei e dos quais fui
uma testemunha, parcial como todas. Por esta razão, creio que cabe bas-
tante bem, nesta introdução aos artigos que se seguem, fazer uma refle-
xão muito pessoal sobre as mudanças ocorridas nesse período dentro da
perspectiva do que se passou na  e das posições que assumi, pois é
delas que resultaram estes trabalhos.
Quando me iniciei na antropologia, como aluna do curso de
Ciências Sociais na antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras,
em , ingressei num ambiente intelectual muito estimulante, mas
muito diferente do de hoje. Havia muito poucos alunos e poucos pro-
fessores. A minha turma, uma das maiores que já havia ingressado nas
Ciências Sociais, era de dez estudantes. Havia apenas dois docentes de
antropologia: um professor (catedrático) e uma assistente. A ciência
política era um pouco maior, com um professor e dois assistentes. O
carro chefe das Ciências Sociais era a sociologia: tinha dois titulares e
quatro assistentes.
Apesar de seu tamanho tão reduzido, as Ciências Sociais eram
então um dos pouquíssimos centros de pesquisa no Brasil, e estavam


abertas a todas as novas tendências intelectuais inter nacionais. Na
antropologia, ainda estudávamos o evolucionismo cultural, o difusio-
nismo e um pouco da velha etnologia alemã, que eram, já então, o
passado ultrapassado. Aprendíamos também antropologia física, que
começava a ser transfor mada pelas inovações então muito recentes da
genética e de sua aplicação ao estudo das raças e da evolução humana.
Mas o moder no, o inovador, era o funcionalismo, nas suas diferentes
vertentes social e cultural, britânica e americana, que representava
então um avanço sobre a sociologia francesa. Durkheim ainda era lido
e respeitado, mas já tinha então um sabor antiquado, pelas concepções
evolucionistas que incorporava.
De fato, no período anterior à Segunda Guerra Mundial, o funcio-
nalismo havia realizado uma verdadeira revolução no trabalho antropo-
lógico, praticamente destruindo o evolucionismo social que marcara
todas as ciências sociais durante o século  e o início do . Esta revo-
lução consistiu em colocar de uma nova forma toda a questão da diver-
sidade cultural, investindo contra concepções profundamente arraigadas
concernentes aos povos que estavam fora da civilização ocidental, con-
siderados então como ignorantes, supersticiosos, incapazes de raciocínio
lógico, representantes de um passado da humanidade há muito supera-
do e cujo destino necessário era, na melhor das hipóteses, acelerar o seu
próprio processo evolutivo de modo a alcançar o nosso nível de desen-
volvimento e as nossas características culturais.
No centro dessa revolução está o conceito de relativismo cultural,
que destruiu o antigo evolucionismo, atribuiu aos povos à margem da
civilização ocidental uma nova dignidade e influiu decisivamente na
valorização moder na da diversidade cultural, que constitui hoje um
fundamento da ideologia democrática ocidental. O relativismo cultural
consiste na injunção de procurar entender cada sociedade, povo ou
grupo em seus próprios ter mos; todos possuem uma riqueza própria e
não podem ser julgados em função dos nossos valores; tampouco se
pode pressupor um processo necessário que orientaria a transformação
das sociedades numa única direção, estabelecida por uma concepção de
progresso própria da nossa cultura, que culminasse no capitalismo (ou
no socialismo). Associado a ele, há um pressuposto que reorganiza todo
o trabalho de pesquisa: o de que a cultura ou o modo de vida de um
povo não podem ser entendidos como um amontoado de fragmentos
autônomos, mas sim em ter mos de sua imbricação e integração, o que

 Introdução
lhes confere seu significado. Nesta abordagem, ação e representação
estão indissoluvelmente ligadas.
Essa nova teoria implicou a valorização da pesquisa feita em
campo com grupos ou sociedades delimitadas, e colocou as monogra-
fias etnográficas no centro do trabalho antropológico. Abandonou-se
quase que totalmente a chamada pesquisa “de gabinete”, na qual o
investigador, utilizando-se basicamente de fontes secundárias e com
pouco ou nenhum contato com as populações que constituem seus obje-
tos de estudo, desmembra a cultura em seus componentes e analisa a
ocorrência de cada um deles em sociedades diversas. O funcionalismo
institucionalizou a pesquisa de campo feita pelo próprio antropólogo
que, através de um contato direto e prolongado com seus objetos de
pesquisa e o aprendizado de sua língua, obtém um conhecimento de pri-
meira mão sobre o modo de vida, as crenças e a visão de mundo desses
povos de cultura diversa da nossa. Este foi o fundamento da revolução
funcionalista na teoria e na metodologia de pesquisa que continuam a
organizar, até hoje, muito do trabalho antropológico. E se, atualmente,
a validade dessa abordagem nos parece óbvia, para os estudantes de
antropologia da década de  na  (como eu), estas concepções cons-
tituíam uma verdadeira iluminação.
Diferentes variantes do funcionalismo de origem norte-americana
ou francesa permeavam também a sociologia, embora nesta Max Weber
e a sociologia alemã representassem alter nativas importantes. Tanto a
dissertação de mestrado quanto a tese de doutorado e a de livre docên-
cia de Florestan Fernandes, por exemplo, tinham o funcionalismo como
tema: A função social da guerra na sociedade tupinambá e o Ensaio sobre o
método de interpretação funcionalista na sociologia. Nessa época, o mar-
xismo não era estudado na academia, embora fosse conhecido por
docentes de ciências sociais com militância política de esquerda.
Muito da pesquisa que se fazia nas ciências sociais, nos anos  e
, era formulada em termos dos chamados estudos de comunidade, de
inspiração funcionalista norte-americana. Em São Paulo, haviam sido
introduzidos por Donald Pierson, na Escola de Sociologia Política, e
por Emílio Willems, na . Na antropologia, particular mente, goza-
vam de grande aceitação, porque o mesmo método podia ser aplicado,
com poucas adaptações, tanto ao estudo das populações indígenas
quanto aos da nossa própria sociedade. Depois do afastamento de Emí-
lio Willems, Gioconda Mussolini continuou nesta linha, pesquisando as


comunidades caiçaras.1 Mesmo jovens sociólogos da , como Anto-
nio Candido, Maria Isaura Pereira de Queiroz e Oracy Nogueira fize-
ram trabalhos deste tipo. Assim, sociologia e antropologia estavam
muito próximas, movendo-se dentro de tendências teóricas e metodoló-
gicas que se superpunham.
De fato, revendo a produção desta época, considero que a contri-
buição dos estudos de comunidade para a compreensão da sociedade
brasileira não foi nada desprezível. Essas pesquisas de comunidade rea-
lizaram uma extensa etnografia da sociedade tradicional, estudando
bairros rurais, vilas e pequenas cidades em todas as regiões brasileiras:
na Amazônia, no sertão do Nordeste, no Recôncavo baiano, no Sudes-
te, nas comunidades de imigrantes estrangeiros de São Paulo e do Sul.
Tratou-se, de fato, de um grande levantamento da sociedade que estava
sendo rapidamente transformada pela industrialização e pela urbaniza-
ção do país. Paralelamente, ampliavam-se os estudos afro-brasileiros,
quase todos voltados para as religiões de origem africana.
Na sociologia da  iniciou-se, já na década de , sob inspiração
de Roger Bastide e Florestan Fer nandes, um movimento de mudança
nos temas de pesquisa que se dirigia da “velha” para a “nova” socieda-
de. Ao lado dos estudos sobre o negro, a escravidão, o coronelismo, o
cangaço e o messianismo, sobre os homens livres na velha civilização do
café, que captam a velha sociedade tradicional e o início de sua trans-
for mação, tomou corpo um crescente interesse pelo “novo” que eram
os operários, os empresários, a industrialização, a urbanização. Esta pas-
sagem da velha para a nova sociedade se deu, em São Paulo, através do
estudo das transformações associadas à economia cafeeira, com a subs-
tituição do trabalho escravo pelo trabalho livre. A preocupação teórica,
na sociologia da , voltou-se então para o desenvolvimento do capi-
talismo no Brasil e a constituição de uma nova estrutura de classes
sociais, que passaram a ser temas centrais nas pesquisas. A influência da
sociologia norte-americana, especialmente a da Escola de Chicago, foi
muito importante nesse período.
Mesmo os estudos sobre o negro, voltados até então para manifes-
tações da cultura africana no Brasil, tomaram um novo rumo, tanto na
sociologia como na antropologia, com a introdução dos temas das rela-

. Egon Schaden, com uma orientação um pouco diferente e mais influenciado pela etnolo-
gia alemã, estudava os índios Guarani e os imigrantes alemães.

 Introdução
ções raciais e do preconceito racial. Estimuladas pela , essas pes-
quisas se desenvolveram simultaneamente nos principais centros de
investigação então existentes: além de São Paulo, também Rio de Janei-
ro e Salvador. Em São Paulo, por influência de Florestan Fernandes, as
pesquisas apresentaram a peculiaridade de referir a questão das relações
raciais às novas preocupações com o desenvolvimento do capitalismo
industrial e a constituição da nova estrutura de classes. Apesar das dife-
rentes orientações, foram essas pesquisas que, no conjunto, destruíram
o mito da democracia racial no Brasil e reorientaram toda a visão do
problema do negro.
O início da minha carreira, ainda dentro do marco geral do fun-
cionalismo antropológico, demonstra bem esta mudança de temática.
Minha primeira pesquisa de campo (cap. ) trata de um movimento
messiânico ocorrido, com fins trágicos, numa pequena comunidade
rural no então sertão de Teófilo Otoni, em Minas Gerais. O messianis-
mo é um fenômeno recorrente no catolicismo brasileiro tradicional.
Neste caso, entretanto, tratava-se de um grupo de Adventistas da Pro-
messa, uma seita do pentecostalismo que era então novidade no Brasil.
Sua transposição para uma comunidade rural tradicional de meeiros
resultara do retor no de trabalhadores rurais da região, que haviam
migrado para a lavoura de algodão de Presidente Prudente e lá se con-
verteram – a velha e a nova sociedade estavam se encontrando.
Minha segunda pesquisa (cap. ), sobre imigrantes italianos em
São Paulo, que deu origem à minha dissertação de mestrado, capta um
outro momento: o de um “novo” que então já era passado. Trata-se do
início da transformação da economia cafeeira e da implantação do capi-
talismo no campo e na cidade, com a substituição do trabalho escravo
pelo trabalho livre. É uma pesquisa “histórica”, isto é, não se restringe
ao momento que a sociedade vivia quando a estudei. Também não
constitui simplesmente uma reconstrução de um momento do passado,
mas procura captar o processo de transfor mação na sociedade local e
regional que estava associado à inserção do imigrante, cobrindo mais de
meio século.
Minha pesquisa para o doutorado teve como objeto a migração
rural-urbana, estudada na cidade de São Paulo. Mais uma vez, tratava-
se de analisar um processo de mudança da sociedade tradicional para a
moderna, agora projetado ou refletido na saga dos migrantes rurais. As
transformações que estavam ocorrendo na sociedade constituem o pano


de fundo ou o contexto do processo. Mas o objetivo da investigação não
era analisar a urbanização ou a industrialização em si, como estavam
fazendo os sociólogos, mas, levando em conta esses trabalhos, investi-
gar o modo pelo qual ela modificava a vida e os ideais de atores concre-
tos que viviam esse processo ao mesmo tempo em que contribuíam para
a sua configuração.
Esses trabalhos não eram propriamente “estudos de comunidade”
nos moldes tradicionais, mas utilizavam a mesma orientação e os mes-
mos métodos e técnicas de pesquisa desenvolvidos pelos antropólogos
funcionalistas. Na sociologia da , ao contrário, o funcionalismo esta-
va sendo substituído por outras orientações teóricas e metodológicas.
De fato, com o interesse pelo processo de transfor mação que estava
alterando profundamente toda a sociedade brasileira, ao lado do uso de
técnicas mais quantitativas, características da sociologia norte-americana,
o marxismo começou a ganhar espaço na universidade, agora não mais
apenas como base para uma opção política exercida fora da vida acadê-
mica, mas como instrumental para a reflexão teórica e para a formulação
das novas pesquisas.
O marxismo promoveu uma dura crítica contra a sociologia positi-
vista francesa, que atingiu, igualmente, o funcionalismo antropológico,
por sua incapacidade de revelar a natureza do processo histórico de
mudança pelo qual passava a sociedade brasileira, que, nesta nova visão,
residia na luta de classes. O funcionalismo antropológico, de fato, não
continha uma teoria do capitalismo nem uma teoria da história, utiliza-
va um conceito empírico de classe social e privilegiava os processos de
integração, deixando em segundo plano o conflito e a dominação, fun-
damentais na análise marxista.
Trabalhando dentro de uma visão antropológica, entretanto, não
tive nenhum problema, em minhas pesquisas, em utilizar uma metodo-
logia e uma conceituação de base funcionalista para estudar processos
de mudança e conflitos sociais. Eu não tinha, é verdade, a pretensão de
que fosse possível, através desses estudos de base etnográfica, explicar
a natureza das forças sociais que estavam transfor mado a sociedade
brasileira. Mas os estudos limitados que eu empreendia precisavam ser
colocados em um contexto mais amplo do que aquele que resultava das
informações obtidas no contato direto com as populações que eu estu-
dava. Por esta razão, tanto no caso dos migrantes rurais como no dos
imigrantes italianos, houve um grande esforço, que não era avesso ao

 Introdução
método funcionalista tal como o praticávamos, em reconstruir o con-
texto histórico, econômico e social mais amplo dentro do qual os fenô-
menos que eu estudava estavam ocorrendo. A sociologia e a história
foram amplamente utilizadas, assim como os dados demográficos.
No caso da migração rural-urbana, tratava-se claramente de um
processo de redistribuição de população das regiões mais pobres para as
mais desenvolvidas, e senti a necessidade de compreender a sociedade
de origem dos migrantes e os mecanismos de sua expulsão. Voltei-me
assim, de novo, para a sociedade tradicional, a qual for necia a maior
parte dos contingentes migratórios. A segunda parte do livro A caminho
da cidade, que resultou dessa pesquisa, parcialmente reproduzida nesta
coletânea (cap. ), consiste na análise da sociedade rural brasileira tradi-
cional da qual a grande maioria dos migrantes provinha, cotejando as
informações obtidas nas entrevistas com a vasta bibliografia existente e
utilizando intensamente os estudos de comunidade e os relatos dos via-
jantes do século , cuja riqueza e importância passei a valorizar. A ter-
ceira parte do livro analisa o processo de migração propriamente dito,
isto é, o percurso que vai da zona rural para a urbana e utiliza ampla-
mente dados demográficos. Finalmente, a última parte trata do migran-
te na cidade. Há toda uma dimensão temporal nesse processo, assim
como alterações nas relações de trabalho e nas relações sociais. O artigo
“Os migrantes rurais” (cap. ) é um resumo desse processo.
A minha experiência de pesquisa me levou a acreditar que a crítica
que os sociólogos faziam em relação ao funcionalismo não fazia justiça
ao trabalho que estava sendo realizado pelos pesquisadores que podiam
ser classificados como funcionalistas. Claramente, no estudo de povos
tribais do interior da África, da Amazônia ou do Pacífico, não havia
suficiente documentação do passado (que se acumulou nas décadas pos-
teriores), e era isto que criava o “presente etnográfico”, isolado no tempo
e tão criticado pelos sociólogos convertidos ao marxismo. A transfor -
mação (e verdadeira destruição da sua cultura tradicional) pela qual
estavam passando estas sociedades vinha de fora delas, da expansão da
civilização ocidental e do colonialismo que lhe era próprio, e não po-
diam explicar a sua particularidade e unicidade. Por isto mesmo, seria
um verdadeiro pecado antropológico deixar de estudar a cultura tradi-
cional tal como ainda existia, para documentar sua destruição em curso.
Nem a análise da destruição poderia ser feita sem que se soubesse o que
estava sendo destruído. A crítica ao funcionalismo, aplicada a esse tipo


de trabalho, era improcedente, achava eu, pois ignorava os objetivos e
as peculiaridades do trabalho realizado pelos antropólogos com esse
tipo de sociedade, o qual estava voltado para documentar e compreen-
der o enor me espectro da diversidade humana. No caso das pesquisas
com grupos ou segmentos da nossa própria sociedade, como as que eu
fazia, a questão se apresentava de outra forma porque o processo de
transfor mação em curso se originava nesta mesma sociedade, fazia
parte da experiência de vida dessas populações, e era captado no traba-
lho de campo. A percepção desse processo emergia das entrevistas, mas
de forma limitada e parcial porque, ao contrário do que ocorria nas
sociedades primitivas, os informantes não possuíam uma visão suficien-
temente ampla da sociedade na qual viviam. Por isso mesmo, os dados
obtidos através do contato direto com essas populações precisavam ser
colocados num contexto mais amplo, utilizando outras fontes e outros
tipos de infor mação existentes em abundância e como resultado das
próprias pesquisas realizadas pelas ciências sociais.
Por outro lado, o funcionalismo antropológico também se preocu-
para em analisar a grande transfor mação social em curso e desenvol-
vera uma teoria da mudança centrada nos conceitos de aculturação e
assimilação. Mas nessa abordagem havia, de fato, uma inadequação ou
limitação muito maior para apreender a natureza dos processos globais
de transfor mação da sociedade, que ocorriam como resultado da
expansão do capitalismo e do colonialismo, e isto por duas razões. Em
primeiro lugar porque a utilização desses conceitos em geral pressupu-
nha uma situação na qual um dos grupos envolvidos era alvo passivo
do processo de transformação, sendo incorporado cultural e socialmen-
te por outro. Com esta conceituação, era difícil apreender a dinâmica de
um processo complexo no qual todos os atores são transfor mados e
todos contribuem para uma mudança em curso no conjunto da socieda-
de, como eu tentara fazer no estudo sobre os imigrantes italianos. Em
segundo lugar, a conceituação utilizada não dava conta da importância
crucial da dominação política e econômica que orientava todo o pro-
cesso de expansão das sociedades capitalistas e a destruição das socie-
dades tradicionais. Apesar disso, os estudos de assimilação e acultura-
ção haviam produzido alguns resultados positivos, embora limitados
a casos específicos, como na análise da imigração européia para os
Estados Unidos, no final do século  e início do século . Neste
caso, a absorção do imigrante em pé de igualdade com os cidadãos

 Introdução
americanos, com o abandono tanto da sociedade quanto da cultura de
origem, constituía não apenas o objetivo da política gover namental,
mas freqüentemente um ideal incorporado se não pela primeira, pelo
menos pela segunda geração dos imigrantes. O problema então era
definido em termos das dificuldades de adaptação da primeira geração.
Mas essa abordagem era claramente insuficiente para analisar o pro-
cesso global de industrialização, urbanização e constituição de uma nova
estrutura de classes como ocorria no Brasil e, ainda mais, o processo de
destruição das sociedades tradicionais ou “primitivas” que ocorria com
o colonialismo.
A ascendência do marxismo nas ciências sociais da  a partir do
final da década de , e o dogmatismo que muitas vezes o acompanhou,
deixaram a antropologia numa posição singular mente marginal, e os
antropólogos numa situação um tanto esquizofrênica. Afinal, no am-
biente de intensa politização que marca esse período, éramos todos
esquerdistas, empenhados em promover a revolução socialista para a
qual Marx oferecia o fundamento, a justificação e a receita. Com a ins-
tauração do regime militar, éramos todos defensores da democracia
contra o autoritarismo, e o marxismo era utilizado como fundamento
desta crítica. Mas o método dialético e os conceitos marxistas básicos,
como os de luta de classes, contradição, forças produtivas, materialismo
histórico, ideologia e capital, dificilmente se aplicavam e certamente não
elucidavam os fenômenos microssociais que os antropólogos estuda-
vam, quer se tratasse de povos “primitivos”, quer de grupos, segmentos
ou categorias da nossa própria sociedade.
Os conceitos marxistas não esclareciam as questões relevantes le-
vantadas pelas pesquisas de tipo antropológico como as minhas. Estas
não tinham como objetivo testar teorias e conceitos, mas utilizavam,
dentro do instrumental disponível, o que se mostrasse mais adequado
para as questões empiricamente colocadas. As perguntas que eu deseja-
va responder eram muito concretas: o que os meeiros do Catulé haviam
encontrado na religião que os levara à conversão? Quais os mecanis-
mos pelos quais os italianos haviam logrado se inserir na vida nacional
e prosperar, e em que medida haviam influenciado a transformação social
que havia ocorrido? O que levava os trabalhadores rurais a tomar a deci-
são de migrar, como formulavam suas expectativas, como decidiam sobre
onde ir, como se orientavam na cidade, como encontravam emprego?
Que visão tinham desse processo? Como o avaliavam? As grandes teorias


sobre o capitalismo for neciam um pano de fundo, mas não per mitiam
responder às perguntas que eu havia formulado. De fato, para esse tipo
de investigação, os métodos de pesquisa desenvolvidos pelos funciona-
listas dificilmente podiam ser substituídos, mesmo quando a teoria se
mostrava inadequada.
Minha posição era particularmente difícil. As três pesquisas que eu
tinha feito me haviam levado a atribuir uma grande importância à famí-
lia para a compreensão dos processos migratórios e das transformações
sociais e culturais que afetavam as populações envolvidas. Não comecei
essas investigações com um interesse especial pela família, mas sua im-
portância surgiu de forma espontânea nas entrevistas. Para os “meus”
meeiros do Catulé, italianos de Descalvado e migrantes rurais em São
Paulo, os grupos primários, especialmente a família, eram fundamentais
no modo como viviam o processo de transformação, porque era com os
parentes, os conterrâneos e os vizinhos que se orientavam no processo
migratório e estabeleciam, na cidade, os laços de sociabilidade e a rede
de informações dentro dos quais as decisões eram tomadas e se consti-
tuía sua visão da sociedade brasileira.
O tema da família não despertava nenhum interesse no ambiente
intelectual das ciências sociais da época – muito pelo contrário. A famí-
lia era vista como uma instituição retrógrada, condenada a ser destruí-
da na sociedade socialista e inteiramente irrelevante do ponto de vista
teórico: as forças transformadoras da sociedade residiam no operariado,
na constituição de uma consciência de classe, na organização sindical.
Mas os grupos ou categorias sociais que eu estava estudando não eram
operários clássicos e não se enquadravam bem numa abordagem funda-
da no conceito de classe. No caso de migrantes rurais, boa parte deles
era for mada de biscateiros, ou de trabalhadores do setor de serviços.
Dentro dessa concepção marxista, se aproximavam mais de um lumpen
proletariat. Seus sonhos eram a casa própria e o trabalho autônomo,
e mudavam de ramo ocupacional com extraordinária freqüência: em
curtos períodos de tempo, podiam passar de operários de fábrica a
vendedores ambulantes, motoristas de caminhão ou trabalhadores da
construção civil, ou mesmo fazer o caminho inverso. O que tinham
em comum era a baixa escolaridade, a ausência de qualificação profis-
sional e o salário parco. Na mesma família, as mais diferentes ocupa-
ções eram encontradas e, portanto, o conceito de classe operária, tão
valorizado na sociologia marxista, esclarecia muito pouco da dinâmica

 Introdução
do processo.2 A família, não sendo mais uma unidade de produção, con-
tinuava entretanto a ser uma unidade de consumo e ajuda mútua. O mar-
xismo não ajudava a analisar esses problemas, a não ser que se quisesse
“denunciá-los” como resultado de instituições retrógradas, que deviam
ser destruídas. O artigo desta coletânea intitulado “A família operária:
consciência e ideologia” (cap. ) retrata bem os dilemas desta época.
Os problemas que eu estava encontrando eram mais agudos para os
antropólogos que, como eu, trabalhavam com populações urbanas, para
quem o diálogo com a sociologia e a ciência política era fundamental, e
para estas disciplinas a referência à luta de classes e aos males do capita-
lismo parecia imprescindível. Muitas pesquisas antropológicas que
envolviam trabalho de campo com categorias ou grupos sociais específi-
cos tornaram-se, também, um tanto esquizofrênicas: todo o trabalho de
pesquisa e sua apresentação se organizavam dentro da tradição do traba-
lho de campo funcionalista, operando, embora não explicitamente, com
os conceitos de representação, função, significação, interrelação; mas as
teses e dissertações a que davam origem eram precedidas e ter minadas
com introduções e conclusões “marxistas”, de denúncia da ordem capi-
talista, utilizando conceitos estranhos àqueles que haviam sido utilizados
no trabalho de campo. Ou então havia uma renomeação de conceitos
tradicionais: fenômenos culturais, por exemplo, passaram a ser denomi-
nados “ideologia”. Falava-se até da ideologia do futebol, da ideologia
do candomblé. Alter nativamente, numa combinação esdrúxula, pensa-
va-se na “função” das práticas sociais para o capital, fazendo-se desta
forma a denúncia da exploração e da opressão. Não que não se pudesse
ou não se devesse demonstrar e assim denunciar as misérias da nossa
sociedade. Mas o fato é que a denúncia era exterior ao universo da pes-
quisa, independente dos métodos de investigação e dos conceitos nela
utilizados, dos valores e crenças da população pesquisada.
Isso me levou a trabalhar, paralelamente à realização de pesquisas
empíricas, com uma reflexão teórica que procurava identificar e valori-
zar a especificidade da antropologia, seus métodos de investigação e o
conceito de cultura, assim como a inadequação da teoria marxista para

. A questão de como designar este tipo de população urbana, com a qual os antropólogos
estavam cada vez mais envolvidos, constituía um problema sério. A solução acabou sendo a
de utilizar, em lugar de conceitos bem definidos como “burguesia” e “proletariado”, uma
denominação mais imprecisa, como “classes populares”.


muito do trabalho de campo que fazíamos. Ao mesmo tempo procu-
rava mostrar que muitos aspectos da teoria marxista eram relevantes
para a investigação antropológica; que não havia necessariamente uma
impossibilidade de comunicação entre o marxismo e a pesquisa antro-
pológica, que estavam voltados para dimensões diversas da realidade
social e, por isso, os instrumentos de um não eram adequados para a
investigação da outra. A relação entre ambos podia ser pensada como
de complementaridade, embora existissem diferenças difíceis de resolver,
como a que decorria do conceito funcionalista de relativismo cultural,
o qual se opunha à teoria marxista da história, com sua incorporação
do velho evolucionismo social de Morgan e com uma visão de progresso
própria do século .
Esta reflexão se tornou particularmente necessária para mim por-
que, logo após a reforma de , transferi-me com Ruth Cardoso para
o novo Departamento de Ciência Política, o qual, em virtude das cassa-
ções e perseguições políticas, havia sido reduzido a apenas dois professo-
res, estando ameaçado de inviabilidade institucional. O marxismo havia
se tornado dominante na reflexão da ciência política, e isto me levava a
tentar construir pontes teóricas que facilitassem a colaboração com as
linhas de investigação do departamento. A participação no Departa-
mento de Ciência Política alargou muito a base da minha reflexão teó-
rica, evitando um certo fechamento em relação às correntes de pensa-
mento que atravessam as ciências sociais, fechamento este que às vezes
caracteriza alguns grupos de antropólogos excessivamente voltados aos
limites de sua própria disciplina.
Esta nova postura refletiu-se em dois artigos que me pareceram, na
época, bastante importantes: “A dinâmica cultural na sociedade mo-
derna” e “Cultura e ideologia”, incluídos nesta coletânea (caps.  e ).
Todos eles procuravam legitimar o conceito de cultura no debate teó-
rico da época, precisando as diferenças entre o marxismo e a abordagem
antropológica.
Dediquei-me então, paralelamente às pesquisas que estava reali-
zando ou orientando, a fazer uma revisão crítica do funcionalismo clás-
sico, que já era então considerado ultrapassado. Eu estava convencida
de que, para entender a importância do conceito de cultura na teoria e
na prática antropológicas, e sua relação complementar e indissociável
com o conceito de sociedade, era preciso repensar o funcionalismo, o
sentido da revolução que ele havia operado, e analisar em que medida

 Introdução
seus pressupostos eram ainda incorporados nas abordagens mais recen-
tes. Sem isso, acreditava eu, era impossível entender os rumos que a
antropologia estava seguindo.
Empreendi então o trabalho de análise das monografias de Bronis-
law Malinowski, um dos pais do funcionalismo clássico, autor pelo qual
sempre tive uma grande admiração. Decidi trabalhar com a obra etno-
gráfica e não com a produção teórica porque minha experiência com o
funcionalismo me convencera de que era na etnografia que se revelava
sua verdadeira riqueza. Esse trabalho deu origem a minha tese de livre
docência e ao livro A reconstrução da realidade: um estudo da obra etno-
gráfica de Bronislaw Malinowski, além de diversos artigos, um dos quais
está incluído nesta coletânea (cap. ). O que me perguntava era: se o
funcionalismo é tão limitado, como é possível que, com ele, um autor
como Malinowski nos forneça uma visão tão instigante de uma socieda-
de diferente da nossa e seja capaz de apontar processos culturais e prin-
cípios básicos da vida social que também estão presentes, mas invisíveis,
na nossa sociedade? Certamente, o fenômeno da troca de presentes e o
conceito de reciprocidade que Malinowski for mulou e analisou (antes
de Marcel Mauss e de Lévi-Strauss) foram muito importantes para re-
pensar a história econômica e destruir o conceito de homo economicus,
que haviam sido dominantes na época. Igualmente importantes me pare-
ciam as análises de Malinowski do processo de trabalho e das formas de
propriedade. Para a reflexão que fazíamos na  na década de , e para
o diálogo com o marxismo, estes conceitos podiam estabelecer uma
ponte para a discussão dos modos de produção pré-capitalistas. Leva-
vam também a repensar as for mas de sociabilidade, especialmente no
que diz respeito aos conceitos de comunidade e de solidariedade orgâni-
ca. Igualmente relevante era a demonstração que Malinowski realizara
da importância do ritual e da magia na organização do trabalho e dos
empreendimentos coletivos, que apontava para as dimensões simbólicas
necessárias da troca, do trabalho, da propriedade e do conjunto da vida
social. Por outro lado, sua análise da organização do parentesco numa
sociedade matrilinear constituía uma contribuição fundamental para a
desnaturalização da família ocidental, e desafiava a psicanálise.
Em suma, para mim a produção etnográfica de Malinowski e de
outros antropólogos funcionalistas colocava questões fundamentais para
qualquer teoria sobre a vida em sociedade, criando um tipo de investiga-
ção através da qual os homens e as mulheres não se apresentavam como


meras abstrações, mas como seres vivos e atuantes. O trabalho etnográ-
fico per mitia compreender como construíam e manipulavam, na vida
social, as leis e as regras que eles próprios haviam constituído, constatar
a intensidade dos conflitos e o fundo emocional das motivações, a fre-
qüência das transgressões, a engenhosidade dos artifícios criados para
superar contradições. Tudo isto constitui uma parte fundamental de
nosso esforço em compreender o ser humano em geral e a especifici-
dade de cada cultura, embora fosse difícil, naquela época, convencer os
alunos e alguns colegas, todos marxistas, de que isto era relevante diante
da marcha do capitalismo para a revolução socialista.
Na verdade, embora o método funcionalista houvesse envelhecido,
sobreviveram dele os pressupostos básicos da pesquisa antropológica
que, até hoje, não foram abandonados e são essenciais para o trabalho
de campo: o relativismo cultural e a inter-relação entre os diferentes as-
pectos da cultura e a integração entre ação e representação. Com eles,
podem-se fazer estudos os mais variados e reformular constantemente
conclusões de pesquisas anteriores.
A análise da obra de Malinowski, centrada na sua produção etno-
gráfica, esclareceu outro problema: que conceitos são instrumentos
mais ou menos perfeitos e mais ou menos versáteis. Não basta pergun-
tar qual a sua definição teórica. É necessário analisar de que formas eles
podem ser utilizados. Tomemos os célebres conceitos funcionalistas de
função, integração e totalidade. No trabalho etnográfico, o que Mali-
nowski faz não é indagar qual a função de cada ato ou instituição social.
Aliás, a própria palavra “função” aparece muito raramente. O conceito
de função serve antes a dois outros objetivos. Remetendo ao conceito de
totalidade, operacionaliza a concepção de que a vida social e cultural
não é um conjunto de fragmentos autônomos, mas constitui uma teia de
significados integrados (o que não significa admitir forçosamente que
tudo esteja relacionado com tudo); a integração também não pressupõe
necessariamente perfeita har monia, porque ela própria produz confli-
tos. Por meio do conceito o pesquisador é levado a analisar para cada
tema, problema ou instituição, a inter-relação entre diversos aspectos
da cultura, servindo assim para mostrar a imbricação dos aspectos cultu-
rais, sociais, econômicos e políticos na vida social diretamente observável.
O conceito de totalidade não é portanto um resultado a ser alcançado,
mas um pressuposto para analisar a multidimensionalidade do vivido
humano, tomando como objeto de análise aquelas unidades empíricas

 Introdução
que Malinowski denominou “instituições”, e que se assemelham ao que
Mauss denominou “fatos sociais totais”. Ela remete à reconstrução da
visão que “os nativos” têm de sua própria sociedade, mas não se limita
a ela, expandindo-se para a análise de forças sociais e culturais atuantes
(também reveladas pela utilização do conceito de função), que não estão
na consciência daqueles que vivem esta realidade social.
O funcionalismo, entretanto, apresenta outra vertente, o da antro-
pologia social inglesa, a qual se desenvolveu num sentido diferente, e
era importante na minha reflexão porque dizia respeito à relação entre
os conceitos de cultura e sociedade. Na antropologia social de inspira-
ção durkheimiana, tal como foi formulada por Radcliffe-Brown, o con-
ceito central não é o de cultura, mas o de sociedade. A investigação uti-
liza o conceito de função para descobrir a estrutura e a organização
social de um povo. A unidade de referência não é o costume ou padrão
cultural, mas as relações sociais. Os costumes constituem antes o ponto
de partida para reconstruir sistemas de relações, e os estudos sobre o
parentesco forneceram o paradigma desta abordagem.
Nas sociedades pré-letradas, parentesco e organização política são
os esteios ou andaimes da vida social, sobre os quais se ordena e apóia a
análise dos fenômenos culturais. Por isso mesmo, o estudo do parentesco
sempre foi importante na antropologia, desde o evolucionismo. A grande
descoberta da antropologia social foi a de que o parentesco, elemento
fundamental da organização dessas sociedades, utiliza princípios estru-
turais de número limitado. A combinação desses princípios (descendên-
cia, consangüinidade e afinidade) estabelece estruturas em grande parte
autônomas em relação ao conteúdo cultural das relações sociais que
organiza e que, apesar de serem muito complexas, podem ser encontra-
das em sociedades diferentes, sem contato histórico entre si, com siste-
mas produtivos e nível tecnológico diversos. Assim, caçadores de bisão
da América do Norte, pastores ou agricultores da África, cultivadores da
Oceania, coletores e caçadores da Austrália podem ter um mesmo sistema
de parentesco. Trata-se, portanto, de princípios realmente a-históricos,
que só podem ser compreendidos como decorrência do próprio funcio-
namento da mente humana, e isto dificilmente se coaduna com uma
visão marxista ortodoxa do primado da infra-estrutura e da “deter mi-
nação em última instância” pelo econômico. Tampouco se coaduna com
um relativismo cultural absoluto, pois existem princípios gerais de cuja
combinação resultam estruturas recorrentes.


De fato, os evolucionistas já haviam descoberto estes princípios e
estas regularidades, mas a análise que empreenderam se desenvolveu no
sentido de buscar a explicação em sua localização numa ordem evoluti-
va. A antropologia social abandonou a falsa temporalidade do evolucio-
nismo e concentrou a atenção nas características estruturais do sistema,
responsáveis pela sua recorrência, retomando o método comparativo que
o funcionalismo culturalista abandonara.
A teoria e a metodologia envolvidas nessa abordagem, assim como
a análise desses sistemas, são freqüentemente apresentadas em alguns
artigos teóricos. Mas o verdadeiro trabalho antropológico se realiza nas
monografias etnográficas, cada uma das quais testa, corrige e amplia os
resultados das monografias anteriores, apresentando novos aspectos e
novas descobertas. Analisando estruturas sociais, elas acrescentam ao
particularismo das culturas uma possibilidade de comparação. As etno-
grafias se tornam assim uma discussão permanente entre os pesquisado-
res, criando algo parecido com uma obra coletiva.
A combinação das abordagens culturalistas, de inspiração malinows-
kiana ou boasiana, e as da antropologia social, derivada de Radcliffe-
Brown, permitiu a elaboração de monografias de enorme originalidade
teórica porque, ao mesmo tempo em que analisam as peculiaridades cul-
turais de cada povo, permitem a construção de estruturas ou sistemas de
relações sociais comparáveis.
A monografia de Evans-Pritchard sobre os Nuer, povo pastor do
Sudão, é talvez o melhor exemplo da riqueza de análise que esta combi-
nação permite. Seu ponto de partida é uma questão propriamente cultu-
ral, que diz respeito à importância do gado para os Nuer. O gado é
riqueza, prestígio, segurança, objeto estético e afetivo, inspiração poéti-
ca. O gado paga o preço da noiva e é necessário para o casamento que
marca a vida adulta. É objeto de sacrifício que estabelece a comunicação
com o sobrenatural. O gado é uma obsessão para os Nuer, e per meia
toda sua vida social. Tomando o gado como ponto de partida, é possí-
vel integrar a análise de diferentes dimensões da vida social. Em primei-
ro lugar, a ecologia, pois o pastoreio constitui uma forma específica de
adaptação ao ambiente natural, que implica organizar a vida social em
função das estações que determinam a transumância. A própria percep-
ção do tempo é estabelecida a partir da regularidade das atividades
necessárias ao cuidado para com o gado; trata-se de um tempo circular,
repetitivo e a-histórico. Mas a movimentação neste território é organi-

 Introdução
zada em função de unidades territoriais que formam grupos sociais. Por
outro lado, a organização desses grupos em unidades de amplitude cres-
cente está associada ao sistema de parentesco estruturado em classes,
linhagens e sub-linhagens. Este sistema dá forma a essa sociedade seg-
mentada, sem nenhum poder político central, através da oposição
entre segmentos de amplitudes diferentes, que cria e controla os con-
flitos estruturais. O princípio estrutural subjacente é o da amplitude
relativa das distâncias estruturais num sistema de oposições. Todo o
conceito de solidariedade mecânica e orgânica de Durkheim precisou
ser revisto a partir deste trabalho de Evans-Pritchard, e o conceito de
distância estrutural que ele elabora tem uma aplicação muito geral na
análise dos mais diversos agrupamentos sociais. Além disso, a defini-
ção destas distâncias estruturais é for mulada, pelos Nuer, em função
de relações genealógicas que constituem o arcabouço de um tempo
“histórico” não circular.
O conceito de função, nesta abordagem, é utilizado constan-
temente de maneira implícita, para “costurar” os aspectos culturais
sociais, ou tecê-los para a reconstrução de uma totalidade dotada de
lógica e significação.
Analisando, com o olhar de hoje, o conjunto dos trabalhos que
escrevi, percebo que o tempo todo estive tentando realizar esta costura,
em que o social fornece a armação dentro da qual a amplitude, as varia-
ções e a dinâmica dos significados se explicitam. Apesar da minha admi-
ração por Malinowski, a influência da antropologia social britânica foi
muito maior na formulação da minha visão de antropologia.
No conjunto, a análise que realizei do funcionalismo consistiu
muito mais na recuperação de problemas fundamentais que ele havia
colocado do que na adesão à teoria que havia formulado. E o problema
central para mim residia na relação dinâmica entre ação e representa-
ção, ou melhor, na sua indissociabilidade. A especificidade da antropo-
logia, tal como eu a concebia, consistia na tentativa de apreender essa
dinâmica no modo como seres humanos empiricamente definidos in-
cessantemente constroem e reconstroem coletivamente sua própria
existência, atribuindo-lhe significação. A apreensão desse processo de
construção e reconstrução envolve necessariamente o reconhecimento
de sua multidimensionalidade, pois nele as for mas de sociabilidade, a
produção material e simbólica e a realidade pervasiva do poder estão
simultaneamente presentes e imbricadas.


Há ainda outra questão, que não foi suficientemente explicitada: é
que os sistemas de representações, presentes na ação, estão organizados
em função de valores, isto é, atividades ou produtos culturais emocio-
nalmente carregados, como o são o kula, a produção agrícola e a gene-
rosidade para os trobriandeses, o gado e a autonomia do homem adulto
para os Nuer, a união para os meeiros do Catulé, o trabalho, a poupan-
ça e a família para os imigrantes italianos, a casa própria e o trabalho
autônomo para os imigrantes rurais. Este conteúdo afetivo é parte inte-
grante do significado dos fenômenos culturais.
Foi sobre esta base, construída na reflexão sobre o funcionalismo,
que incorporei, de modo seletivo, as contribuições e orientações antropo-
lógicas pós-funcionalistas. De fato, se o marxismo dominava as ciências
sociais da , na antropologia estavam ocorrendo desenvolvimentos
teóricos importantes em outras direções.
De todas elas, a mais importante e a mais antiga foi certamente a
do estruturalismo de Lévi-Strauss, que Ruth Cardoso já introduzira na
 na década de , e cuja influência crescia paralelamente à do mar-
xismo. Minha familiarização com a obra de Lévi-Strauss começou com
a leitura do seu primeiro grande livro, As estruturas elementares do
parentesco, incorporado nos cursos teóricos que ministrávamos, Ruth
Cardoso e eu, em seqüência à obra de Radcliffe-Brown. Nesse trabalho,
Lévi-Strauss retomava os temas clássicos do tabu do incesto e da oposi-
ção entre natureza e cultura, mas alterava profundamente as teorias da
antropologia social britânica, introduzindo o conceito de troca de mu-
lheres e de reciprocidade, este último inspirado em Marcel Mauss. Mas
há ainda uma continuidade com as linhas tradicionais da antropologia
social britânica.
A partir desta base, entretanto, as obras subseqüentes de Lévi-
Strauss, inspiradas na lingüística, estabelecem uma ruptura que consis-
te em liberar o conceito de estrutura de sua matriz original, o parentes-
co e a sociedade, para aplicá-lo à análise daquelas dimensões da cultura
mais afastadas das práticas materiais: a mitologia e o ritual. A análise se
processa, então, dentro da dimensão puramente simbólica. Assim, Lévi-
Strauss constrói uma teoria do simbolismo. O estruturalismo lévi-straus-
siano operou uma verdadeira inversão das orientações metodológicas
que marcavam tanto a sociologia francesa, da qual ele provinha, como a
antropologia funcionalista e o marxismo – em todas elas, a explicação da
produção simbólica própria do homem era feita em termos do contexto

 Introdução
social do qual emergia. Esta inversão fica muito clara quando Lévi-
Strauss afirma, criticando Durkheim, que o erro fundamental deste autor
foi o de procurar as bases sociais do simbolismo quando, ao contrário, era
necessário reconhecer a fundamentação simbólica da vida social.
A utilização do conceito de estrutura, aplicado aos sistemas simbó-
licos, per mitiu realizar nesse campo o mesmo percurso seguido pelos
antropólogos britânicos na análise dos sistemas sociais, isto é, utilizar
material etnográfico para definir relações de oposição que podem ser
estudadas comparativamente, independentemente de seu conteúdo; os
termos (e, portanto, aquilo que é único em cada cultura) deixam de ter
importância porque seu significado reside nas relações de oposição
recorrentes entre termos de conteúdo diverso. Isto permite a utilização
intensiva do método comparativo para a formulação de estruturas cada
vez mais gerais e abstratas, concentrando-se na explicitação dos códigos
com os quais se constroem os sistemas simbólicos. Trata-se de algo
totalmente diferente do marxismo, mas cujo rigor teórico (ao contrá-
rio do que ocorria com o funcionalismo) impedia que fosse descartado
como irrelevante.
O for malismo crescente do estruturalismo distanciava-se pro-
gressivamente do tipo de reflexão até então dominante na antropolo-
gia, na qual o debate teórico se travava no seio mesmo da produção das
monografias etnográficas, no estudo de povos, culturas, grupos ou
categorias sociais empiricamente delimitados. A etnografia é utilizada
apenas como fonte para um trabalho comparativo sobre o qual são
construídas as interpretações teóricas, que estão voltadas para o des-
vendamento dos princípios de construção dos sistemas simbólicos.
Neste movimento, Lévi-Strauss deixa de se preocupar com os proble-
mas centrais colocados pelo funcionalismo, que dizem respeito ao
modo como grupos humanos concretos de fato vivem e à multidimen-
sionalidade dos fatos sociais.
Este intelectualismo não podia deixar de perturbar os antropólo-
gos formados na tradição do trabalho de campo, da preocupação com a
unicidade de cada cultura. Para mim, particular mente, incomodava o
abandono da dimensão do trabalho humano, da ação do homem na
transfor mação material da natureza e da sociedade. Mas o alcance e o
rigor da obra de Lévi-Strauss não podiam ser ignorados, pois haviam
construído um instrumento fundamental para a análise da imensa rique-
za da produção simbólica das sociedades humanas.


Ocorre então, dentro da antropologia, um movimento inverso ao
que Lévi-Strauss realizou, afastando-se do material etnográfico: trata-
se de incorporar os métodos de análise estruturalista no próprio trabalho
de campo, no qual continuava a tentativa de apreensão das especifici-
dades do modo de vida de cada grupo.
A obra de Victor Turner ilustra bem este caminho “inverso”, e foi
muito influente na antropologia da , não só por isto, mas pela cons-
trução de novos conceitos, como os de liminaridade, estrutura e anti-
estrutura, dramas sociais e communitas, de larga aplicação no estudo de
fenômenos da nossa própria sociedade.
Eu me incluo nesta orientação: presa ao meu interesse em entender
como grupos ou segmentos sociais empiricamente delimitados vivem,
atuam e pensam, o estruturalismo foi um auxiliar precioso, mas não
orientação central nas minhas pesquisas e reflexões teóricas.
Há pelo menos duas outras influências francesas importantes na
antropologia da , próximas aos meus interesses: a de Georges Balan-
dier e Pierre Bourdieu.3
Meu interesse por esses dois autores deriva do fato de que ambos,
de maneira diversa, produzem uma reflexão teórica que inclui uma
refor mulação do marxismo e se encaminha no sentido de recuperar a
multidimensionalidade dos fenômenos sociais.
Balandier parte de uma questão bastante delimitada, a qual, entre-
tanto, era de importância crucial para a sociedade e a política francesas
após a Segunda Guerra Mundial: o colonialismo europeu na África e a
tragédia da guerra na Argélia. Analisando diretamente o colonialismo,
Balandier reflete exatamente sobre a questão em relação à qual a antro-
pologia funcionalista se mostrara mais incompetente, isto é, a natureza
do processo mundial de destruição das sociedades tradicionais e das
culturas não ocidentais, abandonando o pântano no qual haviam mer-
gulhado as tentativas de produzir uma teoria da mudança cultural ba-
seada nos antigos conceitos de assimilação, aculturação, marginalidade.
O grande passo inovador foi dado com o conceito de situação colonial, no
qual estão imbricados a dominação política, a exploração econômica, as
diferenças culturais e o preconceito racial, num sistema de relações anta-
gônicas. A influência de Balandier foi mais direta sobre os antropólogos

. No Rio de Janeiro, um outro autor francês teve uma importância muito grande: Louis
Dumont. Na , entretanto, sua influência foi marginal.

 Introdução
que estudavam as populações indígenas e as relações interétnicas, mas
a reflexão teórica tem alcance muito mais geral, porque recupera a
questão da multidimensionalidade num contexto que a antropologia
não podia ignorar.
Trata-se da dinâmica criada pela expansão do capitalismo, com os
mecanismos de dominação, espoliação, transfor mação social e amplia-
ção das desigualdades que lhe são próprios e que alcançam hoje todas as
sociedades humanas. Mesmo quando esta questão central não constitui
o objetivo das pesquisas antropológicas, ela configura um contexto
sempre presente. Para mim esta referência foi sempre fundamental.
Pierre Bourdieu apresenta outra opção, ainda dentro da problemá-
tica da imbricação entre o social, o político, o econômico e o cultural,
que envolve a crítica à trilogia das orientações dominantes nas ciências
sociais contemporâneas. Na sociologia da , a trilogia era constituída
por Durkheim, Weber e Marx, com a predominância deste último. Para
mim, a trilogia envolvia o funcionalismo antropológico, o marxismo e o
estruturalismo de Lévi-Strauss. Bourdieu insere a trilogia dentro de uma
oposição básica entre um modo de compreensão fenomenológico subje-
tivista (no qual estaria o funcionalismo antropológico), e um objetivis-
mo no qual se enquadrariam, em posições opostas, Marx e Lévi-Strauss.
Bourdieu estabelece a ligação entre os dois pólos com os conceitos de
estruturas estruturantes (no pólo da fenomenologia) e estruturas estru-
turadas (no pólo dicotômico representado por Marx e Lévi-Strauss).
O conceito de habitus é o operador metodológico que permite trabalhar
com esta relação nas pesquisas empíricas. Além disso, a abordagem de
Bourdieu, como a de todos os sociólogos franceses, atribui uma impor-
tância central à questão do poder, como elemento crucial das limitações
que se apresentam para os atores sociais na construção de suas práticas.
As estruturas estruturadas, que organizam os habitus, são apreendidas,
na prática da investigação, através dos conceitos de capital econômico,
capital social e capital cultural, como fundamentos de alocação na
estrutura de classes. Para mim, Bourdieu foi uma referência teórica
importante, mas o tipo de trabalho de campo que empreendeu, muito
voltado para a análise das classes sociais, se distanciava das pesquisas
que eu fazia.
De todos os autores pós-funcionalistas, o que mais influenciou
meu trabalho e a minha reflexão foi Clifford Geertz, tanto por suas for-
mulações teóricas como por seus trabalhos de pesquisa. O artigo sobre


a briga de galos em Bali foi quase de leitura obrigatória tanto para os
meus alunos como para os de Ruth Cardoso. Utilizei mais a sua formu-
lação de que os padrões culturais são, simultaneamente, “modelos de” e
“modelos para” o comportamento social, do que os conceitos de “estru-
tura estruturada” e “estrutura estruturante” de Bourdieu, porque tra-
duziam mais de perto minha concepção de dinâmica social, expressa na
relação entre trabalho morto e trabalho vivo, que emprestei de Marx,
utilizando-a como metáfora. Por outro lado, o conceito de descrição
densa, que ele for mulou, enriqueceu a própria concepção de trabalho
etnográfico com o qual eu trabalhava.
Os autores e as influências são muitas para serem citadas, embora
minha admiração por Marshall Sahlins, especialmente por seu livro
Ilhas de história, deva ao menos ser mencionada.
Estes trabalhos e influências foram utilizados e reelaborados na
antropologia brasileira, e há um grupo significativo de antropólogos
que incorpora essas contribuições em pesquisas muito inovadoras, nas
quais rompem definitivamente as limitações do funcionalismo como
instrumento de análise.
Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que todas essas novas ten-
dências davam nova amplitude teórica à antropologia, ela começou a
ser valorizada exatamente do outro lado, por uma nova importância que
assumiu o trabalho etnográfico de cunho tradicional. O lugar marginal
que a antropologia havia ocupado nas ciências sociais da  derivara,
em parte, do fato de que seus objetos de estudos eram, majoritariamen-
te, marginais à sociedade capitalista: índios, tribos africanas em geral,
favelados, pobres, remanescentes das sociedades rurais tradicionais como
meeiros e parceiros, gangues juvenis, negros, cultos afro-brasileiros e
práticas religiosas as mais diversas, periferias urbanas, famílias, festas
e carnaval, curandeirismo, minorias étnicas de todos os tipos. No Brasil,
foi com a lenta abertura política dos anos  que todos estes “margi-
nais” passaram a desempenhar novos papéis políticos, fora dos sindica-
tos e dos partidos. Foi então que muitos cientistas sociais, especialmente
os mais jovens, desesperançados com a vitória dos regimes capitalistas
e desapontados com a aparente falta de capacidade do proletariado de
exercer o papel de classe revolucionária, passaram a ver esses novos
atores, sem clara posição de classe, como os verdadeiros contestadores
de regime vigente e esperança de um amplo movimento de luta contra
a sociedade injusta e autoritária. Romanticamente, eram vistos como o

 Introdução
“povo em movimento”, e a tarefa a que muitos jovens cientistas sociais
se dedicaram foi a de voltar-se para estes grupos tradicionalmente estu-
dados pelos antropólogos.
O marxismo havia se dedicado a analisar o capitalismo, descobrir
as contradições internas que promoveriam sua destruição, e explorá-las
para acelerar a revolução socialista. Agora, não se tratava mais de ana-
lisá-lo e descobrir por que – ao contrário do que se havia esperado –
parecia cada vez mais vigoroso. O papel do cientista social passou a ser,
para muitos, o de simples denúncia, de mera demonstração da existên-
cia da desigualdade e da injustiça na nossa sociedade, o de “dar voz aos
oprimidos”. Criou-se a imagem reificada de uma sociedade ideal, ou de
um ideal de sociedade e boa parte da interpretação consistia em mostrar
que a realidade deixava muito a desejar porque não se ajustava à ima-
gem que havia sido construída. A pesquisa se empobreceu.
De fato, o engajamento político dos anos ,  e  havia produ-
zido uma mudança muito grande na postura dos pesquisadores, espe-
cialmente os mais jovens. Escrevi, num dos meus artigos, que a obser-
vação participante, que constituíra o cerne da investigação etnográfica, se
transformara em participação observante, resvalando para a militância.
A simpatia compreensiva, que é parte integrante da pesquisa de campo,
foi substituída por uma necessidade de identificação política com a po-
pulação ou grupo investigado. Essa identificação dificultava ou mesmo
impedia a percepção dos limites da atuação dos grupos ou categorias
sociais que estavam sendo estudados, das discrepâncias entre o discurso
e a prática, da violência e do autoritarismo que podiam estar presentes no
interior dos grupos, como era feito na antropologia tradicional. A de-
núncia de injustiças da ordem social vigente substituiu a reflexão sobre
a vida social, com sua complexidade e contradições.
Durante esse período, no final da década de  e início dos anos
, Ruth Cardoso e eu, com nossos alunos de pós-graduação, traba-
lhávamos com a população das periferias urbanas e com os movi-
mentos sociais. Por iniciativa dela organizamos então um seminário
conjunto, teórico e prático, que incluía a preocupação em recuperar o
rigor e a riqueza multifacetada do trabalho de campo, não confundin-
do a investigação com a militância, a reflexão com a mera denúncia.
Isso nos levou a considerar com muitas reservas a outra tendência que
estava se generalizando: em parte talvez devido à influência crescente
das ciências da linguagem e à posição de Lévi-Strauss de privilegiar a


dimensão simbólica, e em parte pelo desejo de “dar voz aos oprimi-
dos”, muitos jovens cientistas sociais foram levados a interpretar lite-
ralmente a afir mação de Geertz de que a cultura é um texto e cabe ao
antropólogo decifrá-lo. Inspirados nessa imagem, os pesquisadores
praticamente reduziram a investigação a entrevistas gravadas com
informantes, que foram vistos como sendo “o texto”. A valorização da
pesquisa qualitativa, em muitos casos, levou a um total abandono dos
métodos quantitativos.
Entrevistas são instrumentos preciosos e indispensáveis para com-
preender as representações que os grupos que estudamos constroem
sobre a realidade em que vivem, sobre o mundo tal qual o compreen-
dem. Mas são fontes limitadas de infor mações. A memória dos infor -
mantes é parcial e seletiva, e os relatos são construídos para passar
uma visão positiva da sua atuação presente e do seu passado. Por isso
mesmo, são inteiramente insuficientes para que se possa apreender a
natureza e a dinâmica das forças sociais que estão alterando violenta e
aceleradamente a nossa sociedade, e portanto insuficientes para enten-
der inclusive o lugar do qual esses atores falam. Entrevistas precisam
ser controladas por outras fontes: dados históricos, demográficos, polí-
ticos e econômicos que os infor mantes desconhecem; pelo confronto
com a observação da vida cotidiana e a análise dos conflitos; pelas con-
seqüências que as ações provocam; pelo levantamento de posições e
observações diferentes de participantes que ocupam posições diversas
no sistema; pela distância entre o que os infor mantes dizem e o que
fazem. Nem sempre se tomava esse cuidado, e eu mesma examinei teses
e li trabalhos nos quais todo o material empírico se reduzia a pouco mais
que uma dúzia de entrevistas.
Escrevi então quatro trabalhos que refletiam minhas preocupações
com os novos rumos da pesquisa social: “Movimentos sociais” (cap. ),
“O lugar do índio” (cap. ), “A pesquisa antropológica com populações
urbanas” (cap. ) e “A sociedade vista da periferia” (cap. ).
Nessa mesma época, o movimento feminista havia dado nova legi-
timidade ao tema da família, campo ao qual eu havia me dedicado
durante muitos anos. Entretanto, o objetivo do feminismo era diferente
do meu: era denunciar a família como núcleo da opressão dos homens
sobre as mulheres e base da desigualdade entre os sexos. Minha reflexão,
já antiga, ia em outro sentido: o de procurar entender por que ela con-
tinuava a ser tão importante para as populações que estudávamos.

 Introdução
Escrevi então, sobre este tema, outro trabalho também incluído neste
livro: “Família e reprodução humana” (cap. ).
Já começava então, no final dos anos , um desdobramento da
posição de “dar a voz aos oprimidos”, de densidade teórica maior, que
se centrou no problema da relação sujeito-objeto nas ciências sociais.
Esta tendência, entretanto, deu origem a uma versão simplificada
da crítica pós-moder na ao positivismo, na qual, em nome de evitar a
transformação do grupo estudado em “objeto” (o que constituiria uma
posição autoritária e positivista), colocando o autor como um observa-
dor externo dotado de toda a objetividade e de todo o saber, a pesquisa
passa a ser vista como resultado de uma colaboração entre pesquisador
e pesquisado. Esta colaboração sempre foi indispensável no trabalho de
campo. Mas agora se tratava de transformá-la em co-autoria. Tenta-se
criar um novo estilo na elaboração dos trabalhos que traduzisse mais
fielmente os depoimentos obtidos nas pesquisas, reproduzindo-o com
suas lacunas e incongruências e no modo fragmentado pelo qual são
apresentados. Paradoxalmente, isso dá origem a um narcisismo dos pes-
quisadores. As monografias passam a dedicar um espaço cada vez maior
à descrição do modo pelo qual o trabalho foi feito, às angústias do pró-
prio autor: sua posição, suas dúvidas, suas relações com os informantes,
suas preocupações em transcrever fielmente as declarações dos entre-
vistados e, finalmente, seu esforço para evitar interpretar e ordenar o
que está sendo dito.
Associada a esta tendência desenvolveu-se uma outra, principal-
mente nos Estados Unidos e entre minorias étnicas, segundo a qual, para
estudá-las, é necessário fazer parte delas. Negros devem ser estudados
por negros, chicanos por chicanos, homossexuais por homossexuais. Uma
pessoa de fora do grupo precisa de permissão expressa e deve submeter
suas interpretações ao grupo, o qual tem o direito de censurá-las. Ne-
nhuma imagem negativa deve ser divulgada. Há pouco tempo, li numa
revista americana que uma antropóloga havia firmado um contrato desse
tipo com um grupo indígena. É como se cada grupo tivesse o monopólio
do conhecimento de si próprio, o único “sujeito” autorizado a produzir
conhecimentos sobre si mesmo.
O absurdo desta última posição, que constitui uma exacerbação da
tentativa de análise da oposição sujeito-objeto, fica patente de imediato
quando se propõe sua universalização. Dentro desta orientação, apenas
nazistas poderiam estudar o nazismo, apenas empresários teriam legiti-


midade para analisar empresas, políticos teriam o monopólio de falar
sobre si próprios. Além disso, esta postura metodológica praticamente
invalida toda pesquisa histórica (cujos “sujeitos” estão mortos) e boa
parte daquela que faz parte das ciências sociais, como a demografia, as
análises eleitorais e dos partidos políticos, isto é, todas as pesquisas
quantitativas nas quais os “sujeitos” aparecem como porcentagens.
Há um imenso mal-entendido sobre tudo isso e nessa visão de co-
autoria, pois se confunde a vivência ou o senso comum (ou mesmo o
bom senso popular) que os depoimentos expressam com o conhecimen-
to sistematizado e controlado, que é tarefa das ciências sociais. Nossos
“objetos” de pesquisa são, certamente, sujeitos e autores de sua história,
mas não da pesquisa antropológica. O que caracteriza o conhecimento
científico é sua diferença em relação ao senso comum no modo como é
produzido. Uma coisa é praticar um ritual com fé. Outra é a análise
estrutural do processo ritual. Uma coisa é falar uma língua. Outra é a
análise lingüística. Trata-se de outro tipo de conhecimento, especializa-
do, que exige for mação profissional, conceitos, práticas e teorias pró-
prias. É por isso, inclusive, que um certo grau de exterioridade do
observador é fundamental. O método por excelência do trabalho de
campo desenvolvido pelos antropólogos funcionalistas reside no que
Malinowski denominou “observação participante”. Ele foi desenvolvi-
do exatamente para superar a exterioridade excessiva do antropólogo
tradicional. O antropólogo pré-funcionalista trabalhava com uns pou-
cos infor mantes, através de intérpretes e, às vezes, visitava perfuncto-
riamente as aldeias. A observação participante exige que o pesquisador
conviva com a população estudada, fale sua língua e, à medida que
obtém a confiança do grupo, participe de sua vida cotidiana, dos seus
rituais e cerimônias. Mas ele não é, a não ser às vezes, ritual ou metafo-
ricamente um membro do grupo. Os poucos que realizaram esta passa-
gem deixaram de produzir trabalhos antropológicos. O pesquisador
ouve, observa, participa (até certo ponto) e também pergunta, anota,
confronta respostas diferentes, coteja as declarações verbais com os
comportamentos que observa, especialmente nos casos de conflitos e
crise, sistematiza as observações, faz ilações, constrói hipóteses, procu-
ra verificá-las. Em suma, age como um antropólogo e não como um
“nativo”, que não precisa analisar sua cultura e suas crenças porque as
vive. Na observação participante é importante que o etnógrafo apren-
da, na medida do possível, a pensar e agir como um “nativo” e inclusive

 Introdução
dar-lhe voz quando se trata de povos ou grupos numa condição de
dominação, que não têm como defender a si próprios. Mas não é este o
objetivo central do seu trabalho. Caso contrário, ele se transforma num
militante, num ativista, num organizador da luta contra a opressão,
tarefa nobre, sem dúvida, mas que não é pesquisa, é ação política. Fazer
as duas coisas simultaneamente exige clareza sobre a diferença entre os
dois níveis de atuação, e cria freqüentemente desilusões sérias ou confli-
tos emocionais muito graves. Além do mais, uma característica essen-
cial do trabalho antropológico é a explicitação do que está implícito e,
portanto, invisível para os agentes e atores; as ações e representações
precisam ser analisadas em ter mos de suas articulações inter nas e do
contexto mais amplo no qual se inserem.
Essa diferença fundamental entre vivência e pesquisa antropológi-
ca, essa necessidade do pesquisador de assumir uma exterioridade em
relação aos fenômenos que estuda (transformando-os necessariamente
em “objetos”) sempre esteve clara para mim nas diferentes pesquisas
que realizei e orientei, mas especialmente nos últimos quinze anos,
quando passei a me dedicar a pesquisar o ensino superior no Brasil. Os
trabalhos que escrevi sobre o ensino superior não constam desta coletâ-
nea, com exceção do primeiro, escrito há vinte anos por ocasião do cin-
qüentenário da  (cap. ). Mas minha experiência com este tema é
muito importante para entender minha postura teórica na questão da
relação sujeito-objeto.
Eu era “nativa” da universidade e ingressei na política universitá-
ria tardiamente, depois do golpe de , quando todos nós, jovens, e
alguns velhos professores junto com os estudantes, nos sentimos imbuí-
dos da missão de proteger a universidade contra a intervenção militar e
lutar pela democratização do país. Víamos a universidade como um
baluarte contra o obscurantismo e o autoritarismo. A iniciativa havia
sido do movimento estudantil, ao qual nós, docentes, fornecíamos apoio
e cobertura. Construímos assim, naqueles anos pesados do regime mili-
tar, uma imagem ideal de universidade: a universidade heróica. Éramos
todos salvadores do ensino, da pesquisa e da pátria.
No início do período de relativa liberalização da repressão militar,
no final dos anos , os docentes começaram a se organizar politica-
mente e assumiram, no vazio deixado pela destruição do movimento
estudantil, uma posição de liderança na universidade. A organização
do movimento docente, da qual participei, teve início na Universidade


de São Paulo, com a recriação da antiga Associação dos Auxiliares de
Ensino, transfor mada em Associação dos Docentes da  (),
na qual começou a discussão de uma proposta de reforma democrática
da universidade.4
As discussões travadas então me mostraram o quão pouco sabía-
mos, de fato, sobre o sistema de ensino superior brasileiro. A literatura
não era insignificante, mas a maioria dela era, se não panfletária, pelo
menos extremamente marcada por um forte viés ideológico. Ela se
orientava no sentido de defender uma universidade ideal, que não exis-
tia, em lugar de entender a universidade real com suas virtudes e maze-
las. Sobre esta quase nada sabíamos, e comecei então a pesquisar o
ensino superior.
No final da década de , Simon Schwartzman, Elisa Wollineck
e eu fundamos na  o Núcleo de Pesquisas sobre Ensino Superior
(). Já de início, foi necessário sair do âmbito restrito no qual se
travava o debate e ampliar a área de estudos para abranger todo o ensi-
no superior, que inclui muitas outras instituições que não as universida-
des públicas, as quais eram o principal (se não único) objeto de debate
político. Pesquisar o ensino superior significa, preliminar mente, fami-
liarizar-se com a bibliografia inter nacional que incluía a história do
ensino superior no Ocidente, a introdução da pesquisa na vida univer-
sitária no século , a diversidade dos diferentes sistemas nacionais, a
crise mundial do sistema que se seguira ao movimento estudantil de
, o extraordinário crescimento das matrículas nos anos , o desen-
volvimento histórico do ensino privado, as diferentes inovações pro-
postas por diferentes políticas de ensino superior em diferentes países, o
problema do financiamento. As pesquisas feitas no  deram prosse-
guimento ao levantamento histórico que Simon Schwartzman havia
feito anterior mente, sobre o ensino superior brasileiro utilizando as
séries estatísticas que apontavam a evolução dos sistemas públicos e pri-
vados, e a documentação referente à legislação e as reformas ocorridas.
Participamos de uma pesquisa internacional comparativa sobre as polí-
ticas para o ensino superior na América Latina, e analisamos a estrutura
inter na dos diferentes tipos de instituição, a evolução da demanda por
vagas e os gargalos que impediam sua expansão. Simon Schwartzman

. A antiga  de então, restrita à , tinha muito pouco a ver com a  atual, que é
um sindicato.

 Introdução
pesquisou a profissão acadêmica no Brasil, como parte de um projeto
inter nacional. As pesquisas per mitiram um conhecimento muito mais
amplo, sólido e integrado do que as idéias e mitos que povoavam e
ainda povoam os debates políticos. As análises permitiam diagnosticar
falhas estruturais do sistema e mostrar as deficiências e limitações nas
propostas de refor ma que estavam sendo feitas no Brasil, tanto pelas
organizações docentes e estudantis como pelos governos.
Isso significou transfor mar a universidade e o sistema de ensino
superior no seu conjunto em objeto de pesquisa. A imensa maioria dos
estudantes e docentes universitários, como sujeitos da vida universitária,
participa das atividades de ensino e pesquisa sem qualquer idéia clara
sobre a natureza e a extensão do sistema no qual se integram. Minha
visão como sujeito da história recente da universidade era diferente da
análise da universidade como objeto de pesquisa. Não abandonei, quan-
do comecei a pesquisar o ensino superior, minha militância na causa da
reforma universitária, e utilizei amplamente os resultados das investiga-
ções realizadas no . Mas havia uma diferença entre uma coisa e
outra. A pesquisa revelava a complexidade e a amplitude dos problemas
existentes que extrapolavam de muito a visão que eu tinha como docen-
te. A minha militância visava transfor mar a universidade para aproxi-
má-la de um ideal definido politicamente. Embora fosse inevitável que
uma influísse na outra, com as pesquisas minha visão de universidade
mudou, e mudou também minha orientação política, que foi despida de
muito de suas ilusões e do voluntarismo que a caracterizara.
A distinção entre as atividades de pesquisa e a militância reside no
fato de que os resultados daquelas podiam ser (e freqüentemente fo-
ram) utilizados para fundamentar propostas de orientações políticas
diversas. De fato, trabalhos de pesquisa devem poder ser utilizados para
alimentar posições e políticas públicas diferentes, pois incorporam um
grau maior de informação e não apenas de opiniões.
A questão da relação sujeito-objeto está associada, na crítica pós-
moderna ao positivismo, à questão da possibilidade de objetividade na
etnografia. Pretende-se uma crítica radical à obra etnográfica que con-
siste em demonstrar, utilizando os métodos da crítica literária, que ela
não constitui um retrato sem retoques de uma sociedade ou for mação
social, mas é uma construção do autor, que usa diferentes artifícios lite-
rários na apresentação de seu material para criar, no leitor, a ilusão de
estar vendo a própria realidade.


Isto obviamente precisa ser dito, e esta análise precisa ser feita,
porque é isso mesmo que ocorre na produção etnográfica. Os trabalhos
de James Clifford e George Marcus, e as coletâneas que organizaram,
contêm análises muito interessantes que se encaminham nesta direção.
Mas não se trata de algo novo e revolucionário como às vezes se preten-
de. Eu mesma realizei uma análise deste tipo no meu trabalho sobre
Malinowski. Aliás, qualquer pessoa que tenha produzido uma tese ou
um livro sabe muito bem a distância existente entre o material bruto e a
apresentação final escrita. Há um amplo trabalho de autoria e o estilo
faz parte dele. Há inúmeras decisões a serem tomadas sobre a estratégia
da apresentação, sobre os exemplos mais esclarecedores a serem citados,
sobre a concatenação dos capítulos e temas e, principalmente, sobre o
que deixar de fora. Toda pesquisa de campo bem feita produz excesso
de dados, é preciso selecionar os mais relevantes para cada tema que se
decide incluir no relatório, tese, artigo ou livro que se está produzindo.
Nenhuma pesquisa retrata toda a realidade, mas reconstitui aspectos
dela. As escolhas e o modo de apresentação configuram um estilo do
qual depende a maior facilidade ou dificuldade de comunicação com o
leitor. Cada autor tem o seu, e é por isso mesmo que, sobre um mesmo
grupo, antropólogos diferentes podem escrever monografias muito di-
versas. Mas há um certo grau de objetividade que precisa ser satisfeito e
que se realiza na medida em que as versões não sejam inteiramente
incompatíveis, caso em que há de se duvidar da seriedade ou da compe-
tência de pelo menos um dos autores.
Por isso mesmo, não acredito que ensaios de “desconstrução” dos
trabalhos escritos por Evans-Pritchard, por exemplo, destruam o valor
das admiráveis informações que ele oferece sobre os Nuer, nem invali-
dem (como às vezes se dá a entender) as interpretações que ele elabora
a partir desse material.
No fundo, como resultado deste percurso, desenvolvi a posição de
que o cerne da antropologia reside na etnografia e consiste na sua capa-
cidade de captar e apresentar a imensa riqueza e densidade da experiên-
cia humana, mesmo quando se utilizam métodos já ultrapassados. As
posições teóricas mudam e dão origem a muitas polêmicas. Reflexões
teóricas são necessárias, embora haja modismos que são rapidamente
ultrapassados. Mas as monografias bem feitas permanecem, podem ser
lidas e relidas com proveito, dão origem a novas reflexões e interpreta-
ções, e constituem o cerne do conhecimento que fomos capazes de pro-

 Introdução
duzir. Basta lembrar, como exemplo, a obra de Junod sobre os Bantu, a
qual, apesar de escrita no começo do século , dentro de uma perspec-
tiva evolucionista e duramente criticada por Radcliffe-Brown, continua
a ser de leitura indispensável para todos aqueles que se interessam em
compreender a cultura e a sociedade dos povos da África Sul-Oriental
que ele estudou.
Há, portanto, uma certa coerência em meu percurso. Mas esta
coletânea se encerra de um modo um tanto surpreendente, porque in-
clui um capítulo final (cap. ) sobre os chimpanzés, sobre o papel das
emoções na vida social humana dentro de uma perspectiva evolutiva.
Para os que perceberam uma lógica no meu percurso, documentado nos
trabalhos aqui incluídos, este artigo causa estranheza, como uma chuva
a cair de um céu sem nuvens. Preciso, portanto, explicar de onde ele vem.
Não só estudei antropologia física como, no início da minha carreira,
lecionei esta matéria, que incluía a questão da evolução humana. Aliás,
a evolução sempre foi para mim um assunto absorvente e indispensável
para a compreensão da natureza humana e dos aspectos mais gerais da
vida social. Embora não tivesse mais ministrado cursos sobre antropo-
logia física, pois tal disciplina acabou (infelizmente) por desaparecer do
currículo das ciências sociais, jamais deixei de acompanhar o desenvol-
vimento dos estudos sobre a evolução humana, sobre os progressos da
genética e sobre o significado das inúmeras descobertas de fósseis
humanos que alteraram substancialmente a compreensão do nosso tra-
jeto evolutivo. Este interesse se estendeu para o campo da etologia, que
ampliou muito o conhecimento sobre os primatas que faziam parte das
minhas velhas aulas de antropologia física. Além do mais, a psicologia
sempre integrou minhas preocupações, a partir da familiaridade com o
tema de personalidade e cultura da antropologia americana.
Assim, no final da minha carreira, e à semelhança do que tantos
antropólogos culturalistas fizeram antes de mim, caí na tentação de re-
velar um amor oculto (mas não ilícito), refletindo sobre nossa herança
biológica presente na evolução cultural. Às vezes é necessário que nos
lembremos que, sendo essencialmente animais culturais e nisso diferente
de todos os demais, não deixamos, por isso, de ser animais e em muitos
sentidos semelhantes aos nossos irmãos e primos primatas. Uma preo-
cupação com os novos desenvolvimentos da psicanálise, da psicologia
experimental, da neurobiologia, da paleontologia, da etologia e da pri-
matologia, é importante e necessária na for mação do antropólogo, na


medida em que nos per mite perceber as limitações dentro das quais a
antropologia se move e desfazer a ilusão de que o estudo da produção
da cultura e da vida social prescinde inteiramente de qualquer referên-
cia ao equipamento genético humano. Se eu reiniciasse hoje o meu per-
curso, promoveria um trabalho mais interdisciplinar que incluísse não
só a lingüística, que hoje está mais próxima de nós, mas as demais ciên-
cias do comportamento humano (inclusive as biológicas), das quais
recentemente nos afastamos.

***

Uma vez que estas reflexões constituem uma espécie de introdução a


uma coletânea de meus trabalhos produzidos ao longo de muitos anos,
cabe incluir, neste final, alguns agradecimentos indispensáveis. De fato,
todo o percurso aqui documentado não foi resultado de um trabalho e
de uma reflexão independentes. Boa parte das investigações deve-se a
projetos coletivos mais amplos, e a reflexão resulta de um diálogo per-
manente travado na convivência com antropólogos e cientistas sociais.
Não posso citar todos. Mas há alguns que não posso deixar de mencio-
nar, como Maria Lucia Montes e Peter Fry. José Arthur Giannotti teve
grande influência no meu percurso porque com ele vislumbrei a riqueza
do marxismo, que eu não captava nas versões simplificadas que povoa-
ram as ciências sociais. Além disso, o rigor de sua reflexão constituiu
sempre um antídoto que me impediu, muitas vezes, de simplificar os
passos da investigação. Entretanto, a influência mais importante nesta
minha trajetória foi a companhia constante, o diálogo instigante e o
incentivo permanente de Ruth Cardoso, com quem trabalhei durante a
maior parte destes anos. Demos muitos cursos juntas, fizemos pesquisas
em colaboração e criamos um seminário conjunto com nossos estudan-
tes de pós-graduação, o qual foi particularmente fértil para a nossa refle-
xão teórica e a elaboração de dissertações e teses por parte de nossos
alunos. Alunos e ex-alunos levaram adiante as linhas de pesquisa que
iniciamos, freqüentemente nos ultrapassaram e incorporamos muito, em
nossos trabalhos e reflexões, dos resultados que eles alcançaram. Hoje, no
Departamento de Antropologia, José Guilherme Cantor Magnani é, pro-
vavelmente, quem está mais próximo das minhas preocupações.

 Introdução
Além disso, sem o estímulo de meus ex-alunos esta coletânea não
teria sido organizada. Foram eles que me convenceram de que a publi-
cação podia ser relevante. A todos, o meu reconhecimento. Mas preciso
mencionar especialmente Omar Ribeiro Thomaz, cuja persistência ven-
ceu minha inércia e sem cujo auxílio duvido que eu tivesse conseguido
publicar este livro.


Capítulo 

             


Este trabalho, o primeiro que publiquei ainda com meu nome de solteira (Euni-
ce T. Ribeiro), exige uma explicação por ser parte de um estudo mais amplo,
realizado por outros autores, com origem em circunstâncias interessantes.
Em 14 de abril de 1955, os jornais noticiaram que no lugar chamado
Catulé, na fazenda de São João da Mata, localizada no município de Mala-
cacheta (MG), um grupo de meeiros pertencentes a uma seita pentecostal, o
Adventismo da Promessa, havia matado quatro crianças, acusadas de esta-
rem possuídas pelo demônio. A polícia, alertada, invadiu o local e assassinou
os dois líderes da seita.
A notícia levou Paulo Duarte, que editava a revista Anhembi, a interes-
sar-se pelo caso devido às peculiaridades que ele apresentava, e a propor
financiar uma pesquisa no local. Convidou para este projeto um antropólogo
italiano, Carlo Castaldi, que então pesquisava religiões populares no Brasil e
trabalhava no Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos; convidou também
Carolina Martuscelli, professora de Psicologia Educacional na Faculdade de
Filosofia da USP. Naquela época, poucos meses após a minha graduação em
Ciências Sociais, eu trabalhava como assistente de Castaldi e fui incluída no
grupo como auxiliar de pesquisa.
Malacacheta localizava-se então num “ser tão” quase vazio, de difícil
acesso (parte da viagem tinha de ser feita a cavalo), que vinha sendo recen-
temente ocupado por grandes fazendeiros. Esse processo incluía a expulsão
de pequenos posseiros que constituíam uma esparsa população mais antiga.
O trabalho realizado por Castaldi é um precioso documento sobre o
processo de ocupação de terras pela expansão do pastoreio e da agricultura
com a formação das grandes fazendas, associada à exploração e expulsão de
pequenos posseiros. Ele analisa toda a transformação do modo de vida desta
população e a crise permanente à qual ela é submetida, com o surgimento de
correntes migratórias como solução possível. Além disso, Castaldi reconsti-
tui detalhadamente os acontecimentos da Semana Santa de 1955, durante a
qual ocorreram os trágicos assassinatos. O trabalho comprova e complementa
o excelente trabalho de Antonio Candido, Os parceiros do Rio Bonito (1954).
Generosamente, Castaldi me propôs que escrevesse um capítulo sobre a
introdução do Adventismo no grupo, que integraria a análise elaborada por
ele. Foi assim que escrevi este trabalho e me transformei em autora. Minha
participação nessa pesquisa e a orientação de Castaldi subsidiaram muito do
meu trabalho posterior para o doutorado, sobre a migração rural-urbana.
Como meu artigo é publicado agora fora do contexto do livro, adicionei no
final um pequeno resumo dos eventos no Catulé.
A difusão do Adventismo da Promessa no Catulé*

As famílias que, em abril de , moravam na grota do Catulé, perten-


ciam todas à Igreja Adventista da Promessa.
Os membros desse grupo de Adventistas trabalhavam como
“agregados” na fazenda. Disse-nos o proprietário que eram os melho-
res agregados que possuía – trabalhadores, honestos e ordeiros – moti-
vo pelo qual ele favorecia o estabelecimento de “crentes” (como se
denominavam os membros da seita) nas suas terras.
O líder do grupo era Onofre, moço de  anos, solteiro, que diri-
gia as atividades religiosas da comunidade e derivara daí o seu prestígio.
Era a pessoa mais instruída do grupo: havia morado por mais de quatro
anos no estado de São Paulo, trabalhando na lavoura de algodão da
região de Presidente Prudente, onde se convertera ao Adventismo e
também aprendera a ler e escrever.
Em Presidente Prudente, o grupo de crentes ao qual Onofre per-
tencera vivia reunido nas terras de um proprietário também adventista.
Haviam construído uma casa de oração no patrimônio de Emiliópolis,
o centro urbano mais próximo, e um pastor os visitava regularmente a
cada dois meses. Na ausência do pastor, as atividades religiosas eram
presididas por um diretor, um secretário, um superintendente e um pro-
fessor, eleitos a cada seis meses pela congregação, entre os dois nomes
que o pastor apontava para cada cargo. Onofre ocupara os cargos de
professor e superintendente, chegando mesmo uma vez a substituir o
diretor por algum tempo.
Quando Onofre se mudou para o Catulé, em , já moravam lá
quatro famílias, encabeçadas por Manoel, o mais velho de todo o grupo.

* Uma edição completa sobre o Catulé, com o trabalho de Castaldi, esta minha pequena
contribuição e o estudo psicológico de Carolina Martuscelli, assim como dois outros tra-
balhos de Maria Isaura Pereira de Queiroz, integraram o livro Estudos de sociologia e his-
tória, publicado pelo Instituto de Pesquisas Educacionais (São Paulo: Anhembi, ).


Essas famílias haviam se estabelecido na grota em . Antes disso,
moravam todas à margem do rio Urupuca, fazendo parte do mesmo
grupo de vizinhança, ao qual também pertenciam Onofre e sua família.
Por essa época, Onofre, que havia migrado em , viera de São Paulo
para o Urupuca buscar a mãe e a irmã, que moravam perto do velho
Manoel. Durante o mês que passou em Urupuca, logrou interessar algu-
mas pessoas do grupo com a sua pregação, especialmente a Manoel.
Quando partiu novamente para São Paulo, deixou-lhes a Bíblia que trou-
xera, e recomendou que o chamassem se quisessem tornar-se crentes.
Quando o fazendeiro vendeu as terras em que moravam, Manoel
mudou-se para o Catulé com as famílias que também estavam inte-
ressadas na nova religião: a de Sebastião, seu genro, a de João e a de
Geraldo, seus afilhados. Manoel lia a Bíblia para os outros; eles tinham
vontade de aprender mas, como o velho não soubesse explicar o que lia
(não juntava direito as palavras), eles escreveram a Onofre pedindo-
lhe que voltasse.
Onofre não tinha intenções de morar no Catulé: estava bem colo-
cado em São Paulo, onde arrendava terras para plantar algodão; tinha
uma posição de prestígio na igreja e pretendia estabelecer-se na cidade
e estudar. Quando os antigos companheiros o chamaram para ensinar a
religião, Onofre voltou com a idéia de ficar por pouco tempo, “mas
quando viu o progresso da devoção ficou satisfeito e perdeu a vontade
de voltar para São Paulo”.1
Durante o último ano que passaram em São Paulo, Germana, irmã
de Onofre, Cristina, sua mãe, e Geraldo, um rapaz do Urupuca que fora
com ele, converteram-se também. De volta, Geraldo estabeleceu-se
com eles no Catulé, casando-se pouco depois com uma filha de Manoel.
Com essas primeiras famílias, Onofre organizou a comunidade
religiosa. Instituiu o culto e as pregações, as orações e o jejum, e come-
çaram a guardar o sábado. Onofre lia e explicava a Bíblia, e começou
também a ensinar leitura porque, com exceção de Manoel, eram todos
analfabetos.
Pouco depois, duas outras famílias aparentadas com estas mu-
daram-se também para o Catulé: a de Francisca, mãe de João, e a de
Maria, sua irmã, mãe de Geraldo; logo depois dessas mudou-se também
a família de Adão, outro filho de Maria. Com a convivência no grupo

. As afirmações entre aspas referem-se a trechos de entrevistas.

 Adventismo da Promessa no Catulé


de crentes e a participação na vida religiosa na seita, logo converteram-
se todos eles.
A pouca distância do Catulé, no lugar chamado Jacu, havia se
constituído outro núcleo de Adventistas da Promessa, independente
deste, o for mado pela família de Joaquim. Joaquim emigrara em 
para São Paulo, com a família de Pedro, um irmão casado, e trabalhara,
como Onofre, na lavoura de algodão da região de Presidente Prudente;
entrara casualmente em contato com um grupo de crentes e convertera-
se à seita, tornando-se logo adepto fervoroso. Ao contrário de Onofre,
“que não forçava ninguém a se converter”, Joaquim desenvolveu logo
um trabalho intenso de proselitismo. Ainda em São Paulo, converteu
toda a família de Pedro, apesar da resistência que este opôs. De volta a
Minas, depois de três anos, foi morar com a mãe, que se casara nova-
mente e vivia, com os filhos solteiros, na casa do segundo marido. Rei-
niciou logo o seu trabalho de proselitismo e conseguiu converter quase
toda a família: a mãe, Mariana, João e Artuliana (os três irmãos soltei-
ros que moravam com ele), Maria dos Anjos, uma órfã que vivia na casa
e a família de Amélia, uma irmã casada que morava com o sogro.
Joaquim também recebera a doutrinação em São Paulo mas, não
sabendo ler e morando com a família do padrasto, que era católica,
não logrou impor ao seu grupo a mesma ortodoxia que Onofre conse-
guira no seu.
Artuliana, a irmã de Joaquim, contou-nos que souberam dos cren-
tes do Catulé antes mesmo da vinda de Onofre. João foi visitá-los uma
vez, mas viu que “não eram crentes de verdade; eles liam a Bíblia, mas
não sabiam fazer as coisas direito”.
Só depois da volta de Onofre é que passaram a manter contatos
regulares com o grupo do Catulé, freqüentando os cultos e as orações
que se realizavam na grota. Quando o padrasto morreu, mudaram-se
para lá porque queriam ficar junto dos outros crentes.
Podemos verificar, no que foi exposto, o processo pelo qual o
Adventismo se difundiu na região: influência, dentro do sistema fami-
lial e do grupo de vizinhança, de indivíduos que haviam emigrado para
zonas de proselitismo da seita, que lá se haviam convertido e recebido a
doutrinação e treinamento necessários para reiniciar o trabalho de difu-
são na região de origem.
Assim, o grupo do Catulé constituiu-se como congregação religiosa,
pela sucessiva conversão de indivíduos do mesmo grupo de vizinhança,


ligados por laços de parentesco e compadrio e, posterior mente, pela
conversão de outro grupo de parentesco, que não mantinha com os pri-
meiros relações desse tipo, mas pertencia à mesma seita.
Constituído esse núcleo de crentes, que moravam juntos, o traba-
lho missionário estendeu-se aos grupos familiais vizinhos com os quais
mantinham relações, e o Catulé se tor nou o centro da vida religiosa
de diversas famílias que viviam mais isoladas: a de Antônio, cunhado de
Onofre; a de Expedito, cunhado de Joaquim; a de José, outro agregado
da fazenda Itatiaia; e a de Honório, morador do Urupuca.
Os crentes tinham a vida religiosa muito intensa. Os moradores do
Catulé reuniam-se regularmente para orar, três vezes por semana, quar-
tas, sextas e domingos, em geral na casa de Geraldo, que, por ser maior,
servia também como casa de oração. A essas reuniões compareciam, às
vezes, os que moravam mais longe. Onofre lia e explicava a Bíblia; diz
Francisca que “Onofre explicava muito bem; primeiro ele lia o que estava
escrito: eram umas palavras muito bonitas, mas não entendiam direito o
sentido – ficavam só assuntando. Depois que acabava de ler, então expli-
cava, e tão bem que não havia quem não entendesse”. Todos gostavam da
pregação de Onofre: “só falava o que estava na Bíblia; falava só de coisas
boas, de Deus, da salvação; dava uma satisfação, uma alegria no coração
de todos”. Joaquim também pregava, às vezes explicando alguma coisa ou
passagem que Onofre havia lido, às vezes alguma que sabia de cor, mas na
maior parte das vezes, “falava de cabeça; ele não tinha leitura e pregava
fora da Bíblia; falava só sobre o pecado e gritava tanto que muita gente
chorava”. Gostavam mais da pregação de Onofre, porque Joaquim era
muito violento. Depois da pregação cantavam os hinos que sabiam de cor,
acompanhados de violão e cavaquinho; para muitos, os hinos eram o que
mais apreciavam na vida de crente. No fim da reunião Onofre ou Joaquim
pedia a um dos presentes que “dirigisse oração”, isto é, rezasse em voz
alta, em nome de todos, e então o grupo se dispersava.
Para o culto do sábado, ao qual compareciam todos os crentes, ini-
ciaram a construção de uma “casa de oração”, ao lado da casa de José P.,
aproveitando para isso um prédio que ele havia começado. O culto era
semelhante às reuniões, mas muito mais demorado: tinha início antes do
meio-dia e terminava à tardinha. Além das pregações, leitura da Bíblia,
hinos e orações, também realizavam a “chamada”: Onofre marcava para
cada um trechos da Bíblia ou do livro de doutrina que deviam aprender
de cor durante a semana, e examinava-os durante o culto.

 Adventismo da Promessa no Catulé


O sábado, que é contado desde o pôr-do-sol da sexta-feira até o
pôr-do-sol do dia seguinte, é exclusivamente dedicado ao descanso e à
oração. Na sexta-feira já precisam ter tudo preparado: a roupa limpa e
passada para o culto, a comida pronta para o dia seguinte. Quando o sol
ia se pondo, juntavam-se no terreiro da casa de Onofre para “receber o
sábado” e realizavam uma reunião. Até o anoitecer do dia seguinte não
faziam trabalho nenhum: não varriam a casa nem faziam comida, não
conversavam sobre trabalho ou assuntos que não dissessem respeito à
religião – ficavam sempre juntos, conversando sobre Deus e a Bíblia,
cantando hinos e rezando. Rosa, uma mocinha de dezesseis anos, disse-
nos que o sábado era “o que mais gostava nos crentes: já levantavam
contentes, vestiam roupa nova e reuniam-se nas casas para cantar hinos;
era muito bonito o sábado, mais bonito que o domingo dos católicos,
porque não tinha nenhum serviço para fazer”.
Sob a direção de Onofre começaram também a realizar “vigílias”,
mas raramente, porque, como nos explicou Artuliana, “precisava ter
dinheiro para comprar pão e café, que serviam à meia-noite”. Durante
a vigília, passavam a noite em claro, rezando; faziam diversos “apelos”,
nos quais a pessoa que dirige a reunião pede que se apresentem os que
quiserem entregar-se a Jesus. É durante esse apelos que se verifica gran-
de número de conversões e “selamentos”, especialmente ao amanhecer,
quando a excitação religiosa atinge o máximo.
A primeira vigília que houve no Catulé foi dada em conjunto, mas
uma vez João, o irmão de Joaquim, deu uma sozinho, por devoção:
“colheu milho e arroz que vendeu e com o dinheiro comprou café, pão
e querosene (para iluminação). Nessa vigília houve uma conversão
muito difícil, a da mulher de Honório; o marido e os filhos já eram cren-
tes, mas ela, até esse dia, não queria converter-se”. Onofre também deu
uma vigília, por ocasião da visita dos pastores; Ger mana contou que
passaram um dia inteiro fazendo biscoitos para oferecer aos convidados
“e todos comeram até fartar”.
O “selamento”, ou “batismo do Espírito Santo”, muito freqüente
nas vigílias, pode acontecer a qualquer um, a qualquer hora e em qual-
quer lugar, marcando o crente de “bom testemunho” e fé poderosa.
A pessoa perde o sentido da realidade, murmura palavras ininteligíveis,
mencionando freqüentemente o nome de Deus: durante o “selamento”
o Espírito Santo dá à pessoa o poder de falar “línguas”, e os dons de
“curar, operar maravilhas e profetizar”. Disse-nos Jacinta, mulher


de João, que a pessoa selada “sente uma coisa na goela, fica leve, e co-
meça a falar línguas que ninguém entende; fica ajoelhada no chão e tre-
mendo; depois que acaba não lembra mais o que falou”. Parece que os
selamentos eram tão freqüentes no grupo que diversas vezes Onofre
teve que chamar a atenção dos crentes “para pôr ordem na Igreja:
começavam todos a falar língua ao mesmo tempo e não se sabia mais
quem é que tinha sido selado”.
A vida de crente acarretava numerosas obrigações: as reuniões, as
orações individuais diárias, o estudo dos pontos de doutrina para a cha-
mada do sábado, as contribuições em dinheiro. Além de respeitar os
mandamentos, deviam abster-se de comer carne ou gordura de porco,
beber e fumar, obedecendo a normas de conduta extremamente severas:
não podiam dançar nem ir a festas e era proibido cantar ou tocar qual-
quer música profana. Os “irmãos” deviam tratar-se com o máximo res-
peito; qualquer discussão era um pecado que exigia o perdão mútuo;
também era pecado conversar sobre frivolidades. A moral sexual era
bastante severa, como se exemplifica no caso de Eva e Avelino. Eva,
filha de Maria e irmã de João, era solteira e gostava de Avelino, rapaz
casado. Avelino “era largado da mulher” e morava, embora não fosse
crente, na casa de Adão, no Catulé. Os dois pretendiam casar-se, já que
Avelino fora casado apenas pelo padre e o casamento religioso católico
não tinha valor na seita. Onofre opôs-se a esse casamento, porque acha-
va que Avelino havia largado a mulher sem motivo justo, apenas por
gostar de Eva. Artuliana contou-nos que todos aconselhavam Eva a
desistir desse namoro, mas ela não dava ouvidos. Quando a mãe desco-
briu que a filha estava grávida, procurou Onofre e contou tudo a ele.
Onofre reuniu o casal na presença de testemunhas, “cortou” Eva da
Igreja, e expulsou ambos do lugar.
Esse procedimento pode parecer estranho quando se verifica, por
exemplo, que Geraldo vivia com a segunda mulher fazia quase dois anos
sem ser casado no civil nem no religioso, e isso não provoca censura;
explicam que esperavam a volta dos pastores para efetuar o casamento.
Aliás, a situação deles é semelhante à de todos os outros casais do Catulé
porque, com exceção de Geraldo, eram casados apenas na Igreja Católi-
ca, o que não era reconhecido pela nova religião. A crença, exigindo a
cerimônia civil, cujo preço é muito alto para eles, e a presença do pastor,
que devia vir de São Paulo, criava enormes problemas quanto à legaliza-
ção do matrimônio e havia grande tolerância nesse sentido. O casamento

 Adventismo da Promessa no Catulé


era socialmente reconhecido mesmo sem a cerimônia oficial, muitas vezes
adiada indefinidamente, quando era admitida a intenção de respeitar os
demais padrões da crença. Há regras bem estabelecidas para o casamento
e a vida de casado, e a legitimidade é julgada conforme a obediência a
essas regras: a única coisa que se negligencia é a cerimônia propriamente
dita. Assim Avelino, que não era crente, era considerado casado, embora
a cerimônia de seu casamento não tivesse valor na crença. E, portanto, as
suas relações com Eva eram consideradas pecaminosas.
“Cortar” da Igreja era a solução para todas as faltas graves, como,
por exemplo, a briga entre “irmãos”. Artuliana nos explicou que “quan-
do dois crentes brigam, um deve pedir perdão ao outro; se um deles não
quiser arrepender-se e perdoar, então o outro deve chamar uma tercei-
ra pessoa para aconselhá-lo; se esta pessoa não consegue convencê-lo,
chamam alguém que saiba aconselhar melhor e que leia a Bíblia para
tirar as dúvidas; se mesmo assim se obstinar em não pedir perdão, reú-
nem toda a congregação, que pode então ‘cortar’ aquele que não quis
arrepender-se e perdoar”.
O mesmo procedimento se aplica a qualquer transgressão dos
preceitos da crença: qualquer um dos presentes deve chamar a atenção
do faltoso e, no caso de não ser atendido, convocará outras pessoas,
podendo o caso terminar com a reunião de toda a congregação e expul-
são do transgressor.
A adoção da crença implica, portanto, a aceitação de uma vida bas-
tante difícil, de padrões muito rígidos: praticamente todas as distrações são
proibidas e as obrigações religiosas acumulam-se extraordinariamente.
Em conseqüência, o nosso primeiro interesse será analisar os mo-
tivos da conversão e os atrativos que a vida de crente oferecia a essas
pessoas, apresentando, na medida do possível, o material de entrevistas
coletado no Catulé e descrevendo as conversões mais significativas.
Em , Onofre fora pela primeira vez a São Paulo, com Cristina
e Ger mana, para encontrar o outro irmão, Jacinto, que estava traba-
lhando na lavoura de algodão. Germana nos contou que foi Domingos,
um rapaz católico, quem levou pela primeira vez os dois irmãos a uma
reunião de crentes, para a qual fora convidado. Jacinto e Onofre foram
sem saber ao certo de que se tratava e ficaram muito impressionados
com o que ouviram. Continuaram a freqüentar as pregações e em
pouco tempo tornaram-se membros da Igreja. Cristina e Germana con-
tinuaram católicas. No ano seguinte a família voltou ao Urupuca. Mas


pouco depois, em , Onofre retornou sozinho a São Paulo, “porque
estava interessado na religião”, segundo Cristina. Jacinto, que ficara no
Urupuca, morreu no ano seguinte e Onofre voltou para buscar a famí-
lia, assim que conseguiu juntar algum dinheiro: tinha então passado
quase três anos em São Paulo, já era crente batizado, aprendera a ler e
escrever: foi quando começou a pregação no grupo do Urupuca. De
volta a São Paulo, com Germana, Cristina e Geraldo, falava-lhes cons-
tantemente sobre a Bíblia e a crença. Cristina nos contou que em São
Paulo vivia entre os crentes e começou a achar a

religião muito boa: não mandavam fazer nada de errado e eram todos muito
unidos. A princípio pensava que fosse muito difícil a vida de crente: não pode-
ria mais ir a festas, onde encontrava as amigas para conversar; não poderia
mais ir à igreja, nem rezar para os santos. [...] Depois que se converteu, veri-
ficou que era muito fácil abandonar tudo isso e que a vida do crente é muito
cheia de alegria: reúnem-se todos os sábados para rezar e cantar hinos; estão
sempre satisfeitos e de coração sossegado; as mães não têm preocupação com
os filhos, na certeza de que andam direito e não vão a bailes, nem ficam
bebendo nas vendas, arrumando brigas.

Geraldo, que morava perto de Onofre, também vivia entre os crentes e


freqüentava muitas vezes a casa de oração aos sábados. Gostava muito da
união e sinceridade que havia entre os crentes, mas pensou muito antes de
se converter, porque achava muito difícil “largar a farra”. Converteu-se
durante a pregação de um pastor que fora visitá-los. “O pastor falou em
Jesus, que derramou o seu sangue para salvar os homens”, e Geraldo
então se decidiu “a largar a religião católica e seguir os mandamentos da
Bíblia”. Onofre ficou muito contente com a conversão: desejava que
Geraldo também se tornasse crente, mas nunca o forçou.
Manoel interessou-se pela nova religião desde que Onofre pregou
pela primeira vez no Urupuca. Ainda se lembrava dos textos religiosos
católicos que seu pai costumava ler quando era menino, e quando Onofre
chegou “entusiasmado com a Bíblia”, tomou emprestado de um sobri-
nho uma velha História Sagrada, para comparar os textos. Manoel gos-
tava das discussões sobre religião que os outros membros do grupo
ouviam atentamente, e continuou a ler a Bíblia que Onofre lhe deixou
quando foi embora, convencendo-se de que “tudo o que ele falava esta-
va certo”. Antes era muito católico, mas verificou que

 Adventismo da Promessa no Catulé


a lei dos crentes é mais decente para com Deus. Antes da conversão era muito
bravo, bebia muito e brigava por qualquer coisa. A religião católica não tem
correção para essas coisas: o assassino, o ladrão, todos têm lugar dentro dela
porque ninguém precisa carregar o fardo do pecado; é só confessar e deixar o
fardo com o padre. A religião dos crentes é uma religião severa, é a religião
da tristeza e da pobreza: não se pode ir a festas, nem ao cinema, nem à feira
– o povo do progresso não quer abandonar essas coisas, mas não vê que isso só
traz desassossego. Vivendo desprendido do mundo, a vida é mais fácil: antes
tinha mais de seis contos de armamento e não podia dormir direito de medo de
ser atacado; tinha o paiol abar rotado e sempre com receio de faltar alguma
coisa. Depois não carregava arma nenhuma. Não guardava tanto mantimento
e dormia descansado, tendo sempre o que comer.

Os outros membros do grupo converteram-se por influência de Onofre


e Manoel. Os primeiros, João e Geraldo, contam que “interessaram-se
pelos mandamentos” desde a primeira vez que Onofre chegou. Ouviam
as conversas entre Onofre e Manoel sobre a Bíblia, sobre a religião, e
acharam “muito direito as coisas que falavam – não mandavam fazer
nada de errado, só diziam o que era certo para levar a alma à salva-
ção”. Quando Onofre partiu tentaram seguir o que lhes fora ensinado.
Manoel lia a Bíblia, mas não sabia explicar a eles o que deviam fazer e
então mandaram uma carta a Onofre, pedindo que viesse para orientá-
los. Quando Onofre chegou, converteram-se todos e os que chegaram
depois converteram-se também, pela influência do grupo. Admiravam a
união que havia entre os crentes e gostavam das pregações de Onofre.
Os homens achavam a religião boa para o trabalho, “porque cada um
auxiliava o outro e levando uma vida ordeira, sem beber nem ir a festas,
o serviço rende mais”. As mulheres tinham mais sossego com os filhos
convertidos “porque seguindo os mandamentos só se pode agir direito”.
Os moços gostavam da alegria que havia entre eles, das reuniões fre-
qüentes, dos hinos e das viagens de proselitismo que o grupo realizava.
A conversão do grupo de Joaquim é bastante parecida com a dos
outros moradores do Catulé e nos foi contada detalhadamente por Artu-
liana, em entrevista de que passamos a transcrever em grande parte:

Joaquim havia ido com a família de Pedro (seu irmão) para São Paulo e
tinha ficado morando com ele: tinha um quarto separado e ele mesmo cuidava
de suas coisas. Um dia estava lavando roupa no rio quando se aproximaram


umas moças, que eram crentes e começaram a conversar com ele. Antes de se
despedirem, convidaram-no para uma vigília, marcada para daí alguns dias.
Joaquim falou disso com Pedro, que caçoou dele, e com os amigos, que tenta-
ram dissuadi-lo dizendo que a Igreja dos Adventistas estava cheia de gatos
pretos e que Satanás aparecia por lá. Joaquim foi assim mesmo e logo que che-
gou o pastor foi conversar com ele: era uma pessoa muito bem vestida e tinha
uma prosa muito agradável. Joaquim ouviu a pregação e saiu muito impres-
sionado: continuou a freqüentar a Igreja e logo estava convertido, começando
então a pregar para a família de Pedro. Joaquim era assim mesmo; quando
queria converter alguém, não sossegava enquanto não conseguia. Com Pedro
teve muita dificuldade. Eva (a cunhada) e os sobrinhos converteram-se logo e
ajudavam Joaquim, insistindo com Pedro para que fosse a uma vigília. Um
dia Pedro foi. Durante a noite inteira permaneceu firme e não respondeu a
nenhum apelo. De madrugada o pastor fez o último apelo e apresentaram-se
todos os crentes. Então, ouviu-se uma voz que ninguém sabia de onde vinha,
dizendo: “a paz esteja convosco”. Pedro levantou-se de repente, começou a
chorar e a tremer.

Artuliana explica que o Espírito Santo, de quem era a voz que tinham
ouvido, “dera um choque muito forte nele”. Pedro saiu da igreja conver-
tido “e Joaquim muito satisfeito”.
Joaquim voltou de São Paulo depois de três anos, indo morar com
a mãe e os irmãos solteiros na casa do padrasto, e reiniciou imediata-
mente o trabalho de proselitismo. Artuliana conta que levaram muito
tempo para se converter. Só acreditaram nas coisas que Joaquim prega-
va depois que “viram escrito na Bíblia”. Joaquim não sabia ler, mas
tinha uma Bíblia e pediu a um sobrinho do padrasto que lesse alguns
trechos para eles. Mesmo depois disso, demoraram muito para seguir
as coisas que Joaquim pregava. Continuaram a ir a festas e a dançar: um
dia, quando voltavam de uma festa, encontraram o irmão chorando e a
mãe explicou-lhes que era porque eles não queriam ouvir a palavra de
Deus. Esse fato parece tê-los impressionado muito. A primeira a se
converter foi a mãe, seguida logo depois por Artuliana. As coisas mais
difíceis, disse-nos, foram deixar de dançar, não fazer o sinal-da-cruz e
não cantar modinhas. Muitas vezes fazia o sinal-da-cruz por distração
e Joaquim a repreendia. Costumava cantar o dia inteiro e cada vez que
Joaquim a ouvia cantando, cantava um hino perto dela – assim se acos-
tumou a só cantar hinos. João converteu-se depois de Artuliana, que

 Adventismo da Promessa no Catulé


explica que o irmão “era muito farrista e custou a mudar de vida.
Mesmo Mariana foi difícil, porque era muito católica e não queria aban-
donar os santos de papel pela lei”.
O material que acabamos de apresentar contém a maior parte das
informações sobre as conversões. Alguns acharam difícil abandonar as
distrações e os hábitos religiosos antigos, como ir à missa, rezar aos san-
tos e fazer o sinal-da-cruz, mas o argumento da palavra escrita na Bíblia
era suficiente para que não duvidassem do que lhes era ensinado. Ao
mesmo tempo, todos pareciam grandemente interessados na explicação
dos mandamentos. São muito comuns as respostas do tipo: “converti-
me, porque me interessei pelos mandamentos”.
Assim, podemos talvez admitir que a aceitação do Adventismo
prende-se, em grande parte, a dois elementos: os mandamentos e a
Bíblia, cujo prestígio era aceito por todos. A nova religião interessava
a eles muito mais na medida em que era semelhante do que na medida em
que era diferente do catolicismo, isto é, interessa principalmente porque
se propõe a melhor realização de um ideal de vida já reconhecido pelo
grupo, ideal que é sintetizado pelos mandamentos. A mesma observação
aplica-se também à aceitação de outros padrões de comportamento
impostos pela seita, como não fumar, não beber, não ir a festas etc., que
são tolerados, mas não recomendados pela religião tradicional.
Esse mesmo aspecto se evidencia também na diferença que estabe-
lecem entre católicos e crentes. Uma resposta comum é que o crente é
“mais sincero” que o católico, isto é, que os crentes seguem melhor que
os católicos os preceitos que são, em grande parte, comuns a ambos.
Como explica Geraldo, “é verdade que a Igreja Católica não manda
fazer bagunça, mas os católicos matam, batem nos outros, dizem men-
tiras e os crentes não fazem nada disso”. Ou como diz Eleonora, “a reli-
gião dos crentes é melhor que a dos católicos, porque o crente é mais
sincero. Há alguns católicos sinceros, mas poucos: os crentes são todos
sinceros. O crente não rouba, não dança, não bebe, não adultera. Os
católicos também não podem fazer nada disso, mas fazem – o padre fala
para eles não fazerem, mas eles não ligam para o que o padre diz”. Ou,
ainda, como explica Francisca: “A lei dos crentes é a mesma dos católi-
cos, mas mais refinada”.
Desse modo, a diferença entre católicos e crentes é estabelecida
pelo critério de “maior sinceridade”, isto é, melhor observância de pre-
ceitos morais comuns. Era muito difícil para eles explicar a diferença


entre o crente e o católico sincero. Muitos não souberam responder a
essa pergunta. A maioria nos disse que a diferença está em que os cren-
tes não comem carne de porco, guardam o sábado em lugar do domin-
go e não vão à missa; a diferença, portanto, não está na doutrina, mas na
observância de padrões exteriores, cuja justificação não conhecem.
Apenas duas pessoas, Manoel e Cristina, apontaram que os crentes não
“adoram” os santos, como fazem os católicos.
Essa interpretação da crença – como constituindo, em grande
parte, maior aproximação dos padrões reais a padrões ideais já existen-
tes – proporcionava a cada um e ao grupo um sentimento de superiori-
dade sobre os católicos, que pode ser um fator importante na conversão.
Quando dizemos que o interesse pela crença se processava, em
grande parte, por propor a realização mais perfeita de um ideal já
existente, não nos referimos propriamente aos ideais da Igreja Católica,
mas à sua re-elaboração por parte da cultura caipira. Na cultura cai-
pira, encontramos um ideal de vida que poderíamos chamar de “puri-
tano”, ligado aos antigos padrões morais da Igreja Católica e muitas
vezes bem distantes dos padrões reais; ao lado deste, outro ideal, o do
“homem valente” sempre pronto a defender a honra pela violência, o
qual, em geral, está associado à intemperança, que é considerada um
símbolo de masculinidade.
A aceitação da crença implica a rejeição do ideal de valentia, vio-
lência e intemperança, e a aproximação maior do ideal “puritano”, que
parece ser feita com relativa facilidade. Poucos são os que admitiram,
como Adão, que foi custoso deixar de dançar, ou, como Geraldo, que
foi difícil “largar a farra”. Para a maioria, o mais difícil foi abandonar o
cigarro e, secundariamente, o álcool. Muitos bebiam demais, como
Adão, mas é interessante observar que diversas pessoas já haviam dei-
xado de beber mesmo antes da conversão. Jacinta nos contou que ela e
o marido largaram a bebida e o fumo depois que ouviram a pregação de
um padre e também porque lhes estava fazendo mal. Como se pode
verificar através das conversões que transcrevemos acima, em geral
admite-se que foi fácil a conformidade aos padrões da seita, muito mais
fácil do que se pensava a princípio. Eleonora, a mulher de Geraldo, diz
não ter sido difícil tornar-se crente, porque mesmo antes da conversão,
embora fumasse, não bebia e raramente ia a festas. As maiores dificul-
dades que as mulheres encontravam na crença eram as atrapalhações
domésticas originadas da proibição de usar gordura de porco e a impos-

 Adventismo da Promessa no Catulé


sibilidade de aproveitar a feira do sábado em Malacacheta. Como expli-
ca Eleonora, “é difícil encontrar banha aqui no mato e muitas vezes
tinha que cozinhar sem gordura nenhuma”. Ninguém admite (mesmo
agora) que, enquanto crente, achava falta nos divertimentos, e a tempe-
rança ainda é tida em grande consideração pela maioria deles.
De modo geral, podemos admitir que a aceitação desse ideal de
moralidade rígida e temperança que a crença implica favorece uma
melhor adaptação às condições de vida atuais. Ao passo que o sistema de
vida da geração anterior, o de “posseiros”, exigia valentia e agressivida-
de para defender a posse incerta da terra, favorecendo a aceitação do ideal
de “homem valente”, na condição atual de agregados, em que dependem
da boa vontade do fazendeiro, uma vida ordenada e laboriosa é de grande
importância na manutenção das boas graças do patrão, assegurando-lhes
um lugar de trabalho. Daí talvez a grande aceitação do ideal de “bom
comportamento”, cuja utilidade é confirmada pelas declarações do fazen-
deiro de que os crentes eram os melhores agregados que possuía.
Devemos considerar ainda que a participação em novos padrões
de comportamento e em um mesmo sistema de crenças e ideais aumen-
ta a solidariedade grupal, ao mesmo tempo em que a rigidez desses
padrões introduz nova disciplina nas relações entre os indivíduos, pro-
porcionando maior estabilidade ao agrupamento e maior segurança aos
membros. A importância desse aspecto se evidencia no outro elemento
que figura constantemente como motivo da conversão e como grande
atrativo da vida de crente: a união que havia entre eles.
Geraldo, por exemplo, diz que antes de se converter admirava
muito a união que havia entre os crentes; enquanto a vida dos católicos
era de “bagunça”, a dos crentes era muito ordeira e foi por isso que se
decidiu a “caminhar para o lado da salvação”. Cristina nos conta que
“achava a religião dos crentes muito boa, porque eram todos unidos”.
Francisca, por sua vez, explica que gostava da vida de crente “porque
ajudavam um ao outro e estavam sempre alegres”. E assim os exemplos
se sucedem em quase todas as entrevistas.
Essa referência à união é constante, e significa valorização da nova
estrutura e organização que o grupo assume depois da introdução da
crença, problema que analisaremos a seguir.
Como vimos anteriormente, a formação do grupo do Catulé pro-
cessa-se dentro de um grupo já existente, formado por laços de paren-
tesco, amizade e compadrio.


Interessa-nos agora verificar as transformações que o grupo sofreu
com a adoção da nova crença e a medida em que essa adoção é influen-
ciada pela própria condição de vida do grupo.
Nota-se em primeiro lugar uma concentração demográfica; as
casas no Catulé foram construídas muito perto uma da outra, ao contrá-
rio do que se observava anteriormente no grupo.
É difícil determinar a influência da crença nessa concentração. Há,
certamente, outros fatores: o lugar que habitam lhes foi designado pelo
fazendeiro e, estando rodeado de pasto ou mata, onde não podiam
construir, talvez a própria exigüidade do espaço disponível favorecesse
essa concentração. Há também fatores indiretamente ligados à crença:
eles próprios for necem como motivo da concentração a proibição de
criar porcos: explicam que a criação de porcos exige que as casas sejam
separadas para que estes não causem prejuízos aos vizinhos. Entretanto,
parece-nos correto admitir que a crença é o fator mais importante não
só para essa concentração como para a própria constituição do grupo, na
medida em que propõe uma nova forma de solidariedade e fornece um
novo motivo para a vida comum, isto é, a participação em um sistema de
valores e de padrões de comportamento que os diferencia dos outros,
aumentando a coesão inter na. Além disso, for nece novos padrões de
solidariedade que superam as ligações de parentesco e compadrio, pre-
dominantes nos agrupamentos vicinais anteriores, permitindo a exten-
são do grupo de residência para além da família.
No grupo anterior, a solidariedade é intrafamiliar; cada grupo
de vizinhança é constituído por diversas famílias, quase independentes.
As relações entre as famílias se processam na troca de serviços para os
trabalhos mais exaustivos de derrubada, roçada e colheita, e nas ativi-
dades lúdico-religiosas. Entretanto, cada família continua a formar uma
unidade quase auto-suficiente. Os laços mais fortes que prendem o indi-
víduo são os do parentesco, dada a importância da família como uni-
dade de produção e consumo; as ligações entre as famílias, por sua vez,
tendem a consolidar-se por meio do casamento e do compadrio, que é
uma forma de parentesco fictício. Esse sistema traduz-se ecologicamente
na separação das casas, cada família vivendo dentro de sua propriedade,
longe das outras.
A adoção da crença implica a aceitação de solidariedade grupal
não mais interfamiliar, mas interindividual, em que cada membro da
seita tem as mesmas obrigações para com todos os outros membros do

 Adventismo da Promessa no Catulé


grupo, independentemente das relações de parentesco. O indivíduo
não se define mais em relação à família, mas em relação à comunidade
religiosa total. Desde que a unidade fundamental da vida social não é
mais a família, mas o grupo religioso que se sobrepõe a ela, a unidade
de residência tenderia a alargar-se para incluir todo o grupo, motivan-
do a concentração.
Entretanto, há antes uma superposição que uma substituição do
tipo de solidariedade. A própria difusão da crença se processa através
dos canais tradicionais das relações de parentesco e o grupo delimita-se
primeiramente dentro de um único sistema familiar. Em virtude da pró-
pria formação do grupo, as modificações podem ser tomadas como uma
ampliação da solidariedade familiar para um círculo mais amplo de
parentes, isto é, como intensificação das formas de relações anteriores.
Essa mesma intensificação é auxiliada pela própria concentração do
grupo, que leva a um aumento das relações interfamiliares até a supera-
ção dos subgrupos de parentesco que tendem a formar-se dentro do sis-
tema. Desse modo, o novo tipo de solidariedade tende a manifestar-se
como uma extensão para todo o sistema de parentesco, das relações pró-
prias da família nuclear, segundo os padrões tradicionais das relações de
vizinhança, apenas em grau mais intenso.
Esse aspecto se evidencia no aumento das trocas de serviço dentro
do grupo, quer a troca for mal de dias para o trabalho de roça, quer a
troca informal de serviços domésticos, em que se mantêm ainda linhas
preferenciais de parentesco, que tendem, entretanto, a ser superadas
pela extensão da colaboração a todo o grupo.
No entanto, a decadência da solidariedade vicinal interfamilial em
favor do novo tipo de solidariedade comunitária baseada na participa-
ção do mesmo ideal religioso se evidencia nas relações de compadrio,
que constituíam a base das relações para além da família nuclear e que
perderam a razão de ser e a validade na nova organização. A função do
compadrio, que é a de estender os laços de proteção dos filhos e coope-
ração econômica dos adultos para além do círculo familial mais próximo,
não tem mais sentido numa comunidade em que todos devem manter
relações de irmão, em que não devem existir preferências pessoais, em
que todos devem auxiliar os necessitados. E os laços de compadrio que
já existiam perdem a legitimidade, além de perder a função, no momen-
to em que o batismo católico, que é a cerimônia que cria o vínculo, não
é mais reconhecido. É significativo que, durante o tempo em que foram


crentes, foi abolido o tratamento de “compadre” e de “padrinho”: todos
se tratavam de “irmão”.
A predominância do novo tipo de solidariedade sobre o antigo
processa-se através da introdução de uma nova forma de controle
social, que despreza a hierarquia familial, dando a cada indivíduo o
direito de controlar as ações de todos os outros membros do grupo,
porque “todos os crentes são irmãos e é dever de cada um aconselhar o
seu irmão quando este se afasta do caminho da salvação”. Todas as dis-
putas são resolvidas dentro dos padrões estabelecidos pela religião, que
são as mesmas para todas as transgressões, como exemplificamos ante-
riormente com o caso de Eva e Avelino.
Todos estão sujeitos a um controle constante e cada um é respon-
sável pelas suas ações, não ante a família, mas ante toda a comunidade
(ante a “congregação”). Esse controle estende-se a todas as ações, por-
que a crença, exigindo a obediência a padrões de comportamento muito
estritos, leva a uma predominância do plano religioso sobre todas as ati-
vidades, fornecendo os valores pelos quais são julgados todos os com-
portamentos; ademais, a proibição de quase todas as distrações – dan-
çar, ir a festas, beber, fumar – canaliza a parte mais significativa das
energias para a religião.
Os cultos e as orações ganham importância crescente na vida da
comunidade, com a maior organização da seita. Além das reuniões três
vezes por semana, do culto do sábado e das viagens de proselitismo a
outros grupos, haviam instituído ultimamente uma oração coletiva
diária e a “semana de oração” que se realizava nas vésperas de cada
acontecimento importante. As obrigações individuais também se acu-
mularam com o desenvolvimento da seita: as orações diárias, o “voto”
(jejum) por qualquer falta cometida, as contribuições em dinheiro, o
estudo da doutrina.
Vemos, portanto, como o plano religioso se torna fator preponde-
rante na vida do grupo, que se constitui em torno do culto e das inúmeras
cerimônias religiosas coletivas em que se realiza a unidade grupal. É a
religião que dá sentido à forma e à vida da comunidade: sentido, for ne-
cendo o motivo central da vida do grupo; forma, introduzindo um novo
tipo de solidariedade e padrões definidos de comportamento na regula-
mentação da vida em comum. O grupo se transforma então em uma uni-
dade muito mais estável, coesa e disciplinada do que os padrões de orga-
nização fornecidos pela cultura caipira poderiam permitir.

 Adventismo da Promessa no Catulé


As modificações na organização do grupo provocam também
transfor mações nas relações inter nas, que se intensificam, enquanto
as relações com não-membros diminuem em quantidade e intensidade.
A proibição de ir a festas e de beber afasta os crentes dos lugares onde
os amigos se congregam. Ao mesmo tempo, a crença dificulta a troca de
visitas com as pessoas que moram mais afastadas e que pertencem a
religiões diferentes, porque não só o dia de descanso não coincide com
o dos outros, como também porque o sábado, único dia livre, é dedica-
do inteiramente ao descanso e à oração; além disso, a proibição de
comer gordura de porco, muito usada na cozinha caipira, não per mite
que comam na casa dos outros, impedindo assim a forma usual de visi-
ta que inclui o pernoite e a comensalidade.
Esses dois padrões, o respeito do sábado e a proibição de comer
porco, dificultam as relações com os que não são membros, por entra-
rem em choque com os padrões usuais da cultura caipira, e passam a ser
considerados como símbolos de diferenciação grupal. Realmente, uma
das respostas mais comuns que obtivemos sobre a diferença entre o
católico e o crente foi a de que o crente guarda o sábado em lugar do
domingo e não come carne de porco.
Ao mesmo tempo em que enfraquecem as relações individuais
com pessoas de fora do grupo, introduz-se um novo tipo de relação no
qual o grupo entra em contato, como um todo, com outros grupos: é
o que se dá nas viagens de proselitismo, em que todos os indivíduos
moços e adultos iam pregar em algum lugar perto. Parece, portanto,
que, com a maior coesão interna, as relações externas tendem a passar
do plano individual para o coletivo.
Vimos, pois, como a adoção da crença, envolvendo a participação
de todos os membros em um mesmo sistema rígido de valores, impon-
do padrões de comportamento bastante estruturados e deter minando
maior proximidade física dos indivíduos, ocasiona profundas transfor-
mações na organização e estrutura do grupo. O grupo do Catulé não é
o mesmo grupo do Urupuca, apenas com uma religião diferente: é um
grupo novo, que se diferencia de todos os outros da região, mais estável,
mais coeso.
A participação na crença passa então a significar, para cada um, a
participação em um grupo mais sólido, mais unido, proporcionando-
lhes uma segurança nova que a antiga forma de organização não podia
mais proporcionar na situação de crise que a cultura caipira atravessa.


Já tivemos ocasião de apontar a importância desse aspecto na aceitação
da crença, comprovada pelas constantes referências à união do grupo.
As mudanças radicais que a crença introduz não podiam, no en-
tanto, deixar de provocar conflito entre o antigo e o novo sistema.
Enquanto a crença se mantém dentro de um único grupo familial, as
modificações não fazem sentir todas as suas implicações e podem, de
certo modo, ser referidas ao sistema anterior, pois, aparentemente, ape-
nas estendem ao grupo de parentes mais amplo as relações de parentes
mais chegados (irmãos), o que não é difícil entre pessoas que se conhe-
cem desde criança.
Entretanto, a crença abre a possibilidade de admissão de pessoas
que não faziam parte do sistema de relações anteriores, pois não pode
admitir diferenças entre os crentes, e o fato de serem todos aparentados
não passa, do ponto de vista da crença, de uma coincidência. Quando foi
admitida a família de Joaquim, que não estava ligada ao grupo através
do antigo sistema de relações, é que se evidenciaram as transformações
que a estrutura do grupo havia sofrido, porque, adquirindo essa família
uma posição de igualdade ante as outras (e até de superioridade, como
veremos a seguir), demonstrou-se ter havido realmente a destruição dos
laços que os uniam anteriormente, os quais passaram a não contar mais.
A crença também for nece novas possibilidades de aquisição de
prestígio, criando o status de líder religioso, que substitui a antiga figura
do líder, que era a do patriarca; e é em torno do problema da liderança
que se desenrola o conflito entre o antigo e o novo sistema.
O antigo líder do grupo era Manoel, não só por ser o mais velho,
mas também por ter sido arranchado, tendo mantido o prestígio dessa
posição mesmo depois de perder as terras e tornar-se agregado. J. A. dos
Q., o fazendeiro, lhe dá liberdade para escolher as famílias que devem se
estabelecer no Catulé. O seu prestígio se consolida e se traduz nos laços
de compadrio que estabelece com os outros membros do grupo.
Após a conversão, quando a crença influencia toda a organização
do grupo, é Onofre, o líder religioso, que passa a dirigir todas as ativi-
dades, inclusive as econômicas: não é mais Manoel quem faz os contra-
tos de serviço com o fazendeiro, mas Onofre. Embora a experiência do
velho ainda o mantenha como conselheiro, especialmente em assuntos
de lavoura, é Onofre quem decide as disputas, quem aconselha nos pro-
blemas pessoais, porque é ele quem conhece os novos padrões que a
crença impõe. Manoel entrega facilmente a liderança a Onofre, a quem

 Adventismo da Promessa no Catulé


considera como seu sucessor “natural”, em virtude das relações de tipo
pai-filho que existiam entre ambos.
Mas a liderança de Onofre é de tipo completamente diferente da de
Manoel; não é mais baseada na tradição, mas na “preparação profissio-
nal” que recebeu em São Paulo, no conhecimento da Bíblia e dos novos
padrões introduzidos pela crença. Quando Joaquim passa a fazer parte
da comunidade é que se evidencia o caráter novo da liderança, que tra-
duz o caráter novo da estrutura, e que não era patente enquanto Onofre
podia ser considerado o sucessor de Manoel. Joaquim também havia se
convertido em São Paulo e recebido o mesmo treino que Onofre, ascen-
dendo então a uma posição semelhante à dele. Joaquim passa a ser vice-
líder, estando a sua ascensão até a posição de Onofre impossibilitada
pelo seu desconhecimento da leitura, que é essencial ao “pastor”.
A ascensão de Joaquim coloca-o em conflito com Manoel, que vê
nele um intruso, uma ameaça à posição de líder secundário que até
então ocupara. Onofre, que participa de dois sistemas – do antigo,
pelo apoio que lhe deu Manoel e pelas ligações pessoais que mantinha
fazia muito tempo com o grupo; do novo, pelo conhecimento da Bíblia
e da crença – mantém-se entre os dois, ligado a ambos por relações de
amizade. Embora o conflito se processe realmente no terreno de “sis-
tema antigo x sistema novo”, projeta-se todo no sistema novo, em vir-
tude de seu reconhecimento “legal”, e Manoel refere a sua disputa
com Joaquim ao terreno da crença, aproveitando-se do fato de Joa-
quim não saber ler, enquanto ele, Manoel, sabe. Mas Joaquim sabe
pregar, embora não saiba ler, e prega sobre trechos que sabe de cor, ou
sobre o comportamento do crente – “prega fora da Bíblia”, explicam
os infor mantes. Manoel, por sua vez, embora pudesse ler a Bíblia, não
sabia explicá-la direito. A disputa entre os dois reflete-se também nas
outras atividades, e logo começam a surgir questões por causa da roça.
Nessa disputa os membros da comunidade tomam partido ora de um,
ora de outro. Durante a nossa estada, pudemos verificar, de um lado,
uma hostilidade contra Manoel, cada vez que este falava sobre a
Bíblia e sobre a crença. De outro lado, uma referência hostil ao hábi-
to de Joaquim e de seus irmãos, de estarem continuamente chamando
a atenção deles pelos mínimos erros. Isto é, ressentiam quer a intro-
missão de Manoel no terreno da crença, quer a intromissão de Joaquim
no terreno das inter-relações pessoais, onde ainda o sistema anterior
tentava subsistir.


Esse conflito entre Joaquim e Manoel alcança o seu ponto crítico
justamente na véspera dos acontecimentos da Semana Santa. Realmente,
a primeira agressão física que se verifica no grupo é de Joaquim contra
Manoel, a partir do que os acontecimentos tomam um rumo absoluta-
mente inesperado, como relata Castaldi.
O conflito que havia se iniciado como uma disputa sobre o uso de
uma gleba de terra é transferido, por Joaquim, da esfera privada para a
pública, a da Assembléia dos fiéis. Ele acusava Manoel de não obedecer
aos preceitos da religião e de ter se aliado ao diabo. A partir desse
momento, a presença de satanás se torna real e Joaquim, sua irmã e
outra mocinha começam a identificar sua materialização em homens
adultos, mocinhas e crianças, que são espancados para expulsá-lo de
seus corpos. O terror toma o grupo e os espancamentos provocam a
morte de quatro crianças, todas por ações de Joaquim.
A situação fica inteiramente fora de controle. A pressão para puri-
ficar os pecados a fim de expulsar o demônio leva a confissões de pecados
sexuais e a atos sexuais explícitos, o que parece ser um surto psicótico de
Joaquim. Aparentemente, na busca de uma saída para o caos que se ins-
talara, Joaquim profetiza uma partida coletiva para a Canaã celeste após
um banho coletivo de purificação. Estavam todos despidos na água
quando a polícia chegou e atirou em Joaquim e Onofre – que haviam ido
nus e desarmados ao seu encontro –, matando-os e prendendo os sobre-
viventes mais diretamente envolvidos nos acontecimentos.

 Adventismo da Promessa no Catulé


Capítulo 

    


Este trabalho foi originalmente elaborado como disser tação de mestrado,
que defendi em 1964. Naquela época, o então chefe da cadeira de Antropo-
logia, Egon Schaden, estava interessado em dar continuidade a uma linha de
pesquisa iniciada por seu antecessor, Emílio Willems, voltada para a análise
da imigração estrangeira no Brasil. Conforme a tradição da época, as pesqui-
sas realizadas pelos assistentes obedeciam às orientações estabelecidas pelos
catedráticos, dentro de uma margem reduzida de escolha. Foi assim que
Ruth Cardoso estudou os imigrantes japoneses e, na sociologia, Fernando
Henrique Cardoso e Octavio Ianni fizeram suas pesquisas de doutorado sobre
a escravidão no sul do país.
Não havia apenas desvantagens e autoritarismo nessa tradição. Em vir-
tude dela, as pesquisas dialogavam entre si. Isso permitiu um desenvolvimento
cumulativo do conhecimento sobre temas e problemas considerados então
relevantes para a compreensão da sociedade nacional, como aconteceu com
os estudos de comunidade. Com menos autoritarismo e mais persuasão, con-
tinuei essa tradição porque diversos dos meus alunos de pós-graduação
trabalharam temas nos quais eu estava interessada, como as famílias das
classes populares e da classe média, favelas e periferias urbanas.
Imigrantes italianos*

Quando, em , iniciamos o estudo dos imigrantes italianos no muni-


cípio de Descalvado, encontramos uma população que se poderia con-
siderar completamente assimilada à sociedade local. O uso da língua
italiana já desaparecera mesmo do convívio familiar. Não havia traços
de segregação espacial, ou de persistência de elementos culturais origi-
nais tais como formas e objetos particulares de culto religioso, cerimô-
nias e festividades; mesmo na alimentação não conseguimos determinar
diferenças entre as famílias de origem italiana e as nacionais – os pratos
italianos há muito haviam sido modificados e incorporados à cozinha
local. A análise da participação em associações recreativas, beneficentes
ou políticas não evidenciou que a origem étnica fosse fator de discrimi-
nação, positiva ou negativa. A aplicação de um questionário a uma
amostra dos chefes de família residentes na zona urbana não mostrou
qualquer diferença significativa entre descendentes de estrangeiros e a
população de origem nacional quanto a escolaridade, nível ocupacional
e propriedade de imóveis. O levantamento da origem dos sobrenomes
de trabalhadores urbanos, proprietários rurais e industriais revelou ape-
nas que os descendentes de italianos se distribuíam por todas as posi-
ções da hierarquia social. Na nossa experiência de campo não encontra-
mos nenhuma situação em que a origem estrangeira ou nacional fosse
fator de diferenciação social. Os traços de uma discriminação anterior
perduravam apenas, como “sobrevivências”, na vaga auréola de prestí-
gio atribuída aos grandes fazendeiros “de antigamente” (a antiga aris-
tocracia de origem nacional), ou no ridículo da falta de graças sociais de
alguns (mas apenas alguns) dos velhos imigrantes que haviam enrique-
cido rapidamente.

* Publicado originalmente como “Assimilação e mobilidade: a história do imigrante italia-


no num município paulista”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. , .


Em suma, a investigação revelou que os imigrantes e seus descen-
dentes estavam aculturados, que haviam se dispersado como grupo nas
diferentes esferas da sociedade local e conseguido, no plano individual,
um ajustamento psicológico integral e satisfatório. Os imigrantes esta-
vam assimilados.1
Nessas circunstâncias, os estudos dos processos de aculturação e
de integração social2 da população de origem estrangeira só podiam ser
feitos através de uma reconstrução do passado. Infelizmente, como a
imigração nessa área já era bastante antiga, muitas das particularidades
do processo não puderam ser reconstruídas, por falta de informantes e
deficiência dos documentos. As pessoas de origem italiana que pudemos
entrevistar tinham chegado ao Brasil havia mais de quarenta anos,
quando eram crianças. As informações que elas puderam nos fornecer
sobre o início da imigração tinham muito pouco da riqueza de uma
experiência presente. Os documentos escritos sobre a história local
eram poucos: números esparsos de jor nais, as atas da Irmandade de
Misericórdia, alguns registros de impostos. As atas da Câmara Munici-
pal e muitos dos registros de impostos haviam se extraviado. Todos os
documentos da antiga associação italiana, a Fratelanza Italiana, foram
destruídos durante a Segunda Guerra Mundial, em conseqüência das
medidas restritivas adotadas pelo governo contra os estrangeiros.
Perdeu-se muito do que se refere ao aspecto propriamente acultu-
rativo, isto é, aquele relacionado às transformações nos padrões de com-
portamento, valores e atitudes que constituem o equipamento cultural

. Estes três elementos, aculturação, dispersão étnica e ajustamento individual correspon-


dem, segundo Eisenstadt (: ), aos principais índices de absorção completa (full absorp-
tion). Preferimos, no trabalho, utilizar o termo “assimilação” em lugar de “absorção” nesse
sentido. Embora o termo “assimilação” seja usado ora para designar os aspectos sociais do
processo de absorção, ora, como faz Willems (), para indicar a mudança do sistema de
atitudes, ora ainda para indicar a fase final desse processo (de uso mais freqüente na litera-
tura antropológica brasileira), esta ambigüidade pode ser resolvida com um esclarecimento.
. Utilizamos o conceito de “integração social” no sentido proposto por Octavio Ianni, ou,
mais precisamente, na sua segunda acepção: “o processo de integração social é fenômeno
que se dá [...] quando uma ou mais unidades (indivíduos, atitudes, técnicas, nor mas etc.)
passam a fazer parte efetiva e funcional da organização de um todo deter minado, manifes-
tando-se, em conseqüência, transformações sociais tanto em sua estrutura, equilíbrio interno
e dinâmico, como naquelas mesmas unidades”. (O. Ianni : ). O termo “aculturação”
é empregado por nós no seu sentido restrito, referindo-se às transformações que ocorrem no
equipamento cultural do grupo imigrante, resultantes da situação de contato.

 Imigrantes italianos
original. Mas o nosso objetivo não foi o de realizar um estudo de acul-
turação nos termos tradicionais.
A chamada teoria da aculturação sempre apresentou uma dualida-
de fundamental. De um lado, representava uma continuação dos estu-
dos de difusão cultural desenvolvidos pelos antropólogos americanos, o
que levou a conceber-se a aculturação como “transmissão cultural em
processo” (Herskovits : -ss). De outro, apoiava-se nos estudos
de integração cultural, concebida em termos de processos psíquicos de
referência individual. Essa dualidade já foi apontada por Willems no
seu estudo pioneiro sobre a aculturação e assimilação dos alemães no
Brasil (Willems  e ). Willems acreditava também que o estudo
da aculturação propriamente dita é apenas descritivo, e que as explica-
ções causais e funcionais são feitas no nível dos processos psíquicos,
pois a integração é vista como compatibilidade de valores e atitudes que
se realiza no nível da personalidade (Willems : -).
As críticas que os antropólogos vinham formulando em relação a
essa abordagem se orientavam principalmente no sentido de atribuir
importância crescente aos aspectos socioeconômicos e de procurar esta-
belecer, nesse nível, as conexões causais e funcionais que explicassem as
transformações culturais. A ampliação da abordagem culturalista nessa
direção, que se constituiu como tentativa de captar os fenômenos de
mudança como “fatos sociais totais”, aproximou os estudos de antro-
pólogos como Steward (), Murphy (), Cardoso de Oliveira
() das formulações propostas por sociólogos como Balandier ()
e Eisenstadt ().
Se o nosso objetivo não foi o de realizar um estudo de aculturação,
o material de que dispúnhamos tampouco nos per mitia uma análise da
situação total da mudança, que abrangeria, em toda a sua complexa inter-
relação, fenômenos de ordem social, cultural e psicológica. O que procu-
ramos fazer foi analisar algumas conexões entre aspectos sociais e cultu-
rais do processo total da mudança que nos pareceram essenciais para
compreender a assimilação da população de origem italiana na sociedade
local. Tentamos mostrar como a integração do imigrante se realizou atra-
vés de um processo de mobilidade social que foi possível pela utilização
de determinados elementos de seu equipamento cultural original (espe-
cialmente técnicas de produção e de organização do trabalho produtivo,
padrões associativos que regulam a vida familiar). Esses padrões pude-
ram ser conservados e reinterpretados no novo contexto sociocultural,


porque se mostraram adequados para aproveitar as oportunidades de
ascensão criadas pela transformação da sociedade mais ampla.
Para realizar o objetivo do trabalho assim definido não podíamos
nos restringir à análise dos fenômenos no âmbito estritamente local.
Descalvado não é um sistema isolado. A sua história, como a história de
seus imigrantes, só pode ser entendida como manifestação de tendên-
cias que caracterizam a sociedade global na qual ela se insere. Tivemos
portanto que analisar, embora de modo muito sumário, o processo de
transformação da estrutura socioeconômica do estado de São Paulo (e da
região da Baixa Paulista, mais particularmente) no período considerado,
que constitui o quadro de referência básico para o estudo das transfor-
mações que se manifestavam no nível local. Nesse sentido, nossa análise
se aproxima da preconizada por Steward () através da definição de
“níveis de integração sociocultural”.3
Como elemento para o estudo da imigração italiana no estado de
São Paulo, a contribuição que este trabalho possa trazer será certamen-
te parcial. Mas, assim como Descalvado só pode ser compreendido em
termos da sociedade global, os aspectos do processo de integração dos
imigrantes nessa comunidade devem corresponder a tendências gerais
da imigração italiana em nosso estado. E um estudo mais amplo deve
poder contar com contribuições parciais como esta, que ilustram o pro-
cesso de integração do imigrante italiano numa situação particular.

Fatores e condições da imigração italiana em São Paulo

A história da imigração italiana no município de Descalvado está, como


acontece no resto do estado, intimamente vinculada à expansão da
lavoura cafeeira e à desagregação do regime escravocrata e senhorial,
bem como ao processo de industrialização e urbanização.
O estudo da mudança na estrutura socioeconômica do estado e da
região que estamos investigando parece-nos constituir o quadro de re-
ferência fundamental para a compreensão da assimilação e mobilidade
do imigrante. Os diferentes aspectos desse processo já são bastante co-
nhecidos nos estudos de economistas, historiadores e geógrafos como

. Quanto à necessidade de se considerar, nos estudos de comunidade, o sentido das suas


relações com a sociedade mais ampla, ver também Moreira .

 Imigrantes italianos
Sérgio Milliet (), Pierre Monbeig ( e ), Francisco Camargo
(), Celso Furtado (), Caio Prado Jr. () e tantos outros.
O nosso problema principal será o de tentar explicar como os imi-
grantes e seus descendentes aproveitaram as oportunidades fornecidas
pelo processo de mudança social que eles próprios ajudaram a desenca-
dear, utilizando e transformando seu equipamento cultural original.
Sabemos que o café, fonte da grande prosperidade do vale do Pa-
raíba no início do século , começa a avançar para o oeste a partir
dessa época. A princípio, intensifica o aproveitamento de regiões já
povoadas, como Itu, Campinas, Sorocaba e Franca, substituindo a base
econômica anterior, fundada quer no cultivo da cana-de-açúcar, quer
na criação. A seguir, promove o povoamento de regiões parcial ou total-
mente desabitadas. Esse movimento é em parte de expansão e em parte de
substituição de população (desde que as regiões mais antigas entram em
decadência e se despovoam em benefício das mais novas) e explica-se
pelas características capitalistas da grande lavoura cafeeira. O crescimen-
to da economia cafeeira encontrou condições extremamente favoráveis
na disponibilidade de terras e no estímulo fornecido pelo mercado exter-
no. A existência de terras em abundância justificava o abandono dos solos
esgotados, pois isso permitia a transferência de capitais para terras mais
produtivas, onde se podia obter um lucro mais elevado por unidade de
capital empregado. Ao mesmo tempo, os incentivos econômicos indu-
ziam os cafeicultores a estender suas plantações, incorporando mais terra
e mais mão-de-obra. Assim, criou-se já no início da segunda metade do
século  uma escassez de mão-de-obra que se manifesta continua-
mente desde então no clamor repetido de “braços para lavoura”.
No seu início, a lavoura cafeeira havia utilizado a mão-de-obra
escrava que se tinha tornado disponível pela desagregação da economia
mineira e que se represara na produção de gêneros alimentícios. Com a
expansão das plantações, importaram-se negros do Nordeste, onde as
lavouras do açúcar e do algodão eram cada vez menos lucrativas. Entre-
tanto, a oferta da mão-de-obra escrava era limitada, dependendo da
redistribuição interna de uma área para a outra, seguindo o atrativo de
maior rentabilidade da produção. Sabemos já quais os fatores que leva-
ram a se buscar uma solução na importação de trabalhadores europeus
livres, desprezando-se as possibilidades de aproveitar a mão-de-obra do
setor da economia de subsistência: de um lado, a rarefação, a dispersão
e o isolamento dessa mão-de-obra e os interesses políticos locais na sua


conservação; de outro, a disponibilidade de trabalhadores europeus, espe-
cialmente dos camponeses italianos, pois as transformações econômicas
decorrentes da industrialização haviam criado condições generalizadas
de desemprego e empobrecimento em muitos países da Europa. A isso
aliava-se uma valorização do trabalhador europeu, colocada ainda em
termos de superioridade racial e de “sangue”.
A possibilidade de utilização do emigrante europeu como trabalha-
dor assalariado nas plantações de café dependeu da elaboração de um
novo tipo de relação de trabalho, que assumiu a forma do “colonato”,4 e
da solução do problema do financiamento do transporte do imigrante,
que se fez pelo governo federal e provincial. É durante o terceiro quartel
do século  que são resolvidos esses problemas fundamentais e se in-
tensifica de modo extraordinário o fluxo imigratório. O colonato desem-
penhou um papel fundamental na passagem do trabalho escravo para o
trabalho livre, como analisamos mais adiante.5
Nessa metade do século, as fazendas de café já haviam ultrapassa-
do Campinas e alcançado Limeira, Rio Claro e Araraquara, iniciando o
desbravamento da região conhecida como Baixa Paulista. Zona de po-
voamento muito esparso e de nenhuma significação econômica até a
introdução do café, pode ser considerada como a primeira das zonas pio-
neiras, isto é, das que foram colonizadas em conseqüência da expansão
da lavoura cafeeira. A passagem da mão-de-obra servil à livre inicia-se
justamente nesta região, e é ao êxito com que se realizou esta passagem
que se deveu sua prosperidade. Para o estudo da imigração no estado de
São Paulo, a região da Baixa Paulista é de interesse crucial. A nossa
preocupação inicial será, portanto, a de reconstruir os elementos cen-
trais da estrutura econômico-social dessa região, da qual faz parte o
município de Descalvado.

. O colonato é um tipo de relação de trabalho no qual parte da remuneração é feita em


dinheiro (e proporcional ao número de pés de café aos cuidados do colono), parte em espécie
(e consiste em uma proporção da colheita) e parte na permissão de acesso à terra para planta-
ções de subsistência. A importância relativa de cada um desses elementos varia de época para
época e de fazenda para fazenda, contribuindo assim para a constante mobilidade do colono,
sempre em busca de contratos mais vantajosos. Quanto ao desenvolvimento desse tipo de rela-
ção de trabalho, é documento de grande interesse o livro de Thomas Davatz [] e, especial-
mente, o prefácio de Sérgio Buarque de Holanda para a edição de  dessa obra.
. Deve-se considerar também que o desenvolvimento dessa nova relação de trabalho é um
aspecto do processo de transformação da fazenda de café em empresa capitalista, que se dá
concomitantemente ao “avanço para o oeste” (F. H. Cardoso ).

 Imigrantes italianos
A região da Baixa Paulista, cujo povoamento foi provocado pela
expansão da lavoura cafeeira, constituiu-se a partir da segunda metade
do século  como prolongamento da região mais antiga de Campi-
nas.6 Região de enorme progresso no século , é das mais beneficia-
das com as primeiras grandes correntes imigratórias, das primeiras a
introduzir novos métodos de beneficiamento de café e a revolucionar o
transporte pelo estabelecimento de uma rede ferroviária.7
Por ocasião do levantamento estatístico do estado, realizado por
D. P. Müller em , e portanto anterior à introdução do café, existia
apenas um município em toda a região, o de Araraquara, criado quatro
anos antes (apud Camargo ). A partir de então, o grande aumento
da população e da produção cafeeira reflete-se na criação sucessiva dos
municípios que hoje integram a área.
Em , já haviam sido criados os municípios de Limeira () e
Rio Claro (). O quadro estatístico realizado por ordem do vice-
presidente da província em  indica para a região uma população de
. habitantes, quase dez vezes a original, da qual . eram escravos.
Indica também que a produção de café atingia . arrobas. A partir
de então, o crescimento é rapidíssimo e as plantações vão se estendendo
continuamente para regiões novas (tabelas  e ).
Em  são criados três novos municípios – Descalvado, São
Carlos e Pirassununga; em  cria-se Jaboticabal e em , Araras.
O povoamento havia então ultrapassado a depressão periférica (Itu,
Tatuí, Campinas, Limeira) para atingir a planície central, onde as aflo-
rações de terra roxa são maiores e mais numerosas.8 O município de
Descalvado situa-se no limite entre essas duas regiões. O recenseamento
geral do Brasil de  (realizado em São Paulo com um atraso de dois

. A delimitação das regiões econômico-geográficas do estado varia segundo o autor. Prefe-


rimos, neste trabalho, seguir a delimitação proposta por Camargo (), que nos per mitiu
utilizar os dados quantitativos de diferentes fontes já sistematizadas por este autor. Uma alte-
ração dos limites, entretanto, para seguir o critério de alguma outra obra, não mudaria a aná-
lise do desenvolvimento socioeconômico da região que sumarizamos nesta parte do trabalho.
. Em  inaugura-se a primeira ferrovia paulista, a “Santos-Jundiaí”. Em , a Cia.
Paulista, fundada em , já alcançava Campinas; em  chegava a Rio Claro e, no ano
seguinte, inaugurava-se o ramal para Descalvado. Em  a Cia. Rio Claro já concluíra a
ligação Rio Claro-São Carlos.
. Para a caracterização dessas regiões geoeconômicas e sua relação com a expansão da
lavoura cafeeira, ver Monbeig (), especialmente a primeira parte e, mais particularmen-
te, o primeiro capítulo.


TABE LA 1: POPU LA ÇÃO DA REGIÃO DA BAIXA PAU LIS TA

ANO TOTAL POPULAÇÃO


ESCRAVA ESTRANGEIRA
1836 2.764 937 —
1854 21.889 5.535 —
1874 69.614 15.478 —
1886 133.697 17.253 7.739
1900 275.079 — —
1920 530.257 — 107.082
1934 599.842 — 69.208
1940 576.775 — 43.579

Fonte: Camargo 1952: 6, 16 e 46 (v. 2).

TABE LA 2: PRO DU ÇÃO DE CAFÉ NA REGIÃO DA BAIXA PAU LIS TA

ANO CAFÉ
No DE CAFEEIROS ARROBAS PRODUZIDAS
1905 146.352.187 7.417.916
1920 171.456.700 3.263.620
1934 191.250.547 6.146.144
1940 151.684.227 6.225.798

Fonte: Camargo 1952: 83.

anos) indica que a população da região havia triplicado nesses vinte


anos, atingindo . habitantes, dos quais . eram escravos; indi-
ca também a existência de . estrangeiros que começavam a ser intro-
duzidos para substituir os escravos como mão-de-obra das plantações
(tabelas  e ).
Vinte e dois anos depois, o relatório da Comissão Central de Esta-
tística de  aponta uma população total de . habitantes, o dobro
da anterior, entre os quais . escravos (apud Camargo, ). Não
há indicações sobre o número de estrangeiros, mas o declínio relativo
da mão-de-obra servil, já às vésperas da Abolição, permite-nos inferir a
importância que a migração já desempenhava nesse crescimento econô-
mico e populacional. Nessa data, já haviam sido criados mais três muni-
cípios (Barretos, Santa Rita e Palmeiras – ) e a produção de café
estava próxima de , milhões de arrobas (tabelas  e ).

 Imigrantes italianos
O povoamento atingia então a parte setentrional da região, onde as
condições naturais sempre favoreceram a criação e cuja economia se
estabeleceu, desde o início, em bases diferentes da parte mais meridional.
O recenseamento de , muito incompleto, estima a população
da região em . habitantes, novamente o dobro da anterior. O re-
censeamento agrícola de  indica, para toda a região, uma produção
de .. arrobas de café (tabelas  e ).
Nos vinte anos seguintes, continua a tendência ao aumento da
produção cafeeira e ao crescimento da população. São estabelecidos os
municípios de Viradouro (), Monte Azul (), Olímpia e Guaíba
(). A população torna a duplicar, alcançando . habitantes,
dos quais . (ou seja, mais de %) são estrangeiros; destes, mais
da metade – isto é, . (ou ,% da população total) – são italianos
(tabela ).
A partir de então, a região estaciona, perdendo em importância
relativa no conjunto do estado, com o desenvolvimento das regiões
mais novas. O recenseamento do estado de São Paulo de  indica
para a zona uma população de . habitantes, pouco maior que a de
. Os três municípios criados nesse ínterim (Colina, ; Cajabi,
; Guaíra, ), localizam-se todos na parte setentrional, dedicada
à criação, e onde o café sempre foi de menor importância. Refletindo a
decadência da zona cafeeira, extinguiu-se um município, o de Santa
Cruz (tabelas  e ).
Até , a população diminui para . habitantes, embora
ainda se crie um município em , o de Itirapina. Nessa época, os
estrangeiros representam apenas ,% da população total. A produção
de café nesse ano é pouco maior que a de  (tabelas  e ).
Dado o seu desenvolvimento relativamente recente, a abertura das
fazendas de café em toda esta parte do estado se inicia quando o regime
servil já está em decadência. Embora os escravos tenham for necido a
mão-de-obra inicial, a manutenção e expansão das plantações só foi
possível graças ao trabalho livre do imigrante estrangeiro, principal-
mente o italiano. Como a época de maior expansão econômica da região
e, conseqüentemente, de maior expansão demográfica coincide com o
período áureo da imigração, o trabalhador europeu contribuiu com
grande parte do contingente populacional e marcou profundamente
todo o seu desenvolvimento econômico. Daí o interesse especial que esta
região apresenta para o estudo da imigração, especialmente a italiana.


Apesar das crises do início do século, o crescimento econômico e
demográfico da região da Baixa Paulista continuou a ser mantido pelo
café durante duas décadas. Com a grande geada de  e a crise mone-
tária de  a região começa a perder sua importância relativa no con-
junto do estado. O novo surto cafeeiro da década de  a ultrapassa. As
zonas mais novas (Alta Paulista, Noroeste e Alta Sorocabana) atraem a
mão-de-obra e os capitais acumulados. A região entra em transforma-
ção econômica: a policultura ganha em importância e introduz-se o cul-
tivo de novos produtos; aumenta o número das pequenas propriedades
agrícolas, que sempre coexistiram com as grandes fazendas; diversifica-
se a produção rural e estabelece-se uma indústria urbana incipiente.
Apesar disso, a população no seu conjunto aumenta muito pouco até
, e passa a declinar desde então. Os municípios que se industrializa-
ram rapidamente e os que procederam à fragmentação da grande pro-
priedade prosperam ou mantêm-se estacionários; os outros perdem
população e declinam economicamente.

O município

O atual município de Descalvado situa-se na região comumente deno-


minada Baixa Paulista, e abrange uma área de  km2. Limita-se ao
norte com Santa Rita do Passa Quatro e São Simão, ao sul com Analân-
dia, a leste com Porto Ferreira e Pirassununga, e a oeste com São Carlos
e Santa Eudóxia.9
A reconstituição da história do município, a partir do último quar-
tel do século , pode ser feita utilizando-se como ponto de referência
as estatísticas oficiais.10 Os dados numéricos referentes ao município, em-
bora nem sempre muito acurados, são sugestivos quando usados para
. Localização: latitude S º ’ ’’, longitude W º ’ ’’; relevo: na maior parte, ondu-
lações suaves; altitude variando entre  e  m.
Orografia: pertence à bacia de Mogi-Guaçu, que serve de limite setentrional do município.
Transportes: É servido por ramal da Cia. Paulista de Estradas de Ferro. Rodovias estaduais
comunicam-no com São Carlos e Porto Ferreira. A comunicação com os demais municípios
é feita por estradas municipais (Informações coletadas na agência local do ).
. Essa afir mação se mantém mesmo levando em conta as variações na área do município
desde sua fundação. Durante a época em que o município perde terras (principalmente no
século passado) as estatísticas estão em ascensão. A diminuição de população e produção
verifica-se quando a área já se estabilizou.

 Imigrantes italianos
verificar tendências inferidas a partir de histórias de vida, de histórias de
famílias, dos documentos contemporâneos e dos dados referentes à
região da Baixa Paulista como um todo.11
As infor mações sobre a época do início do povoamento são bem
mais precárias e baseiam-se, em grande parte, na história de algumas
famílias que se estabeleceram no município pouco depois de .
Sabemos, através da história oficial do município, que a região foi
habitada inicialmente, no começo do século , por colonizadores vin-
dos de Minas Gerais e da região de Franca e Casa Branca. A vila data de
, quando foi fundada uma capela, à qual se incorporou um patri-
mônio para ser distribuído entre os que ali quisessem habitar. As terras
que constituíram a vila foram doadas por um dos habitantes da região,
de nome José Ferreira da Silva, natural de Minas Gerais. O início do
povoamento parece prender-se, portanto, à grande migração de criado-
res mineiros, que nessa época já haviam ocupado toda a área que acom-
panha o antigo caminho para Goiás e, mais tarde, alcançariam o Para-
napanema (Monbeig : -).
Não possuímos nenhuma infor mação que nos esclareça sobre a
organização econômica e a estrutura social desta primitiva população do
município. Podemos apenas inferir, pelo que se sabe sobre os criadores
mineiros que realizaram este movimento migratório (Monbeig ;
Saint-Hilaire ), que constituíam uma sociedade pouco diferenciada,
dividida em grupos familiais quase auto-suficientes do ponto de vista
econômico, e na qual a força de trabalho era fornecida antes pelos fami-
liares do que por escravos ou assalariados. A produção provavelmente
estava baseada na criação de bovinos e suínos, e a agricultura, de impor-
tância secundária, incluía o fumo, além de produtos de subsistência.
O desenvolvimento econômico da região parece datar da segunda
metade do século, com o estabelecimento de grandes fazendas de café12
por colonizadores vindos das zonas paulistas mais antigas de Capivari,
Itu, Sorocaba, Campinas e, mais tarde, Limeira, como pode ser verifica-
do pela genealogia dos antigos fazendeiros do município (Whitaker,

. Para as tabelas nos servimos apenas de dados das estatísticas oficiais e aproveitamos,
sempre que possível, a compilação e sistematização realizadas por Camargo (), o que
facilitou extraordinariamente o trabalho. Todavia, não nos furtamos à consulta das fontes
originais, que foram utilizadas sempre que a fonte acima se mostrou insuficiente.
. Embora o cultivo da cana seja tão ou mais antigo na região do que o do café, ele parece ter
sido de importância secundária, e é raramente mencionado nos documentos e na tradição oral.


Tobias de Oliveira, Alves Aranha, Souza Queiroz, Rodrigues Penteado,
Barros, Arruda, Teixeira Leite etc.). Ao contrário do povoamento pri-
mitivo, essa colonização implicava a posse de capitais relativamente ele-
vados, aplicados principalmente em escravos, essenciais para a abertura
de fazendas deste tipo. Desde o início, ela envolveu uma população dife-
renciada e estratificada, cuja organização social se fundamentava inicial-
mente na dicotomia senhor-escravo, e que posteriormente foi redefinida
em ter mos da oposição fazendeiro-colono. Numa das entrevistas reali-
zadas com os descendentes de antigos fazendeiros do município, relata-
se como o avô da infor mante, natural de Limeira, veio recém-casado
abrir cafezais nas terras novas, trazendo vinte escravos dados por seu
pai. Com ele vieram outros, muitos deles aparentados entre si, reconsti-
tuindo e continuando em Descalvado o mesmo processo que levara à
formação das plantações de Campinas, Limeira e Araraquara. A história
é semelhante não só à de muitos fazendeiros do município, mas repete-
se em outras regiões colonizadas pelo café e é encontrada diversas vezes
na genealogia de qualquer das antigas famílias de fazendeiros paulistas.
Vimos anteriormente como a criação de novos municípios paulis-
tas, no século , acompanha de perto o avanço dos cafezais. Atestando
o progresso da sua lavoura cafeeira, Descalvado é elevada a município
em . Em , nove anos após a sua fundação, o recenseamento da
província lhe atribui . habitantes, dos quais . (,%) eram
escravos. Não há indicações sobre estrangeiros, mas podemos inferir
que fossem poucos, desde que para toda a década de  não entraram
no estado mais que . estrangeiros, dos quais a maioria no fim do
período (tabelas  e ).
Embora a mão-de-obra escrava tenha sido muito importante na
abertura dos primeiros grandes cafezais, a manutenção e expansão da
lavoura cafeeira, nessa época, passou a exigir um número crescente de
trabalhadores. Foi a imigração européia que, em grande parte, supriu
esta necessidade. Descalvado deve ter recebido os primeiros contingen-
tes de imigrantes no início da imigração em larga escala para São Paulo.
A família de origem italiana mais antiga no município, entre as que en-
trevistamos, chegou em . Nessa época, as famílias recém-chegadas
já encontraram diversos núcleos de colonos italianos nas fazendas, ao
lado dos escravos, e já havia também italianos na cidade. É justamente
então que começa a se intensificar o surto imigratório para São Paulo,
passando-se de . pessoas no período entre - para . no

 Imigrantes italianos
TABE LA 3: POPU LA ÇÃO ESTRAN GEI RA, ESCRAVA, NEGRA DO MUNI CÍ PIO
DE DES CALVA DO

ESTRANGEIRA
ANO ITALIANOS TOTAL ESCRAVOS NEGROS TOTAL
1854 – – 409 – 2.430
1874 – – 1.139 – 5.709
1886 – 1.124 2.182 – 8.257
1900 – – – – 23.838
1920 3.295 4.664 – – 22.035
1934 1.352 1.960 – – 19.182
1940 – 1.125 – 1.931 16.467
1950 – 624 – 1.153 14.113

Fonte: Camargo 1952; Recenseamento do Brasil de 1920, 1940, 1950;


Boletim do Serviço de Imigração e Colonização, 4.

TABE LA 4: IMI GRAN TES ESTRAN GEI ROS E TRA BA LHA DO RES NACIO NAIS
ENTRA DOS NO ESTA DO DE SÃO PAULO ATRAVÉS DO SER VI ÇO
DE IMI GRA ÇÃO E COLO NI ZA ÇÃO

TOTAL DE TRAB.
ANOS ITALIANOS ESTRANGEIROS NACIONAIS
1870-9 3.441 11.330 400
1880-9 144.654 183.512 474
1890-9 430.243 734.985 91
1900-9 174.634 367.834 20.874
1910-9 105.834 446.582 33.927
1920-9 74.778 487.313 225.183
1930-9 12.429 198.122 435.834
1940-9 11.173 52.968 474.185

Fonte: Boletim do Serviço de Imigração e Colonização, 3. 1941: 140 e 145;


Boletim 4: 19 e 29; Boletim 5: 60.

qüinqüênio seguinte, . entre - para atingir . entre


-. O último qüinqüênio do século marca o apogeu da imigração
estrangeira para o estado, com um total de . imigrantes (tabela ).
O recenseamento de  indica uma população de . habitan-
tes para o município, dos quais . escravos (pouco mais de %) e
. estrangeiros (ou ,%). Verifica-se portanto que é pequeno o


TABE LA 5: POPU LA ÇÃO RURAL E URBA NA DO MUNI CÍ PIO DE DES CALVA DO

POPULAÇÃO POPULAÇÃO
ANO RURAL URBANA TOTAL
1934 15.718 3.464 19.182
1940 12.237 4.230 16.467
1950 9.659 4.454 14.113

Fonte: Camargo 1952: 16 (v. 2); Recenseamento Geral do Brasil de 1950.

crescimento relativo da população escrava, e que o contingente imigra-


tório contribuiu em grande parte para o crescimento populacional. Se
admitir mos, o que não é inverossímil, que existiam muito poucos
estrangeiros em , o aumento populacional verificado entre essa data
e  deve ser visto como essencialmente devido ao aumento da popu-
lação escrava e do contingente imigratório, especialmente do último.
Considerando que os italianos constituíam então a grande maioria dos
trabalhadores estrangeiros encaminhados à província de São Paulo,
podemos inferir, e as entrevistas o confir mam, que eles constituíam
também a maior parte dos estrangeiros do município (tabelas  e ).
O município já iniciara então o rápido desenvolvimento que o
caracterizaria até o fim do século, sustentado pela fertilidade das terras
novas, pela produtividade dos cafezais recém-for mados e pela euforia
cafeeira daquele fim de século, que constituiu uma época extremamente
favorável à expansão das plantações.
Os velhos imigrantes descreveram a enorme extensão das fazendas,
o domínio absoluto das plantações de café e a riqueza daí decorrente.
Fontes contemporâneas pintam o mesmo quadro. O Almanaque adminis-
trativo comercial e industrial da província de São Paulo, de , aponta
Descalvado como grande produtor de café, cujo rendimento é estimado
em  mil arrobas “devendo atingir logo  mil”. Segundo a mesma
fonte, cultivava-se também cana-de-açúcar (como em Campinas e Limei-
ra) e fumo, considerado o melhor da província (indicador da antiga colo-
nização mineira).13 O Almanaque lamenta apenas a escassez de cereais
“por falta de agricultores que se empreguem na pequena lavoura”.

. Indício da antiga importância da cultura do fumo é a existência do apelido de “fumeiros”


para designar os descalvadenses.

 Imigrantes italianos
TABE LA 6: PRO DU ÇÃO DE CAFÉ DO MUNI CÍ PIO DE DES CALVA DO

No DE No DE
ANO CAFEEIROS ARROBAS
1905 12.683.171 527.368
1920 12.328.100 240.000
1934 7.713.363 238.833

Fonte: Camargo 1952.

Até o fim do século o crescimento se acelera, e o município atra-


vessa uma época de grande prosperidade. Em  é inaugurado o
ramal da Cia. Paulista de Estradas de Ferro que une Descalvado a São
Paulo e Santos, facilitando o escoamento da produção e intensificando
o aumento dos cafezais. O Almanaque para o ano de  atribui a Des-
calvado uma produção de  mil arrobas de café e estima a população
em  mil almas, das quais  mil na zona rural. O recenseamento de
 indica uma população de . habitantes. No quarto de século
que vai de  a , portanto, a população aumentou cerca de quatro
vezes e meia, o que indica a enor me vitalidade da economia cafeeira
nesse período (tabela ).
Não temos indicação da produção de café de , mas a crise que
se desencadeia então, e se prolonga pelos anos seguintes, deve ter atin-
gido rudemente os cafezais locais. O censo agrícola de  indica uma
produção de . arrobas, certamente menor do que as produções
máximas do século anterior (tabela ).
A partir de então, com a nova crise de preços que antecede imedia-
tamente a Primeira Guerra Mundial e com a grande geada de , o sis-
tema produtivo assentado no café vai sendo sucessivamente abalado, e
torna-se cada vez mais difícil a sua recuperação. O recenseamento de 
já acusa uma diminuição de população para . habitantes. A produ-
ção de café desse ano é de apenas  mil arrobas. Essa produção extre-
mamente baixa, entretanto, não reflete a capacidade produtiva real, que
nessa época ainda se ressentia dos efeitos da geada de . O novo surto
cafeeiro que se inicia no estado depois de  não consegue entretanto
restabelecer a antiga prosperidade, embora a produção de café se recu-
pere parcialmente nesse período. As terras exploradas havia quarenta
anos ou mais não podiam competir com as regiões mais novas e mais


férteis, que atraíam o capital e a mão-de-obra. Os imigrantes encami-
nhados ao município para substituir a mão-de-obra que se evade não
conseguem sustar o decréscimo da população (tabelas  e ).
Até essa época, o café constituiu a base do crescimento demográfico
e da prosperidade econômica de Descalvado, criando uma sociedade do-
minada pelos grandes fazendeiros. A partir de então os recenseamentos
indicam a estagnação e o decréscimo do contingente populacional, e a
decadência da produção cafeeira. Estes dados numéricos constituem uma
manifestação da desagregação do sistema produtivo fundado na grande
lavoura e da transformação profunda da estrutura e organização da socie-
dade local. Na década de -, são ainda encaminhados para o muni-
cípio, pelo Departamento de Imigração, . imigrantes. A grande crise
de  marca o fim da emigração para Descalvado e a aceleração da
decadência da produção cafeeira. O recenseamento de  acusa nova-
mente um decréscimo da população, que alcança somente . habitan-
tes; a produção de café é então de . arrobas. Em  a população
é de . habitantes e em  atinge apenas . (tabelas  e ).
O decréscimo da produção cafeeira que se inicia no começo do
século não indica um colapso da economia agrícola. Paralelamente ao
aumento do número de pequenos proprietários, verifica-se uma diversi-
ficação crescente da produção. A cana nunca foi totalmente abandonada,
desde o início da colonização. Em , o Livro dos municípios paulistas
(Egas ) aponta, como principais produtos agrícolas de Descalvado,
além do café, cereais (arroz, feijão, milho), batata, cana, algodão, fumo e
tomate. Comenta ainda sobre o grande número de pequenos lavradores,
a maioria dos quais afirma serem de origem italiana. Em , segundo
informações da Secretaria da Agricultura de São Paulo () a produ-
ção agrícola inclui, além do café, cana, algodão e cereais (arroz, feijão,
milho). A produção de algodão tende então a aumentar, e introduz-se
também em escala crescente a criação, especialmente a de gado leiteiro e,
em escala menor, a de suínos, que sempre foi de alguma importância no
mercado local. Em , o rebanho bovino é de . cabeças e o suíno,
de .. Em  o rebanho bovino é de perto de  mil cabeças, e o
suíno é de cerca de  mil, já tendo tomado grande incremento a avicul-
tura, com a criação de um número crescente de granjas de criação inten-
siva (estimativa da agência local do ). Nessa época, as principais
produções agrícolas são o algodão ( mil arrobas), a cana ( mil tone-
ladas), milho ( mil sacas), arroz ( mil sacas), café ( mil arrobas),

 Imigrantes italianos
TABE LA 7: DIS TRI BUI ÇÃO DA ÁREA DAS PRO PRIE DA DES AGRÍ CO LAS
DO MUNI CÍ PIO DE DES CALVA DO (EM ALQUEI RES)

50 51-100
ANO ALQUEIRES ALQUEIRES 101-500 501 E + TOTAL
1905 159 23 48 14 244
1934 330 53 53 9 445
1952 283 42 59 10 394

Fonte: Camargo 1952; Agência Estatística Local.

TABE LA 8: NÚME RO DOS ESTA BE LE CI MEN TOS AGRÍ CO LAS DO MUNI CÍ PIO
DE DES CALVA DO

ANO No ESTAB.
1905 244
1920 303
1934 445
1940 417
1953 394

Fonte: Camargo 1952; Recenseamento Geral do Brasil de 1940. Agência Estatística Local.

feijão ( mil sacas), e tomate (. toneladas) (infor mação da agência


local do ).
A fragmentação da grande propriedade parece acompanhar a deca-
dência da cultura cafeeira. Os recenseamentos de  e  revelam
uma tendência global para o aumento do número de estabelecimentos
agrícolas. Assim, o censo agrícola de  indica  proprietários. Em
, o recenseamento nacional arrola um total de  proprietários e
 propriedades, o que constitui um aumento pequeno em relação ao
fim do século. Por outro lado, o censo agrícola de  indica  pro-
prietários agrícolas no município. A década e meia que se segue à grande
geada de  é o período por excelência de divisão da terra. Os recen-
seamentos de  e  apontam uma reversão dessa tendência, mas o
de  volta a registrar um aumento do número de propriedades rurais.
O número de estabelecimentos agrícolas recenseados é de, respectiva-
mente,  em ,  em  e  em . Embora, em todos os
casos, o número de proprietários seja inferior ao número de estabeleci-
mentos, a tendência revelada pelos números é clara (tabelas  e ).


O aumento do número das propriedades agrícolas não significou o
desaparecimento das grandes fazendas. A criação de um grande núme-
ro de sítios e chácaras se deu pelo loteamento de apenas algumas fazen-
das, ou partes de fazendas. Muitas outras propriedades mantiveram sua
área original e registra-se, inclusive, a criação de novas grandes fazen-
das, por aglutinação de propriedades menores. Assim, a for mação de
uma população de pequenos proprietários agrícolas se dá paralelamente
à per manência da grande propriedade. Mas, por outro lado, as oscila-
ções do número de estabelecimentos e do número de proprietários indi-
cam uma redistribuição de terra que está intimamente ligada à ascensão
social do imigrante.

Os imigrantes

Já que a imigração para Descalvado é tão antiga, e as fontes contemporâ-


neas tão imprecisas e falhas, não podemos determinar com precisão dois
elementos importantes para a análise do processo de assimilação e da
mobilidade dos imigrantes: em primeiro lugar, a sua proveniência e, con-
comitantemente, as características da sociedade da qual provieram e as
peculiaridades regionais do seu equipamento cultural; em segundo lugar,
o número dos italianos que se estabeleceram no município e, portanto, a
sua contribuição quantitativa para a for mação da população. Como os
dois elementos são importantes pelas suas implicações na constituição da
situação aculturativa e de contato, tentaremos precisá-los um pouco mais
à base de inferências sobre o escasso material que possuímos.
As famílias italianas entrevistadas provêm de diferentes regiões da
Itália. Como a emigração para Descalvado foi em grande parte canali-
zada através do Serviço de Imigração, não deve ter havido inicialmente
uma predominância definida de nenhuma região italiana.14 Os movi-
mentos migratórios voluntários que costumavam se seguir ao tér mino
do contrato de trabalho inicial, que poderiam seguir preferências basea-
das na origem comum, não parecem ter conseguido uniformizar a hete-

. Com respeito à noção generalizada de que as regiões do sul da Itália contribuíram com a
maioria do contingente emigratório para São Paulo, Foerster (apud Rios ) documenta
uma tendência inversa de predomínio de elementos setentrionais. Entre os imigrantes que
entrevistamos, encontramos representantes tanto do sul quanto do norte da Itália, com ligei-
ro predomínio dos últimos.

 Imigrantes italianos
rogeneidade inicial, embora provavelmente tenha havido concentra-
ções maiores de uma ou outra província no mesmo distrito, devido à
tendência dos imigrantes de atraírem parentes e conterrâneos.
Ao lado dessa heterogeneidade regional, e provavelmente mais
importante do que ela, parece ter havido uma diferença ocupacional
significativa entre os migrantes, que envolvia, além de lavradores, um
contingente apreciável de pessoas com ocupações urbanas. Entre estas,
encontramos desde carroceiros e barqueiros até profissionais liberais,
incluindo um número apreciável de artesãos (marceneiros, carpintei-
ros, ourives), alguns comerciantes, fotógrafos, músicos e mesmo um
proprietário de moinho.
O objetivo da imigração por parte da sociedade brasileira foi,
primordialmente, o de obter braços para a lavoura. Assim, em Des-
calvado, a grande maioria dos imigrantes, independentemente da
ocupação original, foi encaminhada para as fazendas. Desde o início,
entretanto, os imigrantes de ocupações urbanas procuraram estabele-
cer-se na cidade, onde o núcleo italiano data do início da imigração.
Esta diferenciação entre imigrantes urbanizados e rurais será anali-
sada em outra parte do trabalho. Interessa-nos, no momento, avaliar
a importância quantitativa do elemento italiano na for mação da po-
pulação do município.
Os dados do Serviço de Imigração não nos dizem muito sobre a
importância do elemento italiano e estrangeiro na constituição da
população, pois limitam-se a registrar o número de imigrantes que o
serviço encaminhou para Descalvado; não indicam, portanto, nem
o número dos que efetivamente se dirigiram para lá, nem quantos se
estabeleceram definitivamente. Eles são significativos apenas quando
usados para verificar a importância relativa do contingente estrangei-
ro encaminhado para o município, em comparação com o resto do
estado. Para avaliar a importância real da contribuição estrangeira
temos que nos basear primordialmente na evidência indireta dos
recenseamentos que, apesar de falhos, constituem a única fonte para
inferências desse tipo.
Como já indicamos, o primeiro recenseamento a computar o
número de estrangeiros na população foi o de . Segundo esta fonte,
havia então no município . habitantes, dos quais . (pouco mais
de %) eram escravos e . (ou ,%) eram estrangeiros (tabela ).
É justamente nessa época que se inicia a emigração em grande escala


para o Brasil, e podemos admitir que a quase totalidade dos estrangei-
ros de Descalvado fizesse parte desse contingente de imigrantes. Como
também, já nessa época, os italianos constituíam a maioria dos trabalha-
dores estrangeiros que emigraram para o Brasil, podemos deduzir (e as
entrevistas o confir mam) que a maioria dos estrangeiros do município
era constituída de italianos (tabelas ,  e ).
Depois dessa data, só dispomos de infor mações relativas a ,
quando o recenseamento registra . habitantes, dos quais .
(,%) são estrangeiros e desses, . (%) são italianos. Os ita-
lianos representam, portanto, quase % da população total. Nessa
época, entretanto, a emigração já tinha uma história de mais de qua-
renta anos, e os descendentes de estrangeiros deviam ser muito
numerosos na população total, especialmente se levar mos em conta
que os imigrantes no Brasil parecem ter se reproduzido mais rapida-
mente que a população nacional (Lowie ). A partir de , com
a diminuição dos novos contingentes migratórios, e também com o
êxodo que começa a se manifestar na região, a população estrangeira
decresce (tabela ).
O recenseamento de  aponta um total de . habitantes,
dos quais . italianos entre . estrangeiros. A discriminação entre
a população urbana e a rural indica uma porcentagem relativamente
maior de italianos na zona urbana do que na rural. Para . habitan-
tes na zona rural, . (,%) são italianos. Para os . habitantes
da zona urbana,  (,%) são italianos.
A tendência à diminuição da população estrangeira continua a se
revelar nos recenseamentos seguintes (tabelas  e ). O censo de 
indica apenas  estrangeiros, dos quais  italianos, para uma popu-
lação total de . habitantes (tabela ). Não é possível, entretanto,
avaliar por estes dados a importância dos descendentes de estrangei-
ros na estrutura populacional. Podemos apenas inferir que é grande.
Num inquérito sobre uma amostra da população urbana, realizado
em , verificamos que, num total de  chefes de família, cinqüen-
ta (,%) possuíam quatro avós estrangeiros e , isto é, mais da
metade, possuíam quatro avós italianos;  tinham pelo menos dois
avós italianos e apenas quinze não tinham ascendência italiana. O nú-
mero de indivíduos que não possuíam nenhum avô estrangeiro era
de apenas nove (,% do total). Por outro lado, apenas oito indiví-
duos eram italianos natos. Essa amostra nos dá uma idéia melhor da

 Imigrantes italianos
importância do elemento estrangeiro (especialmente do italiano) na
constituição da população do que os dados do recenseamento sobre o
número de italianos.
Na realidade, parece que o contingente imigratório é predominan-
te na constituição da população de Descalvado. Em diversas entrevistas
se afirma que, por volta de , havia mais italianos (compreendendo-se
nessa afirmação também seus descendentes) do que brasileiros na popu-
lação. A franca predominância de italianos, pelo menos em algumas áreas
rurais, é testemunhada por um infor mante de origem espanhola, que
aprendeu na fazenda tanto o português como o italiano, falando ambas
as línguas com igual desembaraço.15
As inferências que acabamos de fazer são confirmadas pela consti-
tuição da população urbana atual e pela freqüência de sobrenomes ita-
lianos que, em dados coletados em  e , correspondem, de modo
geral, a mais da metade do total.16
Desse modo, o processo de transfor mação e diferenciação social
que se realizou no município é, em parte, um processo de diferenciação
interna da própria população de origem estrangeira, processo este que
se completou pela emigração da camada superior da população de ori-
gem nacional, como procuraremos mostrar a seguir.

. Tavares de Almeida (), no seu estudo sobre Rio Preto, calcula os coeficientes de fusão
e de composição étnica da população através dos dados do Registro Civil e chega a resulta-
dos muito interessantes. Assim, em Rio Preto, a maior concentração estrangeira é a registrada
pelo recenseamento de , que indica uma porcentagem de ,% (,% italianos) na
população total. Por outro lado, a composição da população calculada sobre a nacionalidade
dos avós de uma amostra de . casais entre os casamentos registrados no distrito (entre
 e ) indica que apenas % do total de ascendentes é de brasileiros, e que no total de %
de ascendentes estrangeiros, ,% são italianos. Esses dados servem como ponto de referên-
cia para apreciar a importância dos descendentes de estrangeiros na população total.
. Origem do sobrenome
ANO LISTAS DE NOMES ITALIANA NÃO-ITALIANA

1955: Proprietários rurais: 196 214


Proprietários de estabelecimentos industriais 16 4
Proprietários de estabelecimentos comerciais e de serviços 65 60
Proprietários urbanos 437 326
1957: Operários portadores de carteira de saúde 455 477
Ambulantes portadores de carteira de saúde 52 56
Artesãos portadores de carteira de saúde 42 55


TABE LA 9: NATURA LI DA DE DOS PRO PRIE TÁ RIOS AGRÍ CO LAS DO MUNI CÍ PIO DE
17
DES CALVA DO E ÁREA DAS PRO PRIE DA DES

NATURALIDADE DOS PROPRIETÁRIOS AGRÍCOLAS


BRASILEIROS ESTRANGEIROS TOTAL
ANOS ITALIANOS TOTAL
NO DE PRO- ÁREA EM NO DE PRO- NO DE PRO- ÁREA EM NO DE PRO- ÁREA EM
PRIEDADES ALQUEIRES PRIEDADES PRIEDADES ALQUEIRES PRIEDADES ALQUEIRES

1905 170 – 59 74 – 244 –


69,67% – 24,18% 30,33% – 100% –

1920 147 17.260,3 – 129 4.857,9 276 22.118,2


53,26% 78,04% – 46,74% 21,96% 100% 100%

1934 251 20.069 160 194 11.094 445 31.163


56,40% 64,40% 35,95% 43,60% 35,60% 100% 100%

1940 159 15.238 – 119 4.804 278 20.541


57,19% 73,03% – 42,81% 23,97% 100% 100%

Fonte: Camargo 1952; Recenseamento Geral do Brasil de 1940, parte 17, t. 3: 252.

A mobilidade do imigrante italiano na zona rural

Os nossos informantes mais velhos repetem sempre, referindo-se à mão-


de-obra agrícola, que “nas fazendas daquela época [-] só havia
italianos”. Mencionam às vezes, como de importância menor, espanhóis
e portugueses, cuja emigração para o município parece realmente ter
sido importante (tabela ). “Brasileiros quase não havia – pretos tam-
bém não; os poucos que existiam era gente que lidava com os animais:
tropeiros, carreiros... Os cafezais (de Descalvado) estavam todos nas
mãos dos colonos [italianos], que era a gente mais trabalhadeira.”
Apesar de os dados sobre a importância numérica dos imigrantes,
especialmente dos italianos, serem muito deficientes tanto no município
quanto na zona rural, é licito supor que, pelo menos no período poste-
rior a , eles tenham vindo a constituir, com os seus descendentes,
talvez a maior parte da mão-de-obra agrícola, como afirmam os nossos
informantes.

. No cômputo, foram excluídas as propriedades de sociedades anônimas, de entidades


públicas e privadas.

 Imigrantes italianos
TABE LA 10: IMI GRAN TES ESTRAN GEI ROS E TRA BA LHA DO RES NACIO NAIS
ENCA MI NHA DOS A DES CALVA DO NO PERÍO DO DE 1900-1949

ANO 1900-9 1910-9 1920-9 1930-9 1940-9


TRABALHADORES
NAC. E ESTR. 3.255 3.470 3.230 389 48

Fonte: Boletim do Serviço de Imigração e Colonização, 4 e 5.

A extensão da mobilidade dos imigrantes italianos na zona rural


pode ser avaliada através dos dados sobre a nacionalidade dos proprietá-
rios rurais (tabela ). Desde que a grande maioria dos imigrantes foi para
Descalvado como trabalhadores agrícolas sem pecúlio, a aquisição de
propriedade deve ser interpretada como uma passagem de trabalhador a
produtor independente. Dada a estrutura da sociedade rural e a pequena
diferenciação social que ela admite, a ascensão social é praticamente
equivalente à posse da terra e ao aumento da propriedade, pois a diferen-
ciação social mais significativa, depois da estabelecida entre proprietários
e não-proprietários, é a que se baseia no tamanho da propriedade. Assim,
a ascensão social do imigrante italiano na zona rural só pode ser explicada
se determinarmos quais os fatores que possibilitaram ao trabalhador sem
terra a formação de um capital suficiente para efetuar a passagem a produ-
tor independente e, posteriormente, aumentar o tamanho da propriedade.
Em , cerca de  anos após o início da emigração para Descalva-
do, % dos proprietários rurais eram estrangeiros e quase %, italianos
(tabela ). É verdade que os estrangeiros eram, na sua quase totalidade,
pequenos proprietários, como se pode verificar pela lista dos produtores
de café do município em . A lista, publicada para fins de cobranças de
impostos pelo jor nal local, inclui o número de cafeeiros de cada pro-
prietário; segundo esses dados, apenas ,% dos cafeicultores seriam
italianos. Não obstante, a mobilidade verificada é muito grande, dada a
origem recente da maioria dos imigrantes.
Os dados de  são bastante significativos. Nessa data, quase a
metade dos proprietários (,%) é de estrangeiros. Entretanto, eles
constituem apenas ,% da população do município. Por outro lado,
esses estrangeiros possuem menos de um quarto das terras, atestando
sua concentração na pequena e média propriedades (tabelas ,  e ).
O recenseamento não discrimina a nacionalidade dos estrangeiros, mas


TABE LA 11: NACIO NA LI DA DE DOS ESTRAN GEI ROS NO MUNI CÍ PIO DE
DES CALVA DO E POPU LA ÇÃO TOTAL EM 1920 E 1940

ESTRANGEIROS POPULAÇÃO
ANOS ITAL. ESP. PORT. ALEM. JAP. OUTROS TOTAL TOTAL
1920 3.295 744 375 45 40 165 4.664 19.182
1940 702 100 67 27 18 37 9.511 6.467

Fonte: Camargo 1952, v. 2: 46.

os dados anteriores e posteriores nos permitem inferir que os italianos


constituíam a grande maioria.
A lista de cafeicultores do município em , publicada pela pre-
feitura para fins de cobranças de impostos, indica um total de  pro-
prietários (excluindo-se bancos e sociedades anônimas). Desses,  (ou
seja, ,%) têm sobrenome italiano. É verdade que a maioria é ainda
constituída de pequenos proprietários, mas quatro dos grandes proprie-
tários são italianos, e já havia um número relativamente elevado de
fazendeiros e sitiantes italianos abastados.
Já os dados de  indicam que a porcentagem dos proprietários
estrangeiros diminui ligeiramente (,% são italianos e ,% são
estrangeiros). Nessa data os italianos constituem apenas ,% da popu-
lação rural. No entanto, sendo a imigração relativamente antiga nessa
época, a contribuição real dos imigrantes para a classe dos proprietários
só poderia ser avaliada pelo número de propriedades em mãos de filhos
de imigrantes. Infelizmente, não possuímos para a época nenhum
documento que corresponda às listas dos cafeicultores citadas anterior-
mente, o que nos forneceria uma indicação indireta da importância dos
descendentes de italianos pelo exame dos sobrenomes. Por outro lado,
é importante notar que, embora a porcentagem de proprietários estran-
geiros tenha diminuído, a área relativa que ocupam aumentou para
,% do total.
Nos dados do recenseamento de  relativos a Descalvado as
porcentagens são praticamente as mesmas: ,% dos proprietários são
estrangeiros e cerca de % são italianos (tabela ). A partir de então, a
imigração já é antiga demais para que se possa inferir algo da naciona-
lidade dos proprietários. Conseguimos na prefeitura apenas os dados
do cadastro das propriedades rurais relativos a . No levantamento
da freqüência da origem dos sobrenomes entre os proprietários, obtive-

 Imigrantes italianos


mos % de sobrenomes italianos, o que parece indicar uma relativa
estabilização a partir dos dados comparáveis de .
Apesar da precariedade dos dados, parece-nos que eles são sufi-
cientes para confir mar as infor mações obtidas nas entrevistas e nas
outras fontes sobre a grande mobilidade social dos italianos na zona
rural, sua contribuição para a conformação de uma camada importante
de sitiantes e a ascensão de alguns elementos até posições dominantes
na estrutura rural do município. Essa situação mantém-se até a época
da pesquisa. No levantamento dos dados do lançamento de impostos de
, nota-se a predominância dos italianos nas propriedades de até
duzentos hectares onde, em  proprietários,  têm sobrenome ita-
liano; nas propriedades entre duzentos e quinhentos hectares, a pro-
porção entre sobrenomes italianos e não italianos é exatamente igual:
de  proprietários, dezessete têm sobrenome italiano; e, finalmente,
nas propriedades acima de quinhentos hectares, os sobrenomes italianos
ocorrem com menor freqüência: num total de quarenta proprietários,
apenas quinze têm sobrenome italiano. Entretanto, das onze maiores
fazendas de Descalvado (acima de cem hectares), sete pertencem a des-
cendentes de italianos.
Já diversos autores ressaltaram que a mobilidade dos imigrantes
em São Paulo resulta do aproveitamento de novas oportunidades cria-
das pelas modificações ocorridas na estrutura da sociedade paulista (B.
Hutchinson ; Bastide & Fer nandes ), e que essa mobilidade é
maior que a dos nacionais. Nesse sentido, não teria ocorrido uma subs-
tituição de brasileiros por estrangeiros na camada dominante da estru-
tura existente, mas uma ocupação, pelos estrangeiros, de novas posições
criadas pela transformação dessa estrutura.
Na mobilidade do imigrante italiano e de seus descendentes na zona
rural do município estudado, parece ocorrer precisamente isto. No decor-
rer do século , paralelamente à manutenção de algumas grandes fazen-
das, ocorre o fracionamento total ou parcial de outras e a formação de
uma classe de pequenos e médios proprietários que é constituída, em
grande parte, pelos imigrantes e seus descendentes. Essa transformação é
acompanhada de uma modificação da economia agrícola local, com maior
diversificação da produção, incluindo o aumento da cultura de cereais, a
introdução da cultura do algodão, a intensificação da criação de suínos e,
mais recentemente, de gado leiteiro. Verifica-se, então, uma transforma-
ção da estrutura anterior, em que a antiga classe dominante abandona o


município e emerge uma nova estrutura de classes, mais diversificada,
que inclui uma camada numerosa de pequenos proprietários.
A seguir, procuraremos analisar, através do material de entrevis-
tas, quais os fatores que possibilitaram ao imigrante esta mobilidade e
o aproveitamento das novas oportunidades criadas pelo processo de
transfor mação da estrutura socioeconômica, que eles próprios ajuda-
ram a desencadear.
As informações sobre as condições de vida e as atividades do colo-
no italiano permitem isolar um conjunto de elementos relacionados ao
trabalho que nos parece os mais importantes para compreender a possi-
bilidade de ascensão do imigrante: a produtividade – que deriva da in-
tensidade do trabalho e de sua organização, baseada na família –, as
possibilidades de comercialização da produção e o espírito de poupança.
O regime de trabalho na zona rural de Descalvado, no período que
estamos considerando, é semelhante ao vigente na lavoura cafeeira em
outras regiões: o trabalho por contrato próprio do colonato, parceria ou
empreitada. No colonato a remuneração é diversificada. Parte é feita
em dinheiro e é proporcional ao número de pés de café entregues ao
cuidado do colono; parte é efetuada em espécie e representa uma por-
centagem sobre a colheita (ou mesmo o total de uma ou mais colheitas,
no trabalho de for mação do cafezal). Os dois tipos de remuneração se
combinam de forma diferente e em proporções diversas. A falta de mão-
de-obra e a competição entre os fazendeiros para atrair o trabalhador
estrangeiro levam à generalização da prática de per mitir ao colono o
uso da terra para outras plantações (de subsistência), quer no próprio
cafezal, quer em terreno separado.18 Apesar disso, não há nada que nos
leve a supor que as condições de remuneração do trabalho fossem
extremamente favoráveis, explicando, por si só, a possibilidade de acu-
mulação de capital suficiente para aquisição de propriedade.
Os relatórios contemporâneos são ricos em infor mações sobre as
condições de trabalho na lavoura cafeeira em todo esse período. Elas

. A apresentação das condições de trabalho pelos imigrantes é muito variável, discrimi-
nando-se sempre entre bons e maus patrões segundo um critério que parece ser baseado
antes no tipo das relações pessoais do que no tipo de remuneração. Além do mais, as queixas
maiores pareciam ser antes no tocante a moradia, vestuário e alimentação do que ao tipo de
trabalho, pelo menos no que diz respeito aos imigrantes de origem rural. Por outro lado, a
grande mobilidade de fazenda para fazenda, que se manifesta em todas as entrevistas, é sem-
pre justificada em termos de contrato de trabalho mais vantajoso.

 Imigrantes italianos


certamente variavam de patrão a patrão, mas os contínuos incidentes
diplomáticos com os países de emigração durante todo o período imi-
gratório – e inclusive a promulgação na Itália, em , do decreto
Pinetti, que proibiu a imigração subsidiada – atestam a precariedade das
condições de trabalho e os abusos a que estavam sujeitos os imigrantes
ante os fazendeiros.19 Segundo Celso Furtado, efetuada a passagem do
trabalho escravo ao livre, a pressão do fluxo imigratório e da mão-de-
obra represada no setor da subsistência tenderam a manter estável o
nível de remuneração monetária real do assalariado agrícola na econo-
mia cafeeira, independentemente do aumento da produtividade (Furtado
). Entretanto, como parte do pagamento podia ser efetuada em por-
centagem sobre a colheita, e como fazia parte do contrato de trabalho o
acesso à terra para o cultivo de gêneros de subsistência, precisamos
admitir que as possibilidades de formação de capital dependiam direta-
mente da produtividade.
Os estudos sobre a população rural brasileira tradicional (Candido
; Castaldi ; Willems  etc.) indicam claramente a precarie-
dade de seu sistema produtivo. Os imigrantes sempre apresentaram,
segundo consenso geral, produtividade muito maior. Entretanto, essa
produtividade mais elevada não se explica primordialmente pela intro-
dução de novas técnicas de cultivo. O principal instrumento de trabalho
sempre foi a enxada; a técnica de limpeza do terreno pela queimada foi
adotada dos brasileiros. A adoção de práticas mais produtivas parece ter
ocorrido apenas no cultivo dos produtos de subsistência, onde as técni-
cas do país de origem eram mais facilmente integradas ao sistema pro-
dutivo.20 Mesmo assim, a irrigação e a fertilização da terra eram utiliza-
das apenas nas hortas, sendo o cultivo dos cereais feito com as técnicas
adotadas dos brasileiros.21 A maior produtividade deve ser explicada
por um conjunto de outros fatores, que se prendem às características do
trabalho livre em uma economia de mercado.

. Sobre os inúmeros incidentes diplomáticos relativos à imigração, ver Rios . Sobre
as condições de trabalho nas fazendas são muito ricos de informações Taunay (), Buar-
que de Holanda (in Davatz ) e Denis ().
. A introdução de técnicas mais aperfeiçoadas na cafeicultura paulista foi feita, em gran-
de parte, na preparação do grão e não no modo de cultivo, não beneficiando o colono.
. Cf. Buarque de Holanda (in Davatz op.cit.) e Willems ( e ) sobre a necessida-
de, por parte do imigrante, de abandonar as técnicas agrícolas originais para uma adaptação
satisfatória às condições ecológicas e econômicas de produção no sistema agrícola nacional.


Os trabalhos de Roger Bastide e Florestan Fernandes () de-
monstraram com muita clareza como o sistema coercitivo externo que
caracteriza o trabalho servil impede o desenvolvimento de estímulos e
formas de organização espontâneas do trabalho, e incapacita o escravo
para o trabalho livre em um sistema econômico competitivo. Para o escra-
vo liberto o trabalho é um estigma, e essa atitude impede que o negro uti-
lize de forma eficiente o único instrumento de integração social e ascensão
de que dispõe – sua força de trabalho. A libertação é, para o escravo, uma
maneira de alcançar o ócio. Mantendo o limitado sistema de necessidades
estabelecido pelo regime servil, o escravo liberto tende a produzir apenas
o suficiente para a mera subsistência, o que requer uma quantidade relati-
vamente pequena de esforço. O mesmo se pode dizer da mão-de-obra
livre absorvida no setor de subsistência: a impossibilidade de escoamento
do excesso de produção atrofia as técnicas produtivas e a forma de orga-
nização do trabalho. Na impossibilidade de acesso ao mercado, o consumo
regride e a produção restringe-se ao necessário à subsistência.22 Nessa
economia o ócio também assume importância relevante23 e se estabelece
um sistema de motivações e de organização da atividade produtiva que é
inadequado ao regime de trabalho livre em uma economia competitiva.
Os imigrantes italianos que se dirigiram para a lavoura cafeeira encontra-
ram condições que lhes permitiram conservar os padrões muito mais ele-
vados de intensidade e organização da atividade produtiva vigentes na
sociedade de origem, embora não pudessem conservar muitas das técnicas
agrícolas. São portanto as condições econômicas vigentes na lavoura
cafeeira que permitiram ao imigrante integrar-se ao sistema como traba-
lhador livre, utilizando os padrões culturais originais para definir essa
relação de trabalho.
A inexistência desses padrões na produção cabocla produziu uma
integração muito menos satisfatória. Louis Couty (apud Taunay :
-) relata a experiência de um fazendeiro de café que empregava
colonos brasileiros e se mostrava desejoso de substituí-los por italianos
por causa do baixo rendimento apresentado por essa população de ori-

. É, nesse particular, extremamente interessante notar o processo de “caboclização” que


sofrem os imigrantes alemães em colônias isoladas, sem acesso ao mercado e impossibilita-
dos, por isso, de conservar as técnicas produtivas originais (Willems  e ; Buarque
de Holanda in Davatz op.cit.).
. Sobre a importância do ócio na economia de subsistência que caracteriza as populações
caipiras (à qual o negro liberto se incorpora, em parte), ver Candido .

 Imigrantes italianos


gem cabocla. As queixas que ele formula contra os trabalhadores brasi-
leiros são de que eram gastadores e, além de não economizar vintém,
dependiam freqüentemente de adiantamentos do patrão; não eram
constantes no trabalho e faltavam ao menor pretexto; as mulheres não
trabalhavam nas roças, diminuindo o rendimento da família. Vê-se,
portanto, que a dificuldade de ajustamento da população rural brasilei-
ra tradicional (e, de modo semelhante, da população escrava) ao regime
de trabalho assalariado numa economia agrícola capitalista prende-se a
um sistema de atitudes que não valoriza a intensidade da atividade pro-
dutiva. O seu ajustamento a uma economia pré-capitalista não lhes per-
mitia aproveitar, como os imigrantes, as oportunidades que a nova
ordem socioeconômica abria ao trabalho livre.
A produtividade do imigrante prende-se portanto a um sistema de
incentivos que resultava numa regularidade e intensidade de trabalho
muito maior. Esses incentivos manifestam-se em atitudes de valorização
do trabalho e se traduzem no estereótipo positivo que o imigrante
forma de si mesmo, distinguindo-se do caboclo. Os italianos são “gente
trabalhadora”, os brasileiros são “preguiçosos”, afir mações que ouvi
constantemente nas entrevistas com italianos e seus descendentes da
primeira geração.
O regime de trabalho mais intenso possibilitou uma diversificação
da produção, para o que deve ter contribuído também a preservação de
padrões de cultivo vigentes no Velho Mundo. Ao lado do café, os imi-
grantes plantavam cereais e freqüentemente possuíam horta. Também
criavam animais, especialmente porcos. Esta diversificação da atividade
econômica é que tornou possível a conservação de um padrão de consu-
mo mais elevado que o da população rural brasileira em geral (contri-
buindo talvez para a manutenção de um ritmo mais intenso de trabalho),
e permitiu inclusive a comercialização de parte dessa produção.24
Esse excedente de produção no regime de trabalho assalariado não
parece ter sido muito grande. Mesmo assim, ele exigia uma produtivi-
dade que a intensificação do regime de trabalho por si só parece não
explicar, mas que encontra justificativa na organização da atividade
produtiva.

. Quanto à elevação do padrão de consumo, devemos levar em conta também a introdu-
ção ou utilização mais intensa de técnicas de preservação de alimentos, especialmente os de
origem animal, sob a forma de conservas de carnes e laticínios.


Um fator comum, que registramos em todos os casos de mobilida-
de rápida, é o regime de cooperação familiar. Apesar da concepção gene-
ralizada de que a família brasileira tradicional é a família patriarcal exten-
sa, as investigações sobre a população rural de sitiantes e posseiros e das
pequenas comunidades brasileiras têm indicado a predominância da
família conjugal como elemento central da organização social. As rela-
ções mais amplas de parentesco e compadrio contribuem para a formação
das unidades territoriais conhecidas geralmente como “bairros”, que se
constituem como for mas de organização fluidas e pouco estruturadas,
mas a unidade fundamental, tanto social quanto econômica, é a família
nuclear, que se fragmenta e se reconstitui continuamente pelo casamento
dos filhos (Candido ; Castaldi ; Willems ; Willems & Musso-
lini ; entre outros). Essa predominância da família conjugal, por sua
vez, parece estar relacionada à precariedade do sistema de produção dos
bens de subsistência, cujo rendimento muito baixo exige tanto uma mobi-
lidade espacial periódica quanto a multiplicação de unidades de baixa
concentração demográfica, que se conformam mais ao padrão do bairro
caboclo do que ao da família extensa dos colonos italianos.
A organização da família italiana tradicional, com a predominân-
cia da linha pater na e centralização da autoridade no pai, é capaz de
estruturar efetivamente os indivíduos do sexo masculino num grupo
relativamente amplo de cooperação econômica. A unidade familial, que
é a unidade econômica, não é destruída pelo casamento dos filhos de
sexo masculino, que continuam sujeitos à autoridade pater na e a fazer
parte do mesmo grupo doméstico. São as filhas que, no casamento, se
transferem para a família do marido. Esse tipo de organização favorece
uma grande solidariedade do grupo de irmãos, que é capaz de continuar
a funcionar como unidade coesa mesmo após a morte do pai e dissolve-
se, em geral, apenas quando a terceira geração já é capaz de constituir
outras unidades relativamente amplas. Pode-se realmente verificar, nas
histórias de vida, a freqüência com que os filhos de sexo masculino con-
tinuam a participar da economia doméstica, mesmo depois do casamen-
to. Embora nem todos os filhos permaneçam ligados à família paterna,
há certamente uma tendência para se constituir uma família extensa.
Por outro lado, é importante notar um fator complementar que
consiste na utilização bastante intensa do trabalho feminino na lavoura,
aumentando a proporção dos membros diretamente produtivos da
família. A utilização do trabalho dos filhos adolescentes de ambos os

 Imigrantes italianos


sexos e dos filhos adultos do sexo masculino parece ter sido um fator
decisivo na possibilidade de formação de capital pelo trabalhador, per-
mitindo-lhe alcançar a situação de produtor independente. As famílias
com grande número de filhos parecem ter sido economicamente favo-
recidas. A persistência da família como grupo de cooperação econômi-
ca, mesmo depois de efetuada a passagem de trabalhador a proprietário,
dá continuidade ao processo de ascensão social, pela capitalização do
esforço conjunto a fim de aumentar a propriedade e prover de terras
suficientes todos os membros do grupo original, quando a partilha se
fizesse necessária ou interessante.
Em todos os casos de mobilidade que pudemos analisar, a coopera-
ção dos membros masculinos do grupo familial é um elemento essencial
para explicação da ascensão verificada. A preservação dessa unidade pro-
dutiva, entretanto, dependia da possibilidade de conservar o patrimônio
familiar na linha masculina, o que entrava em conflito com o sistema legal
de herança vigente no Brasil. A solução que se encontrou, e que se repete
constantemente nas histórias de família, foi a constituição de sociedades
jurídicas compostas pelos membros masculinos da família. A organiza-
ção familial característica dos colonos italianos é, por conseguinte, tanto
causa como conseqüência de uma produtividade mais elevada. E essa
maior produtividade, derivada de uma herança cultural diversa, permi-
te ao colono italiano explorar no sistema existente oportunidades que
não se oferecem ao posseiro, ao sitiante tradicional ou ao escravo.
A familiaridade com uma economia de mercado e, neste caso, com
as possibilidades de comercialização do excedente dos produtos de sub-
sistência parece ter sido outro fator cultural que influiu decisivamente
nas possibilidades de formação de capital do imigrante italiano.
Acostumado à comercialização da produção, o trabalhador estran-
geiro podia aproveitar as oportunidades oferecidas pelo mercado local
e regional, sem competir com o grande produtor, voltado para o mer-
cado internacional. A organização capitalista que caracteriza a fazenda
de café a partir do início de sua marcha para o oeste e a natureza semi-
permanente do cafezal levaram a uma crise constante no abastecimento
dos gêneros de primeira necessidade. Desse modo, a produção do colo-
no encontrou, de início, amplas possibilidades de inserção no mercado
(Buarque de Holanda, in Davatz op.cit.). Por outro lado, o consumo
relativamente elevado que caracteriza os imigrantes em relação aos es-
cravos e aos brasileiros livres contribuiu para a formação ou ampliação


do mercado local, especialmente na zona urbana. Compare-se, por
exemplo, a queixa registrada no Almanaque de , no início da imigra-
ção, sobre a escassez da produção local de cereais, com a afirmação feita
cinqüenta anos depois pelo livro Os municípios do estado de São Paulo
() sobre o grande número de pequenos proprietários de origem ita-
liana, dedicados à produção de gêneros de subsistência, que abasteciam
o município.
A comercialização não se restringia ao excedente da produção de
subsistência; incluiu, desde o início, também o café. Os trabalhadores
participavam do produto da colheita através do sistema de pagamento
em espécie. Os pequenos proprietários, ao lado de outras culturas, plan-
tavam também café para “especular”, segundo a expressão empregada
pelos nossos informantes. Os lucros resultantes do café, embora prova-
velmente pequenos, devem ter contribuído para a elevação da renda
monetária nas épocas de alta de preços.
Mostramos como o consumo da população de origem italiana era
mais elevado do que o dos trabalhadores rurais brasileiros. Convém
notar entretanto que este consumo prende-se em parte à própria produ-
ção doméstica e não acarreta grandes gastos monetários. Assim, parte
da dieta é suprida pela horta e pela criação doméstica, e freqüentemen-
te faz parte da atividade familiar a produção de conservas de carne, lati-
cínios, confecção de roupas etc. Mesmo quando a aquisição de terras
leva o imigrante a ascender para as classes média ou alta, a conservação
de um padrão de vida de classe inferior à dos brasileiros no que se refere
à moradia, vestimenta e diversões favorece a aceleração do processo de
acumulação de capital.
Há ainda alguns outros aspectos a considerar que nos parecem
complementares aos apontados acima. Um deles parece ter sido a alfa-
betização; apesar de muitos italianos não serem alfabetizados, foi fre-
qüente o esforço de alfabetizar pelo menos os membros masculinos do
grupo familiar, através inclusive de iniciativa particular. A percepção
da importância da alfabetização parece estar relacionada à familiari-
dade com uma economia de mercado, pois a alfabetização é um dos ele-
mentos que possibilitam a comercialização dos produtos. Mesmo onde
não havia escola, os membros mais instruídos da colônia atuavam fre-
qüentemente como professores particulares. É importante notar, entre-
tanto, que o esforço de alfabetização dos filhos não foi geral. A impor-
tância do trabalho familial e a utilização intensiva da mão-de-obra

 Imigrantes italianos


infantil levaram muitas vezes a resistências quanto à escolarização
compulsória. A diversificação de atitudes prende-se à diversidade das
condições no país de origem, e deve estar relacionada à mobilidade
diferencial entre os imigrantes. Não podemos esquecer que nem todos
os italianos chegaram a ser proprietários – muitos se incorporaram
definitivamente ao proletariado agrícola sem terra ou, mais tarde, ao
proletariado urbano.
Cumpre ressaltar que todos os fatores analisados, responsáveis
pela maior produtividade do grupo italiano – regime de trabalho, orga-
nização familial, manipulação das oportunidades oferecidas pelo merca-
do, padrão de consumo, alfabetização – são efetivos como instrumento
de ascensão social porque aliados a um padrão cultural de poupança.
O espírito de poupança prende-se, de um lado, às próprias motiva-
ções para a emigração e, de outro, às características da economia cam-
pesina européia. O indivíduo emigra para enriquecer, para fazer um
pecúlio e voltar. Isto implica, desde o início, uma economia de poupança,
aliás encorajada pelo próprio país de origem (C. Ianni ). Enquanto
não pode voltar, o imigrante envia freqüentemente pelo menos parte de
suas economias para o país de origem. Enriquecido, ou, pelo contrário,
pauperizado e sem esperanças, às vezes volta à terra natal. Mas para os
que ficam, para os que desistem de voltar, os interesses e as economias
se voltam cada vez mais para aplicações locais. Por outro lado, o espírito
de poupança é também característico das economias campesinas inseri-
das em comunidades nacionais (e portanto em economias de mercado),
nas quais os padrões de consumo são fixos (o que possibilita a poupança)
e a prosperidade só se traduz no aumento do tamanho da propriedade e
no consumo ostensivo em situações culturalmente definidas (o que exige
a poupança prévia).
Esse espírito de poupança, que é fundamental para a compreensão
da integração do imigrante italiano na sociedade em transfor mação, é
apontado por Thales de Azevedo como um dos componentes centrais
de seu ethos cultural. “Segundo um informante”, diz esse autor, “o des-
cendente de imigrantes, quando se assimila, aceita a língua portuguesa,
adota costumes nativos, casa-se com [brasileira], mas não abre mão de
duas coisas que são parte essencial de sua concepção de vida: o amor ao
trabalho e o espírito de economia” (Azevedo : ).
Como esses dados indicam, a valorização do trabalho e o espírito de
poupança, que fazem parte do sistema de atitudes do imigrante, consti-


tuem um sistema de incentivos que se manifesta na intensificação da ati-
vidade produtiva para a formação de um pecúlio e permite que o trabalho
se torne o instrumento por excelência da ascensão social e seja redefinido
nesses termos. Dizemos “redefinido” porque, na sociedade de origem, as
possibilidades de mobilidade eram muito reduzidas e dificilmente se cons-
tituiriam como foco de motivação da atividade produtiva.25
Os agricultores italianos que emigraram, fizeram-no em grande
parte pressionados pela escassez da terra, decorrente da estrutura lati-
fundiária da economia agrária da Itália de então. No Brasil, numa situa-
ção em parte semelhante, a posição do imigrante ante o latifundiário
apresenta para aquele dois aspectos favoráveis. Em primeiro lugar, a
imigração liberta o trabalhador de padrões tradicionais de dominação
vigentes na sociedade que abandona, e o insere em um sistema social
em transformação, que ainda não pôde elaborar formas equivalentes de
controle e dominação.26
Isto permite ao trabalhador explorar em seu proveito tanto a enor-
me mobilidade espacial que se manifesta na constante mudança de uma
fazenda para a outra quanto a impossibilidade freqüente de supervisão
detalhada do trabalho e da partilha dos seus resultados, o que é conse-
qüência do absenteísmo dos grandes proprietários. Esta liberdade é
realçada pela escassez relativa de mão-de-obra criada pela expansão das
culturas e pela possibilidade crescente de utilização do imigrante em
ocupações urbanas. Esse conjunto de fatores contribuiu para a genera-
lização da prática de culturas intercaladas, que é tão importante para o
aumento do rendimento dos imigrantes.
Com a decadência da produção cafeeira e a eliminação desta práti-
ca, as possibilidades da for mação de pecúlio diminuíram, o que contri-
buiu para a emigração da população rural para a cidade e para zonas
novas, com conseqüente diminuição da população do município.

. Esta questão só poderá ser esclarecida definitivamente através de uma análise mais comple-
ta da cultura de origem, e da análise de entrevistas mais ricas do que as de que dispúnhamos.
. Essa característica da sociedade em transformação se manifesta também na freqüência
do uso da violência. Nos jornais locais da época (em oposição aos de hoje) são inúmeras as
notícias de crimes contra a pessoa e contra a propriedade. Infelizmente faltam-nos dados
para explorar este aspecto com mais profundidade. Como na questão referida na nota ante-
rior, o aprofundamento da investigação não pôde ser feito devido à deficiência das entrevis-
tas no que diz respeito às particularidades das experiências e atitudes dos imigrantes nesse
período afastado.

 Imigrantes italianos


Vemos, pois, que na situação da sociedade da época, os padrões
culturais originários possibilitavam ao imigrante explorar determinadas
condições favoráveis à mobilidade, pois per mitiam a for mação de um
pecúlio que, na economia em expansão, podia ser aplicado de modo a
realizar a passagem a produtor independente.
Pela ação desse conjunto de fatores, o colono italiano insere-se no
sistema produtivo em posição diferente das definidas tradicionalmente:
sitiantes e posseiros, fazendeiros, escravos. Ao contrário do fazendeiro,
o imigrante utiliza sua força de trabalho, como o sitiante, posseiro ou
escravo. Diferente do escravo, ele é um trabalhador livre. Diferente do
sitiante, posseiro ou agregado, o colono agenda a força de trabalho de
sua família, organiza o seu grupo de produção e integra-se na economia
de mercado. Por outro lado, sua produtividade relativamente elevada e
a familiaridade com a economia de mercado, na qual procura vender de
modo vantajoso tanto o seu trabalho quanto a parte de sua produção
de que dispõe, são fatores que tornam possível a ascensão econômica e
social e, através dela, a constituição de uma classe média rural de
pequenos proprietários, integrada na economia nacional. Mais ainda,
per mite que alguns de seus representantes ascendam a posições domi-
nantes na sociedade em transformação.

Os imigrantes e o desenvolvimento urbano

O desenvolvimento do município, embora baseado na produção agrí-


cola, está também, desde o início, relacionado com o centro urbano,
que constitui um foco político e comercial da comunidade. Por outro
lado, as transfor mações da estrutura da sociedade urbana e de suas
relações com a área total do município estão intimamente vinculadas às
atividades e às posições sociais ocupadas pelos imigrantes estabeleci-
dos na cidade.
A fundação da vila parece ser quase contemporânea ao início do
povoamento, e seu crescimento parece seguir de perto a prosperidade
decorrente da cultura cafeeira.
O Almanaque comercial e industrial da província de São Paulo, de
, atribui à vila de Belém do Descalvado “duzentas e tantas casas”,
dois largos, dez ruas, uma igreja e duas capelas. A vila possui então duas
sociedades recreativas e uma tipografia que imprimia um jornal semanal.


Serviam a população três advogados, três médicos, dois farmacêuticos,
dois dentistas e três professores de música. A província possuía “diver-
sos” estabelecimentos comerciais e artesanais.
Nessas “duzentas e tantas casas” devia residir uma porcentagem
considerável da população do município, que a mesma fonte calcula em
 mil almas (entre escravos e livres) e que o recenseamento de 
declara ser de . habitantes.
Já nessa época, o estrangeiro parece ocupar um lugar importante na
composição da população e na escala de ocupações urbanas. Não se trata
ainda de italianos, mas de alemães, cuja imigração para o estado de São
Paulo é anterior. O Almanaque menciona um fabricante de cerveja, o pro-
prietário de uma olaria, três vendeiros e um ferreiro alemães. Existia ainda
um ferreiro americano, cuja presença se explica pela imigração sulista dos
Estados Unidos para Americana, depois da Guerra de Secessão.
A importância relativa do centro urbano, capaz de sustentar diver-
sos profissionais liberais e numerosos estabelecimentos comerciais, e
que necessita dos serviços de diversos artesãos, implica um mercado
amplo, que só pode ter sido fornecido pela população rural em expansão.
O Almanaque para o ano de  estima a população urbana em 
mil almas e a do município em  mil, o que não é de todo implausível,
se tomarmos como dignas de crédito as informações dos recenseamen-
tos de  e . Esta estimativa nos daria uma relação de ,% da
população urbana para a população total.
O desenvolvimento da cidade pode também ser avaliado pelo
aumento do número de casas, ruas e logradouros públicos. As dez ruas,
dois largos e “duzentas e tantas casas” de  são agora vinte ruas, cinco
largos e quinhentos prédios.
A cidade aparece claramente como centro administrativo, comer-
cial e artesanal. O mesmo Almanaque cita as principais ocupações, que
incluem seis advogados, cinco médicos e dois correspondentes de ban-
cos. Arrola um total de dez estabelecimentos comerciais e indica a exis-
tência de dezenove estabelecimentos industriais: uma máquina de bene-
ficiar café, cinco fábricas de carroça, uma de massas, três de cerveja e
refrigerantes, três de fogos de artifícios, três selarias, quatro oficinas de
sapateiro. A denominação industrial não encobre o caráter artesanal
dessa atividade, e é de grande importância notar a predominância de imi-
grantes nessas ocupações. A julgar pelo sobrenome, dos dezenove esta-
belecimentos citados, dez estavam em mãos de italianos, dois pertenciam

 Imigrantes italianos


a um americano, dois a alemães e apenas cinco a brasileiros (ou portu-
gueses). São brasileiros os três fogueteiros e dois dos seleiros, todos os
outros ofícios sendo exercidos por estrangeiros.
A consulta a jor nais antigos do município nos dá uma visão um
pouco mais precisa da vida urbana antes do começo do século, confir -
mando a intensa atividade comercial que se reflete no grande número
de estabelecimentos comerciais citados no Almanaque. Indica também
que a instalação de italianos na cidade se processou desde o início da
imigração, e que eles devem ter contribuído com boa parte do contin-
gente populacional responsável pelo aumento da população urbana.
Nos  exemplares de jornais locais anteriores a  (abrangendo
de  a ) menciona-se pelo menos um grande comerciante de
origem italiana, que é, inclusive, tenente da Guarda Nacional. Perten-
cem a italianos duas marmorarias, um açougue, uma padaria, uma col-
choaria, uma alfaiataria e um ateliê fotográfico. Menciona-se ainda nas
notícias seis outros “negociantes” de origem italiana, além de emprega-
dos de casas comerciais, alfaiates, barbeiros, funcionários municipais
(porteiro e estafeta), o vigário, um dentista e um engenheiro.
A consulta a uma coleção mais ampla de jornais que cobrem os anos
de  a  (num total de  exemplares) indica a presença de um
número muito maior de imigrantes. Pertenciam a italianos três armazéns,
duas lojas de tecidos, duas lojas de calçados, quatro bares e sorveterias,
duas joalherias, uma casa de louças e ferragens, uma quitanda e um
botequim. São mencionados também dez outros negociantes cujo ramo
não se especifica. Além desses estabelecimentos puramente comerciais,
encontram-se em mãos de italianos três marcenarias e carpintarias, três
alfaiatarias, quatro barbearias, dois açougues, duas oficinas, duas pada-
rias, uma selaria, uma funilaria, uma cocheira de animais de aluguel, uma
fábrica de macarrão, uma fábrica de manteiga e uma torrefação e moinho
de café. São também italianos dois fotógrafos, duas parteiras diploma-
das, dois empreiteiros construtores, uma modista, diversos músicos e
professores de música, os dois maestros de banda da cidade, um afinador
de piano, um sapateiro e um guarda-livros. Mencionam-se ainda dois
padres, um dentista, quatro farmacêuticos, dois médicos e um advogado,
três engenheiros e um veterinário. Além dessas ocupações, os italianos
emprestam a juros, possuem uma casa bancária, dirigem a Empresa de
Força e Luz e ocupam grande número de empregos públicos municipais
(carroceiro, porteiro, veterinário, delegado, inspetores sanitários). Há na


cidade duas sociedades italianas (posteriormente reunidas em uma única,
a Fratelanza Italiana) e uma escola ítalo-brasileira.
Evidentemente, não pretendemos que esta lista possa for necer
dados muito precisos sobre as ocupações da população italiana domici-
liada na cidade. Em primeiro lugar, porque a lista certamente não é
exaustiva. Por outro lado, as ocupações e estabelecimentos citados não
são todos contemporâneos. Mas a extensão da lista de ocupações men-
cionadas indica certamente uma participação crescente dos italianos na
economia urbana, especialmente no pequeno comércio e artesanato.
Por outro lado, tanto a consulta aos jornais quanto o material das
entrevistas evidenciam que as posições dominantes na sociedade local
são ocupadas por famílias brasileiras e, particularmente, pelos grandes
fazendeiros. Os jor nais contemporâneos revelam claramente a predo-
minância dos fazendeiros nas atividades políticas, pois constituem a
quase totalidade dos candidatos a cargos eletivos. Não encontramos
nenhum nome italiano entre candidatos políticos e autoridades adminis-
trativas locais. Outrossim, as grandes casas de comércio pertencem
todas a brasileiros, que constituem também a grande maioria dos fun-
cionários públicos e profissionais liberais.
Vemos, portanto, como se havia constituído em Descalvado, no
início do século , uma sociedade diferenciada, cuja estrutura obede-
cia, em parte, a uma clivagem étnica. Esta sociedade era dominada
pelos grandes fazendeiros de café brasileiros, cujos interesses eram
identificados com o interesse do município. Para atender às necessida-
des de suas fazendas é que se promoveu a imigração, e para facilitar o
transporte da sua produção que se construiu a estrada de ferro.
Todavia, os fazendeiros mais poderosos não moravam em Descal-
vado. Muitos possuíam fazendas em outros municípios e, freqüente-
mente, propriedades em São Paulo. A camada dominante da população,
portanto, não se vinculava diretamente à região e aos seus interesses
particulares, mas prendia-se aos interesses gerais da classe que se mani-
festavam no plano provincial e nacional. Era desses fazendeiros, entre-
tanto, que dependiam a prosperidade econômica e a política municipal.
Por outro lado, essa classe dominante, embora voltada para a agri-
cultura, era uma classe urbanizada. Os fazendeiros que residiam no
município freqüentemente tinham casa na cidade, onde passavam pelo
menos parte do ano. Em contato com eles, for mando a “sociedade”
local, estavam os maiores comerciantes, os profissionais liberais, que

 Imigrantes italianos


lhes ofereciam seus serviços, e os funcionários públicos de maior cate-
goria, em geral membros da mesma classe ou por ela apadrinhados, que
eram seus prepostos e que dirigiam a política local. Portanto, a camada
superior da população, que se identificava com os grandes fazendeiros
ou servia aos seus interesses, estava em grande parte na cidade e era
toda de origem nacional. Mais ainda, era da cidade que esta camada
dirigia a vida do município, através da política local.
A cidade é o centro administrativo, político e de abastecimento da
zona rural, de cuja prosperidade partilha. As fazendas não são auto-
suficientes e constituem, assim, um mercado tanto para as casas comer-
ciais quanto para os artesãos, parte dos quais se estabelece na zona urba-
na. Os artífices não só fabricam artigos como carroças, arreios, móveis
etc. mas, e talvez principalmente, constituem uma mão-de-obra qualifi-
cada que conserta e repara máquinas, veículos e instrumentos agrícolas.
Esses ofícios, desde o início, foram dominados pelos estrangeiros. Os
escravos, insuficientes para o trabalho agrícola, não podiam ser treina-
dos para lhes fazer concorrência, e os imigrantes não encontraram uma
camada artesanal local, livre, de origem nacional, com a qual tivessem
que competir. As fontes mais antigas (Almanaque administrativo ) já
indicam uma predominância de estrangeiros entre os artesãos. Isto ex-
plica por que o mercado para as atividades artesanais só se constituiu
com o desenvolvimento das grandes fazendas; como a colonização da
região é quase simultânea à imigração, já se pôde contar, de início, com
operários e artesãos qualificados de origem estrangeira.
A imigração e o crescimento econômico-demográfico concomi-
tante parecem ter ampliado muito o mercado original. Os colonos pro-
duziam e consumiam. A cidade era o seu mercado natural. Daí o cresci-
mento da população urbana, que parece ter sido relativamente maior
que o da rural (confor me as estimativas citadas anterior mente). Por
outro lado, com o crescimento da cidade, ela própria passa a constituir,
em si, um mercado consumidor importante de bens e serviços. Obser-
vamos, então, a proliferação do pequeno comércio, de armazéns e far-
mácias, que caracterizam a cidade no início do século. Nesta classe de
pequenos comerciantes notamos uma proporção crescente de italianos
e seus descendentes.
A numerosa classe inferior é constituída pelos trabalhadores não
qualificados, aprendizes e vendedores ambulantes, empregados domésti-
cos e biscateiros que são pretos, mulatos e “colonos” vindos da zona rural.


Apesar da violência que a caracteriza, e que se manifesta no gran-
de número de assaltos, roubos, assassínios, suicídios e espancamentos
que os jornais noticiam com grande freqüência, a sociedade dessa época
parece ser fundamentalmente estável.
A dominação dos grandes fazendeiros não é discutida. Nas entre-
vistas, os informantes que não pertenciam a essa classe, mesmo aqueles
que testemunharam e se beneficiaram diretamente da ruína dos grandes
fazendeiros locais, referem-se a eles sempre com admiração e deferên-
cia. A existência de mecanismos de ascensão social criados pela sociedade
em expansão e a transfor mação da estrutura social que então se inicia,
associadas à decadência e evasão da classe dominante tradicional, devem
ter impedido a for mulação dos conflitos em ter mos de oposição das
classes em emergência.
Nos seus aspectos essenciais, a sociedade urbana não se modifica
até , aproximadamente. A política continua a ser dominada pelos
fazendeiros, parte dos quais não reside permanentemente no município.
Nota-se, entretanto, uma lenta penetração de elementos estrangeiros,
principalmente italianos, nas camadas superiores da população, inclusi-
ve pelo casamento.
No registro para fins de imposto, de um total de  estabeleci-
mentos comerciais e industriais existentes em Descalvado em ,
encontramos  proprietários com sobrenome italiano. Como no
período anterior, os italianos dominam a pequena indústria artesanal e
constituem o contingente dominante do pequeno comércio. Por outro
lado, já então pelo menos dois dos maiores comerciantes eram de ori-
gem italiana. Como veremos mais tarde, tudo indica que o comércio
constitui o principal canal de ascensão social e meio de enriqueci-
mento. No conjunto, os italianos parecem consolidar nesse período as
posições anterior mente atingidas. A colônia é continuamente fortale-
cida por novos imigrantes, que ingressam geralmente na parte mais
baixa da escala de diferenciação social, o que não leva a uma redefini-
ção das posições que os italianos ocupam na sociedade local. Portanto,
os imigrantes e seus descendentes compreendem nessa época, na zona
rural, grande parte dos trabalhadores e a maioria dos pequenos pro-
prietários. Na zona urbana, constituem boa parte dos empregados do
comércio, a grande maioria dos artesãos e aprendizes, e contribuem
com um contingente importante de proprietários de pequenos estabe-
lecimentos comerciais e artesanais. Definem-se, portanto, como classe

 Imigrantes italianos


média e classe inferior. Apenas algumas famílias, em condições espe-
ciais, pelo sucesso econômico na agricultura e no comércio e pelo es-
tabelecimento de vínculos derivados do casamento ou serviços (polí-
ticos e econômicos), infiltram-se na camada dominante, que continua
a ser for mada pelos grandes fazendeiros e comerciantes, os profissio-
nais liberais e funcionários públicos categorizados, sendo que essas
diferentes posições freqüentemente se distribuem entre os membros
de uma mesma família.
Vemos portanto que, nessa época, a etnia é um elemento impor-
tante de diferenciação social, pois está associada a posições diferentes
na estrutura. Esta “clivagem étnica” manifesta-se na existência de duas
associações: de um lado, a Fratelanza Italiana, de outro, o Clube Descal-
vadense. É importante notar que a participação na Fratelanza está aberta
a todos os italianos, ricos e pobres, ao passo que o Clube Descalvadense
reúne apenas as famílias brasileiras de alguma projeção social. Isso pa-
rece indicar que a origem italiana é nessa época um fator capaz de uni-
ficar, em deter minadas condições, famílias de profissões e níveis de
renda muito diversos. Essa característica da associação dos italianos tes-
temunha a existência de uma “consciência de italianidade” que se mani-
festa na promoção da solidariedade da colônia pela comemoração de
datas patrióticas italianas e pela organização de atividades assistenciais
e recreativas.27 Por outro lado, as relações entre a Fratelanza Italiana e a
sociedade local ilustram o paternalismo nas relações interpessoais entre
italianos e a camada dominante como mecanismo mutuamente aceito e
inconsciente de manutenção da distância social. Conforme as observa-
ções de um informante italiano, que procurava demonstrar as excelen-
tes relações entre brasileiros e italianos e a ausência de discriminação,
“brasileiros também freqüentavam a Fratelanza. As autoridades eram
sempre convidadas e iam às festas. Os moços [brasileiros] dançavam
nos bailes”. Mas, em resposta às nossas perguntas, infor mou também
que os italianos não eram convidados para as festas do Clube e que as
moças brasileiras não freqüentavam os bailes da Fratelanza.

. As sociedades de socorro mútuo são instituições importantes de todos os núcleos italia-
nos, e fatores cruciais para o estabelecimento e manutenção da solidariedade étnica. Como
tal, foram explorados mais tarde pelo fascismo (Rios ). Em Descalvado, a destruição de
todos os documentos da associação local impediu o desenvolvimento da análise desse aspec-
to da imigração.


Se a segregação étnica nunca foi suficientemente grande para impe-
dir a miscigenação, os casamentos mistos só se tornam realmente freqüen-
tes depois de , quando registram-se inclusive diversos casamentos de
moças italianas com filhos de famílias tradicionais.
As relações entre brasileiros e italianos podem ser ilustradas tam-
bém pela participação na Irmandade de Misericórdia, associação destina-
da à manutenção do hospital local (Santa Casa), e que sempre congregou
a camada mais favorecida da população. Na ata da fundação, em ,
há um único nome estrangeiro, e este não é italiano. Toda a diretoria e
boa parte dos sócios são fazendeiros do município. No levantamento
das diretorias, eleitas a cada cinco anos, encontramos os primeiros nomes
italianos em , entre as posições menos importantes de mordomos.
Os italianos participam da diretoria propriamente dita apenas no pe-
ríodo seguinte ao que estamos estudando, em , e a partir de 
passam a controlar a irmandade. É realmente depois da Primeira Guerra
Mundial que se realiza uma transformação fundamental na estrutura da
sociedade local que modifica todo o panorama da participação do ele-
mento italiano.
As transfor mações que se processam a partir da segunda década
do século  estão relacionadas à grande geada de  e às sucessivas
crises do café, e se manifestam na falência de muitos estabelecimentos
comerciais e no número de casarões das famílias tradicionais mais anti-
gas que são desocupados e permanecem vazios.
Realmente, a década de  marca o início da estagnação e posterior
decadência do sistema produtivo que fundamentava a sociedade anterior.
Com a morte dos velhos fazendeiros, as famílias numerosas freqüente-
mente preferem vender as propriedades, em virtude das dificuldades de
divisão de uma herança em terras e da falta de interesse na conservação
de cafezais já menos produtivos. O capital é dividido e empregado em
atividades mais rendosas, quer na abertura de fazendas nas zonas novas,
quer na indústria, quer em investimentos prediais na capital. O processo
é facilitado pelo fato, já apontado, de a camada dominante tradicional não
ser vinculada estreitamente ao município, possuindo sempre interesses e
investimentos em outras regiões e na capital.28

. Algumas grandes fazendas ainda permanecem nas mãos das famílias dos primeiros pro-
prietários. Mas são poucas, e pertencem a famílias que não residem no município e que
influem muito indiretamente na sociedade local.

 Imigrantes italianos


A derrocada de muitos fazendeiros e o abandono do município por
outros afetaram diretamente as grandes casas comerciais que os abaste-
ciam e lhes forneciam a crédito. As crises parecem afetar principalmente
os negociantes maiores e mais antigos, ligados mais de perto à camada
dominante tradicional. Embora houvesse uma retração geral do comér-
cio, conseqüência do decréscimo da população (especialmente da rural)
que acompanha o declínio dos cafezais, os italianos, então em fase de acu-
mulação de capital, parecem ter por isso podido sobreviver, e em parte
aproveitar as conseqüências dessa retração. Realmente, algumas casas
comerciais, especialmente as maiores, são compradas nessa época por ita-
lianos, quer comerciantes, quer fazendeiros que se mudam para a cidade.
Em  registra-se uma iniciativa importante tomada por uma
família italiana que havia realizado a passagem de colonos a fazendeiros
e comerciantes: a criação de uma indústria têxtil. A criação dessa indús-
tria representou a possibilidade de absorção de uma quantidade relati-
vamente importante de mão-de-obra que vinha sendo liberada pela
transfor mação do sistema produtivo agrícola. A iniciativa se amplia.
Com a decadência definitiva do café na área, depois de , e a decor-
rente restrição do comércio, a indústria constitui-se na mais rendosa
aplicação de capital, e os industriais passam a representar um elemento
importante, senão central, da camada dominante local. Em , além
dos estabelecimentos industriais de caráter semi-artesanal, a cidade
conta com cinco fábricas de tecido, o que veio a ser um dos fatores de
aumento da população urbana. O recenseamento de  registra uma
população urbana de . habitantes para um total de . habitan-
tes, o que representa % da população do município. Em , apenas
seis anos depois, a cidade revela um aumento apreciável no número de
habitantes, o que é ainda mais significativo porquanto o município
como um todo vem registrando decréscimos sucessivos de população
desde . Assim, em , o município possuía . habitantes e a
população urbana era de ., ou seja ,% da população total.
Às vésperas da Segunda Guerra Mundial, Descalvado apresentava
um panorama bastante diferente do de . Com a decadência do café,
a antiga classe dominante havia se retirado do município. A decadência
geral do sistema econômico não oferecia muitas oportunidades, mas
as que existiam foram aproveitadas, na maior parte, pela colônia ita-
liana. A iniciativa do estabelecimento de uma indústria têxtil abriu no-
vas oportunidades de emprego de capital e mão-de-obra, contribuindo


assim, embora apenas parcialmente, para diminuir a tendência ao
decréscimo da população. A classe dominante em emergência é consti-
tuída, em grande parte, de descendentes de imigrantes, o mesmo se
dando com o novo operariado fabril. A partir de então, as medidas
nacionalistas do gover no Vargas ter minam com a Fratelanza Italiana,
forçam a naturalização de muitos dos velhos imigrantes e contribuem
para pôr fim a uma identificação étnica que já não corresponde à reali-
dade social. O término da guerra, e as novas condições econômicas que
passam a atuar então, encontram uma população na qual os descenden-
tes de imigrantes ocupam todas as posições na hierarquia social, e na
qual a miscigenação e a aculturação destruíram o sentido de uma iden-
tificação étnica. A sociedade entra em novo processo de transformação,
para o qual os imigrantes não mais contribuem como grupo com carac-
terísticas distintas.

A mobilidade do imigrante italiano na zona urbana

A quase totalidade dos imigrantes que se estabeleceram originalmente


em Descalvado foi encaminhada inicialmente para a zona rural.
Essa população englobava, entretanto, um número apreciável de
famílias de origem e ocupações urbanas, provenientes em grande parte
das pequenas cidades tanto do norte quanto do sul da Itália, como se
verifica pelas histórias de famílias de imigrantes que levantamos através
de entrevistas. São principalmente estes que buscam, logo que possível
(isto é, depois de vencido o contrato de um ano de trabalho nas fazen-
das) estabelecer-se na cidade.
Na zona urbana, os italianos dedicam-se principalmente ao arte-
sanato e ao trabalho industrial qualificado ou ao pequeno comércio,
quer como proprietários, quer como assalariados. O estabelecimento na
cidade implica, freqüentemente, a posse de um capital inicial, embora
pequeno, que per mita o estabelecimento por conta própria. Paralela-
mente ao que se dá na zona rural, onde o sucesso econômico é medido
em termos da posse e do tamanho da propriedade, na zona urbana o ideal
de ascensão é definido como posse e ampliação de estabelecimento co-
mercial ou artesanal, isto é, do trabalho por conta própria. A educação
(escolarização) não parece ser apreendida como um canal importante de
ascensão social nessa população italiana mais antiga. A alfabetização é

 Imigrantes italianos


considerada como instrumento necessário, mas para isso a escola primá-
ria é suficiente. A “prática” é tida como o meio por excelência de forma-
ção para o êxito, e a importância da utilização da mão-de-obra familial
como mecanismo de for mação de capital contribui para que se negli-
gencie a educação média e superior. O trabalho dos filhos é considera-
do necessário à prosperidade da família, e os poucos que demonstram
interesse pelos estudos são encaminhados em geral para cursos técnicos
de nível médio (como contabilidade), cuja utilidade é mais imediata em
termos de empresas familiais. Os profissionais liberais de origem italia-
na que se estabeleceram em Descalvado antes de  provêm de famí-
lias de profissionais liberais e adquiriram sua qualificação antes de imi-
grarem para o município. Até , os filhos de imigrantes forneceram
pouquíssimos profissionais liberais. Possuímos infor mações apenas
sobre três casos – dois far macêuticos e um médico e, esses mesmos,
filhos mais jovens de famílias que enriqueceram rapidamente. A educa-
ção liberal é algo que se procura após a ascensão, e não é seu instrumen-
to.29 Apenas na terceira geração (ou entre aqueles cujos pais emigraram
em criança) é que a carreira liberal é procurada por um número cres-
cente de jovens de famílias prósperas. Os mecanismos fundamentais
utilizados pelos italianos para a ascensão social (definida pelo enrique-
cimento) são o trabalho e a poupança; a mobilidade vertical, tanto na
zona urbana como na zona rural, depende do sucesso em constituir um
pecúlio para se estabelecer por conta própria.
A passagem da zona rural para a urbana e a realização do ideal de
estabelecer-se por conta própria parecem ter sido mais fáceis para os
artesãos e trabalhadores manuais qualificados, para quem o capital inicial
freqüentemente não precisava ir além das ferramentas do ofício. O esta-
belecimento na zona urbana e a posse das ferramentas per mitia-lhes
empreitar serviço tanto na cidade como nas fazendas e, assim, for mar
um pecúlio para a instalação de uma oficina. Por outro lado, esse tipo de
atividade favorecia o aproveitamento da mão-de-obra familiar, que é
um fator importante na formação e ampliação do capital. Os documen-
tos mais antigos indicam que, mesmo antes da entrada de italianos no

. A esse respeito, é interessante notar a valorização do trabalho que parece caracterizar os
imigrantes italianos, como aponta Marialice M. Foracchi em comunicação apresentada à 
Reunião Brasileira de Antropologia. Em nota anterior já apontamos uma afirmação de Tha-
les de Azevedo, que considera o espírito de economia e o amor ao trabalho valores funda-
mentais do ethos do imigrante italiano


município, já havia uma pequena camada artesanal em que predomina-
vam os estrangeiros, principalmente alemães. Estes estabelecimentos
empregaram os italianos recém-chegados, per mitindo-lhes um ajusta-
mento inicial ao sistema econômico existente e uma familiarização com
as oportunidades oferecidas à mão-de-obra. O crescimento da popula-
ção do município, a prosperidade econômica e o número crescente de
italianos estabelecidos criaram oportunidades para a absorção de toda a
mão-de-obra qualificada em algum ofício que chegou a Descalvado.
Essas observações referem-se principalmente aos marceneiros, ferreiros,
mecânicos e sapateiros, mas aplicam-se também aos alfaiates, barbeiros,
açougueiros etc. que, mais comumente ainda, iniciam a carreira urbana
como empregados ou sócios menores de estabelecimentos existentes.
A ascensão dos membros dessa camada artesanal se dá pelo estabe-
lecimento de oficinas mais aparelhadas até alcançar-se o nível de uma
quase indústria, o que implica a utilização de trabalhadores assalariados
além dos membros da família. Se isso, de um lado, abre oportunidades
para o emprego de muitos italianos recém-chegados, por outro, limita
as possibilidades de esses trabalhadores virem a constituir indústrias
competitivas, que exigem cada vez mais capital. Isto se dá, evidente-
mente, porque a prosperidade e a complexidade crescentes da economia
urbana são paralelas à própria imigração, e em parte criadas por ela.
Deste modo, alteram-se bastante as possibilidades de ascensão dos imi-
grantes mais recentes, principalmente porque a estabilização e a poste-
rior retração econômica diminuem as oportunidades oferecidas pelo
sistema e tornam cada vez mais difícil a passagem de trabalhador assa-
lariado a proprietário de estabelecimento artesanal-industrial.
Se a ascensão da camada artesanal envolve necessidade de acumu-
lação de capital, para os comerciantes este capital é uma exigência ini-
cial. Para muitos, a permanência na zona rural é prolongada até a for -
mação de um pecúlio, através da utilização dos mecanismos acima
apontados. Formado o capital inicial, esse é freqüentemente empregado
no comércio urbano, e não na aquisição de uma propriedade agrícola.
Portanto, a mobilidade na zona urbana está, por mais de um modo, liga-
da à zona rural. Embora os que assim se estabeleçam provenham fre-
qüentemente de famílias urbanas no país de origem, muitas famílias de
lavradores optam também por esta alternativa.
Para os que não têm pecúlio, o acesso à exploração do comércio
urbano depende das oportunidades de for mação de capital que são

 Imigrantes italianos


abertas à mão-de-obra assalariada empregada no próprio comércio e
nos ofícios. Para esses, é mais difícil estabelecer-se por conta própria.
A família não trabalha como uma unidade; o emprego, ao contrário da
zona rural, é individual e não familial; apenas a poupança pode ser cole-
tiva e depende do controle do pai sobre o ganho dos filhos e da mulher.
As melhores oportunidades estão na possibilidade de passar, no próprio
estabelecimento, de empregado a sócio, o que muitas vezes é facilitado
pelo casamento na família do patrão.
O comércio parece ter sido sempre o modo principal de enriqueci-
mento; como tal, já havia favorecido a ascensão de muitas famílias bra-
sileiras. A prosperidade através do comércio está especialmente ligada
aos armazéns de secos e molhados. Realmente, as maiores fortunas
locais foram criadas ou na agricultura ou nesse gênero de comércio.
É importante considerar que esse ramo de atividade repousa numa
estreita ligação com a zona rural. Em primeiro lugar, porque as fazen-
das constituem o seu mercado principal. O sucesso comercial depende,
em grande parte, da capacidade de adquirir a confiança e a clientela dos
fazendeiros, administradores e colonos. Embora nos faltem documen-
tos e dados para explorar essas implicações, parece-nos que a participa-
ção na vida política é um elemento importante para assegurar essa
clientela, e os comerciantes mais prósperos foram também líderes polí-
ticos ou, pelo menos, “cabos eleitorais” de importância; de qualquer
modo, os comerciantes sempre participaram intensamente da vida
política local que se constitui, inclusive, em modo de penetração na ca-
mada dominante, composta, como já vimos, quase que exclusivamente
de grandes fazendeiros brasileiros.30 Estabelecendo-se como “gente de
confiança” desses fazendeiros, os comerciantes desempenham papel
importante nas lutas políticas que caracterizaram a antiga República.
Realmente, pelo seu constante contato com boa parte da população
urbana e rural, e pela formação de laços de dependência através do for-
necimento de crédito, os comerciantes estão em posição privilegiada
para exercer a atividade política, especialmente no nível da manipula-
ção do eleitorado.

. Quanto à participação política dos imigrantes, Rios aponta como característica geral a
apatia e a inexistência de atividade partidária. Entretanto reconhece, de passagem, que “a
participação dos italianos e ítalo-brasileiros parece ter sido mais intensa na política munici-
pal que na estadual e ainda maior nesta do que na política nacional [...]” (Rios : ).


As relações entre o comércio urbano e a fazenda são importantes
também porque os capitais formados em um ramo de atividade são mui-
tas vezes aplicados em outro. A criação de pequenos estabelecimentos
comerciais se prende freqüentemente à aplicação de um pecúlio forma-
do na zona rural. Também há casos em que proprietários rurais abastados
vendem as fazendas e abrem ou compram casas comerciais. Por outro
lado, ocorre freqüentemente que comerciantes adquiram propriedades
agrícolas no investimento de capitais excedentes (dada a dificuldade de
expansão indefinida dos estabelecimentos comerciais no nível munici-
pal) ou como pagamento de dívidas de fazendeiros arruinados.
Essa rede de relações entre o comércio urbano e a zona rural e,
portanto, entre comerciantes, fazendeiros e colonos abre inúmeras opor-
tunidades de ascensão social e de enriquecimento que já haviam sido
exploradas com sucesso pelos comerciantes brasileiros, muitos dos quais
fizeram fortuna em Descalvado. Entretanto, os italianos estavam em
posição favorável para explorar em seu proveito a força política e eco-
nômica representada pela colônia italiana. Os comerciantes italianos
sempre foram os líderes da colônia, como se pode verificar pelo domí-
nio que exercem sobre a associação italiana local.
Deste modo, o comércio, principalmente o dos grandes armazéns,
não só possibilitou o enriquecimento, mas favoreceu o contato dos ita-
lianos bem-sucedidos com a camada dominante local e sua participação
na sociedade local.
Mas se, de um lado, verificamos que o comércio e as atividades de
nível artesanal abrem possibilidades de ascensão social exploradas com
sucesso pelos imigrantes, notamos, de outro, uma dupla limitação à
mobilidade possível através desse gênero de atividade: em primeiro
lugar, porque não há oportunidades para todos os imigrantes e, em
segundo, porque as existentes não per mitem o enriquecimento (que é
fator essencial da mobilidade) além de um certo limite, deter minado
pelas condições da vida econômica local.
As possibilidades de expansão dos empreendimentos comerciais
em Descalvado são limitadas, pois o relativo isolamento regional cir-
cunscreve o mercado à população do município. Daí decorre a aplicação
de capitais comerciais em outros empreendimentos, principalmente na
agricultura e, depois de , também na indústria. Os grandes comer-
ciantes passam a ser, simultaneamente, fazendeiros e industriais. Outros
abandonam o comércio para dedicar-se apenas à indústria.

 Imigrantes italianos


O limite de ascensão para imigrantes ligados às atividades artesa-
nais é ainda mais baixo. A expansão dos empreendimentos não vai além da
criação de oficinas relativamente pequenas e bem aparelhadas. O desen-
volvimento da grande indústria em outros centros gradualmente elimi-
na a necessidade e a possibilidade de sobrevivência de uma indústria
incipiente e semi-artesanal. Por outro lado, a própria tradição artesanal
das famílias italianas e a organização da produção em moldes familiais
dificultam mais do que favorecem a transformação das oficinas em fábri-
cas. Acrescentem-se a isso os empecilhos já apontados para a expansão
dos estabelecimentos comerciais, que resultam da posição relativamente
isolada do município, em fim de ramal ferroviário, e da conseqüente
restrição do mercado à população local. A partir de , com o desa-
parecimento da geração mais velha, boa parte desses empreendimentos
tende a desaparecer. Os filhos mudam-se para outros municípios, em
busca de novas oportunidades, ou transfor mam os estabelecimentos
em lojas de produtos similares fabricados em outras regiões.
Já apontamos anteriormente que as famílias italianas mais prósperas
do município chegaram, quase todas, antes ou pouco depois do início do
século, embora Descalvado continuasse a receber imigrantes em quanti-
dades apreciáveis até o fim da década de . Como a mobilidade do imi-
grante, tanto na zona urbana quanto na rural, está condicionada às possi-
bilidades de for mação de capital, devemos admitir que as condições
predominantes na sociedade no fim do século  favoreciam a utilização
do equipamento cultural de que os italianos eram portadores para a for-
mação do pecúlio que era a condição fundamental da mobilidade.
Os fatores culturais que deter minam essa possibilidade já foram
analisados anterior mente para a população rural. Consistem, funda-
mentalmente, na familiaridade com uma economia urbana de mercado
no país de origem, aliada a padrões rígidos de poupança e à organização
e utilização intensiva de mão-de-obra familial. Para os imigrantes fixa-
dos na zona urbana, devemos considerar ainda a posse de qualificações
profissionais necessárias à sociedade em expansão.
As oportunidades existentes na sociedade urbana primitiva
podiam ser aproveitadas eficazmente pela organização familial do tra-
balho, os conhecimentos técnicos de nível artesanal e os capitais limita-
dos que a poupança podia produzir. Todavia, a própria mobilidade está
associada a uma crescente complexidade das atividades e aumento dos
estabelecimentos comerciais e industriais, que contribuem para tor nar


cada vez mais difícil a criação de empreendimentos competitivos. Os
imigrantes menos bem-sucedidos constituem, assim, uma população de
empregados do comércio e da indústria artesanal, cujas possibilidades
de ascensão são ainda diminuídas pela estabilização e posterior deca-
dência econômica do município.
Com a criação da indústria de tecidos, parte da população rural de
origem italiana, que não havia realizado uma mobilidade significativa,
ingressa no operariado fabril.
Vimos como as crises de café e a decadência econômica afetaram
fundamentalmente a antiga classe dominante que, em parte, abandona
o município. Assumem então a liderança econômica e política os co-
merciantes que subsistem às crises e os que se dedicam à indústria em
for mação. A preservação dos padrões de poupança e de organização
familial do trabalho, que havia permitido a muitos italianos realizar uma
ascensão preliminar, habilita-os também a adquirir uma posição domi-
nante em substituição aos antigos fazendeiros.
No período imediatamente anterior à Segunda Guerra Mundial, e
concomitantemente ao desaparecimento gradual dos antigos fazendei-
ros, os italianos e seus descendentes passam a se distribuir por todas as
posições da estrutura ocupacional e da hierarquia social. Há italianos
operários, artesãos, empregados de comércio, pequenos comerciantes,
funcionários públicos, grandes comerciantes e industriais.
Nessa época, com a emigração das famílias brasileiras, provocada
pela decadência da economia cafeeira, os italianos e seus descendentes
haviam assumido a liderança econômica na zona urbana e, em parte, na
rural. A partir de então, torna-se cada vez mais difícil falar de “italia-
nos”. A geração dos imigrantes está em vias de desaparecer. A camada
brasileira dominante desagregou-se e a nova geração já é em grande
parte produto de casamentos mistos. A política do Estado Novo contri-
buiu para a assimilação, impedindo a manutenção das associações italia-
nas, que já iam perdendo sua razão de ser.
Os italianos estão assimilados. As novas condições de vida e a mis-
cigenação destroem as vantagens e a possibilidade de conservação dos
traços culturais que favoreceram a sua ascensão.
A própria estagnação econômica do município favorece o desapa-
recimento da antiga estrutura familiar na nova classe média e na camada
dominante. A restrição das oportunidades leva à dispersão necessária de
muitos filhos, encaminhados para outras ocupações e para outras loca-

 Imigrantes italianos


lidades. Assim a solidariedade familial não subsiste à sua utilidade eco-
nômica. Quando a economia de inflação e a estagnação econômica eli-
minam, em grande parte, as possibilidades de acumulação de capital
pelos mecanismos tradicionais de poupança dos resultados do trabalho
coletivo da família, esta se dispersa, na busca incessante de condições
favoráveis de ascensão econômica.

Resumo e conclusões

O período que vai até o início do século  representa o momento cru-


cial da história da imigração italiana no município. Nessa primeira fase
os italianos buscam agressivamente uma posição na sociedade nacional,
que finalmente definem, estabelecendo também os mecanismos da
ascensão social que constitui o objetivo da imigração.
A mobilidade se dá paralelamente à assimilação da qual é um aspec-
to. Os imigrantes são capazes, de início, de ocupar determinadas posições
sociais dentro do sistema da sociedade receptora, e de aproveitar certas
oportunidades de ascensão social. Entretanto, nem essas posições nem
essa mobilidade devem ser entendidas como simples propriedades de um
sistema anterior à imigração, pois é a própria atividade dos imigrantes
que, pelo menos em parte, cria as posições que eles mesmos passam a
ocupar. Estabelecidos como artesãos, pequenos comerciantes, emprega-
dos urbanos e sitiantes, ou tendo pelo menos assegurada a possibilidade
de virem a ocupar essas posições, os imigrantes definem a sua situação na
sociedade. Tem lugar, então, uma mobilidade diferencial, que favorece
apenas alguns indivíduos, os de maior iniciativa e visão empresarial.
As duas primeiras décadas do século  parecem constituir uma
segunda fase do processo de assimilação dos imigrantes, que se caracte-
riza pela estabilização da sociedade global e consolidação das posições
conquistadas na época anterior. A produção cafeeira se mantém, mas o
sistema produtivo começa a ser abalado pelas sucessivas crises do café.
A importância dos interesses urbanos começa a se fazer sentir com mais
intensidade. Os comerciantes enriquecidos, entre os quais alguns italia-
nos, começam a participar de modo crescente das posições de liderança
política e social.
Com a geada de  e a crise de , começa a decadência do
sistema produtivo que fundamentava a sociedade anterior, decadência


esta que se acelera depois da crise de . Muitos capitais se retiram.
O gradual desaparecimento da classe dominante favorece a ascensão
dos italianos que haviam conseguido formar e ampliar um capital; mui-
tos deles se estabelecem então como fazendeiros e comerciantes e, por
sua iniciativa, cria-se uma pequena indústria.
Nessa transformação, a camada dominante emergente não é mais
constituída de pessoas ligadas fundamentalmente a interesses agrícolas,
mas de comerciantes e industriais urbanos. É nessa época que os italia-
nos começam a exercer cargos políticos com grande freqüência e a
assumir posições de liderança nas associações beneficentes e religiosas.
É também então que se acelera o processo de miscigenação.
Essas transformações se estendem pelas duas décadas anteriores à
Segunda Guerra Mundial. O município continua a perder população,
mas a economia agrícola se restabelece, com uma predominância cres-
cente da pecuária, que não necessita de uma população rural muito
densa. O comércio, embora contraído, continua como fonte de prospe-
ridade e importante canal de ascensão econômica. A indústria progride
lentamente. Nesse período processa-se uma redefinição da posição dos
imigrantes e seus descendentes, que ocupavam até então as posições
inferiores da escala de diferenciação social e constituíam a maioria da
classe média. Alguns italianos passam a ocupar, com brasileiros, as
posições dominantes, que conquistaram quer pela capacidade de trans-
formar o sistema produtivo agrícola, quer pela iniciativa empresarial de
caráter industrial, quer através da competição comercial. Constitui-se
uma nova camada dominante.
Com a diminuição do afluxo de imigrantes, o aumento dos casa-
mentos mistos e a dominância das novas camadas urbanas nas quais os
italianos e seus descendentes assumem importância muito grande, o
processo de assimilação se completa. A partir da Segunda Guerra Mun-
dial as medidas nacionalistas repressivas contribuem para eliminar as
distinções culturais remanescentes.
Todavia, para uma visão mais completa do processo foi necessário
também explicar como os italianos puderam aproveitar e criar essas
oportunidades dentro do sistema. Essa indagação nos levou à investiga-
ção dos aspectos do equipamento cultural e das motivações do imigran-
te, que lhe permitiram definir e resolver, de um modo determinado, os
problemas da situação criada pelo movimento emigratório. A familiari-
dade com uma economia urbana e de mercado lhes per mitiu definir a

 Imigrantes italianos


mobilidade em termos de formação de capital. A intensidade do traba-
lho, a organização familial da produção e os padrões tradicionais de
poupança tornaram possível, no sistema econômico baseado na grande
lavoura de café, a acumulação do capital que era necessário à mobilida-
de inicial. Esses mesmos elementos per mitiram aos italianos competir
com os brasileiros pelas posições dominantes quando o sistema econô-
mico se transformou, e asseguraram o êxito de alguns.
A análise dos componentes culturais da situação de assimilação é
significativa para os períodos iniciais da imigração, mas diminui de
importância à medida que os italianos são assimilados. Durante este
processo, suas características culturais se diluem ou se incorporam à
sociedade global, concomitantemente às transfor mações do sistema
social total que lhe retiram a eficácia como mecanismo de ascensão.


Capítulo 

             


Este trabalho reproduz a primeira parte de minha tese de doutorado, publi-
cada sob o título A caminho da cidade.
A pesquisa fez parte de um grande projeto de Darcy Ribeiro (que então
dirigia o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais), sobre as transforma-
ções que estavam ocorrendo na sociedade brasileira, dentro do qual eu fiquei
encarregada de analisar a migração rural-urbana. A pesquisa que realizei
consiste, basicamente, em um conjunto de mais de quatrocentas entrevistas
realizadas em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Salvador. Os infor-
mantes foram selecionados a par tir de um amplo survey sobre a população
destas cidades, realizado por Ber tram Hutchinson, como parte do mesmo
projeto. Foram entrevistados todos os migrantes rurais incluídos na amostra
de Hutchinson, embora houvesse alguns problemas metodológicos que dificul-
taram inicialmente a definição desta população específica. O trabalho final
inclui apenas a parte da investigação realizada na cidade de São Paulo,
embora o conjunto das entrevistas tenha sido utilizado como referência.
Um dos dados surpreendentes que emergiram da análise das entrevis-
tas foi, para mim, a grande uniformidade das informações sobre a vida rural,
e o caráter profundamente tradicional das condições de vida e trabalho nas
localidades de origem. A minha pesquisa anterior, sobre a agricultura cafeei-
ra paulista e a imigração italiana, não tinha me levado a entrever a impor -
tância que ainda possuía, no Brasil, o modo de vida tradicional descrito nos
estudos de comunidade.
Para entender a persistência dessas características tradicionais da so-
ciedade rural que fornecia este contingente migratório, empreendi, com base
nas entrevistas e na ampla bibliografia existente, uma reconstrução desse
passado ainda presente.
O texto aqui apresentado, ligeiramente modificado para eliminar redun-
dâncias e corrigir formulações obscuras, foi originalmente precedido de uma
análise das correntes migratórias internas, com base nos dados do IBGE, não
incluída nesta coletânea.
As comunidades rurais tradicionais e a migração*

Autonomia e isolamento

O estudo das áreas de imigração e a análise do processo de desenvolvi-


mento econômico do país deixam bastante claro que o deslocamento da
população rural se dá das regiões economicamente mais atrasadas para as
mais prósperas e se apresenta, em grande parte, como uma transferência
de mão-de-obra para sistemas econômicos mais produtivos. É grande o
número de pessoas que anualmente abandonam a agricultura de subsis-
tência ou se deslocam para as regiões agrícolas mais produtivas, onde
constituem mão-de-obra para expandir as plantações e substituir os traba-
lhadores que migram para as cidades, ou formam, com estes, a corrente
que alimenta as populações urbanas. Desse modo, se é a natureza das rela-
ções entre regiões prósperas (urbanas ou rurais) e regiões atrasadas que
determina a orientação e o próprio fato do deslocamento da população
rural, são as relações de trabalho e a organização da vida social vigentes
nas áreas tradicionais, sobretudo aquelas ainda presas a uma economia
fechada, que caracterizam o equipamento cultural de grande parte desses
migrantes. Este fato nos ajuda a compreender a grande uniformidade que
encontramos nos dados sobre as condições de vida na zona rural.
Parte de cada entrevista realizada com migrantes rurais destinava-se
a conhecer as condições de vida na zona rural. Os dados referem-se quase
sempre a uma situação bastante afastada no tempo, estando sujeitos a
diversas distorções devido à idealização ou simplificação do passado. É
evidente que esses elementos não são suficientes para o estudo da socieda-
de rural brasileira. Entretanto, usados como complemento aos trabalhos já
feitos sobre a sociedade e a cultura rural, oferecem informações adicionais
e permitem discernir a natureza da percepção dos aspectos negativos
dessa sociedade pela população rural que se decide pela migração.

* Publicado originalmente em A caminho da cidade. São Paulo: Perspectiva, .


Entrevistamos pequenos proprietários, assalariados agrícolas e
meeiros ou arrendatários, provindos de quase todas as regiões brasileiras.
Apesar das variações de tempo de permanência na capital, de camada de
origem e de zona de proveniência, é surpreendente a unifor midade das
informações sobre as condições de vida anteriores à migração, refletindo
a universalidade e per manência de elementos tradicionais na sociedade
rural brasileira. Essa uniformidade se deve sobretudo à semelhança fun-
damental na constituição da unidade produtiva, que é a família conjugal,
no modo de organização dessa unidade em grupos de vizinhança, nos
padrões e técnicas de trabalho e na possibilidade de acesso ao meio de
produção essencial, a terra.
Aliás, essa mesma impressão de uniformidade não pode deixar de
ocorrer a quem quer que examine os estudos de comunidade que se reali-
zaram no Brasil. Quer se trate de uma comunidade de parceiros ou sitian-
tes em São Paulo (Candido ; N. Müller  e ; Willems ),
posseiros do litoral (Willems & Mussolini ), meeiros ou agregados em
Minas Gerais (Castaldi ; Costa ), sitiantes ou agregados do inte-
rior da Bahia (Harris ), ou mesmo agricultores amazonenses (Wagley
), encontramos sempre as mesmas técnicas produtivas, as mesmas
formas de cooperação e auxílio mútuo, os mesmos laços de solidariedade
e, principalmente, as mesmas condições precárias de existência. Mais
ainda, as descrições atuais aproximam-se bastante das que encontramos
nos relatos dos viajantes do século . Apenas nas áreas de imigração
estrangeira encontramos formas diferentes de relações de trabalho e de
organização comunitária. Mesmo assim, nas regiões onde a imigração foi
reduzida e onde não houve reforços contínuos de novos contingentes, os
imigrantes foram absorvidos pela população local e adotaram hábitos e
técnicas semelhantes aos da população nacional (Willems ).
Para entender mos essa semelhança fundamental subjacente à va-
riação das subculturas regionais é necessário analisar, embora de modo
sumário, algumas características da estrutura da sociedade rural brasi-
leira e do processo histórico de sua formação.

SOCIE DA DE TRA DI CIO NAL E ECO NO MIA DE SUB SIS TÊN CIA

Para entender a natureza dessa sociedade rural tradicional, parece-nos


indispensável partir da concepção da oposição entre grande lavoura de
exportação e economia de subsistência. Já na época colonial, havia se

 Comunidades rurais tradicionais


constituído no Brasil essa dualidade fundamental: de um lado, o latifún-
dio voltado para a exportação, fundado no trabalho escravo, ocupando
porções relativamente reduzidas (e variáveis) do território nacional; de
outro, povoando enor mes extensões de terra, uma população pouco
densa, em grande parte livre, voltada para uma economia de subsistên-
cia, que se estabelece à margem da grande lavoura, ou como conse-
qüência de sua decadência (Prado [] : -ss).1
A economia de subsistência que dá margem à cultura rústica ou
cabocla se constitui como única forma possível de trabalho livre, numa
sociedade rural voltada para a produção de artigos agrícolas de exporta-
ção. Como eram pouquíssimos os centros urbanos que pudessem absor-
ver a população livre ou criar um mercado para os pequenos produtores
agrícolas (o que se deve em parte ao caráter auto-suficiente da grande
lavoura), aos homens livres sem recursos, emigrados, mestiços ou liber-
tos, só é possível uma existência à margem do sistema econômico colo-
nial, quer como agregados, quer como produtores independentes, mas
isolados e auto-suficientes (Buarque de Holanda : -ss; Prado
: -ss; Furtado : -ss; Oliveira Vianna : -ss, v. , etc.).
Desse modo, todo o povoamento do Sul do país, do interior do
Nordeste e da costa entre o Rio de Janeiro e a Bahia se fez à margem dos
sistemas econômicos voltados para a exportação. É o que se observa, por
exemplo, no norte do Rio de Janeiro, no Espírito Santo e em Ilhéus.
Quando o príncipe Maximiliano percorreu a região no século , encon-
trou, ao lado de engenhos e fazendas, uma população dispersa, em gran-
de parte índia ou mestiça, que consumia a maior parte do que produzia e
exportava esporadicamente um pequeno excedente de víveres. Citemos,
como exemplo, as observações, realizadas no litoral do Espírito Santo:

Nos cer rados que margeiam a costa, habitam famílias pobres e esparsas,
que vivem da pesca e da colheita de suas plantações. São em geral negros,

. As zonas de proveniência dos migrantes que chegam a São Paulo são justamente aquelas que
foram ou ainda são as áreas por excelência da economia de subsistência: o interior do estado de
São Paulo e da Bahia, o “Sertão” e o “Agreste” do Nordeste, Bahia e Minas Gerais. Embora no
interior de São Paulo a imigração estrangeira se tenha superposto a essa população nacional, ela
não a destruiu e, em parte, veio mesmo a incorporar os padrões culturais próprios dos lavrado-
res caboclos, como procuramos demonstrar no decorrer do trabalho. É, portanto, essa partici-
pação comum na economia de subsistência e na cultura cabocla que explicaria a uniformidade
das atitudes, das combinações e vida descritas pelos migrantes rurais que entrevistamos.


mulatos e outras gentes de cor... Pobres demais para comprar escravos e
demasiado indolentes para o trabalho, preferem mor rer de fome. (Maximi-
liano : )

Mais ao norte está Vila Nova, aldeia de índios civilizados:

O lugar é morto, e não parece populoso; também se vê muita pobreza. Os


índios tiram a subsistência das plantações de mandioca e milho; exportam,
igualmente, um pouco de lenha e de artigos de cerâmica e mantêm uma pesca
nada desprezível... (id. ibid.: -)

E assim por diante. Sucedem-se, na costa, essas habitações de uma popu-


lação economicamente marginal, descendente de portugueses, negros e
índios, que vive em grande isolamento. São essas as condições de forma-
ção da população e da cultura que podemos chamar de caipira, cabocla,
sertaneja ou, de forma mais geral, tradicional.
Quanto ao povoamento do sertão mineiro e baiano (alto e médio
São Francisco), observa Saint-Hilaire:

pelo que me disseram, os primitivos habitantes do Sertão oriental foram pau-


listas que fugiram depois da der rota do Rio das Mortes [...]. A criação de
gado a que se entregam favorece sua tendência à moleza, e a má alimentação
contribui ainda mais para tirar-lhes as energias. ([]: -)

Sobre as condições econômicas, observa que os habitantes do sertão


“não plantam senão para o próprio consumo” (id. ibid.: ) e que, no
“interior do Brasil, os gêneros não encontram compradores; e mesmo
aqueles que têm engenhos de açúcar só vendem os produtos a seus vizi-
nhos” (id. ibid.: ).
A penetração do interior nordestino, por meio da criação de gado,
recebeu seu impulso inicial das necessidades do mercado estabelecido
pelos engenhos. Mas, como observa Celso Furtado,

para se compreender o crescimento da população dedicada à criação, a expan-


são do território ocupado e o crescimento dos rebanhos, é preciso ter-se em conta
que a criação era, em grande parte, uma atividade de subsistência, for necendo
alimento (carne) e matéria-prima (couro) aos criadores. De outro lado, a baixa
rentabilidade da criação e a necessidade de restrição de importação levou,

 Comunidades rurais tradicionais


desde o início, ao desenvolvimento paralelo de uma agricultura de subsistência
muito precária. (Furtado : -ss)

Com a decadência dos engenhos, aumenta a transferência de população


da zona açucareira para a economia criatória, capaz de absorver o excesso
de mão-de-obra pela auto-suficiência de seu abastecimento. Paralela-
mente, com o crescimento da população, desenvolve-se, em especial no
Agreste, uma economia de subsistência predominantemente agrícola,
que mantém laços relativamente tênues com os mercados litorâneos.2
Sobre o sertão da Bahia, escrevem Spix e Martius no século :

Uma palhoça imunda, tendo em volta uns pés de banana maltratados, uma
roça de feijão e mandioca, umas cabeças de gado e alguns cavalos magros, que
buscam eles próprios a subsistência, eis a mais alta aspiração desses matutos.
Alimentam-se com ervas, carne-de-vento, leite, requeijão e, durante o tempo
das frutas, sobretudo com as do imbuzeiro [...]. (Spix e Martius, , v. : )

E os sábios alemães se espantam que, num país tão opulento como o Bra-
sil, a população viva em tal miséria e se ache bem.
O povoamento da região Sul, após fracasso do cultivo de cana-de-
açúcar em São Vicente, não se fez de modo diverso. Inicialmente, o for-
necimento de escravos indígenas para as plantações deu origem às ati-
vidades de apresamento, que se desenvolveram paralelamente a uma
economia de subsistência. Mais tarde, com a for mação da economia
mineira, expandiu-se a criação, especialmente nas zonas mais meridio-
nais. Em São Paulo, após o ciclo do ouro, com a retração do mercado e
o refluxo da população das minas, o povoamento de grande parte da
província se desenvolveu dentro de um sistema de economia quase fe-
chada, espalhando-se por grandes extensões de terra, em núcleos isola-
dos e auto-suficientes.3 No extremo sul, as condições são algo diferentes,

. Como aponta o mesmo autor, “A expansão da economia nordestina, durante este longo
período [...], consistiu, em última instância, num processo de involução econômica; o setor
da alta produtividade ia perdendo importância relativa e a produtividade do setor pecuário
declinava na medida em que este crescia. Na verdade, a expansão refletia apenas o cresci-
mento do setor de subsistência, dentro do qual se ia acumulando uma fração crescente da
população” (Furtado : -).
. Celso Furtado chama a atenção para o fato de que a formação da economia cafeeira se pren-
de em grande parte à disponibilidade de mão-de-obra criada pela decadência da mineração >


porquanto a criação de gado se organizou lentamente na indústria do
charque (F. H. Cardoso ). Mas, nas zonas florestais, até a vinda dos
alemães e, mais tarde, coexistindo com eles, espraiou-se uma tênue capa
de população cabocla, que cultivava o solo com as técnicas mais rudi-
mentares (Willems ; Queiroz ).
Na região central, com o colapso da mineração, observa-se fenôme-
no semelhante de involução econômica. Parte da população reflui para o
litoral; decaem os núcleos urbanos; o mercado se contrai. A população
que fica se dispersa pelas grandes distâncias, recriando as condições que
dão origem à economia de subsistência (Furtado : -ss).4
O Maranhão, antes e depois do breve surto de prosperidade decor-
rente do cultivo do algodão, desenvolveu um sistema econômico seme-
lhante ao paulista, centrado no apresamento e na economia de subsistência.
Na Amazônia, a expulsão dos jesuítas levou à desagregação dos
núcleos das comunidades missionárias, à dispersão populacional e à
generalização da economia de subsistência na população cabocla, para-
lelamente à introdução de novas for mas espoliativas de utilização da
mão-de-obra nativa (Prado : -ss).
No fim da época colonial, portanto, apesar de surtos regionais de
produção ou exploração de produtos comerciais nas mais diversas
áreas, a ocupação de grande parte do território nacional havia sido feita
por uma população predominantemente livre, dedicada em parte à agri-
cultura, em parte à criação, voltada para uma economia de subsistência,
mantendo relações precárias com as áreas urbanas e as áreas de produ-
ção agrícola mercantil. Essa população cobre, de modo ralo e pouco
unifor me, quase toda a região Sul e o interior do estado de São Paulo,

> (Furtado : ). Mas trata-se, nesse caso, da mão-de-obra escrava. Havia também, é
verdade, uma disponibilidade de empresários. Mas, independentemente desse fato, homens
livres, portugueses ou nacionais, mulatos ou libertos refluem pelos antigos caminhos e se
instalam no interior do estado, onde só muito mais tarde seriam alcançados pelo café. Essa
movimentação continua durante o século  pela movimentação de criadores e plantadores
de fumo, mineiros que penetram no sertão paulista (Monbeig : -ss).
. Como observa Antonio Candido (Candido :), “a fixação generalizada do paulista
ao solo, em seguida ao fim dos ciclos bandeirantes, no século , fez com que se espraiasse
pela capitania, até os limites do povoamento, uma população geralmente marcada pelas
características acima definidas. Um lençol de cultura caipira, com variações locais, que
abrangia partes das capitanias de Minas, Goiás, e mesmo Mato Grosso. Cultura ligada a for-
mas de sociabilidade e de subsistência que se apoiaram por assim dizer em soluções mínimas,
apenas suficientes para manter a vida e a coesão dos bairros”.

 Comunidades rurais tradicionais


espalha-se pela região abandonada pela mineração, e se estende pelo
interior da Bahia e do Nordeste até o Maranhão e a Amazônia, po-
voando também parte do litoral entre o Rio de Janeiro e Salvador.5
São os remanescentes desta população que for necem a maior parte do
contingente de migrantes rurais que pesquisei em São Paulo nas déca-
das de -.

A CONS TI TUI ÇÃO DA ECO NO MIA DE SUB SIS TÊN CIA

As condições de constituição de uma economia de subsistência em clima


tropical, à base de uma herança cultural comum, parecem ter condicio-
nado um modo de existência fundamentalmente semelhante em toda
parte. Num país praticamente despovoado, a possibilidade de sobrevi-
vência do lavrador que conte apenas com a força do trabalho da unida-
de familiar, isto é, que não possua capitais para adquirir escravos, depen-
de de um ajustamento ao meio que lhe per mita a produção rápida dos
meios de subsistência. Na zona tropical, a adaptação inicial do lavrador
europeu só se podia dar pelo abandono das técnicas originais, inadequa-
das às novas condições, e a adoção do equipamento cultural indígena.
Para a reconstituição desse processo, que leva à perda cultural e à
adoção de técnicas de produtividade muito limitada, é interessante a
análise das transformações na tecnologia dos imigrantes alemães que se
estabeleceram no Sul do Brasil durante o século .
“Os primeiros anos do imigrante na mata virgem”, observa Wil-
lems, “caracterizam-se pela falta de capital e pela necessidade de obter,
pelo próprio trabalho e o da família, os meios que garantam a sobrevi-
vência biológica” (: ). Na impossibilidade de obter crédito, o imi-
grante sem recursos se via forçado a produzir o mais rapidamente possí-
vel o essencial à própria subsistência. Nessas condições, e num ambiente
físico tão diferente, era impossível empregar as técnicas da sua própria
cultura. Para derrubar a mata e obter, no menor espaço de tempo, uma
colheita mínima, era necessário utilizar as técnicas indígenas. “Quaisquer
trabalhos não estritamente necessários, como a remoção de tocos, a cons-

. A oposição entre agricultura de subsistência e grande lavoura, convém relembrar, não


corresponde à oposição entre grande e pequena propriedade. A economia de subsistência se
instala tanto em terras devolutas, criando a figura do posseiro, quanto em grandes proprie-
dades improdutivas, criando o ocupante e o agregado.


trução de cercas ou de casas mais sólidas, podiam redundar, como de fato
muitas vezes redundaram em fracasso completo” (id. ibid.). Assiste-se
portanto a um verdadeiro despojamento cultural.
Este trecho demonstra claramente a necessidade do emprego de
métodos primitivos na agricultura de subsistência, em regiões geral-
mente cobertas de mata, de população escassa, sem capital ou possibi-
lidades de crédito. A perpetuação dessas condições é função do pró-
prio tipo de povoamento. Onde a população continua esparsa e longe
de centros urbanos, é impossível encontrar compradores para os pro-
dutos agrícolas que justifiquem a utilização de técnicas mais intensi-
vas.6 Na ausência de mercados a produção se atrofia. A per manência
dessas condições leva à perda definitiva das técnicas mais produtivas
que vão desaparecendo do equipamento cultural das gerações seguin-
tes.7 O processo repete-se em épocas e em regiões as mais diversas.
Saint-Hilaire já o havia notado em suas for mas extremas quando afir -
ma haver encontrado, em Goiás, “descendentes de portugueses que,
refugiados nos desertos, chegam até a perder os mais elementares
princípios de civilização: as idéias religiosas, o hábito de contrair
uniões legítimas, o conhecimento da moeda e do sal” (Saint-Hilaire
op.cit.: , nota ).
Nas colônias alemãs, a conservação do equipamento tecnológico
original só se deu nas áreas onde levas sucessivas de migrantes permi-
tiram uma concentração maior de população. Disso resultou não só a
formação de pequenos núcleos urbanos e uma incipiente divisão do tra-
balho, como também a constante reintrodução de técnicas que os imi-
grantes mais antigos já haviam abandonado e em parte esquecido.
Sem isso, uma vez estabelecido o padrão de cultivo extensivo no
solo tropical, a rápida exaustão das terras e a abundância de mata virgem
levam à agricultura itinerante e ao nomadismo da população, que se torna
assim cada vez mais esparsa, perpetuando as condições que deram origem
à sua formação. Daí o processo de perda cultural, o caráter de cultura de

. “Superadas as dificuldades de seus primeiros anos, os imigrantes podiam voltar ao empre-


go de técnicas mais eficientes se achassem compradores para seus produtos. Na Colônia Feliz
(Rio Grande do Sul), os imigrantes alemães resolveram, em , trabalhar apenas dois ou
três dias por semana. A venda de milho e feijão mal lhes dera algumas patacas, preço esse que
não compensava nem o trabalho nem o transporte, dispendioso e difícil” (Willems : ).
. Sérgio Buarque de Holanda escreveu páginas muito esclarecedoras sobre a agricultura
predatória (: -ss, -ss). Ver também Candido .

 Comunidades rurais tradicionais


mínimos vitais, o aspecto de acampamento da habitação cabocla, a frag-
mentação constante das unidades domésticas e dos grupos vicinais.
O abandono ou a decadência de formas de exploração do solo vol-
tadas para o comércio exterior (quer a grande lavoura do algodão, da
cana-de-açúcar ou do café, quer a economia extrativa como a minera-
ção ou a borracha) freqüentemente levam a uma dispersão da população
que recria as condições de formação de economia de subsistência.
O processo pelo qual isto se dá é abundantemente documentado na
bibliografia relativa às comunidades rurais, como o estudo de Willems
sobre uma vila do Vale do Paraíba (Willems ), o de Harris sobre um
município do interior da Bahia (Harris ), ou o de Wagley sobre uma
comunidade amazônica (Wagley ).
Na análise do processo de transfor mação da comunidade de Itai-
pava, por exemplo, Willems mostra como o seu desenvolvimento no
século  se prendeu indiretamente à introdução do café no Vale do
Paraíba, por meio da expansão do tráfego pela estrada que corta o
município, e conseqüente aumento do mercado regional. Com a deca-
dência do café, única atividade capaz de produzir uma renda monetária
significativa, as comunidades do vale entram numa fase de estagnação,
o que provocou a decadência de toda a região entre o Paraíba e o lito-
ral. As comunidades rurais, sem mercado para seus produtos, tornam-
se cada vez mais auto-suficientes e isoladas. Predomina a pequena pro-
priedade, pela fragmentação das fazendas maiores e, na falta de capitais
e numerário, a organização do trabalho se baseia na solidariedade vici-
nal, expressa na troca de dias, para a produção quase exclusiva de
“mantimentos”. A vida urbana se atrofia.
Caracteriza-se, dessa maneira, o processo de constituição de uma
economia de subsistência. Como não há mercado, os produtos agrícolas
e mesmo a terra não têm valor econômico e são relativamente abundan-
tes. Por outro lado, como não há quem se disponha a comprar aquilo
que todos podem produzir, o dinheiro se torna raro e extremamente
difícil de obter; os salários e o preço dos produtos agrícolas são insigni-
ficantes. Todos os bens que vêm de fora tornam-se extremamente caros,
tanto em termos absolutos como, principalmente, em termos do ínfimo
padrão aquisitivo da população. Mas, como todos dependem de alguns
produtos que não podem ser obtidos localmente (como sal, tecidos,
armas e instrumentos de metal) o pouco numerário de que cada um dis-
põe é todo despendido na compra do absolutamente necessário, e é


mesmo insuficiente para a obtenção de tudo aquilo de que se precisa.
Cria-se assim uma situação de pobreza que se manifesta na construção
das casas, na quantidade e qualidade dos instrumentos e utensílios
domésticos, na roupa, isto é, na raridade de tudo aquilo que não possa
ser produzido diretamente com técnicas ao alcance de todos.
Itaipava apenas reproduziu o que aconteceu no Nordeste com a
decadência do açúcar, o que se passou em Minas Gerais e em São Paulo
após o declínio da mineração, o que ocorreu no Maranhão com o colapso
da agricultura do algodão, o que voltou a ocorrer em São Paulo na zona
abandonada pelo café. Assim, à população que jamais saiu da economia de
subsistência, soma-se a que retorna a ela após uma prosperidade efêmera.
Desse modo, o processo de povoamento do território brasileiro,
para além da área da grande lavoura, levou à exploração extensiva do
solo e à rarefação da população que, por sua vez, criaram condições de
pobreza cultural. Uma vez estabelecidas, essas condições tenderam a se
perpetuar.8 Sobre a base do patrimônio cultural comum, conservaram-
se, por toda parte, apenas as instituições indispensáveis à manutenção
de um nível vital mínimo e de um mínimo de sociabilidade como mos-
tra Antonio Candido no seu estudo sobre caipiras paulistas (Candido,
). Esse mínimo de sociabilidade se estabelece pelo parentesco e
compadrio como princípio de organização social, do mutirão e troca de
dias como for mas de cooperação econômica, configurando os grupos
de vizinhança que constituem a unidade por excelência da vida social
cabocla. Do ponto de vista econômico, essa população se apresenta
como um conjunto de produtores autônomos, que consome grande
parte do que produz e se insere marginalmente no mercado.9

. “A economia fechada não é particular a determinadas regiões mais atrasadas do país; por
toda parte se encontra, de mistura com as grandes propriedades de agricultura comercial,
chegando até a beira das grandes cidades, numa distribuição inteiramente irregular. Ainda
há meia-dúzia de anos às portas da metrópole que é São Paulo, caboclos viviam praticamen-
te em economia fechada em Santana do Par naíba, no Embu, em Guarulhos. Nos vales do
Paraitinga e do Paraibuna, na região da Serra de Botucatu, na zona de Itapetininga e muni-
cípios vizinhos, por toda parte é forte ainda o índice da agricultura de subsistência, e o esti-
lo de vida segue o mesmo esquema básico – salvo peculiaridades regionais – do que encon-
tramos no Nordeste seco, no médio São Francisco, na região serrana do Paraná e de Santa
Catarina e assim por diante” (Queiroz : ).
. Não há uma designação unifor me para esta população que se caracteriza pela produção
direta da subsistência (trata-se de produtores autônomos em uma economia quase fechada),
pela participação em uma ordem social tradicionalista e pela organização dos grupos locais >

 Comunidades rurais tradicionais


A crise desse sistema, provocada pela sua inserção numa economia
competitiva de mercado e pelo próprio adensamento natural da popula-
ção, é a maior responsável pela for mação das grandes correntes de
migrações internas que alimentam o crescimento das cidades.
O estabelecimento de outras relações de trabalho, como o colona-
to na cafeicultura paulista, mas especialmente a parceria ou meação em
todo o Brasil, que se colocam entre a economia de subsistência e um
verdadeiro proletariado agrícola, afiguram-se-nos como for mas inter -
mediárias que procuram aproveitar, em novas situações, os padrões de
vida comunitária e formas de organização do trabalho característicos da
população voltada para uma economia fechada. O colonato, na cafei-
cultura paulista, é a única forma de trabalho que envolve uma relação
mais complexa com o mercado. É essa análise que vamos apresentar.
Mais recentes e exteriores à economia tradicional são as for mas de
arrendamento capitalista. Em outras palavras, parece que a generalização
da economia de subsistência presidiu, no Brasil, a formação dos padrões
culturais próprios do trabalhador rural livre. É necessário que examine-
mos a estrutura das comunidades rurais tradicionais, que é o primeiro
passo para a análise das condições sob as quais se processa a migração.

Trabalho, família e vizinhança

A IMPOR TÂN CIA ECO NÔ MI CA DO GRUPO DOMÉS TI CO

Na análise da estrutura dos agrupamentos rurais, podemos partir da con-


sideração de que a vida comunitária se organiza sobre a base de unidades
relativamente autônomas – o grupo doméstico, formado por uma família.
Essa relativa autonomia dos grupos domésticos tem como funda-
mento a organização familiar da atividade produtiva.

> em comunidades vicinais. Antonio Candido prefere a designação “homem, cultura e


sociedade rústicas” (Candido : ), utilizando o termo “caipira” para demonstrar sua
variante paulista. Oliveira Vianna emprega as expressões “matuto”, “sertanejo” e “gaúcho”
para indicar as variantes mineira, paulista, nordestina e sulina do homem rural (Oliveira
Vianna : ). Mais geral é o termo “caboclo”, e seus correspondentes, cultura e socie-
dade cabocla, utilizados por Willems () e Wagley () entre outros. Preferimos em-
pregar o termo “sociedade rural tradicional”.


No Brasil rural, o trabalho agrícola foi e é, essencialmente, uma
atividade familiar. Excetuam-se apenas, no período colonial, o trabalho
escravo e, recentemente, uma reduzida proporção de verdadeiros pro-
letários agrícolas que encontramos em empresas capitalistas altamente
especializadas, como algumas usinas de açúcar.
Mas, mesmo hoje, quando são maiores as oportunidades de trabalho
para o indivíduo isolado, é comum que o contrato de trabalho envolva
todo um grupo familiar, representado pelo seu chefe. Para os produtores
autônomos (sitiantes, parceiros, posseiros), que não podem pagar assala-
riados (e antes não podiam comprar escravos), a família foi sempre a uni-
dade produtiva mínima, fora da qual não há vida econômica estável.
Aliás, os estudos sobre o Brasil sempre salientaram a importância
da família como unidade socioeconômica, mas atribuíram importância
fundamental à família patriarcal extensa como forma típica tradicional
de organização do grupo doméstico. Entretanto, os trabalhos de campo
apontam claramente a predominância da família conjugal na população
de trabalhadores rurais, entre os quais poderíamos esperar encontrar
preservadas formas tradicionais de organização familiar. Essa aparente
contradição entre os dados dos trabalhos de campo e o resultado das
análises sociológicas globalizadoras deve-se, ao que parece, ao papel
que a família das classes dominantes desempenhou como foco de aten-
ção dos estudos sociais. Os trabalhos sobre a sociedade brasileira tradi-
cional sempre acentuaram a dicotomia entre senhores e escravos como
base da organização social. Desse modo, a organização familiar se ca-
racteriza, de um lado, pela família patriarcal própria das classes domi-
nantes, de outro, pela ausência de família regular mente constituída na
plebe e na população escrava (Candido ; Buarque de Holanda ;
Freyre ; Oliveira Vianna  etc.). A família conjugal é concebida
geralmente como um desenvolvimento recente, conseqüência da urba-
nização. Entretanto, os estudos de comunidade realizados em diferentes
regiões do Brasil, assim como as dezenas de entrevistas que realizamos
com migrantes provenientes da zona rural, comprovam sobejamente a
predominância da família conjugal nas camadas inferiores da sociedade
rural, mesmo naquelas regiões onde persistem formas arcaicas de orga-
nização social.10 Formas mais complexas de organização familiar encon-

. Sobre a predominância da família conjugal na zona rural consulte-se, entre outros,
Araújo ; Costa ; Harris : -ss; Wagley : -ss; Willems : .

 Comunidades rurais tradicionais


tramos apenas nas áreas de colonização estrangeira, principalmente
japonesa e italiana (Saito ; Durham ).
Que a família conjugal não é conseqüência de transfor mações
recentes na estrutura da sociedade rural11 comprovam-no os relatos dos
viajantes que percorreram o país no século . Tanto Spix e Martius
quanto Saint-Hilaire, que exploraram tão extensamente o território
nacional, depararam, em toda parte, com ranchos e casas mais ou menos
isoladas, habitadas por um homem com sua mulher e filhos. As mesmas
observações repetem-se praticamente em todos os relatos de viagem.
Nesse sentido, as observações de Wagley sobre uma comunidade
amazônica traduzem uma situação que é nacional em sua extensão e que
apresenta uma extraordinária persistência no tempo.

Nas pequenas localidades e distritos rurais da Amazônia esse ideal da grande e


unida família brasileira é raramente alcançado. Como as pessoas são pobres,
não possuem as propriedades e os interesses econômicos que tendem a manter
unidos os grandes círculos de família. Os parentes mudam-se para outras cida-
des e perdem-se de vista. A gente pobre da cidade, o pequeno lavrador e o serin-
gueiro de Itá, têm famílias relativamente pequenas [...] A instabilidade econô-
mica gerou em Itá as frágeis relações conjugais, que se chocam essencialmente
com os ideais transmitidos pela tradição aristocrática (Wagley : ).

A ocorrência das famílias extensas, tão comuns em comunidades campe-


sinas, parece estar associada à necessidade de conservação de proprie-
dades economicamente suficientes, quando o solo é valioso ou escasso.
A constituição de grupos domésticos que são também grupos de des-
cendência (famílias extensas) impede a fragmentação da terra entre os
herdeiros. Mas, nas condições de vida da sociedade rural brasileira, espe-
cialmente no período de sua formação, o cultivo extensivo e a abundân-
cia de terras disponíveis, de pouco ou nenhum valor econômico, favore-
ceram, ao contrário, a dispersão dos filhos em busca de terras virgens.
Uma vez estabelecido, este padrão tendeu a se perpetuar. Não se
desenvolveu no Brasil, fora das comunidades indígenas, nenhuma for-
ma de propriedade coletiva do solo. Mesmo nos casos em que a proprie-

. A não ser no caso dos descendentes de imigrantes. Entre os italianos que se encaminharam
para a lavoura de café paulista, por exemplo, é possível comprovar a progressiva fragmenta-
ção das famílias extensas e sua substituição por famílias conjugais (Durham ).


dade já é exígua demais para novas subdivisões, caso freqüente hoje em
dia, o regime de “posse em comum”, muitas vezes adotado, é apenas
um expediente legal. Dentro da terra “em comum”, os diferentes her-
deiros cultivam separadamente parcelas individuais do terreno.12
A tendência à segmentação do grupo doméstico, que se dá quando
os filhos atingem a maturidade (e a atingem precocemente), assim como
o fenômeno correspondente de fragmentação da propriedade, são abun-
dantemente documentados nas nossas entrevistas. Quando se trata de
proprietários ou arrendatários, a independência dos filhos se manifesta
economicamente com a separação, pelo pai, de um pedaço de terra que
o jovem passa a cultivar por conta própria, e do qual controla o ren-
dimento. Alter nativamente, quando a terra é por demais escassa, ou
quando se trata de parceiros ou empregados, o jovem manifesta sua
independência ou arrendando terras por conta própria, ou estabele-
cendo um contrato de trabalho individual, ou migrando para outras
regiões. Como o casamento também ocorre muito cedo, esta fase coin-
cide geralmente com a formação de uma nova unidade doméstica que,
de preferência, passa a habitar residência separada.
Vê-se portanto como a tendência à segmentação da família corres-
ponde, de um lado, à fragmentação da propriedade pela sua divisão entre
os herdeiros, de outro, à fragmentação dos grupos locais pela migração
dos filhos em busca de acesso às terras. Manifesta-se assim, no processo
de constituição das famílias conjugais, o individualismo que per meia a
vida social, valorizando a independência do homem adulto.
Na verdade, essa independência nunca é total e nem sempre se rea-
liza sem conflitos. Especialmente nos casos em que o jovem trabalha em
terras do pai ou do sogro, é comum que se exija dele que continue a par-
ticipar do trabalho coletivo (pelo qual não recebe paga individual),
lavrando a terra da família de origem além da sua própria. Essa exigên-
cia é, aliás, um dos motivos que podem levar um novo casal a preferir
morar longe dos pais, conforme depoimentos dos informantes. Apesar
disso, é necessário admitir que a existência de padrões relativamente
rígidos de superordenação de gerações é concomitante à de padrões que
asseguram a independência dos adultos de sexo masculino, promoven-
do a fragmentação das unidades domésticas.13

. Sobre a terra “em comum” cf., entre outros, Willems : -ss e Harris : -ss.
. Para a comprovação censurária desse fenômeno na atualidade ver Costa Pinto : .

 Comunidades rurais tradicionais


A base da organização dos grupos de vizinhança é, portanto, a
família conjugal. Deste ponto de vista, o grupo local consiste no agru-
pamento de um certo número de famílias e as relações comunitárias se
apresentam como relações interfamiliares. Nesse particular, a organiza-
ção social não parece ter sofrido grandes alterações, pelo menos desde
o século .14

ORGA NI ZA ÇÃO E ESTRU TU RA DA FAMÍ LIA

Internamente, a família rural brasileira, hoje como antes, estrutura-se de


modo muito simples, em ter mos de subordinação das mulheres aos
homens e dos mais jovens aos mais velhos. Essa subordinação se exterio-
riza em atitudes de “respeito” dos filhos para com os pais, e da mulher
para com o marido. A característica fundamental do grupo conjugal é,
portanto, a dominação pater na.15 Cabem ao pai não só as decisões que
afetam o grupo como um todo, mas também aquelas que se referem a
cada um de seus membros, individualmente. Na expressão dos informan-
tes, “era meu pai quem decidia”; “até casar, nunca tive dinheiro de meu;
meu pai recebia por todos e dava a cada um o que precisasse”; “na roça,
trabalhávamos todos com meu pai, que dizia a cada um o que tinha que
fazer”; e assim por diante, entrevista após entrevista. É o pai, portanto,
quem dirige o trabalho e recebe a remuneração da atividade coletiva; é
ele que determina o modo de utilização da renda; cabe ainda ao pai a ini-
ciativa em todas as relações interfamiliais, quer se trate de trocar dias de
trabalho, convocar mutirão ou participar de festas religiosas. Aliás, é
necessário salientar que, se o jovem se torna independente ao atingir a
idade adulta (especialmente após o casamento), até esta fase permanece
completamente subordinado à economia doméstica de tal modo que o

. A exposição que se segue foi baseada em dados obtidos nas entrevistas com os migrantes
e na bibliografia sobre comunidades rurais. Achei desnecessário documentar bibliografica-
mente cada item, o que multiplicaria desnecessariamente as citações. Fi-lo apenas quando a
bibliografia é particularmente esclarecedora. Utilizei, principalmente Willems ; Willems
& Mussolini ; Harris ; Candido ; Castaldi ; Costa ; Araújo ; Wagley
; Queiroz ; Altenfelder Silva .
. Não é objetivo deste trabalho investigar a origem dos padrões que regulam a vida fami-
liar, mas parece fora de dúvida que o padrão de dominação masculina e todo o complexo
cultural a ele associado (a submissão da mulher, a importância da castidade pré-nupcial
feminina) derivam da família portuguesa, não demonstrando influência apreciável de ele-
mentos culturais indígenas ou africanos. Ver, a este respeito, Willems .


seu trabalho não conta como trabalho autônomo, mas apenas como ajuda
prestada ao pai.16 A dominância paterna não exclui, entretanto, certa ini-
ciativa e autonomia da mulher na execução das tarefas domésticas, que
deriva da divisão sexual de trabalho. Os padrões ideais da cultura rural
tradicional preconizam uma divisão de trabalho relativamente rígida,
que atribui ao grupo masculino (pai e filhos) a execução das tarefas
extra-domésticas, e tende a confinar os trabalhos femininos no âmbito da
casa. Desse modo, os filhos homens são considerados, junto com o pai, o
elemento produtivo por excelência do grupo doméstico. Caberiam às
mulheres (mãe e filhas) o cuidado da casa e dos membros não-produti-
vos da família (crianças, velhos e inválidos), o preparo de alimentos, a
confecção do vestuário. Caber-lhes-ia também o cuidado da criação de
quintal (aves e porcos) e da horta. Na expressão de Carlos Schmidt, “no
meio rural, as mulheres não trabalham nas roças, ou antes, o trabalho
feminino se dá em escala diferente da do masculino. A mulher fica em
casa ou trabalha perto dela a maior parte do tempo” (Schmidt : ).17
Na verdade esse padrão é antes ideal do que real, e a mulher é mão-
de-obra de reserva, que só tende a ser desligada das atividades agrícolas
quando as necessidades de trabalho são menores, quando o grupo mas-
culino é muito numeroso, ou quando é possível pagar assalariados. Isto
quer dizer que a restrição das atividades femininas aos afazeres domés-
ticos só é possível quando há diversos filhos ou adolescentes de sexo

. Nas entrevistas, o trabalho que o jovem realiza com o pai jamais é mencionado na des-
crição das atividades ocupacionais. A atividade agrícola só é incluída pelo migrante na
descrição da carreira quando é exercida como atividade autônoma, isto é, como trabalho do
indivíduo adulto. Isto parece indicar que as crianças e adolescentes não são considerados
como trabalhadores mas apenas como mão-de-obra familial.
. Deve-se também levar em consideração que a dominância masculina pode ser mais for-
mal que real. Observam-se freqüentemente casos em que as mulheres assumem a liderança
de um grupo doméstico ou mesmo assumem papéis tipicamente masculinos. É o caso, por
exemplo, de certas figuras femininas do cangaço, que combatiam ao lado dos homens. O mes-
mo fenômeno observa-se tanto no plano do real como no universo representativo (neste
caso, no folclore). Em um plano um pouco diferente, é o caso também das “virgens”, figu-
ras importantes de videntes nos movimentos messiânicos. Poder-se-ia supor, na base desses
exemplos, que à mulher é dado assumir papéis masculinos em situações especiais, e quando
não exerce a função de esposa. Os casos de líderes femininas parecem sempre referir-se a
viúvas, “companheiras” ou “virgens”, mas nunca a esposas. Creio que, quando casadas,
mesmo as mulheres de grandes iniciativas tendem a canalizar sua influência através dos
maridos. Nesse sentido, a dominação masculina parece constituir elemento essencial do
grupo doméstico regular e às mulheres é dado maior liberdade apenas fora dessa situação.

 Comunidades rurais tradicionais


masculino, ou quando a família é rica. Nas famílias pobres e pouco
numerosas, ou quando os filhos são ainda muito pequenos, o cuidado da
roça exige grande parte dos esforços dos membros adultos do grupo,
inclusive da mãe. Só nas famílias com muitos filhos, e assim mesmo
apenas em certa fase do seu ciclo de existência, é que se conseguem
manter os padrões ideais de divisão do trabalho, por meio dos quais se
realiza plenamente o tipo de vida socialmente preconizado. Nesse caso,
a libertação das mulheres do serviço de roça permite maior cuidado na
preparação dos alimentos e na confecção do vestuário, possibilitando
também a produção complementar de alimentos derivados da horta e da
criação doméstica. Enriquece-se a dieta, aumenta-se o conforto. Quando
a família é grande e conta com filhos e filhas, “vive-se com mais folga”;
“família grande adjutora mais, rompe mais para a frente”.18
É por isso que a família só se realiza plenamente como unidade
social por meio da prole numerosa, sem a qual é impossível manter
mesmo os padrões mínimos de conforto, tal como eles são definidos tra-
dicionalmente. É por isso também que a família conjugal não exclui, e
mesmo reclama, a cooperação interfamilial, que é indispensável em
diversas fases de seu ciclo de existência.
Esse fato é uma decorrência estrutural da organização do grupo
doméstico. Só as famílias extensas podem formar unidades relativamen-
te permanentes e estáveis, pois se renovam constantemente pela incor-
poração progressiva dos filhos ou filhas que se casam e dos respectivos
cônjuges. O grupo tende, portanto, a incluir sempre tanto adultos e
adolescentes quanto velhos e crianças. As famílias conjugais, ao contrá-
rio, são unidades de curta duração, que se constituem pela fragmentação
sucessiva de outras famílias e cuja organização varia durante o seu ciclo
de existência. Inicialmente for mada de dois adultos jovens de sexo
oposto, passa a incluir mais tarde também indivíduos imaturos e não
produtivos; só em fase posterior é que abrange adultos, adolescentes e
crianças, constituindo então (mas só então) um grupo relativamente
amplo e auto-suficiente de cooperação econômica. A partir desse mo-
mento, a família começa a se desintegrar pelo casamento dos filhos,
dando origem a outros tantos grupos que repetem o mesmo processo.
Na fase final, inclui apenas os cônjuges idosos, já pouco produtivos, que
nem sempre constituem uma unidade economicamente viável.

. Expressão dos informantes em entrevistas pessoais.


A fragmentação de um grupo doméstico é portanto um processo
inexorável, mas gradual, por causa da diferença de idade entre os filhos.
Por outro lado, as unidades desmembradas do grupo original estabele-
cem freqüentemente for mas estreitas de cooperação com a família de
origem, pelo menos até o seu desenvolvimento completo, quando con-
tam novamente com adultos e adolescentes, além de crianças. São as
dificuldades de produção das famílias com filhos pequenos que favore-
cem a per manência de relações de ajuda mútua com a família de ori-
gem. Na verdade, a estrutura da família conjugal só pode ser entendida
como um ciclo que envolve, nas suas diversas fases, processos centrípe-
tos e centrífugos. Economicamente, essas fases se caracterizam como
uma alternância de abundância e de carência de mão-de-obra.
Embora os padrões de cooperação interfamiliar assegurem uma
passagem relativamente fácil entre as diferentes fases do ciclo, não há
padrões que possam evitar a desorganização que ocorre necessariamen-
te nos casos relativamente freqüentes de morte precoce, abandono ou
incapacidade de um dos cônjuges. A integração funcional da família e a
interdependência entre pai, mãe e filhos evidenciam-se particularmente
nesses casos de desorganização da unidade doméstica.
A morte ou incapacidade do pai, por exemplo, provoca quase que
necessariamente a dispersão da família e incorporação dos membros
em outras unidades domésticas. O grupo só poderia sobreviver como
unidade quando houvesse filhos adultos, pois a mãe não conseguiria
exercer as atividades domésticas e produtivas simultaneamente, a não
ser em casos excepcionais. Mas, mesmo neste caso, é comum a desor-
ganização do grupo, pois a figura do pai envolve uma posição de auto-
ridade que raramente um irmão pode assumir sem criar conflitos e res-
sentimentos que tendem a fracionar a família. Nesse sentido, a mãe é
mais facilmente substituída por uma irmã mais velha. Ainda assim,
quando há muitas crianças, a morte da mãe em geral ocasiona a distri-
buição dos filhos entre parentes. Em outros casos, é o casamento sem
demora do cônjuge viúvo que recompõe o grupo doméstico, embora
essa solução não exclua a dispersão de pelo menos parte dos filhos do
leito anterior.
A freqüência com que encontramos hoje em dia famílias que in-
cluem parentes mais distantes como parte do grupo doméstico (em
geral avós, sobrinhos, tias ou netos) não pode ser interpretada como
sobrevivência ou resquício de famílias extensas, que teriam existido em

 Comunidades rurais tradicionais


épocas mais remotas. Ao contrário, é manifestação da organização con-
jugal do grupo doméstico que, representando unidade social mínima,
não pode existir a não ser quando completo.
Evidencia-se dessa maneira uma fonte per manente de tensões e
instabilidade na organização dos grupos rurais, que deriva da instabili-
dade estrutural da sua unidade social elementar, a familiar conjugal.
Assim, à integração baseada na interdependência econômica e na dife-
renciação de papéis, que torna a família conjugal uma unidade tão coesa,
opõe-se a instabilidade que deriva dessa própria interdependência.
Essa instabilidade do grupo doméstico, que se fragmenta e se
recompõe incessantemente, estando constantemente ameaçado de desin-
tegração por acidentes que ocasionem a morte ou incapacidade de um
dos cônjuges, exige um grupo mais amplo de solidariedade. Encontra-
mos, por toda parte, grupos de vizinhança mais ou menos integrados
que, como observa Antonio Candido, constituem

agrupamento básico, a unidade por excelência da sociabilidade rural. Aquém


dele, não há vida social estável, e sim o fenômeno ocasional do morador iso-
lado, que tende a superar este estado, ou cair em anomia; além dele, há agru-
pamentos complexos, relações mais seguidas com o mundo exterior, caracte-
rísticas de uma sociabilidade mais rica. Ele é a unidade em que se ordenam as
relações básicas da vida caipira, rudimentares como ele. É um mínimo social,
equivalente no plano das relações ao mínimo vital representado pela dieta...
(Candido : ).19

O GRUPO LOCAL

As informações contidas nas entrevistas com migrantes rurais já estabe-


lecidos na cidade não fornecem uma visão precisa da natureza dos agru-
pamentos que congregam as diferentes famílias conjugais. Os migrantes
limitam-se a dizer que na zona de origem “conheciam todo mundo”,

. Antonio Candido () utiliza a palavra “bairro”, de uso corrente em São Paulo, para
designar o grupo de vizinhança, tal como ocorre na área paulista. Castaldi () emprega o
mesmo termo para o grupo que estudou em Minas Gerais. Como o termo não é de uso cor-
rente em outras áreas, prefiro empregar a designação mais ampla de “grupo de vizinhança”
ou “grupo local”.


“tinham lá muitos parentes e amigos”, “juntavam os vizinhos para o
mutirão”, “encontravam os parentes e os amigos nas festas”. Esse tipo
de infor mação denota uma certa fluidez das relações sociais, mas não
exclui (e mesmo implica) a existência de grupos de vizinhança relativa-
mente per manentes. Mas os componentes desses grupos, as famílias
conjugais, são unidades relativamente autônomas, e as relações grupais
se apresentam portanto como relações interfamiliais. A análise desses
agrupamentos pode ser empreendida com a ajuda da bibliografia, per -
mitindo a elucidação das infor mações algo imprecisas e fragmentárias
prestadas pelos migrantes.
Economicamente, o grupo local se apresenta como unidade de
cooperação interfamilial. Como observa Antonio Candido, o mato que
recobre o solo e a técnica da queimada tornam extremamente precária a
ocupação num estado de completo isolamento, “enquanto é pratica-
mente impossível a um lavrador que só dispõe da mão-de-obra domés-
tica dar conta do ano agrícola sem cooperação vicinal” (Candido :
). Criam-se assim os grupos de vizinhança.
Mas se, de um lado, é bastante difícil a exploração do solo por
famílias isoladas, de outro, a extensão das terras necessárias a cada
grupo de vizinhança, pela necessidade de explorar continuamente ca-
poeiras altas ou terras virgens, parece tornar antieconômica a formação
de unidades muito amplas ou muito densas. Favorece-se deste modo a
fragmentação dos grupos de cooperação econômica em outras unidades
independentes do mesmo tipo. A esse fenômeno, que se processa no
nível do grupo de vizinhança, corresponde a fragmentação das unida-
des domésticas.
Os novos grupos de vizinhança freqüentemente se for mam com
elementos de diversos núcleos mais antigos.

PAREN TES CO E COM PA DRIO

O parentesco e o compadrio, relacionando as unidades domésticas entre


si, constituem os princípios fundamentais de organização dos grupos de
vizinhança.
Ao passo que a família elementar define um grupo fortemente
integrado em termos de divisão do trabalho e de solidariedade, o paren-
tesco se apresenta como um sistema bilateral que não dá origem a gru-
pos sociais definidos e permanentes.

 Comunidades rurais tradicionais


As relações de parentesco mais importantes, que criam laços rela-
tivamente estáveis, são aquelas que derivam diretamente da família
elementar, isto é, as relações entre pais e filhos e entre irmãos. Essas
relações se apresentam como extensão da solidariedade do grupo do-
méstico (na medida em que persistem mesmo após a segmentação da
família de origem) e se manifestam em obrigações amplas, mas mal
definidas, de ajuda mútua e de amparo em qualquer situação de crise.
Apesar da dominação paterna na família, a bilateralidade do siste-
ma tende a igualar parentes maternos e paternos que ocupam posições
simétricas em relação ao grupo conjugal. Isto se verifica, por exemplo,
na ambilocalidade das novas famílias. São as contingências do momento
que determinam o local de residência dos novos casais, e a conseqüente
absorção no círculo de relações de um ou outro cônjuge. Os noivos, em
geral, passam a residir perto da família de origem que conte com maior
disponibilidade de terra ou maior necessidade de braços. Nessas condi-
ções, as relações com o sogro e com os cunhados podem substituir as
relações com pais e irmãos, com as quais são identificadas. Por outro
lado, o desejo de independência dos jovens, ou a falta de terra, podem
levar igualmente a um deslocamento espacial e à residência junto a pa-
rentes mais afastados.
Para além do grupo restrito de pais e irmãos, o sistema define um
círculo mais ou menos amplo de parentes mais distantes (tios, sobri-
nhos, primos) para quem as mesmas obrigações gerais de solidariedade
se impõem com rigidez decrescente. Na verdade, o parentesco não defi-
ne grupos sociais necessários, mas estabelece um círculo de relações
pessoais preferenciais (reais ou potenciais), que é mobilizado conforme
as necessidades e interesses dos indivíduos. A concretização dessas rela-
ções potenciais depende assim da proximidade física, da simpatia e afi-
nidade entre as pessoas, e das possibilidades e necessidades econômicas
de cada um num momento determinado.20
A própria instabilidade dos agrupamentos (em que é constante a
mobilidade dos membros) contribui para que o parentesco não defina
relações sociais necessárias, o que só seria possível em comunidades

. A concretização dessas relações per mite distinguir, às vezes, conjuntos de família que
Antonio Candido denomina “blocos” (: -ss). Mas encontramos também, freqüente-
mente, uma tal multiplicação de laços de parentesco que o grupo local pode ser considerado
como um grupo de parentes (Castaldi : , , ). Os “claros” deixados pelo parentes-
co são, freqüentemente, preenchidos pelo compadrio (id. ibid.: -ss).


estáveis. Mas, estabelecendo um círculo amplo de relações pessoais que
extravasam os limites dos grupos de vizinhança, ele serve inclusive de
instrumento de mobilidade, pois os parentes constituem pontos de apoio
para o entrosamento possível em grupos de vizinhança diferentes.21
Assim mesmo, os vínculos de parentesco mais estreitos constituem
os laços de solidariedade mais fortes na organização do grupo de vizi-
nhança. Como nota Antonio Candido, em São Paulo, o

bairro, com efeito, podia ser iniciado por determinada família, que ocupava e
estabelecia as bases de sua exploração e povoamento. Com o tempo atraía
parentes, ou filhos casados se estabeleciam, bem como genros etc. E o apare-
cimento de novos bairros era, não raro, devido a subdivisões da propriedade,
numa paragem sobrecarregada de herdeiros, alguns dos quais buscavam opor-
tunidades no sertão, onde formariam novos bairros (Candido : ).

Nesse campo difuso de relações primárias, o compadrio é uma institui-


ção fundamental. Estabelecido em base voluntária, o compadrio de um
lado assinala relações preferenciais entre parentes, e de outro estende os
limites da solidariedade interfamiliar, criando laços de parentesco ritual.
O compadrio22 per mite, desse modo, validar e criar relações de paren-
tesco, o que constitui um fator importante na estruturação de relações
sociais em agrupamentos caracterizados pela mobilidade dos membros,
como é o caso dos bairros caipiras.23 Concebidas sobre o modelo das re-
lações vigentes na família nuclear, as relações estabelecidas pelo compa-
drio reproduzem os laços de solidariedade mais fortes que a cultura cabo-
cla é capaz de formular. De um lado, o compadrio provê a criança de pais
substitutivos. De outro, pelo inter médio da criança, estabelece entre
compadres relações semelhantes às entre irmãos. Desse modo, o compa-
drio não é apenas um seguro social para a criança mas, e talvez principal-
mente, é uma relação entre adultos que se estabelece por inter médio da
criança. A importância desse aspecto do compadrio e a natureza da rela-

. Richard Adams aponta a generalidade desse sistema de relações na América Latina, mos-
trando ao mesmo tempo a utilidade de um sistema com essa flexibilidade em condições de
mobilidade espacial e social (Adams : -).
. Não utilizamos no trabalho a distinção proposta por Candido () entre compadrio e
compadresco; designamos por compadrio a totalidade da instituição e das relações sociais
que ela pressupõe.
. Ver também Wagley : -ss; Harris : -ss.

 Comunidades rurais tradicionais


ção entre compadres se manifestam de modo muito claro no fato de que
relações sexuais entre compadres são concebidas como incestuosas, o
que comprova a assimilação da relação entre compadres à entre irmãos.
Em certo sentido, o compadrio corresponde a um modelo inverti-
do da família conjugal. Enquanto nesta é um progenitor comum que
cria a relação entre irmãos, naquele uma relação entre irmãos (compa-
dres) é criada por adultos que se consideram pais (pai-padrinho) da
mesma criança (filho-afilhado). Se os irmãos são prescritos, os compa-
dres são escolhidos voluntariamente, e a relação se cria por meio de um
rito apropriado. Desse fator decorre, inclusive, a enor me importância
do compadrio numa sociedade marcada pela mobilidade e pelas rela-
ções pessoais, e tão pobre de princípios organizatórios. Esta importân-
cia se manifesta na multiplicação das formas rituais de estabelecimento
do compadrio, cuja função parece ser justamente a de estender ao máxi-
mo as possibilidades de relacionamento que a instituição oferece.
Assim, além dos três padrinhos necessários para as cerimônias de batis-
mo e crisma, aparecem madrinhas de carrego e de apresentação (Castal-
di : -), duplicação da cerimônia de batismo, pela família e pelo
padre (Queiroz : ), padrinhos de casamento e, inclusive, formas
de compadrio por afinidade, caso em que um cônjuge incorpora padri-
nhos e compadres de outro (Castaldi : -).
É importante notar que, como o parentesco, o compadrio cria rela-
ções estáveis, mas que podem ser antes virtuais do que reais. As viagens
e as mudanças separam parentes e compadres às vezes durante anos, às
vezes per manentemente. Mas o vínculo continua, em estado latente, e
pode ser reativado a qualquer momento. Por isso mesmo, parentesco
e compadrio se mantêm como tipos fundamentais de relações sociais
mesmo quando as transfor mações da sociedade nacional destroem as
comunidades enquanto grupos locais organizados, dispersando seus
membros nas fazendas. Na expressão de um infor mante, referindo-se
aos irmãos dispersos nas fazendas: “De vez em quando a gente manda-
va notícias; podia passar muito tempo sem se ver, mas, mesmo separa-
dos, continuava a mesma coisa. Se um encontrasse outro, era a mesma
coisa que quando estavam juntos antes”.
Na verdade, nem o parentesco nem o compadrio são capazes de
estruturar rigidamente a comunidade rural tradicional. Nem uma nem
outra instituição chegam a definir grupos mais amplos que a família
conjugal, que sejam capazes de agir coletivamente em situações social-


mente definidas. O parentesco limita-se a criar uma área de relações
preferenciais. O compadrio estabelece apenas vínculos recíprocos entre
as pessoas, duas a duas. Em ambos os casos, encontramos apenas um
conjunto de relações diádicas entre unidades autônomas.
Além desses laços, apenas a proximidade física, a simpatia pessoal
e a experiência comum de auxílios recíprocos, a familiaridade que brota
de convivência, se apresentam como fatores de solidariedade. Não há
institucionalização da chefia. O que existe é a liderança que decorre das
qualidades pessoais, da riqueza, ou da experiência individual e se mani-
festa como capacidade de exprimir o consenso coletivo. A simplicidade
da estrutura e a forma fluida da organização parecem constituir as
características fundamentais das comunidades rurais brasileiras.

INDI FE REN CIA ÇÃO ECO NÔ MI CA , PER SO NA LIS MO E INDI VI DUA LIS MO

Os estudos recentes sobre povos primitivos têm chamado a atenção


para o fato de que a persistência dos sistemas sociais e o controle dos
conflitos interpessoais prendem-se a uma complexa ordenação das rela-
ções sociais. Nas comunidades rurais brasileiras, pelo contrário, não há
princípios estruturais aos quais se subordine a independência das famí-
lias, como não há hierarquia que fundamente a autoridade, a não ser
aquela que deriva da própria estrutura da família conjugal: a divisão por
sexo e idade. A organização social se fundamenta, por conseguinte, na
reciprocidade direta entre elementos equivalentes.
A indiferenciação social e a simplicidade da cultura estabelecem
um tipo de cooperação entre iguais, que realizam conjuntamente tarefas
semelhantes. Essa independência do homem adulto realiza-se inclusive
pela fragmentação constante da unidade doméstica em novas famílias
conjugais, constituindo outras tantas unidades equivalentes. A extensão
da solidariedade para além da família se manifesta apenas em uma reci-
procidade direta e imediata.
Por outro lado, a ausência de diferenciação social e a homogenei-
dade essencial das unidades constitutivas do grupo de vizinhança, criam
laços de natureza eminentemente personalista. Como mostra Maria Sylvia
Franco, em sua análise tão penetrante da sociedade rural paulista tradi-
cional, na ausência de diferenciação social os indivíduos se enfrentam em
sua inteireza, sendo reconhecidos como personalidades e não como
“objetivação de um conjunto de papéis e posições sociais que pesam de

 Comunidades rurais tradicionais


maneira dissociada nos diferentes momentos de sua existência” (Franco
: ). Daí, evidentemente, o conteúdo afetivo que caracteriza as
relações sociais, e se manifesta tanto na violência, tão freqüente na vida
comunitária, como na prestatividade e nas formas espontâneas de auxílio
mútuo. É por isso que as afirmações de Sérgio Buarque de Holanda para
a sociedade brasileira tradicional traduzem tão bem a realidade rural.

Em sociedade de origens tão nitidamente personalistas como a nossa, é com-


preensível que os simples vínculos de pessoa a pessoa, independentes e até
exclusivos de qualquer tendência para a cooperação autêntica entre os indiví-
duos, tenham sido quase sempre os mais decisivos [...].

Economicamente, esse personalismo das relações sociais se manifesta nas


formas de auxílio mútuo. Na pobreza social das formas coletivas de ação,
destaca-se o mutirão como uma das poucas instituições de plena partici-
pação do grupo vicinal mais amplo. Mas mesmo no mutirão não ocorre,
a não ser excepcionalmente, um esforço cooperativo que implique a divi-
são e interdependência das tarefas, mas uma justaposição de atividades
equivalentes e independentes: é antes trabalho “associado” que trabalho
“dividido” (Candido : ). A divisão do trabalho, quando existe, é a
que caracteriza as unidades familiais: a baseada no sexo e na idade.
Deste modo, a não ser em atividades muito delimitadas (como no
mutirão para a conservação dos caminhos) o trabalho coletivo não cria
laços coletivos, mas manifesta apenas o conjunto de obrigações recípro-
cas que unem as pessoas, duas a duas. Manifestação ainda mais típica
dessa ordenação é o costume de troca de dias, que coexiste com o muti-
rão e sobrevive onde quer que este entre em decadência.24
Essa fluidez da organização social, que se caracteriza internamen-
te pela reciprocidade restrita própria das relações diádicas, manifesta-se
também na imprecisão dos limites do grupo de vizinhança marcado pela
mobilidade das unidades constitutivas. Os laços de solidariedade que
unem os membros da comunidade entre si são os mesmos que unem
membros de comunidades diferentes. O parentesco e o compadrio ex-
travasam o grupo local, relacionando seus componentes com outras
unidades territoriais, facilitando a mobilidade de um grupo para outro.

. Sobre as práticas de assistência mútua consultar também H. Galvão .


O grupo local possui portanto uma organização fluida, e seus limites
freqüentemente não são bem determinados, quer no espaço, quer no
tempo. Na dimensão espacial, os grupos locais podem subdividir-se em
grupos de vizinhança ou agrupar-se em unidades maiores para atividades
especiais, como festas religiosas, mantendo freqüentemente relações inter-
vicinais baseadas em laços de parentesco ou compadrio. Na dimensão tem-
poral, o núcleo pode ganhar ou perder população devido à mobilidade dos
membros, evoluir para povoados e vilas, ou se desagregar e desaparecer.
Apenas as atividades lúdico-religiosas aparecem como manifesta-
ções mais plenas da comunidade como um todo. O culto, que freqüen-
temente envolve cerimônias sacras e profanas bastante complexas,
constitui uma das atividades mais organizadas da vida social cabocla.
A realização de um ciclo anual de festejos religiosos só é possível pela
constituição de uma associação relativamente diferenciada. As distintas
atividades necessárias para a organização das cerimônias são institucio-
nalizadas, dando origem a uma hierarquia de posições e de tipo de par-
ticipação na vida religiosa. Comumente podem-se distinguir o capelão
leigo, responsável pela organização do aspecto propriamente religioso
do culto, festeiros e mordomos encarregados da parte profana das festi-
vidades, “irmãos” que se comprometem a auxiliar economicamente o
culto (e que são freqüentemente divididos em categorias de acordo com
o montante da contribuição) e público em geral.25
Mesmo o terreno das manifestações religiosas não deixa de refletir,
em parte, o personalismo e o individualismo das relações comunitárias.
Além do culto do padroeiro local, que constitui a manifestação por
excelência da vida coletiva, os demais aspectos da vida religiosa se apre-
sentam como uma relação diádica entre o devoto e um santo particular.
A forma nor mal de estabelecer a relação com o sobrenatural é a pro-
messa, um contrato entre o crente e a divindade, que manifesta plena-
mente o mesmo caráter de reciprocidade direta característico das relações
entre pessoas de famílias diferentes.26
É importante notar, também, que mesmo a atividade religiosa cole-
tiva não corresponde estritamente aos limites do grupo local. A associação
que mantém o culto (ou irmandade, como é geralmente denominada) é

. Sobre variações na organização do culto ver, entre outros, Candido : -ss; Costa
: -ss; Wagley : -ss; E. Galvão ; Pierson : -ss.
. Ver a esse respeito E. Galvão .

 Comunidades rurais tradicionais


uma instituição voluntária da qual não participam necessariamente todos
os moradores. Ela pode congregar indivíduos de grupos locais diferen-
tes, assim como é possível que exista mais de uma irmandade no mesmo
território. Por outro lado, a diferenciação da comunidade religiosa é res-
trita aos objetivos do culto, e não cria necessariamente laços permanentes
que permitam estruturar as demais atividades sociais. Além disso, a ativi-
dade religiosa não constitui uma atividade puramente comunitária. Ao
contrário, ela é uma das atividades que relacionam a comunidade local à
sociedade mais ampla. Apesar de relativamente independente da Igreja
Católica, é nesta que a religiosidade local encontra não só os modelos de
crença e culto, como também sua justificação última. Nesse sentido, ela
sofre a influência e se prende a uma instituição que extravasa de muito o
âmbito local e cria laços difusos, mas necessários, com a sociedade global.
As atividades lúdico-religiosas, que exprimem e reforçam a solida-
riedade dos grupos locais, são portanto antes conseqüência que causa da
unidade desses grupos. Elas se desenvolvem naqueles agrupamentos
onde a longa ocupação de um mesmo território permitiu o adensamen-
to da população e das relações sociais. Nessas condições, multiplicam-
se os laços da rede complexa de relações de parentesco e compadrio,
que unem de forma mais coesa a totalidade dos ocupantes de território;
ao mesmo tempo, a longa história de uma vida comum, a memória de
favores prestados e recebidos e a intimidade que nasce da familiaridade
propiciam uma vida coletiva mais rica; mas não se introduziram novos
princípios de organização social, e o grupo ainda se concretiza como
simples adensamento de relações diádicas que extravasam sempre os
limites territoriais da vizinhança.

As bases da dependência

As comunidades do tipo acima descrito possuem extraordinária difusão


e per manência no Brasil rural. Quanto aos seus princípios estruturais,
não parecem ter sofrido grandes modificações desde o fim do período
colonial até os dias de hoje. A própria simplicidade da sua organização
per mite que tais agrupamentos se ajustem a condições relativamente
variadas de ocupação do solo.
A transfor mação dessas comunidades, que presenciamos moder -
namente, prende-se antes a mudanças que se processam na sociedade


que as envolve do que a uma evolução “inter na” de sua estrutura.
Desse modo, é necessário, para entender a natureza da crise que se
manifesta na sociedade rural, analisar o modo tradicional de inserção
dessas comunidades nas estruturas mais amplas.
A inserção das populações rurais tradicionais em sistemas socio-
políticos mais amplos e diferenciados não destrói necessariamente as
características fundamentais da organização dos grupos de vizinhança.
Muito ao contrário, sobrepõe-se a ela, por meio da elaboração de
padrões de dominação próprios de um sistema patrimonialista.

DEPEN DÊN CIA E POBRE ZA CUL TU RAL

Na verdade, essas comunidades nunca são (nem foram) completamente


isoladas e auto-suficientes, e a dependência que manifestam em relação
ao mundo exterior é o fundamento da sua integração na sociedade
nacional. Essa dependência se manifesta inicialmente na própria adapta-
ção ecológica. A relação do trabalhador rural com seu ambiente sempre
dependeu de um mínimo de utensílios e bens de consumo que só podiam
ser produzidos em uma economia diferenciada: quanto mais não fossem,
armas, utensílios de metal e sal. Os instrumentos fundamentais para a
exploração do ambiente, de um lado o machado e a enxada, de outro
a espingarda e o facão, não são produzidos localmente. Aliás, grande
parte de seu equipamento material, mesmo quando de fabricação do-
méstica, é de réplicas simplificadas de elementos provenientes de siste-
mas socioculturais mais complexos: é o caso do monjolo, da prensa de
cana, mesmo do vestuário e, em parte, do modo de preparo dos alimen-
tos. Tal dependência não impede o isolamento, mas impõe limites ao dis-
tanciamento cultural das sociedades tecnologicamente mais complexas.
As comunidades rurais, mesmo as mais isoladas, diferem funda-
mentalmente, por essa característica, das comunidades indígenas, porque
seu equipamento cultural jamais lhes permitiu uma verdadeira auto-sufi-
ciência. Essa dependência existe inclusive no universo representativo que
tem como centro o catolicismo. Em que pesem as modificações locais e as
influências negras ou ameríndias, os valores, a concepção do sobrenatu-
ral, e mesmo a etiqueta das relações interpessoais derivam de concepções
difundidas da sociedade brasileira diferenciada. As comunidades rurais
só podem ser entendidas como parte de um universo mais amplo. Por isso
é extremamente significativa a análise de Antonio Candido da cultura

 Comunidades rurais tradicionais


caipira como “cultura empobrecida”: “na cultura e na sociedade caipira
há não apenas permanência dos traços que se estabeleceram como míni-
mo social mas retrocesso, perda de for mas mais ricas de sociabilidade e
cultura, por parte dos que se iam incorporando nela a partir de grupos
mais civilizados” (Candido : ). O que per mite a per manência da
população nesse nível não é só o isolamento, mas também o contato, por
meio do qual ela participa, de forma indireta ou “empobrecida”, de cul-
turas e sociedades mais complexas. É essa participação que lhe per mite
ser tão simples e pobre, pois, se tivesse que produzir tudo aquilo de que
necessita, provavelmente desenvolveria uma vida social mais complexa,
menos dependente e mais auto-suficiente.

O ACES SO À TERRA E A DESI GUAL DA DE SOCIAL

A questão da dependência em que se encontram as comunidades ante a


sociedade global se manifesta de modo mais direto e imediato no pro-
blema do acesso à terra.
Em condições de grande isolamento e rarefação de população, o
caboclo é antes um ocupante que um proprietário, pois o acesso à
terra, que é abundante e não tem valor econômico, não se coloca em
ter mos legais. É nesses casos que o trabalhador rural é mais livre, pois
sua dependência se manifesta apenas na manutenção de uma relação
mínima e marginal com o mercado, por meio de um sistema precário
de trocas. Mas a criação dos latifúndios fundamenta os padrões de pro-
priedade e dominação, integrando necessariamente o trabalhador rural
tradicional no sistema político nacional.
Dos dois sistemas tradicionais de aquisição de terra, a sesmaria e a
posse, o primeiro depende da participação no sistema político-adminis-
trativo nacional e favorece o fazendeiro; o segundo depende da ocupa-
ção efetiva, e favorece o posseiro. Mas, no jogo dos interesses por áreas
de terra particulares, a possibilidade de manipular politicamente as ins-
tituições administrativas sempre prevaleceu sobre os direitos de ocupa-
ção efetiva do posseiro sem proteção legal. A garantia da legalização da
posse depende, em grande medida, de uma “proteção” de grandes pro-
prietários ou “coronéis”.
A posse da terra depende do poder político e é, ao mesmo tempo,
o seu fundamento. De um lado, o poder e o prestígio do grande fazen-
deiro repousam no número de homens que ele possa controlar. De outro,


a posse de grandes glebas depende da possibilidade de manipular as for-
ças políticas de âmbito nacional que detêm o controle da legalização das
propriedades. Esse sistema favorece portanto a constituição e perpetua-
ção de um número relativamente pequeno de famílias poderosas, que
detêm o poder e possuem a terra. O sistema assim definido se estabelece
plenamente após a independência, quando a instituição do voto estrutu-
ra essas relações no plano político, e sitiante e posseiro ou agregado se
transformam em eleitores.27
Essa situação é muito bem ilustrada na análise que Maria Isaura
Pereira de Queiroz desenvolve da ocupação de região do Contestado
(entre o Paraná e Santa Catarina). Esta região foi procurada, no fim
do século , por algumas famílias de grandes fazendeiros vindos do
estado do Paraná, de onde se retiraram por questões políticas. Instalaram-
se numa região escassamente povoada por posseiros.

Ser o primeiro a chegar nas terras para assegurar sua propriedade e as distri-
buir entre outros homens, eis o que fazia o poder político de um grande chefe;
quanto mais terras tivesse um coronel, mais vassalos poderia ter, e quanto mais
vassalos tivesse nas suas terras, mais prestígio teria (Queiroz : -).

Essa ocupação inicial repousa, em grande parte, na força que deriva do


controle de um bando armado, e é um ato de violência. Depende, por-
tanto, de relações de dominação anteriores à ocupação. Instalados os
grandes fazendeiros, a legalização da situação, tanto para eles como para
os ocupantes anteriores (os posseiros), passa a depender da manipulação
das instituições políticas que os próprios fazendeiros estabelecem.

O grande proprietário ou o ‘posseiro’ podiam então pedir a legalização de sua


propriedade depois de alguns anos de posse pacífica, quer dizer, sem título, mas
também sem ter sido objeto de um litígio. Para que o título de propriedade fosse
dado ao grande proprietário, era necessário que ele estivesse em bons termos
com o gover no do estado, senão sua demanda se eter nizaria nas gavetas buro-
cráticas ou seria recusada. Para os agregados e posseiros, tudo dependia de suas
boas relações com o chefe político local; se eles fossem amigos, o título seria
dado sem dificuldade, desde que o chefe local gozasse das boas graças do gover -

. Sobre esta questão consultar principalmente Leal , em especial o cap. . Ver também
Oliveira Vianna .

 Comunidades rurais tradicionais


no, e isto mesmo sem as formalidades exigidas pela lei... mas se suas relações
fossem más, nenhuma prova de ocupação efetiva das ter ras seria suficiente, e
ele terminaria por ser expulso, apesar de seus direitos (Queiroz : -).

Desse modo, não só os homens livres sem terra, mas também os peque-
nos proprietários, tornam-se dependentes do grande fazendeiro, que é a
pessoa que garante o acesso à terra.
Assim, o estabelecimento do grande fazendeiro implica a implanta-
ção do poder político, que o fazendeiro controla, e ante o qual o caboclo
necessita de proteção. Ele obtém essa proteção aliando-se ao fazendeiro,
e a paga com lealdade pessoal. A relação é eminentemente personalista,
pois o acesso à terra (quer como parceiro, quer como proprietário)
depende da “boa vontade” do patrão, isto é, da natureza das relações
pessoais entre patrão e agregado. Cria-se uma relação social diádica
assimétrica que envolve a totalidade das pessoas e que implica, de um
lado, prestação de serviços, pagamento em espécie e lealdade; de outro,
proteção político-administrativa e fornecimento de terra.

A NATU RE ZA DA DESI GUAL DA DE

É importante notar que essa diferenciação social não se determina neces-


sariamente no plano econômico como diferença no nível de vida, nem no
plano cultural como diferença marcada de padrões de comportamento.
É comum, no testemunho dos viajantes que percorreram o sertão brasi-
leiro (“sertão” aqui correspondente às áreas economicamente margi-
nais), a observação da semelhança das condições de vida que une cabo-
clos remediados e pobres, e mesmo aproxima fazendeiros e agregados.
Nas regiões economicamente marginais, a parte da produção comerciali-
zada é sempre restrita, e as necessidades tendem a se igualar no nível da
subsistência. Persistem apenas, como manifestação de diferenciação
social, o tamanho (mas não a qualidade) da casa, a possibilidade de con-
sumo conspícuo (em festas, na hospitalidade ampla), e no acesso a artigos
de luxo, exibidos em ocasiões socialmente determinadas (como a qualida-
de de animais de montaria, arreios e vestuário usados nas festas).
Subjacente, pois, à diferenciação social que implica relações de
dominação, há um elemento de igualdade que é importante na caracteri-
zação desse universo de referência. Investigando a natureza das relações
entre fazendeiro e sitiante, Maria Sylvia Franco Moreira mostra que


não só no tratamento costumeiro, como na representação consciente do fazen-
deiro, o sitiante era “pessoa”, ao contrário do escravo. O reconhecimento
dessa qualidade se reforça, quando se faz ver que o tipo de ajustamento elabo-
rado entre eles mediante a dominação pessoal mobiliza fundamentalmente os
atributos requeridos e indispensáveis para a participação em uma associação
moral. (Moreira : )

Isso é tanto mais verdade quanto a relação entre fazendeiro e sitiante se


alicerça freqüentemente no próprio parentesco, pois a diferença entre
grande e pequeno proprietário decorria muitas vezes das particularida-
des e acidentes da divisão de terras pela herança. A posse de um ante-
passado comum e de parcelas diferentes da mesma herança constrói elos
de igualdade inegáveis entre indivíduos diferentemente aquinhoados
em terras e em poder político.
Se isso é verdade para o sitiante, também o é para o agregado ou
ocupante, pois a delimitação entre essas categorias é precária. O agre-
gado é, freqüentemente, o filho do sitiante que abandona definitiva ou
provisoriamente uma paragem carregada de herdeiros. Por outro lado,
o vínculo de agregado pode se constituir como instrumento para a
posse da terra, dada em pagamento da lealdade e dos serviços prestados.
Entretanto, essa fluidez na constituição das categorias sociais e a
igualdade no trato não destrói a relação de dependência e a existência
dessas categorias, embora documente a mobilidade possível entre elas.
As mesmas instituições que, no nível comunitário, criam laços
entre “pares”, passam a assumir novas conotações que implicam rela-
ções assimétricas. Isto é muito patente em relação ao compadrio que,
entre iguais, cria laços simétricos exemplificados na relação entre com-
padres, mas entre superiores e inferiores passa a realçar os elementos de
proteção retribuídos com lealdade, implícitos na relação entre padrinho
e afilhado (Moreira : -ss et passim; Queiroz : -ss).
É importante notar que a dependência do mundo exterior é o funda-
mento das relações de dominação que se sobrepõem à vida comunitária.
Se essa dependência e essa dominação se manifestam mais claramente nas
relações políticas, definindo o elo que liga o fazendeiro ao agregado ou
ao pequeno sitiante, elas existem também no nível econômico.
Victor Nunes Leal, discriminando a natureza dos serviços que o
“coronel” presta a seus eleitores, demonstra muito claramente o con-
teúdo da relação entre patrão e agregado:

 Comunidades rurais tradicionais


arranjar emprego; emprestar dinheiro; avalizar títulos; obter créditos em casas
comerciais; contratar advogado; influenciar jurados; estimular e preparar tes-
temunhas; providenciar médico ou hospitalização nas situações mais urgentes;
ceder animais para viagens; conseguir passes na estrada de ferro; dar pousa-
da e refeição; impedir que a polícia tome as armas de seus protegidos ou
lograr que as restitua; batizar filho ou apadrinhar casamento; redigir cartas,
recibos e contratos [...]; receber cor respondência; colaborar na legalização de
terras; compor desavenças; forçar casamento em casos de descaminho de me-
nores, enfim uma infinidade de préstimos de ordem pessoal que dependem
dele ou de seus serviçais, agregados, amigos ou chefes. (Leal : -)

É portanto o patrão, na figura de “coronel”, que assegura para seus


agregados os benefícios da ordem jurídica, administrativa e assistencial
da sociedade. É ele também quem age como inter mediário na relação
do caboclo com o mercado, assegurando um instrumento que se torna
cada vez mais essencial para a produção, que é o crédito.
Aliás, a necessidade de participação, embora marginal, no merca-
do, pode criar um outro tipo de patrão, que é o vendeiro. O vendeiro é
uma figura importantíssima no mundo rural, porque se coloca como
intermediário entre a economia de subsistência e a economia monetária.
E, na medida em que a comunidade se insere progressivamente na eco-
nomia de troca, sua importância aumenta, pois aumenta a dependência
do caboclo em relação a ele.28 Por outro lado, é freqüente que fazendeiro

. As observações de Maria Sylvia Franco Moreira sobre o vendeiro, embora se refiram a
uma situação particular (a sociedade cafeeira do Vale do Paraíba), podem ser generalizadas
para as comunidades tradicionais em geral. “Para que se chegue a compreender a real posi-
ção do vendeiro na sociedade senhorial brasileira é necessário enfatizar a sua condição de
único agente (embora a maior parte das vezes de modo muito rudimentar) ocupado em ati-
vidades comerciais e ao mesmo tempo inserido na vida comunitária. Convém ter presente
que o mercado de café (ou outro produto comercial como a cana, o gado, o algodão) e, por-
tanto, a economia monetária na qual se integra o grande proprietário, estava completamen-
te dissociado da vida local, transcorrendo suas operações nos centros urbanos. Também é
preciso lembrar que a produção estava ainda em boa medida organizada nas bases de uma
economia de subsistência, tanto inter namente às fazendas, quanto do ponto de vista de
sitiantes e jornaleiros da roça: estes pouco vendiam e apenas através de um trabalho esporá-
dico obtinham as pequenas quantias suficientes para suprir as suas reduzidas necessidades.
Isto faz do pequeno comerciante do bairro ou da beira da estrada o único, dentro do âmbito
da população rural, a manipular dinheiro de maneira mais ou menos constante e a depender
virtualmente desse fluxo” (Moreira : -).


e vendeiro sejam uma única e mesma pessoa, pela prática comum dos
fazendeiros de abrir armazéns nas fazendas ou nas cidades.29
As comunidades tradicionais definem para o homem um universo
personalista. São as relações primárias entre vizinhos, parentes e com-
padres, e as relações com o fazendeiro e o vendeiro do qual dependem,
que constituem a realidade social na qual se move o caboclo. As relações
impessoais são próprias do mundo exterior, que escapa ao seu controle
e entendimento. Por isso é que a sua relação com o mercado, a adminis-
tração, a política (como com a religião) é estabelecida por um interme-
diário com o qual podem manter laços pessoais. A clientela é uma insti-
tuição essencial do mundo rural tradicional, pois é através dela que o
trabalhador se integra na sociedade mais ampla da qual depende, mas
de modo indireto, mantendo seu isolamento e as características perso-
nalistas do seu universo.
A alternativa a essa forma precária de integração seria a destruição
da integridade e autonomia sociocultural relativa das populações mar-
ginais, provendo-a dos instrumentos culturais necessários à sua partici-
pação efetiva na sociedade nacional. A simples destruição dos padrões
tradicionais que marginalizam o grupo ou categoria da população não
promove sua integração real; a destruição desses padrões promove ape-
nas um processo de pauperização cultural, social e econômica, que torna
a população ainda mais indefesa e portanto mais dependente da relação
com o patrão, único elemento de comunicação com o mundo exterior
que ela não entende, mas sem o qual não pode mais existir,30 agravando
a situação da exploração.
O “patrão” se apresenta como um personagem cuja autoridade de-
riva de sua possibilidade de conhecer, interpretar e manipular o mundo
exterior. Essa autoridade, o “patrão” a exerce na medida em que parti-
cipa do universo comunitário, isto é, por meio do estabelecimento de
relações pessoais com os seus membros, pois é o vínculo pessoal que
garante a reciprocidade da relação. Como intermediário entre o caboclo
e a sociedade mais ampla, ao mesmo tempo em que exerce autoridade,
é também o protetor e o conselheiro ante esse mundo que representa.
. Como ilustração dessas relações e da utilização da venda ou armazém como instrumen-
to tradicional de dominação do fazendeiro, é interessante o livro de Lycurgo Santos, Uma
comunidade rural do Brasil antigo ().
. Sobre a análise da relação de clientela entre brancos e índios ver especialmente Cardoso
de Oliveira  e Murphy .

 Comunidades rurais tradicionais


E, na medida em que cumpre seu papel, apresenta-se como figura pater-
nalista, a cuja autoridade se deve corresponder com respeito, a cuja pro-
teção se deve retribuir com lealdade.31
É necessário acentuar, entretanto, que o patrão não exerce suas
funções colocando-se como intermediário entre o conjunto dos compo-
nentes de um grupo de vizinhança e o mundo exterior. Ao contrário, a
relação com a clientela é sempre uma relação diádica, de tal modo que o
vínculo entre os diferentes agregados de um mesmo patrão é apenas
indireto. Manifesta-se mais uma vez o personalismo e “individualismo”
da sociedade rural.
Como as relações entre fazendeiros e agregados são definidas em
termos de uma reciprocidade direta e pessoal, as oposições internas na
sociedade rural não se definem em termos de classe, opondo os grandes
proprietários aos seus dependentes. A interdependência entre essas
duas posições sociais e a forma personalista da dominação resultam em
segmentos estruturados internamente por uma relação de poder. O que
constitui cada segmento é a lealdade comum a um chefe. As oposições
se manifestam entre esses segmentos, que são equivalentes (na medida
em que possuem a mesma estrutura) e se realizam em termos de aliança
e oposição que envolvem freqüentemente o uso da força. Na sociedade
rural tradicional, a violência não é propriedade apenas das relações
comunitárias, mas faz parte também da natureza das relações entre os
poderosos. Cria-se um sistema caracterizado pela luta de facções: as
facções, compostas por diferentes segmentos, são unidades instáveis,
em constante desorganização e recomposição. Daí o caráter dinâmico
do equilíbrio, constantemente ameaçado e constantemente renovado.
Mas, como as facções e segmentos são estruturalmente semelhantes, a
luta entre eles não leva à modificação do sistema, que se mantém essen-
cialmente o mesmo, quaisquer que sejam a facção dominante e a com-
posição das alianças e oposições entre os segmentos.
A natureza da dependência em que se encontram as comunidades
rurais brasileiras tradicionais ante a sociedade mais ampla per mite
caracterizá-las como um tipo especial de campesinato, forma de organi-
. “[...] o trabalhador rural, a não ser em casos esporádicos, tem o patrão na conta de ben-
feitor. E é dele, na verdade, que recebe os únicos favores que sua obscura existência conhe-
ce. Em tal situação, seria ilusório pretender que esse novo pária tivesse consciência de seu
direito a uma vida melhor e lutasse por ele com independência cívica. O lógico é o que pre-
senciamos: no plano político, ele luta com o ‘coronel’ pelo ‘coronel’” (Leal : ).


zação social e do trabalho própria das sociedades complexas pré-indus-
triais. Desse ponto de vista, a população cabocla nacional se apresenta
na literatura antropológica como folk community ou, na tradução de
Antonio Candido, “comunidade rústica” e suas manifestações culturais
como “cultura rústica” (folk culture).32 Essas comunidades rústicas ou
folk communities se caracterizam pelo isolamento relativo e pela produ-
tividade limitada do sistema econômico, que está voltado em grande
parte para a produção direta da própria subsistência; culturalmente, elas
se apresentam como comunidades sem escrita, tradicionalistas e imbuí-
das de religiosidade. De modo geral, são comunidades onde predomi-
nam as relações primárias e a reciprocidade direta. Por outro lado, as
comunidades caboclas, como comunidades “rústicas”, caracterizam-se
pela dependência estrutural da sociedade mais ampla, nesse caso a
sociedade nacional. A afirmação de Foster sobre as sociedades rústicas
aplicam-se integralmente à sociedade cabocla: “uma sociedade rústica
não é, em si mesma, uma sociedade integral, um isolado. É uma ‘meia-
sociedade‘, uma parte de uma unidade social maior (geralmente uma
nação) que é estruturada vertical e horizontalmente” (Foster : ).

Mobilidade espacial e ascensão social

Premidos por forças de transformação que afetam profundamente toda


a sua existência, os trabalhadores rurais vêem destruída a viabilidade do
sistema tradicional de adaptação ecológica, sem poderem aproveitar as
novas oportunidades por estarem presos a um equipamento cultural
precário. Solicitado de um lado por novas necessidades, limitado de
outro por uma tecnologia pobre, o homem do campo é objeto de ten-
sões cada vez maiores, diante das quais a emigração se apresenta como
uma das poucas soluções possíveis.
A análise das forças sociais que estão transformando a sociedade
rural constitui um ponto de referência necessário para o estudo da migra-
ção rural. Mas o problema que preocupa primordialmente o antropólogo
é o de saber como essas pressões se concretizam ao nível do comporta-
. Usamos os termos “sociedade e cultura rústicas” no sentido proposto por Antonio Candi-
do (: -ss), isto é, aquele que corresponde ao inglês folk culture e folk society, tal como é
definido por Foster (). No mesmo sentido utilizamos também, no decorrer do trabalho,
as expressões “sociedade tradicional” e “cultura tradicional”.

 Comunidades rurais tradicionais


mento, isto é, como uma estrutura social determinada se realiza pela ação
das pessoas componentes do sistema. As pressões e tensões que emanam
da sociedade global se manifestam, no comportamento individual, como
motivação para emigrar. É nessa motivação que se reflete o modo de per-
cepção, culturalmente condicionado, de uma realidade em transformação.

A MOTI VA ÇÃO PARA MIGRAR

A percepção que o trabalhador possui da situação na qual se encontra é


difusa e pouco articulada. As entrevistas, tão ricas em descrições da vida
rural como atividade particular – isto é, quanto ao conteúdo etnográfi-
co –, são extremamente pobres em explicações do “porquê” da emigra-
ção. Os infor mantes limitam-se em geral a dizer que emigraram “para
melhorar de vida” e “porque a vida na roça era muito difícil”, mas não
conseguem precisar nem em que consistem as possibilidades de melho-
ria, nem quais os elementos negativos da situação anterior. A própria
parcimônia e generalidade das respostas é um elemento significativo,
pois revela o quanto essa percepção é parcial e incompleta.

Nós tínhamos um sítio à meia. A irmã de meu pai morava em São Paulo, escre-
via para o pai vir. Dizia que aqui era melhor, todos iam ganhar mais. Na roça o
trabalho era duro e a gente não podia progredir. (meeiros em Minas Gerais)

Lá na minha terra quase não chove, ano dava, ano não. Lá tem muita misé-
ria. A gente não estava bem na casa do pai, muita boca para sustentar, o pai
não tinha nada para dar. O povo contava que em São Paulo tinha trabalho
para quem queria... O pai deu o dinheiro da viagem e a bênção, eu vim. O di-
nheiro ele arranjou vendendo uma novilha que o padrinho deu para o meu
irmão menor. (parceiro em Sergipe)

Lá no Norte não tem emprego de salário, a classe pobre é desamparada. O la-


vrador um ano colhe outro não, fica na dependência da chuva. (sitiante em
Per nambuco)

A lavoura não estava dando, a vida estava ficando muito difícil. No Espírito
Santo pagam muito pouco, quase não há serviço. Resolvemos mudar [para a
cidade] para ver se as coisas melhoravam. (meeiros no Espírito Santo).


Mudamos muitas vezes de fazenda, nem lembro mais. A gente mudava para
procurar melhor alojamento, terra melhor para trabalhar, para ganhar mais.

Meu pai não estava contente. A vida era difícil, a gente trabalhava muito,
ganhava pouco, vivia mal. Outros lavradores tinham vindo para São Paulo...
Meu pai se foi convencendo que o único jeito de melhorar de vida era vir para
São Paulo. Aqui os filhos podiam trabalhar, se empregar melhor, ganhar
mais. (colonos de São Paulo)

A vida era difícil, um ano rendia muito, outro dava prejuízo. Meu pai teve que
vender o sítio e começamos a trabalhar como colonos na fazenda. Aí começou a
nossa decadência. Meu irmão resolveu vir para São Paulo para ver se melho-
raria de vida. (família de sitiantes, depois empregados em Minas Gerais)

As entrevistas são tão semelhantes umas às outras nesse particular que


seria inútil multiplicar as citações. Mas, apesar de gerais e vagas, as res-
postas apresentam certas constantes que per mitem reconstituir, pelo
menos em parte, a representação que o trabalhador rural faz de sua
situação de existência.
Nota-se imediatamente que a imigração não decorre, em geral, de
uma situação anormal de fome ou miséria, desencadeada por calamidades
naturais. Ao contrário, a emigração aparece como resposta a condições
normais de existência. O trabalhador abandona a zona rural quando per-
cebe que “não pode melhorar de vida”, isto é, que a sua miséria é uma
condição per manente. Isto não quer dizer que calamidades naturais ou
acidentes não sejam fatores que precipitem a emigração. Há, evidente-
mente, inúmeros fatores que influem na tomada de decisão: a perda da
propriedade, a morte de um membro da família e a conseqüente desorga-
nização do grupo doméstico, a insistência de um parente que “está bem”
em outro lugar. Mas, fundamentalmente, a emigração decorre de uma
situação desfavorável que é vista como permanente. Quando o migrante
diz que a vida da roça era difícil, não se refere a uma dificuldade passagei-
ra, mas a uma condição inerente à vida rural.
Quando se tenta precisar em que consistem as “dificuldades” da
vida rural, aparecem quatro tipos de respostas, freqüentemente conju-
gados: a miséria e falta de conforto; o trabalho “duro”; a incerteza da
produção; a impossibilidade de melhoria.
Analisemos com mais detalhes essas constantes. As condições des-

 Comunidades rurais tradicionais


favoráveis da vida rural são definidas freqüentemente nas entrevistas
como “falta de conforto” ou “miséria” associadas a um rendimento insu-
ficiente: “a gente vivia mal”; “lá tem muita miséria”; “a vida era muito
difícil”. A esses aspectos negativos opõe-se a expectativa positiva das
possibilidades que a vida urbana poderia propiciar: “esperava melhorar
de vida”, “viver com mais conforto”, “ganhar mais”. Isto quer dizer que
a melhoria de vida (e, por oposição, a existência de condições desfavorá-
veis) é pensada como melhoria de nível de vida ou de padrão de vida. Mas
a definição da situação de existência em ter mos de nível de vida indica
uma situação de mudança e a inclusão em sistemas socioculturais mais
amplos que fornecem termos de comparação com a situação presente.
A percepção da necessidade de “melhorar de vida” é decorrência
de uma quebra do isolamento relativo e inclusão numa economia com-
petitiva. É a criação de novas necessidades que rompe o equilíbrio eco-
nômico. Como o novo equilíbrio só pode ser estabelecido em níveis
mais altos de produção e consumo, o trabalhador sente esta situação
como necessidade de “ascensão” social. Isto é, a melhoria de vida não é
apenas uma aspiração individual, mas condição indispensável para a
própria sobrevivência da população.
Esse processo de transformação, que implica inclusão na economia
monetária, manifesta-se diretamente à consciência do trabalhador por
meio da necessidade crescente de dinheiro. As novas necessidades deri-
vam da expansão da economia industrial, e só podem ser satisfeitas pela
compra. Para satisfazer a necessidade de numerário, o produtor se vê
forçado a dedicar uma parte crescente dos seus esforços à produção de
mercadorias, negligenciando a produção de subsistência. Decai o artesa-
nato doméstico e diminui, inclusive, a produção de alimentos. Cresce,
portanto, sua necessidade de dinheiro, pois ele precisa comprar não só
instrumentos e utensílios, mas também víveres que a produção domés-
tica já não for nece. Por isso o trabalhador rural precisa comprar cada
vez mais, e cada vez mais caro.33
Ante as pressões da economia de mercado, a produção do lavrador
revela-se insuficiente. Esta insuficiência é por ele atribuída à incerteza do
resultado da atividade produtiva. São muito freqüentes nas entrevistas as
informações referentes à alternância de boas e más colheitas, à dependên-
cia de fatores climáticos: “ano dava, ano não”; “num ano ganhava muito,

. Para uma descrição desse processo, consultar especialmente Candido : -ss.


noutro perdia tudo”; “a gente ficava na dependência da chuva”. A incerte-
za da produção e, conseqüentemente, a precariedade do rendimento, não
são atribuídas a erros ou a incapacidade humana, mas a fatores naturais
que estão fora da possibilidade de controle do homem. Isto é especialmen-
te verdadeiro para os produtores autônomos, que são levados a definir a
produção como resultado direto de uma relação entre o homem e a terra,
e não como algo que dependa de relações de produção. Desse modo defi-
ne-se um universo imutável, pois a técnica se apresenta como constante e
as relações sociais como exteriores à atividade produtiva. Nessas condi-
ções, a melhoria de vida só pode ser concebida como abandono desse uni-
verso e integração em um sistema diferente, que ofereça melhores oportu-
nidades. A oportunidade é pois dada ao trabalhador, e não criada por ele.
Para os assalariados a perspectiva é diferente; para eles “a vida é
difícil” porque “ganham pouco”, “não há emprego”, “pagam mal”.
Nesse caso, as condições de existência derivam diretamente de relações
de produção que se impõem sob a forma de salário. Mas, de qualquer
modo, a situação ainda é vista como “exterior” à ação individual, pois o
nível de salários se apresenta como uma realidade que escapa às possi-
bilidades de controle do trabalhador. Esta situação parece prender-se à
marginalização do produtor em relação à sociedade na qual se insere
tangencialmente; as condições que decorrem de forças exteriores à
comunidade são tão “naturais”, porque caprichosas e incontroláveis,
quanto a própria natureza.
Desde que tanto as condições de produção quanto o nível de salá-
rio estão fora da possibilidade de ação e controle do trabalhador, o
aumento de renda necessário para melhorar as condições de vida só
pode resultar de uma intensificação do trabalho.
Apesar das transformações que estão ocorrendo, a sociedade rural
continua a ser uma sociedade pouco diferenciada, com enorme predo-
minância de trabalhadores não-especializados. Como prevalece a técni-
ca mais rudimentar, não há diversificação da atividade produtiva, não
há tipos diferentes de trabalho e, conseqüentemente, não existem tipos
diferentes de trabalhadores. A não ser muito recentemente, e em re-
giões restritas, a única diferenciação possível é a que existe entre traba-
lho propriamente dito e supervisão do trabalho. Assim, o aumento da
produção só pode ser visto como resultado de um aumento da quanti-
dade de trabalho, e não da transformação da qualidade do trabalho. Daí,
inclusive, a depreciação da escola, que não constitui um instrumento de

 Comunidades rurais tradicionais


melhoria de vida, uma vez que não há, na sociedade rural tradicional,
posições favoráveis a serem ocupadas pelo trabalhador escolarizado. Na
observação de um infor mante, “na roça o homem vale pelo trabalho.
Meu pai era analfabeto e nunca fez questão de estudo. Fui à escola só
dois anos, porque o fazendeiro obrigou”. A escola, na medida em que
afasta os jovens do trabalho, é um percalço às possibilidades de “melho-
rar de vida”: “só fui uns seis meses na escola; a gente precisava ajudar o
pai, e na roça ninguém liga para escola”; “para o trabalho da lavoura a
escola não faz falta”; “na roça a gente não precisa de estudo”.
Desse modo, premido por necessidade crescente de dinheiro, e
preso a uma técnica rudimentar, o trabalhador rural se vê forçado a tra-
balhar cada vez mais para manter o mesmo nível precário de existência.
Na verdade, o trabalho tornou-se excessivo porque se rompeu o equilí-
brio tradicional entre trabalho, lazer e satisfação das necessidades. Isto
se manifesta nas entrevistas em referências freqüentes ao “trabalho
duro” que caracteriza a vida rural.
Entretanto, na medida em que não se altera a natureza do trabalho,
a intensificação da atividade produtiva, que é pensada como aumento da
quantidade e não da qualidade do esforço despendido, só se pode con-
cretizar pela incorporação de mais terra. Desse modo, no horizonte cul-
tural dessa população, o aumento da produção, necessário ao restabele-
cimento do equilíbrio econômico, não pode ser definido como aumento
de produtividade, mas como aumento de propriedade.
Assim como a posse da terra e o trabalho simples constituem os
elementos centrais da produção rural, constituem-se na representação
do universo rural três categorias sociais fundamentais: os que não têm
terra e trabalham em propriedade de outrem; os que cultivam terra pró-
pria e os que têm terra suficiente para não precisarem trabalhar.
Apesar das transformações que estão ocorrendo na sociedade rural,
que levam o homem a definir sua posição social pela renda monetária, a
hierarquia social continua a corresponder a essa representação, pois con-
tinua a ser a hierarquia da propriedade. A posse da terra se coloca como
única forma de aumentar a renda e ascender socialmente. Desse modo,
as aspirações do homem rural definem-se em termos da propriedade, e a
crise da sociedade rural se apresenta para ele como impossibilidade de se
tornar (ou dificuldade em se manter) proprietário.
A posse da terra suficiente e, portanto, a libertação da necessidade
de pagar foro (quer sob a forma de dias de serviço, parte da produção,


ou quantidade de dinheiro) se afigura ao trabalhador rural como a única
forma imediata de “melhorar de vida”, isto é, de obter uma renda mais
elevada. É importante considerar que a aquisição de terra não só é
necessária para a ascensão dos assalariados ou parceiros, como também
é indispensável à manutenção do status dos sitiantes, em geral de prole
numerosa. Para os filhos de sitiante, a impossibilidade de aumentar a
propriedade significa a fragmentação no minifúndio, a passagem para
a condição de parceiro ou assalariado, ou a emigração.
Na sociedade tradicional, a passagem à condição de proprietário
podia ser realizada por meio de laços pessoais, isto é, da proteção dos
poderosos; a doação de terras por serviços prestados ao patrão ou “coro-
nel” constituía o modo de ascensão social característico daquele universo
patrimonialista. Mas a aquisição de propriedade, nas condições atuais, só
é possível pela compra, e exige a acumulação prévia. Como a produção
agrícola é, em geral, incapaz de produzir excedentes, resta o recurso tra-
dicional de exercer outra atividade que, ao contrário da agricultura, seja
capaz de gerar capital: a atividade comercial. Tanto para o proprietário
que abre um armazém na fazenda, como para o sitiante ou parceiro que
vende em consignação nas cidades ou nas feiras, a atividade comercial é,
por excelência, a atividade geradora de capital. Como observa Maria
Isaura Pereira de Queiroz,

a terra lhes for nece de que viver; para ter algo mais os camponeses fazem
“negócios”. [...] A afluência e a riqueza são sempre devidas à habilidade, à
esperteza nos negócios, à sorte. A ascensão social representada pelo ingresso no
comércio ou por uma melhoria qualquer de nível de vida não pode jamais ser
o resultado de uma economia impossível; são os negócios que a podem produ-
zir. (Queiroz : ).

Nas áreas mais desenvolvidas, com inúmeras aglomerações urbanas e


grandes facilidades de transporte, o próprio desenvolvimento da ativi-
dade comercial a coloca fora do alcance dos trabalhadores rurais de
capital tão reduzido. Nas zonas muito isoladas, onde predomina a eco-
nomia propriamente de subsistência e a população é muito rarefeita, as
oportunidades para o exercício da atividade comercial são muito exí-
guas. É nas áreas de relativa concentração demográfica, mas com peque-
no desenvolvimento urbano, áreas propriamente de transição entre uma
economia de subsistência e uma economia plenamente integrada no

 Comunidades rurais tradicionais


complexo sistema produtivo nacional, que se manifestam amplamente
oportunidades dessa natureza. Por isso é que, entre os nordestinos, men-
ciona-se tão freqüentemente o exercício de atividades comerciais parale-
las à agricultura. As observações de Juarez Lopes entre operários de
origem rural confir mam as que tive ocasião de fazer entre meus infor -
mantes. “As atividades agrícolas dos nordestinos”, diz ele, “como tam-
bém, embora menos freqüentemente, as dos migrantes do interior de
São Paulo, aliam-se muitas vezes às comerciais.” Na expressão de um
dos seus informantes, “o sítio era para manter a família e os negocinhos
eram para tocar a vida”. “No caso dos nordestinos, o comércio mais
comumente exercido é o de ambulante, que compra as mais variadas
mercadorias, percorrendo a zona rural e as cidades das redondezas, para
vendê-las nas feiras” (Lopes : ). Por outro lado, é a feira que abre
a perspectiva de fazer negócios, vendendo o excedente da produção e,
especialmente, da criação de animais, na qual a reprodução biológica
cria uma das poucas possibilidades de acumular “capital”.
A outra alter nativa que se apresenta à situação de pauperização
crescente do agricultor é a migração.

A TRA DI ÇÃO DE MIGRA ÇÃO

A emigração se oferece à população como recurso tradicional para ali-


viar tensões econômico-sociais. Mostramos como a mobilidade espacial
é um recurso adaptativo na economia de subsistência. A manutenção do
equilíbrio biótico e da organização social que sobre ele se baseia depen-
dem de condições de rarefação de população e da prática de uma agricul-
tura itinerante, possíveis apenas pelo constante deslocamento geográfico.
A mobilidade dos componentes é uma característica da organização dos
grupos de vizinhança. Pode-se dizer, portanto, que a migração é um
padrão universal no equipamento cultural tradicional. A incorporação
dessa população na economia monetária, como sitiante, parceiro, colo-
no ou camarada, nas condições precárias que apontamos, implica a con-
servação da mobilidade espacial como recurso adaptativo. Como tal, ela
não é característica apenas da população de origem nacional; imigrantes
estrangeiros e seus descendentes que se incorporaram à grande lavou-
ra, como colonos, acusam também intensa mobilidade espacial. Para
colonos ou camaradas, a mobilidade espacial se apresenta como forma
de resolução de tensões decorrentes da exploração intensiva da força


de trabalho, quando são escassas as possibilidades de ascensão social.
A busca constante de melhores condições de vida nessa sociedade só
pode se manifestar no deslocamento geográfico, que procura aprovei-
tar as variações regionais numa situação geralmente insatisfatória.
Numa cultura de mínimos vitais, qualquer variação nas condições de
trabalho, expressa em diferenças climáticas ou de solo, ou mesmo em
variantes de benevolência ou severidade do patrão, representa freqüen-
temente a diferença fundamental entre a subsistência e a fome. É este
fator que torna a mobilidade uma característica tão generalizada da vida
rural brasileira.
O trecho de entrevista que citamos a seguir ilustra essa movimen-
tação constante, e é excepcional apenas pela abundância de detalhes que
contém. Em geral, os infor mantes limitam-se a afir mar que mudaram
tantas vezes que “perderam a conta”.
A família era constituída pelo pai, mãe, quatro filhas e seis filhos,
colonos em fazenda de café em Ribeirão Preto.

Quando casou minha irmã mais velha, éramos colonos na fazenda Guatapa-
rá. Minha irmã veio para São Paulo com o marido tentar a vida. Logo depois
veio também um irmão meu. Na mesma fazenda moravam também meu avô
e um tio (irmão do pai). Nessa época [] os filhos já eram grandes e meu
pai resolveu tocar terra à terça. Achava que podia ganhar mais. A família do
meu avô e do meu tio foram também. Lá é comum os parentes trabalharem na
mesma fazenda. Quando um sai, os outros vão junto. Depois de uns dois
anos, a fazenda foi loteada e tivemos de sair. Fomos para a fazenda Capão
das Cruzes. Lá trabalhamos como empregados; dois dos meus irmãos lidavam
com o gado, e ganhavam por mês; meu pai, no corte de madeira, recebia por
tarefa. Os menores ajudavam como podiam. Nesse tempo minha irmã ficou
viúva em São Paulo com duas crianças e voltou com meu irmão, que não
tinha se acostumado com o trabalho. Como o serviço de madeira era perigoso
e não tinha ocupação para as irmãs, o pai resolveu mudar para a fazenda
Figueira. Não ficamos nem um ano em Capão das Cruzes. Fomos todos,
menos um irmão, que continuou trabalhando com gado lá mesmo. Na Figuei-
ra ficamos uns cinco anos, como colonos. Minha irmã viúva casou outra vez e
ficou morando junto conosco. Gostamos muito daquela fazenda; a gente podia
plantar mantimentos no cafezal e o fazendeiro ainda dava terra para plantar.
Quando venderam a fazenda fomos embora. O cafezal estava velho e corta-
ram quase todo ele. Fomos tocar terra à meia na fazenda Santo Antônio. Meu

 Comunidades rurais tradicionais


avô não foi junto. Veio para São Paulo morar com a filha. Meu tio também
não. A irmã mais velha foi juntar com os parentes do marido. Outra irmã
também casou e foi embora. Ficamos só um ano nessa fazenda. Meu pai bri-
gou com o administrador por causa da pulverização do algodão. Voltamos a
trabalhar com café, dessa vez na fazenda Aparecida. Saímos depois de dois
anos, porque os donos começaram a plantar pita e não deixaram plantar man-
timentos. Outro irmão casou e foi com a mulher para Pirassununga, perto dos
parentes dela. Lá trabalha até hoje num engenho de cana. Enche os litros de
cachaça. Voltamos para a Figueira, como empregados. Meu pai no viveiro
de eucalipto, eu como carroceiro. Meu irmão mais velho arrumou emprego no
armazém de outra fazenda, está nesse emprego até hoje. Depois de um ano
meu pai brigou com o dono, por causa de um dinheiro adiantado – não sei
bem. Voltamos para a Aparecida [fazenda], cortando pita de empreitada.
Pagavam quarenta centavos [de cruzeiro] por feixe de trinta folhas. Uma das
minhas irmãs foi trabalhar na fábrica de cordas, que ficava perto. Quando
acabou a colheita da pita, fomos colher café em outra fazenda. Mas daí eu
briguei com o administrador... Então resolvi vir para São Paulo. Estava can-
sado daquela vida. Vim com meu irmão mais novo para chamar a família
quando tivesse arrumado emprego e casa...

Essa mobilidade dos trabalhadores sem terra freqüentemente se restringe


ao mesmo município ou municípios vizinhos. É importante notar que,
estando associada em geral a uma incorporação maior à economia mone-
tária, ela se dá paralelamente à destruição dos grupos de vizinhança com
a destruição da auto-suficiência econômica. Persistem entretanto agrupa-
mentos de parentes e amigos, pois as mudanças de fazenda para fazenda
acompanham a direção dos laços pessoais que unem famílias diferentes.
Assim, as famílias chamam outras quando as condições são favoráveis,
ou mudam-se para onde estão outras, quando as condições não o são.
Conservam-se portanto as mesmas for mas de relacionamento interpes-
soal. Como os laços de parentesco e compadrio se definem como relações
virtuais, que são mobilizadas na medida das possibilidades e necessida-
des, elas se mantêm mesmo quando são destruídas as bases territoriais
que garantiam um mínimo de estabilidade aos bairros caboclos.
Para sitiantes e mesmo parceiros, esse tipo de mobilidade é fre-
qüentemente menor. Mas, nesse caso, a mobilidade espacial pode assu-
mir outra forma. Quando a produção é muito pequena, o sitiante ou
parceiro se vê obrigado a procurar emprego remunerado parte do ano


(como mostramos anterior mente). Se a região não oferece possibili-
dades de emprego para essa mão-de-obra, estabelecem-se movimentos
cíclicos recorrentes, com o que o sitiante ou parceiro provê de braços a
colheita da cana-de-açúcar no Nordeste. Trata-se aí, em grande parte,
de sitiantes e parceiros da zona do Agreste que complementam sua
renda por meio desse tipo de emprego temporário.34
Para os trabalhadores que participam desse sistema econômico tão
precário, no qual sitiantes e parceiros estão freqüentemente endividados
com o patrão, a migração temporária, mais ou menos prolongada, pode
se colocar também como forma de capitalização. Os salários relativa-
mente mais altos pagos na colheita dos produtos de exportação (como a
cana, o café ou o algodão), ou na for mação de plantações nas zonas
novas apresentam-se como uma possibilidade de for mar um pecúlio
suficiente para financiar a produção, pagar as dívidas ou adquirir um
lote de terra na zona de origem.
Nas zonas novas, a fertilidade das terras virgens e a ausência inicial
de pragas per mitem, freqüentemente, uma produção compensadora
mesmo para os parceiros ou rendeiros.35 Entretanto, o cultivo continua-
do passa a exigir, depois de algum tempo, técnicas mais desenvolvidas, e
as relações de trabalho se modificam; a terra é transfor mada em pasto,
sendo expulsos os trabalhadores para outras regiões novas. Em condições
favoráveis, a migração temporária atinge seus objetivos, per mitindo ao
trabalhador a formação de um pecúlio, embora as despesas de viagem, as
solicitações para aquisição de produtos industriais e toda sorte de impre-
vistos tornem a empresa improvável. Mesmo assim, o recurso é precário,
porquanto a situação anterior não se modificou e os mesmos problemas
tornam a se manifestar, forçando o trabalhador a uma nova migração.
Apesar de existirem circunstâncias especiais nas quais o trabalha-
dor consegue se estabelecer como sitiante, a expansão da economia
capitalista no campo age realmente no sentido de transformar o traba-
lhador rural em um proletário agrícola muito mal pago.

. Para a constatação dessa situação em São Paulo, ver Schmidt ; para a Bahia, H. Hut-
chinson ; para o Nordeste todo, M. Andrade .
. Isto se verificou, por exemplo, na cultura do algodão na região de Presidente Prudente,
que continua a ser centro de imigração temporária na época da colheita. Ver a esse respeito
a análise de Castaldi sobre a migração dos componentes de um grupo de vizinhança de
Minas Gerais (Castaldi ).

 Comunidades rurais tradicionais


Isto se dá porque, embora o trabalhador coloque a solução do pro-
blema da pauperização em ter mos de propriedade, a simples posse da
terra, ou de mais terra, não pode por si só fornecer os elementos neces-
sários para a superação da crise em que se encontra, que é uma crise de
produtividade. Desse modo o trabalhador, mesmo quando bem-suce-
dido nas diferentes aventuras com as quais se propõe a solucionar o
problema da pauperização, está fadado ao fracasso e não pode escapar
do caminho que o leva à proletarização. A transfor mação do produtor
autônomo em assalariado é inevitável na medida em que se destroem as
bases da economia tradicional, mas não se oferece ao trabalhador o
acesso a técnicas que lhe per mitam competir como produtor indepen-
dente no mercado.
A história das famílias rurais é uma história de fracassos constantes
na busca de um ideal inatingível. Para as famílias de sitiantes é freqüente-
mente uma história de despojamento da propriedade. Para colonos, par-
ceiros e camaradas, uma história de esforços continuamente frustrados
para se tornarem proprietários.
A entrevista que citamos extensamente mais acima ilustra bem
esse processo. As mudanças de fazenda se realizam como tentativas de
estes trabalhadores se estabelecerem por conta própria. Assim, eles
abandonam situação de colonos para tentar a lavoura do algodão à
terça. Entretanto, vêem-se obrigados a desistir da empresa – o motivo,
briga por causa das pulverizações, prende-se provavelmente à incapaci-
dade de entender e utilizar técnicas mais avançadas. Vêem-se assim for-
çados a trabalhar como empregados, situação mais desfavorável que a
anterior. Voltam durante algum tempo a trabalhar como colonos de
café, situação em que, plantando mantimentos no cafezal e utilizando
amplamente a mão-de-obra familiar, conseguem rendimento maior.
Mas essa prática destrutiva está sendo abandonada, e vêem-se nova-
mente obrigados a trabalhar como assalariados ou por empreitada, o
que inclusive desorganiza o grupo familiar, porquanto os indivíduos
são forçados a empregar-se em lugares diferentes. “Desanimados dessa
vida”, acabam migrando para a cidade.
Desse modo, sua incorporação à nova ordem só pode ser feita na
direção da única posição aberta para o trabalhador, que é a de assalaria-
do. Nesse caso, o individualismo que permeia a vida tradicional é refor-
çado pelo individualismo da economia capitalista que a atinge, e torna
difícil a criação ou introdução de qualquer tipo de relação de trabalho


que implique a cooperação voluntária de grupos relativamente amplos.
O trabalho assalariado nas grandes empresas agrícolas destrói as rela-
ções tradicionais, tanto as de vizinhança como as de clientela, e o traba-
lhador se vê isolado e desprotegido, pois não conta com recursos cultu-
rais que lhe per mitam refor mular suas reivindicações em ter mos de
classe. Isto só se dá quando o agravamento das condições de vida se alia
à propaganda revolucionária que emana dos centros urbanos, como foi
o caso da Zona da Mata, no Nordeste (Furtado : -ss).
Para os trabalhadores agrícolas que, em São Paulo, são expulsos
das fazendas e se transformam em volantes, a emigração para a cidade
se torna compulsória. Neste caso, dado o nível extremamente baixo dos
salários e a falta de garantia de trabalho constante, a única possibili-
dade de superar sua condição de miséria consiste em conseguir um
emprego urbano. Este objetivo freqüentemente só pode ser atingido por
meio de migrações ulteriores para centros maiores, onde existem mais
ofertas de emprego.
Nesse sentido, a emigração para a grande cidade é mais vantajosa,
pois o trabalhador já encontra instituições que podem orientar o pro-
cesso de sua re-socialização. Mesmo quando ele não se integra efetiva-
mente nessas instituições (sindicatos, organizações assistenciais), delas
se beneficia indiretamente por meio das reivindicações de classe, o que
favorece seu ajustamento, melhorando suas condições de vida e abrin-
do novas possibilidades de ascensão para as gerações subseqüentes.
Esses benefícios, o trabalhador rural os percebe como “vantagens” da
cidade: possibilidade de salários elevados, possibilidade de assistência
médica, possibilidade de instrução para os filhos. No campo, ao contrá-
rio, não há instituições das quais possa beneficiar-se, nem conta ele com
recursos culturais que lhe permitam criá-las.
É importante considerar também que, desde que se constitui uma
tradição de emigração, ela passa a ser uma solução “natural” para todos
os tipos de problemas, inclusive para as tensões características do pró-
prio funcionamento “normal” da vida tradicional. Conflitos familiares,
desorganização do grupo doméstico por morte ou abandono de um dos
cônjuges, que sempre foram fontes de tensão da vida comunitária, pas-
sam a ser resolvidos pela emigração das pessoas envolvidas.
Generaliza-se assim um intenso movimento de população, no qual
se manifesta o processo doloroso de transformação de uma sociedade.

 Comunidades rurais tradicionais


Capítulo 

  


Os migrantes rurais constituíram o tema da minha tese de doutorado, publi-
cada com o título A caminho da cidade. Este trabalho é um resumo da pri-
meira parte do livro. É também um estudo datado. Reflete o processo de
migração para as cidades tal como ocorria nas décadas de 60 e 70. Entre-
tanto, acredito que a análise do processo enquanto tal revela mecanismos
que continuam a ser relevantes nos processos migratórios, especialmente no
que diz respeito à impor tância da família e dos grupos de sociabilidade da
comunidade de origem, a qual fundamenta a análise da movimentação no
espaço geográfico como deslocamento no espaço social. Acredito que, por
esses aspectos, o trabalho ainda possui relevância.
Os trabalhos posteriores às décadas de 60 e 70 indicam um agrava-
mento da situação de desorganização do grupo doméstico, sem que se crias-
sem outras instituições capazes de cumprir as funções que ele desempenha-
ra. Este fato, associado ao aumento do desemprego, da criminalidade e da
violência, indica dificuldades crescentes de incorporação dos migrantes e
seus descendentes pela nova sociedade tecnológica global que vem se consti-
tuindo desde então.
Esta alteração da situação fica muito clara nas pesquisas mais recen-
tes. Em 1960, os migrantes rurais raramente falavam da violência e por isso
mesmo esta foi ignorada em meus trabalhos, e nos trabalhos de meus orien-
tandos. Hoje, a questão da violência surge espontânea e rigorosamente em
qualquer entrevista realizada tanto com pobres como com ricos e não pode
ser ignorada.
Migrantes rurais*

Um dos aspectos mais importantes do desenvolvimento do estado de


São Paulo, no século , é o extraordinário incremento demográfico
que assinala todo o período. A população paulista que, em , não
chega a  mil pessoas, atinge em  o total de .. habitan-
tes. Este aumento demográfico corresponde a um crescimento dife-
rencial que beneficia a região Sudeste do país. Durante esse período, o
índice de crescimento da população do estado de São Paulo é o dobro
do índice de crescimento do Brasil em geral (VII Recenseamento ,
Conjuntura Econômica ).
Este aumento populacional está historicamente relacionado à
expansão da lavoura cafeeira, e corresponde a um movimento de incor-
poração de mão-de-obra por um sistema econômico em desenvolvi-
mento e expansão. Inicia-se com uma redistribuição da população
escrava do Nordeste e do Centro-Oeste para o Sul, continua com o
influxo de imigrantes estrangeiros, principalmente europeus, e se trans-
for ma, mais tarde, num movimento que concentra no estado de São
Paulo trabalhadores nacionais livres provindos de outras unidades da
Federação (Furtado ).
Justamente a partir de , quando já declina o número de traba-
lhadores europeus que afluem para São Paulo, começa a tomar impulso
o movimento de migração inter na. Em  o número de brasileiros
que chegam de outros estados já é maior que o de imigrantes estrangei-
ros. Em , a migração interna já havia suplantado definitivamente a
migração provinda do exterior e, depois dessa data, só tende a aumen-
tar (Camargo , Conjuntura Econômica ).

* Publicado como “Migrantes nacionais”, in J. Marcondes & O. Pimentel (org.). São Paulo:
espírito-povo-instituições. São Paulo: Pioneira, .


Esta migração para São Paulo afeta todas as unidades da Federa-
ção, e deve ser examinada não como um fenômeno isolado, mas como
um aspecto de um processo de redistribuição demográfica que abrange
todo o país.
A falta de dados estatísticos atualizados tornou difícil a apreciação
do desenvolvimento recente deste movimento. Na época da pesquisa,
nos anos , fomos forçados a apreciá-los à luz dos dados do recensea-
mento de . Para esta data, isto é, quase vinte anos antes deste traba-
lho, é possível entretanto definir com razoável clareza as principais rotas
migratórias, de longa duração, que marcam os deslocamentos de popu-
lação em todo o território nacional.
Em , os estados que haviam recebido maiores contingentes de
migrantes eram, respectivamente, São Paulo (com mais de um milhão),
Distrito Federal, atual Rio de Janeiro, ( mil), Paraná ( mil) e
estado do Rio ( mil). Seguiam-se Goiás, Minas Gerais e Pernambu-
co, com contingentes bem menores (Conjuntura Econômica : ).
São Paulo, Rio de Janeiro e Guanabara for mam assim uma área
contínua de atração da população, que se estende até o Paraná.
Se passar mos a investigar quais os estados de maior emigração,
chegamos a resultados algo surpreendentes. Em ordem de importân-
cia encontramos, em primeiro lugar, Minas Gerais, com um total de
.. emigrantes (naturais dessa unidade domiciliados em outras
unidades da Federação). Seguem-se São Paulo e Rio de Janeiro, com
mais de meio milhão de emigrantes cada um (. e .) e, em
quinto, Per nambuco (.), seguido de mais dois estados nordesti-
nos: Ceará (.) e Paraíba (.) (id. ibid.).
A partir desses dados, podemos distinguir duas zonas de emigra-
ção. A primeira e mais conhecida é formada por uma área contínua que
engloba Minas, Bahia e os estados nordestinos. Caracteriza-se por uma
população rural muito densa em relação aos recursos técnicos de que
dispõe, presa ainda às técnicas agrícolas e à relação de trabalho tradicio-
nais. É uma zona de grande concentração de pequenos produtores autô-
nomos, sitiantes ou parceiros, que trabalham apenas esporadicamente
como assalariados. Os migrantes desta área se dirigem para São Paulo,
Guanabara, Rio de Janeiro e Paraná. Esta movimentação corresponde
ao abandono de sistemas econômicos pouco produtivos e à integração
da mão-de-obra ao sistema capitalista industrial em desenvolvimento.
A outra grande área de emigração é constituída pelos próprios

 Migrantes rurais


centros de atração de população, especialmente o estado de São Paulo.
Neste caso a emigração deve representar uma expansão das fronteiras
econômicas do estado, o que se torna bastante evidente quando se cons-
tata que a maioria dos paulistas que saíram de seu estado localizou-se
em áreas contíguas. Cerca de % deles estão no Paraná, e os demais
se distribuem principalmente entre Guanabara, Minas Gerais, Goiás e
Mato Grosso (Conjuntura Econômica : -).
Vê-se portanto que nessa época as correntes migratórias não resul-
tavam apenas em aumento ou diminuição de população em certas áreas,
mas freqüentemente em substituição demográfica.
Esse fenômeno, muito patente no caso do estado de São Paulo,
pode ser igualmente observado no Rio de Janeiro, em Pernambuco e no
Maranhão. Desse modo, as grandes rotas migratórias aparecem como
uma multiplicidade de movimentos menores, e as regiões abandonadas
por uns são ocupadas por outros, quer por provirem de regiões mais
desfavorecidas, quer por possuírem melhores condições de aproveitar
ou criar novas oportunidades econômicas.
Em São Paulo, toda esta movimentação tem resultado na presença
crescente de migrantes das áreas menos desenvolvidas do país. Quanto
aos aspectos quantitativos desse fenômeno, é necessário reconhecer
que, em , apenas pouco mais de % da população de São Paulo
havia nascido em outros estados. A porcentagem não era muito alta,
especialmente se a compararmos aos resultados da imigração estrangei-
ra que precede o movimento de migração inter na. Assim, em 
havia no estado meio milhão de estrangeiros, isto é, ,% da população
total (Camargo : , v. ). Na capital encontramos concentrações
ainda mais elevadas, pois os estrangeiros chegaram a ultrapassar o
número de brasileiros brancos, como ocorreu, por exemplo, em .1
Mesmo em , havia na capital mais estrangeiros (., incluindo
os naturalizados) que brasileiros de outros estados (Associação dos
Geógrafos Brasileiros : -ss), embora no conjunto do estado os
migrantes nacionais ultrapassem os oriundos de outros países.
Duas observações entretanto devem ser feitas. Em primeiro lugar
é necessário considerar que, em , o movimento de migração para
São Paulo era ainda relativamente recente. O recenseamento de  se

. Nessa época, dos . brancos residentes na capital, . eram estrangeiros (Fernan-
des : ).


dá em pleno período de incremento do fluxo migratório, tendência que
se manteve e aumentou nas décadas seguintes. Nos dezessete anos que se
seguiram ao censo, os saldos migratórios acumulados devem ter-se ele-
vado substancialmente, embora a industrialização crescente da Guana-
bara, a criação de Brasília e o desenvolvimento de Belo Horizonte
hajam estabelecido outros tantos núcleos de atração de população.
Em segundo lugar, convém não esquecer que os dados dos recen-
seamentos sempre assinalam apenas os saldos migratórios. Dado o
grande número de retornos e o caráter temporário de uma parcela sig-
nificativa da migração, como demonstra a pesquisa qualitativa, esses
saldos devem corresponder então a uma movimentação muito maior, e
à substituição constante de migrantes mais antigos por mais recentes.
Essa observação é especialmente importante no que diz respeito à
influência do movimento no conjunto do país, pois representou a que-
bra definitiva do isolamento das regiões menos desenvolvidas e uma
tomada de consciência de oportunidades diferenciais que devem ter
contribuído para a própria intensificação da migração.
É preciso ainda apontar a relação entre a migração interestadual e
o processo de urbanização. A própria orientação da migração demons-
tra a conexão entre os dois fenômenos, pois o movimento se origina em
áreas predominantemente rurais e se dirige para as regiões de maior
concentração urbana. Embora seja impossível precisar, no conjunto da
migração, a importância relativa do contingente de migrantes rurais
que se destina aos centros urbanos, parece não haver dúvida de que a
corrente rural-urbana deve ter comandado todo o processo (Conjun-
tura Econômica : ). Aliás, esse fato é confirmado pelos trabalhos
de campo, que têm assinalado a importância dos contingentes rurais
nas cidades, especialmente em São Paulo e, particular mente, na com-
posição da mão-de-obra industrial (Almeida & Mendes ; Lopes
; Pereira ; Durham ; Rodrigues ). O mesmo ocorre
nos trabalhos que focalizam a população rural, especialmente a nordes-
tina, e que são unânimes em apontar a magnitude do êxodo dessas
regiões para São Paulo (Borges ; M. Andrade ; Castaldi ;
Harris ; entre outros).
Muitos, se não a maior parte, dos migrantes provêm de áreas
rurais, voltadas para uma economia quase de subsistência, ou de vilas e
pequenas cidades. Neste último caso, trata-se de vilas ou cidades essen-
cialmente pré-industriais, onde as camadas média e superior estão presas

 Migrantes rurais


a atividades político-administrativas ou mercantis, e onde a camada
inferior, numericamente predominante, é constituída de trabalhadores
braçais, agricultores e artesãos, que se integram numa sociedade emi-
nentemente patrimonialista. É esse tipo de sistema socioeconômico que
se constitui como a grande reserva de mão-de-obra nacional.
A migração para São Paulo se apresenta assim como o processo
através do qual se dá a passagem de uma economia tradicional para um
sistema capitalista em expansão, redistribuindo a mão-de-obra e estabe-
lecendo laços profundos e complexos entre regiões subdesenvolvidas e
regiões em desenvolvimento.
Esta redistribuição se dá através de complicados movimentos de
população. Em São Paulo, parte do contingente de migrantes se dirige
para a agricultura, onde freqüentemente substitui trabalhadores rurais
paulistas que rumam para as cidades, ou para novas áreas agrícolas
fora do estado. Outra parte dirige-se diretamente para as cidades. E,
finalmente, ambos os percursos se inter-relacionam através da movi-
mentação dos próprios migrantes dentro do estado, criando novas
correntes do campo para a cidade e dos pequenos para os grandes cen-
tros urbanos.
De um modo ou de outro, a migração representa geralmente o
abandono de um universo comunitário, organizado em moldes tradicio-
nais, e a integração de pessoas em sistemas complexos e diferenciados,
que resultam da expansão do capitalismo no campo e na cidade. Os da-
dos estatísticos nos for necem infor mações básicas sobre as migrações
internas no país: seu volume, sua direção e sua conexão com a desigual-
dade regional do desenvolvimento urbano e econômico do país. Mas
para a compreensão das características sociais e culturais do processo
migratório, devemos recorrer às pesquisas de campo e às análises quali-
tativas elaboradas sobre depoimentos e entrevistas feitas com os pró-
prios migrantes. Dados quantitativos se qualitativos não se excluem,
mas se complementam.

***

Os trabalhos de campo realizados no estado de São Paulo, como o de


Celeste Souza Andrade com migrantes que se dirigiam para a agricul-
tura, ou como os de Juarez Brandão Lopes e o que eu própria realizei
com migrantes na cidade de São Paulo, revelam uniformidades impor-


tantes na motivação para migrar e nas características sociais da movi-
mentação espacial (C. Andrade ).2
Os migrantes explicam sempre a migração como uma tentativa de
“melhorar de vida”, embora raramente consigam precisar em que consis-
tem essas possibilidades de melhoria, ou quais os elementos negativos da
situação anterior. Limitam-se em geral a dizer que migraram porque “a
vida lá era difícil”, “não tinha emprego”, “pagavam pouco”. Em outro
trabalho (cf. cap. , supra), já analisei as características fundamentais da
situação que provoca a emigração. Para os fins desta apresentação, basta
notar que a natureza das respostas denota que a emigração é provocada
por tensões que se manifestam no campo econômico e se traduzem em
salários baixos, rendimento insuficiente da produção agrícola e falta de
emprego remunerado como alternativa. Nota-se também que a migração
não decorre, em geral, de uma situação anormal de fome ou miséria. Ao
contrário, a migração aparece o mais das vezes como resposta a condições
normais de existência. O trabalhador abandona a zona rural ou os peque-
nos centros urbanos quando percebe que “não pode melhorar de vida”,
isto é, que sua miséria é uma condição permanente. Isto não quer dizer
que calamidades naturais ou acidentes não influam na tomada de decisão.
Há inúmeros fatores que podem concorrer para precipitar a migração: a
perda da propriedade, a morte de um membro da família, uma sucessão
de colheitas insuficientes, a insistência de um parente que “está bem” em
outro lugar. Mas, fundamentalmente, a emigração decorre de uma situa-
ção econômica desfavorável, que é vista como permanente. A esses
aspectos negativos se opõe a expectativa positiva das possibilidades que a
vida urbana ou o trabalho na agricultura “do sul” poderão propiciar.
Vê-se portanto que há uma consciência de oportunidades diferen-
ciadas no sistema econômico nacional. Essa consciência é adquirida na
própria experiência migratória, que é transmitida oralmente e se sedi-
menta como parte do acervo de conhecimentos de uma comunidade.
As idéias de país, nacionalidade, divisões administrativas e políti-
cas são concepções alheias ao universo de grande parte da população
que fornece os contingentes de migração. Mesmo para os que freqüen-
taram a escola (e são poucos) essas noções são por demais abstratas para

. Consultar também, sobre este aspecto, os trabalhos que analisam a integração de trabalha-
dores de origem rural na mão-de-obra industrial, especialmente o de Juarez Brandão Lopes
().

 Migrantes rurais


orientar a movimentação no mundo real. É através da cultura tradicio-
nal, vivida na experiência pessoal, que se concebe o mundo exterior.
O universo espacial dos trabalhadores provindos de comunidades
tradicionais, assim como das camadas mais pobres da população urba-
na, é for mado de lugares onde seus conhecidos estiveram, ou onde
moram pessoas de suas relações. Espaço geográfico e espaço social se
constituem como realidade única, e as migrações se orientam neste uni-
verso de referência. A migração não pode ser compreendida simples-
mente como um deslocamento no mapa, mas como um trânsito inserido
em uma rede de relações sociais.
As entrevistas feitas com migrantes revelam claramente que a
migração não envolve necessariamente uma dissolução das relações com
a família e com o grupo primário mais amplo (parentes, compadres,
vizinhos e amigos) e possui um caráter eminentemente familial o qual,
entretanto, não se manifesta necessariamente no deslocamento conjunto
de todo um grupo doméstico. Ao contrário, o deslocamento espacial é
realizado quase sempre por indivíduos isolados ou por grupos muito
pequenos, de duas ou três pessoas. O aspecto familial do processo se
manifesta na freqüente reconstituição, total ou parcial, dos grupos fami-
liais originais. Ao lado dos parentes, os conterrâneos constituem outro
importante grupo de referência. A migração de indivíduos isolados se
apresenta assim como parte de um processo que envolve a movimenta-
ção sucessiva de pessoas diferentes dos grupos de origem, e que pode se
estender por tempo considerável. Para apreendê-lo, temos que examinar
tanto a fragmentação como a reconstituição do grupo original.
A fragmentação é necessária por causa dos elementos de risco pre-
sentes em toda migração. A migração parcelada e sucessiva dos mem-
bros do grupo oferece a vantagem indiscutível de garantir a posição
anterior enquanto se tenta estabelecer uma nova. Só com a consolida-
ção dos primeiros migrantes no novo ambiente é que se procede à
migração dos demais. Isso não significa, necessariamente, a reconstitui-
ção completa do grupo original. A amplitude da distância percorrida na
migração influi na reconstituição do grupo original. Além disso, a frag-
mentação e o reagrupamento parcial da família de origem são parte
integrante, inclusive, da vida rural, e decorrem da própria estrutura da
família conjugal.
É raro que o migrante abandone sua terra com a intenção inicial de-
finida de nunca mais voltar. O mais das vezes, ele migra com a intenção


de for mar um pecúlio a ser aplicado na terra de origem. Mas essa
migração temporária freqüentemente se transfor ma em definitiva,
quando o migrante consegue uma ocupação estável e relativamente
bem remunerada. Isso muitas vezes só ocorre depois de uma ou duas
migrações temporárias.
Pelo fato mesmo de implicar a fragmentação do grupo domésti-
co, a migração não é igualmente fácil para todos. Migram inicialmente
os jovens solteiros. Nessa idade o insucesso não é desastroso, pois não
há encargos de família. Como os jovens desejam não apenas melhorar,
mas também mudar de vida, libertar-se da influência pater na e ganhar
experiência, a emigração desse segmento da população parece ser algo
quase institucionalizado em certas comunidades. Mas não ocorre, o
mais das vezes, uma separação completa. Os moços freqüentemente
voltam para visitar a família, exibir novas experiências e novas posses.
Mais ainda, o sucesso na migração cria atrativos para os parentes que
ficaram. Outros irmãos, solteiros ou casados, repetem a mesma trajetó-
ria apoiando-se uns nos outros, e o processo muitas vezes só ter mina
quando os filhos, já estabelecidos, mandam buscar os pais para “vive-
rem todos juntos”.
A migração também é relativamente fácil para casais sem filhos.
Mas quando há filhos pequenos, as dificuldades de alojamento, trans-
porte e manutenção se multiplicam. O mais comum é que o marido
migre primeiro, deixando a família com os parentes, e só depois de con-
seguir colocação relativamente estável e rendosa traga a mulher e os
filhos. A migração desse tipo de família só é possível, portanto, através
da solidariedade de um grupo de parentes na região de origem, o que
lhe dá um caráter eminentemente familial.
Ocorrem também casos em que migra, simultaneamente, todo um
grupo doméstico, com adolescentes, crianças e adultos. Entretanto,
mesmo nestes casos geralmente é o pai, sozinho ou com um filho mais
velho, que precede o resto da família para garantir um lugar onde
morar. Mas a emigração de uma família grande, mais comumente, se
realiza por estágios, e é complementar à migração de jovens ou dos che-
fes de família. Isto é, ela se processa pela fragmentação sucessiva do
grupo, com migração inicial dos jovens e recomposição posterior.
Verifica-se, assim, que mesmo migrações que envolvem mudanças
tão radicais de estilo de vida, como a que ocorre entre o sertão de Ser-
gipe ou Alagoas e a cidade de São Paulo, são efetuadas dentro de uma

 Migrantes rurais


rede de relações pessoais. Vai-se para onde estão o tio, o irmão solteiro,
os antigos vizinhos, os amigos de infância.
Há, evidentemente, os casos de recrutamento de mão-de-obra por
motoristas de “pau-de-arara”, ou a organização oficial da migração
para zonas rurais pelo Serviço de Imigração e Colonização. Entretanto,
quer num caso quer no outro, essas instituições fornecem apenas meios
de locomoção para migrantes que continuam a se orientar pelas rela-
ções pessoais com amigos ou conterrâneos. No caso do Serviço de Imi-
gração, por exemplo, o próprio conhecimento e utilização dos serviços
da instituição depende de um conhecimento prévio que é adquirido
pelos mecanismos apontados acima.
Os casos de migrantes isolados, isto é, que não têm parentes no
lugar de destino e nem se propõem a buscá-los mais tarde no lugar de
origem, são freqüentemente resultantes de uma dissolução anterior do
grupo doméstico. Trata-se, na maioria das vezes, de órfãos criados por
parentes distantes, maridos que abandonaram a mulher (ou vice-versa),
moças seduzidas que não podem retornar à casa dos pais. Nesses casos,
a dissolução da família é antes causa que conseqüência da migração.
Notamos (cap. , supra) que o parentesco não constitui, mesmo na
zona rural, grupos locais per manentes, bem delimitados e definidos.
Antes, ele cria uma rede de relações potenciais, independentes do local
de moradia, que são mobilizadas de acordo com as circunstâncias e as
preferências individuais. Sendo tão flexível, o grupo de parentes para
além da família conjugal constitui um instrumento particularmente ade-
quado para estruturar o espaço social que orienta a migração.
A inadequação do equipamento cultural tradicional para manipu-
lar relações impessoais e utilizar instituições burocráticas torna o mi-
grante completamente dependente, de início, desses contatos pessoais.
Isto é verdade para os migrantes que se dirigem para a agricultura, mas
o é muito mais para os que vêm para a capital. O universo urbano, neste
último caso, parece estranho e hostil, e as relações pessoais constituem
o único ponto de apoio com o qual o migrante conta para iniciar o pro-
cesso de ajustamento às novas condições de vida. E é na expectativa
dessa necessidade inicial que ele mobiliza previamente as relações pes-
soais. Revela-se então a persistência dos laços interpessoais que carac-
terizam os grupos primários. Parentes que não se viam há anos são
requisitados para hospedar, auxiliar e encaminhar migrantes recém-
chegados. É com os parentes que o migrante aprende a se movimentar


e a se relacionar no lugar de destino, superando as limitações do seu
universo cultural de origem.
O auxílio dos parentes se manifesta principalmente na obtenção de
alojamento e emprego. Na migração para outra zona rural, ambas as
coisas são realizadas simultaneamente, e o recém-chegado se dirige para
as fazendas onde trabalham ou trabalharam conterrâneos seus, quando
não é encaminhado pelo Serviço de Imigração e Colonização. Ele pode
ainda, através do mesmo tipo de relações pessoais, arrendar terras ou
ingressar nas tur mas mobilizadas por empreiteiros para a colheita do
café, do algodão e da cana.
A integração do migrante nas áreas rurais exige modificações dos
padrões de trabalho, que envolvem a utilização de novas técnicas (uso
de inseticidas, máquinas e implementos agrícolas, fertilizantes), o cultivo
de novas plantas (café, soja, mamona etc.) e, principalmente, o estabele-
cimento de novas relações de trabalho (arrendamento, empreitada, traba-
lho assalariado). De modo geral, essas modificações estão relacionadas à
substituição do trabalho autônomo do parceiro ou sitiante – voltado em
grande parte para a produção direta da subsistência – pelo trabalho do
arrendatário ou assalariado, que produz para o mercado. A participação
na economia de mercado exige novas formas de previsão, de utilização
do dinheiro, de comercialização da produção. Todos esses ajustamentos
o trabalhador realiza contando com a experiência dos parentes, amigos
e conterrâneos que o precederam.
Nas cidades o problema é ainda mais complexo, porque a possibi-
lidade de obter um emprego determinado depende não só de o migrante
saber de sua existência, mas de conhecer o modo específico de disputá-lo
ou de se qualificar para ele. Para isso, o migrante depende das informa-
ções dos amigos e, por isso, o horizonte profissional do trabalhador está
condicionado pelo seu universo de participação social.
Quando perguntamos aos migrantes que tipo de emprego espera-
vam obter na cidade de São Paulo, a resposta mais generalizada é a de que
“não sabiam – para começar, qualquer coisa serviria”. De um lado, esta
resposta denota uma flexibilidade de expectativa, que se apresenta como
elemento positivo para o ajustamento do trabalhador às novas condições
de mercado. Mas por outro denota também que o migrante não sabe quais
são os empregos que existem, nem o que deve fazer para obtê-los.
Nas cidades, o mercado de trabalho é cada vez mais controlado
por instituições burocráticas e impessoais, que estabelecem nor mas

 Migrantes rurais


legais para a constituição do trabalhador. Para se oferecer como mão-
de-obra o trabalhador necessita, inicialmente, de documentos que lega-
lizam sua participação no mercado e o colocam sob a ação e proteção da
lei: carteira de trabalho, certificado de reservista, título de eleitor etc.
Sem esses documentos (situação a mais freqüente entre migrantes,
especialmente os de origem rural) o trabalhador fica de fora do merca-
do de trabalho regular mente instituído, fora da proteção da lei, e se
marginaliza em termos dos sistemas econômicos mais produtivos e mais
bem remunerados. Essa situação deve corresponder à experiência inicial
de grande parte do contingente migratório.
Sem “papéis”, o migrante se vê forçado ao subemprego e à margi-
nalidade ocupacional. Como trabalhador marginal, isto é, que trabalha
sem contrato legal, o migrante pode dedicar-se a uma grande variedade
de ocupações: serviços de limpeza, de carga e descarga de caminhões,
de “ajudantes” que se ocupam das tarefas mais pesadas e sujas (ajudante
de motorista de caminhão, de cozinheiro, de vendedores ambulantes).
Entretanto, é a indústria de construção que, indubitavelmente, absorve
a grande maioria dos trabalhadores do sexo masculino, ao passo que o
emprego doméstico ocupa os migrantes de sexo feminino.
Trata-se, em geral, de empregos temporários, sem estabilidade ou
per manência. Para o migrante que se emprega como “trabalhador não
registrado”, o salário é sempre muito baixo, inferior ao mínimo legal, e
insuficiente inclusive para prover à subsistência do trabalhador com
família. No caso da indústria de construção, por exemplo, trabalhadores
desse tipo podem aceitar salários irrisórios porque mantêm as necessida-
des em nível muito baixo, habitando freqüentemente abrigos precários
no próprio local de trabalho, cozinhando a própria alimentação. Nesse
caso, o salário pode ser suficiente para sustentar o adulto isolado, permi-
tir o envio esporádico de algum dinheiro à comunidade de origem e,
principalmente, adquirir objetos de consumo pessoal prestigiados, como
relógios, rádios de pilha e roupas da moda. Mas esta situação exige a
fragmentação das unidades domésticas e a manutenção dos membros
improdutivos (crianças, mulheres e velhos) na zona de origem, muitas
vezes provendo insatisfatoriamente à própria alimentação através da
agricultura de subsistência e da ajuda dos parentes que ficaram.
Por outro lado, é necessário reconhecer que a própria natureza
desse tipo de trabalho, com diversificação da atividade, ritmo irregular,
intensidade e produtividade muito baixas, se apresenta como oposta à


disciplina do trabalho fabril e se enquadra dentro de um sistema pré-
industrial, sendo, portanto, mais compatível com os hábitos de trabalho
dessa população.
Essas ocupações marginais criam uma situação favorável ao mi-
grante apenas na medida em que são temporárias e que, sem exigir uma
transformação radical dos hábitos de trabalho, permitem um ajustamento
inicial às condições urbanas de vida, e a procura dos requisitos necessá-
rios à passagem para trabalhador regularmente admitido. Essa passagem
pode ocorrer dentro do mesmo ramo de ocupação ou em ramo comple-
tamente diverso. Assim, serventes de pedreiro podem tornar-se pedrei-
ros, ajudantes de encanador, de eletricista etc., adquirindo no próprio
trabalho um mínimo de qualificação. Alternativamente, podem ingressar
no operariado fabril. A escolha de uma ou outra possibilidade vai depen-
der, em grande parte, das relações pessoais que o trabalhador estabelece
ou mantém. Por meio delas ele toma conhecimento das oportunidades,
obtém “papéis”, e consegue um emprego regular.
O migrante supera as limitações de sua posição inicial à medida
que constrói a sua carreira. No início, o migrante é inteiramente depen-
dente de relações pessoais, baseadas em vínculos de parentesco ou ami-
zade que o encaminham para a obtenção do emprego. Inicialmente,
portanto, o imigrante não tem nenhuma “escolha” na procura de ocu-
pação. Premido pela necessidade, limitado pela ignorância do mercado
de trabalho, ele aceita qualquer emprego e depende, em grande parte,
das indicações dos membros do grupo primário do qual faz parte. Mas
a obtenção de um emprego e de um lugar para morar alarga imediata-
mente o horizonte do migrante. Vizinhos e colegas de trabalho passam
a ser outras tantas fontes de informação. Conforme ele alarga o seu cír-
culo de contatos sociais, passa a incorporar a experiência concreta de
indivíduos e grupos mais diversificados.
A ampliação dos contatos pessoais e das esferas de participação
social ampliam também o universo ocupacional, e dão ao migrante
maiores possibilidades de escolha na orientação da sua carreira. Entre-
tanto, como são os parentes que orientam as colocações iniciais, que são
a base das outras, a carreira do migrante tende a ser condicionada pela
história ocupacional do grupo de parentesco.
Conforme se abrem as possibilidades de escolha, assumem impor-
tância crescente os valores que orientam a avaliação dos aspectos posi-
tivos e negativos de uma ocupação ou um emprego particular. Esses

 Migrantes rurais


valores parecem ser bastante unifor mes na população migrante em
geral. Manifestam-se, em primeiro lugar, através de uma valorização
muito grande do trabalho “limpo” e “leve”, isto é, do trabalho não
manual, em oposição às ocupações manuais, que são “sujas” e “pesa-
das”. Em segundo lugar, nota-se uma valorização igualmente intensa
do trabalho autônomo – trabalhar “por conta própria” é o ideal de
quase todo migrante.
Aliás, esta constatação tem sido feita para a população operária de
modo geral, e não apenas no Brasil. Não obstante, para a população
migrante de origem nacional, esta valorização parece ser mais atuante,
influindo de modo decisivo na escolha da ocupação. É na população mais
vinculada à agricultura de subsistência – os pequenos sitiantes e seus
filhos, que for mam parte apreciável do contingente migratório – que
encontramos maior oposição à “sujeição” do trabalho em fábrica, à tare-
fa supervisionada, ao horário rígido. O migrante sente que o trabalho
fabril constitui desrespeito à dignidade da pessoa. Daí queixas freqüentes
de que “operário não é gente”, isto é, não é tratado como “gente”, mas
como coisa. A valorização das ocupações não manuais, que exigem con-
tato com o público e, especialmente, a preferência pelo trabalho autôno-
mo, referem-se a uma valorização de ocupações em que são “respeita-
dos” pelos outros e que, portanto, preservam sua integridade pessoal. Por
isso mesmo é que as ocupações como guarda, ascensorista e zelador são
freqüentemente preferidas ao trabalho em fábrica.
Mas é necessário reconhecer que, em oposição a esta valorização de
certo tipo de trabalho, existe uma outra, que diz respeito ao montante da
remuneração, e se relaciona a uma valorização do nível de consumo.
Além disso, o trabalhador aprende rapidamente as vantagens de uma
relação de trabalho com carteira assinada, que envolve benefícios traba-
lhistas. Por isso, o trabalho da fábrica é valorizado em oposição a outras
ocupações manuais. Como é raro que os empregos disponíveis possam
satisfazer simultaneamente esses ideais (para cuja realização, inclusive, o
migrante não possui a qualificação necessária), a carreira se apresenta
sempre como tentativa de conciliar ideais contraditórios. Daí, talvez, a
extraordinária mobilidade ocupacional que caracteriza essa população.
A predominância, na escolha da ocupação, dos valores tradicionais
de independência, ou a manutenção dos hábitos de trabalho anteriores
(ritmo irregular, grande margem de lazer) colocam freqüentemente o
migrante em uma situação em que é difícil, se não impossível, satisfazer


as aspirações de aumento do consumo que orientaram a migração, e que
constituem o critério último de sucesso. A aceitação dos empregos mais
estáveis e relativamente bem remunerados que o migrante pode dispu-
tar (especialmente o trabalho não qualificado na indústria) representa a
aceitação de um trabalho culturalmente desvalorizado, que se torna
assim mero instrumento para alcançar fins que estão fora dele.
Por isso mesmo, o emprego na indústria é concebido mais freqüen-
temente como instrumento para a realização futura do ideal de trabalho
por conta própria, especialmente na medida em que o emprego abre
possibilidades de formar um pecúlio, que pode ser utilizado como capi-
tal. Esse pecúlio raramente pode ser formado pela poupança direta, não
só porquanto a integração no meio urbano cria novas necessidades que
o salário mal pode satisfazer, mas também porque o ritmo inflacionário
deprecia e desestimula a poupança em dinheiro. Mas o emprego cria
uma nova forma de poupança forçada, que é a indenização na dispensa.
A estabilidade do trabalho passa a ser então avaliada não como estabili-
dade absoluta, mas como forma de capitalização – o aumento do núme-
ro de anos em um estabelecimento representa um investimento a ser
recebido na dispensa.
Essa caracterização tão marcada e generalizada da atitude dos ope-
rários de origem rural já foi apontada por todos os que trabalharam
com esse tipo de problema. Nossas observações vêm apenas confirmar
pesquisas anteriores. Como nota Juarez Brandão Lopes,

venham com a intenção de ficar na metrópole ou com a idéia de, com o que aí
ganharem, melhorar a sua situação em sua terra, o desejo dominante de todos
é de ser “independente”. Esse valor expressa-se de muitas formas; a lavoura
em sua propriedade quando as condições são recompensadoras, a empreitada
na agricultura, o ofício de pintor ou de eletricista independente na cidade, o
de dono de caminhão, e as múltiplas pequenas atividades comerciais são todos
trabalhos ‘por conta própria’ em que o indivíduo não recebe ordens, nem pres-
ta contas, segundo seu modo de ver, a ninguém (Lopes : ).

Examinando as possibilidades de ascensão ocupacional da população


migrante, especialmente a de origem rural, verifica-se que o trabalho
por conta própria, apesar de dificilmente realizado, é na verdade uma
das poucas oportunidades abertas aos trabalhadores para melhorar seu
nível de renda, pois as ocupações mais bem pagas dependem em geral

 Migrantes rurais


de uma escolarização prévia que o trabalhador não possui, nem pode
obter. É interessante notar que as aspirações para os filhos, ao contrário
das próprias, se dirigem não no sentido do trabalho por conta própria,
mas no de aproveitar as oportunidades educacionais que a cidade abre
às novas gerações, que são valorizadas na medida em que se apresentam
como instrumento para a realização dos ideais ocupacionais que prezam
o trabalho não manual. Na verdade, a escola está longe de ser um ins-
trumento perfeitamente adequado para promover a ascensão ocupacio-
nal, especialmente a que per mite a passagem para o trabalho não
manual. Isto ocorre em parte porque o currículo escolar é inadequado e
a adaptação à escola é difícil, e em parte porque as exigências para o
preenchimento dessas ocupações não se limitam à escolarização, mas
incluem requisitos ligados a estereótipos de classe associados a padrões
urbanos de vida: trata-se de uma certa exigência na qual a apresentação
pessoal, no modo de falar e vestir, na utilização fácil de normas formais
de polidez, que só são adquiridas no processo de socialização extra-
escolar. O preconceito racial, embora não analisado na minha pesquisa,
deve ser um fator importante nesse processo.
A escola é portanto um canal de ascensão social restrito, mesmo
para os jovens. Para a grande maioria da população migrante, que não
pode obter qualificação através da escola, as possibilidades de ascen-
são estão limitadas à qualificação que possam obter no emprego, e que
são bastante restritas.3
Embora os migrantes possuam aspirações ocupacionais bem defi-
nidas, o sucesso da migração não parece ser avaliado, em última análise,
em termos da natureza da ocupação, mas do nível de consumo. Os tra-
balhadores acham que a migração foi um sucesso quando passam a
“viver melhor”, “ter mais conforto”. A posse de utilidades domésticas
como rádio, fogão a gás, móveis e televisão é sempre motivo de orgu-
lho, mas a prova mais palpável de haverem vencido na vida consiste na
aquisição da casa própria. Mas, e este é o ponto principal, o nível de
vida depende não apenas da remuneração individual, mas do número
de pessoas ocupadas na família.
Um migrante idoso ou uma mãe de família, que não tem sequer
ocupação regular estável, pode gozar de bom padrão de vida e conside-
rar a migração bem-sucedida porque chefia uma família em que há três

. Sobre essa questão, ver Pereira .


ou quatro filhos regular mente empregados. A aquisição de uma renda
relativamente elevada, que é resultado do ganho conjunto de um grupo
de irmãos e irmãs, garante inclusive segurança econômica muito maior.
E como não é necessariamente desastroso o desemprego temporário de
um ou outro membro da família, pode haver mais facilidade em aban-
donar empregos pouco compensadores e procurar ocupações mais van-
tajosas. Mais ainda, só a presença de uma família numerosa per mite a
liberação da mão-de-obra infantil, e às vezes da juvenil, para aproveitar
as oportunidades educacionais existentes. A extensão do período educa-
cional dos jovens depende do nível de renda da família, e este, do
número de pessoas empregadas. Nesse sentido, a presença de um grupo
familial numeroso apresenta vantagens bem definidas em ter mos de
possibilidade de ascensão social e de segurança econômica para o grupo
no seu conjunto. Convém também não esquecer que, quando há diver-
sas pessoas empregadas, os que conseguem melhor colocação atraem os
parentes para a mesma empresa ou ofício, beneficiando todos.
Portanto, as possibilidades de ascensão social são maiores para as
famílias numerosas, com muitos filhos. Mas a manutenção de uma uni-
dade doméstica nessas condições depende também da manutenção da
disciplina que regula as relações intrafamiliais, que é função dos pais.
Ao pai ou à mãe cabe centralizar e redistribuir os ganhos individuais,
impor a disciplina que garante a freqüência dos mais jovens na escola,
mediar o auxílio mútuo entre irmãos. A presença de indivíduos mais
idosos no contingente migratório é importante economicamente, na
medida em que eles chefiam e mantêm unidos grupos familiais que
constituem unidades importantes de cooperação econômica.
Mas, se as condições de integração do trabalhador migrante favo-
recem as famílias numerosas, isto só é verdade para as famílias que se
formaram antes da migração, ainda na região de origem, porque a vida
urbana dificulta enor memente a constituição de famílias com muitos
filhos, tornando a prole muito onerosa para o trabalhador. Na situação
urbana, o trabalhador está na dependência total do salário, pois não
produz diretamente a própria subsistência. O desemprego, nessas con-
dições, cria situações de crise tão agudas, que, sem o apoio de um grupo
externo à família conjugal, só podem ser resolvidas pela mendicância ou
criminalidade. A situação é particularmente grave no caso de casais com
filhos imaturos, que se acham na dependência do salário de um único
membro, o marido. O modo de emprego próprio do mundo urbano-

 Migrantes rurais


industrial, que exige a locomoção do trabalhador e a observância de
horários rígidos, tende a excluir as mães de família da força de trabalho
regular mente constituída e levá-las para o emprego doméstico, espe-
cialmente como diaristas. Nesses casos, o trabalho feminino é normal-
mente definido como “ajuda” prestada ao marido. Paralelamente, a falta
de qualificação da grande maioria do contingente migrante e as condi-
ções gerais do mercado de trabalho tor nam o desemprego ou subem-
prego uma situação freqüente, que se apresenta como ameaça constan-
te à sobrevivência da família. É nesse sentido que a presença de um
grupo amplo de parentes próximos, pais e irmãos principalmente,
representa um elemento importante de segurança, pois eles constituem
apoio seguro nas situações de crise, emprestando dinheiro, abrigando e,
principalmente, mobilizando-se para conseguir um emprego.
Sem apoio das famílias de origem, dada a insuficiência do salário
de trabalhadores pouco qualificados para prover à subsistência da
mulher e dos filhos pequenos, os casamentos legais ou consensuais, fre-
qüentemente decorrentes de uma gravidez indesejada, implicam uma
drástica redução do nível de consumo, e provocam tensões insolúveis
na família em formação. O abandono da mulher e dos filhos pelo pai se
torna um fenômeno freqüente. Se a mãe tiver que prover sozinha à sua
subsistência e à dos filhos, se torna quase impossível o estabelecimento
de uma situação doméstica estável, que per mita uma socialização ade-
quada das crianças e dos jovens e, inclusive, a freqüência à escola, a não
ser que se conte com a ajuda de algum parente próximo, como avós ou
tias. Nestas condições, cria-se um círculo vicioso de pobreza e margina-
lidade ocupacional, o qual pode levar inclusive à criminalidade.
Devemos considerar ainda que o grupo de relações primárias,
especialmente a unidade doméstica e o círculo de parentes mais próxi-
mos constituem, mesmo no universo urbano, a unidade fundamental de
vida social, pois é a única na qual a participação continua a envolver,
necessariamente, a totalidade da pessoa. É portanto o único grupo que
pode dar ao indivíduo o tipo de apoio total e incondicional que a inse-
gurança própria de uma situação de mudança torna tão necessário. Essa
importância social da família é realçada pelo fato de que as instituições
assistenciais são burocráticas, impessoais, precárias e insuficientes. A fa-
mília e o grupo de parentes constituem ainda o grupo assistencial por
excelência, e se apresentam como indispensáveis inclusive à segurança
econômica dos indivíduos.


Essas observações permitem compreender a persistência, na cida-
de, de laços de parentesco que parecem contradizer o individualismo
que se considera próprio de uma civilização industrial. Na verdade, não
parece que a migração para a cidade contribua, a curto e médio prazo,
para a dissolução dos vínculos de parentesco, embora possa diminuir
sua amplitude.
Isso não quer dizer que a organização e as funções dos grupos
domésticos não se alterem. A individualização do trabalho e o aprovei-
tamento diferencial de oportunidades educacionais provocam altera-
ções pronunciadas na organização da família.
Quando a família se dirige para a zona rural, o grupo doméstico
persiste como unidade produtiva, pois o trabalho agrícola é um traba-
lho eminentemente familial. Na zona urbana, ao contrário, o emprego é
sempre individual, e como as oportunidades de trabalho tendem a favo-
recer os mais jovens em detrimento dos mais idosos, subverte-se fre-
qüentemente a base econômica da autoridade pater na. Os pais, não
encontrando trabalho bem remunerado, passam a depender economica-
mente dos filhos, criando problemas pessoais às vezes bastante agudos.
Por outro lado, as oportunidades de recreação e consumo que se abrem
ao jovem contribuem para separar as gerações, criando conflitos na
família. Mas o próprio fato de o jovem contribuir para a manutenção da
família, constituindo muitas vezes seu principal suporte econômico, cria
novos laços de dependência que tendem a manter unido o grupo do-
méstico. E o grupo assim reconstituído age como suporte para as aspi-
rações de mobilidade social de seus membros.

***

As migrações inter nas que canalizam para São Paulo trabalhadores de


outras unidades da Federação constituem um fenômeno de redistribui-
ção de mão-de-obra que decorre do desenvolvimento diferencial das
regiões do país. Mas essa movimentação de população não pode ser
entendida plenamente se desconsiderarmos os aspectos particulares que
revestem o fenômeno.
A migração não se apresenta como um deslocamento de indivíduos
isolados, mas se orienta de acordo com uma rede de relações sociais per-
sonalistas. Mantendo e reformulando as relações sociais estabelecidas na
terra de origem, o migrante manipula o seu equipamento cultural tradi-

 Migrantes rurais


cional para conseguir um ajustamento satisfatório às novas condições de
vida. Tem lugar assim, no plano individual, a passagem de um universo
pré-industrial para uma sociedade em processo de desenvolvimento.
Apoiado no grupo familial, sem encontrar barreiras de linguagem
à comunicação, o migrante nacional não sofre, como ocorre freqüente-
mente com o estrangeiro, uma redução drástica de seu universo de par-
ticipação social. Ao contrário, vindo de um universo relativamente
fechado e pobre, as novas formas de participação social, as novas situa-
ções de trabalho e recreação, próprias da cidade proporcionam um
enriquecimento da experiência, que é sentido como enriquecimento da
própria personalidade.
É verdade que a migração nem sempre é bem-sucedida. O mi-
grante pode não conseguir as qualificações mínimas que per mitam a
passagem a trabalhador regularmente admitido numa empresa. Se não
possuir parentes que o auxiliem e sustentem, passam a viver de modo
permanente a situação de subemprego. As tensões geradas pela remune-
ração irregular e insuficiente tendem a destruir ou impedir a formação
de núcleos domésticos estáveis, desorganizando os mecanismos de con-
trole social tradicionais, que não são substituídos por outros. Criam-se
então desajustamentos que tendem a se perpetuar pela procriação fora
de grupos domésticos estáveis, impossibilitando uma socialização ade-
quada aos imaturos, e transferindo para a geração seguinte as mesmas
condições de miséria da geração anterior.
Apesar disso, a migração deve ser vista, no conjunto, como um
fenômeno positivo, por meio do qual inúmeros brasileiros conseguiram
romper o isolamento e a pobreza a que estavam condenados, e passam a
se integrar nas correntes mais dinâmicas e produtivas da população
nacional.


Capítulo 

  :        


Malinowski foi o primeiro antropólogo que eu li, quando ainda estava no
colegial, e o fascínio que ele desper tou em mim foi um dos motivos que me
levaram a cursar ciências sociais. Esse fascínio nunca arrefeceu. De fato, foi
a par tir da análise da obra etnográfica de Malinowski, da qual resultou
minha tese de livre-docência intitulada A reconstrução da realidade [1978],
que construí o conceito de cultura com o qual tenho trabalhado e que é dis-
cutido em outros textos desta coletânea.
Este artigo em particular foi escrito como introdução a uma coletânea
de trabalhos de Malinowski. O original incluía a apresentação de cada um
dos artigos que compunham o livro, a qual foi retirada nesta versão.
Malinowski: uma nova visão da antropologia*

A obra de Bronislaw Malinowski move-se dentro de uma contradição:


à enorme riqueza, vivacidade e complexidade da descrição etnográfica
opõe-se o simplismo de certas concepções teóricas, que facilita a crítica
destrutiva e concorre para encobrir a importância real de sua contribui-
ção à antropologia moderna.
Essa coexistência de interpretações extremamente originais, com-
plexas e profundas com conclusões apressadas e superficiais, ambas
defendidas com igual zelo e paixão, refletem, na obra, as facetas da per-
sonalidade do autor. Professor brilhante, crítico impiedoso, simultanea-
mente compreensivo e intransigente, Malinowski despertou, ao longo
de sua carreira, admiração fervorosa e oposição implacável, influindo, de
um modo ou de outro, em toda uma geração de antropólogos.
Sua carreira foi muito rápida. Já em  publicava o seu primeiro
livro, The Family among the Australian Aborigenes, baseado integral-
mente em fontes bibliográficas, como quase toda a literatura antropoló-
gica da época. O que encontramos de fundamental nesse livro pouco
conhecido é uma crítica radical ao evolucionismo então vigente, e a
proposta de um modo novo de interpretação etnográfica influenciado
por Durkheim, que evoluiria para o que se convencionou chamar de
“funcionalismo cultural”.

***

Esse período, em que Malinowski inicia sua carreira, está marcado por
uma enor me efervescência intelectual na antropologia. A publicação,

* Publicado originalmente como “Uma nova visão da Antropologia”, introdução ao livro


Malinowski (org. E. Durham), Coleção Grandes Cientistas Sociais, sob a coordenação de
Florestan Fernandes. São Paulo: Ática, .


no final do século , da obra de Spencer & Gillin sobre a Austrália,
baseada em material colhido diretamente com os nativos,1 e a organiza-
ção, na mesma época, da Expedição Cambridge ao estreito de Torres – a
primeira grande expedição antropológica, que contou com a participa-
ção de Haddon, Rivers e Seligman – abriram novas fronteiras para a
antropologia. A pesquisa de Rivers entre os Todda em  e o extenso
levantamento da Melanésia empreendido por Seligman em  iniciam
na Inglaterra a grande fase do trabalho de campo, que Malinowski iria
revolucionar. Nessa mesma época, nos Estados Unidos, Boas promovia
igualmente a pesquisa de campo, construindo uma outra abordagem
culturalista. A experiência desses pioneiros, acrescida da reflexão teóri-
ca de Durkheim, formou uma nova geração de antropólogos, que trans-
for mou profundamente essa disciplina. Malinowski é uma das figuras
centrais dessa geração.
A experiência de campo de Malinowski iniciou-se em , entre
os Mailu (Malinowski ) na Melanésia, sobre os quais publicou, no
mesmo ano, uma pequena monografia. Impedido de voltar à Inglaterra
no início da Primeira Guerra Mundial, começou então nova pesquisa
que o levou às ilhas Trobriand, pequeno arquipélago situado a nordes-
te da Nova Guiné, cujos habitantes ele tornaria mundialmente famosos
através de inúmeros artigos, ensaios e três grandes monografias.
Sua primeira per manência entre os trobriandeses estendeu-se de
junho de  a maio de . Voltando à Austrália, de onde partira,
passou cerca de um ano e meio trabalhando o material que coletara. Em
outubro de  inicia nova estada, de um ano, entre os trobriandeses.
Essa longa convivência com um único povo primitivo, o aprendizado e
a fluência a língua nativa constituem imensa inovação na técnica de tra-
balho de campo, permitindo uma análise em profundidade de uma cul-
tura diferente da nossa.
Embora não se possa dizer que essa experiência de trabalho de
campo tenha sido responsável pela orientação metodológica desenvol-
vida por Malinowski, uma vez que suas premissas básicas já estavam
presentes de modo muito claro no trabalho sobre os aborígines austra-
lianos, não resta dúvida de que sua longa permanência entre os nativos
teve influência decisiva em toda a sua obra posterior. A vivência da

. Na verdade, a obra de Spencer & Gillin constitui a principal fonte do trabalho de Mali-
nowski sobre os aborígenes assim como As formas elementares da vida religiosa, de Durkheim.

 Malinowski: uma nova visão da antropologia


situação de campo e as características da sociedade trobriandesa forne-
ceram os materiais com os quais Malinowski desenvolveu sua visão par-
ticular do objeto e do método da antropologia.
Depois de deixar as ilhas Trobriand, Malinowski escreveu sua pri-
meira monografia sobre os trobriandeses, Argonautas do Pacífico Oci-
dental. Em  retor nou à Inglaterra, onde por mais de vinte anos
lecionou e escreveu. Viajou muito durante todo esse período, mas so-
mente em  voltou a campo, desta vez na África do Sul e por apenas
três meses, para acompanhar o trabalho que seus discípulos realizavam
então em diversas tribos africanas. Frutos dessa viagem são suas refle-
xões sobre o processo de mudança cultural, já criticadas na época e hoje
totalmente superadas.
Em , Malinowski dirigiu-se para os Estados Unidos, que já
visitara duas vezes, por breves períodos. Com a eclosão da Segunda
Guerra Mundial, sua per manência na América tor nou-se definitiva.
Datam dessa época suas viagens ao México, onde começou a estudar os
mercados indígenas. Faleceu em New Haven, em , deixando uma
obra volumosa.

***

A característica central do trabalho de Malinowski é a habilidade com


que consegue criar, para o leitor, a imagem viva e humana de um povo
completamente diferente de nós. Através da leitura de seus trabalhos, os
trobriandeses se tornam próximos e familiares, seus costumes estranhos
se tornam compreensíveis, os “selvagens” se tornam homens.
Essa recriação da vida trobriandesa se apóia numa imensa riqueza
de infor mações, que traduz a valorização dos dados empíricos, cuja
coleta, para Malinowski, é simultaneamente uma ciência e uma arte. Ele
jamais se contenta com uma única afir mação obtida de um infor mante
privilegiado: coteja diferentes informações, verifica-as através da obser-
vação direta do comportamento das pessoas em situações sociais espe-
cíficas, examina a coerência daquilo que observou em outras situações,
analisa o conteúdo emocional do comportamento manifesto. Para ele, é
necessário contrapor as idéias às emoções, o comportamento observado
ao comentário que sobre ele tece o nativo, a visão que o antropólogo
constrói da cultura à síntese inconsciente que, presente “na cabeça do
nativo”, orienta e dá significado às suas ações.


Esse respeito aos dados empíricos e o virtuosismo na sua manipula-
ção são essenciais na obra de Malinowski porque, sem eles, é impossível
caracterizar e preservar aquilo que constitui uma preocupação central
do autor: a especificidade de cada cultura. A preservação dessa especifi-
cidade é fundamental, porque só através dela é possível entender o
comportamento concreto de seres humanos reais que vivem uma reali-
dade cultural diferente da nossa.
O pressuposto contido nessa posição é o de que o comportamento
do “primitivo” não é nem incoerente nem irracional, mas se explica por
uma lógica própria que precisa ser descoberta pelo investigador. Para
Malinowski, a visão do homem “primitivo” como ignorante, atrasado,
supersticioso, irracional e infantil, visão essa até então comum mesmo
em obras de cunho científico, é decorrência de um defeito da observa-
ção, e não reflexo de uma propriedade do objeto. Resulta de um contato
superficial, dependente de entrevistas feitas com tradutores, na base de
um questionário previamente preparado. A busca de instrumentos de
investigação apropriados para superar essa visão está permeada por um
humanismo apaixonado, que defende de modo intransigente a dignida-
de humana dos chamados “povos primitivos”.
Assim, podemos dizer que o grande mérito da obra de Malinowski
reside na sua capacidade de reconstruir, como universo integrado de sig-
nificados, uma experiência cultural específica. E que a obtenção desse
resultado não pode ser considerada como simples produto de uma intui-
ção feliz, mas está assentada numa reflexão teórica que encaminha novas
técnicas de investigação e novos instrumentos de análise capazes de cap-
tar e preservar a especificidade da realidade que se deseja investigar.
Essa reflexão teórica está baseada numa crítica radical a certos
postulados e métodos da antropologia clássica (evolucionista ou difu-
sionista), crítica esta, aliás, compartilhada por todos os autores comu-
mente designados como funcionalistas. O fundamento dessa crítica
dirige-se à natureza das unidades de análise empregadas pelos autores
clássicos, nos quais a reflexão teórica deriva da comparação entre cul-
turas diversas e procede a um desmembramento da realidade em itens
separados de seu contexto cultural: tecnologia, crenças, mitos, organi-
zação familiar, parentesco e assim por diante. A manipulação compara-
tiva desses fragmentos leva à composição de categorias nas quais o
arranjo entre as partes é imposto pelo investigador e não pode, portan-
to, conferir uma unidade real ao objeto. Perde-se assim a possibilidade

 Malinowski: uma nova visão da antropologia


de atingir o significado desse objeto, assim como a de entender as dife-
rentes culturas e sociedades.
A contrapartida positiva dessa crítica consiste na afirmação, já for-
mulada por Boas, de que os elementos culturais não podem ser manipu-
lados e compostos arbitrariamente, porque fazem parte de sistemas con-
cretos definidos, e sua natureza e sentido dependem da posição que
ocupam nesse sistema. A noção de que a realidade social só pode ser
apreendida enquanto sistema constitui a base e a origem dos conceitos
de totalidade, de integração e de função na análise da cultura, conceitos
esses que são centrais no funcionalismo.
Para se entender o alcance e a limitação da obra de Malinowski é
fundamental analisar o modo pelo qual ele manipula e como define
esses conceitos, numa perspectiva essencialmente culturalista.
Seguindo a orientação clássica da antropologia, Malinowski conce-
be a cultura como um conceito muito amplo que engloba a tecnologia, as
relações sociais ordenadas através de regras, as crenças, o ritual, a arte,
isto é, tudo aquilo que é produto da vida do homem em sociedade. A ino-
vação de Malinowski na utilização desse conceito está em tentar apreen-
der a cultura não apenas como conjunto de manifestações, mas como sínte-
se integrada de uma multiplicidade de aspectos. O comportamento
concreto de pessoas reais constitui sempre uma unidade multifacetada,
que engloba necessariamente a utilização de objetos, a atividade grupal e
a manipulação de símbolos. Elementos materiais, relações sociais, expres-
sões simbólicas constituem as três faces de uma única realidade, e não é
possível entender nenhuma delas sem as demais. Por isso mesmo, Mali-
nowski sempre se recusou a dissociar o social do cultural, não podendo
compreender a cultura como limitada quer à dimensão simbólica do com-
portamento humano, quer às formas aparentemente arbitrárias do costu-
me. A grande contribuição de Malinowski é a de ter sempre presente, em
todos os momentos da análise, a integração entre ação e representação; e
foi este aspecto que procurei resgatar em meu trabalho.
É essa integração que nos per mite compreender o significado do
conceito de totalidade para Malinowski. Não deixa de ser paradoxal que
este autor, tão preocupado com a idéia da totalidade e que escreveu
tanto sobre os trobriandeses, jamais tenha apresentado uma visão de
conjunto integrada de sua cultura e de sua sociedade. As três grandes
monografias que escreveu sobre eles têm como temas o kula (o comér-
cio cerimonial intertribal), a vida sexual e a atividade agrícola. Os ensaios


menores abordam temas semelhantes. Tampouco encontramos, em
qualquer de seus trabalhos, uma análise específica do sistema econômi-
co, sociopolítico, ou mágico-religioso. Entretanto, a leitura de cada um
deles cria uma vívida impressão de que a cultura trobriandesa pôde ser
visualizada no seu conjunto, porque essas diferentes dimensões da vida
social estão igualmente presentes em todos os trabalhos, qualquer que
seja seu tema central.
A abordagem de Malinowski consiste em tomar como unidade de
análise um segmento concreto da vida do povo estudado, quer se trate
de uma instituição propriamente dita, como o kula, de um aspecto social,
como a vida sexual, ou de uma atividade específica, como a agricultura.
Na verdade, esse tipo de unidade de análise apresenta muitas semelhan-
ças com o que Marcel Mauss denominou “fato social total”, conceito
este, aliás, que deve muito à leitura dos trabalhos de Malinowski.2
A semelhança reside, em primeiro lugar, em que para Malinowski
a unidade de investigação não resulta puramente da manipulação analí-
tica do pesquisador, mas deve corresponder a uma unidade empirica-
mente delimitada e reconhecida como tal pelos membros da sociedade
estudada – isto é, deve existir como unidade tanto para o observador
quanto para o observado, como o caso do kula, da família, da aldeia etc.
E, na medida em que consiste num “pedaço de existência”, a instituição,
como fato social total, é sempre uma unidade multidimensional, inclui
necessariamente dimensões materiais, sociais e simbólicas, engloba
aspectos econômicos, jurídicos, mágico-religiosos, ação e representa-
ção, e se relaciona com outras instituições (o ritual e as atividades agrí-
colas, por exemplo).
Decorre disso, em primeiro lugar, que a inter-relação entre dife-
rentes fenômenos ou entre aspectos diversos da realidade social, preco-
nizada pelo funcionalismo, não constitui para Malinowski um processo
de estabelecer, num mesmo plano horizontal, relações e contra-relações
infindáveis; ou seja, essas inter-relações estão centradas nos isolados ou
unidades postuladas pela própria sociedade – as instituições – que esta-
belecem focos “naturais” ou “alternativas” de ordenação e correlação.

. O mesmo, aliás, se pode dizer do conceito de reciprocidade e do fenômeno da troca de


presentes, desenvolvidos no belo trabalho “Ensaio sobre a dádiva” [-], que constitui
uma reflexão teórica baseada, em grande parte, no material levantado e analisado por Mali-
nowski. A reverência que os antropólogos franceses dedicam a Mauss os tem levado a igno-
rar a profunda influência de Malinowski na sua obra.

 Malinowski: uma nova visão da antropologia


Mais ainda, nessas unidades, a interdependência entre os diferentes
aspectos não é uma simples cadeia horizontal de correlações equivalentes,
mas deve apresentar-se propriamente como integração sintética de múlti-
plos aspectos e níveis da realidade, integração essa que permite atingir o
verdadeiro significado dos fenômenos culturais. Finalmente, a síntese,
que é o resultado da investigação, possui sempre uma referência concre-
ta, que constitui, simultaneamente, a prova da adequação da análise, que
é dada pela integração entre os significados presentes e implícitos no
comportamento e nas atitudes dos agentes sociais. Para Malinowski, o
comportamento concreto de seres humanos reais é o ponto de partida
necessário, a referência constante e a verificação última de toda pesquisa.
Pode-se observar facilmente que a realização dessa tarefa de inves-
tigação envolve métodos de pesquisa e um mecanismo interpretativo
extremamente complexos. A integração de significados que está presen-
te no comportamento expressa uma multiplicidade de deter minações
que não estão igualmente aparentes no nível da conduta, e que não
podem ser reconstituídas se a observação estiver limitada ao comporta-
mento aparente. A conduta específica é a referência constante da análi-
se, mas não o limite da observação nem o da interpretação. Assim, para
explicar o kula, para apreender o significado das ações dos homens con-
cretos que o realizam, é necessário conhecer as relações sociais que os
unem. Mas não é só isso. O kula envolve objetos e instrumentos cuja
importância e papel não podem ser aferidos por quem ignore o sistema
econômico das ilhas. Mais ainda, esse sistema envolve práticas mágicas
e crenças religiosas cujo significado depende de um conhecimento pro-
fundo de toda a religião nativa. O processo de reconstrução da reali-
dade se move, portanto, constantemente entre o nível da instituição e o
nível dos sistemas analíticos nos quais a cultura pode ser decomposta
(econômico, político, jurídico, religioso etc.), com a subordinação deste
último nível ao primeiro.
Daí o significado da injunção de estudar toda a cultura pois, dada
a interconexão entre os diferentes aspectos culturais que incidem numa
instituição, apenas o levantamento exaustivo pode assegurar elementos
suficientes para estabelecer todas ou pelo menos as principais conexões
relevantes, ou para seguir as ramificações de um fenômeno em todas as
suas manifestações essenciais. Nesse sentido podemos dizer que a inte-
gração dos elementos culturais na totalidade da cultura é antes o pressu-
posto metodológico da análise do que o objeto da investigação.


Para Malinowski, a tentativa de atingir a totalidade por meio da
análise independente de cada um dos aspectos nos quais a realidade
pode ser decomposta (econômico, social, simbólico etc.) produz uma
visão incompleta e defor mada, porque a conexão entre esses sistemas,
buscada a posteriori, só pode ser formal, distanciando-se da conexão real
que é dada concretamente no comportamento dos homens. Deve-se
buscar a possibilidade de apreender as condições de produção dos fenô-
menos sociais e, portanto, é necessário que as decomposições analíticas
estejam subordinadas à reconstituição sintética da realidade em todos os
momentos da análise.
O conceito de função, nesse tipo de análise, é justamente o instru-
mento que per mite o movimento entre os diferentes aspectos da insti-
tuição e os sistemas analíticos que neles se refletem.
A importância que Malinowski atribui à conduta implica sempre
uma preocupação muito marcada com as motivações individuais, o que
exige levar em consideração tanto as motivações conscientes como as
inconscientes, que são imprescindíveis para o desvendamento das rela-
ções existentes entre a produção coletiva da vida social, de um lado e, de
outro, o significado subjetivo que as ações possuem para os membros de
uma sociedade deter minada. Esse tipo de investigação exige, portanto,
que se supere a consciência restrita dos agentes (isto é, as categorias do
observado) para atingir conexões gerais, construídas pelo investigador.
Essa possibilidade é dada pela utilização do conceito de função e
pela distinção, na análise da instituição, entre as normas e o comporta-
mento real, entre a consciência das normas e seus efeitos mais amplos.
Para Malinowski, a função não se confunde com objetivo ou fina-
lidade consciente das ações. No ensaio intitulado “Uma teoria científica
da cultura” (), o autor distingue claramente, na instituição, de um
lado, o estatuto (charter), definido como a idéia da instituição tal como é
concebida pelos seus membros e fixada pela comunidade; de outro, a
função, que corresponde ao papel da instituição no esquema total da
cultura, tal como é definido pelo investigador. Para se atingir a função,
é importante considerar a diferença entre as normas ou regras que cor-
respondem a um ideal de comportamento e as atividades efetivamente
desempenhadas pelos agentes sociais, pois é através da análise das ativi-
dades e de suas conseqüências que o investigador encontra condições
para superar a consciência sempre parcial que os homens possuem de
sua própria cultura.

 Malinowski: uma nova visão da antropologia


Entretanto, essa mesma preocupação com as motivações indivi-
duais e, especialmente, com a carga afetiva contida nas ações humanas
é responsável também pelo “psicologismo” que diferentes autores têm
criticado em Malinowski. As críticas que lhe têm sido dirigidas nem
sempre reconhecem que esse psicologismo tem uma conotação social.
Trata-se propriamente daquilo que, no trabalho sobre os australianos,
Malinowski definiu como “idéias e sentimentos coletivos”. Nas análises
mais bem-sucedidas o psicologismo é superado, porque então não se
trata de explicar o social pelo psicológico, mas de reconhecer que é só
na experiência concreta de homens reais que é dada, concretamente, a
síntese da multiplicidade dos aspectos do real. Entretanto, é necessário
reconhecer que Malinowski às vezes merece as críticas que lhe são diri-
gidas, pois muitas vezes simplifica a análise e, em lugar de buscar as for-
ças sociais que provocam a emergência de sentimentos e idéias padroni-
zados, inverte a questão para demonstrar os efeitos sociais das forças
psicológicas. Esse procedimento, que per meia toda a sua análise da
família e da magia, freqüentemente obscurece, com conclusões apressa-
das, a riqueza do processo explicativo. Mas não se trata apenas disso.
Toda a questão do psicologismo prende-se também a uma dificuldade
teórica central que está implícita em sua teoria das necessidades básicas.
Como mostramos até agora, as conexões funcionais e o significado
dos fenômenos que Malinowski apreende na investigação etnográfica
estão presos a conteúdos culturais particulares, aos costumes e às repre-
sentações dos nativos. Toda explicação, portanto, é uma explicação do
particular. Entretanto, a própria possibilidade de conhecimento de uma
cultura diversa da nossa, o confronto de nossas categorias com aquelas
que presidem a ordenação do universo do nativo, tudo isso pressupõe
uma comunicabilidade entre a subjetividade do observador e a do ob-
servado, que só pode se fundar em algo que é comum a ambos e que se
apresenta como geral a todas as culturas humanas. Mais ainda, a própria
justificação da existência da antropologia implica a admissão de que é
possível se chegar, pelo estudo de um povo primitivo, a um conheci-
mento que seja de importância geral, isto é, válido para outros povos
em outras circunstâncias.
Malinowski preocupou-se com esses problemas, e toda a sua refle-
xão teórica, freqüentemente apresentada sob a forma de artigos, pode
ser interpretada como uma tentativa de resolvê-los. Entretanto, nessa
tentativa, ele operou um reducionismo que desprezou algumas das


questões centrais da antropologia e que particular mente estão presen-
tes, com excepcional sutileza, em suas análises etnográficas.
Na imensa diversidade das culturas humanas, é necessário expli-
car, simultaneamente, a ocorrência de semelhanças e diferenças. Se cada
cultura possui uma especificidade, existem, por outro lado, inúmeros
fenômenos que são recorrentes, mesmo que não universais. Mais ainda,
essas semelhanças e convergências, como já havia mostrado Boas no
final do século , não podem ser atribuídas unifor memente à mera
existência de processos de difusão cultural, nem podem ser interpreta-
das como produto de um mesmo processo histórico.
Malinowski simplifica extraordinariamente a questão ao reduzi-la
toda a apenas dois planos: de um lado, o particular, o específico, a cultu-
ra trobriandesa que estudou e compreendeu; de outro, o universal, a
“Cultura Humana” em geral, o que existe de semelhante em todas as cul-
turas. Preso a esses dois extremos e buscando uma relação direta entre
eles, Malinowski abandonou, na reflexão teórica, aquilo que Boas definia
como a tarefa fundamental da antropologia: a análise dos processos cons-
cientes e inconscientes de elaboração cultural, sem cujo conhecimento
não podemos explicar a produção das semelhanças e diferenças. Desse
modo, por concentrar toda a sua reflexão teórica no problema da univer-
salidade da Cultura, Malinowski perdeu a possibilidade de explicar tanto
a diversidade dos fenômenos culturais quanto a sua convergência.
Buscando o que poderia haver de geral por trás da particularidade
dos costumes e da especificidade da vida cultural de cada povo, Mali-
nowski estabelece que são as próprias características biológicas do
homem que deter minam necessidades básicas, as quais, devendo ser
satisfeitas por todas as culturas, for necem parâmetros universais do
desenvolvimento cultural que nos dão, de imediato, sua comparabilida-
de. Por outro lado, como a satisfação dessas necessidades básicas pode
ser realizada de modos diversos, e como qualquer deles implica o esta-
belecimento de necessidades derivadas, também atendidas de modo
específico, explica-se simultaneamente a universalidade da Cultura e a
particularidade das culturas. Assim, referindo as necessidades humanas
(básicas e derivadas) a imperativos de natureza biológica, Malinowski
tenta fundamentar a universalidade dos aspectos da Cultura na universa-
lidade de suas funções últimas. Todo o complexo problema da dimensão
simbólica do comportamento, que constitui o cerne de suas monografias,
desaparece na teoria.

 Malinowski: uma nova visão da antropologia


O apego demonstrado por Malinowski a esse reducionismo biologi-
zante, que se prolonga freqüentemente num utilitarismo simplista, deve-
se ao fato de que ele aparentemente resolve certos problemas teóricos
criados pelas premissas com as quais ele efetua a investigação empírica.
Em primeiro lugar, ele se afasta do formalismo inerente às formu-
lações estruturais, formalismo esse incompatível com a visão que Mali-
nowski possui da antropologia, uma vez que os aspectos biológicos são
não apenas universais, mas também “concretos”, isto é, não se reduzem
a um conjunto de relações ou pressupostos vazios de conteúdo.
Em segundo lugar, ele postula uma concepção instrumental de
cultura humana que permite justificar teoricamente sua crença na racio-
nalidade última de todas as manifestações culturais, uma vez que todas
elas, de uma forma ou de outra, satisfazem a necessidade humana.
Desse modo, tenta destruir definitivamente a idéia da irracionalidade
dos costumes e dos próprios homens “primitivos”, idéia essa que com-
bateu apaixonadamente durante toda a sua vida.
Finalmente, Malinowski estabelece uma ponte direta e imediata
entre a subjetividade do observador e a do observado e, ao mesmo
tempo, legitima a importância que sempre atribuiu ao conteúdo emo-
cional das ações humanas. Ele sempre afir mou que, na observação do
comportamento de um povo culturalmente diverso do nosso, os aspec-
tos emocionais diretamente relacionados à constituição biológica são os
mais imediatamente acessíveis à compreensão, do mesmo modo que são
as condutas voltadas para a satisfação de necessidades primárias as mais
facilmente interpretadas pelo pesquisador. Quando uma mulher ama-
menta uma criança, quando dois homens se enfrentam encolerizados,
quando comem e bebem, diz ele, não há nenhuma dificuldade em enten-
der o significado de suas ações. São os comportamentos rituais, aqueles
em que o conteúdo emotivo é menos visível e aqueles que não dizem
respeito diretamente à satisfação de necessidades básicas, os mais difí-
ceis de entender e explicar. O substrato comum a todos os homens, de
fundo “natural”, estabelece uma “ponte para a compreensão” das mani-
festações culturalmente elaboradas.
Assim, com a for mulação da teoria das necessidades básicas e de
sua elaboração cultural em necessidades derivadas, Malinowski enve-
reda por um caminho que o leva a definir os conceitos de totalidade,
integração e função de modo muito diverso daquele que estava implícito
na análise dos dados empíricos.


Na interpretação da cultura trobriandesa a noção de integração
(uma vez que o conceito não é explicitado nesse nível de análise) impli-
ca o estabelecimento de conexões funcionais entre os diferentes aspec-
tos de uma instituição e entre o nível institucional (o kula, a família, a
atividade agrícola) e o dos sistemas analíticos (econômico, social, mágico-
religioso). Opera, portanto, em grande parte, dentro da instituição e
entre as instituições, sendo um instrumento para a sua construção etno-
gráfica. Mas quando Malinowski teoriza sobre a Cultura (em geral), ele
passa a indagar qual a função (global) da instituição no seu conjunto, e
conclui que só pode ser a satisfação de uma necessidade, básica ou deri-
vada, assim empobrecendo extraordinariamente o conceito. O psicolo-
gismo também se insere nessa postura teórica.
Em nenhum de seus grandes trabalhos etnográficos o objeto da
investigação pode ser definido como sendo a determinação das necessi-
dades satisfeitas pelas atividades estudadas, mas corresponde à ordena-
ção dessas atividades em ter mos de sua integração de seu significado.
Não obstante, nos ensaios sobre religião e magia, emerge claramente a
noção de que ambas constituem formas de atenuar a insegurança emo-
cional no desempenho de atividades nas quais o resultado não pode ser
assegurado por uma competência técnica. O problema não é apenas o
do psicologismo. A verdade é que Malinowski, definindo “função” em
termos da instituição em seu conjunto, não só empobreceu esse concei-
to, como também o de instituição e o de totalidade. A partir desse mo-
mento, a totalidade da cultura passa a ser concebida como soma de ins-
tituições. A instituição deixa de ser cristalização da totalidade para
transformar-se em parte autônoma de um conjunto. E a reflexão dirige-
se para o beco sem saída de tentar formular uma classificação universal
das instituições. No final, pode-se dizer que, preso à busca de um uni-
versal que não fosse for mal, Malinowski perdeu a possibilidade de
alcançar um geral que fosse explicativo. As categorias com as quais tra-
balhou os dados empíricos são deixadas de lado em favor de elabora-
ções teóricas que se distanciam progressivamente das magníficas inter-
pretações que ele construiu a partir do trabalho de campo.

 Malinowski: uma nova visão da antropologia


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gens. Rio de Janeiro: Francisco Alves, .]


Capítulo 

   
A pequena análise que se segue do conceito de comunidade foi elaborada
como um verbete para a Enciclopédia Abril, e está associada às pesquisas
que eu então desenvolvia sobre movimentos sociais (ver cap. 10, infra).
A análise do conceito de comunidade é importante para compreender a
intensa utilização política que ele vem recebendo no Brasil. De fato, e especial-
mente a par tir do regime militar, o termo entrou em voga. Fala-se muito de
comunidade universitária, comunidades eclesiais de base e até comunidade dos
usuários de crack. O termo foi particularmente forte na Teologia da Libertação,
que teve influência profunda (mesmo que freqüentemente não reconhecida)
sobre esquerda brasileira e, em especial, tem sido muito utilizado pelo PT.
Na sua aplicação popular, de referência política, o termo faz parte do
que chamei de “conceito deslizante”. Um movimento pela criação de um
posto de saúde, um agrupamento para organizar um projeto de auto-constru-
ção, uma universidade, não constituem comunidades no sentido sociológico
estrito. Não supõem necessariamente que as pessoas tenham uma vida em
comum, um destino comum e que estejam radicadas num mesmo espaço, que
partilhem a mesma cultura e os mesmos valores. As comunidades, tal como
são nomeadas no Brasil, são organizações freqüentemente temporárias, for-
madas em função de objetivos comuns muito específicos e restritos, que ocu-
pam uma parte relativamente pequena da vida e do tempo das pessoas. O apelo
do termo reside na pressuposição, que a idéia de “comunidade” carrega consi-
go, de uma igualdade básica entre as pessoas e de uma vontade comum.
De fato, essas comunidades concebidas pelos movimentos sociais ten-
dem a criar um espaço interno e limitado de relações igualitárias. Todos são
considerados iguais enquanto participantes de um movimento de reivindica-
ção ou de proselitismo. Fora dele, podem morar longe uns dos outros, possuir
hábitos, valores, crenças, profissões e níveis de renda diversos. Essas comu-
nidades raramente incluem todas as pessoas de uma família, e por isso não
abarcam o grupo familiar que, este sim, partilha um destino comum.
Não estamos, por tanto, lidando com comunidades no sentido clássico,
como uma aldeia indígena ou camponesa. As comunidades tal como são
entendidas pelos movimentos políticos constituem um esforço de criação de
um espaço no qual se possa viver, dentro de limites bastante restritos, a expe-
riência de igualdade. Em uma sociedade tão marcada pela desigualdade, esta
experiência permite incorporar a igualdade não apenas como utopia irreali-
zável mas como experiência real, mesmo que momentânea. Ela dá um senti-
do muito próprio à idéia de democracia, for talecendo a concepção de uma
democracia direita cuja expressão privilegiada é a assembléia.
Comunidade*

Na linguagem comum, a noção de comunidade refere-se a uma coleti-


vidade na qual os participantes possuem interesses comuns e estão afe-
tivamente identificados uns com os outros. Essa idéia, que pressupõe
harmonia nas relações sociais, é altamente valorizada, constituindo, por
assim dizer, o ideal da vida social. É nesse sentido que a comunidade
aparece como um mito do nosso tempo, pois ao ideal que ela represen-
ta opõe-se a realidade do conflito de interesses e da impessoalidade das
relações sociais própria da nossa sociedade.
Na sociologia, o conceito de comunidade adquire grande impor-
tância por meio da obra de autores alemães, particularmente a partir de
Ferdinand Tönnies, apresentando-se sempre como um dos pólos de uma
dicotomia, em oposição ao conceito de sociedade. É sempre nesses ter-
mos que ela deve ser entendida. Para Tönnies, a comunidade é um tipo
de relação entre vontades humanas (ou, como se diria modernamente,
uma formação social) caracterizada por uma vontade social baseada na
concordância, nas regras sociais comumente aceitas e na religião.
Opõe-se à sociedade, que se caracteriza por uma vontade social basea-
da na convenção, na legislação e na opinião pública. Comunidade e
sociedade correspondem a períodos históricos particulares e, na histó-
ria humana, a sociedade é posterior à comunidade. Nesse sentido, o
conceito de sociedade pressupõe uma pluralidade de pessoas isoladas,
com interesses particulares, entre as quais se estabelece um vínculo de
natureza racional, cada qual buscando obter vantagens pessoais. O con-
ceito de sociedade implica uma “hostilidade” potencial. Em oposição, a
comunidade apresenta uma vinculação afetiva, originária e essencial.
Suas expressões mais típicas são a família e a aldeia.
Essa conceituação é refor mulada por Max Weber, na análise das

* Publicado originalmente como verbete no volume  da Enciclopédia Abril. São Paulo: .


relações sociais. Para ele, denomina-se comunidade “uma relação social
quando e na medida em que a atitude na ação social [...] se inspira no
sentimento subjetivo (afetivo ou tradicional) que têm os participantes de
constituírem um todo”. A comunidade é normalmente a contraposição
radical da luta, definindo-se essa última como uma relação social na
qual a ação se orienta pelo propósito de impor a própria vontade contra
a resistência de outra parte. Ela opõe-se, portanto, à chamada relação
societária, encontrada “quando e na medida em que a atitude na ação
social se inspira em uma compensação de interesses por motivos racio-
nais (de fins ou valores) ou também de uma união de interesses com igual
motivação”. Nesse sentido, comunidade e sociedade não correspondem
mais a períodos históricos particulares, pois a vida em sociedade pode
conter tanto relações comunitárias como societárias.
A oposição comunidade-sociedade corresponde, de certa forma, à
oposição entre solidariedade mecânica e solidariedade orgânica, intro-
duzida na sociologia francesa por Émile Durkheim. A solidariedade
mecânica caracteriza as sociedades onde não há divisão do trabalho e
onde, portanto, a união entre os membros deriva da própria semelhan-
ça entre eles, isto é, de sua identidade. A solidariedade orgânica, em
contraste, caracteriza as sociedades nas quais a divisão social do traba-
lho diferencia os grupos sociais e cria relações de interdependência
entre eles. Entre as duas for mas de solidariedade também existiria, se-
gundo essa corrente sociológica, tanto quanto na posição de Tönnies,
uma relação evolutiva.
Portanto, “comunidade” apresenta-se ora como conceito for mal,
caracterizando um tipo ou aspecto das relações sociais, ora como con-
ceito histórico-concreto, caracterizando épocas ou for mações sociais
particulares. Entretanto, em ambos os casos, associam-se à comunidade
as características de proximidade espacial, homogeneidade, afetividade,
consenso e participação numa totalidade. Em oposição, à sociedade são
atribuídas as propriedades da heterogeneidade, interdependência, ra-
cionalidade, bem como de luta e confronto.
Mais recentemente, Hans Freyer retomou os conceitos de comuni-
dade e sociedade, conservando sua referência a for mações histórico-
sociais concretas, que se sucedem no tempo. Nessa concepção, a co-
munidade aparece quer como uma estrutura social fundamental que
caracteriza a totalidade de uma for mação social (como no caso das
comunidades primitivas), quer como uma estrutura parcial, própria de

 Comunidade
grupos particulares numa sociedade complexa (grupos domésticos,
profissionais, de parentesco etc.). Nessa concepção, todas as comu-
nidades implicam a convivência num espaço comum, supondo que as
pessoas estejam fisicamente juntas. Não existe comunidade à distância.
A razão para isso é clara: viver em comum dentro do mesmo espaço
significa que todos estão sujeitos às mesmas condições, estando presos
ao mesmo estilo de vida. Nessas circunstâncias, uma seca ou uma inun-
dação, por exemplo, afetam a coletividade no seu conjunto e não a um
ou outro indivíduo, confor me este possua uma habitação melhor ou
pior, mais ou menos recursos para comprar alimentos etc., como ocorre
nas sociedades complexas. Se “comunidade” significa viver num
mesmo mundo, isso quer dizer que esse mundo está integralmente pre-
sente em cada um: o elemento essencial da estrutura comunitária é a
participação de todos numa mesma cultura, cujo conteúdo total é abar-
cado por cada indivíduo. Todos acreditam nos mesmos mitos, praticam
os mesmos cultos, conhecem as mesmas técnicas, manejam instrumentos
idênticos, obedecem às mesmas normas. Não se trata de harmonia, pois
numa comunidade, como em qualquer agregado humano, existem confli-
tos e paixões: porém esses conflitos se desenrolam num universo comum.
Existe uma analogia fundamental entre a comunidade e a língua: da
mesma forma que a totalidade da estrutura lingüística está presente em
todos aqueles que falam o mesmo idioma, a totalidade das potenciali-
dades da cultura é incorporada por cada um de seus membros. Isso não
quer dizer, entretanto, que não haja variações individuais – assim como
cada pessoa utiliza de modo diferente o mesmo idioma, cada um vive de
maneira própria a cultura da comunidade. Por isso, a forma de indivi-
dualização característica da comunidade é o que Freyer, seguindo Tön-
nies, denomina autoridade. Possuir autoridade é representar, de modo
mais pleno, um conteúdo que também se encontra nos demais. Assim, o
mesmo conteúdo espiritual varia com a diversidade dos indivíduos, e é
vivido ora masculinamente, ora femininamente; de modo juvenil ou
maduro; com generosidade ou egoísmo; com maestria ou incompetên-
cia. É na articulação das competências individuais que a comunidade se
converte numa estrutura sólida de sentimentos recíprocos.
Em oposição, o que caracteriza a sociedade não é a autoridade,
mas o domínio. Quem exerce o domínio não vive no mesmo mundo e
não participa do mesmo destino dos dominados. Possui conhecimentos,
normas, deveres e obrigações diversos, não sendo, portanto, afetado do


mesmo modo pelos acontecimentos. A sociedade nasce quando um grupo
social utiliza uma oportunidade de poder (qualquer que ela seja) sobre
outros grupos parciais, instituindo uma associação de dominação. Essa
idéia é semelhante à de luta, definida por Max Weber. Não se trata apenas
da existência de dois ou mais grupos, um dos quais submete os demais;
“sociedade” supõe um escalonamento per manente, uma conexão vital
entre os grupos parciais. Dessa forma, como ela é uma formação social
resultante de uma “tensão de domínio” entre grupos heterogêneos, traz
em si o germe das mudanças incessantes. Constantemente ocorrem
pressões de cima para baixo e de baixo para cima, a formação de cama-
das intermediárias, a dissolução e a reconstituição de estruturas: a socie-
dade é um processo histórico. A comunidade, ao contrário, exatamente
por constituir um universo homogêneo e fechado, não possui história
nesse mesmo sentido. Essa conceituação é profundamente fecunda para
a análise sociológica e permite entender, inclusive, por que a comunida-
de aparece como um mito ou ideal inatingível da nossa sociedade. Falar
em comunidade significa focalizar a atenção nos interesses comuns,
reais ou fictícios, ignorando os conflitos, contradições e oposições pró-
prias de uma estrutura de domínio, refugiando-se na afirmação de uma
concordância, homogeneidade e igualdade fictícias mas desejadas.
Diversamente dessa conceituação, algumas correntes da sociologia
americana abandonaram a oposição comunidade-sociedade, atribuindo
uma outra conotação à vida comunitária. O conceito deixa de ter uma
definição teórica clara, e “comunidade” se confunde, em grande parte,
com “grupo local”. É definida como um agregado conscientemente
organizado de pessoas que residem numa localidade específica, possuin-
do autonomia política relativa, sustentando instituições coletivas
comuns (como escola e igreja) e reconhecendo a existência de uma certa
interdependência entre si. Além de designar um agregado humano,
“comunidade” também se refere a um processo de interação social que
dá origem a atitudes e práticas de colaboração, cooperação e uniformi-
zação. Esse conceito de comunidade não se refere, portanto, a um tipo
de formação “comunitária”, diversa da “societária”, mas sim a unidades
territoriais de tamanho limitado, onde se realiza a vida social cotidiana.
Tais unidades são concebidas como conjuntos integrados por interesses
e atividades comuns (corporificados na escola e na igreja), que exigem
cooperação coletiva. A organização da comunidade é analisada em termos
de instituições como a família, o grupo de vizinhança e as associações

 Comunidade
voluntárias, e secundariamente em ter mos de organização política e
econômica, que a relacionam com a sociedade ampla. Os mesmos ele-
mentos do conceito “clássico” de comunidade estão presentes: espaço e
interesse comuns, sentimento de pertencimento, participação numa mes-
ma cultura. Mas estão presentes de uma forma atenuada, comportando
certo grau de diferenças de classe e de nível educacional, interesses
divergentes que coexistem com “o sentimento subjetivo que têm os par-
ticipantes de constituírem um todo”. Esta versão norte-americana do
conceito é a que está presente nos “estudos de comunidade”, nos quais
se faz uma análise abrangente (econômica, social e cultural) de cidades
pequenas ou bairros rurais. Essa conceituação é capaz de orientar uma
análise dos aspectos da vida social que se desenrolam dentro da esfera
de autonomia relativa própria de certos agrupamentos sociais, mas é
inadequada para apreender os aspectos estruturais da sociedade que
interferem na ação local e delimitam sua autonomia.


Capítulo 

           


Este trabalho integrou uma iniciativa razoavelmente inovadora em um semi-
nário que reuniu, na ANPOCS de 1976, diversos antropólogos para discutir o
tema da dinâmica cultural. A inovação consistia na preparação prévia de um
texto que deveria organizar as demais contribuições e orientar as discussões,
texto que é aqui reproduzido. Substituí apenas o parágrafo final dirigido à
abertura do debate com os demais participantes do grupo de trabalho.
Naquela época o texto foi bastante original porque ainda não conhecía-
mos, no Brasil, os trabalhos de Clifford Geertz. Havia uma inspiração mar-
xista no texto, pois utilizo, como metáfora explicativa, a relação entre traba-
lho morto e trabalho vivo, tal como aparece n’O capital. Esta metáfora é, de
fato, muito esclarecedora e tem constituído uma orientação básica para as
minhas reflexões teóricas.
Acredito que, apesar de todo o desenvolvimento do tema que ocorreu na
antropologia posteriormente, o texto ainda tem alguma atualidade na medida
em que revê o conceito de cultura e reflete sobre as questões metodológicas
envolvidas em sua aplicação ao estudo da nossa própria sociedade.
A dinâmica cultural na sociedade moderna*

Para introduzir este tema, creio ser oportuno retomar alguns aspectos
dos conceitos de cultura e de dinâmica cultural. Isso me parece necessá-
rio porque sua utilização por sociólogos e cientistas políticos em análi-
ses recentes, especialmente aquelas voltadas para os países subdesenvol-
vidos ou em desenvolvimento, tem se caracterizado freqüentemente por
uma aplicação inadequada, que implica uma reificação.
A reificação resulta de uma redução inicial do conceito de cultura a
seu conteúdo nor mativo, e consiste na atribuição subseqüente de uma
autonomia excessiva aos componentes culturais da vida social. A cultura
passa a ser tratada como uma “variável” que possui o mesmo “nível de
realidade” de outras “variáveis”, como a industrialização, a urbanização
etc. Como entidades independentes tais “variáveis” atuam umas sobre as
outras, criam obstáculos à mudança e realizam diversas outras proezas.
Em sua forma menos sofisticada, essa abordagem aparece freqüen-
temente nas análises da chamada “teoria da modernização”. Nesta con-
cepção, os fenômenos culturais apresentam dois tipos de atuação dife-
rentes. De um lado, sob a forma de “padrões tradicionais”, suscitam
lealdades irracionais, em aberto conflito com as tendências dinâmicas da
sociedade. Os indivíduos manifestariam em relação a esses padrões,
adquiridos no passado, o mesmo tipo de apego que velhas solteironas
demonstram para com cãezinhos de estimação, e que implicam a sua
conservação mesmo diante da demonstração cabal (por parte dos estu-
diosos) de sua inadequação para fazer face ao mundo moderno.
De outro lado, no chamado “efeito de demonstração”, os padrões
culturais se assemelham mais a doenças contagiosas como o sarampo
ou a escarlatina. Expostos a atitudes, valores e objetos de consumo de
sociedades desenvolvidas, as pessoas “contraem”, de modo igualmente

* Publicado originalmente em Ensaios de Opinião +. Rio de Janeiro: .


irracional, expectativas e hábitos que estão em desacordo com as
possibilidades efetivas de sua satisfação permanente por parte do siste-
ma produtivo.
De forma menos caricatural, a mesma percepção per meia muitas
das análises sobre comportamento político e atividade sindical, que ten-
dem a atribuir à origem rural (relacionada obviamente à preservação dos
mesmos “padrões tradicionais”) uma real ou suposta inadequação no
comportamento de determinadas camadas urbanas em face dos proble-
mas criados pelo processo de industrialização. A origem rural é assim
responsabilizada pela fraqueza do sindicalismo, pela baixa produtividade
da indústria e mesmo pela ausência de uma consciência de classe.
A “cultura” aparece, nesta perspectiva, como um fenômeno essen-
cialmente irracional, e a dinâmica cultural se reduz a um processo indu-
zido de ressocialização que removeria os obstáculos representados pela
existência de padrões culturais inadequados ao desenvolvimento satis-
fatório da sociedade.
Obviamente, não é minha intenção negar a existência de padrões
culturais tradicionais ou de valorização do passado. A questão é que a
constatação da persistência desses padrões (ou, seu contrário, a valori-
zação do “novo” e do “moderno”) não constitui explicação de nenhum
fenômeno social, mas eles próprios são fenômenos que devem ser expli-
cados na análise do processo de transfor mação social. Há muitos anos
que os antropólogos destruíram a ilusão do valor explicativo do concei-
to de sobrevivência cultural. Padrões culturais sobrevivem na medida
em que persistem as situações que lhes deram origem, ou alteram seu
significado para expressar novos problemas.
Na verdade, o que quero criticar é uma concepção na qual a cultu-
ra aparece como um produto e se abandona a explicação do modo pelo
qual é produzida, perdendo-se assim toda a possibilidade de uma análise
frutífera da dinâmica cultural.
Retomando o problema dessa nova perspectiva, é necessário de
início mostrar de modo mais adequado a relação entre ação e represen-
tação, relação esta que permeia necessariamente toda a discussão sobre
a natureza da dinâmica cultural.
Um reexame dos clássicos da antropologia culturalista, tanto em
sua linha americana, que elaborou a noção de padrão cultural (e tam-
bém a de ethos), como na variante inglesa, com Malinowski e seu con-
ceito de instituição, revela claramente que a noção de cultura parte do

 A dinâmica cultural na sociedade moderna


estabelecimento de uma unidade fundamental entre ação e representa-
ção, unidade esta que está dada em todo o comportamento social. Nesse
sentido, padrões ou instituições não são simplesmente “valores”, mas
ordenações implícitas na ação e que só secundariamente podem vir a ser
formuladas explicitamente como regras ou normas. Apresentam-se por-
tanto como noções essencialmente sintéticas, pois se referem simul-
taneamente à ação e ao seu significado, englobando necessariamente
aspectos cognitivos e valorativos. Presos a uma ordenação real da con-
duta, ou melhor, constituindo uma lógica própria da conduta real, não
podem ser dissociados da ação à qual dão forma e significado.
A elaboração desta “lógica da conduta” sob a forma de mitos e de
teorias, ou ideologias explícitas e coerentes, se constitui portanto como
um produto que, como o trabalho morto na concepção de Marx, só pos-
sui eficácia na medida em que é acionado pelo trabalho vivo, isto é,
absorvido e recriado na ação social concreta. A cultura constitui portan-
to um processo pelo qual os homens orientam e dão significado às suas
ações através de uma manipulação simbólica que é atributo fundamen-
tal de toda prática humana.
Nesse sentido, toda a análise de fenômenos culturais é necessaria-
mente análise da dinâmica cultural, isto é, do processo per manente de
reorganização das representações na prática social, representações estas
que são simultaneamente condição e produto desta prática.
É esta conceituação da dinâmica cultural que per meia toda boa
etnografia e constitui o fundamento da riqueza e constante originalida-
de da investigação etnográfica. Nesse tipo de investigação, voltado para
as sociedades ditas primitivas, os padrões culturais são inferidos a par-
tir da observação direta do comportamento, e das explicações que são
apresentadas pelos “nativos”, o que garante, de início, a apreensão da
relação entre ação e representação e é facilitado pela relativa uniformi-
dade cultural, indiferenciação social e redução demográfica.
A dificuldade na aplicação do mesmo método em nossa sociedade
reside, basicamente, em sua inadequação para lidar com o tipo e o grau
de heterogeneidade cultural que lhe é própria.
A análise da cultura de uma for mação social exige uma reconsti-
tuição da realidade, que é elaborada a partir da consciência que dela têm
os portadores da cultura. Sem se ater, obviamente, aos aspectos cons-
cientes da conduta, é através deles, em sua relação com o comporta-
mento manifesto, que a cultura pode ser reconstituída. O trabalho de


pesquisa se processa, portanto, no nível da investigação do comporta-
mento real de grupos concretos.
Ora, todas as vezes em que as forças sociais objetivas que moldam
o processo histórico se encontram distantes, não apenas da percepção
mas inclusive da própria capacidade de ação ou manipulação por parte
dos grupos ou de categorias sociais analisados, a análise culturalista
encontra dificuldades quase insuperáveis para reconstruir a totalidade
da qual a realidade que estuda é apenas parte. Presa à particularidade e
parcialidade das manifestações culturais de grupos específicos, a aná-
lise culturalista perde a capacidade de compreender os mecanismos
através dos quais essas particularidades são engendradas. Em outras
palavras, a superação do impasse em que se encontra a investigação
antropológica depende de sua capacidade, não apenas de constatar e
descrever a heterogeneidade cultural, mas de explicar o modo pelo qual
ela é produzida socialmente. Cabe então tentar explicitar a natureza do
próprio processo de heterogeneização.
Devemos partir, por conseguinte, da constatação da existência, em
nossa sociedade, de uma heterogeneidade cultural produzida por uma
diferenciação das condições de existência, que se prende à estrutura de
classe e resulta da reprodução de um modo de produção. Mas deve-se
considerar também que esta diversidade está per meada, por sua vez,
por distinções regionais associadas a peculiaridades de recursos naturais
e a condições demográficas e históricas particulares que lhe dão conteú-
dos e formas específicas.
Obviamente, esse tipo de heterogeneidade não é exclusivo de
nossa sociedade, mas caracteriza todo o processo que podemos chamar
de civilizatório. No passado, entretanto, essas distinções podiam se
manifestar em termos de subculturas relativamente coerentes e autôno-
mas. A existência de uma cultura erudita própria das classes dominan-
tes não impedia a elaboração de sistemas culturais populares, freqüen-
temente dependentes de for mas de comunicação não escritas, onde
padrões de comportamento e representações simbólicas desenvolvidas
por grupos relativamente homogêneos refletiam com precisão o modo
pelo qual cada um deles vivia sua condição de dominado. O folclore
rural, a cultura própria de grupos de ofício ou mesmo de bairros operá-
rios exemplificam esta situação. É claro que essa autonomia cultural só
se desenvolve dentro de certos limites estabelecidos pela necessidade de
manutenção de uma estrutura de dominação, isto é, só é tolerada na

 A dinâmica cultural na sociedade moderna


medida em que é compatível com ela. Mesmo assim as classes sociais,
corporificadas em grupos espacial e socialmente segregados, desenvol-
viam, através de seus próprios membros, produtos culturais específicos
nos quais se expressava sua experiência coletiva, incorporada num
“imaginário” social próprio.
Nessas condições, a relativa autonomia desses modos de vida, a
coerência interna entre padrões de ação e de representação elaborados
simultaneamente pelos agrupamentos sociais na sua prática cotidiana,
per mitiam uma análise da cultura em ter mos antropológicos tradicio-
nais. Mesmo deixando de lado o esclarecimento das forças objetivas
que, no nível da formação social em seu conjunto, produzem as condi-
ções nas quais a heterogeneidade se produz e reproduz, a análise cultu-
ralista per mite apreender o modo pelo qual essas forças são vividas e
percebidas pelos agrupamentos sociais concretos. Assim é que o estudo
de comunidades, especialmente as camponesas, ou de minorias étnicas,
especialmente as segregadas em guetos, foi empreendido com bastante
sucesso pelos antropólogos.
Mas a análise da dinâmica cultural da sociedade moderna implica
outro tipo de problema, na medida em que ela se caracteriza pela des-
truição das barreiras que, ainda no século , permitiam a elaboração
de subculturas de classe relativamente autônomas. Os fenômenos co-
nhecidos sobre a rubrica de “cultura de massa” constituem a manifesta-
ção mais aparente desta tendência.
Neste caso, não se trata simplesmente da divisão no trabalho social
que separa o trabalho manual do intelectual e cria instituições especia-
lizadas na elaboração de produtos culturais: ciência, arte, ideologia.
Trata-se de uma “indústria cultural” cuja função consiste explicitamen-
te em difundir, para o conjunto da população, produtos culturais elabo-
rados por especialistas e, implicitamente, padrões cognitivos, estéticos e
éticos que lhes são subjacentes.
A questão importante a considerar aqui é que há uma pretensão de
uniformização que, sem destruir os fundamentos do processo de diversi-
ficação cultural, ancorados em diferentes condições concretas de existên-
cia resultantes do próprio modo de produção, sobrepõe-se a esta hetero-
geneidade real em termos de uma manipulação puramente simbólica.
A análise do significado destas instituições especializadas na elabo-
ração e difusão de produtos culturais deve ser feita retomando-se o pro-
blema da relação entre o produzir e o produto. Em primeiro lugar, há


que se eliminar a concepção simplista que opõe os consumidores aos
produtores de cultura em termos de uma aceitação puramente passiva,
por parte do público, de um material que lhe é impingido de fora. De
um lado, porque os produtores têm que considerar, para a eficácia da
mensagem, os gostos, preferências e valores da população à qual se diri-
gem, necessidade esta que reintroduz uma heterogeneidade nos produ-
tos culturais oferecidos em ter mos do público que pretendem atingir.
De outro lado, porque estes “produtos” não constituem uma criação
cultural original e inovadora mas, freqüentemente, simples reordenação
de imagens, símbolos e conceitos presentes na cultura popular ou eru-
dita. Retirados de seu contexto original, perdem necessariamente muito
de seu significado e podem ser assim manipulados para compor novos
conjuntos, cuja amplitude de alcance parece estar diretamente condicio-
nada ao empobrecimento prévio de seu conteúdo. E, finalmente, porque
esses “produtos” assim apresentados têm que ser ativados pela sua in-
corporação ao comportamento dos indivíduos, e nesse processo sofrem
necessariamente uma seleção, reordenação e mesmo transfor mação de
significado que podem implicar, inclusive, um enriquecimento, pela
atribuição de novos conteúdos ao material simbólico. Ao lado, portanto,
da produção cultural, há um processo amplo de reelaboração de signifi-
cados em que volta a atuar a heterogeneidade produzida pelo próprio
funcionamento da estrutura social.
É necessário considerar também outro aspecto, igualmente funda-
mental para a análise da dinâmica cultural, que ocorre quando o grupo
que reelabora e utiliza o produto cultural acabado é diferente daquele
que o produziu. Estando a distinção entre produtores e consumidores
de cultura presa a uma distinção de classe, a relação entre eles assume
necessariamente uma conotação política, isto é, ela tem implicações em
ter mos de poder. Com isso queremos dizer que, na medida em que a
chamada cultura de massa constitui uma tendência homogeneizadora
que se sobrepõe às diferenças reais fundadas numa distribuição desigual
do trabalho, da riqueza e do poder, e se processa, portanto, no plano
exclusivamente simbólico, todo o problema da dinâmica cultural se pro-
jeta na esfera das ideologias e tem que levar em consideração seu signi-
ficado político.
As manifestações de heterogeneidade cultural, neste contexto, não
podem mais ser tratadas como simples diferenças – como manifestações
equivalentes (tanto do ponto de vista ético como do científico) de uma

 A dinâmica cultural na sociedade moderna


mesma capacidade humana criadora – posição esta que constituía pres-
suposto básico da antropologia na medida em que analisava realidades
culturais autônomas, produtos de processos históricos independentes.
Neste novo contexto, as diferenças culturais aparecem não como sim-
ples expressão de particularidades de modo de vida, mas como manifes-
tação de oposições ou aceitações que implicam um constante reposicio-
namento dos grupos sociais na dinâmica das relações de classe.
A dinâmica da transformação cultural se dá pois, em grande parte,
no contexto de “cultura de massa”, como um processo constante de ree-
laboração cultural dos produtos oferecidos ou impostos pela indústria
cultural e pelos outros “aparelhos ideológicos” do Estado, especialmen-
te a escola, por parte de categorias sociais diversas que vivem de modo
particular sua situação de classe. O acesso desigual às infor mações,
assim como às instituições que asseguram a distribuição de recursos
materiais, culturais e políticos, promove uma utilização diferencial do
material simbólico no sentido não só de expressar peculiaridades das
condições de existência, mas de formular interesses divergentes.
Dessa forma, um conjunto de temas e problemas precisa ser mais
desenvolvido na investigação e na reflexão antropológicas, de modo que
nos per mitam entender o contexto cultural mais amplo, dentro do qual
os grupos sociais estudados constroem e refor mulam suas representa-
ções e suas práticas. Refiro-me, particular mente, aos aspectos propria-
mente políticos da dinâmica cultural, à industria cultural, sua utilização
e re-interpretação por parte do público; à eficácia e ineficácia da escola,
com os problemas correlatos do insucesso, repetência e evasão escolar.


Capítulo 

     :       


Família e parentesco são temas que permearam a maior parte das minhas
pesquisas.
Não se tratou de uma escolha consciente. Eu praticamente “tropecei”
na família em quase todas as minhas investigações. Ela se impôs no estudo
sobre “A difusão do Adventismo da Promessa no Catulé” (cap. 1, supra),
porque a conversão e a constituição da comunidade religiosa se deram atra-
vés da mobilização de laços de parentesco. A pesquisa sobre a imigração ita-
liana revelou que a ascensão social dos italianos estava fundada na família.
O mesmo ocorria, como verifiquei depois, com os migrantes nacionais e com
a população das periferias urbanas, que pesquisei pessoalmente.
Tornei-me assim, de certa forma malgré moi, especialista em estudos
sobre família e parentesco em populações urbanas. Muitos de meus alunos
de pós-graduação trabalharam sobre esse tema, que se ampliou para abran-
ger também as classes médias urbanas.
A explicitação da reflexão teórica que começou a ser feita neste traba-
lho é decorrência dessas pesquisas, esteve implícita nelas e se desenvolveu
com elas.
Para entender este trabalho, entretanto, é preciso lembrar o contexto
intelectual das ciências sociais da época, dominado pelo marxismo. Ele se
situa, assim, na intersecção da minha discussão com o marxismo, tal como se
apresenta em “Cultura e ideologia” (cap. 9, infra), e com uma reflexão teóri-
ca mais abrangente e mais propriamente antropológica sobre a instituição
familiar, formulada no artigo “Família e reprodução humana” (cap. 13, infra).
A família operária: consciência e ideologia*

Até muito recentemente os estudos sobre a família eram considerados, no


Brasil, não apenas “marginais” ou secundários para a compreensão da
nossa realidade social, mas inclusive política e cientificamente retrógra-
dos. Assim como no campo político e ideológico a defesa da família apa-
recia sempre (e ainda aparece) como bandeira dos setores mais conserva-
dores da sociedade, no terreno científico os estudos sobre a instituição
familiar estavam restritos à tradição positivista mais limitada, exemplo
vivo daquilo que os marxistas costumavam chamar de “ciência burguesa”.
Desse modo, a família vinha sendo objeto de um duplo ataque. De
um lado, na prática social e na ideologia dos segmentos mais intelec-
tualizados e mais progressistas da sociedade, onde se denunciavam os
aspectos repressivos da organização familiar, ressaltando seu papel de
instrumento de dominação dos homens sobre as mulheres e dos adultos
sobre os jovens; dessa perspectiva, a família era e é considerada como
empecilho à libertação individual e ao pleno desenvolvimento da pes-
soa. De outro lado, era criticada na prática científica como preocupação
própria de pesquisadores contaminados pela ideologia burguesa e como
estudo formulado para ocultar a realidade da luta de classes.
Por isso mesmo, sempre foi extremamente decepcionante para os
intelectuais progressistas constatar – como tem sido feito repetidamen-
te por diferentes pesquisadores – que os operários brasileiros, represen-
tantes da única classe da qual se poderia esperar a verdadeira contesta-
ção e a definitiva superação do sistema capitalista, são extremamente
apegados à família.
E o que é pior: não só os operários brasileiros teimam em atribuir
uma enorme importância à vida familiar, mas ainda expressam uma pre-
ferência generalizada pela divisão sexual do trabalho em moldes tradicio-

* Publicado originalmente em Dados – Revista de Ciências Sociais, v. , n. , .


nais, isto é, aquela que subordina a mulher ao homem e tende a restringir
as atividades femininas ao âmbito doméstico mesmo que esse ideal rara-
mente se realize. Simultaneamente, tendem também a apreciar as virtu-
des tradicionais de respeito e obediência dos filhos para com os pais.
A integração desses valores num padrão cultural relativamente
estável e sua combinação com uma preocupação marcante com a ascen-
são social individual, também revelada em inúmeras pesquisas, parecem
indicar, por parte do operariado brasileiro, uma adesão incondicional à
ideologia capitalista mais tradicional e, inversamente, incapacidade de
desenvolver uma verdadeira consciência de classe.
Explicações correntes tanto na literatura científica quanto na de
cunho mais jor nalístico tendiam a explicar este fato em ter mos da ori-
gem rural recente dos operários brasileiros, interpretando a existência
destes padrões como preservação de valores próprios do mundo rural.
Alter nativamente, especulou-se muito sobre uma possível influência da
“ideologia” das classes médias, que conseguiriam impor, através da esco-
la, das organizações assistenciais e dos meios de comunicação de massa,
valores e práticas sociais essencialmente alheios aos interesses reais e às
condições de existência das classes trabalhadoras.
Acredito que estas explicações são basicamente incorretas e que
uma análise da família, feita de outra perspectiva, pode revelar aspectos
extremamente importantes da ideologia e da prática social dos operários
brasileiros, constituindo um instrumento auxiliar valioso para a com-
preensão das orientações políticas e dos movimentos sociais populares.
Em primeiro lugar, é necessário lembrar que a valorização da
família e da vida doméstica por parte dos operários não é um fenôme-
no exclusivamente brasileiro, nem próprio da sociedade de industriali-
zação recente. Para citar apenas um caso, o da Inglaterra, podemos
recorrer ao estudo do clássico trabalho de Hoggart () sobre as
classes trabalhadoras, para comprovar a importância e a solidez dos
laços familiares, assim como o aparente tradicionalismo da divisão
sexual do trabalho na constituição do modo de vida dos operários in-
gleses. Por outro lado, a simples comparação destes trabalhos com es-
tudos realizados no século  sobre as condições de vida operária
(como o de Engels) mostra que esta solidez da vida doméstica não é a
conservação do passado, mas a superação de um estado generalizado
de desorganização familiar, associado a uma exploração muito mais
brutal e direta da força de trabalho.

 A família operária


A impossibilidade de constituir famílias estáveis manifesta-se sem-
pre que o modo de inserção no mercado de trabalho acarreta rendimen-
tos muito precários (tanto por serem parcos como por serem irregulares)
e, portanto, insuficientes para a manutenção do grupo doméstico, que
inclui sempre membros não produtivos. Constituiu, assim, característi-
ca mais ou menos geral da população operária nos estágios iniciais do
processo de industrialização e tendeu, posterior mente, a ser superada
entre os operários regularmente empregados, recriando-se, entretanto,
nos amplos bolsões de subempregados e desempregados. Mas, tanto
num caso como no outro, a proliferação de famílias “matrifocais” – isto
é, sem provedor masculino estável, amplamente assinalada nas pesqui-
sas sobre minorias étnicas, bolsões de pobreza urbana e populações,
chamadas marginais – constitui claramente, na consciência dos traba-
lhadores e especialmente na das mulheres, um resultado da pobreza,
uma sobrecarga de miséria, uma impossibilidade de alcançar uma vida
minimamente decente e não o prenúncio de formas mais livres e melho-
res de relações entre os sexos.
Para entender essa persistência e valorização da família nas socie-
dades capitalistas é necessário compreender melhor seu significado e
seu papel na sociedade industrial, assim como as transfor mações por
que passou. Antes, entretanto, é preciso refletir um pouco sobre as
razões pelas quais não se desenvolveu uma aceitação e uma explicação
mais adequada desse fenômeno.
A constatação inicial é a de que toda a reflexão partiu da verificação
do fato inegável de que o desenvolvimento do modo de produção capita-
lista implicou a destruição da família como unidade de trabalho produti-
vo, função esta que a família possuía tanto na economia campesina
quanto no artesanato urbano pré-capitalista, e que preservou, pelo
menos parcialmente, na manufatura. A criação do trabalhador livre, ope-
rada através da generalização dos mecanismos de mercado na organiza-
ção da produção, significou não apenas sua separação dos instrumentos
de produção mas, inclusive, sua separação da família – o trabalhador
“livre” é o trabalhador individual, que vende, individualmente, sua força
de trabalho. Inversamente, o mercado individualizou também o consumi-
dor, na medida em que o identificou como aquele que compra, indivi-
dualmente, as mercadorias destinadas a satisfazer suas necessidades.
Na medida em que esta ótica do mercado permeia não só a socie-
dade, mas também as explicações sobre a sociedade, a família parece se


esvanecer, uma vez que não figura explicitamente nem como produtora
nem como compradora de mercadorias. Resta apenas considerá-la
como unidade de reprodução da força de trabalho, mas mesmo neste
campo ela tende a ser afastada das explicações fundamentadas economi-
camente, uma vez que figura como condição dada, que pode ser dissol-
vida na análise demográfica ou na caracterização global da força de tra-
balho. Além do mais, nas análises de inspiração marxista, voltadas para
a classe definida em ter mos de seu modo de inserção no processo pro-
dutivo, e preocupadas com a atuação política do proletariado, a família
também não constitui elemento essencial à reflexão nem aparece como
realidade importante a ser explicada, mas antes como instituição a ser
superada. Desse modo, as investigações sobre a família tenderam a
refletir este esvanecimento, definido em ter mos de perda de suas fun-
ções tradicionais, principalmente a produtiva e a educativa.
Esta visão da família está relacionada a uma ótica da produção, no
seu sentido restrito, ótica esta que dominou por muito tempo tanto a
literatura de inspiração marxista como a chamada literatura burguesa.
Apenas recentemente, com a retomada das questões referentes à repro-
dução das condições de produção, é que foi possível recolocar de modo
mais adequado as indagações referentes à família. Quando as condições
da produção não são mais consideradas como dadas mas, ao contrário,
cumpre exatamente investigar o modo pelo qual são repostas, a institui-
ção familiar reaparece no quadro das investigações sobre o modo de
produção capitalista, inserida na análise do processo de reprodução da
força de trabalho. E reaparece nos dois momentos deste processo: no
da sobrevivência dos trabalhadores adultos e no da formação de novos
trabalhadores jovens.
Se a análise da reprodução das condições de produção legitimou,
de certo modo, o interesse pelo estudo da família, uma investigação
adequada dessa instituição exige que se supere um reducionismo fre-
qüentemente presente nesse tipo de estudo, e que consiste em subsumir
integralmente um fenômeno no outro. Em primeiro lugar, é obvio que
não se pode pensar o processo de reprodução da força de trabalho em
termo dos comportamentos reprodutivos dos operários, esquecendo
fenômenos tão ou mais importantes como a destruição de relações tra-
dicionais de trabalho e os deslocamentos espaciais e ocupacionais da
população que ele acarreta. Além disso, mesmo quando se analisa o
comportamento reprodutivo do operariado como um, e apenas um, dos

 A família operária


fatores que esclarecem o processo de reprodução da força de trabalho,
é necessário lembrar que não se trata apenas da reprodução física de
indivíduos aptos a venderem sua força de trabalho (noção esta, de resto,
totalmente abstrata), mas do modo como se dá concretamente esse pro-
cesso, isto é, de acordo com padrões de existência historicamente deter-
minados, tal como são concebidos pela população.
Dessa perspectiva mais ampla, a família pode ser definida como
unidade social onde se realiza a reprodução do trabalhador. Dizer uni-
dade de reprodução implica dizer unidade de consumo – não o chamado
consumo produtivo, mas o consumo propriamente dito, aquele pelo
qual o trabalhador repõe a energia consumida pelo capital e no qual a
mercadoria se realiza como valor de uso. A família assegura o consumo
de duas maneiras diversas: de um lado, colocando no mercado de traba-
lho alguns de seus membros, que vendem sua força de trabalho em
troca de um salário com o qual compram mercadorias. Na medida em
que, como é comum nas famílias proletárias, as necessidades de consu-
mo não podem ser satisfeitas apenas com o salário do chefe de família,
mas exigem também o emprego da esposa ou dos filhos, a família se
organiza como unidade de rendimentos, isto é, grupo no qual a formação
de um fundo coletivo através da soma de salários individuais per mite
assegurar um determinado padrão de consumo. De outro, o consumo é
assegurado por meio de uma atividade produtiva auxiliar que se dá fora
dos moldes da produção capitalista e que consiste, essencialmente, em
preparar, modificar, preservar e consertar mercadorias adquiridas no
mercado de modo a adequá-las à satisfação de necessidades definidas
socialmente. Cozinhar, lavar, passar, remendar, cuidar das crianças são
todas atividades que não produzem mercadorias, mas que permitem sua
utilização enquanto valores de uso e são indispensáveis, a curto e a
longo prazo, para a reposição da força de trabalho consumida no pro-
cesso produtivo. Nesse sentido, ela é também unidade de produção (de
valores de uso). Como mostra Francisco de Oliveira, um dos poucos
cientistas sociais a se interessar por esse problema, a família se estrutu-
ra, então, a partir da articulação entre a produção doméstica de valores
de uso e a venda da força de trabalho. Definida nesses ter mos, é fácil
verificar que a compreensão dessa articulação exige a análise de fatores
propriamente culturais e históricos, especificamente os padrões de divi-
são sexual do trabalho que, embora se transfor mem no processo de
adaptação da instituição familiar à realidade do modo de produção


capitalista, não podem ser nem deduzidos das necessidades do capital,
nem eliminados por uma lógica estritamente economicista.
É importante notar que, nesta colocação, a família não é mais ins-
tituição sem funções, nem em vias de desaparecimento, mas reaparece
como unidade de reprodução, produção, rendimento e consumo. Mais
ainda, é a referência ao consumo que permite estabelecer a articulação
entre esses diferentes aspectos, pois o consumo é o fim em relação ao
qual se estruturam as diversas dimensões aqui apontadas.
A introdução dessa referência para fins que nos parecem indispen-
sáveis significa repor imediatamente na análise a questão dos modos
historicamente determinados por meio dos quais se dá a reprodução da
força de trabalho. Importa considerar concretamente o modo pelo qual
os trabalhadores, em uma sociedade determinada, definem suas neces-
sidades mínimas, estabelecem o que consideram “uma vida decente” ou
desejável e que, obviamente, não podem ser deduzidas a partir de crité-
rios supostamente objetivos como o de “mínimos vitais”. O que do
ponto de vista da sociedade como um todo ou do ponto de vista mais
restrito do capital é a reprodução da força de trabalho, da perspectiva
do trabalhador é a realização de um modo de vida. Abandona-se, assim,
uma perspectiva economicista, e reintroduzem-se na análise questões
como o cuidado com os idosos e os inválidos, a utilização do lazer, a
expressão da criatividade pessoal, a obtenção do prazer, a definição da
masculinidade e da feminilidade, todas elas irredutíveis a uma concep-
ção simplista da necessidade de reprodução da força de trabalho.
Desse modo, para explicar a família, sua persistência e transforma-
ção no mundo capitalista, não basta considerar sua funcionalidade para
o capital e determinar se sua existência barateia ou encarece o custo da
reprodução da mão-de-obra. Tratando-se de uma unidade de vida
social articulada internamente pela referência a fins e valores, a proble-
mática se deslocou para o terreno do “vivido humano” e aproximou-se
do campo da ideologia.
Tomemos o problema desse ângulo. Sem aceitar necessariamente a
metodologia althusseriana, e recusando explicitamente a caracterização
da família como “aparelho ideológico do Estado” (que ao mesmo
tempo amplia desmesuradamente o conceito de Estado e restringe inde-
vidamente o de família), podemos entretanto aceitar o ponto de partida
segundo o qual a análise da ideologia se coloca adequadamente na pers-
pectiva da reprodução das condições de produção (que é bem mais

 A família operária


amplo que o da reprodução da força de trabalho) e se reporta ao “vivi-
do humano”. Dessa dupla perspectiva, a instituição familiar se situa cla-
ramente no campo da ideologia. Por outro lado, se considerarmos que
o conceito althusseriano de ideologia é demasiado amplo, podemos
dizer que o estudo da família se situa no campo da cultura (na sua acep-
ção antropológica), embora neste caso se corra o risco de despolitizar
excessivamente a análise. Analisar o problema nesta colocação significa
investigar o modo pelo qual os sujeitos concebem (no imaginário) suas
relações com suas condições reais de existência. Significa, portanto,
superar duas concepções simplistas: a da oposição falsa consciência/
consciência possível, assim como a visão que associa ideologia a misti-
ficação e dominação. Mas ao identificar a ideologia com o nível do
“vivido”, preserva-se uma conotação importante do conceito, a de que
essas representações estão presas à “aparência imediata” da vida social,
ou à forma fenomênica, efeito necessário de um modo de produção que
é tomado como constituinte “natural” da vida social. Mais ainda, ao
estudar a família da perspectiva da ideologia não devemos nos limitar
estritamente ao universo simbólico, às representações e valores, mas
apreendê-la na sua “existência material”, inserida em “práticas mate-
riais”, regulada por “rituais materiais” definidos por “aparelhos ideológi-
cos materiais” (é nesse sentido que o conceito althusseriano de ideologia
se aproxima do conceito antropológico de cultura). Entramos então no
terreno da significação, e devemos analisar as representações que os
operários elaboram sobre a família tal como elas se apresentam inseridas
na prática social, que é a vida familiar cotidiana.
Traduzindo a maneira pela qual as pessoas concebem sua inserção
na vida social e orientam sua prática coletiva, a ideologia consiste numa
atribuição e integração de significados, isto é, numa tentativa constante
de dar sentido à vida das pessoas, transformando-as em sujeito. Dentro
desta concepção, precisamos estudar a família na ideologia. Mas, consi-
derando que é no plano da experiência imediata, do modo pelo qual as
pessoas vivem sua condição de classe, que podemos encontrar os ele-
mentos para entender o processo de for mulação de representações e
valores, temos que aduzir mais uma perspectiva: a de que a ideologia se
constitui também na família.
Postas estas questões gerais, é possível analisar, embora em termos
ainda muito esquemáticos, o significado e o papel da família na vida ope-
rária. E, indo um pouco além, apreender a importância dessa instituição


como locus e como referência das representações dos trabalhadores
sobre seu lugar na sociedade, isto é, de sua “consciência de classe”.
O ponto de partida é dado pela separação entre o trabalhador e o
produto, que resulta do modo de produção capitalista (e que talvez
ocorra, necessariamente, em toda sociedade industrial, capitalista ou não).
É desnecessário demonstrar esse ponto, uma vez que toda a literatura
sobre o trabalho industrial tem insistido sobre este fato crucial que resulta
do processo de divisão do trabalho característico da produção fabril. A se-
paração entre o trabalhador e o produto de sua atividade tende a retirar do
trabalho qualquer significado próprio, e lhe confere um caráter puramen-
te instrumental, subordinado à consecução de fins que estão fora dele.
Na experiência comum do trabalhador brasileiro e, especialmente,
do ponto de vista do operário não qualificado, que constitui a grande
massa de trabalhadores fabris, o trabalho aparece como atividade carac-
terizada, de um lado, pela monotonia imposta pela divisão das tarefas e,
de outro, pela ausência de liberdade e de autonomia. O rígido controle
dos movimentos – que alcança sua expressão mais completa na linha de
montagem – implica o exercício, sobre o trabalhador, de uma supervisão
exterior, elaborada de acordo com uma lógica de produção que, formu-
lada nos níveis técnicos e administrativos, escapa, senão à percepção,
pelo menos à experiência imediata e à capacidade de decisão do operá-
rio. O significado do trabalho, ausente da atividade em si, só pode ser
recuperado abstratamente no nível da empresa ou do mercado em seu
conjunto. Alternativamente, este significado é recuperado pelo operário
através da reflexão sobre a sujeição própria da condição operária, mais
do que sobre a natureza da tarefa que executa.
Por outro lado, do ponto de vista do operário, o trabalho aparece
também como atividade essencialmente individual. Em primeiro lugar,
porque se define em termos sociais e jurídicos como emprego, regulado
por um contrato que se estabelece entre o trabalhador individual e a
empresa. Em segundo lugar porque a atividade em si, determinada por
uma programação técnica que escapa à ação do trabalhador, reduz os
operários a unidades independentes, justapostas e substituíveis. A conti-
güidade espacial, a semelhança da atividade e especialmente a condição
comum de sujeição podem dar origem a uma atividade associativa.
Entretanto, esta atividade associativa não está inscrita no ato de trabalho,
mas constitui quer a manifestação de uma solidariedade generalizada (de
tipo mecânico, na conceituação de Durkheim), quer o resultado de uma

 A família operária


ação que é essencialmente política, no sentido da criação de uma orga-
nização ou partido que tenha condições de transcender a experiência
individual imediata para for mular e defender os interesses coletivos,
permitindo a percepção do caráter social do trabalho individual.
Assim, a não ser excepcionalmente, nos momentos de luta sindical
e política, o trabalho não é vivido como atividade coletiva, mas como
trabalho individual, especialmente nas condições brasileiras, que dificul-
tam tanto a organização de base dos operários como a implantação de
contratos coletivos de trabalho. Ele se processa com outros indivíduos,
mas não implica a existência necessária de vínculos sociais entre os tra-
balhadores. Uma vez que se rompeu a relação direta entre o trabalhador
e o produto de seu trabalho, os fins a que o trabalho serve, externos a ele,
são colocados na esfera do consumo, que aparece como desligada do tra-
balho. Universo de trabalho e universo de consumo são muito indepen-
dentes, vinculados apenas pela mediação do salário. A relação entre
esses dois universos aparece referida ao nível da distribuição.
Se o trabalho social aparece como atividade individual, o mesmo
ocorre com o uso de bens essencialmente coletivos. É como indivíduo
que o trabalhador se utiliza dos meios de transporte, dos organismos
assistenciais do Estado, e é individualmente, também, que se manifesta
sua cidadania através do voto.
Tanto em um como em outro caso, não se trata de um defeito de
percepção do operário, mas de uma decorrência necessária do modo
pelo qual a sociedade está organizada. É só individualmente que o tra-
balhador pode participar tanto da atividade produtiva como do consu-
mo dos bens coletivos e é, portanto, compreensível e mesmo necessário
que, na sua experiência, essas atividades apareçam como individuais.
O contrário ocorre com o consumo “individual”. Alimentação,
vestuário, habitação, necessidades individuais relacionadas diretamente
à reprodução da força de trabalho são satisfeitas coletivamente através
da participação num grupo doméstico, dentro do qual se processa uma
unificação e redistribuição coletiva de recursos. A família aparece, por-
tanto, como núcleo de atividades coletivas, em oposição à individuali-
dade das atividades do trabalho. Mais ainda: sendo essencialmente uma
unidade de produção de valores de uso e de consumo, ela aparece como
o fim ao qual o trabalho está subordinado.
A relação da família com o consumo estabelece ainda outras determi-
nações. A organização do mercado consumidor implica realizar escolhas,


dentro do princípio de utilização de recursos escassos: escolhas entre
diferentes produtos e escolha entre tipos ou marcas do mesmo produto.
Por isso, o consumo aparece como área de liberdade, em oposição à
constrição do trabalho.
Como o consumo ocorre basicamente no âmbito doméstico, a
família se constitui como grupo dentro do qual as pessoas tomam cole-
tivamente decisões que afetam seu destino comum. Se a opinião do tra-
balhador não influi sobre a organização das atividades que se desenro-
lam na fábrica nem é essencial para a organização da produção, é, ao
contrário, fundamental no âmbito doméstico: é na família que se decide
o que e quanto comer, o que vestir, onde morar, quanto despender com
móveis e eletrodomésticos, que grau de escolarização cada membro da
família pode usufruir etc. É claro que esta liberdade é extremamente
restrita, pois se exerce dentro dos limites estreitos impostos pela escassez
dos rendimentos e sob o bombardeio da propaganda. Entretanto, den-
tro dos limites da carência, cabe sempre decidir e escolher tendo em
vista não apenas o interesse individual, mas os interesses de todos na
coletividade que é a família.
Centro de vida coletiva e de “liberdade”, grupo no qual as neces-
sidades individuais são satisfeitas (mesmo que precariamente), a famí-
lia é, portanto, não apenas núcleo de tensões e conflitos, mas instituição
dentro da qual as pessoas obtêm o seu prazer: alimentação, sexo e diver-
são. Se, da ótica da produção, a família constitui o núcleo de reprodução
da força de trabalho e, portanto, condição da produção, para o trabalha-
dor, ao contrário, ela é fim para o qual o trabalho é um meio. Desse
modo, o trabalho de homens e mulheres, adultos e jovens, não se defi-
ne, para as pessoas, exclusivamente em ter mos de uma referência à
natureza do sistema produtivo, mas em termos de sua instrumentalidade
para o consumo e, portanto, para a família.
A referência do trabalho à família implica reconhecer a comple-
mentaridade entre o trabalho assalariado (trabalho social produtivo) e
as tarefas domésticas já apontadas anteriormente na questão da relação
entre venda da força de trabalho e produção de valores de uso. É consi-
derando a complementaridade entre esses dois gêneros de atividades
que se pode apreciar o significado dos diferentes tipos de trabalho e sua
identificação com os papéis sociais específicos que orientam a divisão do
trabalho no seio da família. A vida familiar aparece assim como a elabo-
ração de uma estratégia que, jogando com a mão-de-obra disponível

 A família operária


entre atividades remuneradas e trabalho doméstico, procura assegurar
um determinado nível e modo de consumo.
Cabe, entretanto, salientar que toda essa estratégia está montada
sobre uma divisão sexual do trabalho historicamente anterior ao modo
de produção capitalista e que se preserva, embora alterada, exatamente
em função da manutenção da complementaridade entre trabalho do-
méstico e venda da força de trabalho.
Nessa perspectiva, a possibilidade de evitar que as mães de família
ingressem na força de trabalho significa, efetivamente, poupá-las de
uma atividade cansativa, desinteressante e mal remunerada. Indica,
simultaneamente, o sucesso profissional do homem como provedor
que, mantendo a esposa em casa, propicia à família uma vida mais
cômoda, através da utilização do trabalho feminino nas tarefas domés-
ticas. A manutenção da mulher no lar significa, idealmente, comida
quente, roupa limpa, filhos bem tratados, mais lazer. O trabalho da
mulher fora de casa aparece como sobrecarga que se superpõe às tare-
fas domésticas, e é freqüentemente concebido como “ajuda” excepcio-
nal que se presta ao marido em caso de necessidade. Inversamente, para
o marido, o fato de a mulher trabalhar fora pode aparecer também
como uma sobrecarga, quer em termos de ausência de certos confortos
domésticos, quer pela necessidade de ter que realizar, além do seu tra-
balho regular, algumas tarefas na casa. O fato de a mulher “precisar”
trabalhar é indicador, para o operário, de que o salário é insuficiente,
sintoma de que está havendo uma exploração excessiva do trabalhador,
sinal de injustiça da ordem social estabelecida. O trabalho da mulher
fora de casa só é visto como realmente compensador quando ela possui
uma qualificação profissional que lhe per mita ter um emprego “mais
leve” e mais bem remunerado do que o trabalho na fábrica ou o de
empregada doméstica. Neste caso, em geral, a renda adicional permite
inclusive pagar uma substituta para as tarefas domésticas.
A luta pela preservação de um padrão “tradicional” de divisão
sexual do trabalho, que procura retirar as esposas (embora não as filhas
solteiras) da força de trabalho disponível para o capital e preservá-las
para a produção doméstica de valores de uso, tem diversas implicações.
Constitui, em primeiro lugar, bandeira de legitimação da luta por salá-
rios mais altos, afir mando que o salário deve per mitir não apenas a
sobrevivência individual do trabalhador adulto, mas a manutenção da
família nuclear, afir mação esta que encontra apoio na ideologia das


classes dominantes. Implica, para os trabalhadores, assumir a responsa-
bilidade por sua própria reprodução. E, nesse sentido, afir mar que a
reprodução (e o consumo) devem ser da família implica também tentar
preservar um espaço privado de produção direta de valores de uso, uma
mediação entre o mercado e a satisfação das necessidades materiais, que
permite um certo grau de liberdade na organização dos recursos.
Instituição “privada” por excelência, isto é, aquela em que as pes-
soas estão mais abrigadas da ingerência direta do Estado e na qual
encontram um pequeno espaço de manobra diante das pressões do sis-
tema econômico, a família acaba suportando uma imensa carga de ten-
sões. Definida como o espaço onde o trabalhador procura conciliar ren-
dimentos precários com necessidades crescentes, a família se vê ante
uma tarefa impossível, e tende a se desagregar quando a pressão econô-
mica se torna insuportável. Constituindo, simultaneamente, um dos
únicos lugares onde os indivíduos se defrontam como pessoas integrais
e onde encontram alguma possibilidade de manifestar seus anseios e
frustrações, não é de estranhar que a família acabe por ser também o
repositório de uma violência que, gerada pela opressão econômica e
política, acaba explodindo nesse refúgio da expressão pessoal. A violên-
cia na família assume então a forma direta da agressão física dos mais
fortes sobre os mais fracos, e tende a vitimar preferencialmente as
mulheres e as crianças, uma perversão da divisão do trabalho que
subordina a esposa ao marido e os filhos aos pais.
Com tudo isso, a família tende a se perpetuar dentro desses pa-
drões. Esta visão que acabamos de expor corresponde, obviamente, à
valorização “tradicional” da família. Não resulta, entretanto, de um
irracional apego ao passado, mas de uma apreciação adequada, dentro da
ótica e dos limites da situação vigente, das condições de vida dos trabalha-
dores. Neste sentido, constitui uma ideologia, isto é, uma ordenação
cognitiva e valorativa da realidade que parte (e se restringe aos limites)
das estruturas reificadas da experiência imediata, tomadas como ele-
mentos constitutivos permanentes ou “naturais” da ordem social e que,
como tal, ordena a prática social.
Mas não se trata apenas disso. Além de estar na ideologia, a família
deve ainda ser considerada explicitamente como uma das instituições
em que se constroem as ideologias. Não me refiro aqui à problemática
althusseriana mais geral da constituição do sujeito, o processo de huma-
nização que se dá nos primeiros anos de vida e para o qual, obviamente,

 A família operária


a família interfere de forma decisiva. Quero, antes, salientar a impor-
tância da família na vida adulta, como lugar onde se concentram in-
formações sobre a sociedade e onde se elabora a interpretação dessas
infor mações (e que talvez corresponda ao que Althusser quer dizer
quando classifica a família como aparelho ideológico de Estado).
Que a família (assim como, em menor escala, o grupo de parentes
e o círculo de vizinhos e amigos) seja tão importante na elaboração dessas
representações decorre, pelo menos em parte, do fato de a classe operá-
ria ter canais tão limitados de participação e acesso tão restrito às infor-
mações sobre a natureza das forças sociais que articulam a sociedade.
Especialmente no Brasil, trata-se de uma população que possui pouca
ou nenhuma escolarização. Para a grande maioria dos operários, o
pouco ensino formal que obtiveram, completamente divorciado de sua
vivência concreta, não é capaz de for necer parâmetros que per mitam
uma interpretação da sociedade em termos de sua experiência de vida.
A escola brasileira sequer habilita a população operária para utilizar
com alguma eficiência as fontes escritas, excluindo-a assim da cultura
erudita e científica, e impedindo-a de desenvolver uma literatura pró-
pria. Apenas a cultura de massa, que utiliza as for mas orais ou direta-
mente visuais do rádio e da televisão, a atinge maciçamente de fora. Mas
as infor mações fragmentadas e tendenciosas transmitidas por esses
meios de comunicação não podem, sem elaboração posterior, constituir
nem um panorama coerente, nem um esquema de interpretação por
meio dos quais possam ser localizados os problemas que os operários
encontram em sua vivência cotidiana.
Por isso mesmo, apesar do rádio e da televisão, toda a elaboração
própria das camadas populares depende muito da acumulação da expe-
riência pessoal e da sua transmissão oral direta através de contatos
interpessoais. Daí a importância dos grupos primários e, portanto, da
família, que é tanto mais fundamental quanto menores as outras possi-
bilidades de vida associativa, como aquelas que são for necidas pela
militância sindical, política ou religiosa.
Cabe ainda, a esse respeito, uma pequena observação paralela.
Embora seja óbvio que a família é uma instituição muito inadequada para
a elaboração de uma visão compreensiva da sociedade, no caso brasilei-
ro, em que a industrialização é ainda recente e a mobilidade ocupacional
muito grande, o convívio familiar reúne pessoas de experiência ocupa-
cional bastante diversa. Desse modo, per mite a troca de experiências


diferentes e alarga o âmbito do conhecimento sobre a sociedade de modo
um pouco mais amplo do que tende a ocorrer nos países onde a popula-
ção operária já está solidificada. Esta interpretação, que atribui à família
um papel importante como ponto de referência para a formulação de juí-
zos críticos das condições de existência através das quais se concretiza
uma situação de classe, exige ainda algumas outras considerações.
Na medida em que se constitui como o grupo dentro do qual se dá
a reprodução biológica e a socialização básica, a família estabelece, atra-
vés do parentesco, uma ligação entre o passado e o presente e, o que é
mais importante, entre o presente e o futuro. Caracteriza-se então,
simultaneamente, pela elaboração de uma estratégia de sobrevivência
imediata e de um projeto para o futuro. A formulação desse projeto é um
momento privilegiado, que exige a síntese das experiências concretas na
formulação de uma representação da sociedade. No projeto para o futu-
ro encontramos, de um lado, aspirações de consumo que consubstan-
ciam os ideais de uma “vida melhor”, forma implícita de crítica à situa-
ção presente. De outro, o projeto inclui estratégias para a realização dos
ideais propostos, estratégias estas que implicam a explicitação das difi-
culdades que se apresentam (isto é, que “a sociedade” coloca) para a
realização de ideais que se consideram justos. Basicamente, o projeto
define ideais de consumo para cuja satisfação é necessário obter para os
membros da família, especialmente os filhos, melhores condições de
competição no mercado de trabalho. Nesse sentido, o projeto de vida da
família constitui a ocasião privilegiada para relacionar a participação na
estrutura produtiva e o acesso aos bens de consumo, for mando uma
imagem sintética da posição do trabalhador na sociedade.
Esta imagem sintética é complementada pela visão do passado, pela
comparação entre o que a família é agora (a posição que ocupa) e pode
vir a ser (o projeto), e o que os avós foram no passado. Dá, assim, um
histórico “vivido”, que não pode ser substituído pela história for mal,
precariamente aprendida na escola pelos poucos que a freqüentaram,
nem pelos fragmentos do passado da classe trabalhadora, conservados
na também precária memória coletiva. A história vivida é, entretanto,
muito curta, caracterizada na maioria das vezes pela passagem de agri-
cultor a operário, de morador do campo a morador da cidade, de avô
analfabeto a neto escolarizado. Sendo curta, é também unidirecional,
marcada pela ilusão ou pela realidade de uma “melhoria” de vida e jus-
tifica, portanto, uma interpretação “desenvolvimentista” da sociedade e

 A família operária


uma visão ascensional das perspectivas de trabalho, cuja generalidade
tem sido apontada inúmeras vezes nas pesquisas de campo.
A família aparece assim como núcleo (embora, obviamente, não o
único) dentro do qual e em termos do qual se constroem as dimensões
do espaço social e do tempo histórico, que per mitem ao trabalhador
avaliar sua posição na sociedade e suas perspectivas de alteração da
situação existente.
Em resumo, a valorização da família – como a do consumo e a da
ascensão social, tão características da vida operária – é resultado direto
do modo como os trabalhadores vivem sua condição de classe, e não
produto da aceitação de valores próprios de outras categorias e classes
sociais. Pode ser considerada como parte de uma “ideologia dominan-
te” no sentido de que está inserida no processo de reprodução da socie-
dade (e do modo de produção). Mas não pode ser superada nem através
da reflexão abstrata nem da propaganda, pois nem mesmo a crítica mais
penetrante é capaz de superar, por si só, a prática social que lhe deu ori-
gem e que lhe dá continuidade. Por outro lado, não é também pura
“mistificação”, pois, inserida numa realidade concreta, implica não ape-
nas aceitação da ordem existente, mas uma base a partir da qual as pes-
soas tomam consciência das deficiências e injustiças próprias de sua
condição, e ponto de partida necessário em relação ao qual se podem
erigir tentativas individuais e parciais ou coletivas e organizadas para
superar essa condição, transformando a sociedade.


Capítulo 

     


Este trabalho, escrito oito anos após o texto sobre dinâmica cultural (cap. 7,
supra), resulta de um período de reflexão sobre o conceito de cultura, reali-
zada em função de debates com alunos, sociólogos e cientistas políticos, cuja
referência teórica básica era o marxismo. Não era fácil, naquela época, legi-
timar uma abordagem antropológica no estudo da nossa sociedade, especial-
mente porque os antropólogos negligenciavam uma reflexão teórica que
explicitasse a peculiaridade de seu método e a relação entre os conceitos que
utilizavam e aqueles próprios do marxismo, especialmente na sua versão
francesa, dominada por Althusser.
O recurso comum então utilizado pelos jovens antropólogos e estudan-
tes de pós-graduação, na formulação de seus projetos e elaboração de seus
trabalhos, era o de simplesmente substituir a palavra “cultura” por “ideo-
logia”, sem uma reflexão mais aprofundada da diferença entre elas e dos
procedimentos metodológicos que exigiam.
O artigo procurava explicitar estas questões e resgatar o conceito de cul-
tura (então extremamente desvalorizado) como instrumento analítico podero-
so e necessário na tarefa interdisciplinar de estudar a sociedade brasileira.
Cultura e ideologia*

A análise das ideologias, um dos temas centrais da sociologia e da ciên-


cia política contemporâneas, é um campo no qual o aproveitamento dos
métodos, técnicas e resultados teóricos da antropologia parece ser não
apenas pertinente, mas necessário. Com efeito, qualquer que seja a con-
cepção que se tenha do conceito de ideologia – e certamente há várias e
contraditórias – todas elas possuem em comum pelo menos a admissão
de que os fenômenos ideológicos dizem respeito ao universo simbólico
e possuem uma afinidade básica com os mitos, questões estas às quais a
antropologia tem dedicado o melhor de seus esforços. Nesse sentido,
a análise das ideologias e o estudo da cultura são investigações que, no
mínimo, se sobrepõem.
Entretanto, para se deter minar com alguma clareza a possibili-
dade de utilização dos recursos da antropologia no exame das ideologias
(ou vice-versa), é necessário reconhecer e estabelecer as diferenças de
abordagem que aparecem com nitidez quando se analisam e comparam
os conceitos de cultura e de ideologia. É essa a tarefa que nos propo-
mos iniciar nesta contribuição para um debate, tentando mostrar a
inconveniência, quer da eliminação do conceito de cultura e da investi-
gação dos fenômenos culturais em favor da análise da ideologia, quer
da absorção do conceito de ideologia e da problemática que lhe é pró-
pria pelo estudo da cultura. O que se propõe é a per meabilidade dos
dois tipos de abordagem, com a preservação dos recursos de análise
próprios a cada um deles.

* Publicado originalmente em Dados – Revista de Ciências Sociais, v. , n. , .


Cultura

O conceito de cultura, tanto quanto o de ideologia, tem sido definido de


maneiras diversas. Não é necessário, neste trabalho, reconstituir toda a
sua história. O que nos interessa, primordialmente, é recuperar alguns
de seus aspectos gerais e indicar implicações que decorrem do modo
pelo qual o conceito foi utilizado na investigação etnográfica (e nem
sempre corresponde à forma pela qual foi definido).
Em primeiro lugar, é importante reconhecer que o conceito foi cons-
truído em função de problemas específicos da investigação antropológica,
os quais dizem respeito ao estudo dos povos chamados “primitivos”, isto
é, sociedades relativamente indiferenciadas, de tradição histórica indepen-
dente da nossa. De certo modo, é possível dizer que os aspectos gerais do
conceito de cultura podem ser apreendidos como um conjunto de pressu-
postos que decorrem do modo pelo qual a antropologia concebeu seu
objeto e definiu os problemas básicos do trabalho de campo. Esses pressu-
postos foram construídos de modo a encaminhar soluções para uma inda-
gação central: qual o significado de costumes estranhos e aparentemente
incompreensíveis observados em sociedades diferentes da nossa?
Na tradição antropológica, portanto, pergunta-se sempre sobre o
significado da conduta socialmente padronizada. Formular o objeto da
investigação nesses ter mos implica reconhecer que a vida social, em
qualquer agrupamento humano, não é um caos incompreensível, mas se
ordena pelo costume. Que esses costumes, incompreensíveis para nós,
possuem significado para os membros da sociedade em questão. Que o
significado presente no costume pode ser desvendado pela investiga-
ção antropológica porque o mecanismo de sua construção é universal,
isto é, comum ao investigador e ao investigado, por mais diverso que
seja o resultado de seu funcionamento.
A idéia fundamental é a de que a vida social é ordenada por símbo-
los organizados em sistemas. O corolário dessa concepção é a negação
de uma base natural (ou biológica) para a sociedade. Trata-se aqui,
obviamente, da célebre oposição entre natureza e cultura, oposição esta
que funda a Antropologia Cultural e Social1 e implica uma certa con-
cepção de “natureza humana”.

. A sistematização inicial do conceito de cultura proposta por Tylor em  significou o


abandono da explicação das diferenças culturais por diferenças raciais. Ver Tylor .

 Cultura e ideologia


De acordo com essa concepção, o que caracteriza a “natureza huma-
na” é justamente o grau de ausência de orientações intrínsecas, genetica-
mente programadas, na modelagem do comportamento. Despojada des-
sas orientações, toda ação humana e a própria sobrevivência da espécie
ficam condicionadas à constituição de orientações extrínsecas, construídas
socialmente por meio de símbolos. Sem essas orientações, regras simboli-
camente construídas, o homem não teria um comportamento mais natural
– seria, ao contrário, uma monstruosidade biologicamente inviável, inca-
paz de governar seus impulsos, viver em sociedade e organizar sua ação
sobre o mundo. O mapeamento simbólico é essencial não apenas à elabo-
ração do conhecimento, mas à organização e expressão dos sentimentos e
paixões.2 Desse ponto de vista, o componente simbólico da ação humana,
mais que parte integrante, é elemento constitutivo da vida social. Lévi-
Strauss () formulou este postulado básico numa crítica a Durkheim,
afirmando que o problema crucial não é buscar a origem social do simbo-
lismo, mas entender o fundamento simbólico da vida social.
A dimensão simbólica constitutiva da ação humana pode ser verba-
lizada no discurso, cristalizada no mito, no rito, no dogma ou incorpora-
da aos objetos, aos gestos, à postura corporal, e está sempre presente em
qualquer prática social.
Essa concepção básica incorporada no conceito de cultura encontra
uma correspondência imediata na experiência do trabalho de campo, no
qual a observação do comportamento e o comentário for mulado sobre
ele pelos membros da sociedade aparecem indissoluvelmente unidos.
Tome-se, por exemplo, a investigação das regras de casamento na eluci-
dação de um sistema de parentesco. Elas são construídas por meio da
análise do mapeamento de casamentos reais, efetivado com as categorias
for necidas verbalmente pelos infor mantes. Complementar mente, utili-
zam-se informações sobre casamentos hipotéticos, pedindo-se aos infor-
mantes que discriminem entre uniões per mitidas (toleradas ou preferi-
das) e proibidas. Anotam-se também os mitos e teorias que exprimem
e/ou justificam as práticas sociais. As informações são ainda controladas
através do levantamento de genealogias, da observação das for mas de
apelação e das condutas padronizadas. Nessa situação de pesquisa, tanto
a observação direta da conduta como os comentários ou discursos dos

. Moder namente, Lévi-Strauss e Geertz estão entre os autores que trabalham de maneira
mais construtiva com esta noção. Ver Lévi-Strauss  e Geertz .


membros da sociedade sobre sua prática constituem elementos igual-
mente relevantes utilizados pelo antropólogo para construir-reproduzir
um sistema, apresentado sob a forma de nor mas ou padrões culturais,
em função do qual a ação e o discurso adquirem sentido.
Para realizar a investigação de campo, portanto, basta admitir que
“tudo se passa como se” o comportamento de seres humanos vivendo
em sociedade dependesse da existência de um conjunto de nor mas,
construídas socialmente. Entretanto, a colocação do problema nesses
termos simplistas, se bem que possa dar origem a monografias primoro-
sas, oculta alguns problemas teóricos fundamentais e implica o perigo
de reificar as explicações construídas pelo investigador.
Na verdade, acredito que a antropologia jamais tratou de modo
adequado a questão da natureza das normas sociais, que diz respeito ao
caráter consciente ou inconsciente das regularidades comportamentais,
e remete ao problema da relação entre condutas individuais e processos
sociais. A própria ambigüidade do conceito de norma, que pode ser
usado, alternada ou simultaneamente, como construção do investigador
ou elaboração (consciente ou inconsciente) da própria sociedade, foi
usada freqüentemente como recurso para evitar a necessidade de escla-
recer o problema.
Entretanto, apesar da imprecisão das for mulações, para os antro-
pólogos, acostumados a realizar as análises a partir de discursos e práti-
cas fragmentários, sempre ficou claro que, embora as práticas sociais
façam sentido para os atores, embora esse sentido possa ser recuperado
através da construção-explicitação de sistemas simbólicos, embora os
agentes sejam capazes de for mular as regras que regem sua conduta,
os sistemas, enquanto tais, não são verbalizados e não precisam estar
presentes na consciência dos homens para operar. Com relação a esse
problema, menos que com uma teoria, os antropólogos tenderam a ope-
rar com uma metáfora: a cultura é como a linguagem. Tanto uma quan-
to outra só podem ser explicadas remetendo à da estrutura que lhes dá
forma, mas ambas são utilizadas e entendidas sem que essa estrutura
assome à consciência dos homens.3 A linguagem, concebida simultanea-
mente como parte e instrumento indispensável da cultura, passou a ser
também o verdadeiro paradigma da cultura.

. O caráter nebuloso desse inconsciente produtor de estruturações per mitiu relegar à


inconsciência dos antropólogos problemas teóricos extremamente espinhosos.

 Cultura e ideologia


Desse modo, não é de se estranhar o imenso fascínio que a lingüís-
tica moder na exerceu sobre a antropologia. Coube ao estruturalismo
explorar a utilização metafórica da língua para entender a cultura, apro-
ximando teoricamente antropologia e lingüística. Mas, nessa perspecti-
va, a cultura passou a ser concebida como texto, e a tarefa da antropolo-
gia como a sua decifração – a descoberta dos códigos que per mitem a
sua leitura. Essa postura foi incentivada na própria situação de pesquisa
pela posição ocupada pelo antropólogo – a de um observador “de fora”.
Entretanto, essa tendência tendeu a acarretar uma deformação interpre-
tativa que Bourdieu caracteriza como vício hermenêutico, análogo ao do
lingüista que estuda línguas diferentes da sua: “implica o fato de apreen-
der a língua antes do ponto de vista do sujeito que entende, do que do
ponto de vista do sujeito que fala, quer dizer, como instrumento de deci-
fração mais do que como meio de ação e expressão” (: ).
O perigo de se abandonar a perspectiva dos “homens atuantes”
(para os quais a cultura é instrumento construído para agir sobre o
mundo) está em, tomando a nuvem por Juno, conceber a ação cultural-
mente padronizada como simples objetivação das normas ou da estru-
tura, isto é, como epifenômeno. Cai-se assim, necessariamente, no idea-
lismo e no for malismo, e perde-se boa parte da riqueza da abordagem
etnográfica na qual o significado é indissociável da ação transformadora
do homem.
Para evitar esse caminho é necessário retomar o modo pelo qual a
antropologia encaminhou, no trabalho de campo, a relação entre a ação
transfor madora do homem no mundo e esses “objetos simbólicos”
conscientes que são os mitos, as regras, os comentários que os homens
tecem sobre sua própria conduta. Evitando a ambigüidade do termo
norma, pode-se utilizar o conceito de padrão cultural, referindo-o a
ordenações presentes no comportamento coletivo. Padrões culturais são
construções do investigador que explicitam uma lógica própria da con-
duta. Essa lógica não é, em si, consciente, mas sua produção (repro-
dução) depende de um instrumental simbólico que é cristalizado nos
mitos, nas regras explícitas, nas teorias que os homens constroem para
explicar a natureza, a sociedade e seu próprio destino, e que podem ser
concebidos como “objetos culturais”, produzidos socialmente.
A dinâmica da relação entre esses “objetos culturais” e a prática
coletiva pode ser mais facilmente apreendida se utilizar mos, em lugar
da metáfora da linguagem, a do trabalho: do mesmo modo que os bens


materiais resultantes do trabalho social encerram um trabalho morto
que só pode ser reincorporado à atividade produtiva por meio de um
trabalho vivo, assim também esses sistemas simbólicos fazem parte da
cultura na medida em que são constantemente utilizados como instru-
mento de ordenação da conduta coletiva, isto é, absorvidos e recriados
nas práticas sociais.4
Utilizando de modo um pouco diferente uma concepção de Geertz,
podemos dizer que esses sistemas simbólicos são modelos na dupla
acepção do termo: de um lado, propriamente representações (modelos
da realidade social) e, de outro, simultaneamente, orientações para a
ação (modelos para o comportamento social) (: ). Ao contrário de
Geertz, entretanto, referimos o conceito de cultura menos aos modelos
do que ao processo de sua contínua produção, utilização e transformação
na prática coletiva.
Novas metáforas não constituem, certamente, substituto adequa-
do para uma reflexão teórica mais acabada, mas permitem retomar uma
concepção dinâmica de cultura que sempre esteve presente na investi-
gação etnográfica e entender a partir dela a ausência, na antropologia,
de certos problemas aos quais a sociologia e a ciência política dedicaram
muito de seus esforços.
Com efeito, presa a um trabalho de campo no qual ação e repre-
sentação aparecem indissoluvelmente ligadas, numa concepção de prá-
tica significante, a antropologia não desenvolveu nenhuma tendência a
opor for malmente “condições reais de existência” às representações,
nem a perceber estas como manifestações distorcidas daquelas. Dentro
da orientação antropológica, é impossível relegar o universo simbólico,
em sua totalidade, à instância da superestrutura, uma vez que ele é
indissociável de qualquer prática social, inclusive da produção material,
e é instrumento fundamental para sua decifração.
Voltada para o plano das práticas sociais concretas, a antropologia
jamais operou satisfatoriamente com a oposição infra-estrutura/supe-
restrutura.5 Quando muito desenvolveu, na descrição etnográfica, dis-
tinções muito fluidas entre organização econômica, organização social
e religião, distinções estas que são antes recursos expositivos do que ele-

. Sobre esta questão, ver cap. , supra.


. Sobre as dificuldades de aplicação da oposição infra-estrutura/superestrutura em antro-
pologia, ver Sahlins .

 Cultura e ideologia


mentos de uma formulação teoricamente fundamentada. As distinções
são fluidas porque, na investigação empírica, os antropólogos tenderam
a analisar tanto a organização econômica, como a mitologia e o ritual,
em sua relação com a organização social e em termos de sua integração
em práticas multidimensionais.
Talvez seja o conceito de fato social total, proposto por Marcel
Mauss (-) e reelaborado por Lévi-Strauss (), aquele que me-
lhor caracterize a abordagem antropológica, presa à prática etnográfica:
menos a preocupação em isolar e analisar sistemas econômicos, políti-
cos, jurídicos ou ideológicos (embora ela também esteja presente) do
que o esforço de integrar todos esses aspectos em ter mos de práticas
sociais cuja as múltiplas dimensões se unificam pela significação. Assim
é que, nas monografias clássicas, quando os antropólogos analisam o
sistema econômico falam de clãs e linhagem, na organização social des-
crevem distribuição de alimentos e no estudo do mito analisam a rela-
ção entre homem e natureza.
Embora seja perfeitamente possível (e teoricamente adequado)
afirmar que os mitos, as regras que estabelecem sistemas de obrigações
recíprocas, ou o ritual fazem parte da superestrutura, a explicação an-
tropológica nunca se encaminhou no sentido de contrapor ou comparar
essa instância, em seu conjunto, às práticas produtivas tomadas em sua
independência. Ao contrário, o trabalho de análise opera no sentido de
dissolver a separação das instâncias para focalizar a inter-relação dinâ-
mica entre aspectos super e infra-estruturais em práticas sociais multi-
dimensionais.
Cabe ainda observar que os antropólogos tenderam a conceber os
padrões culturais não como uma forma ou molde, que implicasse produ-
zir condutas estritamente idênticas, mas antes como as regras de um
jogo, isto é, uma estrutura que permite atribuir significado a certas ações
e em função da qual se jogam infinitas partidas. Desse modo, a prática
social adquire forma e sentido, mas não é estritamente deter minada,
admitindo-se todo um espaço de arbítrio, criatividade, improvisação e
transfor mação. A observação da infinita variedade de for mas culturais
de uma sociedade e a presença de soluções as mais diversas para os mes-
mos problemas em sociedades diferentes sempre afastaram os antropó-
logos da questão da determinação em última instância pelo econômico.
Mesmo quando aceita em ter mos teóricos gerais, essa concepção não
constitui nem o centro da reflexão teórica nem um guia eficaz para a


prática da investigação etnográfica, a não ser muito raramente, nas ten-
tativas de alguns antropólogos marxistas. Os antropólogos sempre es-
tiveram muito mais interessados nas inúmeras mediações do que na
determinação última, no espaço de indeterminação da produção simbó-
lica, isto é, nas complexidades “desnecessárias”, nas ênfases emotivas,
nas “perversões” cognitivas que dão a cada cultura sua forma, sua “cor”
e sua especificidade. O elemento simbólico presente nas pautas de orga-
nização da vida social parece permitir infinitas elaborações, extraordiná-
rias reduplicações, refinamentos e complexidades “gratuitas”, como se
nota facilmente no ritual, na mitologia, na ornamentação, nas classifica-
ções do mundo natural e social, nas regras de polidez, nas categorias de
parentesco, na distribuição do alimento etc. Para o antropólogo, a cultu-
ra tem um certo caráter lúdico, como se os homens, tendo desenvolvido
sua capacidade simbólica em função de e para sua prática social, brincas-
sem com ela na elaboração de estruturas infinitamente complicadas e
que parecem ser, por isso, esteticamente satisfatórias.
É verdade que essa colocação não elimina um problema, central
no marxismo: a identificação de processos que são fundamentais para a
reprodução de uma forma de vida social (uma cultura) deter minada.
Esse problema apareceu indiretamente na antropologia clássica na
questão da integração da cultura, e foi encaminhado de três for mas
diversas, todas elas basicamente descritivas. Em primeiro lugar, na ten-
tativa de detectar valores abrangentes que são, na verdade, formulações
sintéticas de características próprias das atitudes dos indivíduos porta-
dores da cultura – essa abordagem é a que leva à definição do ethos cul-
tural. Em segundo lugar, como faz Malinowski, na procura de institui-
ções básicas universais, cuja forma específica em cada sociedade seria
responsável por sua unicidade e em função das quais seria possível
apreender a integração entre os diferentes aspectos e partes da cultura.
E, finalmente, por meio do conceito de estrutura da sociedade, arcabouço
formal referido aos sistemas de relações sociais (funcionalismo estrutu-
ral). Mais recentemente, no estruturalismo de inspiração lingüística, o
conceito de estrutura tendeu a liberar-se do conceito de sociedade para
referir-se, cada vez mais, aos sistemas simbólicos enquanto tais, encami-
nhando a análise para um formalismo crescente.
Em nenhum dos três casos, note-se bem, é incorporado o proble-
ma da determinação.
Em resumo, estamos querendo mostrar que, analisando a prática

 Cultura e ideologia


econômica, a vida cotidiana ou a religião, a abordagem culturalista
parte sempre do pressuposto da unidade entre ação humana e significa-
ção. É verdade que o estruturalismo, pela influência da lingüística, com
sua ênfase na análise dos aspectos formais dos sistemas simbólicos, ten-
deu muitas vezes a dissociá-los da ação transfor madora do homem
sobre a natureza e na sociedade. É necessário, entretanto, preservar a
riqueza da abordagem tradicional, cunhada na prática da etnografia,
que podemos caracterizar por três ausências ou negações.
Em primeiro lugar, a análise dos padrões culturais não implica
qualquer oposição entre falso e verdadeiro. Regras explícitas ou expli-
cações míticas não são distorções de uma realidade demonstrada pela
ciência, mas formas de sua produção. Do mesmo modo, a confrontação
entre o discurso do nativo sobre sua sociedade e a construção do antro-
pólogo não é analisada para demonstrar a distorção do primeiro em
relação ao segundo, mas para verificar se este permite decifrar aquele.
Por outro lado, como as sociedades estudadas pelos antropólogos
não possuem elas próprias uma antropologia, o problema da relação
sujeito-objeto da investigação se apresentou de forma muito particular,
isto é, a questão da presunção da exterioridade do observador não foi
contestada, e não foi nesses termos que se discutiu o problema da obje-
tividade científica. Ao contrário, o desenvolvimento das técnicas de pes-
quisa se deu no sentido de procurar diminuir uma exterioridade coloca-
da de início pela própria situação de campo, e a discussão sobre a
cientificidade e objetividade dos resultados da investigação descolou-se
para a questão do relativismo cultural, isto é, a necessidade de elaborar
categorias de análise que não defor massem a realidade observada por
parâmetros da nossa própria cultura. Em função dessas duas questões,
pode se entender que não tenha surgido na antropologia a discussão
sobre a oposição ciência-ideologia.
Finalmente, não há também nenhuma relação necessária entre as
representações (em sua falsidade ou veracidade) e o poder. Padrões cul-
turais não são concebidos, fundamentalmente, como instrumentos de
dominação, a não ser no sentido genérico de que a cultura é instrumen-
to de domínio das forças naturais. A opacidade da sociedade, a incons-
ciência dos homens em relação aos mecanismos de produção da vida
social nunca puderam ser vistas pelos antropólogos, nas sociedades
essencialmente igualitárias com as quais se preocupam, como resultante
do ocultamento da dominação de uma classe sobre outra. Obviamente


é possível analisar relações de poder nas sociedades primitivas, mas este
não é nem o fulcro nem o centro da concepção de cultura.
São, no fundo, essas ausências que permitem explicar as diferenças
entre um estudo antropológico da cultura e a análise política das ideologias.

Ideologia

O conceito de ideologia foi cunhado e se transformou em razão de uma


ordem de indagações muito diferente daquela que informou o conceito
de cultura. De início, não se tratava de saber “qual o significado de cos-
tumes estranhos em povos diferentes”, mas se indagava qual a importân-
cia das idéias na preservação de uma ordem social injusta e como, ao
contrário, podiam servir de instrumentos na transfor mação consciente
da sociedade em direção a uma ordem justa.6
Como se vê, os problemas colocados e os pressupostos mobilizados
são muito diversos daqueles que estivemos estudando até agora.
A diferença mais importante, obviamente, está em que a problemá-
tica da ideologia é, desde o começo, essencialmente política. Aliás, o é
duplamente, pois se situa exatamente na junção da reflexão com a práti-
ca política.
O conjunto de pressupostos não é menos diverso. De início já há
menos, talvez, um pressuposto do que um corolário: o da oposição entre
erro ou falsidade e verdade. Desde os ideólogos franceses até o jovem
Marx da Ideologia alemã, e permeando em seguida boa parte tanto da tra-
dição marxista quanto da positivista, está a convicção de que “idéias” fal-
sas ou distorcidas (superstições para os ideólogos, ideologia para Marx)
são instrumento de opressão política de uma classe; e, inversamente, de
que “idéias” verdadeiras, construídas pela ciência (ou pelo proletariado,
ou pela ciência verdadeira que é a do proletariado) são armas e instru-
mentos necessários na luta contra a opressão da classe dominante.
Pressuposto também que permeia toda essa colocação é a concepção,
própria do século  e do pensamento burguês, de que a sociedade pode
e deve ser transfor mada pela razão, de que uma ordem social justa só
pode ser criada consciente e racionalmente. Nesse sentido a ciência aparece,
simultaneamente, como instrumento de verdade e arma de justiça.

. Sobre o conceito de ideologia e sua história, ver Lichtheim : -.

 Cultura e ideologia


Com base nesses pressupostos, o conceito de ideologia, pelo
menos de início, não abarcou todo o campo do simbolismo e da signifi-
cação colocado pela antropologia, mas restringiu-se (até muito recente-
mente) a conteúdos bastante específicos. Isto é, a análise das ideologias
referiu-se, basicamente, a certos sistemas estruturados e cristalizados de
representações: a religião, o direito, a filosofia, as idéias políticas. Por
outro lado, como cabe à ciência o papel liberador de demonstrar a falsi-
dade dessas representações, desmistificando a dominação para produzir
liberdade, o problema cedo se transpõe para a questão de deter minar
em que medida o que se propõe como ciência é realmente científico ou,
ao contrário, constitui uma nova defor mação ideológica. A grande
batalha, portanto, se trava no campo da filosofia da ciência.
Essas observações são suficientes para demonstrar outra diferença
essencial entre o conceito de cultura e o de ideologia. Referindo-se basi-
camente a sistemas cristalizados de “idéias” (produtos culturais), a uti-
lização do conceito de ideologia implica uma separação bastante radical
entre realidade social e universo simbólico. Essa utilização tende a
reconstituir certos sistemas de representações como instância específica,
para confrontá-los em seguida com as “condições reais de existência”
(ou “a economia”, ou “a infra-estrutura”), que são examinadas com
outro instrumento teórico. Isso quer dizer que só se pode tentar formu-
lar as relações entre essas duas ordens de realidade (uma das quais é
“mais real” que a outra) depois que cada uma delas foi previamente iso-
lada e analisada como sistema independente. Numa análise deste tipo é
praticamente impossível detectar o modo pelo qual as representações
modelam o comportamento coletivo, e os estudos se contentam em
demonstrar a distância entre a ideologia e a realidade social. Interpre-
tando essa distância como distorção perversa, o problema crucial é
transferido para a busca das causas que a produzem.
Os problemas teóricos e metodológicos levantados por uma abor-
dagem que, privilegiando a ação transfor madora do homem, separa-a
do universo simbólico e projeta essa separação na antinomia da infra-
estrutura e superestrutura, são imensos. Também não queremos, nesta
simplificação bastante grosseira do problema, negar a riqueza e a im-
portância das análises realizadas com o conceito de ideologia. Quere-
mos apenas salientar, de uma forma algo caricatural, os aspectos que
distinguem radicalmente o uso comum ou vulgar do conceito de ideo-
logia do de cultura, e que seriam os seguintes:


. sua implicância política necessária;
. sua restrição inicial a sistemas estruturados e cristalizados de repre-
sentações;
. o estabelecimento de uma oposição entre realidade e representação,
reduzindo o problema do simbolismo ao segundo termo;
. a instrução de uma oposição entre falso e verdadeiro que é associada,
termo a termo, com a oposição opressão-liberdade;
. a síntese dessas características na concepção de que a ideologia é uma
imagem distorcida e “perversa” da realidade social a serviço da opres-
são de uma classe sobre outra.

Grande parte da discussão recente sobre o conceito de ideologia, pola-


rizada em torno da contribuição de Althusser, pode ser vista como uma
tentativa de superar os impasses criados pela oposição representação-
realidade social, e implica uma redefinição da natureza, do papel e do
lugar dos sistemas simbólicos na vida social.7
O caminho encontrado por Althusser consiste em:
. De início, recuperando certas for mulações de Marx, superar a visão
mecanicista e economicista da relação entre infra-estrutura e superestru-
tura, colocando a ideologia (e as superestruturas em geral) dentro do
movimento da reprodução das condições de produção.
. Alargar o conceito de ideologia de modo a ultrapassar sua limitação
primitiva a sistemas conscientes e cristalizados de representações, tor -
nando-o praticamente sinônimo de “universo simbólico” e englobando
o inconsciente.
. Recolocar a relação entre representação e realidade social de modo a
evitar a oposição ciência-ideologia nos moldes em que habitualmente
era proposta. Assim, a ideologia não é mais pensada como uma ciência
falsa, isto é, uma imagem distorcida das condições reais de existência,
mas a representação (imaginária) da relação (vivida) dos homens com
essas condições de existência. A ideologia, agora, está diretamente vin-
culada ao “vivido humano”, universo de significação.
. Restabelecer a relação entre universo simbólico e ação humana, afir-
mando a existência material da ideologia, que agora está “inserida numa
prática material, governada por rituais materiais, definida por aparatos
ideológicos materiais”.

. Sobre os aparelhos ideológicos de Estado, ver Althusser .

 Cultura e ideologia


Como se vê, o conceito de ideologia foi alargado de forma a englobar pra-
ticamente todo o campo tradicionalmente abarcado pelo conceito de cul-
tura, sobreposição esta que se torna mais completa no momento em que o
processo de recrutamento ideológico se identifica com a própria “trans-
formação de indivíduos em sujeitos”. Nessas perspectivas, o processo de
constituição de sujeitos humanos, que é seu ingresso no universo simbóli-
co, consiste no seu ingresso na ideologia. Por isso mesmo, a contribuição
de Althusser apresenta um grande interesse para a antropologia, especial-
mente na aproximação que estabelece entre a ideologia e o “vivido”
humano, assim como na sua relação com a constituição dos sujeitos. Per-
manecem, entretanto, diferenças importantes entre esse conceito alargado
de ideologia e o conceito de cultura, e que convém explicitar.
Em primeiro lugar, a ideologia, nesse novo sentido, constituiu o
“sujeito” mas não “as condições reais de existência”, que permanecem
como realidade de outra ordem. Reintroduz-se assim a oposição reali-
dade-representação, que se tinha tentado superar.
Em segundo lugar, embora praticamente identificando o ideológi-
co com o simbólico e afir mando sua existência material, esta postura
reafir ma a existência de práticas ideológicas distintas das práticas pro-
dutivas e das práticas políticas. Reintroduz-se a restrição do simbólico à
instância das superestruturas, divorciando-o da produção material.
Nesse sentido, a ideologia volta a ser ilusão (embora também seja alu-
são), um imaginário que não é “a realidade”.
Finalmente, todo esse âmbito alargado retém a mesma ênfase polí-
tica do conceito mais restrito. Desse modo, todo o universo da signifi-
cação, identificado com a ideologia e colocado na superestrutura, passa
a ser integralmente contido na problemática da dominação. Perdeu-se o
espaço do lúdico e do gratuito presente na noção de cultura, na qual
nem tudo é opressão e a constituição dos sujeitos humanos não se con-
funde com a imposição da dominação de classe.
O que se conseguiu através desse procedimento foi, de um lado,
alargar de tal forma o conceito de ideologia que ele perdeu toda a espe-
cificidade – tudo o que implica simbolização é ideologia. De outro, poli-
tizar excessivamente o universo simbólico de modo que, tudo sendo
ideologia, tudo é também dominação e tudo se explica pela dominação:
desde a concepção de Estado até a relação entre mãe e filho, desde o dis-
curso do gover nante até o jogo de futebol, a gafieira e o circo, desde a
definição de cidadão até o homossexualismo.


Nesse lusco-fusco onde todos os gatos são pardos, tudo sendo
igualmente ideológico e político, constrói-se um universo asfixiante de
opressão, em que o poder per meia tudo e é tudo. Não há mais graus
de dominação nem critérios de relevância.
O que estamos tentando defender aqui é a preservação do concei-
to de cultura como instrumento para analisar a questão do simbolismo
e da significação na ação humana, não como prática específica mas
como elemento constituinte de todas as práticas, igualmente relevante
na produção material e no debate escolástico. Sem negar a importância
da distinção entre infra-estrutura e superestrutura, recusar a identifi-
cação dessas instâncias com práticas sociais específicas. Manter a con-
cepção antropológica de que as práticas sociais são sempre sínteses de
múltiplas deter minações e sempre, necessariamente, também simbóli-
cas, isto é, dotadas de significação.
De outro lado, é necessário preservar, no conceito de ideologia,
seu conteúdo político, o que implica não alargá-lo desmesuradamente
para incluir todo o simbólico e, muito menos, todas as significações.
A posição de Gramsci parece ser mais frutífera para uma reflexão
sobre as possíveis contribuições no conceito de ideologia para a aborda-
gem antropológica da nossa sociedade (e vice-versa), per mitindo uma
análise mais aprofundada dos problemas esboçados.8 Gramsci é certa-
mente, de todos os autores marxistas, aquele que demonstrou maior
sensibilidade e se preocupou mais profundamente com os fenômenos cul-
turais. É verdade que toda riqueza das análises de Gramsci não se con-
substancia numa teoria acabada da ideologia. Os fenômenos culturais são
abordados através de uma multiplicidade de ter mos e conceitos como
visão de mundo, filosofia, religião, senso comum, bom senso, cujas cono-
tações e limites são imprecisos. Entretanto, o próprio fato de Gramsci
não ter desenvolvido uma teoria sistemática da ideologia, e de ter utiliza-
do concepções fluidas e às vezes mesmo contraditórias, pode ser um fato
positivo – as sistematizações, embora necessárias, freqüentemente cons-
trangem os problemas numa camisa-de-força, ao passo que construções
mais ambíguas podem preservar uma riqueza de percepção para a qual
não existe ainda uma teoria adequada. Por outro lado, o caráter fragmen-
tado dos escritos de Gramsci certamente favorece leituras muito diversas,

. Na discussão sobre Gramsci utilizamos principalmente os estudos contidos em Gramsci


a, b e .

 Cultura e ideologia


o que talvez seja responsável, pelo menos em parte, por seu sucesso
recente. De uma forma ou de outra, sua grande contribuição, da qual
certamente se beneficiou Althusser, foi no sentido de superar o economi-
cismo das interpretações marxistas então vigentes, que tendia a ver as
manifestações culturais como mero epifenômeno, assim como de evitar o
reducionismo classista que está presente mesmo em Lukács.
Fundamental, na posição gramsciana, é a subordinação da análise
da ideologia ao conceito de hegemonia, que permite ancorar firmemente
o problema no campo da política, e remete o processo interpretativo ao
conceito marxista básico de luta de classes.
Nesse caminho, Gramsci tenta evitar, de forma diferente da de
Althusser, a discussão da oposição falso-verdadeiro, que tende a deslo-
car a análise dos fenômenos ideológicos para o campo puramente epis-
temológico. O que se pergunta, face às ideologias, não é se elas são fal-
sas ou verdadeiras, ou sequer que deformações apresentam em relação
às condições reais de existência, mas qual sua eficácia política, seu
poder de mobilização e seu grau de correspondência com as potenciali-
dades de organização e a capacidade de confronto das classes funda-
mentais – sua organicidade. Mais precisamente, Gramsci indaga como
se pode produzir, na situação histórica específica que investiga, uma
ideologia que seja instrumento de mobilização e organização na luta
contra as for mas de dominação vigentes para a criação de uma nova
ordem social. Desse modo o marxismo (a filosofia da práxis) se apresen-
ta como essa ideologia. Gramsci realiza, portanto, um rompimento
radical com a tradição marxista vulgar ao recolocar, dessa forma, a rela-
ção ciência-ideologia.
Finalmente, se bem que as ideologias estejam claramente situadas
na instância das superestruturas, a análise se volta para o campo da arti-
culação entre as instâncias que se dá na prática política. Aliás, todos os
conceitos-chave de Gramsci, como “hegemonia”, “sociedade civil” e
“bloco histórico”, rompem justamente com uma visão mecanicista do
modelo topográfico infra-estrutura/superestrutura, e apontam para
a complexa articulação da for mação social,9 evitando uma separação
de “instâncias”.
Posta a análise nesse nível, toda a questão da ideologia propria-
mente dita, como da cultura, da religião, da filosofia, e do senso comum,

. Sobre esta questão, é interessante consultar Hall, Lumbey & McLennan .


está voltada para o reconhecimento da importância das idéias, das con-
cepções, das representações para a construção de nor mas de ação, isto
é, implicitamente pelo menos, na vinculação da conduta com o universo
simbólico. É isso que aproxima a versão gramsciana de ideologia (e de
seu substrato, que é o senso comum) de uma concepção antropológica
de cultura: essa vinculação das idéias, representações e categorias com
o vivido humano, sua existência nas próprias práticas sociais, sua rela-
ção com normas de conduta. E é por isso que muitos dos trechos de
Gramsci apresentam inegável sabor antropológico.
Gramsci não analisa a ideologia e a política como práticas especí-
ficas. Novas formas de dominação, o estabelecimento de um novo bloco
histórico, implicam uma transfor mação profunda de toda a sociedade.
O bloco dominante precisa subordinar as demais classes (e a si próprio)
às exigências do novo modo de produção, não apenas por meio da coer-
ção, mas também pela ampla transfor mação de valores e costumes na
sociedade civil, fundamentando novas práticas sociais. Desse modo, a
política e a ideologia transpassam toda a sociedade, mas não impregnam
do mesmo modo o conjunto de manifestações culturais.
Entretanto, é importante notar, em primeiro lugar, que as análises
de Gramsci sobre os fenômenos culturais, desenvolvidas a partir de uma
perspectiva estritamente política e tendo sempre como centro interpreta-
tivo a investigação das possibilidades de realização da revolução comu-
nista, implicam uma enor me ambigüidade na avaliação das manifesta-
ções culturais espontâneas das classes dominadas. De um lado, Gramsci
sempre demonstrou uma valorização positiva dessas construções cultu-
rais – a noção de bom senso parece ter sido criada exatamente para
expressar o respeito pela capacidade popular, apoiada no pragmatismo e
no realismo, de entender a realidade social e for mular seus interesses
imediatos. Na mesma direção se coloca todo o seu empenho em defen-
der a necessidade de ancorar a produção dos intelectuais no substrato
fornecido pelo bom senso. De outro lado, a análise do senso comum enfa-
tiza constantemente sua fragmentação e inconsistência, que resulta da
coexistência de noções arcaicas e modernas, de elementos desenvolvidos
espontaneamente a partir da vivência solidária da situação de classe e de
idéias impostas pela classe dominante. Para Gramsci, a fragmentação e
a inconsistência do senso comum se devem à ausência de sentido histó-
rico, são resultado de um pensamento que não reflete sobre o modo pelo
qual é produzido, mas aceita a si próprio e à realidade como dados.

 Cultura e ideologia


Essa caracterização do senso comum é muito próxima da concepção
antropológica de cultura (ou de produtos culturais), e a ênfase na frag-
mentação não pode deixar de evocar a metáfora do bricoleur, construída
por Lévi-Strauss (), na análise do pensamento selvagem. Entretanto,
para Lévi-Strauss, o pensamento selvagem utiliza fragmentos para cons-
truir totalidades estruturadas – trabalhar com fragmentos não significa
necessariamente produzir uma visão fragmentada. Para a antropologia, a
ausência de sentido histórico de um pensamento que não reflete sobre o
modo pelo qual foi produzido jamais apareceu como empecilho para a
construção de uma visão de mundo coerente e estruturada.
Para se entender essa oposição entre a formulação de Lévi-Strauss
e a de Gramsci é importante ressaltar que este, em nenhum momento,
busca construir uma teoria da ideologia em geral (nem do senso comum
ou da cultura em geral), mas sim refletir sobre as condições de eficácia
política de diferentes tipos de interpretação ou visões de mundo na socie-
dade criada com o capitalismo. O conceito de ideologia é claramente um
instrumento para analisar aspectos políticos da nossa própria sociedade,
num momento histórico determinado. O conceito antropológico de cul-
tura, ao contrário, tem sempre uma referência geral e é instrumento de
análise e comparação de sociedades de tradição histórica diversa. Aliás,
um exame mais detalhado de todo o processo de construção do conceito
de ideologia, desde seus primórdios, como faz Lichtheim (), mostra
claramente sua vinculação estrutural a problemas específicos que emer-
gem com a sociedade capitalista e, especialmente, à questão da relação
entre novas formas de dominação e a emergência de um conhecimento
científico sobre a sociedade. Convém também lembrar que as diferentes
formulações do conceito de ideologia estão intimamente ligadas a movi-
mentos políticos concretos. Cabe então perguntar se a fragmentação
atribuída por Gramsci ao senso comum não está apontando para um
aspecto da nossa sociedade que o conceito de cultura em geral não pode
apreender, em virtude mesmo de sua generalidade.
Com efeito, a incoerência apontada por Gramsci aparece quando
ele constata a incapacidade do senso comum de se constituir como
instrumento de hegemonia do proletariado. O grande problema de
Gramsci, como o de Lênin e de Lukács, é que, aceitando como elemen-
to interpretativo básico do processo histórico o papel revolucionário
atribuído ao proletariado, o autor constata que este, por si próprio, não
desenvolve espontaneamente nem a visão de mundo nem a prática


revolucionária adequadas. Ao contrário, apoiado no senso comum,
tende para o corporativismo – assim, a noção de fragmentação é, para
Gramsci, a explicitação dessa limitação. Sua reflexão se encaminha
então no sentido de afir mar que a amplitude e a coerência de visão
necessárias para a organização do proletariado num movimento revolu-
cionário e o estabelecimento de sua hegemonia exigem instrumentos
intelectuais específicos que o marxismo oferece enquanto ciência e ideo-
logia. Isto é, a nova hegemonia depende de um novo tipo de pensamen-
to (o pensamento crítico, que reflete sobre as condições de sua própria
produção), porque só desse modo é possível construir (na nossa socie-
dade) uma visão suficientemente coerente e abrangente para cimentar
um novo bloco histórico. Esta é a tarefa dos intelectuais e do partido, e
o marxismo (a filosofia da práxis) aparece então não como uma outra
ideologia, mas como ideologia de novo tipo.
Presentes nessa concepção, como na de classes fundamentais,
estão tanto uma noção específica de totalidade e universalidade, como a
de uma fragmentação característica das sociedades capitalistas, que apa-
rece claramente num trecho referente à linguagem:

Se é verdade que toda linguagem contém os elementos de uma concepção de


mundo e de uma cultura, será igualmente verdade que, a partir da linguagem
de cada um, é possível julgar a maior ou menor complexidade da sua concep-
ção de mundo. Quem fala somente o dialeto e compreende a língua nacional
em graus diversos participa necessariamente de uma intuição do mundo mais
ou menos restrita e provinciana, fossilizada, anacrônica em relação às gran-
des correntes do pensamento que dominam a história mundial. Seus interesses
são restritos, mais ou menos corporativos ou economicistas, não universais.
(Gramsci : )

Assim como não se pode pensar o mundo no dialeto, não se pode fazê-
lo da aldeia.10
Essa concepção demonstra uma clara afinidade com alguns aspec-
tos do conceito de “consciência de classe” de Lukács (em que pesem as
diferenças entre esses dois autores).11 Com efeito, Lukács () per-
. Toda a célebre nota  de “Alguns pontos preliminares de referência”, sobre as línguas
nacionais e os dialetos, aponta indubitavelmente para esse problema.
. É supérfluo apontar a influência da análise empreendida por Marx no  brumário, no tra-
tamento deste problema, tanto sobre Lukács como sobre Gramsci.

 Cultura e ideologia


gunta em que medida a totalidade da economia de uma sociedade (e,
implicitamente, a totalidade da sociedade) pode ser percebida do interior
de uma sociedade determinada, a partir de uma posição determinada no
processo de produção (posição de classe). A vocação de uma classe à
dominação significa que é possível, a partir de seus interesses de classe,
organizar o conjunto da sociedade em conformidade com esses interesses.
Inversamente, nos casos em que a sociedade não pode ser percebida na
sua totalidade a partir de uma situação de classe determinada, em que a
reflexão conseqüente, mesmo indo até o fundo de seus interesses de classe,
não concer ne a totalidade da sociedade, então tal classe pode apenas
desempenhar um papel subalterno na marcha da história.
O problema, tanto na colocação mais rigidamente classista de
Lukács como na apresentação mais fluida de Gramsci, é duplo. De um
lado, ele remete à questão, que obviamente não se coloca para as socieda-
des primitivas, da impossibilidade de certas classes atingirem uma visão
unificada e coerente da totalidade da sociedade, do que resultaria um
papel político subordinado (no exemplo de Gramsci, essa visão unificada
e universal seria impossível a partir da experiência e dos interesses limi-
tados das aldeias camponesas onde se fala apenas o dialeto). De outro
lado, está a questão do marxismo como ideologia e como pensamento crí-
tico. Isto é, a de que essa visão coerente, unificada e universal não pode
ser alcançada (mesmo pelo proletariado) “espontaneamente”, mas exige
a utilização de instrumentos específicos – o pensamento crítico.
Tanto num caso como em outro, a questão da ideologia remete
claramente a problemas específicos da sociedade surgida com o modo
de produção capitalista, que criou as duas classes fundamentais (a bur-
guesia e o proletariado), estabeleceu a nova universalidade e novos sis-
temas de fragmentação, interdependência e subordinação na sociedade
e, além do mais, elaborou novas formas de reflexão sobre si próprio (a
“ciência burguesa” e o marxismo).
Ambas as questões colocam problemas importantes para a reflexão
antropológica, especialmente no que diz respeito à comparação com socie-
dades nas quais os mecanismos de clivagem, integração e dominação se
apresentam de forma diversa. Do mesmo modo, o problema específico do
papel da reflexão científica (marxista ou não) na reprodução e transforma-
ção da ordem social deve ser incorporado pela reflexão antropológica.12

. Para esse tipo de formulação, em termos não marxistas, ver Lamounier .


Entretanto, a utilização do conceito de ideologia no sentido grams-
ciano não apenas levanta problemas importantes mas coloca igualmen-
te limitações específicas para a abordagem dos fenômenos culturais, que
devem ser explicitadas.
Como vimos, o conceito de ideologia em Gramsci remete necessa-
riamente ao conceito de hegemonia e, através dele, subordina toda a
análise das manifestações ideológico-culturais à luta de classes. A impli-
cação dessa postura é a de que a produção cultural é sempre analisada
em função de sua contribuição para o enfrentamento das classes funda-
mentais, num movimento de compreensão que busca a totalidade do
processo histórico. Não há, por assim dizer, elementos culturais ou con-
flitos políticos que possuam relevância própria fora desse quadro.
Vemo-nos assim, do ponto de vista da antropologia, dentro de uma
espécie de camisa-de-força, em que os fenômenos culturais só são consi-
derados enquanto substrato para a emergência da ideologia, ou melhor,
d’A ideologia – a filosofia da práxis. Não há espaço, nessa concepção, para
a exploração da relativa arbitrariedade, dos arranjos alter nativos, da
imensa variabilidade das formas culturais. Do mesmo modo, perde-se a
sensibilidade para a relevância política da manipulação cultural nas ques-
tões referentes aos interesses e conflitos de grupos e categorias sociais
que não possam ser reduzidos ou inteiramente subsumidos no macroen-
frentamento das classes fundamentais.
Finalmente, é importante ressaltar mais uma vez que a análise de
Gramsci, remetendo a características específicas das sociedades criadas
com o capitalismo, faz com que sua extensão ou adaptação ao estudo de
outras sociedades não possa ser imediata nem automática. O conceito
de ideologia constitui um instrumento de análise referente a modos espe-
cíficos de dominação e a modos específicos de produção de conhecimentos
que são próprios da sociedade capitalista. Por isso mesmo, não pode ser
confundido com o conceito antropológico de cultura, nem substituí-lo.

Conclusão

A preservação do conceito de cultura como instrumento metodológico


do estudo da nossa sociedade parece-me importante. Sua generalidade
permite estabelecer comparações com outros tipos de sociedade, o que
constitui um controle importante sobre a tendência a atribuir excessiva

 Cultura e ideologia


especificidade ou demasiada generalidade a certas manifestações cultu-
rais. Por outro lado, ressaltando a arbitrariedade das for mas culturais,
estabelece um questionamento per manente das especificações mecani-
cistas de cunho economicista. Finalmente, contribui decisivamente para
a investigação daqueles problemas que dizem respeito à importância
dos componentes simbólicos da prática social, independentemente de
sua relevância política.
Entretanto, no estudo dos processos culturais em nossa própria
sociedade, é importante incorporar a dimensão política que esses fenô-
menos necessariamente assumem na moderna sociedade capitalista. As
tentativas recentes dos antropólogos de utilizar o conceito de ideologia
se devem exatamente ao reconhecimento desse problema.
Por outro lado, a extensão crescente que o conceito de ideologia
vem assumindo a partir de Gramsci e Althusser, tendendo a abranger
toda a cultura, deriva de um processo análogo, mas inverso: o reconhe-
cimento, por parte dos sociólogos e cientistas políticos, da necessidade
de incorporar a dimensão cultural do processo de dominação política,
em virtude da politização crescente da sociedade e da importância cada
vez mais ampla do Estado.
Esse duplo movimento (da antropologia de um lado, da socio-
logia de outro) não tem, entretanto, levado em consideração dificul-
dades metodológicas inerentes à tentativa de fusão dos conceitos de
cultura e ideologia.
Na sua dimensão original, o conceito de ideologia se refere àque-
les sistemas amplos, coerentes e cristalizados de idéias que for necem
uma explicação e uma justificativa da natureza da sociedade e das rela-
ções de poder em termos de sua legitimidade e ilegitimidade. Remete a
uma concepção e a uma análise de fenômenos que dizem respeito à so-
ciedade em sua totalidade e, portanto, à sua estrutura e ao movimento
de sua reprodução. Por isso mesmo, sua extensão para incluir os fenô-
menos culturais em geral passa necessariamente pela intermediação do
conceito de hegemonia, instrumento indispensável para estabelecer a
relação entre esses fenômenos e a concepção de totalidade que é indis-
sociável dessa perspectiva de análise.
Nesse sentido, pode-se mesmo dizer que é ideologia aquilo que diz
respeito à formulação de projetos hegemônicos, isto é, propostas políti-
cas de transfor mação ou manutenção da ordem social no sentido de
assegurar a dominação de uma classe sobre outras. Nenhuma transfor-


mação da ordem social é possível, certamente, sem alterar profunda-
mente o conjunto das práticas sociais (e dos fenômenos culturais). Mas
a amplitude e a profundidade das transfor mações necessárias não
abrangem necessariamente todos os fenômenos culturais, nem o fazem
da mesma maneira e com a mesma intensidade em todos aspectos da
cultura (apesar da existência de ideologias totalitárias, no sentido clás-
sico desse termo, e apesar da tendência a uma politização crescente da
vida social pela interferência cada vez mais ampla do Aparelho de Esta-
do na vida privada).
Porém, utilizado desta forma, o tipo de análise e de interpretação
dos fenômenos culturais se dá de modo inverso daquele que é inerente à
investigação antropológica, que opera com o conceito de cultura. Isto é,
a utilização do conceito de ideologia parte necessariamente de uma pers-
pectiva macropolítica (que diz respeito à reprodução do modo de produ-
ção e das formas de dominação que lhes são próprias) e que fornece os
parâmetros de relevância dos fenômenos a serem estudados em termos
de sua contribuição para a preservação ou destruição da ordem vigente.
Na abordagem antropológica dos fenômenos culturais o procedi-
mento é outro: parte-se das práticas sociais concretas e das representações
formuladas por grupos ou categorias sociais, e sua relevância política só
pode ser determinada a posteriori.
É possível e necessário politizar a abordagem antropológica e
investigar de que modo sistemas simbólicos são elaborados e transfor-
mados de modo a organizar uma prática política, legitimar uma situação
de dominação existente ou contestá-la. É importante investigar de que
modo grupos, categorias ou segmentos sociais constroem e utilizam um
referencial simbólico que lhes per mite definir seus interesses específi-
cos, construir uma identidade coletiva, identificar inimigos e aliados,
marcando as diferenças em relação a uns e dissimulando-as em relação
a outros. Qualquer elemento cultural pode ser assim politizado, sem
entretanto esgotar seu significado no fato de serem instrumentos numa
luta pelo poder. A língua, a religião, a cor da pele, os hábitos alimenta-
res, a vestimenta podem ser erigidos em instrumentos de construção de
uma identidade coletiva com implicações políticas. Toda a dinâmica dos
movimentos sociais envolve necessariamente esse tipo de manipulação
simbólica por meio do qual se constroem sujeitos políticos coletivos.
Entretanto, uma abordagem desse tipo, que parte de uma análise “de
dentro” dos grupos ou movimentos sociais, não pressupõe, necessaria-

 Cultura e ideologia


mente, a questão do enfrentamento das classes consideradas fundamen-
tais pela abordagem marxista, nem julga a relevância ou legitimidade dos
fenômenos em termos de suas implicações para a reprodução do sistema
capitalista. Ela abrange conflitos e ações políticas que possuem relações
muito tênues e indiretas (ou não possuem nenhuma relação) com a luta
de classes. Remete, portanto, privilegiadamente, à análise de conjunturas.
Utilizar o conceito de ideologia para caracterizar esse tipo de aná-
lise é possível, mas desnecessário e talvez improdutivo. É melhor, nesses
casos, usar o qualificativo de “político”, como caracterização de uma
dimensão de fenômenos sociais que possuem múltiplas significações e
funções, que apresenta, inclusive, a vantagem de não carregar a pesada
conotação de “mistificação” e “alienação” tão própria do conceito de
ideologia. Utilizando-se essa abordagem “política”, é possível realizar
investigações empíricas primorosas e bem fundamentadas de situações e
grupos sociais específicos, onde se analisa a relevância dos aspectos sim-
bólicos na constituição de “sujeitos políticos”, em casos delimitados.
Politizando o conceito de cultura, é necessário, portanto, operar
com o pressuposto de que alguns fenômenos são importantes politica-
mente sem serem estritamente determinados pela dominação de classe.
Questões como a das minorias étnicas, a do feminismo, a do homosse-
xualismo têm dado origem, em todas as partes do mundo, a movimentos
políticos, e seria ingênuo supor (em que pese a posição de militantes
ortodoxos) que esses problemas resultam diretamente do modo de pro-
dução capitalista, e desapareceriam com o fim da hegemonia burguesa.
A utilização do conceito de ideologia implica um movimento de
análise diverso e uma problemática diferente. Parece-me mais adequa-
da quando aplicada no seu sentido original, como instrumento para
refletir sobre as transformações mais amplas e globais que afetam o sis-
tema político no seu conjunto, em sua vinculação com o modo de pro-
dução, e que é feita apreendendo-se apenas os aspectos mais gerais do
intrincado jogo dos interesses específicos e das lutas e conflitos internos
que agitam a vida social.
Preservando a análise antropológica dos fenômenos culturais,
seria possível oferecer uma contribuição importante para a compreen-
são dos fenômenos políticos, e inclusive do próprio estudo da ideologia.
Mas isso envolve manter a clareza quanto às especificidades e os limites
dessa abordagem e, inclusive, a distinção dos conceitos.


Capítulo 

   :       


Este trabalho consiste numa reflexão sobre a natureza dos movimentos
sociais que proliferaram no Brasil com a lenta liberalização do regime auto-
ritário, e está baseada nas pesquisas que Ruth Cardoso, eu e nossos alunos
de pós-graduação estávamos então desenvolvendo em São Paulo. Apesar de
ter sido publicado em 1984, acredito que sobreviveu à passagem do tempo.
Movimentos sociais: a construção da cidadania*

A multiplicação, no Brasil, de movimentos sociais de diferentes tipos tem


suscitado um número crescente de pesquisas e debates que se prendem
tanto à indubitável importância política desse fenômeno quanto às dificul-
dades que vêm sendo encontradas na sua interpretação. A questão deriva,
em grande parte, do fato de esses movimentos não se enquadrarem na
expectativa que os estudiosos e os militantes políticos haviam construído
sobre a forma como deveria ocorrer a transformação política da socieda-
de brasileira, e sobre os instrumentos adequados para essa transformação.
Os problemas interpretativos concentram-se em duas questões: de um
lado, a base de classes dos movimentos, que congregam elementos hetero-
gêneos da população e, de outro, o fato de se constituírem como formas
de mobilização que ocorrem fora do espaço dos partidos políticos e dos
sindicatos. Por isso mesmo, a tarefa que se coloca perante as ciências
sociais exige rever os esquemas interpretativos que foram amplamente
usados para explicar os rumos da história recente do país.
Nessa dupla tarefa, é preciso integrar dois modos distintos pelos
quais os movimentos têm sido analisados. A primeira das tarefas, de
cunho mais sociológico e político, procura o significado desses movi-
mentos, basicamente, em sua relevância para a ação partidária, em sua
relação com o Estado e em sua eventual importância como instrumento
de contestação do regime. Trata-se de uma visão “de fora” e “para fora”
do movimento. A outra, de cunho mais antropológico, preocupa-se com
seu significado para aqueles que dele participam, procurando, portanto,
uma interpretação a partir “de dentro”. Sendo cada uma delas insufi-
ciente para uma análise adequada dos movimentos sociais, é sua combi-
nação que deve for necer os instrumentos para superar, de um lado, as
limitações de uma visão apriorística da história e, de outro, a restrição

* Publicado originalmente em Novos Estudos Cebrap, n. , .


de uma interpretação que, esmiuçando inter namente o objeto, não vê
sua inserção no processo mais amplo do qual faz parte.
Para realizar este tipo de análise precisamos eliminar certas pres-
suposições que se cristalizaram nas interpretações correntes. Não é que
elas sejam necessariamente incorretas; mas sim que sua adequação deve
ser o objeto da análise e não seu ponto de partida ou pressuposto.
Em primeiro lugar, devemos evitar a noção de que os movimentos
sociais são for mas inferiores de mobilização, que devem evoluir para
formas mais plenas e satisfatórias de ação política: a partidária e a sindi-
cal. Esse tipo de pressuposto freqüentemente se justapõe à noção de que
a emergência de tais movimentos se explica pelo fechamento imposto
pelo regime aos canais nor mais de manifestação política e reivindica-
ções econômicas que seriam os partidos e os sindicatos. Os movimentos
sociais aparecem assim como substitutos (empobrecidos) dos movi-
mentos “verdadeiros”.
Se é verdade que os movimentos sociais assumiram grande rele-
vância política no Brasil em um momento no qual o regime reprimia
violentamente os partidos e os sindicatos, e se isso ocorreu também em
outros países da América Latina, não é menos verdade que movimentos
de tipo semelhante ocorreram, na mesma época, tanto na Europa quan-
to nos Estados Unidos, em situação de liberdade política. Mesmo na
América Latina, a pujança dessas manifestações é, freqüentemente,
marca de momentos de maior democratização. Por outro lado, a obser-
vação da situação brasileira mais recente, na qual uma relativa abertura
do regime permitiu um espaço de atuação política e sindical um pouco
mais amplo, parece indicar um crescimento simultâneo (pelo menos
durante um período) dessas diversas for mas de mobilização popular,
que podem confluir em momentos e causas específicos sem necessaria-
mente se confundirem ou substituírem. Desse modo, devemos levar em
consideração uma hipótese alternativa: a de que os movimentos sociais
constituem uma forma específica de mobilização popular com espaço
próprio, diverso daquele ocupado por partidos e sindicatos. Podemos
supor também que esse tipo de movimento talvez corresponda a trans-
formações recentes da sociedade industrial capitalista, e que a mobiliza-
ção crescente da sociedade que parece caracterizar o momento atual se dá
tanto pela criação de novas formas de atuação quanto pelo fortalecimento
das anterior mente existentes. O próprio fato de as pessoas tenderem
a participar de mais de um tipo de mobilização reforça essa suposição.

 Movimentos sociais


É preciso também reexaminar a tese de que os movimentos sociais são
provocados pela pauperização crescente das classes trabalhadoras. Não há
como negar que a industrialização recente do país acentuou a concen-
tração da renda, e não se pode duvidar que a atual crise econômica venha
provocando, nos últimos três anos pelo menos, um acentuado rebaixa-
mento do nível de vida da população brasileira. Mas é difícil acreditar,
como alguns trabalhos científicos parecem afir mar, que toda a história
de industrialização do país tenha sido feita por meio de um empobreci-
mento contínuo das massas trabalhadoras. As inúmeras pesquisas reali-
zadas em São Paulo, desde o final da década de , com operários, mi-
grantes rurais, moradores da periferia e mesmo favelados, têm revelado
que a maioria da população acreditava estar melhorando de vida. Apenas
as pesquisas mais recentes, realizadas nos últimos três anos, mostram
uma inversão dessa tendência, demonstrando a percepção dos efeitos da
atual crise econômica. O fato de acreditar estar melhorando de vida não
impediu a população de construir uma visão crítica de sua participação
nos frutos da industrialização, nem de elaborar uma avaliação negativa
da atuação do Estado no atendimento de suas necessidades. Portanto,
não é necessariamente a miséria crescente, mas a consciência da pobre-
za que contribui para a mobilização popular.
A serem verdadeiras essas observações, os movimentos sociais po-
dem ser vistos através de uma ótica um pouco diversa daquela que pare-
ce ter predominado até agora: isto é, não como movimentos de defesa
contra o empobrecimento crescente (o que, aliás, também podem ser),
mas como exigência de atendimento de novas necessidades e, portanto,
como uma luta pela ampliação do acesso ao espaço político e aos bene-
fícios do desenvolvimento econômico. Dessa forma, as reivindicações
que implicam uma ampliação do consumo coletivo surgem onde são
mais facilmente atendidas (onde têm maiores chances de vitória) e não
onde são mais necessárias em termos de carências da população.
Essas observações são inteiramente congruentes com algumas in-
terpretações e análises que enfatizam a relação desses movimentos com
a natureza do processo de urbanização, que têm sido particular mente
desenvolvidas por J. A. Moisés e os pesquisadores ligados ao .1
De acordo com essa perspectiva, desde os anos  (e mais especial-
mente na década de ) o aprofundamento da divisão social do trabalho

. Ver especialmente Moisés .


relacionado à concentração da população nas grandes metrópoles pro-
voca a emergência de necessidades novas, associadas a novos padrões
de consumo que envolvem educação, transporte, atendimento médico,
equipamentos sociais e culturais. Cabe apenas enfatizar que esses novos
padrões de consumo são vividos pela população, especialmente a de ori-
gem rural recente, como “melhoria de vida”.
Mas não podemos restringir a análise dos movimentos sociais
àqueles que possuem uma base nitidamente popular, mesmo quando se
trata especificamente de reivindicações propriamente urbanas. O cres-
cimento das cidades não afeta somente as classes mais pobres, e as mo-
dificações concomitantes nos padrões de consumo não se restringem à
necessidade de novos serviços públicos, mas afetam profundamente
todo o modo de vida, provocando a emergência de uma nova cultura,
no sentido antropológico. O movimento feminista e o movimento eco-
lógico são os exemplos mais claros dessa transformação cultural.
De acordo com essa perspectiva, é necessário reexaminar a questão
da base de classe dos movimentos sociais. Em primeiro lugar, temos o
problema da própria heterogeneidade dos setores de baixa renda, que
constituem muitos desses movimentos e que incluem, freqüentemente,
tanto operários como ambulantes, biscateiros, empregados do comércio
e de todos os ramos de serviço (incluindo os domésticos), pequenos
comerciantes e funcionários públicos. Esse fato tem provocado a substi-
tuição, na análise, de conceitos mais precisos (como o de proletariado)
por ter mos alusivos ou descritivos com fundamentação teórica muito
menos clara: “classes populares”, “classes trabalhadoras”, ou, ainda mais
genericamente, “os pobres”, “o povo”. Nessa substituição de ter mos, o
que está em jogo é toda uma visão do processo histórico que privilegiava
o papel necessariamente revolucionário do proletariado, e que centrava
todas as perspectivas de transfor mação social na organização política
dessa classe.
O conceito utilizado para enquadrar teoricamente essa heterogenei-
dade numa abordagem marxista é o de “exército industrial de reserva”, e
tem se mostrado insuficiente. Não é que esses trabalhadores não sejam,
para o capital, um “exército de reserva”, mão-de-obra disponível para as
necessidades de ampliação do parque industrial. Mas o próprio mecanis-
mo de sua constituição, sua ampliação constante e sua crescente hetero-
geneidade inter na não podem ser entendidos em ter mos apenas de sua
“funcionalidade” para as necessidades de acumulação capitalista. O que

 Movimentos sociais


temos é um problema equivalente, mas obviamente diverso daquele en-
contrado nas sociedades desenvolvidas, e que nelas vem sendo abordado
sob a rubrica da “sociedade pós-industrial”.
Essa dificuldade de absorver a heterogeneidade dos setores popula-
res numa abordagem estruturada em torno das concepções clássicas da
luta de classes tem provocado a busca de novas linhas interpretativas.
O que se tem salientado nas análises sobre os movimentos sociais é que
estes, ao contrário da ação sindical, não organizam as pessoas a partir de
sua inserção no processo produtivo (produzindo assim um “corte” obje-
tivo que acompanha de perto aquele operado, na teoria, pelo conceito
de classe), mas dizem respeito à esfera do consumo. Dessa forma, é o
conceito de reprodução que permite relacionar os movimentos sociais às
relações de classe. A dificuldade reside no fato de que o conceito de
reprodução da força de trabalho parece ser demasiado restrito para explicar
integralmente a heterogeneidade social e a complexidade de objetivos
que caracterizam esses movimentos, assim como o conceito de reprodução
das condições de produção parece ser demasiado geral. Mesmo aceitando a
orientação interpretativa proporcionada por essa abordagem, a com-
preensão de todas as facetas e complexidades desses movimentos exige
explicações complementares ou adicionais que dêem conta da fluidez
específica e das inúmeras variações que parecem caracterizá-los, e que
nos levam ao campo da cultura. São exatamente esses aspectos que não
podem ser reduzidos às necessidades da reprodução da força de traba-
lho, aqueles que uma análise “de dentro” dos movimentos revela com
maior clareza, e que talvez nos auxiliem a superar a enorme dificuldade
de compreender essa nova sociedade que está se constituindo sem obe-
decer aos esquemas interpretativos construídos no passado.
Em primeiro lugar, é importante refletir sobre o modo de constitui-
ção dos movimentos sociais e, especialmente, a forma de definição de seus
membros. Os movimentos articulam-se (em diferentes níveis e amplitu-
de diversa) em função de uma ou várias reivindicações coletivas, definidas
a partir da percepção de carências comuns (desde a ausência de asfalto até
o sentimento de um tratamento discriminatório no nível das relações
sociais em seu conjunto). É a carência que define a coletividade possível,
dentro da qual se constitui a coletividade efetiva dos participantes do mo-
vimento. Como as carências podem ser definidas de diferentes modos em
diferentes níveis, os movimentos sociais constituem formas muito flexí-
veis de mobilização, que operam “cortes” muito diversos uns dos outros,


definindo coletividades de tipo muito diferente (desde “as mulheres”, “os
homossexuais” ou “os negros”, até “os moradores de uma rua”, “os fre-
qüentadores de um parque público” ou “os usuários de um serviço”).
Parece-me importante ressaltar essa flexibilidade e variedade possível dos
movimentos sociais, que por isso mesmo podem ser mais ágeis e diversi-
ficados (e, em outros aspectos, mais limitados) do que partidos ou sindi-
catos. Não precisam ser per manentes. Os militantes congregados num
movimento, num determinado momento, podem se dispersar no seguin-
te para participar (ou não) de outros. Não há por que recriminar ou cri-
ticar movimentos efêmeros, mas sim refletir sobre sua efetividade e os
saldos positivos (ou negativos) que acumulam.
Retomaremos, mais adiante, a questão da coletividade criada pela
definição de uma carência. No momento, queremos tratar de uma outra
questão: o fato de, apesar da heterogeneidade das bases que mobilizam
e das reivindicações que for mulam, os movimentos sociais parecerem
utilizar as mesmas for mas de organização. A ampla literatura sobre os
movimentos sociais parece indicar a existência de dois modelos básicos
de organização, que às vezes se excluem e às vezes se alternam, poden-
do mesmo se sobrepor.
Temos, em primeiro lugar, uma forma de organização que pode-
mos chamar de formal. Implica a eleição de uma diretoria executiva à
qual compete promover a mobilização e encaminhar as reivindica-
ções. Esse tipo de organização exige mecanismos de representação, e
promove a constituição de lideranças que “carregam” o movimento.
Embora a ação do Estado constantemente reforce esse tipo de organi-
zação, exigindo a presença de “representantes oficiais”, ou estabele-
cendo condições burocráticas para o reconhecimento do movimento,
esse modelo não deve ser visto como mera decorrência de imposição
estatal. Ao contrário, organizações for mais desse tipo possuem pro-
fundas raízes populares e podem ser encontradas em instituições
como sindicatos, escolas de samba, clubes de futebol, estando também
presentes, de forma modificada, em centros de umbanda. Mesmo que
não se tenha propriamente originado nas camadas populares, o mode-
lo for mal é certamente parte do patrimônio cultural dessa população,
e é amplamente utilizado, por exemplo, na constituição das associa-
ções de moradores.
Ao lado desse modelo se coloca um outro, atualmente em expan-
são, que denominaremos “comunitário”. Ele evita a institucionalização

 Movimentos sociais


da representação e exige uma participação per manente de todos, tanto
no processo de tomada de decisão como na própria execução. As Co-
munidades Eclesiais de Base constituem um exemplo típico da tentativa
de implementar esse modelo.
Embora esse último modelo pareça ser mais recente, seja visto
como mais democrático e seja amplamente defendido como mais auten-
ticamente popular, não é preciso supor que elimine o anterior, ou que
com ele não possa conviver. Os movimentos de moradores, por exem-
plo, utilizam muitas vezes ambas as for mas em momentos diversos e
para fins diferentes. Mas esta segunda forma – embora não seja neces-
sariamente mais importante – apresenta, de modo mais claro do que a
outra, um aspecto fundamental nos movimentos sociais: a ênfase na
igualdade, na constituição da coletividade.
Sabemos que a noção de igualdade constitui um dos pólos de refe-
rência da idéia de democracia, sendo o outro o da liberdade. Embora
ambas as noções estejam presentes nos movimentos sociais, parece cer-
tamente haver um privilegiamento do primeiro sobre o segundo.
Trabalhos como o de Ruth Cardoso exploram com muita compe-
tência esse aspecto dos movimentos sociais (ver R. Cardoso ). Mas
podemos refletir um pouco mais sobre esta realidade paradoxal dos
movimentos, que se caracterizam (da perspectiva das classes sociais)
pela heterogeneidade, ao mesmo tempo que enfatizam a igualdade nas
relações internas e no plano simbólico.
A heterogeneidade e a desigualdade tornam-se elementos constitu-
tivos da vida urbana, que são extraordinariamente exacerbados nas
metrópoles latino-americanas. Fazem parte, portanto, da experiência de
vida mais imediata da população e penetram nos próprios movimentos
sociais. É importante investigar, então, esse processo de criação interna de
uma igualdade (mítica?) que se consubstancia na categoria comunidade,
termo este que per meia todo o discurso produzido pelos movimentos
sociais. Podemos dizer que a construção dessa igualdade se dá por meio
de uma negatividade específica. Vimos que os movimentos se articulam
pela for mulação de uma carência coletiva. Os indivíduos mais diversos
tornam-se iguais na medida em que sofrem a mesma carência. A igualda-
de da carência recobre a heterogeneidade das positividades (dos bens, das
capacidades, do trabalho, dos recursos culturais). No movimento, diante
da mesma carência, todos se tor nam iguais e vivem a experiência da
comunidade. Os movimentos sociais se constituem, portanto, como um


lugar privilegiado onde a noção abstrata da igualdade pode ser referida a
uma experiência concreta de vida. A igualdade constitui-se dessa forma
como representação plena, concretizada na comunidade.
Essa vivência da comunidade, isto é, da coletividade de iguais cria-
da pela ação conjunta de todos, se dá numa dimensão própria que impli-
ca uma novidade muito importante: o reconhecimento da pessoa num
plano público e não privado.
Na vida urbana de uma sociedade como a nossa, o indivíduo (parte
indiferenciada da massa) só é plenamente reconhecido como pessoa,
como sujeito, nos grupos primários que se estruturam na vida privada:
a família, os parentes, os amigos, os vizinhos. Na esfera pública, tende a
ser despersonalizado e figura como vendedor de força de trabalho,
comprador de mercadorias, beneficiário do , usuário do transporte
coletivo, eleitor, homem-massa. Nos movimentos sociais de cunho co-
munitário, em que se valoriza a participação de todos e de cada um, em
que todos devem falar, opinar, decidir, o que parece estar ocorrendo é
um processo novo, o de constituição de pessoas na esfera pública, atra-
vés do jogo do mútuo reconhecimento que ocorre inter namente, na
prática comunitária.
Esta passagem da pessoa da dimensão privada para a pública pode
ser a explicação de um fato muito significativo, de freqüência extraordi-
nária nos depoimentos dos participantes desses movimentos: o de vive-
rem essa experiência como enriquecimento pessoal, uma intensificação
de sua qualidade de sujeitos. No movimento as pessoas se conhecem,
ampliam sua sociabilidade, “aprendem a falar”, isto é, a formular ques-
tões novas sobre sua experiência de vida. Basicamente, elas tor nam
coletivas (e com isso integram) as experiências individuais e fragmen-
tadas, encerradas nos limites da vida privada.
O mesmo parece ocorrer, embora de maneira menos intensa, nos
movimentos que denominei de formais, e é isso que exige o reconheci-
mento do caráter plenamente social dos movimentos (como enfatiza
Tilman Evers () no seu trabalho mais recente). E isso porque eles
criam uma nova prática coletiva, que passa a fazer parte integrante da
vida social e fundamenta novas representações. Mais ainda, constituin-
do uma nova forma de pessoa, ampliam a vivência individual e reformu-
lam a própria vida privada.
Importante como é, essa dinâmica interna dos movimentos sociais
possui limitações que devem ser reconhecidas. Em primeiro lugar, sua

 Movimentos sociais


utilização plena só se efetiva em grupos pequenos. O crescimento dos
movimentos tende, portanto, a se dar antes pela multiplicação dos gru-
pos do que por sua ampliação, numa espécie de solidariedade mecânica
durkheimiana que cria problemas muito sérios para a ação conjunta am-
pliada. A tendência à segmentação e pulverização é agravada pelo fato
de que as decisões nesse tipo de organização só podem ser tomadas por
consenso, o que provoca freqüentes cisões internas, além de discussões
intermináveis e inconclusivas. Finalmente, dada a importância inegável
dessa “vivência” dos movimentos e sua valorização pelos membros do
grupo, pode ocorrer uma inversão peculiar. Reivindicações passam a
ser consideradas como instrumentos de mobilização, em vez de a mobi-
lização ser o instrumento da reivindicação. Essas limitações se manifes-
tam claramente quando se examina a outra dimensão do movimento, a
sua face “externa”.
Com efeito, os movimentos são plenamente sociais, não apenas
por suas características internas, mas inclusive pelo fato de estarem vol-
tados “para fora”, estabelecendo novos canais de comunicação dos indi-
víduos com a sociedade e o Estado. Sem isso, seriam antes seitas do que
movimentos. O reconhecimento mútuo dos indivíduos como pessoas,
que se dá internamente, exige uma reação complementar derivada do ca-
ráter necessariamente público do processo – é o reconhecimento do mo-
vimento pela sociedade e pelo Estado.
A ampla utilização dos meios de comunicação de massa por parte
dos movimentos sociais, além de ter eficácia política, parece prender-se a
essa necessidade de eles serem reconhecidos pela sociedade, na sua face
de “opinião pública”. Ao mesmo tempo, a resposta às suas reivindicações
por parte dos poderes públicos, mesmo que negativa, é importante por-
que significa o reconhecimento por parte do Estado. E se nesse confronto,
como tem sido apontado, o Estado é legitimado, assim também o é o pró-
prio movimento, numa relação especular aparentemente essencial a um
processo no qual uma nova forma de cidadania parece estar em jogo.2
Mas a compreensão do problema da cidadania e da relação com o
Estado exige a análise de uma outra dimensão, que se manifesta no uso
irrestrito de uma categoria no discurso dos participantes dos movimen-
tos: a categoria dos direitos.

. Sobre este aspecto do problema, além de R. Cardoso , são especialmente importantes
Boschi  e Ferreira dos Santos .


Nos movimentos sociais, de modo geral, a passagem do reconhe-
cimento da carência para a formulação da reivindicação é mediada pela
afirmação de um direito. Os habitantes da periferia afirmam seu direito
a água, luz, esgoto, assistência médica; as mulheres reiteram seu direito à
igualdade; os homossexuais ao seu prazer; também as mães que traba-
lham têm direito às creches, assim como os índios às suas terras e todos
têm direito à proteção contra a violência.
A transfor mação de necessidades e carências em direitos, que se
opera dentro dos movimentos sociais, pode ser vista como um amplo
processo de revisão e redefinição do espaço da cidadania. Não é preciso
lembrar a imensa importância que a afirmação de direitos “naturais” e
inalienáveis, tomados como auto-evidentes, desempenhou na formula-
ção da ideologia democrática produzida pelas revoluções burguesas.
A primeira emenda da constituição americana é o exemplo mais coe-
rente desse processo. Nesse último caso, tratava-se de uma codificação
acabada e completa, promovida pelo legislador, e que traduziu uma
experiência concreta de gestão coletiva da coisa pública ocorrida nas
colônias americanas.
Aqui, o processo é diferente. Não temos uma tradição democráti-
ca desse tipo, nem uma tradição de gestão coletiva na vida política. Os
direitos que constam das nossas leis foram importados, e sempre se
mostraram inoperantes. Mas verificamos agora a ocorrência, entre nós,
de um processo de construção coletiva de um conjunto de direitos que
está sendo realizado pelos movimentos sociais. E isso não por meio de
uma codificação completa e acabada de uma realidade existente, mas
como o reverso de uma definição cumulativa de carências definidas como
inaceitáveis. Isto é, parece que estamos vivendo um processo de cons-
trução coletiva de uma nova cidadania, definida por um conjunto de
direitos, tomados como auto-evidentes, pressuposto da atuação política
e fundamento de avaliação da legitimidade do poder.
Nesse sentido, o confronto com o Estado não é apenas um reco-
nhecimento de sua legitimidade (embora também seja isso), mas uma
avaliação dessa legitimidade, que é medida por sua capacidade de res-
peitar e promover os direitos que a população está se atribuindo.
Esses aspectos que acabamos de apontar podem ajudar a entender
um problema mais específico, mas muito importante: a dificuldade de
absorção desses movimentos pelos partidos políticos.

 Movimentos sociais


Todos os movimentos sociais parecem sentir a necessidade absoluta de
declarar, de início, seu caráter a-partidário. E, por isso mesmo, suas
conexões partidárias são estabelecidas por meio de dois processos anta-
gônicos, ambos considerados espúrios: o clientelismo à direita e a infil-
tração militante à esquerda. Tanto num caso como em outro, o caráter
“espúrio” deriva do fato de serem considerados, pelos participantes,
como tentativas de usar os movimentos para fins políticos que são defi-
nidos fora dele e não por ele. Como o estudo desses movimentos tem
sido feito, majoritariamente, por investigadores que se identificam com
a esquerda, a análise desses aspectos freqüentemente sofre uma defor -
mação peculiar: o clientelismo tende a ser reconhecido, mas é denuncia-
do como tentativa de manipulação dos movimentos e deplorado como
indicador de uma deficiência do grau de “consciência” atingido pelos
participantes. Por outro lado, a importância da participação de organi-
zadores provenientes da Igreja católica ou de grupos políticos militan-
tes tende a ser minimizada, valorizando-se o caráter “espontâneo” e
“genuinamente popular” da mobilização. Neste caso, os investigadores
adotam e reproduzem a “linguagem oficial” dos movimentos.
E, entretanto, essas infiltrações e manipulações (que aliás contri-
buem para complicar a questão da base de classes desses movimentos) são
parte integrante do processo de mobilização, e elementos importantes
para entender o caráter plenamente social desses movimentos. São essas
ligações políticas “clandestinas” que estabelecem elos entre mobilizações
restritas, centradas no interesse de alguns, com forças sociais e políticas
mais universalizantes, presentes no conjunto da sociedade. É importante
por isso tentar entender por que elas sempre ocorrem “na sombra”.
O ocultamento das conexões políticas que envolvem posições
partidárias ou confessionais parece corresponder, no plano externo, ao
processo inter no de eliminação das diferenças entre os participantes
na criação (mítica) da comunidade dos iguais. Mostramos que o prin-
cípio em jogo consiste em criar um espaço de igualdade desconside-
rando as múltiplas diferenças que existem, em outros planos, entre os
“carentes”. As distinções partidárias e confessionais constituem exata-
mente diferenças que precisam ser ocultadas. Sem que se apaguem
essas diferenças, é impossível realizar a passagem fundamental que
consiste em caracterizar carências específicas, vividas por alguns co-
mo manifestação da negação de um direito de todos (isto é, de toda a
sociedade). Uma clara afiliação partidária imediatamente cindiria o


conjunto dos “carentes”, impedindo a for mação da comunidade de
todos os iguais (na carência).
Diferenças que são ocultadas não desaparecem. Mas, deslegitima-
das, impedidas portanto de se digladiarem em público, resvalam para o
espaço infor mal das fofocas, das acusações pessoais, das manipulações
conscientes e inconscientes que caracterizam a prática desses movi-
mentos tanto quanto a vivência da união, com a qual coexistem. Desse
modo, os movimentos tendem a apresentar uma dupla face: a pública,
que enfatiza a igualdade, a união, o consenso; e a oculta, das cisões,
divergências, acusações mútuas, discriminações que só são reconheci-
das para serem negadas, mas que contribuem muito para o sabor, a
intensidade e a dramaticidade dessa prática coletiva.
Retomando a questão desse ângulo, é possível entender melhor
tanto as potencialidades como as limitações dos movimentos em termos
da construção de uma sociedade democrática. De um lado, eles criam
um espaço (restrito) onde é possível a vivência da igualdade, permitindo
a representação da utopia, e elaboram os direitos que definem uma nova
cidadania. Mas, por outro lado, restringem a experiência democrática à
prática da democracia direta nos pequenos grupos. Como não desen-
volvem mecanismos para reconhecer posições divergentes per mitindo
sua convivência, deslegitimam a negociação, que só pode ser vista como
rendição ou manipulação, e podem ainda resvalar para mecanismos
autoritários de imposição de um consenso que deve ser obtido a qual-
quer custo como única base legítima de atuação coletiva. A dificuldade
que encontram em institucionalizar (ou mesmo reconhecer) mecanis-
mos de representação cria obstáculos à ampliação e articulação dos nú-
cleos, fornecendo uma visão paroquial e fortalecendo os componentes
corporativos próprios de reivindicações particularistas. Inversamente, e
na medida mesma em que promovem a coletivização de experiências
individuais, mostram-se extremamente sensíveis às possibilidades de
mudança que parecem estar presentes nessa nova sociedade em gesta-
ção. Por isso tudo, sem idealizar nem denegrir os movimentos sociais,
devemos tomá-los como revelador sinal dos novos tempos, e lugar pri-
vilegiado para se estudar o que está ocorrendo com a nossa sociedade.

 Movimentos sociais


Capítulo 

   
Nunca trabalhei diretamente com populações indígenas. Entretanto, minha
experiência como presidente da Associação Brasileira de Antropologia me
levou a estabelecer um amplo e intenso envolvimento com os pesquisadores
dessa área, com lideranças indígenas e também diferentes grupos, religiosos
ou laicos, empenhados na defesa desses povos. Implicou também uma rela-
ção altamente conflitiva com a FUNAI [Fundação Nacional do Índio] em de-
fesa dos pesquisadores e dos índios. Convém lembrar que, naquela época, a
FUNAI era dirigida por militares integrantes do regime autoritário.
O trabalho aqui reproduzido resultou dessas experiências e de uma refle-
xão mais propriamente política sobre o lugar do índio na sociedade brasileira.
Decorreu da preocupação com o fato de que o grande envolvimento pessoal
dos pesquisadores e militantes (o melhor talvez fosse dizer “pesquisadores-
militantes”) com os grupos indígenas e seu empenho em defendê-los pareciam
obscurecer uma reflexão mais crítica sobre o contexto político em que se tra-
vava (e ainda se trava) a luta em defesa dessas populações.
O objetivo central do artigo era trazer para a reflexão o fato de que a
designação de “índio” não corresponde a uma “categoria nativa”, mas ter
sido construída pelos não-índios, isto é, por nós, e é constitutiva do campo
político no qual se desenrola o movimento das lutas dessas populações e as
que se travam em seu nome.
Desta perspectiva, creio que ele é ainda relevante para as pesquisas e
as ações com grupos indígenas.
O lugar do índio*

Assistimos hoje no Brasil, com a ocupação da Amazônia, ao fim da


“fronteira”, isto é, daqueles grandes vazios demográficos e econômicos
que constituíram, no passado, a reserva territorial para a expansão da
sociedade nacional.
De um lado, esse processo aguça o conflito entre os grandes pro-
prietários e a massa agrária de despossuídos que já não têm mais para
onde ir em busca de terra “livre”.
De outro lado, a ocupação desses imensos espaços vazios por pos-
seiros sem terra (ou sua apropriação, em escala gigantesca, pelas grandes
empresas capitalistas) e a ação crescente do Estado na abertura de estra-
das e na implantação de projetos hidroelétricos ou de mineração estão
expondo ao contato com a “civilização” dezenas de grupos indígenas
que até agora haviam conseguido sobreviver no que era um longínquo
sertão. Desse modo, ao lado do grave conflito entre pequenos posseiros
e latifundiários, renasce no Brasil o problema indígena. O destino desses
povos, sua resistência, sua “pacificação” e a possibilidade de sua destrui-
ção ocupam manchetes na imprensa contemporânea.
De certo modo, é estranho ter um problema indígena em pleno
final do século , ter que pensar em sociedades tribais isoladas quan-
do, no resto do mundo, a expansão do capitalismo destruiu há muito sua
viabilidade, quando as populações chamadas “primitivas” da África, da
Ásia e da Oceania participaram da última guerra mundial e das guerras
de independência que se seguiram a ela, enfrentando hoje o problema
de se constituírem como Estados nacionais autônomos.
No Brasil, a questão com que nos deparamos é de definir um lugar
para o índio na sociedade nacional. O problema certamente não é novo.
Nasceu com a formação da colônia e vem sendo recolocado até hoje, de

* Publicado originalmente em Novos Estudos Cebrap, v. , n. , .


modo sempre um pouco diferente, mas também sem encontrar nunca
uma solução. Inspirou, desde o passado remoto, inúmeros debates can-
dentes que permitiram, no nível puramente ideológico, enfrentamentos
radicais. A imagem do índio foi exaltada ou denegrida, servindo simul-
taneamente como metáfora da liberdade natural e como protótipo do
atraso a ser superado no processo civilizatório de construção da nação.
Os defensores dos índios têm vencido brilhantemente a batalha ideológi-
ca; seus inimigos têm vencido a guerra real que se trava na sociedade bra-
sileira contra os grupos indígenas, destruindo sua cultura, despojando-os
de seus territórios e mesmo exter minando-os fisicamente. É tempo de
transferir a luta do campo puramente ideológico para tentar alcançar
alguma eficácia política. Precisamos, portanto, definir o campo político
no qual se deve inserir a questão indígena.
Comecemos com o Estado. O Estado moderno se define propria-
mente como Estado-Nação, no qual o domínio sobre um território é
consubstanciado na idéia da existência de uma “comunidade nacional”.
Ora, a nação, isto é, a população de um território unida pela cultura e
pela tradição, foi em toda parte, pelo menos de início, uma ficção criada
pelo próprio Estado. Os Estados modernos se constituíram todos sobre
uma diversidade étnica preexistente, num processo de unificação terri-
torial marcado pela violência. A comunidade nacional foi criada poste-
riormente pela opressão: a cultura comum foi imposta pela repressão às
manifestações étnicas minoritárias, e a tradição coletiva foi gerada na
história da dominação de um povo sobre outro.
Isto, que é verdade para os Estados europeus, cuja tradição nacio-
nal está até hoje marcada pela luta contra regionalismos separatistas,
caracteriza igualmente os Estados americanos. O processo de conquista
das populações indígenas, tão nítido na fase de constituição das colô-
nias, foi entretanto mascarado durante as lutas de independência, na
afir mação da unidade fictícia entre descendentes de colonizadores e
colonizados através da idéia de “povo”. No Brasil, como em outros paí-
ses, a existência não só de índios como também de escravos negros (e,
depois, de seus descendentes) sempre foi um problema permanente que
restringiu severamente (pelo menos para os dominados) a credibilida-
de do conceito de povo brasileiro. Por isso mesmo, talvez, embora tenha
sido elemento retórico importante no discurso dos grupos dominantes,
raramente foi utilizado como bandeira libertária de minorias oprimidas.
Do ponto de vista prático, portanto, as minorias étnicas, dentro do

 O lugar do índio


Estado-Nação, jamais foram legitimadas pelo poder, cuja constituição
implicou a destruição de particularismos culturais para criar a unidade
nacional. Também do ponto de vista teórico, a questão jamais foi trata-
da adequadamente. Se a sociologia e a ciência política desenvolveram
uma for mulação operante sobre as relações de classe, sempre relega-
ram o problema das minorias étnicas a uma posição secundária, ou o
trataram como epifenômeno.
Assim, nos defrontamos hoje com a necessidade de atuar em rela-
ção ao problema indígena e de refletir sobre ele sem ter nem os mecanis-
mos políticos nem o instrumental teórico para guiar a ação e a reflexão.
Retomemos, portanto, o problema do índio face ao Estado. Em pri-
meiro lugar, há que se considerar o estranho fato de que uma sociedade
secular mente responsável pelo exter mínio sistemático da população
indígena tenha sempre, no nível do Estado, elaborado leis específicas de
proteção aos silvícolas – e isso desde o passado mais remoto. Basta lem-
brar as tentativas da coroa portuguesa de coibir a escravização indíge-
na, que se prolongaram no Império com a benevolência esclarecida de
José Bonifácio, e que culminaram na República com a criação do 
[Serviço de Proteção aos Índios] e a codificação de uma ideologia pro-
tecionista no Estatuto do Índio.
Um dos elementos importantes que certamente contribuíram para
esse paternalismo estatal reside no fato de a população indígena brasi-
leira, ao contrário do que ocorreu na América espanhola, não ter se
constituído em recurso indispensável, como mão-de-obra, para a cons-
trução do sistema econômico colonial. A mão-de-obra indígena foi im-
portante apenas nos setores marginais da economia (como na província
de São Paulo) ou em tarefas específicas, como nas de desbravamento do
território e de extrativismo florestal. Nos setores dinâmicos da econo-
mia, foi a importação de escravos africanos (mais tarde de imigrantes
europeus e atualmente a migração inter na) que constituiu o pilar da
exploração econômica. Para os interesses privados que organizaram a
economia e a sociedade, o índio, ao contrário de um recurso, foi um
obstáculo à expansão da empresa mercantil, primeiro, da capitalista, de-
pois e, tanto em um como em outro momento, da população despossuí-
da que se instalara nas margens e nos interstícios do sistema. Menos que
o Estado, foram esses segmentos da sociedade civil, atuando em grande
parte como agentes privados, que se defrontaram com o índio, perse-
guiram-no e destruíram-no.


A verdade é que, do ponto de vista do Estado, o índio ocupou
sempre uma posição muito ambígua. Como ocupante original do país
e, nesse sentido, seu possuidor, precisou ser incorporado, se não como
cidadão, pelo menos como súdito, para legitimar o domínio sobre o ter-
ritório por parte de um Estado que se queria representante da nação.
Na ideologia da nacionalidade, o índio possui um valor simbólico muito
grande. Significa, simultaneamente, a autonomia e a naturalidade e,
nesse sentido, constitui uma imagem que per mite representar como
“natural” a relação do povo brasileiro (em abstrato e, portanto, do Es-
tado) com seu território.
De outro lado, constituindo sempre um obstáculo aos interesses
privados, representados no Estado, que estão empenhados na realização
de um projeto de exploração econômica, o índio foi considerado como
a negação do progresso e do desenvolvimento que são apresentados
como projeto da nação.
No caso dos índios, a legislação protetora deve ser interpretada
como um recurso retórico indispensável para legitimar o caráter nacio-
nal do Estado, integrando o índio como súdito sob a ficção da proteção
tutelar. A contradição que isso cria em relação aos interesses econômi-
cos efetivamente representados no Estado tem sido resolvida, na práti-
ca, através do subterfúgio de reconhecer direitos formais e permitir seu
desrespeito sistemático; ideologicamente, com a elaboração de uma teo-
ria de cristianização, civilização ou integração que, defendendo a pre-
servação física dos índios, justifica a destruição de sua sociedade e de
sua cultura em nome do progresso.
Essa ambigüidade que existe na relação do Estado para com o
índio desdobra-se, da perspectiva do índio, em ambigüidade paralela.
As populações indígenas brasileiras estão organizadas em pequenas
unidades economicamente autônomas e politicamente independentes,
embora possam fazer parte de grupos culturais mais amplos. Não pos-
suem nenhuma organização estatal própria, mesmo incipiente. Consti-
tuindo propriamente nações, do ponto de vista social e cultural, estão
entretanto impossibilitadas, dadas as características de sua organização
política e de sua fraqueza demográfica, de desenvolverem for mas pró-
prias de instituições políticas que lhes permitam manter-se como unida-
des viáveis perante o Estado brasileiro. Por outro lado, seus recursos
tecnológicos também não lhes fornecem a base material suficiente para
vencer um confronto direto com a sociedade nacional. Apesar das lutas

 O lugar do índio


heróicas que travaram no passado e continuam a travar no presente,
apesar de terem conseguido resistir em alguns lugares, por séculos, o
confronto levou sempre ao seu exter mínio ou à sua submissão. Sua
única esperança de sobrevivência, portanto, está na sua inclusão no
Estado que criamos do legado europeu, de cuja proteção não podem
dispensar. Desse modo, o Estado se coloca para eles, simultaneamente,
como instituição alheia à sua tradição cultural, como expressão do jugo
estrangeiro e como única instância de proteção face à sociedade que
ameaça destruí-los.
A inserção da população indígena no Estado brasileiro se dá,
assim, contraditória mas inevitavelmente.
Inseridos no Estado, que espaço, entretanto, nele podem ocupar
enquanto índios?
É necessário começar essa reflexão reconhecendo que a resposta a
essa questão envolve uma dinâmica muito específica, e que deriva do
fato de a categoria “índio” ser uma criação da nossa sociedade e da
nossa cultura. As populações indígenas concretas sempre se pensaram e
se definiram como grupos específicos: são, ou eram, Kamayurá, Xikrin,
Suyá, Bororo e não simplesmente índios. Aprenderam que eram índios
no contato com a sociedade nacional, espelhados nos olhos do civiliza-
do. Construída pelo civilizado, a categoria “índio” é incorporada pelos
grupos tribais como instrumento do processo de definição de sua posi-
ção face à sociedade nacional e ao Estado. Ser índio, definir-se como
índio, significa reconhecer sua diferença em relação ao civilizado. Mas
significa também, e cada vez mais, a descoberta da semelhança que une
cada grupo a todos os demais grupos indígenas, semelhança essa que
consiste na distância que os separa do civilizado.
Na medida em que os grupos indígenas se apropriam da categoria
“índio” nesses dois sentidos, estão no caminho de construir uma nova
identidade coletiva e constituir-se efetivamente como minoria étnica.
Para usar metaforicamente uma conceituação marxista, estão deixando
de ser “minoria em si” e transformando-se em “minoria para si”, emer-
gindo como ator político coletivo.
Esse caminho parece ser, efetivamente, a única alter nativa que se
apresenta às populações indígenas. Isso decorre do fato de não haver,
na sociedade nacional, outro lugar que possam ocupar sem sofrer um
trágico processo de pauperização econômica e cultural, transformando-
se, no dizer de Darcy Ribeiro, de índio em indigente. Com efeito, sua


incorporação direta à economia e à sociedade regional que os envolve
só se dá enquanto peão, individualizado, destribalizado, sem terras, sem
direitos e sem defesa, no grau mais baixo da escala social. Como índio,
ao contrário, possui pelo menos direitos for mais e é como índio que
pode reivindicar a posse da terra e a assistência do Estado. Além do
mais, é como índio que pode, manipulando sua tradição cultural e as
imagens e estereótipos correntes na sociedade nacional, construir para
si uma identidade social que lhe garanta, pelo menos, o auto-respeito.
A legitimidade específica que a categoria “índio” possui como ocupante
original do território constitui o recurso político e jurídico que essas
populações podem explorar para tentar obter para si um lugar satisfató-
rio na sociedade brasileira.
A política indigenista oficial tem caminhado em sentido se não total-
mente inverso, pelo menos contraditório em relação a esse problema.
Reconhecendo o índio como súdito, o Estado se definiu em relação
a ele como protetor. Cabe ao Estado proteger o índio da destruição que
pode advir de seu contato com a sociedade. Desse modo, o Estado
expressa e legitima sua imagem de si mesmo como entidade acima das
classes e dos interesses privados. Mas, na medida em que assume essa
posição e essa função (que, como sabemos, cumpriu de modo muito
parcial), coloca-se numa posição bastante contraditória em relação ao
resto da sociedade, para a qual sempre se mostrou incapaz de reconhe-
cer e garantir os direitos dos oprimidos e subordinados. No caso do
índio, a face elitista e autoritária do Estado emerge claramente quando
o exercício da função de proteção implica a negação da liberdade e da
autodeterminação indígena, considerando os índios não como cidadãos,
mas como tutelados.
Com efeito, a análise, mesmo superficial, da relação entre o Estado
(corporificado no  e na ) e os índios demonstra claramente que
todo o processo de pacificação, atração e confinamento em reservas
consiste, basicamente, na destruição da autonomia econômica e política
dos grupos tribais, estabelecendo uma dependência direta e total face ao
órgão tutelar. Os índios são atraídos com presentes, estimulados a ad-
quirirem a necessidade de bens que não podem suprir, contaminados
com doenças que só os remédios civilizados podem curar. Parte desse
processo é inevitável. Mas não é inevitável que sua economia seja des-
truída e sua organização política solapada.
Nesse sistema, a relação entre a  e os índios se fragmenta nas

 O lugar do índio


relações que cada grupo mantém individualmente com o órgão tutelar,
de tal modo que “os índios em geral” constituem uma categoria global
apenas para o Estado, mas não para os grupos dependentes (cada um
por si) do auxílio e da proteção oficial. A política oficial atua, assim, no
sentido de impedir, ou pelo menos dificultar, o processo de superação
da fragilidade ante o poder por parte das comunidades, pela sua organi-
zação para uma ação coletiva.
É no contato dos índios com setores politizados da sociedade civil
que emerge essa alternativa de ação coletiva. E é no contato dos índios
entre si e com grupos “civilizados” (inclusive os antropólogos) que
encampam sua defesa, fora e à revelia da ação da , que se cria o
novo discurso da indianidade e se esboça a possibilidade de uma orga-
nização que instrumentalize a luta conjunta. Mas esse movimento, cuja
expressão mais acabada se concretiza na tentativa de criar a União das
Nações Indígenas e nos congressos que reúnem lideranças de grupos os
mais diversos, tem sido considerado pelo Estado como ameaça insupor-
tável à segurança nacional. Por outro lado, há também contradições
importantes neste movimento; é que a causa indígena é defendida em
termos de valores e princípios que não são próprios das culturas indíge-
nas, mas criação dos civilizados: os direitos humanos.
A luta indígena se desenrola, assim, no campo mapeado pelo Esta-
do e pela sociedade civil, beneficiando-se da abertura política, e consiste
no processo pelo qual os grupos tribais aprendem que são índios, desco-
brem que têm direitos e tentam encontrar formas coletivas de concretizar
esses direitos. A cultura e a sobrevivência física dos índios implica uma
incorporação e apropriação de valores da civilização ocidental.
Nesse processo, os embates que se travam no campo puramente
ideológico são muito importantes, porque é nesse espaço que se cons-
trói a identidade coletiva, fundamento necessário para a constituição de
um ator político. Nesse plano, os elementos simbólicos assumem uma
relevância específica.
Já apontamos que o índio, enquanto tal, possui em nossa socieda-
de uma carga simbólica muito elevada. Na ideologia da nacionalidade
ele representa a autoctonia e a relação com a natureza. Mais ainda, o
índio está estreitamente associado à idéia de liberdade. No imaginário
popular, o índio é duplamente livre: não tem governo e perambula pelo
território, isto é, não está preso nem ao Estado nem à propriedade. Há
toda uma mitologia da nobreza selvagem, mescla de autonomia, altivez


e coragem, que é incorporada inclusive na história pátria com a afirma-
ção de sua incompatibilidade constitucional à escravidão. Há também
conotações menos positivas na imagem: o índio é selvagem, isto é,
cruel, ignorante das leis (não civilizado), preguiçoso e atrasado (sem os
benefícios da tecnologia). Mas até esse lado negativo tem uma contra-
partida positiva. Para os setores da sociedade que procuram contestar o
caráter profundamente autoritário e espoliativo da nossa for mação
social, o desrespeito às leis e a preguiça podem ser interpretados como
a negação dos valores que as classes dominantes, no Brasil, sempre ten-
taram impor aos dominados: a diligência e a submissão. O “atraso”, por
outro lado, também pode significar a negação do tecnicismo opressivo
da racionalidade capitalista.
Essa carga simbólica que se cristaliza ao redor do índio pode aju-
dar a explicar por que tantas pessoas, no Brasil, têm se dedicado com
tanta paixão à causa indígena. Aliás, não só no Brasil. Convém lembrar
que, de todas as lutas políticas que se travam em nossa sociedade, é essa
a que possui repercussão inter nacional mais imediata e mobiliza, de
modo muito eficaz, uma solidariedade atuante supranacional.
Mas a importância política do problema não reside numa associa-
ção puramente simbólica, que atribui ao índio um valor libertário apenas
no imaginário coletivo. A verdade é que não se pode propor, de fato,
uma solução satisfatória do problema indígena sem colocar imedia-
tamente em questão a necessidade de alterar estruturas de dominação
profundamente enraizadas na sociedade brasileira, e isso não apenas no
plano político, jurídico e econômico mas, inclusive, no nível social e
cultural mais abrangente. Resolver o problema indígena implica, pri-
meiramente, reconhecer o caráter eminentemente social da propriedade
da terra e admitir que é o uso do território para o bem-estar de uma
coletividade que legitima sua posse. Em segundo lugar, resolver o pro-
blema indígena exige o reconhecimento do direito à autodeterminação
por parte de pequenas unidades políticas e da incompetência do Estado
para definir, sem a participação dos interessados, o que é melhor para
eles. Resolver o problema indígena também quer dizer, necessariamente,
no plano social, aceitar como legítimas diferenças de hábitos e costu-
mes, tolerar comportamentos até agora considerados desviantes e, por-
tanto, contestar a legitimidade da dominação ideológica que tem sido
um baluarte da opressão das camadas dirigentes sobre a população em
geral. Finalmente, há que lembrar a dimensão supranacional da questão

 O lugar do índio


indígena, que se manifesta de uma dupla maneira. De um lado, como já
mostramos, despertando uma solidariedade internacional que encontra,
na , um apoio institucional importante. De outro, porque a constru-
ção de uma identidade indígena supera os limites territoriais dos Esta-
dos nacionais e começa a assumir uma dimensão continental com a rea-
lização de encontros e congressos que reúnem líderes indígenas de
diferentes países. Tanto em um como em outro caso, a questão indíge-
na rompe os limites do nacionalismo estreito e xenófobo que tanto tem
servido à opressão das minorias étnicas em todos os lugares.
É nesse sentido que a questão indígena adquire, verdadeiramente,
uma dimensão política que não pode ser menosprezada, pois constitui,
tanto ou mais que qualquer outra, uma luta pela democratização plena
do regime e da sociedade.
No Brasil, os partidos políticos de oposição têm sido extraordina-
riamente lentos em captar e capitalizar os focos de tensão e contestação
gerados na sociedade. Mal começam hoje a acordar para o movimento
feminista e o problema do negro. Assim, também o potencial libertário
presente na luta em defesa dos povos indígenas tem sido ignorado.
Quando muito, os partidos têm se limitado a repetir a ideologia oficial
contida no Estatuto do Índio. Talvez a crescente movimentação das
lideranças indígenas, das entidades de apoio à causa indígena e dos
setores mais abertos da Igreja, representados no , desperte as opo-
sições e as leve a incorporar essa luta como bandeira necessária no pro-
cesso de democratização da sociedade.


Capítulo 

  
Este artigo, escrito em 1984, por ocasião da comemoração do 50o aniversá-
rio da fundação da USP, foi o primeiro que escrevi sobre o ensino superior no
país. Muitos outros se seguiram, mas não estão incluídos nesta coletânea.
Este foi o único escolhido porque comemora, neste ano de 2004, exatos vinte
anos, e coincide com o 70o aniversário da USP.
Relendo-o, surpreende-me que tenha ainda um caráter tão atual. A
atualidade do artigo não me alegra – ao contrário, me entristece por consta-
tar problemas que já eram tão visíveis na década de 80 e que, além de não
terem sido resolvidos, ainda não fazem parte de uma reflexão crítica por
parte da própria universidade, a qual patina de uma greve para outra sem
um projeto de renovação que a torne mais adequada às demandas da socie-
dade contemporânea.
Depois de vinte anos de pesquisas sobre este tema alterei algumas das
concepções que estão explicitadas neste trabalho mais precoce. Acrescentei
por tanto, ao artigo, algumas notas que esclarecem os principais pontos de
divergência entre o meu pensamento atual e o daquele período.
  anos*

A mais antiga das nossas universidades públicas completa, este ano, seu
primeiro cinqüentenário. É ainda jovem. Universidade que se preze
conta a idade em termos de séculos e não de anos. Mas a  parece ter
sido capaz de compensar a juventude cronológica com um tipo de enve-
lhecimento precoce que, antigamente, pensava-se ser uma característi-
ca da vida nos trópicos. Se essa velha teoria foi desacreditada pela bio-
logia, parece entretanto ser muito aplicável às instituições que, neste
Brasil, tendem a se tornar obsoletas antes de atingir a maturidade.
Devemos reconhecer que, apesar de seu envelhecimento tão rápi-
do, a  produziu, neste meio século, uma obra respeitável. Contribuiu
decisivamente para tornar a pesquisa científica uma realidade neste país
– não mais a realização isolada de visionários dedicados, mas o resulta-
do do trabalho permanente de equipes profissionais. Conseguiu assim,
em muitos setores, superar a estreita dependência intelectual que tendeu
a marcar nossas relações com os países desenvolvidos, produzindo um
conhecimento crítico e inovador. Além do mais, ao longo de todos esses
anos, a  formou grande parte dos profissionais que sustentaram a mo-
der nização e a industrialização do país. Continua hoje a ser um grande
centro de ensino e pesquisa, o maior do Brasil. Nesse aniversário, tão
significativo quão melancólico, convém celebrar esses feitos.
Mas, revendo as glórias do passado e a produção do presente, é
difícil explicar o clima de desencanto e descontentamento que grassa,
como erva daninha, no ambiente universitário. Como não podemos ter
uma grande universidade sem um mínimo de dedicação entusiasta, pre-
cisamos entender o que aconteceu nos últimos anos para destruir o oti-
mismo, a esperança e o orgulho que marcaram, no passado, a participa-
ção na vida acadêmica da .

* Publicado originalmente em Novos Estudos Cebrap, v. , n. , .


Na verdade, o problema não é só da . Todas as universidades
brasileiras parecem estar enfrentando problemas que não conseguem
definir e que são, por isso, incapazes de resolver. Mas na  o peso das
velhas estruturas e o ranço do autoritarismo parecem tornar a crise par-
ticular mente aguda. A comemoração do cinqüentenário talvez seja a
ocasião para analisar os problemas e encontrar novos caminhos, supe-
rando o pessimismo estéril, o radicalismo simplista ou a acomodação
fisiológica que parecem caracterizar a atitude de setores diferentes da
universidade ante a situação atual.
Tem-se discutido e reclamado muito na . Tem-se falado da
deterioração dos salários, da falta de verbas para a pesquisa, das acomo-
dações precárias nas quais funcionam muitos dos nossos cursos. O aten-
dimento dessas reivindicações seria mais que justo, e depende apenas de
verbas. Talvez, nesta situação generalizada de escassez de recursos, o
uso mais criterioso das verbas existentes talvez pudesse contribuir para
minorar alguns desses problemas. Mas sabemos todos que nem o manejo
eficaz dos recursos, nem o aumento da dotação orçamentária resolve-
riam, por si sós, a crise da universidade, pois os problemas não se resu-
mem à falta de dinheiro. É nesse contexto que toma corpo a reivindicação
de democratização da universidade.
Somos todos a favor de mais democracia, tanto na sociedade
quanto na universidade. A , que é particular mente autoritária, se
beneficiaria enormemente de um aumento substancial do nível de parti-
cipação coletiva nos órgãos dirigentes. Mas a forma simplista pela qual
a questão vem sendo colocada parece estar servindo antes para substi-
tuir do que para instrumentalizar uma reflexão sobre as dificuldades que
estão paralisando o ensino e a pesquisa na universidade.
Generalizou-se, na , uma receita que vem ganhando grande
popularidade em todas as universidades do país: a eleição direta, por pro-
fessores, funcionários e alunos, do reitor, dos diretores e dos chefes de
departamento. A mesma concepção de democracia, apoiada no mito da
“comunidade universitária”, defende a composição tripartida de todos os
órgãos colegiados, também por eleição direta, como instrumento necessá-
rio e suficiente para equacionar os problemas e assim superar a crise.
Eleições diretas desse tipo não constituem nem o único, nem o
melhor instrumento para a escolha dos dirigentes na universidade. No
contexto atual, talvez pudessem contribuir para promover uma renova-
ção necessária das atuais cúpulas da . Por outro lado, a noção sim-

 USP  anos


plista de que a justaposição, em igual número, de professores, alunos e
funcionários nos órgãos decisórios for necerá os instrumentos eficazes
para a gestão da universidade parece estar impedindo uma reflexão mais
aprofundada sobre a natureza dessa instituição, e o reconhecimento de
sua complexidade.
O mito da comunidade universitária antes oculta do que resolve
dificuldades muito reais. Uma universidade não é uma comunidade,
mas uma organização burocrática (no sentido clássico do termo) muito
complexa, que integra agentes especializados, portadores de saberes e
práticas muito específicos. Não se organiza por meio da cooperação
simples, mas pela divisão do trabalho que cria especializações. Não
pode funcionar sem uma definição clara de áreas de competência e
níveis de responsabilidade. Democratizar uma instituição desse tipo não
é pressupor que todos são igualmente competentes para resolver sobre
tudo, mas exige a criação de complexos mecanismos de representação
diferencial em órgãos colegiados de composição diversificada conforme
suas responsabilidades específicas. Exige, enfim, o reconhecimento de
especificidades funcionais, competências diversas e interesses divergen-
tes de segmentos altamente heterogêneos.
Além do mais, o mito da comunidade, pressupondo a convergên-
cia de interesses entre segmentos diferentes em virtude de sua coinci-
dência com os objetivos mais gerais da instituição, oculta a presença de
interesses corporativos restritos, próprios de cada setor, e que freqüen-
temente são conflitivos com a função social da universidade.
Talvez seja esse corporativismo o responsável pelo fato de que a
discussão sobre a democratização da universidade tenha se concentrado
tanto na questão da participação da “comunidade” acadêmica nas deci-
sões inter nas, deixando em segundo plano um problema que é ainda
mais fundamental: a democratização do acesso à universidade.
O fato de, no Brasil, a universidade pública e gratuita atender pri-
vilegiadamente as camadas mais favorecidas da população, egressas dos
colégios particulares, ao passo que a população mais pobre, oriunda da
escola pública, só encontra lugar nas universidades pagas constitui um
escândalo inadmissível.1 Não basta ser contrário a esse estado de coisas.
. As pesquisas que foram feitas desde então, contando com dados mais completos sobre a
composição socioeconômica do alunado das instituições do setor público e do setor privado,
contestam esta posição. De fato, há uma variação muito pequena quanto à condição socioeco-
nômica dos alunos de um e outro setor. O resultado mais importante deste trabalho é que, >


É preciso propor medidas para superar essa situação, o que só pode ser
feito através de uma campanha séria e politicamente articulada de refor-
ma do ensino de o e o graus. A universidade não pode funcionar isola-
da do resto do sistema educacional, e precisa contribuir para evitar sua
continuada deterioração. Convém lembrar que a própria fundação da
 esteve intimamente vinculada ao movimento da Escola Nova, e que
as propostas de reforma da universidade, na década de , foram ante-
cedidas pela Campanha da Escola Pública, que multiplicou os ginásios
no estado de São Paulo. Mas hoje, na luta que se trava pela democrati-
zação da universidade, os que nela estão, alunos e professores, parecem
se contentar com uma solidariedade puramente verbal para com os que
dela estão sendo excluídos.
Se a democratização do acesso não está recebendo a atenção que
merece, a questão da democratização da carreira docente levanta proble-
mas delicados. A grande expansão do ensino superior na década de 
criou amplas oportunidades de empregos nas universidades e favoreceu
a contratação de muitos professores jovens. Mas o fim do “milagre” eco-
nômico marcou também o congelamento dessa expansão, e hoje as opor-
tunidades de emprego no ensino superior estão cada vez mais restritas.
Os jovens talentosos egressos da pós-graduação se defrontam com a
falta de vagas, ocupadas pela geração anterior com menor qualificação
acadêmica. O corpo docente das universidades tem reagido a essa situa-
ção com uma intensificação das tendências corporativas. Dessa forma, a
defesa da carreira universitária contra injunções político-ideológicas e
interesses alheios às necessidades do ensino e da pesquisa tem resvalado
sutilmente para a reivindicação de completa estabilidade de todo o corpo
docente, desqualificando qualquer forma de avaliação da competência e
da produção intelectual, e eliminando a necessidade de competição
inter na ou exter na. Do mesmo modo, o ideal da carreira aberta, isto é,
da igualdade de oportunidades de ascensão aos níveis mais elevados, se
transfor ma muitas vezes na defesa da promoção automática por tempo
de serviço que institucionaliza a mediocrização do corpo docente.

> em termos do nível de rendimentos e da escolarização dos pais, assim como da proveniên-
cia da escola pública ou particular, as instituições públicas atendem a uma proporção maior
dos alunos das camadas menos favorecidas do que o fazem as instituições privadas, ao con-
trário do que se pensava antes e do que se continua a afirmar hoje. Uma síntese das pesqui-
sas sobre as condições socioeconômicas dos estudantes do ensino superior realizadas em
Sampaio, Limongi & Torres .

 USP  anos


A autonomia da universidade é outra questão que deve ser discu-
tida mais seriamente se quisermos neutralizar o corporativismo estreito
que é componente inevitável das reivindicações acadêmicas. Certamente
a universidade precisa ser protegida de ingerências político-ideológicas.
Mas a sociedade deve construir mecanismos de controle que assegurem
a utilização eficaz dos recursos públicos.2 Não será com a simples subs-
tituição dos atuais representantes das federações patronais no Conselho
Universitário por delegados dos sindicatos operários que se resolverá
esse problema. Se desenvolvemos uma fórmula para garantir a partici-
pação da comunidade acadêmica no governo da universidade, deixamos
de lado a tarefa de refletir sobre o problema espinhoso da participação
da sociedade na gestão da coisa pública.
Mas, na reflexão sobre os problemas atuais da , não se trata ape-
nas de aprofundar a discussão sobre a democratização e a autonomia.
Como lembrava há algum tempo Rogério Cerqueira Leite, infelizmente
não há uma correlação clara entre democratização inter na e excelência
acadêmica. E as universidades são julgadas, em última instância, muito
mais pelo nível de ensino que oferecem e da produção científica que
apresentam do que pelo grau de democracia que praticam ou pela auto-
nomia de que gozam. Isso não quer dizer que a democracia não seja
desejável, nem que não possa ser concebida como instrumento impor-
tante de uma renovação necessária. Mas não podemos deixar de lado a
forma e o conteúdo dessa renovação. Não realizaremos essa tarefa sem
analisar mais detalhadamente a natureza e as origens do impasse atual.

. A questão do controle externo me encaminhou para o estudo dos sistemas de avaliação.


A experiência brasileira inclui um excelente sistema de avaliação, o da , embora restri-
to à pós-graduação. A avaliação das pesquisas para fins de financiamento também possui
mecanismos consolidados e eficazes, institucionalizados no q e na , os quais se
baseiam no exame dos projetos por pares, isto é, outros pesquisadores da mesma área. No
ensino de graduação a criação do “Provão” (Exame Nacional de Cursos) estabeleceu um
indicador extremamente eficaz e transparente da qualidade do ensino proporcionado pelas
diferentes instituições. A avaliação global das instituições deveria, em minha opinião, com-
binar os diferentes indicadores existentes relativos à qualidade das instalações e equipamen-
tos, titulação e condições de trabalho do corpo docente. Avaliações globais deste tipo já
eram feitas pelo Conselho Nacional de Educação para credenciar universidades e centros de
pesquisa. Embora devessem ser aperfeiçoadas, constituíam uma base que não deveria ser
destruída. Infelizmente, o esforço recente do  no sentido de alterar inteiramente o Pro-
vão e mesmo eliminá-lo cria uma séria lacuna no conjunto dos instrumentos necessários
para a avaliação do ensino superior.


A criação da , cinqüenta anos atrás, refletiu muito das tendên-
cias contraditórias que caracterizam a conturbada passagem da década
de  para a de , marcada por uma profunda renovação intelectual
que se deu junto com a emergência de uma nova sociedade urbana, a
implantação do capitalismo industrial, a crise do poder oligárquico tra-
dicional e o surgimento de um novo autoritarismo.
Não há por que idealizar nem denegrir esse começo. Certamente
foi uma iniciativa moder nizante, inovadora e criativa. Não foi, por
certo, um projeto destinado a satisfazer anseios das massas oprimidas.
Concebida por setores mais dinâmicos das classes dominantes, a 
destinava-se claramente à for mação de novas elites que pudessem,
simultaneamente, fornecer os quadros técnicos e os mentores intelec-
tuais da nova sociedade em gestação. A valorização da ciência e da
pesquisa constituía o cerne moder nizante do projeto e a justificativa
ideológica da iniciativa.
Na criação da  o projeto inicial foi profundamente alterado
pelas concessões que teve de fazer, na prática, a uma tradição intelectual
mais conservadora, que concebia o ensino superior em ter mos de for -
mação de profissionais liberais, tendência essa dominante nas escolas já
existentes como a Faculdade de Direito, a Escola Politécnica e a Facul-
dade de Medicina.
Característica desse compromisso foi a criação da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras. Projetada inicialmente como núcleo de en-
sino e pesquisa da área das ciências básicas e das humanidades para servir
toda a universidade, acabou se transfor mando em uma escola ao lado
das outras, para a qual se conseguiu inclusive descobrir uma finalidade
profissionalizante: a formação de professores para o ensino secundário.
Manteve-se assim a autonomia das velhas escolas, do mesmo modo
como se manteve, sem contestação, a estrutura da cátedra que nelas já
existia. A universidade se organizou como federação de unidades rela-
tivamente autônomas e altamente hierarquizadas inter namente. Desse
modo, o modelo implantado em , assentado numa visão basicamente
elitista de universidade, caracterizou-se por um equilíbrio instável e con-
flitivo entre a valorização das ciências básicas e da pesquisa, dominante
na Faculdade de Filosofia, e uma concepção profissionalizante assentada
no prestígio da Politécnica, da Faculdade de Direito e da de Medicina.
O modelo híbrido vingou e deu frutos. No quarto de século que se
seguiu, implantou definitivamente a pesquisa na vida universitária e

 USP  anos


modernizou a formação dos profissionais liberais, ao mesmo tempo em
que consolidou um espaço para as ciências básicas e as humanidades.
Continuou a cumprir o velho papel de fornecer o anel e o título de dou-
tor aos filhos das classes dominantes, mas também abriu um importante
canal de ascensão social e legitimação política amplamente utilizado pelas
novas classes médias em formação. A universidade ampliou-se pela
incorporação ou criação de outras escolas e cursos, dentro do mesmo
molde.
Foi apenas no final da década de  que esse modelo de universida-
de começou a ser seriamente contestado. O descontentamento já vinha de
antes, e a rígida hierarquia assentada na cátedra era por demais inflexí-
vel para promover ou absorver mudanças estruturais. Mudara o país, e
a universidade se mostrava inadequada para responder às pressões de
uma sociedade que se urbanizara e industrializara muito rapidamente.
Claro sinal dessa inadequação estava na demanda crescente pelo ensino
superior, que esbarrava na limitação das vagas e acabou criando a figu-
ra dos “excedentes” – os candidatos que haviam sido aprovados no ves-
tibular mas não podiam ingressar na universidade por falta de vagas.
Mas não se tratava apenas de deficiências da universidade. Havia nova-
mente no país, como na década que antecedera a criação da , uma
nítida consciência da inadequação das estruturas políticas vigentes e sua
incapacidade de atender aos anseios populares. Nesse contexto, a refle-
xão sobre a necessidade de moder nização da universidade foi logo
incorporada a uma contestação muito mais ampla da ordem social no
movimento pelas reformas de base.
O golpe de  restringiu drasticamente o espaço político na socie-
dade, mas a universidade conseguiu resistir, até certo ponto, à interven-
ção das forças repressivas. Os inquéritos e prisões que então ocorreram
não chegaram a destruir totalmente a liderança intelectual e política, e
contribuíram para estabelecer uma aliança entre os setores liberais e a
esquerda universitária na defesa da instituição. Preservou-se assim, nas
universidades brasileiras (mas especialmente na ), um lugar de deba-
te político e de reflexão crítica sobre a sociedade. A existência desse
espaço numa sociedade politicamente manietada deu à universidade um
enor me papel político, e per mitiu a maturação do grande movimento
estudantil que, mais no final da década, sacudiria todo o país.
O elemento-chave que integrou a luta política externa à tentativa
de reforma interna foi o movimento dos excedentes. A súbita ampliação


maciça do número de alunos da universidade efetivamente pôs em
xeque todo o sistema de ensino. A velha for mação profissionalizante
estava efetivamente falida. Havia que se pensar a universidade de mas-
sas, livre, democrática e crítica. A união explosiva de contestação ao
regime com refor ma universitária subverteu profundamente as velhas
hierarquias e práticas acadêmicas, e houve um breve mas fértil período
de experiências educacionais inovadoras. A derrota do movimento estu-
dantil, no final da década, pôs fim a toda essa efervescência.
A grande reforma universitária, imposta pelo regime em ,
simultaneamente com o expurgo das lideranças políticas e intelectuais,
representou uma versão autoritária, conservadora e limitada do projeto
de modernização que estivera inserido no contexto mais amplo da refor-
ma democrática de toda a sociedade. Havia aspectos positivos na reforma,
que eliminava a cátedra, abria a carreira, destruía a autonomia das facul-
dades e propunha uma nova integração das ciências básicas com o ensino
profissionalizante. Mas, controlada pelos segmentos mais conservadores
ou mais fisiológicos da universidade, a refor ma abastardou-se irreme-
diavelmente por ter sido utilizada antes como instrumento de controle
político-ideológico da vida acadêmica do que como meio de renovação
do ensino e da pesquisa. Na  especialmente, os componentes mais mo-
dernizantes da reforma imposta pelo governo federal foram efetivamente
neutralizados por subterfúgios que lograram manter quase intactos muitos
dos privilégios da cátedra e da divisão interna dos feudos. A  se tor-
nou assim a universidade mais conservadora (e antiquada) do país.3
Em nível nacional, concessões políticas foram feitas pelo governo
às demandas sociais que haviam alimentado a rebelião universitária. O
ensino superior como um todo foi ampliado de forma considerável no

. Esta situação foi superada na década subseqüente. Minha posição a este respeito, baseada
em grande parte no que havia ocorrido e estava ainda ocorrendo nos países desenvolvidos,
alterou-se bastante. A experiência inter nacional é importante, na medida em que, para
democratizar o acesso ao ensino superior, houve uma evolução no sentido de diversificar os
tipos de estabelecimentos e de cursos oferecidos no sistema. De fato, instituições que asso-
ciam ensino e elevada produção científica constituem, em todos os países desenvolvidos,
uma minoria. O alto custo dessas instituições impede que possam ser ampliadas em número
suficiente para atender a uma demanda massiva. Além do mais, são demasiado acadêmicas e
teóricas para satisfazer as aspirações de um público que se torna cada vez mais heterogêneo
em ter mos de preparação escolar anterior e de interesses intelectuais. As escolas técnicas
européias e os colleges americanos constituem exemplos bem-sucedidos dessa orientação, e
se deveria estudar sua adaptação ao caso brasileiro.

 USP  anos


setor público, e favoreceu-se despudoradamente a expansão do setor
privado. Desse modo, satisfizeram-se os componentes mais imediatistas
da demanda por acesso ao ensino superior por parte das classes médias,
evitando a renovação profunda da estrutura do ensino que se fazia
necessária. Manteve-se o mesmo tipo de profissionalização, de cunho
tradicional, com algumas inovações demagógicas e espúrias, como
exemplo as licenciaturas curtas e a obrigatoriedade da disciplina Estudo
de Problemas Brasileiros.
Nesse contexto de mudar para não renovar, produziu-se uma
dicotomia esquizofrênica nos projetos sobre a universidade. A direita
empunhou a bandeira da moder nização e a deturpou no centralismo
burocrático tão caro ao regime autoritário. A esquerda, alijada da arena
política, apoderou-se do tema da democratização – atacou as estrutu-
ras autoritárias dentro e fora da universidade mas abandonou a reflexão
sobre os demais problemas do sistema educacional. Recusando-se a ser-
vir de instrumento para a formação de quadros para o novo capitalismo
em formação, a esquerda teve que se omitir na questão da relação entre
o ensino universitário e as demandas reais da sociedade. Refugiou-se na
afir mação de princípio sobre a necessidade de servir os trabalhadores,
que não estavam na universidade, e abandonou a reflexão sobre as
demandas da classe média, que lá se encontrava. Impotente politica-
mente, teve que se contentar com uma identificação imaginária com os
pobres e oprimidos, ao mesmo tempo em que sua atividade acadêmica
continuava voltada para o sistema elitista de for mação profissional na
tentativa de preservar a qualidade do seu trabalho intelectual. Ficamos
assim todos enredados nas malhas de uma situação contraditória, na
qual a defesa da qualidade do ensino significa privilegiar a universidade
elitista a as classes economicamente favorecidas, ao mesmo tempo em
que a identificação com as grandes massas proletarizadas e oprimidas
patina no vazio, pois só pode ser efetivada fora da universidade. Identi-
ficação política e atuação profissional divorciam-se uma da outra e só
podem ser integradas no imaginário do discurso que alimenta uma
auto-imagem libertária sem lastro na prática. Inter namente, as oposi-
ções, impedidas de participar das decisões, perderam o contato com os
problemas concretos da administração e, com ele, os instrumentos para
distinguir entre as propostas utópicas e as exeqüíveis.
Felizmente, a abertura política parece abrir uma nova possibilidade
de corrigir essas deformações. A participação de professores, alunos e fun-


cionários nos partidos e nos movimentos sociais cria novas perspectivas,
novas formas de atuação e pode promover um novo realismo na avalia-
ção dos problemas. Talvez possamos portanto, agora, começar a elaborar
uma reflexão mais conseqüente sobre os problemas da universidade.
Certamente a solução dos problemas da  implica uma democra-
tização inter na, garantindo uma representação mais adequada dos dife-
rentes setores da universidade nos organismos decisórios. Implica tam-
bém o desmantelamento do rígido centralismo burocrático que herdamos
do regime autoritário e que sufoca todas as iniciativas. Devemos dar início
a uma ampla refor ma administrativa que assegure uma infra-estrutura
minimamente adequada às necessidades do ensino e da pesquisa. Mas,
basicamente, precisamos retomar a reflexão sobre os problemas que já
estavam claros na década de  e que ainda não foram resolvidos.
Em primeiro lugar, precisamos recolocar a questão da universi-
dade de massa, isto é, aquela destinada não apenas a formar uma pequena
elite privilegiada, mas a oferecer oportunidades cada vez mais amplas
de acesso ao ensino superior para uma população cada vez maior e mais
heterogênea. Isto significa retomar a reflexão sobre a democratização
do acesso à universidade, no contexto de uma ampla reforma de todo o
ensino público. Mas não se trata apenas de melhorar a qualidade do
ensino de o e o graus, preparando melhor os alunos para o vestibular.
É preciso, além de rever o próprio vestibular, estudar formas alternati-
vas de ingresso na universidade. Ambos os problemas nos remetem
diretamente à atual estrutura curricular do ensino superior.
Uma universidade aberta a amplas camadas da população não pode
ser construída simplesmente multiplicando a matrícula nos mesmos cur-
sos tradicionais, preservando a velha concepção do diploma profissional,
conservando o mesmo tipo de ensino.
Não vamos abrir as portas da  aos operários, transformando-os
todos em advogados, médicos e engenheiros. Também não há por que
multiplicar o número de sociólogos, filósofos, economistas, historiado-
res, jor nalistas, psicólogos que engrossarão as filas de desempregados
no mercado de trabalho saturado. O velho sonho das classes médias,
que viam na universidade um instrumento para a obtenção de um diplo-
ma que garantisse um emprego bem-pago e de prestígio, legitimando
uma posição privilegiada na estrutura da sociedade, está definitivamente
morto e deve ser enterrado. Só foi compatível com a velha universidade
elitista, que atendia um número restrito de privilegiados destinados a se

 USP  anos


tornar profissionais liberais.
A universidade deve certamente continuar a for mar profissionais
como médicos, engenheiros, advogados, dentistas e assim por diante.
Deve formar também um contingente de estudiosos preparados para a
pesquisa científica, tarefa esta que cabe, cada vez mais, à pós-graduação.
Mas a grande maioria dos alunos não vai poder exercer as profissões
regulamentadas nem encontrará emprego como pesquisador. Nesses
casos, o diploma universitário apenas confere uma certa vantagem dife-
rencial genérica no mercado de trabalho, que decorre do reconhecimento
dos benefícios de uma for mação mais completa. Amplos setores das
imensas organizações burocráticas, estatais ou privadas, que caracteri-
zam a economia moder na, utilizam esse tipo de mão-de-obra para a
qual a universidade fornece apenas uma preparação genérica, sobre a qual
cada um constrói, no trabalho, sua própria competência.
Hoje, na , os cursos na área das humanidades (mas não só estes)
atendem, cada vez mais, um público já profissionalizado, regularmente
empregado, que procura na universidade uma for mação que permita
usufruir e manipular mais plenamente a produção cultural da sociedade
moder na, consciente de que esse enriquecimento pessoal valoriza sua
força de trabalho, não importa em que área.
A inadequação da atual estrutura curricular rígida para atender a
essa demanda flexível manifesta-se claramente em dois fenômenos
muito relevantes. Em primeiro lugar, na dificuldade encontrada pelos
jovens em decidir sobre suas carreiras no momento do vestibular, o que
dá origem à composição heterogênea das opções e ao abandono fre-
qüente de cursos já iniciados para concorrer a novo vestibular numa
carreira diversa. Em segundo lugar, na tentativa de compensar a rigidez
curricular fazendo mais de um curso, simultânea ou sucessivamente.
É importante que a universidade reconheça esse problema, oferecendo
a possibilidade de composições curriculares flexíveis e abertas, que
quebrem a rígida compartimentalização que existe atualmente.
A universidade pode também ampliar consideravelmente o atendi-
mento a demandas sociais, aumentando e diversificando a oferta de cur-
sos livres, independentes de vestibular, de curta duração, destinados a
promover a atualização profissional, o acesso a novas tecnologias, a di-
vulgação científica e cultural, facilitando o acesso às bibliotecas e utili-
zando as potencialidades pedagógicas dos museus. O que a  procura
realizar na curta semana das reuniões anuais deveria ser uma parte inte-


grante da programação da universidade. As tímidas tentativas que se
realizam hoje nesse sentido estão muito longe de explorar devidamente
o imenso potencial da  como centro cultural aberto à população.
Finalmente, precisamos refletir mais seriamente sobre a pesquisa.
Tem-se falado muito sobre a ausência de verbas para a pesquisa na uni-
versidade e a dependência crescente de fontes de financiamento exter -
nas como a , o q, a  e as fundações privadas. Que a 
deva dispor de um fundo próprio para financiar as pesquisas é indiscu-
tível. Mas o sonho de uma pletora de recursos, inseridos na dotação
orçamentária, de modo a tor nar a universidade completamente auto-
suficiente nessa matéria é certamente irreal. Teremos que conviver com
as agências financiadoras, e convém admitir que há muitos aspectos
positivos nessa relação. Em primeiro lugar porque, por mais discutíveis
que sejam alguns dos critérios e mecanismos utilizados por essas agên-
cias para a distribuição dos recursos, a qualidade dos projetos apresenta-
dos é um elemento importante para assegurar sua aprovação – introduz-
se desse modo na universidade um elemento necessário de competição
intelectual e de avaliação de competência que o corporativismo acadê-
mico tende a neutralizar. De outro lado, a própria multiplicidade das
agências financiadoras dificulta tanto o controle ideológico dos projetos
e dos pesquisadores como a discriminação puramente pessoal de que
não estão isentos os meios acadêmicos.
Ante essa realidade de disputa por recursos escassos, a  tem-se
revelado uma instituição particularmente ineficaz. O excessivo centra-
lismo burocrático dificulta enor memente a relação com as agências
financiadoras. Os pesquisadores responderam a essa situação criando
estruturas paralelas, como centros de pesquisa e fundações independen-
tes ou semi-independentes, nas quais, hoje em dia, pelo menos nas áreas
das ciências humanas, se realiza a maior parte das pesquisas, burlando o
controle burocrático. Precisamos pensar seriamente em permitir a cria-
ção, dentro da universidade, de centros de pesquisa que sejam autôno-
mos na elaboração de projetos, na captação de recursos e na prestação
de contas junto às agências financiadoras. Tanto o autoritarismo da di-
reita, que exige o rígido controle centralizado, como o medo alimentado
pela esquerda de um eventual controle das pesquisas por parte das em-
presas privadas têm contribuído para evitar a discussão desse problema
e a solução necessária de maior autonomia dos pesquisadores.
No final da década de  esses problemas já eram visíveis e foram

 USP  anos


amplamente ventilados. Mas a reforma outorgada de , se não con-
seguiu resolvê-los, parece ter sido capaz de impedir que eles continuas-
sem a ser discutidos.
A verdade é que todos esses problemas levantam questões polê-
micas, e sua solução fere interesses constituídos e exige a mudança de
práticas profundamente arraigadas em todo o corpo docente. O novo
movimento de refor ma que começou a tomar corpo no final dos anos
, tendo que lutar contra o autoritarismo do regime, buscou fortale-
cer-se no consenso. Refugiou-se nas fór mulas da democratização que
visam satisfazer a todos, ignorando as questões que haveriam de provo-
car divisões internas e, por outro lado, ocultando o corporativismo que
permeava muitas das reivindicações apresentadas.
É tempo de abrir um outro espaço de debate, atacar as questões subs-
tantivas do ensino e da pesquisa, abandonando o fetiche do consenso.
Não podemos esperar por fór mulas salvadoras de aceitação universal,
nem exigir a participação de todos no encaminhamento de cada problema.
Mas poderemos enfrentar a crise se a  produzir hoje, como produziu
no passado, grupos politicamente articulados e de prestígio intelectual
reconhecido que estejam empenhados em equacionar e propor soluções
para alguns dos problemas que nos afligem.
Esperamos que o descontentamento generalizado que se nota hoje
contenha o fermento que haverá de impulsionar a velha  para novos
rumos.


Capítulo 

      


Família e reprodução humana*

É próprio do senso comum conceber as instituições relativamente está-


veis da sociedade antes como formas “naturais” de organização da vida
coletiva do que como produtos mutáveis da atividade social. No caso da
família, entretanto, a tendência à “naturalização” é extremamente refor-
çada pelo fato de se tratar de uma instituição que diz respeito, privile-
giadamente, à regulamentação social de atividades de base nitidamente
biológica: o sexo e a reprodução.
Se essa naturalização da família ocorre em todas as culturas, na
nossa assume forma particularmente insidiosa pelo tipo especial de fa-
mília que possuímos e pela manipulação de concepções científicas em
sua legitimação. Dessa forma, além de permear o senso comum, tende a
contaminar, de maneira grosseira ou sutil, a própria reflexão científica.
Clara manifestação disso é a tendência a identificar o grupo conjugal
como forma básica ou elementar de família e afirmar sua universalida-
de. Mais ainda, como reconhecemos uma forma de parentesco basica-
mente bilateral (embora com certa predominância da linha paterna), o
próprio parentesco é tomado como igualmente “natural” e concebido
como extensão dos laços familiares.
O processo de naturalização da família não se esgota em sua for -
ma, mas inclui também a divisão sexual do trabalho que a organiza
inter namente. A relação dessa divisão sexual do trabalho com o papel
da mulher no processo reprodutivo per mite que se vejam todos os
papéis femininos como derivados de funções biológicas.
O problema inicial do estudo da família é dissolver essa aparência
de naturalidade para percebê-la como criação humana mutável. Assim,
* Publicado originalmente em Perspectivas antropológicas da mulher (vários autores). Rio de
Janeiro: Zahar, . Uma versão preliminar deste trabalho foi apresentada no  Encontro
Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, realizado
em Friburgo, em outubro de .


partindo do grupo conjugal e dada a universalidade da instituição do
casamento, é sempre possível identificar, em cada sociedade, maridos,
esposas e filhos. Mas o problema é determinar em que medida esse con-
junto é reconhecido como grupo ou subgrupo específico, constitui uma
unidade ou subunidade doméstica e residencial, e forma uma unidade
de parentesco. O que a antropologia mostra, através do estudo compara-
tivo, é que isso nem sempre ocorre e que sociedades diversas concebem e
combinam de forma variável o casamento, o parentesco, a residência e
a vida doméstica, privilegiando arranjos diversos dos nossos. O funda-
mental para “desnaturalizar” a família é, portanto, entender que a re-
lação que conhecemos entre grupo conjugal, família, parentesco e divi-
são sexual do trabalho pode ser dissociada, dando origem a instituições
muito distintas.
Acredito que a antropologia seja essencial a essa reflexão porque,
entre todas as ciências sociais, é a única a voltar-se diretamente para a
análise das diferenças, das for mas alter nativas de organização da
sociedade, e portanto é aquela que nos per mite, simultaneamente, vis-
lumbrar o que é geral e perceber a infinita variedade das for mações
sociais concretas.

A divisão sexual do trabalho

Todas as sociedades humanas conhecidas possuem uma divisão sexual


do trabalho, uma diferenciação entre papéis femininos e masculinos que
encontra na família sua manifestação privilegiada. É verdade que as
for mas dessa divisão sexual são extremamente variadas, assim como
variam a extensão e a rigidez da separação entre as tarefas consideradas
próprias aos homens e aquelas atribuídas às mulheres. Voltaremos a
analisar essa diversidade mais adiante. No momento quero ressaltar
que, dentro dessa diversidade, há invariâncias.
Em primeiro lugar, é necessário reconhecer que não há qualquer
exemplo comprovado de sociedade propriamente matriarcal, isto é,
aquela em que as decisões sobre o conjunto da sociedade estejam concen-
tradas nas mãos das mulheres. A guerra e a política são, em todos os
lugares, atividades essencialmente masculinas, das quais as mulheres,
quando participam, o fazem de modo secundário, complementar ou subs-
titutivo. Por outro lado, o cuidado com as crianças e sua socialização ini-

 Família e reprodução humana


cial são sempre da competência feminina, e os homens apenas intervêm
de forma auxiliar ou complementar. Parece necessário reconhecer que a
variabilidade das formas concretas de divisão sexual do trabalho se cons-
trói em torno de uma tendência praticamente universal de separação da
vida social entre uma esfera pública, eminentemente masculina, associa-
da à política e à guerra, e uma esfera doméstica privada, feminina, presa
à reprodução e ao cuidado com as crianças.1 Com isso, entretanto, não
queremos afirmar que as mulheres não participam da vida pública, muito
menos que os homens estão excluídos da vida doméstica. É, portanto,
num sentido limitado que se pode dizer que todas as sociedades humanas
conhecidas foram, até hoje, marcadas por diferentes graus e for mas de
dominância masculina, o que não significa dizer que em todas as culturas
as mulheres são igualmente oprimidas ou dominadas pelos homens.2
Para se entender a universalidade desses aspectos (assim como as
possibilidades de sua transformação futura em nossa sociedade), creio ser
preciso admitir que a construção cultural da divisão sexual do trabalho se
elabora sobre diferenças biológicas. Com isso não quero dizer que haja
uma explicação “natural” para a distinção entre papéis masculinos e femi-
ninos, mas que, nesse particular, a cultura organiza, orienta, modifica, res-
salta ou suprime características que possuem fundamentação biológica.
É sempre difícil falar em determinações biológicas quando se trata
de sociedades humanas, e isso porque a própria evolução física da espé-
cie esteve condicionada pelo desenvolvimento da cultura, cujos primór-
dios são muito anteriores, inclusive, ao aparecimento do gênero homo.
Apesar disso, o homem é certamente um animal, um mamífero e um
primata com características físicas definidas, e é perfeitamente possível
e válido analisar as semelhanças e diferenças entre o homo sapiens e
outras espécies, particular mente aquelas que estão biogeneticamente
mais próximas. Essa comparação parece-me especialmente relevante no
que toca à reprodução.
Entre os mamíferos, existe uma tendência inata de as fêmeas ali-
mentarem e protegerem os filhotes. O período em que isso ocorre,
entretanto, é muito variável, embora tenda a não ultrapassar o nasci-
mento da próxima cria. Nos macacos antropóides, esse período de
dependência da cria em relação à mãe é bem prolongado e as fêmeas

. Um tratamento interessante dessa questão pode ser encontrado em Lamphere .


. Sobre esse problema, consultar Rosaldo .


não entram novamente no cio, e portanto não procriam, enquanto pos-
suem uma cria imatura.
Na espécie humana, não só o período de total dependência das
crianças é igualmente ou ainda mais prolongado, como tende a se sobre-
por ao nascimento de outros filhos. O aleitamento costuma estender-se
por mais de um ano, e mesmo muito depois disso a criança precisa ser
alimentada por um adulto. Antes de três anos, na melhor das hipóteses,
as crianças dominam muito mal as técnicas de locomoção bípede e
devem ser carregadas boa parte do tempo. Só aos cinco ou seis anos é
que podem começar a auxiliar no trabalho, e muito raramente se consti-
tuem plenamente como trabalhadores produtivos antes do início da
maturidade sexual, isto é, onze ou doze anos para as meninas, catorze ou
quinze anos para os rapazes. Além disso, essa dependência física tão
demorada é agravada pela absoluta necessidade de treinamento cultural
sistemático para transformar o bebê num ser humano. Isso significa que,
apesar de as mulheres muito raramente terem partos múltiplos, passam
grande parte da vida adulta cuidando de mais de uma criança, de idades
diferentes. Essas peculiaridades biológicas e culturais do processo repro-
dutivo dos seres humanos e o peso que elas representam para as mulhe-
res certamente estabelecem condicionantes para a elaboração da divisão
sexual do trabalho. E o fato de essa tarefa tender a ser atribuída basica-
mente às mães não pode ser visto como simples imposição masculina,
mas constitui uma elaboração cultural que se constrói sobre tendências e
características que a espécie humana compartilha com outros mamíferos
e que são bem pronunciadas nos antropóides, nossos parentes mais pró-
ximos: a dependência prolongada das crias em relação às mães.
Por outro lado, é necessário lembrar também que é possível modi-
ficar culturalmente esse padrão, provendo figuras substitutivas das
mães, embora isso seja bem mais complicado no primeiro ano de vida,
antes do desmame (aliás, formas adequadas de alimentação infantil arti-
ficial constituem uma invenção muito recente na história da humani-
dade). Além do mais, esses condicionantes de natureza biológica im-
põem-se com força maior e com maior generalidade nas sociedades
“primitivas”, isto é, aquelas caracterizadas pela pouca complexidade da
divisão social do trabalho. Nessas sociedades, todas as mulheres férteis
são necessariamente mães e estão igualmente presas ao cuidado com os
filhos, essencial à sobrevivência do grupo. Nas sociedades estratificadas,
por outro lado, e especialmente nas camadas dominantes, as mulheres

 Família e reprodução humana


são freqüentemente liberadas de pelo menos parte dessa tarefa, com o
surgimento de amas-de-leite, babás, preceptores etc. Por isso mesmo,
admitindo-se que os aspectos gerais da divisão sexual do trabalho cons-
tituem provavelmente elaborações culturais de características presentes
no desenvolvimento da espécie antes do próprio desenvolvimento da
cultura, é necessário analisar um pouco mais a amplitude das modifica-
ções e elaborações culturais que se erigiram sobre essas bases.
Em primeiro lugar, é preciso considerar que a divisão sexual do
trabalho nunca se restringe a esses aspectos gerais, mas tende a abran-
ger grande número de outras atividades. Aliás, sua própria extensão e
rigidez variam de uma cultura para outra. Atividades específicas, como
trançar, tecer, fabricar cerâmica, plantar hortas, podem ser definidas
numa sociedade como tarefas femininas, em outra como masculinas e
numa terceira como indiferentes, podendo ser realizadas tanto por um
sexo como pelo outro. Varia também a própria concepção do caráter
feminino: os mesmos aspectos universais da divisão sexual do trabalho
podem estar associados a concepções que atribuem às mulheres em
geral um grande apetite sexual ou, ao contrário, uma tendência à frigi-
dez; pode-se ver as mulheres como seres frágeis e irresponsáveis ou
como confiáveis bestas de carga; ao passo que uma sociedade as define
como incapazes para as atividades comerciais, outra lhes atribui uma
habilidade natural para os negócios; finalmente, varia enor memente o
grau de autonomia, independência e iniciativa que lhes é permitido em
sociedades diversas e em atividades diferentes.
Com isso quero dizer que reconhecer a existência de aspectos
gerais da divisão sexual do trabalho e a generalidade da dominância
masculina não implica aceitar que a submissão da mulher seja um fenô-
meno natural ou universal. A própria extensão da divisão sexual do tra-
balho estabelece um alto grau de mútua dependência entre mulheres e
homens que não se restringe à satisfação sexual, mas que é essencial ao
bem-estar e mesmo à sobrevivência econômica de ambos. A separação
das atividades entre sexos cria, para cada um, uma área de autonomia e
independência – tanto maior quanto maior é a rigidez dessa separação.
Em segundo lugar, como essa divisão de tarefas é em grande parte
“arbitrária”, ela pode produzir concepções completamente diversas
sobre o papel e a posição da mulher na sociedade. Assim também, a
aceitação da dominância masculina em certos setores da esfera pública
não significa, necessariamente, a submissão à vontade masculina em


outras ou na esfera privada, e homens tiranizados pelas mulheres pare-
cem existir em todas as sociedades, mesmo as mais machistas.
A análise da diversidade cultural demonstra a necessidade de dis-
solver a definição das relações entre homens e mulheres em ter mos da
dicotomia dominação-submissão, e começar a pensar numa complexa
combinação da área de influência ou autonomia, de graus diversos de
imposição e aceitação de autoridade real ou simplesmente formal.

Casamento, parentesco e família

Se a análise das deter minações biológicas relativas à reprodução e às


diferenças sexuais nos ajuda a compreender certos aspectos universais da
divisão sexual do trabalho, mostra-se muito menos esclarecedora quando
tentamos compreender a família, que constitui o foco de nossa análise.
Retomemos a referência aos primatas, espécie evolutivamente
mais próxima da humana. Com efeito, entre os primatas, o emparceira-
mento per manente é muito raro. Entre os antropóides, apenas o gibão
costuma viver em pequenos grupos for mados por um macho, uma
fêmea e sua prole imatura; em contrapartida, possuindo “família”, o
gibão não tem propriamente uma “sociedade”. Os orangotangos, por
sua vez, são animais solitários, que convivem brevemente durante o cio,
ficando as crias inteiramente aos cuidados da fêmea. Chimpanzés e
gorilas, que, ao contrário, vivem em bandos, tampouco possuem algo
semelhante a uma família. Os bandos são unidades hierarquizadas nas
quais os machos adultos dominam as fêmeas e um macho domina os
demais. Os machos mais fortes garantem um acesso privilegiado às
fêmeas promíscuas durante o cio. Fora desse período não há emparcei-
ramento estável, e as crias são cuidadas exclusivamente pelas respecti-
vas mães. De forma um tanto simplificada, podemos dizer que entre os
antropóides e os primatas em geral encontramos ou “famílias” ou ban-
dos, mas nunca ambos simultaneamente, sendo impossível erigir as
famílias em núcleos formadores de uma vida social mais ampla, ou pen-
sar na família como fundamento natural da sociedade.
Se existisse algum grupo natural na sociedade humana, não seria a
família, mas aquele formado por uma mulher e sua prole imatura.3 Com

. Quanto a essa colocação, ver Fox .

 Família e reprodução humana


efeito, podemos argumentar que a gestação, a amamentação prolongada
e a necessidade de proteger, alimentar e carregar os bebês humanos
durante muito tempo devem contribuir para criar laços relativamente
duradouros entre mães e filhos. Pode-se imaginar também que o longo
período de maturação das crianças, ultrapassando o intervalo entre uma
gestação e outra, propicia a convivência dos irmãos, favorecendo a
sociabilidade entre eles. As relações sexuais, entretanto, embora decerto
necessárias à reprodução, não criam obrigatoriamente (ao contrário da
amamentação) vínculos duradouros. Aliás, parece mesmo que as socie-
dades humanas exercem enor me dose de coerção para estabilizar essas
relações. Do mesmo modo, a relação entre um homem e a prole que ele
gerou, excluindo-se o ponto de vista estritamente genético, é necessaria-
mente indireta, não apresentando a “naturalidade” das relações entre
mãe e filho. Ora, o próprio das famílias humanas, em todas as socieda-
des, é exatamente o estabelecimento de vínculos sociais per manentes
entre os filhos de uma mulher e homens determinados [pai e/ou irmão
da mãe], vínculos esses que são criados através de representações (idéias,
sistemas e símbolos) incorporadas nas noções de parentesco e instrumen-
talizadas pelo casamento. Para se entender adequadamente a instituição
familiar é necessário, portanto, compreender a natureza do casamento e
dos sistemas de parentesco, regulados pelo tabu do incesto.
O tabu do incesto consiste na proibição de relações sexuais e, por
extensão, de relações matrimoniais entre homens e mulheres relaciona-
dos por certos vínculos sociais, geralmente (mas não exclusivamente)
definidos por categorias de parentesco. Existindo em todas as socieda-
des humanas conhecidas, é uma criação cultural universal enquanto
proibição, embora extremamente variável na amplitude e na natureza
das relações às quais se aplica, e não encontra contrapartida em qual-
quer outra espécie animal. Existem, é verdade, especialmente entre os
pássaros, certos mecanismos que parecem inibir o acasalamento entre
indivíduos da mesma ninhada. Mas certamente nada existe que impeça
o cruzamento entre “irmãos” de ninhadas diferentes ou mesmo entre
pais e filhas ou mães e filhos já adultos e independentes, para não falar
de relações mais distantes, como entre tios e sobrinhos ou primos em
primeiro, segundo e terceiro graus.
O fundamental para a compreensão do tabu do incesto, como
mostra Lévi-Strauss (), é não confundi-lo com uma elaboração
cultural de uma tendência ou exigência biológica (uma suposta aversão


natural entre indivíduos geneticamente próximos ou uma necessidade
da espécie de evitar o acasalamento consangüíneo).4 Ao contrário, a
proibição do incesto consiste exatamente na imposição de uma norma
(sendo, portanto, uma criação social) no espaço de indeterminação que
diz respeito, na natureza, à escolha dos parceiros sexuais. A importância
central do tabu do incesto, na reflexão sobre a família e o parentesco,
está em que, distinguindo conceitualmente entre parceiros proibidos e
per mitidos, destrói-se a possibilidade de uma manifestação natural da
sexualidade, submetendo-a a regras e tor nando-a um instrumento de
criação de vínculos sociais.
Com o tabu do incesto, as sociedades regulamentam o casamento,
instituição também universal, embora varie tanto quanto à forma como
quanto à intensidade e per manência dos laços que cria, assim como
quanto ao grau de exclusividade sexual que pressupõe. O que há de
mais geral no casamento é que, em todas as sociedades, ele é concebido
como pré-requisito para a legitimação da prole de uma mulher.5 Do
mesmo modo que o tabu do incesto destrói a naturalidade das relações
sexuais, a universalidade do casamento como pré-requisito para a pro-
criação destrói a naturalidade das relações entre mães e seus filhos, atri-
buindo a homens determinados a responsabilidade para com a prole de
cada mulher.
Nessa seqüência de raciocínio, para evitar a reintrodução de uma
naturalização indevida, o importante é não confundir a exigência uni-
versal do casamento com a necessidade de determinação da paternidade
biológica. Mesmo porque se o casamento, como um contrato, estabelece
qual homem é responsável socialmente pelos filhos de qual mulher, essa
responsabilidade não é atribuída necessariamente ao marido e muito
menos ao parceiro sexual. Nas sociedades matrilineares, por exemplo,
grande parte dessa responsabilidade (e dos direitos correspondentes) é
investida no irmão da mãe e não no cônjuge, o que não torna, por estra-
nho que pareça, o casamento desnecessário.
A análise comparativa permite apreender o casamento, no dizer de
Lévi-Strauss, como relação a três. Ele envolve não apenas um homem e

. As pesquisas recentes de etologia nos levam a rever esta afir mação tal como é feita no
capítulo  (infra). No caso de chimpanzés e gorilas, nossos parentes mais próximos, as
fêmeas abandonam espontaneamente o grupo após a menarca e procuram parceiros em
outros grupos, aos quais se integram, evitando assim o acasalamento consangüíneo.
. Sobre essa definição de casamento, consultar Gough .

 Família e reprodução humana


uma mulher, mas uma mulher e dois homens: aquele que a recebe e
aquele ao qual ela é negada, em função do tabu do incesto. Nessa con-
cepção, o casamento é visto não apenas como elemento de constituição
de grupos familiares e de parentesco, mas fundamentalmente como
mecanismo de comunicação entre esses grupos, estabelecendo uma
“troca de mulheres”.
Pelo fato de nossa cultura privilegiar amplamente a relação matri-
monial em detrimento do vínculo sororal [entre irmãos] e a paternida-
de em detrimento do avunculado [relação entre irmão da mãe e filhos de
sua irmã], essa característica básica do casamento per manece obscura
para o senso comum, ofuscada pelo problema da paternidade, concebi-
da culturalmente como reconhecimento social de uma relação biológi-
ca. O ponto de vista comparativo, ao contrário, per mite dissociar a
paternidade biológica da família e do parentesco, percebendo inclusive
que o grupo social onde se dá a reprodução não constitui necessaria-
mente uma unidade de parentesco.
Nessa linha, podemos definir o casamento como um mecanismo,
regulado pelo tabu do incesto, que atribui responsabilidades e direitos
específicos sobre a prole de uma mulher a homens deter minados, que
mantêm em relação a ela os vínculos básicos e antagônicos de irmão e
marido, privilegiando um desses ter mos ou estabelecendo a comple-
mentaridade entre eles. Por isso mesmo, o parentesco não pode ser con-
cebido como uma extensão dos laços familiares, sendo ao contrário um
pressuposto que é manipulado na constituição dos grupos que podemos
denominar “famílias”.
Do ponto de vista antropológico, os sistemas de parentesco devem
ser concebidos como estruturas for mais que consistem em arranjos e
combinações de três relações básicas: as de descendência (entre pai e fi-
lhos e/ou mãe e filhos), de consangüinidade (entre irmãos) e de afinida-
de (criadas pelo casamento). O que caracteriza basicamente um sistema de
parentesco não é o conteúdo das relações que se estabelecem por meio
dele, mas a forma da combinação dessas relações. Nesse sentido, os sis-
temas de parentesco constituem propriamente uma linguagem, e sistemas
semelhantes podem ser encontrados em sociedades economicamente
muito diversas e, inclusive, com tipos de família diferentes.
Uma fonte importante da variabilidade dos sistemas de parentesco
está em que os vínculos entre mães e filhos podem ser concebidos como
essencialmente diferentes daqueles que ocorrem entre pais e filhos. No


limite, tanto um como outro (mas não ambos simultaneamente) podem
ser totalmente excluídos da definição de parentesco. Em sociedades
estritamente patrilineares, por exemplo, pode-se acreditar que a criança
seja for mada integralmente pelo sêmen do pai, não sendo a mãe mais
que um receptáculo no qual ela se desenvolve – o parentesco é então
traçado exclusivamente em linha paterna, sendo o lado materno carac-
terizado por uma relação de afinidade. Inversamente, em sociedades
matrilineares, há exemplos nos quais é negado qualquer papel masculi-
no na concepção. Nessas sociedades, não existe a figura de um pai, ape-
nas a do marido da mãe.
Um exemplo concreto deve contribuir para esclarecer os problemas
que estamos tentando levantar. Tomemos o caso da família trobriandesa,
justamente famosa na literatura pela riqueza da documentação e pelo
exotismo de uma organização tão diferente da nossa.6
Para um observador superficial, as famílias trobriandesas parecem
unidades muito semelhantes às nossas. As grandes aldeias circulares são
formadas por cabanas onde residem um homem, uma mulher e os filhos
pequenos. Os chefes, principalmente os de posição hierárquica elevada,
possuem várias mulheres, cada uma em residência separada. O comum
dos mortais, uma só.
Entretanto, essa visão familiar e compreensível se altera radical-
mente quando se constata que se trata de uma sociedade matrilinear.
Isso significa que a filiação, a herança e a sucessão se dão exclusivamen-
te em linha materna, isto é, entre tio materno e sobrinho.
Os trobriandeses constituem um dos casos (relativamente raros)
de sociedades que negam totalmente a participação do genitor masculi-
no no processo reprodutivo. Acredita-se que as crianças sejam concebi-
das por espíritos que vagam sobre as águas e penetram na vagina das
mulheres quando estas se banham. Relações sexuais nada têm a ver com
o caso, a não ser no sentido mecânico de que a perda da virgindade é
necessária para alargar a abertura vaginal a fim de permitir a penetração
do espírito-bebê (o que, aliás, segundo os trobriandeses, pode ser obti-
do por outros meios que não o coito). A relação com a mãe é ao mesmo
tempo física e espiritual, e todos os parentes em linha materna são pen-
sados em termos muito semelhantes ao que chamamos de “comunidade
de sangue”. Por outro lado, o pai é estritamente um afim e não um

. A análise da família trobriandesa é feita em Malinowski .

 Família e reprodução humana


parente – é o marido da mãe, algo correspondente à nossa noção de
padrasto.
A situação se complica muito quando se verifica que os trobrian-
deses são virilocais e praticam extensamente a exogamia de aldeias. Isso
quer dizer que a mulher se muda para a aldeia do marido. Como a cida-
dania na aldeia, assim como a propriedade da terra, é transmitida em
linha feminina, as crianças da aldeia são, na verdade, todas estrangeiras.
Sua aldeia é aquela onde mora seu tio. À medida que cresce, o jovem
gradualmente se desliga da aldeia do pai e cada vez mais se incorpora à
do tio, que é a sua, onde fixa residência quando se casa. As mulheres,
por sua vez, em geral se mudam da aldeia do pai para a do marido, isto
é, nunca moram em sua própria aldeia.
Essa sociedade é exemplar para a demonstração das possibilidades
de composição tão diversa dos princípios de parentesco, casamento e
organização do grupo doméstico, que permitem nitidamente perceber o
quanto uma realidade como a nossa constitui não uma solução natural,
mas um arranjo específico de princípios estruturais diversos e que,
como tipo, não pode ser generalizado.
Se compararmos nosso tipo de família com a trobriandesa, verifi-
caremos facilmente que suas diferenças derivam, basicamente, do fato
de o parentesco ser, nessa sociedade, exclusivamente matrilateral, de tal
forma que, se utilizar mos o termo “família” para cobrir o grupo do-
méstico, veremos que, no caso trobriandês, este não constitui uma uni-
dade de parentesco, embora seja uma unidade de reprodução. Mas se,
por outro lado, privilegiarmos no termo “família” a unidade de paren-
tesco, a família será o grupo for mado pelo irmão, a irmã e os filhos
desta, grupo que não é uma unidade de reprodução, nem residencial, e
nem portanto um grupo doméstico.
Há ainda casos diferentes. Tomemos como ilustração os índios
Mundurucu do Brasil, que vivem no rio Tapajós.7 Esses índios são for-
malmente patrilineares, reconhecendo clãs, fratrias e metades. São tam-
bém uxorilocais (o marido reside na aldeia da esposa) e os casamentos
tendem a ser exógamos em relação à aldeia. Além do mais, possuem em
grau extremamente desenvolvido a instituição da casa dos homens.
Assim, todos os homens e jovens tendem a passar quase todo o tempo
numa construção que nor malmente ocupa o centro da aldeia. Ao con-

. O estudo dos Mundurucu foi feito por Murphy ().


trário do que ocorre na maioria dos grupos que possuem essa institui-
ção, entre os Mundurucu não apenas os jovens solteiros, mas também os
homens casados, comem e dormem na casa dos homens.
As casas coletivas, por outro lado, são ocupadas permanentemen-
te pelas mulheres, suas filhas e seus filhos pequenos. Nelas, as esposas
são visitadas durante a noite pelos maridos que desejam ter relações
sexuais. Normalmente, as mulheres de uma casa são relacionadas entre
si na linha mater na, isto é, as casas são ocupadas por avós, mães, tias,
filhas, irmãs, sobrinhas e netas. Como se trata, entretanto, de uma
sociedade patrilinear, essa relação não é for malmente reconhecida em
termos de parentesco para a construção de grupos de descendência – ao
contrário, pelo próprio sistema de casamento e parentesco, as mulheres
de uma mesma casa pertencem necessariamente a clãs diversos e meta-
des opostas.
Nas casas, o grupo formado por uma mulher e seus filhos pequenos
ocupa um lugar delimitado; entretanto, cada casa possui uma despensa
comum, que reúne os produtos das roças, formalmente de propriedade
dos maridos dessas mulheres. Também há apenas um fogo, onde se cozi-
nha a refeição coletiva. Em geral, quando um homem volta da caça –
principal ocupação masculina –, entrega os animais que matou à sua
mulher, a qual, com a ajuda das demais e com a caça dos outros maridos,
soma-a aos recursos das roças e prepara a refeição. Pronta a comida,
parte dela é enviada à casa dos homens, onde, com a contribuição das
demais casas, integra o repasto masculino coletivo. Nas casas, as mulhe-
res repartem entre si e com as crianças o que sobrou.
A complementaridade econômica criada pela divisão sexual do
trabalho tende a se processar assim entre cada uma das casas e a coleti-
vidade dos homens, embora o grupo constituído por um homem, sua
mulher e seus filhos, não sendo nem uma unidade doméstica nem de
comensalidade, é a referência básica da ordenação e distribuição recípro-
ca entre produtos do trabalho masculino e do trabalho feminino.
Nesse sistema, que é a família? O grupo for mado pelo marido,
esposa e seus filhos é importante: constitui a unidade de reprodução,
herança e descendência, assim como momento da organização da redis-
tribuição entre produtos do trabalho feminino e masculino. O pai nor-
malmente desenvolve com os filhos relações afetivas muito intensas, que
constituem um importante fator de estabilidade do matrimônio. Mas esse
grupo não é uma unidade de produção, nem residencial, nem de comen-

 Família e reprodução humana


salidade. Por outro lado, as mulheres de uma casa, com seus filhos, cons-
tituem uma unidade residencial, de comensalidade, mas não uma unida-
de de reprodução nem de parentesco, e apenas parcialmente constituem
uma unidade econômica, uma vez que dependem da caça trazida pelos
maridos e trabalham em roças que também pertencem a estes, embora
formalmente. Nenhuma instituição especial une entre si os homens casa-
dos com as mulheres de uma mesma casa. Na verdade, temos subgrupos
que correspondem estruturalmente à nossa família nuclear, subordina-
dos no plano doméstico a uma família extensa de mulheres.
Os exemplos poderiam multiplicar-se indefinidamente.8
A análise dos casos apresentados revela que a dificuldade em ajus-
tá-los à nossa concepção de família reside no fato de eles dissociarem
diferentes princípios organizatórios que, em nossa cultura, aparecem
combinados. A variedade dos arranjos possíveis, constatados empirica-
mente, produz a necessidade de redefinir o conceito de família ou limi-
tar sua aplicabilidade à nossa sociedade. Tanto em um caso como em
outro, dissolve-se a aparência de naturalidade da família, concebida
como grupo conjugal, e do parentesco, entendido como extensão dos
laços familiais.
Para se preservar, portanto, a noção de família como conceito apli-
cável a outras sociedades, é fundamental ter em conta a ocorrência da dis-
sociação possível entre grupos domésticos, unidades de reprodução e
unidades de parentesco, e privilegiar um ou outro desses termos. Definir
a família como unidade de parentesco significa dar ao conceito uma refe-
rência formal, mais bem preenchida pelo termo introduzido por Lévi-
Strauss, átomo de parentesco (a). Acredito ser muito mais interessante
privilegiar, no conceito, sua referência aos grupos responsáveis pela
reprodução. Com efeito, em todas as sociedades humanas, as crianças nas-
cem e são incorporadas em grupos formados por parentes e afins, respon-
sáveis imediatos e diretos pelos cuidados de que elas necessitam. A ênfase
do conceito passa a recair sobre duas noções: a de grupo, segmento empi-
ricamente delimitável e socialmente reconhecido; e a de reprodução.
Nesse sentido, a família deve ser definida como instituição, no sen-
tido de Malinowski, isto é, em sua referência a um grupo social concre-
to, que existe como tal na representação de seus membros, o qual é

. Para uma versão mais abrangente da variabilidade das formas de família, consultar, entre
outros, Radcliffe-Brown & Forde , Fortune .


organizado em função da reprodução (biológica e social) pela manipu-
lação, de um lado, dos princípios formais da aliança, da descendência e
da consangüinidade e, de outro, das práticas substantivas da divisão
sexual de trabalho.9
Aliança e parentesco podem ser combinados de modo diverso,
dando origem a grupos estruturalmente diferentes. Famílias, enquanto
grupos, são constituídas por pessoas que mantêm entre si relações de
aliança, descendência e consangüinidade, mas não são necessariamente
as unidades básicas de parentesco. Por outro lado, sendo grupos de pro-
criação, são também grupos de consumo (embora não necessariamente
de produção) e tendem a organizar-se como unidades ou subunidades
domésticas e residenciais pelo menos durante parte de sua existência.
Nesse sentido, constituem o local privilegiado da incidência dos princí-
pios de divisão sexual de trabalho, em função dos quais se determina, em
grande parte, o grau de autonomia ou de subordinação das mulheres.
A definição de “família”, nessa acepção, leva-nos necessariamente
a explicar a sobreposição e a separação entre esse conceito e os de gru-
pos domésticos e unidades residenciais. Como já dissemos, famílias ten-
dem, pelo menos durante uma fase de seu ciclo de existência, a se con-
fundir e/ou integrar com grupos domésticos e unidades residenciais.
Entretanto, grupos domésticos, sendo unidades residenciais, tanto
podem restringir-se aos membros de uma família como se ampliar pela
inclusão de pessoas não-relacionadas por parentesco ou afinidade
(como escravos, serviçais, agregados de diferentes tipos). Podem, inclu-
sive, ser formados exclusivamente por pessoas não aparentadas (como é
o caso, por exemplo, de repúblicas estudantis), não sendo, nesse caso,
famílias. Finalmente, grupos residenciais podem não ser nem famílias,
nem grupos domésticos, como ocorre em grupos tribais com os jovens
que habitam a casa dos homens, mas comem com suas famílias e contri-
buem para a despensa doméstica.10
Sem confundir os conceitos, é necessário analisar, em cada caso,
sua sobreposição na definição de unidades sociais concretas, sendo
famílias aquelas capazes de articular relações de consangüinidade, afini-
dade e descendência em núcleos de reprodução social.

. Sobre o conceito de instituição, ver Malinowski : -ss e Durham .


. Sobre a distinção entre os conceitos, ver Bender  e Levy & Fallers .

 Família e reprodução humana


Sexo e família

Antes de analisar mais detidamente as transformações que se estão ope-


rando na instituição familiar, convém pensar um pouco melhor a rela-
ção entre padrões sexuais e família.
Durante toda a argumentação que desenvolvemos até agora, fala-
mos muito de reprodução e bem pouco de sexo – e isso não por acaso.
Embora ambas essas questões estejam obviamente relacionadas, pos-
suem certa autonomia relativa e, para a compreensão da família, a aná-
lise da reprodução é bem mais esclarecedora que a da sexualidade.
Com efeito, reconhecer que a função biológica da atração sexual é a
reprodução da espécie não deve ser confundido com a idéia de que
a reprodução seja a motivação individual e social para a atividade sexual:
do ponto de vista individual, a reprodução é um subproduto, freqüente-
mente indesejado, da atividade sexual, que obedece a compulsões pró-
prias. Em casos extremos, como o dos trobriandeses, a sociedade sequer
reconhece a relação entre os dois fenômenos, embora em muitas outras
seja exatamente essa relação o objeto privilegiado da regulamentação.
Poderíamos mesmo dizer que as elaborações culturais construí-
das sobre os impulsos sexuais têm basicamente em conta sua função de
prazer, cuja conciliação com a função de reprodução não é nem direta
nem fácil. Nesse caso, a comparação tantas vezes feita entre sexo e ali-
mentação é ilustrativa. Sabemos todos que a ingestão de alimentos é
indispensável à vida do organismo, mas as pessoas (e também os ani-
mais) não comem para se manter em boa forma física (a não ser faná-
ticos e atletas). Comem porque sentem desejo e a comida é um prazer
e, por isso mesmo, às vezes ingerem substâncias perigosas ou mesmo
nocivas. Assim, em todas as sociedades, há elaborações culturais fre-
qüentemente muito refinadas, tanto do preparo do alimento quanto
das condições sociais de seu consumo, que contribuem simultanea-
mente para aumentar e prolongar o prazer e para ordená-lo e atribuir-
lhe significados, transfor mando-o em instrumento da criação de vín-
culos sociais – basta lembrar a imensa variedade e amplitude das
restrições alimentares, dos banquetes rituais e da importância univer-
sal da comida nas festas de todos os tipos. Com o sexo se passa algo
semelhante: a cultura cria for mas de refinar, aumentar e prolongar o
prazer; ao mesmo tempo, através de construções simbólicas extre-
mamente complexas, estabelece restrições e direcionamentos que o


transfor mam em suporte de relações sociais independentes, pelo me-
nos em parte, de sua função reprodutiva.
Como notou Lévi-Strauss, com muita penetração, “entre todos os
instintos, o sexual é o único que, para se definir, necessita do estímulo
do outro” (Lévi-Strauss : ), e constitui, portanto, simultanea-
mente um transbordamento da cultura no seio da natureza e, na própria
natureza, um fragmento da vida social. Por isso mesmo, aparece como
campo privilegiado da passagem do “estado de natureza” para o “estado
da cultura”.
Mas Lévi-Strauss lembra igualmente a dupla “exterioridade” da
vida sexual em relação à sociedade, pois exprime, mais que qualquer
outra, “a natureza animal do homem e atesta, no seio mesmo da huma-
nidade, a sobrevivência mais clara dos instintos” (id. ibid.). Além do
mais, fundamenta-se em desejos individuais, que sabemos serem os que
menos respeitam as convenções sociais.
Poderíamos completar essas observações de Lévi-Strauss notando
que, exatamente por exigir a presença (mesmo que apenas simbólica) de
um outro para sua satisfação, a manifestação da sexualidade traz também
em si, implicitamente, a contínua possibilidade de tentar transfor mar
esse outro em mero objeto ou instrumento do prazer individual. Por isso
mesmo, talvez, as relações sexuais apresentem o constante perigo de
resvalarem para o individualismo a-social, e carreguem sempre a possi-
bilidade da violência interpessoal direta.
No caso das manifestações da sexualidade e de sua constante possi-
bilidade de perturbação das relações sociais, deve-se lembrar o fato muito
original das fêmeas da espécie humana não possuírem um período mar-
cado de cio (oestrus). Nas outras espécies, em que o cio ocorre, as fêmeas
são simultaneamente atraentes e receptivas aos machos durante períodos
muito limitados. Durante a maior parte do tempo ficam, por assim dizer,
assexuadas. Na espécie humana, ao contrário, o sexo se apresenta como
possibilidade constante e permanente de relacionamento interindividual,
e daí seu caráter simultâneo de poderoso instrumento de vínculos sociais
duradouros e de constante ameaça às regras preestabelecidas.
De qualquer modo, se a vida familiar implica sempre alguma
forma de controle da sexualidade, é fundamental reconhecer que nunca
se restringe a esse aspecto. Inversamente, a questão da sexualidade
transborda de muito a problemática da família, e não é possível confun-
dir integralmente as duas questões.

 Família e reprodução humana


Essa observação é especialmente importante na análise das trans-
formações por que está passando a família em nossa sociedade, uma vez
que essa instituição esteve, entre nós, estreitamente ligada a for mas
muito rígidas de regulamentação sexual que tenderam a impedir o reco-
nhecimento da separação relativa entre esses problemas. Por isso
mesmo, toda a discussão sobre a questão da sexualidade afeta de modo
muito direto e imediato nossa concepção de família.

O modelo e a realidade empírica

Na análise que desenvolvemos até este momento, identificamos fre-


qüentemente, para maior facilidade de redação, a categoria “família”,
tal como é definida culturalmente em nossa sociedade, com o modelo da
família conjugal ou nuclear. Resta analisar essa identificação.
Qualquer recenseamento de população em nossa sociedade revela-
rá necessariamente que, na composição das unidades domésticas, as
exceções podem ser quase tão numerosas quanto os casos que obedecem
ao modelo de família nuclear. Essas exceções podem ser de muitos tipos.
Temos aquelas em que o grupo doméstico é maior que a família nuclear,
incluindo quer outros parentes (na maioria das vezes, membros da famí-
lia de origem de um dos cônjuges), quer agregados de diferentes tipos
(afilhados, amigos, pensionistas ou mesmo serviçais). Temos também os
casos em que o grupo é menor que a família nuclear: casais sem filhos,
por exemplo, irmãos solteiros sem pais. Mas o caso mais comum de
família assim incompleta é o das famílias matrifocais, isto é, for madas
basicamente por mães e filhos e nas quais a presença de um cônjuge-pai
tende a ser temporária e instável. Sabemos que esse tipo de família é
muito comum nas camadas pobres da população. Finalmente temos os
casos, muito complexos e cada vez mais freqüentes, resultantes da disso-
lução de casamentos anteriores, e onde a relação do casal com seus pró-
prios filhos, filhos dos outros casamentos de um ou de ambos os cônju-
ges e a relação entre esses diferentes filhos entre si podem dar origem a
arranjos muito diversos (e freqüentemente muito conflitivos).
É exatamente a variedade e a amplitude dessas exceções que tem
criado muitos problemas na definição das formas de família que seriam
características de nossa sociedade, além de freqüentemente levantarem
a questão da desagregação da família conjugal e de sua progressiva


destruição entre nós. Quanto a isso, creio ser fundamental distinguir
entre três tipos de problemas. Em primeiro lugar, o das exceções ao mo-
delo de família e de sua elasticidade. De outro, a emergência de modelos
alternativos. E, finalmente, o desaparecimento da instituição enquanto tal.
Para se entender a natureza dessa distinção, é preciso que se deixe
bem claro o que se quer dizer com a afir mação de que a família é um
modelo, ou padrão cultural, afirmação essa que está ligada à concepção
de instituição que definimos anterior mente. Partindo da concepção de
que a vida social é organizada por meio de regras culturalmente elabo-
radas, os grupos sociais concretos podem ser vistos como construções
sociais específicas que utilizam modelos culturais para resolver proble-
mas da vida coletiva. Nas palavras de Geertz, padrões culturais são
simultaneamente modelos de e modelos para o comportamento social,
isto é, são representações de ordenações presentes na vida social e orde-
nações para a vida coletiva (Geertz ). Como modelos, nesse duplo
sentido, em primeiro lugar são mutáveis; em segundo lugar, são cons-
truções sintéticas, nas quais a realidade social jamais cabe por inteiro.
Por isso mesmo, a existência de inúmeras exceções não significa necessa-
riamente a contestação da regra; pode representar apenas sua aplicação
maleável para per mitir a solução de problemas diversos. No que diz
respeito aos modelos que regulam a vida sexual e a procriação, tenho
inclusive a suspeita de que a dificuldade de seguir o modelo ou a necessi-
dade de acomodar um número muito elevado de exceções caracteriza
não apenas a nossa, mas a grande maioria das sociedades. Parece que,
nesse campo, estamos lidando com um tipo de comportamento particu-
larmente renitente às imposições sociais.
Nos casos das sociedades primitivas que analisamos aqui, citamos
apenas o modelo, cujo funcionamento depende, entre outras coisas, da
observância de proibições específicas de relações consideradas incestuo-
sas e de regras muito rígidas de residência. Entretanto, a verdade é que
em todas essas sociedades as regras são constantemente quebradas, e
existe flexibilidade suficiente para incorporar grande número de exce-
ções. Assim, o casamento geralmente pressupõe fidelidade conjugal. Em
todas a sociedades ocorre a infidelidade. É verdade que o grau de tole-
rância para com esse fenômeno, assim como a freqüência de sua ocor-
rência, é culturalmente variável. Mas mesmo a relativa tolerância para os
casos de infidelidade não significa a inoperância ou o abandono da regra,
nem que a infidelidade não crie problemas graves e de difícil solução.

 Família e reprodução humana


O mesmo se pode dizer de relações incestuosas em menor ou maior
grau, de regras de residência, de formas de cooperação, da observância
dos padrões da divisão sexual do trabalho e assim por diante. Regras
culturais certamente modelam o comportamento, mas nunca o determi-
nam de modo absoluto. Uma coisa é a regra; outra é sua aplicação a casos
específicos que nunca se enquadram completamente no modelo.
Por isso mesmo, embora a diversidade e o grau de variação da
composição de famílias concretas sejam um problema fundamental
da investigação, a divergência empírica em relação ao modelo cultural
não pode ser tomada diretamente como indício de sua inoperância,
falência ou transformação. É necessário, em primeiro lugar, analisar em
que medida as variações correspondem a adaptações ou extensões do
modelo, e até que ponto implicam sua contestação. O que quero enfati-
zar com essa observação é que o conceito de família, embora se refira a
grupos sociais concretos, remete prioritariamente ao modelo cultural e
à sua representação. A análise, por outro lado, move-se sempre no campo
da utilização do modelo na organização dos grupos sociais e do com-
portamento coletivo, dentro da dinâmica que inclui freqüentemente a
própria alteração dos modelos existentes.
Em segundo lugar, é necessário lembrar que, na análise do próprio
modelo, podemos distinguir entre a estrutura formal (que define a com-
posição do grupo) e a organização das relações sociais, que se dá em
função dos padrões de divisão sexual (e etária) do trabalho, uma vez
que existe certo grau de autonomia entre esses dois níveis. Essa reflexão
parece-me particular mente importante na análise das transfor mações
por que está passando a família em nossa sociedade, transformações estas
que se referem basicamente a alterações da divisão sexual do trabalho,
podendo afetar em grau diverso a estrutura da instituição.
Em nossa sociedade, o modelo parece ser bem claro: a família é a
unidade constituída pelo marido, a mulher e seus filhos, que formam um
grupo doméstico.
Talvez seja necessário abrir um parêntese para lembrar rapida-
mente algumas características estruturais básicas desse modelo. Em pri-
meiro lugar, ele implica um ciclo de desenvolvimento específico do
grupo doméstico que se conclui pela fragmentação sucessiva provoca-
da pelo casamento dos filhos. Em segundo lugar, há que ressaltar que,
nesse tipo de família, com parentesco bilateral, a relação sororal é total-
mente sobrepujada pela relação conjugal, fortalecida ainda mais na


medida em que o papel do pai é identificado com o do genitor (pai bio-
lógico). Muitos padrões sexuais associados a esse tipo de família, espe-
cialmente a amplitude dos controles tradicionalmente exercidos sobre a
sexualidade feminina, estão relacionados a essa necessidade de determi-
nar a paternidade física. Finalmente, como nesse sistema os indivíduos
adultos pertencem a duas famílias distintas, a de origem e a de procria-
ção, o sistema de parentesco-afinidade pode ser pensado como relações
entre famílias. Por isso mesmo, o termo “família” pode significar, meto-
nimicamente, toda a rede de parentesco e afinidade.
Retomemos agora o problema do modelo. Dada a própria nature-
za do modelo de família, que é simultaneamente unidade mínima e
fadado à fragmentação progressiva, casais ou viúvos idosos cujos filhos
já casaram, crianças órfãs ou jovens migrantes, são na verdade frag-
mentos de famílias, freqüentemente incapazes – em especial quando a
renda é muito pequena – de constituírem unidades residenciais autôno-
mas. Agregam-se então a famílias de parentes ou amigos, onde podem
contribuir como produtores e beneficiar-se do esforço coletivo. Alter -
nativamente, podem constituir grupos domésticos heterogêneos, que
não obedecem ao padrão familiar. Tanto num caso como no outro, a
existência dessas exceções, mesmo freqüente, pode não afetar em nada
a dominância do modelo de família que continua a ser o ideal e a refe-
rência básica na ordenação do comportamento e padrão ao qual se
reverte sempre que possível.
Creio que o mesmo talvez se aplique a muitas das chamadas famílias
matrifocais, tão comuns nas camadas de baixa renda. Como já mostrei
em outro trabalho (ver cap. , supra), esse tipo de família, sem provedor
masculino estável, pode ser antes uma demonstração da impossibilidade
de organizar a existência em ter mos mínimos aceitáveis do que, na ver-
dade, um modelo alternativo de família.
Isso tudo se refere à estrutura do modelo. No que diz respeito à
divisão sexual do trabalho pela qual se realizam as relações entre mari-
do e mulher, ocorre algo semelhante. O modelo tradicional de divisão
sexual do trabalho estipula que o trabalho remunerado é função do
marido, chefe da família, que provê seu sustento. Cabe à mulher a res-
ponsabilidade pelo trabalho doméstico e pelas crianças. Sabemos todos
que, apesar disso, as mulheres sentem-se cada vez mais forçadas ou
motivadas a buscar ocupações remuneradas dentro ou fora de casa. Na
medida, entretanto, em que essa ocupação é definida como “ajuda” ao

 Família e reprodução humana


marido, e portanto subordinada e meramente complementar no que diz
respeito à manutenção da casa, preserva-se integralmente a validade do
modelo tradicional, que assim conserva totalmente sua força na defini-
ção da posição da mulher na sociedade.
O que queremos dizer é que exceções ao modelo, mesmo freqüen-
tes, não significam necessariamente nem sua contestação nem a emer-
gência de modelos alter nativos. É óbvio, entretanto, que nenhum mo-
delo pode preservar sua legitimidade se for de todo inoperante. Por isso
mesmo, não estamos afirmando que a contestação do modelo não exista,
nem que não estejam sendo propostos padrões alter nativos de divisão
sexual do trabalho. Mas cabe localizá-los corretamente.

A transformação do modelo familiar

Tentamos mostrar até agora que a divisão sexual do trabalho nas socie-
dades humanas está intimamente vinculada à elaboração cultural do
fenômeno da reprodução biológica; que a reprodução tende a se dar em
grupos sociais específicos, as famílias, estruturados pela manipulação
dos princípios da aliança e do parentesco e organizados inter namente
pela divisão sexual do trabalho. Resta agora tentar analisar o modo pelo
qual essa questão está sendo colocada em nossa sociedade.
Todas as análises clássicas sobre a família em nossa sociedade têm
apontado as transfor mações que resultaram da perda de suas antigas
funções de unidade de produção.11 Com a emergência do movimento
feminista, entretanto, novos problemas vêm sendo privilegiados, espe-
cialmente os referentes à transfor mação da divisão sexual do trabalho
associada à dominação masculina.12
A emergência de uma contestação explícita da assimetria da divisão
sexual do trabalho, nitidamente percebida como forma de dominância
masculina, é um fenômeno muito específico de nossa sociedade. Isso
certamente não é acidental e deve ser relacionado, como têm demonstra-
do todos os estudiosos do assunto, ao desenvolvimento do capitalismo.
Com efeito, é apenas nesse modo de produção que o trabalhador
se transfor ma em vendedor de força de trabalho. Para um sistema que

. Para uma crítica dessa posição, consultar cap.  desta coletânea.
. Sobre esse processo, ver Franchetto et alii .


consome força de trabalho, o sexo do trabalhador, pela primeira vez na
história, passa a ser irrelevante. Por isso mesmo permite (ou promove)
a inclusão da mulher no mercado de trabalho impessoal, na categoria
indiferenciada de “indivíduo portador de força de trabalho”, e constitui
a fundamentação essencial da percepção de uma igualdade e uma indi-
ferenciação absolutas entre os sexos. Nesse sistema, a discriminação
sexual no emprego e especialmente no salário se torna absurda e passa a
ser percebida como ilegítima. Ela apenas se mantém na medida em que
instituições exter nas (e anteriores) ao sistema produtivo sustentam e
legitimam essa instituição. E isso porque a profunda revolução na orga-
nização do trabalho provocada pelo capitalismo se deu através de uma
separação radical entre a produção social, organizada pelos mecanismos
de mercado, e a reprodução dos homens, que se manteve em esfera pró-
pria, cada vez mais privada.
Efetivamente, a industrialização não apenas divorciou socialmente
a produção da reprodução, mas separou essas duas esferas da atividade
social em espaços físicos muito distintos e distantes, criando desse modo
uma forma específica de isolamento feminino na vida doméstica. Tem-
se enfatizado muito, na bibliografia sobre a mulher, o fato de o capitalis-
mo ter operado essa cisão entre o público e o privado e, excluindo a
mulher da esfera pública, encerrando-a no âmbito da casa, ter promovi-
do sua subordinação. Mas acredito que essa constatação apresenta ape-
nas uma face da moeda. O que ocorreu de fato foi a inclusão simultânea
da mulher nas duas esferas, a pública e a privada, de modo contraditório.
Dessa maneira, a condição feminina passou a sofrer de uma ambigüidade
(ou contradição) fundamental: a percepção de sua igualdade enquanto
indivíduo na esfera do mercado e de sua desigualdade enquanto mulher,
ancorada na esfera doméstica da reprodução.
Aqui, cabe mais uma vez lembrar que a distinção entre o público e
o privado-doméstico, referidos respectivamente ao homem e à mulher,
constitui uma categoria cultural muito comum nas sociedades primiti-
vas e, na nossa, certamente é anterior ao capitalismo.13 Mas nas socieda-
des não capitalistas, a oposição homem-mulher recorta uniformemente
todas as esferas da vida social, e a distinção entre público e doméstico
não se dá em ter mos de uma separação radical (física e social) entre a

. O que não significa negar a existência de uma forma específica de domesticidade intimis-
ta, própria da família burguesa, conforme Habermas .

 Família e reprodução humana


produção dos bens materiais (ou do trabalho social), de um lado, e
reprodução dos homens, do outro. Não só o grupo doméstico constitui
freqüentemente importante unidade de produção, mas também existem
muitas vezes for mas diversas de trabalho coletivo com participação
diferenciada de homens e mulheres, fazendo com que uma complemen-
taridade necessária entre papéis masculinos e femininos permeie tanto a
vida pública como a privada. Sociedades há, também, como é o caso de
algumas civilizações mediterrâneas, especialmente as afetadas pelo Islã,
onde o enclausuramento da mulher no âmbito da casa é (pelo menos em
certas camadas sociais) praticamente total. Nesse caso, sua posição é
definitivamente subordinada, mas não contraditória.
Em nossa sociedade, ao contrário, ao mesmo tempo em que per -
manece a conotação feminina do espaço doméstico, a tendência à elimi-
nação da divisão sexual do trabalho na esfera produtiva dominada pelo
capital remodela toda a vida pública, na qual, de modo cada vez mais
nítido, homens e mulheres se enfrentam como indivíduos aparentemen-
te livres e iguais. Nessas condições, suas diferenças aparecem apenas em
função de atrações sexuais puramente individuais.
De certo modo, pode-se dizer que essa transformação tende a libe-
rar o sexo de seus controles tradicionais, vinculados ao contexto da
divisão sexual do trabalho e da reprodução, para fazê-lo aparecer como
relação entre indivíduos livres iguais, regulada pelo prazer. Por isso
mesmo, talvez, tenha liberado também as tendências a transfor mar o
“outro” em objeto e à utilização da violência na busca do prazer pessoal.
É verdade que isso ocorre apenas como tendência, uma vez que há “con-
taminação” constante de valores e atitudes gerados na esfera doméstica,
onde continua a imperar uma divisão sexual do trabalho organizada em
torno da reprodução e onde ser homem ou mulher não se restringe aos
papéis exclusivamente sexuais.
É em termos dessa dicotomia que se pode entender o desenvolvi-
mento da questão da família em nossa sociedade e, inclusive, a impor-
tância crucial que nela assume o problema da posição da mulher e do
controle da sexualidade.
No início desse processo, com a introdução do sistema fabril, o
problema se coloca de modo muito específico: não como reivindicação
de igualdade da mulher, mas como necessidade de uma legislação pro-
tetora que regulamentasse o trabalho da mulher e da criança, uma vez
que toda a organização de reprodução na classe trabalhadora estava


sendo drasticamente desestruturada pela desenfreada exploração da
força de trabalho. Mas, logo em seguida, a questão da igualdade come-
ça a ser apresentada como reivindicação das mulheres, em função da
luta pelo reconhecimento de seu direito ao voto e à propriedade: isto é,
de seu acesso à cidadania. Ingressar na cidadania significa exatamente
ser reconhecido como indivíduo, portador de direitos definidos em fun-
ção de leis gerais para toda a sociedade, isto é, participar da igualdade
formal que constitui o cerne da sociedade criada pelas revoluções bur-
guesas. O outro grande problema do movimento feminista foi e é a luta
contra a discriminação no emprego e no salário, isto é, o reconhecimento
social de uma realidade criada no âmbito econômico.
Entretanto, ocorre que, dada a dissociação entre o público e o
doméstico, a igualdade no nível do emprego cria o fenômeno da dupla
jornada de trabalho e gera, portanto, nova desigualdade (ou aumenta a
desigualdade anterior), promovendo a contestação da divisão sexual do
trabalho que se mantém na esfera doméstica. Além do mais, a tendência
a uma reformulação da divisão sexual do trabalho na esfera doméstica,
na medida em que é influenciada pelo modelo de igualitarismo indivi-
dualista criado na esfera pública, pode aparecer como ameaça de des-
truição da família e, com ela, do único grupo primário estruturado e
permanente que parece impedir a dissolução das relações interpessoais
no individualismo anônimo da sociedade de massa. Com efeito, a famí-
lia, último reduto a ser atingido pela tendência individualizante própria
do desenvolvimento de nossa sociedade, se estabeleceu nesse período
como grupo básico de convivência e solidariedade; além do mais, fir -
memente estruturada no âmbito da vida privada, constitui-se também
como refúgio contra o anonimato do mercado, o autoritarismo do Esta-
do e, contraditoriamente, como espaço de liberdade.14
Como se vê, o problema todo é muito complexo pois, envolvendo
o sexo, o trabalho e a reprodução, recobre tanto a questão do desenvol-
vimento do individualismo como a natureza da distinção entre público
e privado em nossa sociedade.
De um lado, a problemática se desdobra sob o prisma da sexuali-
dade que, como apontamos anteriormente, aparece como campo privi-
legiado de afir mação de uma igualdade individual. Por isso mesmo,
nesse campo, as incursões do individualismo se manifestam de modo

. Um tratamento mais detalhado dessa questão pode ser encontrado no cap. , supra.

 Família e reprodução humana


especialmente nítido, na medida em que se nega legitimidade a qualquer
controle sobre a sexualidade que não seja determinado exclusivamente
pelo indivíduo em função de seu próprio prazer. A promoção da libera-
ção da sexualidade, nesses termos, está associada à contestação da famí-
lia, na medida em que essa instituição foi e é, em nossa sociedade, a
geradora e a legitimadora de padrões muito rígidos de controle sexual.
Aliás, essa tendência é reforçada pelo aparecimento de técnicas eficazes
de controle da natalidade que permitem dissociar, na prática, a sexuali-
dade da reprodução. Nessa linha, o movimento feminista se vincula,
recentemente, ao movimento homossexual, num ataque conjunto aos
padrões convencionais de relação entre os sexos. Tanto em um caso
como em outro, portanto, o que está em jogo é a subordinação da sexua-
lidade à reprodução e, de modo mais amplo, a legitimidade de qualquer
controle social sobre a sexualidade.
O problema da família se recoloca, entretanto, cada vez que se rea-
presenta a questão dos filhos e da responsabilidade social associada à
maternidade e à paternidade.
São diversas as tentativas de solucionar o problema da reprodução
mantendo-se a mais ampla liberdade sexual e igualdade entre os sexos.
Uma das mais radicais consiste na proposta de abolir integralmen-
te o vínculo conjugal, negando a qualquer homem o direito (e a respon-
sabilidade) sobre a prole da mulher. Exige-se, em contrapartida, uma
assistência estatal por meio de creches e outras instituições que liberem
a mulher para o mercado de trabalho. O aspecto contraditório dessa
proposta é que ela recria uma absoluta desigualdade entre os sexos, exi-
mindo (ou excluindo) totalmente os homens de um papel social na
reprodução, que passa a ser responsabilidade exclusiva das mulheres,
sob o controle de sua vontade individual. As relações entre homens e
mulheres tenderiam assim a se estabelecer apenas em função de atrações
momentâneas, desde que nenhuma tarefa comum, nenhuma comple-
mentaridade necessária, seria imposta socialmente.
Outra tentativa de dissolução dos vínculos conjugais pode ser
encontrada dentro do movimento hippie, nesse caso associada a uma crí-
tica ao produtivismo individualista e ao consumismo próprio de uma
sociedade de mercado. Entretanto, como se valoriza simultaneamente a
liberdade individual, as soluções se encaminham no sentido esponta-
neísta de uma comunidade voluntária, que assumiria a responsabilidade
pelas crianças, mantendo-se, entretanto, seu vínculo preferencial com a


mãe. Nas comunidades em que se valoriza altamente a preservação da
liberdade sexual, pode-se criar alguma coisa semelhante ao casamento
grupal que os antigos antropólogos evolucionistas imaginavam ser um
estágio anterior ao matriarcado. Entretanto, comunidades tendem a
existir enquanto unidades altamente estruturadas e são incompatíveis
com o pleno exercício da liberdade individual. A dificuldade da solução
hippie prende-se exatamente à extrema instabilidade dessas comunida-
des, que deriva de seu caráter não coercitivo e que acarreta uma mudan-
ça constante em sua composição. Nesse fluxo, o que acaba se recriando
é o grupo formado pela mulher e seus filhos, reintroduzindo-se a desi-
gualdade básica entre os sexos apontada anteriormente.
Outra tentativa de solução comunitária é a dos kibutzin, nos quais
se mantêm vínculos conjugais (facilmente desfeitos e refeitos), mas as
crianças ficam sob a responsabilidade coletiva da comunidade, através
de instituições especializadas no cuidado de crianças de diferentes ida-
des. No caso dos kibutzin, pretende-se eximir (pelo menos parcialmen-
te) tanto homens como mulheres da responsabilidade pessoal para com
os filhos, fazendo-se, entretanto, que assumam coletivamente a respon-
sabilidade para com as crianças da comunidade. Promove-se assim, em
alto grau, a igualdade entre homens e mulheres, mas a estrutura comu-
nitária dos kibutzin restringe drasticamente a liberdade individual den-
tro de um grupo altamente estruturado e coercitivo. Essa proposta cole-
tivista implica, por outro lado, a segmentação da sociedade nessas
unidades comunitárias, e encontra enor me dificuldade de implantação
como modelo para toda a sociedade, profundamente marcada pela
valorização da liberdade individual.
Finalmente, temos propostas que se encaminham no sentido de
eximir ambos os sexos da responsabilidade individual para com a
prole, mas sem prever qualquer responsabilidade grupal direta. Nessa
linha, seria o Estado, entidade coletiva impessoal, que se encarregaria
de cuidar das crianças, e tanto homens como mulheres seriam total-
mente liberados para a produção social e o sexo. Teríamos assim, tam-
bém contraditoriamente, a total coletivização das crianças e a completa
individualização dos adultos, situação na qual a utopia libertária de
Reich tende a resvalar para o “admirável mundo novo” de Huxley, que
é a realização completa da sociedade de massa.
Todos esses exemplos são, obviamente, utopias radicais que, exa-
tamente por isso, demonstram claramente as tendências e interesses

 Família e reprodução humana


opostos em conflito: individualismo, igualitarismo, coletivismo comu-
nitário e estatismo.
Analisando-se o conjunto dessas propostas que chamei de radicais,
nota-se claramente que todas elas lidam com a contradição básica da
condição feminina apontada anteriormente, espelhada no campo da se-
xualidade. No conjunto da sociedade, esse espelhamento se dá numa
dissociação: de um lado, as relações sexuais aparecem como lugar privi-
legiado para a manifestação do igualitarismo individualista, o qual
recusa qualquer regulamentação que não a maximização do prazer pes-
soal; de outro, são remetidas ao contexto da reprodução e da responsa-
bilidade para com a prole, privilegiando a subordinação do indivíduo
aos interesses coletivos da família.
As soluções “radicais” privilegiam a participação igualitária da
mulher no mercado de trabalho e a liberação de sua sexualidade, e ten-
tam resolver a contradição dissolvendo o modelo de família conjugal:
destruindo o vínculo conjugal e dissociando um dos parceiros sexuais
ou ambos da responsabilidade para com a prole.
Retomemos um pouco a perspectiva comparativa. Sabemos que
grande número de culturas permite um grau de liberdade sexual (femi-
nina) muito maior que aquele que constituiu, no passado, a norma tra-
dicional em nossa sociedade, sem que isso implique a destruição da
família ou a exacerbação do individualismo.
Aqui, porém, duas observações se fazem necessárias: em primeiro
lugar, nessas sociedades, a liberdade sexual, quando existe, freqüente-
mente constitui uma fase juvenil que deve anteceder o casamento e ces-
sar (ou pelo menos exercer-se com discrição) depois dele. Em segundo
lugar, a generalização da infidelidade tende sempre a ser fator de deses-
tabilização do grupo conjugal, e por isso mesmo é mais tolerada em
sociedades matrilineares, nas quais a responsabilidade pela prole está ou
pode ser investida no irmão da mãe (ou seu substituto); ou, alternativa-
mente, onde o grupo doméstico é extenso e matrilocal. Tanto em um
caso como no outro, a troca de parceiros conjugais não afeta de modo
tão profundo a estabilidade do grupo responsável pelas crianças.
Entretanto, essas duas possibilidades não se apresentam como
opções concretas para nossa sociedade. É verdade que a família, como
qualquer outra instituição, se altera historicamente em sentidos muitas
vezes imprevisíveis. Entretanto, essas alterações não se dão em função de
um planejamento racional, mas estão condicionadas a concepções e valo-


res ancorados na tradição histórica. Especialmente no caso da família, a
legitimidade do modelo está fundamentalmente presa a experiências
infantis muito profundas que mobilizam intensa carga afetiva. E, entre
nós, toda a concepção de família está demasiado presa ao vínculo conju-
gal e a certa concepção de pater nidade, tor nando muito difícil a substi-
tuição dessas relações por outras, como as entre irmão e irmã. Mesmo
porque uma solução nesse sentido dificilmente resolveria o problema
básico, que é o da manifestação do individualismo no grupo familiar.
Por outro lado, há que reconhecer que as novas técnicas de contro-
le da natalidade alteraram profundamente os parâmetros dentro dos
quais o problema foi tradicionalmente colocado. A possibilidade de di-
vorciar de modo completo a sexualidade da reprodução abriu, para
amplos setores da população feminina, a possibilidade de evitar de modo
per manente a mater nidade, sem prejuízo da vida sexual. Ao mesmo
tempo, ocorreu o aumento da oferta, no mercado, de ampla gama de pro-
dutos e serviços que antes só podiam ser obtidos no âmbito da economia
doméstica fundada na divisão sexual do trabalho. Desse modo, é possível
a uma parcela crescente de adultos, homens e mulheres, utilizando técni-
cas anticoncepcionais ou preferindo a sexualidade homossexual, colocar-
se à margem dos problemas de reprodução, sentindo-se livres para desen-
volver formas de privacidade e domesticidade não familiais.
A reprodução, entretanto, embora colocada como opção, recoloca
per manentemente a questão da família. Na medida em que persiste a
valorização ou reconhecimento da paternidade, persiste também, de for-
ma subjacente ou explícita, a valorização do modelo dos grupos conju-
gais, cuja preservação está associada à manutenção da dicotomia público-
privado. Nessa perspectiva, a contestação consiste basicamente, de um
lado, na tendência a dissolver o rígido monopólio da sexualidade femini-
na por parte do marido, tendência essa amparada no desenvolvimento
das técnicas anticoncepcionais; de outro, na tentativa de encontrar mode-
los de divisão sexual do trabalho na esfera doméstica que sejam mais
igualitários e permitam simultaneamente a inserção da mulher no merca-
do de trabalho. Nessa tentativa recorre-se com freqüência à esfera públi-
ca do Estado para assumir parcialmente a responsabilidade pelas crianças,
através de creches e outras instituições que não eliminem nem a respon-
sabilidade nem os direitos dos casais sobre os filhos. Persiste, entretanto,
o conflito básico entre, de um lado, a livre expressão da individualidade
tanto na carreira profissional como na vida amorosa, que enfraquece o

 Família e reprodução humana


vínculo conjugal, e de outro a responsabilidade conjunta em relação aos
filhos comuns, que exige seu fortalecimento.
A dificuldade básica dessa proposta está em que ela pode, simulta-
neamente, sobrecarregar e enfraquecer a relação conjugal. A competi-
ção individual de cada cônjuge no mercado de trabalho estabelece para
cada um deles, separadamente, um conflito entre o tempo dedicado às
tarefas domésticas e o tempo do trabalho e do lazer, que pode refletir-
se numa luta inter na à família no sentido de fazer com que o “outro”
assuma uma carga doméstica maior. Na inexistência de novos modelos
estáveis, o estabelecimento de padrões de divisão do trabalho na famí-
lia fica na dependência do confronto interpessoal entre os cônjuges,
criando uma enor me área de conflito aberto possível. Por outro lado,
como se valorizam e se exigem, simultaneamente, o apoio emocional e
o prazer sexual recíprocos, a relação conjugal recebe uma sobrecarga
de exigências.
A impossibilidade de satisfazer todas as condições necessárias à
manutenção da parceria conjugal igualitária encontra solução na cres-
cente aceitação social do divórcio, que acarreta a fragmentação da
família original e a constituição de outra, com um novo casamento.
Mantendo-se a responsabilidade e os direitos de ambos os ex-cônjuges
em relação aos filhos do casamento desfeito – única solução igualitária
possível – os casamentos subseqüentes enfrentam novas formas de ten-
são: relações entre os ex-cônjuges, entre os cônjuges e os filhos do
casamento anterior de um ou de ambos os parceiros, entre filhos de ca-
samentos distintos e assim por diante. Todas essas relações, potencial-
mente muito conflitivas, devem ser estabelecidas sem a ajuda de mo-
delos culturais definidos, a não ser a postulação da ilegitimidade de
qualquer forma de coerção, exigindo processos muito penosos de aco-
modação interindividual.
A verdade é que a sociedade não elaborou novas soluções consen-
suais para nenhum desses problemas. O que ocorreu foi a abertura de
um espaço no qual estão sendo experimentadas novas formas para equi-
librar a vida pública e a privada, a participação no mercado de trabalho
e na produção doméstica de valores de uso, a liberdade individual e a
responsabilidade para com os filhos, a igualdade e a diferenciação de
papéis. Pode-se dizer, entretanto, que a própria intensidade dos confli-
tos gerados em torno e dentro da família constitui, de certo modo, con-
firmação de sua importância e vitalidade.


Com respeito à per manência e vitalidade da família, cabe uma
observação. Muito se tem dito a respeito da redução da família em
nossa sociedade. Realmente, tem havido nítida tendência à diminuição
do número de filhos e, nesse sentido, a família tem-se tornado menor.
Mas paralelamente tem-se criado também, especialmente no Brasil,
certa mitologia em torno do desaparecimento de uma pretensa família
patriarcal extensa e sua substituição pela família nuclear ou conjugal.
Na verdade, o modelo de família conjugal é muito antigo e difundido
tanto em nossa sociedade como na européia, com exceção da popula-
ção propriamente camponesa nesta última. Com isso quero referir-me
à tendência ao abandono do lar pater no pelos filhos e filhas casados,
que estabelecem domicílio e grupos domésticos independentes. Menos
que famílias extensas, o que encontramos no passado é uma forte vin-
culação dos diferentes grupos conjugais através do parentesco, espe-
cialmente os que ligam a família de origem à família de procriação.
O que vem ocorrendo, sem dúvida, é o enfraquecimento desses laços
de parentesco e o conseqüente isolamento do grupo conjugal. Esse
fenômeno, certamente, deve agravar as tensões existentes dentro do
núcleo conjugal, mas não pode ser interpretado diretamente como
enfraquecimento da família.
Mais ainda, parece-me lícito afirmar que, apesar de todas as críti-
cas e contestações, apesar da criação de novas for mas institucionaliza-
das de vida privada não familiar como opções legítimas, a reprodução
parece repor continuamente, em nossa sociedade, o núcleo conjugal em
nova versão do antigo modelo de família. Essa persistência do núcleo
conjugal apóia-se em forças ideológicas muito poderosas. Em primeiro
lugar, a própria valorização da sexualidade, se de um lado aparece como
expressão do individualismo possessivo, de outro se mostra um instru-
mento privilegiado para o estabelecimento de relações interpessoais
íntimas e afetivas – nesse sentido, o vínculo conjugal (mesmo temporá-
rio) constitui a base recorrente para a construção da esfera privada da
vida social. Por outro lado, há que reconhecer o peso do cientificismo
na legitimação das relações sociais: o reconhecimento, pela biologia, do
papel masculino na reprodução e, especialmente, da contribuição equi-
valente do pai e da mãe na constituição genética dos filhos tende a vali-
dar e reforçar o reconhecimento social da paternidade. Finalmente, esse
reconhecimento, validado cientificamente, é postulado pelos ideais
igualitários que exigem a participação tanto do homem como da mulher

 Família e reprodução humana


no processo social de reprodução humana, participação essa que o vín-
culo conjugal concretiza e legitima.
Concluindo, queremos chamar a atenção para o fato de que, no
nível de generalidade no qual o problema foi tratado neste texto, ques-
tões fundamentais foram deixadas de lado. A mais importante delas é,
sem dúvida, a diferença do modo pelo qual o processo histórico de
transformação da família incide sobre as diversas classes sociais. A reto-
mada desta questão em outro trabalho permitirá, certamente, uma visão
mais completa do problema. Esperamos, entretanto, que esta reflexão
inicial contribua para o prosseguimento dos estudos e dos debates sobre
a família.


Capítulo 

             


A pesquisa antropológica com populações urbanas*

Seguramente estamos atravessando hoje, no Brasil, um período particu-


larmente fértil e produtivo da investigação antropológica, que se traduz
de forma imediata na quantidade e qualidade dos trabalhos publicados.
E não se trata apenas de uma produção consumida pelo público especia-
lizado – a preservação de um estilo descritivo pouco carregado de ter-
mos técnicos, que a antropologia atual herdou da tradição etnográfica
mas infelizmente parece estar se perdendo, favorece uma receptividade
ampla no público criado pela expansão do ensino superior. Essa recente
popularidade da antropologia se deve também ao fato de que as pesqui-
sas concentram-se em grande medida em temas de interesse geral ime-
diato – não apenas os costumes exóticos das tribos indígenas (embora
esses constituam também uma leitura fascinante), mas muito do que é
cotidiano e familiar em nossa sociedade urbana ou que constitui remi-
niscência de um passado recente: os hábitos e valores dos moradores de
Copacabana tanto quanto o modo de vida dos bairros da periferia, das
favelas e das comunidades rurais; o candomblé, a umbanda e o pente-
costalismo ao lado do catolicismo tradicional e das comunidades de
base da Igreja renovada; a família operária e a das camadas médias; os
movimentos sociais urbanos e as formas do lazer popular; o feminismo
e a sexualidade. Estamos, em suma, produzindo uma nova e intrigante
etnografia de nós mesmos.
Essa popularidade da antropologia, um pouco surpreendente para
aqueles que estavam acostumados a cultivar uma ciência considerada
em geral como menor ou marginal, reflete-se igualmente no decidido
aumento do seu prestígio no conjunto das ciências sociais. Com efeito,

* Publicado originalmente em Ruth Cardoso (org.). A aventura antropológica: teoria e pesquisa.


Rio de Janeiro: Paz e Terra, .


a antropologia, que antigamente costumava ser vista com certa condes-
cendência pelos sociólogos e cientistas políticos, parece ser hoje tratada
com muito mais respeito e, às vezes, até com admiração.
Seria, entretanto, um pouco ingênuo considerar que o novo pres-
tígio se deva exclusivamente à qualidade de nossa produção intelectual,
e convém considerar mais de perto os fundamentos dessa popularidade.
O caráter tradicionalmente “marginal” da antropologia no Brasil
(como no resto do mundo) deveu-se certamente ao fato de que tanto as
populações que estudava como os temas que tratava se colocavam à
margem das grandes correntes políticas e das forças sociais mais di-
nâmicas que estavam modelando a transfor mação da nossa própria
sociedade. A antropologia sempre demonstrou especial interesse pelas
minorias despossuídas e dominadas de todos os tipos (índios, negros,
camponeses, favelados, desviantes e “pobres” em geral) em detrimento
do estudo dos grupos ou classes politicamente dominantes e atuantes.
Quanto aos temas, sempre revelou uma afinidade particular por aqueles
que eram claramente periféricos à grande arena das lutas políticas: dedi-
cou-se muito mais ao estudo da família, da religião, do folclore, da
medicina popular, das festas do que à análise do Estado, dos partidos
políticos, dos movimentos sindicais, das relações de classe, do desenvol-
vimento econômico.
O sucesso recente da antropologia está certamente vinculado ao
fato de que, hoje, essas minorias desprivilegiadas emergem como novos
atores políticos, organizam movimentos e exigem uma participação na
vida nacional da qual estiveram secular mente excluídos. Mais ainda,
temas como a religião ou a sexualidade, o papel da mulher na família e
a medicina popular parecem ter se politizado de um momento para o
outro, passando a possuir uma nova importância na compreensão da
dinâmica da transfor mação da sociedade brasileira. Dessa forma, o
conhecimento acumulado pela antropologia no tratamento desses te-
mas, assim como a competência específica no trabalho de campo com
essas populações, tornaram-se subitamente relevantes politicamente.
Por outro lado, em virtude mesmo do que parece ser uma nova
dinâmica da sociedade brasileira, os esquemas globalizadores com os
quais a sociologia e a ciência política produziram, no passado, uma
interpretação coerente da sociedade nacional, têm se revelado singular-
mente inadequados. Nota-se hoje, claramente, nestas disciplinas uma
crise explicativa que está provocando uma revisão crítica muito profunda

 A pesquisa antropológica com populações urbanas


tanto dos seus pressupostos teóricos e metodológicos quanto da própria
concepção da sociedade brasileira que construíram no passado. Nessas
circunstâncias, o trabalho altamente descritivo da antropologia, sua
capacidade de detectar perspectivas divergentes e interpretações alter-
nativas apresenta um material provocativo e estimulante para repensar
a realidade social.
Mas, se estamos certamente lidando de forma original e criativa
com temas que nos parecem, como aos demais, importantes e fascinan-
tes, por outro lado pode-se notar uma certa inconsistência dos resulta-
dos, uma multiplicação de pesquisas e de abordagens que não se somam
nem se integram, uma certa perplexidade sobre o que fazer com as con-
clusões parciais e divergentes que estamos acumulando. E, na medida
em que as populações e os temas tradicionalmente estudados pela an-
tropologia se politizam, a reflexão antropológica parece singularmente
desarmada para entender essa nova posição do seu objeto na sociedade
em transformação. Como a sociologia e a ciência política encontram-se
também na situação de reverem seus esquemas explicativos da realida-
de brasileira, não podemos buscar nelas uma linha interpretativa coe-
rente que for neça o quadro geral dentro do qual localizar as pesquisas
concretas e limitadas que continuamos a produzir.
Parece portanto ser oportuno, neste momento, uma reflexão críti-
ca sobre o conjunto da produção antropológica recente no Brasil. E se
essas considerações parecem pertinentes para a antropologia em sua
totalidade, são ainda mais relevantes para as pesquisas que estão sendo
feitas com populações urbanas. É este o campo que pretendo abordar
neste trabalho, em detrimento da vasta produção sobre as populações
indígenas e a sociedade rural, que exigem o exame por parte de antro-
pólogos mais familiarizados do que eu com essas áreas.
Um pouco de história da investigação com populações urbanas, na
forma pela qual se deu no Brasil, pode ser útil para entender mais clara-
mente os problemas atuais.
Com efeito, esse tipo de investigação tem uma longa tradição na
antropologia brasileira. E, desde o começo, trata-se menos de uma an-
tropologia da cidade do que de uma antropologia na cidade. Isto é, não
se desenvolveu no Brasil uma antropologia urbana propriamente dita,
nos moldes em que foi iniciada pela escola de Chicago, uma tentativa
de compreender o fenômeno urbano em si mesmo. Ao contrário, trata-
se de pesquisas que operam com temas, conceitos e métodos próprios


da antropologia, mas voltados para o estudo de populações que vi-
vem nas cidades. A cidade é, portanto, antes o lugar da pesquisa do
que seu objeto.
A tradição se inicia já com Nina Rodrigues e seu interesse pelo
negro e pelo mestiço, pela marginalidade e criminalidade que incidem
sobre uma população urbana pobre e desclassificada. É o conceito de
raça o elemento-chave dessa interpretação, fornecendo uma explicação
global do conjunto da sociedade brasileira.1 Ao lado desta antropologia
médica, desenvolveram-se os estudos sobre o folclore e, tanto num caso
como em outro, as distinções entre rural e urbano são irrelevantes. As
populações urbanas são tomadas como legítimo objeto de estudo não
enquanto tais, mas como exemplos ou manifestações de fenômenos
relevantes para uma interpretação ou simples descrição da sociedade
brasileira. Com Arthur Ramos, os mesmos problemas continuaram no
cerne das preocupações, mas com a gradual substituição das interpreta-
ções raciais pelas culturais.
Os trabalhos de Gilberto Freyre operam nesse mesmo campo (rural-
urbano de limites pouco relevantes). Casa-grande e senzala justapõe-se
a Sobrados e mocambos, em uma tentativa análoga, mas em outra direção,
de oferecer uma interpretação coerente da cidade brasileira de acordo
com uma perspectiva culturalista. Agora, os componentes raciais estão
muito mais fir memente subordinados à elaboração cultural e, sob a
dupla filtragem de uma ótica regional e de classe, trata-se de caracterizar
a cultura brasileira em seu conjunto.
Em que pese a popularidade e o prestígio de Gilberto Freyre na
sua época, a antropologia brasileira seguiu, em grande parte, um outro
caminho.2 Sob a égide do funcionalismo, que combinou, em graus e for-
mas diferentes, o culturalismo americano e a antropologia social britâ-
nica, introduziu-se no Brasil uma nova tradição de trabalho de campo
que revolucionou profundamente a antropologia brasileira. Os velhos
temas foram retomados de uma nova perspectiva. O tradicional estudo
do negro se transformou na pesquisa sobre relações raciais. As pesqui-
sas sobre as religiões africanas ganharam novo impulso e nova dignida-
de. A grande oposição entre casa-grande e senzala, como revelação da

. Sobre esse período, é extremamente importante o trabalho de Mariza Corrêa ().


. Essa tradição globalizante, entretanto, não se perdeu. Tanto Darcy Ribeiro como Roberto
DaMatta fizeram e procuram fazer interpretações abrangentes da cultura brasileira.

 A pesquisa antropológica com populações urbanas


cultura brasileira em geral, deu lugar às pesquisas detalhadas sobre as
relações de trabalho no campo e seu caráter exploratório. Introduziram-
se novos problemas, como o da imigração estrangeira no sul do país.
Mas o centro de todo este movimento foi constituído, sem dúvida, pelos
estudos de comunidade, ao integrar rural e urbano numa totalidade que
podia ser concebida como uma projeção da sociedade em seu conjunto.
Os estudos de comunidades per mitiram um desenvolvimento particu-
larmente fértil da antropologia, que encontrava correspondência muito
próxima com a investigação de sociedades primitivas. Investigando
esses “pedaços da sociedade”, as comunidades, como se fossem aldeias
indígenas, era possível utilizar os métodos de observação participante,
documentação censitária, histórias de vida, entrevistas etc., formulando
um retrato multidimensional da vida social e integrando o estudo das
manifestações culturais à análise de seu substrato social e econômico.
O sucesso desse método fascinou tanto sociólogos como antropó-
logos, numa época em que a mesma abordagem funcionalista facilitava
a aproximação entre as duas disciplinas, explorando as afinidades entre a
sociologia durkheimiana e a antropologia social britânica. Nesse mo-
mento, teoria, métodos e técnicas de investigação estavam completa-
mente integrados e eram internamente coerentes.
Convém, dada a importância desse momento no desenvolvimento
posterior da antropologia, examinar um pouco melhor os fundamentos
desta coerência.
Tomemos como referência o funcionalismo tal como foi desenvol-
vido no estudo das sociedades tribais. A análise antropológica consiste
em construir sistemas a partir de uma realidade que aparece, de início,
em fragmentos. A aparência fragmentada e destituída de significação
decorre da exterioridade do observador, e a construção de sistemas coe-
rentes pela antropologia deve corresponder a uma integração real,
constantemente realizada pelos membros da sociedade portadores da
cultura, através de processos que são, o mais das vezes, inconscientes.
Esse tipo de investigação pressupõe uma noção de totalidade integrada,
cuja reconstrução é o objeto último do pesquisador.
Parte fundamental desse procedimento é a construção, pelo antro-
pólogo, de uma “teoria nativa” da sociedade em questão, através da
descoberta e da análise das categorias culturais fundamentais por meio
dos quais os “nativos” operam e reproduzem a sua sociedade. Na antro-
pologia social inglesa (apesar da posição diferente de Malinowski), o


suporte básico da armação dos sistemas reside no conceito de estrutura
social. A importância relativa das diferentes categorias, assim como sua
articulação interna, são estabelecidas através da indagação de sua rele-
vância (sua função) para a manutenção (reprodução) de uma forma
societária, um sistema de relações sociais. Nessa abordagem, os funda-
mentos estruturantes não são buscados nas manifestações propriamen-
te culturais, mas no sistema de relações que a cultura realiza (ou produz
ou manifesta). “Sociedade” e “cultura” aparecem como conceitos gê-
meos, e correspondem à forma e ao conteúdo de uma mesma realidade.
A investigação é integrativa e multidimensional. O privilegiamento da
dimensão societária permite, além do mais, um novo desenvolvimento
da abordagem comparativa. Com efeito, os princípios estruturantes
detectados nos sistemas de relações sociais são recorrentes em sociedades
diversas, distantes geograficamente e de tradição histórica diferente.
Desse modo, a abordagem implica um movimento constante entre o
particular e o específico de um lado, o geral e o universal de outro, na
comparação entre sociedades diferentes, que prescinde de qualquer fun-
damentação histórica.
O culturalismo americano, assim como o grupo filiado a Mali-
nowski na Inglaterra, seguiu outro caminho. O conceito de sociedade
não é utilizado como armação estruturante, estando subsumido no con-
ceito de cultura. Mas nas abordagens culturalistas o conceito de cultura
não possui nenhuma referência estrutural intrínseca. Os fenômenos cul-
turais se apresentam todos dispersos num mesmo plano, sem critérios
de relevância diferencial. O modo de integrar essa realidade dispersa
constitui um problema crucial que Malinowski tentou resolver por meio
do conceito de instituição, unidades empiricamente delimitadas. A forte
influência alemã na antropologia americana provocou soluções diver-
sas. De um lado, procurou-se desenvolver a hierarquia dos traços, com-
plexos e áreas culturais, inspirada nos estudos de difusão cultural, que
conduziu a um pantanal de classificações empíricas, sem valor generali-
zante. De outro, o historicismo sugeriu a tentativa de uma integração
no nível dos significados, buscando-se padrões ou temas gerais que sub-
sumissem aqueles que podiam ser detectados no nível da conduta.
Tanto no primeiro como no segundo caso, a integração buscada inter-
namente acaba por enfatizar a especificidade e unicidade de cada cultura.
Paralelamente, a omissão do conceito de sociedade foi compensada por
um interesse crescente pelo indivíduo como suporte e demonstração da

 A pesquisa antropológica com populações urbanas


integração cultural, provocando uma aproximação com a psicologia e
reforçando dessa forma o particularismo da abordagem culturalista. Na
versão malinowskiana do culturalismo, é o conceito de instituição que
estabelece as unidades de análise, as quais são inter na e exter namente
conectadas pelo conceito de função.
Nas suas diferentes versões o funcionalismo, pressupondo uma inte-
gração das partes no todo, inversamente pressupõe também a presença da
totalidade nas partes. Desse modo, sua aplicação aos estudos de comuni-
dade implica ver a unidade estudada como fragmento da totalidade (a
sociedade ou cultura), cujos elementos estruturantes ou integrativos são
qualitativamente idênticos aos do todo. A comunidade mantém com a
sociedade uma relação metonímica e é, por isso, imediatamente relevan-
te para o entendimento da sociedade ou da cultura, embora o conheci-
mento assim produzido seja, obviamente, considerado incompleto.
No Brasil, a crítica aos estudos de comunidade e ao funcionalismo
positivista foi elaborada primordialmente pelos sociólogos e incorpora-
da mais tarde pelos antropólogos. Os argumentos mais diretamente polí-
ticos da crítica (e, muitas vezes, os mais simplificados) foram os que
encontraram uma receptividade mais ampla. Deste modo, criticou-se
amplamente o pressuposto da integração (cultural ou social) e seu efeito
supostamente inibidor no tratamento do conflito social, sua incapaci-
dade de apreender a mudança e, conseqüentemente, a for mulação de
uma visão imobilista e por isso mesmo conservadora da realidade social,
o que na verdade não corresponde bem ao modo como os antropólogos
estavam trabalhando. Talvez por isso mesmo, tendo os críticos transfor-
mado o funcionalismo numa espécie de moinho de vento, as questões
metodológicas mais fundamentais não foram objeto de uma reflexão
generalizada. Estas dizem respeito à relação sujeito-objeto e à natureza
do conhecimento. Basicamente, o problema a ser posto em questão é o
de um conhecimento colado às regularidades diretamente observáveis, à
relação direta e simples entre observação e generalização, e não implica
nenhuma ruptura analítica no sentido de revelar estruturas ou processos
imanentes que não se reduzam à manifestação visível dos fenômenos
sociais, o que caracteriza um funcionalismo ingênuo. Preso aos méto-
dos de investigação etnográfica, esse tipo de investigação tende a con-
fundir o modo como uma sociedade se representa com a explicação
sobre o modo como ela se constitui e se reproduz. Além do mais, a relação
sujeito-objeto ou observador-objeto não é questionada, e a construção


do investigador é tomada como integralmente correspondente às repre-
sentações e ao comportamento das coletividades estudadas.
Na sociologia, o abandono do funcionalismo foi resultado de uma
adesão cada vez maior ao marxismo. Na antropologia, entretanto, a
incorporação da crítica ao funcionalismo não resultou na delimitação de
um novo campo metodológico comum.
Com efeito, o marxismo teve uma penetração lenta e difícil na
antropologia. Desprovido de uma teoria do simbolismo e voltado para
problemas macroestruturais das sociedades capitalistas que só são ade-
quadamente captados na dimensão histórica, o marxismo não pode ser
transposto de modo imediato para a interpretação dos resultados da
investigação empírica limitada, qualitativa, multidimensional que ca-
racteriza o trabalho de campo antropológico. Assim, para os antropólo-
gos que enveredaram pela linha marxista, o problema que se colocava
era o de integrar um método de pesquisa de campo desenvolvido pelo
funcionalismo com uma teoria explicativa que parte de outras premis-
sas e caminha em outra direção. De modo geral, continuou-se a fazer
pesquisa como os funcionalistas, mas tentando encontrar “ganchos”
que permitissem interpretar os resultados com conceitos como “modo
de produção”, “relações de trabalho” e “luta de classes”. Ora, esses
conceitos são anteriores e exteriores às investigações em si, o que acaba
produzindo freqüentemente um hibridismo desconcertante: trabalhos
estritamente funcionalistas na descrição empírica são precedidos e
prolongados por introduções e conclusões for muladas em linguagem
marxista. Boa parte das vezes, acaba-se mostrando a funcionalidade de
certas instituições (como a família) para a acumulação capitalista. Ou
investigam-se as representações dos operários para depois discutir o
grau de alienação que elas porventura contenham, usando como padrão
de medida for mulações teóricas que não são postas em questão nem
testadas pela pesquisa empírica. A bem da verdade, é importante reco-
nhecer que também os sociólogos freqüentemente incorrem nesse
hibridismo estranho.
Os historiadores, que têm um problema semelhante de integrar
pesquisas detalhadas e particularistas aos grandes esquemas explicativos
do marxismo, resolvem-no mais facilmente do que os antropólogos, pois
remetem constantemente as investigações parciais a séries históricas que
for necem os parâmetros explicativos. Os antropólogos não possuem
parâmetros equivalentes, e se vêem forçados a utilizar aqueles for neci-

 A pesquisa antropológica com populações urbanas


dos por outras disciplinas (que dominam mal e não são completamente
adequadas às perspectivas do seu trabalho de campo). Produzem assim
um conhecimento fragmentado, que as outras ciências sociais podem
eventualmente incorporar, validando (ou negando) sua relevância.
Dadas essas dificuldades, apenas algumas investigações que inci-
dem sobre temas e problemas claramente delineados na teoria marxista
(como as relações de trabalho, o movimento sindical ou lutas campone-
sas) lograram uma integração mais satisfatória entre teoria e pesquisa.
A outra perspectiva que se abriu para os antropólogos foi a do
estruturalismo, que contribuiu imensamente para recolocar a importân-
cia da dimensão simbólica da vida social. Trata-se agora, pela primeira
vez, de um conceito de estrutura que se coloca no cerne dos fenômenos
culturais, pois permite o reconhecimento de uma lógica própria da
produção simbólica. Mas também o estruturalismo se orienta em dire-
ção diversa daquela que organiza o tradicional trabalho de campo. O ri-
gor for mal exigido pelo estruturalismo sacrifica o particularismo e a
multidimensionalidade revelados pela pesquisa empírica voltada para
grupos atuantes.
Tanto num caso como no outro, as indecisões e os impasses das
investigações atuais parecem derivar dessas dificuldades em preservar a
riqueza da pesquisa empírica antropológica tradicional, elaborada pelo
funcionalismo (e da qual não estamos dispostos a abrir mão), integrando-
a em novos esquemas interpretativos não-positivistas. Como a tarefa é
extraordinariamente difícil, os antropólogos têm procurado antes con-
tor nar do que enfrentar os problemas metodológicos mais espinhosos
através de um procedimento que denominarei “deslize semântico”.
Examinando a produção antropológica recente dos investigadores
que pesquisam nas cidades, a reflexão anterior parece muito pertinente.
Nesses trabalhos, duas tendências mostram-se com muita nitidez. De um
lado, a valorização dos métodos qualitativos tradicionais de investigação
empírica, com ênfase na observação participante. E, de outro, a preocu-
pação com a análise da dimensão simbólica, dentro de uma abordagem
basicamente culturalista: o conceito de cultura (depois do ostracismo a
que o relegou a antropologia social) volta a ser amplamente utilizado e
existe, inclusive, uma recuperação de certos aspectos do culturalismo
americano. Mesmo as tentativas de aproximação com o marxismo têm
sido feitas preferencialmente por meio do conceito de ideologia, que
remete diretamente à dimensão simbólica do comportamento social.


Tomemos a primeira tendência. Nota-se, em primeiro lugar, a pre-
dominância dos estudos detalhados de grupos, categorias ou situações
sociais delimitados, que incluem número restrito de pessoas e que são
vistos “de dentro”, com ampla utilização da observação participante.
Com efeito, uma das características mais visíveis e positivas dessa produ-
ção recente é justamente a valorização da observação participante e a
preocupação com a natureza da relação entre o pesquisador e a população
estudada. Tem crescido substancialmente o número de artigos escritos
sobre esta questão, e as monografias são cada vez mais precedidas de lon-
gas introduções nas quais os autores relatam sua experiência de campo.
Já aqui se nota claramente um desses “deslizamentos” da concei-
tuação e da prática a que me referi anteriormente. Tal como foi formu-
lada inicialmente, a técnica implicava uma ênfase na observação, que se
queria a mais ampla e objetiva possível, e a participação se apresentava
como condição necessária dessa observação. Na alteração recente no
uso dessa técnica nota-se uma valorização crescente da subjetividade do
observador – a experiência, os sentimentos, os conflitos íntimos do pes-
quisador são amplamente descritos e analisados. Concomitantemente,
há um esforço consciente de identificação do antropólogo com a popu-
lação que estuda, privilegiando-se a participação.
Na situação de campo tradicional, no trabalho que se desenvolve
com sociedades “primitivas”, a participação é antes objetiva do que
subjetiva – o pesquisador convive constantemente com a população
estudada, permanecendo, entretanto, um estrangeiro (mesmo que bem
aceito). A injunção de aprender a língua nativa se prende à necessidade
de superar uma exterioridade excessiva. Como o domínio da língua é
adquirido gradualmente e raramente chega a ser completo, a comunica-
ção verbal fica freqüentemente subordinada à observação do compor-
tamento manifesto. Na pesquisa que se faz nas cidades, dentro de um
universo cultural comum ao investigador e ao objeto da pesquisa, a par-
ticipação é antes subjetiva do que objetiva. O pesquisador raramente
reside com a população que estuda (e, se o faz, é por breves períodos) e
não compartilha de suas condições de existência – de sua pobreza, de
suas carências, de suas dificuldades concretas em garantir a sobrevivên-
cia cotidiana. Mas busca, na interação simbólica, a identificação com os
valores e aspirações da população que estuda. A língua não constitui
barreira e a comunicação puramente verbal predomina, ofuscando a
observação do comportamento manifesto. A pesquisa se concentra na

 A pesquisa antropológica com populações urbanas


análise de depoimentos, sendo a entrevista o material empírico privile-
giado. Privilegiando-se dessa forma os aspectos mais nor mativos da
cultura, a técnica de análise do discurso assume importância crescente.
Uma variante desse tipo de trabalho consiste na análise de movi-
mentos ou situações nos quais o pesquisador está integrado como
sujeito, como ocorre no movimento feminista, negro ou homossexual.
Nesses casos, as dificuldades em realizar simultaneamente uma ação
transfor madora na sociedade e uma análise dessa prática são particu-
larmente agudas.
A questão da identificação subjetiva merece comentários adicio-
nais porque possui outras raízes, que mergulham no terreno político.
Com efeito, assistimos hoje a uma politização crescente de nosso uni-
verso social, que incide duplamente na situação de pesquisa. De um
lado, o clima intelectual tem se desenvolvido no sentido de criticar o
isolamento acadêmico, proclamando a necessidade de um engajamento
político dos cientistas e enfatizando sua responsabilidade social. De
outro, são os próprios “objetos de pesquisa” que cobram dos investiga-
dores esse tipo de atuação e de identificação política. Coloca-se, então,
de modo muito agudo, a reivindicação do retor no dos resultados: os
antropólogos se empenham em descobrir uma aplicação imediata e
direta dos resultados de sua pesquisa e, quando não o conseguem, ten-
dem a substituí-la por uma ação junto à população que a beneficie.
Numa for mulação sintética e um pouco caricatural, pode-se dizer
que estamos passando da observação participante para a participação
observante, e resvalando para a militância. Se essa transfor mação da
natureza do trabalho de campo apresenta aspectos muito positivos, não
deixa de ser verdade que a reflexão teórica e metodológica tem se revela-
do um tanto omissa quanto aos problemas epistemológicos envolvidos.
Os deslizamentos que se processam no campo conceitual são de
outro tipo e estabelecem, com os “desvios” da prática de pesquisa, uma
relação algo contraditória.
Quando se examina a produção antropológica recente, em que
pese a influência do marxismo, nota-se uma ausência muito reveladora
– a do conceito de classe. Não é que a estrutura de classes seja ignorada
ou que o conceito de luta de classes não seja mencionado. Mas o concei-
to não é utilizado nem como instrumento para a delimitação dos obje-
tos empíricos da investigação nem como recurso interior à análise do
material. Os recortes empíricos que os antropólogos tendem a privile-


giar isolam grupos ou categorias sociais cuja posição de classe não é
nem clara, nem nítida e, às vezes, nem sequer relevante: moradores de
Copacabana ou dos subúrbios cariocas, favelados, habitantes da perife-
ria paulista, Comunidades Eclesiais de Base, freqüentadores de terrei-
ros de umbanda, participantes de movimentos populares, escolas de
samba, o público do circo-teatro, mulheres, negros, homossexuais.
Apenas em alguns poucos casos, como no das pesquisas que se ocupam
exclusivamente de operários, é que parece haver uma compatibilidade
entre o recorte empírico e a problemática das classes (às vezes mais apa-
rente que real). Nos demais casos, a relevância dos resultados para a
problemática das classes não é direta, mas depende de uma reflexão teó-
rica que se processa em outro nível e a partir de outros dados. Nessas
circunstâncias, o que é mais especificamente relevante é antes a estrati-
ficação dos segmentos sociais e a percepção dessa estratificação por
parte da população. Por isso mesmo, os ter mos clássicos da conceitua-
ção marxista, como “burguesia” e “proletariado”, são substituídos por
ter mos descritivos como “classes populares”, “classes trabalhadoras”
ou “camadas médias”. Preserva-se, desse modo, uma referência à pro-
blemática das classes, sem entretanto enfrentar o problema da relevân-
cia específica dos resultados da pesquisa para essa problemática.3
Mais recentemente, com a crise do marxismo, a problemática da
classe foi abandonada. Com isto, perdeu-se qualquer referência e qual-
quer instrumento conceitual e metodológico para entender a inserção
dos grupos estudados no processo mais amplo de transformação social.
A essa ausência, somam-se outras presenças igualmente significa-
tivas. Com efeito, no conjunto da produção antropológica é fácil cons-
tatar a predominância de alguns conceitos que parecem se constituir
como instrumentos privilegiados: ideologia, identidade, pessoa, indiví-
duo, individualismo, hierarquia, holismo e, mais raramente, ethos.
Nota-se claramente nessa listagem a tendência culturalista, com a valo-
rização da dimensão simbólica. Apenas o conceito de hierarquia parece
contradizer essa tendência, pois, tradicionalmente ligado ao conceito de
status, remete diretamente à problemática sociológica da estratificação

. Aliás, esse espinhoso problema não é exclusivo da antropologia. As dificuldades da apli-


cação do conceito marxista de classe para analisar a intensa e confusa movimentação dos
diferentes segmentos da sociedade brasileira tampouco são muito claras na sociologia. Para
uma abordagem mais produtiva desse problema, consultar Oliveira .

 A pesquisa antropológica com populações urbanas


social. A exceção, entretanto, é apenas aparente, pois o que costuma ser
focalizado por meio do conceito é menos a organização hierárquica da
sociedade do que a presença da hierarquia como valor nas representa-
ções coletivas, num claro deslizamento da conceituação sociológica
para uma conotação culturalista.
Deslizamentos semelhantes, ou pelo menos análogos, parecem
ocorrer em alguns outros casos.
Tomemos o conceito de ideologia, que possui uma clara inspiração
marxista, em cuja tradição aparece como particularmente tenso e carre-
gado. Prende-se, de um lado, à clássica oposição entre infra-estrutura e
superestrutura e à questão da deter minação em última instância pelo
econômico. De outro, remete diretamente à problemática política, à
questão da hegemonia e da eficácia das idéias e representações na luta
de classes, aos efeitos e processos de ocultamento dos mecanismos de
dominação que a ideologia promove.
Na antropologia, o conceito se despolitiza. É freqüentemente usado
como simples sinônimo de sistema de idéias e valores, substituindo às
vezes o conceito de visão de mundo, perdendo sua complexidade e des-
ligando-se da problemática teórica que lhe era própria. Raramente é
empregado no seu contexto original, o mais das vezes por antropólogos
de for mação sociológica. Mas sua utilização no sentido simplificado e
despolitizado contém uma constante alusão à problemática e à teoria
marxista, mesmo quando ela não é utilizada na interpretação dos dados.
A utilização do conceito de pessoa se coloca dentro de um campo
particular mente derrapante, embora de contexto diverso. No Brasil, o
conceito tem sido definido de modo bastante claro, na tradição que vai
de Mauss a Geertz, como o modo pelo qual as sociedades concebem,
definem e constroem sua versão específica do ser humano em sua apre-
sentação individualizada. Toda a antropologia brasileira tende a adotar
esta definição mais culturalista de Geertz em oposição à perspectiva
sociológica de Radcliffe-Brown, para quem o conceito tende a se iden-
tificar com o de status. A pessoa aparece assim como categoria univer-
sal, e cabe ao antropólogo investigar o modo pelo qual ela é constituída
diferencialmente em cada sociedade.4 Mas, concebido desse modo, o

. Na antropologia brasileira, o conceito de pessoa começou a ser empregado de modo mais


sistemático no estudo das sociedades indígenas, onde teve um aproveitamento bastante fru-
tífero. Ver, nesse sentido, Seeger et alii .


conceito pode ser lido ao contrário: menos o modo pelo qual a socieda-
de constrói sua versão de ser humano e mais como as concepções sobre
o ser humano são reveladoras da natureza da cultura daquela sociedade.
Nesse caso, a pessoa passa a ser vista como metáfora da sociedade, e um
grande cuidado precisa ser tomado para evitar um outro deslizamento
de sentido (esse, perigoso), que envolve um reducionismo psicologi-
zante em que, olhando a pessoa, vê-se toda a sociedade.
Mas a noção de pessoa envolve outras conexões. A visão cultura-
lista aponta claramente para o fato de que a concepção de indivíduo que
permeia o pensamento ocidental moderno não é uma categoria univer-
sal, mas uma forma específica de construção da pessoa. A partir daí é
possível fazer uma crítica metodológica geral da abordagem antropoló-
gica, perguntando-se em que medida nossa visão de indivíduo (essa
forma específica de conceber o ser humano) introduziu distorções im-
portantes no estudo de outras sociedades, vendo indivíduos (no nosso
sentido) onde eles não existiam. Essa seria uma distorção equivalente,
embora invertida, das colocações evolucionistas, que recusavam ao pri-
mitivo qualquer forma de percepção de sujeitos individuais, uma vez
que não encontravam neles o estrito correspondente do individualismo
ocidental. O perigo da crítica reside em “ler” no sentido restrito (indi-
vidualista) qualquer referência ao indivíduo, introduzindo distorções
onde elas talvez não existam. Isso ocorre porque o termo “indivíduo”
carrega necessariamente duas conotações. De um lado, ele se refere aos
seres humanos individualizados, organismos biológicos que são supor-
tes empíricos da sociedade e que são, obviamente, reconhecidos como
tais embora elaborados culturalmente de forma diversa em todas as
sociedades. De outro, ele se refere à noção individualista que per meia
nossa concepção de pessoa. Amalgamando as duas conotações, estabe-
lece-se um novo deslize conceitual. A oposição indivíduo-pessoa passa
a significar a oposição entre individualismo, de um lado, e de outro
todas as outras formas de elaboração do ser humano, especialmente em
suas concepções hierárquicas.
Desse modo, o problema do individualismo per meia toda a pro-
blemática da pessoa, fazendo com que este conceito seja utilizado de
formas não apenas diferentes, mas antagônicas. Convém, portanto, exa-
minar mais detalhadamente a questão do individualismo.
A discussão sobre o individualismo se origina na ciência política,
onde surge no contexto da análise da for mação do Estado moder no e

 A pesquisa antropológica com populações urbanas


em conexão com as revoluções burguesas. Está intimamente vinculada
à análise do liberalismo político e do liberalismo econômico. Nesse con-
texto, o campo semântico do individualismo inclui dois outros concei-
tos, o de igualdade e o de liberdade política, e se coloca no quadro geral
do desenvolvimento da cidadania na sociedade de classes. A discussão
sobre o individualismo se trava no terreno da história e se refere basica-
mente a uma ideologia política – diz respeito ao poder, ao Estado, à
representação política, aos direitos civis etc.
Ora, o conceito de individualismo penetrou na antropologia bra-
sileira mais por influência de Louis Dumont do que pela ciência políti-
ca, e antes pela leitura de Homo hierarchicus do que pela de Homo aequa-
lis. Em Homo hierarchicus o individualismo é utilizado para caracterizar
a sociedade ocidental moder na como recurso contrastivo que tem por
objetivo iluminar a sociedade de castas na Índia. Embora na introdução
desse livro Dumont recupere parcialmente (especialmente pela leitura
de Tocqueville) o campo semântico do conceito, a verdade é que, para
efeito de comparação contrastiva, esse campo sofre uma redução. Assim,
de todo o conjunto que compreende individualismo, liberdade política
e igualitarismo, privilegia-se o primeiro termo que, por assim dizer,
passa a subsumir os demais, e omite-se o contexto político e social que
lhe dá significação própria, tradicionalmente abordado pelos conceitos
de democracia e classes sociais. A análise da sociedade hindu, centrada
no sistema de castas, expande-se na consideração do holismo, da hierar-
quia, das for mas políticas e da organização econômica, mas o efeito
contrastivo é estabelecido apenas no plano propriamente cultural, por
meio da construção da oposição individualismo-hierarquia. Todo a
questão política da oposição hierarquia/igualitarismo desaparece, e
todo o tratamento da sociedade de castas é feito sem que sequer se men-
cione a questão fundamental da desigualdade que lhe é inerente.
Esse procedimento implica uma outra operação: a comparação
entre as duas sociedades, sendo contrastiva, projeta-se para fora da his-
tória, numa análise tipológica, podendo desse modo passar a ser utiliza-
da (indevidamente) como oposição universal, válida para a comparação
da nossa sociedade com qualquer outra (para as quais outros parâme-
tros podem ser mais revelantes) e inclusive consigo própria.
Embora este seja um procedimento despolitizado, ele pode ser legí-
timo para esclarecer a natureza da sociedade de castas na Índia, mas
transposto para a análise da sociedade brasileira, por exemplo, significa a


opção por um modo de investigação muito limitado. Agora, utiliza-se na
investigação de uma sociedade ocidental moderna um conceito de indivi-
dualismo previamente desistoricizado e despolitizado, desligado da pro-
blemática da formação das classes e da natureza do Estado moderno que
lhe deu origem. O conceito se “culturaliza” e corre-se o risco, ao empre-
gá-lo, de criar uma visão homogênea da sociedade brasileira, na qual se
defrontam, de modo uniforme, valores culturais opostos mas considera-
dos equivalentes (individualismo-hierarquia). No estranho caminho de
recuperar o conceito de individualismo através da sociedade de castas e
não da nossa própria história, conseguimos contor nar o espinhoso pro-
blema do processo de produção de uma heterogeneidade e desigualdade
crescente que são próprias da nova sociedade de classes emergentes, com
suas novas formas de dominação política, omitindo, ao mesmo tempo, a
profunda e inapelável desigualdade da sociedade de castas.
Vejamos agora um outro conceito, que goza de popularidade cres-
cente: o de identidade. Sua popularização na antropologia brasileira se
deu, inicialmente, no contexto da análise das relações interétnicas e com
a inspiração de Fredrick Barth. O conceito de identidade étnica, como
identidade grupal contrastiva, é construído no contexto das relações e
conflitos intergrupais concretos. O levantamento dos grupos em conta-
to é fundamental para a análise, assim como o de todo o processo de
enfrentamento, oposição, dominação, submissão, resistência que ocorre
simultaneamente no plano simbólico e no plano das relações sociais. Ao
contrário do que ocorreu com a oposição contrastiva individualismo/
hierarquia, trata-se agora de um contraste que resulta de um processo
concreto de confronto e diferenciação.
No contexto das relações interétnicas, o conceito de identidade é
muito preciso e delimita um campo de investigação bem estruturado.
Mas sua extensão a outros grupos ou categorias sociais freqüentemente
implica a diluição desse campo, pela diluição de sua dimensão contras-
tiva concreta. O campo de análise deixa de ser a oposição entre grupos
ou categorias que se enfrentam na sociedade, e a identidade passa a ser
concebida como uma propriedade do grupo, projetado na pessoa. Desse
modo, através do deslize semântico, o estudo da identidade se sobrepõe
às análises efetuadas com o conceito de pessoa, enfatizando as dimen-
sões psicológica e cultural em detrimento da política.
Analisando esta breve história da utilização de conceitos como
“classes sociais”, “ideologia”, “pessoa”, “individualismo” e “identidade”

 A pesquisa antropológica com populações urbanas


na antropologia brasileira atual, chega-se a uma conclusão algo des-
concertante. É que, ao mesmo tempo em que os antropólogos se poli-
tizam na prática de campo, pelo engajamento crescente nas lutas trava-
das pelas populações que estudam, despolitizam os conceitos com os
quais operam, retirando-os da matriz histórica na qual foram gerados e
projetando-os no campo a-histórico da cultura. Mas escolhem justa-
mente aqueles conceitos que originalmente possuíam uma dimensão
política muito clara. No fundo, o que estamos fazendo é operar os con-
ceitos de tal modo que, evitando o tratamento direto da problemática
social e política que neles está contida, preservamos uma alusão a essa
problemática que, afinal de contas, é essencial para a compreensão da
realidade brasileira.
Acredito que existe, no próprio método de trabalho de campo, uma
“armadilha positivista”, embutida no processo de identificação subjetiva
com as populações estudadas, que promove os deslizes semânticos.
A identificação certamente é necessária (pelo menos até certo pon-
to) porque, sem ela, é impossível apreender “de dentro” as categorias
culturais com as quais a população articula sua experiência de vida social
e ordena sua prática coletiva – e essa investigação é o fulcro mesmo da
abordagem antropológica. Mas essa identificação, se não estiver acopla-
da ao distanciamento próprio de uma análise que não se restrinja ao
senso comum dos membros do grupo estudado, traz consigo o risco de
começarmos a explicar a sociedade através das categorias “nativas”, em
vez de explicar essas categorias através da análise antropológica. O peri-
go representado por esta armadilha é particular mente sério quando
ocorre uma identificação política com os objetivos e demandas dos gru-
pos envolvidos pela pesquisa, o que pode promover uma omissão cons-
ciente ou inconsciente das contradições, conflitos e ações que possam
prejudicar a imagem que o grupo deseja apresentar de si próprio.
De fato, se este perigo esteve sempre presente na investigação
etnográfica das sociedades chamadas primitivas, pelo menos neste caso
as categorias recuperadas pelos antropólogos diziam respeito à totalida-
de da sociedade, uma vez que esta era integralmente acessível à expe-
riência do grupo estudado. Mas no caso da nossa sociedade complexa,
com a fragmentação que a caracteriza, o conjunto da sociedade e o
movimento que lhe é próprio não podem ser recuperados a partir dos
grupos estudados, porque estão fora de seu horizonte de informação e
de sua experiência direta. Nesse caso, a defor mação introduzida pela


“armadilha positivista” se agrava. A sociedade, obscura aos nossos
interlocutores, torna-se obscura para o próprio antropólogo.
Nesse caso, os conceitos alusivos parecem resolver o problema.
Per mitem-nos restringir a análise ao nível da experiência dos nossos
infor mantes, insinuando a existência de forças e processos sociais que
sabemos estarem em jogo, mas que não conseguimos captar a partir da
ótica dos nossos interlocutores.
Sair desse impasse significa dissolver essa visão colada à realidade
imediata e à experiência vivida das populações com as quais trabalha-
mos, não nos contentando com a descrição da forma como os fenôme-
nos se apresentam, mas investigando o modo como são produzidos.
Não se trata obviamente de exigir que cada pesquisa empírica
construa o quadro completo ou a teoria acabada da sociedade brasilei-
ra. Mas é necessário que em algum lugar da reflexão antropológica esses
problemas comecem a ser investigados. Aqui, uma comparação com a
história pode ser esclarecedora, pois muito do trabalho do historiador,
feito com documentos e arquivos mortos, se assemelha intrinsecamente
àquele que o antropólogo realiza com sujeitos vivos. Mas a teoria da
história com a qual os pesquisadores trabalham não se confunde com a
visão que os homens de determinadas épocas e de certas classes sociais
possuíam de seu lugar nesse processo. E os problemas que os historia-
dores investigam não são aqueles formulados pelos homens que, anoni-
mamente, fizeram a história.
Nós, ao contrário, presos à observação participante, estamos nos
contentando com reconstruir as sombras que essa história projeta na
consciência dos homens. É um trabalho importante. Não creio que
devamos abdicar de fazê-lo. Mas é necessário que não nos contentemos
somente com isso.
Os “deslizes semânticos” que foram apontados como uma caracte-
rística da produção antropológica recente parecem estar indicando a pro-
cura de novos caminhos a partir de uma alteração no significado de con-
ceitos tradicionais. Entender esse processo e explicitar essas alterações
constituem o início da reflexão mais sistemática sobre os novos rumos
que a antropologia está buscando, e o primeiro passo no sentido de uma
construção teórica mais adequada aos problemas que estamos estudando.

 A pesquisa antropológica com populações urbanas


Capítulo 

        


A sociedade vista da periferia*

Durante toda a última década acumulou-se, no Brasil, um material


muito rico, embora heterogêneo e fragmentado, sobre o modo de vida
das classes trabalhadoras e da população pobre que habita as grandes
cidades.1 Esse material resulta de grande número de pesquisas, muitas
das quais realizadas por antropólogos, que abordam os temas mais
diversos: a migração, a vida familiar, a situação da mulher, a alimenta-
ção, as formas de trabalho, os movimentos sociais e o que se convencio-
nou chamar de “estratégias de sobrevivência”.
A essa heterogeneidade de temas e problemas acrescenta-se a diver-
sidade da própria população estudada. Quase todos os trabalhos, mas
especialmente os de cunho mais antropológico, que tendem a isolar como
objeto de pesquisa um local ou uma instituição, lidam com uma população
muito heterogênea do ponto de vista de sua inserção no mercado de tra-
balho: operários, trabalhadores por conta própria e biscateiros, emprega-
das domésticas e pequenos funcionários públicos, empregados de empre-
sas de serviços as mais diversas, trabalhadores domiciliares por tarefa e
toda a imensa gama de empregos de baixo prestígio e parca remuneração.
E entretanto, apesar dessa diversidade, a familiaridade com essas
pesquisas não pode deixar de revelar, mesmo ao investigador o mais
desavisado, uma grande uniformidade no que diz respeito a valores fun-
damentais, hábitos, gostos e aspirações que parecem caracterizar o con-
junto dessa população. Isso não é surpreendente. Podemos, com efeito,

* Publicado originalmente na Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. , v. , .


. A bibliografia contém os principais trabalhos utilizados sobre a cidade de São Paulo. Há
ainda uma rica etnografia sobre a cidade do Rio de Janeiro, que não examinamos sistemati-
camente e que, por isso mesmo, é citada na bibliografia apenas de forma indicativa. Por
outro lado, muito do conhecimento sobre a periferia de São Paulo provém de pesquisas não
publicadas, ou publicadas parcialmente, que foram ou estão sendo realizadas por alunos sob
a orientação de Ruth Cardoso ou minha.


supor que as forças sociais que modelam a transformação da sociedade
brasileira tendem a produzir, para os setores mais pobres da população
urbana, condições de existência muito semelhantes. A uniformização do
consumo criada pelo nível salarial, a existência de problemas comuns
nas áreas de habitação, saúde, escolarização e acesso ao mercado de tra-
balho devem promover, nessa população, o desenvolvimento de tipos
de sociabilidade, modos de consumo e lazer, padrões de avaliação do
mercado de trabalho e for mas de percepção da sociedade que lhe são
próprias. Em outras palavras, podemos supor que condições de vida
semelhante dêem origem a características culturais próprias.
A análise das semelhanças remete, portanto, ao universo da cultu-
ra. É dessa perspectiva que a heterogeneidade inicial se dissolve. Assim,
a diversidade de inserção na estrutura produtiva, se bem que funda-
mental quando se pretende analisar o processo de transfor mação da
sociedade capitalista, assume significado muito diverso quando apreen-
dida da perspectiva dos sujeitos que vivem esse processo. Desse ponto
de vista, a imensa gama de ocupações de baixo prestígio e parca remu-
neração constitui, para a população sem escolaridade e sem qualificação
profissional, um mesmo conjunto de opções de trabalho que integram
seu horizonte de possibilidades de emprego. A história de vida de cada
um e, com muito mais razão, a de diferentes membros de uma mesma
família, se constrói a partir de experiências diversificadas que ocorrem
dentro desse mesmo universo de oportunidades ocupacionais.
É por isso que a análise dessas uniformidades e semelhanças, cons-
truídas no nível da cultura, não pode ser realizada a partir dos conceitos
que remetem à teoria marxista das classes sociais. O termo “classes
populares”, de cunho nitidamente descritivo, parece cobrir mais ade-
quadamente esse conjunto simultaneamente diferente e semelhante, e
indicar que a análise está se processando num nível diverso daquele que
é próprio da teoria das classes sociais.
Assumindo a perspectiva da cultura, este trabalho possui um duplo
objetivo: de um lado, apresenta resultados de uma pesquisa específica,
realizada no Cebrap em  por uma equipe de antropólogos coorde-
nada por Ruth Cardoso,2 como parte de um projeto sobre as cidades
. O grupo de pesquisadores incluiu Teresa P. do Rio Caldeira, José Guilherme C. Magnani,
Elizabeth Bilac e eu mesma. Agradeço a todos a permissão de utilizar o material da pesqui-
sa para este artigo, assim como a contribuição que deram, nos inúmeros seminários que rea-
lizamos, para a sistematização das idéias aqui expostas.

 A sociedade vista da periferia


médias paulistas, organizado por Wilmar Faria; de outro, toma como
pano de fundo e referência constante toda a etnografia dispersa nos
diferentes trabalhos produzidos sobre a cidade de São Paulo. Movendo-
se nestes dois planos, o artigo procura apresentar uma síntese prelimi-
nar que per mita organizar com mais clareza os resultados parciais de
todas essas pesquisas que se vêm acumulando ultimamente.
Como o objetivo final é analisar o contexto cultural dentro do qual
se movem as classes populares, o tema e o objeto da pesquisa aqui apre-
sentada têm um valor estratégico. Trata-se de uma investigação explo-
ratória de três cidades médias do estado de São Paulo (Rio Claro, Marí-
lia e São José dos Campos).3 O fato de a pesquisa não se realizar na
metrópole permite o confronto e a comparação com o abundante mate-
rial existente sobre a cidade de São Paulo, e oferece uma certa garantia
de estar mos lidando com orientações culturais de larga abrangência e
ampla disseminação.

. A seleção das cidades foi feita de modo a incluir regiões diferentes do estado e tipos diver-
sos de urbanização. Optou-se, nesse processo, por três cidades: São José dos Campos, por
representar um núcleo urbano em expansão acelerada provocada pela concentração de gran-
des indústrias; Rio Claro, como cidade de antiga tradição operária, ligada à presença das ofi-
cinas da Cia. Paulista de Estradas de Ferro e a pequenas indústrias de tipo tradicional. Essa
cidade apresenta, além disso, a característica de se localizar numa das regiões agrícolas mais
desenvolvidas e produtivas do estado, reunindo apreciável contingente de bóias-frias; e
Marília constitui, ao contrário das outras cidades, um núcleo urbano de for mação muito
recente, tendo sido uma das mais célebres cidades pioneiras na década de . A indústria que
se for mou na cidade, presa à transfor mação direta de produtos agrícolas regionais, está
sendo desativada e a população está diminuindo. São José e Marília foram pesquisados por
uma equipe, Rio Claro por outra. Nas três cidades o procedimento foi o mesmo: a) levanta-
mento sucinto da história do desenvolvimento da cidade, a partir de fontes secundárias;
b) entrevistas com infor mantes qualificados (sociólogos e pesquisadores que trabalham na
cidade, líderes políticos e sindicais, habitantes considerados conhecedores da cidade);
c) mapeamento do crescimento recente da cidade e localização da nova periferia; d) reco-
nhecimento de toda a zona periférica para identificação visual das características espaciais
aparentes; e) seleção de bairros diferenciados para a realização de entrevistas; f ) entrevistas
informais com líderes locais e habitantes contatados em postos de saúde, bares etc.; g) entre-
vistas formais gravadas nas residências com habitantes do bairro.
Em São José foram estudados quatro bairros e realizadas  entrevistas gravadas; em Rio
Claro, catorze entrevistas, gravadas em três bairros; em Marília, o estudo abrangeu três bairros
e  entrevistas. (As entrevistas informais não estão incluídas nesta relação).
Foram elaborados relatórios de pesquisa sobre cada uma das cidades estudadas e um traba-
lho especial foi preparado por Teresa Caldeira a partir da pesquisa bibliográfica da cidade de
São Paulo.


A escolha da “periferia urbana” como local e tema da investigação
merece uma justificação à parte.

A periferia

A população pobre está em toda parte nas grandes cidades. Habita cor-
tiços e casas de cômodos, apropria-se das zonas deterioradas e subsiste
como enclaves nos interstícios dos bairros mais ricos. Mas há um lugar
onde se concentra, um espaço que lhe é próprio e onde se constitui a
expressão mais clara de seu modo de vida. É a chamada “periferia”.
A “periferia” é for mada pelos bairros mais distantes, mais pobres,
menos servidos por transporte e serviços públicos.
Obviamente, o fenômeno de formação das periferias urbanas não
é novo e nem especificamente brasileiro. Em São Paulo, onde a vigoro-
sa expansão urbana data do século  e é contemporânea da imigração
estrangeira, a cidade crescia desordenadamente já havia um século.
Entretanto, a partir da década de , o crescimento urbano não só
aumenta de intensidade mas adquire características específicas que dis-
tinguem as novas periferias das antigas fímbrias urbanas.
Em primeiro lugar, nota-se, a partir dessa época, os efeitos da
maciça substituição de trabalhadores estrangeiros por migrantes nacio-
nais. Em segundo lugar, ocorre uma mudança muito radical no modo
de solucionar o problema da habitação para os trabalhadores. No passa-
do, o problema tendeu a ser resolvido pela iniciativa privada com vilas
operárias, a locação de cômodos ou casas. A partir da Segunda Guerra
Mundial, entretanto, que presenciou o congelamento dos aluguéis e a
emergência de uma legislação que protegia o inquilino, esse tipo de
investimento deixou de ser lucrativo. Abriu-se então um novo negócio:
a venda a prestações de terrenos de baixo valor imobiliário, isto é, aque-
les distantes ou localizados em áreas particular mente insalubres ou de
topografia desfavorável, de difícil acesso, sem serviços públicos e, fre-
qüentemente, sem documentação legal.
Vendeu-se, junto com os lotes, o sonho da casa própria, que pas-
sou a ser aspiração generalizada das classes populares. Seu resultado é
claramente visível: bairros de ruas irregulares, sem calçamento nem ilu-
minação, desprovidos de redes de água e esgoto, sem escolas e postos de
saúde, com transporte difícil e caro. As casas construídas aos poucos

 A sociedade vista da periferia


pelos próprios moradores parecem sempre inacabadas. Todo esse pro-
cesso já foi amplamente estudado em São Paulo
A criação desse sistema de moradia popular teve conseqüências
imprevistas e nem sempre funcionais do ponto de vista da necessidade
de reprodução da força de trabalho para o capital. A maior parte dessas
conseqüências prende-se a dois fenômenos inter-relacionados: a segre-
gação e a imobilização relativas da população. A propriedade, mesmo
ilusória, do terreno e o imenso esforço para a construção da casa cons-
tituem penosos investimentos a longo prazo – a população se fixa assim
de modo relativamente permanente no local, presa a um projeto inter-
minável. Por outro lado, como tende a ser semelhante o nível de ren-
dimentos dos que compram os terrenos, cria-se uma unifor midade
relativa da população segregada pela distância e pela dificuldade do
transporte para o resto da cidade.
A unifor midade e a segregação relativa parecem favorecer o
desenvolvimento de uma sociabilidade local que distingue essa popula-
ção das camadas mais abastadas. Para estas, as distâncias são eliminadas
pelo automóvel e pelo telefone, e a sociabilidade se exerce entre paren-
tes e amigos dispersos pela cidade. A casa ou o apartamento, isolados e
auto-suficientes, limitam um espaço social que não é complementado
pela vizinhança. Na periferia, ao contrário, onde se depende de um
transporte coletivo difícil e caro, a vizinhança e o bairro constituem
locais privilegiados para a formação de redes de sociabilidade.
Há ainda outras implicações mais diretamente políticas dessa
segregação e fixação da população de baixa renda. As pesquisas realiza-
das com segmentos os mais diferentes indicam claramente que sua
mobilidade espacial e ocupacional é orientada em função de um projeto
familiar de melhoria de vida. Mas, se esse processo é sempre pensado
como de responsabilidade do próprio trabalhador e ocorre todo dentro
da dimensão familiar privada, possui entretanto uma contrapartida
propriamente social. É que a melhoria das condições de vida decorre
também da urbanização da periferia, que ao longo do tempo permite o
acesso, por parte da população, aos serviços públicos urbanos: o asfalta-
mento e a iluminação das ruas, a água encanada e o esgoto, a construção
do centro de saúde e da escola, a condução mais próxima e mais fre-
qüente. É nessa esfera específica do morar que o projeto familiar de
mobilidade social passa a ter uma referência coletiva necessária, que
provém do confinamento no bairro criado pelo investimento na casa.


Não só a melhoria do bairro beneficia a todos, mas não pode ser obtida
com o esforço individual. É nesse momento e nesse contexto que a
população se torna receptiva a for mas de organização que per mitam
uma ação conjunta.
Toda essa dinâmica já foi amplamente estudada na cidade de São
Paulo. A proliferação das associações de moradores, que reflete a espe-
cificidade da forma pela qual as classes populares se constituem como
sujeitos políticos, foi ressaltada por grande número de pesquisadores.
Assim também há uma bibliografia bastante grande sobre movimentos
de reivindicação por escolas, centros de saúde, asfaltamento de ruas e
todos os demais benefícios próprios da sociedade urbana. Entretanto, os
processos propriamente culturais subjacentes a esta movimentação polí-
tica ainda não foram suficientemente esclarecidos. Por outro lado, a
generalização desse novo estilo de urbanização e de ação política nas
cidades do interior do estado exigia uma análise que não se restringisse
à cidade de São Paulo e ao espaço metropolitano, mas abrangesse cen-
tros urbanos menores. Só assim se poderia avaliar a amplitude, as carac-
terísticas comuns e as variações desse processo.

A visão da cidade

Nos núcleos urbanos pesquisados, todos de porte médio, a visão que a


população mais pobre tem da cidade é, no conjunto, positiva. Quando
se formula uma pergunta muito geral como “o senhor gosta daqui?”, ou
“o que acha da cidade?”, as respostas são muito semelhantes e incluem
um número limitado de padrões de referência.
As cidades médias são consideradas boas para se morar porque
são simultaneamente limpas e tranqüilas. A ausência de violência tam-
bém é apontada como uma das vantagens, assim como a ausência de
correrias e atropelos. Nesse contexto, está sempre presente, implícita
ou explicitamente, uma comparação com as grandes cidades, cujo
exemplo mais completo é sempre a cidade de São Paulo. Esta é caracte-
rizada negativamente pela poluição, aglomeração, atropelo, violência,
dificuldade de locomoção.
Como os depoimentos são muito semelhantes, um exemplo basta
para ilustrar o tipo de resposta mais freqüente. Diz um morador de Rio
Claro: “Gosto daqui. Se vou numa cidade como Campinas, por exemplo,

 A sociedade vista da periferia


é muito agitado, já não gosto. As cidades grandes como São Paulo, Cam-
pinas, são agitadas. Em tudo, desde a poluição. Aqui é tudo calmo, limpo”.
O conjunto de atributos mobilizados nessa visão comparativa,
define a valorização de um tipo de ordem que é constituída pela super-
posição de três planos: espacial, social e moral.

QUA DRO 1

CIDADE MÉDIA CIDADE GRANDE


limpeza – clima bom poluição
sossego – calma – tranqüilidade agitação – correria – atropelo
ausência de violência e criminalidade violência e criminalidade

Ao lado desses atributos referentes à ordem socioespacial, encon-


tramos um outro que diz respeito à presença de “recursos”. A palavra
“recurso” tem um sentido amplo e se refere, basicamente, à oferta de
certos serviços públicos: em primeiro lugar, assistência médica, mas
também escolas e transportes. Secundariamente, refere-se à presença de
equipamentos urbanos como água, luz, esgoto, pavimentação. Final-
mente, pode ainda incluir um comércio rico, variado e diversificado.
Quando a referência são os “recursos”, a comparação se desloca da
cidade grande para a cidade pequena ou o campo. Dois exemplos servi-
rão para ilustrar este contexto:

Moramos dezesseis anos num lugar do Paraná, numa fazenda de café. Marí-
lia é melhor que lá, lá não tem recurso, não acha remédio de graça, a gente
que é pobre precisa. Aqui ganha leite e remédio no posto [de saúde]. [Rio
Claro] é uma cidade de recurso, quando as crianças ficam doentes é fácil. Eu
vou para a Santa Casa, para o pronto-socorro. Para ir para a cidade tem bas-
tante condução.

Caracteriza-se assim uma nova oposição:

QUA DRO 2

CIDADE PEQUENA CIDADE MÉDIA


ausência de “recursos” presença de “recursos”


Uma terceira referência constante nos depoimentos diz respeito à ordem
econômica, e se expressa na avaliação da facilidade ou dificuldade em se
obter bons empregos. Neste contexto, a comparação é feita novamente
com as cidades maiores, e a condição desejável de abundância de bons
empregos é sempre associada à grande indústria. Assim, Rio Claro e
Marília, apesar de serem consideradas cidades muito boas, têm a desvan-
tagem de oferecerem poucos empregos. Em São José, por outro lado, a
grande oferta de empregos emerge sempre como a característica mais
positiva da cidade. As grandes cidades industriais como Campinas e São
Paulo, apesar de agitadas, violentas e poluídas, são valorizadas pelos
empregos que oferecem. Nessa mesma linha de considerações, as cida-
des pequenas estão ainda em maior desvantagem do que as cidades
médias, oferecendo muito menos oportunidades de trabalho.
No conjunto, essa visão da cidade que se poderia chamar de glo-
bal, que se manifesta nas respostas a perguntas muito gerais, tende a se
articular através da percepção de um eixo que é dado pelo continuum
rural-urbano. Este eixo, que abrange o campo, a cidade pequena, a cida-
de média e a grande metrópole, é definido de forma bastante precisa
porque, em geral, a população possui uma experiência muito próxima e
recente de migrações ao longo do continuum que lhe permite, através da
própria história familiar, construir os parâmetros dessa geografia.
Ao longo do continuum, as cidades são avaliadas em função de duas
dimensões ou duas ordens de atributos. As duas dimensões são muito
nítidas e são gerais a toda a população entrevistada. A primeira, biparti-
da, diz respeito à qualidade do espaço urbano que deve aliar ordem e
tranqüilidade com a presença de “recursos” como serviços médicos,
escolas, transportes etc. A segunda se refere à ordem econômica e se tra-
duz na abundância ou escassez de empregos bem remunerados, que são
sempre associadas à presença ou ausência de grandes indústrias.
Em ter mos da primeira dimensão, a cidade média é valorizada
positivamente em relação a ambos os pólos do continuum, por combinar
satisfatoriamente a tranqüilidade com os recursos. O campo e a cidade
pequena são mais tranqüilos, mas não oferecem recursos. A cidade gran-
de oferece recursos mas não tranqüilidade.
No que diz respeito à segunda dimensão, a oferta de empregos, as
cidades maiores são sempre favorecidas. São José dos Campos aparece
como a combinação ideal, pois oferece muitos empregos e recursos sem
ter destruído ainda a “tranqüilidade” própria das cidades médias.

 A sociedade vista da periferia


É necessário enfatizar um pouco a generalidade desse tipo de ava-
liação. Todas as entrevistas são extraordinariamente consistentes nos
critérios que usam para avaliar a cidade, embora possam variar no peso
atribuído a um ou outro fator na escolha da cidade onde estão residin-
do ou desejariam residir. Assim, pode-se preferir Rio Claro porque,
apesar da dificuldade de emprego, apresenta a vantagem de oferecer
muitos recursos e ser tranqüila. Ao contrário, pode-se optar por uma
cidade maior (como Campinas ou São Paulo), onde há maiores oportu-
nidades de emprego, apesar da ausência de ordem e tranqüilidade.
Quando, por outro lado, analisamos os dados acumulados nas pes-
quisas realizadas sobre São Paulo, encontramos os mesmos tipos de refe-
rência (Caldeira ). Na avaliação da cidade, os moradores da periferia
paulistana se referem constantemente às oportunidades de emprego
como a principal vantagem da cidade. Aparecem também referências aos
“recursos”, mas a valorização é menos unifor me, porque estão sempre
presentes a deficiência dos transportes e a ausência de serviços urbanos
que caracterizam a periferia. A poluição e a violência são freqüentemen-
te citadas como problemas da cidade. O que não é unifor me em São
Paulo é a valorização da calma e tranqüilidade. Embora se encontre às
vezes a valorização das cidades menores em função desses atributos, é
comum também o inverso – uma avaliação negativa das demais cidades,
por serem “muito paradas” ou “não terem movimento”.
É necessário, entretanto, indicar que essas representações a respei-
to da cidade são, em geral, muito sintéticas e tendem a se resumir em
uma ou duas frases com poucas palavras. Ao contrário, quando o dis-
curso se transfere da cidade para o nível mais concreto do bairro, da
casa, das perspectivas ocupacionais dos informantes, ele se amplia e se
enriquece. É no nível do vivido, das condições específicas de moradia e
trabalho que as avaliações da cidade adquirem seu sentido próprio
como orientação de vida e projeto de ascensão social
São esses, portanto, os grandes temas em torno dos quais o discur-
so se estende e se enriquece: o urbano, traduzido no bairro e na casa; o
econômico, traduzido no emprego. São essas as questões em torno das
quais se estrutura a experiência imediata, as áreas nas quais os cidadãos,
como “sujeitos”, assumem posições e tomam decisões sobre seu próprio
destino e em ter mos das quais visualizam as forças sociais impessoais
que aparecem como limites exter nos (criados de fora) que definem o
campo no qual as decisões são possíveis.


O bairro: a visão do progresso

Em São José dos Campos, Marília e Rio Claro, como em São Paulo e
nas demais cidades brasileiras em crescimento, a constituição da perife-
ria é um processo constante. A população mais pobre e os recém-chega-
dos tendem a se localizar nas fímbrias da área urbanizada, onde a ausên-
cia de serviços como luz, água, iluminação, calçamento, esgotos torna o
solo mais barato e mais acessível. Aí se localizam as residências mais
modestas e os aluguéis mais baratos. Com o decorrer do tempo há um
aumento da densidade populacional e a prefeitura tende a estender os
serviços públicos, valorizando os terrenos. As residências incompletas e
precárias do início do povoamento ganham uma série de refor mas,
melhorias e ampliações. A cidade engole a antiga periferia, que se recria
numa nova fímbria.
Todo esse processo faz parte da experiência de vida da população,
que o assimila como parte das condições “dadas” dentro das quais rea-
liza o planejamento de uma estratégia de sobrevivência e ascensão
social. No conjunto, o processo é caracterizado pela população como
“progresso da cidade”, avaliado positivamente e utilizado como uma
das formas de transformação da sociedade global que a pode beneficiar
diretamente.
A periferia, vista como processo pelos seus próprios habitantes,
provoca assim uma visão diferencial e histórica dos bairros da cidade, e
a localização dos habitantes ali é correlacionada com sua posição na
sociedade e com sua perspectiva de melhoria progressiva.
As entrevistas são muito claras a esse respeito:

Hoje tem umas casas boas, inclusive tem nego rico morando aqui. Tem um
professor ali, outro lá. Não contando as casas dos pobres, tem várias casas
bonitas. Mas naquele tempo [início do loteamento] dava vergonha. Era só
maloca. (Rio Claro)

Antes não tinha luz, comprava gelo para a cerveja e ia ajeitando. Agora já tem
luz. Falta luz na rua, calçamento, esgoto, mas pelo tempo deste loteamento
está adiantado, nos outros demora mais. O prefeito aqui, a fiscalização não nos
atrapalhou nada. Todo mundo fez as suas casinhas e a fiscalização não atra-
palhou. O prefeito tem atenção pelos moradores. (São José dos Campos)

 A sociedade vista da periferia


Depoimentos muito semelhantes foram obtidos por diversos pes-
quisadores que trabalharam em São Paulo. É nessa avaliação do pro-
gresso que aparecem nitidamente os aspectos considerados positivos
da vida urbana.

Este bair ro aqui é bom. Antes era mais quieto. Agora tem muita gente. Tem
casa boa, tem lojinha de roupa, açougue tem bastante, tem bastante casa
de negócio. Antes não tinha nada. Tinha que ir comprar mais perto do centro.
E não tinha ônibus, não tinha luz, não tinha água. Água até hoje, a bem dizer,
não tem, porque eles desligam às sete da manhã e só vai chegar às quatro da
tarde, às vezes de noite. Agora deu no rádio que vai ter esgoto. Então eu acho
que vai ter que arrumar a água. Tem que ser. Esgoto sem água... (Rio Claro)

O processo é tão claro, que é facilmente verbalizado e conta como


investimento. Há também uma evidente hierarquia na avaliação desses
“recursos” que corresponde, em geral, à ordem em que nor malmente
são atendidos: em primeiro lugar, a luz, sem o que é o mesmo que
“viver no mato”. Em seguida, a água e o transporte. Depois a escola, o
comércio, os postos de saúde. Por último, o esgoto, o asfalto e a ilumi-
nação pública.
A população conta com esse processo. Uma das famílias entrevis-
tadas em Rio Claro tinha acabado de construir uma casa na periferia
mais distante. Mas, como lá não tinha luz, alugou a casa, que era me-
lhor, e continuou a morar pagando aluguel numa casa pior, mas que
tinha luz. Estava esperando a luz “chegar” na casa própria.

O lote e a casa: a melhoria de vida

O processo se inicia pela compra do lote, prossegue com a construção


parcelada da casa e é o mesmo que se encontra na periferia de São
Paulo, extensamente analisado. Confor me afir mou um dos donos de
loteamento periférico em Rio Claro, o importante para vender é que a
prestação do lote seja menor do que o aluguel de uma casa. “Aí, para o
sujeito já é vantagem.” Com o que estava gastando com o aluguel,
“paga o que é seu”, e só precisa arranjar um dinheirinho para construir
um barraco, onde mora provisoriamente até poder ir melhorando a
moradia, num investimento contínuo.


Com o dinheirinho que trouxe de Jaú paguei a entrada do terreno: trinta cru-
zeiros. Com o resto, comprei tijolo e telha. Fiz estes dois cômodos aqui e entrei
dentro. Era baixinho, não tinha altura que está hoje. Não tinha piso nem
porta. Ganhamos uma porta e uns caixotes; com o caixote eu fiz a janela. Era
um barraco. De tijolo, mas era barraco. Fui trabalhando, melhorando. Subi a
altura. pagando na base da amizade, da ajuda, mas sem compromisso. (Quer
dizer, se alguém ajudava aqui, quando eu estava folgado ia ajudar ele, mas não
tinha obrigação.) Com dois anos consegui deixar estes cômodos deste jeito... Fiz
mais um cômodo. Daí ficou parecendo uma casinha. (Rio Claro)(grifo meu)

Viemos, pagamos. Eu tinha umas tábuas, a gente podia morar no lote, mas
não podia construir ainda. Fiz um barraco de madeira, até que o guarda-roupa
era a porta da frente. Era junho, era frio, e as paredes eram só de coberta. Fica-
mos ali e eu meti pau. Trabalhava de dia em construção, e de noite e domingo
era aqui. E nós fomos construindo... Hoje [um ano depois] já tem tudo isso
construído [um bar e cinco cômodos]. Trabalhou, tem coragem para trabalhar,
consegue. Esperar cair do alto não cai mesmo. (São José dos Campos)

Todos os outros entrevistados, sem exceção, expressaram opiniões seme-


lhantes. O geral é o relato da construção da casa por fases como o melhor
exemplo de que com empenho e esforço as coisas vão melhorando, deva-
gar e sempre: há progresso, enfim. No que diz respeito à casa própria, as
declarações anteriores indicaram que seu significado ultrapassa bastante
a idéia de segurança. É, por um lado, a prova de que é possível ascender;
por outro, é uma poupança e um investimento. Os terrenos valorizam, a
casa pode ser ampliada e alguns cômodos alugados para garantir uma
renda extra e, no limite, pode ser vendida para se realizar um outro pro-
jeto: comprar um sítio no interior, estabelecer-se por conta própria.
A experiência de mais de uma casa no mesmo terreno é freqüente.
A do fundo, normalmente a mais velha e precária, se prolonga e melho-
ra para a frente, ou vice-versa. Nessas residências múltiplas, os cômo-
dos são alugados ou cedidos a parentes, geralmente irmãos ou filhos.
O processo todo é muito penoso e freqüentemente exige o esforço
prolongado de toda a família. Os filhos empregados ajudam o pai, vão
casando e ficando, continuando a pagar, ampliando mais um ou dois
cômodos separados para a nova família. Mas propriedade coletiva sem-
pre cria problemas. Com a morte dos pais, os problemas de divisão da
herança são fonte de muitos conflitos.

 A sociedade vista da periferia


O processo, portanto, não tem fim. Assim que termina a dolorosa
via crúcis do pagamento do terreno e da construção da casa dos pais,
recoloca-se a necessidade de começar tudo outra vez para os filhos.
A esperança é que os filhos já estejam melhor de vida, tendo estudado e
arrumado emprego melhor, podendo começar de um patamar um
pouco mais alto. Quem consegue realizar esta esperança, tendo empre-
gado nela toda a sua juventude e maturidade, considera que, na verda-
de, venceu na vida. O mesmo processo e as mesmas avaliações são
encontrados tanto em São Paulo como nas cidades investigadas.
Há, portanto, em todo esse conjunto tão consistente de avaliações
sobre a cidade, o bairro e a casa, uma orientação básica comum – o pro-
jeto de melhoria de vida. A crença na viabilidade desse projeto se apóia
na crença do progresso. A experiência das transfor mações por que está
passando a sociedade brasileira é vista, em geral, de modo positivo,
como uma abertura das possibilidades de melhoria de vida da população,
que pode aproveitar-se delas pelo esforço. Essa experiência do progresso é
a experiência de urbanização, pensada como um processo, concretizado
na história de vida, de acesso crescente a recursos urbanos: morar em
casa própria, em local asfaltado, iluminado, com água, esgoto e condu-
ção, perto de escolas e postos de saúde.
Toda esta construção de um modelo de vida decente e confortável,
que orienta os julgamentos da população sobre a sociedade e o lugar
que nela ocupam, está, entretanto, intimamente vinculada a uma valori-
zação da propriedade – não dos meios de produção, mas do espaço
onde se desenrola sua vida, a casa. Nesse sentido é que se pode dizer
que a propriedade valorizada é duplamente privada: na forma jurídica e
no modo de vida familiar a que se refere.4

. Há ainda uma observação que se faz necessária sobre os conjuntos habitacionais do .
O ingresso nesse sistema não altera radicalmente o discurso. Em primeiro lugar porque,
construídos geralmente em local distante, implicam igualmente a expectativa de que o pro-
gresso chegue ao bairro, com a urbanização dos vazios e o aumento da oferta de serviços
públicos. Depois, porque todo o discurso sobre o esforço e o sacrifício se altera muito pouco
– refere-se à prestação da casa, em vez da do lote, e à reforma, em vez da construção inicial.
Com efeito, a necessidade de fazer o muro que cerca o terreno aparece para a população
como uma primeira necessidade que se segue à mudança. Depois, começa o processo de
ampliação (que se inicia sempre pela cozinha) e embelezamento das fachadas. Com isso, nos
conjuntos mais antigos, a uniformidade original desapareceu quase que totalmente, o que a
população valoriza muito (“aqui já não parece ”).


O emprego

Como fica muito claro na exposição anterior, a população sente que se


beneficia das vantagens da cidade não apenas na medida em que utili-
za os “recursos”, mas principalmente na medida em que se torna pro-
prietária de uma casa e o bairro onde mora “progride” e recebe
melhoramentos.
Mas tudo isso constitui apenas uma dimensão da cidade, porque a
própria per manência no local e a utilização dos recursos urbanos de-
pendem de conseguirem um emprego. O problema do emprego está
sempre presente, e o discurso sobre esta questão é o mais articulado, o
mais extenso e o mais unifor me. Na representação da população de
Marília e Rio Claro o problema do emprego aparece nitidamente asso-
ciado ao do crescimento da população. Os habitantes mais antigos têm
uma visão “histórica” do problema:

Eu acho a cidade boa, mas acho que tem pouco emprego. Tenho um filho que
teve que ir trabalhar fora por falta mesmo de emprego. Ele tem diploma, fez
SENAI, tem tudo... E nem assim arranjou. (Marília)

É o que eu digo, nesta cidade só falta mesmo é indústria. Problemas de asfal-


to, de jardim, não tem não. Está tudo bom. (Rio Claro)

É muita gente querendo trabalhar. A turma do sítio veio toda para a cidade.
É por isso que falta serviço. Isso é de uns tempos para cá. Teve uma lei aí que
apertou muito os fazendeiros. Antes eles tinham os empregados nas fazendas e
quando aposentava podia mandar embora. Agora não, têm que ficar com o
empregado lá dentro. Então eles não querem mais empregados moradores.
E o que aconteceu? Os empregados vieram morar na cidade e têm que tomar
caminhão para ir trabalhar no sítio. Isto num ponto ajudou a cidade a crescer.
Tiveram que fazer loteamento porque não comportava. Mas também, muitos
que trabalharam no sítio agora trabalham na cidade e assim o serviço dimi-
nui. (Rio Claro)

Estas entrevistas não são casos isolados. A noção de que em Rio Claro
e em Marília o mercado de trabalho está saturado é muito geral, e apa-
rece em quase todas as entrevistas. Além da migração local e regional,
aponta-se também a grande migração interestadual do Paraná, de

 A sociedade vista da periferia


Minas e do Nordeste, também denominado “Norte” (que, na concep-
ção popular, engloba a Bahia).
Vê-se, portanto, que há uma nítida percepção da existência de um
mercado de trabalho. Essa compreensão do mercado de trabalho está
associada à valorização da presença de indústrias que apontamos ante-
riormente. Na percepção das pessoas, apenas a grande indústria garante
um mercado de trabalho favorável à mão-de-obra, oferecendo empre-
gos mais bem pagos e aumentando o valor da força de trabalho em
todas as demais ocupações.

Pra ser boa para morar, uma cidade precisa ter indústria para pagar bem.
E aqui não tem. (Rio Claro)

Aqui em Marília a falta de emprego é a que traz dificuldade. Muitas indús-


trias que tinham serviço para homem já foram embora. Temos agora umas
poucas, mas só para mulher. (Marília)

Também parece ser consenso geral que a solução para o problema da


falta de emprego seria não apenas a ampliação, mas a modernização do
parque industrial. Não se valoriza igualmente qualquer indústria, mas
especialmente a grande indústria.

O bom mesmo é indústria, para dar mais emprego e ter um padrão de vida
melhor. Sem indústria, não tem emprego. Comércio dá emprego, mas é pouco.
Uma loja grande pega quinze empregados. E quinze e nada é a mesma coisa.
A cidade está crescendo de todo lado. A população aumenta e a indústria não
dá trabalho [suficiente]. Uma cidade para ter um bom desenvolvimento pre-
cisa ter indústrias de material pesado, como aquelas do ABC, que tem as meta-
lúrgicas. Aí sim. Indústria de  mil,  mil empregados. Sem isso, não adianta
aumentar a população. Aqui, há sete anos atrás, tinha  mil habitantes.
Hoje tem mais ou menos  mil. Não é só os que vêm de fora não. É os que
nascem também, que nasce muito mais do que morre. E ainda vêm as pessoas
do sítio. (Rio Claro)

Essa valorização da grande indústria está presa à percepção do merca-


do de trabalho estruturado em três tipos de empregos: o de bóia-fria;
o emprego urbano que paga salário mínimo ou pouco mais e que é
constituído pelas indústrias tradicionais, pela construção civil e por


um conjunto disperso de empregos pouco numerosos, como atendente
de posto de gasolina, auxiliar de oficina mecânica, as ocupações menos
qualificadas do serviço público e dos hospitais, além da faixa dos bisca-
tes; e, finalmente, a indústria moder na, que paga melhor. Esse é, de
modo geral, o mercado de trabalho no qual a população de baixa quali-
ficação pode disputar empregos. Fora daí, resta o caminho, em geral
sonhado como carreira para os filhos, que passa pela escolarização de
nível médio ou superior e que per mitiria a passagem para o trabalho
não manual ou manual de alta qualificação. A outra alter nativa, ainda
mais difícil, é a de abrir um “negócio”.
A fábrica é, em qualquer circunstância, a referência central. É o
critério a se privilegiar na procura de um emprego, mesmo para aqueles
que não têm nenhuma qualificação pois, além do salário, oferece uma
série de garantias ou vantagens. A questão é colocada com muita nitidez
em São José dos Campos, onde o emprego fabril é abundante.

A gente mora aqui porque depende da fábrica, o único jeito de viver é depen-
der da fábrica. Cidade pequena sem fábrica não dá. Ele [o marido] é profis-
sional, mas depende da fábrica: se ele for trabalhar fora da fábrica, ganha a
metade. (São José dos Campos)

Gosto mais de fábrica, já acostumei. Fábrica tem toda garantia, tem INPS,
convênio, hospital [...] Prefiro fábrica: tem horário pra chegar e pra sair, a
gente sabe que deu aquele horário, acabou. No campo e de sapateiro não tem
horário, tem que trabalhar de manhã até de noite. (São José dos Campos)

Como se vê, para a população das cidades médias o problema é muito


claro. Os empregos urbanos mais acessíveis pagam salário mínimo, o que
é insuficiente para sustentar a família. Como bóia-fria ganha-se mais, mas
o trabalho é muito duro, incerto e sem qualquer garantia trabalhista. Por
outro lado, o trabalho manual urbano melhor remunerado, como o ofe-
recido pelas indústrias, é pouco e exige qualificação. A solução seria
aumentar a oferta de trabalho mais bem remunerado, aumentando o nú-
mero de indústrias. Isso per mitiria aproveitar toda a mão-de-obra com
alguma escolaridade e qualificação, diminuindo a oferta de trabalho nos
demais setores, o que acarretaria o aumento de salário também nessas
outras empresas e no setor rural, como ocorre em São José dos Campos.
A solução alternativa seria parar o aumento populacional.

 A sociedade vista da periferia


Há inúmeros depoimentos em que estas questões são colocadas
com muita nitidez. Seria desnecessário multiplicar os exemplos. Mas é
importante salientar que toda a discussão sobre o mercado de trabalho
está integralmente per meada pela preocupação com o salário. Nota-se
claramente que a riqueza do discurso sobre esse tema indica uma tenta-
tiva de compreender os mecanismos responsáveis pelo baixo nível sala-
rial. Nesse contexto, aparece freqüentemente uma referência ao valor,
não do trabalho, mas do trabalhador. Ela surge, por exemplo, na queixa
de que “aqui o trabalhador não tem valor”, ou na discussão sobre as
vantagens para o mercado de trabalho que advêm da presença da gran-
de indústria, quando se afirma que “só assim o trabalhador ia ter valor”.
O salário aparece assim, para o trabalhador, como expressão do valor
que a sociedade lhe atribui e, portanto, como indicador objetivo da
posição que ocupa na sociedade.
A comparação com as pesquisas realizadas em São Paulo não pode
ser direta, pois o material não é equivalente. Com efeito, sobre o traba-
lho, as pesquisas vêm se acumulando há anos e são muito mais amplas,
extensas e minuciosas do que as infor mações colhidas nas entrevistas
que realizamos nas cidades médias. O mercado de trabalho é também
muito mais amplo e complexo, o que se reflete na diversidade das pers-
pectivas ocupacionais e dos projetos profissionais. Mas encontramos
aqui também a valorização da indústria moderna como elemento dina-
mizador do mercado de trabalho (mesmo que as perspectivas ocupacio-
nais se dirijam a outros setores) e a preocupação com o nível salarial
como expressão do valor do trabalhador. As pesquisas mais recentes,
realizadas quando se anunciava a estagnação econômica, demonstram
também a preocupação com a saturação do mercado de trabalho decor-
rente da continuidade do fluxo migratório.
Tanto num caso como em outro (cidades médias e metrópole),
dentro dos limites estabelecidos pelo mercado de trabalho e o baixo
nível salarial, as soluções são variáveis e, normalmente, encobrem toda
uma estratégia familiar de distribuição de seus membros por diferentes
tipos de ocupação, na tentativa de aumentar a renda da família para per-
mitir o investimento na compra da casa. Paralelamente, há um esforço
muito grande para garantir o “estudo” para os filhos, como mecanismo
para aumentar o nível de qualificação e assegurar uma posição mais
competitiva no mercado de trabalho.


O Estado

As referências ao Estado aparecem em contextos diferentes que dizem


respeito a dois níveis: o do gover no federal e o dos poderes locais.
Quando a conversa aborda os problemas do custo de vida e do nível
salarial, a questão é sempre referida ao “gover no”, que deveria tomar
alguma providência. No contexto, a palavra “governo” sempre denota
uma esfera mais distante do que os poderes locais, e não há muita varia-
ção nos depoimentos colhidos em diferentes cidades: o “gover no”
deveria controlar a inflação e fazer aumentar o salário.

A inflação está aumentando dia por dia. Não adianta querer controlar a infla-
ção. A situação está dura. Não sei nem quem é o culpado. Essa turma, uns
falam, criticam o gover no. (Rio Claro)

Para melhorar esse custo de vida, só o salário, o salário subindo. Porque a


gasolina sobe todo mês, o salário não sobe, sobe uma vez por ano, mercadoria
sobe doze vezes. Aí é difícil. O que precisava melhorar é o salário, mas aí
quem dá jeito é o gover no. Se ele quiser pagar  mil ele fala, é obrigado as
firmas pagar. (Marília)

O custo de vida não tem jeito. Sempre foi assim e vai piorar mais ainda. Nós
temos que consumir, não tem jeito. Só se for todo mundo plantar. Mas aí tam-
bém o gover no tinha de dar proteção. (Rio Claro)

O custo de vida sobe e o salário não. Uma parte do custo de vida é com o pró-
prio morador, o dono da casa: tem que procurar comprar nos lugares mais
baratos. A outra parte é com o gover no. (Marília)

Em São José dos Campos, os depoimentos são semelhantes. O proble-


ma do custo de vida é visto não como próprio da cidade, mas geral, e da
responsabilidade do “gover no”. Em Rio Claro, cidade com tantos
bóias-frias, a questão do custo de vida tende a ser relacionada com o
êxodo rural. “A obrigação do governo seria fazer a turma plantar, plan-
tar mantimentos [...]. O governo devia comprar as fazendas dos fazen-
deiros e pôr gente para plantar” (Rio Claro). O mesmo ocorre em
Marília: “Se o gover no resolvesse botar para produzir arroz, feijão, aí
não tinha esses aumentos”.

 A sociedade vista da periferia


Entretanto, em nenhuma entrevista surge qualquer expectativa de
influir nesse governo tão distante. Não parece haver nenhuma mediação
entre esse nível do Estado e a população em geral: a exterioridade é
completa. O discurso é vago e vazio. Por outro lado, no contexto que
diz respeito aos órgãos públicos que atuam no nível municipal e, espe-
cialmente, a prefeitura, as expectativas são mais concretas e as relações
com a população percebidas com mais clareza. As referências à prefei-
tura sempre aparecem na discussão dos problemas do bairro e apresen-
tam maiores diferenças de cidade a cidade que derivam do contexto
urbano específico.
O que é geral nessas expectativas e na concepção dessas relações é
que todos esses órgãos são designados sempre como “eles”. Define-se
claramente a exterioridade dos órgãos públicos, e nem mesmo os verea-
dores ou prefeitos são concebidos como seus representantes por essa
população. Entretanto, estão mais próximos do que o distante “gover -
no”. As pessoas conhecem o prefeito e a prefeitura, têm uma idéia do
que fazem ou deixam de fazer.
Há entretanto, alguma variação na concepção das atribuições da
prefeitura e dos demais órgãos que atuam no nível municipal (,
, ). Na visão mais generalizada, a prefeitura é a responsável
por todos os serviços urbanos. Mesmo quando se reconhece que os
órgãos responsáveis não são da prefeitura, é o prefeito que deve provi-
denciar os melhoramentos públicos.

Aqui no bair ro falta um bocado de coisa, principalmente o esgoto. Mas a


gente não pode fazer nada. Depende do prefeito, dos vereadores, daquela
gente de lá. (Rio Claro)

Eu ouvi no rádio que agora vem esgoto. E também que vai passar asfalto na
rua do ônibus. Ele [o prefeito] fez essa promessa. Faz tempo que nós estamos
pedindo, fazendo abaixo-assinado. (Rio Claro)

Quanto à crença na eficácia da pressão popular, dos pedidos e dos abaixo-


assinados, há muita variação:

A cidade precisa sempre de muitas coisas. Se a gente vai deixando e a cidade


é muito grande, tem muitas regiões, não dá para a prefeitura fazer tudo. Tem
que dividir. Então a gente tem que pedir [...]. Agora, o mais certo na cidade é


que a prefeitura faz tudo conforme a gente pede. Veja o show do meio-dia, no
rádio. A cidade pede e ele dá. (Rio Claro)

Por outro lado, há atitudes mais céticas ou mesmo de descrença:

O prefeito antes vinha muito aqui. Agora nem vem mais. Eu não falo, que
não entendo nada. Mas a turma de lá fala mal dele – que nem esse esgoto aí
– diz que é só promessa. (Rio Claro)

De qualquer modo, como a prefeitura é considerada a grande responsá-


vel pela cidade, como a visão da cidade e do seu crescimento é ordena-
da em ter mos de uma visão de progresso, a prefeitura adquire alguma
legitimidade. Além da responsabilidade pelos serviços públicos, cabe
também a ela zelar pelo bem-estar da população. Desse modo, a crença
geral, já indicada, de que a solução da falta de emprego – maior proble-
ma da cidade, que só pode ser feita com a instalação de indústrias
modernas, é também considerada atribuição da prefeitura. O prefeito e
os vereadores deveriam atrair indústrias.
Cabe ainda ressaltar que a relação entre prefeitura e população é
definida em termos de dar de um lado, pedir de outro. A população pede.
O prefeito dá ou não dá e é julgado de acordo. Cabe à prefeitura fazer.
Alguns acham que está fazendo bastante, outros que não está fazendo
nada ou muito pouco.
Também há a noção de que o prefeito faz mais pelos bairros cen-
trais, mas, normalmente quando avaliam a atuação dos órgãos munici-
pais, as pessoas o fazem estritamente em relação ao seu bairro e não em
termos da cidade em geral. É assim, indiretamente, que aparece o pro-
blema das diferenças de classe na cidade, de seus interesses divergentes
e de sua separação: na estratificação espacial e na identificação do nós
como aqueles que ocupam um mesmo lugar na hierarquia dos bairros e
das vilas.
Em São José dos Campos, por outro lado, as referências à pre-
feitura são mais elogiosas. A idéia é que a prefeitura está fazendo o
que deve, atendendo progressivamente as reivindicações legítimas
da população.

São José não é uma prefeitura rica: ela vem sendo bem administrada. A idéia
do prefeito é a de que exista o centro e existam bairros, cada um com tudo que

 A sociedade vista da periferia


precisar. Isso aliás, é o padrão inter nacional. O padrão é que exista uma esco-
la em cada bairro. Às vezes, quando não dá para construir a escola direito, faz
quebra-galho, faz modulado. (São José dos Campos)

Essa expectativa de atendimento gradual é que parece estar sendo


preenchida em São José, e explica o fato de não ter mos encontrado
nessa cidade, ao contrário de Marília e Rio Claro, movimentos reivindi-
cativos. Num dos bairros, um movimento iniciado para obter luz extin-
guiu-se antes de se consolidar com o atendimento da reivindicação.
Em suma, em São José dos Campos, a atuação da prefeitura pare-
ce estar mais próxima daquilo que a população considera ser seu papel.
Aqui, mais uma vez, embora não seja possível uma comparação
direta com as pesquisas feitas em São Paulo, que se orientam em geral
em outra direção, encontramos nítidas correspondências com os discur-
sos comuns na periferia paulistana: a relação mais direta e mais reivin-
dicativa com a prefeitura, a oposição entre pedir e conceder (às vezes
transformada num exigir e obter). O “governo”, também em São Paulo,
assume a posição distante e inatingível, sendo responsabilizado pelo
aumento do custo de vida e pela diminuição do salário. Mas, obviamente,
com uma presença sindical mais forte e atuante, com a presença mais
marcada da nova Igreja e, recentemente, com a emergência do , as
situações se diversificam e o discurso às vezes se altera, indicando maior
politização. No conjunto entretanto, ainda predominam as concepções
e formulações que encontramos nas cidades do interior.

As dimensões do público e do privado

Os resultados de uma pesquisa exploratória como esta seriam em si


muito pouco significativos se não fosse pela extrema uniformidade dos
resultados obtidos por equipes diferentes de investigadores trabalhando
independentemente em cidades diversas. Mais ainda, os julgamentos e
avaliações dos moradores das periferias das cidades médias são muito
semelhantes àqueles revelados por pesquisas que vêm sendo feitas na
cidade de São Paulo nos últimos anos.
Resultados diferentes desses que obtivemos vêm sendo revelados
apenas pelas pesquisas mais recentes realizadas na periferia paulistana.
Com efeito, nesses trabalhos, alguns dos quais ainda em andamento,


tem-se notado um pessimismo crescente, uma crítica mais acerbada,
uma tensão que não são aparentes nas pesquisas mais antigas nem nos
dados que coletamos nas cidades menores. Aliás, a simples observação
direta das periferias de São Paulo e das outras cidades revela muito cla-
ramente a maior deterioração das condições de vida da população pobre
paulistana. Os bairros periféricos de Marília, Rio Claro e São José dos
Campos estão longe de suscitar a mesma impressão de miséria, poluição
e amontoamento da população que é tão visível em São Paulo. Também
nas cidades menores é muito menos nítido o contraste entre os excessos
de riqueza e de pobreza que a cidade de São Paulo exibe acintosamente.
Por isso mesmo, a crença em que a melhoria das condições de vida pode
ser conquistada pelo esforço pessoal e pela colaboração familiar parece
estar se esvanecendo mais rapidamente na metrópole do que nas cida-
des menores.
O estudo comparativo dos resultados de muitas investigações
parece assim revelar, simultaneamente, a generalidade de uma certa
representação da sociedade e o início de sua transfor mação. Usando o
material disponível, é possível tentar configurar, de modo um pouco
mais preciso, essa interpretação da realidade social que tem conforma-
do a prática popular e que parece estar em vias de se alterar.
A análise dos depoimentos mostra, de forma muito clara, que essa
visão de mundo se estrutura em termos de duas dimensões independen-
tes, mas articuladas – uma diz respeito à vida privada e é vista como
dependente diretamente da iniciativa e da responsabilidade de cada um;
outra, que chamaremos pública, compreende, de um lado, a sociedade
propriamente dita e, de outro, o Estado. A articulação entre essas di-
mensões é estabelecida pela compatibilidade entre crenças e valores que
caracterizam cada uma das dimensões: na vida privada, a crença na possi-
bilidade de melhoria de vida; na sociedade, a crença no progresso; no
Estado, a esperança de justiça social.
No nível da vida privada situam-se, complementar mente, o indi-
víduo e a família. O discurso que revela o indivíduo é basicamente
aquele que se refere ao trabalho, ao problema do emprego. Nesse dis-
curso, a ênfase é colocada sempre na necessidade do esforço individual
como instrumento indispensável para se “melhorar de vida”.
Por outro lado, o trabalho individual remete à dimensão social do
mercado de trabalho, apreendida sob a categoria “ter ou não ter empre-
go”, sempre presente de forma muito marcante no discurso dos infor -

 A sociedade vista da periferia


mantes. O mercado de trabalho constitui claramente, para essa popula-
ção, uma forma básica de apreensão da sociedade, marcada por sua exte-
rioridade em relação à capacidade de ação dos trabalhadores. O mercado
de trabalho é compreendido como um dado da realidade com o qual as
pessoas devem lidar, mas que não podem alterar. A natureza desse mer-
cado de trabalho é determinada pela grande indústria, cuja presença ou
ausência estabelece, na visão dos trabalhadores, as oportunidades de
emprego. Por outro lado, o próprio uso do termo “emprego” para carac-
terizar esse aspecto da realidade social é muito significativo, pois como
categoria ele compreende, simultaneamente, tanto a quantidade e a qua-
lidade das posições existentes no mercado de trabalho, como o nível
salarial que per mitem alcançar. Desse modo, referindo-se à estrutura
impessoal do mercado, relaciona-a imediatamente, através do salário, às
condições de vida, expectativas e vivências do trabalhador.
Pertence também à dimensão da vida privada a família. A impor-
tância da família como elemento básico de organização do modo de
vida das classes populares está amplamente documentada em todos os
depoimentos. Nota-se também que as referências à família estão cons-
tantemente associadas ao consumo. Ao contrário do trabalho, que pos-
sui uma referência individual necessária, o consumo é essencialmente
familiar, exigindo a reunião das contribuições de diferentes membros do
grupo doméstico. A família aparece assim como unidade de rendimentos,
unidade de consumo e lugar da divisão sexual do trabalho. A contrapar-
tida social do universo privado da família é, portanto, o mercado de
consumo, isto é, a oferta de bens e serviços colocados à disposição dos
compradores. A compreensão da natureza desse mercado está contida
na referência constante ao custo de vida. Como os termos “ter emprego”
e “salário”, o “custo de vida” refere-se, simultaneamente, à impessoali-
dade do mercado e às condições de vida pessoais e concretas. Em fun-
ção do “custo de vida”, a organização privada da vida familiar se faz em
termos de poupança e sacrifício.
Nessa perspectiva, a sociedade, como realidade exterior à vida pri-
vada, aparece como mercado, na dupla face de mercado de trabalho e
mercado de consumo.
Temos assim um conjunto inicial de categorias articuladas que es-
truturam a percepção da realidade social. Colocando entre parênteses os
termos introduzidos pelo investigador para diferenciá-los das categorias
empregadas pela população, podemos construir o seguinte quadro:


QUA DRO 3

DIMENSÃO PRIVADA CATEGORIA DE CONEXÃO DIMENSÃO SOCIETÁRIA


(indivíduo) salário (mercado de trabalho)
trabalhador – esforço oferta de emprego – indústria
família
poupança – sacrifício custo de vida (mercado de consumo)

Note-se que a família desempenha um papel-chave nessa articulação


uma vez que, colocando seus diferentes membros como indivíduos no
mercado de trabalho e reunindo os diferentes rendimentos assim obti-
dos para o consumo comum, constitui a instância na qual são mutua-
mente referidos o salário (obtido individualmente) e o custo de vida
(que condiciona o consumo coletivo). Além disso, é à família propria-
mente que se aplica o projeto de “melhoria de vida”, pensado como
processo intergeracional e que exige a qualificação crescente dos traba-
lhadores. Note-se que essa qualificação é sempre apresentada como
sendo de responsabilidade privada do trabalhador e de sua família. É na
família, portanto, que se articulam as referências ao mercado de traba-
lho e ao mercado de consumo, a dimensão privada e a social na relação
necessária entre salário e custo de vida.
O projeto de melhoria de vida que organiza a atividade individual
e familiar parece se concretizar de modo muito marcante na casa pró-
pria. Resultado do trabalho e dos esforços dos indivíduos, do sacrifício
e da poupança de toda a família, a casa própria constitui, por assim
dizer, a síntese da dimensão privada da vida social. Mais ainda, a casa,
momento muito rico do discurso, aparece como objetivação do nível de
melhoria de vida atingido. Sendo espaço privilegiado da vida privada, a
casa tem como contrapartida, na dimensão da sociedade, os serviços
urbanos: água, luz, asfalto, iluminação pública, transporte, escolas e
postos de saúde. O envolvimento da casa pela urbanização do bairro
constitui assim a face social da melhoria de vida concretizada na casa.
A “melhoria de vida” se realiza portanto por dois modos complementa-
res. De um lado, pelo acesso dos indivíduos, graças ao seu esforço, a
bons empregos que permitem, com a poupança (sacrifício) da família, a
construção da casa própria. De outro, pelo acesso crescente aos benefí-
cios urbanos. O progresso da sociedade que garante a possibilidade de
melhoria da vida privada consiste no processo de ampliação do mercado

 A sociedade vista da periferia


de trabalho e no acesso ao mercado de consumo deter minados pela
industrialização e na oferta crescente de serviços urbanos à população.
Nosso quadro inicial pode ser agora ampliado:

QUA DRO 4

DIMENSÃO PRIVADA CATEGORIAS DE CONEXÃO DIMENSÃO SOCIETÁRIA


(indivíduo) salário (mercado de trabalho)
trabalhador – esforço oferta de emprego – indústria
família
poupança – sacrifício custo de vista (mercado de consumo)
casa recursos bairro – cidade
valor: melhoria de vida valor: progresso

Conclusão

Algumas observações adicionais podem ser feitas em relação a esse


esquema. Em primeiro lugar, deve-se considerar que a apreensão da
sociedade (em oposição à vida privada) é dominada pela percepção do
mercado em sua dupla dimensão de oportunidades de emprego e custo
de vida. Trata-se, portanto, propriamente, da “sociedade civil” na sua
acepção clássica, concebida aqui como exterior à ação individual, como
“dado” que configura os parâmetros dentro dos quais as pessoas (nas
famílias) devem procurar suas possibilidades de melhorar de vida. Em
segundo lugar é necessário mostrar que a importância crucial da cren-
ça na “melhoria de vida” e no “progresso” como elementos estrutu-
rantes da percepção da sociedade e da prática indica menos uma visão
estática da morfologia social que a apreensão de um processo. Esse
processo corresponde à síntese do modo pelo qual as pessoas viveram
as transfor mações da sociedade brasileira, centradas no binômio
industrialização-urbanização.
Finalmente, devemos observar que a insatisfação crescente que se
vem observando ultimamente na periferia paulistana decorre, basica-
mente, da inviabilidade cada vez maior da realização da sonhada melho-
ria de vida, dada a estagnação do processo. A crise econômica, com seus
corolários de desemprego, diminuição da renda familiar e aumento do
custo de vida, está desestruturando todo o esquema em função do qual


as classes populares organizaram sua prática social nas últimas décadas.
A crença no progresso está desaparecendo.
Resta ainda analisar, dentro deste esquema, o lugar e as funções
atribuídas ao Estado. Os poderes públicos aparecem no discurso popu-
lar em dois momentos bastante distintos e de modo bastante diverso.
O primeiro momento, e o mais nítido, está associado ao discurso
sobre o bairro e a cidade. Nesse contexto são mencionados sempre os
poderes locais (basicamente a prefeitura, mas também o governo esta-
dual), como responsáveis pela oferta dos serviços públicos: água, luz,
asfalto, iluminação pública, transporte, escola, posto de saúde, posto
policial. Cabe também ao poder local atrair indústrias para gerar
empregos. Nas cidades menores os detentores do poder local são co-
nhecidos e identificados. Existe também uma percepção definida da
possibilidade de pressão e reivindicação popular. Os mecanismos
conhecidos e aceitos de reivindicação coletiva são o abaixo-assinado e a
concentração de moradores no prédio da prefeitura, ou o contato dire-
to de pessoas ou comissões com o prefeito.
Note-se que esse tipo de ação coletiva, mesmo que não dispense
líderes, organizadores e mediadores, embora tanto possa surgir espon-
taneamente como ser suscitado por grupos políticos organizados de
fora, implica sempre uma confrontação direta da população em seu con-
junto com os detentores dos poderes públicos. Em outras palavras,
admite antes organizadores e porta-vozes do que, propriamente, repre-
sentantes. Trata-se portanto de uma ação política de tipo muito primá-
rio que, confrontando “o povo” de um lado e “as autoridades” de outro,
afirma a exterioridade destas em relação àquele.
O segundo momento no qual o discurso popular se refere ao Esta-
do é aquele em que se menciona uma entidade vaga e mal definida
denominada “gover no”. Este é muito mais nebuloso que os poderes
locais – não tem uma face discernível, embora às vezes se personifique
na figura do presidente da República. A palavra governo refere-se basi-
camente aos poderes públicos federais e, dentre esses, especialmente ao
executivo. As considerações sobre o gover no surgem quando se fala
sobre o emprego e o custo de vida, esperando-se dele que aumente um
e diminua outro. Sua função parece portanto ser concebida, essencial-
mente, como a de controle dos interesses privados na esfera do merca-
do, de modo a coibir a exploração excessiva dos pobres ou “fracos”
pelos ricos e poderosos. Essa concepção de gover no o constitui como

 A sociedade vista da periferia


uma entidade acima das classes e fora da sociedade e que possui uma
função de justiça social. Desse modo, se a esfera do mercado aparece na
independência da sociedade civil, ela pode e deve ser controlada pelo
Estado no interesse do bem comum. Essa concepção é certamente
reforçada pelo fato de que os momentos nos quais a população sente a
ação direta do Estado (ou sua omissão) referem-se à fixação do salário
mínimo e ao estabelecimento do controle dos preços. Por outro lado,
a relação institucional com os poderes públicos federais se dá quase
que exclusivamente através do , e remete à noção dos “direitos”
dos trabalhadores.
O que cabe ressaltar nessa imagem do gover no é exatamente sua
completa exterioridade face à população. Em primeiro lugar, como se
ignoram os mecanismos institucionais de ação governamental na esfera
do controle do mercado, essa ação aparece sempre como um ato puro
de vontade e poder. Acredita-se apenas que o governo pode e sabe como
fazê-lo. Por vezes a pressão resultante do excesso de oferta de mão-de-
obra sobre o mercado de trabalho resulta na concepção de que a inter-
ferência governamental deve se dar no sentido de conter o fluxo migra-
tório para as cidades, facilitando o acesso do trabalhador rural à terra.
Desse modo se conseguiria, simultaneamente, diminuir a oferta de
mão-de-obra no mercado de trabalho urbano e aumentar a oferta de ali-
mentos, diminuindo o custo de vida. Outras vezes, exige-se do governo
uma ação puramente repressiva, coibindo “abusos”. De um modo ou de
outro, pensa-se como função do governo o controle, o estímulo e o pla-
nejamento das atividades produtivas no interesse do bem-estar coletivo;
paralelamente, cabe ao gover no contrabalançar as diferenças sociais,
assistindo a população pobre e assegurando-lhe direitos (à assistência
médica e à aposentadoria, especialmente).
A exterioridade do gover no se manifesta também na ausência de
mecanismos institucionais reconhecidos de ação ou pressão sobre o
mesmo. Os recursos políticos que a população costuma utilizar, o abai-
xo-assinado e a concentração popular na presença de autoridade, úteis
no nível local, são inaplicáveis e inoperantes diante desse gover no tão
distante, como atesta sobejamente o movimento do custo de vida. Não
existem concepções referentes a um sistema de representação que esta-
beleça a mediação entre o povo e esse nível do Estado. Nesse sentido,
pode-se dizer que o desmantelamento do sistema de eleições para os
cargos executivos, promovido pelo golpe de , destruiu efetivamente


os mecanismos por meio dos quais as classes trabalhadoras podiam con-
ceber uma relação política com o poder central que ficou, dessa forma,
fora do alcance tanto do saber quanto do poder popular. A experiência da
redemocratização do país ainda não foi inteiramente assimilada a ponto
de promover a reformulação das concepções relativas ao “governo”.
Nessa análise, centrada no morador, no bairro e na cidade, omitiu-
se uma relação importante com a sociedade e o gover no que se efetiva
com o sindicato. Há que observar, entretanto, que as considerações sobre
as oportunidades de emprego surgiram espontaneamente nas entrevistas,
mas o mesmo não ocorreu com o movimento sindical. De qualquer
forma, seria importante complementar esta reflexão, em outro momento,
com uma análise mais aprofundada das concepções acerca do sindicato.
O esquema anterior, montado em função da dicotomia vida priva-
da/sociedade, pode ser agora completado com uma nova dimensão: a
do Estado.

QUA DRO 5

DIMENSÃO PRIVADA CATEGORIAS DE CONEXÃO DIMENSÃO SOCIETÁRIA DIMENSÃO POLÍTICA

(indivíduo) salário (mercado de trabalho) governo (Estado)


trabalhador – emprego – indústria
esforço

família custo de vida (mercado de consumo) (Estado) governo


poupança

casa recursos bairro – cidade (poderes locais)


prefeito

valor: melhoria de vida valor: progresso valor:


(justiça social)

Para concluir, convém indicar que, se a exterioridade e inacessibilidade


do governo não destruiu sua legitimidade enquanto se manteve a cren-
ça no progresso e na viabilidade do projeto de melhoria de vida, a crise
econômica que ameaça esse projeto parece levar a população a buscar
novos mecanismos de manifestação de seu descontentamento e desespe-
ro. A crescente agitação política incentivada pelo processo eleitoral

 A sociedade vista da periferia


constitui ocasião privilegiada para a manifestação do descontentamen-
to e, portanto, para a emergência de novas formas de ação política cuja
necessidade parece ser difusamente sentida por todos.
O esquema interpretativo preliminar que apresentamos é certa-
mente simplificado demais para dar conta de todas as nuances e contra-
dições da imagem da sociedade construída pelas classes populares, além
de não incluir a dimensão sindical e partidária, que não aparecem es-
pontaneamente no discurso, mas certamente fazem parte do universo de
referência dessa população. Haveria ainda que analisar as referências ao
, que estabelecem outra conexão entre a vida privada e o governo.
Também é óbvio que não incluímos outras dimensões importantes da
vida privada e pública, como o lazer e a religião. Mas acreditamos que,
mesmo assim, esta tentativa de uma análise mais global dos pressupos-
tos que infor mam a prática política das classes populares oferece um
ponto de partida para a reflexão mais globalizante, que supere o particu-
larismo das monografias.


Capítulo 

     


uma reflexão sobre a importância das emoções na vida social humana
Chimpanzés também amam*

O objetivo deste trabalho é chamar a atenção para uma questão que foi
abandonada pela antropologia recente e raramente considerada pela psi-
canálise: o fato de que, apesar da óbvia singularidade do comportamento
humano, envolto como está numa espessa nuvem de símbolos e valores
dentro da qual se move a consciência, o homem ainda é um animal, pro-
duto da evolução biológica, e compartilha com os demais estruturas e
processos básicos sobre os quais e com os quais a cultura é construída.
A comparação entre o homem e os outros animais, em especial
os que nos são evolutivamente mais próximos, é particular mente im-
portante, a meu ver, para estabelecer o contexto dentro do qual pode-
mos colocar de modo mais adequado as especificidades do comporta-
mento humano.
A questão da evolução do homem e dos fundamentos biológicos
da cultura humana constituiu uma preocupação importante da antro-
pologia desde seu nascimento até meados do século , embora a
ausência de uma base sólida de conhecimentos genéticos tenha impedi-
do um tratamento adequado do tema, sobretudo no que diz respeito à
relação entre raça, cultura e evolução. Apesar disso, a contribuição da
antropologia do final desse período foi muito importante para o des-
monte do darwinismo social e das explicações da diversidade cultural
em termos raciais.1
No que tange estruturas geneticamente herdadas, é verdade que
Lévi-Strauss retomou a questão recorrendo à hipótese de um incons-

* Publicado originalmente como “Chimpanzés também amam: a linguagem das emoções na


ordem dos primatas”. Revista de Antropologia , v. , n. , .
. Os americanos, é verdade, mantiveram durante mais tempo uma preocupação com os
aspectos universais da cultura e sua base biológica. Podemos ver isto claramente nos clássi-
cos manuais de antropologia das décadas de ,  e , como os de Linton e Herskovits.
Mas a antropologia americana recente deixou inteiramente de lado essas preocupações.


ciente humano universal, geneticamente deter minado, uma máquina
estruturante responsável pela possibilidade do processo de construção
de sistemas simbólicos, como mitos e estruturas de parentesco. Mas
nesta concepção o inconsciente é vazio, constituído apenas de mecanis-
mos que organizam os mais variáveis conteúdos. É uma capacidade do
cérebro humano, um processo mental que transforma eventos em sím-
bolos organizados em sistemas – a análise decorrente desta postura é
necessariamente for mal, estando mais interessada no desvendamento
dos códigos que per mitem a comunicação entre os homens do que no
substrato emocional que permeia as ações humanas. Trata-se, na verda-
de, de uma antropologia muito especial, que tem sido caracterizada
como excessivamente intelectualista.2
Tanto no estruturalismo lévi-straussiano como fora dele tem pre-
dominado, na teoria antropológica recente, a concepção de que o pro-
cesso evolutivo humano esteve associado a um enfraquecimento ou fle-
xibilização dos instintos de tal monta que é perfeitamente possível, e
mesmo necessário, eliminar quaisquer considerações sobre possíveis
bases instintivas na explicação do comportamento cultural. As orienta-
ções teóricas predominantes têm trabalhado com a concepção básica da
oposição entre natureza e cultura, na qual esta é praticamente reduzida
à dimensão simbólica do comportamento social. Afirma-se de fato que,
nos seres humanos, a evolução da cultura substitui a evolução biológi-
ca, e a natureza humana aparece como praticamente liberta de condicio-
nantes genéticos.
Entretanto, se podemos tentar separar os homens dos demais ani-
mais em função da consciência, do raciocínio, da linguagem e do ins-
trumental simbólico culturalmente construído, as emoções constituem
claramente algo que compartilhamos com eles. É difícil deixar de reco-
nhecer que animais sentem raiva e medo, alegria ou satisfação, ciúmes e
desapontamento, como nós, e desenvolvem relações afetivas com
outros animais, inclusive com seres humanos. As semelhanças compor-
tamentais não se reduzem à dimensão emotiva – mas esta é certamente
aquela na qual elas podem ser observadas da forma mais imediata,
inclusive porque surgem e podem ser comunicadas independentemente
. Na verdade, a obra de Lévi-Strauss contém também alguns pequenos primorosos traba-
lhos sobre a influência emocional, especialmente “A eficácia simbólica” e “O feiticeiro e sua
magia”, além de passagens de O pensamento selvagem, nas quais se salienta o caráter simul-
taneamente intelectual e afetivo da “lógica do concreto” (Lévi-Strauss : -ss.)

 Chimpanzés também amam


da razão e mesmo da consciência. Constituem, por isso mesmo, um
canal privilegiado de comunicação entre nós e os outros animais, como
pode ser atestado por qualquer pessoa que tenha cães ou gatos em casa.
Além disso, como já havia afirmado Darwin (e depois foi repetido por
Malinowski), as emoções constituem uma base inicial de compreensão
entre portadores de culturas diversas.
Não podemos subestimar as emoções. O que seria a vida humana
sem alegrias e tristezas, raiva, amor e ódio?
Na antropologia clássica, a questão da relação entre razão e emo-
ção foi objeto quase que exclusivo da atenção de Lévy-Bruhl, autor cuja
obra extremamente original e intensamente criticada foi resgatada há
pouco tempo no Brasil por Roberto Cardoso de Oliveira ().
Dos clássicos pós-evolucionistas, apenas Malinowski dedicou-se a
esta problemática. Entretanto a fragilidade da construção teórica mali-
nowskiana, voltada para a definição de necessidades básicas e derivadas,
assim como o contexto evolucionista da obra de Lévy-Bruhl, desacre-
ditaram o conjunto de suas contribuições, que incluíam também uma
atenção particular dedicada aos aspectos emocionais da vida social.
Porém no caso de Malinowski esses aspectos – que ele definia como “a
carne e o sangue” das culturas, em oposição a seu esqueleto estrutural –
são os responsáveis por muito da riqueza da tradição etnográfica que
este autor iniciou. São exatamente esses componentes afetivos que me
interessam neste trabalho.
De fato é muito difícil, senão impossível, entender plenamente,
descrever com competência e explicar convincentemente um mito, um
ritual mágico-religioso, uma transação comercial, ou mesmo uma briga
de galos, sem a observação e a referência às atitudes emocionais subja-
centes, implícitas ou explícitas. E, na vida social em geral, não se pode
ignorar que os interesses e conflitos amorosos, assim como as rivalida-
des, parecem constituir preocupações centrais dos homens vivendo em
sociedade. Não deixa de ser um tanto contraditório que as vivências
emotivas continuem presentes na descrição etnográfica sem levantar
nenhuma inquietação teórica relevante.
Talvez por isso mesmo os antropólogos tenham demonstrado um
interesse episódico mas recorrente pela psicanálise, disciplina esta vol-
tada exatamente para as bases emocionais e instintivas do compor-
tamento humano. Além disso, as nor mas culturais que organizam o
comportamento humano raramente são produtos da consciência e


raramente operam através dela. Assim, as emoções, bem como a ques-
tão do inconsciente, constituem limites da reflexão antropológica que
os antropólogos têm tentado transpor pelo recurso à psicanálise. O pró-
prio Lévi-Strauss não ficou imune a esse interesse (Lévi-Strauss a
e b). No entanto, a aproximação maior e mais sistemática entre antro-
pologia e psicanálise é mais antiga, e ocorreu nos Estados Unidos nas
décadas de  e , com o tema da relação entre personalidade e cultu-
ra, o qual envolveu a estreita colaboração de antropólogos e psicanalis-
tas, e mesmo algumas conversões de um campo para o outro. Mas
mesmo nesses estudos o interesse dos antropólogos ainda estava cen-
trado na flexibilidade do equipamento genético humano e na capaci-
dade da cultura de, por assim dizer, modelar personalidades diferentes
nas diversas sociedades.
Por outro lado, mesmo na psicanálise a questão das emoções e dos
instintos é colocada de forma um tanto paradoxal, pois se ela funda-
menta o desenvolvimento psíquico humano sobre a base instintiva for-
necida pela sexualidade, e se as emoções constituem a matéria-prima do
trabalho clínico, há de fato, na tradição propriamente freudiana, muito
pouco de uma teoria das emoções, que são em grande parte explicadas
como meras decorrências de repressões ou gratificações de pulsões
sexuais. Por outro lado, especialmente no que diz respeito à vida instin-
tiva, as indubitáveis semelhanças com outros animais raramente foram
levadas em consideração, embora pudessem ajudar a esclarecer muitas
questões teóricas relevantes.
Freud, certamente, tinha consciência da importância das biociên-
cias para a psicanálise. É difícil encontrar um outro autor que busque de
forma tão compulsiva quanto ele uma integração teórica e uma base
científica para suas descobertas empíricas no trabalho clínico. Por isso
mesmo, e dado o fato de que ele foi levado a considerar a sexualidade
como uma espécie de força motriz básica da psique humana, não podia
ignorar o problema da conceituação do comportamento instintivo. Ele
aborda a questão no seu célebre artigo “Os instintos e suas vicissitudes”
(cuja primeira versão data de ), e no qual estabelece uma distinção
fundamental entre os instintos sexuais e os do ego. Nesse artigo encon-
tramos um excelente exemplo do rigor intelectual de Freud, quando
reconhece que a ciência de sua época não oferece elementos suficientes
para elucidar plenamente a questão.

 Chimpanzés também amam


Tenho as maiores dúvidas de que se possa chegar a indicadores decisivos para
a diferenciação e classificação dos instintos a partir (apenas) da elaboração
do material psicológico. Esta própria elaboração parece exigir, até certo
ponto, a aplicação de suposições definidas concer nentes à vida instintiva
àquele material e seria desejável que estas suposições pudessem ser extraídas
de algum outro ramo de conhecimento e levado para a psicologia. (Freud
, v. : )

Tendo em vista esta posição de Freud, não deixa de ser estranho que os
psicanalistas, tanto quanto os antropólogos, tenham se desinteressado
de acompanhar a intensa produção científica sobre essa questão que
marca o último meio século.
De fato, nesse período, houve um extraordinário desenvolvimento
de outras áreas de conhecimento, que são diretamente relevantes para a
compreensão das bases biológicas do comportamento animal e humano.
Refiro-me às pesquisas mais recentes da psicologia experimental e do
desenvolvimento e, inclusive, da psicologia cognitiva; às descobertas
decorrentes do estudo dos hor mônios e de sua influência nos processos
orgânicos e psíquicos; ao desenvolvimento da neurobiologia e especial-
mente dos estudos do cérebro; aos espantosos progressos na área da
genética molecular e sua influência na renovação da teoria da evolução; à
primatologia e, especialmente, às pesquisas de etologia, em particular no
que diz respeito aos primatas. Parece-me que as demais disciplinas volta-
das para o estudo do comportamento humano e, dentre estas, particular-
mente a psicanálise e a antropologia, não podem continuar confinadas em
seus estreitos limites disciplinares, mas precisam incorporar o resultado
deste recente progresso científico como parte do contexto mais amplo
dentro do qual ocorrem os fenômenos que estudam.
Não se trata, obviamente, de defender um novo determinismo bio-
lógico. Reconhecer semelhanças não implica ignorar diferenças. Mas,
como seres humanos, não nos movemos exclusivamente no universo
rarefeito da razão e dos sistemas simbólicos. Ao contrário, o comporta-
mento humano brota de um espesso caldo emocional que permeia toda
a sua vida social e que, poderíamos argumentar, é responsável tanto
pelas atitudes mais nobres como pelos problemas mais dolorosos
enfrentados cotidianamente nas sociedades humanas.
É por essa razão que, neste artigo, focalizo no problema das emo-
ções a questão geral dos laços genéticos e das semelhanças comporta-


mentais que nos unem às demais espécies. Restringi ainda mais a abor-
dagem, centrando a reflexão nos sentimentos amorosos. Finalmente
limitei a comparação e a reflexão sobre as semelhanças e diferenças
tomando como base os chimpanzés.
A escolha dos chimpanzés não é aleatória, pois eles são, genética e
evolutivamente, nossos parentes mais próximos. Além disso, qualquer
um que assista a documentários sobre esses animais, ou os observe em
jardins zoológicos, não pode deixar de ficar perturbado pela sua seme-
lhança conosco.3 Eles são uma provocação constante à hubris humana
que nos leva a desconsiderar nosso lado animal.
Por outro lado, foi estratégica a escolha dos sentimentos amorosos
como foco de comparação, não só por se tratar de um campo onde as
emoções são particularmente importantes para a vida social, mas também
porque é aquele no qual, na ausência de uma reflexão antropológica,
podemos nos socorrer da psicanálise, para a qual a questão é central.

As emoções

Abordar a questão das semelhanças e diferenças entre nós e os chim-


panzés da perspectiva do comportamento emocional esbarra na dificul-
dade de encontrar uma definição científica adequada das emoções e uma
classificação consensual.
É verdade que há alguns aspectos próprios do comportamento
emotivo que têm sido apontados desde uma época bastante longínqua.
Uma característica fundamental das emoções, reconhecida desde Aris-
tóteles, é o fato de elas não emergirem da consciência, de serem dificil-
mente controladas por ela e de influírem sobre ela. Este fato nos remete
a padrões geneticamente transmitidos e ao inconsciente.
Outra característica importante, associada a esta primeira, é sua
expressão corporal automática e involuntária, o que torna difícil ocultar e
disfarçar as emoções. De fato,

. Os documentários que se popularizaram recentemente, especialmente os que dizem res-


peito aos chimpanzés, apresentam no entanto distorções perigosas. Pelo fato de geralmente
focalizarem um ou outro aspecto específico da vida dos animais observados, eliminam a
complexidade e diversidade da sua vida social. Assim, bonobos são retratados como gineco-
craciais, e chimpanzés ora como caçadores sanguinários, ora como idílios pacíficos.

 Chimpanzés também amam


são os aspectos compulsivos das emoções – a absorção total (single-minded-
ness) do estar apaixonado, a amargura inevitável do sentir-se rejeitado, a busca
consumidora da vingança – que originam na sociedade ocidental tanto nossas
atitudes positivas quanto as negativas em relação às emoções. A partir do final
do século XIX, pesquisadores começaram a se interessar pelos aspectos físico-cor-
porais das emoções, que prometiam auxiliar uma maior compreensão do modo
como as emoções nos afetam involuntariamente. (Jenkins et alii : )

Esses trabalhos constituíram, na verdade, uma peça importante na


inclusão da espécie humana no processo evolutivo, tanto do ponto de
vista físico como do psíquico, como fica claro no trabalho de Darwin,
publicado em , intitulado A expressão das emoções no homem e nos
animais.4 Do mesmo ano data outro livro fundamental sobre as emo-
ções humanas, o de William James, The Principles of Psychology, no qual
o caráter compulsivo das emoções, sua relação com os instintos e sua
expressão corporal involuntária são extensamente analisados.
De fato, a psicologia experimental acumulou, desde então, um
extenso conhecimento relativo a condicionantes internos e externos que
organizam o comportamento animal. Entretanto, a predominância do
behaviorismo, com sua recusa em analisar aspectos subjetivos da con-
duta em nome de um cientificismo racionalista, promoveu um afasta-
mento das preocupações com as emoções. Apenas mais recentemente
esta posição tem se alterado. Por outro lado, a concentração do trabalho
experimental sobre espécies não humanas, associada muitas vezes a
generalizações um tanto apressadas sobre a significação dos resultados
para a compreensão do comportamento do homem, tem obscurecido,
para os cientistas sociais, a relevância desses estudos. Mesmo as investi-
gações específicas sobre seres humanos, talvez por serem excessivamen-
te focalizadas em aspectos muito determinados da conduta, têm sido em
grande parte ignoradas pelas demais disciplinas que têm o homem
como objeto de estudo.
Do lado oposto, o desenvolvimento de um tipo particular de evo-
lucionismo, o da sociobiologia, centrado no gene, que se tornou popu-
lar a partir do livro de Dawkins, The Selfish Gene (), praticamente
reduziu a complexa organização do comportamento animal a uma mera
competição entre genes. O organismo, o grupo e a espécie se dissolve-

. Para uma abordagem recente desta questão, ver Ekman & Friesen .


ram, e se atribui aos genes algo muito parecido com intenções e interes-
ses. Os genes, de fato, passaram a se assemelhar a indivíduos em com-
petição constante, à semelhança do modelo capitalista das sociedades
atuais. Esta concepção é de tal forma limitada e reducionista (especial-
mente quando aplicada ao homem) que, compreensivelmente, contri-
buiu para justificar a suspeita generalizada das ciências humanas relati-
vamente ao reconhecimento da importância do equipamento genético
na modelagem do comportamento humano. Mas o evolucionismo con-
temporâneo não se reduz a essa corrente.
Se a tradição da psicologia e do evolucionismo biológico não
foram suficientemente utilizadas pelas ciências humanas, o impacto
recente da neurobiologia e da abordagem das emoções que ela introdu-
ziu começa a produzir uma nova inquietação. Prova disso é o grande
sucesso da publicação do belo trabalho de divulgação científica de
Daniel Goleman, Inteligência emocional (). Igualmente significativa
é a publicação em português de dois livros recentes do neurobiólogo
António Damásio: O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano
() e O mistério da consciência: do corpo e das emoções ao reconhecimen-
to de si (). A contribuição central de Damásio consiste em demons-
trar a estreita interdependência entre razão e emoção. Ao mesmo tempo
em que valoriza uma abordagem evolutiva e, portanto, a importância
das semelhanças entre o homem e os demais animais, reconhece que há
muito de especificamente humano na nossa experiência das emoções: é
o modo como se vinculam a idéias, valores, princípios e juízos comple-
xos, isto é, sua manifestação como sentimentos e sua vinculação à cons-
ciência. Também reconhece que o aprendizado e a cultura interferem na
expressão das emoções, reprimem algumas e estimulam outras, e lhes
conferem novos significados. Por isso mesmo, sua obra parece-me par-
ticularmente relevante para psicanalistas e antropólogos.

[As emoções] são processos determinados biologicamente e dependem de meca-


nismos estabelecidos de modo inato, assentados em uma longa história evolu-
tiva. [...] São parte de um conjunto de estruturas que regulam e representam
estados corporais, [acionados automaticamente sem uma reflexão consciente,
a qual, quando ocorre, é posterior]. As emoções afetam o modo de operação de
circuitos cerebrais e são responsáveis por mudanças profundas no corpo e no
cérebro. As emoções se situam, evolutivamente, numa posição intermediária
entre os mecanismos básicos de sobrevivência (regulação do metabolismo,

 Chimpanzés também amam


reflexos simples, biologia da dor e do prazer) e a emergência dos mecanismos
responsáveis pelo raciocínio. Estão associados aos primeiros na medida em que
fazem parte do instrumental de regulação da vida e desempenham um papel
importantíssimo na relação dos organismos com o mundo exter no; e aos segun-
dos na medida em que constituem a base dos sentimentos elaborados pela cons-
ciência. (Damásio : -)

Emoções podem ser provocadas por estímulos inter nos ou exter nos.
Especialmente no caso de mecanismos exter nos é preciso reconhecer,
mesmo para os animais, especialmente no caso dos mamíferos superio-
res, a existência de uma variação considerável nos tipos de estímulos
que podem induzir uma emoção e na forma da ação que eles desenca-
deiam, a qual é selecionada em função da experiência individual ou
social e, portanto, depende não apenas de condicionantes genéticos,
mas também do aprendizado. A experiência influi nos mecanismos bio-
logicamente pré-ajustados, tanto modelando o que constitui um indutor
para determinadas emoções, como influindo na sua expressão. No caso
dos seres humanos, a variação é muito maior porque a cultura modela
tanto o comportamento decorrente da emoção como o seu conhecimen-
to e reconhecimento. Estamos longe, portanto, de um novo determinis-
mo genético. Mas a base inconsciente e geneticamente transmitida dos
sentimentos não pode ser eliminada; sentimentos e mesmo a consciên-
cia dependem do substrato emocional.
A posição básica de Damásio que nos interessa particular mente
aqui é a de que a

razão não pode ser tão pura como a maioria de nós pensa que é ou gostaria que
fosse, e que emoções e sentimentos podem não ser de todo uns intrusos no bas-
tião da razão, podendo encontrar-se, pelo contrário, enredados em suas teias,
para o melhor e para o pior. É provável que as estratégias da razão humana
não se tenham desenvolvido, quer em termos evolutivos, quer em termos de
cada indivíduo em particular, sem a força orientadora dos mecanismos dos
quais a emoções e sentimentos são expressões notáveis. Além disso, mesmo
depois de as estratégias de raciocínio se estabelecerem durante os anos de
maturação, a atualização efetiva de suas potencialidades depende provavel-
mente, em larga medida, de um exercício continuado da capacidade de sentir
emoções. (Damásio )


As observações acima, referentes às relações entre emoção e razão, cer-
tamente se aplicam, com igual ou maior pertinência, às dimensões sim-
bólicas do comportamento.
Mais importante ainda do que a neurobiologia para uma reaproxi-
mação da antropologia (e talvez da psicanálise) com as ciências biológi-
cas é o desenvolvimento da etologia, especialmente no que concerne às
pesquisas baseadas na observação do comportamento dos primatas em
seu ambiente natural. Estes estudos, aliás, são recentes. Embora a psico-
logia experimental com primatas em geral e chimpanzés em particular
tenha uma história bem mais longa (o trabalho pioneiro de Köhler foi
feito na década de , assim como o de Yerkes),5 as observações de
campo sistemáticas e prolongadas com chimpanzés vivendo em estado
natural praticamente só tiveram início no final da década de . Seus
resultados começaram a se tor nar conhecidos uma década depois.6 A
documentação em vídeo que tem sido divulgada recentemente pela
televisão nos programas sobre vida animal tor nou os chimpanzés bas-
tante conhecidos do público em geral, mas as pesquisas não promove-
ram ainda um trabalho comparativo interdisciplinar sistemático com as
ciências do homem.
No que diz respeito ao comportamento, especialmente ao compor-
tamento emocional, a observação dos animais na natureza por períodos
prolongados, que acompanham a sucessão de gerações, é essencial.
A pesquisa em laboratório fragmenta o comportamento em função do
set experimental. Além disso, trabalha com animais que vivem em cati-
veiro, situação que defor ma enor memente sua vida psíquica. Essa
deformação é particularmente séria no caso de animais sociais como os
chimpanzés, eliminando, como ocorre com freqüência, praticamente
toda a vida grupal na qual o comportamento normalmente se desenvol-
ve. Animais sociais artificialmente confinados apresentam com fre-
qüência, quando comparados aos exemplares vivendo no seu ambiente
natural, comportamentos patológicos no que diz respeito ao seu desen-
volvimento emocional, incluindo impotência, angústia, depressão, pas-
sividade e alheamento. Tem havido, é verdade, um esforço para tornar
. São relevantes, para este trabalho, as observações de Köhler relativas à expressão e comu-
nicação das emoções entre os chimpanzés, especialmente o anexo intitulado “Algumas con-
tribuições para a psicologia dos chimpanzés” (Köhler []). Ver também Yerkes &
Yerkes .
. Para uma súmula dos estudos de campo sobre antropóides, ver Itami .

 Chimpanzés também amam


a situação de cativeiro mais semelhante à vida natural. A limitação
diminui, mas não desaparece. Entretanto, exatamente porque per mite
observações controladas, a contribuição dos estudos realizados em
laboratório não pode ser desprezada, em especial quando associada às
observações feitas com animais selvagens.
Por outro lado, a psicologia experimental com primatas, e em par-
ticular com chimpanzés, tem estado voltada basicamente para estudos
referentes à cognição, ao raciocínio e à linguagem. É esta a área na qual
se desenvolveram procedimentos e testes extremamente sofisticados,
como as tentativas de ensinar chimpanzés a falar e a contar.7 Parece que,
de modo geral, os pesquisadores estão interessados em investigar quão
semelhantes aos homens os chimpanzés podem se tornar. Entretanto, o
que me interessa neste trabalho é a questão inversa: quão semelhantes
aos chimpanzés somos nós, especialmente da perspectiva emocional, o
que só pode ser investigado quando se analisam os chimpanzés em seus
relacionamentos naturais com o ambiente e uns com os outros. Deixa-
rei de lado, por isso, outras questões relevantes como a comunicação, a
cooperação grupal e a fabricação de instrumentos, as análises sobre in-
teligência, que não podem ser todas abordadas nos limites de um artigo.

Antropóides e chimpanzés

Para falar de chimpanzés, entretanto, precisamos fazer uma breve refe-


rência aos primatas conhecidos com antropóides.
Da perspectiva evolutiva fazemos parte dos primatas chamados
antropóides, os quais, além de nós, incluem (em ordem de maior proxi-
midade genética e evolutiva) os chimpanzés, os gorilas, os orangotan-
gos e os gibões.
Os chimpanzés, em especial, são extremamente próximos de nós,
pois partilhamos com eles mais de % de nosso equipamento genético.
De fato, geneticamente, a diferença entre os chimpanzés e nós é menor
do que a existente entre eles e os gorilas.
A literatura recente tem separado como espécie diversa os chimpan-
zés conhecidos como bonobos, nos quais, além de diferenças estatísticas
na proporção dos membros inferiores e superiores e menor dimorfismo

. Wallman () apresenta uma excelente análise crítica do conjunto desses trabalhos.


sexual, podem ser detectadas diferenças comportamentais significativas
que incluem atividade sexual mais intensa, menor agressividade, domi-
nância menos marcada por parte dos machos e grupos maiores. Utiliza-
remos neste trabalho, como referência, os chimpanzés “tradicionais”, isto
é, pan troglodytes, sobre os quais a bibliografia é muito maior, e nos refe-
riremos aos bonobos, pan paniscus, de modo secundário.8
Chimpanzés são, como nós, animais sociais, e vivem em grupos
relativamente estáveis de trinta indivíduos em média, que podem variar
de dez até mais de cem, e incluem crianças, jovens e adultos de ambos
os sexos. As relações entre membros de um mesmo grupo são bastante
intensas e, diríamos mesmo, altamente emocionais. Os chimpanzés
estão constantemente se comunicando uns com os outros, através de
vocalizações, posturas corporais, expressões faciais e contato físico
como agressões e carícias. Dos antropóides, são certamente os mais
barulhentos e os mais expressivos. Além disso, são tomados freqüente-
mente por temper tantrums, e isso em qualquer idade e sexo, o que os faz
parecerem crianças mal-educadas.
Os grupos não são amorfos.9 Há uma clara estrutura de domina-
ção dos machos sobre as fêmeas, e os machos imaturos são dominados
pelos adultos de ambos os sexos. Um dos machos adultos, denominado
na literatura “macho alfa”, lidera o grupo. A hierarquia entre os
machos não é nem permanente e nem pacífica – boa parte da vida social
consiste em reafir mar ou contestar posições de dominação, através de
demonstrações de agressividade e submissão. Há também uma hierar-
quia entre as fêmeas, mas menos clara e menos competitiva.
Além disso, a organização dos grupos inclui um complexo proces-
so de fusão e fissão, isto é, de subdivisão e reunião associadas à procura
por alimentos, no qual preferências afetivas e relações de parentesco
interferem de modo pronunciado. Aliás, a própria competição por posi-
ções na hierarquia envolve aliança e coalizões igualmente marcadas por
relações interpessoais preferenciais.10
. Para um conhecimento mais detalhado dos bonobos, além das coletâneas citadas a seguir,
é particularmente informativo o livro de Waal, Bonobo, the Forgotten Ape ().
. Utilizamos o conceito de grupo e não de sociedade para designar um conjunto de indiví-
duos que se reconhecem mutuamente e se contrapõem a outros indivíduos ou agrupamen-
tos da mesma espécie. A identificação recíproca dos membros do grupo é a referência cen-
tral do conceito.
. Além dos trabalhos de campo, é particularmente importante o trabalho de Waal, com a
colônia do zoológico de Arnhem, Chimpanzee Politics (), e de Dunbar (: ).

 Chimpanzés também amam


A vida em grupos deste tipo, que incluem diferentes machos adul-
tos, é encontrada entre outras espécies de primatas, mas não nos demais
antropóides não humanos. Gibões, por exemplo, vivem em pequenos
grupos formados por um casal e seus filhos imaturos. Orangotangos são
animais solitários, que se aproximam apenas durante o cio, para uma
breve convivência; os pequenos grupos existentes consistem de uma
fêmea com suas crias imaturas (raramente mais de uma). Gorilas, por
outro lado, apresentam variações na composição dos grupos: a maior
parte deles inclui apenas um macho adulto com diversas fêmeas e os
filhos imaturos, mas há também bandos que incluem até quatro machos
adultos.11
Dentro deste quadro geral podemos começar a analisar semelhan-
ças e diferenças entre nós e os chimpanzés no que diz respeito ao com-
portamento amoroso, começando pela sexualidade, que claramente
possui bases instintivas e envolve alta carga emocional.

Sexualidade e promiscuidade

Chimpanzés, sobretudo os bonobos, são animais que demonstram um


enorme interesse pelo sexo e um grande espectro de atividades eróticas,
que incluem diferentes posições corporais na cópula, masturbação e
carícias hetero e homoeróticas. Além disso, a freqüência de contatos
sexuais é muito elevada.
Duas características fundamentais organizam a sexualidade entre
os chimpanzés, e ambas diferem dos padrões humanos – são, por isso
mesmo, muito interessantes do ponto de vista comparativo.
Em primeiro lugar, como em praticamente todos os animais sexua-
dos, com exceção do homem, o acasalamento é controlado por ciclos
periódicos de fertilidade e infertilidade das fêmeas, isto é, por períodos
de cio de duração limitada. É apenas durante esses períodos que as
fêmeas são, simultaneamente, atraentes para os machos e receptivas às

. Para infor mações mais detalhadas sobre estes antropóides, consultar especialmente as
coletâneas publicadas por McGrew, Marchant & Nishida  e DeVore . Para os gori-
las, ver Schaller ; Fossey ; Watts ; Tutin . Sobre os chimpanzés, a biblio-
grafia final contém as referências aos trabalhos utilizados, que incluem Goodall  e ;
Hashimoto et alii ; Köhler ; Mason ; McGrew et alii ; Magnew ; Rey-
nolds & Reynolds ; Waal  e ; Wrangham .


relações sexuais. Fora desses períodos, as relações entre machos e fêmeas
são assexuadas, embora as diferenças de gênero permaneçam.
Em muitas espécies animais, esses ciclos costumam ser anuais e
regulados pelos períodos de maior abundância de alimentos. Quando
isto ocorre, todas as fêmeas entram no cio mais ou menos ao mesmo
tempo, e a atividade sexual de machos e fêmeas fica restrita a um perío-
do muito breve do ano. Não é isso o que ocorre com os chimpanzés e
com diversos outros primatas. Não existe uma sazonalidade coletiva
nos períodos de cio das fêmeas, que apresentam ciclos individuais de
fertilidade, interrompidos pela gravidez e amamentação. Isso significa
que, embora as fêmeas individuais estejam freqüentemente indisponí-
veis para relações sexuais, a existência de múltiplas fêmeas num mesmo
bando garante que haja, com freqüência, alguma no cio, o que oferece
para os machos diversas oportunidades de relacionamento sexual du-
rante todo o ano. O cio das fêmeas é marcado por um inchaço muito
visível da parte externa dos órgãos sexuais, que adquirem um colorido
rosa intenso. Quanto maior o inchaço, que é mais pronunciado nas
fêmeas plenamente adultas e férteis, maior a desejabilidade das fêmeas
e maior o interesse dos machos por elas.
O tipo de periodização do cio das fêmeas e os padrões de acesso
dos machos às fêmeas no cio constituem, para os animais sociais, um ele-
mento fundamental de organização dos grupos. Uma forte tendência ao
monopólio de fêmeas por parte de um macho dominante impede a exis-
tência de grupos sociais amplos. Utilizando de forma metafórica concei-
tos que se aplicam mais propriamente a seres humanos, diríamos que
este monopólio impede a existência de “sociedades” e restringe o grupo
a “famílias”. No caso dos gibões, por exemplo, entre os quais os grupos
abrangem apenas um par adulto e sua prole imatura, a estrutura é seme-
lhante a uma “família monogâmica”. Neste tipo de organização, a opor-
tunidade de atividade sexual é muito restrita, tanto para machos como
para fêmeas, pois é interrompida pelos longos períodos de gravidez e
amamentação. Em muitas espécies de mamíferos, encontramos um outro
tipo de organização que é freqüente também entre os gorilas: a formada
por um único macho adulto dominante e diversas fêmeas, com as crias
sub-adultas. Neste caso temos grupos maiores, semelhantes a uma única
“família poligínica”, ocorrendo então oportunidades mais freqüentes de
relações sexuais para os machos. A constituição de grupos grandes ou
“sociedades” propriamente ditas, com a coexistência de machos e fêmeas

 Chimpanzés também amam


adultos de uma forma relativamente permanente, depende da quebra do
monopólio de acesso sexual às fêmeas por um único macho dominante.
A “solução”, no caso da sociedade de chimpanzés (como em algu-
mas outras espécies de primatas sociais), se fundamenta na promiscuida-
de, que oferece a todos os machos do grupo oportunidades freqüentes de
exercício da sexualidade, uma vez que, em grupos grandes, é comum
que pelo menos uma fêmea esteja no cio e disposta a copular com dife-
rentes machos.
A promiscuidade é certamente uma característica extremamente
interessante da vida social dos chimpanzés, e responsável pela forma
intensa que a sexualidade permeia toda a vida social. A promiscuidade,
aliás, parece ser uma possibilidade sempre presente entre os antropói-
des; mesmo entre gibões e gorilas, havendo oportunidade, fêmeas e
machos podem eventualmente copular com adultos de outros grupos.
E bandos de gorilas podem incluir mais de um macho, caso em que a
promiscuidade se estabelece.
Convém lembrar, entretanto, que a promiscuidade não é irrestrita
nem igualitária. Em primeiro lugar é em grande parte limitada aos
membros do grupo. Relações sexuais fora do grupo, embora ocorram,
são objeto de repressão (freqüentemente agressiva) por parte dos mem-
bros do bando. Por outro lado, as relações entre grupos, que são fre-
qüentemente hostis e violentas, estão associadas às tentativas de preser-
var ou aumentar o número de fêmeas do bando. De fato, a sexualidade
parece constituir um dos elementos fundamentais para a manutenção de
grupos estáveis.
Em segundo lugar, dentro do grupo, os machos dominantes asse-
guram um acesso privilegiado às fêmeas, especialmente as mais desejá-
veis, isto é, nas quais o volume e a cor do inchaço genital são mais pro-
nunciados. Mas mesmo machos dominantes ciumentos dificilmente
conseguem monopolizar uma ou mais fêmeas, as quais, dados a presen-
ça de diferentes machos, o padrão de dispersão do grupo na procura de
alimentos e a proteção da folhagem, parecem encontrar com razoável
facilidade oportunidades de encontros amorosos diversificados, inclusi-
ve com machos de outros grupos.
Durante o período do cio as fêmeas copulam diversas vezes por
dia. A freqüência da cópula é difícil de ser estabelecida nas pesquisas de
campo, pois os animais ficam freqüentemente ocultos pela vegetação.
Neste ponto, os estudos feitos com animais em cativeiro, que podem ser


observados todo o tempo, oferecem infor mações importantes, mesmo
quando se considera que, nesta situação, estando os animais liberados
das tarefas de procurar alimento e de se defender de predadores, a
sexualidade provavelmente é intensificada.
As tabelas apresentadas por Waal, decorrentes de quinze anos de
observações sistemáticas e controladas na colônia do zoológico de
Arnhem (na qual se procurou uma aproximação das condições da vida
selvagem), indicam que durante o período do cio as fêmeas copulam
uma média de seis vezes por dia. As fêmeas adolescentes, mesmo que
ainda não férteis, demonstram um entusiasmo copulativo muito maior:
uma média de dez vezes por dia, o que está associado ao fato de elas fre-
qüentemente tomarem a iniciativa e se oferecerem aos machos. As fê-
meas adultas, ao contrário, raramente tomam a iniciativa, que nestes
casos é predominantemente masculina (Waal [] : ).
A cópula, propriamente, é muito breve e dura geralmente quinze
segundos, estendendo-se quando muito a um minuto. Pode, entretanto,
ser repetida uma ou duas vezes após breves intervalos. As fêmeas, so-
bretudo as jovens, às vezes gritam no momento em que, aparentemente,
atingem o orgasmo. Os machos se limitam a emitir grunhidos rítmicos.
Após a cópula, os parceiros se separam sem maiores cerimônias.
Não há, entretanto, como duvidar do grande interesse que os
chimpanzés manifestam pelo sexo e de sua importância para a dinâmica
da constituição dos grupos.
Uma observação de Fossey sobre os gorilas se aplica integralmen-
te aos chimpanzés:

a presença de uma fêmea no cio, seja uma adolescente ou uma adulta repro-
dutivamente capaz, incita uma grande quantidade de atividade sexual simu-
lada entre outros membros do grupo, como o ato de montar entre indivíduos do
mesmo sexo ou entre animais de diferentes grupos etários. A cópula simulada
unissexual ocorre duas vezes mais entre machos do que entre fêmeas, enquan-
to as com discrepância etária ocor rem mais freqüentemente quando machos
adultos montam fêmeas imaturas. (Fossey :)

Como há freqüentemente uma fêmea no cio, e a presença dela provoca


uma grande agitação no grupo, a sexualidade está muito presente na
vida social de chimpanzés e gorilas, inclusive tornando-a extremamen-
te movimentada. O interesse pelo sexo, aliás, não se restringe aos adul-

 Chimpanzés também amam


tos, mas se manifesta muito precocemente. A partir de dois anos de
idade, filhotes de ambos os sexos ficam muito excitados quando obser-
vam o ato sexual dos adultos e interferem ativa e ruidosamente, quer
tentando impedi-lo quer, mais freqüentemente, tentando participar dele
(Goodall ).
Há também, entre os chimpanzés imaturos, contatos eróticos fre-
qüentes durante as brincadeiras, do tipo que Freud caracteriza para os
seres humanos como perverso polimorfo. Nesta fase, parece que as dife-
renças entre machos e fêmeas não estão ainda consolidadas no plano ins-
tintivo e breves manipulações genitais, assim como tentativas de montar
o parceiro, ocorrem indiscriminadamente, independendo do sexo.
Podemos certamente falar de um instinto sexual. Melhor seria,
entretanto, usar a palavra “pulsão”, que deriva da tradução francesa do
termo “Trieb”, utilizado por Freud.12 A palavra “pulsão” é mais ade-
quada do que “instinto” porque admite uma variabilidade na forma
através da qual a necessidade de satisfação do impulso se realiza. De
fato os chimpanzés, como os seres humanos, apresentam comportamen-
tos sexuais bastante flexíveis. É importante lembrar também que, para
Freud, a pulsão se coloca entre o propriamente físico e o psíquico.
Mesmo neste sentido, creio que o conceito pode ser aplicado aos chim-
panzés e primatas em geral.
Além dos aspectos já mencionados que demonstram a flexibilidade
do comportamento sexual, é importante notar a variação do grau de
entusiasmo por sexo, especialmente entre as fêmeas, e isto desde a ado-
lescência. Enquanto algumas apresentam um comportamento que, na
espécie humana, poderia ser caracterizada como ninfomaníaco, outras
parecem recear os machos e cruzam com muito menos freqüência. Há
também preferências sexuais que, apesar de não impedirem a promis-
cuidade, estabelecem relações mais próximas e mais duradouras entre
um par específico. O capítulo  do livro de Jane Goodall (“A vida sexual
de Flo”) oferece uma descrição bastante vívida do comportamento
sexual dos chimpanzés (Goodall ).
Como entre muitos outros primatas, a masturbação também ocorre,
e é um tipo de comportamento bastante freqüente entre os bonobos de
ambos os sexos, mas especialmente entre as fêmeas. Entre os bonobos,

. Para o conceito de pulsão utilizamos além do próprio Freud, Mezan : -ss e
Hanns .


aliás, relações homossexuais entre fêmeas também são comuns: fêmeas
no cio se abraçam e esfregam horizontalmente os genitais, parecendo
obter grande satisfação com este ato. Também entre os bonobos, conta-
tos genitais entre machos são freqüentes, como fricção mútua do pênis,
mas parece ser antes uma atividade de apaziguamento e solidariedade do
que uma forma de obter satisfação sexual, porque são muito breves, não
produzem ejaculação e ocorrem em situações de tensão grupal. Aliás, a
forma mais comum de contato genital entre os machos consiste em esfre-
garem rapidamente os traseiros, sem contato entre os pênis (Waal ).
De um modo ou de outro, a observação do comportamento sexual
dos chimpanzés parece não deixar dúvida de que, entre eles, o sexo é
uma atividade altamente emocional, um interesse constante que desem-
penha uma importante função de relacionamento, promovendo-o e
expressando outros tipos de relações afetivas. A apresentação do trasei-
ro, por exemplo, que é característica das fêmeas no cio quando aceitam
ou convidam um macho para a atividade sexual, é usada também por
machos e fêmeas, indistintamente, para demonstrar submissão perante
um macho dominante. Sexo, portanto (ou, mais precisamente, contatos
genitais), não se restringe a uma atividade de procriação, nem envolve
necessariamente a cópula (Hashimoto & Furuichi ).
Um outro dado importante, sem dúvida alguma, é a defor mação
dos instintos sexuais que ocorre em cativeiro e, mais especialmente, nas
situações em que os animais são isolados e privados dos estímulos for-
necidos pela vida grupal. Nestas circunstâncias, não só a masturbação se
torna habitual e mesmo compulsiva, como se manifestam também ou-
tras anomalias como impotência, frigidez, estupro, infanticídio ou rejei-
ção das crias pela mãe. Por isso mesmo, a reprodução em cativeiro é
difícil e exige condições especiais de manejo ou interferência humana
direta. Chimpanzés em cativeiro, como é o caso de muitos outros ani-
mais, parecem de fato ter um comportamento sexual mais parecido com
os dos seres humanos em ter mos de problemas sexuais e reprodutivos
do que aquele que é característico dos animais selvagens, o que parece
comprovar que somos animais auto-domesticados. Aliás, Erich Fromm
faz uma indicação interessante na mesma linha quando observa que as
condições de vida do homem assemelham-se mais às de animais em jar-
dim zoológico do que às de animais vivendo em seu ambiente natural
(Fromm : ). Isto comprova que o instinto sexual é flexível em
termos de sua manifestação, e depende da experiência social tanto entre

 Chimpanzés também amam


os chimpanzés como entre os seres humanos. A diferença mais impor-
tante reside no fato de que chimpanzés, como os animais em geral, não
elaboram julgamentos morais em relação à sexualidade.
Convém, entretanto, fazer algumas reflexões adicionais sobre a pro-
miscuidade. Como vimos, a promiscuidade está associada ao fato de,
entre os chimpanzés, relações sexuais não estabelecerem parcerias per -
manentes, estáveis e muito menos exclusivas entre machos e fêmeas, ape-
sar dos casos de preferências afetivas. Entre nós, ao contrário, o sexo e a
reprodução são organizados, em todas as sociedades conhecidas, de for-
ma a estabelecer parcerias pelo menos relativamente per manentes entre
homens e mulheres, fortalecidas por uma divisão social do trabalho.
É interessante, de fato, especular se as parcerias sexuais humanas
estabelecidas por diferentes for mas de casamento constituem, de fato,
uma invenção cultural imposta sobre uma base instintiva promíscua.
Isso explicaria o fato de o adultério, apesar de condenado em todas as
culturas, parecer constituir uma espécie de tentação per manente e
passatempo favorito para homens e mulheres no conjunto das socie-
dades humanas.
Apesar de não se poder extrapolar os padrões sexuais de uma
espécie para outra, especialmente no caso de antropóides, há algu-
mas indicações que tor nam essa hipótese plausível. A principal delas
é o fato de a promiscuidade, tão clara entre os chimpanzés, per mane-
cer, como vimos, como uma possibilidade sempre presente nos de-
mais antropóides.
Se a hipótese é plausível, poderíamos de fato afir mar que o casa-
mento, a parceria sexual estável tal como ocorre nas sociedades huma-
nas, é um fenômeno propriamente cultural, sem fundamentação biológi-
ca (ao contrário do que acontece, por exemplo, entre os gibões). Somos
então levados a indagar o que teria levado a humanidade a trilhar este
caminho tão particular de investir no casamento e no estabelecimento de
parcerias sexuais estáveis, e as implicações deste caminho. Para isto,
temos que voltar novamente ao estudo das diferenças.
A ausência do cio – isto é, a capacidade de as fêmeas humanas man-
terem relações sexuais independentemente do ciclo reprodutivo – é uma
das diferenças. Neste caso, parece ter ocorrido uma adaptação evolutiva
a fim de facilitar a formação de parcerias permanentes. O cio, e a inter-
rupção da sexualidade durante a gravidez e a amamentação, como ocorre
entre os chimpanzés, tor nam a fêmea indisponível para as relações


sexuais durante um período muito prolongado, o que provavelmente
criaria tensões dificilmente suportáveis para o parceiro masculino e para
o grupo no caso de restrição da sexualidade a parceiros per manentes;
quando outras fêmeas entrassem no cio a parceria estável dificilmente
seria mantida a não ser com a poliginia (que cria outras tensões, excluin-
do inúmeros homens do acesso regular às fêmeas).
Por outro lado, o resultado desta autonomia da sexualidade em
relação aos ciclos reprodutivos é um espaçamento menor entre as ges-
tações, o que parece só ser possível sustentar dentro de grupos mais
organizados, com for mas mais complexas de cooperação econômica e
social. Embora as mulheres sejam fisicamente capazes de ter um filho
por ano, não poderiam arcar com a carga de cuidados envolvidos na
mater nidade se, como as mães chimpanzés, tivessem que prover sozi-
nhas às suas próprias necessidades e às das crias. As sociedades huma-
nas desenvolveram, é verdade, mecanismos culturais para aumentar o
espaçamento das gestações, através de tabus e do infanticídio delibera-
do ou decorrente de abandono.13 Mas, mesmo assim, a taxa reprodutiva
humana tende a ser superior à dos chimpanzés, o que deve estar relacio-
nado à extraordinária expansão da nossa espécie pelo mundo todo, isto
é, ao nosso sucesso evolutivo.
Deve-se ainda considerar que o casamento entre os seres humanos
está inextricavelmente associado a dois outros fenômenos, também tipi-
camente humanos: a paternidade e o tabu do incesto, que convém estu-
dar com maiores detalhes.

Paternidade, maternidade e incesto

Na inexistência de pares estáveis, não há entre os chimpanzés nada cor-


respondente a relações de pater nidade (ou de avunculado) tão impor-
tantes entre nós, embora inúmeros estudos tenham apontado para o fato
de que os machos tendem a ser extremamente tolerantes e protetores
para com as crias das fêmeas do seu grupo (com as quais, aliás, geral-
mente tiveram relações sexuais). O infanticídio é entretanto comum, e
mesmo prática generalizada quando um macho estranho ao grupo der-
rota o macho dominante e assume a posição alfa. O assassinato de bebês

. Para uma análise detalhada dessas práticas, ver Hrdy .

 Chimpanzés também amam


que estão sendo amamentados parece ser, neste caso, comportamento
proposital e sistemático.14 O resultado dessa prática (embora não certa-
mente seu objetivo consciente) é que as fêmeas reassumem seu período
de fertilidade e o novo líder substitui os filhos de seu predecessor pelos
seus próprios. Machos, fora dessas circunstâncias, são de fato tolerantes
e mesmo carinhosos com os filhotes, que não lhes demonstram nenhum
respeito: puxam-lhes os pêlos, sobem pelas suas costas e as usam como
escorregador. Poderíamos mesmo imaginar algo semelhante a uma
pater nidade difusa. A disciplina da hierarquia começa a ser aplicada
depois que os filhotes atingem quatro ou cinco anos, quando cessa a
tolerância. Mas, nos casos de bebês pequenos que ficaram órfãos, há
casos registrados nos quais machos lhes oferecem proteção especial, e
mesmo procuram atuar como mães substitutas (Mason : ).
Sobre esse fenômeno que estou chamando de “paternidade difusa”
convém citar um relato de Schaller, um dos primeiros pesquisadores a
estudar sistematicamente os gorilas em seu ambiente natural. Embora o
relato diga respeito aos gorilas e não aos chimpanzés, ilustra bastante
bem o comportamento do macho destas duas espécies de antropóides
sociais em relação às crias das fêmeas de seu bando; além disso, deixa
transparecer a identificação emocional que o observador humano
espontaneamente demonstra em relação aos animais. Seguindo o rastro
de um bando de gorilas que haviam encontrado pouco antes, Schaller e
seu companheiro Doc tomaram a crista de um vale e avistaram-no na
elevação do lado oposto; o macho, após gestos ameaçadores iniciais,
acabou se tranqüilizando e sentando-se ao lado de uma fêmea com
filhote, num montículo.

O macho, que devia pesar quase duzentos quilos, permaneceu no montículo,


contemplando montanhas e planícies, verdadeiro senhor de seus domínios.
Uma outra fêmea, com um bebê suavemente estreitado contra o corpo, se
aproximou. “Deve ser um recém-nascido”, sussur rei para Doc. “Ainda está
molhado”, ele concordou. A fêmea se apoiou pesadamente contra as costas do
macho. Seu braço peludo quase ocultava completamente o seu bebê, que pare-
cia uma aranha, e cujos finos braços e per nas se agitavam ao acaso. O macho
se inclinou e, com a mão, acariciou o bebê. Durante duas horas, embevecidos,
contemplamos aquela cena de família.

. Esta prática é comum também entre outras espécies, como leões e outros primatas.


Schaller e seu companheiro tiveram finalmente que se afastar, porque
estava ficando tarde e tinham que retor nar ao acampamento. Surpre-
so com o fato de os gorilas não terem se afastado como vinham fazen-
do então, Schaller especula: “Talvez não tivessem querido se afastar
por causa do nascimento iminente ou recente do filhote” (Schaller
: -).15
Apesar do interesse (e às vezes do carinho) demonstrado pelos
machos em relação aos recém-nascidos, não tendo pais, os chimpanzés
estão certamente livres do complexo de Édipo e do tabu do incesto.
Apesar disso, surpreendentemente, relações incestuosas são raras, espe-
cialmente porque (ao contrário de muitas outras espécies de primatas
nas quais os adolescentes de sexo masculino tendem a se dispersar)
entre os chimpanzés são as fêmeas adolescentes que tendem a esponta-
neamente buscar outros grupos logo após a menarca. Este afastamento
costuma se dar no período do cio, no qual elas se tornam atraentes para
machos de outros grupos, que por sua vez facilitam sua introdução no
novo bando, protegendo-as da agressividade das outras fêmeas. Verifi-
ca-se, portanto, a existência de algo parecido com uma “troca de mulhe-
res” espontânea (ou natural). Essa tendência natural torna raro tanto o
incesto entre pai e filha quanto entre irmão e irmã. Há, entretanto, casos
em que as fêmeas per manecem no grupo, especialmente quando são
filhas de mães dominantes. As cuidadosas observações de Jane Goodall
indicam, entretanto, que mesmo nesses casos as relações sexuais entre
irmãos são raras. Parece que a convivência estreita entre irmãos, que
analisaremos mais tarde, amortece a atração sexual. As observações
relativas a incesto entre pai e filha são bem menos conclusivas, inclusi-
ve porque, na situação de promiscuidade e sem a introdução de testes
genéticos sistemáticos para a população do grupo, nem os pesquisadores
nem os chimpanzés podem saber ao certo quem é o genitor. Podemos
inferir que, nos casos relativamente raros nos quais a fêmea adolescente
per manece no grupo, o incesto com o pai pode ocorrer, especialmente
quando o genitor era e per manece sendo o macho dominante. No
entanto esta condição não deve ser muito freqüente, porque a posição
de dominância raramente dura os sete ou oito anos necessários para que
uma fêmea inicie o seu período reprodutivo. Além disso, fêmeas adoles-

. Ver também Schaller , onde também se encontra um excelente levantamento sobre a
história dos estudos sobre gorilas, anteriores à década de .

 Chimpanzés também amam


centes raramente copulam com machos adultos – o acasalamento se dá
preferencialmente com machos jovens.
Os dados mais surpreendentes, entretanto, dizem respeito ao
incesto entre mães e filhos, os quais normalmente convivem no mesmo
grupo. Em mais de trinta anos de observação consecutiva, Jane Goodall
e sua equipe afirmam não terem conseguido registrar um único caso de
incesto deste tipo. E, em observações prolongadas, ao contrário do que
acontece com o genitor masculino, a filiação materna de adultos jovens
é conhecida dos pesquisadores e, ao que parece, reconhecida pelos
filhos. Também aqui o contato estreito e prolongado da cria com a mãe
parece dificultar ou mesmo impedir a atração sexual. Nos demais estu-
dos consultados, não encontrei infor mação específica sobre incesto,
com exceção de uma breve referência de Diane Fossey sobre os gorilas:
prosseguindo o relato que citamos anteriormente sobre a amplitude de
atividades sexuais, afir ma que as únicas parcerias que nunca foram
observadas incluem machos imaturos montando machos adultos e
machos montando suas mães (Fossey : ).
Decerto estes dados não per mitem concluir que o mesmo ocorra
necessariamente entre os seres humanos, e que as relações entre mãe e
filho e entre irmãos inibam a atração sexual, mesmo porque o compor-
tamento sexual, como já vimos, pode apresentar grandes variações de
uma espécie para outra, mesmo em se tratando de espécies próximas.
Entretanto, parece que os dados referentes aos chimpanzés devem, pelo
menos, promover um reexame da questão do tabu do incesto e do com-
plexo de Édipo tanto por parte dos antropólogos como dos psicanalis-
tas, cujas concepções estão assentadas na certeza da existência de um
forte desejo sexual entre mães e filhos e entre irmãos. No caso da antro-
pologia, podemos reanalisar a questão da troca de mulheres e do tabu
do incesto que a estabelece, e perguntar se, em lugar de uma ruptura
radical entre natureza e cultura, não se trata antes de uma regulamenta-
ção cultural de um padrão natural pré-existente. Obviamente o fato de
pensar mos mais em ter mos de passagem ou transfor mação do que em
lugar de ruptura não torna o fenômeno menos importante enquanto
característica especificamente humana.
Para uma melhor compreensão desta questão, é necessário analisar
com cuidado as relações entre mães e filhos e entre filhos da mesma mãe.


Mães e filhos

Procuramos mostrar que a sexualidade per meia a vida social e consti-


tui (junto com a dominação) um dos elementos fundamentais da
sociabilidade do chimpanzé, embora não crie parcerias, isto é, relações
interindividuais per manentes. Esse tipo de relação é dado, entretanto,
pela mater nidade.
Entre os chimpanzés – como entre os seres humanos, os demais
primatas e os mamíferos em geral – as crias nascem muito imaturas e
não sobrevivem sem cuidados mater nos intensos e prolongados. Um
dos aspectos cruciais desses cuidados é a amamentação, que promove
necessariamente uma relação estreita entre mãe e cria, e faz com que o
conjunto dos cuidados necessários à sobrevivência e desenvolvimento
dos filhotes tenda a ser fornecido pela mãe. Na natureza, os filhotes de
chimpanzés mamam com enor me freqüência, com intervalos que às
vezes não ultrapassam quinze minutos, mas o ato de mamar é de curta
duração, variando de poucos minutos a alguns segundos. Dor mindo
com as mães, provavelmente são amamentados também durante toda a
noite. Além do mais, entre os chimpanzés, o período de aleitamento é
excepcionalmente longo, durando em geral de três a quatro anos, o que
prolonga e provavelmente intensifica os laços que unem mães e crias.
No caso dos primatas, esta necessidade de cuidado mater no per -
manente é ampliada pelo fato de que, em função da locomoção arborí-
cola e ausência de pouso fixo, os filhotes precisam ser não somente ali-
mentados, limpos e acariciados, mas também carregados durante todo o
tempo. O contato físico é constante, portanto. Primatas constroem ape-
nas ninhos temporários para uma única noite e, ao contrário de cães,
lobos, pássaros e tantos outros animais, não possuem ninhos ou tocas,
nos quais as crias possam per manecer protegidas enquanto a mãe se
afasta para prover sua própria alimentação (Mason ).
Entre os chimpanzés, a dependência dos filhotes é não só intensifi-
cada pela necessidade de serem carregados, mas também ampliada pelo
fato de seu desenvolvimento ser muito lento. Filhotes de chimpanzés
adquirem alguma autonomia de movimentação apenas com um ano de
idade e, assim mesmo, só se locomovem sozinhos quando a mãe está
perto e vigilante. Na permanente movimentação diária dos grupos em
busca de alimento e, em especial, numa reação de fuga ante uma amea-
ça exter na, os filhotes continuam a ser carregados pelo menos até os

 Chimpanzés também amam


quatro anos e, excepcionalmente, até os cinco. Como a amamentação
também é prolongada, como vimos, as relações entre mães e filhos
envolvem um grau de proximidade física mais intenso do que a obser-
vada no caso dos seres humanos.
A necessidade de se agarrar à mãe e de ser agarrado por ela, ou de
ser constantemente segurado e apoiado pode ser uma adaptação evolu-
tiva da vida arbórea, na qual perder o apoio significa com freqüência
uma queda mortal. A reação de medo à sensação de queda, aliás, parece
ser uma das reações mais primitivas do neonato humano.
Embora haja variações individuais, as mães chimpanzés demons-
tram, em relação às crias, comportamentos extremamente semelhantes
ao que chamamos na nossa espécie de “amor mater no”. A relação da
mãe com as crias constitui, sem dúvida, o laço mais forte existente na
sociedade do chimpanzé. A este relacionamento caberia, a meu ver, a
qualificação de amoroso, e ele está amplamente documentado em toda
a bibliografia.
A adaptação evolutiva a este grau de dependência é dupla. Em pri-
meiro lugar, chimpanzés têm um filhote de cada vez. Encontrei um
único caso documentado de nascimento de gêmeos entre chimpanzés
selvagens, mas as crias não sobreviveram ao primeiro ano de vida. A se-
gunda adaptação consiste no espaçamento entre as gestações. Dado o
alto investimento físico das mães para assegurar a sobrevivência das
crias, essas adaptações parecem de fato ser essenciais para assegurar o
sucesso da procriação. Como vimos, fêmeas raramente retomam o cio
antes de três anos após o parto (com exceção dos bonobos, entre os quais
este período pode ser reduzido a um ano) e, mesmo entre os bonobos,
raramente são férteis antes dos três ou quatro anos. Considerando uma
gestação de sete meses e meio, o espaçamento médio entre as crias é de
quatro a seis anos. Durante todo esse tempo, a cria permanece em estrei-
to contato físico com a mãe. Além disso, o nascimento de uma nova cria
não interrompe o contato estreito com a cria anterior. É comum obser-
var uma fêmea com uma cria no colo e outra, maior, ao seu lado. Em
casos de perigo ou de uma travessia particularmente difícil, a mãe carre-
ga também a cria mais velha montada em suas costas. Mesmo após a
adolescência, chimpanzés continuam a manter contatos estreitos com as
mães, e defendê-las ou ser defendidos por elas em caso de perigo.
Convém analisar melhor a questão do complexo comportamental
associado ao contato físico tão estreito que decorre da amamentação e


da locomoção. Em primeiro lugar, é importante considerar as observa-
ções experimentais sobre os reflexos dos neonatos. Mason observa que
os reflexos primários ou primitivos que ocorrem nos recém-nascidos
obedecem a um padrão muito semelhante entre macacos, antropóides e
seres humanos. Na revisão do material disponível na bibliografia sobre
estes diferentes primatas, Mason afirma:

Os primeiros comportamentos coordenados a aparecer após o parto são aque-


les que servem para manter contato corporal com a mãe e permitir a amamen-
tação, a saber: movimentar a cabeça (o que permite encontrar a teta), agar-
rar-se e mamar (incluindo sugar e engolir). Os três são encontrados entre seres
humanos, inclusive o de agarrrar-se (grasp reflex).16 [...] Embora estas res-
postas possam ser analisadas individualmente, elas estão funcionalmente
inter-relacionadas não apenas nos neonatos, mas durante toda a infância.
Assim a coordenação entre os reflexos de sugar e engolir durante a amamen-
tação pode ser perturbada se os macaquinhos não estiverem firmemente agar-
rados. A ação de se agar rar é intensificada durante a amamentação, mesmo
quando o infante está firmemente seguro. Observa-se também que filhotes de
macacos, chimpanzés e seres humanos abrem e fecham as mãos ou apresentam
outras formas de movimentação dos dedos quando estão amamentando ou
mesmo bebendo de uma xícara... (Mason : -)

Aliás, no que diz respeito à necessidade de contato corporal, Mason


reproduz uma extensa observação de Alfred Russel Wallace sobre suas
experiências relativas a um bebê orangotango capturado, que é interes-
sante não apenas pela importância do observador como pela objetivida-
de do relato e pela época em que foi escrito: .

Durante os primeiros dias, ele se agar rava desesperadamente com as quatro


mãos a qualquer coisa que conseguisse alcançar, e eu tinha que tomar cuidado
para manter minha barba afastada, pois seus dedos se agarravam a superfícies
peludas mais do que a qualquer outra coisa, e era impossível eu me libertar sem
ajuda. Quando inquieto, ele movia os braços e as mãos no ar, tentando encon-

. Experiências com neonatos rhesus, chimpanzés e humanos indicam, entretanto, um declí-
nio desta capacidade entre estes três primatas. Assim, a capacidade inicial de agarrar-se sem
suporte é de cerca de trinta minutos para neonatos rhesus, cinco para chimpanzés e dois para
seres humanos.

 Chimpanzés também amam


trar alguma coisa à qual pudesse se agar rar... Por falta de outra coisa, ele
agarrava freqüentemente seus próprios pés, e depois de algum tempo cruzava os
braços e agarrava, com as mãos, os longos pêlos que cresciam no ombro oposto.

Finalmente, Wallace providenciou um embrulho de pele de búfalo, que


pareceu satisfazê-lo até ele descobrir que não havia tetas nele (Wallace
apud Mason : ). As múltiplas observações deste tipo de compor-
tamento entre os chimpanzés indicam que não estamos lidando com
meros reflexos automáticos, mas com intensas manifestações emocionais.
Devemos enfatizar que a amamentação e as sensações corporais
que derivam do contato com o corpo da mãe formam um complexo que
inclui, além das sensações de maciez e dureza, também calor, cheiro,
ritmo, gosto e ruídos (como os grunhidos carinhosos das mães chim-
panzés, ou mesmo as batidas do coração).
A importância do contato corporal contínuo com o corpo da mãe
foi repetidamente comprovada em experiências de laboratório. Hinde
() demonstrou a existência de um padrão muito claro de reação de
filhotes rhesus temporariamente separados de suas mães. Mesmo quan-
do alimentados e deixados em seu ambiente habitual, podia-se compro-
var uma seqüência constante de comportamentos, que passavam de
protesto e procura pela mãe a desespero, e eram seguidos de apatia ou
depressão profunda. Estudos com bebês humanos internados em clíni-
cas ou hospitais, separados das mães, revelaram o mesmo padrão.17
As observações de campo com chimpanzés comprovam esta
seqüência. Bebês órfãos, mesmo quando podem se alimentar sozinhos e
são objeto de cuidados especiais por parte de um irmão, irmã ou mesmo
um macho adulto, raramente sobrevivem, e parecem literalmente mor-
rer de tristeza. Jane Goodall descreve cuidadosamente três casos desse
tipo em seu livro In the Shadow of Man. Diane Fossey faz observações
equivalentes para órfãos de gorilas (Fossey ).
Ficaram também clássicas as experiências de Harlow & Zimmer -
man, na década de , nas quais filhotes de rhesus recém-nascidos eram
colocados isolados em gaiolas com cilindros de arame, dos quais rece-
biam alimento, e cilindros recobertos de tecido felpudo, que não forne-
ciam leite. Os macaquinhos se agarraram ao cilindro de arame apenas
durante o tempo estritamente necessário para satisfazer a fome, correndo

. Para uma análise da extensa bibliografia a respeito, ver Bowlby e Hrdy .


em seguida para as “mães” felpudas, às quais permaneciam agarrados o
resto do tempo.
Resumindo e analisando o resultado destes trabalhos, a antropóloga
e etóloga Suzan Hrdy afirma (talvez com certo exagero), que “abraçar-se
a uma mãe substituta tem tudo a ver com esta noção de segurança, e
pouco a ver com a satisfação da fome” (Hrdy : ).
De uma forma ou de outra, é certamente muito importante o fato
de que o contato com a mãe pareça criar os primeiros laços afetivos e
constituir a base sobre a qual se constroem os sentimentos de seguran-
ça física e emocional. Além disso, mães chimpanzés são uma fonte cons-
tante de proteção contra qualquer possível perigo externo e de estímu-
los sensoriais-motores. As mães estão sempre manipulando os filhotes:
limpando-os, catando-os, abraçando-os, acariciando-os com os lábios e
brincando com eles, balançando-os no ar e fazendo-lhes cócegas. Em
suma, se parecem muito com mães humanas.
No desenvolvimento da psicanálise, a teoria sobre a natureza das
experiências mais primitivas dos bebês humanos tomou inicialmente,
com Freud, um rumo muito diferente, dificultando para os analistas
posteriores a incorporação destas observações relativas aos primatas em
geral e aos chimpanzés em particular.
No ensaio sobre sexualidade infantil que faz parte dos Três ensaios
sobre a sexualidade, Freud toma um caminho muito peculiar: ele consi-
dera o ato de sugar como manifestação mais primitiva da sexualidade,
separando-o do “instinto” da alimentação, isto é, do ato de mamar.
O protótipo adotado é o ato de sugar o polegar. Crianças de fato sugam
partes do seu próprio corpo além do seio mater no, principalmente o
polegar, mas é difícil separar esta atividade do complexo de respostas
geneticamente estabelecidas que fazem parte do equipamento de sobre-
vivência das crianças, que inclui a amamentação. Filhotes de chimpan-
zés e outros primatas também desenvolvem o hábito de chupar o dedo,
mas este comportamento, freqüente em situação de cativeiro e quando
os filhotes não estão em contínua associação com as mães, é raro em
animais vivendo em condições naturais a não ser durante o desmame,
quando, além de seus próprios dedos e mãos, eles sugam também outras
áreas do corpo materno, como as axilas.
É verdade que, mesmo para Freud, seria difícil caracterizar a ali-
mentação como uma manifestação da sexualidade. De fato, Freud distin-
guiu inicialmente duas classes de instintos ou pulsões: erotismo e auto-

 Chimpanzés também amam


preservação (embora a esta última tenha dedicado pouca atenção). Dada
esta classificação, a amamentação estaria necessariamente entre este últi-
mo grupo. A autonomização do ato de sugar como fundamento do ero-
tismo infantil teve um inconveniente fundamental, que foi o de deixar de
examinar o conjunto muito complexo e profundo de compulsões e sen-
sações corporais que caracterizam a relação da mãe com o bebê.
É verdade que as posições de Freud não são monolíticas, e outras
hipóteses relativas ao erotismo infantil são aventadas em outros artigos,
sem que sejam integradas num todo coerente.
Michael Balint, que fez uma análise muito minuciosa e penetrante
das diferentes posições assumidas por Freud, conclui: “É um fato curio-
so, porém de fácil verificação, que durante muitos anos Freud tenha con-
servado três pontos de vista mutuamente exclusivos da relação mais pri-
mitiva do indivíduo e seu entorno” (Balint [] : ). O primeiro é
o do auto-erotismo primário que está nos Três ensaios, ao qual já nos refe-
rimos. O segundo, Balint encontra numa passagem de A interpretação dos
sonhos, a qual cita:

Num momento em que as primeiras satisfações sexuais ainda estão ligadas à


ingestão de alimentos, a pulsão sexual tem um objeto sexual fora do próprio
corpo da criança, sob a forma do seio da mãe. Só mais tarde é que a pulsão
perde este objeto, talvez exatamente no momento em que a criança se torna
capaz de formar uma idéia total da pessoa a quem pertence o órgão que lhe está
for necendo satisfação. Como regra, então, a pulsão sexual se torna auto-erótica,
e somente após ter passado o período da latência é restaurada a relação original.
Estas são, pois, boas razões para que o mamar da criança no seio mater no torne-
se o protótipo de toda relação de amor. (Freud apud Balint : )

A terceira hipótese diz respeito às reflexões sobre o narcisismo primário,


nas quais afirma: “A forma mais primitiva de relação do indivíduo e seu
entorno é o auto-erotismo, seguido pelo estágio narcísico, a partir do qual
então se desenvolvem as relações objetais” (Freud apud Balint : ).18
De qualquer forma, os inúmeros estudos posteriores sobre recém-
nascidos se orientam numa outra direção: contato corporal e alimenta-
ção parecem fazer parte de um complexo integrado que une mãe e filho
de tal modo que os prazeres (eróticos ou não) dos bebês chimpanzés

. Bowlby () faz crítica semelhante.


dificilmente se enquadrariam na concepção freudiana de auto-erotismo,
que perduraria até a fase edípica. O reexame da hipótese do auto-erotis-
mo levaria a rever também a questão do narcisismo primário e o concei-
to de relações analíticas.
Melanie Klein, a partir de algumas colocações do próprio Freud,
deu um grande passo na análise das experiências e emoções infantis
com a atenção que dedicou ao seio e à amamentação como base para o
estabelecimento de relações primitivas com objetos externos.
Embora reconheça ocasionalmente outros aspectos da relação
mãe-bebê, como o contato corporal, a teoria kleiniana ficou de fato cen-
trada na amamentação. Embora posterior mente o conceito de “seio”
tenha se ampliado, a própria preservação deste termo como conceito
básico cria dificuldades semânticas para a compreensão mais ampla da
relação mãe-bebê. A excessiva atenção à amamentação infantil e ao seio
materno parece reduzir o psiquismo ou pelo menos o erotismo infantil
à oralidade.19
Psicanalistas britânicos e húngaros, posterior mente, ampliaram a
contribuição de Melanie Klein e reviram de forma mais profunda o
desenvolvimento infantil nas fases pré-genitais (oral e anal). A relação
de objeto passa definitivamente a ter início nas fases pré-edípicas, e
envolve as múltiplas formas de contato com a mãe.
De acordo com esta orientação, é muito significativa a formulação,
por Winnicott, do conceito de holding (que pode significar abraço ou
sustentação) que, como na linguagem comum, tem uma dupla referên-
cia, física e psicológica, e engloba a multiplicidade dos aspectos presen-
tes na relação mãe-bebê (Winnicott [] : -).
Outro autor particular mente relevante é Michael Balint, que já
citamos anteriormente em relação às críticas à concepção freudiana de
erotismo infantil. A relevância da obra de Balint para este nosso estudo
reside no fato de que sua teoria pode ser facilmente utilizada numa
abordagem comparativa entre homens e primatas, explicitando tanto as
semelhanças como as diferenças entre uns e outros. Na revisão que efe-
tua da teoria psicanalítica referente às diferentes fases do desenvol-
vimento sexual, Balint distingue as áreas anteriores ao complexo de
Édipo, que denomina “área da falha básica”, como sendo “caracterizada
pelo número dois, significando que nela estão envolvidas duas e apenas

. No artigo citado na nota anterior, Bowlby faz a mesma crítica.

 Chimpanzés também amam


duas pessoas” (Balint : ). Esta fase ou área é portanto marcada
pela relação diádica mãe-filho, própria tanto de seres humanos quanto
de chimpanzés. A fase edípica propriamente dita é caracterizada pelo
número três, por envolver, além do sujeito, pelo menos dois outros
objetos, geralmente mãe e pai, marcando o início de relações conflituo-
sas. Além disso, ela envolve também o uso da linguagem e a “capacida-
de de elaboração simbólica por parte do sujeito”, isto é, pressupõe o
contexto da cultura e é, portanto, propriamente humana.
Esta distinção teórica efetuada por Balint encontra comprovação
empírica nos trabalhos experimentais. Particularmente relevante, sobre
este aspecto, é a experiência efetuada pelo casal Kellog, que criou um
filhote de chimpanzé junto com o próprio filho. Até os dois anos de
idade, o desenvolvimento mental e afetivo da criança e o do chimpanzé
demonstraram ser estritamente semelhantes, com algumas vantagens
para o chimpanzé quanto ao desenvolvimento motor. No entanto, a
partir do momento em que a criança começou a falar, o desenvolvimen-
to deixou de ser comparável.20
A conclusão a que podemos chegar é a de que o processo de desen-
volvimento dos seres humanos e o dos chimpanzés seguem praticamen-
te o mesmo caminho até os dois anos de idade. Embora se diferenciem
posterior mente com a aquisição da linguagem, constituem estruturas
psíquicas básicas que perduram durante toda a vida, testemunhando
continuamente a proximidade do parentesco entre essas duas espécies.
Da perspectiva comparativa e evolutiva, e dentro da tradição psi-
canalítica, mais relevante ainda que a da obra de Balint é a de John
Bowlby, que alia a psiquiatria e a prática psiquiátrica à etologia evolu-
cionista e à psicologia experimental.
Central na teoria de Bowlby é o conceito de attachment, que tem
sido muito mal traduzido em português pelo termo “relações de liga-
ção”. A riqueza do conceito está na sua polissemia, incluindo aspectos
físicos e psíquicos. “Attachment”, em inglês, designa de um lado a ação
física de unir, fixar ou juntar partes de um conjunto; corresponde, por-
tanto, a conexão, ligação, fixação. De outro lado, “attachment” corres-
ponde a atração, simpatia, afeto ou amor. De fato, o conceito de Bowlby
é explicitamente utilizado na teoria para costurar estas duas dimensões.

. Das muitas outras experiências, a maior parte está ligada a tentativas de ensinar antropói-
des a falar. Para um resumo crítico dessas experiências, ver Wallman  e Dunbar .


É semelhante ao conceito de holding, criado por Winnicott,21 e se apro-
xima do “amor primário” proposto por Balint.
Partindo da relação mãe-bebê, a elaboração do conceito de attach-
ment efetuada por Bowlby praticamente cobre toda a área que estamos
analisando com o termo “amor”, e se encaminha na mesma direção.
Entre as características do attachment (relação de ligação), Bowlby inclui:
a especificidade, isto é, o fato de o comportamento de ligação ser dirigido
para indivíduos específicos; a duração, isto é, o fato de a ligação persistir
por grande parte do ciclo vital, embora possa ser atenuada e eventual-
mente substituída por outras. Para as finalidades deste trabalho, no
entanto, a característica mais importante é o envolvimento emocional:

muitas das emoções intensas durante a formação surgem da manutenção, rom-


pimento e renovação de relações de ligação. A formação de um vínculo é descri-
ta como “apaixonar-se”, a manutenção de um vínculo como “amar alguém” e
a perda de um parceiro como “sofrer por alguém”. Do mesmo modo, a ameaça
de perda gera ansiedade e a perda real produz tristeza; enquanto que cada uma
dessas situações é capaz de suscitar raiva. A manutenção inalterada de um vín-
culo afetivo é sentida como uma fonte de júbilo. (Bowlby : )

Embora, neste trecho, a referência básica sejam os seres humanos, a


conceituação se aplica inteiramente aos chimpanzés. Aliás, o próprio
autor afirma mais adiante que o attachment ocorre nos filhotes de quase
todas as espécies de mamíferos, e em certas espécies (como os chimpan-
zés) persiste durante toda a vida.
O autor também afirma que, na sua teoria, “o comportamento de
ligação é concebido como uma classe distinta do comportamento de ali-
mentação e do comportamento sexual, tendo, pelo menos, um significa-
do igual na vida humana” (Bowlby : ) e, podemos acrescentar,
na vida dos chimpanzés.22
. Creio que o termo “apego” corresponde a uma tradução mais adequada, mesmo que
ainda que não totalmente satisfatória.
. Devo ao psicanalista Paulo Duarte a indicação da obra de Bowlby, com o qual tomei con-
tato após ter redigido a primeira versão deste trabalho. Encontrei uma congruência tão grande
entre a orientação e as conclusões deste autor e as minhas, que cheguei a pensar em abandonar
o meu artigo, pois ele tinha deixado de ser original, como me parecera antes. Entretanto, como
Bowlby é ainda desconhecido para os antropólogos e não parece ser muito utilizado pelos psi-
canalistas, acabei concluindo que este meu trabalho ainda tinha sentido, embora nos limites
deste artigo a teoria do autor não possa ser examinada em todas as suas ramificações.

 Chimpanzés também amam


Instinto materno

A análise da relação entre mães e filhos levanta uma outra questão bem
menos discutida na literatura: trata-se da existência de um “instinto
materno”, que parece ser a contrapartida necessária da dependência dos
filhotes. Se as crias não sobrevivem sem mães, é necessário que estas
estejam geneticamente programadas para suprir os cuidados dos quais
os filhotes dependem. É impossível negar que esta programação esteja
presente nos mamíferos de forma geral.
Entretanto, no caso dos seres humanos, se a palavra “instinto” é
aceita sem problemas no que se refere à sexualidade, ela tem sido muito
mais contestada no caso da mater nidade. O movimento feminista tem
manifestado especial hostilidade ao conceito, que é interpretado como
uma imposição masculina no sentido de naturalizar indevidamente a
posição de subordinação das mulheres. Aliás, no que diz respeito aos
antigos evolucionistas, a hostilidade é plenamente justificada, pois
tendo definido a “natureza feminina” pela procriação, concluíram que,
por esta razão, as mulheres não possuíam as faculdades mentais mais
elevadas, as quais estariam restritas ao sexo masculino.
Mas combater os preconceitos machistas dos antropólogos evolu-
cionistas não significa ignorar que a maternidade tem uma longa histó-
ria evolutiva e assume, entre os mamíferos, particular relevância. Isto
ocorre porque, na reprodução entre os mamíferos, como vimos, não só
a cria nasce imatura e depende de cuidados constantes da parte de um
adulto, mas também estes cuidados envolvem o aleitamento e, portanto,
implicam uma relação particularmente estreita com a mãe. A dedicação
da mãe à prole, essencial à sobrevivência das crias, deve constituir uma
característica genética complementar àquelas que marcam as necessida-
des e o comportamento dos bebês, envolvendo inclusive profundas
modificações do equilíbrio hor monal que se desencadeiam durante a
gestação e o parto e se fortalecem no próprio ato da amamentação. Estas
transformações hormonais também estão presentes na espécie humana.
Não há nenhuma razão para supor que a evolução humana promo-
vesse a diminuição deste “instinto”, pois ele é tão essencial à sobrevi-
vência da nossa espécie quanto no caso dos demais mamíferos. No que
diz respeito à amamentação, convém lembrar que fór mulas seguras de
aleitamento artificial datam de apenas um século (o que é menos que um
segundo na história evolutiva) e, para a quase totalidade da humanidade,


a privação do leite materno sempre significou altíssimos índices de mor-
talidade infantil. Nas sociedades humanas, a mãe pode ser substituída
por uma ama-de-leite, prática relativamente restrita aos casos de morte
da mãe, de insuficiência na produção de leite ou, após o início da civili-
zação, como prática habitual nas classes dominantes. Mesmo assim, até
o século  este procedimento tendeu a ser emergencial ou confinado às
classes abastadas, e nunca generalizado para a humanidade no seu con-
junto. Mesmo hoje, na grande maioria da humanidade que habita os
países subdesenvolvidos, o aleitamento materno continua a ser essencial
para a sobrevivência dos filhos. Por outro lado, como já vimos, a rela-
ção de attachment entre a mãe e a criança, em seus múltiplos aspectos, é
essencial não só ao desenvolvimento físico mas também mental e emo-
cional dos bebês.
Por isso mesmo, parece-me estranho que as disciplinas analíticas e
a antropologia tenham dedicado muito pouca atenção às implicações da
possível existência de uma pulsão ou instinto mater no. Não que a mãe
tenha sido desconsiderada. A dependência não só física mas afetiva do
bebê em relação à mãe é plenamente reconhecida como fundante do de-
senvolvimento psíquico humano, como vimos anteriormente. Mas, tanto
na elaboração freudiana do complexo de Édipo como nos conceitos jun-
guianos de complexo e de arquétipo maternos, o fato psicológico funda-
mental é a experiência da criança. O que me parece negligenciado é a
importância que a manifestação do instinto mater no assume como ele-
mento fundamental no desenvolvimento da psique feminina ou da femi-
nilidade. Na abordagem junguiana, o conceito do arquétipo mater no
que, como todos os arquétipos, é pensado como estando baseado em
estruturas psíquicas hereditárias, é difícil de ser compreendido se não
estiver associado a pulsões mater nas inatas. Dessa perspectiva, o com-
plexo ou arquétipo deveria ser pensado como resultante da confluência
entre a necessidade infantil de cuidados maternos e a pulsão ou “instin-
to materno” que se concretiza na gestação e na relação com a prole.
Novamente precisamos considerar a contribuição, na psicanálise,
de Winnicott, com o conceito de “mãe suficientemente boa”23 e a ênfase
na totalidade mãe-bebê que caracteriza a fase inicial do desenvolvimento

. O conceito de “mãe suficientemente boa” tem uma dupla conotação: é essencial ao bebê
que a mãe seja suficientemente boa, mas não é necessário (e é mesmo indesejável) que seja
boa demais.

 Chimpanzés também amam


humano. De fato, Winnicott é o autor que dedica maior atenção ao fato
de que a relação do bebê com a mãe implica, reciprocamente, uma rela-
ção da mãe com o bebê. Para enfatizar este fato, chegou mesmo a afir-
mar uma vez que o bebê não existe – o que de fato existe é o complexo
mãe-bebê, no qual um não existe sem o outro.
O reconhecimento da existência de uma pulsão materna heredita-
riamente constituída não significa, obviamente, que sua manifestação
adequada seja automática e independente da experiência individual ou
social. Entre os primatas, como entre os seres humanos e muito outros
mamíferos, o grau de dedicação mater na varia bastante de uma fêmea
para outra, e as primíparas são freqüentemente mães pouco competen-
tes, do que decorre uma elevada mortalidade entre os primogênitos.
Entre os chimpanzés em cativeiro, como vimos, a inexistência de expe-
riência e estímulos promovidos pela vida em grupo não só diminui ou
inibe totalmente a fertilidade, como promove o infanticídio direto ou in-
direto, através do abandono.24 No ambiente natural estão amplamente
documentados, além do infanticídio promovido por machos que assu-
mem a chefia, também o assassinato da cria de uma fêmea por outra não
aparentada (Goodall ).
Deve-se ainda considerar que a ligação entre mãe e cria, ou instin-
to materno, não se limita a manifestações de amor, mas inclui (e não só
entre mamíferos) a agressividade contra qualquer outro animal que
represente ou possa representar perigo para a sobrevivência da prole.
A existência de um instinto parece estar também evidenciada no
interesse extremamente precoce das fêmeas por bebês. Jovens chim-
panzés fêmeas que mal desmamaram ficam fascinadas pelo nascimen-
to de uma nova cria e procuram, por todos os meios, tirá-las da mãe
para carregá-las no colo e brincar com elas. Este comportamento é par-
ticularmente visível quando se trata de um irmão ou irmã mais novos,
mas não se restringe a eles. Como no caso do sexo, o interesse pelos
bebês se manifesta precocemente, embora só se desenvolva plenamen-
te com a gestação e o parto. Aliás, é importante observar que machos
jovens e adultos também se interessam por bebês (embora muito
menos que as fêmeas) e, como vimos, são extremamente tolerantes e

. Aliás, o infanticídio é uma ocorrência freqüente entre animais, e não só mamíferos. Para
uma análise detalhada da questão do infanticídio e do abandono, assim como sobre o aleita-
mento na espécie humana, consultar Hrdy , especialmente os capítulos ,  e .


inclusive brincam com eles, numa atitude que chamei de pater nidade
difusa (Mason : ).
Há ainda uma outra observação que deve ser feita em relação a um
possível instinto mater no, que talvez explique a raridade de relações
incestuosas: é a separação, tão clara nos mamíferos, entre a pulsão
sexual e a mater nal. Em condições naturais, épocas de acasalamento e
de cuidado com os filhotes estão claramente separadas no tempo: elas se
sucedem mas não se misturam.
A gravidez, o parto, o aleitamento e os cuidados com a prole impli-
cam a interrupção da sexualidade feminina. Embora entre os chimpan-
zés, como indicamos, as fêmeas possam retomar o ciclo de receptividade
sexual antes do final do aleitamento, elas não o fazem antes de três anos
(em média) após do parto; a fertilidade só é restabelecida, como vimos,
depois de cerca de quatro a cinco anos após o parto, coincidindo com o
desmame. As fêmeas experimentam assim prolongados períodos de sus-
pensão do interesse e da atividade sexual durante pelo menos parte da
gestação, e durante todo o período crucial de três a quatro anos em que
estão envolvidas com o aleitamento e o cuidado com bebês.
Numa interpretação freudiana, seríamos levados a admitir que a
sexualidade das fêmeas com crias em aleitamento se dirige para os
bebês. A hipótese alter nativa é a de que, logo de início, a relação de
attachment entre a fêmea e a cria se estabelece independentemente da
sexualidade, e mesmo em substituição a ela.
No caso dos seres humanos, como já observamos, a independência
das atividades sexuais em relação às injunções dos períodos de fertilida-
de, gravidez e aleitamento parece constituir uma adaptação ao desen-
volvimento de parcerias sexuais, econômicas e sociais per manentes
entre homens e mulheres através do casamento.

Consangüinidade

Precisamos agora voltar à questão da relação entre mãe e filho para


complementar as observações feitas anteriormente.
Não só, como tentamos demonstrar, a relação entre a mãe e a cria é
muito estreita durante todo o prolongado período do aleitamento, mas
tende a se prolongar (de modo mais enfraquecido, é claro) por toda a vida.
O nascimento de uma nova cria, como vimos, não acarreta o afas-

 Chimpanzés também amam


tamento da cria anterior, que até a adolescência continua muito próxima
da mãe e, portanto, do novo filhote. Mostramos como, após a adoles-
cência, as fêmeas tendem a abandonar o grupo. Mas os filhos permane-
cem e continuam a manter relações preferenciais não só com a mãe, mas
com os irmãos e irmãs. De fato, a mãe e seus filhos de diferentes idades
for mam coalizões que podem ser cruciais na disputa da chefia e nos
conflitos inter nos de qualquer natureza. Os laços frater nos, por outro
lado, persistem mesmo após a morte da mãe como alianças privilegiadas
entre machos (Goodall ). Podemos falar na existência de protoli-
nhagens mater nas dentro do grupo, muitas vezes hostis entre si. Jane
Goodall documentou casos de infanticídio perpetrados por membros de
uma protolinhagem em relação a filhotes de outras fêmeas. Estas obser-
vações introduzem a constatação de uma nova dinâmica na vida social
dos chimpanzés, demonstrando a importância da consangüinidade na
instituição de alianças.
A questão das relações entre a mãe e crias sucessivas nos leva a
uma reflexão sobre a ausência do complexo de Édipo, que tem Balint
como ponto de partida.
Na revisão que efetua em relação à teoria psicanalítica referente às
diferentes fases do desenvolvimento sexual, Balint, como vimos, distin-
gue a fase edípica das anteriores por envolver necessariamente, além do
sujeito, pelo menos dois outros objetos, ao passo que as anteriores, que
denomina genericamente como a área da falha básica, é caracterizada
pelo número dois, significando que nela está envolvido um e apenas um
segundo objeto, que abre a possibilidade do conflito e da ambivalência
(Balint : ).
Já dissemos que entre os chimpanzés, na ausência do pai (e do tio
materno), não pode haver complexo de Édipo. Entretanto, há no desen-
volvimento das relações afetivas dos chimpanzés um claro momento de
passagem de relações diádicas para triádicas – é a mudança que ocorre
com o nascimento de uma nova cria, a qual coincide com o desmame,
que é uma fase bastante difícil para os chimpanzés e pode até mesmo ser
dramática, como aliás acontece com seres humanos. É novamente Jane
Goodall quem apresenta as descrições mais sensíveis e detalhadas sobre
esta fase do desenvolvimento infantil. Claramente, é a per manência da
cria mais velha junto à mãe que promove a formação da relação triádica.
Para a maioria dos demais mamíferos, os filhos do parto anterior são
desmamados e se dispersam antes do nascimento da cria seguinte. A psi-


canálise certamente não ignorou este fenômeno, mas talvez não tenha
prestado suficiente atenção a ele e à importância crucial da relação entre
siblings, como decorrente da criação de relações triádicas potencialmen-
te conflitivas. A antropologia, por outro lado, mostra como as relações
entre siblings recebem elaborações culturais extremamente complexas.
Embora essas elaborações sejam fundamentais nas teorias do parentes-
co, seu significado emocional não tem sido muito considerado pelos
antropólogos. Mas aqui também podemos nos perguntar se não estamos
lidando com elaborações simbólicas de um padrão “natural”, e não com
uma criação inteiramente autônoma da cultura.

Sociabilidade e amor ao próximo

Para concluir este ensaio, que já está um tanto longo, precisamos ainda
voltar a examinar a questão da sociabilidade.
Afir mar que o homem é um animal social é, para todos nós, um
truísmo. Para os antropólogos, a obviedade da questão reside no fato de
que o homem, tal como o conhecemos, não sobrevive sem a cultura, a
qual exige a vida social. Dessa forma, as indagações antropológicas
raramente se perguntaram sobre as origens da sociabilidade, mas se
concentraram nas origens e na evolução do comportamento cultural
que nos distingue dos demais animais. Mas, se não podemos imaginar o
surgimento da cultura sem a existência prévia de alguma forma de vida
coletiva, parece-me interessante indagar quais os fundamentos da socia-
bilidade dos grupos proto-humanos, dos quais descendemos e os quais
antecedem a evolução cultural.
Não somos, certamente, os únicos mamíferos sociais. Os evolucio-
nistas têm enfatizado o fato de que a emergência da vida social está
associada à sua importância como mecanismo de proteção contra pre-
dadores. Mas a vida em grupo não emerge esporadicamente na nature-
za como decorrência de um cálculo de custo-benefício que leve alguns
animais de uma espécie a se associarem espontaneamente e outros não.
A vida em grupo aparece sempre como característica de uma espécie
em seu conjunto, e é própria de algumas e não de outras. Trata-se por-
tanto de um padrão geneticamente estabelecido – as espécies sociais são
geneticamente programadas para a vida em grupo, e devemos então nos
perguntar em que medida este tipo de programação continua atuante no

 Chimpanzés também amam


Homo sapiens. Dois mecanismos me parecem essenciais nessa progra-
mação: os que evitam a dispersão dos indivíduos e os que promovem
vínculos entre os membros do grupo. Obviamente não podemos incluir
o raciocínio e a razão entre estes mecanismos – mas as emoções certa-
mente estão envolvidas. A comparação com os chimpanzés parece-me
importante para encaminhar esta questão.
O problema dos fundamentos da base genética do comportamen-
to social dos chimpanzés já havia sido muito bem colocado por Köhler,
em :

Não constitui exagero afirmar que um chimpanzé mantido em isolamento não


é um chimpanzé de verdade. Que certas características da espécie apenas sur-
jam quando estão em grupo deve-se simplesmente ao fato de que o comporta-
mento dos companheiros constitui, para cada indivíduo, o único incentivo
adequado para suscitar uma grande variedade de formas essenciais de com-
portamento. (Köhler []: )

É desta forma que potenciais hereditários, aprendizado e vida social se


integram, uma vez que, entre chimpanzés, os estímulos não provocam
necessariamente reações automáticas, mas permitem respostas flexíveis,
influenciadas pela experiência individual e social.
De fato, chimpanzés possuem uma vida social particularmente inten-
sa e complexa. Chimpanzés não são como insetos, nos quais a vida social
é totalmente programada geneticamente. Ao contrário, o comportamento
grupal não elimina a imprevisibilidade e a incerteza. Chimpanzés tam-
pouco são animais pacíficos e altruístas, nem o grupo é uma realidade que
implique a negação da individualidade e da variabilidade. Chimpanzés
são, simultânea ou alternadamente, amáveis, carinhosos, afetivos, agressi-
vos, egoístas e mesmo calculistas. Nenhum é igual aos demais, e a vida
social é construída tanto sobre a solidariedade quanto sobre a complexa
luta pelo poder. Em tudo isso, parecem muito semelhantes a nós.
O desdobramento da constatação de Köhler nos leva a analisar a
grande complexidade dos mecanismos que atuam na organização da
vida grupal dos chimpanzés, dando particular atenção aos vínculos afe-
tivos. Já analisamos anteriormente alguns deles: a hierarquia, a sexua-
lidade a promiscuidade, as relações entre mães e filhos e a consangüini-
dade. Cabe agora mencionar a sociabilidade em geral.
Robin Dunbar chama a atenção para um aspecto fundamental da


personalidade do chimpanzé que parece constituir uma das bases do
comportamento social: é o intenso interesse e curiosidade que demons-
tram em relação uns aos outros, estando per manentemente atentos a
quem está fazendo o que, onde e com quem. Nisto, diz ele, são extrema-
mente semelhantes a nós. Nas pesquisas que realizou com seus alunos
sobre o que acontece nas reuniões sociais em bares, restaurantes, festas
e inclusive reuniões departamentais, chegou à conclusão de que mais de
dois terços das conversas são dedicados à discussão de sentimentos pes-
soais e a “quem está fazendo o que com quem”. Soma-se a isto o fato de
que a grande maioria das produções culturais escritas e dos programas
de rádio e televisão (e certamente os de maior público) está voltada para
a vida dos outros, sejam os personagens reais ou fictícios. A sede das
pessoas pelos detalhes da vida particular de indivíduos famosos é insa-
ciável. Os chimpanzés, que não podem falar sobre os outros, têm que se
contentar com observações de primeira mão.
Esse tipo de observação do comportamento alheio por parte dos
chimpanzés está longe de ser objetivo e desinteressado, mas se apóia
sobre um permanente fundo emotivo que envolve desde mera curiosi-
dade passando por cobiça, ciúme, medo, desconfiança, prepotência,
submissão, cautela, alegria, prazer e expectativa de ajuda, chegando à
solidariedade desinteressada. O interesse pelo que os outros estão fa-
zendo baliza um constante ajustamento do comportamento de uns em
relação aos outros, e implica complexos processos mentais que envol-
vem a previsão da reação dos parceiros ao comportamento do sujeito,
isto é, a autoconsciência, a capacidade de identificação com o outro e a
memória de relações passadas.
As estratégias de acasalamento e a formação de coalizões na dispu-
ta pelo poder constituem os melhores exemplos dessa complexidade, a
qual inclui a capacidade de disfarçar as próprias intenções. E esta capa-
cidade não é demonstrada apenas em relação a outros chimpanzés, mas
inclui os próprios seres humanos que convivem com eles, como atesta o
enorme anedotário dos primatólogos.
Uma experiência comum para comprovar esta esperteza dos chim-
panzés consiste no pesquisador esconder uma fruta de tal modo que
apenas um dos membros de um grupo, confinado em outro lugar, possa
observá-lo. Quando todos os chimpanzés são soltos no terreiro onde
está a fruta, aquele que detém a infor mação disfarça e não demonstra
nenhum interesse pelo local onde o cobiçado prêmio está escondido.

 Chimpanzés também amam


Mas, assim que os demais se afastam, ele corre para desenterrá-la e
comê-la sem ter que disputá-la com os outros. Claramente ocorreu um
complexo processo que envolveu a previsão do comportamento dos
demais, uma avaliação das reações possíveis ao comportamento do su-
jeito e um ajustamento deste comportamento de acordo com as previ-
sões. Isto demonstra também que a base da vida social não se assenta
sobre o altruísmo. A ajuda a companheiros em dificuldades, por exem-
plo, não é automática mas parece decorrer, pelo menos em parte, de um
cálculo de custo-benefício, de tal forma que não se pode contar com ela
incondicionalmente. Além disso, chimpanzés raramente compartilham
comida ou cooperam para sua obtenção. As exceções quanto à doação
de comida envolvem mães para com filhos pequenos e machos para com
fêmeas que estejam cortejando. Esta, aliás, constitui uma das diferenças
fundamentais entre a sociabilidade dos chimpanzés e a nossa, como aliás
já havia apontado Clifford Geertz (). De fato, a cooperação e a dis-
tribuição de alimento constituem uma das bases mais sólidas das socie-
dades humanas. Entretanto, há entre os chimpanzés uma exceção quan-
to a atividades cooperativas na obtenção de alimento, com subseqüente
partilha, e esta envolve a caça. Isto parece confir mar a importância da
caça na evolução dos homens primitivos.
Mas voltemos aos vínculos “amorosos”.
Toda a ampla documentação existente não deixa dúvidas quanto à
existência de relações afetivas entre os membros de um grupo que se
exteriorizam, por exemplo, em manifestações de alegria quando um
companheiro, afastado durante algum tempo, retorna à companhia dos
outros, no desconforto e preocupação que exibem quando se vêem sozi-
nhos, e na busca frenética com a qual se empenham em juntar-se ao
grupo. Nas experiências de laboratório, um animal isolado demonstra
muito mais ansiedade do que quando há outro chimpanzé presente.
A companhia de outros chimpanzés parece constituir um elemento
essencial para o sentimento de segurança individual, e uma extensão dos
vínculos que demonstramos serem tão importantes entre mães e bebês.
A importância da proximidade com outros indivíduos, além da mãe,
começa muito cedo. Entre os mamíferos que nor malmente têm partos
múltiplos, os irmãos da mesma ninhada brincam uns com os outros.
A brincadeira constitui de fato uma das características mais interessantes
dos mamíferos. Chimpanzés que dão à luz um filhote por vez não pos-
suem irmãos da mesma idade. Mas mães com filhos pequenos costumam


procurar a companhia umas das outras, o que promove a for mação de
grupos de brincadeira. Pequenos chimpanzés costumam brincar em gru-
pos durante quatro a cinco horas por dia. As brincadeiras envolvem
muito contato físico e incluem exploração do ambiente, lutas e persegui-
ções acrobáticas nas árvores. Como acontece com as crianças humanas, a
companhia de parceiros parece estimular aventuras mais ousadas. Além
disso, como vimos, adolescentes e mesmo adultos também brincam com
filhotes, especialmente se forem filhos de sua mãe. Adolescentes também
brincam uns com os outros e formam grupos de convivência.
A sociabilidade entre os chimpanzés não é, porém, indiscriminada.
Chimpanzés, especialmente fêmeas, mantêm relações preferenciais de
longa duração com indivíduos específicos, procurando a companhia do
parceiro. Creio que não constitui um antropomorfismo afir mar que
chimpanzés desenvolvem amizades. Esse fenômeno está documentado
em praticamente todas as observações de campo e nas realizadas em
colônias artificialmente criadas em cativeiro.
Essas relações de amizade se exteriorizam numa convivência mais
freqüente e como apoio contra agressões por parte de outros membros
do grupo ou em caso de perigo exter no, desempenhando um papel
fundamental nas coalizões que são tão importantes nas disputas por
posições na hierarquia. Mesmo que um chimpanzé não socorra um com-
panheiro que esteja, por exemplo, sendo atacado por um macho domi-
nante (o medo do macho é maior do que a solidariedade), nem por isso
a solidariedade deixa de se manifestar através de grande desassossego e
gritos de protesto. Assim que o ataque termina, ele se aproxima da víti-
ma para confortá-la.
A teoria do attachment de Bowlby, à qual nos referimos anterior -
mente, parece ser muito adequada para explicar os vínculos interindivi-
duais que os chimpanzés estabelecem entre si. De fato os chimpanzés,
como os seres humanos, parecem estar geneticamente equipados para
desenvolver este tipo de relação afetiva.
Os vínculos afetivos, como as demais relações, se apóiam sobre um
complexo sistema de comunicação. Em primeiro lugar, há que indicar a
importância das vocalizações, que constituem um modo fundamental de
comunicação. Chimpanzés, como a grande maioria dos primatas sociais,
são extremamente barulhentos, e os diferentes tipos de gritos e grunhi-
dos são capazes de expressar mensagens diferenciais: perigo e pedidos de
socorro, alegria, raiva, queixas, solicitações e solidariedade. Igualmente

 Chimpanzés também amam


importantes são as expressões corporais e faciais, que parecem abranger
uma amplitude de significados pelos menos tão grande quanto as vocali-
zações. É por esta razão que eles são tão bons figurantes em documentá-
rios e em filmes de ficção. Melhor do que qualquer descrição que eu
possa fazer é a observação de qualquer um desses filmes com os quais,
tenho certeza, os leitores já tiveram algum contato.
Particular mente importante para a comunicação, a criação e con-
solidação de relações interindividuais (especialmente as de cunho afeti-
vo) é o contato corporal. Já apontamos a importância do contato com o
corpo materno na relação mãe-bebê. Essa importância do contato cor-
poral per meia toda a sociabilidade adulta, e constitui inclusive um
mecanismo fundamental de pacificação após um conflito e de restabele-
cimento de relações amistosas.
A alegria em encontrar um companheiro se expressa, por exemplo,
por abraços e “beijos”. A aproximação com intenções amistosas se ma-
nifesta na mão estendida, com a palma para cima, que é tocada ou “bei-
jada” pelo parceiro. Machos derrotados numa disputa manifestam com
gritos sua intensa perturbação, e só se acalmam quando o vencedor os
toca com a mão, em palmadinhas carinhosas.
Mas na expressão e consolidação dos laços afetivos, na pacificação
de indivíduos raivosos e no consolo de companheiros frustrados ou der-
rotados, há uma forma de contato corporal extremamente importante,
que consiste no tipo de comportamento designado em inglês como groo-
ming, que envolve a minuciosa inspeção da pele e do pêlo para remoção
de sujeiras e parasitas. O grooming se assemelha ao cafuné brasileiro
quando este inclui (como era comum no passado) o despiolhamento.
Este tipo de cafuné é uma atividade absorvente nos primatas em
geral, e chega a ocupar um quarto do tempo em que estão acordados.
É freqüente observar este cuidado com o pêlo envolvendo mães e seus
filhos: ocorre entre adultos, tanto machos como fêmeas; independente-
mente do sexo. Machos adultos passam grande parte do tempo, quando
não estão buscando alimentos, catando-se uns aos outros, o que parece
consolidar a solidariedade grupal e a formação de coalizões de machos
na disputa pelo poder. Este comportamento é também freqüente entre
machos e fêmeas no cio e constitui, de fato, uma atividade extremamen-
te absorvente para todos os chimpanzés. Os antropólogos não se preo-
cuparam em registrar esta prática em outras sociedades humanas. Mas
Malinowski inclui em A vida sexual dos selvagens uma fotografia, a de


número , que mostra um homem agachado e uma mulher ajoelhada
atrás dele com as mãos na sua cabeça, com a observação de que o des-
piolhamento constitui uma das únicas manifestações públicas de cari-
nho permitidas entre marido e mulher.
O cafuné tem funções higiênicas, pois parece essencial para a
manutenção das pelagens. Mas a motivação não é, obviamente, uma
preocupação com a higiene. Ela envolve, de fato, ao que se pode de-
preender, um intenso prazer corporal tranqüilizante.
Robin Dunbar, que trabalhou entre os babuínos, parece ter tido
uma experiência pessoal de uma sessão de cafuné desse tipo. Diz ele:

Ser objeto de uma sessão de grooming nas mãos de um macaco é experi-


mentar emoções primordiais: o frisson inicial de incerteza numa relação não
testada, a gradual submissão aos dedos ávidos do outro que percorrem sabia-
mente a pele nua, o leve beliscar, espremer e mordiscar da epiderme enquan-
to as mãos se movem de uma sarda para a descoberta surpreendente de uma
ver ruga. A leve dor momentaneamente desconcertante de um beliscão cede
lugar imperceptivelmente a uma sensação de prazer tranqüilizante, que se
espraia lentamente a partir do centro de atenção. Começa-se a relaxar na pura
intensidade da atividade, submetendo-se deliciosamente ao vai-e-vem das
marés de sinais neurais que tecem seu caminho da periferia do corpo até o
cérebro, tamborilando sinais para a mente consciente e atingindo algum lugar
do centro profundo do ser. (Dunbar : )

A importância do contato corporal entre os chimpanzés, que envolve


tanto a relação entre mães e filhos como a entre indivíduos adultos,
sugere uma comparação com as demonstrações amorosas entre seres
humanos. De fato, o contato corporal é mais freqüente entre os chim-
panzés do que entre nós. Mas, embora entre os seres humanos o conta-
to corporal seja controlado culturalmente, além do beijo (que aliás é
mais raro), tocar as mãos e abraçar parecem constituir demonstrações
universais de carinho. Parece-me particular mente relevante que, em
situações altamente emotivas (situações de perigo, morte, funerais e
casamentos) as pessoas se abracem, e que o abraço, nessas circunstân-
cias, se pareça muito com o holding que caracteriza a relação entre mãe
e bebê, tendo aparentemente a mesma conotação de amparo e proteção.
Em conclusão, apesar de ter utilizado uma parcela muito pequena
da bibliografia, espero ter mostrado que chimpanzés nascem genetica-

 Chimpanzés também amam


mente equipados para desenvolver laços afetivos com a mãe e outros
indivíduos, um intenso e permanente interesse (e curiosidade) pelo com-
portamento dos membros do seu grupo, uma dependência da presença
dos outros como estímulo para o desenvolvimento de inúmeros com-
portamentos específicos e para o sentimento de segurança individual.

Conclusão

A observação do comportamento emocional dos chimpanzés demons-


tra a existência de paralelismos inegáveis com a vida psíquica humana,
que podem ser extremamente relevantes tanto para a teoria analítica
como para a antropologia.
Apesar dos riscos inerentes de antropomorfismo ou projeções em
pesquisas sobre o comportamento de animais, elas não podem ser, por
isso, deslegitimadas. As técnicas de observação precisam obviamente
ser controladas. Mas as semelhanças que sentimos subjetivamente são
decorrência do processo evolutivo que nos une aos demais animais em
ter mos de ascendência comum, e esta continuidade fundamenta uma
possibilidade de comunicação emocional entre seres humanos e outros
animais a qual, certamente, faz parte do nosso equipamento psíquico.
A melhor comprovação disto reside não apenas no fato de que
podemos prever o comportamento dos chimpanzés, mas na surpreen-
dente descoberta de que eles podem prever o nosso, interpretar correta-
mente nossas intenções e se comunicar conosco. Mais ainda, as relações
afetivas que os pesquisadores estabelecem com os chimpanzés têm
como contrapartida as relações afetivas que estes desenvolvem em rela-
ção aos seres humanos.
Escolhi, para ilustrar estas relações afetivas, um relato de Köhler,
que foi um dos primeiros a realizar observações sistemáticas e controla-
das com chimpanzés vivendo em grupo.

Uma noite, quando chovia a cântaros, ouvi dois animais, que eram mantidos
isolados num cercado especial, reclamando amargamente. Corri até lá e des-
cobri que o tratador os havia deixado ao relento, tendo quebrado a chave do
abrigo onde podiam se esconder da chuva. Forcei a fechadura e consegui abrir
a porta, ficando de lado para que os chimpanzés pudessem correr rapidamente
para seu abrigo quente e seco. Mas, embora a chuva fria escorresse de todos os


lados sobre os corpos trêmulos de frio dos chimpanzés, embora eles tivessem
demonstrado a maior infelicidade e impaciência e eu próprio permanecesse no
meio da chuva pesada, antes de cor rer para o abrigo eles se viraram e me
abraçaram, um em torno da cintura, outro ao redor do joelho, numa alegria
frenética. Apenas depois disso é que mergulharam na palha seca e quente do
abrigo. (Köhler []: )

Se podemos ter alguma dúvida quanto ao fato de ser mos semelhantes


aos chimpanzés, desconfiando do antropomorfismo, eles próprios pare-
cem ter certeza de que são semelhantes a nós, de que podem ser enten-
didos por nós, se comunicar conosco, nos compreender e, inclusive
(pelo menos até certo ponto), nos amar.

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. Uma vila brasileira: tradição e transição. São Paulo: Difusão Européia do
Livro.
. “On Portuguese Family Structure”, in John Mogey (ed.). Family and
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
, Emílio & , Gioconda
. Buzios Island. A Caiçara Community in Southern Brazil. Monographs of
the American Ethnological Society. Locust Valley: J. J. Augustin.
, Donald W.
[] . The Child, the Family and the Outside World. Harmondsworth:
Penguin.
, Richard W. et alii
. Chimpanzee Cultures. Cambridge: Harvard University Press.
, Robert M. & , Ada W.
. The Great Apes. New Haven: Yale University Press.

Documentos especiais
Almanaque administrativo, comercial e industrial da província de São Paulo. São
Paulo: Jorge Seckler & Cia, .
Almanaque para o ano de 1896. J. Filento & Cia, Seção de Obras d’O Estado de
São Paulo, .
Associação dos Geógrafos Brasileiros. Seção de São Paulo: A cidade de São
Paulo: estudos de geografia urbana, v. : A evolução urbana. São Paulo: Cia.
Editora Nacional, .
Conjuntura Econômica, “Migrações internas”, ano , n. .
––. “Correntes de migração interna”, ano , n. , .
––. “Migrações internas – São Paulo”, ano , n. , .
––. “Migrações internas no período intercensitário”, ano , n. . [] .
Documentos com que o exmo. sr. dr. Antônio Roberto de Almeida, vice-presidente da
província de São Paulo, instruiu o relatório da abertura da Assembléia Legislativa
Provincial no dia 15 de fevereiro de 1856. São Paulo, .
Ensaios de um quadro demonstrativo do desmembramento dos municípios. São Paulo:
Departamento Estadual de Estatística, .
Recenseamento agrícola zootécnico. São Paulo: Secretaria da Agricultura, Indústria
e Comércio/Imprensa Oficial, .
Recenseamento geral do Brasil (IV). Ministério da Agricultura/Diretoria Geral de
Estatística, .
Recenseamento geral do Brasil (V). , .
Recenseamento geral do Brasil (VI). /Conselho Nacional de Estatística, .
Recenseamento geral do Brasil (VII): sinopse preliminar do censo demográfico. Rio de
Janeiro: , .

 Bibliografia geral


Sobre o autor

   nasceu em Limeira () em  de julho de


. Cursou ciências sociais na antiga Faculdade de Filosofia, Ciências
e Letras da Universidade de São Paulo, onde se formou em . Fez
cursos de pós-graduação nos Estados Unidos durante um ano, entre
 e . Voltando ao Brasil, após seis meses como professora de
sociologia na Escola Normal de Descalvado, lecionou Antropologia na
 até . Ingressou na cadeira de Antropologia (-) em
 como auxiliar de ensino, onde já lecionava como “instrutora
voluntária” desde . Sob a orientação de Egon Schaden, desenvol-
veu uma pesquisa de campo com imigrantes italianos no estado de São
Paulo, que deu origem a sua dissertação de mestrado, apresentada em
. Integrou em seguida um projeto dirigido por Darcy Ribeiro
sobre a urbanização no Brasil, do qual resultou sua tese de doutorado
Migração, trabalho e família – aspectos do processo de integração do tra-
balhador de origem rural à sociedade urbano-industrial, defendida em 
e publicada em  (A caminho da cidade, Perspectiva). Recebeu o títu-
lo de livre-docente em , com o volume A reconstrução da realidade,
sobre a obra etnográfica do antropólogo Bronislaw Malinowski. Em
, tornou-se professora titular do Departamento de Antropologia
Social da - e, em , recebeu o título de Professora Emérita.
Sua trajetória acadêmica foi ainda permeada por funções repre-
sentativas em distintas instituições científicas. Foi presidente da 
(-), onde atuou especialmente junto à causa indígena; presidente
da área de antropologia no Conselho Científico da  (-);
membro do  (-) e vice-presidente da  (-
). Em , junto a Simon Schwartzman, fundou o Núcleo de Pes-
quisas sobre Ensino Superior [] na , onde passou a atuar como
coordenadora do Conselho Diretor. Suas pesquisas na área de educação
levaram-na a assumir posições no Ministério da Educação, primeiro


como diretora da Coordenadoria de Aperfeiçoamento do Pessoal de
Ensino Superior [], depois como secretária do Ensino Superior,
entre  e . No início do governo Fernando Henrique Cardoso
voltou ao Ministério como secretária de Política Educacional, entre
 e , e, logo depois, foi indicada para a Câmara de Ensino Supe-
rior do Conselho Nacional de Educação (-).
Embora professora aposentada, Eunice Ribeiro Durham continua
a dar aulas na graduação e pós-graduação da  e a trabalhar como
pesquisadora do .



Assimilação e mobilidade – a história do imigrante italiano num município


paulista. São Paulo: , .
A caminho da cidade – a vida rural e a migração para São Paulo. São Paulo:
Perspectiva, .
O livro Negro da USP: o controle ideológico na universidade [relatora]. São
Paulo: Adusp, .
A reconstrução da realidade. Um estudo da obra etnográfica de Bronislaw Mali-
nowski. São Paulo: Ática, .
Malinowski (org.). Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática,
.
Avaliação do ensino superior [& Simon Schwartzman]. São Paulo: Edusp,
.
O ensino superior em transformação [& Helena Sampaio (orgs.)]. São Paulo,
, .

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“O ensino da antropologia no Brasil” [em colaboração com Ruth Cardoso].
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“A investigação antropológica em áreas urbanas” [em colaboração com Ruth
Cardoso]. Revista de Cultura Vozes, v. , n. , .

 Sobre o autor


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“Elaboração cultural e participação social nas populações de baixa renda” [em
colaboração com Ruth Cardoso]. Ciência e Cultura, v. , n. . São Paulo,
fev. de .
“A dinâmica cultural na sociedade moderna”. Ensaios de Opinião +. Rio de
Janeiro, .
“A família operária: consciência e ideologia”. Dados – Revista de Ciências
Sociais, v. , n. , .
“O lugar do índio”. Novos Estudos Cebrap, v. , n. , .
“A família e a mulher”. Cadernos CERU (-), v. , .
“Família e reprodução humana”. Perspectivas antropológicas da mulher
brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, .
“Cultura e ideologia”. Dados – Revista de Ciências Sociais, v. , n. , .
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Rio de Janeiro: Paz e Terra, .
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“A política de pós-graduação e as ciências sociais”. BIB – Revista Brasileira de
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“A universidade brasileira – os impasses da transformação”. Ciência e Cul-
tura, v. , n. , .
“A sociedade vista da periferia”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. ,
n. , .
“A reforma da universidade”. Educação Brasileira, ano , n. , 
[publicado também em Revista da USP, n.  , mar. ].
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“Formando gerações”, in M. D’Incao (org.). O saber militante: ensaios sobre
Florestan Fernandes. São Paulo/Rio de Janeiro: /Paz e Terra, .
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Paulo: Brasiliense, .


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USP, n. , jun. .
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.
“Carreira universitária e competência”. Revista de Ciência e Cultura da Uni-
versidade Estadual de Londrina, n.  , out. .
“A autonomia universitária”. Educação Brasileira, v. , n. , .
“Os desafios da autonomia universitária”. Educação e Sociedade, v. , n. ,
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“Amazonia and National Sovereignty” [em colaboração com José Goldem-
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“Avaliação e relações com o setor produtivo”. Educação Brasileira, ano ,
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“Formación de recursos humanos de alto nivel: las nuevas funciones de los
postgrados”. Unesco Cresalc, v. , .
“A educação na reforma da Constituição” [em colaboração com José
Goldemberg], in L. F. D’Ávila et alii (orgs.). As constituições brasileiras –
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co: Westview Press, .
“A arena e os atores na política de ensino superior”. Anuário de Educação.
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Brasileira, v. , n. , .
“As políticas recentes para o ensino superior na América Latina”. Temas em
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 Sobre o autor


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na América Latina no limiar do século XXI. Campinas: Autores Associados,
.
“O ensino superior na América Latina: tradições e tendências”. Novos Estu-
dos Cebrap, v. , .
“A educação no governo Fernando Henrique Cardoso”. Tempo Social, v. ,
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“O setor privado de ensino superior na América Latina” [em colaboração
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no prelo.


Índice onomástico

, Richard    , Roberto ,


, Vicente Unzer de  , 
 , Fernando  , Carlo , , , , ,
, Louis , , , -, , , , , , , 
  , Rogério 
, Celeste Souza - , James 
, Manoel Correia de ,  , Mariza 
, Alceu Maynard ,  , Esdras Borges , , , 
   , Luís Aguiar de 
, Thales de ,  , Louis 
, Georges ,  , António , 
, Michael -,  , Roberto 
, Frederick  , Charles 
, Roger , ,  , Thomas , , , 
, Donald R.  , Richard 
, Elizabeth  , Pierre 
, Franz , , ,  , Irven 
, Tomaz Pompeu Accioly  , Paulo , 
, Renato Raul  , Louis , 
, Pierre -,  , Robin , , , 
, John , -,  , Émile , , , , -,
  , Sérgio , , , 
-, , , , ,  , Eugênio 
, Karl , Samuel N. , 
, Teresa P. do Rio , ,  , Paul 
, José Francisco de , -, , Friedrich 
, ,  -, Edward , , 
, Antonio , , , -, , Tilman 
, , , , , , -, , Lloyd A. 
-, , ,  , Wilmar 
, Fernando Henrique , , , Florestan , -, ,
,  , , 
, Ruth , , , , , ,   , Carlos N. 
, , , , , , - , Marialice Mencarini 


, Daryll  , Jennifer 
, Reo F.  , Henri 
, Diane , , ,  , Melanie 
, George M.  , Wolfgang , , , ,
, Robin  
, Bruna  , Bolivar 
, Maria Sylvia de Carvalho , , Louise 
,  , Victor Nunes , -
, Sigmund , , , , , Vladimir 
- -, Claude , , -,
, Hans ,  , , , , , , , ,
, Gilberto ,  
, Wallace V.  , Marion J. 
, Erich  -, Lucien 
, Celso , , -, , , Georges , 
 , Fernando 
, Takeshi  , Ralph 
, Eduardo  , Juarez Brandão , -, 
, Hélio  , Samuel H. 
, Clifford , , , , , , Georg , -
,  , Bob 
, John P.  , José Guilherme Cantor 
, Daniel  , Bronislaw -, -,
, Jane , , -, , -, , , -, , , ,
,  -, , 
, Eleanor Kathleen  , Linda F. ,
, Antonio , ,  , George 
, Jürgen  , Carl F. P. von , 
, Alfred C.  , Carolina -
, Stuart  , Karl -, , , -, -,
, Luiz Alberto  -, , , , -, , ,
, Harry  ,  , -, -, , ,
, Marvin , , -, , , -, -, 
,  , William , , -, 
, Chie ,  , Marcel , , , , , 
, Melville J.  , Príncipe de Wied-
, Robert A.  Neuwied -
, Richard  , William C. 
, Sarah  , Gregor 
, Bertram ,  , Octávio Teixeira (sobrinho)
, Harry W.  
, Aldous  , Renato 
, Constantino  , Sérgio 
, Octavio ,  , José Álvaro 
, J.  , Pierre , , , 

 Índice onomástico


, Maria Sylvia Franco , - , Lycurgo 
 , Egon , , 
, Daniel Pedro  , George B. , -
, Nicia Lecquoc  , Carlos Borges , 
, Robert F. , ,  , Simon , , 
, Gioconda , , ,  , Anthony 
, Toshisada  , Charles G. 
, Oracy ,  , Herbert 
, Francisco de  , Johann B. von , 
 , Francisco José de , Julian H. , 
,  , Affonso de E. -
, Luís ,    , A. 
, Donald , ,  , Alexis de 
 ., Caio , ,  , Ferdinand -
, Maria Isaura Pereira de , , Victor 
, , , , , , -,  , Caroline 
-, Alfred R. , , Eduard B. 
-, , , ,  , Frans de -, , 
, Arthur  , Charles , , -, ,
, F.  , 
, Vernon  , Alfred Russel -
, Darcy , , ,  , Joel , 
, José Arthur , , ,  , David 
, William H.  , Max , , , 
, Leôncio Martins  , Emílio , , , , ,
, Nina  -, , , -, -, -
, Michelle Z.  , Donald W. -, -
, Marshall ,  , Elisa , 
, Hiroshi  , Richard W. 
-, Auguste de , , , Ada W. 
,  , Robert M. 
, Helena  , R. R. 


© Eunice Ribeiro Durham, 
© Omar Ribeiro Thomaz, 
© Cosac Naify, 

Coordenação editorial
 
Preparação
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Projeto gráfico
 
Composição e capa
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Ilustração da capa
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Foto da ilustração da capa
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Foto da autora
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação ()


(Câmara Brasileira do Livro, , Brasil)

Durham, Eunice R.
A dinâmica da cultura: ensaios de antropologia/Eunice
Ribeiro Durham; organização de Omar Ribeiro Thomaz;
prefácio de Peter Fry. – São Paulo: Cosac Naify, .

Bibliografia.
 ---

. Antropologia . Antropologia social . Cultura


. Mudança social . Pesquisa antropológica . Primatologia
. Thomaz, Omar Ribeiro. . Fry, Peter. . Título.

- -

Índices para catálogo sistemático: . Antropologia: Ensaios 


. Dinâmica da cultura: Antropologia: Sociologia 

 
Rua General Jardim, , º andar
- – São Paulo 
Tel [ ] -
Fax [ ] -
www.cosacnaify.com.br
Atendimento ao professor: [ ] -
Tipologia ./ Papel    g/m
Impressão   Tiragem .

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