A Dinâmica Da Cultura
A Dinâmica Da Cultura
A Dinâmica Da Cultura
A dinâmica da cultura
ensaios de antropologia
A difusão do Adventismo da Promessa no Catulé
Imigrantes italianos
As comunidades rurais tradicionais e a migração
Migrantes rurais
Malinowski: uma nova visão da antropologia
Comunidade
A dinâmica cultural na sociedade moderna
A família operária: consciência e ideologia
Cultura e ideologia
Movimentos sociais: a construção da cidadania
O lugar do índio
anos
Família e reprodução humana
A pesquisa antropológica com populações urbanas
A sociedade vista da periferia
Chimpanzés também amam
Se é evidente que a obra de Eunice Durham não se esgota nesta
publicação, a sensação de que boa parte dos temas que dizem respeito à
antropologia brasileira nestes últimos cinqüenta anos está aqui reunida
é inevitável. Tornar seus textos disponíveis é uma imensa satisfação.
Apresentação
Prefácio
o culturalismo americano; a tradição etnográfica fundada por Mali-
nowski, o estrutural-funcionalismo britânico, o marxismo, o estrutura-
lismo de Claude Lévi-Strauss, o pós-modernismo e, no último ensaio, a
etologia e a primatologia. Ao mesmo tempo, encontro-a às voltas com
o desafio de entender as imensas transformações por que passou a socie-
dade brasileira. Nesse período, o Brasil deixou de ser majoritariamente
rural para se tor nar uma sociedade predominantemente urbana. Eis o
seu interesse pela migração rural-urbana, e as condições de vida das
populações habitando a periferia de São Paulo. Nesses cinqüenta anos o
Brasil passou da democracia para uma ditadura militar, que finalmente
cedeu para uma nova democracia pautada na crescente organização da
sociedade civil. Eis seu interesse pela participação política das perife-
rias, bem como pelos novos movimentos sociais impulsionados pelos
negros, mulheres e homossexuais. E, finalmente, é nesse período tam-
bém que ocorrem enormes mudanças no campo do ensino superior. As
universidades se multiplicam e se diferenciam para absorver uma
demanda cada vez maior de educação universitária. Os cursos de pós-
graduação em antropologia nascem e florescem. Mas cresce um mal-
estar profundo nas universidades públicas, que têm maior dificuldade
para se adaptar aos novos tempos. Eis seu duradouro interesse pela uni-
versidade pública como pesquisadora e como ativista.
Dividi seu trabalho em três conjuntos que correspondem a três
fases na vida da autora. A primeira fase, que chamo de “inocência”,
inclui os trabalhos iniciáticos de Eunice, escritos antes do aperto da
ditadura militar em ; a segunda, que chamo de “heróica”, reúne os
trabalhos escritos durante a ditadura militar, quando a autora se estabe-
lece como professora e intelectual, e a terceira, que chamo de “liberta-
ção”, é a dos trabalhos escritos após a restauração da democracia e na
plenitude de uma aposentadoria de jure que nunca parece se realizar de
facto. Essas “fases”, que de fato se sobrepõem aqui e acolá, correspon-
dem também a distintas configurações das ciências sociais em São Paulo.
A primeira fase é marcada pela hegemonia do estrutural-funcionalismo,
a segunda pela hegemonia do marxismo e do estruturalismo, e a terceira
pela do pós-modernismo e dos estudos pós-coloniais.
Chamei a primeira fase de “inocência” porque os primeiros quatro
trabalhos da coletânea, fruto de pesquisas que levaram ao seu mestrado
e doutorado na , foram efetuados dentro do relativo conforto inte-
lectual de um paradigma seguro e hegemônico, ou seja o funcionalismo
Prefácio
de Malinowski e Radcliffe-Brown. Com uma notável fé na validade da
observação participante, e na busca por relações de sentido entre for -
mas de sociabilidade, ação e representação, Eunice vai desvendando um
movimento messiânico pentecostal num pequeno município de Minas
Gerais, a saga da migração italiana num município do interior paulista,
as principais características da sociedade tradicional rural paulista, e o
processo de migração rural-urbana que vai proporcionar o crescimen-
to da cidade de São Paulo e a formação de um proletariado nos bairros
da periferia da capital. As fortes relações de aliança entre a antropolo-
gia e a sociologia são ressaltadas pela autora. As duas disciplinas com-
partilharam uma abordagem estrutural-funcionalista nos estudos de
comunidade sob a liderança de Emílio Willems e Donald Pierson, que
inspiraram os trabalhos de Antonio Candido, Oracy Nogueira e Maria
Isaura Pereira de Queiroz. Também compartilharam um interesse tra-
zido por Florestan Fernandes em desvendar os processos de desintegra-
ção da vida tradicional rural e a formação de uma sociedade capitalista.
Nesses primeiros trabalhos, Eunice estabelece princípios que vão nortear
toda a sua carreira de pesquisadora: uma metodologia que privilegia
a etnografia baseada na observação participante; uma preocupação
em entender a dinâmica cultural no contexto mais amplo das macro-
transfor mações econômicas e políticas; e a busca constante do que
Malinowski chamava de “ponto de vista nativo”. Assim fazendo, ela é
levada a perceber com clareza o quanto a família e os laços de paren-
tesco são cruciais para a ordenação da vida social nesses momentos de
forte mudança. Os que migraram das zonas rurais à procura de uma
vida melhor nas cidades mobilizaram os laços de parentesco e logo res-
tauraram as suas famílias nas periferias urbanas onde for maram redes
de informação e segurança social que os fortaleceram perante um Estado
sempre visto como distante e potencialmente hostil.
Poderia ter chamado a segunda fase de “resistência”, mas a deno-
minei de “heróica” porque é caracterizada por uma coragem intelectual
e política notável e porque, no embate com o marxismo, efetivamente
produz a antropologia que hoje conhecemos. É nesse período que a
antiga aliança entre a sociologia e a antropologia na se rompe
com a crescente hegemonia do marxismo, não apenas como inspira-
ção pela desejada revolução socialista no Brasil, mas como paradigma
de interpretação para os sociólogos e cientistas políticos. Os antropó-
logos começaram a ser vistos como, na melhor das hipóteses, “meros
empiristas” e, na pior, mercadores de uma ciência social burguesa.
Como afirma Eunice,
Prefácio
toda a análise de fenômenos culturais é necessariamente análise da dinâmica
cultural, isto é, do processo permanente de reorganização das representações
na prática social, representações estas que são simultaneamente condição e
produto desta prática. (p. )
Em “A família operária: consciência e ideologia” (cap. ), encon-
tramos Eunice Durham insistindo na singular importância da família,
em particular para a classe trabalhadora, em oposição àqueles que a
viam como uma imposição da “ideologia dominante”, fadada a desapa-
recer junto com o capitalismo. Longe disso, a família, ela afirma, pode-
ria em si ser revolucionária! Seria
Prefácio
desenvolvem mecanismos para reconhecer posições divergentes,[...] deslegiti-
mam a negociação [...] e podem ainda resvalar para mecanismos autoritários
de imposição de um consenso que deve ser obtido a qualquer custo como única
base legítima de atuação coletiva. (p. )
longe nesse sentido. Em “Chimpanzés também amam”, ela embarca
numa erudita incursão nos trabalhos recentes de primatologia e etolo-
gia para analisar à luz da antropologia e da psicanálise as emoções e os
possíveis imperativos genéticos por detrás do nosso sexo, amor e afeto.
Dois ou três trabalhos não cabem nas “fases” nas quais dividi os
ensaios deste volume: “O lugar do índio”; “ anos”; e “Malinowski:
uma nova visão da antropologia”. Cada um deles exemplifica facetas
importantíssimas da vida intelectual e política de Eunice Durham. “O
lugar do índio”, publicado em , reflete sobre a situação política das
populações indígenas após os seus dois anos como presidente da .
Uma das tarefas tradicionais da presidência da foi (e continua sendo)
a de representar a opinião da Associação sobre assuntos relacionados ao
bem-estar das populações indígenas. Com o seu entusiasmo e capaci-
dade de trabalho como que inesgotáveis, Eunice logo se prontificou a
aprender tanto quanto pôde sobre a etnologia indígena e sobre os pontos
de fricção entre as sociedades indígenas, os antropólogos e o Estado. E foi
com muita força e determinação que ela levava pessoalmente as posições
da contrárias à política indigenista do governo militar. Nunca vou
esquecer ter testemunhado (eu era tesoureiro da Associação na época) o
general-chefe da tendo que ouvir as críticas diretas da presidente da
, muito menos alta que ele mas muito mais determinada!
Durante a última década ou mais, Eunice Durham tem se dedicada
ao estudo da educação superior no Núcleo de Pesquisas sobre Ensino
Superior (), que fundou com Simon Schwartzman e Elisa Wollineck
no final dos anos . “ anos”, escrito em , é infelizmente o
único trabalho da autora sobre a educação superior neste volume. En-
quanto escrevo estas palavras, uma “reforma universitária” promovida
pelo governo federal está em discussão. O que me impressiona é que os
problemas identificados por Eunice exatos vinte anos atrás, inclusive e
sobretudo o envelhecimento precoce e a imobilidade institucional das
universidades públicas, continuam sem que se tenha caminhado um
passo em direção à sua solução.
O terceiro trabalho que independe das “fases” é um pequeno
ensaio sobre Bronislaw Malinowski. Sem dúvida, Eunice o incluiu como
homenagem ao antropólogo que mais a inspirou ao longo da sua vida.
É assim que ela descreve Malinowski: “Professor brilhante, crítico
impiedoso, simultaneamente compreensivo e intransigente, Malinowski
despertou, ao longo de sua carreira, admiração fervorosa e oposição
Prefácio
implacável, influindo, de um modo ou de outro, em toda uma geração
de antropólogos”. Que a Eunice me perdoe, mas não poderia achar
palavras melhores para descrever ela mesma.
Os achados etnográficos de ambos os impulsionaram a questionar
as certezas dos seus colegas confortavelmente bem-pensantes. Na retó-
rica malinowskiana, os trobriandeses figuravam como uma prova da
humanidade única por detrás das nossas imensas diferenças culturais,
mas também, na sua diferença, como uma ameaça à complacência do
etnocentrismo colonial. Malinowski utilizou seus dados sobre a matrili-
nearidade trobriandesa para desafiar as teorias ocidentais sobre a família
e a universalidade do complexo de Édipo. A etnografia sobre o kula veio
para demonstrar a racionalidade econômica dos trobriandeses e a inte-
gridade do seu sistema social, pondo em dúvida as certezas “civilizató-
rias” dos administradores coloniais e os missionários. Movida, como
Malinowski, pelo respeito do ponto de vista dos vários “nativos” que
ela conheceu, Eunice nunca se furtou em confrontar os bem-pensantes
com os resultados da sua pesquisa. Insistiu sobre a importância do
parentesco e da família para os migrantes pobres e habitantes da perife-
ria paulista para questionar as certezas das teorias sociológicas que só
viam nessas instituições alienação e ausência de “consciência”. E, hoje
em dia, ela vai revelando os meandros das universidades no sentido de
questionar os lugares-comuns e palavras de ordem que dominam o
debate sobre a “reforma universitária”.
Num ponto importante, porém, Eunice Durham em nada se asse-
melha a Bronislaw Malinowski. Há um consenso na literatura sobre a
história da disciplina que o antropólogo polonês era muito arrogante,
querendo ser reconhecido como um líder antropológico, fundador da
“escola funcionalista”. Eunice Durham comanda o nosso respeito e
admiração pela sua obra, pelos seus alunos, por sua integridade, pela
força das suas convicções, pelo senso de humor, e pelo papel crucial que
desempenhou na construção da moderna antropologia em São Paulo e
no Brasil como um todo.
Peter Fry
Rio de Janeiro, julho de
Introdução
uma história muito pessoal de meio século de antropologia na USP
abertas a todas as novas tendências intelectuais inter nacionais. Na
antropologia, ainda estudávamos o evolucionismo cultural, o difusio-
nismo e um pouco da velha etnologia alemã, que eram, já então, o
passado ultrapassado. Aprendíamos também antropologia física, que
começava a ser transfor mada pelas inovações então muito recentes da
genética e de sua aplicação ao estudo das raças e da evolução humana.
Mas o moder no, o inovador, era o funcionalismo, nas suas diferentes
vertentes social e cultural, britânica e americana, que representava
então um avanço sobre a sociologia francesa. Durkheim ainda era lido
e respeitado, mas já tinha então um sabor antiquado, pelas concepções
evolucionistas que incorporava.
De fato, no período anterior à Segunda Guerra Mundial, o funcio-
nalismo havia realizado uma verdadeira revolução no trabalho antropo-
lógico, praticamente destruindo o evolucionismo social que marcara
todas as ciências sociais durante o século e o início do . Esta revo-
lução consistiu em colocar de uma nova forma toda a questão da diver-
sidade cultural, investindo contra concepções profundamente arraigadas
concernentes aos povos que estavam fora da civilização ocidental, con-
siderados então como ignorantes, supersticiosos, incapazes de raciocínio
lógico, representantes de um passado da humanidade há muito supera-
do e cujo destino necessário era, na melhor das hipóteses, acelerar o seu
próprio processo evolutivo de modo a alcançar o nosso nível de desen-
volvimento e as nossas características culturais.
No centro dessa revolução está o conceito de relativismo cultural,
que destruiu o antigo evolucionismo, atribuiu aos povos à margem da
civilização ocidental uma nova dignidade e influiu decisivamente na
valorização moder na da diversidade cultural, que constitui hoje um
fundamento da ideologia democrática ocidental. O relativismo cultural
consiste na injunção de procurar entender cada sociedade, povo ou
grupo em seus próprios ter mos; todos possuem uma riqueza própria e
não podem ser julgados em função dos nossos valores; tampouco se
pode pressupor um processo necessário que orientaria a transformação
das sociedades numa única direção, estabelecida por uma concepção de
progresso própria da nossa cultura, que culminasse no capitalismo (ou
no socialismo). Associado a ele, há um pressuposto que reorganiza todo
o trabalho de pesquisa: o de que a cultura ou o modo de vida de um
povo não podem ser entendidos como um amontoado de fragmentos
autônomos, mas sim em ter mos de sua imbricação e integração, o que
Introdução
lhes confere seu significado. Nesta abordagem, ação e representação
estão indissoluvelmente ligadas.
Essa nova teoria implicou a valorização da pesquisa feita em
campo com grupos ou sociedades delimitadas, e colocou as monogra-
fias etnográficas no centro do trabalho antropológico. Abandonou-se
quase que totalmente a chamada pesquisa “de gabinete”, na qual o
investigador, utilizando-se basicamente de fontes secundárias e com
pouco ou nenhum contato com as populações que constituem seus obje-
tos de estudo, desmembra a cultura em seus componentes e analisa a
ocorrência de cada um deles em sociedades diversas. O funcionalismo
institucionalizou a pesquisa de campo feita pelo próprio antropólogo
que, através de um contato direto e prolongado com seus objetos de
pesquisa e o aprendizado de sua língua, obtém um conhecimento de pri-
meira mão sobre o modo de vida, as crenças e a visão de mundo desses
povos de cultura diversa da nossa. Este foi o fundamento da revolução
funcionalista na teoria e na metodologia de pesquisa que continuam a
organizar, até hoje, muito do trabalho antropológico. E se, atualmente,
a validade dessa abordagem nos parece óbvia, para os estudantes de
antropologia da década de na (como eu), estas concepções cons-
tituíam uma verdadeira iluminação.
Diferentes variantes do funcionalismo de origem norte-americana
ou francesa permeavam também a sociologia, embora nesta Max Weber
e a sociologia alemã representassem alter nativas importantes. Tanto a
dissertação de mestrado quanto a tese de doutorado e a de livre docên-
cia de Florestan Fernandes, por exemplo, tinham o funcionalismo como
tema: A função social da guerra na sociedade tupinambá e o Ensaio sobre o
método de interpretação funcionalista na sociologia. Nessa época, o mar-
xismo não era estudado na academia, embora fosse conhecido por
docentes de ciências sociais com militância política de esquerda.
Muito da pesquisa que se fazia nas ciências sociais, nos anos e
, era formulada em termos dos chamados estudos de comunidade, de
inspiração funcionalista norte-americana. Em São Paulo, haviam sido
introduzidos por Donald Pierson, na Escola de Sociologia Política, e
por Emílio Willems, na . Na antropologia, particular mente, goza-
vam de grande aceitação, porque o mesmo método podia ser aplicado,
com poucas adaptações, tanto ao estudo das populações indígenas
quanto aos da nossa própria sociedade. Depois do afastamento de Emí-
lio Willems, Gioconda Mussolini continuou nesta linha, pesquisando as
comunidades caiçaras.1 Mesmo jovens sociólogos da , como Anto-
nio Candido, Maria Isaura Pereira de Queiroz e Oracy Nogueira fize-
ram trabalhos deste tipo. Assim, sociologia e antropologia estavam
muito próximas, movendo-se dentro de tendências teóricas e metodoló-
gicas que se superpunham.
De fato, revendo a produção desta época, considero que a contri-
buição dos estudos de comunidade para a compreensão da sociedade
brasileira não foi nada desprezível. Essas pesquisas de comunidade rea-
lizaram uma extensa etnografia da sociedade tradicional, estudando
bairros rurais, vilas e pequenas cidades em todas as regiões brasileiras:
na Amazônia, no sertão do Nordeste, no Recôncavo baiano, no Sudes-
te, nas comunidades de imigrantes estrangeiros de São Paulo e do Sul.
Tratou-se, de fato, de um grande levantamento da sociedade que estava
sendo rapidamente transformada pela industrialização e pela urbaniza-
ção do país. Paralelamente, ampliavam-se os estudos afro-brasileiros,
quase todos voltados para as religiões de origem africana.
Na sociologia da iniciou-se, já na década de , sob inspiração
de Roger Bastide e Florestan Fer nandes, um movimento de mudança
nos temas de pesquisa que se dirigia da “velha” para a “nova” socieda-
de. Ao lado dos estudos sobre o negro, a escravidão, o coronelismo, o
cangaço e o messianismo, sobre os homens livres na velha civilização do
café, que captam a velha sociedade tradicional e o início de sua trans-
for mação, tomou corpo um crescente interesse pelo “novo” que eram
os operários, os empresários, a industrialização, a urbanização. Esta pas-
sagem da velha para a nova sociedade se deu, em São Paulo, através do
estudo das transformações associadas à economia cafeeira, com a subs-
tituição do trabalho escravo pelo trabalho livre. A preocupação teórica,
na sociologia da , voltou-se então para o desenvolvimento do capi-
talismo no Brasil e a constituição de uma nova estrutura de classes
sociais, que passaram a ser temas centrais nas pesquisas. A influência da
sociologia norte-americana, especialmente a da Escola de Chicago, foi
muito importante nesse período.
Mesmo os estudos sobre o negro, voltados até então para manifes-
tações da cultura africana no Brasil, tomaram um novo rumo, tanto na
sociologia como na antropologia, com a introdução dos temas das rela-
. Egon Schaden, com uma orientação um pouco diferente e mais influenciado pela etnolo-
gia alemã, estudava os índios Guarani e os imigrantes alemães.
Introdução
ções raciais e do preconceito racial. Estimuladas pela , essas pes-
quisas se desenvolveram simultaneamente nos principais centros de
investigação então existentes: além de São Paulo, também Rio de Janei-
ro e Salvador. Em São Paulo, por influência de Florestan Fernandes, as
pesquisas apresentaram a peculiaridade de referir a questão das relações
raciais às novas preocupações com o desenvolvimento do capitalismo
industrial e a constituição da nova estrutura de classes. Apesar das dife-
rentes orientações, foram essas pesquisas que, no conjunto, destruíram
o mito da democracia racial no Brasil e reorientaram toda a visão do
problema do negro.
O início da minha carreira, ainda dentro do marco geral do fun-
cionalismo antropológico, demonstra bem esta mudança de temática.
Minha primeira pesquisa de campo (cap. ) trata de um movimento
messiânico ocorrido, com fins trágicos, numa pequena comunidade
rural no então sertão de Teófilo Otoni, em Minas Gerais. O messianis-
mo é um fenômeno recorrente no catolicismo brasileiro tradicional.
Neste caso, entretanto, tratava-se de um grupo de Adventistas da Pro-
messa, uma seita do pentecostalismo que era então novidade no Brasil.
Sua transposição para uma comunidade rural tradicional de meeiros
resultara do retor no de trabalhadores rurais da região, que haviam
migrado para a lavoura de algodão de Presidente Prudente e lá se con-
verteram – a velha e a nova sociedade estavam se encontrando.
Minha segunda pesquisa (cap. ), sobre imigrantes italianos em
São Paulo, que deu origem à minha dissertação de mestrado, capta um
outro momento: o de um “novo” que então já era passado. Trata-se do
início da transformação da economia cafeeira e da implantação do capi-
talismo no campo e na cidade, com a substituição do trabalho escravo
pelo trabalho livre. É uma pesquisa “histórica”, isto é, não se restringe
ao momento que a sociedade vivia quando a estudei. Também não
constitui simplesmente uma reconstrução de um momento do passado,
mas procura captar o processo de transfor mação na sociedade local e
regional que estava associado à inserção do imigrante, cobrindo mais de
meio século.
Minha pesquisa para o doutorado teve como objeto a migração
rural-urbana, estudada na cidade de São Paulo. Mais uma vez, tratava-
se de analisar um processo de mudança da sociedade tradicional para a
moderna, agora projetado ou refletido na saga dos migrantes rurais. As
transformações que estavam ocorrendo na sociedade constituem o pano
de fundo ou o contexto do processo. Mas o objetivo da investigação não
era analisar a urbanização ou a industrialização em si, como estavam
fazendo os sociólogos, mas, levando em conta esses trabalhos, investi-
gar o modo pelo qual ela modificava a vida e os ideais de atores concre-
tos que viviam esse processo ao mesmo tempo em que contribuíam para
a sua configuração.
Esses trabalhos não eram propriamente “estudos de comunidade”
nos moldes tradicionais, mas utilizavam a mesma orientação e os mes-
mos métodos e técnicas de pesquisa desenvolvidos pelos antropólogos
funcionalistas. Na sociologia da , ao contrário, o funcionalismo esta-
va sendo substituído por outras orientações teóricas e metodológicas.
De fato, com o interesse pelo processo de transfor mação que estava
alterando profundamente toda a sociedade brasileira, ao lado do uso de
técnicas mais quantitativas, características da sociologia norte-americana,
o marxismo começou a ganhar espaço na universidade, agora não mais
apenas como base para uma opção política exercida fora da vida acadê-
mica, mas como instrumental para a reflexão teórica e para a formulação
das novas pesquisas.
O marxismo promoveu uma dura crítica contra a sociologia positi-
vista francesa, que atingiu, igualmente, o funcionalismo antropológico,
por sua incapacidade de revelar a natureza do processo histórico de
mudança pelo qual passava a sociedade brasileira, que, nesta nova visão,
residia na luta de classes. O funcionalismo antropológico, de fato, não
continha uma teoria do capitalismo nem uma teoria da história, utiliza-
va um conceito empírico de classe social e privilegiava os processos de
integração, deixando em segundo plano o conflito e a dominação, fun-
damentais na análise marxista.
Trabalhando dentro de uma visão antropológica, entretanto, não
tive nenhum problema, em minhas pesquisas, em utilizar uma metodo-
logia e uma conceituação de base funcionalista para estudar processos
de mudança e conflitos sociais. Eu não tinha, é verdade, a pretensão de
que fosse possível, através desses estudos de base etnográfica, explicar
a natureza das forças sociais que estavam transfor mado a sociedade
brasileira. Mas os estudos limitados que eu empreendia precisavam ser
colocados em um contexto mais amplo do que aquele que resultava das
informações obtidas no contato direto com as populações que eu estu-
dava. Por esta razão, tanto no caso dos migrantes rurais como no dos
imigrantes italianos, houve um grande esforço, que não era avesso ao
Introdução
método funcionalista tal como o praticávamos, em reconstruir o con-
texto histórico, econômico e social mais amplo dentro do qual os fenô-
menos que eu estudava estavam ocorrendo. A sociologia e a história
foram amplamente utilizadas, assim como os dados demográficos.
No caso da migração rural-urbana, tratava-se claramente de um
processo de redistribuição de população das regiões mais pobres para as
mais desenvolvidas, e senti a necessidade de compreender a sociedade
de origem dos migrantes e os mecanismos de sua expulsão. Voltei-me
assim, de novo, para a sociedade tradicional, a qual for necia a maior
parte dos contingentes migratórios. A segunda parte do livro A caminho
da cidade, que resultou dessa pesquisa, parcialmente reproduzida nesta
coletânea (cap. ), consiste na análise da sociedade rural brasileira tradi-
cional da qual a grande maioria dos migrantes provinha, cotejando as
informações obtidas nas entrevistas com a vasta bibliografia existente e
utilizando intensamente os estudos de comunidade e os relatos dos via-
jantes do século , cuja riqueza e importância passei a valorizar. A ter-
ceira parte do livro analisa o processo de migração propriamente dito,
isto é, o percurso que vai da zona rural para a urbana e utiliza ampla-
mente dados demográficos. Finalmente, a última parte trata do migran-
te na cidade. Há toda uma dimensão temporal nesse processo, assim
como alterações nas relações de trabalho e nas relações sociais. O artigo
“Os migrantes rurais” (cap. ) é um resumo desse processo.
A minha experiência de pesquisa me levou a acreditar que a crítica
que os sociólogos faziam em relação ao funcionalismo não fazia justiça
ao trabalho que estava sendo realizado pelos pesquisadores que podiam
ser classificados como funcionalistas. Claramente, no estudo de povos
tribais do interior da África, da Amazônia ou do Pacífico, não havia
suficiente documentação do passado (que se acumulou nas décadas pos-
teriores), e era isto que criava o “presente etnográfico”, isolado no tempo
e tão criticado pelos sociólogos convertidos ao marxismo. A transfor -
mação (e verdadeira destruição da sua cultura tradicional) pela qual
estavam passando estas sociedades vinha de fora delas, da expansão da
civilização ocidental e do colonialismo que lhe era próprio, e não po-
diam explicar a sua particularidade e unicidade. Por isto mesmo, seria
um verdadeiro pecado antropológico deixar de estudar a cultura tradi-
cional tal como ainda existia, para documentar sua destruição em curso.
Nem a análise da destruição poderia ser feita sem que se soubesse o que
estava sendo destruído. A crítica ao funcionalismo, aplicada a esse tipo
de trabalho, era improcedente, achava eu, pois ignorava os objetivos e
as peculiaridades do trabalho realizado pelos antropólogos com esse
tipo de sociedade, o qual estava voltado para documentar e compreen-
der o enor me espectro da diversidade humana. No caso das pesquisas
com grupos ou segmentos da nossa própria sociedade, como as que eu
fazia, a questão se apresentava de outra forma porque o processo de
transfor mação em curso se originava nesta mesma sociedade, fazia
parte da experiência de vida dessas populações, e era captado no traba-
lho de campo. A percepção desse processo emergia das entrevistas, mas
de forma limitada e parcial porque, ao contrário do que ocorria nas
sociedades primitivas, os informantes não possuíam uma visão suficien-
temente ampla da sociedade na qual viviam. Por isso mesmo, os dados
obtidos através do contato direto com essas populações precisavam ser
colocados num contexto mais amplo, utilizando outras fontes e outros
tipos de infor mação existentes em abundância e como resultado das
próprias pesquisas realizadas pelas ciências sociais.
Por outro lado, o funcionalismo antropológico também se preocu-
para em analisar a grande transfor mação social em curso e desenvol-
vera uma teoria da mudança centrada nos conceitos de aculturação e
assimilação. Mas nessa abordagem havia, de fato, uma inadequação ou
limitação muito maior para apreender a natureza dos processos globais
de transfor mação da sociedade, que ocorriam como resultado da
expansão do capitalismo e do colonialismo, e isto por duas razões. Em
primeiro lugar porque a utilização desses conceitos em geral pressupu-
nha uma situação na qual um dos grupos envolvidos era alvo passivo
do processo de transformação, sendo incorporado cultural e socialmen-
te por outro. Com esta conceituação, era difícil apreender a dinâmica de
um processo complexo no qual todos os atores são transfor mados e
todos contribuem para uma mudança em curso no conjunto da socieda-
de, como eu tentara fazer no estudo sobre os imigrantes italianos. Em
segundo lugar, a conceituação utilizada não dava conta da importância
crucial da dominação política e econômica que orientava todo o pro-
cesso de expansão das sociedades capitalistas e a destruição das socie-
dades tradicionais. Apesar disso, os estudos de assimilação e acultura-
ção haviam produzido alguns resultados positivos, embora limitados
a casos específicos, como na análise da imigração européia para os
Estados Unidos, no final do século e início do século . Neste
caso, a absorção do imigrante em pé de igualdade com os cidadãos
Introdução
americanos, com o abandono tanto da sociedade quanto da cultura de
origem, constituía não apenas o objetivo da política gover namental,
mas freqüentemente um ideal incorporado se não pela primeira, pelo
menos pela segunda geração dos imigrantes. O problema então era
definido em termos das dificuldades de adaptação da primeira geração.
Mas essa abordagem era claramente insuficiente para analisar o pro-
cesso global de industrialização, urbanização e constituição de uma nova
estrutura de classes como ocorria no Brasil e, ainda mais, o processo de
destruição das sociedades tradicionais ou “primitivas” que ocorria com
o colonialismo.
A ascendência do marxismo nas ciências sociais da a partir do
final da década de , e o dogmatismo que muitas vezes o acompanhou,
deixaram a antropologia numa posição singular mente marginal, e os
antropólogos numa situação um tanto esquizofrênica. Afinal, no am-
biente de intensa politização que marca esse período, éramos todos
esquerdistas, empenhados em promover a revolução socialista para a
qual Marx oferecia o fundamento, a justificação e a receita. Com a ins-
tauração do regime militar, éramos todos defensores da democracia
contra o autoritarismo, e o marxismo era utilizado como fundamento
desta crítica. Mas o método dialético e os conceitos marxistas básicos,
como os de luta de classes, contradição, forças produtivas, materialismo
histórico, ideologia e capital, dificilmente se aplicavam e certamente não
elucidavam os fenômenos microssociais que os antropólogos estuda-
vam, quer se tratasse de povos “primitivos”, quer de grupos, segmentos
ou categorias da nossa própria sociedade.
Os conceitos marxistas não esclareciam as questões relevantes le-
vantadas pelas pesquisas de tipo antropológico como as minhas. Estas
não tinham como objetivo testar teorias e conceitos, mas utilizavam,
dentro do instrumental disponível, o que se mostrasse mais adequado
para as questões empiricamente colocadas. As perguntas que eu deseja-
va responder eram muito concretas: o que os meeiros do Catulé haviam
encontrado na religião que os levara à conversão? Quais os mecanis-
mos pelos quais os italianos haviam logrado se inserir na vida nacional
e prosperar, e em que medida haviam influenciado a transformação social
que havia ocorrido? O que levava os trabalhadores rurais a tomar a deci-
são de migrar, como formulavam suas expectativas, como decidiam sobre
onde ir, como se orientavam na cidade, como encontravam emprego?
Que visão tinham desse processo? Como o avaliavam? As grandes teorias
sobre o capitalismo for neciam um pano de fundo, mas não per mitiam
responder às perguntas que eu havia formulado. De fato, para esse tipo
de investigação, os métodos de pesquisa desenvolvidos pelos funciona-
listas dificilmente podiam ser substituídos, mesmo quando a teoria se
mostrava inadequada.
Minha posição era particularmente difícil. As três pesquisas que eu
tinha feito me haviam levado a atribuir uma grande importância à famí-
lia para a compreensão dos processos migratórios e das transformações
sociais e culturais que afetavam as populações envolvidas. Não comecei
essas investigações com um interesse especial pela família, mas sua im-
portância surgiu de forma espontânea nas entrevistas. Para os “meus”
meeiros do Catulé, italianos de Descalvado e migrantes rurais em São
Paulo, os grupos primários, especialmente a família, eram fundamentais
no modo como viviam o processo de transformação, porque era com os
parentes, os conterrâneos e os vizinhos que se orientavam no processo
migratório e estabeleciam, na cidade, os laços de sociabilidade e a rede
de informações dentro dos quais as decisões eram tomadas e se consti-
tuía sua visão da sociedade brasileira.
O tema da família não despertava nenhum interesse no ambiente
intelectual das ciências sociais da época – muito pelo contrário. A famí-
lia era vista como uma instituição retrógrada, condenada a ser destruí-
da na sociedade socialista e inteiramente irrelevante do ponto de vista
teórico: as forças transformadoras da sociedade residiam no operariado,
na constituição de uma consciência de classe, na organização sindical.
Mas os grupos ou categorias sociais que eu estava estudando não eram
operários clássicos e não se enquadravam bem numa abordagem funda-
da no conceito de classe. No caso de migrantes rurais, boa parte deles
era for mada de biscateiros, ou de trabalhadores do setor de serviços.
Dentro dessa concepção marxista, se aproximavam mais de um lumpen
proletariat. Seus sonhos eram a casa própria e o trabalho autônomo,
e mudavam de ramo ocupacional com extraordinária freqüência: em
curtos períodos de tempo, podiam passar de operários de fábrica a
vendedores ambulantes, motoristas de caminhão ou trabalhadores da
construção civil, ou mesmo fazer o caminho inverso. O que tinham
em comum era a baixa escolaridade, a ausência de qualificação profis-
sional e o salário parco. Na mesma família, as mais diferentes ocupa-
ções eram encontradas e, portanto, o conceito de classe operária, tão
valorizado na sociologia marxista, esclarecia muito pouco da dinâmica
Introdução
do processo.2 A família, não sendo mais uma unidade de produção, con-
tinuava entretanto a ser uma unidade de consumo e ajuda mútua. O mar-
xismo não ajudava a analisar esses problemas, a não ser que se quisesse
“denunciá-los” como resultado de instituições retrógradas, que deviam
ser destruídas. O artigo desta coletânea intitulado “A família operária:
consciência e ideologia” (cap. ) retrata bem os dilemas desta época.
Os problemas que eu estava encontrando eram mais agudos para os
antropólogos que, como eu, trabalhavam com populações urbanas, para
quem o diálogo com a sociologia e a ciência política era fundamental, e
para estas disciplinas a referência à luta de classes e aos males do capita-
lismo parecia imprescindível. Muitas pesquisas antropológicas que
envolviam trabalho de campo com categorias ou grupos sociais específi-
cos tornaram-se, também, um tanto esquizofrênicas: todo o trabalho de
pesquisa e sua apresentação se organizavam dentro da tradição do traba-
lho de campo funcionalista, operando, embora não explicitamente, com
os conceitos de representação, função, significação, interrelação; mas as
teses e dissertações a que davam origem eram precedidas e ter minadas
com introduções e conclusões “marxistas”, de denúncia da ordem capi-
talista, utilizando conceitos estranhos àqueles que haviam sido utilizados
no trabalho de campo. Ou então havia uma renomeação de conceitos
tradicionais: fenômenos culturais, por exemplo, passaram a ser denomi-
nados “ideologia”. Falava-se até da ideologia do futebol, da ideologia
do candomblé. Alter nativamente, numa combinação esdrúxula, pensa-
va-se na “função” das práticas sociais para o capital, fazendo-se desta
forma a denúncia da exploração e da opressão. Não que não se pudesse
ou não se devesse demonstrar e assim denunciar as misérias da nossa
sociedade. Mas o fato é que a denúncia era exterior ao universo da pes-
quisa, independente dos métodos de investigação e dos conceitos nela
utilizados, dos valores e crenças da população pesquisada.
Isso me levou a trabalhar, paralelamente à realização de pesquisas
empíricas, com uma reflexão teórica que procurava identificar e valori-
zar a especificidade da antropologia, seus métodos de investigação e o
conceito de cultura, assim como a inadequação da teoria marxista para
. A questão de como designar este tipo de população urbana, com a qual os antropólogos
estavam cada vez mais envolvidos, constituía um problema sério. A solução acabou sendo a
de utilizar, em lugar de conceitos bem definidos como “burguesia” e “proletariado”, uma
denominação mais imprecisa, como “classes populares”.
muito do trabalho de campo que fazíamos. Ao mesmo tempo procu-
rava mostrar que muitos aspectos da teoria marxista eram relevantes
para a investigação antropológica; que não havia necessariamente uma
impossibilidade de comunicação entre o marxismo e a pesquisa antro-
pológica, que estavam voltados para dimensões diversas da realidade
social e, por isso, os instrumentos de um não eram adequados para a
investigação da outra. A relação entre ambos podia ser pensada como
de complementaridade, embora existissem diferenças difíceis de resolver,
como a que decorria do conceito funcionalista de relativismo cultural,
o qual se opunha à teoria marxista da história, com sua incorporação
do velho evolucionismo social de Morgan e com uma visão de progresso
própria do século .
Esta reflexão se tornou particularmente necessária para mim por-
que, logo após a reforma de , transferi-me com Ruth Cardoso para
o novo Departamento de Ciência Política, o qual, em virtude das cassa-
ções e perseguições políticas, havia sido reduzido a apenas dois professo-
res, estando ameaçado de inviabilidade institucional. O marxismo havia
se tornado dominante na reflexão da ciência política, e isto me levava a
tentar construir pontes teóricas que facilitassem a colaboração com as
linhas de investigação do departamento. A participação no Departa-
mento de Ciência Política alargou muito a base da minha reflexão teó-
rica, evitando um certo fechamento em relação às correntes de pensa-
mento que atravessam as ciências sociais, fechamento este que às vezes
caracteriza alguns grupos de antropólogos excessivamente voltados aos
limites de sua própria disciplina.
Esta nova postura refletiu-se em dois artigos que me pareceram, na
época, bastante importantes: “A dinâmica cultural na sociedade mo-
derna” e “Cultura e ideologia”, incluídos nesta coletânea (caps. e ).
Todos eles procuravam legitimar o conceito de cultura no debate teó-
rico da época, precisando as diferenças entre o marxismo e a abordagem
antropológica.
Dediquei-me então, paralelamente às pesquisas que estava reali-
zando ou orientando, a fazer uma revisão crítica do funcionalismo clás-
sico, que já era então considerado ultrapassado. Eu estava convencida
de que, para entender a importância do conceito de cultura na teoria e
na prática antropológicas, e sua relação complementar e indissociável
com o conceito de sociedade, era preciso repensar o funcionalismo, o
sentido da revolução que ele havia operado, e analisar em que medida
Introdução
seus pressupostos eram ainda incorporados nas abordagens mais recen-
tes. Sem isso, acreditava eu, era impossível entender os rumos que a
antropologia estava seguindo.
Empreendi então o trabalho de análise das monografias de Bronis-
law Malinowski, um dos pais do funcionalismo clássico, autor pelo qual
sempre tive uma grande admiração. Decidi trabalhar com a obra etno-
gráfica e não com a produção teórica porque minha experiência com o
funcionalismo me convencera de que era na etnografia que se revelava
sua verdadeira riqueza. Esse trabalho deu origem a minha tese de livre
docência e ao livro A reconstrução da realidade: um estudo da obra etno-
gráfica de Bronislaw Malinowski, além de diversos artigos, um dos quais
está incluído nesta coletânea (cap. ). O que me perguntava era: se o
funcionalismo é tão limitado, como é possível que, com ele, um autor
como Malinowski nos forneça uma visão tão instigante de uma socieda-
de diferente da nossa e seja capaz de apontar processos culturais e prin-
cípios básicos da vida social que também estão presentes, mas invisíveis,
na nossa sociedade? Certamente, o fenômeno da troca de presentes e o
conceito de reciprocidade que Malinowski for mulou e analisou (antes
de Marcel Mauss e de Lévi-Strauss) foram muito importantes para re-
pensar a história econômica e destruir o conceito de homo economicus,
que haviam sido dominantes na época. Igualmente importantes me pare-
ciam as análises de Malinowski do processo de trabalho e das formas de
propriedade. Para a reflexão que fazíamos na na década de , e para
o diálogo com o marxismo, estes conceitos podiam estabelecer uma
ponte para a discussão dos modos de produção pré-capitalistas. Leva-
vam também a repensar as for mas de sociabilidade, especialmente no
que diz respeito aos conceitos de comunidade e de solidariedade orgâni-
ca. Igualmente relevante era a demonstração que Malinowski realizara
da importância do ritual e da magia na organização do trabalho e dos
empreendimentos coletivos, que apontava para as dimensões simbólicas
necessárias da troca, do trabalho, da propriedade e do conjunto da vida
social. Por outro lado, sua análise da organização do parentesco numa
sociedade matrilinear constituía uma contribuição fundamental para a
desnaturalização da família ocidental, e desafiava a psicanálise.
Em suma, para mim a produção etnográfica de Malinowski e de
outros antropólogos funcionalistas colocava questões fundamentais para
qualquer teoria sobre a vida em sociedade, criando um tipo de investiga-
ção através da qual os homens e as mulheres não se apresentavam como
meras abstrações, mas como seres vivos e atuantes. O trabalho etnográ-
fico per mitia compreender como construíam e manipulavam, na vida
social, as leis e as regras que eles próprios haviam constituído, constatar
a intensidade dos conflitos e o fundo emocional das motivações, a fre-
qüência das transgressões, a engenhosidade dos artifícios criados para
superar contradições. Tudo isto constitui uma parte fundamental de
nosso esforço em compreender o ser humano em geral e a especifici-
dade de cada cultura, embora fosse difícil, naquela época, convencer os
alunos e alguns colegas, todos marxistas, de que isto era relevante diante
da marcha do capitalismo para a revolução socialista.
Na verdade, embora o método funcionalista houvesse envelhecido,
sobreviveram dele os pressupostos básicos da pesquisa antropológica
que, até hoje, não foram abandonados e são essenciais para o trabalho
de campo: o relativismo cultural e a inter-relação entre os diferentes as-
pectos da cultura e a integração entre ação e representação. Com eles,
podem-se fazer estudos os mais variados e reformular constantemente
conclusões de pesquisas anteriores.
A análise da obra de Malinowski, centrada na sua produção etno-
gráfica, esclareceu outro problema: que conceitos são instrumentos
mais ou menos perfeitos e mais ou menos versáteis. Não basta pergun-
tar qual a sua definição teórica. É necessário analisar de que formas eles
podem ser utilizados. Tomemos os célebres conceitos funcionalistas de
função, integração e totalidade. No trabalho etnográfico, o que Mali-
nowski faz não é indagar qual a função de cada ato ou instituição social.
Aliás, a própria palavra “função” aparece muito raramente. O conceito
de função serve antes a dois outros objetivos. Remetendo ao conceito de
totalidade, operacionaliza a concepção de que a vida social e cultural
não é um conjunto de fragmentos autônomos, mas constitui uma teia de
significados integrados (o que não significa admitir forçosamente que
tudo esteja relacionado com tudo); a integração também não pressupõe
necessariamente perfeita har monia, porque ela própria produz confli-
tos. Por meio do conceito o pesquisador é levado a analisar para cada
tema, problema ou instituição, a inter-relação entre diversos aspectos
da cultura, servindo assim para mostrar a imbricação dos aspectos cultu-
rais, sociais, econômicos e políticos na vida social diretamente observável.
O conceito de totalidade não é portanto um resultado a ser alcançado,
mas um pressuposto para analisar a multidimensionalidade do vivido
humano, tomando como objeto de análise aquelas unidades empíricas
Introdução
que Malinowski denominou “instituições”, e que se assemelham ao que
Mauss denominou “fatos sociais totais”. Ela remete à reconstrução da
visão que “os nativos” têm de sua própria sociedade, mas não se limita
a ela, expandindo-se para a análise de forças sociais e culturais atuantes
(também reveladas pela utilização do conceito de função), que não estão
na consciência daqueles que vivem esta realidade social.
O funcionalismo, entretanto, apresenta outra vertente, o da antro-
pologia social inglesa, a qual se desenvolveu num sentido diferente, e
era importante na minha reflexão porque dizia respeito à relação entre
os conceitos de cultura e sociedade. Na antropologia social de inspira-
ção durkheimiana, tal como foi formulada por Radcliffe-Brown, o con-
ceito central não é o de cultura, mas o de sociedade. A investigação uti-
liza o conceito de função para descobrir a estrutura e a organização
social de um povo. A unidade de referência não é o costume ou padrão
cultural, mas as relações sociais. Os costumes constituem antes o ponto
de partida para reconstruir sistemas de relações, e os estudos sobre o
parentesco forneceram o paradigma desta abordagem.
Nas sociedades pré-letradas, parentesco e organização política são
os esteios ou andaimes da vida social, sobre os quais se ordena e apóia a
análise dos fenômenos culturais. Por isso mesmo, o estudo do parentesco
sempre foi importante na antropologia, desde o evolucionismo. A grande
descoberta da antropologia social foi a de que o parentesco, elemento
fundamental da organização dessas sociedades, utiliza princípios estru-
turais de número limitado. A combinação desses princípios (descendên-
cia, consangüinidade e afinidade) estabelece estruturas em grande parte
autônomas em relação ao conteúdo cultural das relações sociais que
organiza e que, apesar de serem muito complexas, podem ser encontra-
das em sociedades diferentes, sem contato histórico entre si, com siste-
mas produtivos e nível tecnológico diversos. Assim, caçadores de bisão
da América do Norte, pastores ou agricultores da África, cultivadores da
Oceania, coletores e caçadores da Austrália podem ter um mesmo sistema
de parentesco. Trata-se, portanto, de princípios realmente a-históricos,
que só podem ser compreendidos como decorrência do próprio funcio-
namento da mente humana, e isto dificilmente se coaduna com uma
visão marxista ortodoxa do primado da infra-estrutura e da “deter mi-
nação em última instância” pelo econômico. Tampouco se coaduna com
um relativismo cultural absoluto, pois existem princípios gerais de cuja
combinação resultam estruturas recorrentes.
De fato, os evolucionistas já haviam descoberto estes princípios e
estas regularidades, mas a análise que empreenderam se desenvolveu no
sentido de buscar a explicação em sua localização numa ordem evoluti-
va. A antropologia social abandonou a falsa temporalidade do evolucio-
nismo e concentrou a atenção nas características estruturais do sistema,
responsáveis pela sua recorrência, retomando o método comparativo que
o funcionalismo culturalista abandonara.
A teoria e a metodologia envolvidas nessa abordagem, assim como
a análise desses sistemas, são freqüentemente apresentadas em alguns
artigos teóricos. Mas o verdadeiro trabalho antropológico se realiza nas
monografias etnográficas, cada uma das quais testa, corrige e amplia os
resultados das monografias anteriores, apresentando novos aspectos e
novas descobertas. Analisando estruturas sociais, elas acrescentam ao
particularismo das culturas uma possibilidade de comparação. As etno-
grafias se tornam assim uma discussão permanente entre os pesquisado-
res, criando algo parecido com uma obra coletiva.
A combinação das abordagens culturalistas, de inspiração malinows-
kiana ou boasiana, e as da antropologia social, derivada de Radcliffe-
Brown, permitiu a elaboração de monografias de enorme originalidade
teórica porque, ao mesmo tempo em que analisam as peculiaridades cul-
turais de cada povo, permitem a construção de estruturas ou sistemas de
relações sociais comparáveis.
A monografia de Evans-Pritchard sobre os Nuer, povo pastor do
Sudão, é talvez o melhor exemplo da riqueza de análise que esta combi-
nação permite. Seu ponto de partida é uma questão propriamente cultu-
ral, que diz respeito à importância do gado para os Nuer. O gado é
riqueza, prestígio, segurança, objeto estético e afetivo, inspiração poéti-
ca. O gado paga o preço da noiva e é necessário para o casamento que
marca a vida adulta. É objeto de sacrifício que estabelece a comunicação
com o sobrenatural. O gado é uma obsessão para os Nuer, e per meia
toda sua vida social. Tomando o gado como ponto de partida, é possí-
vel integrar a análise de diferentes dimensões da vida social. Em primei-
ro lugar, a ecologia, pois o pastoreio constitui uma forma específica de
adaptação ao ambiente natural, que implica organizar a vida social em
função das estações que determinam a transumância. A própria percep-
ção do tempo é estabelecida a partir da regularidade das atividades
necessárias ao cuidado para com o gado; trata-se de um tempo circular,
repetitivo e a-histórico. Mas a movimentação neste território é organi-
Introdução
zada em função de unidades territoriais que formam grupos sociais. Por
outro lado, a organização desses grupos em unidades de amplitude cres-
cente está associada ao sistema de parentesco estruturado em classes,
linhagens e sub-linhagens. Este sistema dá forma a essa sociedade seg-
mentada, sem nenhum poder político central, através da oposição
entre segmentos de amplitudes diferentes, que cria e controla os con-
flitos estruturais. O princípio estrutural subjacente é o da amplitude
relativa das distâncias estruturais num sistema de oposições. Todo o
conceito de solidariedade mecânica e orgânica de Durkheim precisou
ser revisto a partir deste trabalho de Evans-Pritchard, e o conceito de
distância estrutural que ele elabora tem uma aplicação muito geral na
análise dos mais diversos agrupamentos sociais. Além disso, a defini-
ção destas distâncias estruturais é for mulada, pelos Nuer, em função
de relações genealógicas que constituem o arcabouço de um tempo
“histórico” não circular.
O conceito de função, nesta abordagem, é utilizado constan-
temente de maneira implícita, para “costurar” os aspectos culturais
sociais, ou tecê-los para a reconstrução de uma totalidade dotada de
lógica e significação.
Analisando, com o olhar de hoje, o conjunto dos trabalhos que
escrevi, percebo que o tempo todo estive tentando realizar esta costura,
em que o social fornece a armação dentro da qual a amplitude, as varia-
ções e a dinâmica dos significados se explicitam. Apesar da minha admi-
ração por Malinowski, a influência da antropologia social britânica foi
muito maior na formulação da minha visão de antropologia.
No conjunto, a análise que realizei do funcionalismo consistiu
muito mais na recuperação de problemas fundamentais que ele havia
colocado do que na adesão à teoria que havia formulado. E o problema
central para mim residia na relação dinâmica entre ação e representa-
ção, ou melhor, na sua indissociabilidade. A especificidade da antropo-
logia, tal como eu a concebia, consistia na tentativa de apreender essa
dinâmica no modo como seres humanos empiricamente definidos in-
cessantemente constroem e reconstroem coletivamente sua própria
existência, atribuindo-lhe significação. A apreensão desse processo de
construção e reconstrução envolve necessariamente o reconhecimento
de sua multidimensionalidade, pois nele as for mas de sociabilidade, a
produção material e simbólica e a realidade pervasiva do poder estão
simultaneamente presentes e imbricadas.
Há ainda outra questão, que não foi suficientemente explicitada: é
que os sistemas de representações, presentes na ação, estão organizados
em função de valores, isto é, atividades ou produtos culturais emocio-
nalmente carregados, como o são o kula, a produção agrícola e a gene-
rosidade para os trobriandeses, o gado e a autonomia do homem adulto
para os Nuer, a união para os meeiros do Catulé, o trabalho, a poupan-
ça e a família para os imigrantes italianos, a casa própria e o trabalho
autônomo para os imigrantes rurais. Este conteúdo afetivo é parte inte-
grante do significado dos fenômenos culturais.
Foi sobre esta base, construída na reflexão sobre o funcionalismo,
que incorporei, de modo seletivo, as contribuições e orientações antropo-
lógicas pós-funcionalistas. De fato, se o marxismo dominava as ciências
sociais da , na antropologia estavam ocorrendo desenvolvimentos
teóricos importantes em outras direções.
De todas elas, a mais importante e a mais antiga foi certamente a
do estruturalismo de Lévi-Strauss, que Ruth Cardoso já introduzira na
na década de , e cuja influência crescia paralelamente à do mar-
xismo. Minha familiarização com a obra de Lévi-Strauss começou com
a leitura do seu primeiro grande livro, As estruturas elementares do
parentesco, incorporado nos cursos teóricos que ministrávamos, Ruth
Cardoso e eu, em seqüência à obra de Radcliffe-Brown. Nesse trabalho,
Lévi-Strauss retomava os temas clássicos do tabu do incesto e da oposi-
ção entre natureza e cultura, mas alterava profundamente as teorias da
antropologia social britânica, introduzindo o conceito de troca de mu-
lheres e de reciprocidade, este último inspirado em Marcel Mauss. Mas
há ainda uma continuidade com as linhas tradicionais da antropologia
social britânica.
A partir desta base, entretanto, as obras subseqüentes de Lévi-
Strauss, inspiradas na lingüística, estabelecem uma ruptura que consis-
te em liberar o conceito de estrutura de sua matriz original, o parentes-
co e a sociedade, para aplicá-lo à análise daquelas dimensões da cultura
mais afastadas das práticas materiais: a mitologia e o ritual. A análise se
processa, então, dentro da dimensão puramente simbólica. Assim, Lévi-
Strauss constrói uma teoria do simbolismo. O estruturalismo lévi-straus-
siano operou uma verdadeira inversão das orientações metodológicas
que marcavam tanto a sociologia francesa, da qual ele provinha, como a
antropologia funcionalista e o marxismo – em todas elas, a explicação da
produção simbólica própria do homem era feita em termos do contexto
Introdução
social do qual emergia. Esta inversão fica muito clara quando Lévi-
Strauss afirma, criticando Durkheim, que o erro fundamental deste autor
foi o de procurar as bases sociais do simbolismo quando, ao contrário, era
necessário reconhecer a fundamentação simbólica da vida social.
A utilização do conceito de estrutura, aplicado aos sistemas simbó-
licos, per mitiu realizar nesse campo o mesmo percurso seguido pelos
antropólogos britânicos na análise dos sistemas sociais, isto é, utilizar
material etnográfico para definir relações de oposição que podem ser
estudadas comparativamente, independentemente de seu conteúdo; os
termos (e, portanto, aquilo que é único em cada cultura) deixam de ter
importância porque seu significado reside nas relações de oposição
recorrentes entre termos de conteúdo diverso. Isto permite a utilização
intensiva do método comparativo para a formulação de estruturas cada
vez mais gerais e abstratas, concentrando-se na explicitação dos códigos
com os quais se constroem os sistemas simbólicos. Trata-se de algo
totalmente diferente do marxismo, mas cujo rigor teórico (ao contrá-
rio do que ocorria com o funcionalismo) impedia que fosse descartado
como irrelevante.
O for malismo crescente do estruturalismo distanciava-se pro-
gressivamente do tipo de reflexão até então dominante na antropolo-
gia, na qual o debate teórico se travava no seio mesmo da produção das
monografias etnográficas, no estudo de povos, culturas, grupos ou
categorias sociais empiricamente delimitados. A etnografia é utilizada
apenas como fonte para um trabalho comparativo sobre o qual são
construídas as interpretações teóricas, que estão voltadas para o des-
vendamento dos princípios de construção dos sistemas simbólicos.
Neste movimento, Lévi-Strauss deixa de se preocupar com os proble-
mas centrais colocados pelo funcionalismo, que dizem respeito ao
modo como grupos humanos concretos de fato vivem e à multidimen-
sionalidade dos fatos sociais.
Este intelectualismo não podia deixar de perturbar os antropólo-
gos formados na tradição do trabalho de campo, da preocupação com a
unicidade de cada cultura. Para mim, particular mente, incomodava o
abandono da dimensão do trabalho humano, da ação do homem na
transfor mação material da natureza e da sociedade. Mas o alcance e o
rigor da obra de Lévi-Strauss não podiam ser ignorados, pois haviam
construído um instrumento fundamental para a análise da imensa rique-
za da produção simbólica das sociedades humanas.
Ocorre então, dentro da antropologia, um movimento inverso ao
que Lévi-Strauss realizou, afastando-se do material etnográfico: trata-
se de incorporar os métodos de análise estruturalista no próprio trabalho
de campo, no qual continuava a tentativa de apreensão das especifici-
dades do modo de vida de cada grupo.
A obra de Victor Turner ilustra bem este caminho “inverso”, e foi
muito influente na antropologia da , não só por isto, mas pela cons-
trução de novos conceitos, como os de liminaridade, estrutura e anti-
estrutura, dramas sociais e communitas, de larga aplicação no estudo de
fenômenos da nossa própria sociedade.
Eu me incluo nesta orientação: presa ao meu interesse em entender
como grupos ou segmentos sociais empiricamente delimitados vivem,
atuam e pensam, o estruturalismo foi um auxiliar precioso, mas não
orientação central nas minhas pesquisas e reflexões teóricas.
Há pelo menos duas outras influências francesas importantes na
antropologia da , próximas aos meus interesses: a de Georges Balan-
dier e Pierre Bourdieu.3
Meu interesse por esses dois autores deriva do fato de que ambos,
de maneira diversa, produzem uma reflexão teórica que inclui uma
refor mulação do marxismo e se encaminha no sentido de recuperar a
multidimensionalidade dos fenômenos sociais.
Balandier parte de uma questão bastante delimitada, a qual, entre-
tanto, era de importância crucial para a sociedade e a política francesas
após a Segunda Guerra Mundial: o colonialismo europeu na África e a
tragédia da guerra na Argélia. Analisando diretamente o colonialismo,
Balandier reflete exatamente sobre a questão em relação à qual a antro-
pologia funcionalista se mostrara mais incompetente, isto é, a natureza
do processo mundial de destruição das sociedades tradicionais e das
culturas não ocidentais, abandonando o pântano no qual haviam mer-
gulhado as tentativas de produzir uma teoria da mudança cultural ba-
seada nos antigos conceitos de assimilação, aculturação, marginalidade.
O grande passo inovador foi dado com o conceito de situação colonial, no
qual estão imbricados a dominação política, a exploração econômica, as
diferenças culturais e o preconceito racial, num sistema de relações anta-
gônicas. A influência de Balandier foi mais direta sobre os antropólogos
. No Rio de Janeiro, um outro autor francês teve uma importância muito grande: Louis
Dumont. Na , entretanto, sua influência foi marginal.
Introdução
que estudavam as populações indígenas e as relações interétnicas, mas
a reflexão teórica tem alcance muito mais geral, porque recupera a
questão da multidimensionalidade num contexto que a antropologia
não podia ignorar.
Trata-se da dinâmica criada pela expansão do capitalismo, com os
mecanismos de dominação, espoliação, transfor mação social e amplia-
ção das desigualdades que lhe são próprios e que alcançam hoje todas as
sociedades humanas. Mesmo quando esta questão central não constitui
o objetivo das pesquisas antropológicas, ela configura um contexto
sempre presente. Para mim esta referência foi sempre fundamental.
Pierre Bourdieu apresenta outra opção, ainda dentro da problemá-
tica da imbricação entre o social, o político, o econômico e o cultural,
que envolve a crítica à trilogia das orientações dominantes nas ciências
sociais contemporâneas. Na sociologia da , a trilogia era constituída
por Durkheim, Weber e Marx, com a predominância deste último. Para
mim, a trilogia envolvia o funcionalismo antropológico, o marxismo e o
estruturalismo de Lévi-Strauss. Bourdieu insere a trilogia dentro de uma
oposição básica entre um modo de compreensão fenomenológico subje-
tivista (no qual estaria o funcionalismo antropológico), e um objetivis-
mo no qual se enquadrariam, em posições opostas, Marx e Lévi-Strauss.
Bourdieu estabelece a ligação entre os dois pólos com os conceitos de
estruturas estruturantes (no pólo da fenomenologia) e estruturas estru-
turadas (no pólo dicotômico representado por Marx e Lévi-Strauss).
O conceito de habitus é o operador metodológico que permite trabalhar
com esta relação nas pesquisas empíricas. Além disso, a abordagem de
Bourdieu, como a de todos os sociólogos franceses, atribui uma impor-
tância central à questão do poder, como elemento crucial das limitações
que se apresentam para os atores sociais na construção de suas práticas.
As estruturas estruturadas, que organizam os habitus, são apreendidas,
na prática da investigação, através dos conceitos de capital econômico,
capital social e capital cultural, como fundamentos de alocação na
estrutura de classes. Para mim, Bourdieu foi uma referência teórica
importante, mas o tipo de trabalho de campo que empreendeu, muito
voltado para a análise das classes sociais, se distanciava das pesquisas
que eu fazia.
De todos os autores pós-funcionalistas, o que mais influenciou
meu trabalho e a minha reflexão foi Clifford Geertz, tanto por suas for-
mulações teóricas como por seus trabalhos de pesquisa. O artigo sobre
a briga de galos em Bali foi quase de leitura obrigatória tanto para os
meus alunos como para os de Ruth Cardoso. Utilizei mais a sua formu-
lação de que os padrões culturais são, simultaneamente, “modelos de” e
“modelos para” o comportamento social, do que os conceitos de “estru-
tura estruturada” e “estrutura estruturante” de Bourdieu, porque tra-
duziam mais de perto minha concepção de dinâmica social, expressa na
relação entre trabalho morto e trabalho vivo, que emprestei de Marx,
utilizando-a como metáfora. Por outro lado, o conceito de descrição
densa, que ele for mulou, enriqueceu a própria concepção de trabalho
etnográfico com o qual eu trabalhava.
Os autores e as influências são muitas para serem citadas, embora
minha admiração por Marshall Sahlins, especialmente por seu livro
Ilhas de história, deva ao menos ser mencionada.
Estes trabalhos e influências foram utilizados e reelaborados na
antropologia brasileira, e há um grupo significativo de antropólogos
que incorpora essas contribuições em pesquisas muito inovadoras, nas
quais rompem definitivamente as limitações do funcionalismo como
instrumento de análise.
Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que todas essas novas ten-
dências davam nova amplitude teórica à antropologia, ela começou a
ser valorizada exatamente do outro lado, por uma nova importância que
assumiu o trabalho etnográfico de cunho tradicional. O lugar marginal
que a antropologia havia ocupado nas ciências sociais da derivara,
em parte, do fato de que seus objetos de estudos eram, majoritariamen-
te, marginais à sociedade capitalista: índios, tribos africanas em geral,
favelados, pobres, remanescentes das sociedades rurais tradicionais como
meeiros e parceiros, gangues juvenis, negros, cultos afro-brasileiros e
práticas religiosas as mais diversas, periferias urbanas, famílias, festas
e carnaval, curandeirismo, minorias étnicas de todos os tipos. No Brasil,
foi com a lenta abertura política dos anos que todos estes “margi-
nais” passaram a desempenhar novos papéis políticos, fora dos sindica-
tos e dos partidos. Foi então que muitos cientistas sociais, especialmente
os mais jovens, desesperançados com a vitória dos regimes capitalistas
e desapontados com a aparente falta de capacidade do proletariado de
exercer o papel de classe revolucionária, passaram a ver esses novos
atores, sem clara posição de classe, como os verdadeiros contestadores
de regime vigente e esperança de um amplo movimento de luta contra
a sociedade injusta e autoritária. Romanticamente, eram vistos como o
Introdução
“povo em movimento”, e a tarefa a que muitos jovens cientistas sociais
se dedicaram foi a de voltar-se para estes grupos tradicionalmente estu-
dados pelos antropólogos.
O marxismo havia se dedicado a analisar o capitalismo, descobrir
as contradições internas que promoveriam sua destruição, e explorá-las
para acelerar a revolução socialista. Agora, não se tratava mais de ana-
lisá-lo e descobrir por que – ao contrário do que se havia esperado –
parecia cada vez mais vigoroso. O papel do cientista social passou a ser,
para muitos, o de simples denúncia, de mera demonstração da existên-
cia da desigualdade e da injustiça na nossa sociedade, o de “dar voz aos
oprimidos”. Criou-se a imagem reificada de uma sociedade ideal, ou de
um ideal de sociedade e boa parte da interpretação consistia em mostrar
que a realidade deixava muito a desejar porque não se ajustava à ima-
gem que havia sido construída. A pesquisa se empobreceu.
De fato, o engajamento político dos anos , e havia produ-
zido uma mudança muito grande na postura dos pesquisadores, espe-
cialmente os mais jovens. Escrevi, num dos meus artigos, que a obser-
vação participante, que constituíra o cerne da investigação etnográfica, se
transformara em participação observante, resvalando para a militância.
A simpatia compreensiva, que é parte integrante da pesquisa de campo,
foi substituída por uma necessidade de identificação política com a po-
pulação ou grupo investigado. Essa identificação dificultava ou mesmo
impedia a percepção dos limites da atuação dos grupos ou categorias
sociais que estavam sendo estudados, das discrepâncias entre o discurso
e a prática, da violência e do autoritarismo que podiam estar presentes no
interior dos grupos, como era feito na antropologia tradicional. A de-
núncia de injustiças da ordem social vigente substituiu a reflexão sobre
a vida social, com sua complexidade e contradições.
Durante esse período, no final da década de e início dos anos
, Ruth Cardoso e eu, com nossos alunos de pós-graduação, traba-
lhávamos com a população das periferias urbanas e com os movi-
mentos sociais. Por iniciativa dela organizamos então um seminário
conjunto, teórico e prático, que incluía a preocupação em recuperar o
rigor e a riqueza multifacetada do trabalho de campo, não confundin-
do a investigação com a militância, a reflexão com a mera denúncia.
Isso nos levou a considerar com muitas reservas a outra tendência que
estava se generalizando: em parte talvez devido à influência crescente
das ciências da linguagem e à posição de Lévi-Strauss de privilegiar a
dimensão simbólica, e em parte pelo desejo de “dar voz aos oprimi-
dos”, muitos jovens cientistas sociais foram levados a interpretar lite-
ralmente a afir mação de Geertz de que a cultura é um texto e cabe ao
antropólogo decifrá-lo. Inspirados nessa imagem, os pesquisadores
praticamente reduziram a investigação a entrevistas gravadas com
informantes, que foram vistos como sendo “o texto”. A valorização da
pesquisa qualitativa, em muitos casos, levou a um total abandono dos
métodos quantitativos.
Entrevistas são instrumentos preciosos e indispensáveis para com-
preender as representações que os grupos que estudamos constroem
sobre a realidade em que vivem, sobre o mundo tal qual o compreen-
dem. Mas são fontes limitadas de infor mações. A memória dos infor -
mantes é parcial e seletiva, e os relatos são construídos para passar
uma visão positiva da sua atuação presente e do seu passado. Por isso
mesmo, são inteiramente insuficientes para que se possa apreender a
natureza e a dinâmica das forças sociais que estão alterando violenta e
aceleradamente a nossa sociedade, e portanto insuficientes para enten-
der inclusive o lugar do qual esses atores falam. Entrevistas precisam
ser controladas por outras fontes: dados históricos, demográficos, polí-
ticos e econômicos que os infor mantes desconhecem; pelo confronto
com a observação da vida cotidiana e a análise dos conflitos; pelas con-
seqüências que as ações provocam; pelo levantamento de posições e
observações diferentes de participantes que ocupam posições diversas
no sistema; pela distância entre o que os infor mantes dizem e o que
fazem. Nem sempre se tomava esse cuidado, e eu mesma examinei teses
e li trabalhos nos quais todo o material empírico se reduzia a pouco mais
que uma dúzia de entrevistas.
Escrevi então quatro trabalhos que refletiam minhas preocupações
com os novos rumos da pesquisa social: “Movimentos sociais” (cap. ),
“O lugar do índio” (cap. ), “A pesquisa antropológica com populações
urbanas” (cap. ) e “A sociedade vista da periferia” (cap. ).
Nessa mesma época, o movimento feminista havia dado nova legi-
timidade ao tema da família, campo ao qual eu havia me dedicado
durante muitos anos. Entretanto, o objetivo do feminismo era diferente
do meu: era denunciar a família como núcleo da opressão dos homens
sobre as mulheres e base da desigualdade entre os sexos. Minha reflexão,
já antiga, ia em outro sentido: o de procurar entender por que ela con-
tinuava a ser tão importante para as populações que estudávamos.
Introdução
Escrevi então, sobre este tema, outro trabalho também incluído neste
livro: “Família e reprodução humana” (cap. ).
Já começava então, no final dos anos , um desdobramento da
posição de “dar a voz aos oprimidos”, de densidade teórica maior, que
se centrou no problema da relação sujeito-objeto nas ciências sociais.
Esta tendência, entretanto, deu origem a uma versão simplificada
da crítica pós-moder na ao positivismo, na qual, em nome de evitar a
transformação do grupo estudado em “objeto” (o que constituiria uma
posição autoritária e positivista), colocando o autor como um observa-
dor externo dotado de toda a objetividade e de todo o saber, a pesquisa
passa a ser vista como resultado de uma colaboração entre pesquisador
e pesquisado. Esta colaboração sempre foi indispensável no trabalho de
campo. Mas agora se tratava de transformá-la em co-autoria. Tenta-se
criar um novo estilo na elaboração dos trabalhos que traduzisse mais
fielmente os depoimentos obtidos nas pesquisas, reproduzindo-o com
suas lacunas e incongruências e no modo fragmentado pelo qual são
apresentados. Paradoxalmente, isso dá origem a um narcisismo dos pes-
quisadores. As monografias passam a dedicar um espaço cada vez maior
à descrição do modo pelo qual o trabalho foi feito, às angústias do pró-
prio autor: sua posição, suas dúvidas, suas relações com os informantes,
suas preocupações em transcrever fielmente as declarações dos entre-
vistados e, finalmente, seu esforço para evitar interpretar e ordenar o
que está sendo dito.
Associada a esta tendência desenvolveu-se uma outra, principal-
mente nos Estados Unidos e entre minorias étnicas, segundo a qual, para
estudá-las, é necessário fazer parte delas. Negros devem ser estudados
por negros, chicanos por chicanos, homossexuais por homossexuais. Uma
pessoa de fora do grupo precisa de permissão expressa e deve submeter
suas interpretações ao grupo, o qual tem o direito de censurá-las. Ne-
nhuma imagem negativa deve ser divulgada. Há pouco tempo, li numa
revista americana que uma antropóloga havia firmado um contrato desse
tipo com um grupo indígena. É como se cada grupo tivesse o monopólio
do conhecimento de si próprio, o único “sujeito” autorizado a produzir
conhecimentos sobre si mesmo.
O absurdo desta última posição, que constitui uma exacerbação da
tentativa de análise da oposição sujeito-objeto, fica patente de imediato
quando se propõe sua universalização. Dentro desta orientação, apenas
nazistas poderiam estudar o nazismo, apenas empresários teriam legiti-
midade para analisar empresas, políticos teriam o monopólio de falar
sobre si próprios. Além disso, esta postura metodológica praticamente
invalida toda pesquisa histórica (cujos “sujeitos” estão mortos) e boa
parte daquela que faz parte das ciências sociais, como a demografia, as
análises eleitorais e dos partidos políticos, isto é, todas as pesquisas
quantitativas nas quais os “sujeitos” aparecem como porcentagens.
Há um imenso mal-entendido sobre tudo isso e nessa visão de co-
autoria, pois se confunde a vivência ou o senso comum (ou mesmo o
bom senso popular) que os depoimentos expressam com o conhecimen-
to sistematizado e controlado, que é tarefa das ciências sociais. Nossos
“objetos” de pesquisa são, certamente, sujeitos e autores de sua história,
mas não da pesquisa antropológica. O que caracteriza o conhecimento
científico é sua diferença em relação ao senso comum no modo como é
produzido. Uma coisa é praticar um ritual com fé. Outra é a análise
estrutural do processo ritual. Uma coisa é falar uma língua. Outra é a
análise lingüística. Trata-se de outro tipo de conhecimento, especializa-
do, que exige for mação profissional, conceitos, práticas e teorias pró-
prias. É por isso, inclusive, que um certo grau de exterioridade do
observador é fundamental. O método por excelência do trabalho de
campo desenvolvido pelos antropólogos funcionalistas reside no que
Malinowski denominou “observação participante”. Ele foi desenvolvi-
do exatamente para superar a exterioridade excessiva do antropólogo
tradicional. O antropólogo pré-funcionalista trabalhava com uns pou-
cos infor mantes, através de intérpretes e, às vezes, visitava perfuncto-
riamente as aldeias. A observação participante exige que o pesquisador
conviva com a população estudada, fale sua língua e, à medida que
obtém a confiança do grupo, participe de sua vida cotidiana, dos seus
rituais e cerimônias. Mas ele não é, a não ser às vezes, ritual ou metafo-
ricamente um membro do grupo. Os poucos que realizaram esta passa-
gem deixaram de produzir trabalhos antropológicos. O pesquisador
ouve, observa, participa (até certo ponto) e também pergunta, anota,
confronta respostas diferentes, coteja as declarações verbais com os
comportamentos que observa, especialmente nos casos de conflitos e
crise, sistematiza as observações, faz ilações, constrói hipóteses, procu-
ra verificá-las. Em suma, age como um antropólogo e não como um
“nativo”, que não precisa analisar sua cultura e suas crenças porque as
vive. Na observação participante é importante que o etnógrafo apren-
da, na medida do possível, a pensar e agir como um “nativo” e inclusive
Introdução
dar-lhe voz quando se trata de povos ou grupos numa condição de
dominação, que não têm como defender a si próprios. Mas não é este o
objetivo central do seu trabalho. Caso contrário, ele se transforma num
militante, num ativista, num organizador da luta contra a opressão,
tarefa nobre, sem dúvida, mas que não é pesquisa, é ação política. Fazer
as duas coisas simultaneamente exige clareza sobre a diferença entre os
dois níveis de atuação, e cria freqüentemente desilusões sérias ou confli-
tos emocionais muito graves. Além do mais, uma característica essen-
cial do trabalho antropológico é a explicitação do que está implícito e,
portanto, invisível para os agentes e atores; as ações e representações
precisam ser analisadas em ter mos de suas articulações inter nas e do
contexto mais amplo no qual se inserem.
Essa diferença fundamental entre vivência e pesquisa antropológi-
ca, essa necessidade do pesquisador de assumir uma exterioridade em
relação aos fenômenos que estuda (transformando-os necessariamente
em “objetos”) sempre esteve clara para mim nas diferentes pesquisas
que realizei e orientei, mas especialmente nos últimos quinze anos,
quando passei a me dedicar a pesquisar o ensino superior no Brasil. Os
trabalhos que escrevi sobre o ensino superior não constam desta coletâ-
nea, com exceção do primeiro, escrito há vinte anos por ocasião do cin-
qüentenário da (cap. ). Mas minha experiência com este tema é
muito importante para entender minha postura teórica na questão da
relação sujeito-objeto.
Eu era “nativa” da universidade e ingressei na política universitá-
ria tardiamente, depois do golpe de , quando todos nós, jovens, e
alguns velhos professores junto com os estudantes, nos sentimos imbuí-
dos da missão de proteger a universidade contra a intervenção militar e
lutar pela democratização do país. Víamos a universidade como um
baluarte contra o obscurantismo e o autoritarismo. A iniciativa havia
sido do movimento estudantil, ao qual nós, docentes, fornecíamos apoio
e cobertura. Construímos assim, naqueles anos pesados do regime mili-
tar, uma imagem ideal de universidade: a universidade heróica. Éramos
todos salvadores do ensino, da pesquisa e da pátria.
No início do período de relativa liberalização da repressão militar,
no final dos anos , os docentes começaram a se organizar politica-
mente e assumiram, no vazio deixado pela destruição do movimento
estudantil, uma posição de liderança na universidade. A organização
do movimento docente, da qual participei, teve início na Universidade
de São Paulo, com a recriação da antiga Associação dos Auxiliares de
Ensino, transfor mada em Associação dos Docentes da (),
na qual começou a discussão de uma proposta de reforma democrática
da universidade.4
As discussões travadas então me mostraram o quão pouco sabía-
mos, de fato, sobre o sistema de ensino superior brasileiro. A literatura
não era insignificante, mas a maioria dela era, se não panfletária, pelo
menos extremamente marcada por um forte viés ideológico. Ela se
orientava no sentido de defender uma universidade ideal, que não exis-
tia, em lugar de entender a universidade real com suas virtudes e maze-
las. Sobre esta quase nada sabíamos, e comecei então a pesquisar o
ensino superior.
No final da década de , Simon Schwartzman, Elisa Wollineck
e eu fundamos na o Núcleo de Pesquisas sobre Ensino Superior
(). Já de início, foi necessário sair do âmbito restrito no qual se
travava o debate e ampliar a área de estudos para abranger todo o ensi-
no superior, que inclui muitas outras instituições que não as universida-
des públicas, as quais eram o principal (se não único) objeto de debate
político. Pesquisar o ensino superior significa, preliminar mente, fami-
liarizar-se com a bibliografia inter nacional que incluía a história do
ensino superior no Ocidente, a introdução da pesquisa na vida univer-
sitária no século , a diversidade dos diferentes sistemas nacionais, a
crise mundial do sistema que se seguira ao movimento estudantil de
, o extraordinário crescimento das matrículas nos anos , o desen-
volvimento histórico do ensino privado, as diferentes inovações pro-
postas por diferentes políticas de ensino superior em diferentes países, o
problema do financiamento. As pesquisas feitas no deram prosse-
guimento ao levantamento histórico que Simon Schwartzman havia
feito anterior mente, sobre o ensino superior brasileiro utilizando as
séries estatísticas que apontavam a evolução dos sistemas públicos e pri-
vados, e a documentação referente à legislação e as reformas ocorridas.
Participamos de uma pesquisa internacional comparativa sobre as polí-
ticas para o ensino superior na América Latina, e analisamos a estrutura
inter na dos diferentes tipos de instituição, a evolução da demanda por
vagas e os gargalos que impediam sua expansão. Simon Schwartzman
. A antiga de então, restrita à , tinha muito pouco a ver com a atual, que é
um sindicato.
Introdução
pesquisou a profissão acadêmica no Brasil, como parte de um projeto
inter nacional. As pesquisas per mitiram um conhecimento muito mais
amplo, sólido e integrado do que as idéias e mitos que povoavam e
ainda povoam os debates políticos. As análises permitiam diagnosticar
falhas estruturais do sistema e mostrar as deficiências e limitações nas
propostas de refor ma que estavam sendo feitas no Brasil, tanto pelas
organizações docentes e estudantis como pelos governos.
Isso significou transfor mar a universidade e o sistema de ensino
superior no seu conjunto em objeto de pesquisa. A imensa maioria dos
estudantes e docentes universitários, como sujeitos da vida universitária,
participa das atividades de ensino e pesquisa sem qualquer idéia clara
sobre a natureza e a extensão do sistema no qual se integram. Minha
visão como sujeito da história recente da universidade era diferente da
análise da universidade como objeto de pesquisa. Não abandonei, quan-
do comecei a pesquisar o ensino superior, minha militância na causa da
reforma universitária, e utilizei amplamente os resultados das investiga-
ções realizadas no . Mas havia uma diferença entre uma coisa e
outra. A pesquisa revelava a complexidade e a amplitude dos problemas
existentes que extrapolavam de muito a visão que eu tinha como docen-
te. A minha militância visava transfor mar a universidade para aproxi-
má-la de um ideal definido politicamente. Embora fosse inevitável que
uma influísse na outra, com as pesquisas minha visão de universidade
mudou, e mudou também minha orientação política, que foi despida de
muito de suas ilusões e do voluntarismo que a caracterizara.
A distinção entre as atividades de pesquisa e a militância reside no
fato de que os resultados daquelas podiam ser (e freqüentemente fo-
ram) utilizados para fundamentar propostas de orientações políticas
diversas. De fato, trabalhos de pesquisa devem poder ser utilizados para
alimentar posições e políticas públicas diferentes, pois incorporam um
grau maior de informação e não apenas de opiniões.
A questão da relação sujeito-objeto está associada, na crítica pós-
moderna ao positivismo, à questão da possibilidade de objetividade na
etnografia. Pretende-se uma crítica radical à obra etnográfica que con-
siste em demonstrar, utilizando os métodos da crítica literária, que ela
não constitui um retrato sem retoques de uma sociedade ou for mação
social, mas é uma construção do autor, que usa diferentes artifícios lite-
rários na apresentação de seu material para criar, no leitor, a ilusão de
estar vendo a própria realidade.
Isto obviamente precisa ser dito, e esta análise precisa ser feita,
porque é isso mesmo que ocorre na produção etnográfica. Os trabalhos
de James Clifford e George Marcus, e as coletâneas que organizaram,
contêm análises muito interessantes que se encaminham nesta direção.
Mas não se trata de algo novo e revolucionário como às vezes se preten-
de. Eu mesma realizei uma análise deste tipo no meu trabalho sobre
Malinowski. Aliás, qualquer pessoa que tenha produzido uma tese ou
um livro sabe muito bem a distância existente entre o material bruto e a
apresentação final escrita. Há um amplo trabalho de autoria e o estilo
faz parte dele. Há inúmeras decisões a serem tomadas sobre a estratégia
da apresentação, sobre os exemplos mais esclarecedores a serem citados,
sobre a concatenação dos capítulos e temas e, principalmente, sobre o
que deixar de fora. Toda pesquisa de campo bem feita produz excesso
de dados, é preciso selecionar os mais relevantes para cada tema que se
decide incluir no relatório, tese, artigo ou livro que se está produzindo.
Nenhuma pesquisa retrata toda a realidade, mas reconstitui aspectos
dela. As escolhas e o modo de apresentação configuram um estilo do
qual depende a maior facilidade ou dificuldade de comunicação com o
leitor. Cada autor tem o seu, e é por isso mesmo que, sobre um mesmo
grupo, antropólogos diferentes podem escrever monografias muito di-
versas. Mas há um certo grau de objetividade que precisa ser satisfeito e
que se realiza na medida em que as versões não sejam inteiramente
incompatíveis, caso em que há de se duvidar da seriedade ou da compe-
tência de pelo menos um dos autores.
Por isso mesmo, não acredito que ensaios de “desconstrução” dos
trabalhos escritos por Evans-Pritchard, por exemplo, destruam o valor
das admiráveis informações que ele oferece sobre os Nuer, nem invali-
dem (como às vezes se dá a entender) as interpretações que ele elabora
a partir desse material.
No fundo, como resultado deste percurso, desenvolvi a posição de
que o cerne da antropologia reside na etnografia e consiste na sua capa-
cidade de captar e apresentar a imensa riqueza e densidade da experiên-
cia humana, mesmo quando se utilizam métodos já ultrapassados. As
posições teóricas mudam e dão origem a muitas polêmicas. Reflexões
teóricas são necessárias, embora haja modismos que são rapidamente
ultrapassados. Mas as monografias bem feitas permanecem, podem ser
lidas e relidas com proveito, dão origem a novas reflexões e interpreta-
ções, e constituem o cerne do conhecimento que fomos capazes de pro-
Introdução
duzir. Basta lembrar, como exemplo, a obra de Junod sobre os Bantu, a
qual, apesar de escrita no começo do século , dentro de uma perspec-
tiva evolucionista e duramente criticada por Radcliffe-Brown, continua
a ser de leitura indispensável para todos aqueles que se interessam em
compreender a cultura e a sociedade dos povos da África Sul-Oriental
que ele estudou.
Há, portanto, uma certa coerência em meu percurso. Mas esta
coletânea se encerra de um modo um tanto surpreendente, porque in-
clui um capítulo final (cap. ) sobre os chimpanzés, sobre o papel das
emoções na vida social humana dentro de uma perspectiva evolutiva.
Para os que perceberam uma lógica no meu percurso, documentado nos
trabalhos aqui incluídos, este artigo causa estranheza, como uma chuva
a cair de um céu sem nuvens. Preciso, portanto, explicar de onde ele vem.
Não só estudei antropologia física como, no início da minha carreira,
lecionei esta matéria, que incluía a questão da evolução humana. Aliás,
a evolução sempre foi para mim um assunto absorvente e indispensável
para a compreensão da natureza humana e dos aspectos mais gerais da
vida social. Embora não tivesse mais ministrado cursos sobre antropo-
logia física, pois tal disciplina acabou (infelizmente) por desaparecer do
currículo das ciências sociais, jamais deixei de acompanhar o desenvol-
vimento dos estudos sobre a evolução humana, sobre os progressos da
genética e sobre o significado das inúmeras descobertas de fósseis
humanos que alteraram substancialmente a compreensão do nosso tra-
jeto evolutivo. Este interesse se estendeu para o campo da etologia, que
ampliou muito o conhecimento sobre os primatas que faziam parte das
minhas velhas aulas de antropologia física. Além do mais, a psicologia
sempre integrou minhas preocupações, a partir da familiaridade com o
tema de personalidade e cultura da antropologia americana.
Assim, no final da minha carreira, e à semelhança do que tantos
antropólogos culturalistas fizeram antes de mim, caí na tentação de re-
velar um amor oculto (mas não ilícito), refletindo sobre nossa herança
biológica presente na evolução cultural. Às vezes é necessário que nos
lembremos que, sendo essencialmente animais culturais e nisso diferente
de todos os demais, não deixamos, por isso, de ser animais e em muitos
sentidos semelhantes aos nossos irmãos e primos primatas. Uma preo-
cupação com os novos desenvolvimentos da psicanálise, da psicologia
experimental, da neurobiologia, da paleontologia, da etologia e da pri-
matologia, é importante e necessária na for mação do antropólogo, na
medida em que nos per mite perceber as limitações dentro das quais a
antropologia se move e desfazer a ilusão de que o estudo da produção
da cultura e da vida social prescinde inteiramente de qualquer referên-
cia ao equipamento genético humano. Se eu reiniciasse hoje o meu per-
curso, promoveria um trabalho mais interdisciplinar que incluísse não
só a lingüística, que hoje está mais próxima de nós, mas as demais ciên-
cias do comportamento humano (inclusive as biológicas), das quais
recentemente nos afastamos.
***
Introdução
Além disso, sem o estímulo de meus ex-alunos esta coletânea não
teria sido organizada. Foram eles que me convenceram de que a publi-
cação podia ser relevante. A todos, o meu reconhecimento. Mas preciso
mencionar especialmente Omar Ribeiro Thomaz, cuja persistência ven-
ceu minha inércia e sem cujo auxílio duvido que eu tivesse conseguido
publicar este livro.
Capítulo
* Uma edição completa sobre o Catulé, com o trabalho de Castaldi, esta minha pequena
contribuição e o estudo psicológico de Carolina Martuscelli, assim como dois outros tra-
balhos de Maria Isaura Pereira de Queiroz, integraram o livro Estudos de sociologia e his-
tória, publicado pelo Instituto de Pesquisas Educacionais (São Paulo: Anhembi, ).
Essas famílias haviam se estabelecido na grota em . Antes disso,
moravam todas à margem do rio Urupuca, fazendo parte do mesmo
grupo de vizinhança, ao qual também pertenciam Onofre e sua família.
Por essa época, Onofre, que havia migrado em , viera de São Paulo
para o Urupuca buscar a mãe e a irmã, que moravam perto do velho
Manoel. Durante o mês que passou em Urupuca, logrou interessar algu-
mas pessoas do grupo com a sua pregação, especialmente a Manoel.
Quando partiu novamente para São Paulo, deixou-lhes a Bíblia que trou-
xera, e recomendou que o chamassem se quisessem tornar-se crentes.
Quando o fazendeiro vendeu as terras em que moravam, Manoel
mudou-se para o Catulé com as famílias que também estavam inte-
ressadas na nova religião: a de Sebastião, seu genro, a de João e a de
Geraldo, seus afilhados. Manoel lia a Bíblia para os outros; eles tinham
vontade de aprender mas, como o velho não soubesse explicar o que lia
(não juntava direito as palavras), eles escreveram a Onofre pedindo-
lhe que voltasse.
Onofre não tinha intenções de morar no Catulé: estava bem colo-
cado em São Paulo, onde arrendava terras para plantar algodão; tinha
uma posição de prestígio na igreja e pretendia estabelecer-se na cidade
e estudar. Quando os antigos companheiros o chamaram para ensinar a
religião, Onofre voltou com a idéia de ficar por pouco tempo, “mas
quando viu o progresso da devoção ficou satisfeito e perdeu a vontade
de voltar para São Paulo”.1
Durante o último ano que passaram em São Paulo, Germana, irmã
de Onofre, Cristina, sua mãe, e Geraldo, um rapaz do Urupuca que fora
com ele, converteram-se também. De volta, Geraldo estabeleceu-se
com eles no Catulé, casando-se pouco depois com uma filha de Manoel.
Com essas primeiras famílias, Onofre organizou a comunidade
religiosa. Instituiu o culto e as pregações, as orações e o jejum, e come-
çaram a guardar o sábado. Onofre lia e explicava a Bíblia, e começou
também a ensinar leitura porque, com exceção de Manoel, eram todos
analfabetos.
Pouco depois, duas outras famílias aparentadas com estas mu-
daram-se também para o Catulé: a de Francisca, mãe de João, e a de
Maria, sua irmã, mãe de Geraldo; logo depois dessas mudou-se também
a família de Adão, outro filho de Maria. Com a convivência no grupo
ligados por laços de parentesco e compadrio e, posterior mente, pela
conversão de outro grupo de parentesco, que não mantinha com os pri-
meiros relações desse tipo, mas pertencia à mesma seita.
Constituído esse núcleo de crentes, que moravam juntos, o traba-
lho missionário estendeu-se aos grupos familiais vizinhos com os quais
mantinham relações, e o Catulé se tor nou o centro da vida religiosa
de diversas famílias que viviam mais isoladas: a de Antônio, cunhado de
Onofre; a de Expedito, cunhado de Joaquim; a de José, outro agregado
da fazenda Itatiaia; e a de Honório, morador do Urupuca.
Os crentes tinham a vida religiosa muito intensa. Os moradores do
Catulé reuniam-se regularmente para orar, três vezes por semana, quar-
tas, sextas e domingos, em geral na casa de Geraldo, que, por ser maior,
servia também como casa de oração. A essas reuniões compareciam, às
vezes, os que moravam mais longe. Onofre lia e explicava a Bíblia; diz
Francisca que “Onofre explicava muito bem; primeiro ele lia o que estava
escrito: eram umas palavras muito bonitas, mas não entendiam direito o
sentido – ficavam só assuntando. Depois que acabava de ler, então expli-
cava, e tão bem que não havia quem não entendesse”. Todos gostavam da
pregação de Onofre: “só falava o que estava na Bíblia; falava só de coisas
boas, de Deus, da salvação; dava uma satisfação, uma alegria no coração
de todos”. Joaquim também pregava, às vezes explicando alguma coisa ou
passagem que Onofre havia lido, às vezes alguma que sabia de cor, mas na
maior parte das vezes, “falava de cabeça; ele não tinha leitura e pregava
fora da Bíblia; falava só sobre o pecado e gritava tanto que muita gente
chorava”. Gostavam mais da pregação de Onofre, porque Joaquim era
muito violento. Depois da pregação cantavam os hinos que sabiam de cor,
acompanhados de violão e cavaquinho; para muitos, os hinos eram o que
mais apreciavam na vida de crente. No fim da reunião Onofre ou Joaquim
pedia a um dos presentes que “dirigisse oração”, isto é, rezasse em voz
alta, em nome de todos, e então o grupo se dispersava.
Para o culto do sábado, ao qual compareciam todos os crentes, ini-
ciaram a construção de uma “casa de oração”, ao lado da casa de José P.,
aproveitando para isso um prédio que ele havia começado. O culto era
semelhante às reuniões, mas muito mais demorado: tinha início antes do
meio-dia e terminava à tardinha. Além das pregações, leitura da Bíblia,
hinos e orações, também realizavam a “chamada”: Onofre marcava para
cada um trechos da Bíblia ou do livro de doutrina que deviam aprender
de cor durante a semana, e examinava-os durante o culto.
de João, que a pessoa selada “sente uma coisa na goela, fica leve, e co-
meça a falar línguas que ninguém entende; fica ajoelhada no chão e tre-
mendo; depois que acaba não lembra mais o que falou”. Parece que os
selamentos eram tão freqüentes no grupo que diversas vezes Onofre
teve que chamar a atenção dos crentes “para pôr ordem na Igreja:
começavam todos a falar língua ao mesmo tempo e não se sabia mais
quem é que tinha sido selado”.
A vida de crente acarretava numerosas obrigações: as reuniões, as
orações individuais diárias, o estudo dos pontos de doutrina para a cha-
mada do sábado, as contribuições em dinheiro. Além de respeitar os
mandamentos, deviam abster-se de comer carne ou gordura de porco,
beber e fumar, obedecendo a normas de conduta extremamente severas:
não podiam dançar nem ir a festas e era proibido cantar ou tocar qual-
quer música profana. Os “irmãos” deviam tratar-se com o máximo res-
peito; qualquer discussão era um pecado que exigia o perdão mútuo;
também era pecado conversar sobre frivolidades. A moral sexual era
bastante severa, como se exemplifica no caso de Eva e Avelino. Eva,
filha de Maria e irmã de João, era solteira e gostava de Avelino, rapaz
casado. Avelino “era largado da mulher” e morava, embora não fosse
crente, na casa de Adão, no Catulé. Os dois pretendiam casar-se, já que
Avelino fora casado apenas pelo padre e o casamento religioso católico
não tinha valor na seita. Onofre opôs-se a esse casamento, porque acha-
va que Avelino havia largado a mulher sem motivo justo, apenas por
gostar de Eva. Artuliana contou-nos que todos aconselhavam Eva a
desistir desse namoro, mas ela não dava ouvidos. Quando a mãe desco-
briu que a filha estava grávida, procurou Onofre e contou tudo a ele.
Onofre reuniu o casal na presença de testemunhas, “cortou” Eva da
Igreja, e expulsou ambos do lugar.
Esse procedimento pode parecer estranho quando se verifica, por
exemplo, que Geraldo vivia com a segunda mulher fazia quase dois anos
sem ser casado no civil nem no religioso, e isso não provoca censura;
explicam que esperavam a volta dos pastores para efetuar o casamento.
Aliás, a situação deles é semelhante à de todos os outros casais do Catulé
porque, com exceção de Geraldo, eram casados apenas na Igreja Católi-
ca, o que não era reconhecido pela nova religião. A crença, exigindo a
cerimônia civil, cujo preço é muito alto para eles, e a presença do pastor,
que devia vir de São Paulo, criava enormes problemas quanto à legaliza-
ção do matrimônio e havia grande tolerância nesse sentido. O casamento
pouco depois, em , Onofre retornou sozinho a São Paulo, “porque
estava interessado na religião”, segundo Cristina. Jacinto, que ficara no
Urupuca, morreu no ano seguinte e Onofre voltou para buscar a famí-
lia, assim que conseguiu juntar algum dinheiro: tinha então passado
quase três anos em São Paulo, já era crente batizado, aprendera a ler e
escrever: foi quando começou a pregação no grupo do Urupuca. De
volta a São Paulo, com Germana, Cristina e Geraldo, falava-lhes cons-
tantemente sobre a Bíblia e a crença. Cristina nos contou que em São
Paulo vivia entre os crentes e começou a achar a
religião muito boa: não mandavam fazer nada de errado e eram todos muito
unidos. A princípio pensava que fosse muito difícil a vida de crente: não pode-
ria mais ir a festas, onde encontrava as amigas para conversar; não poderia
mais ir à igreja, nem rezar para os santos. [...] Depois que se converteu, veri-
ficou que era muito fácil abandonar tudo isso e que a vida do crente é muito
cheia de alegria: reúnem-se todos os sábados para rezar e cantar hinos; estão
sempre satisfeitos e de coração sossegado; as mães não têm preocupação com
os filhos, na certeza de que andam direito e não vão a bailes, nem ficam
bebendo nas vendas, arrumando brigas.
Joaquim havia ido com a família de Pedro (seu irmão) para São Paulo e
tinha ficado morando com ele: tinha um quarto separado e ele mesmo cuidava
de suas coisas. Um dia estava lavando roupa no rio quando se aproximaram
umas moças, que eram crentes e começaram a conversar com ele. Antes de se
despedirem, convidaram-no para uma vigília, marcada para daí alguns dias.
Joaquim falou disso com Pedro, que caçoou dele, e com os amigos, que tenta-
ram dissuadi-lo dizendo que a Igreja dos Adventistas estava cheia de gatos
pretos e que Satanás aparecia por lá. Joaquim foi assim mesmo e logo que che-
gou o pastor foi conversar com ele: era uma pessoa muito bem vestida e tinha
uma prosa muito agradável. Joaquim ouviu a pregação e saiu muito impres-
sionado: continuou a freqüentar a Igreja e logo estava convertido, começando
então a pregar para a família de Pedro. Joaquim era assim mesmo; quando
queria converter alguém, não sossegava enquanto não conseguia. Com Pedro
teve muita dificuldade. Eva (a cunhada) e os sobrinhos converteram-se logo e
ajudavam Joaquim, insistindo com Pedro para que fosse a uma vigília. Um
dia Pedro foi. Durante a noite inteira permaneceu firme e não respondeu a
nenhum apelo. De madrugada o pastor fez o último apelo e apresentaram-se
todos os crentes. Então, ouviu-se uma voz que ninguém sabia de onde vinha,
dizendo: “a paz esteja convosco”. Pedro levantou-se de repente, começou a
chorar e a tremer.
Artuliana explica que o Espírito Santo, de quem era a voz que tinham
ouvido, “dera um choque muito forte nele”. Pedro saiu da igreja conver-
tido “e Joaquim muito satisfeito”.
Joaquim voltou de São Paulo depois de três anos, indo morar com
a mãe e os irmãos solteiros na casa do padrasto, e reiniciou imediata-
mente o trabalho de proselitismo. Artuliana conta que levaram muito
tempo para se converter. Só acreditaram nas coisas que Joaquim prega-
va depois que “viram escrito na Bíblia”. Joaquim não sabia ler, mas
tinha uma Bíblia e pediu a um sobrinho do padrasto que lesse alguns
trechos para eles. Mesmo depois disso, demoraram muito para seguir
as coisas que Joaquim pregava. Continuaram a ir a festas e a dançar: um
dia, quando voltavam de uma festa, encontraram o irmão chorando e a
mãe explicou-lhes que era porque eles não queriam ouvir a palavra de
Deus. Esse fato parece tê-los impressionado muito. A primeira a se
converter foi a mãe, seguida logo depois por Artuliana. As coisas mais
difíceis, disse-nos, foram deixar de dançar, não fazer o sinal-da-cruz e
não cantar modinhas. Muitas vezes fazia o sinal-da-cruz por distração
e Joaquim a repreendia. Costumava cantar o dia inteiro e cada vez que
Joaquim a ouvia cantando, cantava um hino perto dela – assim se acos-
tumou a só cantar hinos. João converteu-se depois de Artuliana, que
entre o crente e o católico sincero. Muitos não souberam responder a
essa pergunta. A maioria nos disse que a diferença está em que os cren-
tes não comem carne de porco, guardam o sábado em lugar do domin-
go e não vão à missa; a diferença, portanto, não está na doutrina, mas na
observância de padrões exteriores, cuja justificação não conhecem.
Apenas duas pessoas, Manoel e Cristina, apontaram que os crentes não
“adoram” os santos, como fazem os católicos.
Essa interpretação da crença – como constituindo, em grande
parte, maior aproximação dos padrões reais a padrões ideais já existen-
tes – proporcionava a cada um e ao grupo um sentimento de superiori-
dade sobre os católicos, que pode ser um fator importante na conversão.
Quando dizemos que o interesse pela crença se processava, em
grande parte, por propor a realização mais perfeita de um ideal já
existente, não nos referimos propriamente aos ideais da Igreja Católica,
mas à sua re-elaboração por parte da cultura caipira. Na cultura cai-
pira, encontramos um ideal de vida que poderíamos chamar de “puri-
tano”, ligado aos antigos padrões morais da Igreja Católica e muitas
vezes bem distantes dos padrões reais; ao lado deste, outro ideal, o do
“homem valente” sempre pronto a defender a honra pela violência, o
qual, em geral, está associado à intemperança, que é considerada um
símbolo de masculinidade.
A aceitação da crença implica a rejeição do ideal de valentia, vio-
lência e intemperança, e a aproximação maior do ideal “puritano”, que
parece ser feita com relativa facilidade. Poucos são os que admitiram,
como Adão, que foi custoso deixar de dançar, ou, como Geraldo, que
foi difícil “largar a farra”. Para a maioria, o mais difícil foi abandonar o
cigarro e, secundariamente, o álcool. Muitos bebiam demais, como
Adão, mas é interessante observar que diversas pessoas já haviam dei-
xado de beber mesmo antes da conversão. Jacinta nos contou que ela e
o marido largaram a bebida e o fumo depois que ouviram a pregação de
um padre e também porque lhes estava fazendo mal. Como se pode
verificar através das conversões que transcrevemos acima, em geral
admite-se que foi fácil a conformidade aos padrões da seita, muito mais
fácil do que se pensava a princípio. Eleonora, a mulher de Geraldo, diz
não ter sido difícil tornar-se crente, porque mesmo antes da conversão,
embora fumasse, não bebia e raramente ia a festas. As maiores dificul-
dades que as mulheres encontravam na crença eram as atrapalhações
domésticas originadas da proibição de usar gordura de porco e a impos-
Interessa-nos agora verificar as transformações que o grupo sofreu
com a adoção da nova crença e a medida em que essa adoção é influen-
ciada pela própria condição de vida do grupo.
Nota-se em primeiro lugar uma concentração demográfica; as
casas no Catulé foram construídas muito perto uma da outra, ao contrá-
rio do que se observava anteriormente no grupo.
É difícil determinar a influência da crença nessa concentração. Há,
certamente, outros fatores: o lugar que habitam lhes foi designado pelo
fazendeiro e, estando rodeado de pasto ou mata, onde não podiam
construir, talvez a própria exigüidade do espaço disponível favorecesse
essa concentração. Há também fatores indiretamente ligados à crença:
eles próprios for necem como motivo da concentração a proibição de
criar porcos: explicam que a criação de porcos exige que as casas sejam
separadas para que estes não causem prejuízos aos vizinhos. Entretanto,
parece-nos correto admitir que a crença é o fator mais importante não
só para essa concentração como para a própria constituição do grupo, na
medida em que propõe uma nova forma de solidariedade e fornece um
novo motivo para a vida comum, isto é, a participação em um sistema de
valores e de padrões de comportamento que os diferencia dos outros,
aumentando a coesão inter na. Além disso, for nece novos padrões de
solidariedade que superam as ligações de parentesco e compadrio, pre-
dominantes nos agrupamentos vicinais anteriores, permitindo a exten-
são do grupo de residência para além da família.
No grupo anterior, a solidariedade é intrafamiliar; cada grupo
de vizinhança é constituído por diversas famílias, quase independentes.
As relações entre as famílias se processam na troca de serviços para os
trabalhos mais exaustivos de derrubada, roçada e colheita, e nas ativi-
dades lúdico-religiosas. Entretanto, cada família continua a formar uma
unidade quase auto-suficiente. Os laços mais fortes que prendem o indi-
víduo são os do parentesco, dada a importância da família como uni-
dade de produção e consumo; as ligações entre as famílias, por sua vez,
tendem a consolidar-se por meio do casamento e do compadrio, que é
uma forma de parentesco fictício. Esse sistema traduz-se ecologicamente
na separação das casas, cada família vivendo dentro de sua propriedade,
longe das outras.
A adoção da crença implica a aceitação de solidariedade grupal
não mais interfamiliar, mas interindividual, em que cada membro da
seita tem as mesmas obrigações para com todos os outros membros do
crentes, foi abolido o tratamento de “compadre” e de “padrinho”: todos
se tratavam de “irmão”.
A predominância do novo tipo de solidariedade sobre o antigo
processa-se através da introdução de uma nova forma de controle
social, que despreza a hierarquia familial, dando a cada indivíduo o
direito de controlar as ações de todos os outros membros do grupo,
porque “todos os crentes são irmãos e é dever de cada um aconselhar o
seu irmão quando este se afasta do caminho da salvação”. Todas as dis-
putas são resolvidas dentro dos padrões estabelecidos pela religião, que
são as mesmas para todas as transgressões, como exemplificamos ante-
riormente com o caso de Eva e Avelino.
Todos estão sujeitos a um controle constante e cada um é respon-
sável pelas suas ações, não ante a família, mas ante toda a comunidade
(ante a “congregação”). Esse controle estende-se a todas as ações, por-
que a crença, exigindo a obediência a padrões de comportamento muito
estritos, leva a uma predominância do plano religioso sobre todas as ati-
vidades, fornecendo os valores pelos quais são julgados todos os com-
portamentos; ademais, a proibição de quase todas as distrações – dan-
çar, ir a festas, beber, fumar – canaliza a parte mais significativa das
energias para a religião.
Os cultos e as orações ganham importância crescente na vida da
comunidade, com a maior organização da seita. Além das reuniões três
vezes por semana, do culto do sábado e das viagens de proselitismo a
outros grupos, haviam instituído ultimamente uma oração coletiva
diária e a “semana de oração” que se realizava nas vésperas de cada
acontecimento importante. As obrigações individuais também se acu-
mularam com o desenvolvimento da seita: as orações diárias, o “voto”
(jejum) por qualquer falta cometida, as contribuições em dinheiro, o
estudo da doutrina.
Vemos, portanto, como o plano religioso se torna fator preponde-
rante na vida do grupo, que se constitui em torno do culto e das inúmeras
cerimônias religiosas coletivas em que se realiza a unidade grupal. É a
religião que dá sentido à forma e à vida da comunidade: sentido, for ne-
cendo o motivo central da vida do grupo; forma, introduzindo um novo
tipo de solidariedade e padrões definidos de comportamento na regula-
mentação da vida em comum. O grupo se transforma então em uma uni-
dade muito mais estável, coesa e disciplinada do que os padrões de orga-
nização fornecidos pela cultura caipira poderiam permitir.
Já tivemos ocasião de apontar a importância desse aspecto na aceitação
da crença, comprovada pelas constantes referências à união do grupo.
As mudanças radicais que a crença introduz não podiam, no en-
tanto, deixar de provocar conflito entre o antigo e o novo sistema.
Enquanto a crença se mantém dentro de um único grupo familial, as
modificações não fazem sentir todas as suas implicações e podem, de
certo modo, ser referidas ao sistema anterior, pois, aparentemente, ape-
nas estendem ao grupo de parentes mais amplo as relações de parentes
mais chegados (irmãos), o que não é difícil entre pessoas que se conhe-
cem desde criança.
Entretanto, a crença abre a possibilidade de admissão de pessoas
que não faziam parte do sistema de relações anteriores, pois não pode
admitir diferenças entre os crentes, e o fato de serem todos aparentados
não passa, do ponto de vista da crença, de uma coincidência. Quando foi
admitida a família de Joaquim, que não estava ligada ao grupo através
do antigo sistema de relações, é que se evidenciaram as transformações
que a estrutura do grupo havia sofrido, porque, adquirindo essa família
uma posição de igualdade ante as outras (e até de superioridade, como
veremos a seguir), demonstrou-se ter havido realmente a destruição dos
laços que os uniam anteriormente, os quais passaram a não contar mais.
A crença também for nece novas possibilidades de aquisição de
prestígio, criando o status de líder religioso, que substitui a antiga figura
do líder, que era a do patriarca; e é em torno do problema da liderança
que se desenrola o conflito entre o antigo e o novo sistema.
O antigo líder do grupo era Manoel, não só por ser o mais velho,
mas também por ter sido arranchado, tendo mantido o prestígio dessa
posição mesmo depois de perder as terras e tornar-se agregado. J. A. dos
Q., o fazendeiro, lhe dá liberdade para escolher as famílias que devem se
estabelecer no Catulé. O seu prestígio se consolida e se traduz nos laços
de compadrio que estabelece com os outros membros do grupo.
Após a conversão, quando a crença influencia toda a organização
do grupo, é Onofre, o líder religioso, que passa a dirigir todas as ativi-
dades, inclusive as econômicas: não é mais Manoel quem faz os contra-
tos de serviço com o fazendeiro, mas Onofre. Embora a experiência do
velho ainda o mantenha como conselheiro, especialmente em assuntos
de lavoura, é Onofre quem decide as disputas, quem aconselha nos pro-
blemas pessoais, porque é ele quem conhece os novos padrões que a
crença impõe. Manoel entrega facilmente a liderança a Onofre, a quem
Esse conflito entre Joaquim e Manoel alcança o seu ponto crítico
justamente na véspera dos acontecimentos da Semana Santa. Realmente,
a primeira agressão física que se verifica no grupo é de Joaquim contra
Manoel, a partir do que os acontecimentos tomam um rumo absoluta-
mente inesperado, como relata Castaldi.
O conflito que havia se iniciado como uma disputa sobre o uso de
uma gleba de terra é transferido, por Joaquim, da esfera privada para a
pública, a da Assembléia dos fiéis. Ele acusava Manoel de não obedecer
aos preceitos da religião e de ter se aliado ao diabo. A partir desse
momento, a presença de satanás se torna real e Joaquim, sua irmã e
outra mocinha começam a identificar sua materialização em homens
adultos, mocinhas e crianças, que são espancados para expulsá-lo de
seus corpos. O terror toma o grupo e os espancamentos provocam a
morte de quatro crianças, todas por ações de Joaquim.
A situação fica inteiramente fora de controle. A pressão para puri-
ficar os pecados a fim de expulsar o demônio leva a confissões de pecados
sexuais e a atos sexuais explícitos, o que parece ser um surto psicótico de
Joaquim. Aparentemente, na busca de uma saída para o caos que se ins-
talara, Joaquim profetiza uma partida coletiva para a Canaã celeste após
um banho coletivo de purificação. Estavam todos despidos na água
quando a polícia chegou e atirou em Joaquim e Onofre – que haviam ido
nus e desarmados ao seu encontro –, matando-os e prendendo os sobre-
viventes mais diretamente envolvidos nos acontecimentos.
Em suma, a investigação revelou que os imigrantes e seus descen-
dentes estavam aculturados, que haviam se dispersado como grupo nas
diferentes esferas da sociedade local e conseguido, no plano individual,
um ajustamento psicológico integral e satisfatório. Os imigrantes esta-
vam assimilados.1
Nessas circunstâncias, os estudos dos processos de aculturação e
de integração social2 da população de origem estrangeira só podiam ser
feitos através de uma reconstrução do passado. Infelizmente, como a
imigração nessa área já era bastante antiga, muitas das particularidades
do processo não puderam ser reconstruídas, por falta de informantes e
deficiência dos documentos. As pessoas de origem italiana que pudemos
entrevistar tinham chegado ao Brasil havia mais de quarenta anos,
quando eram crianças. As informações que elas puderam nos fornecer
sobre o início da imigração tinham muito pouco da riqueza de uma
experiência presente. Os documentos escritos sobre a história local
eram poucos: números esparsos de jor nais, as atas da Irmandade de
Misericórdia, alguns registros de impostos. As atas da Câmara Munici-
pal e muitos dos registros de impostos haviam se extraviado. Todos os
documentos da antiga associação italiana, a Fratelanza Italiana, foram
destruídos durante a Segunda Guerra Mundial, em conseqüência das
medidas restritivas adotadas pelo governo contra os estrangeiros.
Perdeu-se muito do que se refere ao aspecto propriamente acultu-
rativo, isto é, aquele relacionado às transformações nos padrões de com-
portamento, valores e atitudes que constituem o equipamento cultural
Imigrantes italianos
original. Mas o nosso objetivo não foi o de realizar um estudo de acul-
turação nos termos tradicionais.
A chamada teoria da aculturação sempre apresentou uma dualida-
de fundamental. De um lado, representava uma continuação dos estu-
dos de difusão cultural desenvolvidos pelos antropólogos americanos, o
que levou a conceber-se a aculturação como “transmissão cultural em
processo” (Herskovits : -ss). De outro, apoiava-se nos estudos
de integração cultural, concebida em termos de processos psíquicos de
referência individual. Essa dualidade já foi apontada por Willems no
seu estudo pioneiro sobre a aculturação e assimilação dos alemães no
Brasil (Willems e ). Willems acreditava também que o estudo
da aculturação propriamente dita é apenas descritivo, e que as explica-
ções causais e funcionais são feitas no nível dos processos psíquicos,
pois a integração é vista como compatibilidade de valores e atitudes que
se realiza no nível da personalidade (Willems : -).
As críticas que os antropólogos vinham formulando em relação a
essa abordagem se orientavam principalmente no sentido de atribuir
importância crescente aos aspectos socioeconômicos e de procurar esta-
belecer, nesse nível, as conexões causais e funcionais que explicassem as
transformações culturais. A ampliação da abordagem culturalista nessa
direção, que se constituiu como tentativa de captar os fenômenos de
mudança como “fatos sociais totais”, aproximou os estudos de antro-
pólogos como Steward (), Murphy (), Cardoso de Oliveira
() das formulações propostas por sociólogos como Balandier ()
e Eisenstadt ().
Se o nosso objetivo não foi o de realizar um estudo de aculturação,
o material de que dispúnhamos tampouco nos per mitia uma análise da
situação total da mudança, que abrangeria, em toda a sua complexa inter-
relação, fenômenos de ordem social, cultural e psicológica. O que procu-
ramos fazer foi analisar algumas conexões entre aspectos sociais e cultu-
rais do processo total da mudança que nos pareceram essenciais para
compreender a assimilação da população de origem italiana na sociedade
local. Tentamos mostrar como a integração do imigrante se realizou atra-
vés de um processo de mobilidade social que foi possível pela utilização
de determinados elementos de seu equipamento cultural original (espe-
cialmente técnicas de produção e de organização do trabalho produtivo,
padrões associativos que regulam a vida familiar). Esses padrões pude-
ram ser conservados e reinterpretados no novo contexto sociocultural,
porque se mostraram adequados para aproveitar as oportunidades de
ascensão criadas pela transformação da sociedade mais ampla.
Para realizar o objetivo do trabalho assim definido não podíamos
nos restringir à análise dos fenômenos no âmbito estritamente local.
Descalvado não é um sistema isolado. A sua história, como a história de
seus imigrantes, só pode ser entendida como manifestação de tendên-
cias que caracterizam a sociedade global na qual ela se insere. Tivemos
portanto que analisar, embora de modo muito sumário, o processo de
transformação da estrutura socioeconômica do estado de São Paulo (e da
região da Baixa Paulista, mais particularmente) no período considerado,
que constitui o quadro de referência básico para o estudo das transfor-
mações que se manifestavam no nível local. Nesse sentido, nossa análise
se aproxima da preconizada por Steward () através da definição de
“níveis de integração sociocultural”.3
Como elemento para o estudo da imigração italiana no estado de
São Paulo, a contribuição que este trabalho possa trazer será certamen-
te parcial. Mas, assim como Descalvado só pode ser compreendido em
termos da sociedade global, os aspectos do processo de integração dos
imigrantes nessa comunidade devem corresponder a tendências gerais
da imigração italiana em nosso estado. E um estudo mais amplo deve
poder contar com contribuições parciais como esta, que ilustram o pro-
cesso de integração do imigrante italiano numa situação particular.
Imigrantes italianos
Sérgio Milliet (), Pierre Monbeig ( e ), Francisco Camargo
(), Celso Furtado (), Caio Prado Jr. () e tantos outros.
O nosso problema principal será o de tentar explicar como os imi-
grantes e seus descendentes aproveitaram as oportunidades fornecidas
pelo processo de mudança social que eles próprios ajudaram a desenca-
dear, utilizando e transformando seu equipamento cultural original.
Sabemos que o café, fonte da grande prosperidade do vale do Pa-
raíba no início do século , começa a avançar para o oeste a partir
dessa época. A princípio, intensifica o aproveitamento de regiões já
povoadas, como Itu, Campinas, Sorocaba e Franca, substituindo a base
econômica anterior, fundada quer no cultivo da cana-de-açúcar, quer
na criação. A seguir, promove o povoamento de regiões parcial ou total-
mente desabitadas. Esse movimento é em parte de expansão e em parte de
substituição de população (desde que as regiões mais antigas entram em
decadência e se despovoam em benefício das mais novas) e explica-se
pelas características capitalistas da grande lavoura cafeeira. O crescimen-
to da economia cafeeira encontrou condições extremamente favoráveis
na disponibilidade de terras e no estímulo fornecido pelo mercado exter-
no. A existência de terras em abundância justificava o abandono dos solos
esgotados, pois isso permitia a transferência de capitais para terras mais
produtivas, onde se podia obter um lucro mais elevado por unidade de
capital empregado. Ao mesmo tempo, os incentivos econômicos indu-
ziam os cafeicultores a estender suas plantações, incorporando mais terra
e mais mão-de-obra. Assim, criou-se já no início da segunda metade do
século uma escassez de mão-de-obra que se manifesta continua-
mente desde então no clamor repetido de “braços para lavoura”.
No seu início, a lavoura cafeeira havia utilizado a mão-de-obra
escrava que se tinha tornado disponível pela desagregação da economia
mineira e que se represara na produção de gêneros alimentícios. Com a
expansão das plantações, importaram-se negros do Nordeste, onde as
lavouras do açúcar e do algodão eram cada vez menos lucrativas. Entre-
tanto, a oferta da mão-de-obra escrava era limitada, dependendo da
redistribuição interna de uma área para a outra, seguindo o atrativo de
maior rentabilidade da produção. Sabemos já quais os fatores que leva-
ram a se buscar uma solução na importação de trabalhadores europeus
livres, desprezando-se as possibilidades de aproveitar a mão-de-obra do
setor da economia de subsistência: de um lado, a rarefação, a dispersão
e o isolamento dessa mão-de-obra e os interesses políticos locais na sua
conservação; de outro, a disponibilidade de trabalhadores europeus, espe-
cialmente dos camponeses italianos, pois as transformações econômicas
decorrentes da industrialização haviam criado condições generalizadas
de desemprego e empobrecimento em muitos países da Europa. A isso
aliava-se uma valorização do trabalhador europeu, colocada ainda em
termos de superioridade racial e de “sangue”.
A possibilidade de utilização do emigrante europeu como trabalha-
dor assalariado nas plantações de café dependeu da elaboração de um
novo tipo de relação de trabalho, que assumiu a forma do “colonato”,4 e
da solução do problema do financiamento do transporte do imigrante,
que se fez pelo governo federal e provincial. É durante o terceiro quartel
do século que são resolvidos esses problemas fundamentais e se in-
tensifica de modo extraordinário o fluxo imigratório. O colonato desem-
penhou um papel fundamental na passagem do trabalho escravo para o
trabalho livre, como analisamos mais adiante.5
Nessa metade do século, as fazendas de café já haviam ultrapassa-
do Campinas e alcançado Limeira, Rio Claro e Araraquara, iniciando o
desbravamento da região conhecida como Baixa Paulista. Zona de po-
voamento muito esparso e de nenhuma significação econômica até a
introdução do café, pode ser considerada como a primeira das zonas pio-
neiras, isto é, das que foram colonizadas em conseqüência da expansão
da lavoura cafeeira. A passagem da mão-de-obra servil à livre inicia-se
justamente nesta região, e é ao êxito com que se realizou esta passagem
que se deveu sua prosperidade. Para o estudo da imigração no estado de
São Paulo, a região da Baixa Paulista é de interesse crucial. A nossa
preocupação inicial será, portanto, a de reconstruir os elementos cen-
trais da estrutura econômico-social dessa região, da qual faz parte o
município de Descalvado.
Imigrantes italianos
A região da Baixa Paulista, cujo povoamento foi provocado pela
expansão da lavoura cafeeira, constituiu-se a partir da segunda metade
do século como prolongamento da região mais antiga de Campi-
nas.6 Região de enorme progresso no século , é das mais beneficia-
das com as primeiras grandes correntes imigratórias, das primeiras a
introduzir novos métodos de beneficiamento de café e a revolucionar o
transporte pelo estabelecimento de uma rede ferroviária.7
Por ocasião do levantamento estatístico do estado, realizado por
D. P. Müller em , e portanto anterior à introdução do café, existia
apenas um município em toda a região, o de Araraquara, criado quatro
anos antes (apud Camargo ). A partir de então, o grande aumento
da população e da produção cafeeira reflete-se na criação sucessiva dos
municípios que hoje integram a área.
Em , já haviam sido criados os municípios de Limeira () e
Rio Claro (). O quadro estatístico realizado por ordem do vice-
presidente da província em indica para a região uma população de
. habitantes, quase dez vezes a original, da qual . eram escravos.
Indica também que a produção de café atingia . arrobas. A partir
de então, o crescimento é rapidíssimo e as plantações vão se estendendo
continuamente para regiões novas (tabelas e ).
Em são criados três novos municípios – Descalvado, São
Carlos e Pirassununga; em cria-se Jaboticabal e em , Araras.
O povoamento havia então ultrapassado a depressão periférica (Itu,
Tatuí, Campinas, Limeira) para atingir a planície central, onde as aflo-
rações de terra roxa são maiores e mais numerosas.8 O município de
Descalvado situa-se no limite entre essas duas regiões. O recenseamento
geral do Brasil de (realizado em São Paulo com um atraso de dois
TABE LA 1: POPU LA ÇÃO DA REGIÃO DA BAIXA PAU LIS TA
ANO CAFÉ
No DE CAFEEIROS ARROBAS PRODUZIDAS
1905 146.352.187 7.417.916
1920 171.456.700 3.263.620
1934 191.250.547 6.146.144
1940 151.684.227 6.225.798
Imigrantes italianos
O povoamento atingia então a parte setentrional da região, onde as
condições naturais sempre favoreceram a criação e cuja economia se
estabeleceu, desde o início, em bases diferentes da parte mais meridional.
O recenseamento de , muito incompleto, estima a população
da região em . habitantes, novamente o dobro da anterior. O re-
censeamento agrícola de indica, para toda a região, uma produção
de .. arrobas de café (tabelas e ).
Nos vinte anos seguintes, continua a tendência ao aumento da
produção cafeeira e ao crescimento da população. São estabelecidos os
municípios de Viradouro (), Monte Azul (), Olímpia e Guaíba
(). A população torna a duplicar, alcançando . habitantes,
dos quais . (ou seja, mais de %) são estrangeiros; destes, mais
da metade – isto é, . (ou ,% da população total) – são italianos
(tabela ).
A partir de então, a região estaciona, perdendo em importância
relativa no conjunto do estado, com o desenvolvimento das regiões
mais novas. O recenseamento do estado de São Paulo de indica
para a zona uma população de . habitantes, pouco maior que a de
. Os três municípios criados nesse ínterim (Colina, ; Cajabi,
; Guaíra, ), localizam-se todos na parte setentrional, dedicada
à criação, e onde o café sempre foi de menor importância. Refletindo a
decadência da zona cafeeira, extinguiu-se um município, o de Santa
Cruz (tabelas e ).
Até , a população diminui para . habitantes, embora
ainda se crie um município em , o de Itirapina. Nessa época, os
estrangeiros representam apenas ,% da população total. A produção
de café nesse ano é pouco maior que a de (tabelas e ).
Dado o seu desenvolvimento relativamente recente, a abertura das
fazendas de café em toda esta parte do estado se inicia quando o regime
servil já está em decadência. Embora os escravos tenham for necido a
mão-de-obra inicial, a manutenção e expansão das plantações só foi
possível graças ao trabalho livre do imigrante estrangeiro, principal-
mente o italiano. Como a época de maior expansão econômica da região
e, conseqüentemente, de maior expansão demográfica coincide com o
período áureo da imigração, o trabalhador europeu contribuiu com
grande parte do contingente populacional e marcou profundamente
todo o seu desenvolvimento econômico. Daí o interesse especial que esta
região apresenta para o estudo da imigração, especialmente a italiana.
Apesar das crises do início do século, o crescimento econômico e
demográfico da região da Baixa Paulista continuou a ser mantido pelo
café durante duas décadas. Com a grande geada de e a crise mone-
tária de a região começa a perder sua importância relativa no con-
junto do estado. O novo surto cafeeiro da década de a ultrapassa. As
zonas mais novas (Alta Paulista, Noroeste e Alta Sorocabana) atraem a
mão-de-obra e os capitais acumulados. A região entra em transforma-
ção econômica: a policultura ganha em importância e introduz-se o cul-
tivo de novos produtos; aumenta o número das pequenas propriedades
agrícolas, que sempre coexistiram com as grandes fazendas; diversifica-
se a produção rural e estabelece-se uma indústria urbana incipiente.
Apesar disso, a população no seu conjunto aumenta muito pouco até
, e passa a declinar desde então. Os municípios que se industrializa-
ram rapidamente e os que procederam à fragmentação da grande pro-
priedade prosperam ou mantêm-se estacionários; os outros perdem
população e declinam economicamente.
O município
Imigrantes italianos
verificar tendências inferidas a partir de histórias de vida, de histórias de
famílias, dos documentos contemporâneos e dos dados referentes à
região da Baixa Paulista como um todo.11
As infor mações sobre a época do início do povoamento são bem
mais precárias e baseiam-se, em grande parte, na história de algumas
famílias que se estabeleceram no município pouco depois de .
Sabemos, através da história oficial do município, que a região foi
habitada inicialmente, no começo do século , por colonizadores vin-
dos de Minas Gerais e da região de Franca e Casa Branca. A vila data de
, quando foi fundada uma capela, à qual se incorporou um patri-
mônio para ser distribuído entre os que ali quisessem habitar. As terras
que constituíram a vila foram doadas por um dos habitantes da região,
de nome José Ferreira da Silva, natural de Minas Gerais. O início do
povoamento parece prender-se, portanto, à grande migração de criado-
res mineiros, que nessa época já haviam ocupado toda a área que acom-
panha o antigo caminho para Goiás e, mais tarde, alcançariam o Para-
napanema (Monbeig : -).
Não possuímos nenhuma infor mação que nos esclareça sobre a
organização econômica e a estrutura social desta primitiva população do
município. Podemos apenas inferir, pelo que se sabe sobre os criadores
mineiros que realizaram este movimento migratório (Monbeig ;
Saint-Hilaire ), que constituíam uma sociedade pouco diferenciada,
dividida em grupos familiais quase auto-suficientes do ponto de vista
econômico, e na qual a força de trabalho era fornecida antes pelos fami-
liares do que por escravos ou assalariados. A produção provavelmente
estava baseada na criação de bovinos e suínos, e a agricultura, de impor-
tância secundária, incluía o fumo, além de produtos de subsistência.
O desenvolvimento econômico da região parece datar da segunda
metade do século, com o estabelecimento de grandes fazendas de café12
por colonizadores vindos das zonas paulistas mais antigas de Capivari,
Itu, Sorocaba, Campinas e, mais tarde, Limeira, como pode ser verifica-
do pela genealogia dos antigos fazendeiros do município (Whitaker,
. Para as tabelas nos servimos apenas de dados das estatísticas oficiais e aproveitamos,
sempre que possível, a compilação e sistematização realizadas por Camargo (), o que
facilitou extraordinariamente o trabalho. Todavia, não nos furtamos à consulta das fontes
originais, que foram utilizadas sempre que a fonte acima se mostrou insuficiente.
. Embora o cultivo da cana seja tão ou mais antigo na região do que o do café, ele parece ter
sido de importância secundária, e é raramente mencionado nos documentos e na tradição oral.
Tobias de Oliveira, Alves Aranha, Souza Queiroz, Rodrigues Penteado,
Barros, Arruda, Teixeira Leite etc.). Ao contrário do povoamento pri-
mitivo, essa colonização implicava a posse de capitais relativamente ele-
vados, aplicados principalmente em escravos, essenciais para a abertura
de fazendas deste tipo. Desde o início, ela envolveu uma população dife-
renciada e estratificada, cuja organização social se fundamentava inicial-
mente na dicotomia senhor-escravo, e que posteriormente foi redefinida
em ter mos da oposição fazendeiro-colono. Numa das entrevistas reali-
zadas com os descendentes de antigos fazendeiros do município, relata-
se como o avô da infor mante, natural de Limeira, veio recém-casado
abrir cafezais nas terras novas, trazendo vinte escravos dados por seu
pai. Com ele vieram outros, muitos deles aparentados entre si, reconsti-
tuindo e continuando em Descalvado o mesmo processo que levara à
formação das plantações de Campinas, Limeira e Araraquara. A história
é semelhante não só à de muitos fazendeiros do município, mas repete-
se em outras regiões colonizadas pelo café e é encontrada diversas vezes
na genealogia de qualquer das antigas famílias de fazendeiros paulistas.
Vimos anteriormente como a criação de novos municípios paulis-
tas, no século , acompanha de perto o avanço dos cafezais. Atestando
o progresso da sua lavoura cafeeira, Descalvado é elevada a município
em . Em , nove anos após a sua fundação, o recenseamento da
província lhe atribui . habitantes, dos quais . (,%) eram
escravos. Não há indicações sobre estrangeiros, mas podemos inferir
que fossem poucos, desde que para toda a década de não entraram
no estado mais que . estrangeiros, dos quais a maioria no fim do
período (tabelas e ).
Embora a mão-de-obra escrava tenha sido muito importante na
abertura dos primeiros grandes cafezais, a manutenção e expansão da
lavoura cafeeira, nessa época, passou a exigir um número crescente de
trabalhadores. Foi a imigração européia que, em grande parte, supriu
esta necessidade. Descalvado deve ter recebido os primeiros contingen-
tes de imigrantes no início da imigração em larga escala para São Paulo.
A família de origem italiana mais antiga no município, entre as que en-
trevistamos, chegou em . Nessa época, as famílias recém-chegadas
já encontraram diversos núcleos de colonos italianos nas fazendas, ao
lado dos escravos, e já havia também italianos na cidade. É justamente
então que começa a se intensificar o surto imigratório para São Paulo,
passando-se de . pessoas no período entre - para . no
Imigrantes italianos
TABE LA 3: POPU LA ÇÃO ESTRAN GEI RA, ESCRAVA, NEGRA DO MUNI CÍ PIO
DE DES CALVA DO
ESTRANGEIRA
ANO ITALIANOS TOTAL ESCRAVOS NEGROS TOTAL
1854 – – 409 – 2.430
1874 – – 1.139 – 5.709
1886 – 1.124 2.182 – 8.257
1900 – – – – 23.838
1920 3.295 4.664 – – 22.035
1934 1.352 1.960 – – 19.182
1940 – 1.125 – 1.931 16.467
1950 – 624 – 1.153 14.113
TABE LA 4: IMI GRAN TES ESTRAN GEI ROS E TRA BA LHA DO RES NACIO NAIS
ENTRA DOS NO ESTA DO DE SÃO PAULO ATRAVÉS DO SER VI ÇO
DE IMI GRA ÇÃO E COLO NI ZA ÇÃO
TOTAL DE TRAB.
ANOS ITALIANOS ESTRANGEIROS NACIONAIS
1870-9 3.441 11.330 400
1880-9 144.654 183.512 474
1890-9 430.243 734.985 91
1900-9 174.634 367.834 20.874
1910-9 105.834 446.582 33.927
1920-9 74.778 487.313 225.183
1930-9 12.429 198.122 435.834
1940-9 11.173 52.968 474.185
TABE LA 5: POPU LA ÇÃO RURAL E URBA NA DO MUNI CÍ PIO DE DES CALVA DO
POPULAÇÃO POPULAÇÃO
ANO RURAL URBANA TOTAL
1934 15.718 3.464 19.182
1940 12.237 4.230 16.467
1950 9.659 4.454 14.113
Imigrantes italianos
TABE LA 6: PRO DU ÇÃO DE CAFÉ DO MUNI CÍ PIO DE DES CALVA DO
No DE No DE
ANO CAFEEIROS ARROBAS
1905 12.683.171 527.368
1920 12.328.100 240.000
1934 7.713.363 238.833
férteis, que atraíam o capital e a mão-de-obra. Os imigrantes encami-
nhados ao município para substituir a mão-de-obra que se evade não
conseguem sustar o decréscimo da população (tabelas e ).
Até essa época, o café constituiu a base do crescimento demográfico
e da prosperidade econômica de Descalvado, criando uma sociedade do-
minada pelos grandes fazendeiros. A partir de então os recenseamentos
indicam a estagnação e o decréscimo do contingente populacional, e a
decadência da produção cafeeira. Estes dados numéricos constituem uma
manifestação da desagregação do sistema produtivo fundado na grande
lavoura e da transformação profunda da estrutura e organização da socie-
dade local. Na década de -, são ainda encaminhados para o muni-
cípio, pelo Departamento de Imigração, . imigrantes. A grande crise
de marca o fim da emigração para Descalvado e a aceleração da
decadência da produção cafeeira. O recenseamento de acusa nova-
mente um decréscimo da população, que alcança somente . habitan-
tes; a produção de café é então de . arrobas. Em a população
é de . habitantes e em atinge apenas . (tabelas e ).
O decréscimo da produção cafeeira que se inicia no começo do
século não indica um colapso da economia agrícola. Paralelamente ao
aumento do número de pequenos proprietários, verifica-se uma diversi-
ficação crescente da produção. A cana nunca foi totalmente abandonada,
desde o início da colonização. Em , o Livro dos municípios paulistas
(Egas ) aponta, como principais produtos agrícolas de Descalvado,
além do café, cereais (arroz, feijão, milho), batata, cana, algodão, fumo e
tomate. Comenta ainda sobre o grande número de pequenos lavradores,
a maioria dos quais afirma serem de origem italiana. Em , segundo
informações da Secretaria da Agricultura de São Paulo () a produ-
ção agrícola inclui, além do café, cana, algodão e cereais (arroz, feijão,
milho). A produção de algodão tende então a aumentar, e introduz-se
também em escala crescente a criação, especialmente a de gado leiteiro e,
em escala menor, a de suínos, que sempre foi de alguma importância no
mercado local. Em , o rebanho bovino é de . cabeças e o suíno,
de .. Em o rebanho bovino é de perto de mil cabeças, e o
suíno é de cerca de mil, já tendo tomado grande incremento a avicul-
tura, com a criação de um número crescente de granjas de criação inten-
siva (estimativa da agência local do ). Nessa época, as principais
produções agrícolas são o algodão ( mil arrobas), a cana ( mil tone-
ladas), milho ( mil sacas), arroz ( mil sacas), café ( mil arrobas),
Imigrantes italianos
TABE LA 7: DIS TRI BUI ÇÃO DA ÁREA DAS PRO PRIE DA DES AGRÍ CO LAS
DO MUNI CÍ PIO DE DES CALVA DO (EM ALQUEI RES)
50 51-100
ANO ALQUEIRES ALQUEIRES 101-500 501 E + TOTAL
1905 159 23 48 14 244
1934 330 53 53 9 445
1952 283 42 59 10 394
TABE LA 8: NÚME RO DOS ESTA BE LE CI MEN TOS AGRÍ CO LAS DO MUNI CÍ PIO
DE DES CALVA DO
ANO No ESTAB.
1905 244
1920 303
1934 445
1940 417
1953 394
Fonte: Camargo 1952; Recenseamento Geral do Brasil de 1940. Agência Estatística Local.
O aumento do número das propriedades agrícolas não significou o
desaparecimento das grandes fazendas. A criação de um grande núme-
ro de sítios e chácaras se deu pelo loteamento de apenas algumas fazen-
das, ou partes de fazendas. Muitas outras propriedades mantiveram sua
área original e registra-se, inclusive, a criação de novas grandes fazen-
das, por aglutinação de propriedades menores. Assim, a for mação de
uma população de pequenos proprietários agrícolas se dá paralelamente
à per manência da grande propriedade. Mas, por outro lado, as oscila-
ções do número de estabelecimentos e do número de proprietários indi-
cam uma redistribuição de terra que está intimamente ligada à ascensão
social do imigrante.
Os imigrantes
. Com respeito à noção generalizada de que as regiões do sul da Itália contribuíram com a
maioria do contingente emigratório para São Paulo, Foerster (apud Rios ) documenta
uma tendência inversa de predomínio de elementos setentrionais. Entre os imigrantes que
entrevistamos, encontramos representantes tanto do sul quanto do norte da Itália, com ligei-
ro predomínio dos últimos.
Imigrantes italianos
rogeneidade inicial, embora provavelmente tenha havido concentra-
ções maiores de uma ou outra província no mesmo distrito, devido à
tendência dos imigrantes de atraírem parentes e conterrâneos.
Ao lado dessa heterogeneidade regional, e provavelmente mais
importante do que ela, parece ter havido uma diferença ocupacional
significativa entre os migrantes, que envolvia, além de lavradores, um
contingente apreciável de pessoas com ocupações urbanas. Entre estas,
encontramos desde carroceiros e barqueiros até profissionais liberais,
incluindo um número apreciável de artesãos (marceneiros, carpintei-
ros, ourives), alguns comerciantes, fotógrafos, músicos e mesmo um
proprietário de moinho.
O objetivo da imigração por parte da sociedade brasileira foi,
primordialmente, o de obter braços para a lavoura. Assim, em Des-
calvado, a grande maioria dos imigrantes, independentemente da
ocupação original, foi encaminhada para as fazendas. Desde o início,
entretanto, os imigrantes de ocupações urbanas procuraram estabele-
cer-se na cidade, onde o núcleo italiano data do início da imigração.
Esta diferenciação entre imigrantes urbanizados e rurais será anali-
sada em outra parte do trabalho. Interessa-nos, no momento, avaliar
a importância quantitativa do elemento italiano na for mação da po-
pulação do município.
Os dados do Serviço de Imigração não nos dizem muito sobre a
importância do elemento italiano e estrangeiro na constituição da
população, pois limitam-se a registrar o número de imigrantes que o
serviço encaminhou para Descalvado; não indicam, portanto, nem
o número dos que efetivamente se dirigiram para lá, nem quantos se
estabeleceram definitivamente. Eles são significativos apenas quando
usados para verificar a importância relativa do contingente estrangei-
ro encaminhado para o município, em comparação com o resto do
estado. Para avaliar a importância real da contribuição estrangeira
temos que nos basear primordialmente na evidência indireta dos
recenseamentos que, apesar de falhos, constituem a única fonte para
inferências desse tipo.
Como já indicamos, o primeiro recenseamento a computar o
número de estrangeiros na população foi o de . Segundo esta fonte,
havia então no município . habitantes, dos quais . (pouco mais
de %) eram escravos e . (ou ,%) eram estrangeiros (tabela ).
É justamente nessa época que se inicia a emigração em grande escala
para o Brasil, e podemos admitir que a quase totalidade dos estrangei-
ros de Descalvado fizesse parte desse contingente de imigrantes. Como
também, já nessa época, os italianos constituíam a maioria dos trabalha-
dores estrangeiros que emigraram para o Brasil, podemos deduzir (e as
entrevistas o confir mam) que a maioria dos estrangeiros do município
era constituída de italianos (tabelas , e ).
Depois dessa data, só dispomos de infor mações relativas a ,
quando o recenseamento registra . habitantes, dos quais .
(,%) são estrangeiros e desses, . (%) são italianos. Os ita-
lianos representam, portanto, quase % da população total. Nessa
época, entretanto, a emigração já tinha uma história de mais de qua-
renta anos, e os descendentes de estrangeiros deviam ser muito
numerosos na população total, especialmente se levar mos em conta
que os imigrantes no Brasil parecem ter se reproduzido mais rapida-
mente que a população nacional (Lowie ). A partir de , com
a diminuição dos novos contingentes migratórios, e também com o
êxodo que começa a se manifestar na região, a população estrangeira
decresce (tabela ).
O recenseamento de aponta um total de . habitantes,
dos quais . italianos entre . estrangeiros. A discriminação entre
a população urbana e a rural indica uma porcentagem relativamente
maior de italianos na zona urbana do que na rural. Para . habitan-
tes na zona rural, . (,%) são italianos. Para os . habitantes
da zona urbana, (,%) são italianos.
A tendência à diminuição da população estrangeira continua a se
revelar nos recenseamentos seguintes (tabelas e ). O censo de
indica apenas estrangeiros, dos quais italianos, para uma popu-
lação total de . habitantes (tabela ). Não é possível, entretanto,
avaliar por estes dados a importância dos descendentes de estrangei-
ros na estrutura populacional. Podemos apenas inferir que é grande.
Num inquérito sobre uma amostra da população urbana, realizado
em , verificamos que, num total de chefes de família, cinqüen-
ta (,%) possuíam quatro avós estrangeiros e , isto é, mais da
metade, possuíam quatro avós italianos; tinham pelo menos dois
avós italianos e apenas quinze não tinham ascendência italiana. O nú-
mero de indivíduos que não possuíam nenhum avô estrangeiro era
de apenas nove (,% do total). Por outro lado, apenas oito indiví-
duos eram italianos natos. Essa amostra nos dá uma idéia melhor da
Imigrantes italianos
importância do elemento estrangeiro (especialmente do italiano) na
constituição da população do que os dados do recenseamento sobre o
número de italianos.
Na realidade, parece que o contingente imigratório é predominan-
te na constituição da população de Descalvado. Em diversas entrevistas
se afirma que, por volta de , havia mais italianos (compreendendo-se
nessa afirmação também seus descendentes) do que brasileiros na popu-
lação. A franca predominância de italianos, pelo menos em algumas áreas
rurais, é testemunhada por um infor mante de origem espanhola, que
aprendeu na fazenda tanto o português como o italiano, falando ambas
as línguas com igual desembaraço.15
As inferências que acabamos de fazer são confirmadas pela consti-
tuição da população urbana atual e pela freqüência de sobrenomes ita-
lianos que, em dados coletados em e , correspondem, de modo
geral, a mais da metade do total.16
Desse modo, o processo de transfor mação e diferenciação social
que se realizou no município é, em parte, um processo de diferenciação
interna da própria população de origem estrangeira, processo este que
se completou pela emigração da camada superior da população de ori-
gem nacional, como procuraremos mostrar a seguir.
. Tavares de Almeida (), no seu estudo sobre Rio Preto, calcula os coeficientes de fusão
e de composição étnica da população através dos dados do Registro Civil e chega a resulta-
dos muito interessantes. Assim, em Rio Preto, a maior concentração estrangeira é a registrada
pelo recenseamento de , que indica uma porcentagem de ,% (,% italianos) na
população total. Por outro lado, a composição da população calculada sobre a nacionalidade
dos avós de uma amostra de . casais entre os casamentos registrados no distrito (entre
e ) indica que apenas % do total de ascendentes é de brasileiros, e que no total de %
de ascendentes estrangeiros, ,% são italianos. Esses dados servem como ponto de referên-
cia para apreciar a importância dos descendentes de estrangeiros na população total.
. Origem do sobrenome
ANO LISTAS DE NOMES ITALIANA NÃO-ITALIANA
TABE LA 9: NATURA LI DA DE DOS PRO PRIE TÁ RIOS AGRÍ CO LAS DO MUNI CÍ PIO DE
17
DES CALVA DO E ÁREA DAS PRO PRIE DA DES
Fonte: Camargo 1952; Recenseamento Geral do Brasil de 1940, parte 17, t. 3: 252.
Imigrantes italianos
TABE LA 10: IMI GRAN TES ESTRAN GEI ROS E TRA BA LHA DO RES NACIO NAIS
ENCA MI NHA DOS A DES CALVA DO NO PERÍO DO DE 1900-1949
TABE LA 11: NACIO NA LI DA DE DOS ESTRAN GEI ROS NO MUNI CÍ PIO DE
DES CALVA DO E POPU LA ÇÃO TOTAL EM 1920 E 1940
ESTRANGEIROS POPULAÇÃO
ANOS ITAL. ESP. PORT. ALEM. JAP. OUTROS TOTAL TOTAL
1920 3.295 744 375 45 40 165 4.664 19.182
1940 702 100 67 27 18 37 9.511 6.467
município e emerge uma nova estrutura de classes, mais diversificada,
que inclui uma camada numerosa de pequenos proprietários.
A seguir, procuraremos analisar, através do material de entrevis-
tas, quais os fatores que possibilitaram ao imigrante esta mobilidade e
o aproveitamento das novas oportunidades criadas pelo processo de
transfor mação da estrutura socioeconômica, que eles próprios ajuda-
ram a desencadear.
As informações sobre as condições de vida e as atividades do colo-
no italiano permitem isolar um conjunto de elementos relacionados ao
trabalho que nos parece os mais importantes para compreender a possi-
bilidade de ascensão do imigrante: a produtividade – que deriva da in-
tensidade do trabalho e de sua organização, baseada na família –, as
possibilidades de comercialização da produção e o espírito de poupança.
O regime de trabalho na zona rural de Descalvado, no período que
estamos considerando, é semelhante ao vigente na lavoura cafeeira em
outras regiões: o trabalho por contrato próprio do colonato, parceria ou
empreitada. No colonato a remuneração é diversificada. Parte é feita
em dinheiro e é proporcional ao número de pés de café entregues ao
cuidado do colono; parte é efetuada em espécie e representa uma por-
centagem sobre a colheita (ou mesmo o total de uma ou mais colheitas,
no trabalho de for mação do cafezal). Os dois tipos de remuneração se
combinam de forma diferente e em proporções diversas. A falta de mão-
de-obra e a competição entre os fazendeiros para atrair o trabalhador
estrangeiro levam à generalização da prática de per mitir ao colono o
uso da terra para outras plantações (de subsistência), quer no próprio
cafezal, quer em terreno separado.18 Apesar disso, não há nada que nos
leve a supor que as condições de remuneração do trabalho fossem
extremamente favoráveis, explicando, por si só, a possibilidade de acu-
mulação de capital suficiente para aquisição de propriedade.
Os relatórios contemporâneos são ricos em infor mações sobre as
condições de trabalho na lavoura cafeeira em todo esse período. Elas
. A apresentação das condições de trabalho pelos imigrantes é muito variável, discrimi-
nando-se sempre entre bons e maus patrões segundo um critério que parece ser baseado
antes no tipo das relações pessoais do que no tipo de remuneração. Além do mais, as queixas
maiores pareciam ser antes no tocante a moradia, vestuário e alimentação do que ao tipo de
trabalho, pelo menos no que diz respeito aos imigrantes de origem rural. Por outro lado, a
grande mobilidade de fazenda para fazenda, que se manifesta em todas as entrevistas, é sem-
pre justificada em termos de contrato de trabalho mais vantajoso.
. Sobre os inúmeros incidentes diplomáticos relativos à imigração, ver Rios . Sobre
as condições de trabalho nas fazendas são muito ricos de informações Taunay (), Buar-
que de Holanda (in Davatz ) e Denis ().
. A introdução de técnicas mais aperfeiçoadas na cafeicultura paulista foi feita, em gran-
de parte, na preparação do grão e não no modo de cultivo, não beneficiando o colono.
. Cf. Buarque de Holanda (in Davatz op.cit.) e Willems ( e ) sobre a necessida-
de, por parte do imigrante, de abandonar as técnicas agrícolas originais para uma adaptação
satisfatória às condições ecológicas e econômicas de produção no sistema agrícola nacional.
Os trabalhos de Roger Bastide e Florestan Fernandes () de-
monstraram com muita clareza como o sistema coercitivo externo que
caracteriza o trabalho servil impede o desenvolvimento de estímulos e
formas de organização espontâneas do trabalho, e incapacita o escravo
para o trabalho livre em um sistema econômico competitivo. Para o escra-
vo liberto o trabalho é um estigma, e essa atitude impede que o negro uti-
lize de forma eficiente o único instrumento de integração social e ascensão
de que dispõe – sua força de trabalho. A libertação é, para o escravo, uma
maneira de alcançar o ócio. Mantendo o limitado sistema de necessidades
estabelecido pelo regime servil, o escravo liberto tende a produzir apenas
o suficiente para a mera subsistência, o que requer uma quantidade relati-
vamente pequena de esforço. O mesmo se pode dizer da mão-de-obra
livre absorvida no setor de subsistência: a impossibilidade de escoamento
do excesso de produção atrofia as técnicas produtivas e a forma de orga-
nização do trabalho. Na impossibilidade de acesso ao mercado, o consumo
regride e a produção restringe-se ao necessário à subsistência.22 Nessa
economia o ócio também assume importância relevante23 e se estabelece
um sistema de motivações e de organização da atividade produtiva que é
inadequado ao regime de trabalho livre em uma economia competitiva.
Os imigrantes italianos que se dirigiram para a lavoura cafeeira encontra-
ram condições que lhes permitiram conservar os padrões muito mais ele-
vados de intensidade e organização da atividade produtiva vigentes na
sociedade de origem, embora não pudessem conservar muitas das técnicas
agrícolas. São portanto as condições econômicas vigentes na lavoura
cafeeira que permitiram ao imigrante integrar-se ao sistema como traba-
lhador livre, utilizando os padrões culturais originais para definir essa
relação de trabalho.
A inexistência desses padrões na produção cabocla produziu uma
integração muito menos satisfatória. Louis Couty (apud Taunay :
-) relata a experiência de um fazendeiro de café que empregava
colonos brasileiros e se mostrava desejoso de substituí-los por italianos
por causa do baixo rendimento apresentado por essa população de ori-
. Quanto à elevação do padrão de consumo, devemos levar em conta também a introdu-
ção ou utilização mais intensa de técnicas de preservação de alimentos, especialmente os de
origem animal, sob a forma de conservas de carnes e laticínios.
Um fator comum, que registramos em todos os casos de mobilida-
de rápida, é o regime de cooperação familiar. Apesar da concepção gene-
ralizada de que a família brasileira tradicional é a família patriarcal exten-
sa, as investigações sobre a população rural de sitiantes e posseiros e das
pequenas comunidades brasileiras têm indicado a predominância da
família conjugal como elemento central da organização social. As rela-
ções mais amplas de parentesco e compadrio contribuem para a formação
das unidades territoriais conhecidas geralmente como “bairros”, que se
constituem como for mas de organização fluidas e pouco estruturadas,
mas a unidade fundamental, tanto social quanto econômica, é a família
nuclear, que se fragmenta e se reconstitui continuamente pelo casamento
dos filhos (Candido ; Castaldi ; Willems ; Willems & Musso-
lini ; entre outros). Essa predominância da família conjugal, por sua
vez, parece estar relacionada à precariedade do sistema de produção dos
bens de subsistência, cujo rendimento muito baixo exige tanto uma mobi-
lidade espacial periódica quanto a multiplicação de unidades de baixa
concentração demográfica, que se conformam mais ao padrão do bairro
caboclo do que ao da família extensa dos colonos italianos.
A organização da família italiana tradicional, com a predominân-
cia da linha pater na e centralização da autoridade no pai, é capaz de
estruturar efetivamente os indivíduos do sexo masculino num grupo
relativamente amplo de cooperação econômica. A unidade familial, que
é a unidade econômica, não é destruída pelo casamento dos filhos de
sexo masculino, que continuam sujeitos à autoridade pater na e a fazer
parte do mesmo grupo doméstico. São as filhas que, no casamento, se
transferem para a família do marido. Esse tipo de organização favorece
uma grande solidariedade do grupo de irmãos, que é capaz de continuar
a funcionar como unidade coesa mesmo após a morte do pai e dissolve-
se, em geral, apenas quando a terceira geração já é capaz de constituir
outras unidades relativamente amplas. Pode-se realmente verificar, nas
histórias de vida, a freqüência com que os filhos de sexo masculino con-
tinuam a participar da economia doméstica, mesmo depois do casamen-
to. Embora nem todos os filhos permaneçam ligados à família paterna,
há certamente uma tendência para se constituir uma família extensa.
Por outro lado, é importante notar um fator complementar que
consiste na utilização bastante intensa do trabalho feminino na lavoura,
aumentando a proporção dos membros diretamente produtivos da
família. A utilização do trabalho dos filhos adolescentes de ambos os
do mercado local, especialmente na zona urbana. Compare-se, por
exemplo, a queixa registrada no Almanaque de , no início da imigra-
ção, sobre a escassez da produção local de cereais, com a afirmação feita
cinqüenta anos depois pelo livro Os municípios do estado de São Paulo
() sobre o grande número de pequenos proprietários de origem ita-
liana, dedicados à produção de gêneros de subsistência, que abasteciam
o município.
A comercialização não se restringia ao excedente da produção de
subsistência; incluiu, desde o início, também o café. Os trabalhadores
participavam do produto da colheita através do sistema de pagamento
em espécie. Os pequenos proprietários, ao lado de outras culturas, plan-
tavam também café para “especular”, segundo a expressão empregada
pelos nossos informantes. Os lucros resultantes do café, embora prova-
velmente pequenos, devem ter contribuído para a elevação da renda
monetária nas épocas de alta de preços.
Mostramos como o consumo da população de origem italiana era
mais elevado do que o dos trabalhadores rurais brasileiros. Convém
notar entretanto que este consumo prende-se em parte à própria produ-
ção doméstica e não acarreta grandes gastos monetários. Assim, parte
da dieta é suprida pela horta e pela criação doméstica, e freqüentemen-
te faz parte da atividade familiar a produção de conservas de carne, lati-
cínios, confecção de roupas etc. Mesmo quando a aquisição de terras
leva o imigrante a ascender para as classes média ou alta, a conservação
de um padrão de vida de classe inferior à dos brasileiros no que se refere
à moradia, vestimenta e diversões favorece a aceleração do processo de
acumulação de capital.
Há ainda alguns outros aspectos a considerar que nos parecem
complementares aos apontados acima. Um deles parece ter sido a alfa-
betização; apesar de muitos italianos não serem alfabetizados, foi fre-
qüente o esforço de alfabetizar pelo menos os membros masculinos do
grupo familiar, através inclusive de iniciativa particular. A percepção
da importância da alfabetização parece estar relacionada à familiari-
dade com uma economia de mercado, pois a alfabetização é um dos ele-
mentos que possibilitam a comercialização dos produtos. Mesmo onde
não havia escola, os membros mais instruídos da colônia atuavam fre-
qüentemente como professores particulares. É importante notar, entre-
tanto, que o esforço de alfabetização dos filhos não foi geral. A impor-
tância do trabalho familial e a utilização intensiva da mão-de-obra
tuem um sistema de incentivos que se manifesta na intensificação da ati-
vidade produtiva para a formação de um pecúlio e permite que o trabalho
se torne o instrumento por excelência da ascensão social e seja redefinido
nesses termos. Dizemos “redefinido” porque, na sociedade de origem, as
possibilidades de mobilidade eram muito reduzidas e dificilmente se cons-
tituiriam como foco de motivação da atividade produtiva.25
Os agricultores italianos que emigraram, fizeram-no em grande
parte pressionados pela escassez da terra, decorrente da estrutura lati-
fundiária da economia agrária da Itália de então. No Brasil, numa situa-
ção em parte semelhante, a posição do imigrante ante o latifundiário
apresenta para aquele dois aspectos favoráveis. Em primeiro lugar, a
imigração liberta o trabalhador de padrões tradicionais de dominação
vigentes na sociedade que abandona, e o insere em um sistema social
em transformação, que ainda não pôde elaborar formas equivalentes de
controle e dominação.26
Isto permite ao trabalhador explorar em seu proveito tanto a enor-
me mobilidade espacial que se manifesta na constante mudança de uma
fazenda para a outra quanto a impossibilidade freqüente de supervisão
detalhada do trabalho e da partilha dos seus resultados, o que é conse-
qüência do absenteísmo dos grandes proprietários. Esta liberdade é
realçada pela escassez relativa de mão-de-obra criada pela expansão das
culturas e pela possibilidade crescente de utilização do imigrante em
ocupações urbanas. Esse conjunto de fatores contribuiu para a genera-
lização da prática de culturas intercaladas, que é tão importante para o
aumento do rendimento dos imigrantes.
Com a decadência da produção cafeeira e a eliminação desta práti-
ca, as possibilidades da for mação de pecúlio diminuíram, o que contri-
buiu para a emigração da população rural para a cidade e para zonas
novas, com conseqüente diminuição da população do município.
. Esta questão só poderá ser esclarecida definitivamente através de uma análise mais comple-
ta da cultura de origem, e da análise de entrevistas mais ricas do que as de que dispúnhamos.
. Essa característica da sociedade em transformação se manifesta também na freqüência
do uso da violência. Nos jornais locais da época (em oposição aos de hoje) são inúmeras as
notícias de crimes contra a pessoa e contra a propriedade. Infelizmente faltam-nos dados
para explorar este aspecto com mais profundidade. Como na questão referida na nota ante-
rior, o aprofundamento da investigação não pôde ser feito devido à deficiência das entrevis-
tas no que diz respeito às particularidades das experiências e atitudes dos imigrantes nesse
período afastado.
Serviam a população três advogados, três médicos, dois farmacêuticos,
dois dentistas e três professores de música. A província possuía “diver-
sos” estabelecimentos comerciais e artesanais.
Nessas “duzentas e tantas casas” devia residir uma porcentagem
considerável da população do município, que a mesma fonte calcula em
mil almas (entre escravos e livres) e que o recenseamento de
declara ser de . habitantes.
Já nessa época, o estrangeiro parece ocupar um lugar importante na
composição da população e na escala de ocupações urbanas. Não se trata
ainda de italianos, mas de alemães, cuja imigração para o estado de São
Paulo é anterior. O Almanaque menciona um fabricante de cerveja, o pro-
prietário de uma olaria, três vendeiros e um ferreiro alemães. Existia ainda
um ferreiro americano, cuja presença se explica pela imigração sulista dos
Estados Unidos para Americana, depois da Guerra de Secessão.
A importância relativa do centro urbano, capaz de sustentar diver-
sos profissionais liberais e numerosos estabelecimentos comerciais, e
que necessita dos serviços de diversos artesãos, implica um mercado
amplo, que só pode ter sido fornecido pela população rural em expansão.
O Almanaque para o ano de estima a população urbana em
mil almas e a do município em mil, o que não é de todo implausível,
se tomarmos como dignas de crédito as informações dos recenseamen-
tos de e . Esta estimativa nos daria uma relação de ,% da
população urbana para a população total.
O desenvolvimento da cidade pode também ser avaliado pelo
aumento do número de casas, ruas e logradouros públicos. As dez ruas,
dois largos e “duzentas e tantas casas” de são agora vinte ruas, cinco
largos e quinhentos prédios.
A cidade aparece claramente como centro administrativo, comer-
cial e artesanal. O mesmo Almanaque cita as principais ocupações, que
incluem seis advogados, cinco médicos e dois correspondentes de ban-
cos. Arrola um total de dez estabelecimentos comerciais e indica a exis-
tência de dezenove estabelecimentos industriais: uma máquina de bene-
ficiar café, cinco fábricas de carroça, uma de massas, três de cerveja e
refrigerantes, três de fogos de artifícios, três selarias, quatro oficinas de
sapateiro. A denominação industrial não encobre o caráter artesanal
dessa atividade, e é de grande importância notar a predominância de imi-
grantes nessas ocupações. A julgar pelo sobrenome, dos dezenove esta-
belecimentos citados, dez estavam em mãos de italianos, dois pertenciam
cidade duas sociedades italianas (posteriormente reunidas em uma única,
a Fratelanza Italiana) e uma escola ítalo-brasileira.
Evidentemente, não pretendemos que esta lista possa for necer
dados muito precisos sobre as ocupações da população italiana domici-
liada na cidade. Em primeiro lugar, porque a lista certamente não é
exaustiva. Por outro lado, as ocupações e estabelecimentos citados não
são todos contemporâneos. Mas a extensão da lista de ocupações men-
cionadas indica certamente uma participação crescente dos italianos na
economia urbana, especialmente no pequeno comércio e artesanato.
Por outro lado, tanto a consulta aos jornais quanto o material das
entrevistas evidenciam que as posições dominantes na sociedade local
são ocupadas por famílias brasileiras e, particularmente, pelos grandes
fazendeiros. Os jor nais contemporâneos revelam claramente a predo-
minância dos fazendeiros nas atividades políticas, pois constituem a
quase totalidade dos candidatos a cargos eletivos. Não encontramos
nenhum nome italiano entre candidatos políticos e autoridades adminis-
trativas locais. Outrossim, as grandes casas de comércio pertencem
todas a brasileiros, que constituem também a grande maioria dos fun-
cionários públicos e profissionais liberais.
Vemos, portanto, como se havia constituído em Descalvado, no
início do século , uma sociedade diferenciada, cuja estrutura obede-
cia, em parte, a uma clivagem étnica. Esta sociedade era dominada
pelos grandes fazendeiros de café brasileiros, cujos interesses eram
identificados com o interesse do município. Para atender às necessida-
des de suas fazendas é que se promoveu a imigração, e para facilitar o
transporte da sua produção que se construiu a estrada de ferro.
Todavia, os fazendeiros mais poderosos não moravam em Descal-
vado. Muitos possuíam fazendas em outros municípios e, freqüente-
mente, propriedades em São Paulo. A camada dominante da população,
portanto, não se vinculava diretamente à região e aos seus interesses
particulares, mas prendia-se aos interesses gerais da classe que se mani-
festavam no plano provincial e nacional. Era desses fazendeiros, entre-
tanto, que dependiam a prosperidade econômica e a política municipal.
Por outro lado, essa classe dominante, embora voltada para a agri-
cultura, era uma classe urbanizada. Os fazendeiros que residiam no
município freqüentemente tinham casa na cidade, onde passavam pelo
menos parte do ano. Em contato com eles, for mando a “sociedade”
local, estavam os maiores comerciantes, os profissionais liberais, que
Apesar da violência que a caracteriza, e que se manifesta no gran-
de número de assaltos, roubos, assassínios, suicídios e espancamentos
que os jornais noticiam com grande freqüência, a sociedade dessa época
parece ser fundamentalmente estável.
A dominação dos grandes fazendeiros não é discutida. Nas entre-
vistas, os informantes que não pertenciam a essa classe, mesmo aqueles
que testemunharam e se beneficiaram diretamente da ruína dos grandes
fazendeiros locais, referem-se a eles sempre com admiração e deferên-
cia. A existência de mecanismos de ascensão social criados pela sociedade
em expansão e a transfor mação da estrutura social que então se inicia,
associadas à decadência e evasão da classe dominante tradicional, devem
ter impedido a for mulação dos conflitos em ter mos de oposição das
classes em emergência.
Nos seus aspectos essenciais, a sociedade urbana não se modifica
até , aproximadamente. A política continua a ser dominada pelos
fazendeiros, parte dos quais não reside permanentemente no município.
Nota-se, entretanto, uma lenta penetração de elementos estrangeiros,
principalmente italianos, nas camadas superiores da população, inclusi-
ve pelo casamento.
No registro para fins de imposto, de um total de estabeleci-
mentos comerciais e industriais existentes em Descalvado em ,
encontramos proprietários com sobrenome italiano. Como no
período anterior, os italianos dominam a pequena indústria artesanal e
constituem o contingente dominante do pequeno comércio. Por outro
lado, já então pelo menos dois dos maiores comerciantes eram de ori-
gem italiana. Como veremos mais tarde, tudo indica que o comércio
constitui o principal canal de ascensão social e meio de enriqueci-
mento. No conjunto, os italianos parecem consolidar nesse período as
posições anterior mente atingidas. A colônia é continuamente fortale-
cida por novos imigrantes, que ingressam geralmente na parte mais
baixa da escala de diferenciação social, o que não leva a uma redefini-
ção das posições que os italianos ocupam na sociedade local. Portanto,
os imigrantes e seus descendentes compreendem nessa época, na zona
rural, grande parte dos trabalhadores e a maioria dos pequenos pro-
prietários. Na zona urbana, constituem boa parte dos empregados do
comércio, a grande maioria dos artesãos e aprendizes, e contribuem
com um contingente importante de proprietários de pequenos estabe-
lecimentos comerciais e artesanais. Definem-se, portanto, como classe
. As sociedades de socorro mútuo são instituições importantes de todos os núcleos italia-
nos, e fatores cruciais para o estabelecimento e manutenção da solidariedade étnica. Como
tal, foram explorados mais tarde pelo fascismo (Rios ). Em Descalvado, a destruição de
todos os documentos da associação local impediu o desenvolvimento da análise desse aspec-
to da imigração.
Se a segregação étnica nunca foi suficientemente grande para impe-
dir a miscigenação, os casamentos mistos só se tornam realmente freqüen-
tes depois de , quando registram-se inclusive diversos casamentos de
moças italianas com filhos de famílias tradicionais.
As relações entre brasileiros e italianos podem ser ilustradas tam-
bém pela participação na Irmandade de Misericórdia, associação destina-
da à manutenção do hospital local (Santa Casa), e que sempre congregou
a camada mais favorecida da população. Na ata da fundação, em ,
há um único nome estrangeiro, e este não é italiano. Toda a diretoria e
boa parte dos sócios são fazendeiros do município. No levantamento
das diretorias, eleitas a cada cinco anos, encontramos os primeiros nomes
italianos em , entre as posições menos importantes de mordomos.
Os italianos participam da diretoria propriamente dita apenas no pe-
ríodo seguinte ao que estamos estudando, em , e a partir de
passam a controlar a irmandade. É realmente depois da Primeira Guerra
Mundial que se realiza uma transformação fundamental na estrutura da
sociedade local que modifica todo o panorama da participação do ele-
mento italiano.
As transfor mações que se processam a partir da segunda década
do século estão relacionadas à grande geada de e às sucessivas
crises do café, e se manifestam na falência de muitos estabelecimentos
comerciais e no número de casarões das famílias tradicionais mais anti-
gas que são desocupados e permanecem vazios.
Realmente, a década de marca o início da estagnação e posterior
decadência do sistema produtivo que fundamentava a sociedade anterior.
Com a morte dos velhos fazendeiros, as famílias numerosas freqüente-
mente preferem vender as propriedades, em virtude das dificuldades de
divisão de uma herança em terras e da falta de interesse na conservação
de cafezais já menos produtivos. O capital é dividido e empregado em
atividades mais rendosas, quer na abertura de fazendas nas zonas novas,
quer na indústria, quer em investimentos prediais na capital. O processo
é facilitado pelo fato, já apontado, de a camada dominante tradicional não
ser vinculada estreitamente ao município, possuindo sempre interesses e
investimentos em outras regiões e na capital.28
. Algumas grandes fazendas ainda permanecem nas mãos das famílias dos primeiros pro-
prietários. Mas são poucas, e pertencem a famílias que não residem no município e que
influem muito indiretamente na sociedade local.
assim, embora apenas parcialmente, para diminuir a tendência ao
decréscimo da população. A classe dominante em emergência é consti-
tuída, em grande parte, de descendentes de imigrantes, o mesmo se
dando com o novo operariado fabril. A partir de então, as medidas
nacionalistas do gover no Vargas ter minam com a Fratelanza Italiana,
forçam a naturalização de muitos dos velhos imigrantes e contribuem
para pôr fim a uma identificação étnica que já não corresponde à reali-
dade social. O término da guerra, e as novas condições econômicas que
passam a atuar então, encontram uma população na qual os descenden-
tes de imigrantes ocupam todas as posições na hierarquia social, e na
qual a miscigenação e a aculturação destruíram o sentido de uma iden-
tificação étnica. A sociedade entra em novo processo de transformação,
para o qual os imigrantes não mais contribuem como grupo com carac-
terísticas distintas.
. A esse respeito, é interessante notar a valorização do trabalho que parece caracterizar os
imigrantes italianos, como aponta Marialice M. Foracchi em comunicação apresentada à
Reunião Brasileira de Antropologia. Em nota anterior já apontamos uma afirmação de Tha-
les de Azevedo, que considera o espírito de economia e o amor ao trabalho valores funda-
mentais do ethos do imigrante italiano
município, já havia uma pequena camada artesanal em que predomina-
vam os estrangeiros, principalmente alemães. Estes estabelecimentos
empregaram os italianos recém-chegados, per mitindo-lhes um ajusta-
mento inicial ao sistema econômico existente e uma familiarização com
as oportunidades oferecidas à mão-de-obra. O crescimento da popula-
ção do município, a prosperidade econômica e o número crescente de
italianos estabelecidos criaram oportunidades para a absorção de toda a
mão-de-obra qualificada em algum ofício que chegou a Descalvado.
Essas observações referem-se principalmente aos marceneiros, ferreiros,
mecânicos e sapateiros, mas aplicam-se também aos alfaiates, barbeiros,
açougueiros etc. que, mais comumente ainda, iniciam a carreira urbana
como empregados ou sócios menores de estabelecimentos existentes.
A ascensão dos membros dessa camada artesanal se dá pelo estabe-
lecimento de oficinas mais aparelhadas até alcançar-se o nível de uma
quase indústria, o que implica a utilização de trabalhadores assalariados
além dos membros da família. Se isso, de um lado, abre oportunidades
para o emprego de muitos italianos recém-chegados, por outro, limita
as possibilidades de esses trabalhadores virem a constituir indústrias
competitivas, que exigem cada vez mais capital. Isto se dá, evidente-
mente, porque a prosperidade e a complexidade crescentes da economia
urbana são paralelas à própria imigração, e em parte criadas por ela.
Deste modo, alteram-se bastante as possibilidades de ascensão dos imi-
grantes mais recentes, principalmente porque a estabilização e a poste-
rior retração econômica diminuem as oportunidades oferecidas pelo
sistema e tornam cada vez mais difícil a passagem de trabalhador assa-
lariado a proprietário de estabelecimento artesanal-industrial.
Se a ascensão da camada artesanal envolve necessidade de acumu-
lação de capital, para os comerciantes este capital é uma exigência ini-
cial. Para muitos, a permanência na zona rural é prolongada até a for -
mação de um pecúlio, através da utilização dos mecanismos acima
apontados. Formado o capital inicial, esse é freqüentemente empregado
no comércio urbano, e não na aquisição de uma propriedade agrícola.
Portanto, a mobilidade na zona urbana está, por mais de um modo, liga-
da à zona rural. Embora os que assim se estabeleçam provenham fre-
qüentemente de famílias urbanas no país de origem, muitas famílias de
lavradores optam também por esta alternativa.
Para os que não têm pecúlio, o acesso à exploração do comércio
urbano depende das oportunidades de for mação de capital que são
. Quanto à participação política dos imigrantes, Rios aponta como característica geral a
apatia e a inexistência de atividade partidária. Entretanto reconhece, de passagem, que “a
participação dos italianos e ítalo-brasileiros parece ter sido mais intensa na política munici-
pal que na estadual e ainda maior nesta do que na política nacional [...]” (Rios : ).
As relações entre o comércio urbano e a fazenda são importantes
também porque os capitais formados em um ramo de atividade são mui-
tas vezes aplicados em outro. A criação de pequenos estabelecimentos
comerciais se prende freqüentemente à aplicação de um pecúlio forma-
do na zona rural. Também há casos em que proprietários rurais abastados
vendem as fazendas e abrem ou compram casas comerciais. Por outro
lado, ocorre freqüentemente que comerciantes adquiram propriedades
agrícolas no investimento de capitais excedentes (dada a dificuldade de
expansão indefinida dos estabelecimentos comerciais no nível munici-
pal) ou como pagamento de dívidas de fazendeiros arruinados.
Essa rede de relações entre o comércio urbano e a zona rural e,
portanto, entre comerciantes, fazendeiros e colonos abre inúmeras opor-
tunidades de ascensão social e de enriquecimento que já haviam sido
exploradas com sucesso pelos comerciantes brasileiros, muitos dos quais
fizeram fortuna em Descalvado. Entretanto, os italianos estavam em
posição favorável para explorar em seu proveito a força política e eco-
nômica representada pela colônia italiana. Os comerciantes italianos
sempre foram os líderes da colônia, como se pode verificar pelo domí-
nio que exercem sobre a associação italiana local.
Deste modo, o comércio, principalmente o dos grandes armazéns,
não só possibilitou o enriquecimento, mas favoreceu o contato dos ita-
lianos bem-sucedidos com a camada dominante local e sua participação
na sociedade local.
Mas se, de um lado, verificamos que o comércio e as atividades de
nível artesanal abrem possibilidades de ascensão social exploradas com
sucesso pelos imigrantes, notamos, de outro, uma dupla limitação à
mobilidade possível através desse gênero de atividade: em primeiro
lugar, porque não há oportunidades para todos os imigrantes e, em
segundo, porque as existentes não per mitem o enriquecimento (que é
fator essencial da mobilidade) além de um certo limite, deter minado
pelas condições da vida econômica local.
As possibilidades de expansão dos empreendimentos comerciais
em Descalvado são limitadas, pois o relativo isolamento regional cir-
cunscreve o mercado à população do município. Daí decorre a aplicação
de capitais comerciais em outros empreendimentos, principalmente na
agricultura e, depois de , também na indústria. Os grandes comer-
ciantes passam a ser, simultaneamente, fazendeiros e industriais. Outros
abandonam o comércio para dedicar-se apenas à indústria.
cada vez mais difícil a criação de empreendimentos competitivos. Os
imigrantes menos bem-sucedidos constituem, assim, uma população de
empregados do comércio e da indústria artesanal, cujas possibilidades
de ascensão são ainda diminuídas pela estabilização e posterior deca-
dência econômica do município.
Com a criação da indústria de tecidos, parte da população rural de
origem italiana, que não havia realizado uma mobilidade significativa,
ingressa no operariado fabril.
Vimos como as crises de café e a decadência econômica afetaram
fundamentalmente a antiga classe dominante que, em parte, abandona
o município. Assumem então a liderança econômica e política os co-
merciantes que subsistem às crises e os que se dedicam à indústria em
for mação. A preservação dos padrões de poupança e de organização
familial do trabalho, que havia permitido a muitos italianos realizar uma
ascensão preliminar, habilita-os também a adquirir uma posição domi-
nante em substituição aos antigos fazendeiros.
No período imediatamente anterior à Segunda Guerra Mundial, e
concomitantemente ao desaparecimento gradual dos antigos fazendei-
ros, os italianos e seus descendentes passam a se distribuir por todas as
posições da estrutura ocupacional e da hierarquia social. Há italianos
operários, artesãos, empregados de comércio, pequenos comerciantes,
funcionários públicos, grandes comerciantes e industriais.
Nessa época, com a emigração das famílias brasileiras, provocada
pela decadência da economia cafeeira, os italianos e seus descendentes
haviam assumido a liderança econômica na zona urbana e, em parte, na
rural. A partir de então, torna-se cada vez mais difícil falar de “italia-
nos”. A geração dos imigrantes está em vias de desaparecer. A camada
brasileira dominante desagregou-se e a nova geração já é em grande
parte produto de casamentos mistos. A política do Estado Novo contri-
buiu para a assimilação, impedindo a manutenção das associações italia-
nas, que já iam perdendo sua razão de ser.
Os italianos estão assimilados. As novas condições de vida e a mis-
cigenação destroem as vantagens e a possibilidade de conservação dos
traços culturais que favoreceram a sua ascensão.
A própria estagnação econômica do município favorece o desapa-
recimento da antiga estrutura familiar na nova classe média e na camada
dominante. A restrição das oportunidades leva à dispersão necessária de
muitos filhos, encaminhados para outras ocupações e para outras loca-
Resumo e conclusões
esta que se acelera depois da crise de . Muitos capitais se retiram.
O gradual desaparecimento da classe dominante favorece a ascensão
dos italianos que haviam conseguido formar e ampliar um capital; mui-
tos deles se estabelecem então como fazendeiros e comerciantes e, por
sua iniciativa, cria-se uma pequena indústria.
Nessa transformação, a camada dominante emergente não é mais
constituída de pessoas ligadas fundamentalmente a interesses agrícolas,
mas de comerciantes e industriais urbanos. É nessa época que os italia-
nos começam a exercer cargos políticos com grande freqüência e a
assumir posições de liderança nas associações beneficentes e religiosas.
É também então que se acelera o processo de miscigenação.
Essas transformações se estendem pelas duas décadas anteriores à
Segunda Guerra Mundial. O município continua a perder população,
mas a economia agrícola se restabelece, com uma predominância cres-
cente da pecuária, que não necessita de uma população rural muito
densa. O comércio, embora contraído, continua como fonte de prospe-
ridade e importante canal de ascensão econômica. A indústria progride
lentamente. Nesse período processa-se uma redefinição da posição dos
imigrantes e seus descendentes, que ocupavam até então as posições
inferiores da escala de diferenciação social e constituíam a maioria da
classe média. Alguns italianos passam a ocupar, com brasileiros, as
posições dominantes, que conquistaram quer pela capacidade de trans-
formar o sistema produtivo agrícola, quer pela iniciativa empresarial de
caráter industrial, quer através da competição comercial. Constitui-se
uma nova camada dominante.
Com a diminuição do afluxo de imigrantes, o aumento dos casa-
mentos mistos e a dominância das novas camadas urbanas nas quais os
italianos e seus descendentes assumem importância muito grande, o
processo de assimilação se completa. A partir da Segunda Guerra Mun-
dial as medidas nacionalistas repressivas contribuem para eliminar as
distinções culturais remanescentes.
Todavia, para uma visão mais completa do processo foi necessário
também explicar como os italianos puderam aproveitar e criar essas
oportunidades dentro do sistema. Essa indagação nos levou à investiga-
ção dos aspectos do equipamento cultural e das motivações do imigran-
te, que lhe permitiram definir e resolver, de um modo determinado, os
problemas da situação criada pelo movimento emigratório. A familiari-
dade com uma economia urbana e de mercado lhes per mitiu definir a
Capítulo
Autonomia e isolamento
Entrevistamos pequenos proprietários, assalariados agrícolas e
meeiros ou arrendatários, provindos de quase todas as regiões brasileiras.
Apesar das variações de tempo de permanência na capital, de camada de
origem e de zona de proveniência, é surpreendente a unifor midade das
informações sobre as condições de vida anteriores à migração, refletindo
a universalidade e per manência de elementos tradicionais na sociedade
rural brasileira. Essa uniformidade se deve sobretudo à semelhança fun-
damental na constituição da unidade produtiva, que é a família conjugal,
no modo de organização dessa unidade em grupos de vizinhança, nos
padrões e técnicas de trabalho e na possibilidade de acesso ao meio de
produção essencial, a terra.
Aliás, essa mesma impressão de uniformidade não pode deixar de
ocorrer a quem quer que examine os estudos de comunidade que se reali-
zaram no Brasil. Quer se trate de uma comunidade de parceiros ou sitian-
tes em São Paulo (Candido ; N. Müller e ; Willems ),
posseiros do litoral (Willems & Mussolini ), meeiros ou agregados em
Minas Gerais (Castaldi ; Costa ), sitiantes ou agregados do inte-
rior da Bahia (Harris ), ou mesmo agricultores amazonenses (Wagley
), encontramos sempre as mesmas técnicas produtivas, as mesmas
formas de cooperação e auxílio mútuo, os mesmos laços de solidariedade
e, principalmente, as mesmas condições precárias de existência. Mais
ainda, as descrições atuais aproximam-se bastante das que encontramos
nos relatos dos viajantes do século . Apenas nas áreas de imigração
estrangeira encontramos formas diferentes de relações de trabalho e de
organização comunitária. Mesmo assim, nas regiões onde a imigração foi
reduzida e onde não houve reforços contínuos de novos contingentes, os
imigrantes foram absorvidos pela população local e adotaram hábitos e
técnicas semelhantes aos da população nacional (Willems ).
Para entender mos essa semelhança fundamental subjacente à va-
riação das subculturas regionais é necessário analisar, embora de modo
sumário, algumas características da estrutura da sociedade rural brasi-
leira e do processo histórico de sua formação.
SOCIE DA DE TRA DI CIO NAL E ECO NO MIA DE SUB SIS TÊN CIA
Nos cer rados que margeiam a costa, habitam famílias pobres e esparsas,
que vivem da pesca e da colheita de suas plantações. São em geral negros,
. As zonas de proveniência dos migrantes que chegam a São Paulo são justamente aquelas que
foram ou ainda são as áreas por excelência da economia de subsistência: o interior do estado de
São Paulo e da Bahia, o “Sertão” e o “Agreste” do Nordeste, Bahia e Minas Gerais. Embora no
interior de São Paulo a imigração estrangeira se tenha superposto a essa população nacional, ela
não a destruiu e, em parte, veio mesmo a incorporar os padrões culturais próprios dos lavrado-
res caboclos, como procuramos demonstrar no decorrer do trabalho. É, portanto, essa partici-
pação comum na economia de subsistência e na cultura cabocla que explicaria a uniformidade
das atitudes, das combinações e vida descritas pelos migrantes rurais que entrevistamos.
mulatos e outras gentes de cor... Pobres demais para comprar escravos e
demasiado indolentes para o trabalho, preferem mor rer de fome. (Maximi-
liano : )
Uma palhoça imunda, tendo em volta uns pés de banana maltratados, uma
roça de feijão e mandioca, umas cabeças de gado e alguns cavalos magros, que
buscam eles próprios a subsistência, eis a mais alta aspiração desses matutos.
Alimentam-se com ervas, carne-de-vento, leite, requeijão e, durante o tempo
das frutas, sobretudo com as do imbuzeiro [...]. (Spix e Martius, , v. : )
E os sábios alemães se espantam que, num país tão opulento como o Bra-
sil, a população viva em tal miséria e se ache bem.
O povoamento da região Sul, após fracasso do cultivo de cana-de-
açúcar em São Vicente, não se fez de modo diverso. Inicialmente, o for-
necimento de escravos indígenas para as plantações deu origem às ati-
vidades de apresamento, que se desenvolveram paralelamente a uma
economia de subsistência. Mais tarde, com a for mação da economia
mineira, expandiu-se a criação, especialmente nas zonas mais meridio-
nais. Em São Paulo, após o ciclo do ouro, com a retração do mercado e
o refluxo da população das minas, o povoamento de grande parte da
província se desenvolveu dentro de um sistema de economia quase fe-
chada, espalhando-se por grandes extensões de terra, em núcleos isola-
dos e auto-suficientes.3 No extremo sul, as condições são algo diferentes,
. Como aponta o mesmo autor, “A expansão da economia nordestina, durante este longo
período [...], consistiu, em última instância, num processo de involução econômica; o setor
da alta produtividade ia perdendo importância relativa e a produtividade do setor pecuário
declinava na medida em que este crescia. Na verdade, a expansão refletia apenas o cresci-
mento do setor de subsistência, dentro do qual se ia acumulando uma fração crescente da
população” (Furtado : -).
. Celso Furtado chama a atenção para o fato de que a formação da economia cafeeira se pren-
de em grande parte à disponibilidade de mão-de-obra criada pela decadência da mineração >
porquanto a criação de gado se organizou lentamente na indústria do
charque (F. H. Cardoso ). Mas, nas zonas florestais, até a vinda dos
alemães e, mais tarde, coexistindo com eles, espraiou-se uma tênue capa
de população cabocla, que cultivava o solo com as técnicas mais rudi-
mentares (Willems ; Queiroz ).
Na região central, com o colapso da mineração, observa-se fenôme-
no semelhante de involução econômica. Parte da população reflui para o
litoral; decaem os núcleos urbanos; o mercado se contrai. A população
que fica se dispersa pelas grandes distâncias, recriando as condições que
dão origem à economia de subsistência (Furtado : -ss).4
O Maranhão, antes e depois do breve surto de prosperidade decor-
rente do cultivo do algodão, desenvolveu um sistema econômico seme-
lhante ao paulista, centrado no apresamento e na economia de subsistência.
Na Amazônia, a expulsão dos jesuítas levou à desagregação dos
núcleos das comunidades missionárias, à dispersão populacional e à
generalização da economia de subsistência na população cabocla, para-
lelamente à introdução de novas for mas espoliativas de utilização da
mão-de-obra nativa (Prado : -ss).
No fim da época colonial, portanto, apesar de surtos regionais de
produção ou exploração de produtos comerciais nas mais diversas
áreas, a ocupação de grande parte do território nacional havia sido feita
por uma população predominantemente livre, dedicada em parte à agri-
cultura, em parte à criação, voltada para uma economia de subsistência,
mantendo relações precárias com as áreas urbanas e as áreas de produ-
ção agrícola mercantil. Essa população cobre, de modo ralo e pouco
unifor me, quase toda a região Sul e o interior do estado de São Paulo,
> (Furtado : ). Mas trata-se, nesse caso, da mão-de-obra escrava. Havia também, é
verdade, uma disponibilidade de empresários. Mas, independentemente desse fato, homens
livres, portugueses ou nacionais, mulatos ou libertos refluem pelos antigos caminhos e se
instalam no interior do estado, onde só muito mais tarde seriam alcançados pelo café. Essa
movimentação continua durante o século pela movimentação de criadores e plantadores
de fumo, mineiros que penetram no sertão paulista (Monbeig : -ss).
. Como observa Antonio Candido (Candido :), “a fixação generalizada do paulista
ao solo, em seguida ao fim dos ciclos bandeirantes, no século , fez com que se espraiasse
pela capitania, até os limites do povoamento, uma população geralmente marcada pelas
características acima definidas. Um lençol de cultura caipira, com variações locais, que
abrangia partes das capitanias de Minas, Goiás, e mesmo Mato Grosso. Cultura ligada a for-
mas de sociabilidade e de subsistência que se apoiaram por assim dizer em soluções mínimas,
apenas suficientes para manter a vida e a coesão dos bairros”.
trução de cercas ou de casas mais sólidas, podiam redundar, como de fato
muitas vezes redundaram em fracasso completo” (id. ibid.). Assiste-se
portanto a um verdadeiro despojamento cultural.
Este trecho demonstra claramente a necessidade do emprego de
métodos primitivos na agricultura de subsistência, em regiões geral-
mente cobertas de mata, de população escassa, sem capital ou possibi-
lidades de crédito. A perpetuação dessas condições é função do pró-
prio tipo de povoamento. Onde a população continua esparsa e longe
de centros urbanos, é impossível encontrar compradores para os pro-
dutos agrícolas que justifiquem a utilização de técnicas mais intensi-
vas.6 Na ausência de mercados a produção se atrofia. A per manência
dessas condições leva à perda definitiva das técnicas mais produtivas
que vão desaparecendo do equipamento cultural das gerações seguin-
tes.7 O processo repete-se em épocas e em regiões as mais diversas.
Saint-Hilaire já o havia notado em suas for mas extremas quando afir -
ma haver encontrado, em Goiás, “descendentes de portugueses que,
refugiados nos desertos, chegam até a perder os mais elementares
princípios de civilização: as idéias religiosas, o hábito de contrair
uniões legítimas, o conhecimento da moeda e do sal” (Saint-Hilaire
op.cit.: , nota ).
Nas colônias alemãs, a conservação do equipamento tecnológico
original só se deu nas áreas onde levas sucessivas de migrantes permi-
tiram uma concentração maior de população. Disso resultou não só a
formação de pequenos núcleos urbanos e uma incipiente divisão do tra-
balho, como também a constante reintrodução de técnicas que os imi-
grantes mais antigos já haviam abandonado e em parte esquecido.
Sem isso, uma vez estabelecido o padrão de cultivo extensivo no
solo tropical, a rápida exaustão das terras e a abundância de mata virgem
levam à agricultura itinerante e ao nomadismo da população, que se torna
assim cada vez mais esparsa, perpetuando as condições que deram origem
à sua formação. Daí o processo de perda cultural, o caráter de cultura de
mesmo insuficiente para a obtenção de tudo aquilo de que se precisa.
Cria-se assim uma situação de pobreza que se manifesta na construção
das casas, na quantidade e qualidade dos instrumentos e utensílios
domésticos, na roupa, isto é, na raridade de tudo aquilo que não possa
ser produzido diretamente com técnicas ao alcance de todos.
Itaipava apenas reproduziu o que aconteceu no Nordeste com a
decadência do açúcar, o que se passou em Minas Gerais e em São Paulo
após o declínio da mineração, o que ocorreu no Maranhão com o colapso
da agricultura do algodão, o que voltou a ocorrer em São Paulo na zona
abandonada pelo café. Assim, à população que jamais saiu da economia de
subsistência, soma-se a que retorna a ela após uma prosperidade efêmera.
Desse modo, o processo de povoamento do território brasileiro,
para além da área da grande lavoura, levou à exploração extensiva do
solo e à rarefação da população que, por sua vez, criaram condições de
pobreza cultural. Uma vez estabelecidas, essas condições tenderam a se
perpetuar.8 Sobre a base do patrimônio cultural comum, conservaram-
se, por toda parte, apenas as instituições indispensáveis à manutenção
de um nível vital mínimo e de um mínimo de sociabilidade como mos-
tra Antonio Candido no seu estudo sobre caipiras paulistas (Candido,
). Esse mínimo de sociabilidade se estabelece pelo parentesco e
compadrio como princípio de organização social, do mutirão e troca de
dias como for mas de cooperação econômica, configurando os grupos
de vizinhança que constituem a unidade por excelência da vida social
cabocla. Do ponto de vista econômico, essa população se apresenta
como um conjunto de produtores autônomos, que consome grande
parte do que produz e se insere marginalmente no mercado.9
. “A economia fechada não é particular a determinadas regiões mais atrasadas do país; por
toda parte se encontra, de mistura com as grandes propriedades de agricultura comercial,
chegando até a beira das grandes cidades, numa distribuição inteiramente irregular. Ainda
há meia-dúzia de anos às portas da metrópole que é São Paulo, caboclos viviam praticamen-
te em economia fechada em Santana do Par naíba, no Embu, em Guarulhos. Nos vales do
Paraitinga e do Paraibuna, na região da Serra de Botucatu, na zona de Itapetininga e muni-
cípios vizinhos, por toda parte é forte ainda o índice da agricultura de subsistência, e o esti-
lo de vida segue o mesmo esquema básico – salvo peculiaridades regionais – do que encon-
tramos no Nordeste seco, no médio São Francisco, na região serrana do Paraná e de Santa
Catarina e assim por diante” (Queiroz : ).
. Não há uma designação unifor me para esta população que se caracteriza pela produção
direta da subsistência (trata-se de produtores autônomos em uma economia quase fechada),
pela participação em uma ordem social tradicionalista e pela organização dos grupos locais >
No Brasil rural, o trabalho agrícola foi e é, essencialmente, uma
atividade familiar. Excetuam-se apenas, no período colonial, o trabalho
escravo e, recentemente, uma reduzida proporção de verdadeiros pro-
letários agrícolas que encontramos em empresas capitalistas altamente
especializadas, como algumas usinas de açúcar.
Mas, mesmo hoje, quando são maiores as oportunidades de trabalho
para o indivíduo isolado, é comum que o contrato de trabalho envolva
todo um grupo familiar, representado pelo seu chefe. Para os produtores
autônomos (sitiantes, parceiros, posseiros), que não podem pagar assala-
riados (e antes não podiam comprar escravos), a família foi sempre a uni-
dade produtiva mínima, fora da qual não há vida econômica estável.
Aliás, os estudos sobre o Brasil sempre salientaram a importância
da família como unidade socioeconômica, mas atribuíram importância
fundamental à família patriarcal extensa como forma típica tradicional
de organização do grupo doméstico. Entretanto, os trabalhos de campo
apontam claramente a predominância da família conjugal na população
de trabalhadores rurais, entre os quais poderíamos esperar encontrar
preservadas formas tradicionais de organização familiar. Essa aparente
contradição entre os dados dos trabalhos de campo e o resultado das
análises sociológicas globalizadoras deve-se, ao que parece, ao papel
que a família das classes dominantes desempenhou como foco de aten-
ção dos estudos sociais. Os trabalhos sobre a sociedade brasileira tradi-
cional sempre acentuaram a dicotomia entre senhores e escravos como
base da organização social. Desse modo, a organização familiar se ca-
racteriza, de um lado, pela família patriarcal própria das classes domi-
nantes, de outro, pela ausência de família regular mente constituída na
plebe e na população escrava (Candido ; Buarque de Holanda ;
Freyre ; Oliveira Vianna etc.). A família conjugal é concebida
geralmente como um desenvolvimento recente, conseqüência da urba-
nização. Entretanto, os estudos de comunidade realizados em diferentes
regiões do Brasil, assim como as dezenas de entrevistas que realizamos
com migrantes provenientes da zona rural, comprovam sobejamente a
predominância da família conjugal nas camadas inferiores da sociedade
rural, mesmo naquelas regiões onde persistem formas arcaicas de orga-
nização social.10 Formas mais complexas de organização familiar encon-
. Sobre a predominância da família conjugal na zona rural consulte-se, entre outros,
Araújo ; Costa ; Harris : -ss; Wagley : -ss; Willems : .
. A não ser no caso dos descendentes de imigrantes. Entre os italianos que se encaminharam
para a lavoura de café paulista, por exemplo, é possível comprovar a progressiva fragmenta-
ção das famílias extensas e sua substituição por famílias conjugais (Durham ).
dade já é exígua demais para novas subdivisões, caso freqüente hoje em
dia, o regime de “posse em comum”, muitas vezes adotado, é apenas
um expediente legal. Dentro da terra “em comum”, os diferentes her-
deiros cultivam separadamente parcelas individuais do terreno.12
A tendência à segmentação do grupo doméstico, que se dá quando
os filhos atingem a maturidade (e a atingem precocemente), assim como
o fenômeno correspondente de fragmentação da propriedade, são abun-
dantemente documentados nas nossas entrevistas. Quando se trata de
proprietários ou arrendatários, a independência dos filhos se manifesta
economicamente com a separação, pelo pai, de um pedaço de terra que
o jovem passa a cultivar por conta própria, e do qual controla o ren-
dimento. Alter nativamente, quando a terra é por demais escassa, ou
quando se trata de parceiros ou empregados, o jovem manifesta sua
independência ou arrendando terras por conta própria, ou estabele-
cendo um contrato de trabalho individual, ou migrando para outras
regiões. Como o casamento também ocorre muito cedo, esta fase coin-
cide geralmente com a formação de uma nova unidade doméstica que,
de preferência, passa a habitar residência separada.
Vê-se portanto como a tendência à segmentação da família corres-
ponde, de um lado, à fragmentação da propriedade pela sua divisão entre
os herdeiros, de outro, à fragmentação dos grupos locais pela migração
dos filhos em busca de acesso às terras. Manifesta-se assim, no processo
de constituição das famílias conjugais, o individualismo que per meia a
vida social, valorizando a independência do homem adulto.
Na verdade, essa independência nunca é total e nem sempre se rea-
liza sem conflitos. Especialmente nos casos em que o jovem trabalha em
terras do pai ou do sogro, é comum que se exija dele que continue a par-
ticipar do trabalho coletivo (pelo qual não recebe paga individual),
lavrando a terra da família de origem além da sua própria. Essa exigên-
cia é, aliás, um dos motivos que podem levar um novo casal a preferir
morar longe dos pais, conforme depoimentos dos informantes. Apesar
disso, é necessário admitir que a existência de padrões relativamente
rígidos de superordenação de gerações é concomitante à de padrões que
asseguram a independência dos adultos de sexo masculino, promoven-
do a fragmentação das unidades domésticas.13
. Sobre a terra “em comum” cf., entre outros, Willems : -ss e Harris : -ss.
. Para a comprovação censurária desse fenômeno na atualidade ver Costa Pinto : .
. A exposição que se segue foi baseada em dados obtidos nas entrevistas com os migrantes
e na bibliografia sobre comunidades rurais. Achei desnecessário documentar bibliografica-
mente cada item, o que multiplicaria desnecessariamente as citações. Fi-lo apenas quando a
bibliografia é particularmente esclarecedora. Utilizei, principalmente Willems ; Willems
& Mussolini ; Harris ; Candido ; Castaldi ; Costa ; Araújo ; Wagley
; Queiroz ; Altenfelder Silva .
. Não é objetivo deste trabalho investigar a origem dos padrões que regulam a vida fami-
liar, mas parece fora de dúvida que o padrão de dominação masculina e todo o complexo
cultural a ele associado (a submissão da mulher, a importância da castidade pré-nupcial
feminina) derivam da família portuguesa, não demonstrando influência apreciável de ele-
mentos culturais indígenas ou africanos. Ver, a este respeito, Willems .
seu trabalho não conta como trabalho autônomo, mas apenas como ajuda
prestada ao pai.16 A dominância paterna não exclui, entretanto, certa ini-
ciativa e autonomia da mulher na execução das tarefas domésticas, que
deriva da divisão sexual de trabalho. Os padrões ideais da cultura rural
tradicional preconizam uma divisão de trabalho relativamente rígida,
que atribui ao grupo masculino (pai e filhos) a execução das tarefas
extra-domésticas, e tende a confinar os trabalhos femininos no âmbito da
casa. Desse modo, os filhos homens são considerados, junto com o pai, o
elemento produtivo por excelência do grupo doméstico. Caberiam às
mulheres (mãe e filhas) o cuidado da casa e dos membros não-produti-
vos da família (crianças, velhos e inválidos), o preparo de alimentos, a
confecção do vestuário. Caber-lhes-ia também o cuidado da criação de
quintal (aves e porcos) e da horta. Na expressão de Carlos Schmidt, “no
meio rural, as mulheres não trabalham nas roças, ou antes, o trabalho
feminino se dá em escala diferente da do masculino. A mulher fica em
casa ou trabalha perto dela a maior parte do tempo” (Schmidt : ).17
Na verdade esse padrão é antes ideal do que real, e a mulher é mão-
de-obra de reserva, que só tende a ser desligada das atividades agrícolas
quando as necessidades de trabalho são menores, quando o grupo mas-
culino é muito numeroso, ou quando é possível pagar assalariados. Isto
quer dizer que a restrição das atividades femininas aos afazeres domés-
ticos só é possível quando há diversos filhos ou adolescentes de sexo
. Nas entrevistas, o trabalho que o jovem realiza com o pai jamais é mencionado na des-
crição das atividades ocupacionais. A atividade agrícola só é incluída pelo migrante na
descrição da carreira quando é exercida como atividade autônoma, isto é, como trabalho do
indivíduo adulto. Isto parece indicar que as crianças e adolescentes não são considerados
como trabalhadores mas apenas como mão-de-obra familial.
. Deve-se também levar em consideração que a dominância masculina pode ser mais for-
mal que real. Observam-se freqüentemente casos em que as mulheres assumem a liderança
de um grupo doméstico ou mesmo assumem papéis tipicamente masculinos. É o caso, por
exemplo, de certas figuras femininas do cangaço, que combatiam ao lado dos homens. O mes-
mo fenômeno observa-se tanto no plano do real como no universo representativo (neste
caso, no folclore). Em um plano um pouco diferente, é o caso também das “virgens”, figu-
ras importantes de videntes nos movimentos messiânicos. Poder-se-ia supor, na base desses
exemplos, que à mulher é dado assumir papéis masculinos em situações especiais, e quando
não exerce a função de esposa. Os casos de líderes femininas parecem sempre referir-se a
viúvas, “companheiras” ou “virgens”, mas nunca a esposas. Creio que, quando casadas,
mesmo as mulheres de grandes iniciativas tendem a canalizar sua influência através dos
maridos. Nesse sentido, a dominação masculina parece constituir elemento essencial do
grupo doméstico regular e às mulheres é dado maior liberdade apenas fora dessa situação.
A fragmentação de um grupo doméstico é portanto um processo
inexorável, mas gradual, por causa da diferença de idade entre os filhos.
Por outro lado, as unidades desmembradas do grupo original estabele-
cem freqüentemente for mas estreitas de cooperação com a família de
origem, pelo menos até o seu desenvolvimento completo, quando con-
tam novamente com adultos e adolescentes, além de crianças. São as
dificuldades de produção das famílias com filhos pequenos que favore-
cem a per manência de relações de ajuda mútua com a família de ori-
gem. Na verdade, a estrutura da família conjugal só pode ser entendida
como um ciclo que envolve, nas suas diversas fases, processos centrípe-
tos e centrífugos. Economicamente, essas fases se caracterizam como
uma alternância de abundância e de carência de mão-de-obra.
Embora os padrões de cooperação interfamiliar assegurem uma
passagem relativamente fácil entre as diferentes fases do ciclo, não há
padrões que possam evitar a desorganização que ocorre necessariamen-
te nos casos relativamente freqüentes de morte precoce, abandono ou
incapacidade de um dos cônjuges. A integração funcional da família e a
interdependência entre pai, mãe e filhos evidenciam-se particularmente
nesses casos de desorganização da unidade doméstica.
A morte ou incapacidade do pai, por exemplo, provoca quase que
necessariamente a dispersão da família e incorporação dos membros
em outras unidades domésticas. O grupo só poderia sobreviver como
unidade quando houvesse filhos adultos, pois a mãe não conseguiria
exercer as atividades domésticas e produtivas simultaneamente, a não
ser em casos excepcionais. Mas, mesmo neste caso, é comum a desor-
ganização do grupo, pois a figura do pai envolve uma posição de auto-
ridade que raramente um irmão pode assumir sem criar conflitos e res-
sentimentos que tendem a fracionar a família. Nesse sentido, a mãe é
mais facilmente substituída por uma irmã mais velha. Ainda assim,
quando há muitas crianças, a morte da mãe em geral ocasiona a distri-
buição dos filhos entre parentes. Em outros casos, é o casamento sem
demora do cônjuge viúvo que recompõe o grupo doméstico, embora
essa solução não exclua a dispersão de pelo menos parte dos filhos do
leito anterior.
A freqüência com que encontramos hoje em dia famílias que in-
cluem parentes mais distantes como parte do grupo doméstico (em
geral avós, sobrinhos, tias ou netos) não pode ser interpretada como
sobrevivência ou resquício de famílias extensas, que teriam existido em
O GRUPO LOCAL
. Antonio Candido () utiliza a palavra “bairro”, de uso corrente em São Paulo, para
designar o grupo de vizinhança, tal como ocorre na área paulista. Castaldi () emprega o
mesmo termo para o grupo que estudou em Minas Gerais. Como o termo não é de uso cor-
rente em outras áreas, prefiro empregar a designação mais ampla de “grupo de vizinhança”
ou “grupo local”.
“tinham lá muitos parentes e amigos”, “juntavam os vizinhos para o
mutirão”, “encontravam os parentes e os amigos nas festas”. Esse tipo
de infor mação denota uma certa fluidez das relações sociais, mas não
exclui (e mesmo implica) a existência de grupos de vizinhança relativa-
mente per manentes. Mas os componentes desses grupos, as famílias
conjugais, são unidades relativamente autônomas, e as relações grupais
se apresentam portanto como relações interfamiliais. A análise desses
agrupamentos pode ser empreendida com a ajuda da bibliografia, per -
mitindo a elucidação das infor mações algo imprecisas e fragmentárias
prestadas pelos migrantes.
Economicamente, o grupo local se apresenta como unidade de
cooperação interfamilial. Como observa Antonio Candido, o mato que
recobre o solo e a técnica da queimada tornam extremamente precária a
ocupação num estado de completo isolamento, “enquanto é pratica-
mente impossível a um lavrador que só dispõe da mão-de-obra domés-
tica dar conta do ano agrícola sem cooperação vicinal” (Candido :
). Criam-se assim os grupos de vizinhança.
Mas se, de um lado, é bastante difícil a exploração do solo por
famílias isoladas, de outro, a extensão das terras necessárias a cada
grupo de vizinhança, pela necessidade de explorar continuamente ca-
poeiras altas ou terras virgens, parece tornar antieconômica a formação
de unidades muito amplas ou muito densas. Favorece-se deste modo a
fragmentação dos grupos de cooperação econômica em outras unidades
independentes do mesmo tipo. A esse fenômeno, que se processa no
nível do grupo de vizinhança, corresponde a fragmentação das unida-
des domésticas.
Os novos grupos de vizinhança freqüentemente se for mam com
elementos de diversos núcleos mais antigos.
. A concretização dessas relações per mite distinguir, às vezes, conjuntos de família que
Antonio Candido denomina “blocos” (: -ss). Mas encontramos também, freqüente-
mente, uma tal multiplicação de laços de parentesco que o grupo local pode ser considerado
como um grupo de parentes (Castaldi : , , ). Os “claros” deixados pelo parentes-
co são, freqüentemente, preenchidos pelo compadrio (id. ibid.: -ss).
estáveis. Mas, estabelecendo um círculo amplo de relações pessoais que
extravasam os limites dos grupos de vizinhança, ele serve inclusive de
instrumento de mobilidade, pois os parentes constituem pontos de apoio
para o entrosamento possível em grupos de vizinhança diferentes.21
Assim mesmo, os vínculos de parentesco mais estreitos constituem
os laços de solidariedade mais fortes na organização do grupo de vizi-
nhança. Como nota Antonio Candido, em São Paulo, o
bairro, com efeito, podia ser iniciado por determinada família, que ocupava e
estabelecia as bases de sua exploração e povoamento. Com o tempo atraía
parentes, ou filhos casados se estabeleciam, bem como genros etc. E o apare-
cimento de novos bairros era, não raro, devido a subdivisões da propriedade,
numa paragem sobrecarregada de herdeiros, alguns dos quais buscavam opor-
tunidades no sertão, onde formariam novos bairros (Candido : ).
. Richard Adams aponta a generalidade desse sistema de relações na América Latina, mos-
trando ao mesmo tempo a utilidade de um sistema com essa flexibilidade em condições de
mobilidade espacial e social (Adams : -).
. Não utilizamos no trabalho a distinção proposta por Candido () entre compadrio e
compadresco; designamos por compadrio a totalidade da instituição e das relações sociais
que ela pressupõe.
. Ver também Wagley : -ss; Harris : -ss.
mente definidas. O parentesco limita-se a criar uma área de relações
preferenciais. O compadrio estabelece apenas vínculos recíprocos entre
as pessoas, duas a duas. Em ambos os casos, encontramos apenas um
conjunto de relações diádicas entre unidades autônomas.
Além desses laços, apenas a proximidade física, a simpatia pessoal
e a experiência comum de auxílios recíprocos, a familiaridade que brota
de convivência, se apresentam como fatores de solidariedade. Não há
institucionalização da chefia. O que existe é a liderança que decorre das
qualidades pessoais, da riqueza, ou da experiência individual e se mani-
festa como capacidade de exprimir o consenso coletivo. A simplicidade
da estrutura e a forma fluida da organização parecem constituir as
características fundamentais das comunidades rurais brasileiras.
INDI FE REN CIA ÇÃO ECO NÔ MI CA , PER SO NA LIS MO E INDI VI DUA LIS MO
O grupo local possui portanto uma organização fluida, e seus limites
freqüentemente não são bem determinados, quer no espaço, quer no
tempo. Na dimensão espacial, os grupos locais podem subdividir-se em
grupos de vizinhança ou agrupar-se em unidades maiores para atividades
especiais, como festas religiosas, mantendo freqüentemente relações inter-
vicinais baseadas em laços de parentesco ou compadrio. Na dimensão tem-
poral, o núcleo pode ganhar ou perder população devido à mobilidade dos
membros, evoluir para povoados e vilas, ou se desagregar e desaparecer.
Apenas as atividades lúdico-religiosas aparecem como manifesta-
ções mais plenas da comunidade como um todo. O culto, que freqüen-
temente envolve cerimônias sacras e profanas bastante complexas,
constitui uma das atividades mais organizadas da vida social cabocla.
A realização de um ciclo anual de festejos religiosos só é possível pela
constituição de uma associação relativamente diferenciada. As distintas
atividades necessárias para a organização das cerimônias são institucio-
nalizadas, dando origem a uma hierarquia de posições e de tipo de par-
ticipação na vida religiosa. Comumente podem-se distinguir o capelão
leigo, responsável pela organização do aspecto propriamente religioso
do culto, festeiros e mordomos encarregados da parte profana das festi-
vidades, “irmãos” que se comprometem a auxiliar economicamente o
culto (e que são freqüentemente divididos em categorias de acordo com
o montante da contribuição) e público em geral.25
Mesmo o terreno das manifestações religiosas não deixa de refletir,
em parte, o personalismo e o individualismo das relações comunitárias.
Além do culto do padroeiro local, que constitui a manifestação por
excelência da vida coletiva, os demais aspectos da vida religiosa se apre-
sentam como uma relação diádica entre o devoto e um santo particular.
A forma nor mal de estabelecer a relação com o sobrenatural é a pro-
messa, um contrato entre o crente e a divindade, que manifesta plena-
mente o mesmo caráter de reciprocidade direta característico das relações
entre pessoas de famílias diferentes.26
É importante notar, também, que mesmo a atividade religiosa cole-
tiva não corresponde estritamente aos limites do grupo local. A associação
que mantém o culto (ou irmandade, como é geralmente denominada) é
. Sobre variações na organização do culto ver, entre outros, Candido : -ss; Costa
: -ss; Wagley : -ss; E. Galvão ; Pierson : -ss.
. Ver a esse respeito E. Galvão .
As bases da dependência
que as envolve do que a uma evolução “inter na” de sua estrutura.
Desse modo, é necessário, para entender a natureza da crise que se
manifesta na sociedade rural, analisar o modo tradicional de inserção
dessas comunidades nas estruturas mais amplas.
A inserção das populações rurais tradicionais em sistemas socio-
políticos mais amplos e diferenciados não destrói necessariamente as
características fundamentais da organização dos grupos de vizinhança.
Muito ao contrário, sobrepõe-se a ela, por meio da elaboração de
padrões de dominação próprios de um sistema patrimonialista.
a posse de grandes glebas depende da possibilidade de manipular as for-
ças políticas de âmbito nacional que detêm o controle da legalização das
propriedades. Esse sistema favorece portanto a constituição e perpetua-
ção de um número relativamente pequeno de famílias poderosas, que
detêm o poder e possuem a terra. O sistema assim definido se estabelece
plenamente após a independência, quando a instituição do voto estrutu-
ra essas relações no plano político, e sitiante e posseiro ou agregado se
transformam em eleitores.27
Essa situação é muito bem ilustrada na análise que Maria Isaura
Pereira de Queiroz desenvolve da ocupação de região do Contestado
(entre o Paraná e Santa Catarina). Esta região foi procurada, no fim
do século , por algumas famílias de grandes fazendeiros vindos do
estado do Paraná, de onde se retiraram por questões políticas. Instalaram-
se numa região escassamente povoada por posseiros.
Ser o primeiro a chegar nas terras para assegurar sua propriedade e as distri-
buir entre outros homens, eis o que fazia o poder político de um grande chefe;
quanto mais terras tivesse um coronel, mais vassalos poderia ter, e quanto mais
vassalos tivesse nas suas terras, mais prestígio teria (Queiroz : -).
. Sobre esta questão consultar principalmente Leal , em especial o cap. . Ver também
Oliveira Vianna .
Desse modo, não só os homens livres sem terra, mas também os peque-
nos proprietários, tornam-se dependentes do grande fazendeiro, que é a
pessoa que garante o acesso à terra.
Assim, o estabelecimento do grande fazendeiro implica a implanta-
ção do poder político, que o fazendeiro controla, e ante o qual o caboclo
necessita de proteção. Ele obtém essa proteção aliando-se ao fazendeiro,
e a paga com lealdade pessoal. A relação é eminentemente personalista,
pois o acesso à terra (quer como parceiro, quer como proprietário)
depende da “boa vontade” do patrão, isto é, da natureza das relações
pessoais entre patrão e agregado. Cria-se uma relação social diádica
assimétrica que envolve a totalidade das pessoas e que implica, de um
lado, prestação de serviços, pagamento em espécie e lealdade; de outro,
proteção político-administrativa e fornecimento de terra.
não só no tratamento costumeiro, como na representação consciente do fazen-
deiro, o sitiante era “pessoa”, ao contrário do escravo. O reconhecimento
dessa qualidade se reforça, quando se faz ver que o tipo de ajustamento elabo-
rado entre eles mediante a dominação pessoal mobiliza fundamentalmente os
atributos requeridos e indispensáveis para a participação em uma associação
moral. (Moreira : )
. As observações de Maria Sylvia Franco Moreira sobre o vendeiro, embora se refiram a
uma situação particular (a sociedade cafeeira do Vale do Paraíba), podem ser generalizadas
para as comunidades tradicionais em geral. “Para que se chegue a compreender a real posi-
ção do vendeiro na sociedade senhorial brasileira é necessário enfatizar a sua condição de
único agente (embora a maior parte das vezes de modo muito rudimentar) ocupado em ati-
vidades comerciais e ao mesmo tempo inserido na vida comunitária. Convém ter presente
que o mercado de café (ou outro produto comercial como a cana, o gado, o algodão) e, por-
tanto, a economia monetária na qual se integra o grande proprietário, estava completamen-
te dissociado da vida local, transcorrendo suas operações nos centros urbanos. Também é
preciso lembrar que a produção estava ainda em boa medida organizada nas bases de uma
economia de subsistência, tanto inter namente às fazendas, quanto do ponto de vista de
sitiantes e jornaleiros da roça: estes pouco vendiam e apenas através de um trabalho esporá-
dico obtinham as pequenas quantias suficientes para suprir as suas reduzidas necessidades.
Isto faz do pequeno comerciante do bairro ou da beira da estrada o único, dentro do âmbito
da população rural, a manipular dinheiro de maneira mais ou menos constante e a depender
virtualmente desse fluxo” (Moreira : -).
e vendeiro sejam uma única e mesma pessoa, pela prática comum dos
fazendeiros de abrir armazéns nas fazendas ou nas cidades.29
As comunidades tradicionais definem para o homem um universo
personalista. São as relações primárias entre vizinhos, parentes e com-
padres, e as relações com o fazendeiro e o vendeiro do qual dependem,
que constituem a realidade social na qual se move o caboclo. As relações
impessoais são próprias do mundo exterior, que escapa ao seu controle
e entendimento. Por isso é que a sua relação com o mercado, a adminis-
tração, a política (como com a religião) é estabelecida por um interme-
diário com o qual podem manter laços pessoais. A clientela é uma insti-
tuição essencial do mundo rural tradicional, pois é através dela que o
trabalhador se integra na sociedade mais ampla da qual depende, mas
de modo indireto, mantendo seu isolamento e as características perso-
nalistas do seu universo.
A alternativa a essa forma precária de integração seria a destruição
da integridade e autonomia sociocultural relativa das populações mar-
ginais, provendo-a dos instrumentos culturais necessários à sua partici-
pação efetiva na sociedade nacional. A simples destruição dos padrões
tradicionais que marginalizam o grupo ou categoria da população não
promove sua integração real; a destruição desses padrões promove ape-
nas um processo de pauperização cultural, social e econômica, que torna
a população ainda mais indefesa e portanto mais dependente da relação
com o patrão, único elemento de comunicação com o mundo exterior
que ela não entende, mas sem o qual não pode mais existir,30 agravando
a situação da exploração.
O “patrão” se apresenta como um personagem cuja autoridade de-
riva de sua possibilidade de conhecer, interpretar e manipular o mundo
exterior. Essa autoridade, o “patrão” a exerce na medida em que parti-
cipa do universo comunitário, isto é, por meio do estabelecimento de
relações pessoais com os seus membros, pois é o vínculo pessoal que
garante a reciprocidade da relação. Como intermediário entre o caboclo
e a sociedade mais ampla, ao mesmo tempo em que exerce autoridade,
é também o protetor e o conselheiro ante esse mundo que representa.
. Como ilustração dessas relações e da utilização da venda ou armazém como instrumen-
to tradicional de dominação do fazendeiro, é interessante o livro de Lycurgo Santos, Uma
comunidade rural do Brasil antigo ().
. Sobre a análise da relação de clientela entre brancos e índios ver especialmente Cardoso
de Oliveira e Murphy .
zação social e do trabalho própria das sociedades complexas pré-indus-
triais. Desse ponto de vista, a população cabocla nacional se apresenta
na literatura antropológica como folk community ou, na tradução de
Antonio Candido, “comunidade rústica” e suas manifestações culturais
como “cultura rústica” (folk culture).32 Essas comunidades rústicas ou
folk communities se caracterizam pelo isolamento relativo e pela produ-
tividade limitada do sistema econômico, que está voltado em grande
parte para a produção direta da própria subsistência; culturalmente, elas
se apresentam como comunidades sem escrita, tradicionalistas e imbuí-
das de religiosidade. De modo geral, são comunidades onde predomi-
nam as relações primárias e a reciprocidade direta. Por outro lado, as
comunidades caboclas, como comunidades “rústicas”, caracterizam-se
pela dependência estrutural da sociedade mais ampla, nesse caso a
sociedade nacional. A afirmação de Foster sobre as sociedades rústicas
aplicam-se integralmente à sociedade cabocla: “uma sociedade rústica
não é, em si mesma, uma sociedade integral, um isolado. É uma ‘meia-
sociedade‘, uma parte de uma unidade social maior (geralmente uma
nação) que é estruturada vertical e horizontalmente” (Foster : ).
Nós tínhamos um sítio à meia. A irmã de meu pai morava em São Paulo, escre-
via para o pai vir. Dizia que aqui era melhor, todos iam ganhar mais. Na roça o
trabalho era duro e a gente não podia progredir. (meeiros em Minas Gerais)
Lá na minha terra quase não chove, ano dava, ano não. Lá tem muita misé-
ria. A gente não estava bem na casa do pai, muita boca para sustentar, o pai
não tinha nada para dar. O povo contava que em São Paulo tinha trabalho
para quem queria... O pai deu o dinheiro da viagem e a bênção, eu vim. O di-
nheiro ele arranjou vendendo uma novilha que o padrinho deu para o meu
irmão menor. (parceiro em Sergipe)
A lavoura não estava dando, a vida estava ficando muito difícil. No Espírito
Santo pagam muito pouco, quase não há serviço. Resolvemos mudar [para a
cidade] para ver se as coisas melhoravam. (meeiros no Espírito Santo).
Mudamos muitas vezes de fazenda, nem lembro mais. A gente mudava para
procurar melhor alojamento, terra melhor para trabalhar, para ganhar mais.
Meu pai não estava contente. A vida era difícil, a gente trabalhava muito,
ganhava pouco, vivia mal. Outros lavradores tinham vindo para São Paulo...
Meu pai se foi convencendo que o único jeito de melhorar de vida era vir para
São Paulo. Aqui os filhos podiam trabalhar, se empregar melhor, ganhar
mais. (colonos de São Paulo)
A vida era difícil, um ano rendia muito, outro dava prejuízo. Meu pai teve que
vender o sítio e começamos a trabalhar como colonos na fazenda. Aí começou a
nossa decadência. Meu irmão resolveu vir para São Paulo para ver se melho-
raria de vida. (família de sitiantes, depois empregados em Minas Gerais)
. Para uma descrição desse processo, consultar especialmente Candido : -ss.
noutro perdia tudo”; “a gente ficava na dependência da chuva”. A incerte-
za da produção e, conseqüentemente, a precariedade do rendimento, não
são atribuídas a erros ou a incapacidade humana, mas a fatores naturais
que estão fora da possibilidade de controle do homem. Isto é especialmen-
te verdadeiro para os produtores autônomos, que são levados a definir a
produção como resultado direto de uma relação entre o homem e a terra,
e não como algo que dependa de relações de produção. Desse modo defi-
ne-se um universo imutável, pois a técnica se apresenta como constante e
as relações sociais como exteriores à atividade produtiva. Nessas condi-
ções, a melhoria de vida só pode ser concebida como abandono desse uni-
verso e integração em um sistema diferente, que ofereça melhores oportu-
nidades. A oportunidade é pois dada ao trabalhador, e não criada por ele.
Para os assalariados a perspectiva é diferente; para eles “a vida é
difícil” porque “ganham pouco”, “não há emprego”, “pagam mal”.
Nesse caso, as condições de existência derivam diretamente de relações
de produção que se impõem sob a forma de salário. Mas, de qualquer
modo, a situação ainda é vista como “exterior” à ação individual, pois o
nível de salários se apresenta como uma realidade que escapa às possi-
bilidades de controle do trabalhador. Esta situação parece prender-se à
marginalização do produtor em relação à sociedade na qual se insere
tangencialmente; as condições que decorrem de forças exteriores à
comunidade são tão “naturais”, porque caprichosas e incontroláveis,
quanto a própria natureza.
Desde que tanto as condições de produção quanto o nível de salá-
rio estão fora da possibilidade de ação e controle do trabalhador, o
aumento de renda necessário para melhorar as condições de vida só
pode resultar de uma intensificação do trabalho.
Apesar das transformações que estão ocorrendo, a sociedade rural
continua a ser uma sociedade pouco diferenciada, com enorme predo-
minância de trabalhadores não-especializados. Como prevalece a técni-
ca mais rudimentar, não há diversificação da atividade produtiva, não
há tipos diferentes de trabalho e, conseqüentemente, não existem tipos
diferentes de trabalhadores. A não ser muito recentemente, e em re-
giões restritas, a única diferenciação possível é a que existe entre traba-
lho propriamente dito e supervisão do trabalho. Assim, o aumento da
produção só pode ser visto como resultado de um aumento da quanti-
dade de trabalho, e não da transformação da qualidade do trabalho. Daí,
inclusive, a depreciação da escola, que não constitui um instrumento de
ou quantidade de dinheiro) se afigura ao trabalhador rural como a única
forma imediata de “melhorar de vida”, isto é, de obter uma renda mais
elevada. É importante considerar que a aquisição de terra não só é
necessária para a ascensão dos assalariados ou parceiros, como também
é indispensável à manutenção do status dos sitiantes, em geral de prole
numerosa. Para os filhos de sitiante, a impossibilidade de aumentar a
propriedade significa a fragmentação no minifúndio, a passagem para
a condição de parceiro ou assalariado, ou a emigração.
Na sociedade tradicional, a passagem à condição de proprietário
podia ser realizada por meio de laços pessoais, isto é, da proteção dos
poderosos; a doação de terras por serviços prestados ao patrão ou “coro-
nel” constituía o modo de ascensão social característico daquele universo
patrimonialista. Mas a aquisição de propriedade, nas condições atuais, só
é possível pela compra, e exige a acumulação prévia. Como a produção
agrícola é, em geral, incapaz de produzir excedentes, resta o recurso tra-
dicional de exercer outra atividade que, ao contrário da agricultura, seja
capaz de gerar capital: a atividade comercial. Tanto para o proprietário
que abre um armazém na fazenda, como para o sitiante ou parceiro que
vende em consignação nas cidades ou nas feiras, a atividade comercial é,
por excelência, a atividade geradora de capital. Como observa Maria
Isaura Pereira de Queiroz,
a terra lhes for nece de que viver; para ter algo mais os camponeses fazem
“negócios”. [...] A afluência e a riqueza são sempre devidas à habilidade, à
esperteza nos negócios, à sorte. A ascensão social representada pelo ingresso no
comércio ou por uma melhoria qualquer de nível de vida não pode jamais ser
o resultado de uma economia impossível; são os negócios que a podem produ-
zir. (Queiroz : ).
de trabalho, quando são escassas as possibilidades de ascensão social.
A busca constante de melhores condições de vida nessa sociedade só
pode se manifestar no deslocamento geográfico, que procura aprovei-
tar as variações regionais numa situação geralmente insatisfatória.
Numa cultura de mínimos vitais, qualquer variação nas condições de
trabalho, expressa em diferenças climáticas ou de solo, ou mesmo em
variantes de benevolência ou severidade do patrão, representa freqüen-
temente a diferença fundamental entre a subsistência e a fome. É este
fator que torna a mobilidade uma característica tão generalizada da vida
rural brasileira.
O trecho de entrevista que citamos a seguir ilustra essa movimen-
tação constante, e é excepcional apenas pela abundância de detalhes que
contém. Em geral, os infor mantes limitam-se a afir mar que mudaram
tantas vezes que “perderam a conta”.
A família era constituída pelo pai, mãe, quatro filhas e seis filhos,
colonos em fazenda de café em Ribeirão Preto.
Quando casou minha irmã mais velha, éramos colonos na fazenda Guatapa-
rá. Minha irmã veio para São Paulo com o marido tentar a vida. Logo depois
veio também um irmão meu. Na mesma fazenda moravam também meu avô
e um tio (irmão do pai). Nessa época [] os filhos já eram grandes e meu
pai resolveu tocar terra à terça. Achava que podia ganhar mais. A família do
meu avô e do meu tio foram também. Lá é comum os parentes trabalharem na
mesma fazenda. Quando um sai, os outros vão junto. Depois de uns dois
anos, a fazenda foi loteada e tivemos de sair. Fomos para a fazenda Capão
das Cruzes. Lá trabalhamos como empregados; dois dos meus irmãos lidavam
com o gado, e ganhavam por mês; meu pai, no corte de madeira, recebia por
tarefa. Os menores ajudavam como podiam. Nesse tempo minha irmã ficou
viúva em São Paulo com duas crianças e voltou com meu irmão, que não
tinha se acostumado com o trabalho. Como o serviço de madeira era perigoso
e não tinha ocupação para as irmãs, o pai resolveu mudar para a fazenda
Figueira. Não ficamos nem um ano em Capão das Cruzes. Fomos todos,
menos um irmão, que continuou trabalhando com gado lá mesmo. Na Figuei-
ra ficamos uns cinco anos, como colonos. Minha irmã viúva casou outra vez e
ficou morando junto conosco. Gostamos muito daquela fazenda; a gente podia
plantar mantimentos no cafezal e o fazendeiro ainda dava terra para plantar.
Quando venderam a fazenda fomos embora. O cafezal estava velho e corta-
ram quase todo ele. Fomos tocar terra à meia na fazenda Santo Antônio. Meu
(como mostramos anterior mente). Se a região não oferece possibili-
dades de emprego para essa mão-de-obra, estabelecem-se movimentos
cíclicos recorrentes, com o que o sitiante ou parceiro provê de braços a
colheita da cana-de-açúcar no Nordeste. Trata-se aí, em grande parte,
de sitiantes e parceiros da zona do Agreste que complementam sua
renda por meio desse tipo de emprego temporário.34
Para os trabalhadores que participam desse sistema econômico tão
precário, no qual sitiantes e parceiros estão freqüentemente endividados
com o patrão, a migração temporária, mais ou menos prolongada, pode
se colocar também como forma de capitalização. Os salários relativa-
mente mais altos pagos na colheita dos produtos de exportação (como a
cana, o café ou o algodão), ou na for mação de plantações nas zonas
novas apresentam-se como uma possibilidade de for mar um pecúlio
suficiente para financiar a produção, pagar as dívidas ou adquirir um
lote de terra na zona de origem.
Nas zonas novas, a fertilidade das terras virgens e a ausência inicial
de pragas per mitem, freqüentemente, uma produção compensadora
mesmo para os parceiros ou rendeiros.35 Entretanto, o cultivo continua-
do passa a exigir, depois de algum tempo, técnicas mais desenvolvidas, e
as relações de trabalho se modificam; a terra é transfor mada em pasto,
sendo expulsos os trabalhadores para outras regiões novas. Em condições
favoráveis, a migração temporária atinge seus objetivos, per mitindo ao
trabalhador a formação de um pecúlio, embora as despesas de viagem, as
solicitações para aquisição de produtos industriais e toda sorte de impre-
vistos tornem a empresa improvável. Mesmo assim, o recurso é precário,
porquanto a situação anterior não se modificou e os mesmos problemas
tornam a se manifestar, forçando o trabalhador a uma nova migração.
Apesar de existirem circunstâncias especiais nas quais o trabalha-
dor consegue se estabelecer como sitiante, a expansão da economia
capitalista no campo age realmente no sentido de transformar o traba-
lhador rural em um proletário agrícola muito mal pago.
. Para a constatação dessa situação em São Paulo, ver Schmidt ; para a Bahia, H. Hut-
chinson ; para o Nordeste todo, M. Andrade .
. Isto se verificou, por exemplo, na cultura do algodão na região de Presidente Prudente,
que continua a ser centro de imigração temporária na época da colheita. Ver a esse respeito
a análise de Castaldi sobre a migração dos componentes de um grupo de vizinhança de
Minas Gerais (Castaldi ).
que implique a cooperação voluntária de grupos relativamente amplos.
O trabalho assalariado nas grandes empresas agrícolas destrói as rela-
ções tradicionais, tanto as de vizinhança como as de clientela, e o traba-
lhador se vê isolado e desprotegido, pois não conta com recursos cultu-
rais que lhe per mitam refor mular suas reivindicações em ter mos de
classe. Isto só se dá quando o agravamento das condições de vida se alia
à propaganda revolucionária que emana dos centros urbanos, como foi
o caso da Zona da Mata, no Nordeste (Furtado : -ss).
Para os trabalhadores agrícolas que, em São Paulo, são expulsos
das fazendas e se transformam em volantes, a emigração para a cidade
se torna compulsória. Neste caso, dado o nível extremamente baixo dos
salários e a falta de garantia de trabalho constante, a única possibili-
dade de superar sua condição de miséria consiste em conseguir um
emprego urbano. Este objetivo freqüentemente só pode ser atingido por
meio de migrações ulteriores para centros maiores, onde existem mais
ofertas de emprego.
Nesse sentido, a emigração para a grande cidade é mais vantajosa,
pois o trabalhador já encontra instituições que podem orientar o pro-
cesso de sua re-socialização. Mesmo quando ele não se integra efetiva-
mente nessas instituições (sindicatos, organizações assistenciais), delas
se beneficia indiretamente por meio das reivindicações de classe, o que
favorece seu ajustamento, melhorando suas condições de vida e abrin-
do novas possibilidades de ascensão para as gerações subseqüentes.
Esses benefícios, o trabalhador rural os percebe como “vantagens” da
cidade: possibilidade de salários elevados, possibilidade de assistência
médica, possibilidade de instrução para os filhos. No campo, ao contrá-
rio, não há instituições das quais possa beneficiar-se, nem conta ele com
recursos culturais que lhe permitam criá-las.
É importante considerar também que, desde que se constitui uma
tradição de emigração, ela passa a ser uma solução “natural” para todos
os tipos de problemas, inclusive para as tensões características do pró-
prio funcionamento “normal” da vida tradicional. Conflitos familiares,
desorganização do grupo doméstico por morte ou abandono de um dos
cônjuges, que sempre foram fontes de tensão da vida comunitária, pas-
sam a ser resolvidos pela emigração das pessoas envolvidas.
Generaliza-se assim um intenso movimento de população, no qual
se manifesta o processo doloroso de transformação de uma sociedade.
* Publicado como “Migrantes nacionais”, in J. Marcondes & O. Pimentel (org.). São Paulo:
espírito-povo-instituições. São Paulo: Pioneira, .
Esta migração para São Paulo afeta todas as unidades da Federa-
ção, e deve ser examinada não como um fenômeno isolado, mas como
um aspecto de um processo de redistribuição demográfica que abrange
todo o país.
A falta de dados estatísticos atualizados tornou difícil a apreciação
do desenvolvimento recente deste movimento. Na época da pesquisa,
nos anos , fomos forçados a apreciá-los à luz dos dados do recensea-
mento de . Para esta data, isto é, quase vinte anos antes deste traba-
lho, é possível entretanto definir com razoável clareza as principais rotas
migratórias, de longa duração, que marcam os deslocamentos de popu-
lação em todo o território nacional.
Em , os estados que haviam recebido maiores contingentes de
migrantes eram, respectivamente, São Paulo (com mais de um milhão),
Distrito Federal, atual Rio de Janeiro, ( mil), Paraná ( mil) e
estado do Rio ( mil). Seguiam-se Goiás, Minas Gerais e Pernambu-
co, com contingentes bem menores (Conjuntura Econômica : ).
São Paulo, Rio de Janeiro e Guanabara for mam assim uma área
contínua de atração da população, que se estende até o Paraná.
Se passar mos a investigar quais os estados de maior emigração,
chegamos a resultados algo surpreendentes. Em ordem de importân-
cia encontramos, em primeiro lugar, Minas Gerais, com um total de
.. emigrantes (naturais dessa unidade domiciliados em outras
unidades da Federação). Seguem-se São Paulo e Rio de Janeiro, com
mais de meio milhão de emigrantes cada um (. e .) e, em
quinto, Per nambuco (.), seguido de mais dois estados nordesti-
nos: Ceará (.) e Paraíba (.) (id. ibid.).
A partir desses dados, podemos distinguir duas zonas de emigra-
ção. A primeira e mais conhecida é formada por uma área contínua que
engloba Minas, Bahia e os estados nordestinos. Caracteriza-se por uma
população rural muito densa em relação aos recursos técnicos de que
dispõe, presa ainda às técnicas agrícolas e à relação de trabalho tradicio-
nais. É uma zona de grande concentração de pequenos produtores autô-
nomos, sitiantes ou parceiros, que trabalham apenas esporadicamente
como assalariados. Os migrantes desta área se dirigem para São Paulo,
Guanabara, Rio de Janeiro e Paraná. Esta movimentação corresponde
ao abandono de sistemas econômicos pouco produtivos e à integração
da mão-de-obra ao sistema capitalista industrial em desenvolvimento.
A outra grande área de emigração é constituída pelos próprios
. Nessa época, dos . brancos residentes na capital, . eram estrangeiros (Fernan-
des : ).
dá em pleno período de incremento do fluxo migratório, tendência que
se manteve e aumentou nas décadas seguintes. Nos dezessete anos que se
seguiram ao censo, os saldos migratórios acumulados devem ter-se ele-
vado substancialmente, embora a industrialização crescente da Guana-
bara, a criação de Brasília e o desenvolvimento de Belo Horizonte
hajam estabelecido outros tantos núcleos de atração de população.
Em segundo lugar, convém não esquecer que os dados dos recen-
seamentos sempre assinalam apenas os saldos migratórios. Dado o
grande número de retornos e o caráter temporário de uma parcela sig-
nificativa da migração, como demonstra a pesquisa qualitativa, esses
saldos devem corresponder então a uma movimentação muito maior, e
à substituição constante de migrantes mais antigos por mais recentes.
Essa observação é especialmente importante no que diz respeito à
influência do movimento no conjunto do país, pois representou a que-
bra definitiva do isolamento das regiões menos desenvolvidas e uma
tomada de consciência de oportunidades diferenciais que devem ter
contribuído para a própria intensificação da migração.
É preciso ainda apontar a relação entre a migração interestadual e
o processo de urbanização. A própria orientação da migração demons-
tra a conexão entre os dois fenômenos, pois o movimento se origina em
áreas predominantemente rurais e se dirige para as regiões de maior
concentração urbana. Embora seja impossível precisar, no conjunto da
migração, a importância relativa do contingente de migrantes rurais
que se destina aos centros urbanos, parece não haver dúvida de que a
corrente rural-urbana deve ter comandado todo o processo (Conjun-
tura Econômica : ). Aliás, esse fato é confirmado pelos trabalhos
de campo, que têm assinalado a importância dos contingentes rurais
nas cidades, especialmente em São Paulo e, particular mente, na com-
posição da mão-de-obra industrial (Almeida & Mendes ; Lopes
; Pereira ; Durham ; Rodrigues ). O mesmo ocorre
nos trabalhos que focalizam a população rural, especialmente a nordes-
tina, e que são unânimes em apontar a magnitude do êxodo dessas
regiões para São Paulo (Borges ; M. Andrade ; Castaldi ;
Harris ; entre outros).
Muitos, se não a maior parte, dos migrantes provêm de áreas
rurais, voltadas para uma economia quase de subsistência, ou de vilas e
pequenas cidades. Neste último caso, trata-se de vilas ou cidades essen-
cialmente pré-industriais, onde as camadas média e superior estão presas
***
tantes na motivação para migrar e nas características sociais da movi-
mentação espacial (C. Andrade ).2
Os migrantes explicam sempre a migração como uma tentativa de
“melhorar de vida”, embora raramente consigam precisar em que consis-
tem essas possibilidades de melhoria, ou quais os elementos negativos da
situação anterior. Limitam-se em geral a dizer que migraram porque “a
vida lá era difícil”, “não tinha emprego”, “pagavam pouco”. Em outro
trabalho (cf. cap. , supra), já analisei as características fundamentais da
situação que provoca a emigração. Para os fins desta apresentação, basta
notar que a natureza das respostas denota que a emigração é provocada
por tensões que se manifestam no campo econômico e se traduzem em
salários baixos, rendimento insuficiente da produção agrícola e falta de
emprego remunerado como alternativa. Nota-se também que a migração
não decorre, em geral, de uma situação anormal de fome ou miséria. Ao
contrário, a migração aparece o mais das vezes como resposta a condições
normais de existência. O trabalhador abandona a zona rural ou os peque-
nos centros urbanos quando percebe que “não pode melhorar de vida”,
isto é, que sua miséria é uma condição permanente. Isto não quer dizer
que calamidades naturais ou acidentes não influam na tomada de decisão.
Há inúmeros fatores que podem concorrer para precipitar a migração: a
perda da propriedade, a morte de um membro da família, uma sucessão
de colheitas insuficientes, a insistência de um parente que “está bem” em
outro lugar. Mas, fundamentalmente, a emigração decorre de uma situa-
ção econômica desfavorável, que é vista como permanente. A esses
aspectos negativos se opõe a expectativa positiva das possibilidades que a
vida urbana ou o trabalho na agricultura “do sul” poderão propiciar.
Vê-se portanto que há uma consciência de oportunidades diferen-
ciadas no sistema econômico nacional. Essa consciência é adquirida na
própria experiência migratória, que é transmitida oralmente e se sedi-
menta como parte do acervo de conhecimentos de uma comunidade.
As idéias de país, nacionalidade, divisões administrativas e políti-
cas são concepções alheias ao universo de grande parte da população
que fornece os contingentes de migração. Mesmo para os que freqüen-
taram a escola (e são poucos) essas noções são por demais abstratas para
. Consultar também, sobre este aspecto, os trabalhos que analisam a integração de trabalha-
dores de origem rural na mão-de-obra industrial, especialmente o de Juarez Brandão Lopes
().
de for mar um pecúlio a ser aplicado na terra de origem. Mas essa
migração temporária freqüentemente se transfor ma em definitiva,
quando o migrante consegue uma ocupação estável e relativamente
bem remunerada. Isso muitas vezes só ocorre depois de uma ou duas
migrações temporárias.
Pelo fato mesmo de implicar a fragmentação do grupo domésti-
co, a migração não é igualmente fácil para todos. Migram inicialmente
os jovens solteiros. Nessa idade o insucesso não é desastroso, pois não
há encargos de família. Como os jovens desejam não apenas melhorar,
mas também mudar de vida, libertar-se da influência pater na e ganhar
experiência, a emigração desse segmento da população parece ser algo
quase institucionalizado em certas comunidades. Mas não ocorre, o
mais das vezes, uma separação completa. Os moços freqüentemente
voltam para visitar a família, exibir novas experiências e novas posses.
Mais ainda, o sucesso na migração cria atrativos para os parentes que
ficaram. Outros irmãos, solteiros ou casados, repetem a mesma trajetó-
ria apoiando-se uns nos outros, e o processo muitas vezes só ter mina
quando os filhos, já estabelecidos, mandam buscar os pais para “vive-
rem todos juntos”.
A migração também é relativamente fácil para casais sem filhos.
Mas quando há filhos pequenos, as dificuldades de alojamento, trans-
porte e manutenção se multiplicam. O mais comum é que o marido
migre primeiro, deixando a família com os parentes, e só depois de con-
seguir colocação relativamente estável e rendosa traga a mulher e os
filhos. A migração desse tipo de família só é possível, portanto, através
da solidariedade de um grupo de parentes na região de origem, o que
lhe dá um caráter eminentemente familial.
Ocorrem também casos em que migra, simultaneamente, todo um
grupo doméstico, com adolescentes, crianças e adultos. Entretanto,
mesmo nestes casos geralmente é o pai, sozinho ou com um filho mais
velho, que precede o resto da família para garantir um lugar onde
morar. Mas a emigração de uma família grande, mais comumente, se
realiza por estágios, e é complementar à migração de jovens ou dos che-
fes de família. Isto é, ela se processa pela fragmentação sucessiva do
grupo, com migração inicial dos jovens e recomposição posterior.
Verifica-se, assim, que mesmo migrações que envolvem mudanças
tão radicais de estilo de vida, como a que ocorre entre o sertão de Ser-
gipe ou Alagoas e a cidade de São Paulo, são efetuadas dentro de uma
e a se relacionar no lugar de destino, superando as limitações do seu
universo cultural de origem.
O auxílio dos parentes se manifesta principalmente na obtenção de
alojamento e emprego. Na migração para outra zona rural, ambas as
coisas são realizadas simultaneamente, e o recém-chegado se dirige para
as fazendas onde trabalham ou trabalharam conterrâneos seus, quando
não é encaminhado pelo Serviço de Imigração e Colonização. Ele pode
ainda, através do mesmo tipo de relações pessoais, arrendar terras ou
ingressar nas tur mas mobilizadas por empreiteiros para a colheita do
café, do algodão e da cana.
A integração do migrante nas áreas rurais exige modificações dos
padrões de trabalho, que envolvem a utilização de novas técnicas (uso
de inseticidas, máquinas e implementos agrícolas, fertilizantes), o cultivo
de novas plantas (café, soja, mamona etc.) e, principalmente, o estabele-
cimento de novas relações de trabalho (arrendamento, empreitada, traba-
lho assalariado). De modo geral, essas modificações estão relacionadas à
substituição do trabalho autônomo do parceiro ou sitiante – voltado em
grande parte para a produção direta da subsistência – pelo trabalho do
arrendatário ou assalariado, que produz para o mercado. A participação
na economia de mercado exige novas formas de previsão, de utilização
do dinheiro, de comercialização da produção. Todos esses ajustamentos
o trabalhador realiza contando com a experiência dos parentes, amigos
e conterrâneos que o precederam.
Nas cidades o problema é ainda mais complexo, porque a possibi-
lidade de obter um emprego determinado depende não só de o migrante
saber de sua existência, mas de conhecer o modo específico de disputá-lo
ou de se qualificar para ele. Para isso, o migrante depende das informa-
ções dos amigos e, por isso, o horizonte profissional do trabalhador está
condicionado pelo seu universo de participação social.
Quando perguntamos aos migrantes que tipo de emprego espera-
vam obter na cidade de São Paulo, a resposta mais generalizada é a de que
“não sabiam – para começar, qualquer coisa serviria”. De um lado, esta
resposta denota uma flexibilidade de expectativa, que se apresenta como
elemento positivo para o ajustamento do trabalhador às novas condições
de mercado. Mas por outro denota também que o migrante não sabe quais
são os empregos que existem, nem o que deve fazer para obtê-los.
Nas cidades, o mercado de trabalho é cada vez mais controlado
por instituições burocráticas e impessoais, que estabelecem nor mas
disciplina do trabalho fabril e se enquadra dentro de um sistema pré-
industrial, sendo, portanto, mais compatível com os hábitos de trabalho
dessa população.
Essas ocupações marginais criam uma situação favorável ao mi-
grante apenas na medida em que são temporárias e que, sem exigir uma
transformação radical dos hábitos de trabalho, permitem um ajustamento
inicial às condições urbanas de vida, e a procura dos requisitos necessá-
rios à passagem para trabalhador regularmente admitido. Essa passagem
pode ocorrer dentro do mesmo ramo de ocupação ou em ramo comple-
tamente diverso. Assim, serventes de pedreiro podem tornar-se pedrei-
ros, ajudantes de encanador, de eletricista etc., adquirindo no próprio
trabalho um mínimo de qualificação. Alternativamente, podem ingressar
no operariado fabril. A escolha de uma ou outra possibilidade vai depen-
der, em grande parte, das relações pessoais que o trabalhador estabelece
ou mantém. Por meio delas ele toma conhecimento das oportunidades,
obtém “papéis”, e consegue um emprego regular.
O migrante supera as limitações de sua posição inicial à medida
que constrói a sua carreira. No início, o migrante é inteiramente depen-
dente de relações pessoais, baseadas em vínculos de parentesco ou ami-
zade que o encaminham para a obtenção do emprego. Inicialmente,
portanto, o imigrante não tem nenhuma “escolha” na procura de ocu-
pação. Premido pela necessidade, limitado pela ignorância do mercado
de trabalho, ele aceita qualquer emprego e depende, em grande parte,
das indicações dos membros do grupo primário do qual faz parte. Mas
a obtenção de um emprego e de um lugar para morar alarga imediata-
mente o horizonte do migrante. Vizinhos e colegas de trabalho passam
a ser outras tantas fontes de informação. Conforme ele alarga o seu cír-
culo de contatos sociais, passa a incorporar a experiência concreta de
indivíduos e grupos mais diversificados.
A ampliação dos contatos pessoais e das esferas de participação
social ampliam também o universo ocupacional, e dão ao migrante
maiores possibilidades de escolha na orientação da sua carreira. Entre-
tanto, como são os parentes que orientam as colocações iniciais, que são
a base das outras, a carreira do migrante tende a ser condicionada pela
história ocupacional do grupo de parentesco.
Conforme se abrem as possibilidades de escolha, assumem impor-
tância crescente os valores que orientam a avaliação dos aspectos posi-
tivos e negativos de uma ocupação ou um emprego particular. Esses
as aspirações de aumento do consumo que orientaram a migração, e que
constituem o critério último de sucesso. A aceitação dos empregos mais
estáveis e relativamente bem remunerados que o migrante pode dispu-
tar (especialmente o trabalho não qualificado na indústria) representa a
aceitação de um trabalho culturalmente desvalorizado, que se torna
assim mero instrumento para alcançar fins que estão fora dele.
Por isso mesmo, o emprego na indústria é concebido mais freqüen-
temente como instrumento para a realização futura do ideal de trabalho
por conta própria, especialmente na medida em que o emprego abre
possibilidades de formar um pecúlio, que pode ser utilizado como capi-
tal. Esse pecúlio raramente pode ser formado pela poupança direta, não
só porquanto a integração no meio urbano cria novas necessidades que
o salário mal pode satisfazer, mas também porque o ritmo inflacionário
deprecia e desestimula a poupança em dinheiro. Mas o emprego cria
uma nova forma de poupança forçada, que é a indenização na dispensa.
A estabilidade do trabalho passa a ser então avaliada não como estabili-
dade absoluta, mas como forma de capitalização – o aumento do núme-
ro de anos em um estabelecimento representa um investimento a ser
recebido na dispensa.
Essa caracterização tão marcada e generalizada da atitude dos ope-
rários de origem rural já foi apontada por todos os que trabalharam
com esse tipo de problema. Nossas observações vêm apenas confirmar
pesquisas anteriores. Como nota Juarez Brandão Lopes,
venham com a intenção de ficar na metrópole ou com a idéia de, com o que aí
ganharem, melhorar a sua situação em sua terra, o desejo dominante de todos
é de ser “independente”. Esse valor expressa-se de muitas formas; a lavoura
em sua propriedade quando as condições são recompensadoras, a empreitada
na agricultura, o ofício de pintor ou de eletricista independente na cidade, o
de dono de caminhão, e as múltiplas pequenas atividades comerciais são todos
trabalhos ‘por conta própria’ em que o indivíduo não recebe ordens, nem pres-
ta contas, segundo seu modo de ver, a ninguém (Lopes : ).
ou quatro filhos regular mente empregados. A aquisição de uma renda
relativamente elevada, que é resultado do ganho conjunto de um grupo
de irmãos e irmãs, garante inclusive segurança econômica muito maior.
E como não é necessariamente desastroso o desemprego temporário de
um ou outro membro da família, pode haver mais facilidade em aban-
donar empregos pouco compensadores e procurar ocupações mais van-
tajosas. Mais ainda, só a presença de uma família numerosa per mite a
liberação da mão-de-obra infantil, e às vezes da juvenil, para aproveitar
as oportunidades educacionais existentes. A extensão do período educa-
cional dos jovens depende do nível de renda da família, e este, do
número de pessoas empregadas. Nesse sentido, a presença de um grupo
familial numeroso apresenta vantagens bem definidas em ter mos de
possibilidade de ascensão social e de segurança econômica para o grupo
no seu conjunto. Convém também não esquecer que, quando há diver-
sas pessoas empregadas, os que conseguem melhor colocação atraem os
parentes para a mesma empresa ou ofício, beneficiando todos.
Portanto, as possibilidades de ascensão social são maiores para as
famílias numerosas, com muitos filhos. Mas a manutenção de uma uni-
dade doméstica nessas condições depende também da manutenção da
disciplina que regula as relações intrafamiliais, que é função dos pais.
Ao pai ou à mãe cabe centralizar e redistribuir os ganhos individuais,
impor a disciplina que garante a freqüência dos mais jovens na escola,
mediar o auxílio mútuo entre irmãos. A presença de indivíduos mais
idosos no contingente migratório é importante economicamente, na
medida em que eles chefiam e mantêm unidos grupos familiais que
constituem unidades importantes de cooperação econômica.
Mas, se as condições de integração do trabalhador migrante favo-
recem as famílias numerosas, isto só é verdade para as famílias que se
formaram antes da migração, ainda na região de origem, porque a vida
urbana dificulta enor memente a constituição de famílias com muitos
filhos, tornando a prole muito onerosa para o trabalhador. Na situação
urbana, o trabalhador está na dependência total do salário, pois não
produz diretamente a própria subsistência. O desemprego, nessas con-
dições, cria situações de crise tão agudas, que, sem o apoio de um grupo
externo à família conjugal, só podem ser resolvidas pela mendicância ou
criminalidade. A situação é particularmente grave no caso de casais com
filhos imaturos, que se acham na dependência do salário de um único
membro, o marido. O modo de emprego próprio do mundo urbano-
Essas observações permitem compreender a persistência, na cida-
de, de laços de parentesco que parecem contradizer o individualismo
que se considera próprio de uma civilização industrial. Na verdade, não
parece que a migração para a cidade contribua, a curto e médio prazo,
para a dissolução dos vínculos de parentesco, embora possa diminuir
sua amplitude.
Isso não quer dizer que a organização e as funções dos grupos
domésticos não se alterem. A individualização do trabalho e o aprovei-
tamento diferencial de oportunidades educacionais provocam altera-
ções pronunciadas na organização da família.
Quando a família se dirige para a zona rural, o grupo doméstico
persiste como unidade produtiva, pois o trabalho agrícola é um traba-
lho eminentemente familial. Na zona urbana, ao contrário, o emprego é
sempre individual, e como as oportunidades de trabalho tendem a favo-
recer os mais jovens em detrimento dos mais idosos, subverte-se fre-
qüentemente a base econômica da autoridade pater na. Os pais, não
encontrando trabalho bem remunerado, passam a depender economica-
mente dos filhos, criando problemas pessoais às vezes bastante agudos.
Por outro lado, as oportunidades de recreação e consumo que se abrem
ao jovem contribuem para separar as gerações, criando conflitos na
família. Mas o próprio fato de o jovem contribuir para a manutenção da
família, constituindo muitas vezes seu principal suporte econômico, cria
novos laços de dependência que tendem a manter unido o grupo do-
méstico. E o grupo assim reconstituído age como suporte para as aspi-
rações de mobilidade social de seus membros.
***
Capítulo
***
Esse período, em que Malinowski inicia sua carreira, está marcado por
uma enor me efervescência intelectual na antropologia. A publicação,
no final do século , da obra de Spencer & Gillin sobre a Austrália,
baseada em material colhido diretamente com os nativos,1 e a organiza-
ção, na mesma época, da Expedição Cambridge ao estreito de Torres – a
primeira grande expedição antropológica, que contou com a participa-
ção de Haddon, Rivers e Seligman – abriram novas fronteiras para a
antropologia. A pesquisa de Rivers entre os Todda em e o extenso
levantamento da Melanésia empreendido por Seligman em iniciam
na Inglaterra a grande fase do trabalho de campo, que Malinowski iria
revolucionar. Nessa mesma época, nos Estados Unidos, Boas promovia
igualmente a pesquisa de campo, construindo uma outra abordagem
culturalista. A experiência desses pioneiros, acrescida da reflexão teóri-
ca de Durkheim, formou uma nova geração de antropólogos, que trans-
for mou profundamente essa disciplina. Malinowski é uma das figuras
centrais dessa geração.
A experiência de campo de Malinowski iniciou-se em , entre
os Mailu (Malinowski ) na Melanésia, sobre os quais publicou, no
mesmo ano, uma pequena monografia. Impedido de voltar à Inglaterra
no início da Primeira Guerra Mundial, começou então nova pesquisa
que o levou às ilhas Trobriand, pequeno arquipélago situado a nordes-
te da Nova Guiné, cujos habitantes ele tornaria mundialmente famosos
através de inúmeros artigos, ensaios e três grandes monografias.
Sua primeira per manência entre os trobriandeses estendeu-se de
junho de a maio de . Voltando à Austrália, de onde partira,
passou cerca de um ano e meio trabalhando o material que coletara. Em
outubro de inicia nova estada, de um ano, entre os trobriandeses.
Essa longa convivência com um único povo primitivo, o aprendizado e
a fluência a língua nativa constituem imensa inovação na técnica de tra-
balho de campo, permitindo uma análise em profundidade de uma cul-
tura diferente da nossa.
Embora não se possa dizer que essa experiência de trabalho de
campo tenha sido responsável pela orientação metodológica desenvol-
vida por Malinowski, uma vez que suas premissas básicas já estavam
presentes de modo muito claro no trabalho sobre os aborígines austra-
lianos, não resta dúvida de que sua longa permanência entre os nativos
teve influência decisiva em toda a sua obra posterior. A vivência da
. Na verdade, a obra de Spencer & Gillin constitui a principal fonte do trabalho de Mali-
nowski sobre os aborígenes assim como As formas elementares da vida religiosa, de Durkheim.
***
Esse respeito aos dados empíricos e o virtuosismo na sua manipula-
ção são essenciais na obra de Malinowski porque, sem eles, é impossível
caracterizar e preservar aquilo que constitui uma preocupação central
do autor: a especificidade de cada cultura. A preservação dessa especifi-
cidade é fundamental, porque só através dela é possível entender o
comportamento concreto de seres humanos reais que vivem uma reali-
dade cultural diferente da nossa.
O pressuposto contido nessa posição é o de que o comportamento
do “primitivo” não é nem incoerente nem irracional, mas se explica por
uma lógica própria que precisa ser descoberta pelo investigador. Para
Malinowski, a visão do homem “primitivo” como ignorante, atrasado,
supersticioso, irracional e infantil, visão essa até então comum mesmo
em obras de cunho científico, é decorrência de um defeito da observa-
ção, e não reflexo de uma propriedade do objeto. Resulta de um contato
superficial, dependente de entrevistas feitas com tradutores, na base de
um questionário previamente preparado. A busca de instrumentos de
investigação apropriados para superar essa visão está permeada por um
humanismo apaixonado, que defende de modo intransigente a dignida-
de humana dos chamados “povos primitivos”.
Assim, podemos dizer que o grande mérito da obra de Malinowski
reside na sua capacidade de reconstruir, como universo integrado de sig-
nificados, uma experiência cultural específica. E que a obtenção desse
resultado não pode ser considerada como simples produto de uma intui-
ção feliz, mas está assentada numa reflexão teórica que encaminha novas
técnicas de investigação e novos instrumentos de análise capazes de cap-
tar e preservar a especificidade da realidade que se deseja investigar.
Essa reflexão teórica está baseada numa crítica radical a certos
postulados e métodos da antropologia clássica (evolucionista ou difu-
sionista), crítica esta, aliás, compartilhada por todos os autores comu-
mente designados como funcionalistas. O fundamento dessa crítica
dirige-se à natureza das unidades de análise empregadas pelos autores
clássicos, nos quais a reflexão teórica deriva da comparação entre cul-
turas diversas e procede a um desmembramento da realidade em itens
separados de seu contexto cultural: tecnologia, crenças, mitos, organi-
zação familiar, parentesco e assim por diante. A manipulação compara-
tiva desses fragmentos leva à composição de categorias nas quais o
arranjo entre as partes é imposto pelo investigador e não pode, portan-
to, conferir uma unidade real ao objeto. Perde-se assim a possibilidade
menores abordam temas semelhantes. Tampouco encontramos, em
qualquer de seus trabalhos, uma análise específica do sistema econômi-
co, sociopolítico, ou mágico-religioso. Entretanto, a leitura de cada um
deles cria uma vívida impressão de que a cultura trobriandesa pôde ser
visualizada no seu conjunto, porque essas diferentes dimensões da vida
social estão igualmente presentes em todos os trabalhos, qualquer que
seja seu tema central.
A abordagem de Malinowski consiste em tomar como unidade de
análise um segmento concreto da vida do povo estudado, quer se trate
de uma instituição propriamente dita, como o kula, de um aspecto social,
como a vida sexual, ou de uma atividade específica, como a agricultura.
Na verdade, esse tipo de unidade de análise apresenta muitas semelhan-
ças com o que Marcel Mauss denominou “fato social total”, conceito
este, aliás, que deve muito à leitura dos trabalhos de Malinowski.2
A semelhança reside, em primeiro lugar, em que para Malinowski
a unidade de investigação não resulta puramente da manipulação analí-
tica do pesquisador, mas deve corresponder a uma unidade empirica-
mente delimitada e reconhecida como tal pelos membros da sociedade
estudada – isto é, deve existir como unidade tanto para o observador
quanto para o observado, como o caso do kula, da família, da aldeia etc.
E, na medida em que consiste num “pedaço de existência”, a instituição,
como fato social total, é sempre uma unidade multidimensional, inclui
necessariamente dimensões materiais, sociais e simbólicas, engloba
aspectos econômicos, jurídicos, mágico-religiosos, ação e representa-
ção, e se relaciona com outras instituições (o ritual e as atividades agrí-
colas, por exemplo).
Decorre disso, em primeiro lugar, que a inter-relação entre dife-
rentes fenômenos ou entre aspectos diversos da realidade social, preco-
nizada pelo funcionalismo, não constitui para Malinowski um processo
de estabelecer, num mesmo plano horizontal, relações e contra-relações
infindáveis; ou seja, essas inter-relações estão centradas nos isolados ou
unidades postuladas pela própria sociedade – as instituições – que esta-
belecem focos “naturais” ou “alternativas” de ordenação e correlação.
Para Malinowski, a tentativa de atingir a totalidade por meio da
análise independente de cada um dos aspectos nos quais a realidade
pode ser decomposta (econômico, social, simbólico etc.) produz uma
visão incompleta e defor mada, porque a conexão entre esses sistemas,
buscada a posteriori, só pode ser formal, distanciando-se da conexão real
que é dada concretamente no comportamento dos homens. Deve-se
buscar a possibilidade de apreender as condições de produção dos fenô-
menos sociais e, portanto, é necessário que as decomposições analíticas
estejam subordinadas à reconstituição sintética da realidade em todos os
momentos da análise.
O conceito de função, nesse tipo de análise, é justamente o instru-
mento que per mite o movimento entre os diferentes aspectos da insti-
tuição e os sistemas analíticos que neles se refletem.
A importância que Malinowski atribui à conduta implica sempre
uma preocupação muito marcada com as motivações individuais, o que
exige levar em consideração tanto as motivações conscientes como as
inconscientes, que são imprescindíveis para o desvendamento das rela-
ções existentes entre a produção coletiva da vida social, de um lado e, de
outro, o significado subjetivo que as ações possuem para os membros de
uma sociedade deter minada. Esse tipo de investigação exige, portanto,
que se supere a consciência restrita dos agentes (isto é, as categorias do
observado) para atingir conexões gerais, construídas pelo investigador.
Essa possibilidade é dada pela utilização do conceito de função e
pela distinção, na análise da instituição, entre as normas e o comporta-
mento real, entre a consciência das normas e seus efeitos mais amplos.
Para Malinowski, a função não se confunde com objetivo ou fina-
lidade consciente das ações. No ensaio intitulado “Uma teoria científica
da cultura” (), o autor distingue claramente, na instituição, de um
lado, o estatuto (charter), definido como a idéia da instituição tal como é
concebida pelos seus membros e fixada pela comunidade; de outro, a
função, que corresponde ao papel da instituição no esquema total da
cultura, tal como é definido pelo investigador. Para se atingir a função,
é importante considerar a diferença entre as normas ou regras que cor-
respondem a um ideal de comportamento e as atividades efetivamente
desempenhadas pelos agentes sociais, pois é através da análise das ativi-
dades e de suas conseqüências que o investigador encontra condições
para superar a consciência sempre parcial que os homens possuem de
sua própria cultura.
questões centrais da antropologia e que particular mente estão presen-
tes, com excepcional sutileza, em suas análises etnográficas.
Na imensa diversidade das culturas humanas, é necessário expli-
car, simultaneamente, a ocorrência de semelhanças e diferenças. Se cada
cultura possui uma especificidade, existem, por outro lado, inúmeros
fenômenos que são recorrentes, mesmo que não universais. Mais ainda,
essas semelhanças e convergências, como já havia mostrado Boas no
final do século , não podem ser atribuídas unifor memente à mera
existência de processos de difusão cultural, nem podem ser interpreta-
das como produto de um mesmo processo histórico.
Malinowski simplifica extraordinariamente a questão ao reduzi-la
toda a apenas dois planos: de um lado, o particular, o específico, a cultu-
ra trobriandesa que estudou e compreendeu; de outro, o universal, a
“Cultura Humana” em geral, o que existe de semelhante em todas as cul-
turas. Preso a esses dois extremos e buscando uma relação direta entre
eles, Malinowski abandonou, na reflexão teórica, aquilo que Boas definia
como a tarefa fundamental da antropologia: a análise dos processos cons-
cientes e inconscientes de elaboração cultural, sem cujo conhecimento
não podemos explicar a produção das semelhanças e diferenças. Desse
modo, por concentrar toda a sua reflexão teórica no problema da univer-
salidade da Cultura, Malinowski perdeu a possibilidade de explicar tanto
a diversidade dos fenômenos culturais quanto a sua convergência.
Buscando o que poderia haver de geral por trás da particularidade
dos costumes e da especificidade da vida cultural de cada povo, Mali-
nowski estabelece que são as próprias características biológicas do
homem que deter minam necessidades básicas, as quais, devendo ser
satisfeitas por todas as culturas, for necem parâmetros universais do
desenvolvimento cultural que nos dão, de imediato, sua comparabilida-
de. Por outro lado, como a satisfação dessas necessidades básicas pode
ser realizada de modos diversos, e como qualquer deles implica o esta-
belecimento de necessidades derivadas, também atendidas de modo
específico, explica-se simultaneamente a universalidade da Cultura e a
particularidade das culturas. Assim, referindo as necessidades humanas
(básicas e derivadas) a imperativos de natureza biológica, Malinowski
tenta fundamentar a universalidade dos aspectos da Cultura na universa-
lidade de suas funções últimas. Todo o complexo problema da dimensão
simbólica do comportamento, que constitui o cerne de suas monografias,
desaparece na teoria.
Na interpretação da cultura trobriandesa a noção de integração
(uma vez que o conceito não é explicitado nesse nível de análise) impli-
ca o estabelecimento de conexões funcionais entre os diferentes aspec-
tos de uma instituição e entre o nível institucional (o kula, a família, a
atividade agrícola) e o dos sistemas analíticos (econômico, social, mágico-
religioso). Opera, portanto, em grande parte, dentro da instituição e
entre as instituições, sendo um instrumento para a sua construção etno-
gráfica. Mas quando Malinowski teoriza sobre a Cultura (em geral), ele
passa a indagar qual a função (global) da instituição no seu conjunto, e
conclui que só pode ser a satisfação de uma necessidade, básica ou deri-
vada, assim empobrecendo extraordinariamente o conceito. O psicolo-
gismo também se insere nessa postura teórica.
Em nenhum de seus grandes trabalhos etnográficos o objeto da
investigação pode ser definido como sendo a determinação das necessi-
dades satisfeitas pelas atividades estudadas, mas corresponde à ordena-
ção dessas atividades em ter mos de sua integração de seu significado.
Não obstante, nos ensaios sobre religião e magia, emerge claramente a
noção de que ambas constituem formas de atenuar a insegurança emo-
cional no desempenho de atividades nas quais o resultado não pode ser
assegurado por uma competência técnica. O problema não é apenas o
do psicologismo. A verdade é que Malinowski, definindo “função” em
termos da instituição em seu conjunto, não só empobreceu esse concei-
to, como também o de instituição e o de totalidade. A partir desse mo-
mento, a totalidade da cultura passa a ser concebida como soma de ins-
tituições. A instituição deixa de ser cristalização da totalidade para
transformar-se em parte autônoma de um conjunto. E a reflexão dirige-
se para o beco sem saída de tentar formular uma classificação universal
das instituições. No final, pode-se dizer que, preso à busca de um uni-
versal que não fosse for mal, Malinowski perdeu a possibilidade de
alcançar um geral que fosse explicativo. As categorias com as quais tra-
balhou os dados empíricos são deixadas de lado em favor de elabora-
ções teóricas que se distanciam progressivamente das magníficas inter-
pretações que ele construiu a partir do trabalho de campo.
Capítulo
A pequena análise que se segue do conceito de comunidade foi elaborada
como um verbete para a Enciclopédia Abril, e está associada às pesquisas
que eu então desenvolvia sobre movimentos sociais (ver cap. 10, infra).
A análise do conceito de comunidade é importante para compreender a
intensa utilização política que ele vem recebendo no Brasil. De fato, e especial-
mente a par tir do regime militar, o termo entrou em voga. Fala-se muito de
comunidade universitária, comunidades eclesiais de base e até comunidade dos
usuários de crack. O termo foi particularmente forte na Teologia da Libertação,
que teve influência profunda (mesmo que freqüentemente não reconhecida)
sobre esquerda brasileira e, em especial, tem sido muito utilizado pelo PT.
Na sua aplicação popular, de referência política, o termo faz parte do
que chamei de “conceito deslizante”. Um movimento pela criação de um
posto de saúde, um agrupamento para organizar um projeto de auto-constru-
ção, uma universidade, não constituem comunidades no sentido sociológico
estrito. Não supõem necessariamente que as pessoas tenham uma vida em
comum, um destino comum e que estejam radicadas num mesmo espaço, que
partilhem a mesma cultura e os mesmos valores. As comunidades, tal como
são nomeadas no Brasil, são organizações freqüentemente temporárias, for-
madas em função de objetivos comuns muito específicos e restritos, que ocu-
pam uma parte relativamente pequena da vida e do tempo das pessoas. O apelo
do termo reside na pressuposição, que a idéia de “comunidade” carrega consi-
go, de uma igualdade básica entre as pessoas e de uma vontade comum.
De fato, essas comunidades concebidas pelos movimentos sociais ten-
dem a criar um espaço interno e limitado de relações igualitárias. Todos são
considerados iguais enquanto participantes de um movimento de reivindica-
ção ou de proselitismo. Fora dele, podem morar longe uns dos outros, possuir
hábitos, valores, crenças, profissões e níveis de renda diversos. Essas comu-
nidades raramente incluem todas as pessoas de uma família, e por isso não
abarcam o grupo familiar que, este sim, partilha um destino comum.
Não estamos, por tanto, lidando com comunidades no sentido clássico,
como uma aldeia indígena ou camponesa. As comunidades tal como são
entendidas pelos movimentos políticos constituem um esforço de criação de
um espaço no qual se possa viver, dentro de limites bastante restritos, a expe-
riência de igualdade. Em uma sociedade tão marcada pela desigualdade, esta
experiência permite incorporar a igualdade não apenas como utopia irreali-
zável mas como experiência real, mesmo que momentânea. Ela dá um senti-
do muito próprio à idéia de democracia, for talecendo a concepção de uma
democracia direita cuja expressão privilegiada é a assembléia.
Comunidade*
* Publicado originalmente como verbete no volume da Enciclopédia Abril. São Paulo: .
relações sociais. Para ele, denomina-se comunidade “uma relação social
quando e na medida em que a atitude na ação social [...] se inspira no
sentimento subjetivo (afetivo ou tradicional) que têm os participantes de
constituírem um todo”. A comunidade é normalmente a contraposição
radical da luta, definindo-se essa última como uma relação social na
qual a ação se orienta pelo propósito de impor a própria vontade contra
a resistência de outra parte. Ela opõe-se, portanto, à chamada relação
societária, encontrada “quando e na medida em que a atitude na ação
social se inspira em uma compensação de interesses por motivos racio-
nais (de fins ou valores) ou também de uma união de interesses com igual
motivação”. Nesse sentido, comunidade e sociedade não correspondem
mais a períodos históricos particulares, pois a vida em sociedade pode
conter tanto relações comunitárias como societárias.
A oposição comunidade-sociedade corresponde, de certa forma, à
oposição entre solidariedade mecânica e solidariedade orgânica, intro-
duzida na sociologia francesa por Émile Durkheim. A solidariedade
mecânica caracteriza as sociedades onde não há divisão do trabalho e
onde, portanto, a união entre os membros deriva da própria semelhan-
ça entre eles, isto é, de sua identidade. A solidariedade orgânica, em
contraste, caracteriza as sociedades nas quais a divisão social do traba-
lho diferencia os grupos sociais e cria relações de interdependência
entre eles. Entre as duas for mas de solidariedade também existiria, se-
gundo essa corrente sociológica, tanto quanto na posição de Tönnies,
uma relação evolutiva.
Portanto, “comunidade” apresenta-se ora como conceito for mal,
caracterizando um tipo ou aspecto das relações sociais, ora como con-
ceito histórico-concreto, caracterizando épocas ou for mações sociais
particulares. Entretanto, em ambos os casos, associam-se à comunidade
as características de proximidade espacial, homogeneidade, afetividade,
consenso e participação numa totalidade. Em oposição, à sociedade são
atribuídas as propriedades da heterogeneidade, interdependência, ra-
cionalidade, bem como de luta e confronto.
Mais recentemente, Hans Freyer retomou os conceitos de comuni-
dade e sociedade, conservando sua referência a for mações histórico-
sociais concretas, que se sucedem no tempo. Nessa concepção, a co-
munidade aparece quer como uma estrutura social fundamental que
caracteriza a totalidade de uma for mação social (como no caso das
comunidades primitivas), quer como uma estrutura parcial, própria de
Comunidade
grupos particulares numa sociedade complexa (grupos domésticos,
profissionais, de parentesco etc.). Nessa concepção, todas as comu-
nidades implicam a convivência num espaço comum, supondo que as
pessoas estejam fisicamente juntas. Não existe comunidade à distância.
A razão para isso é clara: viver em comum dentro do mesmo espaço
significa que todos estão sujeitos às mesmas condições, estando presos
ao mesmo estilo de vida. Nessas circunstâncias, uma seca ou uma inun-
dação, por exemplo, afetam a coletividade no seu conjunto e não a um
ou outro indivíduo, confor me este possua uma habitação melhor ou
pior, mais ou menos recursos para comprar alimentos etc., como ocorre
nas sociedades complexas. Se “comunidade” significa viver num
mesmo mundo, isso quer dizer que esse mundo está integralmente pre-
sente em cada um: o elemento essencial da estrutura comunitária é a
participação de todos numa mesma cultura, cujo conteúdo total é abar-
cado por cada indivíduo. Todos acreditam nos mesmos mitos, praticam
os mesmos cultos, conhecem as mesmas técnicas, manejam instrumentos
idênticos, obedecem às mesmas normas. Não se trata de harmonia, pois
numa comunidade, como em qualquer agregado humano, existem confli-
tos e paixões: porém esses conflitos se desenrolam num universo comum.
Existe uma analogia fundamental entre a comunidade e a língua: da
mesma forma que a totalidade da estrutura lingüística está presente em
todos aqueles que falam o mesmo idioma, a totalidade das potenciali-
dades da cultura é incorporada por cada um de seus membros. Isso não
quer dizer, entretanto, que não haja variações individuais – assim como
cada pessoa utiliza de modo diferente o mesmo idioma, cada um vive de
maneira própria a cultura da comunidade. Por isso, a forma de indivi-
dualização característica da comunidade é o que Freyer, seguindo Tön-
nies, denomina autoridade. Possuir autoridade é representar, de modo
mais pleno, um conteúdo que também se encontra nos demais. Assim, o
mesmo conteúdo espiritual varia com a diversidade dos indivíduos, e é
vivido ora masculinamente, ora femininamente; de modo juvenil ou
maduro; com generosidade ou egoísmo; com maestria ou incompetên-
cia. É na articulação das competências individuais que a comunidade se
converte numa estrutura sólida de sentimentos recíprocos.
Em oposição, o que caracteriza a sociedade não é a autoridade,
mas o domínio. Quem exerce o domínio não vive no mesmo mundo e
não participa do mesmo destino dos dominados. Possui conhecimentos,
normas, deveres e obrigações diversos, não sendo, portanto, afetado do
mesmo modo pelos acontecimentos. A sociedade nasce quando um grupo
social utiliza uma oportunidade de poder (qualquer que ela seja) sobre
outros grupos parciais, instituindo uma associação de dominação. Essa
idéia é semelhante à de luta, definida por Max Weber. Não se trata apenas
da existência de dois ou mais grupos, um dos quais submete os demais;
“sociedade” supõe um escalonamento per manente, uma conexão vital
entre os grupos parciais. Dessa forma, como ela é uma formação social
resultante de uma “tensão de domínio” entre grupos heterogêneos, traz
em si o germe das mudanças incessantes. Constantemente ocorrem
pressões de cima para baixo e de baixo para cima, a formação de cama-
das intermediárias, a dissolução e a reconstituição de estruturas: a socie-
dade é um processo histórico. A comunidade, ao contrário, exatamente
por constituir um universo homogêneo e fechado, não possui história
nesse mesmo sentido. Essa conceituação é profundamente fecunda para
a análise sociológica e permite entender, inclusive, por que a comunida-
de aparece como um mito ou ideal inatingível da nossa sociedade. Falar
em comunidade significa focalizar a atenção nos interesses comuns,
reais ou fictícios, ignorando os conflitos, contradições e oposições pró-
prias de uma estrutura de domínio, refugiando-se na afirmação de uma
concordância, homogeneidade e igualdade fictícias mas desejadas.
Diversamente dessa conceituação, algumas correntes da sociologia
americana abandonaram a oposição comunidade-sociedade, atribuindo
uma outra conotação à vida comunitária. O conceito deixa de ter uma
definição teórica clara, e “comunidade” se confunde, em grande parte,
com “grupo local”. É definida como um agregado conscientemente
organizado de pessoas que residem numa localidade específica, possuin-
do autonomia política relativa, sustentando instituições coletivas
comuns (como escola e igreja) e reconhecendo a existência de uma certa
interdependência entre si. Além de designar um agregado humano,
“comunidade” também se refere a um processo de interação social que
dá origem a atitudes e práticas de colaboração, cooperação e uniformi-
zação. Esse conceito de comunidade não se refere, portanto, a um tipo
de formação “comunitária”, diversa da “societária”, mas sim a unidades
territoriais de tamanho limitado, onde se realiza a vida social cotidiana.
Tais unidades são concebidas como conjuntos integrados por interesses
e atividades comuns (corporificados na escola e na igreja), que exigem
cooperação coletiva. A organização da comunidade é analisada em termos
de instituições como a família, o grupo de vizinhança e as associações
Comunidade
voluntárias, e secundariamente em ter mos de organização política e
econômica, que a relacionam com a sociedade ampla. Os mesmos ele-
mentos do conceito “clássico” de comunidade estão presentes: espaço e
interesse comuns, sentimento de pertencimento, participação numa mes-
ma cultura. Mas estão presentes de uma forma atenuada, comportando
certo grau de diferenças de classe e de nível educacional, interesses
divergentes que coexistem com “o sentimento subjetivo que têm os par-
ticipantes de constituírem um todo”. Esta versão norte-americana do
conceito é a que está presente nos “estudos de comunidade”, nos quais
se faz uma análise abrangente (econômica, social e cultural) de cidades
pequenas ou bairros rurais. Essa conceituação é capaz de orientar uma
análise dos aspectos da vida social que se desenrolam dentro da esfera
de autonomia relativa própria de certos agrupamentos sociais, mas é
inadequada para apreender os aspectos estruturais da sociedade que
interferem na ação local e delimitam sua autonomia.
Capítulo
Para introduzir este tema, creio ser oportuno retomar alguns aspectos
dos conceitos de cultura e de dinâmica cultural. Isso me parece necessá-
rio porque sua utilização por sociólogos e cientistas políticos em análi-
ses recentes, especialmente aquelas voltadas para os países subdesenvol-
vidos ou em desenvolvimento, tem se caracterizado freqüentemente por
uma aplicação inadequada, que implica uma reificação.
A reificação resulta de uma redução inicial do conceito de cultura a
seu conteúdo nor mativo, e consiste na atribuição subseqüente de uma
autonomia excessiva aos componentes culturais da vida social. A cultura
passa a ser tratada como uma “variável” que possui o mesmo “nível de
realidade” de outras “variáveis”, como a industrialização, a urbanização
etc. Como entidades independentes tais “variáveis” atuam umas sobre as
outras, criam obstáculos à mudança e realizam diversas outras proezas.
Em sua forma menos sofisticada, essa abordagem aparece freqüen-
temente nas análises da chamada “teoria da modernização”. Nesta con-
cepção, os fenômenos culturais apresentam dois tipos de atuação dife-
rentes. De um lado, sob a forma de “padrões tradicionais”, suscitam
lealdades irracionais, em aberto conflito com as tendências dinâmicas da
sociedade. Os indivíduos manifestariam em relação a esses padrões,
adquiridos no passado, o mesmo tipo de apego que velhas solteironas
demonstram para com cãezinhos de estimação, e que implicam a sua
conservação mesmo diante da demonstração cabal (por parte dos estu-
diosos) de sua inadequação para fazer face ao mundo moderno.
De outro lado, no chamado “efeito de demonstração”, os padrões
culturais se assemelham mais a doenças contagiosas como o sarampo
ou a escarlatina. Expostos a atitudes, valores e objetos de consumo de
sociedades desenvolvidas, as pessoas “contraem”, de modo igualmente
irracional, expectativas e hábitos que estão em desacordo com as
possibilidades efetivas de sua satisfação permanente por parte do siste-
ma produtivo.
De forma menos caricatural, a mesma percepção per meia muitas
das análises sobre comportamento político e atividade sindical, que ten-
dem a atribuir à origem rural (relacionada obviamente à preservação dos
mesmos “padrões tradicionais”) uma real ou suposta inadequação no
comportamento de determinadas camadas urbanas em face dos proble-
mas criados pelo processo de industrialização. A origem rural é assim
responsabilizada pela fraqueza do sindicalismo, pela baixa produtividade
da indústria e mesmo pela ausência de uma consciência de classe.
A “cultura” aparece, nesta perspectiva, como um fenômeno essen-
cialmente irracional, e a dinâmica cultural se reduz a um processo indu-
zido de ressocialização que removeria os obstáculos representados pela
existência de padrões culturais inadequados ao desenvolvimento satis-
fatório da sociedade.
Obviamente, não é minha intenção negar a existência de padrões
culturais tradicionais ou de valorização do passado. A questão é que a
constatação da persistência desses padrões (ou, seu contrário, a valori-
zação do “novo” e do “moderno”) não constitui explicação de nenhum
fenômeno social, mas eles próprios são fenômenos que devem ser expli-
cados na análise do processo de transfor mação social. Há muitos anos
que os antropólogos destruíram a ilusão do valor explicativo do concei-
to de sobrevivência cultural. Padrões culturais sobrevivem na medida
em que persistem as situações que lhes deram origem, ou alteram seu
significado para expressar novos problemas.
Na verdade, o que quero criticar é uma concepção na qual a cultu-
ra aparece como um produto e se abandona a explicação do modo pelo
qual é produzida, perdendo-se assim toda a possibilidade de uma análise
frutífera da dinâmica cultural.
Retomando o problema dessa nova perspectiva, é necessário de
início mostrar de modo mais adequado a relação entre ação e represen-
tação, relação esta que permeia necessariamente toda a discussão sobre
a natureza da dinâmica cultural.
Um reexame dos clássicos da antropologia culturalista, tanto em
sua linha americana, que elaborou a noção de padrão cultural (e tam-
bém a de ethos), como na variante inglesa, com Malinowski e seu con-
ceito de instituição, revela claramente que a noção de cultura parte do
pesquisa se processa, portanto, no nível da investigação do comporta-
mento real de grupos concretos.
Ora, todas as vezes em que as forças sociais objetivas que moldam
o processo histórico se encontram distantes, não apenas da percepção
mas inclusive da própria capacidade de ação ou manipulação por parte
dos grupos ou de categorias sociais analisados, a análise culturalista
encontra dificuldades quase insuperáveis para reconstruir a totalidade
da qual a realidade que estuda é apenas parte. Presa à particularidade e
parcialidade das manifestações culturais de grupos específicos, a aná-
lise culturalista perde a capacidade de compreender os mecanismos
através dos quais essas particularidades são engendradas. Em outras
palavras, a superação do impasse em que se encontra a investigação
antropológica depende de sua capacidade, não apenas de constatar e
descrever a heterogeneidade cultural, mas de explicar o modo pelo qual
ela é produzida socialmente. Cabe então tentar explicitar a natureza do
próprio processo de heterogeneização.
Devemos partir, por conseguinte, da constatação da existência, em
nossa sociedade, de uma heterogeneidade cultural produzida por uma
diferenciação das condições de existência, que se prende à estrutura de
classe e resulta da reprodução de um modo de produção. Mas deve-se
considerar também que esta diversidade está per meada, por sua vez,
por distinções regionais associadas a peculiaridades de recursos naturais
e a condições demográficas e históricas particulares que lhe dão conteú-
dos e formas específicas.
Obviamente, esse tipo de heterogeneidade não é exclusivo de
nossa sociedade, mas caracteriza todo o processo que podemos chamar
de civilizatório. No passado, entretanto, essas distinções podiam se
manifestar em termos de subculturas relativamente coerentes e autôno-
mas. A existência de uma cultura erudita própria das classes dominan-
tes não impedia a elaboração de sistemas culturais populares, freqüen-
temente dependentes de for mas de comunicação não escritas, onde
padrões de comportamento e representações simbólicas desenvolvidas
por grupos relativamente homogêneos refletiam com precisão o modo
pelo qual cada um deles vivia sua condição de dominado. O folclore
rural, a cultura própria de grupos de ofício ou mesmo de bairros operá-
rios exemplificam esta situação. É claro que essa autonomia cultural só
se desenvolve dentro de certos limites estabelecidos pela necessidade de
manutenção de uma estrutura de dominação, isto é, só é tolerada na
que se eliminar a concepção simplista que opõe os consumidores aos
produtores de cultura em termos de uma aceitação puramente passiva,
por parte do público, de um material que lhe é impingido de fora. De
um lado, porque os produtores têm que considerar, para a eficácia da
mensagem, os gostos, preferências e valores da população à qual se diri-
gem, necessidade esta que reintroduz uma heterogeneidade nos produ-
tos culturais oferecidos em ter mos do público que pretendem atingir.
De outro lado, porque estes “produtos” não constituem uma criação
cultural original e inovadora mas, freqüentemente, simples reordenação
de imagens, símbolos e conceitos presentes na cultura popular ou eru-
dita. Retirados de seu contexto original, perdem necessariamente muito
de seu significado e podem ser assim manipulados para compor novos
conjuntos, cuja amplitude de alcance parece estar diretamente condicio-
nada ao empobrecimento prévio de seu conteúdo. E, finalmente, porque
esses “produtos” assim apresentados têm que ser ativados pela sua in-
corporação ao comportamento dos indivíduos, e nesse processo sofrem
necessariamente uma seleção, reordenação e mesmo transfor mação de
significado que podem implicar, inclusive, um enriquecimento, pela
atribuição de novos conteúdos ao material simbólico. Ao lado, portanto,
da produção cultural, há um processo amplo de reelaboração de signifi-
cados em que volta a atuar a heterogeneidade produzida pelo próprio
funcionamento da estrutura social.
É necessário considerar também outro aspecto, igualmente funda-
mental para a análise da dinâmica cultural, que ocorre quando o grupo
que reelabora e utiliza o produto cultural acabado é diferente daquele
que o produziu. Estando a distinção entre produtores e consumidores
de cultura presa a uma distinção de classe, a relação entre eles assume
necessariamente uma conotação política, isto é, ela tem implicações em
ter mos de poder. Com isso queremos dizer que, na medida em que a
chamada cultura de massa constitui uma tendência homogeneizadora
que se sobrepõe às diferenças reais fundadas numa distribuição desigual
do trabalho, da riqueza e do poder, e se processa, portanto, no plano
exclusivamente simbólico, todo o problema da dinâmica cultural se pro-
jeta na esfera das ideologias e tem que levar em consideração seu signi-
ficado político.
As manifestações de heterogeneidade cultural, neste contexto, não
podem mais ser tratadas como simples diferenças – como manifestações
equivalentes (tanto do ponto de vista ético como do científico) de uma
Capítulo
nais, isto é, aquela que subordina a mulher ao homem e tende a restringir
as atividades femininas ao âmbito doméstico mesmo que esse ideal rara-
mente se realize. Simultaneamente, tendem também a apreciar as virtu-
des tradicionais de respeito e obediência dos filhos para com os pais.
A integração desses valores num padrão cultural relativamente
estável e sua combinação com uma preocupação marcante com a ascen-
são social individual, também revelada em inúmeras pesquisas, parecem
indicar, por parte do operariado brasileiro, uma adesão incondicional à
ideologia capitalista mais tradicional e, inversamente, incapacidade de
desenvolver uma verdadeira consciência de classe.
Explicações correntes tanto na literatura científica quanto na de
cunho mais jor nalístico tendiam a explicar este fato em ter mos da ori-
gem rural recente dos operários brasileiros, interpretando a existência
destes padrões como preservação de valores próprios do mundo rural.
Alter nativamente, especulou-se muito sobre uma possível influência da
“ideologia” das classes médias, que conseguiriam impor, através da esco-
la, das organizações assistenciais e dos meios de comunicação de massa,
valores e práticas sociais essencialmente alheios aos interesses reais e às
condições de existência das classes trabalhadoras.
Acredito que estas explicações são basicamente incorretas e que
uma análise da família, feita de outra perspectiva, pode revelar aspectos
extremamente importantes da ideologia e da prática social dos operários
brasileiros, constituindo um instrumento auxiliar valioso para a com-
preensão das orientações políticas e dos movimentos sociais populares.
Em primeiro lugar, é necessário lembrar que a valorização da
família e da vida doméstica por parte dos operários não é um fenôme-
no exclusivamente brasileiro, nem próprio da sociedade de industriali-
zação recente. Para citar apenas um caso, o da Inglaterra, podemos
recorrer ao estudo do clássico trabalho de Hoggart () sobre as
classes trabalhadoras, para comprovar a importância e a solidez dos
laços familiares, assim como o aparente tradicionalismo da divisão
sexual do trabalho na constituição do modo de vida dos operários in-
gleses. Por outro lado, a simples comparação destes trabalhos com es-
tudos realizados no século sobre as condições de vida operária
(como o de Engels) mostra que esta solidez da vida doméstica não é a
conservação do passado, mas a superação de um estado generalizado
de desorganização familiar, associado a uma exploração muito mais
brutal e direta da força de trabalho.
esvanecer, uma vez que não figura explicitamente nem como produtora
nem como compradora de mercadorias. Resta apenas considerá-la
como unidade de reprodução da força de trabalho, mas mesmo neste
campo ela tende a ser afastada das explicações fundamentadas economi-
camente, uma vez que figura como condição dada, que pode ser dissol-
vida na análise demográfica ou na caracterização global da força de tra-
balho. Além do mais, nas análises de inspiração marxista, voltadas para
a classe definida em ter mos de seu modo de inserção no processo pro-
dutivo, e preocupadas com a atuação política do proletariado, a família
também não constitui elemento essencial à reflexão nem aparece como
realidade importante a ser explicada, mas antes como instituição a ser
superada. Desse modo, as investigações sobre a família tenderam a
refletir este esvanecimento, definido em ter mos de perda de suas fun-
ções tradicionais, principalmente a produtiva e a educativa.
Esta visão da família está relacionada a uma ótica da produção, no
seu sentido restrito, ótica esta que dominou por muito tempo tanto a
literatura de inspiração marxista como a chamada literatura burguesa.
Apenas recentemente, com a retomada das questões referentes à repro-
dução das condições de produção, é que foi possível recolocar de modo
mais adequado as indagações referentes à família. Quando as condições
da produção não são mais consideradas como dadas mas, ao contrário,
cumpre exatamente investigar o modo pelo qual são repostas, a institui-
ção familiar reaparece no quadro das investigações sobre o modo de
produção capitalista, inserida na análise do processo de reprodução da
força de trabalho. E reaparece nos dois momentos deste processo: no
da sobrevivência dos trabalhadores adultos e no da formação de novos
trabalhadores jovens.
Se a análise da reprodução das condições de produção legitimou,
de certo modo, o interesse pelo estudo da família, uma investigação
adequada dessa instituição exige que se supere um reducionismo fre-
qüentemente presente nesse tipo de estudo, e que consiste em subsumir
integralmente um fenômeno no outro. Em primeiro lugar, é obvio que
não se pode pensar o processo de reprodução da força de trabalho em
termo dos comportamentos reprodutivos dos operários, esquecendo
fenômenos tão ou mais importantes como a destruição de relações tra-
dicionais de trabalho e os deslocamentos espaciais e ocupacionais da
população que ele acarreta. Além disso, mesmo quando se analisa o
comportamento reprodutivo do operariado como um, e apenas um, dos
capitalista, não podem ser nem deduzidos das necessidades do capital,
nem eliminados por uma lógica estritamente economicista.
É importante notar que, nesta colocação, a família não é mais ins-
tituição sem funções, nem em vias de desaparecimento, mas reaparece
como unidade de reprodução, produção, rendimento e consumo. Mais
ainda, é a referência ao consumo que permite estabelecer a articulação
entre esses diferentes aspectos, pois o consumo é o fim em relação ao
qual se estruturam as diversas dimensões aqui apontadas.
A introdução dessa referência para fins que nos parecem indispen-
sáveis significa repor imediatamente na análise a questão dos modos
historicamente determinados por meio dos quais se dá a reprodução da
força de trabalho. Importa considerar concretamente o modo pelo qual
os trabalhadores, em uma sociedade determinada, definem suas neces-
sidades mínimas, estabelecem o que consideram “uma vida decente” ou
desejável e que, obviamente, não podem ser deduzidas a partir de crité-
rios supostamente objetivos como o de “mínimos vitais”. O que do
ponto de vista da sociedade como um todo ou do ponto de vista mais
restrito do capital é a reprodução da força de trabalho, da perspectiva
do trabalhador é a realização de um modo de vida. Abandona-se, assim,
uma perspectiva economicista, e reintroduzem-se na análise questões
como o cuidado com os idosos e os inválidos, a utilização do lazer, a
expressão da criatividade pessoal, a obtenção do prazer, a definição da
masculinidade e da feminilidade, todas elas irredutíveis a uma concep-
ção simplista da necessidade de reprodução da força de trabalho.
Desse modo, para explicar a família, sua persistência e transforma-
ção no mundo capitalista, não basta considerar sua funcionalidade para
o capital e determinar se sua existência barateia ou encarece o custo da
reprodução da mão-de-obra. Tratando-se de uma unidade de vida
social articulada internamente pela referência a fins e valores, a proble-
mática se deslocou para o terreno do “vivido humano” e aproximou-se
do campo da ideologia.
Tomemos o problema desse ângulo. Sem aceitar necessariamente a
metodologia althusseriana, e recusando explicitamente a caracterização
da família como “aparelho ideológico do Estado” (que ao mesmo
tempo amplia desmesuradamente o conceito de Estado e restringe inde-
vidamente o de família), podemos entretanto aceitar o ponto de partida
segundo o qual a análise da ideologia se coloca adequadamente na pers-
pectiva da reprodução das condições de produção (que é bem mais
como locus e como referência das representações dos trabalhadores
sobre seu lugar na sociedade, isto é, de sua “consciência de classe”.
O ponto de partida é dado pela separação entre o trabalhador e o
produto, que resulta do modo de produção capitalista (e que talvez
ocorra, necessariamente, em toda sociedade industrial, capitalista ou não).
É desnecessário demonstrar esse ponto, uma vez que toda a literatura
sobre o trabalho industrial tem insistido sobre este fato crucial que resulta
do processo de divisão do trabalho característico da produção fabril. A se-
paração entre o trabalhador e o produto de sua atividade tende a retirar do
trabalho qualquer significado próprio, e lhe confere um caráter puramen-
te instrumental, subordinado à consecução de fins que estão fora dele.
Na experiência comum do trabalhador brasileiro e, especialmente,
do ponto de vista do operário não qualificado, que constitui a grande
massa de trabalhadores fabris, o trabalho aparece como atividade carac-
terizada, de um lado, pela monotonia imposta pela divisão das tarefas e,
de outro, pela ausência de liberdade e de autonomia. O rígido controle
dos movimentos – que alcança sua expressão mais completa na linha de
montagem – implica o exercício, sobre o trabalhador, de uma supervisão
exterior, elaborada de acordo com uma lógica de produção que, formu-
lada nos níveis técnicos e administrativos, escapa, senão à percepção,
pelo menos à experiência imediata e à capacidade de decisão do operá-
rio. O significado do trabalho, ausente da atividade em si, só pode ser
recuperado abstratamente no nível da empresa ou do mercado em seu
conjunto. Alternativamente, este significado é recuperado pelo operário
através da reflexão sobre a sujeição própria da condição operária, mais
do que sobre a natureza da tarefa que executa.
Por outro lado, do ponto de vista do operário, o trabalho aparece
também como atividade essencialmente individual. Em primeiro lugar,
porque se define em termos sociais e jurídicos como emprego, regulado
por um contrato que se estabelece entre o trabalhador individual e a
empresa. Em segundo lugar porque a atividade em si, determinada por
uma programação técnica que escapa à ação do trabalhador, reduz os
operários a unidades independentes, justapostas e substituíveis. A conti-
güidade espacial, a semelhança da atividade e especialmente a condição
comum de sujeição podem dar origem a uma atividade associativa.
Entretanto, esta atividade associativa não está inscrita no ato de trabalho,
mas constitui quer a manifestação de uma solidariedade generalizada (de
tipo mecânico, na conceituação de Durkheim), quer o resultado de uma
dentro do princípio de utilização de recursos escassos: escolhas entre
diferentes produtos e escolha entre tipos ou marcas do mesmo produto.
Por isso, o consumo aparece como área de liberdade, em oposição à
constrição do trabalho.
Como o consumo ocorre basicamente no âmbito doméstico, a
família se constitui como grupo dentro do qual as pessoas tomam cole-
tivamente decisões que afetam seu destino comum. Se a opinião do tra-
balhador não influi sobre a organização das atividades que se desenro-
lam na fábrica nem é essencial para a organização da produção, é, ao
contrário, fundamental no âmbito doméstico: é na família que se decide
o que e quanto comer, o que vestir, onde morar, quanto despender com
móveis e eletrodomésticos, que grau de escolarização cada membro da
família pode usufruir etc. É claro que esta liberdade é extremamente
restrita, pois se exerce dentro dos limites estreitos impostos pela escassez
dos rendimentos e sob o bombardeio da propaganda. Entretanto, den-
tro dos limites da carência, cabe sempre decidir e escolher tendo em
vista não apenas o interesse individual, mas os interesses de todos na
coletividade que é a família.
Centro de vida coletiva e de “liberdade”, grupo no qual as neces-
sidades individuais são satisfeitas (mesmo que precariamente), a famí-
lia é, portanto, não apenas núcleo de tensões e conflitos, mas instituição
dentro da qual as pessoas obtêm o seu prazer: alimentação, sexo e diver-
são. Se, da ótica da produção, a família constitui o núcleo de reprodução
da força de trabalho e, portanto, condição da produção, para o trabalha-
dor, ao contrário, ela é fim para o qual o trabalho é um meio. Desse
modo, o trabalho de homens e mulheres, adultos e jovens, não se defi-
ne, para as pessoas, exclusivamente em ter mos de uma referência à
natureza do sistema produtivo, mas em termos de sua instrumentalidade
para o consumo e, portanto, para a família.
A referência do trabalho à família implica reconhecer a comple-
mentaridade entre o trabalho assalariado (trabalho social produtivo) e
as tarefas domésticas já apontadas anteriormente na questão da relação
entre venda da força de trabalho e produção de valores de uso. É consi-
derando a complementaridade entre esses dois gêneros de atividades
que se pode apreciar o significado dos diferentes tipos de trabalho e sua
identificação com os papéis sociais específicos que orientam a divisão do
trabalho no seio da família. A vida familiar aparece assim como a elabo-
ração de uma estratégia que, jogando com a mão-de-obra disponível
classes dominantes. Implica, para os trabalhadores, assumir a responsa-
bilidade por sua própria reprodução. E, nesse sentido, afir mar que a
reprodução (e o consumo) devem ser da família implica também tentar
preservar um espaço privado de produção direta de valores de uso, uma
mediação entre o mercado e a satisfação das necessidades materiais, que
permite um certo grau de liberdade na organização dos recursos.
Instituição “privada” por excelência, isto é, aquela em que as pes-
soas estão mais abrigadas da ingerência direta do Estado e na qual
encontram um pequeno espaço de manobra diante das pressões do sis-
tema econômico, a família acaba suportando uma imensa carga de ten-
sões. Definida como o espaço onde o trabalhador procura conciliar ren-
dimentos precários com necessidades crescentes, a família se vê ante
uma tarefa impossível, e tende a se desagregar quando a pressão econô-
mica se torna insuportável. Constituindo, simultaneamente, um dos
únicos lugares onde os indivíduos se defrontam como pessoas integrais
e onde encontram alguma possibilidade de manifestar seus anseios e
frustrações, não é de estranhar que a família acabe por ser também o
repositório de uma violência que, gerada pela opressão econômica e
política, acaba explodindo nesse refúgio da expressão pessoal. A violên-
cia na família assume então a forma direta da agressão física dos mais
fortes sobre os mais fracos, e tende a vitimar preferencialmente as
mulheres e as crianças, uma perversão da divisão do trabalho que
subordina a esposa ao marido e os filhos aos pais.
Com tudo isso, a família tende a se perpetuar dentro desses pa-
drões. Esta visão que acabamos de expor corresponde, obviamente, à
valorização “tradicional” da família. Não resulta, entretanto, de um
irracional apego ao passado, mas de uma apreciação adequada, dentro da
ótica e dos limites da situação vigente, das condições de vida dos trabalha-
dores. Neste sentido, constitui uma ideologia, isto é, uma ordenação
cognitiva e valorativa da realidade que parte (e se restringe aos limites)
das estruturas reificadas da experiência imediata, tomadas como ele-
mentos constitutivos permanentes ou “naturais” da ordem social e que,
como tal, ordena a prática social.
Mas não se trata apenas disso. Além de estar na ideologia, a família
deve ainda ser considerada explicitamente como uma das instituições
em que se constroem as ideologias. Não me refiro aqui à problemática
althusseriana mais geral da constituição do sujeito, o processo de huma-
nização que se dá nos primeiros anos de vida e para o qual, obviamente,
diferentes e alarga o âmbito do conhecimento sobre a sociedade de modo
um pouco mais amplo do que tende a ocorrer nos países onde a popula-
ção operária já está solidificada. Esta interpretação, que atribui à família
um papel importante como ponto de referência para a formulação de juí-
zos críticos das condições de existência através das quais se concretiza
uma situação de classe, exige ainda algumas outras considerações.
Na medida em que se constitui como o grupo dentro do qual se dá
a reprodução biológica e a socialização básica, a família estabelece, atra-
vés do parentesco, uma ligação entre o passado e o presente e, o que é
mais importante, entre o presente e o futuro. Caracteriza-se então,
simultaneamente, pela elaboração de uma estratégia de sobrevivência
imediata e de um projeto para o futuro. A formulação desse projeto é um
momento privilegiado, que exige a síntese das experiências concretas na
formulação de uma representação da sociedade. No projeto para o futu-
ro encontramos, de um lado, aspirações de consumo que consubstan-
ciam os ideais de uma “vida melhor”, forma implícita de crítica à situa-
ção presente. De outro, o projeto inclui estratégias para a realização dos
ideais propostos, estratégias estas que implicam a explicitação das difi-
culdades que se apresentam (isto é, que “a sociedade” coloca) para a
realização de ideais que se consideram justos. Basicamente, o projeto
define ideais de consumo para cuja satisfação é necessário obter para os
membros da família, especialmente os filhos, melhores condições de
competição no mercado de trabalho. Nesse sentido, o projeto de vida da
família constitui a ocasião privilegiada para relacionar a participação na
estrutura produtiva e o acesso aos bens de consumo, for mando uma
imagem sintética da posição do trabalhador na sociedade.
Esta imagem sintética é complementada pela visão do passado, pela
comparação entre o que a família é agora (a posição que ocupa) e pode
vir a ser (o projeto), e o que os avós foram no passado. Dá, assim, um
histórico “vivido”, que não pode ser substituído pela história for mal,
precariamente aprendida na escola pelos poucos que a freqüentaram,
nem pelos fragmentos do passado da classe trabalhadora, conservados
na também precária memória coletiva. A história vivida é, entretanto,
muito curta, caracterizada na maioria das vezes pela passagem de agri-
cultor a operário, de morador do campo a morador da cidade, de avô
analfabeto a neto escolarizado. Sendo curta, é também unidirecional,
marcada pela ilusão ou pela realidade de uma “melhoria” de vida e jus-
tifica, portanto, uma interpretação “desenvolvimentista” da sociedade e
Capítulo
Cultura
. Moder namente, Lévi-Strauss e Geertz estão entre os autores que trabalham de maneira
mais construtiva com esta noção. Ver Lévi-Strauss e Geertz .
membros da sociedade sobre sua prática constituem elementos igual-
mente relevantes utilizados pelo antropólogo para construir-reproduzir
um sistema, apresentado sob a forma de nor mas ou padrões culturais,
em função do qual a ação e o discurso adquirem sentido.
Para realizar a investigação de campo, portanto, basta admitir que
“tudo se passa como se” o comportamento de seres humanos vivendo
em sociedade dependesse da existência de um conjunto de nor mas,
construídas socialmente. Entretanto, a colocação do problema nesses
termos simplistas, se bem que possa dar origem a monografias primoro-
sas, oculta alguns problemas teóricos fundamentais e implica o perigo
de reificar as explicações construídas pelo investigador.
Na verdade, acredito que a antropologia jamais tratou de modo
adequado a questão da natureza das normas sociais, que diz respeito ao
caráter consciente ou inconsciente das regularidades comportamentais,
e remete ao problema da relação entre condutas individuais e processos
sociais. A própria ambigüidade do conceito de norma, que pode ser
usado, alternada ou simultaneamente, como construção do investigador
ou elaboração (consciente ou inconsciente) da própria sociedade, foi
usada freqüentemente como recurso para evitar a necessidade de escla-
recer o problema.
Entretanto, apesar da imprecisão das for mulações, para os antro-
pólogos, acostumados a realizar as análises a partir de discursos e práti-
cas fragmentários, sempre ficou claro que, embora as práticas sociais
façam sentido para os atores, embora esse sentido possa ser recuperado
através da construção-explicitação de sistemas simbólicos, embora os
agentes sejam capazes de for mular as regras que regem sua conduta,
os sistemas, enquanto tais, não são verbalizados e não precisam estar
presentes na consciência dos homens para operar. Com relação a esse
problema, menos que com uma teoria, os antropólogos tenderam a ope-
rar com uma metáfora: a cultura é como a linguagem. Tanto uma quan-
to outra só podem ser explicadas remetendo à da estrutura que lhes dá
forma, mas ambas são utilizadas e entendidas sem que essa estrutura
assome à consciência dos homens.3 A linguagem, concebida simultanea-
mente como parte e instrumento indispensável da cultura, passou a ser
também o verdadeiro paradigma da cultura.
materiais resultantes do trabalho social encerram um trabalho morto
que só pode ser reincorporado à atividade produtiva por meio de um
trabalho vivo, assim também esses sistemas simbólicos fazem parte da
cultura na medida em que são constantemente utilizados como instru-
mento de ordenação da conduta coletiva, isto é, absorvidos e recriados
nas práticas sociais.4
Utilizando de modo um pouco diferente uma concepção de Geertz,
podemos dizer que esses sistemas simbólicos são modelos na dupla
acepção do termo: de um lado, propriamente representações (modelos
da realidade social) e, de outro, simultaneamente, orientações para a
ação (modelos para o comportamento social) (: ). Ao contrário de
Geertz, entretanto, referimos o conceito de cultura menos aos modelos
do que ao processo de sua contínua produção, utilização e transformação
na prática coletiva.
Novas metáforas não constituem, certamente, substituto adequa-
do para uma reflexão teórica mais acabada, mas permitem retomar uma
concepção dinâmica de cultura que sempre esteve presente na investi-
gação etnográfica e entender a partir dela a ausência, na antropologia,
de certos problemas aos quais a sociologia e a ciência política dedicaram
muito de seus esforços.
Com efeito, presa a um trabalho de campo no qual ação e repre-
sentação aparecem indissoluvelmente ligadas, numa concepção de prá-
tica significante, a antropologia não desenvolveu nenhuma tendência a
opor for malmente “condições reais de existência” às representações,
nem a perceber estas como manifestações distorcidas daquelas. Dentro
da orientação antropológica, é impossível relegar o universo simbólico,
em sua totalidade, à instância da superestrutura, uma vez que ele é
indissociável de qualquer prática social, inclusive da produção material,
e é instrumento fundamental para sua decifração.
Voltada para o plano das práticas sociais concretas, a antropologia
jamais operou satisfatoriamente com a oposição infra-estrutura/supe-
restrutura.5 Quando muito desenvolveu, na descrição etnográfica, dis-
tinções muito fluidas entre organização econômica, organização social
e religião, distinções estas que são antes recursos expositivos do que ele-
prática da investigação etnográfica, a não ser muito raramente, nas ten-
tativas de alguns antropólogos marxistas. Os antropólogos sempre es-
tiveram muito mais interessados nas inúmeras mediações do que na
determinação última, no espaço de indeterminação da produção simbó-
lica, isto é, nas complexidades “desnecessárias”, nas ênfases emotivas,
nas “perversões” cognitivas que dão a cada cultura sua forma, sua “cor”
e sua especificidade. O elemento simbólico presente nas pautas de orga-
nização da vida social parece permitir infinitas elaborações, extraordiná-
rias reduplicações, refinamentos e complexidades “gratuitas”, como se
nota facilmente no ritual, na mitologia, na ornamentação, nas classifica-
ções do mundo natural e social, nas regras de polidez, nas categorias de
parentesco, na distribuição do alimento etc. Para o antropólogo, a cultu-
ra tem um certo caráter lúdico, como se os homens, tendo desenvolvido
sua capacidade simbólica em função de e para sua prática social, brincas-
sem com ela na elaboração de estruturas infinitamente complicadas e
que parecem ser, por isso, esteticamente satisfatórias.
É verdade que essa colocação não elimina um problema, central
no marxismo: a identificação de processos que são fundamentais para a
reprodução de uma forma de vida social (uma cultura) deter minada.
Esse problema apareceu indiretamente na antropologia clássica na
questão da integração da cultura, e foi encaminhado de três for mas
diversas, todas elas basicamente descritivas. Em primeiro lugar, na ten-
tativa de detectar valores abrangentes que são, na verdade, formulações
sintéticas de características próprias das atitudes dos indivíduos porta-
dores da cultura – essa abordagem é a que leva à definição do ethos cul-
tural. Em segundo lugar, como faz Malinowski, na procura de institui-
ções básicas universais, cuja forma específica em cada sociedade seria
responsável por sua unicidade e em função das quais seria possível
apreender a integração entre os diferentes aspectos e partes da cultura.
E, finalmente, por meio do conceito de estrutura da sociedade, arcabouço
formal referido aos sistemas de relações sociais (funcionalismo estrutu-
ral). Mais recentemente, no estruturalismo de inspiração lingüística, o
conceito de estrutura tendeu a liberar-se do conceito de sociedade para
referir-se, cada vez mais, aos sistemas simbólicos enquanto tais, encami-
nhando a análise para um formalismo crescente.
Em nenhum dos três casos, note-se bem, é incorporado o proble-
ma da determinação.
Em resumo, estamos querendo mostrar que, analisando a prática
é possível analisar relações de poder nas sociedades primitivas, mas este
não é nem o fulcro nem o centro da concepção de cultura.
São, no fundo, essas ausências que permitem explicar as diferenças
entre um estudo antropológico da cultura e a análise política das ideologias.
Ideologia
. sua implicância política necessária;
. sua restrição inicial a sistemas estruturados e cristalizados de repre-
sentações;
. o estabelecimento de uma oposição entre realidade e representação,
reduzindo o problema do simbolismo ao segundo termo;
. a instrução de uma oposição entre falso e verdadeiro que é associada,
termo a termo, com a oposição opressão-liberdade;
. a síntese dessas características na concepção de que a ideologia é uma
imagem distorcida e “perversa” da realidade social a serviço da opres-
são de uma classe sobre outra.
Nesse lusco-fusco onde todos os gatos são pardos, tudo sendo
igualmente ideológico e político, constrói-se um universo asfixiante de
opressão, em que o poder per meia tudo e é tudo. Não há mais graus
de dominação nem critérios de relevância.
O que estamos tentando defender aqui é a preservação do concei-
to de cultura como instrumento para analisar a questão do simbolismo
e da significação na ação humana, não como prática específica mas
como elemento constituinte de todas as práticas, igualmente relevante
na produção material e no debate escolástico. Sem negar a importância
da distinção entre infra-estrutura e superestrutura, recusar a identifi-
cação dessas instâncias com práticas sociais específicas. Manter a con-
cepção antropológica de que as práticas sociais são sempre sínteses de
múltiplas deter minações e sempre, necessariamente, também simbóli-
cas, isto é, dotadas de significação.
De outro lado, é necessário preservar, no conceito de ideologia,
seu conteúdo político, o que implica não alargá-lo desmesuradamente
para incluir todo o simbólico e, muito menos, todas as significações.
A posição de Gramsci parece ser mais frutífera para uma reflexão
sobre as possíveis contribuições no conceito de ideologia para a aborda-
gem antropológica da nossa sociedade (e vice-versa), per mitindo uma
análise mais aprofundada dos problemas esboçados.8 Gramsci é certa-
mente, de todos os autores marxistas, aquele que demonstrou maior
sensibilidade e se preocupou mais profundamente com os fenômenos cul-
turais. É verdade que toda riqueza das análises de Gramsci não se con-
substancia numa teoria acabada da ideologia. Os fenômenos culturais são
abordados através de uma multiplicidade de ter mos e conceitos como
visão de mundo, filosofia, religião, senso comum, bom senso, cujas cono-
tações e limites são imprecisos. Entretanto, o próprio fato de Gramsci
não ter desenvolvido uma teoria sistemática da ideologia, e de ter utiliza-
do concepções fluidas e às vezes mesmo contraditórias, pode ser um fato
positivo – as sistematizações, embora necessárias, freqüentemente cons-
trangem os problemas numa camisa-de-força, ao passo que construções
mais ambíguas podem preservar uma riqueza de percepção para a qual
não existe ainda uma teoria adequada. Por outro lado, o caráter fragmen-
tado dos escritos de Gramsci certamente favorece leituras muito diversas,
. Sobre esta questão, é interessante consultar Hall, Lumbey & McLennan .
está voltada para o reconhecimento da importância das idéias, das con-
cepções, das representações para a construção de nor mas de ação, isto
é, implicitamente pelo menos, na vinculação da conduta com o universo
simbólico. É isso que aproxima a versão gramsciana de ideologia (e de
seu substrato, que é o senso comum) de uma concepção antropológica
de cultura: essa vinculação das idéias, representações e categorias com
o vivido humano, sua existência nas próprias práticas sociais, sua rela-
ção com normas de conduta. E é por isso que muitos dos trechos de
Gramsci apresentam inegável sabor antropológico.
Gramsci não analisa a ideologia e a política como práticas especí-
ficas. Novas formas de dominação, o estabelecimento de um novo bloco
histórico, implicam uma transfor mação profunda de toda a sociedade.
O bloco dominante precisa subordinar as demais classes (e a si próprio)
às exigências do novo modo de produção, não apenas por meio da coer-
ção, mas também pela ampla transfor mação de valores e costumes na
sociedade civil, fundamentando novas práticas sociais. Desse modo, a
política e a ideologia transpassam toda a sociedade, mas não impregnam
do mesmo modo o conjunto de manifestações culturais.
Entretanto, é importante notar, em primeiro lugar, que as análises
de Gramsci sobre os fenômenos culturais, desenvolvidas a partir de uma
perspectiva estritamente política e tendo sempre como centro interpreta-
tivo a investigação das possibilidades de realização da revolução comu-
nista, implicam uma enor me ambigüidade na avaliação das manifesta-
ções culturais espontâneas das classes dominadas. De um lado, Gramsci
sempre demonstrou uma valorização positiva dessas construções cultu-
rais – a noção de bom senso parece ter sido criada exatamente para
expressar o respeito pela capacidade popular, apoiada no pragmatismo e
no realismo, de entender a realidade social e for mular seus interesses
imediatos. Na mesma direção se coloca todo o seu empenho em defen-
der a necessidade de ancorar a produção dos intelectuais no substrato
fornecido pelo bom senso. De outro lado, a análise do senso comum enfa-
tiza constantemente sua fragmentação e inconsistência, que resulta da
coexistência de noções arcaicas e modernas, de elementos desenvolvidos
espontaneamente a partir da vivência solidária da situação de classe e de
idéias impostas pela classe dominante. Para Gramsci, a fragmentação e
a inconsistência do senso comum se devem à ausência de sentido histó-
rico, são resultado de um pensamento que não reflete sobre o modo pelo
qual é produzido, mas aceita a si próprio e à realidade como dados.
revolucionária adequadas. Ao contrário, apoiado no senso comum,
tende para o corporativismo – assim, a noção de fragmentação é, para
Gramsci, a explicitação dessa limitação. Sua reflexão se encaminha
então no sentido de afir mar que a amplitude e a coerência de visão
necessárias para a organização do proletariado num movimento revolu-
cionário e o estabelecimento de sua hegemonia exigem instrumentos
intelectuais específicos que o marxismo oferece enquanto ciência e ideo-
logia. Isto é, a nova hegemonia depende de um novo tipo de pensamen-
to (o pensamento crítico, que reflete sobre as condições de sua própria
produção), porque só desse modo é possível construir (na nossa socie-
dade) uma visão suficientemente coerente e abrangente para cimentar
um novo bloco histórico. Esta é a tarefa dos intelectuais e do partido, e
o marxismo (a filosofia da práxis) aparece então não como uma outra
ideologia, mas como ideologia de novo tipo.
Presentes nessa concepção, como na de classes fundamentais,
estão tanto uma noção específica de totalidade e universalidade, como a
de uma fragmentação característica das sociedades capitalistas, que apa-
rece claramente num trecho referente à linguagem:
Assim como não se pode pensar o mundo no dialeto, não se pode fazê-
lo da aldeia.10
Essa concepção demonstra uma clara afinidade com alguns aspec-
tos do conceito de “consciência de classe” de Lukács (em que pesem as
diferenças entre esses dois autores).11 Com efeito, Lukács () per-
. Toda a célebre nota de “Alguns pontos preliminares de referência”, sobre as línguas
nacionais e os dialetos, aponta indubitavelmente para esse problema.
. É supérfluo apontar a influência da análise empreendida por Marx no brumário, no tra-
tamento deste problema, tanto sobre Lukács como sobre Gramsci.
. Para esse tipo de formulação, em termos não marxistas, ver Lamounier .
Entretanto, a utilização do conceito de ideologia no sentido grams-
ciano não apenas levanta problemas importantes mas coloca igualmen-
te limitações específicas para a abordagem dos fenômenos culturais, que
devem ser explicitadas.
Como vimos, o conceito de ideologia em Gramsci remete necessa-
riamente ao conceito de hegemonia e, através dele, subordina toda a
análise das manifestações ideológico-culturais à luta de classes. A impli-
cação dessa postura é a de que a produção cultural é sempre analisada
em função de sua contribuição para o enfrentamento das classes funda-
mentais, num movimento de compreensão que busca a totalidade do
processo histórico. Não há, por assim dizer, elementos culturais ou con-
flitos políticos que possuam relevância própria fora desse quadro.
Vemo-nos assim, do ponto de vista da antropologia, dentro de uma
espécie de camisa-de-força, em que os fenômenos culturais só são consi-
derados enquanto substrato para a emergência da ideologia, ou melhor,
d’A ideologia – a filosofia da práxis. Não há espaço, nessa concepção, para
a exploração da relativa arbitrariedade, dos arranjos alter nativos, da
imensa variabilidade das formas culturais. Do mesmo modo, perde-se a
sensibilidade para a relevância política da manipulação cultural nas ques-
tões referentes aos interesses e conflitos de grupos e categorias sociais
que não possam ser reduzidos ou inteiramente subsumidos no macroen-
frentamento das classes fundamentais.
Finalmente, é importante ressaltar mais uma vez que a análise de
Gramsci, remetendo a características específicas das sociedades criadas
com o capitalismo, faz com que sua extensão ou adaptação ao estudo de
outras sociedades não possa ser imediata nem automática. O conceito
de ideologia constitui um instrumento de análise referente a modos espe-
cíficos de dominação e a modos específicos de produção de conhecimentos
que são próprios da sociedade capitalista. Por isso mesmo, não pode ser
confundido com o conceito antropológico de cultura, nem substituí-lo.
Conclusão
mação da ordem social é possível, certamente, sem alterar profunda-
mente o conjunto das práticas sociais (e dos fenômenos culturais). Mas
a amplitude e a profundidade das transfor mações necessárias não
abrangem necessariamente todos os fenômenos culturais, nem o fazem
da mesma maneira e com a mesma intensidade em todos aspectos da
cultura (apesar da existência de ideologias totalitárias, no sentido clás-
sico desse termo, e apesar da tendência a uma politização crescente da
vida social pela interferência cada vez mais ampla do Aparelho de Esta-
do na vida privada).
Porém, utilizado desta forma, o tipo de análise e de interpretação
dos fenômenos culturais se dá de modo inverso daquele que é inerente à
investigação antropológica, que opera com o conceito de cultura. Isto é,
a utilização do conceito de ideologia parte necessariamente de uma pers-
pectiva macropolítica (que diz respeito à reprodução do modo de produ-
ção e das formas de dominação que lhes são próprias) e que fornece os
parâmetros de relevância dos fenômenos a serem estudados em termos
de sua contribuição para a preservação ou destruição da ordem vigente.
Na abordagem antropológica dos fenômenos culturais o procedi-
mento é outro: parte-se das práticas sociais concretas e das representações
formuladas por grupos ou categorias sociais, e sua relevância política só
pode ser determinada a posteriori.
É possível e necessário politizar a abordagem antropológica e
investigar de que modo sistemas simbólicos são elaborados e transfor-
mados de modo a organizar uma prática política, legitimar uma situação
de dominação existente ou contestá-la. É importante investigar de que
modo grupos, categorias ou segmentos sociais constroem e utilizam um
referencial simbólico que lhes per mite definir seus interesses específi-
cos, construir uma identidade coletiva, identificar inimigos e aliados,
marcando as diferenças em relação a uns e dissimulando-as em relação
a outros. Qualquer elemento cultural pode ser assim politizado, sem
entretanto esgotar seu significado no fato de serem instrumentos numa
luta pelo poder. A língua, a religião, a cor da pele, os hábitos alimenta-
res, a vestimenta podem ser erigidos em instrumentos de construção de
uma identidade coletiva com implicações políticas. Toda a dinâmica dos
movimentos sociais envolve necessariamente esse tipo de manipulação
simbólica por meio do qual se constroem sujeitos políticos coletivos.
Entretanto, uma abordagem desse tipo, que parte de uma análise “de
dentro” dos grupos ou movimentos sociais, não pressupõe, necessaria-
Capítulo
de uma interpretação que, esmiuçando inter namente o objeto, não vê
sua inserção no processo mais amplo do qual faz parte.
Para realizar este tipo de análise precisamos eliminar certas pres-
suposições que se cristalizaram nas interpretações correntes. Não é que
elas sejam necessariamente incorretas; mas sim que sua adequação deve
ser o objeto da análise e não seu ponto de partida ou pressuposto.
Em primeiro lugar, devemos evitar a noção de que os movimentos
sociais são for mas inferiores de mobilização, que devem evoluir para
formas mais plenas e satisfatórias de ação política: a partidária e a sindi-
cal. Esse tipo de pressuposto freqüentemente se justapõe à noção de que
a emergência de tais movimentos se explica pelo fechamento imposto
pelo regime aos canais nor mais de manifestação política e reivindica-
ções econômicas que seriam os partidos e os sindicatos. Os movimentos
sociais aparecem assim como substitutos (empobrecidos) dos movi-
mentos “verdadeiros”.
Se é verdade que os movimentos sociais assumiram grande rele-
vância política no Brasil em um momento no qual o regime reprimia
violentamente os partidos e os sindicatos, e se isso ocorreu também em
outros países da América Latina, não é menos verdade que movimentos
de tipo semelhante ocorreram, na mesma época, tanto na Europa quan-
to nos Estados Unidos, em situação de liberdade política. Mesmo na
América Latina, a pujança dessas manifestações é, freqüentemente,
marca de momentos de maior democratização. Por outro lado, a obser-
vação da situação brasileira mais recente, na qual uma relativa abertura
do regime permitiu um espaço de atuação política e sindical um pouco
mais amplo, parece indicar um crescimento simultâneo (pelo menos
durante um período) dessas diversas for mas de mobilização popular,
que podem confluir em momentos e causas específicos sem necessaria-
mente se confundirem ou substituírem. Desse modo, devemos levar em
consideração uma hipótese alternativa: a de que os movimentos sociais
constituem uma forma específica de mobilização popular com espaço
próprio, diverso daquele ocupado por partidos e sindicatos. Podemos
supor também que esse tipo de movimento talvez corresponda a trans-
formações recentes da sociedade industrial capitalista, e que a mobiliza-
ção crescente da sociedade que parece caracterizar o momento atual se dá
tanto pela criação de novas formas de atuação quanto pelo fortalecimento
das anterior mente existentes. O próprio fato de as pessoas tenderem
a participar de mais de um tipo de mobilização reforça essa suposição.
relacionado à concentração da população nas grandes metrópoles pro-
voca a emergência de necessidades novas, associadas a novos padrões
de consumo que envolvem educação, transporte, atendimento médico,
equipamentos sociais e culturais. Cabe apenas enfatizar que esses novos
padrões de consumo são vividos pela população, especialmente a de ori-
gem rural recente, como “melhoria de vida”.
Mas não podemos restringir a análise dos movimentos sociais
àqueles que possuem uma base nitidamente popular, mesmo quando se
trata especificamente de reivindicações propriamente urbanas. O cres-
cimento das cidades não afeta somente as classes mais pobres, e as mo-
dificações concomitantes nos padrões de consumo não se restringem à
necessidade de novos serviços públicos, mas afetam profundamente
todo o modo de vida, provocando a emergência de uma nova cultura,
no sentido antropológico. O movimento feminista e o movimento eco-
lógico são os exemplos mais claros dessa transformação cultural.
De acordo com essa perspectiva, é necessário reexaminar a questão
da base de classe dos movimentos sociais. Em primeiro lugar, temos o
problema da própria heterogeneidade dos setores de baixa renda, que
constituem muitos desses movimentos e que incluem, freqüentemente,
tanto operários como ambulantes, biscateiros, empregados do comércio
e de todos os ramos de serviço (incluindo os domésticos), pequenos
comerciantes e funcionários públicos. Esse fato tem provocado a substi-
tuição, na análise, de conceitos mais precisos (como o de proletariado)
por ter mos alusivos ou descritivos com fundamentação teórica muito
menos clara: “classes populares”, “classes trabalhadoras”, ou, ainda mais
genericamente, “os pobres”, “o povo”. Nessa substituição de ter mos, o
que está em jogo é toda uma visão do processo histórico que privilegiava
o papel necessariamente revolucionário do proletariado, e que centrava
todas as perspectivas de transfor mação social na organização política
dessa classe.
O conceito utilizado para enquadrar teoricamente essa heterogenei-
dade numa abordagem marxista é o de “exército industrial de reserva”, e
tem se mostrado insuficiente. Não é que esses trabalhadores não sejam,
para o capital, um “exército de reserva”, mão-de-obra disponível para as
necessidades de ampliação do parque industrial. Mas o próprio mecanis-
mo de sua constituição, sua ampliação constante e sua crescente hetero-
geneidade inter na não podem ser entendidos em ter mos apenas de sua
“funcionalidade” para as necessidades de acumulação capitalista. O que
definindo coletividades de tipo muito diferente (desde “as mulheres”, “os
homossexuais” ou “os negros”, até “os moradores de uma rua”, “os fre-
qüentadores de um parque público” ou “os usuários de um serviço”).
Parece-me importante ressaltar essa flexibilidade e variedade possível dos
movimentos sociais, que por isso mesmo podem ser mais ágeis e diversi-
ficados (e, em outros aspectos, mais limitados) do que partidos ou sindi-
catos. Não precisam ser per manentes. Os militantes congregados num
movimento, num determinado momento, podem se dispersar no seguin-
te para participar (ou não) de outros. Não há por que recriminar ou cri-
ticar movimentos efêmeros, mas sim refletir sobre sua efetividade e os
saldos positivos (ou negativos) que acumulam.
Retomaremos, mais adiante, a questão da coletividade criada pela
definição de uma carência. No momento, queremos tratar de uma outra
questão: o fato de, apesar da heterogeneidade das bases que mobilizam
e das reivindicações que for mulam, os movimentos sociais parecerem
utilizar as mesmas for mas de organização. A ampla literatura sobre os
movimentos sociais parece indicar a existência de dois modelos básicos
de organização, que às vezes se excluem e às vezes se alternam, poden-
do mesmo se sobrepor.
Temos, em primeiro lugar, uma forma de organização que pode-
mos chamar de formal. Implica a eleição de uma diretoria executiva à
qual compete promover a mobilização e encaminhar as reivindica-
ções. Esse tipo de organização exige mecanismos de representação, e
promove a constituição de lideranças que “carregam” o movimento.
Embora a ação do Estado constantemente reforce esse tipo de organi-
zação, exigindo a presença de “representantes oficiais”, ou estabele-
cendo condições burocráticas para o reconhecimento do movimento,
esse modelo não deve ser visto como mera decorrência de imposição
estatal. Ao contrário, organizações for mais desse tipo possuem pro-
fundas raízes populares e podem ser encontradas em instituições
como sindicatos, escolas de samba, clubes de futebol, estando também
presentes, de forma modificada, em centros de umbanda. Mesmo que
não se tenha propriamente originado nas camadas populares, o mode-
lo for mal é certamente parte do patrimônio cultural dessa população,
e é amplamente utilizado, por exemplo, na constituição das associa-
ções de moradores.
Ao lado desse modelo se coloca um outro, atualmente em expan-
são, que denominaremos “comunitário”. Ele evita a institucionalização
lugar privilegiado onde a noção abstrata da igualdade pode ser referida a
uma experiência concreta de vida. A igualdade constitui-se dessa forma
como representação plena, concretizada na comunidade.
Essa vivência da comunidade, isto é, da coletividade de iguais cria-
da pela ação conjunta de todos, se dá numa dimensão própria que impli-
ca uma novidade muito importante: o reconhecimento da pessoa num
plano público e não privado.
Na vida urbana de uma sociedade como a nossa, o indivíduo (parte
indiferenciada da massa) só é plenamente reconhecido como pessoa,
como sujeito, nos grupos primários que se estruturam na vida privada:
a família, os parentes, os amigos, os vizinhos. Na esfera pública, tende a
ser despersonalizado e figura como vendedor de força de trabalho,
comprador de mercadorias, beneficiário do , usuário do transporte
coletivo, eleitor, homem-massa. Nos movimentos sociais de cunho co-
munitário, em que se valoriza a participação de todos e de cada um, em
que todos devem falar, opinar, decidir, o que parece estar ocorrendo é
um processo novo, o de constituição de pessoas na esfera pública, atra-
vés do jogo do mútuo reconhecimento que ocorre inter namente, na
prática comunitária.
Esta passagem da pessoa da dimensão privada para a pública pode
ser a explicação de um fato muito significativo, de freqüência extraordi-
nária nos depoimentos dos participantes desses movimentos: o de vive-
rem essa experiência como enriquecimento pessoal, uma intensificação
de sua qualidade de sujeitos. No movimento as pessoas se conhecem,
ampliam sua sociabilidade, “aprendem a falar”, isto é, a formular ques-
tões novas sobre sua experiência de vida. Basicamente, elas tor nam
coletivas (e com isso integram) as experiências individuais e fragmen-
tadas, encerradas nos limites da vida privada.
O mesmo parece ocorrer, embora de maneira menos intensa, nos
movimentos que denominei de formais, e é isso que exige o reconheci-
mento do caráter plenamente social dos movimentos (como enfatiza
Tilman Evers () no seu trabalho mais recente). E isso porque eles
criam uma nova prática coletiva, que passa a fazer parte integrante da
vida social e fundamenta novas representações. Mais ainda, constituin-
do uma nova forma de pessoa, ampliam a vivência individual e reformu-
lam a própria vida privada.
Importante como é, essa dinâmica interna dos movimentos sociais
possui limitações que devem ser reconhecidas. Em primeiro lugar, sua
. Sobre este aspecto do problema, além de R. Cardoso , são especialmente importantes
Boschi e Ferreira dos Santos .
Nos movimentos sociais, de modo geral, a passagem do reconhe-
cimento da carência para a formulação da reivindicação é mediada pela
afirmação de um direito. Os habitantes da periferia afirmam seu direito
a água, luz, esgoto, assistência médica; as mulheres reiteram seu direito à
igualdade; os homossexuais ao seu prazer; também as mães que traba-
lham têm direito às creches, assim como os índios às suas terras e todos
têm direito à proteção contra a violência.
A transfor mação de necessidades e carências em direitos, que se
opera dentro dos movimentos sociais, pode ser vista como um amplo
processo de revisão e redefinição do espaço da cidadania. Não é preciso
lembrar a imensa importância que a afirmação de direitos “naturais” e
inalienáveis, tomados como auto-evidentes, desempenhou na formula-
ção da ideologia democrática produzida pelas revoluções burguesas.
A primeira emenda da constituição americana é o exemplo mais coe-
rente desse processo. Nesse último caso, tratava-se de uma codificação
acabada e completa, promovida pelo legislador, e que traduziu uma
experiência concreta de gestão coletiva da coisa pública ocorrida nas
colônias americanas.
Aqui, o processo é diferente. Não temos uma tradição democráti-
ca desse tipo, nem uma tradição de gestão coletiva na vida política. Os
direitos que constam das nossas leis foram importados, e sempre se
mostraram inoperantes. Mas verificamos agora a ocorrência, entre nós,
de um processo de construção coletiva de um conjunto de direitos que
está sendo realizado pelos movimentos sociais. E isso não por meio de
uma codificação completa e acabada de uma realidade existente, mas
como o reverso de uma definição cumulativa de carências definidas como
inaceitáveis. Isto é, parece que estamos vivendo um processo de cons-
trução coletiva de uma nova cidadania, definida por um conjunto de
direitos, tomados como auto-evidentes, pressuposto da atuação política
e fundamento de avaliação da legitimidade do poder.
Nesse sentido, o confronto com o Estado não é apenas um reco-
nhecimento de sua legitimidade (embora também seja isso), mas uma
avaliação dessa legitimidade, que é medida por sua capacidade de res-
peitar e promover os direitos que a população está se atribuindo.
Esses aspectos que acabamos de apontar podem ajudar a entender
um problema mais específico, mas muito importante: a dificuldade de
absorção desses movimentos pelos partidos políticos.
conjunto dos “carentes”, impedindo a for mação da comunidade de
todos os iguais (na carência).
Diferenças que são ocultadas não desaparecem. Mas, deslegitima-
das, impedidas portanto de se digladiarem em público, resvalam para o
espaço infor mal das fofocas, das acusações pessoais, das manipulações
conscientes e inconscientes que caracterizam a prática desses movi-
mentos tanto quanto a vivência da união, com a qual coexistem. Desse
modo, os movimentos tendem a apresentar uma dupla face: a pública,
que enfatiza a igualdade, a união, o consenso; e a oculta, das cisões,
divergências, acusações mútuas, discriminações que só são reconheci-
das para serem negadas, mas que contribuem muito para o sabor, a
intensidade e a dramaticidade dessa prática coletiva.
Retomando a questão desse ângulo, é possível entender melhor
tanto as potencialidades como as limitações dos movimentos em termos
da construção de uma sociedade democrática. De um lado, eles criam
um espaço (restrito) onde é possível a vivência da igualdade, permitindo
a representação da utopia, e elaboram os direitos que definem uma nova
cidadania. Mas, por outro lado, restringem a experiência democrática à
prática da democracia direta nos pequenos grupos. Como não desen-
volvem mecanismos para reconhecer posições divergentes per mitindo
sua convivência, deslegitimam a negociação, que só pode ser vista como
rendição ou manipulação, e podem ainda resvalar para mecanismos
autoritários de imposição de um consenso que deve ser obtido a qual-
quer custo como única base legítima de atuação coletiva. A dificuldade
que encontram em institucionalizar (ou mesmo reconhecer) mecanis-
mos de representação cria obstáculos à ampliação e articulação dos nú-
cleos, fornecendo uma visão paroquial e fortalecendo os componentes
corporativos próprios de reivindicações particularistas. Inversamente, e
na medida mesma em que promovem a coletivização de experiências
individuais, mostram-se extremamente sensíveis às possibilidades de
mudança que parecem estar presentes nessa nova sociedade em gesta-
ção. Por isso tudo, sem idealizar nem denegrir os movimentos sociais,
devemos tomá-los como revelador sinal dos novos tempos, e lugar pri-
vilegiado para se estudar o que está ocorrendo com a nossa sociedade.
Nunca trabalhei diretamente com populações indígenas. Entretanto, minha
experiência como presidente da Associação Brasileira de Antropologia me
levou a estabelecer um amplo e intenso envolvimento com os pesquisadores
dessa área, com lideranças indígenas e também diferentes grupos, religiosos
ou laicos, empenhados na defesa desses povos. Implicou também uma rela-
ção altamente conflitiva com a FUNAI [Fundação Nacional do Índio] em de-
fesa dos pesquisadores e dos índios. Convém lembrar que, naquela época, a
FUNAI era dirigida por militares integrantes do regime autoritário.
O trabalho aqui reproduzido resultou dessas experiências e de uma refle-
xão mais propriamente política sobre o lugar do índio na sociedade brasileira.
Decorreu da preocupação com o fato de que o grande envolvimento pessoal
dos pesquisadores e militantes (o melhor talvez fosse dizer “pesquisadores-
militantes”) com os grupos indígenas e seu empenho em defendê-los pareciam
obscurecer uma reflexão mais crítica sobre o contexto político em que se tra-
vava (e ainda se trava) a luta em defesa dessas populações.
O objetivo central do artigo era trazer para a reflexão o fato de que a
designação de “índio” não corresponde a uma “categoria nativa”, mas ter
sido construída pelos não-índios, isto é, por nós, e é constitutiva do campo
político no qual se desenrola o movimento das lutas dessas populações e as
que se travam em seu nome.
Desta perspectiva, creio que ele é ainda relevante para as pesquisas e
as ações com grupos indígenas.
O lugar do índio*
modo sempre um pouco diferente, mas também sem encontrar nunca
uma solução. Inspirou, desde o passado remoto, inúmeros debates can-
dentes que permitiram, no nível puramente ideológico, enfrentamentos
radicais. A imagem do índio foi exaltada ou denegrida, servindo simul-
taneamente como metáfora da liberdade natural e como protótipo do
atraso a ser superado no processo civilizatório de construção da nação.
Os defensores dos índios têm vencido brilhantemente a batalha ideológi-
ca; seus inimigos têm vencido a guerra real que se trava na sociedade bra-
sileira contra os grupos indígenas, destruindo sua cultura, despojando-os
de seus territórios e mesmo exter minando-os fisicamente. É tempo de
transferir a luta do campo puramente ideológico para tentar alcançar
alguma eficácia política. Precisamos, portanto, definir o campo político
no qual se deve inserir a questão indígena.
Comecemos com o Estado. O Estado moderno se define propria-
mente como Estado-Nação, no qual o domínio sobre um território é
consubstanciado na idéia da existência de uma “comunidade nacional”.
Ora, a nação, isto é, a população de um território unida pela cultura e
pela tradição, foi em toda parte, pelo menos de início, uma ficção criada
pelo próprio Estado. Os Estados modernos se constituíram todos sobre
uma diversidade étnica preexistente, num processo de unificação terri-
torial marcado pela violência. A comunidade nacional foi criada poste-
riormente pela opressão: a cultura comum foi imposta pela repressão às
manifestações étnicas minoritárias, e a tradição coletiva foi gerada na
história da dominação de um povo sobre outro.
Isto, que é verdade para os Estados europeus, cuja tradição nacio-
nal está até hoje marcada pela luta contra regionalismos separatistas,
caracteriza igualmente os Estados americanos. O processo de conquista
das populações indígenas, tão nítido na fase de constituição das colô-
nias, foi entretanto mascarado durante as lutas de independência, na
afir mação da unidade fictícia entre descendentes de colonizadores e
colonizados através da idéia de “povo”. No Brasil, como em outros paí-
ses, a existência não só de índios como também de escravos negros (e,
depois, de seus descendentes) sempre foi um problema permanente que
restringiu severamente (pelo menos para os dominados) a credibilida-
de do conceito de povo brasileiro. Por isso mesmo, talvez, embora tenha
sido elemento retórico importante no discurso dos grupos dominantes,
raramente foi utilizado como bandeira libertária de minorias oprimidas.
Do ponto de vista prático, portanto, as minorias étnicas, dentro do
A verdade é que, do ponto de vista do Estado, o índio ocupou
sempre uma posição muito ambígua. Como ocupante original do país
e, nesse sentido, seu possuidor, precisou ser incorporado, se não como
cidadão, pelo menos como súdito, para legitimar o domínio sobre o ter-
ritório por parte de um Estado que se queria representante da nação.
Na ideologia da nacionalidade, o índio possui um valor simbólico muito
grande. Significa, simultaneamente, a autonomia e a naturalidade e,
nesse sentido, constitui uma imagem que per mite representar como
“natural” a relação do povo brasileiro (em abstrato e, portanto, do Es-
tado) com seu território.
De outro lado, constituindo sempre um obstáculo aos interesses
privados, representados no Estado, que estão empenhados na realização
de um projeto de exploração econômica, o índio foi considerado como
a negação do progresso e do desenvolvimento que são apresentados
como projeto da nação.
No caso dos índios, a legislação protetora deve ser interpretada
como um recurso retórico indispensável para legitimar o caráter nacio-
nal do Estado, integrando o índio como súdito sob a ficção da proteção
tutelar. A contradição que isso cria em relação aos interesses econômi-
cos efetivamente representados no Estado tem sido resolvida, na práti-
ca, através do subterfúgio de reconhecer direitos formais e permitir seu
desrespeito sistemático; ideologicamente, com a elaboração de uma teo-
ria de cristianização, civilização ou integração que, defendendo a pre-
servação física dos índios, justifica a destruição de sua sociedade e de
sua cultura em nome do progresso.
Essa ambigüidade que existe na relação do Estado para com o
índio desdobra-se, da perspectiva do índio, em ambigüidade paralela.
As populações indígenas brasileiras estão organizadas em pequenas
unidades economicamente autônomas e politicamente independentes,
embora possam fazer parte de grupos culturais mais amplos. Não pos-
suem nenhuma organização estatal própria, mesmo incipiente. Consti-
tuindo propriamente nações, do ponto de vista social e cultural, estão
entretanto impossibilitadas, dadas as características de sua organização
política e de sua fraqueza demográfica, de desenvolverem for mas pró-
prias de instituições políticas que lhes permitam manter-se como unida-
des viáveis perante o Estado brasileiro. Por outro lado, seus recursos
tecnológicos também não lhes fornecem a base material suficiente para
vencer um confronto direto com a sociedade nacional. Apesar das lutas
incorporação direta à economia e à sociedade regional que os envolve
só se dá enquanto peão, individualizado, destribalizado, sem terras, sem
direitos e sem defesa, no grau mais baixo da escala social. Como índio,
ao contrário, possui pelo menos direitos for mais e é como índio que
pode reivindicar a posse da terra e a assistência do Estado. Além do
mais, é como índio que pode, manipulando sua tradição cultural e as
imagens e estereótipos correntes na sociedade nacional, construir para
si uma identidade social que lhe garanta, pelo menos, o auto-respeito.
A legitimidade específica que a categoria “índio” possui como ocupante
original do território constitui o recurso político e jurídico que essas
populações podem explorar para tentar obter para si um lugar satisfató-
rio na sociedade brasileira.
A política indigenista oficial tem caminhado em sentido se não total-
mente inverso, pelo menos contraditório em relação a esse problema.
Reconhecendo o índio como súdito, o Estado se definiu em relação
a ele como protetor. Cabe ao Estado proteger o índio da destruição que
pode advir de seu contato com a sociedade. Desse modo, o Estado
expressa e legitima sua imagem de si mesmo como entidade acima das
classes e dos interesses privados. Mas, na medida em que assume essa
posição e essa função (que, como sabemos, cumpriu de modo muito
parcial), coloca-se numa posição bastante contraditória em relação ao
resto da sociedade, para a qual sempre se mostrou incapaz de reconhe-
cer e garantir os direitos dos oprimidos e subordinados. No caso do
índio, a face elitista e autoritária do Estado emerge claramente quando
o exercício da função de proteção implica a negação da liberdade e da
autodeterminação indígena, considerando os índios não como cidadãos,
mas como tutelados.
Com efeito, a análise, mesmo superficial, da relação entre o Estado
(corporificado no e na ) e os índios demonstra claramente que
todo o processo de pacificação, atração e confinamento em reservas
consiste, basicamente, na destruição da autonomia econômica e política
dos grupos tribais, estabelecendo uma dependência direta e total face ao
órgão tutelar. Os índios são atraídos com presentes, estimulados a ad-
quirirem a necessidade de bens que não podem suprir, contaminados
com doenças que só os remédios civilizados podem curar. Parte desse
processo é inevitável. Mas não é inevitável que sua economia seja des-
truída e sua organização política solapada.
Nesse sistema, a relação entre a e os índios se fragmenta nas
e coragem, que é incorporada inclusive na história pátria com a afirma-
ção de sua incompatibilidade constitucional à escravidão. Há também
conotações menos positivas na imagem: o índio é selvagem, isto é,
cruel, ignorante das leis (não civilizado), preguiçoso e atrasado (sem os
benefícios da tecnologia). Mas até esse lado negativo tem uma contra-
partida positiva. Para os setores da sociedade que procuram contestar o
caráter profundamente autoritário e espoliativo da nossa for mação
social, o desrespeito às leis e a preguiça podem ser interpretados como
a negação dos valores que as classes dominantes, no Brasil, sempre ten-
taram impor aos dominados: a diligência e a submissão. O “atraso”, por
outro lado, também pode significar a negação do tecnicismo opressivo
da racionalidade capitalista.
Essa carga simbólica que se cristaliza ao redor do índio pode aju-
dar a explicar por que tantas pessoas, no Brasil, têm se dedicado com
tanta paixão à causa indígena. Aliás, não só no Brasil. Convém lembrar
que, de todas as lutas políticas que se travam em nossa sociedade, é essa
a que possui repercussão inter nacional mais imediata e mobiliza, de
modo muito eficaz, uma solidariedade atuante supranacional.
Mas a importância política do problema não reside numa associa-
ção puramente simbólica, que atribui ao índio um valor libertário apenas
no imaginário coletivo. A verdade é que não se pode propor, de fato,
uma solução satisfatória do problema indígena sem colocar imedia-
tamente em questão a necessidade de alterar estruturas de dominação
profundamente enraizadas na sociedade brasileira, e isso não apenas no
plano político, jurídico e econômico mas, inclusive, no nível social e
cultural mais abrangente. Resolver o problema indígena implica, pri-
meiramente, reconhecer o caráter eminentemente social da propriedade
da terra e admitir que é o uso do território para o bem-estar de uma
coletividade que legitima sua posse. Em segundo lugar, resolver o pro-
blema indígena exige o reconhecimento do direito à autodeterminação
por parte de pequenas unidades políticas e da incompetência do Estado
para definir, sem a participação dos interessados, o que é melhor para
eles. Resolver o problema indígena também quer dizer, necessariamente,
no plano social, aceitar como legítimas diferenças de hábitos e costu-
mes, tolerar comportamentos até agora considerados desviantes e, por-
tanto, contestar a legitimidade da dominação ideológica que tem sido
um baluarte da opressão das camadas dirigentes sobre a população em
geral. Finalmente, há que lembrar a dimensão supranacional da questão
Capítulo
Este artigo, escrito em 1984, por ocasião da comemoração do 50o aniversá-
rio da fundação da USP, foi o primeiro que escrevi sobre o ensino superior no
país. Muitos outros se seguiram, mas não estão incluídos nesta coletânea.
Este foi o único escolhido porque comemora, neste ano de 2004, exatos vinte
anos, e coincide com o 70o aniversário da USP.
Relendo-o, surpreende-me que tenha ainda um caráter tão atual. A
atualidade do artigo não me alegra – ao contrário, me entristece por consta-
tar problemas que já eram tão visíveis na década de 80 e que, além de não
terem sido resolvidos, ainda não fazem parte de uma reflexão crítica por
parte da própria universidade, a qual patina de uma greve para outra sem
um projeto de renovação que a torne mais adequada às demandas da socie-
dade contemporânea.
Depois de vinte anos de pesquisas sobre este tema alterei algumas das
concepções que estão explicitadas neste trabalho mais precoce. Acrescentei
por tanto, ao artigo, algumas notas que esclarecem os principais pontos de
divergência entre o meu pensamento atual e o daquele período.
anos*
A mais antiga das nossas universidades públicas completa, este ano, seu
primeiro cinqüentenário. É ainda jovem. Universidade que se preze
conta a idade em termos de séculos e não de anos. Mas a parece ter
sido capaz de compensar a juventude cronológica com um tipo de enve-
lhecimento precoce que, antigamente, pensava-se ser uma característi-
ca da vida nos trópicos. Se essa velha teoria foi desacreditada pela bio-
logia, parece entretanto ser muito aplicável às instituições que, neste
Brasil, tendem a se tornar obsoletas antes de atingir a maturidade.
Devemos reconhecer que, apesar de seu envelhecimento tão rápi-
do, a produziu, neste meio século, uma obra respeitável. Contribuiu
decisivamente para tornar a pesquisa científica uma realidade neste país
– não mais a realização isolada de visionários dedicados, mas o resulta-
do do trabalho permanente de equipes profissionais. Conseguiu assim,
em muitos setores, superar a estreita dependência intelectual que tendeu
a marcar nossas relações com os países desenvolvidos, produzindo um
conhecimento crítico e inovador. Além do mais, ao longo de todos esses
anos, a formou grande parte dos profissionais que sustentaram a mo-
der nização e a industrialização do país. Continua hoje a ser um grande
centro de ensino e pesquisa, o maior do Brasil. Nesse aniversário, tão
significativo quão melancólico, convém celebrar esses feitos.
Mas, revendo as glórias do passado e a produção do presente, é
difícil explicar o clima de desencanto e descontentamento que grassa,
como erva daninha, no ambiente universitário. Como não podemos ter
uma grande universidade sem um mínimo de dedicação entusiasta, pre-
cisamos entender o que aconteceu nos últimos anos para destruir o oti-
mismo, a esperança e o orgulho que marcaram, no passado, a participa-
ção na vida acadêmica da .
Na verdade, o problema não é só da . Todas as universidades
brasileiras parecem estar enfrentando problemas que não conseguem
definir e que são, por isso, incapazes de resolver. Mas na o peso das
velhas estruturas e o ranço do autoritarismo parecem tornar a crise par-
ticular mente aguda. A comemoração do cinqüentenário talvez seja a
ocasião para analisar os problemas e encontrar novos caminhos, supe-
rando o pessimismo estéril, o radicalismo simplista ou a acomodação
fisiológica que parecem caracterizar a atitude de setores diferentes da
universidade ante a situação atual.
Tem-se discutido e reclamado muito na . Tem-se falado da
deterioração dos salários, da falta de verbas para a pesquisa, das acomo-
dações precárias nas quais funcionam muitos dos nossos cursos. O aten-
dimento dessas reivindicações seria mais que justo, e depende apenas de
verbas. Talvez, nesta situação generalizada de escassez de recursos, o
uso mais criterioso das verbas existentes talvez pudesse contribuir para
minorar alguns desses problemas. Mas sabemos todos que nem o manejo
eficaz dos recursos, nem o aumento da dotação orçamentária resolve-
riam, por si sós, a crise da universidade, pois os problemas não se resu-
mem à falta de dinheiro. É nesse contexto que toma corpo a reivindicação
de democratização da universidade.
Somos todos a favor de mais democracia, tanto na sociedade
quanto na universidade. A , que é particular mente autoritária, se
beneficiaria enormemente de um aumento substancial do nível de parti-
cipação coletiva nos órgãos dirigentes. Mas a forma simplista pela qual
a questão vem sendo colocada parece estar servindo antes para substi-
tuir do que para instrumentalizar uma reflexão sobre as dificuldades que
estão paralisando o ensino e a pesquisa na universidade.
Generalizou-se, na , uma receita que vem ganhando grande
popularidade em todas as universidades do país: a eleição direta, por pro-
fessores, funcionários e alunos, do reitor, dos diretores e dos chefes de
departamento. A mesma concepção de democracia, apoiada no mito da
“comunidade universitária”, defende a composição tripartida de todos os
órgãos colegiados, também por eleição direta, como instrumento necessá-
rio e suficiente para equacionar os problemas e assim superar a crise.
Eleições diretas desse tipo não constituem nem o único, nem o
melhor instrumento para a escolha dos dirigentes na universidade. No
contexto atual, talvez pudessem contribuir para promover uma renova-
ção necessária das atuais cúpulas da . Por outro lado, a noção sim-
É preciso propor medidas para superar essa situação, o que só pode ser
feito através de uma campanha séria e politicamente articulada de refor-
ma do ensino de o e o graus. A universidade não pode funcionar isola-
da do resto do sistema educacional, e precisa contribuir para evitar sua
continuada deterioração. Convém lembrar que a própria fundação da
esteve intimamente vinculada ao movimento da Escola Nova, e que
as propostas de reforma da universidade, na década de , foram ante-
cedidas pela Campanha da Escola Pública, que multiplicou os ginásios
no estado de São Paulo. Mas hoje, na luta que se trava pela democrati-
zação da universidade, os que nela estão, alunos e professores, parecem
se contentar com uma solidariedade puramente verbal para com os que
dela estão sendo excluídos.
Se a democratização do acesso não está recebendo a atenção que
merece, a questão da democratização da carreira docente levanta proble-
mas delicados. A grande expansão do ensino superior na década de
criou amplas oportunidades de empregos nas universidades e favoreceu
a contratação de muitos professores jovens. Mas o fim do “milagre” eco-
nômico marcou também o congelamento dessa expansão, e hoje as opor-
tunidades de emprego no ensino superior estão cada vez mais restritas.
Os jovens talentosos egressos da pós-graduação se defrontam com a
falta de vagas, ocupadas pela geração anterior com menor qualificação
acadêmica. O corpo docente das universidades tem reagido a essa situa-
ção com uma intensificação das tendências corporativas. Dessa forma, a
defesa da carreira universitária contra injunções político-ideológicas e
interesses alheios às necessidades do ensino e da pesquisa tem resvalado
sutilmente para a reivindicação de completa estabilidade de todo o corpo
docente, desqualificando qualquer forma de avaliação da competência e
da produção intelectual, e eliminando a necessidade de competição
inter na ou exter na. Do mesmo modo, o ideal da carreira aberta, isto é,
da igualdade de oportunidades de ascensão aos níveis mais elevados, se
transfor ma muitas vezes na defesa da promoção automática por tempo
de serviço que institucionaliza a mediocrização do corpo docente.
> em termos do nível de rendimentos e da escolarização dos pais, assim como da proveniên-
cia da escola pública ou particular, as instituições públicas atendem a uma proporção maior
dos alunos das camadas menos favorecidas do que o fazem as instituições privadas, ao con-
trário do que se pensava antes e do que se continua a afirmar hoje. Uma síntese das pesqui-
sas sobre as condições socioeconômicas dos estudantes do ensino superior realizadas em
Sampaio, Limongi & Torres .
A criação da , cinqüenta anos atrás, refletiu muito das tendên-
cias contraditórias que caracterizam a conturbada passagem da década
de para a de , marcada por uma profunda renovação intelectual
que se deu junto com a emergência de uma nova sociedade urbana, a
implantação do capitalismo industrial, a crise do poder oligárquico tra-
dicional e o surgimento de um novo autoritarismo.
Não há por que idealizar nem denegrir esse começo. Certamente
foi uma iniciativa moder nizante, inovadora e criativa. Não foi, por
certo, um projeto destinado a satisfazer anseios das massas oprimidas.
Concebida por setores mais dinâmicos das classes dominantes, a
destinava-se claramente à for mação de novas elites que pudessem,
simultaneamente, fornecer os quadros técnicos e os mentores intelec-
tuais da nova sociedade em gestação. A valorização da ciência e da
pesquisa constituía o cerne moder nizante do projeto e a justificativa
ideológica da iniciativa.
Na criação da o projeto inicial foi profundamente alterado
pelas concessões que teve de fazer, na prática, a uma tradição intelectual
mais conservadora, que concebia o ensino superior em ter mos de for -
mação de profissionais liberais, tendência essa dominante nas escolas já
existentes como a Faculdade de Direito, a Escola Politécnica e a Facul-
dade de Medicina.
Característica desse compromisso foi a criação da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras. Projetada inicialmente como núcleo de en-
sino e pesquisa da área das ciências básicas e das humanidades para servir
toda a universidade, acabou se transfor mando em uma escola ao lado
das outras, para a qual se conseguiu inclusive descobrir uma finalidade
profissionalizante: a formação de professores para o ensino secundário.
Manteve-se assim a autonomia das velhas escolas, do mesmo modo
como se manteve, sem contestação, a estrutura da cátedra que nelas já
existia. A universidade se organizou como federação de unidades rela-
tivamente autônomas e altamente hierarquizadas inter namente. Desse
modo, o modelo implantado em , assentado numa visão basicamente
elitista de universidade, caracterizou-se por um equilíbrio instável e con-
flitivo entre a valorização das ciências básicas e da pesquisa, dominante
na Faculdade de Filosofia, e uma concepção profissionalizante assentada
no prestígio da Politécnica, da Faculdade de Direito e da de Medicina.
O modelo híbrido vingou e deu frutos. No quarto de século que se
seguiu, implantou definitivamente a pesquisa na vida universitária e
maciça do número de alunos da universidade efetivamente pôs em
xeque todo o sistema de ensino. A velha for mação profissionalizante
estava efetivamente falida. Havia que se pensar a universidade de mas-
sas, livre, democrática e crítica. A união explosiva de contestação ao
regime com refor ma universitária subverteu profundamente as velhas
hierarquias e práticas acadêmicas, e houve um breve mas fértil período
de experiências educacionais inovadoras. A derrota do movimento estu-
dantil, no final da década, pôs fim a toda essa efervescência.
A grande reforma universitária, imposta pelo regime em ,
simultaneamente com o expurgo das lideranças políticas e intelectuais,
representou uma versão autoritária, conservadora e limitada do projeto
de modernização que estivera inserido no contexto mais amplo da refor-
ma democrática de toda a sociedade. Havia aspectos positivos na reforma,
que eliminava a cátedra, abria a carreira, destruía a autonomia das facul-
dades e propunha uma nova integração das ciências básicas com o ensino
profissionalizante. Mas, controlada pelos segmentos mais conservadores
ou mais fisiológicos da universidade, a refor ma abastardou-se irreme-
diavelmente por ter sido utilizada antes como instrumento de controle
político-ideológico da vida acadêmica do que como meio de renovação
do ensino e da pesquisa. Na especialmente, os componentes mais mo-
dernizantes da reforma imposta pelo governo federal foram efetivamente
neutralizados por subterfúgios que lograram manter quase intactos muitos
dos privilégios da cátedra e da divisão interna dos feudos. A se tor-
nou assim a universidade mais conservadora (e antiquada) do país.3
Em nível nacional, concessões políticas foram feitas pelo governo
às demandas sociais que haviam alimentado a rebelião universitária. O
ensino superior como um todo foi ampliado de forma considerável no
. Esta situação foi superada na década subseqüente. Minha posição a este respeito, baseada
em grande parte no que havia ocorrido e estava ainda ocorrendo nos países desenvolvidos,
alterou-se bastante. A experiência inter nacional é importante, na medida em que, para
democratizar o acesso ao ensino superior, houve uma evolução no sentido de diversificar os
tipos de estabelecimentos e de cursos oferecidos no sistema. De fato, instituições que asso-
ciam ensino e elevada produção científica constituem, em todos os países desenvolvidos,
uma minoria. O alto custo dessas instituições impede que possam ser ampliadas em número
suficiente para atender a uma demanda massiva. Além do mais, são demasiado acadêmicas e
teóricas para satisfazer as aspirações de um público que se torna cada vez mais heterogêneo
em ter mos de preparação escolar anterior e de interesses intelectuais. As escolas técnicas
européias e os colleges americanos constituem exemplos bem-sucedidos dessa orientação, e
se deveria estudar sua adaptação ao caso brasileiro.
cionários nos partidos e nos movimentos sociais cria novas perspectivas,
novas formas de atuação e pode promover um novo realismo na avalia-
ção dos problemas. Talvez possamos portanto, agora, começar a elaborar
uma reflexão mais conseqüente sobre os problemas da universidade.
Certamente a solução dos problemas da implica uma democra-
tização inter na, garantindo uma representação mais adequada dos dife-
rentes setores da universidade nos organismos decisórios. Implica tam-
bém o desmantelamento do rígido centralismo burocrático que herdamos
do regime autoritário e que sufoca todas as iniciativas. Devemos dar início
a uma ampla refor ma administrativa que assegure uma infra-estrutura
minimamente adequada às necessidades do ensino e da pesquisa. Mas,
basicamente, precisamos retomar a reflexão sobre os problemas que já
estavam claros na década de e que ainda não foram resolvidos.
Em primeiro lugar, precisamos recolocar a questão da universi-
dade de massa, isto é, aquela destinada não apenas a formar uma pequena
elite privilegiada, mas a oferecer oportunidades cada vez mais amplas
de acesso ao ensino superior para uma população cada vez maior e mais
heterogênea. Isto significa retomar a reflexão sobre a democratização
do acesso à universidade, no contexto de uma ampla reforma de todo o
ensino público. Mas não se trata apenas de melhorar a qualidade do
ensino de o e o graus, preparando melhor os alunos para o vestibular.
É preciso, além de rever o próprio vestibular, estudar formas alternati-
vas de ingresso na universidade. Ambos os problemas nos remetem
diretamente à atual estrutura curricular do ensino superior.
Uma universidade aberta a amplas camadas da população não pode
ser construída simplesmente multiplicando a matrícula nos mesmos cur-
sos tradicionais, preservando a velha concepção do diploma profissional,
conservando o mesmo tipo de ensino.
Não vamos abrir as portas da aos operários, transformando-os
todos em advogados, médicos e engenheiros. Também não há por que
multiplicar o número de sociólogos, filósofos, economistas, historiado-
res, jor nalistas, psicólogos que engrossarão as filas de desempregados
no mercado de trabalho saturado. O velho sonho das classes médias,
que viam na universidade um instrumento para a obtenção de um diplo-
ma que garantisse um emprego bem-pago e de prestígio, legitimando
uma posição privilegiada na estrutura da sociedade, está definitivamente
morto e deve ser enterrado. Só foi compatível com a velha universidade
elitista, que atendia um número restrito de privilegiados destinados a se
grante da programação da universidade. As tímidas tentativas que se
realizam hoje nesse sentido estão muito longe de explorar devidamente
o imenso potencial da como centro cultural aberto à população.
Finalmente, precisamos refletir mais seriamente sobre a pesquisa.
Tem-se falado muito sobre a ausência de verbas para a pesquisa na uni-
versidade e a dependência crescente de fontes de financiamento exter -
nas como a , o q, a e as fundações privadas. Que a
deva dispor de um fundo próprio para financiar as pesquisas é indiscu-
tível. Mas o sonho de uma pletora de recursos, inseridos na dotação
orçamentária, de modo a tor nar a universidade completamente auto-
suficiente nessa matéria é certamente irreal. Teremos que conviver com
as agências financiadoras, e convém admitir que há muitos aspectos
positivos nessa relação. Em primeiro lugar porque, por mais discutíveis
que sejam alguns dos critérios e mecanismos utilizados por essas agên-
cias para a distribuição dos recursos, a qualidade dos projetos apresenta-
dos é um elemento importante para assegurar sua aprovação – introduz-
se desse modo na universidade um elemento necessário de competição
intelectual e de avaliação de competência que o corporativismo acadê-
mico tende a neutralizar. De outro lado, a própria multiplicidade das
agências financiadoras dificulta tanto o controle ideológico dos projetos
e dos pesquisadores como a discriminação puramente pessoal de que
não estão isentos os meios acadêmicos.
Ante essa realidade de disputa por recursos escassos, a tem-se
revelado uma instituição particularmente ineficaz. O excessivo centra-
lismo burocrático dificulta enor memente a relação com as agências
financiadoras. Os pesquisadores responderam a essa situação criando
estruturas paralelas, como centros de pesquisa e fundações independen-
tes ou semi-independentes, nas quais, hoje em dia, pelo menos nas áreas
das ciências humanas, se realiza a maior parte das pesquisas, burlando o
controle burocrático. Precisamos pensar seriamente em permitir a cria-
ção, dentro da universidade, de centros de pesquisa que sejam autôno-
mos na elaboração de projetos, na captação de recursos e na prestação
de contas junto às agências financiadoras. Tanto o autoritarismo da di-
reita, que exige o rígido controle centralizado, como o medo alimentado
pela esquerda de um eventual controle das pesquisas por parte das em-
presas privadas têm contribuído para evitar a discussão desse problema
e a solução necessária de maior autonomia dos pesquisadores.
No final da década de esses problemas já eram visíveis e foram
Capítulo
partindo do grupo conjugal e dada a universalidade da instituição do
casamento, é sempre possível identificar, em cada sociedade, maridos,
esposas e filhos. Mas o problema é determinar em que medida esse con-
junto é reconhecido como grupo ou subgrupo específico, constitui uma
unidade ou subunidade doméstica e residencial, e forma uma unidade
de parentesco. O que a antropologia mostra, através do estudo compara-
tivo, é que isso nem sempre ocorre e que sociedades diversas concebem e
combinam de forma variável o casamento, o parentesco, a residência e
a vida doméstica, privilegiando arranjos diversos dos nossos. O funda-
mental para “desnaturalizar” a família é, portanto, entender que a re-
lação que conhecemos entre grupo conjugal, família, parentesco e divi-
são sexual do trabalho pode ser dissociada, dando origem a instituições
muito distintas.
Acredito que a antropologia seja essencial a essa reflexão porque,
entre todas as ciências sociais, é a única a voltar-se diretamente para a
análise das diferenças, das for mas alter nativas de organização da
sociedade, e portanto é aquela que nos per mite, simultaneamente, vis-
lumbrar o que é geral e perceber a infinita variedade das for mações
sociais concretas.
não entram novamente no cio, e portanto não procriam, enquanto pos-
suem uma cria imatura.
Na espécie humana, não só o período de total dependência das
crianças é igualmente ou ainda mais prolongado, como tende a se sobre-
por ao nascimento de outros filhos. O aleitamento costuma estender-se
por mais de um ano, e mesmo muito depois disso a criança precisa ser
alimentada por um adulto. Antes de três anos, na melhor das hipóteses,
as crianças dominam muito mal as técnicas de locomoção bípede e
devem ser carregadas boa parte do tempo. Só aos cinco ou seis anos é
que podem começar a auxiliar no trabalho, e muito raramente se consti-
tuem plenamente como trabalhadores produtivos antes do início da
maturidade sexual, isto é, onze ou doze anos para as meninas, catorze ou
quinze anos para os rapazes. Além disso, essa dependência física tão
demorada é agravada pela absoluta necessidade de treinamento cultural
sistemático para transformar o bebê num ser humano. Isso significa que,
apesar de as mulheres muito raramente terem partos múltiplos, passam
grande parte da vida adulta cuidando de mais de uma criança, de idades
diferentes. Essas peculiaridades biológicas e culturais do processo repro-
dutivo dos seres humanos e o peso que elas representam para as mulhe-
res certamente estabelecem condicionantes para a elaboração da divisão
sexual do trabalho. E o fato de essa tarefa tender a ser atribuída basica-
mente às mães não pode ser visto como simples imposição masculina,
mas constitui uma elaboração cultural que se constrói sobre tendências e
características que a espécie humana compartilha com outros mamíferos
e que são bem pronunciadas nos antropóides, nossos parentes mais pró-
ximos: a dependência prolongada das crias em relação às mães.
Por outro lado, é necessário lembrar também que é possível modi-
ficar culturalmente esse padrão, provendo figuras substitutivas das
mães, embora isso seja bem mais complicado no primeiro ano de vida,
antes do desmame (aliás, formas adequadas de alimentação infantil arti-
ficial constituem uma invenção muito recente na história da humani-
dade). Além do mais, esses condicionantes de natureza biológica im-
põem-se com força maior e com maior generalidade nas sociedades
“primitivas”, isto é, aquelas caracterizadas pela pouca complexidade da
divisão social do trabalho. Nessas sociedades, todas as mulheres férteis
são necessariamente mães e estão igualmente presas ao cuidado com os
filhos, essencial à sobrevivência do grupo. Nas sociedades estratificadas,
por outro lado, e especialmente nas camadas dominantes, as mulheres
outras ou na esfera privada, e homens tiranizados pelas mulheres pare-
cem existir em todas as sociedades, mesmo as mais machistas.
A análise da diversidade cultural demonstra a necessidade de dis-
solver a definição das relações entre homens e mulheres em ter mos da
dicotomia dominação-submissão, e começar a pensar numa complexa
combinação da área de influência ou autonomia, de graus diversos de
imposição e aceitação de autoridade real ou simplesmente formal.
natural entre indivíduos geneticamente próximos ou uma necessidade
da espécie de evitar o acasalamento consangüíneo).4 Ao contrário, a
proibição do incesto consiste exatamente na imposição de uma norma
(sendo, portanto, uma criação social) no espaço de indeterminação que
diz respeito, na natureza, à escolha dos parceiros sexuais. A importância
central do tabu do incesto, na reflexão sobre a família e o parentesco,
está em que, distinguindo conceitualmente entre parceiros proibidos e
per mitidos, destrói-se a possibilidade de uma manifestação natural da
sexualidade, submetendo-a a regras e tor nando-a um instrumento de
criação de vínculos sociais.
Com o tabu do incesto, as sociedades regulamentam o casamento,
instituição também universal, embora varie tanto quanto à forma como
quanto à intensidade e per manência dos laços que cria, assim como
quanto ao grau de exclusividade sexual que pressupõe. O que há de
mais geral no casamento é que, em todas as sociedades, ele é concebido
como pré-requisito para a legitimação da prole de uma mulher.5 Do
mesmo modo que o tabu do incesto destrói a naturalidade das relações
sexuais, a universalidade do casamento como pré-requisito para a pro-
criação destrói a naturalidade das relações entre mães e seus filhos, atri-
buindo a homens determinados a responsabilidade para com a prole de
cada mulher.
Nessa seqüência de raciocínio, para evitar a reintrodução de uma
naturalização indevida, o importante é não confundir a exigência uni-
versal do casamento com a necessidade de determinação da paternidade
biológica. Mesmo porque se o casamento, como um contrato, estabelece
qual homem é responsável socialmente pelos filhos de qual mulher, essa
responsabilidade não é atribuída necessariamente ao marido e muito
menos ao parceiro sexual. Nas sociedades matrilineares, por exemplo,
grande parte dessa responsabilidade (e dos direitos correspondentes) é
investida no irmão da mãe e não no cônjuge, o que não torna, por estra-
nho que pareça, o casamento desnecessário.
A análise comparativa permite apreender o casamento, no dizer de
Lévi-Strauss, como relação a três. Ele envolve não apenas um homem e
. As pesquisas recentes de etologia nos levam a rever esta afir mação tal como é feita no
capítulo (infra). No caso de chimpanzés e gorilas, nossos parentes mais próximos, as
fêmeas abandonam espontaneamente o grupo após a menarca e procuram parceiros em
outros grupos, aos quais se integram, evitando assim o acasalamento consangüíneo.
. Sobre essa definição de casamento, consultar Gough .
limite, tanto um como outro (mas não ambos simultaneamente) podem
ser totalmente excluídos da definição de parentesco. Em sociedades
estritamente patrilineares, por exemplo, pode-se acreditar que a criança
seja for mada integralmente pelo sêmen do pai, não sendo a mãe mais
que um receptáculo no qual ela se desenvolve – o parentesco é então
traçado exclusivamente em linha paterna, sendo o lado materno carac-
terizado por uma relação de afinidade. Inversamente, em sociedades
matrilineares, há exemplos nos quais é negado qualquer papel masculi-
no na concepção. Nessas sociedades, não existe a figura de um pai, ape-
nas a do marido da mãe.
Um exemplo concreto deve contribuir para esclarecer os problemas
que estamos tentando levantar. Tomemos o caso da família trobriandesa,
justamente famosa na literatura pela riqueza da documentação e pelo
exotismo de uma organização tão diferente da nossa.6
Para um observador superficial, as famílias trobriandesas parecem
unidades muito semelhantes às nossas. As grandes aldeias circulares são
formadas por cabanas onde residem um homem, uma mulher e os filhos
pequenos. Os chefes, principalmente os de posição hierárquica elevada,
possuem várias mulheres, cada uma em residência separada. O comum
dos mortais, uma só.
Entretanto, essa visão familiar e compreensível se altera radical-
mente quando se constata que se trata de uma sociedade matrilinear.
Isso significa que a filiação, a herança e a sucessão se dão exclusivamen-
te em linha materna, isto é, entre tio materno e sobrinho.
Os trobriandeses constituem um dos casos (relativamente raros)
de sociedades que negam totalmente a participação do genitor masculi-
no no processo reprodutivo. Acredita-se que as crianças sejam concebi-
das por espíritos que vagam sobre as águas e penetram na vagina das
mulheres quando estas se banham. Relações sexuais nada têm a ver com
o caso, a não ser no sentido mecânico de que a perda da virgindade é
necessária para alargar a abertura vaginal a fim de permitir a penetração
do espírito-bebê (o que, aliás, segundo os trobriandeses, pode ser obti-
do por outros meios que não o coito). A relação com a mãe é ao mesmo
tempo física e espiritual, e todos os parentes em linha materna são pen-
sados em termos muito semelhantes ao que chamamos de “comunidade
de sangue”. Por outro lado, o pai é estritamente um afim e não um
trário do que ocorre na maioria dos grupos que possuem essa institui-
ção, entre os Mundurucu não apenas os jovens solteiros, mas também os
homens casados, comem e dormem na casa dos homens.
As casas coletivas, por outro lado, são ocupadas permanentemen-
te pelas mulheres, suas filhas e seus filhos pequenos. Nelas, as esposas
são visitadas durante a noite pelos maridos que desejam ter relações
sexuais. Normalmente, as mulheres de uma casa são relacionadas entre
si na linha mater na, isto é, as casas são ocupadas por avós, mães, tias,
filhas, irmãs, sobrinhas e netas. Como se trata, entretanto, de uma
sociedade patrilinear, essa relação não é for malmente reconhecida em
termos de parentesco para a construção de grupos de descendência – ao
contrário, pelo próprio sistema de casamento e parentesco, as mulheres
de uma mesma casa pertencem necessariamente a clãs diversos e meta-
des opostas.
Nas casas, o grupo formado por uma mulher e seus filhos pequenos
ocupa um lugar delimitado; entretanto, cada casa possui uma despensa
comum, que reúne os produtos das roças, formalmente de propriedade
dos maridos dessas mulheres. Também há apenas um fogo, onde se cozi-
nha a refeição coletiva. Em geral, quando um homem volta da caça –
principal ocupação masculina –, entrega os animais que matou à sua
mulher, a qual, com a ajuda das demais e com a caça dos outros maridos,
soma-a aos recursos das roças e prepara a refeição. Pronta a comida,
parte dela é enviada à casa dos homens, onde, com a contribuição das
demais casas, integra o repasto masculino coletivo. Nas casas, as mulhe-
res repartem entre si e com as crianças o que sobrou.
A complementaridade econômica criada pela divisão sexual do
trabalho tende a se processar assim entre cada uma das casas e a coleti-
vidade dos homens, embora o grupo constituído por um homem, sua
mulher e seus filhos, não sendo nem uma unidade doméstica nem de
comensalidade, é a referência básica da ordenação e distribuição recípro-
ca entre produtos do trabalho masculino e do trabalho feminino.
Nesse sistema, que é a família? O grupo for mado pelo marido,
esposa e seus filhos é importante: constitui a unidade de reprodução,
herança e descendência, assim como momento da organização da redis-
tribuição entre produtos do trabalho feminino e masculino. O pai nor-
malmente desenvolve com os filhos relações afetivas muito intensas, que
constituem um importante fator de estabilidade do matrimônio. Mas esse
grupo não é uma unidade de produção, nem residencial, nem de comen-
. Para uma versão mais abrangente da variabilidade das formas de família, consultar, entre
outros, Radcliffe-Brown & Forde , Fortune .
organizado em função da reprodução (biológica e social) pela manipu-
lação, de um lado, dos princípios formais da aliança, da descendência e
da consangüinidade e, de outro, das práticas substantivas da divisão
sexual de trabalho.9
Aliança e parentesco podem ser combinados de modo diverso,
dando origem a grupos estruturalmente diferentes. Famílias, enquanto
grupos, são constituídas por pessoas que mantêm entre si relações de
aliança, descendência e consangüinidade, mas não são necessariamente
as unidades básicas de parentesco. Por outro lado, sendo grupos de pro-
criação, são também grupos de consumo (embora não necessariamente
de produção) e tendem a organizar-se como unidades ou subunidades
domésticas e residenciais pelo menos durante parte de sua existência.
Nesse sentido, constituem o local privilegiado da incidência dos princí-
pios de divisão sexual de trabalho, em função dos quais se determina, em
grande parte, o grau de autonomia ou de subordinação das mulheres.
A definição de “família”, nessa acepção, leva-nos necessariamente
a explicar a sobreposição e a separação entre esse conceito e os de gru-
pos domésticos e unidades residenciais. Como já dissemos, famílias ten-
dem, pelo menos durante uma fase de seu ciclo de existência, a se con-
fundir e/ou integrar com grupos domésticos e unidades residenciais.
Entretanto, grupos domésticos, sendo unidades residenciais, tanto
podem restringir-se aos membros de uma família como se ampliar pela
inclusão de pessoas não-relacionadas por parentesco ou afinidade
(como escravos, serviçais, agregados de diferentes tipos). Podem, inclu-
sive, ser formados exclusivamente por pessoas não aparentadas (como é
o caso, por exemplo, de repúblicas estudantis), não sendo, nesse caso,
famílias. Finalmente, grupos residenciais podem não ser nem famílias,
nem grupos domésticos, como ocorre em grupos tribais com os jovens
que habitam a casa dos homens, mas comem com suas famílias e contri-
buem para a despensa doméstica.10
Sem confundir os conceitos, é necessário analisar, em cada caso,
sua sobreposição na definição de unidades sociais concretas, sendo
famílias aquelas capazes de articular relações de consangüinidade, afini-
dade e descendência em núcleos de reprodução social.
transfor mam em suporte de relações sociais independentes, pelo me-
nos em parte, de sua função reprodutiva.
Como notou Lévi-Strauss, com muita penetração, “entre todos os
instintos, o sexual é o único que, para se definir, necessita do estímulo
do outro” (Lévi-Strauss : ), e constitui, portanto, simultanea-
mente um transbordamento da cultura no seio da natureza e, na própria
natureza, um fragmento da vida social. Por isso mesmo, aparece como
campo privilegiado da passagem do “estado de natureza” para o “estado
da cultura”.
Mas Lévi-Strauss lembra igualmente a dupla “exterioridade” da
vida sexual em relação à sociedade, pois exprime, mais que qualquer
outra, “a natureza animal do homem e atesta, no seio mesmo da huma-
nidade, a sobrevivência mais clara dos instintos” (id. ibid.). Além do
mais, fundamenta-se em desejos individuais, que sabemos serem os que
menos respeitam as convenções sociais.
Poderíamos completar essas observações de Lévi-Strauss notando
que, exatamente por exigir a presença (mesmo que apenas simbólica) de
um outro para sua satisfação, a manifestação da sexualidade traz também
em si, implicitamente, a contínua possibilidade de tentar transfor mar
esse outro em mero objeto ou instrumento do prazer individual. Por isso
mesmo, talvez, as relações sexuais apresentem o constante perigo de
resvalarem para o individualismo a-social, e carreguem sempre a possi-
bilidade da violência interpessoal direta.
No caso das manifestações da sexualidade e de sua constante possi-
bilidade de perturbação das relações sociais, deve-se lembrar o fato muito
original das fêmeas da espécie humana não possuírem um período mar-
cado de cio (oestrus). Nas outras espécies, em que o cio ocorre, as fêmeas
são simultaneamente atraentes e receptivas aos machos durante períodos
muito limitados. Durante a maior parte do tempo ficam, por assim dizer,
assexuadas. Na espécie humana, ao contrário, o sexo se apresenta como
possibilidade constante e permanente de relacionamento interindividual,
e daí seu caráter simultâneo de poderoso instrumento de vínculos sociais
duradouros e de constante ameaça às regras preestabelecidas.
De qualquer modo, se a vida familiar implica sempre alguma
forma de controle da sexualidade, é fundamental reconhecer que nunca
se restringe a esse aspecto. Inversamente, a questão da sexualidade
transborda de muito a problemática da família, e não é possível confun-
dir integralmente as duas questões.
destruição entre nós. Quanto a isso, creio ser fundamental distinguir
entre três tipos de problemas. Em primeiro lugar, o das exceções ao mo-
delo de família e de sua elasticidade. De outro, a emergência de modelos
alternativos. E, finalmente, o desaparecimento da instituição enquanto tal.
Para se entender a natureza dessa distinção, é preciso que se deixe
bem claro o que se quer dizer com a afir mação de que a família é um
modelo, ou padrão cultural, afirmação essa que está ligada à concepção
de instituição que definimos anterior mente. Partindo da concepção de
que a vida social é organizada por meio de regras culturalmente elabo-
radas, os grupos sociais concretos podem ser vistos como construções
sociais específicas que utilizam modelos culturais para resolver proble-
mas da vida coletiva. Nas palavras de Geertz, padrões culturais são
simultaneamente modelos de e modelos para o comportamento social,
isto é, são representações de ordenações presentes na vida social e orde-
nações para a vida coletiva (Geertz ). Como modelos, nesse duplo
sentido, em primeiro lugar são mutáveis; em segundo lugar, são cons-
truções sintéticas, nas quais a realidade social jamais cabe por inteiro.
Por isso mesmo, a existência de inúmeras exceções não significa necessa-
riamente a contestação da regra; pode representar apenas sua aplicação
maleável para per mitir a solução de problemas diversos. No que diz
respeito aos modelos que regulam a vida sexual e a procriação, tenho
inclusive a suspeita de que a dificuldade de seguir o modelo ou a necessi-
dade de acomodar um número muito elevado de exceções caracteriza
não apenas a nossa, mas a grande maioria das sociedades. Parece que,
nesse campo, estamos lidando com um tipo de comportamento particu-
larmente renitente às imposições sociais.
Nos casos das sociedades primitivas que analisamos aqui, citamos
apenas o modelo, cujo funcionamento depende, entre outras coisas, da
observância de proibições específicas de relações consideradas incestuo-
sas e de regras muito rígidas de residência. Entretanto, a verdade é que
em todas essas sociedades as regras são constantemente quebradas, e
existe flexibilidade suficiente para incorporar grande número de exce-
ções. Assim, o casamento geralmente pressupõe fidelidade conjugal. Em
todas a sociedades ocorre a infidelidade. É verdade que o grau de tole-
rância para com esse fenômeno, assim como a freqüência de sua ocor-
rência, é culturalmente variável. Mas mesmo a relativa tolerância para os
casos de infidelidade não significa a inoperância ou o abandono da regra,
nem que a infidelidade não crie problemas graves e de difícil solução.
medida em que o papel do pai é identificado com o do genitor (pai bio-
lógico). Muitos padrões sexuais associados a esse tipo de família, espe-
cialmente a amplitude dos controles tradicionalmente exercidos sobre a
sexualidade feminina, estão relacionados a essa necessidade de determi-
nar a paternidade física. Finalmente, como nesse sistema os indivíduos
adultos pertencem a duas famílias distintas, a de origem e a de procria-
ção, o sistema de parentesco-afinidade pode ser pensado como relações
entre famílias. Por isso mesmo, o termo “família” pode significar, meto-
nimicamente, toda a rede de parentesco e afinidade.
Retomemos agora o problema do modelo. Dada a própria nature-
za do modelo de família, que é simultaneamente unidade mínima e
fadado à fragmentação progressiva, casais ou viúvos idosos cujos filhos
já casaram, crianças órfãs ou jovens migrantes, são na verdade frag-
mentos de famílias, freqüentemente incapazes – em especial quando a
renda é muito pequena – de constituírem unidades residenciais autôno-
mas. Agregam-se então a famílias de parentes ou amigos, onde podem
contribuir como produtores e beneficiar-se do esforço coletivo. Alter -
nativamente, podem constituir grupos domésticos heterogêneos, que
não obedecem ao padrão familiar. Tanto num caso como no outro, a
existência dessas exceções, mesmo freqüente, pode não afetar em nada
a dominância do modelo de família que continua a ser o ideal e a refe-
rência básica na ordenação do comportamento e padrão ao qual se
reverte sempre que possível.
Creio que o mesmo talvez se aplique a muitas das chamadas famílias
matrifocais, tão comuns nas camadas de baixa renda. Como já mostrei
em outro trabalho (ver cap. , supra), esse tipo de família, sem provedor
masculino estável, pode ser antes uma demonstração da impossibilidade
de organizar a existência em ter mos mínimos aceitáveis do que, na ver-
dade, um modelo alternativo de família.
Isso tudo se refere à estrutura do modelo. No que diz respeito à
divisão sexual do trabalho pela qual se realizam as relações entre mari-
do e mulher, ocorre algo semelhante. O modelo tradicional de divisão
sexual do trabalho estipula que o trabalho remunerado é função do
marido, chefe da família, que provê seu sustento. Cabe à mulher a res-
ponsabilidade pelo trabalho doméstico e pelas crianças. Sabemos todos
que, apesar disso, as mulheres sentem-se cada vez mais forçadas ou
motivadas a buscar ocupações remuneradas dentro ou fora de casa. Na
medida, entretanto, em que essa ocupação é definida como “ajuda” ao
Tentamos mostrar até agora que a divisão sexual do trabalho nas socie-
dades humanas está intimamente vinculada à elaboração cultural do
fenômeno da reprodução biológica; que a reprodução tende a se dar em
grupos sociais específicos, as famílias, estruturados pela manipulação
dos princípios da aliança e do parentesco e organizados inter namente
pela divisão sexual do trabalho. Resta agora tentar analisar o modo pelo
qual essa questão está sendo colocada em nossa sociedade.
Todas as análises clássicas sobre a família em nossa sociedade têm
apontado as transfor mações que resultaram da perda de suas antigas
funções de unidade de produção.11 Com a emergência do movimento
feminista, entretanto, novos problemas vêm sendo privilegiados, espe-
cialmente os referentes à transfor mação da divisão sexual do trabalho
associada à dominação masculina.12
A emergência de uma contestação explícita da assimetria da divisão
sexual do trabalho, nitidamente percebida como forma de dominância
masculina, é um fenômeno muito específico de nossa sociedade. Isso
certamente não é acidental e deve ser relacionado, como têm demonstra-
do todos os estudiosos do assunto, ao desenvolvimento do capitalismo.
Com efeito, é apenas nesse modo de produção que o trabalhador
se transfor ma em vendedor de força de trabalho. Para um sistema que
. Para uma crítica dessa posição, consultar cap. desta coletânea.
. Sobre esse processo, ver Franchetto et alii .
consome força de trabalho, o sexo do trabalhador, pela primeira vez na
história, passa a ser irrelevante. Por isso mesmo permite (ou promove)
a inclusão da mulher no mercado de trabalho impessoal, na categoria
indiferenciada de “indivíduo portador de força de trabalho”, e constitui
a fundamentação essencial da percepção de uma igualdade e uma indi-
ferenciação absolutas entre os sexos. Nesse sistema, a discriminação
sexual no emprego e especialmente no salário se torna absurda e passa a
ser percebida como ilegítima. Ela apenas se mantém na medida em que
instituições exter nas (e anteriores) ao sistema produtivo sustentam e
legitimam essa instituição. E isso porque a profunda revolução na orga-
nização do trabalho provocada pelo capitalismo se deu através de uma
separação radical entre a produção social, organizada pelos mecanismos
de mercado, e a reprodução dos homens, que se manteve em esfera pró-
pria, cada vez mais privada.
Efetivamente, a industrialização não apenas divorciou socialmente
a produção da reprodução, mas separou essas duas esferas da atividade
social em espaços físicos muito distintos e distantes, criando desse modo
uma forma específica de isolamento feminino na vida doméstica. Tem-
se enfatizado muito, na bibliografia sobre a mulher, o fato de o capitalis-
mo ter operado essa cisão entre o público e o privado e, excluindo a
mulher da esfera pública, encerrando-a no âmbito da casa, ter promovi-
do sua subordinação. Mas acredito que essa constatação apresenta ape-
nas uma face da moeda. O que ocorreu de fato foi a inclusão simultânea
da mulher nas duas esferas, a pública e a privada, de modo contraditório.
Dessa maneira, a condição feminina passou a sofrer de uma ambigüidade
(ou contradição) fundamental: a percepção de sua igualdade enquanto
indivíduo na esfera do mercado e de sua desigualdade enquanto mulher,
ancorada na esfera doméstica da reprodução.
Aqui, cabe mais uma vez lembrar que a distinção entre o público e
o privado-doméstico, referidos respectivamente ao homem e à mulher,
constitui uma categoria cultural muito comum nas sociedades primiti-
vas e, na nossa, certamente é anterior ao capitalismo.13 Mas nas socieda-
des não capitalistas, a oposição homem-mulher recorta uniformemente
todas as esferas da vida social, e a distinção entre público e doméstico
não se dá em ter mos de uma separação radical (física e social) entre a
. O que não significa negar a existência de uma forma específica de domesticidade intimis-
ta, própria da família burguesa, conforme Habermas .
sendo drasticamente desestruturada pela desenfreada exploração da
força de trabalho. Mas, logo em seguida, a questão da igualdade come-
ça a ser apresentada como reivindicação das mulheres, em função da
luta pelo reconhecimento de seu direito ao voto e à propriedade: isto é,
de seu acesso à cidadania. Ingressar na cidadania significa exatamente
ser reconhecido como indivíduo, portador de direitos definidos em fun-
ção de leis gerais para toda a sociedade, isto é, participar da igualdade
formal que constitui o cerne da sociedade criada pelas revoluções bur-
guesas. O outro grande problema do movimento feminista foi e é a luta
contra a discriminação no emprego e no salário, isto é, o reconhecimento
social de uma realidade criada no âmbito econômico.
Entretanto, ocorre que, dada a dissociação entre o público e o
doméstico, a igualdade no nível do emprego cria o fenômeno da dupla
jornada de trabalho e gera, portanto, nova desigualdade (ou aumenta a
desigualdade anterior), promovendo a contestação da divisão sexual do
trabalho que se mantém na esfera doméstica. Além do mais, a tendência
a uma reformulação da divisão sexual do trabalho na esfera doméstica,
na medida em que é influenciada pelo modelo de igualitarismo indivi-
dualista criado na esfera pública, pode aparecer como ameaça de des-
truição da família e, com ela, do único grupo primário estruturado e
permanente que parece impedir a dissolução das relações interpessoais
no individualismo anônimo da sociedade de massa. Com efeito, a famí-
lia, último reduto a ser atingido pela tendência individualizante própria
do desenvolvimento de nossa sociedade, se estabeleceu nesse período
como grupo básico de convivência e solidariedade; além do mais, fir -
memente estruturada no âmbito da vida privada, constitui-se também
como refúgio contra o anonimato do mercado, o autoritarismo do Esta-
do e, contraditoriamente, como espaço de liberdade.14
Como se vê, o problema todo é muito complexo pois, envolvendo
o sexo, o trabalho e a reprodução, recobre tanto a questão do desenvol-
vimento do individualismo como a natureza da distinção entre público
e privado em nossa sociedade.
De um lado, a problemática se desdobra sob o prisma da sexuali-
dade que, como apontamos anteriormente, aparece como campo privi-
legiado de afir mação de uma igualdade individual. Por isso mesmo,
nesse campo, as incursões do individualismo se manifestam de modo
. Um tratamento mais detalhado dessa questão pode ser encontrado no cap. , supra.
mãe. Nas comunidades em que se valoriza altamente a preservação da
liberdade sexual, pode-se criar alguma coisa semelhante ao casamento
grupal que os antigos antropólogos evolucionistas imaginavam ser um
estágio anterior ao matriarcado. Entretanto, comunidades tendem a
existir enquanto unidades altamente estruturadas e são incompatíveis
com o pleno exercício da liberdade individual. A dificuldade da solução
hippie prende-se exatamente à extrema instabilidade dessas comunida-
des, que deriva de seu caráter não coercitivo e que acarreta uma mudan-
ça constante em sua composição. Nesse fluxo, o que acaba se recriando
é o grupo formado pela mulher e seus filhos, reintroduzindo-se a desi-
gualdade básica entre os sexos apontada anteriormente.
Outra tentativa de solução comunitária é a dos kibutzin, nos quais
se mantêm vínculos conjugais (facilmente desfeitos e refeitos), mas as
crianças ficam sob a responsabilidade coletiva da comunidade, através
de instituições especializadas no cuidado de crianças de diferentes ida-
des. No caso dos kibutzin, pretende-se eximir (pelo menos parcialmen-
te) tanto homens como mulheres da responsabilidade pessoal para com
os filhos, fazendo-se, entretanto, que assumam coletivamente a respon-
sabilidade para com as crianças da comunidade. Promove-se assim, em
alto grau, a igualdade entre homens e mulheres, mas a estrutura comu-
nitária dos kibutzin restringe drasticamente a liberdade individual den-
tro de um grupo altamente estruturado e coercitivo. Essa proposta cole-
tivista implica, por outro lado, a segmentação da sociedade nessas
unidades comunitárias, e encontra enor me dificuldade de implantação
como modelo para toda a sociedade, profundamente marcada pela
valorização da liberdade individual.
Finalmente, temos propostas que se encaminham no sentido de
eximir ambos os sexos da responsabilidade individual para com a
prole, mas sem prever qualquer responsabilidade grupal direta. Nessa
linha, seria o Estado, entidade coletiva impessoal, que se encarregaria
de cuidar das crianças, e tanto homens como mulheres seriam total-
mente liberados para a produção social e o sexo. Teríamos assim, tam-
bém contraditoriamente, a total coletivização das crianças e a completa
individualização dos adultos, situação na qual a utopia libertária de
Reich tende a resvalar para o “admirável mundo novo” de Huxley, que
é a realização completa da sociedade de massa.
Todos esses exemplos são, obviamente, utopias radicais que, exa-
tamente por isso, demonstram claramente as tendências e interesses
res ancorados na tradição histórica. Especialmente no caso da família, a
legitimidade do modelo está fundamentalmente presa a experiências
infantis muito profundas que mobilizam intensa carga afetiva. E, entre
nós, toda a concepção de família está demasiado presa ao vínculo conju-
gal e a certa concepção de pater nidade, tor nando muito difícil a substi-
tuição dessas relações por outras, como as entre irmão e irmã. Mesmo
porque uma solução nesse sentido dificilmente resolveria o problema
básico, que é o da manifestação do individualismo no grupo familiar.
Por outro lado, há que reconhecer que as novas técnicas de contro-
le da natalidade alteraram profundamente os parâmetros dentro dos
quais o problema foi tradicionalmente colocado. A possibilidade de di-
vorciar de modo completo a sexualidade da reprodução abriu, para
amplos setores da população feminina, a possibilidade de evitar de modo
per manente a mater nidade, sem prejuízo da vida sexual. Ao mesmo
tempo, ocorreu o aumento da oferta, no mercado, de ampla gama de pro-
dutos e serviços que antes só podiam ser obtidos no âmbito da economia
doméstica fundada na divisão sexual do trabalho. Desse modo, é possível
a uma parcela crescente de adultos, homens e mulheres, utilizando técni-
cas anticoncepcionais ou preferindo a sexualidade homossexual, colocar-
se à margem dos problemas de reprodução, sentindo-se livres para desen-
volver formas de privacidade e domesticidade não familiais.
A reprodução, entretanto, embora colocada como opção, recoloca
per manentemente a questão da família. Na medida em que persiste a
valorização ou reconhecimento da paternidade, persiste também, de for-
ma subjacente ou explícita, a valorização do modelo dos grupos conju-
gais, cuja preservação está associada à manutenção da dicotomia público-
privado. Nessa perspectiva, a contestação consiste basicamente, de um
lado, na tendência a dissolver o rígido monopólio da sexualidade femini-
na por parte do marido, tendência essa amparada no desenvolvimento
das técnicas anticoncepcionais; de outro, na tentativa de encontrar mode-
los de divisão sexual do trabalho na esfera doméstica que sejam mais
igualitários e permitam simultaneamente a inserção da mulher no merca-
do de trabalho. Nessa tentativa recorre-se com freqüência à esfera públi-
ca do Estado para assumir parcialmente a responsabilidade pelas crianças,
através de creches e outras instituições que não eliminem nem a respon-
sabilidade nem os direitos dos casais sobre os filhos. Persiste, entretanto,
o conflito básico entre, de um lado, a livre expressão da individualidade
tanto na carreira profissional como na vida amorosa, que enfraquece o
Com respeito à per manência e vitalidade da família, cabe uma
observação. Muito se tem dito a respeito da redução da família em
nossa sociedade. Realmente, tem havido nítida tendência à diminuição
do número de filhos e, nesse sentido, a família tem-se tornado menor.
Mas paralelamente tem-se criado também, especialmente no Brasil,
certa mitologia em torno do desaparecimento de uma pretensa família
patriarcal extensa e sua substituição pela família nuclear ou conjugal.
Na verdade, o modelo de família conjugal é muito antigo e difundido
tanto em nossa sociedade como na européia, com exceção da popula-
ção propriamente camponesa nesta última. Com isso quero referir-me
à tendência ao abandono do lar pater no pelos filhos e filhas casados,
que estabelecem domicílio e grupos domésticos independentes. Menos
que famílias extensas, o que encontramos no passado é uma forte vin-
culação dos diferentes grupos conjugais através do parentesco, espe-
cialmente os que ligam a família de origem à família de procriação.
O que vem ocorrendo, sem dúvida, é o enfraquecimento desses laços
de parentesco e o conseqüente isolamento do grupo conjugal. Esse
fenômeno, certamente, deve agravar as tensões existentes dentro do
núcleo conjugal, mas não pode ser interpretado diretamente como
enfraquecimento da família.
Mais ainda, parece-me lícito afirmar que, apesar de todas as críti-
cas e contestações, apesar da criação de novas for mas institucionaliza-
das de vida privada não familiar como opções legítimas, a reprodução
parece repor continuamente, em nossa sociedade, o núcleo conjugal em
nova versão do antigo modelo de família. Essa persistência do núcleo
conjugal apóia-se em forças ideológicas muito poderosas. Em primeiro
lugar, a própria valorização da sexualidade, se de um lado aparece como
expressão do individualismo possessivo, de outro se mostra um instru-
mento privilegiado para o estabelecimento de relações interpessoais
íntimas e afetivas – nesse sentido, o vínculo conjugal (mesmo temporá-
rio) constitui a base recorrente para a construção da esfera privada da
vida social. Por outro lado, há que reconhecer o peso do cientificismo
na legitimação das relações sociais: o reconhecimento, pela biologia, do
papel masculino na reprodução e, especialmente, da contribuição equi-
valente do pai e da mãe na constituição genética dos filhos tende a vali-
dar e reforçar o reconhecimento social da paternidade. Finalmente, esse
reconhecimento, validado cientificamente, é postulado pelos ideais
igualitários que exigem a participação tanto do homem como da mulher
Capítulo
a antropologia, que antigamente costumava ser vista com certa condes-
cendência pelos sociólogos e cientistas políticos, parece ser hoje tratada
com muito mais respeito e, às vezes, até com admiração.
Seria, entretanto, um pouco ingênuo considerar que o novo pres-
tígio se deva exclusivamente à qualidade de nossa produção intelectual,
e convém considerar mais de perto os fundamentos dessa popularidade.
O caráter tradicionalmente “marginal” da antropologia no Brasil
(como no resto do mundo) deveu-se certamente ao fato de que tanto as
populações que estudava como os temas que tratava se colocavam à
margem das grandes correntes políticas e das forças sociais mais di-
nâmicas que estavam modelando a transfor mação da nossa própria
sociedade. A antropologia sempre demonstrou especial interesse pelas
minorias despossuídas e dominadas de todos os tipos (índios, negros,
camponeses, favelados, desviantes e “pobres” em geral) em detrimento
do estudo dos grupos ou classes politicamente dominantes e atuantes.
Quanto aos temas, sempre revelou uma afinidade particular por aqueles
que eram claramente periféricos à grande arena das lutas políticas: dedi-
cou-se muito mais ao estudo da família, da religião, do folclore, da
medicina popular, das festas do que à análise do Estado, dos partidos
políticos, dos movimentos sindicais, das relações de classe, do desenvol-
vimento econômico.
O sucesso recente da antropologia está certamente vinculado ao
fato de que, hoje, essas minorias desprivilegiadas emergem como novos
atores políticos, organizam movimentos e exigem uma participação na
vida nacional da qual estiveram secular mente excluídos. Mais ainda,
temas como a religião ou a sexualidade, o papel da mulher na família e
a medicina popular parecem ter se politizado de um momento para o
outro, passando a possuir uma nova importância na compreensão da
dinâmica da transfor mação da sociedade brasileira. Dessa forma, o
conhecimento acumulado pela antropologia no tratamento desses te-
mas, assim como a competência específica no trabalho de campo com
essas populações, tornaram-se subitamente relevantes politicamente.
Por outro lado, em virtude mesmo do que parece ser uma nova
dinâmica da sociedade brasileira, os esquemas globalizadores com os
quais a sociologia e a ciência política produziram, no passado, uma
interpretação coerente da sociedade nacional, têm se revelado singular-
mente inadequados. Nota-se hoje, claramente, nestas disciplinas uma
crise explicativa que está provocando uma revisão crítica muito profunda
da antropologia, mas voltados para o estudo de populações que vi-
vem nas cidades. A cidade é, portanto, antes o lugar da pesquisa do
que seu objeto.
A tradição se inicia já com Nina Rodrigues e seu interesse pelo
negro e pelo mestiço, pela marginalidade e criminalidade que incidem
sobre uma população urbana pobre e desclassificada. É o conceito de
raça o elemento-chave dessa interpretação, fornecendo uma explicação
global do conjunto da sociedade brasileira.1 Ao lado desta antropologia
médica, desenvolveram-se os estudos sobre o folclore e, tanto num caso
como em outro, as distinções entre rural e urbano são irrelevantes. As
populações urbanas são tomadas como legítimo objeto de estudo não
enquanto tais, mas como exemplos ou manifestações de fenômenos
relevantes para uma interpretação ou simples descrição da sociedade
brasileira. Com Arthur Ramos, os mesmos problemas continuaram no
cerne das preocupações, mas com a gradual substituição das interpreta-
ções raciais pelas culturais.
Os trabalhos de Gilberto Freyre operam nesse mesmo campo (rural-
urbano de limites pouco relevantes). Casa-grande e senzala justapõe-se
a Sobrados e mocambos, em uma tentativa análoga, mas em outra direção,
de oferecer uma interpretação coerente da cidade brasileira de acordo
com uma perspectiva culturalista. Agora, os componentes raciais estão
muito mais fir memente subordinados à elaboração cultural e, sob a
dupla filtragem de uma ótica regional e de classe, trata-se de caracterizar
a cultura brasileira em seu conjunto.
Em que pese a popularidade e o prestígio de Gilberto Freyre na
sua época, a antropologia brasileira seguiu, em grande parte, um outro
caminho.2 Sob a égide do funcionalismo, que combinou, em graus e for-
mas diferentes, o culturalismo americano e a antropologia social britâ-
nica, introduziu-se no Brasil uma nova tradição de trabalho de campo
que revolucionou profundamente a antropologia brasileira. Os velhos
temas foram retomados de uma nova perspectiva. O tradicional estudo
do negro se transformou na pesquisa sobre relações raciais. As pesqui-
sas sobre as religiões africanas ganharam novo impulso e nova dignida-
de. A grande oposição entre casa-grande e senzala, como revelação da
suporte básico da armação dos sistemas reside no conceito de estrutura
social. A importância relativa das diferentes categorias, assim como sua
articulação interna, são estabelecidas através da indagação de sua rele-
vância (sua função) para a manutenção (reprodução) de uma forma
societária, um sistema de relações sociais. Nessa abordagem, os funda-
mentos estruturantes não são buscados nas manifestações propriamen-
te culturais, mas no sistema de relações que a cultura realiza (ou produz
ou manifesta). “Sociedade” e “cultura” aparecem como conceitos gê-
meos, e correspondem à forma e ao conteúdo de uma mesma realidade.
A investigação é integrativa e multidimensional. O privilegiamento da
dimensão societária permite, além do mais, um novo desenvolvimento
da abordagem comparativa. Com efeito, os princípios estruturantes
detectados nos sistemas de relações sociais são recorrentes em sociedades
diversas, distantes geograficamente e de tradição histórica diferente.
Desse modo, a abordagem implica um movimento constante entre o
particular e o específico de um lado, o geral e o universal de outro, na
comparação entre sociedades diferentes, que prescinde de qualquer fun-
damentação histórica.
O culturalismo americano, assim como o grupo filiado a Mali-
nowski na Inglaterra, seguiu outro caminho. O conceito de sociedade
não é utilizado como armação estruturante, estando subsumido no con-
ceito de cultura. Mas nas abordagens culturalistas o conceito de cultura
não possui nenhuma referência estrutural intrínseca. Os fenômenos cul-
turais se apresentam todos dispersos num mesmo plano, sem critérios
de relevância diferencial. O modo de integrar essa realidade dispersa
constitui um problema crucial que Malinowski tentou resolver por meio
do conceito de instituição, unidades empiricamente delimitadas. A forte
influência alemã na antropologia americana provocou soluções diver-
sas. De um lado, procurou-se desenvolver a hierarquia dos traços, com-
plexos e áreas culturais, inspirada nos estudos de difusão cultural, que
conduziu a um pantanal de classificações empíricas, sem valor generali-
zante. De outro, o historicismo sugeriu a tentativa de uma integração
no nível dos significados, buscando-se padrões ou temas gerais que sub-
sumissem aqueles que podiam ser detectados no nível da conduta.
Tanto no primeiro como no segundo caso, a integração buscada inter-
namente acaba por enfatizar a especificidade e unicidade de cada cultura.
Paralelamente, a omissão do conceito de sociedade foi compensada por
um interesse crescente pelo indivíduo como suporte e demonstração da
do investigador é tomada como integralmente correspondente às repre-
sentações e ao comportamento das coletividades estudadas.
Na sociologia, o abandono do funcionalismo foi resultado de uma
adesão cada vez maior ao marxismo. Na antropologia, entretanto, a
incorporação da crítica ao funcionalismo não resultou na delimitação de
um novo campo metodológico comum.
Com efeito, o marxismo teve uma penetração lenta e difícil na
antropologia. Desprovido de uma teoria do simbolismo e voltado para
problemas macroestruturais das sociedades capitalistas que só são ade-
quadamente captados na dimensão histórica, o marxismo não pode ser
transposto de modo imediato para a interpretação dos resultados da
investigação empírica limitada, qualitativa, multidimensional que ca-
racteriza o trabalho de campo antropológico. Assim, para os antropólo-
gos que enveredaram pela linha marxista, o problema que se colocava
era o de integrar um método de pesquisa de campo desenvolvido pelo
funcionalismo com uma teoria explicativa que parte de outras premis-
sas e caminha em outra direção. De modo geral, continuou-se a fazer
pesquisa como os funcionalistas, mas tentando encontrar “ganchos”
que permitissem interpretar os resultados com conceitos como “modo
de produção”, “relações de trabalho” e “luta de classes”. Ora, esses
conceitos são anteriores e exteriores às investigações em si, o que acaba
produzindo freqüentemente um hibridismo desconcertante: trabalhos
estritamente funcionalistas na descrição empírica são precedidos e
prolongados por introduções e conclusões for muladas em linguagem
marxista. Boa parte das vezes, acaba-se mostrando a funcionalidade de
certas instituições (como a família) para a acumulação capitalista. Ou
investigam-se as representações dos operários para depois discutir o
grau de alienação que elas porventura contenham, usando como padrão
de medida for mulações teóricas que não são postas em questão nem
testadas pela pesquisa empírica. A bem da verdade, é importante reco-
nhecer que também os sociólogos freqüentemente incorrem nesse
hibridismo estranho.
Os historiadores, que têm um problema semelhante de integrar
pesquisas detalhadas e particularistas aos grandes esquemas explicativos
do marxismo, resolvem-no mais facilmente do que os antropólogos, pois
remetem constantemente as investigações parciais a séries históricas que
for necem os parâmetros explicativos. Os antropólogos não possuem
parâmetros equivalentes, e se vêem forçados a utilizar aqueles for neci-
Tomemos a primeira tendência. Nota-se, em primeiro lugar, a pre-
dominância dos estudos detalhados de grupos, categorias ou situações
sociais delimitados, que incluem número restrito de pessoas e que são
vistos “de dentro”, com ampla utilização da observação participante.
Com efeito, uma das características mais visíveis e positivas dessa produ-
ção recente é justamente a valorização da observação participante e a
preocupação com a natureza da relação entre o pesquisador e a população
estudada. Tem crescido substancialmente o número de artigos escritos
sobre esta questão, e as monografias são cada vez mais precedidas de lon-
gas introduções nas quais os autores relatam sua experiência de campo.
Já aqui se nota claramente um desses “deslizamentos” da concei-
tuação e da prática a que me referi anteriormente. Tal como foi formu-
lada inicialmente, a técnica implicava uma ênfase na observação, que se
queria a mais ampla e objetiva possível, e a participação se apresentava
como condição necessária dessa observação. Na alteração recente no
uso dessa técnica nota-se uma valorização crescente da subjetividade do
observador – a experiência, os sentimentos, os conflitos íntimos do pes-
quisador são amplamente descritos e analisados. Concomitantemente,
há um esforço consciente de identificação do antropólogo com a popu-
lação que estuda, privilegiando-se a participação.
Na situação de campo tradicional, no trabalho que se desenvolve
com sociedades “primitivas”, a participação é antes objetiva do que
subjetiva – o pesquisador convive constantemente com a população
estudada, permanecendo, entretanto, um estrangeiro (mesmo que bem
aceito). A injunção de aprender a língua nativa se prende à necessidade
de superar uma exterioridade excessiva. Como o domínio da língua é
adquirido gradualmente e raramente chega a ser completo, a comunica-
ção verbal fica freqüentemente subordinada à observação do compor-
tamento manifesto. Na pesquisa que se faz nas cidades, dentro de um
universo cultural comum ao investigador e ao objeto da pesquisa, a par-
ticipação é antes subjetiva do que objetiva. O pesquisador raramente
reside com a população que estuda (e, se o faz, é por breves períodos) e
não compartilha de suas condições de existência – de sua pobreza, de
suas carências, de suas dificuldades concretas em garantir a sobrevivên-
cia cotidiana. Mas busca, na interação simbólica, a identificação com os
valores e aspirações da população que estuda. A língua não constitui
barreira e a comunicação puramente verbal predomina, ofuscando a
observação do comportamento manifesto. A pesquisa se concentra na
giar isolam grupos ou categorias sociais cuja posição de classe não é
nem clara, nem nítida e, às vezes, nem sequer relevante: moradores de
Copacabana ou dos subúrbios cariocas, favelados, habitantes da perife-
ria paulista, Comunidades Eclesiais de Base, freqüentadores de terrei-
ros de umbanda, participantes de movimentos populares, escolas de
samba, o público do circo-teatro, mulheres, negros, homossexuais.
Apenas em alguns poucos casos, como no das pesquisas que se ocupam
exclusivamente de operários, é que parece haver uma compatibilidade
entre o recorte empírico e a problemática das classes (às vezes mais apa-
rente que real). Nos demais casos, a relevância dos resultados para a
problemática das classes não é direta, mas depende de uma reflexão teó-
rica que se processa em outro nível e a partir de outros dados. Nessas
circunstâncias, o que é mais especificamente relevante é antes a estrati-
ficação dos segmentos sociais e a percepção dessa estratificação por
parte da população. Por isso mesmo, os ter mos clássicos da conceitua-
ção marxista, como “burguesia” e “proletariado”, são substituídos por
ter mos descritivos como “classes populares”, “classes trabalhadoras”
ou “camadas médias”. Preserva-se, desse modo, uma referência à pro-
blemática das classes, sem entretanto enfrentar o problema da relevân-
cia específica dos resultados da pesquisa para essa problemática.3
Mais recentemente, com a crise do marxismo, a problemática da
classe foi abandonada. Com isto, perdeu-se qualquer referência e qual-
quer instrumento conceitual e metodológico para entender a inserção
dos grupos estudados no processo mais amplo de transformação social.
A essa ausência, somam-se outras presenças igualmente significa-
tivas. Com efeito, no conjunto da produção antropológica é fácil cons-
tatar a predominância de alguns conceitos que parecem se constituir
como instrumentos privilegiados: ideologia, identidade, pessoa, indiví-
duo, individualismo, hierarquia, holismo e, mais raramente, ethos.
Nota-se claramente nessa listagem a tendência culturalista, com a valo-
rização da dimensão simbólica. Apenas o conceito de hierarquia parece
contradizer essa tendência, pois, tradicionalmente ligado ao conceito de
status, remete diretamente à problemática sociológica da estratificação
conceito pode ser lido ao contrário: menos o modo pelo qual a socieda-
de constrói sua versão de ser humano e mais como as concepções sobre
o ser humano são reveladoras da natureza da cultura daquela sociedade.
Nesse caso, a pessoa passa a ser vista como metáfora da sociedade, e um
grande cuidado precisa ser tomado para evitar um outro deslizamento
de sentido (esse, perigoso), que envolve um reducionismo psicologi-
zante em que, olhando a pessoa, vê-se toda a sociedade.
Mas a noção de pessoa envolve outras conexões. A visão cultura-
lista aponta claramente para o fato de que a concepção de indivíduo que
permeia o pensamento ocidental moderno não é uma categoria univer-
sal, mas uma forma específica de construção da pessoa. A partir daí é
possível fazer uma crítica metodológica geral da abordagem antropoló-
gica, perguntando-se em que medida nossa visão de indivíduo (essa
forma específica de conceber o ser humano) introduziu distorções im-
portantes no estudo de outras sociedades, vendo indivíduos (no nosso
sentido) onde eles não existiam. Essa seria uma distorção equivalente,
embora invertida, das colocações evolucionistas, que recusavam ao pri-
mitivo qualquer forma de percepção de sujeitos individuais, uma vez
que não encontravam neles o estrito correspondente do individualismo
ocidental. O perigo da crítica reside em “ler” no sentido restrito (indi-
vidualista) qualquer referência ao indivíduo, introduzindo distorções
onde elas talvez não existam. Isso ocorre porque o termo “indivíduo”
carrega necessariamente duas conotações. De um lado, ele se refere aos
seres humanos individualizados, organismos biológicos que são supor-
tes empíricos da sociedade e que são, obviamente, reconhecidos como
tais embora elaborados culturalmente de forma diversa em todas as
sociedades. De outro, ele se refere à noção individualista que per meia
nossa concepção de pessoa. Amalgamando as duas conotações, estabe-
lece-se um novo deslize conceitual. A oposição indivíduo-pessoa passa
a significar a oposição entre individualismo, de um lado, e de outro
todas as outras formas de elaboração do ser humano, especialmente em
suas concepções hierárquicas.
Desse modo, o problema do individualismo per meia toda a pro-
blemática da pessoa, fazendo com que este conceito seja utilizado de
formas não apenas diferentes, mas antagônicas. Convém, portanto, exa-
minar mais detalhadamente a questão do individualismo.
A discussão sobre o individualismo se origina na ciência política,
onde surge no contexto da análise da for mação do Estado moder no e
opção por um modo de investigação muito limitado. Agora, utiliza-se na
investigação de uma sociedade ocidental moderna um conceito de indivi-
dualismo previamente desistoricizado e despolitizado, desligado da pro-
blemática da formação das classes e da natureza do Estado moderno que
lhe deu origem. O conceito se “culturaliza” e corre-se o risco, ao empre-
gá-lo, de criar uma visão homogênea da sociedade brasileira, na qual se
defrontam, de modo uniforme, valores culturais opostos mas considera-
dos equivalentes (individualismo-hierarquia). No estranho caminho de
recuperar o conceito de individualismo através da sociedade de castas e
não da nossa própria história, conseguimos contor nar o espinhoso pro-
blema do processo de produção de uma heterogeneidade e desigualdade
crescente que são próprias da nova sociedade de classes emergentes, com
suas novas formas de dominação política, omitindo, ao mesmo tempo, a
profunda e inapelável desigualdade da sociedade de castas.
Vejamos agora um outro conceito, que goza de popularidade cres-
cente: o de identidade. Sua popularização na antropologia brasileira se
deu, inicialmente, no contexto da análise das relações interétnicas e com
a inspiração de Fredrick Barth. O conceito de identidade étnica, como
identidade grupal contrastiva, é construído no contexto das relações e
conflitos intergrupais concretos. O levantamento dos grupos em conta-
to é fundamental para a análise, assim como o de todo o processo de
enfrentamento, oposição, dominação, submissão, resistência que ocorre
simultaneamente no plano simbólico e no plano das relações sociais. Ao
contrário do que ocorreu com a oposição contrastiva individualismo/
hierarquia, trata-se agora de um contraste que resulta de um processo
concreto de confronto e diferenciação.
No contexto das relações interétnicas, o conceito de identidade é
muito preciso e delimita um campo de investigação bem estruturado.
Mas sua extensão a outros grupos ou categorias sociais freqüentemente
implica a diluição desse campo, pela diluição de sua dimensão contras-
tiva concreta. O campo de análise deixa de ser a oposição entre grupos
ou categorias que se enfrentam na sociedade, e a identidade passa a ser
concebida como uma propriedade do grupo, projetado na pessoa. Desse
modo, através do deslize semântico, o estudo da identidade se sobrepõe
às análises efetuadas com o conceito de pessoa, enfatizando as dimen-
sões psicológica e cultural em detrimento da política.
Analisando esta breve história da utilização de conceitos como
“classes sociais”, “ideologia”, “pessoa”, “individualismo” e “identidade”
“armadilha positivista” se agrava. A sociedade, obscura aos nossos
interlocutores, torna-se obscura para o próprio antropólogo.
Nesse caso, os conceitos alusivos parecem resolver o problema.
Per mitem-nos restringir a análise ao nível da experiência dos nossos
infor mantes, insinuando a existência de forças e processos sociais que
sabemos estarem em jogo, mas que não conseguimos captar a partir da
ótica dos nossos interlocutores.
Sair desse impasse significa dissolver essa visão colada à realidade
imediata e à experiência vivida das populações com as quais trabalha-
mos, não nos contentando com a descrição da forma como os fenôme-
nos se apresentam, mas investigando o modo como são produzidos.
Não se trata obviamente de exigir que cada pesquisa empírica
construa o quadro completo ou a teoria acabada da sociedade brasilei-
ra. Mas é necessário que em algum lugar da reflexão antropológica esses
problemas comecem a ser investigados. Aqui, uma comparação com a
história pode ser esclarecedora, pois muito do trabalho do historiador,
feito com documentos e arquivos mortos, se assemelha intrinsecamente
àquele que o antropólogo realiza com sujeitos vivos. Mas a teoria da
história com a qual os pesquisadores trabalham não se confunde com a
visão que os homens de determinadas épocas e de certas classes sociais
possuíam de seu lugar nesse processo. E os problemas que os historia-
dores investigam não são aqueles formulados pelos homens que, anoni-
mamente, fizeram a história.
Nós, ao contrário, presos à observação participante, estamos nos
contentando com reconstruir as sombras que essa história projeta na
consciência dos homens. É um trabalho importante. Não creio que
devamos abdicar de fazê-lo. Mas é necessário que não nos contentemos
somente com isso.
Os “deslizes semânticos” que foram apontados como uma caracte-
rística da produção antropológica recente parecem estar indicando a pro-
cura de novos caminhos a partir de uma alteração no significado de con-
ceitos tradicionais. Entender esse processo e explicitar essas alterações
constituem o início da reflexão mais sistemática sobre os novos rumos
que a antropologia está buscando, e o primeiro passo no sentido de uma
construção teórica mais adequada aos problemas que estamos estudando.
supor que as forças sociais que modelam a transformação da sociedade
brasileira tendem a produzir, para os setores mais pobres da população
urbana, condições de existência muito semelhantes. A uniformização do
consumo criada pelo nível salarial, a existência de problemas comuns
nas áreas de habitação, saúde, escolarização e acesso ao mercado de tra-
balho devem promover, nessa população, o desenvolvimento de tipos
de sociabilidade, modos de consumo e lazer, padrões de avaliação do
mercado de trabalho e for mas de percepção da sociedade que lhe são
próprias. Em outras palavras, podemos supor que condições de vida
semelhante dêem origem a características culturais próprias.
A análise das semelhanças remete, portanto, ao universo da cultu-
ra. É dessa perspectiva que a heterogeneidade inicial se dissolve. Assim,
a diversidade de inserção na estrutura produtiva, se bem que funda-
mental quando se pretende analisar o processo de transfor mação da
sociedade capitalista, assume significado muito diverso quando apreen-
dida da perspectiva dos sujeitos que vivem esse processo. Desse ponto
de vista, a imensa gama de ocupações de baixo prestígio e parca remu-
neração constitui, para a população sem escolaridade e sem qualificação
profissional, um mesmo conjunto de opções de trabalho que integram
seu horizonte de possibilidades de emprego. A história de vida de cada
um e, com muito mais razão, a de diferentes membros de uma mesma
família, se constrói a partir de experiências diversificadas que ocorrem
dentro desse mesmo universo de oportunidades ocupacionais.
É por isso que a análise dessas uniformidades e semelhanças, cons-
truídas no nível da cultura, não pode ser realizada a partir dos conceitos
que remetem à teoria marxista das classes sociais. O termo “classes
populares”, de cunho nitidamente descritivo, parece cobrir mais ade-
quadamente esse conjunto simultaneamente diferente e semelhante, e
indicar que a análise está se processando num nível diverso daquele que
é próprio da teoria das classes sociais.
Assumindo a perspectiva da cultura, este trabalho possui um duplo
objetivo: de um lado, apresenta resultados de uma pesquisa específica,
realizada no Cebrap em por uma equipe de antropólogos coorde-
nada por Ruth Cardoso,2 como parte de um projeto sobre as cidades
. O grupo de pesquisadores incluiu Teresa P. do Rio Caldeira, José Guilherme C. Magnani,
Elizabeth Bilac e eu mesma. Agradeço a todos a permissão de utilizar o material da pesqui-
sa para este artigo, assim como a contribuição que deram, nos inúmeros seminários que rea-
lizamos, para a sistematização das idéias aqui expostas.
. A seleção das cidades foi feita de modo a incluir regiões diferentes do estado e tipos diver-
sos de urbanização. Optou-se, nesse processo, por três cidades: São José dos Campos, por
representar um núcleo urbano em expansão acelerada provocada pela concentração de gran-
des indústrias; Rio Claro, como cidade de antiga tradição operária, ligada à presença das ofi-
cinas da Cia. Paulista de Estradas de Ferro e a pequenas indústrias de tipo tradicional. Essa
cidade apresenta, além disso, a característica de se localizar numa das regiões agrícolas mais
desenvolvidas e produtivas do estado, reunindo apreciável contingente de bóias-frias; e
Marília constitui, ao contrário das outras cidades, um núcleo urbano de for mação muito
recente, tendo sido uma das mais célebres cidades pioneiras na década de . A indústria que
se for mou na cidade, presa à transfor mação direta de produtos agrícolas regionais, está
sendo desativada e a população está diminuindo. São José e Marília foram pesquisados por
uma equipe, Rio Claro por outra. Nas três cidades o procedimento foi o mesmo: a) levanta-
mento sucinto da história do desenvolvimento da cidade, a partir de fontes secundárias;
b) entrevistas com infor mantes qualificados (sociólogos e pesquisadores que trabalham na
cidade, líderes políticos e sindicais, habitantes considerados conhecedores da cidade);
c) mapeamento do crescimento recente da cidade e localização da nova periferia; d) reco-
nhecimento de toda a zona periférica para identificação visual das características espaciais
aparentes; e) seleção de bairros diferenciados para a realização de entrevistas; f ) entrevistas
informais com líderes locais e habitantes contatados em postos de saúde, bares etc.; g) entre-
vistas formais gravadas nas residências com habitantes do bairro.
Em São José foram estudados quatro bairros e realizadas entrevistas gravadas; em Rio
Claro, catorze entrevistas, gravadas em três bairros; em Marília, o estudo abrangeu três bairros
e entrevistas. (As entrevistas informais não estão incluídas nesta relação).
Foram elaborados relatórios de pesquisa sobre cada uma das cidades estudadas e um traba-
lho especial foi preparado por Teresa Caldeira a partir da pesquisa bibliográfica da cidade de
São Paulo.
A escolha da “periferia urbana” como local e tema da investigação
merece uma justificação à parte.
A periferia
A população pobre está em toda parte nas grandes cidades. Habita cor-
tiços e casas de cômodos, apropria-se das zonas deterioradas e subsiste
como enclaves nos interstícios dos bairros mais ricos. Mas há um lugar
onde se concentra, um espaço que lhe é próprio e onde se constitui a
expressão mais clara de seu modo de vida. É a chamada “periferia”.
A “periferia” é for mada pelos bairros mais distantes, mais pobres,
menos servidos por transporte e serviços públicos.
Obviamente, o fenômeno de formação das periferias urbanas não
é novo e nem especificamente brasileiro. Em São Paulo, onde a vigoro-
sa expansão urbana data do século e é contemporânea da imigração
estrangeira, a cidade crescia desordenadamente já havia um século.
Entretanto, a partir da década de , o crescimento urbano não só
aumenta de intensidade mas adquire características específicas que dis-
tinguem as novas periferias das antigas fímbrias urbanas.
Em primeiro lugar, nota-se, a partir dessa época, os efeitos da
maciça substituição de trabalhadores estrangeiros por migrantes nacio-
nais. Em segundo lugar, ocorre uma mudança muito radical no modo
de solucionar o problema da habitação para os trabalhadores. No passa-
do, o problema tendeu a ser resolvido pela iniciativa privada com vilas
operárias, a locação de cômodos ou casas. A partir da Segunda Guerra
Mundial, entretanto, que presenciou o congelamento dos aluguéis e a
emergência de uma legislação que protegia o inquilino, esse tipo de
investimento deixou de ser lucrativo. Abriu-se então um novo negócio:
a venda a prestações de terrenos de baixo valor imobiliário, isto é, aque-
les distantes ou localizados em áreas particular mente insalubres ou de
topografia desfavorável, de difícil acesso, sem serviços públicos e, fre-
qüentemente, sem documentação legal.
Vendeu-se, junto com os lotes, o sonho da casa própria, que pas-
sou a ser aspiração generalizada das classes populares. Seu resultado é
claramente visível: bairros de ruas irregulares, sem calçamento nem ilu-
minação, desprovidos de redes de água e esgoto, sem escolas e postos de
saúde, com transporte difícil e caro. As casas construídas aos poucos
Não só a melhoria do bairro beneficia a todos, mas não pode ser obtida
com o esforço individual. É nesse momento e nesse contexto que a
população se torna receptiva a for mas de organização que per mitam
uma ação conjunta.
Toda essa dinâmica já foi amplamente estudada na cidade de São
Paulo. A proliferação das associações de moradores, que reflete a espe-
cificidade da forma pela qual as classes populares se constituem como
sujeitos políticos, foi ressaltada por grande número de pesquisadores.
Assim também há uma bibliografia bastante grande sobre movimentos
de reivindicação por escolas, centros de saúde, asfaltamento de ruas e
todos os demais benefícios próprios da sociedade urbana. Entretanto, os
processos propriamente culturais subjacentes a esta movimentação polí-
tica ainda não foram suficientemente esclarecidos. Por outro lado, a
generalização desse novo estilo de urbanização e de ação política nas
cidades do interior do estado exigia uma análise que não se restringisse
à cidade de São Paulo e ao espaço metropolitano, mas abrangesse cen-
tros urbanos menores. Só assim se poderia avaliar a amplitude, as carac-
terísticas comuns e as variações desse processo.
A visão da cidade
QUA DRO 1
Moramos dezesseis anos num lugar do Paraná, numa fazenda de café. Marí-
lia é melhor que lá, lá não tem recurso, não acha remédio de graça, a gente
que é pobre precisa. Aqui ganha leite e remédio no posto [de saúde]. [Rio
Claro] é uma cidade de recurso, quando as crianças ficam doentes é fácil. Eu
vou para a Santa Casa, para o pronto-socorro. Para ir para a cidade tem bas-
tante condução.
QUA DRO 2
Uma terceira referência constante nos depoimentos diz respeito à ordem
econômica, e se expressa na avaliação da facilidade ou dificuldade em se
obter bons empregos. Neste contexto, a comparação é feita novamente
com as cidades maiores, e a condição desejável de abundância de bons
empregos é sempre associada à grande indústria. Assim, Rio Claro e
Marília, apesar de serem consideradas cidades muito boas, têm a desvan-
tagem de oferecerem poucos empregos. Em São José, por outro lado, a
grande oferta de empregos emerge sempre como a característica mais
positiva da cidade. As grandes cidades industriais como Campinas e São
Paulo, apesar de agitadas, violentas e poluídas, são valorizadas pelos
empregos que oferecem. Nessa mesma linha de considerações, as cida-
des pequenas estão ainda em maior desvantagem do que as cidades
médias, oferecendo muito menos oportunidades de trabalho.
No conjunto, essa visão da cidade que se poderia chamar de glo-
bal, que se manifesta nas respostas a perguntas muito gerais, tende a se
articular através da percepção de um eixo que é dado pelo continuum
rural-urbano. Este eixo, que abrange o campo, a cidade pequena, a cida-
de média e a grande metrópole, é definido de forma bastante precisa
porque, em geral, a população possui uma experiência muito próxima e
recente de migrações ao longo do continuum que lhe permite, através da
própria história familiar, construir os parâmetros dessa geografia.
Ao longo do continuum, as cidades são avaliadas em função de duas
dimensões ou duas ordens de atributos. As duas dimensões são muito
nítidas e são gerais a toda a população entrevistada. A primeira, biparti-
da, diz respeito à qualidade do espaço urbano que deve aliar ordem e
tranqüilidade com a presença de “recursos” como serviços médicos,
escolas, transportes etc. A segunda se refere à ordem econômica e se tra-
duz na abundância ou escassez de empregos bem remunerados, que são
sempre associadas à presença ou ausência de grandes indústrias.
Em ter mos da primeira dimensão, a cidade média é valorizada
positivamente em relação a ambos os pólos do continuum, por combinar
satisfatoriamente a tranqüilidade com os recursos. O campo e a cidade
pequena são mais tranqüilos, mas não oferecem recursos. A cidade gran-
de oferece recursos mas não tranqüilidade.
No que diz respeito à segunda dimensão, a oferta de empregos, as
cidades maiores são sempre favorecidas. São José dos Campos aparece
como a combinação ideal, pois oferece muitos empregos e recursos sem
ter destruído ainda a “tranqüilidade” própria das cidades médias.
O bairro: a visão do progresso
Em São José dos Campos, Marília e Rio Claro, como em São Paulo e
nas demais cidades brasileiras em crescimento, a constituição da perife-
ria é um processo constante. A população mais pobre e os recém-chega-
dos tendem a se localizar nas fímbrias da área urbanizada, onde a ausên-
cia de serviços como luz, água, iluminação, calçamento, esgotos torna o
solo mais barato e mais acessível. Aí se localizam as residências mais
modestas e os aluguéis mais baratos. Com o decorrer do tempo há um
aumento da densidade populacional e a prefeitura tende a estender os
serviços públicos, valorizando os terrenos. As residências incompletas e
precárias do início do povoamento ganham uma série de refor mas,
melhorias e ampliações. A cidade engole a antiga periferia, que se recria
numa nova fímbria.
Todo esse processo faz parte da experiência de vida da população,
que o assimila como parte das condições “dadas” dentro das quais rea-
liza o planejamento de uma estratégia de sobrevivência e ascensão
social. No conjunto, o processo é caracterizado pela população como
“progresso da cidade”, avaliado positivamente e utilizado como uma
das formas de transformação da sociedade global que a pode beneficiar
diretamente.
A periferia, vista como processo pelos seus próprios habitantes,
provoca assim uma visão diferencial e histórica dos bairros da cidade, e
a localização dos habitantes ali é correlacionada com sua posição na
sociedade e com sua perspectiva de melhoria progressiva.
As entrevistas são muito claras a esse respeito:
Hoje tem umas casas boas, inclusive tem nego rico morando aqui. Tem um
professor ali, outro lá. Não contando as casas dos pobres, tem várias casas
bonitas. Mas naquele tempo [início do loteamento] dava vergonha. Era só
maloca. (Rio Claro)
Antes não tinha luz, comprava gelo para a cerveja e ia ajeitando. Agora já tem
luz. Falta luz na rua, calçamento, esgoto, mas pelo tempo deste loteamento
está adiantado, nos outros demora mais. O prefeito aqui, a fiscalização não nos
atrapalhou nada. Todo mundo fez as suas casinhas e a fiscalização não atra-
palhou. O prefeito tem atenção pelos moradores. (São José dos Campos)
Este bair ro aqui é bom. Antes era mais quieto. Agora tem muita gente. Tem
casa boa, tem lojinha de roupa, açougue tem bastante, tem bastante casa
de negócio. Antes não tinha nada. Tinha que ir comprar mais perto do centro.
E não tinha ônibus, não tinha luz, não tinha água. Água até hoje, a bem dizer,
não tem, porque eles desligam às sete da manhã e só vai chegar às quatro da
tarde, às vezes de noite. Agora deu no rádio que vai ter esgoto. Então eu acho
que vai ter que arrumar a água. Tem que ser. Esgoto sem água... (Rio Claro)
Com o dinheirinho que trouxe de Jaú paguei a entrada do terreno: trinta cru-
zeiros. Com o resto, comprei tijolo e telha. Fiz estes dois cômodos aqui e entrei
dentro. Era baixinho, não tinha altura que está hoje. Não tinha piso nem
porta. Ganhamos uma porta e uns caixotes; com o caixote eu fiz a janela. Era
um barraco. De tijolo, mas era barraco. Fui trabalhando, melhorando. Subi a
altura. pagando na base da amizade, da ajuda, mas sem compromisso. (Quer
dizer, se alguém ajudava aqui, quando eu estava folgado ia ajudar ele, mas não
tinha obrigação.) Com dois anos consegui deixar estes cômodos deste jeito... Fiz
mais um cômodo. Daí ficou parecendo uma casinha. (Rio Claro)(grifo meu)
Viemos, pagamos. Eu tinha umas tábuas, a gente podia morar no lote, mas
não podia construir ainda. Fiz um barraco de madeira, até que o guarda-roupa
era a porta da frente. Era junho, era frio, e as paredes eram só de coberta. Fica-
mos ali e eu meti pau. Trabalhava de dia em construção, e de noite e domingo
era aqui. E nós fomos construindo... Hoje [um ano depois] já tem tudo isso
construído [um bar e cinco cômodos]. Trabalhou, tem coragem para trabalhar,
consegue. Esperar cair do alto não cai mesmo. (São José dos Campos)
. Há ainda uma observação que se faz necessária sobre os conjuntos habitacionais do .
O ingresso nesse sistema não altera radicalmente o discurso. Em primeiro lugar porque,
construídos geralmente em local distante, implicam igualmente a expectativa de que o pro-
gresso chegue ao bairro, com a urbanização dos vazios e o aumento da oferta de serviços
públicos. Depois, porque todo o discurso sobre o esforço e o sacrifício se altera muito pouco
– refere-se à prestação da casa, em vez da do lote, e à reforma, em vez da construção inicial.
Com efeito, a necessidade de fazer o muro que cerca o terreno aparece para a população
como uma primeira necessidade que se segue à mudança. Depois, começa o processo de
ampliação (que se inicia sempre pela cozinha) e embelezamento das fachadas. Com isso, nos
conjuntos mais antigos, a uniformidade original desapareceu quase que totalmente, o que a
população valoriza muito (“aqui já não parece ”).
O emprego
Eu acho a cidade boa, mas acho que tem pouco emprego. Tenho um filho que
teve que ir trabalhar fora por falta mesmo de emprego. Ele tem diploma, fez
SENAI, tem tudo... E nem assim arranjou. (Marília)
É muita gente querendo trabalhar. A turma do sítio veio toda para a cidade.
É por isso que falta serviço. Isso é de uns tempos para cá. Teve uma lei aí que
apertou muito os fazendeiros. Antes eles tinham os empregados nas fazendas e
quando aposentava podia mandar embora. Agora não, têm que ficar com o
empregado lá dentro. Então eles não querem mais empregados moradores.
E o que aconteceu? Os empregados vieram morar na cidade e têm que tomar
caminhão para ir trabalhar no sítio. Isto num ponto ajudou a cidade a crescer.
Tiveram que fazer loteamento porque não comportava. Mas também, muitos
que trabalharam no sítio agora trabalham na cidade e assim o serviço dimi-
nui. (Rio Claro)
Estas entrevistas não são casos isolados. A noção de que em Rio Claro
e em Marília o mercado de trabalho está saturado é muito geral, e apa-
rece em quase todas as entrevistas. Além da migração local e regional,
aponta-se também a grande migração interestadual do Paraná, de
Pra ser boa para morar, uma cidade precisa ter indústria para pagar bem.
E aqui não tem. (Rio Claro)
O bom mesmo é indústria, para dar mais emprego e ter um padrão de vida
melhor. Sem indústria, não tem emprego. Comércio dá emprego, mas é pouco.
Uma loja grande pega quinze empregados. E quinze e nada é a mesma coisa.
A cidade está crescendo de todo lado. A população aumenta e a indústria não
dá trabalho [suficiente]. Uma cidade para ter um bom desenvolvimento pre-
cisa ter indústrias de material pesado, como aquelas do ABC, que tem as meta-
lúrgicas. Aí sim. Indústria de mil, mil empregados. Sem isso, não adianta
aumentar a população. Aqui, há sete anos atrás, tinha mil habitantes.
Hoje tem mais ou menos mil. Não é só os que vêm de fora não. É os que
nascem também, que nasce muito mais do que morre. E ainda vêm as pessoas
do sítio. (Rio Claro)
um conjunto disperso de empregos pouco numerosos, como atendente
de posto de gasolina, auxiliar de oficina mecânica, as ocupações menos
qualificadas do serviço público e dos hospitais, além da faixa dos bisca-
tes; e, finalmente, a indústria moder na, que paga melhor. Esse é, de
modo geral, o mercado de trabalho no qual a população de baixa quali-
ficação pode disputar empregos. Fora daí, resta o caminho, em geral
sonhado como carreira para os filhos, que passa pela escolarização de
nível médio ou superior e que per mitiria a passagem para o trabalho
não manual ou manual de alta qualificação. A outra alter nativa, ainda
mais difícil, é a de abrir um “negócio”.
A fábrica é, em qualquer circunstância, a referência central. É o
critério a se privilegiar na procura de um emprego, mesmo para aqueles
que não têm nenhuma qualificação pois, além do salário, oferece uma
série de garantias ou vantagens. A questão é colocada com muita nitidez
em São José dos Campos, onde o emprego fabril é abundante.
A gente mora aqui porque depende da fábrica, o único jeito de viver é depen-
der da fábrica. Cidade pequena sem fábrica não dá. Ele [o marido] é profis-
sional, mas depende da fábrica: se ele for trabalhar fora da fábrica, ganha a
metade. (São José dos Campos)
Gosto mais de fábrica, já acostumei. Fábrica tem toda garantia, tem INPS,
convênio, hospital [...] Prefiro fábrica: tem horário pra chegar e pra sair, a
gente sabe que deu aquele horário, acabou. No campo e de sapateiro não tem
horário, tem que trabalhar de manhã até de noite. (São José dos Campos)
O Estado
A inflação está aumentando dia por dia. Não adianta querer controlar a infla-
ção. A situação está dura. Não sei nem quem é o culpado. Essa turma, uns
falam, criticam o gover no. (Rio Claro)
O custo de vida não tem jeito. Sempre foi assim e vai piorar mais ainda. Nós
temos que consumir, não tem jeito. Só se for todo mundo plantar. Mas aí tam-
bém o gover no tinha de dar proteção. (Rio Claro)
O custo de vida sobe e o salário não. Uma parte do custo de vida é com o pró-
prio morador, o dono da casa: tem que procurar comprar nos lugares mais
baratos. A outra parte é com o gover no. (Marília)
Eu ouvi no rádio que agora vem esgoto. E também que vai passar asfalto na
rua do ônibus. Ele [o prefeito] fez essa promessa. Faz tempo que nós estamos
pedindo, fazendo abaixo-assinado. (Rio Claro)
que a prefeitura faz tudo conforme a gente pede. Veja o show do meio-dia, no
rádio. A cidade pede e ele dá. (Rio Claro)
O prefeito antes vinha muito aqui. Agora nem vem mais. Eu não falo, que
não entendo nada. Mas a turma de lá fala mal dele – que nem esse esgoto aí
– diz que é só promessa. (Rio Claro)
São José não é uma prefeitura rica: ela vem sendo bem administrada. A idéia
do prefeito é a de que exista o centro e existam bairros, cada um com tudo que
tem-se notado um pessimismo crescente, uma crítica mais acerbada,
uma tensão que não são aparentes nas pesquisas mais antigas nem nos
dados que coletamos nas cidades menores. Aliás, a simples observação
direta das periferias de São Paulo e das outras cidades revela muito cla-
ramente a maior deterioração das condições de vida da população pobre
paulistana. Os bairros periféricos de Marília, Rio Claro e São José dos
Campos estão longe de suscitar a mesma impressão de miséria, poluição
e amontoamento da população que é tão visível em São Paulo. Também
nas cidades menores é muito menos nítido o contraste entre os excessos
de riqueza e de pobreza que a cidade de São Paulo exibe acintosamente.
Por isso mesmo, a crença em que a melhoria das condições de vida pode
ser conquistada pelo esforço pessoal e pela colaboração familiar parece
estar se esvanecendo mais rapidamente na metrópole do que nas cida-
des menores.
O estudo comparativo dos resultados de muitas investigações
parece assim revelar, simultaneamente, a generalidade de uma certa
representação da sociedade e o início de sua transfor mação. Usando o
material disponível, é possível tentar configurar, de modo um pouco
mais preciso, essa interpretação da realidade social que tem conforma-
do a prática popular e que parece estar em vias de se alterar.
A análise dos depoimentos mostra, de forma muito clara, que essa
visão de mundo se estrutura em termos de duas dimensões independen-
tes, mas articuladas – uma diz respeito à vida privada e é vista como
dependente diretamente da iniciativa e da responsabilidade de cada um;
outra, que chamaremos pública, compreende, de um lado, a sociedade
propriamente dita e, de outro, o Estado. A articulação entre essas di-
mensões é estabelecida pela compatibilidade entre crenças e valores que
caracterizam cada uma das dimensões: na vida privada, a crença na possi-
bilidade de melhoria de vida; na sociedade, a crença no progresso; no
Estado, a esperança de justiça social.
No nível da vida privada situam-se, complementar mente, o indi-
víduo e a família. O discurso que revela o indivíduo é basicamente
aquele que se refere ao trabalho, ao problema do emprego. Nesse dis-
curso, a ênfase é colocada sempre na necessidade do esforço individual
como instrumento indispensável para se “melhorar de vida”.
Por outro lado, o trabalho individual remete à dimensão social do
mercado de trabalho, apreendida sob a categoria “ter ou não ter empre-
go”, sempre presente de forma muito marcante no discurso dos infor -
QUA DRO 3
QUA DRO 4
Conclusão
as classes populares organizaram sua prática social nas últimas décadas.
A crença no progresso está desaparecendo.
Resta ainda analisar, dentro deste esquema, o lugar e as funções
atribuídas ao Estado. Os poderes públicos aparecem no discurso popu-
lar em dois momentos bastante distintos e de modo bastante diverso.
O primeiro momento, e o mais nítido, está associado ao discurso
sobre o bairro e a cidade. Nesse contexto são mencionados sempre os
poderes locais (basicamente a prefeitura, mas também o governo esta-
dual), como responsáveis pela oferta dos serviços públicos: água, luz,
asfalto, iluminação pública, transporte, escola, posto de saúde, posto
policial. Cabe também ao poder local atrair indústrias para gerar
empregos. Nas cidades menores os detentores do poder local são co-
nhecidos e identificados. Existe também uma percepção definida da
possibilidade de pressão e reivindicação popular. Os mecanismos
conhecidos e aceitos de reivindicação coletiva são o abaixo-assinado e a
concentração de moradores no prédio da prefeitura, ou o contato dire-
to de pessoas ou comissões com o prefeito.
Note-se que esse tipo de ação coletiva, mesmo que não dispense
líderes, organizadores e mediadores, embora tanto possa surgir espon-
taneamente como ser suscitado por grupos políticos organizados de
fora, implica sempre uma confrontação direta da população em seu con-
junto com os detentores dos poderes públicos. Em outras palavras,
admite antes organizadores e porta-vozes do que, propriamente, repre-
sentantes. Trata-se portanto de uma ação política de tipo muito primá-
rio que, confrontando “o povo” de um lado e “as autoridades” de outro,
afirma a exterioridade destas em relação àquele.
O segundo momento no qual o discurso popular se refere ao Esta-
do é aquele em que se menciona uma entidade vaga e mal definida
denominada “gover no”. Este é muito mais nebuloso que os poderes
locais – não tem uma face discernível, embora às vezes se personifique
na figura do presidente da República. A palavra governo refere-se basi-
camente aos poderes públicos federais e, dentre esses, especialmente ao
executivo. As considerações sobre o gover no surgem quando se fala
sobre o emprego e o custo de vida, esperando-se dele que aumente um
e diminua outro. Sua função parece portanto ser concebida, essencial-
mente, como a de controle dos interesses privados na esfera do merca-
do, de modo a coibir a exploração excessiva dos pobres ou “fracos”
pelos ricos e poderosos. Essa concepção de gover no o constitui como
os mecanismos por meio dos quais as classes trabalhadoras podiam con-
ceber uma relação política com o poder central que ficou, dessa forma,
fora do alcance tanto do saber quanto do poder popular. A experiência da
redemocratização do país ainda não foi inteiramente assimilada a ponto
de promover a reformulação das concepções relativas ao “governo”.
Nessa análise, centrada no morador, no bairro e na cidade, omitiu-
se uma relação importante com a sociedade e o gover no que se efetiva
com o sindicato. Há que observar, entretanto, que as considerações sobre
as oportunidades de emprego surgiram espontaneamente nas entrevistas,
mas o mesmo não ocorreu com o movimento sindical. De qualquer
forma, seria importante complementar esta reflexão, em outro momento,
com uma análise mais aprofundada das concepções acerca do sindicato.
O esquema anterior, montado em função da dicotomia vida priva-
da/sociedade, pode ser agora completado com uma nova dimensão: a
do Estado.
QUA DRO 5
Capítulo
O objetivo deste trabalho é chamar a atenção para uma questão que foi
abandonada pela antropologia recente e raramente considerada pela psi-
canálise: o fato de que, apesar da óbvia singularidade do comportamento
humano, envolto como está numa espessa nuvem de símbolos e valores
dentro da qual se move a consciência, o homem ainda é um animal, pro-
duto da evolução biológica, e compartilha com os demais estruturas e
processos básicos sobre os quais e com os quais a cultura é construída.
A comparação entre o homem e os outros animais, em especial
os que nos são evolutivamente mais próximos, é particular mente im-
portante, a meu ver, para estabelecer o contexto dentro do qual pode-
mos colocar de modo mais adequado as especificidades do comporta-
mento humano.
A questão da evolução do homem e dos fundamentos biológicos
da cultura humana constituiu uma preocupação importante da antro-
pologia desde seu nascimento até meados do século , embora a
ausência de uma base sólida de conhecimentos genéticos tenha impedi-
do um tratamento adequado do tema, sobretudo no que diz respeito à
relação entre raça, cultura e evolução. Apesar disso, a contribuição da
antropologia do final desse período foi muito importante para o des-
monte do darwinismo social e das explicações da diversidade cultural
em termos raciais.1
No que tange estruturas geneticamente herdadas, é verdade que
Lévi-Strauss retomou a questão recorrendo à hipótese de um incons-
ciente humano universal, geneticamente deter minado, uma máquina
estruturante responsável pela possibilidade do processo de construção
de sistemas simbólicos, como mitos e estruturas de parentesco. Mas
nesta concepção o inconsciente é vazio, constituído apenas de mecanis-
mos que organizam os mais variáveis conteúdos. É uma capacidade do
cérebro humano, um processo mental que transforma eventos em sím-
bolos organizados em sistemas – a análise decorrente desta postura é
necessariamente for mal, estando mais interessada no desvendamento
dos códigos que per mitem a comunicação entre os homens do que no
substrato emocional que permeia as ações humanas. Trata-se, na verda-
de, de uma antropologia muito especial, que tem sido caracterizada
como excessivamente intelectualista.2
Tanto no estruturalismo lévi-straussiano como fora dele tem pre-
dominado, na teoria antropológica recente, a concepção de que o pro-
cesso evolutivo humano esteve associado a um enfraquecimento ou fle-
xibilização dos instintos de tal monta que é perfeitamente possível, e
mesmo necessário, eliminar quaisquer considerações sobre possíveis
bases instintivas na explicação do comportamento cultural. As orienta-
ções teóricas predominantes têm trabalhado com a concepção básica da
oposição entre natureza e cultura, na qual esta é praticamente reduzida
à dimensão simbólica do comportamento social. Afirma-se de fato que,
nos seres humanos, a evolução da cultura substitui a evolução biológi-
ca, e a natureza humana aparece como praticamente liberta de condicio-
nantes genéticos.
Entretanto, se podemos tentar separar os homens dos demais ani-
mais em função da consciência, do raciocínio, da linguagem e do ins-
trumental simbólico culturalmente construído, as emoções constituem
claramente algo que compartilhamos com eles. É difícil deixar de reco-
nhecer que animais sentem raiva e medo, alegria ou satisfação, ciúmes e
desapontamento, como nós, e desenvolvem relações afetivas com
outros animais, inclusive com seres humanos. As semelhanças compor-
tamentais não se reduzem à dimensão emotiva – mas esta é certamente
aquela na qual elas podem ser observadas da forma mais imediata,
inclusive porque surgem e podem ser comunicadas independentemente
. Na verdade, a obra de Lévi-Strauss contém também alguns pequenos primorosos traba-
lhos sobre a influência emocional, especialmente “A eficácia simbólica” e “O feiticeiro e sua
magia”, além de passagens de O pensamento selvagem, nas quais se salienta o caráter simul-
taneamente intelectual e afetivo da “lógica do concreto” (Lévi-Strauss : -ss.)
raramente operam através dela. Assim, as emoções, bem como a ques-
tão do inconsciente, constituem limites da reflexão antropológica que
os antropólogos têm tentado transpor pelo recurso à psicanálise. O pró-
prio Lévi-Strauss não ficou imune a esse interesse (Lévi-Strauss a
e b). No entanto, a aproximação maior e mais sistemática entre antro-
pologia e psicanálise é mais antiga, e ocorreu nos Estados Unidos nas
décadas de e , com o tema da relação entre personalidade e cultu-
ra, o qual envolveu a estreita colaboração de antropólogos e psicanalis-
tas, e mesmo algumas conversões de um campo para o outro. Mas
mesmo nesses estudos o interesse dos antropólogos ainda estava cen-
trado na flexibilidade do equipamento genético humano e na capaci-
dade da cultura de, por assim dizer, modelar personalidades diferentes
nas diversas sociedades.
Por outro lado, mesmo na psicanálise a questão das emoções e dos
instintos é colocada de forma um tanto paradoxal, pois se ela funda-
menta o desenvolvimento psíquico humano sobre a base instintiva for-
necida pela sexualidade, e se as emoções constituem a matéria-prima do
trabalho clínico, há de fato, na tradição propriamente freudiana, muito
pouco de uma teoria das emoções, que são em grande parte explicadas
como meras decorrências de repressões ou gratificações de pulsões
sexuais. Por outro lado, especialmente no que diz respeito à vida instin-
tiva, as indubitáveis semelhanças com outros animais raramente foram
levadas em consideração, embora pudessem ajudar a esclarecer muitas
questões teóricas relevantes.
Freud, certamente, tinha consciência da importância das biociên-
cias para a psicanálise. É difícil encontrar um outro autor que busque de
forma tão compulsiva quanto ele uma integração teórica e uma base
científica para suas descobertas empíricas no trabalho clínico. Por isso
mesmo, e dado o fato de que ele foi levado a considerar a sexualidade
como uma espécie de força motriz básica da psique humana, não podia
ignorar o problema da conceituação do comportamento instintivo. Ele
aborda a questão no seu célebre artigo “Os instintos e suas vicissitudes”
(cuja primeira versão data de ), e no qual estabelece uma distinção
fundamental entre os instintos sexuais e os do ego. Nesse artigo encon-
tramos um excelente exemplo do rigor intelectual de Freud, quando
reconhece que a ciência de sua época não oferece elementos suficientes
para elucidar plenamente a questão.
Tendo em vista esta posição de Freud, não deixa de ser estranho que os
psicanalistas, tanto quanto os antropólogos, tenham se desinteressado
de acompanhar a intensa produção científica sobre essa questão que
marca o último meio século.
De fato, nesse período, houve um extraordinário desenvolvimento
de outras áreas de conhecimento, que são diretamente relevantes para a
compreensão das bases biológicas do comportamento animal e humano.
Refiro-me às pesquisas mais recentes da psicologia experimental e do
desenvolvimento e, inclusive, da psicologia cognitiva; às descobertas
decorrentes do estudo dos hor mônios e de sua influência nos processos
orgânicos e psíquicos; ao desenvolvimento da neurobiologia e especial-
mente dos estudos do cérebro; aos espantosos progressos na área da
genética molecular e sua influência na renovação da teoria da evolução; à
primatologia e, especialmente, às pesquisas de etologia, em particular no
que diz respeito aos primatas. Parece-me que as demais disciplinas volta-
das para o estudo do comportamento humano e, dentre estas, particular-
mente a psicanálise e a antropologia, não podem continuar confinadas em
seus estreitos limites disciplinares, mas precisam incorporar o resultado
deste recente progresso científico como parte do contexto mais amplo
dentro do qual ocorrem os fenômenos que estudam.
Não se trata, obviamente, de defender um novo determinismo bio-
lógico. Reconhecer semelhanças não implica ignorar diferenças. Mas,
como seres humanos, não nos movemos exclusivamente no universo
rarefeito da razão e dos sistemas simbólicos. Ao contrário, o comporta-
mento humano brota de um espesso caldo emocional que permeia toda
a sua vida social e que, poderíamos argumentar, é responsável tanto
pelas atitudes mais nobres como pelos problemas mais dolorosos
enfrentados cotidianamente nas sociedades humanas.
É por essa razão que, neste artigo, focalizo no problema das emo-
ções a questão geral dos laços genéticos e das semelhanças comporta-
mentais que nos unem às demais espécies. Restringi ainda mais a abor-
dagem, centrando a reflexão nos sentimentos amorosos. Finalmente
limitei a comparação e a reflexão sobre as semelhanças e diferenças
tomando como base os chimpanzés.
A escolha dos chimpanzés não é aleatória, pois eles são, genética e
evolutivamente, nossos parentes mais próximos. Além disso, qualquer
um que assista a documentários sobre esses animais, ou os observe em
jardins zoológicos, não pode deixar de ficar perturbado pela sua seme-
lhança conosco.3 Eles são uma provocação constante à hubris humana
que nos leva a desconsiderar nosso lado animal.
Por outro lado, foi estratégica a escolha dos sentimentos amorosos
como foco de comparação, não só por se tratar de um campo onde as
emoções são particularmente importantes para a vida social, mas também
porque é aquele no qual, na ausência de uma reflexão antropológica,
podemos nos socorrer da psicanálise, para a qual a questão é central.
As emoções
. Para uma abordagem recente desta questão, ver Ekman & Friesen .
ram, e se atribui aos genes algo muito parecido com intenções e interes-
ses. Os genes, de fato, passaram a se assemelhar a indivíduos em com-
petição constante, à semelhança do modelo capitalista das sociedades
atuais. Esta concepção é de tal forma limitada e reducionista (especial-
mente quando aplicada ao homem) que, compreensivelmente, contri-
buiu para justificar a suspeita generalizada das ciências humanas relati-
vamente ao reconhecimento da importância do equipamento genético
na modelagem do comportamento humano. Mas o evolucionismo con-
temporâneo não se reduz a essa corrente.
Se a tradição da psicologia e do evolucionismo biológico não
foram suficientemente utilizadas pelas ciências humanas, o impacto
recente da neurobiologia e da abordagem das emoções que ela introdu-
ziu começa a produzir uma nova inquietação. Prova disso é o grande
sucesso da publicação do belo trabalho de divulgação científica de
Daniel Goleman, Inteligência emocional (). Igualmente significativa
é a publicação em português de dois livros recentes do neurobiólogo
António Damásio: O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano
() e O mistério da consciência: do corpo e das emoções ao reconhecimen-
to de si (). A contribuição central de Damásio consiste em demons-
trar a estreita interdependência entre razão e emoção. Ao mesmo tempo
em que valoriza uma abordagem evolutiva e, portanto, a importância
das semelhanças entre o homem e os demais animais, reconhece que há
muito de especificamente humano na nossa experiência das emoções: é
o modo como se vinculam a idéias, valores, princípios e juízos comple-
xos, isto é, sua manifestação como sentimentos e sua vinculação à cons-
ciência. Também reconhece que o aprendizado e a cultura interferem na
expressão das emoções, reprimem algumas e estimulam outras, e lhes
conferem novos significados. Por isso mesmo, sua obra parece-me par-
ticularmente relevante para psicanalistas e antropólogos.
Emoções podem ser provocadas por estímulos inter nos ou exter nos.
Especialmente no caso de mecanismos exter nos é preciso reconhecer,
mesmo para os animais, especialmente no caso dos mamíferos superio-
res, a existência de uma variação considerável nos tipos de estímulos
que podem induzir uma emoção e na forma da ação que eles desenca-
deiam, a qual é selecionada em função da experiência individual ou
social e, portanto, depende não apenas de condicionantes genéticos,
mas também do aprendizado. A experiência influi nos mecanismos bio-
logicamente pré-ajustados, tanto modelando o que constitui um indutor
para determinadas emoções, como influindo na sua expressão. No caso
dos seres humanos, a variação é muito maior porque a cultura modela
tanto o comportamento decorrente da emoção como o seu conhecimen-
to e reconhecimento. Estamos longe, portanto, de um novo determinis-
mo genético. Mas a base inconsciente e geneticamente transmitida dos
sentimentos não pode ser eliminada; sentimentos e mesmo a consciên-
cia dependem do substrato emocional.
A posição básica de Damásio que nos interessa particular mente
aqui é a de que a
razão não pode ser tão pura como a maioria de nós pensa que é ou gostaria que
fosse, e que emoções e sentimentos podem não ser de todo uns intrusos no bas-
tião da razão, podendo encontrar-se, pelo contrário, enredados em suas teias,
para o melhor e para o pior. É provável que as estratégias da razão humana
não se tenham desenvolvido, quer em termos evolutivos, quer em termos de
cada indivíduo em particular, sem a força orientadora dos mecanismos dos
quais a emoções e sentimentos são expressões notáveis. Além disso, mesmo
depois de as estratégias de raciocínio se estabelecerem durante os anos de
maturação, a atualização efetiva de suas potencialidades depende provavel-
mente, em larga medida, de um exercício continuado da capacidade de sentir
emoções. (Damásio )
As observações acima, referentes às relações entre emoção e razão, cer-
tamente se aplicam, com igual ou maior pertinência, às dimensões sim-
bólicas do comportamento.
Mais importante ainda do que a neurobiologia para uma reaproxi-
mação da antropologia (e talvez da psicanálise) com as ciências biológi-
cas é o desenvolvimento da etologia, especialmente no que concerne às
pesquisas baseadas na observação do comportamento dos primatas em
seu ambiente natural. Estes estudos, aliás, são recentes. Embora a psico-
logia experimental com primatas em geral e chimpanzés em particular
tenha uma história bem mais longa (o trabalho pioneiro de Köhler foi
feito na década de , assim como o de Yerkes),5 as observações de
campo sistemáticas e prolongadas com chimpanzés vivendo em estado
natural praticamente só tiveram início no final da década de . Seus
resultados começaram a se tor nar conhecidos uma década depois.6 A
documentação em vídeo que tem sido divulgada recentemente pela
televisão nos programas sobre vida animal tor nou os chimpanzés bas-
tante conhecidos do público em geral, mas as pesquisas não promove-
ram ainda um trabalho comparativo interdisciplinar sistemático com as
ciências do homem.
No que diz respeito ao comportamento, especialmente ao compor-
tamento emocional, a observação dos animais na natureza por períodos
prolongados, que acompanham a sucessão de gerações, é essencial.
A pesquisa em laboratório fragmenta o comportamento em função do
set experimental. Além disso, trabalha com animais que vivem em cati-
veiro, situação que defor ma enor memente sua vida psíquica. Essa
deformação é particularmente séria no caso de animais sociais como os
chimpanzés, eliminando, como ocorre com freqüência, praticamente
toda a vida grupal na qual o comportamento normalmente se desenvol-
ve. Animais sociais artificialmente confinados apresentam com fre-
qüência, quando comparados aos exemplares vivendo no seu ambiente
natural, comportamentos patológicos no que diz respeito ao seu desen-
volvimento emocional, incluindo impotência, angústia, depressão, pas-
sividade e alheamento. Tem havido, é verdade, um esforço para tornar
. São relevantes, para este trabalho, as observações de Köhler relativas à expressão e comu-
nicação das emoções entre os chimpanzés, especialmente o anexo intitulado “Algumas con-
tribuições para a psicologia dos chimpanzés” (Köhler []). Ver também Yerkes &
Yerkes .
. Para uma súmula dos estudos de campo sobre antropóides, ver Itami .
Antropóides e chimpanzés
. Wallman () apresenta uma excelente análise crítica do conjunto desses trabalhos.
sexual, podem ser detectadas diferenças comportamentais significativas
que incluem atividade sexual mais intensa, menor agressividade, domi-
nância menos marcada por parte dos machos e grupos maiores. Utiliza-
remos neste trabalho, como referência, os chimpanzés “tradicionais”, isto
é, pan troglodytes, sobre os quais a bibliografia é muito maior, e nos refe-
riremos aos bonobos, pan paniscus, de modo secundário.8
Chimpanzés são, como nós, animais sociais, e vivem em grupos
relativamente estáveis de trinta indivíduos em média, que podem variar
de dez até mais de cem, e incluem crianças, jovens e adultos de ambos
os sexos. As relações entre membros de um mesmo grupo são bastante
intensas e, diríamos mesmo, altamente emocionais. Os chimpanzés
estão constantemente se comunicando uns com os outros, através de
vocalizações, posturas corporais, expressões faciais e contato físico
como agressões e carícias. Dos antropóides, são certamente os mais
barulhentos e os mais expressivos. Além disso, são tomados freqüente-
mente por temper tantrums, e isso em qualquer idade e sexo, o que os faz
parecerem crianças mal-educadas.
Os grupos não são amorfos.9 Há uma clara estrutura de domina-
ção dos machos sobre as fêmeas, e os machos imaturos são dominados
pelos adultos de ambos os sexos. Um dos machos adultos, denominado
na literatura “macho alfa”, lidera o grupo. A hierarquia entre os
machos não é nem permanente e nem pacífica – boa parte da vida social
consiste em reafir mar ou contestar posições de dominação, através de
demonstrações de agressividade e submissão. Há também uma hierar-
quia entre as fêmeas, mas menos clara e menos competitiva.
Além disso, a organização dos grupos inclui um complexo proces-
so de fusão e fissão, isto é, de subdivisão e reunião associadas à procura
por alimentos, no qual preferências afetivas e relações de parentesco
interferem de modo pronunciado. Aliás, a própria competição por posi-
ções na hierarquia envolve aliança e coalizões igualmente marcadas por
relações interpessoais preferenciais.10
. Para um conhecimento mais detalhado dos bonobos, além das coletâneas citadas a seguir,
é particularmente informativo o livro de Waal, Bonobo, the Forgotten Ape ().
. Utilizamos o conceito de grupo e não de sociedade para designar um conjunto de indiví-
duos que se reconhecem mutuamente e se contrapõem a outros indivíduos ou agrupamen-
tos da mesma espécie. A identificação recíproca dos membros do grupo é a referência cen-
tral do conceito.
. Além dos trabalhos de campo, é particularmente importante o trabalho de Waal, com a
colônia do zoológico de Arnhem, Chimpanzee Politics (), e de Dunbar (: ).
Sexualidade e promiscuidade
. Para infor mações mais detalhadas sobre estes antropóides, consultar especialmente as
coletâneas publicadas por McGrew, Marchant & Nishida e DeVore . Para os gori-
las, ver Schaller ; Fossey ; Watts ; Tutin . Sobre os chimpanzés, a biblio-
grafia final contém as referências aos trabalhos utilizados, que incluem Goodall e ;
Hashimoto et alii ; Köhler ; Mason ; McGrew et alii ; Magnew ; Rey-
nolds & Reynolds ; Waal e ; Wrangham .
relações sexuais. Fora desses períodos, as relações entre machos e fêmeas
são assexuadas, embora as diferenças de gênero permaneçam.
Em muitas espécies animais, esses ciclos costumam ser anuais e
regulados pelos períodos de maior abundância de alimentos. Quando
isto ocorre, todas as fêmeas entram no cio mais ou menos ao mesmo
tempo, e a atividade sexual de machos e fêmeas fica restrita a um perío-
do muito breve do ano. Não é isso o que ocorre com os chimpanzés e
com diversos outros primatas. Não existe uma sazonalidade coletiva
nos períodos de cio das fêmeas, que apresentam ciclos individuais de
fertilidade, interrompidos pela gravidez e amamentação. Isso significa
que, embora as fêmeas individuais estejam freqüentemente indisponí-
veis para relações sexuais, a existência de múltiplas fêmeas num mesmo
bando garante que haja, com freqüência, alguma no cio, o que oferece
para os machos diversas oportunidades de relacionamento sexual du-
rante todo o ano. O cio das fêmeas é marcado por um inchaço muito
visível da parte externa dos órgãos sexuais, que adquirem um colorido
rosa intenso. Quanto maior o inchaço, que é mais pronunciado nas
fêmeas plenamente adultas e férteis, maior a desejabilidade das fêmeas
e maior o interesse dos machos por elas.
O tipo de periodização do cio das fêmeas e os padrões de acesso
dos machos às fêmeas no cio constituem, para os animais sociais, um ele-
mento fundamental de organização dos grupos. Uma forte tendência ao
monopólio de fêmeas por parte de um macho dominante impede a exis-
tência de grupos sociais amplos. Utilizando de forma metafórica concei-
tos que se aplicam mais propriamente a seres humanos, diríamos que
este monopólio impede a existência de “sociedades” e restringe o grupo
a “famílias”. No caso dos gibões, por exemplo, entre os quais os grupos
abrangem apenas um par adulto e sua prole imatura, a estrutura é seme-
lhante a uma “família monogâmica”. Neste tipo de organização, a opor-
tunidade de atividade sexual é muito restrita, tanto para machos como
para fêmeas, pois é interrompida pelos longos períodos de gravidez e
amamentação. Em muitas espécies de mamíferos, encontramos um outro
tipo de organização que é freqüente também entre os gorilas: a formada
por um único macho adulto dominante e diversas fêmeas, com as crias
sub-adultas. Neste caso temos grupos maiores, semelhantes a uma única
“família poligínica”, ocorrendo então oportunidades mais freqüentes de
relações sexuais para os machos. A constituição de grupos grandes ou
“sociedades” propriamente ditas, com a coexistência de machos e fêmeas
observados todo o tempo, oferecem infor mações importantes, mesmo
quando se considera que, nesta situação, estando os animais liberados
das tarefas de procurar alimento e de se defender de predadores, a
sexualidade provavelmente é intensificada.
As tabelas apresentadas por Waal, decorrentes de quinze anos de
observações sistemáticas e controladas na colônia do zoológico de
Arnhem (na qual se procurou uma aproximação das condições da vida
selvagem), indicam que durante o período do cio as fêmeas copulam
uma média de seis vezes por dia. As fêmeas adolescentes, mesmo que
ainda não férteis, demonstram um entusiasmo copulativo muito maior:
uma média de dez vezes por dia, o que está associado ao fato de elas fre-
qüentemente tomarem a iniciativa e se oferecerem aos machos. As fê-
meas adultas, ao contrário, raramente tomam a iniciativa, que nestes
casos é predominantemente masculina (Waal [] : ).
A cópula, propriamente, é muito breve e dura geralmente quinze
segundos, estendendo-se quando muito a um minuto. Pode, entretanto,
ser repetida uma ou duas vezes após breves intervalos. As fêmeas, so-
bretudo as jovens, às vezes gritam no momento em que, aparentemente,
atingem o orgasmo. Os machos se limitam a emitir grunhidos rítmicos.
Após a cópula, os parceiros se separam sem maiores cerimônias.
Não há, entretanto, como duvidar do grande interesse que os
chimpanzés manifestam pelo sexo e de sua importância para a dinâmica
da constituição dos grupos.
Uma observação de Fossey sobre os gorilas se aplica integralmen-
te aos chimpanzés:
a presença de uma fêmea no cio, seja uma adolescente ou uma adulta repro-
dutivamente capaz, incita uma grande quantidade de atividade sexual simu-
lada entre outros membros do grupo, como o ato de montar entre indivíduos do
mesmo sexo ou entre animais de diferentes grupos etários. A cópula simulada
unissexual ocorre duas vezes mais entre machos do que entre fêmeas, enquan-
to as com discrepância etária ocor rem mais freqüentemente quando machos
adultos montam fêmeas imaturas. (Fossey :)
. Para o conceito de pulsão utilizamos além do próprio Freud, Mezan : -ss e
Hanns .
aliás, relações homossexuais entre fêmeas também são comuns: fêmeas
no cio se abraçam e esfregam horizontalmente os genitais, parecendo
obter grande satisfação com este ato. Também entre os bonobos, conta-
tos genitais entre machos são freqüentes, como fricção mútua do pênis,
mas parece ser antes uma atividade de apaziguamento e solidariedade do
que uma forma de obter satisfação sexual, porque são muito breves, não
produzem ejaculação e ocorrem em situações de tensão grupal. Aliás, a
forma mais comum de contato genital entre os machos consiste em esfre-
garem rapidamente os traseiros, sem contato entre os pênis (Waal ).
De um modo ou de outro, a observação do comportamento sexual
dos chimpanzés parece não deixar dúvida de que, entre eles, o sexo é
uma atividade altamente emocional, um interesse constante que desem-
penha uma importante função de relacionamento, promovendo-o e
expressando outros tipos de relações afetivas. A apresentação do trasei-
ro, por exemplo, que é característica das fêmeas no cio quando aceitam
ou convidam um macho para a atividade sexual, é usada também por
machos e fêmeas, indistintamente, para demonstrar submissão perante
um macho dominante. Sexo, portanto (ou, mais precisamente, contatos
genitais), não se restringe a uma atividade de procriação, nem envolve
necessariamente a cópula (Hashimoto & Furuichi ).
Um outro dado importante, sem dúvida alguma, é a defor mação
dos instintos sexuais que ocorre em cativeiro e, mais especialmente, nas
situações em que os animais são isolados e privados dos estímulos for-
necidos pela vida grupal. Nestas circunstâncias, não só a masturbação se
torna habitual e mesmo compulsiva, como se manifestam também ou-
tras anomalias como impotência, frigidez, estupro, infanticídio ou rejei-
ção das crias pela mãe. Por isso mesmo, a reprodução em cativeiro é
difícil e exige condições especiais de manejo ou interferência humana
direta. Chimpanzés em cativeiro, como é o caso de muitos outros ani-
mais, parecem de fato ter um comportamento sexual mais parecido com
os dos seres humanos em ter mos de problemas sexuais e reprodutivos
do que aquele que é característico dos animais selvagens, o que parece
comprovar que somos animais auto-domesticados. Aliás, Erich Fromm
faz uma indicação interessante na mesma linha quando observa que as
condições de vida do homem assemelham-se mais às de animais em jar-
dim zoológico do que às de animais vivendo em seu ambiente natural
(Fromm : ). Isto comprova que o instinto sexual é flexível em
termos de sua manifestação, e depende da experiência social tanto entre
sexuais durante um período muito prolongado, o que provavelmente
criaria tensões dificilmente suportáveis para o parceiro masculino e para
o grupo no caso de restrição da sexualidade a parceiros per manentes;
quando outras fêmeas entrassem no cio a parceria estável dificilmente
seria mantida a não ser com a poliginia (que cria outras tensões, excluin-
do inúmeros homens do acesso regular às fêmeas).
Por outro lado, o resultado desta autonomia da sexualidade em
relação aos ciclos reprodutivos é um espaçamento menor entre as ges-
tações, o que parece só ser possível sustentar dentro de grupos mais
organizados, com for mas mais complexas de cooperação econômica e
social. Embora as mulheres sejam fisicamente capazes de ter um filho
por ano, não poderiam arcar com a carga de cuidados envolvidos na
mater nidade se, como as mães chimpanzés, tivessem que prover sozi-
nhas às suas próprias necessidades e às das crias. As sociedades huma-
nas desenvolveram, é verdade, mecanismos culturais para aumentar o
espaçamento das gestações, através de tabus e do infanticídio delibera-
do ou decorrente de abandono.13 Mas, mesmo assim, a taxa reprodutiva
humana tende a ser superior à dos chimpanzés, o que deve estar relacio-
nado à extraordinária expansão da nossa espécie pelo mundo todo, isto
é, ao nosso sucesso evolutivo.
Deve-se ainda considerar que o casamento entre os seres humanos
está inextricavelmente associado a dois outros fenômenos, também tipi-
camente humanos: a paternidade e o tabu do incesto, que convém estu-
dar com maiores detalhes.
. Para uma análise detalhada dessas práticas, ver Hrdy .
. Esta prática é comum também entre outras espécies, como leões e outros primatas.
Schaller e seu companheiro tiveram finalmente que se afastar, porque
estava ficando tarde e tinham que retor nar ao acampamento. Surpre-
so com o fato de os gorilas não terem se afastado como vinham fazen-
do então, Schaller especula: “Talvez não tivessem querido se afastar
por causa do nascimento iminente ou recente do filhote” (Schaller
: -).15
Apesar do interesse (e às vezes do carinho) demonstrado pelos
machos em relação aos recém-nascidos, não tendo pais, os chimpanzés
estão certamente livres do complexo de Édipo e do tabu do incesto.
Apesar disso, surpreendentemente, relações incestuosas são raras, espe-
cialmente porque (ao contrário de muitas outras espécies de primatas
nas quais os adolescentes de sexo masculino tendem a se dispersar)
entre os chimpanzés são as fêmeas adolescentes que tendem a esponta-
neamente buscar outros grupos logo após a menarca. Este afastamento
costuma se dar no período do cio, no qual elas se tornam atraentes para
machos de outros grupos, que por sua vez facilitam sua introdução no
novo bando, protegendo-as da agressividade das outras fêmeas. Verifi-
ca-se, portanto, a existência de algo parecido com uma “troca de mulhe-
res” espontânea (ou natural). Essa tendência natural torna raro tanto o
incesto entre pai e filha quanto entre irmão e irmã. Há, entretanto, casos
em que as fêmeas per manecem no grupo, especialmente quando são
filhas de mães dominantes. As cuidadosas observações de Jane Goodall
indicam, entretanto, que mesmo nesses casos as relações sexuais entre
irmãos são raras. Parece que a convivência estreita entre irmãos, que
analisaremos mais tarde, amortece a atração sexual. As observações
relativas a incesto entre pai e filha são bem menos conclusivas, inclusi-
ve porque, na situação de promiscuidade e sem a introdução de testes
genéticos sistemáticos para a população do grupo, nem os pesquisadores
nem os chimpanzés podem saber ao certo quem é o genitor. Podemos
inferir que, nos casos relativamente raros nos quais a fêmea adolescente
per manece no grupo, o incesto com o pai pode ocorrer, especialmente
quando o genitor era e per manece sendo o macho dominante. No
entanto esta condição não deve ser muito freqüente, porque a posição
de dominância raramente dura os sete ou oito anos necessários para que
uma fêmea inicie o seu período reprodutivo. Além disso, fêmeas adoles-
. Ver também Schaller , onde também se encontra um excelente levantamento sobre a
história dos estudos sobre gorilas, anteriores à década de .
Mães e filhos
da locomoção. Em primeiro lugar, é importante considerar as observa-
ções experimentais sobre os reflexos dos neonatos. Mason observa que
os reflexos primários ou primitivos que ocorrem nos recém-nascidos
obedecem a um padrão muito semelhante entre macacos, antropóides e
seres humanos. Na revisão do material disponível na bibliografia sobre
estes diferentes primatas, Mason afirma:
. Experiências com neonatos rhesus, chimpanzés e humanos indicam, entretanto, um declí-
nio desta capacidade entre estes três primatas. Assim, a capacidade inicial de agarrar-se sem
suporte é de cerca de trinta minutos para neonatos rhesus, cinco para chimpanzés e dois para
seres humanos.
. Para uma análise da extensa bibliografia a respeito, ver Bowlby e Hrdy .
em seguida para as “mães” felpudas, às quais permaneciam agarrados o
resto do tempo.
Resumindo e analisando o resultado destes trabalhos, a antropóloga
e etóloga Suzan Hrdy afirma (talvez com certo exagero), que “abraçar-se
a uma mãe substituta tem tudo a ver com esta noção de segurança, e
pouco a ver com a satisfação da fome” (Hrdy : ).
De uma forma ou de outra, é certamente muito importante o fato
de que o contato com a mãe pareça criar os primeiros laços afetivos e
constituir a base sobre a qual se constroem os sentimentos de seguran-
ça física e emocional. Além disso, mães chimpanzés são uma fonte cons-
tante de proteção contra qualquer possível perigo externo e de estímu-
los sensoriais-motores. As mães estão sempre manipulando os filhotes:
limpando-os, catando-os, abraçando-os, acariciando-os com os lábios e
brincando com eles, balançando-os no ar e fazendo-lhes cócegas. Em
suma, se parecem muito com mães humanas.
No desenvolvimento da psicanálise, a teoria sobre a natureza das
experiências mais primitivas dos bebês humanos tomou inicialmente,
com Freud, um rumo muito diferente, dificultando para os analistas
posteriores a incorporação destas observações relativas aos primatas em
geral e aos chimpanzés em particular.
No ensaio sobre sexualidade infantil que faz parte dos Três ensaios
sobre a sexualidade, Freud toma um caminho muito peculiar: ele consi-
dera o ato de sugar como manifestação mais primitiva da sexualidade,
separando-o do “instinto” da alimentação, isto é, do ato de mamar.
O protótipo adotado é o ato de sugar o polegar. Crianças de fato sugam
partes do seu próprio corpo além do seio mater no, principalmente o
polegar, mas é difícil separar esta atividade do complexo de respostas
geneticamente estabelecidas que fazem parte do equipamento de sobre-
vivência das crianças, que inclui a amamentação. Filhotes de chimpan-
zés e outros primatas também desenvolvem o hábito de chupar o dedo,
mas este comportamento, freqüente em situação de cativeiro e quando
os filhotes não estão em contínua associação com as mães, é raro em
animais vivendo em condições naturais a não ser durante o desmame,
quando, além de seus próprios dedos e mãos, eles sugam também outras
áreas do corpo materno, como as axilas.
É verdade que, mesmo para Freud, seria difícil caracterizar a ali-
mentação como uma manifestação da sexualidade. De fato, Freud distin-
guiu inicialmente duas classes de instintos ou pulsões: erotismo e auto-
dificilmente se enquadrariam na concepção freudiana de auto-erotismo,
que perduraria até a fase edípica. O reexame da hipótese do auto-erotis-
mo levaria a rever também a questão do narcisismo primário e o concei-
to de relações analíticas.
Melanie Klein, a partir de algumas colocações do próprio Freud,
deu um grande passo na análise das experiências e emoções infantis
com a atenção que dedicou ao seio e à amamentação como base para o
estabelecimento de relações primitivas com objetos externos.
Embora reconheça ocasionalmente outros aspectos da relação
mãe-bebê, como o contato corporal, a teoria kleiniana ficou de fato cen-
trada na amamentação. Embora posterior mente o conceito de “seio”
tenha se ampliado, a própria preservação deste termo como conceito
básico cria dificuldades semânticas para a compreensão mais ampla da
relação mãe-bebê. A excessiva atenção à amamentação infantil e ao seio
materno parece reduzir o psiquismo ou pelo menos o erotismo infantil
à oralidade.19
Psicanalistas britânicos e húngaros, posterior mente, ampliaram a
contribuição de Melanie Klein e reviram de forma mais profunda o
desenvolvimento infantil nas fases pré-genitais (oral e anal). A relação
de objeto passa definitivamente a ter início nas fases pré-edípicas, e
envolve as múltiplas formas de contato com a mãe.
De acordo com esta orientação, é muito significativa a formulação,
por Winnicott, do conceito de holding (que pode significar abraço ou
sustentação) que, como na linguagem comum, tem uma dupla referên-
cia, física e psicológica, e engloba a multiplicidade dos aspectos presen-
tes na relação mãe-bebê (Winnicott [] : -).
Outro autor particular mente relevante é Michael Balint, que já
citamos anteriormente em relação às críticas à concepção freudiana de
erotismo infantil. A relevância da obra de Balint para este nosso estudo
reside no fato de que sua teoria pode ser facilmente utilizada numa
abordagem comparativa entre homens e primatas, explicitando tanto as
semelhanças como as diferenças entre uns e outros. Na revisão que efe-
tua da teoria psicanalítica referente às diferentes fases do desenvol-
vimento sexual, Balint distingue as áreas anteriores ao complexo de
Édipo, que denomina “área da falha básica”, como sendo “caracterizada
pelo número dois, significando que nela estão envolvidas duas e apenas
. Das muitas outras experiências, a maior parte está ligada a tentativas de ensinar antropói-
des a falar. Para um resumo crítico dessas experiências, ver Wallman e Dunbar .
É semelhante ao conceito de holding, criado por Winnicott,21 e se apro-
xima do “amor primário” proposto por Balint.
Partindo da relação mãe-bebê, a elaboração do conceito de attach-
ment efetuada por Bowlby praticamente cobre toda a área que estamos
analisando com o termo “amor”, e se encaminha na mesma direção.
Entre as características do attachment (relação de ligação), Bowlby inclui:
a especificidade, isto é, o fato de o comportamento de ligação ser dirigido
para indivíduos específicos; a duração, isto é, o fato de a ligação persistir
por grande parte do ciclo vital, embora possa ser atenuada e eventual-
mente substituída por outras. Para as finalidades deste trabalho, no
entanto, a característica mais importante é o envolvimento emocional:
A análise da relação entre mães e filhos levanta uma outra questão bem
menos discutida na literatura: trata-se da existência de um “instinto
materno”, que parece ser a contrapartida necessária da dependência dos
filhotes. Se as crias não sobrevivem sem mães, é necessário que estas
estejam geneticamente programadas para suprir os cuidados dos quais
os filhotes dependem. É impossível negar que esta programação esteja
presente nos mamíferos de forma geral.
Entretanto, no caso dos seres humanos, se a palavra “instinto” é
aceita sem problemas no que se refere à sexualidade, ela tem sido muito
mais contestada no caso da mater nidade. O movimento feminista tem
manifestado especial hostilidade ao conceito, que é interpretado como
uma imposição masculina no sentido de naturalizar indevidamente a
posição de subordinação das mulheres. Aliás, no que diz respeito aos
antigos evolucionistas, a hostilidade é plenamente justificada, pois
tendo definido a “natureza feminina” pela procriação, concluíram que,
por esta razão, as mulheres não possuíam as faculdades mentais mais
elevadas, as quais estariam restritas ao sexo masculino.
Mas combater os preconceitos machistas dos antropólogos evolu-
cionistas não significa ignorar que a maternidade tem uma longa histó-
ria evolutiva e assume, entre os mamíferos, particular relevância. Isto
ocorre porque, na reprodução entre os mamíferos, como vimos, não só
a cria nasce imatura e depende de cuidados constantes da parte de um
adulto, mas também estes cuidados envolvem o aleitamento e, portanto,
implicam uma relação particularmente estreita com a mãe. A dedicação
da mãe à prole, essencial à sobrevivência das crias, deve constituir uma
característica genética complementar àquelas que marcam as necessida-
des e o comportamento dos bebês, envolvendo inclusive profundas
modificações do equilíbrio hor monal que se desencadeiam durante a
gestação e o parto e se fortalecem no próprio ato da amamentação. Estas
transformações hormonais também estão presentes na espécie humana.
Não há nenhuma razão para supor que a evolução humana promo-
vesse a diminuição deste “instinto”, pois ele é tão essencial à sobrevi-
vência da nossa espécie quanto no caso dos demais mamíferos. No que
diz respeito à amamentação, convém lembrar que fór mulas seguras de
aleitamento artificial datam de apenas um século (o que é menos que um
segundo na história evolutiva) e, para a quase totalidade da humanidade,
a privação do leite materno sempre significou altíssimos índices de mor-
talidade infantil. Nas sociedades humanas, a mãe pode ser substituída
por uma ama-de-leite, prática relativamente restrita aos casos de morte
da mãe, de insuficiência na produção de leite ou, após o início da civili-
zação, como prática habitual nas classes dominantes. Mesmo assim, até
o século este procedimento tendeu a ser emergencial ou confinado às
classes abastadas, e nunca generalizado para a humanidade no seu con-
junto. Mesmo hoje, na grande maioria da humanidade que habita os
países subdesenvolvidos, o aleitamento materno continua a ser essencial
para a sobrevivência dos filhos. Por outro lado, como já vimos, a rela-
ção de attachment entre a mãe e a criança, em seus múltiplos aspectos, é
essencial não só ao desenvolvimento físico mas também mental e emo-
cional dos bebês.
Por isso mesmo, parece-me estranho que as disciplinas analíticas e
a antropologia tenham dedicado muito pouca atenção às implicações da
possível existência de uma pulsão ou instinto mater no. Não que a mãe
tenha sido desconsiderada. A dependência não só física mas afetiva do
bebê em relação à mãe é plenamente reconhecida como fundante do de-
senvolvimento psíquico humano, como vimos anteriormente. Mas, tanto
na elaboração freudiana do complexo de Édipo como nos conceitos jun-
guianos de complexo e de arquétipo maternos, o fato psicológico funda-
mental é a experiência da criança. O que me parece negligenciado é a
importância que a manifestação do instinto mater no assume como ele-
mento fundamental no desenvolvimento da psique feminina ou da femi-
nilidade. Na abordagem junguiana, o conceito do arquétipo mater no
que, como todos os arquétipos, é pensado como estando baseado em
estruturas psíquicas hereditárias, é difícil de ser compreendido se não
estiver associado a pulsões mater nas inatas. Dessa perspectiva, o com-
plexo ou arquétipo deveria ser pensado como resultante da confluência
entre a necessidade infantil de cuidados maternos e a pulsão ou “instin-
to materno” que se concretiza na gestação e na relação com a prole.
Novamente precisamos considerar a contribuição, na psicanálise,
de Winnicott, com o conceito de “mãe suficientemente boa”23 e a ênfase
na totalidade mãe-bebê que caracteriza a fase inicial do desenvolvimento
. O conceito de “mãe suficientemente boa” tem uma dupla conotação: é essencial ao bebê
que a mãe seja suficientemente boa, mas não é necessário (e é mesmo indesejável) que seja
boa demais.
. Aliás, o infanticídio é uma ocorrência freqüente entre animais, e não só mamíferos. Para
uma análise detalhada da questão do infanticídio e do abandono, assim como sobre o aleita-
mento na espécie humana, consultar Hrdy , especialmente os capítulos , e .
inclusive brincam com eles, numa atitude que chamei de pater nidade
difusa (Mason : ).
Há ainda uma outra observação que deve ser feita em relação a um
possível instinto mater no, que talvez explique a raridade de relações
incestuosas: é a separação, tão clara nos mamíferos, entre a pulsão
sexual e a mater nal. Em condições naturais, épocas de acasalamento e
de cuidado com os filhotes estão claramente separadas no tempo: elas se
sucedem mas não se misturam.
A gravidez, o parto, o aleitamento e os cuidados com a prole impli-
cam a interrupção da sexualidade feminina. Embora entre os chimpan-
zés, como indicamos, as fêmeas possam retomar o ciclo de receptividade
sexual antes do final do aleitamento, elas não o fazem antes de três anos
(em média) após do parto; a fertilidade só é restabelecida, como vimos,
depois de cerca de quatro a cinco anos após o parto, coincidindo com o
desmame. As fêmeas experimentam assim prolongados períodos de sus-
pensão do interesse e da atividade sexual durante pelo menos parte da
gestação, e durante todo o período crucial de três a quatro anos em que
estão envolvidas com o aleitamento e o cuidado com bebês.
Numa interpretação freudiana, seríamos levados a admitir que a
sexualidade das fêmeas com crias em aleitamento se dirige para os
bebês. A hipótese alter nativa é a de que, logo de início, a relação de
attachment entre a fêmea e a cria se estabelece independentemente da
sexualidade, e mesmo em substituição a ela.
No caso dos seres humanos, como já observamos, a independência
das atividades sexuais em relação às injunções dos períodos de fertilida-
de, gravidez e aleitamento parece constituir uma adaptação ao desen-
volvimento de parcerias sexuais, econômicas e sociais per manentes
entre homens e mulheres através do casamento.
Consangüinidade
canálise certamente não ignorou este fenômeno, mas talvez não tenha
prestado suficiente atenção a ele e à importância crucial da relação entre
siblings, como decorrente da criação de relações triádicas potencialmen-
te conflitivas. A antropologia, por outro lado, mostra como as relações
entre siblings recebem elaborações culturais extremamente complexas.
Embora essas elaborações sejam fundamentais nas teorias do parentes-
co, seu significado emocional não tem sido muito considerado pelos
antropólogos. Mas aqui também podemos nos perguntar se não estamos
lidando com elaborações simbólicas de um padrão “natural”, e não com
uma criação inteiramente autônoma da cultura.
Para concluir este ensaio, que já está um tanto longo, precisamos ainda
voltar a examinar a questão da sociabilidade.
Afir mar que o homem é um animal social é, para todos nós, um
truísmo. Para os antropólogos, a obviedade da questão reside no fato de
que o homem, tal como o conhecemos, não sobrevive sem a cultura, a
qual exige a vida social. Dessa forma, as indagações antropológicas
raramente se perguntaram sobre as origens da sociabilidade, mas se
concentraram nas origens e na evolução do comportamento cultural
que nos distingue dos demais animais. Mas, se não podemos imaginar o
surgimento da cultura sem a existência prévia de alguma forma de vida
coletiva, parece-me interessante indagar quais os fundamentos da socia-
bilidade dos grupos proto-humanos, dos quais descendemos e os quais
antecedem a evolução cultural.
Não somos, certamente, os únicos mamíferos sociais. Os evolucio-
nistas têm enfatizado o fato de que a emergência da vida social está
associada à sua importância como mecanismo de proteção contra pre-
dadores. Mas a vida em grupo não emerge esporadicamente na nature-
za como decorrência de um cálculo de custo-benefício que leve alguns
animais de uma espécie a se associarem espontaneamente e outros não.
A vida em grupo aparece sempre como característica de uma espécie
em seu conjunto, e é própria de algumas e não de outras. Trata-se por-
tanto de um padrão geneticamente estabelecido – as espécies sociais são
geneticamente programadas para a vida em grupo, e devemos então nos
perguntar em que medida este tipo de programação continua atuante no
personalidade do chimpanzé que parece constituir uma das bases do
comportamento social: é o intenso interesse e curiosidade que demons-
tram em relação uns aos outros, estando per manentemente atentos a
quem está fazendo o que, onde e com quem. Nisto, diz ele, são extrema-
mente semelhantes a nós. Nas pesquisas que realizou com seus alunos
sobre o que acontece nas reuniões sociais em bares, restaurantes, festas
e inclusive reuniões departamentais, chegou à conclusão de que mais de
dois terços das conversas são dedicados à discussão de sentimentos pes-
soais e a “quem está fazendo o que com quem”. Soma-se a isto o fato de
que a grande maioria das produções culturais escritas e dos programas
de rádio e televisão (e certamente os de maior público) está voltada para
a vida dos outros, sejam os personagens reais ou fictícios. A sede das
pessoas pelos detalhes da vida particular de indivíduos famosos é insa-
ciável. Os chimpanzés, que não podem falar sobre os outros, têm que se
contentar com observações de primeira mão.
Esse tipo de observação do comportamento alheio por parte dos
chimpanzés está longe de ser objetivo e desinteressado, mas se apóia
sobre um permanente fundo emotivo que envolve desde mera curiosi-
dade passando por cobiça, ciúme, medo, desconfiança, prepotência,
submissão, cautela, alegria, prazer e expectativa de ajuda, chegando à
solidariedade desinteressada. O interesse pelo que os outros estão fa-
zendo baliza um constante ajustamento do comportamento de uns em
relação aos outros, e implica complexos processos mentais que envol-
vem a previsão da reação dos parceiros ao comportamento do sujeito,
isto é, a autoconsciência, a capacidade de identificação com o outro e a
memória de relações passadas.
As estratégias de acasalamento e a formação de coalizões na dispu-
ta pelo poder constituem os melhores exemplos dessa complexidade, a
qual inclui a capacidade de disfarçar as próprias intenções. E esta capa-
cidade não é demonstrada apenas em relação a outros chimpanzés, mas
inclui os próprios seres humanos que convivem com eles, como atesta o
enorme anedotário dos primatólogos.
Uma experiência comum para comprovar esta esperteza dos chim-
panzés consiste no pesquisador esconder uma fruta de tal modo que
apenas um dos membros de um grupo, confinado em outro lugar, possa
observá-lo. Quando todos os chimpanzés são soltos no terreiro onde
está a fruta, aquele que detém a infor mação disfarça e não demonstra
nenhum interesse pelo local onde o cobiçado prêmio está escondido.
procurar a companhia umas das outras, o que promove a for mação de
grupos de brincadeira. Pequenos chimpanzés costumam brincar em gru-
pos durante quatro a cinco horas por dia. As brincadeiras envolvem
muito contato físico e incluem exploração do ambiente, lutas e persegui-
ções acrobáticas nas árvores. Como acontece com as crianças humanas, a
companhia de parceiros parece estimular aventuras mais ousadas. Além
disso, como vimos, adolescentes e mesmo adultos também brincam com
filhotes, especialmente se forem filhos de sua mãe. Adolescentes também
brincam uns com os outros e formam grupos de convivência.
A sociabilidade entre os chimpanzés não é, porém, indiscriminada.
Chimpanzés, especialmente fêmeas, mantêm relações preferenciais de
longa duração com indivíduos específicos, procurando a companhia do
parceiro. Creio que não constitui um antropomorfismo afir mar que
chimpanzés desenvolvem amizades. Esse fenômeno está documentado
em praticamente todas as observações de campo e nas realizadas em
colônias artificialmente criadas em cativeiro.
Essas relações de amizade se exteriorizam numa convivência mais
freqüente e como apoio contra agressões por parte de outros membros
do grupo ou em caso de perigo exter no, desempenhando um papel
fundamental nas coalizões que são tão importantes nas disputas por
posições na hierarquia. Mesmo que um chimpanzé não socorra um com-
panheiro que esteja, por exemplo, sendo atacado por um macho domi-
nante (o medo do macho é maior do que a solidariedade), nem por isso
a solidariedade deixa de se manifestar através de grande desassossego e
gritos de protesto. Assim que o ataque termina, ele se aproxima da víti-
ma para confortá-la.
A teoria do attachment de Bowlby, à qual nos referimos anterior -
mente, parece ser muito adequada para explicar os vínculos interindivi-
duais que os chimpanzés estabelecem entre si. De fato os chimpanzés,
como os seres humanos, parecem estar geneticamente equipados para
desenvolver este tipo de relação afetiva.
Os vínculos afetivos, como as demais relações, se apóiam sobre um
complexo sistema de comunicação. Em primeiro lugar, há que indicar a
importância das vocalizações, que constituem um modo fundamental de
comunicação. Chimpanzés, como a grande maioria dos primatas sociais,
são extremamente barulhentos, e os diferentes tipos de gritos e grunhi-
dos são capazes de expressar mensagens diferenciais: perigo e pedidos de
socorro, alegria, raiva, queixas, solicitações e solidariedade. Igualmente
número , que mostra um homem agachado e uma mulher ajoelhada
atrás dele com as mãos na sua cabeça, com a observação de que o des-
piolhamento constitui uma das únicas manifestações públicas de cari-
nho permitidas entre marido e mulher.
O cafuné tem funções higiênicas, pois parece essencial para a
manutenção das pelagens. Mas a motivação não é, obviamente, uma
preocupação com a higiene. Ela envolve, de fato, ao que se pode de-
preender, um intenso prazer corporal tranqüilizante.
Robin Dunbar, que trabalhou entre os babuínos, parece ter tido
uma experiência pessoal de uma sessão de cafuné desse tipo. Diz ele:
Conclusão
Uma noite, quando chovia a cântaros, ouvi dois animais, que eram mantidos
isolados num cercado especial, reclamando amargamente. Corri até lá e des-
cobri que o tratador os havia deixado ao relento, tendo quebrado a chave do
abrigo onde podiam se esconder da chuva. Forcei a fechadura e consegui abrir
a porta, ficando de lado para que os chimpanzés pudessem correr rapidamente
para seu abrigo quente e seco. Mas, embora a chuva fria escorresse de todos os
lados sobre os corpos trêmulos de frio dos chimpanzés, embora eles tivessem
demonstrado a maior infelicidade e impaciência e eu próprio permanecesse no
meio da chuva pesada, antes de cor rer para o abrigo eles se viraram e me
abraçaram, um em torno da cintura, outro ao redor do joelho, numa alegria
frenética. Apenas depois disso é que mergulharam na palha seca e quente do
abrigo. (Köhler []: )
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São Paulo, .
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Paulo: estudos de geografia urbana, v. : A evolução urbana. São Paulo: Cia.
Editora Nacional, .
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––. “Correntes de migração interna”, ano , n. , .
––. “Migrações internas – São Paulo”, ano , n. , .
––. “Migrações internas no período intercensitário”, ano , n. . [] .
Documentos com que o exmo. sr. dr. Antônio Roberto de Almeida, vice-presidente da
província de São Paulo, instruiu o relatório da abertura da Assembléia Legislativa
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Ensaios de um quadro demonstrativo do desmembramento dos municípios. São Paulo:
Departamento Estadual de Estatística, .
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como diretora da Coordenadoria de Aperfeiçoamento do Pessoal de
Ensino Superior [], depois como secretária do Ensino Superior,
entre e . No início do governo Fernando Henrique Cardoso
voltou ao Ministério como secretária de Política Educacional, entre
e , e, logo depois, foi indicada para a Câmara de Ensino Supe-
rior do Conselho Nacional de Educação (-).
Embora professora aposentada, Eunice Ribeiro Durham continua
a dar aulas na graduação e pós-graduação da e a trabalhar como
pesquisadora do .
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Índice onomástico
, Daryll , Jennifer
, Reo F. , Henri
, Diane , , , , Melanie
, George M. , Wolfgang , , , ,
, Robin
, Bruna , Bolivar
, Maria Sylvia de Carvalho , , Louise
, , Victor Nunes , -
, Sigmund , , , , , Vladimir
- -, Claude , , -,
, Hans , , , , , , , , ,
, Gilberto ,
, Wallace V. , Marion J.
, Erich -, Lucien
, Celso , , -, , , Georges ,
, Fernando
, Takeshi , Ralph
, Eduardo , Juarez Brandão , -,
, Hélio , Samuel H.
, Clifford , , , , , , Georg , -
, , Bob
, John P. , José Guilherme Cantor
, Daniel , Bronislaw -, -,
, Jane , , -, , -, , , -, , , ,
, -, ,
, Eleanor Kathleen , Linda F. ,
, Antonio , , , George
, Jürgen , Carl F. P. von ,
, Alfred C. , Carolina -
, Stuart , Karl -, , , -, -,
, Luiz Alberto -, , , , -, , ,
, Harry , , -, -, , ,
, Marvin , , -, , , -, -,
, , William , , -,
, Chie , , Marcel , , , , ,
, Melville J. , Príncipe de Wied-
, Robert A. Neuwied -
, Richard , William C.
, Sarah , Gregor
, Bertram , , Octávio Teixeira (sobrinho)
, Harry W.
, Aldous , Renato
, Constantino , Sérgio
, Octavio , , José Álvaro
, J. , Pierre , , ,
© Eunice Ribeiro Durham,
© Omar Ribeiro Thomaz,
© Cosac Naify,
Coordenação editorial
Preparação
Projeto gráfico
Composição e capa
Ilustração da capa
Foto da ilustração da capa
Foto da autora
Durham, Eunice R.
A dinâmica da cultura: ensaios de antropologia/Eunice
Ribeiro Durham; organização de Omar Ribeiro Thomaz;
prefácio de Peter Fry. – São Paulo: Cosac Naify, .
Bibliografia.
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- – São Paulo
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Fax [ ] -
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Atendimento ao professor: [ ] -
Tipologia ./ Papel g/m
Impressão Tiragem .