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Aula 209 Revisada

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Curso Online de Filosofia

Olavo de Carvalho

Aula 209
29 de junho de 2013

[versão provisória]
Para uso exclusivo dos alunos do Curso Online de Filosofia.
O texto desta transcrição não foi revisto ou corrigido pelo autor.
Por favor, não cite nem divulgue este material.

Boa noite a todos, sejam bem-vindos.

Nós temos um texto de René Guénon [para a aula de hoje], mas antes gostaria de ler um artigo
que escrevi para o Diário do Comércio e que é muito pertinente àquilo tudo que estamos
fazendo aqui. Vou ler com comentários mínimos. O artigo chama-se “Alguém e ninguém”.1

Tentando justificar a ausência de escritores liberais e conservadores na Festa Literária


Internacional de Paraty (FLIP) deste ano, assim se pronunciaram seus mais destacados
representantes:

Miguel Conde, curador: "Não acho que escritores associados à direita sejam numerosos. Tenho
até dificuldade em pensar em nomes."

Sérgio Miceli, membro da principal mesa de debates: "Bons pensadores à direita são peça rara
no País."

Milton Hatoum, conferencista encarregado da palestra de abertura do evento: "A maioria dos
escritores no Brasil é de esquerda. De escritor importante no Brasil, não me lembro de nenhum
de direita."

Dada a relevância dos personagens, não creio exagerar ao supor que suas opiniões e seu nível
de cultura exemplificam a média dos participantes, excetuada a hipótese, hedionda mas
plausível, de que ela vá daí para baixo.

Nesse sentido, a FLIP é a mais espetacular amostra viva da completa destruição da alta cultura
no País, substituída pela tagarelice autopromocional de usurpadores e carreiristas ineptos,
barbaramente incultos e infinitamente presunçosos, cuja sobrevivência no cenário intelectual
se deve tão e somente a três fatores: (1) proteção governamental, (2) interbadalação mafiosa,
(3) implacável, sistemática e preventiva exclusão dos adversários reais e possíveis.

O fator 3 vem sendo aplicado nesse País com tal perseverança, que acabou por moldar a cabeça
dos seus mesmos praticantes. Primeiro eles se recusam a falar de um autor, depois concluem,
do seu próprio silêncio, que ele não existe mesmo. A regra áurea que seguem no seu grotesco
arremedo de vida intelectual é o argumentum ad ignorantiam: “Tudo aquilo que não sei ou
esqueci é inexistente, nulo ou irrelevante.”

1 http://www.olavodecarvalho.org/semana/130702dc.html (há algumas diferenças entre o artigo efetivamente


publicado pelo Prof. Olavo de Carvalho e a leitura feita em aula)
2

Os três citados mostraram mais ignorância da cultura brasileira do que se poderia tolerar –
mas não aprovar – em alunos de ginásio.

Não vou discutir com esses palhaços. Vou fornecer ao leitor um breve mostruário daquilo que
eles, tomando a sua própria ignorância como medida da realidade, dizem ser inexistente ou
quase.

Eis aqui, colhidos a esmo, uns poucos nomes de escritores e outros intelectuais brasileiros de
ontem e de hoje, todos de primeiríssima ordem e mais do que consagrados (muitos
internacionalmente), tidos como "de direita", seja por eles próprios, seja por seus detratores
esquerdistas: Afonso d’Escragnolle Taunay, Alberto Oliva; Ângelo Monteiro; Antônio Olinto;
Antônio Paim; Arthur César Ferreira Reis; Augusto Frederico Schmidt; Bruno Garschagen;
Bruno Tolentino; Carlos Lacerda; Cornélio Penna; Demétrio Magnoli; Denis Rosenfield; Diogo
Mainardi; Dora Ferreira da Silva; Eduardo Gianetti da Fonseca; Eduardo Prado; Eugênio Gudin;
Gerardo Mello Mourão; Gilberto de Mello Kujawski; Gilberto Freyre; Gustavo Corção; Heitor de
Paola; Heraldo Barbuy; Ignácio da Silva Telles; Irineu Strenger; Ives Gandra da Silva Martins;
João Camilo de Oliveira Torres; João de Scantimburgo; Joaquim Nabuco; Jorge Caldeira; José
Américo de Almeida; José Guilherme Merquior; José Osvaldo de Meira Penna; Josué Montello;
Júlio de Mesquita Filho; Leonardo Prota; Leonel Franca (Pe.); Lúcio Cardoso; Luís Viana Filho;
Luiz Felipe Pondé; Machado de Assis; Manuel Bandeira; Maria do Carmo Tavares de Miranda;
Maria José de Queiroz; Mário Ferreira dos Santos; Mário Guerreiro; Mário Vieira de Mello;
Maurílio Penido (Pe.); Miguel Reale; Milton Campos; Nelson Rodrigues; Nicolas Boer; Octavio
de Faria; Oliveira Lima; Oliveira Vianna; Otto Maria Carpeaux (primeira fase); Paulo Francis
(segunda fase); Paulo Mercadante; Paulo Ricardo de Azevedo (Pe.); Pedro Calmon; Percival
Puggina; Plínio Barreto; Rachel de Queiroz; Reinaldo Azevedo; Renato Cirell Czerna; Ricardo
Velez Rodriguez; Roberto Campos; Roberto Fendt Júnior; Rodrigo Gurgel; Romano Galeffi;
Roque Spencer Maciel de Barros; Ruy Barbosa; Vicente Ferreira da Silva; Vilém Flusser e
Wilson Martins.

Faço a lista no improviso e de memória, porque tenho alguma e porque estudei. Os anões da
FLIP não sabem nada; não são intelectuais exceto no sentido muito elástico e gramsciano do
termo, isto é, agentes de organizações de esquerda encarregados de "ocupar espaços" na mídia,
nas universidades e no movimento editorial e ali abrir vagas para os seus parceiros de
militância, vetando o acesso de candidatos politicamente indesejáveis.

O establishment esquerdista recompensa-os generosamente, ao ponto de induzir cada um


deles à ilusão de que é mesmo – como diria Léon Bloy – "aquilo que se convencionou chamar
de alguém" — e de que tudo o mais é apenas um vasto ninguém.

Mais que um simples escândalo literário e editorial, a FLIP deste ano é um delito de
malversação de dinheiro público do governo do Rio de Janeiro, da Embratel, da Petrobras e da
Eletrobras. Pessoas que desconhecem a cultura brasileira não têm nenhum direito de
representá-la e de ser subsidiadas para isso pelos já tão espoliados e exaustos contribuintes. A
FLIP não é um acontecimento da esfera intelectual, é só mais um episódio banal da corrupção
avassaladora que tomou conta deste país.

No fim do artigo, eu coloco uma nota:

Assinalo aqui, de passagem e com imensa tristeza, o recente falecimento de um queridíssimo


amigo, o escritor e filósofo Paulo Mercadante, uma das inteligências mais lúcidas e produtivas
que este Brasil já conheceu e que hoje desconhece graças aos Micelis, Hatoums e Condes.
3

Comunista na juventude, Paulo rompeu com o Partido após a denúncia dos crimes de Stálin por
Nikita Kruschev em 1956, e formou, com Antônio Paim e outros, o núcleo do que viria a ser a
corrente liberal do pensamento brasileiro nas décadas seguintes.

Paulo Mercadante foi o homem mais gentil, bondoso e generoso que conheci, além de ser o
autor de pelo menos um clássico indiscutível (A Consciência Conservadora no Brasil) e de
notáveis ensaios filosóficos, os quais pairam muitas léguas acima das cabecinhas da FLIP.

A coisa chegou ao nível da criminalidade pura e simples. É justamente para corrigir isso que
estamos aqui nos preparando. Eu tenho pedido a vocês para que não participem de debates,
não publiquem muita coisa e permaneçam mais ou menos discretos para ter a certeza de que,
quando publicarem uma coisa, será algo de sólido e infinitamente superior a esta porcariada
que Micelis e Hatoums estão fazendo. Isto chegou ao ponto do absolutamente intolerável. Essa
gente tem de ser varrida da vida intelectual – não pelos métodos que eles usam: boicotar,
sonegar empregos e publicações ou fazer cortina de silêncio, mas pelo método da sua total
desmoralização pública. Não a desmoralização ideológica, mas por inépcia. O sujeito não disse
que é contra escritores de direita, mas disse que eles não existem, que pensadores de direita
no Brasil são raríssimos. Como raríssimos, se são os melhores e são a maioria?

O proletariado, a ralé universitária, realmente, pode ser de esquerda, como de fato é. Mas, eles
não podem julgar a história cultural do Brasil por eles mesmos. Basta abrir qualquer história
literária do Brasil; basta abrir o livro do Wilson Martins, A história da inteligência brasileira,
para ver quem são essas pessoas. Ou procurar na Academia Brasileira de Letras a lista dos
acadêmicos de todos os tempos. Ainda, para encontrar intelectuais de direita, busque a
história da UDN, por exemplo, e verá nomes como José Américo de Almeida ou Gilberto Freyre
– que são clássicos do modernismo nordestino [00:10]. E verá o nome de gente que não acaba
mais. O maior poeta que o Brasil já teve – Manuel Bandeira – era nitidamente conservador e
anticomunista. Como é que o sujeito vai dizer que não lembra [de nomes da direita], que não
sabe de nada?

Eu não os estou questionando do ponto de vista político; não estou dizendo que eles fizeram a
hegemonia esquerdista. Talvez nem tivessem a intenção de fazer, neste evento, uma
hegemonia esquerdista, [a questão] é que eles não conhecem [a cultura] mesmo. Eles acham,
piamente, que aquilo que eles não conhecem não existe: isso é uma prova de inépcia. Se o
sujeito dá essa prova de inépcia, então receber dinheiro para ocupar esse cargo e encabeçar
essa festa literária é desvio de dinheiro público. O sujeito deve ser tirado de lá a pontapés. É
justamente para isso que estou treinando vocês, para que amanhã ou depois ocupem os
lugares desses canalhas. Isso não pode continuar assim; chegou ao ponto da total calamidade.

Algumas pessoas que estavam lá até discutiam a coisa, mas discutiam do ponto de vista
ideológico, [dizendo] que os conservadores também tinham de estar representados [na Flip].
Mas estavam discutindo com pessoas que sequer sabem que eles existem. Como é que eles vão
convidar pessoas que desconhecem? E desconhecem até historicamente. O Milton Hatoum
chega a dizer que comenta-se que Nelson Rodrigues era de direita, mas que ele não acredita,
porque durante a ditadura militar Nelson Rodrigues se esforçara para libertar presos
políticos. Metade da direita se esforçou para isso. Heráclito Sobral Pinto, por exemplo, era um
conservador católico, assistia à missa, confessava e comungava todo dia – odiava comunista e
vivia tirando comunista da cadeia. Gilberto Freyre deu abrigo a comunistas fugidos no
Instituto Joaquim Nabuco. A direita fez isso o tempo todo, eles é que não fazem.
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Cite-me um caso de direitista perseguido e que foi protegido pela esquerda. Isto nunca
acontece. Esses camaradas da esquerda nunca têm um olhar de humanidade para ninguém
que seja seu inimigo político. O inimigo político para eles é coisificado, é uma coisa, um
monstro. Eles não lêem, não querem saber, não querem ouvir, porque daí terão de dar
estatuto de humanidade [aos inimigos políticos]. Nelson Rodrigues não apenas era um homem
da direita (ele claramente se definia assim), era também francamente anticomunista e o
sujeito que ele se esforçou para tirar da cadeia era um parente dele. Houve muita gente,
naquela época, que se esforçou para proteger comunista fugido. Antônio Olinto, por exemplo,
vivia abrigando os comunistas na embaixada do Brasil na Inglaterra, arriscando o seu próprio
emprego ali. Depois, cuspiram na reputação do Olinto quando voltou ao Brasil. Antônio Olinto,
cujos livros são traduzidos em trinta e duas línguas, é um clássico universal. No artigo, escrevi
os nomes que eu lembrava na hora, mas há muitos nomes que esqueci. Eu estava fazendo a
lista e esqueci o Gustavo Corção. Foi a Roxane que me lembrou disso agora.

É uma coisa absolutamente intolerável. Se eles dissessem que excluíram [os escritores de
direita] porque ali são todos comunistas e não querem reacionários, seria mais digno que essa
exibição de ignorância. Eles têm o direito à tomada de posição — se bem que não têm o direito
de usar dinheiro público para fazer discriminação ideológica —, e esta seria menos grave do
que essa confissão de ignorância que justifica medidas judiciais. Não é mais questão de debate
intelectual, isso é crime. Estão nomeando as pessoas mais ignorantes para representar a
cultura brasileira E isso, evidentemente, é fraude.

Dito isto, passemos ao texto de René Guénon que, de uma maneira longínqua e indireta, deve
contribuir também, de algum modo, para a compreensão da situação mundial e brasileira.
Antes de lê-lo quero dar-lhes certa retaguarda. Ao longo da minha vida, eu fui participando, de
um modo ou de outro, de vários movimentos sociais e culturais que marcavam a época e que
mostravam um leque das alternativas que existiam. Eu passei pela esquerda, pela militância
comunista. Passei por uma fase de muito interesse na psicanálise, não apenas lendo, mas me
submetendo pessoalmente à análise – pelo menos para saber como que é. Fiz umas oito
durante algum tempo e nenhuma serviu para nada; ou melhor, serviram para fins de cultura
geral. Como o curso de teatro que fiz com Eugênio Kusnet – que me achava o pior aluno –, eu
não queria ser ator, era apenas por cultura geral. Psicanálise foi a mesma coisa: eu não queria
ser psicanalista, só queria saber como era.

Depois veio aquele movimento da Nova Era, esoterismo, ocultismo, astrologia, alquimia etc.
Houve um período em que me aprofundei na questão do Islam e das doutrinas ditas
tradicionalistas, René Guénon etc. E à medida que eu ia passando por essas coisas, sempre
entrava com intuito experimental, de não dizer nem que sim, nem que não; de me abrir a essa
influência porque não tenho medo de ser contaminado; não sou uma alminha pura que tem de
viver numa redoma e dizer que não quer contato com o erro nem de longe. Ora, já estamos
expostos ao erro, até quem está no Vaticano ou dentro de um mosteiro. Não adianta eu ter
essa atitude de preservação. Tenho de entrar e deixar-me influenciar honestamente para que,
se houver alguma coisa errada, não seja culpa minha por interpretar ou executar a coisa
errado, mas que o erro venha da sua própria origem.

Entrei de coração aberto, mas resguardando a possibilidade de que aquilo tudo pudesse estar
errado ou ser limitado e de que devesse ser superado mais dia ou menos dia. Passei por todas
essas coisas exatamente com este espírito. Então, mesmo quando não acreditava muito,
aceitava, no espírito do que dizia Leibniz: ele concordava com tudo que ele lia. Vou concordar
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com tudo que estão ensinando e, se for errado, veremos no devido tempo o erro, que ele
apareça por si, sem que eu fique escarafunchando para buscá-lo. Todas essas experiências
foram libertações não traumáticas. Não é como o sujeito que entra num negócio e aposta nele
tudo o que tem, depois se desilude, fica revoltado, indignado e com ódio. Não foi nada disso,
foi tranquilo. Eu entrei ali porque quis, para saber como era. Queimei as pontas dos dedos,
mas dizem que a curiosidade matou o gato. Então, eu queria saber e paguei o preço para
saber.

Não estou acusando e nem estou bravo com ninguém. Só que depois eu vou tentar explicar
essas minhas experiências, contá-las de uma maneira analítica e crítica – sem má vontade,
ódio ou coisa nenhuma – para abreviar o tempo de experiência de outras pessoas que venham
depois. Coisas que levei trinta anos para aprender, vocês podem levar três. Se quiserem até se
submeter à experiência, submetam-se, mas não vão fazê-lo à mão livre, já estão com a régua e
o compasso. A coisa vai dar menos trabalho, evidentemente, e vai trazer menos riscos porque,
em cada uma dessas experiências, eu arrisquei o meu equilíbrio, a minha saúde mental, meu
bolso e, em alguns casos, até a minha vida. Mas, como diria Jânio Quadros: fi-lo porque qui-lo.
Eu queria realmente saber, paguei o preço e não estou reclamando de absolutamente nada.

Eu me lembro, por exemplo, de um cidadão que passou pela organização de Frithjof Schuon –
que já estava nos Estados Unidos naquela época. Aconteceu um problema lá dentro, depois eu
soube que o cidadão estava tendo um caso com uma das esposas de Schuon e foi expulso da
organização. Saiu revoltadíssimo, virou marxista e começou a interpretar tudo aquilo como
fascismo. Um dia passou em casa para pedir minha adesão a um movimento contra Schuon;
felizmente eu não estava em casa porque eu tê-lo-ia mandado tomar naquele lugar. Eu não fiz
nenhuma patifaria com Frithjof Schuon, mas ele fez uma comigo e muito feia. Mesmo assim, eu
tenho menos raiva do Schuon do que aquele cidadão tem. É aquele famoso ditado: perdoamos
aquelas pessoas que nos prejudicam, mas não perdoamos aqueles a quem nós prejudicamos.
Era um caso de ressentimento doentio, maligno, malicioso. Esse sujeito continuou espalhando
coisas pela Internet, foi ele quem começou aquela história de que Schuon havia sofrido uma
acusação de pedofilia – e fizeram isso quando este tinha já oitenta anos. Houve um processo
que, evidentemente, não deu em nada. [00:20] E, curiosamente, logo depois, a turma de Schuon
intentou um processo contra mim — o qual também não deu em nada. [risos]

Tudo isso tem um efeito cômico, na verdade. Na hora você fica até assustado, mas depois
começa a rir daquela coisa. Isto é o preço, sobretudo, de você aprender quais são as correntes
profundas que estão moldando a história contemporânea. Se você fica acompanhando só
noticiário de jornal ou apenas livros, você não fica sabendo das coisas. Há coisas que você tem
de constatar in loco: conhecer as pessoas, perguntar, saber quem são e aonde querem chegar.
Tudo isto, como se diz em latim, sine ira et studio, sem ódio e sem escudo para se defender.
Você sempre peça para Deus guiá-lo, mostrar-lhe a Verdade no instante devido – quando você
estiver preparado para ela –, mas sem medo de se contaminar no erro, que é a única maneira
de compreendê-lo e poder fazer a sua crítica em profundidade. Quando você vê a atenção (e o
respeito quase devoto) com que Santo Tomás de Aquino leu Averróis, durante anos, para
depois desmentir tudo o que Averróis havia dito, [percebe-se que] o santo não teve medo de
se contaminar. Ele nunca deixou de ler um livro de alguém que fosse herético, ele não era um
idiota.

Hoje, quando tudo quanto é tipo de erro está disseminado por toda a parte, você não pode se
fazer de alma pura e santa que não deve se contaminar. Tem gente que adverte os outros com
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relação à minha obra, que não a leiam porque sou herético, gnóstico, comunista, nazista etc. e
então, alguns não chegam nem perto, e como não leram, ficam odiando, evidentemente. Eu
acho engraçado quando dizem que eu não tolero nenhuma idéia diferente. Eu estou discutindo
as idéias e isto quer dizer que eu me abri a elas, as conheci e as estou discutindo. Discutir uma
idéia é ser intolerante a ela? Agora, tapar a boca de um sujeito, não deixá-lo falar: isso não é
intolerância? Estão usando a palavra intolerância no sentido exatamente inverso.

Dessas experiências todas, uma das mais profundas e marcantes, decerto, foi a leitura das
obras de René Guénon, Schuon e inúmeros autores que os seguem ou foram influenciados por
eles, como Titus Burckhardt, Sayyed Hossein Nasr, Leo Schaya e outros tantos. É uma
bibliografia imensa e, evidentemente, tudo isso não bastava. Eu queria chegar perto para
saber do que se tratava. Fui fazendo contatos, escrevi para um e para outro e acabei chegando
à tariqa de Schuon — que aceitava membros sem exigir deles uma abjuração da sua religião
originária, no meu caso a católica. Ele dizia que esotericamente não existia a perspectiva da
conversão, mas existia a perspectiva da oportunidade espiritual. Assim como Thomas Merton,
sendo monge [católico], entregou-se às práticas budistas – não por ter se convertido ao
budismo, mas (como dizia Schuon, com razão) como uma oportunidade espiritual. Tive meus
problemas dentro da tariqa – os quais não vêm ao caso agora – e resolvi deixar para examinar
essa questão em público quando estivesse um pouco mais maduro. Agora, aos 66 anos, talvez
eu já esteja um homenzinho e esteja pronto para tratar desses assuntos e começar uma
espécie de acerto de contas com René Guénon.

O curioso é que eu pus René Guénon na lista dos meus gurus e as pessoas imaginam que então
sou seguidor dele. Eu usei a palavra guru num sentido quase humorístico. Um guru é qualquer
pessoa com quem você aprendeu alguma coisa. O termo técnico correto seria upa guru (como
ninguém sabe o que é upa guru, mas sabem o que é guru, usei a palavra guru). Na lista, há
pessoas das mais variadas orientações. Tomei como gurus, entre outros, René Guénon e
Ludwig von Mises – que era um kantiano ateu. Se eu fosse procurar mestres numa linha
coerente, eu precisaria saber antecipadamente qual é a linha coerente, para [depois] escolher
os mestres. É impossível, isso é o quadrado redondo. A pessoa tem de se expor a vários
ensinamentos; a Bíblia diz que a multiplicidade de conselheiros é sempre uma coisa boa.
Então resolvi me abrir a todas essas influências e ver no que daria. Tudo isto com a idéia de
que eu estava em formação e não iria anunciar nenhuma conclusão mais definitiva ou mais
estável antes de estar maduro para isso. Tanto que só publiquei o meu primeiro livro aos 48
anos de idade (ninguém vai dizer que fui apressado).

Isso aqui é um começo de um exame crítico da obra de René Guénon. Não para ver
propriamente o acerto ou erro, mas para ver exatamente o que ele estava querendo, quais
foram os resultados efetivos do seu ensinamento e onde estão as coisas hoje. Vou ler e
comentar.

Um autor que assina seus escritos com o pseudônimo de “Esfinge” dá a entender que eles
contêm um enigma e a ameaça implícita de devorar o leitor que não consiga decifrá-lo.

O paradoxo maior da obra de René Guénon – e o enigma que ela encerra – reside em que, de
um lado, ela ostenta o maior desprezo pelo mundo da ação, do tempo e da História, reduzindo
literalmente a “manifestação” a “um nada” em comparação com a esfera da eternidade e dos
princípios, mas, de outro lado, ela tem como meta primordial, explícita e reiterada, promover
ou apressar o advento de uma “restauração tradicional”, isto é, de um objetivo que deve
cumprir-se dentro do horizonte do tempo e da História.
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Não há nisso nenhuma contradição, em sentido lógico estrito, mas uma tensão entre dois níveis
de discurso mutuamente incomensuráveis. Essa tensão não escapou decerto ao próprio autor,
homem arguto entre quantos já existiram. No entanto, em vez de realçá-la e dar visibilidade às
suas implicações, ele procede como quem a ignorasse por completo, sublinhando, ao contrário,
a unidade em bloco de um ensinamento doutrinal cuja formulação escrita impressiona, de fato,
por uma coerência lógica na qual tudo, até os mínimos detalhes, remete aos princípios
universais que fundam o conjunto.

A obra em si tem uma coerência lógica do começo ao fim. Mas, o objetivo a que ela se propõe
coloca-se em outro plano. Esse objetivo não parece justificado por aqueles princípios
universais – nós já veremos por quê.

Esse conjunto, ademais, abarca uma tal riqueza e variedade de perspectivas que cada uma
delas pode constituir um mundo à parte, um continente disciplinar inteiro, suficiente para
absorver no seu estudo – para não falar das práticas espirituais a que deve conduzir – as
melhores inteligências e o tempo de vidas inteiras, sem que surja nunca a oportunidade de
articular os vários continentes no mapa mundi da concepção guénoniana como um todo.

Ao analisar muitos desses escritores da escola tradicionalista, como Jean Borella ou Jean
Anouilh, vemos que eles tomam um tópico guénoniano – o simbolismo – e passam a vida
pensando naquilo. E às vezes nem tocam em outros aspectos da obra de Guénon.

Eis por que, se o próprio Guénon não deu sinal de perceber a tensão acima referida, muito
menos parecem ter-se dado conta dela os seus principais discípulos, seguidores, admiradores e
críticos, todos eles extasiados ante a visão imponente de uma unidade de doutrina e prática —
unidade da Doutrina da Unidade [assim a chamava Guénon] — que o próprio autor veio a
enfatizar mais tarde, ao adotar o nome islâmico de ‘Abd-al-Wahid Yahya, “João, o Servidor do
Único”.

Acontece que, escamoteada aos olhos do leitor aquela tensão, torna-se difícil distinguir quais
os pontos em que a “doutrina do absoluto” [Doutrina da Unidade] deve entender-se em sentido
metafísico puro, direto e inambíguo, e quando se entremescla nela, como em filigrana, a
insinuação de um plano a realizar, de uma ação a cumprir.

Se levarmos a sério a presença da tensão, entenderemos que, em razão da distância


incomensurável entre a unidade imutável dos princípios eternos e a multiplicidade quebradiça
do mundo manifestado, a ação pretendida não é a única possível, nem a única desejável [00:30],
mas apenas uma possibilidade entre muitas, não determinada por nenhuma fatalidade cíclica,
mas tão-somente oferecida, num leque de escolhas, ao arbítrio da liberdade humana.

Guénon apresentou a restauração tradicional como uma espécie de fatalidade cíclica que
devesse ocorrer ao fim de um período já mais ou menos predeterminado na doutrina hindu
dos ciclos, cuja melhor exposição, estritamente guénoniana, é a de Gaston Georgel, Les quatre
âges de l'humanité (As quatro eras da humanidade).

Ele quis dizer que essa restauração aconteceria – quisessem ou não – assim que terminasse o
ciclo (ou seja, assim que a decadência alcançasse o seu ponto mais fundo). Haveria então uma
transfiguração do tempo em espaço – tudo se tornaria simultâneo – e a tradição se levantaria
por si, sem que precisássemos fazer nada, a não ser dar uma ajuda, um pequeno estímulo aqui
ou ali. Ele acreditava fielmente que as leis da difusão das ideias eram leis estritas e
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perfeitamente manejáveis, que a circulação das ideias obedecia a leis estritas e quem
conhecesse estas leis poderia então manejá-las. Em parte, isso é verdade.

Porém, há aqui um problema terrível de ordem doutrinal, e eu não creio que nenhum crítico
de Guénon tenha assinalado, muito menos seus discípulos. Toda e qualquer teoria cíclica
supõe um movimento descendente, isto é, o começo está colocado num nível altíssimo, e tudo
o que vem depois é uma longa decadência, até que ciclicamente se opere uma restauração. Só
se pode falar de começo em termos de tempo: se toda a esfera dos princípios mais elevados e
da espiritualidade mais pura está dada no começo, e tudo o que vem depois é uma decadência,
isso significa que a escala do melhor e do pior, do mais elevado e do mais baixo, está
condicionada ao tempo. Então a pergunta é: por que o melhor tem de estar no começo, e não
num momento qualquer? Se estamos falando da possibilidade universal – Onipotência ou
Onissapiência –, [tem-se que] em princípio, as intervenções divinas não obedecem
rigidamente a nenhuma sequência cíclica, mas são decisões livres, [decisões] de liberdade
divina; portanto o ponto mais alto pode ser alcançado a qualquer momento da história, tão
logo Deus decida fazê-lo, como de fato é o que vê a Igreja Cristã com o advento do Nosso
Senhor Jesus Cristo – o qual não se deu no começo dos tempos.

Então já temos aí um problema: se o Eterno (o Supratemporal, o Absoluto) predomina sobre a


temporalidade, como Ele pode estar encadeado a uma necessidade cíclica que não pode
violar? Isso é uma contradição absolutamente monstruosa: o Eterno tem prioridade ou está
encadeado à necessidade cíclica? Em suma, existe a Onipotência de Deus – a Onipotência do
Ser Supremo, como queiram chamá-lO –, ou existe a onipotência do ciclo, a qual o próprio
Deus não pode violar? Na perspectiva cristã, a coisa principal não aconteceu no começo, mas
aconteceu no meio – aliás, o começo já tinha em vista esse meio, porque quando se fala da
queda de Adão, era uma coisa que já estava prevista, tanto que a Igreja Católica fala da felix
culpa, a culpa feliz de Adão, que permite então o advento do Nosso Senhor Jesus Cristo e a
salvação das almas.

Em segundo lugar, o começo, na própria Bíblia, não é um ponto tão alto quanto parece, porque
logo após a Criação vem a Queda. Isso quer dizer que viemos de queda em queda e que o
advento de Cristo foi apenas uma restauração de uma tradição anterior? É claro que o advento
de Cristo pode ser visto das duas maneiras: Ele disse que veio para cumprir a lei, mas Ele
mesmo fala de uma nova aliança, em que todos os compromissos da antiga lei são substituídos
por novos compromissos muito mais simples e diretos, e não condicionados a uma nação
específica. Se Ele tivesse vindo [apenas] para restaurar a tradição anterior, então seria
exclusivamente tradição judaica. Não foi isso que Ele fez. Ele a simplificou e a abriu para todo
mundo, de maneira que todos nós viramos judeus. Esse é um dos múltiplos problemas que
aparecerão aí.

Sem a consciência da tensão, o determinismo cíclico prevalece de tal modo que a via
guénoniana para a solução dos males do mundo parece não só uma fatalidade inexorável, mas
uma obrigação estrita à qual devem curvar-se todas as “pessoas qualificadas”, todos os
membros atuais e virtuais da “elite intelectual”.

Ele disse que falava a uma elite intelectual (muito discreta aliás), pessoas de altíssimo nível,
que não teriam de agir exteriormente, mas apenas condensar uma força espiritual até a
chegada do devido momento em que aquilo se exteriorizasse. Se existe este ciclo, estamos então
no fim do Kali-Yuga. Todas as pessoas que estão qualificadas, que têm um nível requerido para
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participação em altas atividades espirituais, estão praticamente obrigadas – moralmente


obrigadas – a participar dessa preparação da suposta restauração tradicional.

Essa via [a via guénoniana para solução dos males do mundo] pode-se resumir sem
qualquer inexatidão, pois o próprio autor assim a definiu muitas vezes, como a absorção do
Ocidente pelo Oriente, absorção que tanto pode assumir a forma branda de uma “restauração
da tradição ocidental” [isto é, da Igreja Católica] sob o guiamento de autoridades
espirituais orientais, como até a de uma completa ocupação cultural, política, econômica e
militar das nações ocidentais pelas forças do
Oriente.

Ele diz isso com todas as letras. No livro Oriente e Ocidente (de 1924), ele diz que o Ocidente
teria três saídas: a) cair na barbárie definitiva; b) restaurar a tradição católica sob o
guiamento e inspiração de autoridades orientais (entre as quais ele mesmo, evidentemente),
ou então c) ser ocupado pelo Oriente. Essa ocupação pode ser de natureza puramente cultural
e espiritual, ou pode ser até, em casos extremos, uma ocupação política, militar, econômica
etc.”

Os discípulos católicos de René Guénon tentam fazer-nos crer que ele muito se esforçou pela
primeira alternativa [isto é, pela restauração católica; há quem acredite nisso até hoje],
como o provam [segundo eles] os artigos que publicou na revista católica Regnabit, os quais
mostram de fato uma compreensão excepcionalmente profunda dos símbolos cristãos.

Muitos ateus, se lerem os artigos de René Guénon na revista Regnabit, converter-se-ão à Igreja
Católica na mesma hora.

Mas o fato é que os primeiros contatos de Guénon com o meio católico e o início da sua
colaboração nessa revista datam de 1925, ao passo que os seus biógrafos são unânimes em
declarar que a partida do filósofo para o Egito, em 1930, assinala o momento em que,
desistindo de qualquer esperança na restauração da Igreja Católica, ele passou a apostar todas
as suas fichas na ascensão do Islam.

Ou seja, como é que em 1925 ele começa um trabalho de restauração da Igreja Católica, chega
1930 e ele fala que não vai dar, que vai partir pra o Islam? Acho que é um prazo muito curto
pra chegar a esta conclusão.

Ora, que pode ter acontecido de tão significativo na Igreja Católica no prazo desses breves
cinco anos, para fazer do pretenso restaurador do catolicismo o apóstolo da islamização
global? Nada, é claro. Ou foi o próprio Guénon que mudou de idéia muito rapidamente, ou [o
que eu acredito mais, porque ele não um sujeito de ficar mudando de idéia todo dia] os
seus esforços em prol da restauração católica não passaram de um ensaio superficial, feito
mais por desencargo de consciência do que por uma confiança genuína na realização dessa
possibilidade.

Isso significa que, em 1925, ele já não acreditava muito em uma restauração da Igreja Católica,
mas era como se dissesse que estava dando uma chance à Igreja. [00:40] A chance seria o
seguinte: os católicos recuperariam a consciência dos elementos simbólicos que estão nos
seus rituais, na Bíblia etc., e do conteúdo doutrinal metafísico ali imbricado – conteúdo
doutrinal metafísico que, por sua vez, René Guénon expunha em outros livros, como O homem
e seu devir segundo o Vedanta, A Metafísica Oriental etc. Isso quer dizer que a restauração da
Igreja Católica já se daria sob a condução de autoridades espirituais. Que autoridades
10

espirituais? René Guénon era membro de uma tariqa desde os 16 anos, e embora usasse com
mais frequência a terminologia do Vedanta (quer dizer, da tradição hindu), a autoridade à
qual ele estava ligado e que ele representava – porque ele sempre dizia que aquilo não era
idéia dele, que era uma autoridade tradicional que estava ditando aquilo, ou ditando
diretamente ou por alguma via espiritual desconhecida – era o sheikh Elish El-Kebir, do Egito,
ao qual ele estava vinculado por um compromisso de discipulado, e com cuja filha iria casar
mais tarde, ao mudar para o Egito. Então, a autoridade espiritual não era hindu, não era
chinesa, não era budista, era uma autoridade espiritual islâmica. É como se dissesse que o
Islam recuperaria o senso original do catolicismo, e os católicos se reintegrariam na tradição
universal.

Nessa perspectiva, evidentemente, o advento de Cristo só pode ser visto como uma das muitas
restaurações cíclicas que aconteceram ao longo da história, ou seja, a pessoa de Cristo é
apenas um avatar, uma personalidade espiritual que reaparece de tempos em tempos sob
várias encarnações, sob várias figuras diferentes: Ele perde toda sua especificidade, tudo
aquilo que é peculiar em Cristo é reduzido apenas à manifestação de situações históricas
contingentes. Cristo aparece como aparece, com a personalidade que Ele tem, apenas em
função de circunstâncias históricas que assim o exigiam ou o solicitavam, e não como a
personificação única do Verbo divino. Porém, Cristo enfaticamente diz que Ele mesmo é a
única encarnação desse Verbo divino, os Apóstolos dizem a mesma coisa, e Ele diz que todos
os que vieram antes d’Ele são ladrões2. Não poderia ser mais claro.

Mais tarde houve uma discussão entre Frithjof Schuon e René Guénon, porque Schuon — que
eu creio que a essa altura já vivia na América e já adquirira uma independência muito grande
em relação ao Guénon — começou a especular certas possibilidades teóricas que
horrorizaram Guénon, e uma delas foi a seguinte: os sacramentos cristãos tem um poder
iniciático por si mesmos, quer dizer, eles não são apenas ritos de agregação para o sujeito
entrar na comunidade, são verdadeiros ritos iniciáticos que produzem uma transfiguração
espiritual efetiva e continuam funcionando como tal até hoje. Guénon disse que não, que
aquilo era um absurdo, pois o Cristianismo aparecera não como uma religião de massas, não
como exoterismo, mas apenas como um esoterismo, seria para poucos, apenas um círculo de
iniciados; que depois, em função da decadência geral do mundo romano, ele se exotericizou e
foi aberto para as massas em fase posterior.

Cristo disse [aos Apóstolos] que fossem por toda parte e fizessem prosélitos3. Não se pode
esquecer que a atividade pública de Cristo foi de apenas três anos, e desde o primeiro
momento, quando Ele arrumou o primeiro discípulo, já disse que fossem por toda parte e
fizessem prosélitos. Ele nunca disse que guardassem aquilo para eles. Segundo, Cristo diz
textualmente que nada ensinou em segredo e que tudo o que Ele disse foi em praça pública4.

Esse ensinamento esotérico cristão existe, já está nos sacramentos: esotérico no sentido de
que não são apenas ritos de agregação, mas são ritos realmente iniciáticos, como confirma o
atual Catecismo da Igreja Católica, promulgado pelo Papa João Paulo II, em 1992 5. Ele tem
afirmações como o fato de o sacramento do Crisma, da Confirmação, ser uma segunda etapa
da iniciação cristã. Ele usa exatamente este termo, de certo modo mostrando que já havia

2 João 10:8
3 Mateus, 28:19
4 João, 18:20
5 Promulgado em 11 de outubro de 1992
11

absorvido aquela discussão [entre] Guénon e Schuon e estava dando a resposta de que sim,
são sacramentos iniciáticos mesmo, são ritos iniciáticos mesmo, e não há outro esoterismo
cristão fora dos sacramentos ou independente deles.

Isso quer dizer que, pelo menos o Papa João Paulo II tomou o partido de Schuon nessa
discussão, e Guénon ficou tão bravo com isso, mas tão bravo, que nunca mais quis falar com
Schuon. Ele era uma espécie de “padrinho” espiritual de Schuon, e rompeu relações
totalmente [com Schuon]. As várias tariqas que haviam se formado bipartiram-se, uma parte
tornou-se guénonista, então a coisa dividiu-se entre guénonistas e perenialistas (como
preferem ser chamados os discípulos de Schuon). Nesse ponto eu acho que Schuon ganhou a
briga, porque vendo a continuação das obras dos autores tradicionalistas influenciados por
Schuon, só eles argumentam nesse ponto, e os que são contra, os estritamente guénonianos,
não respondem, não falam nada; eles reforçaram o caráter islâmico da sua iniciação. Se a
tariqa de Schuon era aberta a ortodoxos, católicos etc., os guénonianos fecharam as tariqas
dizendo que dali por diante só entrariam muçulmanos; que eles eram muçulmanos de estrita
observância e [quem quisesse entrar] teria de cumprir toda a sharia. Então, de certo modo, a
riqueza de informações e de interpretações que foram baseadas na hipótese de Schuon dão a
ele a vitória intelectual nesse debate — sem que a essa vitória intelectual corresponda um
acréscimo de poder, porque metade das tariqas ficaram do outro lado, chefiadas sobretudo
por Michel Valsan, que era um romeno, e depois por Charles-André Gilis. Ao tomar as obras
desses camaradas, [vê-se que] são muçulmanos de estrita observância.

Ou foi o próprio Guénon que mudou de idéia muito rapidamente, ou seus esforços em prol da
restauração católica não passaram de um ensaio superficial, feito mais por desencargo de
consciência do que por uma confiança genuína na realização dessa possibilidade. Em ambos os
casos, é preciso concluir que ao menos na parte maior e mais significativa da sua existência de
escritor e mentor, a meta de René Guénon foi pura e simplesmente a ocupação do Ocidente
pelo Oriente, especificamente o Oriente islâmico, no seu entender o único herdeiro e porta-voz
epocal legítimo das tradições orientais como um todo.

Ele mesmo confirmou isso da maneira mais ostensiva. A “ação tradicional”, segundo ele, tinha
seu ponto de partida na formação de uma “elite intelectual” não somente adestrada no
conhecimento das doutrinas orientais mas espiritualmente transfigurada pela participação em
rituais iniciáticos no quadro de organizações esotéricas regularmente filiadas a uma “tradição
legítima”. Quando seu correspondente e admirador suíço Frithjof Schuon voltou da Argélia no
início dos anos 40 investido do título de sheikh de uma tariqah (organização esotérica) das
mais tradicionais e, pondo mãos à obra na tarefa de formar uma “elite intelectual” nos termos
desejados pelo seu antecessor, proclamou [00:50] “Vou islamizar a Europa”, Guénon não hesitou
em declarar que esse era o primeiro e único resultado concreto alcançado por seu trabalho de
muitas décadas.

Então é preciso ser extremamente burro para não perceber que a obra inteira de René
Guénon tem este objetivo: a islamização do Ocidente. Tanto que à hora em que o sujeito
apareceu com o instrumento prático para fazer isso [Guénon não hesitou] – porque Guénon
não era um sheikh, era um instrutor, só podia ensinar, não podia passar as iniciações, não
podia agregar pessoas à tariqa, e quando aparecia um interessado qualificado, ele mandava
para algum sheikh –, e, de repente havia um sheikh em plena Europa. O que esse sheikh está lá
fazendo? Ia islamizar a Europa, isso nos anos 40.

Nosso webmaster, Silvio Grimaldo, disse que no livro de David Bisson, René Guénon: Une
politique de l'esprit (René Guénon: Uma política do espírito), ele chega a outras conclusões. Não
12

chega não, Sílvio. Examine direitinho, e você verá que Bisson, nas últimas páginas do livro,
mostra o que sobrou da obra de René Guénon, qual é o estado posterior e mais recente da
coisa. E você verá que as únicas linhas de continuidade que não são puramente islâmicas ou
predominantemente islâmicas são, em primeiro lugar, a iniciativa de três autores que estão
mais para o lado católico – Jean Hani, Jean Borella e um terceiro de que esqueci o nome –, cuja
repercussão no meio católico foi a pior possível, são tidos como realmente heréticos. Não têm
penetração no meio católico. O efeito que Guénon teve no meio católico foi na cabeça dessas
três pessoas e mais três ou quatro que os seguem. Em segundo lugar, existe uma continuidade
na esfera maçônica – continuidade também muito modesta.

O que se vê por todo lado é o florescimento das tariqas. Isso quer dizer que, maciçamente, a
obra de René Guénon é continuada pelas tariqas, sobretudo nos termos de Michel Valsan e de
André Gilis: o islamismo de estrita observância. A tariqa de Schuon se dissolveu após a morte
dele (terminou muito mal por causa de escândalos e brigas), e várias tariqas emergiram dali,
e, que eu saiba, a principal é também de estrita observância islâmica, malgrado as pretensões
universalistas do seu discurso.

E a terceira corrente que sobrou, que não é nominalmente islâmica, é a de Alexandre Duguin.
É a Eurasia e portanto a ocupação militar e econômica do Ocidente pelo Oriente. Esses são os
herdeiros de René Guénon, tal como os resume brilhantemente David Bisson nesse livro, René
Guénon: Une politique de l'esprit. Em vez de desmentir qualquer coisa que eu estou dizendo, o
Bisson dá ali a confirmação total. Sobrou um vasto movimento islamizante das tariqas e um
pequeno “zumzum” maçônico e um pequeno “zumzum” católico (tido como herético). Eu
tenho estudos, publicados na Sociedade Augustin Barruel, de um núcleo de católicos
tradicionalistas franceses, que fazem um exame absolutamente implacável das idéias de Jean
Borella – sem dúvida um grande pensador, um dos grandes conhecedores do simbolismo
universal, mas que não parece desfrutar de muita autoridade no mundo católico.

Porém, entre esses resultados da obra de René Guénon, existe esse que aparece no Catecismo
da Igreja, que não é um resultado de René Guénon, mas uma resposta a René Guénon, dizendo
claramente que ele estava errado e que os sacramentos tinham uma função iniciática sim, ao
contrário do que ele dissera; e que essa pretensa exotericização acidental que ele havia dito
não poderia ter acontecido nos breves três anos do ensinamento do Nosso Senhor Jesus
Cristo. E, ademais, seria totalmente inconcebível que a parte melhor e espiritualmente mais
elevada do Cristianismo estivesse nas organizações esotéricas que aparecem – como a
companheiragem na Idade Média, ou [organizações] que depois se transformam na Maçonaria
–, porque isso implicaria em dizer que Jesus Cristo passou um ensinamento para os Apóstolos
e outro ensinamento secreto para outras pessoas, ensinamentos que só viriam a aparecer
publicamente a partir do século XVI. Quer dizer, Jesus não apenas tem um ensinamento
secreto, mas ficou secreto por dezesseis séculos, até aparecer um sujeito que diz ter o
cristianismo primordial e todos estarem enganados. Não por coincidência, quando esse
ensinamento vem à tona – essas doutrinas da Maçonaria –, logo aparece também a Reforma
Protestante e tudo vira um caos, a divisão do Cristianismo que dura até hoje.

Continuando:

A obra de Guénon abrange duas linhas mestras: de um lado, a exposição de uma doutrina
metafísica universal subjacente, segundo ele, a todas as grandes tradições religiosas; de outro,
as instruções gerais preparatórias à formação de uma “elite intelectual” destinada a islamizar o
Ocidente, seja pela via sutil e discreta da influência hegemônica exercida sobre a Igreja Católica
13

(hipótese logo abandonada), seja pela via da ocupação total. Em ambos os casos, essa obra,
tida às vezes como apolítica, às vezes como acentuadamente conservadora, se insere da
maneira mais nítida no quadro da “mentalidade revolucionária” tal como a defini em trabalhos
anteriores, isto é, a busca de uma transformação radical da sociedade, ou do mundo todo, a ser
realizada por meio da concentração de poder.6

Poder que pode ser concentrado tanto na mão do Islam quanto na mão do esquema eurasiano
(que abrange também o Islam), cujas finalidades imperialistas e invasivas são mais do que
declaradas. Não deixa de ser significativo que, mesmo entre os guénonistas – os continuadores
de Guénon na esfera católica –, um dos principais grupos, chefiado por Daniel Cologne, criou
uma revista (de cujo nome não me recordo), e uma das primeiras atitudes da revista, como
católica, foi dar total apoio à Revolução Iraniana. Vê-se que, mesmo os católicos estão
entrando na “rabeira” de um movimento islâmico. Quando Guénon fala da ocupação do
Ocidente pelo Oriente, ele não está brincando, ele diz exatamente o que está querendo, e esta
é a chave de toda a sua obra. A chave não está na esfera espiritual, não está na esfera
metafísica, está no momento histórico no qual ele intervém com uma ação ao mesmo tempo
sutil, profunda e enormemente poderosa, como se pode ver pelos seus resultados hoje.

Pela primeira vez, começo a entender do que se trata a obra de René Guénon, e muitas coisas
que são expostas [na obra] como pura doutrina metafísica apolítica, supra-histórica etc., não
são bem supra-históricas. Na concepção guénoniana, o advento do Cristianismo é apenas uma
das muitas restaurações cíclicas, e Jesus Cristo é dissolvido na idéia mais geral do Logos divino
– há um Logos divino que se manifesta em muitos lugares, e uma de suas manifestações
chama-se Jesus Cristo. Acontece o seguinte: quando vocês vão comungar, o que o padre diz ao
dar-lhes a hóstia, que aquele é o espírito [de Jesus Cristo]? Não, ele diz que aquele é o Corpo e
o Sangue [de Jesus]. Isso quer dizer que a presença corporal de Nosso Senhor Jesus Cristo é a
coisa fundamental. O que Jesus Cristo promete depois do fim dos tempos e do Juízo Final? A
sua sobrevivência em espírito num paraíso etéreo? Não, promete a ressurreição da carne. [1:00]
Isso quer dizer que a presença histórica de Jesus Cristo naquele tempo, naquele momento (a
presença corporal), é o elemento fundamental, que não pode ser dissolvida numa noção geral
do Logos, que teria aparecido um pouco na Índia, um pouco em outros lugares; embora o
Logos esteja efetivamente presente lá. Ele está presente – em todas as tradições há algo de
divino, alguma manifestação do Logos há, mas o Logos só está presente carnalmente num
momento, num único momento –, e é esta presença física d’Ele que, através de uma operação
física (a presença real na hóstia), garantirá a salvação das almas. Isso é absolutamente
incompatível com a idéia de que o Cristianismo é apenas uma restauração de uma religião
primordial.

Essa religião primordial pode ter existido, mas o elemento fundamental é a presença do Cristo
naquele momento. A Igreja considera aquilo o centro da história. E, se é o centro, não é apenas
um capítulo, uma restauração parcial dentro de uma linha de decadência – é uma coisa
completamente diferente disso. Essa perspectiva corporal está totalmente alheia a Guénon,
porque ele diz que não querem a salvação da alma, querem uma coisa maior, mais elevada:
eles querem transformar-se no Absoluto e no Eterno. É realmente uma divinização do homem,
não através de Jesus Cristo, mas pelas práticas esotéricas — que podem ser hindus, islâmicas
etc. –, e que, em última análise cai no gnosticismo (no sentido estrito da palavra gnosticismo);

6V. minha conferência “The Structure of the Revolutionary Mind”, em


http://www.youtube.com/watch?v=vCW5z5soPkwv
14

ele confunde e diz que está falando de gnose, [diz] que não é exatamente o gnosticismo.
Acontece que essa série de rituais esotéricos não santificarão a pessoa, eles elevarão o seu
nível de conhecimento espiritual. Ninguém fala ali de uma Graça recebida, de uma Graça
oferecida de graça, mas no resultado de um rito oficiado ou por um sheikh islâmico ou por
qualquer outra pessoa.

Quando Guénon diz isto, ele está sendo coerente com sua teoria cíclica, que diz que essas
várias manifestações do Logos são apenas – como tudo está indo sempre para baixo –
restaurações parciais. Ele é bastante coerente nisto, mas onde fica a idéia da restauração da
carne e onde fica a presença corporal, a presença real, de Cristo na Eucaristia? Tudo isso
desaparece, evidentemente. Como poderia haver uma restauração da Igreja Católica sob a
influência desta doutrina? Não poderia, de forma alguma. Seria um pseudocatolicismo, uma
fachada católica com um fundo islâmico ou hindu (hindu através do Islam).

Outra coisa que devo assinalar é que nesses meios tradicionais (tradicionalistas), eu não
conheci uma única pessoa santa. Não conheci sequer uma pessoa que fosse moralmente
notável – ao contrário, só o que vi ali foi briga, intriga, maledicência, um comendo a mulher do
outro, falando coisas horríveis a respeito um do outro, que circulam até hoje, uma coisa
horrível. E freqüentemente circulando em versão mentirosa: há um sujeito que tem um
relatório enorme, em que colocou o meu nome dizendo que eu era um discípulo fiel e o maior
puxa-saco que Schuon teve ao longo de toda a sua vida. Eu? Não, se houve alguém que saiu
dali horrorizado, fui eu. O contato com Schuon foi breve, cerca de um ano e meio, e logo eu já
não queria mais saber, a coisa ali estava muito grave.

Uma organização poderosa daquele tipo se deu ao luxo de mover um processo contra mim:
angariaram seis testemunhas falsas, que depunham com uma segurança absoluta – ao passo
que as minhas testemunhas, que estavam dizendo a verdade, tremiam e davam a impressão
de que mentiam. Se eu não tivesse a prova documental do que eu estava dizendo, teria sido
condenado. O testemunho nada adianta em face de uma prova material. Então, eles saíram [do
processo] totalmente desmoralizados. Depois eu soube que este procedimento de usar
assédio judicial em cima de pessoas desagradáveis era um costume. Que autoridade espiritual
é esta, que precisa usar deste tipo de expediente baixo, que é digno mais do PT? Eu vi ali muita
baixaria. Eu não quero ficar cuspindo na memória das pessoas, porque acho que Schuon tem
uma grandeza. Ao ler os livros dele, vê-se que há uma grandeza; e eu não posso negar que
aprendi muita coisa ali.

Ele apenas não era tão grande quanto imaginava – ele era grande, mas pensava que era dois.
Na verdade, o próprio Guénon teve um postura muito mais modesta do que ele. Embora
Guénon estivesse com a opinião errada, com a doutrina errada, e Schuon com a doutrina certa,
Schuon teve a atitude errada; ao passo que Guénon foi muito mais comedido: nunca se
colocou como mestre espiritual, nunca deu iniciação a ninguém e nunca desfrutou daquela
autoridade física, direta, sobre os discípulos que Schuon desfrutou. A regra nas tariqas é que o
discípulo se coloque nas mãos do sheikh como um cadáver nas mãos do lavador de cadáveres
– no Islam, quando se vai enterrar alguém, o cadáver tem de ser lavado primeiro. O sujeito
está ali tão passivo e obediente quanto o cadáver nas mãos do lavador de cadáveres. Isso para
vocês terem idéia de até onde vai a autoridade desse sujeito.

Schuon determinava, por exemplo, como deve ser a decoração da sua casa, quantos cigarros
se pode fumar por dia, o que é que se pode ou não dizer, enfim, uma interferência brutal e às
15

vezes contraditória ao ponto de levar ao desespero. Um dia aconteceram umas coisas


esquisitas, eu mandei algumas cartas malcriadas e, como não se pode sair da tariqa, apenas
ser saído, consegui sair da maneira mais simples: cometi uma infração intolerável e eles
colocaram-me para fora, o que era exatamente o que eu estava pedindo a Deus, pois não
estava mais aguentando aquilo. O fim da tariqa de Schuon foi uma das coisas mais
deprimentes do mundo – não vou entrar em detalhes. Mas a acusação de pedofilia lançada por
aquele cidadão, eu acho que é injusta, que não é verdadeira.

E, se um homem da estatura de Schuon pode inventar uma acusação falsa contra um pobre
rapaz latino-americano, então, certamente, aos olhos de Deus, ele merece também uma
acusação falsa, altamente desmoralizante. Eu fiquei com pena. Esse rapaz [que moveu a
acusação de pedofilia] foi mais tarde reconhecido como um sujeito desequilibrado. O site que
divulga esse material disse que ele realmente “não batia dos pinos”. E a hipótese de que a
escola tradicionalista seja um fascismo é puro raciocínio metonímico. O tradicionalismo, como
é um instrumento da ocupação islâmica, tem aspectos que lembram, remotamente, o fascismo,
mas são propriedades secundárias, até acidentes. Tentar explicar uma coisa como o
esoterismo islâmico, que tem 1400 anos de idade, por uma coisa que começou em 1920, é
explicar o antes pelo depois, o total anacronismo. Não tem confiabilidade historiográfica real.
[1:10]

Vou continuar a leitura.

A ignorância e o descaso quanto à tensão acima apontada faz com que, para os discípulos e
admiradores do mestre [eu me considero um admirador ainda, tanto dele quanto de Schuon, e
não estou dizendo nada para desmoralizá-los], a segunda dessas linhas decorre da primeira
como conseqüência óbvia e incontornável (...)

Há a doutrina metafísica, dentro dela a doutrina dos ciclos e da doutrina dos ciclos decorre a
destruição do Ocidente e sua ocupação pelo Oriente. Guénon estabelece uma hierarquia muito
clara entre o que é a metafísica, que trata de realidades eternas, absolutas e imutáveis, e a
mera cosmologia, que é a história do “acontecer cósmico”. Mas, no caso, ele está
condicionando a metafísica à cosmologia. Se ele diz que a próxima etapa do desenvolvimento
cosmológico é fatal e imutável e é a restauração da tradição por via do Oriente islâmico, então,
significa que aquela esfera metafísica do absoluto não é tão absoluta assim, está condicionada
a um fator temporal e evolutivo. Ou seja, a história está, agora, amarrando a eternidade,
comprometendo-a a realizar certas coisas dentro de um prazo cíclico pré-determinado.

(...), de modo que, entre eles [os discípulos], mesmo os católicos sinceros acabem servindo ao
projeto da islamização global, seja por que vêem realmente nela a única via para a redenção
espiritual do mundo e da própria Igreja Católica, seja porque não chegaram a elaborar
claramente a articulação entre esses dois aspectos do ensinamento guénoniano, a qual, na
verdade, é das mais problemáticas.

A meta da obra de Guénon é, em suma, islamizar o Ocidente em nome de uma doutrina


metafísica universal que transcende as fronteiras confessionais, e fazê-lo de tal modo que a
islamização pareça, nas condições do mundo presente, a única alternativa coerente com essa
doutrina.

Assim, tudo vai acabar indo para o projeto islâmico ou para o projeto eurasiano (que é a
mesma coisa). Mesmo um católico ex professo como Daniel Cologne acaba aplaudindo, como
grande acontecimento do mundo contemporâneo, a Revolução Iraniana.
16

É assim que uma doutrina voltada nominalmente ao eterno e supratemporal se torna uma das
intervenções mais fundas, eficazes e devastadoras já vistas no mundo da História e da política.
A passagem entre esses dois níveis atravessa uma rede de ambigüidades e dificuldades que, se
não percebida e analisada, não deixa ao leitor outra alternativa senão ser devorado pela
Esfinge.

Admiro muito o trabalho da Esfinge, aprendi muito com ela, mas não é bom ser devorado:
podemos vê-la de fora, de algum modo. Alexandre Duguin ficou anos estudando René Guénon
e a idéia dele era juntar tudo o que fosse anti-ocidental: Islam, Comunismo, Nazismo,
Fascismo, todos os nacionalismos de vários lugares e jogar tudo contra o Ocidente. Isto é a
ocupação do Ocidente pelo Oriente. Todas as afetações de atitude apolítica de Guénon – não
digo que fossem falsas – eram uma precaução para que os efeitos de sua obra não fossem
estrangulados em tempo por uma polêmica política que iria rebaixar o nível da coisa. Porém, a
partir da morte de Guénon, nas décadas seguintes, o fator político foi se condensando e se
adensando cada vez mais em movimentos da chamada “ultra-ultra-direita”, entre os quais o
próprio Alexandre Duguin.

Ao explicar essas coisas aqui é que se vê como a intelectualidade brasileira – tanto


esquerdistas quanto liberais e conservadores – está longe de ter a menor ideia do que se
passa no mundo. O Brasil virou uma espécie de “bolha assassina”: a bolha come tudo, e o que
entra dentro dela morre. Não há a mais mínima esperança de que as pessoas entendam essas
coisas. Imaginem, por exemplo, um sujeito marxista que, de repente, leia um livro de René
Guénon. Caso entenda alguma coisa, ele levará um choque e não continuará marxista nem
mais cinco minutos: dirá que descobriu a luz, e virará um tradicionalista. Coisa que, na
verdade, eu nunca virei. Eu entrei lá experimentalmente, de boa fé; o simples fato de Schuon
aceitar a possibilidade de que a pessoa entrasse lá mas não abjurasse da Igreja Católica (ele
mesmo dizia que aquilo não era uma conversão, era outra coisa), [possibilitou] deixar a porta
aberta para eu sair. Ainda que eu não pudesse sair por minha iniciativa e devesse cometer
alguma inconveniência para poder ser tirado de lá.

Esta é, em parte, a história dessa minha experiência, que me custou caro e durou anos a fio. O
processo levou seis anos, durante os quais o meu primeiro advogado ficou louco e quis matar
uma das testemunhas; o segundo advogado teve um enfarte e ficou totalmente inutilizado; o
terceiro advogado teve um enfarte e morreu. E o quarto advogado, que aliás era genro do
terceiro, falecido, foi lá e encerrou o processo brilhantemente, fez o que tinha de fazer,
finalmente: apresentou o “papelzinho”, disse que estava ali a prova e que se acabasse tudo
aquilo. O juiz, na mesma hora, deu a sentença; o advogado ficou com tanta pena de mim que
nem cobrou nada, disse que eu já havia sofrido demais com aquilo, estava há seis anos
naquela porcaria.

*******

Aluno: Eu queria que você desenvolvesse, minimamente que fosse, a questão da espiritualidade,
da autenticidade, a expressão do poder de Deus através do Islam: como acontece isso, se é que
acontece.

Olavo: Não é [apenas] do Islam, vê-se isto no Islam, no Hinduísmo, no Budismo etc. Algo da
espiritualidade, algo do Espírito Santo tem ali. Mas acho que já é algo muito parcial, filtrado,
alterado, modificado: é uma coisa que você descobre a verdade ali no coração de cada uma
17

dessas tradições. Existe um elemento que, curiosamente, contrasta muito com a perspectiva
de Guénon, que é a ação de Deus no mundo físico. Guénon raramente fala sobre isto. Por
exemplo, os milagres da Igreja Católica: [para ficar apenas] no século XX, vemos alguns
milhares de casos de estátuas da Virgem que apareceram chorando e que foram submetidas a
todos os tipos de teste; não havia treta, não havia máquina, não havia coisa nenhuma, eram
lágrimas humanas verdadeiramente. É como diz o autor Pierre Jovanovic, nunca se viu um
anão de jardim ou uma estátua do Buda chorar. Também nunca se viu, em nenhuma tradição
do mundo, o fenômeno dos corpos imaculados dos santos que são exumados 50, 60, 70 anos
depois e que estão absolutamente intactos. Isto nunca aconteceu em nenhuma tradição.
Também não há um caso de um único homem como o Padre Pio, que operou milhares e
milhares de milagres confirmados; e igualmente não há nada nessas tradições como a
Aparição de Nossa Senhora em Fátima, testemunhada por 70 mil pessoas, cujas profecias
anunciadas se cumprem milimetricamente.

Essa ação no mundo, dentro de uma perspectiva guénoniana, pode até parecer uma coisa
desprezível. Porém, isso é o centro do Cristianismo: a ação física de Deus no mundo e a
ressurreição dos corpos são a essência do Cristianismo. Não se trata de uma ascensão
espiritual de tipo plotiniana, em que o sujeito vai para o céu e não volta nunca mais. Não é
realmente assim. O que Jesus promete no Apocalipse é um novo céu e uma nova terra, Ele não
falou só um novo céu. É a ressurreição dos corpos em uma nova terra. A perspectiva
guénoniana — puramente ascensional, de você se transformar em um Brahman e retirar-se
do mundo da manifestação para sempre — tem pouco ou nada a ver com essa perspectiva
cristã. [1:20]

Eu já citei muitas vezes aquele versículo do Evangelho segundo São Mateus em que João
Batista, que está na cadeia, mandou os discípulos perguntarem a Jesus se era Ele mesmo o
Messias que estavam esperando ou se deveriam esperar um outro. E Jesus lhes respondeu que
voltassem e contassem para João o que eles tinham visto e ouvido: o paralítico andar, o cego
enxergar, o sujeito que estava leproso aparecer limpo. Eles viram, e isto é o método científico:
Jesus está se referindo a fatos da ordem física, que mostram a presença e a ação de Deus no
mundo físico. E essa presença e essa ação se tornam, sobretudo, manifestas com a vinda de
Cristo e com as sucessivas intervenções de Nossa Senhora que estão ficando cada vez mais
freqüentes. Reduzir tudo isto a apenas mais uma restauração cíclica não me parece muito
proporcional.

Se for "pelos frutos os conhecereis", eu não vi frutos de santidade no meio tradicional. Nada.
Aliás, não vi nenhuma daquelas pessoas saber nada que não pudessem aprender em livros.
Argumentam [no meio tradicional] que não adianta o aprendizado teórico, é preciso passar
pela disciplina e pela iniciação. Bem, aqueles que passaram pela disciplina e pela iniciação só
sabem o que está escrito nos livros. Nada há ali que precise de uma intervenção divina para se
ficar sabendo. Por exemplo, será que foi o Espírito Santo que ditou para René Guénon a idéia
de que, por volta de 1930, a China jamais seria bolchevista? Toda essa visão que ele tem do
Oriente é a visão de um Oriente idealizado, e não um Oriente historicamente manifesto. Já em
1950, Julius Evola dizia que o Oriente de que Guénon falava era um Oriente idealizado, porque
o Oriente atual não tinha nada para ensinar, aquilo era uma bela porcaria. A revolução
comunista, a revolução cultural na China, a ditadura soviética, e depois a revolução islâmica,
esse caos todo é o que eles têm para nos ensinar? Eles vão restaurar a ordem que eles mesmos
não têm? O Evola disse isso por volta de 1952, e Guénon ainda estava vivo quando ele disse
isso.
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Esse Oriente de Guénon é um Oriente idealizado, e, ao aparecer como uma figura (um
símbolo) que dará autoridade ao Oriente real, ao Oriente histórico, para ocupar o Ocidente,
[torna-se] uma ideologia. É característico da ideologia confundir o idealizado com o real,
[como por exemplo] dar a uma autoridade histórica, real, política, econômica etc., o prestígio
de um Oriente mítico. Isso é um raciocínio tipicamente ideológico e há um forte componente
ideológico em René Guénon. Esta operação que ele fez obteve os resultados mais
espetaculares do mundo; o que ele fez sozinho superou até a KGB. Em 1930, quando ele fez na
Sorbonne a conferência sobre metafísica oriental, ninguém ligou a mínima, diziam que o
Oriente e o Islam estavam acabados. E vinte anos depois, [o Oriente e o Islam] estavam
ocupando tudo. Ele fez sozinho uma coisa que a KGB inteira teve dificuldade para fazer. Logo,
não se pode negar o gênio estratégico deste homem – mais gênio estratégico do que gênio
metafísico. A estratégia dele é mais inteligente e mais correta do que sua metafísica.

Aluno: Mas para destruir o Cristianismo, não?

Olavo: Não para destruir, pois ele nunca quis destruir o Cristianismo. Ele quis absorvê-lo. Ele
acreditava mesmo que a fonte do Cristianismo era uma tradição primordial. Essa tradição
primordial só tem como representantes dignos, hoje, o Islam, alguns poucos sobreviventes do
hinduísmo e a maçonaria. Tratava-se de resgatar o Cristianismo inserido dentro deste quadro.
Isto não deixa de ter a sua similaridade com a política da ONU e demais globalistas que
querem transformar a Igreja em uma espécie de filial de uma religião mundial. Não digo que
René Guénon aprovasse isso, ele não queria colocar a Igreja Católica sob o comando da ONU,
mas colocá-la sob o comando da autoridade espiritual islâmica. É claro que nós podemos tirar
daí muitas conclusões que podem ser úteis para a interpretação e compreensão da própria
situação da América Latina e do Brasil, mas não vamos fazer isso hoje porque não dá mais
tempo.

Até a semana que vem e muito obrigado.

Transcrição: Evandro Santos de Albuquerque, Gyordano Montenegro Brasilino, Tiago Aurich.


Revisão: Carla Farinazzi

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