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Improcesso (Livro Digital)

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REITORA
Ângela Maria Paiva Cruz
VICE-REITOR
José Daniel Diniz Melo
DIRETORIA ADMINISTRATIVA DA EDUFRN
Luis Passeggi (Diretor
Wilson Fernandes (Diretor Adjunto)
Judithe Albuquerque (Secretária)
CONSELHO EDITORIAL
Luis Passeggi (Presidente)
Ana Karla Pessoa Peixoto Bezerra
Anna Emanuella Nelson dos S. C. da Rocha
Anne Cristine da Silva Dantas
Christianne Medeiros Cavalcante
Edna Maria Rangel de Sá
Eliane Marinho Soriano
Fábio Resende de Araújo
Francisco Dutra de Macedo Filho
Francisco Wildson Confessor
George Dantas de Azevedo
Maria Aniolly Queiroz Maia
Maria da Conceição F. B. S. Passeggi
Maurício Roberto Campelo de Macedo
Nedja Suely Fernandes
Paulo Ricardo Porfírio do Nascimento
Paulo Roberto Medeiros de Azevedo
Regina Simon da Silva
Richardson Naves Leão
Rosires Magali Bezerra de Barros
Tânia Maria de Araújo Lima
Tarcísio Gomes Filho
Teodora de Araújo Alves
EDITORAÇÃO
Kamyla Alvares (editora)
Alva Medeiros da Costa (supervisora editorial)
Natália Melão (colaboradora)
Suewellyn Cassimino (colaboradora)
REVISÃO
Wildson Confessor (Coordenador)
Marineide Furtado
DESIGN EDITORIAL
Michele Holanda (coordenadora)
Wilson Fernandes de Araújo Filho (capa e miolo)

FOTOS
Ariane Mendes
Janine Leal
Taynah Barros
Viviane Dantas
William John
Patrícia Leal
(Organizadora)

IMPROCESSO
Diálogos dramatúrgicos em improvisação
Coordenadoria de Processos Técnicos
Catalogação da Publicação na Fonte.UFRN / Biblioteca Central Zila Mamede

Improcesso [recurso eletrônico] : diálogos dramatúrgicos em improvisação /


Patrícia Leal (Organizadora). – Natal, RN : EDUFRN, 2017.
92 p. : PDF ; 11.700 Kb.

Modo de acesso: http://repositorio.ufrn.br


ISBN 978-85-425-0685-3

1. Dança. 2. Improvisação (Dança). 3. Dramaturgia. I. Leal, Patrícia.

CDD 793.3
RN/UF/BCZM 2017/02 CDU 793.3

Todos os direitos desta edição reservados à EDUFRN – Editora da UFRN


Av. Senador Salgado Filho, 3000 | Campus Universitário
Lagoa Nova | 59.078-970 | Natal/RN | Brasil
e-mail: contato@editora.ufrn.br | www.editora.ufrn.br
Telefone: 84 3342 2221
Agradecimentos
A realização de um projeto de residência como este envolve
muitas pessoas e esforços a quem agradeço imensamente:
Em primeiro lugar, aos participantes da residência intér-
pretes-criadores sem os quais nem a dramaturgia, nem a pes-
quisa em improvisação propostas poderiam existir. Obrigada
Karenine Porpino, Larissa Marques, Marcílio Vieira, Renato
Rocha, Leila Araújo, Ariane Mendes, Anderson Pessoa, Kleber
Dessoles, Renato Carvalho, Heather Dea Jennings, Christina
Bogiages, Naira Ciotti, Ana Cláudia Viana, João Alexandre Lima
e, especialmente, à convidada externa do evento, Clara Trigo.
Obrigada à equipe de monitores pela disponibilidade e
documentação do evento: Ariane Mendes, Janine Leal, Taynah
Barros, Viviane Dantas e Wilian John.
Obrigada à Teodora Alves e ao NAC pelo apoio. A Ébeson
Rolin pela diagramação do material gráfico da residência.
Obrigada à Marineide Furtado pela revisão dos originais
dessa publicação e a Taylor Santos e Amauri Gleydson pelo
suporte técnico.
Obrigada à parceria da Escola de Música da UFRN que,
através do professor Anderson Pessoa, tornou possível a gra-
vação e divulgação da produção musical em áudio em CD que
acompanha este exemplar.
Obrigada ao Departamento de Artes, à coordenação da
licenciatura em Dança e ao Programa de Pós-graduação em
Artes Cênicas da UFRN pelo apoio ao evento.
Obrigada à Pró-reitoria de Extensão pelo apoio financeiro
do edital de eventos, sem o qual essa publicação não seria pos-
sível, em especial à Nely Ferreira pela paciência e competência
no suporte técnico.
Obrigada à toda equipe da editora da UFRN, em especial à
Margarida Dias que desde o início acreditou na seriedade e ino-
vação deste projeto, apoiando-o. Obrigada também a Enoque e
Jimmy Leão.
Obrigada ao grupo de pesquisa Cirandar pelo incen-
tivo e apoio à pesquisa e, também, pelo afeto que nos torna
artistas-docentes-pesquisadores.
Apresentação
No presente livro, documentamos o processo de uma residên-
cia artística performática cujo objetivo foi investigar a lingua-
gem da improvisação e a possibilidade dramatúrgica desta
linguagem ancorada numa perspectiva dialógica. Para promo-
ver um processo criativo colaborativo e plural, convergente
ao diálogo, participaram deste projeto, professores e alunos
de pós-graduação e graduação dos cursos de dança e música
da UFRN, artistas de dança da cidade de Natal e uma convi-
dada externa, Clara Trigo, de Salvador, Bahia. “IMPROCESSO:
diálogos dramatúrgicos em improvisação” é parte de um pro-
jeto maior, que investiga processos de criação em dança, valo-
rizando aspectos dos sentidos da percepção como estímulos
geradores da dança, bem como, a improvisação como lingua-
gem a partir dos percursos metodológicos da “Dança pelos sen-
tidos” (2012). IMPROCESSO dá continuidade aos procedimentos
metodológicos desta pesquisa, desdobrando-se também do
projeto de extensão “Jam Session: momento cênico em movi-
mento”, dedicado à democratização da improvisação em sua
potencialidade integradora entre interpretação e criação atra-
vés da realização de Jam Sessions. Em IMPROCESSO, a imersão
em uma residência artística, permitiu a pesquisa de linguagem
e dramaturgia, culminando na realização de apresentações
públicas num formato que denomino Jam Sense, que se difere
da Jam Session pela possibilidade dramatúrgica de construção
de sentidos já melhor elaborada. Compreendemos a constru-
ção de sentidos em dança pela sua materialidade e, antes de
tudo, a partir do intérprete-criador em suas singularidades
biológicas, históricas, sociais, culturais... Neste contexto, a
dramaturgia na dança centra-se no corpo e na multiplicidade
possível dessas organizações em movimento na criação; seus
significados são polissêmicos e suas potencialidades interpre-
tativas múltiplas. No Dossier Danse et Dramaturgie, do periódico
Nouvelles de Danse, o autor Alain Neddam defende que:
“[...] os efeitos de significação não podem ser nem apri-
sionados nem evacuados, se há sentidos, eles deverão
ser fluidos, erráticos, frutos da vontade e do acaso. Em
dança, o intérprete – mais ainda que o coreógrafo – é
frequentemente o guardião do sentido [...] é pelo baila-
rino que as coisas circulam e nos atravessam, [...] sem
jamais criar raiz numa significação unívoca (NEDDAM,
1997).
A concepção da elaboração de sentidos, neste caso, tam-
bém se articula com um saber sensorial, valorizando os sen-
tidos da percepção, a partir de uma metodologia de pesquisa
que os coloca em primeiro plano “a dança pelos sentidos” (Leal,
2012). A dialogia proposta como potencialidade dramatúrgica
no projeto possibilitou, também, relações entre as proposições
da convidada com a pesquisa da proponente, bem como, múl-
tiplas relações entre os intérpretes-criadores, permitindo um
interfluxo mais aprofundado em linguagem de improvisação
em dança.
Também é importante destacar a participação do Grupo
de improvisação livre da EMUFRN, coordenado pelo professor
Anderson Pessoa, da Escola de Música da UFRN, que pesquisa
a linguagem da improvisação contemporânea, elementos de
indeterminação e da improvisação musical livre, relacionadas
à música contemporânea, e colaborou neste processo de inter-
faces entre linguagens artísticas.
A documentação escrita e imagética fez parte da dialogia
e possibilidade dramatúrgica desde o início da residência. As
atividades foram fotografadas, filmadas, as músicas foram
registradas em um CD (que acompanha este exemplar) e
os participantes foram desafiados a aproximarem a linguagem
escrita em palavras dessa pesquisa de linguagem em impro-
visação. A forma da escrita, neste sentido, entra em primeiro
plano como conteúdo na pesquisa sobre como escrever sobre
dança. E, como contemporâneos, seja na dança, na música, na
arte em improvisação; abrimos este livro com alguns de nossos
questionamentos: Como aproximar a linguagem acadêmica da
linguagem da improvisação? Como valorizar a dança enquanto
área de conhecimento a partir de um modo de reflexão escrita?
Convidamos você leitor a improvisar conosco.
Entre!!!

Patrícia Leal
Sumário

Diálogos dramatúrgicos em improvisação________________ 13


Clara F. Trigo
Um convite lisonjeiro e desafiador______________________ 17
Ariane Mendes
Expectativa – Palavras – Sentidos – Processo – Criação_____ 21
Anderson Pessoa
Processos de improvisação_____________________________ 25
Naira Ciotti
Menina dos olhos_____________________________________ 29
Patrícia Leal
Experimentar (-se) Improcesso de dança_________________ 39
Marcilio de Souza Vieira
O sensível do corpo em uma experiência de improvisação__ 51
Larissa Kelly de Oliveira Marques Tibúrcio
Diálogos Dramatúrgicos em Improvisação________________ 55
Residente: Renato de Oliveira Rocha
Encontro____________________________________________ 63
Leila Araújo
Free Improvisation____________________________________ 71
Christine Bogiages
Primeiro dia_________________________________________ 77
Ana Cláudia Viana
Dança, cena e outras faces da existência_________________ 87
Karenine de Oliveira Porpino
Diálogos dramatúrgicos
em improvisação
Clara F. Trigo

Condensação-território-possibilidades-movências
Iniciamos o trabalho em roda, com breves explicações
da Profa. Dra. Patrícia Leal sobre a proposta de residência
IMPROCESSO: Diálogos dramatúrgicos em improvisação.
Um interesse bem específico dessa residência de três
dias, proposta por Patrícia, foi a pesquisa sobre a construção
de dramaturgias cênicas, em tempo real. Em poucas palavras,
Patrícia vem trabalhando a improvisação como cena e pesqui-
sando como as regras e organizações da cena podem emergir
do momento presente, no ato do improviso, pautadas pelo diá-
logo imediato com o ambiente, pessoas envolvidas, audiência,
contexto.
Como “provocadora convidada”, propus que fizéssemos
nossas primeiras apresentações pessoais através do movi-
mento, num aquecimento improvisado, no qual todos improvi-
sam e todos seguem uns aos outros, num jogo que tem a regra
inicial (seguir e ser seguido) apenas como ponto de partida
para que se estabeleça um sistema coletivo de improvisação,
com regras que emergem do próprio fazer, do diálogo entre os
participantes, de maneira des-hierarquizada.

13
IMPROCESSO

Moldura passagem
As propostas dramatúrgicas se estabelecem, perecem ou
transformam-se pela interdependência entre movimento indi-
vidual e coletivo, entre escuta atenta e propositiva, entre coin-
cidências e contrapontos. 
A dramaturgia se faz pelas contaminações que ganham
permanência, ainda que se dissolvam em seguida, fazendo
emergir novas propostas, num ciclo orgânico, em constante
diálogo e em constante mutação. Ela transforma-se pela alter-
nância de lideranças, pela mistura de movimentos vindos das
motivações pessoais e das motivações trazidas pelo outro, pelo
esgotamento de uma proposta.
Fazer a dramaturgia “funcionar” a partir do exercício
de improvisação de um grupo heterogêneo de pessoas que não
costumam trabalhar juntas exige a criação de alguns vocabu-
lários comuns. 

Côncavo acesso
Conhecermo-nos pelos nossos jeitos de mover, parecia
ser a melhor maneira de começar, pela possibilidade de valo-
rizar e acessar aspectos das nossas vidas que se exibem pelo
corpo em movimento e se percebem pelos sentidos. Seria o
caminho inicial para a construção desse esboço de “vocabulá-
rio” compartilhado.
Através do corpo em movimento, necessariamente, aces-
samos jeitos de pensar, formas de estar no mundo e intimi-
dades capazes de trazer qualidades de informação diferentes
das trazidas pelo “cartão de visita”, que revela apenas nossa
“ocupação”.
Para quem é possível jogar o bastão? Em quem é possível
tocar? Quem aguenta o risco de entregar-se à guia do outro de
olhos fechados? Quando é possível receber o peso do corpo do

14
IMPROCESSO

outro? Quem, quando, de que forma são propostos novos cami-


nhos? Quem segue? Quem se opõe e de que forma?
Pela experiência corporal, mobilizamos rápida e profun-
damente as doses de resistência, aceitação, confiança e tantos
outros sentimentos-pensamentos-movimentos com os quais
lidaremos – em nós mesmos e nos outros – a partir de um tra-
balho experimental de improvisação feito em grupo.
É necessariamente emotivo-mobilizador o trabalho de
improvisação em dança. É possível chegar a um sentido muito
refinado de conhecimento-reconhecimento do outro e de nós
mesmos, o qual é muito bem vindo para o desenvolvimento do
trabalho artístico.
Compusemos nosso universo e reconhecemos nosso voca-
bulário comum também através do jogo de livres associações
entre imagens e palavras1. A partir do nosso banco de pala-
vras, criamos novas imagens poéticas e um novo universo de
sentidos compartilhados.

Libido liberta
Nessa prática, a apropriação do material alheio, ao con-
trário de desfeita, é comportamento bem-vindo, é regra. A
cópia do movimento do outro é também estratégia de reco-
nhecimento de si e do outro.
Esse jeito de conhecer-aquecer o corpo gera conexão
entre todos.

1 Através da observação de obras de artistas visuais, liberamos pala-


vras em voz alta, que compuseram um banco coletivo de palavras,
utilizado em seguida para a composição escrita individual.

15
IMPROCESSO

Degustar retalhos
Foi interessante perceber como os disparadores iniciais
foram se diluindo e se transformando a partir do diálogo
mudo, instalado por outros sentidos que não o acordo verbal.
Instalados também pela e com a música, improvisada, soprada,
experimental, espaçosa, metálica, conflitante e sedutora.
Esse diálogo, atento às sutilezas de sentidos, na ausên-
cia de palavras, cheio de espaços para múltiplas possibilidades,
fez emergir de cada um de nós toda a disposição para aceitar
o outro, toda a generosidade para ceder, toda a coragem para
propor.
E nesses dias em que o movimento prevaleceu como
forma de conhecimento, reconhecimento e autoconhecimento,
não cabiam hierarquias institucionais, cabia apenas o alimento
do grupo para as potências de cada um.

Clara F. Trigo graduou-se em Dança e é mestranda em Artes


Cênicas pelo PPGAC - UFBA. É criadora do Sistema Flymoon®,
equipamento e formação. Dirige e produz anualmente o qua-
dro SUA DANÇA, exibido pela TVE-BA. É dançarina, coreógrafa
e diretora de vídeos de artistas multilinguagens. Coordenou
diversos projetos de dança em Salvador. Vem apresentando
seu trabalho em festivais, conferências, seminários, palestras,
workshops e cursos de formação em todo o Brasil e também nos
EUA, Europa e América Latina. Fundou a Associação Conexões
Criativas. +info: claratrigo.com.br

16
Um convite lisonjeiro e desafiador
Ariane Mendes

Começo, seguindo.
Me no
perdia
modelo e
fugia para meus
próprios movimentos,
na verdade variedade
do que eu seguia.
Não estipulei regra de tempo, nem de nada.
Deixei que os comandos chegassem até mim.
ATENÇÃO!!!
Atenção do movimento era
a falta de atenção da música.
Mas os sons agÚdos
invadem meus ouvidos.
E seus graaaves... Será a
“Sagração da Primavera...?!
Sons.
Ssons.
Sssons.

17
IMPROCESSO

Sssssssssssssssssssssons.
Sssssssssssoooonssssss.
Sõnsssssssssss.
SONS!
Improvisar
Antes: Depois
Medo Desafio
Timidez Aventura
Longe do cotidiano Conhecimento
Improvisar é mais do que movimentos aleatórios justapostos
para exibição visual. É agregação de conhecimento produzido por
meio corporal, por meio de si mesmo, e adquirido no momento de pro-
dução. É estar preparado para ouvir o outro. É dizer o que se precisa
dizer. É se calar quando seu assunto terminar. É saber que você não
é o único responsável pelo andamento das coisas. É saber que não
ser o único não desobriga sua responsabilidade. Enfim, improvisar é
aprender a viver.
Convívio dançante
Música contemporânea
Admiro os que guiaram
Aprender com colegas
Conhecer mais
Imagens geradoras de pensamentos, nas entrelinhas.
Parecia dança contemporânea, nas entrelinhas.
A liberdade nos foi concedida, nas entrelinhas.
E das entrelinhas surgiram ideias...
Bando de elos, ferro, ferramentas móveis, e até ferrugem.

18
IMPROCESSO

Um colorido contraste quente!


A improvisação suave de uma manhã de quarta.
Suavemente intensa...
Intensamente suave...
Agradavelmente!
Me acompanhará em cada passo!
Ariane do Nascimento Mendes cursa o último
período do Curso de Licenciatura Plena em Dança
na UFRN, e é bailarina-intérprete no
Projeto de Extensão Grupo de Dança
da UFRN.

19
Expectativa – Palavras –
Sentidos – Processo – Criação
Anderson Pessoa

Expectativa
O que?
Por quê?
Qual a direção?
Qual o resultado?
Em que sentido estamos criando?
Em que se transforma nossa atuação?
Como somos percebidos e como percebemos?
Primeiro as perguntas.
Concreto?
Prefiro amorfo.
Linhas que se embaralham sem deixar que ninguém per-
ceba aonde se vai ou de onde se vem, assim como os corpos que
se movem e se entrelaçam.
Uma geleia viva...
de gente viva...
movimentando-se pelos sons...
Como se pudéssemos simplesmente manipulá-los...

21
IMPROCESSO

Mãos que se agarram às minhas pernas querendo me


levar ao chão ou tapam meus olhos privando-me da visão do
espaço e dos movimentos, fazendo-me mergulhar em mim
mesmo, guiando-me pelo espaço.
Sons
Movimentos...
Caminho pelo espaço
sem expectativas.
Palavras
Instigam
Induzem
Manipulam
Concretizam
Direcionam
Provocam
Dão sentido?
Sentidos
Ativamos os sentidos.
Audição
Visão
Tato?
Surpreso...
Contato
Cabelos na careca, cabeça nas costas...
Olfato.
Música e movimento com cheiro de anis.
Misturam-se os sentidos
Flores que posso beber

22
IMPROCESSO

Risos que posso cheirar


Música que posso tocar
Visão que faço soar de onde observo e interfiro sem
que minha presença seja realmente percebida.
Preciso de um novo esconderijo.
Processo
Não cessa.
Aguçar os sentidos e estabelecer relações com o que propo-
mos e com o que percebemos.
Perceber a si mesmo....
ao outro...
à parte..
a todos.
Perceber o som que produzem....
as palavras que pronunciam...
os movimentos..
os gestos.
E suas intenções.
Interferir, propor, impor...
Transforma.
Criação...
Anderson Pessoa é saxofonista, arranjador, compositor e edu-
cador. Formou-se bacharel em saxofone pela Universidade de
Brasília e tem mestrado em Jazz Performance pela Universidade
de Louisville (EUA) onde lecionou como professor substituto.
Atualmente é professor da Escola de Música da UFRN nas
cadeiras de saxofone e improvisação onde mantém um grupo
de estudos em Improvisação Livre. Atua como instrumentista
solo, de câmara e em gravações.

23
Processos de improvisação
Naira Ciotti

Norbert Elias (1994) aponta para a necessidade de se abando-


nar a idéia de que a sociedade é uma estrutura existente ante-
rior aos indivíduos. A sociedade é um todo, mas não um todo
unificado, na medida em que repleta de contradições. Mas
também, não se pode pensar a sociedade como uma obra de
sujeitos individuais.
A complexidade do mundo não pode ser concebida na
forma de níveis, camadas, esferas, mas antes, enquanto uma
realidade fibrosa, uma trama de redes e capilaridades onde é
impossível distinguir onde o local termina e o global (ou outras
escalas) inicia.
A reunião dos corpos e, consequentemente, de suas expe-
riências no espaço de compartilhamento de conhecimento,
não ocorre a partir do comando de uma inteligência integrada
sobre aspectos de liderança (JONHSON, 2003), cada corpo é
educando e educador simultaneamente. A visão diferenciada
da prática como ato performativo, que se configura como uma
rede de experiências entre docentes e discentes vistos como
flutuações de um espaço relacional e indicadores, simultane-
amente individuais e coletivos, do processo. Essa proposição
se caracteriza por uma prática de formulações entre todos os
sujeitos atuantes, que buscam através dos instrumentos e dos
conteúdos trabalhados o irromper de desterritorializações
propiciadas por cada singularidade que dança, canta ou toca

25
IMPROCESSO

seu instrumento musical. Os processos como funções con-


tínuas, fluxos de experiências heterogêneas que organizam
interfaces vivenciais de investigação de um objeto.
Trabalhamos com improvisação de textos. Escrever,
ver, falar. Proposição de diversas imagens geraram diferentes
escrituras. Geração de textos que foram escritos associados à
música. Aparecem os bicos, cristas e atravessamentos.
Como afirma Michele Di Stefano do grupo italiano MK:
Parece suficientemente óbvio que atualmente o espe-
táculo sustente uma auto poiesis – isto é, uma autono-
mia de métodos de invenção da técnica para sustentar
o momento da visão. Porém, queria sublinhar que, na
perspectiva adotada pela dança, a perspectiva é que o
corpo seja um problema e não um instrumento a ser
direcionado, isto é, reinventado a cada novo projeto. A
opacidade do corpo em função da abolição do discurso
sobre o corpo, o corpo é sempre nutrido de um imaginá-
rio sujeito a alterações dos estados corporais e sua per-
cepção ... (minha tradução, FANTI/XING, 2003, p. 203)

O abaporu passa livre


Borda a alavanca na noite-prisão

Listras torturam a fórceps meus olhos iluminados

26
IMPROCESSO

O movimento
O moviment
O movimen
O movime
O movim

Seios-monstro nas pernas

Curva (risos) meus bicos

27
IMPROCESSO

Referências
CIOTTI, Naira. O híbrido professor-performer: uma prática. Dissertação
de mestrado Comunicação e Semiótica, PUC-SP, 1999.
ELIAS, NORBERT (1994). Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar. 
FANTI/XING, Silvia (Org.) (2003) Corpo sotile: Uno sguardo
sulla nuova coreografia europea.Milano: Ubulibri.

NAIRA CIOTTI é professora-performer, coordenadora do


Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas – PPGArC
da UFRN, onde desenvolve as pesquisas: EMA: Emergências
Artísticas e Pedagogias da Performance. Doutora sob a orien-
tação dos professores Renato Cohen e Christine Greiner pelo
Programa de Comunicação e Semiótica da PUC/SP. Ganhou
prêmio de Melhor Pesquisa de Iniciação Científica: orientador
concedido pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
em 2013.

28
Menina dos olhos
Patrícia Leal

Encontro. Momento em suspensão. Teu olho no meu e


enfim me desenho em teu gesto em vão, borrão, um não ao
contrário.
Visão... percepção tão pequena, quero mais tato, respiro,
te ouço em teus músculos, cor, pernas, suor... e também dis-
traio lá fora a conversa ruído conteúdo interno
do que também é meu.
Muitos pontos, focos, articulações transitam, perpas-
sam, sobrepassam, cansaço.
Às vezes queria o silêncio, uma pausa, um sopro
qualquer,
uma pequena morte em súbito expirada para poder
renascer com raiz, com força.
Tão ar, tão aéreo, tão muitas vezes dissonantes e
constantes.
Paro e então posso ver teus olhos, limpar o suor, mexer
os cabelos, encostar em teu corpo e saber que há gente ali.
Gentes, muitas, no plural.
Muitas, todas, informações múltiplas falando todas
juntas em minhas pernas, braços, em meus pés e então posso
perceber que sou.

29
IMPROCESSO

Improvisar é assim... articular conteúdos infin-


dos, movediços. Permitir e propor. Entregar, receber.
Compartilhar e apropriar-se.
Criar autonomias autogeradoras.
!!!
Sistemas estabelecem-se, lentos, aos poucos.
Deitadas sereias elevam seus braços.
Lado a lado, pontos em reta.
Organizam-se.
Sinto a curva, mesmo na reta, só vejo a curva.
Entro no sistema, complexo.
Organizo meus pontos em braço de sereia e curvo.
Sistema lento, meu corpo acelera, curva, abre, quadris
em flor.
Pontos muitos, sinuosidades em contraponto contínuo
de mulher sereia que acelera.
Contrapõe ao todo até encontrar um, o indivíduo, o
outro, ele.
Acelerações, multiplicidade de focos, muitas microaten-
ções entre dois corpos falantes, tagarelas, entre vozes, uma
única pulsação.
A pulsação organiza a fala e os muitos pontos dos pés e
das cabeças são agora únicos em melodia.
A melodia sopra reta em sistema complexo em curvas
das sereias.
As palavras, canto, brotam, fluxo aéreo, movimento
sentido, sentidos, dramaturgia que se constrói ponto a ponto,
consciência ampla e fina, escuta e prontidão que nos faz
coletivo
...
30
IMPROCESSO

Tristeza, uma tristeza infinita. A vida segue, o corpo é o


mesmo, adiciona, integra, complementa. Tristeza, separação,
nascimento, partos de textos sobre o processo.
Como traduzir nessa linguagem entre preto no branco,
linhas, formas, sentidos, metáforas, conceitos, significa-
dos... toda intero-exteriocepção possível do corpo criando,
movendo em fluxo?!?
A solidão da escrita, cada um num encontro consigo,
suas palavras, mundividências, referências... Como
esse processo também de cognição, trans-
formando em linguagem escrita em
palavras, pode conter o pro-
cesso de criação de uma
residência que
pesquisa a

31
IMPROCESSO

improvisação como linguagem e suas possibilidades dra-


matúrgicas?? Como? Como! O como é muito importante, a
forma como escrever dialoga com a improvisação, fluxos,
linhas, pontos, espaços vazios, sentidos múltiplos, reflexões
sobre conceitos, saberes que permanecem e descobertos com
frescor.
Aproximo a minha escrita do fluxo em improvisação
de meus movimentos. Permanecendo, desenvolvendo, encon-
trando sentidos (dramaturgias), conceitos e transformando,
modificando, frescor em aniz.
Aniz
Proponho uma investigação dos movimentos pelo sen-
tido do olfato.
Proponho aniz.
Uma solidão em prazer, respirar, um encontro.
Consigo, do mundo. De si para o mundo.
Inspiro do mundo. Expiro de mim.
Dialogia centrada na coluna, eixo, centro, presença, si.
Sentimento, percepção primeva da consciência.
Sentimento de si (Damásio, 2011)1, conhecimento que se
constrói das percepções fluxos na improvisação e que, antes
de tudo, localiza um si que percebe, que conhece.
Sentimento de si, sentimento consciência fundamento
de um improvisador.

1 Sentimento de si é a consciência da própria existência. É quando


o sujeito percebe que há um si que percebe, que conhece. Os senti-
mentos provem de modificações relacionadas ao corpo e à cognição.
O sentimento envolve consciência em relação a estados corporais,
associações, bem como pensamentos relacionados a esses aconteci-
mentos (Damásio, 2011, 2008).

32
IMPROCESSO

Linguagem que se constrói no constante mapear das


percepções com, no, a partir, através do corpo, possibilidade
de presença e simulação, dramaturgia que se constrói em
tempo real.
O olfato facilita esse processo. Aproxima-se dos sen-
timentos, percepções tão complexas e tão substanciais na
improvisação. Olfato nos aproxima dos sentimentos, das
emoções, das lembranças, da memória. A memória. Outro
elemento fundamento para quem improvisa, para ser capaz
de repetir até transformar2, para, sobretudo não se lem-
brar (Launay, 1998)3, para desenvolver a arte de esquecer
(Izquierdo, 2004)4. Improvisar exige mobilização constante
em relação à memória, desafiando tempos e espaços, não
coincidindo exatamente com o tempo dado, nele enxergando
as trevas (Agamben, 2009)5. Improvisar é um momento de
alargamento de consciência6 entre múltiplas conexões, dia-
logias possíveis, errantes. A capacidade de resolver naquele
infinito instante presente e abandonar, não saber mais,
conhecer novamente, fresco, aniz. Pouco doce. De novo, um
tanto cítrico, aberto. O novo, áspero e azedo. Um não ao con-
trário. Que cheiro é esse? Para mim, abre; pausa e impaciente

2 Conceito de Manoel de Barros citado por Clara Trigo durante suas


proposições na residência.
3 Launay (1998), afirma, a partir de Laban, que dedicar-se à improvi-
sar é dedicar-se a não se lembrar, à esquecer, para poder manter em
fluxo múltiplas possibilidades de mobilidade.
4 “A arte de esquecer”, obra de Ivan Izquierdo(2004), autor que atribui
ao esquecimento papel essencial para que os processos da memória
aconteçam. Para sermos capazes de novas conexões, capacidade de
criação das movimentações, neste sentido, precisamos esquecer.
5 Segundo Agamben é verdadeiramente contemporâneo, aquele que
não coincide perfeitamente com seu tempo e suas pretensões, rece-
bendo as trevas de seu tempo no rosto.
6 Os conceitos de improvisação aqui apresentados partem das pes-
quisas desenvolvidas em meu doutorado, já publicadas em livro
(Leal, 2012).

33
IMPROCESSO

em muitos apoios direções. Em Naira, cruza nos punhos,


em Karenine, acarinha as orelhas. De novo aberto, fresco,
continua, sustenta, repentinamente, impacienta e acaricia
as orelhas, os punhos cruzam, inspira em fresco aberto que
sustenta e pausa. O novo. Sim.

Palavras-imagem
A partir de imagens, potências, surgem palavras:
curva . luz . fome . nó . luz . flores no chão . só o pé . calça
quadrada . que calor! . sem cabeça . encarnado . preso . cor-
rente . reto . Ós . caleidoscópio . pássaro . as asas são muito
fechadas . ângulo . pôr do sol . pipa . xícaras . etiqueta no
chão . redondo . chão . rio . áspero . conexão . degrau . sem
cor . lágrima . gota . vagina . apagado . nó . coxinha . espa-
lhado . gostoso . polvo . flor . lenço . ameba . líquido . bunda .
praia . vento . quadril . massa . multidão . marketing . comér-
cio . derramou . elétrico e orgânico . continentes . banho
. Brasil . sem cabeça . o copo nas mãos . pele . bebe . osso .
Dramaturgas palavras se organizam:
Elétrico e orgânico comércio lenço apagado vagina no
fluxo derramou. Bebe!
Solto amarelo. Xícaras. Etiqueta no chão, conexão polvo,
espalhado, espelhados continentes!
Gota, gostoso, lenço, líquido, quadril em flor encarnado.
Sol, girassol pendurado: Coluna quente. Fome: flores no
chão.
Em cena:
Xícaras. Amarelo. Girassóis. A coluna quente. Tenho
fome. As flores estão ao chão. Bebe!

34
IMPROCESSO

Anexo
O público já está sentado esperando a apresentação.
Sentamos também, com eles em espera. Em nossa residência
nos incomodamos muitas vezes com a falta de silêncio, de
escuta, de pausa, de espera. Sentimos uma necessidade maior
de tempo, de permanência, de percepção clara e consciente
antes de qualquer antecipação ou julgamento, tão onipotentes
em nosso tempo, contexto, sociedade.
Sentados lado a lado com o público, esperamos os
pequenos gestos primeiros, olhares, entrecruzar de pernas,
apoiar de cabeças e já uma dramaturgia em fluxo: esperar,
observar, perceber, palpar, dedilhar, propor quase do que é
invisível, que sorrateiramente se organiza e avoluma. Volume
que cresce aos poucos qual broto ecoa do sax cobre tão grave
que nem parece metal, mas quase um dos nossos pulmões
ecoando mais forte em expiração audível para quem se senta
ao meu lado, à minha frente e um pouco mais distante e
enquanto o timbre se adensa, os corpos já em sistema con-
vergem gestos, fluxos, diálogos iniciados quase em sussurro
pedindo licença para adentrar no espaço e encontrando ecos
em outros corpos intérpretes, ouvintes, espaços vazios cheios
de som, textura, imagem e cheiros. O anexo, um espaço a
mais, outro espaço, mas junto, parte de, mas outra parte,
palco, mas não italiano. Paredes, circulação livre de pessoas,
corredores, portas, vidro, pedra, cerâmica, metal, escada-
rias deliciosamente sofás assistindo, incluindo, interferindo,
interpretando, implementando sentidos aos gestos, movimen-
tos em suas volúpias espaciais. Músicos e bailarinos como um
corpo dançante e múltiplo em percepções táteis, olfativas,
visuais, sonoras. Degustamos-nos entre pessoas, espaços,
paredes, sax, flauta, pernas, um sopro de ar e um giro, um
riso de criança, conversas, olhares buscando, tecendo, com-
pletando sentidos propostos, sentidos nesse mesmo momento
em que são feitos. Qual bolo quentinho saindo do forno,

35
IMPROCESSO

provando a textura, o sabor, quão doce, se cresceu, se cru ou


cozido7, apaziguando humores, aproximando pessoas8. Que
fome!9
!!!
/.../ Fome come
Fome come
Se vem de fora
Ela devora, ela devora, ela devora
Se for cultura
Ela tritura, ela tritura
Se o que vem é uma cantiga
Ela mastiga, ela mastiga
Ela então nunca discute
Só deglute, só deglute
E se for conversa-mole,
Se for mole, ela engole
Se faz falta no abdome
Fome come, fome come10

7 Referência à obra “O cru e o cozido” de Claude Lévi-Strauss, autor


que aproxima com suas pesquisas a lógica do sensível e o pensa-
mento científico e, portanto, converge às nossas inquietações de
pesquisa na aproximação da forma da escrita com a linguagem da
improvisação, bem como da escrita artística com a acadêmica, da
escrita poética e a científica.
8 Referência à obra de Câmara Cascudo: “História da alimentação
no Brasil”, que apresenta o doce como elemento pacificador, apro-
ximador, conciliador, preliminar numa recepção, demonstrando
cordialidade.
9 Leal, P. 2012, p. 37.
10 “Fome, Come”, música de Sandra Peras, Luiz Tatit e Paulo Tatit.

36
IMPROCESSO

E agora a fome. De que temos fome? Por que em resi-


dência? Em casa, é preciso se sentir em casa, permitir-se,
afrouxar no sofá. A convivência escorrendo com tempo, mais
tempo... Sentir, perceber escolhendo. Qual a percepção que
escolho? Qual a percepção que gero enquanto estética? Qual
é o público possível dessa dramaturgia, que me parece tão
contemporânea? É?
???

Referências
AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó, SC:
Argos, 2009.
CASCUDO, L. da C. História da alimentação no Brasil. V.1-2. Belo Horizonte:
Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1983.
DAMÁSIO, A. E o cérebro criou o homem. São Paulo: Cia das Letras, 2011.
______ . O sentimento de si: o corpo, a emoção e a neurobiologia da
Consciência. Portugal: Fórum da Ciência, 2008.
IZQUIERDO, I. A arte de esquecer: Cérebro, memória e esquecimento.
Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2004.
LAUNAY, I. Laban ou a experiência da dança. In: SOTER, S. (Org.0 ).
Lições de Dança 1. Rio de Janeiro: Faculdade da Cidade, 1998.
Leal, P. Amargo perfurme: a dança pelos sentimentos. São Paulo:
Annablume, 2012.
Lévi-Strauss, C. O cru e o cozido. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

Patrícia Leal é artista, pesquisadora e docente. É vice-coor-


denadora e professora do curso de Dança e na Pós-graduação
em Artes Cênicas da UFRN. Foi professora na Escola de Dança
da UFBA.  Doutora pelo Instituto de Artes da Unicamp. É
autora dos livros “Respiração e expressividade: práticas cor-
porais fundamentadas em Graham e Laban” (2006), e “Amargo
Perfume: a Dança pelos sentidos” (2012) publicados pela Editora
Annablume e Fapesp.

37
Experimentar (-se)
improcesso de dança
Marcilio de Souza Vieira

Relato neste artigo, a experiência com a residência artística


Improcesso: diálogos dramatúrgicos em improvisação, reali-
zada no Departamento de Artes da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, sob a orientação das professoras Drª Patrícia
Garcia Leal (UFRN) e Clara F. Trigo e como tal experiência me
fez rever o meu corpo dançante em movimentos improvisados.
Nesta experiência exitosa, perguntei-me constantemente: até
que ponto eu sou dança e até que ponto eu não sou dança?
Percebi nesta experiência que na improvisação os movi-
mentos não estão dados, decodificados, ensaiados, planejados,
coreografados; nela considerei meu corpo com todas as infor-
mações de dança que ele trazia de minhas outras experiências
com o universo dessa linguagem artística, considerei ainda
minha biografia, minhas dores corporais, organização e desor-
ganização desse corpo que improvisa e se faz dança.
Considerar esse corpo é transformar o meu mundo vivido
no momento dessa experiência em dança, e ele faz parte do
mundo do visível. Parafraseando Merleau-Ponty (2004) digo
que nesta experimentação Improcesso e diálogos dramatúrgi-
cos em improvisação o meu corpo torna-se vidente e visível,
pois ele vê-se vidente, toca-se tateante, é visível e sensível por
si mesmo.

39
IMPROCESSO

Ao improvisar, me pego dançando, meus movimentos


conectam-se com outros corpos que improvisam, conectam-
-se com os sons, os ruídos, os cheiros, os odores, a música.
Tal improvisação permite-me partir de um “disparador” que
desencadeia a minha performance individual e coletiva; esse
improvisar é como obra de arte, aberta e inacabada, confi-
gurada pela experiência corporal denotada pelo movimento,
por meio do logos sensível e estético, da dimensão poética
revelada no movimento do gesto, investidos de plasticidade
e beleza de cores, sons e formas. É corpo vivo, como afirma
a Fenomenologia merleaupontyana, corpo dotado de sentidos
em todos os seus atos e que em suas relações, quer seja com os
objetos do mundo, quer seja com o próprio mundo ou ainda,
com o outro, encontrará novas formas de ver esse mundo.
Percebi que o meu corpo nessa experiência cria sentidos
e, ao criá-los, compartilha a experiência vivida com o outro.
Conforme observa Merleau-Ponty (1999), o corpo não é só uma
soma de órgãos justapostos, e sim um sistema sinérgico nos
quais todas as funções são retomadas. O corpo é a textura
comum de todos os objetos e, em relação ao mundo percebido,
o mundo geral da compreensão é o lugar e a própria atualidade
do fenômeno da expressão; nele, as experiências sensoriais são
impregnantes umas das outras.
O pensamento de Merleau-Ponty (1999) evidencia aspec-
tos fundamentais para o entendimento acerca do que é o
corpo. Para o autor, o corpo é uma simultaneidade de sujeito
e objeto existindo num espaço-tempo e servindo de referência
central ao processo perceptivo. Essa simultaneidade destaca o
aspecto fenomenológico do corpo, um corpo sensível e inteligí-
vel, datado e localizado espacialmente, que traduz a sensibili-
dade do ser e toda a memória do vivido.
Ao fazermos esses diálogos dramatúrgicos, nessa expe-
rienciação em nosso corpo, a improvisação não se pretendia
ser um recurso, mas a própria dança realizada no instante da
sua execução. Ela permitiu híbridos e composições cênicas
diferenciadas e oportunizou o desenvolvimento da capacidade

40
IMPROCESSO

adaptativa para um evento não planejado, por meio de uma


dança nãopautada nos modelos estereotipados de movimentos.
Nesse Improcesso com a participação de músicos na cena,
o movimento gerava a música e esta gerava o movimento. A
música improvisada me instigou a fazer movimentos que eu
não acessava no meu cotidiano. Meu corpo no chão ou de pé me
possibilitou vivenciar outros movimentos que até então achava
ser incapaz de realizá-los. Fez-me perceber e acessar novos
possíveis de entrelaçamentos e atravessamentos com outros
corpos e com o meu entorno enquanto improvisava e dançava.
Recorro ao filósofo Merleau-Ponty (2007, p. 135) para
comentar esse meu estado de entrega à improvisação. Ele apre-
senta uma peculiar leitura do entrelaçamento entre o corpo e
o que ele pode ver. “Meu corpo como coisa visível está contido
no grande espetáculo. Mas, meu corpo vidente subtende esse
corpo visível e todos os visíveis com ele”. O filósofo entende,
assim, que há uma recíproca inserção e entrelaçamento entre
corpo visível e todos “visíveis com ele”. Nesse contexto, des-
creve que a reversibilidade que define a carne permite o esta-
belecimento de relações entre os corpos e ultrapassa o campo
do visível.
Através da constatação de que o corpo, além de olhar
todas as coisas, pode se olhar, bem como, sentir as coisas e
ser capaz de se sentir, Merleau-Ponty explicita como corpo e
mundo imbricam-se, revelando através desse envolvimento de
reversibilidade os entremeios da visão e da relação entre o eu
e o outro.
Visível e móvel, meu corpo conta-se entre as coisas, é
uma delas, está preso no tecido do mundo, e sua coesão
é a de uma coisa. Mas, dado que vê e se move, ele man-
tém as coisas em círculo ao seu redor, elas são um anexo
ou um prolongamento dele mesmo, estão incrustadas
em sua carne, fazem parte de sua definição plena, e o
mundo é feito do estofo mesmo do corpo. Essas inver-
sões, essas antinomias são maneiras diversas de dizer
que a visão é tomada ou se faz do meio das coisas, lá

41
IMPROCESSO

onde persiste, como água-mãe no cristal, a indivisão do


senciente e do sentido (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 17).
Corpo que se move e é movido com o outro, que ao impro-
visar a partir de um comando de um movimento corporal do
outro se faz presença, se faz sensível. Essa experiência é sines-
tésica, é sensível e é constituída de minha identidade humana
e da minha produção de conhecimento que se dá no meu corpo.
Ao improvisar a partir desse comando de um movi-
mento corporal que não era meu, embebido por uma música
improvisada nesta experiência Improcesso, percebi que ora era
o movimento do outro que me conduzia, ora era o meu pró-
prio movimento, ora era a música que fazia essa condução de
improvisação. Para embasar essa experiência corporal, tomo
o argumento de Merleau-Ponty (1999, 2007), que trata a expe-
riência corporal como originária, que redescobre a unidade
fundamental do mundo enquanto mundo sensível. Em sua
concepção, o conjunto de experiências humanas só pode ser
configurado e protagonizado por um corpo, e qualquer forma
de distanciamento entre o homem e o mundo sensível merece
ser questionada. O corpo próprio ou vivido constitui a maneira
pela qual nos instalamos no mundo, tanto ganhando quanto
doando significação.
Convém ressaltar que trabalhar com improvisação nesse
Improcesso foi externalizar algumas reações espontâneas às
diferentes fontes de estímulos dadas no processo de improvisar
possibilitando-me momentos vivenciados no aqui e agora que
se modificavam a cada instante, provocando novas intenções
nos gestos através dos sentimentos sem perder as referências
com as propostas ali manifestadas no momento da execução.
Tal possibilidade exigia sempre um novo movimento a cada
experiência vivida, aumentando, assim, o meu vocabulário
gestual, enriquecendo o meu corpo com formas que, às vezes,
me eram estranhas no momento da execução e que depois se
moldavam ao meu repertório.

42
IMPROCESSO

Chamo essa possibilidade de improvisar experienciando


novos acontecimentos/movimentos no meu corpo de espes-
sura do sensível que para Merleau-Ponty (1999 ) é a experiên-
cia de um mundo. O sensível em sua obra não é apenas para
ser entendido, mas também para ser vivido. Esse sentido, na
compreensão merleaupontyana, não é algo sólido, um objeto,
uma cor; é, antes de tudo, uma ideia mais ampla, é a atitude
do corpo que nos mobiliza, que nos paralisa para algo. Logo, o
sensível é uma atitude corporal.
O sensível, para o autor citado, é a experiência do pensa-
mento, é uma espécie do Ser, é um apelo à palavra, quer seja
pelo corpo, quer seja pela memória. O sensível se encarna no
corpo e é, também, um prolongamento de sua carne. As coisas,
então, não existem mais em si, sendo aqui e agora, em seu lugar
e em seu tempo; elas
“[...] só existem no término destes raios de espaciali-
dade e temporalidade, emitidos no segredo da minha
carne, e sua solidez não é a de um objeto puro que o
espírito sobrevoa, mas é experimentada por mim do
interior enquanto estou entre elas, e elas se comunicam
por meu intermédio como coisa que sente” (MERLEAU-
PONTY, 2007, p. 113).
Na Fenomenologia merleaupontyana, corpo e a lingua-
gem sensível assumem aspectos de complexidade, sendo este
corpo movimento, expressão criadora e sensibilidade. Pelo
“corpo próprio”, há a experiência sensível do “ser-no-mundo”,
na ordem do que é vivido e não do que é pensado, pois o sentir é
pré-objetivo. Isso se dá pela relação “eu, o outro e as coisas” em
estado nascente, admitindo uma expressão vital primordial,
que desencadeia numa relação ontológica do corpo enquanto
abertura a um sentido sensível do mundo que admite uma
expressão vital primordial, pois estabelece relação com aquilo
que pertence à ordem do que é vivido e não meramente do que
é pensado. A evidência, que se tem do outro, parte da sensi-
bilidade e não do pensamento, pois há uma universalidade

43
IMPROCESSO

do sentir, uma vez que se vive o mesmo mundo um corpo que


entra em contato com outro.
Essa espessura da sensibilidade, revisitada nas improvi-
sações Improcesso de diálogos dramatúrgicos, foi também ati-
vada no momento em que nos foram postas algumas imagens
e a partir delas pudemos verbalizar palavras que traduzissem
tais imagens.
Linhas, pernas, seios, negra, nó, calma, luz, movimento,
giz, Picasso, ar, água, psicodélico, flores, monstros, desenhar,
flutuar, plástico, vermelho, escondido, biombo, xixi, pé, azul,
sem cabeça, sexo, pastoril, elo, preso, ruptura, dentista, cor-
rente, coluna, hospício, enferrujado, alavanca, pendurado,
fluxo, ilusão, confusão, colorido, sol, girassol, temperatura,
samba, agonia, bicos, ralo, chão, escorredor, funcionalidade,
luxo, lixo, esgoto, equilíbrio, brecha, mancha, áspero, con-
creto, subida, descida, xícaras voadoras, esparramado, bunda,
cabelo, verde, Redinha, músculo, balanço, infância, vento,
caracóis, praia, quebrar-se, cheiro, suor, ovo, rompimento, cha-
peuzinho vermelho, quebrado, mãe, globalização, suor, ventre,
aranha, chocolate, longilíneo, precisão, orgasmo, bruxa, por-
ção, brinde, foram algumas palavras suscitadas pelas imagens
que foram posteriormente improvisadas nas performances.
Tais palavras foram se incorporando nos movimentos
improvisados e foram fazendo parte da dramaturgia como
palavra dita. A palavra e a fala, diz Merleau-Ponty (1999), são
presenças no mundo sensível dadas pelo corpo. A gesticulação
do corpo é um poder de expressão natural que abre para a sig-
nificação existencial. Assim, os gestos são compreendidos pela
reciprocidade intersubjetiva, pois quando duas significações
percebidas se entrelaçam, um novo mundo cultural começa a
existir. Há um novo sentido, uma variação do “ser-no-mundo”
dado pela diferenciação da mímica, do gesto. Assim, o sentido
se faz para cada um no contato corpóreo de sua existência. É
num mundo sensível, então, que a fala se revela como saber

44
IMPROCESSO

intersubjetivo, um meio de expressão no nível do corpo que


antecede o juízo.
Nesses diálogos dramatúrgicos Improcesso, essas pala-
vras se entranhavam em mim como um perfume, como o per-
fume de anis que ao ser posto no meu pulso, pulsava-se em
mim. Esse cheiro e essas palavras soltas, em forma de frases,
de poesias, de música, sondavam-me, circulavam-me como em
espiral e eu pensava: quais variações de movimento são possí-
veis a partir desse cheiro e dessas palavras? Estou entranhado
por esse perfume (anis), por essas palavras, por essas constru-
ções escritas e corporais. Como absorver tudo isso na cena?
O que faço ou fiz em cena foi o suficiente como é essa minha
proposição a partir do cheiro e da palavra?
Recorro novamente à filosofia de Merleau-Ponty (1999)
para essa compreensão e coaduno com seu pensamento quando
o filósofo pontifica que a fala e o pensamento estão envolvidos
um no outro; assim como, o sentido está arraigado na fala, a
fala é a existência exterior do sentido. É preciso compreender
a fala e a palavra não como uma mera designação do objeto ou
vestimenta do pensamento, e sim como a presença do pensa-
mento no mundo sensível, seu emblema, seu corpo. Essa comu-
nicação se dá através da palavra que para Merleau-Ponty (1999)
é gesto.
É alhures, porém, que Merleau-Ponty (1999) discutirá a
relação entre gesto e expressividade ao dizer que a fala é uma
modalidade de gesto, o que nos obriga a reavaliar tanto o que
entendemos por fala quanto o que entendemos por gesto.
O autor referenciado classifica as operações de fala em dois
tipos: a falada e a falante. A primeira corresponde à fala que
apenas utiliza os sentidos já criados e estereotipados, remete
à linguagem em estado nascente, como um ato instituinte e
criativo, isto é, aquele momento em que ainda não se sabe
exatamente o que vai ser comunicado, mas já existe um que-
rer dizer; a segunda, ao contrário, caracteriza-se por ser uma

45
IMPROCESSO

atividade expressiva, que não só renova, mas inaugura sentido,


é remetida à linguagem sedimentada constituída por significa-
ções correntes e demais formas de expressão de um dado meio
sociocultural, ou seja, é à base da comunicação social porque é
o próprio saber sedimentado na linguagem.
Para Merleau-Ponty (1999) a palavra tem sentido próprio e
recorrerá ao gesto para esclarecer a comunicação pela palavra,
buscando no corpo o entendimento para essa compreensão. A
fala emerge enquanto gesto de um corpo que é toda relação de
sentido com o mundo. Para o autor, o modo de apreensão do
sentido da fala do outro é o mesmo que o do gesto corporal: eu
os compreendo na medida em que os assumo como podendo
fazer parte do meu próprio comportamento. Dessa forma, a
palavra se faz gesto na relação com a linguagem, o repertório
gestual, as ambiguidades e com a expressão corporal.
Todo o meu aparelho corporal se reúne para alcançar
e dizer a palavra, assim como minha mão se mobiliza
espontaneamente para pegar o que me estendem [...].
O “eu” que fala está instalado em seu corpo e em sua
linguagem não como numa prisão, mas, ao contrário,
como um aparelho que o transporta magicamente à
perspectiva do outro (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 41).
Dessa forma, a palavra é um gesto e uma conduta. A pala-
vra contém atitudes, sentidos e significações gestuais que são
inscritos no corpo e na dança, revela e esconde os gestos de uma
sociedade, de uma cultura, de uma época. O gesto enquanto
palavra foi posto como uma das possibilidades de improvi-
sação e a partir desta pudemos improvisar também com o
espaço: a sala de aula, o teatro à italiana, o hall de entrada do
prédio anexo do Departamento de Artes da UFRN e em todos
os espaços, os sentimentos de improvisação eram diferencia-
dos. Atrelado a estes espaços, tínhamos ainda a música impro-
visada que, com funções diferentes, os gestos realizados por
mim e demais intérpretes sofriam as influências da música e

46
IMPROCESSO

dos espaços citados, suscitando composições dramatúrgicas


interessantes.
Pavis (2005) argumenta que a experiência espacial, tanto
no teatro quanto fora dele, é descrita a partir do espaço obje-
tivo externo e do espaço gestual. No primeiro, o espaço é visí-
vel, frontal, preenchível e descritivo, tal como se apresentam as
imagens. Para esse autor, o importante é definir de que ponto
de vista se faz a descrição de tal espaço, de onde o espectador
assiste ao espetáculo, o que se entrevê dele, como é demarcada
a liminariedade entre quem representa e quem assiste a ele.
Nas improvisações, esse espaço objetivo externo foi bas-
tante utilizado pelo grupo, uma vez que é facilmente descri-
tível: a sala de aula, o teatro à italiana, o hall de entrada do
prédio anexo do DEART. Essa demarcação muitas vezes foi
feita por uma linha imaginária que separava o performer do
espectador.
No espaço gestual, tal espacialidade é criada pela pre-
sença, pela posição cênica e pelos deslocamentos do performer.
Esse espaço é induzido pela sua corporeidade, como assevera
Pavis (2005). Para os espaços não convencionais de teatro, é um
espaço evolutivo, suscetível de se estender ou de se retrair. Esse
espaço gestual perpassou em nossas improvisações, uma vez
que, em determinados locais, foi à presença cênica dos perfor-
mers que configurou o espaço.
Tal espaço é separado e ligado aos espectadores por
uma linha imaginária, invisível; é a partir das coordenadas,
dos deslocamentos e da trajetória da performance que o per-
former se comunica com o público. Essa experiência espacial
é o que Pavis (2005, p. 143) descreve como subpartitura: “[...]
pontos de referência e de orientação no espaço, os momentos
fortes que facilitam sua ancoragem no espaço e no tempo”.
Esses trajetos se inscrevem no espaço e fornecem, mesmo que
inconscientemente no performer, uma espacialidade gestual
na improvisação/performance.

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IMPROCESSO

Nessas improvisações nos espaços citados, apostamos


na permanência da presença cênica de cada um que perfor-
mava, nela, conseguíamos encontrar coincidências, variações
de dinâmicas que se propunham a uma dramaturgia.
Essa dramaturgia foi construída a partir do contexto por
nós vivenciado, do espaço disponível, da afinação entre os per-
formers; dramaturgia construída a partir da improvisação de
cada performer, que mesmo sendo individual, tornava-se cole-
tiva, essa dramaturgia não partia de uma estrutura narrativa
organizada pelo texto, mas dos processos de improvisação.
Nessa dramaturgia não existia uma hierarquia que defi-
nisse a composição do espetáculo, no entanto, existiam acor-
dos prévios para as improvisações. Questionava em meu corpo
e em minha escrita: quais as possibilidades dramatúrgicas da
cena improvisada? O estado corporal do bailarino se basta para
ser cena? O que pede esse espaço que dança?
Desses questionamentos e as possibilidades dramatúrgi-
cas, percebi que as improvisações feitas na sala de aula, no tea-
tro à italiana e no hall de entrada do prédio anexo do DEART
sofriam modificações dessa dramaturgia em construção. Em
sala de aula, os jogos improvisados, a improvisação com acor-
dos prévios, a improvisação em processos de criação davam-
-se no corpo que conectava-se com outros corpos também em
processos de improvisação; parecia que aquele espaço se confi-
gurava como um espaço íntimos daqueles performers na cons-
trução dessa dramaturgia; já a experiência da improvisação
no teatro à italiana, parecia-se distante do espectador, embora
houvesse um diálogo constante com este. Na improvisação em
espaço aberto (hall de entrada do prédio anexo do DEART) pos-
sibilitou aos performers um contato maior com o público pre-
sente, bem como, uma integração dramatúrgica entre aqueles
que performavam.
Tais experimentações desdobraram-se em questões rela-
tivas à obra em processo. A opção por trabalhar neste formato,
estava conectada a imprevisibilidade de suas experimentações,

48
IMPROCESSO

que geravam soluções inesperadas e diversas, visto que os


artistas envolvidos tinham autonomia sobre o processo.
Nessa experiência, vivenciada sob a forma de residência
artística, a improvisação esteve presente orientando e organi-
zando esses diálogos dramatúrgicos e possibilitando ao corpo
dançante desse professor/performer/artista inscrever-se como
obra de arte que é sensível, tocante e tocado; corpo que permite
imaginar, sonhar, desejar, pensar, narrar, conhecer, escolher.
Isso autoriza concluir que esse corpo dançante Improcesso
em diálogos dramatúrgicos se faz poética através da improvi-
sação/performance, que desperta e reconvoca os performers
para brincar e perceber para além das coisas já ditas, já vistas,
já percebidas. Corpos que considera a linguagem dos gestos,
que convida a ouvir, a ver, que se deixa falar, que aciona sua
capacidade expressiva, encarnada, corpos que inauguram sen-
tidos, que se move para significar, para comunicar, que quer
ser lembrado, que quer se deixar falar, criar, que se direciona a
um performar aberto à transformação, à inovação, ao sensível.

Referâncias
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Tradução de Carlos
Alberto Ribeiro de Moura. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
______. O olho e o espírito. Tradução de Paulo Neves e Maria Ermantina
Galvão Gomes Pereira. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
______. O visível e o invisível. Tradução de José Artur Gianotti e Armando
Mora d’Oliveira. São Paulo: Perspectiva, 2007.
PAVIS, Patrice. Análise dos espetáculos. São Paulo: Perspectiva, 2005.

Marcílio de Souza Vieira é doutor em Educação, professor


e coordenador do Curso de Licenciatura em Dança da UFRN.
Membro pesquisador do Grupo de Pesquisa Corpo e Processos
de Criação em Dança (CIRANDAR).

49
O sensível do corpo em uma
experiência de improvisação
Larissa Kelly de Oliveira Marques Tibúrcio

Um turbilhão de palavras e de impressões tatuam meu corpo


que dança e que é dança ao construir esse breve escrito. Escrito
que parte de uma proposta de residência que experiencio no
Departamento de Artes da UFRN a partir de um convite da
professora Patrícia Leal, com a qual compartilho na Graduação
em Dança e na Pós-graduação em Artes Cênicas, o exercício
diário, de ser professora, artista e pesquisadora.
Ao improvisar em dança, percebo que se abrem vários
dispositivos em mim. Penso, sinto coisas, rodopio, salto, deito,
rolo, paro. Meu corpo, que sou eu, se funde, se perde e se des-
cobre em muitos e infinitos gestos que são criados. Aqui, pen-
samento e sentimento estão amalgamados, um ligado no outro,
um imbricado indissociavelmente no outro. Não é um corpo
que reúne e abriga um pensar, sentir e agir, mas sim, uma uni-
dade corpórea que não hierarquiza e nem segmenta razão-
-emoção, corpo-mente.
A experiência de improvisar aciona a riqueza plástica
desse corpo que somos. Aciona também a memória inscrita
na nossa história vivida. Podemos dançar de tantas maneiras:
rápido, lento, de modo frenético ou tranquilo. Como almejava
Rudolf Laban, um dos expoentes mais significativos da dança
moderna, no início do século XX, a improvisação possibilita

51
IMPROCESSO

experienciar às qualidades do movimento. Podemos brincar


com a sua temporalidade, com o transitar pelo súbito e/ou sus-
tentado do tempo vivido na dança, pelo seu acelerar ou desa-
celerar, ou ainda, brincar com a qualidade do peso, com a sua
fluência e com o modo sinuoso ou mais retilíneo de desenhar
e construir o espaço.
Merleau-Ponty (1994) fala dessa construção do espaço
pela ação do corpo. É o corpo em movimento que instaura esse
espaço e, no caso, da dança, expande e inscreve desenhos tra-
çando linhas, projetando a cabeça, a mão, o braço ou todo o
corpo de uma só vez em um infinito de possibilidades.
Torço, retorço, me lanço ao chão, inclino, caio e levanto
e nesse ir e vir, rasgo o ar e permito que esse espaço, que crio
e que circunda meu corpo, ou se quiser dizer de outro modo, a
minha cinesfera, se estenda ou se retraia tridimensionalmente
para cima e para baixo, para frente e para trás, para um lado
e para o outro.
Já experimentei diversos momentos de improvisação,
mas há algo de inusitado para mim nessa primeira experiên-
cia de participar de uma residência. Vejo-me o tempo todo
em um contexto bastante desafiador. Ponho-me a interrogar
onde e quando me deparo com esse desafio? Talvez possa res-
ponder que me sinto desafiada por inteiro, pois vivencio uma
experiência ímpar de estar em processo e produto criativo
concomitantemente.
Esse desafio provocador nos foi lançado por vias diversas.
Pudemos vivê-lo por meio de um jogo corporal em que nós,
residentes participantes, desses três dias de encontros, fomos
convidados no primeiro encontro a nos apresentarmos atra-
vés desse jogo em que se buscou possibilidades de uma dança
imersa no alongar-se como fio condutor, ora em uma elabo-
ração mais individual, ora em uma elaboração intensamente
dialogada com o grupo. Em alguns instantes, eu já não sabia
onde a minha dança começava. Ela estava em mim, mas estava

52
IMPROCESSO

no que sentia e capturava daqueles e daquelas que dançavam


comigo. A minha dança era contaminada pelas improvisações
dos músicos que participaram da residência e que também
dançavam. A minha dança era contaminada por cada um que
ali estava. Éramos todos embalados por uma melodia musical
que se fazia dança e por uma dança que se fazia melodia. A
música, nesse sentido, não acompanhava necessariamente o
gestual criado. Opunha-se a esse gestual em alguns momentos.
Em outros, invadia e penetrava no espaço ou silenciava para
escutar as sonoridades dos múltiplos corpos, inclusive dos pró-
prios músicos. Foi instigante essa interação.
Outra via se fez por meio de estímulos que convocaram
nosso sentido olfativo e me fizeram ativar memórias que tra-
ziam cheiros cítricos e uma canção infantil. Palavras que se
transmutavam em gestos ou gestos que criavam palavras.
Nesse desafio, fui descobrindo uma vivacidade que estava meio
adormecida em mim. Senti uma vontade intensa de dizer pala-
vras e ao mesmo tempo dançá-las.
Percebo que os gestos e as palavras como nos traz
Merleau-Ponty em seu escrito “A prosa do mundo” (2002) são
ambas as inscrições corporais. Vivi o brincar com palavras que
dançavam e que repercutiam em todo o meu ser, conformando
danças possíveis. A palavra é gesto e o gesto é palavra. Um se
converte no outro.
Posso dizer que me senti visceralmente mais disponível,
em um fluxo ininterrupto de acontecimentos. Mesmo quando
me percebia, nem que fosse por frações de segundos, pausando
ou sossegando a minha movimentação, eu me sentia pulsante
em uma dança que insistia em ser criada, recriada e trans-
formada em cada instante. Sentia-me mais conectada com
todos que partilhavam daquela experiência e com o entorno
do ambiente físico que me circundava e acolhia sonoramente,
visualmente e que eu tateava no encontro com outros corpos.

53
IMPROCESSO

Trago dessa experiência vivida um desejo que lá se cor-


porificou e que me acompanha agora ao redigir essas palavras.
Desejo de dançar, e de sentir de corpo inteiro outras pessoas,
seus cheiros, seus odores, suas sutilezas, Desejo de me conta-
minar com a dança de cada um com o qual compartilhei esse
processo-produto vivenciado nessa residência em espaços
diversos da UFRN: sala 01 do prédio antigo do DEART, hall de
entrada das novas instalações deste departamento e o palco da
Escola de Música dessa instituição.
Ao finalizar esse sintético registro inconcluso assumo
que a residência foi um presente para mim. Aflorou e intensi-
ficou o meu desejo de romper com meus medos e com minhas
amarras. Não posso negar as marcas culturais que tatuam e
constituem minha idiossincrasia, mas posso me lançar no
sedutor espaço da criação de partituras dançantes e, nesse
lançar, me refazer, quebrar padrões, descobrir novos trajetos e
novas perspectivas para o viver.

Referências
MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins
Fontes, 1994.
______ . A prosa do mundo. Tradução: Paulo Neves. São Paulo:
Cosac &Naify, 2002.

Larissa Kelly de Oliveira Marques Tibúrcio é graduada em


Educação Física pela UFRN (1989), Mestra em Educação pela
Universidade Metodista de Piracicaba (1998) e Doutora em
Educação pela UFRN(2005). Atualmente, é professora do Curso
de Licenciatura em Dança e no Programa de Pós-graduação em
Artes Cênicas, dessa instituição. Coordena o projeto de exten-
são “ Gaya Dança Contemporânea.

54
Diálogos dramatúrgicos
em improvisação
Residência dialógico-performática
Residente: Renato de Oliveira Rocha

A residência começou para mim a partir do momento em que a


professora Patrícia Leal me convidou, juntamente com Juarez
Moniz e a Leila Araújo, para participar do evento, logo após a
aula de Laboratório de Composição Coreográfica. Interessei-me
e tive a curiosidade em saber como seriam as atividades da
residência. Uma semana antes de acontecer a residência, tive
um imprevisto e descobri que estava com pneumonia. Sem
saber se conseguiria participar, ou não, por falta de condições
físicas, me preocupei em seguir o tratamento com medica-
mentos e bastante repouso para que pudesse me restabelecer,
o mais rápido possível, participar dos três dias de residência,
que seriam muito importantes para que eu pudesse adquirir
experiências como bailarino, artista e estudante da graduação
em Dança. O tratamento com a medicação acabou um dia antes
de começar a residência, não sei se estou curado da pneumo-
nia, mas estou me sentindo bem e por isso, tenho disposição
para participar, mas com cautela das atividades, observando
até onde meu corpo pode alcançar.
Cheguei um pouco atrasado para as atividades, quando
fui trocar de roupa, já havia começado a dinâmica, percebi que
músicos acompanhavam a dinâmica tocando ao vivo, improvi-
sando, fiquei surpreso! Não sabia como foi iniciada a dinâmica,

55
IMPROCESSO

e se houve algum estímulo, apenas repetia os movimentos


feitos pelos participantes. Entrando na dinâmica, percebi e
entendi que ela se desenvolvia da mesma forma como entrei,
e existiam propositores de movimentações, que influenciavam
meus gestos.
No momento em que entrei na dinâmica do grupo,
esqueci que ali estavam os músicos, uma vez que não me pren-
dia à música, mas aos movimentos. Em alguns momentos sen-
tia os músicos e a música feita por eles, mas não me prendia a
isso, assim, me inseria na música pelos corpos dos participan-
tes que estavam presos àqueles ritmos.
Não cheguei a ser propositor de movimentos, de gestos,
fiquei mais preso à influência dos movimentos dos outros par-
ticipantes, alguns momentos tentei propô-los, mas não os ver-
balizava; sempre me rendia aos movimentos propostos. Lembro
que um dos movimentos que propus foi o de retirar cabelos
presos no corpo. Na sala que estávamos utilizando para a resi-
dência, havia muito cabelo circulando pelo chão e vejo que isso
me incomoda. Ao terminar a dinâmica, percebi que meu corpo
estava bem, e poderia participar ativamente da residência, não
me preocupava mais com a pneumonia. Estava bem e feliz por
poder retornar às atividades dançando.
Redondo Água Véu Corrente Sombras Calçada Janela
Côncavo Mãos Sombras Torção Cacos Água Branco

Bando Hitcock Conjunto caleidoscópio Noite amarela Forte


ilusão
Solto fixo Liberdade encarnar Avoado pássaros
Ferro enferrujado Nojo presídio Ratos feios Chão rígido
Oz pato Escorregador manuelagem As asas são muito fechadas pato
Colorido contraste Ralo reto

Ferro Pendurado Bicos


Sol Pato Muitos
Porcelana Louça Rígidos

Artista Calçada Xícaras


Quente Calor Coloridas
Enferrujado Forte Móveis

56
IMPROCESSO

Quando retornei ao trabalho à tarde, foram apresentadas


algumas imagens que provocaram um pouco de inquietação,
não sei se foi por estar em um local que fazia um pouco de
esforço para conseguir ver a imagem, entendê-la ou se pelas
próprias imagens. Surgiram palavras a partir da observação
da imagem. No momento em que deveria escolher palavras ale-
atoriamente da forma que cada um desejava, vi como é inte-
ressante e engraçada a ligação entre elas, para a criação de
frases, poesias. E a todo o momento, tentava imaginar como
seria transpor as imagens observadas para o corpo, como faria
para utilizá-las e transformá-las em movimento no meu corpo.
Talvez essa fosse minha maior inquietação!
Com a exibição do texto da professora Clara Trigo, o
Deslimites – Conexões Criativas – foi possível perceber uma liga-
ção da dinâmica anterior às palavras e a poética envolvidas.
O que mais chamou minha atenção foram as possibilidades
dos movimentos, a busca das formas, os sentidos para o movi-
mento, a fluidez entre essas possibilidades. Por exemplo, em
uma pesquisa por formas, movimentos, torções, entre outras,
há momentos em que parece que o movimento travou; que não
há mais possibilidades de continuá-lo, mas entendo que sempre
existe uma saída e que o trabalho da fluidez, neste momento,
é o que chama mais atenção. A pessoa não precisa interromper
o movimento só porque acha que não tem saída, no entanto, é
preciso tentar encontrar uma maneira de como transformar
aquela forma, deixando-a simplesmente acontecer, fluir.
É interessante ressaltar, ainda, as ligações que foram
feitas com experiências anteriores. Na disciplina de Práticas
Educativas em Dança Moderna, foi proposta uma aula com a
escolha dos poemas de Manoel de Barros, a partir d’O Livro
das Ignorâncias, e a frase que eu escolhi foi: “Repetir, repetir,
repetir, até ficar diferente”. Interessei-me pelo livro e queria
adquirir mais textos desse poeta, já que seus textos foram tra-
balhados em alguns grupos.

57
IMPROCESSO

No segundo momento da tarde, indo para a parte corpo-


ral, me incomodou e vem me incomodando bastante nas aulas,
o momento em que pedem para eu deitar e fechar os olhos, me
concentrando na respiração, pois preciso fazer muito esforço
para não dormir, às vezes, pela rotina diária de aulas, ensaio,
estudo, o que se torna muito cansativo e o meu corpo reclama.
A dinâmica proporciona um relaxamento do corpo e o
primeiro desejo é então dormir. O corpo está cansado e pre-
ciso repor as energias. Esforço-me e concentro-me para não
dormir. Uma pessoa, neste momento, dormiu. Quando foi dado
um estímulo para que eu sentasse rapidamente, o meu corpo
se encontrava em outro estado, o de relaxamento, consequen-
temente, tudo ficou mais lento para mim. Em seguida, recebi o
estímulo da essência de anis, e ainda senti um pouco de dificul-
dade em deixar que a sensação olfativa guiasse o movimento
de meu corpo.
Na descrição do movimento, feita pelo grupo, quando
ocorria um encontro com o outro, sempre acontecia uma inter-
ferência no movimento que eu estava fazendo. Na experimen-
tação da Jam, senti que a música me influenciou mais do que na
primeira vez em que fiz o trabalho com os músicos, às vezes,
me distraia um pouco e focava mais nos movimentos, mas foi
bastante envolvente, principalmente com a exploração da voz
de uma das musicistas, provocando em mim alguns movimen-
tos, no momento em que eu percebia uma mudança de ritmos,
de tempo e espaço entre os musicistas. O que mais me chamou
a atenção foi à participação da musicista na experiência corpo-
ral, uma vez que ela entregou-se à atividade naquele momento.
Uma das dinâmicas mais marcantes na residência foi
feita antes da apresentação na Escola de Música da UFRN.
este dia, senti que havia uma sintonia entre o grupo, que
ocorreram muitas trocas de experiência e uma escuta cor-
poral bem forte. Relembro de movimentações em duo, em
grupo, porém, um dueto feito com a Profa. Clara foi o mais

58
representativo para mim. Realmente, aconteceu uma escuta
entre nós e houve a necessidade da presença de um junto
ao outro. Tivemos uma conversa sem o uso de palavras.
Não me senti à vontade para a realização da apresen-
tação no auditório da Escola de Música da UFRN. Tive um
bloqueio, me senti como se estivesse em um espetáculo de
uma companhia de dança, com toda aquela responsabilidade,
no momento da apresentação de uma coreografia. O motivo
foi perceber que eu estava em um palco no formato ita-
liano e isso me traz toda a memória de estar me
apresentando, sendo necessário ficar em
prontidão e preparado, mas meu
corpo não se encontrava
pronto para esse
acontecimento.
IMPROCESSO

A última aula, com o enfoque no trabalho da respiração,


fez com que eu me acalmasse, houve uma diminuição no ritmo
de meu corpo. Apesar desse relaxamento, tive um incomodo
na coluna, mais especificamente na lombar, já que não experi-
mento uma posição ideal, quando estou sentado.
O momento das entrevistas foi bem interessante, conheci
um pouco mais o grupo, mas isso me deixou tenso, pois não
gosto muito de falar, como sempre digo às pessoas; “não gosto
de falar, prefiro dançar”.
Achei boa a forma como foi elaborada a entrevista. A
minha pergunta, dirigida à professora Patrícia, surgiu pelo
fato de quando ela veio para a UFRN e a vi dançar, com aqueles
cabelos enormes, lembrou-me muito a imagem da Pina Bausch
e a forma como ela utilizava seus cabelos em cena. O cabelo
dançava juntamente com ela.
Com relação à pergunta de Larissa dirigida a mim, me fez
sentir estranho..., não sei, pois, não sabia ao certo o que res-
ponder. Gosto de ter um pouco de controle do que está aconte-
cendo, imaginar o que vai ocorrer, é uma maneira de me sentir
mais seguro na situação, então, busquei imaginar a pergunta
que seria feita a mim e como eu iria respondê-la. Criei toda
uma cena na minha cabeça, mas como sempre dá errado, e
como nada acontece da maneira que imagino, quando a per-
gunta foi feita, eu desabei.
A mostra do resultado na Jam Sense, feita no Anexo do
DEART, foi outro momento gostoso do encontro. Senti-me com-
pletamente diferente de quando participei da atividade na
Escola de Música. Fiquei à vontade para explorar o que experi-
mentava em sala, em grupo, em trios, duo, solos. Penso que esse
espaço é mais adequado para um trabalho dessa natureza, pois
é mais informal.
Foi interessante ver a reação do público com a chegada
do grupo, todos estavam conversando e quando chegamos, de

60
IMPROCESSO

repente, o público parou e esperou algo acontecer; seus olhares


eram curiosos.
No primeiro momento, não sabia como iniciar minha
movimentação, sendo necessária apenas uma ação de uma pes-
soa que estava como público para que eu recebesse o estímulo
e assim ter algo a iniciar.
Tentei utilizar as movimentações feitas em sala, e, par-
tir disso, surgiram movimentações improvisadas, novamente
com a professora Clara. Logo após, vi uma cena muito interes-
sante com a Karenine e Ariane na escada, me senti recebendo
e fazendo carinho em Karenine, foi uma verdadeira e singela
troca.
Em seguida, as pessoas que estavam em cena começaram
a demonstrar que a cena estava acabando, mas eu não queria
que acabasse, tinha ainda muita coisa para acontecer, quando
olhei para o sofá, tive a impressão de ter visto a professora
Patrícia já sentada, mas quando virei para a direita, avistei a
professora Patrícia saindo do corredor e ela percebeu que as
pessoas estavam demonstrando que a cena iria acabar como
tínhamos combinado, e quando a professora Patrícia foi sentar,
eu sabia que realmente iria acabar a cena, mas eu não que-
ria, senti a necessidade de prolongar a atividade. Achei muito
rápido. No entanto, foi ótimo.
Fiquei muito feliz por poder participar da residência.
Compartilhar essa experiência com o grupo foi algo novo para
mim, principalmente por ter essa troca com os músicos. Foi
algo inspirador!
Agradeço a todos, e de modo particular à professora
Patrícia Leal pelo convite e à professora Clara Trigo pela par-
tilha de experiências, sendo um grande prazer para mim
conhecê-la.

61
IMPROCESSO

Referências
TRIGO, C. Disponível em: http://www.youtube.com/
watch?v=AJFpjcxiVzs – Deslimites – Conexões Criativas.
Conexões criativas entre abordagens somáticas e criação autoral em dança:
acesso à intimidade de um corpo que se constrói é a pesquisa cria-
tiva, reciclagem e poesia In: Wosniak, C. e Marinho, N. O avesso do
avesso do corpo. Seminários de Dança. Joinville: Nova Letra, 2011.

Renato de Oliveira Rocha é aluno do Curso de Licenciatura em


Dança da UFRN, turma 2011.1. Desenvolve trabalho com dança
desde os onze anos, em 2004. Fez parte do Projeto de Extensão
da UFRN: Gaya Cia de Dança Contemporânea até 2012. A partir
de 2013 passou a integrar a equipe de bailarinos da Escola de
Dança do Teatro Alberto Maranhão – EDTAM.

62
Encontro
Leila Araújo

Sala 1
Departamento de Artes
UFRN
Segunda-feira
Nove horas da manhã
No espaço comumente habitado no meu cotidiano como
aluna da graduação em Dança1 e como artista da Gaya Dança
Contemporânea2, reencontro e resignifico o território vivido
no contato com músicos, bailarinos, professores e colegas, pes-
soas sedentas por vivenciar a arte da dança como uma pos-
sibilidade autoral de criação dramatúrgica pela improvisação
na residência dialógico-performática, IMPROCESSO: diálogos
dramatúrgicos em improvisação, coordenada por Patrícia Leal
e Clara Trigo.
No primeiro momento, a apresentação.
Uma escuta do corpo alheio para a elaboração do pró-
prio gesto, impregnado e influenciado pelas corporeidades
presentes.
A partir do conhecido e do desconhecido
Improvisação
Movo o corpo pelo desejo de ser
Expressão em gesto

63
IMPROCESSO

Mexo
Bulo
Percepções em alerta
Atravessamentos
Individualidades coletivizadas
Mestiçar de corpos
Movimentos em fluxo
O estado coletivo de atenção foi estabelecido rapidamente
no grupo e o contato gerado para a apresentação pessoal se
deu na produção original do gesto. O estímulo musical3, tam-
bém improvisado, foi incorporando e influenciando a impro-
visação na medida em que tocava e era tocada. Transformação
recíproca e constante.
No período da tarde, o segundo momento.
Uma sala convencional de aula. Estranhamento. Confusão.
A produção do gesto se daria de outra forma! Imagens diversas
foram expostas e apreciadas para a geração de uma coleção de
palavras. Sentidos diferenciados emergem das pessoas presen-
tes. Vivência de reconstrução de perspectivas. Novos olhares.
Experiência sensível. Movimentos sutis no ato do diálogo com
a imagem. Leitura das palavras ditas por todos. Associações
de palavras. Ligações. Frases. Produção de múltiplos sentidos.
Improvisação.
Veja. Sinta. Minhas criações na impregnação de mim e
deles:
Gira olhos gigantes!
Raios do conjunto pastoril
Dentista solto na ilusão .
O quadrado de Hitcock
Divinos pássaros presos
Calor quente do sol rígido

64
IMPROCESSO

Contraste colorido na calçada


Tortura do girassol pendurado
Artista pendurado no hospício do
presídio
Muitos fórceps de ferro
Nojo da funcionalidade dos pratos móveis
Chão reto de ferro, ratos e patos coloridos
Bando de colunas quentes
Mercúrio feminino
As estruturas geradas foram diversas e inusitadas.
Espanto! Criação! Improvisação!
No tempo em que fazia o jogo associativo de palavras,
não consegui perceber uma construção lógica de sentidos. Sem
angústias por isso! Entretanto, ao ler intimamente as palavras
relacionadas, fui tomada pela edificação de sentidos a par-
tir do que aparentemente não possuía nenhum. Dramaturgia
experimentada no ato de falar as conexões feitas! A sensa-
ção de um estado poético me arrebatou profundamente e
Manoel de Barros4 adentrou os meus sentidos! “Uma Didática
da Invenção”. É isso! Desaprender. Desarticular. Bagunçar a
percepção. Rasgar a normalidade. Transformar maneiras de
olhar. Reaprender. Desaprender oito horas por dia ensina os
princípios para compreendermos as intimidades do mundo!
Reorganizar.
O vídeo Deslimites5 – Conexões Criativas. Clara Trigo. Fios.
Corpo. Fios da pesquisa no corpo. Fios que não sofrem rupturas;
ligam princípios e fins, transformam-se, sem, porém, perde-
rem-se das matrizes, suas formas primeiras. Fios constituintes
de um fazer e desfazer de si mesmo. Labirinto tecido por infi-
nitos espirais atravessados. Inesperados. Únicos. Múltiplos em
desdobramentos.

65
IMPROCESSO

O terceiro momento. Retorno a uma sala de prática corporal.


Patrícia Leal. “Dança pelos sentidos6”. Deitados no chão,
com os olhos fechados, somos convidados a perceber o corpo
na respiração. Como está a minha respiração? A inspiração é
maior que a expiração? Como escorre o ar no meu corpo? ...
Nessa imersão da ampliação da consciência do fluxo
respiratório, um estímulo olfativo no punho. Aniz. A partir
da vivência da percepção do cheiro, geramos matrizes indivi-
duais em pequenos movimentos. Exploramos possibilidades
de ampliá-las. Olhos abertos para o espaço da sala e para os
colegas. Criação de diálogos a partir das matrizes pessoais.
Transformações. Reconstrução de espaços internos e exter-
nos. Dramaturgias no momento da experiência. Investigação.
Autoria. Fazer fazendo!
Primeira proposta de Jam session, tempo cênico em fluxo.
Sentados no chão, algumas pessoas se colocam no centro
da sala e iniciam a improvisação. As situações dramatúrgicas
são tecidas no presente e as interferências surgem a partir dos
acontecimentos propostos, como também, na fusão das matri-
zes desenvolvidas nas improvisações vividas anteriormente.
Desconhecido. Incerteza. Revelações. Escuta aberta. Sou toda
olhos, ouvidos, boca, cérebro, pernas... Completude.
Primeiro momento do segundo dia, aguçar a atenção.
Jogos com bastão. Lançar. Receber. Andar. Parar. Correr.
Ativar a coletividade. Reconhecer-me individualidade.
Trânsito. Caminhar, pausar e continuar pela pulsação do
grupo. Respirar em sintonia. Brincar de contrapor-se ao movi-
mento do coletivo. Ser diferente. Ser igual. Tocar. Ser tocado.
Experimentar. Improvisar. Dialogar.
O segundo momento. Escola de Música da UFRN.
Segunda proposta de Jam Session, agora aberta ao público.

67
IMPROCESSO

Palco italiano. Distanciamento. Iniciamos a investigação


– criação – dramaturgia – apresentação presentes no palco
de cortinas abertas caminhando e pausando. Respirando
juntos. A partir disso, as relações foram sendo constituídas
e vários grupos foram se formando em espacialidades e tem-
poralidades diferenciadas. Saídas. Entradas. Interferências.
Recriações. Dramaturgias múltiplas e dinâmicas. Corpos aten-
tos. Questionadores do espaço – tempo – movimento. Processos
incessantes de composição presente. Trinta minutos. Euforia
interna apesar da dificuldade em criar conexões com o que
se construía na cena. Mais fora do que dentro, porém, mesmo
fora, dentro!
O terceiro dia.
Pela manhã, sintonia individual e coletiva pela consciên-
cia da respiração. Controle. Estado meditativo. Dilatação dos
sentidos. O cheiro do aniz. Percepção atravessada pela expe-
riência olfativa. O mundo em mim e eu no mundo. O desejo da
mobilidade a partir do impulso primitivo. Animal. Sensação.
Ondas. Sinuosidades. Água. Ar. Ser guiada no escuro dos olhos
cerrados. Mudar de ambiente. Viver espacialidades não esco-
lhidas. Confiar no outro. Ondular nas paredes. No chão. No
vento. Conduzir o outro. Cuidado. Atenção.
Terceira proposta de Jam Session, prédio anexo do DEART.
Um espaço a ser percorrido. Hall de entrada. Corredor.
Janela de vidro. Hall de entrada. Construção coletiva.
Exploração dos elementos pessoais investigados pela manhã.
Contaminação. Transformação. A influência do outro modifica
o meu fazer. Ondas em xícaras e cafés. Flores sinuosas. Cabelos
espiralados... E de repente, sou o outro em mim. Chapeuzinho
vermelho! Reviro possibilidades na experiência do corpo.
Percebo histórias em ebulição. Dramaturgias erguem-se,
desfazem-se e reconstituem-se na transitoriedade das influ-
ências e intencionalidades corporais. Castelos de areia. Terra
movediça. Reconstituição de mim pela percepção do outro. O

68
IMPROCESSO

outro, modificando-se pelas faíscas de mim. Cena gerada na


interseção.
No período da tarde, a entrevista.
Expectativa. Nervosismo. E a surpresa de fazer um jogo
de improvisação para a sua realização. Numa roda de con-
versa, criamos perguntas pessoais a partir das querências7 do
momento e respondemos completamente desestabilizados as
questões feitas.
A cor do batom.
O café da manhã.
O gosto pelo sono.
Os cabelos.
O bairro onde mora.
A relação com os avós.
A velocidade pessoal.
Assuntos manifestados na roda. Associações distraídas
com o processo vivido nesses três dias de residência. Suavidade.
Emoção. Compartilhamentos de intimidades. Carne exposta
na sutileza. Experiências vividas. O que nos faz ser!
Quarta e última proposta de Jam Sense, prédio anexo do DEART.
A ideia de bloco é instalada como forma do grupo não
perder o contato. O espaço do prédio pode ser utilizado. No
entanto, permanecemos no hall de entrada, sempre cerca-
dos de plateia. O início. Sentados nos sofás com alguns estu-
dantes que já estavam ali. Risos. Espera. Silêncio. A música e
a contação desorganizada de um sonho gera o gatilho para a
criação das cenas da apresentação improvisada. Um grande
jogo de relacionamentos é edificado a partir das ações expos-
tas. Solos, duos, trios, quartetos... Múltiplas organizações são
possíveis. Diversão. Experiências vividas nas investigações
feitas nesses três dias de residência resurgem como potência
para a construção cênica. O desapego se faz necessário, pois
a metamorfose do movimento é uma força constante no jogo
da improvisação. Percepções aguçadas para compreender

69
IMPROCESSO

os silêncios necessários. Somos cena a todo instante. Somos


construção dramatúrgica na retroalimentação. Num fluxo
dialógico, fazemos, observamos, refazemos, conectamos, atu-
alizamos... Somos corpo movendo sentidos dramatúrgicos na
vivência criativa da improvisação.

Referências
Curso de Licenciatura Plena em Dança da UFRN.
A Gaya Dança Contemporânea nasceu em 1990 como um projeto de exten-
são do Departamento de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, sob a coordenação do Prof. Dr. Edson Claro.
O ambiente sonoro foi construído pelo Grupo de improvisação livre da
Escola de Música da UFRN, coordenado pelo professor Anderson Pessoa.
O poema “Uma Didática da Invenção”, de Manoel de Barros, pode ser lido
na sua obra “O livro das Ignorãças”.
O vídeo Deslimites conexões criativas, tem direção e edição de Clara F.
Trigo e Rodrigo Luna e pode ser visualizado no site
http://www.youtube.com/watch?v=AJFpjcxiVzs.
A criação em dança por meio da percepção dos sentidos do olfato e paladar
foi uma pesquisa desenvolvida por Patrícia Leal em sua tese de doutorado,
defendida no Instituto de Artes, da Universidade Estadual de Campinas, no
ano de 2009, intitulada “Amargo Perfume: a dança pelos sentidos”.
O termo “querência” foi elaborado por Patrícia Leal e é bastante utilizado
em suas comunicações verbais.

Leila Bezerra de Araújo É professora, bailarina e coreó-


grafa. Graduada em Turismo e especialista em Formação
Docente para o Ensino Superior pela FACEX. Mestre em Artes
Cênicas pelo Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da
UFRN, atualmente aluna do curso de Licenciatura Plena em
Dança, na mesma instituição e membro da Cia. Gaya Dança
Contemporânea.

70
Free Improvisation
Music and dance
Christine Bogiages

On Wednesday, at 4:30p, Anderson, Heather, and I performed


with a group of improvising dancers at the DEART. The per-
formance took place in the lobby of the building. The building
has lots of cement, ceramic tiled floors, and high open ceilings,
allowing for lots of reverberation on sound. The performance
was spontaneous in that the audience did not know they were
going to be audience – they did not know a performance was
about to take place. Most of the few people who were there at
the time, stayed for the performance.
The dancers were participating in an artistic residence
at their school, and had been part of a process which had been
taking place over the previous days. From what I could gather,
their process involved images, words, smell, root movements,
and “contamination” of movements and ideas. We had joined
with them on Monday for a “rehearsal”. After that experience,
I was told that we were to try to play less – or rather, to allow
for more pauses of silence.
My memory of my experience of the rehearsal on
Monday was that at first I was completely taken by the danc-
ers, and wanted to accompany them, to play to their move-
ments, to play their movements. And then I realized I wasn’t
listening or interacting with the other musicians (Anderson,
Kleber, Heather, Renato). I began to listen and interact more
with them.

71
IMPROCESSO

On Wednesday, the idea was that the group (musi-


cians and dancers) would start out sitting on the three black
couches that were in the lobby. Bit by bit, focusing on the root
movement of each dancer, they would begin to move. Soon it
seemed everyone was adjusting their hair, or someone else’s
hair. I stayed on the couches for a long time it seemed. I then
moved to a pillar. I wasn’t so interested in dancing, in moving.
I watched Heather moving in a dancing way and was amazed
by that. I wanted to watch, and to play and listen. At one point
while singing, a dancer came to me and started making move-
ments over my belly that reminded me of the bow on a cello.
That was exciting. I started singing as if I were her cello and
she were playing me. Then she was directing my singing with
her hand, or rather, I started singing to the movements of
her hand, but I felt like that was what she wanted – to direct
my singing. I really enjoyed that interaction. There were also
some moments singing with Heather (as she sang) that I really
enjoyed, and singing with Anderson playing.
The piece ended with everyone sitting on the couches
again, as when it began.
When It was all over, the entire group sat down on
the spot and invited the audience to come sit and process.
Questions were asked by a few audience members, and anyone
in the group could answer. What was the process behind the
movements, what was the idea behind the music, was it really
all improvised…

72
Improvisação Livre
Música e dança
Christine Bogiages1

1 Versão em Língua Portuguesa – Marineide Furtado

73
IMPROCESSO

Na quarta-feira, às 16h:30min, realizo uma performance jun-


tamente com Anderson, Heather e um grupo de dançarinos
improvisando no DEART. A performance aconteceu no saguão
do prédio do Anxo do DEART. O prédio tem muito cimento, piso
frio em cerâmica, teto alto e aberto, permitindo que por todos
os lados reverberasse o som. O desenvolvimento foi espontâneo
uma vez que o público não sabia que eles estavam passando
a ser público - eles não sabiam que uma performance estava
prestes a acontecer. A maioria das pessoas que estavam lá, no
momento, ficou para assistir a performance.
Os bailarinos estavam participando de uma residência
artística em sua Instituição, e tinha sido parte de um processo
que já vinha acontecendo ao longo dos dias anteriores. Pelo
que pude perceber, seu processo envolvia imagens, palavras,
cheiros, movimentos de raiz, e “contaminação” dos movimen-
tos e ideias. Havíamos nos juntado a eles, na segunda-feira,
para um “ensaio”. Depois dessa experiência , me disseram que
estávamos tentando tocar menos – ou melhor, permitir mais
pausas em silêncio.
A memória da minha experiência do ensaio, na segunda-
-feira, foi de que no começo eu estava completamente tomada
pelos dançarinos, e quis acompanhá-los, tocar para seus movi-
mentos. E então, eu percebi que eu não estava escutando ou
interagindo com os outros músicos (Anderson, Kleber , Heather,
Renato). Comecei a ouvir e interagir mais com eles.
Na quarta-feira, a idéia era que o grupo (músicos e dan-
çarinos) começasse sentado nos em três sofás pretos que esta-
vam no saguão do Anexo do DEART. Pouco a pouco, com foco no
movimento de raiz de cada dançarino, começamos a nos
mover. Logo, parecia que todos estavam arrumando o próprio
cabelo, ou de outra pessoa. Parece que eu fiquei, durante muito
tempo, nos sofás, depois mudei para um pilar. Eu não estava
tão interessada em dançar, em me mover. Eu assisti Heather
se movendo numa forma de dança e fiquei surpresa com isso.

74
Eu queria assistir, para tocar e ouvir. Em determinado ponto,
enquanto eu cantava, uma dançarina veio até mim e começou a
fazer movimentos sobre a minha barriga que me fizeram lem-
brar o arco de um violoncelo. Isso foi emocionante. Eu come-
cei a cantar como se eu fosse seu violoncelo e ela estava me
tocando. Então, ela começou a dirigir o meu canto com a mão,
ou melhor, eu comecei a cantar pelos movimentos de sua mão
em mim, mas eu senti que era isso que ela queria – dirigir o
meu canto. Gostei muito dessa interação. Havia também alguns
momentos cantando com Heather (como ela cantou), que eu
realmente gostei, e cantantando com Anderson tocando.
A improvisação terminou com todos sentados nos sofás
novamente, da mesma forma que começou.
Quando terminou a atividade, o grupo sentou-se no chão
e convidou o público a vir sentar-se. Perguntas foram feitas
por alguns membros da platéia, e qualquer um do grupo podia
responder. Como foi o processo por trás dos movimentos, o que
era a ideia por trás da música, realmente foi tudo improvisado...

Christina Marie Bogiages é professora substituta de oboé na


EMUFRN, mestranda em Música, na área de Música de Câmara.
Bacharel em Artes na área de Música com habilitação em
oboé. Faz parte do grupo de Improvisação Livre da EMUFRN,
tocando oboé, corne inlês e cantando. Pesquisa na área de
Improvisaçâo musical coletiva, movimento corporal e comuni-
cação não verbal.

75
Primeiro dia
Ana Cláudia Viana

Manhã
Cheguei!!!!
Vi músicos. “Ôpa... música ao vivo!!!!”, pensei.
Lá pelas tantas, descobri que o Anderson fala de ambiente
sonoro. Gosto da abrangência do termo. Preenche o espaço.
Um chão conhecido, numa experiência nova para mim.
Sinto uma recordação no ar... Mas, vou dançar com pessoas
que conheci hoje, e com pessoas que conheço faz muito tempo,
coisa de uns quinze anos.
Não me sinto presa, estou à vontade e vou... como é do
meu feitio, acostumando-me de mansinho.
A proposta inicial me ajuda na conexão com o grupo,
depois escolho com quem estou na dança, logo em seguida
também proponho, apresento-me sem falas, por outros gestos
e conexões.
[Pausa: Agora, estou com fome. Vou levantar; guardar o
escrito e comer].
[Volto à escrita]
Estive com a música por uma conexão distraída, na
grande maioria do tempo. Como se ela entrasse pela minha
nuca, abrindo caminhos mais reptilianos, acho eu. É um tipo
de presença que se nota pela ausência, pelo cessar. Entretanto,

77
IMPROCESSO

o som do sax mais grave chama minha atenção de forma dife-


renciada. Há uma caverna nesse tipo de sonorização, uma pro-
fundidade com a qual me identifico.
Durante toda essa manhã estive atenta ao jogo, ao campo
que é gerado entre os participantes de forma que, quando
estamos conectados há um desprendimento, uma dilatação do
tempo e dos sentidos. Vamos gerando ideias, ao mesmo tempo
em que agimos, e, um sinal disparador poderá ou não, desco-
lar completamente esse sentido, criando novas possibilidades
e desdobramentos outros que podem nos causar um estranha-
mento, ou a mais doce identificação.
Desconectar-se é sair desse lugar de prontidão e deslocar
o centro de atenção para um outro sentido, uma outra direção.
Esse agir-pensar imediato, com a possibilidade também
imediata de mudança ou permanência cria um estado de vul-
nerabilidade – não sei muito bem aonde vai dá, o que o outro espera
de mim ou o que ele vai oferecer, é o que, talvez, nos conecte com
mais urgência. Estou lançando cartas, ideias para pensarmos,
quando falo isso.
Tarde-Noite
Nosso processo-produto, nossa construção poética e con-
creta, vivenciada e vista me proporcionaram caminhos vivos,
sentidos na carne, inclusive, na dificuldade com o inesperado,
com o não saber o que fazer, com o desconhecido.
Lancei palavras que me chegavam de imediato ante
a gravura, ao quadro, à fotografia. Já fiz essa dinâmica em
outros momentos, mas ela sempre me é nova. Livres associa-
ções, respostas imediatas: uma possibilidade de poucas ela-
borações conceituais. É assim... na lata, meio no susto... um certo
arrebatamento.
Ao juntá-las, procurei sentidos e encontrei títulos que me
denunciavam ações posteriores, desejos de dançá-las, vontades

78
IMPROCESSO

de diálogos com outros dançarinos e com o público. Não tive


um momento de criá-las por certa associação mais descompro-
missada. Senti-me motivada a discorrê-las em ações, gestos,
palavras, músicas, cenas, etc. etc. etc... De imediato.
Essa residência me proporciona esse sentido de um ime-
diato presencial, bastante acentuado pelo cheiro, pelo olfato.
Meu corpo ficou animado, aceso. Falo de presença, de ativa-
ção dos sentidos, das vontades potencializadas e destinadas às
conexões que ali já se encontravam na escuta e espera de um
gatilho, de um disparo.
Desse momento até o “ensaio” que fizemos, criei, lancei-
-me no jogo comigo mesma e com as ideias. Inicialmente, dei-
xei as palavras serem sussuradas na minha mente, e a partir
delas dediquei o tempo a elucidar pequenas células e frag-
mentos. Trabalhei com palavras e termos como enigma, fórceps,
hospício, asas fechadas e espacialidade expandida. O último termo
pensado a partir do trabalho da Clara. Rsrsrsrssrsrsrs... Fiquei
experimentando essa ideia a partir das articulações. Os demais
termos e palavras estavam nos títulos feitos pela associação
das palavras.
O “ensaio”: “Aí... O negócio pegou um pouco mais profundo”.
Achei complexo, com uma solicitação energética mais presente
e intensa. Porém, desafiador. A manutenção de uma presença
cênica no desconhecido, no imprevisível, com uma maleabili-
dade estrutural até então não vivenciada nesse ambiente da
dança.
É como se tivéssemos olhos em todos os lugares do corpo.
Quando estava vindo para casa fiquei refletindo sobre o
vivido e considerei o estado de presença cênica e o jogo (com o
público e com o(s) outro(s) dançarino (s)) como o que há, hoje,
de arrebatador para mim. O que me conectou com o todo, com
as possibilidades cênicas, com os vários olhos, lugares de silên-
cio, lacunas e fissuras que há em meu corpo.

79
IMPROCESSO

Sigamos!!!!

SEGUNDO DIA
À Tarde
Chegamos!!!
Mormaço do começo da tarde. Nem sempre fácil.
Começamos. Clara propõe jogos de convivência. Sinto-me
em casa. Fui ampliando a percepção, olhares, atenção focada
para o outro. Aos poucos, vou reconhecendo o meu jeito de
jogar, de receber, e como os outros recebem o bastão. O jeito
de cada um. Uns demoram mais com o bastão, outros menos.
De repente, as mãos passam pelos ombros, algumas tor-
ções e contatos mais aproximados. Procuro ombros e espaços
vazios para passar. Começo a realizar torções e vai ficando
cada vez mais torcido, mais próximo, mais rápido também.
Novamente, os olhos em todos os lugares são ativados...
Vamos à ovelha negra. Alguém faz contraponto a um
padrão estabelecido. Acho que tivemos certa dificuldade em
dar tempo à percepção do padrão. Rsrsrsrsrsrs... Todo mundo
desejava ser ovelha negra; ao mesmo tempo, interagir com
alguém. Não sei em que ponto os pares, trios e quartetos foram
sendo formados, mas deles partimos para o encontro com pos-
sibilidades de interação no contexto de cada grupo.
Nesse momento, havia uma conexão com o todo, mesmo
que os grupos tivessem, ao meu sentir, pequenas histórias
dentro de cada um. O Todo ficou íntegro, como se as pequenas
histórias de cada grupo tivessem um elo com as demais, um
fio condutor não falado, construído pelas diversas dinâmicas
anteriores de convivência.
Foi como se houvesse uma conexão a partir dos conteú-
dos simbólicos de cada corpo.

80
IMPROCESSO

Essa impressão foi sendo construída enquanto refletia


para esse texto. Algumas, inclusive, concomitantes à digitação.
A presença imediata, logo após a vivência, foi de uma
associação intensa com minha prática de aikidô (arte mar-
cial japonesa). Nosso trabalho acessou as mesmas zonas, elos,
nexos de convivência, contato epidérmico e presença corporal
que vivencio quando estou no treino. Nem sempre é cômodo.
Mas é desafiador estar presente e em contato com o outro. É
vulnerável!!!!
Das minhas reflexões ficaram: a palavra dramaturgia,
cenas com uma estrutura maleável, como a água. Parece flu-
tuar, mas tem peso e densidade.
A apresentação
Ahhhhh!!!!
Esse momento foi de desconhecido. Já havia dançado
no palco da EMUFRN, mas numa outra perspectiva. Acho que
acerca de uns cinco anos, quando dançava na Gaya. Espetáculos
e coreografias com outros processos de construção, com cami-
nhos já estabelecidos e um grupo que já se conhecia.
Ontem... rsrsrsrsrsrs... estava num outro lugar, sendo o
mesmo. Outro lugar porque a situação apresentada era de solu-
ção e percepção do instante, do que acontece naquele exato
momento. Percepção do que o outro me sugere e constrói no
andamento da permanência no palco. Éramos: nós, os músicos,
o público, e nossas histórias e vontades.
No palco: já em ação cênica. Inicio com o olhar numa dia-
gonal baixa, reconhecendo o que estou fazendo, até um pouco
tímida. Aos poucos, vou sendo absorvida e absorvendo os
acontecimentos, intenções e danço, ora sozinha, ora em dupla.
Ainda não me sinto envolvida. Saio para a cochia. Na cochia,
começo a ficar impaciente com a música. Parece-me que está
densa com certa demasia. Sinto vontade de fazer contraponto,

81
IMPROCESSO

observo a cena e escolho minha entrada, num andamento


oposto ao que a música sugere. Estou para cima, mais salti-
tante e ágil. Essa situação aconteceu umas três vezes. Fiz várias
entradas e saídas. Percebo que precisava das saídas para um
distanciamento, pois não conseguia perceber a cena estando
dentro dela.
Quando entrei num duo com Renato já estávamos quase
no fim da apresentação, atravessando o palco de costas num
andamento mais lento. Dirigi minha atenção para dentro, des-
conectei por um instante dentro do palco. Não ouvi o sinal de
fim. Só percebi que o tempo havia esgotado quando as luzes
diminuíram de intensidade e um silêncio mais acentuado se
instalou. Mantive meu andamento, mas achei bom chegar à
cochia.
Vivi várias situações nessa meia hora de permanência
no palco. Situações de intensa conexão, de contraponto, de
retorno a desenhos cênicos realizados na sala, de constru-
ção permanente em cena, de percepção do momento em que
minha entrada favorecia a cena que acontecia.
Essa percepção do que pode favorecer a cena foi bem
marcante para mim.

TERCEIRO DIA
Manhã
Estava bem!!!! Cheguei cedo, com tranquilidade.
Na sala, iniciamos os trabalhos com Patrícia, facilitando
outra vivência a partir do cheiro.
Dançar a partir do olfato foi uma experiência nova para
mim. De imediato, as dinâmicas me remeteram à percepção do
meu gosto pelos cheiros, óleos aromáticos, perfumes, incensos e
ervas, mas também, de como me permito pouco a experiências
olfativas. Percebi que poderia vivê-las com maior intensidade.

82
IMPROCESSO

Perguntei-me que qualidade minha vida cotidiana poderia ter


a partir dessa presença.
Não respondi, e me deixei levar por novas solicitações
que Patrícia trazia. Quando pediu que começássemos a nos
movimentar a partir do cheiro, podendo integrar os elemen-
tos e ações criadas nos dias anteriores, senti que minhas ações
teriam uma relação direta com o aikidô. Experimentei inten-
samente a relação do cheiro com o aikidô, e fiquei repetindo
uma mesma sequência por todo o tempo que a dinâmica levou.
Quase um transe, um fluxo foi sendo vivido.
Assim também se deu com a experiência, no Anexo. Levei
essa sequência para ser dançada. Não senti dificuldade em
transportá-la para outro ambiente. No Anexo, senti-me à von-
tade para explorar outras possibilidades espaciais. Acho até
que fiquei ansiosa e não dei tempo aos silêncios e estados de
permanência. Fiz par com Larissa e foi tranquilo cuidar dela.
Suas ações não foram rápidas, nem grandes. Tive uma experi-
ência muito boa com Renato, quando decidi subir as escadas
de costas e ele colocou as mãos nos meus olhos, fazendo uma
venda. Foi uma mudança de perspectiva muito interessante,
pois o campo de visão, assim como a dinâmica usual de subir
uma escada haviam sido quebradas, àquele instante.
Sinto que a vivência, como forma de residência, promo-
vendo uma imersão, no contexto de um trabalho que tem a
improvisação como mola mestra para o processo criativo,
interpretativo e de construção dramatúrgica, que se realiza
no momento da cena, é algo novo para mim. Já tive algumas
experiências com o contato-improvisação, mas não com uma
proposta cênico-dramatúrgica.
Foi bastante desafiador e, de imediato, já levo para meus
ensaios a relação entre respiração, ação, fluxo e memória como
possibilidade e conexão criativas. Como elementos disparado-
res de dinâmicas para criação.

83
IMPROCESSO

Não consegui participar da apresentação final, por


inteiro. Interessante o que senti nessa situação, pois fiquei cha-
teada por não ter podido estar até o fim, porém, havia em mim
uma sensação de preenchimento, de conexão com o grupo.
Rsrsrsrs... talvez por isso mesmo minha chateação.
Em revelo: Nesse dia, minha alegria com o momento das
entrevistas.
A condução pelas perguntas pessoais que levaram a falar
sobre o processo, acredito, deixou-nos à vontade. Ampliou-se
o campo de confiança suficientemente para que respondêsse-
mos à pergunta relacionando-a com o processo vivido.
Não me senti sabatinada, e pude falar sobre o meu desejo
de leveza e de fluxo orgânico, menos exigente e mais criativo.
Também pude escutar muitas histórias, desejos e conquistas
dos amigos de residência. Essa condição de abrir-se para a roda
de conversa é um tipo de vulnerabilidade que me interessa, pois
acessa a conexão entre as pessoas, as imperfeições que nos
fazem semelhantes, as conquistas que nos fazem alegres, as
perspectivas e sonhos de cada um.
A residência nos possibilitou esse encontro.
Abrir-se para a roda de conversa restaura nossa humanidade.

84
IMPROCESSO

O que é AIKIDÔ?
Aikido - ྜẼ㐨
“É uma arte marcial criada no Japão após a 2ª grande guerra,
pelo mestre Morihei Ueshiba (1883-1969). O conceito funda-
mental desta arte marcial consiste no princípio da harmonia,
seja entre seus praticantes, seja entre estes e o universo que
os rodeia”.
Fábio Sampaio Pupo Nogueira. (praticante / Academia
Central- São Paulo).

Referências
UESHIBA, Kisshomaru. O espírito do Aikidô. São Paulo: Cultrix, 2004.
GLEASON, William. Aikidô e o poder das palavras: os songs sagrados do
kototama. São Paulo: Pensamento.

Ana Cláudia Albano Viana é dançarina-criadora e diretora


artística do Nammu Dança (Natal-RN); assistente artística do
Grupo Casa da Ribeira de Teatro (2008/2011); diretora admi-
nistrativa da Casa e artista-educadora do projeto ArteAção
(2008/2011). Graduada em Educação Física e mestre em Artes
Cênicas pela UFRN (1998 e 2010). Praticante de Aikidô desde
2012. Foi dançarina e assistente da Gaya Dança Contemporânea
por dezoito anos.

85
Dança, cena e outras
faces da existência
Karenine de Oliveira Porpino

A dança modifica a música? A música modifica a dança?


Questões iniciais surgidas de encontros entre artistas da dança
e da música. Territórios díspares e ao mesmo tempo conver-
gentes. Por que temos tanta necessidade de compreender o que
acontece quando dançamos ou fazemos música? Dançar, tocar
um instrumento não seria o bastante? Sim, seria, mas não para
quem faz pesquisa ou mesmo para quem quer ir além da dança
e da música sem sair delas. Mas... fiquemos com a dança, por
enquanto, território mais próximo, terreno mais revolvido.
Viver a experiência do dançar, perceber os pensamentos
que dela germinam ou que nos levam a ela, trazer o presente
anteriormente a qualquer ideia sobre o que é dança, mas antes
de tudo estar atento. Questionar, perceber, descrever, pensar,
sentir, interpretar... sim, fazemos pesquisa, mas antes de tudo
pesquisa de nós mesmos. É isso que move o pesquisar, o senti-
mento de se autodescobrir a cada instante, tomar consciência
ou... criar um mundo a ser socializado, em constante processo,
dessa vez IMPROCESSO.
Nenhuma questão é óbvia em si mesma, o modo como é
feita, costurada, e respondida desvenda novas configurações,
novidades possíveis, mesmo que embebidas de velhos modos de
ver o mundo. Pesquisar... transitar por um mundo improvável,
abrir-se para a aventura da vida, buscar o outro sem sair de si

87
IMPROCESSO

mesmo, misturar-se, transmutar-se, perder-se, encontrar-se,


perder-se, encontra-se, perder-se, encontra-se...
Novas questões se espacializam: O que é dança? O que
é cena? Para quem transita na música, as questões parecem
óbvias, até ingênuas. Para quem dança são importantes, mobi-
lizadoras. Macias como um colchão de molas, mas provoca-
doras como vento gelado. Fazem juntar fios, formam grossos
lençóis, acolhem a pele do frio. Sorrateiras e supostamente
inocentes as questões mobilizam mais ideias e elas vão nova-
mente enchendo a roda como um emaranhado de nervuras.
Mais uma vez, é preciso dizer o que não somos, pois nossa cena
e nossa dança parecem ocupar um pequeno território. Numa
terra de poucos é preciso dizer, ao menos, o que não se é, iden-
tidades recentes às vezes levam anos para serem digeridas. E,
num mundo de muitas identidades, há que se escolher algumas
para transmutar e, ao mesmo tempo, apenas apreciar outras
de muito longe.
Não dançamos passos, não somos algo que se reconhece
previamente, antes de acontecer, não apenas compomos ou
nos ajustamos ao espaço e ao tempo. Tornamo-nos movimento
em um caminho, incógnita, desbravamos entranhas, desa-
fiamos nosso próprio peso, compartilhamos fluxos, somos o
próprio espaço que transitamos, o tempo nos pertence. Nós.
Sim, nós, a primeira pessoa do plural é proposital, estamos em
uma roda formada por escolhas de percepção. A conjunção
das várias danças se configura numa só e cada palavra com-
põe uma frase única. Ficamos como a contemplar um grão de
areia na imensidão da praia, tudo é areia branca, mas cada
grão tem sua cor. Percebemos cada estalo do piso, cada suti-
leza do vento, cada silêncio do aroma. Estamos presentes. Sim,
no presente, “zona em que o ser e a consciência coincidem”
afirmou Merleau-Ponty1. Aqui! Agora! Lugar onde a dança se
confunde com quem dança. Não há mais uma dança e um dan-

1 MERLEAU-PONTY, Maurice. A Fenomenologia da percepção. Trad.


Carlos Alberto Ribeiro de Moura. Rio de Janeiro: Martins Fontes,
1994. p. 88
88
IMPROCESSO

çarino, mas uma emergência que surge de muitos disparos


existenciais: um cheiro, uma lembrança, um toque, um olhar,
um som, um deixar-se levar pelo nada... Nesse momento, nos
reconhecemos como alguém que dispara e, ao mesmo tempo,
é disparado, como o arqueiro ZEN que dispara a flecha atin-
gindo a si próprio2. Um modo de compreender a dança, sendo
simultaneamente efêmera e duradoura, livre e condicionada
pela vida. Um estado meditativo, como no Tai Chi Chuan, na
meditação, na Yoga, no Aikidô, na vida diária, quando o apego
deixa de ser foco para ser apenas contemplado.
Mas a cena? Estar em cena é uma escolha, um estado, que
transmuta o espaço geometrizado e o tempo cronometrado
para se embrenhar no vazio. Tornar-se presença que percebe
e funda o espaço e o tempo perdendo-se para encontrar-se.
A cena é refém do corpo que dança e não ao contrário. Mas
quando forjamos nossa dança também tornamo-nos refém da
cena, pois nos confundimos com ela. Assim, forjamos uma dra-
maturgia que se faz como o caminho que não existe antes do
caminhar, Al andar se haceel caminho3. Tal dramaturgia somente
pode ser reconhecida quando a abertura do espírito reconhece
outros estratagemas para agir, outras formas de conexão,
parâmetros abertos de reconhecimento do real. Terreno frágil,
fino, transparente, mas potente, como uma moleira pueril pul-
sante, que ativa e reconhece fluxos. Estar em cena, parece não
mais exigir consentimentos, olhares complacentes. As cone-
xões estabelecidas não são reguladas por um tempo de exis-
tência em dança, mas estão fora do tempo que nos conhecemos
e nos reconhecemos como possibilidade infinita a desbravar
ambientes ainda não vividos em muitos presentes vindouros.
A cena, presença reluzente de quem dança, germina mundos
escondidos e latentes, que se esquece de si mesmo ou fica para
sempre na carne do corpo a revirar suas entranhas (mesmo

2 HERRIGUEL, Augen. A arte cavalheiresca do arqueiro zen. São Paulo:


Editora Pensamento, 1975.
3 Frase do poeta espanhol Antônio Machado.

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IMPROCESSO

que discretamente). Dela não se escapa, mesmo quando o


corpo se quer invulnerável, mesmo quando o olhar percorre
desconfianças, mesmo quando o espaço é tido como geome-
tria. Apegados ou não a ela estamos lá também como público a
apreciar a dança para nos reconhecermos ou negarmos nossa
própria existência. Assim, nossa dança só pode valer-se do
agora, da sinceridade, do estar aberto para um olhar vazio.
Olhar infinito, sem foco único, atento, que se alimenta da tran-
quilidade de compartilhar enigmas e imprevisibilidades, não
se prende a ver no outro sua própria fraqueza sem que disso
se aperceba.
Fim de processos, mistura de sabores, odores. Toques de
vento, tilintar de palavras, entonações pueris em peles adultas,
ritornelos existenciais. Fizemos pesquisa, música e, sobretudo,
dançamos. Mais uma vez presença, palavras ao vento para
serem germinadas em terrenos férteis, talvez também para
serem esquecidas em bombonieres de cristal, não importam
seus itinerários. Somos tranquilidade, lucidez, preâmbulo...
para outras danças.

Referências
MERLEAU-PONTY, Maurice. A Fenomenologia da percepção. Trad. Carlos
Alberto Ribeiro de Moura. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1994.
HERRIGUEL, Augen. A arte cavalheiresca do arqueiro zen. São Paulo:
Pensamento, 1975.

Karenine de Oliveira Porpino é professora associada do


Departamento de Artes da UFRN, onde atua no Curso de
Licenciatura em Dança Coordena o Grupo de pesquisa em
Corpo, dança e processos de criação – CIRANDAR e participa
do Estesia – Grupo de Pesquisa em corpo, Fenomenologia
e Movimento. Atua nos Programas de Pós-graduação em
Educação e em Artes Cênicas, ambos na UFRN.

90
Este livro foi projetado pela equipe
editorial da Editora da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte. Foi
impresso em [mês] de [ano].

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