O Mistério de Patience Worth
O Mistério de Patience Worth
O Mistério de Patience Worth
Conteúdo resumido
Sumário
Primeira Parte (Hermínio C. Miranda)
Um mistério sem mistério
I - Repórter ‘Tropeça’ numa imprevista pauta / 04
II - O caso Patience Worth / 09
III - O Enigma (já resolvido) da reencarnação / 20
IV - Patience, a impaciente temperamental / 27
V - A teologia de Patience Worth / 31
VI - A realidade espiritual nos escritos de Patience Worth / 33
VII - O processo mediúnico / 38
VIII - Uma releitura da obra de Patience / 43
IX - Os magos / 50
X - A Linguagem / 53
XI - O livro, o público e a crítica / 57
XII - Como ficamos então? / 59
XIII - Reflexões para concluir / 63
Segunda Parte (Ernesto Bozzano)
Uma impressionante caso de psicografia / 66
4
Primeira Parte
(Hermínio C. Miranda)
II
prancheta, pelo menos na língua inglesa (ouija), teria sido formado do ‘sim’ em
francês ‘oui’ e do sim em alemão ‘já’, o que me parece estranho, porque então não
seria sim e não, mas sim e sim...
De repente, o ponteiro passou a deslizar rapidamente, como que
impulsionado por uma vontade firme, decidida, de quem sabia muito bem
o que queria. E as letras começaram a ser indicadas: "M-a-n-y... Many!"
Enquanto a senhora Pollard as anotava, o ponteiro continuou a indicar
outras, até completar uma frase que assim dizia: "Há muitas luas vivi eu.
Estou de volta... Patience Worth é meu nome."
- E daí? - perguntaram-se as damas. - Que nome esquisito! Quem seria
Patience Worth e o que queria delas?
O ponteiro se incumbiu de anunciar, num inglês arrevesado, o seguinte:
Esperem, desejo falar com vocês. Na medida em que viverem, também
eu viverei. Faço meu pão com o coração de vocês. Boas amigas, sejamos
alegres. O tempo de trabalho é passado. Deixem a gata dormitar e piscar
sua sabedoria à lenha da lareira.
Traduzindo a tradução: a mensagem que a entidade desejava passar
dependia da boa vontade das aturdidas senhoras presentes. Se elas
quisessem colaborar, Patience faria, com a ajuda das emoções de cada
uma, o ‘pão’ espiritual que tinha para oferecer, pois a gata cochilava
preguiçosamente diante do borralho, pronta para falar, braseiro daquilo
que sabia.
Foi ali, naquela sala, naquela noite de 1913, que começou, no dizer de
Litvag (p. 18), "um dos orais enigmáticos episódios literários e psíquicos
(4) de que se tem notícia, um fenômeno que iria perdurar por cerca de um
quarto de século."
(4) - Palavra que se costuma usar em inglês, para evitar-se o termo mediunidade,
considerado ‘comprometedor’ por aqueles que não desejam envolver-se com essa
história do chamado ocultismo.
E verdade. De certa forma, o ‘enigma’ Patience Worth continua
insolúvel, noventa anos depois da apresentação de 8 de julho de 1913,
enquanto escrevo isto em 2003. Botei a palavra enigma entre aspas mais
por causa do clima de mistério no qual a própria autora espiritual
envolveu sua identidade. Aliás, ela se recusaria terminantemente, mesmo
sob a constante pressão da curiosidade dos circunstantes, a falar de si
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mesma senão o mínimo necessário, informação essa que cabe num único
e modesto parágrafo.
Segundo as escassas revelações que ela se permitiu, nascera na
Inglaterra na primeira metade do século 17. Yost (apud Litvag, p. 55)
caracteriza-a como "reticente" acerca de sua própria história, mas
depreende-se da linguagem usada que ela teria algo a ver com os quakers
(5) e que emigrara da Inglaterra para os Estados Unidos, possivelmente
ainda jovem.
(5) - Os quakers - diz Aurélio, que registra o, verbete como quacre (quacres, no
plural) - são os membros "de uma seita protestante (Sociedade de Amigos fundada
na Inglaterra, no século 17, e difundida principalmente nos EUA. Os quacres não
admitem sacramento algum, não prestam juramento perante a justiça, não pegam
em armas, nem aceitam hierarquia eclesiástica."
De outras reticências suas, depreende-se que Patience vivera em
Dorsetshire, um country (6) inglês, onde provavelmente teria nascido.
(6) - O termo indica um domínio administrativo, até hoje utilizado na Inglaterra e
nos Estados Unidos. Ao que depreendo, a palavra origina-se de count (conde) ou
seja condado.
No verão de 1921, Casper Yost e a esposa foram à Inglaterra com o
propósito de visitar o local. Em 4 de julho, pouco antes da partida do
casal, Pearl Curran teve a nítida vidência de uma colina de onde se via o
mar, as ruínas de um mosteiro - seguido por uma rápida percepção do
edifício original - bem como uma pequena vila dotada de uma igreja,
umas poucas mansões, alguns chalés e uma oficina de ferreiro. A
impressão que ela teve foi a de que era ali que vivera Patience no século
17.
Sobre esse fenômeno, Patience fez um comentário, em sua linguagem
habitual, dizendo:
A mão do tempo apaga as ninharias dos homens. Sim, mas digo eu,
quando estiver naquele local e colocar as mãos sobre as pedras, você terá
estado no ponto de onde sua amiga contemplava o mar.
Ao receber esse texto, a senhora Curran ‘viu’ Patience cavalgando na
direção de uma escuna ancorada no porta, na qual ela e outras pessoas
embarcaram.
Em seguida, a médium declarou haver visto Patience bem de perto
(Litvag, p. 226). Ela puxara o capuz para trás, descobrindo todo o rosto.
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Era muito mais jovem do que Pearl Curran havia imaginado. Não teria
mais do que trinta anos. Os cabelos eram de um vermelho escuro,
puxando para a cor do mogno; os olhos castanhos, grandes e profundos, a
boca firme e contraída como a de quem reprime fortes emoções. Os
cabelos haviam sido desarranjados quando ela puxou o capuz e eram
formados por ondas largas e brilhantes.
A médium ainda a viu, enquanto a embarcação partia ao crepúsculo.
‘Era uma figura acinzentada, silenciosa, cansada e solitária, deixando sua
terra natal... para onde?.’
Sempre por meio de vagas e relutantes referências, soube-se que
Patience foi para a América numa das levas de quakers, mas, daí em
diante, nada de mais significativo foi revelado.
Onde teria vivido nos Estados Unidos? Até quando? Casou-se? Ou será
que já viera casada da Inglaterra? Onde teria sido enterrado seu corpo?
Ela fez questão de não explicitar mais nada. Aliás, não fazia segredo de
que sua história pessoal somente a ela interessava. Entendia - com toda
razão, a meu ver - que o importante era o conteúdo de sua mensagem,
que, no correr de quase um quarto de século, atingiu a expressiva cifra de
3 milhões e 500 mil palavras, a maior parte das quais ficou inédita.
Seja como for, Yost e a esposa visitaram na região um lugarejo
chamado Abbottsbury onde encontraram as ruínas do velho mosteiro (7)
mencionado por Patience e que estava sendo usado como estrebaria. No
alto da colina ficava a capela de santa Catarina, uma pequena e maciça
construção de pedras. As casas eram muito antigas, solidamente
construídas com pedras e cobertas de palha. "As poucas ruas eram
estreitas e tortas - prossegue Yost, na carta que escreveu para os Curran -
e os habitantes pareciam tão antigos quanto a vila. Tocamos as pedras
com as mãos - continua ele - e, em seguida, descemos pela estrada até
Portisham, a vila de Patience, local que se encaixa perfeitamente na
descrição feita por ela e na direção que ela indicou."
(7) - Abbott é abade, bury, do verbo to bury, significa enterrar, sepultar, ou seja,
o vilarejo era conhecido como o lugar onde se enterra o abade.
Visitaram, a seguir, uma diminuta vila de não mais que trezentos
habitantes, rodeada por lindíssima paisagem. As casas pareciam realmente
dos tempos de Patience, no século 17.
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que se refere, ela parece ter ‘estado lá’ em vista dos convincentes
depoimentos testemunhais que oferece, pintando com as dramáticas cores
vivas do realismo os costumes, as línguas que falavam, as religiões que
professavam, as idéias que discutiam.
20
III
Mas esse não é o ponto crítico do enigma. Para mim, o espantoso é que,
inexplicável e paradoxalmente, ela se declarava contrária ao conceito da
reencarnação.
Pois é aqui que tenho minhas próprias perguntas a formular. Por que
teria assumido tal atitude? Tentava ocultar algo para continuar
preservando obstinadamente sua identidade? Ou melhor, suas
identidades? Estaria, ela própria, envolvida pessoalmente naqueles
episódios, com todos os seus conflitos e os sofrimentos deles decorrentes?
Ou, ainda, evitou trazer para seus relatos o problema mesmo da
reencarnação para não provocar reações ainda mais explícitas ao seu
trabalho?
Como se percebe, ao percorrer os acirrados debates em torno de tais
questões, há depoimentos de pessoas cultas e respeitáveis preparadas para
admitir, mesmo como hipótese, a incômoda idéia da sobrevivência do ser
e até a da comunicabilidade entre ‘vivos’ e ‘mortos’, mas, reencarnação,
não, pelo amor de Deus! Acreditar na doutrina das vidas sucessivas ou,
sequer, mencioná-la era atrair para si mesmo o estigma da crendice, da
fantasia, da superstição, em suma, da ignorância, ou do desarranja mental.
Era e continua sendo elegante renegar a realidade espiritual,
especialmente nos sofisticados círculos intelectuais pelo mundo afora.
Temos visto, na análise do caso Patience Worth, as voltas e estratagemas
que seus comentaristas utilizam para deixar bem claro que eles nada têm a
ver com os aspectos tidos por ‘ocultistas’ ou espiritualistas da vida. Mas
que a própria Patience Worth tenha se esforçado por se colocar contra a
reencarnação é algo, não diga inexplicável, mas inexplicado, ou, no
mínimo, não explorado. Isso porque ela demonstra indiscutível
familiaridade com outros aspectos daquilo que insisto em chamar de
realidade espiritual. Ela própria é uma demonstração viva e convincente
da sobrevivência do ser à morte corporal, conhece bem os mecanismos da
mediunidade, da vidência e da chamada clarividência itinerante, ou seja, a
21
Pouco adiante, como também vimos, ela reconhece que "fala desde que
o tempo começou" (p. 86) .
O mesmo Reedy diria mais adiante (p. 109) que, em The sorry tale,
Patience descreve uma noite num deserto da Arábia de modo irretocável,
que nem o próprio Robert Hitchens seria capaz de superar nos detalhes, e
que descrições de outros tempos e locais eram igualmente fiéis às
condições e situações locais.
Sobre essa temática, entretanto, há que se examinar mais de perto
aquilo que Litvag considera "o mais bizarro episódio de toda a estranha
história de Patience Worth" (p. 137).
Para disparar logo o míssil, Litvag diz que Patience resolveu tornar-se
mãe. Não dá para reproduzir aqui a casa com todas as suas minúcias;
temas de nos contentar com um resumo do resumo.
Patience queria que Pearl e John Curran adotassem uma criança que
estava para nascer, e da qual ela, Patience, se considerava mãe verdadeira.
Como sempre, foi vaga e obscura nas indicações que deu sobre o assunto,
quando Pearl quis saber de mais detalhes. Por exemplo: como localizar a
criança? Patience respondeu que cuidaria disso, afirmando, enigmática
como sempre: "Espera. Quando teus olhos caírem sobre ela, teu coração
dará um salto."
Algum tempo depois, Pearl continuava sem saber o que se passava e
como proceder. Quem sabe a criança seria encontrada à porta da casa de
Pearl, como acontece nos romances e nas novelas?
Mas não era isso, como objetou Patience:
Você pensa que a ovelha vem ao encontro do pastor sem que ele a
chame? Não. Ele deverá procurar por ela, e tua serva [a própria Patience]
fará com que teu coração dê um salto, e você, você e você [dirigindo-se às
outras senhoras em torno da prancheta], amores meus, começarão a se
aquecer às emoções do amor.
Quanto à criança - seria uma menina - Patience a descreveu em um
texto igualmente emocionado e poético:
[...) ela tem o tope incendiado (cabelo vermelho)! E mais, vejam bem,
Ele amou-a tanto que despejou sobre ela o dourado de sua mais
extraordinária obra, o brilho do sol flamejante, a fim de mostrar o rico
tesouro do ouro.
23
E acrescenta: E aquilo que não estiver perfeito, ele terá que tecer
novamente, pois assim exige a misericórdia desse Deus justo, cuja obra é
perfeita."
Onde e quando iríamos corrigir o desenho errado da tapeçaria, senão no
correr de outras e outras vidas de volta à matéria, até que tenhamos
aprendido a lidar com ela para construir e caminhar, e não para demolir e
estacionar?
Referindo-se a Patience como um gênio, o professor Charles Cory
observa (Litvag, p. 277):
Coisa que suscita interesse especial nessa literatura [de Patience Worth]
está em que a maior parte dela reflete a vida e os costumes de outros
tempos, e o faz com uma intimidade que espanta o leitor.
Num período difícil para a família Curran, quando John, o marido de
Pearl, passou algum tempo no hospital, Patience escreveu várias
mensagens de encorajamento e ternura. Uma delas foi transcrita por
Litvag (p. 225). Vejam que beleza:
Meu amado, não é a primeira vez que venho até você. Tenho lhe
oferecido por almofada o bálsamo de minha própria alma, e ainda que seu
corpo chore, lembre-se, meu muito amado, tenho vindo e jamais o
deixarei.
A não ser, pois, recorrendo à doutrina das vidas sucessivas, como
explicar a própria Patience Worth? Atormentado pelo enigma, escreve
Litvag (p. 292):
Se Patience foi uma mulher nascida no interior da Inglaterra, onde teria
aprendido a escrever daquela maneira? [...] Se ela viveu no século 17,
como alegava, como é que sabia tanto a respeito da Inglaterra vitoriana
para escrever Hope trueblood?
A resposta é simples, mas ao mesmo tempo arrasadora para o ingênuo
conceito de que vivemos uma só vida: Patience, como qualquer um de
nós, viveu numerosas vidas em diferentes épocas e regiões e viverá outras
tantas.
Ah, ia me esquecendo de algo.
O juiz Corliss era de uma espantosa erudição lingüística. Ao perguntar
o que significava o termo sockman, imaginava que nem mesmo Patience
Worth saberia responder. Enganou-se. Ela não apenas sabia, como
26
IV
logo de início:
"E então! Aí está o velho."
O doutor Prince parecia ainda mais irritado do que da primeira vez e, a
certa altura, despachou-lhe uma expressão um tanto inconveniente (darn).
Ela rebateu prontamente:
"Você disse uma palavra que, na minha época, seria imprópria para um
cavalheiro."
"E como você diria, então?"
‘Dang.’(19)
(19) – Recordo ao webster para ficar sabendo que o significado do termo era
equivalente a damn, provavelmente mais apropriado para um cavalheiro, ou menos
inconveniente. Alias, o dicionário informa que a palavra foi usada efetivamente
entre 1780 e 1790, o que ‘data’ com precisão a enigmática personalidade de
Patience Worth.
Damn – diz ainda Webster, e disso eu sabia – sem ser um palavrão, e, em alguns
casos, considerado um imprecação, ou seja disparada por quem está de mau humor,
como foi o caso nesta passagem. Patience teve, pois, suas razões para repreender o
ilustrado doutor com quem conversava.
Quanto aos políticos do congresso americano, eis a ríspida avaliação de
Patience: São asnos que se põem a zurrar dizendo que aquilo é a voz do
povo."
Sem comentários. Não quero me comprometer. Vamos ficar somente no
congresso americano...
James Hyslop, outro respeitado (e ranzinza) pesquisador de fenômenos
insólitos, também foi alvo de algumas farpas de Patience. Como de
hábito, ele empenhou-se em desmascarar a pobre médium que, a seu ver,
estava simplesmente "inventando" aquela história de espírito
comunicante. De outra vez, quando o grupo que freqüentava regularmente
as sessões em casa dos Curran manifestava explícita irritação contra
Hyslop, Patience comentou: "Vocês ainda precisam aprender que jamais
se viu um campo florido, verdejante e coberto de profunda e macia grama,
sem que um asno se ponha a pastar nele."
31
amor-amor (20) por Ele, amor por aquilo que lhe pertence, seus próprios
filhos e filhas, é que se constrói a alma em sua plenitude.
(20) – “Love-love” (amor-amor) é uma das numerosas peculiaridades do estilo
de Patience Worth. É a sua maneira de dizer que é um amor sem restrições ou
reservas, um amor verdadeiro, puro, integral e não um meio amor.
Ele lhes diria: Esperem! Sejam pacientes! Assim será.
Eu teria alguns reparos a sugerir a esse texto; nada de relevante, porém.
Não vejo a eternidade como coisa a ser conquistada - uma vez criados,
somos imortais, onde quer que estejamos no tempo ou no espaço. Não
atribuiria a Deus posturas como a da irritação perante as faltas que
cometemos. Aliás, o original inglês ainda é mais enfático - anger - que
pode ser transposto para a língua portuguesa como zanga, ira, fúria, cólera
e até ódio.
Quanto ao mais, nada teria a retocar, nem na forma nem no conteúdo.
33
VI
e acabado...
Confrontem-se pronunciamentos como esses com o do próprio Litvag,
nos parágrafos finais de seu livro.
Ele se queixa, como vimos alhures, dos espíritos - "se é que existem" -
que deveriam apresentar-se de modo convincente perante os pobres
mortais em dúvida. Como seria tal procedimento? Pelo menos para mim,
não ficou claro que entenderia o autor por "evidência conclusiva,
totalmente irrecusável de que os espíritos dos mortos existem e se
comunicam conosco".
Pois não é isso mesmo que os espíritos vêm fazendo há milênios?
Quantos deles partem daqui da dimensão material, cheios de dúvidas ou
de certezas negativas e tentam convencer os colegas céticos de plantão, do
lado de cá, que estavam em erro? E quantos decidem reencarnar-se
reprogramados para, dessa vez, sim, confirmar a realidade espiritual e, no
entanto, recaem na descrença e se enchem de escrúpulos e de temores ante
a realidade espiritual?
Pergunta-se Litvag, à página 297:
O que penso eu? Como já disse, não tenho resposta a oferecer. Deixo o
caso participando da opinião de Walter Franklin Prince, Otto Heller e a
maioria dos que têm examinado detidamente o caso ao longo dos anos,
com um senso de permanente frustração. Como disse no início de minha
investigação, ainda me inclino ligeiramente na direção da teoria de que
Patience tenha sido produto do inconsciente da senhora Curran; no
entanto, estou pronto a admitir que essa inclinação decorre mais de meu
próprio temperamento e de meu sistema de valores do que de qualquer
evidência de peso que a sustente.
Em suma: Litvag também é dos que nos asseguram que "nada têm a ver
com isso", senão na medida de seu temperamento e de seus valores, tudo
com as devidas ressalvas para proteger o precioso status pessoal de cada
um. Mas, afinal de cantas, qual o conteúdo real da cautelosa declaração de
Litvag? O que ele está disposto a admitir é que tem uma ligeira inclinação
preferencial pela teoria de que Patience Worth não foi mais do que uma
projeção inconsciente de Pearl Curran...
É desanimador.
Parte significativa da obra da genial autora espiritual ficou inédita.
37
VII
O processo mediúnico
VIII
IX
Os magos
"antes de Cristo".
Um astrônomo mais curioso, por nome Michael Molnar, ao pesquisar
aquele remoto período, descobriu que, em 17 de abril do ano 4, antes de
Cristo:
"Júpiter (o rei dos planetas) - escreve Duin - encontrava-se em Áries
(que simbolizava o reinado de Herodes). Não apenas isso - prossegue a
autora - mas a lua passava diante de Júpiter, que também surgia no
horizonte como estrela matutina."
Para as mentes voltadas para a astrologia naquele tempo - conclui o
texto -isso indicava o nascimento de um "super-rei".
De acordo com esses achados, Jesus teria nascido em 17 de abril do ano
4 a.C. E se sua vida pública como pregador durou, de fato, 33 anos, teria
sido crucificado aos 37 anos de idade, e não aos 33.
Aliás, há muito tempo vinha sendo posta em dúvida a data ‘oficial’ do
nascimento de Jesus.
De qualquer modo, a pesquisa moderna confirma a observação de
Patience Wort, segundo a qual os supostos três reis magos" eram versados
em astrologia, dotados de faculdades extrassensoriais - videntes, diz ela -
e vieram de muito longe a Belém, para conhecer pessoalmente o
extraordinário ser humano que nascera sob tão espantosa conjunção
planetária.
Este não é o momento apropriado, porém, para se tratar mais
extensamente do debate em torno da dúvida histórica de que o nascimento
de Jesus pode não ter sido em Belém. Leitores e leitoras porventura
interessados poderão consultar ampla literatura a respeito. Algumas
reflexões sumárias sobre o assunto constam de meu livro Cristianismo, a
mensagem esquecida.
53
A Linguagem
Litvag, p. 90)1 -, que se revela peculiar e individual. Ela não tem o menor
respeito pelos diferentes componentes da fala, e pouco respeito pelas mais
sagradas regras de sintaxe.
Destaquei a avaliação de Yost porque guardo comigo certa simpatia
pelos escritores mais rebeldes, pois - aí vai uma heresia - acho que eles
ajudam a construir, reformular e modernizar as línguas nas quais se
expressam. Essa ‘reconstrução’ das línguas, no meu ignoro modo de
entender, ocorre primeiramente no falar diário habitualmente
despreocupado da observação rigorosa de regras gramaticais. Se assim
não fosse, não teríamos, por exemplo, as diferentes línguas derivadas do
latim, ou seja, português, francês, espanhol, italiano, romeno, occitano,
catalão; em suma, o grupo das línguas românicas ou neolatinas.
Estou, pois, com Patience Worth e, nesse aspecto, me senti
perfeitamente à vontade ao misturar, na minha tradução, tratamentos
pessoais. Se digo "Me parece..." por que escrever "Parece-me..."? Se
cobro de alguém: "Eu não te disse que isso não daria certo? Você se
lembra.?", me sentiria um tanto artificial botando nós conformes das
regras. Não que se deva ignorar as normas gramaticais, mas uma pitada de
rebeldia inovadora aproxima os textos da linguagem do dia-a-dia,
usualmente despida das formalidades e preciosismos da erudição
estilística e elitista. Afinal de contas, em textos dirigidos a um público
leitor maior, não vejo razão para uma linguagem acadêmica, enquadrada
com precisão milimétrica nos comandos ditados pelas numerosas regras
que compõem as estruturas gramaticais vigentes.
Não foi o povão - ou seja, nós mesmos - que acabou com o uso do vós?
Meu pai ainda usava esse pronome nos seus escritos formais, não, porém,
no diálogo ao vivo. Hoje, nem a Deus tratamos de vós. O mais comum é o
tu, mas, nos meus colóquios com ele, chamo-o de Você com o maior
respeito, mas também com a intimidade que me parece compatível entre
nós. Acho mesmo que o você foi uma das grandes invenções dos
portugueses, que se traduz com notável precisão no you da língua inglesa,
que serve para toda gente, nobres e plebeus.
"A linguagem - escreve Yost - conserva algumas das peculiaridades
verbais e sintáticas de Patience, e a mesma liberdade das restrições
gramaticais."
56
Deve-se acrescentar que ela assim procede não porque ignore as normas
que regem a elaboração de um bom texto, mas porque deseja expressar-se
de modo mais livre e personalizado, de vez que, reconhecidamente, no
dizer de Reedy - e ele tinha autoridade para dizê-lo - "a linguagem na qual
Patience Worth se expressa, ela construiu para seu uso pessoal a partir de
simples raízes anglo-saxônicas."
Mas não apenas críticos literários, escritores e intelectuais em geral
opinaram sobre os escritos de Patience Worth; os pesquisadores do
psiquismo também se envolveram no debate, ainda que mais interessados
no aspecto psicológico ou clínico do problema.
Dentre esses, um exemplo é o doutor Morton Prince, que opinou
azedamente (p. 124), dizendo que se tratava de:
[...] um livro que passaria à história como uma tola aventura destinada
a influenciar o público em proveito de idéias que não ofereciam
credenciais adequadas qualquer que seja o material existente entre as duas
capas.
Paradoxalmente, no entanto, acrescenta a seguir:
Não há dúvida de que os poemas eram de boa qualidade, muito acima
da produção usual do automatismo, (30) e o mesmo se aplica ao restante
do material literário. Tudo isso é boa literatura e merece ser lida somente
por isso.
(30) – Leia-se psicografia.
Henry Holt, o editor que assumiu a corajosa atitude de lançar The sorry
tale, em 1917 - a edição da qual fiz a tradução -, também opina sobre a
linguagem da autora espiritual, dizendo que, se a senhora Curran, a
médium, estivesse em busca de fama literária, como alegavam alguns,
"dificilmente teria escolhido uma linguagem que ninguém fala e,
provavelmente, ninguém jamais falou".
57
XI
XII
mas vários outros, como Maria, a artificiosa Indra, a doce Neida, Neidab,
o sábio tecelão de tapetes, o enigmático Ahmud Hassan e seu genial
camelo, Caleb e seus remos, Aarão, um pobre ser ‘vazio’ sempre
arrastando suas redes pelo chão.
Há muitas teorias sobre a origem da singular obra de Patience Worth,
especialmente a sua discutida história triste.
Tentou-se o inútil, nada convincente e até infantil empenho em atribuir
sua narrativa ao inconsciente da Pearl Curran, a médium. O recurso não
passa de ingênuo, inconsistente e desesperado artifício com o objetivo
único de rejeitar a realidade espiritual subjacente. As hipóteses, teorias e
alternativas engendradas para explicar o fenômeno sem recorrer à
realidade espiritual eram muito mais complexas, improváveis e
fantasiosas. Atribuir à própria médium a elaboração de um texto tão
complexo e erudito é apenas deslocar o problema. Como se explicaria,
neste caso, a extraordinária capacidade dela?
O livro tem o sabor de um testemunho, de um depoimento pessoal.
Quem escreveu aquilo estava lá, naquele tempo e contexto. Não se trata
de um estudo meramente livresco de quem pesquisou o tema e o expôs
com singular pode verbal e de modo convincente.
Ainda que a autora espiritual se coloque formalmente contra a doutrina
das vidas sucessivas, estou convencido de que se trata apenas de uma
postura cautelosa sua para não levar para o âmbito da obra o controvertido
conceito da reencarnação, cuja rejeição assumia as proporções de uma
unanimidade à época em que o livro foi lançado. E que, de certa forma,
ainda prevalece no discurso teológico tradicional e - com as honrosas
exceções de sempre - na maioria dos papéis de origem acadêmica.
Vimos, ademais, que, por maiores e mais cuidadosos que sejam os
esforços de Patience, seus escritos, poemas e colóquios deixam, aqui e ali,
vazar convincentes implicações nas quais se infiltrou sutilmente a
inevitável realidade das vidas sucessivas.
No dramático dialogo com Tibério, nos jardins do palácio imperial em
Roma, Téia, já envelhecida, declara enfaticamente que, no tempo devido,
escreveria com suas próprias mãos a história triste de suas aflições.
Quando a autora espiritual decidiu articular e ‘negociar’ o
(re)nascimento da entidade à qual ela chama de Patience Wee, deixou
61
XIII
isso não apenas por sua beleza literária, mas pelo assombroso
conhecimento que a autora revela daqueles tempos remotos. Ela recria o
passado como se estivesse lá, e não como alguém que apenas ouviu falar
do que ali teria acontecido.
Uma última palavra: não existe nada misterioso ou enigmático no caso
Patience Worth, senão o enigma da próprio autora espiritual, que pouco
falou de si mesma.
Uma entidade espiritual, sobrevivente à a morte corporal por intermédio
de uma sensitiva surpreendente e bem articulada história passada no
tempo do Cristo. No entanto, virou tudo o que os franceses chamariam de
cause célèbre, um descomunal e despropositado debate, tão rico em
demonstrações de erudição e cultura quanto de tenaz rejeição e ignorância
da realidade espiritual que o tornou possível.
66
Segunda Parte
(Ernesto Bozzano)
segundo diz: "Tudo isto equivale a sustentar que a parte é mais vasta do
que o todo."
Creio que isto deve bastar; não falemos mais do caso e passemos à
segunda das hipóteses que podem ser formuladas.
O dr. Prince, em várias passagens do seu volume, deixa claramente
compreender que ele considera a hipótese espírita como a única capaz de
abraçar o conjunto dos fatos, todavia, com a circunspeção de um sábio,
que se dirige a outros sábios que não estão ainda maduros para certas
verdades, conclui, entrincheirando-se por detrás de um dilema que é
constituído de duas proposições e que os psicólogos universitários não
achariam de seu gosto... Diz ele:
Eis a tese que formulei após dez meses de estudos assíduos dos fatos:
ou modificar radicalmente a concepção do que se chama ‘subconsciente’,
nele compreendendo potencialidades intelectuais das quais não se tem
idéia alguma até aqui, nu bem reconhecer a existência de uma causa que
age por intermédio da subconsciência da senhora Curran, porém estranha
à sua subconsciência. No primeiro caso, torna-se normal o que se
considerou até aqui ‘supranormal’ (da mesma maneira que a hipnose, a
qual, há um século, parecendo subentender possibilidades supranormais,
foi depois ‘normalizada’); no segundo caso, tem-se que admitir o
‘supranormal’.
Reconheço, por minha vez, que, se para os casos análogos ao de que
nos ocupamos se renuncia à hipótese do ‘subconsciente’, entendida no
sentido de uma fração sistematizada da dissociação psíquica do indivíduo
e se admite a hipótese de Myers, segundo a qual existe, talvez, no homem
uma personalidade integral subconsciente, infinitamente mais vasta e
perfeita do que a consciente, dotada de faculdades de sentido
supranormais e de capacidades intelectuais cuja emergência esporádica
daria lugar às "inspirações do gênio", reconhece qual se se admitisse tudo
isto, se chegará, até certo ponto, à consideração do caso em questão. Digo,
"até certo ponto", porque se teriam que enfrentar obstáculos formidáveis.
De fato, se com esta hipótese se chegasse a explicar, de qualquer modo,
a excelência das obras literárias ditadas pela personalidade mediúnica,
assim como a ligeireza extraordinária com a qual ela jogava com as
palavras , não se explicaria ainda como lhe foi possível escrever romances
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