Rem Koolhaas-Para Além Do Delirio
Rem Koolhaas-Para Além Do Delirio
Rem Koolhaas-Para Além Do Delirio
KOOLHAAS, Rem. Para Além do Delírio, in: NESBITT, Kate (org.). Uma Nova Agenda para a
arquitetura: antologia teórica (1965-1995). São Paulo: Cosac Naify, 2006. pp. 362-7.
REM KOOLHAAS
Quero falar sobre alguns projetos urbanos e mencionar certos problemas da condição urbana
contemporânea que minha obra tenta enfrentar.
Todos conhecemos a imagem da reconstrução do fórum romano feita por [Giovanni Battista]
Piranesi e sabemos que essa obra representa uma forma muito intensa de cidade. Reconhecemos um
bom número de formas geométricas associadas com elementos públicos, e entre estes reconhecemos
pequenas ruínas, plânctons programáticos em que presumivelmente as atividades menos formais da
cidade poderiam ser acomodadas. Essa mistura de elementos formais e informais e a combinação de
ordem e desordem que essa imagem representa são condições essenciais da cidade.
Também conhecemos esse segundo tipo de cidade e, embora ela faça parte do cinturão de
novas cidades em torno de Paris, poderia igualmente estar em Toronto, Tóquio, Coréia do Sul ou
Cingapura. O irônico é que subjacente a esse modelo de cidade ainda podemos ver as principais
figuras geométricas, a tentativa de obter uma certa coerência, formas e organizações estranhamente
piranesianas, mas sem qualquer traço da condição urbana que Piranesi sugeriu ou imaginou. Há sinais
dos escombros que preenchem as falhas entre as figuras mais importantes. Se a primeira imagem
inspira certo entusiasmo, todos sentimos uma dose de desapontamento, se não de repulsa, com o
segundo tipo de cidade (embora seja atualmente a forma predominante e ainda que seja importante
nomeá-la de "cidade", porque, do contrário, estaríamos nos reconhecendo como membros de uma
cultura e civilização que é simplesmente incapaz de fazer uma cidade). As obras que estou mostrando
devem ser lidas nesse contexto.
Quero também falar de minha geração como uma espécie de caricatura da geração de maio de
68, que não é para ser levada a sério demais, mas que também não se deve ignorar. Nossa geração
respondeu de duas maneiras à condição urbana contemporânea. Uma parte basicamente a ignorou
ou, para dar uma interpretação mais positiva, resistiu corajosamente à cidade, como fez a grande
reconstrução teórica de Washington, de Leon Krier. Há uma redescoberta da cidade, uma nova
fidelidade à idéia da cidade e nossa geração foi muito importante na reabilitação da cidade como um
território essencial de atividade. Mas o paradoxo dessa reabilitação é que parece que perdemos
completamente o poder e a capacidade de agir sobre e com a cidade.
A outra parte de minha geração tomou a direção exatamente oposta. Considere-se, por
exemplo, o projeto do grupo Coop Himmelblau para uma nova cidade nas proximidades de Paris,
chamada Melun-Sénart. Enquanto Leon Krier e sua metade da geração estão reconstruindo a cidade,
o Coop Himmelblau e a outra metade abandonam toda pretensão de que seja possível reconstruí-la,
desistindo de nossa capacidade até mesmo de reconstruir qualquer forma reconhecível da cidade.
Fora desse debate, eles criam um espetáculo - um jogo retórico, no qual, em vez de uma série de
eixos formais, não há mais que composição inspirada no inconsciente e numa estética essencialmente
caótica.
Aproveitando esse momento de repulsa começamos a nos perguntar se não haveria uma nova
técnica, uma maneira de trabalhar sem essa deficiência ou incompetência, uma possibilidade de
reverter a situação, de modo que não pudéssemos mais assegurar que podíamos construir uma
cidade, mas que pudéssemos sim descobrir outros elementos com os quais criar uma nova forma de
condição urbana. Estávamos menos preocupados com o que poderíamos construir do que com a
análise da situação para determinar onde não haveríamos de construir de modo algum.
Para apreciar as florestas, decidimos não construir nas fronteiras do norte e do sul. No
entremeio, havia uma soberba área natural de pequenos bosques que os monarcas franceses usavam
para caçar veados entre uma floresta e outra, e depois matá-los na clareira intermédia, e por isso
resolvemos não construir nada ali. Decidimos também não construir perto da rodovia. Com essa
sistemática de eliminações, ficamos com uma espécie de desenho chinês, onde tomamos uma
decisão: não vamos construir aqui e não estamos interessados em construir ali. Controlando esse
sistema de espaços vazios ou espaços de paisagem natural, abandonamos de modo sistemático e
com entusiasmo qualquer reivindicação de controle sobre as terras residuais, na crença de que elas
provavelmente acabariam no que os franceses chamam de merde. A qualidade sublime dos espaços
verdes poderia nos propiciar em vez disso uma nova concepção de cidade que não seria mais definida
por seus espaços construídos, mas pela ausência destes ou pelos espaços vazios.
Esse projeto, realizado em 1989, nos agradou muito, porque permitiu que imaginássemos uma
maneira de transformar a incompetência no começo de uma nova relação com a cidade, na qual essa
fraqueza fosse integrada e se tornasse parte de uma máquina de recuperação.
Em Hong Kong, fizemos uma experiência, destruída no ano passado, com tipos de construções
visivelmente inspiradas na Cidade Proibida. Era um complexo arquitetônico incrível media apenas
180m por 120m, mas formando uma construção compacta, com diminutas aberturas para ventilação
separando os prédios, às vezes sem abertura alguma. A superfície total dos edifícios media
aproximadamente 300.000m2, e não havia nenhuma estabilidade programática nessa construção
irregular. Qualquer programa ali acabaria sofrendo modificações permanentes com o passar do tempo,
de modo que se podia começar com uma casa, depois um bordel, depois uma fábrica, depois um
laboratório de fabricação de heroína, e depois um hospital. A fórmula libertadora para esse grupo de
edifícios talvez fosse não nos preocuparmos em ser muito rígidos quanto à necessidade de fazer
edifícios para finalidades específicas.
Alivia muito a tarefa dos arquitetos pensar nesse pequeno grupo de edifícios como, antes de
mais nada, uma acomodação permanente de atividades provisórias. Não precisamos mais andar em
busca de uma rígida coincidência entre forma e programa, e assim nos dedicaremos simplesmente a
projetar novos volumes que sejam capazes de absorver o que quer que nossa cultura gere.
No ano que vem será inaugurado o túnel ligando a Inglaterra ao continente. Os franceses
imaginam que a mudança acarretada pela combinação do túnel e do uso de trens TGV de alta
velocidade será radical. A viagem de trem de Paris a Lille costumava levar duas horas e meia. Agora
leva 50 minutos. Eurodisney são 45 minutos. O percurso de Lille até Londres demorava 13 horas,
tempo que será reduzido para uma hora e dez minutos. Serão 40 minutos até Bruxelas e menos de
duas horas até a Alemanha. Esses fatos modificam completamente, ou melhor, reinventam toda essa
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região da Europa, a ponto de os ingleses comprarem casas aqui porque fica mais rápido viajar de Lille
ao centro de Londres do que vir dos bairros da periferia da capital da Inglaterra. Se tivermos em mente
não as distâncias como o fator crucial, mas o tempo que leva para ir a um lugar, surge um dado
numérico irregular que representa a totalidade do território, agora de menos de uma hora e meia desde
Lille. Se somarmos todas as pessoas que estão neste território, obtemos um total de 60 milhões.
Portanto, o TGV e o túnel poderiam criar uma metrópole virtual irregularmente espalhada, da qual Lille,
atualmente uma cidade de importância em declínio, se torna a capital, totalmente artificial e de certo
modo por acaso. E de maneira igualmente fortuita, nos tornamos, em 1989, os planejadores de toda
essa operação.
Fomos selecionados e nos vimos rodeados por um grupo de especialistas que nos olhavam
com inacreditável expectativa. Estendendo-nos uma folha de papel em branco, eles nos pediram: "Por
favor, resolvam esse conflito entre o túnel do TGV e a rodovia, porque este é o nó górdio de nosso
projeto". Este foi um momento muito importante para mim, que pertenço à geração de maio de 68,
porque compreendi na hora que não estava preparado para esse tipo de pergunta. Em meu
subconsciente de arquiteto, eu jamais imaginara que fossem confiar um posto tão importante como
aquele a uma pessoa da minha geração. Por alguma razão, eu achava que as rodovias eram
projetadas por pessoas maduras, com um sistema nervoso mais resistente que o meu, gente mais
habituada a suportar cargas pesadas de responsabilidade; em comparação com elas, eu me sentia
como um puro-sangue tinindo para a corrida de alta velocidade, e, por isso mesmo, me considerava
dispensado daquele tipo de pedido. Foi ali que me dei conta de que minha geração havia se afastado
conceitualmente de um mundo que produz. Certo de que os franceses eram simplesmente
megalômanos e o projeto muito provavelmente nunca seria levado à prática, e me vendo rodeado por
aquela plêiade de peritos à espera de uma resposta, decidi blefar e dizer que sabíamos exatamente
como resolver o problema: no ponto em que as duas pistas da ferrovia TGV se desdobravam em seis,
faremos a rodovia correr paralela à estação. E também a faremos mergulhar no subsolo, enquanto nos
espaços intermédios criaremos a maior área de estacionamento da história da cristandade - 8 mil
vagas, e com isso, poderemos gerar uma incrível condensação da infra-estrutura. Tomamos a idéia do
mergulho no subsolo ao pé da letra, como a base de nosso projeto. A vantagem de tudo aquilo ficar
escondido no subsolo era que a obra inteira poderia coexistir com a escala da Europa sem parecer
demasiado opressiva para a escala da cidade existente.
Na primeira fase, o projeto deveria conter um total de 1,5 milhão m 2, dimensão até então
inimaginável, de modo que tivemos de provar à Europa que as torres ficariam ótimas e ninguém tinha
de temê-las. Decidimos que a área triangular entre a velha e a nova estação, que inicialmente
imaginamos transformar numa grande praça, também poderia ser interpretada como um plano, o qual
faríamos pender para dentro. Com essa inclinação, parte do plano podia tornar-se um edifício, com a
frente voltada para a cidade, mas a outra parte, numa linha oblíqua ao túnel, podia ser empurrada para
baixo, de modo a liberar os flancos do túnel, criando assim uma espécie de vitrine, para que a chegada
dos trens TGV (e, por conseguinte, a razão da radical transformação da estação) ficasse visível e
fizesse parte da compreensão urbana.
Nossa proposta incluía, para fins puramente simbólicos, colocar torres em cima da estação do
TGV, integrando-as com ela. Com seu habitual cartesianismo, os franceses calcularam que sairia oito
vezes mais caro construí-las como pontes por cima da estação, mas que o simbolismo justificava o
investimento. Nossa idéia foi criar um símbolo que indicasse que não tinha a menor importância que
essas torres estivessem em Lille (na realidade, a presença das torres em Lille era quase uma
coincidência ou uma circunstância arbitrária), mas que o fato importante e definidor dessa localização
era estar a 60 minutos de distância tanto de Londres como de Paris. Não se trata de onde a
construção está; mas os lugares com que ela se relaciona é que lhe definem a importância.
Essa primeira parte do projeto, em torno da qual se realizou o planejamento inicial em 1989,
ficará pronta no próximo ano, e já é hoje um dos maiores espaços construídos da Europa. O fascinante
nisso tudo foi termos projetado edifícios numa escala que a Europa desconhecia até então, de modo
que pudemos fazer experiências com tipologias inteiramente novas. Cada vez mais nosso interesse
principal tem sido menos o de fazer arquitetura, mas o de manipular os planos urbanos para criar um
máximo de efeito programático.
["Beyond Delirious", extraído de Canadian Architect n. 39, jan. 1994, pp. 28-30. Cortesia do autor e do
editor. Este ensaio foi originalmente apresentado como uma conferência na Escola de Arquitetura da
Universidade de Toronto, em novembro de 1993.]