Tese Doutores Indígenas
Tese Doutores Indígenas
Tese Doutores Indígenas
NOVO HAMURGO
2018
Programa de Pós-Graduação em Diversidade Cultural e Inclusão Social
NOVO HAMBURGO
2018
Programa de Pós-Graduação em Diversidade Cultural e Inclusão Social
________________________________
Prof.ª Dr.ª (Orientadora) Ana Luiza
Carvalho da Rocha
________________________________
Prof. Dr. Carlos José Ferreira dos Santos
________________________________
Prof. Dr. Jorge Eremites de Oliveira
________________________________
Prof.ª Dr.ª Margarete Fagundes Nunes
DEDICATÓRIA
Enquanto esta tese estava sendo escrita, nas primeiras horas do ano de 2018,
o professor Marcondes Namblá, 38 anos, era brutalmente atacado, na Praia de
Penha/SC, vindo a falecer dois dias depois. Marcondes era primo do professor Doutor
Namblá Gakran, cuja trajetória esta tese enfoca, com o qual tinha projetos para
trabalhos e publicações em língua Laklãnõ. Como Nova Liderança de seu povo, seus
projetos não eram apenas seus; antes, colocavam-se como projetos coletivos para
sua gente. Sua perda, irreparável para família, amigos, parceiros e colegas, é ainda
mais trágica para o povo Laklãnõ/Xocléng, que perdeu, dessa forma violenta, parte de
suas estratégias e possibilidades de construir seus projetos de futuro. Em sua
homenagem, abro minha tese com a sua trajetória social, infelizmente inserida aqui
também como um memorial.
Marcondes Namblá, 38 anos, indígena do povo Laklãnõ/Xocléng, nasceu e
viveu na Terra Indígena Ibirama, em Santa Catarina. Formado na Licenciatura
Intercultural Indígena pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), era
professor na Escola Indígena de Educação Básica Laklãnõ, no município de José
Boiteux. Professor, músico e pesquisador de sua cultura, lutava pela garantia dos
direitos dos povos indígenas com palavras calmas, sorrisos e sua música. Como Nova
Liderança, atuava para a formação e empoderamento de seu povo, mas, também
entendia que era uma tarefa importante levar conhecimento para os não indígenas,
para a construção de uma interculturalidade promotora de uma convivência saudável
e justa. Que seu exemplo nos inspire nas lutas cada vez mais necessárias.
Janeiro de 2018.
AGRADECIMENTOS
This Thesis discusses the First Nations Academic Authorship in the Contemporary
Brazil as from which first nations people have become Doctors, questioning me about
the meanings that this authorship assumes contemporaneously. Situating the social
phenomenon studied in the countours of the Complex Urban-Industrial Societies,
which encompases intense flows of cultural exchanges in several ethical espheres, I
assumed that the First Nations Academic Authorship conforms a landscape, through
the webs of meanings that it plots. In this sense, as an ethnographer-archeologist, I
sought to delimit the field studied, following the steps made by my interlocutors in their
social trajectories. In addition, I focussed on the finished works of the academic
processes, the theses produced, taking as object of analyses the narratives that the
First Nations Doctors make about their trajectories and their academic processes.
Understanding these narratives as reflections on life experiences in which identity
processes, which interwine the narrators to their ethnic groups of belonging, are
involved, in rythms of time that remain, I used the concept of ethnobiographic narrative
for the interpretative reading. From these exercises emerged strongly collective
characteristics of their social trajectories, evidenced also in their narratives, which
emphasize that the First Nations Academic Authorship has been placed as a strategy
for the first nations people who, through the appropriation of writing as knowledge by
the New Leaderships, seek to activate mechanisms and tools to manage the cultural
codes of the White world, conquering the access to importante spaces to achieve their
societary demands. In this movement in which the first nations people become
researchers, the First Nations Academic Authorship has been presented as a collective
project that, adhering the amerindian epistemologies to the Modern Science, promotes
displacements in ways of thinking the authorship based on the individual and that
characterizes the thought of the occident, with power to reduce the occidentalization
in the University and in the Modern Science.
Neste ponto, apresento como o campo das questões indígenas foi se colocando
em minha trajetória profissional e, posteriormente, de pesquisa. Mas para que se
possa compreender essa articulação, é preciso considerar neste texto que também
me encontro inserida em contextos que conformaram minha caminhada,
especialmente a constituição de referenciais éticos diferenciados e que pautam as
dinâmicas culturais na contemporaneidade. Nesse sentido, recorro ao quadro analítico
proposto por Roberto Cardoso de Oliveira (2004), no qual ele propõe chamar esses
referenciais de esferas éticas, distinguidas em escalas micro, meso e macroética.
Para esse autor, a microética constitui-se a partir do mundo da tradição e da
cosmovisão das comunidades indígenas, correspondendo a mesoética à esfera do
Estado Nacional e às suas instâncias e agências de execução e implementação de
políticas. A macroética é caracterizada pelos quadros que referenciam princípios
internacionais, especialmente os das agências ligadas à Organização das Nações
Unidas. Considero que no mundo contemporâneo, no quadro das Sociedades
Complexas Urbano-Industriais teorizado por Velho (1981), essas esferas éticas se
encontram imbricadas e tensionadas e precisam ser levadas em conta quando se trata
de discutir relações interétnicas, constituindo-se como um tecido onde os novos
cenários vão se inserindo e possibilitando a emergência de uma Autoria Acadêmica
Indígena.
Também entretecida nessas esferas éticas, inicio minha narrativa pelo meu
ingresso como profissional no Ensino Superior no ano 2000. Nesse espaço,
atravessado pelas éticas emanadas das esferas macro e meso, a diversidade cultural
começava a ser discutida com intensidade, pois eram fortes as ressonâncias da
Conferência de Durban, a “Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação
Racial, a Xenofobia e Formas Conexas de Intolerância”, ocorrida em 2001,
aglutinadas pelo movimento negro como ideário político em torno da etnicidade negra
(ALVES, 2002). O contexto nacional era a da promulgação da Lei 10.639/2003, que
trouxe a prerrogativa de se criarem espaços de discussão e de formação de
22
4 À frente da coordenação do curso de História nessa época, participei ativamente dessa construção.
Foram muitas as produções, abrangendo o ensino, a extensão e a pesquisa e um pouco desse trabalho
pode ser encontrado no livro publicado com base no NIGERIA (NUNES, 2005). Atualmente, o trabalho
relacionado às etnicidades negras e indígenas na Universidade se encontra congregado nas ações do
Programa de Extensão Nutrindo Identidades Afirmativas Raciais (NIARA), através dos projetos
“Aruanda – a voz da juventude negra” e “Múltiplas Leituras – povos indígenas e interculturalidade”, sob
minha coordenação neste momento, entre outros espaços institucionais existentes.
23
5 Integrei a pioneira turma do curso ofertado pela Escola Superior de Teologia/EST e Conselho de
Missão entre Índios/COMIN, e a monografia produzida versou sobre a autoria indígena e suas relações
com os processos de afirmação identitária (REICHERT, 2011).
6 Fundamentei-me, para o trabalho etnográfico, nos aportes teórico-metodológicos trazidos pela Oficina
7Uma discussão mais detalhada das opções teórico-metodológicas da pesquisa foi realizada e inserida
no capítulo 2.
25
intenso. Não foi fácil e nem foi frio, antes, senti-me atrelada e afetada pelo meu campo,
em conjunturas especialmente complexas, vividas entre ameaças e perdas reais
impostas aos direitos dos povos indígenas, durante as quais a escrita desta tese se
realizou.
8 Luciano acrescenta que esses critérios não são únicos, nem excludentes. Esse autor indígena dá
relevo também para a definição técnica das Nações Unidas, defendendo que “as comunidades, os
povos e as nações indígenas são aqueles que consideram a si mesmos distintos de outros setores da
sociedade, e estão decididos a conservar, a desenvolver e a transmitir às gerações futuras seus
territórios ancestrais e sua identidade étnica, como base de sua existência continuada como povos, em
conformidade com seus próprios padrões culturais, as instituições sociais e os sistemas jurídicos”
(LUCIANO, 2006, p. 27).
26
9 O período de estudos se deu a partir da inserção junto à Equipe de Recherche sur les Spiritualités
Amérindiénnes et Inuits/ERSAI, vinculada ao Departamento de Antropologia da Universidade de
Montreal, na província do Quebéc/Canadá, sob a orientação do professor Robert Crépeau. A produção
intelectual do professor Robert Crépeau tem focalizado a Etnologia Ameríndia, em sociedades da
Amazônia e do Sul do Brasil, primeiramente trabalhando com os Achuar da Amazônia peruana e
posteriormente, com os Kaingang do Brasil meridional. Dentre seus campos de atuação estão as áreas
de Etnologia, Estudos Ameríndios, Cosmologias Autóctones e Epistemologia e História da
Antropologia. Seu campo de interesse e investigação toma as expressões político-religiosas no
contexto das reivindicações territoriais e identitárias indígenas. Para ele, os mitos e ritos constituem
possibilidades para a compreensão da lógica interna das práticas destas sociedades.
27
10 Tais questões na contemporaneidade têm sido objeto de exame dos Estudos Pós-Coloniais, área
interdisciplinar de crescente importância acadêmica, que tem como alguns de seus autores os
canônicos Franz Fanon, Hommi Bhaba e Edward Said (GOMES, 2007).
11 Segundo Boaventura de Souza Santos (2008), a continuidade do Colonialismo se deve também
porque as independências não foram realizadas pelos povos originais, antes pelo contrário, foram
efetuadas pelas elites que participavam conjuntamente da exploração colonial.
12 Conforme discute Lévi-Strauss na clássica obra “O pensamento selvagem” (1976), tais
em História, e compõe o ideário do movimento indígena. Por jurema, localizam-se diversas espécies
botânicas referidas, sendo que de algumas delas são elaboradas bebidas rituais utilizadas por grupos
indígenas na região Nordeste, conforme Grünewald (2008). A jurema pode ser uma planta, mas
também pode ser uma bebida e uma entidade e tem sido utilizada como um emblema da identidade
indígena, juntamente com o Toré, nos processos de etnogênese dos povos indígenas no Nordeste.
28
A tese foi escrita com base em um eixo condutor de minha intriga narrativa, a
Arqueologia e o fazer da Arqueologia em campo. As partes e os capítulos, nessa
direção, iniciam e são “costurados” através de metáforas inspiradas por esse campo
do conhecimento humano, como ações prospectivas, coletas de superfície,
composição do solo e achados em contextos culturais arqueológicos. Houve um
“início” para essa opção, que durante o processo da realização da pesquisa e na etapa
da escrita, foi sendo confirmado e adensado e, neste momento, me volto para ele.
Para contar este início, esclareço que não sou arqueóloga. Minha formação se
deu em um curso de graduação de Licenciatura em História, e o Mestrado foi feito na
área da Educação. Meu envolvimento com o campo da Arqueologia se deu em uma
experiência pretérita do início de minha trajetória profissional, por ter atuado em uma
instituição de pesquisas arqueológicas no início de minha vida profissional e, desde
essa experiência, ter atuado ao longo dos anos como professora da disciplina de Pré-
história e Arqueologia na Universidade, com alguma circulação na área em eventos e
discussões. Nesse sentido, ao entrar em campo etnográfico, fui de imediato
14 Uma discussão mais detalhada das opções teórico-metodológicas da pesquisa foi realizada e
inserida no capítulo 2.
29
“reconhecendo” alguns conceitos e termos que emergiam das teses dos Doutores
Indígenas, como mobilidade, território, manejo e domesticação ...
E desde esse reconhecimento, fui pensando a respeito das possibilidades de
permanência do pensamento indígena em tramas outras, contemporâneas, como
fenômenos de longa duração, nos interstícios de uma autoria que se inscreve em
produções discursivas reguladas social e culturalmente, como o são as teses
acadêmicas. Entendendo que a Arqueologia e a Etnografia trabalham em níveis
analíticos diferentes, relativos a escalas espaço-tempo variáveis (CORRÊA, 2013, p.
28), minha escolha em utilizar a metáfora arqueológica para falar de um fenômeno
que se apresenta contemporâneo, a Autoria Acadêmica Indígena, em um percurso
que nomeei de etnográfico-arqueológico, se fez no sentido de demarcar as
possibilidades de diálogo conceitual, dando destaque para uma história indígena de
longa duração.
A partir dessas considerações, apresento a estrutura da tese, em duas partes,
pensadas com base em um percurso etnográfico-arqueológico. Assim, a Parte I,
denominada de “O campo e a paisagem”, congrega os três primeiros capítulos,
voltados para a delimitação do campo estudado, com diferentes enfoques a cada
capítulo. A Parte II, na alegoria adotada como forma de organizar a escrita e pensar
as categorias analíticas, está nomeada de “Vestígios encontrados” e reúne os
capítulos cinco, seis e considerações finais, enfeixando as análises voltadas para os
processos de Autoria Acadêmica Indígena. A seguir, explicito brevemente as
abordagens desenvolvidas a cada capítulo.
No capítulo 2, “Prospecções: Delimitando o campo estudado, uma paisagem
que se conforma”, descrevo as opções metodológicas, como se deu a entrada no
campo etnográfico e a conformação de um corpus documental, compondo a
montagem da mochila da etnógrafa-arqueóloga. Apresento meus parceiros de equipe,
os Doutores Indígenas estudados e seus objetos de pesquisa, delineando dados que
são analisados sociologicamente, compreendidos como primeiras pistas coletadas em
superfície. Ao final do capítulo, a partir dos dados disponibilizados nas prospecções,
algumas dimensões da paisagem do campo estudado se descortinam, como a busca
pela escolarização e formação acadêmica como uma estratégia dos povos indígenas,
em processos de autoria que se inscrevem como dinâmicas culturais, engajados às
demandas societárias de seus povos.
30
PARTE I
O CAMPO E A PAISAGEM
Ao iniciar minha escrita sobre o campo estudado, reforço a analogia que propus
na introdução deste trabalho, quando discuti as proximidades da pesquisa etnográfica
com o campo da Arqueologia em meu objeto de análise, apresentando a delimitação
do campo social estudado como uma etapa similar à prospecção arqueológica. A
prospecção, no trabalho do arqueólogo, tanto pode ser uma etapa inicial, preliminar a
da escavação, quanto se constituir em metodologia principal do estudo, de acordo
com os objetivos colocados para cada pesquisa. Em qualquer um dos casos, a
prospecção caracteriza-se como um estudo majoritariamente de superfície, não
invasivo portanto, no qual o arqueólogo percorre a área estudada, reunindo dados e
informações que lhe possibilitem reconstituir a “lógica” de assentamento humano do
sítio arqueológico, bem como a inserção do mesmo em um contexto cultural mais
amplo15 (CARVALHO, 2007, p. 62).
Essa compreensão se insere em uma perspectiva culturalista da Arqueologia,
na qual as investigações arqueológicas se debruçam sobre os elementos ambientais
e culturais e suas inter-relações, atendendo aos espaços territoriais amplos e
identificando padrões de assentamentos, para além dos espaços demarcados como
assentamentos, uma compreensão que Criado Boado (1991, p. 6) caracterizou como
conceito culturalista de paisagem. A paisagem arqueológica assume, consoante essa
concepção, o caráter de fenômeno social dentro de contextos históricos específicos
e, como tal, transmite símbolos interpretáveis em meio à teia de significados em que
está envolvida (FAGUNDES; PIUZANA, 2010, p. 207), abarcando os processos e
fenômenos culturais de longa duração. Assim, considero que as prospecções que fiz
16 O COMIN foi criado em 1982, com o fim de assessorar e coordenar o trabalho da Igreja Evangélica
de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) junto aos povos indígenas em todo o País, construindo
parcerias nas áreas de saúde, educação e terra. Disponível em:< https://www.comin.org.br/>. Acesso
em: 04 nov. 2017.
17 Conheci esses intelectuais e lideranças indígenas a partir da parceria de trabalho com o COMIN, e
também em espaços de formação nos quais fui aluna. Dorvalino Cardoso tornou-se, posteriormente,
parceiro de trabalho no projeto de extensão Múltiplas Leituras, da Universidade Feevale.
35
18 Tive a oportunidade de assistir a uma palestra proferida por Gersem, em julho de 2013, em um evento
de formação sobre Educação Indígena Diferenciada, promovido pelo COMIN.
19 O CINEP é uma organização civil, sem fins lucrativos que reúne acadêmicos e lideranças políticas
indígenas, além de antropólogos e outros profissionais não indígenas, com o intuito de oferecer
qualificação formal e assessoria para estudantes universitários e membros do movimento indígena
brasileiro. Sua criação ocorreu em novembro 2005, no âmbito de discussões entre membros de
organizações indígenas do Brasil, tendo como fundador e primeiro coordenador o Dr. Gersem Baniwa.
Fonte: Ensino Superior Indígena. Mapeamento das controvérsias. USP. Disponível em:
<https://ensinosuperiorindigena.wordpress.com/atores/instituicoes/cinep/>. Acesso em: 07 jul. 2017.
20 Não foi possível utilizar a Plataforma Lattes para levantamento de titulação de Doutores segundo a
categoria étnica, contudo, mediante os currículos Lattes em pesquisas nominais, pude identificar a
titulação de indivíduos que, em outras fontes, apareceram com titulação de Mestres - uma pesquisa
relevante na medida em que a formação em nível de Mestrado alimenta os programas de Doutorado -
ou mesmo nomes que emergiram como doutorandos, a fim de averiguar se haviam completado ou não
seus estudos.
36
21Um dossiê é concebido pela arquivística, segundo a Norma Brasileira de Descrição Arquivística
(NOBRADE), como o conjunto de documentos relacionados entre si por assunto – ação, evento,
pessoa, lugar, ou projeto – e que constitui uma unidade de arquivamento. Conforme a Norma, o Dossiê
ocupa o nível 4 de descrição de um documento.
Superintendência de Documentação Universidade Federal Fluminense. Disponível em:
<http://www.arquivos.uff.br/index.php/iniciar-aqui/breve-historico-da-car>. Acesso em: 25 nov. 2017.
38
outra questão, a do recorte nos Doutores Indígenas em si, isto é, naqueles indígenas
que defenderam a tese e obtiveram o título acadêmico. Em dado momento de meu
percurso de entrada em campo, interroguei-me sobre a inclusão daqueles indígenas
que realizaram Mestrado, ou mesmo, dos indígenas que talvez tenham cursado o
Doutorado, mas que não chegaram a defender sua tese; ou mesmo, dos indígenas
cursando o Doutorado durante o período de meu estudo, sem ter finalizado até o
segundo semestre de 2017. Ou seja, eu me interroguei por que não os incluiria na
pesquisa, uma vez que também participaram ou participavam, no momento de minha
investigação, de processos de Autoria Acadêmica. Para elucidar esse ponto, pautei-
me em minha própria experiência no campo acadêmico.
Como professora universitária com titulação de Mestre, vivenciei a interdição
de muitos espaços no fazer acadêmico pelo fato de não ter ainda o título de Doutora.
Para além desse aspecto mais objetivo – restrição ao acesso a recursos públicos
através de editais, a projetos de pesquisa institucionais, à proposição de eventos e
grupos de trabalho, entre outros – soma-se a questão de uma limitação à circulação
do conhecimento produzido e ao acesso a uma rede acadêmico-científica mais ampla.
Enfim, aproximando-me da conceituação de campo científico de Bourdieu (2004, p.
25), busquei sublinhar que nesse espaço, o acadêmico, bastante conhecido por
aqueles que nele transitam, operam códigos culturais que ampliam ou restringem o
acesso e a mobilidade aos recursos e posições disponíveis, distribuindo desta forma,
poder e hierarquia na estrutura do campo.
Com efeito, o recorte que fiz não deriva de uma valoração hierárquica da
Autoria Acadêmica Indígena daqueles já Doutores em detrimento daqueles indígenas
que estão ou estiveram implicados em processos de Autoria Acadêmica, mas que não
são Doutores ainda. Antes, ao colocar meu ponto de clivagem nos indígenas com
título de Doutores, focalizo as estratégias e as forças colocadas em jogo no campo
intelectual acadêmico, por aqueles sujeitos que, no momento em que a pesquisa foi
realizada, lograram conquistar um capital simbólico relevante a esse campo, o título
de Doutor (BOURDIEU, 2004), cumprindo os ritos incluídos, como o momento da
defesa da tese. Dessa maneira, pôde-se analisar também os deslocamentos em suas
trajetórias sociais posteriormente ao título de Doutor, isto é, as posições que alcançam
e o tipo de capital científico que se torna possível acumular após terem se tornado
Doutores (BOURDIEU, 2004, p. 35).
39
22Sobre o significado de Honoris Causa: “Diz-se de grau universitário conferido a título honorífico e
sem exame, geralmente a altas personalidades, ou da pessoa que o recebe (ex.: doutoramento honoris
causa, doutor honoris causa)”.
Dicionário Priberam. Disponível em: <https://www.priberam.pt/dlpo/honoris%20causa>. Acesso em:
04 out. 2017.
40
23Essa orientação, baseada nos princípios internacionais, especialmente os pautados pela Convenção
169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), tomou posteriormente forma de Projeto de Lei do
Senado, de número 161/2015.
Senado Federal, Brasil. Disponível em: <http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-
/materia/120357. Acesso em: 30 set. 2017.
41
(continuação)
ÁREA DE
NOME ETNIA/TERRITÓRIO TESE/ANO
CONHECIMENTO
Krenak
Itabirinha do Doutor Honoris Causa
Mantena, região do em Botânica,
2016
Vale do Rio Universidade Federal de
Doce/MG. Juiz de Fora (UFJF).
Suruí
Aldeia Lapetanha, Doutor Honoris Causa
Terra Indígena Sete em Geografia,
2013
de Setembro, Universidade Federal de
município de Rondônia (UNIR)
Cacoal/RO
Almir Narayamoga Suruí
Almir Suruí
19/08/1974
42
(continuação)
ÁREA DE
NOME ETNIA/TERRITÓRIO TESE/ANO
CONHECIMENTO
“Kalivôno Hikó
Terenôe: sendo
criança indígena
Terena terena no século
Aquidauana/MS, Doutor em Educação, XXI – vivendo e
redes de parentesco Universidade Católica aprendendo nas
com aldeias Dom Bosco (UCDB). tramas das
próximas tradições,
traduções e
negociações”.
Antônio Carlos Seizer da Silva 2016
“O caráter
educativo do
Munduruku Doutor em Educação, movimento
Belém do Pará/PA e USP. indígena
Aldeia Maracanã/PA Brasileiro (1970-
2000)”.
Daniel Munduruku Monteiro
2010
Costa Daniel Munduruku
28/02/1964
43
(continuação)
ÁREA DE
NOME ETNIA/TERRITÓRIO TESE/ANO
CONHECIMENTO
“A escola dos
índios Karípunas
na aldeia do
Doutor em História da Espírito Santo
Kaiapó Educação, Pontífica (Oiapoque) e o
Macapá/AP Universidade ritual do Turé:
Católica/SP (PUC/SP). uma história da
resistência
indígena”.
Edson Machado de Brito
2012
Edson Kaiapó
“A emergência
étnica de povos
Maytapu Doutor em Ciências
indígenas no
Pinhél, rio Tapajós, Sociais, Universidade
Baixo rio
Aveiro/PA. Federal da Bahia
Tapajós,
(UFBA).
Amazônia”.
2010
(continuação)
ÁREA DE
NOME ETNIA/TERRITÓRIO TESE/ANO
CONHECIMENTO
“A organização
Fulni-ô Doutora em Linguística, prosódica do
Aldeia Carnijó, Universidade Federal de Yaathe, a língua
Águas Belas/PE Alagoas (UFAL). do povo Fulni-ô”.
2016
“Educação para
Manejo e
Domesticação
Baniwa
do Mundo: Entre
Sítio Jaquirana,
a escola ideal e
margens do Rio Doutor em Antropologia
a escola real. Os
Içana, município de Social, UnB.
dilemas da
São Gabriel da
educação
Cachoeira/AM
Gersem José dos Santos escolar indígena
“Epidemiologia e
dano causado
Macuxi
Doutor em Agronomia, pela ferrugem
Aldeia Sumuru, hoje
Universidade Estadual asiática
Terra Indígena
de Maringá (UEM). (Phakopsora
Raposa Serra do
Primeiro Reitor Indígena pachyrizi) da
Sol/RR
no Brasil. soja (Glycine
max)”.
Jefferson Fernandes do
2008
Nascimento
1964
45
(continuação)
ÁREA DE
NOME ETNIA/TERRITÓRIO TESE/ANO
CONHECIMENTO
Kaxinawá
“Por uma
Aldeia Tarauacá,
gramática da
Terra Indígena da Doutor em Linguística,
Língua
Praia do UnB.
HãxtaKuin”.
Carapanã/AC
2014
Joaquim Paulo de Lima
Kaxinawá
1964
“Evidencialidade
em Kaingang:
descrição,
Kaingang Doutora em Linguística,
processamento
Nonoai/RS Universidade Federal do
e aquisição”.
Rio de Janeiro (UFRJ).
2017
Márcia Gojten Nascimento
“Tecendo
Doutora em História tradições
Mura
Social, indígenas”.
Porto Velho/RO
USP. 2016
“Ofayé, a língua
Pankararu do Povo do Mel.
Terra Indígena Doutora em Letras e Fonologia e
Pankararu, Linguística, UFAL. Gramática”.
Tacaratu/PE 2006
Maria das Dores Oliveira
Maria Pankararu
46
(continuação)
ÁREA DE
NOME ETNIA/TERRITÓRIO TESE/ANO
CONHECIMENTO
“Contrapontos
Doutora em Literatura
da literatura
Potiguar Indígena
indígena
São José do Contemporânea,
contemporânea
Campestre/RN Universidade Federal de
no Brasil”.
Maria das Graças Ferreira Pernambuco (UFPE).
2003
Graúna.
Graça Graúna
1948
“Audiovisual na
Escola Terena
Doutora em Educação, Lutuma Dias:
Terena
Pontifícia Universidade Educação
Cuiabá/MT
Católica/SP (PUC/SP). Indígena
Diferenciada e
as mídias”. 2014
(continuação)
ÁREA DE
NOME ETNIA/TERRITÓRIO TESE/ANO
CONHECIMENTO
“Rituais de
Doutora em Educação,
resistência:
Universidade Federal do
Potiguar experiencias
Rio Grande do Norte
Cratéus/CE pedagogicas
(UFRN).
tapeba”.
2009
“Na educação
continua do
mesmo jeito:
Kaingang
retomando os
Terra Indígena Doutora em
fios da história
Xapecó, município Antropologia, UFPA.
Tembé
de Ipuaçu/SC
Tenetehara de
Santa Maria do
Rosani de Fátima Fernandes
Pará”. 2017
Rosani de Fátima Fernandes
Kaingang
“Rojeroky hina
ha roike jevy
tekohape
(Rezando e
lutando): o
movimento
Guarani
Doutor em Antropologia histórico do Aty
Posto Indígnea
Social, UFRJ. Guasu dos Ava
Sassoró, Tacuru/MS
Kaiowa e dos
Tonico Benites Ava Guarani
Tonico Benites Ava Guarani pela
Kaiowá recuperação de
seus tekoha”.
2014
48
(conclusão)
ÁREA DE
NOME ETNIA/TERRITÓRIO TESE/ANO
CONHECIMENTO
“A história da
educação
escolar para o
Terena Terena: origem
Doutor em História,
Aldeia indígena e
Pontíficia Universidade
Limão Verde, desenvolvimento
Católica/RS (PUC/RS).
Aquidauana/MS do ensino médio
na aldeia Limão
Wanderley Dias Cardoso Verde”.
09/06/1972 2011
24Mário Juruna foi um líder indígena, da etnia Xavante e tornou-se o primeiro indígena a eleger-se
deputado federal no Brasil. Notabilizou-se, nos anos 70, por gravar as falas dos brancos quando dos
51
Cidadão”, de Rodrigo Arareju, lançado em abril de 2014. O filme foi realizado com base em entrevistas
publicadas no “Diário da Constituinte”, de fontes em arquivos da época e de depoimentos com
indígenas que coordenaram o movimento político de participação na Constituinte.
Blog “O Índio Cidadão”. Disponível em: <https://indiocidadao.files.wordpress.com/2014/04/ail.jpg.>
Acesso em: 04 nov. 2017.
52
26 Entre as Doutoras Indígenas, cito novamente Maria Pankararu, Naine Terena de Jesus, Rosani
Fernandes, Graça Graúna e Rita Gomes do Nascimento, de um conjunto muito mais amplo de mulheres
indígenas que se destacam na liderança, como intelectuais indígenas, tais como Lúcia Inácio Belfort,
Célia Xacriabá, Azilene Kaingang, entre muitas outras.
27 Portal Brasil. Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/governo/2012/08/brasil-tem-quase-900-mil-
28 A abrangência da Amazônia Legal, nesse sentido, não é definida pelo bioma Amazônia, sendo
composta também pelo Cerrado e pelo Pantanal matogrossense e corresponde a 61% do território
brasileiro. Nos nove estados residem 55,9% da população indígena brasileira, cerca de 250 mil
pessoas, segundo dados da FUNASA. Disponível em: O Eco. <http://www.oeco.org.br/dicionario-
ambiental/28783-o-que-e-a-amazonia-legal/>. Acesso em: 10 nov. 2017.
29 Para a junção dos estados da região Sudeste, com exceção do estado de São Paulo, aos da região
Nordeste, baseei-me na aproximação que o movimento indígena faz entre os processos identitários e
demandas societárias que envolvem as etnias que vivem nessas regiões brasileiras, especialmente
concretizada na organização da entidade Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais
e Espírito Santo (APOINME), em 1990. (LUCIANO, 2006, p. 22).
30 Optei por manter o estado de São Paulo na categoria regional dos estados da região sul, compondo
uma região sul/sudeste, de forma a respeitar os territórios tradicionais das etnias Kaingang e Guarani,
que se estendem a partir daí para o sul do Brasil.
56
33A ocupação humana do Mato Grosso do Sul foi estudada e difundida principalmente pelo Programa
Arqueológico do Mato Grosso do Sul (1985-2001), coordenado pelo arqueólogo Pe. Pedro Ignácio
Schmitz, do qual se originaram diversas produções acadêmicas (EREMITES, 2012, P. 180).
58
34 Arruti discute que foi no Nordeste brasileiro que ocorreu pela primeira vez a reivindicação de
identidade indígena por grupos de caboclos, no que o autor denomina de primeiro ciclo, entre os anos
20 a 40 do século XX. Esses movimentos de reivindicação étnica seriam retomados em um segundo
ciclo, iniciado nos anos 70 (2006, p. 50-54).
59
35Para uma historicização mais ampla das instituições envolvidas, consultar OLIVEIRA, Amanda de.
Ações afirmativas nos Programas de Pós-graduação: experiências, a nova Portaria do MEC e seus
desdobramentos. Rio de Janeiro: Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em
Educação (ANPED), 29 jul. 2016. Disponível em: <http://www.anped.org.br/news/acoes-afirmativas-
nos-programas-de-pos-graduacao-experiencias-nova-portaria-do-mec-e-seus>. Acesso em: 20 nov.
2017.
61
36 Conforme a CAPES informa em seu site, a classificação das Áreas do Conhecimento tem finalidade
prática, objetivando proporcionar às Instituições uma maneira funcional de sistematizar e prestar
informações concernentes a projetos de pesquisa e recursos humanos. A organização das Áreas do
Conhecimento na tabela apresenta uma hierarquização em quatro níveis, do mais geral ao mais
específico, abrangendo nove grandes áreas nas quais se distribuem as 48 áreas de avaliação utilizadas
pela CAPES. Estas áreas de avaliação, por sua vez, agrupam áreas básicas, ou áreas do
conhecimento, subdivididas em subáreas e especialidades. Fonte: FUNDAÇÃO CAPES MINISTÉRIO
DA EDUCAÇÃO. Tabela Áreas do Conhecimento/Avaliação. Disponível em:
<http://www.capes.gov.br/avaliacao/instrumentos-de-apoio/tabela-de-areas-do-conhecimento-
avaliacao> .Acesso em: 25 out. 2017.
62
37Essas são as áreas mais demandadas no Ensino Superior, consideradas estratégicas para os povos
indígenas. Se relacionam à conjuntura da Constituição de 1988, que gerou postos de trabalho nessas
áreas para os povos indígenas, e às necessidades das lutas pela implementação de seus direitos
(BERGAMASCHI; KURROSCHI, 2013, p. 5).
63
Para finalizar minhas prospecções, volto minha atenção para o recorte elegido
pelos Doutores Indígenas, no sentido em que entendo que nos objetos estudados se
evidenciam a tese que defendo, de que a Autoria Acadêmica Indígena está imbricada
Linguística/Letras
(continuação)
Linguística/Letras
(continuação)
(continuação)
Ciências agrárias
(conclusão)
Urbanização e globalização
resistência, e, com isso, alinhando seus trabalhos a processos que aí se colocam com
força. Alinhamento semelhante pôde ser percebido nas nove teses de autoria de
Doutores Indígenas oriundos de etnias situadas na Amazônia, que destacam em seus
objetos de pesquisa as especificidades das demandas culturais e de manejo dos
territórios dos povos indígenas localizados na região amazônica.
A resistência e os processos de retomada dos Tekohá pelos Guarani no Mato
Grosso do Sul são tema do antropólogo Tonico Benites, enquanto Naine de Jesus e
Wanderley Cardoso analisam questões em torno da presença da escola em suas
aldeias de origem. Ou seja, na academia, o olhar voltou-se para a aldeia, com forte
acento para os linguistas, que estudam as línguas nativas pela perspectiva indígena.
Sob esse ângulo, os objetos estudados pelos Doutores Indígenas denotam as
demandas societárias que emanam das diferentes posições que ocupam os povos
indígenas no território brasileiro, na relação que estabelecem com o Estado nacional
e com a sociedade envolvente, e dos processos próprios de organização e luta. Essa
dimensão abrange também as teses que discutem processos identitários inseridos em
decorrência da construção de uma pan-indianidade, como as de Graça Graúna e
Daniel Munduruku, que abordam movimentos e protagonismo indígena, como a
organização do movimento indígena e a literatura, em cenários contemporâneos.
Para finalizar minha saída exploratória ao campo, olho para essas dimensões
e para a paisagem que elas conformam conjuntamente, não como uma unidade
empírica observável, mas como o resultado de uma composição dos significados
simbólicos que pude depreender nessas prospecções (ROCHA; ECKERT, 2011, p.
112). E o que meu olhar alcança ver é que os objetos de estudo dos Doutores
Indígenas, inseridos em um cenário possibilitado pelos movimentos indígenas e pela
ética emanada em uma escala planetária e em reverberação com uma escala
mesoética, nacional, demonstram um alinhamento às demandas societárias dos
povos indígenas. Tais demandas se inscrevem, a partir de suas cosmovisões e
tradições, nas dinâmicas culturais que se estabelecem entre os povos indígenas e a
sociedade não indígena, envolvendo uma pluralidade de círculos e redes sociais,
conflitos, continuidades e descontinuidades culturais e diferenciações sociais, em
tempos nos quais os povos indígenas são chamados a se pronunciarem sobre quem
são (BENGOA, 2000, p. 13). A essa indagação, as Novas Lideranças constroem
respostas diversas e plurais, sendo, uma delas, a constituição de uma Autoria
Acadêmica, estrategicamente acionada em determinados campos do conhecimento.
71
42 Fontes: Currículo Lattes; MACHADO, Almires Martins. Jaguapiru, esquecido ou excluído? Jornal
Dourados Agora. Disponível em: <http://www.douradosagora.com.br/noticias/opiniao/jaguapiru-
esquecido-ou-excluido-almires-martins-machado>. Acesso em: 29 jun. 2016; MACHADO, Almires. De
Incapaz a Mestrando. Tellus, ano 7, n. 13, p. 155-161, out. 2007. Campo Grande/MS. Disponível em:
<ftp://neppi.ucdb.br/pub/tellus/tellus13/9_Almires.pdf>. Acesso em: 29 jun. 2016.
43 Fontes: Currículo Lattes; Breve biografia de Almir Narayamoga Surui. Disponível em: <www.camara-
não indígenas. É Mestre em Educação pela UCDB (2009), com bolsa da Fundação
de Apoio ao Ensino, Ciência e Tecnologia do Mato Grosso do Sul. É Doutor em
Educação (2016) pela mesma instituição. Atualmente, exerce atividade na Secretaria
Estadual de Educação do Mato Grosso do Sul, sendo também professor visitante no
Programa de Pós-Graduação da UCDB. Integra o projeto Saberes Indígenas na
Escola, unidade Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), e participa de
conselhos, fóruns e comissões ligados à educação indígena e educação tradicional
terena, tanto em redes acadêmicas como em organizações do povo terena. Cursou
Pós-Doutorado também na UCDB.44
Carlos José Ferreira dos Santos, Casé Angatu Xucuru Tupinambá, mora no
Território Indígena Tupinambá de Olivença. Graduado em História pela Universidade
Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho (UNESP), é Mestre em História pela PUC/SP,
quando foi bolsista CAPES, e Doutor em História da Arquitetura e Urbanismo pela
USP. Atualmente é Professor Efetivo na Universidade Estadual de Santa Cruz
(UESC), em Ilhéus/BA, atuando junto ao curso de História e pós-graduação. Exerce
funções de consultoria também em outras Universidades. Na UESC, e em conjunto
com o Povo Tupinambá, desenvolve diversas ações na comunidade e junto à Escola
Indígena Tupinambá de Olivença. Autor de livros, ministra cursos de extensão em
diversos municípios do Brasil, na perspectiva da formação de professores trazida pela
Lei 11645/2008. Possui experiência e atuação nas áreas de História Indígena, História
Sociocultural, Memória/Oralidade e Patrimônio, com ênfase em História do Brasil,
presença indígena e grupos populares.45
Daniel Munduruku Monteiro Costa, Daniel Munduruku, é filho do povo
Munduruku e nasceu em Belém/PA. Passou a infância entre a cidade e a aldeia
Maracanã, aldeia de seu pai, e, nessa época, na Escola Salesiana do Trabalho, sofreu
muito preconceito por ser indígena. Dedicou-se à Ordem Salesiana, graduando-se em
Filosofia. Atuou como educador social de rua através da Pastoral do Menor de Rua
de São Paulo e foi professor nas redes de ensino durante dez anos. Possui
44 Fontes: Currículo Lattes; SEIZER DA SILVA, Antônio Carlos. Educação Escolar Indígena na Aldeia
Bananal: prática e utopia. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Católica Dom Bosco.
Campo Grande, 2009. Disponível em: <http://site.ucdb.br/public/md-dissertacoes/8124-educacao-
escolar-indigena-na-aldeia-bananal-pratica-e-utopia.pdf>. Acesso em: 11 out. 2017.
45 Fontes: Currículo Lattes; PRIETO, José Ricardo. Tupinambás não abrem mão de seu território.
Jornal A Nova Democracia. Ano XIII, nº 139, out de 2014. Disponível em:
<http://www.anovademocracia.com.br/no-139/5602-tupinambas-nao-abrem-mao-de-seu-territorio>.
Acesso em: 18 fev. 2016.
80
46 Fontes: Currículo Lattes; Histórias do Mestre Munduruku. ISTO É CULTURA. N° 2082, 12 jun. 2015.
Disponível em:
<http://www.istoe.com.br/reportagens/18757_HISTORIAS+DO+MESTRE+MUNDURUKU>. Acesso
em: 14 jun. 2015.
47 Fontes: Currículo Lattes; Brito, Edson Machado de. A educação Karipuna do Amapá no contexto
da educação escolar indígena diferenciada na aldeia do Espírito Santo. 2012. 184 p. Tese
(Doutorado em Educação) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2012.; Blog de
Edson Kayapó. Disponível em: <https://www.blogger.com/profile/09118274880554528399>. Acesso
em: 26 jul. 2015.
81
terras indígenas e a Resex Tapajós-Arapiuns no Pará. Ruris. V. 7, n. 2, set. 2013. Disponível em:
<https://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/ruris/article/download/1886/1365>. Acesso em: 14 out.
2017; VAZ FILHO, Florêncio Almeida. A rebelião indígena na UFOPA e a forçada interculturalidade.
Seminário Aba+60. Disponível em: <https://www.30rba.abant.org.br/arquivo/downloadpublic?q....>
Acesso em: 14 out. 2017.
82
primeiro indígena selecionado com bolsa da Fundação Ford para Doutorado pleno
nos Estados Unidos da América/EUA, onde estudou o impacto da exploração de gás
e petróleo nas terras dos seus ancestrais pela Petrobrás. Naquele momento, seu
trabalho influenciou a tomada de decisão da comunidade, que foi contra a atuação da
empresa em suas terras, porque não foi apresentado estudo sobre o impacto que a
atividade causaria sobre a floresta. Foi Coordenador Geral de Pesquisa e Extensão
no Parque Zoobotânico da UFAC. Possui aproximadamente 20 anos de experiência
em pesquisa na Amazônia, nas áreas de Economia dos Recursos Naturais, Economia
Institucional, Economia Ambiental, Manejo Florestal, Planejamento e
Desenvolvimento Rural, Gestão Ambiental, Governança de Recursos Naturais e
Mudanças Ambientais Globais. Tem liderado e colaborado com diversos programas
de conservação e desenvolvimento na Amazônia, em cooperação com várias
organizações brasileiras e estrangeiras, bem como projetos de pesquisa. É
coordenador-geral de projetos na Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da
UFAC, onde gerencia três programas regionais de pesquisa e pós-graduação em
consórcio com organizações governamentais e não governamentais. 50
Gersem José dos Santos Luciano, Gersem Baniwa, nasceu em 1964, no
Sítio Jaquirana, hoje Distrito de Assunção do Içana, região do Rio Içana, afluente da
margem direita do Rio Negro, no município de São Gabriel da Cachoeira/AM. Neto de
uma importante liderança baniwa ciuci51, viveu na região até os 30 anos de idade,
tendo presenciado na infância os últimos anos das grandes tradições baniwa. Aos 12
anos, iniciou sua trajetória extra-aldeia, ingressando no internato dos missionários
salesianos, onde permaneceu por nove anos. No campo profissional, foi professor
indígena entre 1986 e 1988 na aldeia Carará-Poço. Em 1995, graduou-se em Filosofia
pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e, por essa época, iniciou sua
militância no movimento indígena. Foi dirigente da Federação das Organizações
Indígenas do Rio Negro (FOIRN), da Coordenação das Organizações Indígenas da
Amazônia Brasileira (COIAB) e fundou o Centro Indígena de Estudos e Pesquisas
(CINEP), sendo, atualmente, seu Diretor-Presidente. Foi Secretário Municipal de
50 Fontes: Currículo Lattes; ATHIAS, Renato e PINTO, Regina Pahin (Org.). Estudos Indígenas:
comparações, interpretações e políticas. São Paulo: Contexto, 2008. Série Justiça e
Desenvolvimento. Disponível em: <http://www.fcc.org.br/livros/estudos_indigenas.pdf.>Acesso em: 14
jun. 2015; Instituto Socioambiental Notícias. Da aldeia à academia. 31 ago. 2008. Disponível em:
<http://pib.socioambiental.org/pt/en/noticias?id=60084&id_pov=223>. Acesso em: 16 jun. 2015.
51 Ciuci é uma das posições mais elevadas da estrutura social baniwa (LUCIANO, 2011).
83
52 Fontes: Currículo Lattes; LUCIANO, Gersem José dos Santos. Educação para manejo e
domesticação do mundo. Entre a escola ideal e a escola real. Os dilemas da educação escolar
indígena no Alto Rio Negro. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social.
Universidade de Brasília, 2011.
53 A UFRR foi a primeira Universidade do país a implantar cursos específicos para formação de
indígenas, em 2001, coordenados pelo Instituto Insikiram de Formação Superior para Indígenas. Fonte:
VALERY, Gabriel. Rede Brasil Atual. Reitor indígena quer transparência máxima na gestão de universidade
federal. Disponível em: <http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2016/03/primeiro-reitor-indigena-assume-
universidade-federal-de-roraima-1602.html>. Acesso em: 19 jun. 2016
54 Fontes: Currículo Lattes; VALERY, Gabriel. Rede Brasil Atual. Reitor indígena quer transparência máxima
Alagoas, no Acre, juntamente com toda sua família. O patrão o proibia de falar sua
língua, mas seu pai cochichava a língua nativa Hãxta Kuin para os filhos, e assim,
Maná, como é conhecido, aprendeu a língua tradicional. Alfabetizado aos 20 anos de
idade em escola indígena organizada pela Organização não governamental (ONG)
Comissão Pró-Indígena/AC (CPI/AC), Maná Kaxinawá realizou sua trajetória como
professor e pesquisador de sua cultura em 1983, quando iniciou seu processo de
formação. Finalizou o curso de Magistério Indígena em 2000, também pela CPI/AC e
concluiu a graduação intercultural de Ciências Sociais na UNEMAT em 2006. Foi um
dos principais idealizadores e fundadores da Organização dos Professores Indígenas
do Acre (OPIAC). Como pesquisador da cultura, ele já promoveu a publicação de livros
de literatura indígena na sua língua e em português. É protagonista de diversos cursos
de formação de professores e outros profissionais, para a sua comunidade e para
outras aldeias Kaxinawá. Tornou-se Mestre em 2011 e Doutor em 2014, em
Linguística, ambos na UnB. É professor da Escola indígena Francisco I desde 1985.
Participou ativamente dos processos de registro exigidos pelo Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) para tombamento dos Kene,55 as pinturas e
grafismos realizados pelos Kaxinawá, como Patrimônio Imaterial. É pai de importante
liderança do povo Kaxinawá, José de Lima Yube Kaxinawá. 56
Márcia Gojten Nascimento é da etnia Kaingang, da Terra Indígena de Nonoai.
É Doutora em Linguística pela UFRJ. Foi bolsista CAPES durante o Doutorado,
concluído em fevereiro de 2017, e realizou Doutorado Sanduiche em Universidade
nos Estados Unidos. Atualmente é professora da Licenciatura Intercultural da UFSC
e recentemente realizou intercâmbio de estudos linguísticos entre o povo Maori, da
Nova Zelândia, para fundamentar uma proposta de revitalização linguística e cultural,
inspirada no Programa Kõhanga Reo.57
55 Os Kene são grafismos tradicionais chamados de pinturas verdadeiras, e são aplicados em diferentes
suportes, como pintura corporal, tecelagem, cestaria e cerâmica. Possuem uma variedade de motivos
com nomes próprios, e são feitos exclusivamente por mulheres. Disponível em:
<http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/970/.>. Acesso em: 13 jun. 2016.
56 Fontes: Currículo Lattes; Em Aberto. O Ponto de Vista dos Professores Indígenas: entrevistas com
Joaquim Maná Kaxinawá, Fausto Mandulão Macuxi e Francisca Novantino Pareci. Brasília, v. 20, n. 76,
p. 154-176, fev. 2003. Disponível em:
<http://emaberto.inep.gov.br/index.php/emaberto/article/viewFile/1165/1064>. Acesso em: 17 dez.
2017; <http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/9318/1/2011_JoaquimPaulodeLimaKaxinawa.pdf>.
Acesso em: 17 dez. 2017.
57 Fonte: NASCIMENTO, Márcia Gojten. Evidencialidade em Kaingang: descrição, processamento
e aquisição. 2017. Tese (Doutorado em Linguística). Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de
Janeiro, 2017; NASCIMENTO, Marcia Gojten; MAIA, Marcus; WHAN, Chang. Kanhgag vĩ jagfe –
ninho de língua e cultura kaingang na terra indígena Nonoai (RS) – uma proposta de dialogo
85
Márcia Nunes Maciel, Márcia Mura, faz parte do povo indígena Mura. Nasceu
em 1973, na cidade de Porto Velho, onde morou no bairro Triângulo, espaço de
moradia daqueles que vinham dos seringais para a cidade em busca de trabalho. A
mãe manteve laços com a família, moradores ribeirinhos, por toda a infância de
Márcia. Aos 18 anos, Márcia começou a trabalhar no Conselho Indigenista Missionário
(CIMI), entrada que se deu através de sua participação na Pastoral da Juventude.
Possui graduação em História pela UNIR (2001). É Mestre em Sociedade e Cultura
na Amazônia pela UFAM (2010), quando realizou pesquisa de história oral com o povo
indígena Cassupá e com mulheres da Amazônia, tendo sido bolsista CAPES. Esse
trabalho foi publicado em livro e apresentado em um encontro internacional em Praga,
a partir de edital de intercâmbio cultural do MINC. Fez Doutorado em História Social
pela USP (2015), também como bolsista CAPES. Atualmente é pesquisadora do
Núcleo de Estudos em História Oral (NEHO). Tem experiência com educação escolar
indígena e história oral com povos indígenas e pessoas que vivenciaram espaços em
seringais da Amazônia.58
Maria das Dores de Oliveira, Maria Pankararu, nasceu na aldeia Brejo dos
Padres Tacaratu, em Pernambuco, na terra indígena Pankararu. Estudou os anos
iniciais de sua escolarização em escolas do município de Tacaratu. Ainda quando
criança, Maria Pankararu mudou-se para São Paulo, acompanhando o fluxo migratório
que a etnia realizou no período para a cidade. É formada em História, em 1990, e em
Pedagogia, em 1997, pela UFAL. Concluiu Mestrado em 2001, com bolsa da
Fundação de Amparo à Pesquisa de Alagoas (FAPEAL) e o Doutorado em 2006,
ambos em Letras e Linguística pela UFAL. Durante o Doutorado, foi bolsista da
Fundação Ford, turma 2002, tendo integrado posteriormente a Comissão de
Professores para Seleção de Bolsistas da Fundação Ford/Fundação Carlos Chagas,
de 2007 a 2009. É professora da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) desde 1986,
com lotação atualmente na Coordenação Técnica Local de Ilhéus/Bahia, onde
desenvolve atividades relacionadas às políticas públicas para educação escolar para
os povos indígenas, em especial, o povo Tupinambá com o qual atua. Foi Professora
intercultural com o povo Māori da Nova Zelandia. Revista LinguiStica / Revista do Programa de Pós-
Graduação em Linguística da Universidade Federal do Rio de Janeiro. V. 13, n.1, jan. 2017, p. 367-
383. ISSN 2238-975X 1. Disponível em: <https://revistas.ufrj.br/index. php/rl>. Acesso em: 31 dez.
2017.
58 Fontes: Currículo Lattes; MACIEL, Márcia Nunes. Tecendo tradições indígenas. Tese de
63 Fontes: Currículo Lattes; FERNANDES, Rosani de Fátima. “Na educação continua o mesmo
jeito”: retomando os fios da história Tembé Tenetehara de Santa Maria do Pará. Tese de
Doutorado. Universidade Federal do Pará, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-
Graduação em Antropologia, Belém, 2017.
89
64 Fontes: Currículo Lattes; BENITES, Tonico. Roj eroky hina ha roike jevy tekohape (Rezando e
lutando): o movimento histórico dos Aty Guasu dos Ava Kaiowa e dos Ava Guarani pela recuperação
de seus tekoha. Tese de Doutorado, Rio de Janeiro: UFRJ/MN/PPGAS, 2014.
65 O Prolind é um programa de apoio à formação superior de professores que atuam em escolas
A escola coloca-se como uma primeira sincronia nas trajetórias dos Doutores
Indígenas e encontra-se imbricada, em minha perspectiva, aos processos e escolhas
que seriam realizadas posteriormente em suas trajetórias. Embora não tenha sido
possível localizar informações que, nas fontes disponíveis estudadas, identificassem
a totalidade das instituições escolares frequentadas pelos Doutores Indígenas67, se
evidencia que esta é um aspecto convergente, isto é, em um sentido amplo, a escola
situa-se como um ponto de partida comum.
Desde o ponto de vista das esferas éticas, considerando-se as faixas etárias
majoritárias, de nascidos na década de 60, percebe-se que o início da escolarização
dos Doutores Indígenas se deu em um momento, nos anos 70, em que no Brasil, se
começava, novamente, a respirar os ares da democracia, com a abertura política que
ocorreria no período final do governo militar. No mesmo período, à Antropologia
engajada na luta pelos direitos sociais se somavam as discussões promovidas pela
sociedade civil, que reivindicava a necessidade de se criar políticas públicas e formar
uma rede de instituições, ambas voltadas para ações de apoio às sociedades
indígenas (SOUZA LIMA, 2005, p. 243). No contexto em que se gestavam esses
67Neste tópico da sincronia escola, analiso os percursos de escolarização básica, abarcando o Ensino
Fundamental e Médio, de acordo com a nomenclatura adotada pelo sistema educacional brasileiro.
92
Outro aspecto que emerge das trajetórias analisadas é que a escolarização foi
causadora, em algum momento, da saída dos indígenas de suas aldeias, pois
envolveu, no mais das vezes, o viver e morar fora da aldeia, desde a escolarização
básica. Denota-se, assim, que a escola se apresenta como um deslocamento
geográfico, como o ocorrido com Maria Pankararu, Wanderley Cardoso, Edson Kaiapó
e Namblá Gakran, entre outros, que para estudar tiveram que viver e morar na cidade,
longe das famílias, pois as aldeias não contavam, à época, com escolas que
abarcassem a educação básica como um todo. Para Paladino (2006; 2010), a questão
da educação escolar de indígenas em contextos urbanos precisa ser rebatida com a
urbanização mesma dos indígenas e com os possíveis processos de desagregação
dos grupos de parentesco decorrentes de seu afastamento cotidiano das aldeias.
Conforme essa autora, a saída dos jovens das aldeias para estudar foi e é vivida como
um tensionamento entre as antigas gerações e os jovens, para o qual os povos
indígenas e suas lideranças se dedicam com atenção e preocupação, como estudado
entre os Tikuna por Paladino (2010) e por Brand et al. (2012, p. 47) para as etnias
localizadas no Mato Grosso do Sul. 69
Em meu transect, busquei estar atenta às sincronias, mas também a ver o que
internamente a essas convergências pudesse evidenciar reverberações distintas.
Nesse sentido, destaco que, em algumas trajetórias sociais, a escolarização se
colocou em um cenário distinto daqueles indígenas que estudaram em escolas
públicas, indígenas ou não indígenas, como nas experiências escolares de Daniel
Munduruku, Edson Kaiapó e Gersem Baniwa, pois para esses indígenas, os passos
dados apontam para a influência de uma escolarização oferecida por iniciativas
religiosas, também longe de casa. Embora o contexto inicial da escolarização entre
indígenas – ofertada e implementada pela Igreja Católica – tenha se modificado em
parte no período republicano, a marca da escolarização confessional foi profunda.
Conforme defendem Bergamaschi e Silva (2007, p. 127), a presença e influência da
escolarização religiosa perdura, sendo visível até os dias atuais, mediante algumas
escolas ligadas a missões religiosas que permaneceram atuantes.
Pode-se situar as demandas pela escolarização como um fenômeno ligado aos
movimentos de organização indígena e aos processos diferenciados que cada etnia
vivencia e assume em relação à sociedade nacional, histórica e
contemporaneamente. A partir dos dados informados pelos percursos realizados,
entendo que a motivação para acessar à escola e seus bens culturais era, à época,
bastante consistente – e de maneira independente da perspectiva na qual se inseria
a escola no momento de entrada de cada um dos estudantes indígenas – visto que as
dificuldades enfrentadas pelas famílias e pelos seus filhos foram enormes. Alguns
deles estudaram em regime de internato aos 12, 13 anos, como Gersem Baniwa e
Edson Kayapó ... Outros moraram e trabalharam na cidade, longe de sua família e da
aldeia, muitas vezes sem salário e sem descanso, em troca do alimento e da moradia,
como depreende-se da trajetória de Rosani Fernandes. Os relatos de preconceito e
discriminação racial vividos nessa época são recorrentes nas trajetórias analisadas.
Outra dissonância que reverbera nessa sincronia são as escolarizações que se
inscrevem em paradigmas distintos, já a partir da perspectiva de projetos de
autonomia e autoria, assinalando especificamente as experiências educacionais de
Joaquim Paulo de Lima Kaxinawá e Aisanain Paltú Kamaiwrá. Uma primeira
diferenciação nessas trajetórias sociais é a de que os processos de alfabetização e
escolarização ocorreram em um momento diverso de faixa etária, como para Joaquim
Kaxinawá, que foi alfabetizado aos 20 anos de idade. Nesse sentido, a esfera ética
emanada dos quadros da ONU e de suas agências já havia instaurado modificações
no âmbito de uma mesoética (OLIVEIRA, 2004), encontrando-se nos anos 80, já em
desenvolvimento, processos de escolarização organizados por ações indigenistas
capitaneadas por Organizações não governamentais (ONGs), em associação às
organizações indígenas, tais como cooperativas e organizações.
O foco do trabalho iniciado nos anos 70 por essas entidades indigenistas era a
formação de professores indígenas bilíngues, para que eles próprios pudessem atuar
em seus projetos educacionais, como professores e pesquisadores de suas culturas,
alinhados aos princípios emanados da macro esfera, e esse enfoque se traduzia como
uma reação às agências missionárias, conforme Monte (2000, p. 126). Nessa
conjuntura, Maná Xaxinawá participou das ações empreendidas pela Comissão Pró-
Indígena no Acre (CPI/AC) e Aisanain Paltú Kamaiwrá, mais contemporaneamente,
realizou sua alfabetização e sua formação como professor nos cursos promovidos
pelo Instituto Socioambiental, em percursos escolares bastante diversos dos demais
Doutores.70
Precisei ter em conta que, apesar das motivações que mobilizaram os povos
indígenas a buscar e permanecer na escola, a inserção a esse espaço da cultura não
Caminhando nos passos dados pelos Doutores Indígenas para essa ação
prospectiva, uma segunda sincronia evidenciada em meu transect é a constituição de
um lugar de liderança que os sujeitos estudados assumem junto aos povos indígenas.
Tomo o conceito de “Novas lideranças”, tal como o define Luciano (2006, p. 66) e
Bengoa (2000, p. 82), significando as funções centrais para a vida coletiva que
passam a exercer professores, dirigentes de organizações, agentes de saúde e
florestais, entre outras posições técnicas trazidas pelas organizações indígenas. Para
esses autores, os espaços de poder tradicionalmente organizados nas sociedades
indígenas se modificam quando as Novas Lideranças incorporam papéis de diálogo
72 Jean Paraizo Alves (2007) apontou o surgimento de uma elite intelectual indígena, uma intteligentsia
indígena, em situações amazonense e mexicana, em sua tese de Doutorado, intelectualidade que
trabalha com vistas ao fortalecimento étnico e alternando-se em cargos de liderança local e em órgãos
públicos.
97
para os povos indígenas no que tange a uma multiplicidade de temas que emanam
do relacionamento com a sociedade nacional e com o aparelho do Estado brasileiro,
atuando ao lado das lideranças tradicionais de suas comunidades. Postulo esse
argumento, considerando que o ingresso de estudantes indígenas no Ensino Médio
se deu de forma mais acentuada muito recentemente, visto que no Censo Escolar
Indígena realizado pelo MEC em 1999, dos 93037 estudantes indígenas matriculados,
80,6% estavam matriculados nos anos iniciais do Ensino Fundamental (INEP, 2007,
p. 18), de onde se pode depreender que no momento em foco, ainda não haviam
muitos indígenas com o Ensino Médio concluído.
Sob esse aspecto, considerando também o que discuti anteriormente na
sincronia escola, entendo que em razão de serem escolarizados e de terem estudado
e vivido fora das aldeias, em contextos urbanos (OLIVEIRA, 2013, p. 21), os indígenas
foram inseridos em uma posição de vantagem ao olhar de sua comunidade, pois
possuíam, em alguma medida, os códigos culturais para o diálogo com a sociedade
não indígena e encontravam-se mais habilitados que a maioria dos indígenas de sua
aldeia, para desempenharem determinadas tarefas e exercerem certas funções.
Assim, a conclusão do Ensino Médio é uma etapa que assinala o início do exercício
de um papel junto às lideranças de sua comunidade, sendo que para alguns destes
indígenas, que haviam morado na cidade para estudar, esta etapa significa também
um retorno ao convívio com a família e com o cotidiano da cultura de sua etnia. Quase
posso vê-los sendo chamados a participar de reuniões, registrando atas, redigindo
documentos e projetos, acompanhando as lideranças nas instâncias de negociação
com diversos agentes externos, enfim, assumindo um lugar de mediação entre dois
mundos, e nesse fazer, aprendendo a ser esse mediador e tradutor.
Na direção desses novos papéis, enfatizo um aspecto que é marcadamente
perceptível nas trajetórias dos Doutores Indígenas, que é a importância do lugar do
professor e da escola. Pude contabilizar, com base nas informações disponíveis, que
pelo menos 18 dos 24 Doutores Indígenas tornaram-se professores em suas
comunidades, seja logo após o término do Ensino Médio, como para Wanderley
Cardoso, Tonico Benites, Rosani Fernandes, Namblá Gakran, Maria Pankararu, Maná
Kaxinawá, Aisanain Paltú Kamaiwrá e Gersem Baniwa, seja depois do ingresso nos
cursos de licenciatura para, então, passarem a atuar como docentes. Portanto,
denota-se que o cargo de professor indígena, decorrente de um processo de luta que
reivindica o protagonismo indígena na elaboração e execução de políticas públicas,
98
Nessa direção, foram cursados, além dos cursos nas áreas da Educação,
Economia, Direito, Agronomia, Geografia e Comunicação Social, sendo
especialmente relevante, na atuação das Novas Lideranças e em suas opções por
cursos, a questão territorial e as demandas em torno da retomada de seus territórios,
do manejo e da autonomia no que tange à gestão de seus territórios. 75 Esse aspecto
se relaciona de maneira muito evidente na trajetória social do Doutor Honoris Causa
Almir Suruí, da etnia Suruí. Graduado em Geografia, Almir constrói uma trajetória
conformada em torno da proposição de modelos de gestão ambiental de territórios
indígenas, e desde essa autoria, que se dá fora dos trâmites acadêmicos, recebeu o
título de Doutor Honoris Causa. A questão do manejo dos territórios indígenas
localizados na Amazônia evidencia-se também nas trajetórias de Autoria Acadêmica
de Francisco Araújo de Souza e de Jefferson do Nascimento, que se colocaram em
áreas das Ciências da Terra.
Destaco que o acesso à determinadas instituições de ensino superior esteve,
naquele momento, vinculado às instituições privadas, através de ações afirmativas
constituídas em parceria com a FUNAI, como é o caso da UNIGRAN, UNOESC,
UCDB, ou às universidades públicas, em cursos especialmente pensados para a
formação de professores indígenas, como na UNEMAT76 e às propostas realizadas
entre povos indígenas de etnias na Amazônia. Contudo, é preciso assinalar que, na
trajetória dos indígenas que foram os primeiros a finalizar o Doutorado, pertencentes
a povos indígenas localizados no Nordeste brasileiro, em anos anteriores a 2010, se
percebe uma característica mais ligada a um esforço pessoal do que a um caminho
aberto institucionalmente por ação afirmativa.
Reverberando de acordo com a nova esfera ética, deu-se a participação dos
Doutores Indígenas nos espaços das organizações indígenas, herdados ou
construídos por esta geração a partir de suas redes sociais, dentro e fora das suas
comunidades, apresentando-se como um aspecto que se alinha e justapõe às
75 Bergamaschi (2014, p. 20) aponta que o interesse por cursos da área da saúde, do direito e das
ciências da terra se dá por serem áreas que dialogam diretamente com as políticas indigenistas.
76 A licenciatura da UNEMAT é referência para vários indígenas, pois inaugura uma proposta indígena
de fato, e não apenas a integração de indígenas aos cursos superiores, onde sofriam violentos
processos de exclusão. Na UNEMAT existem, desde 2001, os cursos de Licenciatura Específica para
a Formação de Professores Indígenas, com três habilitações: Línguas, Artes e Literaturas; Ciências
Matemáticas e da Natureza e Ciências Sociais. Disponível em:
<www.ensinosuperiorindígenawordpress>. Acesso em: 14 dez. 2017.
100
77Não sendo objeto deste trabalho a discussão do movimento indígena em si, apenas destaco que a
constituição dessas organizações é distinta, sendo algumas de base étnica local, por aldeia ou
comunidade, ou interlocal. Outras possuem uma abrangência mais ampla, regional, ou nacional, em
menor número.
101
Sob esse ângulo, enfatizo que a tomada de uma posição acadêmica não se faz
abandonando a militância no movimento indígena, antes, a posição pós-título é na
maioria das vezes, plural, ocupando-se diversos lugares concomitantemente, os
acadêmicos e os no campo do movimento indígena e das redes indígenas, quer em
base local étnica, regional ou mais ampla. Em todas as trajetórias, os Doutores
Indígenas ocupam a função de formar pessoas, especialmente a de formar indígenas,
mas, também, não indígenas, atuando, assim, na promoção da interculturalidade, para
fora da aldeia, em um trânsito pós-título que envolve ir e voltar às suas aldeias e
comunidades, ou as envolver em sua atuação, desde o lugar que ocupam.
Para finalizar a discussão acerca das sincronias, destaco que elas foram
desenhando características fortemente coletivas sobre as trajetórias sociais dos
Doutores Indígenas, conformadas por um campo de possíveis (BOURDIEU, 2006;
VELHO, 1981), que se começou a ser gestado nos anos 70 e 80, afluiu em uma
intensa teia nos anos 90, conformada pela circulação e trânsito dos Doutores
Indígenas e seus povos e organizações nesse período. Uma teia que foi sendo
entretecida em um campo que se desdobrou das políticas públicas, de seus
movimentos de organização e luta e de seus contatos com o mundo branco e a cultura
escrita, por entre escolas indígenas, ONGs, projetos, programas, políticas públicas,
ações afirmativas, gestão em espaços públicos e universitários, autoria de livros,
autoria em redes digitais e Universidades, entre outros espaços sociais nos quais
projetaram os ritmos do tempo vivido de suas experiências.
Essas Novas Lideranças dos anos 90 em diante diferem das lideranças
tradicionais que haviam iniciado suas lutas políticas em torno das demandas por terra,
apresentando-se como escolarizadas, conectadas e mais urbanizadas. Consoante os
referenciais teóricos das Sociedades Complexas (VELHO, 1981, p. 35), para estar na
Universidade e tornar-se um autor acadêmico, os indígenas precisaram participar da
vida da cidade e demonstrar plasticidade em lidar com as diversas experiências,
mantendo a tradição “acesa” enquanto se transcorriam seus processos de
universalização, bastante diversificados, conforme suas trajetórias sociais
evidenciaram.79 Desde a trajetória coletiva que emerge, compondo o horizonte da
paisagem percorrida, quero destacar um outro aspecto que diviso nestas trajetórias,
a questão de que a Autoria Acadêmica Indígena se relaciona muito diretamente com
79Tal perfil de liderança também emerge nos anos 90 na América Latina, em diversos países, conforme
Bengoa (2000) e na América do Norte (ALFRED, 1999).
106
a conformação de uma intelectualidade indígena com perfil militante, que atua nas
questões das lutas dos povos indígenas, um intelectual engajado (SEMERARO, 2006;
BERGAMASCHI, 2014; e LISBOA, 2017), cuja força reside justamente no trânsito
fluente entre dois mundos, o nativo e o ocidental (BENGOA, 2000, p. 83).
Nesse sentido, fundamento o postulado de que a construção da Autoria
Acadêmica Indígena se apresenta como um Projeto Coletivo, nos termos
desenvolvidos por Gilberto Velho (1981, p. 27) que entende o projeto como uma
conduta organizada e pré-determinada para se atingir determinados fins. Assim, o
caráter ético-político da Autoria Acadêmica Indígena, enunciado e negociado com
suas coletividades, coloca essa autoria como um Projeto Coletivo, um horizonte já
evidenciado nas dimensões da paisagem80 e que, agora, na análise das trajetórias
sociais, sublinho mediante a articulação entre os objetos de estudo, a prática
acadêmica e as vivências e lutas derivadas da posição que assumem como Novas
Lideranças e representantes de coletividades.
Findo meu transect e percebo que, ao caminhar nos passos dados pelos
Doutores Indígenas, pude alcançar alguns de seus pontos de vista, enxergar a
paisagem desde os lugares que eles a foram conformando. Desloquei meu olhar e
corpo para seus processos. Sob o efeito do deslocamento, pude ver que, nos
percursos realizados, não apenas foram empunhando novas ferramentas para
domesticar e manejar o mundo, antes, ao se tornarem também intelectuais
acadêmicos, carregaram consigo suas marcas clânicas, seus mitos e suas formas de
pensar o mundo e construir conhecimentos. Carregaram consigo seus territórios e
territorialidades e, por isso, aponto que, para compreender os significados da Autoria
Acadêmica Indígena, empreendida por intelectuais indígenas envolvidos em projetos
coletivos, é preciso retornar em seus caminhos e fazer a viagem de volta para a aldeia.
suas identidades para além das posições identitárias emblemáticas em que muitas
vezes são situados (ROCHA; ECKERT, 2010, p. 123).
Dessa forma, os narradores conferem ao seu texto uma identidade narrativa,
noção desenvolvida por Ricouer, que amarra a narrativa do mundo à narrativa de si
(ROCHA; ECKERT, 2010, p. 125; GUSSI, 2009, p. 10), em um esforço conduzido pelo
sujeito que narra por concatenar o subjetivo e o social, possibilitando um encontro
entre a vida íntima do indivíduo e sua inscrição numa história social e cultural
(CARVALHO, 2003, p. 284). Esse exercício da identidade narrativa supõe um
processo de ipseidade, conceituada como a identidade de um si mesmo relacional,
marcado pela abertura de um ser afetado pelo mundo (CARVALHO, 2003, p. 291).
Pautando-me nesses pressupostos teóricos, considero que nas narrativas
produzidas pelos Doutores Indígenas estão implicadas também narrativas sobre os
processos identitários vividos, constituindo-se, portanto, como locus importante para
a compreensão dos sentidos da autoria que estudo. Nessa direção, inspirando-me no
cinema documentário de Jorge Prelorán81, compreendo que os autorrelatos
produzidos pelos Doutores Indígenas se constituem como etnobiografias, ao
demonstrar, conforme Rocha e Eckert (2016, p. 120) analisam, suas próprias lógicas
de narrar os tempos pensados e vividos, entretecidos às formas de viver o espaço e
denotando forte vínculo de pertença territorial e aos ritos da tradição.
Neste ponto de minha caminhada etnográfica-arqueológica, procurei
acompanhar e estudar as narrativas em um encontro que fosse, senão pessoal, mais
próximo dos Doutores Indígenas. Desejei não apenas seguir seus passos,
sociologicamente como fiz até o momento, mas conviver com os Doutores Indígenas,
ouvindo-os narrarem o que viveram. E para alcançar essa “intimidade” da convivência
mais profunda com seus textos, optei por realizar um recorte no universo de Doutores,
especialmente considerando o universo de 22 sujeitos que vivenciaram processos
acadêmicos de escrita e autoria de teses acadêmicas. Nesse procedimento
81 Jorge Prelorán nasceu em 1933, na província de Buenos Aires, Argentina. Tendo estudado cinema
por dois anos na Universidade da Califórnia (UCLA), regressou ao seu país e, ao final dos anos 60,
após alguns trabalhos iniciais, realizou um levantamento cinematográfico de expressões da diversidade
cultural argentina, de diferentes regiões, trabalho que seria um divisor de águas em sua carreira. Ao
final desse estudo, havia filmado 18 curtas e um filme de média metragem, intitulado de “Hermógenes
Cayo”, a partir do qual cunhou o estilo de filmagem que com o tempo se conheceria como
etnobiográfico, e que lhe renderia reconhecimento em escala mundial (LAGUARDA, 2017, p. 75).
Nesse filme, ao dar a palavra para Hermógenes, um indígena coya, o cineasta intenta criar uma
aproximação com todo o povo coya, baseado em uma etnobiografia, demonstrando o entrelaçamento
entre o indivíduo e seu povo (PRELORAN, 2006, p. 7)
109
metodológico, optei por cinco dos Doutores Indígenas, Márcia Mura, Édson Kayapó,
Rosani Fernandes, Almires Martins e Tonico Benites, em uma escolha que se efetivou
com base em meus aportes teórico-metodológicos, explicitados a seguir.
étnica, até este momento de minha análise, é que elas se inscrevem em formações
discursivas que pertencem a diferentes comunidades interpretativas, com suas regras
e critérios do “rigor científico” para a aceitação da subjetividade do pesquisador.
Importante ressaltar que no Ocidente moderno as obras produzidas pelas áreas
das Ciências Humanas e Sociais, para tornarem-se obras consideradas como
integrantes do campo científico, ou seja, para adquirirem este status de autoria e
autoridade científica “e ser interpretada desde um comum de sentido dado no interior
de uma comunidade linguística” (FARFAN BARROSO et al., 2008, p. 3), precisam
diluir a presença do sujeito do pesquisador, apagando do texto seus afetos,
percepções e sentimentos, como parte integrante do processo de produção do
conhecimento, em um exercício que Foucault denomina de função-autor. Para o autor,
a função-autor representa a construção do anonimato do sujeito em seus textos, não
importando quem fala, mas a validade do que é dito, em si. Para obter sua legitimidade
acadêmica, as Ciências Humanas e Sociais se esforçam, assim, para que suas
produções sejam a expressão de uma racionalidade, em detrimento da
subjetividade.82
Dito de outra forma, a função-autor para Foucault (QUEIROZ, 2011, p. 72) dá
visibilidade para a retirada do sujeito do texto, com seu papel de fundamento
originário, em uma perspectiva que situa o texto como uma função em um complexo
discurso regulado socialmente, no caso o acadêmico, um “código cultural do mundo
branco” que os Doutores Indígenas demonstram manejar em seus textos. Nesse
sentido, aponto para as formas distintas com as quais as autorias dos Doutores
Indígenas exploram os cânones acadêmicos e as normas criadas para a comunidade
linguística referente às áreas com as quais as suas teses dialogam.
Para a interpretação analítica das narrativas etnobiográficas dos cinco
Doutores Indígenas abrangidos pelo recorte, procurei realizar uma leitura que as
considerassem em seu caráter único, naquilo que cada uma delas possui de particular
(DIAZ, 1999, p. 40), tanto no que se relaciona às informações sociais e históricas
quanto às formas de falar de si, aos estilos e às identidades narrativas (GUSSI, 2009,
p. 2). Ou seja, para proceder a análise, intentei manter em vista o que Diaz denomina
de “desafio individualizador”. Assim, em alguns casos, nessa primeira aproximação já
narrar apenas a sua biografia, mas a do grupo étnico ao qual pertence, isto é, suas
histórias encontram-se entrelaçadas.
Assim, interessou-me inicialmente o como os Doutores Indígenas articulam,
nesses textos, sua trajetória pessoal aos seus objetos de estudo e a sua Autoria
Acadêmica, tendo em meu horizonte as dimensões da paisagem evidenciadas de que
a Autoria Acadêmica se coloca como uma estratégia, de maneira a responder às
demandas societárias dos povos indígenas e seus coletivos de pertença, mesclando
suas histórias com a de uma comunidade inteira. Como ponto de partida para perceber
esses entrelaçamentos, cogitei que, na abertura das narrativas, estariam colocadas
as origens, não só compreendidas como pontos de início, mas também como objetivos
maiores que estariam a “costurar” as intrigas, demonstrando, com mais ênfase, as
relações entre suas trajetórias sociais e a Autoria Acadêmica, agora a partir da voz
dos próprios narradores. Trago aqui a narrativa de Almires Machado, Guarani, Doutor
em Antropologia.
Penso ser pertinente delinear os caminhos por mim percorridos, como Avá
Guarani (referido pela academia como Nhandeva) e Terena (sou filho de pai
terena e mãe guarani), até chegar ao momento do doutorado. [...]. Passei a
minha infância no meio da floresta, éramos a última casa da parte leste da
aldeia, passava a maior parte do tempo na casa da xe jary, que me ensinava
as formas do endu (ouvir), -exa (ver) e -apo (fazer), do nhande reko guarani
(nosso modo de ser), ela era nhandecy (nossa mãe, orientadora espiritual);
sempre a acompanhava nas visitas de ípohanõ (medicar), nos tekohas
(lugares de morada) e nas jeroky (danças) seja no nhande roká (nosso
terreiro) ou na nhanderoga do nhanderu Karape‟ì (hoje meu compadre e
ensinador) que ficava próximo de nossa casa, nos dias atuais nossas
nhemonguetá (conversas) adentram pelas madrugadas, quando o visito. Aqui
na tese, muitos dos seus ensinamentos estarão na escrita do texto, sobre o
nhandereko (nosso modo de ser). (MACHADO, 2015, p. 16)83
83Conforme nota explicativa em sua tese, Almires não grafa em itálico as expressões em guarani, visto
ser falante da língua.
114
o direito à sua autodenominação, e com este ato, demarcando uma fronteira clara
entre a escrita acadêmica e a escrita acadêmica realizada por um indígena. 84
A partir dessa afirmação identitária, sua escrita reordena as memórias de sua
infância em um “passeio” pelos espaços e pessoas centrais para a socialização na
cultura Guarani, evidenciando uma representação de território como um espaço-
tempo indissociável da vida de seus habitantes, representação essa presente na
cosmovisão indígena dos povos das terras baixas da América do Sul (FREITAS, 2008,
p. 18). Tal tema vai assim adensando as prospecções discutidas85, quando apresentei,
brevemente, os processos de confinamento a que foram submetidos os Guarani
Kaiowá e Guarani Ñandewa, especialmente no século XX, e os processos de
retomada de seus territórios tradicionais.
Desde essa perspectiva de sua narrativa, realço sua configuração como uma
narrativa etnobiográfica, em que suas experiências no tempo e no espaço denotam
forte vínculo de pertença territorial e aos ritos da tradição. Assim, a floresta na aldeia
e os espaços do tekoa86 pelos quais ele circulava em atividades espirituais, de cura e
de aprendizagem, acompanhando a vida da aldeia junto aos sábios e conselheiros,
bem como os tempos de ouvir, ver e aprender, são os traços diacríticos87 (CARNEIRO
DA CUNHA, 1986) da cultura Guarani que seu texto vai perfilando na construção
narrativa sobre seu pertencimento étnico.
Dessa maneira, Almires vai também demarcando, em sua escrita, uma
formação primeira, anterior à acadêmica, que é a formação pela e na oralidade da
cultura Guarani, demonstrando que, embora se trate de uma tese que se inscreve nos
cânones acadêmicos, é igual e, primeiramente, uma tese de um indivíduo formado na
oralidade e na perspectiva da tradição de seu povo, conforme defende Bergamaschi
84 Ñandewa é a denominação proposta por Egon Schaden para esse subgrupo Guarani, e significa
“todos nós”, ou “nós”, um termo utilizado por esse grupo que fala um dialeto único. Considerando esse
pressuposto, de que o termo indica uma especificidade linguística e cultural, os etnólogos recomendam
o uso do termo Nãndewa.
ALMEIDA, Rubem Ferreira T; MURA, Fabio. Guarani Ñandewa. Disponível em:
https://pib.socioambiental.org/pt/povo/guarani-nandeva/1296. Acesso em: 28 jan. 2108.
85 Remeto o leitor para o capítulo 2, ou para aprofundamento do tema, ver LADEIRA, Maria Elisa e
ALMEIDA, Rubem Ferreira Thomaz. Guarani. Povos Indígenas do Brasil. 2003. Disponível em:
<https://pib.socioambiental.org/pt/povo/guarani-kaiowa>. Acesso em: 27 nov. 2017.
86 O tekoa Guarani, segundo Freitas (2008, p. 20) são os espaços de vida e residência de um grupo
traços constitutivos de uma cultura importa a fronteira entre as culturas, a sua atribuição de diferença,
a partir de traços flexíveis e maleáveis, que Carneiro da Cunha (1986) denomina de traços diacríticos.
115
88Anuncio que assumo a compreensão de que os conhecimentos produzidos pelos povos indígenas,
bem como suas epistemologias, são considerados como Ciência. Nessa direção, a discussão na tese
sobre como se dá o diálogo entre essas duas ciências colocadas em contato e tensionamento a partir
da produção de Autoria Acadêmica Indígena, será realizada no capítulo 6. Neste momento da tese, o
acento que faço se direciona para as narrativas etnobiográficas, com um olhar especialmente voltado
para a identidade narrativa que os Doutores Indígenas foram construindo ao longo de seus textos.
116
A narrativa de Márcia Mura inicia com a compreensão de que ela assume que
sua identidade está imbricada aos processos vividos por ela, pois “fala desse lugar”.
Sua narrativa anuncia que escreve sobre seu percurso identitário e, portanto, demarca
que é esta a identidade narrativa de seu texto. Em uma escrita poética e livre, busca
evocar emoções estéticas, discorrendo sobre imagens, cores, gostos, cheiros e
experiências lúdicas e corporais que vivenciou na infância, baseado nas suas
memórias. Desde esse ponto de vista, sua narrativa enfatiza essas experiências e sua
forma de compreendê-las no momento em que escreve, em uma direção que a
aproxima da perspectiva que Prelorán (2006) adotava para a constituição de seu
cinema etnobiográfico, para quem a etnobiografia permitiria “[...] crear un mapa de
sentimientos y condutas humanas, y esto sería un aporte extraordianario para que el
conocimiento de cuánto de los otros hay en nosotros se logre” (PRELORÁN, 2006, p.
22).
Percebe-se que ela rememora, em seu texto, uma multiplicidade de lugares
para compor sua identidade narrativa, os da cidade, compondo processos de
“apagamentos indígenas”, e os da floresta, em uma circulação que fez ao longo de
seus itinerários por distintos espaços e culturas, ora a citadina, nacional, ora suas
raízes, como pertencente aos povos da floresta. Em sua tese, que teve como objeto
de pesquisa a tessitura das tradições indígenas da Amazônia, de forma integrada às
suas próprias tradições, o estilo da narrativa biográfica denota a vontade de
“transportar” o leitor para as diversas Amazônias pelas quais ela caminhou, as
urbanas e as da floresta. Seu estilo se aproxima ao gênero literário de memórias89,
em cenas que se assemelham a lampejos, instantes recuperados e costurados em
uma justaposição que conforma um conjunto de partes, uma colcha de retalhos,
89Koche e Boff (2009, p. 3) destacam que o gênero de memórias emprega uma linguagem literária que
busca despertar emoções por meio da beleza e da profundidade.
117
indicando um alinhamento de sua escrita com a perspectiva teórica de sua tese, filiada
à História Oral90 e demonstrando a função-autor nessa relação que demonstra.
No entanto, percebo que há uma outra marca no texto de Márcia Mura, para a
qual quero dar relevo, que é uma inversão nos termos de reconduzir o autor-indivíduo
a um sentido de pertença a uma comunidade étnica. Quando em sua narrativa Márcia
vai tecendo seu processo de reafirmação identitária às memórias que ouve, colhe e
potencializa pela escuta que proporciona como pesquisadora, ela também vai se
misturando às memórias de seus narradores. Conforme Almeida e Queiroz (2004, p.
201), há nesse processo uma dessubjetivação, na qual o “sujeito se perde no estilo e
se reencontra por algum traço, quando a cultura torna-se realmente importante”,
ressignificando a Autoria Acadêmica nos moldes de um coletivo de pertença.
Em minha tese, pela caminhada realizada até aqui, pauto-me no pressuposto
de que a Autoria Acadêmica Indígena que analiso se propõe a uma apropriação
política da escrita acadêmica, servindo-se de suas formações discursivas como uma
estratégia de empoderamento para os povos indígenas, quando retoma, pelo texto, o
que foi apagado, expropriado, desterrado, catequizado, colonizado ... Diante do
preconceito, os povos indígenas “[...] reagem com o gesto antropofágico da
ressignificação” (ALMEIDA; QUEIROZ, 2004, p. 201). Essa Autoria é também política
em uma outra dimensão, dada por aquilo que a escrita faz ao sujeito-autor, que se
denomina nesses textos como um autor-coletividade. Dessa maneira, como Novas
Lideranças que transitam entre dois mundos tecendo diferentes éticas, os Doutores
Indígenas tramam habilmente em seus textos essa dupla ação política – apoderam-
se das formações discursivas acadêmicas e, ao mesmo tempo, subvertem-nas,
imprimindo em seus textos uma autoria coletiva que emana de seus interstícios.
Uma outra ênfase que Márcia Mura coloca nas experiências vividas, e que
busco ressaltar aqui, é uma certa intenção de demonstrar um tipo específico de
maneira de experienciar o mundo, que é corporal, diferentemente do homem
ocidental, para quem a experiência tem se colocado cada vez mais de uma forma
“cerebral”, onde o cogito se destaca. Suas lembranças partem do que seus olhos
90A História Oral tem uma trajetória relativamente recente, iniciada nos anos 40 nos Estados Unidos e
Europa Ocidental. Expandiu-se rapidamente como uma perspectiva de pesquisa história, nos quadros
de retorno do sujeito ao centro das atenções do fazer das Ciências Humanas, e a partir de uma
organização internacional, desde 1996 vem integrando grupos de pesquisadores da Ásia, África e
América, incorporando também questões e novas temáticas advindas dessas regiões (ALBERTI;
FERREIRA; FERNANDES, 2000, p. 11).
118
viram, da água barrenta que tocava com a mão quando estava no barco, do gosto da
fruta mari-mari que comeu a primeira vez..., em descrições que faz na sequência do
texto de sua abertura. Tal acento remete a uma forma de construção do conhecimento
que compõe a concepção de totalidade, própria das cosmovisões ameríndias, “que
reconhece o corpo, em sua inteireza, como o lugar de aprender e produzir
conhecimento” (BERGAMASCHI, 2014, p. 12).
Alicerçada nesse aspecto de sua narrativa, e retomando o que discuti sobre a
centralidade que Almires confere a sua formação na oralidade, reitero que os Doutores
Indígenas demarcam que, como pesquisadores indígenas, estão a aportar
epistemologias outras em sua Autoria Acadêmica. Esse é o “ponto de origem” de suas
narrativas – de Almires e de Márcia, mas também presentes nas narrativas de Rosani,
Tonico e Edson –, a afirmação identitária que fazem, o lugar do qual escrevem, como
pesquisadores indígenas que trazem consigo uma diversidade epistemológica com
potencialidade para matizar e promover rupturas na Ciência Moderna, ao mesmo
tempo em que dialogam e integram as epistemologias das áreas dos conhecimentos
nas quais se inscrevem.91
92 Estereótipo ao qual os povos indígenas têm contraposto seus projetos próprios na cidade,
territorializando-se, estabelecendo sua presença pela circulação e venda de seus produtos, em suas
manifestações políticas e na lida com os aparatos dos Estados nacionais, conferindo concretude ao
projeto possível de “índio urbano”. Para aprofundamento da questão do indígena urbano, podem ser
consultados Bengoa (2000) e Tamagno (2012).
93 Definida em termos de gênero literário como uma história que se conta ao longo do tempo, marcada
por incidentes fortes e dramáticos. Fonte: Dicionário Caldas Aulete Digital. Disponível em:
<http://www.aulete.com.br/saga>. Acesso em: 28 jan. 2018.
121
A minha pesquisa junto aos Karipuna da aldeia Espírito Santo remonta a uma
história dinâmica, que envolve a minha atividade docente no município de
Oiapoque e a minha identidade indígena revigorada, após anos de
internamento em colégio confessional evangélico em meio a floresta
amazônica, no município de Altamira, estado do Pará. Entre a minha infância
no Amapá, na margem esquerda do Rio Amazonas, e minha adolescência no
internato da missão no baixo Amazonas, no município de Altamira, vivenciei
o cotidiano que declaradamente visava “formar para a eternidade”. A prática
pedagógica adotada naquele internato lembrava a ação jesuítica entre os
povos indígenas nos primeiros séculos de colonização, em que “salvar” e
civilizar as almas dos jovens indígenas eram objetivos nobres e necessários.
A educação religiosa que recebi me afastou dos parentes, mas
principalmente das formas de vivência indígenas que aprendi na infância.
(BRITO, 2012, p. 12)
Já nas primeiras linhas, o narrador interliga seu objeto de pesquisa da tese com
sua trajetória profissional, com a docência em escolas indígenas, com seu processo
de pertencimento étnico e com sua “identidade indígena revigorada”. Esse
entrelaçamento entre objeto e percurso identitário narrado é ainda mais visível
quando se tem em conta que a tese de Edson94, discutindo as possibilidades da
94 A tese tem como título “A escola dos índios Karípunas na aldeia do Espírito Santo (Oiapoque) e o
ritual do Turé: uma história da resistência indígena” e foi defendida em 2012.
122
95 Adoto a categoria de resistência indígena para denominar as diversas e históricas estratégias para
manterem-se como povos culturalmente distintos e defenderem seus direitos, frente às relações
desiguais que se estabelecem com o mundo branco, por ser este o termo utilizado pelo movimento
indígena (LUCIANO, 2006, p. 84).
96 A tese de Florêncio tem como título “A emergência étnica de povos indígenas no Baixo rio Tapajós,
97 Em meu trabalho de campo na província do Quebec, Canadá, durante minha estadia de estudos de
Doutorado Sanduíche junto à Université de Montreal, pude acompanhar um trabalho em torno da
memória sobre os impactos do colonialismo entre os povos autóctones até um período bem recente.
Um dos episódios relembrados por esse trabalho, capitaneado pela Comissão da Verdade e da
Reconciliação, retomou com força a questão das “Escolas Residenciais Indígenas”, semelhantes às
escolas internato brasileiras, sistema que permaneceu em vigor até o ano de 1993. Essas Escolas
foram criadas para o que a política indigenista do Estado Canadense denominava de “reeducação” dos
indígenas, mas que de fato integravam uma política assimilacionista violenta, que envolveu sequestros
em massa, negligência médica e assassinatos, sob a gerência das igrejas Católica, Anglicana e United
Church do Canadá, com a chancela do governo canadense. Dados confirmados pelo governo
canadense informam que cerca de 50.000 crianças morreram sob esse sistema, em um genocídio que
está sendo chamado de “O Holocausto Canadense”, atestando oficialmente o veredicto legal que o
Tribunal Internacional de Justiça de Direito Comum, com sede em Bruxelas, já havia estabelecido em
25 de fevereiro de 2013, conforme George Dufort, do próprio Tribunal.
Fontes: Disponível em: http://itccs-portugues.blogspot.com.br/2014/04/mortes-em-massa-de-criancas-
aborigenes.html; https://www.youtube.com/watch?v=; <https://iela.ufsc.br/povos-
originarios/noticia/tragedia-indigena-no-canada.> Acesso em: 13 jul. 2016.
124
Neste ponto de minha escrita, em que busco conhecer o solo que forma a
paisagem, desde as lógicas próprias dos Doutores Indígenas de narrar os tempos
pensados e vividos entretecidos às formas de viver o espaço, já é possível olhar para
À luz dos conteúdos que a narrativa traz, o texto de Tonico concorre para
enfatizar o que foi distinguido na sincronia Novas Lideranças, expondo através das
126
atividades que desempenhou e dos espaços dos quais participou as “peças” que
compõem a estratigrafia estudada: o pertencimento étnico Guarani, ligado à sua
família extensa; o exercício da docência indígena, nos quadros da Educação Indígena
Diferenciada; a participação e atuação na organização de seu povo em seus
processos de retomada de territórios e a inserção ao movimento indígena de caráter
mais amplo; o envolvimento, como Nova Liderança, em temas pertinentes ao seu povo
que transcendem a questão da educação; a articulação aos agentes indigenistas que
participaram desses contextos, como Universidades e seus pesquisadores e esferas
governamentais; e o uso da escrita como estratégia de luta para os Guarani.
Destes aspectos pelos quais a narrativa de Tonico vai tramando sua trajetória
como Nova Liderança à sua Autoria Acadêmica, ressalto a centralidade que as
questões de retomada de seus territórios assumem na trajetória social de Tonico e em
sua narrativa etnobiográfica focalizada aqui, através de diversas estratégias de
organização como a realização das Aty Guasu, tema de sua tese de doutorado. Tais
temas, nomeados por Tonico de “problemas aflitivos” que os Guarani vivenciam, vão
assim adensando as prospecções realizadas99, quando apresentei, brevemente, os
processos de confinamento a que foram submetidos os Guarani Kaiowá e Guarani
Ñandewa, especialmente no século XX, bem como a retomada de seus antigos
territórios tradicionais.
Desde essa perspectiva da narrativa de Tonico, realço sua configuração como
uma narrativa etnobiográfica, em que suas experiências no tempo e no espaço
denotam forte vínculo de pertença territorial e aos ritos da tradição (ROCHA; ECKERT,
2016, p. 120), emergindo desse excerto uma primeira categoria analítica que desejo
enfatizar, a de uma Nova Liderança como um intelectual engajado, militante,
comprometido eticamente com as demandas de seu grupo étnico. E para a atuação
nesse lugar, ele busca demonstrar que possui as habilidades requeridas, de manejo
das esferas éticas envolvidas (OLIVEIRA, 2004) denotando em sua escrita que circula
pela tradição; que vivenciou os conflitos de seu povo; que ocupa posição ativa e
atuante no movimento indígena; que se relaciona com os diversos agentes
99Discussão inserida no capítulo 2. Para aprofundamento do tema, ver LADEIRA, Maria Elisa e
ALMEIDA, Rubem Ferreira Thomaz. Guarani. Povos Indígenas do Brasil. 2003. Disponível em:
<https://pib.socioambiental.org/pt/povo/guarani-kaiowa>. Acesso em: 27 nov. 2017.
127
100O termo “viagem de volta” foi utilizado por Oliveira em 1994 e foi por ele retomado posteriormente
(1998). Nesse último texto, o autor discute teoricamente os conceitos utilizados para designar os
processos de afirmação identitária empreendidos pelos povos indígenas no Nordeste, apresentando o
termo figurativo de “viagem de volta” como uma alternativa para nomear tais processos. Partindo da
experiência de um migrante, para o autor o termo “viagem de volta” evita uma polarização do
entendimento da etnicidade como processo político ou como lealdade primordial. Para ele, a etnicidade
supõe uma trajetória histórica e uma origem, uma experiência primária, mas que podem ser acopladas
em saberes e experiências narrativas (OLIVEIRA, 1998, p. 64). Atualmente, seu uso é bastante
recorrente entre os povos indígenas e, muitas vezes, o vi sendo utilizado sem uma referência à sua
autoria.
129
narrativa bem estruturada, com início, meio e fim amarrados pela trama que ele elege.
Na origem de sua narrativa, ele rememora sua posição como egresso do Ensino
Médio, para quem não havia outras opções a não ser o trabalho braçal nas Usinas da
região.101 No desenrolar da trama, situa-se o olhar que ele dirige para a Universidade
de cima de uma carroça, um desejo talvez percebido pela mãe, que com seu
“devaneio” parece vocacionar o filho para o Ensino Superior. E um epílogo no qual se
apresenta sua participação e protagonismo na construção das pontes que faltavam
para o acesso ao Ensino Superior, a redação de um projeto de política afirmativa que
o levaria ao curso de Direito.
Assim, na narrativa etnobiográfica de Almires, como nas de Tonico, Rosani,
Edson e Márcia, estão presentes os temas que se evidenciaram na composição do
campo e de sua paisagem até o momento: os agentes indigenistas que participam, a
FUNAI e as Universidades, o manejo das distintas esferas éticas, a habilidade e
vantagem que possui em sendo escolarizado, participar ativamente, como Nova
Liderança, na autoria de projetos afirmativos, nos cenários dos anos 90. Nessa
direção, nos contextos das Sociedades Complexas Urbano-Industriais em que os
povos indígenas se inserem na contemporaneidade, o ir e vir entre cosmologias
holista e individualista (VELHO, 2003, p. 34) requer uma grande plasticidade para lidar
com as constantes interpelações colocadas pelos espaços urbanos, característica que
as Novas Lideranças demostraram possuir.
Encaminhando para a finalização desta primeira parte da tese, desejo ressaltar
que a constituição dessa plasticidade, demonstrada pelas Novas Lideranças, se deu
a partir de múltiplos espaços formativos. Se a escolarização emerge como um lugar
de estratégia, entendo que ela se coloca como complementar aos demais lugares
pelos quais as Novas Lideranças circulam, na direção das discussões que os povos
indígenas têm realizado em torno da presença da escola em suas vidas (BENITES,
2012, p. 89; BERGAMASCHI, 2014, p. 26). Assim, aprende-se na comunidade, com
os anciãos, pajés, conselheiros, caciques e lideranças tradicionais; no movimento
indígena, com os parentes indígenas e parceiros não indígenas, lidando com as
instâncias governamentais102; na escola, inserindo-se como professor indígena em
101 No capítulo 2, “Prospecções”, trago a questão de que as populações indígenas da região desde os
anos 50 são vistas como uma reserva de mão de obra para o trabalho.
102 Relembro o leitor que a tese de Daniel Munduruku aborda o caráter educativo do movimento
indígena.
131
Neste novo contexto político, meus trabalhos passaram a ser requeridos pela
comunidade tanto nas atividades relacionadas à escola quanto na
participação direta nas reuniões das lideranças e associação para tomada de
decisão, principalmente com a Empresa de Mineração VALE. Cada vez mais,
sentia necessidade de apropriação dos conhecimentos antropológicos para
intervenções qualificadas nas demandas da comunidade. Foi então que,
depois de quase dois anos de conclusão do mestrado, movida por questões
pessoais, profissionais, mas, principalmente pelo compromisso político com
a melhoria da qualidade da educação escolar e pela necessidade de
estabelecer diálogos a partir dos referenciais da Antropologia com os diversos
profissionais que adentravam a comunidade (indigenistas, médicos,
educadores, antropólogos, entre outros) prestei a seleção para o curso de
doutorado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) da
UFPA, sendo aprovada para uma das vagas reservadas para indígenas.
(FERNANDES, 2017, p. 11)
Sua narrativa inicia colocando a importância que sua atuação como Nova
Liderança assumia para sua comunidade, “tanto nas atividades relacionadas à escola
quanto na participação direta nas reuniões das lideranças e associação para tomada
de decisão”, e que nesse fazer ela sente a necessidade de qualificar suas
intervenções tomando como base os conhecimentos antropológicos. Destaco em sua
construção textual que ela primeiramente demonstra as pautas coletivas às quais ela
é requerida a participar e atuar, para só então apresentar seu projeto de Autoria
Acadêmica Indígena como uma decorrência dessas demandas, evidenciando que sua
autoria se configura como um projeto coletivo, nos termos propostos por Velho (1998,
p. 29).
132
Na reflexão que faz sobre o que lhe moveu ao Doutorado, Rosani sublinha
“questões pessoais, profissionais, mas, principalmente pelo compromisso político com
a melhoria da qualidade da educação escolar e pela necessidade de estabelecer
diálogos a partir dos referenciais da Antropologia”, articulando seu projeto individual
ao coletivo e a um campo de possíveis que se colocava. O texto de Rosani demonstra
também uma compreensão de que para lidar com o mundo branco, citando os agentes
indigenistas com os quais ela desejava ter um diálogo mais qualificado, se tornou
necessário realizar uma apropriação das mesmas ferramentas.
Uma lógica que concorre com o lugar de autoridade que é conferido à
Universidade nas sociedades modernas, em que “é a universidade que lhes dá aquela
plataforma de autoridade na qual um intelectual se apóia” (MARGATO; GOMES, 2004,
p. 16). Dessa forma, antropofagicamente, os povos indígenas demonstram deslocar-
se de uma posição de investigados para a de pesquisadores, apropriando-se da
Autoria Acadêmica concebida como poder político.
Nessa inversão de posições que vai se estabelecendo pela presença de
estudantes indígenas na Universidade, e aqui focalizo o pós-graduação, cabe situar a
discussão, mesmo que brevemente, em torno do emprego do termo “intelectuais
indígenas”. Conforme Bergamaschi (2014, p. 12), os movimentos indígenas e os
meios acadêmicos o têm utilizado cada vez mais, em um entendimento que
contemporaneamente se direciona para uma proximidade e apropriação políticas, uso
que os povos indígenas têm feito, abrangendo tanto os intelectuais da tradição e da
oralidade quanto os intelectuais que produzem reflexões a partir do movimento
indígena e aqueles indígenas que se dirigem para a Universidade. Ou seja, para os
povos indígenas, os intelectuais indígenas se constroem na luta pela reconhecimento
e garantia de seus direitos.
Contudo, a autora também destaca que seu uso traz ambivalências, pelo
significado que a palavra carrega de um conhecimento que é produzido por um
intelecto, de forma, portanto, contrária às cosmologias ameríndias. Ademais, ao
nomear que existem intelectuais, a expressão também estaria hierarquizando e
regulando a produção e a circulação do conhecimento, denotando uma epistemologia
ocidental (BERGAMASCHI, 2014, p. 12). Desde esse ponto de vista, e coerente à
paisagem que pude visualizar com este estudo, compreendo que o acesso de
indígenas aos quadros acadêmicos, e sua titulação como Doutores, se faz desde um
lugar de Nova Liderança que esses indígenas vinham construindo.
133
Nesse trecho com o qual encerro esta primeira parte, em que Rosani situa na
narrativa que faz a justificativa de sua entrada no Doutorado, é interessante perceber
como ela “volta ao início”, retomando os conflitos vividos em sua infância e juventude,
“costurando” sua trajetória social à da etnia que ela estuda em sua pesquisa, “são
parte da minha própria história”. Com esse ato de escritura da narrativa, ela se dilui
como autora individual e traz à tona, novamente, uma coletividade na autoria marcada
pelo compromisso ético. Desde esse ponto de vista, o excerto da narrativa
etnobiográfica “enfeixa” as dimensões percebidas, retoma as sincronias discutidas
pelas trajetórias sociais e deixa ver e sentir a composição e o cheiro do solo que fazem
parte da paisagem.
E o solo que pude encontrar e que embasa a Autoria Acadêmica Indígena
estudada é complexo e rico, composto por inúmeros processos. Mas de seus grãos,
gostaria de enfatizar dois que se sobressaem, conferindo a textura principal: o
134
PARTE II
VESTÍGIOS ENCONTRADOS
103Nesses sítios, os estudos desenvolvidos pelos autores ressaltam que as fogueiras encontradas eram
de origem doméstica, para cocção de alimentos e fabricação de ferramentas, no interior do
assentamento e de origem ritual, para cremação de cadáveres. Sejam domésticas ou rituais, são
fogueiras de base côncava, que apresentam um rendimento maior na quantidade de lenha utilizada
como combustível, atingindo uma temperatura maior com determinada quantidade de lenha do que em
fogueiras de base plana, com uma queima mais lenta, por exemplo (AZEVEDO; COPÉ; SCHEEL-
YBERT 2013, p. 65-72).
136
104O professor Dr. Robert Crépeau se dedica a pesquisas sobre as configurações religiosas de grupos
ameríndios na contemporaneidade, integrando o grupo de pesquisa Equipe de Recherche sur les
Spiritualités Amérindiénnes et Inuits/ERSAI, vinculada ao Departamento de Antropologia da
Universidade de Montreal, na província do Quebec/Canadá. Os professores que compõem a ERSAI,
além do prof. Robert Crépeau, são Marie-Pierre Bousquet, Natacha Gagné, Ingrid Hall, Laurent Jérôme,
Jean-guy Goulet, Frédéric Laugrand, Louise Paradis, Enrique Pilco, Sylvie Poirier, Clint Westman.
Fonte: Dynamique religieuse de autochtones des Amériques: vers de nouvelles methodes. Disponível
em: <http://www.ersai.umontreal.ca/>. Acesso em: 02 out. 2015.
137
Dessa forma, o “durante” das teses não aparece de forma explícita, e cogitei,
então, que o lado “avesso” dessas tramas – que Michel Herzfeld (GOLDMAN, 1998,
p. 150) chamou, à propósito da relação estabelecida no campo etnográfico, de
“intimidade cultural”, aquilo que há de embaraçoso – pudesse ser de alguma maneira
alcançado ao tomar as minhas experiências em conta. Nessa direção, busquei “ser
afetada” (FAVRET-SAADA apud BENITES, 2007, p 121), entendendo que minhas
reações a essas situações foram minhas e que não correspondem às formas como os
Doutores Indígenas lidaram com suas experiências.
Além desse aspecto, penso que ao tomar as implicações do encontro com a
alteridade desde a minha vivência e das sensibilidades possibilitadas por ela, submeto
também o meu texto a um exame analítico. Expondo-me, falando sobre meus
incômodos, apresento minha humanidade e, através dela, promovo um encontro
reconciliatório com meus interlocutores. Reconciliatório na direção do que Farfan
Barroso et al. (2008) discutem, ao investigarem as fontes escritas do pensamento
antropológico, de que a posse da palavra em escritos etnográficos está na raiz do
ponto de desentendimento trazido pela obra de Rancière, visto que a escrita está
referida a um campo de saberes letrados, no qual a voz e a interpretação dos
interlocutores-nativos podem não se reconhecer.
Dessa maneira, entendo que na escrita etnográfica que faço, sendo minha a
posse da palavra sobre as experiências vividas pelos Doutores Indígenas, as
reflexões em torno de minha experiência de alteridade podem promover, em alguma
medida, um estatuto científico da escrita etnográfica de base biográfica, um
“aconteceu comigo também”, conferindo um sentido de base comum ao estudar teses
e suas práticas de escrita de autores indígenas (FARFAN BARROSO et al., 2008, p.
7). Volto então no tempo, em minha narrativa, para umas semanas antes de viajar,
quando em um encontro de orientação, conversávamos sobre as aprendizagens que
seriam possíveis em meus estudos com um etnólogo, e as expressões “beber o
peiote”106 e “fazer uma viagem xamânica” circularam em nossas palavras.
Envolvida nos preparativos, essa fala ficou lá, isolada e esquecida, e não tive
muito tempo para interrogar-me, ou afinal, querer descobrir, lá no Quebec, como eu
faria isso. Mas agora, no momento da escrita, lembrei-me dela, e cotejando com os
desafios de estranhar o familiar que havia me colocado, entendi que deveria voltar
106 O peiote é uma planta psicotrópica utilizada por xamãs em práticas rituais (MOREIRA, 2014, p. 177).
140
Eu disse a Don Juan que minha insistência para encontrar explicações não
era coisa que eu tivesse concebido arbitrariamente, só para ser difícil, porém
uma coisa tão profundamente arraigada em mim que sobrepujava todas as
outras considerações.
- [...] você cede a seus caprichos, procurando explicar tudo. As explicações
não são mais necessárias, no seu caso.
Insisti que eu só podia funcionar em condições de ordem e compreensão [...].
- Você é muito esperto – disse ele por fim. – Volta para onde sempre esteve,
mas dessa vez você está liquidado. Não tem para onde voltar. Não vou lhe
explicar mais nada. O que Genaro lhe fez ontem, fez a seu corpo, por isso,
deixe seu corpo resolver como as coisas são. (CASTAÑEDA, 1972, p. 235)
Tudo ainda é estranho, o abrir das portas, o uso do banheiro, onde achar uma
lancheria ... A parte do registro burocrático foi simples e como tudo,
organizado, metódico e do ponto de vista de uma brasileira, frio e sem
empatia. Sinto que as pessoas querem fazer o papel delas e só, não se
envolver, e esperam que você dê conta. Se você não dá conta, o olhar de
desprezo que te dirigem é cruel. Para os indígenas na Universidade, os
choques são bem semelhantes, eles vêm de uma cultura do acolhimento, e
as relações na Universidade são complexas para eles. Posso compreender,
sentir na pele o que é estar em outro mundo, diferente do seu, e de repente
141
107 Entre as formas de estudar e avaliar a atividade científica, a Filosofia e a História da Ciência foram
dominantes no início do século XX. Já no final do século, ganharam espaço a Sociologia e Antropologia
da Ciência, inaugurando um recorte disciplinar que ficou conhecido como Estudos da Ciência, os
Science Studies. A Etnografia da Ciência surge assim, junto à Nova Sociologia da Ciência, que, na
década de 1970, firma-se como campo de investigação com os estudos de Bloor, sugerindo formas de
reflexão que ampliaram o alcance até então dos Estudos Sociais de Ciência e Tecnologia (ESCT).
Assim, foi a incorporação da etnografia no estudo das práticas científicas a partir de fins dos anos 1970
que colaborou para que a Ciência e o conhecimento epistemológico pudessem ser tomados como
produções culturais passíveis de se tornarem também objeto de investigação (MAIA, 2013, p. 11).
142
108 Segundo Pestre (1996), Latour inova a história social e cultural das Ciências ao trazer novas
definições e abordagens, saindo do laboratório e buscando compreender como o complexo técnico-
científico e o corpo social se (re)definem e se (re)constroem simultaneamente.
143
109Conforme Nunes (2010, p. 11), é desde os anos 2000 que a temática da “urbanidade indígena”
começou a ser considerada mais centralmente pela Antropologia como foco de pesquisas, após “o
pioneiro trabalho de Roberto Cardoso de Oliveira (1968) sobre os Terena nas cidades de Campo
Grande e Aquidauana, no Mato Grosso, e de quatro dissertações de mestrado do início da década de
1980.
145
com as cidades – não pode mais ser ignorado nos cenários recentes de direitos aos
quais os povos indígenas têm se colocado (NUNES, 2010, p. 10).
Sem pretender esgotar o assunto, intento apenas enfatizar o que pude perceber
nos meus fazeres extensionistas e que discuti brevemente neste trabalho de
pesquisa110, de que a presença indígena em contextos urbanos ainda porta consigo
um “incômodo” que Sevilla e Sevilla Cásas (2013) expressaram como um oxímoro, o
indígena urbano. Esse oxímoro se assenta sobre um imaginário social construído com
base em um Arquivo Colonial (SOUZA LIMA, 2005) que associa o indígena à floresta,
ao mato, e o não indígena, à cidade. Nessa representação essencialista que nega a
dinamicidade das culturas indígenas, a presença indígena em contextos urbanos é
compreendida pela sociedade nacional, de maneira ampla, como um ato
desagregador de sua cultura, que o tornaria, nesse ponto de vista, “menos indígena”
do que os indígenas que se encontram aldeados, um preconceito com o qual os
indígenas em contextos urbanos precisam cotidianamente lidar.111
Por outro lado, da perspectiva da aldeia, de suas comunidades de origem,
parentesco e lideranças tradicionais e religiosas, o deslocamento geográfico para a
cidade e a mudança de papel social – como uma Nova Liderança que agora se coloca
também como um pesquisador acadêmico, comprometido eticamente – trazem a
prerrogativa de reafirmar vínculos e compromissos com seus povos, através de laços
de pertença tramados em redes sempre e de novo acionadas, desde os lugares pelos
quais transitaram durante seus processos de doutoramento. Tendo apresentado seu
projeto de doutorado como um projeto coletivo, cogitei que para os Doutores
Indígenas a manutenção dessa tessitura tivesse assumido grande importância no
sentido de materialização dos apoios de toda ordem que se fizeram necessários para
sua permanência na Universidade.
Dessarte, procurei ver os vestígios deixados por uma coletividade que se trouxe
consigo para a cidade, nos diferentes espaços sociais que pautam o fazer acadêmico
de um doutoramento e na produção finalizada, a tese. Entendendo que as fogueiras
denotam importante espaço de socialização da coletividade, conforme Azevedo, Copé
110Ver capítulo 4.
111A essa perspectiva o movimento indígena se contrapõe, demarcando que o descrédito e desmonte
da relação de dinamicidade que se estabelece entre a aldeia e a cidade é uma condição não apenas
para suprimir direitos, mas também para desqualificar a condição dos estudantes indígenas urbanos
como sujeitos de direitos específicos (SOUZA, s/d, p. 4).
146
Na reflexão que fez, Almires deu ênfase às redes de parentesco com seu grupo
étnico, mantidas através de idas e vindas realizadas por ele entre a universidade, os
eventos e os tekoas, “Ao redor do fogo ou debaixo das árvores, nas deliciosas rodas
de tereré”. Conforme sua narrativa, nesses momentos de convivência foi possível
compartilhar emoções, “alegria, ansiedade, dor, tristeza, saudade” e aprender
conhecimentos tradicionais, “falamos sobre o nhandereko (modo de vida)”. Para além
dessa ênfase, desejo dar relevo para outras questões que se depreendem desse
trecho, principalmente o que ele está a demarcar sobre os processos de construção e
transmissão do conhecimento na cultura Ava Guarani.
Um primeiro aspecto é que ao descrever e dar relevância aos espaços coletivos
de convivência como espaços onde se compartilhavam emoções, Almires escritura
um texto do qual ele não só não retira, como dá relevância aos aspectos subjetivos
dessa caminhada, seus sentimentos, aportando uma cosmologia do sensível, mais do
que do racional. E um segundo aspecto, articulado ao primeiro, é que ele também
intenta demonstrar uma forma de construção de conhecimento que se dá na
coletividade, em um manejo do conhecimento em processos intergeracionais de
transmissão oral dos conhecimentos tradicionais (BERGAMASCHI, 2014, p. 18). Ao
final do excerto, nas redes de parentesco com sua família mais próxima, esses
aspectos são novamente percebidos, quando Almires enfatiza os apoios nas esferas
147
112 Conforme Luciano (2006), nas cosmologias indígenas há uma associação entre maturidade e ser
velho, pois a pessoa mais velha assume um estatuto importante, de pessoa mais sábia e respeitada
da comunidade, e com um lugar resguardado para manter e guardar as tradições, transmitindo o
idioma, costumes, valores e tradição religiosa, aspecto também referendado por Marques et al. (2015).
113 Tópico que discutirei a seguir neste capítulo.
148
114Essa relação, do antropólogo indígena e as comunidades indígenas que pesquisa, está aprofundada
no próximo tópico, neste capítulo.
115 A reciprocidade se coloca como uma categoria central para a vida social nas cosmologias
ameríndias, entendida como uma comunicação entre sujeitos que se interconstituem no e pelo ato da
troca. Dessa forma, “A reprodução das sociedades indígenas é assim concebida e vivida sob o signo
de uma circulação de propriedades simbólicas entre humanos e os demais habitantes do cosmos”
(POVOS INDÍGENAS NO BRASIL 2006/2010, 2011, p. 72).
149
tradição também em seus espaços da vida cotidiana, como com sua “irmã indígena
que compartilhou comigo do fruto do pé de jatobá que ela namora da sua janela”.
Ressalto a menção que Márcia faz a uma rede indígena urbana em seu texto,
“E à toda rede indígena que passei a fazer parte nas cidades de São Paulo, Porto
Velho e outras cidades do Brasil”. Como visto em sua narrativa anteriormente116, aos
saberes tradicionais que aprendeu com sua irmã indígena, ela insere, sem distinção
ou dilemas quanto a uma maior ou menor “autenticidade”, sua pertença a uma rede
indígena entretecida a partir do espaço urbano. Dessa forma, considero que a escrita
de Márcia, bem como o conjunto dessas narrativas, está a indicar uma concepção
bastante dinâmica sobre os movimentos de ir e vir entre as aldeias e cidades de
origem e as metrópoles onde se deram seus processos de doutoramento, e que se
trata de uma compreensão que abrange também os processos de urbanização em
que está envolvida parte significativa dos povos indígenas no Brasil (SOUZA, s/d;
NUNES, 2010; AMARAL, 2012).
Tributo essa compreensão que expressam em alguma medida à sua atuação
como Novas Lideranças, que lhes oportunizou experiências de grande plasticidade
nas dinâmicas culturais envolvidas, nos termos que Velho (2003, p. 43) apresenta,
com base no que se pôde depreender das trajetórias sociais dos Doutores
Indígenas.117 Dessa maneira, analiticamente, diviso que os Doutores Indígenas
percebem a cidade e o espaço urbano como possibilidade para a conquista de novos
“aparatos” que os instrumentaliza – que Rosani menciona em sua narrativa sobre sua
trajetória social, “como menina do interior, desarmando as armadilhas” – mas que ao
mesmo tempo, esses espaços também são assumidos como possibilidade de
afirmação, autonomia e empoderamento. 118
Os textos deixam entrever também que os então doutorandos, suas famílias e
grupos étnicos, de algum modo promovem uma reorganização nas formas como
pensam a identidade étnica e a participação na vida e na tradição do seu povo,
ajustando-se dentro de redes de parentescos que se atualizam nos centros urbanos
e em outros grupos indígenas e redes indígenas. Portanto, não existe um “estar fora”
116 No capítulo 4, analiso as narrativas de Márcia, nascida na cidade de Porto Velho e afirmada
etnicamente como Mura, como uma narrativa em estilo de memórias que justapõe as diferentes
Amazônias, urbanas e da floresta, conformando seu processo identitário.
117 Discutidas no capítulo 3.
118 Souza (s/d), aponta para a mesma direção, após trabalho etnográfico entre os estudantes Ticuna,
que entendiam que a ida para a cidade se torna importante para aprender sobre os brancos. Nesse
sentido, ela utiliza a expressão da cidade como “grande espaço didático”.
150
da aldeia, visto que no momento em que saíram de seus grupos étnicos para realizar
o doutorado, o fizeram exatamente porque são parte desses grupos, em um projeto
coletivo já manifesto e publicizado como coletivo (VELHO, 1981, p. 29).119
Encerrando este tópico, destaco um excerto de como Márcia Mura sublinha a
construção de seu trabalho como um grande “Puxirum”.
Assim, a saída da comunidade, embora seja vivida como uma dificuldade pelo
afastamento do convívio com os seus e sentida como dor e saudade, não é vista como
ausência ou perda de seus laços étnicos. Como o solo da paisagem demonstrou, foi
compartilhando o “fruto do pé de jatobá” e “estabelecendo laços de amizade e
colaboração” que mantiveram a aldeia consigo. Esse foi o primeiro vestígio de fogueira
que encontrei, aquela que acenderam no espaço acadêmico, a partir de suas redes,
nas salas de aula, nos quartos de moradia, nos restaurantes, auditórios e bibliotecas
do cotidiano acadêmico, onde se pode quase visualizar os Doutores Indígenas,
sentados com seus parentes “ao redor do fogo”.
119 A importância da manutenção das redes de parentesco para a permanência dos estudantes
indígenas na cidade, em cursos de Ensino Superior, já havia sido demonstrada por Paladino (2006),
que estudou esses processos entre os Ticuna. Jorge Romano, nos anos 80, (apud NUNES, 2010) já
indicava a questão das redes de parentesco para a permanência na cidade.
151
120 Coloco o retorno entre aspas para destacar que compreendo que não houve uma saída de fato,
visto terem se mantido ligados aos seus grupos através de suas redes de parentesco. Utilizo a ideia do
retorno para expressar que há um deslocamento de papéis, que será discutido ao longo do tópico.
152
Inicio trazendo a narrativa de Almires Machado, Ava Guarani, que realizou sua
investigação antropológica entre um grupo Guarani Mbya, estabelecido no Pará, onde
Almires fez seu Doutorado. Ele conta que ouvira falar dos Mbya de Nova Jacundá na
sala de aula do Mestrado, por meio de um colega e amigo que os visitava com
frequência, o convidando para acompanhá-lo em uma ida até o Tekoá. Na sequência
de seu texto, Almires anuncia que enxerga seu trabalho etnográfico como resultado
de uma convivência com os parentes Mbya ao relatar: “que me acolheram e incluíram
como um etarã (parente no sentido que extrapola o social e o biológico), nas longas
conversas em pescarias, caçadas, trabalho nas roxaro (roças) [...]” (MACHADO, 2015,
p. 22).
121 É um impasse duplo, pois Velho nos lembra que as visões de mundo em que “os indivíduos não
aparecem com a mesma nitidez como no discurso humanista-burguês-terapêutico” (1981, p. 36) geram
dificuldades para se lidar com esses discursos. Ou seja, na outra ponta, fica a interrogação sobre como
a Universidade consegue compreender e dialogar com a Autoria Acadêmica Indígena, questão que
procurei responder no capítulo 6, “Sapatos Trocados”.
154
122Desde 2009, a Universidade desenvolve atividades de trabalhos e orienta pesquisas nas aldeias do
Jeju e Areal, onde vivem os Tembé Tenetehara, atendendo ao convite das lideranças (FERNANDES,
2017, p. 44).
155
A entrada de Rosani em campo foi diferenciada da de Almires, visto ela não ser
uma Tembé Tenetehara, mas uma parente, introduzida pela Universidade, em uma
relação que já estava estabelecida. É preciso considerar que essa entrada se deu em
um grupo étnico em processo de afirmação identitária e que demonstra valorizar e
manejar a Universidade, seus pesquisadores e seus saberes em um sentido político,
de parceria em suas lutas.
Portanto, nessa direção, Rosani deixa ver em seu texto que percebe que os
Tembé Tenetehara e suas lideranças nutrem expectativas quanto aos processos de
formação de indígenas na Universidade, entendida como uma estratégia 124 para a
formação de quadros indígenas para atuar dentro e fora das aldeias, em problemas
locais ou integrando órgãos colegiados de formulação de políticas públicas voltadas
para os povos indígenas, como reitera Lisboa (2017, p. 26) quando analisa o tema da
escolarização e a formação de intelectuais indígenas, em texto que dialoga com as
lideranças indígenas.
O excerto em que Rosani narra o início de sua relação com as comunidades
do Jeju e Areal também situa a importância, além da vinculação que ela possui com a
Universidade, das redes indígenas conformadas nos espaços urbanos pelos
estudantes indígenas e suas redes de parentesco, conforme discuti neste capítulo.
Sendo assim, é na condição de aliada, como pesquisadora e como parente,
respaldada por redes já construídas pelo lugar de pesquisador indígena ocupado por
seu irmão, que ela é recebida e inserida na comunidade. Segundo Rosani, o “ser
aliada” deriva do fato de que as identidades étnicas postas em contato, sua e dos
Tembé, acionam identificações, que ao mesmo tempo em que permitem acessar
123 Dona Judite Vital da Silva, mãe de Almir Vital da Silva, uma das lideranças Tembé Tenetehara mais
atuantes nas comunidades, tendo sido presidente por dois mandatos consecutivos da Associação
Tembé de Santa Maria do Pará (AITESAMPA), fundada em 2003 (FERNANDES, 2017, p. 3).
124 Dimensão da paisagem levantada nas prospecções do capítulo 2 e no capítulo 3.
156
126
Uma responsabilidade também referida por Rosani Fernandes, Gersem Baniwa e Tonico Benites
em suas teses.
159
de vir a ser e estar antropólogo, enquanto Guarani. [...] Ainda mais que ao
mesmo tempo de minha indagação investigativa, estava em campo uma
antropóloga paulista e logo chegou ao tekoá (lugar de morada) outro
antropólogo carioca para dar início a sua pesquisa de doutorado, então todo
tempo estive na mira das comparações e dos aconselhamentos em não
incorrer no mesmo “equívoco” da técnica investigativa. Fui chamado à
atenção pelo fato de usar gravador: “você é Guarani, tem que ter gravado na
cabeça e não nas coisas de Juruá” (branco); esta é a razão de ter poucas
entrevistas gravadas. (MACHADO, 2015, p.29)
lhes pareça estranho, juruá apó – mas o que ele deixa de ser e fazer como Guarani
que está morando na comunidade, por causa de suas atividades como pesquisador.
Um segundo aspecto me parece ser o de que para a comunidade a posição de
um antropólogo Guarani é nova. Explicitando melhor, penso que antropólogos brancos
não são uma “novidade” para os povos indígenas – como se percebe pela circulação
de outros pesquisadores citados no excerto de Almires – e, por isso, as “regras do
jogo” a jogar com os antropólogos juruá já estão estabelecidas: quais benesses irão
solicitar, como se dará a relação, o que poderá ser dito e o que não. Dessa maneira,
Almires cogitou que a relação etnográfica no campo se daria sem impasses, por ele
compreender a cultura, sendo Guarani. Mas, do outro lado da relação, para os Mbyá,
não foi tão simples compreender o seu duplo trânsito cultural, o que ele trouxe de
artefatos dos Juruá e que deslocaram os papéis colocados pela cultura Guarani.
Encontrei no balanço que Baniwa (2015, p. 237) faz sobre a atuação de antropólogos
indígenas uma constatação semelhante.
Para esse autor, é compreensível que nessa relação, do pesquisador
antropólogo indígena e sua comunidade, ocorra estranhamento no primeiro momento
“como forma de proteção preventiva por ambas as partes, que aos poucos vai se
ajustando na medida em que as comunidades vão se apropriando autonomamente
das novas ferramentas de luta disponibilizadas pelos indígenas antropólogos”
(BANIWA, 2015, p. 237), enquanto as Novas Lideranças, no retorno à sua aldeia em
novas posições, vão também se readaptando às suas comunidades, depois de longo
tempo de formação acadêmica em contextos urbanos. Nessa direção, Baniwa
também adverte que uma adaptação mútua se dará, em uma proposição sua, na
medida em que o intelectual indígena, expressão que ele utiliza, se coloque em
posição de apoio e engajamento às lutas da comunidade, conquanto se mantenha
uma posição igualitária internamente, não hierarquizando sua posição na estrutura
social ou política do grupo, visto que hierarquias de poder não se alinham às
cosmologias dos povos ameríndios das terras baixas da América do Sul (BANIWA,
2015, p. 237).
Sob esse ângulo, tomando a convivência percebida para a relação etnográfica,
no momento em que as Novas Lideranças passam a ser também pesquisadores
acadêmicos; considerando a vivência da experiência como forma de construção dos
conhecimentos acadêmicos; e percebendo a reflexão sobre seus compromissos,
papéis e lugares como indígenas pesquisadores, identifiquei a segunda fogueira da
161
das teses produzidas pelos Doutores Indígenas na interlocução que estabelecem com
as áreas do conhecimento onde se inseriram.
Em obra que busca refletir sobre a presença de estudantes indígenas na
UFGRS, José Otávio Catafesto de Souza (2013) discute a questão dos impactos da
introdução das Epistemologias Ameríndias integradas à Universidade, como uma
possibilidade de ampliar a polifonia das estruturas desse espaço de universalização
dos conhecimentos da Ciência Moderna. Inicio este capítulo da tese com a
interessante provocação feita por esse autor, sobre o deslocamento de perspectiva e
de posições que a Autoria Acadêmica Indígena estaria a provocar na Universidade.
Para Catafesto de Souza, a presença de estudantes indígenas na Universidade
é uma oportunidade de “fecharmos um circuito” que nos fez viajar aos territórios
distantes para encontrar a diferença cultural e reconhecer a existência de outras
formas legítimas de existência humana. Em sua metáfora, no momento atual, “depois
de voltar dessa viagem, é preciso aceitar que os nativos venham nos visitar, aprender,
competir e compartilhar conosco dentro de nosso espaço íntimo de vida”
(CATAFESTO DE SOUZA, 2013, p. 124), oportunizando uma ampliação e fusão de
horizontes epistemológicos através da Universidade.
Diante do que pude divisar nesta investigação que tematizou a Autoria
Acadêmica Indígena, eu ousaria avançar na metáfora de Souza, dizendo que os
indígenas não apenas estão a nos visitar em nossas salas de pesquisa, de onde, tal
qual visita que chega e logo parte, ainda os olharíamos de nossa “escrivaninha”/ponto
de vista. Antes, os povos indígenas se introduzem na Universidade como sujeitos e
coletividades que chegaram para ficar, em uma conquista alcançada como resultado
de longo processo de lutas: entram nos gabinetes, instalam-se, sentam eles próprios
em suas escrivaninhas, tomam esses lugares, inscrevem seus nomes nas portas,
publicam teses e fazem circular suas palavras. E, se ocupam esse lugar, de alguma
forma estão a “desalojar” o que e quem aí estava, provocando deslocamentos e
rupturas.
Sobre a “chegada” de nativos na posição de autores acadêmicos e seus
deslocamentos, aqui focalizo centralmente como ela incide na escrita das teses e nas
áreas com as quais dialoga, considerando os aspectos que venho discutindo,
advindos do trânsito cultural empreendido por indígenas entre dois mundos. Nesse
sentido, cogitei que em se tratando de uma produção que é relativamente recente no
Brasil, o momento em que se dá essa produção ainda é inicial e, por esse motivo,
164
128 No decorrer do capítulo analiso o uso que Márcia faz dessa categoria em sua tese.
165
esse processo, com atenção voltada para a presença de suas cosmologias na escrita.
Com base em uma categorização de conteúdos apresentados nos textos, organizei
os excertos dos Doutores Indígenas de maneira que eles produzissem uma
textualidade em seu conjunto, uns com os outros, e explicitassem seu entendimento
sobre a Autoria Acadêmica Indígena. Um dos temas que se evidenciou com força
nesse exercício interpretativo foi a apropriação política da escrita acadêmica.
Rosani Fernandes articula sua formação a um projeto político maior, pois, para
ela, sua presença na universidade é resultado de lutas que ela também teve a
possibilidade de protagonizar, e, nessa perspectiva, Rosani se coloca como parente
interessada, em uma posição política comprometida e situada, como um requerimento
das comunidades com as quais ela dialoga, tomando seus interlocutores como
também autores e autoras de sua escrita (FERNANDES, 2017, p. 62).
Nesse sentido, o trabalho se propõe polifônico, conforme discute James
Clifford (1998), pautado na valorização da oralidade como possibilidade de
registro das histórias, como estratégia de descolonização e contraponto aos
cânones eurocêntricos das elaborações acadêmicas. Para tanto, a escrita,
politicamente situada, tem como objetivo, questionar padrões coloniais de
dominação que, historicamente se constituíram instrumentos de poder para
sujeição e produção da condição de subalternização dos povos indígenas. A
apropriação da escrita pressupõe sua desconstrução enquanto instrumento
de negação das epistemologias e ciências ameríndias, sufocadas pelas
produções individualizadas e ocidentalizadas, para novas elaborações
coletivas em favor dos direitos indígenas. (FERNANDES, 2017, p. 5)
Assim, a posição que Rosani assume para a escrita acadêmica que fazem os
Doutores Indígenas é a de uma apropriação como desconstrução, “do instrumento de
negação das epistemologias e ciências ameríndias”, que se daria, em seu ponto de
vista, a partir de elaborações de cunho coletivo. Uma perspectiva também defendida
por Angela Wilson, do povo Dakota, que compreende que os indígenas, ao acessarem
a Universidade, podem contribuir para a recuperação dos conhecimentos indígenas,
mediante uma descolonização das estruturas simbólicas e educacionais e de uma
reafirmação dos fundamentos epistemológicos e ontológicos indígenas, realizadas
desde a produção e pesquisa acadêmica de autoria indígena. Para essa autora,
“nossa tarefa é desafiar a academia enquanto um agente de colonialismo e entalhar
um lugar para nossas próprias tradições, enquanto temas legítimos de estudo
acadêmico, mas em nossos próprios termos (WILSON, 2004, p. 73).
O que depreendo dos textos dos Doutores Indígenas é que eles compreendem
e afirmam que possuem o compromisso de contribuir significativamente para a
qualificação e ampliação dos debates, postura também assumida por Gersem Baniwa,
166
Exploro o caminho [...] onde todos nós guarani somos autores do texto,
considerando que somos uma coletividade, embora a escrita saia
unicamente pelas minhas mãos. (MACHADO, 2015, p. 20)
130No evento “Educação Intercultural Indígena”, realizado pela FACED/Rede Abya Ayla em dezembro
de 2014, cujo público era majoritariamente de professores e estudantes indígenas, o tópico sobre o
cuidado em relação ao trânsito de conhecimentos indígenas para a Universidade foi bastante debatido.
Alguns estudantes, já há mais tempo inseridos na academia, exortavam as lideranças tradicionais para
que orientassem os acadêmicos sobre o que poderia e o que não poderia ser falado. (Diário de Campo,
13 dez. 2014).
169
Primeiramente, desejo destacar como Tonico apresenta sua opção por encerrar
a tese com uma narrativa de sua vivência na Aty Guasu, utilizando um estilo, como
ele disse, de quase uma confidência, uma memória, sem reflexões teóricas,
diferentemente da escrita mais acadêmica produzida na abertura. Compreendo que
com essa opção ele procurou pontuar no texto sua pertença a um lugar que é duplo,
buscando uma “harmonia” no papel tradutório em que se situa, como uma Nova
Liderança que se apropria da escrita acadêmica como ferramenta de luta. Como
Doutor Indígena, Tonico tece uma trama que traz para um texto acadêmico as
demandas de seu povo, e como um indígena que se torna Doutor impregnou sua
escrita acadêmica com o “jeito indígena”.
Desse modo, o leitor pode acompanhar Tonico em sua narrativa etnobiográfica,
percebendo, na forma como ele rememora, os significados do Aty Guasu, objeto de
sua pesquisa, para o povo Guarani. Através dos sons, das palavras, dos risos, das
rezas e das deliberações, uma cena vai sendo figurada pela escrita, até o momento
170
Costurar com as mãos é uma tradução possível para a palavra escrita, que
não existia antes do contato com os não indígenas, na língua wayoro ou
ngwayoro do Povo Wajuru. Estava numa aula de nheengatu e falávamos
sobre como os sentidos das palavras indígenas podem ser referências
173
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
deslocamentos de papéis e posições pelo trânsito entre esse duplo lugar, nos
contornos das Sociedades Complexas Urbano-Industriais, que exigiram enorme
plasticidade e adaptação, buscando os vestígios deixados.
E como marcas visíveis de uma autoria que se fez de forma coletiva, encontrei
as marcas das fogueiras deixadas, que sustentaram os Doutores Indígenas mediante
laços de pertencimento constantemente tramados entre as aldeias e locais de origem
e a Universidade. As fogueiras também denotaram a questão das Epistemologias
Ameríndias, quando a entrada em campo e as metodologias foram construídas
postulando rupturas nos cânones teórico-metodológicos das áreas com as quais as
teses dialogam, sublinhando um “fazer pesquisa” que se apresenta com modos
próprios e se coloca como “possibilidades ainda em construção”.
Ao final, no capítulo “Os sapatos trocados. Mas de quem? Doutores Indígenas
e Epistemologias Ameríndias na Autoria Acadêmica Indígena”, procurei discutir os
deslocamentos provocados pela entrada do pensamento indígena na Universidade. A
partir dos textos produzidos nas teses, foi possível evidenciar que a Autoria
Acadêmica Indígena tem impresso cosmologias e Epistemologias Ameríndias no bojo
de uma prática de escritura ocidental, como é a acadêmica. Pela escrita coletiva e
colaborativa, pela apropriação política da Autoria Acadêmica, pela inserção de um
projeto estético e ético, pelos silêncios que falam e pelas rupturas epistemológicas
efetuadas, calçando os sapatos teóricos da Ciência Moderna, defendo que tem sido
possível construir uma Autoria Acadêmica Indígena, com um jeito de andar indígena.
Os limites dos diálogos epistemológicos, as dificuldades e os enfrentamentos a
serem feitos no campo social efetivamente são ainda desafiadores. Especialmente na
questão das áreas com as quais as teses dialogam, concentrada que está a Autoria
Acadêmica Indígena na Grande Área das Ciências Humanas. Nesse sentido,
compreendo que minha pesquisa levanta muitas outras questões, por exemplo, uma
melhor discussão entre a Autoria Acadêmica Indígena e o campo das Ciências Exatas.
Por outro lado, considerando essa autoria como um fenômeno social em emergência,
intentei construir um trabalho com características prospectivas, isto é, mais amplo
horizontalmente, no intuito de fornecer pistas para a compreensão de uma paisagem
que vai se conformando, e, dessa forma, propiciar questões para outras pesquisas,
como nos sítios arqueológicos que mesmo escavados, continuam a guardar
possibilidades interpretativas, nos laboratórios ou no registro da terra.
178
REFERÊNCIAS
<http://novosdebates.abant.org.br/index.php/numero-atual/139-v2-n1/opiniao/210-os-
indigenas-antropologos-desafios-e-perspectivas>. Acesso em: 17 jun. 2015.
______; SILVA, Rosa Helena Dias da. Educação escolar indígena no Brasil: da
escola para índios às escolas indígenas. Ágora, Santa Cruz do Sul, v. 13, n. 1, p.
124-150, jan./jun. 2007.
____. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico.
São Paulo: Unesp, 2004.
______. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína; Ferreira, Marieta de Moraes. Usos
e abusos da história oral. 8. ed. Rio de Janeiro: FGV editora, 2006, p. 183-191.
CUNHA, Manuela Carneiro da. Imagens de índios do Brasil: O século XVI. Estudos
Avançados. vol. 4, n.10. São Paulo: set./dez., 1990. Disponível em: <
http://www.scielo.br/pdf/ea/v4n10/v4n10a05.pdf>. Acesso em 20 nov. 2015.
FARFAN BARROSO, Priscila; LOPO, Rafael; ROCHA, Ana Luiza Carvalho da;
VEDANA, Viviane. Revista Iluminuras. Publicação Eletrônica do Banco de Imagens
e Efeitos Visuais - NUPECS/LAS/PPGAS/IFCH/UFRGS, v.9, n. 21, 2008. Disponível
em: <http://seer.ufrgs.br/index.php/iluminuras/article/view/9298>. Acesso em 02 fev.
2018.
GOLDMAN, Marcio. Cultural intimacy: social poetics in the nation-state. Mana, Rio
de Janeiro, v. 4, n. 2, p. 150-153, out. 1998. Disponível em: <
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
93131998000200010&lng=pt&tlng=pt>. Acesso em: 15 jan. 2018. DOI:
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-93131998000200010.
GOMES, Heloisa Toller. Quando os outros somos nós: o lugar da crítica Pós-
Colonial na universidade brasileira. Revista Acta Scientarum - Ciências Sociais e
Humanas. Universidade Estadual de Maringá. Vol. 29, n. 2, 20007, p.99-105.
Disponível em:
<http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/ActaSciHumanSocSci/article/view/725/436>.
Acesso em: 20 mai. 2016.
GUÉRIOS, Paulo Renato. O estudo das trajetórias de vida nas ciências sociais:
trabalhando com diferentes escalas. Campos, v. 12, n. 1, 2011, p. 9-29.
183
KERN, Arno Alvarez (Org). Arqueologia pré-histórica do Rio Grande do Sul. Porto
Alegre: Mercado Aberto, 1991.
KERN, Dirse Clara. Análise e interpretação dos solos, e, ou, sedimentos nas
pesquisas arqueológicas. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São
Paulo, Anais da I Semana de Arqueologia, Suplemento 8: 21-35, 2009.
KOCHE, Vanilda Salton; BOFF, Odete. Memórias Literárias como um gênero textual
no ensino da escrita. V Simpósio Internacional de Estudos de Gêneros Textuais.
Caxias do Sul, 2009. Disponível em:
https://www.ucs.br/ucs/extensao/agenda/eventos/vsiget/portugues/anais/arquivos/me
m<orias_literarias_como_um_genero_textual_no_ensino_da_escrita.pdf>. Acesso
em 15 jan. 2018.
LUCIANO, Gersem José dos Santos. O índio brasileiro: o que você precisa saber
sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: Ministério da Educação,
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; Laced/Museu
Nacional, 2006.
MACIEL, Márcia Nunes. Tecendo tradições indígenas. São Paulo, 2016. 821 f.
Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de Sao Paulo. Departamento de História Social.
MAIA, Carlos Alvarez. História das Ciências. Uma história de historiadores ausentes.
Precondições para o aparecimento dos science studies. Rio de Janeiro: EdUERJ,
2013.
MARGATO, Izabel; GOMES, Renata Cordeiro. O papel dos intelectuais hoje. Belo
Horizonte: Editora da UFMG, 2004.
MARQUES, F.; SOUZA, L. M.; VIZOTTO, M. M.; BONFIM, T. E. A Vivência dos mais
velhos em uma comunidade indígena Guarani Mbyá. Psicologia & Sociedade, n.
27, v. 2, 2015, p. 415-427. Disponível em: <
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
71822015000200415&lng=pt&tlng=pt>. Acesso em: 01 fev. 2018. DOI:
http://dx.doi.org/10.1590/1807-03102015v27n2p415.
MONTE, Nietta L. E agora cara pálida? Educação e povos indígenas, 500 anos
depois. Revista Brasileira de Educação, Associação Nacional de Pós-graduação e
Pesquisa em Educação. São Paulo, Brasil, nº 015, p. 118-133, nov./dez. 2000.
OLIVEIRA, Kelly Emanuelly de. Diga ao povo que avance! Movimento indígena
no Nordeste. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2013.
OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma etnologia dos "índios misturados"? Situação
colonial, territorialização e fluxos culturais. Mana, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 47-
77, abr. 1998. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93131998000100003.
Acesso em: 22 nov. 2017.
PESTRE, Dominique. Por uma nova História Social e Cultural das Ciências:
novas definições, novos objetos, novas abordagens. Cadernos IG/UNICAMP, v. 6, n.
1, 1996.
ROCHA, Ana Luiza Carvalho da; ECKERT, Cornelia. Etnografia: saberes e práticas.
2008. Disponível em: <www.seer.ufrgs.br/iluminuras/article/download/9301/5371>.
Acesso em: 26 set. 2017.
ROCHA, Ana Luiza Carvalho da; VEDANA, Viviane; FARFAN, Priscila e LOPO,
Rafael. As fontes escritas do pensamento antropológico, seus dilemas e desafios –
um ensaio. Revista Iluminuras. Porto Alegre, v. 9, n. 21, 2008. Disponível em:
http://seer.ufrgs.br/index.php/iluminuras/article/view/9298/5369>. Acesso em: 15 jan
2017.
SANTOS, Boaventura de Souza. Para além do pensamento abissal: das linhas globais
a uma ecologia dos saberes. In: SANTOS, B. S; MENEZES, M. P. Epistemologias
do Sul. Coimbra: Almedina, 2009, p. 23-72.
SANTOS, Antônio dos. Antônio dos Santos: depoimento verbal. São Leopoldo, 09
nov. 2017.