Praticas Sexuais Perversas
Praticas Sexuais Perversas
Praticas Sexuais Perversas
DIFERENÇA?
in Revista Terapia Sexual – Clínica – Pesquisa e Aspectos Psicossocias, Vol. VI, 1, 34-52.
(Trabalho apresentado no 16th World Congress “Sexuality and Human Development: From
Discourse to Action” 10-14 March, 2003 Havana, Cuba)
E-mail: paulorcbh@mac.com
Homepage: www.ceccarelli.psc.br
INTRODUÇÃO
A Internet tornou-se mais um veiculo onde pessoas, de forma ocasional ou rotineira, podem
desfrutar e realizar fantasias e desejos muitas vezes inconfessáveis e frustrados em seus
relacionamentos amorosos e sexuais, de forma segura e anônima sem que suas identidades reais
sejam reveladas. Da mesma forma, a Internet propicia oportunidades para que homens e mulheres,
independente de orientação sexual, estado civil, idade e com distintas preferências sexuais, possam
tornar concreto no mundo “real”, um contato iniciado e mantido através da comunicação on-line
(Martins & Grassi, 2001). Partindo-se da premissa que a definição de “normalidade” é histórica e
culturalmente construída, conceitos como “normal”, “saudável” e “patológico” estão sendo
questionados por todos os profissionais que se interessam pelo estudo e compreensão da
sexualidade humana. As inúmeras manifestações da sexualidade humana, assim como as mais
variadas buscas de prazer, confirmam uma vez mais que no ser humano a sexualidade não está
vinculada à procriação.
A dinâmica da sexualidade humana – o que leva um sujeito a ter a sexualidade que tem – vem
sendo objeto de estudo desde a Antiguidade sem que um consenso tenha sido alcançado, o que têm
levado à busca de novos paradigmas para compreender os comportamentos sexuais ditos
“desviantes”. Uma das razões que dificulta a compreensão dos interesses sexuais não convencionais
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é que o paradigma sexual tradicional, baseado na psicologia, psiquiatria como também na opinião
popular, assume que a procriação é a mais importante função biológica (Fog, 1992). A maioria dos
dados coletados e estudados sobre comportamentos ditos “desviantes” foram baseados em casos
considerados patológicos. Tais estudos foram feitos sob a ótica médica forense, ou tendo como
referência pessoas que procuravam tratamento psiquiátrico e/ou psicológico por suas preferências
sexuais “desviarem” do comportamento sexual “normal” (Ceccarelli, 2000). Este último entendido
como o relacionamento sexual heterossexual, finalizado com a penetração genital e com o intuito de
procriar. Certas práticas sexuais ditas “desviantes” como o Sadismo e o Masoquismo Sexual, como
também o Fetichismo são categorizados como “parafilias” e comportamentos disfuncionais pelo
Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – 4a Edição (1995) da Associação
Americana de Psiquiatria (APA) e pela Classificação Estatística Internacional de Doenças e
Problemas Relacionados à Saúde –10th Revisão (1999) da Organização Mundial da Saúde, o que
tem gerado muitos debates em relação ao seu critério diagnóstico, com o qual muitos profissionais
que se interessam pelo estudo das práticas sexuais “alternativas”, não concordam.
O objetivo do presente estudo é explorar a sexualidade humana nas suas mais diversas variações
como o BDSM ( Bondage/Disciplina, Dominação/Submissão, Sadismo/Masoquismo) ou SM e
Fetichismo, através de um questionário on-line enviado à um grupo de pessoas que se descrevem
como praticantes de BDSM e Fetichismo e que tem na Internet o seu referencial para a troca e
procura de informações, assim como para a procura de parceiros que partilham das mesmas
fantasias sexuais.
Este estudo não tem a intenção de incentivar ou condenar a escolha de práticas sexuais, mas
explorar a diversidade da sexualidade humana adulta de um grupo de pessoas dentro do contexto da
sociedade brasileira contemporânea.
MÉTODO
Um e-mail foi enviado às várias listas de discussão e classificados postados em websites dirigidos
aos praticantes de BDSM consensual e Fetichismo do Brasil e que utilizam a Internet como um
meio para a troca e obtenção de informações e contatos com pessoas que partilham das mesmas
fantasias sexuais. Explicou-se o caráter exploratório do estudo, o qual seria basicamente conduzido
por e-mail, onde a identidade real dos participantes seria preservada. Os interessados deveriam ter
mais de 18 anos de idade, não importando sua orientação sexual e estado civil. Aos voluntários foi
pedido que entrassem em contato replicando ao e-mail enviado. Cento e onze pessoas de vários
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estados brasileiros manifestarem interesse em participar. Foi-lhes enviado, então, um questionário
abordando questões como: o que os levava a usar a Internet; quais as práticas sexuais em que
estavam envolvidos; como e quando se interessaram por atividades sexuais consideradas
“diferentes” e como se sentiam em relação a ter prazer com práticas consideradas não
convencionais.
Informações sobre a idade, formação religiosa, sexo, estado civil, nível de escolaridade, e
orientação sexual, também foram objeto de interesse para a pesquisa. Não foi objetivo do presente
estudo, estabelecer critérios diagnósticos da amostra pesquisada nem tampouco descrever em
detalhes as práticas sexuais não convencionais.
REVISÃO
Apesar da crescente evolução observada ao longo dos anos nas ciências humanas e nas áreas
tecnológica e científica, a sexualidade ainda é objeto de muita especulação, preconceitos e tabus. Se
observarmos as diversas reações da atualidade frente às manifestações sexuais, veremos o quanto
tais reações permanecem imutáveis ao longo da história. Embora a “revolução sexual” dos anos
sessenta e os inúmeros movimentos objetivando o reconhecimento dos direitos humanos, sobretudo
os feministas, tenham mudado o cenário social, a sexualidade continua sendo um enigma para o ser
humano e objeto de muitas discussões desde a Antiguidade.
No séc. V, a partir dos grandes Padres da Igreja – Agostinho, Jerônimo e Tomás de Aquino, o
cristianismo passa a vincular sexualidade e procriação: o exemplo inquestionável a seguir é a vida
“naturalmente heterossexual” dos animais. Toda prática sexual que escapasse a esta norma traria o
chamado “estigma negativo do prazer”. Surge a partir de então, uma forma de moralidade que é
essencialmente uma moralidade sexual. As práticas “contra a natureza” – consideradas atentado ao
pudor, aos bons costumes, e à opinião pública – acarretam severas sanções para que o “normal” seja
mantido. Entretanto, a história assim o mostra, tal objetivo nunca foi alcançado: a sexualidade
sempre escapou a toda e qualquer tentativa de normatização (Ceccarelli, 2000).
Na segunda metade do século XIX aparece o discurso psiquiátrico contemporâneo que, marcado
pela mesma visão moralista, dá continuidade às posições teológicas e jurídicas, trazendo para a
ordem médica o que, até então, era do jurídico. Os grandes psicopatólogos da época, dentre eles,
Havellock-Ellis (1888) e Kraftt-Ebing (1890), classificaram e etiquetaram as práticas sexuais que
escapavam aos ditames morais. Traçou-se um minucioso inventário das sexualidades ditas
desviantes, onde novas formas de práticas sexuais, que utilizam o outro para a obtenção de prazer e
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a finalidade natural da sexualidade – a procriação – é subvertida, são criadas: homossexualismo,
voyeurismo, exibicionismo, sadismo, masoquismo, juntando-se à infindável nosografia psiquiátrica
da época. É também nesta época que termos que, mais tarde, tornaram-se clássicos, são aí
introduzidos: perversão (1882, Charcot e Magna), narcisismo (1888, Havellock-Ellis), auto-
erotismo (1899, Havellock-Ellis), sadismo e masoquismo (1890, Krafft-Ebbing) [Ceccarelli, 2000].
No final do Séc. XIX, e de forma ainda mais contundente no início do XX, Sigmund Freud em seu
texto mais importante sobre a sexualidade, os “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade”
publicado em 1905, sustenta que subordinar a sexualidade à função reprodutora é “um critério
demasiadamente limitado”. Na perspectiva freudiana, a sexualidade é contra a natureza, ou seja, em
se tratando de sexualidade, não existe uma “natureza humana”. (Ceccarelli, 2000).
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e do exibicionismo) ou seduz um indivíduo não-responsável (como uma criança ou um adulto
mentalmente perturbado”).[McDougall, 1997, p 192].
Países como a Dinamarca, em consonância com as necessidades e direitos legítimos das minorias
sexuais, retirou totalmente o diagnóstico de sadomasoquismo em 1995 de seus manuais de saúde.
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Devido à falta de informação, desconhecimento do que se tratam as práticas eróticas consensuais,
seus praticantes são erroneamente confundidos com vítimas ou perpetradores de atos coercitivos de
violência e abuso sexual.
O termo “BDSM’, que se refere ao universo sadomasoquista como um todo, envolve todos os seus
aspectos – dominação, submissão, bondage, disciplina, sadismo e masoquismo, enquanto “SM”
significa “sadomasoquismo” (Paschoal, 2002, p 14). Entretanto, a relação entre os dois termos é
análoga à distinção entre os termos “homossexual” e “gay” (Moser, 1996, p 24).
Segundo a perspectiva teórica deste autor, “Dominação e Submissão (DS), implica na transferência
deliberada do controle psicológico e sexual de um parceiro para o outro, sem que haja
necessariamente, elementos de dor física ou humilhação. O termo “Bondage e Disciplina”, “B&D”
ou B/D, refere-se às práticas sexuais com variados tipos de imobilização ou restrição física,
enquanto “Disciplina” indica a representação de fantasias que se relacionam à punição/castigo,
como por ex, a fantasia “professor/estudante”. “Humilhação” refere-se às cenas de “role-play” nas
quais o parceiro dominante detém o controle do poder sobre o parceiro submisso, infligindo e
ritualizando torturas psicológicas, como insultos verbais de conotação sexual. Em relação aos
termos “sadista” e “masoquista”, existe uma conotação mais fisiológica, de natureza sexual, onde as
pessoas experimentam sensações de prazer ao dar e/ou receber cuidadosamente controladas
sensações de dor, como no caso de levar chineladas ou chicotadas (Moser, 1996, p 25). Já a palavra
“leather” é usada na comunidade sadomasoquista por gays e lésbicas (Moser, 1996, p 63).
Com a mesma criatividade, a comunidade BDSM criou o termo “baunilha” (“vanilha”), para se
referir às práticas sexuais convencionais que não envolvem nenhum componente SM (Scott, 1997, p
3). A tríade “Sanidade, Segurança e Consensualidade” (Brame G, Brame W & Jacobs, 1993, p 49) é
considerada uma norma básica das práticas não convencionais consensuais e jamais pode ser
ignorada ou negligenciada. Paschoal (2002, p 22) afirma que a não existência de qualquer um dos
aspectos SSC, torna toda e qualquer relação BDSM totalmente inviável.
Por “Consensualidade”, Moser (1996, p 31), entende o acordo voluntário firmado entre os
participantes do jogo erótico, no qual os limites de cada participante são honrados. Esclarece que,
não se pode chamar o abuso doméstico que ocorre entre um casal de SM, pois o SM é consensual e
o abuso imposto a um parceiro não é. Podemos usar como exemplo o intercurso sexual e o estupro,
onde o primeiro é consentido e o segundo é imposto sob coação. Portanto, a diferença entre o
sadomasoquismo e a verdadeira violência, encontra-se no consentimento informado (“informed
consent”) [Moser, 1996, p31]. A “Sanidade” refere-se à conscientização do que os participantes
estão fazendo numa cena SM: trata-se de uma fantasia e que não corresponde à realidade. Certas
práticas BDSM implicam em riscos consideráveis. Nesse sentido, o conhecimento do parceiro, o
estabelecimento de limites e saber os riscos inerentes a cada prática, são fatores importantíssimos
para que o jogo erótico BDSM seja seguro e prazeroso. Vale dizer também, que segurança engloba
também algumas proibições. Como é extremamente importante que se tenha completa consciência
sobre o que se está fazendo, o uso do álcool e de qualquer tipo de droga é severamente
desaconselhado antes ou durante a cena ou jogo BDSM (Paschoal, 2002, p 27). Caso algum limite
físico ou psicológico seja ultrapassado, o uso da “safeword” ou “palavra de segurança” restabelece
os limites da segurança física e emocional dos participantes e o jogo é imediatamente
interrompido.(Paschoal, 2002, p 25).
Segundo Brame, G, Brame, W & Jacobs (1993, p 358), a origem da palavra fetish vêm da palavra
em português feitiço e consta que foi usada pela primeira vez por exploradores portugueses do séc.
XV para descrever figuras sagradas. No seu sentido antropológico o fetiche está ligado à artefatos
sagrados investidos de poderes espirituais. Para os fetichistas, o fetiche erótico é o próprio símbolo
do divino, podendo excitar e mesmo induzir os seus devotos ao êxtase. Exemplos de fetiches
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eróticos são encontrados naqueles que admiram um par de sapatos, ao invés do pé que o veste; ou
então o próprio pé é considerado extremamente excitante, em detrimento do corpo humano como
um todo. Todos os seres humanos são fetichistas em algum grau. Na cultura brasileira, as nádegas
são objeto de adoração nacional, enquanto na cultura americana, há uma extrema valorização dos
seios. Na China, um pé feminino pequeno é extremamente sexy. Isso demonstra que diferentes
culturas elegem seus próprios fetiches. Como Paschoal (2002, p 68) muito bem ilustra, “um fetiche
seria uma preferência específica dentro de um universo de possibilidades…o BDSM está mais para
uma fantasia repleta de fetiches. Assim como um masoquista prefere (ou tem o fetiche de) receber
dor, ou ser torturado exclusivamente com cordas; ou com velas; ou com gelo; ou com todas as
alternativas; ou com nenhuma delas. O sádico prefere ( ou tem o fetiche de ) causar dor. Tudo são
fetiches”.
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Dados quantitativos da amostra pesquisada (n
= 111) %
Masculino 93,7
18-25 18,9
26-35 41.4
36-45 30.6
46-55 8.1
Heterossexuais 84,7
Bissexuais 9,9
Casados 31,5
Solteiros 52,3
Católica 53,2
Protestante 2,7
Espírita 12,6
9
Ateu 5,4
Nenhuma 14,4
Outras 6,3
Submissão/Masoquismo 43,3
Crossdressing 1,8
Pedolatria 4,5
Sim 36,1
Não 25,2
Como podemos perceber na tabela 1, a grande maioria da amostra total (n =111), é composta de
heterossexuais, mas cabe a observação de que apenas sete (6,3%) respondentes são do sexo
feminino, sendo quatro (4) oficialmente casadas e três (3) solteiras. O número de pessoas com
parcerias que possuem e praticam as mesmas fantasias sexuais, (36,1%), foi maior do que o
esperado. Interessante salientar que, nas práticas sexuais envolvendo a Submissão e o Masoquismo
(43,3%), apenas seis (6), são mulheres e heterossexuais, enquanto que o restante do grupo pertence
ao sexo masculino independente de orientação sexual. A religião católica (53,2%) é a que tem o
maior número de seguidores. O nível de escolaridade mostra-se elevado, sendo que 70,3% dos
respondentes têm curso superior completo e 13,5% são pós-graduados.
CONCLUSÃO
Abaixo citaremos recortes de alguns relatos para ilustrar a parte qualitativa do estudo, onde os
respondentes falam a respeito de como se sentem em relação às suas vivências sexuais e aos tópicos
que foram abordados no questionário por eles respondido.
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-SS, pós-graduado, fetichista, 35 anos, casado: “Quando tinha aproximadamente 5 anos, lembro-me
que tinha tesão em vestir camisolas de cetim, gostava de urinar nelas e sentir o cheiro da urina por
vários dias…..Desde criança percebi que tinha desejos “diferentes”, mas só fui entender de fato que
esses fetiches não são uma “aberração da natureza”, há uns três anos com o advento da
Internet….na net, vi, conversei e sei que tem gente com os mesmos gostos”.
-Fbond, importador, fetichista bondagista, 31 anos, casado, lembra: “Levo o bondage e o fetichismo
extremamente a sério, não sou adepto de nada que provoque dor, mas gosta da sedução aliada à
bondage, cinta-liga, roupas insinuantes (mas não vulgares), sou culto….descobri que era fetichista
aos 8 anos de idade assistindo um filme do Jerry Lewis e hoje tenho um acervo com mais de 150
fitas do gênero….Considero-me uma pessoa extremamente amiga, por isso acho um absurdo
comparações que coloquem um fetichista na casa dos “anormais”. Talvez até haja casos assim, mas
não se trata da grande maioria”.
-Al Z, dominador, pós-graduado em análise de sistemas, 38 anos, casado, relata: “Desde pequeno eu
apreciava quando via cenas em que apareciam mulheres presas, amarradas ou surradas
(normalmente em filmes), mesmo desconhecendo totalmente o sexo… acho que era
instintivo…..Despertei totalmente para minhas fantasias há uns cinco ou seis anos atrás quando
entrei acidentalmente num site …na época eu tinha 32 ou 33 anos e esse fato mudou totalmente a
minha vida…O bondage e o spanking ( bumbum feminino), me excitam bastante e também outras
formas de dominação física e psicológica, como por exemplo, transformar a parceira em uma
cadelinha colocando correia e correntinha guia….Meu relacionamento com minha esposa é do tipo
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“padronizado”, ou seja, segundo ditam as regras religiosas e sociais para um casamento…Ela não
sabe das minhas incursões no mundo virtual, nem tampouco que procuro alguém para realizar
minhas fantasias no “real”. Sinto-me uma pessoa absolutamente normal….O que penso é que a
sociedade é quem realmente tem medo de admitir que quem gosta de BDSM ( dentro do contexto
erótico, é claro), é um ser humano normal. As pessoas buscam sempre viver cada vez com mais
tesão e o BDSM é apenas mais uma forma alternativa de alcança-lo plenamente. …Nunca abri o
livro da minha vida tanto assim como estou fazendo com você, mas me sinto muito bem, porque
isso estava me sufocando demais”.
-J, analista de sistemas, submisso, 32 anos, solteiro: “Sinto-me perfeitamente normal e até porque
não privilegiado, por saber explorar a minha sexualidade de uma forma diferenciada e muito mais
intensa do que a maioria das pessoas. Fico muito feliz por ter capacidade suficiente em entender o
meu fetiche e tirar proveito dele de forma sadia, segura e muito peculiar”.
-N, assistente administrativa, bondagista, 26 anos, solteira: “Gosto de ser amarrada e imobilizada
completamente, me sentir completamente vulnerável nas mãos do meu parceiro, mas não ficar
passiva e sim relutar em estar amarrada, como se estivesse sendo obrigada a estar naquela situação,
não aceitar passivamente que o outro me amarre, mas “fugir”, tentar me soltar, mas acabar sendo
“vencida” pela força e técnica do meu parceiro…a privação dos sentidos como a visão e a
fala….assim os mesmos ficam ainda mais aguçados, mas não saber o que a pessoa vai fazer é uma
excitação sem igual… estar amordaçada é uma sensação incrível… Juntar tudo isso é uma sensação
inexplicável … Sinceramente, me sinto mais normal do que as outras pessoas, eu me sinto
assumida. Acho que o que não é normal é as pessoas se podarem, ou mesmo viverem um
relacionamento de aparências e procurarem fora do relacionamento a realização de suas
fantasias…acredito que uma pessoa será completamente feliz quando procurar um relacionamento
que lhe complete no todo… difícil, mas acho que mais difícil ainda é viver duas vidas…em uma
delas você vai encenar… A sociedade em que vivemos é hipócrita… todos têm suas fantasias, mas
para se encaixar no padrão “normal”, ninguém se assume e ainda critica e se escandaliza coma
opção do próximo. Acredito que cada um é dono da sua vida e não tem que dar satisfação para
ninguém do que gosta ou deixa de gostar dentro de quatro paredes, ou melhor, acho que devemos
ser livres para vivenciar nossas fantasias e outras coisas cotidianas também, é claro, respeitando o
limite e espaço do outro. Para mim o BDSM é uma forma de prazer, é um mundo vasto com muitas
ramificações e cada pessoa escolhe dentro dessas a que lhe dá prazer …eu escolhi a minha e não me
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incomoda o fato da sociedade não aceitar ou me achar uma aberração… eu me sinto mais normal
que todos, pois sou sincera comigo mesma, me assumo e me aceito assim e isso me faz feliz …”.
– M.H, dentista, crossdresser, submissa, 39 anos, casado: “Sou casada e minha esposa participa de
tudo e me domina há mais de um ano…Como você pode perceber sou uma crossdresser submissa e
como tal me porto. Sou uma sissy da minha esposa. Me visto sempre que posso feminina, tenho
todos os afazeres da casa e sou uma mulher para minha esposa. Sou totalmente passiva e ela é ativa
….freqüentemente apanho e sou humilhada, o que adoro…fui descobrir que o que eu sentia e fazia
estava em total sintonia com o universo BDSM, mais ou menos aos 18 anos. Mas sem saber que era
uma postura BDSM, desde que me conheço por gente …aos 6 ou 7 anos de idade…Adorava brincar
de casinha com meus primos e primas e sempre eu era a empregadinha, sempre trabalhando e
humilhada. Este era o papel que eu escolhia. Isto me dava prazer e no meu ponto de vista encaixa
no BDSM…Aos 10 anos gozei a primeira vez quando pus uma saia de uma tia…gozei sem ao
menos me tocar. Desde então sempre fui fora dos padrões, mas aos 16 anos notei que era
“diferente”. Seria eu gay? Mas como ser gay se não me interessava e nunca me interessei por
homens? Mas se não era gay, por que me fantasiava no papel feminino? …As pessoas infelizmente
vivem num padrão proposto hipócritamente por esta sociedade machista e repressora em que
vivemos.”
– ZZ, assistente de faturamento, podólatra submisso, 34 anos, casado: “O meu relacionamento com
minha esposa é o melhor possível em todos os sentidos. Ela sabe de minha atração por pezinhos,
tanto é que começou a trata-los bem melhor e de vez em quando, quando transamos, ela me dá umas
boas chineladas e eu gosto muito. Desde que não prejudique física ou emocionalmente ninguém e
ambos estejam de acordo, vale tudo na prática sexual entre um casal. Sobre como a sociedade vê e
julga os meus atos, isso para mim não tem a mínima relevância”.
-JP, advogado, sádico, 38 anos, casado: “Sinto-me um privilegiado por ter certos interesses sexuais
diferentes da maioria das pessoas e sempre conseguir realizá-los. O BDSM é muito complexo, pois
existem diferentes níveis de SM e me incluo em um intermediário…algumas práticas me soam
indigestas, como por exemplo a coprofagia, humilhação em público, perfurações, cortes ou
queimaduras, mas como diz o ditado, “ se feito com o consentimento de ambos o problema é
deles…”.
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Podemos sugerir que as pessoas que fizeram parte da amostra pesquisada, longe de representar a
totalidade de indivíduos com práticas sexuais não convencionais na sociedade brasileira, sentem-se
em sintonia com suas diversas preferências sexuais, as quais são experienciadas como prazeirosas ,
sentindo-se também privilegiadas por terem uma sexualidade “diferenciada ” daqueles que vêem no
sexo e nos papéis convencionais , a única forma de expressão para o amor, intimidade e para a
realização de suas fantasias sexuais. Não podemos afirmar pelos dados colhidos e relatados, que os
praticantes de BDSM e Fetichismo que participaram desse estudo, possam ser chamados de
“parafílicos”. Preferimos descreve-los como praticantes esclarecidos, bem informados, e
conscientes daquilo que consideramos como variações na expressão da complexa sexualidade
humana adulta.
É muito clara a importância do uso da Internet na formação de uma subcultura BDSM consensual
no Brasil, não só para a comunicação, obtenção de informações entre praticantes afins, mas também
como um mecanismo de inclusão social, reunindo milhares de pessoas que compartilham das
mesmas fantasias e práticas sexuais não convencionais. Esse estudo foi possível, justamente pela
facilidade de acesso, anonimato e a facilidade que a Internet proporciona para todos os seus
usuários. Cooper et al (2000, p 6), sustenta que a Internet oferece a oportunidade para a formação de
comunidades virtuais, onde indivíduos isolados e discriminados, como por exemplo, gays e
lésbicas, podem se comunicar entre si sobre assuntos sexuais que sejam de interesse dessa
comunidade.
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fácil compreender porque uma pessoa desenvolve determinada fantasia ou prática sexual, mas
raramente pode-se afirmar o porquê ela “atuou” ou simplesmente a manteve a nível de fantasia.
O mundo tem passado por mudanças tecnológicas quase impossíveis de serem acompanhadas na
área da concepção da vida humana: o bebê de “proveta” e a inseminação artificial são práticas
corriqueiras antes impossíveis de serem imaginadas e concretizadas, como o é agora, a
possibilidade da clonagem de seres humanos em laboratórios. O novo assusta, provoca medos e
inseguranças e sentimentos de desproteção. Mas é inegável que mudanças nas mentalidades estão a
caminho nesse novo milênio. A tradição judaico-cristã que forma a base religiosa da sociedade
brasileira há séculos, mostra-se anacrônica perante os fatos mencionados e pelo o que ainda está por
vir. A tão propagada vida “naturalmente heterossexual” dos animais, que serviu como justificativa
para o encarceramento do desejo sexual e do prazer pela instituições religiosas, começa a cair por
terra com as últimas pesquisas científicas sobre a vida sexual dos animais, as quais demonstram que
as “práticas contra a natureza”, são parte também da sexualidade animal:
www.subversions.com/french/pages/science/animals.html.
Para onde vamos, já que os conceitos e normas psico-sociais, religiosas e culturais, que definiam a
noção de “normalidade” , não mais se aplicam à sociedade pluralista que se nos apresenta? A nossa
tradicional ética sexual seguida há centenas de anos, não mais se adequai às mudanças sócio-
culturais e aos novos desafios do Século XXI. Vivemos numa sociedade plural, onde começam a se
tornar visíveis as mais diversas expressões da sexualidade humana adulta, as quais querem ser
aceitas, reconhecidas e legitimizadas. Expressões sexuais que demonstram maturidade, respeito e
consciência entre aqueles que as praticam. Cabe salientar que, por se sentirem confortáveis e em
egossintonia com suas práticas sexuais, tenha sido este o motivo que tenha levado esses indivíduos
a participarem desse estudo A linha que separa as práticas consensuais BDSM e as práticas sexuais
ditas “perversas” “é muito tênue. Mas é importante que se saiba distinguir umas das outras.
E com base nesta distinção, o presente estudo demonstrou que, apesar de limitado no seu alcance, é
um direito humano legítimo ser “diferente” da maioria e consequentemente, ter essa “diferença”
respeitada e aceita pelos demais.
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REFERÊNCIAS
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