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Miolo Sexualidadesdissidentes 141019 PDF

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E DI TOR A AU TOGRAFIA

Rio de Janeiro, 2 0 19

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EDITORA AUTOGRAFIA CONSELHO EDITORIAL

adriene baron tacla


Doutora em Arqueologia pela Universidade de Oxford;
Professora do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense.

ana paula barcelos ribeiro da silva


Doutora em História Social pela UFF;
Professora Adjunta de História do Brasil do DCH e do PPGHS da UERJ/FFP.

daniel chaves
Pesquisador do Círculo de Pesquisas do Tempo Presente/CPTP;
Pesquisador do Observatório das Fronteiras do Platô das Guianas/OBFRON;
Professor do Mestrado em Desenvolvimento Regional - PPGMDR/Unifap.

deivy ferreira carneiro


Professor do Instituto de História e do PPGHI da UFU;
Pós-doutor pela Université Paris I - Panthéon Sorbonne.

elias rocha gonçalves


Professor/Pesquisador da SEEDUC/RJ.

elione guimarães
Professora e pesquisadora do Arquivo Histórico de Juiz de Fora.

karl schurster
PhD em História, Coordenador do curso de história e coordenador geral de graduação da UPE.

rivail rolim
Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História-UEM-PR.

jovens pesquisadoras: sexualidades dissidentes


mendonça, Amanda; domith vicente, Laila Maria (orgs.)
1ª Edição
Outubro de 2019
ISBN: 978-85-518-2332-3

Projeto Gráfico: Leticia Quintilhano


Editoração Eletrônica: Talita Almeida

Todos os direitos reservados.


É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem
prévia autorização do autor e da Editora Autografia.

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Sumário

Apresentação 9
Fascismo ontem e hoje: da perseguição aos LGBTS nos regimes
fascistas europeus no século XX à atual ameaça bolsonarista à vida e
existência de brasileiras e brasileiros
Carol Quintana e Ivanilda Figueiredo 27
“Gênero e sexualidade já estão na escola”: refletindo sobre o embate
de moralidades em relação às expressões de gênero e sexualidade nos
espaços educativos
Vanessa Leite 47
Surdez, lesbianidade e devir-ciborgue: meu implante coclear, meu
brinquedo erótico aleijado
Anahi Guedes de Mello 77
Mulheres Negras que Amam Mulheres
Mayara Micaela Alves Gomes 117
A Intimidade com a linguagem – conhecer também é um ato político
Heloisa Melino 137
Transexualidade no campo jurídico. Da mudança do Registro Civil
ao Provimento Nº 73 do CNJ
Kathyla Katheryne S. Valverde 159

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Maternidade Lésbica no Brasil: uma revisão de teses e dissertações
Renata Ferreira Azevedo 183
Trabalho Escravo Contemporâneo: Representações Sociais dos
Libertadores
Jaqueline Gomes de Jesus 225
Ficções Políticas Vivas: a materialidade de gênero e identidade
Laila Maria Domith Vicente 251

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A MANDA MENDO NÇA - LAI LA MA R IA D OMIT H V ICE N T E

Coleção Jovens Pesquisadoras

A
coletânea jovens pesquisadoras, que reúne desde 2016 artigos que

versam sobre as mais diversas temáticas, escritos exclusivamen-


te por mulheres, e que surgiu com o propósito de publicitar as
produções, pesquisas e reflexões realizadas por estas mulheres em di-
ferentes espaços, chega ao seu quarto volume. É importante resgatar-
mos que ao longo desta trajetória mantivemos o sentimento inicial que
propiciou a publicação de nosso primeiro livro, a inquietação com as
estruturas e os padrões aos quais o sistema em que vivemos tenta nos
submeter. Esse sentimento sempre conectou o grupo de mulheres pes-
quisadoras-militantes que organizam e escrevem para os livros jovens
pesquisadoras.
Aliado a esse sentimento vem nossa crítica à academia, que ainda se
configura como mais um espaço desigual para a atuação das mulheres,
e nos impõe um padrão de produtividade que desconsidera nossa múlti-
pla jornada de trabalho e outras desigualdades de gênero historicamente
constituídas. Assim, por exemplo, temos maior dificuldade para iniciarmos
nossas trajetórias enquanto pesquisadoras, e para ocuparmos determina-
dos espaços de fala, e como consequência temos maiores dificuldade para
atendermos à produtividade exigida às/aos pesquisadoras/pesquisadores.
Por isso, muitas de nós, independentemente da idade, sermos sempre con-
sideradas no meio acadêmico como jovens pesquisadoras. Assim é que, nós,
com inspiração nas performatividades queer, crip e vadia, nos apropriamos

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JOVEN S PESQ UI SADO RAS: SEXUA L ID A D E S D IS S ID E N T E S

do termo para dizermos que estas jovens de todas as idades querem refletir
e questionar a estrutura machista, hierárquica, racista e homofóbica que
sustenta nossa sociedade, e nela a própria academia.
A coletânea jovens pesquisadoras tem propiciado encontros importan-
tes de estudos e de lutas, tem produzido considerações relevantes sobre as
condições de produção e de pesquisa em temáticas como o campo das po-
líticas sociais e dos direitos das mulheres, o campo educacional e a produ-
ção realizada pelas docentes de primeiro segmento. Em todas as obras o fe-
minismo alicerça e conecta as trajetórias e as pesquisas apresentadas, assim
como o combate ao racismo. Os três volumes publicados contaram, tanto
na organização quanto entre as autoras, com a participação expressiva de
mulheres negras, pois entendemos que diante do quadro de desigualdade
que descrevemos, de dificuldade para produção e para a vida acadêmica,
como em tudo que organiza a vida social no Brasil, as mulheres negras
são as mais afetadas. No livro presente também saudamos as produções
das mulheres transexuais e das mulheres com deficiência em meio a toda
adversidade que o meio acadêmico impõe a elas.

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A MANDA MENDO NÇA - LAI LA MA R IA D OMIT H V ICE N T E

Apresentação

N
o presente contexto – a n o : 2019 / pa í s : B r a s i l – d e c i d i m o s
publicar uma edição exclusivamente escrita e organizada por
mulheres lésbicas, bissexuais e transexuais. E porque uma edi-
ção LBT?
Para falarmos um pouco da atual conjuntura do nosso país convém
lembrarmos que, em 2016, foi vivido por nós um golpe parlamentar contra
a única mulher presidenta do Brasil, Dilma Rousseff, democraticamente
eleita e reeleita. No ano de 2019 presenciamos, nas eleições presidenciais
e parlamentares, a escalada da caricata extrema-direita brasileira, capita-
neada por discursos homofóbicos, machistas, em afronta direta à laicidade
do Estado, intolerantes frente às diversidades de modos de vida, e violentos
frente às liberdades de expressão. O Brasil em que vivemos pode ser a pri-
meira resposta à pergunta acima, uma vez que o ataque direto à vida e aos
direitos LGBTs fez parte da campanha política desta extrema-direita citada
que agora está na presidência e em boa parte do executivo e do legislativo.
Além disso é importante pontuarmos outros elementos. Primeiro no
que se refere mais especificamente ao mundo acadêmico com o qual aqui
disputamos espaço. Precisamos apontar o fato de que é preciso romper
com uma falsa ideia de que na academia as mulheres LBTs não sofrem
preconceito ou discriminação. São muitos os entraves, as barreiras, muitas
vezes invisíveis, que se apresentam para nós, que se somam às questões de
gênero já pontuadas nos outros volumes. No que se refere às pesquisadoras

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com deficiência, negras e/ou transsexuais também apresentam-se as restri-


ções direcionadas à raça, à identidade de gênero e ao capacitismo. Soma-se
a isso as restrições a algumas áreas e campos de investigação a que muitas
de nós somos submetidas.
Mas com toda certeza, a principal motivação para esta publicação está
em nossa resistência. Vivemos tempos de inúmeros retrocessos, de incer-
tezas, de ameaças à nossa existência e à nossa identidade. Essa publicação
surgiu exatamente na resistência cotidiana, naquela que realizamos a par-
tir dos encontros e da luta pelo direito de sermos quem somos.
A partir de uma análise da nossa implicação, também é importante
pontuarmos como o contexto brasileiro que citamos nos atravessou pes-
soalmente. No decorrer do tempo em que organizamos o editorial deste
livro sofremos perseguição política e LGBT em nosso trabalho. Tivemos o
calendário com a foto da Marielle Franco arrancado pelo diretor da Facul-
dade Estácio de Sá – campus Centro I de nossas salas de coordenação de
curso, fato que se inicia logo após a nossa participação do ato de greve em
favor da Educação, realizado no dia 15 de maio de 2019. Após a retirada
arbitrária do calendário, a perseguição e o assédio moral não cessaram de
ocorrer, se apresentando com a inviabilidade da permanência no cargo
de coordenadoras (dos cargos de pedagogia e direito), reiterados boicotes,
proibição de atuarmos como docentes neste campus, culminando com a
demissão de uma de nós. Percebíamos neste momento como todos aque-
les discursos homofóbicos, todo aquele ódio fomentado frente às ideias
divergentes e ao que é considerado de esquerda, frente à luta pelo social
mais aberto às minorias, nos atingia diretamente enquanto pessoas, en-
quanto trabalhadoras, enquanto educadoras. Percebíamos também como
a força da imagem de Marielle Franco causava incômodo às pessoas que
se aliam ao racismo, à homofobia, ao amordaçamento da divergência de
ideias. O setor em que trabalhávamos, após a nossa saída, é agora ocupado
exclusivamente por pessoas brancas, heterossexuais, cisgêneras, capacitis-
tas e coniventes com o silenciamento da diferença. A diversidade foi sendo

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minada uma a uma, coincidentemente ou não, após as últimas eleições.


Mas não nos calarão. Aqui seguimos, pois “Não seremos interrompidas”.
Assim, o objetivo deste livro é dar voz a pesquisadoras e militantes
LBTs sobre suas produções recentes, mas também sobre suas indagações
e análises acerca do cenário atual que vivenciamos e como ele nos afeta
nos diferentes campos. Desta forma, vocês encontrarão aqui artigos sobre
temáticas diversas.
Passamos agora a apresentar brevemente cada um dos artigos, instigan-
do e convidando a leitura.
É com esta perspectiva que Carol Quintana e Ivanilda Figueiredo tra-
zem no primeiro capítulo uma análise sobre a forma com que a pauta
LGBT vem sendo cada vez mais utilizada para fomentar o ódio social no
Brasil. Para isso, elas recorrem a dados estarrecedores tanto sobre o fato de
nosso país ser o que mais assassina pessoas lésbicas, gays, bissexuais, traves-
tis e transsexuais (LGBTs) quanto o de que discursos de ódio contra esta
população foram o que deram visibilidade e popularidade ao presidente
eleito em 2018.
O texto encontra-se estruturado em duas frentes. Uma primeira que
apresenta a perseguição a LGBTs nos regimes fascistas da Europa no iní-
cio do século XX. Nesta seção encontramos informação importantes para
pensarmos sobre nossa realidade hoje. Para que não se esqueça. Para que
nunca mais aconteça! As autoras relatam como o regime nazista na Ale-
manha, por exemplo, teve uma política cruel e direcionada ao extermínio
direto da população LGBT.
Na segunda parte do artigo Carol e Ivanilda analisam o que chamam
de neofascismo brasileiro, como este se apresenta num momento de crise
econômica e consegue se consolidar a partir da postura de proeminente fi-
guras-adequadas-patriarcais-tradicionais (homens brancos heterossexuais).
Elas destacam a relação do (neo)fascismo com o favorecimento do capita-
lismo e perseguição a determinadas pessoas, neste caso LGBTs. Um texto
impactante, forte, que nos traz a dura realidade com a qual estamos li-
dando, mas que também trata de resistência, aquele que sempre existiu e

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sempre existirá. Na Alemanha de Hitler e no Brasil de Bolsonaro. Sempre


seremos.
No segundo capítulo, Vanessa Leite, nos apresenta a importância de
pensarmos as expressões de gênero e sexualidade como constitutivas da
vida das crianças e adolescentes e a forma como as escolas lidam com estas
questões. A autora nos permite acompanhar através de seu texto as mudan-
ças na abordagem de questões ligadas a gênero e sexualidade relacionadas
aos diferentes projetos de sociedade que estiveram em curso desde a Cons-
tituição de 1988 até a ofensiva conservadora que verificamos em nosso país
nos dias de hoje. Ofensiva essa que ataca diretamente as políticas públicas
específicas, da garantia de direitos mulheres, da população LGBT e da po-
pulação negra.
Mas, ao longo de todo o artigo Vanessa nos faz refletir sobre como ao
longo destes diferentes projetos de sociedade sempre houve uma tendên-
cia da maioria das instituições em não tratar formalmente o tema da se-
xualidade e das expressões de gênero com as crianças e os adolescentes,
negando, de certa maneira, essa dimensão da vida deles. Ou seja, a autora
aponta que na maioria das vezes esses temas aparecem de forma negativa,
ligados a supostos “problemas”, como a gravidez (considerada sempre “in-
desejada”), as doenças sexualmente transmissíveis/Aids e à violência (espe-
cialmente ao abuso e à exploração sexual). Além disso, ela chama atenção
para o fato do controle dos corpos nestes espaços incidir de maneira dife-
renciada em relação a meninos e meninas, pois as convenções de gênero
atuam nesta demarcação de forma muito explícita e dura.
O texto de Vanessa é um convite para refletirmos sobre o papel da es-
cola e dos educadores na efetivação dos direitos humanos e da cidadania
das crianças, adolescentes e jovens. Ele nos faz refletir sobre a urgência
de repensarmos essa instituição, tão atacada nos dias de hoje por movi-
mentos como escola sem partido, que tem perseguido professores que ou-
sam romper este modelo que segrega, que produz e reproduz a lógica de
gênero e que discrimina as sexualidades não hegemônicas. Ele represen-
ta, nas palavras da própria autora, resistência na busca da construção de

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“espaços educativos lugares onde se respeita a diferença e cada um pode


ser quem é.
No capítulo seguinte, Anahí Guedes em seu belíssimo texto nos traz,
entre outras questões, uma análise reflexiva sobre as formas de comunica-
bilidade. Anahí, mulher lésbica e surda, nos ensina como é reducionista
a ideia de que a comunicabilidade entre as pessoas surdas e não surdas é
limitada. Limitado é o mundo, limitado e moldado a uma forma de ser,
uma forma de ver e uma forma de ouvir, ou em suas palavras, “a estrutura
social corponormativa não leva em conta a singularidade da surdez ao não
dar-lhe condições e espaços de interlocução e de produção de conheci-
mentos para que ela possa se manifestar e se desenvolver”. Em meio às
análises sobre corpo, sexualidade, deficiência e seus instrumentos, apren-
demos com ela que a comunicabilidade está no desejo de compartilhar,
muito mais que no fato de as pessoas serem surdas ou ouvintes.
O texto de Anahí se entrelaça em três partes: na primeira somos con-
vidadas a adentrar as discussões sobre a surdez, como este estigma tende
a identificar uma pessoa, se portando como a identidade primária e invi-
sibilizando as outras identificações da pessoa. Este reducionismo Anahí
recusa, e traz a sua condição de gênero, mulher, e de orientação sexual,
lésbica, ao primeiro plano em nosso livro. Da mesma forma, Anahí nos en-
sina que a reabilitação não é uma forma de negar a surdez, e sim de buscar
formas de aumentar a capacidade comunicativa do sujeito com o mundo,
assim, a reabilitação não deve ser focada na deficiência e sim no sujeito e
suas possibilidades.
É neste ponto que passamos para a segunda parte do texto em que ela,
ao lado de feministas como Donna Haraway e Gloria Anazaldua, nos abre
o espaço para nos pensarmos a todas enquanto mestiças e ciborgues em
relação com nossos instrumentos, ou para utilizar o termo de Donna Ha-
raway: com “nossas espécies companheiras”. No caso de Anahí em espe-
cial, na terceira parte do texto, ela nos traz um relato autobiográfico para
mostrar como a hibridização de que somos parte, como humanos e cibor-
gues, faz com que ela possa vivenciar experiências inéditas na sexualidade,

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utilizando o implante coclear como sex toy, possibilitando um jeito espe-


cial de vivenciar os ruídos sexuais na relação com a sua mulher.
No quarto capítulo, a discussão que Mayara Micaela Alves Gomes nos
traz, em “Mulheres Negras que Amam Mulheres”, é essencial para que
possamos pensar de forma interseccional as opressões de raça, gênero e
orientação sexual às quais as mulheres lésbicas e negras enfrentam coti-
dianamente e, especificamente, no meio acadêmico. Consideramos a im-
portância deste texto tanto por trazer as vozes, muitas vezes silenciadas, das
mulheres negras em suas relações políticas, mas também afetivas-sexuais,
como pelo ineditismo de sua abordagem.
Com clareza na escrita e poesia nos interlúdios, Mayara narra a cons-
trução social da identidade do povo brasileiro em suas relações de violên-
cia desde os primórdios: o sequestro do Povo Negro Africano para o Bra-
sil por meio do tráfico de escravos realizado por Portugal. A narrativa nos
mostra como a violência da escravidão não se encerra com a abolição, ao
contrário, ela se mantém por meio, por exemplo, da ausência de políticas
inclusivas e afirmativas e por meio da criminalização do modo de vida das
pessoas negras desde a abolição e ainda hoje. Mas a violência da escravi-
dão se apresenta ainda de modo insidioso por meio da violência da “teoria
brasileira do branqueamento” que uma suposta intelectualidade brasileira
racista impôs em diversos âmbitos de conhecimento, e que se apresentou
como subsídio para a política de imigração de estrangeiros europeus/bran-
cos. Tais teorias racistas trazem, como nos mostra Mayara, efeitos na cons-
tituição da subjetividade da população negra. Em suas palavras: “A supre-
macia branca é uma forma de dominação exercida não só pelo exercício
da força, mas também por elementos econômicos, subjetivos, culturais e
pela formação de consensos ideológicos na sociedade.”
Assim, seguindo a trajetória narrativa de Mayara, é que podemos com-
preender a interseccionalidade das lutas e como a opressão de gênero e
orientação sexual se unem ao racismo no intuito de subjugar a vida das
mulheres negras e lésbicas. Em um país que tem como base o colonialismo
e a escravidão “as mulheres negras se dirigem aos empregos domésticos,

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de prestação de serviços e também ligados à produção na indústria, já as


mulheres brancas da classe média se dirigem às áreas administrativas ou
de educação e saúde.” Do mesmo modo que o corpo da mulher negra é
hipersexualizado, à mulher branca é dado o papel social de manutenção
da família. “Transversalizando as opressões de raça e de gênero fica notório
que a mulher branca é para casar e a negra para o prazer.” E é a partir des-
ta análise que Mayara nos aponta a solidão da mulher negra.
Ecoamos as vozes de Mayara quando ela nos diz que ser uma mulher
negra e lésbica não é só uma orientação sexual, mas uma filosofia, um
modo de vida e uma posição política, pois está em confronto direto com a
heteronormatividade, o patriarcado e o racismo.
Em seguida, Heloisa Melino no texto “A Intimidade com a Linguagem
– conhecer também é um ato político”, nosso quinto capítulo, nos mostra,
por meio da própria linguagem, a importância de nos inserirmos nos es-
paços acadêmicos/científicos e de lutarmos por estes, e outros, espaços de
fala. É o texto que em sua cadência nos aponta a necessidade de assumir-
mos os mecanismos da linguagem, para tomarmos posse dos instrumentos
da dominação, como fizeram e nos ensinaram Gloria Anzaldua ou Bell
Hooks, para citarmos alguns exemplos.
Heloisa disserta sobre a potência do que estamos propondo neste li-
vro e o que, de fato, estamos fazendo aqui: construindo coletivamente
um livro exclusivamente escrito por mulheres lésbicas, bissexuais e/ou
transsexuais que majoritariamente falam sobre suas lutas e suas histórias
utilizando a linguagem editorial a qual ocupamos. Ou nas palavras da
própria autora que vem laurear a nossa proposta em meados de seu ar-
tigo: “Dificultar o acesso de autoras mulheres e de pessoas que não se
encaixam nos binômios normativos de gênero também é uma decisão
política. Obstaculizar o acesso ao saber acadêmico por meio da lingua-
gem é também uma forma de dominação e as epistemologias feministas
desafiam essa lógica propondo uma nova forma de pensar e de saber que
dialogue com um maior número de pessoas do que apenas as que estão
inseridas nas universidades”.

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“A primeira das lutas dos movimentos sociais, portanto, é o grito”.


Heloisa Melino termina o seu texto nos mostrando como os movimentos
sociais, aqui abarcados aqueles que lutam por relações de gênero, sexua-
lidade e identidades mais abertas e democráticas, devem se inserir nos de-
bates, e que estes devem ser agonísticos, já que a política é feita por con-
flitos. Isso sem deixar de lado as emoções que devem fazer parte da arena
de debates. Heloisa nos mostra como o chamado consenso racional é uma
forma antidemocrática de fazer política, porque ele afasta a diferença, gera
exclusão, ou seja, é a manutenção da hegemonia sem conflito. Assim é que
resistimos nas ruas, enquanto movimentos sociais, e assumimos a lingua-
gem para lutarmos em outros espaços também, como aqui neste livro.
Em Transexualidade no Campo Jurídico. Da Mudança do Registro Ci-
vil ao Provimento Nº 73 do CNJ, Kathyla Katheryne S. Valverde disserta
sobre o direito à alteração do Registro Civil diretamente no Cartório para
transexuais e travestis. Seu artigo traça através de uma breve linha do tem-
po a trajetória percorrida em diferentes campos: jurídico, político, social,
da saúde, dentre outros, para que este direito fosse garantido. Assim, em
cada ciclo de luta por ela descrito para que se chegasse à conquista do
Registro Civil diretamente no Cartório, vamos acompanhando os entraves
e as barreiras físicas e simbólicas enfrentadas cotidianamente por estas pes-
soas para exercerem o direito de serem quem são.
Um texto que coloca em cheque nosso olhar para o que denomina-
mos como diversidade, para a atuação política em defesa desta diversidade
em nosso país e para nosso escopo legal, que, apesar de estar prevista na
Constituição de 1988 a dignidade da pessoa humana como pilar base do
Estado Democrático, não protege ou garante direitos as/os transexuais e às
travestis. Kathyla, na cumplicidade com que nos abre a sua experiência,
nos ajuda a compreender a urgência da luta ou em suas palavras: “não per-
cebemos a dor que classifico como “nadar contra a maré” das pessoas que
passam pelo sofrimento para compreenderem quem são, pois ao se olhar
no espelho e ao se tocar no momento de se banhar, começam a perceber
que algo está errado entre o sentimento e a percepção de fato”.

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Mas, a força do texto também está na forma como a autora apresenta


a resistência empreendida contra as tentativas de retrocessos e a luta cons-
tante e incessante pela inclusão, que como a própria Kathyla sinaliza em
seu texto significa compreender, abranger, inserir, introduzir, fazer, tomar
parte. Assim, vemos com seu texto um chamado para a importância de
possibilitar a inclusão com efetividade, dando oportunidades diversas para
as pessoas, e sempre primando a igualdade de direitos. Também festejamos
a importância do texto de Kathyla, pois ele poderá servir de instrumento e
conhecimento dos direitos à identidade de gênero das pessoas transvestigê-
neres que desejarem mudar o registro civil, e mesmo poderá servir de ins-
trumento para se protegerem das diversas violências a que cotidianamente
se encontram submetidas.
Seu artigo nos faz pensar, portanto, sobre como compreender subjeti-
vidades envolvidas nas reivindicações trazidas pelas pessoas transsexuais,
ou em suas palavras, “o corpo não pode limitar a alma!”, bem como a luta
enfrentada na esfera política e jurídica para efetivar direitos. Assim, o texto
de Kathyla Katheryne S. Valverde é um convite para refletirmos sobre a
efetivação de direitos reivindicados pelas pessoas transexuais e travestis.
No capítulo seguinte, Renata Ferreira de Azevedo em Maternidade
Lésbica no Brasil: uma revisão de teses e dissertações nos apresenta os prin-
cipais pontos presentes nas pesquisas sobre esta temática, relacionados ao
ato de conceber, gestar, parir e criar um/a filho/a e uma família para um
casal de mulheres. Porém, além de um apanhado teórico, ou uma revisão
de textos acadêmicos, o que recebemos deste artigo é uma montagem rea-
lizada cuidadosamente pela autora que, em sua junção, nos traz algo novo
e que promove reflexões fundamentais sobre as tradicionais formas de ser
mãe, questiona tanto a naturalização da ligação entre sexo e procriação,
quanto a sedimentação de uma correlação entre maternidade e heterosse-
xualidade.
A partir do questionamento de Basaglia – “como é tornar-se mãe na
sociedade contemporânea quando se é lésbica?” – Renata Azevedo nos
leva a observar a heteronormatividade a que estamos submetidas e a sua

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naturalização, e como as cobranças sociais que recaem para todas as mu-


lheres, referentes à função social do trabalho não-remunerado da procria-
ção, recaem sobre as mulheres lésbicas com a singularidade da intercec-
cionalidade (ao menos) das questões de gênero e orientação sexual. Muitas
vezes o que entenderíamos por concepção, para as mulheres lésbicas, vai
além do ato de conceber uma criança, e passa pelo ato de conceber a si en-
quanto lésbica em uma sociedade que nos invisibiliza, e conceber outras
formas de família além da heteronormatividade e do patriarcalismo.
Outro momento importante do texto da Renata é descrição da entra-
da em cena das demandas lésbicas nas pautas dos movimentos sociais e
políticos, fato recente: apenas na segunda metade da década de 1990. A
consequência disso se mostra na ausência de conhecimento científico, tec-
nologias específicas e políticas públicas de cuidado da saúde das mulheres
lésbicas. Quantas de nós já chegou a um/uma médica/o ginecologista e
teve como resposta orientações heterossexuais para demandas homosse-
xuais? Para Renata: “a falta de tecnologia de cuidado ajustada às deman-
das das mulheres lésbicas está atrelada à persistência do preconceito e a
escassa produção científica brasileira sobre saúde lésbica” constatação que
se mostrou presente em todas as pesquisas analisadas por ela.
É neste sentido que podemos entender por que as pesquisas sobre
maternidade lésbica, até o início de 2000, traziam a característica da re-
composição familiar, pois os filhos concebidos em um relacionamento
heterossexual anterior, ou provindos de adoção unilateral ou “produção in-
dependente”, viriam a fazer parte desta nova composição familiar formada
por um casal de mulheres. Entretanto, as pesquisas mais recentes mostram
que nos últimos dez anos a parentalidade lésbica se dá a partir das novas
tecnologias de reprodução assistida, como a ROPA, por exemplo, que se
refere à Recepção de Óvulos da Parceira.
Segundo as pesquisas analisadas, a ROPA é considerada atualmente a
técnica preferida entre as mulheres lésbicas, pois ela permite que ambas
se sintam participantes da concepção, inclusive porque as clínicas de Re-
produção Assistida conferem documentos atestando a dupla maternidade.

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Percebemos assim, a partir do texto da Renata, a criatividade das mulheres


ao lidarem com essas dificuldades, mobilizando diferentes saberes na cons-
trução e legitimação de seus laços sociais e afetivos. Terminamos esta apre-
sentação, e convite para desfrutar o texto da Renata, com um dito popular
e uma pergunta: “mãe só tem uma”. Será?
Nosso próximo texto trata sobre a escravidão contemporânea brasileira
e como ela se estrutura nos dias de hoje. Você leitora e leitor pode estar se
perguntando como este tema e o artigo vieram compor nossa coletânea
LBT. Pois Jaqueline de Jesus nos presenteou com uma análise diferencia-
da acerca desta infeliz e inaceitável realidade global, que é o trabalho es-
cravo. Ela traçou as representações sociais do trabalho de libertar, ou seja,
quem são os sujeitos e as sujeitas envolvidas no Brasil neste processo de
libertação de pessoas ainda em situação de escravidão. O resultado de suas
entrevistas com representantes do governo brasileiro (Câmara dos Deputa-
dos, Ministério do Trabalho e Emprego – MTE e Delegacia Regional do
Trabalho do Distrito Federal – DRT), de Organizações Não-Governamen-
tais e movimentos sociais é apresentado em quadros que nos dão a dimen-
são do quão profunda e grave ainda é esta situação em nosso país.
Mas o destaque de seu texto está no como ela conseguiu encontrar uma
ação distinta entre homens libertadores e as mulheres libertadoras e tam-
bém sobre como pessoas negras e asiáticas tinham uma conduta libertado-
ra mais próxima das mulheres. As percepções e reflexões que ela produz a
partir daí nos fazem pensar sobre uma questão fundamental, a existência
de trabalho de escravo nos dias de hoje, sob um prisma de raça e gênero.
Ficções Políticas Vivas: a materialidade de gênero e identidade encerra
nosso livro. O texto assinado por Laila Domith apresenta de forma insti-
gante e impactante a ideia de perceber e analisar as diferenças sexuais e as
identidades performativamente construídas de sexo e gênero como Ficções
políticas. Laila recorre a autores/as como Judith Butler e Paul Preciado
para pensar as construções sociais que são invocadas a nós cotidianamen-
te e de que forma, performativamente e reiteradamente, assumem o as-
pecto de identidade do sujeito (ao)social. Seu texto nos leva, portanto, a

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questionar todo e qualquer vínculo com uma definição de natureza em


relação ao debate sobre corpos, gênero e sexualidades.
Com esse caminho, o artigo de Laila nos faz trilhar de forma primorosa
uma discussão histórica e fundamental, da heterossexualidade, entendida
para além da ordem pessoal, do nível do prazer individual, como orienta-
ção sexual, mas como um regime político. Um regime que ao longo da
história estabeleceu um contrato social em que nós mulheres somos ex-
cluídas, somos vistas e entendidas como objetos. E corroborando para a
validade deste contrato, para sua legitimidade, sempre esteve a ciência e
seu discurso da “verdade”. Discurso que o texto de Laila também questio-
na ao levantar os inúmeros momentos nos quais estes discursos já foram
empregados e servindo a interesses distintos.
A cada linha escrita por Laila há a reafirmação de que o que existe são
normas reiteradas nos corpos e diferenças que se produzem na reiteração.
Há questionamentos às concepções de sexo e gênero que permeiam as re-
lações científicas, médicas, estatais, midiáticas, familiares. Mas há também
em seu texto poesia e esperança na construção de outras possibilidades
de produções de nossas subjetividades, na ideia de que ao identificarmos,
nomearmos estas ficções políticas, caminhamos para combatê-las. Afina-
do com o espírito geral de nosso livro, o artigo de Laila é puro afeto e
combate.
Esperamos com esses textos, e com todas as reflexões que eles trazem,
proporcionar, ao mesmo tempo, um inconformismo com as desigualda-
des que estruturam nossa sociedade e que atingem mais especificamente
a vida das mulheres lésbicas, bissexuais e transexuais, mas também um
sentimento de esperança na luta e na transformação. Ecoamos as palavras
de Angela Davis: não estamos mais aceitando o que não podemos mudar,
estamos mudando as coisas que não podemos aceitar.
Esperança essa que sempre encontramos na figura de Marielle Franco.
Não poderíamos encerrar esta apresentação sem falar dela e de sua luta,
que também se voltava para a proposta deste livro, ou seja, para as mulhe-
res em suas sexualidades dissidentes. Marielle que hoje inspira e mobiliza

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tantas mulheres, que tanto afronta aqueles que se entregam aos fascismos
cotidianos, e que ocupa as ruas do mundo dando seu nome a elas, sempre
acreditou e defendeu todas as formas de ser e de amar. Sua política era
feita de afeto e nem por isso menos combativa. É o que desejamos com
nossas palavras, afeto e combate.
E como terminamos todos os nossos livros: o feminismo ainda está pre-
sente e vivo! E é a única saída para um mundo melhor.

Amanda e Laila
Rio de Janeiro, na resistência Feminista de 2019 com a pergunta:
Quem mandou matar Marielle?

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Carol Quintana

D
esde2010 s o u p r o f e s s o r a d e s o c i o l o g i a n o CIA J o s é F r a n -
c i s c o L i p p i , uma escola estadual e rural, localizada no municí-

pio de Teresópolis/RJ. Em 2017, me tornei coordenadora geral


do sindicato dos profissionais da educação de Teresópolis (SEPE) e em
2018 assumi o cargo de conselheira municipal de educação, atuando basi-
camente na defesa de uma educação pública, gratuita, laica, de qualidade,
socialmente referenciada e em defesa da educação de gênero e diversidade
sexual nas escolas.
Sou carioca, mas moro atualmente no município de Teresópolis. Ten-
do cursado a graduação na Universidade Federal Fluminense (UFF) em
ciências sociais, atuei inicialmente na área dos conflitos socioambientais,
como pesquisadora no banco de dados da Rede Brasileira de Justiça Am-
biental. Tendo assumido o magistério a partir do ano de 2010, fiz uma
especialização no ensino de sociologia na faculdade de educação da UFRJ
no ano de 2012, que me levou a fazer um mestrado em 2014 sobre o en-
sino de sociologia nas escolas de Teresópolis a partir da perspectiva dos
professores e professoras.
Como professora, ministrei aulas no ensino médio em escolas privadas,
públicas e em cursinhos pré-vestibulares populares. Como sindicalista,
participei de inúmeras greves em defesa da educação e no ano de 2016
participei ativamente das ocupações estudantis nas escolas estaduais do
Rio de Janeiro. Como ativista LGBTI+, atualmente, faço parte do MUDI

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(Movimento Unificado pela Diversidade), tendo já participado do movi-


mento riot girls com bandas de rock durante os anos 90 e 2000.
Desde 2016 sou dirigente partidária do PSOL Teresópolis e em 2018
fui candidata a deputada estadual pelo partido com a pauta LGBTI+. Sou
professora, feminista e orgulhosamente sapatão!

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Ivanilda Figueiredo

E
2019, a s s u m i c o m o P r o f e s s o r a A d j u n ta d a F a c u l d a d e d e
m

Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ),


onde ministro, dentre outras, as disciplinas de direitos humanos e
direitos humanos e ética. Lá mantenho, em parceria com Alice de Marchi,
professora do Instituto de Psicologia, a URDIR – Universidade, Resistên-
cia e Direitos Humanos, que é um Núcleo Multidisciplinar de Ensino,
Pesquisa e Extensão em Direitos Humanos. Sou também assessora par-
lamentar na Câmara dos Deputados e membro da Comissão de Direitos
Humanos da OAB/RJ.
Sou recifense e lá fiz minha formação inicial, tendo cursado a gradua-
ção na Universidade Católica de Pernambuco e o mestrado na Universi-
dade Federal de Pernambuco. Em 2006, mudei para o Rio de Janeiro para
realizar o doutorado na PUC-Rio. Como professora, ministrei aulas em
aulas em universidades públicas e privadas, tendo muito orgulho de ter
sido professora voluntária na Universidade de Brasília e Professora Substi-
tuta na Faculdade Nacional de Direito (FND) da Universidade Federal do
Rio de Janeiro.
Como pesquisadora, participei de inúmeras pesquisas na área acadê-
mica e social, tendo coordenado a pesquisa Acesso à Justiça nos Países do
IBSA: um diagnóstico, contemplada no III Concurso De Dotações Indi-
viduais para Pesquisa Ford/Iuperj pelo qual obtive financiamento da Ford
Foundation e contei com apoio suplementar e estrutural da PUC-Rio e fui

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consultora acadêmica do Projeto Pensando o Direito do Ministério da Jus-


tiça, da Subcomissão da Verdade na Democracia da Comissão de Direitos
Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro.
Como ativista para a defesa dos direitos humanos, fui advogada trainee
da ONG Justiça Global, consultora da Associação Nacional de Centros de
Defesa da Criança e do Adolescente (ANCED) e pesquisadora do Instituto
Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE) e Relatora da Plata-
forma Dhesca Brasil.
No poder público, trabalhei na Secretaria de Direitos Humanos da Pre-
sidência da República, exercendo, funções de coordenação, assessoria e
diretoria, sendo a última função desempenhada a de Chefe da Assessora
Jurídica da SDH/PR, como pesquisadora da Subcomissão da Verdade na
Democracia da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa
do Estado do Rio de Janeiro e como assessora parlamentar na Câmara dos
Deputados.

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Fascismo ontem e hoje: da perseguição aos


LGBTS nos regimes fascistas europeus no
século XX à atual ameaça bolsonarista à
vida e existência de brasileiras e brasileiros

Carol Quintana e Ivanilda Figueiredo

Introdução

“Fomos socializadas para respeitar mais ao medo que às nossas próprias ne-
cessidades de linguagem e definição, e enquanto a gente espera em silêncio
por aquele luxo final do destemor, o peso do silêncio vai terminar nos engas-
gando.” Audre Lorde

A
p e r s e g u i ç ã o à s p e s s o a s l é s b i c a s , g ay s , b i s s e x u a i s , t r av e s t i s e

trans (LGBTs) foi característica dos regimes fascistas europeus no


início do século XX. No entanto, naquele momento esses nem
eram o grupo alvo prioritário. Já nos ambientes (neo)fascistas contempo-
râneos, a pauta LGBT vem sendo cada vez mais utilizada para fomentar o
ódio social. Seriam as pessoas LGBTs maus exemplos, ameaças à família
e suas vidas uma escolha danosa a determinados preceitos religiosos. Ou
seja, seres humanos menos dignos do que os demais. Por isso, é importante
relembrar o passado para pensar o presente. Só assim seremos capazes de
reagir e não deixarmos que o peso do silêncio nos engasgue.

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O Brasil é o país que mais assassina pessoas lésbicas, gays, bissexuais,


travestis e transsexuais (LGBTs), segundo o Grupo Gay da Bahia.1 Não
há dados oficiais que possam comprovar ou refutar tal informação. O
Governo Federal até hoje fez três estudos sobre violência contra pessoas
LGBTS.2 A maior parte dos dados são de denúncias feitas, em regra, pe-
las vítimas no Disque 100, serviço telefônico do Governo Federal para
receber denúncias de violação de direitos humanos, lá não se recebe gran-
de volume de relatos de assassinatos e sim de violências físicas e psico-
lógicas.3
Não há nenhum registro nacional de assassinatos de LGBTs, pois como
a LGBTfobia4 não é tipificada no Código Penal a maioria dos estados não
registra se o homicídio teve motivação relacionada a orientação sexual e/
ou identidade de gênero da vítima. Assim, os poucos relatórios oficiais ba-
seiam o registro dos assassinatos em noticiais de jornais, através do mesmo
método que vem sendo utilizado há décadas pelo Grupo Gay da Bahia.5
Esse tipo de violência causada pelo ódio direcionado a um grupo de pes-
soas simplesmente por elas serem quem são, se reforça num ambiente de
neofascismo crescente como a atual conjuntura brasileira.
No (neo)fascismo, criam-se falsos ideais de superioridade, homogenei-
dade e união de determinadas pessoas em oposição ao suposto desvio, de-
feito, degeneração imposto a outro grupo. Na Itália, a virilidade do homem
italiano caracterizava o modelo desejável. Na Alemanha, o ideal de uma
raça ariana branca era exaltado em detrimento de pessoas judias, LGBTs,
rebeldes, ciganas, desviantes.

1.  Disponível em: https://revistagalileu.globo.com/Sociedade/noticia/2017/05/brasil-ainda-e-o-pais-que-mais-


-assassina-lgbts-no-mundo.html
2.  Disponível em: http://www.mdh.gov.br/navegue-por-temas/lgbt/biblioteca/relatorios-de-violencia-lgbtfobica
3.  Disponível em: http://dapp.fgv.br/dados-publicos-sobre-violencia-homofobica-no-brasil-28-anos-de-comba-
te-ao-preconceito/
4.  O termo LGBTfobia vem sendo cada vez mais utilizado, pois quando se fala apenas homofobia há uma
invisibilização de outras sexualidades e identidades das pessoas LGBTs.
5.  Disponível em: http://www.ggb.org.br/, http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2018-01/
levantamento-aponta-recorde-de-mortes-por-homofobia-no-brasil-em

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O fascismo se compraz desse ideal de superioridade concedido a alguns


e assim se legitima/justifica. Não à toa, a perseguição realizada pelo Estado
conta com algozes e/ou cúmplices na própria sociedade. Foi assim no na-
zismo e tem sido desta forma no neofascismo brasileiro. Aumentam a cada
dia as denúncias de pessoas LGBTs feridas, atacadas, ameaçadas nas ruas e
ainda assim o Estado não consegue prover uma resposta satisfatória.6 Pelo
contrário, o debate atual impede a aprovação de uma lei que reconheça as
características específicas dos crimes de ódio e proíbe qualquer abordagem
do tema nas escolas, mesmo se voltada meramente à garantia do respeito e
da cidadania de pessoas LGBTs.
Não à toa, a eleição de Bolsonaro teve por base uma carreira construída
na perseguição a LGBTs, mulheres, povos tradicionais e no descrédito aos
direitos humanos. Em pesquisa acadêmica recente, foram analisadas todas
as reportagens da Folha de São Paulo e do Estado de São Paulo, entre
1987 e 2017, que tratavam de ideias e falas de Bolsonaro. Nela constatou-
-se que as pautas relacionadas a insultos proferidos por ele e as contrárias a
direitos humanos são as de maior repercussão. Destaca-se ainda que hou-
ve um aumento significativo da visibilidade de suas declarações à época
do início do governo Dilma Rousseff com a polêmica do “kit gay” que o
levou a ser entrevistado por veículo televisivo e lá afirmar que não teria
filhos gays porque eles eram bem educados.7 Nessa mesma entrevista, ele
afirmou a Preta Gil que seus filhos não namorariam uma negra porque
não eram dados à promiscuidade. Foi processado por racismo e disse que
a fala foi tirada de contexto, quando falou em promiscuidade se referia aos
gays. A perseguição aos LGBTs foi, portanto, uma das principais alavancas
de sua persona política. O medo que muitas pessoas LGBTs expressam a
partir de sua eleição se relaciona diretamente com o fomento ao ódio que

6.  Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/18/politica/1539891924_366363.html, https://


www.cartacapital.com.br/politica/episodios-de-violencia-por-motivacoes-politicas-crescem-pos-primei-
ro-turno,
7.  NASCIMENTO, Leonardo; ALECRIM, Mylena; OLIVEIRA, Jéfte; OLIVEIRA, Mariana; COSTA, Sau-
lo. Não falo o que o povo quer, sou o que o povo quer”: 30 anos (1987-2017) de pautas políticas de Jair Bol-
sonaro nos jornais brasileiros. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/plural/article/view/149019/146180

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suas declarações causaram ao longo desses anos, ódio legitimado por sua
expressiva votação.
Diante da constatação de que a violência contra pessoas LGBTs já atin-
ge números assustadores, da evidência de que os discursos de ódio contra
esta população deram visibilidade e popularidade ao presidente eleito, é
de se esperar que um dos grupos com maior ameaça aos seus direitos seja
a população LGBT. Assim, resolvemos escrever esse texto em duas etapas.
Na primeira, narramos como o (neo)fascismo se estrutura, favorece o capi-
talismo e se compraz na perseguição a determinadas pessoas. Na segunda,
apresentamos relatos a respeito da perseguição a LGBTs nos regimes fas-
cistas da Europa no início do século XX.

01. LGBTs nos Regimes Fascistas do início do século XX e no


Brasil de hoje.
Na década de 1920, a Europa estava em festa! O pós-primeira guer-
ra mundial fez florescer um ambiente artístico e cultural potente. Nesse
cenário, as expressões LGBT não ficaram de fora. Muito pelo contrário,
Berlim tinha aproximadamente uns 100 bares e cafés, Viena uma dúzia de
cafés, bares, boates e livrarias, todos voltado ao público LGBT. Paris reunia
as mais famosas figuras do mundo artístico, editorial e literário – muitas
delas, LGBTS, como Gertrude Stein, Alice B Toklas, Natalie Barney, Jose-
phine Baker – e a Itália tinha seu próprio bairro LGBT.8
Esse ambiente de maior tolerância, permitiu que médicos e cientistas
progressistas começassem a olhar para a homossexualidade e transgeniali-
dade com menos preconceito. Passaram a existir estudos que contestavam
a patologização do desejo homossexual e da identidade trans. Foram inclu-
sive realizadas as primeiras cirurgias de readequação sexual.9 Em Berlim,
havia organizações voltadas aos direitos de LGBTs, como o Instituto para o
Estudo da Sexualidade, fundado pelo médico Magnus Hirschfeld, que ad-
vogava, dentre outras pautas, pela revogação do Parágrafo 175 do Código

8.  Disponível em: https://theconversation.com/how-the-nazis-destroyed-the-first-gay-rights-movement-80354


9.  Disponível em: https://theconversation.com/how-the-nazis-destroyed-the-first-gay-rights-movement-80354

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Penal Alemão que condenava a homossexualidade masculina, embora na-


quele momento tal norma fosse raramente usada.10
A liberdade desfrutada no período pode parecer estranha quando narra-
mos a história quase 100 anos depois, especialmente, considerando o cená-
rio atual no qual a intolerância ameaça empurrar de volta para os armários
e guetos a comunidade LGBT. Por isso, é vital recontar essa história, lem-
brar que esse ambiente acolhedor foi sufocado pela ascensão do fascismo
na Europa na década seguinte e reiterado pelas ideologias voltadas a jus-
tificar o retorno da mulher ao lar e da necessidade de aumento da taxa de
natalidade do pós-segunda guerra.11

Com esse intuito, buscamos informações sobre o tratamento


dispensado às pessoas homossexuais na Alemanha Nazista, na
Itália de Mussolini, na Espanha de Franco e em Portugal de
Salazar.
Dentre todos esses países fascistas existentes na Europa no século XX, a
Alemanha nazista foi, segundo os estudos consultados, o que teve uma po-
lítica mais cruel e direcionada ao extermínio direto da população LGBT.
Porém, em todos eles aquela liberdade da década anterior foi substituída
pelo medo, pela perseguição, pelo retorno ao gueto, pelo perigo, pela ne-
cessidade de se esconder. Negar a si próprio já é em si uma cruel sen-
tença. Todas as pessoas LGBT no período foram assim condenadas. Os
dias de liberdade e amor foram suplantadas por fuga, retorno ao armário,
sensação de medo constante e negação do desejo.
Por isso, é tão importante lembrar quanto as possibilidades de viver
em liberdade tem avanços e retrocessos em tantos momentos históricos.
Não adianta tergiversar e tentar se convencer que o cenário não é tão gra-
ve. Parte significativa da comunidade LGBT alemã tinha em mente que

10.  Museu do Holocausto dos Estados Unidos. Disponível em: https://encyclopedia.ushmm.org/content/en/


article/persecution-of-homosexuals-in-the-third-reich
11.  Esse texto irá focar na perseguição efetuada pelos regimes fascistas no período, sobre o retorno da mulher
ao lar e a continuidade da perseguição a LGBTS nas décadas seguintes sugerimos: ***

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Hitler não seria tão ruim para a pauta, pois tinha como um de seus braços
direitos Ernst Röhm.
Ernst Röhm, um homem assumidamente homossexual, era desde a as-
censão de Hitler, um dos principais nomes do regime nazista. Em 1930,
ele tornou-se o comandante das “tropas de assalto”12 (grupo paramilitar na-
zista). Sua posição de destaque na hierarquia do regime passava uma certa
tranquilidade à população LGBT como se sua respeitabilidade assegurasse
que não haveria perseguição. Ledo engano. Ernst Röhm foi preso em 29
de junho de 1934 e morto dois dias depois por agentes da SS.
Vale lembrar ainda que Hitler foi eleito democraticamente pelo voto
da maioria, que o regime nazista tinha apoio das massas, a Alemanha ti-
nha uma Constituição, possuía um judiciário (em tese) independente e
parlamentares eleitos. Mas tão logo eleito, Hitler conseguiu – após ma-
nobras que isolaram a oposição – que o Parlamento aprovasse a “lei de
autorização” (Ermächtigungsgesetz), que permitia a aprovação de normas
pelo Chanceler (leia-se: por ele) mesmo que essas leis contrariassem o tex-
to constitucional.13 Morria ali a Constituição de Weimar. O judiciário não
deixou de existir no regime nazista, mas é notório que não foi capaz de
evitar as mais de 6 milhões de mortes de pessoas judias, nem tão pouco a
perseguição e o assassinato dos demais grupos indesejados.
O Instituto para o Estudo da Sexualidade foi fechado, seu dono perse-
guido, mais de 12 mil livros e obras de arte de sua propriedade queima-
dos. O estudo da sexualidade – e, especialmente, da homossexualidade
– se tornou proibido nas escolas alemãs. Em 1935, o parágrafo 17514 foi
alterado para se tornar mais rígido e submeter as pessoas homossexuais,

12.  Nome original: Sturmabteilung. Tradução para o inglês: Storm Troopers.


13.  BARROSO, Luís Roberto. QUEDA E ASCENSÃO: Há 80 anos, Hitler chegava ao poder no Reich
alemão. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2013-jan-31/luis-roberto-barroso-80-anos-hitler-chegava-
-poder-reich-alemao#_ftn8
14.  Há um excelente documentário chamado Parágrafo 175, dirigido por Rob Epstein e Jeffrey Friedman,
que reconta com base em depoimentos de vítimas sobreviventes tal história. Outros testemunhos podem
ser encontrados em: https://www.hmd.org.uk/news/lgbt-history-month-time-remember-nazi-persecution-gay-
-people/

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pelo simples fato de serem homossexuais, a até 10 anos de regime


forçado.15
Homens e mulheres LGBTs tiveram de fugir, refugiar-se num casa-
mento heterossexual ou foram perseguidos. Ainda que não existam dados
fechados, estima-se que 100 mil homossexuais foram presos, a maioria ia
para as prisões regulares, porém entre 5 e 15 mil foram para os campos
de concentração, lá recebiam em seu uniforme um triângulo rosa para
identificar que o motivo de sua prisão era homossexualidade.16 Rüdiger
Lautmann, um dos maiores especialistas no tema na Alemanha, estima
que morreram 60% das pessoas LGBTs submetidas a prisão nos campos de
concentração.17
Os nazistas acreditavam que a homossexualidade era uma doença, sub-
metiam, portanto, as pessoas homossexuais aos piores tratamentos, elas
eram isoladas das demais, passavam por humilhações, trabalhos forçados
e experimentos pseudocientíficos. De acordo como o livro Marcados pelo
Triângulo Rosa, os homens homossexuais além de serem alimentados
com pães mofados, eram submetidos a experimentos médicos diversos,
um deles se referia a enfiar agulhas em seus mamilos (por vezes, a agu-
lha atingia o coração e resultava em morte), eram também estuprados e
espancados e até mesmo jogados vivos para se tornarem comida de cães
de caça.18 Inicialmente, incentivava-se a castração com o “consentimen-
to” do acusado para curar a homossexualidade e reduzir as sentenças, em
sequência, a castração passou a ser utilizada de modo imposto como mais
uma das punições.19

15.  Museu do Holocausto dos Estados Unidos. Disponível em: https://encyclopedia.ushmm.org/content/en/


article/persecution-of-homosexuals-in-the-third-reich
16.  Disponível em: http://time.com/5295476/gay-pride-pink-triangle-history/
17.  LAUTMANN, Ruediger. Homosexuals & the Holocaust: Gay Prisoners in the Concentration Camps
Disponível em: https://www.jewishvirtuallibrary.org/gay-prisoners-in-the-concentration-camps
18.  Marcados pelo Triângulo Rosa, de Ken Setterington. Tradução Sandra Pina. Editora Melhoramentos,
136 págs.
19.  Museu do Holocausto dos Estados Unidos. Disponível em: https://encyclopedia.ushmm.org/content/en/
article/persecution-of-homosexuals-in-the-third-reich

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Os homens homossexuais e as pessoas trans eram mais perseguidos do


que as mulheres cis lésbicas. Elas ainda eram vistas como potenciais repro-
dutoras de filhos arianos. Assim, o número de lésbicas detidas nos campos
de concentração e mortas era menor. Para sobreviver muitas tiveram de
ser esconder, fugir ou fingir uma relação heterossexual. As lésbicas mais
conhecidas, as que fossem identificadas frequentando algum local LGBT
clandestino ou tivessem sua relação denunciada eram enviadas aos campos
de concentração e mortas.20 Um dos casos documentados mais famoso é
o de Felice Schragenheim, judia lésbica, morta aos 22 em poder dos na-
zistas. Felice foi presa na casa em que morava com sua companheira Lilli
Wust por denúncia da população.21
A criminalização da sodomia só foi efetivamente revogada na Alema-
nha em 1994. Vale lembrar, que desde 1950 não houve mais condena-
ções na Alemanha Ocidental com base no Parágrafo 175, entretanto, na
Alemanha Oriental mais de 50.000 pessoas foram condenadas por serem
homossexuais entre 1949 e 1969 quando a lei, apesar de não haver sido
completamente revogada, passou a não ser mais utilizada.22

Itália na Era Mussolini23


O regime fascista italiano propagava um ideal viril de masculinidade
heterossexual e, portanto, era contrário aos homens terem expressões de
gênero consideradas mais delicadas. O ideal masculino agressivo era exal-
tado e se materializava na figura do ditador (o Duce) Benito Mussolini.
Exaltava-se a educação física e a juventude, bem como a imagem de uma

20.  Disponível em: https://encyclopedia.ushmm.org/content/en/article/lesbians-and-the-third-reich


21.  A história de amor com Lilli Wust que a levou a ser perseguida pelo regime nazista é narrada no livro
AIMEE & JAGUAR: UMA HISTÓRIA DE AMOR, BERLIM 1943 de Erica Fisher.
22.  Disponível em: https://www.ushmm.org/learn/students/learning-materials-and-resources/homosexuals-
-victims-of-the-nazi-era/persecution-of-homosexuals
23.  BERTONHA, João Fábio. COERÇÃO, CONSENSO E RESISTÊNCIA NUM ESTADO AUTORITÁ-
RIO: O CASO DA ITÁLIA FASCISTA. Disponível em: http://www.redalyc.org/html/3055/305526871007/

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masculinidade agressiva, autoritária e marcial e retratava a homossexuali-


dade numa ridícula caricatura.24
Ao mesmo tempo, essa configuração do homem italiano rejeitava que
existisse um grande contingente de homossexuais no país – a configuração
desse homem ideal não poderia ser “manchada” pela existência da homos-
sexualidade, para criar o masculino ideal o melhor era negá-la.
Por isso, é interessante notar que a rejeição da criminalização da so-
domia naquele momento se deu por dois motivos: I. não existiam tantos
homossexuais assim que merecessem a preocupação de mudança da legis-
lação; II. nos casos de comprovada homossexualidade as leis sobre morali-
dade e decência poderiam ser aplicadas pelo Judiciário e seriam ainda mais
rígidas. Entre 1927 e 1939, foram presos 1029 homens homossexuais.25
Lombroso, um criminologista italiano bastante respeitado no período,
defendia que existiam criminosos natos, ou seja, pessoas com determinadas
características já nasciam com propensão ao crime. Hoje, o higienismo
e racismo de suas teorias são reconhecidos, mas naquele momento, suas
teses eram usadas para sustentar políticas de segurança. Um de seus se-
guidores, Salvatore Ottolenghi, defendia que a homossexualidade indicava
uma inclinação natural e inata ao crime causada pelos hábitos de pregui-
ça, roubo e embriaguez.26

Espanha na Era Franco27


No franquismo, qualquer comportamento que se afastasse do compor-
tamento idealizado para homens e mulheres como pessoas heterossexuais
era tido não só como desviante, mas também como uma doença e um

24.  BENADUSI, L. (2004). Private life and public morals: fascism and the “problem” of homosexuality. To-
talitarian Movements and Political Religions, 5(2), 171–204. doi:10.1080/1469076042000269211
25.  BENADUSI, L. (2004). Private life and public morals: fascism and the “problem” of homosexuality.
Totalitarian Movements and Political Religions, 5(2), 171–204. doi:10.1080/1469076042000269211
26.  BENADUSI, L. (2004). Private life and public morals: fascism and the “problem” of homosexuality. To-
talitarian Movements and Political Religions, 5(2), 171–204. doi:10.1080/1469076042000269211
27.  LOFF, Manuel. O nosso século é Fascista! o mundo visto por Salazar e Franco (1936-1945). Disponível
em: http://cadmus.eui.eu/handle/1814/54045

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delito. Primeiramente, os homossexuais eram perseguidos com base no ar-


tigo 431 do Código Penal que tipificava o escândalo público. Em 1954, a
Lei de Vagabundos e Meliantes foi modificada para incluir as pessoas ho-
mossexuais, entendendo que sua mera existência ofendia a moral saudável
e os bons costumes fielmente mantidos na sociedade espanhola. Com a
nova lei, as pessoas condenadas pelo simples fato de serem homossexuais
eram enviadas às colônias agrícolas para a prática de trabalhos forçados por
até 3 anos para que se “regenerassem”.28

Portugal na Era Salazar


Em Portugal, vivia-se algo similar à Itália. O ideal do homem português
não deveria ser contrariado. Afirmava-se, portanto, a inexistência da ho-
mossexualidade o que obrigava as pessoas a viverem com medo e escondi-
das, pois casos descobertos seriam perseguidos, humilhados e condenados
à prisão pelas leis dos bons costumes.
Qualquer obra literária ou artística que tratasse de relações homosse-
xuais e/ou bissexuais era censurada como modo de manter o ideal moral
vigente. Os bares, boates, cafés e locais de encontro LGBTs eram constan-
temente inspecionados pela polícia e muitos de seus frequentadores deti-
dos em centros de “reabilitação” por anos a fio, juntamente com prostitu-
tas e pessoas consideradas vadias.
Em 1954, instaurou-se a criminalização da homossexualidade com a tipifi-
cação nos artigos 70 e 71 do Código Penal, que previam “medidas de seguran-
ça” para “os que se entreguem habitualmente à prática de vícios contra a nature-
za”, ou seja, os homossexuais. As “medidas de segurança” iam do internamento
em manicômio judiciário, casa de trabalho ou colônia agrícola até à interdição
do exercício de uma profissão, passando por outras modalidades de privação ou
limitação da liberdade individual. Tal crime só foi revogado em 1982.29

28.  Disponível em: https://www.eldiario.es/canariasahora/premium_en_abierto/Homosexuales-vagos-ma-


leantes-peligrosos_0_516549100.html
29.  Decreto-Lei nº 39.688, de 5 de junho de 1954 – Portugal. Disponível em: https://dre.pt/application/dir/
pdf1sdip/1954/06/12200/06450653.pdf

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02. Porque podemos dizer que uma nação fascista está sendo
construída/legitimada com o discurso de Bolsonaro?
Pensar as condições atuais em que se desenvolve o fascismo ou neofas-
cismo brasileiro, que toma as ruas de uma forma assustadora, e que sai do
armário sem escrúpulos, é pensar antes de tudo nas condições em que se
encontra o capitalismo brasileiro. A crise do capitalismo que se iniciou na
década de 1970 é uma crise profunda e estrutural. O neoliberalismo, que
atingiu o Brasil na década de 1990, não deu conta de superar essa crise e
para a maioria das pessoas a política neoliberal só intensificou ainda mais
os abismos sociais.
As políticas sociais desenvolvidas nos governos Lula e Dilma consegui-
ram reduzir temporariamente os níveis de pobreza e desigualdade, mas
não promoveram mudanças sociais estruturais e, portanto, como o golpe
de 2016 e a aprovação do teto dos gastos públicos que atinge sobremaneira
os direitos sociais da população, a reforma trabalhista e o aprofundamento
da crise econômica, a pobreza voltou a crescer.30
O neoliberalismo incentiva o aumento da lógica da competitividade,
a exacerbação do individualismo e do consumismo. Ao incentivar as po-
líticas meritocráticas e a lógica do salve-se quem puder, o neoliberalismo
arrebenta os laços de solidariedade, tão importantes para a coesão social.
A lógica da competitividade se expande para as relações pessoais e demais
setores da sociedade. Esse cenário contribui para o crescimento da indi-
ferença para com o outro. Tais características fazem a gente entender o
cenário de crescimento da cultura do ódio em nossa sociedade. O cresci-
mento da indiferença e as banalizações da violência permitem entender
como o discurso salvacionista e extremista de Bolsonaro ganhou eco na
sociedade brasileira.
As lideranças fascistas atuais sabem usar esses medos do nosso contexto
atual com a mistura dos preconceitos estruturais da sociedade brasileira
como o racismo e o patriarcalismo. Hoje em dia, podemos identificar uma

30.  https://g1.globo.com/economia/noticia/2018/12/05/em-1-ano-aumenta-em-quase-2-milhoes-numero de-


-brasileiros-em-situacao-de-pobreza-diz-ibge.ghtml

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onda conservadora e uma cultura do ódio. Temos algumas características


do fascismo do passado que se apresentam nos dias atuais. Em um contex-
to de profunda crise econômica, política e social, o fascismo parece ganhar
lastro em terras tropicais. O aspecto político dessa crise é perceptível quan-
do os inúmeros esquemas de corrupção contribuem para a crise de legiti-
midade das instituições republicanas. Há uma generalizada descrença na
política enquanto mecanismo de transformação social. Ao se apresentar
como de fora do sistema político tradicional, sem de fato o ser, Bolsonaro
que já era conhecido da velha política brasileira, tendo passado por parti-
dos políticos da tradicional direita brasileira e ancorado por uma rebuscada
manipulação do discurso, que tem no ódio o seu fundamento, ele e seu
discurso salvacionista e extremista parece ganhar vida em uma sociedade
marcada por uma profunda desigualdade social.
O fascismo enquanto regime histórico foi uma tendência que surgiu
na fase imperialista do capitalismo e se fortalece nas condições de implan-
tação do capitalismo monopolista de Estado. Surge a partir da crise do
capitalismo liberal no período do entre guerras. A queda na taxa de lucro
faz com que o empresariado dispense uma quantidade enorme de traba-
lhadores. A luta de classes se acirra. As altas taxas de desemprego e inflação
demonstram a dimensão econômica da crise, que logo, não tarda a agudi-
zar uma crise social e política.
A crise de representatividade da democracia liberal gera um cenário de
descrença na própria estrutura democrática, que não se mostra efetiva em
contornar os problemas. A dificuldade de se retomar a taxa de crescimen-
to e a corrupção geram um cenário de instabilidade política. A descrença
de que os conflitos sociais possam ser negociados através do diálogo e não
da violência se espalha pelo imaginário social. É a partir desta crise social
profunda que vai se construindo um ambiente profundamente marcado
pelo desespero social e o medo. O fascismo é a política do medo. É a
partir da crise que se abre uma brecha para a emergência de um líder,
que tem muito carisma, se apresenta como imaculado por corrupção e
propõe soluções rápidas e autoritárias. As pessoas estão mais suscetíveis a

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optar por uma solução destas. O fascismo se alimenta de um cenário de


desesperança.
A barbárie que foi o holocausto com a perseguição de milhares de ju-
deus, pobres, negros, pessoas com deficiência, ciganos, LGBTs, comunis-
tas e outros grupos vulneráveis, se dava em meio a expansão do capitalismo
alemão e hoje em dia, sabe-se o quanto o nazismo só pôde se desenvolver
por conta do apoio de vários empresários e banqueiros alemães que viam
no plano econômico de Hitler uma forma de expansão dos seus capitais.
Os autos do processo contra os principais criminosos de guerra perante o
Tribunal Militar Internacional de Nuremberg estão cheios de depoimen-
tos e documentos de vários tipos, que comprovam a estreita vinculação
do nazismo com o recém-nascido capital financeiro.31 Vale lembrar que
muitos empresários financiaram ambos os regimes e a perseguição a várias
lideranças de esquerda foram dados marcantes nos estados nazifascistas.
Mussolini e Hitler conquistaram um lugar como pioneiros de uma nova
concepção política da direita. Toda ideologia de direita visa a conservação
de determinados privilégios de classe e para que isso seja possível, forças
repressoras precisam ser acionadas em diversos momentos. Logo, capitalis-
mo e fascismo se conjugam muito bem.
Nem todo movimento reacionário é fascista e o fascismo não se deixa
reduzir aos conceitos de ditadura e autoritarismo, daí a importância que a
propaganda e os recém-criados meios de comunicação como o rádio e o ci-
nema irão desempenhar na formação daquela que mais tarde será chama-
da de sociedade de consumo de massa. A expansão do fascismo nos anos
vinte e trinta tem relação direta com a formação da indústria cultural. O
capitalismo, impelido a se expandir, começou a estender seu controle tam-
bém para o consumo, promovendo investimentos cada vez maiores na pro-
paganda dos produtos para influenciar a conduta do consumidor. O fascis-
mo percebeu que essas novas ferramentas de comunicação e manipulação
poderiam ser utilizadas para fins políticos, e tratou de aproveitá-las para

31.  Ver documentário Fascismo Inc. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=K80XYjF3lHE

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cativar as massas, que estavam descontentes com a crise e depressão eco-


nômica pelas quais seus países atravessavam. Esses massivos investimentos
em propaganda nos mostram o quanto havia de dinheiro para o financia-
mento do regime.32O fascismo é um movimento de massas. As lideranças
apostam em um investimento forte em uma política do espetáculo e de se-
dução. Discursos eloquentes e frases de efeitos são características marcan-
tes do fascismo, que, diferentemente, de outros regimes autoritários, como
as ditaduras militares, estimulam seus seguidores a saírem de suas casas. O
fascismo investe numa política de medo que é pra fora, que se vende e que
se autopromove constantemente.
A mesma tática da manipulação de massas do fascismo populista de
Mussolini e Hitler parecem agora encontrar no fenômeno da internet e
das “fake news” um terreno favorável para a disseminação do medo e a
manipulação como ferramentas da política contemporânea. O escândalo
de caixa dois, da campanha de Bolsonaro, revelado através da matéria da
Folha de S. Paulo mostrou que empresários bancaram a compra de dis-
tribuição de mensagens em massa contra o PT por WhatsApp. Além de
ser um crime eleitoral gravíssimo, demonstra o quanto a manipulação das
informações nas redes sociais contribuiu decisivamente para a vitória do
candidato. Formou-se um caldo cultural de apoio ao atual presidente com
base na frustração social capaz de direcionar o ódio contra determinadas
pessoas.
O fascismo é um movimento político de conteúdo social conservador,
é chauvinista33, antiliberal34, antidemocrático, antissocialista, antioperário,
mas não anticapitalista. Seu crescimento e desenvolvimento dependem

32.  KONDER, Leandro. Introdução ao Fascismo (Série Teoria e Realidade). Rio de Janeiro, Edições
graal, 1977.
33.  O sentido original do chauvinismo se refere a um entusiasmo excessivo pelo que é nacional e, em con-
sequência, uma desvalorização do estrangeiro. Por extensão, o chauvinismo também pode ser visto como a
valorização por um grupo específico (os arianos, por exemplo) e desprezo por outras coletividades.
34.  O liberalismo político difere do liberalismo econômico. No sentido usado, antiliberal se refere ao fato de
que o liberalismo político é uma garantia das liberdades dos cidadãos, um defensor da liberdade de ir e vir,
de expressão, de comunicação, de propriedade e todas essas liberdades foram restringidas, e até negadas, a
coletivos específicos nos regimes fascistas.

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de condições específicas, como por exemplo, a ausência de forças poten-


cialmente antifascistas ou a aniquilação de toda oposição. O fascismo lida
com os diferentes e divergentes de forma a não permitir o convívio com es-
ses grupos. O fascismo é um tipo de ditadura que aposta mais na exclusão
do que na repressão, que visa eliminar totalmente a oposição.
O Fascismo é um movimento contrarrevolucionário, respaldado por
meio da propaganda voltada à exaltação de um líder carismático capaz
de salvar o país em crise, promover a ordem e garantir a moralidade. O
recurso fascista ao mito da nação se dá em meio aos ressentimentos nacio-
nais deixados pela guerra inter-imperialista de 1914-1918.35Ao contrário do
nacionalismo dos povos colonizados, o pretenso “nacionalismo” fascista é
vazio, pois ele nasce de um movimento que não é revolucionário e que se
impõe “de cima para baixo”, por isso ele limita a participação popular e
exige a manipulação das massas populares. Justamente porque a valoriza-
ção da nação se dá num plano retórico, precisa ser agressiva, precisa recor-
rer a um discurso de ódio para disfarçar o seu vazio e tende a menosprezar
outros valores e nações. No caso dos fascistas alemães, a ideologia racista
veio a fortalecer enormemente o chauvinismo.36
No Brasil, o nacionalismo dos líderes fascistas é ainda mais vazio, pois
submete o país ao imperialismo, sem políticas de desenvolvimento nacio-
nal e completamente vinculadas ao capital financeiro das potências do
norte. Ou seja, a defesa do “Brasil acima de tudo” é apenas um mote vazio
destinado a unir seu grupo.
O (neo)fascismo contemporâneo vem sendo nutrido aqui desde 2013,
acobertado e financiado por uma suposta burguesia que não aguentava
mais o PT no poder.37 A necessidade de expansão do capital no país fez
com que o capital colocasse a seu serviço os mais cruéis ataques à classe

35.  KONDER, Leandro. Introdução ao Fascismo (Série Teoria e Realidade). Rio de Janeiro, Edições
Graal, 1977.
36.  KONDER, Leandro. Introdução ao Fascismo (Série Teoria e Realidade). Rio de Janeiro, Edições
Graal, 1977.
37.  Disponível em https://esquerdaonline.com.br/2018/10/14/as-eleicoes-do-golpe-ou-o-golpe-das-eleicoes/

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trabalhadora e demandou um novo governo. O golpe de 2016 e as medi-


das de austeridades do governo de Temer, como a Emenda Constitucional
95, a reforma trabalhista e a lei das terceirizações, assinalaram que ávidas
por lucros fáceis e grandiosos, mas sem quadros políticos com legitimidade
social para dar continuidades a essas políticas, a burguesia brasileira flerta-
ria com os generais de outrora.
Em meio a uma histeria coletiva, cercada de manipulações midiáticas,
a maioria da população brasileira se deixou levar pela retórica fascista em
um contexto de crise econômica e desemprego alarmantes, lastreando sua
crença num suposto combate à corrupção e retorno a uma moralidade
baseada em princípios de defesa de uma família cristã, dignificada pelo
trabalho e vinculada aos valores patriarcais.
O neofascismo brasileiro é extremamente chauvinista e dirige o seu dis-
curso inflamado e raivoso para as minorias oprimidas como a juventude
pobre, negra e favelada, os nordestinos, as mulheres, os indígenas, os co-
munistas38 e a comunidade LGBT.
O discurso de ódio, que incentiva esses crimes, encontra em Jair Bol-
sonaro o seu eco, e agora, os fascistas parecem ter saído do armário com
os seus coturnos e estão se sentido legitimados para perseguir não só os
comunistas, mas todos aqueles que não se encaixem na sua concepção de
mundo. Por isso, é tão significativo quando um candidato a Presidente
expressa “esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria”.
O fascismo brasileiro é antidemocrático e vimos a declaração preten-
siosa do deputado Eduardo Bolsonaro, filho de Jair Bolsonaro, ameaçando
fechar o Supremo Tribunal Federal ou na própria fala do candidato Jair
Bolsonaro de que “as minorias têm de se curvar às maiorias… as leis devem

38.  No Brasil atual, as pessoas de esquerda são em um momento chamadas de comunistas e em outros de
petistas. No entanto, não há uma necessária identificação histórica entre as categorias. Hoje, ser humanista
já te torna de esquerda e muitos humanistas são liberais e anticomunistas. Ser petista é ser filiado a um deter-
minado partido político e há petistas comunistas, mas nem todos o são. Ser comunista não exige filiação a ne-
nhum partido político e dentre quem assim se define há quem entenda a importância de se defender direitos
humanos e quem não entenda. No entanto, as categorizações teóricas têm se perdido em meio ao mundo da
internet e do WhatsApp onde criar a oposição entre polos é muito útil ao estado de coisas que se quer formar.

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existir para defender as maiorias… as minorias se adequam… ou simples-


mente desaparecem...”39

Considerações Finais
Os ideais para se valorizarem fomentam a figura de seus opostos. Uns
são os desejáveis, almejados e outros os desviantes e indesejados. Essa abor-
dagem é encontrada em todos os regimes fascistas estudados e é ela que
legitima a perseguição sofrida por diversos e diferentes grupos. Neste estu-
do, focamos apenas na perseguição às pessoas LGBTs nos regimes fascistas
europeus, mas ainda há espaço para um maior debate. Todas as ditaduras
latino-americanos perseguiram pessoas LGBTs e suas expressões culturais.
Tais regimes fascistas impuseram às pessoas ou grupos divergentes da
moral dominante duras penas e o pior é que, em grande parte deles, as
instituições permaneciam funcionando, com Constituições em vigor e
grande parte da sociedade foi convencida de que quem estava sendo perse-
guido merecia!
Além do mais, vale lembrar que a própria expressão das identidades e
sexualidades LGBTs desafiam enormemente a lógica capitalista e toda a
reprodução do próprio capital. A família burguesa patriarcal e heteronor-
mativa sustenta a sociedade capitalista ao prover a reprodução da força de
trabalho, portanto, qualquer outro modelo de relações familiares ameaça a
ordem capitalista.
Os regimes fascistas, em última instância, representam a defesa dos
princípios capitalistas que garantem a concentração do capital, portanto
nada mais lógico do que o fascismo se aproveitar de um discurso moralista
em defesa da família patriarcal e heteronormativa como modo de manu-
tenção da ordem almejada.
Em seu livro, O Calibã e a Bruxa, a feminista Silvia Federici40 sustenta
a ideia de que o domínio sobre o corpo da mulher e o trabalho doméstico

39.  Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=sUueYXzr9jE


40.  FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Editora Ele-
fante, 2017, 464 pg.

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são pilares fundamentais do processo de acumulação primitiva do capital,


pois permitem a reprodução da força de trabalho do incipiente operariado
industrial. Segundo ela, a caça às bruxas representou a instauração do pa-
triarcado e desse modelo de família, que subjugava o corpo da mulher ao
domínio dos homens e do estado e criminalizava a sodomia.
Mulheres feministas e a população LGBT desafiam essa lógica patriar-
cal e heteronormativa. Portanto, pode-se pensar, que quando o fascismo
ataca os direitos das mulheres e da comunidade LGBT, ele está preservan-
do em última instância os princípios que sustentam a lógica do capitalis-
mo. Para alimentar-se, no entanto, o fascismo forja (ou incentiva) senti-
mentos sociais de aversão a determinados grupos.
Não à toa, o neofascismo brasileiro se reforça de modo exponencial
num momento de crise econômica e se fomenta a partir da postura de
proeminentes figuras adequadas a estrutura patriarcalista tradicional (ho-
mens brancos heterossexuais)41, exalta a figura desta idealização do mascu-
lino e usa o culto à violência como atrativo. Paulatinamente, agregam ao
seu séquito um conjunto mais diverso de pessoas, aderindo todas à lógica
moral dominante por eles disseminada e lhes dando legitimidade. Nesse
sentido, vale destacar a importância de representações políticas capazes de
assegurar a presença de diferentes pessoas e grupos nos espaços de poder
de modo a garantir a existência e os direitos de todas as pessoas numa so-
ciedade plural.

41. https://www.cartacapital.com.br/politica/eleitor-tipico-de-bolsonaro-e-homem-branco-de-classe-media-
-e-superior-completo

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Vanessa Leite

P
ossuo graduação em Psicologia pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro (1990). Sou Mestre (2009) e Doutora em Saúde
Coletiva (2014) pelo Instituto de Medicina Social da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (IMS/UERJ). Atualmente sou pesquisadora
associada do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Huma-
nos (CLAM/IMS/UERJ), onde coordeno o curso de Especialização em
Gênero e Sexualidade – EGeS, e presto consultoria a organizações da so-
ciedade civil. Tenho dedicado meus estudos aos seguintes temas: sexuali-
dade, gênero, direitos humanos e políticas públicas.
Tenho uma trajetória pessoal e profissional ligada ao campo dos direitos
humanos. Quando cheguei à universidade em 1985, já trazia comigo uma
ânsia de colaborar na mudança social. Vivíamos o período da redemocra-
tização no país e, no ano anterior, já envolvida com a militância estudantil
secundarista, fui capturada para sempre pela participação política, a partir
da ida ao comício das Diretas Já!. Para uma menina moradora do subúrbio
carioca, fazer parte daquela mobilização foi uma experiência arrebatadora.
Ainda naquele ano, a futura estudante de psicologia, se envolvia na Zona
Oeste da cidade, onde morava, em uma mobilização de mulheres, junto
à associação de moradores, pela criação de uma creche comunitária. E
assim, fui cada vez mais me envolvendo com a militância feminista e mais
tarde, ao me identificar como mulher bissexual, à movimentação LGBTI.

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Minha primeira experiência profissional, ainda estudante, como esta-


giária, foi em um abrigo para crianças e adolescentes em situação de rua.
Ali achei uma área de trabalho e me liguei ao mundo das ONGs e das po-
líticas públicas. Ao me formar em 1990, já estava envolvida em um cam-
po de atuação e passei a trabalhar como educadora social em um abrigo
noturno para meninos em situação de rua. Vivi meu primeiro emprego
formal e a gravidez de minha filha. Construí, assim, uma carreira em or-
ganizações da sociedade civil, onde atuo, desde 1988, em diferentes ações
voltadas à garantia de direitos de crianças, adolescentes, jovens, mulheres e
população LGBTI. Em 2007, com minha filha “já criada”, pude retornar à
universidade e, além de construir uma carreira acadêmica, onde fiz, mes-
trado, doutorado e pós-doutorado, pude atuar em um centro de pesquisa e
formação sobre gênero, sexualidade, políticas públicas e direitos humanos
de escala latino-americana. Acredito e tenho trabalhado na última década
pelo fortalecimento de uma universidade que se põe em diálogo com a
sociedade. Em todas as iniciativas que estive envolvida, estabeleci contato
com profissionais de diferentes formações, que atuam em políticas sociais
e em organizações da sociedade civil, bem como ativistas ligados à afirma-
ção de direitos de diferentes segmentos sociais — especialmente os movi-
mentos feminista e LGBTI.
Minha trajetória de pesquisa está ligada aos temas de gênero e sexua-
lidade, especialmente, a diversidade sexual e de gênero, articulados a po-
líticas públicas e adolescentes e jovens. Tenho buscado contribuir com
a reflexão sobre como diferentes instituições e políticas públicas brasilei-
ras vêm lidando, na sua ação cotidiana, com os experimentos sexuais e
de gênero dos adolescentes. E nos últimos anos, tenho trabalhado com
controvérsias públicas envolvendo gênero, sexualidade e discursos religio-
sos. Essas controvérsias se articulam em um cenário de fortalecimento de
conservadorismos e têm como pontos de interseção o confronto de morali-
dades em relação ao gênero e à sexualidade e a mobilização do discurso de
defesa das crianças e adolescentes.

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“Gênero e sexualidade já estão na escola”:


refletindo sobre o embate de moralidades
em relação às expressões de gênero e
sexualidade nos espaços educativos

Vanessa Leite

A
o f e n s i va c o n s e r va d o r a q u e v e r i f i c a m o s e m n o s s o pa í s , e n vol-

vendo especialmente questões ligadas a gênero e sexualidade, mas


não só, se articula a um projeto de sociedade que não tem a garan-
tia de direitos humanos no seu horizonte. Ou melhor, que redefine uma
noção de direitos humanos que trabalhamos para construir desde a Cons-
tituição de 1988, a constituição cidadã. Diferente dos anos 90, quando o
enfrentamento de algumas questões ligadas a desigualdades e discrimina-
ções eram entendidas como responsabilidade do Estado, e daí vivenciamos
o fortalecimento da agenda ligada a direitos das mulheres, de crianças e
adolescentes, da população LGBT, entre outras categorias sociais.
Vivemos um momento histórico em que há uma menor aceitação dos
procedimentos democráticos e essa agenda neoliberal se fortalece também
no âmbito dos costumes, se articulando à agenda conservadora religiosa,
mas não só religiosa. A equidade de gênero, o aborto, o casamento entre
pessoas do mesmo sexo e leis e políticas voltadas à educação em sexuali-
dade nas escolas são temas que têm unido amplos setores conservadores,

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e temos assistido reações públicas que fomentam um pânico moral42, que


agrega legiões de pessoas em defesa da família, da heterossexualidade e
contra um pretenso desvirtuamento das crianças e adolescentes.
Vemos hoje crescer a reação a 30 anos de investimento e fortalecimen-
to das lutas e construção de políticas públicas específicas, da garantia de
direitos mulheres, da população LGBT, da população negra, mas também
dos/as quilombolas e da população indígena.
Ao olhar para as questões ligadas a gênero e sexualidade, identificamos
que a partir da Constituição de 1988, torna-se possível que gênero, sexuali-
dade e reprodução instituam-se como campo de exercício de direitos. Car-
rara e Vianna (2008) apontam que, no processo de democratização vivido
no país na década de 1980, assim como em outros países latino-america-
nos, a luta pelo restabelecimento dos direitos políticos clássicos (voto, livre
expressão política, liberdade de associação etc.) conjugou-se a uma agenda
de direitos humanos mais ampla. Nesse sentido, os autores ressaltam que

para tal processo convergiram não apenas as forças de esquerda, afastadas


pelo regime militar, mas também a ação de novos atores políticos que, ao
longo dos anos de ditadura, organizaram-se em torno das problemáticas do
gênero e da sexualidade. Desse modo, foram também trazidos à tona os di-
reitos reprodutivos de mulheres e os direitos sexuais de diferentes minorias
sexuais (2008, pág.334).

Se a atual população LGBT (naquele momento, subsumida indife-


renciadamente na categoria “homossexuais”) pode ser considerada “órfã

42.  Como propõe Rubin (1992), “o tipo mais importante e consequente de conflito sexual é o que Jeffrey
Weeks chamou de ‘pânico moral’” (Weeks, 1981). Segundo a autora “pânicos morais são o ‘momento político’
do sexo, em que atitudes difusas são canalizadas em ação política e, a partir disso, em mudança social. A histeria
da escravidão branca dos anos 1880, as campanhas anti-homossexual dos anos 1950 e o pânico da pornografia
infantil no final dos anos 1970 foram pânicos morais típicos. Devido à sexualidade nas sociedades ocidentais ser
tão mistificada, as guerras sobre ela são comumente combatidas a partir de ângulos oblíquos, focadas num alvo
falso, conduzidas com paixões deslocadas, e são altamente e intensamente simbólicas. (...) Os pânicos morais
raramente aliviam um problema real já que eles focam em quimeras e significantes. Eles tomam a preexistente
estrutura discursiva em que se inventam vítimas para justificar o tratamento dos “vícios” como crimes”.

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da Constituição”, como propõem os autores, visto a orientação sexual e a


identidade de gênero não terem sido incluídas entre as diversas situações
de discriminação a serem combatidas pelos poderes públicos, a ambiência
política de afirmação dos direitos humanos e a movimentação política pós
1988, possibilitou que a sexualidade também começasse a ser publicamen-
te entendida como campo legítimo de exercício de direitos.
Esse processo estava articulado à emergência no cenário político dos
direitos humanos de novos direitos e de novos sujeitos de direitos, a partir
de processo denominado de especificação dos direitos humanos (Bobbio,
1992). Uma universalidade (ou indistinção, ou não-discriminação) na atri-
buição e no eventual gozo dos direitos de liberdade não valeria para os
direitos sociais, e nem mesmo para os direitos políticos, diante dos quais os
indivíduos são iguais só genericamente, mas não especificamente. Essa es-
pecificação ocorreu com relação seja ao gênero, seja às várias fases da vida,
seja às diferenças de forma mais ampla.
O que vivemos no Brasil estava articulado a uma ambiência de afir-
mação de direitos humanos no plano internacional, inclusive os direitos
sexuais e direitos reprodutivos. Como afirma Petchesky (1999), antes de
1993, a sexualidade e suas manifestações estiveram ausentes do discur-
so internacional sobre direitos humanos. Nesse sentido, a II Conferência
Mundial de Direitos Humanos em Viena, em 1993, teve papel fundamen-
tal, pois introduziu o “sexual” na linguagem dos direitos humanos, mas
este surge ligado à violação de direitos. Na Conferência Mundial sobre Po-
pulação e Desenvolvimento do Cairo em 1994, é que a sexualidade, na ex-
pressão “saúde sexual”, apareceu como algo positivo, não necessariamente
ligada à violência. A partir dessa Conferência, no espaço político dos di-
reitos humanos, a sexualidade – pelo menos na sua dimensão reprodutiva
– apareceu permeada por uma positividade e ligada a ideia de liberdade,
ao se constituir como um direito. As questões de sexualidade no contex-
to dos direitos humanos partiram assim da ideia de direitos reprodutivos e
possibilitaram a construção da ideia de direitos sexuais, que permeou as
discussões na IV Conferência Mundial da Mulher em 1995 (Beijing).

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Como propõe Carrara (2015), podemos dizer que vivemos hoje em


um contexto social e político onde diferentes moralidades em relação à
sexualidade e ao gênero se confrontam na sociedade e disputam lugares de
poder nas estruturas do Estado. Uma dessas moralidades, que poderíamos
chamar, grosso modo, de mais conservadora, foi forjada no século XIX e
em boa parte do século XX, e em seus termos a fronteira entre o bom e
mau sexo era estabelecida, sobretudo, por seu caráter reprodutivo ou não,
e que, por consequência, a heterossexualidade era a norma. Acompanha-
mos a emergência de uma outra moralidade baseada na ideia do exercício
da sexualidade enquanto direito, na existência de “direitos sexuais”.
Rios (2006) discute que “desenvolver a ideia de direitos sexuais na pers-
pectiva dos direitos humanos aponta para a possibilidade do livre exercício
responsável da sexualidade”. Para o autor, os princípios fundamentais liga-
dos ao direito à sexualidade seriam liberdade e igualdade, cuja afirmação,
ele ressalta, “implica o reconhecimento da dignidade de cada ser humano
de orientar-se, de modo livre e merecedor de igual respeito, na esfera da
sexualidade”. E o exercício dos direitos de liberdade e igualdade nas mani-
festações e expressões da sexualidade requer a consideração da dimensão
da responsabilidade. Como o autor ressalta, “a responsabilidade traduz o
dever fundamental de cuidado, respeito e consideração aos direitos de ter-
ceiros”. Assim, a ideia de consentimento está na base do ideário dos direitos
sexuais, visto que está ligada à liberdade e às condições de discernimento
dos indivíduos, bem como sobre as posições de poder envolvidas em rela-
ções sexuais.
Debater a construção do ideário dos direitos sexuais é acompanhar um
processo recente, ainda em construção e que envolve, um conjunto hete-
rogêneo de atores. A ideia de direitos sexuais e à livre expressão de gênero43

43.  Forjada no campo dos direitos humanos, a categoria direitos sexuais foi incorporada ao plano político e
acadêmico. Em geral, os autores que discutem aspectos ligados à diversidade sexual e de gênero ainda utili-
zam essa terminologia que, a meu ver, começa a ficar restrita para se referir às discussões, como a que desen-
volvo, ligadas tanto a diferentes expressões da sexualidade como também a trânsitos e identidades de gênero.
Nesse sentido, optei por incorporar, como alguns autores (Almeida e Murta, 2013) a expressão direitos sexuais
à livre expressão de gênero.

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dissemina uma perspectiva da vivência da sexualidade e das expressões de


gênero como algo positivo em si mesma, um direito humano, não necessa-
riamente ligada à violência, ao casamento ou à reprodução. Contudo, uma
das complexidades do processo que vivemos é que, as concepções sobre as
quais os regimes da sexualidade44 se apoiam não são exatamente sucessivas
no tempo, mas convivem tensamente no cenário contemporâneo (Carra-
ra, 2015), em diferentes modos de articulação e, como vemos, de enfren-
tamento. E a escola e as políticas de educação têm sido a principal arena
desses confrontos, um dos principais palcos do enfrentamento entre essas
diferentes concepções e valores em relação ao gênero e à sexualidade.
E esses enfrentamentos se mostram: (i) na elaboração de normativas
da política de educação; (ii) nas controvérsias públicas que envolvem a
política de educação e a diversidade sexual e de gênero; (iii) bem como
no fazer cotidiano das escolas e dos educadores. É fundamental estarmos
atentos para essas diferentes dimensões da política de educação, onde se
apresentam disputas de concepções, valores e projetos de sociedade.
Nas pesquisas que tenho desenvolvido na última década e no contato
com educadoras e educadores tenho buscado contribuir para a reflexão
e debate de como os espaços educativos têm lidado com as expressões de
gênero e sexualidade das crianças e adolescentes, e os desafios que estão
colocados para nós, especialmente nesse contexto de fortalecimento de
conservadorismos.
No que diz respeito ao gênero, um ponto preocupante é a enorme força
de normas e convenções sociais que, desde a primeira infância, excluem
e discriminam aqueles que não “cumprem” com o que é esperado para o

44.  Como propõe o autor, “ao longo do século XIX e durante boa parte do século XX, forjou-se um regi-
me da sexualidade bem específico, cuja análise mais influente devemos a Michel Foucault. Nesse regime,
invertendo o famoso slogan feminista dos anos 60, “nosso corpo não nos pertence”. No que dizia respeito à
sexualidade, a sociedade, o Estado, a família tinha direitos; os indivíduos tinham, sobretudo, obrigações e de-
veres (...) Fruto da relação dinâmica de múltiplos atores sociais (ativistas, gestores públicos, políticos, juristas,
intelectuais etc.), os direitos sexuais podem ser considerados espécie de símbolo de um novo regime da sexua-
lidade, com sua moralidade, racionalidade e regulações específicas”. Assim, segundo o autor, “passamos de
um regime da sexualidade cuja linguagem era predominantemente médica, para um regime que se formula
em uma linguagem jurídica”. (Carrara, 2011, págs. 02, 03 e 04).

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gênero que lhes foi atribuído ao nascer. Desde muito cedo as crianças são
cobradas a assumir posições em relação ao seu gênero que mantém as de-
sigualdades e uma cruel hierarquia de gênero. Às meninas é imposto um
lugar social de submissão aos desejos masculinos. Ainda é esperado delas
uma preparação para o cuidado doméstico, o casamento e a maternidade.
Às mulheres ainda cabe a responsabilidade do mundo privado. Em muitos
contextos, as meninas têm sua permanência na escola comprometida pelo
trabalho doméstico e o cuidado de irmãos mais novos. Além disso, mui-
tas ainda enfrentam violências e abusos cotidianos. Contudo, desde muito
pequenos, aos meninos é cobrado um conjunto de posturas que visam à
reafirmação de uma masculinidade hegemônica. A negação da possibili-
dade de expressão das emoções, uma estimulação excessiva em relação ao
exercício da sexualidade e a desvalorização da mulher e do mundo femi-
nino são exemplos de uma realidade que contribui enormemente para a
manutenção das desigualdades de gênero.
Temos usado, em sociedade, a diferença para construir desigualdade.
Há muitas formas de vivenciar a feminilidade e a masculinidade. Só que
há um padrão, que é ensinado a todos como o certo. As crianças, desde
muito pequenas, são ensinadas sobre o que a menina deve e não deve fa-
zer, qual o lugar do menino e que comportamento é esperado dele. As
crianças já estão sendo educadas em relação ao gênero, uma certa forma
de entender qual o lugar do masculino e qual o lugar do feminino. Desde
cedo são ensinados sobre o que é “ser menino” e o que é “ser menina”. A
educação da família, e que depois se mantém na escola, é ainda hegemo-
nicamente pela afirmação de uma concepção em relação ao gênero que
separa e hierarquiza o mundo masculino do mundo feminino de forma
brutal. E quando se chega à adolescência, com a vivência da sexualidade,
essas separações e hierarquizações se fortalecem.
Nos meninos são valorizadas a agressividade e a competitividade. Des-
de muito jovens enfrentam o estímulo a uma “sexualização”, porque o me-
nino tem que ser o “pegador”, e eles têm que se submeter a essa estrutura,
que é muito violenta. No caso das meninas é ainda pior, pois lidam com

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uma realidade onde lhes é negada uma série de vivências. São aspectos,
em alguns momentos, muito sutis, que estão no cotidiano das relações e
nas instituições, o que faz com que as pessoas muitas vezes não se deem
conta. Que atividades são permitidas, modos de agir, comunicar, vestir.
Negar a discussão de gênero nos espaços educativos acaba por manter va-
lores que, ao mesmo tempo em que desqualificam e desvalorizam as me-
ninas, são muito pesados para os meninos, de quem é cobrado um tipo de
masculinidade baseada em virilidade extrema e agressividade. Ao contrário
do que é dito quando se defende a não discussão de temas ligados a gênero
na escola, defender os direitos das crianças e adolescentes, é possibilitar
que essas desigualdades sejam discutidas.
Outro aspecto importante é que as normas de gênero são muito rígi-
das. Às crianças que não cumprem com o que é esperado de seu gênero
é imputada uma homossexualidade. A grande maioria das crianças consi-
deradas “diferentes” ainda não está pensando com quem vai se relacionar
ou desejar afetivo/sexualmente mais tarde, apenas não cumpre com uma
expectativa de gênero que lhes é imposta. Há uma confusão entre expres-
sões de gênero e orientação sexual.
No que diz respeito à sexualidade, minha experiência junto a espaços
educativos tem demonstrado que a grande maioria das instituições não tra-
ta formalmente o tema da sexualidade e das expressões de gênero com as
crianças e os adolescentes, negando, de certa maneira, essa dimensão da
vida deles. Quando esses temas aparecem, é numa perspectiva negativa,
vinculada a supostos “problemas”, como a gravidez (considerada sempre
“indesejada”), às doenças sexualmente transmissíveis/Aids e à violência (es-
pecialmente ao abuso e à exploração sexual). A maioria das experiências
educacionais no campo da sexualidade e do gênero voltadas a adolescen-
tes baseia-se fundamentalmente no repasse de informações. Me parece
que não se consegue “descolar” a sexualidade de um pano de fundo de
valores intensamente negativos. A sexualidade é abordada quase sempre na
perspectiva do risco e não na do direito. Não há uma perspectiva de articu-
lar as dimensões de gênero e sexualidade a outras na vida dos adolescentes

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e, essa postura, está ligada a uma dificuldade dos profissionais em lidarem


com o tema. Uma inabilidade não apenas técnica, mas fundamentalmen-
te ética, porque os educadores estariam imbuídos de preconceitos (Lei-
te, 2013).
Ainda lidamos com concepções de adolescência45 “naturalizadoras”,
determinadas pelo aspecto biológico. É reforçado um entendimento da
adolescência a partir da teoria dos instintos e dos hormônios, onde a se-
xualidade46 adolescente estaria completamente submetida a uma força
biológica, que precisa ser “controlada”, e frente a qual os adolescentes es-
tariam especialmente vulneráveis. Assim, o tema da sexualidade em sua
perspectiva mais ampla, e como afirmação de um direito, acaba não sendo
assumido pelos espaços educativos, visto que tem sido hegemonicamente
tratado a partir do “problema”, mantendo a meu ver, em última instância,
uma postura de controle repressivo sobre os adolescentes, sem uma efetiva
vinculação com a garantia de seus direitos.
Essa perspectiva de controle repressivo sobre os corpos incide de forma
diferente em relação a meninos e meninas, pois as convenções de gênero
aparecem para demarcar uma forma diferenciada de lidar com o tema.
Em relação às meninas, esse controle está mais explícito, em função de a

45.  O conceito de adolescência é um constructo historicamente datado e, na moderna civilização ocidental,


corresponde a um período de passagem da infância à idade adulta, que foi sendo expandido. Opondo-se ao
conceito de adolescência, a sociologia contemporânea tem operado, em geral, com o conceito de juventude,
representativo do caráter que as novas gerações trazem à sociedade, e entende esse termo como um processo
social de passagem ou entrada na vida adulta. Assim, os dois termos “adolescência” e “juventude” habitam
trabalhos ligados a diferentes campos do conhecimento para se referir a uma parcela da população, que tam-
bém vem sendo definida na esfera nacional e internacional por intervalos etários nem sempre coincidentes.
Aproximo-me da perspectiva de que a adolescência e a juventude não configuram fenômenos homogêneos, o
que leva a considerar diferentes adolescências e juventudes, pautadas por processos sociais distintos e atravessa-
das por diferentes marcadores sociais como classe social, gênero e raça.
46.  Partilho da concepção de que a sexualidade é uma experiência complexa que envolve aspectos culturais,
sociais, históricos e políticos, além da dimensão biológica e psicológica. Assim, ela não deve ser entendida
como uma mera questão de instintos, impulsos e hormônios. Como propõe Heilborn (1999), “o argumento
da construção social do sexual, considera que essa dimensão humana não é natural, nem universal em sua
forma de expressão, nem inata e, de um ponto de vista sociológico, não pode ser interpretada como pulsão
psíquica ou função biológica. De um modo geral, os antropólogos e sociólogos consideram que a expressão da
sexualidade se dá em um contexto social muito preciso, o que orienta a experiência e a expressão do desejo,
das emoções, das condutas e práticas corporais” (1999:43).

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gravidez ainda ser tratada como um “problema de meninas” em nossa so-


ciedade. Assim, quando se pensa na sexualidade das meninas, a via de ex-
pressão é o controle da reprodução. Além disso, a forte perspectiva de con-
trole no exercício da sexualidade das meninas, com o intuito de evitar uma
gravidez, não emerge como tão pertinente em relação aos meninos, como
se eles não precisassem ser educados sexualmente. Se o “problema” das
meninas é que elas engravidam, o “problema dos meninos” é a da constru-
ção de uma masculinidade em oposição a uma possível homossexualida-
de. Quando o tema é homossexualidade e transexualidade, a abordagem
junto a meninos e meninas é ainda mais problemática e as instituições em
geral, agem de forma bastante discriminatória.
Quando o tema é homossexualidade, bissexualidade, travestilidade e
transexualidade, a maioria dos educadores assume “preconceitos”, ou ex-
plicita suas contradições. O posicionamento de alguns deixa claro que o
maior “problema” são as travestis e as/os transexuais, pois estes incomo-
dam, porque rompem com uma certa regra do silêncio. Rompem com a
lógica de que “você pode até fazer, mas não pode expressar”. A visibilidade
nos corpos desses sujeitos traz à tona o incômodo, que não assumido pela
instituição e pelos educadores, volta-se contra o adolescente que ousa re-
velá-lo. Um educador ao relatar a experiência de sua instituição, me disse
que se não houver um acordo (ou seja, adesão às roupas e comportamento
esperado do gênero a ele atribuído), o adolescente não poderá ser “prote-
gido da violência dos outros”, ele que “será o prejudicado”. Assim, o/a ado-
lescente acaba sendo responsabilizado/a por possíveis problemas vividos
na instituição, efeito dos preconceitos tanto dos outros adolescentes quan-
to dos próprios profissionais, aqui encobertos pelo discurso da proteção.
Agora, mesmo que “haja acordo” com a instituição, esse adolescente será
vitimizado por desrespeito à sua identidade de gênero.
Adolescentes e jovens que rompem com convenções sociais de gêne-
ro e sexualidade esses jovens estão particularmente expostos a situações
de violência e discriminação nos espaços educativos. A escola tem um pa-
pel central para os jovens. É lá que eles passam boa parte de suas vidas,

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constroem suas redes de sociabilidade e experimentam a maioria de seus


valores. Na adolescência todas as pessoas começam a identificar objetos
de desejo e afeto e isso faz com que os desejos por pessoas do mesmo sexo
apareçam, a despeito de ainda vigorar um rechaço a esse desejo e à possí-
vel incorporação de uma identidade lésbica, gay ou bissexual nas conven-
ções hegemônicas em nossa sociedade.
Os relatos e a literatura relacionada a travestilidades e transexualidades
apontam que o incômodo ou descompasso com as performances de gêne-
ro esperadas desses sujeitos, em função do gênero que lhes foi atribuído ao
nascer, aparecem muitas vezes na infância. Mas sem dúvida, a tão referi-
da “explosão dos hormônios” na adolescência, que marca definitivamente
corpos generificados, em geral é uma “explosão das ilusões” desses sujeitos
de que poderiam viver no gênero com o qual se identificam. Pois uma pos-
sível infância mais tranquila, onde o brinquedo poderia ser trapacear com
a imposição de um gênero, se desfaz completamente com a concretização
no corpo de um ser mulher ou homem e a cobrança que vem articulada
de uma adaptação também às convenções em relação à sexualidade, im-
pondo uma heterossexualidade a esses jovens.
A partir dessas reflexões, é imprescindível que comecemos a compreen-
der a importância de pensar as expressões de gênero e sexualidade como
constitutivas da vida das crianças e adolescentes. É importante ressaltar-
mos que desde antes de nascer qualquer pessoa em nossa sociedade está
à mercê das expectativas e normas em relação ao gênero e à sexualidade.
Desde a cor e estilo das roupas do bebê até a arrumação do quarto e os
brinquedos que ele ou ela ganham. Desde muito pequenas as crianças são
massacradas por uma pedagogia do gênero e da sexualidade que vai con-
formando não só uma forma de viver a feminilidade e a masculinidade,
uma forma “correta” de ser menino ou ser menina, como também vai con-
formando que ser menino ou menina do jeito certo é desejar pessoas do
gênero oposto. Assim, os valores e as representações sociais hegemônicas
sobre gênero e orientação sexual nos são transmitidos desde a mais tenra
idade. E a escola tem ocupado um papel de reprodução e reafirmação

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desses valores. Aqueles que ousam confrontar essas normas tanto de gê-
nero quanto de sexualidade, estarão expostos às mais variadas formas de
violência, das mais sutis às mais destrutivas.
No bojo dessa reflexão, um aspecto que merece atenção especial é a
tensão entre público e privado, entre a construção de espaços de atendi-
mento públicos e laicos e a fixação a valores religiosos conservadores. Essa
tensão tem operado no sentido de provocar mais paralisia do que transfor-
mação nos espaços educativos. Vinculações e dogmas religiosos dos educa-
dores podem fazer com que suas posições pessoais, ligadas a convicções de
ordem privada, impeçam ou dificultem que eles levem a cabo discussões
ligadas a gênero e sexualidade. E dificultam um posicionamento mais re-
ceptivo à diversidade sexual e de gênero.
É fundamental chamar a atenção para o fato de que as educadoras e
educadores têm um papel central na luta contra a discriminação que tem
promovido o sofrimento de diversas pessoas a partir das diferenças de com-
portamento ou expressão. E ressaltar o papel da educadora e educador
público para promover a formação integral de sujeitos que sejam capa-
zes de romper com os ciclos de desigualdade. Ao mesmo tempo, torna-se
importante discutir a missão da escola pública enquanto espaço onde as
diferenças possam ser acolhidas e respeitadas. Esse é um tema difícil, mas
precisamos enfrentá-lo. Mas se tivermos clareza de que o papel da escola
não é se intrometer nas convicções pessoais, mas promover o respeito e a
liberdade, talvez possamos avançar.
Outro aspecto que julgo fundamental é o estatuto de sujeito da popula-
ção infanto-juvenil. O discurso dos direitos humanos foi fundamental para
a afirmação do campo de garantia dos direitos das crianças e adolescentes,
pois sua conformação se deu a partir do impacto de um ideário dos di-
reitos humanos, que se fortalecia internacionalmente, no que poderíamos
denominar um “campo da menoridade” no Brasil47. Com a mudança do

47.  A Convenção Internacional dos Direitos da Criança foi aprovada em 1989 pela Assembleia-Geral da ONU.
O novo instrumento internacional de direitos humanos colocou na irregularidade a doutrina da “situação irre-
gular”, pano de fundo de todas as políticas jurídicas e socioeducacionais vigentes no Brasil bem como em toda

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marco legal brasileiro48 e a aprovação do Estatuto da Criança e do Adoles-


cente – ECA construiu-se um novo paradigma para o direito infanto-juve-
nil. Crianças e adolescentes deixam de ser objeto de proteção assistencial
e passam a titulares de direitos. Costa (2006) propõe que o Estatuto está
ligado a um novo projeto de sociedade, calcado na garantia dos direitos
humanos, e demanda a construção de uma nova relação do mundo adulto
com a infância e adolescência, visto que a sociedade brasileira foi histori-
camente autoritária e tutelar com as crianças. Enfrenta-se um conjunto
de mudanças e desafios, ao ter que lidar com as novas concepções que o
marco legal impôs à sociedade.
Os desafios impressos nessas mudanças dizem respeito fundamental-
mente à necessidade de reflexão acerca dos valores e concepções cons-
truídos historicamente em nosso país em relação à infância e juventude, e
que se traduzem em políticas e programas de atendimento a essa categoria
social. Passados mais de vinte e cinco anos após a mudança do marco le-
gal, ainda assistimos a um intenso embate de diferentes concepções em
relação ao trato com o público infanto-juvenil. A meu ver, lidar com as
crianças e adolescentes como sujeitos de direitos é apostar na construção
de uma agenda positiva em relação ao conjunto de aspectos de sua existên-
cia, inclusive o gênero e a sexualidade.

a América Latina desde a promulgação, pela Argentina, em 1919, da primeira legislação de menores da região.
A promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, em 1990, superou legalmente o modelo da
doutrina da “situação irregular”, substituindo-o pelo paradigma da “proteção integral”, abrangendo todas as
crianças e adolescentes. Essa substituição tem implicado na busca de mudanças nos métodos de intervenção,
que não devem ser mais punitivos, mas educativos, e de respeito ao seu desenvolvimento (Carvalho, 2000).
48.  Na efervescência do processo de democratização da sociedade brasileira, construiu-se uma grande alian-
ça de setores da sociedade civil e política em torno da problemática das crianças e adolescentes no Brasil.
Articulava-se o Movimento de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, que contou com o envolvi-
mento de diferentes atores sociais. Essa grande frente foi se conformando como um movimento que construiu
estratégias de sensibilização da opinião pública, denunciando prisões ilegais, torturas, assassinatos, toda sorte
de violação de direitos da população infanto-juvenil pobre no país. Essa mobilização se fortaleceu no período
constituinte e teve seu primeiro êxito ao conquistar o reconhecimento dos direitos sociais básicos, não mais
dos menores, mas de todas as crianças e adolescentes brasileiros, independente de classe social ou raça, no
texto constitucional de 1988, através dos artigos 227 e 228.

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Assim como em relação à sexualidade, que passa por um processo de


transformação, onde, como propõe Carrara (2015), os direitos sexuais se-
riam um símbolo de um novo regime da sexualidade, o paradigma das
crianças e adolescentes como sujeitos de direitos também marca uma rup-
tura em relação à história da forma como foram entendidos e tratados nas
políticas voltados a esse público. A partir dessas ideias entendo que a arti-
culação entre infância/adolescência e gênero/sexualidade seja um lugar
estratégico para abordar um processo de transformação social no qual os
jovens ocupam lugar privilegiado, e onde se explicita mais claramente o
confronto entre uma moralidade baseada na família, reprodução, heteros-
sexualidade e uma nova moralidade baseada no consentimento e no ideá-
rio dos direitos sexuais.
A partir de um entendimento de que o campo da educação se consti-
tuiu historicamente como um espaço disciplinador e reprodutor de desi-
gualdades (Junqueira, 2009), muito trabalho tem sido desenvolvido para
que as escolas incorporem uma postura diferenciada no trato com as ex-
pressões de gênero e sexualidade das crianças e adolescentes, e assim, as
reações conservadoras se fortalecem também na escola. Proponho refle-
tirmos que os espaços educativos se apresentam como o lugar do conflito,
onde diferentes concepções e valores em relação à sexualidade se confron-
tam, articuladas a questões ligadas à forma como os jovens são vistos e tra-
tados pelo mundo adulto.
Os “adolescentes LGBT”49 enquanto categoria social, emergem no ce-
nário político brasileiro nessa última década, tornando-se foco de muitas
disputas, sejam políticas, discursivas ou ideológicas, sendo, ao mesmo tem-
po, preocupação de diferentes políticas de governo, perturbando qualquer

49.  Optei por dar ênfase no meu trabalho à categoria “adolescentes LGBT” e não “jovens LGBT”, tendo
consciência da “ficção” que representam os marcadores etários, por julgar que a utilização dessa categoria
rende mais, em termos reflexivos, para a análise dos discursos e das diferentes concepções que envolvem a
adolescência/juventude. Demarco, assim, a intenção de direcionar a reflexão tendo como referência um mar-
co etário, não por acreditar que “naturalmente” os sujeitos têm comportamentos definidos pela idade, a partir
de uma perspectiva essencialista e biologicista, mas por buscar entender como se lida com esses sujeitos “me-
nores de idade”, quando sua sexualidade e expressões de gênero estão em jogo. Foco assim, principalmente
nas ações e reações em relação a essa categoria social.

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possível tranquilidade dos profissionais que atuam junto a crianças, adoles-


centes e jovens. Costumo afirmar que “essa meninada está botando o pé
na porta”. Com sua presença desafiadora e perturbadora nas instituições a
que estão ligados/as, esses jovens têm forçado os profissionais e as institui-
ções a se repensarem, têm impelido à construção de novas institucionali-
dades que deem conta de suas necessidades, exigências e problemáticas.
Desenvolvi pesquisa nos Centros de Cidadania LGBT do Estado do
Rio de Janeiro (CCLGBT)50, serviços governamentais previstos no Progra-
ma Rio sem Homofobia, para conhecer os casos de adolescentes que aces-
savam os centros. Depois das famílias e da vizinhança, as escolas seriam,
segundo os profissionais dos CCLGBT, o espaço social onde os adolescen-
tes encontram maiores dificuldades na vivência da diversidade sexual e de
gênero. Como já abordado anteriormente, são as políticas de educação as
que mais se relacionam com as crianças, adolescentes e jovens.
Ouvi relatos de casos dos mais diversos envolvendo atitudes discrimina-
tórias de diferentes atores da escola. Como por exemplo, o caso da adoles-
cente de 16 anos que entrou em contato com o CCLGBT relatando que
não havia conversado com seus pais sobre sua orientação sexual e o diretor
da escola em que estudava chamou seus pais para uma reunião e comuni-
cou a eles que ela era lésbica, o que causou muitos conflitos na família. A
jovem procurou o serviço para saber o que poderia fazer para responsabi-
lizar esse diretor. Ou a ligação de uma travesti, de 15 anos, moradora de
uma cidade do interior, para denunciar que a diretora da escola em que
estudava perseguia travestis.

50.  O Programa Rio sem Homofobia foi criado sob a coordenação da Superintendência de Direitos Indivi-
duais, Coletivos e Difusos (SUPERDIR) da Secretaria Estadual de Assistência Social e Direitos Humanos
(SEASDH). Os Centros da Cidadania LGBT (CCLGBT) são serviços de acolhimento, atendimento, orienta-
ção, encaminhamento e acompanhamento de pessoas vítimas de preconceito e discriminação por orientação
sexual e identidade de gênero nas áreas social, psicológica e jurídica, garantindo acesso a direitos, serviços e
políticas públicas. Realizei trabalho de campo nos quatro CCLGBT em funcionamento à época da realiza-
ção da pesquisa (2011 a 2014): Rio de Janeiro (Capital), Caxias, Niterói e Friburgo. Estabeleci diálogo com
as equipes técnicas dos Centros (formadas por assistentes sociais, psicólogos e advogados), coordenadores e
gestores do Programa. A última gestão do governo estadual do Rio de Janeiro (governador Luís Fernando Pe-
zão – PMDB) veio progressivamente desmontando o Rio sem Homofobia e os serviços ligados ao Programa.
Processo que se intensifica na atual gestão governamental (governador Wilson Witzel – PSC).

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Um outro caso que chamou muita atenção foi o de uma mãe que aces-
sou o Centro, “desesperada”, segundo os profissionais, porque seu ex-ma-
rido estava tentando retirar de sua guarda um filho de 15 anos. Segundo
relataram, “o pai queria tirar a guarda porque achava que ela era muito per-
missiva com o filho que era viadinho”. Essa mãe morava com outra mulher
e trabalhava em uma escola técnica onde seu filho estudava. O pai acessou
a diretora da escola e conseguiu transferir o filho da escola à revelia da
mãe. Essa diretora assinou um parecer onde concordava com a mudança
de guarda, de certa forma culpabilizando a mãe pela orientação sexual do
filho, afirmando que ele era “gay”. O profissional me relatou que “o pai
pegou esse papel com a diretora e entrou com uma ação de guarda (...) A
mãe tinha uma relação homoafetiva, né?”. Muitos professores também são
acusados de atitudes desrespeitosas pelos adolescentes que acessaram os
Centros.
Ouvi relatos de familiares que buscaram os Centros em função de pro-
blemas na escola de seus filhos, sobrinhos ou netos. Como a mãe que pro-
curou o serviço afirmando que seu filho de 17 anos era gay e estava sendo
constantemente discriminado por um professor. Ela se mostrava temerosa
do que ainda poderia acontecer. Essa mãe relatou um fato marcante so-
frido por seu filho, registrado pelo profissional do CCLGBT: “na hora da
saída, seu filho ao descer a escada, esbarrou no professor e o mesmo falou,
‘não encosta em mim porque eu tenho nojo’”.
Se a maioria dos casos relatados diz respeito a atitudes mais individua-
lizadas, que, é claro, contam com a conivência e silenciamento de muitos
outros, alguns casos envolvem posturas institucionais, como a história de
uma jovem de 15 anos, que foi expulsa da escola particular em que estuda-
va, em um município da Baixada Fluminense, “por ser lésbica”. A mãe da
jovem acessa o Centro junto com a menina para denunciar que sua filha,
segundo registro do profissional, “sofreu até o fim do ano letivo repressões
por parte da coordenadora da escola que ameaçou reprová-la. A chamava de
lésbica e passou a orientar os outros alunos a não manterem contato com a
jovem, para não serem aliciados, influenciados”. Segundo o relato da mãe,

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a coordenadora da escola afirmou publicamente, no balcão da secretaria,


“está aqui quentinha a expulsão da sua filha, porque é lésbica”. A mãe ain-
da relatou que foi conversar com o diretor da escola com uma câmera es-
condida e gravou o discurso dele, reiterando a posição institucional, apre-
sentada pela coordenadora.
Um aspecto interessante desse caso é que a jovem não se identificava
como lésbica. Ela afirmou para o profissional que a atendeu que é heteros-
sexual. Sua mãe afirmava que a orientação sexual de sua filha não impor-
tava. Segundo o profissional me relatou, “ela tem cabelo curtinho, bermu-
dão, adora ficar com os meninos. O negócio dela é funk”. Para nós também
não importa se a jovem era ou não lésbica. O que chama a atenção é o
poder dessa instituição em estigmatizar um jovem sem qualquer temor de
vir a ter que responder judicialmente por isso. Além disso, vem à baila a
discussão do quanto as normas de gênero são fundantes da moralidade he-
gemônica em muitos espaços educativos. Enunciar que não se é gay ou
lésbica não importa em uma lógica institucional que articula diretamente
expressões de gênero e sexualidade. A força das normas de gênero é tão
grande que serve para uma escola expulsar uma aluna “por ser lésbica”,
sem a mesma se identificar como tal.
Contudo, como afirmou um dos profissionais do CCLGBT, “o interes-
sante é que a escola pode ser aquela que viola direitos, mas ao mesmo tempo
pode ser a que promove”, pois, falando sobre as demandas dos jovens, ele
afirmava que havia os casos em que o jovem vinha com a denúncia de
discriminação na escola, mas os Centros também recebiam demandas da
escola, pedindo ajuda para trabalhar “questões problemáticas” no cotidiano
escolar. Como afirmou um dos gestores dos Centros, em reunião, “temos
recebido busca das instituições para receber informações e conversar sobre
como lidar com a questão LGBT (...) Há a demanda do aluno que sofre
discriminação, como do gestor que pede ajuda em conflitos”. Ao ressaltar o
desafio dos CCLGBT para lidar com novas demandas, para além da vio-
lência, ele ressaltou que “ainda não temos um método para falar com os
professores como garantir os direitos de jovens LGBT”. Visto que, segundo

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ele, “quem mais discrimina na escola não é o colega, é o professor. Mas é


falta de informação sobre sexualidade”. Outro gestor ressaltou que “ainda
há muita dificuldade da rede de educação em incorporar esse tema”.
Ouvi de vários profissionais que a demanda das escolas por “palestras”
vinha aumentando. Como afirmou um deles, “tem bastante demanda da
gente ir pras escolas, conversar com os alunos, conversar com os professores,
falar sobre homofobia na escola”. Os relatos referem-se a solicitações de
realização de atividades junto a professores e gestores, mas também volta-
das aos alunos, “já chegou pedido aqui pra que a equipe fosse até a escola fa-
zer uma palestra para os alunos, trabalhar um pouco essa questão de quem
são esses sujeitos LGBTs”. Em pesquisa desenvolvida (Leite, 2013), discuti
a tendência das instituições que atuam junto a adolescentes e jovens, e
aqui, incluem-se as escolas, de trabalhar com o tema da sexualidade a par-
tir do convite a “especialistas”, dada a pretensa inabilidade ou desconhe-
cimento dos profissionais de educação sobre o tema. O que acaba restrin-
gindo o trabalho educativo em relação à temática a palestras pontuais de
“especialistas”, não se constituindo um processo contínuo de educação em
direitos humanos.
Os relatos dos profissionais dos CCLGBT parecem confirmar essa ten-
dência no que tange ao trato das questões relacionadas à diversidade sexual
e de gênero nas escolas. Rohden & Carrara (2008) ao discutirem o percur-
so de uma experiência de formação de professores em gênero, sexualida-
de e raça/etnia afirmam ter encontrado entre os educadores envolvidos no
curso essa mesma postura. Os autores afirmam a importância de romper
com essa perspectiva, visto que

(...) discutir gênero, sexualidade e raça/etnia e lutar contra o preconceito


deve ser uma tarefa de todos/as. Nesse sentido, ao contrário de relegar o
assunto para um especialista a ser convidado eventualmente para discutir
com os alunos, procuramos destacar o comprometimento dos/as cursistas
e incentivar a sua procura por formação e informação de diversas formas
(2008, pág.24)

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Os profissionais também relataram casos em que a própria escola con-


seguiu lidar com os problemas e garantir o respeito aos estudantes LGBT
sem uma intervenção dos Centros. Um caso apresentado foi o de uma ado-
lescente de 14 anos estudante de uma escola de um município da Baixada
Fluminense, que procurou o Centro porque estava sofrendo discriminação
por parte de colegas da escola. Quando o profissional conseguiu contato, ela
falou: “Ah não! Mas já tá resolvido. O diretor chamou os meninos que impli-
cavam comigo. Conversou com eles, conversou comigo, me explicou algumas
coisas”. O profissional relatou que imediatamente pensou: “será que o diretor
fez aquela coisa? Menina se comporta!”. Ele então telefonou para o diretor
que explicou que “os meninos mexiam com ela”. O profissional relatou que

(...) acho que ela era um pouco mais masculinizada, como as pessoas enten-
dem. Ele disse que ela jogava futebol há muito tempo. E aí começou uma
zoeira na escola que ela era sapatão e não sei que, essa confusão. Mas a
conversa com o diretor foi muito boa. Ele não só a abordou, chamou a aten-
ção dos meninos, e ele conversou sobre a possibilidade da gente fazer uma
sensibilização lá.

Esse caso retoma a discussão sobre o quanto as normas de gênero inter-


ferem e, de certa forma, determinam, a forma como meninos e meninas
conseguem se relacionar nos diferentes espaços sociais em que convivem.
Ser mais “feminino” ou mais “masculina”, ou ainda não cumprir exata-
mente com os estereótipos de gênero, interfere de forma decisiva no per-
curso desses jovens. Esse processo se inicia na infância, e como afirmado,
a escola tem se mostrado uma das principais instituições de controle das
convenções de gênero. Como no relato de um profissional dos CCLGBT
que, referindo-se a um tempo em que trabalhava em escolas, disse ter ou-
vido afirmações de colegas do tipo: “cuidado, fulano tá virando gay, não
vamos estimular”, ao falarem de um aluno de dez anos que gostava de dan-
çar. Bento (2013), na introdução do livro de Teixeira (2013), em que se
discute trajetórias de pessoas trans, afirma que

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(...) quando Carolina, uma de suas colaboradoras, é “jogada no lixo”,


aos sete anos de idade, condenada a ser uma “sucata do mundo” (Perei-
ra, 2004), neste momento não estava em jogo o debate sobre direitos de
pertencimento à cidadania, mas um estranhamento que a tornava excluí-
da da possibilidade da convivência social. São seus coleguinhas de escola
que riem dela, que a excluem. O que os pais veem quando expulsam seus
filhos de casa? Por que a professora não suporta a presença de meninos
femininos e meninas masculinas? O que estes corpos evocam nas subjeti-
vidades daqueles empoderados pelas normas de gênero e pela heteronor-
matividade? (2013, pág.14)

O primeiro relato de todos os profissionais dos CCLGBT, quando per-


guntados sobre situações envolvendo escolas e jovens, é de eventos de des-
respeito e violência, o que se coaduna com o que vêm apontando pesqui-
sas realizadas em escolas51 e a produção acadêmica voltada ao tema52. Em
geral, as escolas não têm incorporado um entendimento da diversidade se-
xual e de gênero como algo que faz parte da vida dos jovens, logo, algo que
comporia o cotidiano escolar. Contudo, os relatos desses mesmos profissio-
nais nos mostram que há muitas formas de lidar com a diversidade sexual
e de gênero dos jovens pelos diferentes agentes institucionais da educação.
O confronto de moralidades em relação ao gênero e sexualidade também
está presente no cotidiano de cada escola. A escola é aquela que discrimina
e expulsa, mas também pode ser a que protege e acolhe. Assim, se há o for-
talecimento de um discurso mais conservador, verificamos também, que
há muita resistência sendo construída.
As diferentes moralidades em relação à sexualidade e ao gênero, ha-
bitam a escola. Nossa experiência tem mostrado que a escola pode ser o
lugar em que se discrimina, que se pune as diferenças, onde vinculações e

51.  UNESCO (2004a); UNESCO (2004b); Rede de Informação Tecnológica Latino-Americana (2009);
Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (2009); Reprolatina (2011).
52.  Ver, entre outros, Louro (2010); Altman (2007); Junqueira (2009a, 2009b, 2009c); Lionço e Diniz (2008
e 2009); Prado et al (2009); Fernandes (2011); Pocahy et al (2009); Daniliauskas (2011).

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dogmas religiosos dos educadores dificultam ações mais abertas às diversi-


dades, mas também pode ser o lugar do acolhimento, da busca do respeito.
E os educadores têm um papel fundamental nesse processo. Poderíamos
assim, pensar que uma realidade que parece contraditória do fazer cotidia-
no das escolas – ela acolhe e ela discrimina – se articula com um contexto
que expressa claramente o confronto de diferentes concepções e valores
em relação à sexualidade e ao gênero. Essa realidade vista como contra-
ditória das escolas é, a meu ver, o melhor retrato da expressão do conflito,
que habita a escola e a sociedade brasileira de forma mais ampla.
Tenho afirmado cotidianamente que o gênero e a sexualidade já es-
tão na escola! E nesse contexto, múltiplos desafios estão postos para nós.
É preciso fortalecer as ações dos jovens. Crescem enormemente as expe-
riências desenvolvidas por grupos de jovens feministas e LGBT nas esco-
las. Essas experiências precisam ser fortalecidas. Os jovens estão reagindo.
Tenho relatos de casos em que os pais acionaram a escola contra algum
professor ou projeto e os estudantes logo se organizaram para reagir, com
manifestações, abaixo assinados etc. É preciso também fortalecer as ações
dos educadores que estão silenciosamente desenvolvendo atividades liga-
das às diversidades com seus alunos; e é fundamental nesse processo, a
sensibilização dos gestores.
Ganha relevância nesse contexto o desenvolvimento de ações do que
chamamos de “educação em gênero e sexualidade”, voltadas aos adoles-
centes e aos profissionais. Ações que tenham uma proposta de construção
de processos, uma vez que pretendem promover o debate em torno dos
direitos sexuais e direitos reprodutivos, de processos sociais mais abrangen-
tes de estigmatização ou discriminação baseados na orientação sexual e na
identidade de gênero. Trata-se, portanto, de projetos que pretendem não
apenas incidir sobre os espaços educativos, mas transformar um conjunto
de valores que sustentam e reproduzem hierarquias, desigualdades, e rela-
ções de poder para além da realidade institucional.
Acredito ser esse o nosso principal desafio. Encontrar brechas por onde
possamos construir uma agenda positiva para a escola na efetivação dos

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direitos humanos e da cidadania das crianças, adolescentes e jovens. Con-


tribuir para a mudança de valores e concepções em relação ao gênero e
à sexualidade, a partir da construção de estratégias para fazer dos espaços
educativos lugares onde se respeita a diferença e cada um pode ser quem
é. Continuemos fortalecendo as resistências. Sigamos, pois como nos con-
vidou Cecília Meireles, “a vida só é possível reinventada”.

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Anahi Guedes de Mello

D
escobrir-me pesquisadora foi um processo que se deu aos

poucos, ao longo dos anos em que permaneci na universidade.


Cursei primeiro Química em 1996, na UFSC, e foi nessa época
que tive o primeiro contato com um computador de um laboratório da
universidade, o que me facilitou enormemente na comunicação escrita
com o mundo exterior. Em 1998 comecei a militância no campo da defi-
ciência ainda enquanto estudante de Química, pautando particularmente
as questões de acessibilidade comunicacional, do meu acesso ao conhe-
cimento. Estava insatisfeita com o modo como a questão da deficiência
era pensada política e teoricamente, questionava também a perspectiva
hegemônica da surdez que impunha a comunicação por meio da língua
de sinais brasileira como o único modo legítimo de ser uma pessoa sur-
da, quando na verdade temos vários modos ou maneiras de ser surdo(a).
Ou seja, as pessoas surdas compõem um grupo social muito diverso, hete-
rogêneo.
Depois, em 2003 eu tive um mentor, um economista que por acaso
era cego. Foi ele quem me introduziu à Sociologia, quando trocávamos
ideias e dialogávamos por e-mail e o antigo MSN. Em meio a isso, em
2004 descobri os estudos sobre deficiência (Disability Studies), por meio
da leitura de um artigo da antropóloga Debora Diniz, era um texto refle-
xivo sobre a crítica feminista ao modelo social da deficiência. Foi aí que
eu percebi que queria fazer parte desse campo. Então, em 2006, eu me

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transferi definitivamente para as Ciências Sociais, pensando primeiro em


me especializar em sociologia do trabalho, a fim de incorporar a questão
das pessoas com deficiência no mercado do trabalho. Mas, durante o curso
(re)descobri a antropologia e os estudos feministas e de gênero, onde estou
até hoje, sempre em interseção com o campo da deficiência.
O foco de minhas pesquisas são os estudos interseccionais da deficiên-
cia, com destaque para as questões que implicam a intersecção entre gêne-
ro e deficiência. São estudos sobre a deficiência que se desdobram em re-
flexões sobre o corpo, o gênero, a sexualidade, o cuidado, as violências de
gênero, o capacitismo, as políticas públicas, etc. Também estou envolvida
em pesquisas sobre a teoria crip, a constituição dos Estudos sobre Deficiên-
cia no Brasil, bem como sobre o método etnográfico e sua relação com os
sentidos sensoriais da audição e visão.
Ao tomar contato com os estudos feministas e de gênero, ocorreu uma
mudança no meu pensamento defiça, no sentido de ser afetada pela percep-
ção de que a minha deficiência também é uma experiência generificada.
Nesse momento, em 2007, descobri-me lésbica com uma colega de facul-
dade, durante uma saída de trabalho de campo em uma boate LGBT. O tra-
balho era sobre... lésbicas! Ela naquele momento teve a ousadia de me tas-
car um intenso beijo. Mesmo tendo ficado “confusa”, gostei. O engraçado é
que ao fazê-lo, ela acabou batendo uma de suas mãos na minha cabeça, na
área onde fica “hospedada” a parte externa de meu implante coclear, e ima-
ginem a seguinte cena: meu implante coclear voou para o alto, indo parar
no meio da pista de dança. Fiquei desesperada, mas por sorte meus olhos
reagiram rápido, e eu consegui localizá-lo no ponto certo do chão, que era
branco, a alguns metros de mim. Imediatamente esqueci o beijo e corri a
tempo do bendito não ser pisoteado pelas pessoas, pois esse “brinquedo” não
é barato, custa o preço de um carro zero. Peguei e o pus na cabeça, aliviada.
E o resto, bem, o resto é história! O fato é que desde aquele ano passei a ter
relacionamentos somente com mulheres, até estar hoje em “devir-ciborgue”
com Ursula Barros, cantora que conheci em uma festa e com quem me ca-
sei e “faço caso” do implante coclear, como mostro no meu texto.

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Evidentemente a universidade também é um ambiente que reflete


todo um sistema patriarcal heterossexista. Temos vários exemplos de es-
tudos que apontam para o fato da trajetória das mulheres cientistas serem
construídas em um ambiente baseado em valores masculinos que acabam
por restringir e dificultar a participação e o reconhecimento social de sua
produção acadêmica nas ciências. Isso se reflete inclusive nos indicadores
de financiamento de pesquisas e de produtividade, sendo piores nas cha-
madas ciências exatas e engenharias, por serem áreas em que prevalece a
hegemonia masculina. E a mulher cientista é ainda mais sub-represen-
tada, se ela for também lésbica e pessoa com deficiência. Mesmo dentro
do campo da antropologia, percebo discriminação de gênero quando, por
exemplo, dividem as subáreas da antropologia em “soft” e “hard”, como se
algumas fossem menos antropologia que outras. A antropologia feminista,
campo em que as reflexões sobre gênero e sexualidade são centrais e prati-
cadas principalmente por mulheres e pessoas LGBTI, seria “soft”; a etno-
logia indígena, “hard”. As pesquisas sobre gênero e sexualidade tendem a
ser vista como “menos científicas” ou “menos objetivas” que as pesquisas
sobre “povos e comunidades tradicionais”.
Para mim o desafio maior quanto a “ser lésbica” é dar visibilidade a esse
aspecto da minha vida dentro da academia; quanto a “ser surda”, é lidar
com as barreiras comunicacionais, em especial aquelas que são mais invi-
síveis de serem percebidas, de forma que eu consiga impor a capacidade
de me relacionar com uma sociedade majoritariamente ouvinte, entre elas
mulheres lésbicas e bissexuais. No entanto, se a surdez é o “estigma” que
mais se coloca em evidência, é fácil perceber por que tendem a tomá-la
como minha “identidade primária”, no sentido de que a surdez acaba por
se sobrepor ao gênero e à sexualidade. De fato, essa característica intrín-
seca ao meu corpo acabou produzindo um apagamento do “ser mulher”
e “ser lésbica”. Justamente por isso a minha lesbianidade foi fundamental
para a produção de meu pensamento defiça, pois se não fosse a posicio-
nalidade lésbica eu não teria percebido, no meu caso, a prevalência da
surdez como “identidade”. E é também por isso, que eu sou uma teórica

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afeita aos Estudos sobre Deficiência e não aos Estudos Surdos, embora
minha posicionalidade surda, às vezes implique dialogar também com o
segundo campo para mostrar que é possível pensar em epistemologias de-
fiças fora da caixa, de maneira a abarcar todos os tipos de deficiência e não
apenas a surdez.

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Surdez, lesbianidade e devir-


ciborgue: meu implante coclear,
meu brinquedo erótico aleijado 53

Anahi Guedes de Mello

Introdução

N
Brasil há uma lacuna na produção acadêmica sobre lésbi-
o

cas surdas no campo dos estudos de gênero e sexualidade. Os


poucos trabalhos que versam sobre pessoas surdas homossexuais
focam em surdos gays, como os de Jouber Silvestre (2014), Fabrício Abreu
(2015) e Fabrício Abreu et. al. (2015). A exceção é o estudo de caso único
sobre lesbianidade e surdez de Jéssica Akemi Kawano Ribeiro (2017). Em
comum esses trabalhos articulam a homossexualidade (masculina ou femi-
nina) da pessoa surda a partir de pressupostos conceituais como interseccio-
nalidade e a formação da “identidade surda”, bem como da centralidade
dada a questões relacionadas a dificuldades de acesso à comunicação es-
tabelecida entre surdos(as) e ouvintes, como vemos na seguinte passagem:

[...] a mulher surda e lésbica que opta ou se vê obrigada a se relacionar com


mulheres ouvintes também não encontrará facilidades. Ainda hoje poucas

53.  O presente trabalho é uma versão parcial e modificada de minha tese de doutorado intitulada “Olhar,
(não) ouvir, escrever: uma autoetnografia ciborgue” (MELLO, 2019), com a diferença de que aqui incremen-
to o debate da lesbianidade. O tópico “Meu implante coclear, meu brinquedo erótico aleijado” também é
uma versão expandida e modificada de Mello & Gavério (2019).

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pessoas ouvintes têm conhecimento da língua e cultura surda, o que reduz


as chances de uma mulher surda namorar uma mulher ouvinte. Aqui há
outra barreira, mas não menos incômoda: a da comunicação. Mesmo que
lésbicas surdas e ouvintes se relacionem, a mulher surda terá que ler lábios
e falar oralmente, se oralizada, o que ainda assim é um grande esforço e a
comunicação não é total, mas limitada54. (RIBEIRO, 2017, p. 185)

Ana Cláudia Bortolozzi Maia (2006) é outra autora a afirmar que as


pessoas surdas podem apresentar dificuldades de comunicação, “o que
pode complicar sua integração social e sua assimilação de conceitos, ex-
periências tão importantes no ajustamento social [...]” (MAIA, 2006, p.
215-216). A autora ainda destaca que a aprendizagem de conceitos pela
pessoa surda depende da “época em que se instalou a deficiência e as rela-
ções familiares e sociais para promover e desenvolver adequadamente esses
conceitos” (Idem, ibidem, p. 216). Ou seja, o baixo nível de informação da
pessoa surda acentua suas diferenças e formas de percepção de mundo.
No entanto, considero reducionista a abordagem de ambas, uma vez
que a pessoa surda não possui informações ou tem a comunicação limi-
tada porque ela seja surda ou o fenômeno social da surdez lhe impeça a
construção de conceitos e a aquisição de conhecimentos, mas porque a
estrutura social corponormativa não leva em conta as singularidades da
surdez, ao não dar condições e espaços de interlocução e de produção de
conhecimentos para que ela possa se manifestar e se desenvolver. Dessa
maneira, a surdez não é a causa, embora ela seja um importante fator in-
terveniente para o acesso à informação e à comunicação. Dito isso, é im-
portante atentar para a multiplicidade de surdezes ou “os muitos modos
de ser surdo” (MONAGHAN et. al., 2003) e suas implicações políticas na
constituição da subjetividade da pessoa surda.
Neste trabalho pretendo refletir sobre uma dimensão das minhas prá-
ticas sexuais como mulher surda usuária de implante coclear e lésbica,

54.  Grifo meu.

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ao descrever de modo muito breve sobre uma experiência significativa da


relação corpo surdo-implante coclear55 enquanto um “tornar-se-com” e os
desdobramentos dessa discussão com as noções de affordance e pessoa-gra-
fo. O objetivo é mostrar o lugar do implante coclear na constituição da
minha subjetividade como lésbica, haja visto que enquanto objeto não hu-
mano ele faz fazer ouvir o sexo com outra mulher um devir-ciborgue que
considere a pessoalidade grafo da pessoa com deficiência56.
O texto se divide em três tópicos: o primeiro situa a crítica aos pres-
supostos essencialistas de conceitos como “cultura surda” e “identidade
surda”; o segundo reflete sobre conceitos como ciborgue e espécie-com-
panheira (HARAWAY, 2003, 2009), sugerindo pensar a corporificação do
implante coclear enquanto um híbrido corpo surdo/implante coclear; o
terceiro traz um relato autoetnográfico envolvendo minha experiência de

55.  O implante coclear é uma tecnologia clínico-terapêutica indicada para pessoas com perda auditiva neu-
rossensorial bilateral profunda. É uma prótese computadorizada composta de dois dispositivos: uma parte
interna que é o implante propriamente dito, colocado cirurgicamente na cabeça, sob a pele; e a parte externa
que fica atrás da orelha, constituída por um processador de fala retroauricular, que é uma espécie de sinteti-
zador de som, um microfone, uma antena transmissora e um cabo. Ambos os dispositivos fazem contato entre
si por meio de uma antena imantada (a antena externa transmissora possui um imã que serve para fixá-la à
antena interna receptora, que também contém um imã).Em síntese, o mecanismo de funcionamento do
implante coclear se dá da seguinte maneira: um microfone contido na parte externa do implante capta os
sons e os envia para o chip de computador contido no processador de fala retroauricular que, por sua vez,
decodifica os sons em informações digitais. Estes sinais decodificados são enviados a um chip receptor/esti-
mulador, que fica na parte interna do implante, via indução magnética através de um imã externo, contido
na antena transmissora. O chip receptor/estimulador envia os sinais diretamente para um feixe de 22 (vinte
e dois) eletrodos de platina que estão enrolados na cóclea, localizada no ouvido interno. Os eletrodos dentro
da cóclea estimulam eletricamente o nervo auditivo e transmitem a sensação de som do nervo auditivo para
o centro cerebral da audição.
56.  Há dois “modelos clássicos” da deficiência, o modelo médico e o modelo social. Em linhas gerais, no
modelo médico a deficiência está no corpo do indivíduo; portanto, o foco é concebê-la como um “problema”
do indivíduo, objetivando-se a cura ou medicalização do corpo deficiente; no modelo social, a deficiência vai
além do corpo, é o produto da relação entre um corpo com impedimentos de natureza física, visual, auditiva,
intelectual ou psicossocial e um ambiente incapaz de lhe prover acessibilidade (MELLO; NUERNBERG;
BLOCK, 2014). Essa perspectiva desloca a compreensão da deficiência do corpo do indivíduo para o contex-
to, apontando para as barreiras sociais impostas pelo ambiente. Desse modo, no modelo social a deficiência
passa a ser percebida como um “problema” do Estado e da sociedade. Por isso, importa aqui o contexto social
na definição da deficiência, quando esta passa a ser considerada também uma diferença ou uma forma de
opressão social que opera com outras categorias sociais como gênero, raça/etnia, classe, sexualidade etc.

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ouvir os sons do sexo com a ajuda de um implante coclear; e por fim as


considerações finais encerram o último tópico.

“Bons surdos”, “maus surdos”


Eu não tenho a primazia do “reconhecimento surdo” porque não te-
nho a pretensão de ser primeiro reconhecida como surda. A surdez faz
parte de minhas identificações, mas não é algo com a qual eu tenha uma
identificação principal. No entanto, como a surdez é o “estigma” em evi-
dência, as pessoas tendem a tomá-la como minha “identidade primária”.
Essa característica intrínseca do meu corpo produziu um apagamento de
meus outros sujeitos políticos: ser mulher e lésbica. A estrutura social he-
tero-cis-normativa e capacitista em geral tende a contribuir para esse apa-
gamento, na medida em que só me vê como surda. De fato, a surdez é a
minha primeira experiência queer, mas foi a consciencia mestiza (ANZAL-
DÚA, 1987, 2005), não a “consciência surda”, que me permitiu ir além
da surdez para que eu pudesse me mover “constantemente para fora das
formações cristalizadas” (ANZALDÚA, 2005, p. 706).
Em 1998, tive o primeiro contato com os pressupostos teóricos dos Es-
tudos Surdos (Deaf Studies) no Brasil, a partir da leitura de textos acadê-
micos sobre “identidades surdas” (Cf. MELLO, 2006)57. A meu ver, esses
textos são um “prato cheio” de categorias acusatórias que, ao pretender
classificar pessoas surdas por tipo de “identidade surda”, acabam sendo
contraproducentes porque nos dividem em “bons surdos” e “maus surdos”.
Eu mesma como surda oralizada e não usuária de língua brasileira de si-
nais (Libras) seria o exemplo típico de “má surda” enquadrada em uma
lista de dez características que definem o que se convencionou chamar
“identidades surdas flutuantes” (PERLIN, 2002):

57.  Em Mello (2006) inverto o sentido de deficiência concebendo-a como “falta” (enquanto perda de uma
estrutura ou função corporal) e não como “diferença”, a fim de alinhá-la como contraproposta à “concepção
antropológico-cultural” da surdez. Ao tomar a deficiência como sinônimo de lesão sem um cuidado analítico,
faço uma crítica a essa concepção da surdez como uma forma extrema e negativa do “modelo social da de-
ficiência”, uma vez que parece partir de um “estado de natureza”, em que a condição da surdez implica em
um “estado social” irredutível.

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[São] os Surdos que não têm contato com a comunidade Surda. Ou Sur-
dos que viveram na inclusão ou que tiveram contato da surdez como pre-
conceito ou desconhecimento social. São outra categoria de Surdos, visto
de não contarem com os benefícios da cultura Surda. Eles também têm
algumas características particulares:
1. Seguem a representação da identidade ouvinte;
2. Estão em dependência no mundo dos ouvintes, seguem os seus prin-
cípios, respeitam-nos, colocam-nos acima dos princípios da comunidade
Surda, às vezes competem com ouvintes, pois são induzidos no modelo de
identidade ouvinte;
3. Não participam da comunidade Surda, associações e lutas políticas;
4. Desconhecem ou rejeitam a presença do intérprete de Língua de
Sinais;
5. Orgulham-se de saber falar “corretamente”;
6. Demonstram resistências à Língua de Sinais e à cultura Surda visto que
isto, para eles, representa estereótipo;
7. Não conseguiram identificar-se como Surdos, sentem-se sempre infe-
riores aos ouvintes; isto pode causar muitas vezes depressão, fuga, suicídio,
acusação aos outros Surdos, competição com ouvintes, há alguns que vi-
vem na angústia no desejo contínuo de serem ouvintes;
8. São as vítimas da ideologia oralista, da inclusão, da educação clínica, do
preconceito e do preconceito da surdez;
9. São Surdos. Quer ouçam algum som, quer não ouçam, persistem em
usar aparelhos auriculares, não usam tecnologia dos Surdos;
10. Estas identidades Surdas flutuantes também apresentam divisões; por
exemplo, aqueles que têm contato com a comunidade Surda, mas rejei-
tam-na, os que já tiveram contato, etc... (PERLIN, 2002, p. 15-16).

Não incluo aqui as classificações da autora para as seis outras “identi-


dades surdas”58 porque quero focar a atenção para o que representa esse

58.  Além das “identidades surdas flutuantes”, temos as “identidades surdas” propriamente ditas como “a
verdadeira identidade política”; as “identidades surdas híbridas”; as “identidades surdas embaçadas”; as

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tipo de pensamento que fende “as diferenças de dentro” para atender a um


desejo narcisista de legitimar uma “identidade surda” em detrimento de
outras experiências singulares. Ao optar por uma perspectiva reducionis-
ta da surdez baseada na “diferenciação cultural” de experiências surdas, a
autora desconsidera as pessoas em seus contextos sociais e multiplicidades
de surdezes e de sujeitos políticos e se fixa em uma consciência de corpo
surdo como um novo “tipo ideal” de sujeito surdo. Essa abordagem não
deixa de ser uma falsa representação da realidade porque nega o jogo da
diferença ao tornar as outras experiências surdas como desmoralizadas da
verdade. Nesse sentido, a categoria identidade passa a ser um dispositivo59
de controle na sociedade contemporânea, como afirmei em conversa com
Jefferson Virgílio (2016):

“[Tal] como a sexualidade afirmada como dispositivo de controle [por Mi-


chel Foucault (2001)], as identidades hoje o são. Evidências dos agencia-
mentos são visíveis nas divergências de lutas e discursos militantes. [O]
sucesso é seletivo, excludente e parcial em qualquer tentativa de união
entre identidade e ação política. É agravado ao se unir com ideais de Es-
tado-Nação. Essencialismos estratégicos são acionados por um segmento
ou representante do coletivo60, independentemente do restante. Se não
admite a identidade do grupo, além de segregados por externos ao grupo,
é o outsider no grupo que mais se identifica.” (Em comunicação pessoal
para Jefferson Virgílio, 9/10/2014)61.

Como sugere Virgílio (2016, p. 21), a “nova” ordem contemporânea é


“praticar e incentivar a identidade, em algo que pode ser nominado como

“identidades surdas de transição”; as “identidades surdas de diáspora”; e as “identidades surdas interme-


diárias”.
59.  Gosto de pensar o dispositivo também na acepção de Giorgio Agamben (2014, p. 39), como sendo “[...]
qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, mode-
lar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes.”
60.  Refiro-me a qualquer coletivo, movimento ou grupo social.
61.  O mesmo trecho se encontra em Virgílio (2016).

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identitude”, e quem estiver “no liminar ou na transição [...] entre o possuir/


afirmar e o praticar/incentivar, não são considerados tão sujeitas quanto
aquelas que (já) “avançaram” desta fase.” Prossegue o autor afirmando que
“a tendência é que cada vez mais a identidade seja unificada a um ideal,
que não raramente é fabricado, fantasiado e imposto. Estamos caminhan-
do para um identicentrismo” (Loc. cit.).
Os “bons surdos” são os Surdos com “s” maiúsculo, adeptos do “Or-
gulho Surdo”, que tem na língua de sinais a expressão maior da “cultura
surda”. Os “maus surdos” são os “surdos oralizados”, aqueles que falam,
fazem leitura labial e usam “tecnologias auditivas”. A fala, a leitura labial e
as “tecnologias auditivas” são consideradas pelos “bons surdos” como “coi-
sas de ouvinte” e por isso devem ser rejeitadas. Mesmo o implante coclear
é visto com certa repulsa pelos “bons surdos”, uma “coisa ruim” a ser evita-
da e condenada porque promovedora da morte social das línguas de sinais
(SILVER, 1999; LEVY, 2002; BLUME, 2010; HA’AM, 2017). Embora
não concorde com essa perspectiva, é verdade que a relação ouvinte-surdo
não deixa de ser uma relação de maioria-minoria, em que a desigualdade
se torna evidente pela via da comunicação e capacidade de ouvir. Nesse
sentido, da mesma forma que o “privilégio branco” ou racismo contra pes-
soas negras e o “privilégio masculino” ou sexismo contra mulheres podem
ser, respectivamente, sistemas de opressão baseados na raça/etnia e no gê-
nero, o “privilégio auditivo” ou audismo contra pessoas surdas pode ser
entendido como um sistema de opressão com base na capacidade auditiva
(ECKERT & ROWLEY, 2013; HA’AM, 2017).
Em suma, para a vertente culturalista da surdez todas as “coisas de ou-
vinte” são parte da estratégia de normalização do corpo surdo e o surdo
que por “ideologia oralista” optar por se aderir a qualquer prática de rea-
bilitação auditiva que possa potencializar a sua capacidade auditiva e de
comunicação é um “mau surdo”. Ora, a reabilitação é uma das formas ou
modos de subjetivação da pessoa com deficiência, no sentido da deficiên-
cia ser construída subjetivamente na pessoa, o que não ocorre sem confli-
tos. Em outras palavras, a “normatividade” é um dos modos pelos quais o

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sujeito se constitui. E uma vez que existem sujeitos surdos que por diversas
razões veem infinitas possibilidades de exercer a agência ao procurar ajuda
no campo dos saberes médicos, proponho uma perspectiva alternativa ao
conceito de reabilitação, de modo a não reduzir a surdez (e qualquer outra
deficiência) à ideia de “normalização de corpos”.
Julie Elman (2014), por exemplo, mostra que no limite a reabilitação
pode ser muito mais pervasiva no nível da ‘standard-tização’ do corpo para
o que seria uma vida “normal” do que se a olharmos estritamente como
processos de intervenções corporais. Para a autora, a reabilitação não tem
o sentido de cura, posto que esta implica um fim para a gestão de um
corpo, enquanto aquela produz o corpo como algo sempre incompleto ou
inacabado. Como práticas que englobam discursos médicos e culturais,
com frequência a reabilitação invoca o uso de ideias sobre deficiência e
capacidade física, respectivamente,como “perda” indesejada e como “to-
talidade” a ser cobiçada. Essas concepções de reabilitação atrelam a saúde
do indivíduo a valores capitalistas como “eficiência” e “boa gestão” e é por
isso que a necessidade da reabilitação se estende a todos os corpos, inde-
pendentemente da idade que tenhamos ou de possuirmos deficiência.
Mesmo na perspectiva da surdez, enquanto um conjunto de relações
que são simultaneamente culturais, econômicas e corporais, penso que a
reabilitação deva ser compreendida como uma concepção e não estrita-
mente uma técnica de normalização de corpos, de sujeitos. Ou seja, deve
ser vista como um processo que aumenta a capacidade do sujeito de es-
tabelecer trocas sociais e afetivas nos diversos cenários da vida cotidiana.
Assim, a reabilitação pode e deve trabalhar com o olhar voltado para o
sujeito e não para a “deficiência” (ainda que a deficiência aqui seja um
“atributo” e não um “problema”), trabalhar com o sofrimento, a fragilida-
de e não com a incapacidade, buscar a produção de novas subjetividades e
não a cura da surdez.
Outrossim, considero que a ênfase dada no uso da língua de sinais
como a principal definição de “cultura surda” (Cf. SANTANA & BERGA-
MO, 2005, p. 574) na verdade mascara as “diferenças de dentro” e com ela

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as críticas ao modelo etnocêntrico baseado no “surdo universal”: se antes


o surdo ideal era aquele que falava, hoje ainda pensamos no tipo ideal
– aquele surdo que se comunica em língua de sinais. Essa constatação
tem a ver com a concepção essencialista de cultura embutida na inscrição
“cultura surda”, empregada de forma ambígua como uma entidade defi-
nida, fechada, delimitada por fronteiras que impossibilitam a mútua com-
preensão das singularidades da experiência social da surdez, quando não
levam em conta as dinâmicas sociais, históricas e políticas mais amplas
envolvidas na vida de cada sujeito surdo. Ao ditar a incomensurabilidade
de mundos distintos no campo da surdez, corremos o risco de confinar
o outro numa diversidade essencialista porque fechada em si mesma. A
própria concepção étnico-linguística da surdez realça a sobreposição de
noções de biologia e cultura, acabando por naturalizar as diferenças entre
os diversos grupos de surdos.
O implante coclear não promove a “cura” da surdez, mas transforma
um surdo sem acesso a sons em um surdo com acesso a sons, da mesma
maneira que um marca-passo transforma um cardíaco com arritmia em
um cardíaco sem arritmia. Assim, do ponto de vista da biologia, eu sou sur-
da bilateral total62; do ponto de vista ciborgue, sou uma surda com acesso a
sons, e é desse devir-ciborgue que passo a refletir no próximo tópico.

62.  O procedimento cirúrgico para a colocação de um implante coclear implica a perda automática de qual-
quer audição residual no lado implantado. No meu caso, isso quer dizer que os 10% de audição residual que
eu tinha antes do implante coclear no lado direito do ouvido se perderam para sempre. Ainda, cabe esclarecer
que mesmo “os surdos congênitos não vivenciam o “silêncio” nem se queixam dele (assim como os cegos não
vivenciam a “escuridão” ou não se queixam dela). Essas são nossas projeções, nossas metáforas para o estado
deles. Ademais, os que têm a surdez mais profunda conseguem ouvir ruídos de vários tipos e ser sensíveis a
vibrações de toda espécie. Essa sensibilidade às vibrações pode tornar-se um tipo de sentido acessório: por
exemplo, Lucy K., embora profundamente surda, é capaz de avaliar de imediato um acorde como “domi-
nante” colocando a mão sobre o piano, e consegue interpretar vozes em telefones com grande amplificação;
em ambos os casos, o que ela parece perceber são vibrações, e não sons” (SACKS, 1998, p. 21). No entanto,
as vibrações a que Oliver Sacks se refere são provenientes dos sons, são vibrações sonoras que para as pessoas
surdas se dão com a sensação de pressão sobre o corpo. Mesmo eu quando em determinados momentos não
estou usando meu implante coclear, percebo vibrações sobre meu corpo de forma mais acentuada do que
se usasse o implante coclear. Um exemplo dessa sensibilidade a vibrações enquanto não o uso se dá quando
faço pipoca no forno de micro-ondas, lançando mão do sentido do tato para perceber as vibrações. Consigo

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Do devir-ciborgue à espécie-companheira
Donna Haraway (2009) define o ciborgue como “um organismo ciber-
nético, um híbrido de máquina e organismo, uma criatura de realidade
social e também uma criatura de ficção” (HARAWAY, 2009, p. 36). Nesse
sentido, o ciborgue de Haraway se confunde entre humano e não humano
porque está entre os dois. O ciborgue não é isto-ou-aquilo, ou seja, não é
ou “realidade social” ou “ficção científica”, mas ambos, embora para Don-
na Haraway essa definição não signifique que não deva situá-lo enquan-
to um trabalho de classificação (GANE; HARAWAY, 2010, p. 17). Desse
modo, o caráter ciborgue neste texto implica o hibridismo surdo-implante
coclear.
Como um cruzamento entre organismo (humano) e máquina (não
humano), meu corpo surdo é uma materialidade torcida, ou uma mate-
rialidade aleijada nos termos da teoria crip63(MCRUER, 2006), porque
mediado, montado, performado e borrado por um actante não humano
chamado implante coclear, um dispositivo médico altamente sofisticado
que tem como função potencializar a minha capacidade auditiva de um
modo mais efetivo do que um aparelho auditivo convencional e, por exten-
são, contribui para ampliar a minha capacidade cognitiva. Essa descrição
me aproxima de um tipo ideal de organismo cibernético, dentro da ideia

perceber na palma da mão as pressões do “estouro da pipoca”; se essas pressões cessam em um intervalo de 2
a 3 segundos, a pipoca está pronta para ser retirada.
63.  A teoria crip é considerada a teoria queer da deficiência, ainda que eu veja a primeira como uma ex-
pansão da segunda, a partir do incremento da deficiência. A teoria crip, ou teoria aleijada em português, foi
pensada principalmente para questionar a exclusão do capacitismo como matriz de discriminação intersec-
cional nas teorias feministas e queer. Como ocorre com o estranho que vem do queer, as terminologias crip
(em inglês) e aleijada (em português) têm uma conotação propositalmente agressiva, pejorativa e subversiva,
a fim de marcar o compromisso aleijado em desenvolver uma analítica da normalização de corpos, a partir
da crítica aos sistemas de opressão marcados pelo patriarcado, pela heterossexualidade compulsória (RICH,
2010) e pela capacidade compulsória (MCRUER, 2002) que não questiona a naturalização e hierarquização
das capacidades corporais humanas nos discursos, saberes e práticas sociais. Quando uma pessoa não ouve,
ela é lida como “deficiente” e passa a ser percebida culturalmente como “incapaz”. O capacitismo também é
essa forma hierarquizada e naturalizada de conceber qualquer corpo humano como algo que deve funcionar,
agir e se comportar de acordo com a biologia. Nesse sentido, ao usar o termo aleijado, estou considerando
a necessidade de aleijar no sentido de descolonizar, mutilar, deformar e contundir o pensamento feminista,
queer e decolonial, provocando-lhe fissuras.

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do ciborgue de Manfred E. Clynes e Nathan S. Kline (1960), quando esses


autores descrevem o ciborgue como um organismo que “(...) incorpora de-
liberadamente componentes exógenos que estendem o controle da função
autorreguladora do organismo para adaptá-lo a novos ambientes” (CLY-
NES; KLINE, 1960, p. 27). O termo vem da junção das palavras cybernetic
e organism para dar cyborg e foi cunhado em 1960 por esses autores em
um artigo intitulado Cyborgs and Space, publicado na Astronautics com
o objetivo de pensar o ciborgue como uma solução possível para a sobre-
vivência humana em ambientes extraterrestres. De fato, Joon Kim (2013)
esclarece que:

[...] O ciborgue [cyborg], ou “cybernetics organism” (CLYNES; KLINE,


1995 [1960]) foi originalmente concebido como a hibridação de um or-
ganismo a um sistema artificial cibernético com a finalidade de ampliar
os limites biológicos. Clynes e Kline (1995) propunham que, para fins de
exploração aeroespacial, o ser humano deveria ser reconstruído como um
ciborgue, mesclado a sistemas artificiais, para torná-lo apto a sobreviver no
ambiente espacial, ao invés de reproduzir o ambiente terrestre em torno
dele. Na apropriação imaginária dos livros e filmes que se seguiram a essa
ideia, o ciborgue é figurado como uma pessoa que, sendo meio gente e
meio robô, é um ser supra-humano, com resistência e força de máquina.
Era clara a conexão entre as figurações fílmicas do ciberespaço e o proces-
so de tremenda transformação social que ocorria na virada do século XXI,
impulsionada pela informatização em todos os aspectos de nossa vida. [...]
No caso do ciborgue, contudo, o hiato entre o imaginário do organismo
robótico popularizado pela indústria cultural e a realidade era e ainda é
imenso. Deixando de lado as cirurgias estéticas e intervenções artísticas
que misturam implantes que pouco ou nada acrescentam ao corpo huma-
no em termos funcionais ou estruturais, a ampliação do potencial humano
por meio da reconstrução biocibernética do corpo é ainda uma promessa.
Mesmo assim, a ideia de que estamos nos transformando em ciborgues é
muito presente e, talvez, hoje com mais intensidade [...]. O romance de

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Caidin (1972), Cyborg, no qual se baseou a famosa série de TV, O Ho-


mem de Seis Milhões de Dólares [Six Million Dollar Man], dá uma pis-
ta. O protagonista do romance e da série é um astronauta que, após um
acidente tem suas pernas, um dos braços e um dos olhos substituídos por
próteses biônicas. Para Caidin e sua audiência, essa ideia era nova, porém
não estranha, pois naquela época, a fronteira entre organismo e máquina
já estava sendo questionada por tecnologias cibernéticas incipientes e pela
hibridação, permanente ou provisória, do corpo humano a sistemas artifi-
ciais tais como o marca-passo cardíaco e o coração-pulmão extracorpóreo.
Desde então, tornou-se lugar comum na mídia, que sejam anunciados de
tempos em tempos o surgimento do “ciborgue real”: pessoas cujas funções
ou estruturas corporais deficientes ou inexistentes são reestabelecidas ou
corrigidas por meio do acoplamento de peças sobressalentes fabricadas ar-
tificialmente. (KIM, 2013, p. 1-3)

Em uma relação humano-máquina nos termos de Haraway (2009), a


hibridização surdo-implante coclear poderia ser pensada como um contra-
poder ao Deaf Pride64, tendo como mote a inscrição Bionic Ear Pride65.
Considerando a cibernética como a “a arte de garantir a eficácia de uma
ação” (COUFFIGNAL, 1968, p. 23), proponho pensar essa relação surdo-
-implante coclear nos termos desses efeitos cibernéticos de hibridização
entre humano (sujeito) e não humano (máquina), em que o implante co-
clear exerce no corpo surdo a magia da audição artificial, potencializando
fluxos, ações e agenciamentos. Aqui o processo de hibridização configu-
ra-se na construção do corpo surdo em conexão com o implante coclear,
realizando intervenções sociais simetricamente, uma vez que ambos estão
implicados nas mesmas relações sociais, conforme o esquema abaixo (fi-
gura 1):

64.  Traduzido como Orgulho Surdo em português.


65.  Traduzido como Orgulho do Ouvido Biônico em português.

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Figura 1: Esquema do híbrido surdo-implante coclear elaborado pela autora.

A partir da figura 1 acima podemos fazer uma “leitura aleijada”, em


que há um deslocamento do pensamento hegemônico que separa o sujeito
surdo do objeto implante coclear para uma perspectiva em que humano e
não humano estão em simbiose e agem em um mesmo plano de ação, o
que a teoria do ator-rede lhes confere simetria (LATOUR, 2012, 2013), ao
mesmo tempo em que não deixam de borrar as fronteiras que definem o
que é humano e o que é não humano, produzindo uma corporalidade in-
definida, por assim dizer híbrida como o ciborgue de Haraway, no sentido
de não haver materialidade pura. Segundo Tomaz Tadeu (2009):

(...) Não existe nada mais que seja simplesmente “puro” em qualquer dos
lados da linha de “divisão”: a ciência, a tecnologia, a natureza puras; o
puramente social, o puramente político, o puramente cultural. Total e
inevitável embaraço. Uma situação embaraçosa? Mas, cheia de promessas

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também: é que o negócio todo é, todo ele, fundamentalmente ambíguo.


(...) Os ciborgues vivem de um lado e do outro da fronteira que separa
(ainda) a máquina do organismo. Do lado do organismo: seres humanos
que se tornam, em variados graus, “artificiais”. Do lado da máquina: se-
res artificiais que não apenas simulam características dos humanos, mas
que se apresentam melhorados relativamente a esses últimos. De acordo
com a taxonomia proposta por Gray, Mentor e Figueroa-Sarriera (1995, p.
3), as tecnologias ciborguianas podem ser: 1. restauradoras: permitem res-
taurar funções e substituir órgãos e membros perdidos; 2. normalizadoras:
retornam as criaturas a uma indiferente normalidade; 3. reconfiguradoras:
criam criaturas pós-humanas que são iguais aos seres humanos e, ao mes-
mo tempo, diferentes deles; 4. melhoradoras: criam criaturas melhoradas,
relativamente ao ser humano. (TADEU, 2009, p. 11-12)

Desse modo, o híbrido corpo surdo-implante coclear se enquadra na


abordagem “restauradora” de Chris Hables Gray et. al. (1995). No entan-
to, no meu caso essa definição é borrada, seja porque a cirurgia de im-
plante coclear implica a perda absoluta da audição no lado implantado do
ouvido, seja porque – em especial devido à agnosia auditiva66 – não neces-
sariamente restaura a capacidade ouvir, mas fica entre ouvir e não ouvir.
Estar entre ouvir e não ouvir é o que marca o meu entre-lugar (SANTIA-
GO, 2000) no “mundo dos surdos” e “mundo dos ouvintes”, isso é ser mes-
tiça, é ter a consciência das fronteiras de que fala Gloria Anzaldúa (1987,

66.  Entende-se por agnosia a incapacidade de elaborar ou configurar as sensações obtidas através dos órgãos
correspondentes dos sentidos para chegar a formar um conceito daquilo que foi percebido. Portanto, é um
distúrbio de identificação de objetos no qual é possível descrevê-lo, mas não identificá-lo. Pode ser parcial
quando se refere a uma só esfera sensorial, ou total. A percepção de um objeto envolve uma identificação
primária (obtida pela qualidade sensorial percebida, como a visão do objeto) e uma identificação secundária
(recordação das demais características sensoriais do objeto). No caso das pessoas surdas adultas pré ou peri-
-linguais submetidas ao implante coclear, chama-se agnosia auditiva ou surdez psíquica. Desse modo, para
ouvir e entender as palavras, a pessoa surda necessita primeiro “pegar” os sons dessas palavras para fazer delas
referências às suas imagens correspondentes e, por conseguinte, identificá-las até que se tornem uma “coisa
só”, isto é, sem mais necessitar fazer a associação entre audição (pelo som) e visão (pela imagem). Muito
provavelmente essas pessoas surdas precisam criar uma “voz interior” que normalmente não têm para apren-
derem como se dizem as palavras e a ouvi-las.

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2005) porque para mim é ótimo a irreverência feminista-lésbico-aleijada


de eu não ser uma coisa nem outra, mas ser tudo isso junto e misturado,
ser brasileira, latino-americana, mulher, lésbica, defiça67, surda e implan-
tada coclear. Em suma, ser ciborgue é ser múltipla. Para Susan Leigh Star
(1996) a múltipla pertença a mundos simultâneos é um primado e “[...]
pelo facto de vivermos em mundos múltiplos sem delegação, temos a ex-
periência de um “eu” apenas unificado através da acção, do trabalho e dos
retalhos de uma biografia colectiva” (STAR, 1996, p. 73).
Uso duas denominações diferentes para me referir à condição híbrida,
a depender da relação entre público e privado: “surda implantada coclear”
e “surda usuária de implante coclear”. A categoria “implantada coclear”
é acionada em contextos mais íntimos para personificar o ciborgue que
habita em mim, enquanto “usuária de implante coclear” é utilizada para
situações mais ‘formais’ ou ‘técnicas’, por conta da neutralidade da palavra
“usuária”. É interessante perceber que embora as denominações “usuária
de implante coclear” e “implantada coclear” mostrem uma hibridização
surdo-implante coclear elas não transpõem o mesmo sentido. A primeira
categoria pode ser ‘traduzida’ ou ‘lida’ como se o implante coclear fosse
separado da pessoa, o que denota uma aparente tensão entre natureza e
cultura; já “implantada coclear” desestabiliza essa dicotomia porque é a
personificação do implante coclear em pessoa. Desse modo, “implantada
coclear” combina e transforma o implante coclear e a pessoa em “uma
coisa só”, como um ciborgue. Rei Arthur IV, o nome carinhoso de um
personagem da literatura inglesa que dei ao meu quarto e atual implante
coclear, tem o estatuto de quase-pessoa porque é extensão do meu cor-
po, corporificado ao meu ser, o que remete à noção de pessoa de Marcel
Mauss (2003):

67.  “Defiça” é abreviação carinhosa de “deficientes”, tomada em contexto exclusivamente brasileiro. Preferi-
mos nos referir aqui a “defiças” no sentido de “deficientes”, aproximando-se da teoria crip (MCRUER, 2006).
O termo “defiça” (ou “deficiente”) também se alinha com a perspectiva dos estudos culturais, ao ser tomado
como um substantivo, ou seja, da mesma forma em que no Brasil usamos os termos “negro” e “indígena” ao
invés da expressão “pessoas de cor”, também podemos falar de “deficiente”.

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De uma simples mascarada à máscara; de um personagem a uma pessoa,


a um nome, a um indivíduo; desde a um ser com valor metafísico e moral;
de uma consciência moral a um ser sagrado; deste a uma forma funda-
mental do pensamento e da ação; foi assim que o percurso [da pessoa hu-
mana] se realizou. (MAUSS, 2003, p. 397)

Atribuir apelidos a próteses companheiras se configura em um pode-


roso artificio de subjetividade (MELLO, 2010), um modo de subjetivação
no sentido de eu me constituir como pessoa, implantada coclear, surda
implantada, surda oralizada, pessoa com deficiência, defiça, ciborgue etc.
Mais que um devir-ciborgue, eu tenho com o meu implante coclear uma
“experiência de companheirismo”, uma “relação com”, um “tornar-se
com” mais que especial, no sentido de ser mais intensa e íntima que com
qualquer outro objeto da minha casa ou que eu carregue comigo. Por isso
Rei Arthur IV é minha espécie-companheira (HARAWAY, 2003), sem o
qual eu não teria condições plenas de interagir com outros humanos e
não humanos. Para Haraway (2003, 2008) humanos e não humanos am-
bos não preexistem às relações, mas se constituem nas e pelas relações. A
autora pensa de maneira ousada que os humanos e não humanos são “uma
prática material multiespécies” (AZERÊDO; HARAWAY, 2011, p. 399),
uma relação de co-constituição, um “tornando-se-com”. Segundo Jesser
Ramos (2017), em uma escrita-ciborgue de Haraway,

(...) uma espécie companheira toma forma na relação, se co-constitui na


relação com o homem ou com qualquer outro actante. Esses actantes
estão dentro de uma rede de relações, articulações, alianças e conexões
que nunca tem um início e que nunca termina. Dessa forma, na escrita-
-ciborgue, as espécies companheiras não estão envolvidas em outro con-
fronto hegeliano de eu-outro ou natureza-cultura. Essas espécies não são
também outra versão de uma dialética marxista e humanista da nature-
za refeita pelo trabalho. Trata-se, ao contrário, de mundos em conversas,
de formas articuladas da história. Nesse sentido, essa figura das espécies

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companheiras fornece o argumento central de Haraway (2004, p. 306): os


hominídeos não “inventaram” a natureza e a cultura, mas todos os joga-
dores (actantes humanos e não humanos) emergiram em uma espécie de
conferência, na qual nenhum dos atores precede ou termina a interação.
Esses atores estão em uma co-constituição e co-habitação permanente que
possibilitam a produção de múltiplas práticas de viver e florescer. (RA-
MOS, 2017, p. 92)

Nessa perspectiva, podemos dizer que os “corpos se constituem nas e


pelas relações” (ARENDT; MORAES, 2016, p. 20). Isso implica tratar o
meu corpo não como uma entidade separada do implante coclear nem
mesmo em inter-relação com o implante coclear, mas enquanto relações
corpo-implante coclear “tornando-se com” e “fazendo-se com”. E porque
“como ciborgue, viver como espécie é não-opcional” (GANE; HARAWAY,
2010, p. 9), o ciborgue também deve ser encarado como espécie-compa-
nheira. Eu ouço e não ouço, ajo e reajo a sensações, comportamentos e
emoções de modos diferentes quando uso o implante coclear e quando
não o uso. Quando uso o implante coclear, as ações também variam de
acordo com o ambiente em que estou. Por exemplo, se o ambiente de
meu quarto estiver silencioso, muitas vezes consigo ouvir e entender pra-
ticamente tudo o que me é dito até no escuro, sem necessitar de leitura
labial. Por isso o implante coclear é a tecnologia que mais funciona como
minha “[...] cola social, um repositório da memória, da comunicação, da
inscrição e dos actantes, assumindo, por conseguinte, uma posição espe-
cial na rede de acções que constituem a ordem social” (STAR, 1996, p.
77). Assim, minha relação com o implante coclear é de interdependência,
co-constituição, co-extensiva, sempre um “tornar-se-com” porque ele “faz
fazer” efeitos para que eu possa ouvir e também não ouvir.
Ouvir e não ouvir também envolvem relações de poder com o Estado e
o mercado de implantes cocleares (planos de saúde, empresas fornecedo-
ras, clínicas médicas etc.), na exata medida em que interferem, burocrática
e financeiramente, no acesso a baterias e acessórios e na manutenção e

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substituição de um implante coclear danificado ou obsoleto por outro. No


caso da influência do mercado vale ainda destacar o poder de monopólio
das marcas68 de implantes cocleares, inclusive a da que uso, com práti-
cas de fixação de preços acima do nível de custos. Desse modo, a política
de distribuição e de acesso ao implante coclear e seus acessórios impli-
ca uma rede sociotécnica da surdez nem sempre estável, sendo esta uma
das críticas dirigidas à teoria do ator-rede, por ela desconsiderar a questão
do poder:

Não há nenhuma razão analítica para pôr de lado a manutenção e os pou-


cos sectores da população que são objecto de discriminação. De facto, há
todas as razões para o não fazer. Como o próprio Latour observa em res-
posta às críticas à teoria dos actores-redes motivadas pelas implicações po-
líticas das suas propostas de “nivelamento” das diferenças entre humanos
e não humanos, dizer aplanamento heurístico não é o mesmo que propor
o ignorar empírico das diferenças no que se refere ao acesso ou à experiên-
cia. Pelo contrário, trata-se de uma forma de derrubar fronteiras reificadas
que nos impedem de ver os modos como os seres humanos e as máquinas
se interpenetram. (STAR, 1996, p. 90).

No próximo tópico relato uma dimensão da minha experiência sexual,


envolvendo o uso de meu implante coclear como “brinquedo erótico”. O
intuito é discutir o lugar do implante coclear na constituição da minha
subjetividade como lésbica e as implicações desse debate no meu modo de
“ser surda”. Enquanto actante não humano o implante coclear faz fazer do
ouvir o sexo um devir-ciborgue que considere a condição de pessoa-grafo.

68.  No Brasil para cada marca de implante coclear há apenas uma única empresa fornecedora detendora
dos direitos de venda de todos os produtos da marca. O único produto que o(a) usuário(a) de implante coclear
tem o controle do seu preço é a bateria não carregável tipo botão, podendo comprá-la fora da empresa de sua
marca de implante coclear, havendo várias opções de marcas de baterias desse tipo, com possibilidade de
adquiri-las até de empresas do exterior, via compra em sites on-line. No entanto, para a maioria dos(das) usuá-
rios(as) a bateria não recarregável tipo botão tornou-se uma segunda opção, haja vista que os modelos atuais
de implantes cocleares já fornecem baterias recarregáveis como parte do pacote do implante coclear externo.

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Meu implante coclear, meu brinquedo erótico aleijado


Meu corpo surdo, meu implante coclear. Meu implante coclear, meu
brinquedo erótico aleijado. Meu brinquedo erótico aleijado, minha sub-
jetividade. Se a sexualidade é múltipla e possui significados subjetivos va-
riáveis em diferentes culturas, o mesmo posso dizer da subjetividade da
experiência surdo-implante coclear presente nos atos sexuais. A escrita-ci-
borgue de Haraway (2009, p. 75) antecipa ao dizer que “o sexo, a sexuali-
dade e a reprodução são atores centrais nos sistemas mitológicos high-tech
que estruturam a nossa imaginação sobre nossas possibilidades pessoais e
sociais”, o que se aplica a esse contexto o uso de próteses e órteses pessoais
nas práticas sexuais de pessoas com deficiência. Um exemplo dessa abor-
dagem é o projeto Pornortopedia69, um projeto colaborativo pós-pornô
aleijado de design de brinquedos sexuais para pessoas com deficiência. Na
Pornortopedia as próteses e órteses são sexualizadas e servidas aos prazeres
e desejos eróticos de corporalidades dissidentes defiças (GARCÍA-SAN-
TESMASES FERNÁNDEZ et. al., 2017)
Estudos antropológicos nacionais sobre práticas sexuais de pessoas
surdas envolvendo o uso de tecnologias auditivas como actantes são ine-
xistentes. Essa dificuldade deve-se ao fato da surdez ser, à primeira vista,
uma “deficiência invisível”, ou seja, o corpo surdo não apresenta qualquer
alteração corporal na “superfície”, sob a pele. Há uma gradação de defi-
ciências, ou “hierarquias crip” de corpos defiças, estando o corpo surdo
no início dessa hierarquia. Por outro lado, o estudo de Everton Oliveira
(2016) mostra que as práticas erótico-sexuais de mulheres com deficiência
física envolvem o uso de cadeiras de rodas ora como superfície para uma
dança sensual, ora como uma extensão do corpo defiça em práticas sexuais
e/ou jogos eróticos, chegando, muitas vezes, a projetar o quadro da cadeira
de rodas como uma superfície erótica.
Uma das experiências sonoras mais engraçadas que eu tive com
meu implante coclear foi descobrir a existência dos sons do sexo que

69.  A página do projeto está disponível em: <http://postop-postporno.tumblr.com/Pornortopedia>. Acesso


em: 04 jul. 2019.

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produzimos e ouvimos durante as relações sexuais. Essa é uma das dimen-


sões poderosas da minha experiência ciborgue, porque eu não imaginava
que o implante coclear fosse capaz de me “ativar” para o sexo. Sem preci-
sar de leitura labial, ouço e entendo no escuro palavras, gemidos e sacana-
gens sussurradas pela minha mulher no lado implantado do meu ouvido
– e porque entendo, esta é uma situação plena de eu ouvir. Perguntava-me
como era possível eu ter com o implante coclear um desempenho superior
em reconhecimento auditivo de palavras e orações em situações de inti-
midade dentro de casa, mas nem sempre obter a mesma performance fora
dela. Percebi que o implante coclear trabalha melhor em ambientes com
nenhuma ou pouca “poluição sonora”, isto é, livres da maior parte dos ruí-
dos ambientais e falatórios das vizinhanças no entorno, o que é corrobora-
do por Tim Ingold (2008, p. 34), quando comenta que “estar em casa num
lugar, especialmente no escuro, significa conhecer como isso [o som] soa e
ressoa. Assim, escutar é tanto uma atividade ativa de investigação e de auto
orientação no mundo quanto o é o olhar”. A meu ver isso tem relação com
o fato de que ambientes sem ruídos fornecem uma melhor affordance para
o híbrido surdo-implante coclear.
Affordance é um conceito originado nos domínios da percepção e da
ecologia de James J. Gibson (1986 [1979]) para descrever as possibilida-
des de ação oferecidas pelo ambiente a um actante. Vem do verbo afford,
traduzido aproximadamente como “oferecer”. Nesse sentido, a percepção
implica um ambiente significativo revelando-se imediata e diretamente
para o observador. São, nos termos de Lucia Santaella (2012, p. 57) “os
significados dos traços do ambiente”, porquanto “as ações estão descritiva-
mente atadas às affordances.” A percepção é direta e se dá pela disponibi-
lidade de informação significativa que, segundo Gibson (1986), consiste
em padrões invariantes que especificam os traços do ambiente para um
observador capaz de captá-la. Esses padrões podem ser sonoros, visuais,
táteis, palatáveis ou olfativos e expressam as propriedades dos objetos ou
eventos correspondentes, fornecendo parâmetros para a ação de humanos
e não humanos “porque todos nós agimos de acordo com as coisas que

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podemos olhar e sentir, ou cheirar e provar, e eventos que podemos ou-


vir” (GIBSON, 1986, p. 9). Em resumo, affordances são as maneiras pelas
quais humanos e não humanos interagem e se adaptam ao ambiente.
Uma autora do campo dos estudos sobre deficiência que usa o concei-
to de affordance indo além da abordagem ecológica da percepção visual
de Gibson (1986) é Arseli Dokumaci (2017). A autora considera que as
affordances não são apenas adaptações ambientais, mas também “desem-
penhos de deficiência”, podendo ser performances individuais, improvisa-
ções multi-pessoa e mesmo coreografias. São informais e às vezes mostram
até uma tecnologia assistiva imaginada que, em alguns casos, pode existir
em espaços privilegiados, mas o indivíduo (que pode estar em um espaço
que não é privilegiado) pode não saber. Por isso o conceito também está
relacionado a adaptações razoáveis70 ou estratégias compensatórias, mas
como são informais e nem sempre performados de modo consciente ou
talvez comecem como coreografia, acabam se tornando as maneiras im-
pensadas das pessoas de se moverem pelo mundo da deficiência. Trans-
pondo esse conceito para meu exemplo, pode-se dizer que para mim o
implante coclear possibilita a ação de ouvir ou não ouvir. Se eu quiser am-
pliar o alcance desse exemplo, a affordance de um ambiente como um
quarto com pouca ou nenhuma poluição sonora possibilita a ação de fazer
o híbrido corpo surdo-implante fazer-se ouvir.
De fato, para muitas pessoas surdas implantadas o implante coclear
passou a ser um ingrediente de satisfação sexual. Muitas pessoas surdas
gostam de fazer amor portando um implante coclear porque amam e de-
sejam ouvir os “sons do sexo”71. Desse modo, o ouvir pode representar uma
dimensão positiva muito particular da experiência de cada pessoa usuária

70.  Adaptação razoável “significa as modificações e os ajustes necessários e adequados que não acarretem
ônus desproporcional ou indevido, quando requeridos em cada caso, a fim de assegurar que as pessoas com
deficiência possam gozar ou exercer, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, todos os direitos
humanos e liberdades fundamentais” (BRASIL, 2008). Assim, quando um determinado ambiente apresenta
barreiras, construídas ou naturais, de tal modo que impeçam o pleno acesso das pessoas com deficiência, é
responsabilidade institucional executar as devidas adaptações razoáveis no local (SASSAKI, 2010).
71.  O post intitulado “Sexo, surdez e aparelho auditivo”, publicado no blog Crônicas da Surdez, de Pau-
la Pfeiffer, mostra que o uso de implantes cocleares e aparelhos auditivos faz parte dos roteiros sexuais das

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de implante coclear. No meu caso, também não é diferente. Fazer amor


com implante coclear influencia a minha libido, mudando sobremaneira
os roteiros sexuais, uma vez que passo a descobrir e a participar ativamente
dos sons nos jogos de sedução na cama, para além dos cheiros e trocas
de olhares. Nesse sentido, o implante coclear é parte das fantasias sexuais
de pessoas surdas, fetichizado como brinquedo erótico para satisfazer um
desejo erótico de ouvir os sons do sexo. Um trabalho que perpassa esse
contexto é o estudo de Kristen Harmon (2012), em que a autora vai além
dos debates sobre o ‘fetichismo pela deficiência’, ao mostrar discursos de
indivíduos que mobilizam um apelo erótico em nome da ‘fetichização da
audição’, não sendo essa atrelada a um desvio sexual como ocorre no ‘feti-
che pela deficiência’, quando um indivíduo manifesta uma vontade de se
amputar que está atrelada a um desvio erótico perverso pelo corpo de uma
pessoa com deficiência, geralmente aquela que apresenta amputação de
membros (Cf. GAVÉRIO, 2017).
Meu ponto é que o uso do implante coclear nas práticas sexuais de
pessoas se constitui em uma experiência poderosa por ser subjetivo de
cada sujeito e por isso não faz sentido se referir a ele como uma “coisa
ruim”. Como acontece em toda e qualquer experiência do sujeito, o im-
plante coclear não deve prescindir da posição subjetiva do sujeito. Mes-
mo no terreno da sexualidade o uso do implante coclear passa a ser uma
questão de foro privado que diz respeito a prazeres, sensações e desejos
sexuais e isso é sempre tributário da posição subjetiva de cada pessoa sur-
da, sendo uma violência negar-lhe esse direito. A outra questão é que
este tema perpassa toda uma discussão sobre a noção de pessoa no Oci-
dente enquanto individualidade para abarcar, com base nos referenciais
etnográficos de Marilyn Strathern (2006, 2014) sobre os melanésios (es-
pecialmente em relação a conceitos como divíduo e pessoa partível ou

pessoas surdas. Disponível em: <https://cronicasdasurdez.com/sexo-surdez-aparelho-auditivo/>. Acesso em:


5 jul. 2019.

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compósita), também a modalidade da pessoa-grafo72, ideia sustentada por


Adriana Dias (2018):

Enquanto a individualidade se define pelo ser uno, pelo atributo de não


poder ser dividido, na ideia de um, representando a qualidade do que apre-
senta similitude, concordância, homogeneidade, igualdade, uniformidade,
não-diferenciação e repetição, a modalidade fala do espectro, não da partí-
cula, mas da onda, da pluralidade, do feixe, da diferença, da diferenciação
e da multiplicidade. A noção de pessoa individual é o ponto. Consolida-se
na unicidade em si. A pessoa espectral é grafo. Representa-se pelas rela-
ções. Conectividade e relações são o fundamento de sua constituição, de
sua percepção de si, do outro, do mundo. Pessoas-grafo têm múltiplos re-
gistros de si, não uma “identidade fixa” [...]. (DIAS, 2018, p. 289-290).

Em uma referência ao trabalho Embodiment and Personhood, de An-


drew J. Strathern e Pamela J. Stewart (2011), a referida antropóloga argu-
menta que as pessoas com deficiência corporificam o melhor exemplo de
pessoas-grafo porque como grafos elas “estendem o corpo, a personificação
e a pessoalidade como um espectro que abarca o social, o tecnológico, a
comunicação, o outro” (DIAS, 2018, p. 91). A melhor síntese de sua expla-
nação se encontra de modo brilhante na seguinte passagem:

No Ocidente, pessoas espectrais são o que estão mais próximas das pes-
soas compósitas da Papua Nova Guiné. As pessoas com deficiência são
o melhor exemplo de pessoas-grafo, pois desde muito cedo apreendem
a continuar sua pessoa, seu corpo, sua existência, não apenas em outras
pessoas e relações, mas também em tecnologias, substâncias, espaços, dis-
positivos. Um cadeirante continua em sua cadeira de rodas, ele e ela são

72.  A ideia de pessoa-grafo provê da teoria dos grafos da matemática, em que “os grafos são uma forma de
representar formalmente uma rede, que é basicamente uma coleção de objetos que estão todos conectados
entre si” (JOSHI, 2017). Esta é também a abordagem matemática para descrever as redes sociais que conhe-
cemos (Facebook, Twitter etc.).

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um espectro e não uma partícula, o cego continua no cão-guia, a criança


com doença rara continua no cuidador, no fisioterapeuta, no remédio que
necessita para sobreviver, no aparelho que permite que o oxigênio chegue
às suas células, fazendo dela não apenas um ciborgue, mas também um
grafo, outro registro da experiência humana. Surdos continuam em seus
implantes [cocleares], nos gestos das linguagens [línguas] de sinais, uma
performance de comunicação e socialização, autistas continuam nos sím-
bolos com que se comunicam por meio de aparelhos, cegos continuam em
frases em Braille espalhadas pela cidade, nos pisos táteis. Essas marcas que
demarcam a acessibilidade de projetos, sejam urbanísticos, de software ou
de espaços de convivência social (escolas, ambientes de trabalho, universi-
dades, hospitais, entre outros), estendem a presença dessas pessoas mesmo
em suas ausências, lembrando-nos de sua existência. Essas marcas são os
vértices que os registram, grafam, inscrevem. O registro de fotos pelo fotó-
grafo cego durante os Jogos paralímpicos grafou sua existência, trabalho,
capacidade e sensibilidade em todos os sites que divulgaram suas fotos.
(DIAS, 2018, p. 290).

Que melhor exemplo de “tornar-se-com” do que a referência a pessoas


com deficiência enquanto pessoas-grafo? Isso me leva a pensar na deficiên-
cia como “o parâmetro” da humanidade, “o teste” para o desenvolvimento
das técnicas. Quando a questão da acessibilidade na web foi expandida
para incluir também as pessoas sem deficiência no acesso à internet por-
que o criador do W3C (World Wide Web Consortium) e seu departamen-
to WAI (Web Accessibility Initiative) disse que o acesso tinha de ser uni-
versal e nominalmente citou as pessoas com deficiência como parâmetro
para que a web tivesse essencialmente essa qualidade, é para ressaltar esse
caráter grafo. Para Friedrich Kittler (2016, p. 206), “a questão técnica se
transformou imediatamente em uma questão fisiológica, e a construção
de máquinas, em uma medição dos sentidos”. A invenção da máquina de
escrever e do telefone partiram dessa premissa: Alexander Graham Bell
inventou o telefone com o objetivo inicial de ajudar sua mulher, que era

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surda; a primeira máquina de escrever foi inventada pelos cegos para os


cegos. Kittler ilustra outros exemplos mais dramáticos:

· Para a cegueira:

Sendo físico, Fechner queria encontrar também quantidades e intervalos


mensuráveis para esse efeito das imagens consecutivas. Passou três anos
lendo todos os livros sobre o tema e olhando para o Sol. No fim dessa série
de experimentos, que expôs seus olhos a dois extremos diametralmente
opostos, ele estava cego e pronto para ser internado num manicômio. [...]
Os senhores podem ver que a fisiologia dos sentidos do século XIX arrui-
nou não só a vida de cobaias animais, como acontece hoje, mas também
os próprios pioneiros da pesquisa. As mídias sempre pressupõem handi-
caps; as mídias ópticas, portanto, além das deficiências dos pigmentos na-
turais, pressupõem também a cegueira de seus exploradores. (KITTLER,
2016 p. 208)

· Para a surdez:

Assim como Alexander Graham Bell, o inventor do telefone, Demeny


também queria curar um handicap fisiológico, a surdo-mudez [sic], por
meio da técnica midiática: ele combinou um fuzil fotográfico de Marey
com um fonógrafo de Edison e, como era costume na época, apontou a
instalação para si mesmo. Em seguida gritou em direção aos dois apare-
lhos as duas frases típicas: “Vi-ve la Fran-ce!”, depois “Je vous ai-me”. Essa
foi a primeira declaração de amor dirigida não a uma mulher, mas à mídia
do filme, que se tornou comum desde então. Ao mesmo tempo, porém, re-
presentava uma instrução ao surdo-mundo [sic]: supostamente, e por mera
imitação do movimento da boca de Demeny, as bocas deles realmente
conseguiram produzir declarações de amor audíveis dirigidas a ninguém.
(Idem, Ibidem, p. 226)

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[...] Edison havia adquirido não só uma surdez parcial, mas também co-
nhecimento técnico e algum dinheiro. Aproveitando-se desse duplo fun-
damento, seu laboratório – o primeiro laboratório da história da técnica –
realizou dois sonhos do século: a gravação mecânica do som, o fonógrafo,
e a fonte de iluminação perfeita, a lâmpada incandescente. (Idem, Ibidem,
p. 226-227)

· Para a loucura:

Então a história do ouvido na era de sua superação é – já sempre – a his-


tória da loucura. A música do dano cerebral transforma em realidade tudo
aquilo que assombrava as cabeças e os manicômios na forma de pressenti-
mentos sombrios. Segundo um léxico da psiquiatria, “o sentido mais afe-
tado por alucinações é a audição”. A gama dos chamados acoasmas, que a
loucura vivencia ou produz, abarca tudo, desde o ruído branco, silvos, go-
teiras, sussurros até falas e gritos. O léxico da psiquiatria parece estabelecer
uma lista de todos os efeitos do Pink Floyd. O ruído branco aparece em
One of These Days; os silvos, em Echoes; as goteiras, em Alans Psychede-
lic Breakfast; os gritos em Take Care of That Axe, Eugene; e os sussurros,
por toda parte... (Idem, 2017, p. 89).

A deficiência é, pois, “o teste”, a affordance para o desenvolvimento da


técnica. A loucura, para a compreensão da paisagem sonora e os meios de
mediação. O mesmo pode ser dito da cegueira e da surdez em relação ao
alcance dos sentidos da visão e audição, respectivamente. O que Friedrich
Kittler (2016, 2017) defende é que não existe nenhuma técnica midiática
ou ferramenta de comunicação decisiva que não seja um desdobramento
do reconhecimento da questão da deficiência como determinante para a
experiência sensorial humana. Seu argumento acopla com o da pessoa-
-grafo de Adriana Dias, e explica por que o corpo da pessoa com deficiên-
cia remete a um “vínculo grafo” com humanos e não humanos para poder
acessar direitos básicos. No meu caso, todas as dimensões envolvendo esses

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direitos básicos implicam o direito primário de acesso à comunicação e à


informação.

Considerações finais
Este trabalho foi uma primeira tentativa de refletir sobre algumas ques-
tões que permeiam a agência não humana do meu implante coclear e que
influenciam as minhas subjetividades surda e lésbica. Do ponto de vista
feminista, não podemos falar da simetria da interdependência corpo surdo-
-implante coclear sem levar a sério tudo o que não é humano no contexto
da deficiência e as implicações metodológicas dessa perspectiva conjuntiva
“sexo/implante coclear” para a constituição de identidades da pessoa surda.
No meu caso, fazer amor com a mesma mulher, ouvinte com quem com-
partilho minha vida há quase uma década, portando um implante coclear
para curtir ouvir os sons do sexo exige que eu não perca esse “tornar-se-com”
grafo e isso não ocorre sem uma via de mão dupla entre o híbrido surdo-
-implante coclear, as affordances e todos os actantes que compõem a rede
sociotécnica do implante coclear, incluídos minha parceira e eu, estabele-
cendo relações, conexões, associações. É próprio da pessoa com deficiência
se associar também ao não humano e essas associações são sempre híbridas.
Ser ciborgue é dizer que não se é humano sem a agência não humana.
O fetiche pelos sons do sexo obtidos com a ajuda de um implante co-
clear é tributário da subjetividade da pessoa surda, independentemente de
sua orientação sexual. Ouvir via implante coclear tem a ver com desejo e
as sensações consumadas por esse desejo nem sempre se constituem em
uma experiência negativa para qualquer pessoa surda. No meu caso não
há por que afirmar ser difícil uma lésbica surda não ter a possibilidade de
compartilhar uma “vida a duas” com uma lésbica ouvinte sob o argumen-
to da comunicação ser limitada ou pouco acessível, porquanto importa
que lésbicas surdas e ouvintes desejem cultivar a vontade de compartilhar
suas vidas umas com as outras.
Como mulher surda, muitas vezes meu lugar situado (HARAWAY,
1995) no mundo indica que não é o gênero, mas a deficiência (surdez) a

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categoria que permeia minha subjetividade. Nesse sentido, se a deficiência


se revela, como o marcador social de diferença “primário”, importa am-
pliar seu alcance, apontando afinidades e conflitos de um modo que des-
velem enlaces entre surdez e lesbianidade. No entanto, isso não implica
perseguir a deficiência como uma “diferença concreta” (PLATERO, 2012,
p. 17) merecedora do status de “maior opressão” que outros marcadores
sociais de diferença, ou ainda pretender dar-lhe um lugar privilegiado no
debate. Trata-se de, transpondo os termos do debate interseccional prefe-
rencial sobre sexualidades não normativas73 em Lucas Platero (2012), “una
elección consciente y estratégica” (Loc. cit.) para dar visibilidade à defi-
ciência, “y no ser uma coletilla más en la lista de desigualdades u organi-
zadores sociales de las vidas de las personas que se pierde junto al etcétera”
(Loc. cit.). De fato, trago no meu corpo as marcas do gênero (ser mulher),
da sexualidade (ser lésbica), da classe (ser proveniente da classe média),
da raça (ser branca) etc., todas elas entrelaçadas à deficiência (ser surda),
embora seja a deficiência o “estigma” que a estrutura social tende a colocar
em evidência. Essa constatação implica um sujeito situado em que a sur-
dez tem a primazia da “violência da interpelação” (BUTLER, 2015): sou
primeiramente vista ou interpelada como “a surda”. Mesmo antes de ser
lésbica, sou “a surda”, porquanto “relatamos a nós mesmos simplesmente
porque somos interpelados como seres que foram obrigados a fazer um
relato de si mesmos por um sistema de justiça e castigo” (Idem, ibidem, p.
22). No que concerne ao implante coclear, ele é tratado por muitos Surdos
com certa repulsa, uma “coisa ruim”, quase automaticamente uma “ex-
periência negativa” a ser evitada, muitas vezes sem considerar as questões
subjetivas implicadas em cada situação particular e que nos demandam
um exercício contínuo de relativização.

73.  As “sexualidades não normativas” ou “sexualidades dissidentes”, friso, não se reduzem à população
LGBT, posto que as pessoas com deficiência também fazem parte desse rol.

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Mayara Micaela Alves Gomes

C
o m e c e i m i n h a m i l i tâ n c i a a i n d a n o m o v i m e n t o s e c u n d a r i s ta ,

no Instituto Abel em Niterói em 2008, naquele tempo não en-


tendia muito dos processos, mas sabia que algo precisava ser fei-
to. Nossas principais reivindicações eram pelo Passe Livre e pela eleição
direta na União Niteroiense de Estudantes Secundarista. Apesar de ter co-
meçado minha militância no movimento estudantil secundarista, foi só
na universidade no curso de Biotecnologia na UFRJ em 2010 que passei a
entender como se forma a sociedade e os níveis de opressões que se estru-
turam nela. Foi na universidade, no movimento estudantil, que me com-
preendi enquanto uma mulher feminista e negra, passando por um longo
processo de encontro comigo mesma e com as minhas raízes perdidas.
Foi na universidade também que me identifiquei com o socialismo e
compreendi que a sociedade é marcada por uma luta de classes. Sou mi-
litante por um mundo livre de opressões e igualitário. Acredito que ven-
ceremos e que um outro mundo não só é possível, como já está sendo
construído por nós militantes socialistas.
Já a minha sexualidade foi um desabrochar, um processo de afirmação
de quem eu era e dos meus desejos. Quando me assumi lésbica aos 21 de
idade, foi quando pude me experimentar por inteiro, com todas as belezas
e dores de uma sociedade machista e lgbtfobica.
Eu, que sou uma mulher negra lésbica e socialista, não estaria comple-
ta sem falar da minha religiosidade. Sou filha de Xangô e Iansã, Iawô do

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Ilê Axé Odé Omí Ewá Dofona de Xangô e carrego no meu corpo a ances-
tralidade do meu povo e a fé de quem venceu os grilhões da escravidão.
É no som do atabaque e nos cânticos em iorubá que recarrego as minhas
forças para seguir lutando por aqueles que se foram e que virão.
Antes de concluir gostaria de dedicar esse artigo à minha companheira
de militância Valda Neves, que me incentivou a escrevê-lo e organizar as
ideias no papel, gratidão!

“Seguiremos em Marcha até que todas sejamos livres”

Kaô Kabecile meu pai.

Eparrey minha mãe.

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Mulheres Negras que Amam Mulheres

Mayara Micaela Alves Gomes

Mulher raça e identidade

O
sequestro doP o v o N e g r o A f r i c a n o pa r a o B r a s i l p o r m e i o
do tráfico negreiro pelos europeus é um dos grandes marcos da
formação do nosso país. Foi no Brasil colônia que começou a se
estruturar a identidade do sujeito brasileiro e a nossa nação, onde o negro
escravizado era identificado, legalmente até a abolição, enquanto merca-
doria com valor para venda, troca, trabalho forçado e demais necessidades
do senhor de engenho. Não fazendo parte do que viria ser chamado popu-
lação brasileira.
No período colonial o engenho era a sede do poder patriarcal absoluto,
os latifúndios de monocultura eram microterritórios patriarcais, católicos e
de manutenção da dominação através da força e da destruição dos valores
culturais africanos. Os negros escravizados deveriam ser evangelizados ain-
da na travessia do Oceano Atlântico para sua “domesticação” e ao chegar
na costa brasileira eram rebatizados e vendidos separados de suas famílias
perdendo, assim, sua identidade africana.
Após a abolição da escravidão ocorrem dois movimentos importantes
para a formação do que caracterizamos enquanto sujeito constituinte da
nação brasileira, uma delas através de políticas públicas, a outra por meio

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da construção da subjetividade através das superestruturas do Estado. O


ideal de embranquecimento surge a partir de uma intelectualidade nacio-
nal racista composta por políticos, juristas, escritores, entre outros, com o
intuito de branquear a população através da injeção de “sangue branco”
por meio da imigração de estrangeiros europeus/brancos, pois se acreditava
que o sangue branco iria purificar o sangue negro, o que para as teorias
racistas era sinônimos de inferioridade e impureza.
Para o pensamento racista e a elite brasileira a ideologia do embranque-
cimento atuava como:

A teoria brasileira do “branqueamento” (...) [é] aceita pela maior parte


da elite brasileira nos anos que vão de 1889 a 1914, era peculiar ao Bra-
sil (...) baseava-se na presunção branca, às vezes, pelo uso dos eufemismos
“raça mais adiantada” e menos adiantada “e pelo fato de ficar em aberto a
questão de ser a inferioridade inata. À suposição inicial, juntavam-se mais
duas. Primeiro – a população negra diminuía progressivamente em relação
à branca por motivos que incluíam a suposta taxa de natalidade mais baixa,
a maior incidência de doenças e a desorganização social. Segundo – a misci-
genação produzia “naturalmente” uma população mais clara, em parte por-
que o gene branco era mais forte e em parte porque as pessoas procurassem
parceiros mais claros que elas. (SKIDMORE, 1989, p.81)

Já para a população negra, a ideologia do embranquecimento teve efei-


tos em diversas esferas do seu ser, como na constituição da sua psique:

“O branqueamento foi uma pressão cultural exercida por uma hegemonia


branca, para que o negro negasse a si mesmo, no corpo e na mente, como
uma espécie de situação para se integrar na nova ordem social.” (Bento &
Carone, 2002)

Aliado ao ideal de embranquecimento, não houve nenhuma política


pública de inclusão dos recém libertos. Sem acesso à moradia, educação

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e empregos a população negra foi entregue a sua própria sorte servindo


enquanto um enorme exército de mão de obra de reserva, ficando comple-
tamente à margem da sociedade.
Junto com a ideologia do embranquecimento e a falta de políticas pú-
blicas, veio a criminalização da cultura negra. Logo após a abolição, no
código penal de 1890, os dois principais aspectos da herança cultural negra
foram criminalizados: a capoeira e os rituais religiosos. Nos artigos ipsis
verbis está a criminalização da capoeira:

Art. 402. Fazer nas ruas e praças publicas exercicios de agilidade e destreza
corporal conhecidos pela denominação capoeiragem; andar em correrias,
com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provo-
cando tumultos ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incu-
tindo temor de algum mal:
Pena – de prisão cellular por dous a seis mezes.
Paragrapho unico. E” considerado circumstancia aggravante pertencer o ca-
poeira a alguma banda ou malta. Aos chefes, ou cabeças, se imporá a pena
em dobro.
Art. 403. No caso de reincidencia, será applicada ao capoeira, no gráo ma-
ximo, a pena do art. 400.
Paragrapho unico. Si for estrangeiro, será deportado depois de cumprida a
pena. Art. 404. Si nesses exercicios de capoeiragem perpetrar homicidio, pra-
ticar alguma lesão corporal, ultrajar o pudor publico e particular, perturbar
a ordem, a tranquilidade ou segurança publica, ou for encontrado com ar-
mas, incorrerá cumulativamente nas penas comminadas para taes crimes.
(GAMA, 1929, p.462).

Como foi dito anteriormente, o código penal de 1890 criminalizava


também o curandeirismo, o espiritismo e cartomantes, que eram partes
dos rituais religiosos africanos. Até 1889, a colônia brasileira era Apostólica
Romana com influência direta da Igreja Católica nas decisões da coroa e
na dominação católica dos engenhos. Mesmo após a formação do Estado

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brasileiro continuamos sendo dominados pelo poder da Igreja Romana e


o racismo religioso é um dos pilares da nossa sociedade. As religiões de
matrizes africanas tiveram por anos que se esconder e ter suas sessões em
locais distantes das cidades, sendo qualificadas enquanto religiões do de-
mônio dentro do maniqueísmo cristão.
Dessa forma, temos a formação da identidade da nação a partir da ne-
gação do povo negro, no qual essa negação não é só dos seus traços físicos,
mas também de seus elementos culturais trazidos da África. Formando
uma sociedade embranquecida, ainda que tenhamos uma composição so-
cial a partir de fenótipos miscigenados, onde no imaginário social o nosso
padrão de sociedade são as características brancas, marcadas por concep-
ções eurocêntricas. Constituímos uma nação onde o negro é o não sujeito
social, que vive marginalizado e de forma subalterna.

“Ser negro é ser violentado de forma constante, contínua e cruel, sem pausa
ou repouso por uma dupla injunção: a de encarnar o corpo e as ideias de
Ego do sujeito branco e a de recusar, negar e anular a presença do corpo
negro.” (Jurandir Freire Costa)

A supremacia branca é uma forma de dominação exercida não só pelo


exercício da força, mas também por elementos econômicos, subjetivos,
culturais e pela formação de consensos ideológicos na sociedade. Dessa
forma se assumir enquanto um homem ou uma mulher negra é, além de
possuir uma identificação com as características biológicas em que a iden-
tidade racial é atribuída por algum traço físico como a cor, sobretudo um
ato político de pertencimento às características étnicos-culturais, realidade
social e subjetividades do povo negro.
E é desse modo, em um país que possui suas bases no colonialismo e
na escravidão, que foi formada a subjetividade e a realidade socioeconô-
mica da mulher negra brasileira. Ao longo da história coube a ela o papel
de serventia da casa grande, dos prazeres sexuais do senhor de engenho e
de trabalhos forçados nas lavouras, pois ao contrário das mulheres brancas

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que não podiam trabalhar, as negras eram compulsoriamente colocadas


enquanto mão de obra.
Atualmente, segundo dados do Dossiê Mulheres Negras: Retratos das
Condições de Vida das Mulheres Negras (2013) as mulheres negras se di-
rigem a empregos domésticos, de prestação de serviços e também ligados
à produção na indústria, já as mulheres brancas da classe média se dirigem
a áreas administrativas ou de educação e saúde. Essa discrepância também
ocorre na educação onde a taxa de mulheres brancas no ensino básico ou
superior é muito maior do que a taxa de mulheres negras.
Assim se constituiu uma sociedade em que os valores e os papéis sociais
atribuídos às mulheres brancas e negras são antagônicos. Sendo o referen-
cial único, segundo as concepções europeias, coube a mulher branca o
papel social de constituição da família tradicional, necessária para a manu-
tenção dos privilégios burgueses dentro da mesma família/classe, de fragi-
lidade onde necessita do cuidado e da proteção e de feminilidade, ao con-
trário da mulher negra que é qualificada de forma animalesca, sexualizada
e de serventia para os trabalhos mais precarizados.

Mulheres negras: raça e gênero


Por que as qualidades masculinas são valorizadas e as femininas desqua-
lificadas? Por causa da relação de poder e dominação dos homens sobre as
mulheres que se materializa na divisão sexual do trabalho, na qual ocorre a
separação entre o trabalho dos homens e das mulheres e faz com que o tra-
balho do homem valha mais do que o trabalho das mulheres e, portanto,
fazem com que os homens estejam nos trabalhos de maior valor agregado.
O patriarcado.

“Homem é a definição de ser humano e mulher é a definição de fêmea.


Quando ela se comporta como ser humano ela diz que imita o homem.”
(Simone Beauvoir)

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O controle do corpo e da sexualidade das mulheres foi necessário para


impor essa divisão sexual do trabalho. O lugar delas foi historicamente de-
terminado para ser o privado, longe da política, da cultura e dos espaços
públicos, e com base em uma binaridade dividida entre a santa e a puta,
mas sendo as duas desqualificadas e inferiores ao homem.
Essa sexualidade foi baseada em valores heterossexuais e para satisfazer
o desejo masculino. Onde o sexo é propositalmente um substantivo mas-
culino e o desejo sexual uma virtude do homem que precisa ser satisfeita
a qualquer momento e modo pelas mulheres. Desse modo, se constituem
dois tipos de mulheres na sociedade, aquela que é para casar e a outra para
o prazer.
Transversalizando as opressões de raça e de gênero fica notório que a
mulher branca é para casar e a negra para o prazer. Para as negras ocorre
uma dupla negação social, o ser negra e o ser mulher, e essa estrutura gera
um impacto na vida delas em todas as suas formas de socialização, desde
fatores econômicos a questões da sua relação social. A solidão da mulher
negra é um dos fortes exemplos dessa construção social. Como historica-
mente coube a elas satisfazer o prazer sexual dos homens, se construiu no
imaginário social que elas não são as mulheres adequadas para o casamen-
to ou para serem assumidas publicamente em suas relações. Assim, são
pouquíssimas mulheres negras que conseguem se estabelecer romantica-
mente, pois são colocadas enquanto uma encarnação de um erotismo pri-
mitivo e desenfreado. O sexo é uma palavra masculina, já o amor burguês
é uma construção branca.
Além disso, o padrão de beleza da sociedade é o padrão da mulher
branca, magra e feminina. Como o belo é o que deve ser seguido e norma-
lizado, o negro é o que deve ser excluído e escondido. De forma coloni-
zada normalizamos um padrão eurocêntrico, que na realidade pouco tem
identidade com a constituição da população brasileira. É um modelo de
padrão praticamente inatingível num conjunto das mulheres.
De tal modo que o patriarcado conduz a uma divisão binária das mu-
lheres entre as passíveis para constituição de uma família e as que que

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servem para o prazer masculino, ele também determinou, ao longo do


tempo, que as relações devem ser constituídas por um homem e uma mu-
lher. A heterossexualidade compulsória foi um dos valores predominantes
na sociedade, contudo após a despatologização da homossexualidade e
com alguns avanços progressistas ser homossexual, até a atual onda cres-
cente conservadora que vivemos, ela perdeu um pouco do estigma pejo-
rativo.
Desse modo a heterossexualidade compulsória perdeu parte da sua for-
ça, mas no seu lugar, para delinear o comportamento sexual, entrou em
cena a heteronormatividade, que pode ser definida como:

“a crença na superioridade da orientação heterossexual e a consequente ex-


clusão, proposital ou não, de indivíduos não heterossexuais de políticas pú-
blicas e organizacionais, eventos ou atividades” (Irigaray, 2011)

A heteronormatividade determina que mesmo as pessoas não heterosse-


xuais vivam conforme padrões heteros, sem expor suas orientações sexuais
e que a mulher seja feminina e o homem masculinizado. Perpetuando a
heteronormatividade e o patriarcado ainda que relacionamento homoafeti-
vos, dentro dessa lógica social, mulheres lésbicas são condicionadas a cons-
tituir famílias e homens gays a serem promíscuos. O amor lésbico, quando
não é fetichizado pelo prazer masculino é romantizado e idealizado, como
se fosse um conto de fadas com duas princesas frágeis, românticas e que
não se relacionam sexualmente.

“Há muitos tipos de poder, usados e não usados, reconhecidos ou não. O


erótico é um recurso dentro de cada uma de nós, que paira num plano pro-
fundamente feminino e espiritual, firmemente enraizado no poder de nossos
sentimentos impronunciados ou não reconhecidos. Para se perpetuar, toda
opressão deve corromper ou distorce aquelas várias fontes que há na cultura
de oprimidxs e podem suprir energia para mudança. Para mulheres, isso tem

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significado a supressão do erótico como fonte considerável de poder e infor-


mação dentro de nossas vidas.” (Audre Lorde)

A supressão ou o fato de inibir o erótico feminino é uma das formas


de dominação e do estabelecimento do poder do homem sobre a mulher.
Assim são nas relações homoafetivas que muitas delas se reencontram com
a essência feminina, com o prazer que lhes foram negadas e com suas von-
tades sexuais. Para isso, elas precisam romper com uma estrutura de domi-
nação opressora que as desumanizam.
Contudo, não basta estabelecer uma relação homoafetiva para conse-
guir sair da caixa opressora que as prende. A perpetuação do sistema capi-
talista, patriarcal e racista consiste em fazer que todos, homens e mulheres,
brancos e negros, reproduzam as opressões que lhe são impostas. Desse
modo, se toda relação é uma relação de poder, uma relação entre duas
mulheres também pode reproduzir as opressões sociais e se qualificar em
relações abusivas ou tóxicas, sobretudo quando elas são de diferentes clas-
ses sociais ou raças.
Existe uma enorme escassez de investigação sobre as violências físicas
e subjetivas entre parceiros do mesmo sexo, com poucos dados para serem
analisados e pesquisas científicas publicadas. Na literatura estrangeira o
início dos estudos de caso é do final da década de 80, que teve um dos pri-
meiros estudos publicados por Brand e Kidd em 1986. Mas o fato de não
existirem dados sobre esses tipos de violência não quer dizer que elas não
existem, mas sim que são silenciadas ou subjugadas.
O segundo armário, que muitos autores citam (Ex. Nunan, 2004) é a
condição na qual por um lado a relação homoafetiva sofre discriminação
e deve ser escondida e por outro lado é o segredo ao qual as condições de
violências são colocadas e invisibilizadas, o que é uma dupla invisibiliza-
ção. Transformando-se em um paradigma social que deve ser transposto e,
sobretudo, combatido pela comunidade LGBTI+¹.
As poucas pesquisas que existem citam as seguintes especificidades das
violências em relações com parceiros do mesmo gênero:

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1. A ameaça de revelação da orientação sexual do(a) parceiro(a) (outing);


2. A revelação da eventual presença do HIV no(a) parceiro(a);
3. A assunção da violência como mútua e consensual, a caracterização da
violência como comportamento normal nas relações LGBT;
4. O reforço do medo em relação à falta de apoio (policial, jurídico e outros)
a vítimas de violência nos casais do mesmo sexo;
5. O questionamento da “verdadeira” orientação sexual do(a) parceiro(a).
(Helena Topa, 2010)

O desafio que permeia a visibilidade seja no meio acadêmico, na co-


munidade LGBTI+ ou nas políticas públicas de segurança ou de saúde
que existem violências nas relações lésbicas é ter que desconstruir um ima-
ginário social, criado com base na heteronormatividade e no patriarcado,
de que as mulheres são frágeis e passivas, incapazes de cometer atos de
violência. Por outro lado, o ponto central é compreender de que forma as
opressões são internalizadas e reproduzidas por elas.
Não devemos considerar que somos seres naturalmente violentos, mas
que por meio da família, da religião e dos meios de comunicação existe
uma construção de subjetividade social, de tal modo que, por exemplo,
para as mulheres brancas era natural, por ser naturalizado, deixar seus fi-
lhos e o serviço doméstico com as mulheres negras enquanto elas ocupa-
vam postos de trabalhos na vida pública e ascendiam politicamente. Existe
uma relação social que ocorre por meio do racismo estrutural que as mu-
lheres, ambas oprimidas pelo patriarcado, em que a mulher negra é dupla-
mente oprimida.
De tal forma que, para as mulheres negras, além do duplo armário con-
ceituado, ocorre também um armário branco ou um embranquecimento
do duplo armário, uma vez que suas especificidades não são visibilizadas,
mesmo dentro da comunidade LGBT+. O armário branco consiste na di-
ficuldade em se assumir, o silêncio em relação às relações abusivas entre
parceiros do mesmo sexo e o embranquecimento das pautas do movimen-
to LGBT+, pois os danos na construção da subjetividade das mulheres é

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tamanho que antes de se assumirem, elas precisam primeiro recuperar


suas subjetividades e se sentir aptas a serem desejadas e capazes de estar
em relacionamento saudável. Uma vez que o amor e o desejo não mercan-
tilizado ou não pejorativo foram negados a elas ao longo da história.

Mulheres Negras Que Amam Mulheres


Ser uma mulher negra lésbica é viver atravessada por um conjunto de
opressões raciais, machistas e sexuais que provoca uma marca particular
no seu modo de vida, nos desafios e enfrentamentos vividos por elas.

Eu me nomeio “lésbica” porque essa cultura oprime, silencia e destrói as


lésbicas, mesmo as lésbicas que não chamam a elas mesmas como “lésbicas”.
Eu nomeio a mim mesma “lésbica” porque eu quero ser visível para outras
lésbicas negras. Eu nomeio a mim mesma “lésbica” porque eu não quero
subscrever-me à heterossexualidade predatória/institucionalizada. Eu me
nomeio lésbica porque eu quero estar com mulheres (e elas todas não têm
que chamarem-se a si mesmas ‘lésbicas’). Eu me nomeio “lésbica” porque é
parte da minha visão. Eu nomeio a mim mesma lésbica porque ser mulher
identificada foi o que veio me mantendo sã. Eu chamo a mim mesma “Ne-
gra”, também, porque Negra é a minha perspectiva, minha estética, minhas
políticas, minha visão, minha sanidade. (Cheryl Clarke, em Novas Notas
em Lesbianidade)

Ser uma mulher negra lésbica não é só uma orientação sexual, mas
uma filosofia, um modo de vida e uma posição política. É confrontar o
sistema diariamente com o seu próprio corpo e entender a heteronormati-
vidade e o racismo enquanto um sistema e um político. Assim como Ochy
Curiel define em El Lesbianismo Feminista: una propuesta política trans-
formadora se relacionar com mulheres do mesmo sexo é mais do que ter
relações sexuais é criar laços afetivos de acolhimento e de solidariedade
entre elas.

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“Ser lesbiana en una cultura tan supramachista – capitalista – misógina –


racista-homofóbica e imperialista, es un acto de resistencia, una resistencia
que debe ser acogida a través del mundo por todas las fuerzas progresistas.
La lesbiana, esa mujer “que ha tomado a otra mujer como amante” ha lo-
grado resistir el imperialismo del amo en esa esfera de su vida. La lesbiana
ha descolonizado su cuerpo. Ella ha rechazado una vida de servidumbre que
es implícita en las relaciones heterosexistas/heterosexuales occidentales y ha
aceptado el potencial de la mutualidad en una relación lésbica, no obstante
los papeles” Cherlyl Clarke

A mulher homossexual está em uma relação direta de confronto com


a heteronormatividade e o patriarcado. A mulher negra lésbica está em
relação de confronto direto com a heteronormatividade, o patriarcado e
o racismo. Subvertendo toda lógica opressora da sociedade. Por isso, es-
sas mulheres são invisibilizadas, pois são um perigo para a ordem vigente,
uma vez que elas não seguem a normalização e não cumprem o papel
social que é pré determinado. É um ato de rebelião contra o sistema. Des-
se modo, elas são apagadas da história, se tornando mulheres invisíveis.
Cabendo a nós resgatar a memória guerreira e não deixar que esses nomes
de grande resistência se percam e sejam esquecidos.
Assim sendo, finalizo esse artigo, registrando e enaltecendo dez mu-
lheres negras lésbicas que foram/ainda são parte fundamentais da nossa
história:

Alice Nkom (14 de janeiro de 1945)


Advogada e ativista em defesa dos homossexuais em Camarões, onde
ser LGBT é um ato proibido e criminalizado. Em 2003, Nkom criou a
Association pour la défense des droits des homosexuel(le)s («Associação para
a defensa dos direitos dos homossexuais») que defende pessoas acusadas
do delito de homossexualidade e que ajuda os encarcerados que vivem em
situação degradante. Em 18 de março de 2014 ela recebeu o prêmio pelos
Direitos Humanos concedido pela Anistia Internacional alemã.

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Audre Lorde (18 de fevereiro de 1934 – 17 de novembro de 1992)


Escritora, feminista e filha de imigrantes caribenhos que viviam nos Es-
tados Unidos. Audre Lorde era defensora dos direitos humanos e uma das
pioneiras do conceito de feminismo interseccional que é uma das vertentes
do feminismo que diz que os recortes de vivências e opressões devem ser
feitos quando se for analisar as estruturas sociais de dominação-exploração,
sem contudo que haja uma sobreposição de um opressão por outra.

Barbara Jordan (21 de fevereiro de 1936 – 17 de janeiro de 1996)


Feminista e líder do movimento dos direitos civis para negros nos Esta-
dos Unidos, Jordan nasceu e cresceu em Houston, Texas, onde se tornou
a primeira negra do Sul dos Estados Unidos a ser eleita para a Câmara de
Representantes, em 1972. Embora ela nunca tenha se assumido publica-
mente, o seu obituário no jornal Houston Chronicle mencionou o seu
relacionamento de 20 anos com Nancy Earl.

Josephine Baker (3 de junho de 1906 – 12 de abril de 1975)


Josephine Baker foi considerada a primeira grande estrela negra das
artes cênicas e se identificava como bissexual. Foi uma das artistas Afro-a-
mericanas de maior sucesso na história da França e usou sua plataforma
para defender o fim da segregação, se recusando a se apresentar em lo-
cais segregados. Baker também foi uma espiã francesa durante a Segunda
Guerra Mundial, repassando segredos que ela ouvia enquanto trabalhava
para soldados alemães.

Kasha Jacqueline Nabagesera (1980)


Ativista de direitos LGBT da Uganda, país onde se relacionar com pes-
soas do mesmo sexo pode condenar a uma pena de no mínimo 14 anos.
Kasha é ativista lésbica desde os 19 anos de idade e fundadora da ONG
Freedom & Roam Uganda (FARUG). Em 2011 ela foi a primeira ativista
gay do mundo a receber o prestigioso Prêmio Martin Ennals Award para
Defensores dos Direitos Humanos.

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A MANDA MENDO NÇA - LAI LA MA R IA D OMIT H V ICE N T E

Mabel Hampton (2 de maio de 1902 – 26 de outubro de 1989)


Ativista americana lésbica e dançarina, Mabel, por falta de opções de
emprego, foi obrigada a trabalhar em casas de família como doméstica,
mas sempre manteve seu ativismo. Em 1984, Hampton falou diante de
milhares de espectadores em New York City Lesbian and Gay Pride Para-
de, onde disse: “Eu, Mabel Hampton sou lésbica a vida toda, há 82 anos,
e tenho orgulho de mim mesmo e de meu povo. Gostaria que todo o meu
povo fosse livre neste país e em todo o mundo: meu povo gay e meu povo
negro.”

Marielle Franco (27 de julho de 1979 – 14 de março de 2018)


Defensora dos direitos humanos, feminista e socialista. Marielle Fran-
co foi a 4ª vereadora mais votada da cidade do Rio de Janeiro no ano de
2016 e denunciava a guerra às drogas utilizada pelos governos para realizar
intervenção militar nos territórios negros e assassinar a população negra e
periférica. Por conta da sua atuação, Marielle Franco foi brutalmente as-
sassinada e até hoje os mandantes do crime não foram identificados.

Ochy Curiel (1963)


Teórica feminista, cantora e antropóloga nascida em Santiago, Repúbli-
ca Dominicana. Em 1996 formulou que o termo lesbianidade feminista,
que compreende que relações lésbicas, não é apenas uma orientação se-
xual, mas também uma opção política de enfrentamento a heteronorma-
tividade.

Ruth Charlotte Ellis (23 de julho de 1899 – 5 de outubro de


2000)
Ruth Ellis ficou conhecida como a mulher lésbica mais velha ativista
pelos direitos LGBTs aos 100 anos de idade e sua vida foi celebrada no do-
cumentário Living With Pride: Ruth C. Ellis @ 100. Ao longo da sua vida
Ruth Ellis e Ceciline “Babe” Franklin fizeram da sua casa na comunidade

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Afro-americana como um “ponto gay”, um local central de refúgio para os


LGBTs.

Tracy Chapman (30 de março de 1964)


“Poor people are gonna rise up | And get their share | Poor people are
gonna rise up | And take what’s theirs” Tracy Chapman é uma artista nor-
te-americana e socialmente engajada em causas sociais. Vencedora de qua-
tro prêmios Grammy Awards nos anos de 1989 e 1997.

A raiz é o espelho
Do que eu digo
E a semente espalha
Tudo o que é dito
Do seu jardim nasceu a flor desobediente
Enquanto ela existir vai ser diferente
Descluindo e criando
Saltando barreiras
A faraó, a verdadeira
Valente imperatriz, revolucionária
A pioneira, nunca retardatária!
Se gruda nóis pura ousadia
A venenosa, erva daninha
Líder nata na estrina
Mulher ipanema, heroína
No grito e no ferro
Que nunca se entrega
Quebrando o tabu
Destruindo as regras
Autêntica, polêmica, combatente
Coloca a mulher sempre a frente
Enigmática, apoiada pela fé
Decidida, sabe sempre o que quer

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A MANDA MENDO NÇA - LAI LA MA R IA D OMIT H V ICE N T E

Estrategista, de uma mente brilhante


Forte, corajosa, cativante
Guerreira, campeã, atrevida
Na luta diária pra ser reconhecida
A dona do seu corpo imponente
Tira provisão independente
A favor da liberdade eliminando o preconceito
Inteligente, merecedora de respeito
A trabalhadora, a chefe de família,
A produtora, a feminista
Luana Hansen

Nota de rodapé:
¹LGBT+: Inicialismo de Lésbica, gay, bissexual, transgênero\transse-
xual e o + é inclusivo de outros grupos como assexual, intersexo e queer.
Referências bibliográficas:
Almeida, S. O que é racismo estrutural? Letramento, 2018.
Antunes, R., & Machado, C. (2005). Dupla invisibilidade: A violência
nas relações homossexuais. Psychologica, 39, 167-187.
Avena, D. T.A Violência Doméstica Nas Relações Lésbicas: Realida-
des E Mitos. Revista Aurora.
Bento, M.A.S.; Carone, I. Psicologia Social do Racismo. Estudos so-
bre Branquitude e Branqueamento no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2002.
Clarke, C. Lesbianismo: um acto de Resistencia; Cheryl Clarke
Curiel, O. El Lesbianismo Feminista: una propuesta política trans-
formadora. Disponível em:< https://www.lahaine.org/aY0q>.
Davis, A. Mulher, raça e classe. 1. ed. Boitempo, 2016.
Dossiê Mulheres Negras: Retratos das Condições de Vida das Mu-
lheres Negras (2013)
Faria, N. Capitalismo patriarcal e racista. Ep.01. Disponível em:< ht-
tps://www.youtube.com/watch?v=88y_ochQo0Y >.

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JOVEN S PESQ UI SADO RAS: SEXUA L ID A D E S D IS S ID E N T E S

Faria, N. Dimensão sistêmica da violência. Ep03. Disponível em:<ht-


tps://www.youtube.com/watch?v=CMGgNQVfzOw>.
Faria, N. Gênero, sexualidade e família. Ep.02. Disponível em:<ht-
tps://www.youtube.com/watch?v=n_9OkR4S—8>.
Lima, F. Dossiê Raça, Interseccionalidade e Violência;
Marcelino, S. R. S. Entre o racismo e a lesbofobia: relatos de ativistas
negras lésbicas do Rio de Janeiro;
Oliveira, I.M.A. A ideologia do branqueamento na sociedade bra-
sileira.
Osório, L. F.; Violência na intimidade nos relacionamentos homosse-
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Serafim, J. G.; Azeredo, J.L. A (des) criminalização da cultura negra
nos Códigos de 1890 e 1940; Amicus Curiae V.6, n.6 (2009), 2011.
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brasileiro em ascensão social. V.4, n.2, Edições Graal, 1983.
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gal nas relações lésbicas. LES Online, Vol. 2, No 1 (2010).
Watanabe, K.V.; Rodrigues, M.S. Percepções das trabalhadoras lésbi-
cas sobre o discurso da heteronormatividade em organizações situadas
na cidade de Pelotas.

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Heloisa Melino

O
H e l o i s a ! Faç o d o u t o r a d o e m D i r e i t o s
lá, eu sou a

Humanos, Sociedade e Arte no Programa de Pós-Graduação


em Direito da UFRJ, onde também fiz mestrado, sou advogada
popular e ativista feminista e sapatão. Atualmente trabalho como coorde-
nadora executiva do projeto Pessoas LGBTI+ em Privação de Liberdade
na UNIperiferias (Instituto Maria e João Aleixo).
Iniciei meu trabalho em pesquisa em 2008, ainda na graduação, quan-
do fiz iniciação científica sob orientação da Profa. Dra. Vanessa Oliveira
Batista Berner com temas relacionados aos Direitos Humanos de pessoas
LGBT. Atualmente sou pesquisadora no Laboratório de Direitos Huma-
nos (LADIH/UFRJ), sob coordenação da Vanessa.
Pesquiso temas relacionados a gêneros, sexo e sexualidades, criminali-
zação de pessoas LGBT, criminalização da prostituição e politização ju-
rídica de nossas identidades por uma perspectiva feminista antirracista e
descolonial.
Minha primeira apresentação de trabalho foi em 2009, ainda na gra-
duação, em congresso internacional promovido pela International Les-
bian and Gay Law Association (ILG-LAW) na Univeristy of California,
Los Angeles (UCLA), tema “Family configurations in Brazil – the same-sex
family”. Minha Monografia de Conclusão de Curso teve por tema “Confi-
gurações familiares no brasil: o tratamento legal (não) dispensado à família
homoafetiva” e foi defendida em novembro/2009.

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Desde a graduação eu faço parte de coletivos LGBT, primeiro na uni-


versidade, depois em movimentos sociais nas ruas. Fui uma das organi-
zadoras da Marcha das Vadias do Rio de Janeiro, de 2013 a 2016, da Ala
Feminista da Marcha da Maconha entre os anos 2014 a 2016 e sou cola-
boradora jurídica da Casa Nem desde 2016. Essa atuação me levou a com-
preender que a pauta familiar era muito restrita a um segmento específico
das pessoas LGBT, por esse motivo passei a pesquisar e trabalhar com a
potência dos movimentos sociais para pressionar por mudanças legislativas
e por políticas públicas, com uma perspectiva feminista crítica, não-essen-
cialista, antirracista e descolonial. Meu mestrado, defendido em maio de
2015, teve por tema “Direito, linguagem e emancipação – Processos de
luta e o potencial transformador dos movimentos sociais”, a partir dos ca-
sos dos movimentos internacionais e nacionais pela despatologização da
transexualidade e pela regulamentação da prostituição no Brasil. Recebi
convite para publicação da minha dissertação como livro, que recebeu o
nome de Potência das Ruas, publicado em 2017.
Sou advogada popular independente, tendo trabalhado com defesa
de Direitos Humanos de ativistas, de mulheres e pessoas LGBT desde
junho/2013. Na minha trajetória tenho dado especial atenção às pessoas
que têm maior dificuldade em acionar outros advogados ativistas, como
é o caso, principalmente, de mulheres cis e trans e travestis que se prosti-
tuem, que são usuárias de drogas e que vivem em abrigos e/ou em situação
de rua.
Pela minha inserção em movimentos sociais e na pesquisa acredito
numa academia ativista e, também por isso, atuo na Educação em Di-
reitos para reduzir violências e vulnerabilidades. Fui uma das criadoras
e co-coordenadora do Curso de extensão “Diálogos Feministas e práticas
profissionais no Direito e na Psicologia” e fui professora do curso Gêne-
ro e Diversidade Sexual nas Escolas (GDE), voltado para professores de
Escolas. Realizei 4 estágios em docência – dois no mestrado e dois no
doutorado. Faço palestras em diferentes espaços, quando convidada, tan-
to universitários (UFRJ, UNIRIO, UERJ, UFSC, UFLA/MG, FGV-SP,

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FIOCRUZ), quanto em organizações do terceiro setor (Elas Existem –


mulheres encarceradas, Casa de Mulheres da Redes da Maré, Banco da
Providência), em instituições, como o Centro de Informações da ONU
(UNIC-RIO) e o Partido Socialismo e Liberdade e em Escolas, para tur-
mas de Ensino Médio. Acredito que são momentos para troca de saberes
que ultrapassam o formalismo e a imposição de grades curriculares univer-
sitárias. As trocas têm sido riquíssimas.
Minha produção de textos tem sido majoritariamente na área de
Teoria do Direito, trazendo uma perspectiva crítica feminista antirra-
cista e descolonial, sempre dialogando teorias e práticas, questionando
os fundamentos eurocêntricos do Direito. Minha pesquisa é implicada
politicamente e minha escrita busca ampliar o acesso dos meus textos a
pessoas acadêmicas de diferentes áreas e também a pessoas que não te-
nham inserção universitária, compreendendo que o conhecimento (re)
produzido nas universidades não é superior ao (re)produzido no cotidia-
no e nas ruas e, se estamos interessades em intervir socialmente a partir
da atuação nas universidade, precisamos desburocratizar e des-canonizar
o saber. Ultimamente tenho também buscado na Arte e Cultura, em
especial na Música Brasileira, a interlocução com meus textos, exem-
plo disso é meu artigo publicado na Revista Direito e Cidade (A1) que
traz letras do Funk Carioca como exemplos de reivindicação popular
em planejamento urbano, artigo este que foi produto do meu TCC na
Especialização em Política e Planejamento Urbano, concluída em 2016
no IPPUR.
Frente ao governo que se inicia em 2019 no Brasil, tenho trabalhado
de maneira mais próxima os processos de criminalização de minorias po-
líticas, mulheres que não são “belas, recatadas e do lar”, pessoas LGBT,
pessoas negras e moradoras de favelas e periferias.
Espero que a leitura do capítulo que escrevi sirva às pessoas leitoras
como plataforma de diálogo sobre a potência das ruas e de uma academia
implicada nas questões da vida. Caso queiram conversar sobre o capítulo

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ou algum desses temas com os quais trabalho, estarei disponível pelo meu
e-mail de contato, heloisamelino@gmail.com.
Toda força a nós, até breve!

Rio de Janeiro, 21 de agosto de 2019,

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A Intimidade com a linguagem –


conhecer também é um ato político

Heloisa Melino

1. O conhecimento encarnado
Um dos temas muito caro aos feminismos é o da universalidade do su-
jeito. Uma questão com vários desdobramentos, um dos quais a universali-
dade do sujeito teórico, produtor do que vai ser reconhecido como conhe-
cimento, como saber. O sujeito teórico produtor de verdades universais,
gerais e abstratas para a vida de todas as pessoas, em seus cotidianos con-
cretos. Se olharmos para a História e buscarmos aquelas pessoas que foram
reconhecidas como principais pensadores, filósofos, cientistas, as pessoas
que receberam prêmios por suas produções de vida, veremos que são, em
sua massiva maioria, homens cisgêneros brancos da Europa ou dos Esta-
dos Unidos das Américas. Não por coincidência, a maioria desses pensado-
res é dos mesmos países que praticaram colonização e imperialismo sobre
outras nações – e com a exploração destas últimas, enriqueceram.
O sujeito epistemológico masculino nega o corpo e dirige a encarnação
à esfera feminina, renomeando o corpo como fêmea, mas numa corporei-
dade não aceita, como diz Butler,

[A] associação do corpo com o feminino se baseia em relações mágicas de


reciprocidade mediante as quais o sexo feminino se limita a seu corpo e o
corpo masculino, completamente negado, paradoxalmente se transforma

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em um instrumento incorpóreo de uma liberdade aparentemente radical.


A análise de [Simone de] Beauvoir suscita a questão: através de que ato de
negação e desconhecimento o masculino se apresenta como uma univer-
salidade desencarnada e o feminino se constrói como uma corporeidade
não aceita?74 (Butler, 2007:63)

As autoras feministas já há muito vêm colocando a necessidade de re-


visão desse sujeito epistemológico abstrato, desencarnado e pretensamente
universal, sinalizando o quanto essa epistemologia de objetiva e abstrata
não tem nada. Ao contrário, é uma subjetividade generificada que concre-
tamente se baseia nos modos de vida e visão de mundo masculinos.
Algumas autoras reivindicam o despedaçamento desse mito para aber-
tura à mulher como sujeito universal, outras mostram a impossibilidade de
existência de sujeitos universais. Mesmo dentro do feminismo vamos en-
contrar divergências. Algumas autoras pretendem, com seus escritos, criar
um sujeito mulher universal; outras mostram que esse sujeito “universal”
feminista também reproduz hegemonia, pois parte de considerações de
mulheres que primeiro chegaram aos espaços de “produção de saber” e
que ainda hoje são maioria nesses espaços, em geral mulheres cisgêneras,
brancas, heterossexuais e que fazem parte de elites econômicas. Nesse sen-
tido, Donna Haraway, bell hooks, Audre Lorde, Angela Davis, Chela San-
doval, Judith Butler e muitas outras, trazem a necessidade de questionar a
própria construção dos feminismos.
Feminismo não é apenas uma teoria ou um movimento social. Femi-
nismo é ambos e mais. Diz respeito a como vivemos nossas vidas, como
nos relacionamos com nossas redes de trabalho, de amizades, com nos-
sas famílias e como nos relacionamos romântica, afetiva e sexualmente. É

74.  Tradução livre. No original, “Esta asociación del cuerpo con lo femenino se basa en relaciones mágicas
de reciprocidad mediante las cuales el sexo femenino se limita a su cuerpo, y el cuerpo masculino, completa-
mente negado, paradójicamente se transforma en el instrumento incorpóreo de una libertad aparentemente
radical. El análisis de Beauvoir formula de manera implícita la siguiente pregunta: ¿a través de qué acto de
negación y desconocimiento lo masculino se presenta como una universalidad desencarnada y lo femenino
se construye como una corporeidad no aceptada?”

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uma forma de vida. Assim como todas as teorias e movimentos sociais, os


feminismos são também plurais e também estão propensos a reproduzir
e atualizar hegemonias. Por isso a atenção dos feminismos tem que ser
mais do que apenas as diferenças “em abstrato” entre os gêneros, é preciso
considerar os diferentes marcadores sociais. Como lembra Angela Davis
(2009), feminismo é sobre gênero, mas também sobre raça, sexualidade,
classe social:

Feminismo está preocupado com mulheres; feminismo está preocupado


com gênero; feminismo está preocupado com sexualidade e com raça.
Mas talvez haja algo mais importante do que esses objetos particulares
de preocupação. Metodologias feministas, tanto para pesquisa quanto
para organização, nos impelem a explorar conexões que não estão sempre
aparentes, nos levam a habitar contradições e descobrir o que é produtivo
nessas contradições e nos métodos de pensamento e de ação; nos urgem
a pensar de forma relacionada coisas que aparentemente estão completa-
mente separadas e a desagregar coisas que parecem naturalmente juntas.

Os métodos feministas, tanto em pesquisa quanto em organização para a


justiça social requerem que nós desafiemos a singularidade, a separativi-
dade e a integridade de um leque de categorias sociais.75(Davis, 2009:193)

É preciso, portanto, ter atenção, quando estamos produzindo teorias,


para não reproduzirmos os universalismos do método ocidental de ciência.
A escrita feminista traz experiências das mulheres porque o racionalismo e
universalismo alegadamente neutros excluem essas experiências, mas não

75.  Tradução livre. No original: “Feminism is concerned with women; feminism is concerned with gen-
der; feminism is concerned with sexuality and race. But there may be something more important that those
particular objects of our concern. Feminist methodologies, both for research and organizing, impel us to
explore connections that are not always apparent, they drive us to inhabit contradictions and discover what is
productive in theses contradictions and methods of thought and action; they urge us to think things together
that appear to be entirely separate ant to disaggregate things that appear to belong naturally together. Feminist
methods, both in research and in organizing for social justice, require us to challenge the singularity, the
separateness, and the wholeness of a range of social categories.”

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podemos incorrer no mesmo erro e acabar por reforçar um feminismo que


seja branco, cisgênero, heterossexual e classista.
Butler (2007) chama a atenção sobre como, no feminismo, o termo
mulheres para identificar uma identidade comum tem sido bastante ques-
tionado. Se uma pessoa é uma mulher, é evidente que isso não é tudo que
ela é. Ser mulher não é um conceito exaustivo, porque temos característi-
cas próprias e particulares que não se encerram na condição de ser mulher.
O gênero nem sempre se constitui de forma coerente ou consistente em
contextos históricos distintos e ele se entrecruza com modalidades raciais,
de classe, étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente cons-
tituídas. É impossível separar o gênero das interseções políticas e culturais
em que constantemente se produz e mantém.
Falar em um patriarcado universal, diz Butler, não faz sentido, por-
que é pressupor que o funcionamento das opressões de gênero se dá
da mesma maneira em contextos culturais distintos. É preciso levar em
conta os contextos culturais concretos em que se produz a opressão. As
teorias feministas que partem de um princípio universal têm sido ques-
tionadas pela tentativa de colonizar e se apropriar das culturas que não
são ocidentais por referenciais de dominação ocidentais. Esse univer-
salismo acaba por criar uma ideia de que o “sul”, o “terceiro mundo”
ou o “oriente” sejam lugares em que a opressão de gênero seja fruto de
uma barbárie essencial, da falta de civilização, que tem por marco o
Ocidente.
Embora tenha sido relativamente tranquilo questionar a universalida-
de do patriarcado, ainda não é tão aceito questionar a universalidade do
conceito de mulheres, enquanto sujeitos do feminismo. Butler (2007:50)
levanta algumas questões que fazem pensar sobre a homogeneidade dessa
categoria: “Compartilham as mulheres algum elemento que seja anterior
a sua opressão, ou compartilham algum vínculo unicamente como resul-
tado de sua opressão? [...] Há uma região do especificamente feminino,
que se distinga do masculino como tal e se aceite em sua diferença por

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uma universalidade não marcada das mulheres e, por conseguinte, su-


posta?”76
A intenção da filósofa é mostrar os limites do discurso da representa-
ção, que tornam impossível que o sujeito do feminismo seja universal. Em
verdade, a insistência em um sujeito estável é bastante rechaçada por ge-
rar grande exclusão. As políticas de identidade têm limites necessários e é
contra os próprios objetivos do feminismo ignorar que eles existam. Mes-
mo o uso da categoria “mulher” como estratégico é problemático, “porque
as estratégias sempre têm significados que ultrapassam os objetivos para os
quais foram criadas” (Butler, 2007:51)77. Exigir um sujeito estável no femi-
nismo é “arriscar deturpações indesculpáveis.”78
Donna Haraway, em seu “Manifesto Ciborgue” (2009), aponta que as
teorias pós-estruturalistas e pós-modernas, são forte alvo de críticas de al-
gumas correntes dos feminismos, “que desconfiam do desprezo utópico
que essas teorias devotam às relações de dominação vividas, desprezo que
está na base do ‘jogo’ da leitura arbitrária por elas postuladas.” (Haraway
2009:42). Mas levanta o argumento de Frederic Jameson, de que “o pós-
-modernismo não é uma opção, um estilo entre outros, mas uma categoria
cultural que exige uma reinvenção radical da política de esquerda, a partir
de seu interior.” (Haraway, 2009:102, nota 05)
Essas teorias, segundo a autora, vêm disputando a textualização do
mundo, mostrando a necessidade de agir politicamente pelo texto. E essa
reinvenção cultural radical é necessária para subverter os jogos de poder, a
partir do interior das próprias teorias. Essas teorias abalam “a certeza daqui-
lo que conta como natureza” e, com isso, “[p]erde-se a autoria/autoridade
transcendente da interpretação e com ela a ontologia que fundamentava a

76.  Tradução livre. No original: “Comparten las ‘mujeres’ algún elemento que – sea anterior a su opressión,
o bien las ‘mujeres’ comparten un vínculo únicamente como resultado de su opresión? [...] Hay una región
de lo ‘específicamente femenino’, que se distinga de lo masculino como tal y se acepte en su diferencia por
una universalidad de las ‘mujeres’ no marcada y, por consiguiente, supuesta?”
77.  Tradução livre. No original: “porque las estrategias siempre tienen significados que sobrepasan los obje-
tivos para los que fueron creadas”
78.  Tradução livre. No original: “se arriesga a que se lo acuse de tergiversaciones inexcusables”

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epistemologia ocidental.” (Haraway, 2009:42). E completa: “Se é verdade


que somos aprisionadas/os pela linguagem, então, a fuga dessa prisão exige
poetas da linguagem” (Haraway, 2009:103).

2. A linguagem como disputa pela emancipação


Essas poetas da linguagem a quem Haraway faz referência são também
reivindicadas pelas feministas negras e chicanas. Elas mostram que a es-
crita tem um significado especial para os grupos colonizados porque é um
dos mitos ocidentais que “divide” as culturas primitivas das civilizadas, as
primitivas sendo as orais e as civilizadas sendo as escritas.
Os instrumentos de dominação são histórias contadas do ponto de vista
ocidental, da supremacia branca e dominação masculina. Chimamanda
Ngozi na palestra “O perigo de uma única história”79 chama a atenção
para como as histórias contadas do ponto de vista da dominação podem
expropriar uma pessoa de sua história e de sua dignidade, podem torná-la
maligna, mas também podem capacitar, humanizar e empoderar.
A escritora nigeriana fala como se cria uma ‘única história’ e a impor-
tância do poder nessa equação:

mostre um povo como uma coisa, como somente uma coisa, repetidas ve-
zes e será o que eles se tornarão. É impossível falar da “única história” sem
falar sobre poder. Há uma palavra, uma palavra Igbo, da qual eu lembro
sempre que penso nas estruturas de poder do mundo e a palavra é nkali.
É um substantivo que livremente se traduz: “ser maior do que o outro”.
Como nossos mundos econômicos e políticos, histórias também são defi-
nidas pelo princípio de nkali. Como são contadas, quem as conta, quando
e quantas histórias são contadas. Tudo realmente depende do poder. Poder
é a habilidade não apenas de contar a história de outro povo, mas de fazê-
-la a história definitiva daquele povo.80

79.  NGOZI, Chimamanda A. Palestra “The danger of a single story” legendado no link https://www.youtu-
be.com/watch?v=ZUtLR1ZWtEY acesso em 27 de abril de 2015.
80.  9:28 em diante. Tradução de acordo com a legenda disponível no próprio vídeo.

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Segundo Ngozi, o perigo é que as ‘únicas histórias’ criam estereótipos


e o problema dos estereótipos é que são incompletos, representam apenas
uma parte superficial de uma pessoa, de um grupo ou de um lugar. O es-
tereótipo conta a história sob o prisma de quem domina e isso “rouba das
pessoas sua dignidade. Torna difícil o reconhecimento de nossa humanida-
de compartilhada. Enfatiza como nós somos diferentes, ao invés de como
somos semelhantes.”81
Recontar histórias subvertendo seus sentidos e hierarquias é uma forma
de atacar o mesmo poder que dominou e subjugou os povos colonizados
historicamente. “Ao recontar as histórias de origem, as autoras-ciborgue
subvertem os mitos centrais de origem da cultura ocidental” (Haraway,
2009:86)
As autoras-ciborgue, a quem Haraway faz referência, são parte de seu
irônico manifesto. São autoras que fazem uso da política da linguagem de
forma subversiva, se apropriando da língua que seria instrumento de domi-
nação (o inglês padrão e tradicional) para torná-la uma linguagem cons-
cientemente partida, fragmentada, uma linguagem de fronteira. São au-
toras que não buscam uma identidade original, não buscam pureza, mas
buscam a escrita de uma identidade própria. Exemplo disso é a linguagem
mestiza (Anzaldúa, 2007), que mistura o inglês ao espanhol.
Essas identidades fronteiriças são identidades que insistem em sobrevi-
ver, ainda que a legitimidade de sua existência não seja reconhecida pelo
poder hegemônico, que as tente dominar, apagar:

Me entra una rabia cuando alguien – sea mi mamá, la Iglesia, la cultura


de los anglos – me dice haz esto, has eso sin considerar mis deseos. […]
But despite my growing tolerance, for this Chicana la guerra de indepen-
dencia is a constant.(Anzaldúa, 2007: 37 – grifo em negrito meu)

81.  13:57 em diante. Tradução de acordo com a legenda disponível no próprio vídeo.

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Sobre a identidade fronteiriça, Gloria Anzaldúa (2007) fala que se trata


de uma fusão entre dois mundos resultando em um terceiro, com uma
“cultura de fronteira”. Os habitantes dessa fronteira são as pessoas desvia-
das, renegadas, as que atravessam os confinamentos do “normal”. Assim
como as/os imigrantes sem documentos oficiais autorizando a migração
ou, como são conhecidas/os, “ilegais”, são pessoas que não se considera
que sejam legitimamente humanas, porque só quem é humano é quem
está no poder e quem a estes se alia politicamente.
Apesar de brutalmente perseguidos, os seres fronteiriços insistem em
sobreviver tomadas/os por uma coragem que vem do desespero. Como o
mar, diz a autora, elas/es não podem ser contidas/os pelas amarras de do-
minação do poder:
This is my home
this thin edge of
barbwire

But the skin of the heart is seamless


The sea cannot be fenced.
el mar does not stop at borders.
[…]
Yo soy un puente tendido
del mundo gabacho al del mojado,
Lo pasado me estira pa’’tras
y lo presente pa’’delante,82
(Anzaldúa, 2007:25)

A linguagem que Anzaldúa usa em seu livro, como pode ser visto
no trecho acima, é um dos exemplos do que Haraway chama de escri-
ta-ciborgue. São várias as autoras que trabalham esse aspecto político da

82.  Tradução livre: “Essa é minha terra/essa fina borda de/arame farpado. [...] Eu sou uma ponte rápida/do
mundo uma ‘gringa’ e imigrante ilegal/o passado me estica para trás/e o futuro para frente”

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linguagem, que são poetas da linguagem, como Gloria Anzaldúa, Cherrie


Moraga, bell hooks e Audre Lorde.
Essas mulheres também são chamadas de sister outsider (irmãs de fron-
teira; irmãs forasteiras) e sua linguagem é a tomada de posse do instru-
mento de dominação. É uma demonstração da habilidade de viver nas
fronteiras. A escrita-ciborgue marca o corpo fronteiriço, a identidade mes-
tiza, conforme a nomeia Anzaldúa. “A escrita afirma a sister outsider, não
a Mulher-antes-da-queda-na-escrita, exigida pela falogocêntrica Família do
Homem.” (Haraway, 2009 .88)
No mesmo sentido, bell hooks, em seu ensaio “A língua: ensinando
novos mundos/novas palavras” (in hooks, 2013:223-233), fala de um poe-
ma de Adrienne Rich, que escreve “Esta é a língua do opressor, mas pre-
ciso dela para falar com você” (hooks, 2013:223) e essa passagem a lembra
de como as palavras lançam raízes na memória, independente de nossa
vontade.
A ideia do vínculo entre língua e dominação remete hooks ao inglês
padrão e à imposição desse idioma resultando no apagamento de línguas
que existiam antes da dominação, tanto a língua dos negros levados for-
çadamente da África para os EUA, como das populações que habitavam
essas terras antes da chegada dos ingleses. O inglês padrão “[é] a língua da
conquista e da dominação; [...] é a máscara que oculta a perda de muitos
idiomas, de todos os sons das diversas comunidades nativas que jamais ou-
viremos” (hooks, 2013:224)
O que causa a dominação não é a língua em si, mas a forma como ela é
usada para limitar e definir, humilhar e envergonhar, colonizar quem não
a fala ou escreve da forma que é aceita. A academia, que também tem seu
próprio “idioma”, é uma das formas de distanciar a elite do povo, a exigên-
cia do vocabulário formal para artigos e livros acadêmicos é uma forma de
escolher quem pode ler e escrever sobre aqueles temas de forma a ter legi-
timidade e, portanto, autoridade para falar e ser escutada/o. A insistência
numa linguagem tradicional é a insistência na dominação do conhecimen-
to intelectual sobre o conhecimento secular.

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Hooks lembra que Anzaldúa em seu livro Borderlands/La Frontera


(2007), citado acima, afirma que a forma de machucá-la é falando mal de
sua língua. Porque a língua que usa é parte de quem é, é parte da identi-
dade que adquire em seus trânsitos, e é uma língua fragmentada, despeda-
çada, uma língua que comunica mais a quem compartilha de seus marca-
dores identitários do que a pessoas que pertençam à hegemonia cultural.
Anzaldúa escreve esse livro com um idioma que é o seu. Tendo nascido no
México e migrado aos Estados Unidos para estudar, ela se considera uma
mulher de fronteira, se identifica mestiza, pela linhagem de sua família,
nativa de terras que hoje são nomeadas México.
Retomando um pouco da história de aprendizado e construção de uma
língua que pudesse ser falada e entendida entre as pessoas que vinham
trazidas das África, hooks conta que na época da escravidão, nos EUA,
era crime se comunicar com línguas estrangeiras que não fossem entendi-
das pelos brancos senhores de escravos, os africanos viam pessoas iguais a
si, sendo igualmente exploradas e não podiam se comunicar porque não
dominavam a língua que era a única que podia ser falada, a “língua do
opressor”.
Em um mundo novo, onde dividiam espaços com outras/os negras/os
que falavam diversos idiomas, a única forma de comunicação era apren-
der o inglês, era tomar esse idioma como espaço de resistência e isso era
feito ao se confiscar o inglês padrão e o misturar com os idiomas que co-
nheciam:

Aprender o inglês, aprender a falar a língua estrangeira, foi um modo pelo


qual os africanos escravizados começaram a recuperar seu poder pessoal
dentro de um contexto de dominação. De posse de uma língua comum,
os negros puderam encontrar de novo um modo para construir a comuni-
dade e um meio para criar a solidariedade política necessária para resistir.
(hooks, 2013:226)

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Essa língua era reinventada e o inglês nas bocas das/os africanas/os se


tornava uma fala diferente, o inglês era transformado numa contra-língua
e usado de forma política: “no uso incorreto das palavras, na colocação
incorreta das palavras, havia um espírito de rebelião que tomava posse da
língua como local de resistência” (hooks, 2013:227) e o inglês falado pelos
negros era muitas vezes impossível de ser compreendido pelos brancos.
A autora fala sobre como a ruptura do inglês padrão é potente para a
resistência e rebelião, pois a partir dela as/os negras/os criaram uma fala
íntima, que podia dizer bem mais do que permitia o inglês padrão. “O
poder dessa fala”, diz hooks, é de “resistência à supremacia branca e tam-
bém de forjar um espaço para a produção cultural alternativa e para as
epistemologias alternativas – diferentes maneiras de pensar e de saber que
foram cruciais para a criação de uma visão de mundo contra-hegemônica.”
(hooks, 2013:228)
Da mesma forma, para criar uma visão de mundo contrária à hege-
monia masculina, o conhecimento feminista precisa vir acompanhado
de uma epistemologia própria, que leve em conta o saber que não foi ca-
nonizado pelas universidades, pelas editoras e livrarias, o conhecimento
que vem das ruas, que vem das experiências vividas por mulheres no dia a
dia. As bibliotecas e livrarias estão repletas de livros de homens cisgêneros
brancos que vão dizer qual conhecimento devemos aprender, como se o
conhecimento que constroem não fosse marcado por seu gênero, por sua
raça, por sua classe social e por sua vontade de manter as estruturas de
poder.
Dificultar o acesso de autoras mulheres e de pessoas que não se en-
caixam nos binômios normativos de gênero também é uma decisão polí-
tica. Obstaculizar o acesso ao saber acadêmico por meio da linguagem é
também uma forma de dominação e as epistemologias feministas desafiam
essa lógica propondo uma nova forma de pensar e de saber que dialogue
com um maior número de pessoas do que apenas as que estão inseridas
nas universidades.

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Não perceber que a repressão do idioma padrão/formal é política é “in-


dício de que agimos inconscientemente em cumplicidade com uma cultu-
ra de dominação” (hooks, 2013:231).
A autora fala que o surgimento das discussões sobre multiculturalismo
mostrou a necessidade de reconhecer e celebrar vozes diversificadas, mas
que as defensoras do feminismo não discutiram esse problema, supondo
que o inglês padrão seria o veículo principal para a transmissão do conhe-
cimento feminista, mas se queremos falar para um público diversificado,
temos que mudar a maneira como pensamos a língua, a maneira como
escrevemos. Precisamos criar espaços onde circulem vozes diversificadas,
pois só assim há ambiente propício para o desenvolvimento de culturas
contra-hegemônicas diversificadas – “A mudança no modo de pensar sobre
a língua e sobre como a usamos necessariamente altera o modo como sa-
bemos o que sabemos.” (hooks, 2013:231)
Se o uso de uma linguagem coloquial choca a quem lê e até mesmo
dificulta a compreensão, hooks nos convida a desconstruir o frenesi do
consumismo que é incentivado pelo capitalismo e, ao invés de dominar
todo conhecimento que chega até nós, aprender com o silêncio e aprender
a não satisfazer nossos desejos de entendimento imediatamente, pois isso
também perturba o imperialismo cultural, segundo o qual só merece ser
lida/o e ouvida/o quem escreve em linguagem padrão.
Pela língua mais do que nos comunicamos. Nos tocamos. Sentimo-nos
umas/ns às outras/os e fugimos do dualismo entre corpo e mente, criando
um espaço de intimidade por meio da língua. “Aí, nesse lugar, obrigamos
o inglês [ou a academia] a fazer o que queremos que ele faça. Tomamos a
linguagem do opressor e voltamo-la contra si mesma. Fazemos das nossas
palavras uma fala contra-hegemônica, libertando-nos por meio da língua”
(hooks, 2013:233)
A escrita do ocidente é criticada por se pretender única, perfeita, uni-
versal. Este sempre foi um campo de disputa, pois a textualização é acesso
ao poder de significar. A escrita contra-hegemônica, seja a escrita ciborgue,
mestiza, ou a escrita fragmentada das/os negras/os que foram escravizados

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ou a coloquial, diz Haraway (2009), tem a ver com o poder de sobrevi-


ver, não com base em uma inocência original, mas com base na tomada
de posse dos mesmos instrumentos para marcar o mundo que as marcou
como outras: “As histórias feministas [...] têm a tarefa de recodificar a co-
municação e a inteligência a fim de subverter o comando e o controle.”
(Haraway, 2009: 87)
Ao contrário do método ocidental, uma epistemologia feminista é um
convite à descolonização, à “desescolarização” e à desconstrução da auten-
ticidade única de fontes específicas de conhecimento e de saber. É uma
provocação a sair do lugar de reprodução de conhecimentos e práticas
centralizadas e controladas para um lugar de construção intersubjetiva e
de constante abertura ao questionamento. Nada é fixo, tudo precisa ser
dinâmico, pois nada é impossível de mudar.

3. A paixão, a política e os debates feministas


Um capitalismo cada vez mais flexível e exploratório deixa as pessoas
cada vez mais inseguras, a ponto de perderem o próprio senso de integra-
ção e comunidade. Essa insegurança afeta a confiança pública nas institui-
ções democráticas, que pode ser vista pela exacerbação do individualismo,
pelo surgimento de partidos de extrema direita e pelo crescimento da bus-
ca por associações coletivas fundamentalistas religiosas, étnicas e de outras
naturezas (Mouffe, 2005). Para resolver o desafeto pela política, teóricos da
democracia têm apresentando como solução a mudança para um paradig-
ma democrático deliberativo. 83

83.  A democracia deliberativa tem como ideia principal que as decisões políticas sejam alcançadas por um
processo de deliberação entre cidadãos livres e iguais, o que traz como marco diferencial a ideia de pluralis-
mo, conceituado pela diferença. As duas escolas de democracia deliberativa contemporâneas mais conhe-
cidas são as que levam os ensinamentos de John Rawls e de Jürgen Habermas. Essas duas escolas buscam
promover um elo forte entre liberalismo (estado de direito, separação de poderes e direitos individuais) e
democracia (soberania popular), em nome da autonomia particular e da autonomia política. Insistem na
possibilidade de garantir autoridade e legitimidade a algumas formas de razoabilidade pública e acreditam na
existência de uma racionalidade normativa. Ambos fazem uma distinção entre mera concordância e consenso
racional e o campo da política é identificado como troca de argumentos entre pessoas ‘razoáveis’ guiadas pelo
princípio de ‘imparcialidade’, em busca de um consenso ‘racional’.

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Mas a democracia, para existir de fato, precisa ser pensada de acordo


com as relações sociais reais e não com abstrações, como tem sido defen-
dido pelas escolas mais conhecidas deliberativas.84 Na sociedade atual, em
que os sujeitos de poder são homens cisgêneros, brancos, heterossexuais e
proprietários, eles também não vão querer abrir mão do poder que têm. A
feminização da pobreza, a pouca representatividade de mulheres no Legis-
lativo e Judiciário são causa e consequência da luta pela manutenção das
correlações de força. As mulheres têm pouca voz na política e são tratadas
como se fossem menos capazes do que homens, como se a importância
das mulheres estivesse em ser mero adorno.
Essas instituições pretensamente neutras, das teorias deliberativas, ga-
rantiriam a adesão à democracia liberal com um tipo de acordo racional
que impedisse a possibilidade de contestação e conflito, mas, para Mouffe,
“o domínio da política [...] não é um terreno neutro que possa ser isolado
do pluralismo de valores e aonde soluções racionais e universais possam
ser formuladas.” (Mouffe, 2005: 92)
Trazendo o pensamento de Mouffe para as situações narradas como
exemplo, fica notável que é impossível construir uma sociedade em que
homens e mulheres, pessoas cisgêneras e pessoas transgêneras tenham
acesso igualitário, se partimos do pressuposto de que são iguais quando
sabemos que não são. Em vez de tentar apagar o poder das relações sociais
é preciso encarar o poder não é erradicável, pois é um dos constituintes das
relações sociais.

84.  Para chegar à racionalidade prática, Rawls fala da ‘posição original’, em que os participantes, sob um ‘véu
de ignorância’ de sua própria condição, deixam de lado todas suas particularidades e interesses para chegar a
um ideal de ‘justiça como equidade’ (‘justice as fairness’). Para Habermas, essa racionalidade prática é alcan-
çada pela ‘situação ideal de fala’, que vai eliminar as posições com as quais os participantes do ‘discurso moral’
não podem concordar. Esse ‘discurso’ tem como requisitos, a igualdade e simetria entre todas e todos, o que
permite que qualquer pessoa proponha temas e interfira no debate político igualmente. Com isso, todas as
pessoas têm igual ‘poder de comunicação’, ou seja, se sentem igualmente livres para falar e suas vozes seriam
igualmente ouvidas – uma condição de discurso, diga-se, impossível de se realizar numa sociedade historica-
mente atravessada por relações de poder desiguais. O próprio Habermas reconhece a improbabilidade de que
deixemos de lado interesses pessoais para encontrar nosso ‘eu racional universal’.

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Encarando o poder como constituinte de relações sociais e com possi-


bilidade de flutuação entre polos diferentes, podemos pensar em manei-
ras de confrontá-lo e transformar as relações sociais em mais igualitárias
e o poder em mais contestável e desafiável. Não é o consenso que precisa
ser buscado para garantir o fortalecimento da democracia e a participação
popular político. O que precisa ser buscado para combater o cinismo e o
desinteresse é o terreno aberto para as paixões.
Mouffe (2005) alerta que a autoridade das instituições políticas não é
uma questão de consenso, mas de reconhecimento contínuo pelos cida-
dãos de que eles têm a obrigação de obedecer. E isso só acontece quando
se sentem envolvidos e contemplados pelo processo político, por isso é não
é possível subtrair os valores e interesses pessoais da arena política, isso
seria tirar o envolvimento passional com a vida em sociedade, tão necessá-
rios para a fidelidade ao processo democrático.
A visão dos indivíduos como sendo anteriores à sociedade, tendo uma
essência racional, sendo portadores de direitos naturais camufla o que os
direitos efetivamente são: fruto de processos de luta, de disputas, conflitos
e de tensões. Isso equivale a abstrair as tensões sociais e as relações de po-
der, a linguagem, a cultura e todas as práticas que tornam a agência políti-
ca possível – que é a própria condição de existência da democracia.
Desencorajar o envolvimento ativo de cidadãos na política e promover
a privatização da vida, não leva à estabilidade da democracia, mas a coloca
em risco, pois faz com que surjam formas extremas de individualismo. Por
outro lado, as pessoas procuram outras formas de criar identidades coleti-
vas e por isso têm crescido vários grupos fundamentalistas religiosos, étni-
cos e moralistas, como as bancadas legislativas religiosas fundamentalistas
aqui do Brasil.
As leis e regras são sempre fruto das práticas sociais e, por isso, são in-
dissociáveis da forma de vida. É impossível separar o que é apenas procedi-
mental, do que é substancial; assim como moral de ética, e público de pri-
vado. Procedimentos incluem comprometimento ético substancial e, nesse
sentido, não existem procedimentos politicamente neutros. Os obstáculos

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ao ‘racionalismo’ são ontológicos, pois os particularismos se apresentam


como impedimentos da deliberação livre. Deixar de lado as formas de vida
é deixar de lado as diferenças e paixões – em outros termos, é deixar de lado
as próprias condições de possibilidade de um debate livre e aberto.
Encarar o pluralismo com seriedade significa abrir mão da utopia de
um consenso racional. Se estamos falando de arena de debates entre pes-
soas livres e iguais, não existe justificativa para privilegiar pontos de vista
sobre os outros. É preciso, em verdade, encarar o fato de que pontos de
vista privilegiados são sempre os pontos de vista hegemônicos, ou seja, de
quem está no polo de dominação de relações de poder. O poder, como
dito, pode e deve ser contestado. A hegemonia e a dominação só podem
vir a ser desestabilizadas quando visibilizadas as correlações de forças que
levam à sua manutenção. A contestação do poder é que é o processo de-
mocrático de deliberação – a possibilidade de abertura de debates.
No livro “Hegemony and socialist strategy” (2009), Laclau e Mouffe se
baseiam na ideia pós-estruturalista de que a diferença é a condição da pos-
sibilidade para constituição da unidade, da identidade e para fornecer seus
limites necessários, pois não há identidade totalizante. O conceito de Der-
rida de “exterior constitutivo” significa que uma coisa só é construída pela
sua diferença com o que é exterior a ela, ou seja, o próprio conteúdo inter-
no é definido pelo que a ele está externo, o que faz com que cada identida-
de se torne contingencial. Isso também se refere ao poder, que não é algo
exterior, mas algo que faz parte das identidades e das relações sociais: nada
tem uma essência alheia às relações de poder, essas relações moldam tudo.
O principal argumento no livro é de que a objetividade social é constituída
por atos de poder, o que implica que toda objetividade é política e gera
exclusões. Quando a objetividade sustenta a dominação numa relação de
poder, recebe o nome de ‘hegemonia’.
Já que qualquer ordem política é a expressão de uma hegemonia, de
um padrão específico de poder, a prática política não pode ser lida como
uma simples representação de identidades previamente constituídas, mas
como constituindo essas próprias identidades, em um terreno precário e

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sempre vulnerável. Esse terreno tem que ser propício para transformações
e mudanças, para desafios, contestações e por isso ele tem que ser vul-
nerável.
As identidades são contingentes, o poder que constitui as identidades
oscila e precisa ser dinâmico, para não representar dominação e opressão
de uns sobre outras/os. Um terreno inviolável seria uma arena de debates
políticos em que houvesse voz unívoca, em que as ideias não pudessem
circular fora da forma que circularam até então e logicamente seria para
manutenção da hegemonia.
As relações de poder sempre vão existir e a dominação sempre se im-
põe pela força, porque toda exclusão é violenta. Buscar um consenso ra-
cional é pressupor que exista uma racionalidade melhor do que as outras,
é pressupor que um ponto de vista é mais legítimo, mais válido que os
demais e isso é um ataque ao princípio democrático de livre debate entre
iguais. O “consenso racional”, portanto, é antidemocrático.
Ao aceitar que as relações de poder são constitutivas do social, a questão
principal para as políticas democráticas não é como eliminar o poder, mas
como constituir formas de poder que sejam mais compatíveis com os valores
democráticos. Para Mouffe (2005), política é conflito, então a democracia
tem que ser agonística, ou seja, tem que trazer a possibilidade de que haja
embate de ideias entre adversários que respeitam e reconhecem a legitimida-
de uns dos outros para participar do debate e até para vencer a argumentação.
Em uma democracia pluralista, a pluralidade de valores e interesses
será conceitual desse regime e não haverá uma solução ‘racional’ para os
conflitos que vão surgir disso, porque não há como hierarquizar esses va-
lores ou esperar que eles não estejam presentes nos posicionamentos po-
líticos expressos. É preciso aceitar o ponto de vista do adversário e aceitar
que o antagonismo faz parte do processo democrático. Como diz Mouf-
fe (2005:102), as concessões e ganhos “devem ser vistos como tréguas em
confrontos contínuos”85.

85.  Tradução livre. No original: “Compromises are, of course, also possible; [...] they should be seen as tem-
porary respites in an ongoing confrontation.”

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Longe de colocar a democracia em risco, o conflito agonístico é sua


própria base. Retirar o conflito da esfera política, pública, em nome de um
consenso racional é que é contrário aos princípios democráticos de plura-
lidade de valores: “uma sociedade democrática reconhece o pluralismo de
valores, o ‘desencantamento do mundo’ diagnosticado por Max Weber e os
inevitáveis conflitos que isso implica” (Mouffe, 2005:103)86
Para uma sociedade democrática ter bom funcionamento é preciso que
as emoções possam fazer parte da arena de debates. A ênfase no consenso
sem confronto deixa as pessoas apáticas e desinteressadas na participação
política. O consenso estável numa sociedade democrática não pode existir,
porque o chamado ‘consenso racional’ é resultado de hegemonia (poder +
ponto de vista alegadamente objetivo), que sempre vem de alguma forma
de exclusão. A manutenção de hegemonia sem conflito é antidemocráti-
ca. O poder, a dominação, a violência sempre vão existir, mas precisam
existir de maneira que possam ser desafiados e constantemente transfor-
mados, ou seja, precisam ser contingenciais. A contestação democrática
não pode deixar de existir e os debates políticos precisam acontecer sob
o reconhecimento ético-político de que o poder estará sempre presente,
gerando exclusões e os consensos precisam ser provisórios e contestáveis,
nunca reificados.
A primeira das lutas dos movimentos sociais, portanto, é o grito. É pelo
grito que tornamos visíveis os conflitos sociais existentes e evidenciamos
a instabilidade da aparente paz social e a necessidade de políticas de re-
formulação que atendam a todas e a todos e não só aos interesses de uma
elite, que se sobrepõe ao bem-estar e à felicidade social.
Por isso Herrera Flores fala que não basta ir às ruas para conquistar
os direitos, mas para mantê-los também. Direitos são processos de lutas
contínua. Nesse mesmo sentido, Gallardo afirma que a luta é um aspecto
inevitável dos direitos humanos, pois:

86.  Tradução livre. No original: “A democratic society acknowledges the pluralism of values, the ‘disen-
chantment of the world’ diagnosed by Max Weber and the unavoidable conflicts that it entails.”

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nenhuma capacidade legitimamente humana e reconhecida como direito


pode ser avaliada como eterna ou sagrada. Cada uma e todas elas podem ser
perdidas, congeladas não cumpridas juridicamente ou revertidas, posto que
expressam um compromisso político, uma determinada correlação de forças
que os setores populares devem defender em cada momento.87 (2006: 64)

Como diz Michel Foucalt (1979), em conversa com Giles Deleuze, de-
signar focos, denunciá-los, é dar visibilidade ao foco do poder, é dar visibi-
lidade à questão social que se contextualiza em torno daquela relação de
poder e essa enunciação é um primeiro passo da luta. É a partir dessa enun-
ciação que se possibilita a tomada de consciência, mas mais importante
que isso, é uma primeira inversão do poder, porque o discurso contra-hege-
mônico confisca, ainda que por um momento, o poder de falar, monopoli-
zado por quem está no polo de domínio. “O discurso de luta,” diz o filósofo,
“não se opõe ao inconsciente: ele se opõe ao segredo.” (Foucault, 1979:76)
Slavoj Zizek (2012) também defende que a verdadeira luta política é a
luta democrática. É lutar pelo direito de se manifestar, de ser ouvida/o, de ser
reconhecida/o como portadora/r de uma voz legítima, pois é isso que compro-
mete a ordem social pré-constituída, que quer cada uma/m no lugar assina-
lado. Reivindicar voz interrompe, ainda que provisoriamente, a hegemonia.
“Como domar uma língua selvagem?”, é a pergunta que Anzaldúa faz
em seu livro “Borderlands: the new mestiza = la frontera” (2007). No ca-
pítulo que leva como nome essa pergunta, a autora fala da língua como
dominação, um dos temas centrais deste livro.
Ela fala também sobre como a cultura trai as mulheres e podemos am-
pliar isso às pessoas que não se encaixam nos binômios normativos de gê-
nero, a todas as pessoas, enfim, que não sejam o sujeito super-humano que
é o referencial universal de humanidade. A cultura, sendo feita por quem

87.  Tradução livre. No original: “ninguna capacidad legítimamente humana y reconocida como derecho
puede ser valorada como eterna o sagrada. Cada una y todas ellas pueden perderse, congelarse, no cumplirse
jurídicamente o revertirse, puesto que expresan un compromiso político, una determinada correlación de
fuerzas que los sectores populares deben defender en cada momento.”

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está no poder, ensina a submissão pela violência e a subserviência ao ma-


cho. As mulheres são temidas como a natureza, pois são desconhecidas
pelo homem. As pessoas LGBT são as “desviadas”, as rejeitadas pela socie-
dade, por não estarem dentro dos padrões da norma.
Essa cultura que aprisiona e violenta quem não está no polo de domi-
nação do poder gera um terrorismo interno, como diz a autora:

nossa cultura tira nossa habilidade de agir – nos acorrenta para nos prote-
ger. Bloqueadas/os, imobilizadas/os, nós não podemos andar para frente,
nós não podemos andar para trás. [...] E ali na nossa frente está a encruzi-
lhada e a escolha: nos sentirmos vítimas, onde outra pessoa terá o controle
e, portanto, será responsável e alguém a quem culpar (ser uma vítima e
transferir a culpa para a cultura, mãe, pai, ex-amante, amiga/o, me absolve
da responsabilidade); ou nos sentirmos fortes e, na maior parte, no contro-
le.(2007:42-43) 88

Assim é que, buscando esse fortalecimento e esse controle dos proces-


sos culturais é que se formam os movimentos sociais. Esses grupos de pes-
soas politicamente organizadas em torno de pautas e demandas urgentes
se mobilizam para pressionar os governos pela efetivação de seus direitos.
Pelo respeito a suas identidades e o reconhecimento de sua existência en-
quanto seres humanos.

88.  Tradução livre. No original: “our culture take away our ability to act – shackle us in the name of protec-
tion. Blocked, immobilized, we can’t move forward, can’t move backwards. […]And there in front of us is
the crossroads and choice: to feel a victim where someone else is in control and therefore responsible and to
blame (being a victim and transferring the blame on culture, mother, father, ex-lover, friend absolves me of
responsibility), or to feel strong, and, for the most part, in control.”

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Kathyla Kather yne S. Valverde

M
T r a n s e x u a l , A t i v i s ta T r a n s f e m i n i s ta , M u s i c i s ta ,
ulher

Graduanda em Pedagogia-UERJ, Ativista, Membro do Con-


selho Estadual LGBT-RJ pela AGPT-Associação Grupo para
Todos do Município de Duque de Caxias e Membro do Comitê de Saúde
LGBT e também Membro Colaboradora da ABMCJ-Associação Brasileira
de Mulheres de Carreira jurídica, e da AMAZOESTE – Associação das
Mulheres Advogadas da Zona Oeste/ representação Baixada Fluminense.
Ativista e Mulher Transexual, Kathyla Katheryne se descobriu militante a
partir do momento em que passou a buscar de forma meticulosa, maiores
informações a respeito tanto da modificação corporal, cuidados e riscos,
do processo transexualizador quanto da mudança de nome e gênero e seus
entraves burocráticos na época. E assim, começou em 2009 sua trajetória
no 16º ENTLAIDS no Hotel Golden Park na Glória onde de 06 à 11 de
dezembro daquele ano, Travestis e Transexuais do Brasil discutiram iden-
tidade e políticas públicas, acompanhamento anual das taxas hormonais
e por dois anos antes e após a cirurgia de transgenitalização por equipe
multidisciplinar e o acesso a esse serviço na época.
Conheceu a organizadora do ENTLAIDS e então presidente da As-
tra-Rio – Associação de Travestis & Transexuais do Estado do Rio de ja-
neiro, Majorie Marchi, tornando-se amigas e membro dessa instituição.
Muito atuante participou nas várias frentes do movimento social Trans,
entre eles, desde então, o Conselho Estadual LGBT onde assumiu uma

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representação em 15 de junho de 2015, desligando-se em 26 de julho de


2016, por motivo de falecimento da mesma, ocasião em que foi convidada
por Marcos Costa Lopes para assumir representação pela AGPT – Asso-
ciação Grupo para Todos do Município de Duque de Caxias, nesse Con-
selho, onde permanece como suplente. Kathyla Katheryne também atua
no Comitê de Saúde LGBT desde 2011 (quando este ainda era Câmara
Técnica) e é membro colaboradora da ABMCJ – Associação de Mulheres
de Carreira Jurídica devido a questões interdisciplinares pois está no últi-
mo período da graduação em Pedagogia pela UERJ. Também é musicista
e professora do ensino não formal, com uma carreira que a deixa orgulhosa
por ter trabalhado como auxiliar de produção de grandes artistas da Bossa
Nova, entre outros, além de como contrabaixista, ter feito parte da última
formação que acompanhou o trompetista cofundador da lendária Banda
Black Rio, José Carlos Barroso, o Barrosinho.
Atuou como musicista & sonoplasta na peça de teatro “A Gente Não
Tem Cara de Babaca” no Teatro da Universidade Estácio de Sá e na CIA
Teatral Arte Grimberg. – 2014. Em 2015 apresentou-se compondo a for-
mação musical do Espetáculo “Passando Batom” da Atriz/Cantora Jane Di
Castro na Sala Baden Powell e no Teatro Rival Petrobrás.
De 2014 a 16 e em 2018, acompanhou o cantor Biafra no projeto Pop-
camerata na Escola de Música da UFRJ-Universidade Federal do Rio de
Janeiro, pois lá, fez Extensão em contrabaixo-acústico pela UFRJ-Passeio.
Em 2013, por causa do seu notório saber na área de Saúde Trans, Kathyla
é convidada para integrar o Grupo de Trabalho Técnico, no âmbito da
UERJ, com o objetivo de elaborar diretrizes e recomendações técnicas
para criação do CESIT-Centro de Saúde Integral das Travestis e Mulheres
e Homens Transexuais, sediado na UERJ/ D.O. nº211 Parte 1.
Precursora em 2014 da Roda de Conversa Trans no CEDIM – Conse-
lho Estadual do Direto da Mulher, tendo inclusive realizado e coordenado
uma edição do ciclo, a 38ª na EMERJ – Escola de Magistratura do Estado
do Rio de Janeiro pelo Fórum Permanente de Violência Doméstica, Fami-
liar e de Gênero nessa instituição.

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Transexualidade no campo jurídico.


Da mudança do Registro Civil ao
Provimento Nº 73 do CNJ

Kathyla Katheryne S. Valverde

E
s t e a r t i g o t e m p o r o bj e t i v o a p r e s e n ta r u m a l i n h a d o t e m p o

contendo assuntos jurídicos polêmicos – relevantes, e os avanços


que culminaram no Direito à alteração do Registro Civil direta-
mente no Cartório.
Historicamente, em nosso país, algumas personalidades deram o pon-
tapé inicial ao que era impensável juridicamente até então: conseguiram
ter seus nomes artísticos (pseudônimos que mais tarde tornaram-se “nome
social”), incluídos em seus registros civis, oficializando o que até então era
oficioso.
Embora não tenha cronologicamente esses dados, é de notório conhe-
cimento entre os magistrados e operadores de direito que os Senhores Pelé,
Xuxa e Lula tiveram seus “nomes sociais” inclusos em seus registros me-
diante o fato de serem conhecidos e tratados popularmente por tais nomes.
Dentro da seara de demandas da Transexualidade, tivemos o notório
caso da Roberta Gambine, que foi a primeira mulher a lograr êxito em ter
o nome de registro e o sexo modificados. Nesse caso, o “Close” permanece
até os dias de hoje apenas artístico.
Essa fase considerada pioneira foi o pontapé inicial na criação do ca-
minho das jurisprudências, iniciando-se assim um horizonte “avant garde”
nas demandas judiciais dessa população.

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Um pouco da história
Paralelamente aos fatos acima citados, a comunidade cientifica brasi-
leira se debruçava para compreender as questões da Transexualidade, pois,
afinal, esse assunto já era tratado dentro de um amplo espectro de conhe-
cimentos acadêmicos na Europa e nos Estados Unidos, desde as questões
que envolvem a “disforia de gênero” até as cirurgias de readequação se-
xual, passando pelas transformações físicas oriundas de hormonização e
próteses, pois muitas pessoas começaram a procurar clínicos e cirurgiões
para que atendessem a seus insistentes pedidos de mudança de sexo.
Em 1971, médicos pioneiros do Hospital das Clínicas de São Paulo
tentaram solucionar o problema de pessoas transexuais através da regula-
mentação da cirurgia de conversão e da legalização da nova identidade do
gênero, o que foi aprovado em 1979 por unanimidade pelo Senado e pela
Câmara Federal, mas vetado pelo presidente João Batista Figueiredo. Na
época, fez-se a primeira cirurgia de conversão em uma pessoa transexual
(masculino para feminino) no Brasil, o que resultou em um processo cri-
minal por lesão corporal grave, apesar de ter sido requisitada pelo pacien-
te, com o objetivo de lhe proporcionar a integração “biopsicossexual” e
social que faz parte do seu direito à saúde.
Em 10 de setembro de 1997, o Conselho Federal de Medicina deu pa-
recer favorável a cirurgia de conversão de transexuais quando realizada em
hospitais-escola sem fins lucrativos. O direito à cirurgia é adquirido após
o paciente ter passado por no mínimo dois anos de acompanhamento por
uma equipe multidisciplinar de médicos e psicólogos.

O registro civil
Advogados, Defensores Públicos e bacharéis em Direito, juntamente
com seus orientadores, também se debruçaram sobre essa questão para
analisar as nossas leis e observar em que partes poderiam se utilizar na
defesa dessa causa, objetivando a mudança de registro civil do que se com-
preende nome e sexo.

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Muitos anos se passaram e embora o movimento social organizado, in-


telectuais e políticos (que abraçaram a causa percebendo a gravidade da
violação por omissão das questões humanas e sociais) tentassem junto a
alguns parlamentares do nosso Congresso a aprovação de projetos de lei
que pudessem regulamentar essas questões, dando um “norte” para essa
demanda, até o presente momento, não conseguimos avançar além das
discussões, pois os nossos parlamentares, em sua maioria, ainda se mos-
tram insensíveis para tratar dessa matéria. Assim, na contramão dos avan-
ços internacionais, continuam a ignorar os notórios avanços internacio-
nais, como, por exemplo, os “Princípios de Yogyarta” que foi desenvolvido
em 2006 por um grupo de notáveis especialistas em Direitos Humanos de
25 (vinte cinco) países com princípios que preconizam a aplicação da lei
internacional sobre o tema da orientação sexual e a identidade de gênero,
de maneira a esclarecer e sintetizar a obrigação primária dos estados em
implementar os direitos das pessoas na dimensão da sua orientação sexual
e identidade de gênero, com base na igualdade.
Sabemos que nossa Constituição prevê como um dos fundamentos
da República do Brasil a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). Esse
conceito aberto comporta inúmeras teses. Os objetivos fundamentais tam-
bém apresentam abertura na sua interpretação, como o de construir uma
sociedade livre, justa e solidária com a promoção do bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação (art. 3º, incisos I e IV). O Título que trata “Dos Direitos e
Garantias Fundamentais” assegura, no art. 5º, que todos são iguais perante
a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo a inviolabilidade do
direito à vida, à liberdade, à igualdade, assegurando a inviolabilidade da
intimidade e da vida privada (inciso x).
A Constituição é categórica, ao afirmar, nesse mesmo artigo, que “nin-
guém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtu-
de de lei” (inciso II). Todas essas normas são de aplicação imediata, confor-
me o § 1º do mencionado artigo determina.

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Embora tenhamos em nossa Constituição fundamentos da dignidade


da pessoa humana, nos falta uma lei que regule tanto a questão jurídica,
quanto a de acesso ao tratamento e cirurgias, dentre outros. Como são pou-
cos os parlamentares que defendem os direitos da população Transexual
no Congresso e apoiam os projetos de lei, não se tem conseguido avançar,
refletindo assim num vergonhoso retrocesso.
Diferentemente do Poder Legislativo, o Poder Judiciário, por meio de
seus Magistrados, começou a arregaçar as mangas e tratar caso a caso mas,
diante da complexidade gerada pela amplitude e dificuldades dos casos
nos quais não existe norma aplicável, alguns Juízes começaram a se utili-
zar de suas subjetividades, dentre as quais até as suas convicções religiosas,
para julgar e assim promulgar sentenças que lamentavelmente trouxeram
muitos entraves de uma interpretação, que por muitas das vezes acabou
violando os “Direitos Humanos”, e quando o objeto do foco em questão é
esse, necessário se faz apurar ainda mais esse entendimento que, por mui-
tas vezes, vai além do que imaginamos, devido à dinâmica dos avanços até
então. Neste caso, as boas publicações e artigos acadêmicos e sentenças
favoráveis são grandes aliados no entendimento e possibilitam uma inter-
pretação mais “coerente” com os dias atuais do século XXI e consequente-
mente mais humana, na acepção da palavra.
Embora essa palavra “coerente” seja delicada de se empregar, temos
várias questões que muitas vezes não percebemos que são pano de fundo
de todo um cenário e que desejo aqui abordar.
Muitas vezes, não percebemos a dor que classifico como “nadar con-
tra a maré” das pessoas que passam pelo sofrimento para compreenderem
quem são, pois ao se olhar no espelho e ao se tocar no momento de se
banhar, começam a perceber que algo está errado entre o sentimento e
a percepção de fato “body and soul” e é aí que começa o que considero
a maior batalha de todas! A luta pela modificação corporal. Ao mesmo
tempo, começa o conflito dentro de casa, pois, infelizmente, a maioria
das famílias brasileiras ainda não compre esse fenômeno. Sem mencionar

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o tradicionalismo, que também se reflete junto ao mercado de trabalho,


sendo difícil lidar com essa questão.
E as lutas vão ficando cada vez mais acirradas e intensas, ampliando-se
assim uma guerra com inúmeras e infindáveis batalhas e, infelizmente,
algumas pessoas simplesmente morrem, ou, pressionadas por seus fami-
liares, voltam atrás nesse processo se tornando “criaturas sem identidade”,
pois vivem uma frustração sem precedentes.
As pessoas que conseguem forças para continuar essa árdua batalha
acabam chegando à porta do judiciário para finalmente realizar o proce-
dimento mais importante no que tange a vida social. Na mudança de regis-
tro, o que temos percebido dentro dessa caminhada dolorosa é que alguns
Magistrados têm descartado um conceito “sine qua nom” para o entendi-
mento em sua total amplitude: o “Gênero”. Essa palavra nos traz um arca-
bouço de conhecimentos, entendimentos e novos conceitos desenvolvidos
por Filósofos, Antropólogos e Sociólogos, que nos fizeram compreender
muito além da genitália e da construção de identidade. Simone de Beau-
voir, em um entendimento muito à frente de seu tempo, escreveu talvez
a sua mais célebre frase “Não se nasce mulher, torna-se”. Ou seja, o ser
humano não constrói a sua identidade com base no biótipo e sim na forma
como se identifica e vive socialmente. O corpo não pode limitar a alma!
Essa mudança corporal−hormonal acaba por também transcender a
alma, amplificando as emoções, tornando a pessoa mais suscetível a des-
cargas emocionais, choros e outros sentimentos (no caso das mulheres
transexuais e as travestis no sentido mais amplo), sendo necessário acom-
panhamento endocrinológico, pois, caso os remédios não sejam bem uti-
lizados e/ou administrados, o desenvolvimento da depressão torna-se ine-
vitável.
Pela delicadeza e amplitude, além de ser muito mais complexa do
que se imagina, a genitália não deveria ser fator preponderante em uma
sentença judicial e sim a forma de identificação da pessoa, pois uma vez
compreendido o conceito de Gênero, poderemos entender e discernir

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profundamente o real significado da alma e da vida humana em seu “mo-


dus vivendis”
Graças à compreensão de alguns Magistrados, que “habeas lux” julga-
ram procedentes as ações desse tipo que chegaram em suas respectivas va-
ras, permitiu-se criar um caminho por meios das Jurisprudências, facilitan-
do para todos os operadores de direito, os novos Magistrados, Promotores
de Justiça, Procuradores do Estado e Município, Defensores Públicos e
Advogados, que poderão, de forma símile, compreender, capitular e ou
conceder os direitos reivindicados pela população transexual e de travestis.
Recentemente, em 1º de março de 2018, o Supremo Tribunal Federal
(STF) entendeu ser possível a alteração de nome e gênero no assento de
registro civil mesmo sem a realização de procedimento cirúrgico de rede-
signação de sexo, consolidando Jurisprudencialmente o direito da Popula-
ção Transgênero não mais precisar recorrer aos Tribunais para efetuar tal
retificação. A decisão ocorreu no julgamento da Ação Direta de Inconsti-
tucionalidade (ADI) 4275.
A ação foi ajuizada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) a fim de
que fosse dada interpretação conforme a Constituição Federal ao artigo 58 da
Lei 6.015/1973, que dispõe sobre os registros públicos, no sentido de ser pos-
sível a alteração de prenome e gênero no registro civil mediante averbação
no registro original, independentemente de cirurgia de redesignação sexual.
Todos os ministros da Corte reconheceram o direito, e a maioria enten-
deu que, para a alteração, não é necessária autorização judicial. Votaram
nesse sentido os ministros Edson Fachin, Luiz Roberto Barroso, Rosa We-
ber, Luiz Fux, Celso de Mello e a presidente da Corte, Cármen Lúcia, e
em 28 de junho de 2018 ocorreu a publicação do provimento 73 do Con-
selho Nacional de Justiça – CNJ, o qual trouxe as regulamentações neces-
sárias para fazer cumprir a decisão do Supremo Tribunal Federal – STF na
Ação Direta de Inconstitucionalidade número 4.275/DF.
Enfim, com a publicação do provimento Nº 73 do CNJ, a averbação da
alteração do prenome e do gênero nos assentos de nascimento e casamen-
to de pessoa transgênero nos cartórios de registro civil passou a ser possível.

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Votação
O ministro Ricardo Lewandowski concordou com o posicionamento do
relator, ministro Marco Aurélio. Ele também se ateve ao vocábulo “transe-
xual”, contido na petição inicial, sem ampliar a decisão aos transgêneros.
Lewandowski considerou que deve ser exigida a manifestação do Poder
Judiciário para fazer alteração nos assentos cartorários. De acordo com
ele, cabe ao julgador, “à luz do caso concreto e vedada qualquer forma
de abordagem patologizante da questão”, verificar se estão preenchidos os
requisitos da mudança, valendo-se, por exemplo, de depoimentos de teste-
munhas que conheçam a pessoa e possam falar sobre a autoidentificação
ou, ainda, declarações de psicólogos e médicos. No entanto, eliminou toda
e qualquer exigência temporal ou realização de perícias por profissionais.
“A pessoa poderá se dirigir ao juízo e, mediante qualquer meio de prova,
pleitear a alteração do seu registro”.
No início de seu voto, o ministro Celso de Mello afirmou que, com este
julgamento, o Brasil dá mais um passo significativo contra a discriminação
e o tratamento excludente que tem marginalizado grupos, como a comu-
nidade dos transgêneros. “É imperioso acolher novos valores e consagrar
uma nova concepção de direito fundada em uma nova visão de mundo,
superando os desafios impostos pela necessidade de mudança de paradig-
mas em ordem a viabilizar, até mesmo como política de Estado, a instau-
ração e a consolidação de uma ordem jurídica genuinamente inclusiva”,
salientou, acrescentando que o regime democrático não admite opressão
da minoria por grupos majoritários.
O decano da Corte avaliou que a questão da prévia autorização judicial
encontra solução na própria lei dos registros públicos, uma vez que, se
surgir situação objetiva que possa eventualmente caracterizar prática frau-
dulenta ou abusiva, caberá ao oficial do registro civil das pessoas naturais a
instauração do processo administrativo de dúvida.
O ministro Gilmar Mendes se aliou ao voto do ministro Alexandre de
Moraes para reconhecer os direitos dos transgêneros de alterarem o regis-
tro civil desde que haja ordem judicial e que essa alteração seja averbada à

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margem no seu assentamento de nascimento, resguardado o sigilo quan-


to à modificação. “Com base nos princípios da igualdade, da liberdade,
da não discriminação por razão de orientação sexual ou identificação
de gênero, esta Corte tem dever de proteção às minorias discriminadas”,
destacou.
A presidenta do Supremo, ministra Cármen Lúcia, considerou que o
julgamento “marca mais um passo na caminhada pela efetivação material
do princípio da igualdade, no sentido da não discriminação e do não pre-
conceito”. Ela baseou seu voto no direito à honra, à imagem, à vida priva-
da, nos princípios constitucionais da igualdade material, da liberdade, da
dignidade e no direito de ser diferente, entre outros. “Cada ser humano é
único, mas os padrões se impõem”, afirmou. “O Estado há que registrar o
que a pessoa é, e não o que acha que cada um de nós deveria ser, segundo
a sua conveniência”.
A ministra julgou procedente a ação para dar à lei dos registros interpre-
tação conforme a Constituição Federal e Pactos Internacionais que tratam
dos Direitos Fundamentais, a fim de reconhecer aos transgêneros que de-
sejarem o direito à alteração de nome e gênero no assento de registro civil,
independentemente da cirurgia. Para ela, são desnecessários a autorização
judicial e os requisitos propostos.
A tese proposta pelo relator, para fim de repercussão geral, foi aprovada
pelo Plenário e tem os seguintes termos:

1 – O transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu


prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não se exigindo
para tanto nada além da manifestação de vontade do indivíduo, o qual
poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial como diretamente pela
via administrativa.
2 – Essa alteração deve ser averbada à margem do assento de nascimento,
vedada a inclusão do termo “transgênero”.

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3 – Nas certidões do registro não constará nenhuma observação sobre a


origem do ato, vedada a expedição de certidão de inteiro teor, salvo a re-
querimento do próprio interessado ou por determinação judicial.
4 – Efetuando-se o procedimento pela via judicial, caberá ao magistrado
determinar, de ofício ou a requerimento do interessado, a expedição de
mandados específicos para a alteração dos demais registros nos órgãos pú-
blicos ou privados pertinentes, os quais deverão preservar o sigilo sobre a
origem dos atos.

Ressalte que dentre os importantes votos dos magistrados do Supremo


Tribunal Federal, o da Ministra Cármen Lúcia, aliás, presidenta, deixou
claro as proposições que os Direitos Humanos, que vem em suas mais va-
riadas formas, se manifestando positivamente na sensibilização social e o
judiciário abraçou, entendendo os princípios de Carta Magna em conso-
nância com os direcionamentos produzidos pela Declaração Universal dos
Direitos Humanos e os Princípios de Yogyakarta, dentre outros, no comba-
te pela não-discriminação e o não preconceito, que é uma tarefa de extre-
ma importância para os educadores de todo o país, tratando-se de inclusão
social.
Incluir significa: compreender, abranger, inserir, introduzir, fazer to-
mar parte etc., assim o dicionário nos revela. Devemos pensar que o pa-
pel do gestor deve acolher todas essas definições e não somente colocar
pessoas “diferentes” em um lugar que não costumavam estar, é necessário
transpor a chamada deficiência dando lugar a possibilidades de superação.
Inclusão é dar oportunidades diversas, mas sempre primando pela igual-
dade de direitos. Quando se fala em inclusão na escola, na maior parte
das vezes se pensa em deficientes, quando essa questão abrange também
o gênero.
Mister se faz ter consciência que o mundo necessita de pessoas com
valores éticos, morais e de respeito ao outro ser humano possibilitando esta
conquista a partir do convívio com a diversidade, tendo a escola o lugar da

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primeira inserção social de um indivíduo, para desenvolver esses valores de


convivência.
Importante observar o inciso IV do artigo 3º da Constituição Federal
de 1988, que reza o dever da promoção do bem de todos, sem preconceitos
de origem, raça, sexo, idade e qualquer outra forma de discriminação; o
art. 5º que estabelece o direito à igualdade; e o art. 205 que dispõe sobre
o direito de todos à educação, ratificando as bases para uma sociedade de-
mocrática.
Assim, encerrou-se um capítulo doloroso e dos mais agudos da vida co-
tidiana da População Transgênero, conforme bem descreveu o Prof. Dr.
Eloísio Alexandro em seu livro, que aliás, é uma referência acadêmica na-
cional para residentes, médicos, enfermeiros, cirurgiões e demais profissio-
nais da Saúde que desejem estudar o assunto.

Processo Cirúrgico
Quanto à perspectiva da integralidade de direitos equânimes entre
Mulheres cisgêneras transgêneras, as cirurgias de redesignação em 2010,
o CFM – Conselho Federal de Medicina editou a Resolução CFM
1.955/2010[2] (Publicada no Diário Oficial da União, de 03 de setembro
de 2010, seção I, p. 109/110), regulamentando de modo completo a cirur-
gia de redesignação sexual, revogando a Resolução CFM 1.652/2002. Esta
considerou ser o paciente transexual portador de desvio psicológico perma-
nente de identidade sexual; reafirmando a viabilidade técnica para as cirur-
gias de neocolpovulvoplastia e/ou neofaloplastia, bem como o fato de que a
transformação da genitália constitui a etapa mais importante no tratamento
de pacientes com disforia de gênero que desejam se submeter a esse proce-
dimento que foi homologado pela Portaria n.º 1.707 (BRASIL, 2008), que
instituiu no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) o processo transe-
xualizador, a ser implantado em todo o Brasil. Hoje, qualquer pessoa pode
acessar o SUS para submeter-se a uma cirurgia de redesignação sexual.
A despeito de todas essas garantias jurídicas e humanas ainda há uma
resistência social na compreensão das questões elementares desses direitos,

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uma vez que parte desta está movida pelo preconceito e dificuldade em
aceitar as diferenças, razão pela qual esse artigo objetiva contribuir com a
sociedade, que estando em pleno século XXI, não deve permanecer inerte
no tempo e espaço ignorando os avanços que estão aí visíveis e que outrora
não tinha como se imaginar, observando, o inciso III do art. 1º da Consti-
tuição Federal, princípio da dignidade da pessoa humana, vislumbrando
este propósito a ser pautado por toda a população brasileira, seja com a
alteração do prenome e gênero, seja com o combate aos preconceitos en-
raizados na sociedade.
As experiências de uma vida social são distintas em suas várias etapas,
com pessoas de diferentes culturas, credos, etnias, comportamento e com-
preensão de mundo social garantindo assim, a continuidade do processo
da evolução humana e a eliminação dos estigmas sociais e a efetivação
de direitos. Paulo Freire nos mostra um caminho possível, não romântico
nem utópico, mas acima de tudo possível de se entender que viver, é se
oportunizar, se inserir em um ciclo permanente de aprendizado onde po-
demos entender que os obstáculos não se eternizam.

Avanços pontuais
Pensando em reduzir danos emocionais a essa parcela da população
brasileira, o Poder Executivo Estadual sancionou por Decreto Estadual Nº
43.065 de 08 de Julho de 2011 o uso do nome Social na administração
pública direta e indireta no Estado do Rio de Janeiro. No passo seguinte, o
Poder Executivo Estadual promulga o Decreto Nº 46172 DE 22/11/2017
que institui a “Carteira de Identidade Social”, a ser expedida pelo DE-
TRAN-RJ – Diretoria de Identificação Civil, para identificação de pessoas
travestis e transexuais que desejarem usar o “Nome Social” no âmbito do
Estado do Rio de Janeiro. “Parágrafo único. Para fins deste Decreto, con-
sidera-se “Nome Social” a designação pela qual a pessoa travesti ou transe-
xual se identifica e é socialmente reconhecida”.
Já o Município do Rio de Janeiro sancionou o Decreto N° 33816 de 18
de maio de 2011 que evoluiu para a Lei nº 6.329, de 23 de março de 2017

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que dispõe sobre o direito do uso do nome Social por Travestis e Transe-
xuais na Administração Pública direta e indireta do mesmo.

Art. 1º Fica assegurado às travestis, mulheres transexuais e homens trans,


mediante requerimento, o direito à escolha de utilização do nome social
nos atos e procedimentos da Administração Direta e Indireta Municipal.
Parágrafo único. Entende-se por nome social para efeitos desta Lei, o
modo como as travestis, mulheres transexuais e homens trans são reconhe-
cidos, identificados e denominados na sociedade.
Art. 2º O nome social deverá constar em destaque em todos os registros
do sistema de informação, cadastro, programas, projetos, ações, serviços,
fichas, requerimentos, formulários, prontuários e congêneres da Adminis-
tração Pública Municipal, fazendo-se acompanhar do nome civil, que será
utilizado apenas para fins internos administrativos, quando for estritamen-
te necessário.
Parágrafo único. As travestis, mulheres transexuais e homens trans poderão
a qualquer tempo requerer inclusão do nome social nos registros dos sis-
temas de informação, cadastros, fichas, requerimentos, formulários, pron-
tuários e similares.
Art. 3º Nos documentos oficiais ou nos casos em que o interesse público
exigir, inclusive para salvaguardar direitos de terceiros, será considerado o
nome civil das travestis, mulheres transexuais e homens trans, podendo ser
acompanhado do nome social, caso atenda ao seu interesse.

Direitos Humanos são os direitos essenciais a todos os seres humanos,


sem que haja discriminação por raça, cor, gênero, idioma, nacionalida-
de ou por qualquer outro motivo (como religião e opinião política). Eles
podem ser civis ou políticos, como o direito à vida, à igualdade perante
a lei e à liberdade de expressão. Podem também ser econômicos, sociais
e culturais, como o direito ao trabalho e à educação e coletivos, como o
direito ao desenvolvimento. Percebendo a necessidade de estar em conso-
nância com as práticas nos países mais avançados e também pressionado

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pelo movimento social organizado, o Brasil tratou de dispensar tratamen-


to símile e em igualdade social e também sancionou Decreto Federal Nº
8.727 de 28 de abril de 2016 o direito sobre o uso do nome social e o reco-
nhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis ou transexuais no
âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.
O Ministério da Educação e Cultura MEC, também contribuiu nesse
avanço promulgando no dia 17 de janeiro, a Portaria nº 33/20181, que ho-
mologa o Parecer CNE/CP nº 14/20172, que define e normatiza o uso do
nome social de travestis e transexuais nos registros escolares da Educação
Básica do País, ou seja, nos registros das escolas públicas e particulares,
inclusive confessionais. Os alunos maiores de 18 anos poderão solicitar o
uso do nome social durante a matrícula ou a qualquer momento. Já os me-
nores de 18 anos poderão solicitar a mudança do nome por meio de seus
pais ou representantes legais.
Em todo o País, órgãos públicos e autarquias têm avançado na ques-
tão. Desde 2009, por exemplo, o Cartão do Sistema Único de Saúde (Car-
tão SUS) passou a incorporar o nome social de travestis e transexuais. Em
2011, o Ministério da Educação estabeleceu o direito à escolha de trata-
mento nominal nos atos e procedimentos promovidos no âmbito de suas
unidades. O Ministério Público do Trabalho (MPT) publicou em 2015
portaria por meio da qual o nome social passou a ser reconhecido no ca-
dastro de dados e informações, no ingresso e permanência nas unidades
do MPT, em comunicações internas, e-mails institucionais, crachás e na
inscrição em eventos promovidos pela instituição. Em 2016, a Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB) aprovou o uso do nome social na carteira da
Ordem por advogados e advogadas travestis e transexuais. Até mesmo o
Banco do Brasil, que não se enquadra no Decreto N. 8.727, anunciou em
janeiro deste ano o uso do nome social por travestis, transexuais e transgê-
neros em suas agências, sendo a regra válida tanto para funcionários como
para clientes da instituição.
Seguindo esse exemplo, temos hoje, a difusão do uso do nome so-
cial nas empresas privadas que voluntariamente aderiram dispensar tal

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tratamento, e isso é um avanço muito bom de se perceber, pois muitos


paradigmas estão sendo desconstruídos no dia-a-dia, lembrando que um
direito, não invalidará o outro. Muito pelo contrário, o direito ao “Nome
social”, é um primeiro passo na transição de qualquer pessoa transgênero
e que essa adoção trará muitos benefícios com as demais conquistas, tanto
em termos jurídicos quanto na questão bio-psico-social.
Entretanto, infelizmente, em muitas situações e locais, tal medida in-
clusiva não tem sido respeitada em sua plenitude, pois a subjetividade de
negação desse direito (travestido de desconhecimento de Lei e/ou Decre-
to) acaba por criar mal-estar em muitas das vezes, já que se trata apenas de
parte de um processo para as pessoas que estão na caminhada pela tran-
sição sendo esse, uma ferramenta de suma importância na garantia dos
direitos humanos.

Combate a transfobia, transfeminicídio e medidas protetivas


Não é de hoje que grande parte das Mulheres vem sofrendo algum tipo
de violência, seja ela doméstica ou não, pelo simples fato de ser “Mulher”,
e no caso das Mulheres Transgêneras (Transexual &Travesti) não é dife-
rente, sendo o nível de crueldade, algo surreal quando pensamos em uma
vida, principalmente tratando-se da Vida Humana.
A luta nesse combate, tem sido árdua e entristecedora, mas os avanços
chegaram para combater com rigor essa nefasta prática. Em razão de legis-
lações locais que endossam essa equidade de Direitos, como toda Mulher
brasileira. Assim, no Rio de Janeiro, tanto a Lei nº 11.340, de 07 de agosto
de 2006, mais conhecida como “Lei Maria da Penha”, quanto a Lei nº
13.104, de 09 de março de 2015 conhecida como “Lei do Feminicídio”,
in casu o Estado do Rio de Janeiro que está complementada pela Lei nº
7.448, de 13 de outubro de 2016, de autoria da Deputada Delegada Dra
Martha Rocha, determinando que as delegacias de polícia desse estado re-
gistrem como “Feminicídio” homicídios contra mulheres, quando a causa
do assassinato for relacionada ao gênero, bem como no Art. 2º da citada lei.
As informações sobre o número de ocorrências decorrentes do Feminicídio

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deverão constar no banco de dados divulgado regularmente pelo Instituto


de Segurança Pública – ISP. Sendo assim, a palavra “Gênero” passa a en-
globar o sexo deixando clara a aplicação desta.
Um avanço considerável que endossa essa igualdade e que foi descrita
na literatura jurídica onde a Juíza Dra Adriana Ramos de Mello, em seu li-
vro “Feminicídio – Uma análise sociojurídica da violência contra a mulher
no Brasil” em sua 1ª edição, lançado em 2016, cita tal incongruência da
utilização da palavra sexo e não gênero no texto da referida “Lei do Femi-
nicído” que em suas páginas 142 e 143 descreve:

Minha posição, por fim, é de que a qualificadora do feminicídio incide


quando o sujeito passivo for mulher, entendido na minha forma de ver de
acordo com o critério psicológico, ou seja, quando a pessoa se identificar
com o sexo feminino, mesmo quando não tenha nascido com o sexo bio-
lógico feminino.

Além disso, a alteração que a lei sofreu pouco tempo antes de ser aprovada,
que substituiu o vocábulo gênero pela expressão condição de sexo feminino,
na verdade não altera a interpretação, já que a expressão por razões de sexo
feminino, prende-se, igualmente, a razões de gênero. O legislador não al-
mejou trazer uma qualificadora para a morte de mulheres. Se assim fosse,
bastaria ter colocado: Se o crime for cometido contra mulher, sem utilizar
a expressão por razões da condição de sexo feminino.

Assim, entendo que toda vez que uma mulher se identificar com o gênero fe-
minino, independentemente da realização da cirurgia de mudança de sexo,
for morta em razão dessa condição, incidirá a qualificadora feminicídio.

Juíza Titular do I Juizado de Violência Doméstica e Familiar con-


tra a Mulher do Rio de Janeiro. Presidente do Fórum Permanente
de Violência Doméstica, Familiar e de Gênero da Escola da Ma-
gistratura do Rio de Janeiro, professora e conferencista da Escola

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da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Membro da Comis-


são Especial de Segurança da Mulher do Conselho Estadual dos
Direitos da Mulher-CEDIM/RJ.

Adriana Ramos de Mello

Assim, fica patente aqui no estado do Rio de Janeiro, que Mulheres


Transgêneras (Transexual &Travesti), estão sob a mesma égide da Lei de
proteção assim como todas as demais mulheres.
Nesse combate à Violência contra a Mulher, em 2005 o Instituto de
Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro – ISP começou a catalogar
dados para em 2006 lançar a primeira edição do Dossiê Mulher, que vem
trazendo, ao longo de pouco mais de uma década, informações relativas
à violência contra a mulher no Estado do Rio de Janeiro, abordando os
principais crimes que milhares de mulheres sofrem cotidianamente como
a lesão corporal dolosa, a ameaça, o atentado violento ao pudor, o estu-
pro, o homicídio doloso e a violência doméstica. Anos depois de muitas
reivindicações para que os dados das Mulheres Transgêneras (Transexual
& Travesti ) passassem a integrar o relatório do ISP, o mesmo publicou o
“Dossiê LGBT+ 2018”, um assunto de atenção na agenda da segurança
pública, a primeira edição do Dossiê LGBT+, que busca dar visibilidade
à existência de violência motivada por LGBTfobia, trazendo estatísticas
oficiais da segurança pública no ano de 2017 e assim, Mulheres Transgê-
neras (Transexual & Travesti ) passam a ter dados oficiais georeferenciados,
o que facilita a leitura territorial e a criação de políticas públicas voltadas
para o combate à violência LGBT.

Um caminho sem volta


O movimento feminista tem avançado em conquistas e nessa transfor-
mação do feminismo de movimento de vanguarda a movimento de mas-
sas, inclui-se também os direitos das Mulheres Transexuais (dentro do re-
corte LGBT), reconhecendo-se assim as várias facetas desse movimento

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que luta contra a “opressão de gênero”. É um caminho sem volta para essa
igualdade de direitos.
A EMERJ vem colocando lume na questão de Gênero, e consequen-
temente, a ampliação dessa visão e entendimento maior das Mulheres
(Cisgêneras & Transgêneras), com a criação do Curso de Especialização
(Pós-Graduação Lato Sensu) em Gênero & Direito, que muito contribuirá
na continuidade dos avanços, trará em sua estrutura curricular muitos mó-
dulos que em algum momento tratarão desses avanços, ainda que, dentro
da sua pluralidade, haja posições diferentes e até conflitantes sobre o tema,
assim como a mais recente publicação que trata do Gênero na especifici-
dade do “Feminicídio”, um recorte do gênero que a Juíza de Direito Adria-
na Ramos de Mello domina com a experiência de sua “práxis iustitiae”.
Creio que todas essas articulações do movimento feminista & transfe-
minista junto à EMERJ − Escola da Magistratura do Estado do Rio de
Janeiro, ao CNJ − Conselho Nacional de Justiça, e à AMB − Associação
de Magistrados Brasileiros trarão ao Congresso brasileiro uma responsabi-
lidade ainda maior no tratar dos projetos de lei de uma parcela da nossa
população, que ainda se encontra invisível em muitas estatísticas e como
tal, sem uma política pública coerente com suas demandas, e que clama
por equidade e justiça, pois a verdadeira democracia é aquela em que a
maioria respeita, defende e protege a minoria.
Certamente, tal conceito está em consonância com a Pedagogia, ciên-
cia que tem como objetivo a educação, o processo de ensino e a aprendi-
zagem, e que tem como missão, difundir as melhores formas de acesso ao
conhecimento.
O papel da autoridade democrática não é, transformar a existência hu-
mana num “calendário” escolar “tradicional”, o fundamental no aprendi-
zado do conteúdo é a construção da responsabilidade da liberdade que se
assume.(FREIRE, 2015)
Isto posto, é mister que continuemos a pôr em prática, tais afirmações
diante da responsabilidade social que a democracia dá a todos nós para
exercer de forma permanente, tal sistema político.

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Aristóteles já previa isso na Grécia antiga, inclusive é lá que surge a


democracia, que naquela época caminhava ombreada pela educação e fi-
losofia, portanto indissociáveis quando a primeira, é de fato verum e plena.
A valorização do ambiente educacional como espaço de convivência
onde se articulam conhecimentos produzidos pelos sujeitos vulneráveis,
pelos seus grupos de pertença e outros saberes intrínsecos das relações so-
ciais das práticas dos educadores sociais. (VIANNA, 2018).
Agregando a educação, e formando a amálgama perfeita, os Direitos
humanos nascem na segunda metade do século XIV, surgindo na Itália
como um movimento estético, literário e filosófico denominado Huma-
nismo. Tal movimento exaltava o valor humano como meio e finalidade,
difundindo-se por toda a Europa e caracterizando o início da cultura mo-
derna, e que no meado do século XX é ratificado por documento da ONU
“Declaração Universal dos Direitos Humanos” possibilitando a compreen-
são que esse é um dos maiores valores sociais universais (quiçá o maior)
que possibilita o respeito e a união de todos os povos, raças, etnias, orienta-
ção sexual, gênero, enfim a Humanidade, que plural e diversa e lutará “ad
eternum” por conquistas na qual a prática sociopedagógica de educação
preconize a e equidade de direitos para todos.

Citações

“A permissão para a troca de nome e sexo no registro civil independente-


mente da realização de cirurgia resolveria o problema mais agudo da vida
cotidiana dos transexuais”.
Eloísio Alexandro Silva Médico Cirurgião e Professor do HUPE/UERJ Transexualida-

de: Princípios de Atenção Integral à Saúde

“A Sociedade precisa reconhecer os direitos das pessoas transgêneras de


poderem ser cidadãos(ãs), de terem autonomia, tanto para dizerem quem
são quanto para produzirem seu próprio corpo − valores estes ainda nega-
dos por uma cultura que acredita que anatomia é destino.

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Excluir, discriminar, silenciar ou assassinar pessoas que desafiam fronteiras


do gênero são violências (simbólicas ou físicas), advindas de uma socieda-
de que não é verdadeiramente democrática e igualitária”.
João W. Nery

Psicólogo, Sexólogo e autor da autobiografia

Viagem Solitária – Memórias de um Transexual 30 Anos Depois

(Editora Leya)

“Em todos os lugares do mundo, todos os dias, Mulheres (Cis & Trans)*
são vítimas de assassinatos pelo simples fato de serem mulheres”.
Adriana Ramos de Mello Juíza de Direito do 1º Juizado de Violência Doméstica con-

tra a Mulher e Presidente do Fórum Permanente de Violência Doméstica, Familiar

e de Gênero da EMERJ. Autora do livro Feminicídio. Uma análise sociojurídica da

violência contra a mulher no Brasil.

Referência bibliográfica
ADVOGADO, Tribuna. 2016 março p. 10 e 11. Disponível em: <https://
issuu.com/jornalismooab/docs/tribuna-do-advogado-marco-2016> Acesso
em: 11 maio 2019
BEAVOUIR, Simone, O segundo sexo. Vol. 2. Disponível em: <https://
farofafilosofica.com/2016/11/21/simone-de-beauvoir-bibliografia-em-pdf/>
Acesso em: 12 maio 2019
Disponívelem:<https://www.livrariaflorence.com.br/produto/livro-tran-
sexualidade-principios-de-atencao-integral-a-saude-silva-132309> Acesso
em: 11 maio 2019
FREIRE, Paulo – Pedagogia da Autonomia; Saberes necessários à Práti-
ca Educativa, 51ª Edição. Disponível em: <https://onlinecursosgratuitos.
com/17-livros-de-paulo-freire-para-baixar-em-pdf-livros-de-pedagogia/>
Acesso em: 11 maio 2019

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ISP – Instituto de Segurança Pública do estado do Rio de Janeiro. Dis-


ponível em: <http://www.isp.rj.gov.br/Conteudo.asp?ident=184> Acesso
em: 11 maio 2019
MELLO – Adriana Ramos de. Feminicídio. Uma análise sociojurídica
da violência contra a mulher no Brasil. Disponível em: <https://www.
editoragz.com.br/feminicidio-uma-analise-sociojuridica-da-violencia-con-
tra-a-mulher-no-brasil – Acesso em: 11 maio 2019
MELLO, Adriana Ramos de – Feminicídio Uma análise sociojurídica
da violência contra a mulher no Brasil. 2016. editora GZ Disponível
em:<https://www.editoragz.com.br/feminicidio-uma-analise-sociojuridica-
-da-violencia-contra-a-mulher-no-brasil-> Acesso em: 15 out 2018.
MPF, Disponível em: <http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/informativos/edi-
coes-2017/fevereiro/pfdc-pede-regulamentacao-do-uso-de-nome-social-no-
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NERY, João W. Viagem Solitária – Memórias de um Transexual 30 Anos
Depois. Disponível em: <https://www.travessa.com.br/viagem-solitaria-
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<https://www.saraiva.com.br/transexuais-perguntas-e-respostas-411968.
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STF, Supremo Tribunal Federal – Disponível em:<http://www.stf.jus.br/
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out 2018.
VIANNA, Arthur Ferreira – Dentro ou Fora da Sala de Aula? O lugar da
Pedagogia Social. Disponível em: <https://editoracrv.com.br/produtos/de-
talhes/32746-dentro-ou-fora-da-sala-de-aulabro-lugar-da-pedagogia-social>
Acesso em: 11 maio 2019

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Renata Ferreira de Azeredo,

P
sicóloga pelaUFF e m e s t r a e m S a ú d e C o l e t i va p e l a UERJ.
Era 1998 o ano em que comemorava junto aos meus pais a aprova-
ção no vestibular para o curso de Psicologia da UFF. Moradora do
bairro de Honório Gurgel, a viagem diária de duas horas e meia de deslo-
camento, foi só a primeira dentre outras viagens metafóricas e literais que
fui fazendo ao longo desse per-curso, em-curso, per-feito. Viagens que nos
abrem para outras possibilidade e modos de ser-no-mudo. E através delas,
poder encontrar também, nessa abertura de ser, a possibilidade de sermos
o que, mais originariamente em nós, somos. Pensar no meu lugar de fala
para uma apresentação como esta, é acolher o que me levou a esta temáti-
ca: um dia a minha história tentou excluir de mim, o meu lugar.
Havia assim, uma história89. E era a de uma mulher. Seu nome, Estrela.
Estrela casou-se com um rei, David. Nesta época, havia muitos burbu-
rinhos contrários a esta união. Os motivos eram os mais diversos, desde o
fato de terem se conhecido numa festa profana (carnaval), o que diziam
trazer mau agouro, até Estrela ser proveniente de uma família mestiça da
união entre Italianos (que vieram para o Brasil no século XIX em busca de
trabalho) e Tupiniquins (sinônimo de brasileiro, mas que fazia referência

89.  Uso a linguagem alegórica como forma de narrar em terceira pessoa algo que circunscreve minha própria
história. Os nomes dos personagens não são aleatórios, mantive a primeira letra real de seus inspiradores.
Numa intencionalidade de manter a proximidade entre eles. “D” de David (o rei) como “D” de Decio (meu
pai), “E” de Estrela (a destemida) como “E” de Estela (minha mãe), “R” de Renascida que significa meu
próprio nome e “P” de Panacéia (que significa a que remedia os males) como “P” de Paula, minha esposa.

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à ancestralidade indígena da família materna de Estrela), o que não lhe


conferia, à época, o status necessário para casar-se com um rei. Entretanto,
juntos decidiram afirmar seu amor. E assim foi feito. Estrela saiu da oca de
seus pais e foi morar no castelo do Rei David.
Lá, havia muito trabalho a ser desempenhado pelos súditos e Estrela,
negando-se a ser servida, ia para o batente junto aos demais funcionários
do rei. Isto trazia mais admiração ao rei, que contava com Estrela para
tudo. Juntos tiveram uma filha, a princesa Renascida.
Apesar de David ser rei, seu reinado era humilde, contava com uma
casa, um comércio e um carro. Educaram Renascida com o que pude-
ram. Pouco estudaram na vida e tinham o sonho de dar para ela o que não
puderam ter: estudo. Renascida passou no seu primeiro vestibular, era o
curso de Psicologia. Ela queria entender os pensamentos, os sentimentos,
aquilo que as pessoas sentiam e guardavam para si – como ela o fazia com
os dela.
Renascida desde pequena preferia a companhia das meninas, apesar
de não entender exatamente o que aquilo significava, sentia vontade de
andar grudada com a melhor amiga, queria estar sempre com ela, fazen-
do carinho, abraçando, beijando, rindo, brincando e contando as histórias
do colégio. Foi preciso tempo para que Renascida pudesse entender que
seus sentires mais genuínos não eram aprovados pelos demais. De alguma
forma compreendeu que as demonstrações de carinho com suas amigas
precisavam ser sigilosas. Aos poucos a sua linguagem foi se adequando e
Renascida começou a nominar o que tudo aquilo significava. Ela era lésbi-
ca e sentia que não podia ser. Como seus pais, ela precisaria inventar uma
contramão.
Com o falecimento do rei, as vidas de Estrela e Renascida mudaram
radicalmente. Após alguns meses de luto, Renascida viajou para um outro
reinado, a fim de obter recursos para tocar a vida com sua mãe. Nesta
viagem, além dos meios materiais que buscava, encontrou formas de vi-
ver que eram diferentes da sua, num lugar onde os sentimentos que, até
então, guardara em seu coração poderiam ser demonstrados. Fosse pela

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idade, pela perda do pai, ou por não conseguir mais fingir ser o que não
era, Renascida reorganiza sua vida de forma a seguir seus afetos e convida
sua mãe para também se mudar. Estrela aceita, não via mais sentido em
permanecer no mundo velho quando um novo despertava em seu céu.
Juntas, recomeçam a vida. Sem reinado, precisaram trabalhar para so-
breviver, foram muitos os desafios para conquistar um novo lugar. Sobre-
tudo, sentiam que estavam enriquecendo de experiências e aprendizados.
Até que Renascida decide voltar para o lugar onde um dia foi o antigo
reinado de seu pai, para concluir seu curso de Psicologia. Despede-se da
mãe, que carregava dúvidas em seu coração se deveria ou não permitir que
sua filha fosse para tão longe dela.
A vida seguiu e, prestes a se formar Psicóloga, Renascida recebe uma
carta com o selo do lugar onde morava sua mãe. Por não ser a forma como
se comunicavam, estranhou e abriu o envelope preocupada... mergulhou
nas palavras. Era uma mulher contando que sua mãe e ela estavam apaixo-
nadas, e que por temer a reação da filha, Estrela não estava se alimentando
e ficando fraca. Instantaneamente um filme passou pela memória de Re-
nascida... as vezes em que sentiu amor pelas amigas e precisou esconder, o
medo de ser descoberta por amar a quem achava que não devia, a angústia,
a solidão, a insegurança de compartilhar esse sentimento até mesmo com
as amigas mais próximas, a sensação de ter duas vidas: uma que as pessoas
viam e outra que carregava em seu peito. Um filme, um transbordamento
de emoções que a fez contatar imediatamente a mãe para lhe dizer:
– mãe?
– oi filha
– seja feliz com a Lua. Soube do amor de vocês, viva-o, enfrente os
burburinhos contrários a esta união. No próximo verão visitarei vocês.
– eu te amo filha
– também te amo mãe.
Renascida visitou a mãe quando o próximo verão chegou e em todos os
outros seguintes. Estrela constituiu nova família com Lua, que tinha um
filho de cinco anos, proveniente de casamento anterior com outra mulher.

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A ex-companheira de Lua era a mãe biológica e havia engravidado com


doador de sêmen anônimo via reprodução assistida, como um projeto
conjunto do casal. Renascida e Estrela percebiam que naquele reinado do
Norte a homossexualidade era mais visível e parcimoniosamente aceita.
Ainda que Renascida quisesse morar no Sul, entendia que o Norte propor-
cionava à sua mãe a leveza que ela necessitava para se permitir ser feliz.
Enquanto isso no Sul, Renascida se reinventava na profissão, nos estudos
e na vida afetiva.
Até que um dia conhece Panaceia, se apaixonam, decidem morar jun-
tas e começam a pensar na possibilidade de terem uma filha.
Neste momento eu as conheci. De uma forma inesperada, apresentada
por uma amiga em comum, saboreei a estória de Panaceia e Renascida. E
percebi que suas narrativas traziam para além de seus sonhos, conquistas
e fantasias, uma mistura de preocupação, receio e dúvidas de como seria
se conseguissem se tornar mães. Estava claro que a preocupação não di-
zia respeito apenas à construção de um processo singular de maternagem
e maternidade. Falava também dos enfrentamentos com que teriam que
lidar para defender um lugar divergente do da maioria, por conta da orien-
tação sexual e o gerenciamento desta exposição.
Elas me perguntam: “como diremos à nossa família que teremos uma
filha? Como registraremos a criança com duas mães e nenhum pai? É me-
lhor adotar ou buscarmos as tecnologias de reprodução assistida? Como
será nosso dia a dia de luta contra o preconceito? Irão nos respeitar como
um casal de mulheres?”. Eram muitas as angústias por trás de dezenas de
interrogações.
Colei em suas histórias, as senti em meu próprio corpo, vibrando como
parte de minha biografia. Talvez seja. É nesta mistura de questionamentos,
acolhimentos e agenciamentos, que me atrai para esta temática. Talvez eu
seja ora Estrela, ora Panaceia e outras, que continuamente renascem em, e
através do, meu nome.

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A MANDA MENDO NÇA - LAI LA MA R IA D OMIT H V ICE N T E

Maternidade Lésbica no Brasil: uma


revisão de teses e dissertações

Renata Ferreira Azevedo

Resumo

O
p r e s e n t e t r aba l h o d e d i c o u at e n ç ã o à m at e r n i d a d e l é s b i c a

na produção acadêmica brasileira, através da análise de Teses e


Dissertações em Psicologia e áreas afins. Com isto, investigou-se
o que tem sedimentado nosso horizonte histórico sobre o tema. Objetivou-
-se sistematizar os resultados das pesquisas analisadas, os quais foram agru-
pados em dois eixos: o primeiro abordou as mudanças jurídicas e sociais
nas concepções de família, parentalidade e laços de parentesco de casais
de lésbicas na busca por proteção legal e o segundo, reuniu as discussões
sobre o campo da Saúde. Verificou-se um processo de mudança das di-
nâmicas conjugais e familiares, no âmbito jurídico e no cotidiano, com
efeitos nas formas de existir destas famílias. Pôde-se notar obscurecimentos
na busca por direitos sexuais e reprodutivos destas mulheres e disputas po-
líticas e ideológicas entre forças que ora promovem a justiça e tratamento
igualitário, ora obstaculizam a vida democrática, preconizando normativas
que excluem, promovem violência e reforçam preconceitos. Constatou-
-se um horizonte histórico que indica a sedimentação de uma correlação
entre maternidade e heterossexualidade, e entre maternidade e feminino.
Exercitando um afastamento ante às verdades postuladas pelo senso-co-
mum ou saber científico, perguntamos: em que medida a maternidade,

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biológica ou não, se vincula a uma feminilidade e atua como componente


de construção da identidade heterossexual feminina? Como as pesquisas
compreendem o aumento no número de famílias lésbicas? O que as lés-
bicas narram sobre suas experiências? Como encaram as dificuldades ad-
vindas de uma sociedade que até há pouco não as incluía como família? O
que dizem das conquistas de direitos, das mudanças em prol dos direitos da
diversidade? E em relação à Saúde, que percepções e histórias teriam para
compartilhar sobre a atuação destes profissionais? Em síntese, percebeu-se
na produção acadêmica analisada um peso no apontamento das dificulda-
des e desigualdades. A forma como essas mulheres lidam com as faltas e re-
inventam a si e à maternidade entretanto, demonstra um campo de estudo
e análise potente e revela medidas singulares de existir que poderiam ser
mais exploradas. Uma vez que criam linhas alternativas para seus modos
de vida, enriqueceria conhecer mais sobre as estratégias que inventam no
enfrentamento daquelas violências.

1. Introdução
A temática das maternidades lésbicas une duas (ou até três) categorias de
análise, que cruzadas produzem outras complexidades não necessariamente
observadas se as analisarmos isoladamente. Estudar maternidade atrelada à
lesbianidade provoca reflexões sobre as tradicionais formas de ser mãe; ques-
tiona a naturalização da ligação entre sexo e procriação; desconstrói ditos
populares que afirmam que ‘mãe é uma só’; e possibilita diferentes estraté-
gias de coparentalidade entre mulheres lésbicas e suas(seus) filhas(os). Tudo
isto sem desprezar o depósito de discussões acerca do mito do amor materno
e as considerações de diferentes estudiosas feministas, que valoram a mater-
nidade diferentemente a partir do ‘ser mulher’ neste horizonte histórico.
Estudar a associação entre lesbianidade e maternidade é também pi-
sar num terreno híbrido, que brinda variadas fontes, caminhos teóricos
e metodológicos, que podem dialogar e compor um campo de pesquisa
multidisciplinar. Neste caminho, a maternidade lésbica pode derivar para
os estudos de gênero e sexualidade, abrangendo as disputas pelos direitos

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sexuais e reprodutivos, fazendo emergir a reflexão sobre o lugar das Novas


Tecnologias Reprodutivas (NTR) nos embates entre saúde pública e priva-
da. A temática evoca disputas políticas e ideológicas entre forças que ora
promovem a justiça e um tratamento igualitário, ora obstaculizam a vida
democrática, preconizam normativas que excluem sujeitos, promovem
violência e reforçam preconceito e vulnerabilidade.
Mas, afinal, lésbicas podem ser mães? Deveríamos questionar até que
ponto a maternidade, biológica ou não, se vincula a uma feminilidade e
atua como componente de construção da identidade heterossexual femi-
nina? Grossi, em 2003, constata que nunca tinha havido tantas famílias
lésbicas que escolhessem a maternidade como naquela década. Mas o
que é que ocorreu para favorecer esse crescimento? Teria relação com as
Reproduções Assistidas (RA)? Como as pesquisas sobre a temática têm
compreendido este fenômeno social? O que as mulheres lésbicas que
são, ou desejam ser, mães, narram sobre esta experiência? Como enca-
ram as dificuldades advindas de uma sociedade que até há pouco não
as incluía, e em grande medida ainda não as inclui, na concepção de
família? O que dizem das conquistas de direitos, das mudanças em prol
dos direitos da diversidade? E em relação à Saúde, que percepções e his-
tórias teriam para compartilhar sobre “o (não) olhar dos profissionais”?
(MELO, 2010).
O presente trabalho debruçou-se sobre tais interrogações a partir de um
recorte bem delimitado de fontes, que diz respeito ao que as pesquisas so-
bre maternidade lésbica no Brasil têm revelado. Ele é um recorte da minha
Dissertação, realizada no Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sob o título: “Maternidade
Lésbica no Brasil: uma revisão de teses e dissertações nas Ciências Sociais,
Humanas e da Saúde”, defendida em maio de 2018. O intuito à época, foi
abordar a atenção dedicada à maternidade lésbica na produção acadêmica
brasileira, visando a sistematização de um debate, destacando particularida-
des dos achados das pesquisas analisadas, relativas às dinâmicas sociais e o
estatuto da maternidade quando conjugada com a sexualidade lésbica.

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2. A construção do campo de análise


Ao estudar a categoria maternidade lésbica, notamos que ela aparece
primeiramente, num campo mais geral, o da homoparentalidade. Tran-
sitando de uma generalização das configurações familiares homoparen-
tais, rumo às especificidades dessas famílias em função da sua variedade.
A partir das últimas décadas do séc. XX, no Brasil, as fronteiras do que se
entende por família têm sido redesenhadas de forma cada vez mais alarga-
da, incorporando variadas configurações familiares para além do modelo
nuclear heterossexual. Entre estas, as famílias homoparentais têm ganhado
cada vez mais visibilidade e reconhecimento social e jurídico. Tal visibili-
dade foi acompanhada pelo campo acadêmico-científico, que demonstrou
picos de produção sobre essa temática especialmente a partir do ano 2000.
Pelo que foi trazido nas pesquisas, a maternidade lésbica (uma cate-
goria política e social) se constitui como categoria de análise a partir da
constatação de que existe um fenômeno que não pode ser observado à luz
do que se entende no campo da maternidade heterossexual. Do ponto de
vista das lésbicas que constituem famílias desse tipo, existem dificuldades
específicas advindas de uma série de preconceitos e também de outras
particularidades como: a possibilidade da dupla amamentação, de ape-
nas uma poder dar o gene e/ou saber o que é carregar uma barriga. Não
obstante, as pesquisas permitem observar a originalidade dessas configu-
rações familiares e a criatividade das mulheres ao lidarem com as dificul-
dades desses projetos, iluminando os saberes mobilizados na construção e
legitimação dos laços sociais, afetivos e de parentesco propiciados em sua
vivência.
Na composição do corpus examinado, privilegiamos as pesquisas que
tratavam: ou da relação entre mulheres que se auto identificavam lésbicas
em relacionamento monogâmico e que a partir desta parceria, concebiam
a ideia, ou desejo, de terem filhas(os); ou ainda, filhas(os) provenientes de
relacionamentos conjugais anteriores e que foram inseridas(os) na atual
relação homossexual feminina da mãe. No primeiro caso a maternidade é
concebida em parceria, como um desejo/projeto do casal, e no segundo,

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ela já existia e a esposa/namorada é incorporada. Em ambos os casos, arti-


cula-se um relacionamento afetivo-sexual entre mulheres, com filhas(os).
O privilégio dado à conjugalidade é decorrente de resultados das pesquisas
examinadas, em que se observou que a maternidade lésbica é majoritaria-
mente concebida em parceria, porém poderíamos supor que a ausência de
parceria invisibilize a sexualidade da mãe, pressupondo antecipadamente
uma heterossexualidade.
Minoritariamente, há mulheres lésbicas que decidem ser mães solo e ca-
sais que iniciam o projeto da maternidade conjunta, como mulheres lésbi-
cas, mas que num segundo momento uma delas passa a se identificar como
homem trans e pode reconfigurar a família. É possível, então, compreender
que haja outras configurações e modos de articular a parentalidade e, mais
especificamente, a maternidade com a diversidade sexual e de gênero.
Inicialmente houve um esforço, neste trabalho, por demarcar o obje-
to maternidade lésbica da forma mais definida possível, porém, como há
uma variedade de formas capazes de referirem-se a esta categoria e cons-
tituição familiar, qualquer termo serviria apenas como descrição aproxi-
mada. Ou seja, família de mães homossexuais, casais de mulheres grávi-
das, famílias homoparentais femininas, famílias homomaternais, filhos de
casais de mulheres, famílias homoafetivas femininas, mulheres lésbicas e
maternidade, dentre outros, foram termos encontrados para se referirem
ao fenômeno. Por isto, mais do que explorar todos os formatos ou termos
existentes, esta pesquisa se importou em investigar as perguntas ou ques-
tões que os estudos sobre a temática têm buscado responder, quais os seus
achados e os desafios específicos que esses casais encontram para ter ou
criar filhas(os).
A discussão sobre o uso dos termos, nos levou a concepção dos descri-
tores para localizarmos as pesquisas que buscávamos. Eles foram testados
de forma que servissem de bússola para a coleta de materiais do campo em
relação à temática procurada. Como exemplo do resultado dessa empreita-
da seguem as tabelas 1 e 2, primeiramente pelo portal Capes e depois pela
Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD).

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Tabela 1. Número de estudos identificados e selecionados de acordo com descritores e estratégias de busca no portal Capes
Pré-selecionado
Descritores Encontrados Repetidas Seleção final
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proximidade ao tema
Maternidade AND Lésbica 7 6 0 6
Adoção AND Lésbica 2 1 0 0
Gestação AND Lésbica 0 0 0 0
Gravidez AND Lésbica 2 1 1 0
Lésbica AND Homomaternidade 1 1 1 0
Lésbica AND Homoparentalidade 4 4 4 0
Mulheres lésbicas AND Maternidade 12 7 5 3
Mulheres Lésbicas AND Homoparentalidade 8 7 3 2
Mãe AND Homoparentalidade 11 5 3 2

188
Mãe AND Lésbica 5 1 1 0
Família AND Lesbianidade 6 2 1 1
Família AND Homossexualidade 156 – – 1
Família AND Homoparental 34 21 6 7
Família Homoparental AND Maternidade 6 3 3 0
Homoparentalidade AND Maternidade 8 5 5 0
Maternidade Lésbica AND Saúde 11 7 4 0
Mães AND Homossexuais AND Mulheres 8 4 3 1

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Conjugalidade AND Lésbica AND Maternidade 2 2 2 0
Reprodução assistida AND Lésbica 3 3 3 0
Total 286 54 34 23
Fonte: A autora, 2017.
Tabela 2. Descritores e estratégias de busca utilizadas na BDTD e resultados obtidos em 03/11/2017.

Próximas à
Descritores Encontrados Repetidas Teses Dissertações
temática

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Maternidade AND Lésbica 24 8 0 4 4
Adoção AND Lésbica 13 1 0 0 1
Gestação AND Lésbica 9 0
Gravidez And Lésbica 13 1 1
Lésbica AND Homomaternidade 2 1 1
Lésbica AND Homoparentalidade 9 7 5 2
Mulheres lésbicas AND Maternidade 22 8 8
Mulheres Lésbicas AND Homoparentalidade 7 5 5
Mãe AND Homoparentalidade 11 3 2 1

189
Mãe AND Lésbica 27 5 5
Família AND Lesbianidade 39 11 10 1 1
Família AND Homossexualidade 132 – – 1
Família AND Homoparental 32 12 9 3 0
Família Homoparental AND Maternidade 12 6 5 1
Homoparentalidade AND Maternidade 12 6 6
Maternidade Lésbica AND Saúde 17 2 2
Mães AND Homossexuais AND Mulheres 30 8 5 2
Conjugalidade AND Lésbica AND Maternidade 10 4 4 0 0
A MANDA MENDO NÇA - LAI LA MA R IA D OMIT H V ICE N T E

Reprodução assistida AND Lésbica 4 4 4 0 0


Total 247 72 55 9 12
Fonte: A autora, 2017.

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O Banco de Teses do Portal da Capes foi imediatamente acionado


por disponibilizar a produção de teses e dissertações e centralizar infor-
mações (minimamente resumos) sobre a quase totalidade do acervo digi-
tal disponível, correspondente às pesquisas acadêmicas desenvolvidas no
país desde 1987. A BDTD foi a outra fonte de dados utilizada onde, de
forma mais interativa, obtivemos informações sobre a instituição do(a)
pesquisador(a), o grau, assunto, autoria, idioma, ano e ter o acesso ime-
diato ao texto da pesquisa.
Após a junção das duas bases de dados, e da categorização dos mate-
riais, o universo de análise deste trabalho de revisão contou 15 pesquisas
(vide Tabela 3), que conjugam a maternidade desempenhada por mulhe-
res lésbicas. Através deste material investigaremos o que tem sido aborda-
do, observado, descrito, privilegiado e teorizado sobre maternidade lésbi-
ca, bem como os termos da discussão sobre configurações familiares não
hegemônicas, parentesco e as formas de conceber, gestar, parir e criar
que comparecem nos demais estudos.

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A MANDA MENDO NÇA - LAI LA MA R IA D OMIT H V ICE N T E

Tabela 3. Lista concentrada em maternidade lésbica (Portal Capes e BDTD) 07/11/2017

Título Tipo Área Local Autoria

Maternidades lésbicas: clivagem entre as


1 tensões sociais e políticas do tornar-se mãe D Ciências Sociais UNESP Basaglia (2017)
na contemporaneidade

Representações sociais sobre a materni-


2 dade no contexto social heteronormativo M Enfermagem UFPE Lucio (2016)
construídas por mães lésbicas

“Nós já somos uma família, só faltam


Antropolo-
3 os filhos”: maternidade lésbica e novas M UFSC Amorim (2013)
gia Social
tecnologias reprodutivas no Brasil
Enfim mães! Da experiência da reprodu-
4 ção assistida à experiência da maternidade M Psicologia Social UERJ Silva (2013)
lésbica
Gestando afetos, concebendo famílias:
5 reflexões sobre maternidade lésbica e M Antropologia UFS Aires (2012)
reprodução assistida em Aracaju-Se

Duas mães? Mulheres lésbicas e ma-


6 D Saúde Pública USP Corrêa (2012)
ternidade

A vivência do projeto parental das famílias


7 homoeróticas femininas: uma investigação M Psicologia Unifor Lira (2012)
fenomenológica sartreana

Famílias homoafetivas femininas no Brasil


Psicologia Social,
e no Canadá: um estudo transcultural so-
8 D do Trab. e das UnB Zauli (2011)
bre novas vivências nas relações de gênero
Organizações
e nos laços de parentesco

Considerações sobre o psicodinamismo de


9 famílias homoparentais femininas: uma D Psicologia USP Martinez (2011)
visão psicanalítica

Desejo por filhos em casais de mulheres: Psicologia


10 M PUC-RJ Pontes (2011)
percursos e desafios na homoparentalidade Clínica

Mamãe e... Mamãe? Apresentando as


11 M Psicologia PUC-RS Palma (2011)
famílias homomaternais

Parentalidades e conjugalidades em Psicologia


12 M UNICAP Silva (2008)
uniões homoafetivas femininas Clínica

O amor de mulheres por mulheres: a


13 circulação pulsional nas famílias homopa- M Psicologia PUC-Minas Noronha (2008)
rentais recompostas femininas

Famílias de mães homossexuais: relato Psicologia


14 M PUC-SP Noda (2005)
das mães Clínica

Necessidade de filhos: maternidade,


15 D Ciências Sociais Unicamp Souza (2005)
família e (homo)sexualidade

Fonte: A autora, 2017.

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3. A apresentação do campo analisado


Esta revisão crítica de produções acadêmicas sobre maternidade lésbi-
ca no Brasil, nos mostrou um abrangente campo de estudos sobre diversi-
dade sexual, composto por várias áreas de conhecimento (sendo, portanto,
multidisciplinar), que dialogam entre si (compondo formas de interdis-
ciplinaridade) e colaboram na compreensão de um saber que escapa às
fronteiras disciplinares (transdisciplinar), transformando-as. Ultrapassando
as fronteiras epistemológicas de distintas áreas de saber (Psicologia, Antro-
pologia, Sociologia, Direito e Saúde), os estudos LGBT constituem um
campo transdisciplinar e inclusivo de conhecimento, cujo objeto é inves-
tigado “através” de saberes que são dinâmicos, porosos e que operam em
relação.
Tais estudos se entrelaçam, com mudanças em termos do acesso de
“novos sujeitos” ao direito civil, reprodutivo e sexual, na constituição legal
de entidades familiares etc., em processos atravessados por tensões e dis-
putas em torno das quais os movimentos gays, lésbicos e feministas se mo-
bilizam. Dentre as reivindicações destes movimentos podemos enumerar:
o reconhecimento legal e social de “outras famílias”, cuja inclusão no tex-
to da Constituição Federal foi objeto de controvérsias; o reconhecimento
dos casais do mesmo sexo, bem como de sua descendência e genealogia
quando desejam ter filhos(as), biológicos(as) ou adotivos(as); o fim da dis-
criminação no acesso à Saúde; a promoção da visibilidade da população
LGBT, com sua própria diversidade. Estas demandas, lutas e conquistas
colocam em tensão naturalizações, estatutos e rigidezes, pois esbarram
em acontecimentos do cotidiano que reiteram e reproduzem a hetero-
norma do parentesco heterossexual e do gênero como norma. A breve
enumeração citada ilustra como algumas demandas emergem e como os
saberes do Direito, das Ciências Sociais, da Medicina, Psicologia, Enfer-
magem, etc. se misturam para dar conta da complexidade das tramas e
processos legais, sociais e culturais que impactam a vida da população
LGBT e suas famílias.

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3.1 Família, um estatuto?


Uziel, Mello e Grossi advertem, em texto datado em 2006, que na con-
tramão da legitimidade da temática do ponto de vista acadêmico, haveria
um efeito de estagnação da mesma na legislação brasileira, por conta da
“oposição religiosa e as posições machistas, sexistas e homofóbicas dos par-
lamentares”, responsáveis pelo entrave a leis que viriam amparar legalmen-
te essas famílias. (UZIEL, MELLO, & GROSSI, 2006, p.482). De fato,
pode-se perceber que as conquistas de direitos obtidas por esta população,
não se deram no âmbito do legislativo. Tanto o reconhecimento da união
estável alcançado em 05 de maio de 2011, com a decisão do Supremo
Tribunal Federal (STF), quanto a autorização do casamento civil a partir
de 14 de maio de 2013, com a Resolução nº 175 do Conselho Nacional de
Justiça (CNJ), ocorreram no âmbito do Judiciário.
Afinando-se às observações de Uziel, Mello e Grossi (2006) o legislati-
vo brasileiro segue em direção contrária ao realizado pelo Judiciário. Por
exemplo, tramita no legislativo, o Projeto de Lei nº 6583, ou Estatuto da
Família, que pretende limitar, através de definições restritivas, quais confi-
gurações devem ser consideradas família perante a lei. O texto do projeto
objetiva anular as decisões do STF e CNJ a respeito das famílias homoafe-
tivas e proteger juridicamente apenas famílias constituídas por casais hete-
rossexuais. Isto traria, entre outros efeitos, barreiras para a adoção, herança
e outras direitos já adquiridos por casais do mesmo sexo, bem como o não
reconhecimento das famílias homoparentais para fins de acesso às diversas
leis e políticas públicas que, no Brasil, privilegiam a entidade familiar.
A reflexão sobre o conceito de família, em sua historicidade, foi apre-
sentada por todas as pesquisas analisadas. Demorando-nos um pouco mais
sobre este conceito, poderíamos perguntar: o que é isto que se nomeia
por família? Constatou-se que o vocábulo ‘família’ foi utilizado mais de
12.500 vezes no conjunto de trabalhos que compuseram esta revisão, re-
presentando uma variedade de sentidos e definições para esta categoria,
acompanhando as transformações que esta instituição vem atravessando,
especialmente nas duas últimas décadas no Brasil. Na medida em que

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aumenta a variedade de arranjos familiares que passam a ser reconhecidos,


adjetivos vão sendo incorporados, numa tentativa de especificar o tipo de
família da qual se trata. O risco é que essas classificações contribuam à es-
sencialização das categorias criadas, reproduzindo normas prescritivas que
hierarquizam e restringem o reconhecimento das composições familiares
nominadas.
A pergunta sobre o que é isto a que se nomeia por família, parece indi-
car respostas não correspondentes entre o que legislativo compreende e o
que a sociedade demonstra por suas formações familiares. Aquele parece
tomar família pela constituição (hermética) do par homem e mulher mais
os filhos(as) provenientes desta união, em outras palavras, uma categoria
fixada neste modelo, impossibilitada de acolher mudanças a este entendi-
mento. Porém encontramos na sociedade, em sua dinâmica social, confi-
gurações plurais que escapam àquele modelo. Ou seja, vê-se no cotidiano
o uso da nomeação ‘família’ para representar articulações diversas, arregi-
mentadas em sua composição por vínculos de parentesco e/ou processos
psicológicos, emocionais e afetivos decorrentes deles.
Por conta da incongruência entre o que quer compreender o Legisla-
tivo e o que se dá no mundo, formações familiares divergentes do modelo
legislado estariam sem a devida proteção Legal, trazendo tensão ao núcleo
familiar quanto às garantias de direito. Um caso emblemático que ilustra
esta tensão, foi o de Cássia Eller e Maria Eugênia, mães de Chicão, discu-
tido por Basaglia (2017). Situação em que, devido ao não reconhecimento
legal desta formação familiar, o laço de parentesco construído entre Maria
Eugênia e Chicão correria o risco de ser impedido. Cássia, cantora brasi-
leira famosa, faleceu no auge da carreira, em dezembro de 2001, deixando
a companheira com quem convivera por quatorze anos e um filho de 8
anos. Chicão tinha sido criado por duas mães, Cássia e Eugênia, que vi-
viam em um relacionamento amoroso reconhecido publicamente, porém
elas não eram casadas “no papel”. Chicão era filho biológico de Cássia e
não tinha sido adotado por Eugênia. Em entrevistas veiculadas na época,
utilizadas como comprovação do desejo de Cássia, a cantante diz que, em

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caso de morte, Chicão deveria ficar com sua companheira e que ele ti-
nha medo de perder “sua mãezinha” Eugênia. Entretanto, o pai de Cássia,
apesar do desejo da filha, declarou seu interesse em obter a guarda do seu
neto Chicão. O caso, que foi levado à Justiça e promoveu fissuras nas nor-
mas e valores em torno da parentalidade no Brasil, é também comentado
por outras autoras (Aires, 2012; Noronha, 2008; Silva, 2008; Souza, 2005).
Além de ter contribuído para a visibilidade da parentalidade lésbica e a
proteção legal destas famílias.

3.2 Mulher, lésbica e mãe


No elenco das pesquisas que compuseram essa revisão, notou-se um
primeiro rol de produções, especialmente no início da década de 2000,
cujo itinerário temático contemplava: a desnaturalização da noção de fa-
mília nuclear burguesa (Ariès, 1981); a visibilização e sedimentação de dis-
cursos em torno de outras configurações familiares além da heterossexual
(Grossi, 2003); apontamentos e reflexões sobre as mudanças nas relações
conjugais e parentais (Uziel, Mello & Grossi, 2006); mobilização política
em busca da mudança legal desde o projeto de lei/1995 de parceria civil
da então deputada Martha Suplicy. Em uma segunda “fornada” de traba-
lhos, dez anos depois, no início da década de 2010, começam a aparecer
pesquisas narrando experiências de famílias formadas por casais de mesmo
sexo com filhas(os) (Meinerz, 2011); transformações a respeito do entendi-
mento do que seja família (Aires, 2012); acesso a direitos e críticas quanto
ao enquadre de famílias homoparentais em uma lógica binária e identitá-
ria heteronormatizada (Palma, 2011); a possibilidade de escolher ser mãe
biológica ou não, se consolidando através das RA, por casais de mulheres
(Silva, 2013) e o fortalecimento das lésbicas em suas lutas por igualdade
de direitos (Basaglia, 2017).
As pesquisas sobre maternidade lésbica envolvem práticas e valores que
estão relacionados ao ato de conceber, gestar, parir e criar, geralmente,
por um casal de mulheres. Tais práticas buscam legitimar a construção
dos laços sociais, afetivos e de parentesco propiciados pela vivência da

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maternidade articulada à lesbianidade. Invariavelmente tais pesquisas con-


cluem que, apesar da representação convencional de família na sociedade
contemporânea como o conjunto formado por mãe, pai e filhas(os), mu-
danças acentuadas nos últimos cinquenta anos permitiram que as mulhe-
res se firmassem em suas lutas por igualdade. Dentre essas lutas, nota-se
um avanço na desconstrução e desnaturalização da subjugação da mulher
através da maternidade – antes vista como obrigação ou dever inato, regra
secular endereçada às mulheres, e uma reapropriação da maternidade pela
mulher lésbica como a afirmação de um direito que lhe fora negado devi-
do a sua orientação sexual.
Basaglia (2017) explora as tensões produzidas e os conflitos gerados
pela combinação de maternidade e lesbianidade com relação à heterosse-
xualidade compulsória e a heteronormatividade, norteando sua pesquisa
pela seguinte indagação: “como é tornar-se mãe na sociedade contempo-
rânea quando se é lésbica?” (BASAGLIA, 2017, p.29). Para ela, esta inda-
gação requer abordagens interdisciplinares e a interlocução com questões
centrais do movimento feminista, que se apresenta unificado em sua luta
contra as formas de hierarquia entre homem e mulher, no entendimento
da condição de mulher como construção social, no reconhecimento das
mulheres como grupo social oprimido e pela libertação desta condição.
Amorim (2013) e Basaglia (2017) citam as contribuições de Adrienne
Rich, Monique Wittig, Gayle Rubin, Judith Butler, Cheryl Clarke, Audre
Lorde, Tania Navarro-Swain entre outras para compor a compreensão de
haver, para as lésbicas, conflitos de difícil superação devido à naturalização
da heterossexualidade e com ela a manutenção de expectativas, normas
e obrigações sociais que nem mesmo a mudança jurídica conseguiria eli-
minar. A maternidade lésbica e as famílias conformadas por casais de mu-
lheres engendram problematizações e mudanças que comportam desafios,
tanto ao status quo quanto às suas próprias existências. Como em qualquer
projeto familiar, a possibilidade de procriar implica ‘conceber’ também o
início de uma família. E quando ela é conformada por duas mães, os desa-
fios são singulares.

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Costumo chamar de ‘tripé de análise’, a conformação do reconhecimen-


to de si enquanto mulher, lésbica e mãe, para ilustrar a que é referido o ter-
mo/objeto de estudo maternidade lésbica. Esta interseccionalidade envolve
as desigualdades de gênero, as discriminações quanto as orientações sexuais
divergentes da heteronormatividade e os desafios da maternidade nesta in-
terseção. Desta forma, a maternidade poderia ser, ao mesmo tempo, reivin-
dicatória por direitos e uma fonte de opressão, dentre outras possibilidades.
O corpus analisado aponta, através das entrevistas realizadas por suas
pesquisadoras: narrativas familiares que versam sobre as dificuldades que
mulheres lésbicas com filhas(os) encontram por não conseguirem a pro-
teção legal e jurídica de sua união afetiva (Souza, 2005; Silva, 2008); a
relevância do acesso ao casamento atribuída por estas famílias, após regu-
lamentação do CNJ e da decisão do STF (Cunha, 2017; Basaglia, 2017); a
majoritária tendência ao rompimento com a tradicional divisão sexual do
trabalho, sinalizando que casais de mulheres com filhos(as) conciliavam
o cuidado da casa e dos filhos(as) com o trabalho remunerado. Além disto
percebeu-se, na maioria das pesquisas analisadas, que ambas as parceiras
eram consideradas mães pelos(as) filhos(as) a despeito do laço biológico,
ou seja, que existiam laços de parentesco para além da biologia (Zauli,
2011). Mesmo considerando que tais conquistas não coloquem um fim no
preconceito e na discriminação vividas por esses casais, elas traduziram um
passo importante em prol da igualdade.
Ainda assim, deve-se constatar que a entrada da homossexualidade
feminina na agenda política brasileira é algo relativamente recente. De
acordo com Facchini & Simões (2009) a entrada das demandas da lesbia-
nidade ocorreu somente na segunda metade da década de 1990. Souza
(2014) entende que as ações de saúde endereçadas a este público sejam
ainda embrionárias e atribui à ausência de políticas de saúde consistentes
o pouco conhecimento sobre as demandas dessa população. Para ela, a
falta de tecnologia de cuidado ajustada às demandas das mulheres lésbicas
está atrelada à persistência do preconceito e a escassa produção científica
brasileira sobre saúde lésbica.

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Sobre o preconceito, uma outra contribuição importante a ser men-


cionada para o exercício de sua compreensão, está na pesquisa de Souza
(2005), que trouxe à cena a questão da homofobia internalizada nas mu-
lheres-lésbicas-mães e o desdobramento disto na própria relação do casal,
e na sua relação com os(as) filhos(as). Entre os casais entrevistados por esta
pesquisadora, pôde-se perceber timidez na expressão do afeto conjugal na
presença dos(as) filhos(as) e constantes negociações entre mostrar ou es-
conder o tipo de configuração familiar que se vivia, para quem e em quais
circunstâncias.
As histórias de vida narram uma visibilidade negociada, que as afasta
do dualismo ‘fora versus dentro’ do armário e as aproxima de uma ética
de cuidado de si, em que o casal julga onde, como e para quem desejam
expor sua intimidade. As entrevistadas acionam o direito à invisibilidade,
que para Amorim (2013) não representa necessariamente um ‘retorno ao
armário’, mas um deslocamento da identidade fixada à orientação sexual
do casal. Ao mesmo tempo percebe que o casamento ocupa um lugar sim-
bólico na vida destes casais, como forma de tornar pública sua conjugali-
dade e sua unidade familiar.
A mídia, ao trazer as entrevistas e reportagens sobre estas famílias para
os grandes veículos de comunicação, informa e colabora com um processo
de transformação e de ressignificação cultural e social em prol do reco-
nhecimento de outras formas de concepção. As diversas relações conju-
gais e formas de filiação que passam a ser representadas contribuem para a
desnaturalização da base biológica do parentesco. Estas novas concepções
sociais dão inteligibilidade ao casal lésbico enquanto relação conjugal,
constituidora de família e envolvem também concepções de si, como par-
te da autoaceitação da própria homossexualidade. Neste sentido, o verbo
conceber refere-se tanto ao ato de conceber vidas, embriões, bebês (como
através das NTR), como também de se reconhecer como lésbica e formar
um casal, desejar se tornar mãe e formar uma família.
A partir do que já foi dito, caberia alguma reflexão sobre as várias per-
guntas que comparecem: como compreender a maternidade sem o olhar

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maniqueísta que a sentencia como boa ou má, libertária ou submissa, fa-


vorável ou contrária ao feminismo? É possível vivenciá-la com liberdade
ou ela estará sempre fadada à exploração do patriarcado? Que mudanças
o exercício atual da maternidade por mulheres lésbicas traz aos conceitos
de maternidade? Em que medida a gravidez vivenciada pelas mulheres lés-
bicas difere em relação às demais mulheres? Quais diferenças e negocia-
ções são envolvidas com relação à família extensa em termos econômicos,
sociais e afetivos? Como pensar a maternidade saindo dos binarismos cis/
hetero e homem/mulher? A maternidade estaria pautada no que Butler
(2003) chama de matriz heterossexual? Dessa forma, as maternidades lés-
bicas indicariam uma ressignificação desta matriz? Quais mudanças a ma-
ternidade lésbica traz a respeito das identidades lésbicas e sua visibilidade
social?

3.3 Somos família, parindo a adoção


A adoção é uma das formas pelas quais casais de mulheres realizam o
desejo de ter filhas(os), mas também tem sido utilizada como estratégia
para legalizar o laço sócioafetivo da mãe não biológica em caso de RA,
chamada de adoção unilateral (Pontes, 2011). Esta medida também é to-
mada por famílias recompostas quando a criança é fruto de relacionamen-
to anterior ou mesmo em casos de inseminação caseira.
Ainda que saibamos, por pesquisas realizadas no Brasil, que a incidên-
cia de adoção é maior nos casais homossexuais masculinos (Tarnovski,
2004), enquanto nos casais de mulheres há uma prevalência pelas NTR
(Uziel, 2002), há inúmeros relatos de adoção nos trabalhos que compuse-
ram esta revisão. A adoção é compreendida na pesquisa de Lira (2012), por
exemplo, como um projeto em construção apoiado pela abertura afetiva
destas mulheres em cuidar e amar, uma vez que “neste arranjo familiar, o
vínculo biológico entre o(s) pai(s) e filhos não existe, sendo a disponibili-
dade afetiva e prática da vida cotidiana que rege a parentalidade” (LIRA,
2012, p.102). Lira percebeu que o modo como cada uma de suas entrevis-
tadas descreveu a experiência de ser mãe (adotiva) ganhou significado de

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acordo com suas vivências singulares e historicamente situadas, ou seja,


questões ideológicas perpassam o projeto de ser mãe e colaboram na cons-
trução desta subjetividade. Em dois trechos citados, encontramos alguns
dos sentidos e valores que elas atribuem ao ‘ser mãe’:

Pra mim, adotar um filho passa por uma questão de idealismo exacerbado.
Eu tenho muita fé, cada dia mais eu tenho certeza que nós somos seres
espirituais. Com a experiência humana, nada que começou encerra aqui.
Então, pra mim, eu sabia que se viesse do meu ventre ou vindo por adoção
seria o mesmo espírito. Então, se eu tenho esse sustentáculo espiritual, se
eu tenho essa convicção, por que é que eu vou querer gerar um filho? Que
egoísmo é esse se tem tantas crianças sem lar e eu posso ser essa família
para essa criança? Esse é o meu sentimento, a minha fé na solidariedade
universal (Joana) (LIRA, 2012, p.103)

Esse exatamente é este o ponto, eu quero adotar porque eu quero me ver


na criança. (...) Ele vai se identificar comigo e com a Joana pelos atos
dele, pelas palavras dele, pelo homem que ele vai se tornar, e não porque
ele tem rosto redondo, ou rosto comprido, se ele é alto ou se ele é baixo.
(Maria) (LIRA, 2012, p.104)

Vemos que ‘Maria’ parece desnaturalizar o lugar central da biologia, e


se refere a uma identificação com o filho que não é concebida no registro
do formato do rosto ou outras características corporais, mas sim a partir dos
valores que ela ensinará. São outros traços, não biológicos, que são gesta-
dos, concebidos e criados através da adoção.
Outra coisa interessantíssima que a gente optou pela adoção é: eu podia
ter um filho, ir num banco de sêmen e engravidar. E aí, eu geraria aquela
criança. E de alguma forma, eu estaria mais próxima da criança do que a
minha companheira. Se acontecesse com a Joana, seria da mesma forma.
Aí se cogitou: então eu engravido do óvulo da Joana, aí as duas tão partici-
pando, ou o contrário. Aí a gente disse: mas por que fazer isso se tem tanta

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criança que precisa de um lar, que precisa de amor, e a gente pode adotar
uma criança? E em adotando, nós estamos exatamente na mesma propor-
ção (...). E não tem discussão: eu sou mãe cem por cento; ela é mãe cem
por cento. Acho que isso fez alguma diferença – tanto o fato de ter muita
criança que precisa, né, como o fato da gente estar exatamente na mesma
proporção nessa missão. Perfeito!” (Maria) (LIRA, 2012, p.105)
A motivação em prol da adoção, como descrita por Maria no trecho
acima, ao mesmo tempo que promove aberturas para a inteligibilidade de
outros formatos de vínculo, enfatiza a o vínculo biológico como prevalente
ao afetivo. Ou seja, adotando, ambas se veriam na mesma proporção, e
não em desigualdade por uma possuir o biológico e a outra não. O peso
que o vínculo biológico demonstra possuir, nos laços de parentesco na cul-
tura ocidental, parece ser um desafio para as famílias homoparentais na
tentativa de equivaler a parentalidade
A preeminência da filiação biológica e a possibilidade de que o filho
não possa ser reconhecido juridicamente por ambas as mães, trouxe in-
segurança para Patrícia, que vislumbrou a gravidez de sua mulher com o
material genético de seu irmão, como estratégia para que seu filho perma-
necesse na família.

Ter uma companheira que tinha um filho biológico, e como era que eu
iria ficar nessa história, como é que ia criar essa criança? Não tinha le-
gislação nenhuma naquele momento que protegesse e aquela criatura ia
dizer: não, a mãe sou eu. E eu ia ser o que? Não ia ser nada, né? (Patrícia)
(LIRA, 2012, p.114).

Há, portanto, uma lacuna que permeia a vida de centenas de mulheres


que não puderam registrar seus filhos conjuntamente ou unilateralmente
para a legalização do laço materno de ambas as mães ou da mãe não bio-
lógica. Silva (2013) aborda sobre como casais de mulheres que desejam
ser mães a partir do acesso às NTR se relacionam com a maternidade e
utilizam a adoção unilateral como recurso para legalização do vínculo da

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criança com a mãe biológica. Silva entrevistou cinco casais que se torna-
ram mães conjuntamente a partir do acesso à NTR. Para algumas a adoção
era pensada como possibilidade, para outras nunca foi uma opção, den-
tre as razões identificadas, apontaram a “vontade de gerar”, “a dificulda-
de de adoção em nosso país” e “o receio de terem seus pedidos negados
devido às suas sexualidades” para escolherem a RA. Foi pontuado que “a
verdade ainda parece estar arraigada na biologia, no que é comprovável”,
estimulando “a crença de que seus filhos [biológicos] teriam maior aceita-
ção em sua família de origem” em comparação aos adotivos (SILVA, 2013,
p.36 e 39).
Nota-se que até para os casais que optaram pela RA, a adoção, pelo
menos para uma das mães, no caso a que não gestou, precisa ser admitida
e conquistada. Compreende-se que, “assim como a adoção só pode ser
pleiteada por um dos parceiros, a fecundação in vitro também só possibili-
ta que uma só pessoa gere o filho e com isso apenas um dos pares assuma
legalmente as funções parentais da criança” (LIRA, 2012, p.57).
Na pesquisa de Corrêa (2012) vemos especificidades entre as mulheres
lésbicas e mães e suas formas de construir sua cidadania íntima dentro de
um contexto heteronormativo de sociedade brasileira. Corrêa entrevistou
doze mulheres, dentre elas, duas que lançavam um outro olhar para o ter-
mo adoção ao se referir ao uso das NTR. Adriana explica: “Mas a gente
brinca que pra quem queria adotar, isso na verdade é uma adoção, né? É
uma meia adoção. Metade dela é adotada. A gente não tem informação
nenhuma. Você adota o doador de uma certa maneira” (CORRÊA, 2012,
p. 131).
Por estas pesquisas, nota-se que, ainda que se admitam outros elos, a
concepção de laços de parentesco apresenta desafios específicos para ca-
sais de mulheres que desejam ter filhos conjuntamente. Parte deste desafio
se dá pela primazia endereçada ao biológico na comprovação e legitima-
ção da parentalidade, gerando insegurança e desconfiança na mãe que
não os detém e que não terá sua linhagem genética preservada.

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3.4 Visibilidade e Resistência na Reprodução Assistida (RA)


Entendendo a visibilidade lésbica como resistência, houve em 2015 e
2016 conquistas pontuais para as maternidades lésbicas. Em 2015 a norma
ética nº 2.121 estabelecida pelo Conselho Federal de Medicina (CFM)
regulamentou com exatidão as condutas dos profissionais em relação à Re-
produção Assistida (RA) e, em 2016, a resolução nº 52 do Conselho Na-
cional de Justiça (CNJ) dispôs sobre o registro de nascimento e a emissão
da certidão de filhas nascidas por RA (Basaglia, 2017). Estes instrumentos,
resultado de consensos no campo da medicina reprodutiva em resposta à
demanda de usuárias e ao interesse da própria corporação médica, impe-
dem que juízes, profissionais da saúde e cartórios, decidam arbitrariamen-
te sobre a maternidade lésbica na ausência de uma legislação.
Para Corrêa (2012), do vasto repertório de estratégias e recursos que as
mulheres lésbicas mobilizam para viver em uma sociedade heterossexista,
a maternidade lésbica tem sido um fato que aumentou a visibilidade públi-
ca da temática, tanto na academia como na esfera política, sobretudo com
relação à Saúde. Este campo é chave no caminho para que seus direitos
e necessidades sejam respeitados. Quando um casal heterossexual busca
a adoção não é rara a suposição de isso se dever à infertilidade do casal.
Entretanto quando um casal do mesmo sexo recorre à adoção, sobressai
sua condição não-procriadora. Nesse sentido, as NTR revolucionaram as
formas de conceber, gestar, parir e criar de casais do mesmo sexo.
As técnicas de RA servem para intervir nos casos em que, devido a di-
versas restrições orgânicas, não é possível gerar embriões (Corrêa, 2005).
As Resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM) nº 1957/10 e nº
2013/13, que visam padronizar os procedimentos da reprodução humana
assistida, incluíram o acesso aos casais de mesmo sexo. Isto possibilitou
que as mulheres lésbicas pudessem

Chamar para si um direito que lhes foi negado devido à orientação homos-
sexual que as tornavam estéreis e, em certa medida, as pintavam, diante do
senso comum, menos mulheres (...). Eis que estas mulheres contornam

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a impossibilidade de reprodução devido à simetria do aparato sexual, se


apropriando de recursos providenciados pela medicina para atender a ou-
tra população. Com isso, penso que as lésbicas não só transgrediram a or-
dem reprodutiva heterossexual, como se utilizam da maternidade para sair
da inferioridade que o estigma de ser homossexual lhes atribuiu. (AIRES,
2012, p.96).

Algumas pesquisas analisaram os desafios éticos presentes na busca da


parentalidade por casais do mesmo sexo via NTR (Corrêa, 2012; Amorim,
2013; Silva, 2013). A mobilização dos casais para legalizarem suas famílias
junto aos(às) filhos(as) permitiu superar lacunas legislativas através do judi-
ciário, antes das técnicas serem reguladas pelo CFM. Entretanto, os avan-
ços biotecnológicos produzem dilemas na própria construção de laços de
parentesco. A (re)naturalização do fisiológico implicada nesse processo dá
destaque para novas questões relativas à saúde trazidas pela maternidade
lésbica. Entre elas, a discriminação sofrida e o corte de classe introduzido
pela falta de acesso à RA no âmbito do SUS.
As NTR contribuíram para ratificar o paradigma biológico em que o
imaginário em torno da maternidade está pautado (Amorim, 2013). Como
uma boa estratégia, na técnica da ROPA (Recepção de Óvulo da parceira)
têm-se o simbolismo da fertilização do óvulo com a participação da mãe
que não irá receber o embrião, ou seja, a biologia é manipulada de modo
a admitir a dupla maternidade. Essas particularidades podem promover “o
artesanato fino das relações familiares e dos múltiplos arranjos simbólicos
que este grupo faz da biologia, que permite à mãe não biológica existir
de forma importante dentro destas famílias homoparentais”. (AMORIM,
2013, p.133). Tratar-se-ia de um modelo essencializado de reprodução
humana, que remodela seus princípios básicos via laboratório? Não ha-
veria outras maneiras da mãe (não-biológica) existir, ou sentir-se existindo
como mãe?
Amorim (2013) questiona se as mulheres lésbicas, ao buscarem as
técnicas de RA para terem filhas, estariam regendo suas vidas a partir do

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imperativo atribuído à mulher heterossexual em relação à maternidade. E


de que forma as duas linhagens femininas mudariam ou não o sistema de
parentesco no Brasil. Fonseca (2008) já havia indagado se, ao recorrerem
à reprodução biogenética, os casais de lésbicas estariam reforçando nor-
mas hegemônicas. Cita quatro autoras que exploraram o tema em outros
países: para Caroline Jones, tal recurso ilustra uma reconfiguração dos la-
ços biogenéticos; Charis Thompson enfatiza que são as categorias sociais
que dão sentido aos genes; Marilyn Strathern afirma a relevância desses
casais para a mudança das noções sobre família e parentesco; e Kath Wes-
ton argumenta que as famílias LGBTs não poderiam ser enquadradas nem
como mera adaptação à norma dominante, nem como uma revolução,
mas como um processo complexo que exige analisar os efeitos das dife-
rentes ideologias e disputas políticas na vida das pessoas. (Fonseca, 2008,
p.775-76).
Pode-se perceber o peso do imperativo da maternidade, mesmo para
as lésbicas. Entretanto, a forma como elas concebem o projeto de filiação
conjunta, desloca a maternidade do campo da heteronorma, mesmo que
sejam influenciadas por uma regência de maternidade compulsória. Ter
duas mães reconhecidas legalmente perante o direito contribui para a des-
naturalização não apenas da maternidade única – vide o dito popular “mãe
a gente só tem uma” –, como estabelece um novo modelo de parentesco
embasado em duas linhagens maternas e não mais uma materna e outra
paterna. Porém, percebe que a busca pela continuação da linhagem pela
filiação segue como um elemento definidor de família e não apenas a con-
jugalidade. (Amorim, 2013, p. 132).
Portanto, as NTR introduzem algumas especificidades à maternida-
de lésbica. E essa associação reacende o debate em torno do estatuto da
maternidade, da sexualidade e do gênero. Adicionalmente, a negociação
realizada entre as mães na definição de quem gestará, com quais óvulos e
sêmen e quais recursos financeiros amplia a compreensão das diferenças
envolvidas nas diferentes possibilidades em conceber, gestar, parir e criar
filhas. Tal ampliação se produz a partir de mudanças médico-tecnológicas

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e político-jurídicas, que se somam à maior visibilidade das mulheres que


se assumem lésbicas e que, ao decidirem relacionar sua homossexualidade
com a maternidade, contribuem para que as necessidades específicas deste
grupo sejam ouvidas. (Lucio, 2016, p.43).
As pesquisas sobre maternidades lésbicas realizadas no Brasil no início
dos anos 2000 apresentavam histórias de casais de mulheres que tinham
tido filhos via casamentos heterossexuais anteriores, adoção, ou como “pro-
dução independente” de uma das mulheres do casal, dentre outras compo-
sições. Nas pesquisas mais recentes, especialmente a dos últimos dez anos,
o uso da RA comparece invariavelmente como acesso à maternidade. En-
tretanto, ainda que as NTR possibilitem que ambas as mães participem da
concepção (por meio da ROPA por exemplo), tendo na biologia a orien-
tação da filiação (ambas amamentando por exemplo), somente uma das
mães possuirá ligação genética, carnal, ou simétrica com a criança. Ainda
que as construções simbólicas da maternidade não se restringiriam sobre
a genética, caberia pesquisar como as mães lésbicas lidam, entre si e no
exercício parental conjunto, por um lado com a desigual distribuição da
vivência da gestação e parto e, por outro, com peso simbólico da genética
após a chegada da criança. Haveria hierarquias ou competição sobre quem
é “mais mãe”?

3.4.1 ROPA (Reception of Oocytes from Partner/Recepção de


Óvulos da Parceira)
Ao iniciar o processo de RA em uma clínica, o corpo da mulher é sub-
metido a uma série de checagens, como exames de sangue, medição das
taxas hormonais, visualização do aparelho reprodutor via ultrassonografia
e outros procedimentos que os profissionais de saúde julguem necessário
nesta investigação. A partir das informações colhidas, o médico traça um
cronograma de técnicas que serão realizadas, a partir do momento ideal
eleito para que se inicie o processo de indução da produção de óvulos.
Estes, após produzidos, são monitorados para que alcancem o tamanho
ideal para coleta. Os ovócitos ou óvulos poderão ser fertilizados ainda no

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corpo da mulher ou serem coletados. Se colhidos, podem ser: (i) congela-


dos; (ii) fertilizados e congelados; ou (iii) fertilizados e implantados no úte-
ro da companheira, o que é chamado de Recepção do Óvulo da Parceira
(ROPA).
Pontes (2011) e Amorim (2013) identificaram a ROPA como a técnica
preferida pelos casais de mulheres lésbicas, dentre todas as NTR existentes.
O procedimento permite ambas as mulheres se sentirem participando da
concepção de uma vida. Seus corpos passam por estimulação hormonal
via injeções diárias e ingestão de comprimidos em doses calculadas sob
medida para elas. O corpo de uma das mães é manipulado de forma a
produzir o máximo de óvulos que for possível e o outro é preparado para o
recebimento do embrião, todas estas etapas são conduzidas por profissio-
nais de saúde e monitoradas.
A motivação para a utilização deste recurso é encontrada na dupla par-
ticipação das mães e de uma suposta aderência ao valor sociocultural da
filiação genética e da gestação uterina: uma mãe fornece a herança gené-
tica e a outra a barriga e o sangue. Isto pode sanar impasses legais quanto à
filiação biológica, que poderia deixar a outra mãe em evidente situação de
desproteção, ou dissolver a exclusividade de uma única mãe legítima, isto
porque ambas coparticipariam na concepção da vida: uma literalmente
pariu a criança e a outra forneceu o DNA. O método ROPA ganhou des-
taque por possibilitar a participação das duas no processo de concepção.
Esta técnica, apesar de onerosa e fisicamente desgastante, permitiu como
uma estratégia (assim como a de inventar sobrenomes) incluir ambas as
mães. Apesar de reproduzir a primazia do biológico através do reconhe-
cimento familiar a partir do genético e corporal (como já mencionado),
lançando mão desta estratégia, a legitimidade das mães é automaticamen-
te aceita.
As clínicas de RA emitem documento reconhecendo ambas como
mães e progenitoras, ratificando a primazia do empreendimento biotec-
nológico, o que gerou impasses e promoveu avanços no entendimento da
lei brasileira, que reconhecia como mãe exclusivamente quem paria. Pelo

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método da ROPA, entretanto, o sistema legal foi forçosamente levado a


confirmar a maternidade também pelo DNA. Ou seja, eventualmente a
mãe genética pode ter de provar que é mãe por meio exame de DNA (Sou-
za, 2014), enquanto a mãe uterina, que é reconhecida a partir da gestação
e do parto, pode não estar geneticamente ligada à filha.
A preferência pela técnica da ROPA, dentre outras razões, é justificada
da seguinte forma por mulheres entrevistadas por Souza (2014):

Porque se você casa com um homem, você quer ter um filho com ele,
não com o seu vizinho. Você quer ter um filho do homem que você ama.
Então nada mais natural do que você querer gerar um filho da pessoa que
você ama. E aí, as pessoas não entendem. Falam: ‘porque se você gera com
o seu próprio óvulo não vai ser filho dela? Vai assim como numa adoção o
filho também é seu. Você adota e é seu’. Mas, é diferente você saber que
aquela criança vai nascer com as características da pessoa que você ama e
é você que está gerando (...) Porque é uma coisa que os héteros têm direito
e a gente também quer ter. Gerar um filho da pessoa que a gente ama (...)
A maior alegria é saber que está gerando um filho da pessoa que você ama,
que não é só seu, é um filho dela. Acho que isso é que faz e deu aquele
impulso na gente. (Clarice, entrevista, contando o motivo em utilizar a
ROPA). (SOUZA, 2014, p.153)

Pensando que fisicamente, nesse lance de um filho do nosso relaciona-


mento, fruto do nosso relacionamento, então a gente abraçou essa ideia. A
minha mãe: ‘Por quê? Por que você vai colocar o seu óvulo nela? Por que
não fazem inseminação?’ Eu falei para ela: mãe se o papai não pudesse,
você ia querer sêmen do vizinho? E ela: ‘claro que não, né!’. Eu tenho
uma oportunidade de engravidar a mulher que eu amo, é um direito nos-
so, é um direito nosso, por que que não querer ter um filho que é meu
e dela? Por que vamos inseminar? (Dulce, esposa de Clarice). (SOUZA,
2014, p.153)

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Esta biotecnologia cria uma ligação que é gestacional e outra que é


genética entre a criança e as mães, configurando uma situação em que a
geração dessa vida foi realizada a partir delas (mães), simulando a produ-
ção heterossexual. Porém, o embrião é formado a partir do material gené-
tico de apenas uma delas. David Le Breton (2011) chama atenção para
o alargamento das formas de se conceber vidas, que coexistirão com as
formas tradicionais. A ROPA já é uma realidade na vida de centenas de
mulheres lésbicas como extensão das oportunidades de serem mães. As-
sim, novas questões que são trazidas para os estudos de parentesco, família
e maternidade pela demonstração da não fixidez dos papeis reprodutivos e
de uma não correspondência entre sexo, gênero e reprodução, viabilizada
pelas NTR.

3.4.2 Medicina e Mercado


Em geral o discurso médico colabora na preferência do uso das NTR
em detrimento à adoção pelas mulheres lésbicas, ao categorizá-lo com um
método biotecnológico simples. Além disto, corrobora com um ciclo de
mercado das NTRs alicerçado em uma lógica de consumo que constrói
o processo em termos de “demanda” dos casais de mulheres e “oferta” de
serviços médicos em clínicas privadas de RA. As NTR estariam disponíveis
aos casais não-procriativos da mesma forma que estão para os casais hete-
rossexuais inférteis. Há, não obstante, um debate sobre se o acesso a esses
serviços deveria ou não ser considerado como “necessidade” no âmbito da
saúde, uma vez que estes casais, diferentemente dos heterossexuais infér-
teis, apresentariam boa funcionalidade do seu aparelho reprodutor e sua
condição “não-procriativa” derivaria “apenas” da sua conformação conju-
gal. Diante dessa objeção, as autoras levantam o fato da maternidade entre
mulheres lésbicas fazer parte de um projeto de felicidade e que a realiza-
ção deste produza saúde (concebida como estado de bem-estar bio-psico-
-social) (Souza, 2014, p.29).
Um outro ponto trazido por algumas autoras (Corrêa, 2012; Souza,
2014; Basaglia, 2017) diz respeito a um “movimento de medicalização do

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corpo feminino e da reprodução”, no qual “as tecnologias de reprodução


assistida vêm sendo naturalizadas, como se elas apenas ‘dessem uma mão
para a natureza’”, corrigindo a infertilidade à medida que o avanço tecno-
lógico de tratamentos ocorra, naturalizando a tecnologia e sua “aceitação
pública”. (SOUZA, 2014, p.47). Dentre outras definições, pode-se chamar
medicalização o processo pelo qual um conjunto de problemas concebi-
dos na seara médica impactam a forma como as pessoas experienciam o
mundo. Seria a Medicina detendo em suas mãos o poder de estabelecer
os critérios de utilização de NTR, de garantir a compatibilidade fenotípica
entre o material genético doado e o casal que busca o serviço. Uma vez
que, entre as normas do CFM que regulam a RA, há a obrigatoriedade,
quanto ao uso de material genético anônimo, deste conter e se aproximar
das características étnicas do casal que procura os procedimentos. Não há,
fundamento biomédico para este requisito, uma vez que casais dos mais
variados grupos étnicos podem e de fato se reproduzem. A regra demons-
tra, em câmbio, a sensibilidade a outras variáveis sociais e valores culturais,
por vezes implícitos nas regulações tanto médicas quanto jurídicas e tec-
nomédicas dos procedimentos, apontando uma superioridade do biológico
que se desdobra na priorização do traço genético como verdadeiro [em
detrimento] dos laços sociais [considerados] mais frágeis.
Correa (2012) sinaliza a relação da inovação biotecnológica na medicina,
do crescente número de equipamentos médicos e do maior consumo de as-
sistência médica com o processo de medicalização que teve início no século
XVIII com a medicalização das famílias pelos Estados Modernos. Com rela-
ção à mulher, no século XIX a ginecologia se estabelece como especialidade
encarregada da manipulação do corpo feminino, da reprodução e do parto.
No século XX institui-se a observação médica durante a gestação sob o nome
de cuidado pré-natal. Posteriormente, a medicina da reprodução se desvenci-
lhou da ginecologia e da urologia para transformar o casal infértil em paciente.
As inovações tecnológicas possibilitaram a manipulação médica da reprodu-
ção através de técnicas da indução hormonal, a reserva em bancos de material
reprodutivo, a fertilização in-vitro e a implantação de óvulos e embriões.

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A higiene do ambiente nas clínicas de RA serve como metáfora da imu-


nidade ética e moral à crítica de práticas que, se por um lado acolhem e
resolvem parte da demanda de mulheres lésbicas, por outro estimulam a
produção destas demandas, cujo acesso é economicamente restrito. Além
da alta complexidade dos procedimentos e da pouca divulgação dos seus
riscos (como a síndrome de hiperestímulo ovariano, o crescimento dos
ovários e derramamento de líquido para a cavidade abdominal) seu custo
é proibitivo: de quinze a vinte mil reais por ciclo, em média, sem garan-
tia de resultados. Além disso, nesse contexto outras tensões emocionais e
psicológicas se fazem presentes (ainda que não sejam consideradas) e não
são acolhidas, muitas vezes servindo inclusive como estímulo para novas
demandas de consumo (Souza, 2014, p.46). A busca pela efetivação do
desejo pela maternidade via NTR faz parte de um processo mais amplo,
que não se limita ao que comparece no consultório e no laboratório, mas
que diz respeito a fenômenos e condições sociais, culturais, econômicas e
históricas. Além da sua dimensão moral, as NTR colocam em destaque a
dimensão mercadológica da medicalização da sociedade.

3.5 Saúde: do preconceito e discriminação à visibilidade lésbica


A entrada da homossexualidade feminina na agenda política brasileira
é algo relativamente recente. De acordo com Facchini & Simões (2009)
ocorre somente na segunda metade da década de 1990. Entretanto, ainda
que as ações de saúde endereçadas a este público sejam embrionárias e
que a ausência de políticas de saúde consistentes colaborem com o pouco
conhecimento sobre as demandas dessa população, é na persistência do
preconceito e na escassa produção científica brasileira sobre saúde lésbica
que Souza (2014) encontra as justificativas para a falta de tecnologia de
cuidado ajustada a estas demandas.
Quanto as ações de saúde para a mulher, a Rede Feminista de Saúde
lançou em 2006 um dossiê que descreve as necessidade e dificuldades re-
latadas pelas lésbicas quando acionam o serviço de saúde em busca de um
atendimento especializado envolvendo aparelho reprodutor feminino e

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mamas. Foi apontado que a chegada até os serviços de saúde por estas mu-
lheres é dificultado pela falta de informação e sensibilidade do profissional
no atendimento, pelo preconceito devido à orientação sexual, pela difi-
culdade em assumir-se lésbica ou bissexual frente à heteronormatividade
compulsória, pela negação do risco e pelo despreparo em relação às DSTs
das mulheres lésbicas. Além disso, este dossiê aponta para um nível mais
elevado de sofrimento psíquico em decorrência das relações com a família,
trabalho e lugares públicos, do que em relação às mulheres heterossexuais
(Barbosa & Facchini, 2006).
O preconceito nas instituições de saúde em particular, devido à orien-
tação sexual, comparece em todos os resultados das pesquisas analisadas.
Lucio (2016) constatou um padrão de atendimento nos serviços de saúde
que seguia o modelo da heterossexualidade, impactando negativamente as
usuárias de diferente orientação sexual, produzindo experiências negativas
naquelas que acionavam o serviço. Elucidou-se uma presunção da heteros-
sexualidade por parte dos profissionais de saúde, notada nos formulários a
serem preenchidos e nas indagações durante o atendimento médico. De
acordo com sua avaliação, faltaria qualificação em matéria de diversidade
sexual, em decorrência disto, os serviços de saúde endereçados às mulhe-
res lésbicas seriam precários. Um dos efeitos disto seria a falta de acesso à
RA por parte das usuárias de serviços de saúde pública.
As alternativas para mudança deste cenário estariam aflorando, segun-
do Lucio (2016), a partir do campo das políticas públicas de saúde, como
a Política Nacional de Saúde Integral às Lésbicas, Gays, Bissexuais, Traves-
tis e Transexuais de 2010, que na prática atuam na visibilização das espe-
cificidades de cada nicho. Tal Política está fundamentada nos princípios
assegurados da Constituição Federal (1988), que defendem e garantem a
cidadania e dignidade da pessoa humana “sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (Brasil,
1988, art. 3.º, inc. IV), e nos princípios constitucionais do Sistema Único
de Saúde (SUS), que afirmam o acesso aos serviços de saúde para toda a
população, sem preconceitos ou privilégios.

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Entretanto, a discriminação pela orientação sexual incide como de-


terminante social da saúde, através da invisibilização, do sofrimento e do
adoecimento dessas mulheres. Ainda considerando que existam esforços
para a promoção da saúde da população LGBT e a diminuição das desi-
gualdades no acesso à saúde, mais especificamente das lésbicas, é neces-
sário fazer evidentes as sucessivas invisibilizações vividas por elas nos ser-
viços, que deflagram a reprodução do preconceito e a atualização de uma
violência estrutural que perpetua a desigualdade. Portanto, os dissabores
que mães lésbicas experimentam na interação com as instituições na área
da saúde, geram efeitos contrários aos fins da Saúde Pública.
A obstrução ao acesso à saúde facilita a doença física, psíquica, emocio-
nal, promove baixa autoestima, insegurança, medo e vergonha, além de
impossibilitar o reconhecimento social dos grupos excluídos e estigmatiza-
dos (Noda, 2005; Lucio, 2016). Duas entrevistadas de Lucio (2016) fazem
o seguinte depoimento quanto aos critérios do SUS para o aceso à RA:

Hoje em dia quero ter outro filho, eu e minha companheira estamos estu-
dando como faremos, pois a inseminação artificial é muito cara, não temos
dinheiro, pelo SUS se exige uma série de critérios que não nos enquadra-
mos (...) Talvez, faremos pelo método tradicional com um amigo nosso,
mas é complicado para ela aceitar eu com outra pessoa (...) Mesmo com
todos os avanços tecnológicos da saúde, eles não chegam até nós, casais
homossexuais. (Entrevista 02) (Lúcio, 2016, p.62).

O processo de maternidade não foi algo fácil antes de eu conseguir reali-


zares se meu desejo, eu passei por diversos processos difíceis e dolorosos
até eu chegar a conceber minha filha. As políticas públicas existentes no
nosso país, na maioria das vezes, só funcionam no papel porque na reali-
dade é cheia de percalços, eu e minha parceira enfrentamos e ainda conti-
nuamos enfrentando rejeição por sermos lésbicas. (Entrevista 06) (Lúcio,
2016, p.62).

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Basaglia (2017) ilustra um outro tipo de interdição, a que mulheres lés-


bicas enfrentam no atendimento ginecológico:

Ser lésbica é um caminho ao longo do qual experimenta-se o isolamento,


a invisibilidade, a não-aceitação por parte de família, de amigas, amigos e
colegas de trabalho. Experimenta-se também o preconceito no sistema de
saúde, especificamente no atendimento de ginecologistas, pelo moralismo
e falta de capacitação profissional, do que decorre um expressivo número
de lésbicas que não vão regularmente ao ginecologista porque sempre que
têm a coragem de dizer que se relacionam e/ou transam com mulheres,
seguram o fôlego em preparação para o estranhamento e o momento de
silêncio que geralmente seguem. (BASAGLIA, 2017, p.116).

O pensamento feminista pode ser um aliado às políticas de saúde da


mulher, sobretudo a lésbica, uma vez que ao fazer ouvir as vozes que
são silenciadas pela cultura machista e heterosexista, podem efetivar um
diálogo capaz de incluir demandas específicas das mulheres de diversas
orientações sexuais. A visibilidade lésbica tem se destacado no avanço do
movimento feminista. Se por um lado há a representação social da mulher
feminista com conotação pejorativa (Amorim, 2013, p. 67), como a que
‘não gosta de homens’, que ‘é mal-amada’, como estratégia de enfraquecer
as proposições libertárias do movimento, há por outro lado, em disputa,
um campo, construído por pensadoras como Cheryl Clarke, Audre Lorde,
Dorotea Gómez Grijalva, Tania Navarro-Swain, Jules Falquet, Adrienne
Rich, Monique Witting, dentre outras, que entendem o lesbianismo en-
quanto movimento político e a visibilidade lésbica enquanto um ato de
resistência.
O feminismo, em suas múltiplas definições e em momentos distintos,
colaborou na produção de rupturas com as imposições sociais que foram
naturalizadas, como: a ideia de que à mulher cabe a reprodução e a ma-
ternidade como única forma de realização; a negação do prazer sexual fe-
minino; o padrão de feminilidade bela, submissa e maternal; o binarismo

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sexual e de gênero; a exclusão das lésbicas desse modelo. (Cunha, 2017,


p. 41). Apesar das tensões e disputas, os encontros nacionais feministas da
década de 80 e 90 visibilizaram a presença de mulheres lésbicas. O movi-
mento lésbico, diferentemente do movimento homossexual das décadas
de 1970 e 1980, apresenta-se como identidade política e não sexual e criou
o conceito de ‘lesbianismo político’, para questionar o patriarcado e as ins-
tituições masculinas. Assim, a invisibilização das lésbicas, como forma de
repressão, seria motivada pelo fato delas representarem a transgressão a um
modo de vida até então tomado como obrigatório, que concerne ao direito
masculino de acesso às mulheres (Rich, 1993).

As lésbicas têm sido historicamente destituídas de sua existência política


através de sua “inclusão” como versão feminina da homossexualidade
masculina. Equacionar a existência lésbica com a homossexualidade mas-
culina, por serem as duas estigmatizadas, é o mesmo que apagar a reali-
dade feminina mais uma vez. Parte da história da existência lésbica está,
obviamente, a ser encontrada em contextos onde as próprias lésbicas, na
ausência de uma comunidade feminina coerente, têm compartilhado um
tipo de vida social e de causa comum com homens homossexuais. (RICH,
1993, p. 36-37)

Foi decidido na I Conferência Nacional GLBT de junho de 2008, via


decreto presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva e da Ministra Dilma
Roussef, que a sigla LGBT, com o “L” na frente do “G”, seria adotada
como forma de contribuir com a visibilidade lésbica e o combate à lesbo-
fobia. No mesmo ano, Silva (2008) apresenta em sua pesquisa uma estéti-
ca da homossexualidade feminina, um caminhar das conjugalidades entre
mulheres marcado historicamente pela exclusão e anonimato, através de
alguns romances de Cassandra Rios (1980), chama a atenção para uma
descrição estética que era imprópria às mulheres, como a usar cabelos cur-
tos, camisas e calças compridas ao invés dos vestidos, negando o que era
considerado próprio à feminilidade. Silva também nota que, “a ausência

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de recursos econômicos da mulher em geral e o caráter patriarcal da nossa


sociedade constituem a causa principal da invisibilidade lésbica” (SILVA,
2008, p.61-63).
Sobre esta invisibilidade, cito um trecho da ativista virtual Jéssica Ipó-
lito. A ativista, que se define como gorda e sapatão, criou um blog onde
compartilha textos sobre misoginia, invisibilidade lésbica, gordofobia,
a diferença entre homofobia e lesbofobia e outros temas relacionados à
violência.

Mulher lésbica é invisível. Ela não é legitimada, de nenhuma forma. Por-


que é mulher e porque é lésbica. Ninguém a reconhece; e quando há o
pseudo reconhecimento sempre vem atrelado à alguma desculpa precon-
ceituosa, machista e sexista. As vontades da mulher lésbica são cerceadas
de todas as formas e em todos os âmbitos. Então é preciso que haja um
entendimento das diferentes nomenclaturas dadas à tipos de violências di-
ferentes. Não podemos achar que tudo é a mesma coisa, pois não é. Dessa
forma só contribui-se para uma invisibilidade permanente da mulher lés-
bica. E não, nenhuma mulher lésbica tem que ser invisível! Nenhuma
mulher lésbica tem que ser alvo de objetificação por sua orientação sexual.
Elas existem. Eu, mulher, lésbica existo e não vou me calar diante das
colocações errôneas que fazem. (IPÓLITO, 2013, n.p.).

Considerações Finais
É um desafio eleger um rumo narrativo entre tantas possibilidades e
perguntas, da revisora-autora e das autoras, cujos trabalhos foram lidos, ob-
servados e costurados entre outros tantos, numa temática constituída por
atravessamentos de âmbitos políticos, sociais, legais, sexuais, econômicos
e de saúde. Parece não haver um momento de finalização da revisão a não
ser pelo tempo e espaço de um projeto, ou artigo, que é datado e restrito.
Neste tempo situado, foi realizada esta revisão, de teses e dissertações, so-
bre maternidade lésbica. A tentativa era a de não criar, a priori, roteiros
e hipóteses sobre o que encontraríamos nestes estudos, porém algumas

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indagações estiveram presentes desde o início das leituras: que mudanças


o exercício da maternidade por mulheres lésbicas traria aos conceitos de
maternidade atualmente vigentes? Que diferenças compareceriam e que
negociações seriam envolvidas na tessitura dos laços de família e de pa-
rentesco pelas mães lésbicas em termos biológicos, sociais e afetivos? Estas
famílias estariam sentenciadas a uma vida de preconceito e discriminação?
Dentre alguns dos achados, podemos dizer que a maternidade é atra-
vessada por fatores que contemplam incertezas e temores compartilhados
por mães heterossexuais, como o desejo e impossibilidade de realização da
gravidez devido ao “tempo do relógio biológico” ou o compromisso com
a criação de uma criança. Mas há também fatores que são direcionados
exclusivamente à configuração familiar de mulheres lésbicas, com ou sem
filhos(as), como os entraves morais para a adoção, a exposição da orien-
tação sexual que a maternidade conjunta provoca, o medo e as dúvidas
decorrentes do preconceito vivido intra e interpessoalmente. Constatamos
a existência de controvérsias em relação à aceitação social da maternida-
de lésbica. Há posicionamentos contrários à criação de uma criança por
uma família constituída por pessoas de mesmo sexo, ao mesmo tempo, há
o entendimento da maternidade como um direito e escolha da mulher.
Para as mulheres lésbicas a afirmação desta escolha e a conjugação deste
direito não estão dadas. Diferentemente das heterossexuais, as mulheres
lésbicas não são engravidadas por suas parceiras, sendo imprescindível o
planejamento e acordo de ambas no projeto de ter filhas(os), o que atra-
vessa negociações e tomada de decisões incomuns a casais heteros, como:
optar (ou não) por um ato heterossexual para esse fim, recorrer ao método
“caseiro de inseminação”, ou buscar recursos financeiros para custear o
atendimento de clínicas privadas de RA. Esta também é uma diferença
apontada nesta revisão, a maternidade lésbica enquanto projeto conjugal
monogâmico, é sempre planejada.
O fato de somente uma das mães estar inscrita na linhagem genética,
embora ambas demonstrem investimento afetivo no projeto da maternida-
de via NTR, pode, além de marcar uma hierarquia de direitos entre a mãe

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biológica e a outra em favor da primeira, indicar uma subversão da intensa


valorização da maternidade biológica como característica definidora da fe-
minilidade hegemônica na sociedade contemporânea. Tal deslocamento
pode sinalizar um processo de mudança na maior valoração do biológico
na constituição de laços de parentesco.
Notou-se que as subversões, ainda que ocorram – seja na ruptura com
a heteronormatividade a partir da conjugalidade lésbica ou no questiona-
mento da primazia do biológico sobre os laços afetivos quando decidem
adotar ou mesmo embarcar num projeto de RA –, não são conscientes
e propositais. O objetivo que buscam parece ser a concretização de um
projeto conjugal parental, mesmo que este ato produza efeitos que cha-
coalham os padrões tradicionais de família, os estudos indicam que as mu-
lheres lésbicas desejosas de filhas só querem mesmo que as suas vivências
enquanto mães lésbicas, situadas em contextos sociais, culturais e biográfi-
cos, sejam respeitadas e garantidas. Mais do que um ato político como ato
público, parece tratar-se de um ato de amor, quer dizer, um ato político da
esfera mais íntima.
Em síntese, percebemos um substantivo peso no apontamento das di-
ficuldades, faltas e desigualdades, que longe de serem vazias, são expres-
sivas da gama de violências e opressões vividas por esta população em seu
cotidiano. A forma como essas mulheres lidam com essas dificuldades e
reinventam a si e a maternidade, demonstra um campo de estudo e análise
potente. Uma vez que estas mulheres resistem e criam linhas alternativas
para seus modos de vida, enriqueceria conhecer mais sobre as estratégias
microssociais que elas inventam e criam no enfrentamento daquelas vio-
lências. A característica igualitária da dinâmica familiar destes casais, mar-
cada na divisão das tarefas domésticas e provisão econômica, no compa-
nheirismo e diálogo, na flexibilidade e autonomia, foi compartilhada pela
maioria dos estudos (Pontes, 2011; Cunha, 2017), ainda que não signifique
a ausência de práticas machistas, pois as próprias mulheres são socializadas
em uma cultura que subjuga o feminino (Palma, 2011).

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Neste ponto, a maioria das autoras utilizaram teorias feministas como


referencial teórico colaborativo para a reflexão das mudanças ocorridas na
sociedade ocidental contemporânea a respeito da família, gênero, sexuali-
dade e direitos sexuais. Tais perspectivas inspiraram um olhar crítico em
relação aos processos de apagamento e discriminação que perfazem o con-
texto histórico, político e econômico das mulheres, em especial as lésbicas,
que na dissidência da heterossexualidade criam formas de construir sua
condição de cidadã num contexto de sociedade brasileira heteronormativa
(Corrêa, 2012).
Nesta conjunção, novas práticas sociais surgem a partir da articulação
entre maternidade e lesbianidade, numa inter-relação que amplia o olhar
sobre a maternidade, ao mesmo tempo que se ressignificam as formas com
que essas mulheres lidam com a sua própria lesbianidade, permitindo no-
vos olhares, outras interpretações e dilemas. Refletir sobre as conquistas
destas mulheres em seus processos de significação dos mundos que habi-
tam é notar como elas renegociam regras e questionam relações histori-
camente determinadas. Ao engravidar com suas mulheres, criar filhas(os)
registradas(os) por ambas, construir arranjos familiares fora das relações
patriarcais, contribuem cotidianamente para mudar o que é esperado de
filhas(os), mães, esposas, lésbicas, mulheres. Tais mudanças podem – e já
o fazem – descontruir a ideologia hegemônica da heterossexualidade com-
pulsória.
Esta revisão acadêmica também se situa no rol de estudos cuja relevân-
cia social radica na sua contribuição para a visibilidade e liberdade dessas
famílias e seus amores.

Referências
– Dissertações e Teses
AIRES, L. M. (2012). Gestando afetos, concebendo famílias: reflexões
sobre maternidade lésbica e reprodução assistida em Aracaju-Se. Disser-
tação Mestrado – Antropologia – UFS.

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AMORIM, A. C. (2013). “Nós já somos uma família, só faltam os fi-


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Antropologia Social – UFSC.
BASAGLIA, C. C. (2017). Maternidades Lésbicas: clivagem entre as ten-
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CORRÊA, M. E. (2012). Duas mães? Mulheres lésbicas e maternidade.
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A MANDA MENDO NÇA - LAI LA MA R IA D OMIT H V ICE N T E

Jaqueline Gomes de Jesus

Escolaridade

Data de Campo do
Instituição Grau
Conclusão Conhecimento
Universidade de
Bacharelado 07/2002 Psicologia
Brasilia (UnB)
Universidade de
Psicóloga 10/2002 Psicologia
Brasilia (UnB)
Universidade de
Mestrado 12/2005 Psicologia
Brasilia (UnB)
Psicologia Social,
Universidade de
Doutorado 11/2010 do Trabalho e das
Brasilia (UnB)
Organizações
Escola Superior de Ciências
Trabalho e
Sociais da Fundação Getúlio Pós-Doutorado 12/2014
Movimentos Sociais
Vargas (CPDOC/FGV)

P
rofessora dePsicologia do Instituto Federal do Rio de Ja-
neiro, nas áreas de Psicologia e Cultura; Psicologia e Educação.
No Mestrado pesquisou as representações sociais do trabalho es-
cravo no Brasil contemporâneo, no Doutorado investigou política e iden-
tidade nas Paradas do Orgulho LGBT e, no Pós-Doutorado focou no tema
do trabalho e dos movimentos sociais, tendo perscrutado o conselho das
cidades do governo federal. Pesquisadora-Líder do ODARA – Grupo In-
terdisciplinar de Pesquisa em Cultura, Identidade e Diversidade (CNPq).

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JOVEN S PESQ UI SADO RAS: SEXUA L ID A D E S D IS S ID E N T E S

Coordenadora do Núcleo de Diversidade – NDIVAS Marielle Franco.


Ativista pelos direitos humanos desde 1997. Pesquisa com foco em traba-
lho, saúde, movimentos sociais e identidade social. Atualmente coordena
a seção brasileira de uma pesquisa em quatro países (Brasil, Quênia, Índia
e Camboja) sobre qualidade de vida de minorias sexuais e de gênero, em
parceria com a Universidade de Duke, nos Estados Unidos da América. Foi
a primeira Assessora de Diversidade e Apoio aos Cotistas e Coordenadora
do Centro de Convivência Negra da Universidade de Brasília (2004-2008).
Participou da criação da Política de Atenção à Saúde do Servidor Público
Federal, no âmbito do Ministério do Planejamento, tendo sido responsável
técnica pelos Princípios, Diretrizes e Ações em Saúde Mental. Integrou o
Conselho Regional de Psicologia do Distrito Federal, entre 2013 e 2016.
Autora de dezenas de publicações, entre elas artigos científicos, livros e
capítulos de livros. Em 2016 recebeu o Prêmio Rio Sem Homofobia, do
Governo do Estado do Rio de Janeiro, e em 2017 foi condecorada com a
Medalha Chiquinha Gonzaga, concedida pela Câmara dos Vereadores do
Rio, por indicação da vereadora Marielle Franco.

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A MANDA MENDO NÇA - LAI LA MA R IA D OMIT H V ICE N T E

Trabalho Escravo Contemporâneo:


Representações Sociais dos Libertadores

Jaqueline Gomes de Jesus

O
t r aba l h o é f u n d a m e n ta d o e m i n t e n c i o n a l i d a d e s e c a pa c i -

dades cognitivas que, ao se tentar eliminá-las, descaracteriza-se


uma condição humana central do trabalho (Borges & Yamamo-
to, 2004). Ao longo da História, essa descaracterização foi aceita como algo
comum para alguns seres humanos, de forma que “trabalho”, na Antigui-
dade, era identificado com trabalhos manuais degradantes e inferiores dos
quais, segundo Platão, os cidadãos não se deviam ocupar; e que, reforçava
Aristóteles, eram de competência dos escravos.
A escravidão existe desde a Pré-História, conforme Meltzer (2003),
profundamente estruturada na formação das sociedades humanas. Meil-
lassoux (1995) afirma que é um pressuposto da escravidão a recusa em
reconhecer qualidades apreciáveis e comuns no estranho, o que resulta
na definição do “outro”, o escravo, como se fosse membro de uma espécie
diferente e necessariamente inferior, tolerado desde que reconheça essa
condição. O escravo não é dotado pelo olhar do outro com as qualidades
do “humano”, a relação que se dá com ele é semelhante à que se tem com
um objeto, segundo Nascimento (1978: 61):

desde que o motivo da importação de escravos era a simples explora-


ção econômica representada pelo lucro, os escravos, rotulados como

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JOVEN S PESQ UI SADO RAS: SEXUA L ID A D E S D IS S ID E N T E S

subumanos ou inumanos, existiam relegados a um papel, na sociedade,


correspondente à sua função na economia: mera força de trabalho.

Como tal, e sendo fácil de adquirir, o escravo era desvalorizado para


seus opressores, que “não perdiam tempo nem dinheiro com a saúde dos
seus cativos” (Nascimento, 1978: 58).
O trabalho escravo ainda é uma realidade global, inclusive em países
desenvolvidos como Estados Unidos (mão-de-obra latino-americana explo-
rada em plantações do sul) e França (mulheres islâmicas inseridas no tra-
balho doméstico abusivo), que se relaciona a fluxos migratórios e ao tráfico
de seres humanos (Martins, 2002).
Bales (2000) diferencia a escravidão moderna (baseada no tráfico tran-
satlântico de povos africanos) da escravidão contemporânea por meio dos
fatores listados na Tabela 1.

Tabela 1 - Diferenças das escravidões moderna e contemporânea

Característica Escravidão moderna Escravidão contemporânea


legalidade legal ilegal
custo alto baixo
lucro baixo alto
disponibilidade potencial pouca muita
tempo de relacionamento longo curto

descartabilidade baixa alta

importância da etnicidade alta baixa

Escravidão contemporânea no Brasil


Na história política do trabalhador rural brasileiro predomina o perío-
do escravista (Ianni, 2005). A cidadania dos brasileiros foi conquistada,
como recordam Gohn (1995) e Dulci e Neves (1996), a partir de mobi-
lizações da sociedade civil que remontam às revoltas indígenas, negras,
camponesas, às lutas contra a escravidão, as cobranças do fisco, os atos e

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A MANDA MENDO NÇA - LAI LA MA R IA D OMIT H V ICE N T E

leis arbitrários do poder público, os regimes políticos e igualmente entre as


classes sociais.
A escravidão contemporânea brasileira se estrutura em torno de organi-
zações isoladas do Estado: fazendas em regiões afastadas (Le Breton, 2002)
ou, nas cidades, em casas de prostituição, no trabalho doméstico abusivo
(Figueira, 2001, 2004), em monoculturas como a do corte da cana-de-açú-
car (Felix, 2009), nas empresas que exploram migrantes, como confecções
paulistanas com relação a bolivianos (Rossi, 2005). O Atlas do Trabalho
Escravo no Brasil (Théry, Mello, Hato & Girardi, 2009) detalha outras ati-
vidades econômicas suscetíveis ao trabalho escravo e associa a probabili-
dade de escravidão em uma localidade a baixos índices socioeconômicos
e a elevados graus de violência, e a vulnerabilidade ao aliciamento dos
trabalhadores a:

baixa esperança de vida ao nascer, baixa renda per capita, baixos índices
no ranking do IDH, elevado índice de exclusão, elevada taxa de pobreza,
elevada proporção da população vivendo em domicílio cuja renda é in-
ferior à R$ 37,75, elevada mortalidade infantil antes dos 5 anos (Théry e
cols., 2009: 66).

O governo brasileiro, em 2003, foi dos primeiros a admitir a existência


de trabalho escravo em seu território, frente à Organização dos Estados
Americanos e à Organização das Nações Unidas. Lançou-se, no mesmo
ano, o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, da Presi-
dência da República (PR, 2003), o qual contém propostas com prazos e ór-
gãos responsáveis pela sua execução. Ele foi seguido, em 2005, pelo Plano
do Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA / Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária – INCRA para a Erradicação do Trabalho
Escravo (MDA, 2005).
O Plano MDA/INCRA aponta que, em 2005, haveria em torno de
25.000 escravos no Brasil, dados ratificados pela Organização Interna-
cional do Trabalho – OIT (2006). Segundo relatórios do Ministério do

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Trabalho e Emprego – MTE (2005), desenvolvidos entre 1985 e 2004, no


ano de 2004 foram libertados 2.745 trabalhadores. Em 2018, ações fiscais
do MTE identificaram 1.700 casos de trabalho escravo, sendo que 1.133
trabalhadores foram resgatados (O GLOBO, 2019).
A estrutura organizacional brasileira de libertação não é articulada a
partir de uma rede de informações compartilhada, mas de uma rede de
informações voluntária e dependente das denúncias que fugitivos de fa-
zendas escravocratas repassam à sociedade civil, por meio de organizações
como a Comissão Pastoral da Terra.
O MTE, em ações com a Polícia Federal e o Ministério Público do
Trabalho, combate ao trabalho escravo rural por meio da fiscalização de
denúncias recebidas da sociedade civil organizada, seguida da libertação
dos escravizados e de cálculo de seus direitos trabalhistas, que são cobrados
dos escravocratas.
Os escravocratas são latifundiários que empregam intermediários, de-
nominados “gatos”, para aliciar trabalhadores. Os gatos têm, como uma
de suas atribuições, manter a ordem no local de trabalho, por meio de
ameaças, agressões e, em alguns casos, assassinato. Portam e exibem aos
trabalhadores suas armas, às vezes de grosso calibre.
Define-se como “libertador” todo sujeito pertencente à categoria social
dos libertadores, composta pelo grupo de pessoas que trabalham para fins
de libertação de pessoas submetidas ao trabalho escravo. Apesar de existir
uma pluralidade de cargos e funções nas organizações envolvidas na ação
de libertar, uma organização realiza o seu trabalho em parceria com ou-
tras, a fim de alcançarem a meta comum.
Tendo como referência o artigo “¿Para qué Psicología Política?”, de
Maritza Montero (2009), compreende-se que o fenômeno da escravidão
contemporânea se inscreve no âmbito de estudos da Psicologia Políti-
ca, seja porque se insere no campo político, a partir das relações que se
formam entre trabalhadores, empregadores e as instituições que lutam
contra a escravidão, governamentais e não-governamentais, como será
detalhado mais à frente; e seja porque a interpretação acerca do trabalho

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escravo no Brasil de hoje, neste texto, parte de um olhar crítico da Psi-


cologia Social, oriundo do posicionamento de Silvia Lane e Wanderlei
Codo, no qual a relação entre teoria, prática e práxis exige dos psicólogos
uma atuação mais concreta com relação à organização social e política,
com vistas à emancipação das pessoas e comunidades (Lima, Ciampa &
Almeira, 2009).

Representações sociais do trabalho de libertar


Moscovici (1978) considera que as representações sociais são formas
modernas para o ser humano apreender as relações do mundo concreto,
essas representações não são estanques, tampouco protoculturais, isto é,
restritas à transmissão de conhecimentos dos antepassados, ao repasse de
hábitos de uma geração a outra.
As representações sociais são fenômenos psicossociais que envolvem a
reelaboração e modificação das relações interpessoais e grupais, tanto no
que se refere aos comportamentos quanto à própria cultura. Uma repre-
sentação social, segundo Abric (2003: 59), é:

um conjunto organizado de informações, de opiniões, de atitudes e de


crenças acerca de um dado objeto. Produzida socialmente, ela é fortemen-
te marcada pelos valores correspondentes ao sistema sócio ideológico e
à história do grupo que a veicula, pelo qual ela constitui um elemento
essencial de sua visão do mundo.

A representação social de um objeto específico, conforme Sá (1998),


depende da forma como ele se apresenta, da quantidade de informação
que os indivíduos acumularam acerca do objeto, da utilidade desse conhe-
cimento para os indivíduos e da intensidade do interesse dos indivíduos
sobre esse objeto.
Moscovici (2005) atribui às representações sociais duas funções: a
primeira é tornar convencionais os objetos, pessoas ou acontecimen-
tos, categorizando-os e gradualmente os transformando em um modelo

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JOVEN S PESQ UI SADO RAS: SEXUA L ID A D E S D IS S ID E N T E S

compartilhado por um grupo. Posteriormente, os novos elementos se jun-


tam a esse modelo, a fim de poderem ser compreendidos pelas pessoas.
A segunda função é prescrever o que deve ser pensado antes de se co-
meçar a pensar, ou seja, as representações sociais trazem respostas prontas,
que são compartilhadas por grupos determinados, mas não são pensadas
por eles, são, isso sim, transmitidas, impostas aos grupos e reelaboradas no
transcurso do tempo.
O trabalho escravo pode ser considerado um objeto de representação
social, dada a quantidade de informações acumuladas historicamente pe-
los grupos sociais envolvidos nas lutas pela liberdade. Ao longo dos últimos
anos, o interesse acerca do trabalho escravo tem-se destacado, por meio do
aumento de notícias e reportagens sobre o tema.
O presente estudo objetivou investigar as representações sociais dos li-
bertadores de escravos com relação ao seu trabalho.

Os libertadores estudados
Foram entrevistados 15 (quinze) libertadores. Seis sujeitos representan-
do o governo brasileiro (Câmara dos Deputados, Ministério do Trabalho
e Emprego – MTE e Delegacia Regional do Trabalho do Distrito Fede-
ral – DRT), quatro sujeitos representando quatro diferentes Organizações
Não-Governamentais (Comissão Pastoral da Terra – CPT, Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, Ordem dos Advogados do Brasil
– OAB e Grupo Entorno) e outros três sujeitos representando um orga-
nismo internacional e não-governamental (Organização Internacional do
Trabalho – OIT).
No referente a essas afiliações organizacionais, vale ressaltar sua carac-
terização, tendo em vista que as pessoas vinculadas a tais organizações têm
atribuições e papéis diferentes, porém relacionados ao combate ao traba-
lho escravo.
A CPT, o MST, a OAB e a OIT estão historicamente engajadas na
denúncia das condições dos trabalhadores, de forma que sua atuação
permitiu reconhecer os elementos constituintes do trabalho escravo,

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A MANDA MENDO NÇA - LAI LA MA R IA D OMIT H V ICE N T E

compreendê-lo e nomeá-lo como tal. O Grupo Entorno é uma agremia-


ção de artistas que iniciou suas atividades recentemente, denunciou o tra-
balho escravo por meio de obras e performances que evidenciavam a exis-
tência da escravidão hoje.
O MTE, a DRT e a Câmara dos Deputados fazem parte da estrutura go-
vernamental brasileira, subordinando-se, respectivamente, aos Poderes Exe-
cutivo (os dois primeiros organismos) e Legislativo (a Câmara). Têm por fun-
ção tirar os trabalhadores escravos dessa condição: o MTE, pela identificação
da situação; a DRT, pela reinserção profissional dos trabalhadores do meio
rural (ela não atua junto a trabalhadores urbanos escravizados, tendo em vis-
ta que o governo brasileiro não reconhece essa situação); e a Câmara dos
Deputados, pelo desenvolvimento de legislações que enfrentem o problema.
A área geográfica de atuação ou de experiência dos libertadores entre-
vistados abrangia os estados de Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro,
Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Bahia, Maranhão, Pernambuco,
Tocantins, Pará e o Distrito Federal.
Onze sujeitos eram homens e quatro mulheres. Três negros (soma das
autodeclarações de pretos e pardos)90, 11 (onze) autodeclarados brancos e
um asiático. Quanto à escolaridade, oito completaram o ensino superior,
cinco alguma pós-graduação, um o ensino médio e um não completou o
ensino fundamental.
Quanto à classe econômica, cinco se enquadram na classe A1, corres-
pondente aos 1% mais ricos da população brasileira; três na classe A2 (5%
da população); um na classe B1 (9% dos brasileiros); dois na classe B2
(14% da população); três na classe C (36% dos brasileiros) e um na classe
E, dos 4% mais pobres91.

90.  A presente classificação concorda com o posicionamento de que:


a agregação de pretos e pardos e sua designação como negros justificam-se duplamente. Estatisticamente,
pela uniformidade de características socioeconômicas dos dois grupos. Teoricamente, pelo fato de as discri-
minações, potenciais ou efetivas, sofridas por ambos os grupos, serem da mesma natureza. Ou seja, é pela sua
parcela preta que os pardos são discriminados (Osório, 2003: 24).
91.  A avaliação do nível econômico foi baseada no Critério de Classificação Econômica Brasil da Associa-
ção Nacional de Empresas de Pesquisa (ANEP, 2005), que estima o poder de compra de pessoas e famílias
urbanas abandonando a pretensão de classificar a população em termos de classes sociais, por considerar que

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JOVEN S PESQ UI SADO RAS: SEXUA L ID A D E S D IS S ID E N T E S

Análise dos dados


Foram realizadas entrevistas individuais baseadas em um roteiro forma-
do por questões abertas relacionadas à descrição do trabalho, sentimentos
em relação a este, dificuldades encontradas, concepções e sentimentos re-
lacionados à dinâmica profissional.
As entrevistas foram transcritas e processadas no software Alceste —
Analyse Lexicale par Contexte d’un Ensemble de Segments de Texte (Rei-
nert, 1990). Programa que não apenas categoriza e compara produções
semânticas, mas também é uma metodologia explorativa e descritiva de
análise estatística de textos, que se aproxima da análise de discurso (Kron-
berger e Wagner, 2003).
A partir da análise da distribuição dos vocábulos, o Alceste descreve a
frequência das palavras, seu percentual, calcula os X2 (medida da relação
entre as palavras dados padrões de co-ocorrência entre as classes) e realiza
uma classificação hierárquica descendente das classes de palavras encon-
tradas, com base na proximidade de conteúdo do total do corpus, em um
gráfico com formato de dendograma.
Na classificação hierárquica descendente o grau de similitude/proximi-
dade entre as classes é apresentado em uma escala que vai de 0 a 1: quanto
mais próximo de 0 menos semelhantes são os conteúdos entre as classes
indicadas (se 0, as classes “falam” de questões totalmente diferentes), quan-
to mais próximo de 1 mais semelhantes são os conteúdos (se 1, as classes
“falam” da mesma questão).
O software calcula e classifica as “Unidades de Contexto Elementar”
(UCE), enunciados que comportam uma ideia ou representação, e iden-
tifica as palavras em determinadas classes, que são compreendidas como
conjuntos de noções e percepções de mundo com certa estabilidade tem-
poral (Reinert, 2003).
O Alceste apresenta dados quanto à contribuição percentual de cada clas-
se no corpus, calculada com base no número de palavras de cada classe, e uma

qualquer critério econômico não é suficiente para configurar adequadamente dados qualitativos referentes às
questões sociais da renda, o que demanda a busca pelo máximo possível de informações acerca dos sujeitos.

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lista de palavras características de cada classe, separadas conforme frequência


na classe, frequência no corpus, porcentagem no corpus e valor do X2.
Com base nos dados alcançados, o software elabora uma matriz que rela-
ciona os atributos dos respondentes, as palavras relevantes e as unidades de
contexto (também denominadas eixos temáticos) em colunas e linhas, res-
pectivamente, com base nas distâncias dos X2, e submete essa matriz a uma
decomposição de eigenvalue (valor próprio), um conjunto de valores de um
parâmetro, para o qual uma equação diferencial tem solução não-zero, uma
“eigenfunction”, formando um espaço dimensional n-1, onde n é o número
de linhas ou colunas, dependendo de qual desses parâmetros é o menor.
Esse tratamento estatístico das palavras possibilita compor um plano
cartesiano que contém muitos espaços “vazios”: em torno de 98% de espa-
ços sem temas. É comum se observar nesse plano fatorial poucas palavras
e muito espaço em branco. Em tal representação dos resultados os agrupa-
mentos mantêm relações que podem ser sobrepostas, indicando eixos te-
máticos e sua proximidade com determinados atributos dos respondentes.

Procedimento
As entrevistas foram flexibilizadas de modo a se centrar empaticamente
na pessoa do entrevistado, procurando reformular as questões de acordo
com o desenvolvimento da conversação e estimulando o entrevistado com
relação aos temas discutidos. Posteriormente, foram transcritas e formata-
das para entrada de dados no Alceste.
Excluíram-se do conjunto artigos, conjunções e palavras semelhantes.
Essa redução no número de palavras é necessária para que se descubram
campos de coocorrência entre termos, indicadores de representações so-
ciais. Os dados foram convertidos ao pacote estatístico SPSS 11.5 — Sta-
tistical Package for Social Sciences, a fim de viabilizar análises estatísticas
estruturadas dos dados quantitativos gerais e dos separados entre as classes.
Dado que o valor do X2 indica a capacidade da palavra de agregar
outras em torno de si, dentro das classes, consideraram-se como mais
importantes as palavras com maior X2 dentro de cada classe, tomada

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isoladamente. Tendo-se como referência a média do X2 de cada classe, fo-


ram elencadas as palavras mais significativas em cada classe como as mais
importantes para a definição do sentido de suas respectivas classes.

Resultados

1. Classes estáveis
Seis classes de palavras foram encontradas e organizadas, conforme a
Figura 1, em três agrupamentos temáticos com relação forte de similitude/
proximidade (Rp).

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Classificação hierárquica descendente das classes estáveis


As classes foram nomeadas em: classe 1, formação dos libertadores;
classe 2, sentir e sensibilizar; classe 3, expectativas de permanências e de
mudanças; classe 4, local de ação; classe 5, denúncia como método; e clas-
se 6, rotina dos escravizados.
Os três agrupamentos de classes foram denominados “ramificações”. A pri-
meira ramificação, denominada “o profissional”, agrupa a classe 1, composta
por 207 UCE, e a classe 4, composta por 62, em uma relação forte (Rp =
.675), em que os conteúdos das classes têm semelhança aproximada de 67,5%.
A classe 1 descreve a formação profissional dos libertadores a partir de
um enfoque histórico, descrevendo os locais, tempos, instituições envolvi-
das nessa construção de sua identidade profissional, sob um enfoque con-
sideravelmente individualizado. Ganham destaque palavras como “terra”,
“combate”, “anos”, “fui”, “sou”, “eu”, “movimento”.
A classe 4 descreve, de forma muito específica e detalhada espacial-
mente, os espaços e o funcionamento da economia impulsionada pelo tra-
balho escravo, em seus processos seletivos, produtos e problemas de inser-
ção no sistema capitalista. Esses processos reiteram as condições materiais
e os locais pelos quais os libertadores passaram e que de alguma forma
subsidiaram sua formação no sentido de se tornar o que profissionalmente
são. Ganham destaque palavras como “problema”, “agenciados”, “aloja-
mentos”, “rural”, “precárias”, “algodão”, “trabalhadores”.
A segunda ramificação, significado do trabalho escravo, reúne a classe
2, composta por 124 UCE, e a classe 3, composta por 104, em uma rela-
ção forte (Rp = .725), em que os conteúdos das classes têm semelhança
aproximada de 72,5%.
A classe 2 avalia os sentimentos do próprio libertador quanto ao traba-
lho escravo e está permeada de práticas discursivas em que o libertador
busca sensibilizar o seu interlocutor quanto a tais condições e demonstrar
que outros atores sociais podem se sensibilizar. Ganham destaque palavras
como “sinto”, “sentimentos”, “sim”, “sente”, “impotência”, “sofrimento”,
“entendeu”.

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A classe 3 analisa o trabalho escravo, de forma ampla, como parte de


um processo contextualizado temporalmente, espacialmente e economi-
camente, e frente ao qual busca dissociar essa permanência da explora-
ção de uma ideia de que a mesma é imutável, buscando mostrar que as
mudanças ocorrem, e que portanto tais relações exploratórias de trabalho
podem ser superadas. Ganham destaque palavras como “escravos”, “con-
temporâneos”, “processos”, “leis”, “sistema”, “trabalho escravo”, “direitos”.
A terceira ramificação, “dinâmica de trabalho”, reúne a classe 5, com-
posta por 49 UCE, e a classe 6, composta por 257, em uma relação forte
(Rp = .625), em que os conteúdos das classes têm semelhança aproximada
de 62,5%.
A classe 5 analisa a importância para o libertador de denunciar ao
maior público possível o trabalho escravo, expondo das mais variadas for-
mas e linguagens possíveis as péssimas condições de trabalho e o ambiente
onde ocorrem; a imagem é vista como um meio forte para propagar essa
denúncia. Ganham destaque palavras como “fotos”, “artístico”, “bolou”,
“surgiu”, “exposição”, “modificar”, “frases”.
A classe 6 avalia as condições de trabalho dos escravizados sob um as-
pecto empático de identificação com o sofrimento e as dificuldades do ou-
tro. Ganham destaque palavras como “eles”, “fazendas”, “gente”, “matar”,
“você”, “famílias”, “gatos”. A linguagem do libertador, nessa classe, assume
um caráter de particular identificação com o contexto do escravizado, de
tal modo que “a gente”, apesar de distanciada das situações de exploração
“deles”, os escravizados, assume uma identificação com o sofrimento, com
a distância familiar, com o mal infligido pelos “caras”, identificados como
os escravocratas.
É indicada uma quarta ramificação e última ramificação, “a ação”, en-
tre as classes 2, 3, 5 e 6. Observa-se que a relação é mais fraca que as das
demais ramificações (Rp = .35). Apesar de a associação ser de 35%, o agru-
pamento se remete a conteúdos comuns entre o segundo agrupamento e o
terceiro, podendo indicar um eixo temático comum.

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As classes (com o quantitativo de UCE que as compõem), suas ramifi-


cações (com os respectivos quantitativos de Rp), palavras mais relevantes e
contribuição percentual das classes no corpus (no campo azul) estão repre-
sentadas na Figura 2.

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Quadro sintético das palavras relevantes por classe


Nomeou-se como “O trabalho dos libertadores de escravos no Brasil
contemporâneo” a representação social, o grupo que representa, o tempo e
o espaço da representação.

2. Eixos de significado
Foi gerado um plano fatorial que permite visualizar a organização dos
agrupamentos em eixos temáticos. A distância indica o grau de associação,
entendido como o grau de dispersão do conjunto de linhas e colunas em
torno de sua média, conforme a Figura 3.

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Plano fatorial dos eixos temáticos


As siglas a1, a2, b1, b2, c, d e a sigla e grafadas de azul se referem às
classes econômicas. As siglas 1i, 2c, 3c e pg grafadas de azul se referem
a escolaridade, respectivamente: primeiro grau incompleto, segundo grau
completo, terceiro grau completo e pós-graduação. A sigla “as” é uma abre-
viação do atributo racial “asiático”, reduzido em função do pouco espaço
disponível entre as palavras. As siglas cpt, mst, oab, oit, ent, cam, mte e drt
se referem às afiliações organizacionais dos libertadores.
Formaram-se três eixos ou “nuvens”, os quais foram denominados de
“histórico”, “político” e “técnico”. As palavras foram analisadas conforme
o eixo a que pertencem.
O eixo histórico — caracterizado por temas e cercado de afiliações or-
ganizacionais que posicionam o fenômeno do trabalho escravo historica-
mente, tendo, portanto, a função de nomear os elementos desse fenômeno
— está concentrado no quadrante direito superior, em torno da Classe 1
(indicada por #1).

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O eixo político — caracterizado por temas e cercado de afiliações or-


ganizacionais empenhadas na atribuição de efetivamente retirar a pessoa
escravizada de seu locus de exploração — está concentrado no centro
do plano fatorial, em torno das Classes 2, 3, 5 e 6 (indicadas por #2, #3,
#5 e #6).
O eixo técnico — caracterizado por temas e afiliações organizacionais
empenhadas em estabelecer condições para o trabalho digno da pessoa
liberta, compreendendo as relações entre esse sujeito e o seu contexto eco-
nômico-laboral e trabalhando para que elas se transformem em um senti-
do mais socialmente justo — está concentrado no quadrante direito supe-
rior, em torno da Classe 4 (indicada por #4); os atributos dos respondentes
foram grafados de azul.
O eixo central no plano fatorial é o “político”, o trabalho, nesse eixo, é
representado pelos respondentes de forma avaliativa, ou seja, eles não ape-
nas descrevem as atribuições de seu trabalho, mas as reinterpretam para o
interlocutor. Esse eixo englobou as classes 2, 3, 5 e 6, como foi sugerido
pela classificação descendente hierárquica (Figura 1).
Testando-se a validade do resultado, é indicada no plano fatorial a pro-
babilidade de as palavras e os eixos representarem o problema tratado. O
eixo X explica 28,53% do corpus, o eixo Y explica 23,22%, isso corresponde
a afirmar que há 23,22% de chance de os eixos temáticos encontrados cor-
responderem ao significado do trabalho do libertador, para as palavras essa
probabilidade é de 28,53%.
A Tabela 2 apresenta o eigenvalue e a porcentagem de associação de
cada fator. Juntos, os dois primeiros fatores contam por quase 52% da asso-
ciação total, com o primeiro fator correspondendo ao valor explicativo dos
eixos temáticos e o segundo ao das palavras.

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Tabela 2
Valor próprio e porcentagem de associação de cada fator
Fator Eigenvalue % associação % acumulada
1 0,1956 28,53 —
2 0,1592 23,22 51,75
3 0,1283 18,71 70,46
4 0,1142 16,66 87,12
5 0,0883 12,87 100,00

Visto que o espaço dimensional do plano fatorial corresponde a n-1 e


seis é o número total de classes estáveis, tem-se que a “dimensionalidade”
do plano fatorial deverá ser cinco, o que indica que, além dos dois fatores
apresentados, são necessários mais três fatores, com associação combinada
em torno de 48%, para que se chegue à associação total com o corpus, ou,
em outras palavras, com aquilo que se pretende avaliar.

3. Atributos grupais
A distribuição dos atributos dos respondentes no plano fatorial possibili-
ta identificar diferenças grupais, ligadas a gênero e identificação racial, na
maneira de representar o trabalho de libertação.
As mulheres libertadoras, diferentemente dos homens, que se orientam
pelo eixo técnico, tendem a perceber de forma pessoal o trabalhador escra-
vizado, como um indivíduo com família e que precisa ser ajudado, pelo
eixo político, de contextualização do problema.
Elas tendem a avaliar o trabalho escravo e o trabalho de libertar mais
do que apenas descrevê-los, atribuem mais valores à hierarquia de repre-
sentações do que os homens.
Pessoas negras e asiáticas tendem a ter percepções próximas às das mu-
lheres, no eixo político, de reflexão, de avaliação e de identificação pessoal
com o trabalhador escravizado. Pessoas brancas tendem a se orientar de
modo semelhante ao dos homens, no eixo técnico, de ação, de descrição e
de identificação social do trabalhador escravizado.

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Considerações finais
Os resultados obtidos possibilitaram o reconhecimento de conteúdos e
significados, disponibilizando dados indicativos da organização das repre-
sentações sociais de libertadores acerca de seu trabalho.
Observando-se as correlações entre as ramificações no Plano Fatorial,
nota-se que a constituição do profissional se dá, ao mesmo tempo, em fun-
ção da relação e do distanciamento entre a classe 4 (local de ação) e a clas-
se 1 (formação dos libertadores). Por aproximação das classes, entende-se
a constituição da ramificação o profissional como uma relação entre a his-
tória pessoal dos sujeitos e determinados locais que frequentaram durante
sua formação, o que determinou o fato de atualmente serem libertadores.
Com a mesma história pessoal, porém fora de tais locais de ação, pro-
vavelmente, eles não teriam se tornado libertadores. Por distanciamento
entre as classes, entende-se que há um efeito sobre os eixos temáticos his-
tórico e técnico, de modo que as organizações envolvidas no eixo históri-
co conseguem nomear os processos da exploração enquanto escravidão e
considerar o fenômeno enquanto construção histórica, porém dificilmente
conseguem instituir renovadas relações econômicas entre os trabalhadores
rurais e os empregadores.
As organizações envolvidas no eixo técnico trabalham para rearticular
as relações trabalhistas no meio rural, porém demonstram dificuldades na
identificação dos conflitos grupais de opressão enquanto fenômenos do tra-
balho escravo. O libertador constitui sua identidade profissional sobre o
eixo histórico e o eixo técnico.
O eixo político, que engloba as ramificações dinâmica do trabalho e sig-
nificado do trabalho escravo, relaciona-se diretamente com a ação e com o
local de ação do libertador (eixo técnico), reiterando a noção básica de que
a ação política de retirada da pessoa escravizada do espaço de exploração
envolve uma relação direta com o local de trabalho do libertador.
A ação é observada como uma relação entre a formação dos libertado-
res (eixo histórico) com a dinâmica do trabalho e o significado do trabalho
como constituintes do eixo político. Essa relação aproxima o significado do

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trabalho escravo (eixo político) e o local de ação do libertador (eixo técni-


co), ao mesmo tempo em que aproxima a formação dos libertadores (eixo
histórico), o significado do trabalho escravo (eixo político) e a dinâmica do
trabalho (eixo político).
O significado do trabalho escravo tem forte relação com o local de tra-
balho dos libertadores; e a forma de atuação dos libertadores (denúncia
como método) e a sua relação com o espaço e a condição dos oprimidos
(rotina dos escravizados) tem forte relação com a constituição histórica dos
profissionais libertadores.
Supõe-se que a representação social do trabalho de libertar escravos
tem três tipos de ancoragem, isto é, elementos que orientam e norteiam
a representação social para que sua força motivadora e mobilizadora não
perca o sentido, possa manter-se relativamente estável durante um certo
período de tempo e seja percebida como legítima (Guareschi, 1995; Mos-
covici, 1978): a ancoragem do bem (no libertador), a ancoragem do mal
(na estrutura escravista) e a ancoragem da necessidade (no trabalhador es-
cravo); a ideologia permeia todos os elementos cognitivos e afetivos que
ancoram a representação social.
Os libertadores ligam, “ancoram” suas práticas a situações mais antigas
para que melhor as legitimem. A ancoragem do bem na figura do próprio
libertador pode estar calcada na representação da “missão”, relacionado
ao da “predestinação”: houve um processo histórico de formação do in-
divíduo que simbolicamente indicou o caminho, através das várias etapas
vencidas, até um presente em que o libertador se formou enquanto tal.
Tendo sido alcançada a meta de ser quem se é, a missão aí parece ter-se
confirmado e precisa ser cumprida. É preciso realizar essa missão, para que
o “destino” ou a “vontade” se realize, conforme a particularidade idiossin-
crática de cada sujeito. Em suma: se o libertador está em paz e assume essa
missão de libertar, construída historicamente pelas organizações e por ele
mesmo, então está fazendo um bem.
A ancoragem do mal na estrutura escravista assume um caráter es-
pecialmente afetivo no sentido em que, mesmo que o libertador relate

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compreender como a estrutura escravista se formou historicamente no que


é, e como isso afeta pessoalmente os sujeitos envolvidos, é com repulsa que
ele se refere a essa estrutura, prendendo-a à representação da “exploração”
e à do “egoísmo”. A ideia de exploração que ancora a representação sobre
o escravocrata é o avesso da “equidade”, e associada à ideia do egoísmo
enquanto uma relação com o mundo em que o que importa é o interesse
pessoal.
Tem-se aí uma iniquidade em ambos os sentidos, uma injustiça na qual
o que poderia ser igualmente partilhado (oportunidades iguais para todos),
acaba sendo impedido de se realizar porque alguém ou alguma institui-
ção “puxaram” para si, a qualquer custo, as benesses socioeconômicas, e
as detém.
A ancoragem da necessidade no trabalhador escravo sugere uma reto-
mada da representação da “criança” enquanto ser humano indefeso que
está em formação. Pode ser que o libertador relacione a situação do traba-
lho escravo com a de uma pessoa indefesa que precise de cuidados, como
uma criança, mas é abusada pelo “mal”, no caso, a estrutura escravista.
O “bem”, no caso o libertador, cumprirá uma “missão” se tirar o traba-
lhador escravo do domínio do “mal”, onde o trabalhador não pode ser um
ser humano completo, e possibilitar o “crescimento”, o desenvolvimento
desse trabalhador para que ele se emancipe da situação de escravo.
Os libertadores trabalham para lidar com a dissonância cognitiva entre
quem eles acreditam ser humanos e a forma como a realidade trata essas
pessoas — libertar é uma forma de adequar o mundo real ao mundo ideal
—, e vivenciam um dilema relacionado ao fato de que o libertador depen-
de da pessoa escravizada para ser definido como tal, e quando não houver
mais pessoas a se libertar, também não haverá libertadores. Eles, tal como
outros trabalhadores (Karasek, 1979), lidam com a necessidade de equili-
brar o controle sobre o trabalho e a demanda do trabalho, com a finalidade
de manter a própria saúde mental.
Isso está em concordância com o que afirmam Borges e Tamayo
(2001), para os quais, tanto teórica quanto empiricamente, o trabalho é

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uma esfera central na vida das pessoas, e viver esse trabalho é mais do que
estar nele, é descrever os atributos que o fazem ser o que ele é (descrever),
é atribuir-lhe valores a esses atributos (avaliar), é, enfim, elencar esses atri-
butos em uma hierarquia.
Retomando o pensamento de Montero (2009) e de Lane e Codo expli-
citado por Lima, Ciampa e Almeida (2009), acerca do papel emancipador
da Psicologia Política e da Social Crítica, considera-se que para além de
conhecer os escravizados, acompanhá-los, libertá-los e encontrar novas
condições de trabalho, os libertadores poderiam aprofundar a sua práxis
transformadora no sentido de articular ações junto aos antigos opressores,
para a superação da relação exploradora que mantêm com os trabalhado-
res, trabalho esse que demanda certo distanciamento do processo que en-
volve o escravizado, para que o libertador possa negociar espaços novos
para grupos excluídos, que assim poderão, ativamente, construir seus pró-
prios caminhos.

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Laila Domith

N
o momento em que escrevo este memorial o que primeiro

venho a lembrar é que organizo o presente livro ao lado da


Amanda Mendonça. Tenho muita alegria por ter realizado este
percurso, por termos convidado pessoalmente cada uma das autoras que
escrevem conosco, em uma edição intimista e cuidadosa, ensejando a
montagem destes artigos potentes escrito por mulheres lésbicas, bissexuais
e/ou transsexuais.
Um memorial é um recorte de nossas histórias e vou iniciar com o meu
percurso acadêmico na faculdade de Direito, minha formação originária
e profissional já que hoje atuo como advogada voltada para os Direitos
Sociais e LGBTIs. Naquele momento o Direito dogmático que via na
faculdade não conseguia responder aos meus questionamentos, a minha
ideia de justiça estava muito afastada do que via na prática judiciária. Fiz
a faculdade de Direito pensando em adquirir instrumentos para lutar por
justiça social, ainda vejo a advocacia desta forma, como um instrumento
de luta, mas muita inocência já ficou para trás.
Neste percurso de ilusões e desilusões, me dediquei às leituras, ao
pensamento, à filosofia, a atividades de iniciação científica, à monitoria,
aos grupos de estudos e a pesquisa foi fundamental. Tive muita sorte, ou
sintonia, de encontrar pelo caminho os estudos de Michel Foucault so-
bre a prisão e depois ter a orientação da Maria Lívia do Nascimento no
Mestrado e Doutorado em Psicologia. A pós-graduação em psicologia me

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possibilitou construir outros olhares para fora e para dentro de mim. Acre-
dito que tenha sido no Doutorado em Psicologia que senti a importância
de estar presente nas pesquisas que fazia, ou seja, pesquisar com o corpo, e
foi inevitável me imiscuir nos Estudos de Gênero e Sexualidade, algo tão
relevante no que sou. Foi neste ponto que me afirmei lésbica nos espaços
que frequentava, compreendendo a luta política da visibilidade e afirman-
do o meu desejo.
E foi assim que os Estudos de Gênero, um projeto de pesquisa e um
pouco de sorte se tornaram meu passaporte para estudar por quinze meses
com o Paul B. Preciado no PEI – Programa d’Estudis Independents do
MACBA – Museu d’Art Contemporani de Barcelona. Experiência que tra-
go nas lutas diárias, nas pesquisas, nas aulas e nas atividades universitárias
que faço desde que voltei para o Brasil.
Acredito no fortalecimento de nossas práticas dissidentes como uma
afirmação da vida no contemporâneo do Brasil, e a vida é um movimento
de encontros, fortalecimentos e acolhimentos, o que espero que a presente
publicação possa nos proporcionar. Um abraço forte em todas nós.

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Ficções Políticas Vivas: a materialidade


de gênero e identidade

Laila Maria Domith Vicente

Sente-se em uma cadeira reta. Cruze suas pernas na altura dos tornozelos
e mantenha seus joelhos pressionados um contra o outro. Tente fazer isso
enquanto está conversando com alguém, mas tente o tempo todo manter
seus joelhos fortemente pressionados um contra o outro... Corra uma certa
distância, mantendo seus joelhos juntos. Você descobrirá que terá que dar
passos curtos, altos... Ande por uma rua da cidade... Olhe, em direção reta,
para a frente. Toda vez que um homem passar por você, desvie seu olhar e
não mostre nenhuma expressão no rosto. (Bordo, apud Rose p. 174)

Do que se trata, por meio do aplanamento do peito e do tornar protuberante a


pélvis, é modificar o eixo corporal e o equilíbrio que se estabelece entre os om-
bros, os braços e as pernas. Deste modo, o centro de gravidade corporal – que
para as bio-mulheres está culturalmente situado no peito (lugar por excelên-
cia de sexualização e centro da mirada hetero-masculina) – se desloca para a
pélvis, as pernas se abrem ligeiramente, aumentando a distância entre os dois
pés, afirmando o apoio duplo do corpo. Adquire-se assim maior estabilidade
vertical e ao mesmo tempo se amplia a possibilidade do livre movimento do
tronco e da extensão máxima dos braços. (Preciado, 2008, p.257)92

92.  Tradução livre da citação: De lo que se trata, a través del aplanamiento del pecho y del abultamiento
de la pelvis, es de modificar el eje corporal y el equilibrio que se establece entre los hombros, los brazos y las

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A filósofa estadunidense Judith Butler (2008, p.91) nos traz que um


dos escândalos do primeiro volume da História da Sexualidade de Michel
Foucault (2005) é a noção de que nem sempre tivemos um sexo. Claro, o
sexo existia como “um atributo, uma atividade, uma dimensão da vida hu-
mana”, mas um “escândalo particularmente moderno” nos traz o sexo en-
quanto uma identidade. “Os gêneros distintos são parte do que ‘humaniza’
os indivíduos na cultura contemporânea” (Butler, 2013, p.199), uma vez
que no presente a categoria “sexo” marca a identidade tornando inteligíveis
– e neste sentido, delimitando o que é humano frente ao social – os seres
viventes. Dentro deste viés de análise, basta observar qualquer formulário
de identidade que sempre nos impõe os restritivos quadradinhos para assi-
nalar o F □ ou M □. Feminino & Masculino. Inteligibilidade heteronor-
mativa que pretende apagar os diversos entre que existem neste binarismo
que quer se passar como natureza e como a única possibilidade. “De fato,
o movimento mais sofisticado das tecnologias consiste em apresentarem-se
a si mesmas como natureza.” (Preciado, 2011, p. 157).93
Não partiremos, portanto, do entendimento de que as pessoas e seus
sexos/gêneros são desde o início dadas e sim de que fazem parte de cons-
truções sociais: sofisticadas, reiteradas, políticas e sempre em tensão, em
movimento. É com esta proposta que Judith Butler (2013) cria a concei-
tuação de gênero enquanto um performativo, questionando neste ínterim
o estatuto de natureza dado ao denominado sexo biológico.
Ficções políticas94. Esta nos parece a melhor forma de perceber e ana-
lisar as diferenças sexuais e as identidades performativamente construídas

piernas. De este modo, el centro de gravedad corporal – que para las bio-mujeres está culturalmente situado
en el pecho (lugar por excelencia de sexualización y centro de la mirada hetero-masculina) – se desplaza
hasta la pelvis, las piernas se abren ligeramente, aumentando la distancia entre los dos pies, afirmando el
apoyo doble del cuerpo. Se adquiere así mayor estabilidad vertical, al tiempo que se amplía la posibilidad de
movimiento libre del tronco y de extensión máxima de los brazos.
93.  Tradução livre da citação: “De hecho, el movimiento más sofisticado de las tecnologias consiste em
presentarse a sí misma como ‘naturaleza’
94.  Ficções Política Vivas, conforme nos traz Paul B.Preciado (2015) em muitas de suas falas, já que se tratam
de corpos que são construídos performativamente e semioticamente – uma vez que a materialidade discursiva
enlaçada às relações de poder (Foucault, 2005d) também nos faz rir, faz falar, faz viver, e também adoecer

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de sexo e gênero. Neste sentido, as diferenças sexuais do corpo são uma


invenção datada e podemos dizer que seu nascimento é recente. Acom-
panhando as interessantes análises históricas de Thomas Laqueur (2001)
podemos colocar em suspeita as certezas mais cotidianas que perpassam
as vidas daqueles que, denominados por Preciado (2011) de biohomens
e biomulheres heterossexuais, possuem pretensões de se colocarem como
os personagens originais e legítimos do ser humano. O prefixo “bio” vem
para denominar os corpos que desde que nascem começam a ser construí-
dos performativamente e invocados como femininos ou masculinos e que
não passaram por intervenções hormonais, cirúrgicas e/ou estilísticas para
se colocarem do outro lado da norma – os corpos que assim denominaría-
mos de trans.
Na militância pelos direitos transvestigeneres, vemos a aposta na ter-
minologia cisgênero para se referir às pessoas que não fazem a transição
ou não a desejam de alguma maneira. Segundo definição etimológica de
Julia Serrano (2013), temos que cis se refere à algo que está “no mesmo
lado de”, enquanto trans é o termo que se refere ao que cruza. Portanto,
os transgêneros cruzariam a norma de gênero, enquanto os cisgêneros se
manteriam na norma sexual e se identificariam com o sexo atribuído des-
de seu nascimento. Parece-nos importante a criação e utilização dos ter-
mos (bio e/ou cis) para marcar que tanto cis quanto trans são construções
sociais invocadas performativamente e que reiteradas tomam o aspecto de
identidade do sujeito (ao)social. Não há nenhum vínculo à natureza em
nenhuma das duas definições. O que existe são normas reiteradas nos cor-
pos e diferenças que se produzem na reiteração.
Laqueur (2001) nos mostra com afiada agudez como o corpo marcado
pelas diferenças sexuais é uma construção moderna historicamente data-
da e em sintonia com o desenrolar histórico e epistemológico que a acom-
panha. “O sexo, tanto no mundo de sexo único como no de dois sexos é

ou morrer. Entretanto, corpos vivos que possuem uma materialidade que não podemos conceber plenamente
por meio da linguagem, mas que se refere à vida e que também se refere à morte. Neste sentido ver Butler
(2002).

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situacional, é explicável apenas dentro do contexto da luta sobre gênero


e poder.” (Laqueur, 2001, p. 23). Acompanhando a construção histórica
do autor podemos entender como vigora a concepção do modelo do sexo
único em que não haveria diferença ontológica entre a mulher e o ho-
mem, a diferença era considerada como apenas de grau em que a mulher
seria uma versão imperfeita do homem. Concepção esta que se manteve
por um longo tempo: desde a antiguidade grega com Aristóteles, tendo
seu ponto ápice com o precursor anatomista Galeno, mantendo-se nas
figuras e construções anatômicas Renascentistas analisadas por Vesalius e
já apoiadas pela dissecação humana. Uma suposta falta de calor no cor-
po da mulher faria com que os órgãos sexuais fossem invertidos, voltados
para dento. Neste sentido se põe em marcha uma construção de equiva-
lências entre o pênis e a vagina, entre os testículos e os ovários, entre a
artéria ovariana e o canal deferente – como nas imagens renascentistas
que os mostram geometricamente semelhantes (a figura abaixo é apenas
um exemplo) e também como em textos que justificam teoricamente tais
inventivas realidades históricas. Somente “em alguma época do Século
XVIII, o sexo que nós conhecemos foi inventado” (Laqueur, 2001, p.
189). E é a partir daí que os órgãos que possuíam nomes distintos, mas se
equivaliam (ovários e testículos, por exemplo) foram também distancia-
dos em suas funções e outras denominações como a vagina foram criadas,
assim como toda a construção fisiológica de corpos femininos e mascu-
linos com distinções entre si, modelo dos dois sexos como o autor vem a
denominar.

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Figuras retiradas do livro de Laqueur (2001, p. 113) com a seguinte descrição: “À


esquerda os órgãos femininos reprodutivos semelhantes ao pênis em Kunstbuche (1975),
de Georg Bartisch. À direita, à frente do útero é cortada para mostrar seu conteúdo.

É para desconsiderar uma visão evolucionista da epistemologia, que


conceberia a Teoria do Sexo Único como uma teoria equivocada ou não
plenamente desenvolvida como a que veio a tomar o seu lugar a partir
do século XVII – a Teoria de Dois Sexos – que Laqueur (2011) aposta
nas descontinuidades históricas e epistemológicas e na relação de saber/
poder que as constituem. Mostra isso ao apontar como em contextos con-
temporâneos específicos o modelo do sexo único tem ainda espaço, como
em Freud, por exemplo, que nos apresenta uma equivalência entre o pê-
nis e o clitóris. Afirma ainda que “a natureza da diferença sexual não é
suscetível de exame empírico” (Laqueur, 2011, p.115) assim como não
seria, da mesma maneira, suscetível a este tipo de verificação o modelo de
sexo único. Isso se passa uma vez que não é possível desvencilhar o sexo
e o corpo, do gênero e de uma afirmação linguística de sua realidade.

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A proposta de Laqueur (2011) é a de mostrar como se articulam políti-


ca e epistemologicamente o sexo e o gênero, e que se tratam sempre de
construções históricas inseridas em relações complexas de poder. Uma de
suas análises, e que nos interessa na construção do presente trabalho, é a
de como o sexo – conceituado como a formação natural e biológica do
corpo humano masculino e feminino – em determinado contexto histó-
rico toma o lugar do gênero – este conceituado como a formação social e
cultural desta diferenciação – como o definidor das diferenças discursiva-
mente constituídas entre homens e mulheres. Neste sentido, nos mostra
que na Antiguidade e até o Iluminismo, o que definiria as diferenças en-
tre os corpos era o que entendemos como gênero e, que após o Iluminis-
mo e seus pilares humanistas, o que vai possibilitar a diferenciação é uma
construção biológica das diferenças sexuais. Entretanto, um apontamento
é importante aqui: não se trata de um avanço ou de novas descobertas
científicas que possibilitaram o melhor entendimento dos corpos, mas
bem diverso, a ciência vem a justificar a manutenção de certas relações
de sujeição frente às mudanças sociais ocorridas que pregavam a libera-
ção de “toda” forma de opressão.
Acompanhando mais de perto, portanto, a construção e análise his-
tórica de Laqueur (2001), percebemos que até a época do Iluminismo
a concepção que diferenciava homens de mulheres era de gênero e fi-
siologicamente ambos possuíam a mesma carne: o sexo único. O que
lhes marcava a diferença era cultural e social, a mulher seria uma forma
imperfeita, ainda que possuísse o mesmo tipo de corpo. “Ser homem ou
ser mulher era manter uma posição social, um lugar na sociedade, assu-
mir um papel cultural” (Laqueur, 2001, p. 19). No iluminismo isso se
altera, uma vez que a igualdade é um dos lemas dos propalados direitos
humanos e a exclusão das mulheres justificada socialmente se mostra-
ria contrária ao lema da igualdade universal. Foi necessário, portanto,
em virtude das “possibilidades cataclísmicas de mudança social elabora-
da pela Revolução Francesa” (Laqueur, 2001, p. 22) criar uma diferen-
ça biológica que justificasse a exclusão da mulher do espaço público e

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político e que a levasse ao recôndito espaço do lar e da servidão. Servas


do lar, pois ali o seu trabalho é considerado parte de sua natureza, sob a
aura da maternidade e de seu corpo construído como reprodutor e pro-
criador, portanto, um trabalho não remunerado, não considerado para
ser assalariado, assim como toda a sua função enquanto cuidadora do lar.
Dentro da nossa sociedade de abstrações, em que a moeda toma o lugar
de muitas das relações sociais, não ter remuneração – ou seja – não ter
direito ao acesso a estas moedas, é colocar as mulheres em um estado
de intensa sujeição (palavra aqui utilizada nos diversos sentidos anterior-
mente analisados).
Assim, podemos escutar as vozes de Monique Witting (2010), que nos
aponta como a heterossexualidade – para além de qualquer discussão so-
bre se individualmente se faz como uma opção ou uma orientação sexual,
ou mesmo em nível de prazer sexual – constrói-se como um regime po-
lítico que se insere em um contrato heterossexual, referência que faz ao
contrato social de autores Iluministas, como Rousseau e Hobbes. Contra-
to Social a que as mulheres se veem excluídas, apenas se apresentando
enquanto objeto de valor e de troca que segundo Lévi-Strauss são (apud
Wittig, 2010, p. 69), “estes objetos de valor [as mulheres] que fazem a vida
digna de ser vivida”.95 Muito clara se nos mostra a aposta de Wittig quando
ela analisa o cinismo de teorias como a do mesmo Lévi-Strauss quando
este analisa o que vem a denominar de o “intercâmbio de mulheres” que
seria imprescindível para o funcionamento da sociedade. Cabe-nos per-
guntar a que sociedade ele se refere para nos pôr de acordo: fundamental
para a construção da sociedade baseada no regime heterossexual, regime
este de privilégios e subjugação de uma categoria construída de pessoas
perante outra. “A categoria de sexo é uma categoria política que funda
a sociedade enquanto heterossexual” (Wittig, 2010, p. 26)96. Neste senti-
do, com Wittig apontamos, além da desnaturalização da própria categoria

95.  Tradução livre da citação: “estes objectos de valor que hacen la vida digna de ser vivida”.
96.  Tradução livre da citação: “La categoria de sexo es una categoría política que funda la sociedade encuan-
to heterosexual”.

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– ou identidade sexual como viemos denominando até aqui – também a


desnaturalização das “obrigações matrimoniais”, como distraidamente se
denominam no Brasil, que fazem com que metade da população deste
país se veja obrigada – física e subjetivamente – a um trabalho não remu-
nerado de procriação, com a forte intervenção homem-branco-estatal com
a proibição e punição do aborto97, além da criação destas proles quando
nascidas – futuros trabalhadores para a sociedade capitalista – e do cuida-
do da casa patriarcal.
No contemporâneo mais imediato, podemos ainda perceber que as
mulheres possuem outros trabalhos – e se pensamos em um contexto que
não o branco-burguês, como é o caso da maior parte do Brasil, alonga-
remos este “contemporâneo mais imediato” para “desde tempos longín-
quos” – muitas vezes precariamente remunerados, trabalhos estes que nos
apresentam uma certa “libertação feminina”, mas também nos mostram
uma subordinação ainda maior, já que os trabalhos não remunerados da
concepção e procriação e os trabalhos domésticos apenas se somam ao
trabalho mal remunerado fora da casa-grande98.

97.  Cabe frisar aqui que isto se impõe principalmente para as mulheres que não têm condições financeiras
de realizar o aborto em clínicas clandestinas. Ainda que obviamente a criminalização do ato imponha restri-
ções à liberdade sobre o corpo de qualquer mulher.
98.  Remição irônica ao termo de Gilberto Freyre (2003) que faz uma leitura do Brasil colonial e das relações
que se passam na casa-grande entre o patriarca e seus escravos – incluindo aqui a mulher branca – e as rela-
ções que se passam na senzala – lugar onde se alocam a maioria dos escravos negros inseridos diretamente no
trabalho física e violentamente forçado.

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Imagem retirada das redes sociais e sem autoria identificada. Disponível


em http://blogbelem.blogspot.com.es/2013/06/marcha-das-vadias-
fala-de-violencia-e.html acesso em 09 de janeiro de 2015.

“A categoria de sexo não é nem invariável nem natural, mas sim um uso
especificamente político da categoria da natureza, o qual serve aos propó-
sitos da sexualidade reprodutora.” (Butler, 2013, p.164)

Performatividades de Gênero

Perceber pela primeira vez, aos outros, a todos eles, como efeitos mais ou
menos realistas de repetições performativas descodificáveis como masculinas
ou femininas.99 (Preciado, 2008, p. 262)

E se, dentro da dinâmica epistemológica que apresentamos, o sexo fos-


se destituído de sua autoridade biológica de natureza humana e, portanto,
inserido em meio a jogos de verdade e relações complexas de poder, como

99.  Tradução livre feita da citação: Percibir por la primera vez, a los otros, a todos ellos, como efectos más o
menos realistas de repeticiones performativas descodificables como masculinas o femeninas.

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podemos perceber o gênero que até então era identificado como a constru-
ção social e cultural do sexo que seria sua base fisiológica e natural?
Assim é que Judith Butler (2013), no intuito de problematizar as postu-
lações dos estudos feministas que se apoiam na concepção de gênero para
construir as suas reivindicações de igualdade e insubordinação ao patriar-
cado, nos traz questionamentos sobre a diferenciação entre sexo e gêne-
ro. Pressupor a existência de uma natureza (sexo) que é modificada pela
cultura (gênero) é assegurar desde já a binaridade de ambos – crer que
existem dois sexos (como nos faz crer a fisiologia) e mimeticamente dois
gêneros. O deslocamento feito pela autora é o de escapar dos postulados
cientificistas dados, questionando histórica e socialmente as relações que
os perfazem e os efeitos desta crença em uma verdade científica – em es-
pecial, no questionamento em tela – da construção biológica da diferença
sexual.
Neste sentido Butler (2013, p. 25) diz:

E o que é afinal o “sexo”? É ele natural, anatômico, cromossômico ou hor-


monal, e como deve a crítica feminista avaliar os discursos científicos que
alegam estabelecer tais “fatos” para nós? Teria o sexo uma história? Pos-
suiria cada sexo uma história ou histórias diferentes? Haveria uma história
de como se estabeleceu a dualidade do sexo, uma genealogia capaz de
expor as opções binárias como uma construção variável? Seriam os fatos
ostensivamente naturais do sexo produzidos discursivamente por vários fa-
tos científicos a serviço de outros interesses políticos e sociais? Se o caráter
do sexo é contestável, talvez o próprio construto chamado “sexo” seja tão
culturalmente construído quanto o gênero; a rigor, talvez o sexo sempre
tenha sido gênero, de tal forma que a distinção entre sexo e gênero revela-
-se absolutamente nenhuma.

Nos parece importante observar ainda que o termo gênero não surge a
partir das lutas feministas. Podemos dizer que o seu surgimento está muito
mais atrelado às relações hegemônicas de poder. Aqui podemos escutar as

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vozes de Foucault com Nietzsche apostando na genealogia para se desva-


ler das solenidades ocidentais da origem:

“A história também ensina a rir das solenidades da origem. (...) gosta-se


de acreditar que as coisas em seu início se encontravam em estado de per-
feição; que elas saíram brilhando da mão do criador (...). Mas o começo
histórico é baixo. Não no sentido de modesto, ou de discreto como o passo
da pomba, mas de derrisório, de irônico, próprio a desfazer todas as enfa-
tuações. (Foucault, 2001, p.18)

A começar pelo nome – John Money (em português: “João Dinheiro”)


– foi quem primeiro utilizou o termo em 1947. Psicólogo infantil encar-
regado do tratamento/conversão de bebês intersexuais – estabilização da-
queles corpos em um sexo inteligível e normatizado100 – Money estabelece
com o conceito de gênero a possibilidade de utilizar a tecnologia para mo-
dificar, por meio de cirurgia, psicoterapia e/ou tratamento hormonal, para
assim normatizar dentro do masculino ou feminino qualquer bebê até os
dezoito meses, à rigidez do sexo do século XIX, John Money (...) vai opor
a plasticidade do gênero”101 (Preciado, 2013, p. 82). Preciado (2013) nos
mostra como na década de 1970102 o feminismo retoma o termo gênero
para postular a construção social e cultural da diferença sexual. No entan-
to, mantém a naturalização do que se considera “sexo biológico”.
Atualizando os estudos históricos de Laqueur (2001), como uma aposta
para o presente, e colocando tais naturalizações em cheque e as relações

100.  O cinema argentino com Lúcia Person nos traz Alex um@ adolescente interssexual cujos pais preferem
estar ao lado da criança queer – aqui faço referência ao texto de Beatriz Preciado (2013 b) – ao invés de defen-
der as normas sexuais e de gênero, e a levam para viver na Patagônia sem submetê-la a intervenções cirúrgicas
e hormonais para que el@ possa decidir o que fazer com o seu corpo, gênero e sexualidade. Alex foge de Mo-
ney. O filme tem como título XXY, fazendo um jogo com os caracteres que costumam definir de modo breve
o feminino (XX) e o masculino (XY). XXY, 2007.
101.  Tradução livre feita da citação: “a la rigidez del sexo del siglo XIX, John Money (...) va a oponer la
plasticidad técnologica del género”
102.  Preciado (2013, p. 82) nos mostra como um dos primeiros textos nos quais esta diferença aparece tema-
tizada desta maneira é o de Ann Oakley, Sex, Gender and Society, Temple Smith: Londres, 1972.

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arbitrárias de poder que se perfazem a partir delas, Paul B. Preciado (2013)


realiza o que denomina de um protocolo de intoxicação voluntária com
aplicação de testosterona sintética no seu corpo etiquetado pelo discurso
científico da medicina como pertencente ao “natural sexo feminino”.
A testosterona é considerada pela medicina hormonal contemporânea
como o hormônio masculino por excelência. Ainda que esteja estabele-
cido – por esta mesma ciência – que tanto o corpo considerado feminino
quanto o considerado masculino produzem testosterona – em quantidades
diferentes – foi estabelecido que este seria o hormônio base da masculi-
nidade, enquanto o estrogênio e a progesterona seriam a base da femini-
lidade. Tanto o é, que a aplicação da testosterona é proibida socialmente
para mulheres103. Apenas nos casos dos transhomens institucionalmente
considerados patológicos pelos órgãos estatais (o que as normativas de tais
órgãos chamam lamentável e pejorativamente de disfunção de gênero) é
que seria possível a aplicação hormonal regulada para a transexualização –
também protocolizada e regulada – e normalizada pelo Estado.
Em via oposta a tais postulações Paul B. Preciado (2013), iniciou por
meio do que chama de copyleft104 uma experimentação em seu corpo e
em seus afetos da testosterona em gel – testogel, registrada e narrada em
sua obra de autoficção Tetso Yonqui. Copyleft uma vez que ele não se
submete aos protocolos estatais de mudança de sexo pelos quais devem
passar @s trans nas quais são aplicados hormônios segundo indicações psi-
quiátricas e legais. Preciado (2013) se coloca ao lado do que alegremente

103.  Atualmente temos, ainda de forma incipiente, a iniciativa médica em receitar a aplicação de testoste-
rona como reposição hormonal para mulheres no que é chamado de menopausa e que se queixem de falta
de libido e depressão. Sobre o assunto podemos acompanhar algumas matérias publicadas: http://www.citen.
com.br/endocrinologia/uso-de-hormonios-masculinos-em-mulheres-.aspx .
Preciado (2013) propõe o papel da ingestão das pílulas anticoncepcionais que aumentam o nível de progeste-
rona e estrogênio e diminuem a produção de testosterona pelos ovários, como uma causa importante de tais
perdas recorrentes da libido pelas mulheres, em especial na idade da menopausa, assim como os processos
depressivos recorrentes que são insinuados como pertencentes a esta mesma fase.
104.  Copyleft é uma forma de difusão e distribuição de obras que se liberta das licenças e barreiras da legis-
lação dos Direitos Autorais que prevê o copyright. Este é definido como os direitos intelectuais econômicos
sobre as obras literárias, artísticas ou científicas.

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denomina de “piratas do gênero” e entende que as inovações biotecnoló-


gicas e as possibilidades que elas trazem não devem ficar a cargo e ao crivo
dos órgãos estatais e das indústrias farmacêuticas, ou melhor, farmacopor-
nográficas como ele se refere. “Somos usuários copyleft: é dizer, conside-
ramos os hormônios sexuais como biocódigos livres e abertos cujo uso não
deve estar regulado nem pelo Estado nem confiscado pelas companhias
farmacêuticas” (Preciado, 2013, p.47)105. Após tal experimentação, que re-
sultou na potente escrita do livro Testo Yonqui, uma autoficcção, segundo
Preciado o denomina, em 2015, Paul B. Preciado inicia o protocolo de
transexualização e muda definitivamente o seu nome para Paul.
Entoar concepções da natureza humana cientificamente comprovadas
por estudos branco-cientistas e postular assim uma essência e verdade hu-
mana a ser descoberta é uma maneira de desconsiderar as diversas possibi-
lidades ficcionais de que o mundo é feito. Em outras palavras, como há já
algum tempo nos trazia Foucault (1987): toda relação de saber é permeada
por e entrelaçada a relações de poder, a ponto de ser mais interessante
nos referirmos a relações de poder/saber. Neste sentido, desconsideramos
a ciência como a porta-voz da verdade e apostamos em construções de
verdades-provisórias e localizadas, saberes situados (Haraway, 1995) e sem-
pre em tensão, mas que possuem materialidade – ficções políticas vivas
(Preciado, 2015) – e produzem efeitos nos e entre os corpos. Construções
múltiplas de verdades que servem a interesses múltiplos e instáveis. É neste
sentido que questionamos as concepções de sexo e gênero que permeiam
nossas relações científicas, médicas, estatais, midiáticas, familiares, sociais
e acompanhamos e construímos outras possibilidades de pensar nossas
produções de subjetividade.
É assim, pois, que agora nos propomos a acompanhar a constru-
ção do conceito de perfomatividade de gênero, para entender o seu

105.  Em tradução livre da citação: “Somos usuários copyleft: es decir, consideramos las hormonas sexuales
como biocódigos libres y abiertos cuyo uso no deve estar regulado ni por el Estado ni confiscado por las com-
pañías farmacêuticas.”

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funcionamento e a abertura de possibilidades para o pensamento e para a


vida que ele nos traz.

O Performativo
Vamos marcar o ponto de surgimento desta história na Universidade
de Harvard. Um marco de início curioso. J.L. Austin, como se apresenta
em seus livros, é um professor de filosofia analítica de Oxford que partici-
pou do Serviço de Informações do Exército britânico durante a segunda
guerra mundial (Austin, 1990). Suas análises, que propõem a linguagem
enquanto atos performativos, são desenvolvidas em doze conferências rea-
lizadas em Harvard em 1955, as quais denominou de “Conferências Wil-
liam James” que, de forma surpreendentemente clara e como ele mesmo
se refere “obvia” 106 – mas que nenhum filósofo que ele conhecesse a havia
apontado – pretendem nos fazer ver a constatação de que existem determi-
nadas sentenças que não descrevem nada, não se prestam a representar por
meio de palavras uma determinada situação que seria verdadeira ou falsa.
Existem determinadas sentenças que de fato fazem algo. Possuem efeitos
nos corpos interrelacionados, ou seja, modificam um determinado estado
de coisas. Para este tipo de sentença, Austin cria o neologismo performati-
vo, a partir do verbo em inglês to perform que se refere a fazer, executar,
realizar algo, em contraposição ao demonstrativo que seriam aquelas frases
que descrevem uma situação.
Entrelaçando-se ao performativo, Judith Butler (2013) trilha um ca-
minho potente, ainda que por vezes hermético, para nos aportar instru-
mentos conceituais que nos abram outras possibilidades de pensar e lutar

106.  Chega a ser cômica a forma como ele inicia a primeira de suas conferências: “O que tenho a dizer não
é difícil, nem polêmico. O único mérito que gostaria de reivindicar para esta exposição é o fato de ser verda-
deira pelo menos em parte. O fenômeno a ser discutido é bastante difundido e óbvio, e não pode ter passado
despercebido pelo menos em algumas instâncias. Entretanto, ainda não encontrei quem a ele tivesse se dedi-
cado.” (Austin, 1990, p. 21) Suas conferências são repletas de jogos e ironias, e isso se mostra desde seu início,
uma vez que uma de suas postulações é a análise de que determinados proferimentos nada têm de verdadeiros
ou falsos e sim que “Fazem coisas com as palavras”.

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politicamente por relações de inteligibilidade sociais107 mais abertas, em


que os termos de exclusão e abjeção não se façam de tal forma presente
nos corpos que recusem a matriz heterossexual que nos é imposta a tod@s.
Para tanto, ela se utiliza do conceito do linguista Austin (1990) para tecer
um entendimento de como os corpos e seus gestos são produzidos perfor-
mativamente por atos rigidamente regulados, em uma reiteração constan-
te, que se dá durante a vida das pessoas, mas que tem início antes mesmo
de seus nascimentos108, e que insidiosamente se perfazem como a natureza
humana. Para agenciar com as conferências de Austin, Butler (2002) se
alia aos pensamentos de Derrida (1971) e aos conceitos de citacionalida-
de e iterabilidade desenvolvidos nas análises que este apresenta acerca do
performativo de Austin. Frisamos a palavra reiteração para demarcar a pre-
sença de Derrida nos escritos de Butler. Neste sentido, o conceito de itera-
bilidade se refere à possibilidade de ser repetível, reiterável, independente
dos destinatários ou mesmo do enunciador de uma escritura. E o prefixo
Iter que vincula a repetição à alteridade, em que se frisa a possibilidade da
diferença em toda a repetição, iter “vendría de itara, «otro» en sánscrito, y

107.  Judith Butler por diversas vezes em seus trabalhos se utiliza da palavra “inteligibilidade” para pensar
a maneira como determinados corpos e suas performances são compreensíveis em meio ao social, enquanto
outros não. Inteligível é aquele corpo que pode gerar empatia nos meios heteronormatizados, assim como,
em meio às normalizações raciais e sociais diversas. Em última instancia é aquele corpo que pode ser conside-
rado humano, cuja morte é digna de luto e a perda pode ser chorada em meio ao social. Ou como em outros
termos nos proporia Agamben (2004), corpos que não são inteligíveis são vidas matáveis e insacrificáveis (não
contém valor para o sacrifício) como o corpo do homo saccer, o paradigma de suas genealogías. Conferir
Butler (2002, 2006, 2011 e Agamben (2004). Nas palavras de Butler (2000, p. 154): “O sexo é, pois, não
simplesmente aquilo que alguém tem ou uma descrição estática de aquilo que alguém é: ele uma das normas
pelas quais o “alguém” simplesmente se torna viável, é aquilo que qualifica um corpo para a vida no interior
do domínio da inteligibilidade cultural.”
108.  Ainda temos que considerar que atualmente este primário ritual performativo já não é mais efetivado no
momento do nascimento d@ bebê, mas meses antes, quando a mãe se submete a uma ultrassonografia, agora
tridimensional, que permite aos pais saírem do consultório com a primeira foto d@ bebê nas mãos. Assim, tal
performatividade é proclamada a partir de um exame intrauterino. Categorização de gênero antes mesmo da
completa formação do corpo. Para as mães cis muitas vezes o mais frustrante é quando, por força da posição
em que se encontra o bebê, a máquina de visão não pode enxergar o sexo, já que a antecipação de ser meni-
no/ser menina vai definir a decoração do futuro quarto, o guarda-roupa, o nome, a referência linguística do
artigo definido: “ele está mexendo”, “Ela me chutou” de modo já enquadrado e (en)gendrado. Sobre o tema
do feto na “nova ordem mundial” conferir Haraway (2004), Tercera Parte, capítulo V: “Feto. El espéculo
virtual en el Nuevo Orden Mundial.”

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todo lo que sigue puede ser leído como la explotación de esta lógica que
liga la repetición a la alteridad” (Derrida, 1971 p.9). É assim, portanto, que
podemos pensar a performatividade reiterável do gênero não como um de-
terminismo, ou uma prisão, mas sempre aberto às diferenças.
A linguagem não é apenas descritiva, ela é performativa. Ela produz o
corpo que supostamente se presta a descrever, realiza o que diz nomear ao
mesmo tempo em que descreve. Neste sentido temos a já clássica postula-
ção de Austin (1990) sobre a produção do corpo no casamento: “Quando
digo, diante do juiz ou no altar, etc., ‘Aceito’, não estou relatando um ca-
samento, estou me casando. (Austin, 1990, p. 25)”, neste caso, quando se
diz sim em um casamento, os noivos/noivas não estão de forma alguma a
descrevê-lo, estão de fato se casando. E para que isso ocorra temos todo
o arsenal de instituições e regras que fazem com que aquele ato de fala
‘– sim!’ possa fazer com que o corpo solteiro se torne um corpo casado
com obrigações, privilégios e dívidas perante o outro cônjuge e perante o
social. E isso assim se dá em virtude de o casamento ser uma cita – confor-
me conceituação de Derrida (1972) – uma citação, em que os nubentes,
o padre, e os diversos envolvidos repetem, reiteram uma série de normas
concebidas no social. Neste mesmo ínterim o corpo terno do bebê, que
nasce e é supostamente descrito pelo branco-médico como uma menina, é
de fato performativamente produzido enquanto um corpo feminino109, que
se envolve no processo de tornar-se sujeito e, ainda bebê, sujeito às normas,
institucionalizações, obrigações, direitos e privilégios que se perfazem ao
sexo, gênero e raça a que a criança se encontra entrelaçada. Invocações
Performativas.
Claro deve estar, portanto, que este processo de invocação performa-
tiva não depende da vontade de um deus ou de um médico ou de um

109.  De fato, jamais se chega a sê-lo. Aqui fazemos remissão à análise que Butler (2013) faz de Beauvoir e
sua profética frase: “Não se nasce mulher, chega-se a sê-lo.” Preferiríamos: “Não se nasce mulher, nem chega-
-se a sê-lo”, em virtude de ser a norma heterossexual inatingível, que existe apenas no plano do performativo
já que não há um referente fixo, nenhuma identidade de gênero por trás da sua expressão. O que existem são
apenas performatividades de gênero.

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deus-médico, e sim que se refere a um processo em que a materialização110


destes corpos é altamente regulada por “normas que têm a finalidade de
assegurar o funcionamento da hegemonia heterossexual na formação da-
quilo que pode ser legitimamente considerado como um corpo viável”
(Butler, 2000, p. 167). Esta materialização ou a materialidade destes cor-
pos é o efeito mais produtivo do poder.
É neste sentido que percebemos um importante aporte que nos traz
o agenciamento que faz Butler (2002) com Derrida (1971), que é o de
afastar tal versão bíblica do performativo, ou nas palavras da filósofa queer:
“é dizer: ‘faça-se a luz!’ pareceria que um fenômeno que se nomeia adqui-
re vida em virtude do poder de um sujeito ou de sua vontade”111 (Butler,
2002, p.34). É assim ainda que, neste mesmo movimento, é afastado o su-
jeito soberano com sua suposta intencionalidade e escolha na assunção de
um sexo, que se daria em algum momento da vida. Este corpo está imerso
em uma historicidade normativa. Normas regidas por um ideal regulató-
rio, no sentido que Foucault (2005) deu ao termo. No exemplo que trou-
xemos à baila, o performativo do médico que diz “é uma menina” se refere
a uma citação, e é por conta da historicidade e da repetição presente nesta
cita que a frase possui performatividade. Não se trata de um voluntarismo.
É a citacionalidade, ou seja, processo que ocorre em virtude de uma série
de convenções, rituais e reiterações de normas que estão além do sujeito,
que não dependem de seu poder ou de sua vontade originária, mas sim é
sempre derivado desta reiteração de normas instituídas. Se trata, portanto,
de uma “reformulação da performatividade como citacionalidade” (Butler,
2002 p.14). É necessária a historicidade para que um ato performativo pos-
sua seus efeitos, e é a dissimulação dela que faz com que a matriz heteros-
sexual, o feminino & masculino, se dê como a “natureza humana”.

110.  Aqui nos remetemos à tradução do termo em inglês “Matter” que se mostra importante nas análises de
Butler. Matter: em inglês possui a dupla significação explorada pela filósofa de “matéria, material” e de “im-
portar, o que importa, o tem importância.” Duplo sentido que o português não abrange e por isso nos parece
importante pontuar e ressaltar. (Louro, 2000).
111.  Tradução livre da citação: “es decir, ´hágase la luz! ´ parecería que un fenómeno que se nombra cobra
vida en virtud del poder de un sujeto o de su voluntad.”

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O corpo que nasce é, então, interpelado e acomodado por uma série


de discursos performativos, é habitado pelas diversas construções per-
formativas que se apresentam no corpo: furar a orelha, prender o cabe-
lo, usar saia e vestido, cor-de-rosa, no comportamento: pernas fechadas,
brincar de boneca, não falar palavrão, não correr, andar de pernas fecha-
das, chorar, na arquitetura: quartos separados, cor-de-rosa, xixi sentado,
vaso e jamais mictório. Entre tantos outros, pois, “os corpos na verdade
carregam discursos como parte de seu próprio sangue. E ninguém pode
sobreviver sem, de alguma forma, ser carregado pelo discurso. (Butler,
2000, p.160)”
Ou ainda nos termos de Paul B. Preciado (2011, p. 119) a invocação
além de performativa é prostética, já que produz corpo. “Hace cuerpos”. E
corpos são feitos a partir de técnicas complexas de poder em meio a discur-
sos, poder/saber, além de veias e tecidos e hormônios.
Ou como nos diz Butler (2013, p 59): “O gênero é a estilização repeti-
da do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura
reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a
aparência de uma substância, de uma classe natural de ser.”

“No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas.
E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair
num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse
inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os fi-
lhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-
-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido
para descobrir que também sem a felicidade se vivia...” Clarice Lispector
(1998, p.41) 112

112.  Trecho retirado do conto Amor de Clarice Lispector (1998) no qual a personagem Ana se encontrará
com um cego mascando chicletes cuja visão a fará desatinadamente desnaturalizar o seu cômodo lugar de
bio-mulher casada e mãe de família.

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Linhas Finais
Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles.113

Jeanne era feita de linhas


A mãe, mulher, trabalhadora em labor invisível por naturalizado, e invi-
sível pois nos recantos privados do lar. Todos os dias repetia reiteradamen-
te as performances binárias de ser mulher. Casa, comida e roupa lavada.
Jeanne era feita por linhas e todos os dias repetia estilisticamente uma série
de atos que lhe conferiam uma identidade de mulher, mãe, trabalhadora do-
méstica, bem assentada. Porém, a linha dura com seus ares de estabilidade
não é a única, ilusório olhar de estabilidade, somos feitas de linhas, porém,
e sob o véu da binaridade, em suas repetições outros processos moleculares se
passam e um dia as repetições se desestabilizam.
Todos os dias, sem pressa, dia, hora, despertador, acordar, pentear o corpo
branco, europeu, endurecido. fazer o café, acordar o filho. limpar a casa, es-
cutar a vizinha e vigiar seu bebê. preparar a comida, passar a roupa, limpar
a casa, toca o despertador, toca o vapor do chá. lavar a louça, limpar a casa.
abrir a porta, guardar o casaco do homem meio desconhecido, formalmente
desconhecido, levá-lo para o quarto, fecha a cena. Voltar, recolher o casaco
do homem meio desconhecido, abrir a porta, receber o dinheiro, o homem se
vai. fazer a comida, se olhar no espelho, pentear. sem pressa. limpar a casa,
receber o filho que vem dos últimos anos da escola, servir o jantar às 20h,
sentar à mesa, chamar o filho, permanecer sozinha, insistir em quatro pala-
vras, sem nenhum olhar, indiferença masculinista ao seu trabalhador servil.
levantar da mesa arrumar a cama do filho, deitar o filho, lavar a louça, ir
para a o quarto, pentear o cabelo, deitar. Escurecer.
Outro dia. sem pressa, dia, hora, despertador, acordar, despentear o cor-
po branco, europeu, endurecido. fazer o café, acordar o filho. limpar a casa.
preparar a comida, passar a roupa, toca o despertador, toca o vapor do chá.

113.  As palavras aqui propostas giram em torno do filme “Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080
Bruxelles” (1976) e a personagem em tela referem-se de maneira livre à protagonista e ao enredo do filme.

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lavar a louça, limpar a casa. abrir a porta, guardar o casaco do homem


meio desconhecido, formalmente desconhecido, levá-lo para o quarto, fecha
a cena. Voltar, recolher o casaco do homem meio desconhecido, abrir a por-
ta, receber o dinheiro, o homem se vai. fazer a comida, se olhar no espelho,
pentear. sem pressa. limpar a casa, receber o filho, servir o jantar às 20h,
sentar à mesa, chamar o filho, permanecer sozinha, insistir em quatro pala-
vras, sem nenhum olhar, indiferença masculinista ao seu trabalhador servil.
levantar da mesa arrumar a cama do filho, deitar o filho, lavar a louça, ir
para a o quarto, pentear o cabelo, deitar. Escurecer.
Outro dia. sem pressa, dia, hora, despertador que toca uma hora mais
cedo, acordar, endurecido. fazer o café, acordar o filho. sair para o correio,
fechado. esperar. penumbra da quase manhã. limpar a casa, cuidar da
criança da vizinha que não para de chorar. preparar a comida, passar a rou-
pa, as batatas queimaram, limpar a casa, toca o despertador, toca o vapor do
chá. sair para o mercado, não há mais batatas. lavar a louça, limpar a casa.
ainda sem pressa. Abrir a porta, guardar o casaco do homem meio desconhe-
cido, formalmente desconhecido, leva-lo para o quarto, fecha a cena. Voltar,
recolher o casaco do homem meio desconhecido, abrir a porta, receber o di-
nheiro, o homem se vai. Fazer a comida, se olhar no espelho, despenteada.
Limpar a casa, receber o filho, “ – o botão da sua roupa está aberto”, servir
o jantar às 21h, sentar à mesa, chamar o filho, permanecer sozinha, insistir
em quatro palavras, sem nenhum olhar, indiferença masculinista ao seu tra-
balhador servil. Levantar da mesa arrumar a cama do filho, deitar o filho,
lavar a louça, ir para a o quarto, pentear o cabelo, deitar. Escurecer

“São as instabilidades, as possibilidades de rematerialização, abertas por


esse processo, que marcam um domínio no qual a força da lei regulatória
pode se voltar contra ela mesma para gerar rearticulações que colocam em
questão a força hegemônica daquela mesma lei regulatória.” (Butler, 2000,
p. 110)

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Outro dia. O despertador toca uma hora mais cedo, tudo parece o mes-
mo, mas tudo mudou. filho na escola. O cabelo que teima em não perma-
necer no lugar, o botão na roupa aberto, a comida queimou, é necessário
sair para comprar mais batata, o mercado está fechado. cozinhar outra vez.
esquecer a tesoura no quarto. Jeanne parece a mesma, mas algo mudou. E as
repetições seguem, repetindo diferenças. Algo aconteceu e não se pode mais
suportar o que antes se suportava, o homem formalmente desconhecido que
entra, de ali já não sai mais.

A mudança é na repetição, ela se dá por um momento, em um segundo


perdido a cada repetição, um botão que é aberto no vestido longo, bem as-
sentado, um cabelo despenteado, a água que permanece no fogo fazendo
bolhas de pequenas revoluções.

E se mudássemos os gestos? Semióticas da Cozinha.


“O que significaria `citar´ a lei para produzi-la diferentemente, ´citar´ a
lei a fim de cooptar seu poder, denunciar a matriz heterossexual e deslocar o
efeito de sua necessidade? (Butler, 2000, p. 166)

Apenas um ano antes que Chantal Arkeman lançasse na Bélgica o


longa metragem Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles
(1976) de 201 minutos, Marta Rosler, em 1975, produz “Semiothics of the
Kitchen”114, um curta-metragem com apenas 6 minutos e 21 segundos e
um mesmo plano e cenário: uma cozinha sofisticada e bem equipada115

114.  O vídeo está disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Vm5vZaE8Ysc Acesso em 02 de maio


de 2015.
115.  A referência de Rosler (1999) era aos programas televisivos que performativamente (re)produzia gestos
do que pode ser mulher e seu lugar por excelência na cozinha. Neste sentido, a diretora em entrevista o
propõe ao dizer que era necessário que a locação fosse um loft para parecer a um cenário e não a sua cozinha
suburbana. Citamos a ela: “E Semiotics of the Kitchen, que realizei quando regressei a Nova Iorque em 1974-
1975, é sobre ‘representações televisivas’. Para Semiotics tive que utilizar a cozinha do loft de alguém que
conhecia porque se supunha que não devia parecer uma cozinha de casa suburbana. Tinha que parecer uma
espécie de cenário, com o signo de uma cozinha. O trabalho que fiz usando roupa tinha a ver com a domesti-
cidade e o feminino. (Rosler, 1999, p.28) (Em tradução livre).

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(para a época) é a locação da filmagem em que a diretora propõe semióti-


cas alternativas para a cozinha, com gestos sistematicamente citados para
produzi-los diferente. Instrumentos típicos como o avental, a colher, a pa-
nela, o prato, batedor de ovos, espremedor de frutas, garfo e faca, entre
outros, são trazidos ao plano em ordem alfabética e em tom professoral.
A começar pelo avental (Apron em inglês) até o batedor de carne (Ten-
derizer em inglês), contrapondo a semiótica e performatividade da matriz
heteronormativa citada que reproduz posições subalternizadas de gênero.
Ainda hoje vemos em programas da televisão brasileira, como o famigera-
do “Mais Você” com a apresentadora Ana Maria Braga em que esta típica
bio-mulher, branca, heterossexual, ensina receitas no horário matinal para
as “donas de casa” aprenderem e servirem às 12h o almoço à mesa de seus
maridos e filhos. De maneira pungente, Marta Rosler (1975), cita a semió-
tica da cozinha para produzi-la deslocando o seu efeito, e assim nos conta
que as ferramentas são corpo, se agenciam com sujeitos em uma semiótica
compartilhada. Por isso nas últimas letras U, V, X, Y e Z, a diretora usa seu
próprio corpo em agenciamento com a cozinha, ou ainda dizendo, os ins-
trumentos constroem sentido e corpo no contexto em que são utilizados.
No caso em uma cena típica de uma cozinha, lugar por excelência do
trabalho servil da mulher, gestos e instrumentos que contam da violência
presente nas relações domésticas, assim como abre a perspectiva sobre o
ensino irônico de outros usos para estes instrumentos, em contraponto aos
programas televisivos de culinária doméstica.

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Este livro foi composto em Electra LT
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