Miolo Sexualidadesdissidentes 141019 PDF
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Rio de Janeiro, 2 0 19
daniel chaves
Pesquisador do Círculo de Pesquisas do Tempo Presente/CPTP;
Pesquisador do Observatório das Fronteiras do Platô das Guianas/OBFRON;
Professor do Mestrado em Desenvolvimento Regional - PPGMDR/Unifap.
elione guimarães
Professora e pesquisadora do Arquivo Histórico de Juiz de Fora.
karl schurster
PhD em História, Coordenador do curso de história e coordenador geral de graduação da UPE.
rivail rolim
Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História-UEM-PR.
Apresentação 9
Fascismo ontem e hoje: da perseguição aos LGBTS nos regimes
fascistas europeus no século XX à atual ameaça bolsonarista à vida e
existência de brasileiras e brasileiros
Carol Quintana e Ivanilda Figueiredo 27
“Gênero e sexualidade já estão na escola”: refletindo sobre o embate
de moralidades em relação às expressões de gênero e sexualidade nos
espaços educativos
Vanessa Leite 47
Surdez, lesbianidade e devir-ciborgue: meu implante coclear, meu
brinquedo erótico aleijado
Anahi Guedes de Mello 77
Mulheres Negras que Amam Mulheres
Mayara Micaela Alves Gomes 117
A Intimidade com a linguagem – conhecer também é um ato político
Heloisa Melino 137
Transexualidade no campo jurídico. Da mudança do Registro Civil
ao Provimento Nº 73 do CNJ
Kathyla Katheryne S. Valverde 159
A
coletânea jovens pesquisadoras, que reúne desde 2016 artigos que
do termo para dizermos que estas jovens de todas as idades querem refletir
e questionar a estrutura machista, hierárquica, racista e homofóbica que
sustenta nossa sociedade, e nela a própria academia.
A coletânea jovens pesquisadoras tem propiciado encontros importan-
tes de estudos e de lutas, tem produzido considerações relevantes sobre as
condições de produção e de pesquisa em temáticas como o campo das po-
líticas sociais e dos direitos das mulheres, o campo educacional e a produ-
ção realizada pelas docentes de primeiro segmento. Em todas as obras o fe-
minismo alicerça e conecta as trajetórias e as pesquisas apresentadas, assim
como o combate ao racismo. Os três volumes publicados contaram, tanto
na organização quanto entre as autoras, com a participação expressiva de
mulheres negras, pois entendemos que diante do quadro de desigualdade
que descrevemos, de dificuldade para produção e para a vida acadêmica,
como em tudo que organiza a vida social no Brasil, as mulheres negras
são as mais afetadas. No livro presente também saudamos as produções
das mulheres transexuais e das mulheres com deficiência em meio a toda
adversidade que o meio acadêmico impõe a elas.
Apresentação
N
o presente contexto – a n o : 2019 / pa í s : B r a s i l – d e c i d i m o s
publicar uma edição exclusivamente escrita e organizada por
mulheres lésbicas, bissexuais e transexuais. E porque uma edi-
ção LBT?
Para falarmos um pouco da atual conjuntura do nosso país convém
lembrarmos que, em 2016, foi vivido por nós um golpe parlamentar contra
a única mulher presidenta do Brasil, Dilma Rousseff, democraticamente
eleita e reeleita. No ano de 2019 presenciamos, nas eleições presidenciais
e parlamentares, a escalada da caricata extrema-direita brasileira, capita-
neada por discursos homofóbicos, machistas, em afronta direta à laicidade
do Estado, intolerantes frente às diversidades de modos de vida, e violentos
frente às liberdades de expressão. O Brasil em que vivemos pode ser a pri-
meira resposta à pergunta acima, uma vez que o ataque direto à vida e aos
direitos LGBTs fez parte da campanha política desta extrema-direita citada
que agora está na presidência e em boa parte do executivo e do legislativo.
Além disso é importante pontuarmos outros elementos. Primeiro no
que se refere mais especificamente ao mundo acadêmico com o qual aqui
disputamos espaço. Precisamos apontar o fato de que é preciso romper
com uma falsa ideia de que na academia as mulheres LBTs não sofrem
preconceito ou discriminação. São muitos os entraves, as barreiras, muitas
vezes invisíveis, que se apresentam para nós, que se somam às questões de
gênero já pontuadas nos outros volumes. No que se refere às pesquisadoras
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tantas mulheres, que tanto afronta aqueles que se entregam aos fascismos
cotidianos, e que ocupa as ruas do mundo dando seu nome a elas, sempre
acreditou e defendeu todas as formas de ser e de amar. Sua política era
feita de afeto e nem por isso menos combativa. É o que desejamos com
nossas palavras, afeto e combate.
E como terminamos todos os nossos livros: o feminismo ainda está pre-
sente e vivo! E é a única saída para um mundo melhor.
Amanda e Laila
Rio de Janeiro, na resistência Feminista de 2019 com a pergunta:
Quem mandou matar Marielle?
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Carol Quintana
D
esde2010 s o u p r o f e s s o r a d e s o c i o l o g i a n o CIA J o s é F r a n -
c i s c o L i p p i , uma escola estadual e rural, localizada no municí-
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Ivanilda Figueiredo
E
2019, a s s u m i c o m o P r o f e s s o r a A d j u n ta d a F a c u l d a d e d e
m
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Introdução
“Fomos socializadas para respeitar mais ao medo que às nossas próprias ne-
cessidades de linguagem e definição, e enquanto a gente espera em silêncio
por aquele luxo final do destemor, o peso do silêncio vai terminar nos engas-
gando.” Audre Lorde
A
p e r s e g u i ç ã o à s p e s s o a s l é s b i c a s , g ay s , b i s s e x u a i s , t r av e s t i s e
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suas declarações causaram ao longo desses anos, ódio legitimado por sua
expressiva votação.
Diante da constatação de que a violência contra pessoas LGBTs já atin-
ge números assustadores, da evidência de que os discursos de ódio contra
esta população deram visibilidade e popularidade ao presidente eleito, é
de se esperar que um dos grupos com maior ameaça aos seus direitos seja
a população LGBT. Assim, resolvemos escrever esse texto em duas etapas.
Na primeira, narramos como o (neo)fascismo se estrutura, favorece o capi-
talismo e se compraz na perseguição a determinadas pessoas. Na segunda,
apresentamos relatos a respeito da perseguição a LGBTs nos regimes fas-
cistas da Europa no início do século XX.
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Hitler não seria tão ruim para a pauta, pois tinha como um de seus braços
direitos Ernst Röhm.
Ernst Röhm, um homem assumidamente homossexual, era desde a as-
censão de Hitler, um dos principais nomes do regime nazista. Em 1930,
ele tornou-se o comandante das “tropas de assalto”12 (grupo paramilitar na-
zista). Sua posição de destaque na hierarquia do regime passava uma certa
tranquilidade à população LGBT como se sua respeitabilidade assegurasse
que não haveria perseguição. Ledo engano. Ernst Röhm foi preso em 29
de junho de 1934 e morto dois dias depois por agentes da SS.
Vale lembrar ainda que Hitler foi eleito democraticamente pelo voto
da maioria, que o regime nazista tinha apoio das massas, a Alemanha ti-
nha uma Constituição, possuía um judiciário (em tese) independente e
parlamentares eleitos. Mas tão logo eleito, Hitler conseguiu – após ma-
nobras que isolaram a oposição – que o Parlamento aprovasse a “lei de
autorização” (Ermächtigungsgesetz), que permitia a aprovação de normas
pelo Chanceler (leia-se: por ele) mesmo que essas leis contrariassem o tex-
to constitucional.13 Morria ali a Constituição de Weimar. O judiciário não
deixou de existir no regime nazista, mas é notório que não foi capaz de
evitar as mais de 6 milhões de mortes de pessoas judias, nem tão pouco a
perseguição e o assassinato dos demais grupos indesejados.
O Instituto para o Estudo da Sexualidade foi fechado, seu dono perse-
guido, mais de 12 mil livros e obras de arte de sua propriedade queima-
dos. O estudo da sexualidade – e, especialmente, da homossexualidade
– se tornou proibido nas escolas alemãs. Em 1935, o parágrafo 17514 foi
alterado para se tornar mais rígido e submeter as pessoas homossexuais,
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24. BENADUSI, L. (2004). Private life and public morals: fascism and the “problem” of homosexuality. To-
talitarian Movements and Political Religions, 5(2), 171–204. doi:10.1080/1469076042000269211
25. BENADUSI, L. (2004). Private life and public morals: fascism and the “problem” of homosexuality.
Totalitarian Movements and Political Religions, 5(2), 171–204. doi:10.1080/1469076042000269211
26. BENADUSI, L. (2004). Private life and public morals: fascism and the “problem” of homosexuality. To-
talitarian Movements and Political Religions, 5(2), 171–204. doi:10.1080/1469076042000269211
27. LOFF, Manuel. O nosso século é Fascista! o mundo visto por Salazar e Franco (1936-1945). Disponível
em: http://cadmus.eui.eu/handle/1814/54045
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02. Porque podemos dizer que uma nação fascista está sendo
construída/legitimada com o discurso de Bolsonaro?
Pensar as condições atuais em que se desenvolve o fascismo ou neofas-
cismo brasileiro, que toma as ruas de uma forma assustadora, e que sai do
armário sem escrúpulos, é pensar antes de tudo nas condições em que se
encontra o capitalismo brasileiro. A crise do capitalismo que se iniciou na
década de 1970 é uma crise profunda e estrutural. O neoliberalismo, que
atingiu o Brasil na década de 1990, não deu conta de superar essa crise e
para a maioria das pessoas a política neoliberal só intensificou ainda mais
os abismos sociais.
As políticas sociais desenvolvidas nos governos Lula e Dilma consegui-
ram reduzir temporariamente os níveis de pobreza e desigualdade, mas
não promoveram mudanças sociais estruturais e, portanto, como o golpe
de 2016 e a aprovação do teto dos gastos públicos que atinge sobremaneira
os direitos sociais da população, a reforma trabalhista e o aprofundamento
da crise econômica, a pobreza voltou a crescer.30
O neoliberalismo incentiva o aumento da lógica da competitividade,
a exacerbação do individualismo e do consumismo. Ao incentivar as po-
líticas meritocráticas e a lógica do salve-se quem puder, o neoliberalismo
arrebenta os laços de solidariedade, tão importantes para a coesão social.
A lógica da competitividade se expande para as relações pessoais e demais
setores da sociedade. Esse cenário contribui para o crescimento da indi-
ferença para com o outro. Tais características fazem a gente entender o
cenário de crescimento da cultura do ódio em nossa sociedade. O cresci-
mento da indiferença e as banalizações da violência permitem entender
como o discurso salvacionista e extremista de Bolsonaro ganhou eco na
sociedade brasileira.
As lideranças fascistas atuais sabem usar esses medos do nosso contexto
atual com a mistura dos preconceitos estruturais da sociedade brasileira
como o racismo e o patriarcalismo. Hoje em dia, podemos identificar uma
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32. KONDER, Leandro. Introdução ao Fascismo (Série Teoria e Realidade). Rio de Janeiro, Edições
graal, 1977.
33. O sentido original do chauvinismo se refere a um entusiasmo excessivo pelo que é nacional e, em con-
sequência, uma desvalorização do estrangeiro. Por extensão, o chauvinismo também pode ser visto como a
valorização por um grupo específico (os arianos, por exemplo) e desprezo por outras coletividades.
34. O liberalismo político difere do liberalismo econômico. No sentido usado, antiliberal se refere ao fato de
que o liberalismo político é uma garantia das liberdades dos cidadãos, um defensor da liberdade de ir e vir,
de expressão, de comunicação, de propriedade e todas essas liberdades foram restringidas, e até negadas, a
coletivos específicos nos regimes fascistas.
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35. KONDER, Leandro. Introdução ao Fascismo (Série Teoria e Realidade). Rio de Janeiro, Edições
Graal, 1977.
36. KONDER, Leandro. Introdução ao Fascismo (Série Teoria e Realidade). Rio de Janeiro, Edições
Graal, 1977.
37. Disponível em https://esquerdaonline.com.br/2018/10/14/as-eleicoes-do-golpe-ou-o-golpe-das-eleicoes/
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38. No Brasil atual, as pessoas de esquerda são em um momento chamadas de comunistas e em outros de
petistas. No entanto, não há uma necessária identificação histórica entre as categorias. Hoje, ser humanista
já te torna de esquerda e muitos humanistas são liberais e anticomunistas. Ser petista é ser filiado a um deter-
minado partido político e há petistas comunistas, mas nem todos o são. Ser comunista não exige filiação a ne-
nhum partido político e dentre quem assim se define há quem entenda a importância de se defender direitos
humanos e quem não entenda. No entanto, as categorizações teóricas têm se perdido em meio ao mundo da
internet e do WhatsApp onde criar a oposição entre polos é muito útil ao estado de coisas que se quer formar.
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Considerações Finais
Os ideais para se valorizarem fomentam a figura de seus opostos. Uns
são os desejáveis, almejados e outros os desviantes e indesejados. Essa abor-
dagem é encontrada em todos os regimes fascistas estudados e é ela que
legitima a perseguição sofrida por diversos e diferentes grupos. Neste estu-
do, focamos apenas na perseguição às pessoas LGBTs nos regimes fascistas
europeus, mas ainda há espaço para um maior debate. Todas as ditaduras
latino-americanos perseguiram pessoas LGBTs e suas expressões culturais.
Tais regimes fascistas impuseram às pessoas ou grupos divergentes da
moral dominante duras penas e o pior é que, em grande parte deles, as
instituições permaneciam funcionando, com Constituições em vigor e
grande parte da sociedade foi convencida de que quem estava sendo perse-
guido merecia!
Além do mais, vale lembrar que a própria expressão das identidades e
sexualidades LGBTs desafiam enormemente a lógica capitalista e toda a
reprodução do próprio capital. A família burguesa patriarcal e heteronor-
mativa sustenta a sociedade capitalista ao prover a reprodução da força de
trabalho, portanto, qualquer outro modelo de relações familiares ameaça a
ordem capitalista.
Os regimes fascistas, em última instância, representam a defesa dos
princípios capitalistas que garantem a concentração do capital, portanto
nada mais lógico do que o fascismo se aproveitar de um discurso moralista
em defesa da família patriarcal e heteronormativa como modo de manu-
tenção da ordem almejada.
Em seu livro, O Calibã e a Bruxa, a feminista Silvia Federici40 sustenta
a ideia de que o domínio sobre o corpo da mulher e o trabalho doméstico
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41. https://www.cartacapital.com.br/politica/eleitor-tipico-de-bolsonaro-e-homem-branco-de-classe-media-
-e-superior-completo
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Vanessa Leite
P
ossuo graduação em Psicologia pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro (1990). Sou Mestre (2009) e Doutora em Saúde
Coletiva (2014) pelo Instituto de Medicina Social da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (IMS/UERJ). Atualmente sou pesquisadora
associada do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Huma-
nos (CLAM/IMS/UERJ), onde coordeno o curso de Especialização em
Gênero e Sexualidade – EGeS, e presto consultoria a organizações da so-
ciedade civil. Tenho dedicado meus estudos aos seguintes temas: sexuali-
dade, gênero, direitos humanos e políticas públicas.
Tenho uma trajetória pessoal e profissional ligada ao campo dos direitos
humanos. Quando cheguei à universidade em 1985, já trazia comigo uma
ânsia de colaborar na mudança social. Vivíamos o período da redemocra-
tização no país e, no ano anterior, já envolvida com a militância estudantil
secundarista, fui capturada para sempre pela participação política, a partir
da ida ao comício das Diretas Já!. Para uma menina moradora do subúrbio
carioca, fazer parte daquela mobilização foi uma experiência arrebatadora.
Ainda naquele ano, a futura estudante de psicologia, se envolvia na Zona
Oeste da cidade, onde morava, em uma mobilização de mulheres, junto
à associação de moradores, pela criação de uma creche comunitária. E
assim, fui cada vez mais me envolvendo com a militância feminista e mais
tarde, ao me identificar como mulher bissexual, à movimentação LGBTI.
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Vanessa Leite
A
o f e n s i va c o n s e r va d o r a q u e v e r i f i c a m o s e m n o s s o pa í s , e n vol-
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42. Como propõe Rubin (1992), “o tipo mais importante e consequente de conflito sexual é o que Jeffrey
Weeks chamou de ‘pânico moral’” (Weeks, 1981). Segundo a autora “pânicos morais são o ‘momento político’
do sexo, em que atitudes difusas são canalizadas em ação política e, a partir disso, em mudança social. A histeria
da escravidão branca dos anos 1880, as campanhas anti-homossexual dos anos 1950 e o pânico da pornografia
infantil no final dos anos 1970 foram pânicos morais típicos. Devido à sexualidade nas sociedades ocidentais ser
tão mistificada, as guerras sobre ela são comumente combatidas a partir de ângulos oblíquos, focadas num alvo
falso, conduzidas com paixões deslocadas, e são altamente e intensamente simbólicas. (...) Os pânicos morais
raramente aliviam um problema real já que eles focam em quimeras e significantes. Eles tomam a preexistente
estrutura discursiva em que se inventam vítimas para justificar o tratamento dos “vícios” como crimes”.
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43. Forjada no campo dos direitos humanos, a categoria direitos sexuais foi incorporada ao plano político e
acadêmico. Em geral, os autores que discutem aspectos ligados à diversidade sexual e de gênero ainda utili-
zam essa terminologia que, a meu ver, começa a ficar restrita para se referir às discussões, como a que desen-
volvo, ligadas tanto a diferentes expressões da sexualidade como também a trânsitos e identidades de gênero.
Nesse sentido, optei por incorporar, como alguns autores (Almeida e Murta, 2013) a expressão direitos sexuais
à livre expressão de gênero.
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44. Como propõe o autor, “ao longo do século XIX e durante boa parte do século XX, forjou-se um regi-
me da sexualidade bem específico, cuja análise mais influente devemos a Michel Foucault. Nesse regime,
invertendo o famoso slogan feminista dos anos 60, “nosso corpo não nos pertence”. No que dizia respeito à
sexualidade, a sociedade, o Estado, a família tinha direitos; os indivíduos tinham, sobretudo, obrigações e de-
veres (...) Fruto da relação dinâmica de múltiplos atores sociais (ativistas, gestores públicos, políticos, juristas,
intelectuais etc.), os direitos sexuais podem ser considerados espécie de símbolo de um novo regime da sexua-
lidade, com sua moralidade, racionalidade e regulações específicas”. Assim, segundo o autor, “passamos de
um regime da sexualidade cuja linguagem era predominantemente médica, para um regime que se formula
em uma linguagem jurídica”. (Carrara, 2011, págs. 02, 03 e 04).
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gênero que lhes foi atribuído ao nascer. Desde muito cedo as crianças são
cobradas a assumir posições em relação ao seu gênero que mantém as de-
sigualdades e uma cruel hierarquia de gênero. Às meninas é imposto um
lugar social de submissão aos desejos masculinos. Ainda é esperado delas
uma preparação para o cuidado doméstico, o casamento e a maternidade.
Às mulheres ainda cabe a responsabilidade do mundo privado. Em muitos
contextos, as meninas têm sua permanência na escola comprometida pelo
trabalho doméstico e o cuidado de irmãos mais novos. Além disso, mui-
tas ainda enfrentam violências e abusos cotidianos. Contudo, desde muito
pequenos, aos meninos é cobrado um conjunto de posturas que visam à
reafirmação de uma masculinidade hegemônica. A negação da possibili-
dade de expressão das emoções, uma estimulação excessiva em relação ao
exercício da sexualidade e a desvalorização da mulher e do mundo femi-
nino são exemplos de uma realidade que contribui enormemente para a
manutenção das desigualdades de gênero.
Temos usado, em sociedade, a diferença para construir desigualdade.
Há muitas formas de vivenciar a feminilidade e a masculinidade. Só que
há um padrão, que é ensinado a todos como o certo. As crianças, desde
muito pequenas, são ensinadas sobre o que a menina deve e não deve fa-
zer, qual o lugar do menino e que comportamento é esperado dele. As
crianças já estão sendo educadas em relação ao gênero, uma certa forma
de entender qual o lugar do masculino e qual o lugar do feminino. Desde
cedo são ensinados sobre o que é “ser menino” e o que é “ser menina”. A
educação da família, e que depois se mantém na escola, é ainda hegemo-
nicamente pela afirmação de uma concepção em relação ao gênero que
separa e hierarquiza o mundo masculino do mundo feminino de forma
brutal. E quando se chega à adolescência, com a vivência da sexualidade,
essas separações e hierarquizações se fortalecem.
Nos meninos são valorizadas a agressividade e a competitividade. Des-
de muito jovens enfrentam o estímulo a uma “sexualização”, porque o me-
nino tem que ser o “pegador”, e eles têm que se submeter a essa estrutura,
que é muito violenta. No caso das meninas é ainda pior, pois lidam com
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uma realidade onde lhes é negada uma série de vivências. São aspectos,
em alguns momentos, muito sutis, que estão no cotidiano das relações e
nas instituições, o que faz com que as pessoas muitas vezes não se deem
conta. Que atividades são permitidas, modos de agir, comunicar, vestir.
Negar a discussão de gênero nos espaços educativos acaba por manter va-
lores que, ao mesmo tempo em que desqualificam e desvalorizam as me-
ninas, são muito pesados para os meninos, de quem é cobrado um tipo de
masculinidade baseada em virilidade extrema e agressividade. Ao contrário
do que é dito quando se defende a não discussão de temas ligados a gênero
na escola, defender os direitos das crianças e adolescentes, é possibilitar
que essas desigualdades sejam discutidas.
Outro aspecto importante é que as normas de gênero são muito rígi-
das. Às crianças que não cumprem com o que é esperado de seu gênero
é imputada uma homossexualidade. A grande maioria das crianças consi-
deradas “diferentes” ainda não está pensando com quem vai se relacionar
ou desejar afetivo/sexualmente mais tarde, apenas não cumpre com uma
expectativa de gênero que lhes é imposta. Há uma confusão entre expres-
sões de gênero e orientação sexual.
No que diz respeito à sexualidade, minha experiência junto a espaços
educativos tem demonstrado que a grande maioria das instituições não tra-
ta formalmente o tema da sexualidade e das expressões de gênero com as
crianças e os adolescentes, negando, de certa maneira, essa dimensão da
vida deles. Quando esses temas aparecem, é numa perspectiva negativa,
vinculada a supostos “problemas”, como a gravidez (considerada sempre
“indesejada”), às doenças sexualmente transmissíveis/Aids e à violência (es-
pecialmente ao abuso e à exploração sexual). A maioria das experiências
educacionais no campo da sexualidade e do gênero voltadas a adolescen-
tes baseia-se fundamentalmente no repasse de informações. Me parece
que não se consegue “descolar” a sexualidade de um pano de fundo de
valores intensamente negativos. A sexualidade é abordada quase sempre na
perspectiva do risco e não na do direito. Não há uma perspectiva de articu-
lar as dimensões de gênero e sexualidade a outras na vida dos adolescentes
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desses valores. Aqueles que ousam confrontar essas normas tanto de gê-
nero quanto de sexualidade, estarão expostos às mais variadas formas de
violência, das mais sutis às mais destrutivas.
No bojo dessa reflexão, um aspecto que merece atenção especial é a
tensão entre público e privado, entre a construção de espaços de atendi-
mento públicos e laicos e a fixação a valores religiosos conservadores. Essa
tensão tem operado no sentido de provocar mais paralisia do que transfor-
mação nos espaços educativos. Vinculações e dogmas religiosos dos educa-
dores podem fazer com que suas posições pessoais, ligadas a convicções de
ordem privada, impeçam ou dificultem que eles levem a cabo discussões
ligadas a gênero e sexualidade. E dificultam um posicionamento mais re-
ceptivo à diversidade sexual e de gênero.
É fundamental chamar a atenção para o fato de que as educadoras e
educadores têm um papel central na luta contra a discriminação que tem
promovido o sofrimento de diversas pessoas a partir das diferenças de com-
portamento ou expressão. E ressaltar o papel da educadora e educador
público para promover a formação integral de sujeitos que sejam capa-
zes de romper com os ciclos de desigualdade. Ao mesmo tempo, torna-se
importante discutir a missão da escola pública enquanto espaço onde as
diferenças possam ser acolhidas e respeitadas. Esse é um tema difícil, mas
precisamos enfrentá-lo. Mas se tivermos clareza de que o papel da escola
não é se intrometer nas convicções pessoais, mas promover o respeito e a
liberdade, talvez possamos avançar.
Outro aspecto que julgo fundamental é o estatuto de sujeito da popula-
ção infanto-juvenil. O discurso dos direitos humanos foi fundamental para
a afirmação do campo de garantia dos direitos das crianças e adolescentes,
pois sua conformação se deu a partir do impacto de um ideário dos di-
reitos humanos, que se fortalecia internacionalmente, no que poderíamos
denominar um “campo da menoridade” no Brasil47. Com a mudança do
47. A Convenção Internacional dos Direitos da Criança foi aprovada em 1989 pela Assembleia-Geral da ONU.
O novo instrumento internacional de direitos humanos colocou na irregularidade a doutrina da “situação irre-
gular”, pano de fundo de todas as políticas jurídicas e socioeducacionais vigentes no Brasil bem como em toda
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a América Latina desde a promulgação, pela Argentina, em 1919, da primeira legislação de menores da região.
A promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, em 1990, superou legalmente o modelo da
doutrina da “situação irregular”, substituindo-o pelo paradigma da “proteção integral”, abrangendo todas as
crianças e adolescentes. Essa substituição tem implicado na busca de mudanças nos métodos de intervenção,
que não devem ser mais punitivos, mas educativos, e de respeito ao seu desenvolvimento (Carvalho, 2000).
48. Na efervescência do processo de democratização da sociedade brasileira, construiu-se uma grande alian-
ça de setores da sociedade civil e política em torno da problemática das crianças e adolescentes no Brasil.
Articulava-se o Movimento de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, que contou com o envolvi-
mento de diferentes atores sociais. Essa grande frente foi se conformando como um movimento que construiu
estratégias de sensibilização da opinião pública, denunciando prisões ilegais, torturas, assassinatos, toda sorte
de violação de direitos da população infanto-juvenil pobre no país. Essa mobilização se fortaleceu no período
constituinte e teve seu primeiro êxito ao conquistar o reconhecimento dos direitos sociais básicos, não mais
dos menores, mas de todas as crianças e adolescentes brasileiros, independente de classe social ou raça, no
texto constitucional de 1988, através dos artigos 227 e 228.
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49. Optei por dar ênfase no meu trabalho à categoria “adolescentes LGBT” e não “jovens LGBT”, tendo
consciência da “ficção” que representam os marcadores etários, por julgar que a utilização dessa categoria
rende mais, em termos reflexivos, para a análise dos discursos e das diferentes concepções que envolvem a
adolescência/juventude. Demarco, assim, a intenção de direcionar a reflexão tendo como referência um mar-
co etário, não por acreditar que “naturalmente” os sujeitos têm comportamentos definidos pela idade, a partir
de uma perspectiva essencialista e biologicista, mas por buscar entender como se lida com esses sujeitos “me-
nores de idade”, quando sua sexualidade e expressões de gênero estão em jogo. Foco assim, principalmente
nas ações e reações em relação a essa categoria social.
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50. O Programa Rio sem Homofobia foi criado sob a coordenação da Superintendência de Direitos Indivi-
duais, Coletivos e Difusos (SUPERDIR) da Secretaria Estadual de Assistência Social e Direitos Humanos
(SEASDH). Os Centros da Cidadania LGBT (CCLGBT) são serviços de acolhimento, atendimento, orienta-
ção, encaminhamento e acompanhamento de pessoas vítimas de preconceito e discriminação por orientação
sexual e identidade de gênero nas áreas social, psicológica e jurídica, garantindo acesso a direitos, serviços e
políticas públicas. Realizei trabalho de campo nos quatro CCLGBT em funcionamento à época da realiza-
ção da pesquisa (2011 a 2014): Rio de Janeiro (Capital), Caxias, Niterói e Friburgo. Estabeleci diálogo com
as equipes técnicas dos Centros (formadas por assistentes sociais, psicólogos e advogados), coordenadores e
gestores do Programa. A última gestão do governo estadual do Rio de Janeiro (governador Luís Fernando Pe-
zão – PMDB) veio progressivamente desmontando o Rio sem Homofobia e os serviços ligados ao Programa.
Processo que se intensifica na atual gestão governamental (governador Wilson Witzel – PSC).
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Um outro caso que chamou muita atenção foi o de uma mãe que aces-
sou o Centro, “desesperada”, segundo os profissionais, porque seu ex-ma-
rido estava tentando retirar de sua guarda um filho de 15 anos. Segundo
relataram, “o pai queria tirar a guarda porque achava que ela era muito per-
missiva com o filho que era viadinho”. Essa mãe morava com outra mulher
e trabalhava em uma escola técnica onde seu filho estudava. O pai acessou
a diretora da escola e conseguiu transferir o filho da escola à revelia da
mãe. Essa diretora assinou um parecer onde concordava com a mudança
de guarda, de certa forma culpabilizando a mãe pela orientação sexual do
filho, afirmando que ele era “gay”. O profissional me relatou que “o pai
pegou esse papel com a diretora e entrou com uma ação de guarda (...) A
mãe tinha uma relação homoafetiva, né?”. Muitos professores também são
acusados de atitudes desrespeitosas pelos adolescentes que acessaram os
Centros.
Ouvi relatos de familiares que buscaram os Centros em função de pro-
blemas na escola de seus filhos, sobrinhos ou netos. Como a mãe que pro-
curou o serviço afirmando que seu filho de 17 anos era gay e estava sendo
constantemente discriminado por um professor. Ela se mostrava temerosa
do que ainda poderia acontecer. Essa mãe relatou um fato marcante so-
frido por seu filho, registrado pelo profissional do CCLGBT: “na hora da
saída, seu filho ao descer a escada, esbarrou no professor e o mesmo falou,
‘não encosta em mim porque eu tenho nojo’”.
Se a maioria dos casos relatados diz respeito a atitudes mais individua-
lizadas, que, é claro, contam com a conivência e silenciamento de muitos
outros, alguns casos envolvem posturas institucionais, como a história de
uma jovem de 15 anos, que foi expulsa da escola particular em que estuda-
va, em um município da Baixada Fluminense, “por ser lésbica”. A mãe da
jovem acessa o Centro junto com a menina para denunciar que sua filha,
segundo registro do profissional, “sofreu até o fim do ano letivo repressões
por parte da coordenadora da escola que ameaçou reprová-la. A chamava de
lésbica e passou a orientar os outros alunos a não manterem contato com a
jovem, para não serem aliciados, influenciados”. Segundo o relato da mãe,
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(...) acho que ela era um pouco mais masculinizada, como as pessoas enten-
dem. Ele disse que ela jogava futebol há muito tempo. E aí começou uma
zoeira na escola que ela era sapatão e não sei que, essa confusão. Mas a
conversa com o diretor foi muito boa. Ele não só a abordou, chamou a aten-
ção dos meninos, e ele conversou sobre a possibilidade da gente fazer uma
sensibilização lá.
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51. UNESCO (2004a); UNESCO (2004b); Rede de Informação Tecnológica Latino-Americana (2009);
Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (2009); Reprolatina (2011).
52. Ver, entre outros, Louro (2010); Altman (2007); Junqueira (2009a, 2009b, 2009c); Lionço e Diniz (2008
e 2009); Prado et al (2009); Fernandes (2011); Pocahy et al (2009); Daniliauskas (2011).
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66
Referências
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possibilidade da despatologização da transexualidade e a necessidade
da assistência integral à saúde de transexuais no Brasil. Sexualidad, Sa-
lud y Sociedad. Rio de Janeiro, v.1, p.380 – 407, 2013.
67
COSTA, Antônio Carlos Gomes da. Por uma política nacional de exe-
cução das medidas socioeducativas: conceitos e princípios norteadores.
Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2006b.
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tratégias discursivas de agentes públicos ante medidas de promoção do
reconhecimento da diversidade sexual nas escolas. Bagoas: revista de
estudos gays / Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de
Ciências Humanas, Letras e Artes, V.3, n.4, jan./jun. 2009.Natal: EDU-
FRN, 2009a.
69
70
RUBIN, Gayle. Thinking Sex: notes for a radical theory of the politics of
sexuality. In: NARDI, P.M.; SCHNEIDER, B.E. (Ed.). Social perspecti-
ves in lesbian and gay studies: a reader. New York: Routledge, 1998.
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72
D
escobrir-me pesquisadora foi um processo que se deu aos
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afeita aos Estudos sobre Deficiência e não aos Estudos Surdos, embora
minha posicionalidade surda, às vezes implique dialogar também com o
segundo campo para mostrar que é possível pensar em epistemologias de-
fiças fora da caixa, de maneira a abarcar todos os tipos de deficiência e não
apenas a surdez.
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Introdução
N
Brasil há uma lacuna na produção acadêmica sobre lésbi-
o
53. O presente trabalho é uma versão parcial e modificada de minha tese de doutorado intitulada “Olhar,
(não) ouvir, escrever: uma autoetnografia ciborgue” (MELLO, 2019), com a diferença de que aqui incremen-
to o debate da lesbianidade. O tópico “Meu implante coclear, meu brinquedo erótico aleijado” também é
uma versão expandida e modificada de Mello & Gavério (2019).
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55. O implante coclear é uma tecnologia clínico-terapêutica indicada para pessoas com perda auditiva neu-
rossensorial bilateral profunda. É uma prótese computadorizada composta de dois dispositivos: uma parte
interna que é o implante propriamente dito, colocado cirurgicamente na cabeça, sob a pele; e a parte externa
que fica atrás da orelha, constituída por um processador de fala retroauricular, que é uma espécie de sinteti-
zador de som, um microfone, uma antena transmissora e um cabo. Ambos os dispositivos fazem contato entre
si por meio de uma antena imantada (a antena externa transmissora possui um imã que serve para fixá-la à
antena interna receptora, que também contém um imã).Em síntese, o mecanismo de funcionamento do
implante coclear se dá da seguinte maneira: um microfone contido na parte externa do implante capta os
sons e os envia para o chip de computador contido no processador de fala retroauricular que, por sua vez,
decodifica os sons em informações digitais. Estes sinais decodificados são enviados a um chip receptor/esti-
mulador, que fica na parte interna do implante, via indução magnética através de um imã externo, contido
na antena transmissora. O chip receptor/estimulador envia os sinais diretamente para um feixe de 22 (vinte
e dois) eletrodos de platina que estão enrolados na cóclea, localizada no ouvido interno. Os eletrodos dentro
da cóclea estimulam eletricamente o nervo auditivo e transmitem a sensação de som do nervo auditivo para
o centro cerebral da audição.
56. Há dois “modelos clássicos” da deficiência, o modelo médico e o modelo social. Em linhas gerais, no
modelo médico a deficiência está no corpo do indivíduo; portanto, o foco é concebê-la como um “problema”
do indivíduo, objetivando-se a cura ou medicalização do corpo deficiente; no modelo social, a deficiência vai
além do corpo, é o produto da relação entre um corpo com impedimentos de natureza física, visual, auditiva,
intelectual ou psicossocial e um ambiente incapaz de lhe prover acessibilidade (MELLO; NUERNBERG;
BLOCK, 2014). Essa perspectiva desloca a compreensão da deficiência do corpo do indivíduo para o contex-
to, apontando para as barreiras sociais impostas pelo ambiente. Desse modo, no modelo social a deficiência
passa a ser percebida como um “problema” do Estado e da sociedade. Por isso, importa aqui o contexto social
na definição da deficiência, quando esta passa a ser considerada também uma diferença ou uma forma de
opressão social que opera com outras categorias sociais como gênero, raça/etnia, classe, sexualidade etc.
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57. Em Mello (2006) inverto o sentido de deficiência concebendo-a como “falta” (enquanto perda de uma
estrutura ou função corporal) e não como “diferença”, a fim de alinhá-la como contraproposta à “concepção
antropológico-cultural” da surdez. Ao tomar a deficiência como sinônimo de lesão sem um cuidado analítico,
faço uma crítica a essa concepção da surdez como uma forma extrema e negativa do “modelo social da de-
ficiência”, uma vez que parece partir de um “estado de natureza”, em que a condição da surdez implica em
um “estado social” irredutível.
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[São] os Surdos que não têm contato com a comunidade Surda. Ou Sur-
dos que viveram na inclusão ou que tiveram contato da surdez como pre-
conceito ou desconhecimento social. São outra categoria de Surdos, visto
de não contarem com os benefícios da cultura Surda. Eles também têm
algumas características particulares:
1. Seguem a representação da identidade ouvinte;
2. Estão em dependência no mundo dos ouvintes, seguem os seus prin-
cípios, respeitam-nos, colocam-nos acima dos princípios da comunidade
Surda, às vezes competem com ouvintes, pois são induzidos no modelo de
identidade ouvinte;
3. Não participam da comunidade Surda, associações e lutas políticas;
4. Desconhecem ou rejeitam a presença do intérprete de Língua de
Sinais;
5. Orgulham-se de saber falar “corretamente”;
6. Demonstram resistências à Língua de Sinais e à cultura Surda visto que
isto, para eles, representa estereótipo;
7. Não conseguiram identificar-se como Surdos, sentem-se sempre infe-
riores aos ouvintes; isto pode causar muitas vezes depressão, fuga, suicídio,
acusação aos outros Surdos, competição com ouvintes, há alguns que vi-
vem na angústia no desejo contínuo de serem ouvintes;
8. São as vítimas da ideologia oralista, da inclusão, da educação clínica, do
preconceito e do preconceito da surdez;
9. São Surdos. Quer ouçam algum som, quer não ouçam, persistem em
usar aparelhos auriculares, não usam tecnologia dos Surdos;
10. Estas identidades Surdas flutuantes também apresentam divisões; por
exemplo, aqueles que têm contato com a comunidade Surda, mas rejei-
tam-na, os que já tiveram contato, etc... (PERLIN, 2002, p. 15-16).
58. Além das “identidades surdas flutuantes”, temos as “identidades surdas” propriamente ditas como “a
verdadeira identidade política”; as “identidades surdas híbridas”; as “identidades surdas embaçadas”; as
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sujeito se constitui. E uma vez que existem sujeitos surdos que por diversas
razões veem infinitas possibilidades de exercer a agência ao procurar ajuda
no campo dos saberes médicos, proponho uma perspectiva alternativa ao
conceito de reabilitação, de modo a não reduzir a surdez (e qualquer outra
deficiência) à ideia de “normalização de corpos”.
Julie Elman (2014), por exemplo, mostra que no limite a reabilitação
pode ser muito mais pervasiva no nível da ‘standard-tização’ do corpo para
o que seria uma vida “normal” do que se a olharmos estritamente como
processos de intervenções corporais. Para a autora, a reabilitação não tem
o sentido de cura, posto que esta implica um fim para a gestão de um
corpo, enquanto aquela produz o corpo como algo sempre incompleto ou
inacabado. Como práticas que englobam discursos médicos e culturais,
com frequência a reabilitação invoca o uso de ideias sobre deficiência e
capacidade física, respectivamente,como “perda” indesejada e como “to-
talidade” a ser cobiçada. Essas concepções de reabilitação atrelam a saúde
do indivíduo a valores capitalistas como “eficiência” e “boa gestão” e é por
isso que a necessidade da reabilitação se estende a todos os corpos, inde-
pendentemente da idade que tenhamos ou de possuirmos deficiência.
Mesmo na perspectiva da surdez, enquanto um conjunto de relações
que são simultaneamente culturais, econômicas e corporais, penso que a
reabilitação deva ser compreendida como uma concepção e não estrita-
mente uma técnica de normalização de corpos, de sujeitos. Ou seja, deve
ser vista como um processo que aumenta a capacidade do sujeito de es-
tabelecer trocas sociais e afetivas nos diversos cenários da vida cotidiana.
Assim, a reabilitação pode e deve trabalhar com o olhar voltado para o
sujeito e não para a “deficiência” (ainda que a deficiência aqui seja um
“atributo” e não um “problema”), trabalhar com o sofrimento, a fragilida-
de e não com a incapacidade, buscar a produção de novas subjetividades e
não a cura da surdez.
Outrossim, considero que a ênfase dada no uso da língua de sinais
como a principal definição de “cultura surda” (Cf. SANTANA & BERGA-
MO, 2005, p. 574) na verdade mascara as “diferenças de dentro” e com ela
84
62. O procedimento cirúrgico para a colocação de um implante coclear implica a perda automática de qual-
quer audição residual no lado implantado. No meu caso, isso quer dizer que os 10% de audição residual que
eu tinha antes do implante coclear no lado direito do ouvido se perderam para sempre. Ainda, cabe esclarecer
que mesmo “os surdos congênitos não vivenciam o “silêncio” nem se queixam dele (assim como os cegos não
vivenciam a “escuridão” ou não se queixam dela). Essas são nossas projeções, nossas metáforas para o estado
deles. Ademais, os que têm a surdez mais profunda conseguem ouvir ruídos de vários tipos e ser sensíveis a
vibrações de toda espécie. Essa sensibilidade às vibrações pode tornar-se um tipo de sentido acessório: por
exemplo, Lucy K., embora profundamente surda, é capaz de avaliar de imediato um acorde como “domi-
nante” colocando a mão sobre o piano, e consegue interpretar vozes em telefones com grande amplificação;
em ambos os casos, o que ela parece perceber são vibrações, e não sons” (SACKS, 1998, p. 21). No entanto,
as vibrações a que Oliver Sacks se refere são provenientes dos sons, são vibrações sonoras que para as pessoas
surdas se dão com a sensação de pressão sobre o corpo. Mesmo eu quando em determinados momentos não
estou usando meu implante coclear, percebo vibrações sobre meu corpo de forma mais acentuada do que
se usasse o implante coclear. Um exemplo dessa sensibilidade a vibrações enquanto não o uso se dá quando
faço pipoca no forno de micro-ondas, lançando mão do sentido do tato para perceber as vibrações. Consigo
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Do devir-ciborgue à espécie-companheira
Donna Haraway (2009) define o ciborgue como “um organismo ciber-
nético, um híbrido de máquina e organismo, uma criatura de realidade
social e também uma criatura de ficção” (HARAWAY, 2009, p. 36). Nesse
sentido, o ciborgue de Haraway se confunde entre humano e não humano
porque está entre os dois. O ciborgue não é isto-ou-aquilo, ou seja, não é
ou “realidade social” ou “ficção científica”, mas ambos, embora para Don-
na Haraway essa definição não signifique que não deva situá-lo enquan-
to um trabalho de classificação (GANE; HARAWAY, 2010, p. 17). Desse
modo, o caráter ciborgue neste texto implica o hibridismo surdo-implante
coclear.
Como um cruzamento entre organismo (humano) e máquina (não
humano), meu corpo surdo é uma materialidade torcida, ou uma mate-
rialidade aleijada nos termos da teoria crip63(MCRUER, 2006), porque
mediado, montado, performado e borrado por um actante não humano
chamado implante coclear, um dispositivo médico altamente sofisticado
que tem como função potencializar a minha capacidade auditiva de um
modo mais efetivo do que um aparelho auditivo convencional e, por exten-
são, contribui para ampliar a minha capacidade cognitiva. Essa descrição
me aproxima de um tipo ideal de organismo cibernético, dentro da ideia
perceber na palma da mão as pressões do “estouro da pipoca”; se essas pressões cessam em um intervalo de 2
a 3 segundos, a pipoca está pronta para ser retirada.
63. A teoria crip é considerada a teoria queer da deficiência, ainda que eu veja a primeira como uma ex-
pansão da segunda, a partir do incremento da deficiência. A teoria crip, ou teoria aleijada em português, foi
pensada principalmente para questionar a exclusão do capacitismo como matriz de discriminação intersec-
cional nas teorias feministas e queer. Como ocorre com o estranho que vem do queer, as terminologias crip
(em inglês) e aleijada (em português) têm uma conotação propositalmente agressiva, pejorativa e subversiva,
a fim de marcar o compromisso aleijado em desenvolver uma analítica da normalização de corpos, a partir
da crítica aos sistemas de opressão marcados pelo patriarcado, pela heterossexualidade compulsória (RICH,
2010) e pela capacidade compulsória (MCRUER, 2002) que não questiona a naturalização e hierarquização
das capacidades corporais humanas nos discursos, saberes e práticas sociais. Quando uma pessoa não ouve,
ela é lida como “deficiente” e passa a ser percebida culturalmente como “incapaz”. O capacitismo também é
essa forma hierarquizada e naturalizada de conceber qualquer corpo humano como algo que deve funcionar,
agir e se comportar de acordo com a biologia. Nesse sentido, ao usar o termo aleijado, estou considerando
a necessidade de aleijar no sentido de descolonizar, mutilar, deformar e contundir o pensamento feminista,
queer e decolonial, provocando-lhe fissuras.
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(...) Não existe nada mais que seja simplesmente “puro” em qualquer dos
lados da linha de “divisão”: a ciência, a tecnologia, a natureza puras; o
puramente social, o puramente político, o puramente cultural. Total e
inevitável embaraço. Uma situação embaraçosa? Mas, cheia de promessas
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66. Entende-se por agnosia a incapacidade de elaborar ou configurar as sensações obtidas através dos órgãos
correspondentes dos sentidos para chegar a formar um conceito daquilo que foi percebido. Portanto, é um
distúrbio de identificação de objetos no qual é possível descrevê-lo, mas não identificá-lo. Pode ser parcial
quando se refere a uma só esfera sensorial, ou total. A percepção de um objeto envolve uma identificação
primária (obtida pela qualidade sensorial percebida, como a visão do objeto) e uma identificação secundária
(recordação das demais características sensoriais do objeto). No caso das pessoas surdas adultas pré ou peri-
-linguais submetidas ao implante coclear, chama-se agnosia auditiva ou surdez psíquica. Desse modo, para
ouvir e entender as palavras, a pessoa surda necessita primeiro “pegar” os sons dessas palavras para fazer delas
referências às suas imagens correspondentes e, por conseguinte, identificá-las até que se tornem uma “coisa
só”, isto é, sem mais necessitar fazer a associação entre audição (pelo som) e visão (pela imagem). Muito
provavelmente essas pessoas surdas precisam criar uma “voz interior” que normalmente não têm para apren-
derem como se dizem as palavras e a ouvi-las.
90
67. “Defiça” é abreviação carinhosa de “deficientes”, tomada em contexto exclusivamente brasileiro. Preferi-
mos nos referir aqui a “defiças” no sentido de “deficientes”, aproximando-se da teoria crip (MCRUER, 2006).
O termo “defiça” (ou “deficiente”) também se alinha com a perspectiva dos estudos culturais, ao ser tomado
como um substantivo, ou seja, da mesma forma em que no Brasil usamos os termos “negro” e “indígena” ao
invés da expressão “pessoas de cor”, também podemos falar de “deficiente”.
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68. No Brasil para cada marca de implante coclear há apenas uma única empresa fornecedora detendora
dos direitos de venda de todos os produtos da marca. O único produto que o(a) usuário(a) de implante coclear
tem o controle do seu preço é a bateria não carregável tipo botão, podendo comprá-la fora da empresa de sua
marca de implante coclear, havendo várias opções de marcas de baterias desse tipo, com possibilidade de
adquiri-las até de empresas do exterior, via compra em sites on-line. No entanto, para a maioria dos(das) usuá-
rios(as) a bateria não recarregável tipo botão tornou-se uma segunda opção, haja vista que os modelos atuais
de implantes cocleares já fornecem baterias recarregáveis como parte do pacote do implante coclear externo.
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70. Adaptação razoável “significa as modificações e os ajustes necessários e adequados que não acarretem
ônus desproporcional ou indevido, quando requeridos em cada caso, a fim de assegurar que as pessoas com
deficiência possam gozar ou exercer, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, todos os direitos
humanos e liberdades fundamentais” (BRASIL, 2008). Assim, quando um determinado ambiente apresenta
barreiras, construídas ou naturais, de tal modo que impeçam o pleno acesso das pessoas com deficiência, é
responsabilidade institucional executar as devidas adaptações razoáveis no local (SASSAKI, 2010).
71. O post intitulado “Sexo, surdez e aparelho auditivo”, publicado no blog Crônicas da Surdez, de Pau-
la Pfeiffer, mostra que o uso de implantes cocleares e aparelhos auditivos faz parte dos roteiros sexuais das
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No Ocidente, pessoas espectrais são o que estão mais próximas das pes-
soas compósitas da Papua Nova Guiné. As pessoas com deficiência são
o melhor exemplo de pessoas-grafo, pois desde muito cedo apreendem
a continuar sua pessoa, seu corpo, sua existência, não apenas em outras
pessoas e relações, mas também em tecnologias, substâncias, espaços, dis-
positivos. Um cadeirante continua em sua cadeira de rodas, ele e ela são
72. A ideia de pessoa-grafo provê da teoria dos grafos da matemática, em que “os grafos são uma forma de
representar formalmente uma rede, que é basicamente uma coleção de objetos que estão todos conectados
entre si” (JOSHI, 2017). Esta é também a abordagem matemática para descrever as redes sociais que conhe-
cemos (Facebook, Twitter etc.).
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· Para a cegueira:
· Para a surdez:
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[...] Edison havia adquirido não só uma surdez parcial, mas também co-
nhecimento técnico e algum dinheiro. Aproveitando-se desse duplo fun-
damento, seu laboratório – o primeiro laboratório da história da técnica –
realizou dois sonhos do século: a gravação mecânica do som, o fonógrafo,
e a fonte de iluminação perfeita, a lâmpada incandescente. (Idem, Ibidem,
p. 226-227)
· Para a loucura:
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Considerações finais
Este trabalho foi uma primeira tentativa de refletir sobre algumas ques-
tões que permeiam a agência não humana do meu implante coclear e que
influenciam as minhas subjetividades surda e lésbica. Do ponto de vista
feminista, não podemos falar da simetria da interdependência corpo surdo-
-implante coclear sem levar a sério tudo o que não é humano no contexto
da deficiência e as implicações metodológicas dessa perspectiva conjuntiva
“sexo/implante coclear” para a constituição de identidades da pessoa surda.
No meu caso, fazer amor com a mesma mulher, ouvinte com quem com-
partilho minha vida há quase uma década, portando um implante coclear
para curtir ouvir os sons do sexo exige que eu não perca esse “tornar-se-com”
grafo e isso não ocorre sem uma via de mão dupla entre o híbrido surdo-
-implante coclear, as affordances e todos os actantes que compõem a rede
sociotécnica do implante coclear, incluídos minha parceira e eu, estabele-
cendo relações, conexões, associações. É próprio da pessoa com deficiência
se associar também ao não humano e essas associações são sempre híbridas.
Ser ciborgue é dizer que não se é humano sem a agência não humana.
O fetiche pelos sons do sexo obtidos com a ajuda de um implante co-
clear é tributário da subjetividade da pessoa surda, independentemente de
sua orientação sexual. Ouvir via implante coclear tem a ver com desejo e
as sensações consumadas por esse desejo nem sempre se constituem em
uma experiência negativa para qualquer pessoa surda. No meu caso não
há por que afirmar ser difícil uma lésbica surda não ter a possibilidade de
compartilhar uma “vida a duas” com uma lésbica ouvinte sob o argumen-
to da comunicação ser limitada ou pouco acessível, porquanto importa
que lésbicas surdas e ouvintes desejem cultivar a vontade de compartilhar
suas vidas umas com as outras.
Como mulher surda, muitas vezes meu lugar situado (HARAWAY,
1995) no mundo indica que não é o gênero, mas a deficiência (surdez) a
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73. As “sexualidades não normativas” ou “sexualidades dissidentes”, friso, não se reduzem à população
LGBT, posto que as pessoas com deficiência também fazem parte desse rol.
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Referências bibliográficas
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re of Deafness. New Brunswick, New Jersey; London: Rutgers University
Press, 2010.
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C. H.; FIGUEROA-SARRIERA, H. J.; MENTOR, S. (Eds.). The Cyborg
Handbook. London: Routledge, 1995.
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109
110
SACKS, Oliver. Vendo Vozes: uma viagem ao mundo dos surdos. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998.
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112
113
C
o m e c e i m i n h a m i l i tâ n c i a a i n d a n o m o v i m e n t o s e c u n d a r i s ta ,
115
Ilê Axé Odé Omí Ewá Dofona de Xangô e carrego no meu corpo a ances-
tralidade do meu povo e a fé de quem venceu os grilhões da escravidão.
É no som do atabaque e nos cânticos em iorubá que recarrego as minhas
forças para seguir lutando por aqueles que se foram e que virão.
Antes de concluir gostaria de dedicar esse artigo à minha companheira
de militância Valda Neves, que me incentivou a escrevê-lo e organizar as
ideias no papel, gratidão!
116
O
sequestro doP o v o N e g r o A f r i c a n o pa r a o B r a s i l p o r m e i o
do tráfico negreiro pelos europeus é um dos grandes marcos da
formação do nosso país. Foi no Brasil colônia que começou a se
estruturar a identidade do sujeito brasileiro e a nossa nação, onde o negro
escravizado era identificado, legalmente até a abolição, enquanto merca-
doria com valor para venda, troca, trabalho forçado e demais necessidades
do senhor de engenho. Não fazendo parte do que viria ser chamado popu-
lação brasileira.
No período colonial o engenho era a sede do poder patriarcal absoluto,
os latifúndios de monocultura eram microterritórios patriarcais, católicos e
de manutenção da dominação através da força e da destruição dos valores
culturais africanos. Os negros escravizados deveriam ser evangelizados ain-
da na travessia do Oceano Atlântico para sua “domesticação” e ao chegar
na costa brasileira eram rebatizados e vendidos separados de suas famílias
perdendo, assim, sua identidade africana.
Após a abolição da escravidão ocorrem dois movimentos importantes
para a formação do que caracterizamos enquanto sujeito constituinte da
nação brasileira, uma delas através de políticas públicas, a outra por meio
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Art. 402. Fazer nas ruas e praças publicas exercicios de agilidade e destreza
corporal conhecidos pela denominação capoeiragem; andar em correrias,
com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provo-
cando tumultos ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incu-
tindo temor de algum mal:
Pena – de prisão cellular por dous a seis mezes.
Paragrapho unico. E” considerado circumstancia aggravante pertencer o ca-
poeira a alguma banda ou malta. Aos chefes, ou cabeças, se imporá a pena
em dobro.
Art. 403. No caso de reincidencia, será applicada ao capoeira, no gráo ma-
ximo, a pena do art. 400.
Paragrapho unico. Si for estrangeiro, será deportado depois de cumprida a
pena. Art. 404. Si nesses exercicios de capoeiragem perpetrar homicidio, pra-
ticar alguma lesão corporal, ultrajar o pudor publico e particular, perturbar
a ordem, a tranquilidade ou segurança publica, ou for encontrado com ar-
mas, incorrerá cumulativamente nas penas comminadas para taes crimes.
(GAMA, 1929, p.462).
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“Ser negro é ser violentado de forma constante, contínua e cruel, sem pausa
ou repouso por uma dupla injunção: a de encarnar o corpo e as ideias de
Ego do sujeito branco e a de recusar, negar e anular a presença do corpo
negro.” (Jurandir Freire Costa)
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Ser uma mulher negra lésbica não é só uma orientação sexual, mas
uma filosofia, um modo de vida e uma posição política. É confrontar o
sistema diariamente com o seu próprio corpo e entender a heteronormati-
vidade e o racismo enquanto um sistema e um político. Assim como Ochy
Curiel define em El Lesbianismo Feminista: una propuesta política trans-
formadora se relacionar com mulheres do mesmo sexo é mais do que ter
relações sexuais é criar laços afetivos de acolhimento e de solidariedade
entre elas.
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A raiz é o espelho
Do que eu digo
E a semente espalha
Tudo o que é dito
Do seu jardim nasceu a flor desobediente
Enquanto ela existir vai ser diferente
Descluindo e criando
Saltando barreiras
A faraó, a verdadeira
Valente imperatriz, revolucionária
A pioneira, nunca retardatária!
Se gruda nóis pura ousadia
A venenosa, erva daninha
Líder nata na estrina
Mulher ipanema, heroína
No grito e no ferro
Que nunca se entrega
Quebrando o tabu
Destruindo as regras
Autêntica, polêmica, combatente
Coloca a mulher sempre a frente
Enigmática, apoiada pela fé
Decidida, sabe sempre o que quer
130
Nota de rodapé:
¹LGBT+: Inicialismo de Lésbica, gay, bissexual, transgênero\transse-
xual e o + é inclusivo de outros grupos como assexual, intersexo e queer.
Referências bibliográficas:
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nas relações homossexuais. Psychologica, 39, 167-187.
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des E Mitos. Revista Aurora.
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bre Branquitude e Branqueamento no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2002.
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formadora. Disponível em:< https://www.lahaine.org/aY0q>.
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Faria, N. Capitalismo patriarcal e racista. Ep.01. Disponível em:< ht-
tps://www.youtube.com/watch?v=88y_ochQo0Y >.
131
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Heloisa Melino
O
H e l o i s a ! Faç o d o u t o r a d o e m D i r e i t o s
lá, eu sou a
133
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135
ou algum desses temas com os quais trabalho, estarei disponível pelo meu
e-mail de contato, heloisamelino@gmail.com.
Toda força a nós, até breve!
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Heloisa Melino
1. O conhecimento encarnado
Um dos temas muito caro aos feminismos é o da universalidade do su-
jeito. Uma questão com vários desdobramentos, um dos quais a universali-
dade do sujeito teórico, produtor do que vai ser reconhecido como conhe-
cimento, como saber. O sujeito teórico produtor de verdades universais,
gerais e abstratas para a vida de todas as pessoas, em seus cotidianos con-
cretos. Se olharmos para a História e buscarmos aquelas pessoas que foram
reconhecidas como principais pensadores, filósofos, cientistas, as pessoas
que receberam prêmios por suas produções de vida, veremos que são, em
sua massiva maioria, homens cisgêneros brancos da Europa ou dos Esta-
dos Unidos das Américas. Não por coincidência, a maioria desses pensado-
res é dos mesmos países que praticaram colonização e imperialismo sobre
outras nações – e com a exploração destas últimas, enriqueceram.
O sujeito epistemológico masculino nega o corpo e dirige a encarnação
à esfera feminina, renomeando o corpo como fêmea, mas numa corporei-
dade não aceita, como diz Butler,
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74. Tradução livre. No original, “Esta asociación del cuerpo con lo femenino se basa en relaciones mágicas
de reciprocidad mediante las cuales el sexo femenino se limita a su cuerpo, y el cuerpo masculino, completa-
mente negado, paradójicamente se transforma en el instrumento incorpóreo de una libertad aparentemente
radical. El análisis de Beauvoir formula de manera implícita la siguiente pregunta: ¿a través de qué acto de
negación y desconocimiento lo masculino se presenta como una universalidad desencarnada y lo femenino
se construye como una corporeidad no aceptada?”
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75. Tradução livre. No original: “Feminism is concerned with women; feminism is concerned with gen-
der; feminism is concerned with sexuality and race. But there may be something more important that those
particular objects of our concern. Feminist methodologies, both for research and organizing, impel us to
explore connections that are not always apparent, they drive us to inhabit contradictions and discover what is
productive in theses contradictions and methods of thought and action; they urge us to think things together
that appear to be entirely separate ant to disaggregate things that appear to belong naturally together. Feminist
methods, both in research and in organizing for social justice, require us to challenge the singularity, the
separateness, and the wholeness of a range of social categories.”
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76. Tradução livre. No original: “Comparten las ‘mujeres’ algún elemento que – sea anterior a su opressión,
o bien las ‘mujeres’ comparten un vínculo únicamente como resultado de su opresión? [...] Hay una región
de lo ‘específicamente femenino’, que se distinga de lo masculino como tal y se acepte en su diferencia por
una universalidad de las ‘mujeres’ no marcada y, por consiguiente, supuesta?”
77. Tradução livre. No original: “porque las estrategias siempre tienen significados que sobrepasan los obje-
tivos para los que fueron creadas”
78. Tradução livre. No original: “se arriesga a que se lo acuse de tergiversaciones inexcusables”
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mostre um povo como uma coisa, como somente uma coisa, repetidas ve-
zes e será o que eles se tornarão. É impossível falar da “única história” sem
falar sobre poder. Há uma palavra, uma palavra Igbo, da qual eu lembro
sempre que penso nas estruturas de poder do mundo e a palavra é nkali.
É um substantivo que livremente se traduz: “ser maior do que o outro”.
Como nossos mundos econômicos e políticos, histórias também são defi-
nidas pelo princípio de nkali. Como são contadas, quem as conta, quando
e quantas histórias são contadas. Tudo realmente depende do poder. Poder
é a habilidade não apenas de contar a história de outro povo, mas de fazê-
-la a história definitiva daquele povo.80
79. NGOZI, Chimamanda A. Palestra “The danger of a single story” legendado no link https://www.youtu-
be.com/watch?v=ZUtLR1ZWtEY acesso em 27 de abril de 2015.
80. 9:28 em diante. Tradução de acordo com a legenda disponível no próprio vídeo.
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81. 13:57 em diante. Tradução de acordo com a legenda disponível no próprio vídeo.
1 43
A linguagem que Anzaldúa usa em seu livro, como pode ser visto
no trecho acima, é um dos exemplos do que Haraway chama de escri-
ta-ciborgue. São várias as autoras que trabalham esse aspecto político da
82. Tradução livre: “Essa é minha terra/essa fina borda de/arame farpado. [...] Eu sou uma ponte rápida/do
mundo uma ‘gringa’ e imigrante ilegal/o passado me estica para trás/e o futuro para frente”
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83. A democracia deliberativa tem como ideia principal que as decisões políticas sejam alcançadas por um
processo de deliberação entre cidadãos livres e iguais, o que traz como marco diferencial a ideia de pluralis-
mo, conceituado pela diferença. As duas escolas de democracia deliberativa contemporâneas mais conhe-
cidas são as que levam os ensinamentos de John Rawls e de Jürgen Habermas. Essas duas escolas buscam
promover um elo forte entre liberalismo (estado de direito, separação de poderes e direitos individuais) e
democracia (soberania popular), em nome da autonomia particular e da autonomia política. Insistem na
possibilidade de garantir autoridade e legitimidade a algumas formas de razoabilidade pública e acreditam na
existência de uma racionalidade normativa. Ambos fazem uma distinção entre mera concordância e consenso
racional e o campo da política é identificado como troca de argumentos entre pessoas ‘razoáveis’ guiadas pelo
princípio de ‘imparcialidade’, em busca de um consenso ‘racional’.
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84. Para chegar à racionalidade prática, Rawls fala da ‘posição original’, em que os participantes, sob um ‘véu
de ignorância’ de sua própria condição, deixam de lado todas suas particularidades e interesses para chegar a
um ideal de ‘justiça como equidade’ (‘justice as fairness’). Para Habermas, essa racionalidade prática é alcan-
çada pela ‘situação ideal de fala’, que vai eliminar as posições com as quais os participantes do ‘discurso moral’
não podem concordar. Esse ‘discurso’ tem como requisitos, a igualdade e simetria entre todas e todos, o que
permite que qualquer pessoa proponha temas e interfira no debate político igualmente. Com isso, todas as
pessoas têm igual ‘poder de comunicação’, ou seja, se sentem igualmente livres para falar e suas vozes seriam
igualmente ouvidas – uma condição de discurso, diga-se, impossível de se realizar numa sociedade historica-
mente atravessada por relações de poder desiguais. O próprio Habermas reconhece a improbabilidade de que
deixemos de lado interesses pessoais para encontrar nosso ‘eu racional universal’.
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sempre vulnerável. Esse terreno tem que ser propício para transformações
e mudanças, para desafios, contestações e por isso ele tem que ser vul-
nerável.
As identidades são contingentes, o poder que constitui as identidades
oscila e precisa ser dinâmico, para não representar dominação e opressão
de uns sobre outras/os. Um terreno inviolável seria uma arena de debates
políticos em que houvesse voz unívoca, em que as ideias não pudessem
circular fora da forma que circularam até então e logicamente seria para
manutenção da hegemonia.
As relações de poder sempre vão existir e a dominação sempre se im-
põe pela força, porque toda exclusão é violenta. Buscar um consenso ra-
cional é pressupor que exista uma racionalidade melhor do que as outras,
é pressupor que um ponto de vista é mais legítimo, mais válido que os
demais e isso é um ataque ao princípio democrático de livre debate entre
iguais. O “consenso racional”, portanto, é antidemocrático.
Ao aceitar que as relações de poder são constitutivas do social, a questão
principal para as políticas democráticas não é como eliminar o poder, mas
como constituir formas de poder que sejam mais compatíveis com os valores
democráticos. Para Mouffe (2005), política é conflito, então a democracia
tem que ser agonística, ou seja, tem que trazer a possibilidade de que haja
embate de ideias entre adversários que respeitam e reconhecem a legitimida-
de uns dos outros para participar do debate e até para vencer a argumentação.
Em uma democracia pluralista, a pluralidade de valores e interesses
será conceitual desse regime e não haverá uma solução ‘racional’ para os
conflitos que vão surgir disso, porque não há como hierarquizar esses va-
lores ou esperar que eles não estejam presentes nos posicionamentos po-
líticos expressos. É preciso aceitar o ponto de vista do adversário e aceitar
que o antagonismo faz parte do processo democrático. Como diz Mouf-
fe (2005:102), as concessões e ganhos “devem ser vistos como tréguas em
confrontos contínuos”85.
85. Tradução livre. No original: “Compromises are, of course, also possible; [...] they should be seen as tem-
porary respites in an ongoing confrontation.”
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86. Tradução livre. No original: “A democratic society acknowledges the pluralism of values, the ‘disen-
chantment of the world’ diagnosed by Max Weber and the unavoidable conflicts that it entails.”
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Como diz Michel Foucalt (1979), em conversa com Giles Deleuze, de-
signar focos, denunciá-los, é dar visibilidade ao foco do poder, é dar visibi-
lidade à questão social que se contextualiza em torno daquela relação de
poder e essa enunciação é um primeiro passo da luta. É a partir dessa enun-
ciação que se possibilita a tomada de consciência, mas mais importante
que isso, é uma primeira inversão do poder, porque o discurso contra-hege-
mônico confisca, ainda que por um momento, o poder de falar, monopoli-
zado por quem está no polo de domínio. “O discurso de luta,” diz o filósofo,
“não se opõe ao inconsciente: ele se opõe ao segredo.” (Foucault, 1979:76)
Slavoj Zizek (2012) também defende que a verdadeira luta política é a
luta democrática. É lutar pelo direito de se manifestar, de ser ouvida/o, de ser
reconhecida/o como portadora/r de uma voz legítima, pois é isso que compro-
mete a ordem social pré-constituída, que quer cada uma/m no lugar assina-
lado. Reivindicar voz interrompe, ainda que provisoriamente, a hegemonia.
“Como domar uma língua selvagem?”, é a pergunta que Anzaldúa faz
em seu livro “Borderlands: the new mestiza = la frontera” (2007). No ca-
pítulo que leva como nome essa pergunta, a autora fala da língua como
dominação, um dos temas centrais deste livro.
Ela fala também sobre como a cultura trai as mulheres e podemos am-
pliar isso às pessoas que não se encaixam nos binômios normativos de gê-
nero, a todas as pessoas, enfim, que não sejam o sujeito super-humano que
é o referencial universal de humanidade. A cultura, sendo feita por quem
87. Tradução livre. No original: “ninguna capacidad legítimamente humana y reconocida como derecho
puede ser valorada como eterna o sagrada. Cada una y todas ellas pueden perderse, congelarse, no cumplirse
jurídicamente o revertirse, puesto que expresan un compromiso político, una determinada correlación de
fuerzas que los sectores populares deben defender en cada momento.”
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nossa cultura tira nossa habilidade de agir – nos acorrenta para nos prote-
ger. Bloqueadas/os, imobilizadas/os, nós não podemos andar para frente,
nós não podemos andar para trás. [...] E ali na nossa frente está a encruzi-
lhada e a escolha: nos sentirmos vítimas, onde outra pessoa terá o controle
e, portanto, será responsável e alguém a quem culpar (ser uma vítima e
transferir a culpa para a cultura, mãe, pai, ex-amante, amiga/o, me absolve
da responsabilidade); ou nos sentirmos fortes e, na maior parte, no contro-
le.(2007:42-43) 88
88. Tradução livre. No original: “our culture take away our ability to act – shackle us in the name of protec-
tion. Blocked, immobilized, we can’t move forward, can’t move backwards. […]And there in front of us is
the crossroads and choice: to feel a victim where someone else is in control and therefore responsible and to
blame (being a victim and transferring the blame on culture, mother, father, ex-lover, friend absolves me of
responsibility), or to feel strong, and, for the most part, in control.”
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M
T r a n s e x u a l , A t i v i s ta T r a n s f e m i n i s ta , M u s i c i s ta ,
ulher
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E
s t e a r t i g o t e m p o r o bj e t i v o a p r e s e n ta r u m a l i n h a d o t e m p o
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Um pouco da história
Paralelamente aos fatos acima citados, a comunidade cientifica brasi-
leira se debruçava para compreender as questões da Transexualidade, pois,
afinal, esse assunto já era tratado dentro de um amplo espectro de conhe-
cimentos acadêmicos na Europa e nos Estados Unidos, desde as questões
que envolvem a “disforia de gênero” até as cirurgias de readequação se-
xual, passando pelas transformações físicas oriundas de hormonização e
próteses, pois muitas pessoas começaram a procurar clínicos e cirurgiões
para que atendessem a seus insistentes pedidos de mudança de sexo.
Em 1971, médicos pioneiros do Hospital das Clínicas de São Paulo
tentaram solucionar o problema de pessoas transexuais através da regula-
mentação da cirurgia de conversão e da legalização da nova identidade do
gênero, o que foi aprovado em 1979 por unanimidade pelo Senado e pela
Câmara Federal, mas vetado pelo presidente João Batista Figueiredo. Na
época, fez-se a primeira cirurgia de conversão em uma pessoa transexual
(masculino para feminino) no Brasil, o que resultou em um processo cri-
minal por lesão corporal grave, apesar de ter sido requisitada pelo pacien-
te, com o objetivo de lhe proporcionar a integração “biopsicossexual” e
social que faz parte do seu direito à saúde.
Em 10 de setembro de 1997, o Conselho Federal de Medicina deu pa-
recer favorável a cirurgia de conversão de transexuais quando realizada em
hospitais-escola sem fins lucrativos. O direito à cirurgia é adquirido após
o paciente ter passado por no mínimo dois anos de acompanhamento por
uma equipe multidisciplinar de médicos e psicólogos.
O registro civil
Advogados, Defensores Públicos e bacharéis em Direito, juntamente
com seus orientadores, também se debruçaram sobre essa questão para
analisar as nossas leis e observar em que partes poderiam se utilizar na
defesa dessa causa, objetivando a mudança de registro civil do que se com-
preende nome e sexo.
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Votação
O ministro Ricardo Lewandowski concordou com o posicionamento do
relator, ministro Marco Aurélio. Ele também se ateve ao vocábulo “transe-
xual”, contido na petição inicial, sem ampliar a decisão aos transgêneros.
Lewandowski considerou que deve ser exigida a manifestação do Poder
Judiciário para fazer alteração nos assentos cartorários. De acordo com
ele, cabe ao julgador, “à luz do caso concreto e vedada qualquer forma
de abordagem patologizante da questão”, verificar se estão preenchidos os
requisitos da mudança, valendo-se, por exemplo, de depoimentos de teste-
munhas que conheçam a pessoa e possam falar sobre a autoidentificação
ou, ainda, declarações de psicólogos e médicos. No entanto, eliminou toda
e qualquer exigência temporal ou realização de perícias por profissionais.
“A pessoa poderá se dirigir ao juízo e, mediante qualquer meio de prova,
pleitear a alteração do seu registro”.
No início de seu voto, o ministro Celso de Mello afirmou que, com este
julgamento, o Brasil dá mais um passo significativo contra a discriminação
e o tratamento excludente que tem marginalizado grupos, como a comu-
nidade dos transgêneros. “É imperioso acolher novos valores e consagrar
uma nova concepção de direito fundada em uma nova visão de mundo,
superando os desafios impostos pela necessidade de mudança de paradig-
mas em ordem a viabilizar, até mesmo como política de Estado, a instau-
ração e a consolidação de uma ordem jurídica genuinamente inclusiva”,
salientou, acrescentando que o regime democrático não admite opressão
da minoria por grupos majoritários.
O decano da Corte avaliou que a questão da prévia autorização judicial
encontra solução na própria lei dos registros públicos, uma vez que, se
surgir situação objetiva que possa eventualmente caracterizar prática frau-
dulenta ou abusiva, caberá ao oficial do registro civil das pessoas naturais a
instauração do processo administrativo de dúvida.
O ministro Gilmar Mendes se aliou ao voto do ministro Alexandre de
Moraes para reconhecer os direitos dos transgêneros de alterarem o regis-
tro civil desde que haja ordem judicial e que essa alteração seja averbada à
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Processo Cirúrgico
Quanto à perspectiva da integralidade de direitos equânimes entre
Mulheres cisgêneras transgêneras, as cirurgias de redesignação em 2010,
o CFM – Conselho Federal de Medicina editou a Resolução CFM
1.955/2010[2] (Publicada no Diário Oficial da União, de 03 de setembro
de 2010, seção I, p. 109/110), regulamentando de modo completo a cirur-
gia de redesignação sexual, revogando a Resolução CFM 1.652/2002. Esta
considerou ser o paciente transexual portador de desvio psicológico perma-
nente de identidade sexual; reafirmando a viabilidade técnica para as cirur-
gias de neocolpovulvoplastia e/ou neofaloplastia, bem como o fato de que a
transformação da genitália constitui a etapa mais importante no tratamento
de pacientes com disforia de gênero que desejam se submeter a esse proce-
dimento que foi homologado pela Portaria n.º 1.707 (BRASIL, 2008), que
instituiu no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) o processo transe-
xualizador, a ser implantado em todo o Brasil. Hoje, qualquer pessoa pode
acessar o SUS para submeter-se a uma cirurgia de redesignação sexual.
A despeito de todas essas garantias jurídicas e humanas ainda há uma
resistência social na compreensão das questões elementares desses direitos,
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uma vez que parte desta está movida pelo preconceito e dificuldade em
aceitar as diferenças, razão pela qual esse artigo objetiva contribuir com a
sociedade, que estando em pleno século XXI, não deve permanecer inerte
no tempo e espaço ignorando os avanços que estão aí visíveis e que outrora
não tinha como se imaginar, observando, o inciso III do art. 1º da Consti-
tuição Federal, princípio da dignidade da pessoa humana, vislumbrando
este propósito a ser pautado por toda a população brasileira, seja com a
alteração do prenome e gênero, seja com o combate aos preconceitos en-
raizados na sociedade.
As experiências de uma vida social são distintas em suas várias etapas,
com pessoas de diferentes culturas, credos, etnias, comportamento e com-
preensão de mundo social garantindo assim, a continuidade do processo
da evolução humana e a eliminação dos estigmas sociais e a efetivação
de direitos. Paulo Freire nos mostra um caminho possível, não romântico
nem utópico, mas acima de tudo possível de se entender que viver, é se
oportunizar, se inserir em um ciclo permanente de aprendizado onde po-
demos entender que os obstáculos não se eternizam.
Avanços pontuais
Pensando em reduzir danos emocionais a essa parcela da população
brasileira, o Poder Executivo Estadual sancionou por Decreto Estadual Nº
43.065 de 08 de Julho de 2011 o uso do nome Social na administração
pública direta e indireta no Estado do Rio de Janeiro. No passo seguinte, o
Poder Executivo Estadual promulga o Decreto Nº 46172 DE 22/11/2017
que institui a “Carteira de Identidade Social”, a ser expedida pelo DE-
TRAN-RJ – Diretoria de Identificação Civil, para identificação de pessoas
travestis e transexuais que desejarem usar o “Nome Social” no âmbito do
Estado do Rio de Janeiro. “Parágrafo único. Para fins deste Decreto, con-
sidera-se “Nome Social” a designação pela qual a pessoa travesti ou transe-
xual se identifica e é socialmente reconhecida”.
Já o Município do Rio de Janeiro sancionou o Decreto N° 33816 de 18
de maio de 2011 que evoluiu para a Lei nº 6.329, de 23 de março de 2017
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que dispõe sobre o direito do uso do nome Social por Travestis e Transe-
xuais na Administração Pública direta e indireta do mesmo.
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Além disso, a alteração que a lei sofreu pouco tempo antes de ser aprovada,
que substituiu o vocábulo gênero pela expressão condição de sexo feminino,
na verdade não altera a interpretação, já que a expressão por razões de sexo
feminino, prende-se, igualmente, a razões de gênero. O legislador não al-
mejou trazer uma qualificadora para a morte de mulheres. Se assim fosse,
bastaria ter colocado: Se o crime for cometido contra mulher, sem utilizar
a expressão por razões da condição de sexo feminino.
Assim, entendo que toda vez que uma mulher se identificar com o gênero fe-
minino, independentemente da realização da cirurgia de mudança de sexo,
for morta em razão dessa condição, incidirá a qualificadora feminicídio.
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que luta contra a “opressão de gênero”. É um caminho sem volta para essa
igualdade de direitos.
A EMERJ vem colocando lume na questão de Gênero, e consequen-
temente, a ampliação dessa visão e entendimento maior das Mulheres
(Cisgêneras & Transgêneras), com a criação do Curso de Especialização
(Pós-Graduação Lato Sensu) em Gênero & Direito, que muito contribuirá
na continuidade dos avanços, trará em sua estrutura curricular muitos mó-
dulos que em algum momento tratarão desses avanços, ainda que, dentro
da sua pluralidade, haja posições diferentes e até conflitantes sobre o tema,
assim como a mais recente publicação que trata do Gênero na especifici-
dade do “Feminicídio”, um recorte do gênero que a Juíza de Direito Adria-
na Ramos de Mello domina com a experiência de sua “práxis iustitiae”.
Creio que todas essas articulações do movimento feminista & transfe-
minista junto à EMERJ − Escola da Magistratura do Estado do Rio de
Janeiro, ao CNJ − Conselho Nacional de Justiça, e à AMB − Associação
de Magistrados Brasileiros trarão ao Congresso brasileiro uma responsabi-
lidade ainda maior no tratar dos projetos de lei de uma parcela da nossa
população, que ainda se encontra invisível em muitas estatísticas e como
tal, sem uma política pública coerente com suas demandas, e que clama
por equidade e justiça, pois a verdadeira democracia é aquela em que a
maioria respeita, defende e protege a minoria.
Certamente, tal conceito está em consonância com a Pedagogia, ciên-
cia que tem como objetivo a educação, o processo de ensino e a aprendi-
zagem, e que tem como missão, difundir as melhores formas de acesso ao
conhecimento.
O papel da autoridade democrática não é, transformar a existência hu-
mana num “calendário” escolar “tradicional”, o fundamental no aprendi-
zado do conteúdo é a construção da responsabilidade da liberdade que se
assume.(FREIRE, 2015)
Isto posto, é mister que continuemos a pôr em prática, tais afirmações
diante da responsabilidade social que a democracia dá a todos nós para
exercer de forma permanente, tal sistema político.
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Citações
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(Editora Leya)
“Em todos os lugares do mundo, todos os dias, Mulheres (Cis & Trans)*
são vítimas de assassinatos pelo simples fato de serem mulheres”.
Adriana Ramos de Mello Juíza de Direito do 1º Juizado de Violência Doméstica con-
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Disponívelem:<https://www.livrariaflorence.com.br/produto/livro-tran-
sexualidade-principios-de-atencao-integral-a-saude-silva-132309> Acesso
em: 11 maio 2019
FREIRE, Paulo – Pedagogia da Autonomia; Saberes necessários à Práti-
ca Educativa, 51ª Edição. Disponível em: <https://onlinecursosgratuitos.
com/17-livros-de-paulo-freire-para-baixar-em-pdf-livros-de-pedagogia/>
Acesso em: 11 maio 2019
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P
sicóloga pelaUFF e m e s t r a e m S a ú d e C o l e t i va p e l a UERJ.
Era 1998 o ano em que comemorava junto aos meus pais a aprova-
ção no vestibular para o curso de Psicologia da UFF. Moradora do
bairro de Honório Gurgel, a viagem diária de duas horas e meia de deslo-
camento, foi só a primeira dentre outras viagens metafóricas e literais que
fui fazendo ao longo desse per-curso, em-curso, per-feito. Viagens que nos
abrem para outras possibilidade e modos de ser-no-mudo. E através delas,
poder encontrar também, nessa abertura de ser, a possibilidade de sermos
o que, mais originariamente em nós, somos. Pensar no meu lugar de fala
para uma apresentação como esta, é acolher o que me levou a esta temáti-
ca: um dia a minha história tentou excluir de mim, o meu lugar.
Havia assim, uma história89. E era a de uma mulher. Seu nome, Estrela.
Estrela casou-se com um rei, David. Nesta época, havia muitos burbu-
rinhos contrários a esta união. Os motivos eram os mais diversos, desde o
fato de terem se conhecido numa festa profana (carnaval), o que diziam
trazer mau agouro, até Estrela ser proveniente de uma família mestiça da
união entre Italianos (que vieram para o Brasil no século XIX em busca de
trabalho) e Tupiniquins (sinônimo de brasileiro, mas que fazia referência
89. Uso a linguagem alegórica como forma de narrar em terceira pessoa algo que circunscreve minha própria
história. Os nomes dos personagens não são aleatórios, mantive a primeira letra real de seus inspiradores.
Numa intencionalidade de manter a proximidade entre eles. “D” de David (o rei) como “D” de Decio (meu
pai), “E” de Estrela (a destemida) como “E” de Estela (minha mãe), “R” de Renascida que significa meu
próprio nome e “P” de Panacéia (que significa a que remedia os males) como “P” de Paula, minha esposa.
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idade, pela perda do pai, ou por não conseguir mais fingir ser o que não
era, Renascida reorganiza sua vida de forma a seguir seus afetos e convida
sua mãe para também se mudar. Estrela aceita, não via mais sentido em
permanecer no mundo velho quando um novo despertava em seu céu.
Juntas, recomeçam a vida. Sem reinado, precisaram trabalhar para so-
breviver, foram muitos os desafios para conquistar um novo lugar. Sobre-
tudo, sentiam que estavam enriquecendo de experiências e aprendizados.
Até que Renascida decide voltar para o lugar onde um dia foi o antigo
reinado de seu pai, para concluir seu curso de Psicologia. Despede-se da
mãe, que carregava dúvidas em seu coração se deveria ou não permitir que
sua filha fosse para tão longe dela.
A vida seguiu e, prestes a se formar Psicóloga, Renascida recebe uma
carta com o selo do lugar onde morava sua mãe. Por não ser a forma como
se comunicavam, estranhou e abriu o envelope preocupada... mergulhou
nas palavras. Era uma mulher contando que sua mãe e ela estavam apaixo-
nadas, e que por temer a reação da filha, Estrela não estava se alimentando
e ficando fraca. Instantaneamente um filme passou pela memória de Re-
nascida... as vezes em que sentiu amor pelas amigas e precisou esconder, o
medo de ser descoberta por amar a quem achava que não devia, a angústia,
a solidão, a insegurança de compartilhar esse sentimento até mesmo com
as amigas mais próximas, a sensação de ter duas vidas: uma que as pessoas
viam e outra que carregava em seu peito. Um filme, um transbordamento
de emoções que a fez contatar imediatamente a mãe para lhe dizer:
– mãe?
– oi filha
– seja feliz com a Lua. Soube do amor de vocês, viva-o, enfrente os
burburinhos contrários a esta união. No próximo verão visitarei vocês.
– eu te amo filha
– também te amo mãe.
Renascida visitou a mãe quando o próximo verão chegou e em todos os
outros seguintes. Estrela constituiu nova família com Lua, que tinha um
filho de cinco anos, proveniente de casamento anterior com outra mulher.
181
182
Resumo
O
p r e s e n t e t r aba l h o d e d i c o u at e n ç ã o à m at e r n i d a d e l é s b i c a
183
1. Introdução
A temática das maternidades lésbicas une duas (ou até três) categorias de
análise, que cruzadas produzem outras complexidades não necessariamente
observadas se as analisarmos isoladamente. Estudar maternidade atrelada à
lesbianidade provoca reflexões sobre as tradicionais formas de ser mãe; ques-
tiona a naturalização da ligação entre sexo e procriação; desconstrói ditos
populares que afirmam que ‘mãe é uma só’; e possibilita diferentes estraté-
gias de coparentalidade entre mulheres lésbicas e suas(seus) filhas(os). Tudo
isto sem desprezar o depósito de discussões acerca do mito do amor materno
e as considerações de diferentes estudiosas feministas, que valoram a mater-
nidade diferentemente a partir do ‘ser mulher’ neste horizonte histórico.
Estudar a associação entre lesbianidade e maternidade é também pi-
sar num terreno híbrido, que brinda variadas fontes, caminhos teóricos
e metodológicos, que podem dialogar e compor um campo de pesquisa
multidisciplinar. Neste caminho, a maternidade lésbica pode derivar para
os estudos de gênero e sexualidade, abrangendo as disputas pelos direitos
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proximidade ao tema
Maternidade AND Lésbica 7 6 0 6
Adoção AND Lésbica 2 1 0 0
Gestação AND Lésbica 0 0 0 0
Gravidez AND Lésbica 2 1 1 0
Lésbica AND Homomaternidade 1 1 1 0
Lésbica AND Homoparentalidade 4 4 4 0
Mulheres lésbicas AND Maternidade 12 7 5 3
Mulheres Lésbicas AND Homoparentalidade 8 7 3 2
Mãe AND Homoparentalidade 11 5 3 2
188
Mãe AND Lésbica 5 1 1 0
Família AND Lesbianidade 6 2 1 1
Família AND Homossexualidade 156 – – 1
Família AND Homoparental 34 21 6 7
Família Homoparental AND Maternidade 6 3 3 0
Homoparentalidade AND Maternidade 8 5 5 0
Maternidade Lésbica AND Saúde 11 7 4 0
Mães AND Homossexuais AND Mulheres 8 4 3 1
miolo-sexualidadesdissidentes.indd 188
Conjugalidade AND Lésbica AND Maternidade 2 2 2 0
Reprodução assistida AND Lésbica 3 3 3 0
Total 286 54 34 23
Fonte: A autora, 2017.
Tabela 2. Descritores e estratégias de busca utilizadas na BDTD e resultados obtidos em 03/11/2017.
Próximas à
Descritores Encontrados Repetidas Teses Dissertações
temática
miolo-sexualidadesdissidentes.indd 189
Maternidade AND Lésbica 24 8 0 4 4
Adoção AND Lésbica 13 1 0 0 1
Gestação AND Lésbica 9 0
Gravidez And Lésbica 13 1 1
Lésbica AND Homomaternidade 2 1 1
Lésbica AND Homoparentalidade 9 7 5 2
Mulheres lésbicas AND Maternidade 22 8 8
Mulheres Lésbicas AND Homoparentalidade 7 5 5
Mãe AND Homoparentalidade 11 3 2 1
189
Mãe AND Lésbica 27 5 5
Família AND Lesbianidade 39 11 10 1 1
Família AND Homossexualidade 132 – – 1
Família AND Homoparental 32 12 9 3 0
Família Homoparental AND Maternidade 12 6 5 1
Homoparentalidade AND Maternidade 12 6 6
Maternidade Lésbica AND Saúde 17 2 2
Mães AND Homossexuais AND Mulheres 30 8 5 2
Conjugalidade AND Lésbica AND Maternidade 10 4 4 0 0
A MANDA MENDO NÇA - LAI LA MA R IA D OMIT H V ICE N T E
11/10/2019 13:38:35
JOVEN S PESQ UI SADO RAS: SEXUA L ID A D E S D IS S ID E N T E S
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caso de morte, Chicão deveria ficar com sua companheira e que ele ti-
nha medo de perder “sua mãezinha” Eugênia. Entretanto, o pai de Cássia,
apesar do desejo da filha, declarou seu interesse em obter a guarda do seu
neto Chicão. O caso, que foi levado à Justiça e promoveu fissuras nas nor-
mas e valores em torno da parentalidade no Brasil, é também comentado
por outras autoras (Aires, 2012; Noronha, 2008; Silva, 2008; Souza, 2005).
Além de ter contribuído para a visibilidade da parentalidade lésbica e a
proteção legal destas famílias.
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198
199
Pra mim, adotar um filho passa por uma questão de idealismo exacerbado.
Eu tenho muita fé, cada dia mais eu tenho certeza que nós somos seres
espirituais. Com a experiência humana, nada que começou encerra aqui.
Então, pra mim, eu sabia que se viesse do meu ventre ou vindo por adoção
seria o mesmo espírito. Então, se eu tenho esse sustentáculo espiritual, se
eu tenho essa convicção, por que é que eu vou querer gerar um filho? Que
egoísmo é esse se tem tantas crianças sem lar e eu posso ser essa família
para essa criança? Esse é o meu sentimento, a minha fé na solidariedade
universal (Joana) (LIRA, 2012, p.103)
200
criança que precisa de um lar, que precisa de amor, e a gente pode adotar
uma criança? E em adotando, nós estamos exatamente na mesma propor-
ção (...). E não tem discussão: eu sou mãe cem por cento; ela é mãe cem
por cento. Acho que isso fez alguma diferença – tanto o fato de ter muita
criança que precisa, né, como o fato da gente estar exatamente na mesma
proporção nessa missão. Perfeito!” (Maria) (LIRA, 2012, p.105)
A motivação em prol da adoção, como descrita por Maria no trecho
acima, ao mesmo tempo que promove aberturas para a inteligibilidade de
outros formatos de vínculo, enfatiza a o vínculo biológico como prevalente
ao afetivo. Ou seja, adotando, ambas se veriam na mesma proporção, e
não em desigualdade por uma possuir o biológico e a outra não. O peso
que o vínculo biológico demonstra possuir, nos laços de parentesco na cul-
tura ocidental, parece ser um desafio para as famílias homoparentais na
tentativa de equivaler a parentalidade
A preeminência da filiação biológica e a possibilidade de que o filho
não possa ser reconhecido juridicamente por ambas as mães, trouxe in-
segurança para Patrícia, que vislumbrou a gravidez de sua mulher com o
material genético de seu irmão, como estratégia para que seu filho perma-
necesse na família.
Ter uma companheira que tinha um filho biológico, e como era que eu
iria ficar nessa história, como é que ia criar essa criança? Não tinha le-
gislação nenhuma naquele momento que protegesse e aquela criatura ia
dizer: não, a mãe sou eu. E eu ia ser o que? Não ia ser nada, né? (Patrícia)
(LIRA, 2012, p.114).
201
criança com a mãe biológica. Silva entrevistou cinco casais que se torna-
ram mães conjuntamente a partir do acesso à NTR. Para algumas a adoção
era pensada como possibilidade, para outras nunca foi uma opção, den-
tre as razões identificadas, apontaram a “vontade de gerar”, “a dificulda-
de de adoção em nosso país” e “o receio de terem seus pedidos negados
devido às suas sexualidades” para escolherem a RA. Foi pontuado que “a
verdade ainda parece estar arraigada na biologia, no que é comprovável”,
estimulando “a crença de que seus filhos [biológicos] teriam maior aceita-
ção em sua família de origem” em comparação aos adotivos (SILVA, 2013,
p.36 e 39).
Nota-se que até para os casais que optaram pela RA, a adoção, pelo
menos para uma das mães, no caso a que não gestou, precisa ser admitida
e conquistada. Compreende-se que, “assim como a adoção só pode ser
pleiteada por um dos parceiros, a fecundação in vitro também só possibili-
ta que uma só pessoa gere o filho e com isso apenas um dos pares assuma
legalmente as funções parentais da criança” (LIRA, 2012, p.57).
Na pesquisa de Corrêa (2012) vemos especificidades entre as mulheres
lésbicas e mães e suas formas de construir sua cidadania íntima dentro de
um contexto heteronormativo de sociedade brasileira. Corrêa entrevistou
doze mulheres, dentre elas, duas que lançavam um outro olhar para o ter-
mo adoção ao se referir ao uso das NTR. Adriana explica: “Mas a gente
brinca que pra quem queria adotar, isso na verdade é uma adoção, né? É
uma meia adoção. Metade dela é adotada. A gente não tem informação
nenhuma. Você adota o doador de uma certa maneira” (CORRÊA, 2012,
p. 131).
Por estas pesquisas, nota-se que, ainda que se admitam outros elos, a
concepção de laços de parentesco apresenta desafios específicos para ca-
sais de mulheres que desejam ter filhos conjuntamente. Parte deste desafio
se dá pela primazia endereçada ao biológico na comprovação e legitima-
ção da parentalidade, gerando insegurança e desconfiança na mãe que
não os detém e que não terá sua linhagem genética preservada.
202
Chamar para si um direito que lhes foi negado devido à orientação homos-
sexual que as tornavam estéreis e, em certa medida, as pintavam, diante do
senso comum, menos mulheres (...). Eis que estas mulheres contornam
203
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206
207
Porque se você casa com um homem, você quer ter um filho com ele,
não com o seu vizinho. Você quer ter um filho do homem que você ama.
Então nada mais natural do que você querer gerar um filho da pessoa que
você ama. E aí, as pessoas não entendem. Falam: ‘porque se você gera com
o seu próprio óvulo não vai ser filho dela? Vai assim como numa adoção o
filho também é seu. Você adota e é seu’. Mas, é diferente você saber que
aquela criança vai nascer com as características da pessoa que você ama e
é você que está gerando (...) Porque é uma coisa que os héteros têm direito
e a gente também quer ter. Gerar um filho da pessoa que a gente ama (...)
A maior alegria é saber que está gerando um filho da pessoa que você ama,
que não é só seu, é um filho dela. Acho que isso é que faz e deu aquele
impulso na gente. (Clarice, entrevista, contando o motivo em utilizar a
ROPA). (SOUZA, 2014, p.153)
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mamas. Foi apontado que a chegada até os serviços de saúde por estas mu-
lheres é dificultado pela falta de informação e sensibilidade do profissional
no atendimento, pelo preconceito devido à orientação sexual, pela difi-
culdade em assumir-se lésbica ou bissexual frente à heteronormatividade
compulsória, pela negação do risco e pelo despreparo em relação às DSTs
das mulheres lésbicas. Além disso, este dossiê aponta para um nível mais
elevado de sofrimento psíquico em decorrência das relações com a família,
trabalho e lugares públicos, do que em relação às mulheres heterossexuais
(Barbosa & Facchini, 2006).
O preconceito nas instituições de saúde em particular, devido à orien-
tação sexual, comparece em todos os resultados das pesquisas analisadas.
Lucio (2016) constatou um padrão de atendimento nos serviços de saúde
que seguia o modelo da heterossexualidade, impactando negativamente as
usuárias de diferente orientação sexual, produzindo experiências negativas
naquelas que acionavam o serviço. Elucidou-se uma presunção da heteros-
sexualidade por parte dos profissionais de saúde, notada nos formulários a
serem preenchidos e nas indagações durante o atendimento médico. De
acordo com sua avaliação, faltaria qualificação em matéria de diversidade
sexual, em decorrência disto, os serviços de saúde endereçados às mulhe-
res lésbicas seriam precários. Um dos efeitos disto seria a falta de acesso à
RA por parte das usuárias de serviços de saúde pública.
As alternativas para mudança deste cenário estariam aflorando, segun-
do Lucio (2016), a partir do campo das políticas públicas de saúde, como
a Política Nacional de Saúde Integral às Lésbicas, Gays, Bissexuais, Traves-
tis e Transexuais de 2010, que na prática atuam na visibilização das espe-
cificidades de cada nicho. Tal Política está fundamentada nos princípios
assegurados da Constituição Federal (1988), que defendem e garantem a
cidadania e dignidade da pessoa humana “sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (Brasil,
1988, art. 3.º, inc. IV), e nos princípios constitucionais do Sistema Único
de Saúde (SUS), que afirmam o acesso aos serviços de saúde para toda a
população, sem preconceitos ou privilégios.
212
Hoje em dia quero ter outro filho, eu e minha companheira estamos estu-
dando como faremos, pois a inseminação artificial é muito cara, não temos
dinheiro, pelo SUS se exige uma série de critérios que não nos enquadra-
mos (...) Talvez, faremos pelo método tradicional com um amigo nosso,
mas é complicado para ela aceitar eu com outra pessoa (...) Mesmo com
todos os avanços tecnológicos da saúde, eles não chegam até nós, casais
homossexuais. (Entrevista 02) (Lúcio, 2016, p.62).
213
214
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Considerações Finais
É um desafio eleger um rumo narrativo entre tantas possibilidades e
perguntas, da revisora-autora e das autoras, cujos trabalhos foram lidos, ob-
servados e costurados entre outros tantos, numa temática constituída por
atravessamentos de âmbitos políticos, sociais, legais, sexuais, econômicos
e de saúde. Parece não haver um momento de finalização da revisão a não
ser pelo tempo e espaço de um projeto, ou artigo, que é datado e restrito.
Neste tempo situado, foi realizada esta revisão, de teses e dissertações, so-
bre maternidade lésbica. A tentativa era a de não criar, a priori, roteiros
e hipóteses sobre o que encontraríamos nestes estudos, porém algumas
216
217
218
Referências
– Dissertações e Teses
AIRES, L. M. (2012). Gestando afetos, concebendo famílias: reflexões
sobre maternidade lésbica e reprodução assistida em Aracaju-Se. Disser-
tação Mestrado – Antropologia – UFS.
219
220
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Ariès, P. (1981). História Social da Criança e da Família. Rio de Janei-
ro: LTC.
Breton, D. L. (2011). A manufatura de crianças. Em D. L. Breton, Adeus
ao Corpo – Antropologia e Sociedade.
Butler, J. (2003). O parentesco é sempre tido como heterossexual? cader-
nos pagu (21), 219-260.
Facchini, R., & Barbosa, R. M. (2006). Dossiê saúde das mulheres lésbi-
cas: promoção da equidade e da integralidade. Rede Feminista de Saú-
de, 1-43.
Facchini, R., & Simões, J. A. (2009). Na trilha do Arco-Iris do Movimen-
to Homossexual ao LGBT. São Paulo: Fundação Perseu Abramo.
Fonseca, C. (setembro-dezembro de 2008). Homoparentalidade: novas
luzes sobre o parentesco. Estudos Feministas 16(3), pp. 769-783.
221
222
Escolaridade
Data de Campo do
Instituição Grau
Conclusão Conhecimento
Universidade de
Bacharelado 07/2002 Psicologia
Brasilia (UnB)
Universidade de
Psicóloga 10/2002 Psicologia
Brasilia (UnB)
Universidade de
Mestrado 12/2005 Psicologia
Brasilia (UnB)
Psicologia Social,
Universidade de
Doutorado 11/2010 do Trabalho e das
Brasilia (UnB)
Organizações
Escola Superior de Ciências
Trabalho e
Sociais da Fundação Getúlio Pós-Doutorado 12/2014
Movimentos Sociais
Vargas (CPDOC/FGV)
P
rofessora dePsicologia do Instituto Federal do Rio de Ja-
neiro, nas áreas de Psicologia e Cultura; Psicologia e Educação.
No Mestrado pesquisou as representações sociais do trabalho es-
cravo no Brasil contemporâneo, no Doutorado investigou política e iden-
tidade nas Paradas do Orgulho LGBT e, no Pós-Doutorado focou no tema
do trabalho e dos movimentos sociais, tendo perscrutado o conselho das
cidades do governo federal. Pesquisadora-Líder do ODARA – Grupo In-
terdisciplinar de Pesquisa em Cultura, Identidade e Diversidade (CNPq).
223
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O
t r aba l h o é f u n d a m e n ta d o e m i n t e n c i o n a l i d a d e s e c a pa c i -
225
226
baixa esperança de vida ao nascer, baixa renda per capita, baixos índices
no ranking do IDH, elevado índice de exclusão, elevada taxa de pobreza,
elevada proporção da população vivendo em domicílio cuja renda é in-
ferior à R$ 37,75, elevada mortalidade infantil antes dos 5 anos (Théry e
cols., 2009: 66).
227
228
229
Os libertadores estudados
Foram entrevistados 15 (quinze) libertadores. Seis sujeitos representan-
do o governo brasileiro (Câmara dos Deputados, Ministério do Trabalho
e Emprego – MTE e Delegacia Regional do Trabalho do Distrito Fede-
ral – DRT), quatro sujeitos representando quatro diferentes Organizações
Não-Governamentais (Comissão Pastoral da Terra – CPT, Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, Ordem dos Advogados do Brasil
– OAB e Grupo Entorno) e outros três sujeitos representando um orga-
nismo internacional e não-governamental (Organização Internacional do
Trabalho – OIT).
No referente a essas afiliações organizacionais, vale ressaltar sua carac-
terização, tendo em vista que as pessoas vinculadas a tais organizações têm
atribuições e papéis diferentes, porém relacionados ao combate ao traba-
lho escravo.
A CPT, o MST, a OAB e a OIT estão historicamente engajadas na
denúncia das condições dos trabalhadores, de forma que sua atuação
permitiu reconhecer os elementos constituintes do trabalho escravo,
230
231
qualquer critério econômico não é suficiente para configurar adequadamente dados qualitativos referentes às
questões sociais da renda, o que demanda a busca pelo máximo possível de informações acerca dos sujeitos.
232
Procedimento
As entrevistas foram flexibilizadas de modo a se centrar empaticamente
na pessoa do entrevistado, procurando reformular as questões de acordo
com o desenvolvimento da conversação e estimulando o entrevistado com
relação aos temas discutidos. Posteriormente, foram transcritas e formata-
das para entrada de dados no Alceste.
Excluíram-se do conjunto artigos, conjunções e palavras semelhantes.
Essa redução no número de palavras é necessária para que se descubram
campos de coocorrência entre termos, indicadores de representações so-
ciais. Os dados foram convertidos ao pacote estatístico SPSS 11.5 — Sta-
tistical Package for Social Sciences, a fim de viabilizar análises estatísticas
estruturadas dos dados quantitativos gerais e dos separados entre as classes.
Dado que o valor do X2 indica a capacidade da palavra de agregar
outras em torno de si, dentro das classes, consideraram-se como mais
importantes as palavras com maior X2 dentro de cada classe, tomada
233
Resultados
1. Classes estáveis
Seis classes de palavras foram encontradas e organizadas, conforme a
Figura 1, em três agrupamentos temáticos com relação forte de similitude/
proximidade (Rp).
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236
237
2. Eixos de significado
Foi gerado um plano fatorial que permite visualizar a organização dos
agrupamentos em eixos temáticos. A distância indica o grau de associação,
entendido como o grau de dispersão do conjunto de linhas e colunas em
torno de sua média, conforme a Figura 3.
238
239
2 40
Tabela 2
Valor próprio e porcentagem de associação de cada fator
Fator Eigenvalue % associação % acumulada
1 0,1956 28,53 —
2 0,1592 23,22 51,75
3 0,1283 18,71 70,46
4 0,1142 16,66 87,12
5 0,0883 12,87 100,00
3. Atributos grupais
A distribuição dos atributos dos respondentes no plano fatorial possibili-
ta identificar diferenças grupais, ligadas a gênero e identificação racial, na
maneira de representar o trabalho de libertação.
As mulheres libertadoras, diferentemente dos homens, que se orientam
pelo eixo técnico, tendem a perceber de forma pessoal o trabalhador escra-
vizado, como um indivíduo com família e que precisa ser ajudado, pelo
eixo político, de contextualização do problema.
Elas tendem a avaliar o trabalho escravo e o trabalho de libertar mais
do que apenas descrevê-los, atribuem mais valores à hierarquia de repre-
sentações do que os homens.
Pessoas negras e asiáticas tendem a ter percepções próximas às das mu-
lheres, no eixo político, de reflexão, de avaliação e de identificação pessoal
com o trabalhador escravizado. Pessoas brancas tendem a se orientar de
modo semelhante ao dos homens, no eixo técnico, de ação, de descrição e
de identificação social do trabalhador escravizado.
2 41
Considerações finais
Os resultados obtidos possibilitaram o reconhecimento de conteúdos e
significados, disponibilizando dados indicativos da organização das repre-
sentações sociais de libertadores acerca de seu trabalho.
Observando-se as correlações entre as ramificações no Plano Fatorial,
nota-se que a constituição do profissional se dá, ao mesmo tempo, em fun-
ção da relação e do distanciamento entre a classe 4 (local de ação) e a clas-
se 1 (formação dos libertadores). Por aproximação das classes, entende-se
a constituição da ramificação o profissional como uma relação entre a his-
tória pessoal dos sujeitos e determinados locais que frequentaram durante
sua formação, o que determinou o fato de atualmente serem libertadores.
Com a mesma história pessoal, porém fora de tais locais de ação, pro-
vavelmente, eles não teriam se tornado libertadores. Por distanciamento
entre as classes, entende-se que há um efeito sobre os eixos temáticos his-
tórico e técnico, de modo que as organizações envolvidas no eixo históri-
co conseguem nomear os processos da exploração enquanto escravidão e
considerar o fenômeno enquanto construção histórica, porém dificilmente
conseguem instituir renovadas relações econômicas entre os trabalhadores
rurais e os empregadores.
As organizações envolvidas no eixo técnico trabalham para rearticular
as relações trabalhistas no meio rural, porém demonstram dificuldades na
identificação dos conflitos grupais de opressão enquanto fenômenos do tra-
balho escravo. O libertador constitui sua identidade profissional sobre o
eixo histórico e o eixo técnico.
O eixo político, que engloba as ramificações dinâmica do trabalho e sig-
nificado do trabalho escravo, relaciona-se diretamente com a ação e com o
local de ação do libertador (eixo técnico), reiterando a noção básica de que
a ação política de retirada da pessoa escravizada do espaço de exploração
envolve uma relação direta com o local de trabalho do libertador.
A ação é observada como uma relação entre a formação dos libertado-
res (eixo histórico) com a dinâmica do trabalho e o significado do trabalho
como constituintes do eixo político. Essa relação aproxima o significado do
2 42
2 43
2 44
uma esfera central na vida das pessoas, e viver esse trabalho é mais do que
estar nele, é descrever os atributos que o fazem ser o que ele é (descrever),
é atribuir-lhe valores a esses atributos (avaliar), é, enfim, elencar esses atri-
butos em uma hierarquia.
Retomando o pensamento de Montero (2009) e de Lane e Codo expli-
citado por Lima, Ciampa e Almeida (2009), acerca do papel emancipador
da Psicologia Política e da Social Crítica, considera-se que para além de
conhecer os escravizados, acompanhá-los, libertá-los e encontrar novas
condições de trabalho, os libertadores poderiam aprofundar a sua práxis
transformadora no sentido de articular ações junto aos antigos opressores,
para a superação da relação exploradora que mantêm com os trabalhado-
res, trabalho esse que demanda certo distanciamento do processo que en-
volve o escravizado, para que o libertador possa negociar espaços novos
para grupos excluídos, que assim poderão, ativamente, construir seus pró-
prios caminhos.
Referências bibliográficas
Abric, Jean-C. (2003). La recherche du noyau central et de la zone muet-
te des représentations sociales. Em Abric, J.-C. (Org) Méthodes d’étude
des représentations sociales. França: Éditions érès.
ANEP (2005). Critério de classificação econômica Brasil. Acessado em
10 de outubro de 2004, de http://www.anep.org.br
Bales, Kevin (2000). Disposable people: new slavery in the global eco-
nomy. Berkeley: University of California Press.
Borges, Lívia de O. & Tamayo, Álvaro (2001). A estrutura cognitiva do
significado do trabalho. Revista psicologia: organizações e trabalho,
1(2), 11-44.
Borges, Lívia O. & Yamamoto, Oswaldo H. (2004). O mundo do traba-
lho. Em Zanelli, J. C., Borges-Andrade, J. E. & Bastos, A. V. B. (Orgs.)
Psicologia, organizações e trabalho no Brasil (pp. 24-62). Porto Alegre:
Artmed.
2 45
2 46
2 47
2 48
Laila Domith
N
o momento em que escrevo este memorial o que primeiro
2 49
possibilitou construir outros olhares para fora e para dentro de mim. Acre-
dito que tenha sido no Doutorado em Psicologia que senti a importância
de estar presente nas pesquisas que fazia, ou seja, pesquisar com o corpo, e
foi inevitável me imiscuir nos Estudos de Gênero e Sexualidade, algo tão
relevante no que sou. Foi neste ponto que me afirmei lésbica nos espaços
que frequentava, compreendendo a luta política da visibilidade e afirman-
do o meu desejo.
E foi assim que os Estudos de Gênero, um projeto de pesquisa e um
pouco de sorte se tornaram meu passaporte para estudar por quinze meses
com o Paul B. Preciado no PEI – Programa d’Estudis Independents do
MACBA – Museu d’Art Contemporani de Barcelona. Experiência que tra-
go nas lutas diárias, nas pesquisas, nas aulas e nas atividades universitárias
que faço desde que voltei para o Brasil.
Acredito no fortalecimento de nossas práticas dissidentes como uma
afirmação da vida no contemporâneo do Brasil, e a vida é um movimento
de encontros, fortalecimentos e acolhimentos, o que espero que a presente
publicação possa nos proporcionar. Um abraço forte em todas nós.
250
Sente-se em uma cadeira reta. Cruze suas pernas na altura dos tornozelos
e mantenha seus joelhos pressionados um contra o outro. Tente fazer isso
enquanto está conversando com alguém, mas tente o tempo todo manter
seus joelhos fortemente pressionados um contra o outro... Corra uma certa
distância, mantendo seus joelhos juntos. Você descobrirá que terá que dar
passos curtos, altos... Ande por uma rua da cidade... Olhe, em direção reta,
para a frente. Toda vez que um homem passar por você, desvie seu olhar e
não mostre nenhuma expressão no rosto. (Bordo, apud Rose p. 174)
92. Tradução livre da citação: De lo que se trata, a través del aplanamiento del pecho y del abultamiento
de la pelvis, es de modificar el eje corporal y el equilibrio que se establece entre los hombros, los brazos y las
251
piernas. De este modo, el centro de gravedad corporal – que para las bio-mujeres está culturalmente situado
en el pecho (lugar por excelencia de sexualización y centro de la mirada hetero-masculina) – se desplaza
hasta la pelvis, las piernas se abren ligeramente, aumentando la distancia entre los dos pies, afirmando el
apoyo doble del cuerpo. Se adquiere así mayor estabilidad vertical, al tiempo que se amplía la posibilidad de
movimiento libre del tronco y de extensión máxima de los brazos.
93. Tradução livre da citação: “De hecho, el movimiento más sofisticado de las tecnologias consiste em
presentarse a sí misma como ‘naturaleza’
94. Ficções Política Vivas, conforme nos traz Paul B.Preciado (2015) em muitas de suas falas, já que se tratam
de corpos que são construídos performativamente e semioticamente – uma vez que a materialidade discursiva
enlaçada às relações de poder (Foucault, 2005d) também nos faz rir, faz falar, faz viver, e também adoecer
252
ou morrer. Entretanto, corpos vivos que possuem uma materialidade que não podemos conceber plenamente
por meio da linguagem, mas que se refere à vida e que também se refere à morte. Neste sentido ver Butler
(2002).
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95. Tradução livre da citação: “estes objectos de valor que hacen la vida digna de ser vivida”.
96. Tradução livre da citação: “La categoria de sexo es una categoría política que funda la sociedade encuan-
to heterosexual”.
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97. Cabe frisar aqui que isto se impõe principalmente para as mulheres que não têm condições financeiras
de realizar o aborto em clínicas clandestinas. Ainda que obviamente a criminalização do ato imponha restri-
ções à liberdade sobre o corpo de qualquer mulher.
98. Remição irônica ao termo de Gilberto Freyre (2003) que faz uma leitura do Brasil colonial e das relações
que se passam na casa-grande entre o patriarca e seus escravos – incluindo aqui a mulher branca – e as rela-
ções que se passam na senzala – lugar onde se alocam a maioria dos escravos negros inseridos diretamente no
trabalho física e violentamente forçado.
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“A categoria de sexo não é nem invariável nem natural, mas sim um uso
especificamente político da categoria da natureza, o qual serve aos propó-
sitos da sexualidade reprodutora.” (Butler, 2013, p.164)
Performatividades de Gênero
Perceber pela primeira vez, aos outros, a todos eles, como efeitos mais ou
menos realistas de repetições performativas descodificáveis como masculinas
ou femininas.99 (Preciado, 2008, p. 262)
99. Tradução livre feita da citação: Percibir por la primera vez, a los otros, a todos ellos, como efectos más o
menos realistas de repeticiones performativas descodificables como masculinas o femeninas.
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podemos perceber o gênero que até então era identificado como a constru-
ção social e cultural do sexo que seria sua base fisiológica e natural?
Assim é que Judith Butler (2013), no intuito de problematizar as postu-
lações dos estudos feministas que se apoiam na concepção de gênero para
construir as suas reivindicações de igualdade e insubordinação ao patriar-
cado, nos traz questionamentos sobre a diferenciação entre sexo e gêne-
ro. Pressupor a existência de uma natureza (sexo) que é modificada pela
cultura (gênero) é assegurar desde já a binaridade de ambos – crer que
existem dois sexos (como nos faz crer a fisiologia) e mimeticamente dois
gêneros. O deslocamento feito pela autora é o de escapar dos postulados
cientificistas dados, questionando histórica e socialmente as relações que
os perfazem e os efeitos desta crença em uma verdade científica – em es-
pecial, no questionamento em tela – da construção biológica da diferença
sexual.
Neste sentido Butler (2013, p. 25) diz:
Nos parece importante observar ainda que o termo gênero não surge a
partir das lutas feministas. Podemos dizer que o seu surgimento está muito
mais atrelado às relações hegemônicas de poder. Aqui podemos escutar as
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100. O cinema argentino com Lúcia Person nos traz Alex um@ adolescente interssexual cujos pais preferem
estar ao lado da criança queer – aqui faço referência ao texto de Beatriz Preciado (2013 b) – ao invés de defen-
der as normas sexuais e de gênero, e a levam para viver na Patagônia sem submetê-la a intervenções cirúrgicas
e hormonais para que el@ possa decidir o que fazer com o seu corpo, gênero e sexualidade. Alex foge de Mo-
ney. O filme tem como título XXY, fazendo um jogo com os caracteres que costumam definir de modo breve
o feminino (XX) e o masculino (XY). XXY, 2007.
101. Tradução livre feita da citação: “a la rigidez del sexo del siglo XIX, John Money (...) va a oponer la
plasticidad técnologica del género”
102. Preciado (2013, p. 82) nos mostra como um dos primeiros textos nos quais esta diferença aparece tema-
tizada desta maneira é o de Ann Oakley, Sex, Gender and Society, Temple Smith: Londres, 1972.
261
103. Atualmente temos, ainda de forma incipiente, a iniciativa médica em receitar a aplicação de testoste-
rona como reposição hormonal para mulheres no que é chamado de menopausa e que se queixem de falta
de libido e depressão. Sobre o assunto podemos acompanhar algumas matérias publicadas: http://www.citen.
com.br/endocrinologia/uso-de-hormonios-masculinos-em-mulheres-.aspx .
Preciado (2013) propõe o papel da ingestão das pílulas anticoncepcionais que aumentam o nível de progeste-
rona e estrogênio e diminuem a produção de testosterona pelos ovários, como uma causa importante de tais
perdas recorrentes da libido pelas mulheres, em especial na idade da menopausa, assim como os processos
depressivos recorrentes que são insinuados como pertencentes a esta mesma fase.
104. Copyleft é uma forma de difusão e distribuição de obras que se liberta das licenças e barreiras da legis-
lação dos Direitos Autorais que prevê o copyright. Este é definido como os direitos intelectuais econômicos
sobre as obras literárias, artísticas ou científicas.
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105. Em tradução livre da citação: “Somos usuários copyleft: es decir, consideramos las hormonas sexuales
como biocódigos libres y abiertos cuyo uso no deve estar regulado ni por el Estado ni confiscado por las com-
pañías farmacêuticas.”
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O Performativo
Vamos marcar o ponto de surgimento desta história na Universidade
de Harvard. Um marco de início curioso. J.L. Austin, como se apresenta
em seus livros, é um professor de filosofia analítica de Oxford que partici-
pou do Serviço de Informações do Exército britânico durante a segunda
guerra mundial (Austin, 1990). Suas análises, que propõem a linguagem
enquanto atos performativos, são desenvolvidas em doze conferências rea-
lizadas em Harvard em 1955, as quais denominou de “Conferências Wil-
liam James” que, de forma surpreendentemente clara e como ele mesmo
se refere “obvia” 106 – mas que nenhum filósofo que ele conhecesse a havia
apontado – pretendem nos fazer ver a constatação de que existem determi-
nadas sentenças que não descrevem nada, não se prestam a representar por
meio de palavras uma determinada situação que seria verdadeira ou falsa.
Existem determinadas sentenças que de fato fazem algo. Possuem efeitos
nos corpos interrelacionados, ou seja, modificam um determinado estado
de coisas. Para este tipo de sentença, Austin cria o neologismo performati-
vo, a partir do verbo em inglês to perform que se refere a fazer, executar,
realizar algo, em contraposição ao demonstrativo que seriam aquelas frases
que descrevem uma situação.
Entrelaçando-se ao performativo, Judith Butler (2013) trilha um ca-
minho potente, ainda que por vezes hermético, para nos aportar instru-
mentos conceituais que nos abram outras possibilidades de pensar e lutar
106. Chega a ser cômica a forma como ele inicia a primeira de suas conferências: “O que tenho a dizer não
é difícil, nem polêmico. O único mérito que gostaria de reivindicar para esta exposição é o fato de ser verda-
deira pelo menos em parte. O fenômeno a ser discutido é bastante difundido e óbvio, e não pode ter passado
despercebido pelo menos em algumas instâncias. Entretanto, ainda não encontrei quem a ele tivesse se dedi-
cado.” (Austin, 1990, p. 21) Suas conferências são repletas de jogos e ironias, e isso se mostra desde seu início,
uma vez que uma de suas postulações é a análise de que determinados proferimentos nada têm de verdadeiros
ou falsos e sim que “Fazem coisas com as palavras”.
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107. Judith Butler por diversas vezes em seus trabalhos se utiliza da palavra “inteligibilidade” para pensar
a maneira como determinados corpos e suas performances são compreensíveis em meio ao social, enquanto
outros não. Inteligível é aquele corpo que pode gerar empatia nos meios heteronormatizados, assim como,
em meio às normalizações raciais e sociais diversas. Em última instancia é aquele corpo que pode ser conside-
rado humano, cuja morte é digna de luto e a perda pode ser chorada em meio ao social. Ou como em outros
termos nos proporia Agamben (2004), corpos que não são inteligíveis são vidas matáveis e insacrificáveis (não
contém valor para o sacrifício) como o corpo do homo saccer, o paradigma de suas genealogías. Conferir
Butler (2002, 2006, 2011 e Agamben (2004). Nas palavras de Butler (2000, p. 154): “O sexo é, pois, não
simplesmente aquilo que alguém tem ou uma descrição estática de aquilo que alguém é: ele uma das normas
pelas quais o “alguém” simplesmente se torna viável, é aquilo que qualifica um corpo para a vida no interior
do domínio da inteligibilidade cultural.”
108. Ainda temos que considerar que atualmente este primário ritual performativo já não é mais efetivado no
momento do nascimento d@ bebê, mas meses antes, quando a mãe se submete a uma ultrassonografia, agora
tridimensional, que permite aos pais saírem do consultório com a primeira foto d@ bebê nas mãos. Assim, tal
performatividade é proclamada a partir de um exame intrauterino. Categorização de gênero antes mesmo da
completa formação do corpo. Para as mães cis muitas vezes o mais frustrante é quando, por força da posição
em que se encontra o bebê, a máquina de visão não pode enxergar o sexo, já que a antecipação de ser meni-
no/ser menina vai definir a decoração do futuro quarto, o guarda-roupa, o nome, a referência linguística do
artigo definido: “ele está mexendo”, “Ela me chutou” de modo já enquadrado e (en)gendrado. Sobre o tema
do feto na “nova ordem mundial” conferir Haraway (2004), Tercera Parte, capítulo V: “Feto. El espéculo
virtual en el Nuevo Orden Mundial.”
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todo lo que sigue puede ser leído como la explotación de esta lógica que
liga la repetición a la alteridad” (Derrida, 1971 p.9). É assim, portanto, que
podemos pensar a performatividade reiterável do gênero não como um de-
terminismo, ou uma prisão, mas sempre aberto às diferenças.
A linguagem não é apenas descritiva, ela é performativa. Ela produz o
corpo que supostamente se presta a descrever, realiza o que diz nomear ao
mesmo tempo em que descreve. Neste sentido temos a já clássica postula-
ção de Austin (1990) sobre a produção do corpo no casamento: “Quando
digo, diante do juiz ou no altar, etc., ‘Aceito’, não estou relatando um ca-
samento, estou me casando. (Austin, 1990, p. 25)”, neste caso, quando se
diz sim em um casamento, os noivos/noivas não estão de forma alguma a
descrevê-lo, estão de fato se casando. E para que isso ocorra temos todo
o arsenal de instituições e regras que fazem com que aquele ato de fala
‘– sim!’ possa fazer com que o corpo solteiro se torne um corpo casado
com obrigações, privilégios e dívidas perante o outro cônjuge e perante o
social. E isso assim se dá em virtude de o casamento ser uma cita – confor-
me conceituação de Derrida (1972) – uma citação, em que os nubentes,
o padre, e os diversos envolvidos repetem, reiteram uma série de normas
concebidas no social. Neste mesmo ínterim o corpo terno do bebê, que
nasce e é supostamente descrito pelo branco-médico como uma menina, é
de fato performativamente produzido enquanto um corpo feminino109, que
se envolve no processo de tornar-se sujeito e, ainda bebê, sujeito às normas,
institucionalizações, obrigações, direitos e privilégios que se perfazem ao
sexo, gênero e raça a que a criança se encontra entrelaçada. Invocações
Performativas.
Claro deve estar, portanto, que este processo de invocação performa-
tiva não depende da vontade de um deus ou de um médico ou de um
109. De fato, jamais se chega a sê-lo. Aqui fazemos remissão à análise que Butler (2013) faz de Beauvoir e
sua profética frase: “Não se nasce mulher, chega-se a sê-lo.” Preferiríamos: “Não se nasce mulher, nem chega-
-se a sê-lo”, em virtude de ser a norma heterossexual inatingível, que existe apenas no plano do performativo
já que não há um referente fixo, nenhuma identidade de gênero por trás da sua expressão. O que existem são
apenas performatividades de gênero.
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110. Aqui nos remetemos à tradução do termo em inglês “Matter” que se mostra importante nas análises de
Butler. Matter: em inglês possui a dupla significação explorada pela filósofa de “matéria, material” e de “im-
portar, o que importa, o tem importância.” Duplo sentido que o português não abrange e por isso nos parece
importante pontuar e ressaltar. (Louro, 2000).
111. Tradução livre da citação: “es decir, ´hágase la luz! ´ parecería que un fenómeno que se nombra cobra
vida en virtud del poder de un sujeto o de su voluntad.”
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“No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas.
E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair
num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse
inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os fi-
lhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-
-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido
para descobrir que também sem a felicidade se vivia...” Clarice Lispector
(1998, p.41) 112
112. Trecho retirado do conto Amor de Clarice Lispector (1998) no qual a personagem Ana se encontrará
com um cego mascando chicletes cuja visão a fará desatinadamente desnaturalizar o seu cômodo lugar de
bio-mulher casada e mãe de família.
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Linhas Finais
Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles.113
113. As palavras aqui propostas giram em torno do filme “Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080
Bruxelles” (1976) e a personagem em tela referem-se de maneira livre à protagonista e ao enredo do filme.
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Outro dia. O despertador toca uma hora mais cedo, tudo parece o mes-
mo, mas tudo mudou. filho na escola. O cabelo que teima em não perma-
necer no lugar, o botão na roupa aberto, a comida queimou, é necessário
sair para comprar mais batata, o mercado está fechado. cozinhar outra vez.
esquecer a tesoura no quarto. Jeanne parece a mesma, mas algo mudou. E as
repetições seguem, repetindo diferenças. Algo aconteceu e não se pode mais
suportar o que antes se suportava, o homem formalmente desconhecido que
entra, de ali já não sai mais.
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Referências
AGAMBEN, Giorgio. Homo Saccer:o poder soberano e a vida nua I. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2004
AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer:palavras e ação. Artes. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1990.
BUTLER, Judith. Problemas de Gênero:feminismo e subversão da identi-
dade. 5ªed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2013.
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