O Misterio Dos Cavalos Alados - Megan Shepherd
O Misterio Dos Cavalos Alados - Megan Shepherd
O Misterio Dos Cavalos Alados - Megan Shepherd
Sobre a obra:
Sobre nós:
Shepherd, Megan
O mistério dos cavalos alados [livros eletrônico] / Megan Shepherd;
tradução: Lavínia Fávero. – São Paulo: Plataforma21, 2017. 2MB; Epub
Título original: The Secret Horses of Briar Hill.
ISBN 978-85-92783-15-0
1. Ficção juvenil I. Título.
17-01111 CDD-028.5
Boas cavalgadas,
Lorde dos Cavalos
Boas cavalgadas,
Sinceramente,
Emmaline May
16
A Anna ganhou os lápis de cor de presente do dr. Turner.
Ela está em Briar Hill há mais tempo do que todos nós. Veio para cá há
dois anos, nos primeiros trens que passaram pela zona rural. Trouxe duas malas
surradas consigo. Uma, que sua mãe preparou, estava cheia de casacos e meias.
A outra, estava cheia de livros de ciências naturais – e essa foi a própria Anna
quem arrumou. A irmã Constance disse que ela gostava de perambular pelos
jardins, como eu, muito antes de eles serem consumidos pelas heras. Sentava-se
em um banco e lia, lia, lia sem parar, no meio das flores da primavera. Mas aí as
águas paradas pioraram, quando as chuvas de verão vieram, e, lá por agosto, a
Anna não conseguiu mais sair da cama. Não podia mais ver as flores. O dr.
Turner lhe trouxe os lápis para que ela pudesse desenhá-las. Acho que ninguém
contou para a Anna que todas as flores já morreram faz tempo.
Bato na porta.
– Entre.
A Anna está com a voz cansada.
Abro a porta, e ela sorri e bate na cama, mas não subo. A Anna segura um
lenço, muito bem dobrado, quase escondido na palma da sua mão, e fico
imaginando se lá dentro tem sangue. O espelho em cima da mesinha de
cabeceira está virado para longe do seu rosto. No reflexo, mal consigo enxergar
os cavalos alados atrás da janela refetida, pastando na grama seca, com as asas
bem fechadas para se proteger do frio.
– Posso ver seus lápis de cor? – pergunto.
Em um primeiro momento, pensei em usar os lápis como escudo
espectral. Mas jamais poderia tirar os amados lápis da Anna, nem para salvar a
Lume de Luar. Além disso, o Lorde dos Cavalos disse que os objetos precisavam
ser grandes o bastante para serem vistos a distância. Mas eles ainda podem me
ajudar a lembrar das cores do arco-íris. Podem ser meus guias.
A Anna se inclina para abrir a gaveta secreta da escrivaninha, e o
movimento agita as águas paradas. As águas turvas sobem pelos seus pulmões, e
ela abafa uma tossida. Tira a caixa de lápis de cor e algumas folhas de papel,
mas sacudo a cabeça.
– Não preciso de papel.
Ela me olha com um ar de curiosidade, mas não faz nenhuma pergunta.
Põe a caixa sobre a cama. A Anna é muito organizada, e os oito lápis estão
arrumados na posição exata que o fabricante embalou, um espectro com as
cores do arco-íris.
845-VERMELHO CARMIM
848-ROSA ROUGE
849-LARANJA TANGERINA
863-AMARELO-CANÁRIO
865-VERDE-ESMERALDA
867-TURQUESA MARÍTIMO
868-AZUL LAZÚLI
876-ROXO HELIOTRÓPIO
Aperto o dedo contra a ponta de cada um dos lápis, que a Anna apontou com
tanto cuidado.
– O que foi, Emmaline? Você parece triste.
– Preciso dos seus lápis emprestados.
É a vez de a Anna parecer desapontada.
– Já conversamos sobre isso. Você pode levar papel e giz, e pode usar
meus lápis aqui no quarto sempre que quiser, mas eles me são muito queridos.
Desculpe, você não pode levá-los.
O bilhete do Lorde dos Cavalos está dentro do meu bolso. Passo os dedos
no papel várias e várias vezes. Olho para o espelho na mesinha de cabeceira. Os
cavalos alados estão agitados. O vento está ficando mais forte do outro lado do
espelho, soprando suas crinas e longas caudas embaraçadas nos seus olhos. Um
cavalo marrom-escuro com o rosto careca, que está na frente, levanta a cabeça
em direção ao céu, como se estivesse sentindo algum perigo se aproximar. Se eu
contar para a Anna da situação desesperadora da Lume de Luar, ela pode tentar
ir lá fora de novo. E tenho medo dos seus braços, que estão tão finos… Medo do
que enfrentar a neve mais uma vez possa lhe causar.
– Por que você não pode desenhar com eles aqui, como sempre faz? –
pergunta, apontando para o leque de desenhos que está em cima da sua cama.
Tiro a mão do bolso.
– É segredo.
– Tem a ver com a égua alada do jardim do relógio de sol?
Fico quieta por um instante.
– O nome dela é Lume de Luar – respondo, enfim.
A Anna vira os olhos, só por um segundo, para o espelho. Dentro dele, os
cavalos estão começando a correr. Cada vez mais rápido, apostando corrida com
o vento, pelo gramado da frente do hospital. Estão quase na cerca de pedra que
separa o terreno do hospital da fazenda do senhor Mason. No último instante, o
cavalo da frente abre as asas, que têm as pontas brancas, e levanta voo. Será que
a Anna consegue ver os cavalos? Será que ela os vê voando?
Mas não. Só está olhando para as flores secas de lavanda ao lado do
espelho. A irmã Constance diz que o cheiro é bom para as águas paradas, mas
acho que essa é a flor preferida da Anna, porque ela sempre a desenha.
A Anna passa os dedos pela caixa de lápis de cor.
– Bom, parece ser muito importante, então você pode levar um por vez –
diz. – Qual você quer levar primeiro?
Aponto para o 863-AMARELO-CANÁRIO. A cor da capa de chuva da
Marjorie. A Anna o tira da caixa com dedos que são tão frágeis e brancos que
poderiam ser de porcelana.
Examino o lápis. Penso em todas as coisas amarelas que existem no
hospital. Manteiga. Milho. Pêssegos em calda. Meu estômago ronca. Está quase
na hora do jantar. O aroma de caldo de carne está subindo e, nessa hora, a irmã
Mary Grace entra, trazendo uma bandeja com cozido de alho-poró e um copo
d’água para a Anna.
– Emmaline – diz a irmã Mary Grace. – Encontre os pequeninos e diga
que o jantar está quase pronto.
Guardo o lápis amarelo no bolso, junto com o bilhete enrolado do Lorde
dos Cavalos. Não posso colocar manteiga, milho ou pêssegos em calda no jardim
do relógio de sol. A Lume de Luar simplesmente comeria tudo.
Vou para a biblioteca, depois para o salão de baile, transformado em
capela com uma porção de bancos, e, finalmente, encontro as três ratinhas e o
Arthur lá fora, sentados na escada da cozinha.
– Está na hora da janta – falo. As três dão um pulo quando ouvem minha
voz e aí começam a rir e a falar na sua língua de rato, que o pobre e mudo
Arthur não deve compreender, porque começa a chupar o dedão. Ele fica me
encarando de olhos arregalados, depois se vira para a tina de metal de lavar
roupa. A Beth o cutuca, e todos levantam e passam por mim, em direção à
cozinha. Seguro a Susan, a menor das ratinhas.
– Em que lugar exatamente você encontrou aquelas penas pretas
compridas outro dia? – pergunto.
– Bem ali – responde, toda orgulhosa, apontando para o canto do pátio
onde a irmã Mary Grace lava nossa roupa. – Caíram do teto, acho. Quando a
neve derreter, aposto que vamos achar centenas delas. A Kitty disse que devem
ser dos corvos gigantes que vieram voando lá dos Estados Unidos.
Solto a Susan, e ela se junta aos demais, que estão esperando.
Olho para o telhado. Acho que não existem corvos tão grandes, nem
mesmo nos Estados Unidos.
E aí dou um passo em direção ao fim do pátio, onde as tinas de lavar
roupa ficam empilhadas, e nem um passo a mais, caso uma das irmãs esteja
olhando pela janela.
Piso em algo molhado e fedido.
Eca.
Cocô de ovelha. Passo a bota nos tijolos para limpar a gosma, mas fico
quieta em seguida. Alguma coisa está errada. Tem ossinhos de animais
minúsculos nos arbustos. Asas de pássaro e dentes de ratos. Coisas que não
deveriam ser encontradas em esterco, de jeito nenhum. Talvez seja cocô de
raposa. Ou, talvez, de um cavalo malvado que caça outros animais, um cavalo
que deixa marcas de casco raivosas no telhado e solta longas penas pretas. Sinto
um leve odor de alga podre.
Levanto de sopetão, de repente enjoada.
Corro para dentro do hospital e bato a porta da cozinha, com o coração
sobressaltado. Mesmo através das camadas de pedra, madeira e tijolos de
ardósia, consigo sentir a presença do Corcel Negro, voando em círculos acima da
minha cabeça. A Lume de Luar pode até estar a salvo por enquanto. Só que, a
cada noite que passa, a lua fica mais clara. Não vai demorar muito para o Corcel
Negro conseguir enxergá-la, e ela não vai ser capaz de fugir voando.
Preciso encontrar algo amarelo. Depressa.
17
O dr. Turner põe o estetoscópio prateado nas minhas costas.
Posso ver seu rosto no espelho. Ele está com a testa franzida. Suas
sobrancelhas de lagarta estão bem juntas. A boca, que tem um bigode, está
franzida também. Ele enrola o estetoscópio no pescoço e solta um suspiro.
Quando vira para mim, entretanto, a careta já desapareceu. Dissolve duas
aspirinas grandes em um copo d’água e me entrega.
– Gargareje com isso, conte até vinte e depois cuspa.
Conto devagar em pensamento, depois cuspo dentro de uma caneca.
Quando olho para cima, ele está segurando um papel amarelo. Não me olha nos
olhos. Limpa a garganta.
– E prenda isto na sua porta.
Olho para o papel.
Amarelo?
As irmãs e o dr. Turner acham que não sabemos o que os papéis coloridos
significam, mas é claro que sabemos. Amarelo significa doses extras de óleo de
fígado de bacalhau. Amarelo significa sentir o sol somente através da janela.
Amarelo significa estar a um passo do vermelho.
– O senhor está enganado – digo, com a voz firme. – Estou melhorando.
Não estou como as crianças doentes de verdade. Só tusso de vez em quando.
Gostaria de receber o papel azul, por favor.
O dr. Turner não me dá o papel azul. E não fala nada. Suas sobrancelhas
ficam ainda mais peludas, e ele se vira de costas para fazer anotações em seu
caderno.
Levanto a voz, meio trêmula:
– Posso pelo menos ganhar um chocolate?
Seu lápis fica parado no ar, e o doutor respira fundo, depois volta a
escrever. Então solta um longo suspiro.
– Acabaram-se os chocolates.
Enfio o papel no bolso, atrás da maçã que peguei para dar à Lume de
Luar mais tarde. Enquanto o dr. Turner escreve, fico observando os cavalos
alados na sala refletida, mas estou abismada demais para dar risada quando eles
batem no canto da despensa, cheiram os frascos de remédios refletidos, fuçam
com o focinho na maleta de médico refletida do dr. Turner. Um deles derruba
sem querer uma caixa de abaixadores de língua, que faz barulho ao cair no chão.
Os cavalos levantam de sopetão, assustados, e saem correndo pela porta.
Viro de costas para eles. Do nosso lado do espelho, a verdadeira caixa de
abaixadores de língua ainda está na prateleira.
Então eu vejo: o rótulo do frasco grande de aspirina do dr. Turner. É
amarelo – 863-AMARELO-CANÁRIO – a cor exata do lápis da Anna que tenho
no bolso. O rótulo é antigo e está soltando nas bordas, mas o que importa é que é
de uma cor viva, muito viva, tão viva que vai ferir os olhos do Corcel Negro.
O dr. Turner resmunga e vira para o armário para escrever alguma coisa
em seu bloco.
No espelho, um dos cavalos alados pôs a cabeça para fora da porta de
novo e está me observando.
Agora.
Pego o frasco e tento arrancar o rótulo amarelo, mas está grudado. Terei
que levar o frasco todo. Só tem mais dois comprimidos dentro dele. Dois
comprimidos não são suficientes para salvar a vida da Anna. Dois comprimidos
não são suficientes para curar a tosse da Kitty. Mas este rótulo amarelo pode
ajudar a Lume de Luar. Meu coração bate forte, bem forte, e algo agita as águas
paradas. Escondo o frasco no bolso bem na hora em que o dr. Turner se vira, e as
águas paradas inundam meus pulmões, fazendo meu corpo inteiro tremer.
Ele me alcança um lenço limpo.
– Você precisa lembrar de cobrir a boca ao tossir. É muito importante.
Como é que eu posso lembrar de alguma coisa quando tenho um papel
amarelo queimando no meu bolso? Saio da cama de exames. Meus pulmões só
começam a se acalmar quando abro a porta dos fundos do pátio e respiro ar
fresco.
O som de panelas batendo sai pela janela aberta da cozinha. Não tenho
muito tempo até a irmã Mary Grace vir me procurar para ajudar a descascar
batatas. Ela vai olhar para o papel amarelo e dizer que não posso mais sair do
hospital, nem mesmo para ir até o pátio.
Vou correndo até o muro do jardim e pulo.
Quando a primeira neve caiu e o mundo ficou imaculado e branco, a
Lume de Luar se camuflou nele como se fosse feita de neve. Mas agora a neve
não está mais imaculada. Misturou-se com terra e virou lama. A Lume de Luar
está com as pernas e a parte debaixo da barriga cobertas de neve suja. Quando
sacode a cabeça, sua crina cai em pedaços espessos que precisam muito ser
penteados. Gravetos ressequidos pelo frio estão pendurados na sua cauda.
Mas meu coração ainda se aquece quando a vejo.
– Você está um desleixo – digo. Então me dou conta de que meu cabelo
está igualmente embaraçado, minhas botas estão sujas de lama. – Bom, estamos
um desleixo.
A Lume de Luar balança a cabeça, como se concordasse comigo. Vem
direto até mim e fica cheirando meu bolso até eu tirar a maçã de dentro dele. E
começa a mastigá-la antes mesmo de eu espalmar a mão para oferecê-la.
Hesitante, sem ter certeza se já conquistei sua confiança, ponho a mão na
sua crina.
– Calma. Só vou tirar estes galhos.
Ela para de morder, olha para as minhas mãos, mas não corcoveia nem
se afasta. Estou perto. Tão perto. E aí ponho a mão no seu pescoço. Ah, como é
viva ao toque. Seu pelo branco está sujo, cheio de caroços gelados de lama, mas
é quente por baixo. Quase consigo sentir seu coração bater. Será que ela também
consegue sentir o meu?
– Que bom. Viu? É agradável.
Devagar, acaricio seu pescoço, da orelha até as costas, da orelha até as
costas. Pedaços de lama seca e poeira caem no chão, me fazendo tossir. A Lume
de Luar parece ficar mais calma a cada toque. Tiro todos os galhos que posso,
mas a sujeira está entranhada. Vou ter que perguntar ao Thomas se ele tem um
pente.
Paro de fazer carinho na Lume de Luar, tiro o frasco de remédio do bolso
e procuro um lugar na parede de heras perto da fita vermelha até encontrar um
galho de trepadeira do tamanho certo, no qual enfio o frasco. O rótulo amarelo
parece ainda mais amarelo, como as primeiras flores de açafrão-amarelo que
brotam depois de um longo inverno. Minha mãe repreendia a Marjorie quando
ela colhia essas flores, mas minha irmã as colhia mesmo assim. Ela as guardava
entre as páginas do livro de receitas mais grosso da mamãe, até ficarem tão finas
quanto papel de seda, depois as emoldurava e colocava em cima da sua cama,
para ser sempre primavera.
Dentro do meu bolso, o papel amarelo do dr. Turner farfalha. A Lume de
Luar fica me observando enquanto o tiro do bolso e o rasgo devagar em
pedacinhos bem pequenos, depois os enterro na neve.
Uma nuvem passa, projetando sombras no jardim, e olhamos para cima.
Estamos pensando a mesma coisa: nunca se sabe quando o Corcel Negro está à
espreita. Estará atrás dos galhos retorcidos dos velhos carvalhos, mortos pelo frio
do inverno, que ficam na frente do hospital? Ou atrás das nuvens mais baixas, só
esperando por um raio de luar para poder recomeçar sua caçada?
– Você acha que o Corcel Negro consegue enxergar este frasco lá de
cima?
A Lume de Luar mexe a cabeça de uma maneira que pode ser um gesto
de concordância, de discordância ou de nenhum dos dois, depois vai para o canto
do jardim onde está batendo mais sol. A luz corta seu corpo em dois: metade
iluminada, metade na sombra.
Ela bufa.
Olho de novo para o céu. As nuvens mudaram de lugar, e o sol brilha bem
em cima do frasco. Faz o vidro resplandecer e o rótulo, cintilar.
– Sim – digo. – Sim, na lua cheia, acho que vai queimar os olhos dele na
hora.
18
Toc, toc.
– Entre – responde o Thomas, do outro lado da porta do celeiro.
Olho para dentro. Está limpando o estrume do cercado, que coloca em um
barril. O Brejo está encolhido no chão sujo do celeiro, perto da pilha de caixões
de madeira. Sua expressão muda, e ele começa a ofegar, sorrindo como um
cachorro.
Entro e olho para todos os lados. É o reino do Thomas. Um lugar de
homens, animais e ferramentas pontiagudas. Mas tem um cheiro bom, como o
do feno do meu colchão de palha, e como aveia doce. Tem uma máscara de
oxigênio pendurada na parte de trás de sua mesa de trabalho, meio esquecida.
Fico brincando com a tira de borracha.
– Estou procurando um pente para a Lume de Luar.
O Thomas para o que está fazendo, passa a mão sem luvas na testa. Será
que os americanos tricotam luvas especiais para rapazes que só têm uma mão?
– Você sabe pentear cavalos? – pergunta, com um tom de curiosidade.
Tento não olhar muito para a sua manga de camisa vazia, presa com um
alfinete de segurança. Agacho para fazer carinho na cabeça do Brejo. Ele se vira
de barriga para cima e estica uma pata no ar, para eu fazer carinho em sua
barriga com a ponta da bota. O movimento faz seu corpo inteiro se mexer para
cima e para baixo, para cima e para baixo.
– Porque posso te ensinar, se você não souber – continua o Thomas. –
Segurar os cascos pode ser difícil.
O Thomas procura no seu balde de escovas e pentes velhos até encontrar
um limpador de cascos, que me entrega.
– E aí precisa pentear a crina – diz, estendendo um pente largo com dentes
de metal. – Você precisa começar pelas pontas e ir subindo – explica, fazendo o
gesto com o pente no ar. – A mesma coisa com a cauda. E, quanto às asas, deixe-
as para lá, acho eu, se ela está machucada. É melhor deixar essas coisas sararem
no seu próprio tempo.
Sua voz se enfraquece ao som de passos vindos do lado de fora.
Toc, toc.
Na mesma hora, quase como se lamentássemos, eu e o Thomas trocamos
um olhar. Ele solta o pente e abre a porta. É a irmã Mary Grace. Que leva um
leve susto quando o Thomas abre a porta por completo.
– Irmã?
– Thomas. Tem uns homens querendo falar com você. Oficiais.
Ela puxa as mangas do hábito preto de freira como se, apesar de ter
metros e metros de tecido, não fosse o suficiente para se esconder. De repente,
olha para mim e para o Brejo.
– Emmaline? O que você está… – Então solta um suspiro e diz: – Volte lá
para dentro. Rapidinho.
O Thomas assovia para o Brejo, que levanta na hora, apoiado nas patas
traseiras.
Volto com eles para dentro de casa. A irmã Mary Grace põe a mão sobre
o meu ombro, acariciando os tufos do meu cabelo curto. A irmã Constance olha
pelos painéis de vidro da porta, fazendo careta, e a porta se abre para nós. Há
dois homens com ela. São jovens, com uniformes impecáveis e cabelo preto por
baixo do quepe.
A irmã Constance me olha feio.
– Você sabe que não pode sair agora que seu papel é amarelo, Emmaline.
Menos ainda ir até o celeiro, que é longe.
– Desculpe, irmã. Não vou mais sair escondida. Prometo.
– Assim espero – diz, com a voz dura.
Aí fecha a porta na cara do Brejo antes que o cachorro consiga entrar. Ele
encosta o focinho nos painéis de vidro, embaçando-os. O Thomas começa a
falar, mas muda de ideia. Os soldados parecem jovens e afáveis, como se
fossem seus amigos, mas não sorriem.
– Senhor Thomas Whatley ?
– Sim, sou eu.
Olho para trás e vou andando pelo corredor, o mais devagar que posso.
Quando chego à biblioteca, escuto apenas cochichos. Que estranho. Entro e
encontro o Benny e o Jack, mais outras dez crianças que deveriam estar se
preparando para a aula, encostados na parede.
– O que vocês estão…
– Silêncio, pulga! – sussurra o Jack, fazendo careta. – Conseguimos ouvir
se você calar a boca.
Faço careta para ele. O seu trem a vapor de brinquedo, que apita de
verdade, está do seu lado. Sinto-me tentada a chutá-lo. Mandar aquele pedaço de
metal verde brilhante para o outro lado da sala…
Fico sem ar.
Verde.
A tinta do trem brilha na luz: 865-VERDE-ESMERALDA. Vai ser bem-
feito para o traidor do Benny se o trem sumir…
As vozes abafadas dos soldados chegam pelo corredor. A Beth, uma das
três ratinhas, vem correndo e bate no chão. Tiro os olhos do trem do Jack e me
espremo entre os corpos quentes das crianças febris, com a orelha grudada na
parede fina. Só consigo entender algumas palavras ditas pelas vozes baixas dos
soldados. Algo sobre uma batalha em algum lugar perto do Egito. Um estilhaço e
um hospital. E aí o Thomas solta um único gemido agudo.
– O que aconteceu? – sussurra a Susan, a menor das três ratinhas, que
acabou de chegar. – Estão falando da guerra?
– É óbvio que estão falando da guerra – dispara o Benny. – Se são
soldados, estão sempre falando da guerra. Estão falando do pai do Thomas. Ele
estava bem longe, lutando contra os homens do marechal de campo nazista
Erwin Rommel, na Campanha Norte-Africana. Acho que ele foi morto.
O Benny vai na ponta dos pés até a porta da biblioteca e espia o corredor.
Volta um instante depois e tira o quepe de um jeito dramático, igualzinho ao que o
soldado fez.
– Entregaram um pacote para o Thomas. Acho que são os pertences do
pai dele que estavam no hospital, papéis e outras coisas. Também mencionaram
medalhas de honra e lhe entregaram uma caixinha com o selo do próprio rei.
Disseram que o pai do Thomas foi um dos maiores heróis da Inglaterra.
– Coitado do Thomas – lamenta a Susan.
O Benny levanta o queixo e fala:
– Essas coisas acontecem. Precisamos continuar vivendo.
O Peter tosse.
A irmã Mary Grace aparece na biblioteca e diz que estão ouvindo nossos
sussurros no corredor. Todos levantamos depressa e saímos correndo dali.
Ouvimos passos subindo a escada e portas batendo de cima abaixo da parte
residencial do hospital.
Paro por um instante e olho mais uma vez para a biblioteca. O trem do
Jack sumiu. Ele deve ter levado consigo.
– O que aconteceu? – grita a Anna, lá do seu quarto, no andar de cima. –
Oi? Ninguém vai me contar?
Mas ninguém responde.
Perto da porta de entrada, os soldados ainda conversam em voz baixa com
o Thomas, que segura no braço comprido, com força, um pacote cheio de papéis
e outras coisas. A irmã Mary Grace está com uma mão sobre a boca. O Thomas
está de costas para mim. Seus ombros estão caídos. Não vejo seu rosto.
Devagar, vou subindo os degraus da escada até o meu quarto, no sótão.
Sinto lágrimas queimarem minhas bochechas. O Thomas não é nenhum monstro,
tenho certeza. E está sofrendo.
Sei que a fita vermelha e o frasco amarelo estão lá, bem enfiados nas
heras. Logo, espero, vou poder adicionar o trenzinho a vapor verde-esmeralda
com apito de verdade , que pertence a um menino arrogante, ao escudo
espectral.
Olho para cima, só por precaução. O céu está límpido. Nada de Corcéis
Negros voando em círculos, mas sei que ele está por perto. Esperando.
Farejando. Caçando.
Lá embaixo, nos degraus da entrada, o Brejo senta no frio, com o rosto
colado no vidro, à espera do Thomas.
19
A velha princesa gostava de colecionar coisas. Sei disso porque meu quarto fica
no sótão. E, com exceção daquela vez que o Jack e o Benny vieram fumar
escondidos, sou a única criança que sobe aqui. A escada é estreita e íngreme.
Não tem luz elétrica, só velas e lanternas, e apenas uma janela de cada lado. Os
depósitos são empoeirados e cheios de caixotes cobertos de teias de aranha, com
etiquetas em línguas estrangeiras. A maioria está vazia. Quando a princesa foi
embora, levou quase tudo que tinha de valor lá embaixo, com exceção dos pratos
de porcelana e de algumas outras coisas que poderíamos precisar no hospital.
Mas acho que, por causa da velhice, acabou esquecendo uma ou duas caixas aqui
em cima. Acho que todo mundo esqueceu.
Está na hora de apagar as luzes, e prometi para a irmã Constance que não
sairia mais escondida, mas no sótão posso me mexer sem que ninguém me veja
ou ouça. Acendo uma vela e coloco sobre um prato, depois coloco o prato ao
lado da caixa maior, um velho baú com fivelas de couro já podres, com os
cantos manchados pelo sal do mar.
Lá fora, além da janela, já aparece uma lasquinha da lua, que vai crescer
mais a cada noite. Penso na caixa de lápis de cor da Anna. Preciso encontrar
tantas cores e só achei duas até agora.
A tampa do baú é mais pesada do que eu imaginava, e custo a levantá-la e
baixá-la sem que faça um barulho alto. Está cheiade palha tão velha que virou
pó. Arranha minha garganta. Abafo a tosse enquando remexo lá dentro e
encontro um pacote embrulhado em jornal. Desfaço o embrulho e acho uma
pequena escultura de sapo. É linda, mas feita de pedra cinza, e a última coisa que
preciso é de mais cinza, então a coloco de volta no baú. Desempacoto outro
objeto: uma caixa dourada com um besouro em cima e pequenos desenhos e
símbolos pintados dos lados. Não sei se dourado conta como cor, já que não está
listado como cor do arco-íris pelo fabricante de lápis. De qualquer modo, não
gosto do besouro, e a caixa volta para o baú. Depois puxo um saco de veludo
cheio de coisinhas que fazem barulho e as coloco na palma da minha mão. São
pedras soltas e pequenos berloques para fazer um colar: uma mulher com asas e
uma criatura com corpo de homem e cabeça de cachorro. E então… Um longo
fio de contas verde-azuladas que brilham à luz da vela e, por um instante fugaz,
me sinto uma verdadeira exploradora.
867-TURQUESA MARÍTIMO.
É a cor exata do lápis da Anna! Guardo as contas de turquesa com
cuidado no meu bolso e fico de pé, batendo o pó da minha camisola. Ao lado do
pesado baú, há caixas menores, de uma chapelaria. Algumas são redondas,
outras compridas e chatas, com LOCK & CO e EDE & RAVENSCROFT escrito
do lado. Dentro da primeira, encontro um chapéu preto antigo com véu. A
segunda e a terceira só têm metros e mais metros de papel de seda. Quando abro
a última, meus olhos se acendem. Está cheia de um tecido de cetim macio. 848-
ROSA ROUGE! Sorrio de felicidade por tanta sorte e rasgo o papel de seda
amassado para tirar o tecido de dentro da caixa. Só que… Não é apenas tecido. É
uma peça de roupa, com renda na bainha e, quando a levanto contra a luz, meus
olhos se arregalam.
É uma camisola.
Não uma camisola qualquer. Uma camisola daquelas. Uma camisola de
mulher.
Será que pertencia à princesa? Não consigo imaginar uma dama fina e
distinta usando seda rosa e renda. Dou uma risadinha ao pensar nisso, depois
cubro a boca.
Eu deveria deixá-la na caixa. Não posso ficar pendurando roupas íntimas
de mulher no muro do jardim. E se o Thomas for espiar? E se o Lorde dos
Cavalos vê-la quando for entregar seus bilhetes?
Mas rosa não é uma cor fácil de encontrar. Não existe rouge em pó aqui.
Nem caixas de chocolate em formato de coração. Dobro a camisola e pego o fio
de contas. Agora tenho quatro cores, preciso de mais quatro. E aí minhas
bochechas ficam quentes. Penso naquela velha princesa, dançando pela casa de
camisola cor-de-rosa. Dou risada bem alto, depois levo a mão de novo à boca,
abafando a tosse.
20
– Ah, pobre Thomas. Você devia ter me contado assim que soube.
A Anna está brava comigo. Devolvo seu lápis amarelo, na esperança de
que isso a faça se sentir melhor. Ela solta um suspiro, com os olhos vermelhos,
guarda a caixa de lápis de cor no seu devido lugar e deita na cama ao lado do
livro Flora e fauna, que está aberto.
Pego a caixa e passo os dedos pelas pontas afiadas dos lápis. 865-VERDE-
ESMERALDA. Além do trem do Jack, o que mais pode ser dessa cor? Espinhos
de pinheiro vão se tornar marrons. E tem o sofá desbotado da biblioteca, mas
precisaria de quatro homens adultos para levantá-lo.
Resta apenas o trem.
– O pai do Thomas era muito famoso? – pergunto.
– Sim, ele era muito condecorado. Recebeu até a Cruz Vitória, a mais alta
condecoração que um militar pode receber. Na época da Grande Guerra, ele
tinha a idade do Thomas e era soldado da Cavalaria, e, na Batalha de Cambrai,
dizem que cavalgava tão rápido que conseguia alertar todos os homens da
trincheira antes de o gás atingi-los. Isso foi antes de tudo se tornar mecanizado.
Foi nessa guerra que o promoveram a sargento e o designaram para o Esquadrão
Aéreo Especial. Há reportagens no jornal sobre ele e tudo, sabia? O Thomas tem
um livro de recortes. Sua tia, que mora no País de Gales, começou a lhe mandar
as reportagens depois que a mãe dele morreu. – A Anna suspira de novo e olha
para as próprias mãos. Então completa: – O pai do Thomas não ligava muito para
ele.
– Por quê?
A Anna fica com as bochechas vermelhas.
– Ele não podia ser soldado, por causa do braço.
– E o que ele vai fazer agora?
– A mesma coisa que todos nós. Ficar aqui. Cuidar das ovelhas. Comer
cebolas podres e esperar.
Coloco o lápis verde de volta na caixa.
– Você acha que o Thomas consegue limpar o casco de um cavalo só com
uma mão?
A Anna levanta a sobrancelha.
– Por que a pergunta?
Encolho os ombros.
Ela olha para o teto, melancólica, e pressiona a base da garganta.
– Acho que o Thomas consegue fazer qualquer coisa. Acho que, se
tivessem colocado uma arma em sua mão, ele teria vencido esta guerra.
Fico de costas e olho para o teto do quarto da Anna. Ele já foi o quarto da
própria princesa. O céu tem uma pintura a óleo de deuses gregos, alguns fortes e
belos, outros gordinhos, com barriga e cachos perfeitos. A Anna me conta
histórias sobre eles. Zeus. Hera. Hades. Mas só quando as freiras não estão por
perto. As irmãs dizem que essas histórias são “blasfêmia”.
– Você sente falta da sua família? – pergunta a Anna, de repente.
Tiro o lápis azul. Não. O vermelho. Tem algumas coisas vermelhas no
hospital. O chapéu de feltro da Anna. As latas de sopa na despensa da cozinha.
Mas já tenho a fita vermelha do Lorde dos Cavalos.
– Emmaline?
Guardo o lápis vermelho.
– Sinto falta dos meus cavalos.
A Anna se recosta nos travesseiros, olha pela janela, passa os dedos na
lombada do livro de um jeito carinhoso.
– Você os verá de novo.
– Não verei, não. – Penso no pai do Thomas e imagino meus cavalos,
minha boca fica com gosto de cinzas. Engulo, mas o gosto continua voltando. –
Eles morreram.
A Anna vira para mim de sopetão.
– Ah, minha gansinha. Sinto muito.
Penso nos cavalos dando coices e mais coices na baia, sem ninguém para
soltá-los.
– As histórias dos bombardeios são simplesmente terríveis – continua ela.
– Todo mundo fala de Londres, mas em Nottingham foi muito feio também, não?
Tantas almas perdidas em apenas uma noite. E tantos incêndios… Ouvi dizer que
encontraram incêndios uma semana depois, quando foram vasculhar os
destroços em busca de… Pessoas. – Aí a Anna fica em silêncio por um instante e
pergunta: – Você quer conversar sobre isso, Em?
Tiro o lápis roxo da caixa e o seguro contra a luz.
A Anna estica o braço e passa as mãos nos meus tufos de cabelo curto.
– É claro que não quer. Só um louco ia querer pensar em uma coisa
dessas. É muito melhor pensar em quando voltaremos para casa e revirmos
nossa família. Vou abraçar todo mundo, principalmente o meu irmão, o Sam. Ele
vai sobreviver à guerra, tenho certeza.
Então inclina o livro na minha direção e diz:
– Decidi que vou estudar para me tornar professora de ciências naturais.
Pesquisei o nome da sua égua alada, Lume de Luar, e descobri uma coisa
magnífica. – A Anna vira uma página do livro e aponta para a ilustração de um
inseto que brilha. – Você sabia que existem seres que emitem luz? É um
fenômeno que ocorre com certos insetos, fungos e criaturas marinhas – explica,
acariciando o livro. – Antes de as pessoas saberem quais eram as suas causas,
achavam que era magia. Chamavam de “fogo-fátuo”, “fogo das fadas” e “brilho
de mel” – conta. Então dá um sorriso. – E “lume de luar” também.
– O nome da Lume de Luar vem de um inseto que brilha?
– De um tipo de planta que emite luz – explica ela, dando risada. – Quando
os troncos se decompõem, um fungo bioluminescente cresce neles e emite uma
luz azulada. Em alguns casos, tão clara que dá até para ler à noite.
Fico olhando para as ilustrações do livro da Anna.
– Pensei que, quando você for uma exploradora e viajar pelo mundo,
pode encontrar lumes de luar. A bioluminescência, quero dizer, não a égua.
Darwin escreveu sobre isso. “Navegando por estas latitudes em uma noite muito
escura, o mar me apresentou um maravilhoso e belíssimo espetáculo. Cada
pedaço da superfície brilhava com uma luz pálida.” – A Anna sorri de novo e diz:
– Talvez você descubra uma nova espécie e dê a ela o nome de Mycena
emmaline ou Mycena marjorie. A sua irmã não ia ficar feliz de ter um fungo com
o nome dela?
Levanto da cama. O espelho em cima da cômoda da Anna está tranquilo.
Os cavalos alados se foram. Parece tudo tão vazio, só com minha versão e a da
Anna refletidas.
– Emmaline?
Saio pela porta em silêncio e perambulo pelo longo corredor. Todos os
quartos estão quietos, com exceção do último, onde o Arthurzinho ronca na
cama. Tem um gabinete de curiosidades em uma salinha cheia de coisas tão
corriqueiras que a velha princesa não se deu o trabalho de levá-las. Ninhos de
pássaros. Peles de cobra. Uma pedra esculpida. Coisas que alguém deve ter
encontrado no terreno do hospital. Abro o armário de vidro e pego uma pilha de
cartões de visita amarelados que estão dentro de uma fruteira lascada. Professor
H.K. Hopper, Egiptólogo. Lorde Barchester. Srta. A. Rodan, aviadora.
Devem ser de todas as pessoas famosas que vinham visitar a velha
princesa, cujos tesouros, presentes para Vossa Alteza, estão guardados no sótão.
Será que o pai do Thomas chegou a visitá-la?
Olho para trás, na direção do quarto da Anna.
Ela me disse que posso me tornar exploradora. Alguém famoso, como os
donos desses cartões. Ela disse que já sou uma.
Às vezes penso que a Anna me entende melhor do que qualquer outra
pessoa neste mundo.
Dou um sorriso. Bem discreto. Só para mim mesma.
21
Ouço sussurros vindos do final do corredor.
Ponho os cartões de volta na fruteira e fecho correndo o gabinete de
curiosidades. Sigo as vozes e chego à biblioteca. O Rodger, o menino que tem
uma marca de nascença cor de vinho do porto, e a Susan estão fazendo contas
para a aula de matemática da irmã Constance, na mesa de estudos. Estão de
costas para mim. O Jack dorme no sofá, não muito longe. No tapete, ao seu lado,
a cinco centímetros da sua mão, está o seu trenzinho a vapor.
Arrisco olhar para o corredor: está vazio. Eu poderia pegar o trenzinho.
Uma exploradora famosa não teria vergonha de cumprir uma missão
importante; e eu muito menos.
Agora.
Fico de quatro no chão e me mantenho abaixada, para as outras crianças
não me verem. Um cotovelo depois do outro, um joelho depois do outro, me
arrasto pela terra de ninguém que é o chão da biblioteca. O Jack murmura
dormindo e abaixa a mão. Seus dedos tateiam o trenzinho, e eu congelo. As
outras crianças param de sussurrar por um instante. Meu coração faz rá-tá-tá-tá,
e arrisco olhar para cima, para o território inimigo. Ainda estão de costas para
mim.
O trenzinho está perto, mas os dedos cheios de migalhas do dono estão
sobre ele.
Segurando o ar, me arrasto para a frente com um silêncio digno dos
melhores espiões ingleses. Pego delicadamente na parte de trás do trenzinho –
com cuidado para não encostar no apito de verdade – e vou puxando. Centímetro
por centímetro. As rodas giram silenciosas pelo tapete, até que os dedos do Jack
deslizam para fora do trem.
Fico quieta, meu coração batendo forte.
Mas ele não acorda.
Então fujo do campo de batalha, com o trenzinho debaixo do braço, para a
segurança do corredor. Ouço passos – estou encurralada! Espio o gabinete de
curiosidades, do outro lado do corredor, e escondo o trem bem no fundo, na
prateleira de baixo, atrás de uma pele macia de raposa, bem na hora em que a
irmã Constance aparece.
Congelo.
Seus lábios estão repuxados, com uma expressão firme. Foi ontem que
prometi à irmã Constance que não ia ficar andando por aí escondida.
– Emmaline! – ela vem correndo e puxa minha orelha. – Você deveria
estar estudando em silêncio na biblioteca, mocinha.
– Ai, ai, ai – imploro, mas ela me puxa mais alguns metros pelo corredor
antes de me soltar.
– Vá para o seu quarto e fique lá o resto do dia, e peça perdão a Deus pela
sua desobediência. Se eu vir você antes do café da manhã, vou pôr um sino no
seu pescoço, como se faz com um gato.
Ando em direção à escada, de cabeça baixa, mas meu cora-ção ainda
fica secretamente entusiasmado quando penso no trenzinho escondido. A porta da
capela fica perto da escada, e paro na frente dela porque vejo velas acesas lá
dentro, apesar de não ser domingo. O pesado pano litúrgico cobre o altar, na
frente de três fileiras de bancos de madeira. Alguém está sentado no primeiro
banco, mexendo a boca em uma oração silenciosa.
É o Thomas.
Ele estica o braço e encosta no pano do altar. É um tom vivo e nobre de
roxo, reservado para o Advento e para a Quaresma. O mesmo tom do lápis 876-
ROXO HELIOTRÓPIO da Anna.
O Thomas tira a mão do pano. Ainda sussurra, mas fala baixo demais, não
consigo entender.
Em algum lugar bem fundo do meu peito, as águas paradas se agitam.
Incham, pinicando o interior dos meus pulmões, até eu me sentir pesada e
afogada, como se tivesse caído do navio de Darwin no mar das pequenas
criaturas brilhantes.
– Emmaline – chama a irmã Constance, com um tom duro. Então aponta
para a escada que sobe para o sótão e completa: – Já.
Subo a escada, meus pensamentos pulam do Thomas e do seu pai para o
trem de brinquedo para o pano roxo que cobre o altar e para a irmã Constance.
No alto da escada, porém, fixo os olhos na porta e paro.
Um ataque súbito de raiva cresce dentro de mim.
Um papel amarelo? Alguém substituiu o papel que rasguei! Pulo para
arrancá-lo, mas lembro que o dr. Turner tem uma pilha deles. Se eu tirá-lo, ele
vai colocar outro no lugar.
Jogo-me em cima da cama e não encosto nos livros nem no dever de
casa.
Não faz sentido. A irmã Constance sempre estará de olho. Sempre vai
haver um papel amarelo. Nunca serei uma exploradora de verdade. Nunca verei
as pirâmides do Egito. Nunca verei os cavalos selvagens correndo pelas planícies
dos Estados Unidos. Nunca descobrirei nada a não ser poeira.
Mas não.
Sento na cama.
A Anna acredita em mim, e ela é a pessoa mais esperta que conheço.
Pego um pedaço de giz e escrevo no verso de um desenho antigo:
Sinceramente,
Emmaline May
Boas cavalgadas,
Sinceramente,
Emmaline May
Sinceramente,
Emmaline May
Então é noite de Natal. Não sei como o Natal pode chegar sem a Anna, mas
chega, e a irmã Mary Grace diz que não posso mais ficar sozinha.
Nossa família não pode vir nos visitar, mas o sr. Mason, da fazenda ao
lado, aparece à tarde, quando as sombras são compridas, trazendo uma árvore de
Natal. Ele a puxa com a charrete do burrico e fica do lado de fora, conversando
com as irmãs, que esfregam as mãos, sem luvas, para espantar o frio. Ficamos
todos observando, com o rosto grudado no vidro.
– Nunca tivemos uma árvore de Natal – diz o Peter. Agora, ele e o Jack
são as crianças que estão há mais tempo aqui e já passaram dois natais no
hospital. – A irmã Constance diz que o Natal existe para comemorar o
nascimento de Cristo, não o Papai Noel.
– Os americanos enviaram presentes no ano passado – conta o Jack,
melancólico, com o nariz espremido contra o vidro. – Tantos que dava para
encher a capela inteira, mas as irmãs só deixaram cada um de nós ficar com
um. Foi quando ganhei meu trem a vapor. E agora ele sumiu.
O Jack fica em silêncio, e viro de costas para ele, na esperança de que
minhas bochechas não estejam vermelhas demais.
Depois de alguns momentos de discussão tensa lá fora, nos quais o burrico
começa a fazer i-ó por causa do frio, a irmã Constance ergue as mãos ao céu. O
fazendeiro dá um sorriso e põe a árvore no ombro.
As outras crianças gritam de alegria.
Fico longe de todo mundo, observando a neve cair. Isso me parece errado.
Sem a Anna. E sem o Lorde dos Cavalos também.
Então uma árvore de Natal entra pela porta da frente e vai direto para a
biblioteca, deixando um rastro de seiva e espinhos, e os cheiros da floresta
tomam conta do ar.
– Benny, vá chamar o Thomas – diz a irmã Mary Grace. – E peça para
ele trazer um balde e alguns parafusos.
O Benny sai correndo pelo corredor.
– Emmaline, pegue uma panela com água.
Esfrego os olhos, me sentindo cansada demais para me mexer. Mas eis
que vejo um lampejo de cor. É um velho lenço amassado que o sr. Mason usa
para limpar a seiva que ficou nas suas mãos. Ele começa a guardar o lenço no
bolso mas, quando vê a seiva, franze a testa e joga o lenço surrado na nossa lata
do lixo. Meu coração começa a fazer tum-tum, tum-tum, de um jeito que não
fazia desde que a Anna morreu. O lenço está um pouco puído, mas a cor é
inconfundível. 868-AZUL LAZÚLI.
A irmã Mary Grace está me olhando com curiosidade, como se estivesse
tentada a medir minha temperatura de novo.
Eu me forço a levantar com minhas pernas trêmulas.
– Sim, irmã, vou buscar a água.
Sigo até a cozinha, e fico sem ar depois de poucos passos. Lá, pego uma
panela de cobre e coloco debaixo da torneira. Enquanto aguardo que encha de
água, olho para o reflexo na lateral da panela: olhos fundos, pele pálida. Dois
cavalos alados estão parados atrás de mim, suas asas estendidas quase como se
fizessem uma cobertura para me proteger da chuva, ainda que não esteja
chovendo aqui dentro.
Levo a panela para a biblioteca e fico perto do fazendeiro. Ele e o Thomas
agem como se estivessem construindo uma máquina de guerra, de tanto que
calculam como a árvore deve ficar reta dentro do balde. Inclino o corpo, finjo
que estou observando e, bem em silêncio, abaixo a mão e tiro o lenço da cesta de
papéis amassados. Dou uma tossida e escondo o pano na bota.
O fazendeiro não sentirá sua falta, com certeza. Para ele, isso não passa
de um trapo velho e gasto que jogou fora. Para mim – para a Lume de Luar – é
uma esperança.
Os dois terminam de pôr a árvore no balde, mas ela ainda fica um pouco
torta no topo. O sr. Mason diz que precisamos dar água para a planta todos os dias.
Fala que precisamos ter muito cuidado se colocarmos velas nos galhos, para que
não pegue fogo.
– E é melhor deixar alguns biscoitos para o Papai Noel – completa, dando
uma piscadinha.
A irmã Constance retorce a boca.
Ficamos observando pela janela o fazendeiro acender a lanterna da
charrete e levar o pobre burrico congelado para casa.
– Vamos decorar a árvore – fala a Kitty, com sua vozinha de rato. –
Podemos fazer uma pasta branca com sabão. Vai ficar igualzinho a neve quando
pusermos nos galhos.
As crianças começam a dar pulos. Rasgam os retalhos de tecido e as fitas
que a irmã Mary Grace tira da sua caixa de costura. Outras vêm arrastando
caixas empoeiradas lá do sótão, onde o Arthur encontra bolas de Natal vermelhas
e brilhantes, que observa, maravilhado. Duas das três ratinhas correm lá para
fora e procuram pinhas, e a irmã não fala nada sobre a regra de não ir além do
pátio da cozinha.
Espio pela porta aberta. Será que consigo escapar e ir até o jardim para
pendurar o lenço? O Thomas, em algum momento, também deve ter saído de
fininho. Será que está no celeiro, com o Brejo e as ovelhas? Será que também
gosta de ficar sozinho, mas não solitário?
A Susan levanta uma corrente de elos de papel branco.
– Está tão sem graça! – fala, de repente, virada para mim. – Vá buscar os
lápis de cor que a Anna lhe deu! Podemos pintar os elos de verde e vermelho!
As outras crianças olham para mim, com os dedos grudentos da pasta de
neve.
O pavor cai sobre mim como se fosse uma sombra. Os lápis? Os lápis da
Anna? Mas ela os deu para mim.
Sacudo a cabeça.
O Benny bufa e olha para a irmã Constance.
– Diga que ela tem que nos emprestar! – reclama ele.
– A Anna deu os lápis para a Emmaline – diz a irmã Constance. – Ela pode
fazer o que quiser com eles. Se escolher o caminho da generosidade, como a
Anna costumava fazer com tanta frequência, trará os lápis de cor. Se optar por
ser egoísta, bem, a escolha é dela.
– Mas a Emmaline está sendo uma bebezona!
O Benny cruza os braços, olhando feio para mim. Tem um crucifixo de
madeira pendurado atrás dele. Se as mãos de Jesus não estivessem pregadas na
cruz, acho que ele cruzaria os braços para mim também.
Cruzo os braços e olho feio para o Benny.
Se é cor que eles querem, cor de verdade, estão procurando no lugar
errado.
O Benny me olha, furioso. Depois, em um impulso, enche a mão de pasta
de neve.
– Nós todos sentimos falta dela!
Então joga a pasta no meu rosto.
O gosto de sabão toma conta da minha boca. Cuspo e tusso, e a irmã
Constance puxa a orelha do Benny.
– Isso foi desnecessário – censura ela.
– Ela é um monstrinho egoísta – dispara o Benny, enquanto sua orelha fica
cada vez mais vermelha. – Ela não pode simplesmente… Ela não é a única…
A irmã Constance arrasta o Benny, que desaparece, e resmunga alguma
coisa sobre ele ficar no quarto até que o isolamento bote sua cabeça para
funcionar direito.
Olho para meu reflexo na janela. A pasta transformou minha pele em
uma coisa horrível, cheia de caroços.
As outras crianças estão tentando controlar a vontade de rir.
Um monstro.
Eles não dizem isso em voz alta, não sob o olhar atento da irmã Mary
Grace, bem aqui, mas sei que é isso que estão pensando.
O Thomas é um monstro porque tem algo a menos.
Eu sou um monstro porque tenho algo a mais. Mágoa demais. Raiva
demais.
Não me importo.
Pelo jeito, só os monstros sabem que existem mundos e mais mundos e
mais mundos, e o nosso é apenas um deles.
28
Passo dias sem conseguir sair. As irmãs ficam acordadas até mais tarde no
período entre o Natal e o Ano-Novo, ao lado da janela da biblioteca que está com
a tranca quebrada, escrevendo cartões para os rapazes do vilarejo que foram
para a guerra. Espero no escuro, sentada na escada, sozinha, esfregando meus
olhos cansados, até que por fim elas saem, e posso correr lá para fora e amarrar
o lenço azul do fazendeiro no muro coberto de heras. Ainda não chegou nenhum
bilhete do Lorde dos Cavalos, e o meu último continua lá, molhado e manchado.
Fico enjoada, parece que comi presunto estragado.
Volto para o meu quarto no sótão e não consigo dormir.
O vento bate na janela. Pam. Pam. O som é igual ao dos coices dos
cavalos, quando chutavam as baias para que alguém os soltasse. Estou suando,
apesar do vento gelado que entra pelas frestas. Por mais que eu me enrole nas
cobertas, o frio ainda se infiltra. Vou chamar o papai e pedir para ele pôr mais
carvão no aquecedor, mas aí lembro.
O papai não está aqui.
No dia em que ele foi para a guerra, a mamãe, a Marjorie e eu vestimos
nossas roupas de domingo. A Marjorie penteou meu cabelo para trás, pôs uma
fita e ficou segurando minha mão enquanto observávamos da calçada os homens
desfilarem pela rua Waverly em direção à Castle Green, comendo as cerejas
gorduchas que a mamãe levara, soltando gritos de encorajamento, apontando
para os homens que conhecíamos da igreja e da escola, rindo de como os
meninos que faziam as entregas da padaria pareciam sérios de uniforme.
E observando o papai. O papai, com seus ombros fortes como os de um
cavalo de carga, com seu cabelo cor de chocolate. E aquele momento – um
instante que qualquer outra pessoa não teria notado – em que nos viu torcendo por
ele e teve que se controlar para não deixar escapar um sorriso de orgulho. Foi só
à noite, na hora do jantar, quando vi sua cadeira vazia na cabeceira da mesa, que
o eco dos trompetes nos meus ouvidos me fez sentir um vazio.
Fico olhando para as vigas do sótão. Não vejo teias de aranha. Nenhuma
poeira acumulada. Só há uma coisa que a irmã Mary Grace pode fazer de
verdade para lutar contra as águas paradas, que é manter tudo muito limpo, e é
isso que ela faz.
Começo a tossir e me contorço. Algo cai em cima da minha colcha e rola
pelo chão. Caio em cima do travesseiro, me sentindo trêmula, com calor e com
frio ao mesmo tempo, e é aí que reconheço o som do objeto que caiu e rolou
pelo chão.
Um lápis.
Risco um fósforo e acendo uma vela, depois me debruço na cama e olho
para o chão.
868-AZUL LAZÚLI.
O lápis está no chão. Em dois pedaços.
Quebrado!
Será que acabei de quebrá-lo?
Tateio na sua direção tão rápido que acabo caindo da cama no chão duro.
Pego os dois pedaços. A ponta está quebrada e gasta, o restante quebrado ao
meio, e meu coração dói enquanto penso em como posso consertá-lo. Passar fita
adesiva. Cola. Deve haver um jeito…
A luz da vela bruxuleia, e outro lampejo de cor chama a minha atenção
embaixo da cama. 845-VERMELHO CARMIM. Só que é um pedacinho
pequeno. A ponta de um lápis. Apavorada, levanto a colcha.
Quase não consigo contar para você o que vi.
É terrível demais, demais.
Os lápis. Todos eles. 849-LARANJA TANGERINA e 876--ROXO
HELIOTRÓPIO e 867-TURQUESA MARÍTIMO. Quebrados. Despedaçados.
Pisoteados, partidos e esmagados. A luz da vela incide sobre os pedaços,
iluminando a cena do crime. E um dos meus desenhos, todo amassado. Puxo-o
de debaixo da cama com os dedos trêmulos.
Fizeram um X de lápis preto nas asas do cavalo, com tanta força que o
papel rasgou.
Alguém.
Ah, sei muito bem quem foi.
Quero descer as escadas correndo e me atirar na sua cama e apertar seu
pescoço pelancudo enquanto ele dorme. Quero rasgar seus preciosos gibis em
mil pedacinhos. Quero pisar nele, parti-lo ao meio, despedaçá-lo.
Pam, pam.
Fico sem ar e levanto a cabeça. O que foi isso? É o Corcel Negro. Ele
voltou. Bate os cascos no telhado e, de repente, é ele que quero destruir. É ele a
causa de tudo de errado que está acontecendo. Tenho certeza.
Os cavalos alados dos espelhos ficam me observando andar pelo corredor
de fininho, pôr o casaco, calçar as botas e sair pela janela da biblioteca. Lá em
cima, a lua está quase cheia, e a odeio também. Arrasto meus dedos sem luva
pela neve, fazendo bolas de gelo, que atiro no telhado com toda a força.
– Vá embora! – grito.
Atiro outra bola de neve. E mais uma. Mas não tenho força no braço, e
elas só chegam às janelas do primeiro andar. Está escuro demais para ver se o
Corcel Negro está mesmo lá em cima ou se são apenas sombras. Mas não tem
importância. Sei que ele está lá.
Ele sempre está lá.
Uma luz se acende em uma das janelas, e solto a bola de neve que tenho
nas mãos. Me arrasto até o muro do jardim, forçando minhas pernas e meus
braços fracos a escalar o muro e a pular para o outro lado antes que alguém olhe
para fora e me veja. Passo depressa, como um vento, pelo labirinto de pequenos
jardins. Pelo jardim das rosas, com suas treliças podres, por chafarizes
quebrados, pelo jardim das azaleias, que cresceram demais, até chegar ao
jardim do relógio de sol. A Lume de Luar move a cabeça na minha direção, suas
orelhas viradas para a frente, ansiando por uma maçã.
Vou pisando firme até onde ela está.
– O Lorde dos Cavalos nunca deveria ter mandado você para cá! – grito,
tentando vencer o aperto nos meus pulmões. – Aqui não é um lugar seguro.
Nosso mundo não é mais seguro do que o seu. Se o Corcel Negro consegue
encontrar você lá, também consegue encontrar aqui. É só uma questão de
tempo! Coisas ruins acontecem por aqui, você não percebe? A Anna se foi. Meus
lápis foram destruídos. E o Lorde dos Cavalos nem me escreve. Ele nos
abandonou. Não faz mais sentido lutar, está me ouvindo? Não faz sentido!
E é verdade. Ele não me escreveu. Esqueceu de nós. A Anna morreu e
me abandonou. O Lorde dos Cavalos me abandonou também.
Mas paro por um instante.
Espera.
Tem um bilhete novo no relógio de sol. O mesmo papel cor de creme.
Amarrado com a mesma fita vermelha.
Com as mãos trêmulas, eu o puxo.
Boas cavalgadas,
Releio o bilhete. O frio faz meu nariz escorrer. Penso nos lápis quebrados, que a
Anna mantinha perfeitamente apontados. Penso na cama vazia da Anna. As
irmãs não mudaram nada no quarto, a não ser os lençóis, apesar de eu ter ouvido
o Benny falar que vão tirar a cama grande e pôr três berços, para acomodar três
crianças novas que vão chegar em breve.
Penso no dia em que me escondi atrás da pilha de lenha e fiquei
observando o Thomas enterrar a galinha que as raposas mataram. Ele tocou suas
penas antes de cobri-la de terra. Será que fez a mesma coisa quando ajudou a
enterrar a Anna? Será que toca os caixões empilhados no celeiro, feitos para
enterrar aqueles de nós que morrem? Qual a sensação que tem nas pontas dos
dedos?
Limpo o nariz.
– Preciso ir – digo para a Lume de Luar. – Desculpe, mas é importante.
Não se preocupe, vou continuar protegendo você. Vou encontrar uma coisa
laranja antes de a lua cheia aparecer, prometo.
A Lume de Luar passa o focinho no meu pescoço. Encosto a testa na sua
mecha em forma de faísca.
Nós nos entendemos, ela e eu.
Então me viro para o muro e começo a escalar.
29
Corro pelos campos congelados até chegar à casinha do Thomas, que fica ao
lado do celeiro. Nuvens de fumaça saem pela chaminé.
Toc, toc.
O Brejo reage primeiro, uivando baixinho. O Thomas faz shhh, e o
cachorro fica em silêncio. Ouço passos. A porta se abre.
O Thomas abaixa a cabeça, como se estivesse esperando encontrar
alguém mais alto.
– Emmaline?
Sua manga vazia não está cuidadosamente presa. Está pendurada, solta e
vazia. O Thomas esfrega os olhos sonolentos com a mão.
– O que foi? – pergunta, olhando em volta para ver se estou sozinha. –
Você não pode continuar saindo escondida assim, tão tarde. Está ficando mais
frio, e você… – Então fica em silêncio, porque dobro o corpo para tossir. – Você
não quer ficar mais doente – completa.
– Preciso mostrar uma coisa para você – digo, meio tossindo. – É
importante.
Ele esfrega os olhos para espantar o sono mais uma vez e olha para o
hospital, como se estivesse pensando em me levar até lá e me entregar para a
irmã Constance. Mas abafa um bocejo e abre mais a porta.
Fico hesitante.
Nunca entrei na casinha do Thomas. Ninguém entrou. O Benny diz que é
para cá que ele traz as suas vítimas e as deixa enjauladas até as bruxas as
comerem, mas não vejo nenhuma criança enjaulada. Não vejo nenhuma espada
ou faca. Só vejo uma cama de corda e um colchão de palha, igual ao meu, só
que maior, e um fogão a lenha com uma chaleira em cima, e algumas camisas
penduradas nas vigas para secar.
Tem, sim, um osso roído no chão, mas acho que pertence ao Brejo.
Depois que entro, o Thomas fecha a porta para o calor não sair. Esfrega o
queixo.
– O que pode ser tão importante para você vir aqui no meio da noite?
O calor do fogão a lenha faz minhas axilas umedecerem. Procuro o
bilhete do Lorde dos Cavalos e começo a me sentir boba. Talvez isso pudesse
esperar até amanhã de manhã. Talvez seja infantil da minha parte estar aqui.
Mas não. Algumas coisas não podem esperar.
Estendo o bilhete para o Thomas.
– Leia.
Mas ele não o pega.
– Vamos, ande – insisto.
Ele limpa a garganta. Sacode a cabeça, com os olhos fixos no fogão a
lenha.
– Caseiros só leem a previsão do tempo – diz.
Fico um pouco impaciente; talvez o Thomas não saiba ler e esteja com
vergonha. Pego o bilhete de volta e leio em voz alta a parte sobre as pessoas
especiais que morrem prematuramente. Termino e fico olhando para ele, cheia
de expectativa.
Suas sobrancelhas estão juntas, como se não tivesse entendido.
– É isso que vim lhe contar – explico. – Que certas pessoas especiais que
têm morte prematura se transformam em cavalos alados. Seu pai, digo. Ele foi
um grande homem que morreu antes da hora. – Guardo o bilhete no bolso. – A
morte, para ele, não é o fim. O Lorde dos Cavalos que disse.
O Thomas olha para o fogão a lenha. Aí pressiona o dedão e o indicador
na parte de cima do nariz e respira fundo. Depois se abaixa e põe a mão na
minha cabeça. A palma da sua mão é grande. Fica claro que ele é um homem do
campo, da terra, mas isso não significa que seja um homem sem coração.
– Se o Lorde dos Cavalos diz – fala –, então deve ser verdade.
– E isso também vale para a Anna.
Ele balança a cabeça.
– Também vale para a Anna.
– E para mim, se eu morrer por causa das águas paradas.
O Thomas para de bater com a mão no meu cabelo curto. O Brejo para
de roer o osso, olha para cima e inclina a cabeça para o lado. O Thomas respira
fundo. As irmãs ficam chateadas quando falamos assim. Quando perguntamos o
que acontece se morrermos. Dizem que nosso dever é pensar na vida, não na
morte, comer nosso pão e deixar esses assuntos nas mãos de Deus. O dr. Turner
também fica chateado. Ele diz que podemos muito bem ter uma vida longa, ser
esposas, mães, maridos e doutores.
O Thomas dá um sorriso gentil.
– Se isso acontecer – fala –, você será o mais rápido dos cavalos alados,
tenho certeza.
30
No dia seguinte, a neve vira pedrinhas que queimam. A voz tensa da irmã
Constance ecoa na sala de aula. Ela ensina aos pequenos como fazer adições
básicas. Na parte residencial, as portas dos quartos de todas as crianças mais
velhas estão entreabertas, porque elas estudam em livros antigos, com letras
pequenas e nenhuma figura.
Vou até a escada que leva ao sótão. Quem sabe encontro um baú que
deixei passar despercebido em um dos quartinhos da despensa. Algum pacote há
muito tempo esquecido, cheio de papel empoeirado que levantarei com cuidado,
debaixo do qual encontrarei um vaso radiante laranja tangerina. Antes tinha
laranja por todos os lados, eu lembro. No Natal, colocavam laranjas nas nossas
meias de presente. As folhas dos carvalhos no outono. Calêndulas na primavera.
Mas não é primavera.
Não é outono.
É inverno, e não há laranjas este ano, nem mesmo depois das cadernetas
de racionamento. E, sem essa cor, o escudo espectral fica incompleto. Não é
forte o suficiente para afastar o Corcel Negro.
Viro no canto do corredor e paro.
Sinto o peso de olhos nas minhas costas. Minha cabeça rodopia.
O corredor está vazio.
Só se ouve um ronco vindo do quarto do Rodger. Quando dou meia-volta
na direção da escada do sótão, a sensação volta, e minha cabeça gira de novo,
mais uma vez, um círculo completo. O cabelo na minha nuca pinica e – será que
estou sentindo cheiro de maçã? Movimentos nos espelhos do corredor chamam a
minha atenção. Um dos cavalos alados entra no meu campo de vista, dentro da
moldura dourada. Tem uma mancha cinza no focinho, que ele aperta no seu lado
do vidro, embaçando-o toda vez que solta o ar pelas narinas.
O cavalo está olhando bem para mim.
– Hum… Olá.
Dou um passo para a frente. Estico o braço na direção do espelho, mas o
cavalo se afasta, e os dois primeiros dedos que encosto tocam apenas o vidro frio.
Ele sacode a cabeça, depois bufa uma, duas vezes e sai desfilando. O
espelho volta a ter apenas meu próprio rosto sem graça me encarando de volta,
tufos de cabelo curto, olhos verdes e duas marcas meladas de dedo.
Mas então… Ali. Algo se movimenta no próximo espelho do corredor, do
lado de onde acabei de vir. O mesmo cavalo alado com a mancha cinza no
focinho está lá, sacudindo tanto a cabeça que as mechas largas da sua crina
caem nos seus olhos. Estico o braço para tocá-lo, mas ele sacode a cabeça de
novo e desaparece. Igualzinho ao que os cavalos da padaria costumavam fazer
com a minha irmã, a Marjorie. Deixavam-na se aproximar, mais, mais e mais…
E aí saíam desfilando. Era um passatempo para eles.
Ponho as mãos na cintura.
– Não tenho tempo para brincadeiras.
Mas o cavalo sacode a cabeça de novo e vai embora. No instante seguinte,
aparece no próximo espelho do corredor. Bate o focinho contra o vidro. Não me
aproximo, e ele bate de novo, com mais insistência, e esfrega tanto o vidro que
fico com medo de que o quebre.
– Você não está brincando, não é mesmo? – sussurro. – Você está tentando
me dizer alguma coisa.
O cavalo desaparece deste espelho também, e quase posso sentir o roçar
das suas asas no ar à medida que ele passa pelo mesmo corredor, mas em um
mundo diferente. Então o cavalo chega ao último espelho. Quase como se
estivesse me pedindo para segui-lo. Quando me aproximo, ele não vai embora.
Sacode a cabeça. Embaça o seu lado do espelho.
Ele bate no espelho. Uma e outra vez, como se quisesse encostar o focinho
em mim, como se seus olhos pretos estivessem vendo alguma coisa atrás de
mim. Viro para trás. O quarto do Benny fica do outro lado do corredor. A porta
está entreaberta. Nenhum sinal do Benny ou dos outros meninos. Devem ter
saído escondidos para fumar um cigarro.
– O que você está vendo? – sussurro.
Aí meus olhos vão parar na cama do Benny, e meu coração se esquece de
bater, só uma vez. Bem ali, em cima do cobertor de lã cinza, está o precioso gibi
do Popey e do Benny. A capa é uma explosão de tinta laranja bem viva.
849-LARANJA TANGERINA.
Chego mais perto na ponta dos pés para ver melhor. Sim. É exatamente o
que eu estava procurando! Pego o gibi e abro a capa, mal ousando acreditar em
tanta sorte, e encontro uma dedicatória escrita na margem na primeira página.
Benny,
Com amor,
Papai
Largo o gibi em cima da cama e dou alguns passos para trás. Foi o pai do Benny
quem lhe deu. Assim como eu, o Benny tem um pai que está longe, lutando em
algum lugar. Meu estômago está dando cambalhotas. É por isso que ele lê e relê
tanto esse gibi, apesar de gibis serem coisa de criança. É algo em que se apegar,
algo de antes da guerra. De repente, sinto falta do meu pai, da minha mãe e da
Marjorie, e do cheiro de torta de maçã nas manhãs frias de inverno.
Viro para o espelho.
– Não sei se posso pegar isso. É importante para ele.
Mas o cavalo se foi. Só vejo o meu rosto encarando o espelho. Dentes um
tanto tortos. Um nariz bem vermelho.
Então outro rosto aparece atrás de mim, e congelo. Infelizmente, esse
rosto está do meu lado do espelho.
– O que você pensa que está fazendo? – dispara o Benny. Ele cruza os
braços, esperando minha resposta.
Olho para o gibi de soslaio, dando graças a Deus por tê-lo colocado
exatamente onde o Benny o havia deixado.
– Não é da sua conta.
Sua expressão fica séria.
– Você deveria estar no seu quarto lá em cima, e não aqui embaixo,
bisbilhotando as coisas… – diz. Então lança um olhar para a própria cama e vê o
gibi. – O que você está aprontando, sua ladrazinha?
– Não sou ladra!
Mas minhas bochechas pegam fogo com a mentira, porque penso no trem
de brinquedo do Jack e nos pertences da princesa lá do sótão e no frasco de
remédio do dr. Turner.
O Benny põe a mão no meu bolso de repente e tira o último bilhete do
Lorde dos Cavalos. Fico sem ar e tento pegá-lo de volta, mas ele o segura fora do
meu alcance.
– E o que é isto, então?
– Está endereçado a mim!
Ele franze a testa, confuso.
– Quem é que escreveria um bilhete para você?
Então o desenrola e o lê depressa.
– Devolve! – grito.
Só que o Benny me segura com uma das suas mãos ossudas enquanto
termina de ler. Depois amassa o bilhete na mão, vira para mim com um ar de
deboche, e o cão sarnento está de volta.
– Lorde dos Cavalos?
Começa a rir. Dou um tapa na sua cara, mas, pelo jeito, ele nem sente. Ri
tanto que tem que secar uma lágrima que saiu do seu olho.
– Quem escreveu isso? Foi o dr. Turner?
– O Lorde dos Cavalos existe! Trocamos bilhetes há semanas. Eu contei
para você dos cavalos alados nos espelhos e no jardim. Você não acreditou, mas
é verdade.
Seus olhos vacilam, parece que ele está quase com medo de que o que eu
disse seja verdade, e assim seria ele quem bancaria o bobo por zombar de mim.
Mas aí o Benny pisca.
– Alguém está brincando com você, Emmaline.
– Não.
– Deve ser o dr. Turner. Só ele consegue comprar um papel tão bom. Mas
a irmã Mary Grace tem mesmo todas aquelas fitas…
– Pergunte para o Thomas – disparo. – Ele também viu os cavalos alados.
O rosto do Benny se ilumina.
– O Thomas! É claro. Sua boba, é o Thomas quem está escrevendo esses
bilhetes. Só que não é nenhuma brincadeira. É uma armadilha.
O Benny fica com um olhar de louco e continua segurando o bilhete fora
do meu alcance. Fico na ponta dos pés para tentar pegá-lo, e rodopiamos até que
ele fala, baixinho:
– Você não ouviu as histórias? O Thomas está tentando atrair você até a
casinha dele para fazer tortas com sua carne!
– Não é verdade! – grito, e as outras crianças nos espiam pelas frestas
abertas da porta dos seus quartos. – O Thomas nem sabe escrever!
– Não existe nenhum Lorde dos Cavalos. Não existem cavalos alados. Isso
é tudo coisa da sua cabeça.
As palavras cheias de raiva que estavam prontas para sair dos meus lábios
morrem. Paro de girar, com as pernas fracas, e bato contra a parede. Uma porta
faz barulho porque uma das crianças a fechou com muita força sem querer. O
Benny olha para cima e vê a nossa plateia. Por um segundo, parece não saber o
que fazer. Uma dúzia de espelhos no corredor reflete sua mão levantada,
segurando o bilhete amassado do Lorde dos Cavalos, com a fita vermelha
pendurada.
Ele deixa o bilhete cair e pisa em cima dele de sapato e tudo.
– Vá para o seu quarto – ordena o Benny. – E o resto de vocês: fiquem
longe do Thomas. Já avisei.
O Benny olha feio para mim com aquela sua cara de cão farejador,
depois entra no seu quarto, todo empertigado, e se atira em cima da cama. Pega
o gibi do Popey e, virando as páginas deliberadamente.
Tão laranja.
Tão laranja quanto o seu cabelo. Laranja como fogo.
“Isso é tudo coisa da sua cabeça.”
Algumas crianças dão um sorrisinho malicioso. Ouço outras rindo,
cochichando sobre cavalos alados e príncipes de faz de conta. Todos os espelhos
estão vazios. Mas os cavalos estavam lá. O que tinha uma mancha cinza no
focinho, que me levou até o gibi do Benny. Ele era real. E o bilhete… Não. Não
pode ser.
Caio de joelhos e tento desamassar o bilhete o melhor que posso. As
palavras borraram ao serem pisoteadas pelo sapato do Benny. Sinto muita
vontade de chorar. A fita vermelha está rasgada. Olho para ela de soslaio,
limpando as lágrimas que começam a cair. Será que a fita é igual à dos carreteis
da caixa de costura da irmã Mary Grace? E o papel… Será como o do
receituário do dr. Turner? Não, seu receituário é perfurado. As folhas têm
beiradas denteadas.
O Benny está enganado. O Benny não entende nada de cavalos alados.
Olho para a porta aberta do quarto dele. Que vira outra página e dá um
sorriso malicioso para o Popey e.
Quase desejo que o Corcel Negro venha. Quase tenho vontade de eu
mesma ir buscá-lo para que leve embora o Benny e todas as crianças que estão
rindo. Quero que o Corcel Negro despedace o telhado do hospital com seus
cascos azulados e sua cauda embaraçada e cheia de espinhos e ande pisando
firme pelos corredores, fazendo tanto barulho que vai quebrar todos os espelhos,
e que segure o Benny debaixo dos seus cascos até só restar dele algo tão
amassado e destruído quanto este bilhete.
Só que o Corcel Negro não quer o Benny.
Recolho o bilhete do chão. Vou pegar aquele gibi.
31
Não tenho pressa. O Benny está na minha cola, observando cada movimento
meu. Nunca está com o gibi, deve tê-lo escondido, assim como escondi os lápis
de cor quebrados na gaveta secreta da escrivaninha da Anna. Enfim, ele fica
com preguiça. Entediado. Descuidado. E, enquanto as crianças estão reunidas na
sala da irmã Constance, ouvindo um pronunciamento do Winston Churchill no
rádio, sigo com meu plano.
Tem uma égua alada no espelho da área residencial, atrás de mim, que eu
nunca vi, com belos olhos azuis, espantando moscas com o rabo no corredor
refletido. Ela fica me olhando com um ar de curiosidade enquanto ando na ponta
dos pés até chegar à última porta da direita.
A porta do quarto do Benny.
Abro só uma frestinha e a encosto logo depois de me esgueirar para
dentro. Só solto o ar uma vez enquanto estou lá dentro.
São três camas, mas sei qual é a dele. Mesmo que não soubesse, o cheiro
de cebola o entregaria. Vou até ela pé ante pé e levanto o travesseiro: nada do
gibi. Abro a gaveta da sua mesinha de cabeceira: nada além de um saco de nozes
velhas e cartas da família. Agacho para olhar debaixo da cama: nada.
Sento na cama, pensando. Preciso encontrá-lo.
Se eu fosse um menino malvado, com cara de cão farejador, onde
esconderia meu gibi?
Meus olhos recaem na grande Bíblia sobre sua escrivaninha, e lembro de
ele lendo Popey e no domingo passado em vez de ler a Bíblia. Abro o volume,
folheio algumas páginas, e o Popey e olha para mim. Arregalo os olhos. O que
Deus pensaria disso?
Pego o gibi e o escondo debaixo da minha blusa bem na hora em que ouço
passos no corredor. Pela porta entreaberta, observo a égua alada no espelho
andando para lá e para cá, com os olhos azuis arregalados, como se quisesse me
avisar de alguma coisa. Pulo no chão e me arrasto para debaixo da cama do
Benny no momento exato em que os passos param na frente da porta. Botas
pretas. Estreitas. Da irmã Mary Grace. Sinto muita vontade de tossir e ponho a
mão em concha na frente da boca. A irmã fica parada ali por um instante, depois
fecha a porta.
Espero.
O chão embaixo da cama do Benny é grudento, e tem uma ou duas nozes
perdidas. Não posso ficar muito tempo aqui. A transmissão de rádio acabará logo,
e ele vai voltar. Tusso na minha mão o mais baixo que posso.
Saio me arrastando devagar, com o sangue zunindo nos meus ouvidos, e
giro a maçaneta. A égua alada de olhos azuis está de costas para mim, como se
estivesse dormindo. Respiro fundo, vou andando pelo corredor na ponta dos pés,
sem fazer barulho, e corro para o quarto da Anna. Ainda não tiraram sua cama
grande nem seus móveis pesados. Aperto a alavanca escondida na parte de baixo
da escrivaninha que destrava a gaveta secreta. Ela se abre. De uma hora para
outra, o quarto é tomado pela presença da Anna. Lavanda seca. Seus livros de
história natural. Uma única caneta tinteiro de ponta fina e os lápis quebrados que
guardei lá, por via das dúvidas. Enfio o gibi na gaveta, fecho e saio correndo. Dou
uma guinada no canto do corredor e saio voando, me abaixo quando passo pela
sala da irmã Constance até chegar na escada que vai para o sótão, bem na hora
em que a transmissão acaba e as crianças surgem no corredor.
Paro para recuperar o fôlego no alto da escada, no canto escuro, que
ninguém olha.
E, na escuridão, dou um sorriso.
32
– Onde está?
Os gritos do Benny chegam até o sótão. Respiro pouco ar, mas isso dispara
a tosse de novo. Mal consigo abafá-la na manga.
Lá fora, pela janela do sótão, o sol do fim da tarde está se pondo. Logo a
lua vai aparecer no céu. Uma lua quase cheia. Só tenho mais um dia, porque
amanhã a lua ficará completamente redonda e brilhante. Preciso pôr aquele gibi
no seu devido lugar, no muro de heras. Preciso completar o escudo espectral
para proteger a Lume de Luar. Todas as oito cores do arco-íris, exatamente como
estava escrito na descrição do fabricante de lápis. Um conjunto completo.
Mesmo assim…
Na hora em que levanto da escada, minha visão fica borrada, e tenho que
sentar de novo imediatamente. Meus pulmões. A fera que fica à espreita lá
dentro, lá no fundo, embaixo das águas paradas, passando as garras na minha
garganta.
Ponho a mão sobre a boca. Agora não. Por favor, por favor. Esta noite
não.
Tento pensar em coisas tranquilizadoras: água deslizando pela minha
garganta; chocolate derretido morno. Leite fresco direto do balde. Mas a coceira
não vai permitir que eu a ignore. Transforma-se em uma rosa-brava que alguém
fica puxando para cima e para baixo dentro da minha garganta.
– NÃO! – grita o Benny. – Alguém pegou.
Ouço passos frenéticos e mais gritos vindos de trás da porta do sótão. O
Benny me viu bisbilhotando no seu quarto. O Benny tem olhos afiados como os
de um cão de caça. Ele vai saber que fui eu.
Só que o Benny pode procurar no meu quarto o quanto quiser que não vai
encontrar.
Olho para fora por um bom tempo. Será que a Lume de Luar está
esperando por mim? Será que o Corcel Negro está piscando, clareando sua visão,
esperando pela luz da lua cheia de amanhã para poder atacar de novo? Mas
minhas pernas estão tremendo, e minha visão está embaçada, e só consigo me
arrastar até meu quarto. Um centímetro por vez, cada passo uma pequena
batalha, e penso nos homens que ficam entre os escombros, sufocando, com os
pulmões cheios de poeira das bombas alemãs, se arrastando lentamente até
encontrarem um local seguro. Por fim, chego ao meu quarto. Fecho a porta com
um chute e me encosto nela, respirando com dificuldade. A fera das águas
paradas não vai se acalmar desta vez. Ela pegou a Anna, e agora a Anna se foi e
o monstro quer despedaçar mais pulmões, arranhar e destroçar mais gargantas.
É um grande esforço chegar até o meu colchão de corda. Caio sobre a
colcha. A tosse vem com tudo. Eu permito. Destroça o interior da minha
garganta, forçando sua saída. Parece que alguém está me torcendo. Não sobrou
água. Não sobrou vida. Sinto um gosto amargo de sangue. Atrás da porta, passos
bravos se aproximam, subindo os degraus batendo os pés.
Os passos param na frente da porta do meu quarto.
TOC, TOC.
A voz do Benny :
– Sei que foi você, sua ladra!
A porta se abre alguns centímetros. O rosto bravo do Benny aparece na
fresta, seus olhos aguçados caçando pelo quarto, seu nariz fino farejando. Então
ele me vê e arregala os olhos.
– Emmaline? Você está… – diz. Dá um passo cambaleante para trás. –
Irmã Constance, venha rápido! Tem sangue para todo lado!
O Benny desce a escada ainda mais rápido do que subiu.
Dou um sorriso. É a última coisa que lembro antes de minha cabeça
desabar. Dou um sorriso e penso no arco-íris que a Marjorie e eu vimos naquele
dia chuvoso. Fiquei com medo de ser o último.
Mas falta pouco. Logo vou terminar meu próprio arco-íris.
33
A Marjorie está sentada na beirada da minha cama, usando seu casaco de chuva
amarelo, lendo o gibi do Benny. Ela tem cheiro de torta de maçã fresca e canela
e, ah, como eu senti falta desse cheiro. Como senti falta dela. Da minha irmã.
Tento sentar, mas minha cabeça está tão pesada que cai de volta em cima dos
travesseiros na mesma hora. O sótão está tão quente. Quero tirar as cobertas,
mas a Marjorie está sentada bem em cima delas.
– Esse gibi… – Minha voz não parece minha. A fera das águas paradas
estraçalhou minha garganta. – Ponha de volta onde encontrou. Deixe
escondido…
Ela vira a página e sorri quando vê um desenho do Popey e em cima de
um camelo.
– Você se preocupa demais, Em. Você sempre se preocupou demais.
Minha irmã vira outra página. Parece que só metade da minha cabeça
está aqui, mas onde a outra metade poderia estar? E por que a Marjorie está
usando o casaco de chuva dentro de casa? Quando sento, meu corpo tomba para
a esquerda, depois para a direita, e tenho a sensação de que o sótão inteiro está
em cima de um camelo, balançando sem parar. As águas paradas se acumulam
na minha garganta como folhas podres em um charco, e tenho certeza – certeza
– de que a fera está lá embaixo, à espera. Esfrego meu peito.
A Marjorie inclina o gibi para me mostrar um desenho da Olívia Palito
rolando por uma duna de areia. Pressiono a mão contra minha cabeça. As
páginas farfalham, mostrando a dedicatória.
– Marjorie… – Meus lábios estão tão secos. – Como você veio parar aqui?
A Marjorie não embarcou nos primeiros trens que saíram de Nottingham.
Nem eu. Nós duas ficamos paradas na frente de casa, observando os vizinhos
arrastarem malas pesadas até a estação, com uma expressão sombria no rosto,
seus pais se esforçando para não chorar. Na noite antes de eles irem embora,
minha mãe nos fez sentar à mesa da cozinha.
– Muitas crianças estão saindo das suas cidades – disse. – Seus pais
acreditam que, no campo, estarão mais seguras. Mas vocês precisam entender,
meninas, que não existem mais lugares seguros. O pai de vocês não está seguro
lá na Líbia. O tio de vocês não está seguro em Londres, trabalhando no escritório
do marechal-chefe das Forças Aéreas. Por isso nós três ficaremos juntas. Vamos
fazer nós mesmas o trabalho que o seu pai e os meninos da padaria faziam.
Vamos cuidar umas das outras. Marjorie, você vai cuidar da Emmaline. E,
Emmaline, você vai cuidar da Marjorie.
Minha mãe ficou em silêncio e, então, apertou minha mão de novo.
– Mas eu cuidarei de vocês duas um pouco mais, porque sou sua mãe, e
vocês sempre serão minhas duas bonequinhas queridas.
A Marjorie vira mais uma página.
Não consigo parar de tossir. Agarro a ponta da colcha, pressiono-a contra
a minha boca, tentando segurar as águas paradas, mas não tem como parar uma
coisa dessas.
A Marjorie fica olhando e sacode a cabeça com um ar triste.
– A mamãe tinha razão – diz. – Não existem mais lugares seguros.
34
Nos meus sonhos, ouço o Benny. “Eu sei que foi você, sua ladra.” A Marjorie vai
e vem. Está sempre com o casaco de chuva amarelo. Então, de repente, ela vira
um fantasma preto de cara branca, só que não é mais a Marjorie, é a irmã Mary
Grace usando o hábito de freira.
E passa a mão na minha cabeça.
– Shhhh – diz a irmã Mary Grace. – Tente descansar, querida.
Tem mais alguém na porta do quarto. De cabelo vermelho cor de lama e
suéter vermelho cor de lama.
– Tudo bem, Benedict – fala a irmã Mary Grace. – Pode ir agora. Ela está
acordando.
O Benny olha para mim – de olhos arregalados, nenhum sinal do seu ar de
deboche costumeiro – e aí olha para baixo em seguida e sai pela porta aberta.
– Ele veio aqui e foi me chamar na mesma hora e não queria sair até
você acordar. Agora tente tomar um pouco de chá.
A irmã Mary Grace inclina a borda da xícara escaldante na direção dos
meus lábios.
Sacudo a cabeça, tento sentar.
– Preciso ir lá fora, preciso ver o jardim.
Seu olhar gentil se transforma em preocupação.
– Hoje não, Emmaline.
Quanto tempo fiquei dormindo e sonhando? Horas? Um dia inteiro? Olho
desesperada para o céu escuro lá fora. Mal consigo enxergar o jardim à luz da
lua. A lua está tão clara que cega. Perfeitamente redonda. Cheia. Cheia! O
pânico começa a morder a ponta dos meus dedos, fazendo-os coçar de tanta
vontade de colocar as botas e descer as escadas correndo.
– Não – diz ela.
– Só por vinte minutos.
– Não.
– Dez.
Ela me olha feio.
– Cinco!
A irmã Mary Grace põe a xícara na mesinha de cabeceira com um
suspiro.
– O dr. Turner examinou você. O seu corpo está muito fraco. Você não
pode… – Ela olha para baixo, para a colcha, e continua: – Você não pode ir lá
fora. Não poderá por um bom tempo. Sinto muito, minha pequena.
Então ela olha para trás, para a porta do meu quarto.
Tem um novo papel. Um papel vermelho!
Meu sangue ferve.
Não posso ir lá fora?
Não posso ir ao jardim?
– A senhora não entende! A Lume de Luar precisa de mim. É lua cheia, e
o escudo espectral ainda não está terminado, e o Corcel Negro pode até já ter
encontrado ela!
Puxo a colcha, tentando sair da cama, mas a irmã Mary Grace me
segura. Ela é mais forte do que eu lembrava. Ou então fui eu que fiquei mais
fraca.
– Sinto muito, muito mesmo. Você precisa descansar.
– Eu preciso salvá-la!
– Em…
– É verdade! Tudo o que o Benny disse é verdade! Eu roubei mesmo o
gibi e o pano do altar, e sinto muito por tudo isso, mas a Lume de Luar precisava
mais dessas coisas do que nós! – Engulo em seco e tento falar com mais calma: –
Se eu não for até ela, o Corcel Negro vai matá-la. Hoje à noite.
A irmã Mary Grace está quase chorando. Fica de pé, esfregando os olhos,
e respira fundo, tentando se acalmar.
– Você tem falado coisas sem sentido enquanto dorme e tem tentado sair.
– Sua mão recai sobre um pedaço brilhante de metal em cima da maçaneta. – A
irmã Constance pediu para o Thomas instalar uma trava na porta, para a sua
segurança. Vamos levá-la para o quarto da Anna amanhã. Lá é mais quentinho, e
tem aquele teto pintado tão bonito. Você vai gostar, não?
Fico olhando para a tranca.
Um pedacinho de metal que não estava ali agora me mantém presa aqui
dentro. O Thomas deve ter vindo, com pregos e um martelo, e transformado o
meu quarto em uma cela. Ele sabe da Lume de Luar. Como pôde fazer isso
comigo?
Cerro os punhos sobre a colcha.
– Peça para o Thomas vir aqui. Diga que preciso falar urgente com ele.
Em particular.
A irmã Mary Grace hesita. Exceto para trazer lenha, o Thomas raramente
entra nos andares superiores dessa casa de freiras e crianças pequenas. Quase
nunca fica sozinho conosco, a não ser com a Anna, que tinha que ficar presa à
cama e precisava de ajuda. O Thomas é um rapaz e, mesmo agora, mesmo
durante a guerra, existem regras que precisam ser seguidas.
A freira passa o dedo na tranca e balança a cabeça em seguida.
– Vou falar para ele.
35
Pego no sono. Não quero dormir, mas o sono toma conta de mim com a
esperteza de uma raposa. Sonho com o meu pai e com o pai do Thomas juntos,
no front de Capuzzo, dentro de tanques blindados. À sua volta, caem penas pretas
e longas em vez de bombas. Cada pena que cai arranca um pedaço da lataria do
carro, pedacinho por pedacinho, deixando a neve entrar.
Frio. É tão frio.
Quando acordo, há uma fresta aberta na janela do sótão, e não lembro de
ter feito isso. Só de pensar em ir até lá para fechá-la já fico exausta, e puxo a
colcha mais para cima. Meu estômago ronca, e estendo a mão para pegar a
xícara de chá e…
Tem um bilhete ao lado da xícara.
Um bilhete escrito em um papel bonito, enrolado e preso com uma fita
vermelha.
Meu coração faz piu-piu-piu, igualzinho ao pássaro ferido que a Marjorie
encontrou. Pego o papel com os dedos trêmulos.
Sinceramente,
Benny