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O Misterio Dos Cavalos Alados - Megan Shepherd

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DADOS DE COPYRIGHT

Sobre a obra:

A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros,


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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando


por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo
nível."
O mistério dos cavalos alados
T ÍT UL O ORIGINAL The Secret Horses of Briar Hill
© 2016 by Megan Shepherd. Publicado mediante acordo com Sandra Bruna
Agencia Literaria, SL, representante da Adams Literary.
Todos os direitos reservados.
© 2017 Vergara & Riba Editoras S.A.

Plataforma21 é o selo jovem da V&R Editoras.

E DIÇÃO Fabrício Valério e Flavia Lago


E DITORA- ASSIST E NT E
Natália Chagas Máximo
PRE PARAÇÃO Carla Bitelli
RE VISÃO Vanessa Gonçalves

DIRE ÇÃO DE ART E Ana Solt

DIAGRAMAÇÃO Juliana Pellegrini

IL UST RAÇÃO DE CAPA © 2016 by Daniel Burgess


CAPA Kate Gartner

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Shepherd, Megan
O mistério dos cavalos alados [livros eletrônico] / Megan Shepherd;
tradução: Lavínia Fávero. – São Paulo: Plataforma21, 2017. 2MB; Epub
Título original: The Secret Horses of Briar Hill.
ISBN 978-85-92783-15-0
1. Ficção juvenil I. Título.
17-01111 CDD-028.5

Índices para catálogo sistemático:


1. Ficção : Literatura juvenil 028.5

Todos os direitos desta edição reservados à


VERGARA & RIBA EDITORAS S.A.
Rua Cel. Lisboa, 989 | Vila Mariana
CEP 04020-041 | São Paulo | SP
Tel.| Fax: (+55 11) 4612-2866
plataforma21.com.br
vreditoras.com.br | editoras@vreditoras.com.br
Ao meu avô, in memoriam.
1
Tenho um segredo.
Não vou contar para o Benny nem para os outros meninos. Eles parecem
aqueles cachorros que andam pela noite, rosnando para tudo, perseguindo os
gatos nas estradas de terra só pelo gosto de vê-los correr. Também não vou contar
para a Anna, apesar de ela ser gentil comigo e me emprestar seus lápis de cor,
até o turquesa, que é sua cor preferida, porque lhe faz lembrar o mar que fica
perto da sua casa. A irmã Constance fala que a Anna pode morrer logo e que eu
devo “tomar cuidado” e “fazer silêncio” quando estiver perto dela. Quando estou
com a Anna, tenho que pisar em ovos, tenho que fingir que está tudo bem, tenho
que esconder meus segredos.
Mas vou contar para você.
Este é o meu segredo: existem cavalos alados vivendo nos espelhos do
Hospital Briar Hill.
2
A Anna está dormindo de novo.
Deito aos pés da sua cama para não acordá-la e fico desenhando no verso
dos panfletos que a irmã Constance deixa perto da lareira, em uma pilha, para o
caseiro usar para pôr fogo na lenha que cortou. Tem um espelho dourado em
cima da cômoda da Anna. Onde vejo meu eu refletido. Onde vejo a Anna
refletida, roncando. O quarto refletido, com cobertores de lã pendurados na
janela para bloquear a luz que vem do lado de fora, à noite. Parado perto da
porta refletida, há um cavalo alado que não está no quarto da Anna. O cavalo
refletido está fuçan-do na xícara de chá que a Anna deixou pela metade, na
mesinha de cabeceira. Tem um focinho cinza-claro, pontilhado de gotas de chá,
cascos prateados e asas brancas como a neve, que estão bem dobradas. É difícil
capturar com um lápis os detalhes das orelhas dos cavalos, ao mesmo tempo
arredondadas e pontudas.
O Benny aparece e debocha do meu desenho. Seu cabelo ruivo fininho,
penteado para trás com uma mecha larga para baixo, bem no meio, e seus olhos
aguçados e famintos me fazem lembrar os cachorros de caça ossudos, que estão
sempre atrás de algo para comer.
– Cavalos não têm chifres – diz.
– São as orelhas dele.
– E também não têm asas.
Aperto o lápis com força.
– Alguns têm.
O Benny revira os olhos e diz:
– Claro, e o Brejo, na verdade, é um dragão, apesar de parecer um collie
velho e pulguento.
A Anna acorda, pede para o Benny sair do quarto, e ele obedece porque
ela é mais velha e pede com jeitinho.
– Venha cá, Emmaline – diz ela –, me mostre o seu desenho.
Quando subo na cama, ela enrola seu casaco em volta dos meus ombros e
me dá um abraço apertado, tão carinhoso quanto os que eu recebia em casa.
– Que criaturas adoráveis – diz, ao inspecionar meu desenho. – Você tem
tanta imaginação.
A Anna me dá um sorriso efusivo, mas ela tem um cheiro azedo, parece
leite que ficou fora da geladeira por tempo demais. Seu rosto está muito pálido,
menos nos lugares onde está tão vermelho que parece queimado, apesar de ela
não sair há semanas.
Olho para o espelho.
O cavalo alado se cansou do chá da Anna e está saindo do quarto refletido,
batendo o traseiro pelo estreito corredor refletido. Cubro a boca para não dar
risada. A Anna não consegue enxergar os cavalos alados nos espelhos.
Ninguém consegue… Só eu.
Cheguei a Briar Hill no final do verão. A irmã Constance me levou direto
para a sua sala e tirou a etiqueta de identificação que estava presa no meu
casaco. Enquanto ela fazia anotações no seu livro, tentei arrumar meus tufos de
cabelo olhando no espelho que fica acima da escrivaninha. Então, do nada,
completamente sem aviso, um cavalo alado apareceu trotando pela porta
refletida, exibido que só, empinando a cauda, como se estivesse procurando
justamente pela sala da irmã Constance.
– Um cavalo! – gritei, apontando para o espelho. Ele ficou metendo o
focinho na escrivaninha da irmã Constance. – Com asas! E está comendo a sua
régua!
A irmã Constance me olhou de um jeito que parecia que eu tinha dito que
o primeiro-ministro da Inglaterra, o Winston Churchill, estava de sombrinha em
cima de um elefante cor-de-rosa, andando pela França ocupada pelos nazistas.
– Bem ali! – falei, apontando para o espelho de novo. – E agora pegou o
seu lápis.
Ela olhou para o espelho.
Olhou para mim de novo.
E chamou o médico.
O dr. Turner veio e pôs a mão na minha testa, para ver se eu estava com
febre, e os dois ficaram falando baixinho perto da janela enquanto eu batia com
o dedo no espelho sem parar, como eu fazia com os peixes nos tanques da
peixaria. O cavalo não se virou. Nem sequer olhou para mim. Só se encostou no
quadro-negro e adormeceu. Do lado de fora da sala da irmã Constance, ouvi as
outras crianças cochicharem sobre mim.
– Emmaline – pergunta a Anna. – Do que você está rindo?
Paro de olhar para o cavalo alado com chá no focinho. A Anna tosse,
levando o lenço à boca. O meu pulmão também se irrita com alguma coisa,
parada e turva como água do pântano. Lembro a expressão que a mamãe fala
quando papai caçoa de mim por ser taciturna. Ela levanta os olhos do livro com
um sorriso e diz: “Deixe a menina em paz, Bill. As pessoas caladas são
misteriosas. Águas paradas são águas profundas”.
E essa coisa… Esse líquido, essa doença… Não poderia ser mais
profunda.
– Emmaline? – repete a Anna, apertando meu ombro.
– Nada.
A Anna me devolve o desenho. Com uma borracha grossa e cor-de-rosa,
apago as orelhas que fiz errado.
– Você gosta mesmo de cavalos, não? – pergunta ela. Mesmo tossindo, sua
voz é suave.
Sopro as aparas de borracha. Começo a desenhar as orelhas. O Benny é
uma besta se acha que isso é um chifre.
– Nós tínhamos cavalos de carga na padaria – conto, adicionando um
tufinho de pelos saindo da orelha. – Um capão grande e duas éguas baias. O
Gengibre, a Pimenta e a Noz-Moscada. Eram lindos. Tinham os pelos cor de
areia e a crina castanha. Não atendiam quando os meninos da padaria
chamavam, mas nunca fugiam de mim.
– Acho que os cavalos sabem muito sobre as pessoas – diz a Anna.
Olho para ela. Está com as sobrancelhas bem unidas. A irmã Constance
faz essa mesma cara quando vai para a despensa conferir o estoque de latas de
presunto empoeiradas. A cada semana que passa, seu número diminui.
– Você deve sentir muito a falta deles – completa a Anna, esticando o
braço para pentear meu cabelo. – Aposto que, quando voltar para casa, os
cavalos vão aparecer direto na porta do estábulo, pedindo maçãs. – Aí começa a
tossir de novo, mas finge que é só uma coceirinha na garganta e bebe um gole de
chá frio. – Você vai poder contar para eles histórias desses cavalos alados que
tem desenhado. Quem sabe, há muito tempo, eles foram primos.
Paro de desenhar.
A Anna está olhando para a janela, como se algo tivesse chamado a sua
atenção. Quando o dr. Turner lhe disse que ela não podia mais sair da cama, as
freiras prenderam uma pontinha do cobertor que fica pendurado na janela para
que entrasse um pouco de ar fresco no quarto. Refletido no espelho de mão que
fica na sua mesinha de cabeceira, vejo um leve movimento. Um cavalo alado
está passando pelo mundo refletido lá fora. Só consigo ter um vislumbre na
janela refletida. Ele abre as asas como se estivesse se espreguiçando depois de
dormir a manhã inteira. A Anna olha para o espelho de repente. Suas
sobrancelhas continuam unidas, mas têm um ar mais curioso.
Será que ela viu?
Será que ela viu o cavalo alado?
Depois daquele primeiro dia na sala da irmã Constance, nunca mais falei
em cavalos alados. A não ser em segredo, só um pouquinho, com a Anna. Todo
mundo ri de mim pelas costas, mas a Anna jamais faria isso.
Por um momento, ela olha com atenção para o espelho, e acho que ela
também pode ter visto o cavalo.
Mas aí a Anna solta um suspiro, arruma a presilha do cabelo e abre uma
das muitas páginas com a ponta dobrada do seu Guia da flora e da fauna do jovem
naturalista. Depois olha para cima e me dá um de seus sorrisos efusivos e
delicados, típicos dela. Só que, desta vez, não consegue abafar a tosse com o
lenço. A cama inteira sacode.
3
A irmã Constance inventou uma nova regra. Foi depois que o Benny encontrou
uma das suas galinhas despedaçada, logo após o café da manhã. Ele entrou
gritando na cozinha com a ave morta, mexendo suas asas mortas como se ela
estivesse voando, sacudindo a cabeça sem vida, fazendo a irmã Mary Grace ir às
lágrimas para o quartinho da despensa. A irmã Mary Grace é a mais nova das
freiras, encarregada da cozinha e da limpeza. Não é muito mais velha do que a
Anna, e a Anna também choraria se visse uma ave morta e ensanguentada. Aí a
irmã Constance deu uma bronca no Benny e mandou o Thomas enterrar a
galinha no canteiro que fica atrás do celeiro, tamborilando os dedos em uma lata
de chá na hora do almoço para chamar a nossa atenção.
– As crianças não podem ir além do pátio das galinhas, por causa das
raposas – disse.
Mas, depois do almoço, vou escondida ao pátio mesmo assim.
Quero ver o Thomas enterrando a galinha. As outras crianças têm medo
dele, apesar de o caseiro só ter 20 anos… Mal virou adulto. O Benny diz que o
Thomas é um monstro. Mas a irmã Constance diz que Deus só deu um braço ao
Thomas por um bom motivo, e o motivo é para ele não precisar lutar contra os
alemães como os demais jovens do povoado, para ele poder ficar aqui conosco,
no hospital, e cuidar das galinhas, das ovelhas e do canteiro de rabanetes, para
termos vitaminas que nos fortalecem. Sei que a irmã Constance não pode mentir
porque é freira. Mas, às vezes, também tenho medo do Thomas. E é por isso que
me escondo atrás da pilha de lenha para vê-lo enterrar a galinha morta.
Estamos no começo de dezembro, e a terra está dura, congelada pelo frio.
Deve ser difícil para o Thomas cavar com um braço só, mas ele dá um jeito. No
lugar onde o outro braço deveria estar, só tem uma manga dobrada até o ombro
e presa com um alfinete de segurança. O Thomas coloca a galinha morta no
buraco. Quando acha que não tem ninguém olhando, alisa as penas da galinha,
brancas, tão brancas, e eu fico imaginando se a sensação de seus dedos seria
igual nos meus, se o Benny, a Anna e a irmã Constance teriam a mesma
sensação ao tocar penas macias ou se é só nas minhas mãos que galinhas
parecem quentes e vivas, como pedras deixadas ao sol. Então, o Thomas enterra
a ave na terra vermelha, e a ave desaparece.
4
O dr. Turner vem todas as quartas-feiras para administrar nossos remédios no
quartinho que já foi a despensa do mordomo.
– Conte-me como tem passado, Emmaline – diz, gentil.
O dr. Turner faz tudo com gentileza. Aquece o estetoscópio antes de
pressioná-lo contra minha pele. Dá quadradinhos de chocolate quando a irmã
Constance não está vendo. Pisca para mim sob suas sobrancelhas grisalhas e
peludas como lagartas.
O dr. Turner é como o Thomas: lhe falta um pedaço. Só homens inteiros
podem ir para a guerra lutar contra os alemães. Mas o que falta no dr. Turner não
é um braço ou uma perna, nem mesmo um dedo. É um pedaço do seu coração.
A filha e a esposa que ele perdeu em um bombardeio. Esse pedaço que lhe falta
o faz tremer em dias de tempestade, e teve uma vez, quando relâmpagos caíram
no telhado, que ele engatinhou para debaixo da mesa da cozinha e ficou fazendo
um gemido estranho, como o de um cachorro, até as irmãs Constance e Mary
Grace convencerem-no a sair para tomar um chá fraco. O suor empapava seu
jaleco branco na região das axilas.
O dr. Turner põe a ponta do estetoscópio nas minhas costas e fica me
ouvindo respirar. Nas paredes do quartinho, as prateleiras, que costumavam ficar
cheias de pratos finos, agora estão repletas de frascos de remédio, hastes de
algodão com iodo e palitos abaixadores de língua.
– Você tem tomado seus remédios, Emmaline?
No espelho de corpo inteiro atrás do doutor, um cavalo alado coça a
orelha na esquadria da janela.
– Sim, doutor.
Ele franze a testa, como se não acreditasse em mim, então pega um bloco
de papel e um lápis, que passa na língua. Depois vira de costas, se encosta no
armário para escrever. Faço uma careta para o cavalo, que continua coçando a
orelha. Fico imaginando o que o animal vê quando olha para mim pelo espelho.
Fico imaginando se o mundo refletido é diferente do nosso: se o frio também é
frio lá, se o quente também é quente, se as réguas da irmã Constance são mesmo
tão gostosas quanto os cavalos fazem parecer.
O dr. Turner termina de escrever, dobra o papel ao meio e entrega para
mim.
– Dê isto para a irmã Constance levar à farmácia, em Wick.
– Sim, doutor.
– E cole isto na porta do seu quarto. Percebi que o último que lhe dei caiu.
Então me entrega um papel azul. O doutor usa esses papéis para as irmãs
saberem que tipo de tratamento precisaremos naquela semana. Os azuis são para
os pacientes que estão bem a ponto de poderem sair e tomar ar fresco. Os
amarelos são para aqueles que precisam limitar suas atividades ao lado de dentro
do hospital. E os vermelhos são para os – o, porque só a Anna tem um – pacientes
que estão doentes demais para sair da cama.
O médico vai saindo, distraído, e pigarreio alto para garantir que ele ouça.
O doutor bate a mão no bolso do jaleco.
– Ah, já ia esquecendo – diz.
Então me entrega um chocolate embrulhado em papel alumínio, igual ao
que os soldados recebem em suas rações.
– É o nosso segredinho, sim? – completa.
Dou um sorriso.
Sei guardar segredos muito bem. Não contei para ninguém que peguei o
Jack fazendo xixi em um porco-espinho perto do celeiro de lenha, e ele me deixa
brincar com o seu trenzinho a vapor, se eu ficar quieta.
Bom, agora você sabe. Mas você também guarda segredos bem. Tenho
certeza.
O dr. Turner consulta sua lista e pede:
– Mande a Kitty vir para cá.
Saio da mesa de exames e espio a sala de aula da irmã Constance, que
está ensinando as crianças pequenas a escrever, para avisar a Kitty que chegou
sua vez. Depois ando pelo corredor. Como nós, as crianças maiores, só temos
aula à tarde, tenho o tempo todo para mim, pelo menos por um breve intervalo.
Os espelhos estão vazios, mas o chão treme, e fico imaginando se os cavalos
alados estão andando por cima deles no seu mundo, atrás dos espelhos, ou se é só
Thomas batendo na caldeira lá embaixo. Começo a pisar no ritmo do tum-tum-
tum até chegar à escada estreita. Olho para trás, procurando um menino
encrenqueiro de cabelo ruivo repartido no meio. Nada. Subo a escada correndo,
passo o andar dos quartos e vou para o sótão. Desembrulho o chocolate que o dr.
Turner me deu e, bem quando ia mordê-lo, um rosto aparece no meio da
sombra.
Dou um grito.
O Benny ri, daquele seu jeito estridente. O Jack aparece do outro lado das
vigas, rindo muito, com as mãos ao lado do corpo, como se me dar um susto
fosse tão engraçado que sua barriga dói.
– Vocês não podem subir aqui! – digo. – Vocês deveriam estar ajudando
na cozinha até a hora da aula!
O Benny apoia a mão na beira da escada, se inclina na minha direção e
responde:
– Isso também vale para você, pulga.
Passo a mão nos meus tufos de cabelo e digo:
– Eu não tenho pulgas.
O gibi do Popey e preferido do Benny está na escada, perto dos seus pés.
Sinto um leve cheiro de fumaça. Não sei onde Benny e Jack arranjaram um
cigarro. Nem o dr. Turner consegue encontrá-los à venda, lá em Wick.
Abaixo a mão, brava.
– A irmã Constance vai arrancar a pele de vocês quando eu contar que
estavam fumando aqui em cima.
Os olhos do Benny ganham uma expressão sombria, e seu nariz fica ainda
mais parecido com um focinho de cachorro. Começo a me encolher, três, cinco
centímetros, mas aí ele olha para baixo e pega alguma coisa que estava ao lado
do seu gibi.
– O que é isto? – pergunta.
Vejo o brilho de um papel prateado. Meu chocolate!
– Devolve!
O Benny o segura bem alto, sacudindo a cabeça, com os olhos brilhando.
– Por onde essa sua mão leve andou, pulga?
– Eu não roubei! Alguém me deu, mas não posso contar quem foi!
– Outro segredo? – debocha. – Você é péssima em guardar segredos.
– Não sou, não! – respondo, tentando pegar o chocolate. – Devolve!
Mas os olhos dele estão pegando fogo. Chocolate significa a mesma coisa
para ele do que para mim, do que para todos nós: uma pausa no pão seco e no
feijão aguado. Uma doce lembrança, algo só para você, algo de antes da guerra.
De repente, o Benny me belisca bem abaixo da manga da minha blusa.
Dou um grito, mas ele só torce minha pele ainda mais forte. Ele é magro para
um menino de 13 anos, mas forte.
– Promete que não vai contar do cigarro para a irmã Constance.
– Ai!
– Fala!
– É meu! Devolve, senão vou contar!
Dá para sentir o Jack andando de um lado para o outro no topo da escada,
como um cachorro louco. Estica a mão e belisca meu outro braço, depois dá
uma risadinha abafada.
– Devolvo seu chocolate quando prometer que não vai contar – diz o
Benny.
– Ai! Está bem.
Então me dá mais um beliscão forte e me solta. Vou para trás, passando a
mão nas marcas vermelhas do meu braço. O Jack sorri, mostrando seus dentes
amarelos, tão animado que começa a tossir e precisa dobrar o corpo.
Estico a mão.
O Benny só sorri, bem devagar.
Rasga o resto do papel e enfia o quadradinho na boca.
– Gué jogolade? – resmunga, com fios de baba marrom descendo pelo
queixo.
Aí eu cresço, três, cinco centímetros, até ficar maior do que ele, de tanta
raiva.
– Eu te odeio!
Dou um empurrão no Benny, mas ele dá risada, e desço a escada
correndo. Passo pela antiga despensa do mordomo do dr. Turner, onde o
Arthurzinho, que nunca fala nada, chora em silêncio por causa de uma injeção
que está prestes a tomar, depois vou até a cozinha. A irmã Mary Grace está
debruçada sobre uma panela de cobre, em cima do fogão. Olha para mim com
uma expressão cansada que brilha por causa do vapor.
– Emmaline, pegue uma cebola na despensa para mim. Se você enfiar a
mão bem no fundo, encontrará algumas que ainda estão boas, depois de tirar as
primeiras camadas…
Empurro a porta dos fundos e vou correndo em direção ao pátio das
galinhas. As crianças estão brincando de jogar rabanetes, tentando fazer
malabarismos. Quando me dão as costas, viro no canto depressa e corro para o
muro do jardim, por mais que seja contra as regras ir tão longe.
Não ligo para as regras.
Prefiro correr o risco de ser pega pelas raposas.
5
Lá fora está frio, e ainda tem neblina nas partes mais baixas do campo. Corro em
linha reta até chegar ao grande portão do jardim, que o Thomas trancou com um
cadeado há muito tempo. Antes da guerra, o hospital não era um hospital. Era a
casa de uma princesa linda e rica, só que ela era velha, e você deve estar
pensando que uma princesa não pode ser assim, mas é verdade. Quando as
bombas começaram a cair, a princesa foi morar com parentes e doou a casa
para as Irmãs da Misericórdia, que colocaram mais camas em todos os quartos e
taparam as janelas com cobertores. E aí vieram as freiras, depois as crianças,
todas de trem. Café-com-pão, café-com-pão, café-com-pão, enquanto as bombas
explodiam do lado de fora. Meus vizinhos foram evacuados e mandados para a
cidade de Dorset quando os primeiros trens partiram. Eles não tinham águas
paradas. O Benny tem. A Anna tem. Eu tenho. Todas as crianças do Hospital
Briar Hill têm águas paradas, por isso estamos aqui, para não infectar os outros,
já que estamos infectados.
A irmã Mary Grace me contou que, quando a princesa morava aqui, o
lugar era lindo. Jovens e moças vinham até lá de Londres para passear pelos
jardins murados, entre roseiras, estátuas e chafarizes gorgolejantes. Costumavam
abrir as portas do salão de baile para a música chegar aos grandes gramados,
onde seus convidados jogavam croquet. Mas a princesa tinha um exército de
jardineiros, e nós só temos o Thomas, e ele só tem um braço. E é por isso que o
portão do jardim fica trancado e as roseiras-bravas rasteiras ficam cada dia mais
altas.
Só que as heras formam uma espécie de escada serpenteante, e é fácil
pular o muro do jardim. Só preciso prender a saia entre as pernas. Quando pulo
do outro lado, entro em um lugar esquecido. Bancos estão desaparecendo
lentamente por baixo das madressilvas, e o rosto das estátuas de deuses gregos
caindo aos pedaços está coberto de musgo. Ando a esmo pelo labirinto de muros
e chego a um jardim menor, escondido em um dos cantos. No meio, tem uma
coluna da altura dos meus ombros, com um relógio de sol na ponta. Sua base é
redonda, com um ponteiro triangular apontado para o céu, que projeta uma
sombra, mostrando que horas são. Parece ser feito de ouro ou de bronze que, no
passado, devia ser polido ao ponto de mostrar os cavalos refletidos, mas agora
está manchado demais. Sento em um banco, amassando as trepadeiras, e sopro
minhas mãos.
Ouço um farfalhar, e meu corpo fica tenso.
Não esqueci as raposas.
Seguro a respiração para o ar não fazer fumaça quando eu o soltar,
denunciando minha presença, e fico escutando. Ali. Outro farfalhar, bem ali no
canto. Alguma coisa está se mexendo. Será que pode ser apenas uma raposa? E
ali. Atrás de mim, perto das estátuas. As heras que sobem pelo muro do jardim
tremem de repente, e tomo fôlego.
É algo grande demais para ser uma raposa.
Fico completamente parada. Com exceção da minha respiração. Com
exceção das batidas do meu coração. Será que é assim que o papai se sente lá no
front? Que, a qualquer momento, as balas podem perfurar os muros? Que pode
aparecer uma nuvem de gás como a neblina da manhã?
Clop.
Solto um gritinho. As heras tremem violentas. Será que devo correr?
Clop, CLOP.
Está se aproximando! Pulo sobre o chão congelado. Arrasto o corpo,
apoiada nos cotovelos, pelas trincheiras de grama seca. O Benny contou a
história de um avião alemão que se perdeu durante uma tempestade e caiu em
solo britânico. E se for um avião alemão, perdido e furioso? Meu coração bate
forte no peito. O galho de um salgueiro quebra sob meu cotovelo, e solto outro
grito.
Clop, clop, clop.
É um piloto alemão, tenho certeza, e ele vai estar armado e não me dará
ouvidos quando eu disser que sou apenas uma garotinha, porque ele não fala
inglês e não tem como saber que não sou espiã!
CLOP.
Ele está logo ali, no canto. Não dá tempo de fugir. Pego o galho de
salgueiro quebrado e fico de pé, com a vareta em riste. Quer fossem raposas ou
pilotos alemães, o papai seria corajoso. Preciso ser corajosa também.
Uma fungada.
Um clop, clop, clop pesado.
Um cavalo vira a cabeça ali no canto. É quase inteiro branco. Tem longas
cordas de crina branca, um focinho cinza-claro e asas. Asas brancas como a
neve, asas que são macias, gigantes e reais.
Solto o galho de salgueiro.
– Você não é um soldado alemão! – grito.
O cavalo pisca.
– O que você é?
Mas eu sei o que ele é. Ah, sei, sim.
A grama seca pinica minhas canelas e o vento machuca meu nariz, mas
só consigo ficar parada, olhando para o cavalo. Ele veio do mundo refletido. Mas
como atravessou para cá? E por quê? Os cavalos alados nunca saem do seu
mundo. Mal olham para mim quando bato nos espelhos do hospital para chamar
a sua atenção.
O cavalo dá um passo cauteloso para o lado, com os olhos castanhos fixos
em mim.
Olho para o relógio de sol dourado, mas, mesmo que ainda estivesse
brilhando, o cavalo é grande demais para ter passado por ele. Se tivesse
atravessado um dos espelhos do hospital, com certeza teríamos ouvido o som de
vidro estilhaçado. Talvez tenha vindo da água reflexiva do chafariz. Não pode ser.
O cavalo não está empapado de água gelada.
Devagar, levo minha mão à boca.
E se… E se ele não tiver atravessado para o nosso mundo? E se eu tiver
atravessado para o mundo dele?
Passo a mão no meu vestido, no cabelo, nas heras. Não. Estamos no nosso
mundo. O céu é cinzento. O chão é cinzento. Minhas roupas são cinzentas. O
mundo do outro lado do espelho, acho eu, não seria tão cinzento.
O cavalo alado fica olhando, do outro lado do jardim, para o chafariz
congelado entre nós. Bufa ruidosamente, em seguida arranca um naco do chão
com seu casco prateado. Uma terra vermelha, cor de ferrugem, voa até as
roseiras-bravas. Penso em como corro pela cozinha sempre que o Benny me
persegue, e em como a mesa funciona como uma ilha que o mantém longe de
mim.
Mas esse cavalo não é o Benny. Tem cascos poderosos. Dentes poderosos.
Um chafariz não vai bloqueá-lo.
Pego o galho de salgueiro, brandindo-o de novo.
Ficamos nos encarando. Meu coração faz tum-tum, tum-tum. Minha
cabeça gira. Não acredito que ele está aqui. Não acredito, mesmo depois de ter
visto outros cavalos nos espelhos, que ele é real.
O cavalo bufa mais uma vez, encerrando nosso jogo do sério, e se
impulsiona para a frente. Seguro o galho de salgueiro como se fosse uma espada,
mas o cavalo não me ataca. Dobra o pescoço. Cheira o chafariz. Várias e várias
vezes.
Abaixo o galho.
Não, essa não é uma criatura sedenta de sangue das histórias do Benny.
Só está tentando beber água.
Olha para mim e, desta vez, vejo com mais clareza. É uma égua. Algo
em seus olhos, uma suavidade talvez, me diz. Simplesmente sei.
O chafariz não funciona, mas está cheio de água da chuva congelada. A
égua bate, bate e bate, com seu casco prateado. Há um chumaço de pelo
castanho no espaço entre seus olhos, na forma de uma estrela. Não, de uma
faísca. Uma sensação de formigamento começa a se espalhar pelo meu corpo.
Esse tempo todo, a irmã Constance e o dr. Turner estiveram enganados. Os
cavalos alados não são fruto da minha imaginação. São reais. Ela é real. Quero
voltar correndo para o hospital, como se meus pés tivessem asas, e contar para
todo mundo, gritar, e trazê-los aqui…
Mas não.
Não.
Lembro a expressão no rosto da irmã Constance. No do dr. Turner
também. E os cochichos das outras crianças.
Não acreditaram em mim antes e não vão acreditar em mim agora. Tudo
bem. Sou ótima em guardar segredos, o Benny não sabe de nada. E este segredo
– esta égua – é meu segredo. Só meu.
A égua bate o casco de novo, passa o focinho, nervosa, pelo gelo. Dou um
passo para a frente, com cuidado, e levanto o galho de salgueiro. A égua vai para
trás, desconfiada como um cervo na beira de uma floresta. Quebro o gelo do
chafariz com o galho, crec, crec, crec, batendo o mais forte que posso, depois
volto depressa para o muro. Meu coração faz tum-tum. Quando olho para a égua,
sinto um gosto de cinzas muito suave, quase imperceptível.
Ela dá um passo para a frente. Depois mais um. Com cautela. E então
baixa a cabeça e bebe por um bom tempo a água que está debaixo do gelo. Acho
que está com muita sede e que há muito não bebe água.
6
Passo a noite inteira acordada, querendo que não existissem coisas como dever
de casa, jantar e oração silenciosa, para que eu pudesse ter ficado com a égua
alada.
Primeiro, me pergunto: como é que o animal chegou ao jardim do relógio
de sol?
E aí eu lembro: ela tem asas, sua boba. Veio voando.
Mas aí penso: por que não foi embora voando?
E começo a me preocupar, pensando que talvez ela tenha feito isso.
Por isso, levanto da cama logo depois do amanhecer e saio escondida,
mesmo sabendo que Deus tudo vê e pode contar para a irmã Constance, e pulo o
muro do jardim com um rabanete seco no bolso do casaco. Temo que a égua
alada não esteja mais lá, mas está. Parada perto do relógio de sol, que
desaparece pouco a pouco debaixo das roseiras-bravas, como tudo o mais.
Ela ouve que estou me aproximando. Para de se coçar. Vira seu belo
focinho cinzento e olha para mim através da neblina. É um milagre ainda maior
do que eu lembrava.
– Trouxe uma surpresa para você.
Minhas palavras viram uma nuvem de neblina em contato com o ar.
Ofereço o rabanete, mas minha mão está tremendo. Sinto gosto de cinzas. A égua
é tão linda. É pequena para um cavalo, mas coisas pequenas podem ser
adoráveis. Suas asas são brancas como açúcar, e aposto que são macias e
quentes, como as das galinhas.
– Emmaline?
Alguém está me chamando lá no hospital. Deve ser a irmã Mary Grace.
A égua alada arregala os olhos, arredia. O papai conta histórias de cavalos
assim, selvagens. Diz que, nos Estados Unidos, existem vales inteiros de cavalos
que nunca viram um ser humano. Os caubóis os juntam em cercados de madeira
gigantes, que vão aproximando cada vez mais dos bichos, até que os cavalos de
repente percebem que estão presos. Alguns ficam felizes de serem
domesticados, puxar charretes e carregar selas nas costas. Outros, porém, jamais
se acostumam.
– Você tem nome? – pergunto.
A égua alada abre as narinas.
E aí percebo que uma das suas asas está bem perto do corpo. Dou um
passo para a frente, com cautela. Cada pena da sua asa tem o comprimento do
meu braço, a largura da minha mão. E são bem juntinhas, como uma armadura,
cobertas por uma substância encerada que faz a chuva escorrer direto por elas.
As asas crescem das costas da égua e, onde encontram o osso, a pele está
vermelha e machucada.
– O que aconteceu com você?
A égua fica bem quieta. Vira as orelhas para trás e aí gira seu belo
pescoço longo e com a cauda espanta uma mosca que está na sua pata. Tento
memorizar o formato de suas patas traseiras – os arcos suaves e as longas
canelas retas – para poder desenhá-las depois com os lápis de cor da Anna. E me
dou conta de uma coisa:
– Sei por que você veio – falo. – Acho que você deveria estar com os
outros cavalos, aqueles que moram nos espelhos, mas, de algum jeito, veio parar
no nosso mundo. Porque você está machucada, e sabe que aqui é um lugar de
cura. Tudo bem. Ninguém mais vem aqui, só eu. Você pode ficar o tempo que
quiser.
– Emmaline? – a irmã Mary Grace me chama de novo. – Você está aí
fora?
Uma sombra passa por cima da égua alada, como uma onda. Uma
sombra escura, com asas abertas, que engole a égua e o relógio de sol. Uma
sirene estridente começa a gemer, vinda do hospital. A égua levanta as orelhas e
eu viro na direção do som, que parece um lamento. Um grito soa e desaparece.
A sirene do ataque aéreo.
Olho para a sombra, boquiaberta. Um avião! Os alemães, atacando! Fico
de quatro e cubro a cabeça como me ensinaram na escola. Não acredito que os
alemães estão aqui, em Shropshire. Eles bombardeiam cidades, não canteiros de
rabanete. Deveríamos estar a salvo aqui. Os trens, a zona rural. Deveria ser
seguro.
Depois de um minuto, como nenhuma bomba despedaça a terra, olho
para cima. A sirene de ataque aéreo continua soando sem parar. A égua alada
pisca calmamente através da neblina.
Eu estava enganada. A sombra escura era muito silenciosa para ser um
avião.
E a sirene…
– Droga! – Corro até o muro do jardim. Olho para trás e falo para a égua:
– Não se preocupe, é só um treinamento. “Meia hora, uma vez por semana, para
estarmos sempre alertas e em forma.”
Enquanto subo, com dificuldade, no muro coberto por heras, penso na
minha professora de Nottingham sacudindo as mãos enquanto cantávamos a
música juntos por trás das nossas grossas máscaras de oxigênio de borracha.
As outras crianças já estão formando uma fila bem organizada nos fundos
do pátio das galinhas. De máscara, seus rostos são de borracha preta com dois
olhos imensos e uma longa tromba de ferro. O Thomas e a irmã Constance estão
ajudando a carregar a Anna, em sua cadeira de rodas de vime, pela escada da
cozinha ensolarada acima, mas ela está tentando afastá-los. Insiste que consegue
caminhar se eles a deixarem. A irmã Constance insiste que não vai deixar
ninguém cair nos degraus de pedra, abrir a cabeça e estragar seu treinamento.
– Emmaline?
A irmã Mary Grace me vê correndo e leva a mão ao peito, em um gesto
de alívio, mas seu rosto logo fica com uma expressão preocupada. Ela estende a
minha máscara de oxigênio, que deixei pendurada no canto da cama, depois
coloca a dela no rosto.
– Desculpe, irmã…
– Vá para a fila – diz, com a voz de uma criatura do espaço sideral. –
Ande logo. Rapidinho – completa, apontando para a última linha de crianças.
Eu me atrapalho com as tiras e me transformo em uma criatu-ra do
espaço sideral também. Assim que ficamos todos em fila, e a Anna no alto da
escada, a irmã Constance para de girar a manivela da sirene. Balança a cabeça
para nós de um jeito sério e então marchamos, levantando os joelhos e com os
punhos cerrados, em volta do hospital até a entrada do porão subterrâneo,
descemos as escadas e sentamos de pernas cruzadas em cima da palha,
encarando as máscaras uns dos outros.
A irmã Constance se abaixa na entrada com um cronômetro de bolso.
Aperta um botão.
– Meia hora, crianças – diz. As tiras da sua máscara fazem seu hábito se
acumular em volta do rosto. – Sem conversar. É hora de rezar pelos nossos
soldados que estão lutando no front.
E aí ela e a irmã Mary Grace vão embora e ficamos só nós, vinte
pequenas criaturas do espaço sideral, se mexendo, desconfortáveis, tossindo por
trás das máscaras. A Anna, na cadeira de rodas, ajeita delicadamente a saia por
cima do joelho. As menininhas que não se largam nunca, como três ratinhos, se
dão as mãos e fazem uma brincadeira de apertar que nunca ensinam para mais
ninguém. O Peter cutuca uma ferida no cotovelo.
As crianças começam a se mexer, tentando se manter aquecidas.
Alguém tosse alto.
– Droga, isso é chato – resmunga outra pessoa, esticando os pés. A
máscara não me deixa ver se é o Jack ou o Peter, seu irmão. – E bem na hora do
café da manhã. O chá vai esfriar.
– Não seja tão bebezão, Jack. – A voz do Benny sai tão fininha que parece
que ele falou de dentro de uma lata.
O Jack cruza os braços e retruca:
– Senão você vai fazer o quê?
O Benny se endireita e responde:
– Senão eu vou fazer o quê? Te digo o quê. – Aí se inclina para a frente, e
a máscara de oxigênio faz sua respiração soar como ondas do mar lentas e
perigosas, indo e voltando, indo e voltando. – Você sabe o que o capitão Cook
descobriu em suas viagens pelo Pacífico Sul? Que os canibais não gostam de
comer adultos. São muito duros e difíceis de mastigar. Preferem mil vezes comer
crianças, que têm a carne macia. Especialmente bebês que brincam com
trenzinhos e ficam choramingando porque o chá esfriou. Eles vão adorar você.
– Que bobagem – alguém fala.
O Benny vira o rosto de borracha na direção da voz, olhando as crianças
uma por uma, e diz:
– É verdade. E, se vocês acham que estão seguros aqui, estão muito
enganados. – Aí abaixa o tom de voz e completa: – Por que acham que o Thomas
mora lá naquela casinha? É para ficar bem longe do hospital e as irmãs não
ouvirem os gritos das crianças que ele rouba.
A Anna bufa por trás da máscara.
– Não seja ridículo.
O Benny a ignora e continua:
– Ele não as come, não mesmo. – Todo mundo está com os olhos fixos no
Benny. – Apesar de ter provado uns pedacinhos aqui e ali, é claro. É difícil não
provar, porque o cheiro da carne delas é tão delicioso… O Thomas rouba
crianças para as bruxas que moram na floresta. Mantém todas enjauladas na sua
casinha, dá leite para elas engordarem, que nem faz com as ovelhas, depois
entrega para as bruxas.
A Anna se inclina para a frente, sentada na cadeira de rodas, tensa.
– Pare já com isso, senão vou chamar…
– Ele ficou com pena de uma criança uma vez – diz o Benny,
interrompendo a Anna. – Um bebezinho que não parava de chorar, por isso o
Thomas devolveu para a família, que morava em Wick. As bruxas ficaram tão
bravas que pegaram o braço dele, como castigo. Cortaram como se fossem um
galho seco.
– Isso é um absurdo – diz a Anna. – O Thomas nasceu sem o braço.
Mas ninguém ouve a Anna, só eu.
– E aquele cachorro… Sabem por que o nome dele é Brejo? Porque é o
cachorro que encontra as crianças e leva até o brejo para afogá-las depois que o
Thomas as engordou para as bruxas.
– Chega! – diz a Anna, levantando, trêmula. Depois tira a máscara de
oxigênio. Seu cabelo cacheado está todo bagunçado e seu rosto, vermelho por
causa dos fechos de borracha. – Chega, Benny. Nem uma palavra do que você
disse é verdade, você está inventando tudo, parece um dos seus gibis, e estou
cansada das suas histórias e…
Ouço um clique vindo da porta do porão. A irmã Constance segura o
cronômetro, o botão levantado mostra que a meia hora acabou. Está sem a
máscara de gás e olha para a Anna por um bom tempo.
A Anna senta na cadeira, depressa.
– Voltem lá para cima, crianças – ordena a irmã Constance.
Formamos fila no gramado dos fundos de cabeça baixa, segurando as
máscaras nas mãos, e voltamos para o pátio da cozinha. Olho para o jardim
murado. Assim que conseguir, vou visitar a égua branca de novo.
E aí meus olhos recaem na casinha do Thomas.
A história do Benny não é verdade, claro.
Não é.
Dentro do hospital, descobrimos que o Jack tinha razão. O chá esfriou.
7
Eu não deveria contar para ninguém sobre a égua no jardim.
Eu não deveria.
Mas guardei segredo a tarde inteira, e isso estava me destruindo por
dentro, como vermes que comem um pássaro morto. Entro correndo no quarto
da Anna assim que a irmã Constance nos libera da aula, e a encontro quieta,
lendo. Pulo na cama e encosto os lábios no seu ouvido.
– Tem um cavalo alado branco no jardim do relógio de sol – sussurro.
Ela ri com vontade quando o ar que sai da minha boca faz seus cachos se
mexerem, marca a página do livro com o lápis cor-de-rosa e me puxa para
perto.
– Meu Deus! Achei que os cavalos só existissem nos espelhos.
– Eu também! – concordo. Olho para a porta. – Mas uma égua escapou.
Não tenho coragem de contar para mais ninguém, só para você, porque podem
levá-la daqui. Além disso, ela está com a asa machucada.
A Anna balança a cabeça devagar, perdida em seus pensamentos.
– Acho então que a égua precisa que você cuide dela. Você cuidava dos
seus cavalos lá em Nottingham, não é? Você disse que eram os cavalos da
padaria? – pergunta, passando a mão de leve no meu cabelo. – Hoje em dia é
difícil ver cavalos na cidade.
Abraço-a e encosto o ouvido no seu peito, porque gosto de ouvir o coração
da Anna bater. Quando desço um pouco, o estômago dela faz glub, glub, glub,
igualzinho ao da mamãe.
– Normalmente era o papai que cuidava deles.
A Anna fica passando a mão devagar pelo meu cabelo, olhando pela
janela com uma expressão melancólica. Nunca tinha reparado que a janela do
quarto da Anna dá para a casinha do Thomas e para o canteiro de rabanetes. Ela
deve passar o dia inteiro vendo o Thomas trabalhar.
– Posso contar um segredo meu – diz ela, com um tom de conspiração. –
Se você prometer não contar para mais ninguém.
Sento direito e balanço a cabeça, entusiasmada.
– Nunca beijei ninguém – sussurra ela, e suas bochechas ficam tão cor-
de-rosa quanto o lápis que está dentro do livro. – Você consegue acreditar?
Quando minha irmã mais velha tinha 16 anos, ela já era noiva.
A Anna tira os olhos da janela, e eles disparam, só por um instante, para o
papel vermelho afixado na porta aberta do seu quarto. Será que está pensando
que ninguém a beijará agora que está com as águas paradas? Até as freiras
lavam as mãos depois de tocar em nós.
Ela dá uma risada meio triste, que se transforma em tosse, que a Anna
abafa na manga. Bato com cuidado no seu ombro.
– Você vai melhorar, Anna – digo. – Você será beijada, tenho certeza.
Quando a guerra acabar, você vai voltar para casa, casar com um belo rapaz e
ter um monte de bebezinhos.
A Anna segura a minha mão e a aperta. Depois olha para o livro de
história natural que está em seu colo e passa os dedos de leve sobre a capa.
– E você? – pergunta. – O que vai fazer quando melhorar?
Encolho os ombros e respondo:
– Não sei.
A Marjorie, minha irmã, quer estudar o mundo natural, como a Anna, só
que prefere recolher animais perdidos a ler sobre eles. Em Nottingham, ela dá
comida a uma fila interminável de gatos vira-latas. A mamãe aguenta porque os
bichanos matam os ratos que roem nossos sacos de farinha (ela não sabe que a
Marjorie também dá comida para os ratos). Acho que minha irmã iria gostar de
trabalhar aqui no hospital, cuidando de nós como se fôssemos gatos vira-latas.
– Quem sabe você se torne padeira, como seus pais – diz a Anna. – Todos
aqueles pães e bolinhos. Vai engordar como uma porquinha.
Então me cutuca nas costelas, para me provocar, mas não sorrio. Neste
momento, a padaria me parece tão distante. Já estou quase esquecendo o som da
mamãe murmurando enquanto sova a massa.
Sacudo a cabeça.
– Bom, pense em algo que a faça feliz – continua a Anna.
Penso muito.
Gosto de desenhar. E de ir ao cinema com a Marjorie. Heidi é o melhor
filme que já vi. Gosto de pular o muro do jardim apesar de a irmã Constance ter
dito para não fazermos isso. E gosto da égua alada. Sim, é isso que me faz feliz. O
fato de ela ser minha. E de ser um segredo.
– Quero ser uma exploradora – digo, enfim. – Gostaria de descobrir coisas
novas, que ninguém nunca viu. Ir a lugares aonde os outros não iriam.
Então fico com vergonha, porque é um desejo bobo. Exploradores são
corajosos, pessoas ousadas que andam de avião, lutam contra os alemães e não
têm os pulmões cheios de águas paradas.
A Anna pisca, surpresa, e o sorriso mais lindo do mundo se esboça em seu
rosto.
– Mas, Emmaline – diz –, você já é uma exploradora.
8
– A Emmaline foi lá fora. Olha só o vestido dela!
Na manhã seguinte, o Benny pula da mesa do café da manhã e aponta
para a parte de trás da minha saia. Estico a mão e encontro um galho de roseira-
brava. Droga! Só existem roseiras-bravas em um lugar, no jardim, e o galho
deve ter ficado grudado em mim ontem, durante minha visita à égua branca. A
irmã Constance esfrega os olhos cansados e me dá o seu olhar de “Deus repro-
varia isso”.
– Emmaline, lembre-se da regra. É para o seu bem, por causa das raposas
que andam lá fora e que ficam cada vez mais famintas à medida que o tempo
esfria.
Ela sacode a cabeça, resmungando que o ar puro não pode nos curar se
morrermos de frio antes.
Sento à mesa e como o mingau com geleia de ameixa. A maioria dos
lugares das crianças pequenas está vaga, suas tigelas já limpas com a língua. Só
sobraram o Benny, o Jack e o Peter, e as três menininhas que não se largam. O
Thomas está sentado na ponta da mesa comprida, onde os adultos se sentam,
curvado sobre a tigela, parecendo um pedaço de madeira que a chuva trouxe até
a mesa do café da manhã. Está com o lado que tem o braço de frente para mim
e, se eu me inclinar um pouco para a frente, quase posso fingir que seu outro
braço existe, só está escondido.
Olho para ele de soslaio. Não parece o tipo de pessoa que engorda
criancinhas para entregar às bruxas, mas quem pareceria?
– Aonde você foi, Emmaline? – pergunta o Benny, com a cabeça para a
frente. – No banheiro lá de fora? Aposto que você gosta de sentir o ar fresco
batendo na sua bunda.
O Jack dá uma risadinha. As três ratinhas também.
– É mentira! – retruco. Viro rápido a cabeça para a porta da despensa,
mas a irmã Constance está contando as latas lá dentro, por isso não escutou o
comentário injusto. – Fui ao jardim do relógio de sol. Encontrei um cavalo alado
lá…
Ponho a mão sobre a boca.
Meu segredo já era.
O Benny começa a rir.
– O quê? Um cavalo alado?
Ele finge rir tanto que precisa se agarrar à beirada da mesa para não cair
do banco. Mas aí as águas paradas sobem, e ele começa a tossir sem parar, mais
parece um cachorro latindo durante a noite.
O Jack faz coro:
– Cavalos alados não existem, pulga.
– Existem, sim! – replica uma das ratinhas. – Na Bíblia, eles viviam no
Jardim do Éden, mas aí houve o Dilúvio, e eles se afogaram porque não tinha
mais espaço na Arca de Noé. Mesmo com o corpo retorcido de dor, o Benny
consegue dar um jeito de mandar um olhar de deboche para a ratinha.
– Esses aí eram os unicórnios – diz, depois tosse um pouco mais. – E, aliás,
isso não é verdade. Foi só uma história que a irmã Mary Grace inventou para
vocês prestarem atenção no culto.
A ratinha volta para o mingau, emburrada.
– Existem, sim – digo. – Só que não no nosso mundo. Eles vivem no outro
mundo, o que fica atrás dos espelhos. Se você olhasse, poderia vê-los, mas sei
pelo seu cabelo ensebado que você não olha no espelho há dias. Seja como for, o
cavalo alado do jardim do relógio de sol conseguiu escapar de lá.
As outras crianças estão em silêncio. O único som que se ouve é o da
colher de metal do Thomas, raspando o finzinho do mingau, no canto da mesa.
– Vou provar que sim – continuo. – Venha ver.
– E como é que vamos fazer isso? – O Benny tenta transformar suas
palavras em deboche, mas a verdade é que, acho, está um pouco curioso. – Não
temos permissão para ir tão longe e, de qualquer modo, o portão do jardim está
trancado.
– Você é menino. Se eu consigo pular o muro de vestido, você também
consegue – respondo, olhando feio para ele. – Ou você tem medo de raposa?
O Benny olha na direção da despensa e diz:
– Claro que não.
As três ratinhas confabulam na sua língua secreta dos ratos. O Thomas
levanta e joga sua tigela na bacia ensaboada, e elas se calam. Acho que
esqueceram que ele estava ali, tão quieto e reservado, tão imperceptível quanto
as sombras que, esse tempo todo, estiveram projetadas na parede. O Thomas
limpa a única mão em um pano de prato, depois levanta as calças com a
graciosidade de um urso.
– É melhor não irmos – anuncia a Kitty, líder das ratinhas. Está com os
olhos fixos no Thomas, que sai da cozinha batendo a porta de madeira. – Além do
mais, cavalos alados não existem, Emmaline. Você está inventando.
O Benny se recosta e cruza os braços, como se, agora que o Thomas foi
embora e as irmãs não estão presentes, fosse o presidente da mesa do café da
manhã.
– Estamos em guerra, Emmaline. Podia até ser divertido inventar coisas
antes, mas precisamos amadurecer. Não existem crianças em tempos de guerra.
Apenas adultos.
E, parecendo muito satisfeito consigo mesmo, lambe um resto de geleia
que ficou em seu dedo.
Fico de pé. Será que eles não querem nem ver? A égua alada está logo ali,
do outro lado do muro do jardim. Furiosa, coloco minha tigela na pia da cozinha e
saio correndo em direção ao terraço.
Está frio e não trouxe o casaco. Mas não quero voltar para dentro e ouvir o
Benny falar sobre amadurecer e a guerra. Sento no degrau mais alto e enrolo os
braços em volta do corpo, bem apertado, preocupada com a égua alada. Só que
está começando a chover, e não posso fugir agora.
– Emmaline.
Endireito o corpo na direção da voz. O Thomas segura uma pá com seu
único braço e tem uma corda enrolada em volta do ombro que tem a manga
presa com alfinete. Uma vez, na despensa, quando tirei uma soneca em cima dos
sacos de farinha, ouvi sem querer as irmãs falando do Thomas.
“Não deve ser fácil para ele”, disse a irmã Constance. “Seu pai ficou tão
famoso na última guerra, e nesta também. E o Thomas aqui, colhendo rabanetes
o dia todo, sem nenhuma garota para lhe dar atenção a não ser a pobre da Anna,
que está moribunda, e duas freiras.”
– Emmaline – repete o Thomas.
– Quê?
– Também vejo os cavalos alados.
Meu coração faz tum-tum, tum-tum. Não sou a única! Mas viro o rosto,
porque o Thomas é como as sombras projetadas na parede: sombrio e sempre
presente, só um tantinho assustador. Sei que as histórias que o Benny conta dele
não são mais verdadeiras do que as das páginas do seu gibi. Tenho certeza disso.
Mesmo assim, se mais alguém vai fazer parte do meu mundo secreto, acho que
não quero que esse alguém seja o Thomas.
9
Está chovendo há dias e dias. Uma chuva de granizo que quer virar neve, mas
não consegue entender como fazer para ser branca e fofinha e fica só
chicoteando as janelas. Não tenho como escapar para ver a égua alada branca.
Só posso esperar que ela esteja bem.
Fico deitada na cama à noite, desenhando com giz à luz de uma vela
grossa, porque a Anna só me deixa usar seus lápis de cor quando estou no quarto
dela. É bem aconchegante aqui, atrás das vigas do sótão. Fui a última a chegar a
Briar Hill. Todas as camas estavam ocupadas, e o Thomas teve que esvaziar uma
das salas do sótão e fazer essa cama com madeira e corda. Pedacinhos de palha
saem do colchão e pinicam minha pele. Mas gosto do cheiro. Faz eu me lembrar
de casa. Da Noz-Moscada, do Gengibre e da Pimenta, balançando a cabeça para
sacudir a crina castanha assim que o papai tira seus arreios. Eles fazem
igualzinho o papai sacudindo o cabelo quando tira o chapéu de padeiro.
Finalmente consegui desenhar direito as orelhas da égua, acho, mas as
asas estão me dando trabalho. No meu desenho, estão penduradas, meio frouxas,
como no mundo real. Um relâmpago lá fora faz minha mão desenhar uma linha
branca serpenteante. O trovão demora a soar. Dá para saber a distância que você
está de uma tempestade pelos segundos que se passam entre os relâmpagos e os
trovões. Conto três, quatro, e aí ele vem. Quatro. Quatro quilômetros de distância.
Guardo o giz no bolso e abro a cortina.
Do jardim, só consigo enxergar as sombras cor de carvão, fininhas por
causa da umidade, e os esqueletos sacolejantes das árvores. Não consigo ver a
égua alada, mas posso sentir sua presença. Será que está assustada com a
tempestade?
Mais um relâmpago corta o céu.
Um. Dois.
Então troveja.
Dois quilômetros de distância agora. Fecho a cortina e me esparramo na
cama. A luz da vela bruxuleia aos uivos do vento, depois se firma.
Ponho a mão no bolso para pegar o giz e, de repente, troveja bem alto.
Solto um gritinho e me encolho debaixo da colcha. Não deu nem tempo de
contar. Zero quilômetro. A tempestade está bem em cima de nós! O vento uiva
ainda mais alto e escancara a janela. Uma lufada fria entra, trazendo chuva, gelo
e tudo o que existe entre essas duas coisas. A luz da vela bruxuleia violentamente
e se apaga. Rolo até a janela, derrubando a vela no chão. A tempestade não tem
permissão para entrar no meu quarto. A noite, tampouco.
A chuva gelada escorre pelo meu cabelo e pelo meu rosto. Mais um
relâmpago e, por um momento, posso ver o mundo noturno. Galhos trêmulos à
mercê do vento. Campos vazios se espalham pela noite.
Bolotas de carvalho caem no telhado como uma rajada de balas. Rá-tá-tá-
tá. Rá-tá-tá-tá. Então fica tudo escuro de novo. Muito escuro. Um breu.
Fecho a janela e giro a tranca. Pisco, e cristais de gelo fazem barulho.
Não há mais nada no sótão além de sombras e do cheiro de fogo apagado. Tateio
em busca da colcha.
RÁ-TÁ-TÁ-TÁ.
Mais sons, mais altos. Não é mais época de bolotas. Alguma outra coisa
está pisando, batendo, golpeando o telhado inclinado.
Conheço esse som.
Cavalos.
Lá fora, o vento uiva ainda mais alto. Só um cavalo alado poderia subir
três andares e ficar pisoteando o telhado. Será que é a égua do jardim, que está
se exibindo? Mas não, esse som parece um rangido. São patadas. É o rá-tá-tá-tá
das metralhadoras, só que é um cavalo destruindo o telhado.
Dou um passo para trás.
Não pode ser a minha égua alada.
Minha égua alada tem penas de galinha e focinho cinzento e macio. Minha
égua alada tem uma mecha em forma de faísca.
Clop. Clop. Clop.
Mais um trovão, algo se quebra no telhado, como se, seja lá o que estiver
do outro lado, estivesse tentando abrir uma passagem para entrar. Encosto na
cama e tropeço na vela caída.
Pode esquecer!
Pego o casaco, abro a porta de supetão, desço correndo as escadas e vou
direto para o quarto da Anna. Ela se senta, assustada, quando me ouve entrar,
com o cabelo suado grudado no rosto, os olhos espremidos. Pulo em cima da
cama, do seu lado, e me enfio embaixo das cobertas.
– Emmaline! O que aconteceu? Por que você está molhada? – pergunta,
tirando o cabelo do rosto. – Você foi lá fora, sua criança enlouquecida?
A cama da Anna é quentinha. A cama da Anna é segura. O sótão está
longe, e o telhado com as vigas trêmulas e o cavalo que o pisoteia estão mais
longe ainda. Respiro fundo, longamente. A chuva gelada e o vento também
batem na janela ali, mas são abafados pelo cobertor de lã. Parece apenas uma
tempestade como outra qualquer.
– O vento abriu minha janela.
– Tenho uma toalha na…
– Tem alguma coisa lá fora, Anna. No telhado. Acho que outro cavalo
alado atravessou o mundo refletido. Um cavalo alado malvado.
Naquela escuridão, não consigo enxergar o rosto da Anna. Ela acende o
abajur, depois fica me observando, com os olhos apertados. Olha para o
espelhinho oval que fica na sua mesinha de cabeceira. Que reflete um pedaço da
janela que o cobertor de lã não tapou direito. Um pedacinho do mundo lá fora,
que está escuro.
– Achei que era a égua do jardim – continuo – mas não pode ser, porque
ela está com a asa machucada e não consegue voar. Estava fazendo muito
barulho, batendo com a pata no telhado sem parar, como se estivesse bravo.
Você não ouviu?
A Anna ainda está olhando para o espelho, com uma expressão estranha,
como se seus pensamentos estivessem longe.
– Anna, você não ouviu? – repito, sacudindo a manga da sua camisola.
Ela pisca.
– Não. Mas… Estou aqui embaixo, no segundo andar, e o seu quarto fica
bem perto do telhado. Tem certeza de que não eram galhos caindo?
– Preciso ver como a égua do jardim está. Alguma coisa terrível pode ter
acontecido com ela.
Começo a sair da cama, e a Anna se levanta e me segura.
– Você não pode fazer isso. Vai morrer de frio.
– Mas ela está sozinha!
A Anna me segura com força.
– Bem, você pode ver como ela está amanhã de manhã. Não vai poder
ajudá-la se ficar com febre. Agora pegue aquela toalha no corrimão e coloque
estas meias. Você está tremendo.
A Anna seca meu cabelo com a toalha e tira o gelo dos meus cílios.
Continuo olhando para aquele pedacinho de noite refletido no espelho. Prestando
atenção para ver se aparecem um lampejo de asas e cascos batendo. Mas nada
acontece.
Nada.
Nada.
A Anna desliga o abajur e vira de costas para mim, mas, depois de alguns
segundos, vira de novo e entrelaça seus dedos nos meus. Aperta a minha mão.
Quando pega no sono, sinto a temperatura do seu corpo subir, os suores noturnos
empapando o lençol. Adormeço ao som de vinte crianças tossindo enquanto
dormem, pensando na égua alada branca, em relâmpagos e cascos que fazem
rá-tá-tá-tá.
10
Em algum momento da noite, a chuva se transforma em neve. Assim que o sol
nasce, eu e a Anna encostamos o rosto na janela do quarto, observando os flocos
silenciosos caírem. A neve é mais pesada aqui do que já vi cair em Nottingham,
onde a cidade logo fica lamacenta e marrom. O mundo inteiro lá fora está
parado, com exceção do Thomas, que caminha com dificuldade pela neve,
levando as ovelhas para o celeiro, e do Brejo, que mordisca as costas das
ovelhas.
– Você me empresta as suas luvas? – pergunto para a Anna.
– Você vai lá fora, mesmo sabendo que não devia?
– Preciso ir.
A Anna semicerra os olhos por causa da claridade que vem do lado de
fora. O Thomas e o Brejo estão resgatando uma das ovelhas, que deu um jeito de
se entalar entre duas madeiras da cerca. As bochechas do Thomas estão
vermelhas, e sua respiração se torna fumaça em contato com o ar, mas ele
consegue libertar a ovelha, segurando-a com seu único braço e jogando-a por
cima da cerca. O animal vai rolando pela neve até sua mamãe ovelha.
– Então eu também vou – diz a Anna.
– Você não pode! Está doente.
– Você também está, sua gansa malandra. Estou cansada desta cama e
não sou uma inválida, por mais que o dr. Turner diga isso. Quero andar na neve.
Devagar, com seu jeito frágil, a Anna vai até a cômoda de cedro que fica
aos pés da cama. Só esse pequeno esforço já a deixa sem fôlego, apesar de ela
tentar disfarçar. Das gavetas, saem luvas de lã, chapéus e cachecóis de um tom
sem graça de cinza. A Anna começa a enrolar um cachecol no meu pescoço.
– Os pontos estão todos tortos – resmungo, enquanto visto o casaco e o
abotoo.
– Os americanos mandaram esses cachecóis como ajuda humanitária.
Pobrezinhos, não sabem tricotar nem por decreto, mas acho válida a tentativa.
Agora coloque estas luvas e me mostre como você faz para sair sem as irmãs
perceberem.
Ela coloca um chapéu sobre seu cabelo cacheado, olha no espelho para
ajeitá-lo e tira o casaco do gancho que fica atrás da porta.
A única pessoa acordada tão cedo é a irmã Mary Grace, que está na
cozinha, preparando o café da manhã. Descemos a escada na ponta dos pés,
como gatos furtivos, e andamos assim pelo corredor até a biblioteca. As irmãs
mantêm a porta trancada, mas a tranca da janela do meio está quebrada. Abro a
janela. Subimos nos arbustos raquíticos de buxo. Precisamos deixar a janela
entreaberta para conseguirmos entrar de volta, mas o cobertor de lã esconde as
evidências.
O ar frio nos atinge em cheio. As bochechas da Anna já estão bem
vermelhas. Fico preocupada, acho que isso não é prudente, fazê-la sair da cama
quente e dispensar as xícaras de chá que lhe levam. Seus braços e suas pernas
são tão finos que dói só de olhar. Normalmente, as cobertas os escondem. Mas
agora, vista contra os tijolos do hospital, ela parece tão frágil, uma menina feita
de gravetos.
– Então vamos – diz. – Quero conhecer esse seu cavalo mágico. – A Anna
inclina o pescoço na direção do celeiro e fala um pouco mais alto: – Você acha
que vamos dar de cara com o Thomas?
– Não se pudermos evitar.
A Anna parece decepcionada.
Começo a me esgueirar pela fileira de arbustos e, quando tenho certeza de
que não há ninguém por perto, corro pelo gramado dos fundos até o muro do
jardim. A Anna vem atrás de mim. Seus movimentos são rápidos e sutis como os
de uma folha, mas sua respiração está curta e acelerada. Encosta-se nas heras,
leva uma das mãos enluvadas ao peito. Consigo ouvir o ronco começando. Ela se
inclina para a frente e tosse tão forte que fico com medo de que algo em seu
corpo se despedace.
– Anna…
– Estou bem.
– Acho que você deveria…
– Estou bem! – repete, virando-se abruptamente. – Céus! O que é aquilo?
Levando a cabeça para enxergar o que a Anna está vendo. É o telhado.
Tem uma camada de neve em cima dele, igualzinha ao glacê que a mamãe põe
nos bolos, só que tem um caminho onde a neve foi pisoteada com violência. E
rastros. De uma forma inconfundível.
– Viu? – grito. – Marcas de cascos!
A Anna não para de olhar para o telhado. Espreme os olhos, como se
estivesse prestes a se lembrar de alguma coisa, mas aí um som áspero sai de sua
garganta e ela dobra o corpo de tanto tossir. A tosse faz seu corpo tremer, seu
corpo faz as heras tremerem, sacudindo a neve, que polvilha o ar. Seu chapéu cai
no chão.
De repente, o Brejo vem correndo pelo canto do jardim, latindo como um
louco. Fomos descobertas. Um segundo depois, o Thomas aparece, andando com
dificuldade. Para quando nos vê. O Brejo continua latindo, até o Thomas fazer
shhhh, e o cachorro senta imediatamente.
A Anna estica a mão e agarra as heras, tentando se levantar.
– Olha! – diz, com a voz fraca. – Lá no telhado.
O Thomas não olha para o telhado. Aproxima-se para ajudá-la a se
levantar.
– Sim, eu vi essas marcas hoje de manhã. Mas é sério, você não deveria
estar aqui, senhorita Anna. Vai pegar um resfriado. Emmaline, pegue o chapéu
dela.
– A Emmaline vai… Me mostrar o jardim do relógio de sol.
– Não vai, não. Hoje não. Não com a senhorita neste estado.
Fico na ponta dos pés para pôr o chapéu na Anna. Tento ajeitá-lo da
maneira que ela gosta, deixando os cachos à mostra.
– Quem sabe outro dia, Emmaline – diz a Anna. – Quero tanto ver esse
seu cavalo.
Mas ela perdeu a disposição. Nunca vi seu rosto ficar tão pálido. Seus
braços são uma fina camada de pele sobre ossos frágeis. Acho que em suas veias
correm mais águas paradas do que sangue.
O Thomas olha para mim.
– Você vem, Emmaline?
Sacudo a cabeça.
– Então prometa que não vai demorar – emenda ele.
Balanço a cabeça, e o Thomas ajuda a Anna a voltar para dentro.
Eu e o Brejo ficamos observando os dois casacos marrons contra a neve.
Eles se movimentam devagar, como se cada passo fosse um esforço tremendo.
Acho que a Anna não vai dizer que quer caminhar na neve de novo.
O Thomas assovia, e o Brejo também me abandona.
11
Subo no muro do jardim e pulo para o outro lado. Estou com um pouco de medo
do que posso encontrar. Será que foi a minha égua alada que subiu no telhado e o
destroçou com as patas, e sua asa não está machucada como pensei? E se ela
nunca tiver visto neve e achou que estavam caindo pedacinhos do céu, que as
nuvens estavam sendo tosquiadas como ovelhas?
A neve forma montes profundos no jardim, que engolem meus
calcanhares. Todos os tons de cinza e de marrom do nosso mundo sumiram,
foram substituídos por branco. Talvez o mundo dos cavalos alados seja sempre
assim. Lindo e branco, macio e frio. Talvez a égua se sinta mais em casa agora,
na tempestade, do que jamais se sentiu. Sacudo as mãos para me livrar do frio e
olho para o canto do jardim do relógio de sol.
Ela está ali.
Sinto meu peito subir de alívio e deslumbramento ao vê-la.
Está de pé no parapeito do muro mais alto, a única proteção que há da
neve, e não é lá grande coisa. Está com as asas enroladas no corpo, pulsando de
leve, como se quisesse levantar voo, mas não conseguisse. Nuvens de vapor
saem das suas narinas. Suas patas estão inquietas e ansiosas, parece que nunca
andaram sobre a neve.
Não, esse não é um cenário conhecido para a égua. Seja lá como for a
neve no seu mundo, com certeza não é esse grande vazio sem cor.
Piso em um rabanete velho e solto um grito, e ela vira a cabeça na minha
direção.
Seus olhos estão tão arregalados que consigo enxergar a parte branca. Ela
volta para o canto, arredia, e bate as patas com mais força, encurralada. Mostro
as mãos para que veja que não sou uma ameaça.
– Calma, calma.
Às vezes, nossos cavalos, lá em Nottingham, ficavam assustados. Estavam
acostumados com as tempestades, mas não com as bombas. Reviravam os olhos
e davam coices na porta das baias, querendo sair. Só que o papai estava longe, na
guerra, e não podíamos soltá-los, senão sairiam desembestados pelas ruas da
cidade e não voltariam mais. A Marjorie sentava na minha cama e me abraçava
bem apertado, cantarolando no meu ouvido para não ouvirmos os gritos dos
cavalos.
Tento dar um passo à frente, mas a égua alada bufa, protestando. Pisoteou
tanto a neve no seu canto do jardim que a transformou em uma porcaria
lamacenta. E as marcas dos seus cascos são pequenas e graciosas, não se
parecem nem um pouco com as deixadas no telhado.
Se não foi ela, porém…
O galho de salgueiro ainda está no chafariz. Dou um passo com cuidado
para a esquerda, me movimentando bem devagar para não assustá-la, e quebro o
gelo de novo para que a égua possa beber água. Depois, solto o galho. A lama
sujou seu pelo. Por baixo, sei que é tão branca e tão macia quanto as penas das
galinhas. Quero tanto limpá-la e encostar o rosto no seu corpo, sentir sua
respiração subindo e descendo, cuidar da sua asa ferida como a mamãe fazia
quando me machucava. Seus olhos ainda estão arregalados, mas pararam de se
revirar. A égua levanta a pata direita e a põe no chão em seguida.
O papai dizia que não se pode ter pressa ao domar um cavalo. Senão, ele
se machuca.
Ficamos olhando uma para a outra, nos reconhecendo. Não me aproximo
mais da égua, e ela não entra em pânico. Somos apenas dois seres de sangue
quente na neve. Ouvi dizer que os cavalos sabem, pelo olfato, se uma pessoa é
gentil ou não. Imagino que seja um cheiro de flores, talvez de lavanda ou sálvia-
da-rússia, mas não de rosas, porque até os cavalos sabem que as rosas têm
espinhos.
Sopra uma rajada de vento, e algo tremula debaixo do relógio de sol. Um
papel. Alguém deixou um bilhete atrás do ponteiro dourado do relógio. Quem
mais esteve aqui? Será que o Benny finalmente criou coragem? Ou foram as três
ratinhas?
Ando pela neve na ponta dos pés, na velocidade que as heras crescem, até
conseguir pegar o papel.
Está molhado por causa da neve. Acho que ficou lá a manhã toda. O papel
é grosso, como o do receituário do dr. Turner, mas tem uma fita de seda
vermelha amarrada nele. Olho para a égua. Ela está me observando, soltando
vapor pelas narinas. Largo a fita com meus dedos dormentes.

A quem receber esta mensagem,

Preciso desesperadamente de ajuda. Trouxe


esta égua ao seu mundo porque está com a asa
quebrada, e preciso de um lugar seguro para
escondê-la. Sabe, ela está sendo perseguida por
uma força sombria e sinistra do nosso mundo,
um cavalo preto que caça usando o faro, à luz
da lua, e não pode fugir dele voando. Minhas
travessias entre os dois mundos são limitadas, e
serei eternamente grato se puder cuidar dela
até eu conseguir voltar.

Boas cavalgadas,
Lorde dos Cavalos

P.S.: O nome da égua é Lume de Luar. Ela gosta


de maçã.

Um bilhete do mundo de trás dos espelhos! Do próprio Lorde dos Cavalos – eu


nem sabia que existia um Lorde dos Cavalos! O vento sacode o bilhete. Está tão
frio que meus olhos lacrimejam, e as letras se confundem, mas pisco para
afastar o frio e releio o bilhete. A letra é caprichada e linda, com arabescos
discretos no fim dos “t”, como a Anna faz. Amasso o bilhete sem querer, de tanta
animação, e tento alisá-la o melhor que posso.
– Lume de Luar? – digo para a égua alada. – É esse o seu nome?
Ela não me responde, mas lembro que é um cavalo. Então se vira para o
chafariz. Dou um passo para trás. A égua vem para a frente com cautela,
mergulha a cabeça na água. Seus músculos ondulam por baixo de sua pele de
cavalo branca como a neve. Não há marcas de sela na sua barriga nem nas suas
costas. Ela é selvagem, orgulhosa demais para ter um dono. Acho que o Lorde
dos Cavalos deve ser como um guardião. Eu o imagino um jovem e belo
príncipe, que cuida dos cavalos alados selvagens do seu reino.
A égua ficou mais perto de mim, agora que está bebendo água. Consigo
ver os músculos do seu pescoço se mexendo. Se eu desse alguns passos para a
frente e esticasse o braço, conseguiria tocá-la. Mas não faço isso. Ela não
deixaria, ainda não. Preciso conquistar sua confiança.
Uma sombra escura passa acima de nossas cabeças. A mesma sombra
silenciosa do outro dia, que acreditei ser um avião alemão. A Lume de Luar olha
para o céu, através da neve. Vira as orelhas para trás.De alguma maneira,
estamos ligadas: sinto seu medo dentro de mim.
A sombra lá em cima voa em círculos, sem parar.
Só agora reconheço a silhueta. Os cavalos que vi nos espelhos eram de
diversas cores: brancos, malhados e chocolate, mas nenhum deles era preto. Até
agora. Voando no meio da tempestade como se fosse a encarnação do trovão,
voando em círculos como um corvo, procurando a Lume de Luar.
Essa é a presença sombria de que o Lorde dos Cavalos alertou. O monstro
que fazia o telhado ranger.
O Corcel Negro.
Viro o bilhete do Lorde dos Cavalos e pego o giz, que ainda está no meu
bolso, desde a noite anterior. As letras saem grossas, mas não preciso escrever
muita coisa.

Aceito. Assinado: Emmaline May


12
Fico do lado de fora do celeiro com os braços cruzados em volta do peito. Lá
dentro, alguém está batendo um martelo. Pam. Pam. Pam. Respiro fundo e abro a
porta.
O Thomas me vê e para de consertar o banco da cozinha, que ele já
consertou outras três vezes. Está suando por causa do esforço físico, e seu cabelo
castanho está grudado no rosto. De repente, não quero mais estar ali, mas fiz uma
promessa para o Lorde dos Cavalos.
– Você precisa de alguma coisa, Emmaline?
Sua voz não soa brava como a expressão rígida do seu rosto. Aponto para
o balde cheio de maçãs velhas que o Thomas dá para as ovelhas.
– Posso pegar uma?
Ele franze as sobrancelhas, mas aí solta o martelo e fica mexendo no
balde até encontrar uma maçã boa. Estende a fruta para mim, mas, no último
instante, me lança um olhar desconfiado.
– Não é para o cavalo alado do jardim do relógio de sol, é?
Olho para ele, desconfiada. O Thomas disse que também vê os cavalos
alados, mas é praticamente um adulto. Se nem o Benny e as três ratinhas
acreditam em mim, por que ele acreditaria? Mas a expressão no rosto do
Thomas é muito séria. Seu rosto é comum. O queixo, meio fraco, e sua testa
parece ter quilômetros quando ele põe o cabelo suado para trás, assim. Mas tem
olhos bonitos. Verdes, como os meus.
Pego a maçã.
– Você viu mesmo os cavalos alados?
O Thomas segura o martelo de novo.
– Sim.
– Nos espelhos?
– No lago congelado da fazenda Mason, logo atrás dos campos dos fundos.
Quando o sol brilha, o gelo fica igual a um espelho, e dá para vê-los claros como
a luz do dia.
Passo o dedo pela beira da sua bancada de trabalho empoeirada.
– Eu sei quem fez as marcas de casco no telhado depois da tempestade de
neve – conto. – Um outro cavalo que atravessou o espelho. Um cavalo preto.
Recebi um bilhete especial falando dele. Você já o viu?
O Thomas limpa o suor da testa de novo.
– Não, ainda não.
– Bom, tome cuidado. Ele é uma força sombria e sinistra.
O Thomas levanta uma das sobrancelhas. Depois balança a cabeça na
direção do Brejo, que está dormindo, sonhando sonhos de cachorro, perto de uma
pilha de caixões de madeira.
– Eu não me preocuparia muito com esse cavalo preto. Se ele se
aproximar, o Brejo vai latir feito louco. Este cachorro aqui espanta as raposas.
Pode espantar qualquer coisa.
Gosto do Brejo. É um cão inteligente e vai atrás se você jogar um
pauzinho para ele. Mas acho que nem todos os latidos do mundo são capazes de
espantar o Corcel Negro.
– Obrigada – digo. – Pela maçã.
– Mande lembranças para o cavalo alado do jardim do relógio de sol.
Ainda não o vi, mas acho que ouvi seus movimentos por aí. Diga que torço para
que as asas dele melhorem logo.
– É uma fêmea – falo. – Seu nome é Lume de Luar.
O Thomas para de martelar.
– Ah, desculpe – diz. – É um bom nome, para uma boa égua.
Fico de pé, com os braços enrolados no corpo para me proteger do frio, e
aí me vem um pensamento.
– Como você sabe que ela está com a asa machucada?
– Bom – responde. E martela de novo. Pam. – Se não estivesse com a asa
machucada, já teria ido embora.
Coloco a mão no bolso e passo os dedos na fita do Lorde dos Cavalos.
Talvez o Thomas consiga ver os cavalos alados porque não foi para a
guerra como os outros rapazes do vilarejo. Talvez não ter ido para a guerra
signifique que ele não é completamente adulto. E, mesmo assim, quando bate
aquele martelo, o Thomas tem um quê dos velhos carvalhos retorcidos do
gramado da frente do hospital: antigos e sábios.
13
O dr. Turner não pode vir ao hospital por causa da neve. A irmã Constance
telefona para o farmacêutico de Wick que entrega nossos remédios uma vez por
semana, mas ele também não pode vir. Então a irmã Constante precisa pedir
emprestado o burro que mora na fazenda Mason, e a charrete, e vai para Wick
sozinha. É engraçado vê-la com o hábito preto de freira, debaixo de um casaco
grosso e quatro camadas de cobertores, tentando guiar o burrico velho e raquítico
pela neve. Dou risada, mas a Anna me repreende.
– Shhh, Em. Você prefere ir até Wick no lugar da irmã?
Solto um suspiro. Aí a Anna começa a tossir, com o lenço sobre a boca, e
me sinto péssima, porque, de todos nós, é a Anna quem mais precisa dos
remédios.
De repente, seu corpo se lança para a frente, na cama, tossindo mais do
que nunca. Seguro os lápis de cor e os últimos desenhos que fiz, porque são
mesmo os melhores desenhos que consegui fazer da Lume de Luar, e odiaria que
eles se estragassem. O corpo inteiro da Anna sacode toda vez que ela tosse, e seu
rosto fica muito branco. Não branco como a neve, como as asas da Lume de
Luar, mas um branco translúcido e engordurado, igual ao da banha rançosa que a
irmã Mary Grace joga fora.
A Anna tira o lenço da boca, e ficamos olhando para ele, depois nos
encaramos.
Tem uma mancha vermelha.
Sangue.
– Vá chamar a irmã Mary Grace – diz ela.
Sua voz falha e seus olhos estão cheios de lágrimas. Levanto da cama com
páginas e mais páginas de desenhos nos braços e penso que deveria largá-los,
não, devo simplesmente ir logo e acabar derrubando tudo no corredor e tropeçar
neles ao descer as escadas correndo até a cozinha. A irmã Mary Grace mal
começou a preparar nosso chá da tarde, e a chaleira já solta fumaça.
– É a Anna! – digo. – Acho que ela está morrendo!
A irmã Mary Grace larga a faca da manteiga e pega um pano de prato,
depois passa correndo por mim e sobe as escadas até o quarto da Anna. A
chaleira está apitando. Ouço o murmurar das outras crianças – devem ter ouvido
a comoção e estão com a cabeça para fora dos seus quartos, curiosas. Parecem
passarinhos que espiam para além do ninho. A chaleira apita mais alto. Eu
deveria voltar para o quarto da Anna, mas não quero. Não quero ver o sangue.
Não quero ouvir aquela tosse, aquela tosse misturada com o seu choro. No
corredor, meus desenhos estão espalhados como as folhas no outono, meio
amassados e pisoteados. Estragados, mas não me importo mais com isso.
O Benny entra correndo na cozinha e tira a chaleira escandalosa do fogão.
Sinto cheiro de metal queimado. Espero ele gritar comigo por ter deixado a
chaleira no fogo até ficar sem água, mas ele não faz isso. Ele a coloca em cima
de um descanso de panela feito de madeira e olha para mim por um bom tempo,
depois seus olhos vão na direção da escada, de onde nós dois podemos ouvir a
tosse profunda da Anna, que parece vir dos seus ossos.
– Você devia ter deixado a chaleira no fogão – digo. – Você devia ter
deixado a chaleira continuar apitando.
– Emmaline…
Pela primeira vez, sua voz não tem tom de deboche.
O Benny viu minhas lágrimas. Mas não quero que sinta pena de mim!
Passo pelo Benny, esbarrando nele, e corro para fora, para o mundo congelado
feito de neve e gelo. O frio queima minhas mãos sem luvas. Esqueci o casaco,
mas não posso voltar. Corro cada vez mais rápido, apesar de meus pulmões
gritarem comigo, pedindo para parar. Será que, quando a princesa mandou
construir este lugar, imaginou que um dia crianças morreriam aqui, chorando tão
alto que é possível ouvi-las mesmo com uma chaleira apitando? Será que pensou,
enquanto escancarava as portas para a música chegar ao gramado dos fundos,
que um dia um cavalo alado preto voaria em círculos em cima do telhado, sem
nunca se cansar, sempre à caça?
Caio na neve. O ataque de tosse me acerta em cheio.
A porta do celeiro está entreaberta. Da fresta, sai vapor. Abro um pouco
para investigar, com cuidado, no caso de o Thomas estar lá dentro. Mas só vejo
as ovelhas. Estão tão juntas e são tantas que seu calor deixa o celeiro tão quente
quanto uma torrada que acabou de sair do forno. Pulo a porta da baia e fico
encolhida no meio delas, da palha, da lã e dos corpos que respiram e, finalmente,
me sinto aquecida.
14
Quando acordo, estou na minha cama.
Meus lençóis estão empapados de suor. Não sei quem me encontrou e me
trouxe de volta para o hospital. Meus sonhos têm cheiro de café, e a única pessoa
que toma café por aqui é o Thomas, se bem que o Benny toma um golinho de
vez em quando e finge que gosta. Mas não consigo imaginar um homem de um
braço só me carregando, por mais que tenha visto o Thomas segurar aquela
ovelha e atirá-la no pasto por cima da cerca. Enrolo um cobertor por cima do
vestido, desço a escada e fico perto da porta do quarto da Anna. Ela está
entreaberta. A irmã Mary Grace está lá dentro, limpando o caldo que derramou
no chão.
Consigo ver os lençóis subindo e descendo com a respiração da Anna. Ela
está dormindo. Viva. Ouço vozes no andar debaixo. A irmã Constance deve ter
voltado com os remédios.
Dormi durante o jantar, mas as irmãs guardaram um pouco de presunto
para mim, debaixo de um guardanapo. Sento sozinha na cozinha e como. Vejo
algo se mexer no reflexo da chaleira de cobre. Os ângulos da cozinha são tortos
dos lados, fazendo o teto parecer minúsculo, e o fogo da lareira começa a rugir
atrás de mim, quase se transformando em um incêndio. Meu nariz é do tamanho
de uma ameixa madura, meus olhos são pequenos demais. Um cavalo alado
cinzento está cheirando a mesa atrás de mim, deve estar com fome, procurando
torradas e geleia. Funga na minha cadeira refletida, depois nos meus ombros
refletidos. Tremo, apesar de meus ombros reais não terem sentido nada. Um
galho estala no fogo, e o cavalo se vira na sua direção. Por curiosidade ou medo
das chamas, não sei bem. Abre as asas tão de repente que me abaixo.
– Cuidado – sussurro. – O fogo pode queimar você.
Será que minha voz chega ao mundo atrás do espelho? O cavalo cinza vira
a cabeça para a esquerda, depois para a direita, então fecha as asas e anda pela
entrada do térreo.
Afasto a chaleira. Não quero ver meu reflexo. O cabelo que cresceu sem
corte. Levanto a mão para desembaraçar os tufos e sinto um gosto de cinzas que
não tem nada a ver com o fogo da cozinha. Mesmo sem as distorções que a
chaleira produz, o Benny tem razão. Minha aparência é mesmo estranha.
Posso lhe contar um segredo?
Este não é o primeiro hospital onde fico. Nem sempre tive águas paradas.
Elas apareceram depois, depois do incêndio, depois dos curativos. Depois que os
cavalos deram coices na porteira das baias e não havia ninguém para soltá-los.
A porta da cozinha bate, e as três ratinhas entram, com as bochechas
vermelhas. Recrutaram um quarto ratinho para o seu pelotão: o Arthur, um
menino loiro que nunca fala nada e chupa o dedão. Elas o vestiram como um
príncipe pirata e lhe deram uma concha brilhante da cozinha para usar de
espada, mas o menino só fica olhando para o seu próprio reflexo nela. Kitty, a
líder dos ratinhos, segura duas penas pretas e compridas. Parecem penas de
corvo, mas têm um brilho, como se fossem enceradas, e são do tamanho do seu
braço.
– Olha o que eu achei no pátio!
Ela segura uma pena em cada mão, e bate os braços como se fosse um
pássaro gigante, grasnando para o teto. As meninas dão risada e correm pelo
corredor.
15
Quando eu tinha 5 anos, a Marjorie, minha irmã, encontrou um pássaro ferido na
rua. O gato dos nossos vizinhos o tinha pegado e machucado, antes de a Marjorie
espantá-lo. O pássaro não se mexia, apesar de seu coração fazer piu-piu-piu sob
nossos dedos. Seu corpo era tão macio que parecia que poderíamos quebrar
alguma coisa só de tocá-lo. A Marjorie fez uma gaiola para ele com uma peneira
velha e encheu de folhas. Esburacamos o jardim da mamãe atrás de minhocas,
as cortamos em pedaços e as demos para o pássaro, na ponta de um galhinho.
Nosso vizinho disse que ele jamais sobreviveria, mas a Marjorie foi muito
paciente. Todos os dias, procurava mais minhocas. Depois de três semanas, o
passarinho já batia as asas, tentando levantar voo na gaiola improvisada.
Levamos a gaiola para o topo do prédio vazio que fica atrás da padaria. A
Marjorie abriu a portinhola, e o pássaro foi embora voando.
Só que a Lume de Luar não é aquele passarinho. Acho que minhocas e
uma cama feita de folhas não são capazes de curá-la.
Quando pulo o muro do jardim, ela está à minha espera. Sinto minha
espinha formigar quando meus olhos cruzam com os dela. Ainda não consigo
acreditar que a égua é real, mas está bem ali, parada na minha frente. A pele
cortada da sua asa direita está em carne viva, e o denteado no osso parece
doloroso. A égua tenta abrir as asas. A esquerda se estica, mas a direita, não.
– Tenho uma coisa para você – digo, baixinho.
A égua levanta as orelhas quando coloco a mão no bolso, mas seus olhos
ainda estão desconfiados. Está acostumada com o vento e com o sol, mas não
com garotinhas.
– O Lorde dos Cavalos me escreveu, contando que você gosta disto.
Mostro a maçã vermelha e lustrosa que o Thomas me deu. A égua mexe
as orelhas para a frente, curiosa. Levanta a pata direita, depois torna a abaixá-la.
Dou um passo adiante devagar, segurando a maçã na minha mão espalmada.
– Está tudo bem, não vou machucar você. Só quero lhe dar esta maçã.
Quando chego perto do chafariz, meu casaco volumoso derruba o galho
de salgueiro, e a égua corcoveia com o movimento repentino. Ela mostra o
branco dos olhos.
– Calma, Lume de Luar.
Mas o próximo passo que dou é demais para ela. Lume de Luar bufa e dá
patadas na neve com seus cascos enlameados. Sua crina espessa voa quando ela
sacode a cabeça, me avisando para recuar.
Paro.
Devagar, me abaixo até o chão e rolo a maçã para o seu canto do jardim.
A égua para de se debater. Não tira os olhos de mim, mas baixa a cabeça.
Cheirando, bufando. Seus lábios curiosos vão tateando até sentirem o formato da
maçã.
Ela levanta a cabeça de sopetão e mastiga a maçã, satisfeita.
Recuo devagar, até chegar ao relógio de sol, onde um novo bilhete me
espera, debaixo do ponteiro dourado, amarrado com uma fita. Desenrolo o papel
enquanto a Lume de Luar termina de comer a maçã.

Cara Emmaline May,

Preciso pedir sua ajuda mais uma vez. Apesar


de eu achar que isso fosse impossível, o Corcel
Negro atravessou para o seu mundo e, neste
exato momento, está atrás da Lume de Luar.

O Corcel Negro é forte e implacável, mas tem


uma fraqueza, que é a seguinte: cor. As cores
queimam seus olhos. A única luz que ele
consegue suportar é a do luar, que não tem
cores. Quanto mais clara é a lua, mais claro ele
enxerga. Hoje à noite, teremos lua nova, o que
significa que o céu estará escuro, e que o
Corcel terá de caçar usando apenas o faro.
Mas, à medida que a lua for ficando mais clara
a cada noite que passa, você precisa rodear a
Lume de Luar com objetos coloridos, grandes o
bastante para serem vistos à distância, um de
cada cor do arco-íris, para criar uma escudo
espectral capaz de escondê--la quando a lua
cheia brilhar.

Imploro para que aceite esta missão da mais


extrema importância.

Boas cavalgadas,

Lorde dos Cavalos

Fico observando o bilhete de olhos arregalados.


Eu tenho que proteger a Lume de Luar?
Eu tenho que cumprir uma missão da mais extrema importância,
completamente sozinha? Não, não, não sou capaz. Alimentá-la e cuidar dela é
uma coisa, mas isso é outra, completamente diferente. Meu coração começa a
afundar de medo daquele rá-tá-tá-tá. Tenho vontade de subir no muro e fugir,
fugir do bilhete.
Mas o Lorde dos Cavalos está contando comigo.
Seguro a fita contra a luz. Já que preciso encontrar objetos coloridos, será
que este pode ser o primeiro? É largo e comprido, com certeza comprido o
suficiente para ser visto à distância. E é vermelho, mas, olhando de perto, é mais
do que isso. Às vezes, dependendo da luz, é cor de cereja e, outras, tem o mesmo
tom de vermelho dos emblemas pintados nos caminhões do Exército que passam
por aqui.
A Lume de Luar ainda está mastigando a maçã, mas seus olhos estão fixos
na fita. Olho para a hera que cobre o muro do jardim. Os galhos da trepadeira se
enroscam uns nos outros, formando nichos e bolsinhos. Parece uma estante que
uma fada teria na sua casa. Encontro um galho bem firme e amarro nele a fita
vermelha, que fica tremulando ao vento. Contra a parede verde-escuro e sem
graça, a cor parece viva e brilhante. Dou um passo para trás, depois mais um, e a
fita ainda brilha bastante.
Sim, acho eu. Sim, talvez consiga fazer isso.
Mas uma nuvem encobre o sol, e levanto a cabeça, espremendo os olhos.
Só uma fita vermelha não será o bastante. Preciso encontrar algo azul,
algo verde, algo amarelo e de todas as outras cores do arco-íris, em tons vivos o
suficiente para cegar o Corcel Negro quando ele vier atrás da Lume de Luar. E
ele virá. Tenho certeza. Agora mesmo posso sentir sua presença, voando em
círculos, ocultado pelas nuvens. Seus cascos negros arrancam chumaços do
branco acinzentado ao voar, trazendo consigo os ventos, provocando trovões por
onde passa.
Mas onde posso encontrar coisas azuis, verdes e amarelas? As únicas
cores que existem no hospital são os pequenos pedaços de papel grudados na
porta dos nossos quartos, que vão se dissolver na chuva. Agora não é época de
flores. Nada de arco-íris colorindo o céu depois das chuvas de abril.
A última vez que vi um arco-íris, estava voltando para casa com a
Marjorie, depois da aula, correndo de porta em porta para escapar das chuvas de
primavera. Minha irmã transformou a volta em brincadeira. A água era gás
venenoso, cada gota tirava um dia das nossas vidas. Por isso precisávamos correr
sem parar, ou nossos dias se esgotariam. A chuva começou a cair mais forte, e
ela me puxou para baixo da marquise de um teatro.
“Se não nos escondermos, será o nosso fim”, disse. Então me abraçou e
apontou para o alto da igreja, onde um duplo arco-íris se estendia pelo
campanário. “Olha!”
Em Briar Hill, só há neve branca e pedras cinzentas. Os marrons e verdes
sem graça dos uniformes dos soldados e o preto do hábito das freiras. Não é para
menos que atraímos o Corcel Negro. Nosso mundo não tem cor, como o auge do
inverno.
Fecho os olhos e fico pensando naquele dia, quando choveu. No casaco de
chuva amarelo vivo da Marjorie. Nas minhas meias azuis. O cor-de-rosa
saudável das nossas bochechas, em vez de o tom de queimadura febril do rosto
da Anna. Tiro as luvas e pressiono as mãos geladas contra o rosto. Tenho tanta
saudade da Marjorie que me dá vontade de chorar. Não sei o que fazer agora que
ela não está aqui cantando para embalar meu sono, transformando tempestades
em brincadeira, me dando fatias de torta de maçã escondido. Faz tanto tempo
que vi todas essas cores juntas que tenho medo de tê-las esquecido. O único azul
que consigo imaginar é o aguado tom do céu. O único amarelo é o do remédio
turvo que o dr. Turner nos dá. Mas deve haver outros tons por aí. Deve haver
cores mais vivas.
Sinto algo cutucar minhas costas.
Olho para trás e fico boquiaberta. A Lume de Luar está bem atrás de
mim. Seu focinho está prestes a tocar meu ombro de novo, sinto seu hálito quente
de cavalo no meu pescoço, suas orelhas estão viradas para a frente. Não ouso me
mexer, com medo de assustá-la. Ela abaixa a cabeça, tateia meu casaco com
seus lábios de cavalo até chegar ao bolso. Quando descobre que o giz é a única
coisa dentro dele, bufa.
– Vou trazer outra maçã logo, logo – digo, quando consigo encontrar as
palavras. – E vou recolher cores para proteger você. Não vou deixar o Corcel
Negro pegá-la. Prometo.
Devagar, bem devagar, levanto minha mão sem luvas.
Levo-a até seu focinho. Um único toque. Sinto sua pele aveludada, seu
calor suave. A Lume de Luar é tão poderosa… Então ela sacode a cabeça,
desfila até o seu canto do jardim e fica me observando.
Dou um sorriso.
É um começo.
Viro o bilhete e escrevo no verso:

Caro Lorde dos Cavalos,

Achei que tinha esquecido de todas cores do


arco-íris, mas sei exatamente onde reencontrá-
las. Pode contar comigo.

Sinceramente,
Emmaline May
16
A Anna ganhou os lápis de cor de presente do dr. Turner.
Ela está em Briar Hill há mais tempo do que todos nós. Veio para cá há
dois anos, nos primeiros trens que passaram pela zona rural. Trouxe duas malas
surradas consigo. Uma, que sua mãe preparou, estava cheia de casacos e meias.
A outra, estava cheia de livros de ciências naturais – e essa foi a própria Anna
quem arrumou. A irmã Constance disse que ela gostava de perambular pelos
jardins, como eu, muito antes de eles serem consumidos pelas heras. Sentava-se
em um banco e lia, lia, lia sem parar, no meio das flores da primavera. Mas aí as
águas paradas pioraram, quando as chuvas de verão vieram, e, lá por agosto, a
Anna não conseguiu mais sair da cama. Não podia mais ver as flores. O dr.
Turner lhe trouxe os lápis para que ela pudesse desenhá-las. Acho que ninguém
contou para a Anna que todas as flores já morreram faz tempo.
Bato na porta.
– Entre.
A Anna está com a voz cansada.
Abro a porta, e ela sorri e bate na cama, mas não subo. A Anna segura um
lenço, muito bem dobrado, quase escondido na palma da sua mão, e fico
imaginando se lá dentro tem sangue. O espelho em cima da mesinha de
cabeceira está virado para longe do seu rosto. No reflexo, mal consigo enxergar
os cavalos alados atrás da janela refetida, pastando na grama seca, com as asas
bem fechadas para se proteger do frio.
– Posso ver seus lápis de cor? – pergunto.
Em um primeiro momento, pensei em usar os lápis como escudo
espectral. Mas jamais poderia tirar os amados lápis da Anna, nem para salvar a
Lume de Luar. Além disso, o Lorde dos Cavalos disse que os objetos precisavam
ser grandes o bastante para serem vistos a distância. Mas eles ainda podem me
ajudar a lembrar das cores do arco-íris. Podem ser meus guias.
A Anna se inclina para abrir a gaveta secreta da escrivaninha, e o
movimento agita as águas paradas. As águas turvas sobem pelos seus pulmões, e
ela abafa uma tossida. Tira a caixa de lápis de cor e algumas folhas de papel,
mas sacudo a cabeça.
– Não preciso de papel.
Ela me olha com um ar de curiosidade, mas não faz nenhuma pergunta.
Põe a caixa sobre a cama. A Anna é muito organizada, e os oito lápis estão
arrumados na posição exata que o fabricante embalou, um espectro com as
cores do arco-íris.

845-VERMELHO CARMIM
848-ROSA ROUGE
849-LARANJA TANGERINA
863-AMARELO-CANÁRIO
865-VERDE-ESMERALDA
867-TURQUESA MARÍTIMO
868-AZUL LAZÚLI
876-ROXO HELIOTRÓPIO

Aperto o dedo contra a ponta de cada um dos lápis, que a Anna apontou com
tanto cuidado.
– O que foi, Emmaline? Você parece triste.
– Preciso dos seus lápis emprestados.
É a vez de a Anna parecer desapontada.
– Já conversamos sobre isso. Você pode levar papel e giz, e pode usar
meus lápis aqui no quarto sempre que quiser, mas eles me são muito queridos.
Desculpe, você não pode levá-los.
O bilhete do Lorde dos Cavalos está dentro do meu bolso. Passo os dedos
no papel várias e várias vezes. Olho para o espelho na mesinha de cabeceira. Os
cavalos alados estão agitados. O vento está ficando mais forte do outro lado do
espelho, soprando suas crinas e longas caudas embaraçadas nos seus olhos. Um
cavalo marrom-escuro com o rosto careca, que está na frente, levanta a cabeça
em direção ao céu, como se estivesse sentindo algum perigo se aproximar. Se eu
contar para a Anna da situação desesperadora da Lume de Luar, ela pode tentar
ir lá fora de novo. E tenho medo dos seus braços, que estão tão finos… Medo do
que enfrentar a neve mais uma vez possa lhe causar.
– Por que você não pode desenhar com eles aqui, como sempre faz? –
pergunta, apontando para o leque de desenhos que está em cima da sua cama.
Tiro a mão do bolso.
– É segredo.
– Tem a ver com a égua alada do jardim do relógio de sol?
Fico quieta por um instante.
– O nome dela é Lume de Luar – respondo, enfim.
A Anna vira os olhos, só por um segundo, para o espelho. Dentro dele, os
cavalos estão começando a correr. Cada vez mais rápido, apostando corrida com
o vento, pelo gramado da frente do hospital. Estão quase na cerca de pedra que
separa o terreno do hospital da fazenda do senhor Mason. No último instante, o
cavalo da frente abre as asas, que têm as pontas brancas, e levanta voo. Será que
a Anna consegue ver os cavalos? Será que ela os vê voando?
Mas não. Só está olhando para as flores secas de lavanda ao lado do
espelho. A irmã Constance diz que o cheiro é bom para as águas paradas, mas
acho que essa é a flor preferida da Anna, porque ela sempre a desenha.
A Anna passa os dedos pela caixa de lápis de cor.
– Bom, parece ser muito importante, então você pode levar um por vez –
diz. – Qual você quer levar primeiro?
Aponto para o 863-AMARELO-CANÁRIO. A cor da capa de chuva da
Marjorie. A Anna o tira da caixa com dedos que são tão frágeis e brancos que
poderiam ser de porcelana.
Examino o lápis. Penso em todas as coisas amarelas que existem no
hospital. Manteiga. Milho. Pêssegos em calda. Meu estômago ronca. Está quase
na hora do jantar. O aroma de caldo de carne está subindo e, nessa hora, a irmã
Mary Grace entra, trazendo uma bandeja com cozido de alho-poró e um copo
d’água para a Anna.
– Emmaline – diz a irmã Mary Grace. – Encontre os pequeninos e diga
que o jantar está quase pronto.
Guardo o lápis amarelo no bolso, junto com o bilhete enrolado do Lorde
dos Cavalos. Não posso colocar manteiga, milho ou pêssegos em calda no jardim
do relógio de sol. A Lume de Luar simplesmente comeria tudo.
Vou para a biblioteca, depois para o salão de baile, transformado em
capela com uma porção de bancos, e, finalmente, encontro as três ratinhas e o
Arthur lá fora, sentados na escada da cozinha.
– Está na hora da janta – falo. As três dão um pulo quando ouvem minha
voz e aí começam a rir e a falar na sua língua de rato, que o pobre e mudo
Arthur não deve compreender, porque começa a chupar o dedão. Ele fica me
encarando de olhos arregalados, depois se vira para a tina de metal de lavar
roupa. A Beth o cutuca, e todos levantam e passam por mim, em direção à
cozinha. Seguro a Susan, a menor das ratinhas.
– Em que lugar exatamente você encontrou aquelas penas pretas
compridas outro dia? – pergunto.
– Bem ali – responde, toda orgulhosa, apontando para o canto do pátio
onde a irmã Mary Grace lava nossa roupa. – Caíram do teto, acho. Quando a
neve derreter, aposto que vamos achar centenas delas. A Kitty disse que devem
ser dos corvos gigantes que vieram voando lá dos Estados Unidos.
Solto a Susan, e ela se junta aos demais, que estão esperando.
Olho para o telhado. Acho que não existem corvos tão grandes, nem
mesmo nos Estados Unidos.
E aí dou um passo em direção ao fim do pátio, onde as tinas de lavar
roupa ficam empilhadas, e nem um passo a mais, caso uma das irmãs esteja
olhando pela janela.
Piso em algo molhado e fedido.
Eca.
Cocô de ovelha. Passo a bota nos tijolos para limpar a gosma, mas fico
quieta em seguida. Alguma coisa está errada. Tem ossinhos de animais
minúsculos nos arbustos. Asas de pássaro e dentes de ratos. Coisas que não
deveriam ser encontradas em esterco, de jeito nenhum. Talvez seja cocô de
raposa. Ou, talvez, de um cavalo malvado que caça outros animais, um cavalo
que deixa marcas de casco raivosas no telhado e solta longas penas pretas. Sinto
um leve odor de alga podre.
Levanto de sopetão, de repente enjoada.
Corro para dentro do hospital e bato a porta da cozinha, com o coração
sobressaltado. Mesmo através das camadas de pedra, madeira e tijolos de
ardósia, consigo sentir a presença do Corcel Negro, voando em círculos acima da
minha cabeça. A Lume de Luar pode até estar a salvo por enquanto. Só que, a
cada noite que passa, a lua fica mais clara. Não vai demorar muito para o Corcel
Negro conseguir enxergá-la, e ela não vai ser capaz de fugir voando.
Preciso encontrar algo amarelo. Depressa.
17
O dr. Turner põe o estetoscópio prateado nas minhas costas.
Posso ver seu rosto no espelho. Ele está com a testa franzida. Suas
sobrancelhas de lagarta estão bem juntas. A boca, que tem um bigode, está
franzida também. Ele enrola o estetoscópio no pescoço e solta um suspiro.
Quando vira para mim, entretanto, a careta já desapareceu. Dissolve duas
aspirinas grandes em um copo d’água e me entrega.
– Gargareje com isso, conte até vinte e depois cuspa.
Conto devagar em pensamento, depois cuspo dentro de uma caneca.
Quando olho para cima, ele está segurando um papel amarelo. Não me olha nos
olhos. Limpa a garganta.
– E prenda isto na sua porta.
Olho para o papel.
Amarelo?
As irmãs e o dr. Turner acham que não sabemos o que os papéis coloridos
significam, mas é claro que sabemos. Amarelo significa doses extras de óleo de
fígado de bacalhau. Amarelo significa sentir o sol somente através da janela.
Amarelo significa estar a um passo do vermelho.
– O senhor está enganado – digo, com a voz firme. – Estou melhorando.
Não estou como as crianças doentes de verdade. Só tusso de vez em quando.
Gostaria de receber o papel azul, por favor.
O dr. Turner não me dá o papel azul. E não fala nada. Suas sobrancelhas
ficam ainda mais peludas, e ele se vira de costas para fazer anotações em seu
caderno.
Levanto a voz, meio trêmula:
– Posso pelo menos ganhar um chocolate?
Seu lápis fica parado no ar, e o doutor respira fundo, depois volta a
escrever. Então solta um longo suspiro.
– Acabaram-se os chocolates.
Enfio o papel no bolso, atrás da maçã que peguei para dar à Lume de
Luar mais tarde. Enquanto o dr. Turner escreve, fico observando os cavalos
alados na sala refletida, mas estou abismada demais para dar risada quando eles
batem no canto da despensa, cheiram os frascos de remédios refletidos, fuçam
com o focinho na maleta de médico refletida do dr. Turner. Um deles derruba
sem querer uma caixa de abaixadores de língua, que faz barulho ao cair no chão.
Os cavalos levantam de sopetão, assustados, e saem correndo pela porta.
Viro de costas para eles. Do nosso lado do espelho, a verdadeira caixa de
abaixadores de língua ainda está na prateleira.
Então eu vejo: o rótulo do frasco grande de aspirina do dr. Turner. É
amarelo – 863-AMARELO-CANÁRIO – a cor exata do lápis da Anna que tenho
no bolso. O rótulo é antigo e está soltando nas bordas, mas o que importa é que é
de uma cor viva, muito viva, tão viva que vai ferir os olhos do Corcel Negro.
O dr. Turner resmunga e vira para o armário para escrever alguma coisa
em seu bloco.
No espelho, um dos cavalos alados pôs a cabeça para fora da porta de
novo e está me observando.
Agora.
Pego o frasco e tento arrancar o rótulo amarelo, mas está grudado. Terei
que levar o frasco todo. Só tem mais dois comprimidos dentro dele. Dois
comprimidos não são suficientes para salvar a vida da Anna. Dois comprimidos
não são suficientes para curar a tosse da Kitty. Mas este rótulo amarelo pode
ajudar a Lume de Luar. Meu coração bate forte, bem forte, e algo agita as águas
paradas. Escondo o frasco no bolso bem na hora em que o dr. Turner se vira, e as
águas paradas inundam meus pulmões, fazendo meu corpo inteiro tremer.
Ele me alcança um lenço limpo.
– Você precisa lembrar de cobrir a boca ao tossir. É muito importante.
Como é que eu posso lembrar de alguma coisa quando tenho um papel
amarelo queimando no meu bolso? Saio da cama de exames. Meus pulmões só
começam a se acalmar quando abro a porta dos fundos do pátio e respiro ar
fresco.
O som de panelas batendo sai pela janela aberta da cozinha. Não tenho
muito tempo até a irmã Mary Grace vir me procurar para ajudar a descascar
batatas. Ela vai olhar para o papel amarelo e dizer que não posso mais sair do
hospital, nem mesmo para ir até o pátio.
Vou correndo até o muro do jardim e pulo.
Quando a primeira neve caiu e o mundo ficou imaculado e branco, a
Lume de Luar se camuflou nele como se fosse feita de neve. Mas agora a neve
não está mais imaculada. Misturou-se com terra e virou lama. A Lume de Luar
está com as pernas e a parte debaixo da barriga cobertas de neve suja. Quando
sacode a cabeça, sua crina cai em pedaços espessos que precisam muito ser
penteados. Gravetos ressequidos pelo frio estão pendurados na sua cauda.
Mas meu coração ainda se aquece quando a vejo.
– Você está um desleixo – digo. Então me dou conta de que meu cabelo
está igualmente embaraçado, minhas botas estão sujas de lama. – Bom, estamos
um desleixo.
A Lume de Luar balança a cabeça, como se concordasse comigo. Vem
direto até mim e fica cheirando meu bolso até eu tirar a maçã de dentro dele. E
começa a mastigá-la antes mesmo de eu espalmar a mão para oferecê-la.
Hesitante, sem ter certeza se já conquistei sua confiança, ponho a mão na
sua crina.
– Calma. Só vou tirar estes galhos.
Ela para de morder, olha para as minhas mãos, mas não corcoveia nem
se afasta. Estou perto. Tão perto. E aí ponho a mão no seu pescoço. Ah, como é
viva ao toque. Seu pelo branco está sujo, cheio de caroços gelados de lama, mas
é quente por baixo. Quase consigo sentir seu coração bater. Será que ela também
consegue sentir o meu?
– Que bom. Viu? É agradável.
Devagar, acaricio seu pescoço, da orelha até as costas, da orelha até as
costas. Pedaços de lama seca e poeira caem no chão, me fazendo tossir. A Lume
de Luar parece ficar mais calma a cada toque. Tiro todos os galhos que posso,
mas a sujeira está entranhada. Vou ter que perguntar ao Thomas se ele tem um
pente.
Paro de fazer carinho na Lume de Luar, tiro o frasco de remédio do bolso
e procuro um lugar na parede de heras perto da fita vermelha até encontrar um
galho de trepadeira do tamanho certo, no qual enfio o frasco. O rótulo amarelo
parece ainda mais amarelo, como as primeiras flores de açafrão-amarelo que
brotam depois de um longo inverno. Minha mãe repreendia a Marjorie quando
ela colhia essas flores, mas minha irmã as colhia mesmo assim. Ela as guardava
entre as páginas do livro de receitas mais grosso da mamãe, até ficarem tão finas
quanto papel de seda, depois as emoldurava e colocava em cima da sua cama,
para ser sempre primavera.
Dentro do meu bolso, o papel amarelo do dr. Turner farfalha. A Lume de
Luar fica me observando enquanto o tiro do bolso e o rasgo devagar em
pedacinhos bem pequenos, depois os enterro na neve.
Uma nuvem passa, projetando sombras no jardim, e olhamos para cima.
Estamos pensando a mesma coisa: nunca se sabe quando o Corcel Negro está à
espreita. Estará atrás dos galhos retorcidos dos velhos carvalhos, mortos pelo frio
do inverno, que ficam na frente do hospital? Ou atrás das nuvens mais baixas, só
esperando por um raio de luar para poder recomeçar sua caçada?
– Você acha que o Corcel Negro consegue enxergar este frasco lá de
cima?
A Lume de Luar mexe a cabeça de uma maneira que pode ser um gesto
de concordância, de discordância ou de nenhum dos dois, depois vai para o canto
do jardim onde está batendo mais sol. A luz corta seu corpo em dois: metade
iluminada, metade na sombra.
Ela bufa.
Olho de novo para o céu. As nuvens mudaram de lugar, e o sol brilha bem
em cima do frasco. Faz o vidro resplandecer e o rótulo, cintilar.
– Sim – digo. – Sim, na lua cheia, acho que vai queimar os olhos dele na
hora.
18
Toc, toc.
– Entre – responde o Thomas, do outro lado da porta do celeiro.
Olho para dentro. Está limpando o estrume do cercado, que coloca em um
barril. O Brejo está encolhido no chão sujo do celeiro, perto da pilha de caixões
de madeira. Sua expressão muda, e ele começa a ofegar, sorrindo como um
cachorro.
Entro e olho para todos os lados. É o reino do Thomas. Um lugar de
homens, animais e ferramentas pontiagudas. Mas tem um cheiro bom, como o
do feno do meu colchão de palha, e como aveia doce. Tem uma máscara de
oxigênio pendurada na parte de trás de sua mesa de trabalho, meio esquecida.
Fico brincando com a tira de borracha.
– Estou procurando um pente para a Lume de Luar.
O Thomas para o que está fazendo, passa a mão sem luvas na testa. Será
que os americanos tricotam luvas especiais para rapazes que só têm uma mão?
– Você sabe pentear cavalos? – pergunta, com um tom de curiosidade.
Tento não olhar muito para a sua manga de camisa vazia, presa com um
alfinete de segurança. Agacho para fazer carinho na cabeça do Brejo. Ele se vira
de barriga para cima e estica uma pata no ar, para eu fazer carinho em sua
barriga com a ponta da bota. O movimento faz seu corpo inteiro se mexer para
cima e para baixo, para cima e para baixo.
– Porque posso te ensinar, se você não souber – continua o Thomas. –
Segurar os cascos pode ser difícil.
O Thomas procura no seu balde de escovas e pentes velhos até encontrar
um limpador de cascos, que me entrega.
– E aí precisa pentear a crina – diz, estendendo um pente largo com dentes
de metal. – Você precisa começar pelas pontas e ir subindo – explica, fazendo o
gesto com o pente no ar. – A mesma coisa com a cauda. E, quanto às asas, deixe-
as para lá, acho eu, se ela está machucada. É melhor deixar essas coisas sararem
no seu próprio tempo.
Sua voz se enfraquece ao som de passos vindos do lado de fora.
Toc, toc.
Na mesma hora, quase como se lamentássemos, eu e o Thomas trocamos
um olhar. Ele solta o pente e abre a porta. É a irmã Mary Grace. Que leva um
leve susto quando o Thomas abre a porta por completo.
– Irmã?
– Thomas. Tem uns homens querendo falar com você. Oficiais.
Ela puxa as mangas do hábito preto de freira como se, apesar de ter
metros e metros de tecido, não fosse o suficiente para se esconder. De repente,
olha para mim e para o Brejo.
– Emmaline? O que você está… – Então solta um suspiro e diz: – Volte lá
para dentro. Rapidinho.
O Thomas assovia para o Brejo, que levanta na hora, apoiado nas patas
traseiras.
Volto com eles para dentro de casa. A irmã Mary Grace põe a mão sobre
o meu ombro, acariciando os tufos do meu cabelo curto. A irmã Constance olha
pelos painéis de vidro da porta, fazendo careta, e a porta se abre para nós. Há
dois homens com ela. São jovens, com uniformes impecáveis e cabelo preto por
baixo do quepe.
A irmã Constance me olha feio.
– Você sabe que não pode sair agora que seu papel é amarelo, Emmaline.
Menos ainda ir até o celeiro, que é longe.
– Desculpe, irmã. Não vou mais sair escondida. Prometo.
– Assim espero – diz, com a voz dura.
Aí fecha a porta na cara do Brejo antes que o cachorro consiga entrar. Ele
encosta o focinho nos painéis de vidro, embaçando-os. O Thomas começa a
falar, mas muda de ideia. Os soldados parecem jovens e afáveis, como se
fossem seus amigos, mas não sorriem.
– Senhor Thomas Whatley ?
– Sim, sou eu.
Olho para trás e vou andando pelo corredor, o mais devagar que posso.
Quando chego à biblioteca, escuto apenas cochichos. Que estranho. Entro e
encontro o Benny e o Jack, mais outras dez crianças que deveriam estar se
preparando para a aula, encostados na parede.
– O que vocês estão…
– Silêncio, pulga! – sussurra o Jack, fazendo careta. – Conseguimos ouvir
se você calar a boca.
Faço careta para ele. O seu trem a vapor de brinquedo, que apita de
verdade, está do seu lado. Sinto-me tentada a chutá-lo. Mandar aquele pedaço de
metal verde brilhante para o outro lado da sala…
Fico sem ar.
Verde.
A tinta do trem brilha na luz: 865-VERDE-ESMERALDA. Vai ser bem-
feito para o traidor do Benny se o trem sumir…
As vozes abafadas dos soldados chegam pelo corredor. A Beth, uma das
três ratinhas, vem correndo e bate no chão. Tiro os olhos do trem do Jack e me
espremo entre os corpos quentes das crianças febris, com a orelha grudada na
parede fina. Só consigo entender algumas palavras ditas pelas vozes baixas dos
soldados. Algo sobre uma batalha em algum lugar perto do Egito. Um estilhaço e
um hospital. E aí o Thomas solta um único gemido agudo.
– O que aconteceu? – sussurra a Susan, a menor das três ratinhas, que
acabou de chegar. – Estão falando da guerra?
– É óbvio que estão falando da guerra – dispara o Benny. – Se são
soldados, estão sempre falando da guerra. Estão falando do pai do Thomas. Ele
estava bem longe, lutando contra os homens do marechal de campo nazista
Erwin Rommel, na Campanha Norte-Africana. Acho que ele foi morto.
O Benny vai na ponta dos pés até a porta da biblioteca e espia o corredor.
Volta um instante depois e tira o quepe de um jeito dramático, igualzinho ao que o
soldado fez.
– Entregaram um pacote para o Thomas. Acho que são os pertences do
pai dele que estavam no hospital, papéis e outras coisas. Também mencionaram
medalhas de honra e lhe entregaram uma caixinha com o selo do próprio rei.
Disseram que o pai do Thomas foi um dos maiores heróis da Inglaterra.
– Coitado do Thomas – lamenta a Susan.
O Benny levanta o queixo e fala:
– Essas coisas acontecem. Precisamos continuar vivendo.
O Peter tosse.
A irmã Mary Grace aparece na biblioteca e diz que estão ouvindo nossos
sussurros no corredor. Todos levantamos depressa e saímos correndo dali.
Ouvimos passos subindo a escada e portas batendo de cima abaixo da parte
residencial do hospital.
Paro por um instante e olho mais uma vez para a biblioteca. O trem do
Jack sumiu. Ele deve ter levado consigo.
– O que aconteceu? – grita a Anna, lá do seu quarto, no andar de cima. –
Oi? Ninguém vai me contar?
Mas ninguém responde.
Perto da porta de entrada, os soldados ainda conversam em voz baixa com
o Thomas, que segura no braço comprido, com força, um pacote cheio de papéis
e outras coisas. A irmã Mary Grace está com uma mão sobre a boca. O Thomas
está de costas para mim. Seus ombros estão caídos. Não vejo seu rosto.
Devagar, vou subindo os degraus da escada até o meu quarto, no sótão.
Sinto lágrimas queimarem minhas bochechas. O Thomas não é nenhum monstro,
tenho certeza. E está sofrendo.
Sei que a fita vermelha e o frasco amarelo estão lá, bem enfiados nas
heras. Logo, espero, vou poder adicionar o trenzinho a vapor verde-esmeralda
com apito de verdade , que pertence a um menino arrogante, ao escudo
espectral.
Olho para cima, só por precaução. O céu está límpido. Nada de Corcéis
Negros voando em círculos, mas sei que ele está por perto. Esperando.
Farejando. Caçando.
Lá embaixo, nos degraus da entrada, o Brejo senta no frio, com o rosto
colado no vidro, à espera do Thomas.
19
A velha princesa gostava de colecionar coisas. Sei disso porque meu quarto fica
no sótão. E, com exceção daquela vez que o Jack e o Benny vieram fumar
escondidos, sou a única criança que sobe aqui. A escada é estreita e íngreme.
Não tem luz elétrica, só velas e lanternas, e apenas uma janela de cada lado. Os
depósitos são empoeirados e cheios de caixotes cobertos de teias de aranha, com
etiquetas em línguas estrangeiras. A maioria está vazia. Quando a princesa foi
embora, levou quase tudo que tinha de valor lá embaixo, com exceção dos pratos
de porcelana e de algumas outras coisas que poderíamos precisar no hospital.
Mas acho que, por causa da velhice, acabou esquecendo uma ou duas caixas aqui
em cima. Acho que todo mundo esqueceu.
Está na hora de apagar as luzes, e prometi para a irmã Constance que não
sairia mais escondida, mas no sótão posso me mexer sem que ninguém me veja
ou ouça. Acendo uma vela e coloco sobre um prato, depois coloco o prato ao
lado da caixa maior, um velho baú com fivelas de couro já podres, com os
cantos manchados pelo sal do mar.
Lá fora, além da janela, já aparece uma lasquinha da lua, que vai crescer
mais a cada noite. Penso na caixa de lápis de cor da Anna. Preciso encontrar
tantas cores e só achei duas até agora.
A tampa do baú é mais pesada do que eu imaginava, e custo a levantá-la e
baixá-la sem que faça um barulho alto. Está cheiade palha tão velha que virou
pó. Arranha minha garganta. Abafo a tosse enquando remexo lá dentro e
encontro um pacote embrulhado em jornal. Desfaço o embrulho e acho uma
pequena escultura de sapo. É linda, mas feita de pedra cinza, e a última coisa que
preciso é de mais cinza, então a coloco de volta no baú. Desempacoto outro
objeto: uma caixa dourada com um besouro em cima e pequenos desenhos e
símbolos pintados dos lados. Não sei se dourado conta como cor, já que não está
listado como cor do arco-íris pelo fabricante de lápis. De qualquer modo, não
gosto do besouro, e a caixa volta para o baú. Depois puxo um saco de veludo
cheio de coisinhas que fazem barulho e as coloco na palma da minha mão. São
pedras soltas e pequenos berloques para fazer um colar: uma mulher com asas e
uma criatura com corpo de homem e cabeça de cachorro. E então… Um longo
fio de contas verde-azuladas que brilham à luz da vela e, por um instante fugaz,
me sinto uma verdadeira exploradora.
867-TURQUESA MARÍTIMO.
É a cor exata do lápis da Anna! Guardo as contas de turquesa com
cuidado no meu bolso e fico de pé, batendo o pó da minha camisola. Ao lado do
pesado baú, há caixas menores, de uma chapelaria. Algumas são redondas,
outras compridas e chatas, com LOCK & CO e EDE & RAVENSCROFT escrito
do lado. Dentro da primeira, encontro um chapéu preto antigo com véu. A
segunda e a terceira só têm metros e mais metros de papel de seda. Quando abro
a última, meus olhos se acendem. Está cheia de um tecido de cetim macio. 848-
ROSA ROUGE! Sorrio de felicidade por tanta sorte e rasgo o papel de seda
amassado para tirar o tecido de dentro da caixa. Só que… Não é apenas tecido. É
uma peça de roupa, com renda na bainha e, quando a levanto contra a luz, meus
olhos se arregalam.
É uma camisola.
Não uma camisola qualquer. Uma camisola daquelas. Uma camisola de
mulher.
Será que pertencia à princesa? Não consigo imaginar uma dama fina e
distinta usando seda rosa e renda. Dou uma risadinha ao pensar nisso, depois
cubro a boca.
Eu deveria deixá-la na caixa. Não posso ficar pendurando roupas íntimas
de mulher no muro do jardim. E se o Thomas for espiar? E se o Lorde dos
Cavalos vê-la quando for entregar seus bilhetes?
Mas rosa não é uma cor fácil de encontrar. Não existe rouge em pó aqui.
Nem caixas de chocolate em formato de coração. Dobro a camisola e pego o fio
de contas. Agora tenho quatro cores, preciso de mais quatro. E aí minhas
bochechas ficam quentes. Penso naquela velha princesa, dançando pela casa de
camisola cor-de-rosa. Dou risada bem alto, depois levo a mão de novo à boca,
abafando a tosse.
20
– Ah, pobre Thomas. Você devia ter me contado assim que soube.
A Anna está brava comigo. Devolvo seu lápis amarelo, na esperança de
que isso a faça se sentir melhor. Ela solta um suspiro, com os olhos vermelhos,
guarda a caixa de lápis de cor no seu devido lugar e deita na cama ao lado do
livro Flora e fauna, que está aberto.
Pego a caixa e passo os dedos pelas pontas afiadas dos lápis. 865-VERDE-
ESMERALDA. Além do trem do Jack, o que mais pode ser dessa cor? Espinhos
de pinheiro vão se tornar marrons. E tem o sofá desbotado da biblioteca, mas
precisaria de quatro homens adultos para levantá-lo.
Resta apenas o trem.
– O pai do Thomas era muito famoso? – pergunto.
– Sim, ele era muito condecorado. Recebeu até a Cruz Vitória, a mais alta
condecoração que um militar pode receber. Na época da Grande Guerra, ele
tinha a idade do Thomas e era soldado da Cavalaria, e, na Batalha de Cambrai,
dizem que cavalgava tão rápido que conseguia alertar todos os homens da
trincheira antes de o gás atingi-los. Isso foi antes de tudo se tornar mecanizado.
Foi nessa guerra que o promoveram a sargento e o designaram para o Esquadrão
Aéreo Especial. Há reportagens no jornal sobre ele e tudo, sabia? O Thomas tem
um livro de recortes. Sua tia, que mora no País de Gales, começou a lhe mandar
as reportagens depois que a mãe dele morreu. – A Anna suspira de novo e olha
para as próprias mãos. Então completa: – O pai do Thomas não ligava muito para
ele.
– Por quê?
A Anna fica com as bochechas vermelhas.
– Ele não podia ser soldado, por causa do braço.
– E o que ele vai fazer agora?
– A mesma coisa que todos nós. Ficar aqui. Cuidar das ovelhas. Comer
cebolas podres e esperar.
Coloco o lápis verde de volta na caixa.
– Você acha que o Thomas consegue limpar o casco de um cavalo só com
uma mão?
A Anna levanta a sobrancelha.
– Por que a pergunta?
Encolho os ombros.
Ela olha para o teto, melancólica, e pressiona a base da garganta.
– Acho que o Thomas consegue fazer qualquer coisa. Acho que, se
tivessem colocado uma arma em sua mão, ele teria vencido esta guerra.
Fico de costas e olho para o teto do quarto da Anna. Ele já foi o quarto da
própria princesa. O céu tem uma pintura a óleo de deuses gregos, alguns fortes e
belos, outros gordinhos, com barriga e cachos perfeitos. A Anna me conta
histórias sobre eles. Zeus. Hera. Hades. Mas só quando as freiras não estão por
perto. As irmãs dizem que essas histórias são “blasfêmia”.
– Você sente falta da sua família? – pergunta a Anna, de repente.
Tiro o lápis azul. Não. O vermelho. Tem algumas coisas vermelhas no
hospital. O chapéu de feltro da Anna. As latas de sopa na despensa da cozinha.
Mas já tenho a fita vermelha do Lorde dos Cavalos.
– Emmaline?
Guardo o lápis vermelho.
– Sinto falta dos meus cavalos.
A Anna se recosta nos travesseiros, olha pela janela, passa os dedos na
lombada do livro de um jeito carinhoso.
– Você os verá de novo.
– Não verei, não. – Penso no pai do Thomas e imagino meus cavalos,
minha boca fica com gosto de cinzas. Engulo, mas o gosto continua voltando. –
Eles morreram.
A Anna vira para mim de sopetão.
– Ah, minha gansinha. Sinto muito.
Penso nos cavalos dando coices e mais coices na baia, sem ninguém para
soltá-los.
– As histórias dos bombardeios são simplesmente terríveis – continua ela.
– Todo mundo fala de Londres, mas em Nottingham foi muito feio também, não?
Tantas almas perdidas em apenas uma noite. E tantos incêndios… Ouvi dizer que
encontraram incêndios uma semana depois, quando foram vasculhar os
destroços em busca de… Pessoas. – Aí a Anna fica em silêncio por um instante e
pergunta: – Você quer conversar sobre isso, Em?
Tiro o lápis roxo da caixa e o seguro contra a luz.
A Anna estica o braço e passa as mãos nos meus tufos de cabelo curto.
– É claro que não quer. Só um louco ia querer pensar em uma coisa
dessas. É muito melhor pensar em quando voltaremos para casa e revirmos
nossa família. Vou abraçar todo mundo, principalmente o meu irmão, o Sam. Ele
vai sobreviver à guerra, tenho certeza.
Então inclina o livro na minha direção e diz:
– Decidi que vou estudar para me tornar professora de ciências naturais.
Pesquisei o nome da sua égua alada, Lume de Luar, e descobri uma coisa
magnífica. – A Anna vira uma página do livro e aponta para a ilustração de um
inseto que brilha. – Você sabia que existem seres que emitem luz? É um
fenômeno que ocorre com certos insetos, fungos e criaturas marinhas – explica,
acariciando o livro. – Antes de as pessoas saberem quais eram as suas causas,
achavam que era magia. Chamavam de “fogo-fátuo”, “fogo das fadas” e “brilho
de mel” – conta. Então dá um sorriso. – E “lume de luar” também.
– O nome da Lume de Luar vem de um inseto que brilha?
– De um tipo de planta que emite luz – explica ela, dando risada. – Quando
os troncos se decompõem, um fungo bioluminescente cresce neles e emite uma
luz azulada. Em alguns casos, tão clara que dá até para ler à noite.
Fico olhando para as ilustrações do livro da Anna.
– Pensei que, quando você for uma exploradora e viajar pelo mundo,
pode encontrar lumes de luar. A bioluminescência, quero dizer, não a égua.
Darwin escreveu sobre isso. “Navegando por estas latitudes em uma noite muito
escura, o mar me apresentou um maravilhoso e belíssimo espetáculo. Cada
pedaço da superfície brilhava com uma luz pálida.” – A Anna sorri de novo e diz:
– Talvez você descubra uma nova espécie e dê a ela o nome de Mycena
emmaline ou Mycena marjorie. A sua irmã não ia ficar feliz de ter um fungo com
o nome dela?
Levanto da cama. O espelho em cima da cômoda da Anna está tranquilo.
Os cavalos alados se foram. Parece tudo tão vazio, só com minha versão e a da
Anna refletidas.
– Emmaline?
Saio pela porta em silêncio e perambulo pelo longo corredor. Todos os
quartos estão quietos, com exceção do último, onde o Arthurzinho ronca na
cama. Tem um gabinete de curiosidades em uma salinha cheia de coisas tão
corriqueiras que a velha princesa não se deu o trabalho de levá-las. Ninhos de
pássaros. Peles de cobra. Uma pedra esculpida. Coisas que alguém deve ter
encontrado no terreno do hospital. Abro o armário de vidro e pego uma pilha de
cartões de visita amarelados que estão dentro de uma fruteira lascada. Professor
H.K. Hopper, Egiptólogo. Lorde Barchester. Srta. A. Rodan, aviadora.
Devem ser de todas as pessoas famosas que vinham visitar a velha
princesa, cujos tesouros, presentes para Vossa Alteza, estão guardados no sótão.
Será que o pai do Thomas chegou a visitá-la?
Olho para trás, na direção do quarto da Anna.
Ela me disse que posso me tornar exploradora. Alguém famoso, como os
donos desses cartões. Ela disse que já sou uma.
Às vezes penso que a Anna me entende melhor do que qualquer outra
pessoa neste mundo.
Dou um sorriso. Bem discreto. Só para mim mesma.
21
Ouço sussurros vindos do final do corredor.
Ponho os cartões de volta na fruteira e fecho correndo o gabinete de
curiosidades. Sigo as vozes e chego à biblioteca. O Rodger, o menino que tem
uma marca de nascença cor de vinho do porto, e a Susan estão fazendo contas
para a aula de matemática da irmã Constance, na mesa de estudos. Estão de
costas para mim. O Jack dorme no sofá, não muito longe. No tapete, ao seu lado,
a cinco centímetros da sua mão, está o seu trenzinho a vapor.
Arrisco olhar para o corredor: está vazio. Eu poderia pegar o trenzinho.
Uma exploradora famosa não teria vergonha de cumprir uma missão
importante; e eu muito menos.
Agora.
Fico de quatro no chão e me mantenho abaixada, para as outras crianças
não me verem. Um cotovelo depois do outro, um joelho depois do outro, me
arrasto pela terra de ninguém que é o chão da biblioteca. O Jack murmura
dormindo e abaixa a mão. Seus dedos tateiam o trenzinho, e eu congelo. As
outras crianças param de sussurrar por um instante. Meu coração faz rá-tá-tá-tá,
e arrisco olhar para cima, para o território inimigo. Ainda estão de costas para
mim.
O trenzinho está perto, mas os dedos cheios de migalhas do dono estão
sobre ele.
Segurando o ar, me arrasto para a frente com um silêncio digno dos
melhores espiões ingleses. Pego delicadamente na parte de trás do trenzinho –
com cuidado para não encostar no apito de verdade – e vou puxando. Centímetro
por centímetro. As rodas giram silenciosas pelo tapete, até que os dedos do Jack
deslizam para fora do trem.
Fico quieta, meu coração batendo forte.
Mas ele não acorda.
Então fujo do campo de batalha, com o trenzinho debaixo do braço, para a
segurança do corredor. Ouço passos – estou encurralada! Espio o gabinete de
curiosidades, do outro lado do corredor, e escondo o trem bem no fundo, na
prateleira de baixo, atrás de uma pele macia de raposa, bem na hora em que a
irmã Constance aparece.
Congelo.
Seus lábios estão repuxados, com uma expressão firme. Foi ontem que
prometi à irmã Constance que não ia ficar andando por aí escondida.
– Emmaline! – ela vem correndo e puxa minha orelha. – Você deveria
estar estudando em silêncio na biblioteca, mocinha.
– Ai, ai, ai – imploro, mas ela me puxa mais alguns metros pelo corredor
antes de me soltar.
– Vá para o seu quarto e fique lá o resto do dia, e peça perdão a Deus pela
sua desobediência. Se eu vir você antes do café da manhã, vou pôr um sino no
seu pescoço, como se faz com um gato.
Ando em direção à escada, de cabeça baixa, mas meu cora-ção ainda
fica secretamente entusiasmado quando penso no trenzinho escondido. A porta da
capela fica perto da escada, e paro na frente dela porque vejo velas acesas lá
dentro, apesar de não ser domingo. O pesado pano litúrgico cobre o altar, na
frente de três fileiras de bancos de madeira. Alguém está sentado no primeiro
banco, mexendo a boca em uma oração silenciosa.
É o Thomas.
Ele estica o braço e encosta no pano do altar. É um tom vivo e nobre de
roxo, reservado para o Advento e para a Quaresma. O mesmo tom do lápis 876-
ROXO HELIOTRÓPIO da Anna.
O Thomas tira a mão do pano. Ainda sussurra, mas fala baixo demais, não
consigo entender.
Em algum lugar bem fundo do meu peito, as águas paradas se agitam.
Incham, pinicando o interior dos meus pulmões, até eu me sentir pesada e
afogada, como se tivesse caído do navio de Darwin no mar das pequenas
criaturas brilhantes.
– Emmaline – chama a irmã Constance, com um tom duro. Então aponta
para a escada que sobe para o sótão e completa: – Já.
Subo a escada, meus pensamentos pulam do Thomas e do seu pai para o
trem de brinquedo para o pano roxo que cobre o altar e para a irmã Constance.
No alto da escada, porém, fixo os olhos na porta e paro.
Um ataque súbito de raiva cresce dentro de mim.
Um papel amarelo? Alguém substituiu o papel que rasguei! Pulo para
arrancá-lo, mas lembro que o dr. Turner tem uma pilha deles. Se eu tirá-lo, ele
vai colocar outro no lugar.
Jogo-me em cima da cama e não encosto nos livros nem no dever de
casa.
Não faz sentido. A irmã Constance sempre estará de olho. Sempre vai
haver um papel amarelo. Nunca serei uma exploradora de verdade. Nunca verei
as pirâmides do Egito. Nunca verei os cavalos selvagens correndo pelas planícies
dos Estados Unidos. Nunca descobrirei nada a não ser poeira.
Mas não.
Sento na cama.
A Anna acredita em mim, e ela é a pessoa mais esperta que conheço.
Pego um pedaço de giz e escrevo no verso de um desenho antigo:

Caro Lorde dos Cavalos,


Não sei se este bilhete chegará às suas mãos,
mas preciso que saiba que não desistirei, jamais.
Já encontrei cinco objetos coloridos para
proteger a Lume de Luar: um vermelho, um
amarelo, um turquesa, um rosa e, agora, um
verde. Estou trabalhando o mais depressa que
posso para encontrar o restante antes da lua
cheia, mas tenho uma pergunta importante: o
senhor acha que Deus ficará bravo comigo se
eu roubar o pano litúrgico roxo da capela?

Sinceramente,

Emmaline May

Penso no cartão de visitas que vi no gabinete de curiosidades, que pertencia à


Srta. A. Rodan, aviadora, e dobro o desenho no meio, no meio de novo e, por
último, as pontas.
Um avião.
Abro a janela e me inclino ao vento.
Jogo o avião de papel, rezando baixinho enquanto ele voa, voa, voa, na
direção dos jardins, esperando que aterrisse bem.
22
O dia seguinte é domingo.
Domingo é o dia em que comemos sobras de pão no café da manhã, para
lembrar do jejum de Cristo mas também porque é a folga do Thomas, e as irmãs
precisam pastorear as ovelhas depois de nos pastorear durante a missa. Apesar
de ter três bancos na capela, a irmã Constance diz que precisamos nos espremer
nos dois da frente, para ficarmos mais perto de Deus e de seus poderes curativos.
O Benny senta atrás de mim e fica chutando minhas costas.
Eu o ignoro e olho para o teto. Está coberto com panos pretos. A Anna
disse que, quando chegou ao hospital, o teto era decorado com uma linda pintura
em estilo grego, como a do seu quarto. A velha princesa tinha chamado pintores
gregos de verdade e tudo, mas as Irmãs da Misericórdia proibiram a idolatria
pagã na capela, apesar de o lugar ter sido um salão de baile.
A irmã Constance lê a Bíblia, e fico imaginando todos os lindos casais que
devem ter dançado aqui. Aposto que as damas usavam vestidos de todas as cores
do arco-íris, e que os homens usavam cartolas e tinham bigodes galantes. Os
casais deviam rodopiar sem parar à luz de velas, embaixo dos antigos deuses
flutuantes que bebem vinho e andam em garanhões selvagens. Será que, naquela
época, os cavalos já viviam nos espelhos? Talvez tenha sido por isso que a
princesa morou aqui por tanto tempo, sozinha. Talvez ela gostasse de acordar pela
manhã e ver um cavalo no espelho do seu quarto. Talvez tenha encontrado uma
maneira de conversar com eles. Talvez – apenas talvez – tenha conhecido o
Lorde dos Cavalos.
A irmã Constance termina a oração, ficamos de pé, e alguém bate no meu
ombro.
Olho para trás e vejo que foi o Thomas.
Ele limpa a garganta e põe a mão no bolso.
– O Brejo perseguiu um coelho até os antigos jardins hoje de manhã – diz.
– Tem um buraco no portão de trás. Voltou com isto preso no pelo, junto com um
monte de galhos de roseira-brava. Você é a única que vai até os jardins, então
achei que devia ser para você.
Ele tira do bolso um bilhete um tanto amassado e úmido, com uma fita
vermelha amarrada.
Abafo um suspiro de surpresa e enfio o bilhete dentro da manga, olhando
para todos os lados para me certificar de que as outras crianças não notaram.
– É para mim – sussurro, apressada.
Olho bem para o Thomas, imaginando se ele não espiou o bilhete do
Lorde dos Cavalos, mas o nó está bem apertado, a fita vermelha apenas
levemente rasgada. O Lorde dos Cavalos deve ter deixado o bilhete para mim no
relógio de sol, e o vento de ontem à noite deve tê-lo levado até as roseiras-bravas.
Balanço a cabeça, solene.
– Obrigada.
O Thomas também balança a cabeça, solene.
Depois da missa, as outras crianças vão para os seus quartos ler a Bíblia
em silêncio, mas eu subo as escadas na ponta dos pés, passo pelas portas
fechadas da área residencial e entro em um armário, onde consigo ler o bilhete
do Lorde dos Cavalos. Mal posso acreditar que meu avião chegou até as suas
mãos. O papel está molhado, e as letras meio tremidas, o que é estranho. Parece
que ele estava muito cansado quando escreveu.

Cara Emmaline May,

Encontrei seu bilhete em uma roseira perto do


relógio de sol, dobrada de modo peculiar. Em
resposta à sua pergunta, eu jamais apoiaria o
roubo, nem mesmo em nome de um bem maior.
Sugiro que você apenas pegue emprestado o
pano litúrgico. Talvez depois de a missa ter sido
concluída, para que não sintam falta do objeto
por uma semana inteira. Até lá, com sorte, a asa
de Lume de Luar estará cicatrizada, e você
poderá devolver o pano são e salvo, sem que
ninguém fique sabendo. Que Deus a verá, não
tenho dúvidas. Mas também estou certo de que
Deus enxergará as razões do seu coração.

Boas cavalgadas,

Lorde dos Cavalos

Escondo o bilhete de novo na minha manga.


O Lorde dos Cavalos é tão sábio. E a hora para pegar o pano emprestado é
agora, bem antes de ele ser utilizado de novo. Mas será que posso mesmo roubá-
lo de Deus? Acho que não tenho escolha. Já revirei o hospital, e esse é o único
objeto roxo, com exceção dos vitrais das janelas, que não saem de lá.
Solto o ar devagar. Consigo fazer isso.
Saio do armário e vou para o corredor. Ouço vozes vindas do quarto do
Benny, do Jack e do Peter, e paro por um instante. Sempre me perguntei se o
Benny realmente reza nas tardes de domingo. Espio pelo buraco da fechadura e
vejo os três meninos sentados de pernas cruzadas na cama do Peter. O Jack e o
Peter estão com os olhos vidrados, prestando atenção ao que o Benny lê.
– Solte-me, seu brutamontes! Popey e! Popey e! Venha me salvar!
Não é a Bíblia.
Vou escondida até o sótão para pegar meu casaco e os outros objetos
coloridos que encontrei, depois desço a escada na ponta dos pés e seguro a
respiração quando passo pela sala da irmã Constance, que está folheando pilhas
de jornais com manchetes em letras garrafais.
Continuo andando pelo corredor até a capela vazia. Fecho a porta depois
de entrar. O ar ainda guarda o calor dos vinte corpos que estiveram aqui. O altar
está vazio. A irmã Mary Grace já deve ter passado e dobrado o pano litúrgico
para usá-lo na semana que vem. Pé ante pé, vou até o armário com chave onde
o pano fica guardado, junto com o vinho consagrado e a cruz dourada. Já vi a
chave pendurada em um gancho atrás do armário. Fico na ponta dos pés para
conseguir alcançá-la.
Dentro do armário, encontro o pano do Advento. Passo a mão pelo tecido
roxo.
E me pergunto: será que isso é pecado?
Então penso: isso é pecado, certeza absoluta.
Meus pulmões estão pesados. É difícil respirar sem ser bem
superficialmente. Mas luto contra essa sensação e pego o pano do altar. Faço uma
bola com ele, que escorrega como seda pelos meus dedos, escondo dentro do
casaco e bato a porta do armário. Os outros objetos – a camisola, o trem e as
contas – pesam dentro dos meus bolsos.
– Emmaline?
A irmã Mary Grace, que está na porta da capela, olha para mim com
uma expressão de curiosidade. Está usando botas masculinas sujas de lama e
segura um balde de leite de ovelha em uma das mãos.
– O que você está fazendo aqui?
Agora sei por que as raposas às vezes viram estátua quando os cães dos
caçadores as perseguem. É porque qualquer direção para onde correrem pode
ser a errada.
– Eu só… – gaguejo. – Eu só estava… Rezando.
Ela levanta a sobrancelha.
– De casaco?
Engulo em seco, pensando.
– Não consegui achar meu suéter e estava com frio.
– Bem…
A irmã Mary Grace parece estar na dúvida, mas o balde em sua mão está
pesado.
– Rezar é… Bom. Mas você deveria fazer isso no seu quarto. Você não
quer que a irmã Constance lhe pegue andando por aí.
Então ela vai embora, olhando para trás uma última vez. Quando ela vira
no canto, saio pela janela da biblioteca e corro pelo campo em direção aos
jardins. O Brejo late lá no celeiro, mas eu faço shhhh e continuo correndo.
Escalo as heras. É difícil escalar com um braço só. Com o outro, seguro o pano,
para ele não engatar em nada. Consigo e pulo para o outro lado.
A Lume de Luar vira a cabeça para mim.
– Espero que você seja grata por isso – digo. – Quase fui pega.
Mas, só de olhar para ela, sei que valeu a pena.
Sacudo o belo pano roxo. No sol, brilha ainda mais. A Lume de Luar fica
intrigada e chega mais perto, pisando na lama, para inspecioná-lo. Tiro as luvas e
amarro as pontas do pano nas heras com todo o cuidado, garantindo que ele não
encoste na lama. Perto da fita vermelha e do frasco amarelo, penduro o colar
turquesa e o trem de brinquedo verde e, ficando corada, a camisola feminina.
Este se tornou, oficialmente, o canto mais colorido do terreno do hospital.
Estico o braço e faço carinho no focinho da Lume de Luar, depois enfio o
meu nariz em seu pescoço e respiro seu cheiro de cavalo.
– Viu? Sua asa já parece melhor. Vai cicatrizar bem a tempo de eu pegar
esse pano de volta, antes do próximo domingo.
Escrevo outro bilhete para o Lorde dos Cavalos.

Caro Lorde dos Cavalos,

Deu certo! Pelo andar da carruagem, a Lume


de Luar estará a salvo até virar uma égua
velhinha e rabugenta. Aliás, quantos anos vivem
os cavalos alados? Agora só me faltam duas
cores, azul e laranja. Pendurei todos os demais
objetos, até a camisola feminina (o que foi
constrangedor!).

Sinceramente,

Emmaline May

P.S.: A sua letra me pareceu tremida no último


bilhete. Espero que esteja tudo bem. Por
favor,me responda.
Começo a escalar as heras de novo, mas algo puxa o meu casaco. É a Lume de
Luar, que mordisca a bainha. Pulo de volta ao chão. A égua bate os cascos,
impaciente.
– Não tenho mais maçãs. Desculpe.
Ela bate os cascos de novo, depois empurra meu ombro com o focinho,
com tanta força que me prensa contra as heras. O ar sai de dentro de mim de
uma vez só.
– Ei, cuidado. Eu…
Então faz isso de novo, com mais força. Dói de verdade desta vez. O
Lorde dos Cavalos precisa ensinar essa égua a ter educação! Fico prestes a lhe
dar um belo de um empurrão, e aí uma sombra passa por cima do jardim. Zuum.
No começo, acho que é só mais uma nuvem passando na frente do sol. Mas a
sombra bruxuleia. Tem asas bem abertas, como as de um avião. Fecha as asas, e
as abre de novo em seguida.
Levanto a cabeça, apavorada. A sombra já passou, mas eu e a Lume de
Luar sabemos muito bem o que era.
23
O Corcel Negro.
Viro para a Lume de Luar, dando um suspiro de surpresa.
– Você estava tentando me avisar, não estava?
Ela me empurra com o focinho de novo, contra o muro coberto de heras.
É uma égua inteligente. Sabe que é por ali que posso voltar a um lugar seguro.
Mas sacudo a cabeça.
– Não vou deixar você sozinha aqui.
Puxo-a para perto do muro, levanto a ponta do pano do altar e me escondo
com a égua debaixo dele. Sei que o Corcel Negro não consegue nos enxergar
durante o dia, mas ele ainda tem o faro. O pano cheira ao incenso que usam na
capela e, com sorte, será o suficiente para mascarar nosso próprio cheiro.
Abraço o pescoço da Lume de Luar e fecho os olhos. Nossa respiração quente se
mistura debaixo da tenda feita com o pano do altar.
Será que ele está lá em cima, voando?
Bem nessa hora, ouço passos vindos do outro lado do muro do jardim.
Pode ser o Thomas, pisando nas folhas caídas. Mas não, hoje é o seu dia de folga,
e depois da missa ele vai para Wick.
– Brejo? – sussurro, desesperada. – É você?
Ninguém responde.
Então: clop. Clop.
Meu coração bate forte. Uma, duas, três vezes. É o Corcel Negro! Ele está
no chão! Não achei que ele viria atrás de nós durante o dia. Achei que ainda
tínhamos tempo – a lua de ontem à noite foi crescente. A Lume de Luar aperta o
queixo contra o meu ombro, me empurrando com o focinho para o abrigo
formado por seu peito e seu pescoço. Consigo sentir seu coração batendo tão
rápido quanto o meu por baixo do seu pelo quente.
– Shhhhh – sussurro de novo.
Do outro lado do muro do jardim, um cavalo bufa. Baixo e de forma
calculada. Tentando sentir certos cheiros. Será que sente o cheiro da Lume de
Luar, de maçã e de neve? Será que sente o cheio da asa machucada dela?
Clop.
Clop.
Está logo ali, do outro lado do portão.
O portão!
Tem uma fresta aberta. O Brejo deve tê-la aberto com o focinho quando
estava perseguindo aquele coelho.
Saio de debaixo do pano do altar e dou uma guinada, na esperança de
chegar ao portão antes do Corcel Negro. Meus pés levantam tufos de neve à
medida que vou andando, tentando não fazer barulho. Passo o galho de salgueiro
pela grade para mantê-lo fechado. Tento ficar tão parada quanto o próprio portão
e fecho os olhos.
Será que ele me ouviu? Será que sabe?
O Corcel Negro poderia voar por cima do portão, mas não faz isso. Talvez
prefira nos perseguir como as raposas perseguem suas presas. A luz que passa
pelas frestas do velho portão fica manchada. Ouço passos. Mais daquelas bufadas
baixas e investigativas. Quando me forço a abrir os olhos, só consigo distinguir
uma sombra através das frestas. Um rabo. Preto e cheio de nós como os arbustos
que o cercam.
De repente, algo chuta o portão. A madeira cede, e solto um gritinho.
Empurro meu corpo contra ele. A Lume de Luar geme, espiando por baixo do
pano. O portão cede mais. Ele vai entrar!
– Vá embora! – grito. – Ela não está aqui! É o meu cheiro que você está
sentindo. É o meu hálito de maçã. É a neve no meu vestido. É o cheiro da minha
doença que você está sentindo, não dela. Pode ir embora!
E então um rosnado corta o silêncio. Latidos furiosos vêm do outro lado do
portão. É o Brejo! Mas o que pode um velho border collie contra um monstro
alado?
Ouço um zuuum súbito, e uma lufada de ar sopra através das frestas do
portão, com tanta força que me empurra para trás. Uma sombra se ergue bem
alto entre as nuvens, e o ar treme como se fosse um trovão.
Abro o portão.
– Brejo!
Tenho medo de encontrar um corpinho despedaçado igualzinho ao do
passarinho que o gato do meu vizinho machucou. Mas um lampejo preto e
branco se move debaixo de um banco, e o Brejo vem trotando através do portão,
balançando o rabo. Fecho o portão quando ele passa, tranco com o galho de
salgueiro, fico de joelhos e o trago para perto de mim. O corpo do Brejo ainda
tem o mesmo pelo, os mesmos ossos e o grande focinho molhado de sempre.
– Obrigada – sussurro, olhando nos seus grandes olhos pretos, e ele lambe
meu nariz.
A Lume de Luar espia por baixo do pano, com as orelhas apontadas para
mim e para o Brejo. Vou até ela, tiro o pano da sua cabeça e ponho a mão no seu
rosto. A égua não foge. Abre a asa esquerda e bate até eu ficar do seu lado e ela
conseguir me abraçar com a asa.
– E obrigada a você também – falo. – Prometi protegê-la, mas foi você
que me protegeu. Você me avisou que ele estava vindo.
A Lume de Luar balança a crina, até parece que está concordando
comigo.
Pouso a mão no seu lombo.
– Eu e você, nós cuidamos uma da outra. Mas vou cuidar um pouquinho
mais de você, porque sou sua humana, e você sempre será minha égua especial.
Olho para o céu.
Por hoje, a Lume de Luar está a salvo.
24
Quando volto para dentro, vejo o carro do dr. Turner parado na frente do hospital.
Estranho. Normalmente, ele para perto do celeiro, mas hoje o carro está
estacionado de forma oblíqua. Entro pela janela da biblioteca e ouço uma
confusão, o que também é estranho. As tardes de domingo são silenciosas. Nas
tardes de domingo, só há pão puro e leitura a sós.
Mas uma porta bate, e alguém começa a tossir.
Estou quase subindo a escada de fininho e voltando para o meu quarto
quando sinto algo estranho, como se alguma coisa estivesse errada. Alguém está
batendo panelas lá embaixo, na cozinha. Seria a irmã Constance? Mas ela sai do
hospital nas tardes de domingo para ajudar o padre de Wick a administrar a
extrema-unção nas pessoas da cidade que estão morrendo de doença ou de
velhice. Aí ouço passos rápidos e só dá tempo de pular no armário de roupas de
cama para me esconder antes que as duas irmãs apareçam em disparada pelo
corredor.
– Começou há uma hora – diz a irmã Mary Grace. – Ela está ardendo em
febre.
Espio pelo buraco da fechadura. A irmã Constance arrasta uma panela de
cobre fervente, segurando o cabo com uma toalha. Eles abrem a porta do quarto
da Anna. O papel vermelho tremula com o ar e cai em seguida, devagar, como
uma pluma, até parar no chão do corredor.
Fecho os olhos.
Quero me convencer de que não enxerguei direito. Que não era o quarto
da Anna, mas o do Benny ou de qualquer outra pessoa. Porém, quando abro os
olhos, a porta do quarto da Anna ainda está entreaberta.
Saio do armário e vou até a porta, dando passos pesados. Clop, clop, como
o ruído dos cascos do cavalo, só que minhas botas quase não fazem barulho neste
chão duro. A voz do dr. Turner sai pela fresta. Ele dá ordens à irmã Constance.
Mais tosse, mas não pode ser da Anna. As tossidas da Anna são silenciosas, de
dama, mesmo quando ela se contorce toda. E essas pareciam uma alma sendo
despedaçada.
Algo farfalha debaixo dos meus pés. O papel vermelho. A cola ainda está
molhada, e ele gruda na sola da minha bota. Começo a entrar em pânico,
tentando, sem sucesso, chutar para me livrar do papel.
– Emmaline – sussurra uma voz dura, vinda da escada. O Benny mostra
seu rosto, fazendo careta, com sombras sobre os olhos. – Volte para o seu quarto.
– Você não manda em mim – digo. O Benny pensa que a Anna é tão
amiga dele quanto é minha, só porque a Anna é gentil com ele, mas não é
possível que o Benny goste tanto dela quanto eu. Eu e a Anna somos como irmãs.
Pela fresta da porta do quarto dela, vejo as costas do casaco branco do dr.
Turner. Vejo a irmã Mary Grace jogando panos na panela de cobre fervente.
Mais tosse, e me encolho toda.
Abro a porta só um centimetrozinho imperceptível. O dr. Turner se move
para o lado, para pegar o estetoscópio, e consigo ver claramente. É mesmo a
Anna. A sua camisola. Os seus cachos castanhos-claros, tão parecidos com os da
Marjorie, só que os dela estão empapa-dos de suor. É o seu rosto, apesar de estar
faltando alguma coisa. Seus olhos estão inexpressivos.
Todos os lençóis à sua volta estão empapados de sangue.
– Passe a morfina, irmã – pede o dr. Turner.
Ela passa uma injeção, e o doutor a enfia em um pedaço de pele da Anna
que está à mostra, pressionando o estetoscópio contra o seu peito em seguida.
– É tarde demais. O pulmão entrou em colapso – fala.
A irmã Mary Grace faz o sinal da cruz.
Não consigo enxergar o espelho da cômoda da Anna daqui. Cavalos
alados estão refletidos na sua janela. Observando. Esperando.
Abro mais a porta, chamando a atenção do dr. Turner. Ele vê meu reflexo
no espelho e se vira. As irmãs também olham para mim.
– Emmaline! Você não deveria estar aqui – diz a irmã Constance.
Seguro a maçaneta de metal, com força.
– O que vai acontecer com a Anna?
A irmã Constance vem até mim com passos decididos.
– Vá já para o seu quarto, mocinha.
Mas, quando ela estica o braço para me pegar, passo por baixo dele e
corro para a cama. O quarto da Anna não é grande, apesar de ter sido planejado
para uma princesa, e consigo me agarrar na cabeceira e pular em cima do
colchão antes que eles possam me impedir.
– Anna! – grito.
Nunca vi seu rosto tão pálido. Ela estica um braço que mais parece um
osso sem carne, e passa a mão nos meus tufos de cabelo.
– Emmaline.
Sua voz é tão fraca que falha logo após dizer meu nome. Um soluço
escapa da minha garganta, e chego mais perto, até conseguir abraçá-la.
– Você vai melhorar, Anna. Você vai ficar bem.
Ela está quente. Quente demais. Algo dentro do seu corpo se mexe rápido
demais, queimando todas as suas forças.
– Em, desculpe. Nunca vi os seus cavalos alados. Queria tanto vê-los.
Sempre olhava nos espelhos. Olhava mesmo. Mas nunca os vi…
Então a Anna encosta o rosto no meu.
Ela está pegando fogo. Pegando fogo. A Anna é a própria doença.
Sinto duas mãos me agarrarem pelas axilas. A irmã Constance me puxa
com dedos que parecem de ferro.
– Emmaline, você não pode ficar aqui!
Agarro as mãos da irmã Constance. As mangas pretas do seu hábito estão
dobradas, e meus dedos arranham sua pele.
– Me solta!
Mas ela não solta. A irmã me empurra porta afora. Tento voltar lá para
dentro, mas a irmã Mary Grace fecha a porta e passa a chave. Fico arranhando
a madeira. Bato. As lágrimas escorrem pelo meu rosto, e meu dedo indicador
sangra, de tanto que arranhei a porta.
– Anna! – grito. – Anna! Continue olhando! Eles estão aqui! Eles estão
bem aqui! Você consegue vê-los?
Sem resposta. Só mais tosse. Ouço apenas a voz grave do dr. Turner.
– Anna! Você consegue vê-los?
Nada.
Chuto a porta. Espio pelo buraco da fechadura, mas a chave impede
minha visão. Eles devem estar me ouvindo bater. Como podem me deixar aqui
fora? Como podem me arrancar dela, que é minha única amiga? A Anna é a
única pessoa que me empresta seus lápis de cor, que conta histórias de deuses
flutuantes, e cujo estômago ronca igualzinho ao da mamãe.
– Para! – grita o Benny, segurando meu pulso. Ele está usando um suéter
vermelho cor de lama da cor do seu cabelo vermelho cor de lama, e eu o odeio.
Odeio. Odeio. – Você está agindo feito criança!
– Eles não me deixam ver a Anna!
– O dr. Turner precisa dar o remédio a ela sem você subir em cima da
Anna nem ficar no caminho. Você só está pensando em si mesma. Você é uma
menininha egoísta e precisa crescer!
Minha raiva é tamanha que vejo vários pontinhos pretos. Giro o corpo
para me soltar do Benny e o empurro, com força, tanta força que ele cai no
chão.
– Eu te odeio!
Corro pelo corredor. Os espelhos que cobrem as paredes passam por mim.
Cavalos alados estão parados em cada um deles. Olhando para mim com uma
expressão curiosa enquanto corro, virando a cabeça para me seguir com os
olhos. Nunca vi tantos. Estão por toda parte.
E, apesar disso, o corredor está vazio.
Corro para a cozinha, escancaro a porta dos fundos e não consigo parar de
tossir. A tosse se mistura aos meus soluços, e me sinto tão fraca… O Thomas está
sentado com o Brejo nos degraus de pedra. Os dois se levantam de repente
quando me ouvem.
– Emmaline – diz o Thomas, piscando, como se estivesse surpreso em me
ver. Ele engole em seco. – Ouvi o motor do carro do dr. Turner. É… É a Anna? –
pergunta, limpando a mão nas calças.
O que posso dizer?
Como posso contar o que está acontecendo se nem eu mesma sei?
Sento, encolhida, no degrau mais alto. Não consigo puxar ar suficiente.
E aí uma sombra passa por nós. Ondulada como água, mas tem forma de
avião, só que mexe as asas. Que se fecham. E tornam a se abrir. Um som de
trovão ecoa pelo ar. O Thomas levanta a cabeça, espremendo os olhos para o
céu, e uma preocupação som-bria toma conta de mim.
– O que é isso? – pergunta ele.
A forma está indo em direção ao outro lado das árvores. É só uma
sombra, mas eu sei o que é. Ah, eu sei. Uma criatura que caça usando o faro.
Uma criatura que, achei, tinha nos deixado em paz, pelo menos por hoje. Uma
criatura que está indo direto para o jardim do relógio de sol.
25
– Oh, não! Ele voltou!
Corro para o jardim. O Thomas me chama, mas não respondo. O vento
gelado do inverno penetra através das minhas camadas de roupa, e as roseiras-
bravas arranham minha pele quando escalo o muro. A Lume de Luar anda para
lá e para cá perto do muro, correndo no espaço apertado, para a frente e para
trás. Ela também viu a sombra do Corcel Negro, e sei que estamos pensando a
mesma coisa: o que ele fez antes foi só um truque. Nunca teve a intenção de nos
deixar em paz!
– Venha! – grito para a Lume de Luar. Arranco o galho que mantém o
portão fechado. Meu dedo indicador sangra por cima de tudo, mas não ligo. Viro
para a Lume de Luar. Ela não pode voar, mas ainda consegue correr.
– Você precisa sair daqui! Corra o mais rápido que puder!
Ela está andando de um jeito arredio, indo para trás e chutando o ar. Não
sabe para onde ir. Este é o meu mundo, não o dela. Ergo o braço e a empurro
pelo portão aberto. A Lume de Luar é da mesma cor da geada. Talvez o Corcel
Negro, com sua visão limitada, não consiga enxergá-la.
– Anda!
A Lume de Luar balança a cabeça, tirando minha mão. Começa a ir em
direção ao portão, mas para. Bufa. Então olha para mim.
Sei que cavalos não falam. Mesmo os cavalos mágicos. Mas, quando olho
nos olhos da Lume de Luar, entendo o que ela está tentando dizer. Algo bem
fundo no meu peito se acalma. Por um momento, encontro forças para escalar
as heras, não sinto aquela dor nos ossos. Dessa altura, consigo passar a mão nas
suas costas. Ela não foge. Não bufa em protesto. Subo mais um pouco, agarrada
em seu lombo, com cuidado para não encostar na sua asa machucada, e jogo as
pernas para cima, uma de cada lado do seu corpo.
Entrelaço os dedos na sua crina.
Nunca andei a cavalo assim. Sem sela. Sem rédeas. Com asas ao lado de
cada uma das minhas pernas.
– Anda!
A Lume de Luar sai correndo pelo portão. Os músculos ondeando debaixo
das minhas pernas, os cascos prateados batendo no chão congelado. Fico sem ar
de tanta emoção. Os campos passam como raios à nossa volta, e me inclino para
a frente, tentando me proteger do vento gelado do inverno. Se ela consegue
correr tão rápido assim, imagine quando voa? Acho que seria mais rápida do que
os aviões alemães, se quisesse. E com certeza seria mais rápida do que um
Corcel Negro.
Agarro sua crina com mais força e olho para trás. Vamos nos afastando,
afastando, afastando cada vez mais, e o hospital some de vista à medida que
saltamos por Briar Hill e entramos em campos desertos. Nunca tinha visto o
hospital de longe. Parece tão grandioso. Há luzes brilhando em todas as janelas.
Os dois carvalhos do gramado da frente se erguem como sentinelas.
Uma sombra escura bruxuleia ao nosso lado, nos acom-panhando.
– Mais rápido, mais rápido!
E a Lume de Luar vai mais rápido. Mais rápido ainda. Vai mais rápido do
que eu poderia imaginar que um cavalo conseguisse. Outro lado meu assume o
comando. Aperta minhas pernas contra o corpo da égua. Inclina-se para a frente.
O vento me atravessa, mas nem sinto. Não ouço as tossidas da Anna. Não sinto a
mão magra do Benny segurando meu pulso. Só existe a Lume de Luar, o vento e
eu. Somos uma coisa só.
– Não pare!
Lágrimas escorrem cada vez mais depressa pelo meu rosto. O vento as
congela antes que possam cair. Abraço o pescoço da Lume de Luar e não quero
soltar nunca mais. Chegamos ao fim do campo, e ela pende violentamente para a
esquerda, rodeando a fileira de salgueiros que margeia o córrego. Ela diminui a
marcha, bem pouquinho. É só quando ela dá três voltas completas no campo que
me dou conta de que faz tempo que não vejo a sombra negra.
A Lume de Luar continua a diminuir a marcha, até trotar de uma maneira
que me faz sacolejar nos ossos duros do seu lombo. O céu cinzento está limpo.
Umas poucas nuvens, mas nada do Corcel Negro.
Conseguimos escapar dele – escapamos de verdade – por mais um dia.
A égua diminui o passo, e aperto minha perna esquerda contra seu corpo.
Ela é um cavalo selvagem, então não conhece os sinais, mas parece entender. Dá
meia-volta e se dirige para o portão aberto do jardim.
Voltamos para o chafariz, com seu relógio de sol manchado. Deslizo para
o lado, apoio os pés na borda do chafariz e saio de cima da Lume de Luar.
Ela abaixa a cabeça para mim, e aperto seu rosto com as duas mãos.
Encosto a testa no redemoinho de pelos que parece uma faísca, bem no meio dos
seus olhos.
– Não vou deixar que ele pegue você. Fiz uma promessa e vou cumpri-la.
A Lume de Luar balança a cabeça de novo. Com a respiração pesada, ela
se vira e bebe água no chafariz por um bom tempo.
Amanhã encontrarei as cores que faltam.
Encontrarei algo azul.
Encontrarei algo laranja.
Encontrarei algo que mantenha o Corcel Negro afastado, bem afastado,
deste lugar protegido.
Caminho com dificuldade até o hospital, com os pés dormentes, mas o
coração bem vivo.
As luzes de todas as janelas estão acesas. O Thomas não está mais sentado
nos degraus. Nenhum sinal do Brejo. Quando abro a porta da cozinha, não vejo
ninguém sentado à mesa, apesar de já ter passado a hora do jantar.
Espalmo as mãos sobre o fogão a lenha até conseguir senti-las de novo.
Pego uma das grandes toalhas que ficam no armário de roupas de cama e me
enrolo nela. Começo a tremer, agora que meu corpo não está mais dormente.
Tremores tão fortes que parecem vir dos meus ossos. Minhas pernas estão tão
fracas que é difícil caminhar. Sinto uma queimação a cada degrau que subo.
Limpo meu nariz, que está pingando.
O corredor está repleto de crianças, sentadas em silêncio. Parece que
estão ali há algum tempo. O Jack olha para cima. Não está chorando. O Benny
também olha. Ele está.
A porta do quarto da Anna se abre, e a irmã Mary Grace aparece perto da
soleira. Seus ombros estão curvados, o que não parece correto em uma mulher
da sua idade. As mangas do seu hábito estão arregaçadas, e ela limpa as mãos
em uma toalha.
Seus olhos estão vermelhos.
– Ah, Emmaline – diz, baixinho, quando me vê.
E eu sei. Sei. Ela não precisa me contar. Não quero que conte. Quero
existir apenas naquele instante. No instante em que salvei a Lume de Luar,
mesmo que só por um dia, no instante em que a Anna ainda está viva, e amanhã
vou fazer um desenho para ela, que me contará uma história sobre os deuses
flutuantes do teto.
– Sinto muito, Emmaline.
Os cavalos sumiram dos espelhos. Não sei para onde vão quando não
estão aqui.
A irmã Mary Grace abre mais a porta e sai para o corredor. Vejo o
Thomas, sentado em uma cadeira ao lado da cama da Anna.
Ele olha para mim.
Então vê algo no espelho do outro lado do corredor e se vira. Sigo seu
olhar. Um único cavalo alado. Um único cavalo alado que nós dois enxergamos.
Que abaixa sua bela cabeça castanha e abre suas asas castanhas.
Bem no fundo do meu peito, as águas paradas se levantam.
– A Anna se foi – diz a irmã Mary Grace.
26
As ovelhas podem servir de conforto.
Não só porque são macias e quentinhas (apesar de serem um pouco sujas
de vez em quando). Não só pelo seu balido nem pelo jeito dos cordeiros de subir
um em cima do outro. Não é por seu cheiro característico, do qual as outras
crianças não gostam, mas eu não me importo. Não é por causa da sua língua cor-
de-rosa. É porque, com elas, você pode não dizer nenhuma palavra e, mesmo
assim, não se sente sozinho.
A porta do celeiro se abre.
O Thomas entra, enxugando o nariz no frio, e pega a pá que está
pendurada em um gancho na parede. As ovelhas começam a balir, pedindo
comida, e ele me vê sentada no meio delas. Fica parado.
– Você pegou no sono aqui?
Balanço a cabeça.
– Um padre veio, e a família da Anna também. Você vai perder o funeral.
Nas mãos, seguro uma caixinha embrulhada em jornal e amarrada com
um pedaço de barbante que a irmã Mary Grace me entregou.
– Eu sei.
O Thomas não diz mais nada. Eu tinha medo do seu jeito silencioso, mas
agora sou grata por ele ser assim. Estou cansada de ouvir a irmã Constance, a
irmã Mary Grace, o dr. Turner e as outras crianças falando. Só quero ficar com
as ovelhas. Sozinha, mas não solitária.
Algo ruim se agita no meu peito, tusso na palha e limpo a boca com a
mão. Meu rosto está quente. Quente demais. Ardendo.
– O pano do altar… – começa o Thomas, meio hesitante. – Achei que
você gostaria de saber que a irmã Constance decidiu usar o pano preto na capela,
em luto pela Anna. Vai ficar lá, pelo menos, por mais uma semana. Talvez até
mais.
Então o Thomas se abaixa para ajeitar a orelha direita do Brejo, que está
sempre virada.
E sei, pelo jeito como ele não me olha nos olhos, que o Thomas sabe que
roubei o pano roxo do Advento. Deve ter me visto me esgueirando por aí com o
pano enfiado debaixo do casaco. Agora está me dizendo que não serei
descoberta. Pelo menos, não hoje.
A Anna me ajudou mais uma vez. Fico feliz pela Lume de Luar, mas
preferia ter sido pega e receber um castigo da irmã Constance todos os dias por
um ano se isso significasse ter a Anna de volta.
Balanço a cabeça.
O Thomas encosta no quepe e vai embora.
Sei que o funeral da Anna está ocorrendo na capela. Nos seis meses em
que estou aqui, apenas mais uma criança morreu, um menino que chegou no
meio da noite, tão doente que se foi na manhã seguinte. Seu funeral teve pouca
gente e foi curto, e sei que o da Anna será igual. A irmã Constance é muito
prática. Há contas para pagar. Crianças para alimentar. Uma torneira quebrada
para consertar.
Uma ovelha solta um longo suspiro de ovelha e apoia o queixo na minha
perna. Coço sua cabeça ossuda, e ela semicerra os olhos. Passo o dedão da outra
mão no barbante do embrulho, fechado com um lacinho tão impecável…
A irmã Mary Grace subiu até o sótão ontem, depois do jantar. Trouxe uma
barra velha e empoeirada de chocolate em uma bandeja – não sei onde ela a
escondia – e esse embrulho também.
“Ainda faltam alguns dias para o Natal”, disse. “Mas quero que você
receba um presente antecipado. Bem, a Anna queria. Às vezes, as pessoas
morrem quando ficam muito doentes, e não podemos fazer nada a não ser deixar
que elas voltem para o Senhor.”
No celeiro, passo os dedos pelos cantos do embrulho. O papel está gasto
porque fiquei passando a mão nele a manhã toda, com medo de abrir. Reconheço
este formato. Reconheço este tamanho. Sei exatamente o que vou encontrar
quando desamarrar o barbante e tirar o papel.
Lá fora, o sino toca. O Thomas vai voltar logo com a pá, com tufos de
terra lá do declive sul nas botas.
Abro o papel marrom e o barbante marrom. Embaixo deles, estão todas
as cores do arco-íris. Abro a tampa da caixa de lápis de cor e sinto o cheiro de
madeira e tinta.
A ovelhinha que está com o queixo apoiado na minha perna começa a
roncar. Deito, encolhida, ao lado dela, abraçada à caixa de lápis de cor da Anna.
27
Fico dias sem ver a Lume de Luar. Não consigo. Estou tão triste por causa da
Anna que minhas pernas não querem se mexer. Estou tão triste e brava com
Deus que só quero me esconder e chorar. A irmã Mary Grace franze a testa
quando tira a minha temperatura, sente pena de mim e me deixa faltar à aula
para ficar desenhando, quietinha, no meu quarto. Mas uma meia-lua bem
inchada aparece e projeta um brilho perigoso no mundo debaixo da janela do
sótão.
Eu sei: preciso ser forte pela Lume de Luar, mesmo agora. O Lorde dos
Cavalos depende de mim.
Espero até a irmã Constance ir para a sua sala e as outras crianças
entrarem na sala de aula para escrever cartas à família, e saio escondida pela
janela da biblioteca. Ninguém vai sentir minha falta. Acham que estou no sótão.
Minhas pernas estão tão fracas que a caminhada até o jardim do relógio
de sol parece mais longa do que nunca. O muro que preciso escalar parece uma
montanha. Quando pulo do outro lado, a Lume de Luar está lá.
Olha para mim.
E, ah, como senti sua falta.
Tinha esquecido do seu cheio de maçã. Tinha esquecido do seu pelo
sedoso. Tinha esquecido como me sinto viva quando ela pousa seus olhos
castanhos e suaves em mim, da balançadinha que dá com a cabeça para dizer
que também sentiu minha falta, tanto quanto senti a dela.
Mesmo assim, não há bilhetes do Lorde dos Cavalos, o que é estranho.
Passaram-se dias. Esperava encontrar uma pilha de bilhetes, até porque só falta
uma semana para a lua cheia. Mas não há.
Uma sensação incômoda faz minha mão tremer, mas consigo escrever
um bilhete em um pedaço de papel que trouxe comigo. Coloco-o embaixo do
relógio de sol.

Caro Lorde dos Cavalos,

Por que não me escreveu? O senhor está bem?


Não sei se ficou sabendo, mas o Corcel Negro
tentou atacar. Ele é tão malvado, tão perverso,
que o odeio de verdade! Mas a Lume de Luar
está a salvo, e estou colocando à sua volta todos
os objetos coloridos que consigo encontrar,
mesmo sem saber se serão suficientes. Às vezes,
os cavalos morrem quando ficam muito doentes.
Não quero que ela morra. Por favor, me diga o
que fazer.

Sinceramente,

Emmaline May

Então é noite de Natal. Não sei como o Natal pode chegar sem a Anna, mas
chega, e a irmã Mary Grace diz que não posso mais ficar sozinha.
Nossa família não pode vir nos visitar, mas o sr. Mason, da fazenda ao
lado, aparece à tarde, quando as sombras são compridas, trazendo uma árvore de
Natal. Ele a puxa com a charrete do burrico e fica do lado de fora, conversando
com as irmãs, que esfregam as mãos, sem luvas, para espantar o frio. Ficamos
todos observando, com o rosto grudado no vidro.
– Nunca tivemos uma árvore de Natal – diz o Peter. Agora, ele e o Jack
são as crianças que estão há mais tempo aqui e já passaram dois natais no
hospital. – A irmã Constance diz que o Natal existe para comemorar o
nascimento de Cristo, não o Papai Noel.
– Os americanos enviaram presentes no ano passado – conta o Jack,
melancólico, com o nariz espremido contra o vidro. – Tantos que dava para
encher a capela inteira, mas as irmãs só deixaram cada um de nós ficar com
um. Foi quando ganhei meu trem a vapor. E agora ele sumiu.
O Jack fica em silêncio, e viro de costas para ele, na esperança de que
minhas bochechas não estejam vermelhas demais.
Depois de alguns momentos de discussão tensa lá fora, nos quais o burrico
começa a fazer i-ó por causa do frio, a irmã Constance ergue as mãos ao céu. O
fazendeiro dá um sorriso e põe a árvore no ombro.
As outras crianças gritam de alegria.
Fico longe de todo mundo, observando a neve cair. Isso me parece errado.
Sem a Anna. E sem o Lorde dos Cavalos também.
Então uma árvore de Natal entra pela porta da frente e vai direto para a
biblioteca, deixando um rastro de seiva e espinhos, e os cheiros da floresta
tomam conta do ar.
– Benny, vá chamar o Thomas – diz a irmã Mary Grace. – E peça para
ele trazer um balde e alguns parafusos.
O Benny sai correndo pelo corredor.
– Emmaline, pegue uma panela com água.
Esfrego os olhos, me sentindo cansada demais para me mexer. Mas eis
que vejo um lampejo de cor. É um velho lenço amassado que o sr. Mason usa
para limpar a seiva que ficou nas suas mãos. Ele começa a guardar o lenço no
bolso mas, quando vê a seiva, franze a testa e joga o lenço surrado na nossa lata
do lixo. Meu coração começa a fazer tum-tum, tum-tum, de um jeito que não
fazia desde que a Anna morreu. O lenço está um pouco puído, mas a cor é
inconfundível. 868-AZUL LAZÚLI.
A irmã Mary Grace está me olhando com curiosidade, como se estivesse
tentada a medir minha temperatura de novo.
Eu me forço a levantar com minhas pernas trêmulas.
– Sim, irmã, vou buscar a água.
Sigo até a cozinha, e fico sem ar depois de poucos passos. Lá, pego uma
panela de cobre e coloco debaixo da torneira. Enquanto aguardo que encha de
água, olho para o reflexo na lateral da panela: olhos fundos, pele pálida. Dois
cavalos alados estão parados atrás de mim, suas asas estendidas quase como se
fizessem uma cobertura para me proteger da chuva, ainda que não esteja
chovendo aqui dentro.
Levo a panela para a biblioteca e fico perto do fazendeiro. Ele e o Thomas
agem como se estivessem construindo uma máquina de guerra, de tanto que
calculam como a árvore deve ficar reta dentro do balde. Inclino o corpo, finjo
que estou observando e, bem em silêncio, abaixo a mão e tiro o lenço da cesta de
papéis amassados. Dou uma tossida e escondo o pano na bota.
O fazendeiro não sentirá sua falta, com certeza. Para ele, isso não passa
de um trapo velho e gasto que jogou fora. Para mim – para a Lume de Luar – é
uma esperança.
Os dois terminam de pôr a árvore no balde, mas ela ainda fica um pouco
torta no topo. O sr. Mason diz que precisamos dar água para a planta todos os dias.
Fala que precisamos ter muito cuidado se colocarmos velas nos galhos, para que
não pegue fogo.
– E é melhor deixar alguns biscoitos para o Papai Noel – completa, dando
uma piscadinha.
A irmã Constance retorce a boca.
Ficamos observando pela janela o fazendeiro acender a lanterna da
charrete e levar o pobre burrico congelado para casa.
– Vamos decorar a árvore – fala a Kitty, com sua vozinha de rato. –
Podemos fazer uma pasta branca com sabão. Vai ficar igualzinho a neve quando
pusermos nos galhos.
As crianças começam a dar pulos. Rasgam os retalhos de tecido e as fitas
que a irmã Mary Grace tira da sua caixa de costura. Outras vêm arrastando
caixas empoeiradas lá do sótão, onde o Arthur encontra bolas de Natal vermelhas
e brilhantes, que observa, maravilhado. Duas das três ratinhas correm lá para
fora e procuram pinhas, e a irmã não fala nada sobre a regra de não ir além do
pátio da cozinha.
Espio pela porta aberta. Será que consigo escapar e ir até o jardim para
pendurar o lenço? O Thomas, em algum momento, também deve ter saído de
fininho. Será que está no celeiro, com o Brejo e as ovelhas? Será que também
gosta de ficar sozinho, mas não solitário?
A Susan levanta uma corrente de elos de papel branco.
– Está tão sem graça! – fala, de repente, virada para mim. – Vá buscar os
lápis de cor que a Anna lhe deu! Podemos pintar os elos de verde e vermelho!
As outras crianças olham para mim, com os dedos grudentos da pasta de
neve.
O pavor cai sobre mim como se fosse uma sombra. Os lápis? Os lápis da
Anna? Mas ela os deu para mim.
Sacudo a cabeça.
O Benny bufa e olha para a irmã Constance.
– Diga que ela tem que nos emprestar! – reclama ele.
– A Anna deu os lápis para a Emmaline – diz a irmã Constance. – Ela pode
fazer o que quiser com eles. Se escolher o caminho da generosidade, como a
Anna costumava fazer com tanta frequência, trará os lápis de cor. Se optar por
ser egoísta, bem, a escolha é dela.
– Mas a Emmaline está sendo uma bebezona!
O Benny cruza os braços, olhando feio para mim. Tem um crucifixo de
madeira pendurado atrás dele. Se as mãos de Jesus não estivessem pregadas na
cruz, acho que ele cruzaria os braços para mim também.
Cruzo os braços e olho feio para o Benny.
Se é cor que eles querem, cor de verdade, estão procurando no lugar
errado.
O Benny me olha, furioso. Depois, em um impulso, enche a mão de pasta
de neve.
– Nós todos sentimos falta dela!
Então joga a pasta no meu rosto.
O gosto de sabão toma conta da minha boca. Cuspo e tusso, e a irmã
Constance puxa a orelha do Benny.
– Isso foi desnecessário – censura ela.
– Ela é um monstrinho egoísta – dispara o Benny, enquanto sua orelha fica
cada vez mais vermelha. – Ela não pode simplesmente… Ela não é a única…
A irmã Constance arrasta o Benny, que desaparece, e resmunga alguma
coisa sobre ele ficar no quarto até que o isolamento bote sua cabeça para
funcionar direito.
Olho para meu reflexo na janela. A pasta transformou minha pele em
uma coisa horrível, cheia de caroços.
As outras crianças estão tentando controlar a vontade de rir.
Um monstro.
Eles não dizem isso em voz alta, não sob o olhar atento da irmã Mary
Grace, bem aqui, mas sei que é isso que estão pensando.
O Thomas é um monstro porque tem algo a menos.
Eu sou um monstro porque tenho algo a mais. Mágoa demais. Raiva
demais.
Não me importo.
Pelo jeito, só os monstros sabem que existem mundos e mais mundos e
mais mundos, e o nosso é apenas um deles.
28
Passo dias sem conseguir sair. As irmãs ficam acordadas até mais tarde no
período entre o Natal e o Ano-Novo, ao lado da janela da biblioteca que está com
a tranca quebrada, escrevendo cartões para os rapazes do vilarejo que foram
para a guerra. Espero no escuro, sentada na escada, sozinha, esfregando meus
olhos cansados, até que por fim elas saem, e posso correr lá para fora e amarrar
o lenço azul do fazendeiro no muro coberto de heras. Ainda não chegou nenhum
bilhete do Lorde dos Cavalos, e o meu último continua lá, molhado e manchado.
Fico enjoada, parece que comi presunto estragado.
Volto para o meu quarto no sótão e não consigo dormir.
O vento bate na janela. Pam. Pam. O som é igual ao dos coices dos
cavalos, quando chutavam as baias para que alguém os soltasse. Estou suando,
apesar do vento gelado que entra pelas frestas. Por mais que eu me enrole nas
cobertas, o frio ainda se infiltra. Vou chamar o papai e pedir para ele pôr mais
carvão no aquecedor, mas aí lembro.
O papai não está aqui.
No dia em que ele foi para a guerra, a mamãe, a Marjorie e eu vestimos
nossas roupas de domingo. A Marjorie penteou meu cabelo para trás, pôs uma
fita e ficou segurando minha mão enquanto observávamos da calçada os homens
desfilarem pela rua Waverly em direção à Castle Green, comendo as cerejas
gorduchas que a mamãe levara, soltando gritos de encorajamento, apontando
para os homens que conhecíamos da igreja e da escola, rindo de como os
meninos que faziam as entregas da padaria pareciam sérios de uniforme.
E observando o papai. O papai, com seus ombros fortes como os de um
cavalo de carga, com seu cabelo cor de chocolate. E aquele momento – um
instante que qualquer outra pessoa não teria notado – em que nos viu torcendo por
ele e teve que se controlar para não deixar escapar um sorriso de orgulho. Foi só
à noite, na hora do jantar, quando vi sua cadeira vazia na cabeceira da mesa, que
o eco dos trompetes nos meus ouvidos me fez sentir um vazio.
Fico olhando para as vigas do sótão. Não vejo teias de aranha. Nenhuma
poeira acumulada. Só há uma coisa que a irmã Mary Grace pode fazer de
verdade para lutar contra as águas paradas, que é manter tudo muito limpo, e é
isso que ela faz.
Começo a tossir e me contorço. Algo cai em cima da minha colcha e rola
pelo chão. Caio em cima do travesseiro, me sentindo trêmula, com calor e com
frio ao mesmo tempo, e é aí que reconheço o som do objeto que caiu e rolou
pelo chão.
Um lápis.
Risco um fósforo e acendo uma vela, depois me debruço na cama e olho
para o chão.
868-AZUL LAZÚLI.
O lápis está no chão. Em dois pedaços.
Quebrado!
Será que acabei de quebrá-lo?
Tateio na sua direção tão rápido que acabo caindo da cama no chão duro.
Pego os dois pedaços. A ponta está quebrada e gasta, o restante quebrado ao
meio, e meu coração dói enquanto penso em como posso consertá-lo. Passar fita
adesiva. Cola. Deve haver um jeito…
A luz da vela bruxuleia, e outro lampejo de cor chama a minha atenção
embaixo da cama. 845-VERMELHO CARMIM. Só que é um pedacinho
pequeno. A ponta de um lápis. Apavorada, levanto a colcha.
Quase não consigo contar para você o que vi.
É terrível demais, demais.
Os lápis. Todos eles. 849-LARANJA TANGERINA e 876--ROXO
HELIOTRÓPIO e 867-TURQUESA MARÍTIMO. Quebrados. Despedaçados.
Pisoteados, partidos e esmagados. A luz da vela incide sobre os pedaços,
iluminando a cena do crime. E um dos meus desenhos, todo amassado. Puxo-o
de debaixo da cama com os dedos trêmulos.
Fizeram um X de lápis preto nas asas do cavalo, com tanta força que o
papel rasgou.

JÁ ESTÁ NA HORA DE CRESCER – alguém escreveu.

Alguém.
Ah, sei muito bem quem foi.
Quero descer as escadas correndo e me atirar na sua cama e apertar seu
pescoço pelancudo enquanto ele dorme. Quero rasgar seus preciosos gibis em
mil pedacinhos. Quero pisar nele, parti-lo ao meio, despedaçá-lo.
Pam, pam.
Fico sem ar e levanto a cabeça. O que foi isso? É o Corcel Negro. Ele
voltou. Bate os cascos no telhado e, de repente, é ele que quero destruir. É ele a
causa de tudo de errado que está acontecendo. Tenho certeza.
Os cavalos alados dos espelhos ficam me observando andar pelo corredor
de fininho, pôr o casaco, calçar as botas e sair pela janela da biblioteca. Lá em
cima, a lua está quase cheia, e a odeio também. Arrasto meus dedos sem luva
pela neve, fazendo bolas de gelo, que atiro no telhado com toda a força.
– Vá embora! – grito.
Atiro outra bola de neve. E mais uma. Mas não tenho força no braço, e
elas só chegam às janelas do primeiro andar. Está escuro demais para ver se o
Corcel Negro está mesmo lá em cima ou se são apenas sombras. Mas não tem
importância. Sei que ele está lá.
Ele sempre está lá.
Uma luz se acende em uma das janelas, e solto a bola de neve que tenho
nas mãos. Me arrasto até o muro do jardim, forçando minhas pernas e meus
braços fracos a escalar o muro e a pular para o outro lado antes que alguém olhe
para fora e me veja. Passo depressa, como um vento, pelo labirinto de pequenos
jardins. Pelo jardim das rosas, com suas treliças podres, por chafarizes
quebrados, pelo jardim das azaleias, que cresceram demais, até chegar ao
jardim do relógio de sol. A Lume de Luar move a cabeça na minha direção, suas
orelhas viradas para a frente, ansiando por uma maçã.
Vou pisando firme até onde ela está.
– O Lorde dos Cavalos nunca deveria ter mandado você para cá! – grito,
tentando vencer o aperto nos meus pulmões. – Aqui não é um lugar seguro.
Nosso mundo não é mais seguro do que o seu. Se o Corcel Negro consegue
encontrar você lá, também consegue encontrar aqui. É só uma questão de
tempo! Coisas ruins acontecem por aqui, você não percebe? A Anna se foi. Meus
lápis foram destruídos. E o Lorde dos Cavalos nem me escreve. Ele nos
abandonou. Não faz mais sentido lutar, está me ouvindo? Não faz sentido!
E é verdade. Ele não me escreveu. Esqueceu de nós. A Anna morreu e
me abandonou. O Lorde dos Cavalos me abandonou também.
Mas paro por um instante.
Espera.
Tem um bilhete novo no relógio de sol. O mesmo papel cor de creme.
Amarrado com a mesma fita vermelha.
Com as mãos trêmulas, eu o puxo.

Cara Emmaline May,

Perdoe o breve lapso na nossa


correspondência. Fui acometido de uma leve
doença que causa tremor em minhas mãos. Sem
dúvida, você perceberá que minha letra está
alterada.

Você pergunta quanto tempo os cavalos alados


vivem. Só posso dizer que vivem muito mais do
que eu. Talvez cem anos. Talvez nem mesmo
morram. Eu acredito nisso. É reconfortante
pensar que existe um lugar onde ninguém
envelhece, não acha? Sabe, nossos mundos são
mais conectados do que você pensa. Às vezes,
quando uma pessoa especial do seu mundo
morre prematuramente, essa pessoa apenas
cruza a fronteira e se torna um dos meus
cavalos, flanando pelo céu com asas
emplumadas.

Boas cavalgadas,

Lorde dos Cavalos

Releio o bilhete. O frio faz meu nariz escorrer. Penso nos lápis quebrados, que a
Anna mantinha perfeitamente apontados. Penso na cama vazia da Anna. As
irmãs não mudaram nada no quarto, a não ser os lençóis, apesar de eu ter ouvido
o Benny falar que vão tirar a cama grande e pôr três berços, para acomodar três
crianças novas que vão chegar em breve.
Penso no dia em que me escondi atrás da pilha de lenha e fiquei
observando o Thomas enterrar a galinha que as raposas mataram. Ele tocou suas
penas antes de cobri-la de terra. Será que fez a mesma coisa quando ajudou a
enterrar a Anna? Será que toca os caixões empilhados no celeiro, feitos para
enterrar aqueles de nós que morrem? Qual a sensação que tem nas pontas dos
dedos?
Limpo o nariz.
– Preciso ir – digo para a Lume de Luar. – Desculpe, mas é importante.
Não se preocupe, vou continuar protegendo você. Vou encontrar uma coisa
laranja antes de a lua cheia aparecer, prometo.
A Lume de Luar passa o focinho no meu pescoço. Encosto a testa na sua
mecha em forma de faísca.
Nós nos entendemos, ela e eu.
Então me viro para o muro e começo a escalar.
29
Corro pelos campos congelados até chegar à casinha do Thomas, que fica ao
lado do celeiro. Nuvens de fumaça saem pela chaminé.
Toc, toc.
O Brejo reage primeiro, uivando baixinho. O Thomas faz shhh, e o
cachorro fica em silêncio. Ouço passos. A porta se abre.
O Thomas abaixa a cabeça, como se estivesse esperando encontrar
alguém mais alto.
– Emmaline?
Sua manga vazia não está cuidadosamente presa. Está pendurada, solta e
vazia. O Thomas esfrega os olhos sonolentos com a mão.
– O que foi? – pergunta, olhando em volta para ver se estou sozinha. –
Você não pode continuar saindo escondida assim, tão tarde. Está ficando mais
frio, e você… – Então fica em silêncio, porque dobro o corpo para tossir. – Você
não quer ficar mais doente – completa.
– Preciso mostrar uma coisa para você – digo, meio tossindo. – É
importante.
Ele esfrega os olhos para espantar o sono mais uma vez e olha para o
hospital, como se estivesse pensando em me levar até lá e me entregar para a
irmã Constance. Mas abafa um bocejo e abre mais a porta.
Fico hesitante.
Nunca entrei na casinha do Thomas. Ninguém entrou. O Benny diz que é
para cá que ele traz as suas vítimas e as deixa enjauladas até as bruxas as
comerem, mas não vejo nenhuma criança enjaulada. Não vejo nenhuma espada
ou faca. Só vejo uma cama de corda e um colchão de palha, igual ao meu, só
que maior, e um fogão a lenha com uma chaleira em cima, e algumas camisas
penduradas nas vigas para secar.
Tem, sim, um osso roído no chão, mas acho que pertence ao Brejo.
Depois que entro, o Thomas fecha a porta para o calor não sair. Esfrega o
queixo.
– O que pode ser tão importante para você vir aqui no meio da noite?
O calor do fogão a lenha faz minhas axilas umedecerem. Procuro o
bilhete do Lorde dos Cavalos e começo a me sentir boba. Talvez isso pudesse
esperar até amanhã de manhã. Talvez seja infantil da minha parte estar aqui.
Mas não. Algumas coisas não podem esperar.
Estendo o bilhete para o Thomas.
– Leia.
Mas ele não o pega.
– Vamos, ande – insisto.
Ele limpa a garganta. Sacode a cabeça, com os olhos fixos no fogão a
lenha.
– Caseiros só leem a previsão do tempo – diz.
Fico um pouco impaciente; talvez o Thomas não saiba ler e esteja com
vergonha. Pego o bilhete de volta e leio em voz alta a parte sobre as pessoas
especiais que morrem prematuramente. Termino e fico olhando para ele, cheia
de expectativa.
Suas sobrancelhas estão juntas, como se não tivesse entendido.
– É isso que vim lhe contar – explico. – Que certas pessoas especiais que
têm morte prematura se transformam em cavalos alados. Seu pai, digo. Ele foi
um grande homem que morreu antes da hora. – Guardo o bilhete no bolso. – A
morte, para ele, não é o fim. O Lorde dos Cavalos que disse.
O Thomas olha para o fogão a lenha. Aí pressiona o dedão e o indicador
na parte de cima do nariz e respira fundo. Depois se abaixa e põe a mão na
minha cabeça. A palma da sua mão é grande. Fica claro que ele é um homem do
campo, da terra, mas isso não significa que seja um homem sem coração.
– Se o Lorde dos Cavalos diz – fala –, então deve ser verdade.
– E isso também vale para a Anna.
Ele balança a cabeça.
– Também vale para a Anna.
– E para mim, se eu morrer por causa das águas paradas.
O Thomas para de bater com a mão no meu cabelo curto. O Brejo para
de roer o osso, olha para cima e inclina a cabeça para o lado. O Thomas respira
fundo. As irmãs ficam chateadas quando falamos assim. Quando perguntamos o
que acontece se morrermos. Dizem que nosso dever é pensar na vida, não na
morte, comer nosso pão e deixar esses assuntos nas mãos de Deus. O dr. Turner
também fica chateado. Ele diz que podemos muito bem ter uma vida longa, ser
esposas, mães, maridos e doutores.
O Thomas dá um sorriso gentil.
– Se isso acontecer – fala –, você será o mais rápido dos cavalos alados,
tenho certeza.
30
No dia seguinte, a neve vira pedrinhas que queimam. A voz tensa da irmã
Constance ecoa na sala de aula. Ela ensina aos pequenos como fazer adições
básicas. Na parte residencial, as portas dos quartos de todas as crianças mais
velhas estão entreabertas, porque elas estudam em livros antigos, com letras
pequenas e nenhuma figura.
Vou até a escada que leva ao sótão. Quem sabe encontro um baú que
deixei passar despercebido em um dos quartinhos da despensa. Algum pacote há
muito tempo esquecido, cheio de papel empoeirado que levantarei com cuidado,
debaixo do qual encontrarei um vaso radiante laranja tangerina. Antes tinha
laranja por todos os lados, eu lembro. No Natal, colocavam laranjas nas nossas
meias de presente. As folhas dos carvalhos no outono. Calêndulas na primavera.
Mas não é primavera.
Não é outono.
É inverno, e não há laranjas este ano, nem mesmo depois das cadernetas
de racionamento. E, sem essa cor, o escudo espectral fica incompleto. Não é
forte o suficiente para afastar o Corcel Negro.
Viro no canto do corredor e paro.
Sinto o peso de olhos nas minhas costas. Minha cabeça rodopia.
O corredor está vazio.
Só se ouve um ronco vindo do quarto do Rodger. Quando dou meia-volta
na direção da escada do sótão, a sensação volta, e minha cabeça gira de novo,
mais uma vez, um círculo completo. O cabelo na minha nuca pinica e – será que
estou sentindo cheiro de maçã? Movimentos nos espelhos do corredor chamam a
minha atenção. Um dos cavalos alados entra no meu campo de vista, dentro da
moldura dourada. Tem uma mancha cinza no focinho, que ele aperta no seu lado
do vidro, embaçando-o toda vez que solta o ar pelas narinas.
O cavalo está olhando bem para mim.
– Hum… Olá.
Dou um passo para a frente. Estico o braço na direção do espelho, mas o
cavalo se afasta, e os dois primeiros dedos que encosto tocam apenas o vidro frio.
Ele sacode a cabeça, depois bufa uma, duas vezes e sai desfilando. O
espelho volta a ter apenas meu próprio rosto sem graça me encarando de volta,
tufos de cabelo curto, olhos verdes e duas marcas meladas de dedo.
Mas então… Ali. Algo se movimenta no próximo espelho do corredor, do
lado de onde acabei de vir. O mesmo cavalo alado com a mancha cinza no
focinho está lá, sacudindo tanto a cabeça que as mechas largas da sua crina
caem nos seus olhos. Estico o braço para tocá-lo, mas ele sacode a cabeça de
novo e desaparece. Igualzinho ao que os cavalos da padaria costumavam fazer
com a minha irmã, a Marjorie. Deixavam-na se aproximar, mais, mais e mais…
E aí saíam desfilando. Era um passatempo para eles.
Ponho as mãos na cintura.
– Não tenho tempo para brincadeiras.
Mas o cavalo sacode a cabeça de novo e vai embora. No instante seguinte,
aparece no próximo espelho do corredor. Bate o focinho contra o vidro. Não me
aproximo, e ele bate de novo, com mais insistência, e esfrega tanto o vidro que
fico com medo de que o quebre.
– Você não está brincando, não é mesmo? – sussurro. – Você está tentando
me dizer alguma coisa.
O cavalo desaparece deste espelho também, e quase posso sentir o roçar
das suas asas no ar à medida que ele passa pelo mesmo corredor, mas em um
mundo diferente. Então o cavalo chega ao último espelho. Quase como se
estivesse me pedindo para segui-lo. Quando me aproximo, ele não vai embora.
Sacode a cabeça. Embaça o seu lado do espelho.
Ele bate no espelho. Uma e outra vez, como se quisesse encostar o focinho
em mim, como se seus olhos pretos estivessem vendo alguma coisa atrás de
mim. Viro para trás. O quarto do Benny fica do outro lado do corredor. A porta
está entreaberta. Nenhum sinal do Benny ou dos outros meninos. Devem ter
saído escondidos para fumar um cigarro.
– O que você está vendo? – sussurro.
Aí meus olhos vão parar na cama do Benny, e meu coração se esquece de
bater, só uma vez. Bem ali, em cima do cobertor de lã cinza, está o precioso gibi
do Popey e do Benny. A capa é uma explosão de tinta laranja bem viva.
849-LARANJA TANGERINA.
Chego mais perto na ponta dos pés para ver melhor. Sim. É exatamente o
que eu estava procurando! Pego o gibi e abro a capa, mal ousando acreditar em
tanta sorte, e encontro uma dedicatória escrita na margem na primeira página.

Benny,

Encontrei na Livraria Blakeway: um Popeye


que ainda não lemos!

Com amor,

Papai

Largo o gibi em cima da cama e dou alguns passos para trás. Foi o pai do Benny
quem lhe deu. Assim como eu, o Benny tem um pai que está longe, lutando em
algum lugar. Meu estômago está dando cambalhotas. É por isso que ele lê e relê
tanto esse gibi, apesar de gibis serem coisa de criança. É algo em que se apegar,
algo de antes da guerra. De repente, sinto falta do meu pai, da minha mãe e da
Marjorie, e do cheiro de torta de maçã nas manhãs frias de inverno.
Viro para o espelho.
– Não sei se posso pegar isso. É importante para ele.
Mas o cavalo se foi. Só vejo o meu rosto encarando o espelho. Dentes um
tanto tortos. Um nariz bem vermelho.
Então outro rosto aparece atrás de mim, e congelo. Infelizmente, esse
rosto está do meu lado do espelho.
– O que você pensa que está fazendo? – dispara o Benny. Ele cruza os
braços, esperando minha resposta.
Olho para o gibi de soslaio, dando graças a Deus por tê-lo colocado
exatamente onde o Benny o havia deixado.
– Não é da sua conta.
Sua expressão fica séria.
– Você deveria estar no seu quarto lá em cima, e não aqui embaixo,
bisbilhotando as coisas… – diz. Então lança um olhar para a própria cama e vê o
gibi. – O que você está aprontando, sua ladrazinha?
– Não sou ladra!
Mas minhas bochechas pegam fogo com a mentira, porque penso no trem
de brinquedo do Jack e nos pertences da princesa lá do sótão e no frasco de
remédio do dr. Turner.
O Benny põe a mão no meu bolso de repente e tira o último bilhete do
Lorde dos Cavalos. Fico sem ar e tento pegá-lo de volta, mas ele o segura fora do
meu alcance.
– E o que é isto, então?
– Está endereçado a mim!
Ele franze a testa, confuso.
– Quem é que escreveria um bilhete para você?
Então o desenrola e o lê depressa.
– Devolve! – grito.
Só que o Benny me segura com uma das suas mãos ossudas enquanto
termina de ler. Depois amassa o bilhete na mão, vira para mim com um ar de
deboche, e o cão sarnento está de volta.
– Lorde dos Cavalos?
Começa a rir. Dou um tapa na sua cara, mas, pelo jeito, ele nem sente. Ri
tanto que tem que secar uma lágrima que saiu do seu olho.
– Quem escreveu isso? Foi o dr. Turner?
– O Lorde dos Cavalos existe! Trocamos bilhetes há semanas. Eu contei
para você dos cavalos alados nos espelhos e no jardim. Você não acreditou, mas
é verdade.
Seus olhos vacilam, parece que ele está quase com medo de que o que eu
disse seja verdade, e assim seria ele quem bancaria o bobo por zombar de mim.
Mas aí o Benny pisca.
– Alguém está brincando com você, Emmaline.
– Não.
– Deve ser o dr. Turner. Só ele consegue comprar um papel tão bom. Mas
a irmã Mary Grace tem mesmo todas aquelas fitas…
– Pergunte para o Thomas – disparo. – Ele também viu os cavalos alados.
O rosto do Benny se ilumina.
– O Thomas! É claro. Sua boba, é o Thomas quem está escrevendo esses
bilhetes. Só que não é nenhuma brincadeira. É uma armadilha.
O Benny fica com um olhar de louco e continua segurando o bilhete fora
do meu alcance. Fico na ponta dos pés para tentar pegá-lo, e rodopiamos até que
ele fala, baixinho:
– Você não ouviu as histórias? O Thomas está tentando atrair você até a
casinha dele para fazer tortas com sua carne!
– Não é verdade! – grito, e as outras crianças nos espiam pelas frestas
abertas da porta dos seus quartos. – O Thomas nem sabe escrever!
– Não existe nenhum Lorde dos Cavalos. Não existem cavalos alados. Isso
é tudo coisa da sua cabeça.
As palavras cheias de raiva que estavam prontas para sair dos meus lábios
morrem. Paro de girar, com as pernas fracas, e bato contra a parede. Uma porta
faz barulho porque uma das crianças a fechou com muita força sem querer. O
Benny olha para cima e vê a nossa plateia. Por um segundo, parece não saber o
que fazer. Uma dúzia de espelhos no corredor reflete sua mão levantada,
segurando o bilhete amassado do Lorde dos Cavalos, com a fita vermelha
pendurada.
Ele deixa o bilhete cair e pisa em cima dele de sapato e tudo.
– Vá para o seu quarto – ordena o Benny. – E o resto de vocês: fiquem
longe do Thomas. Já avisei.
O Benny olha feio para mim com aquela sua cara de cão farejador,
depois entra no seu quarto, todo empertigado, e se atira em cima da cama. Pega
o gibi do Popey e, virando as páginas deliberadamente.
Tão laranja.
Tão laranja quanto o seu cabelo. Laranja como fogo.
“Isso é tudo coisa da sua cabeça.”
Algumas crianças dão um sorrisinho malicioso. Ouço outras rindo,
cochichando sobre cavalos alados e príncipes de faz de conta. Todos os espelhos
estão vazios. Mas os cavalos estavam lá. O que tinha uma mancha cinza no
focinho, que me levou até o gibi do Benny. Ele era real. E o bilhete… Não. Não
pode ser.
Caio de joelhos e tento desamassar o bilhete o melhor que posso. As
palavras borraram ao serem pisoteadas pelo sapato do Benny. Sinto muita
vontade de chorar. A fita vermelha está rasgada. Olho para ela de soslaio,
limpando as lágrimas que começam a cair. Será que a fita é igual à dos carreteis
da caixa de costura da irmã Mary Grace? E o papel… Será como o do
receituário do dr. Turner? Não, seu receituário é perfurado. As folhas têm
beiradas denteadas.
O Benny está enganado. O Benny não entende nada de cavalos alados.
Olho para a porta aberta do quarto dele. Que vira outra página e dá um
sorriso malicioso para o Popey e.
Quase desejo que o Corcel Negro venha. Quase tenho vontade de eu
mesma ir buscá-lo para que leve embora o Benny e todas as crianças que estão
rindo. Quero que o Corcel Negro despedace o telhado do hospital com seus
cascos azulados e sua cauda embaraçada e cheia de espinhos e ande pisando
firme pelos corredores, fazendo tanto barulho que vai quebrar todos os espelhos,
e que segure o Benny debaixo dos seus cascos até só restar dele algo tão
amassado e destruído quanto este bilhete.
Só que o Corcel Negro não quer o Benny.
Recolho o bilhete do chão. Vou pegar aquele gibi.
31
Não tenho pressa. O Benny está na minha cola, observando cada movimento
meu. Nunca está com o gibi, deve tê-lo escondido, assim como escondi os lápis
de cor quebrados na gaveta secreta da escrivaninha da Anna. Enfim, ele fica
com preguiça. Entediado. Descuidado. E, enquanto as crianças estão reunidas na
sala da irmã Constance, ouvindo um pronunciamento do Winston Churchill no
rádio, sigo com meu plano.
Tem uma égua alada no espelho da área residencial, atrás de mim, que eu
nunca vi, com belos olhos azuis, espantando moscas com o rabo no corredor
refletido. Ela fica me olhando com um ar de curiosidade enquanto ando na ponta
dos pés até chegar à última porta da direita.
A porta do quarto do Benny.
Abro só uma frestinha e a encosto logo depois de me esgueirar para
dentro. Só solto o ar uma vez enquanto estou lá dentro.
São três camas, mas sei qual é a dele. Mesmo que não soubesse, o cheiro
de cebola o entregaria. Vou até ela pé ante pé e levanto o travesseiro: nada do
gibi. Abro a gaveta da sua mesinha de cabeceira: nada além de um saco de nozes
velhas e cartas da família. Agacho para olhar debaixo da cama: nada.
Sento na cama, pensando. Preciso encontrá-lo.
Se eu fosse um menino malvado, com cara de cão farejador, onde
esconderia meu gibi?
Meus olhos recaem na grande Bíblia sobre sua escrivaninha, e lembro de
ele lendo Popey e no domingo passado em vez de ler a Bíblia. Abro o volume,
folheio algumas páginas, e o Popey e olha para mim. Arregalo os olhos. O que
Deus pensaria disso?
Pego o gibi e o escondo debaixo da minha blusa bem na hora em que ouço
passos no corredor. Pela porta entreaberta, observo a égua alada no espelho
andando para lá e para cá, com os olhos azuis arregalados, como se quisesse me
avisar de alguma coisa. Pulo no chão e me arrasto para debaixo da cama do
Benny no momento exato em que os passos param na frente da porta. Botas
pretas. Estreitas. Da irmã Mary Grace. Sinto muita vontade de tossir e ponho a
mão em concha na frente da boca. A irmã fica parada ali por um instante, depois
fecha a porta.
Espero.
O chão embaixo da cama do Benny é grudento, e tem uma ou duas nozes
perdidas. Não posso ficar muito tempo aqui. A transmissão de rádio acabará logo,
e ele vai voltar. Tusso na minha mão o mais baixo que posso.
Saio me arrastando devagar, com o sangue zunindo nos meus ouvidos, e
giro a maçaneta. A égua alada de olhos azuis está de costas para mim, como se
estivesse dormindo. Respiro fundo, vou andando pelo corredor na ponta dos pés,
sem fazer barulho, e corro para o quarto da Anna. Ainda não tiraram sua cama
grande nem seus móveis pesados. Aperto a alavanca escondida na parte de baixo
da escrivaninha que destrava a gaveta secreta. Ela se abre. De uma hora para
outra, o quarto é tomado pela presença da Anna. Lavanda seca. Seus livros de
história natural. Uma única caneta tinteiro de ponta fina e os lápis quebrados que
guardei lá, por via das dúvidas. Enfio o gibi na gaveta, fecho e saio correndo. Dou
uma guinada no canto do corredor e saio voando, me abaixo quando passo pela
sala da irmã Constance até chegar na escada que vai para o sótão, bem na hora
em que a transmissão acaba e as crianças surgem no corredor.
Paro para recuperar o fôlego no alto da escada, no canto escuro, que
ninguém olha.
E, na escuridão, dou um sorriso.
32
– Onde está?
Os gritos do Benny chegam até o sótão. Respiro pouco ar, mas isso dispara
a tosse de novo. Mal consigo abafá-la na manga.
Lá fora, pela janela do sótão, o sol do fim da tarde está se pondo. Logo a
lua vai aparecer no céu. Uma lua quase cheia. Só tenho mais um dia, porque
amanhã a lua ficará completamente redonda e brilhante. Preciso pôr aquele gibi
no seu devido lugar, no muro de heras. Preciso completar o escudo espectral
para proteger a Lume de Luar. Todas as oito cores do arco-íris, exatamente como
estava escrito na descrição do fabricante de lápis. Um conjunto completo.
Mesmo assim…
Na hora em que levanto da escada, minha visão fica borrada, e tenho que
sentar de novo imediatamente. Meus pulmões. A fera que fica à espreita lá
dentro, lá no fundo, embaixo das águas paradas, passando as garras na minha
garganta.
Ponho a mão sobre a boca. Agora não. Por favor, por favor. Esta noite
não.
Tento pensar em coisas tranquilizadoras: água deslizando pela minha
garganta; chocolate derretido morno. Leite fresco direto do balde. Mas a coceira
não vai permitir que eu a ignore. Transforma-se em uma rosa-brava que alguém
fica puxando para cima e para baixo dentro da minha garganta.
– NÃO! – grita o Benny. – Alguém pegou.
Ouço passos frenéticos e mais gritos vindos de trás da porta do sótão. O
Benny me viu bisbilhotando no seu quarto. O Benny tem olhos afiados como os
de um cão de caça. Ele vai saber que fui eu.
Só que o Benny pode procurar no meu quarto o quanto quiser que não vai
encontrar.
Olho para fora por um bom tempo. Será que a Lume de Luar está
esperando por mim? Será que o Corcel Negro está piscando, clareando sua visão,
esperando pela luz da lua cheia de amanhã para poder atacar de novo? Mas
minhas pernas estão tremendo, e minha visão está embaçada, e só consigo me
arrastar até meu quarto. Um centímetro por vez, cada passo uma pequena
batalha, e penso nos homens que ficam entre os escombros, sufocando, com os
pulmões cheios de poeira das bombas alemãs, se arrastando lentamente até
encontrarem um local seguro. Por fim, chego ao meu quarto. Fecho a porta com
um chute e me encosto nela, respirando com dificuldade. A fera das águas
paradas não vai se acalmar desta vez. Ela pegou a Anna, e agora a Anna se foi e
o monstro quer despedaçar mais pulmões, arranhar e destroçar mais gargantas.
É um grande esforço chegar até o meu colchão de corda. Caio sobre a
colcha. A tosse vem com tudo. Eu permito. Destroça o interior da minha
garganta, forçando sua saída. Parece que alguém está me torcendo. Não sobrou
água. Não sobrou vida. Sinto um gosto amargo de sangue. Atrás da porta, passos
bravos se aproximam, subindo os degraus batendo os pés.
Os passos param na frente da porta do meu quarto.
TOC, TOC.
A voz do Benny :
– Sei que foi você, sua ladra!
A porta se abre alguns centímetros. O rosto bravo do Benny aparece na
fresta, seus olhos aguçados caçando pelo quarto, seu nariz fino farejando. Então
ele me vê e arregala os olhos.
– Emmaline? Você está… – diz. Dá um passo cambaleante para trás. –
Irmã Constance, venha rápido! Tem sangue para todo lado!
O Benny desce a escada ainda mais rápido do que subiu.
Dou um sorriso. É a última coisa que lembro antes de minha cabeça
desabar. Dou um sorriso e penso no arco-íris que a Marjorie e eu vimos naquele
dia chuvoso. Fiquei com medo de ser o último.
Mas falta pouco. Logo vou terminar meu próprio arco-íris.
33
A Marjorie está sentada na beirada da minha cama, usando seu casaco de chuva
amarelo, lendo o gibi do Benny. Ela tem cheiro de torta de maçã fresca e canela
e, ah, como eu senti falta desse cheiro. Como senti falta dela. Da minha irmã.
Tento sentar, mas minha cabeça está tão pesada que cai de volta em cima dos
travesseiros na mesma hora. O sótão está tão quente. Quero tirar as cobertas,
mas a Marjorie está sentada bem em cima delas.
– Esse gibi… – Minha voz não parece minha. A fera das águas paradas
estraçalhou minha garganta. – Ponha de volta onde encontrou. Deixe
escondido…
Ela vira a página e sorri quando vê um desenho do Popey e em cima de
um camelo.
– Você se preocupa demais, Em. Você sempre se preocupou demais.
Minha irmã vira outra página. Parece que só metade da minha cabeça
está aqui, mas onde a outra metade poderia estar? E por que a Marjorie está
usando o casaco de chuva dentro de casa? Quando sento, meu corpo tomba para
a esquerda, depois para a direita, e tenho a sensação de que o sótão inteiro está
em cima de um camelo, balançando sem parar. As águas paradas se acumulam
na minha garganta como folhas podres em um charco, e tenho certeza – certeza
– de que a fera está lá embaixo, à espera. Esfrego meu peito.
A Marjorie inclina o gibi para me mostrar um desenho da Olívia Palito
rolando por uma duna de areia. Pressiono a mão contra minha cabeça. As
páginas farfalham, mostrando a dedicatória.

Com amor, Papai.

– Marjorie… – Meus lábios estão tão secos. – Como você veio parar aqui?
A Marjorie não embarcou nos primeiros trens que saíram de Nottingham.
Nem eu. Nós duas ficamos paradas na frente de casa, observando os vizinhos
arrastarem malas pesadas até a estação, com uma expressão sombria no rosto,
seus pais se esforçando para não chorar. Na noite antes de eles irem embora,
minha mãe nos fez sentar à mesa da cozinha.
– Muitas crianças estão saindo das suas cidades – disse. – Seus pais
acreditam que, no campo, estarão mais seguras. Mas vocês precisam entender,
meninas, que não existem mais lugares seguros. O pai de vocês não está seguro
lá na Líbia. O tio de vocês não está seguro em Londres, trabalhando no escritório
do marechal-chefe das Forças Aéreas. Por isso nós três ficaremos juntas. Vamos
fazer nós mesmas o trabalho que o seu pai e os meninos da padaria faziam.
Vamos cuidar umas das outras. Marjorie, você vai cuidar da Emmaline. E,
Emmaline, você vai cuidar da Marjorie.
Minha mãe ficou em silêncio e, então, apertou minha mão de novo.
– Mas eu cuidarei de vocês duas um pouco mais, porque sou sua mãe, e
vocês sempre serão minhas duas bonequinhas queridas.
A Marjorie vira mais uma página.
Não consigo parar de tossir. Agarro a ponta da colcha, pressiono-a contra
a minha boca, tentando segurar as águas paradas, mas não tem como parar uma
coisa dessas.
A Marjorie fica olhando e sacode a cabeça com um ar triste.
– A mamãe tinha razão – diz. – Não existem mais lugares seguros.
34
Nos meus sonhos, ouço o Benny. “Eu sei que foi você, sua ladra.” A Marjorie vai
e vem. Está sempre com o casaco de chuva amarelo. Então, de repente, ela vira
um fantasma preto de cara branca, só que não é mais a Marjorie, é a irmã Mary
Grace usando o hábito de freira.
E passa a mão na minha cabeça.
– Shhhh – diz a irmã Mary Grace. – Tente descansar, querida.
Tem mais alguém na porta do quarto. De cabelo vermelho cor de lama e
suéter vermelho cor de lama.
– Tudo bem, Benedict – fala a irmã Mary Grace. – Pode ir agora. Ela está
acordando.
O Benny olha para mim – de olhos arregalados, nenhum sinal do seu ar de
deboche costumeiro – e aí olha para baixo em seguida e sai pela porta aberta.
– Ele veio aqui e foi me chamar na mesma hora e não queria sair até
você acordar. Agora tente tomar um pouco de chá.
A irmã Mary Grace inclina a borda da xícara escaldante na direção dos
meus lábios.
Sacudo a cabeça, tento sentar.
– Preciso ir lá fora, preciso ver o jardim.
Seu olhar gentil se transforma em preocupação.
– Hoje não, Emmaline.
Quanto tempo fiquei dormindo e sonhando? Horas? Um dia inteiro? Olho
desesperada para o céu escuro lá fora. Mal consigo enxergar o jardim à luz da
lua. A lua está tão clara que cega. Perfeitamente redonda. Cheia. Cheia! O
pânico começa a morder a ponta dos meus dedos, fazendo-os coçar de tanta
vontade de colocar as botas e descer as escadas correndo.
– Não – diz ela.
– Só por vinte minutos.
– Não.
– Dez.
Ela me olha feio.
– Cinco!
A irmã Mary Grace põe a xícara na mesinha de cabeceira com um
suspiro.
– O dr. Turner examinou você. O seu corpo está muito fraco. Você não
pode… – Ela olha para baixo, para a colcha, e continua: – Você não pode ir lá
fora. Não poderá por um bom tempo. Sinto muito, minha pequena.
Então ela olha para trás, para a porta do meu quarto.
Tem um novo papel. Um papel vermelho!
Meu sangue ferve.
Não posso ir lá fora?
Não posso ir ao jardim?
– A senhora não entende! A Lume de Luar precisa de mim. É lua cheia, e
o escudo espectral ainda não está terminado, e o Corcel Negro pode até já ter
encontrado ela!
Puxo a colcha, tentando sair da cama, mas a irmã Mary Grace me
segura. Ela é mais forte do que eu lembrava. Ou então fui eu que fiquei mais
fraca.
– Sinto muito, muito mesmo. Você precisa descansar.
– Eu preciso salvá-la!
– Em…
– É verdade! Tudo o que o Benny disse é verdade! Eu roubei mesmo o
gibi e o pano do altar, e sinto muito por tudo isso, mas a Lume de Luar precisava
mais dessas coisas do que nós! – Engulo em seco e tento falar com mais calma: –
Se eu não for até ela, o Corcel Negro vai matá-la. Hoje à noite.
A irmã Mary Grace está quase chorando. Fica de pé, esfregando os olhos,
e respira fundo, tentando se acalmar.
– Você tem falado coisas sem sentido enquanto dorme e tem tentado sair.
– Sua mão recai sobre um pedaço brilhante de metal em cima da maçaneta. – A
irmã Constance pediu para o Thomas instalar uma trava na porta, para a sua
segurança. Vamos levá-la para o quarto da Anna amanhã. Lá é mais quentinho, e
tem aquele teto pintado tão bonito. Você vai gostar, não?
Fico olhando para a tranca.
Um pedacinho de metal que não estava ali agora me mantém presa aqui
dentro. O Thomas deve ter vindo, com pregos e um martelo, e transformado o
meu quarto em uma cela. Ele sabe da Lume de Luar. Como pôde fazer isso
comigo?
Cerro os punhos sobre a colcha.
– Peça para o Thomas vir aqui. Diga que preciso falar urgente com ele.
Em particular.
A irmã Mary Grace hesita. Exceto para trazer lenha, o Thomas raramente
entra nos andares superiores dessa casa de freiras e crianças pequenas. Quase
nunca fica sozinho conosco, a não ser com a Anna, que tinha que ficar presa à
cama e precisava de ajuda. O Thomas é um rapaz e, mesmo agora, mesmo
durante a guerra, existem regras que precisam ser seguidas.
A freira passa o dedo na tranca e balança a cabeça em seguida.
– Vou falar para ele.
35
Pego no sono. Não quero dormir, mas o sono toma conta de mim com a
esperteza de uma raposa. Sonho com o meu pai e com o pai do Thomas juntos,
no front de Capuzzo, dentro de tanques blindados. À sua volta, caem penas pretas
e longas em vez de bombas. Cada pena que cai arranca um pedaço da lataria do
carro, pedacinho por pedacinho, deixando a neve entrar.
Frio. É tão frio.
Quando acordo, há uma fresta aberta na janela do sótão, e não lembro de
ter feito isso. Só de pensar em ir até lá para fechá-la já fico exausta, e puxo a
colcha mais para cima. Meu estômago ronca, e estendo a mão para pegar a
xícara de chá e…
Tem um bilhete ao lado da xícara.
Um bilhete escrito em um papel bonito, enrolado e preso com uma fita
vermelha.
Meu coração faz piu-piu-piu, igualzinho ao pássaro ferido que a Marjorie
encontrou. Pego o papel com os dedos trêmulos.

Cara Emmaline May,

Como você bem sabe, meus cavalos têm


observado o seu mundo através dos espelhos.
Eles me contaram da sua atual condição de
prisioneira, e lhe ofereço meus sentimentos. Em
um de seus bilhetes, você expressou o que se
entendi bem me pareceu uma profunda raiva do
Corcel Negro. Acredito que essa raiva seja
inadequada. Veja, o Corcel Negro não causa
sofrimento porque gosta. Ele tem direito a viver
sua vida. Ocupa um lugar neste mundo. Tem até
um nome: Volkrig. Meus cavalos alados voam
porque é isso que eles fazem. Volkrig caça
porque é isso que ele faz. Tente entender.
Podemos resistir a ele. Podemos lutar contra
ele. Mas não podemos culpá-lo por cumprir sua
função.

Agora, o destino da Lume de Luar só a ela


pertence. Você foi uma boa amiga para ela e
para mim.
Boas cavalgadas,

Lorde dos Cavalos

Dobro o bilhete. Volkrig. Um nome sinistro para um cavalo sinistro e, apesar de


tudo, alguma coisa muda.
Um vento gelado entra pela fresta da janela.
O Lorde dos Cavalos deve ter subido até aqui. Esse tempo todo, ele
poderia simplesmente ter vindo até mim. Não precisava dos jardins nem do
relógio de sol. Por que nunca me mostrou seu rosto?
Toc, toc.
Alguém mexe na tranca de metal.
– Emmaline? Você está acordada?
É o Thomas.
– Sim.
Afasto as cobertas, mas as águas paradas sobem, e não paro de tossir. O
Thomas olha para dentro do quarto, hesitante, e vira o rosto em seguida.
– A irmã Mary Grace disse…
– Você precisa me fazer um favor – falo, me forçando a sentar. – Vá ao
quarto da Anna. A escrivaninha tem uma gaveta secreta que se abre apertando
uma trava no fundo. Lá dentro… – A besta das águas paradas luta para me
arranhar, mas a engulo de volta. – … Tem um gibi. Leve-o até o jardim do
relógio de sol. Pendure-o nas heras. Você tem que fazer isso. A Lume de Luar
precisa de nós.
O Thomas me encara como se não tivesse me ouvido.
– Emmaline…
– Por favor! Eu não tenho como ir.
Ele hesita um pouco, mas depois balança a cabeça.
– Sim. Sim, é claro que eu vou.
Solto o ar devagar e afundo nos travesseiros. Eles são macios. Como as
nuvens, como o pelo da Lume de Luar.
Só que o Thomas continua parado na porta.
– Preciso lhe contar algo, Emmaline. Minha tia que mora no País de Gales
me escreveu. Vou viajar hoje à noite e ficarei alguns dias fora. O funeral do meu
pai será em Londres. Um péssimo momento… – gagueja, olhando para o papel
vermelho. – Mas não há nada que eu possa fazer.
Ele respira fundo, então entendo o que quer dizer. O Thomas tem medo de
não me ver de novo. Acha que as águas paradas virão me buscar enquanto
estiver fora. Espremo os olhos para ele.
– Você acha que eu vou morrer.
– Não. Não, eu só…
Sim. É isso que o Thomas acha.
Ele fica mexendo na tranca de metal.
– Adeus, Emmaline.
Então põe a mão no bolso e tira um espelho de mão pequeno. Coloca no
criado-mudo, ao lado da xícara de chá frio. Tem uma moldura de metal e cabo
de madeira, e não faço ideia de como ele fez para encontrar algo tão lindo.
Tem uma etiqueta no espelho.
Seguro-a contra a luz.

Para Emmaline May, do seu amigo Thomas.

– Para os cavalos poderem cuidar de você – diz. – Enquanto eu estiver fora.


36
Está escuro quando acordo.
Uma chuva gelada bombardeia a janela entreaberta. Mal lembro de ter
dormido. Quero tanto dormir de novo, mas a visita do Thomas reavivou minhas
forças. Preciso ter certeza de que a Lume de Luar está bem. Tiro os lençóis
empapados de suor e levanto da cama, meio trêmula. Minhas pernas e meus
joelhos não funcionam direito e, no instante em que meus pés tocam o chão, caio
e me arrasto vagarosamente até a janela.
As nuvens lá fora estão pesadas, manchadas pela luz prateada da lua
cheia. Só consigo distinguir uma silhueta andando para lá e para cá pela neve. É o
Brejo. Ao seu lado, uma sombra desequilibrada se arrasta. Deve ser o Thomas.
Solto um longo suspiro de alívio. Ao menos logo o escudo espectral estará
completo. A Lume de Luar ficará protegida.
Olho cada detalhe do céu. Contra as nuvens escuras – seria uma sombra
ainda mais escura? – voa em círculos pequenos, dando voltas e mais voltas, bem
em cima do hospital, igualzinho a um avião alemão.
Um trovão ressoa, e dou um pulo.
É o Corcel Negro. Volkrig. Bom, que ele voe em círculos. Nunca vai
encontrar a Lume de Luar.
Fecho a janela, deixando a noite lá fora, e meus braços estão tão
profundamente cansados…
A trava de metal se abre.
– Emmaline! – diz a irmã Mary Grace, entrando no quarto. A irmã
Constance está logo atrás dela. – O que você está fazendo fora da cama, menina?
Deixo minha cabeça pender até encostar no vidro frio da janela. Mais um
trovão, mas dou um sorriso. Lá embaixo, o Thomas abre o portão do jardim.
– Emmaline?
Sinto uma mão fria na minha testa. E cheiro de chá recém-feito,
escaldante.
– Irmã, ajude-me a levá-la para a cama. Ela está ardendo em febre.
As mesmas mãos frias me levantam. Depois, sinto os lençóis macios.
Uma cama que cheira a palha. Travesseiros macios como as nuvens.
– Está tão frio aqui em cima. Devemos levá-la para o quarto da Anna
agora mesmo. Lá tem lareira.
“Mas gosto do cheiro daqui”, quero dizer. “Me faz lembrar das ovelhas e
da sua lã tão fofinha.”
– Mas o dr. Turner disse para não mexermos nela. Ele vai voltar na
primeira hora da manhã.
– Pode ser tar…
– Shhhh. – As mãos estão na minha sobrancelha, puxando as cobertas
mais para cima. – Emmaline? Minha menina?
– Ela não está ouvindo.
Mas estou. Estou, sim. Tento dizer isso a elas, mas só sai uma tosse rouca.
Sinto um gosto amargo. Uma das freiras abafa um suspiro de surpresa, e aí
pressionam um pano na minha boca.
Ouço o farfalhar de papéis.
– Todos esses desenhos… Acha que ela… Que ela realmente vê esses
cavalos nos espelhos?
– Irmã Mary Grace – censura a irmã Constance –, nosso dever é cuidar
dessas crianças, não estimular seus delírios febris. – Sinto mais mãos em volta de
mim, afofando o travesseiro, e aí a irmã completa, em voz baixa: – Apesar de,
por um lado, eu ter esperança de que ela veja, sim.
A irmã Mary Grace continua mexendo nos meus desenhos.
– Se pelo menos houvesse alguém para quem pudéssemos enviá-los. As
notícias daquela padaria durante o ataque a Nottingham… As bombas e, depois,
os incêndios. Perder a mãe e a irmã assim… Não posso nem imaginar. E o pai,
na mesma semana, durante o cerco a Tobruk.
Ela fala mais baixo e continua:
– Elas ficaram encurraladas, sabia? A mãe e a irmã. O motorista que a
trouxe até aqui contou para o dr. Turner. A Emmaline foi dormir do outro lado da
padaria no meio da noite… A senhora sabe que ela anda dormindo… Quando as
bombas caíram. A menina deve ter ouvido a família batendo na porta, mas não
conseguiu ir até elas por causa dos escombros. Chegou aqui gravemente
queimada.
Meu coração faz piu-piu-piu.
“Não”, quero dizer. Elas estão enganadas. Não foi meu pai que morreu.
Nem minha mãe. Nem a Marjorie. A Marjorie estava aqui ontem, de casaco de
chuva amarelo! Foram os cavalos, dando coices nas baias. O grande capão baio
e as duas éguas menores. O Gengibre, a Pimenta e a Noz-Moscada.
Ouço o farfalhar de papel de novo.
– Os cavalos devem ter morrido também.
– Cavalos? – diz a irmã Constance, abrindo e fechando a porta logo em
seguida. Mas sua voz ainda chega até mim. – Que cavalos? A família dela
trabalhava em uma padaria no centro de Nottingham. Bem longe de qualquer
pasto. A Emmaline nunca teve cavalos.
As águas paradas estão subindo. Não param de subir, afogando tudo o que
tocam. Posso ouvir os cavalos dando coice nas baias. Seus gritos assustados que
pareciam os de uma pessoa. A porta do estábulo, que não para de sacudir, mas
não consigo ir até lá para soltá-los.
Não posso ajudá-los.
Não posso fazer nada.
Quando abro os olhos, estou sozinha, e o chá esfriou faz tempo.
Tenho um ataque de tosse misturada com soluços. As águas paradas estão
subindo bem depressa agora.
Minha cabeça cai para o lado. Meu reflexo no pequeno espelho de mão do
Thomas mostra bochechas vermelhas de febre e tufos de cabelo molhado.
Seguro o espelho. Onde estão os cavalos alados? Por que não estão cheirando
meu chá, ao lado da cama? Por que não estão batendo os cascos contra a parede
atrás de mim?

Para Emmaline May, do seu amigo Thomas.

A letra é redonda e caprichada e, por algum motivo, me parece familiar. Mas…


Não, não pode ter sido o Thomas. Ele não sabe escrever. A etiqueta está
amarrada no espelho com…
Sento abruptamente.
Não, não, não.
… Está amarrada com uma fita vermelha de seda.
Lá fora, em meio à escuridão, soa um ronco de pneus. Faróis brilham na
janela. Deve ser a tia do Thomas que veio buscá-lo para ir a Londres.
– Não!
Jogo os lençóis no chão. Não, as águas paradas ainda não me afogaram.
Não, o Thomas ainda não saiu. Não, não, não.
O Benny não pode ter razão.
O Lorde dos Cavalos existe. Ele vive atrás dos espelhos e foi amigo da
velha princesa e mandou a Lume de Luar para o nosso mundo porque queria
protegê-la.
O Thomas não pode ter escrito aqueles bilhetes.
37
O relógio do corredor bate as horas. Perco a conta das batidas, mas elas soam
por um bom tempo: está ficando tarde. Desço devagar até a área residencial,
apoiada na parede. Todas as portas estão fechadas. Os murmúrios das crianças
dormindo saem pelas frestas das portas. Nas paredes, os espelhos estão vazios.
Nenhum cavalo alado observa a minha jornada.
Passo por uma janela e tiro o cobertor de lã da frente. Lá fora, à luz dos
faróis de um carro, uma mulher de casaco marrom conversa com a irmã
Constance. Neva mais forte, e os limpadores de para-brisa do carro lutam uma
batalha perdida. Não consigo mais ver a lua, mas ela está lá, cheia, lançando sua
luz prateada sobre tudo. A irmã Mary Grace segura um pedaço de corda preso
na coleira do Brejo para ele não correr atrás do dono quando o carro partir.
O Thomas sai da sua casinha com uma mala pequena e simples.
Encosto a mão no vidro congelado.
– Ainda não! – grito.
Mas minha voz não chega até ele. Cambaleio pelo corredor, entro na
biblioteca; a árvore de Natal ainda está lá. Mexo na tranca da janela até ela
ceder. O vento e a neve uivam para mim, mas também sei uivar. Arranhando o
parapeito da janela, consigo pôr uma perna para fora.
– Thomas!
Ele não ouve, por causa do vento.
– Thomas, não vá embora!
Consigo pôr o outro pé no parapeito gelado. Escorrego e caio nos arbustos.
O Brejo pula e começa a latir, ouço alguém gritar, e aí os faróis do carro
apontam para mim e tapo os olhos com a mão. A neve cai ainda mais forte, e
espremo os olhos por causa da luz.
O Brejo corre até mim, com a corda pendurada na coleira, e lambe meu
rosto. Um segundo depois, sinto uma sombra pairar sobre mim. É o Thomas. Que
enrola o casaco nos meus ombros e me pega com seu único braço, igualzinho fez
com a ovelha aquele dia. Seu braço não treme nem um pouquinho.
– Emmaline, o que você está fazendo aqui fora? – pergunta, já me
carregando para dentro, onde está quente. Então grita para a mulher de dentro do
carro: – Cinco minutos!
O Thomas sobe os degraus correndo, a neve se acumula no nosso rosto,
abre a porta com o ombro, me coloca em cima do sofá da princesa, perto da
árvore de Natal, e puxa um dos cobertores de lã da janela para me enrolar nele.
– Espere aqui. Deixa eu chamar a irmã Mary …
– Não! – grito, arranhando seu braço. Com a outra mão, pego a etiqueta.
Está amassada e úmida de suor, e a mostro como se fosse uma acusação. Berro:
– Foi você, não foi? Era você o tempo todo! Eu devia ter dado ouvidos ao Benny.
Você escreveu aqueles bilhetes!
Uma luz bruxuleia na porta. É a irmã Constance, vindo lá de fora,
segurando uma lanterna.
O Thomas arregala os olhos.
– Você disse que não sabia ler nem escrever! – continuo em tom de
acusação.
O Thomas sacode a cabeça, estendendo a mão como se eu fosse algo que
pudesse se despedaçar a qualquer momento.
– Não falei isso. Você me entendeu mal.
– Você escreveu os bilhetes!
– Não, por favor…
– Fale a verdade!
– Tudo bem! – diz, com a voz tensa. – O que você quer que eu diga? Menti
para você! É isso que você quer ouvir? Eu escrevi os bilhetes, sim.
Fico olhando para ele. Não, não, não é possível.
Mas talvez eu esteja guardando segredos demais, até de mim mesma.
Talvez a Marjorie e seu casaco amarelo não existam mais.
Talvez o papai e a mamãe não existam mais.
Talvez a padaria e a nossa casa também não existam mais. E talvez as
águas paradas – a tuberculose – sejam tão graves quanto o dr. Turner diz que são.
Começo a respirar muito rápido. Será que eu… Será que eu vou morrer aqui?
Como a Anna? Como a mamãe, o papai e a Marjorie? Aperto meu peito, mas
não há vida lá dentro. Está vazio.
– O Lorde dos Cavalos não existe – falo, soluçando. – Você inventou tudo.
Você nunca viu nenhum cavalo alado nos espelhos.
O Thomas arregala mais os olhos.
– Isso não foi mentira. Eu os vi. Juro.
– Mentiroso!
O Thomas enruga o lado esquerdo do rosto, como se não soubesse o que
fazer. Passa a mão pela boca, apertando a pele e a parte de cima do nariz.
– Não sou mentiroso – diz. Então vira para mim, com determinação em
seus olhos. A boca firme. – Tem uma coisa que eu não lhe contei. Escrevi aqueles
bilhetes, sim, mas não os inventei – completa, colocando a mão sobre a minha. –
Emmaline, eu sou o Lorde dos Cavalos.
Paro de chorar. O relógio faz tique-taque no corredor. Atrás de nós, a
lanterna da irmã Constance ainda brilha.
Os olhos do Thomas são tão verdes. Thomas, Lorde dos Cavalos? Thomas,
que colhe rabanetes e joga pauzinhos para um velho border collie? Lorde dos
Cavalos? Thomas, o monstro de todas as histórias do Benny, Lorde dos Cavalos?
Atrás dele, o espelho em cima da lareira continua vazio.
– Não acredito em você – falo, sacudindo a cabeça, sacudindo, sacudindo,
sacudindo sem parar. – Você está mentindo. O Lorde dos Cavalos não existe. Não
existe nenhum cavalo alado nem nunca existiu!
A expressão no seu rosto muda. A irmã Constance está com uma mão
sobre a boca, com a lanterna tremendo na outra. Um gosto de enxofre sobe pela
minha garganta. São as águas paradas se defendendo.
O Thomas apoia o rosto na mão, sacode a cabeça também e então, de
repente, olha para cima. Seus olhos não têm mais uma expressão triste.
– Tenho como provar! Espere aqui.
Ele levanta e passa pela irmã Constance na entrada do hospital. Suas botas
fazem eco no longo corredor. O som da porta da cozinha batendo também faz. O
Brejo começa a latir lá fora. A neve cai com ainda mais força. O carro continua
com o motor ligado, fazendo barulho, os limpadores de para-brisa indo para lá e
para cá, para lá e para cá.
Posso lhe contar um segredo?
Quero acreditar no Thomas.
Quero acreditar que ele é o Lorde dos Cavalos. Quero acreditar que a
Lume de Luar está a salvo no jardim do relógio de sol e que a Anna agora tem
um par de asas e que os cavalos alados continuam vivendo nos espelhos e que o
Volkrig, o sinistro Volkrig, nunca poderá pisar naquele lugar protegido.
A porta da cozinha bate de novo. O Thomas vem correndo pelo corredor,
com neve no cabelo e nos cílios e nos ombros do casaco. Fica de joelho e mostra
uma caixa de madeira.
É linda, a caixa. Brilha de verniz. Tem uma insígnia entalhada na tampa,
um selo que parece da realeza, não poderia pertencer a ninguém que não fosse
um príncipe ou um rei… Ou um lorde.
O Thomas abre a caixa e me entrega uma medalha de prata brilhante
com uma fita vermelha novinha em folha.
Passo os dedos nela bem devagar e arregalo os olhos.
Tem a figura de um majestoso cavalo, sobre duas patas. Suas duas asas
saem das costas, abertas, como se estivesse levantando voo. Um cavaleiro está
montado nele, com uma capa e uma coroa magnífica.
Fico boquiaberta.
– Você quer dizer que…
– Estes são tesouros preciosos da minha terra, que fica atrás dos espelhos –
explica. – Trouxe-os comigo quando fiz a travessia para cá.
Arregalo ainda mais os olhos ao observar os tesouros. Eles parecem com
as medalhas dos soldados, mas são diferentes. Especiais. Dá para simplesmente
ver a diferença. Muitas têm cavalos. Alguns alados, outros não. Alguns com seus
cavaleiros, outros sozinhos. Os magníficos músculos de metal dos cavalos
enfrentam um vento invisível. Cada fita é de uma cor diferente do arco-íris: roxo
e vermelho, e de um azul tão profundo quanto o do mar.
E ainda há mais tesouros. Um anel de ouro que parece quase grande
demais para o Thomas, um par de esmeraldas e um relógio de bolso de ouro.
Tudo brilha, feito de prata ou ouro polidos, mais valiosos do que qualquer coisa
que já vi na vida. À luz do abajur, o tesouro do Lorde dos Cavalos cintila.
Será verdade?
Será que tudo o que ele disse é verdade?
O Thomas fecha a caixa. Há palavras entalhadas na tampa de madeira,
em volta da insígnia real.

Utrinque Paratus. Bellerophon et Pegasus.

Deve ser a língua do mundo atrás do espelho.


– Acredita em mim agora? – sussurra o Thomas.
Levo a mão à boca. Quero segurar as águas paradas. Quero segurar
minha voz. Quero segurar tudo, mas as lágrimas brotam mesmo assim.
– Mas… Por que você não me contou?
Lá fora, a buzina do carro soa. O Thomas olha para trás.
– Eu devia ter contado – fala, com pressa. Nunca havia notado, mas o
formato do seu cabelo não parece nem um pouco com o de um urso selvagem, e
sim com um cabelo feito para segurar uma coroa. – Mas era segredo. Eu não
deveria viver neste mundo. Mas não tive escolha, entende? Sou como a Lume de
Luar. Ferido. Só que, em mim, a ferida é por dentro. Também tenho fugido do
Corcel Negro esse tempo todo. Você protegeu a nós dois.
Fico boquiaberta.
O Thomas estica o braço e encosta na minha bochecha. Lá fora, a buzina
do carro soa de novo, e lembro que seu pai morreu. O funeral, em Londres.
Será que o pai do Thomas sabia quem ele é de verdade?
– Preciso ir – diz. Fecha a caixa e fica de pé. – Obrigada, Emmaline. E…
Boas cavalgadas.
Ele leva o tesouro do seu mundo consigo. Sai pela porta, e a última coisa
que vejo é a insígnia real entalhada em cima da caixa, brilhando na luz do abajur.
A irmã Constance leva a mão ao peito. Está contendo as lágrimas.
– Venha, pequena – diz. E aí precisa limpar a garganta. – Hora de ir para a
cama. No quarto da Anna. A irmã Mary Grace acendeu a lareira.
Lareira? Mas por que preciso de lareira? Estou pegando fogo por dentro.
Não tem como a neve e o frio me atingirem agora. E aí me dou conta de que,
talvez, a mamãe, o papai e a Marjorie ainda existam. Talvez estejam apenas no
mundo atrás do espelho, com a Anna e o pai do Lorde dos Cavalos, abrindo as
asas, exibindo os cascos no sol.
A irmã Constance põe a mão no meu ombro, depois na minha testa.
Estou pegando fogo.
38
É tão estranho estar no quarto da Anna sem a Anna. O cobertor não é tão quente.
Não tem mais cheiro de lavanda.
A irmã Constance enfia remédio na minha goela, depois põe a mão na
minha testa para sentir a temperatura e suspira. Pousa os olhos sobre o Cristo
crucificado pendurado em cima da cama. Faz o sinal da cruz. Depois olha para
os deuses pintados no teto, e, nem acredito, faz uma oração por eles também.
– Toque isto – fala, colocando um sino na minha mão – se precisar de
mim. O dr. Turner virá de manhã bem cedo.
Assim que ela sai do quarto, rolo na cama até a escrivaninha da Anna,
com sua gaveta secreta. Mesmo quebrada, talvez a ponta de algum dos lápis
ainda esteja boa, e posso desenhar a insígnia com o cavalo alado e o cavaleiro do
Lorde dos Cavalos antes de esquecê-la. Meus dedos custam a puxar a trava, mas
enfim a gaveta secreta se abre. Tem uma caixa de lápis de cor, bem onde a
deixei, e os pedaços quebrados fazem barulho. E papel. E…
Minha mão congela.
Não.
Não pode ser.
Atrás dos papéis, bem onde eu o escondi, o Popey e me olha. O gibi do
Benny. Meu coração bate forte no peito, ameaçando agitar as águas paradas.
Mas o Thomas prometeu. Vi a sua sombra lá fora, com o Brejo.
Então reparo que o velho livro de história natural da Anna sumiu, e
entendo tudo: o Thomas cumpriu sua promessa, mas levou o livro errado.
Lá fora, o vento geme. Pequenas frestas na esquadria da janela deixam
entrar rajadas de frio que sacodem o cobertor pesado. A ponta continua presa.
Do outro lado das janelas, há uma compac-ta parede de neve. Então algo
tremula na claridade da lua, e fico sem ar.
Uma sombra negra.
Jogo os cobertores no chão e vou até a outra janela, mas o carro já foi
embora. O Thomas foi embora. Tento ir até a porta, mas minhas pernas não me
sustentam. Afundo no velho tapete embolorado, tossindo por causa da poeira.
O Volkrig está lá fora, e é noite de lua cheia e ele consegue enxergar tudo,
consegue enxergar a Lume de Luar!
Giro o corpo para pegar o sino – vou chamar a Irmã Constance –, mas
não, ela só vai me pôr de volta na cama. Poderia me arrastar até a entrada, o
quarto das três ratinhas fica ao lado do da Anna, mas já falei para elas dos
cavalos alados e as três não acreditam em mim.
Seguro o gibi bem apertado, apertado mesmo, tão apertado quanto meus
pulmões, e giro o corpo na direção da porta.
Ninguém mais pode salvá-la, só eu.
Enrolo o casaco da Anna no corpo e calço seus chinelos com as mãos
trêmulas. Enfio sem cuidado o gibi no bolso da frente e o aperto contra o peito. E
penso na Lume de Luar, lá fora, sozinha. Ela deve estar com tanto medo…
E se já for tarde demais?
Minha mão escorrega na maçaneta. Estou suando muito, mas finalmente
consigo sair do quarto, chegar até a entrada e sair pela porta. A neve pinica meu
rosto até o couro cabeludo. Aperto mais o casaco e saio na neve. Ela ficou muito
mais funda depois de poucas horas.
Está tão escuro que só consigo ver alguns metros adiante do hospital: neve,
noite e meus próprios tufos de cabelo esvoaçando. O relógio de sol podia até ser
em Berlim.
Arrasto o corpo na neve, que encharca minha camisola. Minhas meias,
minha blusa, o casaco da Anna: está tudo gelado e molhado, e não consigo parar
de tremer. Eu me arrasto. As pontas dos meus dedos estão vermelhas. Não sabia
que o frio queimava, até este momento. Continuo me arrastando pelas trincheiras
de neve. Parece até que a pele do meu rosto está apertada, de tanto frio, e não
sinto meu nariz. Balas de gelo me perfuram. Mas continuo me arrastando até ver
um muro coberto de heras que se agiganta na escuridão. Com os dedos doendo,
seguro as trepadeiras que se enroscam. Puxo meu corpo para cima. E escalo o
muro. Escalo mais. O vento tenta me derrubar no chão. As heras se enroscam
nos meus tornozelos despidos, mas sacudo os pés, me livro delas e jogo uma
perna por cima do muro. E aí minhas pernas desistem, as águas paradas sobem,
e vou caindo, caindo, caindo.
39
Uma coisa quente encosta no meu nariz.
Pisco. O céu está repleto de estrelas cadentes, indo para lá e para cá como
fogo-fátuo, como as pequenas criaturas brilhantes das quais a Anna falou, tantas
que não consigo fazer desejos para todas ao mesmo tempo. Estou dormindo em
cima de uma nuvem que é tão, mas tão macia, que eu poderia ficar aqui para
sempre.
Um focinho cinza quente, olhos castanho-escuros e uma mecha em forma
de faísca entram no meu campo de visão.
– Lume de Luar!
Sento em meio à nevasca, entre os flocos ardentes que não são estrelas
cadentes coisa nenhuma, e abraço seu pescoço. A égua tem cheiro de maçã.
Passo meus dedos trêmulos na sua crina, chorando porque ela ainda está aqui.
– Tive tanto medo – digo, me afastando um pouco, procurando seus olhos.
– Eu…
Uma sombra passa lá em cima, e nós duas olhamos para o céu.
Uma mancha escura se move através das nuvens, a uma altura
impossível, voando em círculos perfeitos. Puxo o ar e seguro. Fico trançando os
dedos no focinho da Lume de Luar, e seguimos a sombra com os olhos.
As asas negras do Volkrig batem uma vez, e aí ele vira bruscamente na
nossa direção. Fazendo espirais cada vez mais estreitas, até ficar bem em cima
do jardim do relógio de sol.
– Ele nos viu!
Tateio em busca do gibi e caio de joelhos. A Lume de Luar fica passando
o focinho no meu pescoço, nas minhas costas, como se estivesse procurando
alguma ferida, mas nunca vai encontrar em nenhum desses lugares. Minhas
feridas são mais profundas.
A sombra do Volkrig passa por nós.
Então, a Lume de Luar bufa. Por um segundo doloroso, penso que uma
das penas afiadas do Volkrig a tinha cortado, como no sonho que tive com o
papai. Mas não. Seus olhos estão alertas, suas orelhas, viradas para a frente.
Abaixa primeiro a cabeça, depois um joelho ossudo, em seguida o outro e, por
fim, seu traseiro também encosta no chão. Olha para trás, para mim.
Solto um suspiro de surpresa.
Não consigo andar, mas ela vai me carregar.
Com os dedos dormentes, seguro a base da sua crina. Uso minha última
gota de força para levantar o corpo até ficar com metade dele sobre suas costas.
A Lume de Luar levanta devagar, fazendo um movimento por vez.
– Vá para o muro dos fundos – sussurro. – Para o escudo espectral.
Seus passos são rápidos, porque sabe tão bem quanto eu que o Volkrig está
voando em círculos acima de nós. Um súbito grasnar atravessa a noite. Nenhum
falcão grasnaria tão alto. Nenhuma coruja pode ser tão cheia de ódio. E aí a
pressão do ar muda. De repente, a neve começa a soprar para o lado errado,
para longe de nós. Em vez dela, caem penas pretas. Dúzias, do tamanho do meu
braço e afiadas como lâminas. Grito porque uma corta minha pele.
Quando olho para cima, o Volkrig está a três metros de nós.
– Não!
Estou tão perto. O escudo protetor está quase completo. À medida que a
Lume de Luar se aproxima do muro, estico o corpo o máximo que posso,
segurando firme o gibi. Quase. Estou a dez centímetros de distância. Oito. Tão
perto…
A Lume de Luar solta um grito, porque uma pena a atingiu. Dobra o
lombo, e sei que a qualquer momento ela vai sair em disparada. Mas o portão
está fechado. Não temos para onde correr.
Estico o braço mais um pouco. Só faltam três centímetros!
Só que a sombra se aproxima. O barulho das suas asas é ensurdecedor.
Um casco preto-azulado do tamanho da minha cabeça bate no meu braço, e
grito. O gibi cai, com a capa para baixo. Com a parte laranja para baixo.
Não!
Inclino o corpo o máximo que posso, mas não tem como alcançar o gibi.
O Volkrig bate os cascos de novo, e só consigo sentir um cheiro podre, tão forte
quanto o de algas podres. Outro grito estridente corta o céu.
Não temos para onde correr.
A Lume de Luar vai para trás. Berro, apertando as pernas o máximo que
posso para não cair. O bater incessante das asas do Volkrig, que devem medir uns
seis metros cada, espalha a neve à nossa volta. Quando ouso olhar para cima,
vejo cascos preto-azulados afiados como facas e fortes como cassetetes batendo
no ar. Narinas abertas, vermelhas.
Mas os olhos dele… Os olhos dele não são cruéis.
“Ele tem seu lugar”, penso. “É isso que ele faz.” Os músculos da Lume de
Luar se encolhem embaixo de mim, e sinto um aperto no coração. Talvez não
seja culpa do Volkrig. Talvez não possamos condená-lo. Mas sabe o que nós
fazemos? Lutamos. E vamos continuar lutando até não termos mais condições.
– Vá! – grito.
A Lume de Luar não precisa de nenhum outro incentivo. Afundo meus
calcanhares desnudos nas laterais do seu corpo para conseguir me segurar
enquanto ela corre. Chispa no meio do labirinto de jardins, levantando neve com
os cascos. A sombra do Volkrig nos acompanha. A Lume de Luar faz uma curva
fechada e entra na horta de temperos, depois desvia das estátuas. Todos os
portões estão fechados. Todos os muros são altos demais para pular. A sombra
continua nos seguindo. Cheiro de mar pútrido, bem em cima de nós. As asas dele
batem com mais força. Seus cascos preto-azulados rangem nas nossas costas.
Minha camisola rasga, e sinto a pontada de um corte no meu ombro, mas não
solto a crina da Lume de Luar.
Tem que existir uma saída dos jardins.
Tem que existir.
É isso que eu faço. Não desisto.
Aperto os calcanhares nas laterais do seu corpo, e a Lume de Luar circula
um laguinho de pedra com uma estátua do deus Apolo. Ouço o som de algo
quebrando atrás de nós. Os cascos do Volkrig bateram na estátua e quebraram a
cabeça do Apolo. Chegamos ao fim da horta e guio a Lume de Luar para a
direita, entrando no jardim das rosas. Aqui tudo é mais estreito. As plantas
cresceram demais. Galhos desgrenhados nos arranham, mas pelo menos a
abóbada que eles criaram atrasa o Volkrig. O túnel de rosas mortas pelo frio do
inverno termina, e saímos de repente em um espaço mais amplo. Esqueletos de
azaleias açoitam as laterais do nosso corpo, mas não há nada sobre nossas
cabeças. Sem treliças. Sem trepadeiras grandes demais.
Só neve e uma sombra sinistra.
O medo chega ao fundo no meu peito. Será que é assim que tudo vai
acabar?
Mas a Lume de Luar não para de correr. Enfio os calcanhares nos seus
flancos, tentando fazê-la ir para a esquerda, dar meia-volta e ir para o jardim do
relógio de sol, só que ela me ignora. Está de cabeça baixa, sua crina chicoteia
meu rosto, e seus músculos parecem feitos de gelo e de aço. Então, de repente,
algo range embaixo de mim.
Fico sem ar.
A Lume de Luar bate a pata no chão mais uma vez e salta para a noite.
Asas de seis metros batem, uma de cada lado. Agarro sua crina, aperto ainda
mais os tornozelos contra seu corpo, e meu coração para de bater de tanta
emoção. Curada! Finalmente, ela está curada! O vento passa depressa por nós.
Para no meu cabelo, empurra suas asas e nos ergue.
Estamos
voando.
40
Esqueço o Volkrig. Esqueço as águas paradas e o vento congelante.
O corpo da Lume de Luar parece tão vivo sob o meu. O bater de suas asas
brancas faz um barulho que mais parece o de um trovão. Suas costas ondulam
quando ela se lança nas nuvens, cada vez mais alto.
Tonta, olho para baixo e vejo o mapa do jardim descuidado embaixo de
nós. Voamos por cima das roseiras mortas e de seus galhos afiados. Por cima do
chafariz quebrado e das heras ávidas. Voamos por cima do telhado do hospital.
Voamos acima do escudo espectral que, sem o gibi, jamais ficará completo, mas
tudo bem. Somos um prisma de luz agora.
Levo a mão ao peito, mas aqui em cima o ar é tão limpo que não sinto
necessidade de tossir. Consigo levar ar até os meus pulmões e não tenho águas
paradas e turvas, nem um pingo delas. Quando olho para baixo de novo, vejo que
estamos voando até mais alto do que o Volkrig.
O Corcel Negro não passa de uma lembrança.
A Lume de Luar bate as asas, nos levando ainda mais alto. Quero voar
alto, muito alto, na altura do céu.
41
Será que o passarinho de asa quebrada da Marjorie conseguiu voar tão alto?
Será que algum ser vivo na face da Terra chegou a esta altura, ou esse é
um domínio que só os deuses flutuantes atingem?
42
Posso contar um segredo?
Agora sei por que o Lorde dos Cavalos fez a travessia para o nosso mundo
e adotou o nome de Thomas e decidiu morar em uma casinha. É porque o nosso
mundo, que se esparrama lá embaixo – os montes e as árvores e o sol que bate
nos telhados –, é muito mais do que apenas marrom e cinza. Tem cores. Tem
verdes e vermelhos e azuis intensos como os do mar.
Você só precisa saber onde procurar.
43
Quando acordo, vejo nuvens brancas.
Levo um momento para reconhecer a pintura no teto do quarto da Anna.
Minha cabeça dói de uma maneira monótona, e minha garganta está muito seca,
mas me sinto aquecida.
Sento na cama.
As janelas estão abertas, e o ar fresco entra no quarto. Tem uma bandeja
com chá fumegante na mesinha de cabeceira. O sino de prata para chamar as
irmãs. Um frasco novinho, cheio de xarope. O dr. Turner deve ter vindo me ver.
O Arthurzinho está sentado aos pés da cama, desenhando em silêncio,
debruçado sobre um leque de papéis soltos. Os lápis de cor quebrados da Anna
estão espalhados sobre a colcha, e ele está tentando desenhar com um toco de
lápis azul.
Olho para fora. Quantos dias passei aqui, me recuperando? A última coisa
que lembro são das asas da Lume de Luar batendo no ar e o sol nascendo no
horizonte, tingindo o céu com belos tons de rosa e de roxo. E o sol era tão lindo,
de um amarelo-claro, o mesmo tom de amarelo da manteiga que derrete na
torrada que está ao lado do chá.
Torrada.
Estou faminta.
Respiro fundo, hesitante, testando meus pulmões. Mordo um pedaço, e a
torrada desce pela minha garganta dolorida. Aquela dor lancinante diminuiu. Eu
me sinto melhor.
O papel vermelho desapareceu.
Viro o corpo para o Arthur.
– O que aconteceu? – pergunto. Meu corpo dói tanto que devo ter caído da
Lume de Luar e rolado até o chão. – As irmãs me encontraram na nevasca?
Mas o Arthur nunca fala nada, e também não me responde agora.
Uma preocupação estranha sobe pelo meu estômago, e me viro para o
espelho lateral. Está vazio. Pego o espelho de mão que o Thomas me deu. Vazio
também. E a mesma coisa acontece no espelho sobre a cômoda. Pego a colher
de chá e fico observando meu reflexo disforme.
Nada.
Onde estão os cavalos alados?
Para onde foram?
Viro o corpo e ouço um farfalhar de papéis. Puxo um maço de papéis que
alguém deixou do meu lado. O gibi do Popey e! A última vez que o vi, estava
caído na neve. Está amassado e sujo, mas alguém deve tê-lo encontrado e
tentado desamassar as páginas. Preso nele, tem um bilhete, com a letra do
Benny.
Desculpe por ter quebrado seus lápis. Fico feliz
que você esteja melhorando. Eu te perdoo por
ter roubado meu gibi. Pode pegar emprestado,
se quiser.

Sinceramente,

Benny

(P.S.: Mas só até você melhorar!)

Fico olhando para a dedicatória.


O Benny me emprestou seu objeto mais querido.
Será que eu flutuei até um mundo diferente, mais gentil? Olho em volta,
atordoada, mas os mesmos deuses ainda flutuam no teto, e o mesmo cobertor de
lã está pendurado na janela.
Então o Arthur solta um suspiro, frustrado com o lápis azul que não
desenha, e me dou conta de que fiz algo mágico. Estive no céu nas costas de uma
égua alada. Sou uma verdadeira exploradora, exatamente como a Anna disse
que eu era.
Uma ideia me vem à cabeça. Tiro o estilete da Anna da gaveta secreta, e
o lápis mais próximo, o laranja. Está quebrado ao meio, sem ponta. Pressiono a
lâmina em uma das metades e vou raspando. Raspo até ficar apontado com uma
ponta tão fina quanto as que a Anna fazia, depois aponto a outra metade também.
Agora são dois lápis cor de laranja.
Entrego um para o Arthur.
– Pode pegar este emprestado, se quiser – digo.
O Arthur pisca algumas vezes, depois pega o lápis e mergulha nos seus
papéis de novo, desenhando mais rápido. Entusiasmada, pego os outros pedaços
dos lápis quebrados. Aponto o 868-AZUL LAZÚLI e os tocos quebrados do 876-
ROXO HELIOTRÓPIO, até todos os lápis quebrados ficarem inteiros de novo.
Agora tem o suficiente para mim e para o Arthur e para todas as crianças do
hospital terem seus próprios pedaços de cor.
E aí olho com atenção o desenho do Arthur. É tosco e infantil. As pernas
de trás estão dobradas errado, mas as asas…
– Posso ver, Arthur?
Ele me entrega o papel e olha para o espelho pendurado na parede do
quarto da Anna. Imediatamente começa outro desenho. Vejo uma sombra de
movimento à minha esquerda, onde coloquei o espelho que o Thomas me deu.
Viro a cabeça depressa nessa direção, e lá está ela.
A Lume de Luar.
Parada, quieta, ao lado da cama refletida, olhando meio melancólica pela
janela refletida, onde a ponta do cobertor está presa para deixar a luz entrar. Tem
vestígios do meu chá no seu focinho.
– Lume de Luar!
A égua se vira. Ela me ouviu. Pela primeira vez, minha voz chegou até o
outro lado do espelho, e a Lume de Luar pisca os olhos castanho-claros para
mim.
Outra égua chega perto dela. É marrom, delicada e tem cheiro de
lavanda. Simplesmente sei disso. E, ao lado dela, tem um capão e outras duas
éguas. Cor de areia com crina castanho-escuro.
– Eu sabia que vocês iam voltar – digo.
O Arthur também se virou para o espelho. Olho mais de perto o papel que
está na minha mão. O cavalo desenhado é branco com focinho cinza. Entre os
olhos, tem uma mecha no formato de uma faísca.
Meu coração faz rá-tá-tá-tá, rá-tá-tá-tá.
Lembro que o Arthur está sempre olhando atentamente para objetos que
refletem – a concha da cozinha, a tina de metal, os enfeites de Natal – e me dou
conta de que, talvez, não seja só o Thomas e eu que vemos os cavalos.
– Arthur – digo, bem devagar –, você vê os cavalos nos espelhos?
Mas ele não fala nada.
– Você os vê, não é mesmo?
E, de novo, o Arthur não fala nada.
Bem devagar, porém, um sorriso se abre entre suas bochechas muito, mas
muito, cor-de-rosa.
Nota da autora
O primeiro lampejo de ideia para O mistério dos cavalos alados me veio durante
uma longa viagem de carro que fiz para ir a uma conferência de bibliotecários
do outro lado do estado da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, onde nasci. O
rádio do meu carro estava quebrado, e me vi sozinha, com algumas horas de
silêncio, o que, para mim, é uma raridade. À medida que fui passando pelas
fazendas e pelos cavalos, meu pensamento foi longe, e lembrei de todos os livros
que me afetaram profundamente na minha infância. Eu devorava obras como O
jardim secreto e Crônicas de Nárnia, que combinavam realidade, história e
fantasia, escuridão e emoção e, acima de tudo, continham uma magia
verdadeira. Comecei a sonhar acordada com um lugar mágico e, quando
cheguei ao meu destino, a Emmaline me parecia tão real quanto minha própria
irmã.
Comecei a trabalhar neste livro pesquisando as doenças que acometiam as
crianças durante a Segunda Guerra Mundial e, de repente, minha pesquisa deu
uma reviravolta pessoal. Meu avô faleceu há alguns anos e, enquanto escrevia O
mistério dos cavalos alados, acabei encontrando uma coleção de documentos e
suvenires do tempo em que ele serviu nas Forças Aéreas dos Estados Unidos,
durante a Segunda Guerra Mundial. Quando meu avô tinha apenas 18 anos, seu
avião foi abatido enquanto sobrevoava a Itália, e ele foi levado a um campo de
prisioneiros de guerra alemão, do qual, felizmente, foi libertado um ano depois. O
homem soturno, prisioneiro de guerra, da foto preto e branco que descobri
contrastava muito com o homem amável e carinhoso que eu conhecia. Meu avô
foi fazendeiro e construiu uma família. Amava pescar e com frequência
devorava tortas de maçã caseiras. Entre suas coisas, encontrei uma carta que ele
tinha escrito sobre a importância de ver beleza nos tempos sombrios de guerra,
que teve um impacto profundo em mim. Resolvi transmitir essa mensagem na
minha história pelos olhos de alguém pequeno e sozinho no mundo, que tinha a
rara habilidade de encontrar essa beleza.
Para capturar a atmosfera da Inglaterra no tempo da guerra, onde a
Emmaline viveu, recorri ao projeto Pessoas da Segunda Guerra Mundial, da rede
BBC, um tesouro de relatos pessoais de soldados, enfermeiras, civis e crianças
que viveram esse período. Li sobre um médico que criou um sistema de
diagnóstico por cores para crianças com tuberculose, bem parecido com o do dr.
Turner. Li sobre uma enfermeira que se apaixonou por um soldado que estava
tão doente que os dois jamais se beijaram – igualzinho ao que acontece com a
Anna. E, à medida que fui pesquisando sobre a tuberculose, pensei que, para as
crianças, a doença poderia ser um paralelo das batalhas que os soldados estavam
enfrentando.
Você pode estar curioso para saber que outras partes deste livro são
baseadas em fatos históricos. Apesar de o hospital Briar Hill ser fictício, houve
diversos hospitais infantis e alas de tuberculosos funcionando durante a guerra.
Ocasionalmente, era permitido que os pais visitassem os filhos, mas era comum
separá-los por divisórias de vidro para evitar que a doença se espalhasse. Por
causa da grande lotação e da falta de recursos, a tuberculose foi a enfermidade
que prevaleceu durante a guerra, mas, graças aos avanços da medicina, em
1945, quando a Segunda Guerra terminou, os casos já estavam diminuindo (com
uma queda abrupta nos anos 1950, depois que as vacinas foram desenvolvidas).
Hoje, apesar de a tuberculose ter sido praticamente erradicada nos Estados
Unidos e na Grã-Bretanha, um terço da população mundial é infectada pela
doença.
A Emmaline chamava a tuberculose de “águas paradas” por causa do
provérbio latino “águas paradas são águas profundas”, que significa que pessoas
quietas com frequência escondem uma natureza profunda. Para Emmaline, esse
ditado significa que as crianças podem até ser subestimadas, consideradas
simplórias, mas podem estar lutando batalhas mais profundas, como
enfermidades, que nem sempre são visíveis na superfície.
Quando a Emmaline descreve seus vizinhos indo embora das principais
cidades para buscar a segurança da área rural, está falando da Operação
Flautista de Hamelin, parte de uma grande evacuação que ocorreu na Grã-
Bretanha, durante a qual mais de 3,5 milhões de pessoas foram realocadas.
Shropshire, a região onde se localiza o hospital Briar Hill, era um dos principais
destinos das crianças, porque era longe de grandes cidades e fábricas, que
podiam ser alvo de bombardeios. A padaria da família de Emmaline foi inspirada
em uma construção real, a Padaria Cooperativa, localizada em Nottingham, na
rua Meadow, que foi muito bombardeada durante o ataque à cidade que ocorreu
em maio de 1941.
O sargento Whatley, pai de Thomas, é fictício, apesar de ter sido inspirado
em oficiais verdadeiros como o tenente-brigadeiro Frederick Browning, o major-
brigadeiro John Campbell e o tenente-brigadeiro William Gott. Os emblemas na
medalha de honra do pai de Thomas, assim como os dizeres Utrinque paratus e
Bellerophon et Pegasus, são reais. A medalha era concedida pela Primeira
Divisão da Força Aérea Britânica e também era utilizada por soldados treinados
nos Serviços Especiais da Força Aérea. Dizem que a insígnia do cavalo alado e
seu cavaleiro foi desenhada pela esposa do tenente-general Browning, a famosa
escritora Daphne du Maurier (cujos livros estão entre os meus preferidos).
Muitos leitores me perguntam o que acontece exatamente com Emmaline
nesta história. Alguns acham que ela não sobreviveu à doença, e que os capítulos
finais representam seu sonho de encontrar a paz. Outros acreditam que ela
sobreviveu, sim, e ficou em Briar Hill para ajudar outras crianças. Não acho que
exista uma única resposta, assim como não posso dizer se Thomas realmente é o
Lorde dos Cavalos, se os cavalos alados eram verdadeiros ou existiam apenas na
imaginação da Emmaline. Acho que cada leitor tem o direito de acreditar no que
quiser. Seja qual for a verdade da Emmaline, tenho certeza absoluta de que a
escuridão pode ser derrotada pela esperança, e sei que uma única menina, não
importa quão pequena seja, pode realizar seus sonhos.
Boas cavalgadas,
Megan Shepherd
Agradecimentos
Não é por acaso que a ideia para a história de Emmaline surgiu durante uma
viagem de carro, porque a criação deste livro também foi uma jornada, e tenho
muita sorte de ter trabalhado com um conjunto de personagens da vida real tão
especial.
Tive certeza de que Rebecca Weston seria a editora perfeita para este
livro quando ela me mandou seu próprio escudo espectral, com oito objetos
coloridos mágicos e tudo o mais. À medida que trabalhamos juntas, fui
profundamente inspirada por sua dedicação à sua arte, sua perspicácia, e sua
paixão por contar histórias que atravessam o tempo. Resumindo, Rebecca, você
me fez voltar a acreditar que a magia existe.
Josh Adams, meu agente da Adams Literary, defendeu este livro desde o
começo. Sua fé nesta história me trouxe confiança em um momento que eu
precisava dela desesperadamente, e sou muito grata ao seu apoio incansável.
Também sou especialmente grata a A. Adams, a primeira jovem leitora deste
livro, por seus conselhos e seu entusiasmo.
Obrigada a meus primeiros leitores: Megan Miranda, Carrie Ry an e April
Tucholke, que fizeram a gentileza de criticá-lo e de me oferecer sua amizade
inestimável. Obrigada também ao meu amigo James Ballentine, por ceder seu
conhecimento da história militar britânica, e ao meu sogro, Gene Shepherd, por
seus conhecimentos médicos.
Gostaria de expressar minha gratidão às equipes da Delacorte Press e da
Random House, que também defenderam este livro: Barbara Marcus, Beverly
Horowitz, Judith Haut, Dominique Cimina, Anna Gjesteby, John Adamo, Kim
Lauber, Melissa Zar, Nick Elliot, Laura Antonacci, Adrienne Waintraub, Lisa
Nadel, Kate Gartner, Heather Kelly, Jenica Nasworthy, Colleen Fellingham,
Tamar Schwartz, Alice Rahaeuser, Shameiza Ally, Susan Hecht, Kate Sullivan e
Whitney Cony ers.
E, finalmente, meu marido, Jesse, é culpado de me encorajar a olhar
fixamente para as paredes e a sonhar acordada. Obrigada por acreditar em mim.
E, como sempre, um agradecimento especial aos meus leitores. Se
escrever este livro foi uma jornada, vocês são o destino, e espero que minhas
palavras encontrem um lugar em seus corações.
SUA OPINIÃO É MUITO IMPORTANTE
Mande um e-mail para opiniao@vreditoras.com.br
com o título deste livro no campo “Assunto”.

1a edição, mar. 2017


FONT E Perpetua 12/15,5 pt; Harrington 45 pt

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