Uma Viagem de Psilocibina - Revista Piaui PDF
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questões psicodélicas
Imagem escaneada do cérebro em atividade. O ego soberano, com todas as suas armas e medos, seus ressentimentos do
passado e preocupações com o futuro, simplesmente não existia mais FOTO_SCIENCE PHOTO LIBRARY
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16/11/2019 Uma viagem de psilocibina
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M
inha segunda viagem psicodélica começou ao redor de um altar,
no meio de um loft no subúrbio de uma pequena cidade na Costa
Leste dos Estados Unidos. No altar, orando, havia uma bela
mulher com cabelos louros compridos repartidos ao meio e maçãs do
rosto proeminentes, que só menciono porque mais tarde apareceriam
durante sua transformação em índia mexicana. Sentada diante do altar de
frente para mim, Mary recitava uma reza dos nativos americanos, longa e
elaborada, de olhos fechados. Ela invocava o poder de cada um dos
pontos cardeais, dos quatro elementos, dos reinos animal, vegetal e
mineral, a cujos espíritos implorava que me ajudassem na minha viagem.
Tudo isso deve parecer ridiculamente piegas, eu sei, mas a convicção com
que Mary conduzia a cerimônia, junto com o aroma das plantas
queimadas e os sons da asa sacudida no ar – mais o meu próprio
nervosismo a respeito da viagem –, tudo isso produzia um encantamento
que me permitiu pôr em suspenso a minha incredulidade. Eu tinha
decidido me entregar a esse grande cogumelo e a Mary, a guia a quem
confiei minha psique nessa viagem, e a cerimônia contava tanto quanto a
química. Nesse aspecto, ela agia mais como xamã do que como psicóloga.
E agora quem estava sentado diante dela na sala de tratamento era eu, o
próximo ser senciente na fila, esperando ser despertado. Contei minha
intenção: aprender o que pudesse sobre mim mesmo e também sobre a
natureza da consciência – a minha própria, mas também a dimensão
“transpessoal”, se é que essa dimensão existe.
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Quando o levei à boca, o cogumelo era seco como o deserto e tinha gosto
de papelão com terra, mas alternar cada mordida com um pedaço de
chocolate ajudou. Exceto a parte nodosa bem na base do estipe, comi
tudo, o que chegou a 2 gramas. Mary planejava me oferecer outros 2
gramas durante a viagem, num total de 4. Era aproximadamente a dose
dada aos voluntários nos experimentos da Universidade de Nova York e
da Hopkins, o equivalente a quase 300 microgramas de LSD.
Conversamos calmamente por uns vinte minutos até que Mary notou
minha face ruborizar e sugeriu que eu me deitasse e colocasse uma
máscara de dormir. Escolhi óculos de plástico pretos e modernos, o que
em retrospecto me pareceu um erro. O perímetro era todo forrado com
espuma preta de poliuretano de modo que, ao abrir os olhos, o usuário se
deparava com uma escuridão intensa.
Assim que ela colocou a primeira música – uma composição new age
realmente insípida de um tal de Thierry David (um artista, como vim a
saber mais tarde, cujos trabalhos concorreram três vezes a prêmios na
categoria Melhor Álbum Chill/Groove) –, fui imediatamente lançado em
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Na verdade, isso não é de todo preciso: tudo que eu tinha que fazer era
tirar os óculos, e a realidade, ou pelo menos algo impreciso baseado nela,
iria se reconstituir. E foi o que fiz, em parte para satisfazer minha vontade
de ver que o mundo ainda existia, mas sobretudo porque precisava muito
urinar.
M
as tinha uma coisa que eu precisava fazer antes de pôr os óculos
de novo e deitar, um pequeno experimento que contei a Mary
durante a viagem. No meu estado, eu não tinha certeza se
conseguiria, mas descobri que mesmo no meio da viagem era possível me
trazer para algo semelhante à normalidade por alguns momentos.
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experiência: rostos são sempre convexos, portanto essa máscara oca tem
um erro de previsão a ser corrigido.
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Q
vez no mundo computadorizado, mas alguma coisa tinha mudado,
sem dúvida resultado da dose extra. Antes eu navegava por aquela
paisagem como eu mesmo, vendo a cena de uma perspectiva que
reconhecia como minha, com minhas atitudes intactas (altamente crítico
da música, por exemplo, e ansioso pela possibilidade de surgimento de
demônios); agora eu via aquele “eu” familiar começar a se desmontar à
minha frente, primeiro aos poucos e depois ruindo de uma só vez.
Mas quem era esse “eu” capaz de ver essa cena de sua própria
dissolução? Boa pergunta. Não era eu, exatamente. Aqui, os limites da
linguagem se tornam um problema: para conseguir explicar por completo
essa divisão que abriu minha perspectiva, eu precisaria de um novo
pronome de primeira pessoa. O que estava observando a cena tinha um
ponto de vista e uma forma de consciência muito distintos do meu eu
habitual; de fato hesito em usar o “eu” que denota a consciência atuante,
pois era algo muito diferente da minha primeira pessoa usual. Enquanto
o “eu” sempre foi um sujeito encapsulado nesse corpo, aquele não parecia
estar preso a corpo algum, embora eu agora tivesse acesso à sua
perspectiva. Essa perspectiva era extremamente indiferente, neutra em
todas as questões de interpretação, e não se perturbava mesmo diante do
que poderia ser visto, não sem razão, como um desastre pessoal não
mitigado. Contudo, o que é “pessoal” tinha sido obliterado. Tudo o que
antes eu era e tudo que se chamava eu, esse eu construído em seis
décadas, fora liquidificado e disperso pela cena. O que sempre tinha sido
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Quando repenso essa parte da viagem, às vezes acho que essa consciência
duradoura pode ter sido a “Onisciência” que Aldous Huxley descreveu
durante sua viagem com mescalina em 1953. Huxley nunca explicou de
fato o que queria dizer com o termo – exceto ao falar da “ampla sabedoria
inerente à Onisciência” –, mas ele parece estar descrevendo uma forma de
consciência universal, compartilhável, não presa a um único cérebro.
Outros chamaram isso de consciência cósmica, Sobrealma, Mente
Universal. Supostamente ela existe fora de nossos cérebros – como
propriedade do Universo, da mesma forma que a luz ou a gravidade, e
tão difusa quanto elas. E igualmente constitutiva. Certos indivíduos em
determinados momentos ganham acesso a esse modo de percepção, o que
lhes permite perceber a realidade à luz dessa consciência aperfeiçoada,
pelo menos por algum tempo.
N
a verdade, essa compreensão chegou um pouco mais à frente, na
última parte da viagem com psilocibina, quando a experiência se
tornou mais sombria. Depois de passar o que pareceram horas no
mundo computadorizado – pois minha noção de tempo se perdeu por
completo –, registrei o desejo de voltar à realidade e urinar outra vez.
Mesmo esquema: Mary me guiou até o banheiro pelo cotovelo, como se
eu fosse um idoso, e me deixou lá para produzir outra safra de
diamantes. Porém, dessa vez, arrisquei me olhar no espelho. O que me
olhou de volta foi uma caveira humana, a não ser pela mais fina e pálida
camada de pele esticada sobre ela, firme como a pele de um tambor. O
banheiro era decorado com arte popular mexicana, e na mesma hora a
cabeça/caveira me trouxe à mente o Dia dos Mortos. Com suas cavidades
profundas e uma veia relampejante ziguezagueando de um lado até a
parte de baixo da têmpora, reconheci essa cabeça cinza/caveira como a
minha própria, mas ao mesmo tempo como a de meu falecido avô.
Isso era surpreendente, porque nunca tive muita afinidade com Bob, o
pai do meu pai. De fato eu o amava por tudo que nele parecia diferente
de mim – ou de qualquer outra pessoa que conheci. Bob era
extraordinariamente alegre e parecia ser um homem simples incapaz de
pensar mal de alguém ou ver o mal no mundo. (Sua esposa, Harriet,
contrabalançava amplamente a generosidade de espírito dele.) Bob teve
uma longa carreira como vendedor de bebidas, fazendo rondas semanais
nas boates da Times Square para uma empresa que todo mundo, exceto
ele, sabia ser de propriedade da máfia. Ao chegar à idade que tenho hoje,
ele se aposentou e passou a pintar cenas lindamente ingênuas e
abstrações com cores espetaculares; eu havia trazido uma delas para a
sala de Mary, junto com uma aquarela de Judith, minha mulher. Bob era
um homem genuinamente feliz e sem angústias que viveu até os 96 anos,
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pintando telas cada vez mais coloridas, abstratas e livres à medida que
aproximava o seu fim.
Vê-lo tão vividamente no meu reflexo foi arrepiante. Poucos anos antes,
ao visitar Bob numa casa de repouso no deserto do Colorado onde ele
logo morreria, vi um homem que sempre estivera em forma e cheio de
vigor (até os 80 anos ele manteve o hábito diário de plantar bananeira)
contraído e abandonado numa pequena cama, parecendo um parêntesis
de pele e ossos. Os músculos esofágicos necessários para engolir não
funcionavam mais, e ele estava preso a um tubo de alimentação. A essa
altura, sua situação era triste em muitos aspectos, mas por alguma razão
me fixei no fato de que ele não voltaria a sentir o gosto da comida
passando pelos lábios.
Arrisquei olhar de novo para ela e dessa vez fui recompensado com a
visão de uma mulher jovem arrebatadora, novamente loura, mas agora
na plenitude radiante da juventude. Mary era tão linda que precisei
desviar o olhar.
minha vida; sempre havia algo no caminho. Eu poderia fazer isso aqui e
agora, e foi o que fiz.
D
eixei de fora uma parte importante da minha viagem ao mundo
subterrâneo: a trilha sonora. Antes de mergulhar na última parte da
viagem, pedi a Mary que, por favor, parasse de tocar música de spa
e colocasse algum clássico. Escolhemos a Suíte para Violoncelo nº 2, de
Bach, gravada por Yo-Yo Ma. A suíte em ré menor é uma peça triste e
concisa que ouvi muitas vezes antes, com frequência em funerais, mas
que nunca tinha realmente ouvido até aquele momento.
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sta foi a minha viagem de psilocibina, que relatei da forma mais fiel que
E
pude. Enquanto leio essas palavras agora, dúvidas voltam com
força total: “Tolo, você estava sob o efeito de drogas!” E é verdade,
você pode pôr esse rótulo conveniente na experiência e jogá-la fora,
para nunca mais ter que lidar com ela. Sem dúvida esse foi o destino de
inúmeras viagens psicodélicas cujos viajantes não souberam muito bem o
que fazer, ou às quais não conseguiram dar sentido. No entanto, embora
seja verdade que o que me lançou nessa viagem foi uma substância
química, também é verdade que experimentei tudo que experimentei:
esses foram os eventos que aconteceram na minha mente, fatos
psicológicos que não foram nem sem peso, nem voláteis. Ao contrário da
maioria dos sonhos, essas experiências deixaram traços indeléveis e
acessíveis.
profundezas. Isso significa que ela não existe, que sou psicologicamente
mais forte do que imaginava? Talvez o episódio com Bob tenha a ver com
isso: talvez eu fosse mais parecido com ele do que imaginava, e não tão
profundo ou complicado como gosto de imaginar. (O reconhecimento da
minha própria superficialidade se qualifica como uma revelação
profunda?) Mary não estava tão certa: “A cada vez você traz um ‘eu’
diferente para a viagem.” Os demônios podem surgir na próxima vez.
substância química por poucas horas, essas horas podem nos dar uma
oportunidade de ver como isso é. E talvez de praticar o estar lá.
Trecho do livro Como Mudar sua Mente, a ser lançado pela editora
Intrínseca em novembro.
[2] Robert Gordon Wasson (1898-1986) foi um botânico amador que fez
significativas pesquisas a respeito de cogumelos. No pioneiro relato “Em
busca do cogumelo mágico”, publicado na revista Life em 1957, ele
descreveu sua experiência de ingestão de cogumelos alucinógenos do
gênero Psilocybe.
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