Sygkhronos
Sygkhronos
Sygkhronos
A F o r m a ç ã o d a P o é t ic a
M u s ic a l d o C in e m a
Ney Carrasco
© by Via Lettera para a edição em língua portuguesa.
Ia edição: setembro de 2003
C 299f
Carrasco, Ney
Sygkhronos. A Formação da Poética Musical do Cine
ma / Ney Carrasco - São Paulo : Via Lettera : Fapesp, 2003.
200 p.; 1 6 x 2 3 cm.
ISBN 85-86932-97-3
Equipe de Realização
O uverture 5
P ró lo g o - M u sic a 11
A linguagem musical 1 4
O eixohorizontal 14
O eixovertical16
A relação da música com o texto poético 2 0
A relação polifônica da música com o movimento 2 4
1 II M e lo d ra m a 29
As origens do drama musical no Ocidente 3 3
Comédia madrigal epantomima 35
Intermedio 3 7
e
Masque ballet de cour 3 9
Pastoral39
A dramaturgia operística 41
Recitativos
42
Coros 43
Peçasinstrumentais 4 3
Árias 4 4
Continuidade dramático-musical na ópera 4 5
Organização temporal da ópera 4 9
2 V o ix DE VlLLE 51
Gêneros cômicos do teatro musical 5 4
A influênciada
Commedia dell'arte 5 4
e
Intermezzo Opera buffa 5 5
Théâtres de la foire 58
Aquisições dramático-musicais do teatro popular 62
3 P a n t o m im a s L u m in o s a s 65
A música nos espetáculos ópticos e nos
primórdios do cinema 6 8
A música na formação da linguagem do cinema 71
Experimentando com música e imagens 7 6
Cue sheets 78
Coletâneas 82
A partitura original 90
Síntese e consolidação: "O nascimento de uma nação" 91
A ópera sem libreto 95
Vilões 97
Heróis 1 0 0
Heroínas 1 0 2
O amor 103
Construindo a narrativa com o
material temático musical 105
4 P l a y in g O n T he S creen 115
O reaprendizado do cinema 1 2 0
O film e "parcialmente sonoro" 1 2 2
05 níveis da intervenção musical126
A música como parte da ação 128
A nova polifonia audiovisual 133
Polifonia audiovisual: teoria e prática 144
O melodrama fílmico 153
A maturidade do leitmotiv 161
A descoberta da sonoridade 170
As convenções poéticas audiovisuais 180
De olhos e ouvidos bem abertos 191
R e f e r ê n c ia s B ib l io g r á f ic a s 195
O uverture
Pegue o contraponto da Idade Média e faça um paralelo com o filme. Você tem
um Cantus Firmus, que é o conteúdo dramático do filme. Nós não podemos aban
donar o Cantus Firmus. Então nós temos o Tenor, que seria o visual. E então nós te
mos o baixo, que poderia ser a música. Em alguns momentos, o baixo pára, volta
novamente e pára. (Apud Bazelon, 1975:228)
Contraponto é um termo que tem sua origem na terminologia musical, mais es
pecificamente na música polifônica. O fato de ele ser empregado para designar uma re
lação audiovisual aproxima esse tipo de composição, feita a partir de elementos sonoros
e visuais, da música, cuja matéria-prima exclusiva é o som. Por que via, então, ocorre essa
aproximação? A resposta, possivelmente, encontra-se no próprio conceito musical de
polifonia, como encontro de vozes independentes e simultâneas. Eisenstein usou exata
mente o termo "polifonia" para designar a relação do som com as imagens no cinema,
não se restringindo à música. Na "Declaração" (1990:218) que assina com Pudovkin e
Alexandrov, ele é objetivo: "Apenas o uso polifônico do som com relação à peça de mon
tagem visual proporcionará uma nova potencialidade no desenvolvimento e aperfei
çoamento da montagem".
Pode parecer incongruente, em um primeiro momento, a utilização do termo
polifonia para designar algo que não se restrinja ao universo sonoro. De fato, aplicar o
termo polifônico às imagens, em princípio, não seria correto. Contudo, se tomarmos
aquela acepção musical de polifonia, como encontro de vozes simultâneas e indepen
dentes, sua aplicação ao audiovisual começa a se tomar viável. As manifestações audio
visuais são, também, o encontro de muitas vozes simultâneas, que se manifestam por vias
muito diferentes: pela fala propriamente dita, pelos efeitos sonoros, pela música e pelas
6 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
imagens em movimento. A partir daí, o paralelo com a polifonia musical parece ser não
apenas possível, mas provável.
A aplicação da terminologia musical ao cinema abre um campo instigante para o
nosso questionamento. Se um conceito como o de polifonia pode ser aplicado ao audio
visual, podemos voltar nossa atenção para a música e observar a maneira pela qual ela
trata esse conceito, em que bases ele se fundamenta, quais são suas implicações, que re
gras orientam suas aplicações. Pela maneira como se comportam as vozes de um con
traponto, é possível entender melhor o comportamento das pistas de som e suas relações
com a banda de imagens no cinema. Obviamente, não se trata de um paralelo estanque.
As regras musicais não podem ser aplicadas ao cinema diretamente, nem seria o caso de
fazê-lo. Mas muitos dos princípios que orientam a composição musical podem ser en
contrados nas construções audiovisuais. Não foi por acaso que Eisenstein buscou tantos
termos musicais para desenvolver suas teorias de cinema.
Um desses princípios, diretamente associado à prática polifônica, é o sincronismo.
Fundamento básico dos veículos audiovisuais, as normas que regem a sincronia entre os
sons é matéria da arte e teoria musicais já há muitos séculos.
Assim como as várias vozes de um contraponto associam-se para formar uma úni
ca peça musical, a música pode associar-se a outras linguagens para que, em conjunto,
componham um novo texto, uma nova polifonia. O cinema, por exemplo, desenvolveu
uma polifonia própria, audiovisual, formada por muitas vozes: imagens e sons, tendo a
música como uma das vozes dessa polifonia.
O surgimento do cinema é um marco divisor de nossa história. Um marco que se
para a era da produção artesanal da industrial, da cultura de massa, da arte reprodutível.
Mas não é com o advento do cinema que têm início as associações de música com ou
tras linguagens. A linguagem complexa do cinema é herdeira de toda uma tradição dra
mática e musical da cultura ocidental. Nessa tradição, muitas são as manifestações nas
quais a música combina-se com a fala, com a estrutura dramática, com o gesto, com a
ação e com o movimento. John Williams fez o seguinte comentário a respeito do cine
ma: "Eu acredito que ele [o cinema] seja a ópera do século XX. Assim como Meyerbeer
e Bizet - o que eles foram para o entretenimento popular para a classe média na França
do século XIX, assim também os filmes o são neste século para um segmento da popu
lação" (apud Bazelon, 1975:194).
Não é apenas por seu impacto junto ao público que o cinema aproxima-se da ópe
ra. Ao incorporar a estrutura dramática, o cinema torna-se um herdeiro da tradição dra
mática do Ocidente. Mais especificamente, o cinema incorpora o próprio referencial
dramático-musical da época em que surgiu. A ópera e o teatro musical fornecem subsí
dios para o cinema desde que ele se tomou um espetáculo público.
Ao mesmo tempo em que incorporou essa tradição, o cinema deu início ao desen
volvimento de uma linguagem própria. No que diz respeito à música, especificamente,
todo um novo conjunto de relações começa a ser criado. Na poética do cinema, que co
meçava a se formar, a música ocupava uma posição fundamental. Ainda que conservas
se elementos que a ligavam à tradição operística e dramático-musical, já não era mais a
música da ópera, nem do teatro. Leonard Roseman apresentou a sua definição sobre o
Ouverture 7
ato de criar música para filmes da seguinte maneira: "Você usa todos os ingredientes da
música: contraponto, harmonia etc. Mas, basicamente, ela não funciona como música,
porque a propulsão não se dá por meio de idéias musicais. A propulsão se dá por meio
de idéias literárias" (apud Bazelon, 1975.186)1.
Ele ainda foi além, ao afirmar:
E ela [a música de cinema] é quase música, mas não totalmente. Ela faz fu
maça, mas não é charuto. Essa é a diferença entre um maravilhoso papel de pare
de ornamentado - você sabe, decoração de interiores - e um Jackson Pollock. E elas
têm diferentes funções. (...) E o que acontece musicalmente é que o material tor
na-se muito truncado, ao contrário do que ocorre em todas as outras formas lite-
rário-musicais, as quais nós podemos chamar de formas musicais, porque o
compositor pega o libreto e submete-o à música. O libreto ajusta-se à música (...).
Nos filmes, é justamente o oposto. O filme avança no projetor a noventa pés por
minuto, ele não pode ir mais rápido ou mais devagar e a mesma cena dura exata
mente o mesmo tempo todas as vezes e a sua música simplesmente tem que se ajus
tar a ela. E o minuto que você comprime em música sob esta diretriz e que você
escreve de maneira a que tudo se encaixe, a qualquer custo, suprimindo tempos ou
estendendo-os para que se encaixem, faz que você lide com avaliações
extramusicais, valores extramusicais. (Apud Bazelon, 1975:186)
Eu acho que muitas das melhores mentes musicais do país concluíram: "Bem,
música para filmes de Hollywood é simplesmente kitsch. Eu não vou abaixar os
meus padrões e me envolver com isso". Por outro lado, é possível ter uma atitude
positiva e dizer: "Esse é um grande desafio do século XX; esse é o verdadeiro meio
artístico do século XX; é onde eu posso realmente dar alguma contribuição". (Apud
Bazelon, 1975:196)
1. Leonard Roseman utiliza sempre o termo "literário", que nem sempre é o mais ade
quado. Em alguns casos, "dramático" seria mais eficiente.
8 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
Há uma coisa maravilhosa que Bernard Shaw disse em uma entrevista. O en
trevistador perguntou: "Não é uma desgraça que compositores sérios tenham que
se rebaixar escrevendo música para filmes?" E ele respondeu que achava que as pos
sibilidades da música de cinema eram ilimitadas e que lhe agradava muito mais
uma peça de música para filme do que uma cantata acadêmica que é executada uma
única vez e nunca mais ouvida novamente. (Apud Bazelon, 1975:191)
Hoje sabemos o quão longe a música de cinema pode ir, embora as duas posições
ainda coexistam. Há quem diga que o que vai ficar da música do século XX é a música
de cinema. Há quem diga que é um tipo de música menor, de segunda classe.
Este trabalho procura analisar o processo de formação da poética musical do cine
ma, da polifonia audiovisual. Ele se divide em duas partes: na primeira (Capítulos 1 e 2),
é abordada a origem das manifestações dramático-musicais do Ocidente: da ópera, até
os diversos gêneros do teatro musical. Na segunda (Capítulos 3 e 4), o cinema é aborda
do desde o seu surgimento. A formação de sua poética específica e a maneira como in
corpora e transforma a tradição dramático-musical são estudadas em seus princípios
teóricos e exemplificadas por meio da análise de filmes.
Como este é um trabalho cujo objeto possui uma característica multidisciplinar, po
dendo servir aos interesses de profissionais de cinema, música, comunicações, entre ou
tros, procuramos oferecer, sempre que possível, a informação m ínima necessária à
compreensão do estudo. Assim, um prólogo foi acrescentado com o objetivo de situar o
leitor que não possui uma formação musical específica. Para o leitor iniciado, o prólo
go é útil para que saiba quais são os conceitos musicais que orientam o trabalho como
um todo. Da mesma maneira, nos capítulos dedicados ao cinema, muitas vezes são apre
sentados conceitos básicos, que podem parecer desnecessários para os profissionais da
área. Contudo, como o entendimento de tais conceitos é fundamental para a compreen
são deste estudo, é necessário que eles estejam claros.
Um outro tipo de dificuldade que os trabalhos deste gênero apresentam diz respeito
à exemplificação. Quando se trata de música, é sempre possível apresentar a partitura.
Mas a partitura apresenta algumas limitações. A primeira delas é que ficam excluídos
aqueles que não são capazes de lê-la. A segunda é que, mesmo para os que são capazes
de lê-la, há uma grande distância entre a leitura e a audição musicais. No caso dos fil
mes, não é possível sequer apresentar algo equivalente à partitura musical. Assim, opta
mos por selecionar todos os exemplos, tanto musicais quanto filmográficos, de um
repertório acessível ao leitor. A grande maioria das passagens musicais pode ser encon
trada em gravações comerciais. Os filmes, em sua grande maioria, podem ser encontra
dos em vídeo ou d v d .
Por fim, cabe dizer que um trabalho acadêmico é, assim como um filme, o resul
tado de uma multi-autoria. No cinema, trabalham diversos profissionais de criação e téc
nicos: roteiristas, diretores de arte, de fotografia, desenhistas de produção, montadores,
compositores, músicos, iluminadores, cenógrafos etc. Quem assina o filme é o diretor,
como se fosse ele o único responsável por aquela obra. Na verdade, todos são responsá
veis, em maior ou menor grau, pelo filme. Muitas são as vozes na polifonia da criação
Ouverture 9
L a m u s ic a
No último diálogo do filme Todas as manhãs do mundo (Tous les matins du monde,
França, 1992), o compositor Sainte-Colombe (Jean Pierre Marielle) tenta fazer com que
outro compositor, Marin Marais (Gérard Depardieu), seu discípulo, compreenda o que
seria, para ele, o sentido da música. Ele diz que "a música existe para dizer o que a pala
vra não pode dizer". Será que ele tinha razão?
Freqüentemente, este tema é matéria de acaloradas controvérsias. A música não é
um assunto fácil de ser abordado, especialmente quando tentamos romper os limites es
tritos da terminologia musical. Em outras palavras, é possível falar de música pela pró
pria terminologia musical. É possível descrever uma peça musical sob os pontos de vista
melódico, harmônico, rítmico, instrumental etc. Porém, quando tentamos abordar a
música a partir de outros pontos de vista, tudo parece tomar-se nebuloso e intangível.
Abordagens mais científicas, rigorosas, respaldadas por metodologias tão eficientes quan
do aplicadas a outras linguagens, em muitos casos, não chegam a lugar algum ou avan
çam muito pouco. O teórico aplica sua metodologia e, depois de páginas e páginas de
complexas análises, o músico observa a passagem musical e, muito tranqüilo, conclui:
"é apenas uma cadência perfeita".
Em contrapartida, podemos falar sobre música, sem muito rigor, procurando des
crever a nossa experiência da audição musical. É o extremo oposto da abordagem rigoro
sa. Dizemos que a música nos provoca determinadas emoções ou sensações, que nos
envolve, que nos comove. Ainda assim, não conseguimos comunicar tudo o que repre
senta a experiência em si. A audição musical é um processo rico, complexo, de impli
12 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
cações tão sutis e variadas que as tentativas de descrevê-lo geram mais frustrações do que
satisfações. Sempre sentimos que o nosso discurso não chega sequer a aproximar-se do
que significou, realmente, aquela experiência.
Talvez Sainte-Colombe tivesse razão. Talvez a música resida no domínio do inefá
vel. Talvez não devêssem os tentar subtraí-la dessa instância, procurando criar
metalinguagens às quais ela não se abre. Mas é impossível. Queremos falar sobre músi
ca, assim como queremos falar sobre todas as coisas do mundo. Queremos descrever
nossas experiências mais íntimas, para que possamos compreendê-las melhor. Não se
ria a música a única a ser poupada.
Por outro lado, se invertermos os fatores da afirmação de Sainte-Colombe, chega
mos à seguinte proposição: "a palavra existe para dizer o que a música não pode dizer".
Deste modo, música e linguagem verbal são colocadas em domínios semânticos dis
tintos, de acordo com suas especificidades. Mas, ainda assim, algo as aproxima. Algo per
mite que elas sejam comparadas, ainda que em oposição uma à outra. O que as aproxima
é, justamente, o "falar", aqui usado com o sentido de "dizer algo". Tanto a música quan
to a linguagem verbal são capazes de "dizer algo", cada uma à sua maneira e em com
plementaridade, pois cada uma é capaz de dizer aquilo que a outra não o é.
Difícil é dizer o que a música diz. Mas, se Sainte-Colombe estava certo, não seria
possível dizê-lo com palavras, apenas com a própria música. Com isto, percebemos por
que é tão difícil falar sobre música. Particularmente, vemos o quanto é difícil apreender
e verbalizar o significado musical. Também percebemos porque, para falar sobre músi
ca, é preciso utilizar a terminologia musical, que nos permite compreender sua sintaxe
específica.
A complementaridade entre música e linguagem verbal materializa-se na música
vocal. Quando associadas, uma empresta à outra aquilo que possui, em termos de signi
ficação e expressividade, e toma emprestado aquilo que lhe é impossível exprimir.
E não é apenas com as palavras que a música se associa. Ao longo da história, a
música combinou-se a diferentes formas de expressão: ao movimento, físico e mecâni
co, à ação representada, à dança e às imagens. Em todos os casos, da união de duas poé
ticas específicas, engendra-se uma terceira, que só é possível pela combinação de ambas.
Nas formas dramáticas e dramático-musicais, a música, o texto, a dança e o movimento
somaram-se, criando novas situações e múltiplas poéticas: tragédia, comédia, pantomi
ma, melodrama, ópera e muitas outras.
Desde o surgimento do cinema, muitas dessas relações são incorporadas pelas for
mas audiovisuais. Música e texto, música e movimento, música e ação filmada. A poéti
ca ou poéticas audiovisuais redimensionaram todas essas relações.
É muito curioso que, em vários momentos, a música tenha servido como referen
cial para o cinema. Um dos grandes entusiastas desse paralelo foi Eisenstein, que em vá
rias situações apropria-se da term inologia musical para identificar elem entos de
articulação fílmica. Um exemplo bastante conhecido é a sua nomenclatura para os ti
pos de montagem: montagem rítmica, tonal e atonal. Vários, também, foram os que usa
ram o termo "contraponto" para designar a relação entre som e imagem ou entre ações
paralelas. Em alguns casos, o uso da terminologia é puramente metafórico, em outros, a
Prólogo. La musica 13
relação é bastante direta. Mas o que mais nos chama a atenção é o fato de a conceitua-
ção musical ser lembrada tantas vezes pelo cinema.
Seria de se esperar que cinema e música possuíssem algo em comum, algo que le
vasse as pessoas a relacioná-los, mesmo que intuitivamente. Quando paramos para re
fletir sobre essa questão, percebemos que não existe apenas algo em comum, mas um
número muito grande de similaridades entre os dois.
A primeira grande característica comum entre música e cinema é o fato de ambos
desenvolverem-se no tempo. Música e cinema são manifestações temporais. Para a mú
sica, o tempo é um fator básico, primordial. Susane Langer chega a ir além, quando diz
que "a música torna o tempo audível, e torna sensíveis suas formas e continuidade"
(Langer, 1980:117). O tempo é a matriz musical. Tanto para a música quanto para o ci
nema, tudo acontece em função do tempo. Toda a organização do discurso baseia-se nas
relações temporais.
Em música, todas as questões relativas à organização temporal pertencem ao do
mínio do ritmo. Por isso, dizer que o cinema possui uma dimensão rítmica, relativa à
sua organização temporal é absolutamente correto. O cinema tem ritmo.
Como discursos que se desenvolvem ao longo do tempo, música e cinema são uma
sucessão de eventos - para a música, alturas, durações, que se organizam em motivos e
frases, para o cinema, planos e seqüências. Eventos que, isoladamente, não possuem ne
nhuma conexão entre si, quando aproximados em sucessão temporal adquirem um novo
sentido.
O eixo temporal, por sua linearidade, é identificado com a idéia de horizontalida
de, uma linha sobre a qual se desenvolve o discurso.
Mas tanto a música quanto o filme não são apenas uma sucessão linear de even
tos. A quantidade de informações simultâneas é imensa. Na música, os sons são sobre
postos em simultaneidade. Muitas vozes, muitos instrumentos independentes executam
suas partes. No filme, as informações visuais e sonoras também se sobrepõem, são apre
sentadas em simultaneidade. Se há um eixo horizontal no qual os eventos se sucedem,
a existência de eventos simultâneos leva-nos à idéia de verticalidade. Há muito que a mú
sica ocidental trabalha com o conceito de vozes simultâneas e o termo técnico para
idenüficá-lo é polifonia, que é, por sinal, uma de suas principais características.
O princípio polifônico não se restringe aos limites da linguagem musical. Como
vimos, as associações de música, texto, ação e movimento, também são manifestações
polifônicas. Assim, a partir do momento em que reconhecemos que o cinema também
possui esse eixo vertical, podemos dizer que ele é, também, polifônico.
O desenvolvimento da polifonia musical, tanto no plano teórico, quanto na práti
ca, pode ser de grande utilidade para entendermos o cinema. O conceito de polifonia é,
particularmente, útil para entendermos as relações entre sons e imagens no cinema. Ve
mos, portanto, que a utilização de termos oriundos da terminologia musical não é algo
tão desprovido de sentido. É bastante viável falar, por exemplo, do "contraponto" entre
sons e imagens. A partir de uma polifonia puramente sonora, que é a polifonia musical,
podemos entender melhor a polifonia audiovisual e como ela se organiza.
14 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
Assim, vale a pena começar o nosso trajeto por um pequeno resumo de alguns con
ceitos básicos de música. Por meio deles, poderemos entender melhor como se organi
za o discurso polifônico e como a música incorpora-se ao filme.
A L in c u a c e m M u s ic a l
O Eixo Horizontal
1. A altura é uma propriedade do som que varia de acordo com sua freqüência. Quanto
mais alta a freqüência, mais agudo será o som, quanto mais baixa, mais grave.
2. O andamento é contado sempre em "pulsos por minuto", ou seja, um metrônomo ses
senta é aquele no qual cada pulso dura exatamente um segundo.
Prólogo. La musica 15
p c í r
Se repetimos o motivo algumas vezes, obtemos uma frase:
■*— p c tt p l t lr p u t p c j r 1
Até agora, preocupamo-nos apenas com o ritmo. A incorporação das alturas trans
forma os valores rítmicos em notas e os motivos rítmicos em melódicos. A melodia é
um dos fatores mais determinantes para o estabelecimento de uma identidade musical.
Nós identificamos as músicas por sua linha melódica. Ao mesmo tempo, a melodia é sín
tese, pois se alguém nos pede para cantar uma determinada música, cantamos sua linha
melódica, por mais complexa que essa música seja.
A partir de um único motivo rítmico, como o anterior, podemos construir diver
sas linhas melódicas. A partir dele, podemos obter o tema que Nino Rota compôs para
Romeu e Julieta (Romeo and Juliet, Inglaterra/Itália, 1968).
16 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
Partindo do m esm o motivo rítm ico, podem os chegar ao tema que Michel
Legrand compôs para o filme O verão de 42 (The Summer o f 42, EUA, 1971). Ainda que
a estrutura rítmica seja a mesma, os temas são totalmente distintos, pois cada um pos
sui a sua própria identidade melódica.
n i j. n i ■i-1» - u i^ f - —
O Eixo Vertical
Contudo, as duas vozes inferiores aproveitam-se dos pontos de repouso dessa me
lodia principal para tecer seus comentários, reafirmando ou completando aquilo que é
exposto pela primeira voz. Todo esse contraponto é colocado sobre uma sólida estrutura
de baixo-contínuo que lhe confere estabilidade, sustentação harmônica e rítmica em seu
desenvolvimento.
Por meio destes exemplos, podemos perceber como, em uma textura polifônica,
o desenvolvimento de cada uma das vozes pode se dar em graus diferenciados. Na Fuga,
as vozes conservam um grau de independência muito grande. Tema e contra-sujeito
passam de uma para a outra, e a cada momento uma delas se coloca em primeiro pla
no. Na Ária, não existe uma "discussão" do tema, as vozes inferiores subordinam-se à
primeira, que é a responsável pela exposição. As vozes inferiores comentam o tema,
com plem entam -no, ou seja, a individualidade das vozes é m enor e o grau de
interdependência, maior. Contudo, embora em grau menor, a independência ainda
existe e, em ambas, o que ouvimos é a resultante da somatória de todas as vozes, de seus
enunciados individuais.
Nas texturas homofônicas, por sua vez, a interdependência entre as vozes chega ao
seu grau máximo. Trata-se de uma textura em que todas as vozes possuem a mesma di
visão rítmica, ou seja, falam simultaneamente. No plano melódico, as vozes podem con
servar sua independência em termos de direção, ainda que sejam interdependentes
ritmicamente. Sendo assim, o que ouvimos não é mais um grupo de interlocutores, mas
um conjunto unívoco, tal como o correspondente exemplo no motete Jesu, ísAeine
Freunde, de J. S. Bach, que possui uma estrutura similar à de todos os corais desse com
positor. Apesar de as vozes ainda possuírem independência melódica, o resultado de seu
encontro é uma textura homofônica.
r r r ' p èM ÉÉ Ü i
j j J - ^
m
bém relações polifônicas e, tal como as vozes de um contraponto, podem possuir um grau
de independência maior ou menor, mas serão sempre interdependentes pelo fato de ha
verem sido combinadas para compor um único "texto".
A R elação da M ú s ic a c o m o T exto P o é t ic o
(...) a melodia, pensada em função do texto, destina-se a lhe dar relevo. Ainda quan
do é mais especialmente ornada e parece desdobrar-se "por si mesma" nas peças
melismáticas, na realidade é ao texto que ela serve, porém num nível mais profun
do. Com efeito, em vez de se amoldar simplesmente à acentuação das palavras e
seguir rigorosamente o ritmo natural, o desdobramento melódico chama a atenção
para as palavras principais e tenta exprimir a densidade interior. Trata-se então do es
pírito do texto mais do que de sua matéria, mas, definitivamente, é sempre o texto
que inspira a melodia. (Cardine, 1989:57)
A passagem acima, ainda que apresente uma noção pouco clara de "espírito do tex
to", ilustra bem a concepção do canto gregoriano sobre a relação entre música e texto.
Trata-se de um tipo de construção melódica na qual o ritmo possui um grau de liberda
de muito grande e que, em hipótese alguma, pode interferir na compreensão do texto.
22 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
5. O termo melodrama possui várias acepções. Para os italianos, ele foi sinônimo de
ópera, mas pode também significar texto acompanhado de música, como é o caso da peça
de Rousseau. O termo também é usado para designar um gênero de produção teatral e, atual
mente, televisiva, de grande apelo emocional.
6. Canto-falado, em alemão.
Prólogo. La musica 23
Por maior que seja a variedade das relações entre texto e música, todos os exemplos
vistos acima são de peças musicais, não literárias. A canção é, antes de tudo, música; a ópera
é música; mesmo o canto gregoriano, a despeito da valorização que confere ao texto, é um
gênero musical por excelência. Foi essa característica que levou Susane Langer a dizer:
A posição de Susane Langer é interessante no sentido de acabar com uma certa ilu
são romântica que paira no senso comum, pela qual a música vocal seria uma espécie
de hibridação de música e literatura. Neste sentido, ela está coberta de razão: uma can
ção é uma peça musical e não literatura. Contudo, sua posição é demasiadamente extre
mada, pois, ainda que não seja uma obra literária, a canção é um compromisso entre texto
e música, caso contrário não seria necessária a presença do texto. Todo compositor sabe
que o ato de compor canções ou qualquer obra vocal é diferente do de compor música
instrumental. Com certeza, não se trata de "um compromisso gentil" ou "uma alternação
graciosa de valores poéticos e musicais" (Langer, 1980:160), como ela mesma disse; muito
pelo contrário, a fusão das linguagens é muito mais uma violência que transforma a
ambas, como os metais, que para serem unidos precisam ser derretidos em altas tem
peraturas.
A afirmação de que a música "engole" o texto também precisa ser tomada com certa
cautela. O que a ela conduz é a constatação de que a união de música e texto produz for
mas musicais, e não literárias. Realmente, o fato de se constituir como forma musical
permite que a música vocal seja ouvida sem que se leve em consideração o texto. É pos
sível, inclusive, ouvir música cujo texto foi escrito em uma língua que desconhecemos
e, ainda assim, usufruirmos de uma experiência estética rica. Contudo, a compreensão
do texto permite uma experiência diferenciada. Podemos ouvir uma ópera inteira ape
nas pelo prazer musical que isso significa, mas só compreenderemos seu desenvolvimen
to dramático, se pudermos compreender o texto. O envolvimento dramático-musical só
passa a existir a partir do momento em que somos capazes de entender o que é dito pe
las personagens em ação. Em última instância, é preciso sempre lembrar que um texto
poético é associado a uma música também por razões de sonoridade, mas não apenas
por elas: as palavras significam e essa significação é sempre parte do conjunto da com
posição.
Desse modo, talvez seja mais correto substituir o termo "engole", por "incorpora".
Em uma peça vocal, a música incorpora o texto. E o que faz com que a obra vocal seja
entendida como música, e não como obra literária, é algo extremamente simples: a sua
fruição é auditiva, ou seja, ela é feita, antes de tudo, para ser ouvida. Na obra vocal, a mú
sica articula o texto, conduzindo o seu desenvolvimento ao longo do eixo temporal e ofe
recendo-lhe todos os seus recursos articulatórios específicos. A partir daí, o texto,
incorporado e articulado, transforma-se em música.
24 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
É sob essa ótica que a junção de música e texto pode engendrar uma nova poética,
ou novas poéticas. Susane Langer já aponta nesse sentido quando diz:
(...) Um poema que tenha forma perfeita, em que tudo seja dito e nada meramen
te esboçado, uma obra completamente desenvolvida e fechada, não se presta facil
mente à composição. Não renunciará à sua forma literária. (...) Um poema de
segunda classe pode servir melhor a essa finalidade, porque é mais fácil para a mú
sica assimilar suas palavras, imagens e ritmos. (1980:160)
A R elação P o l if ô n ic a da M u sic a c o m o M o v im e n t o
Qual é (...) o elemento do qual a música pode se apoderar de fato com tanta
eficácia? É o movimento (...).
O conceito de movimento tem sido, até aqui, negligenciado de modo sur
preendente nos estudos sobre a essência e o efeito da música; este conceito afigu-
ra-se-nos como o mais importante e o mais produtivo. (1992:38)
Ainda assim, o movimento inerente à linguagem musical é algo quase tão difícil
de ser abordado quanto a questão da significação musical. O movimento musical não é
físico. A sucessão de sons organizados ao longo do tempo gera uma resultante que nos
sa percepção tende a entender como movimento, que de fato não existe. Trata-se de uma
ilusão de movimento, que só é possível porque a cada novo evento ainda temos a m emó
ria imediata do evento anterior. O confronto desses eventos sucessivos em nossa percep
ção é que gera uma sensação de movimento. É algo muito parecido com o cinema, no
qual as imagens dos sucessivos fotogramas retidas por um curto período de tempo na re
tina geram, também, uma ilusão de movimento.
O movimento musical seria, portanto, ilusório ou, como disse o próprio Hanslick,
"formas sonoras em movimento" (1992:62). Susane Langer apresentou a mesma idéia:
"Esse movimento é a essência da música; um movimento de formas que não são visí
veis, (...) dadas ao ouvido em vez de à visão" (1980:115).
Como movimento puramente audível, a música traz, implicitamente a idéia de sua
contrapartida, que é o movimento passível de visualização. Isso não quer dizer, de modo
algum, que a música deva ser necessariamente acompanhada por algum elemento vi
sual. Todavia, a possibilidade de associação entre música e movimento é algo sempre pre
sente. Esse é um dos motivos pelo qual a proliferação de manifestações, nas quais o
movimento audível e o visível ocorrem simultaneamente, é tão grande e variada.
A polifonia que se dá entre o movimento musical e o visível também se asseme
lha à polifonia musical propriamente dita e à polifonia entre a música e o texto poéti
co. Contudo, a música tem mais dificuldade de "engolir" o movimento visível (para usar,
mais uma vez, a terminologia de Langer) do que o textual. As formas artísticas em que
música e movimento são associados quase nunca são tidas como obras puramente mu
sicais. O que se observa em tais situações é um paralelismo entre o audível e o visível,
uma simultaneidade, uma complementaridade organizada pelas convenções particula
res dessa polifonia. Um dos principais fatores que levam a esse resultado é o fato de som
e imagem pertencerem a setores disúntos de nossa percepção. Quando tratamos da união
de música e texto poético, a situação é diferente. Música e fala, guardadas todas as dis
tinções entre ambas, aproximam-se, posto que ambas atingem a nossa percepção pela via
26 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
1. Pastores: Ah, se em tomo a esta urna funesta / Eurídice, tua bela sombra vaga. Orfeu:
Eurídice. Pastores: Ouve os prantos, os lamentos, os suspiros / Que dolorosamente se derra
mam por ti. Orfeu: Eurídice. Pastores: E escuta o teu esposo infeliz / Que chorando / Te cha
ma e se lamenta. Orfeu: Eurídice. Pastores: Como quando / A doce companheira / A amorosa
rolinha perdeu.
30 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
é parte da ação dramática. Ao mesmo tempo, ele comenta essa ação, está acima dela. O
coro apresenta um distanciamento da ação que lhe confere prerrogativas similares às de
um narrador. Em uma passagem tão curta, o coro estabelece relações dialógicas em três
níveis distintos. Seu texto é dirigido a Eurídice, já morta. Mas, por meio desse diálogo com
a interlocutora ausente, o coro estabelece um diálogo também com o desesperado Orfeu,
que intervém em cada uma das estrofes do coro para exteriorizar sua aflição em uma
única palavra: "Eurídice". Mas tudo isto serve para o coro expor a situação ao público.
Quando dirige seus versos para Eurídice, está na verdade dirigindo-os a cada espectador,
individualmente, e ao público, coletivamente. Quando ele diz: "Ouça os prantos, os la
mentos, os suspiros" ou "E escuta o teu esposo infeliz", ele está situando o público em
relação à ação que se inicia, e o faz dirigindo-se a cada espectador usando, para tanto, a
"bela sombra" de Eurídice. Ao mesmo tempo, somos informados que Eurídice está mor
ta; que era uma pessoa querida, pois muitos a homenageiam; que seu marido sofre e que
a amava, porque sofre por sua morte. Ainda, o fato de Orfeu emitir apenas o nome de
Eurídice, como um chamado, informação completada pelo comentário do coro: "E es
cuta o teu esposo infeliz / Que chorando / Te chama e se lamenta", traz implícito o nú
cleo de todo o drama que é a luta de Orfeu para resgatar Eurídice do Hades. A descida ao
mundo dos mortos não é senão a materialização desse grito inicial de Orfeu, uma am
pliação deificada desse chamado que adquire o poder de trazê-la de volta à vida.
Mas o que faz dessa construção algo distinto é a música. O texto é absolutamente
sintético. Se dito verbalmente não demoraria mais do que trinta segundos para aconte
cer, e seriam os trinta segundos mais entediantes da história do teatro. De um lado, um
grupo de pessoas recitando alguns versos bastante simples, de outro, um herói ao qual
foi roubado todo o texto, que simplesmente fica repetindo, pateticamente, o nome de sua
amada morta. Nada de profundo é dito. Não há nenhum grande achado poético, nenhum
"ser ou não ser". E, no entanto, esse é um dos maiores momentos da história da ópera,
o marco de uma reforma; particularmente, uma reforma que visou a transformação da
dramaturgia operística. O grito de Orfeu, articulado pela música é também um "ser ou
não ser..." É "ser ou não ser" sem Eurídice; é "ser ou não ser" apolíneo e dionisíaco em
um só; é "ser ou não ser" o herói mítico e descer ao Hades em busca de sua amada. Ali,
Orfeu é apenas o homem atormentado, como também o é Hamlet. Cada um com seu
respectivo "ser ou não ser"; cada um tendo sua ação dramática conduzida por um fator
distinto: para Hamlet, o texto, para Orfeu, a música.
A orquestra prepara a entrada do coro, situando o espectador em relação àquele
momento específico da ação; nela estão indicados o caráter dessa ação, seu andamento.
Se no texto o coro dialogava com Eurídice e com o público, musicalmente ele dialoga
com a orquestra e com Orfeu. Ele espera que a orquestra fale para entrar na seqüência.
A orquestra, por sua vez, antecipa a frase musical do coro e sustenta as suas passagens
homofonicamente, compactuando com ele, de maneira uniforme. A estrutura rítmica
das frases de ambos apresenta uma repetição freqüente do seguinte motivo rítmico:
r r r
II melodrama 31
Este motivo produz um efeito bastante significativo. Ele impede que haja uma fluência
no desenvolvimento da frase. Parece que o desenvolvimento rítmico é sempre contido
pela nota longa. Em linguagem menos técnica, ele produz na frase musical uma conten
ção semelhante a um soluço, como o tipo de soluço que temos quando tentamos falar
chorando, o que se enquadra perfeitamente no espírito do momento dramático em ques
tão. Combinado com pausas, esse motivo principal de toda a seção gera também as res
pirações de quem chora e soluça.
E ambos, coro e orquestra, respiram para a primeira intervenção de Orfeu. Este en
tra como se não houvesse nem um nem outro isoladamente. As frases de Orfeu e do coro
seguem paralelamente. O coro não espera que Orfeu conclua a sua frase para iniciar a
sua segunda estrofe. Ele se sobrepõe à frase de Orfeu, mas, ainda assim, podemos ouvir
e entender os dois com toda a clareza. E, desse modo, altemam-se o coro e Orfeu, dialó-
gica e polifonicamente, sobre a base ininterrupta da orquestra.
Num fragmento dramático-musical tão curto, podemos perceber um conjunto vasto
de relações. Nele já estão presentes elementos que serão explorados ao máximo pelo ci
nema - o paralelismo, que D. W. Griffith iria transformar em fundamento básico da lin
guagem, a relação entre campo e contracampo, base da estrutura dialógica do cinema, o
corte, a montagem. Indo um pouco mais longe, vamos imaginar a mesma construção
no cinema ou, melhor ainda, vamos imaginá-la no cinema mudo:
2. A data não é consenso entre os historiadores. David Kimbell, em Italian Opera, re
fere-se a 1480 como ano da primeira apresentação. Owen Jander, em seu artigo para o ver
bete "Pastorale" em The New Grove Dictionary of Music and Musicians apresenta 1471, mas não
indica se este seria o ano da composição ou da representação. Donald Grout, em A Short
History of Opera, é um pouco mais flexível e dá como data da apresentação o período entre
1472 e 1483.
II melodrama 33
e o dionisíaco, também nos mostra como se dá a ligação entre ambos e como se processa
tal síntese. Como homem, Orfeu estabelece a ligação entre o humano e o divino, entre
o mundo dos vivos e o dos mortos, em sua descida ao Hades. O orfismo, culto religioso-
filosófico cuja fundação é atribuída a Orfeu, antecipa princípios do cristianismo e esta
belece a fonte entre o mundo clássico e o Ocidente cristão. Orfeu é também um músico,
mas não um músico qualquer. Horácio, em sua Arte poética, afirma:
O poder divino da música de Orfeu revela mais uma ligação, a da musica munda
na, a harmonia das esferas, tocada pelos deuses e inaudível ao homem, com a musica hu
mana. A tentativa de resgate desse poder órfico da música na segunda metade do século
XVI é o que guia os passos da Camerata e conduz ao desenvolvimento do estilo recitativo.
Assim, mais uma vez, Orfeu estabelece a conexão entre a ópera e a tragédia clássica.
Como músico e herói, Orfeu traz em si a síntese da tragédia clássica. De nenhum
outro se espera tanto que cante sua tragédia. Orfeu é capaz de fazê-lo e, assim, simboli
za o vínculo entre música e drama. Não existe mito mais perfeito neste aspecto e esta é,
provavelmente, a razão de sua grande incidência e de Orfeu ter se tornado a imagem
arquetípica do drama musical.
As O r ig e n s d o D ram a M u sic a l n o O c id e n t e
O mito de Orfeu remete-nos ao tempo em que música, dança e texto poético ain
da não haviam se tomado especialidades e eram parte de um mesmo ritual, cujo poder
mágico e encantatório está na origem das artes: representar e, por meio da representa
ção, se apoderar da essência do que é representado. Um tempo em que o homem, ves
tindo a pele do animal, dançava, cantava e apoderava-se de sua alma, de sua essência. Até
hoje, a arte conserva esse poder mágico e encantatório, e a forma artística que mais se
aproxima desse ritual original é o drama, particularmente o drama musical.
É em um contexto semelhante a este que surge a tragédia grega, como parte dos ri
tuais dionisíacos. Embora haja alguma controvérsia, ao que tudo indica ela nasce em um
cenário musical, em que o coro ainda se expressa coletivamente, em que as personagens
ainda não haviam sido dele destacadas3.
Ainda que nenhum exemplo de música grega tenha sobrevivido, as informações
que chegaram até nós são suficientes para que saibamos que a música era um dos fun-
3. É isto que se infere das afirmações de Aristóteles em sua Arte Poética. Ver Aristóteles,
Arte Poética, capítulo IV, Origem da poesia. Seus diferentes gêneros.
34 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
que era ouvido e não o inverso. Logo, o texto não pertencia propriamente ao drama, mas
à música, sendo transferido do ator para o cantor. Essa configuração permitiu um tipo
de experimentação da música com o texto muito própria desse gênero, como nos lem
bra Donald Grout:
Em Vamfiparnaso, há onze diálogos e três monólogos, sendo que o mesmo
conjunto musical é usado para todos, a saber, madrigais a cinco vozes (um a qua
tro vozes). Nos monólogos, todas as cinco vozes cantam; nos diálogos, a diferencia
ção de pessoas é geralmente sugerida pelo contraste entre as três vozes superiores e
as três inferiores (o quinto ou voz central fazendo parte de ambos os grupos), ainda
assim, em alguns momentos as cinco vozes eram usadas mesmo nessa situação.
(1965:33)
Tal úpo de relação entre texto dramático e música é bastante peculiar. O fato de toda
a música ser cantada por um único grupo despersonaliza o canto, fazendo com que não
seja ouvida como voz da personagem. Entre música e ação passa a existir uma relação
de paralelismo e, com isto, ocorre um distanciamento. Quando o coro fala por uma per
sonagem, já não temos mais a sua fala, mas uma representação desta que, filtrada, se con
figura com o a intervenção de uma outra consciência, uma supraconsciência que se
impõe acima da ação, quase como um narrador, ainda que ela não se coloque como tal.
Como gênero, a comédia madrigal não sobreviveu e nem sequer é muito lembra
da hoje em dia. Ainda assim, nela podemos encontrar dados significativos para a com
preensão da relação entre drama e música. Além disto, ao incorporar elementos da
commedia delYarte, tais como as personagens e situações, a comédia madrigal foi uma das
primeiras formas a aproximar a música da farsa, antecipando em quase um século algu
mas práticas que seriam características dos théâtres de lafoire franceses.
Como vimos, a comédia madrigal incorpora a ação muda. A pantomima5 é o tipo
de articulação dramático-musical na qual as relações entre música e movimento visível
são levadas ao extremo. Na ação muda, é a música que delineia a progressão temporal,
oferece sustentação à ação mimada, estabelece o caráter e intenção expressivos dessa ação.
Na pantomima, música e ação desenrolam-se paralelamente, uma interferindo no resul
tado da outra. Movimento corporal e musical unem-se para compor um tipo de expres
são única. Em muitos casos, o texto do ator é incorporado pela música, como na comédia
madrigal. Assim, a fala deixa de ser parte da ação, sobrepondo-se a ela.
Outro aspecto importante da pantomima é o fato de ela ter tido sempre espaço para
a música instrumental. Analisando as observações feitas sobre a pantomima acompanha
da por música vocal, tal como ocorria na comédia madrigal, podemos notar que, ainda
que desprovida do texto poético, a combinação de música e ação mimada produz resul
tados bastante significativos. A música instrumental é capaz de oferecer sustentação ao
desenvolvimento temporal da ação: andamento, ritmo, estabelecimento de seções ou
partes. É igualmente capaz de tingir a ação com todo seu poder expressivo, estabelecen
do o caráter, a intenção, o clímax e o anticlímax etc. Em certo sentido, a associação en-
tre música e ação é similar à que ocorre entre música e texto. As situações criadas pelo
gesto expressivo do ator, por seu trabalho corporal, quando unidas à música, geram um
novo sentido, uma forma de expressão particular que só é possível pela associação de
ambos. Essa complementaridade expressiva e significativa entre ação e música prescin
de do texto poético, esteja ele ligado à música ou à ação.
Na ausência do texto, música e gesto devem bastar para compor, sem o recurso da
palavra, qualquer situação, inclusive o diálogo. Assim como na comédia madrigal, o coro
havia desenvolvido uma dialogia própria por meio da alternância de partes distintas do
grupo vocal; na pantomima, surge uma outra dialogia gerada na polifonia entre música
e ação mimada. É nessa característica que reside a magia da pantomima, aquilo que faz
dela um tipo único de expressão.
Praticamente, todos os gêneros dramático-musicais apresentam, em algum momen
to, uma situação construída a partir do referencial da pantom im a. No universo
operístico, por exemplo, são muitos os momentos nos quais a ação mimada aparece em
destaque. Algumas das mais conhecidas podem ser encontradas no terceiro ato de Die
Meistersinger von Nürenberg, de Wagner, no primeiro ato de Les contes d'Hoffmann, de
Offenbach e em La muette de Portici, de Auber. A tradição pantomímica também se es
tenderia ao cinema e, portanto, a observação das relações dramático-musicais na pan
tomima é muito importante para compreendermos, posteriormente, o uso da música
como fator de articulação dramática e narrativa no cinema.
Intermedio
(...) Hoje nós fazemos essa distinção [entre partes] com música nos finais de
atos (...) seja fazendo os músicos surgirem do meio do palco por meio de má
quinas (...) ou ouvindo-os por detrás do cenário, de modo que nenhum deles seja
visto. Este último modo é mais fácil e mais usado, mas o outro é muito mais pra
zeroso, para não dizer maravilhoso, especialmente se os músicos estão em trajes
característicos. (Citado por D. Nutter, em seu artigo para o verbete "Intermedio", em
The New Grove Dictionary o f Music and Musicians)
Os seis intermedi para II Commodo (Florença, 1539) progridem por partes es
pecíficas do dia: aurora, início da manhã, meio da manhã, meio dia, tarde e noite.
Uma progressão intensificada por um cenário incorporando um sol artificial, o
qual se movia ao longo do céu até as posições apropriadas. De modo similar, os
intermedi de Bernardo de' Nerli para II Granchio de Leonardo Salviati (Florença,
1566), representando as quatro idades do homem (infância, juventude, maturida
de e velhice), foram alocados nas partes apropriadas do dia (manhã, meio-dia, tar
de e noite), assim refletindo o período de tempo representado pela peça. (Citado
por D. Nutter, em seu artigo para o verbete "Intermedio", em The New Grove
Dictionary o f Music and Musicians)
Ainda que o intermedio tenha chegado a conviver com a ópera por aproximadamen
te três quartos de século, vai gradualmente perdendo a sua importância e desaparece no
final do século XVII6. Contudo, é consenso que o intermedio forneceu subsídios dramá
ticos e musicais para a emergente ópera, sendo considerado um de seus principais
antecessores. Segundo Donald Grout:
Pastoral
tores, ninfas e divindades, criou um ambiente propício para a música. Canções, solistas,
coro e instrumentos estiveram sempre presentes. Na pastorale, música e texto desenvol
veram uma relação que caminhou em direção à ópera. O texto poético foi explorado em
sua musicalidade e a música começou a se definir em relação ao texto poético e sua
dramaticidade. Grout comenta:
Por volta da última década do século XVI, a Europa estava pronta para a ópe
ra. Restava apenas transformar a relação entre drama e música de uma simples as
sociação em uma união orgânica. Para esse fim, duas coisas eram necessárias: um
tipo de drama que fosse apropriado para a música contínua e um tipo de música
apta à expressão dramática. O primeiro foi encontrado na pastorale e o último no
recitativo monódico dos compositores florentinos, Peri e Caccini. (1965:30)
neira como seria de se esperar. A sonoridade pode ser contemporânea, mas o modo
como foi tratada deixa claro que ele ainda se esforçava por alcançar o ideal grego
de tratamento do texto. Qualquer coisa no sentido de uma melodia característica
e bela é evitado; de contraponto, não há absolutamente nenhum traço - nem mes
mo o necessário para criar uma suspensão cadenciai. A música consiste em uma
declamação em acordes, do texto, na qual todas as vozes, o tempo todo, movem-se
em ritmos idênticos modelados à maneira pela qual o texto deveria idealmente ser
declamado. (1991:38)
A D r a m a t u r g ia O p e r ís t ic a
Pelléas et Mélisande, em que Debussy compõe a música sobre o texto integral da peça de
Maeterlinck é tão raro, que pode ser considerado um marco histórico.
Ao longo de séculos, discutiu-se sobre quem teria a primazia na ópera: o texto ou a
música. Salieri nos deixou como resposta sua ópera Prima la musica e poi le parole (1786).
Gluck e Wagner, os grandes reformadores, procuravam valorizar o drama. Ambos, à sua
maneira e conforme o espírito de suas respectivas épocas, refutam a produção operísti
ca anterior por seu artificialismo causado, segundo eles, pelo aniquilamento do drama
pela música. Curiosamente, o que ambos produziram, antes de tudo, foi música, como
tão bem percebeu Susane Langer:
Não é preciso, pois, que o libreto seja um grande texto do ponto de vista teatral, mas
que se adeque ao desenvolvimento dramático da ópera. Um bom libreto é um texto dra
mático passível de ser posto em música. Isto nos remete às origens da ópera, quando ela
ainda não era assim chamada. Entre outros, os termos usados, então, eram favola in
musica e dramma per musica. Este último é particularmente interessante, pois significa
"drama por música", no sentido de "por meio da música", sentido este, em diversos mo
mentos, esquecido. É a partir dessa noção que podemos rever as críticas de Gluck e
Wagner a seus antecessores. Em primeiro lugar, assinalam momentos de transformação
da linguagem por meio da qual os compositores puderam produzir boas óperas. E, ape
sar de suas distinções entre música e drama, a verdade é que, na ópera, a música, como
fator de articulação do drama, funde-se com este em uma unidade, ou seja, a música ar
ticula a progressão dramática e o drama se efetiva por meio da música. Eis aí a manifes
tação do conceito de dramma per musica. Assim, não cabe discutir a supremacia do texto
ou da música. Se não houver texto, deixamos o contexto da ópera e entramos em outro
qualquer: pantomima, dança etc. Se não houver música, também não temos ópera, mas
teatro. E, para que essa unidade a que chamamos "ópera" possa existir, é preciso que haja
um drama e uma música que se adequem mutuamente.
Recitativos
sencial da textura total, eles não podiam destruir a clara e tranqüila autoridade do
baixo. (1990:43)
O recitativo cria a condição para que o texto dramático seja posto em música. A téc
nica do baixo-contínuo oferece novas possibilidades interpretativas e uma outra relação
com o tempo dramático. Essas novas possibilidades resultam, acima de tudo, em um grau
de liberdade muito grande em relação ao texto, tanto para o compositor quanto para o
intérprete.
A flexibilidade do estilo recitativo permite que ele incorpore qualquer texto. Um
bom compositor pode estender um recitativo por tempo indeterminado e não apenas
com uma personagem, mas com várias. Sendo assim, por meio do recitativo surgem,
também, novas possibilidades de construções dialógicas: duetos, trios etc. Um exemplo
é a cena de L'Orfeo, de Monteverdi, em que Orfeu recebe a notícia da morte de Eurídice.
Contracenam um pastor, a mensageira e Orfeu, em um recitativo contínuo.
Monteverdi foi para a ópera o que Griffith foi para o cinema. Ambos desenvolveram
recursos fundamentais para suas linguagens e os colocaram em prática. Ambos trabalha
ram em períodos de transição, de experimentação e de criação de novas formas. Tal como
Monteverdi, Griffith também desenvolveu os fundamentos básicos da articulação fílmica.
Tendo como base o estilo monódico do recitativo e as técnicas do madrigal, Monteverdi
articula seu dramma per musica, como já se observa em L'Orfeo, sua primeira ópera.
Coros
Altemando-se com os recitativos, temos os coros que, nesse período, são ainda mais
importantes do que as árias, em conformidade com o modelo da tragédia grega, tal como
era entendida na época. Em Monteverdi, o coro participa da ação dramática, está nela in
serido. São os pastores e pastoras que festejam o casamento de Orfeu e Eurídice e, poste
riormente, choram sua morte. Ao mesmo tempo, as intervenções do coro servem "para
atrair a atenção dos espectadores para a importância da ação que eles presenciaram"
(Kimbell, 1991:71).
Peças instrumentais
12. O termo "sinfonia" não possuía, ainda, o sentido que iria adquirir após o Classi
cismo, de peça orquestral em forma sonata. Significava, então, apenas "peça instrumental".
44 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
O início de L'Orfeo é precedido por uma toccata, na verdade, uma fanfarra que tem
a função de anunciar, com grandiosidade, o início do espetáculo e que, posteriormente,
irá se converter na ouverture operística. É importante notar como Monteverdi organiza
o desenvolvimento dramático pela colocação das peças instrumentais. Os ritomelli são
intervenções que se intercalam com as estrofes das peças cantadas, como um refrão. Cada
ritomello pertence a uma peça vocal específica, é usado para introduzi-la e é repetido tantas
vezes quanto o seu número de estrofes. Dessa maneira, os ritomellipromovem a organi
zação interna das peças vocais e delimitam musicalmente sua extensão. Eles também
provocam a interrupção do texto dramático, compartimentam-no e estabelecem clara
mente suas divisões. Sendo partes não cantadas das peças vocais, os ritomelli estabelecem
um diálogo entre o texto cantado e a orquestra, complementam o que é dito pelo texto
e, ao mesmo tempo, permitem a reflexão sobre aquele momento específico da ação. Em
situações de maior intensidade dramática ou quando estão contracenando várias perso
nagens (como, por exemplo, na cena em que Orfeu recebe a notícia da morte de Eurídice
ou, mesmo, em seu diálogo com Caronte), Monteverdi evita o uso dos ritomelli, impe
dindo, assim, a quebra dessa intensidade.
As sinfonias são peças instrumentais que servem de transição entre as peças vocais.
Nelas, a ação, desprovida de texto, possibilita as principais relações dramático-musicais
de elementos não-verbais, como as entradas e saídas de personagens, movimentações,
pantomimas, danças, finais de atos e transições de todos os tipos.
É preciso enfatizar o uso que Monteverdi faz da recorrência de trechos instrumen
tais como recurso dramático-musical, embora isso ainda fosse algo incipiente na épo
ca. A primeira instância dessa prática é a própria recorrência dos ritomelli como reffões
da peça vocal. Monteverdi também usa o ritomello do prólogo de forma recorrente: após
o prólogo, o mesmo ritomello é usado para a entrada das ninfas e pastores no início do
primeiro ato, bem como na partida de Orfeu para o Hades e, posteriormente, em seu re
tomo. Com isto, o ritomello acaba se associando ao espírito pastoral do local onde se de
senvolve a ação; o prólogo é cantado pelo "Espírito da Música" e, mais subjetivamente,
esta recorrência do ritomello do prólogo simboliza o poder mágico da música por meio
da figura de Orfeu. Algumas sinfonie também são recorrentes. É o caso da sinfonia do fi
nal do segundo ato que percorre, praticamente, toda a ação no Hades, delimitando esse
momento específico do drama e estabelecendo o seu caráter.
Ao que tudo indica, Monteverdi já possuía, portanto, intuitiva ou conscientemen
te, a noção de que a música instrumental é parte fundamental da construção dramáti
co-musical, de como se dava a participação efetiva da música instrumental no drama, de
como a recorrência de fragmentos musicais podia se tomar significativa à medida que
se desenrolava a ação dramática. A repetição desses fragmentos musicais como fator de
unidade do drama sofreria, a partir de então, uma evolução progressiva e, três séculos
depois, culminaria no leitmotiv wagneriano.
Árias
C o n t in u id a d e D r a m á t ic o - m u s i c a l n a Ó pera
Antes de Monteverdi, as primeiras óperas, tais como Dafne (1598), de Peri e Corsi,
e Euridice, nas versões de Peri e Caccini, eram construídas como uma sucessão de peças
vocais independentes. A form a dram ático-m usical com eçou a se u nificar com
Monteverdi. L'Orfeo, como vimos acima, já apresenta uma solução de continuidade muito
mais elaborada. Há uma dicotomia na busca pela unidade operística que viria a ser uma
constante ao longo da história da ópera: por um lado, a unidade alcançada pela suces
são de peças musicais independentes justapostas; por outro, a tentativa de unir por meio
da música contínua.
A última ópera de Monteverdi, L'incoronazione di Poppea (1642), já apresenta um
grande equilíbrio entre música e desenvolvimento dramático. Todo o drama musical
acontece pela ação direta das personagens: são pouquíssimas as peças para uma forma
ção maior que o dueto. O estilo recitativo se torna a base do drama e, por meio dele,
Monteverdi consegue uma solução de continuidade até então inédita.
Monteverdi é, na prática, o criador da ópera. Tal como Griffith em relação ao ci
nema, ele não a inventou, nem foi o primeiro a experimentá-la. Mas ambos criaram suas
práticas fundamentais, as primeiras convenções de suas artes que servirão de parâmetros
aos demais. Ambos souberam prender a atenção do público ao longo de uma situação
ou de situações sucessivas. Conseguiram produzir no público a resposta emocional de
sejada, quer na morte de Flora, em The Birth o f a Nation, quer no Lamento d'Ariana que,
segundo os relatos da época, arrancou lágrimas do público. Monteverdi sabia lidar com
os dois componentes principais do drama: a música e a ação humana. Esse reconheci
mento de que o drama musical é algo que acontece por meio da ação humana musicada
é que faz de Monteverdi um dos maiores dramaturgos musicais de todos os tempos. Ele
possuía consciência deste fato, o que pode ser constatado em sua carta para Alessandro
Striggio, de 1616, a respeito de Le nozze di Tetide:
Vejo que as personagens são ventos, amoretti, zeffiretti e sereias, sendo assim,
muitas sopranos serão necessárias; e também esses ventos - ventos do oeste e ven-
46 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
tos do norte - têm que cantar. Como, caro senhor, visto que os ventos não falam,
seria eu capaz de imitar sua fala? E como, por tais meios, serei capaz eu de mover
as paixões? Ariana comoveu o público porque era uma mulher, e Orfeu fez o mes
mo porque era um homem, e não um vento... Descubro que essa fábula não me
comove de forma alguma e é mesmo difícil entendê-la; nem sinto que ela possa
naturalmente inspirar-me um clímax comovente. Ariana inspirou em mim um la
mento verdadeiro e Orfeu uma súplica verdadeira, mas não sei o que isso vai me
inspirar. (Apud Arnold, em seu artigo para o verbete "Monteverdi", em The New
Grove Dictionary o f SAusic and Musicians)
A tradição italiana fez com que a ária logo se tomasse o centro das atenções do uni
verso operístico. A ópera ganhava cada vez mais repercussão pública. Grandes cantores
eram reverenciados, formando o star system do período. Como é por meio da ária que o
cantor se expressa e demonstra seus recursos vocais, a quantidade de árias cresceu a tal ponto
que, em algumas óperas, os recitativos serviam apenas como mera ligação entre elas.
Todavia, isso não foi uma unanimidade. A tradição francesa, que tanto valorizava
o texto, ainda manteve o recitativo como base da dramaturgia musical da ópera. Este foi
um período de transição expresso pelo conflito entre a dramaturgia musical baseada em
recitativos ou na sucessão de árias. A esse respeito, Joseph Kerman diz o seguinte:
Apesar de Lully ter composto setenta anos depois [de Monteverdi], os ele
mentos básicos de sua convenção dramática são curiosamente similares: o
recitativo ainda é o centro climático das atenções e o papel subsidiário principal é
assumido pelo coro, enquanto as pequenas canções ou "airs" são de interesse prin
cipalmente decorativo. A ópera veneziana, entretanto, havia rebaixado por completo
o recitativo em favor de árias ainda bastante primitivas e havia eliminado comple
tamente o coro. (1990:63-64)
O que ocorreu, de fato, foi uma crise sobre a própria essência do drama musical.
O dramático e o musical eram vistos como aspectos independentes. Segundo o próprio
Kerman, dentro dos contextos italiano e francês, "os franceses não aceitariam a ostensi
va convenção italiana, segundo a qual as palavras e a razão cedem, no auge dramático, à
expressão emocional da música levada em seus próprios termos" (1990:68).
O que movia as argumentações em favor de um ou outro lado era a questão do texto.
Porém, independentemente da questão textual, o que não estava ainda definido era a pró
pria natureza do drama musical, ou seja, como articular o drama operístico por meio da
música. Uma das correntes tinha a noção de que a ópera é, antes de tudo, drama, e como
tal deveria ser valorizada em seu aspecto textual; daí, a supremacia do recitativo sobre a
ária. A outra valorizava a música acima de tudo e, portanto, qualquer medida no senti
do de alcançar grandes arroubos emocionais era válida; daí a supremacia da ária.
O recitativo permite uma continuidade que favorece a estrutura dramática; o dra
ma flui com maior uniformidade. Contudo, a técnica do recitativo pode ser um fator de
limitação musical, pois insistir continuamente no recitativo significa subtrair da ópera
os recursos mais ousados da arte musical, incluindo a liberdade melódica, harmônica e
uma arquitetura rítmica e formal que não vise prioritariamente a enunciação de um tex
to. Em suma, ela pode gerar um desequilíbrio na estmtura dramático-musical.
II melodrama 47
A opção pela ária apresenta-se como alternativa, mas ocasiona um problema inver
samente proporcional. Ela permite que se levem os recursos musicais ao extremo. A mú
sica se sobrepõe expressivamente ao texto que, em muitos casos, nem é assim tão
significativo ou elaborado. Sobre a ária da morte de Dido em Dido and Aeneas, de Purcell,
Kerman afirma:
O que se encontra tão exatamente dentro da estética italiana e fora da fran
cesa é que a peça inteira é montada sobre duas linhas de versos triviais: o grande
clímax no acorde de ré menor acontece sobre uma única sílaba, "ah" - um grito
pré-verbal. Purcell compreendeu que isto poderia ser infinitamente mais expressi
vo do que o alexandrino mais elegantemente declamado de Lully. (1990:69)
A ação é incluída numa única continuidade musical e unificada por ela. A si
tuação muda e todos sentem de forma diferente; numa ária ou coro barroco as coi
sas nunca foram assim. E ter substituído alguns dos neutros recitativos usados para
a ação na ópera barroca por um veículo genuinamente musical foi certamente van
tajoso: a ação agora podia ser apresentada no nível de imaginação da música, de for
ma a partilhar a dignidade emocional das introspecções da ária.
Imaginemos o episódio de Mozart tratado por Metastasio. Seriam necessá
rias pelo menos três árias, com seus recitativos de ligação, para fazer tudo: uma para
Elvira, mostrando seu estado de espírito inicial, uma para Don Giovanni e ainda
uma outra para Elvira mostrando seu estado de espírito final. Todo o papel de
Leporello, que mantém maravilhosamente o equilíbrio cômico, se evaporaria em
recitativos, para não falar de todas as delicadas nuanças de modulação nas atitudes
de Don Giovanni e de Elvira en route. (...) A comédia do século XVIII, com sua ri
queza de intriga animada, exigia um novo e mais flexível esquema operístico. (...)
(1990:92)
O r g a n iz a ç ã o T em po ra l da Ó pera
Vimos que o libreto operístico tende a ser mais sintético do que o texto teatral.
Quando a música passa a exercer parte da função que no drama tradicional cabia ao texto,
este pode ser mais sintético. O próprio fato de o texto ser cantado obriga sua síntese, pois
demora-se mais para cantar um texto do que para recitá-lo. A música altera o desenvol
vimento temporal da fala, toma-a mais lenta.
A alteração do tempo do texto é apenas um dos aspectos da interferência temporal
da música no drama, pois quando a ele se une, faz que toda sua organização temporal
conduza, também, a progressão dramática. Na ópera, o tempo do drama não é mais o
tempo do texto, nem o tempo da ação dramática, mas o tempo musical, que é preciso e
organizado. Poder-se-ia argumentar, obviamente, que o tempo musical também é rela
tivo: a cada vez que se executa uma peça, varia-se o andamento; existem as fermatas, os
ralentandos, os acelerandos, os rubatos etc. É verdade, mas este fundamento e objetivi-
50 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
dade temporais da música é algo que nenhuma forma artística pré-industrial possuía. Ao
longo de séculos, a polifonia musical desenvolveu um domínio do tempo muito eficien
te: por maior que seja a relatividade e variedade dos andamentos, as relações temporais
internas da construção musical são absolutas e perfeitamente sincronizadas.
Quando a música empresta suas características temporais ao drama, ele se torna
musical. Esse é o principal efeito do contraponto entre ambos. Ao ser articulada pelo tem
po musical, a construção dramática adquire algo característico da polifonia musical: a
sincronia. O drama passa a ocorrer dentro de uma contagem precisa de tempo. O tem
po de um gesto, de uma palavra, de um movimento, não é mais o tempo subjetivo do
ator, mas o tempo musical objetivo da orquestra. O ator pode esperar o momento mais
conveniente para falar seu texto. Pode fazer uma pausa mais longa, esperar a reação do
público, apressar um movimento. O cantor, não. Deve entrar na hora exata e cantar sua
linha no tempo preciso do acontecimento musical. Com isso, o tempo expressivo do dra
ma fica subordinado ao tempo musical. A ação dramática, por sua vez, fica sincroniza
da à música, tal como se dá na dança em relação à música de balé. Mesmo em um
exemplo como o de Pelléas et Mélisande, em que Debussy tentou disfarçar a subordina
ção temporal do drama à música, ela continua a existir; como todo disfarce, esconde, mas
não elimina. Por mais que pareça que Pelléas canta como se não existisse orquestra, cada
uma de suas entradas é rigorosamente precisa.
A partir do momento em que articula o drama, a música se toma um fator de in
terferência. Quando uma personagem se cala, não temos apenas silêncio, mas música.
A música conclui a idéia, comenta e interfere. A orquestra, salvo poucas exceções, não é
parte da ação, fica no fosso, de onde lança sua torrente de sons. É como se a ação dra
mática fosse sublinhada continuamente por um fator extemo que não lhe pertence. As
sim, por mais que a articulação primária da ópera seja dramática, haverá sempre uma
articulação secundária de caráter épico. A música, ao se tornar onipresente, assume ca
racterísticas narrativas, moldando o drama à sua maneira e a seu tempo. O ideal
renascentista de aproximar o texto musicado da fala, tomando-o assim "mais dramáti
co", resultando no recitativo, é uma forma de reconhecer essa poderosa interferência mu
sical. A supremacia da ária na ópera barroca italiana é, neste sentido, sintomática. As
tentativas de Wagner e Debussy de criarem um drama em música, no sentido estrito do
termo, esbarraram nessa dificuldade, pois a música acaba por impedir, na prática, esse
ideal. O próprio texto moldado pela música transforma-se, adquire uma nova plastici
dade e se flexibiliza. Não se trata apenas de uma dedamação, mas de um texto cuja enun
ciação foi direcionada, predeterminada por um "narrador subjetivo" que se materializa
em forma de sons orquestrais.
É por isso que a ópera, no sentido estrito, jamais será teatro, jamais proporcionará
a liberdade temporal de que o ator necessita para a representação da ação dramática. Ja
mais haverá, também, a isenção característica do gênero dramático, em que as persona
gens agem como se não houvesse um autor, como se a ação fosse a expressão do presente
vivido naquele momento. A convenção operística, ainda que dramática (ou dramático-
musical), traz em si mesma o germe de descaracterização do gênero dramático. Em con
trapartida, o teatro jamais será ópera, pois carece da organização temporal que caracteriza
a polifonia dramático-musical desta última.
2
Voix de V il l e
Que ces badauds sont étonnés / De voir marcher sur des échasses! / Que
d'yeux, de bouches, de nez, / Que de différentes grimaces! / Que ce ridicule
LIarlequin /Est un grand amuse-coquin, / Que des gens de toutes façons, /
Hommes, femmes, filles, garçons; / Et que les culs à travers cottes /Amasseront ici
des crottes / S'ils ne port de caleçons! / Ces cochers ont beau se hâter, / Ils ont beau
crier: Gare! Gare! / Ils sont contraints de s'arrester, / Dans la foule rien ne
démarre. / Le bruit des pénetrans sifflets, / Desflustes et des flageolets, / Des
cornets, hautbois et musettes, / Des vendeurs et des acheteurs / Se mesle à celui
des sauteurs / Et des tambourins à sonnettes / Des joueurs de marionnettes / Que
le pouple croit enchanteurs!
Scarron, La foire de Saint-Germain, 1643
Eliza canta1:
1. Canção Wouldn't It Be Loverly, do musical My Fair Lady de Alan Jay Lemer e Frederick
Loewe.
52 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
Eliza quer deixar sua vida de florista nas ruas de Londres e tomar-se uma lady. Mas
ela não pode, pois não sabe falar corretamente. Um obstáculo lingüístico, mais difícil de
transpor do que os grandes portões de ferro, a separa da classe dominante. Mas, ainda
que carregue os traços fonéticos que distinguem a sua classe social, ela possui muitas ou
tras características que a tomam especial. O que Eliza diz, embora incorreto, possui uma
transparência, uma verdade, que muitas vezes o discurso elaborado esconde sob a más
cara de uma retórica bem articulada. Isto fica claro quando o Professor Higgins leva Eliza
às corridas. Na versão para cinema de My Fair Lady (EUA, 1964)2, os figurinos dessa se
qüência são todos em preto e branco; "la bonne société s'amuse" com a maior frieza, en
quanto cantam Ascot Gavotte.
A letra indica uma canção extremamente emocionante, descreve o frenesi, o delí
rio intenso e efêmero de uma corrida de cavalos. Mas o que se ouve não corresponde a
essa impressão. Nem mesmo o charme aristocrático da gavotte como forma dançante
pode ser aqui encontrado. A canção é pesada e contida. Sua estrutura rítmica e melódi
ca são construídas de forma que os versos sejam sempre entrecortados, interrompidos.
Não há uma fluência do texto compatível com o tipo de emoção que está em jogo na
quele momento. O público canta como se cantasse um hino. O contraste entre a letra,
a música e a ação explicita o contraste entre Eliza e a aristocracia. E a construção é feita
de maneira tal que o público se solidarize com ela, provocando antipatia pelos aristocra
tas. Eliza é apresentada sempre como verdadeira e capaz de vivenciar honestamente seus
sentimentos, enquanto os aristocratas são sempre falsos e incapazes de demonstrar suas
emoções.
Eliza seria a responsável por romper com toda a formalidade protocolar da situa
ção. Quando chega a sua vez de acompanhar a corrida, ela torce aos brados, usando pa
lavras nada educadas, para o espanto dos presentes e o encanto de Fredy, que por ela se
apaixona justamente pelo seu modo de dizer as coisas. Eliza possui a paixão e a alegria
que faltam ao público aristocrático de Ascot. Ela permite a si mesma a fantasia de ser uma
lady. Ainda que sua carruagem seja a carroça do lixo, e o maço de flores que recebe de
um gentleman seja apenas um aipo, não importa, ela vive.
É dessa ligação com a vida, com a atualidade, com o cotidiano, com o homem co
mum, que se alimentou o teatro popular. Nada de deuses olímpicos, semideuses, heróis
2. O título em português, Minha querida dama, é tão pouco conhecido que optamos por
não usá-lo.
Voix de ville 53
marca tais gêneros. Contudo, é a própria Eliza que nos ilumina: a diferença entre uma
lady e uma florista está na maneira como são tratadas. Eliza sempre foi uma lady, só não
era vista como tal.
A origem dos gêneros cômicos no teatro ocidental também remonta ao século XVI,
quando surge a commedia dellarte. A partir de então, praticamente tudo o que aconteceu
relaciona-se a ela, de uma maneira ou de outra. A commedia delVarte possui uma estrutu
ra de tipos fixos e enredos em que o novo confronta-se com a tradição, representados pelo
"mundo dos jovens" e pelo "mundo dos velhos". As personagens são, invariavelmente,
caracterizadas por máscaras. A commedia dellarte era levada à cena por meio da impro
visação e influenciou, por séculos, a arte dramática em toda a Europa.
A música sempre esteve presente na commedia dellarte. David Kimbell, em seu tra
balho sobre a ópera na Itália, alerta para uma curiosidade relevante: a primeira descri
ção detalhada de uma apresentação de commedia dellarte foi feita por um músico,
Massimo Troiano, em 1568. Mais curioso ainda é o fato de ter atuado nessa apresenta
ção, como Pantalone, ninguém menos que o compositor Orlando de Lassus:
Este depoimento, embora curto, é suficiente para mostrar como a música estava
presente nos espetáculos de commedia dellarte. Em uma passagem tão breve, podemos
perceber uma considerável variedade de tipos de intervenções musicais. Kimbell os cias-
Voix de ville 55
sificou da seguinte maneira: "nos intervalos entre um ato e outro, para prover a peça de
uma estrutura decorativa e sugerir a passagem de tempo", referindo-se às passagens mu
sicais com violas-da-gamba e vozes, e ao madrigal do início do texto "com fins natura
listas, como na dança de casamento, no final; e para intensificar o pathos das falas mais
emocionais e apaixonadas" (Kimbell, 1991:288), referindo-se à canção na qual Lassus
acompanha a si mesmo com o alaúde. A isto deve-se acrescentar que é possível identifi
car, também, dois tipos de situações musicais: uma em que ela é inserida na própria
ação, sendo executada pelos atores, como a canção de Lassus e a dança do casamento,
e outra em que a música não participa da ação, tal como no madrigal e na transição
entre os atos3.
3. Esses dois tipos de uso da música são motivo de discussão até o presente momen
to e são uma das grandes preocupações dos teóricos de música de cinema.
56 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
em uma ópera séria de três atos. Por vezes, ocorria inclusive um terceiro intermezzo, exe
cutado durante o terceiro ato. Apesar de separados, não se trata de ações independentes,
pois a soma dos dois ou três intermezzi formava uma ação contínua: o final de um cos
tumavam apresentar uma situação de tensão dramática que só seria resolvida no seguinte,
e assim por diante, até a conclusão final, em um modelo próximo ao dos seriados de ci
nema no século XX.
Bastante simples em sua dramaturgia, os intermezzi normalmente apresentavam
uma trama constituída basicamente de uma burla, com forte influência da dramaturgia
da commedia dellarte. Era comum, inclusive, o uso de seus tipos característicos. A ação
cantada ocorria normalmente entre duas personagens, masculina e feminina, embora
fosse comum contar com a presença de outras que, no entanto, não tinham texto. A or
ganização dramático-musical era, também, bastante padronizada. Na maioria dos casos,
havia duas árias, no máximo três, separadas por recitativos secco, culminando em um
dueto final. Aberturas e peças instrumentais praticamente inexistiam, exceto em situa
ções de dança.
Os intermezzi não são precursores da opera buffa, pois ambos surgem quase simul
taneamente, exatamente quando a opera seria põe de lado as personagens e situações de
caráter jocoso. Contudo, não seria incorreto dizer que o intermezzo, por sua extensão re
duzida e sua posição secundária, com função de preencher o intervalo entre os atos de
uma obra dramática de maior fôlego, serviu como espaço de experimentação de vários
procedimentos musicais voltados à comédia. As opere buffe diferem dos intermezzi quanto
às suas proporções: eram óperas completas e com maior número de personagens. Mas
ambos compartilham de muitas características: são sempre cantados, não há texto dia
logado, têm como referencial dramático a commedia dellarte e, especialmente, utilizam
os mesmos recursos dramático-musicais, o que ficaria conhecido como stilo buffo.
Essas práticas apresentam dois aspectos fundamentais da comédia. O primeiro é a
questão do tratamento temporal como seu fator essencial: a ação não pode parar, nem
as situações se arrastarem indefinidamente. Qualquer negligência nesse aspecto pode
destruir o "tempo de comédia", conceito este resumível a uma só palavra: agilidade. O
segundo aspecto é o da clareza absoluta do texto a fim de que a graça, a piada, a situação
que provoca o riso se efetivem, fazendo que a comédia atinja seus objetivos. Para aten
der essas duas prioridades, fez-se que as nuanças musicais acompanhassem exatamen
te, ponto a ponto, as mudanças da ação indicadas pelo texto. A partir disso, surgiu um
estilo ágil, flexível, que iria influenciar praticamente toda a produção dramático-musi
cal posterior. A este respeito, Kimbell comenta:
A agilidade requerida pela ação cômica levou a uma organização rítmica em que o
tempo musical se subordina ao tempo dramático e o andamento é alterado de acordo
com as nuanças da ação. A atividade rítmica é organizada de acordo com a intenção do
Voix de ville 57
Théâtres de la Foire
Enquanto na Itália, formava-se a tradição cômica do stilo buffo, na França havia toda
uma movimentação paralela, da qual surgiriam, praticamente, todas as manifestações de
teatro musicado que hoje conhecemos. Tudo começou nos teatros das feiras de Saint-
Laurent e Saint-Germain - os théâtres de la foire, como ficaram conhecidos. Desde a Ida
de Média, essas feiras eram os locais onde aconteciam encenações, acrobacias, shows
com animais, marionetes e demais espetáculos populares.
A influência da commedia dellarte na produção dos théâtres de la foire também é
muito significativa, especialmente a partir de 1697, quando a Comédie-Italienne foi expul
sa da França por ter supostamente zombado de Mme. de Maintenon, em sua peça La
fausse proude. Quando a trupe italiana partiu, os théâtres de la foire se apossaram de todo
o seu repertório. Os comediantes italianos só retomariam à França em 1716.
É impressionante como os recursos dramáticos e musicais foram sendo modifica
dos a fim de adequar essa arte de feira às exigências e restrições impostas pela arte ofi
cial. Inicialmente, foi Lully quem obteve os privilégios de canto e dança. Com isso, os
théâtres de la foire não puderam mais apresentar música cantada e dançada. Posterior
mente, foi a Comédie Française que, em 1699, conseguiu que os théâtres de la foire fos
sem impedidos de apresentar peças completas. Em seguida, em 1707, os diálogos foram
proibidos. Finalmente, em 1709, todo tipo de fala ficou proibido.
Adotando a designação de opéra comique para seus espetáculos, os théâtres de la foire
são autorizados, em 1716, a apresentar espetáculos com música e dança mediante o pa
gamento de uma razoável quanúa à Opéra. A Comédie Française, por sua vez, reagiu e, de
1718 a 1724, apenas espetáculos de marionetes foram permitidos nas feiras. Ao térmi
no dessa restrição, os théâtres de la foire viveram um período de grande produtividade.
O repertório desse período foi publicado como Les théâtres de la foire ou lopéra comique,
uma série de dez volumes de textos de Le Sage e d'Omeval.
Perante tal histórico, era de se esperar que os théâtres de la foire não tivessem con
seguido produzir muita coisa. Ao contrário, a cada nova restrição, era encontrada uma
solução. Para o impedimento de levar aos palcos peças completas, eles passaram a apre
sentar fragmentos curtos; para a proibição dos diálogos, peças em monólogos; para a su
pressão total das falas, o uso de legendas com o texto dos atores.
O uso de legendas é especialmente significativo. Os textos eram apresentados em
couplets (estrofes) elaborados sobre a estrutura métrica de um vaudeville conhecido pelo
público. Proibido o canto, as legendas eram apresentadas, enquanto a orquestra execu
tava o vaudeville e quem cantava era o público. Surgiu, assim, a comédie en vaudevilles. En
quanto isso, os atores representavam a ação por meio da pantomima, forma que utilizou
recursos muito parecidos com os do cinema mudo, quase dois séculos antes de seu sur
gimento.
Esse tipo de estrutura é muito próxima daquela da Comédia Madrigal, na qual a ação
mimada e a música ocorriam em paralelo, com a diferença de que a necessidade de o
público cantar requer a escolha de um material musical bastante familiar. Essa caracte
rística é muito importante, pois os autores e músicos, como Le Sage e Gilliers, foram
obrigados a dominar as possibilidades associativas das canções para os homens de sua
Voix de ville 59
época. Mesmo após terem sido retiradas as restrições e o canto voltar a ser executado no
palco, a característica de não se desligar do referencial musical do público permaneceu.
A seleção dos vaudevilles para um determinado espetáculo era algo que exigia bas
tante atenção, como relata Clifford Bames:
Met - tcz la tête à la fe - ne - tie Vous en - ten - drez par - 1er de vous
Je suis Chan - tcusc I - la - li - en - ne J'ai le go - sicr d'un ro - si - gnol.
M:I1 l'aut que le Vi - sir pé - ris - se P:Pré-pa-rez vous à l'é-gor - ger
Vous, Mcs-sicurs, dai - gnez nous pro - me - tre Que de-main nous vous re - ve - rons.
cinema mudo, esse inventário associativo chegou a ser formalizado em publicações es
pecializadas.
Assim como nas opere buffe, a idéia de um final articulado também foi empregado
nos théâtres de la foire, sob a forma de vaudeville final. Nele, as personagens principais
confrontavam-se em uma única peça musical, cada qual cantando uma estrofe. A dife
rença entre o fin ale italiano e o vaudeville final é que este último possui características
estróficas. Em muitos casos, havia um refrão cantado em coro. O vaudeville final passou
a ser composto para cada peça especificamente e, assim, a música original tomou-se um
fato cada vez mais comum nesses espetáculos. Seus reflexos transcendem o universo dos
teatros de feira: podem ser encontrados vaudevilles finais em óperas como Orfeo ed
Euridice, de Gluck, em Don Giovanni, de Mozart, em II Barbiere di Siviglia, de Rossini,
entre outros.
Com o passar do tempo, a comédie en vaudevilles separa-se conceitualmente da opéra
comique, na qual a música original é um ingrediente cada vez mais significativo. No fi
nal do século XVIII, elas sobrevivem como comédie â couplets ou comédie-vaudeville. É dessa
tradição que surge a comédia musical que conhecemos hoje.
As convenções da comédie en vaudevilles e da opéra comique diferem bastante da tra
dição operística propriamente dita, mesmo da ópera bufa. Na ópera, a música é uma pre
sença permanente, seu fator articulatório primário. Nos gêneros cômicos oriundos do
teatro de feira, o texto divide com a música a articulação dramática. Nem todo texto é
"portado" pela música. A situação do diálogo acontece, tanto por meio do canto, quan
to da fala. A alternância entre música e fala aproxima-os muito mais da tradição da
commedia dellarte, embora a ópera jamais deixasse de ser um referencial: as paródias de
óperas sérias eram apresentadas quase que simultaneamente às suas estréias.
No universo da comédia popular, a dramaturgia musical aprendeu a trabalhar em
uma perspectiva disúnta da ópera: mais naturalista, mais próxima do cotidiano e alta
mente integrada ao referencial musical do público. Foram desenvolvidas, assim, novas
convenções, pois a alternância de música, texto e ação permitiu construções bastante di
ferenciadas daquelas da ópera, em que a música jamais é interrompida. Posteriormen
te, essas convenções seriam muito úteis para os músicos de cinema, que se viram diante
de situações semelhantes às dos théâtres de la foire e seus sucessores.
A tradição da comédie en vaudevilles não se restringiu à França. A ballad opera ingle
sa e o Singspiel alemão são manifestações contemporâneas semelhantes que se influen
ciaram mutuamente. No século XIX, essa tradição iria sobreviver em gêneros como o
Music Hall, a Revista e o Café-Concerto. Por outro lado, ela se encontra com a tradição ope
rística na opéra comique e na operetta.
A partir da metade do século XVIII, a opéra comique começa a se transformar e se
distancia da forma tradicional da comédie en vaudevilles. A tradição cômica italiana exer
ceu uma influência direta neste processo. Seu marco foi a apresentação de La serva
padrona em Paris (1 7 5 2 )5. A partir daí, surgiram cada vez mais obras com música origi
5. A apresentação desta ópera deu origem a uma polêmica conhecida como querélle des
bouffons, na qual as duas culturas, italiana e francesa, se debateram a respeito dos méritos
de suas respectivas artes musicais.
Voix de ville 61
nal. Le devin du village, de Rousseau, estreada em 1752, é uma das primeiras e enquadra-
se perfeitamente no modelo italiano de música contínua, mas o estilo musical é fran
cês e segue a tradição dos vaudevilles. A forma que se consolidaria seria a da peça cômica
em diálogos intercalada por números musicais e passagens em melodrama.
A ascensão da opéra comique encobre aos poucos o espaço da tragédie lyrique, pro
cesso esse que reflete a transição política do período, quando a burguesia substitui a no
breza no poder central, culminando na Revolução Francesa. A opéra comique deixa
gradualmente a periferia para se tomar arte oficial.
Esse novo modelo de opéra comique seguiu a tradição da temática voltada ao uni
verso das pessoas comuns. Mas a comédia farsesca irá, aos poucos, ceder espaço aos en
redos mais sérios, de caráter romântico. O fator cômico vai se tornando secundário e a
aventura, bem como o horror, que sempre permitiram a exploração de efeitos espetacu
lares, passam a dividir o palco com a comédia. A fronteira entre a ópera convencional e
a opéra comique fica cada vez mais tênue, em certos casos restrita apenas ao fato de a úl
tima apresentar diálogos intercalados com música, enquanto a primeira mantém a tra
dição da música contínua pelo uso de recitativos.
Musicalmente, a nova opéra comique é mais sofisticada do que as comédies en
vaudevilles, embora sejam mantidas algumas características, especialmente quanto ao tra
tamento melódico e a simplicidade da escrita. Alguns exemplos antecipam futuras prá
ticas posteriores como Richard Coeur-de-Lion (1784) de Grétry, em que o autor usa a ária
Une fièvre brülante de forma recorrente, unificando tematicamente a peça como uma es
pécie de leitmotiv primitivo. Também permanece o hábito de trabalhar a sonoridade não
apenas em seu aspecto musical. Já mencionamos, a respeito da opera buffa, o quanto era
comum a imitação musical ou onomatopéica dos sons naturalistas. Na França, pelo que
podemos apreender dos relatos, este universo sonoro realista foi além da pura imitação
ou onomatopéia, embora estas também existissem. Martin Cooper cita um exemplo: "(...)
Henry IV, de Jean Paul Martini (...), incluía uma cena mostrando a batalha de Ivry, para
a qual a orquestra consistia de pífaros, clarinetes, oboés, trompas, pratos, tambores, ca
nhão, mosquetes e uma primitiva forma de máquina de vento" (em seu artigo para o ver
bete "Opéra comique", em The New Grove Dictionary o f Music and Musicians).
O realismo e o caráter espetacular das grandes catástrofes também atraíram o in
teresse da produção do período em que "fogo, avalanches, terremotos e erupções vulcâ
nicas" (Cooper, em seu artigo para o verbete "Opéra comique", em The New Grove
Dictionary o f Music and Musicians) eram levadas ao palco. Obviamente, era necessário
um tratamento sonoro ou musical para tais situações.
Ao mesmo tempo em que a opéra comique se aproxima da ópera convencional, ela
a influencia. A prática de incorporar o texto falado pode ser encontrada em obras como
Die Zauberflôte6, de Mozart, e Fidelio, de Beethoven. Obras posteriores a esse período tor
naram-se parte do repertório operístico, como Carmen, de Bizet, produzida sob a égide
6. Die Zauberflöte (A flauta mágica) não é exatamente uma ópera convencional, pois
possui muitas características do Singspiel alemão. Contudo é uma obra que se tornou indis
pensável no repertório operístico tradicional.
62 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
Vemos como tal estrutura é muito mais fragmentada do que os gêneros tratados an
teriormente. Porém, as caracterísúcas que nos interessam aqui são sua atualidade, a sin
tonia com o público e a grande versatilidade que permite incorporar praticamente tudo
o que seja atração para seus espectadores.
São essas as matrizes do que viriam a ser a Comédia musical e o Musical americano,
que floresceram a partir da segunda metade do século XIX.
A q u is iç õ e s D r a m á t ic o - m u s ic a is d o T ea tro P o pula r
O teatro popular nunca se preocupou muito com a pureza do gênero e nem sequer
se restringiu ao evento dramático propriamente dito. Ao longo de sua história, esteve
Voix de ville 63
sempre aberto a tudo que pudesse significar atração, divertimento e entretenimento. Ja
mais respeitou as instituições: Igreja, Estado, poder, foram sempre alvos de crítica, sátira
e recriados sob a perspectiva do homem comum. Artisticamente, o teatro popular é um
espaço permanente de experimentação e transformação, sempre em sintonia com o pú
blico, não importando a época e o local. Nele desenvolver-se-iam novos procedimentos
que seriam incorporados pela arte oficial.
Como espaço das mais variadas manifestações, o teatro popular permitiu a explo
ração de diversas combinações com a música: música e ação, música e movimento, mú
sica e texto. Adequou-se, também, às necessidades geradas pela construção da ilusão
poética da ação espetacular: ginastas, malabaristas, saltos mortais etc. A cada momento,
é necessário intensificar a tensão dessas expectativas e de suas resoluções, emoldurando,
no tempo, a ação dos artistas. A música é a "moldura temporal" tanto quanto o palco é
a "moldura espacial". A música prepara o espectador, concentra-o, acompanha a reali
zação do movimento, insinua o perigo ou a emoção de um gesto e, finalmente, pontua
sua conclusão.
A pantomima é outra faceta desta associação de música e movimento que foi ex
plorada em profundidade. Vimos que isto ocorria na comédie en vaudevilles, por exem
plo, em que os atores representavam enquanto o público cantava o vaudeville. Nesse caso,
a música também servia de "moldura temporal" para a ação. Além disso, a música é uma
fonte adicional de informações na qual as intenções e o caráter da ação são revelados
pelo contraponto entre ambos. A música pode sublinhar, comentar ou contradizer a ação
representada e ao mesmo tempo criar a moldura temporal para o gesto, em uma rela
ção semelhante à da dança. Na pantomima, a polifonia do gesto, da ação representada e
da música suprem, desse modo, a ausência do texto falado.
Na constmção musical do "tempo de comédia", o andamento e o caráter têm que
se adequar às intenções de cada momento, permitindo um tipo de articulação dramáti
co-musical ponto a ponto. As questões rítmicas tomam-se fundamentais, a ponto de o com
positor Herold7 ter declarado: "Lembre-se de que o ritmo faz tudo" (apud Grout, 1965:335).
O redimensionamento das questões rítmicas da polifonia dramáúco-musical per
mitem um novo tipo de articulação. As nuanças musicais que acompanham as transfor
mações do texto e da ação dramática possibilitam que a música faça o recorte da ação e
estabeleça o foco de interesse, o que deve ser colocado em primeiro plano. O local para
onde se dirige o olhar do espectador é indicado, primordialmente, pela música. Da peça
de conjunto ou coro, que reúne diversas personagens distribuídas pelo palco, até o so
lista, que chama para si a atenção de toda a platéia, a música recorta e expõe o que deve
ser observado em cada momento do espetáculo. A partir deste recorte musical é que o
texto é dado e compreendido.
Ao contrário da ópera tradicional, em que a opção pela música contínua levou à
adoção do recitativo, no teatro musical a relação entre música e texto buscou outras con
The day will yet come when musicians will write for picture plays, manufacturers
will print the music for such films, managers will gladly pay for same, pianistis will be
engaged to enchant the public, who are so willing to go and hear, as well as see that which
it craves for, good music in connection with silent picture plays, music that speaks for itself
- the music of the silent drama.
Pilar Morin, 1910
O cinema é arte popular. O discurso de Don tenta forjar uma origem erudita e so
fisticada para esconder essa herança popular, tida como de "baixo calão" ou, no míni
mo, não respeitável. A história de Don é muito parecida com a de Eliza, em My Fair Lady,
que consegue enganar toda a aristocracia, sendo tomada como princesa húngara. Am
bos possuem uma origem comum e por mais que tentem disfarçá-la, são seu reflexo
e revelam-na em seus atos mais sinceros: Eliza nas corridas e Don em seus núm e
ros musicais.
Sabe-se que o cinema não surgiu como arte. Nos primórdios era, para alguns, ape
nas uma nova técnica que permitia registrar as imagens em movimento e, para o gran
de público, mera curiosidade. As trinta e cinco pessoas que pagaram um franco cada para
assistir à projeção de alguns filmes de curta duração dos irmãos Lumière no Grand Café,
em 28 de dezembro de 1895, muito provavelmente não classificariam aquele evento
como fato artístico. Mas o cinema era, sem dúvida, uma novidade e provocava o fascí
nio do público, tanto que se transformou, rapidamente, em um grande negócio. A capa
cidade de perceber esse potencial comercial e a idealização do mecanismo da grifa foram
dois grandes méritos dos irmãos Lumière.
O cinema começava a conquistar o público como curiosidade e entretenimento
mesmo antes de ter incorporado a estrutura dramática e estabelecido os princípios de sua
linguagem. E, como tal, passa a ser apresentado modestamente intercalado entre os nú
meros das casas de espetáculos de variedades. O cinema foi o intermedio do café-concerto
e do music hall
O cinema foi a última conquista de todas as experiências ópticas que proliferaram
ao longo de muito tempo e alcançaram no século XIX alto grau de desenvolvimento e
variedade. Sombras chinesas, Lanterna mágica, Fantasmagoria, Panorama, Diorama, Teatro
óptico: grande parte dessas experiências ópticas tinham por objetivo a síntese do movi
mento e muitas chegaram a resultados magníficos. Mas o cinema surge, nesse contex
to, como uma técnica diferenciada.
O principal apelo do cinema foi, nesse primeiro momento, a possibilidade de as
sistir a imagens em movimento. Michel Chion afirma:
Que o cinema em seu início não seja designado como uma arte da imagem,
mas como uma arte do movimento, não é de se espantar, em uma época em que
as artes, espetáculos e atrações visuais abundam como nunca: fotografia
estereoscópica em relevo, dioramas, lanterna mágica, projeções diversas, teatro de
efeitos visuais. Apresentar-se como uma nova arte da imagem era, acima de tudo, de
sastrado. Em contrapartida, o que era moderno era a idéia do movimento. (1995:32)
Chion tem razão, mas o que não está claro é que a imagem em movimento tam
bém era o alvo de várias dessas formas de espetáculos ópticos. O que o cinema apresen
ta de significativo, realmente, é o fato de suas imagens serem o registro de ações de
pessoas, de situações do mundo e não a síntese de movimentos por meio de desenhos
ou sombras. O cinema nasce como espetáculo impregnado de realismo. O que fazia dele
uma grande curiosidade era o fato de se poder ver, pela primeira vez, o registro da ação
humana propriamente dita. O que o cinema exibia não eram imagens quaisquer, mas
imagens de pessoas reais em ações reais. Os Lumière, com seu senso de espetáculo, per-
Pantomimas luminosas 67
ceberam que aí residia o grande potencial do cinema, como pode ser observado em seus
primeiros filmes: o trem parando na estação, operários deixando as fábricas etc. E, como
uma avalanche, o cinema soterrou todas as experiências ópticas que o precederam. Em
pouquíssimo tempo, elas perderam praticamente todo seu espaço junto ao público.
Já se pode notar, nesse momento, as duas grandes características da história do ci
nema: seu caráter realista, ou seja, sua opção de focalizar pessoas, ações, objetos e situa
ções captadas diretamente no que entendemos por "mundo real", bem como o caráter
"pretérito" de toda ação filmada, que nos leva a ver o filme sempre como fato ocorrido1.
Esses dois fatores constituem a grande distinção entre o cinema e as experiências ante
riores. Pela primeira vez, era possível assistir a um espetáculo em que as imagens não
eram produzidas artificialmente, por meio de pinturas recortes ou movimentos de som
bras, mas extraídas do cotidiano, enfim, um registro e reprodução de nossas imagens,
ações e vidas.
Muitos aventureiros lançaram-se na busca do lucro por meio do cinema, seja rea
lizando filmes, seja exibindo-os. Mas, como toda novidade, o cinema estava fadado a en
velhecer. Aos poucos, as casas de espetáculos de variedades foram excluindo as projeções
de seus programas. Tal como comenta Sergio Miceli:
No final do século, o cinema, como mera curiosidade, estava com os dias conta
dos. Foi por isso que começou a se transformar. Surgiram as primeiras tentativas de lin
guagem, as imagens em movimento deixaram de ser apenas registro e passaram a ser
usadas para criar situações. O cinema incorporou a ação representada, fator primordial
para a adoção de uma estrutura dramática.
O que o discurso de Don Lockwood vem nos lembrar é que o referencial dramáti
co do cinema não é o drama erudito, mas o teatro popular. O fato de o cinema ter en
contrado seu primeiro espaço público no teatro de variedades é sintomático. Miceli
comenta que "o filme se inseria, portanto, em estruturas preexistentes, nas quais o acom
panhamento musical era uma característica constante, fosse como fundo aos vários nú
meros, fosse como entretenimento nos intervalos entre um número e outro" (1982:38).
A exibição pública de cinema nasce, portanto, em um contexto musical: trata-se de
um universo em que praticamente tudo era acompanhado por música e em salas que
possuíam toda a infra-estrutura para a execução musical. A própria idéia de espetáculo
como parte da cultura e do espírito da época estava associada à música. Quando os
1. Em certo sentido, essas duas características antecipam aquilo que seria a decorrên
cia natural do desenvolvimento do cinema: sua opção pela estrutura dramática subordina
da a uma forma narrativa.
68 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
Lumière optaram por realizar sua histórica exibição acompanhada por música, fizeram-
no movidos por esse espírito e por seu bom senso comercial. Don Lockwood tinha ra
zão: o cinema começara sua carreira no vaudeville.
Portanto, a primeira etapa do cinema como espetáculo teve dois referenciais: as
curiosidades ópticas e o teatro popular, as primeiras como antecedentes dos aspectos
mecânico e técnico e o segundo como origem de sua estmtura dramática. Ambos fize
ram uso do acompanhamento musical.
AM ú sic a n o s E spetá cu lo s Ó p t ic o s e n o s P r im ó r d i o s d o C in e m a
Poucos são os registros sobre a música nos espetáculos ópticos, embora encontre
mos, aqui e ali, algumas referências. Martin Miller Marks, em seu minucioso trabalho
sobre música no cinema mudo, comenta:
...nem todos esses espetáculos de entretenimentos ópticos eram realizados com
música - exibições de lanterna mágica de material científico, por exemplo, pare
cem normalmente ter sido conduzidas apenas por narradores -, mas em outros ti
pos de exibições, especialmente espetáculos de fantasia e sobrenatural, nós
encontramos consideráveis evidências iconográficas de que os lanternistas ou to
cavam música eles mesmos ou dependiam de outros para prover o espetáculo de
acompanhamento musical, usualmente ao teclado ou instrumentos mecânicos.
(1997:28)
Dentre os espetáculos, merece especial destaque o Teatro óptico. Criado por Emile
Reynauld a partir do desenvolvimento de seu praxinoscópio, ele foi um antecessor do de
senho animado. A máquina de projeção de Reynauld era, segundo relatos, muito com
plexa, contudo, com ela, era possível projetar, para grandes audiências, longas seqüências
de desenhos sobre tiras transparentes. Em tomo de 1890, Reynauld exibia diariamente
suas "pantomimas luminosas" no Musée Grevin, em Paris. Lamentavelmente, jogou no
rio Sena quase todos os seus filmes, pois o mundo do cinema deixou de se interessar
pelo seu teatro óptico. Foi uma infelicidade, pois bastava sua adaptação à nova técnica e
teríamos, então, o desenho animado.
O Teatro óptico é um dos poucos que deixou registro sobre o acompanhamento
musical. A respeito da primeira exibição de Reynauld, Miller Marks comenta:
espetáculo mudo, a pantomima era o que havia de mais próximo às imagens mudas das
primeiras experiências do cinema e de seus predecessores imediatos2.
Mas não é apenas como espaço de exibição que o teatro de variedades serve ao ci
nema. O próprio conteúdo dos primeiros filmes foi extraído diretamente desse tipo de
espetáculo e muitos deles não passaram de meros registros de números de variedades,
pois possuíam vários requisitos importantes que os adequava às limitações técnicas do
emergente cinema, tais como a movimentação e a possibilidade de dispensar o texto fa
lado, além do fato de pertencerem ao universo cultural do público médio. A primeira
apresentação do Vitascope, de Edison, no Koster and Biafs Music Hall, em Nova York,
mostrou, entre outros, filmes de números como a "dança da serpentina", "dança do guar
da-chuva" e "uma luta de boxe burlesca"3, todos executados por artistas de teatros de va
riedades.
Os primeiros a criarem música de cinema foram os músicos das casas de espetá
culo, a partir de seus referenciais de origem. Em sua primeira etapa, ainda inserido no
contexto do vaudeville e do music hall, o espetáculo mudo do cinema apresentava para o
músico os mesmos problemas dos números do teatro de variedades e da pantomima e
pode-se, portanto, inferir que as soluções propostas fossem muito similares às que apre
sentariam para o número de palco.
É muito raro encontrar referências precisas sobre o tipo de música executado nes
sa fase do cinema. Provavelmente, essa preocupação não existiu porque a música naquele
contexto não significava qualquer espécie de novidade: tocava-se o que todos esperavam
ouvir.
D iante de tanta escassez, uma das raras exceções é o espetáculo de Max
Skladanowsky, que apresentava um programa de vários filmes realizados com o Bioscópio.
O espetáculo estreou em Berlim em novembro de 1895 e viajou por diversas cidades.
Curiosamente, as pastas com as partituras musicais usadas para o acompanhamento dos
filmes desse espetáculo sobreviveram e encontram-se, hoje, na Stiftung Deutsche
Kinemathek.
O espetáculo de Skladanowsky seguia o modelo das exibições de cinema nos tea
tros, ou seja, uma série de filmes curtos. Em sua estréia, foram apresentados os seguin
tes filmes4:
4. Um malabarista.
5. Um canguru boxeador.
6. Um potpourri acrobático, executado por oito artistas.
7. Uma dança típica russa - Kamarinskaja.
8. Uma luta de boxe.
9. Uma "apoteose" apresentando os irmãos Skladanowsky fazendo reverências de agra
decimento ao público.
Pode-se perceber o quanto este programa tem como referencial a prática do teatro
de variedades5. Parte da música foi composta e parte selecionada para o espetáculo6. O
modelo seguido é o de uma música para cada filme exibido, além de uma Introdução
(Abertura)7:
Filme Música
Introdução
1) Dança camponesa italiana: Polka
2) Cena cômica acrobática: Galope 1
3) Dança da serpentina: Valsa (Loin du Bal, de Gillet)
4) Malabarista: Galope 2
5) Canguru boxeador: Marcha espanhola
6) Potpourri acrobático: Galope 3
7) Dança típica russa: Kamarinskaja (de Glinka)
8) Luta de boxe: Marcha
9) "Apoteose": Finale
Nota-se que a seleção tem como base o referencial musical do período, incorporan
do peças de gêneros bastante populares como a polca, a valsa, a marcha e o galope, este
último sempre associado aos números acrobáticos.
Nesse tipo de programa, a construção do contraponto entre o movimento visual e
o musical é a questão principal: é por seu intermédio que se alcançam a ilusão e o en
volvimento do espectador. A opção de fazer que cada filme fosse acompanhado por um
número musical distinto revela que o acompanhamento musical já era tratado com se-
riedade. A seleção levava em conta o caráter de cada um dos filmes. Em muitas ocasiões,
afirmou-se que nos primórdios do cinema a preocupação com o acompanhamento mu
sical foi muito pequena e que, portanto, qualquer música poderia ser usada em um fil
me, indiscriminadamente. Talvez isso tenha ocorrido em determinados casos, mas o
exemplo de Skladanowsky o desmente e demonstra que o cinema não apenas voltou sua
atenção para a música como se preocupou em organizá-la cuidadosamente. A organiza
ção do espetáculo segue o modelo do teatro de variedades. A própria iniciativa de emol
durar musicalmente o espetáculo com uma Introdução e um Finale faz parte desse modelo,
bem como o fato de os realizadores se apresentarem, no próprio filme, para os agrade
cimentos finais sob uma música apoteótica.
Polka
A M ú s ic a na F orm açào da L in g u a g e m do C in e m a
Passado esse primeiro estágio do cinema como espetáculo, em pouco tempo ele
deixou de ser apenas uma curiosidade. Paralelamente, os recursos técnicos passaram a
ser explorados mais detalhadamente. Cresceu a preocupação com o conteúdo dos filmes:
não bastava mais, apenas, o registro de situações movimentadas do cotidiano ou núme
ros de variedades. Cada vez mais, as sessões de cinema apresentavam filmes mais lon
gos e em menor número.
A câmera, antes fixa, começou a se mover. Aprendeu-se a buscar a imagem neces
sária às necessidades da narrativa. Surgiram os planos, o recorte visual das imagens fei
to pela câmera. Descobriu-se a montagem, que por meio da junção de planos permite a
72 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
progressão da narrativa. Esgotado o seu fascínio como novidade, o cinema começou sua
trajetória como linguagem e, por conseguinte, como forma artística.
Pode-se dizer que o aprendizado da primeira etapa do cinema como espetáculo, tan
to nas imagens quanto na música, terá reflexos nas práticas posteriores. Se o filme de
duração mais longa é, em essência, a junção de uma série de filmes curtos, ou planos,
cujos sentidos se relacionam mutuamente, subordinados a uma estrutura narrativa maior,
da mesma maneira, o acompanhamento musical será a criação de música para esta mes
ma sucessão. Cada situação do filme deveria estar acompanhada de uma música especí
fica adequada. Tal como na narrativa das imagens, a junção dessas músicas também
deveria apresentar uma coerência interna, formando um todo unificado e contínuo.
Diante desse problema, o teatro de variedades já não servia mais como referencial úni
co, sendo preciso buscar na tradição dramático-musical os gêneros menos fragmentá
rios e entender suas soluções. Tal referencial foi, para o músico do início do século XX,
a tradição operística e o teatro musical.
Nesse caminho, surgiram, no entanto, diversos problemas técnicos. O cinema in
corporara a estrutura dramática, mas era limitado no que diz respeito ao som que ainda
não podia ser sincronizado à película8, impossibilitando a utilização do texto dialogado.
Em um primeiro momento, isso havia sido facilmente resolvido por meio de filmes cur
tos de situações que dispensavam totalmente a fala, como os números de variedades.
Contudo, como o texto falado é a ferramenta básica da dramaturgia tradicional, esta não
pode ser, então, o referencial do cinema. Era de se esperar que o cinema fosse se espelhar
em formas dramáticas não-verbais, como a pantomima e, de fato, ele as incorporou, tan
to no aspecto musical quanto na representação dos atores. Ainda assim, o cinema iria
descobrir a capacidade de desenvolver uma nova dramaturgia, com uma dialogia própria,
de signos não-verbais.
O olhar da câmera permitiu novas possibilidades significativas. Pela primeira vez,
foi possível direcionar o olhar do espectador em relação ao drama. Tornou-se possível
fechar o plano em um olhar, um sorriso, uma expressão, algo que jamais havia aconte
cido em qualquer forma dramática. A possibilidade de selecionar a imagem - do todo
ao particular e deste ao mínimo detalhe - , somada à capacidade de combinação dessas
imagens por meio da montagem, foi algo inédito, tomando-se o grande recurso de lin
guagem do cinema.
Mas, de qualquer modo, o cinema demonstra não ser, propriamente, uma forma
dramática: seus recursos como linguagem são, na maioria, narrativos. Por trás da câme
ra, há sempre a mão que dirige seu olhar. O drama não flui por si só, como no palco,
mas mediado por uma figura "misteriosa" que nele intervém, decidindo arbitrariamente
o que deve ou não ser visto. É como se a cada plano um narrador dissesse ao espectador:
"veja, observe o olhar dessa jovem. Veja como está triste..." Havendo um narrador, todo
filme carrega consigo a condição de pretérito, de fato ocorrido, contrapondo-se ao eter
no presente do drama propriamente dito. Ainda que tenha incorporado a estrutura dra
mática, ou seja, pessoas representando personagens, vivendo situações e conflitos, essa
subordina-se a uma forma épica. O cinema é essencialmente épico.9
Como já foi dito, essa dialogia peculiar do cinema é construída a partir de signos
não-verbais. O narrador subjetivo vale-se de todos os recursos para organizá-la: um pla
no sucede ao outro, interferindo em seu sentido, complementando-o. O sentido é resul
tado dessa interação. O que foi dito em um plano é confrontado, em nossa percepção,
com o que é dito pelo próximo por meio de associações metonímicas. Ao mesmo tem
po em que são passíveis de se organizar em sucessão, as imagens em movimento são ca
pazes de concentrar um número muito grande de informações em simultaneidade. A
manipulação minuciosa dessas imagens permite construções muito elaboradas em que
não é dita uma única palavra. Trata-se, pois, de uma espécie de polifonia não-verbal na
qual se concentram as muitas vozes do narrador.
A música surge, então, como uma das vozes - ou um conjunto de vozes - dessa
polifonia. A música e as outras linguagens a ela associadas compõem a narrativa fílmica.
É uma polifonia que envolve informações visuais e sonoras. Contudo, no período em que
a sincronia entre sons e imagens ainda não era possível, o acompanhamento musical
ao vivo foi o único recurso sonoro usado em larga escala10.
Apesar da incorporação do acompanhamento musical pelo cinema ser decorrên
cia de uma tradição histórica, algumas questões ainda aguçam a nossa curiosidade. Uma
delas diz respeito à ilusão de realidade. Se o realismo foi um dos principais fatores do
fascínio do cinema em um primeiro momento, por que, então, a música se toma o prin
cipal elemento sonoro do cinema mudo? Esta pergunta permite muitas respostas. Uma
delas é muito simples: se em comparação com os diálogos e com os sons naturalistas a
música é a que menos contribui para a ilusão de realidade, ao mesmo tempo, quando
associada às imagens em movimento, ela funciona, dá resultado, participa da composi
ção do sentido do filme e do espetáculo cinematográfico. Eventos simultâneos, visuais e
sonoros causam impacto no ser humano, isto é um fato inegável.
Praticamente todo trabalho sobre música de cinema começa com o estabelecimen
to dessa questão fundamental: por que a música para acompanhar filmes? Em contrapon
to à simplicidade da resposta oferecida no parágrafo anterior, notamos a complexidade
de tal assunto quando nos confrontamos com a variedade e o teor das respostas. Kurt
9. Esse assunto foi aprofundado em nosso trabalho Trilha musical Música e articulação
fílmica.
10. Houve também experiências com narradores e diálogos ao vivo. Em salas mais ri
cas havia também, em alguns casos, sonoplastia ao vivo. Contudo, nenhuma dessas práti
cas tornou-se comum.
74 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
London (1970), por exemplo, afirmou que a música teria sido incorporada para encobrir
o ruído dos primeiros projetores. Adorno e Eisler (1 9 7 6 )11 viram na música um antído
to para o ambiente psicologicamente desfavorável das primeiras salas de cinema, onde
o público era trancado em um ambiente sem luz para assistir à projeção de "fantasmas".
Ainda que totalmente distintas, essas duas hipóteses baseiam-se em um ponto de vista
comum: a noção de música ambiente que, freqüentemente, é usada pejorativamente, como
um tipo de música inferior - a música que ouvimos nas salas de espera de consultórios mé
dicos, em supermercados, elevadores etc. Neste tipo de música produzida em larga escala,
o discurso musical deve desenvolver-se de maneira uniforme, sem grandes contrastes rít
micos e harmônicos ou qualquer recurso que estimule o ouvinte, chame sua atenção. A
música deve passar despercebida e preencher o vazio sonoro.
Um dos aspectos da música no cinema mudo é, justamente, essa sua componente
de música ambiente, desde que tomemos o termo "música ambiente" em uma acepção
mais ampla e menos pejorativa. Se deixarmos de lado a visão de ambiente como um dado
espacial, como um dado "decorativo", e o tomarmos como aquilo que nos envolve, po
deremos, então, compreendê-lo sob um ponto de vista psicológico, como o conjunto de
estímulos ao nosso redor. Logo, a "música ambiente" seria o estímulo necessário para a
criação de um determinado estado psicológico favorável à compreensão do filme, bem
como ao envolvimento do espectador. Isto fica patente se assistimos a um filme mudo
sem música e, depois, com seu acompanhamento musical. É muito mais difícil acom
panhar a narrativa apenas com o estímulo visual, pois a tendência à dispersão é muito
grande. Isso se toma ainda mais crítico em um ambiente coletivo. Nossos ouvidos estão
sempre abertos aos estímulos sonoros. Podemos fechar nossos olhos, mas é praticamente
impossível parar de escutar. Em uma sala escura, há ruídos de todos os tipos: tosses, m o
vimentos, tudo pode ser ouvido e faz que desviemos a atenção do filme. A música faz que
a atenção de toda a sala se volte para um único discurso sonoro. Ela é um ponto focal
coletivo. Mas, ao mesmo tempo em que coletiviza, a música também estabelece uma
predisposição psicológica individual. Esta concentração toma possível a transcendên
cia necessária ao mergulho na experiência estética, o envolvimento total do espectador
no espetáculo.
A propriedade hipnótica da música é usada no sentido de criar, em nossa psique, o
espaço e o tempo do filme. Contudo, se a questão fosse apenas criar um estado psicoló
gico favorável à percepção do filme, qualquer música poderia, em princípio, cumprir essa
função. Mas não foi isso que se praticou ao longo da história do cinema. Como vimos,
a preocupação com a seleção de material musical adequado existe desde os seus pri
11. As datas entre parênteses referem-se ao ano das edições que constam das referên
cias bibliográficas deste trabalho. A primeira edição do texto de London é de 1936. No caso
de Eisler e Adorno, a situação é um pouco mais complicada. O texto foi escrito em 1944. Sua
primeira edição é de 1947, com o título "Composing for the films" (Oxford University Press)
e assinada apenas por Eisler, omissão esta devida a motivos de caráter político. Somente em
1969, foi publicada a primeira edição da versão atual, que atribui a co-autoria a Adorno.
Pantomimas luminosas 75
mórdios. Trata-se, sim, de criar um estado de envolvimento, mas no qual ocorram uma
variedade de estímulos e respostas emocionais. Em resumo, a música cria não apenas um
ambiente favorável, mas as muitas "ambiências" necessárias ao desenvolvimento nar
rativo do filme. O ambiente não é, portanto, algo estanque, é dotado de uma flexibilida
de que permite sua transformação à medida que o filme se desenrola.
Diretamente associada à transformação do ambiente, encontra-se a interferência
temporal. A capacidade de a música alterar a percepção do tempo é um pressuposto de
todos os tipos de música ambiente. A música da "sala de espera" tem por objetivo dis
farçar a demora. No cinema, essa relação torna-se mais complexa, pois não se trata de
fazer com que não se perceba a passagem do tempo, mas de alterar a relação do esperta
dor com ele. Por meio da música, cria-se o tempo da narrativa, paralelo e distinto do cro
nológico. O fluir do tempo no eixo narrativo pode ser mais lento ou acelerado e a música
é uma ferramenta que nos permite atingir esse fim com precisão.
A música é muito mais eficiente do que os diálogos ou ruídos para reter a atenção,
a concentração e a imersão do espertador no tempo narrativo. A música é o fluxo sono
ro contínuo do eixo temporal, assim como as imagens filmadas são o seu fluxo visual. É
exatamente esse eixo do desenvolvimento temporal que aproxima a música das imagens
filmadas: ambas possuem uma série de similaridades em suas formas de organização e
a capacidade de alterar a percepção do fluxo temporal. Em outras palavras, o tempo do
cinema é um tempo musical. Compreendemos, assim, a opção do cinema pela música
em detrimento dos sons naturalistas. John Williams comentou este fato: "Eu penso o se
guinte sobre diretores: os melhores diretores são musicais. Eu penso que parte do que eles
fazem é musical. A arte de montar um filme, em meu modo de ver, é uma arte musical"
(Bazelon, 1975:199).
Tempo e movimento são dois conceitos intimamente relacionados. A idéia de mo
vimento implica desenvolvimento temporal. Assim sendo, tanto a música quanto as
imagens filmadas carregam em si a propriedade do movimento. London foi capaz de
perceber esse aspecto essencial da relação entre música e imagens filmadas:
A razão mais essencial para explicar estética e psicologicamente a necessida
de de música como acompanhamento dos filmes mudos é, sem dúvida, o ritmo do
filme como arte do movimento. Nós não estamos acostumados a compreender o
movimento como forma artística sem o acompanhamento de sons ou, pelo me
nos, de ritmos audíveis. Todo filme que mereça esse nome deve possuir seu ritmo
individual, o qual determina sua forma. (...) Era dever do acompanhamento musi
cal dar aos filmes acentuação e profundidade. (Apud Prendergast, 1977:4-5)
Essas várias funções da música no filme são geradas pela articulação de sons e ima
gens nos dois eixos: o temporal (horizontal) e o polifônico (vertical). A cada um desses
eixos liga-se um fundamento da articulação audiovisual. O movimento é a decorrência
do desenvolvimento temporal e a sincronia advém da polifonia.
Do ponto de vista polifônico, a música interage com as imagens a cada momento.
São discursos que se desenvolvem como as vozes de um contraponto. Esse confronto
ponto a ponto de imagens e música e sua transformação conjunta ao longo do tempo
geram senüdo, significação. Como vimos, é quase impossível assistir a um filme em com
pleto silêncio. É também praticamente impossível contar uma história por meio de um
discurso puramente musical. A música programática almejava tal façanha, mas fazia-se
acompanhar de um texto escrito que servia de referencial literário. A somatória das in
formações visual e sonora, ainda que sem palavras, permitiu a construção de estruturas
narraúvas e situações dramáticas. Ou, indo além, o complexo polifônico formado por
música e imagens permitiu o desenvolvimento de um gênero que prescinde de palavras.
As convenções narrativas do cinema formam-se em um contexto no qual a música
é parte integrante. Essas convenções são, portanto, de ordem visual e musical. Assim, é ne
cessário que se aborde a música como voz (ou vozes) do complexo polifônico do cinema.
E x p e r im e n t a n d o com M ú s ic a e I m ag en s
Em seu período mudo, o cinema era uma arte dividida entre o passado artesanal
das artes dramáticas e sua vocação industrial. Assim, enquanto as imagens filmadas já
eram passíveis de reprodução industrial, o acompanhamento musical, elo com as artes
ao vivo, permanecia no domínio da produção artesanal. Era um contraponto abrangen
do duas eras distintas quanto aos meios de produção artística.
Se, por um lado, a produção da música nas salas de exibição era algo que fugia to
talmente do controle dos realizadores de cinema, por outro, a variedade de músicos e
músicas para cada filme permitiu uma experimentação vasta e variada das relações en
tre música e imagens. Enquanto os realizadores de filmes desenvolviam os recursos da
articulação fílmica, os músicos, nas salas de cinema, experimentavam a polifonia audio-
Cue sheets
As cue sheets, que em uma tradução livre podemos chamar de "planilhas" para o
acompanhamento musical, começaram a ser precariamente publicadas sob a forma de
Incidental M usicfor Edison Pictures, em 1909. Miller Marks apresenta a seguinte cue sheet
para o filme How the Landlord Collected His Rent (1997:48):
1. Marcha, vigoroso;
2. Giga irlandesa;
3. Começa com Andante, termina com Allegro;
4. Ária popular;
5. Idem;
6. Andante com vida ao final;
7. Marcha (a mesma do número 1);
8. Melancólico;
9. Andante (use a marcha do número 1).
Como é possível notar, a planilha não indica que música deva ser usada, mas ape
nas seu estilo em função das características de cada momento do filme. Mas o interes
sante é que já há uma certa preocupação com a unidade musical, pois a marcha inicial
(1) repete-se mais duas vezes: a primeira no momento 7 e a segunda no encerramento
(9), quando aparece transformada em Andante (trata-se, aqui, de uma mudança de an
damento que interfere diretamente no caráter da peça musical).
Nem todas as cue sheets são tão genéricas. Algumas são detalhadamente elaboradas
por profissionais contratados pelos produtores de filmes, ou pelos distribuidores de par
tituras. Um dos mais importantes desse período foi Max Winkler, que elaborou as cue
sheets para a Universal Film Company. Sua carreira começou ao ser encarregado de ca
talogar o acervo da Cari Fischer, revenda de música da qual era funcionário em 1912.
Sobre a idéia de confeccionar cue sheets, Winkler fez o seguinte relato:
Um dia, ao voltar para casa após o trabalho, eu não conseguia pegar no sono.
As centenas e milhares de títulos, as montanhas de música que a Fischer tinha es
tocado e catalogado, continuavam girando em minha mente. Havia, seguramente,
música para acompanhar qualquer situação em qualquer filme. Se nós pudéssemos
apenas encontrar um meio de levar ao conhecimento de todos esse líderes de or
questras e pianistas e organistas o que nós possuíamos! Se nós pudéssemos usar
Pantomimas luminosas 79
nosso conhecimento e experiência não apenas quando já fosse muito tarde, mas
com antecedência, antes que eles se sentassem para tocar, nós venderíamos músi
ca mais que às toneladas.
Essa idéia logo me eletrificou. Não era um problema conseguir a música, nós
a tínhamos... O problema era realizar, quantificar e organizar. Pulei da cama, acendi
a luz e fui até a minha mesa, peguei uma folha de papel e comecei a escrever fe
brilmente. Aqui está o que eu escrevi:
PLANILHA MUSICAL (MUSIC CUE SHEET)
Para
The Magic Valley
Selecionada e compilada por M. Winkler
C o n t in u a .
Pantomimas luminosas 81
O esp aço
a b a ix o é
re se rv a d o
p a ra as n o ta s
d o D ire to r
M u sica l L eg en d a o u A ção E stilo M ú sica S u g e rid a C o m p o s ito r E d ito r
1 4 R u m !* F eb ril O n th e B rin y # 4 C a rr P a x to n
1 5 G a ro to tra z c o m id a A g itad o I n v o c a tio n M ezzacap o L ib e r
1 6 L u ta n o co n v é s Febril R ep etir nQ1 4
1 7 E les b a te m n o h o m e m T en so La H a in e D e lm a s L ib e r
d r a m á tic o
1 8 C a p itã o e n tra T en so A g itato m iste rio s o P o p y L ib e r
1 9 C a p itã o v ê g a to T em a 1
2 0 T rip u la ç ã o a ta ca C a p itã o D ra m á tic o D e s tr u c tio n B r u s s e lm a n s L ib e r
21 T r a n s iç ã o p a r a ... Tenso agitado O m b r e c o m p l i c e M a rie P ie n a
2 2 D e p o is d e o s h o m e n s M elo d ia H eu res d 'a n g o iss e D e lm a s L ib e r
sa íre m ag itada
2 3 N o co n v é s D r a m á tic o O u v e rtu re Z erco D e W o lfe
D ra m a tiq u e
2 4 To m e n u sed to kicks* O n th e B rin y # 2 C a rr P a x to n
2 5 M ills fala c o m o Tenso agitado In c id e n ta l S ch u b ert L a fle u r
tim o n e iro S im p h o n ie s
2 6 Vê os h o m en s de novo R ep etir n ü 2 4
2 7 B o s u m n o le m e T en so L 'e sp io n n e D e lm a s L ib e r
2 8 T h e d o g W a tch * T en so S v en g a li S o m e rv ille D e W o lfe
2 9 D erru b a o s b arris D ra m á tic o Le la c m a u d it S ta z L ib e r
3 0 O ito sin o s * M o v im e n to M y stère D e lm a s L ib e r
te n s o
31 B o su n F ala T en so M iste rio so B o rch L afleu r
d r a m a tiq u e
3 2 B o su n é in flu e n c ia d o T en so T re a ch e ry L a to u r L ib e r
3 3 A h is tó ria m u d a * D r a m á tic o T ra g ic o c o n D rig o L afleu r
m o to
3 4 A rrem essa o g a to p ara D ra m á tic o G uilt E w in g E lk in
fora d o n a v io
3 5 N e g ro e g a ro to n a S em i a g ita d o R o m a n tiq u e S m e ts k y D e W o lfe
p ra n c h a
3 6 Vistos o s h o m e n s n o b o te Tenso agitado D r a m a tic H u rry O 'H a r e L afleu r
3 7 O v e n to ! O v e n to !* E x cita d o C o n fe s s io n T ch a ik o v s k y L ib e r
3 8 À n o ite * T e m p e stu o so T h e F ly in g W agner F e ld m a n
D u tch m a n
3 9 Q u a n d o o d ia c h e g a * S u p lica n te T o u t s'ap aise D yck L ib e r
4 0 U m n a v io ! U m n a v i o !* A gitado L 'E xu ltan te M a rie L ib e r
te n d re s se
41 T r a n s iç ã o p a r a ... P leu rs (T rio ) M e ssie r L ib e r
Ainda que de maneira muito elementar, nesta cue sheet encontramos alguns pro
cedimentos básicos do acompanhamento de filmes. O primeiro deles é a fragmentação
do material musical em função de cada momento do filme, de tal forma que o discurso
sonoro esteja vinculado ponto a ponto à narrativa visual. A seleção é, em sua maioria, com-
82 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
Coletâneas
Paralelamente ao surgimento das cue sheets, são publicadas coletâneas com músi
cas especialmente elaboradas para o acompanhamento de filmes. Alguns trabalhos ci
tam a Sam Fox Moving Picture Music Volumes, de J. S. Zamecnik (1913), como a primeira
publicação desse gênero13. Contudo, já em 1909, ano em que a companhia de Edison co
meça a fornecer cue sheets para seus próprios filmes, foi publicada a Motion Picture Pia
no Music: Descriptive Music to Fit the Action, Character or Scene o f Moving Pictures, de
Gregg Frelinger. Nos anos seguintes, surgiram muitas dessas publicações, a mais conhe
cida foi a Kinobibliothek (ou Kinothek), de Giuseppe Becce, cuja primeira edição data de
1919.
As coletâneas possibilitaram um acesso rápido às fontes musicais mais usadas na
produção de música para cinema. Certamente, ainda pertencem ao estágio em que o pró
prio músico seleciona as peças e monta o acompanhamento do filme. Ainda assim, so
m adas às cue sheets, deram um passo adiante para a m aior elaboração desses
acompanhamentos. Isto é especialmente válido para as salas de exibição mais modestas,
em que a organização e execução do acompanhamento eram, em geral, responsabilida
de de uma única pessoa, que, por vezes, mal conseguia assistir ao filme antes da exibi
ção pública. Erno Rapée, na introdução de sua Motion Picture Moods, comenta esse
problema:
Ao preparar este Motion Picture Manual for Piano and Organ, tentei criar a
ponte necessária entre a tela e o público, assim como é criada nas grandes salas de
cinema pela orquestra. Se considerarmos que as salas do tamanho e do padrão do
Capitol Theatre, em Nova York, contam com meia dúzia ou mais de experts sob as
ordens do Diretor Musical, trabalhando para suprir com música a ação na tela, nós
perceberemos que árdua tarefa deve ser para qualquer indivíduo, seja ao piano ou
ao órgão, por meio das músicas selecionadas ao acaso e, geralmente, em cima da
hora, suprir os filmes de bom acompanhamento musical. (1924:iii)
Nota-se que a narrativa do cinema não precisa mais se restringir à ação dramática
propriamente dita. Seus recursos narrativos permitem construções em que a ação pode
ser subsútuída por outros conteúdos, muitos deles impossíveis no palco. É a partir desse
tipo de concepção de Rapée que as coletâneas foram organizadas. O material musical foi
dividido em seções, adequando-se aos tipos mais comuns de situação encontrados nos
filmes. Sobre a sua classificação, Rapée comenta:
Se é ação que o organista ou pianista deseja retratar, ele encontrará uma va
riedade suficiente de tópicos no índice, para satisfazer praticamente qualquer as
pecto de seu gosto musical; se a representação de situações psicológicas for
necessária, ele vai encontrá-las nos tópicos "Amor", "Horror", "Alegria", "Paixão"
etc. (...) Para competições, patinação ou qualquer exibição de habilidade indivi
dual, na qual a ação não seja muito rápida, eu sugiro o uso das valsas de Waldteufel,
Straus etc.; se, ao contrário, a ação for rápida, um galope ou um one step seriam ade
quados. (...) Sob o tópico "Neutro", você encontrará sete números diferentes desti
nados ao uso em situações que não se encaixam em nenhuma das anteriormente
citadas. (...) A música encontrada sob o tópico "Sinistro" é destinada às situações
como a presença do inimigo capturado, abate de um avião ou navio hostil, ou para
a ilustração de qualquer coisa antipática. As onze peças incluídas no tópico "Fes
tas" mostrar-se-ão adequadas também para a representação de reuniões sociais ao
ar livre. (1924:iii)
14. Em sua extensa carreira, Rapée ocupou os seguintes postos: regente nas salas Rivoli,
Capitol, UFA Palast, em Berlin; diretor musical da Roxy, NBC e Radio City Music Hall.
84 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
Ao todo, Rapée apresenta uma lista de quarenta tópicos, índice este que pode ser en
contrado em todas as páginas, facilitando a rápida mudança de um tópico para outro:
1. A legria 2. A m or 3. A viões
4. B an da 5. B ata lh a 6. B on eca
7. B u r b u r in h o 8. C açad a 9. C a ix a d e m ú s ic a
40. W e ste rn
O tópico "Danças" inclui Gavotas, Mazurcas, Minuetos, Polcas, Valsas, Valsas len
tas, Tangos e Marchas. Classificada como Tango, nele se encontra a partitura de Dengoso,
de Emesto Nazareth. O tópico "Nacionalidades" apresenta temas musicais para quarenta
países, alguns representados por vários temas e outros por um apenas. O Brasil é repre
sentado por seu National Hymn, um equívoco, na verdade, pois a partitura é a do "Hino
à República"
A organização do material musical em coletâneas permite avaliar o inventário
musical do cinema mudo. A variedade de músicas e sua alocação sob tópicos bem defi
nidos de situações, estados psicológicos, indicadores de local ou época, demonstra que
no início da segunda década do século XX já existe uma linha mestra que orienta a pro
dução do acompanhamento musical. O universo de associações musicais começa a se
configurar como algo novo, independente da tradição dramático-musical. É claro que esta
tradição ainda é muito forte e, mesmo em termos técnicos, o cinema ainda não alcan
çou sua independência total, pois a música continua a ser executada ao vivo. Mas tanto
o músico de cinema quanto a música criada começam a se especializar.
A análise do inventário associativo da música de cinema desse período mereceria
um trabalho mais profundo e detalhado. Ainda assim, convém observar algumas peças.
O primeiro exemplo é da Kinobibliothek, de Becce. Trata-se de um fragmento intitulado
Notte - Misterioso.
Apesar de curto, apenas vinte e quatro compassos, este fragmento apresenta várias
divisões internas: uma parte inicial de doze compassos, subdividida em três frases de qua-
Pantomimas luminosas 85
tro compassos, todos elaborados sobre o mesmo motivo e ritmicamente iguais; uma se
gunda parte, também de doze compassos, igualmente subdividida em três frases de qua
tro, mas com motivos diferentes em que os quatro primeiros apresentam uma atividade
rítmica mais intensa do que a da primeira parte com melodia ascendente, ao passo que
a segunda frase volta a apresentar uma atividade rítmica menos pronunciada com movi
mento melódico descendente; a última frase é de caráter conclusivo, quase uma coda,
baseada no moüvo da primeira parte.
86 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
Hurry Music
Agitato (FOR MOB OR FIRE SCENES) J. S. Zamecnik.
Hurry Music é um fragmento curto: seus cinqüenta e dois compassos em 2/4 equi
valem praticamente aos vinte e quatro compassos em 4/4 do fragmento anteriormente
analisado. É uma peça musical curta, também dividida em três partes (indicadas pelas
barras duplas na partitura): a primeira possui dezesseis compassos, a segunda, dezesseis
e a terceira, vinte. As partes são igualmente contrastantes, ainda que formem uma uni
dade quando executadas em sucessão. A primeira frase não apresenta nenhum movimen
to melódico ou temático, seu caráter é puramente harmônico: um acorde diminuto em
trêmulo é apresentado e repetido, após uma rápida pausa. Na segunda frase, o mesmo
acorde é apresentado como um arpejo descendente: após uma outra pausa ainda mais
longa, tudo é repetido de forma transposta e as pausas intensificam a tensão inerente aos
motivos.
A segunda parte é também construída sobre acordes diminutos. Os trêmulos es
tão agora apenas na região aguda, enquanto os graves se movimentam cromaticamen-
te, delineando um primeiro movimento de caráter melódico. Ela se divide em duas
frases, em que a segunda é a repetição da primeira transposta. Na terceira parte, surge
uma melodia bem mais definida na região aguda, enquanto os graves assumem os acor
des em trêmulo.
88 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
Tal como no exemplo anterior, esse tipo de estrutura permite uma grande malea
bilidade: é possível desmembrar a peça, remontá-la, recriá-la, inverter a ordem de suas
partes, recombiná-las, aumentá-las e diminuí-las.
A grande quantidade de pontos comuns entre as duas peças demonstra que ambas
possuem um mesmo princípio de organização: uso de material harmônico com grande
ênfase nos acordes de quinta alterada, emprego do cromatismo, trêmulo, contraste en
tre motivos ascendentes e descendentes, alternância de movimentação entre graves e
agudos e, principalmente, o formato reduzido e a independência das partes.
Outro exemplo do mesmo gênero é o Misterioso nQ2, de Adolf Minot, inserido na
antologia de Rapée sob o tópico gruesome (horripilante, assustador, medonho). Esta peça
também é composta de quatro partes com oito compassos cada. Seus materiais são bem
diferentes e, assim, ela pode ser executada na íntegra ou fragmentada.
M isterioso N o. 2
(For dark scenes, burglaries, shadowing, tracking a fugitive or victim, etc.) Adolf Minot
Modcrato
Em muitas ocasiões, a música do cinema mudo foi tratada como inferior, de baixa
qualidade, semelhante ao modo como a cultura oficial encara as manifestações dramá-
tico-musicais de cunho popular. A música do cinema mudo é periférica, não representa
a produção musical de elite, porém, uma vez mais, é na periferia que se desenvolve o novo
gênero. É na periferia da arte musical que surge a dimensão sonora daquilo que mais tarde
entenderíamos como linguagem audiovisual, cujas características começaram a se con
figurar, exatamente, nesse período. Do ponto de vista musical, seria incorporado tudo o
Pantomimas luminosas 89
que fora desenvolvido, ao longo de séculos, nos gêneros dramático-musicais. Mas não se
tratava de uma incorporação pura e simples, pois o cinema, por suas próprias necessi
dades técnicas e estéticas, seria obrigado a revisar essa tradição e recriá-la para que pu
desse servir a seus fins. Sob um ponto de vista puramente musical, a música do cinema
mudo poderia parecer pobre ou superficial, mas, para compreendê-la qualitativamente,
é necessário ter sempre em vista sua adequação e eficiência dentro do contexto cinema
tográfico. Se a música no período do cinema mudo não tivesse cumprido sua função es
tética com eficiência, talvez o cinema não tivesse se tornado a grande indústria de
entretenimento do século XX.
A transformação do legado dramático-musical conduz a música de cinema a resul
tados originais. Aos poucos, ela vai formando o seu próprio inventário. Como vimos nos
exemplos analisados, para cada tipo de situação começava a existir um tipo diferencia
do de música. As características comuns acumulam-se entre as várias peças destinadas a
um mesmo fim. Começa a se formar um inventário associativo. Por exemplo, a idéia
musical para o misterioso está relacionada, com freqüência, às tonalidades menores, aos
acordes de quinta alterada (especialmente os diminutos), aos trêmulos, aos movimen
tos melódicos cromáticos, enfim, existe um conjunto de recursos musicais aptos a repre
sentar essa situação ou gerar uma resposta emocional associada a essa condição de mistério.
Esse inventário associativo, originado naquele período, marcou profundamente a músi
ca de cinema e seus reflexos podem ser ainda hoje observados.
A própria organização das peças musicais sobreviveu nas trilhas musicais de cine
ma depois do fim da era muda: tratamento fragmentário do material musical, rápida al
ternância de trechos curtos com características distintas, subdivisão dos temas em seções
mais curtas, uso repetitivo de material motívico e temático.
A compilação foi o método mais característico de elaboração do acompanhamen
to musical no cinema mudo. As coletâneas são a síntese dessa prática, o léxico que orien
tou a produção do período e que, hoje, nos permite compreendê-lo. Nelas podemos
encontrar todo o referencial musical do cinema. A maioria dos trechos originais foram
criados por compositores tidos como "menores", mas eles souberam compreender, exa
tamente, as necessidades do novo veículo e de sua linguagem. A música das formas dra
máticas anteriores ao cinema foi incorporada e transformada. Na antologia de Rapée, há
fragmentos de obras de Ambroise Thomas, Boccherini, J. Straus, Meyerbeer, Delibes,
Bizet, Massenet, Offenbach e Wagner. Mas o mais encontrado é Grieg. São vinte e dois
fragmentos, sob os mais variados tópicos, contra apenas dois de Wagner. Só da música
composta para Peer Gynt15, de Ibsen, são seis peças:
15. Grieg compôs duas suítes sinfônicas para Peer Gynt: Suíte ne 1 - opus 46 e Suíte
nQ2 - opus 55. De um total de oito peças (quatro para cada suíte), seis podem ser encon
tradas na antologia de Rapée.
90 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
A Partitura Original
16. Com certeza foi o mais longo filme realizado até então nos Estados Unidos.
17. O nascimento de uma nação é um filme que aborda a Guerra de Secessão sob o pon
to de vista dos confederados. Os negros são responsabilizados por tudo o que ocorre de mal.
São sempre representados como indolentes, incapazes, manipuláveis, vingativos etc. Em
outras palavras, é um filme cujo racismo é explícito.
18. Tanto o cabeçalho quanto a lista são extraídos de uma reprodução do programa
da semana de 24 de maio de 1915, reproduzido por Miller Marks (1997:134), a partir da
reprodução apresentada em Film Culture - 36, de 1965.
92 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
N ota - O arranjo e seleção da música para The Clansman foram realizados após
uma procura diligente nas bibliotecas musicais de Los Angeles, San Francis
co e Nova York. Para selecionar e mapear as cenas, foi necessário rodar os
doze rolos que contêm a história oitenta e quatro vezes; e também foram
necessários seis ensaios com a orquestra completa para um perfeito acom
panhamento.
A lista compreende os seguintes itens:
Musica Autor
The Clansman - Ouverture J. E. Nürnberger
Semiramide - Ouverture Rossini
Tancredi - Ouverture Rossini
Light Cavalry - Ouverture F. V. Suppe
Morning, Noon and Night - Ouverture F. V. Suppe
Romantic - Ouverture K. Bela
Stradella - Ouverture F. V. Flotow
Manage of Figaro - Ouverture V. A Mozart
Orphes aux enfers J. Offenbach
Nabucodonozor G. Verdi
Sinfonia Giovana D'Arco G. Verdi
First Symphony L. V. Beethoven
Unfinished Symphony F. Schubert
Les Huguenots Meyerbeers
Rienzi R. Wagner
Lejougleur de Notre Dame J. Massenet
L'arlesienne G. Bizet
Silent Woe e Anathema A. V. Flelitz
Americana - Suite T. W. Thurban
Incidental - Musica selecionada por C. D. Elinor
L. Brown
Clune's era famosa por sua qualidade. Com isto, Griffith teria ficado impedido de parti
cipar efetivamente da elaboração do acompanhamento musical de seu filme na tempo
rada no Clunes. Esses dois aspectos, seu desagrado e sua expectativa, podem ser atestados
por uma matéria do Los Angeles Times do dia da estréia (8.2.1915) no Clunes:
David Griffith chegou de Nova York ontem de manhã, e passou o dia na sala
de projeção do Clune's Auditorium ajudando a ajustar a música de The Clansman.
Mr. Griffith tem noções claras sobre o arranjo de música para filmes.
"Muito longo", ele disse, "nós estamos ajustando o filme à música, em vez de
ajustar a música ao filme. Se uma lady vai morrer, e acontece de o diretor da orques
tra querer tocar A Hot Time In The Old Town, a pobre senhora tem que morrer em
'dois pulos' [two hops], a fim de se adequar ao tempo da música; ou, se há uma ba
talha e a orquestra quer tocar Hearts and Flowers, a cena de batalha fica, então, pa
recendo um exercício calistênico na Old Ladies' Home."
(...)
Uma fabulosa idéia de Mr. Griffith, nada menos do que adaptar os métodos
da grand-opéra aos filmes! Cada personagem tem um tipo diferente de música, um
tema distinto, como na ópera. Algo mais difícil nos filmes do que na ópera, toda
via, visto que qualquer personagem raramente permanece muito tempo na tela, de
cada vez. Em casos em que há muitas personagens, a música é adaptada ao assun
to ou personagem dominante na cena.
A partir de agora a música para todas as grandes produções de Griffith será es
crita dessa maneira. (Transcrito por Miller Marks, 1997:137)
Esta foi uma das primeiras parcerias da história do cinema. É algo que se tomaria,
mais tarde, comum, como atestam os exemplos de Eisenstein com Prokofiev, Hithcock
com Herrmann, Fellini com Rota e Spielberg com Williams, entre outros. Todas as par
cerias são ao mesmo tempo tensas e férteis, especialmente em uma arte em que a auto
ria é, por definição, múltipla. Lilian Gish, em suas memórias, recorda o conflito entre
Griffith e Breil:
Mr. Breil deveria tocar fragmentos e peças, e Mr. Griffith deveria, então, de
cidir como eles deveriam ser usados. (...) Os dois discordavam bastante sobre a
música do filme. "Se um dia eu matar alguém", disse Mr. Griffith uma vez, "não
será um ator, mas um músico". (Apud Miller Marks, 1997:140)
do nos créditos. Quem aparece como Diretor Musical é Louis Gottschalk, mas a músi
ca que se ouve é a de Breil, exatamente como o filme havia sido apresentado em 1915.
Contudo, se publicamente Breil não obteve o reconhecimento merecido pelo trabalho
que realizou, isso não diminui sua importância para a história da música de cinema. Sua
partitura, tanto quanto o filme de Grittith, é um marco histórico. Graças a Breil, O nas
cimento de uma nação ocupa, também por sua música, um lugar de destaque na história.
AÓ pera sem L ib r e t o
A declaração de Breil de que "o filme deveria ser tratado como uma ópera, sem
libreto" não foi apenas uma frase de efeito. Ele e Griffith acreditavam realmente nesta
postura. Mas por que razão a ópera foi um ideal tão forte para a música de cinema? Por
que há tantas referências a ela nessa época? Um aspecto que deve ser levado em conta é
a sua reputação. A aproximação com o universo operístico significava um reconhecimen
to que o cinema ainda não possuía. Algo, como vimos, próximo à fantasia de Don
Lockwood. Mas a relação entre os dois gêneros artísticos vai além, pois também há se
melhanças no aspecto estético. Tanto a ópera quanto o filme (em seu período mudo), fa
zem uso da música contínua. Em am bos, a música é uma trilha que conduz o
desenvolvimento temporal, estabelece nuanças dramáticas, indica estados psicológicos,
localiza as personagens quanto a suas respectivas funções na construção dramática, en
fim, tudo o que acontece é costurado pela música e a ela se relaciona.
A ópera também serviria de referencial como obra dramático-musical de longa du
ração, já que o cinema começava a efetuar as primeiras tentativas de filmes mais longos.
Para o músico, em particular, era quase inevitável debmçar-se sobre a ópera a fim de ela
borar o acompanhamento de um longa-metragem, encontrando aí os exemplos de arti
culação dramático-musical e as soluções de continuidade.
No entanto, não há somente semelhanças. Na ópera, é a música que articula o dra
ma; cada entrada de ator, seu texto, a velocidade com que deve dizê-lo, a intensidade e
até mesmo a entoação, estão praticamente predeterminados pela música, tudo ocorre
por meio do tempo musical. No cinema, ocorre exatamente o oposto: como queria
Griffith, é a música que deve ajustar-se ao filme e não o contrário. O tempo e a forma
musicais devem adequar-se ao tempo e à forma do filme. Isto é possível porque o tem
po do filme é, como vimos, um tempo musical, mas a hierarquia é inversa à da ópera.
No cinema, não é a música que articula o drama e, sim, o olhar do narrador, que se
materializa na seleção da imagem que a câmera nos apresenta a ponto de deixar de ser
drama e se tornar- uma narrativa. A música é parte da composição audiovisual, uma das
vozes da narrativa polifônica do filme. Contudo, especialmente no período do cinema
mudo, ela ainda é o último dos fatores a entrar na composição do filme, ocorre parale
lamente às imagens e está sempre sujeita a alterações, pelo fato de ainda ser executada
ao vivo.
Percebemos, assim, como a concepção de Breil é sagaz. Ao afirmar que se deve tratar
o filme como uma ópera sem libreto, ele demonstra reconhecer essa distinção. O libreto
não é necessário no cinema, pois os próprios recursos de articulação fílmica são sufi-
96 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
cientes para a composição da narrativa. Um filme é seu próprio libreto, ou seja, o texto
filmico é o próprio filme. A música contínua faz parte desse texto, e por isso o filme as
semelha-se à ópera, mas "uma ópera sem libreto, é claro".
Breil iria elaborar o acompanhamento musical de O nascimento de uma nação exa
tamente dentro dessa perspectiva. O tratamento dado por ele ao material musical do fil
me segue o modelo da tradição operística. A incorporação do conceito de leitmotiv de
Wagner é explícita. Cada personagem, conjunto de personagens, ação ou idéia represen
tada, são tratados por meio de temas recorrentes cuja elaborada manipulação promove
seu mútuo relacionamento. Ainda não há uma sofisticação muito grande quanto às trans
formações temáticas. Normalmente, o tema é repetido com poucas alterações, mas essa
simplicidade tom a a recorrência temática bastante acessível e é, inclusive, uma solução
para a questão da velocidade com que os planos se alternam nos filmes, já que ocorre
com maior rapidez do que as transições de cena nas óperas.
A música de Breil já é, acima de tudo, música de cinema. Ainda que aspirando à
ópera, ela se adequa perfeitamente ao modelo da época para o acompanhamento musi
cal de filmes, que tinha como principal prática a compilação. A partitura de Breil inclui
fragmentos extraídos do repertório sinfônico e temas tradicionais americanos. Contu
do, mesmo o material temático não-original é usado com bastante critério: cada frag
mento associa-se a um elemento distinto do filme e cumpre uma função específica, tanto
em sua relação polifônica com as imagens, quanto em suas relações com os demais frag
mentos musicais.
Breil compôs uma grande quantidade de música original para O nascimento de uma
nação. Somando-se a música extraída do repertório à música original, o que se tem é a
síntese e a consolidação das práticas de acompanhamento musical daquela época.
Tendo como eixo narrativo a Guerra de Secessão, O nascimento de uma nação apre
senta diversas ações paralelas, o que o aproxima mais do épico do que do drama. A ha
bilidade de Griffith é notável: a guerra, que em si já possui grande apelo visual e
dramático, é usada como um eixo em tomo do qual gravitam as outras ações. Há a ami
zade entre as famílias Stoneman do Norte e Cameron do Sul, cujos jovens filhos a guerra
se encarregará de colocar em lados opostos do front, sendo que nem todos voltarão. Dessa
amizade, surge o casal romântico Elsie Stoneman e Ben Cameron. O casal possui o in
grediente dramático adequado para unir personagens opostos: ela, filha do homem que
se encarregará de subjugar o Sul derrotado; ele, um coronel confederado, provando a ve
lha máxima dramática pela qual o amor transcende toda a mesquinhez humana. Há o
drama do Sul, propriamente dito, particularizado pela vida na cidade de Piedmont, onde
se concentra a maior parte da ação. Há a violência, a arrogância e a sede de poder, per
sonalizados por Silas Lynch, homem de confiança de Stoneman que se encarregará de
liderar uma perseguição implacável aos brancos derrotados. Como todo bom vilão, ele quer
não apenas o poder, mas também a heroína Elsie, não por paixão, pois os vilões não se apai
xonam, mas para galgar todos os degraus sociais que sua desenfreada ambição exige.
A condução de ações paralelas, tida como uma das marcas de Griffith, exige um tra
tamento musical adequado. Provavelmente, o próprio diretor já o tivesse percebido e daí
sua grande preocupação em participar da criação do acompanhamento musical. A mú-
Pantomimas luminosas 97
Vilões
para se caracterizar a Idade Média não é necessário apresentar música medieval, mas um
tipo de sonoridade que o público identifique como medieval. Cremos, portanto, que a
música de Breil foi prontamente identificada às manifestações musicais africanas pelo
público médio, ainda que hoje nos remeta mais ao universo da música de certos grupos
indígenas norte-americanos.
O segundo tema é o que se liga a Stoneman. Trata-se de um tema sombrio e auste
ro, características dadas por um conjunto de fatores musicais. O tema é apresentado na
região grave, em modo menor.
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O tema é montado sobre uma estrutura seqüencial: um único motivo repetido qua
tro vezes em alturas diferentes. O movimento interno das notas do motivo - três inter
valos ascendentes e um descendente - é reproduzido pela estrutura da frase: nas três
primeiras repetições o motivo se sucede por notas que formam uma progressão ascen
dente e, na última, a nota inicial está abaixo do anterior. Tudo isso contribui para o ca
ráter sombrio do tema.
Por ultimo, há o conjunto de fragmentos temáticos ligado à furia dos vilões. São
quatro fragmentos combinados de diferentes maneiras ao longo do filme, que aparecem
associados tanto a Stoneman quanto a Lynch e relacionam-se ao que ambas as per
sonagens possuem em comum: o desejo de subjugar os inimigos vencidos pelo exercí
cio de seu poder. Este conjunto de fragmentos identifica não os vilões propriamente ditos,
mas a vilania como atitude característica dessas personagens.
Em alguns casos, estes quatro fragmentos são apresentados juntos, sucessivamen
te; em outros, reagrupados. Os três primeiros formam uma progressão em que a tensão
cresce gradativam ente: o fragm ento A é um m otivo seqüencial que progride
ascendentemente, está no modo menor e, assim como o tema de Stoneman, ocupa a re
gião grave; o fragmento B funciona como um clímax do primeiro e sua variedade intema
é maior, pois está formado por três motivos distintos (um diálogo entre as regiões grave
e aguda: no grave, um movimento descendente, no agudo, movimento ascendente, e, fi
nalmente, a conclusão do fragmento em três acordes, dois deles diminutos); os acordes
diminutos dominam, também, o fragmento C (formado pela sucessão seqüencial de um
único motivo até o clímax em um acorde final); o fragmento D contrasta com os três
primeiros, pois se trata de uma mera sucessão de acordes sem linha melódica indepen
dente - seu caráter misterioso é estabelecido pela dinâmica (crescendo e diminuindo),
100 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
pela repetição dos dois primeiros acordes adiando o movimento cadenciai e pela res
piração entre os acordes que é ouvida como pausa.
Heróis
Sua estmtura é bastante simples. Está no modo maior, não apresenta nenhum con
flito interno e desenvolve-se estritamente dentro da tonalidade. Sua construção é basea
da em um único motivo repetido duas vezes e que, em seguida, reaparece um pouco
modificado. Associado às imagens de uma família feliz, o tema caracteriza o equilíbrio
reinante antes do distúrbio, a paz em que o Sul se encontra antes da guerra simbolizada
pela cidade de Piedmont.
Um outro tema se associa à família Cameron, sendo usado em momentos mais crí
ticos, como a parúda dos filhos para a guerra, a visita da mãe ao filho ferido em batalha
e o pedido de clemência que essa mesma mãe faz a Lincoln. É um tema semelhante ao
anterior, mas possui uma linha melódica mais austera característica dos hinos, das pe
ças militares e de teor patriótico. Suas frases são bastante afirmativas, mas carregam,
igualmente, um sentimento de resignação. Em geral, as canções que procuram desper
tar o senümento patriótico trazem essa ambigüidade intrínseca - "morre-se por seu país
se preciso for", uma combinação de certeza e resignação:
Espera-se que os heróis sofram ou, do contrário, não poderiam demonstrar seu he
roísmo. O sofrimento e a crise de consciência do herói são representados por uma me
lodia introduzida no momento em que Ben Cameron, humilhado, medita sobre as
agruras de sua pobre terra. O tema apresenta uma frase curta repetida seqüencialmente.
A melodia, em modo menor, é sustentada pelos trêmulos nas cordas, sempre presentes
em situações de tensão, apreensão e momentos críticos de qualquer espécie:
Pantomimas luminosas 101
Associado ao tema da agonia, é introduzido outro tema para o medo, mais especi
ficamente, o medo dos negros em relação aos brancos:
Mas, como heróis, ainda que subjugados pelos vilões, eles devem possuir a força para
promover a reviravolta em seu próprio destino. É por isso que Ben Cameron teve a idéia
de formar um grupo armado, formado por cavaleiros anônimos, para combater os ne
gros. Surge a Ku Klux Klan, representada no filme pelo seguinte tema:
O início deste tema funciona como uma chamada, uma espécie de toque militar
nos metais que é respondida pelas cordas, e todo o conjunto é repetido ainda uma vez.
Entra, então, o tema propriamente dito, composto de um motivo construído sobre um
102 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
arpejo de um acorde menor. O uso de notas pontuadas é característico das peças musi
cais ligadas à idéia de cavalgada, em que sempre se alteram valores longos e curtos20. Após
o arpejo, o motivo é concluído por uma resposta em trêmulos das cordas.
Heroínas
Em algumas situações, há um segundo tema para Elsie, um pouco mais triste, con
trastando com o primeiro:
Flora, a filha caçula dos Cameron, é representada por um conjunto de três frag
mentos temáticos. O segundo possui um único motivo por meio do qual se estabelece
um diálogo entre as regiões grave e aguda, como pergunta e resposta. É também um tema
leve e alegre. O terceiro, por sua vez, é uma valsa bastante alegre e movimentada. Esses
20. Se nos restringirmos apenas a O nascimento de uma nação, vamos encontrar ainda
dois exemplos de peças com essa característica: a Ouverture da Cavalaria ligeira, de Suppé, e
o fragmento de A valquíria, de Wagner.
Pantomimas luminosas 103
dois fragmentos contribuem para a imagem de jovem ingênua, amável e feliz, criando
uma simpatia pela personagem que será fundamental para a resposta emocional do pú
blico no momento em que Flora morre bmtalmente.
O conjunto temático de Flora ainda possui um fragmento (A) usado em situações
especiais, a fim de estabelecer um clima mais misterioso:21
O Amor
21. Na versão utilizada para este trabalho, a importância desse fragmento é reduzida
em comparação com a versão original de Breil.
22. Aqui há, também, uma diferença entre a versão original, a qual apresenta o du
plo casamento no final. Na versão de 1933, Griffith diminuiu bastante o fator romance, es
pecialmente na parte final do filme e concentrou a narrativa no resgate de Piedmont. Com
isso, o romance entre Margaret e Phil foi o que ficou mais prejudicado, o que pode ser com
provado pelo número de recorrências de seu leitmotiv, que aparece duas vezes, contra cinco
da versão original.
104 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
Já o tema de Elsie e Ben é original de Breil. Mais tarde, ele iria se tomar um suces
so como tema de abertura do programa de rádio Amos and Andy. Essa canção ficou co
nhecida como The Perfect Song:
C o n s t r u in d o a N arrativa c o m o M a t e r ia l T e m á t ic o M u sic a l
ao som de The Bonnie Blue Flag. Os três irmãos Cameron juntam-se às tropas confede
radas que partem de Piedmont. O acompanhamento musical da seqüência se inicia por
um toque militar de clarim seguido pela abertura da Cavalaria ligeira, de Suppé, e encer
rada entusiasticamente por Dixie.
A coincidência no título de alguns temas musicais com a ação da seqüência, tais
como We Are Corning, Father Abraham, Old Folks At Home e Dixie, mostra que o cine
ma já usava o referencial musical do público médio. Breil e Griffith escolheram temas
com os quais qualquer um seria capaz de se identificar. Embora possa dar essa impres
são, o trabalho com temas muito conhecidos não é tão óbvio. Uma música original pos
sui a seu favor a condição de inédita e, conseqüentemente, sua associação ao elemento
dramático ou narrativo está despida de significações preestabelecidas. A música não-ori-
ginal, por sua vez, quanto mais conhecida, maior carga significativa empresta ao elemen
to a que se associa e, portanto, mais criteriosa terá de ser essa interferência. No caso de
músicas com letra, deve-se levar também em conta o seu conteúdo, mesmo que seja exe
cutada apenas por instrumentos. Letras muito conhecidas sugerem uma imediata associa
ção do seu conteúdo à narrativa.
Durante a guerra, novos temas musicais originais e a recorrência de outros tomam
a aparecer. No campo de batalha, Ben Cameron lê uma carta de sua irmã, Flora, cujo
material temático é apresentado pela primeira vez. O segundo fragmento temático (B)
é apresentado enquanto Ben lê a carta. Um corte leva a Piedmont, onde vemos Flora, que,
reciprocamente, lê uma carta de seu irmão. O corte é acompanhado pela mudança no
tema de Flora do segundo para o terceiro fragmento, a valsa (C).
A segunda inserção do tema dos negros ocorre no ataque a Piedmont por grupos
de soldados da União. A referência direta aos negros é disfarçada pela legenda, que diz:
"... A viciosidade trazida pela guerra é comum a todas as raças". Contudo, o tema apresen
tado é, justamente, o que foi associado aos negros.
Ouvimos novamente o tema romântico de Elsie e Ben quando este último, ainda
no acampamento militar, admira o retrato de Elsie. Segue-se mais uma série de seqüên
cias acompanhadas por temas não-originais ou não-recorrentes. Ela culmina com a Ba
talha de Atlanta em que morre o segundo irmão de Ben. Na continuação, vemos a
batalha de Petersburg, durante a qual Ben Cameron lidera a última investida contra as
tropas do Norte. Essa parte do filme é acompanhada, principalmente, por música origi
nal de Breil. Contudo, os temas recorrentes do filme não são aí usados. O tema mais im
portante da batalha é Dixie: ainda que não seja original, acaba adquirindo a função de
leitmotiv do exército Confederado; Breil apresenta-o fragmentado, transformado, antes
de ser mostrado em sua versão integral no final da batalha.
Ferido, no hospital, Ben Cameron é assistido por Elsie. É o primeiro encontro dos
dois desde o início do filme, apesar da paixão de Ben. Sua mãe vem de Piedmont para
ver o único filho homem sobrevivente da guerra. Descobre-se que Ben será executado por
crimes de guerra. Elsie e a Sra. Cameron decidem pedir clemência a Lincoln.
Breil aproveita a intensidade dramática da seqüência para realizar uma construção
que une vários temas musicais. Apenas no início, antes que Ben revele a Elsie que havia
carregado seu retrato por muito tempo, a seqüência apresenta um tema não-original:
Pantomimas luminosas 107
Kingdom Corning. Após reconhecimento mútuo, todos os temas que se alternam tomam
parte do conjunto de leitmotivs do filme.
A seqüência começa com o tema de Elsie enquanto ela lê a carta em que Phil, seu
irmão, recomenda o amigo Ben. Há, em seguida, uma transição para o tema de amor de
ambos. Ben mostra a Elsie o retrato que possuía dela. O casal está formado. Chega a mãe
de Ben. O tema romântico funde-se com tema do Sul. Após a entrada da mãe no hospi
tal, é a vez do tema dos Cameron substituir o anterior. São todos informados de que Ben
será executado e saem para pedir clemência a Lincoln. Um fragmento curto de outro
tema é apresentado: trata-se do tema que foi ouvido quando os Cameron receberem a
notícia da morte de seus dois outros filhos23.
A junção dos diversos temas atinge diversos objetivos. Em primeiro lugar, ela pro
move variedade musical à seqüência, evitando a monotonia de uma ação localizada em
um único espaço, mais especificamente, em tomo da cama de um ferido, o que impede
qualquer movimentação mais efetiva. Em uma segunda instância, os temas trazem toda
carga associativa que adquiriram ao longo da narrativa. O tema de Elsie, usado como in
trodução para o tema romântico, estabelece uma ligação entre as duas personagens, in
dicando que ela deverá corresponder à paixão de Ben. A chegada da mãe traz à tona os
temas que haviam sido usados na apresentação da família Cameron na visita que lhe faz
os Stoneman. São os temas associados ao equilíbrio, agora destruído pela guerra, mas não
totalmente perdido, pois a força vital das personagens necessária à reconstrução do equi
líbrio perdido ainda existe.
Na seqüência seguinte, Lincoln recebe Elsie e a Sra. Cameron. A música é construída
sobre o tema do Sul com duas curtas inserções do tema romântico. Além do caráter so
lene do tema, compatível com a situação representada, é posta novamente em relevo a
força da família na figura da mãe que busca o último recurso que lhe resta para salvar a
vida do filho. A presença de Elsie indica que ela também já se coloca como parte dessa
família, sugestão que é confirmada pela inserção do tema romântico no meio e no fi
nal da seqüência. Elsie já se identifica com os Cameron e, ao acompanhar a mãe no ape
lo, assume sua ligação com Ben.
O filme segue com a volta da Sra. Cameron a Piedmont acompanhada, mais uma
vez, por Kingdom Corning. Posteriormente é apresentada a rendição do General Lee sob
o tema America (My Country, 'tis ofT hee). Ben deixa o hospital acompanhado por Elsie
e ouvimos outra canção: The Girl I Left Behind Me. llm corte leva-nos a Piedmont, onde
vemos Flora Cameron fazendo os preparativos para receber o irmão. A valsa, segundo
fragmento do conjunto temático de Flora, é escolhida para o acompanhamento.
A volta de Ben Cameron não é tratada com material temático recorrente, mas
acompanhada pela canção Home! Sweet Home!, de H. R. Bishop e uma rápida referên
cia à canção My Old Kentucky Home, ambas com óbvia conotação de "volta ao lar".
23. Esse tema, uma marcha fúnebre, também era mais importante na versão original
do filme, na qual eram mostradas as mortes dos dois irmãos Cameron.
108 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
temático musical que o público já adquiriu permite combinações mais ousadas e, por
meio delas, momentos musicais de significação também mais complexa. Uma delas ocor
re no momento em que Griffith começa a constmir a situação que levará à morte de Flo
ra Cameron. Tudo começa com Gus, assecla de Lynch, que passa a demonstrar seu
interesse por Flora. A construção musical da seqüência é densa, com alternância muito
rápida de vários temas. O primeiro é o tema dos negros, que se inicia no momento em
que Flora e Elsie deixam o parque e dirigem-se à casa dos Cameron. Gus segue-as à meia
distância. Este tema altema-se duas vezes com o primeiro fragmento (A) do tema de Flo
ra. As duas encontram Lynch, que as cumprimenta. Ben Cameron assiste a tudo e não
está nada contente. Nesse momento, é inserido, uma vez mais, um fragmento do con
junto temático dos vilões (B). Ele e Ben Cameron trocam olhares nada afetuosos. O tema
de Lynch se altema com o fragmento de Flora, que está na varanda de sua casa. A alter
nância corresponde ao corte entre os planos de Lynch e Ben, e o de Flora. Gus chega ao
portão da casa e vê Flora que entra. Nesse ponto, é reapresentado o segundo fragmento
do material temático de Flora. Ben Cameron chega e ordena que Gus se retire da porta
de sua casa. O tema dos negros é novamente apresentado. Lynch vem em socorro de seu
subordinado. Ben entra em casa. Mais uma vez, é apresentado o fragmento temático dos
vilões, que encerra a seqüência.
A articulação entre planos imagéticos e temas musicais gera um resultado ímpar
que só é possível por sua mútua combinação. Os temas dos negros e de Lynch expres
sam a violência e a falta de caráter dos vilões, situação da qual participam Gus, Lynch e
Ben Cameron. Paralelamente, os temas de Flora expressam sua ingenuidade, pois ela não
percebe o que ocorre à sua volta.
As próximas seqüências desenvolvem-se com uma grande incidência de temas re
correntes que contribuem para a composição dos momentos críticos da narrativa. O pri
meiro deles é a criação da Klan. Ben Cameron, desolado pelo modo como o Sul vinha
sendo conduzido pelos políticos negros, medita solitariamente. Um grupo de crianças
negras brinca com um lençol. Duas delas vestem-no como se fossem um fantasma. As
outras crianças assustam-se e isto serve de inspiração para Ben. A angústia de Ben serve
como pretexto para a introdução de dois novos temas: o primeiro deles indicando sua
agonia e o outro ligado ao medo experimentado pelas crianças, que deverá estender-se
aos vilões.
lx>go em seguida, vemos a Klan em sua primeira ação e, em conseqüência, ouvimos
pela primeira vez o seu tema. O tema do medo é reiterado quando molestam um negro,
acusado de "agitador". Este tema se desenvolve, enquanto Lynch é avisado do ocorrido.
Esse desenvolvimento serve de ponte para uma nova versão do tema de Stoneman ouvi
da no momento em que Lynch relata a ação da nova organização. Esta versão desenvol-
ve-se em uma peça mais longa e com um caráter mais solene. Trata-se da última inserção
do tema de Stoneman no filme. No final da seqüência, Stoneman recrimina Elsie por
seu romance com Ben e mostra-lhe as vestimentas da Klan trazidas por Lynch. Esse m o
mento é pontuado por uma rápida inserção do tema de Elsie em andamento um pouco
mais lento.
Pantomimas luminosas 111
externos da perseguição com o interior da casa de Lynch. Cada ação é totalmente inde
pendente da outra, mas a música faz que elas se tomem um único momento na narrativa.
É um caso no qual a música não acompanha a fragmentação da montagem, mas con
trapõe-se a ela, promovendo unidade. Os fugitivos são abrigados por dois veteranos em
uma cabana. Elsie vai até Lynch em busca de ajuda. Ele lhe propõe casamento e, dian
te de sua recusa, a aprisiona. Mais uma vez, é repetida toda a música da seqüência ante
rior. Lynch ordena que seus subordinados preparem o casamento à força. Pela primeira
vez, a música explicita o conflito aproximando o tema dos negros do da Klan. Ao final,
ocorre a primeira inserção do fragmento de A valquíria, de Wagner, sempre citado quando
se comenta a música de O nascimento de uma nação.
O domínio dos vilões está chegando ao fim. A última inserção do tema da fúria
ocorre na chegada de Stoneman à casa de Lynch, onde este o informa de suas intenções
para com Elsie. A seqüência altema os planos da discussão entre Stoneman e Lynch e o
da Klan, que se prepara para o derradeiro ataque. A seqüência final mostra as tropas da
Klan aproximando-se de Piedmont, cujas mas estão tomadas por uma multidão em pol
vorosa. Alternam-se planos da casa de Lynch onde Elsie e Stoneman estão aprisionados.
A seqüência é acompanhada por diversos fragmentos sinfônicos.
Sob o tema das Valquírias, a Klan chega à cabana para resgatar os Cameron e tam
bém à casa de Lynch. Libertados os oprimidos, o filme se encerra com o desfile dos he
róis ao som de Dixie. A aproximação entre a Klan e o tema de Wagner confere aos heróis
de Griffith a condição de heróis míticos, deificados e, naturalmente, brancos como os
heróis nórdicos.
Após O nascimento de uma nação, o cinema permaneceria ainda por doze anos
como arte muda acompanhada por música. A compilação e a partitura original convi
veram até o advento do som sincronizado. O sonho de Pilar Morin, expresso na epígra
fe deste capítulo tornou-se uma realidade, mas é bem possível que nem mesmo ela
pudesse supor que tudo acabaria tão rapidamente e de modo tão brusco.
A mentira de Don Lockwood não deixou de ser uma mentira, mas o cinema con
seguiu desenvolver-se como linguagem e conquistar o status de arte, inclusive no plano
teórico, com os trabalhos de profissionais como Eisenstein.
Partindo quase que exclusivamente de recursos não-verbais, desenvolveram-se ou
tras dialogias, possibilitando a constituição de uma nova dramaturgia. A manipulação dos
recursos técnicos deu suporte à organização de procedimentos que permitiriam ao cine
ma consolidar-se como forma narrativa. Paralelamente, desenvolveu-se uma nova
polifonia, diferente da puramente musical e também de outras polifonias que já ha
viam sido exploradas nos espetáculos ao vivo. A música inseriu-se definitivamente na
dramaturgia e no modo narrativo do cinema, tomando-se fator imprescindível à cons
trução fílmica.
A música associada às imagens em movimento e às múltiplas relações que se esta
belecem entre elas confere ao filme uma dimensão poética que o simples registro rea
lista da imagem jamais poderia atingir. Essa característica permanecerá ao longo de toda
a história do cinema: a música como convenção da poética cinematográfica.
114 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
... qualquer história da minha carreira deveria incluir meu mais velho amigo,
Cosmo Brown. Nós fomos crianças juntos, nós crescemos juntos, nós traba
lhamos juntos...
Mas Cosmo não é um ator como Don, ele é um músico e como tal participará
como personagem do filme. Ainda que tenha grandes idéias e esteja sempre pronto
a executá-las, Cosmo permanecerá para sempre anônimo. Ao contrário de Don, não
é sua função aparecer na tela. Contudo, Don jamais teria sido o mesmo sem Cosmo,
da mesma maneira que o cinema, tal como o conhecemos hoje, não poderia existir
sem a música.
4
P l a y in g o n t h e S c r e e n
There can, however, be but little doubt that in the perhaps not far distant future,
instruments will be constructed that not only reproduce visible actions simultaneously
with audible words, but an entire opera with gesture, facial expressions, and songs of
the performers, with all the accompanying music, will be recorded and reproduced by
an aparatus, combining the principles of the zoopraxiscope and the phonograph, for the
instruction or enterteinment of an audience long after the original participants shall
have passed away.
Edward Muybridge
1. Sistema desenvolvido pela Bell Telephone, no qual o som, gravado em disco, é sin
cronizado mecanicamente ao filme.
116 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
que representasse uma mudança significativa nas práticas de então, ao contrário, em cer
to sentido, pode-se dizer que se trata de um filme mudo piorado, posto que a qualidade
da música executada ao vivo seria bem superior à da gravação. São estes os motivos pe
los quais Don Juan jamais é lembrado como o primeiro filme comercial com som sin
cronizado, apesar de tê-lo sido de fato. Isto demonstra o quanto a incorporação do som
ao filme transcende as questões puramente técnicas. A possibilidade de manipulação do
universo sonoro, em toda a sua variedade, implica uma transição estética do cinema de
largas proporções. Resolvidos os aspectos técnicos, era necessária apenas a mescla de ou
sadia e coragem para realizar a grande virada. E como não há nada melhor do que as dí
vidas para alimentá-las, o estúdio que se lançou nesta empreitada foi, justamente, o que
estava à beira da falência: Warner Brothers.
A estratégia arquitetada para apresentar o cinema sonoro ao público pode ser facil
mente percebida em O cantor de jazz: o espertador é conduzido desde o início do filme
a um crescendo de expectativa até chegar à primeira seqüência com som sincronizado.
Mais que isso, o espertador é realmente enganado ao longo desses quinze minutos com
falsas situações, supostamente sonorizadas, que aumentam ainda mais o impacto da pri
meira canção verdadeiramente sincronizada.
O cantor de jazz segue rigorosamente as convenções do cinema mudo: pantomima,
legendas e ausência total de diálogos. Há somente construções com imagens em movi
mento acompanhadas por música. Primeiro, são tomadas externas, pouco depois, um
corte leva ao interior da casa do cantor Rabinowitz, que discute com sua mulher a res
peito de seu filho. Vê-se o diálogo de ambos, cujos planos estão intercalados por legen
das, correspondendo a suas falas e nada de som, exceto pelo acompanhamento musical.
Imaginemos a situação do público que se dirigiu ao cinema, em 1927, para assistir
a algo totalmente novo: um filme sonoro. Até aqui, o que ele viu foi, indiscutivelmente,
um filme mudo. Sua expectativa não foi satisfeita de imediato e é de se supor que todos,
a essa altura, já esperavam ansiosamente pelo momento em que as personagens ganha
riam o dom da fala. É nesse momento que um corte nos leva a uma casa de espetáculos
de aparência popular, em que o pianista anuncia (por meio de uma legenda): "Jack
Ragtime está aqui. Dêem-lhe uma chance!" Vemos um menino meio encabulado tomar
a frente do palco e começar sua canção. Nesse momento, o público de então poderia di
zer: "Ah, isso é o cinema sonoro!" Errado. A seqüência não estava sincronizada. O que
é mostrado ao público é apenas a capacidade de registrar a voz com o novo recurso, mas
ela não se encaixa nos movimentos da imagem visualizada. O jogo com o espectador se
estabelece: o jovem cantor é mostrado sempre a uma distância razoável e em planos mui
to curtos que não permitem que se fixe o olhar nele. A impressão é de que a sincronia
entre som e imagem ainda não está resolvida. Talvez o público tenha pensado: "Ah, é isto,
então, o tão anunciado cinema sonoro?" A expectativa do público ainda não foi satisfei
ta, adiando-se o grande momento.
A próxima seqüência cantada também possui problemas de sincronia, pois refor
ça a impressão causada pela canção do jovem cantor no início do filme. Ela ocorre logo
após a briga entre o jovem Jack e seu pai. Inicia-se a cerimônia na sinagoga e o cantor é
o solista, acompanhado de um coro vultoso. Vemos o cantor de frente, em plano médio.
Playing on the screen 117
Os movimentos de seus lábios são muito próximos às silabas ouvidas, mas ainda há uma
certa artificialidade na sincronia. Quando esse plano é alternado com outros, especial
mente com aquele que mostra os homens que o acompanham cantando, perde-se total
mente a sincronia. Mais uma vez, há uma idéia falsa do que seja o cinema sonoro.
Um pouco adiante, encontra-se a terceira demonstração explícita de falta de
sincronia. Uma transição iniciada por uma legenda, que indica: "Anos mais tarde e a três
mil milhas de casa...", serve para introduzir a seqüência no café, onde Al Jolson cantará
pela primeira vez. Próximo ao final da seqüência vemos um plano fechado na superfície
de uma mesa, sobre a qual há sete pares de martelos que, supostamente, batem no tem
po da música. Seu som está perfeitamente sincronizado com a música, mas a imagem
não possui sincronia alguma. Essa falta de sincronização entre som e imagem parece pre
meditada, pois valoriza muito a entrada de Al Jolson cantando. São três insinuações, mas
a terceira é gritante. Qualquer um que quisesse ocultar um problema técnico relativo à
sincronia não utilizaria um plano fechado como o dos martelos.
Chega, enfim, o grande momento. A seqüência se inicia com Jack Robin fazendo
sua refeição em um café ao lado de um amigo. O gerente fala rapidamente com ele e di
rige-se ao palco. Vê-se uma legenda: "Jack Robin vai cantar Dirty Hands, Dirty Face. Di
zem que ele é bom. Vamos conferir". Esta legenda inaugura uma série de textos que se
referem tanto à construção dramática do filme quanto às novas técnicas sonoras do ci
nema. Quando o gerente diz: "Dizem que ele é bom. Vamos conferir.", ele está se refe
rindo à personagem Jack Robin, mas, também, ao cinema sonoro, que estava, de fato,
sendo conferido naquele momento. Al Jolson era um cantor consagrado. Todos sabiam
que se havia algum risco de algo falhar não seria ele e, sim, o sistema de sonorização do
filme. Até aquele momento, a sonorização do filme não tinha sido grande coisa. É claro
que já fora possível ouvir uma voz cantando, mas nada que justificasse tanto alarde. Uma
última insinuação contrária é dada pelos aplausos no café, absolutam ente fora de
sincronia. Al Jolson dá a mão para seu companheiro de mesa e vê-se mais uma legenda:
"Deseje-me sorte, amigo. Eu vou precisar". Esta poderia ser uma fala tanto de Jack Robin
quanto dos irmãos Warner. Mas ela é, acima de tudo, a voz do próprio cinema sonoro,
do som sincronizado, que finalmente é posto à prova.
E, então, faz-se a mágica. Al Jolson dirige-se ao palco. Seu caminho é acompanha
do pela introdução da orquestra. Ele junta as mãos e despeja sua voz:
Wonderful tales are hard to find
some folks have one, some folks have none.
I was alone for years but fate was kid
A nd in the end, sent me a friend
Although he's not much higher than my knee
still he's the greatest thing on Earth to me...
Como que por milagre, tudo se encaixa perfeitamente. Os movimentos dos lábios
de Jack Robin, as sílabas da canção, até mesmo os instrumentos, que vemos em segun
do plano atrás de Jack, correspondem perfeitamente ao que ouvimos. O impacto deve
ter sido imenso, especialmente pelo que havia sido apresentado em termos de som até
então. Tanto o intérprete quanto a música não poderiam ser mais adequados: Al Jolson
218 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
por possuir um estilo muito pessoal, pelo hábito de cantar determinadas passagens qua
se falando, em uma espécie de recitativo adaptado ao universo da canção popular; e Dirty
Hands, Dirty Face, ao permitir ao intérprete esse tipo de tratamento em um andamento
lento e uma linha melódica com pouca atividade rítmica, quase falada.
A idéia era, justamente, explorar esse tipo de interpretação, que não permite ne
nhum truque de sincronia: ou está junto, de fato, como se assistíssemos à execução ao
vivo ou se percebe de imediato. E, não resta dúvida, Diity Hands, Dirty Face está em
sincronia. É nesse momento que Jack, diante do espanto geral, pronuncia a famosa fra
se: "Esperem um minuto! Esperem um minuto! Vocês não ouviram nada ainda!" Em
seguida ele oferece: "Vocês querem ouvir Toot-Toot Tootsie?". Faz sua combinação com o
pianista e começa a cantar.
Toot-Toot Tootsie tem características opostas às de Dirty Hands, Dirty Face. Seu pul
so é muito bem definido, seu andamento rápido e sua atividade rítmica intensa. Al Jolson
a interpreta de forma bem regular, sem alterar em momento algum seu pulso. A esco
lha de Toot-Toot Tootsie permitiu a demonstração de outros aspectos do som sincroniza
do que Dirty Hands, Dirty Face não permiúa: o andamento rápido, a dança, o movimento
gestual do corpo do cantor em sincronia com a música cantada, o assobio2 e, até mes
mo, algumas poucas palmas em pontos estratégicos da música.
A próxima intervenção com som sincronizado mostra Jack assistindo ao recital de
um cantor de músicas sacras hebraicas. Ao ouvir as músicas que trazem à tona seu dile
ma interior, ele se emociona. Quanto ao som propriamente dito, a seqüência não apre
senta novidade, a não ser pelo fato de o cantor atuar sem acompanhamento. Nessa parte
do filme, temos a impressão que se tentam demonstrar as possibilidades do som sincro
nizado, pois as seqüências possuem uma correspondência exata com as do início do fil
me, em que o som não estava sincronizado. Assim, a seqüência em que Jack canta Dirty
Hands, Dirty Face e Toot-Toot Tootsie é paralela à seqüência do início com Jack, ainda
menino, cantando, porém, sem sincronia. Da mesma maneira, a seqüência do recital de
música sacra pode ser comparada àquela em que o pai de Jack canta uma música seme
lhante, mas sem sincronização sonora.
Um momento sonoro importante do filme é o reencontro de Jack com sua mãe.
De volta a Nova York, às vésperas de sua estréia na Broadway, ele volta à casa dos pais e é
recebido pela mãe. Jack lhe canta Blue Skies, de Irving Berlin, uma das canções que apre
sentará em seu espetáculo. Ocorre, então, outro momento histórico do cinema: o pri
meiro diálogo em sincronia com as imagens. É bem verdade que não se trata,
propriamente, de um diálogo. O que vemos é, praticamente, um monólogo de Jack, en
quanto sua mãe (Eugenie Besserer), visivelmente pouco à vontade com a ação dialoga
da, emite alguns monossílabos e frases curtas desconexas. Curiosamente, o primeiro
diálogo do cinema não é um diálogo romântico, mas de amor filial: Jack a beija, propõe
levá-la para outra casa, comprar-lhe um vestido de seda preta e outro rosa, bem como,
se não bastasse, levá-la de "vapor" a Coney Island para um passeio no túnel do amor, onde
irá abraçá-la e beijá-la. Jack retoma sua canção até a chegada do pai (Warner Oland), que
interrompe o caloroso momento com um grito: "Pare!", única fala do pai de Jack em
todo o filme, expressão simbólica da relação entre ambos. No diálogo que se segue en
tre pai e filho, o filme volta a ser mudo.
No dia do ensaio geral de seu espetáculo, Jack é visitado no teatro por sua mãe que
implora que ele visite o pai doente e cante na sinagoga. Usando a maquiagem caracte
rística dos Minstrel Shows\ Jack vai ao palco dividido entre o teatro e a família. Sua mãe
o vê cantar e sua canção é, justamente, uma elegia a ela.
Jack terá que decidir: ou estréia seu espetáculo na Broadway, realizando o sonho de
sua vida, ou canta na sinagoga e se reconcilia com o pai à custa de sua carreira. Ele opta
pela fidelidade às tradições e canta na sinagoga. Seu pai, moribundo, ouve-o em seu lei
to. Mais uma vez, a construção permite uma leitura que transcende à própria narrativa.
Jack é o novo, que ocupa o lugar do velho, cujo destino inevitável é a morte. Jack é o cantor
que canta em sincronia com as imagens e fala com palavras audíveis, ao contrário do pai,
capaz apenas de falar por meio de legendas. Jack é o cinema sonoro, o pai, o cinema
mudo. No momento em que ouve a voz de seu filho, ele o perdoa e morre.
É interessante notar como o cinema, no momento de incorporar o som sincroni
zado, remete-se às suas origens como espetáculo. Jack é um cantor que pertence ao con
texto do miísic hall ou do vaudeville (no sentido americano do termo), que segue a tradição
dos minstrel shows, um dos antecessores do musical americano. Jack possui a mesma for
mação profissional de Don lx>ckwood. A estrutura do filme, por sua vez, lembra o mo
delo da opera pasticio, em que se montava uma estrutura dramática apenas para justificar
a sucessão de árias. Da mesma forma, O cantor de jazz, cujo som sincronizado é a gran
de vedete, apresenta um tipo de progressão dramática organizada em tomo da sucessão
de números cantados, que servem para demonstrar a eficiência do sistema Vitaphone. O
conjunto de intervenções cantadas ilustra o conflito de Jack que, ao optar por ser um jazz
singer, jamais consegue deixar para trás sua origem hebraica. Desse modo, os temas po
pulares altemam-se com os cantos hebraicos tradicionais. Em nenhum momento, o Jack
jazz singer irá impor-se a ponto de superar o Jack cantor. A ligação de Jack com sua mãe
é também levada ao extremo nas canções, sobrepondo-se, inclusive, ao par romântico
formado por Jack e Mary Dale (May McAvoy). Jack canta três canções para sua mãe e
nenhuma para Mary. Aliás, em nenhum momento a relação dos dois é mostrada como
românúca. Mary seria meramente uma mentora de Jack no mundo artístico não fosse
pela seqüência no camarim antes do ensaio geral, único momento em que ambos são
mostrados em um diálogo íntimo. Este diálogo apresenta Jack expondo a Mary o confli
to que dilacera sua alma. Mary argumenta, tentando convencê-lo a não destruir sua car
reira, ao que ele responde: "Você está certa. Minha carreira significa mais do que qualquer
coisa para mim". Uma única frase pronunciada por Mary serve, a um só tempo, para in
dicar que seu interesse por Jack não é apenas profissional e, paradoxalmente, destrói qual
quer possibilidade de enlace do par romântico. Mary pergunta: "Mais do que eu?" E Jack
responde: "Sim". Não há nem som sincronizado para o "sim" nem legenda; a informa
ção vem apenas da imagem, mas é o suficiente para inviabilizar o par romântico.
O acompanhamento musical da porção muda de O cantor de jazz segue o método
tradicional de compilação e em nada difere da maior parte da produção do período. Há
recorrências temáticas como, por exemplo, a citação de My Mammy e do tema do Kol
Nidre na seqüência do camarim anteriormente descrita.
Um outro aspecto a ser observado em O cantor de jazz é o das limitações técnicas
impostas pelo uso do som sincronizado. A gravação do som, então obrigatoriamente feita
ao vivo, criava uma série de problemas para os realizadores de filmes. Para evitar que os
ruídos das câmeras fossem captados pelos microfones, a solução foi encerrá-las em ca
bines isoladas. Porém, tal procedimento impedia o movimento de câmera. Além disso,
a montagem é também bastante discreta. Tais características podem ser notadas nas se
qüências cantadas de O cantor de jazz. Jack é mostrado sempre no mesmo plano. Em al
guns momentos, há uma alternância de planos mostrando o cantor em outro ângulo,
como ocorre na seqüência do ensaio geral quando vemos Jack de lado, do ponto de vis
ta da coxia. Contudo, nesses momentos não há sincronia, tanto que os planos são mui
to curtos para que seu efeito não resulte em anticlímax. Problemas desse tipo já podiam
ser resolvidos pelo uso do play-back\ que permitiu a filmagem de musicais no período
imediatamente posterior à adoção do som sincronizado.
Se, por um lado, são as limitações técnicas que fazem com que O cantor de jazz seja
um filme híbrido (parte sonoro, parte mudo), por outro, deve-se reconhecer que as con
cepções estéticas do cinema mudo é que ditam as regras para a incorporação do som. A
ênfase nas canções de Al Jolson demonstra que houve uma aposta na via musical e não
da fala pura e simples, ainda que a possibilidade do diálogo tenha causado grande furor
no público. As poucas intervenções de som sincronizado foram reservadas ao canto; fora
delas não existe preocupação em apresentar diálogos sincronizados e a legenda é usada
abundantemente, sem nenhum constrangimento.
O R e a p r e n d iz a d o do C in e m a
do caos da nascente técnica, se converta em uma das leis da técnica no futuro. (Apud
Mitry, 1984:107)
Hoje, mais de setenta anos após o advento do som sincronizado, percebe-se que es
sas críticas ainda se situam no universo do cinema mudo. Nunca se fala de música, mas
apenas de diálogos e ruídos. A música, sendo uma das convenções do cinema mudo, não
era vista como um problema. A grande novidade, aquilo que causava polêmica, era a in
corporação da fala. A possibilidade de os atores falarem gerou o receio de que os recur
sos de linguagem específicos do cinema, assim como as técnicas de narrativa visual
minuciosamente elaboradas no período mudo, fossem suplantados por outros menos
cinematográficos. Havia o temor de que a utilização do som para compor a narrativa ci
nematográfica desmontasse o complexo de códigos não-verbais que formavam o cine
ma, ou seja, de que este se tomasse um "teatro filmado". Havia também "o perigo" de
que o som provocasse uma interferência negativa nas imagens, aumentando seu grau de
realismo, o que poderia diminuir a força poética das constmções imagéticas.
O temor de utilizar o som, mesmo desconsiderando o preconceito envolvido na
questão, era corroborado por suas dificuldades técnicas. Ao contrário do que se poderia
esperar, o som apresentou-se, neste primeiro momento, como um obstáculo à realiza
ção em cinema. O sistema era ainda muito primitivo e não havia recursos técnicos de
dublagem e mixagem. Os diálogos eram gravados ao vivo, em som direto, impedindo os
movimentos de câmera. Enfim, o som implicava uma nova forma de fazer cinema, tanto
nos aspectos técnicos quanto estéticos.
O cantor de jazz reflete esse momento. O filme é seccionado: os números musicais
formam a porção que corresponde ao novo estágio do cinema, enquanto todo o resto é
tratado como um filme mudo. Sabia-se fazer filmes mudos, mas não os sonoros e o som
não permitia uma grande flexibilidade de tratamento que correspondesse aos anseios da
criação artística. Limitado em si mesmo, o som limitava também as construções com
imagens. Assim, ou se optava pelo som naturalista e sincronizado dos diálogos e ruídos
ou pelas seqüências de imagens acompanhadas de música, sem diálogos ou ruídos.
Para a música de cinema, esse não foi um período dos mais férteis. A grande novi
dade era a palavra falada, sobre a qual se concentrava a estratégia da indústria para atrair
as multidões. O que o público queria eram os Talking Pictures, ou seja, que fosse mostra
da a palavra falada, os atores dialogando, somado aos sons de passos, portas, automóveis,
trens, explosões. A combinação de diálogos, sons naturalistas e música implicava mano
bras técnicas dispendiosas e de eficiência duvidosa.
122 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
O cinema viveu, então, por alguns anos, um período híbrido em que, embora ofi
cialmente sonoro, ainda não era capaz de explorar este universo em sua vastidão e rique
za de possibilidades. Ironicamente, também não podia valer-se de toda a sua habilidade
em manipular as imagens em movimento. Para que utilizasse seus recursos mais sofis
ticados ainda era necessário fazê-lo nos moldes do cinema mudo.
cordas, em pizzicato, executam uma linha baseada no motivo do tema inicial. O miste
rioso acompanha os policiais escada acima. Há um momento de suspense quando o per
seguido percebe que está prestes a ser capturado. Ele tenta pegar sua arma e a música
rompe com o misterioso por meio de um tutti, forte e tenso, que reconduz ao tema ini
cial. Uma outra variação do tema é apresentada enquanto o prisioneiro se veste. As cor
das, não mais em pizzicato, dialogam com as madeiras, as primeiras fraseando sobre um
motivo de notas ligadas e as segundas pontuando com acordes destacados.
Os policiais dirigem-se à Scotland Yard acompanhados pelo tema em sua forma
original. Lá chegando, é apresentada uma outra variação, mais discreta, que acompanha
rá as situações menos intensas. A tensão é retomada no interrogatório do prisioneiro com
outra variação do tema. Nesse caso, a tensão é obtida pela fragmentação do tema em fra
ses curtas, alternadas com pausas.
A música da seqüência seguinte, na sala de acusação, baseia-se na variação da che
gada dos detetives. Um detalhe digno de nota é a pontuação do diálogo silencioso entre
o prisioneiro e o policial que o acusa. A última seqüência do trecho mudo do filme mos
tra o prisioneiro sendo levado à cela. A variação do tema musical apresenta um motivo
descendente sob o qual será selado o destino do homem.
Os detetives voltam à sua rotina. Caminham pelos corredores e conversam des-
preocupadamente. Para acompanhar essa mudança de intenção na narrativa, o tema mu
sical é apresentado em uma variação mais alegre. Enquanto caminham pelos corredores,
ouvimos seu diálogo que, depois, se mistura ao burburinho do banheiro dos policiais.
Contudo, o som não é sincronizado: trata-se de uma sobreposição artificial de ruídos a
um filme mudo.
Nesse ponto, Chantagem e confissão deixa de ser um filme mudo e se transforma em
sonoro. A mudança é gritante e pode ser percebida sem muito esforço. Os dois detetives
passam por uma porta, a música cessa imediatamente e ouvimos as vozes do companhei
ro de Frank e de Alice. Sobre esta última, vale a pena lembrar que não se trata da voz da
atriz, mas de uma "voice double", como relata o próprio Hitchcock:
A atriz alemã, Anny Ondra, mal falava inglês e, como a dublagem tal como é pra
ticada hoje ainda não existia, contornei a dificuldade apelando para uma jovem atriz
inglesa, Joan Barry, que ficava em uma cabine colocada fora do enquadramento e reci
tava o diálogo diante de seu microfone enquanto a Srta. Ondra fazia a mímica das pa
lavras. Então, eu acompanhava o desempenho de Anny Ondra, ouvindo as entonações
de Joan Barry com a ajuda de auscultadores nos ouvidos. (Truffaut, 1984:44)
Fiz uma coisa curiosa nessa cena, um adeus ao cinema mudo. Nos filmes
mudos, o vilão geralmente usava bigode. Então, mostrei o pintor sem bigodes, mas
a sombra de uma grade de ferro forjado, colocada no cenário de seu ateliê, desenha-
lhe sobre o lábio superior um bigode mais verdadeiro e mais ameaçador que o na
tural! (Truffaut, 1984:45)
Imediatamente após deixá-la nua atrás do biombo, o pintor senta-se ao piano e exe
cuta a mesma canção em andamento bem mais rápido. O caráter romântico da música
dá lugar à agressividade. Alice pede que ele devolva sua roupa e ele insiste para que ela
venha pegá-la. Ele pára de tocar para jogar a roupa longe e retoma sua execução para
terminá-la, finalmente, com um pesado ataque na região grave do piano. Em total silên
cio, ele parte para cima dela.
O tema da canção é usado novamente após o assassinato, quando Alice vaga pelo
ateliê, desorientada. Ela procura sua roupa, veste-a, apaga os sinais de sua presença, e sai.
O tema é fragmentado em frases isoladas, intercaladas por arpejos que contribuem para
compor o sentido de desorientação que vive a personagem. Não há, em nenhum momen
to, qualquer atividade rítmica intensa. A música é um fluxo estável com poucas variações
de textura e densidade. Os timbres altemam-se continuamente: sopros, cordas e o pia
Playing on the screen 125
no, que toca apenas a linha melódica remetendo, imediatamente, à execução do pintor
assassinado. Assim, a música surge, também, como um reflexo do estado psicológico da
personagem, como um monólogo interior. A linha melódica do piano é como o fantas
ma do pintor assassinado, cuja presença ainda se manifesta e domina a mente da jovem.
A saída de Alice, escada abaixo, em oposição à sua chegada, é acompanhada por um
motivo que se repete seqüencialmente em sentido descendente. Alice sai do prédio fur
tivamente, ao som de um misterioso, muito similar ao ouvido na seqüência da captura do
fugitivo na parte muda do filme. A passagem é construída sobre o motivo inicial execu
tado por cordas em pizzicato e intercalado por acordes nos sopros. A recuperação do ma
terial temático do início enfatiza que ela também é, agora, uma criminosa. A informação
dada na parte inicial do filme é recuperada por meio da música para indicar a nova con
dição da personagem. Alice vaga pelas mas completamente desorientada. O motivo ini
cial é combinado de diversas maneiras com o tema da canção do assassinato. Ainda há
muito pouca atividade rítmica. A tensão interna é dada pelas linhas melódicas, pelas com
binações temáticas e pela fragmentação. A música indica a desorientação e o estado psi
cológico que vive a personagem. Após uma transição de tempo indicada pelas batidas da
meia-noite do Big Ben e uma panorâmica da cidade, Alice é vista em Leicester Square,
ainda vagando ao amanhecer. Essa seqüência é acompanhada inteiramente pelas frases
do tema do assassinato, em um tratamento similar ao das seqüências anteriores.
Alice volta à sua casa. Entra sorrateiramente e sobe as escadas. A subida é acompa
nhada de um fragmento semelhante ao dos detetives subindo a escada para perseguir o
fugitivo. A principal diferença está no andamento, agora rápido, em conformidade com
a aflição com que Alice sobe as escadas.
Um pouco adiante, encontramos, por assim dizer, a primeira manipulação do som
com fins dramáticos pensada por Hitchcock:
Ela [Alice] está de volta à sua casa e há uma cena de café da manhã com sua
família ao redor da mesa. Uma vizinha que se encontra ali, muito faladora, discu
te o assassinato que acaba de ser noticiado e diz: "Que coisa horrível matar um ho
mem pelas costas com uma faca. Se fosse eu que o tivesse matado, teria golpeado
sua cabeça com um tijolo, mas não teria usado uma faca", e o diálogo continua, a
moça já nem escuta e o som se torna uma pasta sonora, muito vaga, confusa, ape
nas com a palavra faca ouvida muito distintamente, e que volta muitas vezes: faca,
faca. E, de repente, a moça ouve claramente a voz de seu pai: "Passe-me a faca de
pão, por favor, Alice", e Alice precisa pegar a faca semelhante àquela com a qual aca
ba de cometer o assassinato, e durante esse tempo os outros continuam a falar do
crime. Aí está a minha primeira experiência sonora. (Truffaut, 1984:44-45)
O tema musical inicial ainda será usado em toda a parte final do filme, compreen
dendo o reconhecimento, a perseguição e a morte do chantagista. A primeira seção é a
do reconhecimento: a música acompanha as imagens de muitas fotos de suspeitos, com
uma variação do tema inicial. Na continuação, há uma seqüência praticamente idênti
ca à do início, com a viatura policial atravessando as mas de Londres, em perseguição
ao fugitivo. O tema é reapresentado em sua forma original.
126 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
A sincronia entre sons e imagens abria ao cinema o universo sonoro em toda a sua
riqueza e multiplicidade, mas as limitações técnicas da primeira fase do cinema sonoro
não permitiam vislumbrar com clareza o significado das transformações que o cinema
começava a sofrer. Também não era possível perceber, ainda, o quanto o cinema conser
varia de sua fase muda.
Passa a existir uma dualidade no modo de o som se relacionar com as imagens.
Como fator naturalista, ou seja, o som cuja fonte pode ser identificada direta ou indire
tamente na ação filmada, tal como a fala, que corresponde aos movimentos dos lábios.
É também o caso dos efeitos sonoros, sons que possuem ligação direta com ações
visualizadas: passos de pessoas, portas que batem, campainhas de telefones e assim por
diante. É uma relação primária entre o som e a imagem do objeto responsável por sua
emissão. O segundo caso, extremo oposto, é o da intervenção sonora que não possui ne
nhuma correspondência na ação filmada, tal como, por exemplo, a música orquestral
que soa durante um beijo apaixonado5.
Muito do que se disse a respeito do som nas acaloradas e polêmicas manifestações
que sucederam ao advento do som sincronizado, indica que houve uma confusão entre
estes dois tipos de relação com o conceito de sincronia propriamente dito. Quando, na
"Declaração", Eisenstein, Pudovkin e Alexandrov diziam que "o som deve ter como di
reção a linha de sua distinta não-sincronização com as imagens visuais" (1990:218), o
que estava em jogo não era o princípio da sincronia, mas o uso do som como fator na
turalista. Percebia-se que o som poderia transcender essa característica puramente
ilustrativa, complemento óbvio e imediato daquilo que é visto. Sabia-se que ele poderia
atingir outros níveis mais sutis e profundos de significação, no momento em que suas
técnicas alcançassem um grau de sofisticação similar ao das imagens.
A proposta de desvincular o som de sua fonte, de usá-lo não como correspondên
cia, mas como alternativa às imagens, é muito menos uma questão de sincronia do que
5. Claudia Gorbman, em seu trabalho "Unheard Melodies", define esses dois tipos
como "música diegética" (fonte identificável na ação) e "música extradiegética" (fonte não
identificável na ação). Esses conceitos são bastante aceitos hoje. Ainda assim, optamos por
não usá-lo neste trabalho.
Playing on the screen 127
difícil somar os dois complexos, misturando sons naturalistas com a intervenção musi
cal não-naturalista. Como vimos nos exemplos de O cantor de jazz e Chantagem e con
fissão, a intervenção musical não-naturalista seguia o modelo do acompanhamento
musical do cinema mudo. Muitos filmes da época optaram por abolir a intervenção
musical não-naturalista, compondo a banda sonora apenas com sons naturalistas. Exem
plo desse tipo de uso do som encontra-se em "M" - O vampiro de Düsseldorf ("M", Ale
manha, 1931). A música do filme resume-se ao tema de In the House o fth e Mountain
King, da suíte Peer Gynt, de Grieg. Esse tema é usado na abertura do filme em versão ins
trumental. Posteriormente, é assobiado pelo assassino de crianças em diversos momentos
do filme tomando-se um índice desse assassino. No final, o assassino é identificado por
um cego, vendedor de balões, que reconhece seu assobio. Nem sequer é possível falar em
música ou trilha musical em "M" - O vampiro de Düsseldorf. O tema musical não é usado
com uma intenção musical propriamente dita e poderia ser substituído, sem perda signi
ficativa, por qualquer outro som que servisse ao propósito de caracterizar o assassino.
uma personagem simples, popular, geralmente próxima do herói e que estabelece o con
traste com a seriedade de caráter e nobreza deste último. A evocação de Papagueno por
meio de sua ária estabelece a associação desse caráter cômico e ingênuo da personagem
com o Prof. Rath. O confronto do caráter do professor, austero e rígido, com o de
Papagueno, antecipa a decadência do primeiro que, no fundo, não passa de um pobre ho
mem à procura de uma menina ou de uma mulher. Por trás deste homem sério, há um
Papagueno, o simplório, que permite que toda sua vida seja destruída por uma vedete. A
referência a Papagueno como caçador de pássaros também faz parte de um fio condu
tor que permeia todo filme: há, já no início, o pássaro do professor morto em sua gaio
la; na festa de seu casamento, o professor cacareja espontaneamente quando o diretor da
companhia faz surgir um ovo em um passe de mágica; o número do qual o professor é
obrigado a participar no final do filme é todo baseado em mágicas com pássaros e ovos
e ele acaba repetindo o cacarejar, desta vez não mais espontaneamente, mas completa
mente transtornado. Assim, a ária surge no filme plena de significação. Ela se liga a ele
mentos da vida do professor antes de seu encontro com Lola Lola. Além da abertura, ela
irá reaparecer tocada pelo relógio da escola, marcando o início de cada aula.
No final do filme, ocorre uma segunda e última entrada musical do tema da ária,
música que não possui justificativa nas imagens. Trata-se do momento em que o Prof. Rath
é encontrado morto sobre a mesa: ouvimos uma peça orquestral que se inicia como um
adagio solene, com as cordas marcando o pulso em acordes e uma linha melódica em
figuras rítmicas pontuadas desenvolvida a partir de um motivo da ária. Nessa circunstân
cia, a música assume o caráter de marcha fúnebre. No momento em que o vigia do co
légio encontra o professor morto, tem início outra seção da música. O tema da ária, ainda
que transformado ritmicamente, é, então, explicitado. A melodia é acompanhada por
glissandos de harpa e executada com o timbre de carrilhões, similar ao fragmento exe
cutado pelo relógio anteriormente, só que desenvolvido. Esta nova sonoridade entra em
conflito com as cordas da seção anterior e estabelece o contraste com a marcha fúnebre,
conferindo à passagem um caráter angelical que marca o fim das agruras da personagem.
Ao final do tema, as horas são marcadas, tal como havia ocorrido anteriormente com o
relógio e, assim, ao som das horas, o filme termina.
No extremo oposto de Ein Mädchen Oder Weibchen, que delimita o universo do pro
fessor, estão as canções do cabaré cantadas por Lola Lola, e que são constituintes de seu
universo, universo este ao qual o professor não pertence e pelo qual será tragado. Assim
como na estrutura dramático-musical convencional, as canções de O anjo azul possuem
uma significação clara na progressão dramático-narrativa do filme. Como vimos, a prin
cipal delas, Falling In Love Again, caracteriza a personagem Lola Lola:
I often start and wonder There's no need to guess
Why I appeal to men Falling in love again
How many times I blunder Never wondered who
In love and out again What a girl could do
They offer me the ocean I can tell to you
I like it I confess Love's always been my game
When I replace emotions Playing it how I made
Playing on the screen 131
janela, cortando a música. Esse recurso é levado ao extremo no camarim de Lola Lola,
onde uma porta funciona como a linha divisória entre música e silêncio. A cada vez que
ela é aberta, permite que se ouça o som que vem do palco do cabaré. Desta maneira, é
feita toda a música ambiente das seqüências no camarim. Por exemplo, durante a pri
meira visita do Prof. Rath ao camarim de Lola no O anjo azul, ele está com a roupa ínti
ma dela em suas mãos. Imediatamente, a porta se abre e por ela entra uma outra mulher
que tira, maliciosamente, a peça de suas mãos. O camarim é invadido por uma música
circense. A mulher deixa o camarim sem tirar os olhos do professor e, pouco depois, um
homem passa em direção ao palco com um urso atado a uma coleira. A música, nessa
situação, é muito mais do que um fator de ambiência, um preenchimento puro e sim
ples do vazio sonoro: ela estabelece o contraste entre aquele universo e o da personagem
que o invade, tornando-se uma presença estranha. Ela confere um caráter circense à
cena. Ao mesmo tempo, o professor começa a ser ridicularizado, pois não se enquadra,
de modo algum, na situação. É ele quem faz o número, e não quem está no palco.
A saída de Lola Lola em direção ao palco também é pontuada musicalmente. Ela
abre a porta de onde pode-se ouvir uma valsa. Ela pára sob o batente da porta e ajeita des
denhosamente suas calças. É o fim do primeiro contato entre ela e o professor. A valsa
não é romântica, está muito mais próxima da atitude debochada de Lola Lola do que do
conflito interior que começa a viver o professor.
Além destas duas, há várias outras intervenções musicais comandadas pela porta do
camarim, inclusive a introdução de Falling In Love Again pouco antes de Lola Lola diri
gir-se ao palco para o número, momento em que já é possível antecipar seu envolvimento
com o professor.
O uso criativo dos recursos disponíveis fez com que O anjo azul se tomasse um fil
me muito bem resolvido em termos sonoros. São poucos os filmes da época que pos
suem tal consistência musical, mesmo quando comparados a filmes mais recentes, em
que os recursos de edição sonora e sua manipulação estão muito mais desenvolvidos. O
anjo azul pode não ser um filme surpreendente, mas possui uma coerência intema que
o tom a uma grande obra. O mais fascinante nesse filme é o fato de ele ser um dos pri
meiros a apresentar um trabalho com o som caracteristicamente cinematográfico. Con
segue fugir do modelo do cinema mudo, bem como dos primeiros filmes sonoros, que
alternavam seções mudas e faladas. Nele, a música penetra a ação e, quando necessário,
até mesmo os diálogos. Trata-se de um filme sonoro no sentido mais estrito do termo e
a música é parte intrínseca desse universo sonoro do filme. A ópera é citada, o teatro mu
sical revisitado. Ainda assim, os números musicais renascem sob uma nova perspecti
va: não se trata mais do cabaré, mas do cabaré inserido no cinema. O número não é mais
apenas o número, mas faz parte de um conjunto de relações dramáticas e narrativas. Po
demos ver, ao mesmo tempo, a vedete, o seu público e, mais especificamente, o profes
sor, como parte desse público e como elemento da teia dramático-narrativa. A ária da
ópera não é mais cantada, mas usada para acompanhar imagens de um relógio em pla
no fechado. Stemberg e Holländer utilizam a sonoridade do universo dramático musi
cal para fazer cinema, acima de tudo, cinema sonoro.
Playing on the screen 133
A N ova P o l if o n ia A u d io v is u a l
Os filmes da primeira fase do cinema sonoro, como vimos, foram produzidos sob
condições técnicas bastante limitadas, refletidas em seu resultado final. Alguns filmes,
como O anjo azul, buscaram saídas criativas para estas limitações. Pode-se dizer que, a
partir de 1927, som e imagem podem ser sincronizados, ainda que precariamente, mas
não é possível falar, propriamente, de uma linguagem audiovisual e de trilha sonora ou
de trilha musical, tal como as entendemos hoje.
Ao comentar a música de filmes como O cantor de jazz e O anjo azul, referimo-nos
à música quase como se fosse a de um espetáculo teatral, ou seja, como número ou como
parte de uma ação. A música de Chantagem e confissão pode ser abordada como acom
panhamento musical e em nada difere de seus antecessores do cinema mudo.
As duas principais matrizes da música que iriam perpetuar-se como convenções da
linguagem cinematográfica seriam a música inserida na ação filmada e a música como
intervenção. A partir delas e de sua inter-relação, criou-se tudo o que existe em música
para cinema. Ainda que essas matrizes já estivessem presentes desde a origem do cine
ma sonoro, a trilha musical e a própria trilha sonora só iriam surgir no momento em
que o som pudesse ser manipulado com um grau de sofisticação equivalente ao das ima
gens. De certo modo, Eisenstein, Pudovkin e Alexandrov o haviam percebido: em sua
"Declaração", há um desejo explícito de que o som venha a ser usado cinematografica-
mente, ainda que isto não esteja muito claro. Mas eles já têm a clareza de que a monta
gem é a grande conquista da linguagem do cinema, sua maior especificidade. Em suma,
era necessário, para eles, que se desenvolvesse uma técnica de montagem adequada ao
som e, de fato, a montagem sonora veio a permitir que o som fosse manipulado cine-
matograficamente. Assim, a montagem, que permitia a articulação visual do filme, pas
sou a ser responsável, também, pela articulação sonora, confirmando a sua soberania
como fundamento do cinema.
A montagem sonora consolidou um sistema de organização polifônica do mate
rial sonoro: uma polifonia a três "vozes", ou pistas. Em uma delas, são colocados os diá
logos, na outra, os efeitos sonoros e, na restante, a música. Gravados em bandas ópticas
independentes, os sons, tal como as imagens, podem agora ser editados, postos na
moviola, cortados e colados. A trilha musical passa a ser, desde então, uma das vozes dessa
polifonia. Paralelamente, o sistema Vitaphone cai em desuso, sendo definitivamente subs
tituído pelo som ópúco que se tomou o padrão da indústria cinematográfica. A trilha so
nora passa a ser impressa na película, junto com as imagens, não dependendo mais de
fatores externos, de natureza mecânica, para mantê-las em sincronia. Além da polifonia
intema à banda sonora, a polifonia entre som e imagem ganha uma nova definição.
A evolução polifônica entre som e imagem no cinema pode ser comparada à da
polifonia musical. A relação entre ambos no cinema mudo se assemelha muito às pri
meiras manifestações polifônicas da Idade Média, baseadas no desenvolvimento linear
das vozes, ou seja, no eixo horizontal. A grande preocupação em relação aos encontros
entre vozes era o intervalo gerado por esse encontro. Cada intervalo ou categoria de in
tervalos deveria ser tratada de uma determinada maneira. Não era possível, ainda, pen-
134 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
sar a polifonia em termos de unidades verticais. Isso só veio a acontecer muito tempo
depois, quando os encontros verticais entre vozes foram padronizados em unidades in
dependentes que hoje conhecemos como acordes. Tomou-se possível, então, o que se de
nominou de homofonia, uma sucessão de sons polifônicos organizados pelo princípio da
verticalidade - uma sucessão de acordes.
Da mesma maneira, os discursos visuais e sonoros do cinema mudo correm para
lelamente, como as vozes de um contraponto da Idade Média. O encontro existe, há
mútua interferência, mas eles ainda não formam unidades verticais. O próprio fato de
as imagens serem impressas na película e a música ser executada ao vivo, os coloca em
dimensões, em mundos diferentes, transcorrendo linearmente em direção à conclusão.
O encontro é reconhecido e trabalhado, mas sempre dentro da perspectiva imposta pe
las limitações do sistema.
A gravação em múltiplas bandas ópticas permitiu que o cinema pudesse alcançar
um estágio semelhante ao que a música havia atingido com o surgimento do conceito
de acorde: a precisão sincrônica em frações de segundo, a exatidão do encontro entre sons
e imagens. A polifonia audiovisual passa a contar com a possibilidade da construção ho-
mofônica. Constatamos, assim, que o filme sonoro está para o mudo como um coral de
Bach está para um contraponto eclesiástico do século XII.
As relações entre música e imagem serão redimensionadas em função da possibi
lidade de sincronização. Ao mesmo tempo, surgem outros tipos de relação, pois os diá
logos e os ruídos passam a fazer parte da composição do universo sonoro do filme.
Combinações sonoras até então impensáveis aparecem no cotidiano das produções. Ini
cia-se uma nova poética sonora voltada à construção com imagens em movimento. Con
seqüentemente, portanto, surge uma nova poética audiovisual até então impensável.
Este processo só se consolidará quando o som atingir sua maturidade técnica ba
seada na estrutura de três pistas sonoras, na montagem sonora e no som óptico. Esses fa
tores irão permitir, tam bém , que o cinem a alcance a sua forma final com o arte
industrializada, quando as imagens e sons forem impressos em um único suporte.
Em um artigo para o New York Times, Emst Toch escreveu:
O foco da música de cinema deveria ser o filme-ópera original. Isto não po
deria ser feito por meio da adaptação de velhas óperas para a tela, pois a concep
ção da música para a ópera no palco é diferente daquilo que o filme-ópera deve ser.
Adaptar óperas já existentes - com suas árias, duetos, conjuntos, finales, danças, mar
chas e tudo o mais - significaria mutilar a ação filmada ou a música. A música do
filme-ópera teria que criar e desenvolver suas próprias formas para a ação filmada
típica, combinando suas diferentes leis de espaço, tempo e movimento com pro
cedimentos musicais padronizados. O primeiro filme-ópera, uma vez escrito e pro
duzido, irá suscitar uma série de outros. (Apud Prendergast, 1977:21-22)
Ao que parece, Toch percebeu que haveria alguma ligação entre o cinema sonoro
e a ópera e que ela estaria localizada na dimensão musical do cinema. É bem provável
que seu conceito de filme-ópera possua uma intrínseca relação com a idéia de sincronia.
Na ópera, com o vimos, a música articula o drama e é, portanto, responsável pela
sincronia. A entrada de cada um dos cantores possui um momento exato determinado
Playing on the screen 135
do tema de Ann. Contudo, o tema propriamente dito não aparece na abertura, um indí
cio de que o romance será um aspecto secundário do filme.
Em King Kong, serão encontrados alguns dos procedimentos que se tornariam ca
racterísticos da música de cinema da década de 1930. Se na primeira fase do cinema so
noro, a música estava restrita às passagens sem diálogos e ruídos, agora é retomada a
tradição da música permanente, característica do cinema mudo. Por algum tempo, a
música foi colocada em segundo plano para que se incorporassem os diálogos e toda
a gama de sons naturalistas, mas, assim que possível, ela readquiriu a importância que
tivera.
Desde seu início até praticamente a chegada na ilha, King Kong quase não possui
intervenções musicais. Tudo ocorre como de costume: uma grande concentração no as
pecto naturalista do som por meio de diálogos e ruídos. A música acontece em profu
são na parte mais aventurosa do filme. A primeira intervenção se dá na seqüência do
nevoeiro que antecede a chegada à ilha. É uma intervenção nos diálogos baseada em
arpejos de harpa, com cordas em segundo plano executando notas longas.
O interessante, aqui, é que a música não é o principal fator da composição. É mui
to diferente, por exemplo, das canções de O cantor de jazz ou de O anjo azul, bem como
das intervenções musicais de Chantagem e confissão. Aqui, a música ocorre em paralelo
a uma ação que possui um maior número de fatores, especialmente o texto dialogado. É
um bom exemplo de uma polifonia audiovisual. A música deve ser ouvida da mesma for
ma que o contracanto de uma passagem musical polifônica: sua presença interfere na
textura final, mas não está em primeiro plano.
Para adequar-se a tais necessidades, Steiner lança mão de alguns recursos musicais
bastante evidentes. Em primeiro lugar, a uniformidade rítmica do arpejo na harpa e as
cordas, sem atividade rítmica, sustentando notas longas. Em segundo, a textura e a den
sidade também não sofrem mudanças significativas: os timbres permanecem os mesmos
e não há qualquer contraste entre grupos instrumentais nem na organização do material
musical. O único fator de variedade é a progressão harmônica que impede a redundân
cia das repetições do motivo. Por último, vale a pena destacar a ausência do recurso me
lódico. Sendo a melodia um dos grandes fatores de atração da atenção do ouvinte, em
geral, é por meio dela que o público identifica a música e é capaz de seguir seu desen
volvimento. A opção pela música sem melodia permite que se estabeleça um outro tipo
de relação com o espectador, pois são valorizados os aspectos da sonoridade em detrimen
to do desenvolvimento do discurso musical propriamente dito.
Esses procedimentos permitem uma construção musical que tem a capacidade de
passar despercebida com maior facilidade, ou seja, associar-se com mais eficiência às ou
tras vozes da polifonia audiovisual. Ao se desenvolver uniformemente, a música exige
pouco do espectador, sua atenção praticamente não é solicitada, e ele pode perceber o
conjunto do filme sem ter de se concentrar na música.
O aprimoramento das técnicas de edição sonora levam ao redimensionamento da
música de cinema em todos os aspectos. Já não se trata mais do acompanhamento mu
sical do cinema mudo. A música ressurge transformada, a sua interação com o comple
xo visual e com os diálogos e ruídos atingem um grau de sofisticação até então
Playing on the screen 137
impossível. A música passa a ser usada em quase todo tipo de situação, independente
mente da existência de diálogos ou outros sons. Tudo é, praticamente, permeado pela
música. Neste sentido, o referencial operístico é quase explícito, pois o gênero dramáti-
co-musical no qual a música é fator de articulação permanente é a ópera. Contudo, há
uma diferença crucial entre a ópera e o cinema sonoro: a ópera é cantada, o filme não.
O fato de a ópera ser cantada faz que a fala e o texto façam parte da própria estrutura mu
sical. No cinema, ocorre uma somatória de fatores sonoros e visuais em que a fala, o texto
e os sons dos mais variados tipos conservam sua independência em relação à música.
Existe, sim, uma mútua interferência, mas eles não fazem parte da composição musical.
Assim, ainda que o grande referencial para a música de cinema da década de 1930
fosse a ópera, era preciso desenvolver um tipo de organização do material musical que
se adequasse as características do novo meio à linguagem audiovisual. A experiência ad
quirida com a prática musical do cinema mudo e dos primeiros anos do cinema sono
ro foi, sem dúvida, útil, mas a idéia de equilíbrio ou balanço polifônico entre as diversas
fontes sonoras era algo inexistente. A música no cinema mudo era responsável por toda
a informação sonora, em um sistema quase totalmente não-verbal. Se transposta a este
novo contexto, pareceria exagerada, estereotipada, pois deveria, a partir de então, dividir
com os diálogos e os ruídos a responsabilidade pela informação sonora.
A chegada da equipe de Denham à ilha é um bom exemplo de ação sustentada por
música contínua. A seqüência contém falas de diversos personagens, sempre sobre uma
base musical. Em nenhum momento, o universo sonoro fica restrito aos sons naturalis
tas. Mas, neste exemplo, a música continua em segundo plano: a atenção do espectador
deve se concentrar na ação. Há um paralelo com a ópera, por exemplo, no modo pelo
qual a música funciona como suporte da ação interferindo em seu conteúdo e influen
ciando a leitura do espectador. A seqüência, sem a música, mudaria bastante de caráter.
Veríamos apenas os homens caminhando e ficando fascinados com a muralha. A mú
sica, portanto, interfere definitivamente no significado da seqüência. Seu caráter miste
rioso se deve à melodia lenta e de pouca atividade rítmica e à instrumentação que explora
a região grave das cordas. Seu caráter confere à ação o mistério, alerta para o perigo que
se oculta naquele local desconhecido e que pode se manifestar a qualquer momento. É
a voz do narrador que, sob a forma de música, nos conta algo mais que não pode ser visto,
mas que é sugerido e sentido.
Outra convenção musical do cinema que o aproxima da ópera é a pouca preocu
pação de manter a correspondência entre uma suposta fonte musical filmada e o som
correspondente a essa fonte. Em outras palavras, nem sempre o que é visto corresponde
ao que é ouvido. O mesmo ocorre na ópera, em que a orquestra é senhora absoluta do
espaço sonoro e não há qualquer preocupação de ordem realista entre a sonoridade e o
que é visto no palco. Em King Kong, há um exemplo similar na festa tribal, no ritual em
que a jovem é oferecida a Kong. Os nativos dançam e alguns, vestidos de gorilas, batem
nos próprios peitos imitando o gesto característico desse animal. Podemos ver a jovem
sendo preparada para o sacrifício. Vemos, também, os que tocam: há tambores grandes
e pequenos, mas a música é executada por uma orquestra sinfônica de grande porte com
posta de cordas, sopros e percussão. Tal construção não resiste à leitura realista. Mas ela
138 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
não é a única, pois são inúmeras as convenções "não-realistas" do cinema, tal como as
balas do cowboy que jamais se esgotam.
A música composta por Steiner segue o mesmo princípio do tema dos negros em
O nascimento de uma nação: não se trata de uma música "tribal" propriamente dita, mas
seu material musical faz com que seja identificada como "música primitiva" pelo espec
tador médio. A parte rítmica e o caráter percussivo da passagem são seus principais res
ponsáveis.
A opção por se fazer cinema com uma grande quantidade de música, aliada à ne
cessidade de adequá-la às novas convenções audiovisuais, levou a um tratamento do ma
terial musical que ficou conhecido como mickeymousing9. Esta técnica de acompanhar a
ação filmada, sublinhando-a ponto a ponto, só é possível quando se possui o recurso da
sincronia com alto grau de precisão. Há dois aspectos principais de interação polifônica
entre música e ação filmada. O primeiro é o aspecto rítmico, temporal. Por meio do
mickeymousing, quase sempre o desenvolvimento temporal da ação filmada e da música
são similares. O andamento e a atividade rítmica de ambos correm simultaneamente e
de forma interligada. Ações rápidas são acompanhadas por muita atividade rítmica e an
damentos acelerados, ações lentas, por passagens musicais com pouca atividade rítmica
e andamento lento. O movimento musical é, em tais casos, um reflexo exato do movi
mento visual. O segundo aspecto é o fato de as passagens musicais sempre refletirem as
intenções e o caráter da ação filmada. Heróis e vilões, amor e ódio, alegria e tristeza, as
transições musicais estão sempre indicando com clareza o caráter de cada uma das si
tuações do filme. Sendo assim, cada fragmento da ação possui um correspondente musi
cal. A música acaba por se tomar descritiva, sempre sublinhando e comentando a ação. No
mickeymousing, a música possui um alto grau de redundância em relação às imagens.
Em King Kong, podemos encontrar diversos exemplos desta clássica técnica de
mickeymousing. Praticamente, todas as intervenções musicais do filme a utilizam. Uma
delas, bastante ilustrativa, ocorre no momento em que o chefe da tribo percebe a pre
sença dos forasteiros e caminha até eles. A música acompanha, com exatidão, sua cami
nhada. É um pulso na região grave dos sopros que corresponde a cada um dos passos.
Como é habitual no mickeymousing, a música possui uma correspondência rítmica e tam
bém se concentra na sua identificação como a autoridade máxima naquele momento.
Auxilia, também, a estabelecer o clima de mistério que envolve o encontro de culturas
tão distintas.
A técnica de mickeymousing é a primeira técnica musical desenvolvida com o obje
tivo de produzir um tipo de música especificamente voltada à linguagem audiovisual. Por
meio dela o recurso da sincronia é levado ao extremo. Mas esse controle ponto a ponto
não suplantou as velhas práticas herdadas da tradição dramático-musical. Em sua macro-
estrutura, a trilha continuou a se basear na organização de material temático recorren
te, ou seja, o uso de temas cujos motivos se tornam leitmotivs e assumem significações
específicas dentro da narrativa.
Em King Kong, encontramos dois temas básicos: o primeiro é o tema de Kong que
inicia a abertura. Trata-se de um tema simples, apenas um motivo construído a partir de
três acordes sem qualquer preocupação melódica ou rítmica. O motivo é apresentado em
tutti orquestral, com grande proeminência dos metais. A instrumentação, a região gra
ve e o sentido descendente conferem-lhe um caráter amedrontador próprio ao tema de
um monstro. O segundo tema é o de Ann. Normalmente, os filmes dessa época pos
suem um tema romântico. Embora o tema de Ann se aproxime disso, não seria correto
assim conceituá-lo. Mesmo havendo o par romântico Ann e Jack, a relação amorosa é
totalmente secundária no filme. Se há, de fato, um apaixonado, ele é Kong, que abdica
da própria vida pela de Ann. Ainda assim, o tema é introduzido no filme, como se fosse
romântico, no momento em que Jack declara-se a Ann no convés do navio, pouco an
tes de ela ser raptada.
O tema de Ann oferece o contraste ao tema de Kong. Ele é apresentado pelas cor
das, na região aguda, possui uma linha melódica bem definida e tonal, tendo, pois, a ca
racterística dos temas românticos dessa época. O contraste entre o tema de Ann e o de
Kong reforça a referência ao filme A Bela e a Fera, várias vezes mencionada. O tema de
Kong é o tema da fera que se apaixona pela bela jovem Ann. Mas o destino de Kong não
é o mesmo, pois Ann não se apaixonará por ele. Seus temas estão, assim, irremediavel
mente dissociados. No decorrer do filme, eles serão colocados lado a lado, mas em ne
nhum momento irão se fundir. Mesmo em um momento romântico como a seqüência
do casal no convés, a relação entre música e ação filmada segue os princípios do
mickeymousing. Todas as nuanças do diálogo entre Jack e Ann são acompanhadas por
transformações correspondentes na música. Após o primeiro beijo do casal, quando Jack
é chamado à ponte de comando, a música é interrompida para a inserção da fala do co
mandante. Segue um jogo pelo qual se alternam música e fala, em cortes precisos, cor
respondendo exatamente à alternância dos planos.
Esse exemplo apresenta alguns elementos sobre os quais convém refletir. Em pri
meiro lugar, devemos retornar à questão da fragmentação. No cinema mudo, como vi
mos, a estrutura fragmentária era uma característica do acompanhamento musical. Na
década de 1930, essa fragmentação foi levada ao extremo pela prática de mickeymousing
e incorporada à própria escrita musical em que as transições, nuanças, contrastes, já es
tão previstos na composição. Trata-se de uma evolução da prática do cinema mudo que
organizava os acompanhamentos musicais pela justaposição de diversos fragmentos uni
dos por transições criadas pelos músicos das salas de exibição.
Essa estrutura fragmentária deixaria de ser característica da música de cinema e se
tornaria comum a toda trilha sonora. As técnicas de montagem, dublagem e mixagem
das pistas de som acrescentam novas possibilidades de combinação do material sono
ro, que são aliadas a cortes, emendas e associações de sonoridades nos eixos horizontal
e vertical.
No exem plo da cena rom ântica entre Jack e Ann, a separação dos planos é
enfatizada pelo corte na música, uma espécie de separação entre o sublime da relação
amorosa e a banalidade do cotidiano. A música apaixonada altema-se com a fala do co
140 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
mandante que nada tem a ver com ela. Os apaixonados encontram-se em uma outra es
fera na qual o espectador pode penetrar por meio da música. A música não pode acom
panhar o diálogo dos homens, pois isso seria macular a esfera da paixão.
Na primeira fase do cinema sonoro, houve um fascínio pela incorporação da fala.
Mas a tradição não-verbal que orientou a formação da linguagem cinematográfica era
muito forte para ser descartada. O cinema já possuía uma dialogia própria. A fala foi in
corporada, sem se tomar, no entanto, seu fator primordial. A partir do momento em que
música, diálogos e ruídos puderam ser manipulados com independência e em profun
didade, essa dialogia própria tomou sua forma definitiva, na qual todas as sonoridades
interagem horizontal e verticalmente na composição da trilha sonora.
King Kong é também um marco histórico pela maneira de utilizar o potencial dra
mático e narrativo dos ruídos, que até então eram usados praticamente como comple
mento da imagem. King Kong mostra que o ruído e suas diversas possíveis combinações
com a música permitem resultados até então impensáveis, seja acrescentando um novo
nível de significação, seja, até mesmo, suprindo possíveis falhas ou imperfeições da ação
filmada. Vejamos o que diz Heitor Capuzzo sobre a seqüência do Empire State Building
em King Kong:
Estes comentários são válidos, na verdade, para todas as seqüências, desde a pri
meira aparição de Kong quando ele raptou Ann e partiu para o interior da floresta. A ten
são já começara na seqüência anterior que apresenta novamente o ritual dos nativos, só
que desta feita Ann é a vítima, ou melhor, a oferenda a Kong. Os nativos estão inflama
dos, dançam ao som de seus tambores (e da orquestra sinfônica) e empunham tochas.
A música é similar à do primeiro ritual, porém mais acelerada e com um grau de ten
são intema maior proporcional à intensidade dramática da seqüência. Misturam-se a ela
os gritos da tribo em delírio coletivo. Steiner faz rápidas inserções do leitmotiv de Ann
em praticamente todos os planos em que ela aparece em detalhe, com seu tema, apare
cendo transformado. Ele surge da música do ritual, projeta-se sobre ela, mas se submete
à sua estrutura. Assim como Ann, ele luta para se libertar, mas não consegue e é engoli
do, novamente, pela música do ritual.
Playing on the screen 141
10. Uma pontuação semelhante à da queda de Flora em O nascimento de uma nação. Ver
Capítulo 3.
142 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
assiste a Kong virar o tronco até que todos tenham caído no abismo. O leitmotiv de Kong
é apresentado no momento exato em que o vemos e domina a seqüência altemando-se
com passagens rápidas, agitadas. Sobre a música, os gritos dos homens, agora em coro,
e os rugidos de Kong.
O movimento musical ascendente é usado mais uma vez para acompanhar a es
calada de Jack por um cipó. A passagem é lenta como sua ascensão, sua instrumentação
é simples, a melodia nas cordas é limpa e clara com pouca ênfase no aspecto harmôni
co, confere um caráter intimista, solitário, compatível com a situação da personagem, e
contrasta com as passagens anteriores de instrumentação e textura complexas.
Jack passa a perseguir Kong até a sua cavema. Toda essa parte do filme tem sua mú
sica baseada no tema de Kong alternada com passagens, em mickeymousing, de Jack cor
rendo pela mata. Aos poucos, a narrativa volta-se novamente para Ann, prisioneira de
Kong. A música indica esse ressurgimento da personagem cujo tema passa a ser associa
do ao de Kong. O tema de Ann ressurge na seqüência da cavema quando Kong larga Ann
pela primeira vez. Ela não grita mais, apenas chora. A natureza romântica do tema é
reassumida, sendo apresentado pelas cordas em andamento mais lento. Na caverna de
Kong, o movimento sinuoso da serpente é acompanhado pela música, por meio de movi
mentos ascendentes e descendentes das madeiras no graves, em primeiro plano, e das
cordas, em segundo.
Os temas de Kong e Ann são aproximados de maneira mais intensa quando Kong
deixa a cavema. Ele acomoda Ann em um platô e brada, senhor de seu território. Nova
mente, há uma divisão timbrística de metais para Kong e de cordas para Ann. Os dois
temas se sobrepõem, realizando o diálogo que, entre as personagens, é impossível. O
tema de Ann é agitado, mas já não indica o desespero do primeiro encontro, e o de Kong
se transforma pouco, é estável e decidido como a personagem.
O resgate de Ann por Jack é um exemplo clássico de mickeymousing. Os temas de
Kong e Ann e as correspondências entre movimento musical e visual mesclam-se nessa
rápida seqüência. Ann aproveita o primeiro momento em que é deixada a sós por Kong
e se arrasta pelo platô. Seus movimentos são acompanhados por uma passagem nas
madeiras (fagotes e clarinetes). Um corte mostra Kong dentro da cavema e seu leitmotiv
nos metais. Outro corte introduz novamente o plano de Ann com a mesma música de
antes, agora acrescida de cordas em pizzicato e um trêmulo no grave. Quando está quase
à beira do precipício, ela é atacada por um pterodáctilo. A música transforma-se num tutti
orquestral agitado. Kong chega e luta com o agressor. Seu tema é mesclado ao agitato. Jack
aproveita-se da situação para resgatar Ann. Os dois agarram-se a um cipó e começam a
descer pela rocha. O movimento descendente é correspondido pelo agitato orquestral,
também descendente. O agitato é, então, substituído pelo tema de Ann, também trata
do para corresponder ao movimento descendente. Kong percebe a fuga: tema de Kong.
Ele começa a puxar o cipó. Imediatamente, a orquestra retoma o sentido ascendente e o
agitato, mesclados ao motivo de Kong. Os dois largam o cipó e ouvimos um rápido glis-
sando descendente de cordas e harpa acompanhando a queda. O toque na água é pon
tuado pelos metais e pela percussão. O mergulho retoma o agitato para culminar no tema
Playing on the screen 143
de Ann, nas cordas. A seqüência termina com o rugido de Kong e os acordes de seu mo
tivo. Não é por acaso que Steiner era considerado um mestre no uso dos click-tracksu.
Jack e Ann correm em direção à muralha onde são esperados por seus amigos. Sua
corrida é acompanhada por música em andamento acelerado e com bastante atividade
rítmica. A frase das cordas é construída a partir de um motivo rítmico de figuras pon
tuadas, similar ao utilizado pelo cinema mudo em tais situações. Sobre ela, os metais
executam uma série de repetições seqüenciais do motivo de Kong. Quando chegam à mu
ralha, as cordas deixam o motivo da perseguição para executarem o tema de Ann, vão
desacelerando e concluem a passagem.
Kong é subjugado e Denham o apresenta como atração em Nova York. Ele conse
gue se libertar e foge aterrorizando a cidade. Jack e Ann se refugiam em um edifício. A
partir daí, toda a ação é acompanhada pelos temas de Kong e Ann que são combinados
de diversas maneiras. Quando Ann e Jack estão no quarto, é o tema de Ann que ocupa o
espaço sonoro, mas no momento em que Kong surge na janela, seu motivo é sobrepos
to, com muita sutileza, no extremo grave. Quando Kong quebra a janela, o seu tema in
terrompe o de Ann. Kong retira Ann pela janela, uma ponte conduz ao seu leitmotiv que
é acelerado e repetido ciclicamente enquanto a jovem é mostrada em plano fechado, na
pata de Kong. Ele começa a escalar o edifício acompanhado por seu tema.
A narrativa caminha em direção ao clímax. Kong escala o Empire State. Ao mes
mo tempo, aviões aproximam-se do edifício para abater o animal. A esquadrilha é apre
sentada. Os ruídos dos motores sobrepõem-se ao tema de Kong. Um corte mostra a
silhueta do edifício e Kong em sua escalada. Como sempre, o movimento ascendente é
correspondido pela música. Acordes de metais em um pulso uniforme sobrepõem-se ao
movimento rápido das cordas em direção ao agudo. O andamento vai se tomando mais
lento à medida que Kong se aproxima do topo. O motivo de Kong é reapresentado e
modificado a fim de corresponder à intensidade dramática da seqüência, o que de fato,
é conseguido, especialmente pela instrumentação. Steiner usa o poder do tutti orques
tral e, pela primeira vez, o motivo de Kong é ouvido nas cordas, não nos metais, e na
região aguda.
O som dos motores dos aviões se sobrepõe ao da música. Kong está sendo atacado.
Ouve-se o som de metralhadoras. Kong, ferido de morte, pega Ann uma última vez.
Ouve-se o tema da jovem, também transformado pelo andamento mais lento e com
instrumentação mais vigorosa. A música vai se tomando mais lenta e perdendo seu vi
gor, à medida que Kong se enfraquece. Ele deposita Ann em um local seguro e afaga-lhe
pela última vez. Os sons dos motores e da metralhadora interrompem a música. Uma
P o l i f o n ia A u d io v is u a l : T e o r ia e P r á t ic a
A busca de uma correspondência entre movimento musical e visual, tão bem exem
plificada em King Kong, lembra-nos o famoso artigo de Eisenstein: "Forma e conteúdo:
prática" (199 0 a :9 7 -l32). Na "Declaração", de 1927, Eisenstein demonstrava, como já foi
mencionado, uma compreensão intuitiva daquilo que seria uma relação polifônica en
tre som e imagem. Em 1940, já com o cinema sonoro consolidado, ele tentaria forma
lizar suas idéias em uma série de três artigos intitulada Montagem vertical, da qual "Forma
e conteúdo: prática" é o último12.
No primeiro artigo da série, "A sincronização dos sentidos", Eisenstein retoma o
conceito de polifonia para abordar a relação entre som e imagem no contexto audiovi
sual. Como teórico, Eisenstein sempre insistiu na montagem como a grande especifici
dade da linguagem do cinema e sua abordagem da polifonia audiovisual está baseada
nela. Conforme afirma, em "A sincronização dos sentidos":
12. Os dois primeiros são "A sincronização dos sentidos" e "Cor e significado", tam
bém publicados em O sentido do filme.
Playing on the screen 145
Eisenstein também reconhece o ritmo como fator comum entre os discursos so
noro e visual. Contudo, para ele essa relação básica é por demais elementar. Sobre o as
pecto rítmico da montagem audiovisual, ele afirma:
O que talvez tenha impedido Eisenstein de chegar a uma compreensão mais pro
funda da polifonia audiovisual é a sua insistência em encontrar "correspondências ab
solutas". Ele já havia identificado a limitação de uma abordagem puramente rítmica da
relação entre os movimentos sonoro e visual. Ao mesmo tempo, minimiza a importân
cia da questão rítmica, a temporalidade, para propor correspondências de caráter
especulativo. É traído, também, por sua insistência em identificar essas correspondên
cias por termos técnicos musicais. Tomando as relações rítmicas com o "um nível
comparativamente baixo de sincronização", Eisenstein vai, então, buscar o que entende
como o correspondente visual do movimento melódico: a cor. Mais adiante, no tercei
ro artigo da série, sua insistência em encontrar um equivalente sonoro do movimento
visual conduz a uma interpretação do "movimento" intemo do quadro. Eisenstein tece
um raciocínio elaborado para desenvolver um método de construção com música e ima
gens. Seu grande experimento baseado em tal método aconteceria no filme Alexander
Nevsky (Alexander Nevsky, URSS, 1938). Nesse filme, Eisenstein pôde pôr em prática to
dos os seus conceitos teóricos apresentados em seu artigo.
146 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
Alexander Nevsky narra a história da batalha entre russos e alemães de 1242, da qual
os russos saem vitoriosos. O filme tem um claro propósito político e se enquadra per
feitamente no modelo de arte engajada, característico da produção soviética do perío
do. A sociedade revolucionária é projetada na Rússia medieval, defendida por seu povo
sob a liderança carismática de Alexander Nevsky da dominação da grande inimiga, a cris
tandade, representada pelos cavaleiros da ordem teutônica. O filme enquadrava-se per
feitamente no contexto político da Europa à beira da Segunda Guerra Mundial e no
processo de afirmação do regime stalinista.
A música de Alexander Nevsky é de um dos maiores compositores do século, Sergei
Prokofiev. O compositor soube adequar-se à experimentação proposta por Eisenstein e,
ao menos pelo que nos indica o relato do diretor, a criação foi participativa, com gran
de colaboração de ambas as partes. Prokofiev era um músico de formação tradicional,
herdeiro da tradição musical tanto do Ocidente, quanto da Rússia na qual são comuns
as grandes formas, como o balé. Alexander Nevsky é tratado musicalmente como uma
obra de grandes proporções, uma composição nos moldes da tradição dramático-musi-
cal. O filme é pensado como uma ópera, mas cujas convenções subordinam-se às do ci
nema. Provavelmente, ele está mais próximo daquilo que EmstToch entendia por filme-ópera.
O texto cantado é substituído pelo falado. Os coros permanecem, mas são cinematogra-
ficamente transformados. A ação filmada, sem texto, é usada em grande quantidade.
As legendas iniciais oferecem as primeiras informações sobre a narrativa que se se
guirá: tempo, local e ação. Prokofiev acompanha as legendas com uma passagem musi
cal em andamento lento e com pouca atividade rítmica. O contexto de invasões e guerra
que as legendas apresentam é tratado musicalmente com gravidade e contenção. Não é
a euforia da guerra que predomina, mas sua desolação. Esse texto inicial termina com
uma referência às batalhas com os mongóis e é sucedido pela primeira seqüência do fil
me, que mostra um velho campo de batalha, um deserto povoado por restos de homens
e armas.
Já foi dito que a estrutura operística foi transformada no sentido de adequar-se às
convenções do cinema. Este é o momento propício para entendermos essa relação.
Prokofiev trata a passagem como sendo uma abertura para a obra. A função da abertura
é a de situar o espectador em relação ao que se seguirá, possibilitando o seu afastamento
do tempo cronológico e do mundo que o cerca para a imersão no tempo e no universo
da narrativa. Mas as possibilidades específicas do cinema permitem que ela atinja uma
outra dimensão. O tratamento épico da abertura, com uma narrativa escrita e, posterior
mente, ilustrada pela seqüência do campo de batalha, na qual os planos se alternam para
mostrar diversos aspectos daquele espaço, é impossível no espetáculo ao vivo. O cinema
lança mão do recurso musical nos moldes da dramaturgia musical, da narrativa escrita,
literária e da imagem filmada, em planos estáticos que ressaltam a composição visual de
cada um desses planos como se fossem quadros do campo de batalha.
Eisenstein explora o plano sem movimento intemo, prática que pode ser observa
da em todo o filme, bem como em outras obras de sua autoria. O movimento é dado pela
montagem, pela alternância de planos, e não pela ação ou movimento internos ao pla
no. A música reitera a desolação do campo de batalha. Sobre um acorde de longa dura
Playing on the screen 147
ção, um oboé apresenta uma melodia, lentamente, e, em seguida, as outras madeiras de
senrolam-se melodicamente sobre as cordas (que sustentam acordes longos) com um
mínimo de movimento intemo.
A seqüência seguinte apresenta o primeiro coro do filme, que nada deixa a desejar
se comparado aos coros de óperas. É uma seqüência às margens do lago Plestcheyevo.
Vemos pescadores em suas atividades cotidianas. O coro canta a vitória contra os suecos
na batalha travada no rio Neva. A interferência épica do coro é explícita, pois não são os
pescadores que cantam. A glória da Rússia e seu povo são exaltados. Assim como na ópera,
ele funciona como voz da coletividade em contraposição à individualidade de cada uma
das personagens. A composição audiovisual, polifônica, apresenta o geral e o particular
em simultaneidade: o canto, voz da coletividade, do povo russo, somado aos pescadores.
Na ópera, o coro seria sucedido por alguma outra peça musical, uma ária, um recitativo
ou mesmo uma peça instmmental. No filme, a música cessa para que se inicie a ação
propriamente dita. A função antes exercida pelo canto passa a ser cumprida pelos diálo
gos e pela ação filmada. Trata-se de uma ação rápida entre os pescadores liderados por
Alexander (Nikolai Cherkasov) e um chefe mongol. Alexander é convidado a abandonar
a Rússia para juntar-se aos mongóis como líder militar. Ele recusa o convite, reafirman
do os valores mssos, numa atitude ufanista que permeia todo o filme. Terminado o diá
logo, os mongóis partem e o coro retorna para encerrar a seqüência, reiterando que a
Rússia vencerá qualquer um que queira conquistá-la.
Durante toda a seqüência seguinte, que se passa na cidade de Novgorod, não há mú
sica. Ela serve para dar início ao desenvolvimento dramático do filme. As personagens
são apresentadas: Ignat, o armeiro (Dmitri Orlov) e a dupla Vasili (Nikolai Okhlopkov)
e Oleksich (Alexander Abrikosov), que disputam o amor de Olga (Vera Ivasheva). Um
mensageiro informa que a cidade de Pskov foi tomada pelos alemães que marcham para
Novgorod. O povo é conclamado à luta. A burguesia local tenta contemporizar, pro
pondo um acordo com o inimigo. O povo decide chamar Alexander para liderá-los
em sua luta.
A próxima seqüência musicada mostra Pskov sob o jugo teutônico. Ela tem início
com planos dos alemães com suas lanças e elmos escondendo totalmente suas faces.
Curiosamente, o motivo musical é muito parecido com o tema de Kong, em King Kong.
A abordagem musical da monstruosidade feita por Steiner, para Kong, e esta, de
Prokofiev, para os alemães, é praticamente idêntica. A seqüência prossegue em uma al
ternância de planos nos quais há muito pouca ação, ainda que haja muitas pessoas. Ve
mos a cidade destruída, fumaça, uma grande fogueira, monges, cavaleiros, os líderes
locais amarrados, o bispo, tudo acompanhado por um tema misterioso. Segue-se mais
um motivo que, no mesmo espírito, será usado em diversos momentos. A música só se
transforma quando é mostrada a população conquistada, acompanhada por uma melo
dia melancólica que sublinha o sofrimento, contrastando, assim, com o tema dos ale
mães. Este último retorna com toda a intensidade para concluir a parte inicial da
seqüência.
Há uma rápida passagem dialogada em que os alemães reafirmam sua arrogância.
O traidor Tverdilo (Sergei Blinnikov) é apresentado. Inicia-se o massacre. Os líderes são
148 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
sica não ocupa sozinha o espaço sonoro: há sons de sinos e da multidão que aclama os
soldados. Há, novamente, uma seqüência sem música do discurso de Alexander
conclamando o povo de Novgorod a defender a Rússia. Ele é aclamado pela multidão. Os
sinos tocam. O coro retoma o mesmo tema da seqüência dos camponeses: "Levanta-te
Rússia, luta até a morte!" Pela primeira vez, Eisenstein une a música aos diálogos. O coro
cede lugar à orquestra e sobre ela os homens declaram suas ofertas à pátria russa: lan
ças, escudos, machados e as próprias vidas. Retoma o coro, grandioso, em uma estrutu
ra que lembra os responsórios. Nota-se, nesta seqüência, um procedimento clássico da
prática musical do cinema: o cuidado para que texto falado e cantado não se anulem ou
se prejudiquem, para que a atenção do espectador não se divida. Assim, no momento em
que teriam início as falas, Prokofiev recolhe o coro deixando que a orquestra dê conti
nuidade musical à cena. Terminadas as falas, o coro retorna com toda a força. Adiante,
Eisenstein irá sobrepor o coro a outras falas, controlando apenas o volume. O resultado
não é tão eficiente.
Na noite que antecede a grande batalha, Prokofiev repete o tema musical do iní
cio do filme utilizado para a sonorização das legendas que iniciavam a narrativa. A ten
são e a expectativa do momento são, em grande parte, construídas pela música, já que a
ação propriamente dita não possui tais elementos. Vemos homens em torno do fogo e
Alexander caminha sobre o gelo. A expectativa e a agonia de quem espera a luta são ex
pressas pela música. Liderados por Alexander, os homens preparam-se para receber o ata
que alemão. Eles escolhem o local e armam a estratégia para enfrentá-lo. Tem início,
então, a seqüência mais conhecida do filme, usada por Eisenstein para exemplificar seu
"método" de correspondências audiovisuais. Ele afirmou ter se baseado nessa seqüência
pelo fato de ela ser composta de planos "quase imóveis", podendo ser reproduzida no pa
pel sem grande perda de conteúdo, em forma de story board. A seqüência é composta de
doze planos que mostram as tropas mssas à espera do início da batalha, ao amanhecer.
Alternam-se planos gerais (Alexander, sobre a Montanha do Corvo, as tropas), planos
médios dos guerreiros e planos fechados de Vasilisa, Ignat e Savka. Em "Forma e conteúdo:
prática", Eisenstein ilustra a sua análise com um diagrama (1990a: 112-113). A primeira
linha contém um fotograma de cada plano, a segunda, a partitura musical, a terceira, um
diagrama de composição das imagens e a última, um diagrama do que ele entende por
"movimento" visual interno a cada um dos planos. Ele buscou uma correspondência
entre as linhas principais da composição de cada um dos quadros e o movimento da
música na partitura. A música se relaciona com os planos "por meio de um movimento
idêntico, que está na base do movimento musical, assim como do pictórico".
Em relação aos planos III e IV, Eisenstein afirma:
queda abrupta (...). O seguinte grupo de quatro repetições de uma única nota - em
colcheias, separadas por pausas - pode ser descrito naturalmente por um gesto ho
rizontal, no qual as colcheias são indicadas por acentos uniformes (...). (1990a:108)
são responsáveis por uma expressividade possível de ser alcançada apenas no nível da
particularidade e, por isto mesmo, da expressividade dramática. É dessa soma de fatores
que vem a força expressiva da seqüência, fruto de uma complexa articulação audiovisual,
como tanto frisou Eisenstein.
Os preparativos para a batalha continuam. São mostrados os alemães recebendo as
bênçãos da Igreja. Ouve-se novamente o tema das trombetas que acompanhou o mas
sacre em Pskov. Principia o ataque. Vê-se, ao longe, a cavalaria alemã. Inicia-se o tema
musical, orquestrado de forma a reforçar a sensação de aproximação da cavalaria. Ele
começa bem piano, nas cordas graves e percussão leve. Estas últimas executam apenas
um acompanhamento pulsante, em figuras rítmicas de igual duração, sobre as quais surge
um fragmento do tema das trombetas. A orquestra vem em um crescendo conforme a
cavalaria se aproxima. Ouve-se o segundo motivo do tema dos alemães. As cordas, nos
agudos, executam uma ponte. A orquestra cresce, os alemães estão mais próximos. Ao
motivo da ponte sobrepõe-se o das trombetas, que se altema com o dos alemães. O pul
so da orquestra está muito próximo ao da cavalgada. O tema do sofrimento e orgulho
russos ressurge agora cantado pelo coro. Alexander manda Vasili para o campo de bata
lha. Vasili abraça Oleksich, cena esta que mereceu o seguinte comentário de Eisenstein:
(...) Seções inteiras da partitura algumas vezes sugeriram soluções visuais plás
ticas que nem ele [Prokofiev] nem eu havíamos vislumbrado antes. Freqüentemen
te essas seções se adequavam tão perfeitamente ao "som interior" unificado da
seqüência, que agora parecem "concebidas previamente". Foi o caso da cena de
Vaska e Gravilo Oleksich se abraçando antes de partirem para seus postos, assim
como de uma grande parte da seqüência dos cavaleiros galopando para o ataque -
ambas as seqüências tiveram efeitos que não esperávamos absolutamente.
(1990a:98)
tema das trombetas. É nessa seqüência que Ignat é morto por Tverdilo (Sergei Blinnikov),
o traidor. Os alemães são encurralados sobre o lago congelado. O gelo começa a rachar
e eles são engolidos pelas águas. A seqüência é acompanhada praticamente apenas pe
los instrumentos de percussão, com os tímpanos em primeiro plano. Os outros naipes
de orquestra intervêm discretamente em alguns pontos. Perto do fim, ouve-se novamente
o tema das trombetas. Alexander observa o campo de batalha onde jazem tantos mor
tos. É introduzido um tema fúnebre que será sempre associado a mortos e feridos até o
final do filme. Em seguida, vemos Olga procurando por Vasili e Oleksich entre os mor
tos e feridos. O tema do orgulho e do sofrimento ressurge cantado não pelo coro, mas
por uma voz solista feminina. O texto louva aqueles que morreram pela Rússia e, em sua
parte final, se identifica com o ponto de vista de Olga, dizendo que será esposa e aman
te do jovem sobrevivente e que seu esposo será escolhido por sua bravura. É mais uma
situação em que Prokofiev aproxima o cinema das convenções operísticas. A passagem
se configura como uma verdadeira ária de Olga: se estivesse no palco, seria ela a cantá-
la, mas, no cinema, é possível que ela aconteça sem que qualquer personagem assuma a
condição de cantor.
O retorno das tropas a Pskov é acompanhado por três temas musicais: o primeiro
é o dos mortos, acompanhado pelo tema fúnebre; o segundo é o dos prisioneiros alemães
(não é um tema, propriamente dito, mas uma sonoridade criada por movimentos rápi
dos nas madeiras e cordas, na região grave); em seguida, entram os heróis vitoriosos
acompanhados pelo tema do primeiro coro do filme, agora em versão instrumental.
Após o julgamento dos alemães, a estrutura dramática caminha para a sua resolu
ção. Vasili entrega Olga ao ferido Oleksich, fazendo questão de afirmar que ele, depois
de Vasilisa, foi o mais bravo. E, por fim, toma Vasilisa como noiva. Segue-se a festa da vi
tória cuja música é produzida por estranhos instmmentos de sopro e percussão, criados
visualmente por Eisenstein e sonoramente por Prokofiev, tal como havia ocorrido com
as trombetas.
O filme termina com uma legenda bastante apropriada para a sua função propa-
gandística, avisando que "todo aquele que vier com ferro, com ferro será ferido". Ela é
acompanhada pelo glorioso tema do primeiro coro, cuja letra possuía um sentido seme
lhante.
Eisenstein procurou um caminho bastante tortuoso para explicar a relação da mú
sica com as imagens em composições audiovisuais. Sua opção pela abordagem do pla
no cinematográfico como um "quadro", um objeto pictórico, leva a alguns equívocos.
Ele teria muito mais material para desenvolver seu "método" se buscasse as relações de
movimento propriamente dito entre os planos e internamente ao plano. As similarida
des entre o movimento musical e visual foram também buscadas no cinema america
no sem uma preocupação teórica ou formal tão acentuada. Sob este aspecto, as
proposições de Eisenstein e dos criadores do mickeymousing possuem uma interseção, que
é, justamente, o movimento.
A capacidade de perceber que o movimento estava na base das relações audiovisuais
é mérito de Eisenstein como teórico. Também é mérito seu reconhecer que som e ima-
Playing on the screen 153
O M elo d ram a F í l m ic o
Um dos maiores filmes de todos os tempos é E o vento levou (Gone With the Wind,
EUA, 1939). É dele, também, uma das maiores trilhas musicais de todos os tempos. Aque
les que não concordarem com esta afirmação sob o ponto de vista estético, ao menos se
rão obrigados a concordar no que diz respeito à duração: apenas trinta minutos, em mais
de duzentos e vinte, não possuem música de qualquer espécie.
Musicalmente, E o vento levou é ao mesmo tempo o ápice e a síntese das práticas
musicais do cinema dos anos 1930. O mickeymousing é abundante, mas a sofisticação da
música é muito maior do que em King Kong, ainda que ambas as trilhas sejam de Max
Steiner.
Vale a pena observar alguns aspectos dessa trilha para que possamos compreender
as transformações que a música de cinema sofreu, bem como o que ela conservou entre
os anos que separam King Kong de E o vento levou. Um aspecto que merece destaque é o
da organização e manipulação do material temático musical do filme. Steiner criou sete
motivos principais, cada um com uma função específica: quatro deles para personagens
isoladas - Scarlett O'Hara (Vivien Leigh), Rhett Butler (Clark Gable), Melanie Hamil
ton (Olivia de Havilland) e Gerald O'Hara (Thomas Mitchell) - , dois para casais -
Melanie e Ashley Wilkes (Leslie Howard) - e, finalmente, o tema de Tara, o mais impor
tante do filme. Sobre Tara, Steiner afirma:
Tara é mais que uma plantação, mais que uma agradável casa antiga, repleta
de orgulhosas e tristes e sempre adoráveis lembranças. Tara é uma coisa viva, dan
do e exigindo vida. Tara é a idéia que mantém Scarlett em sua incansável busca de
preservar com ela [Tara] a herança espiritual dos O'Hara e do velho Sul. (Apud
Usher, 1987:165)
Ele é construído sobre um único motivo, combinado por meio de várias transpo
sições. Pode-se notar que a prática de criar o material temático a partir de pequenas uni
dades musicais, já presente nas coletâneas musicais para o cinema mudo, continua
válida. Um motivo simples, além de ser facilmente assimilado, pode ser identificado com
muita rapidez pelo espectador, sem exigir que ele desvie sua atenção para a música. Uma
melodia construída a partir de um único motivo pode ser facilmente fragmentada, sem
perder sua identidade melódica e, conseqüentemente, sua eficiência como leitmotiv.
Outro aspecto do tema de Tara que vale a pena ser considerado é o da sugestão do
texto. Não é possível dizer se foi intenção de Steiner ou não, mas o motivo do tema de
Tara segue silabicamente, o título do filme:
Na época em que E o vento levou foi produzido, o tratamento musical dos filmes
já havia adquirido um alto grau de sofisticação. Nos exemplos até aqui apresentados, pode-
se perceber a recorrência temática de leitmotivs, fato praticamente comum no cinema
desde que ele se consolidou como linguagem. Mas estas recorrências apresentam trans
formações muito tímidas dos temas. Em certo sentido, o conceito wagneriano de
leitmotiv havia sido incorporado, mas em sua acepção mais simples e imediata que é a
do tema ligado a uma personagem ou situação particular. Porém, o sentido mais amplo
do conceito, justamente, o de usar os leitmotivs como estruturas dramáüco-musicais de
grande maleabilidade, transformando-os no sentido de obter nuanças mais sutis da com
posição dramática ou narrativa, ainda era pouco explorado. Essa transformação pode ser
bem apreciada em E o vento levou. O tema de Tara, por exemplo, aparece ao longo do fil
me transformado e combinado com outros motivos com uma variedade surpreenden
te. Na abertura do filme, ele é apresentado em sua forma original, completa, para que
fique bem claro e para que o espectador possa identificá-lo sem dificuldade quando ele
recorre. O uso deste tema, na abertura, como main title, também já indica que ele será
muito importante na estrutura dramático-musical do filme. A cada recorrência, o espec
tador é remetido à idéia central do filme, ao núcleo de sua constmção dramática.
A primeira associação do tema com Tara se dá no início do filme, quando Scarlett
conversa com seu pai sob a árvore que se tornará um índice de Tara. A jovem expressa
ao pai seu desinteresse pela fazenda, que é inversamente proporcional ao seu interesse
por Ashley. O pai a repreende, lembra que a terra é a única coisa que importa e diz que
o amor pela terra virá com o tempo. O tema começa sob o diálogo, sutilmente. Ele au
menta o impacto emocional do texto, que se trata de um apaixonado discurso em lou
vor da terra. O texto acaba, a música ocupa todo o espaço sonoro, sai do segundo plano
para o primeiro. A câmera começa a se afastar até que os dois sejam engolidos por Tara.
Playing on the screen 155
Temos, nesta seqüência, o uso de um recurso que vale a pena ressaltar. Enquanto a câ
mera se afasta das personagens, a música cresce. Temos um movimento em sentido con
trário do som e da imagem: aproximação para um e afastamento para a outra. A música
sai do segundo plano para o primeiro, enquanto as personagens saem do plano fechado
para o geral.
No final da guerra, Scarlett tenta fugir de Atlanta, prestes a ser invadida pelo exér
cito do norte. Ela discute com Rhett, que tenta dissuadi-la de ir para Tara. A música que
acompanha a seqüência vem num crescendo gradual de intensidade, altura e atividade
rítmica. O tratamento dramático-musical é similar ao de um dueto operístico. A músi
ca pontua o diálogo sustentando-o como um acompanhamento para os "cantores". O
apelo melodramático é muito forte. Quando Scarlett grita, as cordas sublinham seu de
sespero em movimentos rápidos e pouco definidos, mimetizando seu descontrole. Final
mente, Rhett percebe que não conseguirá convencê-la e ela chora em seu ombro. A
orquestra se acalma. O tema de Tara surge executado apenas pelas cordas, menos gran
dioso do que das vezes anteriores. O motivo das cordas é respondido por um violino so
lista que lhe confere um caráter mais intimista. As progressões melódica e harmônica
são alteradas para adequarem-se à situação.
Após a fuga de Atlanta, Rhett acompanha Scarlett, Melanie, seu filho recém-nasci
do e Prissy (Butterfly McQueen), até que estejam no caminho certo para Tara, e parte para
juntar-se aos confederados, já à beira da rendição. Antes de partir, ele declara seu amor
por Scarlett, que resiste. Finalmente, sem Rhett, em prantos, Scarlett parte em direção a
Tara. Retoma o tema de Tara sem modificações melódicas significativas.
O gmpo, finalmente, chega a Tara. Scarlett chicoteia o cavalo, que morre de
exaustão. O tema de Tara principia nas cordas, em andamento um pouco mais lento. É
interessante notar como Steiner trabalha a combinação de diálogos e música como um
verdadeiro contraponto. Música e voz dialogam, cada qual aproveitando a deixa da ou
tra e respeitando seu espaço. No início, o tema desenvolve-se em sua forma original, mas
em um arranjo mais econômico, o que ocorre desde o momento da chegada até a mor
te do cavalo. Vem à tona a questão que preocupava Scarlett desde o diálogo com Rhett
em Atlanta, quando ela disse: "Não posso ver a casa, ela está lá? Eles a queimaram?" Há
um rápido silêncio das vozes. O corte conduz a um plano que mostra o céu. Nuvens pas
sam rapidamente, expondo a Lua antes encoberta. A música cresce, o movimento inter
no do arranjo aumenta. O plano fechado do rosto de Scarlett, escuro, rapidamente se
ilumina. A casa também se ilumina. Scarlett exclama: "Está tudo bem! Eles não a queima
ram! Ela ainda está lá!" Sob esse texto, há uma modulação que conduz a uma cadência
suspensa, um acorde, sustentado em fermata, que prolonga a suspensão e prepara a si
tuação seguinte. Inicia-se uma passagem musical rápida, uma ponte seqüencial ascenden
te, em tercinas, para acompanhar a corrida de Scarlett em direção à casa, gritando:
"Mamãe! Papai!" Quando seu pai abre a porta, arrasado, o motivo principal do tema é
ouvido novamente, na região média, apenas uma vez. Uma rápida ponte conduz o tema
ao seu fim e prepara a inserção de outros temas.
Um dos momentos de maior impacto do filme é a seqüência em que Scarlett, fa
minta e arrasada pelo estado de penúria em que se encontra Tara, caminha pelo terreno
156 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
destruído. O tema musical começa timidamente enquanto Scarlett ainda está dentro de
casa. O arranjo é calmo e lento. A instrumentação é mais econômica e intimista. Em se
guida entram as cordas. Scarlett caminha pelo campo. A música se torna mais tensa.
Scarlett arranca do chão uma raiz e come-a com avidez. Sente náuseas. A música fica
mais movimentada. Ela vai ao chão e sua queda é pontuada por um acorde grave. Até esse
ponto, a seqüência aconteceu inteiramente sem texto falado, apenas imagem e música.
A música sustenta a ação sublinhando o desespero de Scarlett e funcionando como uma
introdução ao texto que se segue. A queda de Scarlett é indicativa do extremo de sua de
gradação, a partir da qual ela iniciará sua escalada em direção ao topo. A música partici
pa da construção simbólica dessa situação dramática. A queda havia sido pontuada com
um acorde grave. Principia uma nova seção da música. Ela começa, então, a levantar-se.
Um motivo em movimento seqüencial ascendente acompanha seu movimento. Con
forme caminha em direção ao agudo, ele se toma mais intenso. A passagem conclui com
dois acordes em tutti orquestral. O plano se fecha no rosto de Scarlett. Os acordes são a
deixa para o texto de Scarlett, como o final de um introdução. Ela inicia seu "solo" - "Deus
é minha testemunha... Mesmo que eu precise mentir, roubar, trair ou matar, Deus é mi
nha testemunha, eu nunca sentirei fome outra vez!" - e a orquestra deixa de executar os
motivos melódicos e passa a sustentar acordes parados. O texto ocorre como se fosse um
recitativo operístico. Os acordes realizam um caminho harmônico que prepara o retor
no do tema de Tara. A progressão termina na dominante, que é sustentada até que ela ter
mine seu texto. O tema explode em fortissimo, um tutti, com toda a grandiosidade com
que havia aparecido no início do filme. É impossível não acreditar que Scarlett está dis
posta a cumprir o que prometeu.
A confederação, derrotada, é invadida pelo inimigo. Uma legenda faz a transição,
nos moldes do cinema mudo, narrando a derrota do Sul. A música que acompanha a se
qüência merece ser observada, pois possui um caráter nitidamente ilustrativo. O texto
começa com a frase: "E o vento soprou na Georgia". A orquestra executa um fragmento
musical que apresenta rápidos glissandos do grave ao agudo e vice-versa, com uma com
binação timbrística que procura imitar o som e a sensação do vento. A segunda parte do
texto fala sobre a invasão propriamente dita. A sonoridade de vento é substituída por um
tema que possui elementos das músicas militares: o pulso da marcha e os clarins. O ar
ranjo é pesado, não possui a grandiosidade deste tipo de música, e, sim, o caráter opres
sivo da invasão corroborado pelas imagens da destruição. O tema é adaptado da canção
tradicional Marching Through Georgia. Essa marcha vai crescendo até que surge a legen
da: "Tara sobreviveu para enfrentar o inferno e a penúria da derrota". Com ela, entra o
tema de Tara um pouco mais acelerado. Vemos as irmãs O'Hara colhendo algodão. Sue
reclama de Scarlett, mas nem tem tempo para completar sua frase, pois é interrompida
por esta última que manda que ela volte ao trabalho. A orquestra repousa sobre um acor
de. Movimentos rápidos acompanham o diálogo. Sue diz que odeia Tara. Um trêmulo
grave cresce até o tapa de Scarlett, que é pontuado por um ataque seco da orquestra.
Scarlett ordena que ela nunca mais repita aquilo. O motivo do tema é apresentado três
vezes, transformado melódica e harmonicamente no sentido de atender às necessidades
da situação dramática.
Playing on the screen 157
Ele vai sendo sugerido aos poucos, tomando forma na mesma proporção em que se or
ganiza a mente da personagem, imersa no turbilhão de frases. Apenas no momento em
que ela toma consciência da importância de Tara, é que o tema é apresentado. Mas ele
se altera no sentido de adequar-se ao momento melodramático, suportando o texto da
personagem: o motivo é apresentado com bastante clareza, mas de forma contida. No
momento em que ela recupera a autoconfiança, expressa na última frase: "amanhã será
um outro dia", o tema ressurge com toda a grandiosidade de suas primeiras inserções,
mas reforçado por um coro a fim de atingir o seu ápice. O filme termina com Scarlett
na mesma posição em que havia estado com seu pai no início do filme, sob a silhueta
da velha árvore. O final é prolongado e enfatizado por uma cadência musical do tipo pla-
gal. Scarlett e Tara, finalmente, são uma única coisa.
Um aspecto que não pode ser esquecido é a similaridade entre E o vento levou e O
nascimento de uma nação. Ambos se passam em épocas e locais idênticos e têm na Guer
ra de Secessão o pano de fundo para o desenvolvimento de suas ações. Musicalmente,
eles também são similares, pois fazem uso de uma combinação de música original com
temas tradicionais do Sul. Da mesma maneira que Breil, Steiner dividiu o material mu
sical, reservando os temas tradicionais para acompanhar as situações ligadas à guerra e
a música original para o drama vivido pelas personagens. Muitas das canções usadas em
ambos os filmes são coincidentes, com o Dixie, The Bonnie Blue Flag, Maryland My
Maryland, Old Folks At Home, entre outras. Dentre todas, a mais relevante e mais utili
zada é Dixie, uma canção que simboliza o Sul. Há uma lenda de que teria sido graças a
ela que Griffith conseguiu convencer Mr. Clune, proprietário do Clunes de Los Angeles,
a investir em O nascimento de uma nação, com o seguinte argumento:
Imagine, Mr. Clune, esses soldados marchando sob a vibrante música da me
lhor orquestra, não apenas de Los Angeles, mas a melhor do mundo - tocando Dixie
- Dixiel Isso os arrancaria [o público] de suas poltronas. (Hart apud Miller Marks,
1997:133)
Em seguida, vem uma ação em plano médio. Scarlett está rodeada por homens que
passam em todas as direções carregando feridos. Alguns feridos estão deitados no chão.
Aos poucos, a câmera se afasta e se vêem cada vez mais feridos. Conclui-se a variação de
Dixie, fundindo-a com Maryland, My Maryland, outra canção tradicional. Com o
contracanto desta última melodia, ouvimos o motivo do toque de clarim de Recolher
('Taps), a chamada militar usada tanto para o recolhimento diário quanto para os fune
rais.13 A citação é sutil, mas bastante clara.
A câmera continua se afastando. Maryland, My Maryland dá lugar a outra canção
tradicional do Sul, Old Folks At Home. Quando a frase musical está para se concluir, a
câmera mostra um plano geral do campo onde se amontoam centenas de feridos. Sur
ge, de repente, em primeiro plano, a bandeira confederada. Tremulando sobre o cam
po, ela preenche toda a tela, e se ouve, mais uma vez, o toque de recolher, agora não mais
como contracanto, mas como melodia principal. O apelo emocional da seqüência é
muito grande e a intenção de envolver o espectador por essa via é patente. A sofistica
ção dessa articulação pode ser percebida se a comparamos com uma seqüência de fun
ção similar em O nascimento de uma nação. Trata-se da seqüência introduzida pela
legenda "War's Peace", que mostra os mortos amontoados no campo de batalha e que
também é acompanhada pelo toque de recolher.
Após a fuga de Atlanta, Scarlett e Rhett cruzam com soldados que batem em reti
rada. Eles estão extenuados. Arrastam-se com dificuldade pela estrada, um jovem cai. En
quanto isso, Scarlett e Rhett conversam sobre a derrota do Sul. A seqüência é toda
acompanhada por uma peça musical criada a partir do tema de Dixie. Nesse caso, con
tudo, não há nenhum a grandiosidade. O tem a é transform ado m odalm ente e
rearmonizado. Suas frases não são apresentadas integralmente, o tema se fragmenta e
seus motivos são recombinados. A instrumentação utiliza apenas as cordas no registro
grave.
A melodia de Dixie é transformada mais uma vez na cena em que Scarlett desco
bre que seu pai enlouquecera durante sua ausência. Ele mostra para ela os "Bônus da Con
federação", tudo que lhes resta, segundo ele. Ela não percebe o problema do pai até ele
sugerir que ela pergunte algo à sua mãe, já falecida. Dixie é apresentado em andamento
bastante lento. Sua melodia é modificada no sentido de sublinhar a confusão mental da
personagem. A instrumentação é econômica, mas, ainda assim, variada. O tratamento
dado ao tema também sugere a desintegração do Sul e de toda a sua estrutura social.
Essa é a última vez que Dixie é usada no filme: o velho Sul não existe mais. É inte
ressante notar como as inserções de Dixie concentram-se na primeira metade do filme,
ao passo que as do tema de Tara vão se tomando mais regulares a partir da segunda me
tade. O tema, que representa musicalmente o Sul, desaparece com a derrota dos confe
derados e, ao mesmo tempo, o tema de Tara ganha importância à medida que Scarlett
amadurece e se toma mais senhora de si.
13. Esse duplo sentido do toque de recolher foi também explorado no filme A um passo
da eternidade (From Here to Etemity, EUA, 1953).
Playing on the screen 161
A M a tu rid a d e do Leitmotiv
O tema ocorre pela primeira vez no momento em que os três voam em direção à
sua cidade. Homer acorda e contempla o céu. Até então, ele havia mostrado uma gran
de auto-suficiência. Pela primeira vez, aparece só. O que se manifesta não é mais o com
portamento público da personagem, mas sua solidão interior, que o fará isolar-se em seu
mundo particular. O motivo inicial do tema principal é repetido várias vezes sem que
se desenvolva ou se modifique até que o rosto de Homer tome toda a tela, em plano fe
chado. A seqüência não possui nenhum diálogo, nenhuma ação propriamente dita, ape
nas nos mostra Homer. Mas é justamente aí que ele nos é apresentado com seus conflitos
e inseguranças. Essa apresentação dispensa o narrador ou, mesmo, o diálogo: imagem e
música bastam para que toda a intenção da seqüência fique clara, um tipo de constru
ção narrativa que só é possível no contexto audiovisual.
A cidade é representada, musicalmente, por um tema intitulado Boone City, execu
tado na seqüência do desembarque, enquanto os três são levados para suas casas.
Na estrutura dramática do filme, Homer é a personagem sobre a qual recai o prin
cipal conflito. Ele é o mais jovem dos três e o único que volta para casa fisicamente mu
tilado. Ele ainda ama Wilma, mas não sabe o que será de seu relacionamento a partir de
sua volta. A casa dos pais põe em confronto sua condição atual com a do passado, o que
o leva a ataques de autopiedade, nos quais julga que Wilma não mais o ama, mantendo
seu noivado apenas por caridade. O ambiente familiar de Homer e, em decorrência, sua
relação com Wilma são representados por um tema que não chega a ser propriamente
romântico, mas introspectivo como Homer:
164 Sygkhronos. A formação da poética musical do cinema
Wilma, por sua vez, é representada por um tema musical suave, com característi
cas muito mais próximas de um tema romântico. Desde sua primeira aparição no filme,
esse tema nos permite acreditar que ela é sincera e que ainda ama Homer.
A chegada de Homer à sua casa envolve uma combinação desses dois temas com
o tema principal do filme. O primeiro momento da seqüência, quando os três ainda es
tão no carro, é acompanhada pelo tema de Homer e Wilma. Esse tema é combinado com
fragmentos motívicos do tema principal do filme, até a chegada de Wilma, quando seu
tema é introduzido. Finalmente, a seqüência termina com o tema principal, quando
Homer acena para os companheiros e entra em casa com sua família.
O tema principal recebe um tratamento romântico para o reencontro de Al e sua
esposa Milly (Myma Loy). A partir do momento em que ela vê o marido, o tema é insi
nuado sutilmente pelas cordas e cresce até atingir o clímax no momento em que eles se
encontram. A partir daí, a melodia principal passa para um violino solo que dialoga ra
pidamente com as madeiras, uma mudança na instrumentação que enfatiza a intimida
de do momento.
A relação de Al e Milly possui também um tema adicional: a canção Among My
Souvenirs, que não chega a ser realmente cantada, mas que é citada em vários m om en
tos. Quase sempre as situações envolvendo Al e Milly são criadas pela combinação des
sa canção e do tema principal, como uma maneira de expressar musicalmente o confronto
entre o momento presente do filme e a vida familiar passada de Al.
Uma outra variação do tema principal acompanha o primeiro diálogo entre Al e a
esposa. Eles estão juntos na sala e enfrentam uma certa dificuldade de conversar após tan
tos anos afastados. Al está inquieto e, nitidamente, pouco à vontade. Milly tenta ser agra
dável e bem-humorada, sem nenhuma naturalidade. A música compactua com o
incômodo da situação. As transições são muitas, tanto na instrumentação quanto nas me
lodias e harmonias. Em nenhum momento, ela se estabiliza como discurso musical li
near e unitário. Alguns fragmentos sublinham o comportamento de Milly, outros o de
Al, estes últimos sempre baseados no motivo principal e de caráter misterioso. Há pou
Playing on the screen 165
ca atividade rítmica, fazendo com que a música não atrapalhe o diálogo e permaneça,
sempre, em segundo plano na composição da seqüência.
É usada mais uma variação do tema para sublinhar a dificuldade de Homer em se
adaptar à nova vida, ilustrada na seqüência em que sua família está reunida com a de
Wilma. Sua mãe oferece-lhe uma limonada e ele não consegue segurar o copo com seus
ganchos. Todos ficam constrangidos. A seqüência é acompanhada por um fragmento em
notas longas e acordes parados. Sobre eles, surge uma clarineta que introduz o motivo
do tema principal. Homer sai. Um violino solista sobrepõe o tema de Wilma aos acor
des, enquanto o plano se fecha sobre ela.
Mais um tema se insere no conjunto para indicar a relação de Fred e Peggy (Tere
sa Wright), filha de Al. Trata-se de um tema, de caráter jazzístico, que é usado como
leitmotiv para o casal:
Levado para dormir na casa de Al, Fred tem um pesadelo, em que se manifestam
as agruras vividas nas batalhas aéreas de que participou. É um momento de grande in
tensidade dramático-musical. A passagem começa lentamente e apresenta uma estrutu
ra que se repete continuamente.
Peggy ouve seus gritos e vai até ele. A atividade rítmica da passagem aumenta bas-
.tante. A tensão é aumentada simultaneamente pelos gritos de Fred e pela música, cuja
instrumentação conduz a um clímax sustentado por trêmulos. Peggy acorda Fred. Surge
mais uma variação do tema principal, menos tensa, que ajuda a compor a atitude cari
nhosa de Peggy para com Fred. Ele volta a dormir e ela lhe ajeita as cobertas. A transfor
mação do material musical faz que a seqüência se conclua com suavidade e já oferece
indícios da ligação amorosa que vai uni-los.
Na manhã seguinte, Peggy tenta não acordar Fred enquanto pega as coisas em seu
quarto. A seqüência é acompanhada, mais uma vez, por uma combinação do tema do
casal e do tema principal do filme.
Ainda nessa manhã, dá-se o reencontro de Al consigo mesmo, o reconhecimento
de que a guerra acabou e que ele está de volta à sua antiga vida. A seqüência é feita nos
moldes da pantomima, como uma passagem cômica. E, como é característico desse tipo
de situação, a música pontua a ação passo a passo. A seqüência começa com Al acordan
do, acompanhada por um motivo baseado em Among My Souvenirs. Ainda meio desen
tendido, ele com eça a tom ar consciência do espaço que o rodeia. Levanta-se. É
introduzido um outro fragmento musical, repeütivo e dissonante. Ele pega suas botas mi
litares. Caixa e metais executam uma passagem musical de caráter militar. Al joga as bo
tas pela janela. Retorna o fragmento repetitivo e dissonante. Ele alcança uma foto sua
antiga e diante do espelho compara-se a ela. É introduzido mais um fragmento de Among
My Souvenirs. Em uma ação típica das comédias, ele abre a porta do banheiro e observa
o seu interior, ao mesmo tempo em que Milly abre a porta do quarto e observa-o pelas
costas. Retorna o fragmento repetitivo e dissonante. Al, no chuveiro, canta Among My
Souvenirs. Ele sai correndo do box e vemos que ele entrou no banho sem tirar o pijama.
Um fragmento musical ligeiro encerra a seqüência. Milly vem trazer o café na cama para
Al. Só agora ele está em condições de corresponder afetivamente a ela. Mais uma vez, é
apresentado o tema principal, com tratamento de tema romântico, para acompanhar o
beijo do casal.
Uma outra ação de caráter pantomímico serve para começar a estabelecer o casal
Fred e Peggy. Peggy oferece uma carona a Fred. Na porta do mesmo edifício da noite an
terior, ele procura, em vão, solicitar que a porta de entrada seja aberta. Enquanto isso,
comunica-se gestualmente com Peggy, que permanece no carro. A seqüência é acompa
nhada pelo tema do casal, mas sem o tratamento jocoso da seqüência da noite anterior.
O tema agora é mais suave, tendendo para o romântico.
Uma longa seqüência entre Homer e Wilma aprofunda o conflito interior do ra
paz. Ela começa com um plano das casas acompanhado pelo tema de Homer e Wilma.
Vemos o pai de Homer cortando a grama e Wilma que se aproxima. O tema de Wilma é
insinuado pelas flautas. Wilma e o pai de Homer conversam. O tema de Homer e Wilma
retorna com outro tratamento. A conversa de ambos é encerrada pelo tema de Wilma,
Playing on the screen 167
combinações de som e silêncio nas pistas de som são vastas. É possível, por exemplo, su
primir todo o som da pista de ruído, preenchendo o vazio sonoro com música. Esse é
um procedimento comum, que costuma conferir à situação um caráter supra-real, fan
tástico e onírico. A supressão dos sons naturalistas possui uma qualidade onírica, pelo
fato de não ter um paralelo em nossa experiência cotidiana. É possível, também, criar
uma situação em que nenhuma palavra seja dita, deixando o espaço sonoro totalmente
preenchido por música e ruídos. É possível criar situações sem música e, é claro, outras
em que não há qualquer tipo de som. No entanto, esse silêncio absoluto resulta, geral
mente, em situações bastante artificiais e produz um forte impacto, em muitos casos in
cômodo, no espectador.
Assim, o caminho da música no cinema, começando pelo período mudo até a ma
turidade do cinema sonoro, apresenta uma tendência no sentido de reduzir a quantida
de de música e, conseqüentemente, de se preocupar mais com sua expressividade.
Havendo menos música, seu impacto tomou-se, ao mesmo tempo, muito maior, am
pliando a capacidade de expressão audiovisual. A música no cinema caminhou no sen
tido da redução e não do acúmulo.
A D esco berta da S o n o r id a d e
A idéia de Welles era de que o som poderia ser usado sem referência com o
que estava acontecendo na tela, algo que eu chamo de som não-objetivo. Isso era, é
Playing on the screen 171
claro, resultado de sua experiência no rádio, onde o som não se refere a uma ima
gem visual. No som não-objetivo, você vê e ouve o som realista, mas, simultanea
mente, pode estar ouvindo alguns outros sons que são totalmente não-objetivos
e irreais.
Mas Welles simplesmente libertou o som. Naquela época (1941), se você fi
zesse qualquer coisa não-realista no meio de uma cena, a maioria dos produtores
diria: "O que é isso... O que está acontecendo lá?" Welles não acreditava nisso. Ele
acreditava que qualquer coisa que você pudesse fazer para intensificar o drama de
uma cena era válido e, também, é claro, o uso do som com ênfase em seu maior
conteúdo dramático em vez de seu conteúdo efetivo, era parte desse conceito. A
cena ensaio da ópera em Cidadão Kane, que termina com o maquinista15 tampan
do o nariz enquanto ouve, de fora do palco, a vocalização, é um exemplo disso. Nes
sa cena em particular, você tem a sensação de deslocamento e altura por ouvir mais
e mais reverberação, conforme a voz se toma mais e mais reverberante, enquanto
permanece muito audível e muito viva, para produzir o efeito de que você [o espec
tador] estaria subindo mais e mais, no urdimento do teatro.
Além disso, Welles estava disposto a gastar um tempo infinito, meu tempo,
deixando alguma coisa exatamente do jeito que ele a queria. Assim foi com os diá
logos, música e efeitos. Welles trouxe técnicas de rádio para o cinema, onde elas ti
nham sido usadas muito pouco no passado, ele também trouxe uma liberdade no
uso do som que abriu possibilidades não apenas em seus próprios filmes, mas em
muitos filmes posteriores. Uma das dificuldades, e isto ainda é verdade hoje, é que
o que se usa agora é quase uma caricatura de suas técnicas. Os realizadores parecem
sentir que, quanto mais amplo for o conceito de som que eles usem, tão mais eles
serão reconhecidos como sendo da New Wave. Eu não acredito nisso. Eu sinto que
quando você vai muito longe, como em qualquer coisa, o excesso não funciona.
(Apud Prendergast, 1977:55-56)
Esse filme era muito incomum, tecnicamente, o que me permitiu muitas pos
sibilidades únicas de experimentação musical. Ele possuía várias montagens, as
quais eram longas o suficiente para permitir-me compor números musicais com
pletos, em vez de simples passagens para preenchê-las. O Sr. Welles foi extremamen
te cooperativo nesse aspecto e, em muitos casos, montou o filme no sentido de
adaptá-lo a esses números completos, em lugar de fazer o que é normalmente fei
to: cortar a música para adaptá-la ao filme. Nas cenas das atividades de Kane no jor
nal, eu pude compor um tipo de suíte de balé em miniatura, sendo as várias
montagens fotográficas na forma de pequenos números de dança dos anos 1890
completos, incluindo galopes, polcas, hornpipes, schottisches etc. Mais tarde, na cena
do café da manhã de Kane com sua primeira esposa, a montagem mostrando a
passagem dos anos e a diminuição do afeto foi tratada na forma de um tema e va
riações. O estilo da montagem praticamente impôs essa forma.
O impacto emocional desses números musicais foi muito maior do que os de
música de fundo [background music], os quais não possuem início ou fim defini
do. A audiência recebe, junto com os efeitos criados para os olhos, o verdadeiro ar
rebatamento de uma composição musical. Eu me esforcei para tratar as formas
antigas, tão familiares, de um jeito moderno, para ser consistente com o estilo mu
sical do filme como um todo. Eu sinto que o tipo de trilha radiofônica [radio
scoring], que usei em alguns momentos, era um tanto quanto novo. Os filmes per
mitem entradas musicais que duram apenas poucos segundos, pois os olhos com
preendem a transição. No drama radiofônico, toda cena deve ser ligada por algum
tipo de evento sonoro, assim, mesmo cinco segundos de música tomam-se um ins
trumento vital para dizer aos ouvidos que a cena está mudando. Um exemplo disto
é encontrado na transição entre Kane, jovem dono de jomal, e Kane, homem de meia
idade renunciando ao controle de suas empresas.
Ainda que eu não seja um grande defensor da técnica do leitmotiv na música
para filmes, a natureza desse filme necessitou de alguns leitmotivs para ligar as jus
taposições de tempo. O motivo mais importante - ligado ao poder de Kane - é apre
sentado logo nos dois primeiros compassos ouvidos. O segundo motivo, o qual
deveria revelar o segredo de Rosebud, é também ouvido logo no começo do filme.
Esses dois motivos são os mais importantes no filme e ocorrem ao longo dele em
vários climas e orquestrações. O motivo do Poder torna-se uma vigorosa peça de
ragtime, que é transformada numa polca, e que ocupa a maior parte do finale, usa
do para representar a melhor parte de sua natureza. Apenas mais um motivo im
portante é derivado da canção Oh, Mr. Kane, um tema usado em sentido satírico.
Muitas seções foram escritas para combinações singulares de instrumentos, evitan
do o som convencional da orquestra. Eu tive tempo suficiente para orquestrar toda
a música, para dirigi-la e pensar sobre ela. Doze semanas foram dedicadas à parti
tura, ao contrário das seis usuais, ou mesmo menos, dadas a outros filmes desse ta
manho e importância. (Apud Prendergast, 1977:56-57)
Sua fortuna surgiu de um golpe de sorte: uma mina abandonada, julgada improdutiva,
que seus pais recebem como pagamento pela hospedagem de um desconhecido. Kane é
popular, assim como a música que acompanha suas ações. Quando ele se aventura a in
gressar no universo da cultura erudita isso é feito amadoristicamente: ele constrói um
teatro de ópera para sua amante, uma cantora diletante, e para ela monta um espetácu
lo. O amadorismo de Kane reflete o quão distante ele se encontra dessa esfera, em con
traste com a habilidade com que com anda os seus negócios nos d om ínios da
comunicação de massa.
No filme, o teatro musical manifesta-se de maneira objetiva no momento do jan
tar, quando é apresentada a canção Oh, Mr. Kane que, como observara Herrmann, serve
de material temático ao longo do filme. Nessa situação, Kane é não apenas o h o
menageado, mas participa do número dançando com as coristas. Desse modo, o aspec
to profissional de Kane, suas atividades como empresário da comunicação de massa, fica
delimitado pela música do vaudeville. Ele, por sua vez, integra-se perfeitamente a esse uni
verso. Durante o número, Bemstein (Everett Sloane) pergunta a Kane onde ele teria
aprendido a dançar e a resposta seria: "no teatro".
Um outro aspecto importante é o que Herrmann chamou de radio scoring, ou seja,
o tipo de música usada na composição do drama radiofônico. A exposição de Herrmann
demonstra que ele reconhecia algumas especificidades do cinema. Segundo ele, no rá
dio, a carga significativa de cada momento musical é muito grande. Cita, como exem
plo, as transições, nas quais a música é usada para indicar o caráter de cada um dos
diferentes momentos. No cinema, a presença da imagem faz com que a música não seja
mais a única responsável pela informação. É comum, em muitos casos, que a música não
explicite a transição, ou seja, um fragmento musical de uma determinada cena pode,
simplesmente, penetrar a cena seguinte e concluir (ou não), sem que se modifique.
Herrmann, conscientemente, incorpora a transição radiofônica, combinando as infor
mações visual e musical. Se isso foi, realmente, "um tanto quanto novo" não é uma ques
tão tão simples. Como vimos, a técnica do mickeymousing levou à produção de um tipo
de música absolutamente vinculado à ação filmada, inclusive em suas mais detalhadas
nuanças de caráter. O segredo para desvendar a afirmação de Herrmann talvez possa ser
encontrado não no termo radio scoring, mas na afirmação de que "os filmes permitem
entradas musicais que duram apenas poucos segundos", e, posteriormente, que "no dra
ma radiofônico, (...) mesmo cinco segundos de música tomam-se um instrumento vi
tal para dizer aos ouvidos...". Essa é a grande diferença, a economia, a dosagem de
informação sonora, entre as três pistas de som, que valoriza cada uma das entradas mu
sicais. No mickeymousing, a música funciona como suporte da ação filmada. Ela paraleliza
a ação quase que ininterruptamente, a ponto de o espectador deixar de percebê-la cons
cientemente. Saber aproveitar a informação contida em um fragmento musical de du
ração mínima foi algo que o cinema levou algum tempo para aprender.
O exemplo que ele cita para ilustrar suas afirmações ocorre por volta dos primei
ros vinte e cinco minutos do filme, quando há um corte que leva de uma seqüência que
apresenta Kane jovem e arrogante (respondendo a Mr. Tatcher [George Colouris] que
poderia continuar tendo prejuízos da ordem de um milhão ao ano, pois demoraria ses
174 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
senta anos para falir), para outra, em que Kane, de meia idade, falido na crise de 1929,
entrega o controle de suas empresas. A música da transição começa sobre o rosto de
Kane, uma pontuação de trompete com surdina que lembra o som de uma gargalhada.
Ela é bruscamente interrompida por um rulo dos tímpanos que acompanha a legenda
"o invemo de 1929". A passagem é toda feita com o motivo do "Poder", apresentado três
vezes, em cada uma delas transformado, desde a gargalhada inicial ao "soturno" da últi
ma repetição.
Além do referencial do teatro e do rádio, o material musical original de Cidadão
Kane é confrontado com o tipo de sonorização característica da década de 1930, parti
cularmente o acompanhamento musical de produções mais baratas, normalmente fei
to com música de arquivo. Esse üpo de trilha aparece no noüciário cinematográfico News
On The March, apresentado logo no início do filme, após a seqüência da morte de Kane.
No que se refere ao uso de leitmotivs na música de cinem a, a afirm ação de
Herrmann é muito curiosa. Talvez ele não fosse um defensor dessa prática na época em
que compôs sua primeira trilha, ainda que tenha utilizado leitmotivs. Contudo, nos dias
de hoje, constatamos o uso desse dispositivo em praticamente todos os seus trabalhos.
Os dois motivos principais, "Poder" e "Rosebud", são apresentados logo no início
do filme, o qual Hermann chama de Prelúdio. O tema de Kane é apresentado na região
grave, o que lhe confere um caráter mórbido e misterioso. O tema de Rosebud, por sua
vez, é mais melódico. Note-se como as idéias temáticas continuam a ser bastante curtas
e objetivas:
A música tem início antes que vejamos a primeira imagem do filme, com a tela
ainda escura. Ouve-se o motivo de Kane e, imediatamente, vemos o alambrado de Xanadu
com a placa: "no trespassing". Enquanto a câmera se move, ouvimos pela primeira vez o
tema de Rosebud. Há vários planos da propriedade. A câmera se aproxima. Herrmann cria
uma seção intermediária com algumas unidades repetitivas. Uma nova apresentação do
motivo do Poder ocorre quando aparece o lado externo da janela de Kane. Esse motivo
termina com um acorde em tutti orquestral e coincide com a luz do quarto, que se apa
ga. A luz reacende em sincronia com o início de uma nova exposição do tema de Rosebud.
Uma fusão conduz à imagem da neve, que se revela uma esfera de vidro na mão do mo
ribundo Kane. A música é interrompida para que, em um plano fechado de seus lábios,
Kane diga: "Rosebud". A música retoma, a esfera cai da mão de Kane e quebra-se no chão,
novamente em sincronia com um acorde incisivo que marca o momento da quebra.
Mais uma vez, os temas do Poder e de Rosebud altemam-se, enquanto a enfermeira co
bre o corpo de Kane. Um plano externo da janela mostra a luz que se apaga suavemen
te, e a música termina em um acorde igualmente suave. A marcha de abertura do
noticiário News On The March estabelece um rompimento, introduzindo um novo con
texto musical contrastante.
Playing on the screen 175
dade rítmica da música, bem como sua tensão intema, cresce. Essa tensão se amplia, ain
da mais, na quarta passagem, tanto na música quanto no diálogo. No quinto momento,
o diálogo é mínimo, apenas duas frases agressivas. A música não passa de uma pontua
ção: o motivo do tema concluído por acordes incisivos. No último momento da seqüên
cia, os dois já não se falam. A música transformou-se totalmente. Essa passagem antecipa
o Herrmann de alguns anos depois, nos filmes que realizaria com Hitchcock. Sobre um
motivo repetitivo em ostinato, uma melodia no agudo apresenta o tema, já muito trans
formado. O compasso ternário da valsa é recuperado, mas não o seu caráter romântico
e afetuoso. O tema do casal já não é mais uma dança de salão, e não pertence mais ao
contexto do vaudeville. A música, ao longo da seqüência, afasta-se da peça de dança, da
valsa, transita pelo tipo de acompanhamento do cinema dos anos 1930 e, finalmente,
começa a adquirir a sonoridade característica das peças do próprio Herrmann.
Um aspecto instigante do depoimento de Herrmann é a maneira como ele se re
fere ao tema de Rosebud. Ele não diz que o tema se refere à palavra Rosebud, mas: "o se
gundo motivo, o qual deveria revelar o segredo de Rosebud (...)". É uma afirmação bastante
ousada. De que maneira a música seria capaz de revelar um segredo, especialmente um
segredo desse porte, que serve de base para toda a construção da narrativa? Não é uma
questão simples de se responder, mas podemos refazer o caminho do tema de Rosebud
no filme e tentar entender o que o levou a fazer tal afirmação.
Como vimos, o tema é introduzido no início do filme, na seqüência da morte de
Kane. Ele reaparece na seqüência em que o repórter consulta os arquivos pessoais de
Mr. Tatcher, sobre seu primeiro encontro com Kane. Nessa seqüência, há uma transição
de tipo "radiofônico", parecida com a citada por Herrmann, em que a música muda de
caráter para sublinhar a mudança de tempo e espaço da narrativa. A transição inicia-se
no momento em que o repórter começa a ler o manuscrito, com o tema do "Poder". A
câmera focaliza o texto, que funciona como uma legenda de cinema mudo. Quando a
frase: "J first encountered Mr. Kane in 1871" ocupa a tela, o caráter da música muda de
misterioso para nostálgico. Inicia-se o tema de Rosebud, apresentado pelas cordas. O texto
na tela é substituído pela imagem de Kane garoto, brincando na neve com seu trenó. A
música termina com mais um efeito em sincronia com a imagem: Kane atira uma bola
de neve, que explode sobre uma placa na porta da casa, tal como a bola de vidro com a
neve artificial, que caíra de suas mãos no momento de sua morte. Um acorde incisivo
pontua a explosão.
Imediatamente, forma-se um conjunto de associações. Na seqüência da morte de
Kane, o tema já havia sido associado ao globo de neve artificial e à palavra Rosebud, que
são justapostos. Agora, o elemento neve é reiterado. A ele, acrescentam-se o trenó e Kane
menino. O motivo musical reincidente estabelece uma ligação direta entre os dois mo
mentos. Os dados para que se desvende o mistério de Rosebud já estão sendo fornecidos
ao público.
Uma outra insinuação bastante objetiva é feita no final dessa parte do filme, quando
Mr. Tatcher prepara-se para partir, levando o jovem Kane, afastando-o, assim, de sua fa
mília e seu trenó. Kane tenta fugir e é contido por seus pais. Um plano próximo mostra
o trenó abandonado, já meio encoberto pela neve. O tema de Rosebud acompanha su-
Playing on the screen 179
tilmente e conduz ao final da seqüência. Este tema toma a aparecer na seqüência em que
Kane conhece Susan e ambos se dirigem ao apartamento da jovem. Quando o tema é
introduzido, temos a impressão de que alguma coisa está errada. Não há neve, nem tre
nó, Kane não é mais uma criança, mas um senhor. Ao longo da seqüência, contudo, essa
impressão se modifica, pois Kane começa, aos poucos, a agir como uma criança, fazen
do brincadeiras ingênuas para Susan. O Kane menino emerge do senhor de meia-ida
de. Mas o grande esclarecimento vem no final da seqüência, quando Kane revela que iria
até um depósito em busca de sua juventude. Ele iria rever as coisas de sua mãe, lá guar
dadas desde sua morte. Mais uma vez, a solução do segredo é insinuada.
Quando Susan o abandona, Kane, enraivecido, põe tudo abaixo em seu quarto. Que
bra os móveis, atira longe os objetos, até que encontra a esfera de vidro com sua cabana
e a ilusão da neve. Ele olha para a esfera e, mais uma vez, pronuncia a palavra: "Rosebud".
Ele coloca a esfera em seu bolso e deixa o seu quarto, diante da criadagem perplexa. É
acompanhado pelo tema de Rosebud. Chega-se mais perto do significado de Rosebud, a
ponto de o mordomo de Kane, que é o depoente, julgar que Rosebud e a esfera sejam uma
só coisa.
Os temas do Poder e de Rosebud mesdam-se uma última vez no final do filme. O
Finale, como Herrmann o chamou, é uma peça musical completa. Ela tem início em si
multaneidade com as imagens dos trabalhadores que limpam o depósito de Kane após
sua morte. As imagens começam em plano geral e vão, aos poucos, se aproximando. Ve
mos uma infinidade de caixotes e trastes. A câmera faz um travelling sobre eles. O pri
meiro tema a ser apresentado é o do Poder. O arranjo e a instrumentação dão-lhe um
caráter misterioso. Os contrabaixos insinuam rapidamente o motivo de Rosebud. Nova
mente, Herrmann introduz o motivo do Poder. Quase não há atividade rítmica na mú
sica. São notas longas e timbres que se alternam e se misturam. Um homem ordena que
se queimem alguns objetos. Um rulo de tímpanos prepara uma mudança de intenção
na música. A tensão cresce. Os metais reapresentam o motivo do Poder na região grave.
Vemos o trenó que vai ao fogo. As chamas o envolvem. As cordas executam o tema de
Rosebud na região aguda, enquanto vemos a enigmática palavra escrita na base do trenó.
O segredo foi, finalmente, revelado.
O exemplo do tema de Rosebud é bastante eficiente para observarmos como a mú
sica é um excelente recurso para se insinuar ou dizer algo que não deve ser revelado aber
tamente. A resposta para o segredo de Rosebud é insinuada com naturalidade, ao longo
de todo o filme, sem que o espectador seja capaz de percebê-lo conscientemente. Mas,
uma vez revelado o segredo, tudo o que foi visto e ouvido, até então, passa a fazer senti
do. A música é um fator imprescindível na construção desse sentido.
Um filme mais recente que faz uso do mesmo recurso é Coração satânico (Angel
Heart, EUA, 1987). Harry Angel (Mickey Rourke) é o detetive contratado por Louis
Cypher (Robert de Niro) para encontrar Johnny Favourite, um cantor desaparecido desde
a Segunda Guerra Mundial. Harry inicia a busca e vai reconstruindo os passos de Johnny,
descobrindo seu envolvimento em rituais satânicos. Cada uma das pessoas que lhe for
nece alguma informação sobre Johnny acaba sendo assassinada. Deixando para trás um
180 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
rastro de morte, Harry passa a ser o principal suspeito. No final, descobre-se que Johnny
e Harry são a mesma pessoa. Para fugir ao pagamento de uma dívida com o demônio,
Johnny apoderara-se da alma de Harry e como tal vivera até ser descoberto pelo demô
nio, aliás, Louis Cypher. Há um tema musical que percorre todo o filme. Em determi
nado momento, esse tema é assobiado por Harry enquanto dirige seu carro. No final,
descobre-se que se trata de uma velha canção de Johnny. A chave do segredo é dada no
momento em que Harry assobia a música, mas o espectador ainda não o percebe cons
cientemente. Mais tarde, quando é revelada a verdadeira identidade de Harry, revela-se
também a identidade do tema musical. Todos os elementos, antes desconexos, encaixam-
se. Tudo faz sentido.
As C o n v e n ç õ e s P o é t ic a s A u d i o v i s u a is
... sob uma certa "lenda dourada" que propagam algumas obras como aquela de
Alain Lacombe e Claude Rocie16, a música de Bernard Herrmann teria representa
do uma revolução na concepção da música de cinema, inovando totalmente as re
gras do jogo e rompendo as convenções. Ora, se tal música possui um sotaque
profundamente pessoal e único, a ponto de ter sido largamente imitada posterior
mente, os procedimentos de relacionamento com a imagem e com a ação que ele
emprega são estritamente os mesmos que estes criticam em um Max Steiner:
leitmotiv (...), pontuação sincrônica de certos momentos significativos (...) - uma
pontuação que não teme sublinhar o fracasso de certas personagens com efeitos zom
beteiros de surdina e, de uma maneira geral, estreita colaboração da música com a
atmosfera da cena (...). A fórmula de Bernard Herrmann não pode, portanto, ser des
crita como uma ruptura, mas antes, ao contrário, como um exagero e uma sistema
tização de certos procedimentos, aos quais deu um outro sentido. (1995:336)
Um dos filmes, com música de Herrmann que possui uma trilha cuja organização
é exemplar é Um corpo que cai (Vertigo, EUA, 1958). Ela é uma síntese de técnicas e con
venções poéticas audiovisuais. Nela se misturam elementos tradicionais, atualizados por
Herrmann, e novos procedimentos por ele introduzidos.
Apenas para recordar, Um corpo que cai conta a história do detetive John (James
Stewart). Afastado da polícia por sofrer de acrofobia17, mal que custou a vida de um com
panheiro de trabalho, John é contratado por Elster (Tom Helmore), um antigo colega de
escola, para seguir sua esposa Madeleine (Kim Novak) cujo comportamento estranho
indicaria um possível estado de loucura. Aos poucos, essa suposta loucura revela-se um
tanto mais misteriosa. Talvez Madeleine estivesse possuída pelo espírito de Carlotta, uma
antepassada sua, cuja vida teve final trágico. Mas o inevitável acontece, John apaixona-
se por Madeleine e é por ela correspondido. Na tentativa de provar a ela que não é lou
ca, John a leva a uma velha vila, Madeleine foge, sobe à torre da igreja e atira-se. John
não consegue salvá-la devido a seu problema psicológico. Atormentado por acumular
mais uma morte em sua consciência, John mergulha em um estado de catatonia. Ao re
cuperar-se, vagueia pelas mas à procura da perdida Madeleine e, como que por milagre,
a reencontra. Seu nome é Judy e se parece muito com Madeleine. Rapidamente, o pú
blico fica sabendo que as duas são a mesma pessoa e que Elster havia montado toda a far
sa para poder assassinar sua verdadeira esposa. Mas John não sabe disso e,
desesperadamente, força Judy a usar roupas iguais às da morta, mudar seu penteado, até
que ele possa ter Madeleine de volta. Mas uma falha de Judy o faz descobrir tudo: o co
lar de Madeleine, que ela havia guardado e resolve usar. John, enfurecido, leva Judy à torre
da igreja, reconstruindo a ação do dia da morte, disposto a curar definitivamente sua
acrofobia. De fato, ele consegue chegar até o fim da escadaria, mas Judy assusta-se com
a chegada de uma freira e cai da torre. Mais uma vez John não pode evitar sua morte.
Um corpo que cai é um filme construído em espirais: as mortes que John não con
segue evitar, a perda da mulher amada, o renascimento dessa mulher após a morte. As
espirais também estão visualmente presentes: nas animações criadas para a abertura do
filme, no penteado de Carlotta em seu retrato, que se reproduz no penteado de Madeleine,
no corte da sequóia, que sintetiza a passagem do tempo, na escadaria da torre, quando
vista de cima, no pesadelo de John, limite entre sua sanidade e o desequilíbrio psicoló
gico. Até mesmo o movimento de John, perseguindo Madeleine, desenvolve-se em es
piral pelas mas de São Francisco. Ou seja, tudo o que ocorre uma vez toma a acontecer,
não exatamente igual, mas com pequenas transformações. Herrmann estava conscien
te disto quando criou a música com estruturas cíclicas que estão presentes ao longo de
toda a trilha. O tema de abertura é construído sobre um arpejo em movimento contrá
rio. Em sua trajetória ascendente e descendente, o arpejo cria a idéia de um movimento
circular, que retoma sempre ao ponto inicial. A subdivisão ternária é fundamental para
criar essa impressão de circularidade.
17. Segundo Aurélio Buarque de Holanda: medo mórbido dos lugares elevados.
182 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
O tema de Madeleine é introduzido na seqüência em que ela janta com Elster, sen
do observada por John. Aqui, vale a pena lembrar um outro aspecto da trilha musical de
Um corpo que cai: em grande parte do filme, a música liga-se ao ponto de vista de John,
ou seja, ela reflete a sua leitura de cada uma das situações. É o que ocorre na seqüência
citada anteriormente. Para que possa conhecer Madeleine sem se identificar, Elster so
licita que os observe durante seu jantar no Emie s. A seqüência começa com o tema sendo
apresentado suavemente, com bastante discrição, pelas cordas. Elster e Madeleine estão
sentados à sua mesa, John está no bar. A câmera aproxima-se da mesa reproduzindo o
olhar de John. Madeleine está de costas, ainda não é possível vê-la. A música permane
ce assim, discreta, até que ela se levanta e caminha em direção a John. O plano vai se
Playing on the screen 185
fechando sobre ela, até vermos apenas seu rosto. A música acompanha a aproximação
visual com um crescendo, que funciona como uma "aproximação musical". Há uma pe
quena aceleração do andamento, a melodia encaminha-se para o ponto culminante, atin
ge a região aguda e desdobra-se em um rápido desenvolvimento de seu motivo.
Essa seqüência oferece-nos um excelente pretexto para refletir sobre as convenções
audiovisuais do cinema. Como dissemos, no início da seqüência, a câmera nos oferece
o ponto de vista de John, até que o rosto de Madeleine ocupe toda a tela. Nesse momen
to, Hitchcock altema planos fechados de Madeleine e John. Essa articulação, somada ao
clímax do tema musical cujo caráter é, essencialmente, romântico, informa o especta
dor de que ali se encontra algo mais do que uma relação puramente profissional.
Madeleine e John são apresentados ao público como casal, como par romântico. Ime
diatamente, sabemos que aquele homem deverá apaixonar-se por aquela mulher. A mú
sica é um fator imprescindível para a formação desse sentido. É possível constatá-lo
assistindo-se à seqüência com e sem música.
Na seqüência seguinte, o tema é totalmente transformado. Do romântico (ou Len
to amoroso como Herrmann indicou na partitura), o tema passa para Misterioso. É nessa
seqüência que John começa a perseguir Madeleine. A música de toda essa parte relacio
na-se diretamente ao ponto de vista de John. Os passos de Madeleine, suas atitudes estra
nhas, estaria ela possuída? O mistério que começa a se formar em tomo daquela mulher,
indicado pela música, é algo que se revela ao público por meio de John. Mas ele, pro
priamente, não fala, é a música que funciona como uma espécie de monólogo interior
da personagem. Para criar a atmosfera de mistério, Herrmann transformou a melodia,
fazendo modificações de direção e de modo. Ela também é acompanhada por uma fi
gura rítmica que já antecipa o tema de Carlotta.
Neste filme, podemos observar como as convenções audiovisuais do cinema mudo
foram preservadas no sonoro. Certa vez, Hitchcock afirmou que uma boa escola de ci
nema deveria ensinar os alunos a fazer filmes mudos, pois, a partir do momento em que
se cria uma narrativa com imagens, é que se aprende a fazer cinema. Ainda que o texto
falado tenha sido incorporado, a linguagem cinematográfica subsiste sem ele. Imagens
filmadas e música são o suficiente para elaborar estruturas dramáticas e narrativas inte
ligíveis, coerentes e auto-suficientes. Em Um corpo que cai, há seqüências bastante lon
gas em que não se ouve uma única palavra. Contudo, elas são absolutamente claras. O
espectador entende perfeitamente a progressão narrativa.
Durante a parte do filme que mostra a perseguição de John, as versões romântica
e misteriosa do tema de Madeleine são confrontadas. Especialmente, na cena da flori
cultura, é a versão romântica que predomina. O conflito interior de John vai, aos pou
cos, sendo explicitado pela música: suas impressões sobre Madeleine dividem-se entre
o mistério e a paixão.
Na cena em que John segue Madeleine pelo cemitério, chegando até o túmulo de
Carlotta (primeira referência objetiva a ela no filme), o tema de Madeleine recebe um
tratamento especial. Não apenas a música foi tratada de maneira diferenciada, mas tam
bém as imagens. Segundo Hitchcock:
186 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
No filme, o diálogo acompanhado por música começa a ser usado, com freqüên
cia, a partir do primeiro encontro de Madeleine e John, quando ela desperta de seu es
tado de inconsciência. A música das seqüências dialogadas é tratada com especial cuidado
para que não interfira na compreensão do texto. Há pouca aúvidade rítmica. A música é
"plana", quase não há mudanças internas que chamem a atenção do espectador. As pe
quenas variações são localizadas de forma a coincidirem com as pausas do diálogo. É o
que acontece, por exemplo, no momento em que Madeleine aproxima-se da câmera. A
música cresce, de modo semelhante ao da seqüência no Ernie's, mas, logo retoma à sua
condição de acompanhamento discreto do diálogo.
Este tratamento especial das cenas com diálogo pode ser percebido na seqüência
das sequóias, em que há uma constmção melodramática baseada no tema de Carlotta.
O ostinato rítmico do tema, que lembra a música espanhola, é suprimido. A parte me
lódica, em notas longas, mantém a referência temática. Com isso, o compositor conse
gue manter a atmosfera de mistério. Nessa passagem, Madeleine entra em uma espécie
de transe diante do fragmento de um tronco, que sintetiza a passagem do tempo. Seria
Carlotta a se manifestar por meio dela? A música reforça essa ambigüidade: de uma for
ma ou de outra, o espírito de Carlotta está ali presente. Mesmo o som das vozes recebe
um tratamento especial, com uma reverberação que lhes dá um caráter onírico. Vozes e
música interagem polifonicamente com a ação filmada.
Em Um corpo que cai, os beijos demarcam os pontos cruciais da narrativa. O pri
meiro deles ocorre na continuação da seqüência das sequóias. Madeleine, perturbada,
corre para a praia. John tenta convencê-la de que não é louca, de que tudo por que passa
tem uma explicação. A música mescla fragmentos e variações dos temas de Madeleine
e de Carlotta. Trêmulos nas cordas sublinham a aflição de John, que tenta encontrar uma
explicação lógica para tudo. Um crescendo na música conduz ao clímax que deveria ocor
rer no momento do beijo, mas há, em vez disso, um clímax contido, na região grave, e
não uma explosão de paixão. Um acorde conclusivo põe um ponto final na seqüência.
O segundo beijo ocorre próximo à seqüência da escadaria, pouco antes da morte
de Madeleine. A música que o acompanha também é contida e lenta. Em nenhum mo
mento, o movimento musical flui livremente. Madeleine está nitidamente incomoda
da e fica patente que o par romântico terá sua felicidade ameaçada. Após o beijo,
Madeleine corre em direção à torre. Uma nova variação mais agitada de seu tema é in
troduzida, e ela será usada, por diversas vezes, até o final do filme.
A seqüência da morte de Madeleine e o pesadelo de John, limite de sua saúde men
tal, demarcam o fim da primeira parte e o início da segunda parte do filme. As imagens
oníricas do pesadelo são acompanhadas por uma peça musical que se inicia com o tema
romântico. Vemos John à beira da sepultura de Madeleine. Um plano geral da cidade, à
noite, indica a passagem de tempo. John dorme em sua cama, agitado. É feita uma tran
sição musical com motivos rápidos, nas cordas, de estrutura cíclica. Eles cedem lugar ao
tema de Carlotta, que acompanha as imagens oníricas. Quando John chega à tumba va
zia, retoma o movimento rápido das cordas reforçado por outros instrumentos. O sonho
termina com um acorde marcante que inclui os glissandos rápidos da harpa, caracterís
ticos do motivo da vertigem.
188 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
Recuperado de sua catatonia, John vaga pelas ruas tentando reviver os dias que pas
sou junto a Madeleine. Um plano de transição mostra um travelling sobre a cidade, em
vista aérea. Por meio de uma fusão, chega-se à imagem do edifício de Madeleine. No mo
mento em que o edifício entra em quadro, a música retoma, imediatamente, o tema ro
mântico. Vemos o carro de Madeleine estacionado, para o qual aponta um sinal de
trânsito: One Way (mão única), construção esta em que a informação é dada apenas pela
imagem e pela música, como no cinema mudo. Prontamente, ficamos sabendo que John
não se recuperou de sua obsessão por Madeleine. Ele transita por um caminho de "mão
única". Madeleine não está morta, ou melhor, ela é, agora, um espírito cuja presença se
manifesta em todas as coisas, tal como Carlotta na primeira parte do filme. Como que
possuído por esse espírito, John refaz todos os passos de sua perseguição a Madeleine: o
Ernie's, o museu. Neste último, há uma interessante sobreposição do tema de Madeleine
ao ostinato rítmico do tema de Carlotta. O museu é o espaço onde sempre predominou
o tema de Carlotta, mas a obsessão de John por Madeleine faz que este tema fique em
segundo plano. O tema romântico, em andamento bem lento, com caráter melancólico,
domina todo esse momento. John encontra Judy e a segue até seu hotel. Após o reencon
tro, Judy, confusa, pensa em fugir e depois desiste. É uma passagem importante, pois nela
é revelado ao público que Judy e Madeleine são a mesma pessoa.
A seqüência começa com um flash back da morte de Madeleine, só que, agora, sob
o ponto de vista de Judy. É o primeiro momento em que a narrativa é construída a par
tir de outro ponto de vista que não o de John. A música dessa passagem é muito bem ela
borada, e começa com uma pequena referência ao tema de Carlotta. De imediato, fica-se
sabendo que as duas mulheres são a mesma pessoa, pois apenas Madeleine poderia ser
identificada ao tema de Carlotta. Começa o flash back acompanhado pelo tema da per
seguição, tal como ocorrera anterioremente. Só que não temos mais as interrupções do
motivo da vertigem. Sob o ponto de vista de Madeleine, podemos ver o que não havia
sido visto antes: ela chegando ao topo e Elster atirando a mulher, já morta, do alto da torre.
Ainda assim, há uma identificação entre os pontos de vista de John e de Madeleine, o
uso do mesmo acompanhamento musical reforça a ligação entre ambos. Ela foi usada
por Elster e isto a faz sofrer, pois, acima de tudo, ela também ama John. Tudo isto é in
dicado pela música antes de ser dito objetivamente.
Ela, amedrontada, resolve fugir. Pega sua mala. Essa parte é acompanhada pela ter
ceira variação do tema de Madeleine, introduzida na seqüência da torre. Quando ela vê
o traje de Madeleine em seu armário, essa variação aproxima-se da versão romântica,
passando para o agudo e sendo modificada melódica e harmonicamente. A visão da rou
pa tocou-a. É mais uma indicação de que ela ainda está apaixonada por John. Mas preci
sa fugir, pois, afinal, é cúmplice de um crime. Ela se senta para escrever uma carta de
confissão a John. A progressão temática dá lugar a uma única nota grave. Sobre ela, as
cordas agudas, em trêmulo, executam um movimento melódico baseado no motivo do
tema de Carlotta. Isso acompanha o monólogo de Judy, até que ela se levanta e rasga a
carta. Nesse momento, a variação de caráter romântico retorna com toda a força. Sua
paixão por John venceu o medo de ser descoberta.
Playing on the screen 189
A aflição de John esperando que Judy saia do banheiro é acentuada por trêmulos.
Quando ela sai, há um grande crescendo em movimento ascendente das cordas, para re
tomar o tema no agudo. Ela aproxima-se, o andamento acelera-se incorporando a ace
leração dos pulsos. Os dois encontram-se, tem início o beijo mais longo da história do
cinema, mostrado em trezentos e sessenta graus e acompanhado por uma peça musical
completa. Pela primeira vez no filme, o tema romântico é conclusivo, termina de modo
afirmativo, determinado e tonal, reiterando que os conflitos que impediam a plena união
do casal estão resolvidos.
Na seqüência final, quando John leva Judy de volta à torre, recriando a ação da mor
te de Madeleine, a música é determinante na constmção do sentido. John quer vencer
sua acrofobia. Dessa vez, a música não é tão agitada como a da primeira subida à torre,
e sim uma variação do tema romântico, segura e determinada. Ela ainda é interrompi
da pelo motivo da vertigem, enquanto os dois sobem, mas o tema não é afetado por isso.
Conforme John sobe, a música vai ficando cada vez mais lenta, precisa, como a perso
nagem.
A afetação retoma depois que John e Judy discutem. Ele a arrasta para o campaná
rio para o último diálogo. O tema romântico acompanha a última declaração de amor
do casal e o último beijo. Ambos são interrompidos pela chegada da freira, que assusta
Judy e provoca sua queda da torre.
Em uma entrevista concedida no início dos anos 1970, Herrmann afirmou:
Em Hitchcock, é preciso criar uma paisagem para cada filme, tais como a noi
te chuvosa de Psicose ou as turbulências de um filme como Um corpo que cai. Em
Cidadão Kane, ao contrário, um filme sobre pessoas em uma época específica e
como elas se sentiam a respeito de eventos externos, eu procurei exprimir as atitu
des de ódio, amor e vingança. A música, como um todo, deve suprir aquilo que os
atores não são capazes de dizer. A música deve dar ao público seus sentimentos. Ela
190 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
deve prontamente exprimir o que a palavra não é capaz, se você está lidando com
o emocional, ou este é todo o propósito de uma trilha musical. Mas se você está li
dando com um filme tal como um filme de Hitchcock, ou qualquer filme, de qual
quer diretor muito competente, e compreende como o filme é feito [você percebe
que], um filme é feito apenas por seguimentos de filme que são postos juntos e
cada um deles ligados artificialmente por fusões, cortes ou montagens e muitos re
cursos por meio dos quais um filme pode ser feito. É função da música unir essas
peças em um todo, de modo que o público sinta que a sua seqüência é inevitável.18
Ainda que não seja dirigida a especialistas, esta declaração demonstra o quanto
Herrmann tinha consciência do meio de que sua música fazia parte. É inevitável a asso
ciação com o filme Todas as manhãs do mundo, apresentado no início deste trabalho, em
que é apresentada a noção de que a música diz o que não pode ser dito por meio das pa
lavras. Particularmente interessante, é a forma como Herrmann vincula a trilha musi
cal com o processo de montagem, quando afirma que a música é uma das responsáveis
pela solução de continuidade do filme. Nota-se que ele tinha uma clara consciência da
técnica e da linguagem do cinema e que estava atento aos seus aspectos dramático e épi
co. Ele comenta que, para os filmes de Hitchcock, era necessário criar uma "paisagem",
como em Psicose (Psycho, EUA, 1960) e em Um corpo que cai. Muito mais do que uma
simples ambiência, a "paisagem" musical que criou para esses filmes é parte fundamen
tal de seu complexo narrativo. Paralelamente, cita Cidadão Kane como um filme no qual
afloram as emoções humanas geradas no convívio e confronto de pessoas com seus de
sejos e emoções, seus conflitos e paixões, um tipo de abordagem cujo referencial direto
é a dramaturgia.
O conhecimento desses dois níveis, dramático e épico, é fundamental para o com
positor de trilhas musicais. Saber transitar entre eles e dosar a música, a fim de interfe
rir da maneira mais adequada, é uma habilidade importantíssima. E, finalmente, para
que essas relações complexas, dramáticas e narrativas se efetivem, é preciso dominar a
sincronia pela qual é gerada a polifonia audiovisual. É preciso saber usar o encontro dos
tempos visual e sonoro. É preciso envolver o espectador em cada momento, criar con
dições para que ele seja inserido naquele tempo dramático e narrativo, tal como afirmou
Martin Esslin:
ro ou sonoridade pura e simples. Uma sonoridade que, ainda que não seja figurativa
como o som de um objeto identificável, relaciona-se com ele de modo tão claro, que pas
sa a ser o seu próprio som. É o que acontece, por exemplo, em Psicose, na clássica seqüên
cia do assassinato no chuveiro. A música que Herrmann criou é simples: um ostinato
uniforme, um pulso, uma única nota que se repete, muito aguda, em seguida, oitavas de
igual duração, depois intervalos de segunda e sétima. Os ataques, em glissandos muito
rápidos e incisivos na região aguda das cordas, penetram o ouvido como uma faca, en
quanto a faca de Norman Bates (Anthony Perkins) rasga o corpo de Marion (Janet Leigh).
A partir de uma sonoridade e estrutura tão simples, criou-se uma música que é a repre
sentação sonora de assassinato. É um som que jamais poderia ter sido produzido por
uma faca, mas ligou-se de tal maneira a esse objeto que, até hoje, a associação de am
bos é imediata.
Em 1971, Herrmann afirmou ter escrito a música de Psicose apenas para cordas
(violinos, violas, violoncelos e contrabaixos) com o objetivo de "complementar a foto
grafia em preto-e-branco do filme com um som em preto-e branco". Do mesmo modo
que a fotografia em preto-e-branco limita a imagem às variações de luz, a escolha de um
grupo instrumental formado por instrumentos da mesma família reduz o espectro
timbrístico às variações puramente musicais. É uma idéia bastante simples, mas total
mente original no contexto em que foi aplicada. No caso de Herrmann, especialmente,
que gostava de usar combinações instrumentais pouco usuais, foi uma mudança drásti
ca. A partir disso, ele construiu uma trilha clássica.
Assim como em Um corpo que cai, a música em Psicose é fundamental para a cons
trução das situações de suspense. Em muitos casos, este é obtido pela associação da mú
sica com o ponto de vista de uma personagem em particular, como ocorre, por exemplo,
na seqüência do assassinato do detetive Arbogast (Martin Balsam). Em contraste, a ten
são da fuga de Marion, logo no início do filme, é criada a partir de uma complexa com
binação sonora na qual ouvimos as vozes em off, acompanhadas por uma música de
grande atividade rítmica, que explicita a tensão da personagem.
Por tudo o que foi dito, ainda que não tenha sido um revolucionário como afirmou
Chion, Hermann é um dos compositores mais importantes da história do cinema. De
vido ao domínio do veículo e sua consciência da linguagem, ele poderia até ser consi
derado não apenas um compositor, mas um cineasta, cuja função era a de criar a trilha
musical do filme.
D e O lh o s e O u v id o s B em A berto s
Quanto mais refletimos sobre a poética musical do cinema, mais percebemos que
o que existe, de fato, é uma poética do cinema da qual a música é apenas um fator. É di
fícil isolar a música do movimento visual, da ação filmada, das estruturas narrativas e dra
máticas, dos ruídos, dos diálogos etc. Mesmo alguns fatores, que normalmente julgamos
pouco relacionados à música e ao som, surpreendem-nos em articulações bem elabora
das. Como se relacionam, por exemplo, som e enquadramento? Em um primeiro m o
mento, podem parecer coisas distintas, funcionando isoladamente. Mas, subitamente,
vemo-nos diante de uma situação articulada, a partir desses fatores, tal como ocorre em
192 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema
Um corpo que cai quando Madeleine aproxima-se da câmera no Ernie's ou como em To
das as manhãs do mundo, na seqüência inicial, em que vemos o rosto de Marin Marais
(Gerard Depardieu) em plano fechado, e ouvimos tudo o que acontece à sua volta. Ou
vimos a música, a voz de seus discípulos e começamos a construir toda a nossa noção
do espaço por meio do som. Mas, ao observarmos apenas o rosto inquieto de Marin
Marais, nitidamente incomodado, ficamos ansiosos. A impossibilidade de ver o que acon
tece é como uma camisa de força. Temos a vontade de romper com os limites do qua
dro e enxergar o que se passa à volta daquele homem, co-participar de seu ambiente, do
qual fom os excluídos. Trata-se de uma articulação gerada a partir do som e do
enquadramento.
A linguagem audiovisual está em constante transformação. Seguidamente, novas
convenções e soluções poéticas são apresentadas. É cada vez maior a complexidade des
sas articulações, o que se toma possível à medida que o público domina e aceita as no
vas convenções poéticas. Algumas das construções audiovisuais do cinema atual seriam
impensáveis ou ininteligíveis nos primeiros anos do cinema sonoro, como, por exem
plo, as articulações que subvertem a linearidade temporal ou que jogam o som da ação
filmada para o plano da narrativa sem qualquer explicação. Todas as manhãs do mundo é
um exemplo de um filme que faz isso o tempo todo. A música, como assunto central do
filme, transita constantemente entre os dois níveis. Ela deixa a viola-da-gamba de Sainte-
Colombe e Marais e segue, naturalmente, pelas seqüências, torna-se a voz do narrador,
liga a ação, ambienta, conduz as transições de tempo e lugar, tudo isto sem perder sua ca
pacidade expressiva e sem deixar de dizer tudo o que não pode ser dito de outra maneira.
O paralelismo, tão característico à linguagem do cinema desde Griffith, estendeu-
se também para o domínio da trilha musical. Construções complexas, em que a ação
paralela é pontuada por discursos musicais também paralelos, são perfeitamente com
preensíveis, como ocorre por exemplo na seqüência inicial do filme Fome de viver (The
Hunger, EUA, 1983). Ou, ainda, a seqüência da navalha em A cor púrpura (The Color Purple,
EUA, 1985), na qual a música do ritual africano conduz duas ações paralelas: a do pró
prio ritual e a do casal. O paralelismo entre as ações é exato. No ritual, acontece a inici
ação das crianças por meio do corte com a ponta de uma lança. Na varanda, Celie
(Whoopi Goldberg) prepara-se para fazer a barba de Mister (Danny Glover). A ação do
ritual confere uma ambigüidade à ação do casal. Tudo indica que Celie atravessará a ar
téria de Mister com a navalha. A música tribal empresta à ação do casal o seu caráter
ritualístico. A coragem para assassinar Mister, seu companheiro opressor, significa tam
bém uma iniciação para Celie.
Tal complexidade só é possível porque possuímos olhos e ouvidos bem treinados,
aptos a compreender essas articulações. Resultado de mais de um século de convivência
com o cinema, as convenções audiovisuais são, para o público de hoje, tão naturais quan
to eram as convenções da ópera para o público dos séculos XVIII e XIX.
Essa familiaridade com as convenções poéticas foi o que permitiu o surgimento de
novas formas de expressão audiovisuais, como o videoclipe, que incorpora elementos pre
sentes no cinema, mas sob uma ótica particular. No videoclipe, as relações entre o m o
vimento visual e sonoro são primordiais. As possibilidades da sincronia são levadas ao
Playing on the screen 193
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