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Sygkhronos

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SYGKHRONOS

A F o r m a ç ã o d a P o é t ic a
M u s ic a l d o C in e m a

Ney Carrasco
© by Via Lettera para a edição em língua portuguesa.
Ia edição: setembro de 2003

CIP-Brasil. Catalogação na Fonte


Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

C 299f
Carrasco, Ney
Sygkhronos. A Formação da Poética Musical do Cine­
ma / Ney Carrasco - São Paulo : Via Lettera : Fapesp, 2003.
200 p.; 1 6 x 2 3 cm.

ISBN 85-86932-97-3

1. Música para cinema - História e crítica. 2. Trilha sono­


ra. 3. Teoria musical I. Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de São Paulo. II. Título.

03-1801 CDD 781.5


CDU 781.5

Esta publicação conta com o apoio à publicação da Fapesp.

Equipe de Realização

Capa Ediara Rios


Assistente de Produção Diego Guerra
Editores Jotapê Martins
Monica Seincman

Via Lettera Editora e Livraria Ltda.


Rua Iperoig, 337
05016-000 São Paulo SP
Telefax: (11) 3862-0760 / 3675-4785
e.mail: vialettera@vialettera.com.br / vialettera@uol.com.br
www.vialettera.com.br
2003
S u m á r io

O uverture 5
P ró lo g o - M u sic a 11
A linguagem musical 1 4
O eixohorizontal 14
O eixovertical16
A relação da música com o texto poético 2 0
A relação polifônica da música com o movimento 2 4

1 II M e lo d ra m a 29
As origens do drama musical no Ocidente 3 3
Comédia madrigal epantomima 35
Intermedio 3 7
e
Masque ballet de cour 3 9
Pastoral39
A dramaturgia operística 41
Recitativos
42
Coros 43
Peçasinstrumentais 4 3
Árias 4 4
Continuidade dramático-musical na ópera 4 5
Organização temporal da ópera 4 9

2 V o ix DE VlLLE 51
Gêneros cômicos do teatro musical 5 4
A influênciada
Commedia dell'arte 5 4
e
Intermezzo Opera buffa 5 5
Théâtres de la foire 58
Aquisições dramático-musicais do teatro popular 62

3 P a n t o m im a s L u m in o s a s 65
A música nos espetáculos ópticos e nos
primórdios do cinema 6 8
A música na formação da linguagem do cinema 71
Experimentando com música e imagens 7 6
Cue sheets 78
Coletâneas 82
A partitura original 90
Síntese e consolidação: "O nascimento de uma nação" 91
A ópera sem libreto 95
Vilões 97
Heróis 1 0 0
Heroínas 1 0 2
O amor 103
Construindo a narrativa com o
material temático musical 105

4 P l a y in g O n T he S creen 115
O reaprendizado do cinema 1 2 0
O film e "parcialmente sonoro" 1 2 2
05 níveis da intervenção musical126
A música como parte da ação 128
A nova polifonia audiovisual 133
Polifonia audiovisual: teoria e prática 144
O melodrama fílmico 153
A maturidade do leitmotiv 161
A descoberta da sonoridade 170
As convenções poéticas audiovisuais 180
De olhos e ouvidos bem abertos 191

R e f e r ê n c ia s B ib l io g r á f ic a s 195
O uverture

Freqüentemente o termo contraponto é usado para designar a relação entre a mú­


sica e as imagens no cinema. Trata-se de um uso coloquial, que parece ser um certo con­
senso entre profissionais da área de cinema, em suas mais diversas especialidades. O
compositor Lalo Schifrin foi mais detalhado ao fazer a seguinte comparação:

Pegue o contraponto da Idade Média e faça um paralelo com o filme. Você tem
um Cantus Firmus, que é o conteúdo dramático do filme. Nós não podemos aban­
donar o Cantus Firmus. Então nós temos o Tenor, que seria o visual. E então nós te­
mos o baixo, que poderia ser a música. Em alguns momentos, o baixo pára, volta
novamente e pára. (Apud Bazelon, 1975:228)

Contraponto é um termo que tem sua origem na terminologia musical, mais es­
pecificamente na música polifônica. O fato de ele ser empregado para designar uma re­
lação audiovisual aproxima esse tipo de composição, feita a partir de elementos sonoros
e visuais, da música, cuja matéria-prima exclusiva é o som. Por que via, então, ocorre essa
aproximação? A resposta, possivelmente, encontra-se no próprio conceito musical de
polifonia, como encontro de vozes independentes e simultâneas. Eisenstein usou exata­
mente o termo "polifonia" para designar a relação do som com as imagens no cinema,
não se restringindo à música. Na "Declaração" (1990:218) que assina com Pudovkin e
Alexandrov, ele é objetivo: "Apenas o uso polifônico do som com relação à peça de mon­
tagem visual proporcionará uma nova potencialidade no desenvolvimento e aperfei­
çoamento da montagem".
Pode parecer incongruente, em um primeiro momento, a utilização do termo
polifonia para designar algo que não se restrinja ao universo sonoro. De fato, aplicar o
termo polifônico às imagens, em princípio, não seria correto. Contudo, se tomarmos
aquela acepção musical de polifonia, como encontro de vozes simultâneas e indepen­
dentes, sua aplicação ao audiovisual começa a se tomar viável. As manifestações audio­
visuais são, também, o encontro de muitas vozes simultâneas, que se manifestam por vias
muito diferentes: pela fala propriamente dita, pelos efeitos sonoros, pela música e pelas
6 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

imagens em movimento. A partir daí, o paralelo com a polifonia musical parece ser não
apenas possível, mas provável.
A aplicação da terminologia musical ao cinema abre um campo instigante para o
nosso questionamento. Se um conceito como o de polifonia pode ser aplicado ao audio­
visual, podemos voltar nossa atenção para a música e observar a maneira pela qual ela
trata esse conceito, em que bases ele se fundamenta, quais são suas implicações, que re­
gras orientam suas aplicações. Pela maneira como se comportam as vozes de um con­
traponto, é possível entender melhor o comportamento das pistas de som e suas relações
com a banda de imagens no cinema. Obviamente, não se trata de um paralelo estanque.
As regras musicais não podem ser aplicadas ao cinema diretamente, nem seria o caso de
fazê-lo. Mas muitos dos princípios que orientam a composição musical podem ser en­
contrados nas construções audiovisuais. Não foi por acaso que Eisenstein buscou tantos
termos musicais para desenvolver suas teorias de cinema.
Um desses princípios, diretamente associado à prática polifônica, é o sincronismo.
Fundamento básico dos veículos audiovisuais, as normas que regem a sincronia entre os
sons é matéria da arte e teoria musicais já há muitos séculos.
Assim como as várias vozes de um contraponto associam-se para formar uma úni­
ca peça musical, a música pode associar-se a outras linguagens para que, em conjunto,
componham um novo texto, uma nova polifonia. O cinema, por exemplo, desenvolveu
uma polifonia própria, audiovisual, formada por muitas vozes: imagens e sons, tendo a
música como uma das vozes dessa polifonia.
O surgimento do cinema é um marco divisor de nossa história. Um marco que se­
para a era da produção artesanal da industrial, da cultura de massa, da arte reprodutível.
Mas não é com o advento do cinema que têm início as associações de música com ou­
tras linguagens. A linguagem complexa do cinema é herdeira de toda uma tradição dra­
mática e musical da cultura ocidental. Nessa tradição, muitas são as manifestações nas
quais a música combina-se com a fala, com a estrutura dramática, com o gesto, com a
ação e com o movimento. John Williams fez o seguinte comentário a respeito do cine­
ma: "Eu acredito que ele [o cinema] seja a ópera do século XX. Assim como Meyerbeer
e Bizet - o que eles foram para o entretenimento popular para a classe média na França
do século XIX, assim também os filmes o são neste século para um segmento da popu­
lação" (apud Bazelon, 1975:194).
Não é apenas por seu impacto junto ao público que o cinema aproxima-se da ópe­
ra. Ao incorporar a estrutura dramática, o cinema torna-se um herdeiro da tradição dra­
mática do Ocidente. Mais especificamente, o cinema incorpora o próprio referencial
dramático-musical da época em que surgiu. A ópera e o teatro musical fornecem subsí­
dios para o cinema desde que ele se tomou um espetáculo público.
Ao mesmo tempo em que incorporou essa tradição, o cinema deu início ao desen­
volvimento de uma linguagem própria. No que diz respeito à música, especificamente,
todo um novo conjunto de relações começa a ser criado. Na poética do cinema, que co­
meçava a se formar, a música ocupava uma posição fundamental. Ainda que conservas­
se elementos que a ligavam à tradição operística e dramático-musical, já não era mais a
música da ópera, nem do teatro. Leonard Roseman apresentou a sua definição sobre o
Ouverture 7

ato de criar música para filmes da seguinte maneira: "Você usa todos os ingredientes da
música: contraponto, harmonia etc. Mas, basicamente, ela não funciona como música,
porque a propulsão não se dá por meio de idéias musicais. A propulsão se dá por meio
de idéias literárias" (apud Bazelon, 1975.186)1.
Ele ainda foi além, ao afirmar:
E ela [a música de cinema] é quase música, mas não totalmente. Ela faz fu­
maça, mas não é charuto. Essa é a diferença entre um maravilhoso papel de pare­
de ornamentado - você sabe, decoração de interiores - e um Jackson Pollock. E elas
têm diferentes funções. (...) E o que acontece musicalmente é que o material tor­
na-se muito truncado, ao contrário do que ocorre em todas as outras formas lite-
rário-musicais, as quais nós podemos chamar de formas musicais, porque o
compositor pega o libreto e submete-o à música. O libreto ajusta-se à música (...).
Nos filmes, é justamente o oposto. O filme avança no projetor a noventa pés por
minuto, ele não pode ir mais rápido ou mais devagar e a mesma cena dura exata­
mente o mesmo tempo todas as vezes e a sua música simplesmente tem que se ajus­
tar a ela. E o minuto que você comprime em música sob esta diretriz e que você
escreve de maneira a que tudo se encaixe, a qualquer custo, suprimindo tempos ou
estendendo-os para que se encaixem, faz que você lide com avaliações
extramusicais, valores extramusicais. (Apud Bazelon, 1975:186)

O ponto de vista de Roseman tem um aspecto positivo e um negativo. O positivo


é, justamente, o de reconhecer a música de cinema como algo particular, específico, dis­
tinto da prática puramente musical. O aspecto negativo é que, apesar de sua experiência
como compositor de música para filmes, seu ponto de vista é quase que exclusivamente
musical. Para ele, a necessidade de a música adequar-se ao filme ainda é algo que o in­
comoda. Na verdade, ele apenas começou a resvalar nas questões relativas à poética do
cinema e, particularmente, da trilha musical.
Assim como Roseman, muitos foram os que viram nas práticas musicais do cine­
ma um rebaixamento da arte musical. Muitos compositores renomados recusaram adap­
tar-se às exigências do novo veículo. Schoenberg foi convidado a compor para o cinema.
Fez tantas exigências que inviabilizou sua participação no filme. Outros, como Saint-
Sáens, no período do cinema mudo, e Copland, conseguiram trabalhar adequadamente
no cinema, sem maiores conflitos. Sobre a atitude dos compositores perante o cinema,
John Williams afirmou:

Eu acho que muitas das melhores mentes musicais do país concluíram: "Bem,
música para filmes de Hollywood é simplesmente kitsch. Eu não vou abaixar os
meus padrões e me envolver com isso". Por outro lado, é possível ter uma atitude
positiva e dizer: "Esse é um grande desafio do século XX; esse é o verdadeiro meio
artístico do século XX; é onde eu posso realmente dar alguma contribuição". (Apud
Bazelon, 1975:196)

1. Leonard Roseman utiliza sempre o termo "literário", que nem sempre é o mais ade­
quado. Em alguns casos, "dramático" seria mais eficiente.
8 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

Sobre o mesmo tema, Jerry Goldsmith tem uma posição parecida:

Há uma coisa maravilhosa que Bernard Shaw disse em uma entrevista. O en­
trevistador perguntou: "Não é uma desgraça que compositores sérios tenham que
se rebaixar escrevendo música para filmes?" E ele respondeu que achava que as pos­
sibilidades da música de cinema eram ilimitadas e que lhe agradava muito mais
uma peça de música para filme do que uma cantata acadêmica que é executada uma
única vez e nunca mais ouvida novamente. (Apud Bazelon, 1975:191)

Hoje sabemos o quão longe a música de cinema pode ir, embora as duas posições
ainda coexistam. Há quem diga que o que vai ficar da música do século XX é a música
de cinema. Há quem diga que é um tipo de música menor, de segunda classe.
Este trabalho procura analisar o processo de formação da poética musical do cine­
ma, da polifonia audiovisual. Ele se divide em duas partes: na primeira (Capítulos 1 e 2),
é abordada a origem das manifestações dramático-musicais do Ocidente: da ópera, até
os diversos gêneros do teatro musical. Na segunda (Capítulos 3 e 4), o cinema é aborda­
do desde o seu surgimento. A formação de sua poética específica e a maneira como in­
corpora e transforma a tradição dramático-musical são estudadas em seus princípios
teóricos e exemplificadas por meio da análise de filmes.
Como este é um trabalho cujo objeto possui uma característica multidisciplinar, po­
dendo servir aos interesses de profissionais de cinema, música, comunicações, entre ou­
tros, procuramos oferecer, sempre que possível, a informação m ínima necessária à
compreensão do estudo. Assim, um prólogo foi acrescentado com o objetivo de situar o
leitor que não possui uma formação musical específica. Para o leitor iniciado, o prólo­
go é útil para que saiba quais são os conceitos musicais que orientam o trabalho como
um todo. Da mesma maneira, nos capítulos dedicados ao cinema, muitas vezes são apre­
sentados conceitos básicos, que podem parecer desnecessários para os profissionais da
área. Contudo, como o entendimento de tais conceitos é fundamental para a compreen­
são deste estudo, é necessário que eles estejam claros.
Um outro tipo de dificuldade que os trabalhos deste gênero apresentam diz respeito
à exemplificação. Quando se trata de música, é sempre possível apresentar a partitura.
Mas a partitura apresenta algumas limitações. A primeira delas é que ficam excluídos
aqueles que não são capazes de lê-la. A segunda é que, mesmo para os que são capazes
de lê-la, há uma grande distância entre a leitura e a audição musicais. No caso dos fil­
mes, não é possível sequer apresentar algo equivalente à partitura musical. Assim, opta­
mos por selecionar todos os exemplos, tanto musicais quanto filmográficos, de um
repertório acessível ao leitor. A grande maioria das passagens musicais pode ser encon­
trada em gravações comerciais. Os filmes, em sua grande maioria, podem ser encontra­
dos em vídeo ou d v d .
Por fim, cabe dizer que um trabalho acadêmico é, assim como um filme, o resul­
tado de uma multi-autoria. No cinema, trabalham diversos profissionais de criação e téc­
nicos: roteiristas, diretores de arte, de fotografia, desenhistas de produção, montadores,
compositores, músicos, iluminadores, cenógrafos etc. Quem assina o filme é o diretor,
como se fosse ele o único responsável por aquela obra. Na verdade, todos são responsá­
veis, em maior ou menor grau, pelo filme. Muitas são as vozes na polifonia da criação
Ouverture 9

cinematográfica. Da mesma maneira, um trabalho acadêmico é assinado por seu autor


como se fosse ele o depositário de todo o conhecimento de uma determinada área. Na
verdade, o autor, como o diretor de cinema, reúne e organiza o conhecimento que rece­
be de muitas outras vozes. Agradeço, sinceramente, a todos aqueles que colaboraram para
que este estudo se tomasse possível, que não são poucos. A todos eles, posso dizer ape­
nas que espero ter sido merecedor de tal dedicação e da confiança em mim depositada.
Em suma, um escrito é também uma obra polifônica.
P rólogo

L a m u s ic a

Io la musica son, ch'ai dolci accenti


so far tranquillo ogni turbato core
ed or di nóbil ira, ed or d'amore
poss'infiammar le piii gelate menti
Monteverdi, VOrfeo

No último diálogo do filme Todas as manhãs do mundo (Tous les matins du monde,
França, 1992), o compositor Sainte-Colombe (Jean Pierre Marielle) tenta fazer com que
outro compositor, Marin Marais (Gérard Depardieu), seu discípulo, compreenda o que
seria, para ele, o sentido da música. Ele diz que "a música existe para dizer o que a pala­
vra não pode dizer". Será que ele tinha razão?
Freqüentemente, este tema é matéria de acaloradas controvérsias. A música não é
um assunto fácil de ser abordado, especialmente quando tentamos romper os limites es­
tritos da terminologia musical. Em outras palavras, é possível falar de música pela pró­
pria terminologia musical. É possível descrever uma peça musical sob os pontos de vista
melódico, harmônico, rítmico, instrumental etc. Porém, quando tentamos abordar a
música a partir de outros pontos de vista, tudo parece tomar-se nebuloso e intangível.
Abordagens mais científicas, rigorosas, respaldadas por metodologias tão eficientes quan­
do aplicadas a outras linguagens, em muitos casos, não chegam a lugar algum ou avan­
çam muito pouco. O teórico aplica sua metodologia e, depois de páginas e páginas de
complexas análises, o músico observa a passagem musical e, muito tranqüilo, conclui:
"é apenas uma cadência perfeita".
Em contrapartida, podemos falar sobre música, sem muito rigor, procurando des­
crever a nossa experiência da audição musical. É o extremo oposto da abordagem rigoro­
sa. Dizemos que a música nos provoca determinadas emoções ou sensações, que nos
envolve, que nos comove. Ainda assim, não conseguimos comunicar tudo o que repre­
senta a experiência em si. A audição musical é um processo rico, complexo, de impli­
12 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

cações tão sutis e variadas que as tentativas de descrevê-lo geram mais frustrações do que
satisfações. Sempre sentimos que o nosso discurso não chega sequer a aproximar-se do
que significou, realmente, aquela experiência.
Talvez Sainte-Colombe tivesse razão. Talvez a música resida no domínio do inefá­
vel. Talvez não devêssem os tentar subtraí-la dessa instância, procurando criar
metalinguagens às quais ela não se abre. Mas é impossível. Queremos falar sobre músi­
ca, assim como queremos falar sobre todas as coisas do mundo. Queremos descrever
nossas experiências mais íntimas, para que possamos compreendê-las melhor. Não se­
ria a música a única a ser poupada.
Por outro lado, se invertermos os fatores da afirmação de Sainte-Colombe, chega­
mos à seguinte proposição: "a palavra existe para dizer o que a música não pode dizer".
Deste modo, música e linguagem verbal são colocadas em domínios semânticos dis­
tintos, de acordo com suas especificidades. Mas, ainda assim, algo as aproxima. Algo per­
mite que elas sejam comparadas, ainda que em oposição uma à outra. O que as aproxima
é, justamente, o "falar", aqui usado com o sentido de "dizer algo". Tanto a música quan­
to a linguagem verbal são capazes de "dizer algo", cada uma à sua maneira e em com ­
plementaridade, pois cada uma é capaz de dizer aquilo que a outra não o é.
Difícil é dizer o que a música diz. Mas, se Sainte-Colombe estava certo, não seria
possível dizê-lo com palavras, apenas com a própria música. Com isto, percebemos por­
que é tão difícil falar sobre música. Particularmente, vemos o quanto é difícil apreender
e verbalizar o significado musical. Também percebemos porque, para falar sobre músi­
ca, é preciso utilizar a terminologia musical, que nos permite compreender sua sintaxe
específica.
A complementaridade entre música e linguagem verbal materializa-se na música
vocal. Quando associadas, uma empresta à outra aquilo que possui, em termos de signi­
ficação e expressividade, e toma emprestado aquilo que lhe é impossível exprimir.
E não é apenas com as palavras que a música se associa. Ao longo da história, a
música combinou-se a diferentes formas de expressão: ao movimento, físico e mecâni­
co, à ação representada, à dança e às imagens. Em todos os casos, da união de duas poé­
ticas específicas, engendra-se uma terceira, que só é possível pela combinação de ambas.
Nas formas dramáticas e dramático-musicais, a música, o texto, a dança e o movimento
somaram-se, criando novas situações e múltiplas poéticas: tragédia, comédia, pantomi­
ma, melodrama, ópera e muitas outras.
Desde o surgimento do cinema, muitas dessas relações são incorporadas pelas for­
mas audiovisuais. Música e texto, música e movimento, música e ação filmada. A poéti­
ca ou poéticas audiovisuais redimensionaram todas essas relações.
É muito curioso que, em vários momentos, a música tenha servido como referen­
cial para o cinema. Um dos grandes entusiastas desse paralelo foi Eisenstein, que em vá­
rias situações apropria-se da term inologia musical para identificar elem entos de
articulação fílmica. Um exemplo bastante conhecido é a sua nomenclatura para os ti­
pos de montagem: montagem rítmica, tonal e atonal. Vários, também, foram os que usa­
ram o termo "contraponto" para designar a relação entre som e imagem ou entre ações
paralelas. Em alguns casos, o uso da terminologia é puramente metafórico, em outros, a
Prólogo. La musica 13

relação é bastante direta. Mas o que mais nos chama a atenção é o fato de a conceitua-
ção musical ser lembrada tantas vezes pelo cinema.
Seria de se esperar que cinema e música possuíssem algo em comum, algo que le­
vasse as pessoas a relacioná-los, mesmo que intuitivamente. Quando paramos para re­
fletir sobre essa questão, percebemos que não existe apenas algo em comum, mas um
número muito grande de similaridades entre os dois.
A primeira grande característica comum entre música e cinema é o fato de ambos
desenvolverem-se no tempo. Música e cinema são manifestações temporais. Para a mú­
sica, o tempo é um fator básico, primordial. Susane Langer chega a ir além, quando diz
que "a música torna o tempo audível, e torna sensíveis suas formas e continuidade"
(Langer, 1980:117). O tempo é a matriz musical. Tanto para a música quanto para o ci­
nema, tudo acontece em função do tempo. Toda a organização do discurso baseia-se nas
relações temporais.
Em música, todas as questões relativas à organização temporal pertencem ao do­
mínio do ritmo. Por isso, dizer que o cinema possui uma dimensão rítmica, relativa à
sua organização temporal é absolutamente correto. O cinema tem ritmo.
Como discursos que se desenvolvem ao longo do tempo, música e cinema são uma
sucessão de eventos - para a música, alturas, durações, que se organizam em motivos e
frases, para o cinema, planos e seqüências. Eventos que, isoladamente, não possuem ne­
nhuma conexão entre si, quando aproximados em sucessão temporal adquirem um novo
sentido.
O eixo temporal, por sua linearidade, é identificado com a idéia de horizontalida­
de, uma linha sobre a qual se desenvolve o discurso.
Mas tanto a música quanto o filme não são apenas uma sucessão linear de even­
tos. A quantidade de informações simultâneas é imensa. Na música, os sons são sobre­
postos em simultaneidade. Muitas vozes, muitos instrumentos independentes executam
suas partes. No filme, as informações visuais e sonoras também se sobrepõem, são apre­
sentadas em simultaneidade. Se há um eixo horizontal no qual os eventos se sucedem,
a existência de eventos simultâneos leva-nos à idéia de verticalidade. Há muito que a mú­
sica ocidental trabalha com o conceito de vozes simultâneas e o termo técnico para
idenüficá-lo é polifonia, que é, por sinal, uma de suas principais características.
O princípio polifônico não se restringe aos limites da linguagem musical. Como
vimos, as associações de música, texto, ação e movimento, também são manifestações
polifônicas. Assim, a partir do momento em que reconhecemos que o cinema também
possui esse eixo vertical, podemos dizer que ele é, também, polifônico.
O desenvolvimento da polifonia musical, tanto no plano teórico, quanto na práti­
ca, pode ser de grande utilidade para entendermos o cinema. O conceito de polifonia é,
particularmente, útil para entendermos as relações entre sons e imagens no cinema. Ve­
mos, portanto, que a utilização de termos oriundos da terminologia musical não é algo
tão desprovido de sentido. É bastante viável falar, por exemplo, do "contraponto" entre
sons e imagens. A partir de uma polifonia puramente sonora, que é a polifonia musical,
podemos entender melhor a polifonia audiovisual e como ela se organiza.
14 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

Assim, vale a pena começar o nosso trajeto por um pequeno resumo de alguns con­
ceitos básicos de música. Por meio deles, poderemos entender melhor como se organi­
za o discurso polifônico e como a música incorpora-se ao filme.

A L in c u a c e m M u s ic a l

A música, como foi dito, é construída a partir de eventos sonoros organizados ao


longo dos eixos horizontal e vertical. Até mesmo o uso do termo "linguagem", quando
aplicado à música, é motivo de controvérsias. Não é nosso objetivo aprofundar essa dis­
cussão, ainda que o termo seja aqui usado num sentido mais lato.
De fato, existem muitas similaridades entre a linguagem verbal e a música, inclu­
sive de terminologia. A organização do discurso na música, na fala ou na escrita, é aná­
loga. Tanto em um caso quanto em outro, usamos os termos "frase", "período", para
designar unidades, por exemplo. Ainda que uma exista para dizer o que a outra não é ca­
paz, em muitos casos as duas podem ser aproximadas.
Uma das principais características da linguagem é sua propriedade dialógica. Quan­
do algo é dito, esse algo é sempre dirigido a alguém. A fala pressupõe, sempre, a existên­
cia de um interlocutor, sem o qual ela não seria necessária.
É interessante notar como a própria idéia de dialogia pressupõe a de polifonia. Para
que exista o diálogo são necessárias várias "vozes". A dialogia está para o eixo horizon­
tal, como a polifonia está para o vertical. No diálogo as vozes altemam-se ao longo do
tempo, enquanto na construção polifônica elas se somam. Em essência, são duas formas
de interação entre "vozes", duas manifestações de um mesmo princípio.

O Eixo Horizontal

A sucessão de sons ao longo do eixo temporal leva-nos a dois conceitos básicos em


música: ritmo e melodia. O primeiro refere-se à organização temporal dessa sucessão de
sons e o segundo à organização das alturas1.
O tempo, como vimos, é a matriz musical. Sons de valores iguais e diferentes al­
ternam-se no desenvolvimento do discurso. Logo, as questões relativas à organização
rítmica são primordiais em música. Ritmo é música. John Williams afirma: "Eu acho
que a base de tudo é o ritmo. Ritmo é a chave para a entonação, a chave para o vibrato
etc." (apud Bazelon, 1975:199).
Uma música é uma parcela de tempo isolada e transformada. Na divisão musical
métrica, a medida básica de tempo, o pulso, é alterado no sentido de adequar-se à idéia
musical. O pulso do relógio, marcando o tempo cronológico, é sempre igual. A cada se­
gundo o ponteiro desloca-se em uma unidade ou pulso. O tempo cronológico possui um
andamento fixo, um metrônomo sessenta2. O tempo musical é variável, o pulso pode ser

1. A altura é uma propriedade do som que varia de acordo com sua freqüência. Quanto
mais alta a freqüência, mais agudo será o som, quanto mais baixa, mais grave.
2. O andamento é contado sempre em "pulsos por minuto", ou seja, um metrônomo ses­
senta é aquele no qual cada pulso dura exatamente um segundo.
Prólogo. La musica 15

acelerado ou ralentado em relação ao tempo cronológico. O andamento pode estar em


cento e vinte, por exemplo, no qual cada pulso dura meio segundo. Manipular o pulso
significa alterar a medida básica, o "relógio" musical. O andamento é um aspecto da
música que é percebido de imediato pelo ouvinte. É por meio dele que podemos provo­
car alterações no tempo psicológico, criando para o ouvinte uma nova medida tempo­
ral, específica àquela situação musical. Por isso, as questões relativas ao andamento são
particularmente relevantes quando tratamos de música para filmes.
Em contrapartida, há manifestações musicais não metrificadas, ou seja, que não se
baseiam em um pulso uniforme. llm exemplo é o Canto Gregoriano, que não se desen­
volve sobre um pulso determinado.
Voltando à metrificação, os pulsos são agrupados em unidades maiores, chamadas
compassos. Além de uma simples organização numérica, o compasso é determinante
para o caráter da música, pois é por meio deles que se estabelecem diferentes acentua­
ções para os pulsos. O caráter primeiro da progressão rítmica é estabelecido pela fórmula
de compasso: binário, ternário, quaternário etc.
Os compassos de uma música podem ser iguais, gerando uma uniformidade de
acentuação, ou desiguais. A desigualdade de acentuações também é facilmente perceptí­
vel. Um exemplo bastante conhecido desse tipo de alternância é a História do soldado,
de Igor Stravinsky.
Sobre a métrica dos compassos, os valores rítmicos agrupam-se, formando unida­
des maiores. O motivo é a menor unidade musical provida de sentido. A partir de um
único motivo, podemos constmir toda uma música.

p c í r
Se repetimos o motivo algumas vezes, obtemos uma frase:

■*— p c tt p l t lr p u t p c j r 1

Até agora, preocupamo-nos apenas com o ritmo. A incorporação das alturas trans­
forma os valores rítmicos em notas e os motivos rítmicos em melódicos. A melodia é
um dos fatores mais determinantes para o estabelecimento de uma identidade musical.
Nós identificamos as músicas por sua linha melódica. Ao mesmo tempo, a melodia é sín­
tese, pois se alguém nos pede para cantar uma determinada música, cantamos sua linha
melódica, por mais complexa que essa música seja.
A partir de um único motivo rítmico, como o anterior, podemos construir diver­
sas linhas melódicas. A partir dele, podemos obter o tema que Nino Rota compôs para
Romeu e Julieta (Romeo and Juliet, Inglaterra/Itália, 1968).
16 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

Partindo do m esm o motivo rítm ico, podem os chegar ao tema que Michel
Legrand compôs para o filme O verão de 42 (The Summer o f 42, EUA, 1971). Ainda que
a estrutura rítmica seja a mesma, os temas são totalmente distintos, pois cada um pos­
sui a sua própria identidade melódica.

n i j. n i ■i-1» - u i^ f - —

O Eixo Vertical

A história da polifonia na música ocidental tem sua origem no Canto Gregoriano.


Originalmente, a execução dos cantos era monofônica, ou seja, a uma única voz. Poste­
riormente, o coro passa a se dividir em vozes. As primeiras manifestações polifônicas
eram muito simples, cantava-se em intervalos de quinta ou quarta paralelas3, ou seja, as
vozes não eram independentes.
Descobriu-se, então, que era possível combinar linhas melódicas diferentes, vozes
independentes. Inicialmente, era uma polifonia muito simples: para cada nota do can­
to principal a voz adicionada cantava também uma nota. Contudo, seu movimento me­
lódico não estava mais subordinado ao movimento da voz principal. As vozes podiam
caminhar em direções diferentes, gerando curvas melódicas distintas, uma da outra. Era
o princípio do contraponto. As vozes ganharam ainda mais autonomia. O canto tomou-
se uma progressão de notas longas sobre as quais desenvolvia-se o contraponto, mais mo­
vimentado.
Ao longo de muitos séculos, o encontro entre as vozes foi tratado como resultado
da progressão linear de cada uma das vozes. Em outras palavras, a concepção de polifonia
privilegiava seu aspecto linear, o eixo horizontal. As vozes eram concebidas como linhas
melódicas, cujos encontros eram geridos por um conjunto de normas. Cada tipo de in­
tervalo deveria ser tratado de uma determinada maneira, alguns movimentos eram pos­
síveis, outros não e assim por diante.
Os encontros entre vozes foram, portanto, padronizando-se e formando unidades
verticais, blocos de notas. Demorou, mas essas unidades tomaram-se, finalmente, reco­
nhecidas como tais, e hoje são o que conhecemos como acorde.
A partir desses conceitos básicos, podemos compreender as texturas polifônicas
básicas: o contraponto, que é a textura polifônica na qual as vozes possuem grande in-

3. O Canto Gregoriano cantado em intervalo de quintas ou quartas ficou conhecido


como Organum Paralelo.
Prólogo. La musica 17

dependência melódica; e a homofonia, na qual as vozes desenvolvem-se sobre uma mes­


ma divisão rítmica, resultando em uma sucessão de acordes.
Um dos aspectos mais significativos da polifonia musical é a maneira como, em
seu processo de formação, foi sendo desenvolvida uma série de normas para regular a si­
tuação em que várias vozes emitem seus enunciados em simultaneidade.
O eixo horizontal e o vertical devem articular-se para que a construção polifônica
seja coerente e inteligível. Os princípios dialógico e polifônico devem interagir. Uma das
regras mais elementares dessa interação é: cada um fala em sua respectiva vez. Isso se tor­
na claro quando há uma situação de diálogo: eu falo, emito a minha opinião e passo a
palavra ao meu interlocutor; ele, por sua vez, fala e devolve-me a palavra. Mas, mesmo
nessa situação, o princípio polifônico está presente. Quando eu passo a palavra ao meu
interlocutor, inicia-se o processamento silencioso daquilo que ele diz. Eu falo, discuto co­
migo mesmo sobre aquilo que ouço imediata e simultaneamente. Essa polifonia, que está
implícita no mais banal dos diálogos, a música toma explícita. Quando uma voz se mo­
vimenta, assume o primeiro plano, a outra se toma mais estática, aguarda que chegue o
momento de emitir a sua opinião. A primeira, então, recua, aguardando a sua vez de co­
mentar o que está sendo dito.
Já na textura homofônica, fala-se simultaneamente. São blocos de sons que se su­
cedem ao longo do tempo. Falar junto a mesma coisa sempre pressupõe a idéia de cole­
tividade e, em decorrência, de impessoalidade. Um solo de uma voz, ou de um
instrumento, é sempre algo pessoal; um conjunto executando a mesma passagem é cole­
tivo e impessoal.
Para coordenar essa alternância das vozes no eixo horizontal e a sua perfeita simul­
taneidade, a música foi obrigada a desenvolver um princípio sincrônico. Não se trata de
uma sincronia absoluta como a que encontramos no cinema, mas relativa: sobre a con­
tagem de tempo, cada voz sabe exatamente o que fazer e quando fazê-lo.
Vamos tentar entender como se organizam as vozes de um contraponto por meio
de uma forma musical contrapontística por excelência: a fuga. Tomemos como exem­
plo a Fuga II, a três vozes, do primeiro volume de O cravo bem temperado, de J. S. Bach.
A principal caracterísüca da fuga é a existência de um único tema, também chama­
do sujeito. A partir dessa linha melódica todas as vozes desenvolvem o seu discurso. Neste
caso, o tema é apresentado pela voz intermediária:

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Imediatamente após sua exposição, o tema reaparece na primeira voz. Esse proce­
dimento, na terminologia da fuga, é conhecido como resposta. Enquanto a primeira voz
expõe a resposta, a voz interm ediária executa um contraponto que será usado
reiteradamente ao longo da fuga, sempre junto com o tema, sendo chamado, por sua vez,
contra-sujeito.
18 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

As duas vozes dialogam usando motivos extraídos do tema e do contra-sujeito, crian­


do, com isso, uma ponte. A ponte, ao criar uma situação de instabilidade e transição, pre­
para a entrada da terceira e última voz, a última a expor o tema; enquanto isso, a primeira
executa o contra-sujeito e a intermediária um outro contraponto. Tendo as três vozes
emitido a sua opinião sobre o mesmo tema e, ainda assim, não tendo esgotado o assun­
to, é chegada a hora de as três discutirem. A primeira e a segunda vozes altemam-se em
um motivo extraído do tema, enquanto a terceira dispara sob as duas com um motivo
do contra-sujeito. Assim é tecida a teia polifônica e desenvolve-se a fuga. As três vozes só
chegarão a um acordo no final, quando tiverem esgotado o tema. Note-se como a pró­
pria terminologia da fuga tem como referencial a situação dialógica: sujeito, contra-su­
jeito, tema e resposta. Trata-se de uma interlocução.
lim contraponto de caráter diferente pode ser encontrado em uma peça bastante
conhecida: a Aria da Suíte nâ 3, em Ré Maior, também de J. S. Bach. Trata-se de um con­
traponto a três vozes acompanhado por um baixo-contínuo4, ou seja, um acompanha­
mento harmônico. A ária é, tradicionalmente, uma peça para um solista acompanhado,
não é comum ver uma ária em textura contrapontística. O caráter melódico e lírico da
ária, todavia, está presente na melodia principal, que é executada pela primeira voz:

4. Baixo-contínuo é a técnica do acompanhamento harmônico do período barroco. É


a primeira a representar acordes como unidades cifradas a partir da linha escrita do baixo.
Guardadas as devidas proporções, é uma antecessora da cifragem de acordes, tão comum na
música popular no século XX.
Prólogo. La musica 19

Contudo, as duas vozes inferiores aproveitam-se dos pontos de repouso dessa me­
lodia principal para tecer seus comentários, reafirmando ou completando aquilo que é
exposto pela primeira voz. Todo esse contraponto é colocado sobre uma sólida estrutura
de baixo-contínuo que lhe confere estabilidade, sustentação harmônica e rítmica em seu
desenvolvimento.
Por meio destes exemplos, podemos perceber como, em uma textura polifônica,
o desenvolvimento de cada uma das vozes pode se dar em graus diferenciados. Na Fuga,
as vozes conservam um grau de independência muito grande. Tema e contra-sujeito
passam de uma para a outra, e a cada momento uma delas se coloca em primeiro pla­
no. Na Ária, não existe uma "discussão" do tema, as vozes inferiores subordinam-se à
primeira, que é a responsável pela exposição. As vozes inferiores comentam o tema,
com plem entam -no, ou seja, a individualidade das vozes é m enor e o grau de
interdependência, maior. Contudo, embora em grau menor, a independência ainda
existe e, em ambas, o que ouvimos é a resultante da somatória de todas as vozes, de seus
enunciados individuais.
Nas texturas homofônicas, por sua vez, a interdependência entre as vozes chega ao
seu grau máximo. Trata-se de uma textura em que todas as vozes possuem a mesma di­
visão rítmica, ou seja, falam simultaneamente. No plano melódico, as vozes podem con­
servar sua independência em termos de direção, ainda que sejam interdependentes
ritmicamente. Sendo assim, o que ouvimos não é mais um grupo de interlocutores, mas
um conjunto unívoco, tal como o correspondente exemplo no motete Jesu, ísAeine
Freunde, de J. S. Bach, que possui uma estrutura similar à de todos os corais desse com­
positor. Apesar de as vozes ainda possuírem independência melódica, o resultado de seu
encontro é uma textura homofônica.

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A situação do diálogo musical pode ser encontrada também em construções


homofônicas. llm exemplo disso é a Canção do eco, de Orlando de Lassus. O composi­
tor faz dois coros dialogarem, em uma das muitas experiências musicais do século XVI
com o intuito de imitar o eco. Ele brinca com a sincronia: o segundo coro é a reprodu­
ção exata do primeiro, defasada. Trata-se de um cânone entre coros. Contudo, cada um
deles é harmonizado a quatro vozes, homofonicamente.
O princípio polifônico transcende os limites da própria música. As combinações
de música com outras linguagens ou sistemas de signos geram relações similares, outras
texturas. A música e o texto, a música e o movimento, a música e a imagem, são tam-
20 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

bém relações polifônicas e, tal como as vozes de um contraponto, podem possuir um grau
de independência maior ou menor, mas serão sempre interdependentes pelo fato de ha­
verem sido combinadas para compor um único "texto".

A R elação da M ú s ic a c o m o T exto P o é t ic o

A associação entre música e fala remonta a tempos imemoriais. A música vocal é


encontrada em praticamente todas as culturas e com uma freqüência ainda maior do que
na música instrumental. Isso nos permite dizer que o canto é uma manifestação comum
ao ser humano, por maior que seja a diversidade cultural.
Em certo sentido, cantar é um modo peculiar de falar, pelo qual as palavras adqui­
rem um ritmo e uma entonação diferentes. A música, por sua vez, mesmo quando liberta
de sua ligação com a fala, guarda semelhanças estruturais com a linguagem verbal, identi­
ficando uma origem comum: um momento perdido no tempo, quando as duas existiam
de forma praticamente indissociável.
Em sua narrativa a respeito de Sainte-Colombe, Marin Marais diz que ele "(...) imi­
tava as inflexões da voz humana. Do suspiro de uma jovem, ao soluço de um velho. Do
grito de guerra de Henrique de Navarra, à ofegância suave de uma criança que dorme".
A classificação de Aristóteles que inclui a música como arte mimética pode ser, em par­
te, vista sob esta ótica: a música imita a fala em sonoridade e estrutura, e é isso que nos
permite tratá-la como linguagem.
A música, contudo, difere da linguagem verbal em muitos aspectos. O mais percep­
tível deles reside no plano da significação. A significação musical não é conceituai, nem
objetiva, a não ser no que diz respeito à sua estrutura. O máximo que podemos dizer é
que, para um determinado grupo cultural, determinada estrutura musical provoca apro­
ximadamente este ou aquele resultado em termos de associação ou resposta emocional.
O signo musical não pode ser abordado a partir dos mesmos parâmetros que orientam
o estudo do signo verbal. A definição de Saussure (1916), que distingue significante e sig­
nificado no signo verbal, pressuposto básico da lingüística, não pode ser aplicada com
eficácia à música. Contudo, dizer que música não possui significado cria um problema
ainda mais sério. O que podemos perceber é que, em música, a estrutura significante e
o significado não podem ser dissociados. Também notamos que o tipo de significação
gerado pela linguagem musical não se baseia em conceitos. A música não permite a ar­
ticulação objetiva de uma estrutura que possua, indiscutivelmente, o mesmo significa­
do de "ser ou não ser, eis a questão". Logo, o processo significativo em música deve passar
por outra via de nossa percepção. O compositor de cinema Leonard Roseman narra uma
passagem de sua vida profissional na qual se deparou com esta questão:

Em The Defenders, eu tinha uma recomendação explícita do diretor e produ­


tor, Herb Brodkin, que disse para mim: "Eu quero um tema para The Defenders que
exemplifique a lei". "Bem", eu disse, "eu posso lhe dar um tema que exemplifique
certas leis da música, mas eu não acredito, realmente, que a música possa exem­
plificar a lei mais do que Strauss pode exemplificar as leis da mesa de jantar na Sin­
fonia Doméstica. Eu sinto que a música não pode expressar certas coisas de caráter
literário sem que haja uma associação literária direta. (Apud Bazelon, 1975:182)
Prólogo. La musica 21

Ao longo da história, a questão da significação musical foi interpretada de muitas


maneiras, quase sempre pela via da associação. Associar a significação da música com
imagens, por exemplo, é algo feito com certa freqüência. O próprio Eisenstein, em seu
artigo "A sincronização dos sentidos" (1990a), criou uma teoria para a música de cine­
ma baseada nesse tipo de associação. Contudo, dizer que determinada passagem musi­
cal nos remete a uma determinada imagem ainda não é algo preciso. A imagem
invocada será sempre relativa ao universo pessoal dos ouvintes e, certamente, será tão
mais variada quanto maiores forem seus universos. Dizer que essa passagem musical nos
provoca uma determinada sensação ou resposta emocional é um pouco mais próximo
da experiência de ouvir música, mas, ainda assim, trata-se de algo subjetivo e também
varia em função de diversos fatores: gmpo sócio-cultural, predisposição individual etc.
Mas é indiscutível que o ato de ouvir e fazer música é uma experiência significativa,
por mais subjetivo que seja seu significado, caso contrário, não seria algo tão comum
e necessário.
Quando a música se associa a outra linguagem, ocorre uma interação significati­
va. No caso do texto poético, todo o universo significativo do texto é associado à música,
assim como a música confere ao texto uma nova dimensão significativa. Tratando-se de
uma obra de arte, a significação continua a possuir um grau de abertura, seu significado
nunca será único e inquestionável. Apesar disso, a interação entre as linguagens estabe­
lece novos limites significativos para ambas, ou seja, surge uma nova poética resultante
dessa combinação, a qual possui convenções próprias, diferentes das que regem uma ou
outra individualmente. Em princípio, uma música pode receber qualquer texto, assim
como qualquer texto pode ser musicado, porém a obra artística que surge dessa combi­
nação é única. A substituição do texto de uma canção por outro gera outra canção, a mú­
sica ouvida sem o texto é outra obra, assim como uma leitura do texto sem a música.
Essa nova poética, gerada pela interação de música e texto é, também, uma estru­
tura polifônica e, assim como na polifonia musical, apresenta uma diversidade muito
grande. Música e texto se associam de muitas maneiras e, por meio dessas associações,
obtêm-se resultados poéticos os mais diferenciados.
No canto gregoriano, encontramos um tipo de relação entre música e texto bastante
peculiar, em que a música deve subordinar-se ao texto litúrgico:

(...) a melodia, pensada em função do texto, destina-se a lhe dar relevo. Ainda quan­
do é mais especialmente ornada e parece desdobrar-se "por si mesma" nas peças
melismáticas, na realidade é ao texto que ela serve, porém num nível mais profun­
do. Com efeito, em vez de se amoldar simplesmente à acentuação das palavras e
seguir rigorosamente o ritmo natural, o desdobramento melódico chama a atenção
para as palavras principais e tenta exprimir a densidade interior. Trata-se então do es­
pírito do texto mais do que de sua matéria, mas, definitivamente, é sempre o texto
que inspira a melodia. (Cardine, 1989:57)

A passagem acima, ainda que apresente uma noção pouco clara de "espírito do tex­
to", ilustra bem a concepção do canto gregoriano sobre a relação entre música e texto.
Trata-se de um tipo de construção melódica na qual o ritmo possui um grau de liberda­
de muito grande e que, em hipótese alguma, pode interferir na compreensão do texto.
22 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

O desenvolvimento da polifonia ao longo da Idade Média levou a um tipo de asso­


ciação em que, em muitos casos, o texto tomava-se completamente ininteligível. O prin­
cípio contrapontístico das vozes independentes produzia estmturas musicais em que as
linhas melódicas não eram coincidentes, fazendo com que cada uma apresentasse o texto
de um modo diferente, de maneira que se tomava impossível compreendê-lo. Para agra­
var ainda mais essa situação, foi comum nesse período o uso de textos diferentes para
cada uma das vozes, sendo impossível compreender qualquer um deles.
Muitas são as experiências que tentam aproximar a música do texto falado ou ela­
borar uma construção musical que conserve a naturalidade da fala. Tais experiências con­
sistem, norm alm ente, em criar um tipo de construção m elódica e rítmica que se
aproxime da musicalidade inerente à própria fala, conservando suas acentuações e seu
movimento de alturas. Nas formas dramático-musicais, como veremos mais à frente, há
um número muito grande de tais tentativas.
Um exemplo desse tipo de construção é o estilo recitativo, que teve grande desen­
volvimento no contexto operístico. No recitativo, ritmo e melodia subordinam-se ao
texto.
Outro tipo de tratamento do texto é o melodrama5, em que a música se altema com
o texto falado. O primeiro melodrama escrito foi Pygmalion, de Rousseau.
A ópera Fidelio, de Beethoven, apresenta uma seção em técnica melodramática no
segundo ato. Música e texto intercalam-se, dialogando, e desenvolvem-se em uma estru­
tura polifônica.
No início de século XX, surgiu a técnica do sprechgesangf, de Arnold Schoenberg.
Dentre as obras que utilizam essa técnica, a mais famosa é, sem dúvida, Pierrot Lunaire,
um conjunto de vinte e uma peças sobre poemas de Albert Giraud. Na relação de obras
do compositor, Pierrot Lunaire é também classificada como melodrama. No prefácio da
partitura, Schoenberg comenta a técnica do sprechgesang: "(...) o ritmo deve ser observa­
do estritamente, como se se tratasse de um canto, mas, enquanto a melodia cantada
mantém a altura do som, a melodia falada não faz senão indicá-la, abandonando-a ime­
diatamente..." (Leibowitz, 1981:91).
Existem também construções nas quais a música é acompanhada por um texto
narrado. Um exemplo é a História do soldado de Igor Stravinsky, com poema de C. F. Ramuz,
em que o texto do narrador é indicado na partitura apenas ritmicamente. Desse modo,
a narração é incorporada à música.
O texto escrito também pode ser usado para induzir uma determinada "leitura" da
música. No século XIX, por exemplo, houve uma grande ascensão da música programática.
As peças musicais eram acompanhadas por um texto que servia de referência para a sua
audição. Um exemplo bastante conhecido é a Sinfonia fantástica, de Berlioz.

5. O termo melodrama possui várias acepções. Para os italianos, ele foi sinônimo de
ópera, mas pode também significar texto acompanhado de música, como é o caso da peça
de Rousseau. O termo também é usado para designar um gênero de produção teatral e, atual­
mente, televisiva, de grande apelo emocional.
6. Canto-falado, em alemão.
Prólogo. La musica 23

Por maior que seja a variedade das relações entre texto e música, todos os exemplos
vistos acima são de peças musicais, não literárias. A canção é, antes de tudo, música; a ópera
é música; mesmo o canto gregoriano, a despeito da valorização que confere ao texto, é um
gênero musical por excelência. Foi essa característica que levou Susane Langer a dizer:

Quando as palavras e música se conjugam na canção, a música engole as pa­


lavras; não só meras palavras e sentenças literais, mas até mesmo estruturas literá­
rias de palavras, poesia. A canção não é um compromisso entre poesia e música,
embora o texto tomado em si mesmo seja um grande poema; a canção é música.
(Langer, 1980:158)

A posição de Susane Langer é interessante no sentido de acabar com uma certa ilu­
são romântica que paira no senso comum, pela qual a música vocal seria uma espécie
de hibridação de música e literatura. Neste sentido, ela está coberta de razão: uma can­
ção é uma peça musical e não literatura. Contudo, sua posição é demasiadamente extre­
mada, pois, ainda que não seja uma obra literária, a canção é um compromisso entre texto
e música, caso contrário não seria necessária a presença do texto. Todo compositor sabe
que o ato de compor canções ou qualquer obra vocal é diferente do de compor música
instrumental. Com certeza, não se trata de "um compromisso gentil" ou "uma alternação
graciosa de valores poéticos e musicais" (Langer, 1980:160), como ela mesma disse; muito
pelo contrário, a fusão das linguagens é muito mais uma violência que transforma a
ambas, como os metais, que para serem unidos precisam ser derretidos em altas tem­
peraturas.
A afirmação de que a música "engole" o texto também precisa ser tomada com certa
cautela. O que a ela conduz é a constatação de que a união de música e texto produz for­
mas musicais, e não literárias. Realmente, o fato de se constituir como forma musical
permite que a música vocal seja ouvida sem que se leve em consideração o texto. É pos­
sível, inclusive, ouvir música cujo texto foi escrito em uma língua que desconhecemos
e, ainda assim, usufruirmos de uma experiência estética rica. Contudo, a compreensão
do texto permite uma experiência diferenciada. Podemos ouvir uma ópera inteira ape­
nas pelo prazer musical que isso significa, mas só compreenderemos seu desenvolvimen­
to dramático, se pudermos compreender o texto. O envolvimento dramático-musical só
passa a existir a partir do momento em que somos capazes de entender o que é dito pe­
las personagens em ação. Em última instância, é preciso sempre lembrar que um texto
poético é associado a uma música também por razões de sonoridade, mas não apenas
por elas: as palavras significam e essa significação é sempre parte do conjunto da com­
posição.
Desse modo, talvez seja mais correto substituir o termo "engole", por "incorpora".
Em uma peça vocal, a música incorpora o texto. E o que faz com que a obra vocal seja
entendida como música, e não como obra literária, é algo extremamente simples: a sua
fruição é auditiva, ou seja, ela é feita, antes de tudo, para ser ouvida. Na obra vocal, a mú­
sica articula o texto, conduzindo o seu desenvolvimento ao longo do eixo temporal e ofe­
recendo-lhe todos os seus recursos articulatórios específicos. A partir daí, o texto,
incorporado e articulado, transforma-se em música.
24 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

É sob essa ótica que a junção de música e texto pode engendrar uma nova poética,
ou novas poéticas. Susane Langer já aponta nesse sentido quando diz:
(...) Um poema que tenha forma perfeita, em que tudo seja dito e nada meramen­
te esboçado, uma obra completamente desenvolvida e fechada, não se presta facil­
mente à composição. Não renunciará à sua forma literária. (...) Um poema de
segunda classe pode servir melhor a essa finalidade, porque é mais fácil para a mú­
sica assimilar suas palavras, imagens e ritmos. (1980:160)

É impressionante a similaridade entre o teor dessa afirmação de Langer e um de­


poimento de Bemard Herrmann, no qual o compositor afirma que "um dos paradoxos
da música de cinema é que a música bem usada pode ser música de qualidade muito bai­
xa e ser eficiente, ou ser música de magnífica qualidade e igualmente servir ao seu pro­
pósito".7
O ponto realmente significativo da afirmação de Langer não reside na distinção que
faz entre poemas de primeira e segunda classes, mas na distinção que estabelece entre um
tipo de texto mais adequado e outro menos adequado para tomar-se uma canção. Essa
característica não se limita ao texto. Nem toda música se apresenta adequada para o de­
senvolvimento de uma obra vocal e tudo que foi dito na passagem acima sobre o texto
pode ser aplicado também a ela. O que fica claro, então, é a idéia de que existem tipos
de música e tipos de texto mais adequados à mútua combinação. Além disso, existem
contextos nos quais esses tipos de texto e de música diferem: texto e música adequados
à criação de uma canção lírica são diferentes daqueles adequados à composição de um
rock para o mercado fonográfico. Por essa via, podemos dizer que o principal fator que
caracteriza essa adequação é o que a autora chamou de abertura. Existe um grau de aber­
tura imprescindível para que tanto a música quanto o texto possam ser unidos em uma
única obra. Quantificar essa característica é algo quase impossível, mas a prática da cria­
ção de canções ou de qualquer outra espécie de música que estabeleça algum tipo de rela­
ção com o texto, vem demonstrando ao longo da história o quanto isso é verdadeiro.
A noção de que a música associada ao texto possui uma poética particular permite
uma compreensão da música vocal diferente daquela à qual chegamos por uma aborda­
gem puramente musical ou literária. A música que sob um ponto de vista estritamente
musical pode ser vista como "de segunda classe" - assim como um poema, sob o ponto
de vista puramente literário - , quando observada sob a óptica dessa poética específica
pode tomar-se música vocal de "primeira classe". Da mesma maneira, podemos enten­
der a afirmação de Herrmann em relação à música de cinema.

A R elação P o l if ô n ic a da M u sic a c o m o M o v im e n t o

No item anterior, vimos duas propriedades da música. A primeira é a sua capa­


cidade de organizar o desenvolvim ento tem poral ou "tornar o tem po audível"

7. Em uma entrevista concedida no início dos anos 1970 e reproduzida no cd Bernard


Herrmann no cinema.
Prólogo. La musica 25

(Langer, 1980:117), propriedade que se manifesta no eixo horizontal. A segunda é a pro­


priedade polifônica, que permite à música associar-se consigo mesma e com outras lin­
guagens, manifestação que se dá no eixo vertical. São essas mesmas propriedades que
permitem à música associar-se não apenas ao texto, mas também ao movimento, em to­
das as suas manifestações.
Em um certo sentido, a idéia de movimento é algo presente na música a priori,
como já havia percebido Eduard Hanslick:

Qual é (...) o elemento do qual a música pode se apoderar de fato com tanta
eficácia? É o movimento (...).
O conceito de movimento tem sido, até aqui, negligenciado de modo sur­
preendente nos estudos sobre a essência e o efeito da música; este conceito afigu-
ra-se-nos como o mais importante e o mais produtivo. (1992:38)

Ainda assim, o movimento inerente à linguagem musical é algo quase tão difícil
de ser abordado quanto a questão da significação musical. O movimento musical não é
físico. A sucessão de sons organizados ao longo do tempo gera uma resultante que nos­
sa percepção tende a entender como movimento, que de fato não existe. Trata-se de uma
ilusão de movimento, que só é possível porque a cada novo evento ainda temos a m emó­
ria imediata do evento anterior. O confronto desses eventos sucessivos em nossa percep­
ção é que gera uma sensação de movimento. É algo muito parecido com o cinema, no
qual as imagens dos sucessivos fotogramas retidas por um curto período de tempo na re­
tina geram, também, uma ilusão de movimento.
O movimento musical seria, portanto, ilusório ou, como disse o próprio Hanslick,
"formas sonoras em movimento" (1992:62). Susane Langer apresentou a mesma idéia:
"Esse movimento é a essência da música; um movimento de formas que não são visí­
veis, (...) dadas ao ouvido em vez de à visão" (1980:115).
Como movimento puramente audível, a música traz, implicitamente a idéia de sua
contrapartida, que é o movimento passível de visualização. Isso não quer dizer, de modo
algum, que a música deva ser necessariamente acompanhada por algum elemento vi­
sual. Todavia, a possibilidade de associação entre música e movimento é algo sempre pre­
sente. Esse é um dos motivos pelo qual a proliferação de manifestações, nas quais o
movimento audível e o visível ocorrem simultaneamente, é tão grande e variada.
A polifonia que se dá entre o movimento musical e o visível também se asseme­
lha à polifonia musical propriamente dita e à polifonia entre a música e o texto poéti­
co. Contudo, a música tem mais dificuldade de "engolir" o movimento visível (para usar,
mais uma vez, a terminologia de Langer) do que o textual. As formas artísticas em que
música e movimento são associados quase nunca são tidas como obras puramente mu­
sicais. O que se observa em tais situações é um paralelismo entre o audível e o visível,
uma simultaneidade, uma complementaridade organizada pelas convenções particula­
res dessa polifonia. Um dos principais fatores que levam a esse resultado é o fato de som
e imagem pertencerem a setores disúntos de nossa percepção. Quando tratamos da união
de música e texto poético, a situação é diferente. Música e fala, guardadas todas as dis­
tinções entre ambas, aproximam-se, posto que ambas atingem a nossa percepção pela via
26 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

auditiva. O movimento visível, ao contrário, encontra-se em outro campo perceptivo, o


visual. Assim, se o texto poético pode, em determinado contexto, ser incorporado pela
música a ponto de tornar-se parte dela ou, num sentido mais lato, tomar-se música, o
mesmo não ocorre com relação ao movimento visível.
A combinação de música e movimento produz, portanto, outro tipo de resultado
artístico, diferente da obra musical pura. Ainda assim, a música continua a oferecer sua
força expressiva àquilo a que se associa. A organização e o desenvolvimento expressivo
ao longo do tempo, seu éthos, recortes e partições, são estas algumas das características
da música incorporadas por tudo aquilo que a ela se associa polifonicamente. Acima de
tudo, a música possui a capacidade de contextualizar poeticamente tudo o que a ela se
relaciona. O texto ou o movimento, ao se fundirem com a música, inserem-se em um
contexto poético diferente daquele a que originalmente pertenciam. Essa capacidade da
música pode ser usada até mesmo para gerar uma situação poética inusitada. O movi­
mento mecânico, repetitivo, uma troca de cenário em uma obra dramática, por exem­
plo, pode ocorrer com as cortinas fechadas, sem que isso prejudique o espetáculo. Pode,
por outro lado, ser transformada em um momento expressivo, algo como um balé me­
cânico. Em uma situação como essa, a música é um fator muito eficaz para a constru­
ção da ilusão. Em resumo, a música continua a ser para o movimento visual um fator
de articulação, como vimos ser para o texto poético.
A quantidade de informação contida em uma passagem musical é tão grande que
permite os tipos mais variados de audição. Há um tipo de audição mais técnica, que exi­
ge conhecimento musical. Identificação de material temático, passagens harmônicas,
estrutura formal. Isto só é possível quando se possui uma formação musical, e tão maior
será a apreensão nesse aspecto quanto maior for o conhecimento musical do ouvinte.
Contudo, é possível ouvir música sem possuir nenhum tipo de conhecimento técnico,
da mesma maneira que é possível ler um romance sem possuir nenhum conhecimen­
to técnico de literatura. A arte é algo para todos. E o que importa, realmente, é o efeito
que a obra artística causa em seu público. Este efeito é o produto de todos esses fatores
somados. Não importa se tecnicamente uma música é muito bem construída; de nada
servirá se ela não for capaz de provocar um impacto no ouvinte.
Todo movimento exerce um certo tipo de poder hipnótico sobre nós. O movimento
musical não é exceção e um dos aspectos da audição musical mais significativos ao nos­
so propósito passa por essa via. Mesmo quando realizamos a audição mais técnica, em
busca de detalhes da construção musical, somos absorvidos por seu fluxo contínuo. A
música nos envolve num fragmento do tempo roubado ao relógio e recriado na própria
dimensão musical. Esse envolvimento é uma característica muito forte da audição mu­
sical e um dos grandes responsáveis pelo fascínio que a música exerce sobre nós. Quan­
do inseridos no tempo musical, é como se o tempo cronológico deixasse de existir.
O mais fascinante é que esse envolvimento pode ocorrer mesmo quando não es­
tamos prestando atenção na música. Curiosamente, a parcela da audição que se pro­
cessa consciente e intelectualmente e aquela que acontece de modo subliminar (no
nível da sensação e da resposta emocional pura e simples) não precisam ocorrer ne­
cessariamente juntas. Em certo sentido, essa foi a grande descoberta dos produtores de
Prólogo. La musica 27

musafc8 e, para tanto, desenvolveram um tipo de música na qual as variações expressivas


são mínimas. As linhas melódicas são estáveis; a instrumentação, ainda que rica, ofere­
ce muito pouca variedade timbrística; ritmicamente, tudo é muito equilibrado; motivos
"bem comportados", com pouco uso de sincopas. Em resumo, a "suavidade" é o lema.
O ouvinte não pode ter sua atenção chamada o tempo todo para a música. Em qualquer
momento, ela deve parecer sempre a mesma e jamais causar desequilíbrio. Desse modo,
o ouvinte é envolvido e embalado, para que não sinta o tempo passar enquanto aguarda
ou para fazer as suas compras com mais tranqüilidade.
A experiência do musak nos revela muito desse aspecto subliminar da audição mu­
sical, talvez seu aspecto mais primário. É um tipo de música feito para não ser ouvido,
da mesma maneira que se proclama que a música de cinema seria uma música para não
ser ouvida. Na verdade, tanto o musak quanto a música de cinema sabem trabalhar nes­
se nível primário de audição, ainda que a música de cinema não o faça exclusivamente.
Aquilo que em muitas ocasiões é tomado por audição desatenta é, na verdade, um tipo
de audição que atinge um determinado nível de nossa percepção. É claro que a audição
criteriosa e consciente nos revela aspectos da música que uma audição desatenta é inca­
paz de fazer. Mas é importante perceber que a audição primária, para não dizer desaten­
ta, também é uma experiência significativa.
Nesse nível primário, a música é capaz de provocar respostas emocionais imedia­
tas, agindo diretamente sobre a nossa sensibilidade. O ato de podermos ouvir música en­
quanto desenvolvemos outra atividade ou enquanto pensamos ou escrevemos, é algo que
ocorre nesse nível primário. Isso também é possibilitado pela propriedade polifônica da
música, que pode associar-se a uma ação ou pensamento da mesma maneira que se as­
socia ao movimento visível. Em qualquer situação, ela gera resposta emocional, por meio
de um envolvimento que só ela possui.
Assimilando ou sendo assimilada, a música transforma poeticamente qualquer si­
tuação em que se apresente. Do texto verbal ao gesto do bailarino, tudo é impregnado
pela dimensão temporal da música. Por ela somos hipnotizados, coletivamente indivi­
dualizados, transformados, assim como são transformados aquele texto e aquele gesto.
Texto, gesto, movimento mecânico e música, todos se associam nas formas dramáticas
e dramático-musicais. A música, assimilada pelo drama, passa a desempenhar novas fun­
ções e a estabelecer novas relações. Isso é o que abordaremos no próximo capítulo.

8. Diz-se da música feita para preencher o silêncio de consultórios médicos, supermerca­


dos e elevadores.
1
I I M elo d ram a

Em uma clareira cercada por um bosque de louros e ciprestes, vê-se a tumba de


Eurídice. Pastores e pastoras omam-na com flores e alimentam de incenso a pira sagra­
da. Vê-se Orfeu, que emite seu lamento intermitente, largado sobre uma rocha. Os pas­
tores cantam1:

Pastores: Ah, se intomo a quest'uma funesta,


Euridice, ombra bella, t'aggiri
Orfeu: Euridice
Pastores: Odi i pianti, I lamenti, I sospiri
Che dolenti si spargon per te.
Orfeu: Euridice
Pastores: Ed ascolta il tuo sposo infelice
Che piangendo
Ti chiama e si lagna.
Orfeu: Euridice
Pastores: Come quando
La dolce compagna
Tortorella amorosa perde.

A passagem acima é o início da primeira cena de Orfeo ed Euridice, de Gluck. Uma


construção como essa só é possível no contexto da ópera. O coro contracena com Orfeu,

1. Pastores: Ah, se em tomo a esta urna funesta / Eurídice, tua bela sombra vaga. Orfeu:
Eurídice. Pastores: Ouve os prantos, os lamentos, os suspiros / Que dolorosamente se derra­
mam por ti. Orfeu: Eurídice. Pastores: E escuta o teu esposo infeliz / Que chorando / Te cha­
ma e se lamenta. Orfeu: Eurídice. Pastores: Como quando / A doce companheira / A amorosa
rolinha perdeu.
30 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

é parte da ação dramática. Ao mesmo tempo, ele comenta essa ação, está acima dela. O
coro apresenta um distanciamento da ação que lhe confere prerrogativas similares às de
um narrador. Em uma passagem tão curta, o coro estabelece relações dialógicas em três
níveis distintos. Seu texto é dirigido a Eurídice, já morta. Mas, por meio desse diálogo com
a interlocutora ausente, o coro estabelece um diálogo também com o desesperado Orfeu,
que intervém em cada uma das estrofes do coro para exteriorizar sua aflição em uma
única palavra: "Eurídice". Mas tudo isto serve para o coro expor a situação ao público.
Quando dirige seus versos para Eurídice, está na verdade dirigindo-os a cada espectador,
individualmente, e ao público, coletivamente. Quando ele diz: "Ouça os prantos, os la­
mentos, os suspiros" ou "E escuta o teu esposo infeliz", ele está situando o público em
relação à ação que se inicia, e o faz dirigindo-se a cada espectador usando, para tanto, a
"bela sombra" de Eurídice. Ao mesmo tempo, somos informados que Eurídice está mor­
ta; que era uma pessoa querida, pois muitos a homenageiam; que seu marido sofre e que
a amava, porque sofre por sua morte. Ainda, o fato de Orfeu emitir apenas o nome de
Eurídice, como um chamado, informação completada pelo comentário do coro: "E es­
cuta o teu esposo infeliz / Que chorando / Te chama e se lamenta", traz implícito o nú­
cleo de todo o drama que é a luta de Orfeu para resgatar Eurídice do Hades. A descida ao
mundo dos mortos não é senão a materialização desse grito inicial de Orfeu, uma am­
pliação deificada desse chamado que adquire o poder de trazê-la de volta à vida.
Mas o que faz dessa construção algo distinto é a música. O texto é absolutamente
sintético. Se dito verbalmente não demoraria mais do que trinta segundos para aconte­
cer, e seriam os trinta segundos mais entediantes da história do teatro. De um lado, um
grupo de pessoas recitando alguns versos bastante simples, de outro, um herói ao qual
foi roubado todo o texto, que simplesmente fica repetindo, pateticamente, o nome de sua
amada morta. Nada de profundo é dito. Não há nenhum grande achado poético, nenhum
"ser ou não ser". E, no entanto, esse é um dos maiores momentos da história da ópera,
o marco de uma reforma; particularmente, uma reforma que visou a transformação da
dramaturgia operística. O grito de Orfeu, articulado pela música é também um "ser ou
não ser..." É "ser ou não ser" sem Eurídice; é "ser ou não ser" apolíneo e dionisíaco em
um só; é "ser ou não ser" o herói mítico e descer ao Hades em busca de sua amada. Ali,
Orfeu é apenas o homem atormentado, como também o é Hamlet. Cada um com seu
respectivo "ser ou não ser"; cada um tendo sua ação dramática conduzida por um fator
distinto: para Hamlet, o texto, para Orfeu, a música.
A orquestra prepara a entrada do coro, situando o espectador em relação àquele
momento específico da ação; nela estão indicados o caráter dessa ação, seu andamento.
Se no texto o coro dialogava com Eurídice e com o público, musicalmente ele dialoga
com a orquestra e com Orfeu. Ele espera que a orquestra fale para entrar na seqüência.
A orquestra, por sua vez, antecipa a frase musical do coro e sustenta as suas passagens
homofonicamente, compactuando com ele, de maneira uniforme. A estrutura rítmica
das frases de ambos apresenta uma repetição freqüente do seguinte motivo rítmico:

r r r
II melodrama 31

Este motivo produz um efeito bastante significativo. Ele impede que haja uma fluência
no desenvolvimento da frase. Parece que o desenvolvimento rítmico é sempre contido
pela nota longa. Em linguagem menos técnica, ele produz na frase musical uma conten­
ção semelhante a um soluço, como o tipo de soluço que temos quando tentamos falar
chorando, o que se enquadra perfeitamente no espírito do momento dramático em ques­
tão. Combinado com pausas, esse motivo principal de toda a seção gera também as res­
pirações de quem chora e soluça.
E ambos, coro e orquestra, respiram para a primeira intervenção de Orfeu. Este en­
tra como se não houvesse nem um nem outro isoladamente. As frases de Orfeu e do coro
seguem paralelamente. O coro não espera que Orfeu conclua a sua frase para iniciar a
sua segunda estrofe. Ele se sobrepõe à frase de Orfeu, mas, ainda assim, podemos ouvir
e entender os dois com toda a clareza. E, desse modo, altemam-se o coro e Orfeu, dialó-
gica e polifonicamente, sobre a base ininterrupta da orquestra.
Num fragmento dramático-musical tão curto, podemos perceber um conjunto vasto
de relações. Nele já estão presentes elementos que serão explorados ao máximo pelo ci­
nema - o paralelismo, que D. W. Griffith iria transformar em fundamento básico da lin­
guagem, a relação entre campo e contracampo, base da estrutura dialógica do cinema, o
corte, a montagem. Indo um pouco mais longe, vamos imaginar a mesma construção
no cinema ou, melhor ainda, vamos imaginá-la no cinema mudo:

Plano Geral: Vemos a tumba de Eurídice. Os pastores adom am -na com


flores e queimam incenso. Orfeu recosta-se sobre uma pedra.
Corte.
Plano médio nos pastores: Vemos que eles choram e lamentam a morte de Eurídice.
Apontam na direção de Orfeu.
Corte.
Plano fechado em Orfeu: O herói desconsolado chora e chama por Eurídice.
Corte.
Plano geral: Vemos novamente o lamento dos pastores e Orfeu, agora
juntos.

Quem articula a informação nesta rápida seqüência é a montagem. Planos em di­


versos enquadramentos são unidos para formar uma progressão lógica. Na ópera, quem
faz essa articulação, operando os recortes da ação e direcionando a atenção do especta­
dor, é a música. Tudo que não é dito no texto é informado pela via musical. Tomamos
ciência do estado de espírito de Orfeu, de seu desespero e também do que se passa com
seus amigos anônimos. É um tipo de construção que exigiria um tratamento poético to­
talmente diferente se tivesse de ser resolvida pela ferramenta básica da dramaturgia tra­
dicional, o texto. Ainda assim, por mais que fosse poeticamente bem resolvida, o resultado
final seria outro, pois o texto dramático possui convenções próprias, diferentes das con­
venções dramático-musicais. Eis aí a grande diferença entre o dramático e o dramático-
musical, diferença esta que pode ser resumida em uma palavra: música. Na articulação
operística, as relações dialógicas e polifônicas são coordenadas pela música, sobre e por
32 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

meio da qual se constrói todo o desenvolvimento dramático. Na ópera, a música articu­


la o drama.
Orfeo ed Euridice estreou em Viena em 1762, na metade do percurso entre o surgi­
mento da ópera (na transição entre os séculos XVI e XVII) e o nascimento do cinema,
no final do século XIX. Naquele momento, a linguagem operística havia se desenvolvi­
do a ponto de permitir construções bastante complexas, as possibilidades de articulação
dramático-musicais eram experimentadas por muitos, o volume e a intensidade da pro­
dução operística eram enormes. Tal momento foi o resultado de um processo pelo qual
passaram as artes dramática e musical ao longo de séculos e que iria continuar ainda por
muito tempo. Os resultados desse processo estão presentes na arte do século XX, na mú­
sica, no teatro e no cinema. Para entendê-lo, precisaremos voltar às origens, lançar nos­
so olhar em flash back sobre a relação entre drama e música na cultura ocidental.
O mito de Orfeu foi um dos temas preferidos para a elaboração de obras dramáti­
co-musicais. As versões desse mito nos mais diversos gêneros são inúmeras. Vale lem­
brar, também, que ele ressurge sempre em momentos de grandes transformações na
história do drama musical. A primeira pastorale é a Fàvola d'Orfeo, de Poliziano, apresen­
tada em Mantua em 14802. As primeiras óperas que sobreviveram na íntegra são as duas
versões de Eurídice, uma de Peri e outra de Caccini, ambas sobre o mesmo texto de
Rinuccini. O marco de consolidação da ópera como um novo gênero é L'Orfeo, Fàvola
in Musica de Monteverdi (1607), com texto de Striggio. Gluck, em sua reforma da ópe­
ra, retoma o mito de Orfeu, como vimos acima. No século XIX, Offenbach recria o mes­
mo mito em Orphée aux enfers. No século XX, temos a ópera La fàvola d'Orfeo, de Casella,
e o balé Orpheus, de Stravinsky.
Qual seria a misteriosa atração que o mito de Orfeu exerce sobre músicos e poe­
tas, para que apareça com tanta freqüência ao longo da história do drama musical? O que
toma Orfeu tão fascinante? Não são questões fáceis de responder. Como em todo mito,
o universo simbólico envolvido é vasto e complexo. Mas há alguns aspectos do mito de
Orfeu que são particularmente relevantes. O primeiro deles é a simbologia que faz de
Orfeu um herói paradoxal. Orfeu é ao mesmo tempo apolíneo e dionisíaco. Portador da
lira de Apoio, mas humano e artista ou, como descreveu Paul Diel, "no episódio de seu
amor por Eurídice, habitualmente tomado por uma história sentimental e tocante, en­
contra-se simbolicamente expressa toda a natureza dionisíaca de Orfeu: o dilaceramento
por desejos certamente intensos e, no entanto, banalmente contraditórios" (1991:133).
Sendo uma síntese de contradições, Orfeu é também o elemento de ligação entre
esses fatores conflitantes. Da mesma forma que representa a oposição entre o apolíneo

2. A data não é consenso entre os historiadores. David Kimbell, em Italian Opera, re­
fere-se a 1480 como ano da primeira apresentação. Owen Jander, em seu artigo para o ver­
bete "Pastorale" em The New Grove Dictionary of Music and Musicians apresenta 1471, mas não
indica se este seria o ano da composição ou da representação. Donald Grout, em A Short
History of Opera, é um pouco mais flexível e dá como data da apresentação o período entre
1472 e 1483.
II melodrama 33

e o dionisíaco, também nos mostra como se dá a ligação entre ambos e como se processa
tal síntese. Como homem, Orfeu estabelece a ligação entre o humano e o divino, entre
o mundo dos vivos e o dos mortos, em sua descida ao Hades. O orfismo, culto religioso-
filosófico cuja fundação é atribuída a Orfeu, antecipa princípios do cristianismo e esta­
belece a fonte entre o mundo clássico e o Ocidente cristão. Orfeu é também um músico,
mas não um músico qualquer. Horácio, em sua Arte poética, afirma:

Quando os homens eram ainda selvagens, Orfeu, sendo o sacerdote e intér­


prete dos deuses, dissuadiu-os da matança e da violência. Por esta razão, foi dito que
ele acalmava tigres e leões selvagens; e Amphion também, o fundador da cidade de
Tebas, disse que ele moveu as pedras pelo som de sua lira e que os guiava até onde
quisesse pela doçura de sua voz... Era em forma de canção que os oráculos eram pro­
nunciados e os caminhos da vida revelados. (Apud Kimbell, 1991:63)

O poder divino da música de Orfeu revela mais uma ligação, a da musica munda­
na, a harmonia das esferas, tocada pelos deuses e inaudível ao homem, com a musica hu­
mana. A tentativa de resgate desse poder órfico da música na segunda metade do século
XVI é o que guia os passos da Camerata e conduz ao desenvolvimento do estilo recitativo.
Assim, mais uma vez, Orfeu estabelece a conexão entre a ópera e a tragédia clássica.
Como músico e herói, Orfeu traz em si a síntese da tragédia clássica. De nenhum
outro se espera tanto que cante sua tragédia. Orfeu é capaz de fazê-lo e, assim, simboli­
za o vínculo entre música e drama. Não existe mito mais perfeito neste aspecto e esta é,
provavelmente, a razão de sua grande incidência e de Orfeu ter se tornado a imagem
arquetípica do drama musical.

As O r ig e n s d o D ram a M u sic a l n o O c id e n t e

O mito de Orfeu remete-nos ao tempo em que música, dança e texto poético ain­
da não haviam se tomado especialidades e eram parte de um mesmo ritual, cujo poder
mágico e encantatório está na origem das artes: representar e, por meio da representa­
ção, se apoderar da essência do que é representado. Um tempo em que o homem, ves­
tindo a pele do animal, dançava, cantava e apoderava-se de sua alma, de sua essência. Até
hoje, a arte conserva esse poder mágico e encantatório, e a forma artística que mais se
aproxima desse ritual original é o drama, particularmente o drama musical.
É em um contexto semelhante a este que surge a tragédia grega, como parte dos ri­
tuais dionisíacos. Embora haja alguma controvérsia, ao que tudo indica ela nasce em um
cenário musical, em que o coro ainda se expressa coletivamente, em que as personagens
ainda não haviam sido dele destacadas3.
Ainda que nenhum exemplo de música grega tenha sobrevivido, as informações
que chegaram até nós são suficientes para que saibamos que a música era um dos fun-

3. É isto que se infere das afirmações de Aristóteles em sua Arte Poética. Ver Aristóteles,
Arte Poética, capítulo IV, Origem da poesia. Seus diferentes gêneros.
34 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

damentos do drama grego. O desenvolvimento dramático da tragédia se dá por meio da


música e, posteriormente, da ação dialogada, em um processo em que, progressivamen­
te, texto e música vão se tornando independentes e especializados. Esta especialização é
o que leva Nietzsche a afirmar, em relação a Sófocles, Eurípides, Agathon e à comédia
nova, que:

A dialética otimista, com o açoite de seus silogismos, expulsa a música da tra­


gédia, isto é, destrói a essência da tragédia, que só se deixa interpretar como uma
manifestação e figuração de estados dionisíacos, como simbolização visível da mú­
sica, como o mundo sonhado por uma embriaguez dionisíaca. (1983:14)

Contudo, independentemente deste processo inevitável de especialização, o con­


ceito de drama, no Ocidente, sempre esteve associado à idéia de música. Em nossa cul­
tura, música e drama possuem uma origem comum. Ainda que suas evoluções tenham
sido paralelas, estas se influenciaram. O diálogo entre música e drama produziu trans­
formações em ambos. Nietzsche observava que "o prazer que o mito trágico engendra
tem a mesma pátria que a alegre sensação da dissonância na música. O dionisíaco, com
seu prazer primordial, percebido até mesmo na dor, é a matriz comum de que nascem
a música e o mito trágico" (1983:21).
Em sua origem, música e dramaturgia são aspectos de uma mesma ilusão básica,
de caráter mimético. Ao especializarem-se e dissociarem-se, conservam ainda as carac­
terísticas dessa ilusão primordial, seja em cada uma delas ou quando se combinam em
uma única obra.
Esse conceito persiste no drama medieval, tanto em suas manifestações litúrgicas
quanto seculares. No drama litúrgico, o texto latino era integralmente cantado, ou seja,
a ação dramática desenvolvia-se por meio da música. No drama em vernáculo, a músi­
ca também era parte constituinte da ação dramática, porém a ação não era integralmente
cantada. O texto falado era intercalado por peças musicais. Essa característica também
se encontra no drama secular e é, por exemplo, a estmtura de Lejeu de Robin e Marion
(cerca de 1283), de Adam de la Halle, o mais antigo drama secular a sobreviver com seu
conjunto completo de músicas.
Nesta tradição medieval, já se encontram as duas principais maneiras de a música
se inserir na composição. A primeira, em que o drama é inteiramente cantado, em que
a música é suporte e condutor da ação dramática. A segunda, em que música e texto fa­
lado se alternam. Uma leva ao extremo a relação polifônica entre música e texto, a ou­
tra valoriza a relação dialógica entre ambos. Estes dois tipos de relação dramático-musical
e suas respectivas combinações estão presentes em todos os gêneros dramático-musicais
que o Ocidente desenvolveria a partir de então.
A despeito desta tradição medieval, é na Renascença que iremos encontrar a origem
dos principais gêneros dramático-musicais. O reencontro da cultura européia com a anti­
güidade clássica instigará a busca de novas formas artísticas e a recriação de outras. É parti­
cularmente significativo, o florescimento de manifestações artísticas profanas em
contraposição à tradição de formas litúrgicas da Idade Média. É na Renascença que o homem
irá se reencontrar e redescobrir como homem dilacerado por desejos e paixões contraditó­
rios - é o renascimento de Dionísio, tão bem simbolizado pelo resgate do mito de Orfeu.
II melodrama 35

Do ponto de vista musical, a Renascença foi um período de esgotamento de velhas


práticas e de surgimento de novas concepções técnicas e estéticas. A tradição polifônica
da música litúrgica da Idade Média foi levada ao extremo na prática contrapontística dos
com positores flam engos. Ao m esm o tem po, iriam surgir as reações à técnica
contrapontística e a busca de uma nova concepção polifônica. Na prática renascentista,
encontra-se a origem de vários fundamentos musicais até hoje aceitos: a organização do
sistema métrico, a sistematização do encontro de vozes do contraponto, que possibili­
tou o entendimento do acorde como unidade vertical, a polarização das alturas, que le­
varia à transformação do sistema modal em tonal; trata-se, pois, de um período de
organização da linguagem musical, base de todo o desenvolvimento ulterior da música
em nossa cultura.

Comédia madrigal e pantomima

Ao mesmo tempo em que a música se transformava, as formas dramático-musicais


também eram submetidas ao mesmo processo de experimentação. A partir da Renascen­
ça, a relação entre música e drama é explorada em profundidade, nas suas mais varia­
das manifestações. A música, associada a elementos verbais e não verbais da obra
dramática, é usada em profusão.
Ao mesmo tempo, a música incorpora e é incorporada pelas formas dramáticas.
Um exemplo desse tipo de associação é a comédia madrigal, uma junção de peças secu­
lares articuladas por uma trama que lhes conferia unidade dramática. O madrigal é o prin­
cipal gênero musical não-litúrgico da Renascença na Itália. Escritos para os mais variados
números de vozes, sempre baseados em textos profanos, os madrigali tomaram-se a for­
ma musical mais popular do período. Nele foram experimentados diversos procedimen­
tos musicais e, particularmente, a valorização do texto poético na relação entre texto e
música. Buscava-se um tipo de organização polifônica em que a inteligibilidade do tex­
to não fosse prejudicada pela complexidade da textura contrapontística.
A comédia madrigal apresenta algumas características importantes. Em primeiro
lugar, por não se tratar de uma forma dramática propriamente dita, mas da organização
de um material musical previamente existente sobre um eixo dramático, ela antecipou
uma prática que se tomaria comum em gêneros posteriores, como o pasticio e a comédie
en vaudevilles. Algumas comédias madrigais não tinham por objetivo a encenação, mas
apenas a execução musical. No prólogo de Lamfipamaso (1597), Orazio Vecchi deixa isso
bastante claro, quando afirma que "o local desta ação é o grande teatro do mundo... sai­
bam, então, que o espetáculo sobre o qual eu falo é visto por meio da mente, na qual ele
entra pelos ouvidos, e não pelos olhos; façam silêncio, pois, e em vez de olhar ouçam"4.
Contudo, nem todas as comédias eram assim. Em alguns casos, havia indicação para
que o coro permanecesse fora de cena, enquanto os atores representavam uma ação
muda, mimada. Portanto, a ação representada tinha uma função de ilustração daquilo

4. Orazio Vecchi, prólogo de L'amfipamaso, no artigo de David Nutter para o verbete


"Madrigal comedy", em The New Grove Dictionary of Music and Musicians.
36 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

que era ouvido e não o inverso. Logo, o texto não pertencia propriamente ao drama, mas
à música, sendo transferido do ator para o cantor. Essa configuração permitiu um tipo
de experimentação da música com o texto muito própria desse gênero, como nos lem­
bra Donald Grout:
Em Vamfiparnaso, há onze diálogos e três monólogos, sendo que o mesmo
conjunto musical é usado para todos, a saber, madrigais a cinco vozes (um a qua­
tro vozes). Nos monólogos, todas as cinco vozes cantam; nos diálogos, a diferencia­
ção de pessoas é geralmente sugerida pelo contraste entre as três vozes superiores e
as três inferiores (o quinto ou voz central fazendo parte de ambos os grupos), ainda
assim, em alguns momentos as cinco vozes eram usadas mesmo nessa situação.
(1965:33)

Tal úpo de relação entre texto dramático e música é bastante peculiar. O fato de toda
a música ser cantada por um único grupo despersonaliza o canto, fazendo com que não
seja ouvida como voz da personagem. Entre música e ação passa a existir uma relação
de paralelismo e, com isto, ocorre um distanciamento. Quando o coro fala por uma per­
sonagem, já não temos mais a sua fala, mas uma representação desta que, filtrada, se con­
figura com o a intervenção de uma outra consciência, uma supraconsciência que se
impõe acima da ação, quase como um narrador, ainda que ela não se coloque como tal.
Como gênero, a comédia madrigal não sobreviveu e nem sequer é muito lembra­
da hoje em dia. Ainda assim, nela podemos encontrar dados significativos para a com ­
preensão da relação entre drama e música. Além disto, ao incorporar elementos da
commedia delYarte, tais como as personagens e situações, a comédia madrigal foi uma das
primeiras formas a aproximar a música da farsa, antecipando em quase um século algu­
mas práticas que seriam características dos théâtres de lafoire franceses.
Como vimos, a comédia madrigal incorpora a ação muda. A pantomima5 é o tipo
de articulação dramático-musical na qual as relações entre música e movimento visível
são levadas ao extremo. Na ação muda, é a música que delineia a progressão temporal,
oferece sustentação à ação mimada, estabelece o caráter e intenção expressivos dessa ação.
Na pantomima, música e ação desenrolam-se paralelamente, uma interferindo no resul­
tado da outra. Movimento corporal e musical unem-se para compor um tipo de expres­
são única. Em muitos casos, o texto do ator é incorporado pela música, como na comédia
madrigal. Assim, a fala deixa de ser parte da ação, sobrepondo-se a ela.
Outro aspecto importante da pantomima é o fato de ela ter tido sempre espaço para
a música instrumental. Analisando as observações feitas sobre a pantomima acompanha­
da por música vocal, tal como ocorria na comédia madrigal, podemos notar que, ainda
que desprovida do texto poético, a combinação de música e ação mimada produz resul­
tados bastante significativos. A música instrumental é capaz de oferecer sustentação ao
desenvolvimento temporal da ação: andamento, ritmo, estabelecimento de seções ou
partes. É igualmente capaz de tingir a ação com todo seu poder expressivo, estabelecen­
do o caráter, a intenção, o clímax e o anticlímax etc. Em certo sentido, a associação en-

5. Do grego pantómimos, "tudo por imitação".


II melodrama 37

tre música e ação é similar à que ocorre entre música e texto. As situações criadas pelo
gesto expressivo do ator, por seu trabalho corporal, quando unidas à música, geram um
novo sentido, uma forma de expressão particular que só é possível pela associação de
ambos. Essa complementaridade expressiva e significativa entre ação e música prescin­
de do texto poético, esteja ele ligado à música ou à ação.
Na ausência do texto, música e gesto devem bastar para compor, sem o recurso da
palavra, qualquer situação, inclusive o diálogo. Assim como na comédia madrigal, o coro
havia desenvolvido uma dialogia própria por meio da alternância de partes distintas do
grupo vocal; na pantomima, surge uma outra dialogia gerada na polifonia entre música
e ação mimada. É nessa característica que reside a magia da pantomima, aquilo que faz
dela um tipo único de expressão.
Praticamente, todos os gêneros dramático-musicais apresentam, em algum momen­
to, uma situação construída a partir do referencial da pantom im a. No universo
operístico, por exemplo, são muitos os momentos nos quais a ação mimada aparece em
destaque. Algumas das mais conhecidas podem ser encontradas no terceiro ato de Die
Meistersinger von Nürenberg, de Wagner, no primeiro ato de Les contes d'Hoffmann, de
Offenbach e em La muette de Portici, de Auber. A tradição pantomímica também se es­
tenderia ao cinema e, portanto, a observação das relações dramático-musicais na pan­
tomima é muito importante para compreendermos, posteriormente, o uso da música
como fator de articulação dramática e narrativa no cinema.

Intermedio

A pantomima também será encontrada no intermédio italiano (ou intermède, na


França), gênero dramático-musical que floresce na Renascença, definido por Rousseau
como "peça de música e dança inserida (...) entre os atos de um espetáculo maior para
entreter e relaxar as mentes do espectador" (1969:254).
Um exemplo característico do tipo de uso da música em situações de interrupção
da ação dramática é o intermedio non apparente, em que a música, geralmente instrumen­
tal, é executada por músicos que se encontram fora do campo visual, servindo, ao mes­
mo tem po, com o transição entre atos e ambientação. Em contraposição, havia o
intermedio apparente, em que os atores, dançarinos e cantores representavam uma situa­
ção, geralmente de caráter pastoral ou mitológico, tendo como elementos principais a
música (instrumental e vocal) e o movimento (como ação mimada ou dança). A ação
dialogada também existia, embora fosse menos importante.
O estudo das relações dramático-musicais nas formas antigas é, por si só, algo com­
plicado. Por mais que tenhamos as partituras musicais e os textos, ou sinopses dos espe­
táculos, não podemos assistir à ação tal como ela acontecia. No caso dos intermedi, a
situação é ainda mais complicada, pois praticamente nada restou da música para eles
composta, o que nos obriga a trabalhar apenas com descrições, em muitos casos super­
ficiais e, em sua maior parte, de segunda ou terceira mãos. Apesar disso, é possível ex­
trair dessas descrições alguns dados relevantes.
É interessante notar, por exemplo, como os intermedi constituíram um espaço de
experimentação para a música instrumental, em um momento em que a música vocal
38 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

predominava nas obras dramáticas. As combinações entre música e outras expressões


não-verbais eram bastante exploradas. Era comum o uso da música para o acompanha­
mento de grandes malabarismos da maquinaria cênica, envolvendo atores ou não. Nes­
te Sentido, G. B. Giraldi Cinthio, em seus Discorsi intomo al comporre de i romanzi, delle
commedie, e delle tragedie (1554), sobre os intermedi non apparente e apparente, comenta:

(...) Hoje nós fazemos essa distinção [entre partes] com música nos finais de
atos (...) seja fazendo os músicos surgirem do meio do palco por meio de má­
quinas (...) ou ouvindo-os por detrás do cenário, de modo que nenhum deles seja
visto. Este último modo é mais fácil e mais usado, mas o outro é muito mais pra­
zeroso, para não dizer maravilhoso, especialmente se os músicos estão em trajes
característicos. (Citado por D. Nutter, em seu artigo para o verbete "Intermedio", em
The New Grove Dictionary o f Music and Musicians)

Houve um momento em que os intermedi deixaram de ser totalmente isolados do


contexto dramático do espetáculo maior e passaram a exercer funções narrativas espe­
cialmente ligadas ao tempo subjetivo do drama. Eram comuns situações de compressão
temporal (representando a passagem das horas entre a ação dramática de um e outro atos)
ou de progressões (representando ciclos temporais):

Os seis intermedi para II Commodo (Florença, 1539) progridem por partes es­
pecíficas do dia: aurora, início da manhã, meio da manhã, meio dia, tarde e noite.
Uma progressão intensificada por um cenário incorporando um sol artificial, o
qual se movia ao longo do céu até as posições apropriadas. De modo similar, os
intermedi de Bernardo de' Nerli para II Granchio de Leonardo Salviati (Florença,
1566), representando as quatro idades do homem (infância, juventude, maturida­
de e velhice), foram alocados nas partes apropriadas do dia (manhã, meio-dia, tar­
de e noite), assim refletindo o período de tempo representado pela peça. (Citado
por D. Nutter, em seu artigo para o verbete "Intermedio", em The New Grove
Dictionary o f Music and Musicians)

Ainda que o intermedio tenha chegado a conviver com a ópera por aproximadamen­
te três quartos de século, vai gradualmente perdendo a sua importância e desaparece no
final do século XVII6. Contudo, é consenso que o intermedio forneceu subsídios dramá­
ticos e musicais para a emergente ópera, sendo considerado um de seus principais
antecessores. Segundo Donald Grout:

O intermedio é importante como precursor da ópera por duas razões: primeiro,


porque manteve vivo nas mentes dos poetas e músicos italianos a idéia da estreita
colaboração entre drama e música; segundo, porque nele, assim como no ballet
dramático francês, a forma externa da futura ópera já está delineada - um drama

6. Os intermedi desaparecem em sua forma original. A tradição de preencher as transi­


ções entre atos sobrevive nos intermezzi, mais especificamente, inserções cômicas entre os
atos de óperas sérias, que tinham como principal referencial a commedia deWarte. Os intermezzi
têm uma ligação direta com a opera buffa, sendo um dos principais responsáveis pela difu­
são do estilo buffo.
Il melodrama 39

com interlúdios de música, dança, esplêndida cenografia e efeitos de cena espe­


taculares. (1965:28)

Masque e Ballet de Cour

É preciso ainda mencionar duas formas em que as relações dramático-musicais, es­


pecialmente aquelas ligadas ao movimento, se desenvolvem. São duas formas particu­
larmente dançantes: os espetáculos de máscaras7 e o ballet de cour francês. Eram formas
que intercalavam momentos de dança com texto falado e cantado, respeitando-se uma
unidade temática (geralmente mitológica ou alegórica) que direcionava tanto o texto e
a representação quanto os figurinos e a composição de cena. Eram espetáculos aristocrá­
ticos desenvolvidos para a nobreza e, em grande parte, por ela executados. Nem sempre
a música desses eventos era composta especialmente para a ocasião. Em muitos casos,
usava-se material do repertório comum, em sistema de compilação.
Esses gêneros também não possuíam o perfil de espetáculos, tal como hoje enten­
demos o termo, sendo mais correto classificá-los como eventos (normalmente comemo­
rativos) que faziam parte do protocolo da nobreza. Na França, o responsável pela
transformação do ballet de cour em espetáculo de palco foi Lully, com Triomphe de l'amour
(1680). A sua importância advém do fato de terem servido como base para o desenvol­
vimento de formas mais complexas e, assim como os intermedi, terem sido o espaço de
experimentação para o redimensionamento da relação drama/música que ocorreu en­
tre os séculos XVI e XVII.
A masque inglesa é precursora das semi-óperas, gênero no qual a ação dramática -
em sua maior parte baseada no texto falado - é alternada com cenas musicais. O ballet
de cour é um dos principais antecessores da tragédie lyrique, na França.

Pastoral

No que diz respeito à dramaturgia propriamente dita, o principal antecessor da ópe­


ra é a pastorale. Como o próprio nome indica, trata-se de um poema em forma dramáti­
ca no qual as personagens são pastores e divindades que interagem no desenvolvimento
de um enredo geralmente centrado no amor e, quase sempre, com final feliz. As primei­
ras óperas eram, em essência, pastorali que haviam incorporado o estilo recitativo. O uni­
verso temático da pastorale é o mesmo da primeira fase da ópera. O mito de Orfeu, por
exemplo, tão explorado pelos autores de libretos, seiviu como tema tanto para a primei­
ra pastorale8 quanto para as primeiras óperas9.
Ainda que a origem da pastorale seja poética e não musical, o caráter lírico de sua
poesia, a fantasia do "mundo perfeito" representado pelo ideal da Arcádia, com seus pas­

7. Masque na Inglaterra, masquerade na França, mascherata na Itália.


8. Fàvola d'Orfeo de Angelo Poliziano, encenada em Mantua entre 1472 e 1483.
9. Euridice, poema de Ottavio Rinuccini musicado por Jacopo Peri e Giulio Caccini
(1600). Posteriormente, Alessandro Striggio escreveria, sobre o mesmo material, o poema para
L'Orfeo - Fàvola in Musica de Claudio Monteverdi (1607), que consolida o novo gênero.
40 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

tores, ninfas e divindades, criou um ambiente propício para a música. Canções, solistas,
coro e instrumentos estiveram sempre presentes. Na pastorale, música e texto desenvol­
veram uma relação que caminhou em direção à ópera. O texto poético foi explorado em
sua musicalidade e a música começou a se definir em relação ao texto poético e sua
dramaticidade. Grout comenta:
Por volta da última década do século XVI, a Europa estava pronta para a ópe­
ra. Restava apenas transformar a relação entre drama e música de uma simples as­
sociação em uma união orgânica. Para esse fim, duas coisas eram necessárias: um
tipo de drama que fosse apropriado para a música contínua e um tipo de música
apta à expressão dramática. O primeiro foi encontrado na pastorale e o último no
recitativo monódico dos compositores florentinos, Peri e Caccini. (1965:30)

Essa variedade de gêneros dramático-musicais que proliferaram na Renascença


demonstra que a associação entre música e drama foi uma grande preocupação deste
período. Foram experimentados praticamente todos os tipos de combinação entre mú­
sica e texto. Desenvolveu-se a música associada ao movimento, a elementos não-verbais,
na mesma proporção que os recursos cênicos, gerados por pessoas ou máquinas.
Todos os indícios apontam para a combinação de música e drama em uma forma
que fosse a síntese de toda essa experimentação. E o referencial dessa busca, o modelo
de expressão musical e dramática, foi encontrado na tragédia grega. A segunda metade
do século XVI procurou, portanto, resgatar essa tradição, buscando um tipo de drama que
se mostrasse adequado à música, e de uma música adequada à progressão dramática. Essa
busca tomou a forma de recuperação, de resgate de "... um tempo remoto, quando a mú­
sica era natural e falada como a poesia" (Doni, apud Grout, 1965:32).
Ocorre, porém, que a Europa do século XVI não tinha a menor idéia do que havia
sido a música grega e, muito menos, a tragédia na Grécia antiga. O que surgiu como re­
sultado dessa busca não foi, pois, uma recriação, mas a criação de algo completamente
novo, uma nova concepção da estética e do drama musicais.
Dentre as várias tentativas de recriar a dramaturgia musical grega do período,
uma das mais comentadas é a música de Andrea Gabrieli para o Edipo Tiranno, de
Sófocles, dirigida por Angelo Ingegneri e apresentada em 1585. David Kimbell comen­
ta essa montagem:

Os coros de Gabrieli são, certamente, como nada mais na música do século


XVI. Sob a direção de Ingegneri, o compositor esforçou-se por criar um idioma con­
temporâneo, na medida da idéia humanista sobre o que teria sido a música grega.
(...) Ingegneri convenceu Gabrieli que nenhum instrumento deveria ser usado. Ain­
da que admitisse que os instrumentos tinham uma função no período clássico,
achava que eram usados apenas "para encobrir erros no canto - e, em particular,
para criar um efeito mais impressionante e emocional"; nas modernas condições,
eles iriam simplesmente obscurecer as palavras. (...) Mais importante, obviamen­
te, são as possibilidades sonoras e harmônicas à disposição de Gabrieli. Ele quebra
as canzoni em pequenas seções, as quais distribui para qualquer formação, da voz
solo desacompanhada ao coral a seis vozes. Mas, enquanto esse último recurso é
algo com o qual Sófocles jamais poderia ter sonhado, Gabrieli não o utiliza da ma-
II melodrama 41

neira como seria de se esperar. A sonoridade pode ser contemporânea, mas o modo
como foi tratada deixa claro que ele ainda se esforçava por alcançar o ideal grego
de tratamento do texto. Qualquer coisa no sentido de uma melodia característica
e bela é evitado; de contraponto, não há absolutamente nenhum traço - nem mes­
mo o necessário para criar uma suspensão cadenciai. A música consiste em uma
declamação em acordes, do texto, na qual todas as vozes, o tempo todo, movem-se
em ritmos idênticos modelados à maneira pela qual o texto deveria idealmente ser
declamado. (1991:38)

O exemplo de Gabrieli nos dá uma idéia do tipo de concepção dramático-musical


do período. O mesmo tipo de preocupação guia as discussões da camerata10 florentina so­
bre a música da tragédia grega e se reflete na busca de um tipo de música na qual o texto
é absolutamente inteligível; que o canto se aproxime da fala, de modo que a fronteira
entre os dois se tome mais tênue, adequando-se à representação dramática. O conceito
de texto dramático cantado conduz ao estabelecimento da monodia acompanhada. Cada
personagem canta, na sua vez, o seu respectivo texto. Neste caso, a polifonia musical pre­
judicaria o diálogo entre música e texto ou entre música e drama. É uma das concepções
mais importantes do período, um confronto com a tradição contrapontística litúrgica
ainda tão forte.
A monodia acompanhada permite um tratamento do texto dramático até então
inédito. Quando comparamos um recitativo com o exemplo anterior de Gabrieli, nota­
mos a mesma preocupação com a inteligibilidade do texto e o esforço para que o apelo
afetivo da música não sobrepuje a própria clareza do texto. Buscava-se uma construção
musical que não obstruísse a progressão dramática. Tal era a concepção do período. Mas,
ao mesmo tempo, podemos notar quão significativo foi o surgimento do stilo recitativo.
A música abandona o domínio impessoal do coro e passa para a voz da personagem. Não
há mais o distanciamento épico do coro da tragédia. A ação dramática deixa de ocorrer
em paralelo com a música, como na pantomima. Música, texto e ação dramática com-
binam-se, a partir de então, em uma só forma.

A D r a m a t u r g ia O p e r ís t ic a

Um dos aspectos mais importantes da ópera é o redimensionamento da relação


texto/música. Isto já é notado quando comparamos a quantidade de textos presentes nas
óperas e nos textos dramáticos não-operísticos. O libreto operístico tende a ser muito mais
sintético do que o texto teatral. Basta, para isso, analisar as adaptações de textos consa­
grados, como Otelo e Macbeth, de Shakespeare. Nem por isso, as óperas homônimas de
Verdi deixaram de ser clássicos do gênero, ou seja, os libreti, ainda que bastante distan­
tes do texto original, servem muito bem ao propósito operístico. Um caso como o de

10. Grupo de músicos e intelectuais florentinos que se reunia na residência do Con­


de Bardi entre 1573 e 1587. O grupo foi responsável pelo estabelecimento de diversos pa­
râmetros fundamentais para o surgimento da ópera, particularmente as questões relativas
à relação entre música e texto.
42 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

Pelléas et Mélisande, em que Debussy compõe a música sobre o texto integral da peça de
Maeterlinck é tão raro, que pode ser considerado um marco histórico.
Ao longo de séculos, discutiu-se sobre quem teria a primazia na ópera: o texto ou a
música. Salieri nos deixou como resposta sua ópera Prima la musica e poi le parole (1786).
Gluck e Wagner, os grandes reformadores, procuravam valorizar o drama. Ambos, à sua
maneira e conforme o espírito de suas respectivas épocas, refutam a produção operísti­
ca anterior por seu artificialismo causado, segundo eles, pelo aniquilamento do drama
pela música. Curiosamente, o que ambos produziram, antes de tudo, foi música, como
tão bem percebeu Susane Langer:

Acima de tudo, nenhuma ópera é mais inequivocamente música e não dra­


ma. Podem-se ouvir as aberturas de Wagner, ou Liebestod, ou Feuerzauber, em mui­
tos concertos sinfônicos; mas alguma companhia de teatro já apresentou alguma
vez seu melhor libreto, o Meistersinger, como uma peça sem música? Será que al­
guém pensaria em levar Tristan como tragédia falada? (1980:167)

Não é preciso, pois, que o libreto seja um grande texto do ponto de vista teatral, mas
que se adeque ao desenvolvimento dramático da ópera. Um bom libreto é um texto dra­
mático passível de ser posto em música. Isto nos remete às origens da ópera, quando ela
ainda não era assim chamada. Entre outros, os termos usados, então, eram favola in
musica e dramma per musica. Este último é particularmente interessante, pois significa
"drama por música", no sentido de "por meio da música", sentido este, em diversos mo­
mentos, esquecido. É a partir dessa noção que podemos rever as críticas de Gluck e
Wagner a seus antecessores. Em primeiro lugar, assinalam momentos de transformação
da linguagem por meio da qual os compositores puderam produzir boas óperas. E, ape­
sar de suas distinções entre música e drama, a verdade é que, na ópera, a música, como
fator de articulação do drama, funde-se com este em uma unidade, ou seja, a música ar­
ticula a progressão dramática e o drama se efetiva por meio da música. Eis aí a manifes­
tação do conceito de dramma per musica. Assim, não cabe discutir a supremacia do texto
ou da música. Se não houver texto, deixamos o contexto da ópera e entramos em outro
qualquer: pantomima, dança etc. Se não houver música, também não temos ópera, mas
teatro. E, para que essa unidade a que chamamos "ópera" possa existir, é preciso que haja
um drama e uma música que se adequem mutuamente.

Recitativos

A convenção dramatúrgica da ópera, em sua origem, fundamenta-se na prática do


recitativo, o gènere rappresentativo, como Monteverdi o chamava, que "si canta senza ba­
tuta"". Segundo Joseph Kerman:

A grande vantagem do moderno estilo monódico dos anos 1600, a "nova


música", era que a voz podia se erguer desimpedida acima do baixo-contínuo, que
fornecia sozinho um simples suporte harmônico. Ritmo, linha e dissonância es­
tavam na verdade livres para as mais expressivas contorções. Na simplicidade es-

11. Monteverdi, Madrigali, livro VII.


II melodrama 43

sencial da textura total, eles não podiam destruir a clara e tranqüila autoridade do
baixo. (1990:43)

O recitativo cria a condição para que o texto dramático seja posto em música. A téc­
nica do baixo-contínuo oferece novas possibilidades interpretativas e uma outra relação
com o tempo dramático. Essas novas possibilidades resultam, acima de tudo, em um grau
de liberdade muito grande em relação ao texto, tanto para o compositor quanto para o
intérprete.
A flexibilidade do estilo recitativo permite que ele incorpore qualquer texto. Um
bom compositor pode estender um recitativo por tempo indeterminado e não apenas
com uma personagem, mas com várias. Sendo assim, por meio do recitativo surgem,
também, novas possibilidades de construções dialógicas: duetos, trios etc. Um exemplo
é a cena de L'Orfeo, de Monteverdi, em que Orfeu recebe a notícia da morte de Eurídice.
Contracenam um pastor, a mensageira e Orfeu, em um recitativo contínuo.
Monteverdi foi para a ópera o que Griffith foi para o cinema. Ambos desenvolveram
recursos fundamentais para suas linguagens e os colocaram em prática. Ambos trabalha­
ram em períodos de transição, de experimentação e de criação de novas formas. Tal como
Monteverdi, Griffith também desenvolveu os fundamentos básicos da articulação fílmica.
Tendo como base o estilo monódico do recitativo e as técnicas do madrigal, Monteverdi
articula seu dramma per musica, como já se observa em L'Orfeo, sua primeira ópera.

Coros

Altemando-se com os recitativos, temos os coros que, nesse período, são ainda mais
importantes do que as árias, em conformidade com o modelo da tragédia grega, tal como
era entendida na época. Em Monteverdi, o coro participa da ação dramática, está nela in­
serido. São os pastores e pastoras que festejam o casamento de Orfeu e Eurídice e, poste­
riormente, choram sua morte. Ao mesmo tempo, as intervenções do coro servem "para
atrair a atenção dos espectadores para a importância da ação que eles presenciaram"
(Kimbell, 1991:71).

Peças instrumentais

Recitativos e coros são intercalados com peças instrumentais: toccatte, ritornelli,


sinfonie,2. Em geral, as peças instrumentais são de curta duração, sendo usadas como ele­
mento de ligação e transição entre as peças vocais, bem como para compor a unidade
formal do drama musical. A instrumentação é variada e baseia-se na tradição dos
intermedi. As combinações instmmentais de Monteverdi, minuciosamente indicadas na
partitura, mostram que já havia uma preocupação com o papel timbrístico: um instru­
mento, ou família de instrumentos, tal qual os trombones, associa-se a um determina­
do elemento da ação, como, por exemplo, ao Hades e à ação que lá se desenvolve. É o
caso, também, das flautas doces, usadas para compor a ambientação pastoral.

12. O termo "sinfonia" não possuía, ainda, o sentido que iria adquirir após o Classi­
cismo, de peça orquestral em forma sonata. Significava, então, apenas "peça instrumental".
44 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

O início de L'Orfeo é precedido por uma toccata, na verdade, uma fanfarra que tem
a função de anunciar, com grandiosidade, o início do espetáculo e que, posteriormente,
irá se converter na ouverture operística. É importante notar como Monteverdi organiza
o desenvolvimento dramático pela colocação das peças instrumentais. Os ritomelli são
intervenções que se intercalam com as estrofes das peças cantadas, como um refrão. Cada
ritomello pertence a uma peça vocal específica, é usado para introduzi-la e é repetido tantas
vezes quanto o seu número de estrofes. Dessa maneira, os ritomellipromovem a organi­
zação interna das peças vocais e delimitam musicalmente sua extensão. Eles também
provocam a interrupção do texto dramático, compartimentam-no e estabelecem clara­
mente suas divisões. Sendo partes não cantadas das peças vocais, os ritomelli estabelecem
um diálogo entre o texto cantado e a orquestra, complementam o que é dito pelo texto
e, ao mesmo tempo, permitem a reflexão sobre aquele momento específico da ação. Em
situações de maior intensidade dramática ou quando estão contracenando várias perso­
nagens (como, por exemplo, na cena em que Orfeu recebe a notícia da morte de Eurídice
ou, mesmo, em seu diálogo com Caronte), Monteverdi evita o uso dos ritomelli, impe­
dindo, assim, a quebra dessa intensidade.
As sinfonias são peças instrumentais que servem de transição entre as peças vocais.
Nelas, a ação, desprovida de texto, possibilita as principais relações dramático-musicais
de elementos não-verbais, como as entradas e saídas de personagens, movimentações,
pantomimas, danças, finais de atos e transições de todos os tipos.
É preciso enfatizar o uso que Monteverdi faz da recorrência de trechos instrumen­
tais como recurso dramático-musical, embora isso ainda fosse algo incipiente na épo­
ca. A primeira instância dessa prática é a própria recorrência dos ritomelli como reffões
da peça vocal. Monteverdi também usa o ritomello do prólogo de forma recorrente: após
o prólogo, o mesmo ritomello é usado para a entrada das ninfas e pastores no início do
primeiro ato, bem como na partida de Orfeu para o Hades e, posteriormente, em seu re­
tomo. Com isto, o ritomello acaba se associando ao espírito pastoral do local onde se de­
senvolve a ação; o prólogo é cantado pelo "Espírito da Música" e, mais subjetivamente,
esta recorrência do ritomello do prólogo simboliza o poder mágico da música por meio
da figura de Orfeu. Algumas sinfonie também são recorrentes. É o caso da sinfonia do fi­
nal do segundo ato que percorre, praticamente, toda a ação no Hades, delimitando esse
momento específico do drama e estabelecendo o seu caráter.
Ao que tudo indica, Monteverdi já possuía, portanto, intuitiva ou conscientemen­
te, a noção de que a música instrumental é parte fundamental da construção dramáti­
co-musical, de como se dava a participação efetiva da música instrumental no drama, de
como a recorrência de fragmentos musicais podia se tomar significativa à medida que
se desenrolava a ação dramática. A repetição desses fragmentos musicais como fator de
unidade do drama sofreria, a partir de então, uma evolução progressiva e, três séculos
depois, culminaria no leitmotiv wagneriano.

Árias

Alternando com o recitativo, a ária é o segundo fundamento da dramaturgia mu­


sical da ópera. Tomou-se senso comum a noção de que, no recitativo, a música se subor­
dina ao texto, enquanto na ária o texto se subordina à música. Embora superficial, esta
II melodrama 45

abordagem reflete um aspecto importante da convenção dramático-musical da ópera: a


prática de conduzir a progressão dramática por meio dos recitativos, reservando, para as
árias, os momentos de expansão lírica. Assim, se no recitativo o suporte musical do tex­
to permanecia o mais próximo possível da fala, nas árias é que iriam ocorrer as constru­
ções musicais mais ousadas: linhas melódicas de grande expressividade e exibições de
virtuosidade vocal. A ária se configura como uma peça com ponto de vista individuali­
zado, expressão do eu subjetivo da personagem, e daí seu caráter lírico. Em alguns casos,
ela funcionava como uma reflexão da própria personagem sobre a situação dramática,
correspondendo, assim, ao monólogo interior da dramaturgia tradicional; em outros,
nem sequer possuía uma ligação direta com a progressão dramática, que era interrom­
pida e que, posteriormente, retomava ao ponto imediatamente anterior à própria ária.
Na época de Monteverdi, o jogo entre recitativo e ária na composição do drama
musical ainda não está bem estabelecido. O caminho já está apontado em peças como
Possente Spirto e Lamento d'Ariana, respectivamente de L'Orfeo e de sua ópera perdida,
Ariana. Em ambas, o poder expressivo e o lirismo da ária já estão presentes.

C o n t in u id a d e D r a m á t ic o - m u s i c a l n a Ó pera

Antes de Monteverdi, as primeiras óperas, tais como Dafne (1598), de Peri e Corsi,
e Euridice, nas versões de Peri e Caccini, eram construídas como uma sucessão de peças
vocais independentes. A form a dram ático-m usical com eçou a se u nificar com
Monteverdi. L'Orfeo, como vimos acima, já apresenta uma solução de continuidade muito
mais elaborada. Há uma dicotomia na busca pela unidade operística que viria a ser uma
constante ao longo da história da ópera: por um lado, a unidade alcançada pela suces­
são de peças musicais independentes justapostas; por outro, a tentativa de unir por meio
da música contínua.
A última ópera de Monteverdi, L'incoronazione di Poppea (1642), já apresenta um
grande equilíbrio entre música e desenvolvimento dramático. Todo o drama musical
acontece pela ação direta das personagens: são pouquíssimas as peças para uma forma­
ção maior que o dueto. O estilo recitativo se torna a base do drama e, por meio dele,
Monteverdi consegue uma solução de continuidade até então inédita.
Monteverdi é, na prática, o criador da ópera. Tal como Griffith em relação ao ci­
nema, ele não a inventou, nem foi o primeiro a experimentá-la. Mas ambos criaram suas
práticas fundamentais, as primeiras convenções de suas artes que servirão de parâmetros
aos demais. Ambos souberam prender a atenção do público ao longo de uma situação
ou de situações sucessivas. Conseguiram produzir no público a resposta emocional de­
sejada, quer na morte de Flora, em The Birth o f a Nation, quer no Lamento d'Ariana que,
segundo os relatos da época, arrancou lágrimas do público. Monteverdi sabia lidar com
os dois componentes principais do drama: a música e a ação humana. Esse reconheci­
mento de que o drama musical é algo que acontece por meio da ação humana musicada
é que faz de Monteverdi um dos maiores dramaturgos musicais de todos os tempos. Ele
possuía consciência deste fato, o que pode ser constatado em sua carta para Alessandro
Striggio, de 1616, a respeito de Le nozze di Tetide:

Vejo que as personagens são ventos, amoretti, zeffiretti e sereias, sendo assim,
muitas sopranos serão necessárias; e também esses ventos - ventos do oeste e ven-
46 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

tos do norte - têm que cantar. Como, caro senhor, visto que os ventos não falam,
seria eu capaz de imitar sua fala? E como, por tais meios, serei capaz eu de mover
as paixões? Ariana comoveu o público porque era uma mulher, e Orfeu fez o mes­
mo porque era um homem, e não um vento... Descubro que essa fábula não me
comove de forma alguma e é mesmo difícil entendê-la; nem sinto que ela possa
naturalmente inspirar-me um clímax comovente. Ariana inspirou em mim um la­
mento verdadeiro e Orfeu uma súplica verdadeira, mas não sei o que isso vai me
inspirar. (Apud Arnold, em seu artigo para o verbete "Monteverdi", em The New
Grove Dictionary o f SAusic and Musicians)

A tradição italiana fez com que a ária logo se tomasse o centro das atenções do uni­
verso operístico. A ópera ganhava cada vez mais repercussão pública. Grandes cantores
eram reverenciados, formando o star system do período. Como é por meio da ária que o
cantor se expressa e demonstra seus recursos vocais, a quantidade de árias cresceu a tal ponto
que, em algumas óperas, os recitativos serviam apenas como mera ligação entre elas.
Todavia, isso não foi uma unanimidade. A tradição francesa, que tanto valorizava
o texto, ainda manteve o recitativo como base da dramaturgia musical da ópera. Este foi
um período de transição expresso pelo conflito entre a dramaturgia musical baseada em
recitativos ou na sucessão de árias. A esse respeito, Joseph Kerman diz o seguinte:

Apesar de Lully ter composto setenta anos depois [de Monteverdi], os ele­
mentos básicos de sua convenção dramática são curiosamente similares: o
recitativo ainda é o centro climático das atenções e o papel subsidiário principal é
assumido pelo coro, enquanto as pequenas canções ou "airs" são de interesse prin­
cipalmente decorativo. A ópera veneziana, entretanto, havia rebaixado por completo
o recitativo em favor de árias ainda bastante primitivas e havia eliminado comple­
tamente o coro. (1990:63-64)

O que ocorreu, de fato, foi uma crise sobre a própria essência do drama musical.
O dramático e o musical eram vistos como aspectos independentes. Segundo o próprio
Kerman, dentro dos contextos italiano e francês, "os franceses não aceitariam a ostensi­
va convenção italiana, segundo a qual as palavras e a razão cedem, no auge dramático, à
expressão emocional da música levada em seus próprios termos" (1990:68).
O que movia as argumentações em favor de um ou outro lado era a questão do texto.
Porém, independentemente da questão textual, o que não estava ainda definido era a pró­
pria natureza do drama musical, ou seja, como articular o drama operístico por meio da
música. Uma das correntes tinha a noção de que a ópera é, antes de tudo, drama, e como
tal deveria ser valorizada em seu aspecto textual; daí, a supremacia do recitativo sobre a
ária. A outra valorizava a música acima de tudo e, portanto, qualquer medida no senti­
do de alcançar grandes arroubos emocionais era válida; daí a supremacia da ária.
O recitativo permite uma continuidade que favorece a estrutura dramática; o dra­
ma flui com maior uniformidade. Contudo, a técnica do recitativo pode ser um fator de
limitação musical, pois insistir continuamente no recitativo significa subtrair da ópera
os recursos mais ousados da arte musical, incluindo a liberdade melódica, harmônica e
uma arquitetura rítmica e formal que não vise prioritariamente a enunciação de um tex­
to. Em suma, ela pode gerar um desequilíbrio na estmtura dramático-musical.
II melodrama 47

A opção pela ária apresenta-se como alternativa, mas ocasiona um problema inver­
samente proporcional. Ela permite que se levem os recursos musicais ao extremo. A mú­
sica se sobrepõe expressivamente ao texto que, em muitos casos, nem é assim tão
significativo ou elaborado. Sobre a ária da morte de Dido em Dido and Aeneas, de Purcell,
Kerman afirma:
O que se encontra tão exatamente dentro da estética italiana e fora da fran­
cesa é que a peça inteira é montada sobre duas linhas de versos triviais: o grande
clímax no acorde de ré menor acontece sobre uma única sílaba, "ah" - um grito
pré-verbal. Purcell compreendeu que isto poderia ser infinitamente mais expressi­
vo do que o alexandrino mais elegantemente declamado de Lully. (1990:69)

O que há de relevante nessa discussão é, justamente, a possibilidade da linguagem


musical como fator de articulação dramática. Está implícito em Kerman que o texto
operístico não é drama puro, mas musical; e foi neste sentido da expressividade musi­
cal que caminhou a ópera italiana. Contudo, a articulação da ópera concentrada na su­
cessão de árias apenas unidas por intervenções de recitativos gera um problema de
continuidade, pois trata-se, na verdade, de uma seqüência de monólogos em que se tor­
na difícil a constmção de uma teia dramática mais sofisticada. Kerman descreve a ópe­
ra nessa fase:
Em recitativos "secco", cada pequena cena apresentava pelo menos uma per­
sonagem com uma nova informação ou uma nova situação; sua reação emocional
a isto ocupava a ária para qual a cena era construída. (...) Os compositores simples­
mente concentraram sua atenção numa série de "situações de ária"; não estavam
preocupados com a necessária complexidade da trama, pois todos os detalhes eram re­
solvidos por meio de discussões, destinadas a serem musicadas na forma de recitativos
"secco", neutros e sem vitalidade. Já não mais o veículo emocional, o recitativo se tor­
nou simplesmente uma forma convencional de discurso. (1990:70-71)

A grande dificuldade nesse estágio do desenvolvimento do drama musical reside na


concepção fragmentária da unidade: para cada situação, uma peça musical. A prática de
compositores e poetas e a própria reflexão sobre a ópera começam a indicar a necessi­
dade de um tipo de música que permita a solução de continuidade dramático-musical a
partir de sua própria estrutura. Tal solução será possível com as transformações da lin­
guagem musical que conduzem do Barroco ao Classicismo.
O discurso musical ganhará, então, novas perspectivas a partir da forma sonata, que
domina todo o período clássico. Embora puramente musical, a forma sonata carrega em
si o princípio da estrutura dramática aplicada à música. Ela se baseia no princípio
dramatúrgico do conflito que se estabelece entre o primeiro e o segundo temas. Tais te­
mas são comparáveis às personagens do teatro. Eles possuem, em geral, caráter bastante
distinto e formam a seção de exposição da sonata. Na seção de desenvolvimento, o ma­
terial temático é fragmentado, confrontado e explorado em profundidade. O conflito é
levado ao extremo, esgota-se e se chega a uma nova situação de equilíbrio, a reexposição,
na qual os dois temas são reapresentados. Mas, nesta reapresentação, os temas já não mais
aparecem como na exposição; tal como as personagens de um drama, eles devem, tam­
bém, se modificar para restabelecer o equilíbrio gerado pelos conflitos anteriores.
48 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

O jogo das polaridades no sistema tonal permitirá novas soluções de continui­


dade: tensão e relaxamento, pergunta e resposta, suspensão e resolução; tais recursos
de linguagem serão usados para conduzir o discurso à conclusão ou transformá-lo
continuamente. Estamos diante de outras possibilidades expressivas que provocam
outras respostas em ocionais e estabelecem uma nova dimensão psicológica. Estas
transformações da linguagem musical terão reflexo direto no universo dramático-
musical.
O princípio da justaposição de peças da ópera barroca, a individualidade da ária
guiando as situações dramáticas, unidade e fragmentação, tudo isto começa a ser revisto
e redimensionado. É o caso, por exemplo, de um trio de Don Giovanni, de Mozart, a res­
peito do qual, Kerman comenta:

A ação é incluída numa única continuidade musical e unificada por ela. A si­
tuação muda e todos sentem de forma diferente; numa ária ou coro barroco as coi­
sas nunca foram assim. E ter substituído alguns dos neutros recitativos usados para
a ação na ópera barroca por um veículo genuinamente musical foi certamente van­
tajoso: a ação agora podia ser apresentada no nível de imaginação da música, de for­
ma a partilhar a dignidade emocional das introspecções da ária.
Imaginemos o episódio de Mozart tratado por Metastasio. Seriam necessá­
rias pelo menos três árias, com seus recitativos de ligação, para fazer tudo: uma para
Elvira, mostrando seu estado de espírito inicial, uma para Don Giovanni e ainda
uma outra para Elvira mostrando seu estado de espírito final. Todo o papel de
Leporello, que mantém maravilhosamente o equilíbrio cômico, se evaporaria em
recitativos, para não falar de todas as delicadas nuanças de modulação nas atitudes
de Don Giovanni e de Elvira en route. (...) A comédia do século XVIII, com sua ri­
queza de intriga animada, exigia um novo e mais flexível esquema operístico. (...)
(1990:92)

É bastante significativo que a ação dramática abandone os limites do recitativo e


se integre à forma musical propriamente dita, espaço anteriormente reservado à expres­
são lírica da ária. A ação integrada às peças musicais de conjunto permitiu novas possi­
bilidades de articulação dramático-musical, assim como uma agilidade muito grande no
tratamento das situações dramáticas. A sucessão de árias e recitativos fazia que a ação se
estendesse por um longo tempo, o que nem sempre era possível ou desejável. A conti­
nuidade musical, ao invés, permitiu que o encadeamento da ação dramática incorporasse
suas nuanças e transform ações ao longo do tem po sem a necessidade da
compartimentação em blocos isolados.
Em certo sentido, toda música aliada a um contexto dramático-musical tende a ser
mais fragmentária, pois deve adequar-se às suas nuanças e transformações. A opção pela
música contínua ou pela justaposição de peças implicará, em última instância, a incor­
poração dessas transformações em um discurso musical unitário. Em Mozart, isso ain­
da se encontra em processo de desenvolvimento. Embora incorpore a ação à estrutura
da peça musical, as peças ainda são unidades fechadas que se sucedem. É o começo de
um caminho no sentido da continuidade musical que terá seu desfecho nas mãos de
Wagner e Debussy.
II melodrama 49

Para controlar a tendência à fragmentação, possibilitando as transformações dra­


máticas por meio da música contínua, é necessário um grande domínio das polaridades
sonoras. Como o sistema tonal é hierárquico, organizado em funções harmônicas que
produzem um discurso de caráter conclusivo, a continuidade dramático-musical exigi­
rá, justamente, que a conclusão seja adiada, evitada, a fim de que a forma musical não
se feche, a não ser quando desejado. A solução para este adiamento foi o cromatismo.
Na obra de Mozart, já encontramos um princípio de uso do cromatismo, mas quem o
leva ao extremo é Wagner. O cromatismo, como solução de continuidade, é muito efi­
ciente. Pode-se manter a polaridade tonal instável por um longo tempo sem que haja re­
solução na tônica. Cria-se, com isto, um fluxo musical contínuo, que só será interrompido
quando o compositor desejar. A melodia contínua de Wagner, que guia o desenvolvimento
de seus dramas musicais só é possível pelo uso do cromatismo. Após Wagner, as técni­
cas cromáticas servirão de base para todo o século XX: atonalismo, dodecafonismo, mú­
sica serial etc. Em Mozart, o cromatismo ainda é muito dependente de uma estrutura
tonal sólida, mas é nele que encontramos a origem de todo esse processo.
À sua maneira, Debussy também levou a música às fronteiras do sistema tonal. Ele
escreveu apenas uma ópera: Pelléas et Mélisande. Nela podemos encontrar um tipo de so­
lução de continuidade diferente das óperas de Wagner. Em vez de transformar o drama
em uma peça musical de caráter sinfônico, Debussy opta por um tipo de construção em
que a música é um paralelo à ação dramática, uma espécie de suporte contínuo de todo
o texto teatral de Maeterlinck.
Ao longo do século XIX, a linguagem operística apontará para esta construção dra­
mático-musical contínua, culminando nos exemplos de Wagner e Debussy. Mesmo Verdi,
que insistia em se colocar como um seguidor da tradição italiana, em que a continuida­
de é produzida pela sucessão de peças musicais, em suas obras mais maduras apresenta­
rá uma forte preocupação com a continuidade. A ópera contínua é o momento em que
a dramaturgia musical atinge sua plena maturidade, exigindo um domínio das relações
dramático-musicais que os compositores levaram séculos para adquirir.

O r g a n iz a ç ã o T em po ra l da Ó pera

Vimos que o libreto operístico tende a ser mais sintético do que o texto teatral.
Quando a música passa a exercer parte da função que no drama tradicional cabia ao texto,
este pode ser mais sintético. O próprio fato de o texto ser cantado obriga sua síntese, pois
demora-se mais para cantar um texto do que para recitá-lo. A música altera o desenvol­
vimento temporal da fala, toma-a mais lenta.
A alteração do tempo do texto é apenas um dos aspectos da interferência temporal
da música no drama, pois quando a ele se une, faz que toda sua organização temporal
conduza, também, a progressão dramática. Na ópera, o tempo do drama não é mais o
tempo do texto, nem o tempo da ação dramática, mas o tempo musical, que é preciso e
organizado. Poder-se-ia argumentar, obviamente, que o tempo musical também é rela­
tivo: a cada vez que se executa uma peça, varia-se o andamento; existem as fermatas, os
ralentandos, os acelerandos, os rubatos etc. É verdade, mas este fundamento e objetivi-
50 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

dade temporais da música é algo que nenhuma forma artística pré-industrial possuía. Ao
longo de séculos, a polifonia musical desenvolveu um domínio do tempo muito eficien­
te: por maior que seja a relatividade e variedade dos andamentos, as relações temporais
internas da construção musical são absolutas e perfeitamente sincronizadas.
Quando a música empresta suas características temporais ao drama, ele se torna
musical. Esse é o principal efeito do contraponto entre ambos. Ao ser articulada pelo tem­
po musical, a construção dramática adquire algo característico da polifonia musical: a
sincronia. O drama passa a ocorrer dentro de uma contagem precisa de tempo. O tem­
po de um gesto, de uma palavra, de um movimento, não é mais o tempo subjetivo do
ator, mas o tempo musical objetivo da orquestra. O ator pode esperar o momento mais
conveniente para falar seu texto. Pode fazer uma pausa mais longa, esperar a reação do
público, apressar um movimento. O cantor, não. Deve entrar na hora exata e cantar sua
linha no tempo preciso do acontecimento musical. Com isso, o tempo expressivo do dra­
ma fica subordinado ao tempo musical. A ação dramática, por sua vez, fica sincroniza­
da à música, tal como se dá na dança em relação à música de balé. Mesmo em um
exemplo como o de Pelléas et Mélisande, em que Debussy tentou disfarçar a subordina­
ção temporal do drama à música, ela continua a existir; como todo disfarce, esconde, mas
não elimina. Por mais que pareça que Pelléas canta como se não existisse orquestra, cada
uma de suas entradas é rigorosamente precisa.
A partir do momento em que articula o drama, a música se toma um fator de in­
terferência. Quando uma personagem se cala, não temos apenas silêncio, mas música.
A música conclui a idéia, comenta e interfere. A orquestra, salvo poucas exceções, não é
parte da ação, fica no fosso, de onde lança sua torrente de sons. É como se a ação dra­
mática fosse sublinhada continuamente por um fator extemo que não lhe pertence. As­
sim, por mais que a articulação primária da ópera seja dramática, haverá sempre uma
articulação secundária de caráter épico. A música, ao se tornar onipresente, assume ca­
racterísticas narrativas, moldando o drama à sua maneira e a seu tempo. O ideal
renascentista de aproximar o texto musicado da fala, tomando-o assim "mais dramáti­
co", resultando no recitativo, é uma forma de reconhecer essa poderosa interferência mu­
sical. A supremacia da ária na ópera barroca italiana é, neste sentido, sintomática. As
tentativas de Wagner e Debussy de criarem um drama em música, no sentido estrito do
termo, esbarraram nessa dificuldade, pois a música acaba por impedir, na prática, esse
ideal. O próprio texto moldado pela música transforma-se, adquire uma nova plastici­
dade e se flexibiliza. Não se trata apenas de uma dedamação, mas de um texto cuja enun­
ciação foi direcionada, predeterminada por um "narrador subjetivo" que se materializa
em forma de sons orquestrais.
É por isso que a ópera, no sentido estrito, jamais será teatro, jamais proporcionará
a liberdade temporal de que o ator necessita para a representação da ação dramática. Ja­
mais haverá, também, a isenção característica do gênero dramático, em que as persona­
gens agem como se não houvesse um autor, como se a ação fosse a expressão do presente
vivido naquele momento. A convenção operística, ainda que dramática (ou dramático-
musical), traz em si mesma o germe de descaracterização do gênero dramático. Em con­
trapartida, o teatro jamais será ópera, pois carece da organização temporal que caracteriza
a polifonia dramático-musical desta última.
2
Voix de V il l e

Que ces badauds sont étonnés / De voir marcher sur des échasses! / Que
d'yeux, de bouches, de nez, / Que de différentes grimaces! / Que ce ridicule
LIarlequin /Est un grand amuse-coquin, / Que des gens de toutes façons, /
Hommes, femmes, filles, garçons; / Et que les culs à travers cottes /Amasseront ici
des crottes / S'ils ne port de caleçons! / Ces cochers ont beau se hâter, / Ils ont beau
crier: Gare! Gare! / Ils sont contraints de s'arrester, / Dans la foule rien ne
démarre. / Le bruit des pénetrans sifflets, / Desflustes et des flageolets, / Des
cornets, hautbois et musettes, / Des vendeurs et des acheteurs / Se mesle à celui
des sauteurs / Et des tambourins à sonnettes / Des joueurs de marionnettes / Que
le pouple croit enchanteurs!
Scarron, La foire de Saint-Germain, 1643

Eliza canta1:

All I want is a room somewhere


Far away from the cold night air
With one enormous chair
How wouldn't it be "loverly"?
Lots o f chocolates fo r me to eat
Lots o f coal, making lots o f heat
Warm face, warm hands, warm feet
How wouldn't it be "loverly"?

1. Canção Wouldn't It Be Loverly, do musical My Fair Lady de Alan Jay Lemer e Frederick
Loewe.
52 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

Oh, so "loverly" seat there absolutely still


I would never batch till spring
Crept out o f the window seal
Someone's head resting on my knee
Warm and tender as he can be
Who takes good care o f me
How wouldn't it be "loverly"?

Eliza quer deixar sua vida de florista nas ruas de Londres e tomar-se uma lady. Mas
ela não pode, pois não sabe falar corretamente. Um obstáculo lingüístico, mais difícil de
transpor do que os grandes portões de ferro, a separa da classe dominante. Mas, ainda
que carregue os traços fonéticos que distinguem a sua classe social, ela possui muitas ou­
tras características que a tomam especial. O que Eliza diz, embora incorreto, possui uma
transparência, uma verdade, que muitas vezes o discurso elaborado esconde sob a más­
cara de uma retórica bem articulada. Isto fica claro quando o Professor Higgins leva Eliza
às corridas. Na versão para cinema de My Fair Lady (EUA, 1964)2, os figurinos dessa se­
qüência são todos em preto e branco; "la bonne société s'amuse" com a maior frieza, en­
quanto cantam Ascot Gavotte.
A letra indica uma canção extremamente emocionante, descreve o frenesi, o delí­
rio intenso e efêmero de uma corrida de cavalos. Mas o que se ouve não corresponde a
essa impressão. Nem mesmo o charme aristocrático da gavotte como forma dançante
pode ser aqui encontrado. A canção é pesada e contida. Sua estrutura rítmica e melódi­
ca são construídas de forma que os versos sejam sempre entrecortados, interrompidos.
Não há uma fluência do texto compatível com o tipo de emoção que está em jogo na­
quele momento. O público canta como se cantasse um hino. O contraste entre a letra,
a música e a ação explicita o contraste entre Eliza e a aristocracia. E a construção é feita
de maneira tal que o público se solidarize com ela, provocando antipatia pelos aristocra­
tas. Eliza é apresentada sempre como verdadeira e capaz de vivenciar honestamente seus
sentimentos, enquanto os aristocratas são sempre falsos e incapazes de demonstrar suas
emoções.
Eliza seria a responsável por romper com toda a formalidade protocolar da situa­
ção. Quando chega a sua vez de acompanhar a corrida, ela torce aos brados, usando pa­
lavras nada educadas, para o espanto dos presentes e o encanto de Fredy, que por ela se
apaixona justamente pelo seu modo de dizer as coisas. Eliza possui a paixão e a alegria
que faltam ao público aristocrático de Ascot. Ela permite a si mesma a fantasia de ser uma
lady. Ainda que sua carruagem seja a carroça do lixo, e o maço de flores que recebe de
um gentleman seja apenas um aipo, não importa, ela vive.
É dessa ligação com a vida, com a atualidade, com o cotidiano, com o homem co­
mum, que se alimentou o teatro popular. Nada de deuses olímpicos, semideuses, heróis

2. O título em português, Minha querida dama, é tão pouco conhecido que optamos por
não usá-lo.
Voix de ville 53

trágicos. As personagens passaram a ser homens e mulheres, como outros quaisquer. O


espaço ideal deixou de ser a Arcádia, o espaço do palco tomou-se a representação das mas,
das casas e dos quartos. O tempo da ação não seria mais a Antigüidade clássica, mas o
presente. O trágico deu lugar ao cômico.
A música sempre foi um elemento presente nas manifestações dramáticas de
cunho popular, desde o tempo em que elas possuíam um caráter muito mais ritualístico
do que propriamente dramático. Aos poucos, conforme os gêneros vão surgindo e se con­
solidando, forma-se também uma tradição dramático-musical cômica. Ao longo desse
desenvolvimento, interagem o popular e o emdito, o cômico e o trágico. Quando se tra­
ta de dramaturgia musical, a ópera será sempre uma referência. Ela também estará, pois,
nas peças recentes, como vimos em Woulárít It Be Loverly? cantada por Eliza. Nesse nú­
mero, encontramos muitos elementos da tradição operística: o coro e a solista, o diálo­
go cantado, a peça de conjunto, o lirismo da ária, a pantomima e a dança. Até mesmo
uma recriação do estilo recitativo pode ser encontrada, não nesse número, mas nos do
Professor Higgins, que praticamente recita sobre o acompanhamento musical.
Esse primeiro número de My Fair Lady introduz tudo o que será desenvolvido ao
longo da peça: no início, os amigos de Eliza tratam-na como uma lady, dão o tom da fan­
tasia que se mostrará. O que no início é piada, gera um contraste com o final do filme,
quando Eliza retoma ao seu local de origem e é novamente tratada como uma lady, ago­
ra não mais por brincadeira, mas porque seus amigos não a reconhecem mais. A fanta­
sia de Eliza expressa seus desejos mais íntimos: um lugar seu, muito bem aquecido, com
montes de chocolates, uma enorme poltrona e alguém que cuide bem dela. É uma des­
crição da casa do Professor Higgins. Não é à toa que, ao tentar desistir do projeto, ele a
convence, oferecendo-lhe um chocolate. Os chocolates, por sinal, são o símbolo de seu
adestramento na língua inglesa, tal como um cãozinho, que ao executar o comando cor­
retamente ganha um biscoito. Mas todas as agruras são válidas quando o objetivo é as­
cender socialmente, transformar-se em uma outra pessoa. A fantasia de tornar-se uma
lady, expressa por Eliza em seu primeiro número musical, é o que justifica toda a ação
da peça.
Eliza não representa somente a classe social que ocupa o centro das atenções do
teatro popular. A história da florista que se toma uma lady é uma espécie de metáfora da
própria maneira como os gêneros dramático-musicais, surgidos na periferia de outros
gêneros e da arte oficial, ganham maturidade e independência até atingirem, eles pró­
prios, o status de arte oficial. A ópera surgiu do intermedio que, sendo periférico em rela­
ção às formas dramáticas superiores, também não surgiu das mãos de compositores e
poetas tidos como de primeira linhagem. Da mesma maneira, o teatro musical desen­
volve-se a partir de dissidências da ópera e de certas manifestações populares, tal como
os teatros de feira. Ele surge na periferia das artes dramática e musical. Foram utilizados
praticamente todos os termos pejorativos, que se pode imaginar, pelos críticos e teóri­
cos para descrevê-lo: arte menor, inferior, ligeira, popular etc. Mas, assim como Higgins
que, cego por sua erudição, demora demais para perceber a pessoa maravilhosa que é a
florista, também a cultura erudita demora a reconhecer a riqueza artística dos gêneros
dramático-m usicais de cunho popular. Até hoje a noção de teatro "m enor" ainda
54 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

marca tais gêneros. Contudo, é a própria Eliza que nos ilumina: a diferença entre uma
lady e uma florista está na maneira como são tratadas. Eliza sempre foi uma lady, só não
era vista como tal.

G ên ero s C ô m ic o s d o T ea tro M u sic a l

A Influência da Commedia Dell'Arte

A origem dos gêneros cômicos no teatro ocidental também remonta ao século XVI,
quando surge a commedia dellarte. A partir de então, praticamente tudo o que aconteceu
relaciona-se a ela, de uma maneira ou de outra. A commedia delVarte possui uma estrutu­
ra de tipos fixos e enredos em que o novo confronta-se com a tradição, representados pelo
"mundo dos jovens" e pelo "mundo dos velhos". As personagens são, invariavelmente,
caracterizadas por máscaras. A commedia dellarte era levada à cena por meio da impro­
visação e influenciou, por séculos, a arte dramática em toda a Europa.
A música sempre esteve presente na commedia dellarte. David Kimbell, em seu tra­
balho sobre a ópera na Itália, alerta para uma curiosidade relevante: a primeira descri­
ção detalhada de uma apresentação de commedia dellarte foi feita por um músico,
Massimo Troiano, em 1568. Mais curioso ainda é o fato de ter atuado nessa apresenta­
ção, como Pantalone, ninguém menos que o compositor Orlando de Lassus:

Depois do prólogo, Mestre Orlando arranjou um madrigal a cinco vozes para


ser cantado enquanto Massimo, que agora representava o amante, mudasse suas
roupas, vestindo-se de veludo carmesim, abundantemente adornado por enfeites
dourados, com uma capa de veludo negro revestida com a mais fina pele de
zibelina...
... Do outro lado do palco apareceu Mestre Orlando vestido como um Mag­
nífico em uma túnica de veludo carmesim, meias venezianas escarlates, um lon­
go manto negro estendendo-se até o chão e uma máscara que provocou gargalhadas
estrondosas à sua primeira vista.
Ele tocou seu alaúde e cantou: "Todo aquele que passar por esta ma e não sus­
pirar é um homem feliz", e depois de repetir isto duas vezes largou o alaúde e co­
meçou a lamentar-se por amor, dizendo: "Oh, pobre Pantalone, você não pode
passar por esta rua sem encher o ar de suspiros e aguar o chão com suas lágrimas..."
E Camila se apaixonou por Zanni e levou-o para casa, o que não é de se es­
pantar, posto que as mulheres sempre largam o melhor pelo pior.
Então, houve música de cinco violas-da-gamba, assim como muitas vozes.
Agora, diga-me, esse não foi um ato ridículo?...
... Feitas as pazes, Camila é dada a Zanni como esposa e em honra ao seu
casamento eles juntam-se em uma dança à moda italiana, e Massimo, em nome
de Mestre Orlando, implorou o perdão da audiência principesca por tão indig­
no entretenimento e com duas reverências desejou-lhes boa noite... (Kimbell,
1991:287-288)

Este depoimento, embora curto, é suficiente para mostrar como a música estava
presente nos espetáculos de commedia dellarte. Em uma passagem tão breve, podemos
perceber uma considerável variedade de tipos de intervenções musicais. Kimbell os cias-
Voix de ville 55

sificou da seguinte maneira: "nos intervalos entre um ato e outro, para prover a peça de
uma estrutura decorativa e sugerir a passagem de tempo", referindo-se às passagens mu­
sicais com violas-da-gamba e vozes, e ao madrigal do início do texto "com fins natura­
listas, como na dança de casamento, no final; e para intensificar o pathos das falas mais
emocionais e apaixonadas" (Kimbell, 1991:288), referindo-se à canção na qual Lassus
acompanha a si mesmo com o alaúde. A isto deve-se acrescentar que é possível identifi­
car, também, dois tipos de situações musicais: uma em que ela é inserida na própria
ação, sendo executada pelos atores, como a canção de Lassus e a dança do casamento,
e outra em que a música não participa da ação, tal como no madrigal e na transição
entre os atos3.

Intermezzo e Opera Buffa

Já vimos no capítulo anterior, como a comédia madrigal, uma das precursoras da


ópera, sofreu influência da dramaturgia da commedia délYarte. Pode-se dizer que, enquanto
a ópera utilizava como referencial o modelo da tragédia grega, desenvolvia-se, paralela­
mente, uma dramaturgia musical ligada à comédia, que permaneceria em segundo pla­
no até o início do século XVIII.
A presença de personagens cômicas na ópera séria tornou-se um fato desde que a
ópera abandonou o estilo pastorale. A adoção de temas históricos fez com que as perso­
nagens deixassem de ser deuses e semideuses e passassem a ser mortais. Isso abriu espa­
ço para a incorporação d aservetta, oriunda da commedia delYarte: a criadagem passa a ser,
então, representada e se toma responsável pelas situações cômicas da ópera.
A ópera L'incoronazione di Poppea, de Monteverdi é um bom exemplo de como a
ópera incorporou a criadagem.
As cenas cômicas inseridas nas óperas sérias eram chamadas de contrascena. Ini­
cialmente, o conteúdo dramático das contrascene ligava-se à ópera como um todo. Podia
ser um comentário tanto da situação quanto de uma determinada personagem. Com o
passar do tempo, elas começam a se desligar da ação da ópera propriamente dita e pas­
sam a representar situações paralelas. Essa ação paralela desenvolveu-se a ponto de tor-
nar-se uma nova trama inserida na ópera. Um exemplo disto é Eraclea (1700), de
Alessandro Scarlatti, em que uma comédia romântica e uma farsa paralelizam o drama
principal, a opera seria propriamente dita. Em certo momento, a contracena já estará to­
talmente desvinculada da ação dramática. Aos poucos, ela também vai sendo colocada
próxima aos finais dos atos. Por volta do início do século XVIII, a contrascena desliga-se
totalmente da ópera e passa a exercer a função antes reservada ao intermedio. Dessa fu­
são, surge o intermezzo.
Os intermezzi eram pequenos interlúdios, com número reduzido de personagens,
para serem apresentados entre os atos de uma ópera séria. Assim, havia dois intermezzi

3. Esses dois tipos de uso da música são motivo de discussão até o presente momen­
to e são uma das grandes preocupações dos teóricos de música de cinema.
56 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

em uma ópera séria de três atos. Por vezes, ocorria inclusive um terceiro intermezzo, exe­
cutado durante o terceiro ato. Apesar de separados, não se trata de ações independentes,
pois a soma dos dois ou três intermezzi formava uma ação contínua: o final de um cos­
tumavam apresentar uma situação de tensão dramática que só seria resolvida no seguinte,
e assim por diante, até a conclusão final, em um modelo próximo ao dos seriados de ci­
nema no século XX.
Bastante simples em sua dramaturgia, os intermezzi normalmente apresentavam
uma trama constituída basicamente de uma burla, com forte influência da dramaturgia
da commedia dellarte. Era comum, inclusive, o uso de seus tipos característicos. A ação
cantada ocorria normalmente entre duas personagens, masculina e feminina, embora
fosse comum contar com a presença de outras que, no entanto, não tinham texto. A or­
ganização dramático-musical era, também, bastante padronizada. Na maioria dos casos,
havia duas árias, no máximo três, separadas por recitativos secco, culminando em um
dueto final. Aberturas e peças instrumentais praticamente inexistiam, exceto em situa­
ções de dança.
Os intermezzi não são precursores da opera buffa, pois ambos surgem quase simul­
taneamente, exatamente quando a opera seria põe de lado as personagens e situações de
caráter jocoso. Contudo, não seria incorreto dizer que o intermezzo, por sua extensão re­
duzida e sua posição secundária, com função de preencher o intervalo entre os atos de
uma obra dramática de maior fôlego, serviu como espaço de experimentação de vários
procedimentos musicais voltados à comédia. As opere buffe diferem dos intermezzi quanto
às suas proporções: eram óperas completas e com maior número de personagens. Mas
ambos compartilham de muitas características: são sempre cantados, não há texto dia­
logado, têm como referencial dramático a commedia dellarte e, especialmente, utilizam
os mesmos recursos dramático-musicais, o que ficaria conhecido como stilo buffo.
Essas práticas apresentam dois aspectos fundamentais da comédia. O primeiro é a
questão do tratamento temporal como seu fator essencial: a ação não pode parar, nem
as situações se arrastarem indefinidamente. Qualquer negligência nesse aspecto pode
destruir o "tempo de comédia", conceito este resumível a uma só palavra: agilidade. O
segundo aspecto é o da clareza absoluta do texto a fim de que a graça, a piada, a situação
que provoca o riso se efetivem, fazendo que a comédia atinja seus objetivos. Para aten­
der essas duas prioridades, fez-se que as nuanças musicais acompanhassem exatamen­
te, ponto a ponto, as mudanças da ação indicadas pelo texto. A partir disso, surgiu um
estilo ágil, flexível, que iria influenciar praticamente toda a produção dramático-musi­
cal posterior. A este respeito, Kimbell comenta:

Melodia e harmonia, textura e colorido eram as prioridades da ária na ópera


séria; no intermezzo, por outro lado, em que os compositores estavam buscando a
comédia e a caracterização, a ênfase tendia a passar para o ritmo ou, para ser mais
preciso, para o tempo, talvez o mais importante ingrediente da arte cômica.
(1991:308)

A agilidade requerida pela ação cômica levou a uma organização rítmica em que o
tempo musical se subordina ao tempo dramático e o andamento é alterado de acordo
com as nuanças da ação. A atividade rítmica é organizada de acordo com a intenção do
Voix de ville 57

texto e as necessidades do "tempo cômico". Em termos gerais, o pulso da música tende


a acelerar-se e o próprio recitativo toma-se mais ágil. Desde então, a música da comé­
dia toma-se mais "ligeira".
A comicidade é buscada não apenas pelo tratamento rítmico, mas pelo contraste
musical em todas as suas formas: alturas, dinâmicas e tessituras vocais. A repetição é tam­
bém um ingrediente sempre presente na busca da ilusão cômica.
O uso de efeitos instrumentais como o pizzicato, o tremollo, o glissando, que já ha­
viam demonstrado sua eficiência na época de Monteverdi, toma-se, agora, indispensá­
vel para a construção do jogo dramático-musical, adquirindo uma nova dimensão no
universo da comédia. A utilização da imitação de sons de caráter naturalista toma-se prá­
tica comum, como comenta Edward Wright (1 7 3 0 ): "Eles riem, ralham, imitam outros
sons, como o estalar de um chicote, ronco das rodas de uma carruagem, e tudo com mú­
sica" (apud Troy, em seu artigo para o verbete "Intermezzo", em The Neiv Grove Dictionary
o f Music and Musicians).
Contudo, o que o stilo buffo deixou de mais significativo para a dramaturgia musi­
cal foram as soluções de continuidade. A necessidade de a música impulsionar a ação
adiante já pôde ser observada no tipo de tratamento rítmico e na mudança de caráter das
árias e recitativos. Mas foi nas peças de conjunto que ocorreu a grande transformação
dramático-musical. Invariavelmente, cada um dos atos das opere buffe terminavam com
um finale em conjunto, cantado por diversas personagens, equivalente aos duetos finais
dos intermezzi, mas proporcionalmente maior. No início, esses finali eram curtos e com­
preendiam apenas uma peça musical simples. Ao longo do tempo, eles cresceram em
proporção e envolveram um número cada vez maior de personagens. Isso acarretou uma
variedade muito maior de situações dramático-musicais, levando a uma prática de orga­
nização musical dos finali por seções. Cada uma dessas seções possuía a sua própria to­
nalidade, compasso, andamento, enfim, uma completa independência musical. Mas,
quando juntas, possuíam uma unidade e continuidade dramático-musical.
Este aprimoramento da continuidade por meio dos finali permitiu uma grande so­
fisticação das peças de conjunto. No capítulo anterior, vimos como tais recursos iriam
atingir um alto grau de sofisticação no período clássico4. É significativo que esse aprimo­
ramento tenha ocorrido no domínio da comédia e não no da opera seria.
Os intermezzi e as opere buffe desenvolvem-se na periferia da opera seria. Enquanto
esta última cultivava o virtuosismo e o estrelismo característicos, os primeiros explora­
vam um aparato instrumental mais modesto, com menos virtuosismo, com elencos
menos prestigiados do que os ídolos vocais da opera seria. Mas é dessa produção perifé­
rica que surgem as principais transformações musicais e dramático-musicais que irão de­
terminar o novo contexto da ópera e do teatro musical, chegando, inclusive, a influenciar
a produção musical com fins não-dramáticos.

4. Tal como o exemplo do trio de Don Giovanni, de Mozart (Capitulo 1).


58 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

Théâtres de la Foire

Enquanto na Itália, formava-se a tradição cômica do stilo buffo, na França havia toda
uma movimentação paralela, da qual surgiriam, praticamente, todas as manifestações de
teatro musicado que hoje conhecemos. Tudo começou nos teatros das feiras de Saint-
Laurent e Saint-Germain - os théâtres de la foire, como ficaram conhecidos. Desde a Ida­
de Média, essas feiras eram os locais onde aconteciam encenações, acrobacias, shows
com animais, marionetes e demais espetáculos populares.
A influência da commedia dellarte na produção dos théâtres de la foire também é
muito significativa, especialmente a partir de 1697, quando a Comédie-Italienne foi expul­
sa da França por ter supostamente zombado de Mme. de Maintenon, em sua peça La
fausse proude. Quando a trupe italiana partiu, os théâtres de la foire se apossaram de todo
o seu repertório. Os comediantes italianos só retomariam à França em 1716.
É impressionante como os recursos dramáticos e musicais foram sendo modifica­
dos a fim de adequar essa arte de feira às exigências e restrições impostas pela arte ofi­
cial. Inicialmente, foi Lully quem obteve os privilégios de canto e dança. Com isso, os
théâtres de la foire não puderam mais apresentar música cantada e dançada. Posterior­
mente, foi a Comédie Française que, em 1699, conseguiu que os théâtres de la foire fos­
sem impedidos de apresentar peças completas. Em seguida, em 1707, os diálogos foram
proibidos. Finalmente, em 1709, todo tipo de fala ficou proibido.
Adotando a designação de opéra comique para seus espetáculos, os théâtres de la foire
são autorizados, em 1716, a apresentar espetáculos com música e dança mediante o pa­
gamento de uma razoável quanúa à Opéra. A Comédie Française, por sua vez, reagiu e, de
1718 a 1724, apenas espetáculos de marionetes foram permitidos nas feiras. Ao térmi­
no dessa restrição, os théâtres de la foire viveram um período de grande produtividade.
O repertório desse período foi publicado como Les théâtres de la foire ou lopéra comique,
uma série de dez volumes de textos de Le Sage e d'Omeval.
Perante tal histórico, era de se esperar que os théâtres de la foire não tivessem con­
seguido produzir muita coisa. Ao contrário, a cada nova restrição, era encontrada uma
solução. Para o impedimento de levar aos palcos peças completas, eles passaram a apre­
sentar fragmentos curtos; para a proibição dos diálogos, peças em monólogos; para a su­
pressão total das falas, o uso de legendas com o texto dos atores.
O uso de legendas é especialmente significativo. Os textos eram apresentados em
couplets (estrofes) elaborados sobre a estrutura métrica de um vaudeville conhecido pelo
público. Proibido o canto, as legendas eram apresentadas, enquanto a orquestra execu­
tava o vaudeville e quem cantava era o público. Surgiu, assim, a comédie en vaudevilles. En­
quanto isso, os atores representavam a ação por meio da pantomima, forma que utilizou
recursos muito parecidos com os do cinema mudo, quase dois séculos antes de seu sur­
gimento.
Esse tipo de estrutura é muito próxima daquela da Comédia Madrigal, na qual a ação
mimada e a música ocorriam em paralelo, com a diferença de que a necessidade de o
público cantar requer a escolha de um material musical bastante familiar. Essa caracte­
rística é muito importante, pois os autores e músicos, como Le Sage e Gilliers, foram
obrigados a dominar as possibilidades associativas das canções para os homens de sua
Voix de ville 59

época. Mesmo após terem sido retiradas as restrições e o canto voltar a ser executado no
palco, a característica de não se desligar do referencial musical do público permaneceu.
A seleção dos vaudevilles para um determinado espetáculo era algo que exigia bas­
tante atenção, como relata Clifford Bames:

Compositores eram contratados para organizar pequenas orquestras, trabalhar


junto aos autores na seleção dos vaudevilles apropriados e, eventualmente, para es­
crever canções originais, chamadas ariettes. Sérios esforços eram feitos para sele­
cionar os vaudevilles que melhor representassem o estado emocional da peça no
ponto em que eles eram introduzidos, fosse pela música em si ou pela lembrança
ou reutilização de seu texto original. Uma escolha criteriosa poderia sublinhar vi­
gorosamente uma situação, ou mesmo contradizê-la, de um modo humorístico. Os
duplos sentidos abundavam. (Em seu artigo para o verbete "Vaudeville", em The New
Grove Dictionary o f Music and Musicians)

Aos poucos, a prática de manipulação de tais relações associativas amadureceu de


tal forma que os vaudevilles passaram a ser recorrentes, quer associados a determinados
úpos de situação ou personagens, quer pela necessidade de induzir determinadas respos­
tas emocionais. Essa recorrência podia se dar em uma única peça ou mesmo em peças
diferentes.
Os vaudevilles eram usados indiscriminadamente. Bames dá um exemplo em que
há quatro letras para o mesmo vaudeville, com diferentes funções:

R é-vci-lez vous, belle cn-dor - mi - c R é-vei-lcz vous, car il est jour.


Ma - da - me qu'il vous en sou - vien - ne Tant en bc - car - rc qu'en bé - mol
P:Cesoir on fait le sa-cri - fi - ce 11 n'est pas ve - nu d'E-tran - ger.
A de-main il faut la re - met - tre Cet - te nuis nous ré - pé - te - rons

Met - tcz la tête à la fe - ne - tie Vous en - ten - drez par - 1er de vous
Je suis Chan - tcusc I - la - li - en - ne J'ai le go - sicr d'un ro - si - gnol.
M:I1 l'aut que le Vi - sir pé - ris - se P:Pré-pa-rez vous à l'é-gor - ger
Vous, Mcs-sicurs, dai - gnez nous pro - me - tre Que de-main nous vous re - ve - rons.

Primeira letra - vaudeville original


Segunda letra - L. Fuzelicr: Le Pharaon
Terceira letra - Diálogo entre Pierrot e Mezzetin em I.esage: Arlequin, Roy de Serendib
Quarta letra - vaudeville final de Pamiard: La Répétition Interrompue

Chega-se ao ponto, inclusive, de fragmentar o material melódico dos vaudevilles


para alcançar a ilusão dramático-musical almejada: "Le Sage e seu compositor-colabo-
rador Gilliers às vezes criavam cenas musicais contínuas com vários vaudevilles em su­
cessão, e em La Princesse de Carizme Le Sage entrelaçou habilmente frases separadas de
diferentes vaudevilles (Bames, em seu artigo para o verbete "Vaudeville", em The Neiv Grove
Dictionary o f Music and Musicians).
Esta prática de selecionar vaudevilles para compor a música do espetáculo e, espe­
cialmente, de formar um inventário associativo para eles, lembra muito o critério de se­
lecionar as músicas de acompanhamento dos primeiros filmes mudos. No caso do
60 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

cinema mudo, esse inventário associativo chegou a ser formalizado em publicações es­
pecializadas.
Assim como nas opere buffe, a idéia de um final articulado também foi empregado
nos théâtres de la foire, sob a forma de vaudeville final. Nele, as personagens principais
confrontavam-se em uma única peça musical, cada qual cantando uma estrofe. A dife­
rença entre o fin ale italiano e o vaudeville final é que este último possui características
estróficas. Em muitos casos, havia um refrão cantado em coro. O vaudeville final passou
a ser composto para cada peça especificamente e, assim, a música original tomou-se um
fato cada vez mais comum nesses espetáculos. Seus reflexos transcendem o universo dos
teatros de feira: podem ser encontrados vaudevilles finais em óperas como Orfeo ed
Euridice, de Gluck, em Don Giovanni, de Mozart, em II Barbiere di Siviglia, de Rossini,
entre outros.
Com o passar do tempo, a comédie en vaudevilles separa-se conceitualmente da opéra
comique, na qual a música original é um ingrediente cada vez mais significativo. No fi­
nal do século XVIII, elas sobrevivem como comédie â couplets ou comédie-vaudeville. É dessa
tradição que surge a comédia musical que conhecemos hoje.
As convenções da comédie en vaudevilles e da opéra comique diferem bastante da tra­
dição operística propriamente dita, mesmo da ópera bufa. Na ópera, a música é uma pre­
sença permanente, seu fator articulatório primário. Nos gêneros cômicos oriundos do
teatro de feira, o texto divide com a música a articulação dramática. Nem todo texto é
"portado" pela música. A situação do diálogo acontece, tanto por meio do canto, quan­
to da fala. A alternância entre música e fala aproxima-os muito mais da tradição da
commedia dellarte, embora a ópera jamais deixasse de ser um referencial: as paródias de
óperas sérias eram apresentadas quase que simultaneamente às suas estréias.
No universo da comédia popular, a dramaturgia musical aprendeu a trabalhar em
uma perspectiva disúnta da ópera: mais naturalista, mais próxima do cotidiano e alta­
mente integrada ao referencial musical do público. Foram desenvolvidas, assim, novas
convenções, pois a alternância de música, texto e ação permitiu construções bastante di­
ferenciadas daquelas da ópera, em que a música jamais é interrompida. Posteriormen­
te, essas convenções seriam muito úteis para os músicos de cinema, que se viram diante
de situações semelhantes às dos théâtres de la foire e seus sucessores.
A tradição da comédie en vaudevilles não se restringiu à França. A ballad opera ingle­
sa e o Singspiel alemão são manifestações contemporâneas semelhantes que se influen­
ciaram mutuamente. No século XIX, essa tradição iria sobreviver em gêneros como o
Music Hall, a Revista e o Café-Concerto. Por outro lado, ela se encontra com a tradição ope­
rística na opéra comique e na operetta.
A partir da metade do século XVIII, a opéra comique começa a se transformar e se
distancia da forma tradicional da comédie en vaudevilles. A tradição cômica italiana exer­
ceu uma influência direta neste processo. Seu marco foi a apresentação de La serva
padrona em Paris (1 7 5 2 )5. A partir daí, surgiram cada vez mais obras com música origi­

5. A apresentação desta ópera deu origem a uma polêmica conhecida como querélle des
bouffons, na qual as duas culturas, italiana e francesa, se debateram a respeito dos méritos
de suas respectivas artes musicais.
Voix de ville 61

nal. Le devin du village, de Rousseau, estreada em 1752, é uma das primeiras e enquadra-
se perfeitamente no modelo italiano de música contínua, mas o estilo musical é fran­
cês e segue a tradição dos vaudevilles. A forma que se consolidaria seria a da peça cômica
em diálogos intercalada por números musicais e passagens em melodrama.
A ascensão da opéra comique encobre aos poucos o espaço da tragédie lyrique, pro­
cesso esse que reflete a transição política do período, quando a burguesia substitui a no­
breza no poder central, culminando na Revolução Francesa. A opéra comique deixa
gradualmente a periferia para se tomar arte oficial.
Esse novo modelo de opéra comique seguiu a tradição da temática voltada ao uni­
verso das pessoas comuns. Mas a comédia farsesca irá, aos poucos, ceder espaço aos en­
redos mais sérios, de caráter romântico. O fator cômico vai se tornando secundário e a
aventura, bem como o horror, que sempre permitiram a exploração de efeitos espetacu­
lares, passam a dividir o palco com a comédia. A fronteira entre a ópera convencional e
a opéra comique fica cada vez mais tênue, em certos casos restrita apenas ao fato de a úl­
tima apresentar diálogos intercalados com música, enquanto a primeira mantém a tra­
dição da música contínua pelo uso de recitativos.
Musicalmente, a nova opéra comique é mais sofisticada do que as comédies en
vaudevilles, embora sejam mantidas algumas características, especialmente quanto ao tra­
tamento melódico e a simplicidade da escrita. Alguns exemplos antecipam futuras prá­
ticas posteriores como Richard Coeur-de-Lion (1784) de Grétry, em que o autor usa a ária
Une fièvre brülante de forma recorrente, unificando tematicamente a peça como uma es­
pécie de leitmotiv primitivo. Também permanece o hábito de trabalhar a sonoridade não
apenas em seu aspecto musical. Já mencionamos, a respeito da opera buffa, o quanto era
comum a imitação musical ou onomatopéica dos sons naturalistas. Na França, pelo que
podemos apreender dos relatos, este universo sonoro realista foi além da pura imitação
ou onomatopéia, embora estas também existissem. Martin Cooper cita um exemplo: "(...)
Henry IV, de Jean Paul Martini (...), incluía uma cena mostrando a batalha de Ivry, para
a qual a orquestra consistia de pífaros, clarinetes, oboés, trompas, pratos, tambores, ca­
nhão, mosquetes e uma primitiva forma de máquina de vento" (em seu artigo para o ver­
bete "Opéra comique", em The New Grove Dictionary o f Music and Musicians).
O realismo e o caráter espetacular das grandes catástrofes também atraíram o in­
teresse da produção do período em que "fogo, avalanches, terremotos e erupções vulcâ­
nicas" (Cooper, em seu artigo para o verbete "Opéra comique", em The New Grove
Dictionary o f Music and Musicians) eram levadas ao palco. Obviamente, era necessário
um tratamento sonoro ou musical para tais situações.
Ao mesmo tempo em que a opéra comique se aproxima da ópera convencional, ela
a influencia. A prática de incorporar o texto falado pode ser encontrada em obras como
Die Zauberflôte6, de Mozart, e Fidelio, de Beethoven. Obras posteriores a esse período tor­
naram-se parte do repertório operístico, como Carmen, de Bizet, produzida sob a égide

6. Die Zauberflöte (A flauta mágica) não é exatamente uma ópera convencional, pois
possui muitas características do Singspiel alemão. Contudo é uma obra que se tornou indis­
pensável no repertório operístico tradicional.
62 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

da opéra comique. Paralelamente, o teatro popular, representado pela comédie-vaudeville,


assumiu cada vez mais um caráter de espetáculo de variedades. A lacuna entre ambos se­
ria preenchida pela operetta.
Fazendo uso de recursos cômicos, a operetta traz à cena vários elementos do teatro
popular como o tom farsesco, a paródia e a sátira, com a alegria e a agilidade que pos­
suíram os espetáculos dos teatros de feira. Mas a influência da tradição operística é muito
grande, particularmente a do gênero buffo, que foi assumido como referencial no m o­
mento em que Offenbach usou o termo opéra bouffe para designar seus trabalhos.
Do teatro popular, a operetta incorporou os andamentos acelerados, as construções
melódicas simples e os ritmos dançantes, de grande impacto junto ao público, bem como
outros fatores que lhe conferem um caráter bastante extrovertido, acessível e em sinto­
nia com o repertório musical do público de seu tempo. Da tradição operísüca, ela incor­
porou o universo timbrístico orquestral (por conseguinte, uma orquestração mais
elaborada) e a continuidade musical não apenas pela junção de números, mas pelo de­
senvolvimento de uma articulação dramático-musical: uma música criada em função da
articulação dramática. Ao mesmo tempo, permanece o hábito de intercalar diálogos,
herdado da opéra comique.
No século XIX, paralelamente ao surgimento da opereta, desenvolveram-se, tam­
bém, outros gêneros de teatro musicado. Os antigos vaudevilles, que haviam sobrevivido
como comédie-vaudeville, comédie à couplets ou, simplesmente, vaudevilles, tomaram-se es­
petáculos de variedades, incorporando todas as manifestações musicais de caráter popular
e outros elementos não propriamente dramáticos: acrobatas, mágicos, ginastas etc. Eles
se alastraram pelo mundo sob diversos gêneros Café Concerto, Music Hall, Cabaret, Re­
vista etc. Segundo Neyde Veneziano:

Nos primeiros tempos, um programa de Café-Concerto era, infalivelmente,


assim composto:
Números 1 e 2 - Orquestra;
Números 3, 4 e 5 - Cançonetistas e bailarinas;
Número 6 - Ginastas;
Número 7 - 0 cantor (ou cantora) da grande voz (os divos);
Número 8 - 0 cômico;
Final - Uma brilhante marcha. Durante sua execução, apareciam a diva do espetá­
culo, que também poderia ser uma vedete, e todos os demais participantes. (1993:13)

Vemos como tal estrutura é muito mais fragmentada do que os gêneros tratados an­
teriormente. Porém, as caracterísúcas que nos interessam aqui são sua atualidade, a sin­
tonia com o público e a grande versatilidade que permite incorporar praticamente tudo
o que seja atração para seus espectadores.
São essas as matrizes do que viriam a ser a Comédia musical e o Musical americano,
que floresceram a partir da segunda metade do século XIX.

A q u is iç õ e s D r a m á t ic o - m u s ic a is d o T ea tro P o pula r

O teatro popular nunca se preocupou muito com a pureza do gênero e nem sequer
se restringiu ao evento dramático propriamente dito. Ao longo de sua história, esteve
Voix de ville 63

sempre aberto a tudo que pudesse significar atração, divertimento e entretenimento. Ja­
mais respeitou as instituições: Igreja, Estado, poder, foram sempre alvos de crítica, sátira
e recriados sob a perspectiva do homem comum. Artisticamente, o teatro popular é um
espaço permanente de experimentação e transformação, sempre em sintonia com o pú­
blico, não importando a época e o local. Nele desenvolver-se-iam novos procedimentos
que seriam incorporados pela arte oficial.
Como espaço das mais variadas manifestações, o teatro popular permitiu a explo­
ração de diversas combinações com a música: música e ação, música e movimento, mú­
sica e texto. Adequou-se, também, às necessidades geradas pela construção da ilusão
poética da ação espetacular: ginastas, malabaristas, saltos mortais etc. A cada momento,
é necessário intensificar a tensão dessas expectativas e de suas resoluções, emoldurando,
no tempo, a ação dos artistas. A música é a "moldura temporal" tanto quanto o palco é
a "moldura espacial". A música prepara o espectador, concentra-o, acompanha a reali­
zação do movimento, insinua o perigo ou a emoção de um gesto e, finalmente, pontua
sua conclusão.
A pantomima é outra faceta desta associação de música e movimento que foi ex­
plorada em profundidade. Vimos que isto ocorria na comédie en vaudevilles, por exem­
plo, em que os atores representavam enquanto o público cantava o vaudeville. Nesse caso,
a música também servia de "moldura temporal" para a ação. Além disso, a música é uma
fonte adicional de informações na qual as intenções e o caráter da ação são revelados
pelo contraponto entre ambos. A música pode sublinhar, comentar ou contradizer a ação
representada e ao mesmo tempo criar a moldura temporal para o gesto, em uma rela­
ção semelhante à da dança. Na pantomima, a polifonia do gesto, da ação representada e
da música suprem, desse modo, a ausência do texto falado.
Na constmção musical do "tempo de comédia", o andamento e o caráter têm que
se adequar às intenções de cada momento, permitindo um tipo de articulação dramáti­
co-musical ponto a ponto. As questões rítmicas tomam-se fundamentais, a ponto de o com­
positor Herold7 ter declarado: "Lembre-se de que o ritmo faz tudo" (apud Grout, 1965:335).
O redimensionamento das questões rítmicas da polifonia dramáúco-musical per­
mitem um novo tipo de articulação. As nuanças musicais que acompanham as transfor­
mações do texto e da ação dramática possibilitam que a música faça o recorte da ação e
estabeleça o foco de interesse, o que deve ser colocado em primeiro plano. O local para
onde se dirige o olhar do espectador é indicado, primordialmente, pela música. Da peça
de conjunto ou coro, que reúne diversas personagens distribuídas pelo palco, até o so­
lista, que chama para si a atenção de toda a platéia, a música recorta e expõe o que deve
ser observado em cada momento do espetáculo. A partir deste recorte musical é que o
texto é dado e compreendido.
Ao contrário da ópera tradicional, em que a opção pela música contínua levou à
adoção do recitativo, no teatro musical a relação entre música e texto buscou outras con­

7. Louis-Joseph-Ferdinand Herold (1791-1833), compositor francês ligado à opéra


comique. Seu trabalho mais conhecido é Zampa.
64 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

venções mais adequadas às suas necessidades, especialmente ao seu caráter naturalista.


A alternância de música com texto falado, como vimos, é encontrada em diversos gêne­
ros do teatro musical. É nesse contexto que se exercita e se aprimora a prática de desen­
volver uma progressão dramática por meio de diálogos e números musicais sucessivos,
prática esta em que o número musical põe em evidência algum aspecto dessa progres­
são, discute-o, fazendo, assim, que a ação vá adiante. Em outros casos, o número musi­
cal não participa tão efetivamente da progressão dramática, mas, ao mesmo tempo,
divide-a e proporciona a distinção entre suas partes e seus diversos momentos.
A outra vertente é aquela em que música e texto se sobrepõem polifonicamente, mas
o texto não chega a tomar parte da constmção musical propriamente dita, segue apenas
em paralelo. Essa relação é chamada, com freqüência, melodrama, mas há, também, ou­
tras denominações. Delibes, por exemplo, em sua Lakme, chama tais passagens de musique
de scène: o texto continua a ser falado pelo ator, mas sua representação não é afetada como
ocorre no número musical propriamente dito. Mesmo assim, a música é uma interven­
ção nessa ação e modifica a compreensão que o público tem dela. A música tende, por­
tanto, a interferir na "pureza" dramática, ou seja, na ilusão de que a ação aconteceria sem
qualquer interferência externa. A música será sempre um fator externo à representação
e, portanto, um comentário, uma voz a mais na composição. Desse modo, vemos o dra­
mático ceder espaço ao melodramático. Se este for bem utilizado, será um tipo de cons­
trução bastante útil, mas é preciso habilidade para que a interferência musical não
prejudique o diálogo nem a ação dramática.
Com o passar do tempo, o teatro popular aprendeu a "falar corretamente", tal como
Eliza em My Fair Lady. Ou será que o seu modo peculiar de falar tomou-se correto? Não
importa. Basta perceber que uma voz emergiu da vila para o mundo. Assim como o pai
de Eliza, que "with a little bit ofluck" deixa de ser um vagabundo e, contra a própria von­
tade, toma-se um membro da classe dominante, o teatro popular deixa a feira para as gran­
des casas de espetáculos. Na segunda metade do século XIX, centenas dessas casas se
espalharam pela Europa e mundo afora. O teatro musical era o grande entretenimento
da época, oferecendo opções para todos os gostos e todas as classes. Esse espaço privile­
giado das artes viria a se tomar o berço do cinema como espetáculo
3
P a n t o m im a s L u m in o s a s

The day will yet come when musicians will write for picture plays, manufacturers
will print the music for such films, managers will gladly pay for same, pianistis will be
engaged to enchant the public, who are so willing to go and hear, as well as see that which
it craves for, good music in connection with silent picture plays, music that speaks for itself
- the music of the silent drama.
Pilar Morin, 1910

Uma grande metáfora da história do cinema é a biografia de Don Lockwood (Gene


Kelly), contada pela própria personagem no prólogo do filme Cantando na chuva (Singing
in the Rain, EUA, 1952). Don é o ator de cinema mudo bem-sucedido, um magnífico
exemplar do star system que na estréia de seu filme, diante da multidão inflamada pela
proximidade dos astros, é solicitado a falar sobre sua história. Conforme narra passo a
passo sua trajetória rumo aos picos da fama, as imagens em flash-back tecem um curio­
so contraponto à sua fala. Don nos conta como sempre teve como lema a "dignidade",
como freqüentou as melhores escolas (inclusive de dança) e como ele e seu amigo, Cos­
mo (Donald O'Connor), se apresentavam para os amigos do pai e eram sempre por eles
elogiados. Paralelamente, as imagens nos mostram os dois, ainda crianças, sendo reti­
rados do salão de bilhar onde dançavam e tocavam para os "amigos" de seu pai. Em se­
guida, ele nos fala sobre sua formação dramática, de como acompanhava os pais ao teatro,
onde conheceu os grandes clássicos e vemos somente ele e Cosmo entrando de graça,
escondidos, em uma sessão de cinema de segunda classe. Ouvimos sobre seu apren­
dizado musical no conservatório de belas-artes e observamos ambos tocando em um
bar nada sofisticado. Don relata seu aperfeiçoamento na "m elhor academia dramá­
tica" e as imagens nos mostram os dois apresentando seu número em uma "noite
de calouros".
66 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

O cinema é arte popular. O discurso de Don tenta forjar uma origem erudita e so­
fisticada para esconder essa herança popular, tida como de "baixo calão" ou, no míni­
mo, não respeitável. A história de Don é muito parecida com a de Eliza, em My Fair Lady,
que consegue enganar toda a aristocracia, sendo tomada como princesa húngara. Am­
bos possuem uma origem comum e por mais que tentem disfarçá-la, são seu reflexo
e revelam-na em seus atos mais sinceros: Eliza nas corridas e Don em seus núm e­
ros musicais.
Sabe-se que o cinema não surgiu como arte. Nos primórdios era, para alguns, ape­
nas uma nova técnica que permitia registrar as imagens em movimento e, para o gran­
de público, mera curiosidade. As trinta e cinco pessoas que pagaram um franco cada para
assistir à projeção de alguns filmes de curta duração dos irmãos Lumière no Grand Café,
em 28 de dezembro de 1895, muito provavelmente não classificariam aquele evento
como fato artístico. Mas o cinema era, sem dúvida, uma novidade e provocava o fascí­
nio do público, tanto que se transformou, rapidamente, em um grande negócio. A capa­
cidade de perceber esse potencial comercial e a idealização do mecanismo da grifa foram
dois grandes méritos dos irmãos Lumière.
O cinema começava a conquistar o público como curiosidade e entretenimento
mesmo antes de ter incorporado a estrutura dramática e estabelecido os princípios de sua
linguagem. E, como tal, passa a ser apresentado modestamente intercalado entre os nú­
meros das casas de espetáculos de variedades. O cinema foi o intermedio do café-concerto
e do music hall
O cinema foi a última conquista de todas as experiências ópticas que proliferaram
ao longo de muito tempo e alcançaram no século XIX alto grau de desenvolvimento e
variedade. Sombras chinesas, Lanterna mágica, Fantasmagoria, Panorama, Diorama, Teatro
óptico: grande parte dessas experiências ópticas tinham por objetivo a síntese do movi­
mento e muitas chegaram a resultados magníficos. Mas o cinema surge, nesse contex­
to, como uma técnica diferenciada.
O principal apelo do cinema foi, nesse primeiro momento, a possibilidade de as­
sistir a imagens em movimento. Michel Chion afirma:

Que o cinema em seu início não seja designado como uma arte da imagem,
mas como uma arte do movimento, não é de se espantar, em uma época em que
as artes, espetáculos e atrações visuais abundam como nunca: fotografia
estereoscópica em relevo, dioramas, lanterna mágica, projeções diversas, teatro de
efeitos visuais. Apresentar-se como uma nova arte da imagem era, acima de tudo, de­
sastrado. Em contrapartida, o que era moderno era a idéia do movimento. (1995:32)

Chion tem razão, mas o que não está claro é que a imagem em movimento tam­
bém era o alvo de várias dessas formas de espetáculos ópticos. O que o cinema apresen­
ta de significativo, realmente, é o fato de suas imagens serem o registro de ações de
pessoas, de situações do mundo e não a síntese de movimentos por meio de desenhos
ou sombras. O cinema nasce como espetáculo impregnado de realismo. O que fazia dele
uma grande curiosidade era o fato de se poder ver, pela primeira vez, o registro da ação
humana propriamente dita. O que o cinema exibia não eram imagens quaisquer, mas
imagens de pessoas reais em ações reais. Os Lumière, com seu senso de espetáculo, per-
Pantomimas luminosas 67

ceberam que aí residia o grande potencial do cinema, como pode ser observado em seus
primeiros filmes: o trem parando na estação, operários deixando as fábricas etc. E, como
uma avalanche, o cinema soterrou todas as experiências ópticas que o precederam. Em
pouquíssimo tempo, elas perderam praticamente todo seu espaço junto ao público.
Já se pode notar, nesse momento, as duas grandes características da história do ci­
nema: seu caráter realista, ou seja, sua opção de focalizar pessoas, ações, objetos e situa­
ções captadas diretamente no que entendemos por "mundo real", bem como o caráter
"pretérito" de toda ação filmada, que nos leva a ver o filme sempre como fato ocorrido1.
Esses dois fatores constituem a grande distinção entre o cinema e as experiências ante­
riores. Pela primeira vez, era possível assistir a um espetáculo em que as imagens não
eram produzidas artificialmente, por meio de pinturas recortes ou movimentos de som­
bras, mas extraídas do cotidiano, enfim, um registro e reprodução de nossas imagens,
ações e vidas.
Muitos aventureiros lançaram-se na busca do lucro por meio do cinema, seja rea­
lizando filmes, seja exibindo-os. Mas, como toda novidade, o cinema estava fadado a en­
velhecer. Aos poucos, as casas de espetáculos de variedades foram excluindo as projeções
de seus programas. Tal como comenta Sergio Miceli:

O público estava amadurecido e não bastavam mais as breves películas sobre


assuntos elementares, representações de números de variedades ou de cenas que
qualquer um podia ver pela rua; começava a extinguir-se o interesse pelo cinema
como espetáculo em si, o mesmo cinema que não havia tido a necessidade de ex­
primir conteúdos particulares enquanto os espectadores contentavam-se simples­
mente em ver as figuras em movimento. (1982:39)

No final do século, o cinema, como mera curiosidade, estava com os dias conta­
dos. Foi por isso que começou a se transformar. Surgiram as primeiras tentativas de lin­
guagem, as imagens em movimento deixaram de ser apenas registro e passaram a ser
usadas para criar situações. O cinema incorporou a ação representada, fator primordial
para a adoção de uma estrutura dramática.
O que o discurso de Don Lockwood vem nos lembrar é que o referencial dramáti­
co do cinema não é o drama erudito, mas o teatro popular. O fato de o cinema ter en­
contrado seu primeiro espaço público no teatro de variedades é sintomático. Miceli
comenta que "o filme se inseria, portanto, em estruturas preexistentes, nas quais o acom­
panhamento musical era uma característica constante, fosse como fundo aos vários nú­
meros, fosse como entretenimento nos intervalos entre um número e outro" (1982:38).
A exibição pública de cinema nasce, portanto, em um contexto musical: trata-se de
um universo em que praticamente tudo era acompanhado por música e em salas que
possuíam toda a infra-estrutura para a execução musical. A própria idéia de espetáculo
como parte da cultura e do espírito da época estava associada à música. Quando os

1. Em certo sentido, essas duas características antecipam aquilo que seria a decorrên­
cia natural do desenvolvimento do cinema: sua opção pela estrutura dramática subordina­
da a uma forma narrativa.
68 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

Lumière optaram por realizar sua histórica exibição acompanhada por música, fizeram-
no movidos por esse espírito e por seu bom senso comercial. Don Lockwood tinha ra­
zão: o cinema começara sua carreira no vaudeville.
Portanto, a primeira etapa do cinema como espetáculo teve dois referenciais: as
curiosidades ópticas e o teatro popular, as primeiras como antecedentes dos aspectos
mecânico e técnico e o segundo como origem de sua estmtura dramática. Ambos fize­
ram uso do acompanhamento musical.

AM ú sic a n o s E spetá cu lo s Ó p t ic o s e n o s P r im ó r d i o s d o C in e m a

Poucos são os registros sobre a música nos espetáculos ópticos, embora encontre­
mos, aqui e ali, algumas referências. Martin Miller Marks, em seu minucioso trabalho
sobre música no cinema mudo, comenta:
...nem todos esses espetáculos de entretenimentos ópticos eram realizados com
música - exibições de lanterna mágica de material científico, por exemplo, pare­
cem normalmente ter sido conduzidas apenas por narradores -, mas em outros ti­
pos de exibições, especialmente espetáculos de fantasia e sobrenatural, nós
encontramos consideráveis evidências iconográficas de que os lanternistas ou to­
cavam música eles mesmos ou dependiam de outros para prover o espetáculo de
acompanhamento musical, usualmente ao teclado ou instrumentos mecânicos.
(1997:28)

Dentre os espetáculos, merece especial destaque o Teatro óptico. Criado por Emile
Reynauld a partir do desenvolvimento de seu praxinoscópio, ele foi um antecessor do de­
senho animado. A máquina de projeção de Reynauld era, segundo relatos, muito com­
plexa, contudo, com ela, era possível projetar, para grandes audiências, longas seqüências
de desenhos sobre tiras transparentes. Em tomo de 1890, Reynauld exibia diariamente
suas "pantomimas luminosas" no Musée Grevin, em Paris. Lamentavelmente, jogou no
rio Sena quase todos os seus filmes, pois o mundo do cinema deixou de se interessar
pelo seu teatro óptico. Foi uma infelicidade, pois bastava sua adaptação à nova técnica e
teríamos, então, o desenho animado.
O Teatro óptico é um dos poucos que deixou registro sobre o acompanhamento
musical. A respeito da primeira exibição de Reynauld, Miller Marks comenta:

Foram exibidos três filmes curtos intitulados Pauvre Pierrot ("pantomime"),


Clown et ses chiens ("intermède") e Un bon Bock ("scène comique"); a música origi­
nal, para piano, foi composta para todos os três por Gaston Paulin e publicada sob
o título de Pantomimes lumineuses. (1997:29)

Ao que consta, as partituras apresentavam marcações minuciosas sobre a relação


entre música e imagens animadas, indicando que já existia uma preocupação com a
polifonia audiovisual. O próprio cuidado de criar uma partitura especialmente para as
pantomimas luminosas também mostra o grau de sofisticação desse espetáculo, pois esse
tipo de apresentação utilizava, geralmente, músicas do repertório tradicional.
O fato de Reynauld chamar seu trabalho de "pantomimas luminosas" demonstra
que a pantomima e sua forma de acompanhamento serviram de referencial. Sendo um
Pantomimas luminosas 69

espetáculo mudo, a pantomima era o que havia de mais próximo às imagens mudas das
primeiras experiências do cinema e de seus predecessores imediatos2.
Mas não é apenas como espaço de exibição que o teatro de variedades serve ao ci­
nema. O próprio conteúdo dos primeiros filmes foi extraído diretamente desse tipo de
espetáculo e muitos deles não passaram de meros registros de números de variedades,
pois possuíam vários requisitos importantes que os adequava às limitações técnicas do
emergente cinema, tais como a movimentação e a possibilidade de dispensar o texto fa­
lado, além do fato de pertencerem ao universo cultural do público médio. A primeira
apresentação do Vitascope, de Edison, no Koster and Biafs Music Hall, em Nova York,
mostrou, entre outros, filmes de números como a "dança da serpentina", "dança do guar­
da-chuva" e "uma luta de boxe burlesca"3, todos executados por artistas de teatros de va­
riedades.
Os primeiros a criarem música de cinema foram os músicos das casas de espetá­
culo, a partir de seus referenciais de origem. Em sua primeira etapa, ainda inserido no
contexto do vaudeville e do music hall, o espetáculo mudo do cinema apresentava para o
músico os mesmos problemas dos números do teatro de variedades e da pantomima e
pode-se, portanto, inferir que as soluções propostas fossem muito similares às que apre­
sentariam para o número de palco.
É muito raro encontrar referências precisas sobre o tipo de música executado nes­
sa fase do cinema. Provavelmente, essa preocupação não existiu porque a música naquele
contexto não significava qualquer espécie de novidade: tocava-se o que todos esperavam
ouvir.
D iante de tanta escassez, uma das raras exceções é o espetáculo de Max
Skladanowsky, que apresentava um programa de vários filmes realizados com o Bioscópio.
O espetáculo estreou em Berlim em novembro de 1895 e viajou por diversas cidades.
Curiosamente, as pastas com as partituras musicais usadas para o acompanhamento dos
filmes desse espetáculo sobreviveram e encontram-se, hoje, na Stiftung Deutsche
Kinemathek.
O espetáculo de Skladanowsky seguia o modelo das exibições de cinema nos tea­
tros, ou seja, uma série de filmes curtos. Em sua estréia, foram apresentados os seguin­
tes filmes4:

1. Uma dança camponesa italiana.


2. Uma cena cômica acrobática.
3. Uma dança da serpentina.

2. Segundo o próprio Miller Marks, o tipo de acompanhamento musical das pantomimes


lumineuses antecipa a prática do cinema mudo e segue o padrão dos espetáculos de panto­
mima do período.
3. Para maiores detalhes ver em Brooks MacNamara Scavengers of the Amusement World:
Popular Enterteinment and the Birth of the Movies (Miller Marks, 1997:248).
4. A presente lista corresponde à apresentada por Lichtenstein em "The Brothers
Skladanowsky", em Before Caligari, reproduzida por Miller Marks (1997:32).
70 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

4. Um malabarista.
5. Um canguru boxeador.
6. Um potpourri acrobático, executado por oito artistas.
7. Uma dança típica russa - Kamarinskaja.
8. Uma luta de boxe.
9. Uma "apoteose" apresentando os irmãos Skladanowsky fazendo reverências de agra­
decimento ao público.

Pode-se perceber o quanto este programa tem como referencial a prática do teatro
de variedades5. Parte da música foi composta e parte selecionada para o espetáculo6. O
modelo seguido é o de uma música para cada filme exibido, além de uma Introdução
(Abertura)7:

Filme Música

Introdução
1) Dança camponesa italiana: Polka
2) Cena cômica acrobática: Galope 1
3) Dança da serpentina: Valsa (Loin du Bal, de Gillet)
4) Malabarista: Galope 2
5) Canguru boxeador: Marcha espanhola
6) Potpourri acrobático: Galope 3
7) Dança típica russa: Kamarinskaja (de Glinka)
8) Luta de boxe: Marcha
9) "Apoteose": Finale

Nota-se que a seleção tem como base o referencial musical do período, incorporan­
do peças de gêneros bastante populares como a polca, a valsa, a marcha e o galope, este
último sempre associado aos números acrobáticos.
Nesse tipo de programa, a construção do contraponto entre o movimento visual e
o musical é a questão principal: é por seu intermédio que se alcançam a ilusão e o en­
volvimento do espectador. A opção de fazer que cada filme fosse acompanhado por um
número musical distinto revela que o acompanhamento musical já era tratado com se-

5. Tal programa pode ser comparado ao programa padrão do café-concerto apresenta­


do no Capítulo 2.
6. Não é sabido com certeza quem teria selecionado a música e composto os trechos
originais, contudo, tudo indica que tenha sido feito por Hermann Krüger. Ver Miller Marks
(1997:32).
7. O conjunto de partituras é composto por pastas para: Violinos, Flauta e Flautim,
Oboés, Clarinetes, Fagotes, Trompas, Trompetes e Trombones. Nelas encontram-se partitu­
ras para a Introdução, os filmes, numerados 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 12, 13 e 15 mais a Valsa e o
Finale. Não foram encontradas partituras para os filmes de números 8, 9, 10, 11 e 14. As mú­
sicas de número 1 a 7, mais a Introdução, a Valsa e o Finale, compõem o acompanhamento
do programa de estréia, enquanto as outras correspondem a outros filmes, inseridos por
Skladanowsky após a estréia.
Pantomimas luminosas 71

riedade. A seleção levava em conta o caráter de cada um dos filmes. Em muitas ocasiões,
afirmou-se que nos primórdios do cinema a preocupação com o acompanhamento mu­
sical foi muito pequena e que, portanto, qualquer música poderia ser usada em um fil­
me, indiscriminadamente. Talvez isso tenha ocorrido em determinados casos, mas o
exemplo de Skladanowsky o desmente e demonstra que o cinema não apenas voltou sua
atenção para a música como se preocupou em organizá-la cuidadosamente. A organiza­
ção do espetáculo segue o modelo do teatro de variedades. A própria iniciativa de emol­
durar musicalmente o espetáculo com uma Introdução e um Finale faz parte desse modelo,
bem como o fato de os realizadores se apresentarem, no próprio filme, para os agrade­
cimentos finais sob uma música apoteótica.

Polka

A M ú s ic a na F orm açào da L in g u a g e m do C in e m a

Passado esse primeiro estágio do cinema como espetáculo, em pouco tempo ele
deixou de ser apenas uma curiosidade. Paralelamente, os recursos técnicos passaram a
ser explorados mais detalhadamente. Cresceu a preocupação com o conteúdo dos filmes:
não bastava mais, apenas, o registro de situações movimentadas do cotidiano ou núme­
ros de variedades. Cada vez mais, as sessões de cinema apresentavam filmes mais lon­
gos e em menor número.
A câmera, antes fixa, começou a se mover. Aprendeu-se a buscar a imagem neces­
sária às necessidades da narrativa. Surgiram os planos, o recorte visual das imagens fei­
to pela câmera. Descobriu-se a montagem, que por meio da junção de planos permite a
72 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

progressão da narrativa. Esgotado o seu fascínio como novidade, o cinema começou sua
trajetória como linguagem e, por conseguinte, como forma artística.
Pode-se dizer que o aprendizado da primeira etapa do cinema como espetáculo, tan­
to nas imagens quanto na música, terá reflexos nas práticas posteriores. Se o filme de
duração mais longa é, em essência, a junção de uma série de filmes curtos, ou planos,
cujos sentidos se relacionam mutuamente, subordinados a uma estrutura narrativa maior,
da mesma maneira, o acompanhamento musical será a criação de música para esta mes­
ma sucessão. Cada situação do filme deveria estar acompanhada de uma música especí­
fica adequada. Tal como na narrativa das imagens, a junção dessas músicas também
deveria apresentar uma coerência interna, formando um todo unificado e contínuo.
Diante desse problema, o teatro de variedades já não servia mais como referencial úni­
co, sendo preciso buscar na tradição dramático-musical os gêneros menos fragmentá­
rios e entender suas soluções. Tal referencial foi, para o músico do início do século XX,
a tradição operística e o teatro musical.
Nesse caminho, surgiram, no entanto, diversos problemas técnicos. O cinema in­
corporara a estrutura dramática, mas era limitado no que diz respeito ao som que ainda
não podia ser sincronizado à película8, impossibilitando a utilização do texto dialogado.
Em um primeiro momento, isso havia sido facilmente resolvido por meio de filmes cur­
tos de situações que dispensavam totalmente a fala, como os números de variedades.
Contudo, como o texto falado é a ferramenta básica da dramaturgia tradicional, esta não
pode ser, então, o referencial do cinema. Era de se esperar que o cinema fosse se espelhar
em formas dramáticas não-verbais, como a pantomima e, de fato, ele as incorporou, tan­
to no aspecto musical quanto na representação dos atores. Ainda assim, o cinema iria
descobrir a capacidade de desenvolver uma nova dramaturgia, com uma dialogia própria,
de signos não-verbais.
O olhar da câmera permitiu novas possibilidades significativas. Pela primeira vez,
foi possível direcionar o olhar do espectador em relação ao drama. Tornou-se possível
fechar o plano em um olhar, um sorriso, uma expressão, algo que jamais havia aconte­
cido em qualquer forma dramática. A possibilidade de selecionar a imagem - do todo
ao particular e deste ao mínimo detalhe - , somada à capacidade de combinação dessas
imagens por meio da montagem, foi algo inédito, tomando-se o grande recurso de lin­
guagem do cinema.
Mas, de qualquer modo, o cinema demonstra não ser, propriamente, uma forma
dramática: seus recursos como linguagem são, na maioria, narrativos. Por trás da câme­
ra, há sempre a mão que dirige seu olhar. O drama não flui por si só, como no palco,
mas mediado por uma figura "misteriosa" que nele intervém, decidindo arbitrariamente

8. Na verdade, a sincronização de sons e imagens não representava um grande proble­


ma técnico, tendo já sido resolvida pela equipe de Edison nos primeiros anos do cinema.
A limitação técnica era a impossibilidade de amplificar o som, o que tornava impossível a
projeção para grandes platéias, impedindo, assim, a realização do cinema sonoro em esca­
la comercial.
Pantomimas luminosas 73

o que deve ou não ser visto. É como se a cada plano um narrador dissesse ao espectador:
"veja, observe o olhar dessa jovem. Veja como está triste..." Havendo um narrador, todo
filme carrega consigo a condição de pretérito, de fato ocorrido, contrapondo-se ao eter­
no presente do drama propriamente dito. Ainda que tenha incorporado a estrutura dra­
mática, ou seja, pessoas representando personagens, vivendo situações e conflitos, essa
subordina-se a uma forma épica. O cinema é essencialmente épico.9
Como já foi dito, essa dialogia peculiar do cinema é construída a partir de signos
não-verbais. O narrador subjetivo vale-se de todos os recursos para organizá-la: um pla­
no sucede ao outro, interferindo em seu sentido, complementando-o. O sentido é resul­
tado dessa interação. O que foi dito em um plano é confrontado, em nossa percepção,
com o que é dito pelo próximo por meio de associações metonímicas. Ao mesmo tem­
po em que são passíveis de se organizar em sucessão, as imagens em movimento são ca­
pazes de concentrar um número muito grande de informações em simultaneidade. A
manipulação minuciosa dessas imagens permite construções muito elaboradas em que
não é dita uma única palavra. Trata-se, pois, de uma espécie de polifonia não-verbal na
qual se concentram as muitas vozes do narrador.
A música surge, então, como uma das vozes - ou um conjunto de vozes - dessa
polifonia. A música e as outras linguagens a ela associadas compõem a narrativa fílmica.
É uma polifonia que envolve informações visuais e sonoras. Contudo, no período em que
a sincronia entre sons e imagens ainda não era possível, o acompanhamento musical
ao vivo foi o único recurso sonoro usado em larga escala10.
Apesar da incorporação do acompanhamento musical pelo cinema ser decorrên­
cia de uma tradição histórica, algumas questões ainda aguçam a nossa curiosidade. Uma
delas diz respeito à ilusão de realidade. Se o realismo foi um dos principais fatores do
fascínio do cinema em um primeiro momento, por que, então, a música se toma o prin­
cipal elemento sonoro do cinema mudo? Esta pergunta permite muitas respostas. Uma
delas é muito simples: se em comparação com os diálogos e com os sons naturalistas a
música é a que menos contribui para a ilusão de realidade, ao mesmo tempo, quando
associada às imagens em movimento, ela funciona, dá resultado, participa da composi­
ção do sentido do filme e do espetáculo cinematográfico. Eventos simultâneos, visuais e
sonoros causam impacto no ser humano, isto é um fato inegável.
Praticamente todo trabalho sobre música de cinema começa com o estabelecimen­
to dessa questão fundamental: por que a música para acompanhar filmes? Em contrapon­
to à simplicidade da resposta oferecida no parágrafo anterior, notamos a complexidade
de tal assunto quando nos confrontamos com a variedade e o teor das respostas. Kurt

9. Esse assunto foi aprofundado em nosso trabalho Trilha musical Música e articulação
fílmica.
10. Houve também experiências com narradores e diálogos ao vivo. Em salas mais ri­
cas havia também, em alguns casos, sonoplastia ao vivo. Contudo, nenhuma dessas práti­
cas tornou-se comum.
74 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

London (1970), por exemplo, afirmou que a música teria sido incorporada para encobrir
o ruído dos primeiros projetores. Adorno e Eisler (1 9 7 6 )11 viram na música um antído­
to para o ambiente psicologicamente desfavorável das primeiras salas de cinema, onde
o público era trancado em um ambiente sem luz para assistir à projeção de "fantasmas".
Ainda que totalmente distintas, essas duas hipóteses baseiam-se em um ponto de vista
comum: a noção de música ambiente que, freqüentemente, é usada pejorativamente, como
um tipo de música inferior - a música que ouvimos nas salas de espera de consultórios mé­
dicos, em supermercados, elevadores etc. Neste tipo de música produzida em larga escala,
o discurso musical deve desenvolver-se de maneira uniforme, sem grandes contrastes rít­
micos e harmônicos ou qualquer recurso que estimule o ouvinte, chame sua atenção. A
música deve passar despercebida e preencher o vazio sonoro.
Um dos aspectos da música no cinema mudo é, justamente, essa sua componente
de música ambiente, desde que tomemos o termo "música ambiente" em uma acepção
mais ampla e menos pejorativa. Se deixarmos de lado a visão de ambiente como um dado
espacial, como um dado "decorativo", e o tomarmos como aquilo que nos envolve, po­
deremos, então, compreendê-lo sob um ponto de vista psicológico, como o conjunto de
estímulos ao nosso redor. Logo, a "música ambiente" seria o estímulo necessário para a
criação de um determinado estado psicológico favorável à compreensão do filme, bem
como ao envolvimento do espectador. Isto fica patente se assistimos a um filme mudo
sem música e, depois, com seu acompanhamento musical. É muito mais difícil acom­
panhar a narrativa apenas com o estímulo visual, pois a tendência à dispersão é muito
grande. Isso se toma ainda mais crítico em um ambiente coletivo. Nossos ouvidos estão
sempre abertos aos estímulos sonoros. Podemos fechar nossos olhos, mas é praticamente
impossível parar de escutar. Em uma sala escura, há ruídos de todos os tipos: tosses, m o­
vimentos, tudo pode ser ouvido e faz que desviemos a atenção do filme. A música faz que
a atenção de toda a sala se volte para um único discurso sonoro. Ela é um ponto focal
coletivo. Mas, ao mesmo tempo em que coletiviza, a música também estabelece uma
predisposição psicológica individual. Esta concentração toma possível a transcendên­
cia necessária ao mergulho na experiência estética, o envolvimento total do espectador
no espetáculo.
A propriedade hipnótica da música é usada no sentido de criar, em nossa psique, o
espaço e o tempo do filme. Contudo, se a questão fosse apenas criar um estado psicoló­
gico favorável à percepção do filme, qualquer música poderia, em princípio, cumprir essa
função. Mas não foi isso que se praticou ao longo da história do cinema. Como vimos,
a preocupação com a seleção de material musical adequado existe desde os seus pri­

11. As datas entre parênteses referem-se ao ano das edições que constam das referên­
cias bibliográficas deste trabalho. A primeira edição do texto de London é de 1936. No caso
de Eisler e Adorno, a situação é um pouco mais complicada. O texto foi escrito em 1944. Sua
primeira edição é de 1947, com o título "Composing for the films" (Oxford University Press)
e assinada apenas por Eisler, omissão esta devida a motivos de caráter político. Somente em
1969, foi publicada a primeira edição da versão atual, que atribui a co-autoria a Adorno.
Pantomimas luminosas 75

mórdios. Trata-se, sim, de criar um estado de envolvimento, mas no qual ocorram uma
variedade de estímulos e respostas emocionais. Em resumo, a música cria não apenas um
ambiente favorável, mas as muitas "ambiências" necessárias ao desenvolvimento nar­
rativo do filme. O ambiente não é, portanto, algo estanque, é dotado de uma flexibilida­
de que permite sua transformação à medida que o filme se desenrola.
Diretamente associada à transformação do ambiente, encontra-se a interferência
temporal. A capacidade de a música alterar a percepção do tempo é um pressuposto de
todos os tipos de música ambiente. A música da "sala de espera" tem por objetivo dis­
farçar a demora. No cinema, essa relação torna-se mais complexa, pois não se trata de
fazer com que não se perceba a passagem do tempo, mas de alterar a relação do esperta­
dor com ele. Por meio da música, cria-se o tempo da narrativa, paralelo e distinto do cro­
nológico. O fluir do tempo no eixo narrativo pode ser mais lento ou acelerado e a música
é uma ferramenta que nos permite atingir esse fim com precisão.
A música é muito mais eficiente do que os diálogos ou ruídos para reter a atenção,
a concentração e a imersão do espertador no tempo narrativo. A música é o fluxo sono­
ro contínuo do eixo temporal, assim como as imagens filmadas são o seu fluxo visual. É
exatamente esse eixo do desenvolvimento temporal que aproxima a música das imagens
filmadas: ambas possuem uma série de similaridades em suas formas de organização e
a capacidade de alterar a percepção do fluxo temporal. Em outras palavras, o tempo do
cinema é um tempo musical. Compreendemos, assim, a opção do cinema pela música
em detrimento dos sons naturalistas. John Williams comentou este fato: "Eu penso o se­
guinte sobre diretores: os melhores diretores são musicais. Eu penso que parte do que eles
fazem é musical. A arte de montar um filme, em meu modo de ver, é uma arte musical"
(Bazelon, 1975:199).
Tempo e movimento são dois conceitos intimamente relacionados. A idéia de mo­
vimento implica desenvolvimento temporal. Assim sendo, tanto a música quanto as
imagens filmadas carregam em si a propriedade do movimento. London foi capaz de
perceber esse aspecto essencial da relação entre música e imagens filmadas:
A razão mais essencial para explicar estética e psicologicamente a necessida­
de de música como acompanhamento dos filmes mudos é, sem dúvida, o ritmo do
filme como arte do movimento. Nós não estamos acostumados a compreender o
movimento como forma artística sem o acompanhamento de sons ou, pelo me­
nos, de ritmos audíveis. Todo filme que mereça esse nome deve possuir seu ritmo
individual, o qual determina sua forma. (...) Era dever do acompanhamento musi­
cal dar aos filmes acentuação e profundidade. (Apud Prendergast, 1977:4-5)

O texto de London aponta para outro conceito muito importante: o de sincronia.


A junção dos movimentos audível e visível sempre gera algum tipo de impacto. É neste
sentido que "qualquer música pode harmonizar-se a qualquer cena", como afirmou Bela
Balázs (apud Jakobson, 1970:158). O princípio da sincronia é o fundamento básico da
polifonia audiovisual. Portanto, as hipóteses que abordam a incorporação do acompa­
nhamento musical pelo cinema mudo apenas sob o ponto de vista da necessidade prá­
tica de criar um ambiente favorável à contemplação do filme são irremediavelmente
76 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

parciais e não contemplam a diversidade e complexidade da polifonia gerada pela asso­


ciação da música com as imagens em movimento. Ou, como percebeu Miller Marks:

É esclarecedor (...) reconhecer, como os primeiros autores fizeram, que qual­


quer música usada para acompanhar um filme supriria alguma carência; ou, como
Gorbman12 afirma, que qualquer música para filme será percebida pelo espectador
como algo que faz alguma coisa. Mas para o historiador provavelmente é melhor
começar com as duas seguintes premissas: primeira, que toda música de cinema,
seja qual for a sua origem, pode ser percebida como algo que faz várias coisas; se­
gunda, que o que ela faz pode apenas ser esclarecido por meio de considerações de
contexto e conteúdo. (1997:29)

Essas várias funções da música no filme são geradas pela articulação de sons e ima­
gens nos dois eixos: o temporal (horizontal) e o polifônico (vertical). A cada um desses
eixos liga-se um fundamento da articulação audiovisual. O movimento é a decorrência
do desenvolvimento temporal e a sincronia advém da polifonia.
Do ponto de vista polifônico, a música interage com as imagens a cada momento.
São discursos que se desenvolvem como as vozes de um contraponto. Esse confronto
ponto a ponto de imagens e música e sua transformação conjunta ao longo do tempo
geram senüdo, significação. Como vimos, é quase impossível assistir a um filme em com­
pleto silêncio. É também praticamente impossível contar uma história por meio de um
discurso puramente musical. A música programática almejava tal façanha, mas fazia-se
acompanhar de um texto escrito que servia de referencial literário. A somatória das in­
formações visual e sonora, ainda que sem palavras, permitiu a construção de estruturas
narraúvas e situações dramáticas. Ou, indo além, o complexo polifônico formado por
música e imagens permitiu o desenvolvimento de um gênero que prescinde de palavras.
As convenções narrativas do cinema formam-se em um contexto no qual a música
é parte integrante. Essas convenções são, portanto, de ordem visual e musical. Assim, é ne­
cessário que se aborde a música como voz (ou vozes) do complexo polifônico do cinema.

E x p e r im e n t a n d o com M ú s ic a e I m ag en s

Em seu período mudo, o cinema era uma arte dividida entre o passado artesanal
das artes dramáticas e sua vocação industrial. Assim, enquanto as imagens filmadas já
eram passíveis de reprodução industrial, o acompanhamento musical, elo com as artes
ao vivo, permanecia no domínio da produção artesanal. Era um contraponto abrangen­
do duas eras distintas quanto aos meios de produção artística.
Se, por um lado, a produção da música nas salas de exibição era algo que fugia to­
talmente do controle dos realizadores de cinema, por outro, a variedade de músicos e
músicas para cada filme permitiu uma experimentação vasta e variada das relações en­
tre música e imagens. Enquanto os realizadores de filmes desenvolviam os recursos da
articulação fílmica, os músicos, nas salas de cinema, experimentavam a polifonia audio-

12. O autor refere-se a Claudia Gorbman, autora de Unheard Melodies.


Pantomimas luminosas 77

visual. Os cineastas começaram a descobrir os recursos narrativos da imagem e os mú­


sicos experimentavam novas relações dramático-musicais diferentes das que ocorriam
nas obras dramáticas ao vivo.
O referencial do teatro de variedades não era mais suficiente para criar o acompa­
nhamento de narrativas cada vez mais complexas e de situações dramáticas sofisticadas.
Não era suficiente, tampouco, criar o ambiente favorável à projeção. A música deveria,
sem perder tais funções básicas, ajudar a compor a ilusão primária do cinema. Não bas­
tava acompanhar o filme, era preciso que a música participasse de sua composição nar­
rativa e dramatúrgica. O referencial mais próximo das formas dramático-musicais
complexas era a ópera. Ainda que no universo dramático-musical houvesse um conjun­
to precioso de procedimentos aos quais o músico podia apelar, isto ainda não era o sufi­
ciente. Os músicos teriam de descobrir, por experiência própria, o que era funcional no
cinema. Assim como o plano fechado é um recurso que não existe nas técnicas teatrais,
o resultado da aplicação da música em tal plano é algo restrito aos domínios do cinema.
Esse aprendizado era inevitável e foi preciso tempo para que essas novas relações e prá­
ticas fossem desenvolvidas. Aos poucos, a música de cinema se descobre como música
para um meio que até então não havia existido. Ela carrega consigo o referencial dramá­
tico-musical, mas este se transforma para atender às necessidades e convenções do novo
veículo. A polifonia audiovisual caminha, pouco a pouco, no sentido de uma sincronia
não apenas de eventos ao longo do tempo, mas de conteúdos distintos e complementa­
res. A organização do material musical com a finalidade de criar um acompanhamento
unificado e coerente para cada filme ganha espaço. Cada vez menos, acredita-se que os
filmes podem ser acompanhados de "qualquer música". Da fase inicial, quando cada um
dos filmes de curta duração era acompanhado por um tema musical distinto, guarda-se
a herança fragmentária. Nesse aspecto, o desenvolvimento da música de cinema é pa­
ralelo ao das imagens: a narrativa visual é construída pela associação de diversos
fragmentos, planos curtos que, combinados, geram uma unidade e, por sua vez, o acom­
panhamento musical busca alcançar a unidade pela combinação de diversos fragmen­
tos musicais. Tal como na ópera e no teatro musical, a música molda-se, transforma-se
em função das nuanças dramáticas ou narrativas do filme. Porém, se na ópera a música é
a portadora do drama, seu fator primordial de articulação, no cinema, ela se subordina à
articulação visual do filme, que já chega pronto nas salas de exibição.
Esse caráter fragmentário da música de cinema é o que vai permitir um certo con­
trole do acompanhamento musical nas salas de exibição. Era comum que o acompanha­
mento musical fosse uma justaposição de peças do repertório convencional. O músico
responsável pela sala de exibição selecionava os fragmentos musicais do acompanhamen­
to e, posteriormente, elaborava suas transições a fim de se ajustarem aos filmes. Nas salas
que possuíam grupos musicais maiores, essas transições eram escritas e nas salas meno­
res, com apenas um ou dois instrumentistas, era habitual que fossem improvisadas.
Quanto mais sofisticadas as produções, maior a preocupação com o acompanha­
mento musical. Mas, pelo fato de ser produzido na própria sala de exibição, o acompa­
nhamento musical fugia totalmente ao controle dos realizadores. Assim, o filme exibido
em duas salas diferentes já não era mais o mesmo. A preocupação cada vez maior de uni­
78 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

formização do acompanhamento musical indica o crescente reconhecimento da impor­


tância da música no filme. Ela não será mais vista como mero acessório para ambien­
tar a exibição, mas como fator de interferência no resultado final do filme, que altera a
maneira de o público percebê-lo e compreendê-lo. Deste modo, formava-se uma cons­
ciência de que, para criar uma obra de arte reconhecida como "um filme", era necessá­
rio estabelecer algum tipo de controle sobre o acompanhamento musical.
Surgem assim, em tom o da primeira década do século XX, três recursos principais
para a organização do acompanhamento musical: as cue sheets, as coletâneas e a partitu­
ra original.

Cue sheets

As cue sheets, que em uma tradução livre podemos chamar de "planilhas" para o
acompanhamento musical, começaram a ser precariamente publicadas sob a forma de
Incidental M usicfor Edison Pictures, em 1909. Miller Marks apresenta a seguinte cue sheet
para o filme How the Landlord Collected His Rent (1997:48):

1. Marcha, vigoroso;
2. Giga irlandesa;
3. Começa com Andante, termina com Allegro;
4. Ária popular;
5. Idem;
6. Andante com vida ao final;
7. Marcha (a mesma do número 1);
8. Melancólico;
9. Andante (use a marcha do número 1).

Como é possível notar, a planilha não indica que música deva ser usada, mas ape­
nas seu estilo em função das características de cada momento do filme. Mas o interes­
sante é que já há uma certa preocupação com a unidade musical, pois a marcha inicial
(1) repete-se mais duas vezes: a primeira no momento 7 e a segunda no encerramento
(9), quando aparece transformada em Andante (trata-se, aqui, de uma mudança de an­
damento que interfere diretamente no caráter da peça musical).
Nem todas as cue sheets são tão genéricas. Algumas são detalhadamente elaboradas
por profissionais contratados pelos produtores de filmes, ou pelos distribuidores de par­
tituras. Um dos mais importantes desse período foi Max Winkler, que elaborou as cue
sheets para a Universal Film Company. Sua carreira começou ao ser encarregado de ca­
talogar o acervo da Cari Fischer, revenda de música da qual era funcionário em 1912.
Sobre a idéia de confeccionar cue sheets, Winkler fez o seguinte relato:

Um dia, ao voltar para casa após o trabalho, eu não conseguia pegar no sono.
As centenas e milhares de títulos, as montanhas de música que a Fischer tinha es­
tocado e catalogado, continuavam girando em minha mente. Havia, seguramente,
música para acompanhar qualquer situação em qualquer filme. Se nós pudéssemos
apenas encontrar um meio de levar ao conhecimento de todos esse líderes de or­
questras e pianistas e organistas o que nós possuíamos! Se nós pudéssemos usar
Pantomimas luminosas 79

nosso conhecimento e experiência não apenas quando já fosse muito tarde, mas
com antecedência, antes que eles se sentassem para tocar, nós venderíamos músi­
ca mais que às toneladas.
Essa idéia logo me eletrificou. Não era um problema conseguir a música, nós
a tínhamos... O problema era realizar, quantificar e organizar. Pulei da cama, acendi
a luz e fui até a minha mesa, peguei uma folha de papel e comecei a escrever fe­
brilmente. Aqui está o que eu escrevi:
PLANILHA MUSICAL (MUSIC CUE SHEET)
Para
The Magic Valley
Selecionada e compilada por M. Winkler

1. "Abertura" - Minueto nfi 2 em Sol, de Beethoven, por noventa segundos, até


a legenda "Siga-me, querida".
2. "Andante dramático", de Vely, por dois minutos e dez segundos. Nota: toque
suavemente durante a cena em que a mãe entra. Toque esta entrada até a cena
herói saindo da sala.
3. "Tema de amor", de Lorenze, por um minuto e vinte segundos. Nota: toque
suavemente e devagar durante as conversas, até a legenda Lá vão eles.
4. "Stampede", de Simon, por cinqüenta e cinco segundos. Nota: toque rápido
e desacelere, ou acelere o andamento do galope de acordo com a ação na tela.
(Apud Prendergast, 1977:8-9)

Ainda que feito para um filme imaginário, o exemplo é representativo do tipo de


tratamento que Winkler dava às suas cue sheets. Como é possível notar, ela apresenta uma
indicação muito mais detalhada do acompanhamento musical do que How the Landlord
Collected His Rent. Os fragmentos são específicos, com indicação de título, autor, dura­
ção e, inclusive, sugestões de execução. Conforme vai se tornando mais requisitado,
W inkler resolve m ontar seu próprio negócio para fornecer música de acom panha­
m ento de film es. O volum e de trabalho torna-se enorm e. Sobre esse período,
Winkler comenta:

No desespero, nós partimos para o crime. (...) Começamos a mutilar os gran­


des mestres. Começamos a assassinar as obras de Beethoven, Mozart, Grieg, J. S. Bach,
Verdi, Bizet, Tchaikovsky e Wagner - tudo que não estivesse protegido de nossa pi­
lhagem por direitos autorais.
Os corais imortais de J. S. Bach tornavam-se "Adagio lamentoso para cenas
tristes". Trechos de grandes sinfonias e óperas eram picados para ressurgirem como
"Sinistro misterioso", de Beethoven, ou "Misterioso modera to", de Tchaikovsky. As
marchas nupciais de Wagner e Mendelssohn eram usadas para casamentos, brigas
de maridos e mulheres, e cenas de divórcio: nós apenas fazíamos com que fossem
tocadas desafinadas, um tratamento conhecido na profissão por souring up the aisle.
Se elas se destinassem a finais felizes, nós as jazzificávamos impiedosamente. Finales
de ouvertures famosas, sendo Guilherme Tell e Orpheus as favoritas, tornavam-se ga­
lopes. A marcha da coroação, de Meyerbeer, era ralentada em um pomposo majes-
80 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

toso para fornecer um acompanhamento apropriado aos detentos do corredor da


morte em "Sing Sing". O Danúbio azul era diluído em minueto por meio de uma
cruel mudança de andamento. (Prendergast, 1977:10)

Na realidade, as declarações de Winkler revelam um profundo respeito pelas obras


dos grandes compositores, as mesmas que ele diz "assassinar", ainda que, naquele m o­
mento, imerso no trabalho e sem condições de um distanciamento crítico, elas demons­
trem que ele já está envolvido em um processo de produção cada vez menos artesanal e
mais industrial. A própria figura de Winkler já não é a do músico ligado a uma casa de
espetáculos, a uma sala de exibição, mas daquele que seria o diretor musical de um es­
túdio de cinema na década de 1930. O fato de ser cada vez mais requisitado para suprir
o acompanhamento musical dos filmes reflete a preocupação crescente com a música,
proporcionalmente ao aumento da complexidade dos filmes.
As cue sheets foram uma alternativa de baixo custo e sem a dificuldade de distribui­
ção da partitura original. Algumas delas chegaram a um grau de sofisticação muito gran­
de, com riqueza de detalhes, tal como a resgatada por Manvell e Huntley (1975:58):

S u g estõ es M u s ic a is - P o r A rth u r D u lay


Sea Fury
O esp aço
a b a ix o é
re se rv a d o
p a ra as n o ta s
d o D ire to r
M u sical L egen da o u A ção Estilo M ú sica S u gerid a C o m p o sito r E d ito r

T em a 1 L'Angoisse Tem a 1 P rret D e W o lfe

1 At screening L 'o n d e tra g iq u e G a b rie l-M a rie P ie n a


2 A p ó s c a ir n a ág u a B ro a d V isio n tra g iq u e D yck L ib e r
3 N avegando* A g itad o A ffo le m e n t O u r d in e P ie n a
4 C a p itã o v ê o g a to p re to S in istro Tem a 1
5 Era b a z ó fia d o C a p itã o * T en so e R osam u nde S ch u b ert F la w k e s
q u ieto
6 re fe iç ã o d a trip u la çã o M elo d ia A tla n tid e R e y n a u ld P ie n a
agitada
7 E les le v a m c o m id a p ara o T en so A V ain H o p e P a to u H aw kes
C a p itã o
8 C o m p a n h e ir o p u x a D ra m á tic o M a d a m e R o la n d F o u r d r a in P ie n a
o rev ó lv er
9 C en a n o con vés A g itad o D ia lo g u e B r u s s e lm a n s L ib e r
d ra m a tiq u e
10 M o tim ! * D ra m á tic o H a te a n d L ov e S a m e b tin i P ie n a
ag itad o
11 F a z e m resg ate Tenso agitado Jerusalem delivree H o v e la c q u e P ie n a
1 2 A jo v e m é carreg ad a D r a m á tic o B o n h eu r évan ou i D yck L ib e r
p a ra d e n tro triste
1 3 M ills Só D ra m á tic o La m e r s o m b r e F o sse L afleu r

C o n t in u a .
Pantomimas luminosas 81

O esp aço
a b a ix o é
re se rv a d o
p a ra as n o ta s
d o D ire to r
M u sica l L eg en d a o u A ção E stilo M ú sica S u g e rid a C o m p o s ito r E d ito r

1 4 R u m !* F eb ril O n th e B rin y # 4 C a rr P a x to n
1 5 G a ro to tra z c o m id a A g itad o I n v o c a tio n M ezzacap o L ib e r
1 6 L u ta n o co n v é s Febril R ep etir nQ1 4
1 7 E les b a te m n o h o m e m T en so La H a in e D e lm a s L ib e r
d r a m á tic o
1 8 C a p itã o e n tra T en so A g itato m iste rio s o P o p y L ib e r
1 9 C a p itã o v ê g a to T em a 1
2 0 T rip u la ç ã o a ta ca C a p itã o D ra m á tic o D e s tr u c tio n B r u s s e lm a n s L ib e r
21 T r a n s iç ã o p a r a ... Tenso agitado O m b r e c o m p l i c e M a rie P ie n a
2 2 D e p o is d e o s h o m e n s M elo d ia H eu res d 'a n g o iss e D e lm a s L ib e r
sa íre m ag itada
2 3 N o co n v é s D r a m á tic o O u v e rtu re Z erco D e W o lfe
D ra m a tiq u e
2 4 To m e n u sed to kicks* O n th e B rin y # 2 C a rr P a x to n
2 5 M ills fala c o m o Tenso agitado In c id e n ta l S ch u b ert L a fle u r
tim o n e iro S im p h o n ie s
2 6 Vê os h o m en s de novo R ep etir n ü 2 4
2 7 B o s u m n o le m e T en so L 'e sp io n n e D e lm a s L ib e r
2 8 T h e d o g W a tch * T en so S v en g a li S o m e rv ille D e W o lfe
2 9 D erru b a o s b arris D ra m á tic o Le la c m a u d it S ta z L ib e r
3 0 O ito sin o s * M o v im e n to M y stère D e lm a s L ib e r
te n s o
31 B o su n F ala T en so M iste rio so B o rch L afleu r
d r a m a tiq u e
3 2 B o su n é in flu e n c ia d o T en so T re a ch e ry L a to u r L ib e r
3 3 A h is tó ria m u d a * D r a m á tic o T ra g ic o c o n D rig o L afleu r
m o to
3 4 A rrem essa o g a to p ara D ra m á tic o G uilt E w in g E lk in
fora d o n a v io
3 5 N e g ro e g a ro to n a S em i a g ita d o R o m a n tiq u e S m e ts k y D e W o lfe
p ra n c h a
3 6 Vistos o s h o m e n s n o b o te Tenso agitado D r a m a tic H u rry O 'H a r e L afleu r
3 7 O v e n to ! O v e n to !* E x cita d o C o n fe s s io n T ch a ik o v s k y L ib e r
3 8 À n o ite * T e m p e stu o so T h e F ly in g W agner F e ld m a n
D u tch m a n
3 9 Q u a n d o o d ia c h e g a * S u p lica n te T o u t s'ap aise D yck L ib e r
4 0 U m n a v io ! U m n a v i o !* A gitado L 'E xu ltan te M a rie L ib e r
te n d re s se
41 T r a n s iç ã o p a r a ... P leu rs (T rio ) M e ssie r L ib e r

* Indicam legendas - todos os outros itens indicam ações

Ainda que de maneira muito elementar, nesta cue sheet encontramos alguns pro­
cedimentos básicos do acompanhamento de filmes. O primeiro deles é a fragmentação
do material musical em função de cada momento do filme, de tal forma que o discurso
sonoro esteja vinculado ponto a ponto à narrativa visual. A seleção é, em sua maioria, com-
82 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

posta por obras de compositores pouco conhecidos e, provavelmente, baseiam-se em


material especificamente preparado para o acompanhamento de filmes ou espetáculos
teatrais, tal como nos sugerem títulos como Dialogue dramatique (9), Agitato misterio­
so (18), Mystère (30), Dramatic Hurry (36), entre outros.

Coletâneas

Paralelamente ao surgimento das cue sheets, são publicadas coletâneas com músi­
cas especialmente elaboradas para o acompanhamento de filmes. Alguns trabalhos ci­
tam a Sam Fox Moving Picture Music Volumes, de J. S. Zamecnik (1913), como a primeira
publicação desse gênero13. Contudo, já em 1909, ano em que a companhia de Edison co­
meça a fornecer cue sheets para seus próprios filmes, foi publicada a Motion Picture Pia­
no Music: Descriptive Music to Fit the Action, Character or Scene o f Moving Pictures, de
Gregg Frelinger. Nos anos seguintes, surgiram muitas dessas publicações, a mais conhe­
cida foi a Kinobibliothek (ou Kinothek), de Giuseppe Becce, cuja primeira edição data de
1919.
As coletâneas possibilitaram um acesso rápido às fontes musicais mais usadas na
produção de música para cinema. Certamente, ainda pertencem ao estágio em que o pró­
prio músico seleciona as peças e monta o acompanhamento do filme. Ainda assim, so­
m adas às cue sheets, deram um passo adiante para a m aior elaboração desses
acompanhamentos. Isto é especialmente válido para as salas de exibição mais modestas,
em que a organização e execução do acompanhamento eram, em geral, responsabilida­
de de uma única pessoa, que, por vezes, mal conseguia assistir ao filme antes da exibi­
ção pública. Erno Rapée, na introdução de sua Motion Picture Moods, comenta esse
problema:

Ao preparar este Motion Picture Manual for Piano and Organ, tentei criar a
ponte necessária entre a tela e o público, assim como é criada nas grandes salas de
cinema pela orquestra. Se considerarmos que as salas do tamanho e do padrão do
Capitol Theatre, em Nova York, contam com meia dúzia ou mais de experts sob as
ordens do Diretor Musical, trabalhando para suprir com música a ação na tela, nós
perceberemos que árdua tarefa deve ser para qualquer indivíduo, seja ao piano ou
ao órgão, por meio das músicas selecionadas ao acaso e, geralmente, em cima da
hora, suprir os filmes de bom acompanhamento musical. (1924:iii)

Adiante, ainda enfatizando a dificuldade dos músicos, Rapée demonstra como a


consciência sobre o acompanhamento musical já havia se desenvolvido:
Visto que a maioria dos pianistas e organistas nas salas menores não tem a
chance, ou a tem muito superficialmente, de ver os filmes antes da exibição públi­
ca, podemos, certamente, perceber a dificuldade que eles têm para trabalhar com
mudanças rápidas de cenas, diferentes situações psicológicas sucedendo-se uma à
outra, back shots, close ups, dose ins etc. (1924:iii)

13. Film Music. A Neglected Art;


V e r, p o r e x e m p l o , o s t r a b a l h o s d e R o y P r e n d e r g a s t ,
M a n v e l 1 e H u n t le y , The Technique of Film Music; Irw in B a z e lo n , Knowing the Score, e n t r e o u t r o s .
Pantomimas luminosas 83

Rapée apresenta alguns procedim entos que na época já haviam se tornado


consensuais para a criação de acompanhamentos musicais para filmes: diferentes "ce­
nas" devem ser acompanhadas por músicas adequadas ao conteúdo imagético ou à ação
representada; a música auxilia a compor "diferentes situações psicológicas" e deve se aliar
aos recursos específicos da linguagem fílmica na composição da narrativa. Ele não fala
em corte e montagem, mas refere-se explicitamente a recursos de articulação fílmica
como back shots, close ups e dose ins. Em certo sentido, isto já demonstra como a músi­
ca de cinema possui uma especificidade que a distancia da música para espetáculos ao
vivo. Ela caminha para um desenvolvimento autônomo, com práücas e convenções pró­
prias, e vai se consolidando como uma especialidade.
Rapée fora um profissional muito importante para a música no período do cine­
ma mudo e sua larga experiência reflete-se em seu texto14. Assim, ele procurou sistema­
tizar, ainda que precariamente, algumas dessas convenções para a organização do
acompanhamento musical:
Deixe-me dizer, aqui, para a informação de todo aquele que quiser usar este
manual com o máximo de proveito, que nem sempre o acompanhamento refere-
se à ação; um terço de todo filme é usado para representar ação; outro terço não vai
mostrar nenhum tipo de ação física, mas vai ter, preponderantemente, situações
psicológicas; o terço restante não vai mostrar ação, nem sugerir situações psicoló­
gicas, mas restringe-se a mostrar ou criar atmosfera e cenário. (1924:iii)

Nota-se que a narrativa do cinema não precisa mais se restringir à ação dramática
propriamente dita. Seus recursos narrativos permitem construções em que a ação pode
ser subsútuída por outros conteúdos, muitos deles impossíveis no palco. É a partir desse
tipo de concepção de Rapée que as coletâneas foram organizadas. O material musical foi
dividido em seções, adequando-se aos tipos mais comuns de situação encontrados nos
filmes. Sobre a sua classificação, Rapée comenta:

Se é ação que o organista ou pianista deseja retratar, ele encontrará uma va­
riedade suficiente de tópicos no índice, para satisfazer praticamente qualquer as­
pecto de seu gosto musical; se a representação de situações psicológicas for
necessária, ele vai encontrá-las nos tópicos "Amor", "Horror", "Alegria", "Paixão"
etc. (...) Para competições, patinação ou qualquer exibição de habilidade indivi­
dual, na qual a ação não seja muito rápida, eu sugiro o uso das valsas de Waldteufel,
Straus etc.; se, ao contrário, a ação for rápida, um galope ou um one step seriam ade­
quados. (...) Sob o tópico "Neutro", você encontrará sete números diferentes desti­
nados ao uso em situações que não se encaixam em nenhuma das anteriormente
citadas. (...) A música encontrada sob o tópico "Sinistro" é destinada às situações
como a presença do inimigo capturado, abate de um avião ou navio hostil, ou para
a ilustração de qualquer coisa antipática. As onze peças incluídas no tópico "Fes­
tas" mostrar-se-ão adequadas também para a representação de reuniões sociais ao
ar livre. (1924:iii)

14. Em sua extensa carreira, Rapée ocupou os seguintes postos: regente nas salas Rivoli,
Capitol, UFA Palast, em Berlin; diretor musical da Roxy, NBC e Radio City Music Hall.
84 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

Ao todo, Rapée apresenta uma lista de quarenta tópicos, índice este que pode ser en­
contrado em todas as páginas, facilitando a rápida mudança de um tópico para outro:

1. A legria 2. A m or 3. A viões

4. B an da 5. B ata lh a 6. B on eca

7. B u r b u r in h o 8. C açad a 9. C a ix a d e m ú s ic a

10. C a n ç õ e s d e n in a r 11. C a s a m e n to 12. C o r r id a

13. C r ia n ç a s 14. D an ças 15. F e rro v ia

16. F estas 17. Festival 18. F o g o - L u ta

19. F u n e ra l 20. G ro te s co 21. H o rro r

22. H um or 23. I m p a c iê n c ia 24. M a r e te m p e s ta d e

25. M edonh o 26. M isterio so 27. M o n o to n ia

28. N a c io n a lid a d e s 29. N e u tro 30. O rgias

31. O rie n ta l 32. P aixão 33. P ássaro s

34. P asto ral 35. Q u ie tu d e e p u re z a 36. R eligio so

37. S in istro 38. T risteza 39. V ib ra n te

40. W e ste rn

O tópico "Danças" inclui Gavotas, Mazurcas, Minuetos, Polcas, Valsas, Valsas len­
tas, Tangos e Marchas. Classificada como Tango, nele se encontra a partitura de Dengoso,
de Emesto Nazareth. O tópico "Nacionalidades" apresenta temas musicais para quarenta
países, alguns representados por vários temas e outros por um apenas. O Brasil é repre­
sentado por seu National Hymn, um equívoco, na verdade, pois a partitura é a do "Hino
à República"
A organização do material musical em coletâneas permite avaliar o inventário
musical do cinema mudo. A variedade de músicas e sua alocação sob tópicos bem defi­
nidos de situações, estados psicológicos, indicadores de local ou época, demonstra que
no início da segunda década do século XX já existe uma linha mestra que orienta a pro­
dução do acompanhamento musical. O universo de associações musicais começa a se
configurar como algo novo, independente da tradição dramático-musical. É claro que esta
tradição ainda é muito forte e, mesmo em termos técnicos, o cinema ainda não alcan­
çou sua independência total, pois a música continua a ser executada ao vivo. Mas tanto
o músico de cinema quanto a música criada começam a se especializar.
A análise do inventário associativo da música de cinema desse período mereceria
um trabalho mais profundo e detalhado. Ainda assim, convém observar algumas peças.
O primeiro exemplo é da Kinobibliothek, de Becce. Trata-se de um fragmento intitulado
Notte - Misterioso.
Apesar de curto, apenas vinte e quatro compassos, este fragmento apresenta várias
divisões internas: uma parte inicial de doze compassos, subdividida em três frases de qua-
Pantomimas luminosas 85

tro compassos, todos elaborados sobre o mesmo motivo e ritmicamente iguais; uma se­
gunda parte, também de doze compassos, igualmente subdividida em três frases de qua­
tro, mas com motivos diferentes em que os quatro primeiros apresentam uma atividade
rítmica mais intensa do que a da primeira parte com melodia ascendente, ao passo que
a segunda frase volta a apresentar uma atividade rítmica menos pronunciada com movi­
mento melódico descendente; a última frase é de caráter conclusivo, quase uma coda,
baseada no moüvo da primeira parte.
86 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

Ainda que apresente unidade e coerência internas, as características dessas frases


fazem que a música seja, praticamente, a soma de trechos independentes curtos, cada
qual com apenas quatro compassos. Este tipo de divisão permite ao músico uma grande
flexibilidade, facilitando o seu uso em um número muito grande de situações. Em certo
sentido, é uma música que reflete as técnicas de articulação fílmica, uma somatória de
fragmentos curtos e independentes, de conteúdos distintos e justapostos, a fim de gerar
um sentido que transcenda o de cada um tomado individualmente.
Este trecho musical pode ser montado como as peças de um jogo para acompanhar
situações com intensidades psicológicas diferentes. Todas as frases são distintas entre si.
Cada qual possui uma atividade rítmica, melódica e harmônica peculiar. A primeira parte
é construída sobre trêmulos, uma sucessão de acordes em que não há, praticamente, qual­
quer atividade rítmica ou melódica. A diferença está nos eixos harmônicos: a primeira
frase é construída sobre uma nota pedal na tônica (dó menor), sobre a qual o acorde de
dó menor alterna-se com um único acorde de fá menor, conferindo-lhe um certo grau
de estabilidade; na segunda frase, a instabilidade harmônica cresce, gerando uma maior
tensão pelo uso de acordes aumentados que predominam; a terceira frase é semelhante
à segunda, pois nela também se sobressaem os acordes aumentados, mas há mais m o­
vimentação graças aos cromaúsmos na linha de baixo.
A segunda parte começa com um tema mais definido, tanto melódica, quanto rit­
micamente. Está estruturado por dois motivos sucessivos, um ascendente, outro descen­
dente, que se alternam, gerando um diálogo. Os intervalos cromáticos da melodia criam
uma tensão intema. A segunda frase é bem mais estável: construída sobre um único acor­
de, funciona como uma transição para a frase final que, por sua vez, conduz à estabili­
dade da conclusão.
Qualquer uma dessas frases pode ser repetida quantas vezes necessário, sem pre­
juízo da continuidade musical. A frase temática do início da parte dois, por exemplo, que
é a mais movimentada e a mais definida melodicamente, pode ser necessária em uma
situação mais duradoura. Nesse caso, sofrerá uma maior elaboração pelo músico ou, sim­
plesmente, será repetida a fim de ocupar o tempo do fragmento de filme que ela acom­
panha. O material musical é, pois, extremamente flexível e adaptável às mais diversas
situações.
Nas situações de tensão, um dos recursos mais usados é o trêmulo. Ele permite que
se sustente uma nota longa sem a inatividade característica do som sustentado. A repe­
tição muito rápida do mesmo som permite que ele seja prolongado com movimento e
não pela mera sustentação da nota. O trêmulo provoca, invariavelmente, uma sensação
de tensão, de instabilidade, em oposição à estabilidade do som sustentado.
O exemplo, extraído da Sam Fox Moving Picture Kiusic Volumes, de Zamecnik, in­
titulado Hurry Music, é indicado para o acompanhamento de situações de "multidão e
incêndio" (mob orfire scenes) e, novamente, os trêmulos são uülizados:
Pantomimas luminosas 87

Hurry Music
Agitato (FOR MOB OR FIRE SCENES) J. S. Zamecnik.

Hurry Music é um fragmento curto: seus cinqüenta e dois compassos em 2/4 equi­
valem praticamente aos vinte e quatro compassos em 4/4 do fragmento anteriormente
analisado. É uma peça musical curta, também dividida em três partes (indicadas pelas
barras duplas na partitura): a primeira possui dezesseis compassos, a segunda, dezesseis
e a terceira, vinte. As partes são igualmente contrastantes, ainda que formem uma uni­
dade quando executadas em sucessão. A primeira frase não apresenta nenhum movimen­
to melódico ou temático, seu caráter é puramente harmônico: um acorde diminuto em
trêmulo é apresentado e repetido, após uma rápida pausa. Na segunda frase, o mesmo
acorde é apresentado como um arpejo descendente: após uma outra pausa ainda mais
longa, tudo é repetido de forma transposta e as pausas intensificam a tensão inerente aos
motivos.
A segunda parte é também construída sobre acordes diminutos. Os trêmulos es­
tão agora apenas na região aguda, enquanto os graves se movimentam cromaticamen-
te, delineando um primeiro movimento de caráter melódico. Ela se divide em duas
frases, em que a segunda é a repetição da primeira transposta. Na terceira parte, surge
uma melodia bem mais definida na região aguda, enquanto os graves assumem os acor­
des em trêmulo.
88 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

Tal como no exemplo anterior, esse tipo de estrutura permite uma grande malea­
bilidade: é possível desmembrar a peça, remontá-la, recriá-la, inverter a ordem de suas
partes, recombiná-las, aumentá-las e diminuí-las.
A grande quantidade de pontos comuns entre as duas peças demonstra que ambas
possuem um mesmo princípio de organização: uso de material harmônico com grande
ênfase nos acordes de quinta alterada, emprego do cromatismo, trêmulo, contraste en­
tre motivos ascendentes e descendentes, alternância de movimentação entre graves e
agudos e, principalmente, o formato reduzido e a independência das partes.
Outro exemplo do mesmo gênero é o Misterioso nQ2, de Adolf Minot, inserido na
antologia de Rapée sob o tópico gruesome (horripilante, assustador, medonho). Esta peça
também é composta de quatro partes com oito compassos cada. Seus materiais são bem
diferentes e, assim, ela pode ser executada na íntegra ou fragmentada.

M isterioso N o. 2
(For dark scenes, burglaries, shadowing, tracking a fugitive or victim, etc.) Adolf Minot
Modcrato

Em muitas ocasiões, a música do cinema mudo foi tratada como inferior, de baixa
qualidade, semelhante ao modo como a cultura oficial encara as manifestações dramá-
tico-musicais de cunho popular. A música do cinema mudo é periférica, não representa
a produção musical de elite, porém, uma vez mais, é na periferia que se desenvolve o novo
gênero. É na periferia da arte musical que surge a dimensão sonora daquilo que mais tarde
entenderíamos como linguagem audiovisual, cujas características começaram a se con­
figurar, exatamente, nesse período. Do ponto de vista musical, seria incorporado tudo o
Pantomimas luminosas 89

que fora desenvolvido, ao longo de séculos, nos gêneros dramático-musicais. Mas não se
tratava de uma incorporação pura e simples, pois o cinema, por suas próprias necessi­
dades técnicas e estéticas, seria obrigado a revisar essa tradição e recriá-la para que pu­
desse servir a seus fins. Sob um ponto de vista puramente musical, a música do cinema
mudo poderia parecer pobre ou superficial, mas, para compreendê-la qualitativamente,
é necessário ter sempre em vista sua adequação e eficiência dentro do contexto cinema­
tográfico. Se a música no período do cinema mudo não tivesse cumprido sua função es­
tética com eficiência, talvez o cinema não tivesse se tornado a grande indústria de
entretenimento do século XX.
A transformação do legado dramático-musical conduz a música de cinema a resul­
tados originais. Aos poucos, ela vai formando o seu próprio inventário. Como vimos nos
exemplos analisados, para cada tipo de situação começava a existir um tipo diferencia­
do de música. As características comuns acumulam-se entre as várias peças destinadas a
um mesmo fim. Começa a se formar um inventário associativo. Por exemplo, a idéia
musical para o misterioso está relacionada, com freqüência, às tonalidades menores, aos
acordes de quinta alterada (especialmente os diminutos), aos trêmulos, aos movimen­
tos melódicos cromáticos, enfim, existe um conjunto de recursos musicais aptos a repre­
sentar essa situação ou gerar uma resposta emocional associada a essa condição de mistério.
Esse inventário associativo, originado naquele período, marcou profundamente a músi­
ca de cinema e seus reflexos podem ser ainda hoje observados.
A própria organização das peças musicais sobreviveu nas trilhas musicais de cine­
ma depois do fim da era muda: tratamento fragmentário do material musical, rápida al­
ternância de trechos curtos com características distintas, subdivisão dos temas em seções
mais curtas, uso repetitivo de material motívico e temático.
A compilação foi o método mais característico de elaboração do acompanhamen­
to musical no cinema mudo. As coletâneas são a síntese dessa prática, o léxico que orien­
tou a produção do período e que, hoje, nos permite compreendê-lo. Nelas podemos
encontrar todo o referencial musical do cinema. A maioria dos trechos originais foram
criados por compositores tidos como "menores", mas eles souberam compreender, exa­
tamente, as necessidades do novo veículo e de sua linguagem. A música das formas dra­
máticas anteriores ao cinema foi incorporada e transformada. Na antologia de Rapée, há
fragmentos de obras de Ambroise Thomas, Boccherini, J. Straus, Meyerbeer, Delibes,
Bizet, Massenet, Offenbach e Wagner. Mas o mais encontrado é Grieg. São vinte e dois
fragmentos, sob os mais variados tópicos, contra apenas dois de Wagner. Só da música
composta para Peer Gynt15, de Ibsen, são seis peças:

15. Grieg compôs duas suítes sinfônicas para Peer Gynt: Suíte ne 1 - opus 46 e Suíte
nQ2 - opus 55. De um total de oito peças (quatro para cada suíte), seis podem ser encon­
tradas na antologia de Rapée.
90 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

Título Número Tópico


1. Morgenstimmung (Atmosfera matinal) I. Suíte nfi 1 "Pastoral"
2. Aases Tod (A morte de Aase) II. Suíte nQ1 "Tristeza"
3. In der Halle des Bergkönigs IV. Suíte nfi 1 "Mar e tempestade"
{No castelo do rei da montanha)
4. Der Brautraub (O rapto da noiva) I. Suíte nß 2 "Horror"
5. Arabischer Tanz (Dança árabe) II. Suíte nQ2 "Oriental"
6. Peer Gynt Heimkehr III. Suíte nQ2 "Mar e tempestade"
(O retomo de Peer Gynt)

Há, ainda, no trabalho de Rapée, trechos de obras de Mendelssohn, Beethoven,


Schubert, Schumann, Tchaikovsky, Dvorak, Brahms, Chopin, entre outros. Mas eles tam­
bém tiveram suas músicas transformadas, fragmentadas, a fim de se adequar às necessida­
des do cinem a. No cinem a, até m esmo os grandes mestres são tratados com
informalidade, tomando-se "periféricos".

A Partitura Original

Em 1908, Camille Saint-Saëns foi convidado a compor a música para o filme


L'assasinat du Due de Guise (O assassinato do Duque de Guise). Não se tratava de um fil­
me qualquer, mas de uma produção da Société du Film d'Art, uma sociedade que procu­
rava realizar um tipo de cinema diferenciado do padrão da época. Levando à tela atores
da Comédie Française, procurava-se incorporar ao cinema o que havia de mais refina­
do na arte dramática francesa do período. Foi uma tentativa de levar o padrão da arte ofi­
cial ao cinema, até então ligado às formas dramáticas periféricas. Em certo sentido, a
produção da Société du Film d'Art representa tudo o que havia de falso no discurso de
Don Lockwood: um cinema que se pretende erudito, realizado por uma elite e voltado
a um público também de elite.
Não é, portanto, de se estranhar a escolha de Saint-Saëns. Além de ser um compo­
sitor reconhecido em sua época, ele também possuía grande experiência na escrita de
música para formas dramáticas. A música de Saint-Saëns para L'assassinat du Due de Guise
é uma exceção no contexto do cinema mudo, assim como o foi a produção da Société
du Film d'Art. Ela não representa a prática genérica, nem as principais convenções do
período. O simples fato de ela ter sido elaborada por um compositor de renome já indi­
ca essa condição excepcional. Os músicos de cinema não eram os grandes composito­
res e suas partituras não tinham a sofisticação de Saint-Saëns. A m aioria dos
acompanhamentos musicais era mera compilação de material preexistente. Ainda assim,
existe alguma produção de música original para o cinema entre 1909 e 1915. Miller
Marks cita em seu trabalho vários filmes cujas partituras originais encontravam-se à dis­
posição dos exibidores. Muitas delas, inclusive, eram anunciadas em revistas especiali­
zadas. A prática de se compor música original para os filmes permaneceria até o final
do período mudo.
Pantomimas luminosas 91

S ín te se e C o n s o l i d a ç ã o : O Nascimento de uma Naçào

O grande marco de consolidação das técnicas narrativas no cinem a é o film e


O nascimento de uma nação (Birth o f a Nation, EUA, 1915), de D. W. Griffith. Foi um dos
filmes mais longos até então produzidos16. Trata-se de um dado importante não apenas
como fato histórico, mas pelo que significava realizar um longa-metragem naqueles pri­
meiros anos do cinema.
Como vimos, os filmes foram se tomando cada vez mais longos, acréscimos estes
proporcionais ao domínio que os realizadores passam a ter da linguagem. Quanto mais
longo o filme, mais difícil a organização da narrativa, sua unidade e, por conseguinte, a
própria compreensão pelo público.
O nascimento de uma nação é a síntese desse processo. Tudo o que o cinema adqui­
riu desde que se tomou um espetáculo público pode ser nele encontrado. É o marco de
consolidação dos recursos de articulação fílmica: enquadramentos, montagem, conven­
ções narrativas e dramáticas, bem como o desenvolvimento de ações paralelas, tão carac­
terístico dos filmes de Griffith. Devido à sua importância, é quase impossível deixar de
mencioná-lo, mesmo tendo em vista seu referencial ideológico17. O nascimento de uma
nação foi também um marco significativo na história da música de cinema. É sabido que
existiram duas partituras para a estréia desse filme: a primeira, atribuída a Carli D. Elinor,
foi usada para acompanhar a temporada no Clunes Auditorium de Los Angeles, a segun­
da, organizada por Joseph Cari Breil, acompanhou a temporada do filme em Nova York,
no Liberty Theatre.
A temporada no Clune's começou antes da temporada no Liberty e o filme ainda
aparecia com o título de The Clansman. A segunda temporada, além do novo acompanha­
mento musical, já apresenta o novo título The Birth o f a Nation. Por que teria Griffith
optado por substituir a partitura do Clune's? Muito provavelmente, a opção de Griffith
não se deve à qualidade da primeira versão, já que a orquestra do Clunes era bastante
respeitada. A seleção musical e organização do acompanhamento dos filmes era uma res­
ponsabilidade dividida entre o Administrador e o Diretor Musical do Clune's, na épo­
ca, Carli Elinor. Nada restou do acompanhamento elaborado por Elinor para The
Clansman. O programa da sala indica parte do material musical usado em sua elabora­
ção. A lista de músicas é precedida pelo seguinte cabeçalho18:

16. Com certeza foi o mais longo filme realizado até então nos Estados Unidos.
17. O nascimento de uma nação é um filme que aborda a Guerra de Secessão sob o pon­
to de vista dos confederados. Os negros são responsabilizados por tudo o que ocorre de mal.
São sempre representados como indolentes, incapazes, manipuláveis, vingativos etc. Em
outras palavras, é um filme cujo racismo é explícito.
18. Tanto o cabeçalho quanto a lista são extraídos de uma reprodução do programa
da semana de 24 de maio de 1915, reproduzido por Miller Marks (1997:134), a partir da
reprodução apresentada em Film Culture - 36, de 1965.
92 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

N ota - O arranjo e seleção da música para The Clansman foram realizados após

uma procura diligente nas bibliotecas musicais de Los Angeles, San Francis­
co e Nova York. Para selecionar e mapear as cenas, foi necessário rodar os
doze rolos que contêm a história oitenta e quatro vezes; e também foram
necessários seis ensaios com a orquestra completa para um perfeito acom­
panhamento.
A lista compreende os seguintes itens:
Musica Autor
The Clansman - Ouverture J. E. Nürnberger
Semiramide - Ouverture Rossini
Tancredi - Ouverture Rossini
Light Cavalry - Ouverture F. V. Suppe
Morning, Noon and Night - Ouverture F. V. Suppe
Romantic - Ouverture K. Bela
Stradella - Ouverture F. V. Flotow
Manage of Figaro - Ouverture V. A Mozart
Orphes aux enfers J. Offenbach
Nabucodonozor G. Verdi
Sinfonia Giovana D'Arco G. Verdi
First Symphony L. V. Beethoven
Unfinished Symphony F. Schubert
Les Huguenots Meyerbeers
Rienzi R. Wagner
Lejougleur de Notre Dame J. Massenet
L'arlesienne G. Bizet
Silent Woe e Anathema A. V. Flelitz
Americana - Suite T. W. Thurban
Incidental - Musica selecionada por C. D. Elinor
L. Brown

A lista se enquadra perfeitamente na prática do período. Baseia-se em material


musical já existente e, muito provavelmente, há transições compostas pelo próprio di­
retor musical ou um auxiliar. Há, inclusive, dois fragmentos coincidentes com o acom­
panhamento de Breil, que veremos adiante: a Light Cavalry, de Suppe, e Rienzi, de Wagner.
Sobre a música incidental, sabemos apenas que foi selecionada por Elinor e Brown, na
época Administrador do Clune's. Contudo, não há especificação alguma sobre o mate­
rial musical usado.
O fato é que havia alguma coisa na música preparada por Elinor que desagradava
Griffith. Este, ao que tudo indica, possuía uma idéia muito clara do tipo de acompanha­
mento musical que pretendia usar em O nascimento de uma nação. A sua anuência para
a elaboração de um acompanhamento específico para a temporada no Clunes foi resul­
tado de um acordo com os proprietários daquela casa, que teriam colaborado financei­
ramente para a conclusão do filme em troca dos direitos de exibição em Los Angeles, bem
como da total autonomia sobre o acompanhamento musical, já que a orquestra do
Pantomimas luminosas 93

Clune's era famosa por sua qualidade. Com isto, Griffith teria ficado impedido de parti­
cipar efetivamente da elaboração do acompanhamento musical de seu filme na tempo­
rada no Clunes. Esses dois aspectos, seu desagrado e sua expectativa, podem ser atestados
por uma matéria do Los Angeles Times do dia da estréia (8.2.1915) no Clunes:

David Griffith chegou de Nova York ontem de manhã, e passou o dia na sala
de projeção do Clune's Auditorium ajudando a ajustar a música de The Clansman.
Mr. Griffith tem noções claras sobre o arranjo de música para filmes.
"Muito longo", ele disse, "nós estamos ajustando o filme à música, em vez de
ajustar a música ao filme. Se uma lady vai morrer, e acontece de o diretor da orques­
tra querer tocar A Hot Time In The Old Town, a pobre senhora tem que morrer em
'dois pulos' [two hops], a fim de se adequar ao tempo da música; ou, se há uma ba­
talha e a orquestra quer tocar Hearts and Flowers, a cena de batalha fica, então, pa­
recendo um exercício calistênico na Old Ladies' Home."
(...)
Uma fabulosa idéia de Mr. Griffith, nada menos do que adaptar os métodos
da grand-opéra aos filmes! Cada personagem tem um tipo diferente de música, um
tema distinto, como na ópera. Algo mais difícil nos filmes do que na ópera, toda­
via, visto que qualquer personagem raramente permanece muito tempo na tela, de
cada vez. Em casos em que há muitas personagens, a música é adaptada ao assun­
to ou personagem dominante na cena.
A partir de agora a música para todas as grandes produções de Griffith será es­
crita dessa maneira. (Transcrito por Miller Marks, 1997:137)

Griffith, à sua maneira, já havia percebido a importância do acompanhamento


musical como parte da linguagem do cinema. Ele quis interferir na música porque sa­
bia que ela é parte do filme e não um mero dado de ambientação. Percebe-se, também,
que Griffith tem consciência da necessidade de incorporar o referencial dramático mu­
sical da ópera. Por inferência, pode-se localizar o referencial de Griffith na ópera
wagneriana, pois ele se reporta ao uso de leitmotivs deste compositor. Mas, ao mesmo
tempo, ele tem consciência de que o cinema precisa desenvolver convenções musicais
próprias, distintas da dramaturgia musical tradicional. Quando afirma, no início do texto,
que está "muito longo", ele indica a necessidade de uma maior fragmentação no cine­
ma, não sendo possível estender muito cada peça musical; e ao dizer que "estamos ajus­
tando o film e à música, em vez de ajustar a música ao film e", dem onstra a sua
compreensão de que a música no contexto do cinema já não possui a mesma autono­
mia de que goza na saía de concerto. Griffith percebeu que a articulação de planos, a
montagem e o paralelismo, recursos que tanto aperfeiçoou, deveriam ser aplicados não
apenas às imagens, mas também à própria música.
Se Griffith é tido como o pai do cinema pelo modo como desenvolveu as conven­
ções visuais, seria justo estender o seu mérito igualmente aos fundamentos musicais.
Possuindo um conhecimento musical razoável, ele percebeu que a polifonia de imagens
e música era fundamental e dedicou-se à produção dos acompanhamentos musicais de
seus filmes com a mesma intensidade que às construções com imagens. Mas, para rea­
lizar aquilo que desejava musicalmente, Griffith necessitava de um músico que compar­
tilhasse e compreendesse sua concepção, o que iria encontrar em Joseph Carl Breil.
94 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

Breil não era um compositor de música de concerto, sua carreira desenvolveu-se no


teatro e no cinema. Ao que tudo indica, Griffith conheceu-o na temporada do filme ita­
liano Cabiria, em Los Angeles, no qual Breil era responsável pela direção da orquestra e,
pelo que consta, autor de alguns trechos musicais. Em relação a Griffith, Breil declara:

[Assistindo-o], finalmente comecei a compreender que a primeira metade do


filme era um romance muito trágico, tal como todo compositor de ópera procura.
E, ali mesmo, eu decidi que o filme deveria ser tratado como uma ópera, sem um
libreto, é claro. (...) Ali, também, foi decidido que os protagonistas deveriam ser tra­
tados com "le itm o tiv s e idéias contrárias, tais como "amor sublime" contra "em­
briaguez e luxúria", "brutalidade" contra a "viril determinação" dos cavalheiros do
Sul em proteger as mulheres e seus lares, "patriotismo" contra "ignorância voraz"
- tudo isso deveria ser distinguido na partitura por seus motivos individuais. (Ma­
nuscrito intitulado On Motion Picture, apud Miller Marks, 1997:138)

Esta foi uma das primeiras parcerias da história do cinema. É algo que se tomaria,
mais tarde, comum, como atestam os exemplos de Eisenstein com Prokofiev, Hithcock
com Herrmann, Fellini com Rota e Spielberg com Williams, entre outros. Todas as par­
cerias são ao mesmo tempo tensas e férteis, especialmente em uma arte em que a auto­
ria é, por definição, múltipla. Lilian Gish, em suas memórias, recorda o conflito entre
Griffith e Breil:

Mr. Breil deveria tocar fragmentos e peças, e Mr. Griffith deveria, então, de­
cidir como eles deveriam ser usados. (...) Os dois discordavam bastante sobre a
música do filme. "Se um dia eu matar alguém", disse Mr. Griffith uma vez, "não
será um ator, mas um músico". (Apud Miller Marks, 1997:140)

É deste tipo de conflito que brotam, invariavelmente, as grandes criações. Em mui­


tos casos, no entanto, esta rivalidade pode levar a distorções como, por exemplo, na des­
crição de Mark Evans sobre a música de O nascimento de uma nação:

Em 1915, o pioneiro diretor D. W. Griffith produziu seu clássico O nascimen­


to de uma nação. Uma partitura original foi preparada por Cari Elinor, mas Griffith
decidiu que queria participar pessoalmente da escrita e confecção da música. Ele
substituiu a partitura por uma série de peças extraídas do repertório sinfônico,
selecionadas com a colaboração de Joseph Cari Breil. Esse conflito entre produtor (ou
diretor) e compositor continua em vários graus até o dia de hoje. (1975:9)

Esta passagem é uma grande injustiça em relação a Griffith e, especialmente, a Breil.


A partitura de Elinor é que não passava de uma compilação de peças do repertório sin­
fônico, já que a de Breil é em grande parte original.
Ao longo do tempo, diversas fontes citaram Griffith como o grande responsável pela
música de O nascimento de uma nação. Em muitos casos, Breil aparece apenas como um
colaborador. O próprio Griffith agiu com indiferença em relação a Breil: em 1933, após
o surgimento do cinema sonoro, Griffith realiza a versão "sonorizada" de seu filme, ou
seja, uma versão com música gravada19. Em nenhum momento o nome de Breil é cita-

19. Essa foi a versão usada para a realização deste trabalho.


Pantomimas luminosas 95

do nos créditos. Quem aparece como Diretor Musical é Louis Gottschalk, mas a músi­
ca que se ouve é a de Breil, exatamente como o filme havia sido apresentado em 1915.
Contudo, se publicamente Breil não obteve o reconhecimento merecido pelo trabalho
que realizou, isso não diminui sua importância para a história da música de cinema. Sua
partitura, tanto quanto o filme de Grittith, é um marco histórico. Graças a Breil, O nas­
cimento de uma nação ocupa, também por sua música, um lugar de destaque na história.

AÓ pera sem L ib r e t o

A declaração de Breil de que "o filme deveria ser tratado como uma ópera, sem
libreto" não foi apenas uma frase de efeito. Ele e Griffith acreditavam realmente nesta
postura. Mas por que razão a ópera foi um ideal tão forte para a música de cinema? Por
que há tantas referências a ela nessa época? Um aspecto que deve ser levado em conta é
a sua reputação. A aproximação com o universo operístico significava um reconhecimen­
to que o cinema ainda não possuía. Algo, como vimos, próximo à fantasia de Don
Lockwood. Mas a relação entre os dois gêneros artísticos vai além, pois também há se­
melhanças no aspecto estético. Tanto a ópera quanto o filme (em seu período mudo), fa­
zem uso da música contínua. Em am bos, a música é uma trilha que conduz o
desenvolvimento temporal, estabelece nuanças dramáticas, indica estados psicológicos,
localiza as personagens quanto a suas respectivas funções na construção dramática, en­
fim, tudo o que acontece é costurado pela música e a ela se relaciona.
A ópera também serviria de referencial como obra dramático-musical de longa du­
ração, já que o cinema começava a efetuar as primeiras tentativas de filmes mais longos.
Para o músico, em particular, era quase inevitável debmçar-se sobre a ópera a fim de ela­
borar o acompanhamento de um longa-metragem, encontrando aí os exemplos de arti­
culação dramático-musical e as soluções de continuidade.
No entanto, não há somente semelhanças. Na ópera, é a música que articula o dra­
ma; cada entrada de ator, seu texto, a velocidade com que deve dizê-lo, a intensidade e
até mesmo a entoação, estão praticamente predeterminados pela música, tudo ocorre
por meio do tempo musical. No cinema, ocorre exatamente o oposto: como queria
Griffith, é a música que deve ajustar-se ao filme e não o contrário. O tempo e a forma
musicais devem adequar-se ao tempo e à forma do filme. Isto é possível porque o tem­
po do filme é, como vimos, um tempo musical, mas a hierarquia é inversa à da ópera.
No cinema, não é a música que articula o drama e, sim, o olhar do narrador, que se
materializa na seleção da imagem que a câmera nos apresenta a ponto de deixar de ser
drama e se tornar- uma narrativa. A música é parte da composição audiovisual, uma das
vozes da narrativa polifônica do filme. Contudo, especialmente no período do cinema
mudo, ela ainda é o último dos fatores a entrar na composição do filme, ocorre parale­
lamente às imagens e está sempre sujeita a alterações, pelo fato de ainda ser executada
ao vivo.
Percebemos, assim, como a concepção de Breil é sagaz. Ao afirmar que se deve tratar
o filme como uma ópera sem libreto, ele demonstra reconhecer essa distinção. O libreto
não é necessário no cinema, pois os próprios recursos de articulação fílmica são sufi-
96 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

cientes para a composição da narrativa. Um filme é seu próprio libreto, ou seja, o texto
filmico é o próprio filme. A música contínua faz parte desse texto, e por isso o filme as­
semelha-se à ópera, mas "uma ópera sem libreto, é claro".
Breil iria elaborar o acompanhamento musical de O nascimento de uma nação exa­
tamente dentro dessa perspectiva. O tratamento dado por ele ao material musical do fil­
me segue o modelo da tradição operística. A incorporação do conceito de leitmotiv de
Wagner é explícita. Cada personagem, conjunto de personagens, ação ou idéia represen­
tada, são tratados por meio de temas recorrentes cuja elaborada manipulação promove
seu mútuo relacionamento. Ainda não há uma sofisticação muito grande quanto às trans­
formações temáticas. Normalmente, o tema é repetido com poucas alterações, mas essa
simplicidade tom a a recorrência temática bastante acessível e é, inclusive, uma solução
para a questão da velocidade com que os planos se alternam nos filmes, já que ocorre
com maior rapidez do que as transições de cena nas óperas.
A música de Breil já é, acima de tudo, música de cinema. Ainda que aspirando à
ópera, ela se adequa perfeitamente ao modelo da época para o acompanhamento musi­
cal de filmes, que tinha como principal prática a compilação. A partitura de Breil inclui
fragmentos extraídos do repertório sinfônico e temas tradicionais americanos. Contu­
do, mesmo o material temático não-original é usado com bastante critério: cada frag­
mento associa-se a um elemento distinto do filme e cumpre uma função específica, tanto
em sua relação polifônica com as imagens, quanto em suas relações com os demais frag­
mentos musicais.
Breil compôs uma grande quantidade de música original para O nascimento de uma
nação. Somando-se a música extraída do repertório à música original, o que se tem é a
síntese e a consolidação das práticas de acompanhamento musical daquela época.
Tendo como eixo narrativo a Guerra de Secessão, O nascimento de uma nação apre­
senta diversas ações paralelas, o que o aproxima mais do épico do que do drama. A ha­
bilidade de Griffith é notável: a guerra, que em si já possui grande apelo visual e
dramático, é usada como um eixo em tomo do qual gravitam as outras ações. Há a ami­
zade entre as famílias Stoneman do Norte e Cameron do Sul, cujos jovens filhos a guerra
se encarregará de colocar em lados opostos do front, sendo que nem todos voltarão. Dessa
amizade, surge o casal romântico Elsie Stoneman e Ben Cameron. O casal possui o in­
grediente dramático adequado para unir personagens opostos: ela, filha do homem que
se encarregará de subjugar o Sul derrotado; ele, um coronel confederado, provando a ve­
lha máxima dramática pela qual o amor transcende toda a mesquinhez humana. Há o
drama do Sul, propriamente dito, particularizado pela vida na cidade de Piedmont, onde
se concentra a maior parte da ação. Há a violência, a arrogância e a sede de poder, per­
sonalizados por Silas Lynch, homem de confiança de Stoneman que se encarregará de
liderar uma perseguição implacável aos brancos derrotados. Como todo bom vilão, ele quer
não apenas o poder, mas também a heroína Elsie, não por paixão, pois os vilões não se apai­
xonam, mas para galgar todos os degraus sociais que sua desenfreada ambição exige.
A condução de ações paralelas, tida como uma das marcas de Griffith, exige um tra­
tamento musical adequado. Provavelmente, o próprio diretor já o tivesse percebido e daí
sua grande preocupação em participar da criação do acompanhamento musical. A mú-
Pantomimas luminosas 97

sica estabelece um seccionamento semelhante ao das imagens. Assim, se tomarmos cada


um dos temas recorrentes e seguirmos seu desenvolvimento ao longo do filme, cada uma
de suas entradas, perceberemos que eles se desenvolvem paralelamente às ações. A mú­
sica de Breil se associa, portanto, ao paralelismo de Griffith com o intuito de tornar o
filme mais inteligível ao espectador. As informações visual e sonora se associam para que
haja uma melhor compreensão da narrativa. Atualmente, com o público habituado a
construções audiovisuais extremamente sofisticadas, isso talvez pareça demasiado sim­
ples, mas não o era para a platéia de 1915 que começava a aprender a "leitura" de um
filme de longa-metragem.

Vilões

A partitura de Breil apresenta uma série de temas ou conjuntos temáticos usados


ao longo do filme de forma recorrente, como leitmotivs. Esses temas expressam estados
emocionais e intenções de personagens ou grupos de personagens e os relacionamen­
tos entre eles.
O primeiro grupo é o dos vilões, representado pelas personagens de Austin
Stoneman, o parlamentar, um vilão branco que iria promover a retaliação ao Sul venci­
do e Silas Lynch, mestiço, protegido de Stoneman e responsável pela execução de sua
política no território derrotado. Sob o ponto de vista da narrativa, a vilania de Stoneman
e Lynch simboliza a de grupos maiores, respectivamente, os abolicionistas e os negros.
Musicalmente, esse grupo é representado por um conjunto formado de dois temas prin­
cipais e um conjunto de sete fragmentos que se combinam de formas variadas. O pri­
meiro tema se vincula aos escravos:

Ao longo do filme, ele será associado à brutalidade, arrogância, agressividade e


despreparo para a convivência em uma sociedade complexa, características atribuídas ao
primitivismo dos negros.
O primitivismo em questão é representado, musicalmente, pelo uso da sincopa,
uma referência aos ritmos africanos enfatizada pelo uso de tambores no acompa­
nhamento. No nível melódico e harmônico, optou-se por uma estrutura modal que tam­
bém funciona como índice de música "primitiva", enfatizando, assim, a sugestão rítmica.
Neste ponto, vale a pena lembrar de uma máxima para a música de cinema: a re­
ferência musical deve ser sempre algo que o público perceba como a representação mu­
sical do objeto referido. Em outras palavras, quando é necessário localizar musicalmente
um país, uma época etc., nem sempre se obtém o melhor resultado utilizando a música
daquele país ou época em questão, mas aquela que o público entenda como tal. Assim,
98 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

para se caracterizar a Idade Média não é necessário apresentar música medieval, mas um
tipo de sonoridade que o público identifique como medieval. Cremos, portanto, que a
música de Breil foi prontamente identificada às manifestações musicais africanas pelo
público médio, ainda que hoje nos remeta mais ao universo da música de certos grupos
indígenas norte-americanos.
O segundo tema é o que se liga a Stoneman. Trata-se de um tema sombrio e auste­
ro, características dadas por um conjunto de fatores musicais. O tema é apresentado na
região grave, em modo menor.

A conclusão da primeira frase, cromaticamente meio tom abaixo da tônica da to­


nalidade, confere um caráter pesaroso à melodia.
Pantomimas luminosas 99

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O tema é montado sobre uma estrutura seqüencial: um único motivo repetido qua­
tro vezes em alturas diferentes. O movimento interno das notas do motivo - três inter­
valos ascendentes e um descendente - é reproduzido pela estrutura da frase: nas três
primeiras repetições o motivo se sucede por notas que formam uma progressão ascen­
dente e, na última, a nota inicial está abaixo do anterior. Tudo isso contribui para o ca­
ráter sombrio do tema.
Por ultimo, há o conjunto de fragmentos temáticos ligado à furia dos vilões. São
quatro fragmentos combinados de diferentes maneiras ao longo do filme, que aparecem
associados tanto a Stoneman quanto a Lynch e relacionam-se ao que ambas as per­
sonagens possuem em comum: o desejo de subjugar os inimigos vencidos pelo exercí­
cio de seu poder. Este conjunto de fragmentos identifica não os vilões propriamente ditos,
mas a vilania como atitude característica dessas personagens.
Em alguns casos, estes quatro fragmentos são apresentados juntos, sucessivamen­
te; em outros, reagrupados. Os três primeiros formam uma progressão em que a tensão
cresce gradativam ente: o fragm ento A é um m otivo seqüencial que progride
ascendentemente, está no modo menor e, assim como o tema de Stoneman, ocupa a re­
gião grave; o fragmento B funciona como um clímax do primeiro e sua variedade intema
é maior, pois está formado por três motivos distintos (um diálogo entre as regiões grave
e aguda: no grave, um movimento descendente, no agudo, movimento ascendente, e, fi­
nalmente, a conclusão do fragmento em três acordes, dois deles diminutos); os acordes
diminutos dominam, também, o fragmento C (formado pela sucessão seqüencial de um
único motivo até o clímax em um acorde final); o fragmento D contrasta com os três
primeiros, pois se trata de uma mera sucessão de acordes sem linha melódica indepen­
dente - seu caráter misterioso é estabelecido pela dinâmica (crescendo e diminuindo),
100 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

pela repetição dos dois primeiros acordes adiando o movimento cadenciai e pela res­
piração entre os acordes que é ouvida como pausa.

Heróis

Os heróis de O nascimento de uma nação também fazem parte do acompanhamento


musical de Breil. São temas que se repetem, participando na constmção destas persona­
gens, indicando seus estados de espírito e sendo o suporte de suas ações.
A família Cameron e, por decorrência, o Sul, são caracterizados por temas simples,
mas bastante eficientes. São usados com parcimônia, quase não se repetem e aparecem
em momentos importantes da narrativa. O primeiro deles é o tema dos Cameron:

Sua estmtura é bastante simples. Está no modo maior, não apresenta nenhum con­
flito interno e desenvolve-se estritamente dentro da tonalidade. Sua construção é basea­
da em um único motivo repetido duas vezes e que, em seguida, reaparece um pouco
modificado. Associado às imagens de uma família feliz, o tema caracteriza o equilíbrio
reinante antes do distúrbio, a paz em que o Sul se encontra antes da guerra simbolizada
pela cidade de Piedmont.
Um outro tema se associa à família Cameron, sendo usado em momentos mais crí­
ticos, como a parúda dos filhos para a guerra, a visita da mãe ao filho ferido em batalha
e o pedido de clemência que essa mesma mãe faz a Lincoln. É um tema semelhante ao
anterior, mas possui uma linha melódica mais austera característica dos hinos, das pe­
ças militares e de teor patriótico. Suas frases são bastante afirmativas, mas carregam,
igualmente, um sentimento de resignação. Em geral, as canções que procuram desper­
tar o senümento patriótico trazem essa ambigüidade intrínseca - "morre-se por seu país
se preciso for", uma combinação de certeza e resignação:

Espera-se que os heróis sofram ou, do contrário, não poderiam demonstrar seu he­
roísmo. O sofrimento e a crise de consciência do herói são representados por uma me­
lodia introduzida no momento em que Ben Cameron, humilhado, medita sobre as
agruras de sua pobre terra. O tema apresenta uma frase curta repetida seqüencialmente.
A melodia, em modo menor, é sustentada pelos trêmulos nas cordas, sempre presentes
em situações de tensão, apreensão e momentos críticos de qualquer espécie:
Pantomimas luminosas 101

Associado ao tema da agonia, é introduzido outro tema para o medo, mais especi­
ficamente, o medo dos negros em relação aos brancos:

Mas, como heróis, ainda que subjugados pelos vilões, eles devem possuir a força para
promover a reviravolta em seu próprio destino. É por isso que Ben Cameron teve a idéia
de formar um grupo armado, formado por cavaleiros anônimos, para combater os ne­
gros. Surge a Ku Klux Klan, representada no filme pelo seguinte tema:

O início deste tema funciona como uma chamada, uma espécie de toque militar
nos metais que é respondida pelas cordas, e todo o conjunto é repetido ainda uma vez.
Entra, então, o tema propriamente dito, composto de um motivo construído sobre um
102 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

arpejo de um acorde menor. O uso de notas pontuadas é característico das peças musi­
cais ligadas à idéia de cavalgada, em que sempre se alteram valores longos e curtos20. Após
o arpejo, o motivo é concluído por uma resposta em trêmulos das cordas.

Heroínas

O universo dos heróis é complementado pelo das heroínas. Em O nascimento de


uma nação, as jovens mulheres também possuem seus temas específicos. O primeiro de­
les é da personagem Elsie Stoneman. Ao contrário do tema de seu pai, o de Elsie é ágil,
leve e alegre. A melodia desenvolve-se na região aguda, em modo maior:

Em algumas situações, há um segundo tema para Elsie, um pouco mais triste, con­
trastando com o primeiro:

Flora, a filha caçula dos Cameron, é representada por um conjunto de três frag­
mentos temáticos. O segundo possui um único motivo por meio do qual se estabelece
um diálogo entre as regiões grave e aguda, como pergunta e resposta. É também um tema
leve e alegre. O terceiro, por sua vez, é uma valsa bastante alegre e movimentada. Esses

20. Se nos restringirmos apenas a O nascimento de uma nação, vamos encontrar ainda
dois exemplos de peças com essa característica: a Ouverture da Cavalaria ligeira, de Suppé, e
o fragmento de A valquíria, de Wagner.
Pantomimas luminosas 103

dois fragmentos contribuem para a imagem de jovem ingênua, amável e feliz, criando
uma simpatia pela personagem que será fundamental para a resposta emocional do pú­
blico no momento em que Flora morre bmtalmente.
O conjunto temático de Flora ainda possui um fragmento (A) usado em situações
especiais, a fim de estabelecer um clima mais misterioso:21

O Amor

Há duas relações amorosas em O nascimento de uma nação: a de Elsie Stoneman


com Ben Cameron e a de Margaret Cameron com Phil Stonem an22. Ambas estão ba­
seadas em um bom ingrediente dramático, já que Elsie e Phil são filhos do vilão, ao passo
que Margaret e Ben pertencem ao grupo dos heróis. Os dois casais representam a união
entre Norte e Sul abalada pela guerra e, posteriormente, resgatada. O tema de Margaret
e Phil não é original de Breil. Trata-se de In the Gloaming, de Harnsson:

21. Na versão utilizada para este trabalho, a importância desse fragmento é reduzida
em comparação com a versão original de Breil.
22. Aqui há, também, uma diferença entre a versão original, a qual apresenta o du­
plo casamento no final. Na versão de 1933, Griffith diminuiu bastante o fator romance, es­
pecialmente na parte final do filme e concentrou a narrativa no resgate de Piedmont. Com
isso, o romance entre Margaret e Phil foi o que ficou mais prejudicado, o que pode ser com­
provado pelo número de recorrências de seu leitmotiv, que aparece duas vezes, contra cinco
da versão original.
104 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

Já o tema de Elsie e Ben é original de Breil. Mais tarde, ele iria se tomar um suces­
so como tema de abertura do programa de rádio Amos and Andy. Essa canção ficou co­
nhecida como The Perfect Song:

É um tema romântico dos mais característicos. Sobre uma progressão harmônica


tonal, bastante tradicional, desenvolve-se uma melodia suave, consonante. A leveza do
tema também se deve à pouca atividade rítmica e sua total subordinação ao metro. O dis­
curso melódico é bastante valorizado: a intenção é que o tema corresponda ao estado
onírico e introspectivo dos apaixonados, que os coloca à parte dos problemas do mun­
do ao redor. São muitos os caminhos musicais possíveis para expressar a sublimação da
paixão e a opção de Breil, além do que já foi dito, passa pela organização das frases. A pri­
meira é descendente, um pouco triste e resignada; a segunda é ascendente, terminando
no ponto culminante da primeira parte; a primeira frase é, então, repetida sem modifi­
cações e conduz à última, que rapidamente ascende ao ponto culminante da música para
novamente descer, alternando notas longas e curtas, tal como os suspiros dos amantes.
É uma estrutura em que não há conflitos internos. Seu senúdo é objetivo: começo, meio
e fim, com uma decisão e clareza inquestionáveis.
Pantomimas luminosas 105

C o n s t r u in d o a N arrativa c o m o M a t e r ia l T e m á t ic o M u sic a l

Uma característica importante da música de O nascimento de uma nação é que os


eventos ligados à guerra são tratados preferencialmente com temas musicais não origi­
nais, enquanto as relações humanas, o drama vivido pelas personagens, é acompanha­
do por música original de Breil.
Seguindo a sucessão de recorrências temáticas de O nascimento de uma nação, po­
demos acompanhar o desenvolvimento paralelo de cada elemento da narrativa. Inicial­
mente, os temas são apresentados isoladamente, de modo que o espectador entenda-os
claramente. Ao longo do filme, no entanto, Breil tece uma teia musical que se toma cada
vez mais complexa.
A primeira seqüência do filme apresenta os negros sendo vendidos no mercado de
escravos, acompanhados por seu tema musical. Ela é precedida pela legenda: "A vinda
dos africanos para a América plantou a primeira semente de desunião". De imediato, os
negros passam a ser associados a algo mim, à desunião. Logo em seguida, são apresenta­
dos os temas de Stoneman e Elsie. O contraste entre ambos deixa claro o caráter de cada
uma das personagens, apesar de serem apresentados juntos, como pai e filha, em uma
cena doméstica. Uma legenda apresenta os irmãos de Elsie, que lêem uma carta a ser
enviada a Ben Cameron. A carta, que substitui a legenda, revela a intenção dos irmãos
Stoneman de visitar o amigo em Piedmont. O fato de a seqüência ser acompanhada pelo
tema de Elsie estabelece uma primeira ligação entre ela e Ben.
É chegada a vez de ser apresentada a família Cameron. A seqüência mostra a casa
dos Cameron em Piedmont, onde reina um clima de paz e felicidade. Breil inicia sua
música pela canção Old Folks at Home, de Stephen Foster, com a primeira apresentação
do tema dos Cameron, que se funde à canção com tanta naturalidade que a transição
entre eles é imperceptível. A canção Old Folks at Home é incorporada como referência
para a relação entre as duas famílias. Sendo uma canção bastante conhecida, o públi­
co era capaz compreender sua finalidade, inclusive relacionando seu título com a ação
filmada.
A próxima seqüência mostra a chegada dos irmãos Stoneman à casa dos Cameron.
A ligação com a seqüência em que haviam sido apresentados é mantida pelo uso recor­
rente do tema de Elsie. Passeando com os amigos pelos campos de algodão, Ben
Cameron vê o retrato de Elsie. É uma paixão à primeira imagem. Nesse momento, é in­
troduzido o tema de amor.
Voltamos a encontrar material temático recorrente na seqüência da partida dos ir­
mãos Stoneman de Piedmont. Phil faz juras de amor a Margaret, antes de sua partida. A
música faz o recorte das duas ações contidas na seqüência: a dor do afastamento vivida
pelo casal acompanhada pelo tema de amor de Margaret e Phil (In The Gloaming) e a des­
pedida festiva das outras personagens que os rodeiam acompanhada pelo tema do Sul.
Após a partida de Phil, a solidão de Margaret é enfatizada pela volta ao tema romântico.
Segue-se uma série de seqüências, em que não se encontram temas musicais recorren­
tes. Lincoln convoca voluntários para a guerra acompanhado por We Are Corning, Father
Abraham, de Emerson. A despedida de Elsie de seus irmãos se dá ao som de uma mar­
cha original de Breil. Em seguida, vemos o batismo da primeira bandeira confederada
106 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

ao som de The Bonnie Blue Flag. Os três irmãos Cameron juntam-se às tropas confede­
radas que partem de Piedmont. O acompanhamento musical da seqüência se inicia por
um toque militar de clarim seguido pela abertura da Cavalaria ligeira, de Suppé, e encer­
rada entusiasticamente por Dixie.
A coincidência no título de alguns temas musicais com a ação da seqüência, tais
como We Are Corning, Father Abraham, Old Folks At Home e Dixie, mostra que o cine­
ma já usava o referencial musical do público médio. Breil e Griffith escolheram temas
com os quais qualquer um seria capaz de se identificar. Embora possa dar essa impres­
são, o trabalho com temas muito conhecidos não é tão óbvio. Uma música original pos­
sui a seu favor a condição de inédita e, conseqüentemente, sua associação ao elemento
dramático ou narrativo está despida de significações preestabelecidas. A música não-ori-
ginal, por sua vez, quanto mais conhecida, maior carga significativa empresta ao elemen­
to a que se associa e, portanto, mais criteriosa terá de ser essa interferência. No caso de
músicas com letra, deve-se levar também em conta o seu conteúdo, mesmo que seja exe­
cutada apenas por instrumentos. Letras muito conhecidas sugerem uma imediata associa­
ção do seu conteúdo à narrativa.
Durante a guerra, novos temas musicais originais e a recorrência de outros tomam
a aparecer. No campo de batalha, Ben Cameron lê uma carta de sua irmã, Flora, cujo
material temático é apresentado pela primeira vez. O segundo fragmento temático (B)
é apresentado enquanto Ben lê a carta. Um corte leva a Piedmont, onde vemos Flora, que,
reciprocamente, lê uma carta de seu irmão. O corte é acompanhado pela mudança no
tema de Flora do segundo para o terceiro fragmento, a valsa (C).
A segunda inserção do tema dos negros ocorre no ataque a Piedmont por grupos
de soldados da União. A referência direta aos negros é disfarçada pela legenda, que diz:
"... A viciosidade trazida pela guerra é comum a todas as raças". Contudo, o tema apresen­
tado é, justamente, o que foi associado aos negros.
Ouvimos novamente o tema romântico de Elsie e Ben quando este último, ainda
no acampamento militar, admira o retrato de Elsie. Segue-se mais uma série de seqüên­
cias acompanhadas por temas não-originais ou não-recorrentes. Ela culmina com a Ba­
talha de Atlanta em que morre o segundo irmão de Ben. Na continuação, vemos a
batalha de Petersburg, durante a qual Ben Cameron lidera a última investida contra as
tropas do Norte. Essa parte do filme é acompanhada, principalmente, por música origi­
nal de Breil. Contudo, os temas recorrentes do filme não são aí usados. O tema mais im­
portante da batalha é Dixie: ainda que não seja original, acaba adquirindo a função de
leitmotiv do exército Confederado; Breil apresenta-o fragmentado, transformado, antes
de ser mostrado em sua versão integral no final da batalha.
Ferido, no hospital, Ben Cameron é assistido por Elsie. É o primeiro encontro dos
dois desde o início do filme, apesar da paixão de Ben. Sua mãe vem de Piedmont para
ver o único filho homem sobrevivente da guerra. Descobre-se que Ben será executado por
crimes de guerra. Elsie e a Sra. Cameron decidem pedir clemência a Lincoln.
Breil aproveita a intensidade dramática da seqüência para realizar uma construção
que une vários temas musicais. Apenas no início, antes que Ben revele a Elsie que havia
carregado seu retrato por muito tempo, a seqüência apresenta um tema não-original:
Pantomimas luminosas 107

Kingdom Corning. Após reconhecimento mútuo, todos os temas que se alternam tomam
parte do conjunto de leitmotivs do filme.
A seqüência começa com o tema de Elsie enquanto ela lê a carta em que Phil, seu
irmão, recomenda o amigo Ben. Há, em seguida, uma transição para o tema de amor de
ambos. Ben mostra a Elsie o retrato que possuía dela. O casal está formado. Chega a mãe
de Ben. O tema romântico funde-se com tema do Sul. Após a entrada da mãe no hospi­
tal, é a vez do tema dos Cameron substituir o anterior. São todos informados de que Ben
será executado e saem para pedir clemência a Lincoln. Um fragmento curto de outro
tema é apresentado: trata-se do tema que foi ouvido quando os Cameron receberem a
notícia da morte de seus dois outros filhos23.
A junção dos diversos temas atinge diversos objetivos. Em primeiro lugar, ela pro­
move variedade musical à seqüência, evitando a monotonia de uma ação localizada em
um único espaço, mais especificamente, em tomo da cama de um ferido, o que impede
qualquer movimentação mais efetiva. Em uma segunda instância, os temas trazem toda
carga associativa que adquiriram ao longo da narrativa. O tema de Elsie, usado como in­
trodução para o tema romântico, estabelece uma ligação entre as duas personagens, in­
dicando que ela deverá corresponder à paixão de Ben. A chegada da mãe traz à tona os
temas que haviam sido usados na apresentação da família Cameron na visita que lhe faz
os Stoneman. São os temas associados ao equilíbrio, agora destruído pela guerra, mas não
totalmente perdido, pois a força vital das personagens necessária à reconstrução do equi­
líbrio perdido ainda existe.
Na seqüência seguinte, Lincoln recebe Elsie e a Sra. Cameron. A música é construída
sobre o tema do Sul com duas curtas inserções do tema romântico. Além do caráter so­
lene do tema, compatível com a situação representada, é posta novamente em relevo a
força da família na figura da mãe que busca o último recurso que lhe resta para salvar a
vida do filho. A presença de Elsie indica que ela também já se coloca como parte dessa
família, sugestão que é confirmada pela inserção do tema romântico no meio e no fi­
nal da seqüência. Elsie já se identifica com os Cameron e, ao acompanhar a mãe no ape­
lo, assume sua ligação com Ben.
O filme segue com a volta da Sra. Cameron a Piedmont acompanhada, mais uma
vez, por Kingdom Corning. Posteriormente é apresentada a rendição do General Lee sob
o tema America (My Country, 'tis ofT hee). Ben deixa o hospital acompanhado por Elsie
e ouvimos outra canção: The Girl I Left Behind Me. llm corte leva-nos a Piedmont, onde
vemos Flora Cameron fazendo os preparativos para receber o irmão. A valsa, segundo
fragmento do conjunto temático de Flora, é escolhida para o acompanhamento.
A volta de Ben Cameron não é tratada com material temático recorrente, mas
acompanhada pela canção Home! Sweet Home!, de H. R. Bishop e uma rápida referên­
cia à canção My Old Kentucky Home, ambas com óbvia conotação de "volta ao lar".

23. Esse tema, uma marcha fúnebre, também era mais importante na versão original
do filme, na qual eram mostradas as mortes dos dois irmãos Cameron.
108 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

O tema de Stoneman aparece, novamente, depois do final da guerra, quando ele


procura Lincoln para pedir que seja duro com o Sul. A legenda diz: "Stoneman protesta
contra a política de clemência para com o Sul, de Lincoln". Refratário ao pedido de
Stoneman, Lincoln mantém sua posição. O vilão irrita-se cada vez mais. O tema da fú­
ria é introduzido. Stoneman retira-se e a seqüência é concluída com o tema America.
O confronto das figuras de Lincoln e Stoneman reforça a caracterização do vilão.
Lincoln é tratado, no filme, como um estadista sábio e clemente, disposto a patrocinar
a reconstmção do Sul de forma digna. Será justamente a morte de Lincoln que permiti­
rá a ascensão de Stoneman e, conseqüentemente, o regime de terror no Sul. A identifi­
cação de Lincoln com o tema America também é significativa na construção do caráter
de sua personagem, já que possui a mesma linha melódica da inglesa God Save the King
(Queen). O tema havia aparecido, pela primeira vez, na seqüência da rendição do Sul.
Além de indicar o momento da rendição como a reunificação do país, ajuda a qualifi­
car Lincoln, reconhecendo-o como soberano inequívoco.
Começa a reconstmção do Sul que será interrompida pelo assassinato de Lincoln.
Nesse momento do filme, parte do acompanhamento musical é original de Breil e par­
te é compilada. Todavia, mesmo a parcela original da música não usa, praticamente, te­
mas recorrentes. A seqüência do assassinato, uma das mais fam osas do film e, é
acompanhada por trechos da abertura da ópera Norma, de Bellini, da canção Hail To The
C h iefe de fragmentos compostos por Breil. O assassinato abre espaço para a ascensão
de Stoneman e seus asseclas. O reflexo desse momento narrativo pode ser sentido clara­
mente na música: são várias seqüências nas quais encontramos, praticamente, apenas
material temático dos vilões. A série se inicia no momento em que Stoneman é avisado
do assassinato. Após o tema de Stoneman, ainda nesta seqüência, ouvimos o mesmo ma­
terial temático usado no assassinato. Há uma breve inserção da família Cameron lendo,
no jomal, a notícia acompanhada por esse mesmo tema. A narrativa retoma, então, para
a casa de Stoneman, apontado pela legenda como "o rei não coroado". Breil elabora uma
intrincada junção de temas musicais na qual todos os leitmotivs dos vilões estão presentes.
A seqüência se inicia pelo tema de Stoneman, que se altema com o quarto fragmen­
to (D) do conjunto temático dos vilões. Silas Lynch chega à casa de Stoneman e ouve-
se o tema dos negros. Lynch é recebido por Lydia Brown, criada de Stoneman. O tema
de Lydia sucede ao dos negros24. Stoneman recebe Lynch e declara sua intenção de tomá-
lo "um símbolo de sua raça", ao som dos fragmentos temáticos dos vilões (A até D), os
mesmos que foram ouvidos durante sua visita a Lincoln. Agora, não há nada que o im­
peça de realizar seus objetivos. Há um corte no tempo e vemos Stoneman doente no apar­
tamento de Elsie. Ele envia Silas ao Sul para organizar os negros para as próximas eleições.
Lynch lança olhares desejosos para Elsie. A transição é feita com o tema de Lydia e fina­
lizada com o tema de Stoneman. Apesar do corte, que separa dois momentos no tempo

24. A personagem de Lydia Brown também é redimensionada na versão de 1933. Na


versão original, seu papel é maior, assim como a importância de seu material temático: são
três fragmentos que, originalmente, faziam parte do material temático dos vilões.
Pantomimas luminosas 109

da narrativa, a unidade do acompanhamento musical faz que sejam entendidos como


partes de uma única ação, na qual um decorre do outro.
Lynch estabelece seu quartel general em Piedmont. A partir daí, começa o confli­
to entre ele e a família Cameron.
A quarta entrada do tema dos negros ocorre no momento em que Ben Cameron e
sua irmã esbarram em um grupo de soldados negros à porta de sua casa. Silas Lynch, ar­
rogante, provoca Cameron, como demonstra a legenda: "A calçada pertence a nós, tan­
to quanto ao senhor, Coronel Cameron".
Stoneman quer acompanhar de perto a transformação do Sul e dirige-se com Elsie
a Piedmont. Sua chegada é acompanhada pelo tema de Elsie, o que põe em destaque o
reencontro de Elsie e Ben, muito mais significativo do que a presença de Stoneman.
A seqüência seguinte é totalmente montada sobre variações do tema de Stoneman.
Ben Cameron, na companhia de Elsie e Stoneman, encontra Lynch e se recusa a lhe dar
a mão. O clima de animosidade entre ambos agrava-se.
Uma legenda indica a transição para uma convenção dos negros, em que Lynch dis­
cursa e Stoneman é o convidado de honra. A música acompanha com uma ponte basea­
da em trêmulos das cordas, terminando com o tema de Stoneman em sua versão original.
A presença dos Stoneman em Piedmont traz à tona não apenas as diferenças polí­
ticas, mas também as contendas românticas de casais que o destino se encarregou de co­
locar em lados opostos da guerra. Elsie e Ben conseguem chegar a um acordo apesar do
desentendimento entre Ben e o pai de Elsie. A seqüência é acompanhada pelo tema de
amor do casal. O mesmo não acontece com o casal Phil Stoneman e Margaret Cameron.
A lembrança das mortes dos irmãos na guerra leva Margaret a rejeitar a tentativa de
reaproximação de Phil. É a última vez que o tema romântico do casal é usado nesta ver­
são do filme. A seqüência de Margaret e Phil é sucedida por outra de Elsie e Ben, inte­
gralmente acompanhada por seu tema romântico. Apaixonados, ambos caminham pelo
bosque e brincam com um pássaro. Sem que percebam, são observados por Lynch.
Chega o dia das eleições. Sob a liderança de Lynch, os negros fraudam a votação.
Lynch, vitorioso, comunica a Stoneman que foi eleito. A vitória de Lynch é acompanhada
por mais uma entrada do tema dos negros. A seqüência alterna planos da casa de
Stoneman, da multidão nas mas e de Lynch, que lança, mais uma vez, seu olhar de in­
teresse sobre Elsie. Começa o regime de terror de Lynch. A próxima seqüência mostra o
relato que Ben Cameron faz dos ultrajes sofridos pelos que não compactuaram com
Lynch. A seqüência é acompanhada por música original de Breil, um tema novo que será
usado mais tarde com a mesma conotação.
A seqüência seguinte mostra a Casa dos Representantes dominada por uma maio­
ria negra. Esta seqüência possui o mesmo tipo de música da anterior, até o momento em
que é aprovado um projeto de lei que autoriza o casamento inter-racial, o que deixa os
brancos indignados. A mesma ponte da seqüência da convenção é repetida aqui, desta
vez como introdução ao tema dos negros. A finalização da seqüência é uma outra pon­
te, baseada no tema de Stoneman.
A partir desse ponto, as seqüências começam a ficar mais intrincadas. As relações
dramáticas intensificam-se e os conflitos são acirrados. O conhecimento do material
110 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

temático musical que o público já adquiriu permite combinações mais ousadas e, por
meio delas, momentos musicais de significação também mais complexa. Uma delas ocor­
re no momento em que Griffith começa a constmir a situação que levará à morte de Flo­
ra Cameron. Tudo começa com Gus, assecla de Lynch, que passa a demonstrar seu
interesse por Flora. A construção musical da seqüência é densa, com alternância muito
rápida de vários temas. O primeiro é o tema dos negros, que se inicia no momento em
que Flora e Elsie deixam o parque e dirigem-se à casa dos Cameron. Gus segue-as à meia
distância. Este tema altema-se duas vezes com o primeiro fragmento (A) do tema de Flo­
ra. As duas encontram Lynch, que as cumprimenta. Ben Cameron assiste a tudo e não
está nada contente. Nesse momento, é inserido, uma vez mais, um fragmento do con­
junto temático dos vilões (B). Ele e Ben Cameron trocam olhares nada afetuosos. O tema
de Lynch se altema com o fragmento de Flora, que está na varanda de sua casa. A alter­
nância corresponde ao corte entre os planos de Lynch e Ben, e o de Flora. Gus chega ao
portão da casa e vê Flora que entra. Nesse ponto, é reapresentado o segundo fragmento
do material temático de Flora. Ben Cameron chega e ordena que Gus se retire da porta
de sua casa. O tema dos negros é novamente apresentado. Lynch vem em socorro de seu
subordinado. Ben entra em casa. Mais uma vez, é apresentado o fragmento temático dos
vilões, que encerra a seqüência.
A articulação entre planos imagéticos e temas musicais gera um resultado ímpar
que só é possível por sua mútua combinação. Os temas dos negros e de Lynch expres­
sam a violência e a falta de caráter dos vilões, situação da qual participam Gus, Lynch e
Ben Cameron. Paralelamente, os temas de Flora expressam sua ingenuidade, pois ela não
percebe o que ocorre à sua volta.
As próximas seqüências desenvolvem-se com uma grande incidência de temas re­
correntes que contribuem para a composição dos momentos críticos da narrativa. O pri­
meiro deles é a criação da Klan. Ben Cameron, desolado pelo modo como o Sul vinha
sendo conduzido pelos políticos negros, medita solitariamente. Um grupo de crianças
negras brinca com um lençol. Duas delas vestem-no como se fossem um fantasma. As
outras crianças assustam-se e isto serve de inspiração para Ben. A angústia de Ben serve
como pretexto para a introdução de dois novos temas: o primeiro deles indicando sua
agonia e o outro ligado ao medo experimentado pelas crianças, que deverá estender-se
aos vilões.
lx>go em seguida, vemos a Klan em sua primeira ação e, em conseqüência, ouvimos
pela primeira vez o seu tema. O tema do medo é reiterado quando molestam um negro,
acusado de "agitador". Este tema se desenvolve, enquanto Lynch é avisado do ocorrido.
Esse desenvolvimento serve de ponte para uma nova versão do tema de Stoneman ouvi­
da no momento em que Lynch relata a ação da nova organização. Esta versão desenvol-
ve-se em uma peça mais longa e com um caráter mais solene. Trata-se da última inserção
do tema de Stoneman no filme. No final da seqüência, Stoneman recrimina Elsie por
seu romance com Ben e mostra-lhe as vestimentas da Klan trazidas por Lynch. Esse m o­
mento é pontuado por uma rápida inserção do tema de Elsie em andamento um pouco
mais lento.
Pantomimas luminosas 111

O relacionamento de Elsie e Ben está abalado. Ela revela o seu conhecimento da


Klan. A seqüência se inicia com frases isoladas que conduzem ao tema romântico, quan­
do Ben tenta reverter a posição de Elsie. Ela o abandona, prometendo não traí-lo. O tema
romântico aparece em sua forma original, exceto pelas frases introdutórias que indicam
o conflito do casal.
Ben revela a Flora o seu envolvimento com a Klan e esta também lhe jura fideli­
dade. A seqüência une o material temático de Flora com o tema da agonia de Ben e o
segundo motivo temático de Elsie. A junção dos temas aproxima Flora do segredo de Ben,
reiterando a fidelidade dos Cameron e indicando que todos enfrentam um inimigo co­
mum. A inserção do tema de Elsie revela que, apesar do rompimento, ela ainda faz par­
te daquele grupo de personagens e que o problema que enfrentam não é apenas deles,
mas também dela, como será revelado na continuação do filme. A aproximação dos temas
de Flora com o do sofrimento de Ben também prepara a seqüência da morte de Flora, na
qual seus temas serão aproximados aos dos vilões, tal como havia ocorrido anteriormen­
te. Tudo isso serve de suporte para que Flora se estabeleça como figura central da narrati­
va: seu martírio é o ápice da dominação dos vilões e o início da redenção do Sul.
A seqüência da morte de Flora, clímax da ação dos vilões, também é construída sobre
temas combinados. Em seu princípio, ouvimos a valsa, terceiro fragmento (C) do tema
de Flora, enquanto ela caminha pelo bosque. Gus segue-a sem que ela o perceba. Um
corte mostra Ben Cameron em casa com sua mãe, a qual demonstra preocupação com
Flora. Há uma mudança para o primeiro fragmento do tema de Flora. Novo corte para
Flora, que ao mesmo tempo observa um pequeno animal e é observada por Gus. Outro
corte, Ben Cameron sai em busca da irmã. Gus aborda Flora. Um corte na música in­
troduz o segundo fragmento do conjunto temático dos vilões, logo seguido pelo tercei­
ro. Gus propõe casamento a Flora, que foge desesperada. Durante a perseguição, ouvimos
um outro fragmento tenso. Entram novamente os fragmentos dos vilões e, igualmente,
o fragmento tenso. Ben tenta alcançar Flora e Gus. Flora tenta escapar subindo por uma
rocha. A tensão cresce. É introduzido um fragmento em movimento ascendente. Na imi­
nência de ser alcançada, Flora salta e o fragmento conclui-se na região grave. Ben vai ao
encontro de Flora, que agoniza. Ele a abraça. O acompanhamento dessa parte é construí­
do sobre variações do motivo do segundo fragmento do tema de Flora.
Na seqüência acima descrita, os temas joviais e ingênuos de Flora são confronta­
dos com os fragmentos dos vilões. No momento da perseguição, o tema de Flora é subs­
tituído por um fragmento mais tenso. Os temas altemam-se sugerindo uma perseguição,
tal como a que é vista na tela. No clímax, quando Flora sobe até o alto da rocha, é apre­
sentado um fragmento muito agitado com as cordas realizando passagens rápidas e re­
petitivas em movimento ascendente. A associação do movimento de notas ascendentes
com a representação da altura, ou movimento ascendente visual, é algo bastante comum
no cinema de todas as épocas.
A concepção de Breil de uma "ópera sem libreto" é bastante desenvolvida nesse
momento. Os temas não são apresentados apenas em sua forma original. Como um co­
nhecedor do princípio do leitmotiv, Breil finaliza a seqüência após a morte de Flora com
112 Sygkhronos.A form ação da poética musical do cinema

uma passagem melancólica baseada em um de seus fragmentos temáticos, originalmente


alegre e ingênuo.
Começa a caçada a Gus que será musicalmente construída a partir do tema dos ne­
gros. Pela primeira vez, o tema aparecerá transformado e alternado com o motivo mu­
sical para o medo. A seqüência começa com Gus chegando ao bar White Arm Joe's e é
sonorizada apenas pelos tímpanos (os mesmos que participam da instrumentação do
tema) marcando um pulso e pontuando rapidamente a morte de Flora. A primeira fra­
se do tema é apresentada e se altema com o tema do medo, paralelamente ao corte que
mostra os homens se organizando para caçar Gus. A primeira frase do tema é repetida e
novamente alternada com o outro tema. Acordes com pausas marcam a saída do ho­
mem que irá até o Joe's. Eles preparam o momento de tensão que se cria com a sua che­
gada. Enquanto pergunta por Gus, ele é acompanhado apenas pelos tímpanos, em uma
passagem bem mais lenta, mesclada de trêmulos. A estes, acrescentam-se as cordas em
pizzicato, perfazendo a mesma figura e concluindo, igualmente, em um longo acorde em
trêmulo. Escondido, Gus observa o homem que parece ter sido enganado, mas Joe o pro­
voca e, após um rápido silêncio, explode uma grande briga em que o tema é transformado
por meio do desenvolvimento seqüencial de seus motivos. Esta transformação cria a ten­
são necessária deste momento. A alternância com o tema do medo revela que os heróis
começam a reverter a situação. Gus é capturado e morto pela Klan, que larga seu corpo
em Piedmont. Lynch encontra o corpo e, mais uma vez, ouve-se o terceiro fragmento te­
mático dos vilões. Desta vez, contudo, ele vem precedido por uma inserção do tema do
medo, indicando que eles já não podem agir impunemente. A Klan prepara-se para agir
novamente. Seu tema é combinado com um dos fragmentos do material temático de Flo­
ra. Lynch, enfurecido e sedento de vingança, ordena a prisão do Dr. Cameron, pai de Ben,
acompanhado pelo tema da fúria dos vilões. O Dr. Cameron é preso em sua casa. A se­
qüência é veiculada por uma combinação do tema que havia servido para acompanhar
a narrativa de ultrajes feita por Ben Cameron. Fica estabelecida uma ligação, portanto,
entre a prisão do Dr. Cameron e a série de atos hosús promovida pelos vilões, desde sua
ascensão ao poder. Esse tema é mesclado a fragmentos do tema dos abolicionistas do iní­
cio do filme. A música é rica em trêmulos e glissandos, bem ao gosto do cinema mudo
nas situações de tensão.
Todo o desenvolvimento dessa ação se dá quase que exclusivamente com o tema dos
negros. Margaret pede a Elsie que intervenha junto a Stoneman a fim de que o Dr. Cameron
seja libertado. O tema aparece alternado a fragmentos do tema do medo e é desenvolvi­
do rapidamente, tal como ocorrera um pouco antes na perseguição a Gus. A variação te­
mática permite, aqui, manter a tensão necessária à ação, conduzindo-a ritmicamente e
ajudando a criar o impacto que esse momento decisivo da narrativa requer.
Com a ajuda de seus criados, os heróis conseguem fugir em uma carroça e são per­
seguidos por soldados. Enquanto isso, os negros poderosos estão reunidos com Lynch
usufruindo dos prazeres do poder. Toda a composição com o material temático apresen­
tada na prisão do Dr. C am eron é repetida: o tem a do ultraje, fragm entos dos
abolicionistas e o tema dos negros. Aqui, além de levar adiante a tensão estabelecida an­
teriormente, a música unifica a informação dada pela montagem que altema os planos
Pantomimas luminosas 113

externos da perseguição com o interior da casa de Lynch. Cada ação é totalmente inde­
pendente da outra, mas a música faz que elas se tomem um único momento na narrativa.
É um caso no qual a música não acompanha a fragmentação da montagem, mas con­
trapõe-se a ela, promovendo unidade. Os fugitivos são abrigados por dois veteranos em
uma cabana. Elsie vai até Lynch em busca de ajuda. Ele lhe propõe casamento e, dian­
te de sua recusa, a aprisiona. Mais uma vez, é repetida toda a música da seqüência ante­
rior. Lynch ordena que seus subordinados preparem o casamento à força. Pela primeira
vez, a música explicita o conflito aproximando o tema dos negros do da Klan. Ao final,
ocorre a primeira inserção do fragmento de A valquíria, de Wagner, sempre citado quando
se comenta a música de O nascimento de uma nação.
O domínio dos vilões está chegando ao fim. A última inserção do tema da fúria
ocorre na chegada de Stoneman à casa de Lynch, onde este o informa de suas intenções
para com Elsie. A seqüência altema os planos da discussão entre Stoneman e Lynch e o
da Klan, que se prepara para o derradeiro ataque. A seqüência final mostra as tropas da
Klan aproximando-se de Piedmont, cujas mas estão tomadas por uma multidão em pol­
vorosa. Alternam-se planos da casa de Lynch onde Elsie e Stoneman estão aprisionados.
A seqüência é acompanhada por diversos fragmentos sinfônicos.
Sob o tema das Valquírias, a Klan chega à cabana para resgatar os Cameron e tam­
bém à casa de Lynch. Libertados os oprimidos, o filme se encerra com o desfile dos he­
róis ao som de Dixie. A aproximação entre a Klan e o tema de Wagner confere aos heróis
de Griffith a condição de heróis míticos, deificados e, naturalmente, brancos como os
heróis nórdicos.
Após O nascimento de uma nação, o cinema permaneceria ainda por doze anos
como arte muda acompanhada por música. A compilação e a partitura original convi­
veram até o advento do som sincronizado. O sonho de Pilar Morin, expresso na epígra­
fe deste capítulo tornou-se uma realidade, mas é bem possível que nem mesmo ela
pudesse supor que tudo acabaria tão rapidamente e de modo tão brusco.
A mentira de Don Lockwood não deixou de ser uma mentira, mas o cinema con­
seguiu desenvolver-se como linguagem e conquistar o status de arte, inclusive no plano
teórico, com os trabalhos de profissionais como Eisenstein.
Partindo quase que exclusivamente de recursos não-verbais, desenvolveram-se ou­
tras dialogias, possibilitando a constituição de uma nova dramaturgia. A manipulação dos
recursos técnicos deu suporte à organização de procedimentos que permitiriam ao cine­
ma consolidar-se como forma narrativa. Paralelamente, desenvolveu-se uma nova
polifonia, diferente da puramente musical e também de outras polifonias que já ha­
viam sido exploradas nos espetáculos ao vivo. A música inseriu-se definitivamente na
dramaturgia e no modo narrativo do cinema, tomando-se fator imprescindível à cons­
trução fílmica.
A música associada às imagens em movimento e às múltiplas relações que se esta­
belecem entre elas confere ao filme uma dimensão poética que o simples registro rea­
lista da imagem jamais poderia atingir. Essa característica permanecerá ao longo de toda
a história do cinema: a música como convenção da poética cinematográfica.
114 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

Curiosamente, essa consciência já estava presente no discurso de Don Lockwood


que começava a sua fala com a seguinte frase:

... qualquer história da minha carreira deveria incluir meu mais velho amigo,
Cosmo Brown. Nós fomos crianças juntos, nós crescemos juntos, nós traba­
lhamos juntos...

Mas Cosmo não é um ator como Don, ele é um músico e como tal participará
como personagem do filme. Ainda que tenha grandes idéias e esteja sempre pronto
a executá-las, Cosmo permanecerá para sempre anônimo. Ao contrário de Don, não
é sua função aparecer na tela. Contudo, Don jamais teria sido o mesmo sem Cosmo,
da mesma maneira que o cinema, tal como o conhecemos hoje, não poderia existir
sem a música.
4
P l a y in g o n t h e S c r e e n

There can, however, be but little doubt that in the perhaps not far distant future,
instruments will be constructed that not only reproduce visible actions simultaneously
with audible words, but an entire opera with gesture, facial expressions, and songs of
the performers, with all the accompanying music, will be recorded and reproduced by
an aparatus, combining the principles of the zoopraxiscope and the phonograph, for the
instruction or enterteinment of an audience long after the original participants shall
have passed away.
Edward Muybridge

"Wait a minute! Wait a minute! You ain't heard nothing yet!"


Esta foi a primeira fala sincronizada do cinema comercial, pronunciada por Jack
Robin (Al Jolson) aproximadamente aos quinze minutos do filme O cantor de jazz [The
Jazz Singer, EUA, 1927), imediatamente após cantar Dirty Hands, Dirty Face. O próprio
fato de a fala e a canção que a antecede ocorrerem nessa altura do filme, demonstra que
O cantor de jazz, além de ser o primeiro filme sonoro, possuía uma estratégia cuidadosa
para apresentar o novo recurso ao público.
Antes de se arriscar a realizar um filme sonoro, a Warner Brothers havia testado o
sistema Vitaphone\ alguns meses antes, no filme Don Juan (Don Juan, EUA, 1926). O filme
serviu como mero teste para o sistema de som, pois em nada diferia de qualquer outro
filme mudo do pehodo: não há o recurso de diálogos nem a incorporação de sons de ca­
ráter naturalista. Don Juan é um filme mudo, cujo acompanhamento musical foi grava­
do para ser executado em sincronia com o filme. Assim, esse filme não introduziu nada

1. Sistema desenvolvido pela Bell Telephone, no qual o som, gravado em disco, é sin­
cronizado mecanicamente ao filme.
116 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

que representasse uma mudança significativa nas práticas de então, ao contrário, em cer­
to sentido, pode-se dizer que se trata de um filme mudo piorado, posto que a qualidade
da música executada ao vivo seria bem superior à da gravação. São estes os motivos pe­
los quais Don Juan jamais é lembrado como o primeiro filme comercial com som sin­
cronizado, apesar de tê-lo sido de fato. Isto demonstra o quanto a incorporação do som
ao filme transcende as questões puramente técnicas. A possibilidade de manipulação do
universo sonoro, em toda a sua variedade, implica uma transição estética do cinema de
largas proporções. Resolvidos os aspectos técnicos, era necessária apenas a mescla de ou­
sadia e coragem para realizar a grande virada. E como não há nada melhor do que as dí­
vidas para alimentá-las, o estúdio que se lançou nesta empreitada foi, justamente, o que
estava à beira da falência: Warner Brothers.
A estratégia arquitetada para apresentar o cinema sonoro ao público pode ser facil­
mente percebida em O cantor de jazz: o espertador é conduzido desde o início do filme
a um crescendo de expectativa até chegar à primeira seqüência com som sincronizado.
Mais que isso, o espertador é realmente enganado ao longo desses quinze minutos com
falsas situações, supostamente sonorizadas, que aumentam ainda mais o impacto da pri­
meira canção verdadeiramente sincronizada.
O cantor de jazz segue rigorosamente as convenções do cinema mudo: pantomima,
legendas e ausência total de diálogos. Há somente construções com imagens em movi­
mento acompanhadas por música. Primeiro, são tomadas externas, pouco depois, um
corte leva ao interior da casa do cantor Rabinowitz, que discute com sua mulher a res­
peito de seu filho. Vê-se o diálogo de ambos, cujos planos estão intercalados por legen­
das, correspondendo a suas falas e nada de som, exceto pelo acompanhamento musical.
Imaginemos a situação do público que se dirigiu ao cinema, em 1927, para assistir
a algo totalmente novo: um filme sonoro. Até aqui, o que ele viu foi, indiscutivelmente,
um filme mudo. Sua expectativa não foi satisfeita de imediato e é de se supor que todos,
a essa altura, já esperavam ansiosamente pelo momento em que as personagens ganha­
riam o dom da fala. É nesse momento que um corte nos leva a uma casa de espetáculos
de aparência popular, em que o pianista anuncia (por meio de uma legenda): "Jack
Ragtime está aqui. Dêem-lhe uma chance!" Vemos um menino meio encabulado tomar
a frente do palco e começar sua canção. Nesse momento, o público de então poderia di­
zer: "Ah, isso é o cinema sonoro!" Errado. A seqüência não estava sincronizada. O que
é mostrado ao público é apenas a capacidade de registrar a voz com o novo recurso, mas
ela não se encaixa nos movimentos da imagem visualizada. O jogo com o espectador se
estabelece: o jovem cantor é mostrado sempre a uma distância razoável e em planos mui­
to curtos que não permitem que se fixe o olhar nele. A impressão é de que a sincronia
entre som e imagem ainda não está resolvida. Talvez o público tenha pensado: "Ah, é isto,
então, o tão anunciado cinema sonoro?" A expectativa do público ainda não foi satisfei­
ta, adiando-se o grande momento.
A próxima seqüência cantada também possui problemas de sincronia, pois refor­
ça a impressão causada pela canção do jovem cantor no início do filme. Ela ocorre logo
após a briga entre o jovem Jack e seu pai. Inicia-se a cerimônia na sinagoga e o cantor é
o solista, acompanhado de um coro vultoso. Vemos o cantor de frente, em plano médio.
Playing on the screen 117

Os movimentos de seus lábios são muito próximos às silabas ouvidas, mas ainda há uma
certa artificialidade na sincronia. Quando esse plano é alternado com outros, especial­
mente com aquele que mostra os homens que o acompanham cantando, perde-se total­
mente a sincronia. Mais uma vez, há uma idéia falsa do que seja o cinema sonoro.
Um pouco adiante, encontra-se a terceira demonstração explícita de falta de
sincronia. Uma transição iniciada por uma legenda, que indica: "Anos mais tarde e a três
mil milhas de casa...", serve para introduzir a seqüência no café, onde Al Jolson cantará
pela primeira vez. Próximo ao final da seqüência vemos um plano fechado na superfície
de uma mesa, sobre a qual há sete pares de martelos que, supostamente, batem no tem­
po da música. Seu som está perfeitamente sincronizado com a música, mas a imagem
não possui sincronia alguma. Essa falta de sincronização entre som e imagem parece pre­
meditada, pois valoriza muito a entrada de Al Jolson cantando. São três insinuações, mas
a terceira é gritante. Qualquer um que quisesse ocultar um problema técnico relativo à
sincronia não utilizaria um plano fechado como o dos martelos.
Chega, enfim, o grande momento. A seqüência se inicia com Jack Robin fazendo
sua refeição em um café ao lado de um amigo. O gerente fala rapidamente com ele e di­
rige-se ao palco. Vê-se uma legenda: "Jack Robin vai cantar Dirty Hands, Dirty Face. Di­
zem que ele é bom. Vamos conferir". Esta legenda inaugura uma série de textos que se
referem tanto à construção dramática do filme quanto às novas técnicas sonoras do ci­
nema. Quando o gerente diz: "Dizem que ele é bom. Vamos conferir.", ele está se refe­
rindo à personagem Jack Robin, mas, também, ao cinema sonoro, que estava, de fato,
sendo conferido naquele momento. Al Jolson era um cantor consagrado. Todos sabiam
que se havia algum risco de algo falhar não seria ele e, sim, o sistema de sonorização do
filme. Até aquele momento, a sonorização do filme não tinha sido grande coisa. É claro
que já fora possível ouvir uma voz cantando, mas nada que justificasse tanto alarde. Uma
última insinuação contrária é dada pelos aplausos no café, absolutam ente fora de
sincronia. Al Jolson dá a mão para seu companheiro de mesa e vê-se mais uma legenda:
"Deseje-me sorte, amigo. Eu vou precisar". Esta poderia ser uma fala tanto de Jack Robin
quanto dos irmãos Warner. Mas ela é, acima de tudo, a voz do próprio cinema sonoro,
do som sincronizado, que finalmente é posto à prova.
E, então, faz-se a mágica. Al Jolson dirige-se ao palco. Seu caminho é acompanha­
do pela introdução da orquestra. Ele junta as mãos e despeja sua voz:
Wonderful tales are hard to find
some folks have one, some folks have none.
I was alone for years but fate was kid
A nd in the end, sent me a friend
Although he's not much higher than my knee
still he's the greatest thing on Earth to me...
Como que por milagre, tudo se encaixa perfeitamente. Os movimentos dos lábios
de Jack Robin, as sílabas da canção, até mesmo os instrumentos, que vemos em segun­
do plano atrás de Jack, correspondem perfeitamente ao que ouvimos. O impacto deve
ter sido imenso, especialmente pelo que havia sido apresentado em termos de som até
então. Tanto o intérprete quanto a música não poderiam ser mais adequados: Al Jolson
218 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

por possuir um estilo muito pessoal, pelo hábito de cantar determinadas passagens qua­
se falando, em uma espécie de recitativo adaptado ao universo da canção popular; e Dirty
Hands, Dirty Face, ao permitir ao intérprete esse tipo de tratamento em um andamento
lento e uma linha melódica com pouca atividade rítmica, quase falada.
A idéia era, justamente, explorar esse tipo de interpretação, que não permite ne­
nhum truque de sincronia: ou está junto, de fato, como se assistíssemos à execução ao
vivo ou se percebe de imediato. E, não resta dúvida, Diity Hands, Dirty Face está em
sincronia. É nesse momento que Jack, diante do espanto geral, pronuncia a famosa fra­
se: "Esperem um minuto! Esperem um minuto! Vocês não ouviram nada ainda!" Em
seguida ele oferece: "Vocês querem ouvir Toot-Toot Tootsie?". Faz sua combinação com o
pianista e começa a cantar.
Toot-Toot Tootsie tem características opostas às de Dirty Hands, Dirty Face. Seu pul­
so é muito bem definido, seu andamento rápido e sua atividade rítmica intensa. Al Jolson
a interpreta de forma bem regular, sem alterar em momento algum seu pulso. A esco­
lha de Toot-Toot Tootsie permitiu a demonstração de outros aspectos do som sincroniza­
do que Dirty Hands, Dirty Face não permiúa: o andamento rápido, a dança, o movimento
gestual do corpo do cantor em sincronia com a música cantada, o assobio2 e, até mes­
mo, algumas poucas palmas em pontos estratégicos da música.
A próxima intervenção com som sincronizado mostra Jack assistindo ao recital de
um cantor de músicas sacras hebraicas. Ao ouvir as músicas que trazem à tona seu dile­
ma interior, ele se emociona. Quanto ao som propriamente dito, a seqüência não apre­
senta novidade, a não ser pelo fato de o cantor atuar sem acompanhamento. Nessa parte
do filme, temos a impressão que se tentam demonstrar as possibilidades do som sincro­
nizado, pois as seqüências possuem uma correspondência exata com as do início do fil­
me, em que o som não estava sincronizado. Assim, a seqüência em que Jack canta Dirty
Hands, Dirty Face e Toot-Toot Tootsie é paralela à seqüência do início com Jack, ainda
menino, cantando, porém, sem sincronia. Da mesma maneira, a seqüência do recital de
música sacra pode ser comparada àquela em que o pai de Jack canta uma música seme­
lhante, mas sem sincronização sonora.
Um momento sonoro importante do filme é o reencontro de Jack com sua mãe.
De volta a Nova York, às vésperas de sua estréia na Broadway, ele volta à casa dos pais e é
recebido pela mãe. Jack lhe canta Blue Skies, de Irving Berlin, uma das canções que apre­
sentará em seu espetáculo. Ocorre, então, outro momento histórico do cinema: o pri­
meiro diálogo em sincronia com as imagens. É bem verdade que não se trata,
propriamente, de um diálogo. O que vemos é, praticamente, um monólogo de Jack, en­
quanto sua mãe (Eugenie Besserer), visivelmente pouco à vontade com a ação dialoga­
da, emite alguns monossílabos e frases curtas desconexas. Curiosamente, o primeiro
diálogo do cinema não é um diálogo romântico, mas de amor filial: Jack a beija, propõe
levá-la para outra casa, comprar-lhe um vestido de seda preta e outro rosa, bem como,

2. No assovio há uma ousadia, um plano fechado que não está exatamente em


sincronia, mas não incomoda, pois não há movimento visível que denuncie o fato.
Playing on the screen 119

se não bastasse, levá-la de "vapor" a Coney Island para um passeio no túnel do amor, onde
irá abraçá-la e beijá-la. Jack retoma sua canção até a chegada do pai (Warner Oland), que
interrompe o caloroso momento com um grito: "Pare!", única fala do pai de Jack em
todo o filme, expressão simbólica da relação entre ambos. No diálogo que se segue en­
tre pai e filho, o filme volta a ser mudo.
No dia do ensaio geral de seu espetáculo, Jack é visitado no teatro por sua mãe que
implora que ele visite o pai doente e cante na sinagoga. Usando a maquiagem caracte­
rística dos Minstrel Shows\ Jack vai ao palco dividido entre o teatro e a família. Sua mãe
o vê cantar e sua canção é, justamente, uma elegia a ela.
Jack terá que decidir: ou estréia seu espetáculo na Broadway, realizando o sonho de
sua vida, ou canta na sinagoga e se reconcilia com o pai à custa de sua carreira. Ele opta
pela fidelidade às tradições e canta na sinagoga. Seu pai, moribundo, ouve-o em seu lei­
to. Mais uma vez, a construção permite uma leitura que transcende à própria narrativa.
Jack é o novo, que ocupa o lugar do velho, cujo destino inevitável é a morte. Jack é o cantor
que canta em sincronia com as imagens e fala com palavras audíveis, ao contrário do pai,
capaz apenas de falar por meio de legendas. Jack é o cinema sonoro, o pai, o cinema
mudo. No momento em que ouve a voz de seu filho, ele o perdoa e morre.
É interessante notar como o cinema, no momento de incorporar o som sincroni­
zado, remete-se às suas origens como espetáculo. Jack é um cantor que pertence ao con­
texto do miísic hall ou do vaudeville (no sentido americano do termo), que segue a tradição
dos minstrel shows, um dos antecessores do musical americano. Jack possui a mesma for­
mação profissional de Don lx>ckwood. A estrutura do filme, por sua vez, lembra o mo­
delo da opera pasticio, em que se montava uma estrutura dramática apenas para justificar
a sucessão de árias. Da mesma forma, O cantor de jazz, cujo som sincronizado é a gran­
de vedete, apresenta um tipo de progressão dramática organizada em tomo da sucessão
de números cantados, que servem para demonstrar a eficiência do sistema Vitaphone. O
conjunto de intervenções cantadas ilustra o conflito de Jack que, ao optar por ser um jazz
singer, jamais consegue deixar para trás sua origem hebraica. Desse modo, os temas po­
pulares altemam-se com os cantos hebraicos tradicionais. Em nenhum momento, o Jack
jazz singer irá impor-se a ponto de superar o Jack cantor. A ligação de Jack com sua mãe
é também levada ao extremo nas canções, sobrepondo-se, inclusive, ao par romântico
formado por Jack e Mary Dale (May McAvoy). Jack canta três canções para sua mãe e
nenhuma para Mary. Aliás, em nenhum momento a relação dos dois é mostrada como
românúca. Mary seria meramente uma mentora de Jack no mundo artístico não fosse
pela seqüência no camarim antes do ensaio geral, único momento em que ambos são
mostrados em um diálogo íntimo. Este diálogo apresenta Jack expondo a Mary o confli­
to que dilacera sua alma. Mary argumenta, tentando convencê-lo a não destruir sua car­
reira, ao que ele responde: "Você está certa. Minha carreira significa mais do que qualquer
coisa para mim". Uma única frase pronunciada por Mary serve, a um só tempo, para in­
dicar que seu interesse por Jack não é apenas profissional e, paradoxalmente, destrói qual­

3. Espetáculos nos quais os artistas pintavam seus rostos de negro.


120 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

quer possibilidade de enlace do par romântico. Mary pergunta: "Mais do que eu?" E Jack
responde: "Sim". Não há nem som sincronizado para o "sim" nem legenda; a informa­
ção vem apenas da imagem, mas é o suficiente para inviabilizar o par romântico.
O acompanhamento musical da porção muda de O cantor de jazz segue o método
tradicional de compilação e em nada difere da maior parte da produção do período. Há
recorrências temáticas como, por exemplo, a citação de My Mammy e do tema do Kol
Nidre na seqüência do camarim anteriormente descrita.
Um outro aspecto a ser observado em O cantor de jazz é o das limitações técnicas
impostas pelo uso do som sincronizado. A gravação do som, então obrigatoriamente feita
ao vivo, criava uma série de problemas para os realizadores de filmes. Para evitar que os
ruídos das câmeras fossem captados pelos microfones, a solução foi encerrá-las em ca­
bines isoladas. Porém, tal procedimento impedia o movimento de câmera. Além disso,
a montagem é também bastante discreta. Tais características podem ser notadas nas se­
qüências cantadas de O cantor de jazz. Jack é mostrado sempre no mesmo plano. Em al­
guns momentos, há uma alternância de planos mostrando o cantor em outro ângulo,
como ocorre na seqüência do ensaio geral quando vemos Jack de lado, do ponto de vis­
ta da coxia. Contudo, nesses momentos não há sincronia, tanto que os planos são mui­
to curtos para que seu efeito não resulte em anticlímax. Problemas desse tipo já podiam
ser resolvidos pelo uso do play-back\ que permitiu a filmagem de musicais no período
imediatamente posterior à adoção do som sincronizado.
Se, por um lado, são as limitações técnicas que fazem com que O cantor de jazz seja
um filme híbrido (parte sonoro, parte mudo), por outro, deve-se reconhecer que as con­
cepções estéticas do cinema mudo é que ditam as regras para a incorporação do som. A
ênfase nas canções de Al Jolson demonstra que houve uma aposta na via musical e não
da fala pura e simples, ainda que a possibilidade do diálogo tenha causado grande furor
no público. As poucas intervenções de som sincronizado foram reservadas ao canto; fora
delas não existe preocupação em apresentar diálogos sincronizados e a legenda é usada
abundantemente, sem nenhum constrangimento.

O R e a p r e n d iz a d o do C in e m a

Na época, houve um grande questionamento por parte de artistas, teóricos e críti­


cos, a respeito das implicações do uso do som nos filmes. A resistência ao som foi mui­
to grande, como podemos notar na "Declaração", de Eisenstein, Pudovkin e Alexandrov.
A idéia do som usado com função naturalista é uma das mais condenadas, não apenas
na "Declaração", mas em vários trabalhos, tal como o de René Clair:

O emprego alternado da imagem de um sujeito e do som produzido por esse


sujeito - e não o seu emprego simultâneo - é o que produz os melhores efeitos do
cinema sonoro e falado. O mais provável é que esta primeira regra, que se desprende

4. Técnica usada na filmagem de musicais. A música é gravada com antecedência e exe­


cutada durante a filmagem, ou seja, os atores sincronizam sua ação com a música.
Playing on the screen 121

do caos da nascente técnica, se converta em uma das leis da técnica no futuro. (Apud
Mitry, 1984:107)

Ou este outro, de André Levinson:


Ao que já se fez visível ou sensível mediante a imagem, a palavra e o ruído não
acrescentam nada ou quase nada. E o supérfluo diminui forçosamente o efeito! Di­
zer o mesmo duas vezes e de duas formas constitui um pleonasmo.
Exemplo: As irmãs Mahoney em Broadway Melody estréiam no music hall: de­
pois de cantarem e dançarem, adiantam-se para a saudação. (...) Vê-se toda a sala
levantar-se, como [se fosse] um único homem e aplaudir, mas a trilha sonora nos
faz ouvir o ruído dos aplausos. Disso resulta que esse ruído real é menos efetivo do
que sua sugestão visual. (Apud Mitry, 1984:108)

Hoje, mais de setenta anos após o advento do som sincronizado, percebe-se que es­
sas críticas ainda se situam no universo do cinema mudo. Nunca se fala de música, mas
apenas de diálogos e ruídos. A música, sendo uma das convenções do cinema mudo, não
era vista como um problema. A grande novidade, aquilo que causava polêmica, era a in­
corporação da fala. A possibilidade de os atores falarem gerou o receio de que os recur­
sos de linguagem específicos do cinema, assim como as técnicas de narrativa visual
minuciosamente elaboradas no período mudo, fossem suplantados por outros menos
cinematográficos. Havia o temor de que a utilização do som para compor a narrativa ci­
nematográfica desmontasse o complexo de códigos não-verbais que formavam o cine­
ma, ou seja, de que este se tomasse um "teatro filmado". Havia também "o perigo" de
que o som provocasse uma interferência negativa nas imagens, aumentando seu grau de
realismo, o que poderia diminuir a força poética das constmções imagéticas.
O temor de utilizar o som, mesmo desconsiderando o preconceito envolvido na
questão, era corroborado por suas dificuldades técnicas. Ao contrário do que se poderia
esperar, o som apresentou-se, neste primeiro momento, como um obstáculo à realiza­
ção em cinema. O sistema era ainda muito primitivo e não havia recursos técnicos de
dublagem e mixagem. Os diálogos eram gravados ao vivo, em som direto, impedindo os
movimentos de câmera. Enfim, o som implicava uma nova forma de fazer cinema, tanto
nos aspectos técnicos quanto estéticos.
O cantor de jazz reflete esse momento. O filme é seccionado: os números musicais
formam a porção que corresponde ao novo estágio do cinema, enquanto todo o resto é
tratado como um filme mudo. Sabia-se fazer filmes mudos, mas não os sonoros e o som
não permitia uma grande flexibilidade de tratamento que correspondesse aos anseios da
criação artística. Limitado em si mesmo, o som limitava também as construções com
imagens. Assim, ou se optava pelo som naturalista e sincronizado dos diálogos e ruídos
ou pelas seqüências de imagens acompanhadas de música, sem diálogos ou ruídos.
Para a música de cinema, esse não foi um período dos mais férteis. A grande novi­
dade era a palavra falada, sobre a qual se concentrava a estratégia da indústria para atrair
as multidões. O que o público queria eram os Talking Pictures, ou seja, que fosse mostra­
da a palavra falada, os atores dialogando, somado aos sons de passos, portas, automóveis,
trens, explosões. A combinação de diálogos, sons naturalistas e música implicava mano­
bras técnicas dispendiosas e de eficiência duvidosa.
122 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

O cinema viveu, então, por alguns anos, um período híbrido em que, embora ofi­
cialmente sonoro, ainda não era capaz de explorar este universo em sua vastidão e rique­
za de possibilidades. Ironicamente, também não podia valer-se de toda a sua habilidade
em manipular as imagens em movimento. Para que utilizasse seus recursos mais sofis­
ticados ainda era necessário fazê-lo nos moldes do cinema mudo.

O Filme "Parcialmente Sonoro"

Um filme característico desse período híbrido é Chantagem e confissão (Blackmail,


Reino Unido, 1929), primeiro filme sonoro de Alfred Hitchcock. Segundo o próprio
Hitchcock, os produtores tinham a intenção de realizar um filme mudo, à exceção do
primeiro rolo. O filme seria lançado como "parcialmente sonoro". Hitchcock, contudo,
antecipou-se aos produtores e, partindo do princípio de que eles mudariam de idéia, con­
cebeu o filme como sonoro: "Utilizei, portanto, a técnica do cinema falado, mas sem o
som. Graças a isso, quando o filme estava terminado, pude opor-me à idéia de um 'par­
cialm ente sonoro', e deram-me carta branca para rodar novamente certas cenas"
(Truffaut, 1984:44).
O filme narra a história de Alice White (Anny Ondra), jovem namorada de Frank
Webber (John Longden), detetive da Scotland Yard. Alice conhece um pintor (Cyril
Ritchard) que tenta seduzi-la em seu ateliê. Não sendo bem-sucedido, toma-se violento.
Alice reage e o mata com uma faca. Um homem que seguia o pintor identifica Alice e
apodera-se de uma de suas luvas. Frank é designado para investigar o caso e encontra a
outra luva, encarregando-se de ocultá-la de seus colegas. Alice passa a ser chantageada
pelo homem, sobre quem, ironicamente, as suspeitas recaem e que é identificado pela
senhoria do pintor. Perseguido pela polícia no interior do British Museum, ele cai da
cúpula e morre.
A seqüência inicial do filme narra uma ação típica de detetives e é integralmente
muda: a concepção estética do cinema mudo revela-se também na música. A seqüência
é integralmente acompanhada por uma peça musical construída a partir de um único
tema, sendo que alguns interlúdios ocorrem nos momentos de tensão, com material
musical contrastante. A seqüência apresenta, também, alguns ruídos e vozes, que não es­
tão sincronizados.
O tema musical inicia-se nos créditos iniciais e, sem corte, continua na primeira
seqüência do filme, mostrando uma viatura policial que inicia uma caçada a um foragi­
do. O tema, bem característico no cinema mudo, é de um tipo normalmente identifi­
cado nas antologias e planilhas por agitato ou hurry. A música apresenta grande atividade
rítmica, utiliza figuras pontuadas e movimentos rápidos, pequenos glissandos, os quais
estabelecem o caráter agitado da peça, compatível com a urgência da perseguição e com
o sentido de velocidade da viatura policial. Quando a viatura chega ao seu destino, a mú­
sica se toma menos agitada, o movimento é refreado, e podemos ouvir o som da porti­
nhola do carro e dos homens saltando, mas não se trata de ruído sincronizado.
Os homens entram na casa, onde se esconde o procurado. Nesse momento, o
acompanhamento musical muda abruptamente do agitato inicial para um misterioso. As
Playing on the screen 123

cordas, em pizzicato, executam uma linha baseada no motivo do tema inicial. O miste­
rioso acompanha os policiais escada acima. Há um momento de suspense quando o per­
seguido percebe que está prestes a ser capturado. Ele tenta pegar sua arma e a música
rompe com o misterioso por meio de um tutti, forte e tenso, que reconduz ao tema ini­
cial. Uma outra variação do tema é apresentada enquanto o prisioneiro se veste. As cor­
das, não mais em pizzicato, dialogam com as madeiras, as primeiras fraseando sobre um
motivo de notas ligadas e as segundas pontuando com acordes destacados.
Os policiais dirigem-se à Scotland Yard acompanhados pelo tema em sua forma
original. Lá chegando, é apresentada uma outra variação, mais discreta, que acompanha­
rá as situações menos intensas. A tensão é retomada no interrogatório do prisioneiro com
outra variação do tema. Nesse caso, a tensão é obtida pela fragmentação do tema em fra­
ses curtas, alternadas com pausas.
A música da seqüência seguinte, na sala de acusação, baseia-se na variação da che­
gada dos detetives. Um detalhe digno de nota é a pontuação do diálogo silencioso entre
o prisioneiro e o policial que o acusa. A última seqüência do trecho mudo do filme mos­
tra o prisioneiro sendo levado à cela. A variação do tema musical apresenta um motivo
descendente sob o qual será selado o destino do homem.
Os detetives voltam à sua rotina. Caminham pelos corredores e conversam des-
preocupadamente. Para acompanhar essa mudança de intenção na narrativa, o tema mu­
sical é apresentado em uma variação mais alegre. Enquanto caminham pelos corredores,
ouvimos seu diálogo que, depois, se mistura ao burburinho do banheiro dos policiais.
Contudo, o som não é sincronizado: trata-se de uma sobreposição artificial de ruídos a
um filme mudo.
Nesse ponto, Chantagem e confissão deixa de ser um filme mudo e se transforma em
sonoro. A mudança é gritante e pode ser percebida sem muito esforço. Os dois detetives
passam por uma porta, a música cessa imediatamente e ouvimos as vozes do companhei­
ro de Frank e de Alice. Sobre esta última, vale a pena lembrar que não se trata da voz da
atriz, mas de uma "voice double", como relata o próprio Hitchcock:

A atriz alemã, Anny Ondra, mal falava inglês e, como a dublagem tal como é pra­
ticada hoje ainda não existia, contornei a dificuldade apelando para uma jovem atriz
inglesa, Joan Barry, que ficava em uma cabine colocada fora do enquadramento e reci­
tava o diálogo diante de seu microfone enquanto a Srta. Ondra fazia a mímica das pa­
lavras. Então, eu acompanhava o desempenho de Anny Ondra, ouvindo as entonações
de Joan Barry com a ajuda de auscultadores nos ouvidos. (Truffaut, 1984:44)

Pode-se perceber o resultado dessa primitiva mistura de dublagem e play-back, mas


não parece tão artificial quanto as inserções sonoras não-sincronizadas.
Apesar das dificuldades técnicas enfrentadas, naquele tempo, para a sonorização,
Chantagem e confissão apresenta uma exploração variada das ainda restritas possibilida­
des sonoras. O som ambiente, inclusive com música, pode ser encontrado na seqüên­
cia do Café onde Alice e Frank se desentendem. O diálogo está em primeiro plano na
perspectiva sonora. Em segundo plano, ouvimos o som de vozes e uma música muito tê­
nue, que ajudam a compor o ambiente do Café. A música, nesse caso, não tem uma função
124 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

temática nem acrescenta qualquer informação específica à narrativa ou ao conjunto da


trilha musical. Cumpre apenas uma função de ambientação.
À exceção dessa passagem no Café, o filme segue à risca a prática sonora do perío­
do imposta pelas limitações técnicas, quando há música, não há sons naturalistas sin­
cronizados; quando há sons naturalistas em sincronia, não há música. Quando Alice,
após alguma relutância, decide subir em companhia do pintor ao seu ateliê, há uma in­
tervenção musical de caráter não-temático, que acompanha o caminho de ambos esca­
da acima. Não há falas nem sons de passos, apenas a música, um fragmento ascendente
tenso e cromático. Está aproximação direcional do perfil musical ascendente e do mo­
vimento visual, também ascendente, é encontrada com muita freqüência nos filmes.
Um novo material temático é introduzido durante a seqüência no ateliê por meio
de um recurso até então não utilizado: a inserção da música na ação dramática. O pin­
tor toca piano em três momentos ao longo da seqüência. O primeiro deles é quando ele
convence Alice a experimentar o traje de dança; sedutor, ele insinua que gostaria de fa­
zer seu esboço e começa a tocar. A entrada da música funciona como uma pontuação
para a reação de Alice, que parece fascinada com a idéia. Ainda um pouco hesitante, ela
concorda em se vestir. Ele pára de tocar e a incentiva. A segunda intervenção ocorre en­
quanto Alice muda de roupa. O pintor senta-se ao piano. Alice pede que ele toque algo e
ele executa a versão integral da canção que havia tocado anteriormente, conferindo um
caráter romântico à cena. Já vestida, ela recosta-se ao piano. Ele termina sua execução e
diz que se trata de uma canção sobre ela. Ela pergunta se ele gostou dela com o vestido.
Ele pontua seus movimentos ao piano, parando apenas quando ela solicita que ele a ajude
a fechar o zíper. O pintor tenta seduzi-la e ela retorna ao biom bo para vestir-se no­
vamente. Maliciosamente, ele rouba sua roupa que está apoiada sobre o biom bo.
Hitchcock definiu esse momento da seguinte maneira:

Fiz uma coisa curiosa nessa cena, um adeus ao cinema mudo. Nos filmes
mudos, o vilão geralmente usava bigode. Então, mostrei o pintor sem bigodes, mas
a sombra de uma grade de ferro forjado, colocada no cenário de seu ateliê, desenha-
lhe sobre o lábio superior um bigode mais verdadeiro e mais ameaçador que o na­
tural! (Truffaut, 1984:45)

Imediatamente após deixá-la nua atrás do biombo, o pintor senta-se ao piano e exe­
cuta a mesma canção em andamento bem mais rápido. O caráter romântico da música
dá lugar à agressividade. Alice pede que ele devolva sua roupa e ele insiste para que ela
venha pegá-la. Ele pára de tocar para jogar a roupa longe e retoma sua execução para
terminá-la, finalmente, com um pesado ataque na região grave do piano. Em total silên­
cio, ele parte para cima dela.
O tema da canção é usado novamente após o assassinato, quando Alice vaga pelo
ateliê, desorientada. Ela procura sua roupa, veste-a, apaga os sinais de sua presença, e sai.
O tema é fragmentado em frases isoladas, intercaladas por arpejos que contribuem para
compor o sentido de desorientação que vive a personagem. Não há, em nenhum momen­
to, qualquer atividade rítmica intensa. A música é um fluxo estável com poucas variações
de textura e densidade. Os timbres altemam-se continuamente: sopros, cordas e o pia­
Playing on the screen 125

no, que toca apenas a linha melódica remetendo, imediatamente, à execução do pintor
assassinado. Assim, a música surge, também, como um reflexo do estado psicológico da
personagem, como um monólogo interior. A linha melódica do piano é como o fantas­
ma do pintor assassinado, cuja presença ainda se manifesta e domina a mente da jovem.
A saída de Alice, escada abaixo, em oposição à sua chegada, é acompanhada por um
motivo que se repete seqüencialmente em sentido descendente. Alice sai do prédio fur­
tivamente, ao som de um misterioso, muito similar ao ouvido na seqüência da captura do
fugitivo na parte muda do filme. A passagem é construída sobre o motivo inicial execu­
tado por cordas em pizzicato e intercalado por acordes nos sopros. A recuperação do ma­
terial temático do início enfatiza que ela também é, agora, uma criminosa. A informação
dada na parte inicial do filme é recuperada por meio da música para indicar a nova con­
dição da personagem. Alice vaga pelas mas completamente desorientada. O motivo ini­
cial é combinado de diversas maneiras com o tema da canção do assassinato. Ainda há
muito pouca atividade rítmica. A tensão interna é dada pelas linhas melódicas, pelas com­
binações temáticas e pela fragmentação. A música indica a desorientação e o estado psi­
cológico que vive a personagem. Após uma transição de tempo indicada pelas batidas da
meia-noite do Big Ben e uma panorâmica da cidade, Alice é vista em Leicester Square,
ainda vagando ao amanhecer. Essa seqüência é acompanhada inteiramente pelas frases
do tema do assassinato, em um tratamento similar ao das seqüências anteriores.
Alice volta à sua casa. Entra sorrateiramente e sobe as escadas. A subida é acompa­
nhada de um fragmento semelhante ao dos detetives subindo a escada para perseguir o
fugitivo. A principal diferença está no andamento, agora rápido, em conformidade com
a aflição com que Alice sobe as escadas.
Um pouco adiante, encontramos, por assim dizer, a primeira manipulação do som
com fins dramáticos pensada por Hitchcock:

Ela [Alice] está de volta à sua casa e há uma cena de café da manhã com sua
família ao redor da mesa. Uma vizinha que se encontra ali, muito faladora, discu­
te o assassinato que acaba de ser noticiado e diz: "Que coisa horrível matar um ho­
mem pelas costas com uma faca. Se fosse eu que o tivesse matado, teria golpeado
sua cabeça com um tijolo, mas não teria usado uma faca", e o diálogo continua, a
moça já nem escuta e o som se torna uma pasta sonora, muito vaga, confusa, ape­
nas com a palavra faca ouvida muito distintamente, e que volta muitas vezes: faca,
faca. E, de repente, a moça ouve claramente a voz de seu pai: "Passe-me a faca de
pão, por favor, Alice", e Alice precisa pegar a faca semelhante àquela com a qual aca­
ba de cometer o assassinato, e durante esse tempo os outros continuam a falar do
crime. Aí está a minha primeira experiência sonora. (Truffaut, 1984:44-45)

O tema musical inicial ainda será usado em toda a parte final do filme, compreen­
dendo o reconhecimento, a perseguição e a morte do chantagista. A primeira seção é a
do reconhecimento: a música acompanha as imagens de muitas fotos de suspeitos, com
uma variação do tema inicial. Na continuação, há uma seqüência praticamente idênti­
ca à do início, com a viatura policial atravessando as mas de Londres, em perseguição
ao fugitivo. O tema é reapresentado em sua forma original.
126 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

A última seqüência é a da perseguição no British Museum. Musicalmente, ela co­


meça com uma variação do tema praticamente igual ao segundo misterioso do início. Essa
variação é alternada com a forma original do tema. Conforme os policiais se aproximam
do fugitivo, inicia-se um agitato com bastante atividade rítmica. Essa passagem se desen­
volve até próximo do final da seqüência, quando é interrompida por um mio de tímpa­
nos. A queda do assassino ocorre em total silêncio. Há, ainda, um epílogo. Alice tenta se
entregar, mas, por ironia do destino, Frank é designado para tomar o seu depoimento e
tudo acaba bem. Não há mais nenhuma inserção musical após a perseguição no museu.

Os Níveis da Intervenção Musical

A sincronia entre sons e imagens abria ao cinema o universo sonoro em toda a sua
riqueza e multiplicidade, mas as limitações técnicas da primeira fase do cinema sonoro
não permitiam vislumbrar com clareza o significado das transformações que o cinema
começava a sofrer. Também não era possível perceber, ainda, o quanto o cinema conser­
varia de sua fase muda.
Passa a existir uma dualidade no modo de o som se relacionar com as imagens.
Como fator naturalista, ou seja, o som cuja fonte pode ser identificada direta ou indire­
tamente na ação filmada, tal como a fala, que corresponde aos movimentos dos lábios.
É também o caso dos efeitos sonoros, sons que possuem ligação direta com ações
visualizadas: passos de pessoas, portas que batem, campainhas de telefones e assim por
diante. É uma relação primária entre o som e a imagem do objeto responsável por sua
emissão. O segundo caso, extremo oposto, é o da intervenção sonora que não possui ne­
nhuma correspondência na ação filmada, tal como, por exemplo, a música orquestral
que soa durante um beijo apaixonado5.
Muito do que se disse a respeito do som nas acaloradas e polêmicas manifestações
que sucederam ao advento do som sincronizado, indica que houve uma confusão entre
estes dois tipos de relação com o conceito de sincronia propriamente dito. Quando, na
"Declaração", Eisenstein, Pudovkin e Alexandrov diziam que "o som deve ter como di­
reção a linha de sua distinta não-sincronização com as imagens visuais" (1990:218), o
que estava em jogo não era o princípio da sincronia, mas o uso do som como fator na­
turalista. Percebia-se que o som poderia transcender essa característica puramente
ilustrativa, complemento óbvio e imediato daquilo que é visto. Sabia-se que ele poderia
atingir outros níveis mais sutis e profundos de significação, no momento em que suas
técnicas alcançassem um grau de sofisticação similar ao das imagens.
A proposta de desvincular o som de sua fonte, de usá-lo não como correspondên­
cia, mas como alternativa às imagens, é muito menos uma questão de sincronia do que

5. Claudia Gorbman, em seu trabalho "Unheard Melodies", define esses dois tipos
como "música diegética" (fonte identificável na ação) e "música extradiegética" (fonte não
identificável na ação). Esses conceitos são bastante aceitos hoje. Ainda assim, optamos por
não usá-lo neste trabalho.
Playing on the screen 127

de exploração de suas possibilidades significativas. A capacidade de informação do som


é imensa e independe da fonte visual. Que o diga o rádio! Além de complemento de
um objeto visível, o som pode ser seu substituto: o trovão indica a tempestade, o ruído
do automóvel informa a chegada de alguém, a porta se abre fora de quadro para sugerir
a entrada de mais uma personagem, a fala fora do enquadramento revela a presença de
quem não é visto. Todos estes são exemplos que se aproximam do que foi proposto como
uso "não-sincrônico" do som. A questão, em si, não é de haver ou não sincronia, mas
com que imagem e de que maneira o som será sincronizado. Devemos, pois, entender
as propostas de "não-sincronização" entre sons e imagens como uma tentativa de fuga
da relação primária entre som e objeto visível, a busca de outras ferramentas de compo­
sição audiovisual.
Os exemplos sugeridos pertencem todos ao universo sonoro naturalista: o som do
carro, ainda que não o vejamos, insere uma informação que é parte da composição da
cena. Muito diferente é o caso da intervenção musical não inserida na ação, como o
exemplo da orquestra que acompanha o momento do beijo. Em princípio, o carro po­
deria ser ouvido por qualquer das personagens, enquanto a música da orquestra sinfô­
nica só pode ser ouvida pelo público. Há, pois, uma relação direta entre o narrador
subjetivo e o espectador, uma "ponte necessária entre a tela e o público", como definiu
Emo Rapée na introdução de sua antologia musical para o cinema mudo.
Uma situação parecida é a da voz em off, por meio da qual se penetra na mente das
personagens, criando um tipo de monólogo interior impossível de ser realizado ao vivo
(no palco) e que não pertence à composição naturalista do ambiente sonoro da ação. A
intervenção musical é uma convenção e tem, portanto, um caráter arbitrário. Não há
nada nas imagens visíveis que obrigue a presença daquele som; se está lá é por conven­
ção poética, uma opção de caráter puramente estético.
É possível afirmar, portanto, que as grandes transformações ocorridas no cinema
com o advento do som podem ser resumidas a dois fatores: a possibilidade de sincronia
e a incorporação do universo sonoro naturalista. A intervenção musical não inserida na
ação já existia na figura do acompanhamento musical do cinema mudo. Logo, do pon­
to de vista musical, o advento do som gerou dois modos principais de utilização da mú­
sica nos filmes: um, em que a música é inserida na ação do filme com o parte do
complexo sonoro naturalista; outro, em que a música é apresentada sem nenhuma
justificativa visual, configurando-se como intervenção narrativa.
Essa divisão sempre foi uma das principais preocupações daqueles que estudaram
a música de cinema. Para o compositor envolvido com filmes, a distinção entre ambas
é extremamente importante, já que o tratamento técnico exigido por um e outro são
diferenciados. A música, como parte do complexo sonoro naturalista, exige um trata­
mento igual ao de qualquer outro som desse complexo, ou seja, devem-se observar fato­
res tais com o a localização da fonte sonora no espaço: situações em interiores e
exteriores, por exemplo, exigem uma equivalência em termos de volume e qualidade so­
noras correspondentes à distância que a ação se encontra da fonte sonora.
Nos primeiros anos do cinema sonoro, os complexos sonoros naturalista e não-
naturalista estavam separados em dois blocos isolados pelas limitações técnicas: era muito
128 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

difícil somar os dois complexos, misturando sons naturalistas com a intervenção musi­
cal não-naturalista. Como vimos nos exemplos de O cantor de jazz e Chantagem e con­
fissão, a intervenção musical não-naturalista seguia o modelo do acompanhamento
musical do cinema mudo. Muitos filmes da época optaram por abolir a intervenção
musical não-naturalista, compondo a banda sonora apenas com sons naturalistas. Exem­
plo desse tipo de uso do som encontra-se em "M" - O vampiro de Düsseldorf ("M", Ale­
manha, 1931). A música do filme resume-se ao tema de In the House o fth e Mountain
King, da suíte Peer Gynt, de Grieg. Esse tema é usado na abertura do filme em versão ins­
trumental. Posteriormente, é assobiado pelo assassino de crianças em diversos momentos
do filme tomando-se um índice desse assassino. No final, o assassino é identificado por
um cego, vendedor de balões, que reconhece seu assobio. Nem sequer é possível falar em
música ou trilha musical em "M" - O vampiro de Düsseldorf. O tema musical não é usado
com uma intenção musical propriamente dita e poderia ser substituído, sem perda signi­
ficativa, por qualquer outro som que servisse ao propósito de caracterizar o assassino.

A Música Como Parte da Ação

As limitações técnicas exigiam soluções criativas dos realizadores. Um dos filmes


mais bem-sucedidos neste aspecto é O anjo azul (DerBlaue Engel, Alemanha, 1930). Ape­
sar de ter toda a sua música inserida na ação, o filme apresenta uma grande flexibilida­
de em seu emprego.
O anjo azul narra a história do Prof. Immanuel Rath (Emil Jannings), um respeitá­
vel professor de inglês do liceu de uma pequena cidade alemã. Austero e muito rígido
com seus alunos, o Prof. Rath os segue e descobre O anjo azul, cabaré onde passam suas
noites cortejando a principal vedete, Lola Lola (Marlene Dietrich). O professor acaba se
apaixonando e se envolvendo com ela. Ridicularizado por seus alunos em sala de aula,
é demitido. Casa-se com Lola Lola e passa a acompanhar suas tumês. Ele entra em um
processo irreversível de decadência. Cinco anos depois, o espetáculo retoma a O anjo azul
anunciando o Prof. Rath como atração. Ridicularizado e humilhado pela platéia, pelo
diretor da companhia e por Lola Lola, que o trai publicamente, o professor, após um ata­
que de nervos, volta para a escola em plena madrugada e morre sobre a mesa de sua an­
tiga sala de aula.
A música de O anjo azul é o resultado de uma combinação de peças musicais de gê­
neros muito distintos. Assim como em O cantor de jazz, a tradição dramático-musical
de cunho popular é revisitada não mais pela via do teatro, mas pela do Cabaré: a maior
parte das entradas musicais do filme ocorre nesse contexto. O principal tema desse con­
junto é Falling In Love Again, que se tornou um grande sucesso na voz de Marlene
Dietrich. Paralelamente, há uma referência ao universo operístico pela utilização recor­
rente da ária Ein Màdchen Oder Weibchen, de A flauta mágica, de Mozart.
A combinação temática, que tem início já na abertura do filme, é uma das duas úni­
cas intervenções musicais que não possui justificativa na ação. Ela começa com dois acor­
des orquestrais que preparam a entrada de uma versão estilizada da ária de Mozart. Na
seqüência, ouvimos uma versão também transformada de Falling In Love Again. Uma
ponte baseada em um dos motivos da ária conduz ao refrão de Falling In Love Again,
Playing on the screen 129

grandiosamente orquestrado. Antes do final, ainda podemos ouvir um último fragmen­


to da ária e só então a abertura é concluída6. Friedrich Holländer tratou essa abertura den­
tro da tradição dram ático-m usical, com binando os principais temas do film e e
compondo, com eles, uma peça unitária, capaz de estabelecer o primeiro contato entre
espectador e filme, introduzindo-o em seu universo.
A ária Ein Mädchen Oder Weibchen não foi escolhida ao acaso: na ópera, é por meio
dela que Papagueno expressa seu desejo de encontrar uma companheira e, com isso,
transformar sua vida. Em sua versão original, a ária possui o seguinte texto:

Ein Mädchen oder Weibchen Ach kann ich denn


wünscht Papageno sich! keiner von allen
O 50 ein sanftes Täubchen den reizenden Mädchen geffalen?
wär' Seligkeit für mich! Hülf einer mir nur aus der Not
sonst gräm' ich mich
Dann schmeckte mir Trinken und Essen warlich zu Tod
dann könnt' ich mit Fürsten mich messen
des Lebens als Weiser mich freun Ein Mädchen...
und wie im Elysium sein
Wird keine mir Liebe gewähren
Ein Mädchen... so muss ich die Flamme verzehren
Doch küsst mich
ein weiblicher Mund
so bin ich gleich wieder gesund!7

A utilização de música não-original em qualquer contexto dramático-musical ou


audiovisual é algo que exige uma certa atenção. Quando inserida nesse novo contexto, a
música traz toda uma carga significativa exterior. Quanto mais conhecida pelo público,
maior será sua interferência. É por isso que sua escolha deve ser bem planejada, de modo
a atender às necessidades específicas de cada caso. A interferência da música não-origi­
nal poderá, assim, ser canalizada de modo a contribuir para a composição dramático-
musical ou audiovisual.
Em O anjo azul, a ária da ópera cumpre uma função específica e planejada.
Papagueno, um caçador de pássaros, é o equivalente operístico do coadjuvante cômico:

6. As versões em alemão e inglês do filme possuem aberturas diferentes. A mais com­


plexa é a alemã, que possui a estrutura descrita acima. A versão em língua inglesa possui
uma abertura bem mais simples, cuja música não passa de um arranjo de Falling In Love Again.
7. Uma menina ou uma mulher / deseja Papagueno / Oh, uma doce pombinha / seria
a felicidade para mim! / Então, a comida e a bebida me seriam mais agradáveis / eu pode­
ria me comparar aos príncipes / e desfrutar a vida como um sábio / e estaria como nos
Elísios. / Uma menina... / Poderei eu alguma destas encantadoras meninas agradar? / Que
me auxilie uma em minha necessidade / senão, certamente morrerei de desgosto / Uma
menina... / Se nenhuma me conceder o seu amor / As chamas vão me consumir / Mas se bei­
jar-me uma boca de mulher / imediatamente estarei curado.
130 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

uma personagem simples, popular, geralmente próxima do herói e que estabelece o con­
traste com a seriedade de caráter e nobreza deste último. A evocação de Papagueno por
meio de sua ária estabelece a associação desse caráter cômico e ingênuo da personagem
com o Prof. Rath. O confronto do caráter do professor, austero e rígido, com o de
Papagueno, antecipa a decadência do primeiro que, no fundo, não passa de um pobre ho­
mem à procura de uma menina ou de uma mulher. Por trás deste homem sério, há um
Papagueno, o simplório, que permite que toda sua vida seja destruída por uma vedete. A
referência a Papagueno como caçador de pássaros também faz parte de um fio condu­
tor que permeia todo filme: há, já no início, o pássaro do professor morto em sua gaio­
la; na festa de seu casamento, o professor cacareja espontaneamente quando o diretor da
companhia faz surgir um ovo em um passe de mágica; o número do qual o professor é
obrigado a participar no final do filme é todo baseado em mágicas com pássaros e ovos
e ele acaba repetindo o cacarejar, desta vez não mais espontaneamente, mas completa­
mente transtornado. Assim, a ária surge no filme plena de significação. Ela se liga a ele­
mentos da vida do professor antes de seu encontro com Lola Lola. Além da abertura, ela
irá reaparecer tocada pelo relógio da escola, marcando o início de cada aula.
No final do filme, ocorre uma segunda e última entrada musical do tema da ária,
música que não possui justificativa nas imagens. Trata-se do momento em que o Prof. Rath
é encontrado morto sobre a mesa: ouvimos uma peça orquestral que se inicia como um
adagio solene, com as cordas marcando o pulso em acordes e uma linha melódica em
figuras rítmicas pontuadas desenvolvida a partir de um motivo da ária. Nessa circunstân­
cia, a música assume o caráter de marcha fúnebre. No momento em que o vigia do co­
légio encontra o professor morto, tem início outra seção da música. O tema da ária, ainda
que transformado ritmicamente, é, então, explicitado. A melodia é acompanhada por
glissandos de harpa e executada com o timbre de carrilhões, similar ao fragmento exe­
cutado pelo relógio anteriormente, só que desenvolvido. Esta nova sonoridade entra em
conflito com as cordas da seção anterior e estabelece o contraste com a marcha fúnebre,
conferindo à passagem um caráter angelical que marca o fim das agruras da personagem.
Ao final do tema, as horas são marcadas, tal como havia ocorrido anteriormente com o
relógio e, assim, ao som das horas, o filme termina.
No extremo oposto de Ein Mädchen Oder Weibchen, que delimita o universo do pro­
fessor, estão as canções do cabaré cantadas por Lola Lola, e que são constituintes de seu
universo, universo este ao qual o professor não pertence e pelo qual será tragado. Assim
como na estrutura dramático-musical convencional, as canções de O anjo azul possuem
uma significação clara na progressão dramático-narrativa do filme. Como vimos, a prin­
cipal delas, Falling In Love Again, caracteriza a personagem Lola Lola:
I often start and wonder There's no need to guess
Why I appeal to men Falling in love again
How many times I blunder Never wondered who
In love and out again What a girl could do
They offer me the ocean I can tell to you
I like it I confess Love's always been my game
When I replace emotions Playing it how I made
Playing on the screen 131

I love make that way


Can't help it
Men cluster to me
Like moths around the flam e
And if their wings bum
I know I'm not to blame
A aproximação entre o texto da ária e esta letra da canção indica uma situação dra­
mática em que o professor corre sério perigo, pois ele procura uma companheira para
amar definitivamente, ao passo que ela "entra e sai do amor" e "o amor sempre foi seu
jogo". Antecipadamente, Lola Lola avisa que "se suas asas queimarem" ela "não tem cul­
pa", contudo, para ela as asas masculinas não são de pássaros, mas de insetos (maripo­
sas). Ao mesmo tempo, a canção é colocada como parte de uma ação entre Lola Lola e
o professor, ela cantando e ele sentado no camarote como convidado de honra. Lola Lola
canta voltada para ele, seduzindo-o. É nessa ação que tem início o processo que o levará
à decadência.
A mesma canção selará o fim desse processo. Se, por meio de Falling In Love Again,
o professor havia entrado no mundo de Lola Lola, agora sob esta mesma canção ele dei­
xará O anjo azul, em sua última e desesperada tentativa de alcançar o que sobrou de sua
antiga vida, iniciando a seqüência que, como já vimos, termina com sua morte. Desta
última vez, Lola Lola não cantará mais "What a girl could do / I can tell to you", mas
"What a m i to do 11 can tell to you"8, indicando, com sutileza, que ela está pronta para
outra partida de seu jogo preferido.
O anjo azul é um dos filmes mais importantes do período no que tange ao tratamen­
to sonoro e um dos aspectos mais significativos é o fato de a música receber um trata­
mento que lhe confere uma função espacial. No cinema, é comum tratar a música
inserida na ação da mesma maneira que se trata qualquer som naturalista. Assim, se o
foco da ação deixa o ambiente em que a música foi executada, o tratamento padrão é o
de reduzir o seu volume a fim de indicar tal mudança. Na época em que O anjo azul foi
filmado, ainda não era possível estabelecer essa diferenciação de ambiente com grande
sofisticação. Já era possível, contudo, cortar a pista de som. O corte seco foi usado, en­
tão, para separar as entradas musicais do filme. Com esse procedimento, estabeleceu-se
uma relação direta entre a ação filmada e a música: mesmo que não possamos identifi­
car a fonte sonora na imagem, ela será entendida como parte do universo filmado. Para
acionar as entradas musicais, foram usados elementos simples do cenário, como jane­
las e portas; quando abertas, oferecem a justificativa necessária à inserção musical e, se
fechadas, servem como marca para o corte dessa mesma entrada. O recurso foi usado,
pela primeira vez, durante a primeira aula do Prof. Rath: ele passa um exercício para a
classe e abre a janela, por onde entra o som de um coro infantil que ajuda a sustentar
uma cena sem nenhuma ação. Ficamos, apenas, na expectativa de que algo aconteça.
Tudo permanece estático até que o professor surpreende um aluno colando. Ele fecha a

8. As citações de letras referem-se, obviamente, à versão em língua inglesa.


132 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

janela, cortando a música. Esse recurso é levado ao extremo no camarim de Lola Lola,
onde uma porta funciona como a linha divisória entre música e silêncio. A cada vez que
ela é aberta, permite que se ouça o som que vem do palco do cabaré. Desta maneira, é
feita toda a música ambiente das seqüências no camarim. Por exemplo, durante a pri­
meira visita do Prof. Rath ao camarim de Lola no O anjo azul, ele está com a roupa ínti­
ma dela em suas mãos. Imediatamente, a porta se abre e por ela entra uma outra mulher
que tira, maliciosamente, a peça de suas mãos. O camarim é invadido por uma música
circense. A mulher deixa o camarim sem tirar os olhos do professor e, pouco depois, um
homem passa em direção ao palco com um urso atado a uma coleira. A música, nessa
situação, é muito mais do que um fator de ambiência, um preenchimento puro e sim­
ples do vazio sonoro: ela estabelece o contraste entre aquele universo e o da personagem
que o invade, tornando-se uma presença estranha. Ela confere um caráter circense à
cena. Ao mesmo tempo, o professor começa a ser ridicularizado, pois não se enquadra,
de modo algum, na situação. É ele quem faz o número, e não quem está no palco.
A saída de Lola Lola em direção ao palco também é pontuada musicalmente. Ela
abre a porta de onde pode-se ouvir uma valsa. Ela pára sob o batente da porta e ajeita des­
denhosamente suas calças. É o fim do primeiro contato entre ela e o professor. A valsa
não é romântica, está muito mais próxima da atitude debochada de Lola Lola do que do
conflito interior que começa a viver o professor.
Além destas duas, há várias outras intervenções musicais comandadas pela porta do
camarim, inclusive a introdução de Falling In Love Again pouco antes de Lola Lola diri­
gir-se ao palco para o número, momento em que já é possível antecipar seu envolvimento
com o professor.
O uso criativo dos recursos disponíveis fez com que O anjo azul se tomasse um fil­
me muito bem resolvido em termos sonoros. São poucos os filmes da época que pos­
suem tal consistência musical, mesmo quando comparados a filmes mais recentes, em
que os recursos de edição sonora e sua manipulação estão muito mais desenvolvidos. O
anjo azul pode não ser um filme surpreendente, mas possui uma coerência intema que
o tom a uma grande obra. O mais fascinante nesse filme é o fato de ele ser um dos pri­
meiros a apresentar um trabalho com o som caracteristicamente cinematográfico. Con­
segue fugir do modelo do cinema mudo, bem como dos primeiros filmes sonoros, que
alternavam seções mudas e faladas. Nele, a música penetra a ação e, quando necessário,
até mesmo os diálogos. Trata-se de um filme sonoro no sentido mais estrito do termo e
a música é parte intrínseca desse universo sonoro do filme. A ópera é citada, o teatro mu­
sical revisitado. Ainda assim, os números musicais renascem sob uma nova perspecti­
va: não se trata mais do cabaré, mas do cabaré inserido no cinema. O número não é mais
apenas o número, mas faz parte de um conjunto de relações dramáticas e narrativas. Po­
demos ver, ao mesmo tempo, a vedete, o seu público e, mais especificamente, o profes­
sor, como parte desse público e como elemento da teia dramático-narrativa. A ária da
ópera não é mais cantada, mas usada para acompanhar imagens de um relógio em pla­
no fechado. Stemberg e Holländer utilizam a sonoridade do universo dramático musi­
cal para fazer cinema, acima de tudo, cinema sonoro.
Playing on the screen 133

A N ova P o l if o n ia A u d io v is u a l

Os filmes da primeira fase do cinema sonoro, como vimos, foram produzidos sob
condições técnicas bastante limitadas, refletidas em seu resultado final. Alguns filmes,
como O anjo azul, buscaram saídas criativas para estas limitações. Pode-se dizer que, a
partir de 1927, som e imagem podem ser sincronizados, ainda que precariamente, mas
não é possível falar, propriamente, de uma linguagem audiovisual e de trilha sonora ou
de trilha musical, tal como as entendemos hoje.
Ao comentar a música de filmes como O cantor de jazz e O anjo azul, referimo-nos
à música quase como se fosse a de um espetáculo teatral, ou seja, como número ou como
parte de uma ação. A música de Chantagem e confissão pode ser abordada como acom­
panhamento musical e em nada difere de seus antecessores do cinema mudo.
As duas principais matrizes da música que iriam perpetuar-se como convenções da
linguagem cinematográfica seriam a música inserida na ação filmada e a música como
intervenção. A partir delas e de sua inter-relação, criou-se tudo o que existe em música
para cinema. Ainda que essas matrizes já estivessem presentes desde a origem do cine­
ma sonoro, a trilha musical e a própria trilha sonora só iriam surgir no momento em
que o som pudesse ser manipulado com um grau de sofisticação equivalente ao das ima­
gens. De certo modo, Eisenstein, Pudovkin e Alexandrov o haviam percebido: em sua
"Declaração", há um desejo explícito de que o som venha a ser usado cinematografica-
mente, ainda que isto não esteja muito claro. Mas eles já têm a clareza de que a monta­
gem é a grande conquista da linguagem do cinema, sua maior especificidade. Em suma,
era necessário, para eles, que se desenvolvesse uma técnica de montagem adequada ao
som e, de fato, a montagem sonora veio a permitir que o som fosse manipulado cine-
matograficamente. Assim, a montagem, que permitia a articulação visual do filme, pas­
sou a ser responsável, também, pela articulação sonora, confirmando a sua soberania
como fundamento do cinema.
A montagem sonora consolidou um sistema de organização polifônica do mate­
rial sonoro: uma polifonia a três "vozes", ou pistas. Em uma delas, são colocados os diá­
logos, na outra, os efeitos sonoros e, na restante, a música. Gravados em bandas ópticas
independentes, os sons, tal como as imagens, podem agora ser editados, postos na
moviola, cortados e colados. A trilha musical passa a ser, desde então, uma das vozes dessa
polifonia. Paralelamente, o sistema Vitaphone cai em desuso, sendo definitivamente subs­
tituído pelo som ópúco que se tomou o padrão da indústria cinematográfica. A trilha so­
nora passa a ser impressa na película, junto com as imagens, não dependendo mais de
fatores externos, de natureza mecânica, para mantê-las em sincronia. Além da polifonia
intema à banda sonora, a polifonia entre som e imagem ganha uma nova definição.
A evolução polifônica entre som e imagem no cinema pode ser comparada à da
polifonia musical. A relação entre ambos no cinema mudo se assemelha muito às pri­
meiras manifestações polifônicas da Idade Média, baseadas no desenvolvimento linear
das vozes, ou seja, no eixo horizontal. A grande preocupação em relação aos encontros
entre vozes era o intervalo gerado por esse encontro. Cada intervalo ou categoria de in­
tervalos deveria ser tratada de uma determinada maneira. Não era possível, ainda, pen-
134 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

sar a polifonia em termos de unidades verticais. Isso só veio a acontecer muito tempo
depois, quando os encontros verticais entre vozes foram padronizados em unidades in­
dependentes que hoje conhecemos como acordes. Tomou-se possível, então, o que se de­
nominou de homofonia, uma sucessão de sons polifônicos organizados pelo princípio da
verticalidade - uma sucessão de acordes.
Da mesma maneira, os discursos visuais e sonoros do cinema mudo correm para­
lelamente, como as vozes de um contraponto da Idade Média. O encontro existe, há
mútua interferência, mas eles ainda não formam unidades verticais. O próprio fato de
as imagens serem impressas na película e a música ser executada ao vivo, os coloca em
dimensões, em mundos diferentes, transcorrendo linearmente em direção à conclusão.
O encontro é reconhecido e trabalhado, mas sempre dentro da perspectiva imposta pe­
las limitações do sistema.
A gravação em múltiplas bandas ópticas permitiu que o cinema pudesse alcançar
um estágio semelhante ao que a música havia atingido com o surgimento do conceito
de acorde: a precisão sincrônica em frações de segundo, a exatidão do encontro entre sons
e imagens. A polifonia audiovisual passa a contar com a possibilidade da construção ho-
mofônica. Constatamos, assim, que o filme sonoro está para o mudo como um coral de
Bach está para um contraponto eclesiástico do século XII.
As relações entre música e imagem serão redimensionadas em função da possibi­
lidade de sincronização. Ao mesmo tempo, surgem outros tipos de relação, pois os diá­
logos e os ruídos passam a fazer parte da composição do universo sonoro do filme.
Combinações sonoras até então impensáveis aparecem no cotidiano das produções. Ini­
cia-se uma nova poética sonora voltada à construção com imagens em movimento. Con­
seqüentemente, portanto, surge uma nova poética audiovisual até então impensável.
Este processo só se consolidará quando o som atingir sua maturidade técnica ba­
seada na estrutura de três pistas sonoras, na montagem sonora e no som óptico. Esses fa­
tores irão permitir, tam bém , que o cinem a alcance a sua forma final com o arte
industrializada, quando as imagens e sons forem impressos em um único suporte.
Em um artigo para o New York Times, Emst Toch escreveu:

O foco da música de cinema deveria ser o filme-ópera original. Isto não po­
deria ser feito por meio da adaptação de velhas óperas para a tela, pois a concep­
ção da música para a ópera no palco é diferente daquilo que o filme-ópera deve ser.
Adaptar óperas já existentes - com suas árias, duetos, conjuntos, finales, danças, mar­
chas e tudo o mais - significaria mutilar a ação filmada ou a música. A música do
filme-ópera teria que criar e desenvolver suas próprias formas para a ação filmada
típica, combinando suas diferentes leis de espaço, tempo e movimento com pro­
cedimentos musicais padronizados. O primeiro filme-ópera, uma vez escrito e pro­
duzido, irá suscitar uma série de outros. (Apud Prendergast, 1977:21-22)

Ao que parece, Toch percebeu que haveria alguma ligação entre o cinema sonoro
e a ópera e que ela estaria localizada na dimensão musical do cinema. É bem provável
que seu conceito de filme-ópera possua uma intrínseca relação com a idéia de sincronia.
Na ópera, com o vimos, a música articula o drama e é, portanto, responsável pela
sincronia. A entrada de cada um dos cantores possui um momento exato determinado
Playing on the screen 135

pela progressão musical e é indicada pela orquestra e demais cantores. A precisão da


sincronia não é absoluta, como no cinema, mas relativa ao conjunto de relações musi­
cais que se renova a cada execução. No cinema, o suporte é outro. Não é mais a música,
exclusivamente, que articula a progressão dramática, embora continue a exercer parte
dessa função. No período mudo, a orquestra deveria adequar-se à ação filmada, procu­
rando a maior precisão possível, forjando uma sincronia que, por definição, era impra­
ticável. A imagem possui um tempo absoluto, e o tempo musical é relativo. No cinema
sonoro, ocorre uma transformação, pois a música pode ser associada às imagens com
precisão sincrônica que podem, ao mesmo tempo, ser manipuladas a fim de se adequa­
rem perfeitamente ao discurso musical. Com isto, a música pode trazer para o cinema,
ao menos em parte, o poder arüculatório que possui na ópera. Não se trata mais de uma
relação unilateral - uma música que tenta adequar-se à ação filmada, mas de uma inter-
relação entre os movimentos sonoro e visual. A abordagem que Toch faz do cinema so­
noro reconhece, intuitivamente, essas novas relações e com muita sagacidade as sintetiza
na idéia do filme-ópera.
O grande marco dessa transição é o filme King Kong (King Kong, EUA, 1933). Di­
rigido por Cooper e Schoedsack, o filme foi um dos primeiros a contar com trilha mu­
sical de Max Steiner, um dos mais significativos compositores dessa fase do cinema.
Cari Denham (Robert Armstrong) é o cineasta de temas fantásticos que organiza uma
expedição a uma ilha desconhecida com o intuito de realizar mais um filme. Ann Darrow
(Fay Wray) é a jovem bonita que Denham recruta para ser a heroína de seu filme. Ao che­
garem à ilha, surpreendem os nativos em um ritual de sacrifício. Eles propõem ao grupo
a troca de Ann por cinco de suas mulheres. O grupo retoma ao navio. Ann e Jack Driscoll
(Bmce Cabot), capitão do navio, apaixonam-se. À noite, os nativos invadem o barco e se­
qüestram Ann. Quando todos percebem o ocorrido, ela já está sendo apresentada como
oferenda a Kong, um imenso gorila que a toma em suas mãos e desaparece no interior da
ilha. Os homens partem em seu encalço, mas são surpreendidos por uma série de animais
pré-históricos. A maioria deles morre, mas Jack consegue chegar até Ann e salvá-la. Kong,
também apaixonado por Ann, tenta resgatá-la e é capturado por Denham que pretende
apresentá-lo como "a oitava maravilha do mundo". Contudo, na noite de estréia de seu es­
petáculo, Kong arrebenta as correntes e foge, não antes de arrancar Ann pela janela do apar­
tamento em que se encontra. Ele escala o Empire State Building, onde é abatido por aviões,
mas coloca Ann a salvo na cúpula do edifído.
A abertura de King Kong, assim como tantas outras, faz uso da síntese temática.
Nela encontramos alguns motivos que se repetirão ao longo do filme. Inicialmente, ou­
vimos três acordes que são parte do tema de Kong, imediatamente seguidos de uma
fanfarra grandiosa, um tipo de sonoridade já usado nas aberturas dos intermedi e ópe­
ras renascentistas e que permaneceu como referênda até o século XX. Na década de 1930,
era comum usar essa sonoridade para sublinhar os créditos dos produtores, neste caso,
David Selznik. A fanfarra funde-se a uma passagem que utiliza o mesmo material musi­
cal do ritual em que a jovem é oferecida a Kong. Uma variação em andamento acelera­
do e com bastante atividade rítmica conduz ao final da abertura que, tal como a fanfarra,
também termina com ataques nos metais. Parte da música do ritual vem de um motivo
136 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

do tema de Ann. Contudo, o tema propriamente dito não aparece na abertura, um indí­
cio de que o romance será um aspecto secundário do filme.
Em King Kong, serão encontrados alguns dos procedimentos que se tornariam ca­
racterísticos da música de cinema da década de 1930. Se na primeira fase do cinema so­
noro, a música estava restrita às passagens sem diálogos e ruídos, agora é retomada a
tradição da música permanente, característica do cinema mudo. Por algum tempo, a
música foi colocada em segundo plano para que se incorporassem os diálogos e toda
a gama de sons naturalistas, mas, assim que possível, ela readquiriu a importância que
tivera.
Desde seu início até praticamente a chegada na ilha, King Kong quase não possui
intervenções musicais. Tudo ocorre como de costume: uma grande concentração no as­
pecto naturalista do som por meio de diálogos e ruídos. A música acontece em profu­
são na parte mais aventurosa do filme. A primeira intervenção se dá na seqüência do
nevoeiro que antecede a chegada à ilha. É uma intervenção nos diálogos baseada em
arpejos de harpa, com cordas em segundo plano executando notas longas.
O interessante, aqui, é que a música não é o principal fator da composição. É mui­
to diferente, por exemplo, das canções de O cantor de jazz ou de O anjo azul, bem como
das intervenções musicais de Chantagem e confissão. Aqui, a música ocorre em paralelo
a uma ação que possui um maior número de fatores, especialmente o texto dialogado. É
um bom exemplo de uma polifonia audiovisual. A música deve ser ouvida da mesma for­
ma que o contracanto de uma passagem musical polifônica: sua presença interfere na
textura final, mas não está em primeiro plano.
Para adequar-se a tais necessidades, Steiner lança mão de alguns recursos musicais
bastante evidentes. Em primeiro lugar, a uniformidade rítmica do arpejo na harpa e as
cordas, sem atividade rítmica, sustentando notas longas. Em segundo, a textura e a den­
sidade também não sofrem mudanças significativas: os timbres permanecem os mesmos
e não há qualquer contraste entre grupos instrumentais nem na organização do material
musical. O único fator de variedade é a progressão harmônica que impede a redundân­
cia das repetições do motivo. Por último, vale a pena destacar a ausência do recurso me­
lódico. Sendo a melodia um dos grandes fatores de atração da atenção do ouvinte, em
geral, é por meio dela que o público identifica a música e é capaz de seguir seu desen­
volvimento. A opção pela música sem melodia permite que se estabeleça um outro tipo
de relação com o espectador, pois são valorizados os aspectos da sonoridade em detrimen­
to do desenvolvimento do discurso musical propriamente dito.
Esses procedimentos permitem uma construção musical que tem a capacidade de
passar despercebida com maior facilidade, ou seja, associar-se com mais eficiência às ou­
tras vozes da polifonia audiovisual. Ao se desenvolver uniformemente, a música exige
pouco do espectador, sua atenção praticamente não é solicitada, e ele pode perceber o
conjunto do filme sem ter de se concentrar na música.
O aprimoramento das técnicas de edição sonora levam ao redimensionamento da
música de cinema em todos os aspectos. Já não se trata mais do acompanhamento mu­
sical do cinema mudo. A música ressurge transformada, a sua interação com o comple­
xo visual e com os diálogos e ruídos atingem um grau de sofisticação até então
Playing on the screen 137

impossível. A música passa a ser usada em quase todo tipo de situação, independente­
mente da existência de diálogos ou outros sons. Tudo é, praticamente, permeado pela
música. Neste sentido, o referencial operístico é quase explícito, pois o gênero dramáti-
co-musical no qual a música é fator de articulação permanente é a ópera. Contudo, há
uma diferença crucial entre a ópera e o cinema sonoro: a ópera é cantada, o filme não.
O fato de a ópera ser cantada faz que a fala e o texto façam parte da própria estrutura mu­
sical. No cinema, ocorre uma somatória de fatores sonoros e visuais em que a fala, o texto
e os sons dos mais variados tipos conservam sua independência em relação à música.
Existe, sim, uma mútua interferência, mas eles não fazem parte da composição musical.
Assim, ainda que o grande referencial para a música de cinema da década de 1930
fosse a ópera, era preciso desenvolver um tipo de organização do material musical que
se adequasse as características do novo meio à linguagem audiovisual. A experiência ad­
quirida com a prática musical do cinema mudo e dos primeiros anos do cinema sono­
ro foi, sem dúvida, útil, mas a idéia de equilíbrio ou balanço polifônico entre as diversas
fontes sonoras era algo inexistente. A música no cinema mudo era responsável por toda
a informação sonora, em um sistema quase totalmente não-verbal. Se transposta a este
novo contexto, pareceria exagerada, estereotipada, pois deveria, a partir de então, dividir
com os diálogos e os ruídos a responsabilidade pela informação sonora.
A chegada da equipe de Denham à ilha é um bom exemplo de ação sustentada por
música contínua. A seqüência contém falas de diversos personagens, sempre sobre uma
base musical. Em nenhum momento, o universo sonoro fica restrito aos sons naturalis­
tas. Mas, neste exemplo, a música continua em segundo plano: a atenção do espectador
deve se concentrar na ação. Há um paralelo com a ópera, por exemplo, no modo pelo
qual a música funciona como suporte da ação interferindo em seu conteúdo e influen­
ciando a leitura do espectador. A seqüência, sem a música, mudaria bastante de caráter.
Veríamos apenas os homens caminhando e ficando fascinados com a muralha. A mú­
sica, portanto, interfere definitivamente no significado da seqüência. Seu caráter miste­
rioso se deve à melodia lenta e de pouca atividade rítmica e à instrumentação que explora
a região grave das cordas. Seu caráter confere à ação o mistério, alerta para o perigo que
se oculta naquele local desconhecido e que pode se manifestar a qualquer momento. É
a voz do narrador que, sob a forma de música, nos conta algo mais que não pode ser visto,
mas que é sugerido e sentido.
Outra convenção musical do cinema que o aproxima da ópera é a pouca preocu­
pação de manter a correspondência entre uma suposta fonte musical filmada e o som
correspondente a essa fonte. Em outras palavras, nem sempre o que é visto corresponde
ao que é ouvido. O mesmo ocorre na ópera, em que a orquestra é senhora absoluta do
espaço sonoro e não há qualquer preocupação de ordem realista entre a sonoridade e o
que é visto no palco. Em King Kong, há um exemplo similar na festa tribal, no ritual em
que a jovem é oferecida a Kong. Os nativos dançam e alguns, vestidos de gorilas, batem
nos próprios peitos imitando o gesto característico desse animal. Podemos ver a jovem
sendo preparada para o sacrifício. Vemos, também, os que tocam: há tambores grandes
e pequenos, mas a música é executada por uma orquestra sinfônica de grande porte com­
posta de cordas, sopros e percussão. Tal construção não resiste à leitura realista. Mas ela
138 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

não é a única, pois são inúmeras as convenções "não-realistas" do cinema, tal como as
balas do cowboy que jamais se esgotam.
A música composta por Steiner segue o mesmo princípio do tema dos negros em
O nascimento de uma nação: não se trata de uma música "tribal" propriamente dita, mas
seu material musical faz com que seja identificada como "música primitiva" pelo espec­
tador médio. A parte rítmica e o caráter percussivo da passagem são seus principais res­
ponsáveis.
A opção por se fazer cinema com uma grande quantidade de música, aliada à ne­
cessidade de adequá-la às novas convenções audiovisuais, levou a um tratamento do ma­
terial musical que ficou conhecido como mickeymousing9. Esta técnica de acompanhar a
ação filmada, sublinhando-a ponto a ponto, só é possível quando se possui o recurso da
sincronia com alto grau de precisão. Há dois aspectos principais de interação polifônica
entre música e ação filmada. O primeiro é o aspecto rítmico, temporal. Por meio do
mickeymousing, quase sempre o desenvolvimento temporal da ação filmada e da música
são similares. O andamento e a atividade rítmica de ambos correm simultaneamente e
de forma interligada. Ações rápidas são acompanhadas por muita atividade rítmica e an­
damentos acelerados, ações lentas, por passagens musicais com pouca atividade rítmica
e andamento lento. O movimento musical é, em tais casos, um reflexo exato do movi­
mento visual. O segundo aspecto é o fato de as passagens musicais sempre refletirem as
intenções e o caráter da ação filmada. Heróis e vilões, amor e ódio, alegria e tristeza, as
transições musicais estão sempre indicando com clareza o caráter de cada uma das si­
tuações do filme. Sendo assim, cada fragmento da ação possui um correspondente musi­
cal. A música acaba por se tomar descritiva, sempre sublinhando e comentando a ação. No
mickeymousing, a música possui um alto grau de redundância em relação às imagens.
Em King Kong, podemos encontrar diversos exemplos desta clássica técnica de
mickeymousing. Praticamente, todas as intervenções musicais do filme a utilizam. Uma
delas, bastante ilustrativa, ocorre no momento em que o chefe da tribo percebe a pre­
sença dos forasteiros e caminha até eles. A música acompanha, com exatidão, sua cami­
nhada. É um pulso na região grave dos sopros que corresponde a cada um dos passos.
Como é habitual no mickeymousing, a música possui uma correspondência rítmica e tam­
bém se concentra na sua identificação como a autoridade máxima naquele momento.
Auxilia, também, a estabelecer o clima de mistério que envolve o encontro de culturas
tão distintas.
A técnica de mickeymousing é a primeira técnica musical desenvolvida com o obje­
tivo de produzir um tipo de música especificamente voltada à linguagem audiovisual. Por
meio dela o recurso da sincronia é levado ao extremo. Mas esse controle ponto a ponto
não suplantou as velhas práticas herdadas da tradição dramático-musical. Em sua macro-
estrutura, a trilha continuou a se basear na organização de material temático recorren­

9. O termo, obviamente extraído do nome da personagem de Disney, é uma referên­


cia ao tipo de sonorização característico dos desenhos animados, em que a música acom­
panha todas as nuanças da ação.
Playing on the screen 139

te, ou seja, o uso de temas cujos motivos se tornam leitmotivs e assumem significações
específicas dentro da narrativa.
Em King Kong, encontramos dois temas básicos: o primeiro é o tema de Kong que
inicia a abertura. Trata-se de um tema simples, apenas um motivo construído a partir de
três acordes sem qualquer preocupação melódica ou rítmica. O motivo é apresentado em
tutti orquestral, com grande proeminência dos metais. A instrumentação, a região gra­
ve e o sentido descendente conferem-lhe um caráter amedrontador próprio ao tema de
um monstro. O segundo tema é o de Ann. Normalmente, os filmes dessa época pos­
suem um tema romântico. Embora o tema de Ann se aproxime disso, não seria correto
assim conceituá-lo. Mesmo havendo o par romântico Ann e Jack, a relação amorosa é
totalmente secundária no filme. Se há, de fato, um apaixonado, ele é Kong, que abdica
da própria vida pela de Ann. Ainda assim, o tema é introduzido no filme, como se fosse
romântico, no momento em que Jack declara-se a Ann no convés do navio, pouco an­
tes de ela ser raptada.
O tema de Ann oferece o contraste ao tema de Kong. Ele é apresentado pelas cor­
das, na região aguda, possui uma linha melódica bem definida e tonal, tendo, pois, a ca­
racterística dos temas românticos dessa época. O contraste entre o tema de Ann e o de
Kong reforça a referência ao filme A Bela e a Fera, várias vezes mencionada. O tema de
Kong é o tema da fera que se apaixona pela bela jovem Ann. Mas o destino de Kong não
é o mesmo, pois Ann não se apaixonará por ele. Seus temas estão, assim, irremediavel­
mente dissociados. No decorrer do filme, eles serão colocados lado a lado, mas em ne­
nhum momento irão se fundir. Mesmo em um momento romântico como a seqüência
do casal no convés, a relação entre música e ação filmada segue os princípios do
mickeymousing. Todas as nuanças do diálogo entre Jack e Ann são acompanhadas por
transformações correspondentes na música. Após o primeiro beijo do casal, quando Jack
é chamado à ponte de comando, a música é interrompida para a inserção da fala do co­
mandante. Segue um jogo pelo qual se alternam música e fala, em cortes precisos, cor­
respondendo exatamente à alternância dos planos.
Esse exemplo apresenta alguns elementos sobre os quais convém refletir. Em pri­
meiro lugar, devemos retornar à questão da fragmentação. No cinema mudo, como vi­
mos, a estrutura fragmentária era uma característica do acompanhamento musical. Na
década de 1930, essa fragmentação foi levada ao extremo pela prática de mickeymousing
e incorporada à própria escrita musical em que as transições, nuanças, contrastes, já es­
tão previstos na composição. Trata-se de uma evolução da prática do cinema mudo que
organizava os acompanhamentos musicais pela justaposição de diversos fragmentos uni­
dos por transições criadas pelos músicos das salas de exibição.
Essa estrutura fragmentária deixaria de ser característica da música de cinema e se
tornaria comum a toda trilha sonora. As técnicas de montagem, dublagem e mixagem
das pistas de som acrescentam novas possibilidades de combinação do material sono­
ro, que são aliadas a cortes, emendas e associações de sonoridades nos eixos horizontal
e vertical.
No exem plo da cena rom ântica entre Jack e Ann, a separação dos planos é
enfatizada pelo corte na música, uma espécie de separação entre o sublime da relação
amorosa e a banalidade do cotidiano. A música apaixonada altema-se com a fala do co­
140 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

mandante que nada tem a ver com ela. Os apaixonados encontram-se em uma outra es­
fera na qual o espectador pode penetrar por meio da música. A música não pode acom­
panhar o diálogo dos homens, pois isso seria macular a esfera da paixão.
Na primeira fase do cinema sonoro, houve um fascínio pela incorporação da fala.
Mas a tradição não-verbal que orientou a formação da linguagem cinematográfica era
muito forte para ser descartada. O cinema já possuía uma dialogia própria. A fala foi in­
corporada, sem se tomar, no entanto, seu fator primordial. A partir do momento em que
música, diálogos e ruídos puderam ser manipulados com independência e em profun­
didade, essa dialogia própria tomou sua forma definitiva, na qual todas as sonoridades
interagem horizontal e verticalmente na composição da trilha sonora.
King Kong é também um marco histórico pela maneira de utilizar o potencial dra­
mático e narrativo dos ruídos, que até então eram usados praticamente como comple­
mento da imagem. King Kong mostra que o ruído e suas diversas possíveis combinações
com a música permitem resultados até então impensáveis, seja acrescentando um novo
nível de significação, seja, até mesmo, suprindo possíveis falhas ou imperfeições da ação
filmada. Vejamos o que diz Heitor Capuzzo sobre a seqüência do Empire State Building
em King Kong:

Os efeitos sonoros em King Kong não são apenas acompanhamentos da ima­


gem. Criam tensões dramáticas pela sobreposição de sons. Quando Kong resolve
escalar o Empire State e é alvejado pelos aviões, ouvem-se gritos da mocinha, bra­
dos do gorila, ruídos dos vôos rasantes dos aviões, tiros de metralhadora e efeitos
musicais. Mas os realizadores sabem como adequar todos esses recursos sonoros,
altemando-os de acordo com o crescendo dramático da impossível luta do selva­
gem numa civilização urbana. Ao ser alvejado, somente os aviões e as metralhado­
ras estão sonoramente presentes. Quando Kong está prestes a ser vencido, a música
volta à cena numa importante alusão ao sofrimento do rei. É vital que a música pon­
tue dramaticamente este instante, pois o boneco utilizado para a seqüência não per­
mite nuanças faciais expressivas. É a distancia da câmera aliada à utilização
progressiva das demais bandas sonoras, com o som dos aviões, tiros e, posterior­
mente, a entrada da música, que possibilitam a empatia do espectador para com a
subjetividade da fera. (1995:62-63)

Estes comentários são válidos, na verdade, para todas as seqüências, desde a pri­
meira aparição de Kong quando ele raptou Ann e partiu para o interior da floresta. A ten­
são já começara na seqüência anterior que apresenta novamente o ritual dos nativos, só
que desta feita Ann é a vítima, ou melhor, a oferenda a Kong. Os nativos estão inflama­
dos, dançam ao som de seus tambores (e da orquestra sinfônica) e empunham tochas.
A música é similar à do primeiro ritual, porém mais acelerada e com um grau de ten­
são intema maior proporcional à intensidade dramática da seqüência. Misturam-se a ela
os gritos da tribo em delírio coletivo. Steiner faz rápidas inserções do leitmotiv de Ann
em praticamente todos os planos em que ela aparece em detalhe, com seu tema, apare­
cendo transformado. Ele surge da música do ritual, projeta-se sobre ela, mas se submete
à sua estrutura. Assim como Ann, ele luta para se libertar, mas não consegue e é engoli­
do, novamente, pela música do ritual.
Playing on the screen 141

Já se comentou que é comum, no cinema, o movimento visual vertical vir acom­


panhado de um movimento musical correspondente. Em King Kong, especialmente, as
relações verticais são uma constante, tanto na música quanto nas imagens. No momento
em que Ann é levada para o altar onde será amarrada e ofertada a Kong, a subida das es­
cadas é acompanhada passo a passo pelo movimento ascendente da música.
Finalmente aparece Kong. Antes que surja em imagem, sua presença é indicada por
sons. Seus passos são ataques de metais na região grave sobre um rulo de tímpanos. O
som dos rugidos de Kong funde-se à música. É difícil dizer até que ponto a música exer­
ce a função de ruído, pois recria, poeticamente, um passo que jamais poderia ser con­
fundido com o som de um passo real, e até que ponto é o rugido de Kong que se integra
à música deixando de ser apenas um som naturalista.
Quando o gorila é visto pela primeira vez, surge o leitmotiv de Kong que se funde
aos gritos de Ann. Seus rugidos aumentam e vemos sua face, em plano fechado, sob for­
tes acordes dos metais. Nesse ponto, podemos notar como procede a afirmação de Hei­
tor Capuzzo: a face do m onstro não possui qualquer agressividade. Ela é
inexpressivamente doce. Não fosse a interferência da música, a ação não provocaria o
impacto desejado no espectador. Pelas imagens, Kong jamais seria caracterizado como
um monstro. Do mesmo modo, a pontuação musical nos planos fechados de Ann é fun­
damental para a composição dramática da seqüência. O desespero da jovem, expresso
em sua face e seus gritos, adquire proporções muito maiores quando associados à músi­
ca. Os gritos de Ann aumentam e a música acompanha sua intensidade. O leitmotiv de
Ann ressurge em ataques tensos, sublinhando o desespero da jovem. Alternam-se os mo­
tivos de Kong e de Ann. Eles são distribuídos entre as cordas (Ann) e os metais (Kong).
Kong arranca Ann do altar e termina a seqüência em triunfo sob os gritos gloriosos da
tribo que o observa do alto da muralha. Sobre a base orquestral, Kong e Ann executam
um dueto gutural de rugidos e gritos.
Denham e Driscoll, acompanhados pela tripulação, embrenham-se na selva seguin­
do a pista de Kong. No caminho, matam um dinossauro e são atacados por outro. A música
acompanha a ação em todas as suas nuanças. Na seqüência do segundo dinossauro, este
eleva-se do fundo do lago e é acompanhado por uma sucessão de sons ascendentes. Mais
adiante, um membro da tripulação tenta escapar ao ataque do animal subindo em uma
árvore e o efeito musical se repete. A duração dos sons é diferente e corresponde ao mo­
vimento lento pelo qual o dinossauro se eleva, bem como à rapidez com que o desespe­
rado hom em sobe na árvore. O movimento ascendente culmina nos acordes que
acompanham o ataque. No momento do bote, a música é interrompida para que se ou­
çam apenas os derradeiros gritos da presa. Sua queda ocorre em silêncio, sendo pontua­
da apenas por um acorde grave quando toca o chão10. Os sobreviventes são encurralados
por Kong em um tronco que serve de ponte. Jack esconde-se em uma saliência de onde

10. Uma pontuação semelhante à da queda de Flora em O nascimento de uma nação. Ver
Capítulo 3.
142 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

assiste a Kong virar o tronco até que todos tenham caído no abismo. O leitmotiv de Kong
é apresentado no momento exato em que o vemos e domina a seqüência altemando-se
com passagens rápidas, agitadas. Sobre a música, os gritos dos homens, agora em coro,
e os rugidos de Kong.
O movimento musical ascendente é usado mais uma vez para acompanhar a es­
calada de Jack por um cipó. A passagem é lenta como sua ascensão, sua instrumentação
é simples, a melodia nas cordas é limpa e clara com pouca ênfase no aspecto harmôni­
co, confere um caráter intimista, solitário, compatível com a situação da personagem, e
contrasta com as passagens anteriores de instrumentação e textura complexas.
Jack passa a perseguir Kong até a sua cavema. Toda essa parte do filme tem sua mú­
sica baseada no tema de Kong alternada com passagens, em mickeymousing, de Jack cor­
rendo pela mata. Aos poucos, a narrativa volta-se novamente para Ann, prisioneira de
Kong. A música indica esse ressurgimento da personagem cujo tema passa a ser associa­
do ao de Kong. O tema de Ann ressurge na seqüência da cavema quando Kong larga Ann
pela primeira vez. Ela não grita mais, apenas chora. A natureza romântica do tema é
reassumida, sendo apresentado pelas cordas em andamento mais lento. Na caverna de
Kong, o movimento sinuoso da serpente é acompanhado pela música, por meio de movi­
mentos ascendentes e descendentes das madeiras no graves, em primeiro plano, e das
cordas, em segundo.
Os temas de Kong e Ann são aproximados de maneira mais intensa quando Kong
deixa a cavema. Ele acomoda Ann em um platô e brada, senhor de seu território. Nova­
mente, há uma divisão timbrística de metais para Kong e de cordas para Ann. Os dois
temas se sobrepõem, realizando o diálogo que, entre as personagens, é impossível. O
tema de Ann é agitado, mas já não indica o desespero do primeiro encontro, e o de Kong
se transforma pouco, é estável e decidido como a personagem.
O resgate de Ann por Jack é um exemplo clássico de mickeymousing. Os temas de
Kong e Ann e as correspondências entre movimento musical e visual mesclam-se nessa
rápida seqüência. Ann aproveita o primeiro momento em que é deixada a sós por Kong
e se arrasta pelo platô. Seus movimentos são acompanhados por uma passagem nas
madeiras (fagotes e clarinetes). Um corte mostra Kong dentro da cavema e seu leitmotiv
nos metais. Outro corte introduz novamente o plano de Ann com a mesma música de
antes, agora acrescida de cordas em pizzicato e um trêmulo no grave. Quando está quase
à beira do precipício, ela é atacada por um pterodáctilo. A música transforma-se num tutti
orquestral agitado. Kong chega e luta com o agressor. Seu tema é mesclado ao agitato. Jack
aproveita-se da situação para resgatar Ann. Os dois agarram-se a um cipó e começam a
descer pela rocha. O movimento descendente é correspondido pelo agitato orquestral,
também descendente. O agitato é, então, substituído pelo tema de Ann, também trata­
do para corresponder ao movimento descendente. Kong percebe a fuga: tema de Kong.
Ele começa a puxar o cipó. Imediatamente, a orquestra retoma o sentido ascendente e o
agitato, mesclados ao motivo de Kong. Os dois largam o cipó e ouvimos um rápido glis-
sando descendente de cordas e harpa acompanhando a queda. O toque na água é pon­
tuado pelos metais e pela percussão. O mergulho retoma o agitato para culminar no tema
Playing on the screen 143

de Ann, nas cordas. A seqüência termina com o rugido de Kong e os acordes de seu mo­
tivo. Não é por acaso que Steiner era considerado um mestre no uso dos click-tracksu.
Jack e Ann correm em direção à muralha onde são esperados por seus amigos. Sua
corrida é acompanhada por música em andamento acelerado e com bastante atividade
rítmica. A frase das cordas é construída a partir de um motivo rítmico de figuras pon­
tuadas, similar ao utilizado pelo cinema mudo em tais situações. Sobre ela, os metais
executam uma série de repetições seqüenciais do motivo de Kong. Quando chegam à mu­
ralha, as cordas deixam o motivo da perseguição para executarem o tema de Ann, vão
desacelerando e concluem a passagem.
Kong é subjugado e Denham o apresenta como atração em Nova York. Ele conse­
gue se libertar e foge aterrorizando a cidade. Jack e Ann se refugiam em um edifício. A
partir daí, toda a ação é acompanhada pelos temas de Kong e Ann que são combinados
de diversas maneiras. Quando Ann e Jack estão no quarto, é o tema de Ann que ocupa o
espaço sonoro, mas no momento em que Kong surge na janela, seu motivo é sobrepos­
to, com muita sutileza, no extremo grave. Quando Kong quebra a janela, o seu tema in­
terrompe o de Ann. Kong retira Ann pela janela, uma ponte conduz ao seu leitmotiv que
é acelerado e repetido ciclicamente enquanto a jovem é mostrada em plano fechado, na
pata de Kong. Ele começa a escalar o edifício acompanhado por seu tema.
A narrativa caminha em direção ao clímax. Kong escala o Empire State. Ao mes­
mo tempo, aviões aproximam-se do edifício para abater o animal. A esquadrilha é apre­
sentada. Os ruídos dos motores sobrepõem-se ao tema de Kong. Um corte mostra a
silhueta do edifício e Kong em sua escalada. Como sempre, o movimento ascendente é
correspondido pela música. Acordes de metais em um pulso uniforme sobrepõem-se ao
movimento rápido das cordas em direção ao agudo. O andamento vai se tomando mais
lento à medida que Kong se aproxima do topo. O motivo de Kong é reapresentado e
modificado a fim de corresponder à intensidade dramática da seqüência, o que de fato,
é conseguido, especialmente pela instrumentação. Steiner usa o poder do tutti orques­
tral e, pela primeira vez, o motivo de Kong é ouvido nas cordas, não nos metais, e na
região aguda.
O som dos motores dos aviões se sobrepõe ao da música. Kong está sendo atacado.
Ouve-se o som de metralhadoras. Kong, ferido de morte, pega Ann uma última vez.
Ouve-se o tema da jovem, também transformado pelo andamento mais lento e com
instrumentação mais vigorosa. A música vai se tomando mais lenta e perdendo seu vi­
gor, à medida que Kong se enfraquece. Ele deposita Ann em um local seguro e afaga-lhe
pela última vez. Os sons dos motores e da metralhadora interrompem a música. Uma

11. O click-track foi o primeiro dispositivo desenvolvido para a obtenção de sincronia


exata entre imagem e música. Por meio de marcas na pista de som do filme, os composi­
tores criavam metrônomos fixos ou variáveis, que serviam de guia para a criação e execu­
ção da música. Cada minuto de filme possui 1.440 fotogramas. Bastava dividir o
metrônomo escolhido por 1.440 para se obter o intervalo de fotogramas que separaria cada
uma das marcas na pista de som. Ao projetar o filme, ouvia-se o metrônomo exato deseja­
do para aquele trecho musical.
144 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

chamada de metais e um rápido agitato das cordas chamam a última apresentação do


tema de Kong, cujo resignado motivo é tratado imitativamente como pergunta e resposta.
Mais uma metralhadora, e a orquestra brada, em tutti e rubato, o motivo de Kong, e o an­
damento vai se tomando mais lento. Kong cai. Pela primeira vez, a orquestra não acom­
panha a queda, mas sustenta um acorde longo. Em segundo plano, ouve-se o motivo de
Kong nos metais. Mas a subida de Jack à cúpula é acompanhada por movimento ascen­
dente que culmina em uma rápida inserção do tema da jovem. O filme termina com o
tema de Kong.

P o l i f o n ia A u d io v is u a l : T e o r ia e P r á t ic a

A busca de uma correspondência entre movimento musical e visual, tão bem exem­
plificada em King Kong, lembra-nos o famoso artigo de Eisenstein: "Forma e conteúdo:
prática" (199 0 a :9 7 -l32). Na "Declaração", de 1927, Eisenstein demonstrava, como já foi
mencionado, uma compreensão intuitiva daquilo que seria uma relação polifônica en­
tre som e imagem. Em 1940, já com o cinema sonoro consolidado, ele tentaria forma­
lizar suas idéias em uma série de três artigos intitulada Montagem vertical, da qual "Forma
e conteúdo: prática" é o último12.
No primeiro artigo da série, "A sincronização dos sentidos", Eisenstein retoma o
conceito de polifonia para abordar a relação entre som e imagem no contexto audiovi­
sual. Como teórico, Eisenstein sempre insistiu na montagem como a grande especifici­
dade da linguagem do cinema e sua abordagem da polifonia audiovisual está baseada
nela. Conforme afirma, em "A sincronização dos sentidos":

Não há diferença fundamental quanto às abordagens dos problemas da mon­


tagem puramente visual e da montagem que liga diferentes esferas dos sentidos -
particularmente a imagem visual à sonora - no processo de criação de uma ima­
gem única, unificadora, sonoro-visual.
Como um princípio, isto era conhecido por nós desde 1928, quando Pudovkin,
Alexandrov e eu lançamos nossa "Declaração" sobre o cinema sonoro.
Mas um princípio não é mais do que um princípio, enquanto nossa tarefa
atual e urgente é encontrar a correta abordagem deste novo tipo de montagem.
Minha busca desta abordagem esteve ligada à produção de Alexander Nevslzy.
E este novo tipo de montagem, associado a este filme, eu chamei de: montagem ver­
tical (1990a:52)

O conceito de verticalidade, associado à construção polifônica audiovisual, é em ­


prestado por Eisenstein diretamente da conceituação musical de polifonia. Os termos sin­
cronização, polifônico e vertical não são usados casualmente. Eisenstein entende a
constmção audiovisual como algo similar à construção polifônica em música, como po­
demos notar pela continuidade de seu texto:

12. Os dois primeiros são "A sincronização dos sentidos" e "Cor e significado", tam­
bém publicados em O sentido do filme.
Playing on the screen 145

Todos estão familiarizados com o aspecto de uma partitura orquestral. Há vá­


rias pautas, cada uma contendo a parte de um instrumento ou de um grupo de ins­
trumentos afins. Cada parte é desenvolvida horizontalmente. Mas a estrutura
vertical não desempenha um papel menos importante (...). Por meio da progres­
são da linha vertical que permeia toda a orquestra e entrelaçado horizontalmente,
desenvolve-se o movimento musical complexo e harmônico de toda a orquestra.

A idéia de uma relação vertical, polifônica, está, portanto, na base da concepção de


cinema sonoro de Eisenstein. Para ele, o movimento é o ponto comum entre o visual e
o sonoro:
Para ligar tais elementos, encontramos uma linguagem comum a ambos - o
movimento. (...) O movimento revelará todos os substratos da sincronização inter­
na que queremos estabelecer. O movimento nos mostrará de uma forma concreta
o significado e o método do processo de fusão.

Eisenstein também reconhece o ritmo como fator comum entre os discursos so­
noro e visual. Contudo, para ele essa relação básica é por demais elementar. Sobre o as­
pecto rítmico da montagem audiovisual, ele afirma:

Nas formas mais rudimentares de expressão, ambos os elementos (a imagem


e seu som) serão controlados por uma identidade de ritmo, de acordo com o con­
teúdo da cena. Este é o caso mais simples, mais fácil e mais freqüente de monta­
gem audiovisual, que consiste em planos cortados e montados com o ritmo da
música da trilha sonora paralela.
(...) Porém, é evidente que, mesmo neste nível comparativamente baixo de
sincronização, há uma possibilidade de se criarem composições interessantes e ex­
pressivas.
A partir destes casos mais simples - simples coincidência métrica de cadên­
cia ( ...) - , é possível organizar uma ampla variedade de combinações sincopadas e
um contraponto puramente rítmico na execução controlada de ritmos livres, pla­
nos de diversas distâncias, temas repetidos e repercutidos, e assim por diante.

O que talvez tenha impedido Eisenstein de chegar a uma compreensão mais pro­
funda da polifonia audiovisual é a sua insistência em encontrar "correspondências ab­
solutas". Ele já havia identificado a limitação de uma abordagem puramente rítmica da
relação entre os movimentos sonoro e visual. Ao mesmo tempo, minimiza a importân­
cia da questão rítmica, a temporalidade, para propor correspondências de caráter
especulativo. É traído, também, por sua insistência em identificar essas correspondên­
cias por termos técnicos musicais. Tomando as relações rítmicas com o "um nível
comparativamente baixo de sincronização", Eisenstein vai, então, buscar o que entende
como o correspondente visual do movimento melódico: a cor. Mais adiante, no tercei­
ro artigo da série, sua insistência em encontrar um equivalente sonoro do movimento
visual conduz a uma interpretação do "movimento" intemo do quadro. Eisenstein tece
um raciocínio elaborado para desenvolver um método de construção com música e ima­
gens. Seu grande experimento baseado em tal método aconteceria no filme Alexander
Nevsky (Alexander Nevsky, URSS, 1938). Nesse filme, Eisenstein pôde pôr em prática to­
dos os seus conceitos teóricos apresentados em seu artigo.
146 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

Alexander Nevsky narra a história da batalha entre russos e alemães de 1242, da qual
os russos saem vitoriosos. O filme tem um claro propósito político e se enquadra per­
feitamente no modelo de arte engajada, característico da produção soviética do perío­
do. A sociedade revolucionária é projetada na Rússia medieval, defendida por seu povo
sob a liderança carismática de Alexander Nevsky da dominação da grande inimiga, a cris­
tandade, representada pelos cavaleiros da ordem teutônica. O filme enquadrava-se per­
feitamente no contexto político da Europa à beira da Segunda Guerra Mundial e no
processo de afirmação do regime stalinista.
A música de Alexander Nevsky é de um dos maiores compositores do século, Sergei
Prokofiev. O compositor soube adequar-se à experimentação proposta por Eisenstein e,
ao menos pelo que nos indica o relato do diretor, a criação foi participativa, com gran­
de colaboração de ambas as partes. Prokofiev era um músico de formação tradicional,
herdeiro da tradição musical tanto do Ocidente, quanto da Rússia na qual são comuns
as grandes formas, como o balé. Alexander Nevsky é tratado musicalmente como uma
obra de grandes proporções, uma composição nos moldes da tradição dramático-musi-
cal. O filme é pensado como uma ópera, mas cujas convenções subordinam-se às do ci­
nema. Provavelmente, ele está mais próximo daquilo que EmstToch entendia por filme-ópera.
O texto cantado é substituído pelo falado. Os coros permanecem, mas são cinematogra-
ficamente transformados. A ação filmada, sem texto, é usada em grande quantidade.
As legendas iniciais oferecem as primeiras informações sobre a narrativa que se se­
guirá: tempo, local e ação. Prokofiev acompanha as legendas com uma passagem musi­
cal em andamento lento e com pouca atividade rítmica. O contexto de invasões e guerra
que as legendas apresentam é tratado musicalmente com gravidade e contenção. Não é
a euforia da guerra que predomina, mas sua desolação. Esse texto inicial termina com
uma referência às batalhas com os mongóis e é sucedido pela primeira seqüência do fil­
me, que mostra um velho campo de batalha, um deserto povoado por restos de homens
e armas.
Já foi dito que a estrutura operística foi transformada no sentido de adequar-se às
convenções do cinema. Este é o momento propício para entendermos essa relação.
Prokofiev trata a passagem como sendo uma abertura para a obra. A função da abertura
é a de situar o espectador em relação ao que se seguirá, possibilitando o seu afastamento
do tempo cronológico e do mundo que o cerca para a imersão no tempo e no universo
da narrativa. Mas as possibilidades específicas do cinema permitem que ela atinja uma
outra dimensão. O tratamento épico da abertura, com uma narrativa escrita e, posterior­
mente, ilustrada pela seqüência do campo de batalha, na qual os planos se alternam para
mostrar diversos aspectos daquele espaço, é impossível no espetáculo ao vivo. O cinema
lança mão do recurso musical nos moldes da dramaturgia musical, da narrativa escrita,
literária e da imagem filmada, em planos estáticos que ressaltam a composição visual de
cada um desses planos como se fossem quadros do campo de batalha.
Eisenstein explora o plano sem movimento intemo, prática que pode ser observa­
da em todo o filme, bem como em outras obras de sua autoria. O movimento é dado pela
montagem, pela alternância de planos, e não pela ação ou movimento internos ao pla­
no. A música reitera a desolação do campo de batalha. Sobre um acorde de longa dura­
Playing on the screen 147

ção, um oboé apresenta uma melodia, lentamente, e, em seguida, as outras madeiras de­
senrolam-se melodicamente sobre as cordas (que sustentam acordes longos) com um
mínimo de movimento intemo.
A seqüência seguinte apresenta o primeiro coro do filme, que nada deixa a desejar
se comparado aos coros de óperas. É uma seqüência às margens do lago Plestcheyevo.
Vemos pescadores em suas atividades cotidianas. O coro canta a vitória contra os suecos
na batalha travada no rio Neva. A interferência épica do coro é explícita, pois não são os
pescadores que cantam. A glória da Rússia e seu povo são exaltados. Assim como na ópera,
ele funciona como voz da coletividade em contraposição à individualidade de cada uma
das personagens. A composição audiovisual, polifônica, apresenta o geral e o particular
em simultaneidade: o canto, voz da coletividade, do povo russo, somado aos pescadores.
Na ópera, o coro seria sucedido por alguma outra peça musical, uma ária, um recitativo
ou mesmo uma peça instmmental. No filme, a música cessa para que se inicie a ação
propriamente dita. A função antes exercida pelo canto passa a ser cumprida pelos diálo­
gos e pela ação filmada. Trata-se de uma ação rápida entre os pescadores liderados por
Alexander (Nikolai Cherkasov) e um chefe mongol. Alexander é convidado a abandonar
a Rússia para juntar-se aos mongóis como líder militar. Ele recusa o convite, reafirman­
do os valores mssos, numa atitude ufanista que permeia todo o filme. Terminado o diá­
logo, os mongóis partem e o coro retorna para encerrar a seqüência, reiterando que a
Rússia vencerá qualquer um que queira conquistá-la.
Durante toda a seqüência seguinte, que se passa na cidade de Novgorod, não há mú­
sica. Ela serve para dar início ao desenvolvimento dramático do filme. As personagens
são apresentadas: Ignat, o armeiro (Dmitri Orlov) e a dupla Vasili (Nikolai Okhlopkov)
e Oleksich (Alexander Abrikosov), que disputam o amor de Olga (Vera Ivasheva). Um
mensageiro informa que a cidade de Pskov foi tomada pelos alemães que marcham para
Novgorod. O povo é conclamado à luta. A burguesia local tenta contemporizar, pro­
pondo um acordo com o inimigo. O povo decide chamar Alexander para liderá-los
em sua luta.
A próxima seqüência musicada mostra Pskov sob o jugo teutônico. Ela tem início
com planos dos alemães com suas lanças e elmos escondendo totalmente suas faces.
Curiosamente, o motivo musical é muito parecido com o tema de Kong, em King Kong.
A abordagem musical da monstruosidade feita por Steiner, para Kong, e esta, de
Prokofiev, para os alemães, é praticamente idêntica. A seqüência prossegue em uma al­
ternância de planos nos quais há muito pouca ação, ainda que haja muitas pessoas. Ve­
mos a cidade destruída, fumaça, uma grande fogueira, monges, cavaleiros, os líderes
locais amarrados, o bispo, tudo acompanhado por um tema misterioso. Segue-se mais
um motivo que, no mesmo espírito, será usado em diversos momentos. A música só se
transforma quando é mostrada a população conquistada, acompanhada por uma melo­
dia melancólica que sublinha o sofrimento, contrastando, assim, com o tema dos ale­
mães. Este último retorna com toda a intensidade para concluir a parte inicial da
seqüência.
Há uma rápida passagem dialogada em que os alemães reafirmam sua arrogância.
O traidor Tverdilo (Sergei Blinnikov) é apresentado. Inicia-se o massacre. Os líderes são
148 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

arrastados, suas mulheres se desesperam. Vasilisa (Anna Danilova), a mulher guerreira,


personagem símbolo da bravura feminina, corre para o seu pai que a manda fugir e vingá-
los. Inicia-se um tema recorrente, de grande apelo melodramático: usado pela primeira
vez em tais circunstâncias, estabelece-se uma associação entre o sofrimento e o orgulho
do povo russo que a narrativa procura sempre reiterar.
No momento de começarem as execuções, os soldados alemães tocam estranhas
trom betas. O tim bre desses instrumentos foi forjado por Prokofiev, ao gosto de
Eisenstein. É pouco usual, próximo aos instrumentos de metal, mas menos definido, uma
tentativa de imitar o som de um instrumento primitivo de bocal. Segundo Eisenstein,
ele foi criado por Prokofiev a partir da imagem dos adereços filmados, o que ele chamou
de "um equivalente musical" da imagem. O tema musical executado por essa exótica
fanfarra, que também será recorrente, é bastante simples, como o são as chamadas mi­
litares. Ao som destas trombetas, as tropas alemãs partem em direção ao povo de Pskov.
A construção audiovisual de Eisenstein é curiosa. Por um lado, a fonte sonora é identifi­
cada na imagem dos corneteiros, por outro, ele não utiliza os ruídos e o massacre ocor­
re sem a presença de quaisquer sons naturalistas. É um tipo de construção muito próximo
à do cinema mudo. O motivo militar das trombetas é sucedido pela segunda parte do tema
dos alemães apresentado anteriormente. Crianças são arrancadas dos braços de mulhe­
res desesperadas. Retorna a melodia melancólica relacionada ao povo no início da se­
qüência, mas agora cantada pelo coro. Os alemães atiram as crianças na fogueira. Mais
uma vez, ouvimos o motivo dos vilões. Os temas do sofrimento do povo e da crueldade
dos vilões se alternam. Ainda uma vez, ouvimos o motivo inicial. As trombetas retomam
para anunciar a execução dos líderes. O pai de Vasilisa grita por Alexander. Uma última
transição musical conduz ao tema de sofrimento e orgulho do povo russo, que encerra
a seqüência.
A seqüência seguinte se passa na casa de Alexander, que recebe uma comitiva de
Novgorod. Os homens solicitam-no como líder para enfrentar os alemães. Ele afirma que
seus soldados não são o suficiente, será necessário recrutar os camponeses. A seqüência
da chamada e da adesão dos camponeses é, mais uma vez, um coro grandioso, cuja le­
tra conclama o povo à luta: "Avante Rússia, às armas, às armas!" Enquanto é cantado, ve­
mos os camponeses, em grande número, unindo-se para enfrentar o inimigo.
Se a seqüência de Pskov lembrava, em alguns momentos, as construções do cine­
ma mudo, nesta última Eisenstein usa o mesmo princípio para fazer uma sobreposição
típica do cinema sonoro: uma ação filmada, acompanhada pelo coro, que seria pratica­
mente inviável para o acompanhamento musical ao vivo do cinema mudo. Mais uma
vez, a convenção cinematográfica aproxima-se da operística, mas de uma forma tipica­
mente cinematográfica: o povo em marcha é mostrado em diversos planos, locais e si­
tuações, e sua ação é independente do canto. Assim, o cinema possibilita uma construção
em que cantores e atores estão em dimensões diferentes: o ator não precisa estar cantan­
do, como na ópera; canto e ação podem desenvolver-se simultaneamente, como vozes
do contraponto audiovisual.
A segunda parte do tema do coro é apresentada em sua versão instrumental para
acompanhar a chegada de Alexander e das tropas de defesa a Novgorod. Desta vez, a mú­
Playing on the screen 149

sica não ocupa sozinha o espaço sonoro: há sons de sinos e da multidão que aclama os
soldados. Há, novamente, uma seqüência sem música do discurso de Alexander
conclamando o povo de Novgorod a defender a Rússia. Ele é aclamado pela multidão. Os
sinos tocam. O coro retoma o mesmo tema da seqüência dos camponeses: "Levanta-te
Rússia, luta até a morte!" Pela primeira vez, Eisenstein une a música aos diálogos. O coro
cede lugar à orquestra e sobre ela os homens declaram suas ofertas à pátria russa: lan­
ças, escudos, machados e as próprias vidas. Retoma o coro, grandioso, em uma estrutu­
ra que lembra os responsórios. Nota-se, nesta seqüência, um procedimento clássico da
prática musical do cinema: o cuidado para que texto falado e cantado não se anulem ou
se prejudiquem, para que a atenção do espectador não se divida. Assim, no momento em
que teriam início as falas, Prokofiev recolhe o coro deixando que a orquestra dê conti­
nuidade musical à cena. Terminadas as falas, o coro retorna com toda a força. Adiante,
Eisenstein irá sobrepor o coro a outras falas, controlando apenas o volume. O resultado
não é tão eficiente.
Na noite que antecede a grande batalha, Prokofiev repete o tema musical do iní­
cio do filme utilizado para a sonorização das legendas que iniciavam a narrativa. A ten­
são e a expectativa do momento são, em grande parte, construídas pela música, já que a
ação propriamente dita não possui tais elementos. Vemos homens em torno do fogo e
Alexander caminha sobre o gelo. A expectativa e a agonia de quem espera a luta são ex­
pressas pela música. Liderados por Alexander, os homens preparam-se para receber o ata­
que alemão. Eles escolhem o local e armam a estratégia para enfrentá-lo. Tem início,
então, a seqüência mais conhecida do filme, usada por Eisenstein para exemplificar seu
"método" de correspondências audiovisuais. Ele afirmou ter se baseado nessa seqüência
pelo fato de ela ser composta de planos "quase imóveis", podendo ser reproduzida no pa­
pel sem grande perda de conteúdo, em forma de story board. A seqüência é composta de
doze planos que mostram as tropas mssas à espera do início da batalha, ao amanhecer.
Alternam-se planos gerais (Alexander, sobre a Montanha do Corvo, as tropas), planos
médios dos guerreiros e planos fechados de Vasilisa, Ignat e Savka. Em "Forma e conteúdo:
prática", Eisenstein ilustra a sua análise com um diagrama (1990a: 112-113). A primeira
linha contém um fotograma de cada plano, a segunda, a partitura musical, a terceira, um
diagrama de composição das imagens e a última, um diagrama do que ele entende por
"movimento" visual interno a cada um dos planos. Ele buscou uma correspondência
entre as linhas principais da composição de cada um dos quadros e o movimento da
música na partitura. A música se relaciona com os planos "por meio de um movimento
idêntico, que está na base do movimento musical, assim como do pictórico".
Em relação aos planos III e IV, Eisenstein afirma:

O primeiro acorde pode ser visualizado como uma "plataforma de lançamento".


As cinco semínimas seguintes, desenvolvendo-se numa escala ascendente, en­
contrariam uma visualização gestual natural numa linha ascendente tensa. Em con­
seqüência, em vez de descrever esta passagem com uma simples linha ascendente,
inclinaremos levemente em arco nosso gesto correspondente (...).
O acorde seguinte (no início do compasso 7), precedido por uma se­
micolcheia bastante acentuada, nessas circunstâncias, criará a impressão de uma
150 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

queda abrupta (...). O seguinte grupo de quatro repetições de uma única nota - em
colcheias, separadas por pausas - pode ser descrito naturalmente por um gesto ho­
rizontal, no qual as colcheias são indicadas por acentos uniformes (...). (1990a:108)

A respeito destas correspondências, Eisenstein diria:

(...) Ambos os gráficos de movimento correspondem-se absolutamente, isto


é, verificamos uma completa correspondência entre o movimento da música e o
movimento do olho sobre a composição plástica.
Em outras palavras, exatamente o mesmo movimento está na base de ambas as
estruturas, a musical e a plástica. (1990a: 109)

Porém, a impressão que temos quando assistimos à seqüência é totalmente diferen­


te. Vemos homens que aguardam um grande confronto, o qual pode custar suas vidas.
Mais uma vez, Eisenstein transita do geral para o particular: as tropas são apresentadas
em plano geral, depois vemos as fileiras de combatentes em plano médio e, por último,
os planos fechados das três personagens. O misto de ansiedade e orgulho expresso na
face de Vasilisa sintetiza o sentimento de todos ali presentes. Os planos são estáticos por­
que a espera é estática: uma ausência de ação que antecede a maior de todas as ações do
filme.
A música, antes de corresponder às linhas dos quadros, é estática e repetitiva como
a espera. Trata-se, basicamente, de uma frase de quatro compassos, que se repete por qua­
tro vezes. Ela inicia com um acorde longo em trêmulo. No final do primeiro compasso,
uma linha ascendente de semínimas, também em trêmulos, se desprende do acorde. O
terceiro compasso se inicia com uma semicolcheia acentuada que conduz a um outro
acorde sustentado em trêmulo. Sobre este último acorde, um pulso sobre uma única nota,
em posição equivalente às semínimas da frase anterior. Essa primeira frase é repetida, sem
modificações, dos compassos cinco a oito. O compasso nove é uma ponte que divide as
duas metades do tema. Em seguida, a frase é reapresentada, transposta ao intervalo de
quinta aumentada nos compassos dez a treze e, finalmente, repetida ainda uma vez, sem
modificações, dos compassos quatorze a dezessete. A música segue, à risca, a prática do
cinema desde o período mudo: combinação de unidades pequenas e repetições. O uso
de trêmulos para criar a situação de instabilidade e tensão também é bastante comum.
O movimento intemo à música é bastante restrito e resume-se, praticamente, ao movi­
mento de semínimas, ora ascendentes, ora como pulsos sobre uma única nota. Neste as­
pecto, a música reitera a ausência de movimento das imagens e reforça a ansiedade da
espera. A tensão cresce pela imutabilidade da música em cada uma das repetições. Mas
o que parece mais fascinante na música de Prokofiev para essa seqüência é a maneira
como ele explora a polifonia musical em função da polifonia audiovisual. Existem, cla­
ramente, dois planos na música. Um deles é o dos acordes em trêmulo, estáticos, que ser­
vem de base harmônica para a música e preenchem o espaço sonoro da seqüência. O
outro é o dos movimentos discretos das semínimas que se despregam desses acordes e
conferem expressividade à música. São esses movimentos que permitem que o fragmen­
to musical se individualize, que se diferencie da sonoridade pura e simples e adquira um
sentido musical. Em suma, os movimentos em semínimas estão para os acordes estáti­
cos como os planos fechados das personagens estão para os planos gerais das tropas. Eles
Playing on the screen 151

são responsáveis por uma expressividade possível de ser alcançada apenas no nível da
particularidade e, por isto mesmo, da expressividade dramática. É dessa soma de fatores
que vem a força expressiva da seqüência, fruto de uma complexa articulação audiovisual,
como tanto frisou Eisenstein.
Os preparativos para a batalha continuam. São mostrados os alemães recebendo as
bênçãos da Igreja. Ouve-se novamente o tema das trombetas que acompanhou o mas­
sacre em Pskov. Principia o ataque. Vê-se, ao longe, a cavalaria alemã. Inicia-se o tema
musical, orquestrado de forma a reforçar a sensação de aproximação da cavalaria. Ele
começa bem piano, nas cordas graves e percussão leve. Estas últimas executam apenas
um acompanhamento pulsante, em figuras rítmicas de igual duração, sobre as quais surge
um fragmento do tema das trombetas. A orquestra vem em um crescendo conforme a
cavalaria se aproxima. Ouve-se o segundo motivo do tema dos alemães. As cordas, nos
agudos, executam uma ponte. A orquestra cresce, os alemães estão mais próximos. Ao
motivo da ponte sobrepõe-se o das trombetas, que se altema com o dos alemães. O pul­
so da orquestra está muito próximo ao da cavalgada. O tema do sofrimento e orgulho
russos ressurge agora cantado pelo coro. Alexander manda Vasili para o campo de bata­
lha. Vasili abraça Oleksich, cena esta que mereceu o seguinte comentário de Eisenstein:

(...) Seções inteiras da partitura algumas vezes sugeriram soluções visuais plás­
ticas que nem ele [Prokofiev] nem eu havíamos vislumbrado antes. Freqüentemen­
te essas seções se adequavam tão perfeitamente ao "som interior" unificado da
seqüência, que agora parecem "concebidas previamente". Foi o caso da cena de
Vaska e Gravilo Oleksich se abraçando antes de partirem para seus postos, assim
como de uma grande parte da seqüência dos cavaleiros galopando para o ataque -
ambas as seqüências tiveram efeitos que não esperávamos absolutamente.
(1990a:98)

Próximo ao momento do encontro dos combatentes, a música não apenas cresce,


mas acelera-se, aumentando a tensão e preparando o grande momento. Os motivos mis­
turam-se. A música cessa bruscamente para que ouçamos apenas os últimos sons dos cas­
cos dos cavalos. No momento do encontro das tropas, ouvimos apenas o grito coletivo
dos combatentes. Os motivos apresentados anteriormente sobrepõem-se na continua­
ção da batalha quando os alemães recuam para se reorganizar. A batalha prossegue.
Alexander chama o Grão Mestre da Ordem Teutônica para um duelo. A música dessa
passagem mistura motivos extraídos do coro da seqüência dos camponeses, do ataque de
Oleksich e Alexander aos flancos da cunha alemã e do tema das trombetas. É curioso o
tratamento do som das espadas inserido na música e executado pela percussão da orques­
tra. Sendo parte da construção musical, ele não está sincronizado às imagens, ainda que
em alguns momentos haja uma coincidência entre os encontros das espadas e o som.
Ou seja, o que ocorre é muito mais uma representação poética do som de uma luta de
espadas do que a tentativa de uma construção de caráter realista dessa situação. É uma
convenção mais próxima à do cinema mudo, em que não havia sincronia, ou da ópera,
em que todo tipo de som é incorporado à música.
Os russos perseguem os alemães, já vencidos, que batem em retirada. A seqüência
é acompanhada pelo tema musical do ataque russo com algumas rápidas inserções do
152 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

tema das trombetas. É nessa seqüência que Ignat é morto por Tverdilo (Sergei Blinnikov),
o traidor. Os alemães são encurralados sobre o lago congelado. O gelo começa a rachar
e eles são engolidos pelas águas. A seqüência é acompanhada praticamente apenas pe­
los instrumentos de percussão, com os tímpanos em primeiro plano. Os outros naipes
de orquestra intervêm discretamente em alguns pontos. Perto do fim, ouve-se novamente
o tema das trombetas. Alexander observa o campo de batalha onde jazem tantos mor­
tos. É introduzido um tema fúnebre que será sempre associado a mortos e feridos até o
final do filme. Em seguida, vemos Olga procurando por Vasili e Oleksich entre os mor­
tos e feridos. O tema do orgulho e do sofrimento ressurge cantado não pelo coro, mas
por uma voz solista feminina. O texto louva aqueles que morreram pela Rússia e, em sua
parte final, se identifica com o ponto de vista de Olga, dizendo que será esposa e aman­
te do jovem sobrevivente e que seu esposo será escolhido por sua bravura. É mais uma
situação em que Prokofiev aproxima o cinema das convenções operísticas. A passagem
se configura como uma verdadeira ária de Olga: se estivesse no palco, seria ela a cantá-
la, mas, no cinema, é possível que ela aconteça sem que qualquer personagem assuma a
condição de cantor.
O retorno das tropas a Pskov é acompanhado por três temas musicais: o primeiro
é o dos mortos, acompanhado pelo tema fúnebre; o segundo é o dos prisioneiros alemães
(não é um tema, propriamente dito, mas uma sonoridade criada por movimentos rápi­
dos nas madeiras e cordas, na região grave); em seguida, entram os heróis vitoriosos
acompanhados pelo tema do primeiro coro do filme, agora em versão instrumental.
Após o julgamento dos alemães, a estrutura dramática caminha para a sua resolu­
ção. Vasili entrega Olga ao ferido Oleksich, fazendo questão de afirmar que ele, depois
de Vasilisa, foi o mais bravo. E, por fim, toma Vasilisa como noiva. Segue-se a festa da vi­
tória cuja música é produzida por estranhos instmmentos de sopro e percussão, criados
visualmente por Eisenstein e sonoramente por Prokofiev, tal como havia ocorrido com
as trombetas.
O filme termina com uma legenda bastante apropriada para a sua função propa-
gandística, avisando que "todo aquele que vier com ferro, com ferro será ferido". Ela é
acompanhada pelo glorioso tema do primeiro coro, cuja letra possuía um sentido seme­
lhante.
Eisenstein procurou um caminho bastante tortuoso para explicar a relação da mú­
sica com as imagens em composições audiovisuais. Sua opção pela abordagem do pla­
no cinematográfico como um "quadro", um objeto pictórico, leva a alguns equívocos.
Ele teria muito mais material para desenvolver seu "método" se buscasse as relações de
movimento propriamente dito entre os planos e internamente ao plano. As similarida­
des entre o movimento musical e visual foram também buscadas no cinema america­
no sem uma preocupação teórica ou formal tão acentuada. Sob este aspecto, as
proposições de Eisenstein e dos criadores do mickeymousing possuem uma interseção, que
é, justamente, o movimento.
A capacidade de perceber que o movimento estava na base das relações audiovisuais
é mérito de Eisenstein como teórico. Também é mérito seu reconhecer que som e ima-
Playing on the screen 153

gem se relacionam polifonicamente na obra audiovisual tal como ocorre em um con­


traponto ou na "partitura orquestral" que ele apresenta como referência. Indo além, é
possível dizer que Eisenstein foi capaz de reconhecer similaridades entre o discurso mu­
sical e o cinematográfico e que, portanto, a música poderia servir como referencial para
a compreensão do cinema.
Eisenstein possui a capacidade característica dos grandes artistas e pensadores: por
mais que suas afirmações sejam questionáveis, seu pensamento e criação sempre desper­
tarão reflexões sobre os assuntos que ele se propôs a discutir.

O M elo d ram a F í l m ic o

Um dos maiores filmes de todos os tempos é E o vento levou (Gone With the Wind,
EUA, 1939). É dele, também, uma das maiores trilhas musicais de todos os tempos. Aque­
les que não concordarem com esta afirmação sob o ponto de vista estético, ao menos se­
rão obrigados a concordar no que diz respeito à duração: apenas trinta minutos, em mais
de duzentos e vinte, não possuem música de qualquer espécie.
Musicalmente, E o vento levou é ao mesmo tempo o ápice e a síntese das práticas
musicais do cinema dos anos 1930. O mickeymousing é abundante, mas a sofisticação da
música é muito maior do que em King Kong, ainda que ambas as trilhas sejam de Max
Steiner.
Vale a pena observar alguns aspectos dessa trilha para que possamos compreender
as transformações que a música de cinema sofreu, bem como o que ela conservou entre
os anos que separam King Kong de E o vento levou. Um aspecto que merece destaque é o
da organização e manipulação do material temático musical do filme. Steiner criou sete
motivos principais, cada um com uma função específica: quatro deles para personagens
isoladas - Scarlett O'Hara (Vivien Leigh), Rhett Butler (Clark Gable), Melanie Hamil­
ton (Olivia de Havilland) e Gerald O'Hara (Thomas Mitchell) - , dois para casais -
Melanie e Ashley Wilkes (Leslie Howard) - e, finalmente, o tema de Tara, o mais impor­
tante do filme. Sobre Tara, Steiner afirma:

Tara é mais que uma plantação, mais que uma agradável casa antiga, repleta
de orgulhosas e tristes e sempre adoráveis lembranças. Tara é uma coisa viva, dan­
do e exigindo vida. Tara é a idéia que mantém Scarlett em sua incansável busca de
preservar com ela [Tara] a herança espiritual dos O'Hara e do velho Sul. (Apud
Usher, 1987:165)

É exatamente com o tema de Tara que o filme se inicia. É um tema grandioso, de


linha melódica bem definida e de fácil assimilação:
154 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

Ele é construído sobre um único motivo, combinado por meio de várias transpo­
sições. Pode-se notar que a prática de criar o material temático a partir de pequenas uni­
dades musicais, já presente nas coletâneas musicais para o cinema mudo, continua
válida. Um motivo simples, além de ser facilmente assimilado, pode ser identificado com
muita rapidez pelo espectador, sem exigir que ele desvie sua atenção para a música. Uma
melodia construída a partir de um único motivo pode ser facilmente fragmentada, sem
perder sua identidade melódica e, conseqüentemente, sua eficiência como leitmotiv.
Outro aspecto do tema de Tara que vale a pena ser considerado é o da sugestão do
texto. Não é possível dizer se foi intenção de Steiner ou não, mas o motivo do tema de
Tara segue silabicamente, o título do filme:

Na época em que E o vento levou foi produzido, o tratamento musical dos filmes
já havia adquirido um alto grau de sofisticação. Nos exemplos até aqui apresentados, pode-
se perceber a recorrência temática de leitmotivs, fato praticamente comum no cinema
desde que ele se consolidou como linguagem. Mas estas recorrências apresentam trans­
formações muito tímidas dos temas. Em certo sentido, o conceito wagneriano de
leitmotiv havia sido incorporado, mas em sua acepção mais simples e imediata que é a
do tema ligado a uma personagem ou situação particular. Porém, o sentido mais amplo
do conceito, justamente, o de usar os leitmotivs como estruturas dramáüco-musicais de
grande maleabilidade, transformando-os no sentido de obter nuanças mais sutis da com­
posição dramática ou narrativa, ainda era pouco explorado. Essa transformação pode ser
bem apreciada em E o vento levou. O tema de Tara, por exemplo, aparece ao longo do fil­
me transformado e combinado com outros motivos com uma variedade surpreenden­
te. Na abertura do filme, ele é apresentado em sua forma original, completa, para que
fique bem claro e para que o espectador possa identificá-lo sem dificuldade quando ele
recorre. O uso deste tema, na abertura, como main title, também já indica que ele será
muito importante na estrutura dramático-musical do filme. A cada recorrência, o espec­
tador é remetido à idéia central do filme, ao núcleo de sua constmção dramática.
A primeira associação do tema com Tara se dá no início do filme, quando Scarlett
conversa com seu pai sob a árvore que se tornará um índice de Tara. A jovem expressa
ao pai seu desinteresse pela fazenda, que é inversamente proporcional ao seu interesse
por Ashley. O pai a repreende, lembra que a terra é a única coisa que importa e diz que
o amor pela terra virá com o tempo. O tema começa sob o diálogo, sutilmente. Ele au­
menta o impacto emocional do texto, que se trata de um apaixonado discurso em lou­
vor da terra. O texto acaba, a música ocupa todo o espaço sonoro, sai do segundo plano
para o primeiro. A câmera começa a se afastar até que os dois sejam engolidos por Tara.
Playing on the screen 155

Temos, nesta seqüência, o uso de um recurso que vale a pena ressaltar. Enquanto a câ­
mera se afasta das personagens, a música cresce. Temos um movimento em sentido con­
trário do som e da imagem: aproximação para um e afastamento para a outra. A música
sai do segundo plano para o primeiro, enquanto as personagens saem do plano fechado
para o geral.
No final da guerra, Scarlett tenta fugir de Atlanta, prestes a ser invadida pelo exér­
cito do norte. Ela discute com Rhett, que tenta dissuadi-la de ir para Tara. A música que
acompanha a seqüência vem num crescendo gradual de intensidade, altura e atividade
rítmica. O tratamento dramático-musical é similar ao de um dueto operístico. A músi­
ca pontua o diálogo sustentando-o como um acompanhamento para os "cantores". O
apelo melodramático é muito forte. Quando Scarlett grita, as cordas sublinham seu de­
sespero em movimentos rápidos e pouco definidos, mimetizando seu descontrole. Final­
mente, Rhett percebe que não conseguirá convencê-la e ela chora em seu ombro. A
orquestra se acalma. O tema de Tara surge executado apenas pelas cordas, menos gran­
dioso do que das vezes anteriores. O motivo das cordas é respondido por um violino so­
lista que lhe confere um caráter mais intimista. As progressões melódica e harmônica
são alteradas para adequarem-se à situação.
Após a fuga de Atlanta, Rhett acompanha Scarlett, Melanie, seu filho recém-nasci­
do e Prissy (Butterfly McQueen), até que estejam no caminho certo para Tara, e parte para
juntar-se aos confederados, já à beira da rendição. Antes de partir, ele declara seu amor
por Scarlett, que resiste. Finalmente, sem Rhett, em prantos, Scarlett parte em direção a
Tara. Retoma o tema de Tara sem modificações melódicas significativas.
O gmpo, finalmente, chega a Tara. Scarlett chicoteia o cavalo, que morre de
exaustão. O tema de Tara principia nas cordas, em andamento um pouco mais lento. É
interessante notar como Steiner trabalha a combinação de diálogos e música como um
verdadeiro contraponto. Música e voz dialogam, cada qual aproveitando a deixa da ou­
tra e respeitando seu espaço. No início, o tema desenvolve-se em sua forma original, mas
em um arranjo mais econômico, o que ocorre desde o momento da chegada até a mor­
te do cavalo. Vem à tona a questão que preocupava Scarlett desde o diálogo com Rhett
em Atlanta, quando ela disse: "Não posso ver a casa, ela está lá? Eles a queimaram?" Há
um rápido silêncio das vozes. O corte conduz a um plano que mostra o céu. Nuvens pas­
sam rapidamente, expondo a Lua antes encoberta. A música cresce, o movimento inter­
no do arranjo aumenta. O plano fechado do rosto de Scarlett, escuro, rapidamente se
ilumina. A casa também se ilumina. Scarlett exclama: "Está tudo bem! Eles não a queima­
ram! Ela ainda está lá!" Sob esse texto, há uma modulação que conduz a uma cadência
suspensa, um acorde, sustentado em fermata, que prolonga a suspensão e prepara a si­
tuação seguinte. Inicia-se uma passagem musical rápida, uma ponte seqüencial ascenden­
te, em tercinas, para acompanhar a corrida de Scarlett em direção à casa, gritando:
"Mamãe! Papai!" Quando seu pai abre a porta, arrasado, o motivo principal do tema é
ouvido novamente, na região média, apenas uma vez. Uma rápida ponte conduz o tema
ao seu fim e prepara a inserção de outros temas.
Um dos momentos de maior impacto do filme é a seqüência em que Scarlett, fa­
minta e arrasada pelo estado de penúria em que se encontra Tara, caminha pelo terreno
156 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

destruído. O tema musical começa timidamente enquanto Scarlett ainda está dentro de
casa. O arranjo é calmo e lento. A instrumentação é mais econômica e intimista. Em se­
guida entram as cordas. Scarlett caminha pelo campo. A música se torna mais tensa.
Scarlett arranca do chão uma raiz e come-a com avidez. Sente náuseas. A música fica
mais movimentada. Ela vai ao chão e sua queda é pontuada por um acorde grave. Até esse
ponto, a seqüência aconteceu inteiramente sem texto falado, apenas imagem e música.
A música sustenta a ação sublinhando o desespero de Scarlett e funcionando como uma
introdução ao texto que se segue. A queda de Scarlett é indicativa do extremo de sua de­
gradação, a partir da qual ela iniciará sua escalada em direção ao topo. A música partici­
pa da construção simbólica dessa situação dramática. A queda havia sido pontuada com
um acorde grave. Principia uma nova seção da música. Ela começa, então, a levantar-se.
Um motivo em movimento seqüencial ascendente acompanha seu movimento. Con­
forme caminha em direção ao agudo, ele se toma mais intenso. A passagem conclui com
dois acordes em tutti orquestral. O plano se fecha no rosto de Scarlett. Os acordes são a
deixa para o texto de Scarlett, como o final de um introdução. Ela inicia seu "solo" - "Deus
é minha testemunha... Mesmo que eu precise mentir, roubar, trair ou matar, Deus é mi­
nha testemunha, eu nunca sentirei fome outra vez!" - e a orquestra deixa de executar os
motivos melódicos e passa a sustentar acordes parados. O texto ocorre como se fosse um
recitativo operístico. Os acordes realizam um caminho harmônico que prepara o retor­
no do tema de Tara. A progressão termina na dominante, que é sustentada até que ela ter­
mine seu texto. O tema explode em fortissimo, um tutti, com toda a grandiosidade com
que havia aparecido no início do filme. É impossível não acreditar que Scarlett está dis­
posta a cumprir o que prometeu.
A confederação, derrotada, é invadida pelo inimigo. Uma legenda faz a transição,
nos moldes do cinema mudo, narrando a derrota do Sul. A música que acompanha a se­
qüência merece ser observada, pois possui um caráter nitidamente ilustrativo. O texto
começa com a frase: "E o vento soprou na Georgia". A orquestra executa um fragmento
musical que apresenta rápidos glissandos do grave ao agudo e vice-versa, com uma com­
binação timbrística que procura imitar o som e a sensação do vento. A segunda parte do
texto fala sobre a invasão propriamente dita. A sonoridade de vento é substituída por um
tema que possui elementos das músicas militares: o pulso da marcha e os clarins. O ar­
ranjo é pesado, não possui a grandiosidade deste tipo de música, e, sim, o caráter opres­
sivo da invasão corroborado pelas imagens da destruição. O tema é adaptado da canção
tradicional Marching Through Georgia. Essa marcha vai crescendo até que surge a legen­
da: "Tara sobreviveu para enfrentar o inferno e a penúria da derrota". Com ela, entra o
tema de Tara um pouco mais acelerado. Vemos as irmãs O'Hara colhendo algodão. Sue
reclama de Scarlett, mas nem tem tempo para completar sua frase, pois é interrompida
por esta última que manda que ela volte ao trabalho. A orquestra repousa sobre um acor­
de. Movimentos rápidos acompanham o diálogo. Sue diz que odeia Tara. Um trêmulo
grave cresce até o tapa de Scarlett, que é pontuado por um ataque seco da orquestra.
Scarlett ordena que ela nunca mais repita aquilo. O motivo do tema é apresentado três
vezes, transformado melódica e harmonicamente no sentido de atender às necessidades
da situação dramática.
Playing on the screen 157

Um outro momento de grande intensidade dramática é a cena de Scarlett e Ashley


no celeiro em minas. Ainda que consiga beijá-lo, ela é mais uma vez rejeitada. A seqüên­
cia é longa e vários temas são usados para compor a música que a acompanha. No final,
Scarlett pergunta: "Então, nada me resta?" Ashley responde-lhe dizendo que há algo que
ela ama mais que ele, mas que ainda não sabe: Tara. Ele coloca uma porção da terra de
Tara em sua mão. Seu gesto é a deixa para mais uma entrada do tema. Seu andamento é
mais lento. Ele é executado pelas cordas, na região média e grave. No final, uma peque­
na coda cromática conclui a seqüência, sem estabelecer um fim muito claro, e faz a ponte
para a música da seqüência seguinte.
O tema é transformado, mais uma vez, na seqüência da morte do pai de Scarlett.
Ele sai a cavalo, em perseguição ao coche de seu anügo capataz que agora tenta explorá-
lo. O tema é arranjado à maneira característica das cavalgadas, baseado em unidades rít­
micas formadas por ritmos pontuados ou em tercinas. Ele cai do cavalo. A imagem de
seu corpo caído é acompanhada por um fragmento de seu leitmotiv. O tema de Tara vol­
ta mais lento e com mais alterações de andamento, no momento em que vemos as lá­
pides do pai e da mãe de Scarlett. O arranjo é mais sucinto, sem muita atividade intema.
Imagem e música, associadas, cumprem não apenas a função de informar a morte da
personagem, mas também de indicar a passagem de tempo, uma função claramente nar­
rativa.
Em sua viagem de lua-de-mel com Rhett, Scarlett acorda aos gritos, atormentada
por um pesadelo. Um efeito orquestral simula o som de vento. Ela narra seu sonho para
Rhett: com fome, frio e cansada, ela procura algo oculto no nevoeiro que não consegue
encontrar. Rhett lhe pergunta o que busca. Ela diz que não sabe, que sempre teve o mes­
mo sonho e nunca soube. Imediatamente, o motivo principal do tema de Tara é ouvido
por três vezes, sem que apareça, no entanto, o tema propriamente dito. Mais uma vez, a
idéia de que Scarlett e Tara são indissociáveis é reiterada. Quem indica que aquilo que
Scarlett busca é Tara, cujo destino confunde-se com o seu, é a música. A música é, clara­
mente, uma intervenção narrativa, pois a própria personagem não tem consciência de
sua ligação com Tara.
Em seguida, Scarlett pede a Rhett que a leve de volta a Tara. A cadência que conclui
a passagem musical da cena do pesadelo termina suspensa na dominante, que resolve
no início de mais uma exposição do tema. Scarlett e Rhett passeiam por Tara. Mais uma
vez, a música contribui para que a indicação da passagem de tempo seja feita com natu­
ralidade e sem perda de unidade: a ação é descontínua e se passa em tempos e lugares
diferentes, mas a música promove a unidade e facilita a compreensão dessas ações como
uma continuidade.
Rhett autoriza Scarlett a reconstmir Tara, lembrando-a de que é daquela terra que
ela retira sua força. O tema acompanha a seqüência discretamente.
A última entrada do tema ocorre no final do filme. Rhett parte, abandonando
Scarlett que, finalmente, descobriu que o ama. Ela chora, caída sobre os degraus de sua
escada. Começam a surgir, em off, as falas de seu pai, de Ashley e de Rhett, todas a res­
peito de sua ligação com Tara. A articulação sugere a confusão mental da personagem,
as frases repetem-se. Quando as frases começam, a orquestra prepara o retomo do tema.
158 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

Ele vai sendo sugerido aos poucos, tomando forma na mesma proporção em que se or­
ganiza a mente da personagem, imersa no turbilhão de frases. Apenas no momento em
que ela toma consciência da importância de Tara, é que o tema é apresentado. Mas ele
se altera no sentido de adequar-se ao momento melodramático, suportando o texto da
personagem: o motivo é apresentado com bastante clareza, mas de forma contida. No
momento em que ela recupera a autoconfiança, expressa na última frase: "amanhã será
um outro dia", o tema ressurge com toda a grandiosidade de suas primeiras inserções,
mas reforçado por um coro a fim de atingir o seu ápice. O filme termina com Scarlett
na mesma posição em que havia estado com seu pai no início do filme, sob a silhueta
da velha árvore. O final é prolongado e enfatizado por uma cadência musical do tipo pla-
gal. Scarlett e Tara, finalmente, são uma única coisa.
Um aspecto que não pode ser esquecido é a similaridade entre E o vento levou e O
nascimento de uma nação. Ambos se passam em épocas e locais idênticos e têm na Guer­
ra de Secessão o pano de fundo para o desenvolvimento de suas ações. Musicalmente,
eles também são similares, pois fazem uso de uma combinação de música original com
temas tradicionais do Sul. Da mesma maneira que Breil, Steiner dividiu o material mu­
sical, reservando os temas tradicionais para acompanhar as situações ligadas à guerra e
a música original para o drama vivido pelas personagens. Muitas das canções usadas em
ambos os filmes são coincidentes, com o Dixie, The Bonnie Blue Flag, Maryland My
Maryland, Old Folks At Home, entre outras. Dentre todas, a mais relevante e mais utili­
zada é Dixie, uma canção que simboliza o Sul. Há uma lenda de que teria sido graças a
ela que Griffith conseguiu convencer Mr. Clune, proprietário do Clunes de Los Angeles,
a investir em O nascimento de uma nação, com o seguinte argumento:
Imagine, Mr. Clune, esses soldados marchando sob a vibrante música da me­
lhor orquestra, não apenas de Los Angeles, mas a melhor do mundo - tocando Dixie
- Dixiel Isso os arrancaria [o público] de suas poltronas. (Hart apud Miller Marks,
1997:133)

Em E o vento levou, Dixie é colocada em uma posição estratégica, associada ao tema


de Tara, já na abertura. Ela acompanha a legenda inicial que introduz o filme. As ima­
gens filmadas mostram a silhueta de negros em seu trabalho. O texto fala sobre o "ve­
lho Sul", "uma civilização que o vento levou", o que faz Dixie ser, também, associada ao
título do filme:
Playing on the screen 159

O conjunto de relações dramático-musicais possibilitado por essa articulação é bas­


tante rico. A partir daí, o tema de Tara e Dixie permanecerão associados, ao longo do fil­
me, como representantes de dois de seus aspectos. Dixie representa o Sul: seus soldados,
a guerra, seu orgulho em um primeiro momento, e depois a derrota e a subjugação. Tara
e Scarlett, com seus respectivos temas, são representações particulares desse aspecto mais
geral em que Tara é todo o Sul conquistado e Scarlett é cada um dos sulistas derrotados.
Por isso, o tema de Tara está sempre ligado às relações particulares de Scarlett e aos que
a rodeiam, e Dixie refere-se sempre ao aspecto genérico dessas relações, à guerra, ao mun­
do exterior a Tara.
O tema toma a surgir no final da seqüência do churrasco em Twelve Oaks, quan­
do é declarada a guerra. A articulação dramática é muito interessante, pois começa com
Scarlett, rejeitada por Ashley, ouvindo os comentários nada elogiosos de outras jovens a
seu respeito. Humilhada, ela se afasta. Um forte grito antecede a correria de todos. A guer­
ra foi declarada, a euforia é geral. A orquestra inicia o Dixie em sua versão mais eufórica
e grandiosa. Scarlett está alheia a tudo, mergulhada em si mesma, caminha em direção
contrária a todos.
Já em plena guerra, há a seqüência da distribuição das listas de mortos. Uma senhora
lê a notícia da morte de seu filho. Ela caminha até seu marido, que é o maestro da ban­
da. Ambos demonstram claramente sua comoção. Sem perder o orgulho, ele se vira para
a banda e dá a entrada de Dixie. Mais uma vez, o fulgor da música é usado com o con­
traste à agonia da guerra, que é vista na ação filmada. A construção é digna de nota. Sem
que se diga uma única palavra o espectador é informado de que o Sul se encontra à bei­
ra do colapso. Esta informação é dada pelo volume de mortos constantes da lista e tam­
bém por um detalhe de enquadramento peculiar. No momento em que a banda começa
a tocar, o plano vai se fechando sobre um jovem adolescente que toca seu flautim. Ime­
diatamente, percebemos que o Sul não tem mais homens adultos para lutar. A derrota é
iminente. Dixie está acima de tudo e de todos, alheia a qualquer sofrimento, inabalável
como o Sul, que não consegue antever seu destino.
Uma das articulações audiovisuais mais interessantes do filme é a do campo repleto
de feridos, onde Scarlett procura o médico para fazer o parto de Melanie. A seqüência
começa com um plano fechado em Scarlett. Ouve-se uma variação de Dixie em modo
menor, a fim de expressar a tragédia do Sul:
16ü Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

Em seguida, vem uma ação em plano médio. Scarlett está rodeada por homens que
passam em todas as direções carregando feridos. Alguns feridos estão deitados no chão.
Aos poucos, a câmera se afasta e se vêem cada vez mais feridos. Conclui-se a variação de
Dixie, fundindo-a com Maryland, My Maryland, outra canção tradicional. Com o
contracanto desta última melodia, ouvimos o motivo do toque de clarim de Recolher
('Taps), a chamada militar usada tanto para o recolhimento diário quanto para os fune­
rais.13 A citação é sutil, mas bastante clara.
A câmera continua se afastando. Maryland, My Maryland dá lugar a outra canção
tradicional do Sul, Old Folks At Home. Quando a frase musical está para se concluir, a
câmera mostra um plano geral do campo onde se amontoam centenas de feridos. Sur­
ge, de repente, em primeiro plano, a bandeira confederada. Tremulando sobre o cam­
po, ela preenche toda a tela, e se ouve, mais uma vez, o toque de recolher, agora não mais
como contracanto, mas como melodia principal. O apelo emocional da seqüência é
muito grande e a intenção de envolver o espectador por essa via é patente. A sofistica­
ção dessa articulação pode ser percebida se a comparamos com uma seqüência de fun­
ção similar em O nascimento de uma nação. Trata-se da seqüência introduzida pela
legenda "War's Peace", que mostra os mortos amontoados no campo de batalha e que
também é acompanhada pelo toque de recolher.
Após a fuga de Atlanta, Scarlett e Rhett cruzam com soldados que batem em reti­
rada. Eles estão extenuados. Arrastam-se com dificuldade pela estrada, um jovem cai. En­
quanto isso, Scarlett e Rhett conversam sobre a derrota do Sul. A seqüência é toda
acompanhada por uma peça musical criada a partir do tema de Dixie. Nesse caso, con­
tudo, não há nenhum a grandiosidade. O tem a é transform ado m odalm ente e
rearmonizado. Suas frases não são apresentadas integralmente, o tema se fragmenta e
seus motivos são recombinados. A instrumentação utiliza apenas as cordas no registro
grave.
A melodia de Dixie é transformada mais uma vez na cena em que Scarlett desco­
bre que seu pai enlouquecera durante sua ausência. Ele mostra para ela os "Bônus da Con­
federação", tudo que lhes resta, segundo ele. Ela não percebe o problema do pai até ele
sugerir que ela pergunte algo à sua mãe, já falecida. Dixie é apresentado em andamento
bastante lento. Sua melodia é modificada no sentido de sublinhar a confusão mental da
personagem. A instrumentação é econômica, mas, ainda assim, variada. O tratamento
dado ao tema também sugere a desintegração do Sul e de toda a sua estrutura social.
Essa é a última vez que Dixie é usada no filme: o velho Sul não existe mais. É inte­
ressante notar como as inserções de Dixie concentram-se na primeira metade do filme,
ao passo que as do tema de Tara vão se tomando mais regulares a partir da segunda me­
tade. O tema, que representa musicalmente o Sul, desaparece com a derrota dos confe­
derados e, ao mesmo tempo, o tema de Tara ganha importância à medida que Scarlett
amadurece e se toma mais senhora de si.

13. Esse duplo sentido do toque de recolher foi também explorado no filme A um passo
da eternidade (From Here to Etemity, EUA, 1953).
Playing on the screen 161

A complexidade da trilha musical de E o vento levou também o aproxima de O nas­


cimento de uma nação. O ideal de Breil, de criar uma "ópera sem libreto", permaneceu
vivo no cinema mesmo depois da consolidação das técnicas de sonorização. A música
em paralelo à ação representada, interferindo na composição temporal dessa ação, con­
ferindo-lhe ritmo, acrescentando-lhe estímulos emocionais adicionais, aproxima o ci­
nema sonoro do referencial operístico. Quando, logo no início do filme, a jovem Scarlett
conversa com dois de seus pretendentes, temos o equivalente de um trio jocoso. A mú­
sica acompanha o andamento do diálogo, sustentando-o, como se fosse o acompanha­
mento de um texto cantado, e não falado.
A cena entre Scarlett e Ashley antes de sua partida para a batalha final é um duo
romântico. A música é composta a partir do material temático dos casais e possui um
forte apelo melodramático. Assim como na seqüência citada anteriormente, seu anda­
mento e tratamento rítmico são compatíveis com os do texto. Um duo romântico de des­
pedida. Scarlett fala, Ashley fala, e é como se cantassem. Mas eles não cantam.
Se O nascimento de uma nação fora a síntese e consolidação das técnicas do cine­
ma mudo, E o vento levou foi a das práticas da primeira década do cinema sonoro. Do
ponto de vista musical, a organização intema do material temático e o uso da técnica de
mickeymousing são exemplares.
O mickeymousing é algo que, hoje, não é visto com muito bons olhos por teóricos
e compositores de cinema. Ele nos parece exagerado. Contudo, é uma convenção da épo­
ca. Não se pode esquecer que o mickeymousing está na base de tudo o que se fez com som
e imagem a partir de então. As relações audiovisuais, polifônicas e sincrônicas por exce­
lência, fundamentaram-se a partir de sua prática. Se hoje ele nos parece exagerado, é por­
que nós, como público, nos sofisticamos, na mesma proporção em que o fez a linguagem
audiovisual. A velha convenção foi superada. O público aprendeu a compreender as con­
venções audiovisuais na mesma proporção em que os realizadores aprenderam a utilizá-
las e transformá-las. A sofisticação do público de hoje é resultado desse processo.

A M a tu rid a d e do Leitmotiv

Na década de 1940, as técnicas de criação de trilhas musicais com material motí-


vico recorrente já haviam atingido um alto grau de sofisticação. A prática de organizar a
trilha a partir de um conjunto temático reduzido era muito comum.
No que concerne à música, é possível dizer que, desde sua origem, o cinema cami­
nhou no sentido da economia, ou seja, aprendeu a fazer uso do silêncio e das outras pistas
de som. No cinema mudo, a música era inintermpta e senhora absoluta do espaço so­
noro; na década de 1930, vencidas as limitações técnicas do som, a música voltou a ser
usada em grande quantidade. Passado o tempo, cada vez mais a música é percebida como
um dos fatores da trilha sonora. A herança do cinema mudo começa a ceder espaço a
uma concepção audiovisual mais equilibrada da composição cinematográfica.
Uma das trilhas musicais mais comentadas desse período é a de Hugo Friedhofer
para Os melhores anos de nossas vidas (The Best Years o f Our Lives, EUA, 1946), de William
Wyler. A partitura, por sinal, foi premiada com o Oscar daquele ano.
162 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

Friedhofer foi músico contratado da Warner Brothers, onde trabalhou com o


orquestrador das trilhas de Max Steiner e Erich Komgold, antes de compor suas pró­
prias. Foi, inclusive, um dos orquestradores de E o vento levou'4.
Contudo, suas técnicas diferem, em alguns aspectos, das de seus antecessores. Se­
gundo Mark Evans, "Friedhofer acredita que a música pode estabelecer um contrapon­
to à ação visual do filme. Ele desaprova a idéia de que uma pessoa correndo na tela deva
ser acompanhada por música que também corra" (Evans, 1975:72).
Não se sabe se a afirmação de Evans é baseada em alguma declaração do composi­
tor ou se ela se baseia na observação de suas trilhas. O fato é que nela está implícita uma
indicação clara de que a técnica de mickeymousing começava a ser questionada. O termo
contraponto é bem usado, pois traz implícito o conceito de uma situação polifônica em
que as "vozes" são independentes. A sincronia exata entre os movimentos visual e mu­
sical do mickeymousing está, por analogia, muito mais próxima da estrutura homofôni-
ca, da sucessão musical de acordes com mesma divisão rítmica. O fascínio da exploração
das relações exatas de sincronia entre som e imagem, tão comum na década de 1930, dá
lugar a novas experiências de sincronia, mas sem a preocupação de criar tais correspon­
dências exatas.
05 melhores anos de nossas vidas conta a história do sargento Al (Fredric March), do
oficial aviador Fred (Dana Andrews) e do marinheiro Homer (Harold Russell), três ve­
teranos da Segunda Guerra Mundial que retornam às suas casas e enfrentam dificulda­
des de adaptação. Al, alto executivo de um banco, não consegue se reintegrar a seu antigo
estilo de vida; Fred, herói condecorado, não possui formação profissional que o habilite
a exercer um cargo à altura de sua posição na hierarquia militar; finalmente, Homer,
marinheiro ferido em batalha, com ganchos em lugar das mãos, tenta reencontrar sua
dignidade e se convencer de que sua noiva Wilma (Cathy O'Donnell) ainda o ama, apesar
de sua deficiência. Personalização das três forças armadas, cada um tenta reencontrar seu
espaço num mundo que agora lhes parece estranho.
A trilha musical de Friedhofer é muito econômica e está baseada em um núme­
ro limitado de temas. O alto grau de sofisticação do uso deste material temático reme­
te, imediatamente, à concepção wagneriana de leitmotiv. O tema principal da trilha foi
chamado por Friedhofer de Best Years Theme. É com ele que o compositor constrói a
abertura do filme, e a maioria das intervenções musicais terá algum tipo de referên­
cia a ele:

14. Friedhofer foi o chefe da equipe de orquestradores e também chegou a compor


duas passagens para o filme. Uma delas é a famosa seqüência em que um soldado do nor­
te invade Tara e é morto por Scarlett.
Playing on the screen 163

O tema ocorre pela primeira vez no momento em que os três voam em direção à
sua cidade. Homer acorda e contempla o céu. Até então, ele havia mostrado uma gran­
de auto-suficiência. Pela primeira vez, aparece só. O que se manifesta não é mais o com­
portamento público da personagem, mas sua solidão interior, que o fará isolar-se em seu
mundo particular. O motivo inicial do tema principal é repetido várias vezes sem que
se desenvolva ou se modifique até que o rosto de Homer tome toda a tela, em plano fe­
chado. A seqüência não possui nenhum diálogo, nenhuma ação propriamente dita, ape­
nas nos mostra Homer. Mas é justamente aí que ele nos é apresentado com seus conflitos
e inseguranças. Essa apresentação dispensa o narrador ou, mesmo, o diálogo: imagem e
música bastam para que toda a intenção da seqüência fique clara, um tipo de constru­
ção narrativa que só é possível no contexto audiovisual.
A cidade é representada, musicalmente, por um tema intitulado Boone City, execu­
tado na seqüência do desembarque, enquanto os três são levados para suas casas.
Na estrutura dramática do filme, Homer é a personagem sobre a qual recai o prin­
cipal conflito. Ele é o mais jovem dos três e o único que volta para casa fisicamente mu­
tilado. Ele ainda ama Wilma, mas não sabe o que será de seu relacionamento a partir de
sua volta. A casa dos pais põe em confronto sua condição atual com a do passado, o que
o leva a ataques de autopiedade, nos quais julga que Wilma não mais o ama, mantendo
seu noivado apenas por caridade. O ambiente familiar de Homer e, em decorrência, sua
relação com Wilma são representados por um tema que não chega a ser propriamente
romântico, mas introspectivo como Homer:
164 Sygkhronos. A formação da poética musical do cinema

Wilma, por sua vez, é representada por um tema musical suave, com característi­
cas muito mais próximas de um tema romântico. Desde sua primeira aparição no filme,
esse tema nos permite acreditar que ela é sincera e que ainda ama Homer.

A chegada de Homer à sua casa envolve uma combinação desses dois temas com
o tema principal do filme. O primeiro momento da seqüência, quando os três ainda es­
tão no carro, é acompanhada pelo tema de Homer e Wilma. Esse tema é combinado com
fragmentos motívicos do tema principal do filme, até a chegada de Wilma, quando seu
tema é introduzido. Finalmente, a seqüência termina com o tema principal, quando
Homer acena para os companheiros e entra em casa com sua família.
O tema principal recebe um tratamento romântico para o reencontro de Al e sua
esposa Milly (Myma Loy). A partir do momento em que ela vê o marido, o tema é insi­
nuado sutilmente pelas cordas e cresce até atingir o clímax no momento em que eles se
encontram. A partir daí, a melodia principal passa para um violino solo que dialoga ra­
pidamente com as madeiras, uma mudança na instrumentação que enfatiza a intimida­
de do momento.
A relação de Al e Milly possui também um tema adicional: a canção Among My
Souvenirs, que não chega a ser realmente cantada, mas que é citada em vários m om en­
tos. Quase sempre as situações envolvendo Al e Milly são criadas pela combinação des­
sa canção e do tema principal, como uma maneira de expressar musicalmente o confronto
entre o momento presente do filme e a vida familiar passada de Al.
Uma outra variação do tema principal acompanha o primeiro diálogo entre Al e a
esposa. Eles estão juntos na sala e enfrentam uma certa dificuldade de conversar após tan­
tos anos afastados. Al está inquieto e, nitidamente, pouco à vontade. Milly tenta ser agra­
dável e bem-humorada, sem nenhuma naturalidade. A música compactua com o
incômodo da situação. As transições são muitas, tanto na instrumentação quanto nas me­
lodias e harmonias. Em nenhum momento, ela se estabiliza como discurso musical li­
near e unitário. Alguns fragmentos sublinham o comportamento de Milly, outros o de
Al, estes últimos sempre baseados no motivo principal e de caráter misterioso. Há pou­
Playing on the screen 165

ca atividade rítmica, fazendo com que a música não atrapalhe o diálogo e permaneça,
sempre, em segundo plano na composição da seqüência.
É usada mais uma variação do tema para sublinhar a dificuldade de Homer em se
adaptar à nova vida, ilustrada na seqüência em que sua família está reunida com a de
Wilma. Sua mãe oferece-lhe uma limonada e ele não consegue segurar o copo com seus
ganchos. Todos ficam constrangidos. A seqüência é acompanhada por um fragmento em
notas longas e acordes parados. Sobre eles, surge uma clarineta que introduz o motivo
do tema principal. Homer sai. Um violino solista sobrepõe o tema de Wilma aos acor­
des, enquanto o plano se fecha sobre ela.
Mais um tema se insere no conjunto para indicar a relação de Fred e Peggy (Tere­
sa Wright), filha de Al. Trata-se de um tema, de caráter jazzístico, que é usado como
leitmotiv para o casal:

Esse tema é combinado ao tema principal na seqüência em que a família de Al leva


Fred para a sua casa, bêbado, após a noitada em que os três veteranos se encontram. O
tema de Fred e Peggy inicia a seqüência. Fred desce do carro cambaleante. O tema princi­
pal, também com tratamento jazzístico, sucede-o para acompanhar a inútil tentativa de
Fred de localizar seu apartamento no quadro da portaria. Ele cai. Milly e Peggy carregam-
no para o carro. Retoma o tema do casal. A opção pelas palhetas (saxofone e clarineta)
e o tratamento jazzístico ajudam a estabelecer uma correspondência entre a música e a
embriaguez de Fred.
166 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

Levado para dormir na casa de Al, Fred tem um pesadelo, em que se manifestam
as agruras vividas nas batalhas aéreas de que participou. É um momento de grande in­
tensidade dramático-musical. A passagem começa lentamente e apresenta uma estrutu­
ra que se repete continuamente.
Peggy ouve seus gritos e vai até ele. A atividade rítmica da passagem aumenta bas-
.tante. A tensão é aumentada simultaneamente pelos gritos de Fred e pela música, cuja
instrumentação conduz a um clímax sustentado por trêmulos. Peggy acorda Fred. Surge
mais uma variação do tema principal, menos tensa, que ajuda a compor a atitude cari­
nhosa de Peggy para com Fred. Ele volta a dormir e ela lhe ajeita as cobertas. A transfor­
mação do material musical faz que a seqüência se conclua com suavidade e já oferece
indícios da ligação amorosa que vai uni-los.
Na manhã seguinte, Peggy tenta não acordar Fred enquanto pega as coisas em seu
quarto. A seqüência é acompanhada, mais uma vez, por uma combinação do tema do
casal e do tema principal do filme.
Ainda nessa manhã, dá-se o reencontro de Al consigo mesmo, o reconhecimento
de que a guerra acabou e que ele está de volta à sua antiga vida. A seqüência é feita nos
moldes da pantomima, como uma passagem cômica. E, como é característico desse tipo
de situação, a música pontua a ação passo a passo. A seqüência começa com Al acordan­
do, acompanhada por um motivo baseado em Among My Souvenirs. Ainda meio desen­
tendido, ele com eça a tom ar consciência do espaço que o rodeia. Levanta-se. É
introduzido um outro fragmento musical, repeütivo e dissonante. Ele pega suas botas mi­
litares. Caixa e metais executam uma passagem musical de caráter militar. Al joga as bo­
tas pela janela. Retorna o fragmento repetitivo e dissonante. Ele alcança uma foto sua
antiga e diante do espelho compara-se a ela. É introduzido mais um fragmento de Among
My Souvenirs. Em uma ação típica das comédias, ele abre a porta do banheiro e observa
o seu interior, ao mesmo tempo em que Milly abre a porta do quarto e observa-o pelas
costas. Retorna o fragmento repetitivo e dissonante. Al, no chuveiro, canta Among My
Souvenirs. Ele sai correndo do box e vemos que ele entrou no banho sem tirar o pijama.
Um fragmento musical ligeiro encerra a seqüência. Milly vem trazer o café na cama para
Al. Só agora ele está em condições de corresponder afetivamente a ela. Mais uma vez, é
apresentado o tema principal, com tratamento de tema romântico, para acompanhar o
beijo do casal.
Uma outra ação de caráter pantomímico serve para começar a estabelecer o casal
Fred e Peggy. Peggy oferece uma carona a Fred. Na porta do mesmo edifício da noite an­
terior, ele procura, em vão, solicitar que a porta de entrada seja aberta. Enquanto isso,
comunica-se gestualmente com Peggy, que permanece no carro. A seqüência é acompa­
nhada pelo tema do casal, mas sem o tratamento jocoso da seqüência da noite anterior.
O tema agora é mais suave, tendendo para o romântico.
Uma longa seqüência entre Homer e Wilma aprofunda o conflito interior do ra­
paz. Ela começa com um plano das casas acompanhado pelo tema de Homer e Wilma.
Vemos o pai de Homer cortando a grama e Wilma que se aproxima. O tema de Wilma é
insinuado pelas flautas. Wilma e o pai de Homer conversam. O tema de Homer e Wilma
retorna com outro tratamento. A conversa de ambos é encerrada pelo tema de Wilma,
Playing on the screen 167

em versão contrapontistica. Wilma dirige-se ao encontro de Homer, que treina tiro ao


alvo na garagem.
Wilma encontra Homer. É o primeiro diálogo, no filme, em que eles estão a sós.
Fragmentos do tema de Wilma e do tema principal do filme se misturam. Ela tenta abrir
o caminho para um diálogo franco, mas a resistência dele é grande. A música dessa cena
é preparada com especial cuidado para não interferir no diálogo, ainda que colabore com
suas intenções e com seu apelo emocional. As pausas entre as falas são aproveitadas para
a exposição dos leitmotivs. O diálogo entre ambos leva ao inevitável assunto das dificul­
dades de adaptação de Homer. Wilma demonstra, claramente, sua mágoa por ele não
permitir que ela participe do processo. Ambos os temas, o de Wilma e o principal, são
colocados em confronto, altemando-se. Eles reproduzem, musicalmente, o diálogo e o
momento psicológico das personagens.
O drama cotidiano de Homer é aprofundado pela seqüência de seu ritual notumo
para se recolher. Não existe, praticamente, qualquer diálogo. A seqüência é construída por
meio da ação das personagens acompanhada de música. Homer acende um cigarro e seu
pai o ajuda a tirar os ganchos. Vemos Homer em plano fechado. Em nenhum momen­
to, a câmera mostra os ganchos ou os braços. O que se vê é a personagem, alheia, dis­
tante, com seu cigarro na boca. É como se Homer estivesse só, sem a presença do pai,
ainda que precise dele até para tirar o cigarro da boca. A música acompanha o estado psi­
cológico da personagem. Ela funciona como um monólogo interior, informa o que se
passa no íntimo de Homer. Está baseada no tema principal e se desenvolve lentamente,
com pouca atividade rítmica e polifônica. Não há muitas variações nem tensões inter­
nas. A música e o plano fechado contribuem para o isolamento de Homer. A composi­
ção audiovisual revela um Homer solitário, centrado em si m esm o, ainda que
acompanhado por outras pessoas.
Esta seqüência prepara uma outra, similar, que irá ocorrer mais adiante, na qual
Wilma propõe-se a ajudar Homer tomando o lugar de seu pai. Homer é pressionado por
ela: seus pais querem que ela se ausente para esquecê-lo. Ele sugere que ela vá, pois não
sabe o que seria viver com ele. Finalmente, ele deixa que ela o acompanhe e veja por si
mesma. A seqüência segue a mesma ordem da anterior, mas com uma diferença funda­
mental: agora, Homer é revelado fisicamente. Ele é mostrado ao público da mesma ma­
neira que se mostra a Wilma. Não há mais segredos. A música, da mesma maneira,
possui um tratamento bastante diferenciado. A estrutura monotemática e introspectiva
de antes passa a ser tratada como acompanhamento de cena romântica, com suas diver­
sas nuanças e a busca do envolvimento emocional do espectador. Se antes ela era o mo­
nólogo interior de Homer, agora ela é um dos fatores de com posição da situação
romântica. No primeiro caso, representava a psique interior da personagem e, no segun­
do, compõe, expressivamente, o que se exterioriza na relação romântica do casal.
O m onotemático cede lugar ao politemático. O tema principal soma-se ao de
Wilma e ao de Homer e Wilma na organização musical da passagem. Assim como as per­
sonagens, agudo e grave se contrapõem. A música, no início, guarda um certo mistério,
apenas pontuando a ação, quando os dois sobem as escadas e entram no quarto. Homer
tira seus ganchos. A música, até aí, é melancólica, como na seqüência anterior. Come­
168 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

ça a mudar a partir do momento em que Wilma abotoa o pijama de Homer. O espaço


sonoro é, então, invadido pelo tema de Wilma: suave, tonal, com um sentido claro de
começo, meio e fim. Um tema decidido como a personagem. Resolve-se o conflito in­
terior de Homer: Wilma ainda o ama de verdade. O público já sabia, mas ele não. As­
sim, ele ainda insiste para que ela siga o conselho de seus pais, agora que já sabe como
seria viver com ele. A música retorna ao caráter anterior, melancólico, até o momento
em que Wilma revela que não o deixará. O tema principal serve de introdução ao tema
de Wilma, que ressurge com o tratamento característico dos temas românticos, em an­
damento lento, expressivamente variado e com uma instrumentação que privilegia o
naipe de cordas. Sob esse tema, ocorre o primeiro beijo do casal. Em meio a variações
melódicas, harmônicas e de textura, surge, ainda, o tema principal. No final da seqüên­
cia, quando Wilma beija Homer, já deitado, ambos os temas são sobrepostos em uma cla­
ra referência musical de sua união. Ainda sobra tempo para ser apresentado o tema de
Homer e Wilma. Os três temas em sucessão encerram a seqüência.
Uma outra seqüência, bastante significativa, ocorre já perto do fim do filme. Fred,
desempregado, abandonado pela esposa infiel, decide deixar Boone City. Enquanto ele
aguarda um vôo que vá a qualquer lugar, caminha pelo aeroporto militar onde estão dis­
postos, em fila, centenas de aviões de guerra aguardando o desmanche. A cena lembra
muito o campo de feridos de E o vento levou, só que, neste caso, as vítimas não são seres
humanos, mas aviões: aviões veteranos, feridos em batalha, repousam no campo como
sucata. A desolação do campo é igualmente grande. A seqüência também começa em pla­
no mais fechado e se abre aos poucos, revelando a grande quantidade de aviões. Fred ca­
minha entre eles, como Scarlett caminhou entre os feridos. A música da seqüência possui
um tratamento igualmente fúnebre. Um pulso de marcha, lento e pesado, sustenta um
motivo de apenas duas notas, um intervalo musical de segunda que se repete continua­
mente a partir da região grave. Aumenta a intensidade, as regiões média e aguda come­
çam a surgir. O motivo inicial do tema principal é transformado e aproximado do toque
de recolher (Taps), outra semelhança com o campo de E o vento levou.
A intensidade da música aumenta vigorosamente, até que Fred entra em um velho
B-17 já sucateado, sem motores. Reduz-se, então, bastante a densidade sonora, somente
com a linha melódica do tema principal sustentada por um acorde muito sutil. Quan­
do Fred ocupa seu posto no nariz do avião, a música passa a ocupar o espaço sonoro que
pertenceria à pista de ruídos. Ele viverá uma batalha imaginária sonorizada: vemos, pri­
meiramente, planos isolados dos motores; os metais executam acordes graves e tensos
que ocupam o lugar do som dos motores sendo ligados; a câmera aproxima-se por bai­
xo do avião simulando a decolagem, acompanhada por sons graves compatíveis com o
ruído dos aviões; o andamento acelera-se gradativamente; vemos Fred dentro do avião,
imóvel, pois a batalha existe apenas em sua mente. A música foi usada, mais uma vez,
para informar o que ocorre no interior da personagem.
Homer e Wilma casam-se. Resta, somente, a resolução da relação entre Fred e Peggy.
No final da cerimônia de casamento, eles são isolados dos outros convidados: estão so­
zinhos no canto esquerdo da tela. O tema de Fred e Peggy é somado ao tema principal
do filme para compor, musicalmente, o final, um beijo, grandiosamente acompanhado
até a legenda The End.
Playing on the screen 169

A trilha musical de Os melhores anos de nossas vidas é um exemplo de organização


macroestrutural. Com um mínimo de material temático, Friedhofer cria uma trilha que
se aproxima muito do princípio wagneriano de organização temática. "O material [mu­
sical], em si, é definitivamente não-wagneriano, mas a maneira pela qual é manipula­
do deriva do Wagner do Anel dos Nibelungos", comentou Louis Applebaum, em seu artigo
"Hugo Friedhofers score to The Best Years o f Our Lives" (apud Prendergast, 1977:73-74).
O leitmotiv, como unidade dramático-musical, é explorado e desenvolvido em profun­
didade. O tema se transforma e se adequa a cada situação do filme. São transformações
melódicas, harmônicas, rítmicas, de instrumentação, textura e densidade. Os temas são,
também, justapostos, sobrepostos, fragmentados, associados de diversas maneiras, sem­
pre no sentido de compor, significativamente, a ação filmada e a construção dramática.
Eles sempre gravitam em tomo do tema principal, The Best Years Theme, que, por sua sim­
plicidade, permite que seja transformado para adquirir conotações mais distintas, des­
de o universo militar, como é o caso do toque de recolher, até as situações românticas. É
ele que une, também, as três personagens. Por mais que tenham retomado suas vidas no
mundo em tempo de paz, há algo em comum que os une e minimiza as diferenças en­
tre eles. Seria a guerra a responsável por roubar-lhes os melhores anos de suas vidas ou
seriam aqueles os melhores anos, justamente os vividos na guerra? Musicalmente, toda
essa informação está depositada no Tema dos melhores anos.
As diversas possibilidades de construção audiovisual do cinema são exploradas. Há
situações, sem diálogos, em que a música é responsável por toda a informação sonora:
há diálogos acompanhados por música; certas situações, em casas noturnas, são acom­
panhadas de música apropriada ao ambiente, fugindo assim da organização temática da
trilha. Nota-se, no entanto, que as intervenções musicais são mais discretas do que na
década de 1930, período do mickeymousing. A música já não aparece em quantidade tão
grande e suas intervenções não são tão incisivas. O melodrama fílmico caminhou para
uma maior economia de material musical e um tipo de constmção audiovisual em que
a música associa-se a elementos distintos dos que orientavam o mickeymousing. A corres­
pondência exata entre o movimento visual e o sonoro deixa de ser tão importante. Pa­
ralelamente, a associação da música ao momento psicológico da personagem, à situação
dramática, ao ponto de vista, seja da personagem ou do narrador, toma-se cada vez mais
importante.
Quanto à quantidade de música, o cinema enveredou pela distribuição da informa­
ção sonora pelas pistas de som. A música passou a ser usada com mais parcimônia. Ao
mesmo tempo, cresce a importância dos sons naturalistas. A distribuição do som entre
as pistas de ruído e da música, permitiu o desenvolvimento de novas construções au­
diovisuais, anteriormente impossíveis no universo dos espetáculos ao vivo. O ruído pas­
sou a fazer parte da música, quer associando-se a ela, quer substituindo-a ou, mesmo,
como fonte de sua matéria-prima. Ao mesmo tempo, o cinema foi aos poucos descobrindo
e explorando, cada vez mais, as mais variadas manifestações do poder expressivo do si­
lêncio. No universo da trilha sonora, o silêncio não é, apenas, a ausência completa de
som, mas também a ausência seletiva de som. Em outras palavras, ele pode ser localiza­
do, tal como a ausência de som, em uma única pista. As possibilidades expressivas das
170 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

combinações de som e silêncio nas pistas de som são vastas. É possível, por exemplo, su­
primir todo o som da pista de ruído, preenchendo o vazio sonoro com música. Esse é
um procedimento comum, que costuma conferir à situação um caráter supra-real, fan­
tástico e onírico. A supressão dos sons naturalistas possui uma qualidade onírica, pelo
fato de não ter um paralelo em nossa experiência cotidiana. É possível, também, criar
uma situação em que nenhuma palavra seja dita, deixando o espaço sonoro totalmente
preenchido por música e ruídos. É possível criar situações sem música e, é claro, outras
em que não há qualquer tipo de som. No entanto, esse silêncio absoluto resulta, geral­
mente, em situações bastante artificiais e produz um forte impacto, em muitos casos in­
cômodo, no espectador.
Assim, o caminho da música no cinema, começando pelo período mudo até a ma­
turidade do cinema sonoro, apresenta uma tendência no sentido de reduzir a quantida­
de de música e, conseqüentemente, de se preocupar mais com sua expressividade.
Havendo menos música, seu impacto tomou-se, ao mesmo tempo, muito maior, am­
pliando a capacidade de expressão audiovisual. A música no cinema caminhou no sen­
tido da redução e não do acúmulo.

A D esco berta da S o n o r id a d e

As experiências na década de 1930 demonstram uma imensa liberdade poética no


uso da música em filmes. Os efeitos sonoros, por sua vez, continuavam atrelados às ima­
gens por seu compromisso realista. Nos anos seguintes, ocorreria uma transformação,
que se daria em dois sentidos complementares. Por um lado, o ruído seria descoberto
como sonoridade expressiva, não sendo usado, apenas, como complemento naturalista
da imagem. Em outras palavras, começava a se desenvolver uma poéüca do ruído que o
aproximava da música como sonoridade expressiva. Por outro, a música descobre-se, cada
vez mais, como sonoridade, aproximando-se do ruído.
Um marco, nesse aspecto, foi Cidadão Kane (Citizen Kane, EUA, 1941). Em seu fil­
me de estréia, Orson Welles trouxe, para o cinema, a concepção sonora de um profis­
sional de rádio, veículo em que o som é o grande portador de todas as informações. O
rádio é informação sonora pura, em seu mais alto grau de sofisticação. Lidar com o rá­
dio é saber manipular sonoridades, e Welles já havia provado esta capacidade. Ele traria
para o cinema um companheiro de rádio, o compositor Bernard Herrmann, que se tor­
naria um dos mais importantes compositores de trilhas musicais do século XX.
A sinopse de Cidadão Kane é bastante conhecida, mas convém recordá-la. Charles
Foster Kane (Orson Welles) é o magnata da imprensa cuja última palavra pronunciada
foi Rosebud. Um repórter recebe a missão de descobrir o significado da misteriosa pala­
vra e, conforme investiga, a vida de Kane vai sendo esmiuçada em suas mais diversas fa­
cetas. Ele jamais descobrirá o significado de Rosebud, revelado, apenas para o público, no
último momento do filme.
No que diz respeito à sonoridade, vale a pena conferir o que diz James G. Stewart,
técnico de som de Cidadão Kane, em carta para Roy Prendergast em 11 de agosto de 1974:

A idéia de Welles era de que o som poderia ser usado sem referência com o
que estava acontecendo na tela, algo que eu chamo de som não-objetivo. Isso era, é
Playing on the screen 171

claro, resultado de sua experiência no rádio, onde o som não se refere a uma ima­
gem visual. No som não-objetivo, você vê e ouve o som realista, mas, simultanea­
mente, pode estar ouvindo alguns outros sons que são totalmente não-objetivos
e irreais.
Mas Welles simplesmente libertou o som. Naquela época (1941), se você fi­
zesse qualquer coisa não-realista no meio de uma cena, a maioria dos produtores
diria: "O que é isso... O que está acontecendo lá?" Welles não acreditava nisso. Ele
acreditava que qualquer coisa que você pudesse fazer para intensificar o drama de
uma cena era válido e, também, é claro, o uso do som com ênfase em seu maior
conteúdo dramático em vez de seu conteúdo efetivo, era parte desse conceito. A
cena ensaio da ópera em Cidadão Kane, que termina com o maquinista15 tampan­
do o nariz enquanto ouve, de fora do palco, a vocalização, é um exemplo disso. Nes­
sa cena em particular, você tem a sensação de deslocamento e altura por ouvir mais
e mais reverberação, conforme a voz se toma mais e mais reverberante, enquanto
permanece muito audível e muito viva, para produzir o efeito de que você [o espec­
tador] estaria subindo mais e mais, no urdimento do teatro.
Além disso, Welles estava disposto a gastar um tempo infinito, meu tempo,
deixando alguma coisa exatamente do jeito que ele a queria. Assim foi com os diá­
logos, música e efeitos. Welles trouxe técnicas de rádio para o cinema, onde elas ti­
nham sido usadas muito pouco no passado, ele também trouxe uma liberdade no
uso do som que abriu possibilidades não apenas em seus próprios filmes, mas em
muitos filmes posteriores. Uma das dificuldades, e isto ainda é verdade hoje, é que
o que se usa agora é quase uma caricatura de suas técnicas. Os realizadores parecem
sentir que, quanto mais amplo for o conceito de som que eles usem, tão mais eles
serão reconhecidos como sendo da New Wave. Eu não acredito nisso. Eu sinto que
quando você vai muito longe, como em qualquer coisa, o excesso não funciona.
(Apud Prendergast, 1977:55-56)

A música de Cidadão Kane é, igualmente, rica em experimentações. A experiência


do rádio e o conhecimento da tradição dramático-musical de nossa cultura somaram-
se e incorporaram as especificidades da linguagem cinematográfica. Em seu artigo para
o primeiro número do periódico Film Music Notes, Herrmann dá um depoimento sobre
sua participação no filme:

Esse filme era muito incomum, tecnicamente, o que me permitiu muitas pos­
sibilidades únicas de experimentação musical. Ele possuía várias montagens, as
quais eram longas o suficiente para permitir-me compor números musicais com­
pletos, em vez de simples passagens para preenchê-las. O Sr. Welles foi extremamen­
te cooperativo nesse aspecto e, em muitos casos, montou o filme no sentido de
adaptá-lo a esses números completos, em lugar de fazer o que é normalmente fei­
to: cortar a música para adaptá-la ao filme. Nas cenas das atividades de Kane no jor­
nal, eu pude compor um tipo de suíte de balé em miniatura, sendo as várias
montagens fotográficas na forma de pequenos números de dança dos anos 1890

15. Stagehand, no original: trabalhador braçal de teatro, maquinista, na terminologia


técnica em português.
172 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

completos, incluindo galopes, polcas, hornpipes, schottisches etc. Mais tarde, na cena
do café da manhã de Kane com sua primeira esposa, a montagem mostrando a
passagem dos anos e a diminuição do afeto foi tratada na forma de um tema e va­
riações. O estilo da montagem praticamente impôs essa forma.
O impacto emocional desses números musicais foi muito maior do que os de
música de fundo [background music], os quais não possuem início ou fim defini­
do. A audiência recebe, junto com os efeitos criados para os olhos, o verdadeiro ar­
rebatamento de uma composição musical. Eu me esforcei para tratar as formas
antigas, tão familiares, de um jeito moderno, para ser consistente com o estilo mu­
sical do filme como um todo. Eu sinto que o tipo de trilha radiofônica [radio
scoring], que usei em alguns momentos, era um tanto quanto novo. Os filmes per­
mitem entradas musicais que duram apenas poucos segundos, pois os olhos com­
preendem a transição. No drama radiofônico, toda cena deve ser ligada por algum
tipo de evento sonoro, assim, mesmo cinco segundos de música tomam-se um ins­
trumento vital para dizer aos ouvidos que a cena está mudando. Um exemplo disto
é encontrado na transição entre Kane, jovem dono de jomal, e Kane, homem de meia
idade renunciando ao controle de suas empresas.
Ainda que eu não seja um grande defensor da técnica do leitmotiv na música
para filmes, a natureza desse filme necessitou de alguns leitmotivs para ligar as jus­
taposições de tempo. O motivo mais importante - ligado ao poder de Kane - é apre­
sentado logo nos dois primeiros compassos ouvidos. O segundo motivo, o qual
deveria revelar o segredo de Rosebud, é também ouvido logo no começo do filme.
Esses dois motivos são os mais importantes no filme e ocorrem ao longo dele em
vários climas e orquestrações. O motivo do Poder torna-se uma vigorosa peça de
ragtime, que é transformada numa polca, e que ocupa a maior parte do finale, usa­
do para representar a melhor parte de sua natureza. Apenas mais um motivo im­
portante é derivado da canção Oh, Mr. Kane, um tema usado em sentido satírico.
Muitas seções foram escritas para combinações singulares de instrumentos, evitan­
do o som convencional da orquestra. Eu tive tempo suficiente para orquestrar toda
a música, para dirigi-la e pensar sobre ela. Doze semanas foram dedicadas à parti­
tura, ao contrário das seis usuais, ou mesmo menos, dadas a outros filmes desse ta­
manho e importância. (Apud Prendergast, 1977:56-57)

O depoimento de Herrmann apresenta alguns pontos importantes. O primeiro diz


respeito à divisão que o compositor aponta entre os números musicais completos e as
intervenções musicais, background music, como eram chamadas nessa época. Herrmann
apresenta, como uma peculiaridade, o fato de haver espaço para a composição de números
musicais completos, sendo que, em alguns casos, a seqüência foi montada para adaptar-
se a eles. Essa não era uma prática comum na indústria americana do cinema. Nesse as­
pecto, a relação entre o compositor e o diretor aproxima-se das experiências de Eisenstein
junto a Prokofiev. É interessante lembrar, também, que a prática da confecção de números
completos é comum no teatro, do qual Welles era oriundo.
A música de Cidadão Kane reflete a tradição dramático-musical formada nos espe­
táculos ao vivo. O referencial musical de Herrmann para a composição dos números, que
ele chamou de "suíte de balé em miniatura", é o da música ligeira, não o da música "cul­
ta". Sob este aspecto, a música confere a Kane um caráter não-emdito. Kane é um mag­
nata da comunicação de massa, ele não é membro de uma família nobre e tradicional.
Playing on the screen 173

Sua fortuna surgiu de um golpe de sorte: uma mina abandonada, julgada improdutiva,
que seus pais recebem como pagamento pela hospedagem de um desconhecido. Kane é
popular, assim como a música que acompanha suas ações. Quando ele se aventura a in­
gressar no universo da cultura erudita isso é feito amadoristicamente: ele constrói um
teatro de ópera para sua amante, uma cantora diletante, e para ela monta um espetácu­
lo. O amadorismo de Kane reflete o quão distante ele se encontra dessa esfera, em con­
traste com a habilidade com que com anda os seus negócios nos d om ínios da
comunicação de massa.
No filme, o teatro musical manifesta-se de maneira objetiva no momento do jan­
tar, quando é apresentada a canção Oh, Mr. Kane que, como observara Herrmann, serve
de material temático ao longo do filme. Nessa situação, Kane é não apenas o h o­
menageado, mas participa do número dançando com as coristas. Desse modo, o aspec­
to profissional de Kane, suas atividades como empresário da comunicação de massa, fica
delimitado pela música do vaudeville. Ele, por sua vez, integra-se perfeitamente a esse uni­
verso. Durante o número, Bemstein (Everett Sloane) pergunta a Kane onde ele teria
aprendido a dançar e a resposta seria: "no teatro".
Um outro aspecto importante é o que Herrmann chamou de radio scoring, ou seja,
o tipo de música usada na composição do drama radiofônico. A exposição de Herrmann
demonstra que ele reconhecia algumas especificidades do cinema. Segundo ele, no rá­
dio, a carga significativa de cada momento musical é muito grande. Cita, como exem­
plo, as transições, nas quais a música é usada para indicar o caráter de cada um dos
diferentes momentos. No cinema, a presença da imagem faz com que a música não seja
mais a única responsável pela informação. É comum, em muitos casos, que a música não
explicite a transição, ou seja, um fragmento musical de uma determinada cena pode,
simplesmente, penetrar a cena seguinte e concluir (ou não), sem que se modifique.
Herrmann, conscientemente, incorpora a transição radiofônica, combinando as infor­
mações visual e musical. Se isso foi, realmente, "um tanto quanto novo" não é uma ques­
tão tão simples. Como vimos, a técnica do mickeymousing levou à produção de um tipo
de música absolutamente vinculado à ação filmada, inclusive em suas mais detalhadas
nuanças de caráter. O segredo para desvendar a afirmação de Herrmann talvez possa ser
encontrado não no termo radio scoring, mas na afirmação de que "os filmes permitem
entradas musicais que duram apenas poucos segundos", e, posteriormente, que "no dra­
ma radiofônico, (...) mesmo cinco segundos de música tomam-se um instrumento vi­
tal para dizer aos ouvidos...". Essa é a grande diferença, a economia, a dosagem de
informação sonora, entre as três pistas de som, que valoriza cada uma das entradas mu­
sicais. No mickeymousing, a música funciona como suporte da ação filmada. Ela paraleliza
a ação quase que ininterruptamente, a ponto de o espectador deixar de percebê-la cons­
cientemente. Saber aproveitar a informação contida em um fragmento musical de du­
ração mínima foi algo que o cinema levou algum tempo para aprender.
O exemplo que ele cita para ilustrar suas afirmações ocorre por volta dos primei­
ros vinte e cinco minutos do filme, quando há um corte que leva de uma seqüência que
apresenta Kane jovem e arrogante (respondendo a Mr. Tatcher [George Colouris] que
poderia continuar tendo prejuízos da ordem de um milhão ao ano, pois demoraria ses­
174 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

senta anos para falir), para outra, em que Kane, de meia idade, falido na crise de 1929,
entrega o controle de suas empresas. A música da transição começa sobre o rosto de
Kane, uma pontuação de trompete com surdina que lembra o som de uma gargalhada.
Ela é bruscamente interrompida por um rulo dos tímpanos que acompanha a legenda
"o invemo de 1929". A passagem é toda feita com o motivo do "Poder", apresentado três
vezes, em cada uma delas transformado, desde a gargalhada inicial ao "soturno" da últi­
ma repetição.
Além do referencial do teatro e do rádio, o material musical original de Cidadão
Kane é confrontado com o tipo de sonorização característica da década de 1930, parti­
cularmente o acompanhamento musical de produções mais baratas, normalmente fei­
to com música de arquivo. Esse üpo de trilha aparece no noüciário cinematográfico News
On The March, apresentado logo no início do filme, após a seqüência da morte de Kane.
No que se refere ao uso de leitmotivs na música de cinem a, a afirm ação de
Herrmann é muito curiosa. Talvez ele não fosse um defensor dessa prática na época em
que compôs sua primeira trilha, ainda que tenha utilizado leitmotivs. Contudo, nos dias
de hoje, constatamos o uso desse dispositivo em praticamente todos os seus trabalhos.
Os dois motivos principais, "Poder" e "Rosebud", são apresentados logo no início
do filme, o qual Hermann chama de Prelúdio. O tema de Kane é apresentado na região
grave, o que lhe confere um caráter mórbido e misterioso. O tema de Rosebud, por sua
vez, é mais melódico. Note-se como as idéias temáticas continuam a ser bastante curtas
e objetivas:

A música tem início antes que vejamos a primeira imagem do filme, com a tela
ainda escura. Ouve-se o motivo de Kane e, imediatamente, vemos o alambrado de Xanadu
com a placa: "no trespassing". Enquanto a câmera se move, ouvimos pela primeira vez o
tema de Rosebud. Há vários planos da propriedade. A câmera se aproxima. Herrmann cria
uma seção intermediária com algumas unidades repetitivas. Uma nova apresentação do
motivo do Poder ocorre quando aparece o lado externo da janela de Kane. Esse motivo
termina com um acorde em tutti orquestral e coincide com a luz do quarto, que se apa­
ga. A luz reacende em sincronia com o início de uma nova exposição do tema de Rosebud.
Uma fusão conduz à imagem da neve, que se revela uma esfera de vidro na mão do mo­
ribundo Kane. A música é interrompida para que, em um plano fechado de seus lábios,
Kane diga: "Rosebud". A música retoma, a esfera cai da mão de Kane e quebra-se no chão,
novamente em sincronia com um acorde incisivo que marca o momento da quebra.
Mais uma vez, os temas do Poder e de Rosebud altemam-se, enquanto a enfermeira co­
bre o corpo de Kane. Um plano externo da janela mostra a luz que se apaga suavemen­
te, e a música termina em um acorde igualmente suave. A marcha de abertura do
noticiário News On The March estabelece um rompimento, introduzindo um novo con­
texto musical contrastante.
Playing on the screen 175

A questão do contexto musical é muito importante. As diversas combinações sono­


ras são percebidas por nossa psique não de maneira isolada, mas como uma progressão.
As associações sonoras internas fazem com que se estabeleça um contexto sonoro para
a audição. Um exemplo simples para o entendimento desse conceito é o binômio con-
sonância-dissonância. Em um contexto harmônico tonal, como o do período clássico,
o acorde maior com sétima maior é um acorde dissonante. O intervalo de sétima maior
é uma dissonância e, como tal, deve ser resolvida. Assim, uma cadência perfeita, se con­
cluída com o acorde de sétima maior, não soaria conclusiva, antes que se resolvesse a dis­
sonância. Todavia, em um contexto com o o do jazz, que trabalha com acordes
complexos, com intervalos de nonas, décimas-primeiras e décimas-terceiras, o acorde de
sétima é básico, é a unidade mais simples do campo harmônico. Nesse caso, uma cadên­
cia equivalente pode, perfeitamente, concluir sobre o acorde de sétima maior, que não será
ouvido como um acorde dissonante, mas consonante. Ao longo do tempo, o que era en­
tendido com dissonância vai sendo, cada vez mais, incorporado pelo sistema harmôni­
co, tomando-se consonância. Contudo o contexto do período anterior continua a ser um
sistema orgânico, com suas consonâncias e dissonâncias inalteradas. A introdução ca­
sual de um acorde de jazz, em um contexto harmônico tradicional, como o da música
barroca ou clássica, continua a causar estranhamento, por não ser esperado nesse con­
texto.
O contexto é importante para entender o trabalho de Herrmann como composi­
tor de trilhas musicais. O contexto de Cidadão Kane é diferente daqueles consolidados
pelos filmes da década de 1930. Essa diferença ocorre em vários níveis: melódico, har­
mônico, rítmico e instrumental. Mas, independentemente de uma abordagem técnica,
é possível observar que Hermann deu muita ênfase ao aspecto da sonoridade para refor­
mular o contexto da música de cinema.
A questão da sonoridade, em música, é complexa e polêmica. Em princípio, a mú­
sica trabalha com sons. Logo, tudo o que se faz em música pode ser entendido como so­
noridade. Todavia, o termo "sonoridade" pode ser tomado em outra acepção, como um
aspecto da música distinto e complementar ao de "estrutura". O aspecto estrutural da
música engloba os fatores de organização do material sonoro: melodia, harmonia, rit­
mo etc. Podemos descrever música sob o ponto de vista estrutural, observando as carac­
terísticas de sua curva melódica, identificando a organização de sua progressão
harmônica e em qual sistema se baseia a organização dos sons (modal, tonal, dodeca-
fônico etc.). Podemos, também, identificar as vozes de um contraponto, a maneira pela
qual se interrelacionam, como foi distribuída a atividade rítmica naquela determinada
polifonia e assim por diante. É possível fazê-lo tendo por base a partitura ou a audição, à
medida que escutamos e acompanhamos o discurso musical.
Em um grau maior ou menor, todos somos capazes de ouvir e registrar aspectos es­
truturais. O exemplo mais simples é o da memorização de uma linha melódica. Quan­
to maior for o conhecimento técnico e o envolvimento com a linguagem musical, mais
detalhada e profunda será a compreensão dos elementos estruturais da música. Mas não
é preciso conhecer a música tecnicamente para ouvir e incorporar seu aspecto estrutu­
ral. Essa relação imediata que todo e qualquer ouvinte estabelece com a música se dá no
176 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

nível da sonoridade. Toda estrutura musical manifesta-se e é percebida como sonorida­


de. O impacto imediato do som sobre a nossa percepção ocorre em um nível que ante­
cede a compreensão intelectual. É uma relação básica de nossas mentes e corpos com
uma determinada sonoridade. Em um sistema complexo, como o audiovisual, em que
a música é apenas parte do conjunto de informações, esta questão é de especial impor­
tância. A atenção do espectador não pode nem deve concentrar-se exclusivamente no
discurso musical. Uma música que chame excessivamente a atenção do espectador para
si prejudica o conjunto audiovisual. Trata-se de uma situação em que o estímulo musi­
cal mais imediato deve ser compreendido e resultar no efeito poético desejado. Não é
possível esperar que o espectador acompanhe as diversas vozes de um contraponto in­
trincado. Nem mesmo alguém com uma vasta experiência musical é capaz de fazê-lo sem
dar à música uma boa dose de atenção. Não é possível esperar que se acompanhe uma
progressão harmônica complexa ou a sofisticada organização de uma música serial. Isso
não quer dizer que não seja possível escrever um contraponto intrincado, uma progres­
são harmônica complexa ou uma música serial. Significa, apenas, que estes não serão os
aspectos primordiais da construção audiovisual. O contraponto complexo é ouvido, mas
não por sua complexidade polifônica. A textura contrapontística, a densidade, a variedade
timbrística, o andamento, a atividade rítmica serão muito mais significativos para a com­
posição audiovisual do que o conteúdo contrapontístico propriamente dito. Resumida­
mente, as características sonoras da construção polifônica são mais imediatas do que a
organização intema do material musical, logo, elas são primordiais para o resultado da
composição audiovisual.
Sem muito rigor científico, pode ser estabelecido um paralelo entre sonoridade e
estrutura, em música, e o conceito de significado e significante, na lingüística. Mas, como
toda classificação teórica, esta também é limitada. A música não pode, simplesmente, ser
entendida como a soma de dois aspectos estanques: "estrutura" e "sonoridade"; antes,
ambos estão unidos indissociavelmente, fundem-se, interpenetram-se e formam aquilo
que chamamos música. Mas a divisão, em todo caso, é útil para entender melhor a mú­
sica em sua complexidade.
Desde muito cedo, os compositores perceberam a importância dos fatores mais ime­
diatos no processo de percepção da música. Um exemplo disso é o material temático,
que, como vimos, sempre foi organizado a partir de unidades melódicas muito peque­
nas, de reconhecimento imediato e de grande flexibilidade em suas combinações. Con­
tudo, a partir de Herrmann, o aspecto da sonoridade atinge, na composição audiovisual,
um novo estágio. Ele sabia que só poderia ter controle dessa parte do processo se não di­
vidisse o trabalho. Uma equipe de orquestradores profissionais, contratados junto aos es­
túdios, impediria que a trilha musical de Cidadão Kane chegasse aos resultados esperados
pelo compositor em termos de sonoridade. A orquestração é um dos fatores mais determi­
nantes da sonoridade de uma determinada peça musical. Se ele trabalhasse com
orquestradores profissionais, teria de incorporar a sonoridade padrão dos filmes de en­
tão. Assim, Herrmann optou por executar, ele próprio, todas as etapas do processo, in­
clusive a orquestração. Ele utilizou "combinações singulares de instrumentos" e evitou
o "som convencional da orquestra". Com isso, conseguiu estabelecer um contexto sonoro
diferenciado para a música do filme.
Playing on the screen 177

As combinações instmmentais são fundamentais para o estabelecimento do cará­


ter da música de Cidadão Kane. No Prelúdio acima comentado, Herrmann explora bas­
tante o naipe de sopros, especialmente a região grave. Também usa, criteriosamente, a
percussão. O resultado é uma sonoridade totalmente diferente da que se ouvira até en­
tão no cinema. Apesar de enfatizar, em seu texto, a vantagem de ter escrito peças musi­
cais na íntegra, Herrmann possuía uma profunda consciência das especificidades da
composição audiovisual. Elas não soam como peças musicais a serem apreciadas isola­
damente, mas integram-se perfeitamente à composição audiovisual. A criação de um novo
contexto e de uma nova sonoridade musicais irá influenciar toda a produção de música
para cinema a partir de então.
Cidadão Kane foi o laboratório de confronto entre todos estes contextos: o teatro
musical, a ópera, a música de cinema dos anos 1930 e a nova sonoridade proposta. Cada
um deles possui uma função específica e se liga, de uma maneira particular, às estrutu­
ras dramática e narrativa do filme. Como vimos, a música extraída do contexto do tea­
tro musical liga-se ao Kane empresário da comunicação; a ópera nos remete a outro
aspecto de sua personalidade; a música de cinema dos anos 1930 é usada para acompa­
nhar sua biografia e é tratada como noticiário cinematográfico; finalmente, as interven­
ções musicais que introduzem a nova sonoridade ligam-se aos aspectos mais íntimos da
biografia de Kane, seu lado obscuro, o mistério de Rosebud, as mazelas de sua vida parti­
cular, profissional e afetiva.
Em alguns casos, os contextos mesdam-se de maneira especial. É o que ocorre em
uma das passagens mais comentadas do filme, citada, inclusive, no depoimento de
Herrmann. É quando Leland comenta com o repórter o primeiro casamento de Kane.
Uma seqüência mostra o casal à mesa, tomando o seu dejejum, em diversas fases do ca­
samento. À medida que o tempo passa, a relação se deteriora cada vez mais. A música,
além de conduzir a passagem de tempo acompanhando cada um dos momentos, tam­
bém indica essa "diminuição do afeto" do casal. Herrmann declara que "o estilo da mon­
tagem praticamente impôs essa forma". Um único tema é usado para todos os momentos,
mas as transformações que o compositor criou para ele vão muito além do que se pode­
ria esperar em se tratando de um tema com variações. Herrmann transita entre os con­
textos musicais. Para entendermos esse caminho, é preciso voltar um pouco no filme ao
momento em que Kane retorna de sua viagem e revela seu noivado com Emily (Ruth
Warrick). O final da seqüência, quando Emily é vista pela primeira vez da janela do
Inquirer, é acompanhado por uma valsa, que, como forma dançante, faz parte das músi­
cas relacionadas ao Kane jovem e bem-sucedido, ou seja, ao contexto do teatro musical.
Na seqüência do dejejum, Herrmann retoma o tema da valsa para criar seu "tema
com variações". No primeiro momento da seqüência, o tema é apresentado em anda­
mento mais lento e com pequenas modificações melódicas. Ele se adapta à intimidade
da cena e ajuda a construir a ambiência de uma vida conjugal tranqüila e harmoniosa.
O segundo momento da seqüência apresenta, ainda, uma conversa amigável, mas já se
percebe uma certa ironia, ainda que sutil, por parte de ambos. O compasso ternário da
valsa é substituído pelo binário. A música adquire um caráter jocoso, deixando de ser
romântica. A terceira passagem é bem mais agressiva, o diálogo se tomou tenso. A ativi-
178 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

dade rítmica da música, bem como sua tensão intema, cresce. Essa tensão se amplia, ain­
da mais, na quarta passagem, tanto na música quanto no diálogo. No quinto momento,
o diálogo é mínimo, apenas duas frases agressivas. A música não passa de uma pontua­
ção: o motivo do tema concluído por acordes incisivos. No último momento da seqüên­
cia, os dois já não se falam. A música transformou-se totalmente. Essa passagem antecipa
o Herrmann de alguns anos depois, nos filmes que realizaria com Hitchcock. Sobre um
motivo repetitivo em ostinato, uma melodia no agudo apresenta o tema, já muito trans­
formado. O compasso ternário da valsa é recuperado, mas não o seu caráter romântico
e afetuoso. O tema do casal já não é mais uma dança de salão, e não pertence mais ao
contexto do vaudeville. A música, ao longo da seqüência, afasta-se da peça de dança, da
valsa, transita pelo tipo de acompanhamento do cinema dos anos 1930 e, finalmente,
começa a adquirir a sonoridade característica das peças do próprio Herrmann.
Um aspecto instigante do depoimento de Herrmann é a maneira como ele se re­
fere ao tema de Rosebud. Ele não diz que o tema se refere à palavra Rosebud, mas: "o se­
gundo motivo, o qual deveria revelar o segredo de Rosebud (...)". É uma afirmação bastante
ousada. De que maneira a música seria capaz de revelar um segredo, especialmente um
segredo desse porte, que serve de base para toda a construção da narrativa? Não é uma
questão simples de se responder, mas podemos refazer o caminho do tema de Rosebud
no filme e tentar entender o que o levou a fazer tal afirmação.
Como vimos, o tema é introduzido no início do filme, na seqüência da morte de
Kane. Ele reaparece na seqüência em que o repórter consulta os arquivos pessoais de
Mr. Tatcher, sobre seu primeiro encontro com Kane. Nessa seqüência, há uma transição
de tipo "radiofônico", parecida com a citada por Herrmann, em que a música muda de
caráter para sublinhar a mudança de tempo e espaço da narrativa. A transição inicia-se
no momento em que o repórter começa a ler o manuscrito, com o tema do "Poder". A
câmera focaliza o texto, que funciona como uma legenda de cinema mudo. Quando a
frase: "J first encountered Mr. Kane in 1871" ocupa a tela, o caráter da música muda de
misterioso para nostálgico. Inicia-se o tema de Rosebud, apresentado pelas cordas. O texto
na tela é substituído pela imagem de Kane garoto, brincando na neve com seu trenó. A
música termina com mais um efeito em sincronia com a imagem: Kane atira uma bola
de neve, que explode sobre uma placa na porta da casa, tal como a bola de vidro com a
neve artificial, que caíra de suas mãos no momento de sua morte. Um acorde incisivo
pontua a explosão.
Imediatamente, forma-se um conjunto de associações. Na seqüência da morte de
Kane, o tema já havia sido associado ao globo de neve artificial e à palavra Rosebud, que
são justapostos. Agora, o elemento neve é reiterado. A ele, acrescentam-se o trenó e Kane
menino. O motivo musical reincidente estabelece uma ligação direta entre os dois mo­
mentos. Os dados para que se desvende o mistério de Rosebud já estão sendo fornecidos
ao público.
Uma outra insinuação bastante objetiva é feita no final dessa parte do filme, quando
Mr. Tatcher prepara-se para partir, levando o jovem Kane, afastando-o, assim, de sua fa­
mília e seu trenó. Kane tenta fugir e é contido por seus pais. Um plano próximo mostra
o trenó abandonado, já meio encoberto pela neve. O tema de Rosebud acompanha su-
Playing on the screen 179

tilmente e conduz ao final da seqüência. Este tema toma a aparecer na seqüência em que
Kane conhece Susan e ambos se dirigem ao apartamento da jovem. Quando o tema é
introduzido, temos a impressão de que alguma coisa está errada. Não há neve, nem tre­
nó, Kane não é mais uma criança, mas um senhor. Ao longo da seqüência, contudo, essa
impressão se modifica, pois Kane começa, aos poucos, a agir como uma criança, fazen­
do brincadeiras ingênuas para Susan. O Kane menino emerge do senhor de meia-ida­
de. Mas o grande esclarecimento vem no final da seqüência, quando Kane revela que iria
até um depósito em busca de sua juventude. Ele iria rever as coisas de sua mãe, lá guar­
dadas desde sua morte. Mais uma vez, a solução do segredo é insinuada.
Quando Susan o abandona, Kane, enraivecido, põe tudo abaixo em seu quarto. Que­
bra os móveis, atira longe os objetos, até que encontra a esfera de vidro com sua cabana
e a ilusão da neve. Ele olha para a esfera e, mais uma vez, pronuncia a palavra: "Rosebud".
Ele coloca a esfera em seu bolso e deixa o seu quarto, diante da criadagem perplexa. É
acompanhado pelo tema de Rosebud. Chega-se mais perto do significado de Rosebud, a
ponto de o mordomo de Kane, que é o depoente, julgar que Rosebud e a esfera sejam uma
só coisa.
Os temas do Poder e de Rosebud mesdam-se uma última vez no final do filme. O
Finale, como Herrmann o chamou, é uma peça musical completa. Ela tem início em si­
multaneidade com as imagens dos trabalhadores que limpam o depósito de Kane após
sua morte. As imagens começam em plano geral e vão, aos poucos, se aproximando. Ve­
mos uma infinidade de caixotes e trastes. A câmera faz um travelling sobre eles. O pri­
meiro tema a ser apresentado é o do Poder. O arranjo e a instrumentação dão-lhe um
caráter misterioso. Os contrabaixos insinuam rapidamente o motivo de Rosebud. Nova­
mente, Herrmann introduz o motivo do Poder. Quase não há atividade rítmica na mú­
sica. São notas longas e timbres que se alternam e se misturam. Um homem ordena que
se queimem alguns objetos. Um rulo de tímpanos prepara uma mudança de intenção
na música. A tensão cresce. Os metais reapresentam o motivo do Poder na região grave.
Vemos o trenó que vai ao fogo. As chamas o envolvem. As cordas executam o tema de
Rosebud na região aguda, enquanto vemos a enigmática palavra escrita na base do trenó.
O segredo foi, finalmente, revelado.
O exemplo do tema de Rosebud é bastante eficiente para observarmos como a mú­
sica é um excelente recurso para se insinuar ou dizer algo que não deve ser revelado aber­
tamente. A resposta para o segredo de Rosebud é insinuada com naturalidade, ao longo
de todo o filme, sem que o espectador seja capaz de percebê-lo conscientemente. Mas,
uma vez revelado o segredo, tudo o que foi visto e ouvido, até então, passa a fazer senti­
do. A música é um fator imprescindível na construção desse sentido.
Um filme mais recente que faz uso do mesmo recurso é Coração satânico (Angel
Heart, EUA, 1987). Harry Angel (Mickey Rourke) é o detetive contratado por Louis
Cypher (Robert de Niro) para encontrar Johnny Favourite, um cantor desaparecido desde
a Segunda Guerra Mundial. Harry inicia a busca e vai reconstruindo os passos de Johnny,
descobrindo seu envolvimento em rituais satânicos. Cada uma das pessoas que lhe for­
nece alguma informação sobre Johnny acaba sendo assassinada. Deixando para trás um
180 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

rastro de morte, Harry passa a ser o principal suspeito. No final, descobre-se que Johnny
e Harry são a mesma pessoa. Para fugir ao pagamento de uma dívida com o demônio,
Johnny apoderara-se da alma de Harry e como tal vivera até ser descoberto pelo demô­
nio, aliás, Louis Cypher. Há um tema musical que percorre todo o filme. Em determi­
nado momento, esse tema é assobiado por Harry enquanto dirige seu carro. No final,
descobre-se que se trata de uma velha canção de Johnny. A chave do segredo é dada no
momento em que Harry assobia a música, mas o espectador ainda não o percebe cons­
cientemente. Mais tarde, quando é revelada a verdadeira identidade de Harry, revela-se
também a identidade do tema musical. Todos os elementos, antes desconexos, encaixam-
se. Tudo faz sentido.

As C o n v e n ç õ e s P o é t ic a s A u d i o v i s u a is

O trabalho de Herrmann junto a Hitchcock é referencial para a música de ci­


nema até os dias de hoje. Segundo Michel Chion:

... sob uma certa "lenda dourada" que propagam algumas obras como aquela de
Alain Lacombe e Claude Rocie16, a música de Bernard Herrmann teria representa­
do uma revolução na concepção da música de cinema, inovando totalmente as re­
gras do jogo e rompendo as convenções. Ora, se tal música possui um sotaque
profundamente pessoal e único, a ponto de ter sido largamente imitada posterior­
mente, os procedimentos de relacionamento com a imagem e com a ação que ele
emprega são estritamente os mesmos que estes criticam em um Max Steiner:
leitmotiv (...), pontuação sincrônica de certos momentos significativos (...) - uma
pontuação que não teme sublinhar o fracasso de certas personagens com efeitos zom­
beteiros de surdina e, de uma maneira geral, estreita colaboração da música com a
atmosfera da cena (...). A fórmula de Bernard Herrmann não pode, portanto, ser des­
crita como uma ruptura, mas antes, ao contrário, como um exagero e uma sistema­
tização de certos procedimentos, aos quais deu um outro sentido. (1995:336)

Certamente, Herrmann não foi um compositor que promoveu uma ruptura na


música de cinema. Como vimos, ele é fruto de um processo. Uma linha de continuida­
de pode ser traçada, passando por seus antecessores, como o citado Steiner, e continuan­
do, tempo afora, até as primeiras experiências musicais do cinema ou, mesmo antes,
invadindo a história das formas dramático-musicais. Ele mesmo nunca se colocou como
um revolucionário ou um renovador da linguagem. Procede, também, a afirmação de que
ele teria sistematizado e, em alguns casos, levado ao extremo esses procedimentos que
haviam se tomado comuns na linguagem fílmica. Contudo, se o trabalho de Herrmann
não representa um rompimento com a tradição, não podemos deixar de considerá-lo um
marco divisor nessa progressão. A música de cinema pode ser dividida em "antes" e "de­
pois" de Bemard Herrmann, cujo trabalho foi fundamental para o estabelecimento das
convenções poéticas audiovisuais que orientam o cinema até o presente momento.

16. O autor se refere a La musique dufilm, editada em 1979.


Playing on the screen 181

Um dos filmes, com música de Herrmann que possui uma trilha cuja organização
é exemplar é Um corpo que cai (Vertigo, EUA, 1958). Ela é uma síntese de técnicas e con­
venções poéticas audiovisuais. Nela se misturam elementos tradicionais, atualizados por
Herrmann, e novos procedimentos por ele introduzidos.
Apenas para recordar, Um corpo que cai conta a história do detetive John (James
Stewart). Afastado da polícia por sofrer de acrofobia17, mal que custou a vida de um com­
panheiro de trabalho, John é contratado por Elster (Tom Helmore), um antigo colega de
escola, para seguir sua esposa Madeleine (Kim Novak) cujo comportamento estranho
indicaria um possível estado de loucura. Aos poucos, essa suposta loucura revela-se um
tanto mais misteriosa. Talvez Madeleine estivesse possuída pelo espírito de Carlotta, uma
antepassada sua, cuja vida teve final trágico. Mas o inevitável acontece, John apaixona-
se por Madeleine e é por ela correspondido. Na tentativa de provar a ela que não é lou­
ca, John a leva a uma velha vila, Madeleine foge, sobe à torre da igreja e atira-se. John
não consegue salvá-la devido a seu problema psicológico. Atormentado por acumular
mais uma morte em sua consciência, John mergulha em um estado de catatonia. Ao re­
cuperar-se, vagueia pelas mas à procura da perdida Madeleine e, como que por milagre,
a reencontra. Seu nome é Judy e se parece muito com Madeleine. Rapidamente, o pú­
blico fica sabendo que as duas são a mesma pessoa e que Elster havia montado toda a far­
sa para poder assassinar sua verdadeira esposa. Mas John não sabe disso e,
desesperadamente, força Judy a usar roupas iguais às da morta, mudar seu penteado, até
que ele possa ter Madeleine de volta. Mas uma falha de Judy o faz descobrir tudo: o co­
lar de Madeleine, que ela havia guardado e resolve usar. John, enfurecido, leva Judy à torre
da igreja, reconstruindo a ação do dia da morte, disposto a curar definitivamente sua
acrofobia. De fato, ele consegue chegar até o fim da escadaria, mas Judy assusta-se com
a chegada de uma freira e cai da torre. Mais uma vez John não pode evitar sua morte.
Um corpo que cai é um filme construído em espirais: as mortes que John não con­
segue evitar, a perda da mulher amada, o renascimento dessa mulher após a morte. As
espirais também estão visualmente presentes: nas animações criadas para a abertura do
filme, no penteado de Carlotta em seu retrato, que se reproduz no penteado de Madeleine,
no corte da sequóia, que sintetiza a passagem do tempo, na escadaria da torre, quando
vista de cima, no pesadelo de John, limite entre sua sanidade e o desequilíbrio psicoló­
gico. Até mesmo o movimento de John, perseguindo Madeleine, desenvolve-se em es­
piral pelas mas de São Francisco. Ou seja, tudo o que ocorre uma vez toma a acontecer,
não exatamente igual, mas com pequenas transformações. Herrmann estava conscien­
te disto quando criou a música com estruturas cíclicas que estão presentes ao longo de
toda a trilha. O tema de abertura é construído sobre um arpejo em movimento contrá­
rio. Em sua trajetória ascendente e descendente, o arpejo cria a idéia de um movimento
circular, que retoma sempre ao ponto inicial. A subdivisão ternária é fundamental para
criar essa impressão de circularidade.

17. Segundo Aurélio Buarque de Holanda: medo mórbido dos lugares elevados.
182 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

Como é comum em muitos filmes da Universal, o tema inicia-se sobre o logotipo


do estúdio. Em seguida, aparece a imagem do rosto de uma mulher, em plano muito fe­
chado, de modo que só se vê o rosto em partes: uma boca, um nariz. A imagem da mu­
lher será gradativamente construída pela soma das partes de seu rosto, tal como ocorre
com Madeleine, que será construída e reconstruída no filme. Herrmann sobrepõe acor­
des graves, com destaque para os metais, para pontuar cada um dos créditos principais:
James Stewart, Kim Novak, Hitchcock e o título do filme. Em seguida, a câmera mergu­
lha na íris da mulher, a partir da qual formar-se-ão as espirais. Como acontece desde o
cinema mudo, os trêmulos são usados para incrementar a tensão. As cordas fazem um
movimento ascendente em trêmulos que introduz uma linha melódica aguda baseada
no motivo dos arpejos. Tem início o movimento das espirais animadas, que servem de
fundo para a apresentação de mais créditos. A melodia desenvolve-se sobreposta aos acor­
des graves.
Próximo ao fim da abertura, a melodia é concluída, e volta o motivo circular do iní­
cio, acelerado. Os acordes permanecem. A melodia retorna, uma vez mais, para pon­
tuar os créditos musicais: Herrmann (compositor) e Muir Mathieson (regente). É feita
uma rápida coda, com o motivo inicial, acompanhada de acordes que sublinham o re­
tom o à imagem do olho, de cujo fundo sai o crédito final para Alffed Hitchcock.
O motivo musical da abertura será usado apenas mais uma vez, mas de modo sig­
nificativo. Essa recorrência ocorre na cena do salão de beleza, estágio final da transfor­
m ação de Judy em M adeleine. Assim com o no in ício, vem os o rosto de Judy
fragmentado. Aqui, também, o tema está associado à idéia de reconstrução da mulher.
A trilha musical de Um corpo que cai é construída a partir de um material temáti­
co bastante reduzido. Encontramos, aqui, novamente, a associação entre as alturas mu­
sicais e visuais, sim ilar às de Chantagem e confissão e King Kong. Os acordes que
pontuaram os créditos, no início, tomam-se um motivo recorrente ligado à acrofobia de
John. Agudo e grave são confrontados para estabelecer essa relação de verticalidade, su­
blinhando, musicalmente, o problema psicológico da personagem. Esse motivo é usa­
do, pela primeira vez, no final da primeira seqüência, a da perseguição sobre os telhados,
quando John fica pendurado no alto do prédio e não consegue reagir, provocando a morte
de seu companheiro. Enquanto ambos estão no alto, os acordes permanecem na região
aguda e média. O grave só é ouvido na queda do policial. A sensação de vertigem é re­
forçada, nos acordes agudos, pelos glissandos contínuos da harpa.
A primeira recorrência ocorre na cena em que John expõe a Midges (Barbara Bei
Geddes) o método que criou para curar sua acrofobia, subindo em uma escada, cada vez
mais alto, e olhando para baixo. O processo tem sucesso, até que, pela janela do aparta­
mento, ele percebe a verdadeira altura em que se encontra. Nessa inserção, o motivo não
Playing on the screen 183

é exatamente igual. Não há glissandos na harpa, provavelmente por não se tratar de um


momento crítico, já que nenhuma vida está em perigo.
A seqüência da morte de Madeleine também apresenta várias recorrências desse
motivo. Pela primeira vez, ele é usado para indicar a altura do ponto de vista externo. Em
outras palavras, até esse ponto do filme, o motivo era apresentado quando John encon-
trava-se em um local elevado. Na seqüência da morte, ele é usado para pontuar o olhar
que John lança do chão para a torre, indicando sua altura e relacionando-a a seu proble­
ma. Obviamente, ele não será capaz de acompanhar Madeleine.
Em sua perseguição a Madeleine, John olha para baixo. A sensação de vertigem foi
representada visualmente, por Hitchcock, por meio de um efeito de travelling e zoom si­
multâneos. Esse efeito, tão famoso, é outro ponto de recorrência do motivo musical. As­
sim como na seqüência inicial, os acordes agudos são mesclados aos glissandos na harpa,
enfatizando a sensação de vertigem. Em todas as recorrências do motivo, nessa seqüên­
cia, os acordes estão na região aguda, identificando-se com a altura. Somente quando ve­
mos o corpo de Madeleine estendido sobre o telhado, é que ouvimos a região grave,
concluindo a relação alto/baixo. O agudo é ouvido, novamente, quando John percebe que
se encontra em uma posição muito elevada e precisa sair dali. O final da seqüência apre­
senta o alto e o baixo em simultaneidade: com a câmera posicionada à altura da torre,
vemos o seu campanário e, ao mesmo tempo, John retirando-se pela saída do prédio. Esse
plano é pontuado por acordes agudos e graves. A mesma idéia é repetida na seqüência
final do filme, quando, novamente, John leva Judy à torre da igreja para refazer o cami­
nho que levou Madeleine à morte. Os mesmos efeitos são usados: acordes agudos, quando
John olha para baixo, e graves, no final, quando Judy cai da torre.
O exemplo do efeito musical para a vertigem de John permite que se retome a dis­
cussão sobre a questão da sonoridade. Tal efeito faz que ele se tome um autêntico leitmotiv
da acrofobia da personagem. Essa relação é estendida às relações de alturas, de um modo
geral, devido à alternância entre acordes agudos e graves. A sensação de vertigem, além
dos acordes, é enfatizada pelos glissandos nas harpas. O fato é que, em termos musicais,
não existe um tema propriamente dito. Não há qualquer linha melódica, mesmo que
curta. O que ouvimos não é um leitmotiv wagneriano sofrendo transformações de acor­
do com as diferentes situações, mas uma idéia, um conceito sonoro. Há uma com ­
binação de sons: acordes agudos e graves, e arpejos rápidos e contínuos, ascendentes e
descendentes, na harpa. Essa combinação sonora passa a exercer uma função temática.
Em suma, no cinema, o material temático não precisa ser, necessariamente, um tema
musical, com linha melódica definida e identificável. Em muitos casos, uma idéia so­
nora recorrente pode exercer essa função com grande eficiência.
A associação dos movimentos visual e musical também ocorre quando John encon­
tra Judy pela primeira vez, a segue até o hotel onde mora, pára e acompanha sua entra­
da pela porta. A câmera tem o ponto de vista de John, cujo olhar sobe pela fachada do
hotel procurando identificar o apartamento de Judy. De repente, abre-se uma janela e a
jovem surge. O movimento ascendente da câmera é acompanhado de um movimento
ascendente da música. Quando Judy abre a janela, esse movimento conclui-se no tema
de Madeleine.
184 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

Outro tema secundário do filme é o que Herrmann chamou de Rooftop, "telhados",


mas poderíamos chamá-lo de "perseguição". Ele aparece logo no início, como conti­
nuação da abertura, na seqüência da perseguição sobre os telhados. Assim como no motivo
inicial, a sensação de circularidade é estabelecida por um movimento do tipo moto per­
pétuo nas cordas. Sobre essa base, os metais intervêm com notas longas, que não chegam
a formar uma idéia melódica. A mesma idéia musical será retomada na seqüência da
morte de Madeleine, quando John a persegue escadaria acima. Mas a maior parte da tri­
lha é construída a partir de dois temas principais. O primeiro é o tema de Madeleine,
que funciona como um tema romântico:

O segundo tema básico é o de Carlotta, a antepassada de Madeleine, por cujo espí­


rito estaria sendo supostamente possuída. É construído a partir de um motivo curto que
se repete ciclicamente. Esse motivo evoca a origem espanhola de Carlotta, por meio de
suas figuras rítmicas pontuadas:

O tema de Madeleine é introduzido na seqüência em que ela janta com Elster, sen­
do observada por John. Aqui, vale a pena lembrar um outro aspecto da trilha musical de
Um corpo que cai: em grande parte do filme, a música liga-se ao ponto de vista de John,
ou seja, ela reflete a sua leitura de cada uma das situações. É o que ocorre na seqüência
citada anteriormente. Para que possa conhecer Madeleine sem se identificar, Elster so­
licita que os observe durante seu jantar no Emie s. A seqüência começa com o tema sendo
apresentado suavemente, com bastante discrição, pelas cordas. Elster e Madeleine estão
sentados à sua mesa, John está no bar. A câmera aproxima-se da mesa reproduzindo o
olhar de John. Madeleine está de costas, ainda não é possível vê-la. A música permane­
ce assim, discreta, até que ela se levanta e caminha em direção a John. O plano vai se
Playing on the screen 185

fechando sobre ela, até vermos apenas seu rosto. A música acompanha a aproximação
visual com um crescendo, que funciona como uma "aproximação musical". Há uma pe­
quena aceleração do andamento, a melodia encaminha-se para o ponto culminante, atin­
ge a região aguda e desdobra-se em um rápido desenvolvimento de seu motivo.
Essa seqüência oferece-nos um excelente pretexto para refletir sobre as convenções
audiovisuais do cinema. Como dissemos, no início da seqüência, a câmera nos oferece
o ponto de vista de John, até que o rosto de Madeleine ocupe toda a tela. Nesse momen­
to, Hitchcock altema planos fechados de Madeleine e John. Essa articulação, somada ao
clímax do tema musical cujo caráter é, essencialmente, romântico, informa o especta­
dor de que ali se encontra algo mais do que uma relação puramente profissional.
Madeleine e John são apresentados ao público como casal, como par romântico. Ime­
diatamente, sabemos que aquele homem deverá apaixonar-se por aquela mulher. A mú­
sica é um fator imprescindível para a formação desse sentido. É possível constatá-lo
assistindo-se à seqüência com e sem música.
Na seqüência seguinte, o tema é totalmente transformado. Do romântico (ou Len­
to amoroso como Herrmann indicou na partitura), o tema passa para Misterioso. É nessa
seqüência que John começa a perseguir Madeleine. A música de toda essa parte relacio­
na-se diretamente ao ponto de vista de John. Os passos de Madeleine, suas atitudes estra­
nhas, estaria ela possuída? O mistério que começa a se formar em tomo daquela mulher,
indicado pela música, é algo que se revela ao público por meio de John. Mas ele, pro­
priamente, não fala, é a música que funciona como uma espécie de monólogo interior
da personagem. Para criar a atmosfera de mistério, Herrmann transformou a melodia,
fazendo modificações de direção e de modo. Ela também é acompanhada por uma fi­
gura rítmica que já antecipa o tema de Carlotta.
Neste filme, podemos observar como as convenções audiovisuais do cinema mudo
foram preservadas no sonoro. Certa vez, Hitchcock afirmou que uma boa escola de ci­
nema deveria ensinar os alunos a fazer filmes mudos, pois, a partir do momento em que
se cria uma narrativa com imagens, é que se aprende a fazer cinema. Ainda que o texto
falado tenha sido incorporado, a linguagem cinematográfica subsiste sem ele. Imagens
filmadas e música são o suficiente para elaborar estruturas dramáticas e narrativas inte­
ligíveis, coerentes e auto-suficientes. Em Um corpo que cai, há seqüências bastante lon­
gas em que não se ouve uma única palavra. Contudo, elas são absolutamente claras. O
espectador entende perfeitamente a progressão narrativa.
Durante a parte do filme que mostra a perseguição de John, as versões romântica
e misteriosa do tema de Madeleine são confrontadas. Especialmente, na cena da flori­
cultura, é a versão romântica que predomina. O conflito interior de John vai, aos pou­
cos, sendo explicitado pela música: suas impressões sobre Madeleine dividem-se entre
o mistério e a paixão.
Na cena em que John segue Madeleine pelo cemitério, chegando até o túmulo de
Carlotta (primeira referência objetiva a ela no filme), o tema de Madeleine recebe um
tratamento especial. Não apenas a música foi tratada de maneira diferenciada, mas tam­
bém as imagens. Segundo Hitchcock:
186 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

(...) Na primeira parte, quando James Stewart seguia Madeleine no cemitério,


os planos sobre ela a tornavam bastante misteriosa, pois os filmávamos através de
filtros de névoa; obtínhamos assim um efeito colorido verde por cima da clarida­
de do sol. (Truffaut, 1986:145)

O tratamento que Herrmann deu ao tema de Madeleine, nessa cena, é compatível


com essa imagem enevoada. Violinos, na região bem aguda, executam a melodia em an­
damento bastante lento. Eles sussurram, compactuando com a discrição de John, que não
quer ser percebido por Madeleine. Não há nenhuma figura rítmica que sirva de acom­
panhamento, apenas as madeiras graves sustentando notas longas. Não há nenhuma es­
pécie de preenchimento harmônico: as duas linhas estão distantes, assim como John e
Madeleine. Aos poucos, a linha do grave ganha importância. Percebe-se que as notas lon­
gas formam frases muito simples e que seguem um padrão motívico. O caráter tem o e
melancólico da linha melódica contrapõe-se à sonoridade misteriosa do darone na re­
gião grave. Assim, a música materializa o conflito implícito na situação. A seqüência ter­
mina com Madeleine deixando o cemitério e John dirigindo-se à tumba em que ela havia
estado. Quando se vê o nome Carlotta Valdes, na tumba, a música muda. O darone apre­
senta um motivo grave, extraído da versão misteriosa do tema de Madeleine, pontuado
por dois acordes e sinos da igreja.
O tema de Carlotta é introduzido na seqüência do museu, quando Madeleine ob­
serva o retrato de Carlotta e é observada por John. Uma harpa executa a figura rítmica es­
panhola na nota ré. Sobre ela, instrumentos de sopro executam uma linha melódica cujo
motivo se assemelha muito ao da linha das madeiras graves da seqüência do cemitério.
De certo modo, o espírito de Carlotta já estava presente naquela seqüênda sem que o pú­
blico soubesse. A estrutura da música é tídica, repete-se continuamente com pequenas al­
terações. Também é um tema em espiral, como o penteado de Madeleine e de Carlotta.
As versões românüca e misteriosa do tema de Madeleine são confrontadas na se­
qüência em que a jovem tenta o suicídio atirando-se às águas da baía. É a primeira oca­
sião em que ocorre um contato físico entre Madeleine e John. Enquanto ele a segue em
seu carro, a música ouvida é a versão romântica. Contudo, ela é pontuada duas vezes pelo
motivo da versão misteriosa. O mistério ainda existe, mas cede cada vez mais espaço ao
romance. Como a música compactua com o ponto de vista de John, podemos concluir
que, primeiro, o mistério já não é mais tão misterioso após as informações que obteve
sobre Carlotta e, segundo, ele está realmente se apaixonando por Madeleine, o que se toma
bastante claro no final da seqüência.
Quando Madeleine atira-se na baía, a música muda para agitato. O caráter cíclico,
bem como os trêmulos nas cordas, estão presentes nessa passagem. A linha melódica
baseia-se no motivo do tema de Madeleine. Quando ele a retira da água, a música reto­
ma seu caráter romântico. É a primeira vez que vemos os dois, em um único plano, frente
a frente, acompanhados pelo tema romântico. Está formado o casal, ainda que ela este­
ja inconsciente.
Se, por um lado, como vimos, podemos encontrar em Um corpo que cai o princí­
pio do cinema mudo, por outro, encontramos a construção melodramática característica
do cinema dos anos 1930: o diálogo acompanhado por música. O cinema conservou am­
bos, em convivência harmoniosa.
Playing on the screen 187

No filme, o diálogo acompanhado por música começa a ser usado, com freqüên­
cia, a partir do primeiro encontro de Madeleine e John, quando ela desperta de seu es­
tado de inconsciência. A música das seqüências dialogadas é tratada com especial cuidado
para que não interfira na compreensão do texto. Há pouca aúvidade rítmica. A música é
"plana", quase não há mudanças internas que chamem a atenção do espectador. As pe­
quenas variações são localizadas de forma a coincidirem com as pausas do diálogo. É o
que acontece, por exemplo, no momento em que Madeleine aproxima-se da câmera. A
música cresce, de modo semelhante ao da seqüência no Ernie's, mas, logo retoma à sua
condição de acompanhamento discreto do diálogo.
Este tratamento especial das cenas com diálogo pode ser percebido na seqüência
das sequóias, em que há uma constmção melodramática baseada no tema de Carlotta.
O ostinato rítmico do tema, que lembra a música espanhola, é suprimido. A parte me­
lódica, em notas longas, mantém a referência temática. Com isso, o compositor conse­
gue manter a atmosfera de mistério. Nessa passagem, Madeleine entra em uma espécie
de transe diante do fragmento de um tronco, que sintetiza a passagem do tempo. Seria
Carlotta a se manifestar por meio dela? A música reforça essa ambigüidade: de uma for­
ma ou de outra, o espírito de Carlotta está ali presente. Mesmo o som das vozes recebe
um tratamento especial, com uma reverberação que lhes dá um caráter onírico. Vozes e
música interagem polifonicamente com a ação filmada.
Em Um corpo que cai, os beijos demarcam os pontos cruciais da narrativa. O pri­
meiro deles ocorre na continuação da seqüência das sequóias. Madeleine, perturbada,
corre para a praia. John tenta convencê-la de que não é louca, de que tudo por que passa
tem uma explicação. A música mescla fragmentos e variações dos temas de Madeleine
e de Carlotta. Trêmulos nas cordas sublinham a aflição de John, que tenta encontrar uma
explicação lógica para tudo. Um crescendo na música conduz ao clímax que deveria ocor­
rer no momento do beijo, mas há, em vez disso, um clímax contido, na região grave, e
não uma explosão de paixão. Um acorde conclusivo põe um ponto final na seqüência.
O segundo beijo ocorre próximo à seqüência da escadaria, pouco antes da morte
de Madeleine. A música que o acompanha também é contida e lenta. Em nenhum mo­
mento, o movimento musical flui livremente. Madeleine está nitidamente incomoda­
da e fica patente que o par romântico terá sua felicidade ameaçada. Após o beijo,
Madeleine corre em direção à torre. Uma nova variação mais agitada de seu tema é in­
troduzida, e ela será usada, por diversas vezes, até o final do filme.
A seqüência da morte de Madeleine e o pesadelo de John, limite de sua saúde men­
tal, demarcam o fim da primeira parte e o início da segunda parte do filme. As imagens
oníricas do pesadelo são acompanhadas por uma peça musical que se inicia com o tema
romântico. Vemos John à beira da sepultura de Madeleine. Um plano geral da cidade, à
noite, indica a passagem de tempo. John dorme em sua cama, agitado. É feita uma tran­
sição musical com motivos rápidos, nas cordas, de estrutura cíclica. Eles cedem lugar ao
tema de Carlotta, que acompanha as imagens oníricas. Quando John chega à tumba va­
zia, retoma o movimento rápido das cordas reforçado por outros instrumentos. O sonho
termina com um acorde marcante que inclui os glissandos rápidos da harpa, caracterís­
ticos do motivo da vertigem.
188 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

Recuperado de sua catatonia, John vaga pelas ruas tentando reviver os dias que pas­
sou junto a Madeleine. Um plano de transição mostra um travelling sobre a cidade, em
vista aérea. Por meio de uma fusão, chega-se à imagem do edifício de Madeleine. No mo­
mento em que o edifício entra em quadro, a música retoma, imediatamente, o tema ro­
mântico. Vemos o carro de Madeleine estacionado, para o qual aponta um sinal de
trânsito: One Way (mão única), construção esta em que a informação é dada apenas pela
imagem e pela música, como no cinema mudo. Prontamente, ficamos sabendo que John
não se recuperou de sua obsessão por Madeleine. Ele transita por um caminho de "mão
única". Madeleine não está morta, ou melhor, ela é, agora, um espírito cuja presença se
manifesta em todas as coisas, tal como Carlotta na primeira parte do filme. Como que
possuído por esse espírito, John refaz todos os passos de sua perseguição a Madeleine: o
Ernie's, o museu. Neste último, há uma interessante sobreposição do tema de Madeleine
ao ostinato rítmico do tema de Carlotta. O museu é o espaço onde sempre predominou
o tema de Carlotta, mas a obsessão de John por Madeleine faz que este tema fique em
segundo plano. O tema romântico, em andamento bem lento, com caráter melancólico,
domina todo esse momento. John encontra Judy e a segue até seu hotel. Após o reencon­
tro, Judy, confusa, pensa em fugir e depois desiste. É uma passagem importante, pois nela
é revelado ao público que Judy e Madeleine são a mesma pessoa.
A seqüência começa com um flash back da morte de Madeleine, só que, agora, sob
o ponto de vista de Judy. É o primeiro momento em que a narrativa é construída a par­
tir de outro ponto de vista que não o de John. A música dessa passagem é muito bem ela­
borada, e começa com uma pequena referência ao tema de Carlotta. De imediato, fica-se
sabendo que as duas mulheres são a mesma pessoa, pois apenas Madeleine poderia ser
identificada ao tema de Carlotta. Começa o flash back acompanhado pelo tema da per­
seguição, tal como ocorrera anterioremente. Só que não temos mais as interrupções do
motivo da vertigem. Sob o ponto de vista de Madeleine, podemos ver o que não havia
sido visto antes: ela chegando ao topo e Elster atirando a mulher, já morta, do alto da torre.
Ainda assim, há uma identificação entre os pontos de vista de John e de Madeleine, o
uso do mesmo acompanhamento musical reforça a ligação entre ambos. Ela foi usada
por Elster e isto a faz sofrer, pois, acima de tudo, ela também ama John. Tudo isto é in­
dicado pela música antes de ser dito objetivamente.
Ela, amedrontada, resolve fugir. Pega sua mala. Essa parte é acompanhada pela ter­
ceira variação do tema de Madeleine, introduzida na seqüência da torre. Quando ela vê
o traje de Madeleine em seu armário, essa variação aproxima-se da versão romântica,
passando para o agudo e sendo modificada melódica e harmonicamente. A visão da rou­
pa tocou-a. É mais uma indicação de que ela ainda está apaixonada por John. Mas preci­
sa fugir, pois, afinal, é cúmplice de um crime. Ela se senta para escrever uma carta de
confissão a John. A progressão temática dá lugar a uma única nota grave. Sobre ela, as
cordas agudas, em trêmulo, executam um movimento melódico baseado no motivo do
tema de Carlotta. Isso acompanha o monólogo de Judy, até que ela se levanta e rasga a
carta. Nesse momento, a variação de caráter romântico retorna com toda a força. Sua
paixão por John venceu o medo de ser descoberta.
Playing on the screen 189

No dia seguinte, John começa a transformar Judy em Madeleine: compra roupas e


sapatos semelhantes aos da suposta morta, algo que Hitchcock descreveu como sendo um
striptease ao contrário: "Essa é a situação fundamental do filme. Todos os esforços de James
Stewart para recriar a mulher, cinematograficamente, são mostrados como se ele pro­
curasse despi-la, em lugar de vesti-la" (Truffaut, 1986:145).
John não consegue estabelecer uma relação física com Judy antes que a transfor­
mação esteja completa. O tema romântico domina toda essa seção, mas, assim como
John, é contido. Em nenhum momento, ele chega ao clímax, exteriorizando a paixão de
ambos. Isso só acontecerá depois que Judy tiver acertado os últimos detalhes de seu pen­
teado ou como diz Hitchcock:
E a cena que eu sentia mais é quando a moça volta, depois de ter tingido o ca­
belo de loiro. James Stewart não está completamente satisfeito porque ela não pren­
deu o cabelo num coque. O que isso quer dizer? Quer dizer que ela está quase nua
diante dele, mas ainda se recusa a tirar a calcinha. Então James Stewart mostra-se
suplicante e ela diz: "Está bem, vá lá", e volta ao banheiro. James Stewart espera.
Espera que ela volte nua desta vez, pronta para o amor.

A aflição de John esperando que Judy saia do banheiro é acentuada por trêmulos.
Quando ela sai, há um grande crescendo em movimento ascendente das cordas, para re­
tomar o tema no agudo. Ela aproxima-se, o andamento acelera-se incorporando a ace­
leração dos pulsos. Os dois encontram-se, tem início o beijo mais longo da história do
cinema, mostrado em trezentos e sessenta graus e acompanhado por uma peça musical
completa. Pela primeira vez no filme, o tema romântico é conclusivo, termina de modo
afirmativo, determinado e tonal, reiterando que os conflitos que impediam a plena união
do casal estão resolvidos.
Na seqüência final, quando John leva Judy de volta à torre, recriando a ação da mor­
te de Madeleine, a música é determinante na constmção do sentido. John quer vencer
sua acrofobia. Dessa vez, a música não é tão agitada como a da primeira subida à torre,
e sim uma variação do tema romântico, segura e determinada. Ela ainda é interrompi­
da pelo motivo da vertigem, enquanto os dois sobem, mas o tema não é afetado por isso.
Conforme John sobe, a música vai ficando cada vez mais lenta, precisa, como a perso­
nagem.
A afetação retoma depois que John e Judy discutem. Ele a arrasta para o campaná­
rio para o último diálogo. O tema romântico acompanha a última declaração de amor
do casal e o último beijo. Ambos são interrompidos pela chegada da freira, que assusta
Judy e provoca sua queda da torre.
Em uma entrevista concedida no início dos anos 1970, Herrmann afirmou:

Em Hitchcock, é preciso criar uma paisagem para cada filme, tais como a noi­
te chuvosa de Psicose ou as turbulências de um filme como Um corpo que cai. Em
Cidadão Kane, ao contrário, um filme sobre pessoas em uma época específica e
como elas se sentiam a respeito de eventos externos, eu procurei exprimir as atitu­
des de ódio, amor e vingança. A música, como um todo, deve suprir aquilo que os
atores não são capazes de dizer. A música deve dar ao público seus sentimentos. Ela
190 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

deve prontamente exprimir o que a palavra não é capaz, se você está lidando com
o emocional, ou este é todo o propósito de uma trilha musical. Mas se você está li­
dando com um filme tal como um filme de Hitchcock, ou qualquer filme, de qual­
quer diretor muito competente, e compreende como o filme é feito [você percebe
que], um filme é feito apenas por seguimentos de filme que são postos juntos e
cada um deles ligados artificialmente por fusões, cortes ou montagens e muitos re­
cursos por meio dos quais um filme pode ser feito. É função da música unir essas
peças em um todo, de modo que o público sinta que a sua seqüência é inevitável.18

Ainda que não seja dirigida a especialistas, esta declaração demonstra o quanto
Herrmann tinha consciência do meio de que sua música fazia parte. É inevitável a asso­
ciação com o filme Todas as manhãs do mundo, apresentado no início deste trabalho, em
que é apresentada a noção de que a música diz o que não pode ser dito por meio das pa­
lavras. Particularmente interessante, é a forma como Herrmann vincula a trilha musi­
cal com o processo de montagem, quando afirma que a música é uma das responsáveis
pela solução de continuidade do filme. Nota-se que ele tinha uma clara consciência da
técnica e da linguagem do cinema e que estava atento aos seus aspectos dramático e épi­
co. Ele comenta que, para os filmes de Hitchcock, era necessário criar uma "paisagem",
como em Psicose (Psycho, EUA, 1960) e em Um corpo que cai. Muito mais do que uma
simples ambiência, a "paisagem" musical que criou para esses filmes é parte fundamen­
tal de seu complexo narrativo. Paralelamente, cita Cidadão Kane como um filme no qual
afloram as emoções humanas geradas no convívio e confronto de pessoas com seus de­
sejos e emoções, seus conflitos e paixões, um tipo de abordagem cujo referencial direto
é a dramaturgia.
O conhecimento desses dois níveis, dramático e épico, é fundamental para o com­
positor de trilhas musicais. Saber transitar entre eles e dosar a música, a fim de interfe­
rir da maneira mais adequada, é uma habilidade importantíssima. E, finalmente, para
que essas relações complexas, dramáticas e narrativas se efetivem, é preciso dominar a
sincronia pela qual é gerada a polifonia audiovisual. É preciso saber usar o encontro dos
tempos visual e sonoro. É preciso envolver o espectador em cada momento, criar con­
dições para que ele seja inserido naquele tempo dramático e narrativo, tal como afirmou
Martin Esslin:

(...) A tarefa básica de qualquer pessoa preocupada em apresentar qualquer es­


pécie de drama a uma platéia consiste em captar a atenção desta e prendê-la pelo
tempo que for necessário. Somente quando esse objetivo fundamental houver sido
atingido é que poderão ser alcançados objetivos mais elevados e ambiciosos tais
como a transmissão de sabedoria e compreensão, a poesia e a beleza, o divertimento
e o relaxamento, o esclarecimento e a purgação de emoções. (1977:47)

Herrmann sabia aproveitar o recurso da sincronia para criar o efeito necessário, a


pontuação, a articulação equilibrada dos tempos visual e sonoro. Se, por um lado, a mú­
sica desenvolve-se como um discurso, por outro, liga-se aos ruídos, toma-se efeito sono­

18. Inserida no CD Bernard Herrmann no cinema.


Playing on the screen 191

ro ou sonoridade pura e simples. Uma sonoridade que, ainda que não seja figurativa
como o som de um objeto identificável, relaciona-se com ele de modo tão claro, que pas­
sa a ser o seu próprio som. É o que acontece, por exemplo, em Psicose, na clássica seqüên­
cia do assassinato no chuveiro. A música que Herrmann criou é simples: um ostinato
uniforme, um pulso, uma única nota que se repete, muito aguda, em seguida, oitavas de
igual duração, depois intervalos de segunda e sétima. Os ataques, em glissandos muito
rápidos e incisivos na região aguda das cordas, penetram o ouvido como uma faca, en­
quanto a faca de Norman Bates (Anthony Perkins) rasga o corpo de Marion (Janet Leigh).
A partir de uma sonoridade e estrutura tão simples, criou-se uma música que é a repre­
sentação sonora de assassinato. É um som que jamais poderia ter sido produzido por
uma faca, mas ligou-se de tal maneira a esse objeto que, até hoje, a associação de am­
bos é imediata.
Em 1971, Herrmann afirmou ter escrito a música de Psicose apenas para cordas
(violinos, violas, violoncelos e contrabaixos) com o objetivo de "complementar a foto­
grafia em preto-e-branco do filme com um som em preto-e branco". Do mesmo modo
que a fotografia em preto-e-branco limita a imagem às variações de luz, a escolha de um
grupo instrumental formado por instrumentos da mesma família reduz o espectro
timbrístico às variações puramente musicais. É uma idéia bastante simples, mas total­
mente original no contexto em que foi aplicada. No caso de Herrmann, especialmente,
que gostava de usar combinações instrumentais pouco usuais, foi uma mudança drásti­
ca. A partir disso, ele construiu uma trilha clássica.
Assim como em Um corpo que cai, a música em Psicose é fundamental para a cons­
trução das situações de suspense. Em muitos casos, este é obtido pela associação da mú­
sica com o ponto de vista de uma personagem em particular, como ocorre, por exemplo,
na seqüência do assassinato do detetive Arbogast (Martin Balsam). Em contraste, a ten­
são da fuga de Marion, logo no início do filme, é criada a partir de uma complexa com­
binação sonora na qual ouvimos as vozes em off, acompanhadas por uma música de
grande atividade rítmica, que explicita a tensão da personagem.
Por tudo o que foi dito, ainda que não tenha sido um revolucionário como afirmou
Chion, Hermann é um dos compositores mais importantes da história do cinema. De­
vido ao domínio do veículo e sua consciência da linguagem, ele poderia até ser consi­
derado não apenas um compositor, mas um cineasta, cuja função era a de criar a trilha
musical do filme.

D e O lh o s e O u v id o s B em A berto s

Quanto mais refletimos sobre a poética musical do cinema, mais percebemos que
o que existe, de fato, é uma poética do cinema da qual a música é apenas um fator. É di­
fícil isolar a música do movimento visual, da ação filmada, das estruturas narrativas e dra­
máticas, dos ruídos, dos diálogos etc. Mesmo alguns fatores, que normalmente julgamos
pouco relacionados à música e ao som, surpreendem-nos em articulações bem elabora­
das. Como se relacionam, por exemplo, som e enquadramento? Em um primeiro m o­
mento, podem parecer coisas distintas, funcionando isoladamente. Mas, subitamente,
vemo-nos diante de uma situação articulada, a partir desses fatores, tal como ocorre em
192 Sygkhronos. A form ação da poética musical do cinema

Um corpo que cai quando Madeleine aproxima-se da câmera no Ernie's ou como em To­
das as manhãs do mundo, na seqüência inicial, em que vemos o rosto de Marin Marais
(Gerard Depardieu) em plano fechado, e ouvimos tudo o que acontece à sua volta. Ou­
vimos a música, a voz de seus discípulos e começamos a construir toda a nossa noção
do espaço por meio do som. Mas, ao observarmos apenas o rosto inquieto de Marin
Marais, nitidamente incomodado, ficamos ansiosos. A impossibilidade de ver o que acon­
tece é como uma camisa de força. Temos a vontade de romper com os limites do qua­
dro e enxergar o que se passa à volta daquele homem, co-participar de seu ambiente, do
qual fom os excluídos. Trata-se de uma articulação gerada a partir do som e do
enquadramento.
A linguagem audiovisual está em constante transformação. Seguidamente, novas
convenções e soluções poéticas são apresentadas. É cada vez maior a complexidade des­
sas articulações, o que se toma possível à medida que o público domina e aceita as no­
vas convenções poéticas. Algumas das construções audiovisuais do cinema atual seriam
impensáveis ou ininteligíveis nos primeiros anos do cinema sonoro, como, por exem­
plo, as articulações que subvertem a linearidade temporal ou que jogam o som da ação
filmada para o plano da narrativa sem qualquer explicação. Todas as manhãs do mundo é
um exemplo de um filme que faz isso o tempo todo. A música, como assunto central do
filme, transita constantemente entre os dois níveis. Ela deixa a viola-da-gamba de Sainte-
Colombe e Marais e segue, naturalmente, pelas seqüências, torna-se a voz do narrador,
liga a ação, ambienta, conduz as transições de tempo e lugar, tudo isto sem perder sua ca­
pacidade expressiva e sem deixar de dizer tudo o que não pode ser dito de outra maneira.
O paralelismo, tão característico à linguagem do cinema desde Griffith, estendeu-
se também para o domínio da trilha musical. Construções complexas, em que a ação
paralela é pontuada por discursos musicais também paralelos, são perfeitamente com ­
preensíveis, como ocorre por exemplo na seqüência inicial do filme Fome de viver (The
Hunger, EUA, 1983). Ou, ainda, a seqüência da navalha em A cor púrpura (The Color Purple,
EUA, 1985), na qual a música do ritual africano conduz duas ações paralelas: a do pró­
prio ritual e a do casal. O paralelismo entre as ações é exato. No ritual, acontece a inici­
ação das crianças por meio do corte com a ponta de uma lança. Na varanda, Celie
(Whoopi Goldberg) prepara-se para fazer a barba de Mister (Danny Glover). A ação do
ritual confere uma ambigüidade à ação do casal. Tudo indica que Celie atravessará a ar­
téria de Mister com a navalha. A música tribal empresta à ação do casal o seu caráter
ritualístico. A coragem para assassinar Mister, seu companheiro opressor, significa tam­
bém uma iniciação para Celie.
Tal complexidade só é possível porque possuímos olhos e ouvidos bem treinados,
aptos a compreender essas articulações. Resultado de mais de um século de convivência
com o cinema, as convenções audiovisuais são, para o público de hoje, tão naturais quan­
to eram as convenções da ópera para o público dos séculos XVIII e XIX.
Essa familiaridade com as convenções poéticas foi o que permitiu o surgimento de
novas formas de expressão audiovisuais, como o videoclipe, que incorpora elementos pre­
sentes no cinema, mas sob uma ótica particular. No videoclipe, as relações entre o m o­
vimento visual e sonoro são primordiais. As possibilidades da sincronia são levadas ao
Playing on the screen 193

extremo, em busca de uma plasticidade peculiar. Contudo, os aspectos dramático e nar­


rativo têm sua importância reduzida.
É o que ocorre, também, naquilo que se convencionou chamar de multimedia: jo­
gos, CD r o m s e aplicativos informatizados que fazem uso de som e imagem de um modo
geral. Neles, também, os recursos de sincronia são importantes, mas há uma diferença
fundamental: a interatividade. A partir do momento em que o usuário cria vários cami­
nhos para transitar pelo aplicativo, novas formas de relacionar a música e as imagens se
fazem necessárias. Não se trata mais de um discurso linear, com começo, meio e fim,
mas de múltiplas combinações de unidades isoladas. Enfim, é difícil antecipar as impli­
cações de tais transformações, ainda tão recentes. Contudo, é possível dizer que muito
deverá acontecer, em virtude de os meios de produção audiovisual tomarem-se domésti­
cos. Hoje, é possível trabalhar com som e imagens digitais em nossas próprias casas. Em
princípio, um grande número de pessoas estaria em condições de produzir obras audio­
visuais em nível doméstico, como, de fato, vemos acontecer cada vez mais. Isso, com cer­
teza, terá reflexos na produção e no consumo do audiovisual. Nossos olhos e nossos
ouvidos precisarão estar cada vez mais abertos para criar e usufruir obras poéticas base­
adas nas imagens e sons. Mas não podemos perder de vista o cinema, que, a despeito de
tudo, continua a ser cinema, e foi a partir dele que esse treinamento começou em um
terreno que já havia sido preparado pela ópera e pelo teatro musical. Enfim, assim
com o Marin Marais e Sainte-Colombe, precisaremos estar cada vez mais aptos a en­
tender, em meio a esse turbilhão de informações, aquilo que a música, e somente ela,
é capaz de nos dizer.
R e f e r ê n c ia s B ib l io g r á f ic a s

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Publicações Via Lattera

Coleção Música Viva

Exercícios preliminares em contraponto - Arnold Schoenberg


Do tempo musical- Eduardo Seincman
As vozes da canção na mídia - Heloísa Duarte de Araújo Valente
Psicanálise e Psiquiatria

Do amor ao pensamento. A psicanálise, a criação da criança e D. W. Winnicott - Heitor 0'Dwyer de


Macedo
A criança, sua doença e os “outros"- Maud Mannoni
O paradoxo da psicanálise. Uma ciência pós-paradigmática - Antonio Muniz de Rezende
A psicanálise “atual" na interface das “novas" ciências - A. Muniz de Rezende e I. Gerber
Entre Moisés e Freud. Tratados de origens e de desilusão do destino - Daniel Delouya
Discurso do capitalista. Uma montagem em curto-circuito - Luiza Helena Pinheiro Gonçalves
Piera Aulagnier. Uma contribuição contemporânea à obra de Freud - Maria Lucia Vieira Violante
Diálogos Klein-Lacan - Bernard Burgoyne e Mary Sullivan (eds.)
Ana K. ou a conjugação do corpo. História de uma análise - Heitor 0 ’Dwyer de Macedo
Colóquio Freudiano. Teoria e prática da psicanálise freudiana - Ana Maria Sigal e Isabel de Vilutis
(orgs.)
(Im)possível diálogo psicanálise psiquiatria - Maria Lucia V. Violante (org.)
Passagem para o desconhecido. Um estudo psicanalítico sobre migrações entre o Brasil e o Japão-
Taeco Toma Carignato
Psicanálise e Universidade rP 12/13- Núc. de Psic. do Prog. de Est. Pós-Grad. da PUC-SP
Psicanálise e Universidade rF 14 - Núc. de Psic. do Prog. de Est. Pós-Grad. da PUC-SP
Psicanálise e Universidade rF 15 - Núc. de Psic. do Prog. de Est. Pós-Grad. da PUC-SP
Psicanálise e Universidade rF 16- Núc. de Psic. do Prog. de Est. Pós-Grad. da PUC-SP
Psicanálise e Universidade rF 17- Núc. de Psic. do Prog. de Est. Pós-Grad. da PUC-SP
Formas do vazio. Desafios ao sujeito contemporâneo - Carmen Da Poian (org.)
Delírio. Uma nova concepção projetada em cinemas - José Paulo Fiks
Memória corporal e transferência - Ivanise Fontes
Psicopatologia: vertentes, diálogos. Psicofarmacologia, psiquiatria, psicanálise - David Calderoni (org.)
A clínica e o sintoma. O curável e o que não tem cura - Maria Cristina Ocariz
O que acontece nos grupos - R. D. Hinshelwood
Viagem ao país do Nuncacomer- Silvia Fendrik
Comportamento
S exo- Rosely Sayão (Co-ed. Escuta)
A difícil vida fácil do adolescente- M. C. Negreiros, S. D’AI Porto e M. Isaac
Manual de Teatro Doméstico- Raul Lamba
Perfil de Habilidades Fonológicas- Isabel de Carvalho, Ana Maria M. Alvarez e Aparecida L. Caetano
Em busca da escola ideal - Neda Lian Branco Martins
Tênis para crianças - Suzana Silva
Ficção
A geringonça e outros contos - Gabriel de Mattos
Fumaça e espelhos - Neil Gaiman
Na margem esquerda do rio: contos de fim de século- J. Moreno e Mário C. Silva Leite (seis. e orgs.)
As ondas da vida - José Augusto de Aguiar Costa
Sombras e nefastos - Ricardo Bellissimo
P ah l- Artur de Carvalho
Sociologia
A longa marcha dos camponeses franceses - Louis Malassis
Coleção Psicanalistas de Hoje
Joyce McDougall - Ruth Menahem
Sándor Ferenczi - Thierry Bokanowski
André Green - François Duparc
Melanie Klein - Dominique Arnoux
Coleção Explicado a
O racismo explicado à minha filha - Tahar Ben Jelloun
Auschwitz explicado à minha filha - Annette Wiewiorka
O amor explicado aos meus filhos - N. Bacharan e D. Simonnet
A cultura explicada à minha filha - J. Clément
A não-violência explicada às minhas filhas - Jacques Sémelin
A república explicada à minha filha - R. Debray
As religiões explicadas à minha filha - Roger-Pol Droit
Deus explicado aos meus netos - J. Sémelin
Álbuns de HQ
O homem ideal- Ralf Kõnig O Gralha - Cracomics
Balas Perdidas 1 - David Lapham Front #7. Arte - Kipper, Orlando e Maringoni (orgs.)
Balas Perdidas 2 - David Lapham Front if8. Absoluto- Kipper, Orlando e Maringoni
“Cidade de Vidro" de Paul Auster - D. (orgs.)
Mazzucchelli e P. Karasik Front #9. Amor- Kipper, Orlando e Maringoni
V de Vingança 1 - Alan Moore e David Lloyd (orgs.)
V de Vingança 2 - Alan Moore e David Lloyd Front if 10. O estranho - Kipper, Janaina e
Bone 1 - Fora de Boneville - Jeff Smith Maringoni (orgs.)
Bone 2 - Equinócio de Primavera - Jeff Smith Front ifl 1. Violência - Kipper, Janaina e
Bone 3 - A Feira da Primavera - Jeff Smith Maringoni (orgs.)
Bone 4 - A Grande Corrida das Vacas - Jeff Front if 12. Trabalho -Kipper, Janaina e
Smith Maringoni (orgs.)
Bone 5 - A Jornada - Jeff Smith Front if 13. Feminilidade - Sam Hart, Janaina e
Bone 6 - A Tempestade - Jeff Smith D’Salete (orgs.)
Bone 7 - A Vila Fortificada - Jeff Smith Front if 14. Infância - Sam Hart, Janaina e
Bone 8 - O Matador de Dragões - Jeff Smith D’Salete (orgs.)
Usagi Yojimbo - Samurai! - Stan Sakai Meu coração não sei por quê. - Dez Pãezinhos
Usagi Yojimbo - Ronin - Stan Sakai - Fábio Moon e Gabriel Bá
Usagi Yojimbo - Bushido - Stan Sakai Ódio - Peter Bagge
Crônicas da Província - W. Antunes e M. Couto Estrada para Perdição 1 - M. Allan Collins e R.
O Girassol e a Lua - Dez Pãezinhos - Fábio P. Rayner
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Estranhos no Paraíso - Sonho com Você 1 - T. P. Rayner
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Estranhos no Paraíso - Sonho com Você 2 -T . P. Rayner
Moore Dez na área, um na banheira e ninguém no goI
Tongue & Lash - Randy & Jean-Marc Lofficier e - Orlando (org.)
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Do inferno 1 - Alan Moore e Eddie Campbell é s - Caco Galhardo
Do inferno 2 - Alan Moore e Eddie Campbell Central de tiras - Bio, Cedraz et al.
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As aventuras de Luther Arkwright 1 - B. Talbot Zarathustra - Jerri Dias e Daniel Moraes
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