A Preparação Musical para Atores
A Preparação Musical para Atores
A Preparação Musical para Atores
FLORIANÓPOLIS/SC
2016
FLORIANÓPOLIS/SC
2016
C512p
Chaves,
Marcos
Machado
Preparação
musical
para
atores:
princípios
pedagógicos
norteadores
de
três
disciplinas
musicais
em
curso
teatral
/
Marcos
Machado
Chaves.
-‐
2016.
282
p.
il.
color.
;
29
cm
Orientador:
Stephan
Arnulf
Baumgärtel
Bibliografia:
p.
245-‐260
Tese
(Doutorado)
-‐
Universidade
do
Estado
de
Santa
Catarina,
Centro
de
Artes,
Programa
de
Pós-‐Graduação
em
Teatro,
Florianópolis,
2016.
1.
Teatro
na
educação.
2.
Abordagem
interdisciplinar
do
conhecimento
na
educação.
3.
Música.
I.
Baumgärtel,
Stephan
Arnulf.
II.
Universidade
do
Estado
de
Santa
Catarina.
Programa
de
Pós-‐Graduação
em
Teatro.
III.
Título.
CDD:
372.1332
-‐
20.ed.
Ficha
catalográfica
elaborada
pela
Biblioteca
Central
da
UDESC
______________________________________________________________
Prof. Dr. Stephan Arnulf Baumgärtel (PPGT-UDESC) – Orientador
______________________________________________________________
Prof. Dr. José Ronaldo Faleiro (PPGT-UDESC)
______________________________________________________________
Prof.a Dr.a Teresa Mateiro (PPGMUS-UDESC)
______________________________________________________________
Prof. Dr. César Lignelli (UnB)
______________________________________________________________
Prof. Dr. Ernani de Castro Maletta (UFMG)
FLORIANÓPOLIS/SC
2016
AGRADECIMENTOS
A edificação de uma tese tem vários momentos. Desde o meu ingresso no Doutorado
em Teatro no ano de 2012, venho trilhando caminhos múltiplos na tentativa de materializar e
compartilhar um pouco da perspectiva que observo na relação entre música e teatro. Nestes
caminhos encontrei incentivos distintos, os quais agradeço.
Primeiramente, à Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), ao Programa
de Pós-Graduação em Teatro e seus professores, pela acolhida e presença em toda a trajetória
da presente pesquisa.
À Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), aos colegas docentes do curso
de artes cênicas, mas sobretudo aos alunos das disciplinas de “Música e Cena” no período
letivo de 2013 a 2015 por sua generosa participação e respaldo, bem como aos monitores e
pesquisadores de iniciação científica vinculados à disciplina.
Aos alunos dos cursos de artes cênicas/teatro de outras instituições que também
colaboraram com esta pesquisa na coleta survey, bem como aos professores que agiram como
interlocutores no levantamento dos dados: Angelo Marcelo Adams dos Passos (UERGS);
Domingos Sávio Ferreira de Oliveira (UNIRIO); Fátima Costa de Lima (UDESC); Juliano
Casimiro de Camargo Sampaio (UFT); Maria Amélia Gimmler Netto (UFPel); Maria Julia
Pascali (UFG); Mayra Montenegro de Souza (UFRN); Roberta Cristina Ninin (FAP); Suely
Master (UNESP); Wellington Menegaz de Paula (UFU).
Aos colegas da Sociedade Italiana de Educação Musical – SIEM (Società Italiana per
l’Educazione Musicale), a partir de Macerata, especialmente aos amigos que incentivam troca
de experiências, Luca Bertazzoni e Maria Elisabetta Bucci.
Ao Grupo Farsa, de Porto Alegre (RS), e a seus artistas das produções com estreia
entre 2009 e 2012, por aumentarem minha paixão pelo canto cênico e por todas as
manifestações descobertas que pertencem ao universo entre o teatro e a música. Aos artistas
gaúchos que infelizmente partiram durante o período de escrita desta pesquisa, mas
continuam como inspiração na área teatral-musical: Nico Nicolaiewski e Lúcia Bendati.
À Cia. Última Hora, de Dourados (MS), pelos instigantes processos híbridos de
montagem artística em “Tristão e Isolda”, “Fragmentos de corpos urbanos” e “Meu mano
humano”, grupo de artistas que divide experiência e amizade no trabalho. Aos atores/atrizes
da trupe que cederam gentil participação no vídeo que acompanha a presente tese (mídia em
anexo) – Ariane Guerra, Junior Souza, Géssica Keylla e Romário Hilário – expresso minha
gratidão em especial.
RESUMO
RIASSUNTO
ABSTRACT
This research focuses on an experimental model of musical preparation for actors, divided
into three modules, to promote or expand the musical study directed to the scene in training
courses of theater artists. From the fact that the art classes in Brazilian basic education,
approximately by the end of the twentieth century, has not given the necessary support so that
most new students in a degree in Performing Arts have contact with the musical education or
musical practice, and taking into account that theater is an audiovisual work, a musical
support is necessary so that the actors can expand consciously they dialogue with the sound
aspects of the scene. The guiding hypothesis is that contact with the study or musical
preparation acts as a facilitator of action instrument and actor criticality about the scenic
musicality, and such experience can try to move conceptual patterns of performing artists who
imagine they are not able to work with music in the scene. In the pursuit of theoretical and
practical experimentation in the exercise of musical content to actor-students, this studied
application in disciplines of "Music and Scene" at the Performing Arts School, of the Federal
University of Grande Dourados, between the academic years 2013 and 2015, establishing
pedagogical principles guiding as action basis. In the dialogue with authors in the area of
music education as Raymond Murray Schafer, and artists who work with music for theater as
Jean-Jacques Lemêtre, this thesis aims to share proposals, experiences and analysis in order
that new applications musical preparation for actors emerge or update, highlighting the
personality and the context in which the actor is inserted.
LISTA DE FIGURAS
As imagens – com exceção das figuras de número 1, 21, 22, 24, 25, 36, 37, 47, 48, 53,
54 e 62 a 65 (formadas pelo autor, 2016) – foram elaboradas pelo designer gráfico Tig Vieira
(2016), em parte inspiradas em outras imagens – referenciadas no texto quando for o caso, e
representam, de forma artística e personalizada para a tese, aplicações e/ou momentos reais.
Os jogos listados abaixo são integrantes da proposta preparação musical para atores,
utilizados como demonstração para ampliar detalhamento de treze exercícios, no intuito de
vislumbrar ações metodológicas. Executados para gravação em julho de 2016 pela Cia.
Última Hora, de Dourados (MS), os exemplos não são considerados modelos a seguir com
rigor, a cada utilização/atualização os contextos devem redirecionar as práticas – sugere-se
que os jogos sejam adaptados de acordo com cada grupo de alunos-atores. Os referidos jogos
constam em arquivo de vídeo – de nome “Vídeo-Demonstração PMA” – que acompanha a
presente tese em mídia gravada (CD); o arquivo também pode ser acessado por endereço
eletrônico1. Na paginação abaixo, a explanação escrita destes exercícios:
1
Disponível em: http://marcoschaves.blogspot.com.br/p/anexos.html
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 15
1 RELAÇÃO ENTRE MÚSICA E TEATRO ......................................................... 39
1.1 APARTE PARA UM OLHAR NO DISCURSO ...................................................... 51
1.2 OLHARES EM ESTUDOS MUSICAIS PARA ATORES ...................................... 56
1.3 JEAN-JACQUES LEMÊTRE ................................................................................... 61
2 FILOSOFIA E PEDAGOGIA MUSICAL ........................................................... 69
2.1 FILOSOFIA DA MÚSICA DE GIOVANNI PIANA .............................................. 73
2.2 FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO MUSICAL DE DAVID ELLIOTT ........................ 80
2.3 PEDAGOGIAS MUSICAIS ..................................................................................... 84
2.4 DIÁLOGOS INDÍGENAS ....................................................................................... 91
3 PRINCÍPIOS NORTEADORES ........................................................................... 99
3.1 O SOM NO ATOR ................................................................................................... 105
3.1.1 A lógica do quadrado ................................................................................................ 107
3.1.1.1 Pulso e andamento .................................................................................................... 111
3.1.1.2 Ritmo, células rítmicas, duração e compasso quaternário ........................................ 113
3.1.1.3 Pausas ....................................................................................................................... 125
3.1.1.4 Acento e compasso simples – binário, ternário e quaternário .................................. 128
3.1.2 Música e expressão ................................................................................................... 133
3.1.2.1 Timbre, intensidade e dinâmica ................................................................................ 136
3.1.2.2 Altura, notas musicais tradicionais, graus conjuntos e saltos ................................... 139
3.1.2.3 Melodia e desenho melódico .....................................................................................142
3.1.2.4 Uníssono, percepção a duas vozes e harmonia ......................................................... 145
3.1.3 A lógica do cubo e do hipercubo .............................................................................. 148
3.1.3.1 Compasso composto e correspondente ..................................................................... 150
3.1.3.2 Compasso complexo ................................................................................................. 154
3.2 O SOM DO ATOR [NO ESPAÇO] ..........................................................................156
3.2.1 Reverberação, propagação do som e direcionamento ............................................... 160
3.2.2 Paisagem sonora ........................................................................................................ 164
3.2.3 Materiais, acessórios e instrumentos ......................................................................... 166
3.2.4 Canto cênico e cânone ...............................................................................................171
3.2.5 Música atonal e música não tradicional .................................................................... 175
3.3 O SOM PARA O ATOR [MÚSICA E TECNOLOGIA] ......................................... 180
INTRODUÇÃO
2
SCHAFER, R. Murray. Educação sonora. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2009.
16
curso de música na universidade, acabou, para sua surpresa, formado com menção honrosa
entregue durante a colação de grau. Ele, que dependendo do ano ou momento em que tentasse
ingressar no curso, não conseguiria entrar por não saber teoria musical, pois não havia tido
oportunidade de dialogar com conhecimentos musicais em sua educação básica.
II
2007. Um grupo de teatro da capital gaúcha resolve trabalhar com o canto cênico em
espetáculo de Jean-Baptiste Poquelin (1622-1673), o Molière – em Porto Alegre (RS).
Reuniões e processos de criação. Vontades versus possibilidades. Fracassados na primeira
tentativa. Na segunda e na terceira também. Principalmente pela questão financeira. Sem salas
de ensaios. Alguns atores moravam em outras cidades. Quando dificuldades se aglomeram,
não dá para continuar. Nova tentativa em outro ano, projetos de captação, parcerias para
ensaio. Elenco comprometido. Frustrados mais uma vez sem nenhuma aprovação em editais
de fomento até então. Desistência. Surpresa: após o grupo ter desistido do trabalho, um
prêmio que eles haviam esquecido (estar concorrendo) foi contemplado. E agora? Bom, agora
é fazer. Retomada, novo ano, alterações no elenco. Concepções voltam: atores que cantam.
Nem todos no elenco tinham experiência musical, com canto ou outra forma prática. Aliás,
apenas dois atores, entre oito, possuíam alguma vivência relacionada ao cantar. Os outros
atores mostraram muito interesse e dedicação em aprender o necessário para as músicas de
cena, dois deles explicitaram suas deficiências como impeditivo. Nenhum ator lia partitura.
Conhecimento teórico musical quase inexistente. O grupo lidou com incertezas, medos,
exposição. Cantar em cena expõe o ator de forma diferenciada. O psicológico, nesse aspecto,
é importante. Muito trabalho, mas todos “compraram” a ideia do diretor musical e buscaram
melodias possíveis. Na criação das músicas de cena, a busca pelas facilidades do grupo, linhas
confortáveis. Na sequência do trabalho do grupo, a inserção – aos poucos – de teoria musical
básica, na montagem ou em oficina paralela de introdução à flauta doce soprano (instrumento
musical mais acessível para o entendimento da partitura). Realizado o trabalho de naipes
como um grupo vocal, e eleita peça coral para afinar dinâmica e aguçar o ouvido – a ser
executada antes de cada apresentação. Fez-se uma peça teatral musicada na qual o canto era
identidade da montagem. Como resultado, elogios 3 nas críticas pela musicalidade do
3
“[...] a escolha do elenco, a performance absolutamente admirável da composição musical por toda a equipe,
afinada e em diferentes vozes e tonalidades... quem diria que esse é um grupo gaúcho de teatro?” Crítica de
Antônio Hohlfeldt no Jornal do Comércio de Porto Alegre, RS (2009).
17
III
2013. Com trinta anos de vida, uma estudante de Artes Cênicas cursa seu quarto ano
de faculdade visando formatura na Universidade Federal da Grande Dourados (MS).
Matricula-se em diversas disciplinas para avançar em créditos obrigatórios e eletivos. A
realidade cultural (produção artística) no Centro-Oeste do Brasil é diferenciada – em
comparação à região Sul, por exemplo. Cada região tem sua particularidade. A graduanda
estará nas primeiras turmas formadas em artes cênicas no estado de Mato Grosso do Sul.
Quase no fim de sua jornada (inicial) na academia, seu primeiro contato com o estudo de
música na disciplina “Música e Cena I”. Primeira aula. Tensão. Não pela aula em si, mas pela
matéria, que é obrigatória. Se fosse eletiva, talvez não se matriculasse. Suor. Explicita sua
dificuldade com a música. Mostra desconforto aparente. Em questionário sobre
conhecimentos musicais trazidos para a faculdade de teatro, em relação com suas vivências,
diz não ter nenhum contato com estudo ou prática musical. Mas sempre temos nossas
preferências musicais... Quem não tem um grupo ou cantor(a) favorito(a)? Quando surge
questão sobre qual estilo gosta de ouvir, escreve música romântica, sertanejo. Anota que
prefere Paula Fernandes e Jads & Jadson, porque muitas vezes se identifica com as letras.
Como diz não ter contato com (não ter assistido a) espetáculo teatral que tenha aparente
pesquisa/enfoque na sonoridade ou nas músicas, perguntada sobre suas impressões a respeito
de séries (de TV) ou filmes musicais, manifesta que nunca assistiu. Pode-se aferir raso seu
conhecimento musical, tanto formal (educação) como informal? Já que nunca tivera a
oportunidade de aprender notas musicais, ritmo ou tempo? Embora goste de música,
demonstra pavor com o desconhecido. Diz que não tem ritmo. Diz que não sabe cantar.
Demonstra nervosismo e vergonha de executar exercícios musicais. Escreve uma nota para o
professor ao final do primeiro encontro, pede desculpa (!) e diz estar “super” por fora de tudo
que diz respeito à música, e arremata desacreditada a seu respeito: “da turma, acredito que eu
serei a que vai dar mais trabalho”.
Entrelaçamento...
Vivências nos formam. Hoje, os exemplos acima podem ser tratados como relatos ou
contos a partir de fatos reais. Estão situados em algum lugar do passado, não muito distante, e
18
mostram retratos com ao menos dois elos: ao conhecimento musical de atores e às possíveis
dificuldades de articulação com música e cena. Estariam estes retratos conectados à estradas
sinuosas?
Parto do princípio de que somos naturalmente musicais, aprendemos ao observar,
escutar, sentir, experimentar; nascemos com possibilidades latentes, crescemos deixando
alguns buracos (ou crateras) para o receio. Qual é o exato momento em que uma pessoa passa
a acreditar que não consegue fazer algo?
Há um mundo sonoro lá fora, há um mundo sonoro aqui dentro. “Ouvir é um
fenômeno fisiológico; escutar é um ato psicológico” (BARTHES, 1990, p. 217). Carregamos
nossos ideais sobre o belo, transformando influências em particularidades. Em diversos
momentos de nossas vidas fomos (somos) poetas, quando sentimentos afloram. A música nos
convida a transitar com maior liberdade em seu campo. Perder possíveis medos. Se o medo é
gerado pelo desconhecido, reforcemo-nos.
O teatro abraça todas as artes, é “desde a sua origem, uma Arte Polifônica”
(MALETTA, 2005, p. 50), incorpora outros discursos como o da dança, música e artes
visuais. Ao me referir ao teatro, busco sua acepção contemporânea, em que o texto não é
necessariamente o elemento central da encenação (sobretudo em sua função dramática de ser
suporte e molde para uma ficção imitativa)4. Concordo com a postura do teórico alemão
Hans-Thies Lehmann (2007) em pensamento de que “o ator do teatro pós-dramático não é
mais alguém que representa um papel, mas um performer que oferece à contemplação sua
presença no palco” (p. 224). A relação artisticamente potente da música com o artista da cena
teatral não é acessória, mas experiência. Como atores, se existirem barreiras colocadas por
nós sobre o trabalho com música no teatro, tarda a hora de diluí-las.
Sempre houve musicalidade no teatro. Todos os experimentos cênicos, as obras
artísticas de encenação, ge(ra)ram sons. O que muda, com o passar dos séculos, é o enfoque, a
observação de quem assiste ou produz. Sabendo que o teatro é uma obra audiovisual, podendo
ter categorias de signos, como aponta Tadeuz Kowzan (2003) na introdução à semiologia da
arte do espetáculo, podemos considerar assertiva a concepção de que a
sonoridade/musicalidade sempre esteve presente. Pensada ou não.
No Mestrado, a pesquisa que concluí na Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(2011) abordou o som no teatro com um pensamento na trilha sonora como totalidade de sons.
4
Theresia Birkenhauer aponta para “uma cesura entre o teatro dramático – enquanto lugar de personagens que
falam no contexto de ações ficcionais – e o teatro pós-dramático, enquanto lugar de discursos polifônicos e de
significantes soltos” (2012, p. 182); ressalta que no teatro dramático “o texto apresenta os esboços de ação para
um acontecimento ficcional e é o texto de um personagem (portanto, fala figurativa)” (Idem, ibidem).
19
Este aspecto é um dos que me instigam a pesquisar e seguir com olhar na música cênica: a
totalidade sonora, que engloba todos os sons presentes no acontecimento artístico. Para dar
continuidade nos estudos deste campo sonoro-cênico que tanto me fascina, tive de ponderar
incertezas com as quais me deparei, pois existem diversas formas de olhar, abordar,
mergulhar na relação entre teatro e música, assim como um mesmo indivíduo pode
materializar sua linha de pensamento de várias maneiras dependendo de “quem” escreve e em
“qual” momento. Somos muitas pessoas em uma só, no sentido de desempenhar muitos
papeis perante à sociedade – a psicologia social5 manifesta que conforme o local em que
estamos inseridos assumimos papéis distintos: alunos, professores, filhos, pais, atores,
diretores, músicos, espectadores... O que torna curioso responder a pergunta “quem somos”?
Ainda: “como nos identificamos ao telefone quando ligamos a diferentes lugares”? E se a
pergunta for (referente aos papeis sociais): “quem somos na arte”? A perguntas assim prefiro
não afirmar, não taxar, não engessar... Embora, às vezes, seja preciso. O registro profissional
marca com uma função. Entretanto, me identifico com a resposta de Narciso Telles6 quanto à
sua denominação na arte: artista. É ator e, se preciso (em montagem teatral), é cenógrafo,
figurinista, produtor... Somos adaptáveis ao que necessitamos. Na multiplicidade na qual
procuro me entender, percebi que eu precisaria eleger quem se debruça nesta pesquisa;
observando, então, que esta tese é escrita por “meu eu” – educador musical, licenciado em
Música pela Universidade Federal de Pelotas (2007), de mãos dadas com “meu eu” – ator,
registrado na DRT-RS7 (2005) com trabalhos práticos desde o ano de 1993. Um pé na música
e um pé no teatro para estudar a música no teatro.
No intermeio musical-teatral, Nico Nicolaiewsky (1957-2014), um dos grandes artistas
brasileiros destacados neste cenário artístico híbrido, disse que tudo que o espectador ouve
está dentro da musicalidade do espetáculo: tenha música na obra – no sentido de uma canção
como se conhece hoje – ou não tenha nenhuma inserção direta; “tudo o que passa pelo ouvido
está dentro da área da música” (NICOLAIEWSKY, 2010).
Os cruzamentos entre teatro e música vêm despertando, gradativamente, maior
interesse em pesquisas científicas no Brasil8. Mesmo assim, ainda considero que o debate
5
“Mind, Self and Society” (1992), George Herbert Mead.
6
Seminário: Teatro de Rua “Processos Contemporâneos”, 1o Festival de Teatro de Rua de Porto Alegre (2009).
7
DRT – Delegacia Regional do Trabalho é o órgão brasileiro (vinculado ao Ministério do Trabalho) responsável
por efetuar o registro do artista, para que possa exercer seu trabalho profissionalmente. O artista pode fazer seu
cadastro na DRT apresentando sua titulação na área, ou através de reconhecimento por sindicato local de artistas
– em muitos estados brasileiros, o SATED (Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversão)
cumpre este papel para os artistas cênicos.
8
Por exemplo os trabalhos inseridos nos PPGs (Programas de Pós-Graduação) na área das Artes que abordam
pesquisas na relação entre o teatro e a música; os trabalhos de Ana Dias (UFSJ), César Lignelli (UnB), Ernani
20
precisa ser ampliado – tanto conceitual como pedagógico. Espero o dia em que música cênica
não seja um “bicho de sete cabeças”9 para os atores. A maior parte dos artistas da cena com
quem tive oportunidade de trabalhar, em minha trajetória artística até então, demonstraram
conhecimento musical incipiente, pouca informação sobre aspectos sonoros e musicais e certo
receio em expor-se musicalmente.
É preciso esclarecer de que tipo de música estou falando. Quando observo que existem
atores com dificuldades em sua ação prática teatral em relação à música, me refiro à
participação, conforme aborda Ernani Maletta (2014). Para o autor mineiro, existem três
pontos de vista relacionados às interações entre a música e o teatro:
Maletta (UFMG), Fábio Cintra (USP), Jacyan Castilho (UFBA), Jussara Fernandino (UFMG). Se observarmos
(neste enfoque) dissertações de mestrado concluídas de 2010 a 2014, encontraremos Doriedison Sant’Ana,
Ernesto Valença, Helena Mauro, Janaína Azevedo, Marcello Amalfi, Morgana Martins, Raquel Guerra, Raquel
Souza, Simone Rasslan, Tiago Mundim, Uibitu Smetak, bem como minha dissertação, dentre outros autores que
elegem pesquisa nas relações entre o teatro e a música (poderíamos somar à lista mais pesquisadores da área
vocal), conclui-se que tais materiais contribuem para a reflexão na área e poderão ser vias que concretizem
futuras teses de doutoramento.
9
Expressão popular brasileira para designar situação complicada.
10
Grifo do autor.
21
concebida nos três níveis trazidos por Maletta e também porque não existem delimitações
específicas entre as artes, na leitura que trago de “participação”, os alunos-atores sabem em
qual momento está a música no espetáculo teatral e precisam transitar, estabelecer conexões,
nesta área. Esse olhar aponta a presente pesquisa para a iniciação musical em estudos para
atores, procurando deixar abertas às inúmeras possibilidades futuras de interagir música-
teatro; é como partir de algo que pode ser considerado mais simples ou de fácil compreensão
para entendimentos complexos.
A complexidade está na observação de que o campo da musicalidade cênica é um
leque imenso. Música no teatro não é só música no teatro, que está conectada ao compositor
musical, ao arranjo, às harmonias, ritmos, contrapontos e melodias – isso seria o topo do
iceberg. Existem obras teatrais extremamente musicais sem a inserção de músicas: tal
perspectiva aborda a percepção auditiva; aguça, nos artistas e espectadores, as sensações do
ouvir. Está vinculado à uma filosofia musical conectada à escuta, ao som. Desse ponto de
vista, o que se faz necessário em conhecimentos musicais para o ator não está apenas no
cantar ou no se relacionar com a inserção musical, mas sobretudo em uma concepção sonora e
musical que aponta para além da concepção ocidental clássica e adentra entendimentos
musicais e sonoros contemporâneos.
Lidar com conhecimento musical para atores é partir do que entendemos por música:
inevitavelmente iremos refletir à respeito da tonalidade na qual a tônica é central. Pode-se
especular que no Brasil a maioria das músicas que circulam comercialmente em emissoras
(abertas) de rádio e televisão são tonais, estão relacionadas ao conhecimento informal em
música, acessível à sociedade:
Os ouvintes não se dão conta, pois, de sua própria incompreensão [em relação à
função da música]. Compreendem apenas alguns retalhos da trama de sentido.
Assim é, por exemplo, que o idioma da tonalidade, o qual transcreve o estoque
tradicional da atual musica consumida, é idêntico à linguagem musical universal dos
consumidores. (ADORNO, 2011, p. 114)
Existem modelos conectados às músicas (que podemos chamar de) comerciais que em
geral obedecem à tonalidade e a estruturas padrões, como fórmula de compasso simples. Uma
analogia de parte desta música acessível a todos pela mídia – as músicas mais facilmente
esquecidas após estrondosa veiculação (em massa) – é possível ser feita com comidas de
estabelecimentos (restaurantes) chamados fast-food. Comida rápida – lanches – para o
“homem moderno” que “não tem tempo”. Se o contato musical da pessoa, em toda a sua vida,
se deu por emissoras de rádio e televisão mais comprometidas com as propagandas
comerciais do que com sua programação, nesta analogia é como se o indivíduo não houvesse
22
O próprio fato de falarmos [...] dos sons inexistentes do ponto de vista musical,
referindo-nos por conseguinte a uma noção de existência que apela para a validade,
pode parecer como um enigma. Mesmo assim, não só na prática e na aprendizagem
musical atual, mas também em toda uma longa e complexa tradição teórica se impôs
com força particular a tendência a considerar as notas como entidades determinadas,
como sete objetos magníficos que existem em si mesmos e que devem de certo
modo ser descobertos e identificados na sua posição objetiva. As notas existem
realmente, e são exatamente aquelas ensinadas, nem mais nem menos. (PIANA,
2001, p. 209)
Assim como Adorno explicita que a filosofia da música só é possível como filosofia
da nova música, ultrapassando barreiras vendidas pela mídia ao influenciar no que é
considerado bom, adentrar à filosofia de Piana não é abandonar tais preceitos: é preciso novos
olhares e ouvidos. A filosofia da música de Giovanni Piana está centrada no som, na escuta, e
esse fator é crucial para o ator contemporâneo: aguçar o sentido auditivo para além dos
preceitos da harmonia, do contraponto e de outros modelos clássicos de composição musical-
sonora. Na busca de ampliar horizontes a respeito de conhecimento musical e filosofia, somo
David J. Elliott e sua abordagem filosófica na educação musical, “A música deve ser
23
concebida, ensinada e aprendida como uma práxis social - como uma fusão de pessoas,
processos, produtos, e ‘bens’ éticos em específicos contextos sociais-culturais”11 (ELLIOTT,
2015, p. 52).
Voltando às abordagens relacionais entre música e teatro descritas por Ernani Maletta,
se enfocarmos na participação ou na interdisciplinaridade cabe discutir música tonal ou
atonal, mas quando falamos do teatro em si tal discussão não é necessária, as materialidades
sonoras da obra teatral não são necessariamente tonais ou atonais, são fruto de uma criação
cênica – não musical.
Enfoque...
11
Tradução minha. Original: Music should be conceived, taught, and learned as a social praxis – as a fusion of
people, processes, products, and ethical “goods” in specific social-culture contexts.
12
Referência às cidades nas extremidade do país: ao Norte o Oiapoque (AP) e ao Sul o município de Chuí (RS).
24
25
No que concerne ao ensino de arte nas escolas, a Lei de Diretrizes e Bases de 1996
substituiu a disciplina “educação artística” por “arte”; abertura às possibilidades de ministrar
aulas específicas: de teatro, dança, música e artes visuais; porém, o entendimento arraigado
manteve sequência do que vinha se praticando em educação artística: “Apesar de a educação
musical estar implícita na disciplina ‘arte’, componente obrigatório da educação básica, ela
sobreviveu muitas vezes de forma oculta, em atividades extracurriculares e em projetos
comunitários” (FUCCI-AMATO, 2012, p. 77). No fim da década de 1990 e início do novo
século, ainda era possível perceber um modelo do ensino de arte nas escolas que contemplava
apreciação em detrimento da criação. Como educador musical, tive experiências
desanimadoras no ensino fundamental, ao verificar pessoas (colegas da educação) que
tratavam o ensino de música ou de teatro em suas escolas (nas palavras de um diretor de
importante instituição de ensino na capital gaúcha) como “pingente”, acessório. “Precisamos
entender que música na escola reflete a posição ou o valor que uma sociedade lhe
atribui”13 (SANTOS, 2012, p. 216).
Pode-se especular que a maioria dos atores brasileiros, que atuam profissionalmente
hoje, não tiveram contato com ensino de música em sua formação. Então, quando nos
referimos ao ator contemporâneo, em relação à música, creio haver diferenças entre um ator
que teve educação musical na sua formação escolar (como o italiano) e o ator brasileiro:
“Música na escola contribui para o desenvolvimento de um potencial de que todo sujeito é
capaz. Sua presença deve ser garantida na escola, contrastando com as ações casuais e
pontuais já praticadas no Brasil” (SANTOS, 2012, p. 210). Em pesquisa realizada por
Cristiane Otutumi (2008), ao analisar perfis em cursos de música (ensino superior) por
questionário aplicado a professores – representantes de quase 90% das Instituições de Ensino
Superior (IES) que oferecem esta graduação no Brasil –, de forma geral, 60% dos docentes
“acreditam que seus alunos têm dificuldades pelo fato de não possuírem boa formação
anterior, ou seja, boa formação de base” (p. 180). A falta de uma base sólida em educação
musical reverbera em profissionais de todas as áreas.
Dizer que o aluno na faculdade de teatro chega com conhecimentos musicais precários
é afirmação correta e incorreta ao mesmo tempo: por um lado sua parcela não verídica se dá
porque a vivência do “escutar música” é ampla e tal aspecto faz parte da formação do ser
humano; por outro lado, se buscarmos o estudo formal de música (inserido nas escolas básicas
ou escolas de música) encontraremos pouca participação. Em entrevista a um aluno egresso
13
Grifo meu.
26
14
Rodrigo Perandré Macedo, aluno egresso do Curso de Artes Cênicas – Bacharelado, da UFGD; nascido em
Dourados (MS) e com sua trajetória artística iniciada em sua juventude na cidade de Bonito (MS), Rodrigo foi
aluno da 2a turma de Artes Cênicas da referida universidade.
27
Condução...
15
Nome popular para o diapasão metálico em forma de forquilha (usualmente na nota Lá 440Hz), que quando
golpeado a vibrar necessita de uma caixa acústica ou outro material sólido para emitir som.
28
Muitos anos atrás, no momento em que desaprendi a linguagem dos saberes, eu fiz
uma promessa. A promessa que fiz: todos os livros que viesse a escrever no futuro
teriam o nome de “Conversas...”. Eu desejava precisamente isso: que eles não
fossem mais que “conversas...”. Conversa-se pelo prazer de conversar, o jogo das
palavras, a brincadeira com as imagens. Sim, é claro que pensamentos vão sendo
comunicados – mas o que caracteriza a conversa não é a comunicação de um
conteúdo de informação, mas o jogo. (ALVES, 2011, p. 28)
29
se, neste olhar, ideologias presentes na sociedade. Ao perceber que existem atores com poucas
vivências com estudos musicais, e entendendo que tal situação pode, às vezes, tolher
possibilidades criativas ao artista, observo práticas que buscam este lugar – o entremeio entre
teatro e música – para dividir conhecimentos.
O segundo capítulo, “Filosofia e pedagogia musical”, parte do princípio que estamos
vivenciando época que vai do tom para o som, ou seja, a tonalidade – que faz parte de um
sistema musical com tradição europeia – é presente na contemporaneidade, mas no diálogo
com a abertura à experiência sonora que, de certa forma, pode descaracterizar ou tornar
irrelevante o tom. Nas presentes questões encontro a filosofia de Giovanni Piana como
interessante aporte para pensar o som, o filósofo italiano parte do pensamento no som para a
compreensão musical; e na filosofia da educação musical de David J. Elliott amplia-se tais
percepções com enfoque no sujeito: “A educação musical deve considerar as inter-relações
entre a música, educação e pessoalidade”16 (ELLIOTT, 2015, p. 01) – o entendimento passa
pela cultura e a sociedade.
O capítulo de número 3 tem como título “Princípios norteadores”. A partir de
aplicações com os alunos-atores em disciplinas de “Música e Cena” do curso de Artes
Cênicas, da Universidade Federal da Grande Dourados, busco relacionar questões da área
teatral e da área musical em estudo e projeto de três módulos da referida disciplina. Descobrir
princípios pedagógicos norteadores para o planejamento de três etapas de ensino e/ou
interlocução musical no universo teatral é processo contínuo, a ser atualizado de acordo com a
individualidade de cada turma – na observação de suas especificidades. Entretanto, mesmo na
heterogeneidade que tal premissa sugere, é possível dialogar com princípios similares para
fins distintos no trabalho com música e teatro, valorizando, por exemplo, o fazer musical
como experiência e aprendizagem. As três etapas de ensino e observação sonora-musical para
o artista cênico, aqui escritas como sugestão de trabalho, enfocam o som no ator, do ator (no
espaço) e para o ator (em pensamento na música e tecnologia). Insiro exemplos de jogos e
exercícios trabalhados com os alunos-atores na universidade douradense como suplemento,
uma via que acredito ser possível para a preparação musical de atores – que visa diálogo com
diferentes conteúdos musicais no teatro. Todavia, não se trata de um método que aplicado
garanta resultados homogêneos, porque (1) a apreensão musical é diferenciada para cada
indivíduo e deve ser respeitada no tempo de cada aluno; (2) a palavra método pode sugerir um
“engessar” em sua aplicabilidade – e o desejo presente vai na contramão de modelos
16
Tradução minha. Original: Music education should consider the interrelationships between music, education,
and personhood.
30
fechados. São sugestões, descobertas e/ou atualizações que devem novamente ser descobertas
e/ou atualizadas, com o mesmo intuito do educador musical canadense Raymond Murray
Schafer ao propor educação sonora em uma coleção de exercícios, que o autor chama de
Limpeza de Ouvidos:
31
32
A música (o teatro e as outras artes) é (ou deveria ser) “para todos e todas”18, ou a
quem manifeste interesse no campo artístico, disposto a sair de sua zona de conforto. O desejo
do “para todos” reside na oportunidade de relacionamento e experimentação artística a partir
da educação e/ou de atividades presentes desde a infância e a juventude para o
desenvolvimento humano até o nosso último suspiro.
33
o autor ressalta o poder das palavras e a necessidade de ampliá-las, porque “As palavras
determinam nosso pensamento [...] E pensar não é somente ‘raciocinar’ ou ‘calcular’ ou
‘argumentar’ [...], mas é sobretudo dar sentido ao que somos e ao que nos acontece” (p. 21).
Da mesma forma como o professor espanhol em seu artigo, inicio pela palavra experiência:
A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. A cada dia se
passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia
que tudo o que se passa está organizado para que nada nos aconteça. [...] Nunca se
passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara. (BONDÍA, 2002, p.
21)
Depois de assistir a uma aula ou a uma conferência, depois de ter lido um livro ou
uma informação, depois de ter feito uma viagem ou de ter visitado uma escola,
podemos dizer que sabemos coisas que antes não sabíamos, que temos mais
informação sobre alguma coisa; mas, ao mesmo tempo, podemos dizer também que
nada nos aconteceu, que nada nos tocou, que com tudo o que aprendemos nada nos
sucedeu ou nos aconteceu. (Idem, p. 22)
Bondía retrata nossa época ocidental (e talvez urbana) com essa afirmação, dialogando
com o pensamento articulado nos anos de 1930 por Walter Benjamin20, hoje em dia a
experiência é rara 1) pelo excesso de informação (p. 21); 2) por excesso de opinião (p. 22); 3)
por falta de tempo (p. 23); 4) por excesso de trabalho (p. 23). Somos recheados de
informações e atividades durantes os dias, mas quase nada nos acontece. Nas artes, no recorte
teatro e música, podemos assistir a um espetáculo, podemos ouvir uma canção, e nada
acontecer. Mas como abrir-se às possibilidades de experiência? “Se a experiência é o que nos
acontece, e se o sujeito da experiência é um território de passagem, então a experiência é uma
paixão” (Idem, p. 26), no sentido de ser tomado pela experiência e aguçar os sentidos sem
necessariamente entender, em princípio, o que nos acontece. Deixar-se sentir sem ativar a
razão, inverter a lógica de quem defende que é necessário entender antes de fazer. Tal
19
A experiência como algo raro também é percepção do filósofo e sociólogo alemão Walter Benjamin, expresso
em seu ensaio “Experiência e Pobreza” (1987).
20
Questão presente em “O Narrador” no livro Magia e técnica, arte e política (1987).
34
designa a linguagem musical que predomina no mundo ocidental nos séculos XVIII
e XIX; esta linguagem provavelmente deve sua ascensão extraordinária às
possibilidades de mudar facilmente o tom (modulação), procedimento eficaz para
renovar o interesse e permitir a composição de obras musicais de grandes
dimensões22 (Idem, ibidem)
Apesar de observar o auge do tonalismo nos séculos XVIII e XIX, é possível afirmar
que o sistema tonal continua em vigor e ainda é um dos mais utilizados modos de construção
musical no Ocidente hoje, mesmo com maior possibilidade de conhecimento a respeito de
outros sistemas musicais pelos músicos através dos meios virtuais de comunicação na
contemporaneidade, e entendendo que vivemos em época de transição do “tom” para o
“som”, ou seja, a experimentação sonora prevalece em detrimento de regras rígidas que
qualquer sistema musical ofereça:
21
Tradução minha. Original: “Escala de sonidos de alturas determinadas” [1549], dar el tono, “tocar la nota
que indique la tonalidad de una pieza” [1608], hasta llegar a tonal [1828].
22
Idem. Original: designa el lenguaje musical que predomina en el mundo occidental en los siglos XVIII e XIX;
este lenguaje probablemente debe su extraordinario auge a su posibilidad de cambiar fácilmente el tono
(modulación), eficaz procedimiento para renovar el interés y permitir la composición de obras musicales de
grandes dimensiones.
35
A música tonal não teria se esgotado nos fins do século XIX. Isso não somente em
termos de material composicional, pois, contrariamente ao que muito se fez crer –
como a outra face daquela mesma concepção de ‘esgotamento’ – , enquanto objeto
de investigação teórica consistente, atonalidade não estava já satisfatoriamente
‘codificada’. Há algumas décadas, vem notabilizando-se o crescimento de trabalhos
acadêmicos que buscam lançar nova luz sobre princípios da música tonal.
(BATALHA, 2014, p. 708)
Então, é preciso separar os fios deste emaranhado, uma vez que música tonal não é
sinônimo de música ultrapassada ou mesmo de “música comercial”, “A tonalidade não se
tornou uma linguagem reduzida às produções musicais de certa época ou ao seu emprego
muitas vezes banalizado pela cultura de massas” (Idem, p. 713), embora não seja imprudente
afirmar que a maioria das músicas presentes na mídia no Ocidente sejam tonais, ou seja,
correspondam ou trabalhem com as setes notas conhecidas (dó, ré, mi, fá, sol, lá, si) e seus
36
cinco “acidentes” (sustenidos ou bemóis) – é a ideia que temos de afinação “de meio tom a
meio tom”, hoje em dia até com a utilização de equipamentos/programas como o auto-tune
que “afina” (coloca em uma frequência determinada) eletronicamente a voz do cantor.
Talvez a tonalidade ou os tons decorrentes do temperamento de frequências sonoras
estejam tão arraigados em nossas vidas, que nos soam “naturais” (comuns) em uma música.
Logo, quando a palavra tonal é escrita, nesta tese, possui conexão não só com o sistema tonal
de composição musical, mas ao fato de “ter tom”, altura determinada, e diferença de no
mínimo “meio tom” para a próxima nota – não é costumeiro (em nossa sociedade) cantar com
intervalos de ¼ (um quarto) de tom por exemplo; conexão à(s) nota(s) musical(is)
correspondentes às alturas de dó, ré, mi, fá, sol, lá, si (e seus sustenidos ou bemóis), mesmo
que não siga escala de sete graus ou varie modos. O uso da palavra “tonal” tem vínculo com
temperamento, visitações a Johann Sebastian Bach (1685-1750) e seu cravo bem temperado.
Chega-se à constatação de que nossa sociedade ocidental recebe facilmente músicas tonais,
com tons ou notas musicais com alturas definidas e diferença de no mínimo meio tom entre
elas, devido à práxis social e cultural.
Finalizando as notas/glosas, proponho enfoque na palavra “exercício”. Acredito ser
importante dilatar esta palavra no presente estudo, por muito a utilizar em preparação musical
para atores, bem como observo que tal palavra é utilizada por docentes que propõem ações
práticas, físicas, em sala de ensaio/aula. Trazer exercícios para que a turma pratique
determinado conteúdo ou mote está vinculado à ideia de jogo, outra palavra também bastante
utilizada em cursos de formação teatral: jogo dramático, jogo teatral, o jogo contém a ideia de
ação e conexão com um coletivo de pessoas, e tem vínculo com o prazer, com o lúdico.
Segundo Johan Huizinga (2000), a ideia que temos de “jogo” perpassa designação oriunda da
língua grega, na qual a etimologia para uma das palavras a respeito de jogo “designa aquilo
que é próprio da criança” (p. 25), e também dialoga com designações do latim – “o latim
cobre todo o terreno do jogo com uma única palavra: ludus, de ludere, que deriva diretamente
de lusus” (p. 29). Aponta Huizinga:
Convém salientar que jocus, jocari, no sentido especial de fazer humor, de dizer
piadas, não significa exatamente jogo em latim clássico. Embora ludere possa ser
usado para designar os saltos dos peixes, o esvoaçar dos pássaros e o borbulhar das
águas, sua etimologia não parece residir na esfera do movimento rápido, e sim na da
não-seriedade, e particularmente na da “ilusão” e da “simulação”. Ludus abrange os
jogos infantis, a recreação, as competições, as representações litúrgicas e teatrais e
os jogos de azar” (HUIZINGA, 2000, p. 29)
Como salienta o professor neerlandês, jogo também tem vínculo com competição, nos
remete aos “jogos olímpicos”, esportes, mas em sala de ensaio para os alunos-atores acredito
37
que o elemento chave ao suscitar a palavra jogo esteja na ideia de movimento e atividade –
assim como discorre Huizinga na apropriação de “jogo” pelas línguas europeias modernas (p.
29). Dessa forma, chega-se a um espectro que abrange jogo como movimento, atividade, sem
esquecer o vínculo com o lúdico ou com o prazer.
Jogo e exercício podem ser palavras correlatas, embora exercício seja palavra
capciosa, no sentido de nos remeter à repetição de algo conhecido – uma vez que
etimologicamente falando, exercício, do latim exercitium é “ação ou meio de exercer,
submeter a uma atividade, a movimentos regulares visando o desenvolvimento, ou ainda, de
exercer-se, possuir uma atividade regrada para adquirir a prática” (GARCIA, 1994, p. 24).
Prefiro pensar em exercício como ação que propõe o fazer com a possibilidade de transformar
o praticante, próximo a como o professor João Batista Freire aborda o jogo, algo que “remete
para as instâncias básicas favorecedoras dos atributos de identidade e autonomia” (FREIRE,
2002, p. 106). Nesse sentido, utilizo as palavras “exercício” e “jogo” como sinônimos, na
tentativa de suscitar arquétipo que entremeie o trabalho prático, a atividade, a ação, a
movimentação, o fazer e o experimentar, valorizando a pessoalidade.
38
39
Por onde inicia a relação entre música e teatro? Pelas “origens”? O que seria tal
palavra na arte? O crítico de teatro e antropólogo francês Jean Duvignaud (1921-2007) ao
discorrer a respeito da sociologia da arte, que se pretendia sociologia do imaginário, aponta
problemáticas em estudos na arte, como as mistificações estéticas – dentre elas especulações
sobre a origem primitiva das artes:
Já não têm conta, de resto, os livros destinados ao grande público que se intitulam
“nas origens da pintura”, a “música, das origens aos nossos dias” ou ainda “o teatro
original de Shakespeare”. Este gosto (ou esta mania) da explicação a partir das
remotas origens, perdidas na pureza emergente das primeiras idades, também, data
seguramente da descoberta das ruínas antigas pelos europeus; mas, no século
passado, esta ideologia enriqueceu-se com os resultados vulgarizados da pré-história
e da arqueologia e a descoberta cada vez mais frequente de “civilizações” sem
escrita e “primitivas”. (DUVIGNAUD, 1970, p. 15-6)
Duvignaud pondera que tal pensamento é utilizado como referência por quem defende
estarmos em ascensão contínua, “demonstrar a diversidade presente referindo-se à diversidade
das origens” (p. 16), e posiciona-se contrariamente ao concluir que “não é certo [afirmar] que
as sociedades arcaicas ou primitivas sejam mais próximas da natureza e da simplicidade” (p.
17), e pontua: “a complexidade das classificações arcaicas não é menos do que a das
sociedades modernas” (p. 17). Com essa postura presente, pensar na relação entre teatro e
música como um movimento crescente, “dos primórdios à atualidade”, pode não ser assertivo
deste ponto de vista; o qual concordo no sentido de que alguns marcos históricos do teatro
dialogam entre si, mas não são continuidade um do outro. O teórico teatral estadunidense
Marvin Carlson (1935-) observa, em Teorias do teatro (1997), que Duvignaud propõe quatro
tipos de teatro, correspondentes a configurações sociais:
40
condição humana dentro de uma rígida dramaturgia. Os grande autores desse tipo
tendem a ser subversivos e a procurar sugerir os domínios ocultos do pensamento e
da ação abertamente negados pelo teatro no qual trabalham. O quarto tipo é o
moderno, produto de uma sociedade altamente relativista e móvel, um teatro que
pretende apresentar a diversidade da experiência disponível. (CARLSON, 1997, p.
416-7).
Carlson destaca que, em qualquer época, “o teatro é e sempre foi ‘uma revolta contra a
ordem estabelecida’” (Idem, ibidem); e através desses pontos conectados à sociedade,
podemos buscar as linhas paralelas e as linhas que se cruzam entre o teatro e a música. O
teórico teatral alemão Hans-Thies Lehmann (1944-) discorre que, na contemporaneidade, a
questão social-política tem de estar presente nas encenações teatrais/ações performativas, um
movimento que também pode ser lido como distanciamento do puro entretenimento24, ou do
“entretenimento pelo entretenimento” – como alguns programas/obras artísticas
divulgadas/mostradas e fomentadas por grupos de comunicação brasileiros responsáveis pelas
emissoras abertas de televisionamento, no final do século XX e início do século XXI25.
Concordo com o pensamento e visualizo essa problemática, na atualidade, também na música,
nas composições que não se propõe a nada mais do que o consumo descartável. O filósofo
alemão Theodor Adorno anunciou tais “perigos” na área musical e o que ela causa no ouvinte,
como um educar para o vazio. Seria tal configuração, entretenimento pelo entretenimento, o
movimento a evitar no teatro e na música do século XXI? Talvez “evitar” seja palavra
contundente para a situação, se a imaginarmos carregada de juízo de valores. Imagino que a
palavra mais adequada esteja em transformar, questionar, ampliar, ou seja, transitar nesse
universo – no qual existam obras aparentemente rasas – e estabelecer conexões que
possibilitem diferentes imersões e profundidade crítica, bem como novas ações artísticas.
Todavia, antes de observarmos o contemporâneo, acredito que olhar para pontos históricos na
arte – no espaço do “entre” teatro-música – seja movimento necessário visando pensamentos
atuais (não lineares) neste lugar.
Dos tipos de teatro apontados por Duvignaud, percebo que na relação teatral-musical
contemporânea rebemos influências (musicalidade no teatro) dos quatro recortes considerados
pelo autor: do período da Grécia clássica; do teatro popular de rua presente na Idade Média –
relações com a Commedia dell’arte, que aparece a partir da Itália no século XV; do teatro de
“palco italianizado”; e do moderno (que leva ao atual). Nos quatro momentos históricos
24
Entendido aqui como obras artísticas que possuem apenas o intuito de entreter o público, servir como lazer.
25
Exemplifico com o programa humorístico da Rede Globo “Zorra Total”: “No Brasil os programas televisivos
de maior sucesso insistem, ainda, em exercer a função de mero entretenimento, disseminando o preconceito
racial escamoteado através do riso, como é o caso do programa humorístico Zorra Total” (DOS SANTOS, 2013,
p. 23); salientando que tal exemplificação leva em conta um ponto de vista inserido em um tempo/espaço;
atualizações recentes do mesmo programa alteraram enfoque cômico e derivam novas apropriações.
41
(destacados) a observar, visando apropriações para o hoje neste lugar entre o teatro e a
música, concordo com a professora Jussara Fernandino ao considerar que as relações
existentes entre as duas artes estão presentes em todas as épocas – dos recortes que separo e
de outros momentos/épocas/lugares, uma vez que “Os princípios do universo musical sempre
estiveram presentes no Teatro desde os primórdios rituais da Pré-História, passando pelo coro
grego, os atores-músicos da Idade Média e demais manifestações séculos afora”
(FERNANDINO, 2008, p. 18).
No teatro grego, o hibridismo teatro-música pode estar atrelado ao termo mousiké, que
originou a palavra música, “Mousiké só passou a ser usado com o significado de ‘arte dos
sons’ no século IV a.C. Antes disso, não havia um termo específico para designar essa
atividade” (ROCHA JÚNIOR, 2007, p. 43). O professor português Aires Manuel Rodeia dos
Reis Pereira, ao pesquisar a mousiké no drama de Eurípides, afirma que ao dialogar com os
textos das tragédias “encontramos neles abundantes indicações sobre melodia, ritmo, dança,
instrumentos e concepções de formação musical. A mousiké em Eurípides radica em todos
estes aspectos” (PEREIRA, 2001, p. 453). Em diversos autores que discorrem a respeito da
música no teatro, a relação a partir do teatro grego aparece como ponto base, de forma similar
ao que aborda o compositor Lívio Tragtenberg (1961-):
A arte Grega, tomada como ponto zero da música europeia ocidental, legou-nos um
número extremamente reduzido de documentos a respeito da prática e criação
musical na tragédia e na comédia. Antes, propiciou um enorme campo de
especulação em torno dessas práticas. Dessa forma, o coro trágico Grego
transformou-se numa espécie de totem e símbolo da música dramática. Apesar das
diferenças apontadas nas várias abordagens musicológicas, a música do teatro Grego
estabeleceu-se, assim como a Poética de Artistóteles, como base fundante da música
de cena ocidental. (TRAGTENBERG, 1999, pp. 17-8)
Observo a “base fundante” da música no teatro abordada por Tragtenberg como ponto
evidente, ou seja, espaço no qual é possível enxergar com clareza um diálogo
híbrido/entrelaçado entre as duas artes. O crítico teatral Anatol Rosenfeld (1912-1973) afirma
que o teatro grego tem origem no ritual dionisíaco26, “[contava com a participação de
homens-sátiros] que faziam roda e cantavam [...] os suplícios de Dionísio, com poemas
especiais chamados ditirambos” (2009, p. 64), e que o primeiro ator a utilizar a representação
desvinculada do ritual foi Téspis – figura mítica e não histórica (p. 65) – por volta de 530
a.C., mantendo trânsito fluido entre teatro e música, uma vez que “o espírito trágico seria, em
26
“Dionísio é um deus sofredor; sofre despedaçamento pelos gigantes, é dividido em várias partes. Depois de
três dias, ressuscita, como Jesus e como outros deuses do Oriente Próximo. Ressurge na primavera, com
fertilidade, e é recebido com júbilo. O ritual dionisíaco é triste e alegre, mesclam-se tragédia e comédia”
(ROSENFELD, 2009, p. 64).
42
sua origem, musical, e o drama grego teria nascido do canto coral” (OLIVEIRA, 2008, p. 80).
No axioma social, o teatro grego trazia a figura do herói como desejo de mudanças pela
sociedade; tal desejo se inseria na dramaturgia/narrativa e não nas ações cênicas e/ou musicais
que seguiam determinados padrões, explica a professora Jacyan Castilho de Oliveira:
43
É por isso que na maioria das formas de teatro de rua e de teatro popular a música
desempenha uma função essencial ao aumentar o nível de energia. O princípio da
música é o ritmo. A simples presença de uma pulsação ou “batida” implica maior
densidade da ação e aguçamento do interesse. Depois surgem outros instrumentos
para desempenhar funções cada vez mais sofisticadas – mas sempre relacionadas
com a ação. (BROOK, 2005, p. 25-6)
O teatro popular de rua tem presente a musicalidade em sua raiz, tanto das músicas na
obra teatral quanto a aspectos presentes em sons concretos dos espaços de apresentação que
dialogam musicalmente com a cena. Jussara Fernandino observa contribuições da Commedia
dell’arte na relação musical para a cena (atual), em um comparativo com as ações do
educador musical austríaco-suíço28 Émile Jaques-Dalcroze (1865-1950): “Verifica-se que as
atribuições da Commedia dell’Arte [...] são semelhantes às desenvolvidas pela técnica de
Dalcroze: ritmicidade e plasticidade do movimento” (FERNANDINO, 2008, p. 27). Ritmo
aliado à plástica corporal, movimentação. Não é imprudente aferir que ações teatrais oriundas
da Commedia dell’arte, ou que dialoguem com ela, que se mantêm na rua, popular em
contraponto a um formato “erudito” de fazer/conceber teatro, utilizam a música presente na
sociedade como conexão com o espectador:
O teatro também foi sempre o espaço de duas outras realidades musicais: a música
de tradição popular, urbana e rural, música que tem função social imediata, clara e
de valor intrínseco para as comunidades das quais se origina; e a música de massa,
que se impôs no século XX como manifestação social de grande alcance. O teatro
age como mediador do diálogo entre essas produções e o público, conferindo a essas
músicas valores de real utilidade social. (CINTRA, 2006, p. 67)
A pontuação do professor Fábio Cintra é uma observação factual, e uma crítica que
considero similar ao pensamento presente em Adorno. Se por um lado, a música popular
estabelece conexões entre as pessoas porque é manifestação espontânea e/ou festiva de um
povo, é interessante desconectá-la da chamada música de massa – mesmo que esta utilize
elementos da tradição popular29. A música de massa é popular por sua difusão, mas não
necessariamente valoriza ou critica suas referências. Sem ser “de massa”, o teatro popular de
rua sempre manteve uma proximidade com o público, independentemente da época histórica
28
Dalcroze nasceu na Áustria e com 6 anos de idade mudou-se para a Suíça – país onde formou-se em música.
29
Por exemplo, o gênero musical brasileiro chamado de “sertanejo” é oriundo das áreas rurais, das “modas de
viola”, com temáticas nas letras e nos arranjos musicais que dialogam sobre a realidade de onde a composição
está inserida; e foi difundida aos grandes centros urbanos com adaptações, muitas vezes, rasas, assim como
algumas músicas do chamado “sertanejo universitário” – que não raro utiliza apelo sexual e preceitos que podem
ser lidos como preconceituosos/misóginos em suas letras, além de reforçar uma sociedade líquida, de modo que
um cidadão pode se vestir como um sertanejo, botas, chapéu, para frequentar festas, desconhecendo ou negando
a realidade social de onde surge ou onde está o homem do sertão.
44
em que fora apresentado. Logo, a relação musical/sonora entre produção e recepção teatral é
uma via de mão dupla: eu recebo e também participo. Tal aspecto não é regra no teatro de
“palco italianizado”.
O palco italiano, ou palco à italiana, é um espaço pensado para reforçar a ilusão da
obra teatral, “[...] uma espécie de caixa, separada totalmente da plateia por um espaço de 5 a 8
metros. O palco tinha luz própria, bastante profundidade, de forma que os telões pintados
davam efeito de perspectiva; [...] com uma ilusão de realidade máxima” (ROSENFELD,
2009, p. 202). É citado como exemplo pelo autor o Teatro Municipal de São Paulo, mas
podem-se inserir tantos outros exemplos de edifícios teatrais no Brasil como o Teatro São
Pedro (Porto Alegre/RS), Theatro Sete de Abril (Pelotas/RS), dentre outros. Creio que a ideia
de palco que possuímos hoje é associada ao palco italiano: frontal à plateia, com proscênio,
rotunda, coxias, cortinas, e a partir do advento da eletricidade – varas de iluminação no teto,
caixas de som laterais ao palco direcionadas ao público (Public Adress). No teatro realista,
naturalista ou ilusionista, há a ideia de 4a parede (que separa atuantes e público), invisível,
como um grande vidro por onde o espectador assiste ao que está no palco. O texto
dramatúrgico conduz o teatro. O público tem a convenção de sentar-se em silêncio e apreciar.
Nesse teatro de imersão na ilusão, a música/sonoplastia sublinha a ação, ou seja,
colabora/corrobora com o que está sendo dito na cena. O rangido de uma porta tem o som de
um rangido de porta. A música inserida ajuda a reforçar o sentimento da cena, ambientação
cênica.
O século XIX e início do século XX nos reservou nos palcos (all’italiana) europeus, e
nos países de tradição europeia, o auge do teatro dramático e da ópera. Na música, segundo o
compositor estadunidense Roy Bennett (1918-2015), o músico alemão Richard Wagner
(1813-1883) “representa a força musical mais poderosa que surgiu depois de Beethoven”
(BENNET, 2007, p. 62), e prefere chamar suas obras de dramas musicais ao invés de ópera.
Grandes obras para serem consumidas pelos espectadores. Da perspectiva que se observa, as
sociedades faziam das apresentações artísticas nos edifícios teatrais eventos elitizados. Assim,
Duvignaud assinala que a elite do poder apropria-se da cultura e da civilização. “Ao longo de
todo o século XIX (e este século se prolonga agudamente no século XX) a prática
predominante subjuga o teatro às exigências de entretenimento da burguesia” (ROUBINE,
2003, p. 158). Existem resquícios do pensamento (em/na arte) desta época na atualidade, nos
indivíduos que pensam ser a arte para poucos (os que podem pagar por ela), ou o pensamento
de que é necessário ter um “dom” para ser um artista. Na relação teatral-musical, ressalto um
discurso social que pode ter subsídio nesta configuração: o que dá “validade” à obra artística
45
em destaque, ou seja, o que é considerado “bom” é o que está em cartaz, e/ou o que
“emplaca” nas bilheterias, e/ou o que contém grande produção (investimento financeiro).
Pode acontecer, mas não necessariamente.
O que trazemos do palco italiano para as relações teatrais-musicais contemporâneas?
Inicialmente, a ideia de haver um espaço neutro, caixa preta, que ressalte a obra cênica; tal
configuração é muito utilizada na atualidade, e muito se produz para tais palcos. Alguns
artistas usam a denominação “de sala” para referirem-se a espetáculos que serão em espaços
fechados, edifícios teatrais ou salas alternativas. A Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz,
de Porto Alegre (RS), utiliza essa nomenclatura ao dizer que possuem espetáculos “de rua” e
espetáculos “de sala”. O espectro que se mantém na sala provém do palco italiano, quando
nos referimos a uma iluminação e sonorização direta na/da obra, e mesmo que as cadeiras
para que o público possa se sentar e assistir à montagem não sejam tradicionais/frontais, a
convenção entre produção e recepção é, na maioria dos casos, clara. Convenção teatral: um
dos termos que podem definir o teatro de “palco italianizado” e as obras que se alicerçam
nessa configuração até hoje; a convenção é definida, o espectador está seguro porque sabe que
seu papel é apreciar/ler. A convenção teatral existe também no teatro de rua, quando a trupe
de atores faz uma roda, por exemplo, e estabelece normativa de qual espaço é o de
apresentação teatral e qual espaço é o de recepção teatral. Os espetáculos de rua e de sala que
transgridem esse modelo se encaixam em “guarda-chuva”30 moderno de teatro.
No quarto recorte, moderno, “produto de uma sociedade altamente relativista e móvel,
um teatro que pretende apresentar a diversidade da experiência disponível” (CARLSON,
1997, p. 417), a palavra “quebra” figura no pensamento artístico da época. “A fonte” de
Marcel Duchamp (1887-1968) é exemplo que enfatiza tal discurso, um urinol inserido em
concurso de arte, como se o indivíduo comprasse o objeto em uma loja de construções e o
expusesse. Acredito que a ação do escultor francês ainda reverberará por algumas gerações,
nos colocando pontos de interrogações na cabeça, sobretudo: o que é (ou o que pode ser
considerado) arte? O questionamento é válido e não possui, na contemporaneidade, resposta
direta e/ou definitiva. No Brasil, o modernismo teve seu ponto inicial na Semana de Arte
Moderna de 1922, no Teatro Municipal em São Paulo, onde artistas brasileiros buscavam
liberdade para novas expressões frente a um público conservador, “as obras apresentadas
durante a Semana aparentemente defendiam extravagâncias para o pacato contexto cultural
30
Utilizo a imagem do guarda-chuva aberto como metáfora a um conjunto de elementos que estão dentro deste
espaço, por exemplo, o guarda-chuva do teatro contemporâneo abrange muitos modelos/tipos de fazer teatro –
em que a experimentação assume importante papel (nesta reflexão).
46
47
Utilizando o exemplo, a relação teatral-musical atual pode estar no lugar onde o ator-
performer tem maior liberdade criativa de exploração espacial (som e cena), e o espectador é
ativo, participa direta ou indiretamente, seja no acompanhar o espetáculo ou na leitura que faz
da obra a partir de suas vivências. Palavra que une o teatro e a música na atualidade: a
experiência. A experiência proporciona diferentes possibilidades de criação e recepção. Por
isso, na sociedade em que vivemos, ter a possibilidade de transitar fluentemente no universo
artístico desde as tenras idades, nas escolas, pode ampliar diálogo entre artistas e
espectadores, já que, acredito, a experiência é calcada no conhecimento – na atualização ou
deslocamento das informações que já possuímos e na absorção de novos conhecimentos por
meio da disposição, abertura e oportunidade de cada indivíduo.
De um breve panorama de relações entre teatro e música, faço um salto para observar
a arte na educação brasileira por dois motivos: 1) considero que o estudo de arte no ensino
básico deveria ter presente o seu aspecto interdisciplinar, logo, a relação entre teatro e música
seria contemplada; 2) verificar o acesso à arte na educação pode deflagrar discursos que
fomentam e/ou subjugam o fazer artístico na contemporaneidade.
Os atores brasileiros que estudam teatro encontram diversas relações nesse campo
híbrido musical-teatral, podem localizar distintos usos e apropriações da música no teatro por
destacados encenadores do século XX que servirão de gatilhos às suas práticas, mas
independentemente das motivações que os direcionam a uma vertente (poética, crítica ou
estética) ou outra, um detalhe têm em comum: pontos básicos de partida provenientes do
conhecimento artístico conectado à educação/vivência que obtiveram. Nessa ponderação, um
aluno-ator “x” pode ter interesse na relação musical-teatral aprimorada por Bertolt Brecht,
outro aluno-ator “y” ter vontade de estudar a mesma relação em cruzamento com o legado de
48
Antonin Artaud, por exemplo, mas antes dessas aspirações, defendo, tais artistas trazem
imaginários na arte oriundos de sua formação de base que podem facilitar ou dificultar seu
trânsito musical na cena, independente de suas escolhas artísticas. Para dar um passo além é
preciso equalizar ou fortalecer alicerce. Como avançar nas relações musicais-teatrais se um
aluno (segundo presenciei em alguns momentos) não compreende o que é melodia31?
A vivência artística que os alunos-atores trazem quando ingressam em um curso de
graduação na área das artes, vem do ensino formal, educação não-formal e informal. A
educadora musical Regiana Wille (2003) traz cruzamentos sobre música e conhecimento
trabalhados por Valéria Garcia (2001), observando que
[...] consideradas aqui como meios de comunicação, estão cada vez mais presentes
na vida das crianças e dos adolescentes. Na literatura alemã, o termo “mundo das
mídias” (Medienwelten) já é consagrado. É um conceito necessário para dizer que
hoje crianças e jovens crescem convivendo naturalmente com as mídias – iPods,
CD-player, TV e computadores – e que estas representam componentes importantes
de suas vidas: a busca de identidade e a socialização. (SOUZA, 2009, p. 8)
Porém, entendo que essas mídias, que podem contribuir com o ensino não-formal ou
informal e potencializam o estudo por meio de material sonoro via internet, farão maior
diferença no aprendizado musical em décadas posteriores, na medida em que aumente
acessibilidade digital. O aparelho eletrônico com maior inserção nas casas dos brasileiros é a
televisão32, isto quer dizer que as músicas que circulam em programas de TV (e rádio)
continuam alimentando o know-how musical dos ouvintes, traços de educação informal por
intermédio da escuta. Se levarmos em consideração que aproximadamente um quarto da
população tem acesso a TV por assinatura33, apenas, é assertivo concluir que os brasileiros
possuam maior contato com emissoras (canais de TV) abertas. Por conseguinte, é provável
que chegue ao conhecimento da população canções como, por exemplo, aponta ranking
31
O termo melodia é usado como exemplificação, poderiam ser aplicadas outras nomenclaturas e/ou conceitos
musicais supostos como base; em cenário similar o questionamento continua se queremos debater harmonia
musical nas encenações, e a barreira for a falta de subsídios para dialogar a respeito do termo.
32
Segundo PNAD 2012 (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) do IBGE (Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística), o aparelho televisor está presente em mais de 97% dos domicílios brasileiros.
33
De acordo com o Portal Brasil (2012) do governo federal.
49
34
Sobre a história da tonalidade e do tom na música ocidental ler Uma breve história da música, de Roy Bennet
(2007), O som e o sentido, de José Miguel Wisnik (2002), Temas de estética y de historia de la música, de
Joaquín Zamacois (2003), Composição e pesquisa de música tonal na contemporaneidade, de Rodrigo Serapião
Batalha (2014), bem como outros livros, artigos, vídeos e demais publicações, já que tal temática tem amplo
espaço na pesquisa e prática musical.
50
inserido (em comparação a outros sistemas musicais), e por isso a afirmativa de que a
tonalidade é elemento presente no imaginário dos indivíduos urbanos (cidadãos que residem
nas cidades) – por meio da reprodução musical e da escuta – é uma das premissas do presente
estudo. O tom é o entendimento musical de fácil acesso no Ocidente. Do prisma que observo,
o passo adiante no perceber e/ou buscar outros sistemas musicais, experimentar sons, é
mais vivenciado por músicos, artistas, pesquisadores e pessoas com interesse e/ou acesso ao
estudo musical. Essa fala vem no sentido de explanar que muitas pessoas (nas cidades) vivem
dentro de mundo sonoro abstrato, com diversas influências sonoras-musicais naturais e
culturais, mas “música”, para elas, é o que está nas rádios, long-plays, compact-discs, ou seja,
música tem referência ao formato padrão da composição de uma canção, por exemplo.
Segundo a psicologia da música, tonalidade é o “sistema musical que organiza a altura
(frequência) dos sons hierarquicamente em torno de um centro tonal chamado tônica”35
(SCHÖN, AKIVA-KABIRI, VECCHI, 2014, p. 118). Hierarquia. Centro tonal. São as
problemáticas da tonalidade que podem ser relacionadas ao poder. Há certo e errado na
composição tradicional tonal, embora exista liberdade poética quando em “erro” proposital.
No teatro contemporâneo é preciso cortar a necessidade de uma música padrão, em que a
cadência inicia e termina na tônica, bem como colocar fim na obrigação da afinação como
algo imprescindível ao canto. Tal enfoque pode ser ampliado ao perceber John Cage como
figura interdisciplinar, na destruição da narrativa linear, fragmentação como procedimento
genérico compartilhado pelas diversas linguagens artísticas a partir da segunda metade do
século XX. Acredito que o almejável em educação musical para atores – levando em
consideração pressupostos pedagógicos presentes na metodologia de Jean-Jacques Lemêtre e
Raymond Murray Schafer, e pressupostos artísticos que estão no campo do teatro
performativo, segundo Josette Féral36 – é a abertura ao conhecimento sonoro e musical em
diálogo com o inusitado, criativo. Contudo, havemos de ter atenção para não concluir que o
sistema tonal deva ser negado na criação cênica, e sim, pelo contrário, utilizado
conscientemente em diálogo com os incontáveis sons concretos presentes na encenação.
35
Tradução minha. Original: Sistema musicale che organizza l'altezza (frequenza) dei suoni in maniera
gerarchica attorno a un centro tonale detto tonica.
36
“Entretanto, se há uma arte que se beneficiou das aquisições da performance [enquanto arte que visa ‘superar
ou ultrapassar os limites de um padrão’ (p. 200)], é certamente o teatro, dado que ele adotou alguns dos
elementos fundadores que abalaram o gênero (transformação do ator em performer, descrição dos
acontecimentos da ação cênica em detrimento da representação ou de um jogo de ilusão, espetáculo centrado na
imagem e na ação e não mais sobre o texto, apelo à uma receptividade do espectador de natureza essencialmente
especular ou aos modos das percepções próprias da tecnologia...). Todos esses elementos, que inscrevem uma
performatividade cênica, [...] constituem as características daquilo a que gostaria de chamar de ‘teatro
performativo’” (FÉRAL, 2009, p. 198).
51
Um aparte, segundo Patrice Pavis (1999), é utilizado para dar alguma informação ao
público como uma reflexão pessoal sobre o contexto (no caso por um personagem dentro do
espetáculo), um comentário. Faço um aparte, nestes moldes, para passarmos os olhos e
ouvidos em questões que envolvam o discurso, mais especificamente: o discurso inserido na
sociedade sobre o fazer artístico. Isso faz parte do conhecimento musical? Na perspectiva que
esta pesquisa pretende trabalhar, sim, uma vez que a pedagogia e a linguagem musicais se
formam em diálogo com o desenvolvimento cultural-técnico da sociedade. Formar cidadãos
aptos a posicionar-se em relação a esse desenvolvimento, e artistas capazes de usar crítica e
refletidamente esse conhecimento, são ações que podem reverberar na, e por que não
fortalecer a, arte que buscamos criar/dialogar com o público.
Dentro do discurso de determinados segmentos da sociedade, podemos distinguir suas
preferências políticas ou religiosas. Por exemplo, Pierre Lévy (2007) aborda informação e
tecnologia na obra A inteligência coletiva, e comenta o discurso mediante canais como a
internet: “Dar a uma coletividade o meio de proferir um discurso plural, sem passar por
representantes, é o que está em jogo, do ponto de vista tecnopolítico, na democracia do
ciberespaço” (p. 65-6). A rede virtual facilita propagação de pensamentos sociais a respeito
dos mais variados temas. Nesse ínterim, o interesse que desperto como artista busca
compreender, a partir de observação nos atos dos indivíduos que nos cercam, a valorização ou
descaso com a arte. Trago essa reflexão pelo fato de o discurso da arte não ser considerado
algo importante para a maioria das pessoas é, infelizmente, comum. Pode-se encontrar esse
“descaso mascarado” em governos, famílias, formadores de opinião.
O filósofo Michel Foucault em aula inaugural no Colégio de França, que marcava seu
ingresso como docente naquela instituição em 1970, discorreu sobre a ordem do discurso.
Expôs sua hesitação quando iniciou a comunicação com o público presente, pois ao proferir
palavras podemos firmar posicionamentos, e o intuito do filósofo vinha na contramão – em
desejo de ser/estar aberto. De sua aula, destaco uma observação:
52
Enfim, numa escala bem mais larga, é preciso reconhecer grandes clivagens no que
se poderia chamar a apropriação social dos discursos. Por mais que a educação seja,
de direito, o instrumento graças ao qual todo indivíduo, numa sociedade como a
nossa, pode ter acesso a qualquer tipo de discurso, sabemos que ele segue na sua
distribuição, no que ela permite e impede, as linhas que são marcadas pelas
distâncias, oposições e lutas sociais. Todo sistema de educação é uma maneira
política de manter ou modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e
poderes que eles trazem consigo.37 (FOUCAULT, 1995, p. 18)
No conjunto das artes produzidas heroicamente neste país, o teatro infantil [...] é tido
como um dos segmentos mais sofridos, mais à margem da margem da margem. Há
preconceito por todos os lados. Como livrar as produções infantis desse estigma de
“pecinhas”? Há um círculo vicioso que emperra qualquer tentativa de acabar com
esses diminutivos perniciosos. (CARNEIRO NETO, 2003, p. 6)
De acordo com o crítico teatral, o que a sociedade brasileira pensa a respeito da arte
está embutido no que forma o artista. Ele vivencia a importância dada à cultura pela
população. Boa parte desses pensamentos, que podemos supor inclusos em nosso
subconsciente, não são exclusividade de nossa nação, como a ideia de dom. A fantasia de que
o músico é um ser “tocado por Deus” é um ideal do período romântico que perdura:
37
Grifo meu.
38
Apesar de reverberar e concordar com a escrita de Dib Carneiro Neto que observa o emprego do “inho/inha”
com suposto efeito de diminuir, consciente ou inconscientemente, obras artísticas; cabe problematizar o
diminutivo para diferenciá-lo de uso como empregado em nomes próprios. Por exemplo, ao chamar a Maria de
Mariazinha não há necessariamente vínculo com desapreço, às vezes, pelo contrário, se quer ser “carinhoso”;
porém há diferença em chamar “Mariazinha” dentro de um contexto familiar e dentro de outros contextos –
como o profissional.
53
Ernani Maletta (2005), em sua tese, descarta a ideia de dom (do músico) como algo
oriundo da genética do indivíduo, a expressão popular que reverbera ser necessário “nascer
com” o talento. Concordo com essa afirmação, bem como acredito no desenvolvimento
musical por meio de dedicação e estudo. Existem facilidades que variam de acordo com a
pessoa – e o “dom” para por aí. Ao observar a sociedade e seus rótulos, de certa forma, é
possível buscar no estereótipo do que sabemos de superficial. Tal superficialidade faz parte de
nossa criação humana. Os estereótipos também podem ser chamados de imaginários
sociodiscursivos: “os imaginários são engendrados pelos discursos que circulam nos grupos
sociais, se organizam em sistemas de pensamento coerentes criadores de valores -
desempenhando o papel de justificação da ação social – e se depositam na memória coletiva”
(CHARAUDEAU, 2007, apud MENDES, 2010, p. 92). Nesse sentido, todo estereótipo causa
um imaginário e se deposita no discurso.
Acredito que os estereótipos não são baseados na realidade, mas fazem parte, de
alguma forma, do imaginário presente. Tais imagens rasas, superficiais, são corroboradas pelo
discurso em diversos setores, como na mídia, por exemplo. As profissões que escolhemos
também estão cercadas de estereótipos, pré-conceitos e preconceitos. Tais retratos estão
ligados à integridade, qualidade de vida, confiança de setores da sociedade. Isso também
forma o profissional, não que seja fundamental ou determinante, mas existe no subconsciente
das pessoas que o cercam (e do próprio atuante).
Ao pensar em formação de atores, percebo que tal assunto deva ser observado. Todo
ator dialoga com os imaginários sociodiscursivos a respeito da arte. Todo ator, além de ter
feito curso de teatro (ou caso não tenha optado por formação específica), passou pelo ensino
básico, que recebe influências das políticas públicas, que são elaboradas por intermédio dos
discursos vigentes. Elaborei um gráfico sobre o que abordo, ao pensar no ator contemporâneo
brasileiro, o que o envolve:
54
39
Imagem disponível na rede social Facebook em comunidade de nome “Teatro da depressão”.
40
“A arte se converte em mero representante da sociedade e não em estímulo à mudança dessa sociedade; aprova
desta maneira essa evolução da consciência burguesa que reduz toda imagem espiritual a simples função, a uma
entidade que existe somente para outra coisa, e, em suma, a um artigo de consumo” (ADORNO, 2009, p. 29).
55
da Escola de Frankfurt: “Por um lado, condenava-se a contemplação dita passiva. Por outro,
condenava-se o desejo de aparecer” (p. 143). Silva aborda a passagem ao hiperespetacular,
que seria o desejo exacerbado de exposição do indivíduo; uma época em que existe a
necessidade dos cidadãos de dar opinião sem aprofundamento e achar tal prática normal – não
importa se fere ou difama outro indivíduo, importa proferir a opinião verborrágica – “A
hipermodernidade é a emancipação do conteúdo” (Idem, ibidem); é uma conversação com (ou
sequência a) Guy Debord: “O hiperespetáculo é o olho que se tornou supérfluo” (SILVA,
2013, p. 100). A respeito da exposição exacerbada que não se importa com conteúdos, o
filósofo afirma que
56
seu uso revelam a presença de ideologias que se opõem, revelando igualmente a presença de
diferentes discursos, que, por sua vez, expressam a posição de grupos de sujeitos acerca de
um mesmo tema” (FERNANDES, 2007, p. 19). Não podemos esquecer que há discurso,
presente em nossa sociedade, que não favorece a arte e seus profissionais. Ao entender esse
imaginário, temos a possibilidade de fortificar argumentos contra ele, como exigir ensino
adequado de diferentes expressões artísticas nas escolas de ensino básico.
A relação entre teatro e música existe desde que há teatro e música. Nossa separação
entre uma e outra arte serve como enfoque, até porque existem especificidades. O ensino
formal brasileiro deixa clara a existência de quatro artes na escola, somando a dança e as artes
visuais – outros campos com ampla conversação com o teatro, e o olhar por categorias pode
auxiliar o artista cênico a buscar imersão em áreas e/ou funções profissionais diversas. Na
presente pesquisa há a defesa de que os alunos-atores podem potencializar seus trabalhos,
tanto na construção de uma ficção como no teatro performativo, se aprimorarem seus
conhecimentos musicais – mas como fazê-lo? Defendo que cursos, oficinas e disciplinas que
buscam interação musical-teatral são recomendáveis e desejáveis em um suposto primeiro
patamar, porém não são as únicas alternativas. Em escala próxima, estudos específicos da área
da música, como aulas de instrumentos musicais, podem reverberar pelo ator na cena
dependendo de sua articulação entre os conteúdos aprendidos na música e a aplicação no
teatro, não necessariamente (ou apenas) ipsis litteris, como aprender piano para tocar piano
em cena (um modelo de participação), mas aprender piano para estabelecer trânsito com
harmonia, melodia, intervalo, pausa, ritmo e demais conteúdos, e utilizar tais preceitos no seu
corpo e no espectro da musicalidade cênica (interdisciplinaridade e polifonia).
Os artistas cênicos encontram em diversas publicações, tanto teatrais como musicais,
materiais que auxiliam na compreensão e articulação entre música e cena. Pesquisas sobre a
voz no teatro não deixam de ser, também, estudos cênicos-musicais. Por exemplo, se
absorvemos a publicação da professora Jane Celeste Guberfain, da Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro, em seu livro intitulado A voz e a poesia no espaço cênico (2012), é
possível apreender elementos interdisciplinares teatrais, dentre os quais se enfocam a voz e a
música. A referida obra faz uma leitura a respeito do método da professora Maria da Glória
Beuttenmüller. No trabalho vocal dos atores sobre o Método Espaço-Direcional-
57
58
Paparotti e Valéria Leal “Cantonário: guia prático para o canto” (2013) possui subsídios
interessantes, de elementos/aplicações que vão de básicas a avançadas, e acompanha mídia
com exercícios vocais para exemplificação. Apesar de direcionar sua obra a cantores,
Paparotti e Leal mostram exercícios de fácil acesso a todos. As autoras, em determinado
momento, comparam o canto com modalidade atlética, o que remete a um pensamento com
ênfase na técnica, porém adotam abordagem contemporânea quando explicitam o efêmero, o
imprevisto: “o desejo de cantar pode superar pequenas limitações físicas ou vocais”
(PAPAROTTI, LEAL, 2013, p. 167). Da leitura e reconhecimento intelectual à
assimilação/apropriação corporal há um espaço a preencher com os ensaios práticos,
separando os elementos musicais que soam como acessórios aos dispositivos sonoros capazes
de instaurar experiência e sentido.
Na investigação de metodologias ou cursos que envolvam música para atores, destaco
a obra de Joe Deer e Rocco Dal Vera: “A atuação em teatro musical: curso completo” (2013),
material que observo pertinente ao aluno-ator principalmente pela publicação de percalços e
algumas realidades encontradas pelos autores na vida profissional dos atores – neste caso do
gênero “teatro musical”. O estudo dos artistas estadunidenses, que serve como um guia para o
ator que deseja trilhar trajetória no teatro musical, tem valia para todos os artistas da cena. O
enfoque dos autores é próximo às suas realidades, nas quais o que desperta interesse como
forte vertente de trabalho é o circuito Broadway43 – “composta por cerca de trinta e três
teatros em torno da Times Square, em Manhattan. [...] Em alguns momentos, como nos
últimos anos, existem apenas musicais em cartaz na Broadway” (DEER, DAL VERA, 2013,
p. 467), enfatizam os autores:
De que maneira o teatro musical pode transportar seus espectadores a lugares que
poucas outras experiências conseguem? Arrisco uma hipótese: pela música cantada no teatro
– envolvimento entre som, imagem, harmonia e espetacular. Nesse viés, é possível sair do
gênero teatro musical que tem especificidades próprias, como a busca por aguçado trabalho
rítmico sonoro-imagético em que a técnica musical e corporal/coreográfica dá suporte à cena
43
Avenida em Nova York (E.U.A.) que possui diversos teatros, onde há ligação com grandiosas montagens de
musicais, grandes produções com respaldo de público e bilheteria.
44
Grifo meu.
59
60
45
Além dos estudos musicais-teatrais, há interessante pontuações dos artistas estadunidenses ligadas a
indicações visando profissionalismo do artista, que, entendo, deveriam ser meditadas por todos os estudantes de
Artes Cênicas, dentre elas noções básicas de atuação – os autores escrevem sobre dar e receber feedback, e o que
podemos chamar de conselhos, entre os quais destaco: não defenda ou explique a sua atuação, contenha seu ego,
evite distrações externas (2013, pp. 4-9), elementos que visam a relação pessoal e um bom ambiente para o
trabalho artístico.
61
46
Musique & théâtre: La musique de Jean-Jacques Lemêtre au Théâtre du Soleil.
47
Tradução de Maico Silveira e Iara Ungarelli. Original: La scène est à Paris où coule la Seine, à la
Cartoucherie de Vincennes plus précisément et très exactement au Théâtre du Soleil. La troupe salue le public
qui, debout, salue lui aussi les artistes qui viennent de le bouleverser, l’enthousiasmer, l’éblouir. Ceux qui sont
rétifs sont debout aussi mais partent déjà. Les applaudissements sont nourris. Puis la troupe s’écarte et présente
le (ou les) musiciens, selon le spectacle, installé(s) près de la scène. Celui(ceux)-ci s’interrompt(-ent), se lève(-
nt) et c’est dans le « silence » que se poursuivent les applaudissements souvent les acclamations. Jean-Jacques
Lemêtre et ses partenaires les reçoivent en souriant puis retournent très prestement à leurs instruments pour
reprendre la musique des saluts jusqu’à l’ultime rappel.
62
que sejam os meios, qualquer um pode se tornar um músico”48 (idem, p. 11). A certeza do
compositor o fez pedir que todos os atores do grupo tocassem alguns instrumentos musicais
em “Méphisto”, com a devida assessoria e condução do músico.
Jean-Jacques Lemêtre, que já compôs para artistas amplamente difundidos no universo
do espetáculo como Pina Bausch, costuma compor e executar suas obras no Théâtre du Soleil,
criando suas interlocuções desde o primeiro dia de ensaio – já que está presente com Ariane
Mnouchkine em todos os ensaios: “A propósito da música ou dos foleys, uma dimensão é
totalmente excluída por Jean-Jacques e Ariane: a de ‘ambientação’ ou de ‘atmosfera’. Para
eles a música (enriquecida com os efeitos sonoros) é uma ‘parceira’ do ator”49 (idem, p.16).
A metodologia de ensino do artista não está disponível como material físico (livros),
mas é possível ter acesso a ela mediante vivências com o próprio professor, em encontros
presenciais. Como é requerido em diversos países para ministrar seu curso, e talvez motivado
também por sua origem cigana, Lemêtre frequentemente costuma visitar novos lugares para
compartilhar sua pedagogia.
Tive a oportunidade de fazer um curso com o compositor da companhia francesa, “O
corpo musical no teatro”, na cidade de Porto Alegre (RS) em dezembro de 2011, e posso
afirmar que os participantes obtiveram inspiradas reflexões a respeito da música no teatro –
em quatro dias consecutivos de encontro (módulo). Muitos dos participantes eram atores que
podemos considerar híbridos, que aprofundam mais de uma função no teatro – no caso com
elo musical; atores-músicos, músicos de cena, criadores de trilha sonora, professores de
teatro, preparadores vocais, estudantes pesquisadores em artes cênicas.
Lemêtre dividiu conosco um pouco da metodologia que trabalha no Théâtre du Soleil,
com grande enfoque no ritmo e andamento, mas na busca de quebrar um compasso binário
(ou quaternário) presente no corpo ocidental – este é um dos aspectos que busco em uma
preparação musical para atores. Dentre os exercícios, muitos com fórmula de compasso em
sete tempos.
Segundo Jean-Jacques Lemêtre,
Na Bretanha, cinco tempos é normal. Você pode ver camponeses dançarem a cinco
tempos. Você diz: ‘Está em cinco tempos’, e te respondem: ‘Não estou nem aí. Beba
um pouco, eu vou dançar’. E eles dançam perfeitamente em cinco tempos sem
problema algum. Em Saint-Flour você ouve camponeses cantando grandes
48
Idem. Original: Jean-Jacques Lemêtre est fermement convaincu que, quels que soient ses moyens, tout un
chacun peut devenir musicien.
49
Idem. Original: Concernant la musique ou les bruitages, une dimension est résolument exclue par Jean-
Jacques et Ariane : celle « d’ambiance » ou « d’atmosphère ». Pour eux, la musique (forte des « bruitages ») est
un « partenaine » de l’acteur.
63
Vésperas, em nove tempos, em onze tempos. Nos fizeram acreditar por muito tempo
que a música de compasso irregular era algo distante50 (idem, p. 39)
50
Idem. Original: En Bretagne, 5 temps c’est normal. Tu vois des paysans qui dansent à 5 temps. Tu dis : « c’est
un 5 temps », et on te dit : « Je m’en fous. Bois un coup. Moi je danse ». Et ils dansent parfaitement à 5 temps
sans se poser le problème. À Sant-Flour, tu entends des paysans qui chantent des Grandes Vêpres, c’est à 9
temps, c’est à 11 temps. On a fait croire très longtemps que la musique asymétrique c’é tait ailleurs.
64
E inclusive os jovens atores que eu vejo chegar parecem ter dificuldade com isso...
Pouco a pouco eu fui descobrindo que o tempo de um corpo que se move no espaço
era o mesmo que o da voz com a qual ele ia falar. É só eu ver alguém chegando,
agora, depois de trinta anos, para saber com que velocidade ele vai falar52 (idem, p.
47)
51
Idem. Original: Je leur faisais travailler deux ou trois heures la métrique de leur texte, la rythmique. On a pu
inventer des doble-longues qui n’existent pas dans la versification classique. On a inventé une langue. Les
acteurs parlaient tellement fort qu’ils montaient leur voix, ce qui est un défaut d’education. On oublie de dire
aux gens, quand ils doivent parler fort : « Je t’ai demandé de parler fort, pas de parler plus haut » (Rire).
Comme on ne précise pas les termes, c’est une confusion, quand on dit : « plus fort », la plupart des gens
entendent « plus haut ».
52
Idem. Original: Et d’ailleurs, les jeunes acteurs que je vois arriver ont l’air d’avoir du mal avec cette chose
là… Au fur et à mesure, je me suis aperçu que le tempo d’un corps qui bougeait dans l’espace était le même que
celui de la voix avec laquelle il allait parler. Il suffit que je voie quelqu’un arriver, maintenant, au bout de trente
ans, pour savoir qu’il va parler forcément à cette vitesse là.
53
Que podem ser lesões ou deficiências físicas, mesmo assim há de se observar em qual grau.
54
Idem. Original: Au Théâtre du Soleil, on entend des instruments de musique provenant du monde entier mais
aussi de véritables inventions dues à Jean-Jacques Lemêtre qui, de ce fait, ajoute la fonction de luthier à celle de
compositeur et d’interprète.
65
55
Idem. Original: Je m’étais aperçu au fur et à mesure des répétitions que tous les instruments occidentaux
contemporains ne tenaient pas la route, le son ne tenait pas la route, c’est-à-dire qu’une caisse-claire, une
grosse-caisse de fanfare ou d’orchestre symphonique, un vibraphone, ça ne tenait pas parce que ce n’etait pas
dans l’histoire, ce n’était pas dans la couleur qu’on voulait […] Et donc je découvrais qu’il y avait des
instruments que je ne devais pas utiliser parce qu’ils ne marchaient pas avec la hauteur de la voix parlée sur
scène. Si les instruments sont à la même hauteur que la voix, les deux s’annulent.
56
Idem. Original: L’essentiel est au présent. Ce qui pourrait n’être qu’un slogan, « ici et maintenant »,
conquiert avec Jean-Jacques Lemêtre une existence force.
66
67
68
69
Neste capítulo, a constatação de que vivemos em uma sociedade tonal, mas estamos
migrando para um entendimento sonoro a respeito do que é música. O som passa a ter maior
importância, não que a tonalidade seja relegada a segundo plano, mas ambos (tom e som) são
alternativas conectadas pela experiência. Esse pensamento, a meu ver, deve estar presente na
busca por um núcleo de preparação musical, para atores, no que se refere à
contemporaneidade.
A música faz parte do teatro, é um dos componentes das artes cênicas – já que teatro é
uma arte polifônica, não por incluir cantos e orquestras, mas “Considerando o espetáculo
teatral como um fenômeno de imbricamento de todas as artes e linguagens, resultante de uma
urdidura de signos – que vai derivar no conceito de um texto espetacular – pode-se raciocinar
que ele é, por natureza, polifônico” (OLIVEIRA, 2008, p. 179). Princípios musicais se tornam
presentes na cena por meio da presença do fenômeno que chamamos “música” e por meio de
princípios subjacentes à música.
Problematizar o termo música é ação pertinente na contemporaneidade. Raymond
Murray Schafer (1991) levou essa questão às salas de aula – o som de um avião que passa no
céu em cima de nós: isso é música? Ruído é música? John Cage tem um importante papel
nessa reflexão, anterior ao professor canadense, ao compor para seu piano preparado58 ou na
proposição da peça musical “Tacet 4´33’’”59, por exemplo. Um mundo de sons.
Além de ser o elemento que renova a linguagem musical (e a põe em xeque), o ruído
torna-se um índice do habitat moderno, com o qual nos habituamos. A vida urbano-
industrial, da qual as metrópoles são centro irradiadores, é marcada pela estridência
e pelo choque. [...] Um outro dado fundamental faz recrudescer a margem do ruído
do ambiente: proliferam os meios de produção e reprodução sonora, meios
fonomecânicos (o gramofone), elétricos (a vitrola e o rádio), eletrônico
(sintetizadores). O meio sonoro não é mais simplesmente acústico, mas
eletroacústico. (WISNIK, 2002, p. 47)
57
Giovanni Piana. A Filosofia da música. Bauru, SP: EDUSC, 2001.
58
Piano preparado é a técnica, marcada por Cage, de inserir objetos em cima das cordas do piano acústico,
fazendo com que – ao tocar as notas do piano – vibrem os objetos revelando sons inusitados, ruidosos,
‘desafinados’.
59
Esta composição consiste em quatro minutos e trinta e três segundos de pausa (silêncio), nos quais a música se
configura no desconforto e ruídos da plateia, conforme cita José Miguel Wisnik (2002, p. 51-2).
70
Reverberando Wisnik, compreendo que a abertura a esse conceito que age de forma
diferente a receptores distintos, esteja conectada à época em que o som se tornou uma das
apostas centrais da música e das artes, como escreve Makis Solomos (2011), na estética da
sonoridade.
Do panorama recente,
Reler a história da música desde o século passado significa, em parte, ler a história
movimentada da emergência do som, uma história plural, pois que composta de
várias evoluções paralelas, as quais, todas levam de uma civilização do tom para a
civilização do som. (GUIGUE, 2011, p. 19)
71
deve levar em consideração que quando está em apresentação, show, há traços de teatralidade.
O que une as duas experiências é o acontecimento ligado à performance, linha de uma época
do tom ao som que está na experiência – experiência pela qual os espectadores passam no
acontecimento, experiência que os atores/intérpretes vivenciam em diálogo com sua plateia e
ambiente.
Na América do Sul temos dois exemplos próximos, de espetáculos híbridos, que
podem fazer o espectador indagar se a obra é musical ou teatral, marcados pela
potencialização do efêmero, da experiência: “Tangos & Tragédias” (1984-2014) e as
apresentações do grupo argentino Les Luthiers (1967). Não precisamos categorizá-las. É
interessante observar seu caráter múltiplo na arte.
60
Imagem artística elaborada por Tig Vieira a partir do vídeo “Les Luthiers, Rhapsody in Balls, Lutherapia”, do
canal “Les Luthiers” na rede de nome YouTube. Disponível em: <https://youtu.be/Wtbuo2cDLYY>.
61
Site Oficial Les Luthiers, acesso em setembro/2014, tradução minha.
62
Tradução minha. Original: Es nuestra parodia de la guitarra española y está construida con dos latas de
dulce de batata.
72
73
ligadas à sonoridade, como foi observado (na Introdução) que o ensino de artes-música não
foi ato efetivo na educação básica brasileira até o final do século XX, salvo iniciativas
isoladas, chega aos profissionais que trabalham com áudio no teatro ou outras artes.
Dificuldades em transitar no campo musical. Todos os problemas estariam na possível
escassez formativa de base? Não, mas certamente uma parcela desse contratempo está
conectada ao conhecimento – a sua falta ou incipiência. Ernani Maletta aponta reflexão sobre
haver problemas similares fora do Brasil: uma montagem portuguesa do espetáculo “Os
Saltimbancos” permitiu que o autor mineiro constatasse que “a fragmentação de
conhecimento, a dificuldade com a efetivação de práticas interdisciplinares e o despreparo do
ator para um teatro polifônico não são características exclusivas da realidade brasileira”
(MALETTA, 2005, p. 252). Fator contemporâneo que pode colaborar com a alteração deste
quadro é a propagação de métodos e cursos sobre música facilitada pelo meio virtual. Na
atualidade um ator pode fazer um curso de violão por internet. Acredito que o interesse na
busca por conhecimentos musicais aumente em diversos setores/áreas na sociedade, porque o
acesso à informação é outro. Nossa época é sonora e tecnológica. Porém, é salutar atentar que
o contato com o ensino musical é um passo inicial, e há de se verificar sua capacidade de
gerar experiências e ampliar visão crítica e filosófica a respeito da música.
O ponto de partida na contemporaneidade ao pensar música, pode estar em “[perceber]
que o som foi transformado em problemática central da música” (SOLOMOS, 2015, p. 61).
Do tom ao som. Ao pensar em preparação musical para atores, vejo necessário observar
filosofia(s) e pedagogia(s) da música que atentem à (ou dialoguem com a) situação exposta
pelo musicólogo grego Makis Solomos – especialista em música contemporânea.
74
A crítica de Piana a Adorno está no fato de que a filosofia da nova música centra o
pensamento em discurso filosófico que tem o propósito de valorizar a experiência musical da
escola de Viena. Piana comenta saber que sua análise traz traços referentes ao fato de a
divulgação de Adorno no ambiente italiano ter acontecido na época de seu declínio:
65
Tradução minha. Original: Benché infatti si possa parlare di un declino dell’adornismo, sia dal punto di vista
filosofico generale, sia rispetto alla problematica più propriamente musicale, già agli inizi degli anni settanta,
tuttavia si è trattato di un declino sommesso, tanto inappariscente quanto era stata imponente la sua diffusione
nel dibattito filosofico e teorico intorno alla musica novecentesca, la sua capacità di determinare orientamenti e
linee di tendenza in ogni aspetto della vita musicale di quegli anni.
75
E se tratava de um declínio não decretado por este ou aquele crítico musical, por
este ou aquele filósofo, mas dos eventos da música. Os ensaios memoráveis por
Boulez [compositor francês/ serialismo] - e prestemos atenção às datas - "Schönberg
é morto" (1952) e "Stravinsky permanece" (1953) representavam objetivamente a
demonstração não apenas da inadequação dos instrumentos adornianos para afrontar
a produção mais recente, mas também da necessidade de recusar a impostação de
princípio e toda a forma de abordagem da música do século XX. Para Boulez não se
tratava, de fato, de inverter banalmente os termos da oposição adorniana. O
problema era mais o de readquirir sem antolhos as muitas coisas que estão dentro da
música do século XX, de repensá-la, identificando novas possibilidades, diversas
tradições, redesenhando novos quadros possíveis de referência para o
desenvolvimento da música. [...] Ainda mais simplesmente se tratava, para Boulez
como para toda a música mais jovem de então, de prosseguir os muitos caminhos
abertos, de experimentar novos materiais sonoros, novas técnicas, de reformular os
próprios projetos de compor à luz das novas possibilidades de produção do som que
a tecnologia punha à disposição do músico.66 (idem, p. 8-9)
66
Tradução minha. Original: E si trattava di un declino non decretato da questo o da quel critico musicale, da
questo o quel filosofo, ma dalle vicende stesse della musica. I memorabili saggi di Boulez – e si presti ancora
attenzione alle date – «Schönberg è morto» (1952) e «Stravinsky rimane» (1953) rappresentavano
obiettivamente la dimostrazione non solo dell’inadeguatezza degli strumenti adorniani ad affrontare la
produzione più recente, ma anche della necessità di rifiutarne l’impostazione di principio e l’intero modo di
approccio alla musica novecentesca. Per Boulez non si trattava infatti di capovolgere banalmente i termini della
contrapposizione adorniana. Il problema era piuttosto quello di riacquisire senza paraocchi le molte cose che
stanno dentro la musica novecentesca, di ripensare ad essa individuando nuove possibilità, diverse tradizioni,
ridisegnando nuovi quadri possibili di riferimento per lo sviluppo della musica. [...] Ancora più semplicemente
si trattava, per Boulez come per tutta la musica più giovane di allora, di proseguire le molte strade aperte, di
sperimentare nuovi materiali sonori, nuove tecniche, di riformulare i progetti stessi del comporre alla luce delle
nuove possibilità di produzione del suono che la tecnologia metteva a disposizione del musicista.
67
Grifo meu.
76
Mergulhado nas reflexões de Piana, observo teóricos italianos que parecem falar de
um mesmo prisma, como Carlo Migliaccio (2009) e Giacomo Fronzi (2014), seus
questionamentos reverberam uma tendência ao pensar e fazer música no Ocidente –
valorização do som. Em filosofia da música que abraça a experiência, a temporalidade tem
enfoque diferenciado no pensamento musical do século XX aos dias atuais: falar do tempo na
música “não significa apenas refletir sobre o ritmo, sobre a organização das medidas e da
duração dos sons, mas enfrentar o terreno das condições de possibilidade do tempo musical,
da sua especificidade, da relação com o espaço, com o tempo real e com o psicológico”68
(MIGLIACCIO, 2009, p. 290). Para Migliaccio, as reflexões sobre a temporalidade pontuam
que a arte do século XX pareceu perder gradualmente as suas ligações com o ouvinte e com o
público, muitas vezes tornando-se uma abstração ou uma experiência. A reverberação do som
tendo o espaço e o receptor como ênfase. É a vivencia pós-Cage. John Cage é referência
musical, um performer que, nas palavras de Fronzi, foi um revolucionário:
John Cage produz quebras, no que se entende por música, que dialogam com a
filosofia da música de Giovanni Piana. A experiência com o som é anterior a qualquer
estrutura conceitual sobre o fazer musical, é anterior à tonalidade. Piana escreveu sobre a
origem da teoria da tonalidade (2005), trazendo Johann Sebastian Bach como grande
articulador desse pensamento – a ressalva está no apontamento em que a proposição desta
máxima não está apenas no compositor, já que ele retrata pensamento presente em
determinado período histórico. O filósofo compara o cravo bem temperado ao temperamento
da época. Por se apresentar como um tipo de afirmação do universo tonal inteiro, em um
percurso de cima para baixo, conforme nos traz Piana, a música celebrou a linguagem da
68
Tradução minha. Original: Parlare del tempo in musica, infatti, non significa soltanto riflettere sul ritmo,
l’organizzazione delle misure e della durata dei suoni, bensì affrontare il terreno delle condizione di possibilità
del tempo musicale, della sua specificità, della relazione con lo spazio, con il tempo reale e con quello
psicologico.
69
Idem. Original: Cage è un compositore anarchico, divertente, ironico, spontaneo, irriverente, un personaggio
dalle passioni bizzarre e multiformi. […] Cage rientra in molte storie, in molte rivoluzioni, è uno di quei
compositori che a metà Novecento hanno coltivato la speranza di porre fine, definitivamente, al regno
dell’armonia, centrando il discorso musicale, l’attività compositiva su basi nuove, strutturate a partire da
elementi che potevano essere, di volta in volta, musicali, extra-musicali, aleatori o numerici.
77
tonalidade como a linguagem do futuro – talvez esta celebração seja a mais importante
demonstração do temperamento:
É claro que a palavra "tom" pode ter um sentido genérico, de modo a tornar
impossível qualquer tentativa de datação. No entanto, podemos concordar com o
fato de que falar de "linguagem da tonalidade" reivindica um desenvolvimento que
tem uma determinação histórica precisa, e a grande obra bachiana pode ser
considerada, não como início, mas como o limiar exemplar de um estilo destinado a
marcar os desenvolvimentos musicais de tradição europeia até ao final do século
XIX70. (PIANA, 2005, p. 5)
78
possível perceber tal afirmação nas ações da referida sociedade, como em seus cursos de
aperfeiçoamento/formação. Experienciei no curso “O corpo fala: som e movimento do gesto à
cena”73 (2014), um olhar para o aprendizado musical (vinculado à sala de aula) que destaca o
corpo e o efêmero, como se a música visitasse estudos teatrais contemporâneos. Dentro do
pensamento desta tese, o inverso também é desejável: o teatro visitar a educação musical para
suas práticas. As abordagens de Piana se relacionam com um formato participativo na
preparação musical para atores, tanto na observação à tonalidade quanto na problematização
do som e da música.
É necessário fornecer conhecimento musical ao artista teatral, mas de que tipo e em
qual sequência são elementos a verificar (no presente estudo faço uma proposição no Capítulo
3). Ernani Maletta pontua em sua tese que “Procuram-se, cada vez mais, atores que reúnam,
pelo menos, as habilidades ligadas à interpretação, ao canto e a dança. Muitas vezes, soma-se
a exigência da habilidade como instrumentista” (MALETTA, 2005, p. 20-1). O artista mineiro
comenta que o ator não precisa ser virtuose musical, mas é salutar conseguir transitar nesse
universo. Desse entendimento, vamos às tensões. Se para Cage e para alguma vertente da
música contemporânea a desconstrução chegar a um nível máximo, bastaria produzir sons de
maneiras decididamente não instrumentais, sem instrumento musical e, portanto, seria
dispensável ao ator contemporâneo um estudo introdutório de música “tradicional” – da
perspectiva que observo, esta leitura não está incorreta, mas está incompleta. Utilizando o
renomado performer musical como referência, observam-se composições com tonalidades ou
experimentações ao piano, por exemplo “In a landscape” (1948), fator que aponta à
genialidade de Cage como um performer completo, que dominava a música a ponto de
desconstruí-la. Ensinar diretamente ou exclusivamente a desconstrução seria, em parte,
ignorar a própria época de transição do tom ao som, em que o tom tem relevante inserção nas
músicas das sociedades ocidentais. Acredito que quanto maior o suporte musical
diversificado, tonal incluso, receber o aluno-ator, maior a possibilidade de articulação entre os
universos teatral e musical do mesmo. A mesma prerrogativa pode ser aplicada à dança. Não
significa que o ator precise saber cantar e dançar, mas precisa ter uma relação viva com o
canto e a dança. Ele precisa se sentir à vontade em uma pesquisa em canto e dança,
apresentada inclusive em cena, e, para isso, entendo, ao buscar subsídios nessas artes que
dialogam com o teatro, amplia sua fruição no campo híbrido entre as artes.
73
Tradução minha. Original: Il corpo racconta: suono e movimento dal gesto alla scena.
79
A tensão primária que se apresenta está entre a dominância de uma concepção não
tonal da música, não só na própria música mas nas artes em geral, e a necessidade de oferecer
uma introdução musical que deve trabalhar a tonalidade – mas de uma maneira não
virtuosística e não mecânica. Não sou defensor do tonalismo, mas ele faz parte da música
contemporânea; não é, como outrora, elemento central, mas é forte referência inclusive às
experimentações sonoras aleatórias. Perdeu-se no tempo das obrigações as regras de cadência,
mas trabalha-se ainda, no Ocidente, os intervalos temperados que levaram as 24 tonalidades –
é outra ideia de tonalidade, mas continuamos falando de resquícios e de partes transformadas
do universo tonal. Rodrigo Serapião Batalha comenta:
O extraordinário interesse que possuem hoje todas as questões que dizem respeito à
física do som, seja intrinsecamente por sua contribuição de conhecimento, seja para
o músico dos nossos tempos que, mais do que nunca, está fortemente interessado em
entrar em contato vivo com a matéria sonora, controlando-a mesmo em seus
parâmetros físicos – não seria certo compromisso da consciência da diferença das
áreas sobre as quais se movem a música e a acústica: elas podem interagir entre si,
em muitos aspectos74. (PIANA, 2005, p. 146)
Abordar a tensão entre o tom e o som no campo da prática teatral, inicia na práxis
social e cultural e avança os preceitos e discursos a respeito da arte, da música e do teatro.
Fernando Pinheiro Villar relata a curiosa ação acontecida no Departamento de Artes Cênicas,
da Universidade de Brasília, quando uma turma buscou um projeto de conclusão de curso
com teatro musical, apavorando uma das alunas:
74
Tradução minha. Original: Lo straordinario interesse che hanno oggi tutte le questioni che riguardano la
fisica del suono, sia intrinsecamente per il loro apporto conoscitivo, sia per il musicista dei tempi nostri che, più
che nel passato, è fortemente interessato ad entrare in contatto vivo con la materia sonora padroneggiandola
anche nei suoi parametri fisici, non sarebbe certo compromesso dalla consapevolezza della differenza dei
terreni su cui si muovono musica ed acustica: esse possono interagire l’una con l’altra in moltissimi modi.
80
Ela questiona a escolha, afirmando que não canta, não sabe cantar, não tem
formação e não acredita que possa, em um ano, bacharelar-se com tal proposta. O
pavor aumenta com o próximo exercício no processo: cantar uma música – o que ela
não faz. […] A estudante volta no outro dia, assumindo sua recusa anterior e
propondo-se a cantar. Consciente de sua falta de formação, ela pede aos colegas e
professor que, toda vez que ela desafine, puxem as linhas coloridas pendentes do seu
casaco preto. A turma aceita a proposta, as linhas são distribuídas e ela começa a
cantar [...]. Em suas desafinadas, as linhas são puxadas constantemente pelos
colegas, entre risos e atenção. Ao final da música, ela abre seu casaco e mostra que
cada uma das linhas amarradas em torno de sua cintura, tinha uma gilete. (VILLAR,
2012, p. 1-2)
Nova filosofia da educação musical de David Elliott. A palavra “nova” aparece como
distinção de duas filosofias da educação musical que se confrontam, a de Bennett Reimer
publicada em 1970 e atualizada em 1989 que, pode-se dizer, dialoga com uma experiência
musical passiva; e a e David Elliott, com versão recente de 2003 e que enfatiza um “fazer
ativo”. Por as entender díspares, opto por não utilizar constantemente a palavra “nova” ao me
referir à filosofia da educação musical de David Elliott; e também porque a publicação
atualizada76 do autor retira a ênfase da referida palavra.
Uma filosofia da expressão e da pessoalidade. O compositor nascido no Canadá e
diretor de Educação Musical da Universidade de Nova York, David J. Elliott, publicou em
1995 livro que teve repercussão em estudos musicais – Music Matters: A new philosophy of
music education. Traduzir é sempre um exercício delicado. O título pode ser visto no Brasil
como “A Música Importa”, no sentido de ser relevante, mas a palavra em inglês dialoga com
expressão coloquial americana que torna difícil apenas traduzir. “It matters” ou “Does not
75
Importante contextualizar que a turma, o coletivo de alunos, democraticamente, escolheu o teatro musical de
forma legítima; a decisão, conforme escreve Villar, não foi querida por uma das alunas que expressou seu
sentimento por meio de uma performance. Considero o caso interessante de ser analisado por ambos os lados,
distintas perspectivas, sem aferir algum tipo de demérito ou juízo de valores aos acontecimentos.
76
Music matters: a philosophy of music education / David J. Elliott and Marissa Silverman. Second edition,
2003.
81
matter” está presente no uso cotidiano nos Estados Unidos da América do Norte, com relação
ao que no Brasil utilizamos para dizer “É importante” ou “Não importa”, quando nos
reportamos aos assuntos que queremos comunicar. “Matters” também pode ser traduzido por
matérias, assuntos, casos, o que poderia sugerir título próximo a “Questões Musicais”. Leio a
ambiguidade como proposital, são assuntos musicais que importam à sociedade. No entanto,
prefiro me referir ao livro em seu nome original e em inglês. Em 2015, com Marissa
Silverman, Elliott publicou a segunda edição dessa obra, ampliada e atualizada, à qual o autor
se refere como MM2, Music Matters 2.
David Elliott passa pela contestada questão de “o que é música”? Contestada porque
as definições atuais a respeito de música, presentes no senso comum ou nos dicionários ultra
sintéticos no Ocidente, criam lacunas com ações experimentais tais como as obras “4’33””, de
John Cage, e, também exemplo de Elliott, a peça “It’s Gonna Rain”, de Steve Reich.
Entendendo o senso comum como discursos facilmente encontrados nas sociedades,
publicados ou não publicados, e que materializam uma ideia ou conotação sobre os mais
diversos assuntos, ele não consegue responder com clareza (a fatídica questão) a respeito de
diferentes manifestações musicais. Podemos inserir neste âmbito o hip hop, o rap, o funk, as
canções étnicas indígenas, a música experimental etc. Para buscar um conceito de música,
Elliott parte da etimologia: na antiga Grécia “mousikê” se referia a “uma ampla gama de
atividades artísticas e teóricas, incluindo canto, dança, poesia, contação de histórias, mitologia
e melodia acompanhada de gestos e poses realizadas por atores amadores”77 (ELLIOTT,
2015, p. 58). Ainda hoje, “música” pode se referir a mais de uma ação ou enfoque, mesmo
que esteja fortemente conectada às peças musicais, à composição ou aos elementos da música
(harmonia, melodia, ritmo). De forma que podemos fazer um paralelo com o que defendeu78
Hans-Thies Lehmann sobre a tradução para o português do título de seu livro Teatro Pós-
Dramático, segundo o autor alemão o correto seria a aplicação no plural, “Teatros Pós-
Dramáticos”, pois não existe um modelo ou uma tendência e sim múltiplas vertentes e grupos
que fazem, da sua forma, seu teatro pós-dramático, sua atualização. Assim, corroborando com
o que escreve o compositor canadense:
77
Tradução minha. Original: A wide range of artistic and theoretical activities, including singing, dancing,
poetry, storytelling, mythology, and melody accompanied by gestures and poses performed by amateur actors.
78
Conferência no Instituto Goethe em Porto Alegre (RS) pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 12 de agosto de 2010.
82
Nós deveríamos não apenas substituir a palavra música com "músicas", mas também
entender que peças e estilos de música fazem sentido apenas em relação aos seus
contextos culturais. Assim, e fundamentalmente, música é um empenho social e
cultural, não apenas sons e silêncios, ou "elementos" musicais, ou peças de
música.79 (ELLIOTT, 2015, p. 73).
Seria descuidoso atribuir uma definição de música. Quando pensamos na relação entre
a área teatral e a área musical, as fronteiras ficam mais borradas. É possível ler o
acontecimento cênico de forma rítmica, sem atrelar a obra ao conceito musical de ritmo. Tal
pensamento está vinculado à relação de polifonia entre as áreas como aponta Ernani Maletta –
o espetáculo de teatro é o todo; é teatro, conquanto tenha (se considere/seja/queira/dialogue
com/contraponha/amplie/aborde) música. No enfoque que visa aprendizado ou
aprofundamento dos atores nessas questões, olhar para a reverberação na sociedade sobre o
fazer musical nos desvela algumas lacunas a serem preenchidas e/ou ultrapassadas.
Em publicação sobre a educação musical para o novo milênio, David Elliott afirma
que muitos pais, estudantes, professores de música e professores de educação musical
acreditam que a “compreensão musical” é equivalente a uma ou mais das seguintes
circunstâncias: “saber solfejo; conhecer fatos e conceitos sobre a história e a teoria da música;
e/ou saber ‘tatear’ uma partitura com um instrumento ou com a voz”80 (ELLIOTT, 2009, p.
124). Discorre o filósofo que esse quadro não valoriza a expressão, a expressividade, no que
tange a dizer que a música é passível de interpretações de sentimentos. Por ser aplicação
subjetiva, é um lugar ainda mais complicado de ser dialogado, foge às nossas certezas e
concretudes. Essa questão vai além (muito além), mas está conectada, à afirmação rasa de que
o modo maior transmite alegria e o modo menor tristeza – rasa porque depende do ouvinte, do
contexto em que ele está inserido:
79
Tradução minha. Original: We should not only replace the word music with “musics” but also understand that
pieces and styles of music make sense only in relation to their cultural contexts. So, and fundamentally, music is
a social and cultural endeavor, not just sounds and silences, or musical “elements”, or pieces of music.
80
Tradução minha. Original: Saber solfeo; conocer hechos y conceptos sobre la historia y la teoría de la
música; y/o saber “tantear” una partitura con un instrumento o con la voz.
81
Idem. Original: Nuestra capacidad de oír una expresión musical, por ejemplo, de la melancolía en una línea
cromática suavemente descendente puede depender de que oigamos esos sonidos como “tonos de un sistema”.
La expresividad de un patrón musical, por consiguiente, se puede entender como una “figura” (patrón
expresivo) musical frente a una “base” musical (por ej., el sistema tonal occidental, o el sistema de las ragas
83
del Norte de India). Para oír la figura musical expresiva, el oyente en primer lugar debe estar familiarizado con
la base musical en la que se asienta y en relación con la cual se desvela la figura.
82
Tradução minha. Original: Aconsejo que los profesores utilicen “palabras emotivas” y analogías emocionales
para centrar la atención de los alumnos en las características expresivas de los patrones musicales. Del mismo
modo que la terminología médica formal no puede expresar todo lo que el paciente quisiera saber sobre su
estado de salud, un enfoque estrictamente formal del análisis musical es insuficiente para abarcar todas las
dimensiones de una obra musical, especialmente la dimensión expresiva.
83
Tradução para “community music” – termo muito citado em MM2, que entendo ser atribuição presente nos
Estados Unidos da América do Norte atrelado ao ensino e à prática de música em comunidades, espaços de
musicalização na comunidade, no Brasil pode-se comparar à projetos de arte educação em centros comunitários,
igrejas, escolas de samba, espaços tradicionalistas como os CTGs – Centro de Tradições Gaúchas; música na
comunidade também é referência para representar a música de determinado lugar/gênero.
84
84
Tradução minha. Original: Respect for the people involved in making, listening to, and learning music in
specific situations, then music, music education, and CM [community music] are valuable sources of human
insight.
85
Tradução minha. Original: Es evidente que el mundo que llamamos “música” está experimentando un rápido
cambio tecnológico, expresivo y conceptual. El mundo es un lugar distinto al de hace pocas generaciones.
86
Idem. Original: Sostengo que si los profesores y los estudiantes de música recuerdan siempre que no existe
una forma única de escuchar toda la música de cualquier parte, y si el mapa anterior de las obras musicales se
utiliza de guía flexible, es posible que los estudiantes experimenten en mayor medida los significados y el deleite
que los actos de componer y de escuchar música aportan.
85
87
Tradução minha. Original: I used only my method, which is a compilation of my musical life and teaching.
88
Idem. Original: Si trattava del cosiddetto “temperamento equabile”, nel quale tutti gli intervalli a eccezione
dell’ottava si discostano un poco dagli intervalli naturali, mantenendo però tra i loro suoni una distanza che è
indipendente dalla tonalità nella quale ci si trova. Solo ora si poté far uso di tutti le tonalità e passare dall’una
a un’altra qualsiasi.
86
mérito incomparavelmente maior de ter escrito música realmente ‘viva’ nos 24 tons [12
maiores e 12 menores] cabe a Bach” 89 (Idem, p. 18). Quais as vantagens e as desvantagens
que nos traz o teclado temperado? Até o final do século XIX pouco se revogou esse reinado.
Observam-se tendências de problematização do sistema tonal em alguns compositores e
teóricos do século posterior.
Uma das desvantagens do sistema tonal está atrelada à relação de poder do acorde
tônico, soberano, que inicia e termina uma composição, que vai se distanciando até chegar à
dominante, conflito, para resolver novamente na tônica. Muitos questionamentos partem
dessa base, por que fazer música dessa maneira? É necessário resolver tudo dessa forma?
Todas as possibilidades da música se encerram em 12 tons maiores e 12 tons menores? Existe
certo e errado na música?
Certamente não existem regras absolutas e imutáveis na criação musical, outros
pensamentos e formas de fazer música – oriental, modal, micro-tonal, atonal – sempre nos
trouxeram contraponto com a música tonal. Acima dessas questões está a importância da
música em seu contexto cultural específico. A questão que parece incisiva, sobre a
problematização da teoria musical ocidental na contemporaneidade, está relacionada a nossa
sociedade – em discurso que invariavelmente categoriza, segrega, rotula, ou seja, determina o
que é “bom”, “premiável”, consumível. Nesse mote encontram-se cruzamentos com a
filosofia da nova música de Theodor Adorno.
Um dos papéis em que acredito com que deva se preocupar o educador musical, é se
apropriar da teoria musical tradicional, apenas não fechando as portas para o inusitado ou
diferente, ampliando produção sonora em relação com o intérprete, conformem abordaram os
pedagogos musicais do século XX.
Notemos o educador austríaco Émile Jaques-Dalcroze:
87
sons a partir de suas possibilidades corporais. Podemos fazer alusão aos grupos de percussão
corporal como forma de se contaminar.
Em estudo sobre conexões entre rítmica e encenação, na Universidade de São Paulo,
Carlos Alberto Silva observa que “ao propor que ‘música é movimento, e movimento é
música’, Dalcroze atribui uma dimensão visual para o som e uma sonora para o movimento, o
que salienta as potencialidades cênicas de ambos, ou melhor, da resultante de sua integração”
(SILVA, 2008, p. 124).
As aplicações de Jaques-Dalcroze são contemporâneas. Música e corpo entrelaçados.
Existem diversos estudos sobre o pedagogo suíço, na música, dança e teatro, que apontam
para grande aplicação de seus princípios, muito pelo vínculo de sua metodologia com
questões corpóreas. Em tese defendida na Universidade de Valência (Espanha), Maria Isabel
Megías Cuenca (2009) salienta importante ênfase a respeito do método Dalcroze:
Temos que enfatizar que seu método não aparece publicado, talvez porque não
existe como tal; apenas sugestões são feitas, porque para conseguir conhecê-lo
profundamente é preciso experimentá-lo, guiado por uma pessoa experiente em
euritmia91. (CUENCA, 2009, p. 366)
91
Tradução minha. Original: Tenemos que subrayar que su método no aparece publicado, quizá porque no
existe como tal; sólo se hacen sugerencias, porque para lograr conocerlo en profundidad, hay que
experimentarlo, guiado por una persona conocedora de la euritmia.
88
Nossa cultura dialoga de forma inadequada com a arte musical quando permeia no
imaginário que música é para poucos. Schafer colabora com a quebra de paradigmas, na busca
por novas possibilidades. Se questiono o som concreto a respeito do conceito de música, caem
por terra padrões de distanciamento: todos nós criamos/somos música.
A doutora em antropologia Marisa Trench de Oliveira Fonterrada (2012) destaca
alguns eixos de trabalho do educador canadense. O primeiro eixo está conectado à paisagem
sonora; o segundo eixo é a confluência das artes; o terceiro eixo é a relação entre a arte e o
sagrado.
Em seu livro de nome Educação Sonora, Schafer fornece 100 (cem) exercícios para
ampliar a percepção auditiva, de escuta e criação de sons. “A escuta se dá em um processo
contínuo, queiramos ou não, mas o fato de termos ouvidos não garante sua competência. De
fato, muitos professores me contaram que detectam crescente deficiência nas habilidades
auditivas de seus alunos” (SCHAFER, 2009, p. 13). Para o educador canadense, a educação
dos sentidos é salutar, e a escuta, primordial.
Não temos pálpebras auditivas (Idem, p. 15). A poluição sonora é elemento a se
trabalhar: no palco há grande interferência devido à era tecnológica. Em apresentação
artística, seja em sala ou espaço não tradicional, os aparelhos celulares – smartphones –
89
muitas vezes interferem por mau uso de seus proprietários – que parecem não estar
conscientes de sua contribuição para um ambiente saudável. Há poucos anos o toque
indesejado do celular constrangia o público, principalmente quando imersos em apresentação
cênica com viés intimista. Hoje, os diversos sons derivados de aplicativos e redes sociais
tornam difícil o “contornar” do artista que lida com essa sonoridade em limiar com uma
espécie de confronto quando ele está desenvolvendo obra ficcional. O enfoque no presente
estudo é o som, mas a luz da tela dos aparelhos celulares e tablets também interferem,
podendo incomodar o espectador ao lado (além do artista). Podemos estar incapazes de
transitar fluentemente no terreno da liberdade e da gentileza. Educação sonora não é só o
estudo do som, mas de minha interação no ambiente. Todos somos atuantes.
Murray Schafer “chama a atenção para a necessidade de equilíbrio entre homem e
ambiente sonoro, comprometido a partir da Revolução Industrial, e clama pela urgência na
recuperação da qualidade auditiva das comunidades” (FONTERRADA, 2004, p. 17). Aponta
Marisa Trench de Oliveira Fonterrada:
Schafer não é contrário à nossa época como se um mundo passado fosse ideal por
maior proximidade do homem com a natureza, mas enfatiza a necessidade de aproximação do
ser humano contemporâneo com elementos naturais. Fonterrada observa que o educador
musical canadense percebe um lo-fi (termo utilizado pelo compositor) na paisagem urbana,
“um ambiente lo-fi é aquele em que os sinais se amontoam, tendo como resultado o
mascaramento ou a falta de clareza” (Idem, p. 45); em contraposição hi-fi significa
uma razão sinal-ruído favorável. O uso mais geral do que ocorre em eletroacústica.
Aplicado aos estudos da paisagem sonora, um ambiente hi-fi é aquele onde os sons
podem ser ouvidos claramente, sem estarem amontoados ou mascarados.
(SCHAFER, 2001 apud FONTERRADA, 2004, p. 45)
90
A abertura para o novo desde o início revela ser uma abertura para o múltiplo. De
fato, não só existem muitos modos de intervir na crise do tonalismo e efetuar sua
superação [...] mas a própria superação deve ser entendida e integrada em um
processo mais amplo de aquisição das experiências musicais extra-europeias, que
dizer, através de uma outra música que, portanto, pode ser considerada também
música nova. Como assinalamos há pouco, a ideia da superioridade da música
europeia, enquanto traz como consequência um puro e simples desinteresse por
91
outro tipo de novidade musical, implica uma espécie de distorção finalista, como se
a linguagem musical europeia estivesse também situada no nível final de um
desenvolvimento a que também as outras culturas não podiam deixar de tender com
maior ou menor sucesso. Somente o efetivo afastamento de uma ideia desse tipo
pode permitir uma abordagem capaz de preservar a autonomia de outra música
daquelas práticas assimiladoras que aniquilam a sua alteridade e que, no interior
desse tipo de finalismo, podiam ser consideradas aceitáveis e sem problemas.
(PIANA, 2001, p. 11-2)
92
Tradução minha. Original: Las obras musicales constituyen y están constituidas por conocimientos, creencias
y valores específicamente culturales.
92
cidades de Mato Grosso do Sul e de outros estados93; 2) exceto raros alunos indígenas
matriculados nos cursos da Faculdade de Comunicação, Artes e Letras (FACALE/UFGD), os
alunos oriundos do município douradense (e região) possuem pouco (ou nenhum)
conhecimento sobre a cultura indígena presente no estado; 3) se pegarmos as músicas
presentes na mídia (no recorte rádio e televisão) em Dourados, não teremos acesso às músicas
indígenas, ou seja, as músicas fomentadas no município e região são similares àquelas
comuns aos demais centros urbanos brasileiros. É mais fácil musicalmente a cidade de
Dourados ser associada a um gênero bastante presente na Região Centro-Oeste do Brasil, o
“sertanejo universitário” – que está fortemente inserido nos grupos de comunicação na
atualidade em rede nacional, do que às influências indígenas que recebe. Nesse sentido, é
possível perceber um comportamento padrão – na relação dos cidadãos (habitantes da cidade)
com a música ou com o acesso/busca a diferentes tipos/gêneros/modos de música – nas
sociedades urbanas brasileiras, motivo pelo qual afiro que o corpus94 musical de um aluno-
artista douradense é muito similar ao de um aluno-artista porto-alegrense, por exemplo. A
partir dessa observação, na preparação musical para atores brasileiros em centros urbanos,
começar estudos por observações em músicas tonais na iniciação musical pode ser mais
assertivo como ponto de partida, porque lida com elementos musicais inseridos na sociedade
tratados como “naturais” ou “comuns”. Todavia, a utilização de outros elementos sonoros-
musicais culturais e/ou influências locais, no caso de Mato Grosso do Sul (e em muitos
estados brasileiros) as músicas indígenas, é força que deve ser dialogada na ampliação da
percepção auditiva e repertório do artista, sobre a qual discorro no decorrer deste subcapítulo.
A influência indígena sempre está presente, mas parto do pressuposto de que o estudante de
música precisa de um caminho para esse entendimento: um caminho que dialoga com a
quebra ou ampliação de seus conceitos padrões.
Se levarmos em consideração que somos um povo colonizado inicialmente por
portugueses, em terras que pertenciam a diversas tribos, e somos filhos dessas terras: no
Brasil, não somos todos indígenas? A resposta que pode ter viés filosófico tem potencial para
gerar cisões: possivelmente na extremidade de um lado pessoas que buscam afirmação a partir
da inclusão e/ou visita ao passado e às suas raízes, e de outro lado a negação da cultura
indígena por pessoas que imaginam ser um retrocesso tal meio de vida. Na arte, a primeira
93
Destaque para o interior paulista, em número crescente para alunos de outras regiões brasileiras devido ao
programa Sisu do Governo Federal – Sistema de Seleção Unificada. Segundo site do Ministério da Educação do
Brasil, o Sisu é um sistema informatizado no qual instituições públicas de ensino superior oferecem vagas para
candidatos participantes do Enem – Exame Nacional do Ensino Médio. Pelo Sisu, um aluno pode escolher – de
acordo com seu rendimento no referido exame – entre vários cursos e universidades pelo Brasil.
94
Palavra aqui utilizada como escopo, entorno, repertório.
93
opção é, de meu ponto de vista/escuta, desejável para que o artista cênico dialogue com o
espaço em que está inserido, mas sem nos pautarmos apenas por ideais é possível apontar
acontecimentos que deflagram discursos na sociedade que são mais bem categorizados como
“factuais” em comparação a serem “positivos” ou “negativos”.
Para pensar na música indígena, creio que devamos pensar na relação de nossa
sociedade com a cultura indígena. Para diferenciação, utilizo “sociedade urbana” ou “centro
urbano” para me referir às pessoas que vivem nas áreas urbanas dos municípios brasileiros e
compartilham de uma cultura similar no sentido de possuírem a mesma língua, a mesma
moeda, o mesmo sistema capitalista, as mesmas influências dos grupos de comunicação,
dentre outras similaridades. Na busca do “factual”, é fato que, no Brasil, o povo indígena é
discriminado pela sociedade urbana, no sentido em que
Como os outros povos indígenas, os Kaiowa têm uma organização social mais
igualitária do que a sociedade brasileira, pois os privilégios no grupo não se
baseiam, via de regra, no poder econômico ou político. Contudo, também entre eles,
o homem prevalece sobre a mulher, a pessoa adulta e a idosa sobre a criança e o
jovem, os parentes sobre os estranhos, os aliados sobre os outros, os que sabem e
são expertos sobre os que não sabem. (Idem, ibidem)
94
Graciela Chamorro destaca a religiosidade presente nesses povos e a influência que ela
possui em suas ações cotidianas:
Para os Kaiowa, a música, ou o canto, está conectada a rituais diversos, muitos deles
com viés religioso. Nesses o canto, a dança e a reza dialogam em ações – nas quais o conjunto
é a música: as melodias vocais, os sons dos instrumentos musicais dos indígenas, a
movimentação, a respiração, o arrastar ou pisar os pés na terra. Ao acompanhar o projeto de
extensão “Cantos e Danças Guarani e Kaiowa”, coordenado pela professora Graciela
Chamorro em conjunto/colaboração com as artistas Carla Ávila (professora do Curso de Artes
Cênicas da UFGD) e Arami Arguello (aluna egressa do referido curso), pude notar em campo
– nos acampamentos dos indígenas – a sonoridade das músicas e o diálogo do som com o
espaço. Presenciei, também, algumas apresentações (promovidas por esse projeto de
extensão) dos indígenas em espaços urbanos: edifícios teatrais ou prédios da universidade. Há
diferença: a experiência no campo proporciona ao ouvinte maior interação com as músicas do
que apreciação pública em apresentação na cidade; talvez porque nos acampamentos os
indígenas estejam em seu espaço e tenham uma relação forte com seu ambiente, conheçam e
utilizem a terra também como elemento musical. Outro fator que gera minha percepção
diferenciada está no acontecimento: no campo você atua, o espectador é som, ou, talvez, não
há como ser espectador passivo. Literalmente, na experiência que tive, pois os indígenas
puxam o ouvinte para os cantos e danças, e quando você percebe está cantando e dançando –
e também é a música.
Os instrumentos musicais dos Kaiowa como a maraka95 – que percute som agudo
como um chocalho, e o taquarusu96 – que percute (ao golpe de um grosso bambu na terra) um
som grave como o bumbo ou o surdo, marcam o pulso em compassos que não podem ser
“catalogados” na partitura musical de tradição europeia, pois em cada música os cantos ou
versos se repetem sem números determinados, sem marcação determinada, a condução –
geralmente de uma pessoa idosa/experiente/considerada como referência – é quem determina
o início e o término de acordo com o acontecimento. Para os indígenas, os cantos são
95
“Pequena cabaça encabada em uma varinha curta com sementes duras no interior” (2015, p. 142).
96
“Feito de uma haste do bambú giganteum que produz um som abafado de tambor” (Idem, ibidem).
95
passados de uma geração experiente para uma geração mais jovem – e assim por conseguinte,
o que leva a uma preocupação tanto desses povos como de estudiosos em tais questões:
“Muitos grupos indígenas desaparecem em tempos de uma sociedade monocultural e
autoritária” (CHAMORRO, 2015, p. 238). O diálogo entre culturas é fator interessante em
qualquer sociedade, postura na qual acredito, mas quando uma delas força (diretamente ou
indiretamente) a outra a seus padrões: temos um caso problemático ou a atentar. Será isso o
que acontece com grupos musicais indígenas que expressam músicas em formato das
“sociedades urbanas ocidentais”? Como exemplo os Bro MC’s da Reserva Indígena
Jaguapiru, em Dourados/MS, que se denominam pioneiros no Rap Guarani Kaiowa e
circulam pelo Brasil em festivais e apresentações defendendo seus ideais. De um lado há a
beleza da diversidade em diálogos culturais múltiplos, o rap utilizado como denúncia em
versos rítmicos mesclando a língua portuguesa e o guarani kaiowa – é ação inovadora,
inspiradora e ótima para novos repertórios. Mas de outro lado pode-se enxergar, talvez em um
pequeno grau, que não tenha tanta importância nesse contexto devido à beleza da ação: 1) a
possível perda de elementos tradicionais da música Kaiowa e da postura indígena – por
exemplo a escolha do nome do grupo; 2) a receptividade das universidades e dos festivais de
música pelo Brasil para os Bro MC’s pode ser derivada do gênero mais usual a eles, como o
rap, ou seja, não tenho certeza que o mesmo grupo chamaria atenção se fizesse músicas
tradicionais Kaiowa.
A influência ou o potencial de troca com a música indígena em Dourados está na
proximidade, ou seja, o aluno-ator pode, se desejar, se aproximar da cultura indígena Kaiowa
com maior facilidade do que habitantes de outros estados brasileiros, já que está presente
“fisicamente” na região. Todavia, afirmando análise factual, há elementos entre culturas que
reforçam a construção da diferença, que levam os habitantes da sociedade urbana a se
distanciar da música do Outro – diferente de si. Tal “construção da diferença” começa na
rotulação, no “não pertencimento” a um grupo ou a uma cultura. Esta pode ser observada no
trato social. Por exemplo, os habitantes das cidades chamam os indígenas de índio para
reforçar a diferença entre culturas; e os indígenas chamam de karai (não indígena) o “homem
branco”; em analogia rasa na observação aos termos, seria como a palavra gói utilizada pelos
judeus para se referir ao indivíduo não judeu, a afirmação de não pertencimento a algo,
presente na palavra que se refere a alguém. Existe uma barreira entre os não indígenas e os
indígenas, principalmente porque as cidades ou sociedades urbanas se afirmam, também, na
negação de outras culturas:
96
A música indígena na sociedade urbana brasileira também é negada por não ser
entendida, ou ser tachada de estranha por ser diferente. Certamente esse aspecto não é comum
a todos na sociedade; existem aberturas de pessoas que buscam o diálogo entre culturas.
Compreendo essa busca como necessária ao artista, e talvez uma das potencialidades de
trabalho para o ator que busca formação na universidade douradense esteja na possibilidade
de melhor conhecer a cultura Kaiowa, e, por isso, na presente tese que visa preparação
musical para atores utilizaremos a música indígena como uma das referências, mas apenas em
um segundo momento quando o aluno quiser/puder observar que o mundo não é tonal.
Acredito que a música tonal, transformada, adaptada, seja a base desse estudante oriundo dos
centros urbanos. Dessa forma, entendo crucial partir de sua base para, conscientemente,
ampliar seu repertório.
Atitudes que (em qualquer lugar do Brasil) podem se inspirar nos indígenas em
relação à música residem no ato de não ser passivo, buscar a relação com o todo, enfatizar o
corpo. É possível agir dessa maneira em qualquer produção sonora/musical, tonal, modal,
atonal, tribal ou experimental, sabendo que
Os povos indígenas não são melhores nem piores do que os não indígenas. São
humanos e, em certas situações, podem ser tão bons ou tão ruins como nós outros. A
diferença entre eles e nós é de perspectiva ou cosmológica, no sentido de eles
interpretarem o mundo presente e “real” a partir dos primórdios ou de referências
míticas e no sentido de eles não estarem de fato – ou apenas marginalmente –
inseridos na sociedade de mercado, no sistema capitalista. Em geral, seus sistemas
sociais desconhecem a centralização política e se orientam por economias de
reciprocidade, o que levou muitos estudiosos a denominar, equivocadamente, as
sociedades indígenas de sociedades primitivas, como, por exemplo, nas diversas
vertentes das teorias evolucionistas e positivistas. (CHAMORRO, 2015, p. 233)
O entorno que constitui cada sociedade é importante para o pensamento musical das
mesmas: intrínseco. Estudar música também é olhar para a sociedade – seja a música dos
indígenas ou os diversos tipos de música tonal de tradição europeia presente em nosso dia-a-
dia. Na presente preparação musical para atores a influência indígena está 1) como presença
na experimentação rítmica e entrega corporal ao fazer musical – esta postura a ser buscada
pode ser trabalhada com qualquer tipo de ser/fazer música; 2) como conteúdo presente no
segundo módulo, o som do ator [no espaço], ao tratar de reverberação e
desconstrução/descoberta de padrões e estruturas musicais; 3) no diálogo com o atonalismo,
97
mas não como negação e sim na análise de musicalidades que não encontram seu chão no
corpus musical estabelecido pelas sociedades ocidentais urbanas.
Se em um tipo de estudo musical para atores brasileiros o universo tonal é ponto de
partida, a influência indígena pode ser ponto indispensável de passagem, como tantos outros
pontos em que o ator pode parar e estabelecer/conhecer novos rumos, a partir de motivações
próprias, e ter muitos “fins” possíveis para transitar com segurança e/ou consistência no
campo híbrido entre a música e o teatro.
98
99
3 PRINCÍPIOS NORTEADORES
O poeta Rubem Alves escreveu que tudo começa pelo fim, como um vislumbre de
quem deseja fazer ou ser algo. É preciso imaginar. Cita que caso uma cozinheira não imagine
o prato a cozinhar, não se encontrará: “Se ela não vê o fim, o que ela vê são as presenças que
enchem sua cozinha: panelas, facas, colheres, [...] Aí ela se põe a misturar coisas, a fazer
coisas, sem saber para quê” (ALVES, 2011, p. 162-3). Acrescenta que tal exemplo pode ser
comparado a uma professora sem saber o que fazer com seus alunos. Ao parar para tentar
imaginar um fim, um porquê, um objetivo para fortalecer disciplinas de música direcionadas à
cena em cursos teatrais (para todos os envolvidos, professor, alunos, artistas), encontro
novamente a poesia de Alves:
97
SCHAFER, R. Murray. Educação sonora. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2009.
98
Grifo meu.
99
Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais.
100
Observei que a estrutura da disciplina podia ser atualizada, pensando no perfil dos
alunos ingressos e na busca de alinhar com pesquisas contemporâneas. Considero-a bem
colocada, mas muito ampla. Uma nova redação foi possível na atualização do projeto político
e pedagógico em 2015, e com isso a oportunidade de o corpo docente dialogar e atualizar
diversas disciplinas de um curso ainda em construção, ainda em busca de identidade e
querendo fortalecer suas raízes. De acordo com o desenvolvimento da presente pesquisa,
alteramos o núcleo de pensamento das disciplinas de “Música e Cena” para ênfase no ator, na
interlocução do artista com a musicalidade da obra cênica. Com a inserção de mais um
módulo, a oferta do terceiro semestre com caráter eletivo, foi criado mote para “Música e
Cena I” como o som no ator, “Música e Cena II” o som do ator [no espaço], “Música e Cena
III” o som para o ator [música e tecnologia].
Os princípios pedagógicos foram descobertos e trabalhados nas turmas de “Música e
Cena” em três anos (2013-2015), sendo que o primeiro ano teve como base a observação, o
segundo ano a experimentação, e no terceiro ano a experimentação e as consolidações – que
não devem ser pensadas ou materializadas de forma rígida, pois há sempre de levar em
consideração a pessoalidade dos alunos em cada turma, como aborda David Elliott (2015),
assim adaptando ações para que a turma tenha a possibilidade de melhor reverberação dos
conteúdos de acordo com os participantes envolvidos.
100
Utilizo a palavra módulo como proposta de ensino de uma disciplina, que pode ser distribuído em um
semestre – como é o caso da UFGD – ou ser aplicado de forma intensiva.
101
O padeiro.
O que ele quer?
Ensinar a feitura de um bolo que seja saudável e delicioso.
A quem?
A seu filho adolescente que não pode ingerir açúcar.
Quando e onde?
No seu período de férias, em sua casa.
Quais ingredientes vai usar?
Ovos, farinha de trigo, fermento, leite desnatado e laranjas.
Como vai fazer?
Vai mostrar como usar a batedeira, descansar a massa e assar no forno.
102
101
Tradução e grifo meu. Self Growth + Musical Enjoyment.
103
Importa saber se a turma tem barreiras que precisam ser ultrapassadas, importa saber se há
abertura de cada indivíduo para crescer em sua própria trajetória e interlocução. Talvez fosse
adequado completar a pergunta do questionário: “você está disposto a experimentar sons e
fazer música”?
Se pensarmos tal espectro em relação a uma possível pedagogia de investigação
musical, também podemos encontrar no educador brasileiro Paulo Freire (1921-1997)
subsídios para os princípios educativos, principalmente no que concerne a um envolvimento
mais livre e autônomo por parte do aluno. “Ensinar e aprender têm que ver com o esforço
metodicamente crítico do professor de desvelar a compreensão de algo e com o empenho
igualmente crítico do aluno de ir entrando como sujeito em aprendizagem, no processo de
desvelamento que o professor ou professora deve deflagrar” (FREIRE, 2002, p. 45), aponta o
educador informando que educar exige saber escutar. Por isso, acredito ser possível iniciar
entendimento a respeito da turma obtendo o questionário como ponto de partida, desvelar
inseguranças a partir de perguntas subjetivas tais “como você se considera cantando”? A esta
questão no grupo das turmas de “Música e Cena I”, do ano de 2013, grupo 1A102, 78,6%
acreditava (no primeiro dia de aula) ter desempenho ruim ou razoável, em contraponto com
21,4% dos alunos-atores que assinalaram resposta positiva. Certa feita, ouvi a afirmação de
que os brasileiros possuem facilidades rítmicas nas questões musicais. Apesar de achar que tal
afirmativa ainda esteja no campo da hipótese, foi possível observar pelos questionários que os
artistas cênicos creem ter mais facilidades com o ritmo do que com o canto. Ainda na
subjetividade do “considerar-se”, na resposta de mais de duzentos discentes no Brasil que
participaram do levantamento, metade dos entrevistados, ou seja, um a cada dois alunos-
atores acreditam ter bom desempenho rítmico em desenvolvimento/interlocução musical.
Logo, será assertivo na estruturação dos princípios pedagógicos que visam fluidez no diálogo
entre música e teatro, na preparação do módulo de ensino inicial, dar enfoque ao ritmo como
potencial conector da turma.
Pontuo dois princípios norteadores base conectados à ação musical para as turmas de
alunos-atores em aprendizado. A partir dos educadores musicais estudados para esta tese
como Émile Jaques-Dalcroze (1865-1950), Carl Orff (1895-1982), Zoltán Kodály (1882-
102
Às turmas de “Música e Cena” que ministrei entre 2013 e 2015 atribuo denominação para referência, como
grupos, sendo o valor numérico de acordo com a graduação do módulo (1- Música e Cena I; 2- Música e Cena
II; 3- Música e Cena III) e as letras de acordo com o ano (A- 2013; B- 2014; C-2015): Música e Cena I, duas
turmas 2013/1 e uma turma 2013/2 – Grupo 1A; Música e Cena I, turma 2014/1 – Grupo 1B; Música e Cena I,
duas turmas em 2015/2 – Grupo 1C; Música e Cena II, turma 2013/2 – Grupo 2A; Música e Cena II, turma
2015/1 – Grupo 2C; Música e Cena III, turma 2015/1 – Grupo 3C.
104
1967), Edgar Willems (1890-1978), Laura Bassi (1883-1950), John Paynter (1931-2010),
Raymond Murray Schafer (1933-) e Jean-Jacques Lemêtre (1952-), se obtém denominador
comum que privilegia (1) o fazer musical enfatizando a experimentação e/ou as ações
corporais, e (2) aguçar a escuta para ampliar a sensibilidade de percepção auditiva; o
conhecimento (conteúdo) está conectado às experiências. Os citados princípios podem se
mesclar a outros princípios. Importante dizer, plural. Para o mesmo fim podemos ter vários
meios, distintos ou sobrepostos. Um princípio citado anteriormente oriundo de David Elliott,
ter divertimento musical para o desenvolvimento pessoal, pode (e deve) estar atrelado a todos
os outros que aqui serão expostos.
Insiro os princípios pedagógicos norteadores das disciplinas de “Música e Cena” em
três etapas, dentro de sugestões de conteúdos para conclusão de cada módulo. Chego aos
seguintes conteúdos, hoje, através de vivência pessoal nas salas de aula e nas salas de ensaio,
mesclada com contínua pesquisa e busca de referências, as quais figuram em Raymond
Murray Schafer e Jean-Jacques Lemêtre um modelo para estudos musicais-teatrais. Enfatizo o
hoje, pois as necessidades variam de acordo com o tempo, por isso a proposta é apenas
sugestão – cabe aos participantes adaptar planejamentos à sua realidade.
São as três etapas e propostas de conteúdos:
105
106
manual, e afirma que “domínio seguro e total destes princípios básicos [da teoria da música] é
indispensável para todo músico, qualquer que seja sua especialidade” (MED, 1986, p. 11),
ainda indica: “para o uso escolar deste livro, recomendamos ao professor criar os testes
correspondentes a cada aula e aplicá-los rigorosamente e regularmente” (Idem, ibidem). Na
sequência, o livro começa com título “1a aula”, com enfoque na notação musical e início nas
notas: “existem sete notas: dó, ré, mi, fá, sol, lá, si” (Idem, p. 13). Imagino que hoje seja
inconcebível começar uma aula de música dessa forma, ou com a rigidez que sugere o autor.
Talvez David Elliott se refira a ações similares quando aponta que “esta abordagem
pseudocientífica [privilegiar a compreensão científica sobre outras formas de conhecimento] e
de larga tradição das obras musicais também resulta em privilegiar a música como ‘bela arte’
europeia Ocidental no currículo escolar da música”103 (ELLIOTT, 2009, p. 126).
Na atualização à última edição de Teoria da música, noto presente a inserção das
características da música e do som, e o que podemos chamar de uma certa “abertura” a um
pensamento contemporâneo, deixando mais claro ao aluno que o enfoque do autor é apenas
um recorte/formato do fazer (ser) música. Na indicação das notas musicais, por exemplo, foi
alterada redação introdutória para “embora sejam inúmeros os sons empregados na música”
(MED, 1996, p. 13) para depois centrar nas sete notas; o que demonstra cuidado para não ser
lido como irrefutável, possivelmente. É inegável que o livro continua com mote no sistema
musical ocidental tradicional. Logo, acredito que não precise ser referência aos alunos-atores
– embora a aplicação da teoria faça a diferença: caso seu uso esteja conectado a uma
pedagogia que valorize a ação corporal é possível que contribua como suporte às aulas de
música em cursos de artes cênicas.
Como base teórica musical, o livro dos franceses Claude Abromont e Eugène de
Montalembert, Guia de teoria musical104 (2005) contempla a época atual:
Durante muito tempo a teoria tem sido abordada como uma mera técnica abstrata,
assim sendo, na verdade, uma questão profundamente ligada à história do
pensamento musical. Isto exige, então, uma nova abordagem, um pouco mais
relativista. Neste sentido, o trabalho que realizamos é bastante radical: separamos o
que diz respeito à música mais antiga à da recente, e ainda à da muito recente. Cada
aspecto técnico encontra assim o seu próprio tom no terreno artístico que lhe
corresponde.105 (ABROMONT; MONTALEMBERT, 2005, p. 13)
103
Tradução minha. Original: Este planteamiento seudocientífico y de larga tradición de las obras musicales
también se traduce en privilegiar la música como “bella arte” europea occidental en el currículum de la música
escolar.
104
Título original em francês: Guide de la théorie de la musique.
105
Tradução minha. Original: Durante mucho tiempo la teoría ha sido abordada como una mera técnica
abstracta, siendo así que en realidad es una cuestión profundamente ligada a la historia del pensamiento
musical. Esto exigía, pues, un nuevo enfoque, un poco más relativista. En este sentido, el trabajo que hemos
realizado es bastante radical: hemos separado lo que concierne a la música más antigua de la reciente, e
107
No comparativo com a obra de Bohumil Med, encontrei um ponto que faz toda a
diferença na abordagem dos conteúdos de teoria musical – diz respeito às propriedades
(características/componentes) do som. Med cita quatro características: altura, duração,
intensidade e timbre, ao passo que Abromont e Montalembert apontam cinco, incluindo o
componente espaço, alegando que as novas tecnologias permitem aos músicos manipular a
posição de um som no espaço. Esse fator é fundamental ao pensar o som do ator, do ator no
espaço, enfatiza estar atento à sonoridade em diferentes possibilidades de reverberação de
acordo com distintos locais de apresentação teatral.
Os autores franceses escrevem acerca da interlocução da teoria da música. Destaco e
busco para aplicação dos princípios pedagógicos norteadores a prática musical, de forma que
interpretar, compor, improvisar, escutar e analisar carregam a teoria sempre presente de
maneira implícita.
O módulo “o som no ator”, com base na teoria musical, tem três momentos de ação
intitulados “a lógica do quadrado”, “música e expressão” e “a lógica do cubo e do hipercubo”,
em cada um dos momentos são levantados princípios pedagógicos específicos e
exemplificados o uso nos conteúdos.
Tal abordagem enfatiza a participação da música no teatro, estudada de maneira
interdisciplinar, que pode ser levada à cena – a interdisciplinaridade. A “vontade” de polifonia
mantém-se como um desejo futuro, querendo que os alunos-atores se apropriem de tal
maneira dos aspectos musicais que criem conexões em um fazer teatral que tenha a
musicalidade como algo inerente a ele. A abordagem teórica dos termos musicais no primeiro
módulo não focalizam necessariamente o rumo à polifonia, esta via é trabalhada apenas
quando temos a oportunidade de experimentar os jogos musicais como uma cena ou em
improvisação teatral. Pensando no destinatário, a relação forma-conteúdo está descrita nas
etapas de cada módulo, a iniciar pela “lógica do quadrado” para desvelar padrões musicais
presentes na sociedade.
108
módulo “o som no ator”, utilizo referência à forma geométrica do quadrado como mediação e
comparação às estruturas musicais presentes em parte das músicas chamadas comerciais.
Chamo de músicas comerciais as usuais na “mídia”106, facilmente encontradas à venda em
lojas de música (virtuais ou físicas), pois tais obras são frequentemente veiculadas em
diferentes locais inseridos nas cidades brasileiras: em comércios, shoppings, restaurantes,
salas de espera, elevadores, fazem parte de nossa sociedade. Embora, se saiba que muitas
lojas disponibilizam obras experimentais ou não tão difundidas, o acesso a elas pelo público, a
não ser que sejam encontradas procurando novos títulos em tais estabelecimentos/lugares, que
esteja procurando algo novo ou diferente, é dificultado pelo não conhecimento.
Por que partir de músicas, de certa forma, comuns (são comuns às pessoas)? Primeiro
porque são materiais acessíveis e, provavelmente, ouvidos pelos alunos em outras
oportunidades, mas sobretudo porque a maior parte das músicas veiculadas na mídia
brasileira possuem compasso quaternário107, ou seja, tem estrutura em quatro tempos –
este fator é uma característica considerável no fluxo de nosso universo musical. Se é fator
positivo ou negativo, acredito não caber, no momento, avaliação. A afirmativa trata de
músicas presentes no cotidiano do Brasil, mas imagino que tal situação seja similar nos países
ocidentais onde o sistema musical tonal/tradicional predomina. Não apenas músicas
comerciais ou de grande veiculação são quaternárias, por exemplo, a música erudita também
tem incontáveis composições nesse numerador de fração; é preciso atentar para não cair na
armadilha de achar que músicas com fórmula de compasso em quatro tempos são “menos
rebuscadas”. Fórmula de compasso não afere qualidade.
O ato de enfocar o quaternário é apenas para dialogar com estrutura que faz parte de
nosso imaginário, mas não só: trata-se de uma realidade praticamente corporal. Na verdade, a
estrutura é binária, porque o tempo é binário em sua subdivisão; mas pensar em uma lógica
quadrada vai além da música ser em dois ou quatro tempos, remete a um processo de
formatação padrão. O quadrado é uma “forma simples, regular” (ARNHEIM, 2005, p. 38), a
observação do professor alemão é para uma psicologia da visão criadora na arte, abordando
percepção visual, passível de analogia para estudos musicais.
Na observação às músicas binárias e quaternárias, canções que prontamente
encontraremos em vários gêneros queridos e/ou populares na sociedade brasileira, axé,
samba, rock, reggae, pagode, gospel, sertanejo, funk, rap, hip hop, música eletrônica, MPB,
106
Termo utilizado nesta pesquisa como meios de comunicação de massa, conforme aborda Vera Lúcia do
Amaral (2007).
107
Para corroborar afirmativa basta analisar as músicas mais executadas em nosso país. O ECAD, Escritório
Central de Arrecadação e Distribuição, que trabalha com direito autoral, possui ranking em seu sítio virtual.
109
enfim, uma lista sem tamanho de estilos que possuem (não na sua totalidade) peças em dois
ou quatro tempos. Não distante que, até intuitivamente sem ter conhecimento sobre fórmula
de compasso, em uma banda amadora antes de começar a música o baterista – às vezes apenas
com o som das baquetas – conta para os outros músicos: 1, 2, 3, 4. Os quatro tempos da
estrutura musical estão em nosso meio social e cultural. Também como exemplo, a contagem
presente em algumas escolas de dança antes de iniciar um movimento ou coreografia: 5, 6, 7,
8; neste caso a contagem em oito pode ser atribuída a dois compassos quaternários, a um
compasso quaternário subdividido, a dois compassos binários subdivididos, dentre outras
alternativas. Na música temos “1, 2, 3, 4”, na dança “5, 6, 7, 8”, podemos pensar nessas
construções, pelo menos em formatos iniciais ou introdutórios de um exercício, como um
quadrado.
A partir dessa lógica sugiro que, no processo de aprendizagem musical dos alunos em
curso de teatro, trabalhe-se primeiro com o fazer musical em compasso quaternário.
Pontuações importantes sobre a lógica do quadrado:
Sobre a segunda pontuação, no trabalho com artistas que estão em curso de formação
teatral, com perfil de alunos (faixa etária) que vai dos 16 anos até alunos que estão na 3a
idade, é possível quebrar pré-conceitos (os empecilhos) deixando claro que dialogar
musicalmente é mais fácil do que eles imaginam. Este é o princípio da lógica do quadrado.
Trago novamente o artista que trabalha com musicalidade no Théâtre du Soleil e sua
110
afirmação esclarecedora: “Jean-Jacques Lemêtre tem a firme convicção de que, quais que
sejam os meios, qualquer um pode se tornar um músico”108 (QUILLET, 2013, p. 11).
Na lógica do quadrado (momento inicial de todos os módulos) são trabalhados os
seguintes conteúdos teórico-musicais para os atores, que apresento aqui esquematicamente
para discutir suas características nos subcapítulos posteriores:
• Pulso e andamento
• Ritmo, células rítmicas, duração e compasso quaternário
• Pausas
• Acento e compasso simples – binário, ternário e quaternário
Princípios pedagógicos:
108
Tradução de Maico Silveira e Iara Ungarelli. Original: Jean-Jacques Lemêtre est fermement convaincu que,
quels que soient ses moyens, tout un chacun peut devenir musicien.
109
Trabalho do diretor musical Ernani Maletta durante uma oficina de musicalização que ministrou para o Grupo
Galpão, de Minas Gerais.
111
Ernani Maletta aponta que “a experiência corporal do fenômeno musical deve sempre
vir antes das tentativas de construir definições e conceituações verbalizadas e organizadas
racionalmente” (MALETTA, 2010, p. 130). Compartilho o princípio do artista mineiro, bem
como participo da forma com que o compositor Jean Jacques Lemêtre conduz o início de seus
encontros em curso para atores – a busca do pulso do grupo presente. Lemêtre convida a
turma para sentar em roda, e, com as pernas cruzadas, inicia batida da mão esquerda sobre o
joelho esquerdo. Todos repetem o ato na intenção de que o grupo encontre uníssono, que pode
ser lido como o pulso da turma naquele dia.
No primeiro encontro com alunos-atores, proponho a percussão corporal na busca do
uníssono, para conexão com a turma. Em roda e situados em pé, estimulo-os a bater os pés no
chão e a palma das mãos nos ombros, um som de cada vez, em movimento quaternário
(mesmo sem abordá-lo verbalmente por não ser o enfoque do exercício). Trata-se de um jogo
de interação que serve (1) para o grupo participar de um fazer musical como unidade e (2)
para a apresentação das pessoas participantes do módulo – apresentação de seus nomes. Por
utilizar esse grupo de movimentos (figura 5) em outras oportunidades no curso, denomino-o
movimentos rítmicos iniciais (os exercícios podem ser visualizados em arquivo de vídeo que
acompanha esta tese, feito para demonstração dos mesmos)110:
110
Como demonstração alguns atores da Cia. Última Hora de Dourados (MS) desenvolveram (2016)
selecionados exercícios a título de observação do leitor desta tese. A companhia possui em sua composição
alunos regulares e alunos egressos do Curso de Artes Cênicas da UFGD, bem como professores do curso e
artistas da comunidade local. Os artistas que colaboram com a presente pesquisa no vídeo tiveram contato com
as disciplinas de “Música e Cena” na universidade douradense.
112
Quatro movimentos que produzem quatro sons. Saindo do repouso que significa o
corpo ereto com os braços descansados ao lado, o primeiro movimento consiste em levantar o
pé direito e batê-lo no chão, o segundo movimento em levantar o pé esquerdo e batê-lo no
chão, o terceiro movimento consiste em levar a mão direita em direção ao ombro esquerdo e
golpeá-lo com a palma da mão (voltar o braço direito à posição original – repouso – antes de
iniciar próxima ação), o quarto movimento em levar a mão esquerda a golpear (com a palma
da mão) o ombro direito. O exercício trata de fazer os quatro movimentos em sequência e
repetidamente. O movimento número quatro finaliza e inicia novamente o primeiro
movimento, e assim por diante. Cada som representa um pulso – como pulsação
fundamental111 “na qual os pulsos fundamentais determinam uma sequência de unidades de
tempos e que está diretamente relacionada à ideia de andamento” (MALETTA, 2010, p. 131).
Apreendi esse exercício na época de minha graduação, em disciplinas de expressão corporal a
partir de improvisos com meus colegas de turma.
A primeira variação do exercício de movimentos rítmicos iniciais trata de fazer a
mesma sequência, mas com novo desafio: falar seu nome junto a cada som de percussão
corporal que você produz em todos os quatro movimentos. Esse desafio sugere que cada
aluno improvise uma rítmica para encaixar seu nome no movimento do som corporal.
Geralmente ocorre de os participantes colocarem a sílaba tônica de seu nome junto com o
pulso. O jogo acontece da seguinte forma: o grupo todo faz a percussão corporal, mas apenas
uma pessoa por vez fala seu nome junto com os quatro movimentos que produz, depois passa
à pessoa ao lado até completar o círculo (VD01)112.
111
Na lógica do quadrado toda vez que pulso é mencionado para exercícios musicais, está relacionado à pulsação
fundamental.
112
Os exercícios/jogos que estão na mídia que acompanha a presente tese recebem o código VD (Vídeo
Demonstração) acompanhados de numeração para exemplificá-los. Arquivo em anexo: “Vídeo-Demonstração
PMA.mp4” – o exercício VD01 encontra-se em 3’44”.
113
A segunda variação (VD02)113 é igual à ideia da primeira, falar nomes próprios com
movimentos, mas com desafio que propõe maior jogo em grupo ao trabalhar a apropriação do
nome dos colegas. A pessoa que iniciar essa variação, diz seu nome junto com o primeiro e o
segundo movimento, e o nome da pessoa ao lado no terceiro e quarto movimento que produz.
A pessoa ao lado repete fórmula, fala seu nome em dois sons e o do colega ao lado nos
últimos dois sons, e assim por diante até que todos sejam contemplados. Após círculo
completo, acresça-se desafio que estimula a escuta: o aluno diz seu nome em dois
movimentos e passa a próxima ação vocal à outra pessoa ao dizer o nome de alguém que
esteja na roda – no terceiro e quarto movimento.
Fazer o exercício inicial e propor novas formas de execução “mais lenta” ou “mais
rápida” sugere princípio de apropriação a respeito do andamento.
Toda ação que busca traduzir linguagens específicas para acessibilidade de outros
públicos que a desconhecem é elogiável. A notação musical é escrita complicada para quem a
desconhece: são representações por figuras/imagens que, caso o receptor inexperiente não
possua ninguém para lhe assessorar ou ensinar, dificilmente haverá algum entendimento da
leitura. A relação da duração e das figuras rítmicas114, por exemplo, é ponto a trabalhar pois
“não é realmente óbvio que uma figura formada por uma pequena elipse vazada, ao lado de
uma haste [...], represente uma duração de tempo correspondente ao dobro de outra porque a
elipse está preenchida” (MALETTA, 2010, p. 133). Educadores musicais em diferentes
épocas buscaram adaptar diálogo inicial na relação da duração das notas e suas subdivisões
recorrendo às imagens, como exemplo a educadora musical italiana Laura Bassi (1883-1950),
que desenvolveu seu método de ensino para crianças através de gráficos como alusão às
figuras rítmicas mais conhecidas, bem como referência imagética e monossilábica ao que ela
chama de “As cinco durações”, com as relativas cinco pausas.
114
115
Tradução minha. Original: 1) la seminima considerata come il punto di riferimento, cioè come la durata base
e simboleggiata dal passo 'normale' del babbo;
2) la croma simboleggiata dalla bambina che fa due passi mentre il babbo ne fa uno;
3) la semicroma simboleggiata dal cagnolino che fa passi 'ancor più brevi;
4) la minima simboleggiata dal nonno che fa un solo passo mentre il babbo ne fa due;
5) la semibreve simboleggiata dalla gru che cammina 'ancor più adagio' del nonno.
115
116
equivalente das figuras quadradas em figuras musicais tradicionais, para que, após todos os
exercícios com os quadrados117, o aluno perceba que está lendo uma adaptação da usual
partitura musical e possa ter a relação com tal aplicação, caso queira. Abaixo a principal
cartela que serve como base da proposta, representando um som por tempo:
A linha grossa abaixo da cartela indica linha de leitura (parte de baixo da cartela). A
ideia é simples, cada cartela quadrada vale um tempo, o desenho do quadrado inteiro
representa o som que preenche todo o tempo, um som por tempo. Retirei a indicação das
cores nas cartelas de figuras para inseri-la em leitura posterior. E na subdivisão da figura do
quadrado para duas ou mais partes, como ler a cartela? Utilizo o que chamo leitura em “U”,
abaixo dois exemplos equivalentes a (1) uma semínima e (2) duas colcheias:
117
Nas cartelas seguintes, a junção de colcheia com semicolcheias que forma uma
síncope118 (cartela 06), e a imagem correspondente à primeira figura musical pontuada, uma
colcheia pontuada, que dura meio tempo mais metade de seu valor, completada com uma
semicolcheia (cartela 07):
118
Síncope é “O deslocamento regular de cada tempo em padrão cadenciado sempre no mesmo valor à frente ou
atrás de sua posição normal no compasso” (Dicionário Grove de música, 1994, p. 868).
118
A cartela 08 necessita explanação diferenciada, por ser diferente das outras figuras
quadradas – fator interessante para explicar a quiáltera119 tercina (três notas executadas no
espaço de duas). Justamente por não se encaixar no “quadrado”, a quiáltera, aqui “que altera”
o quadrado, tem outro desenho: um hexágono que pode ser lido como um cubo ou três
losangos – atribuição que utilizaremos para ler três sons. Na “lógica do cubo”, que traz o
compasso composto, revisitaremos estas formas distintas do quadrado.
119
Figura rítmica derivada da divisão irregular do(s) tempo(s).
119
O trabalho com as cartelas terá maior intensidade durante o primeiro terço do módulo
“o som no ator”. Como iniciar o trabalho com as cartelas? Recorrendo ao grupo de
movimentos rítmicos iniciais e compreendendo-o como estrutura de quatro tempos,
dividindo o corpo do aluno-ator em quatro quadrantes de onde saem os sons.
120
Antes do trabalho com as cartelas, para entendimento dos quatro tempos no corpo,
oriento fazer exercícios com músicas quaternárias, para o aluno-ator “bater” o pulso em cada
tempo nos quatro quadrantes de seu corpo. Dialogando com os princípios da etapa do presente
módulo, pego músicas que possam sugerir fácil entendimento do pulso e dos quatro tempos.
A primeira música em que trabalho o exercício na UFGD, a partir desta pesquisa, é
“F.U.Y.A” (2013), música eletrônica do grupo C2C120, composto por quatro DJ’s121, a qual
acredito ter os quatro tempos bem definidos, facilitando percepção auditiva. Como auxílio,
elaborou-se divisão dos quatro tempos/quadrantes de acordo com movimento corporal a partir
de estímulos de vídeo adaptado do clipe em que o grupo francês divulga sua música;
exemplificado nas imagens abaixo (e disponível em arquivo na mídia que acompanha a tese):
120
Grupo formado em 1998 na cidade francesa de Nantes, conhecido por C2C ou Coups2Cross, composto por 4
DJ’s franceses.
121
DJ é a abreviação de disc jockey, também escrita deejay; é a pessoa que executa músicas ou sons gravados em
equipamentos eletrônicos, podendo interferir nos materiais sonoros a partir do aparato de áudio – criar, suprimir,
alterar. A figura do DJ é atribuída a eventos, festas, boates ou raves, .
122
Este exercício encontra-se em 5’46” do arquivo de vídeo-demonstração anexo à tese.
121
122
125
Este exercício encontra-se em 10’26” do arquivo de vídeo-demonstração anexo à tese.
126
Este exercício encontra-se em 12’16” do arquivo de vídeo-demonstração anexo à tese.
123
124
127
A tonalidade e a melodia presente nesta partitura são sugestões, cada turma pode criar o seu desenho
melódico – e atribuir um tom – para esta música-exercício. A cifra na partitura visa contemplar músicos práticos
para acompanhamento em instrumento harmônico.
125
3.1.1.3 Pausas
128
Si um gazela um fosse/ Pa corre/ Sem nem um cansera
126
127
pulso e não perder o andamento quando o grupo que está em pausa começa a pular (no exato
momento em que o grupo que estava pulando entra em pausa); o que deve acontecer a cada
giro corporal no eixo (frente-costas)131. Talvez seja melhor pensar nessa variação do jogo de
pulos como um eco com sons e pausas, um grupo age e o outro repete. Acredito que a
apropriação desses jogos por descrição e leitura seja mais complicada do que experimentá-los
na prática. O intuito de descrever brevemente esses exercícios está na demonstração da
abordagem do princípio que visa “contemplar o fazer musical enfatizando a experimentação
e/ou as ações corporais”. A questão que aqui ressalto está na apropriação dos princípios e
práticas visitadas nesta pesquisa, de acordo com reverberações e necessidades distintas de
cada turma inserida em seu contexto social e cultural, visando à preparação musical de atores
para melhor interlocução no universo relacional entre música e teatro.
Na lógica do quadrado, as pausas como conteúdo podem aparecer nos jogos com as
cartelas, na leitura rítmica corporal com produção e ausência de sons. Ao introduzir à turma
as cartelas de número 09, 10 e 11, mesclar com todas as que já foram apresentadas. O
exercício que possibilita apropriação facilitada está no uso da cartela 09, em que a “não
produção de som” equivale a um tempo inteiro (pausa de semínima).
A cartela 10 salta como possibilidade de trabalho com o contratempo. Um jogo
simples e eficaz nos grupos de alunos trabalhos na universidade douradense, para a
assimilação do contratempo, está na ação de andar (se movimentar) no espaço (da sala de
aula/sala de ensaios) seguindo um pulso – o pulso está nos pés – e bater palmas no
contratempo – o contratempo está nas mãos. Pode-se seguir exercício com enunciação
conjunta aos sons corporais, “Tum” para o tempo e “tá” para contratempo; no trabalho com
pausas, por exemplo, suprimir os sons derivados da percussão corporal (cessar movimento no
espaço) e a enunciação da sílaba “Tum” (no pulso), deixa o grupo apenas com a execução
vocal do contratempo. Em variação, pode-se separar a turma em dois grupos em que um
vocaliza o tempo e outro o contratempo, e o ministrante/mediador comanda (como regente) a
produção de som dos dois grupos, resultando em quatro possibilidades “Tum-tá”, “Tum-
pausa”, “pausa-tá” e “pausa-pausa”.
Questões ligadas à expressividade e às pausas serão trabalhadas em etapa que enfoca
“música e expressão”.
131
Ação desta variação: grupo 1 dá oito pulos “de frente” enquanto o grupo 2 fica em pausa com corpo “de
frente”, quando o grupo 1 girar no eixo no pulo de número oito ficando “de costas” deve entrar em pausa, no
mesmo tempo o grupo 2 inicia oito pulos “de frente” enquanto o grupo 1 fica em pausa com o corpo “de costas”;
depois o grupo 2 vira de costas e entra em pausa enquanto o grupo 1 dá oito pulos “de costas”, e assim por diante
até completar o jogo conhecido anteriormente.
128
Ao visitar a obra de Bohumil Med para uma explanação técnica direta sobre
compassos simples e/ou compostos, percebo que, segundo o professor tcheco, “existem
basicamente duas teorias, divergentes entre si, de classificação de compassos” (MED, 1996,
p. 121). Ele se refere a elas como teoria francesa e teoria alemã, nas quais “Uma teoria
compara os compassos com tempos representados pelo valor simples e valor pontuado. [...] A
outra teoria classifica os compassos conforme o número de tempos fortes neles existentes”
(Idem, ibidem). Med comenta que a classificação oriunda da teoria francesa é bastante
divulgada na França, na Rússia e no Brasil. No guia dos franceses Claude Abromont e Eugène
de Montalembert a fala referente aos compassos simples e compostos orienta subdivisão do
tempo entre tempos binários e tempos ternários – se referindo à unidade de tempo. Não
podemos confundir tempo binário e ternário com compasso binário e ternário; compasso
binário, ternário ou quaternário significa, unicamente, quantos tempos possuem por
compasso: 2, 3 ou 4. Afirmar que determinada música tem quatro tempos significa dizer que
seu compasso é quaternário, se a unidade de tempo é divisível por dois ou três, ou seja, se seu
tempo é binário ou ternário, estudaremos no fim do módulo “O som no ator” ao abordar
compasso composto e correspondente. Por ora, para estudar compasso simples, seguimos na
lógica do quadrado.
Dentro da presente lógica, creio ser interessante observar a teoria alemã de compassos
citada por Med, por ser uma das vias, a meu ver, que possibilita fácil entendimento a respeito
do acento. Em olhar sintético, a teoria defende que o tempo de número 1 de qualquer fórmula
de compasso é o tempo forte, representado pelo “F” maiúsculo, o tempo fraco é representado
pelo “f” minúsculo. Sem adentrar questões nessa teoria tais como ter apenas os compassos
binários e ternários como compassos simples (para ela o quaternário é composto), o compasso
binário é marcado por dois tempos, o primeiro forte e o segundo fraco (F+f); o compasso
ternário tem o primeiro tempo forte e os outros dois fracos (F+f+f); e o compasso quaternário
tem o primeiro tempo forte, o segundo tempo fraco, o terceiro tempo meio-forte e o quarto
tempo fraco (F+f+mF+f). O tempo de número um é o “rei”; não necessariamente, mas
usualmente.
Ao pensar no tempo 1 como o tempo forte, podemos arrogar que ele possui acento
natural, sendo acento uma nota destacada – geralmente pelo aumento da intensidade. Para
destacar outras notas em outros tempos (ou mesmo enfatizar nota no tempo 1), na notação
musical existe o símbolo “>” que é escrito junto à nota a destacar. Para os alunos-atores, um
129
exercício que me fora ensinado por Sabine Oetterli, no módulo “A música se move -
introdução à rítmica Jaques-Dalcroze”, é, dentro de meu ponto de vista, jogo chave para
trabalhar com o acento em música de quatro tempos. A professora tocava uma música com
andamento rápido (vivo ou presto) no piano (pode-se colocar música gravada) e os alunos se
movimentavam apenas no tempo 1, um passo por compasso, havendo de bater palmas
(acento) em um tempo diferente a cada dois compassos (toda a turma em uníssono). Para
melhor descrição (VD09)132, exemplifico escrevendo quatro números respectivos aos quatro
tempos, sublinhado o tempo em que a turma deve dar um passo, e entre parênteses o acento
(palmas):
(1), 2, 3, 4/ (1), 2, 3, 4/
1, (2), 3, 4/ 1, (2), 3, 4/
1, 2, (3), 4/ 1, 2, (3), 4/
1, 2, 3, (4)/ 1, 2, 3, (4)/ repete do início
130
enfatiza concentração que o grupo precisa manter para o fazer musical. Descoberto o tempo
de número um e utilizando-o como tempo forte, cada aluno-ator que receber a bolinha neste
tempo pode fazer ação conjunta (para ressaltar força) como bater um pé no chão; as formas de
execução deste jogo são livres de acordo com melhores soluções para cada turma.
No intuito de reforço visual para o jogo com a bolinha na lógica do quadrado, elaborei
cartelas referentes aos tempos de um compasso quaternário para o exercício da música “Se
essa rua fosse minha” (VD10)133, com cores diferentes para cada tempo (1, 2, 3, 4). O intuito
é distribuir um tempo para cada aluno-ator que, na sequência da música, consigam vislumbrar
em qual tempo está, quais sons deve fazer (relacionados com a letra da música).
Existem muitas maneiras de execução da música-exercício “Se essa rua fosse minha”,
como dividir a turma em quatro grupos referentes aos quatro tempos – grupos por cores neste
caso, trabalhos com movimentações ou acentos.
133
Este exercício encontra-se em 17’48” do arquivo de vídeo-demonstração anexo à tese.
131
Abaixo referência a “Se essa rua fosse minha” em compasso quaternário, com escrita
musical tradicional. É sabido que tal cantiga costuma ser escrita em fórmula de compasso 2/4,
binária, porém a presente versão é uma adaptação minha que dialoga com a proposta desta
tese.
132
Após interação com a música-exercício “Se essa rua fosse minha” em quatro tempos,
ao observar que as turmas assimilaram pulso e tempo forte, trabalhamos com músicas em dois
e em três tempos, nos quais as analogias de “marcha” para o binário e “valsa” para o ternário
serviram como referências. Reticencias
Chega-se a um suposto fim da primeira de três etapas, “A lógica do quadrado”, dentro
do módulo “O som no ator” (Música e Cena I). Esse término se configura apenas dentro da
programação/planejamento, pois os jogos/exercícios podem ser revisitados no decorrer da
disciplina, principalmente nas dúvidas dos alunos-atores. Dos princípios pedagógicos
norteadores conectados à essa etapa, partir da (ou buscar a) simplicidade me parece elemento
a ressaltar. Procuraram-se interlocuções, adaptações, para que, corporalmente, o discente
pudesse inserir seu som no conjunto do fazer musical coletivo da turma, em estrutura
tradicional, trabalhando diversos conceitos musicais – sobretudo rítmicos (no momento). Os
jogos com as cartelas são formas de trabalhar a leitura e codificação musical, na vontade de
alcançar desenvolvimento pessoal com divertimento, conforme Elliott (2015, p. 381). Essas
práticas colaboram com a participação da música no teatro, mas são interdisciplinares, de
maneira que o aluno-ator pode se habilitar a ouvir uma inserção musical e pensar em seus
conceitos teatralmente.
134
As reticências no 4º tempo do último compasso indicam que os intérpretes podem repetir a letra a partir deste
tempo, iniciar nova parte (letra) da cantiga tradicional “Nessa rua, nessa rua tem um bosque...” ou inserir mais
uma pausa de um tempo para concluir o exercício.
133
Vamos tomar sumariamente em exame a posição expressa por Suzanne Langer, [...]
‘as estruturas sonoras, que nós chamamos música, têm uma estrita semelhança
lógica com as formas do sentimento humano’135. De maneira que a relação com a
afetividade se impõe não tanto como uma pura possibilidade à disposição da
expressão musical, mas como uma característica essencial da própria música. Para
Suzanne Langer a música é sem dúvida ‘um correspondente sonoro da vida
emotiva’. (PIANA, 2001, p. 300)
134
137
Idem. Original: L'ascolto musicale è solitamente associato a una valenza emotiva, non solo legata al nostro
gusto personale (ci piace, non ci piace) ma anche al fatto che vi sono musiche soggettivamente e/o
oggettivamente percepite come, ad esempio, tristi o allegre.
138
O fim de uma frase melódica, a entrada e a saída de instrumentos musicais, dentre outras alternativas.
135
É curioso observar na imagem à esquerda (figura 26) que a música dialogando com os
atores parados gera leitura diferenciada nos espectadores devido a qual música está a soar.
Fator que acho espirituoso está na indicação que é a mesma para todos os alunos que passam
pelo exercício – “fiquem parados” – e a percepção audiovisual nos leva as mais variadas
interpretações. O comentário dos alunos (ao ver os colegas parados com determinada
composição musical) chega a construir personagens, dizer que entre eles havia uma tensão,
que haviam cometido um crime, que representavam a esperança, enfim, distintas leituras. A
expressão nessa cena, nesse jogo, estava na música.
Segundo momento dentro do módulo “O som no ator”, a etapa “Música e expressão” é
pensada para abarcar conteúdos musicais que dialoguem intimamente com a sensibilidade, em
distinto nível de percepção. A premissa de cada etapa é a inter-relação entre elas, o que na
presente pesquisa se configura em revisitar e atualizar, de acordo com a necessidade, os
conteúdos já experimentados pelos alunos-atores. Dessa forma, o olhar com direcionamento
na estrutura rítmica pode receber novas inquietações.
Em música e expressão (momento intermediário do primeiro módulo) são trabalhados
os seguintes conteúdos teórico-musicais para os atores ampliarem possibilidades de jogo com
a música, enquanto modulação de expressões, sentimentos e contextos:
136
sentimento e/ou postura contextual, política, ideológica, sociológica, necessita de voz – som e
postura.
O vínculo dos princípios norteadores com a discussão sobre ensino, na tríade forma-
conteúdo-destinatário, ainda está no universo tonal, mas na busca de problematizações, pois
os padrões musicais que geram sentidos existem por qual razão? Como estamos conectados?
Observar elementos tonais e seus sentidos também é estudar a sociedade ocidental.
139
Tradução minha. Original: La educación musical como cultivo de la sensibilidad musical y la experiencia
auténtica no se debería limitar a orientar a los alumnos hacia los tipos de prácticas musicales que aquéllas
pueden proporcionar. También les debería enseñar cómo guiarse ellos mismos.
140
Tradução minha. Original: È la qualità che permette di distinguere quale strumento o corpo ha prodotto il
suono.
137
“Y” a perna direita, “Z” a esquerda. A indicação foi dada para que cada aluno responsável
pela enunciação utilizasse sílabas, vogais, e aos poucos inserisse palavras, trechos cantados.
César Lignelli destaca que “o timbre é um parâmetro fundamental não somente para a
identificação da fonte produtora do som, mas também para a quantidade de prazer relacionado
a ele, assim como à fonte sonora” (LIGNELLI, 2014, p. 164), e ressalta possibilidade de
exercícios para os alunos-atores não apenas na recepção de um timbre, mas na produção
sonora diferenciada por qualidades tímbricas da voz caracterizada por adjetivos, como “voz
aveludada, brilhante, metálica, nasalada, rouca, aerada, escura, leve, pesada, etc.” (Idem,
ibidem).
A intensidade é outro componente do som que necessita apropriação e discussão para
melhor interlocução dos alunos-atores. De modo geral, os alunos tendem a fazer confusão da
intensidade em relação à altura. No senso comum nos referimos à intensidade sonora,
potência, quando está muito forte, com expressões similares a: “o som está muito alto”. Altura
está relacionada à outra característica do som, de ser considerado grave ou agudo; à
intensidade a dualidade mais adequada está no forte-fraco – embora dualidades não
contemplem com exatidão a interpretação dos componentes sonoros.
A partir da turma 1B, inseri jogos relativos ao conteúdo intensidade que explorassem o
corpo do ator, alguns encontrados em preparação vocal como a pronúncia de vogais e a
alteração entre emissão vocal forte e fraca de acordo com a regência do professor, mas,
sobretudo, a execução de peças ao piano com trechos melódicos suaves para a dança corporal
em improviso dos atores, e a repetição dos mesmos trechos com força para interação no
exercício. Após, improvisação de cenas com temas para sugestão da intensidade vocal: (a) em
uma discoteca; (b) em um quarto com crianças dormindo; (c) no estádio de futebol; (d) na sala
de espera de um consultório médico; e assim por diante de acordo com sugestão dos alunos.
Da intensidade à dinâmica. Estão interligadas, “as variações de intensidade podem ser
codificadas nas partituras musicais como variações na dinâmica (por exemplo: pp
[pianíssimo], ff [fortíssimo], crescendo, diminuendo, etc.)”141 (SCHÖN, AKIVA-KABIRI,
VECCHI, 2014, p. 116). As alterações de dinâmica são facilmente compreensíveis para os
alunos-atores, já que, me permito afirmar, “instintivamente” a condução da construção de
uma cena trabalha com nuances díspares – lida com a expressividade.
Possivelmente, o trabalho com dinâmica que seja próprio do ator de teatro esteja no
conteúdo musical que aborda a expressão. Acho curiosa a indicação escrita que algumas
141
Tradução minha. Original: Le variazioni d’intensità si possono codificare negli spartiti musicali come
variazioni nella dinamica (ad. es. pp, ff, crescendo, diminuendo ecc.).
138
Tais expressões são derivadas de uma, pode-se chamar, “escola italiana” presente na
história da música ocidental com maior força a partir do século XVI – a nomenclatura em
italiano não é a única vertente para indicar expressão nas partituras musicais, também
encontram-se palavras em outros idiomas, mas possui presença significativa na música
clássica europeia. A lista acima na citação de Bohumil Med não contempla a expressão,
acredito que, no máximo, sugestão para intercalar dinâmica e intensidade na interpretação.
Possivelmente, em expressão talvez seja mais assertivo visitar diferentes olhares na
apropriação da intensidade: “supreendentemente, a intensidade, assim como os demais
parâmetros do som, é um fenômeno inteiramente psicológico e só existe dessa forma porque
podemos apreendê-lo” (LIGNELLI, 2014, p. 116). A afirmação de Lignelli enfatiza a
percepção, o que é “intenso” para cada um de nós depende de nosso “ponto de escuta” e dos
referenciais que possuímos.
139
3.1.2.2 Altura, frequência sonora, notas musicais tradicionais, graus conjuntos e saltos
142
Tradução minha. Original: Los sonidos musicales periódicos están formados por muchas componentes de
frecuencia relacionadas armónicamente, los armónicos o parciales.
143
Idem. Original: El único error que podemos cometer al "confundir" altura, una sensación, con periodicidad,
la frecuencia numérica del fundamental, es el de ofender a los psicólogos.
140
Nas turmas 1B e 1C, trabalhamos com a confecção de lugares para as notas musicais,
como uma “casa” de um tabuleiro para que o aluno-ator integrasse este espaço. Quatro
pequenos grupos dentre os discentes pegaram tatames de encaixe em borracha e colaram o
nome das notas musicais tradicionais (dó, ré, mi, fá, sol, lá, si), encaixando um tatame no
outro como um caminho (como uma estrada ou escada no chão). A partir dessa construção,
vários exercícios para diálogo musical, como o professor tocar no piano uma escala em
movimento ascendente e depois em movimento descendente enquanto os alunos (um por vez
em cada trilha feita) caminham ao som do piano, subindo e descendo. Por movimento, nesses
exercícios, é atribuído como relação entre duas notas sucessivas, se parte do grave e chega no
agudo o movimento é ascendente, o contrário (agudo para grave) significa movimento
descendente. De acordo com a figura 28, tocar a nota ré depois a lá é movimento ascendente,
sol e fá configura movimento descendente. Tocar a nota mi e depois novamente a mesma nota
mi indica que não houve movimento entre as notas executadas, pode ser considerado como
uma repetição ou igualdade entre as notas.
144
Idem. Original: Las experiencias humanas de los patrones artístico-sónicos se sitúan en la intersección de la
conciencia humana y los sonidos musicales que produce el ser humano.
141
A ocupação no espaço das notas com o deslocamento do aluno (figura 29) possibilita
interação e visualização do movimento entre as notas musicais. A partir dessa configuração,
estudaram-se os graus conjuntos. Sendo grau “o nome dado aos sons sucessivos das escalas
146
diatônicas [escala musical padrão europeia], classificadas em forma ordinal”
(ABROMONT; MONTALEMBERT, 2005, p. 546), em que o 1o grau é a tônica, o 2o a
supertônica, o 3o a mediante, o 4o a subdominante, o 5o a dominante, o 6o a superdominante e
o 7o a sensível. Tais graus na escala de dó, a escala mais fácil de ser estudada ao piano, por
exemplo, configuram 1-dó, 2-ré, 3-mi, 4-fá, 5-sol, 6-lá, 7-si. Estudar movimentos em graus
conjuntos significa deslocamento apenas para o grau ao lado (acima ou abaixo), ou seja,
quando o aluno estiver na nota sol poderá descer para fá ou subir para lá. Esse pensamento
significa que passar por todas as notas (dó, ré, mi, fá, sol, lá, si) é um movimento ascendente
em graus conjuntos. Aplico um exercício de percepção musical em que os alunos-atores
andam na “escada” em graus conjuntos, se percebem movimento ascendente sobem um grau,
se percebem movimento descendente descem um grau, se duas notas iguais são tocadas
consecutivamente o aluno permanece no grau onde está.
A abordagem do referido exercício de graus conjuntos possibilita compreensão
facilitada de termo usual por músicos: o salto, ou intervalo (melódico) disjunto, segundo
Abromont e Montalembert. Aplicando o salto como o “pulo” de um ou mais “degraus da
escada”. Entendimentos de saltos pequenos (utilizando a figura 28 como referência) como mi
145
A figura apresenta escrita das notas por letras (C, D, E, F, G, A, B) – como se atribui à notação americana,
por ter surgido como uma dúvida na aula em que a imagem original foi captada. O exercício pode ser feito com
as notas como se escreve (dó, ré, mi, fá, sol, lá, si), ou pelos graus (I, II, III, IV, V, VI, VII).
146
Tradução minha. Original: Nombre dado a los sonidos sucesivos de las escalas diatónicas, clasificadas en
sentido ordinal.
142
e sol e saltos maiores como dó e lá. Ao salto tem de ser percebido o movimento, pois dó e si
pode ser um grande salto ascendente ou um pequeno movimento descendente (entre outras
possibilidades de distância se considerarmos mais oitavas). Alguns alunos-atores
estabeleceram relações com termos conhecidos por eles como “salto de terça” ou “salto de
quinta” (respectivos aos graus), por exemplo, e chegou-se na apropriação de que um salto sai
do lugar que você está como o grau 1 (independente de escala) e o número de degraus
“pulados”, se sai da nota ré e salta para a nota sol em movimento ascendente, calcula-se (1-ré,
2-mi, 3-fá, 4-sol) e chega-se à conclusão de que houve um “salto de quarta”. Na sequência da
articulação com os jogos na escada elaborada pelos alunos, podem-se fazer exercícios só com
“saltos de terça”, “saltos de quarta”, podem-se mesclar graus conjuntos – a abordagem
depende do envolvimento da turma. “Saltos de quinta” mostrou-se de difícil execução
corporal pela maneira em que o jogo (o caminho com tatames) foi composto, e interessantes
reflexões dos alunos referentes à dificuldade corporal de dar um salto em longa distância e a
dificuldade de executar um grande salto com a voz.
147
Tradução minha. Original: Sucesión ordenada de sonidos musicales, articulada a partir de ritmos y alturas.
143
para esse espaço híbrido entre fala e canto. Às pessoas que dizem não saber cantar, o
compositor francês replica perguntando se as mesmas não sabem falar.
Teorias tradicionais da música observam a melodia como uma concepção horizontal
(notas sucessivas) ao passo que tratam a harmonia como concepção vertical (notas
simultâneas), o que pode ser lido como: uma pessoa só consegue executar com sua voz um
som por vez – melodia. A afirmação é significativa para o aprendizado musical em estágio
inicial ou intermediário, porém cai por terra quando tratamos dos harmônicos, que são os sons
simultâneos derivados de uma nota, mas é tema complexo e acredito ser mais bem trabalhado
em disciplinas específicas da área vocal; não adentro abordagem dos harmônicos na melodia
(observando a fala e o canto) neste módulo, logo, o som cantado ou falado fica no estudo e
aplicação de sua nota fundamental. Nesse pensamento, cabe fazer um levantamento com os
alunos-atores sobre quais instrumentos musicais são considerados melódicos (executam um
som por vez como a flauta) e quais são considerados harmônicos (podendo executar vários
sons de uma vez como o piano).
O desenho melódico é a visualização dos movimentos ascendentes e descendentes das
notas musicais, bem como de seus uníssonos, para o entendimento de frases ou sentenças
musicais. Também pode ser chamada de linha melódica, mas se pensarmos em uma partitura
para coral que tem quatro linhas melódicas (soprano, contralto, tenor e baixo), cada linha
possui seu desenho próprio:
David Elliott fala a respeito de uma possibilidade da compreensão musical, que seria
entender a música por partes, trechos, desenhos, mas esse entendimento sozinho é incompleto
por ser considerado técnico. Na atualidade, tão ou mais importante que uma análise estrutural
da música, para sua compreensão, é a relação expressiva que ela possui – conectada aos
sentimentos que dialogam com a pessoalidade e ao contexto cultural e social.
148
Tradução minha. Original: Toda obra musical conlleva un diseño o una estructura musicales compuestos o
improvisados. Aprender a “seguir” un fragmento de música desde la perspectiva de desplegar su arquitectura
sónica es, para muchos oyentes, un aspecto clave del disfrute, la comprensión y el aprecio de una obra musical.
La arquitectura de las obras musicales se puede subdividir como siegue: los parámetros sintácticos del diseño
musical incluyen el timbre, la textura, el tempo, la articulación y la dinámica. Los oyentes construyen
mentalmente las relaciones entre los patrones musicales como interpretados por quienes hacen música.
144
145
146
costuma utilizar tal formato em que podem ficar evidentes – até pelo timbre de voz dos
intérpretes – as diferentes melodias. Percebe-se que há músicas sertanejas nas quais o cantor
que faz a “segunda voz” executa o mesmo desenho melódico da voz principal, mas em
intervalos diferentes. Todavia, creio ser mais produtivo assimilar duas vozes em execução
quando o desenho melódico difere, outras células rítmicas, outros movimentos. Para
exemplificação, recorrer a duetos em filmes musicais pode ser alternativa. Na época de
estudos da turma 1C, 2015, uma aluna trouxe comparativos com uma canção presente na
animação “Frozen”, da Walt Disney, filme que estreou no final de 2013 e teve grande
repercussão mundial; trata de dueto da música traduzida em português para “Vejo uma porta
abrir”, que corresponde à canção “Love is an open door” na versão original em inglês. Na
música, duas personagens em cena musical romântica mesclam a fala e a voz cantada,
executam trechos de forma individual como um diálogo cantado, executam trechos em
uníssono e também cantam juntos com diferentes desenhos melódicos. Independentemente do
gosto pessoal de cada ouvinte (alguns alunos-atores podem mostrar resistência ao ouvir esta
canção por considerá-la infantil), tal música é um ótimo exemplo para audição e estudo em
duas vozes, além de se tratar de um musical popular – fácil acesso à canção na rede virtual.
Duas vozes não precisam necessariamente estar presentes nas vozes (aparato vocal)
dos atores. Para sugerir esse pensamento, voltei às leituras rítmicas das cartelas, conforme
exemplo abaixo, a 1a voz pode estar na mão esquerda e a 2a voz na mão direita – tocadas ao
mesmo tempo.
A partir do entendimento de duas vozes, duas linhas melódicas, acredito que seja
indicado adentrar ao conteúdo harmonia, que “é o aspecto vertical da música e refere-se à
147
150
Tradução minha. Original: È l'aspetto verticale della musica e riguarda l'emissione simultanea di più suoni
insieme e la loro relazione.
151
Idem. Original: Sobreposición de al menos tres sonidos simultáneos que forman un todo.
148
Rudolf Arnheim discorre sobre o que ele chama de formas iniciais de representação
visual, as quais chamam a atenção do autor porque “são de interesse educacional óbvio”
(ARNHEIM, 2005, p. 153); está implícito um processo de aprendizagem que parte do
simples, do que podemos entender como algo que possibilite um fácil entendimento. O
quadrado, até então, foi útil para a analogia com a fórmula de compasso simples, subdivisão
binária do tempo. A lógica do cubo e do hipercubo entram no jogo para (1) estudar o
compasso composto – subdivisão ternária do tempo, (2) observar compassos complexos,
também chamado de irregulares, e (3) ampliar relação que possibilite entendimento de que a
análise da música nunca é definitiva porque passa pela percepção, pela pessoalidade, pelo
contexto temporal e espacial.
Trazer a imagem do cubo em aulas de música para o ator, visando à comparação com
o quadrado, serve na característica básica das figuras geométricas: o quadrado é
bidimensional e o cubo é tridimensional.
A imagem acima mostra o cubo em perspectiva isométrica, no qual podemos ver que
“a representação pictórica dos sólidos cúbicos provém do quadrado fundamental”
(ARNHEIM, 2005, p. 255). Na visualização da figura é possível aferir que o cubo isométrico
é composto no desenho por três losangos. A forma lúdica das figuras geométricas em relação
com o aprendizado musical no módulo “O som no ator” está no quadrado como compasso
simples que possui subdivisão de tempo binária, e no cubo como compasso composto por sua
subdivisão ternária do tempo.
Na UFGD, nesse momento do módulo não foram utilizadas as cartelas “quadradas”,
elas servem como suporte ao compasso simples. O cubo entra para “quebrar” a lógica
149
quadrada de observar a música. Acredito que o interessante (para a etapa) – caso a turma
queira representação gráfica para notação e leitura – é se abrir a novas formas visando
entender a unidade de tempo. Qual seria a figura que melhor representa, para cada aluno, a
unidade de tempo em um compasso composto? Não trabalhei nas disciplinas de “Música e
Cena”, entre 2013 e 2015, com essa indicação, mas talvez nesse momento final do primeiro
módulo – ao quebrar o quadrado – fosse um bom momento para inserir as figuras rítmicas
tradicionais da teoria da música ocidental. Entretanto, acredito ser mais importante a sensação
que o aluno-ator tem ao ouvir músicas em compassos simples ou compostos, do que se
preocupar com a escrita musical que, nesse pensamento, fica em segundo plano.
Do cubo ao hipercubo. Estudos complexos apontam para a existência de mais do que
três dimensões com as quais compreendemos o mundo – altura, largura e profundidade. Tais
repercussões estão no campo da teoria, estariam também no campo da ficção?
Independentemente da área ou abordagem acerca de outras dimensões, podem-se atribuir tais
pensamentos ao impalpável. Mario Köppen atribui à sequência do bidimensional e do
tridimensional ao n-dimensional, que tem no hipercubo o seu corpo mais simples. “Para a
imaginação humana, o hipercubo só é acessível para as dimensões 2 e 3 por meio de um
quadrado ou um cubo, respectivamente”152 (KÖPPEN, 2000, p. 04), duas imagens abaixo (“a”
e “b”) são projeções de um hipercubo 4-dimensional.
Figura 34 – Hipercubos
152
Tradução minha. Original: For human imagination, the hypercube is only accessible for the dimensions 2 and
3 by way of a square or cube respectively.
150
Múltiplas possibilidades, várias dimensões. Creio que seja preciso atentar para não tornar
inacessível o entendimento da música na relação com o hipercubo, que serve apenas
poeticamente para dizer que a música tem mais camadas do que uma análise pode dar conta.
Na última etapa do módulo “O som no ator”, de nome “a lógica do cubo e do
hipercubo”, uma revisão de todos os conteúdos é necessária para inserir ainda:
• Aguçar senso crítico para não fixar os padrões (da música em si ou da música
na sociedade) como imutáveis; “Desejo que consideremos que a educação
musical, entendida como corresponde, deva ser de natureza emancipadora:
uma empresa que libera as pessoas da perniciosa ideia de que os valores vem
feitos” 153 (BOWMAN, 2009, p. 66).
153
Tradução minha. Original: Lo que insto a que consideremos es que la educación musical, entendida como
corresponde, debería ser de naturaleza emancipadora: una empresa que libera a las personas de la perniciosa
idea de que los valores vienen hechos.
151
154
Composta por Maurício Cardoso Ocampo. No Brasil, a música ficou popularmente conhecida nas vozes da
dupla Chitãozinho & Xororó, mas já era difundida com o cantor Donizetti e a cantora paraguaia Perla.
155
Música argentina de Ramón Sixto Ríos gravada na década de 1940. A canção é tradicional e foi reproduzida
por diversos cantores ou grupos na América Latina. No Brasil uma conhecida versão foi gravada pelo grupo
gaúcho Os Serranos, outra por Gal Costa.
156
Escrita pelo autor da tese para exemplificação; sem definição de versão e notação musical de término (barra
de compasso dupla) para indicar apenas trecho da partitura: a melodia e letra da canção continua após o recorte.
157
Idem ao rodapé 155.
152
158
Tradução minha. Original: Los tiempos que corresponden a valores con puntillo (negra con puntillo, blanca
con puntillo, etc.) se subdividen en tres partes iguales (3 corcheas, 3 negras, etc.); es una división ternaria.
153
(3) pela condução da música que pode ser binária, ternária ou quaternária. Temos, então, os
numeradores 6, 9 e 12. A condução é a sensação de quantos tempos tem o compasso.
Na imagem abaixo, dois exemplos de trechos musicais com sensação binária em sua
condução, uma em compasso simples e outra em compasso composto. No denominador da
fração consta uma imagem. Como trabalhamos com a lógica do quadrado insiro esta figura no
compasso simples. A leitura é fácil, o número de cima é a quantidade de figuras (do
denominador da fração) que cabe dentro de um compasso, no exemplo abaixo (a esquerda)
cabem dois quadrados por compasso. O quadrado é a unidade de tempo. Na busca de quebra
da lógica do quadrado ao pensar em compasso composto, e na sugestão de inventar novas
formas para representar a duração das notas – para o exemplo utilizo alusão com o cubo
(figura 38) composto por três losangos –, podemos ver no exemplo abaixo (à direita) que
cabem seis losangos por compasso. Entretanto, a unidade de tempo do compasso composto
não é um losango, seria a junção dos três losangos (cubo).
154
155
detrimento de outro. O que se pode arrogar, também, é que na música tradicional ocidental
que conhecemos, fórmulas de compasso complexas não são tão usuais como as músicas em
compassos simples ou compostos, mas não deixam de ser utilizadas e, por alguns grupos
musicais ou compositores, com frequência:
156
brasileiro) – dentre outros exemplos. Algumas dessas amostras podem ter variação na fórmula
de compasso, convite ao aluno a atentar guia pelo pulso.
No gênero musical rock e, o que se pode chamar, suas variações, que vão do rock
progressivo e chegam (ultrapassam) o heavy metal. Não é incomum encontrar músicas com
compasso complexo e construções igualmente complexas como a alteração constante de
fórmula de compasso na mesma peça. É o que acontece, por exemplo, nas músicas “The
dance of eternity” e “Constant motion”, da banda Dream Theater. Em músicas como essas, a
curiosidade está em marcar o pulso e perceber que se perde o pulso frequentemente.
Como exercício corporal ao artista, para assimilação de músicas em cinco ou sete
tempos, aplico jogo que aprendi em curso com Jean-Jacques Lemêtre. O professor/ministrante
toca um instrumento de percussão em sete tempos, por exemplo, e o aluno deve fazer ações
que correspondam aos pulsos fortes – sugestão utilizar compasso de 7 como 3+2+2. A partir
do ritmo, o professor sugere ações como: andar em sete tempos, praticar esporte (jogar tênis)
em sete tempos, cozinhar em sete tempos, e assim por diante.
Ao aluno-ator, a visitação em compassos complexos, acredito, deva acontecer para
ampliar gama de possibilidades em sua criação cênica, ampliar repertório em audição,
estabelecer novos ritmos em seu corpo. Todavia, não reservo grande espaço de tempo para
estudo dessas músicas no primeiro módulo de “Música e Cena”. Deixo a porta aberta para o
artista que quiser adentrar nesse conteúdo e, em outras oportunidades – no módulo seguinte
ou de acordo com a vontade e procura do interessado, possa melhor inteirar-se do referido
universo.
Aguçar senso crítico é princípio pedagógico norteador dessa etapa, o qual, acredito,
facilmente é contemplado na exibição/estudo de músicas com compassos complexos; sua
natureza emancipadora, conforme Bowman, pretende liberar a ideia de valores formatados.
Os componentes musicais, culturais e sociais, estão em cada um de nós. Os padrões que
regem a música e os seres humanos são mutáveis. No entendimento musical para o teatro,
pode haver uma tensão entre “complexo” e “atonal”, a ser amadurecida em módulo posterior.
Zygmunt Molik (1930-2010) trabalhou por muitos anos como ator de Jerzy Grotowski
(1933-1999) no Teatro Laboratório, e seguiu a tradição do mestre polonês tornando-se
referência no campo do treinamento de voz e corpo com enfoque na energia criativa. Adepto e
157
parceiro de Molik, o ator e diretor italiano Giuliano Campo escreveu, em conjunto ao artista
polonês e em forma de entrevistas, a respeito do legado de Grotowski. As pontuações
existentes no campo da voz e da sonoridade são pertinentes a estudantes de teatro que
desejam ampliar suas relações no universo híbrido teatral-musical. Observa Zygmunt Molik:
Se eu disser: “Cante a sua Vida”, ele [o ator] deve encontrar [sua própria voz].
Primeiro ele oferece um som e daí ouve alguma ressonância e aí ele sabe, ele deve
saber, ele tem que saber como encontrar outros tons a partir dessa ressonância
porque sempre existe alguns. Muito simplesmente, sim, sempre existem alguns tons
que você pode ouvir no espaço, a ressonância, você deve encontrá-los e, com isso,
com o que você ouvir, você deve improvisar a sua música. (CAMPO, MOLIK,
2012, p. 49)
A fala do artista polonês aparece como um princípio, ou uma síntese, do que pretende-
se no módulo “O som do ator [no espaço]” ao lidar com aprendizado musical visando à
interlocução/criação no teatro ou na ação performativa. Trata da relação do ator com as
sonoridades, a partir da sua produção sonora, com o espaço que o cerca – sala de ensaio e
espaços múltiplos de apresentação; trata do ator encontrar a sua voz, os seus sons, as suas
provocações sonoras que agem na criação teatral.
Do ponto de vista o qual pesquiso, aprender ou observar conteúdo como reverberação,
por exemplo, de nada serve para o ator se não houver experimentações com o espaço,
apropriações sonoras, ações que na interpretação teatral não devem ficar evidentes. Por
evidente, refiro-me à separação clara no teatro de uma arte e outra, por exemplo, se um ator
deve cantar em cena e no momento do desempenho se preocupa mais com a execução musical
do que com o todo teatral – há separação. Entendo que nesse caso o ideal é a fluidez entre as
artes, existindo o canto de acordo com as criações cênicas que o estabeleceram na obra teatral,
as duas “coisas” são, juntas, uma só. É teatro.
Corpo, voz e som podem ser pensados como unidade. A contemporaneidade fez cair
por terra a dicotomia corpo-voz; é possível dar enfoque a um ou a outro em estudos, mas não
separá-los – voz é corpo, corpo é voz. O som entra, nesse pensamento, atrelado à produção
sonora oriunda de cada artista, o som que produzimos é resultado de nosso corpo-voz. É
possível dizer que um treinamento como o de Zygmunt Molik contemple a afirmativa. Em
rápida experiência que tive, próxima à uma demonstração do “Alfabeto do corpo”, de Molik,
compartilhado por Giuliano Campo em oficina160, percebi trabalho rítmico corporal – o
diretor italiano assinala que alguns exercícios “foram aproveitados dos exercícios rítmicos do
Dalcroze e também dos estudos de Delsarte sobre o corpo tripartido do ser humano”
160
V Seminário A Voz e a Cena, promovido pela UNIRIO, Rio de Janeiro (2015).
158
(CAMPO, MOLIK, 2012, p. 42). Os exercícios corporais atuam como base para a
interlocução sonora no treinamento do ator.
É fundamental que o aluno-ator saiba que seu corpo é o ponto de partida para qualquer
trabalho vocal ou musical. A partir desse princípio, exercícios de aquecimento (preparação) e
desenvolvimento corporal também são recomendáveis em disciplinas de “Música e Cena”,
principalmente em jogos que possam cruzar conteúdos, como os jogos rítmicos, e exercícios
que trabalhem concentração e prontidão corporal.
Um ponto a atentar no presente módulo é que o som que o ator produz é formado pelo
espaço em que ele está inserido: “Dificilmente uma onda de som não é alterada pelas
características do espaço em que se encontra. As mudanças são influenciadas pela
temperatura, dimensões, características e quantidade dos materiais que definem esse espaço”
(LIGNELLI, 2014, p. 234). Das oportunidades em apresentações artísticas em que notei que a
reverberação do som influi na qualidade do espetáculo teatral, destaco para exemplificação
duas peças (de sala) em que trabalhei direção musical: “Tartufo” (2011), do Grupo Farsa de
Porto Alegre (RS), e “Gota d’água” (2013), da Cia. Oficina de Interpretação Teatral (Ofit) de
Campo Grande (MS). Ambas as montagens trabalharam com o canto cênico; a gaúcha com
banda em cena composta pelos atores e a sul-mato-grossense em princípio sem instrumentos e
referência harmônica. Na peça de Molière, a interpretação mudava completamente com as
diferentes equalizações do equipamento de som de acordo com cada apresentação, e não me
refiro apenas à interpretação das músicas cênicas, mas de todo o espetáculo. Considero que a
animosidade seja um dos fatores, aos artistas era possível perceber quando a sonoridade não
acontecia como eles gostariam, e, em momentos assim, a insegurança se potencializava. O
mesmo aconteceu em apresentações da peça campo-grandense com texto de Chico Buarque e
Paulo Pontes, em algumas oportunidades a montagem esteve aquém de suas possibilidades
devido à conexão entre som e espaço; lembro de apresentação em teatro onde o som da voz
sumia na propagação do espaço, notei que as paredes, naquela ocasião, possuíam material
similar a um tapete, absorvente, o que interferia diretamente na reverberação:
A onda refletida é sempre mais fraca que a onda direta, uma vez que parte da
energia sonora é absorvida pelo material que a reflete. Materiais diversos alteram
substancialmente as peculiaridades de um som produzido em um mesmo espaço. O
corpo humano, por exemplo, assimila dois terços do som que chega até ele. Assim
sendo, a plateia é um importante componente acústico de uma sala. Materiais como
painéis de madeira tendem a suprimir faixas graves de frequência, enquanto
cortinas, por exemplo, podem ocultar faixas agudas. (LIGNELLI, 2014, p. 234)
159
não precisa ser um engenheiro de som: pode, no entanto, experimentar o espaço e criar suas
relações sonoras com ele, potencializar sua interpretação/ação performativa. Em exemplo
análogo, uma pessoa pode saber fazer um bolo maravilhoso em sua casa, mas ter diferentes
desafios para fazer o mesmo bolo em outra cozinha; embora a pessoa que o faz e os
ingredientes sejam os mesmos, o local age no resultado: diferentes equipamentos, temperatura
do forno, e demais interferências que diferem do local habitual.
No módulo “O som do ator [no espaço]” pretende-se dar continuidade aos conteúdos
abordados na primeira disciplina, com novas experimentações e debates de acordo com novos
conteúdos apresentados. Em “Música e Cena I” partiu-se de ideia na qual o ator é musica
trabalhando com componentes do som e da música. Procura-se ampliar, em “Música e Cena
II”, esta percepção na relação de sua produção sonora inserida em espetáculo teatral/ação
performativa.
Da mesma forma há a busca de ampliar a compreensão musical como defende David
Elliott: “A compreensão musical inclui ‘saber que’ e ‘saber como’ os padrões musicais
podem expressar sentimentos” 161 (ELLIOTT, 2009, p. 128). Ao pensar no ator e na procura
da compreensão do todo sonoro que acontece em um espetáculo teatral, ao fim do módulo
abordo música atonal e a influência ou ecos indígenas de maneira que contemple os ruídos e
a observação em possíveis criações musicais que saiam de um padrão tradicional.
No programa, o módulo “O som do ator [no espaço]” aborda como conteúdos:
161
Tradução e grifo meu. Original: La comprensión musical incluye “saber que” y “saber cómo” los patrones
musicales pueden expresar sentimientos.
160
O som refletido, ou reverberação, é ainda mais importante para o público. Certa vez
ouvi uma gravação de órgão de tubos que havia sido feita na área do órgão. Soava
como um órgão eletrônico porque não havia reverberações. A reverberação mescla e
dá riqueza aos sons.163 (PIERCE, 1985, p. 135)
162
Tradução minha. Original: When music making (of any kind) and music education are carried out with
careful attention to (1) musical expressiveness and many social, cultural, political, and others contextual factors
that affect music making and listening.
163
Idem. Original: El sonido reflejado, o reverberación, es todavía más importante para el público. Una vez oí
una grabación de órgano de tubos que se había hecho en el área del órgano. Sonaba como un órgano
electrónico porque no había reverberaciones. La reverberación mezcla y da riqueza a los sonidos.
164
Tradução minha do título Los sonidos de la musica, livro de John R. Pierce editado em 1985, em Barcelona.
161
165
A figura 40, elaborada/atualizada pelo designer gráfico Tig Vieira a partir de imagen de John Pierce, possui
tradução na ilustração da reverberação pelas linhas: “Onda sonora directa / Reflexión de pared R1 / Reflexión de
pared R2 / Reflexión del techo R3 / Reflexión del escenario R4” (PIERCE, 1985, p. 135, tradução minha).
162
Costumo enfatizar aos artistas que pensar na reverberação do som no teatro inicia-se
no simples deslocamento na área de trabalho, o ato de caminhar produz sons que levam em
163
164
Chamo o ambiente acústico de paisagem sonora. Por esse termo, quero designar o
campo sonoro completo onde quer que estejamos. É uma palavra derivada de
paisagem, embora, diferentemente desta, não seja estritamente limitada ao ambiente
externo. O ambiente ao meu redor, enquanto escrevo, é uma paisagem
sonora.166 (SCHAFER, 2009, p. 14)
A destacada frase de Murray Schafer é poesia, nos leva ao lado do autor no imaginar
seu ambiente. Hans-Thies Lehmann também usa paisagem sonora em sua publicação Teatro
Pós-Dramático ao comparar peça de Bob Wilson como junção (visual) entre o cinema mudo e
166
Grifo meu.
165
(sonora a) o rádio-teatro. Os exercícios que utilizo para paisagem sonora no módulo “O som
do ator [no espaço]” jogam com a composição do ambiente possível de ser imaginada na
sonoplastia do rádio-teatro. Relevante salientar paisagem sonora, nesse aspecto, não na
inserção da vocalidade. Em grupos, os alunos-atores se revezam entre emissores e receptores,
em que os ouvintes sentam no meio da sala com os olhos fechados enquanto os agentes
sonoros compõem diversos ambientes, mesclando os componentes do som e da música
estudados anteriormente.
O educador musical canadense publicou um livro para educação sonora, com
indicação de exercícios para “limpeza de ouvidos”. Schafer sugere que os leitores se
apropriem dos jogos e os utilizem como acharem necessário. São vários exercícios que
cruzam prática e percepção da paisagem sonora, tais como:
166
Para uso de materiais para aprender conceitos musicais e para fazer música na cena
teatral, em um olhar participativo e interdisciplinar, utilizo equipamentos como 1) suporte
pedagógico, 2) possibilidade de uso do mesmo em cena. Em 2014, na UFGD, elaborei, em
contato com o artista Rodrigo Bento, o que chamo de “máquina quaternária” – instrumento
para estudo e visualização dos tempos e compassos na audição de músicas. Na turma 1B, os
alunos-atores, com baquetas, batiam o tempo de acordo com escuta de material sonoro.
167
Para contextualização desta temática, e sua relação com o estado de Mato Grosso do Sul, sugiro leitura do
artigo publicado pelos professores da UFGD Simone Becker (Professora da Faculdade de Direito e Relações
Internacionais), Esmael Oliveira e Marcelo da Silveira Campos (Professores da Faculdade de Ciências
Humanas): “Guarani-Kaiowá: ‘Onde fala a bala, cala a fala’” (2016).
167
Experimentou-se como indicativo a mão direita para os tempos ímpares e a mão esquerda
para os tempos pares, cruzando as mãos simulando o instrumento musical bateria. Utilizou-se
a máquina quaternária como exemplo (VD11)168 e o uso de outros objetos que poderiam
servir tal qual a referida máquina quando em jogo coletivo de toda a turma – escolhemos
bancos de plástico (e os numeramos) para tocar com as baquetas.
A turma possuía afeto com os jogos da máquina quaternária, mescla com diversão e
prazer na experimentação rítmica; alguns discentes motivavam-se como bateristas. A referida
máquina é um material criado com fins didáticos, mas é possível entendê-la como acessório
para uso em cena. Os acessórios musicais cênicos são materiais diversos para a composição
musical no teatro, objetos que servem para percussão e acompanhamento de músicas, ou
objetos adaptados para referência harmônica.
168
Este exercício encontra-se em 18’55” do arquivo de vídeo-demonstração anexo à tese.
169
A imagem foi elaborada a partir de uma fotografia da montagem porto-alegrense “A Arca de Noé” (2011),
teatro musical a partir das músicas de Vinícius de Moraes, direção de Zé Adão Barbosa e direção musical de
Marcelo Delacroix. A foto original de Luciane Pires Ferreira capta a atriz Lívia Perrone em uso de instrumento
musical não tradicional confeccionado para o espetáculo.
168
170
Curso “O corpo fala: som e movimento do gesto à cena”, promovido pela Sociedade Italiana de Educação
Musical em 2014 na cidade de Macerata na Itália; módulo “Pausas e tempos por uma dramaturgia atorial”
(Stefano Leva).
169
pessoa, pode ser o professor, toca um bongo ou instrumento similar para dar ritmo (VD12)171.
O desafio é de simples compreensão e execução que tem dificuldade na sincronia. O objetivo
do som da percussão é deixar claros os quatro tempos (sem apenas tocar os quatro tempos, é
interessante mesclar células rítmicas), e começa com a seguinte instrução aos atores que estão
posicionados frente às cadeiras: sentar em quatro tempos. Após, levantar em quatro tempos.
Como mencionei, embora a compreensão seja simples, a aplicação sincronizada leva tempo.
Podemos imaginar o exercício como uma grande coreografia visual-musical. Nas variações
seguintes do jogo, os atores devem andar em volta das cadeiras em oito tempos (dois
compassos de quatro tempos) e sentar na cadeira no tempo número um do próximo compasso:
anda em 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 e senta, todos os atores juntos. Outras variações podem ser
criadas com essa atividade.
Da interação ao ouvir o instrumento executado por outrem ao próprio ator tocar
instrumentos musicais em cena, a relação requerida é similar: apropriar-se dos sons. Muitos
espetáculos teatrais buscam atores que possuam algum conhecimento de instrumentos
musicais, geralmente não precisam da virtuosidade técnica do ator-músico, mas de certo
domínio do artista na utilização do equipamento – que, dependendo do tempo para montagem
e especificidade (dificuldade) do instrumento, pode ser adquirido no processo de ensaios e
criação do espetáculo. Jean-Jacques Lemêtre defende, e compartilho de sua afirmação, que
todos os atores podem tornar-se, também, músicos com a prática musical em cena – este é um
dos objetivos da presente iniciação musical para atores, mas não o único já que o universo
musical pode abrir diferentes campos para o trabalho teatral. O aluno-ator que deseja
desbravar o ato de tocar instrumentos em cena pode experimentá-los e desafiar-se nos
equipamentos em que tem interesse. Iniciar na percussão pode ser um ponto de partida, como
parte do elenco da sul-mato-grossense Cia. Última Hora em apresentação teatral de rua:
171
Este exercício encontra-se em 22’22” do arquivo de vídeo-demonstração anexo à tese.
170
171
interagir com os sons que produzem mediante seus equipamentos, criar tal sentido de forma
que suas participações sejam necessárias mesmo que toquem apenas um som no instrumento,
mas um som que contribua com o todo – como um toque de pratos (címbalos) que só é
executado no final da música com sentido de conclusão ou para remeter a algo na cena.
Acredito ser importante ressaltar que a apreensão de instrumentos musicais por atores
é um processo individual e deve partir do desejo de cada artista, e quanto mais conhecimento
ele buscar fora das salas de ensaio teatral, de preferência com professores de música do
requerido instrumento ou colegas artistas que possam auxiliá-lo nos estudos individuais,
melhor poderá desempenhar ação cênica interagindo com seu equipamento sonoro. Lembro
mais uma vez, aqui, o princípio aventado por David Elliott na busca de “desenvolvimento
pessoal com divertimento musical” (2015).
No desenvolvimento das relações entre teatro e música no presente módulo, retomar
pensamento no espaço de apresentação faz parte do planejamento da disciplina. Materiais,
objetos, instrumentos como acessório do ator para musicalidade na cena teatral: atentar à
reverberação e à direção em propagação do som no espaço, ou seja, pensar no caminho da
sonoridade entre a produção e a recepção.
Em trabalho com canto em cena, parto do princípio que trabalhar com o ato de cantar
no teatro é estimulante para os artistas que executam a música, principalmente em poéticas
nas quais se permite cantar diretamente ao público em quebra/aparte da ilusão ou narrativa,
enfatizando o aqui-agora. Não raro acontece uma interação com os espectadores em que o
sensível está no diálogo e na presença. Pode-se retomar afirmação dos artistas de teatro
musical Joe Deer e Rocco Dal Vera: que a música no teatro “pode transportar uma plateia
para lugares que poucas outras experiências conseguem” (DEER, DAL VERA, 2013, p. 01).
Os citados autores comparam este lugar de sensação como catarse, o que podemos pensar
como um lugar de fortes emoções, embora, neste caso, estejam implícitas as posturas poéticas
e ideológicas dos autores em defesa de um teatro musical, digamos, tradicional, com fortes
visitações ao mergulho na ficção e, consequentemente (do prisma que observo), menor
possibilidade de criticidade em relação ao entorno social. Tais posicionamentos não devem
ser tomados como as vertentes mais efetivas de canto cênico, mas como alternativas caso os
intérpretes almejem as referidas imersões. O canto em cena é uma das formas mais claras da
172
relação participativa da música no teatro, mas é apenas uma das possibilidades de interação;
além de ressaltar essa afirmativa, creio ser relevante enfatizar: nem todos os espetáculos
teatrais que utilizam canto cênico podem ser considerados “teatro musical”.
Entendo teatro musical como um gênero teatral em que sua característica está nas
músicas como condução da narrativa, canções nas quais as personagens abordam seus
sentimentos, ações, estratégias, relações, e as músicas cantadas possuem relevante espaço na
dramaturgia e na montagem, e são fundamentais para o entendimento da obra. Na linha desse
pensamento, teatro musical seria o que Joe Deer e Rocco Dal Vera classificam como
“histórias musicadas” (DEER, DAL VERA, 2013, p. 01). Costumo comentar com os alunos-
atores: pense em uma obra teatral que utilize músicas cantadas pelos atores, ao tirar estas
músicas será possível entender a obra? Tal pergunta é um dos indícios para observar se a peça
pode ser considerada teatro musical, apesar de necessitar de outras análises para indicar
categorização. Aliás, a categorização na atualidade não é exercício saudável; as obras
artísticas não precisam ser exatamente enquadradas em respectivos lugares; vivemos em
época de hibridização, em que as influências se misturam e podem ser observadas por vários
ângulos. Às peças teatrais que utilizam músicas cênicas, mas não em quantidade ou condução
narrativa que sugere o gênero musical, prefiro chamar “teatro musicado” ou, o que acredito
ser recomendável, apenas teatro. É uma peça teatral com músicas cantadas, não precisa de um
nome específico. Todavia, esse entendimento é subjetivo e passa pela percepção de cada
artista, da mesma forma que uma peça teatral com músicas cantadas não precisa ser
categorizada como musical, uma peça sem inserção de músicas convencionais ou sem canto
cênico pode ser considerada como teatro musical. As escolhas e nomenclaturas passam pelo
processo de criação e identificação da obra com os conceitos que os artistas elegem e/ou
vivenciam.
Há um universo de possibilidades para o ator utilizar o cantar em cena. Discorro a
respeito de uma alternativa que considero poética e pertinente no teatro contemporâneo, o uso
das canções cantadas pelos atores para comentar a cena – um dos recursos utilizado por
Bertolt Brecht (1898-1956) para distanciar a plateia do “mergulho na ficção” comum no
teatro anterior à sua época.
O comentário musical cantado da cena enfatiza o acontecimento, mostra posições das
personagens ou dos atores acerca das ações cênicas. Exemplifico com a obra teatral “Tartufo”
(2011), de Molière, encenada pelo Grupo Farsa de Porto Alegre (RS), da qual participei do
processo de criação. A montagem teve abordagem teatral contemporânea, no sentido de não
apenas representar o texto do dramaturgo francês, mas trazê-lo às relações pessoais dos atores
173
173
Montagem do Grupo Farsa contemplada pelo edital 01/2010 do FUMPROARTE – Fundo Municipal de
Apoio à Produção Artística e Cultural de Porto Alegre. Estreou em 2011 com direção de Gilberto Fonseca. Nesta
cena – Damis feito por Vinícius Meneguzzi, Dorine por Ariane Guerra, os outros atores participavam da música.
174
alunos, de exemplos de música cênica para estudos, estimulo que pesquisem obras brasileiras
como peças teatrais do Grupo Galpão, de Belo Horizonte (MG), do Grupo Ponto de Partida,
de Barbacena (MG), da Cia. do Latão, de São Paulo (SP), da Tribo de Atuadores Ói Nóis
Aqui Traveiz, de Porto Alegre (RS), dos Clowns de Shakespeare, de Natal (RN), dentre
outros grupos e artistas que costumam trabalhar com músicas cantadas no teatro, bem como
incentivo que o aluno pesquise por grupos internacionais para ampliar sua percepção e escuta
a respeito do canto no teatro.
Gosto de citar como exemplo de canto cênico, no teatro contemporâneo, a montagem
de “Luis Antonio – Gabriela”174, da paulista Cia. Mungunzá de Teatro, com estreia em 2011,
que percorreu o Brasil com seu espetáculo em 2013 através do Palco Giratório175. Na peça, os
atores cantavam e tocavam instrumentos musicais em determinadas cenas para comentar,
referenciar ou enfatizar ações em contraponto, como a chocante cena em que o protagonista
apanhava de seu pai enquanto o agressor cantava uma bela canção – o que aludi (percepção
pessoal) à alienação paterna ou estado de espírito. As leituras são diversificadas, mas há em
comum a poética a ser lida; teatro performativo com crítica pertinente à sociedade a respeito
de temática que perpassa as questões de gênero – e a intolerância que existe frente ao exposto.
A encenação tratava de (é inspirada em) acontecimentos reais, a plateia passa a ser cúmplice e
é instigada a posicionar-se.
Há distintas formas de trabalhar canto cênico com os alunos-atores em curso de teatro.
Como ponto inicial é relevante observar os anseios dos estudantes. Para chegar às escolhas
poéticas, o grupo pode, antes, partir das diversas gradações de conhecimento musical em que
os artistas se encontram. Como exercício, no módulo “O som do ator [no espaço]”, propus
que os alunos utilizassem os conteúdos musicais, cantar em uníssono, cantar em duas linhas
melódicas, trabalhar com a dinâmica; sem esquecer a expressividade, conforme aponta David
Elliott. É possível dizer que expressividade para o ator é conteúdo ou atribuição que não
apresenta dificuldades de trabalho. Entretanto, não trata apenas do ser expressivo, mas dos
sentimentos que compõem a música na relação pessoal, interativa com o grupo, e na ponte
para o espectador – pensar no contexto. Por exemplo, a música não será “triste” só porque a
letra da canção remete a tal sentimento, mas quais padrões musicais posso trabalhar para
possibilitar diálogo de uma expressividade requerida, e em qual contexto será apresentada
para qual público?
174
Argumento e direção de Nelson Baskerville; direção musical, composição e arranjos de Gustavo Sarzi.
175
Projeto do SESC – Serviço Social do Comércio.
175
Além de lembrar dos padrões musicais no canto cênico, nessa etapa, apresentei o
176
cânone com uma alternativa de trabalho vocal na música cantada. Como referência, é
possível apresentar o cânone como eco. Nesse trabalho, imaginemos a turma dividida em dois
grupos, o grupo 1 inicia a cantar uma música quaternária começando no tempo 1, o grupo 2
inicia a mesma música no tempo 3, criando duas vozes da mesma linha melódica em
desencontro. Há uma forma de trabalho com o cânone que aprendi com Sabine Oetterli que
considero prazeroso de escutar e executar. São 3 trechos de uma canção, cada trecho com 2
compassos quaternários, basicamente o trecho 1 é cantado na nota fundamental; o trecho 2 na
terça da fundamental; o trecho 3 no 1o compasso utiliza a 5a da fundamental e o 2o compasso
em sua oitava. Os alunos aprendem primeiramente toda a música cantando juntos (em
uníssono), depois, divididos em três grupos, começam a cantar por trechos: o grupo 1 canta o
trecho 1, quando for para o trecho 2 o grupo 2 inicia o trecho 1, ao final teremos um grupo no
trecho 3, outro no 2, outro no 1, resultando uma harmonia vocal (acorde) em cânone
(VD13)177.
176
É possível pensar no cânone como imitação: “Esse tipo de imitação, onde cada voz repete exatamente a
mesma melodia, é chamada CÂNON [cânone], da palavra grega indicativa de firmeza e regularidade. (As
expressões RONDA e CÂNON são usadas, às vezes, como sinônimas, mas há uma diferença que as distingue:
na ronda a segunda voz entra quando os versos da primeira frase chegam ao fim, enquanto no CÂNON a
segunda voz pode entrar quando a primeira ainda estiver no meio do verso)” (HOLST, 1998, p. 86).
177
Este exercício encontra-se em 24’14” do arquivo de vídeo-demonstração anexo à tese.
176
estadunidense surge como “A música ‘repetitiva’, além do caráter quase excêntrico da sua
insistência maquínica, que impressiona à primeira escuta, tem que ser ouvida como uma
música que abdica da construção melódico-harmônica para focalizar o pulso” (Idem, p. 194).
Wisnik elabora cruzamentos e discorre sobre o tom e o fazer musical em afirmações e
negações, “A música tonal afirma e nega o tom. A música serial nega e não afirma o tom. A
música minimal não afirma e não nega o tom. A música modal não nega e afirma o tom”
(Idem, p. 211). A síntese do autor brasileiro é interessante, e nos remete a instabilidades na
música atual que pode não saber negar ou afirmar, uma vez que o tonal é tanto considerado
ultrapassado como usual ou presente no início do século XXI. Identifico nas palavras de
Wisnik aproximação do contemporâneo com o minimalista, uma vez que ele não afirma e não
nega o tom. Me aproximo do pensamento de Wisnik como me aproximo de Claude Abromont
e Eugène de Montalembert, ao observar que no século XX os compositores buscaram novas
cores e percepções com o fim de renovar o universo tonal. Entendo adequada a palavra
renovação. As experimentações do campo atonal no século XX deram liberdade aos artistas e,
talvez, a certeza de que não há certezas.
Atonalismo parte II: não há leis. Abromont e Montalembert:
Na música atonal, nenhuma lei rege a combinação das notas, do qual se desprende
rapidamente uma tendência: a complementaridade cromática. Se imaginamos que
existem sete notas diferentes da escala cromática, então a música em geral também
incluirá os cinco sons faltantes. 178 (ABROMONT; MONTALEMBERT, 2005, p.
330)
178
Tradução minha. Original: En la música atonal, ninguna ley rige la combinación de las notas, de lo cual se
desprende rápidamente una tendencia: la complementariedad cromática. Se imaginamos que se tienen siete
notas diferentes de la escala cromática, entonces la música por general también incluirá los cinco sonidos
faltantes.
179
Idem. Original: Ningún lenguaje y ninguna técnica parecen imponerse; por el contrario, la diversidad parece
ser la regla. Cada vez más, las fronteras entre los diferentes universos se tambalean.
177
frente ao tonalismo, não seria demasiado negá-lo? Nesse sentido, prefiro pensar no atonalismo
como multiplicidade de experimentação dos sons, também passando pelo ouvido do receptor
que escuta o material sonoro, um trecho de uma música tonal em improviso livre sem regras
dentro da cena teatral, pode ser percebido como atonal quando as referências ao sistema tonal
não importam, quando não há a busca ou necessidade de afinação, por exemplo.
O enfoque que põe em diálogo o atonal e o experimental, sem a necessidade de regras
e nos quais a sensação toma primeiro plano, é abordagem final do módulo “O som do ator [no
espaço]”: “Não é raro encontrar na música para cinema ou televisão o uso extensivo do
180
atonalismo para expressar psicologias complexas e criar tensão ou suspense”
(ABROMONT; MONTALEMBERT, 2005, p. 330). Ao trabalhar com a turma 2C na UFGD,
notei três percepções a respeito do ouvir e fazer música atonal, (1) o sentimento de liberdade
porque “não tem como estar errada” a execução musical que não se quer presa ao sistema
tonal (e a nenhum outro sistema musical); (2) o sentimento de estranheza porque as
experimentações em determinados momentos não pareciam música aos ouvidos dos
participantes; (3) o medo de que o “tudo pode” leve a “nada ser”, e vejo este apontamento
como substancial: a liberdade tolhe? Se a atonalidade com Cage estava também em 4’33” na
paisagem sonora, é possível voltar a uma das questões iniciais: o que é música? A resposta
está nas vivências pessoais e na práxis cultural e social. Todavia, no teatro o todo interessa,
todas as sonoridades que compõem a obra no acontecimento. Se vamos ler em determinadas
ocasiões trechos tonais, atonais, experimentais, acredito que as sensações devam estar frente
ao pensamento nos (ou dos) modos. Pego emprestado o título da filosofia da educação
musical, de David Elliott, em jogo de palavras para dizer que a música importa. Qual, não
importa181.
No pensamento a respeito da atonalidade, a sugestão para o debate em sala de
aula/ensaio teatral pode estar na “música não tradicional”. Ao pensar nos centros urbanos
brasileiros, a “música tradicional” pode ser vista como aquela oriunda do sistema musical
ocidental tonal, não necessariamente tonal, relacionando vínculo com a música de massa
veiculada nas sociedades capitalistas no Brasil e em outros países. Seria pensar em tradição
como usual, ou seja, as músicas a que as pessoas têm acesso facilitado, as aceitam e não
possuem dúvidas que tais conjuntos sonoros sejam música; utilizando o conceito de tradição
180
Idem. Original: No es raro encontrar en la música de cine o televisión el uso extensivo del atonalismo para
expresar psicologías complejas y crear tensión o suspenso.
181
No sentido de que todas as músicas podem ser relevantes de acordo com a abordagem de quem está na
produção ou na recepção, todas as músicas importam, por isso não é preciso especificar determinado modo ou
gênero como referência principal ao trabalho entre música e cena.
178
de Kalina Vanderlei Silva e Maciel Henrique Silva (2005): “Em sua definição mais simples,
tradição é um produto do passado que continua a ser aceito e atuante no presente. É um
conjunto de práticas e valores enraizado nos costumes de uma sociedade” (p. 405). Nesse
sentido, a música atonal não é tradicional às sociedades ocidentais urbanas se entendemos que
tradição “pode estar atrelada ao conservadorismo e ao resgate de períodos passados
considerados gloriosos” (Idem, p. 408). A música atonal, definitivamente, não é conservadora.
Uma ressalva se faz necessária: o cuidado de não classificar toda a música tonal, ou vista
como “tradicional”, como conservadora, o atual debate é complexo e exige cautela em
afirmações, a crítica – ou o olhar – existe em maior grau à sociedade. E com esse pensamento,
outros modos e/ou tipos de músicas se encaixam no guarda-chuva de música “não tradicional”
nos centros urbanos, como a música indígena. Se configura um paradoxo: nas cidades
brasileiras a música indígena não é tradicional. A frase não é totalmente correta, e até
engraçada de se conjecturar porque todos sabemos, como brasileiros, que nossa tradição
“ligada ao folclore, à cultura popular e à formação de identidades” (Idem, ibidem), está
vinculada ao indígena. Todavia, o elemento factual nos deflagra 1) a negação seletiva das
cidades às culturas indígenas; 2) a falta de conhecimento da sociedade a respeito do índio.
Logo, é possível dialogar com os alunos-atores a respeito de “música não tradicional” como
materiais (modos) provavelmente desconhecidos pelos mesmos, bem como o entendimento da
atonalidade.
Na tentativa de ampliar debates e também contemplar a música indígena na
preparação musical para atores, principalmente pela aplicação da proposta de estar em
construção na universidade douradense, gosto de pensar na influência ou nos ecos indígenas.
A música como rito, conexão com a terra, o canto com “todo o corpo”, são fatores que o ator
contemporâneo pode pesquisar no pensamento de um corpo que é musical. É possível ter para
si que os indígenas em seus cantos e danças entregam-se ao ato, se pensarmos que tais ações
são costumeiras em suas vidas. Há crianças, jovens, adultos, idosos em diálogo musical-
corporal, como podemos perceber no estudo de Graciela Chamorro:
179
ecos indígenas, presentes, inclusive, em algumas festividades brasileiras. Pensar em tais ecos
também é uma abertura ao ruído na música, como inserções percussivas de objetos e materiais
que podem virar instrumentos musicais, e a observação em possíveis criações que saiam de
um “padrão tradicional”. No ano de 2015, no período em que as aplicações dos
jogos/exercícios com as cartelas “quadradas” com a turma de “Música e Cena” eram
constantes, aproveitei para trabalhar ecos indígenas com a leitura musical simplificada no
grupo coral da universidade – que contava com minha regência e com alguns alunos das artes
cênicas como participantes-cantores. Com esse intuito, elaborei escrita musical
alternativa/experimental para a música “Homenagem ndopo ijayvu”182, para relacionar com o
nome do coletivo de cantores, Grupo Coral da UFGD Ndopo ijayvu, no
cruzamento/inspiração a partir de experiências derivadas de projeto de extensão e montagem
artística183. O nome do grupo coral nasceu da vontade dos participantes de dialogar com o
canto indígena – já que a cidade de Dourados e o Estado de Mato Grosso do Sul possuem
representatividade do povo Guarani Kaiowá, mesmo que, como foi deflagrado (Subcapítulo
2.4), os cidadãos locais “urbanos” infelizmente pouco conheçam da cultura indígena. Ndopo
ijayvu significa algo similar a “escuta o canto” em guarani. Na escrita musical experimental,
os coralistas que não sabiam ler partituras expressaram contentamento ao conseguir
acompanhar as notas que sobem e descem em sons agudos e graves no pentagrama com a
duração visível nessa peça, ou seja, ao acompanhar as notas musicais com o dedo na partitura
impressa, o coralista sabe exatamente o tempo de produção do som. Tal contentamento estava
justamente na dificuldade em acompanhar a partitura musical tradicional, pois nesse grupo
coral as outras peças estudadas eram peças comuns de repertório para corais, escritura usual.
Como resultado dessa interação, temos um trabalho com observação à música indígena, a
tentativa de deslocar formas tradicionais, e a satisfação do intérprete iniciante na leitura
musical sistematizada. No entanto, caio em outro paradoxo: se a inspiração para o referido
exercício está nas músicas indígenas, distintas em suas aplicações, por que a tentativa de
sistematizar a leitura? Percebo que neste momento misturei anseios, 1) a tentativa de
contaminar-se por ecos indígenas; 2) a vontade de trabalhar leitura e conhecimento musical de
forma facilitada em diálogo com a música “tradicional”. Seria adequado separar as aplicações,
haveria de se instigar mais a experimentação e o desprendimento ao registro, difícil mediar a
condução dessa prática. Acredito ser preciso ampliar o estudo e a execução a partir dos sons
182
Esta peça musical experimental encontra-se nos anexos digitais – mídia que acompanha a tese.
183
Projeto de extensão (UFGD) intitulado “Cantos e danças Guarani e Kaiowá” coordenado pela professora
Graciela Chamorro, que inspirou a montagem artística – teatro-dança – de “Ára Pyahu: des/caminhos do contar-
se”, com direção da professora Carla Ávila e minha orientação/colaboração musical.
180
descobertos pelo grupo, dos ruídos adquiridos, distanciando-se, ao abordar “música não
tradicional”, de formatações prontas. Em atualizações desse módulo, há de se tentar
evidenciar a criação/apropriação coletiva na relação com o contexto e os materiais sonoros.
Ao final de disciplina que problematiza “O som do ator [no espaço]”, pondero ser
relevante discutir a tensão entre compasso complexo e atonalismo. Creio haver similaridade
entre os conceitos, uma vez que ambos podem remeter ao ouvinte a sensação de “quebra” na
estrutura usual da música dita tradicional, mas há de se deixar claras as diferenças entre os
termos para que não se configurem dentro de um “emaranhado” de complexidade. Se
pegarmos um pensamento latente e raso, pode-se dizer que o atonal está para a harmonia e
melodia como o compasso complexo está para a estrutura rítmica da música; ambos formam
uma cisão no pensamento mais básico da música tonal em compasso simples ou composto.
Todavia, a título de exemplificação, uma música pode ser atonal (sem tonalidade) e
estruturada em compasso quaternário, ou (o que não é difícil encontrar) pode ter compasso
complexo e ser tonal. Nesse aspecto, são conceitos totalmente independentes.
Na presente proposição de preparação musical para atores, “Música e Cena II” possuiu
enfoque no espaço de ensaio e de apresentação teatral, sobretudo na reverberação dos sons e
no estudo e diálogo com o atonalismo. Acredito que nas aplicações experimentais na UFGD
conseguiu-se observar a influência que o local tem (como agente) no ator para a emissão
sonora, conforme sugere César Lignelli (2014), pois os alunos-atores utilizaram o módulo,
que na universidade douradense está situado no último ano da graduação, para direcionar (ou
traçar cruzamentos com) suas vontades de pesquisa e montagens artísticas que podem estar,
em princípio, em seus trabalhos de conclusão de curso (ampliaremos tal vertente no Capítulo
4). O ator não precisa querer pesquisar a musicalidade cênica para ter uma abordagem crítica
e prática da música no teatro em seu trabalho artístico; sendo a sonoridade inerente às artes da
cena, ampliar seu repertório conceitual no universo entre teatro-música é dispositivo com
potencial para ampliar a liberdade e criatividade do artista.
O som para o ator, que som seria? Todos os sons que os criadores de um espetáculo
teatral inserem na obra. No teatro, em primeira leitura, pode-se afirmar existir os sons
produzidos pelos atores, como o som da voz e as sonoridades oriundas das ações e
movimentações corporais; e os sons fora do ator, como a trilha sonora, sonoplastia, efeitos
181
sonoros. Digo “primeira leitura” porque é uma visão introdutória, ao aprofundar e fazer novas
leituras verifico que todos os sons são interligados no que podemos chamar totalidade sonora
no acontecimento teatral, os sons externos, os sons voluntários, os sons involuntários, a
presença do espaço na organização e movimentação sonora. Acresça-se a esse pensamento a
tecnologia, pois o som pode ser considerado fora do ator, mas produzido pelo mesmo ao
apertar de um botão. Com esse pensamento proponho, na atual etapa, enfoque na música e na
tecnologia. Da trilha sonora que pode compor uma paisagem – olhar na cena, a observar
equipamentos que produzem os sons a interagir com o ator – olhar na técnica. Se o aluno-ator
imbuir-se dos padrões musicais, poderá ouvir uma música gravada utilizada em cena e dizer
se há qualidade na execução, ou se o som pode ser mais bem definido: na relação de
frequência (altura), por exemplo, ao observar que tal música está sem agudos. Desde o
princípio da presente pesquisa, a indicação ao aluno dialoga para sua interlocução com os
sons. Da mesma forma que um ator pode vestir um figurino e dizer que é preciso fazer ajustes
porque a peça está prejudicando seu deslocamento, ao ouvir sons externos dele – para ele –
pode interferir e pedir ajustes visando interação fluida.
No módulo “O som para o ator [música e tecnologia]”, a proposta sugere que o aluno-
ator visite elementos técnicos do som ligados à tecnologia disponível em salas de ensaio e
espaços de apresentação; e procure notar a parte técnica de áudio em cruzamento com o teatro
performativo, para buscar apoio que pode transitar para o criativo. Ainda, ao aluno para seu
repertório: olhares nas possíveis contribuições e ciladas do microfone no espetáculo de teatro;
quais são os equipamentos de som usuais em edifícios teatrais; como fazer conexões de
instrumentos eletrônicos. Some-se um viés da composição sonora para teatro (como material
gravado), estuda-se a introdução ao uso de programas (softwares) de edição de som, efeitos,
para uso do artista.
Tecnologia é um termo amplo. De possíveis armadilhas do homem rudimentar contra
seus predadores, à invenção da roda, ao tempo atual, “o conceito de tecnologia engloba a
totalidade de coisas que a engenhosidade do cérebro humano conseguiu criar em todas as
épocas, suas formas de uso, suas aplicações” (KENSKI, 2012, p. 23). Na contemporaneidade,
é comum observarmos diálogos mais presentes, sobre tecnologia, na relação com o virtual e
eletrônico:
182
183
184
Tradução minha. Original: To implement our music technology-integrated curricular program, we
incorporated five categories into our music lessons, namely: 1) making cell phone ring tones, 2) creating sound
effects, 3) creating background music for stories, 4) making sound effects for videos, and 5) making commercial
music. These five categories were selected because we deemed them most suited to raising the interest of
students of the Internet generation. As part of our music technology integrated curricular program, we combined
the following fields of study: introduction to computers (practical computer science), roles of music in everyday
life (music), computer literacy (information communication education), expression of thoughts and feelings
(Korean language and literature), comparing one’s thoughts and feelings with others’ (Korean language and
literature), and aspects of the information age and their impact on everyday life (social studies). These activities
were incorporated into the music curriculum for fifth- and sixth-graders.
184
Dos três módulos de preparação musical, “Música e Cena III” pode ser considerado,
em maior grau, experimental em comparação às disciplinas iniciais. Na UFGD é matéria
eletiva, os alunos-atores optam pela matrícula. Não é essencial, no sentido impeditivo, ao
artista cênico o estudo entre música e tecnologia para a cena, mas é, acredito, libertador e
fornece dispositivos de criação do ator à cena. Por tais fatores, recomendo a todos os meus
alunos que participem da disciplina e procurem imbuir-se do uso de aparatos técnicos do som
e da música para articulação teatral.
185
Tradução minha. Original: Perspectivas extraordinarias se han abierto gracias a la aparición de los
instrumentos electrónicos (o digitales) y a la generalización paulatina de la informática. Hoy día es posible
crear timbres inauditos, imprimir las propias partituras, practicar la improvisación, elaborar y analizar
polifonias, sincronizar música a imágenes, experimentar con diferentes temperamentos, tocar con microtonos,
etcétera.
186
Tradução minha. Original: "Ser musical" -la protección de la musicalidad- se convierte en una cuestión
fundamental donde la tecnología ordena y construye una política del conocimiento musical.
185
186
cena busquem mídias de áudio para remeter a lugares, visando uso no teatro para construção
do imaginário espacial pelo espectador; tais como os sons de uma floresta, os sons de uma
cidade movimentada, os sons característicos de uma praia, a estrutura sonora de um aeroporto,
além de diversos outros exemplos possíveis. É uma opção para uso de trilha sonora no teatro:
remeter ao lugar de origem por meio dos sons. Remeter ao lugar de origem pode estar
conectado a um país ou região, na inserção de músicas típicas do local.
Outra alternativa para uso de trilha gravada no teatro diz respeito à expressividade, ao
sentimento. A inserção de uma música para criar um suspense, por exemplo. Essa opção está
conectada ao que o filósofo da educação musical canadense David Elliott discorre, que a
sensação está na pessoalidade, é subjetiva, mas alguns padrões musicais geram similares
reações devido ao nosso contexto cultural e social. Para exemplificação, em nossa sociedade
um acorde menor e contínuo (som sintetizado de cordas, strings) em execução que dura
aproximadamente dois minutos, dinâmica crescente partindo do pianíssimo (intensidade
muito fraca) ao fortíssimo (intensidade muito forte); é possível que dialogue com sensações
como tristeza, apreensão ou angústia para os espectadores. Inserir músicas prontas e/ou
elaboradas para outros fins na cena teatral é uma via a ser observada. Trilha pesquisada ou
adaptada. Para sentimentos similares ao exemplo anterior, inserir a música “Standchen”
(Schwanengesang, D 957: no 4) de Franz Schubert (1797-1828), por outros padrões musicais,
pode ser uma alternativa.
No caso da inserção de uma música gravada pronta, há de se pesquisar o contexto
original e o contexto de seus usos. No Brasil, não há como inserir o início de “O Guarani” de
Antônio Carlos Gomes (1836-1896) e não nos remeter (aos brasileiros) à política ou ao
governo – devido ao uso da trilha no programa de comunicação do governo federal de nome
“A voz do Brasil”187. No teatro, inserir músicas gravadas de outros artistas é exercício que
precisa de pesquisa e estrutura, porque (1) às vezes a música pode remeter ao artista original
ou a contextos de outros usos tirando o foco da montagem, por exemplo usar a música “The
entertainer”, de Scott Joplin (1867-1917), pode ser fator que despotencialize a cena devido ao
excessivo uso dela no teatro e no cinema – o que possibilita ao espectador a conexão com
outras obras artísticas que talvez não tenham relação com a nova aplicação; (2) a liberação
das músicas para o uso no teatro é tarefa delicada e necessita planejamento.
A indicação aos alunos-atores que desejam inserir músicas gravadas prontas em seus
espetáculos teatrais, está no estudar as possibilidades. Por exemplo, nas músicas de domínio
187
Noticiário de uma hora de duração com veiculação obrigatória em rádios abertas no Brasil, com o referido
nome desde a década de 60 – oriundo da “Hora do Brasil” iniciado na década de 30.
187
público não há problemas para seu uso no teatro. De outras alternativas possíveis, se uma
canção popular for extremamente necessária em sua obra teatral, você pode entrar em contato
com os escritórios responsáveis pelos direitos autorais e negociar pagamento para liberação
(de acordo com o número de apresentações), ou tentar entrar em contato diretamente com o
artista ou com sua produção. O que acredito ser a melhor alternativa: criar sons e músicas
inéditas para o espetáculo teatral. A trilha sonora original, além de trabalhar com a identidade
da montagem, dialoga com o processo de criação de todos os elementos no teatro; e a
liberação de uso é conversada diretamente com o artista que está na montagem teatral.
Observou-se que a trilha sonora gravada pode indicar o lugar em referência e/ou agir
como interlocução expressiva, outro uso está na “base gravada” para utilização do canto
cênico. Os criadores de trilha sonora que entrevistei em 2010, em minha dissertação, são
praticamente unânimes em preferir que a instrumentação de uma música para canto no teatro
seja feita ao vivo, mas em algumas montagens a gravação da base musical instrumental pode
ser melhor alternativa estética, ou por parte da viabilidade da produção e circulação da obra.
Considero que a base instrumental gravada para o canto ao vivo não é “playback”, pensado
como “karaokê”, se o criador de trilha sonora teatral pesquisou formas de execução da trilha
como composição da cena, de maneira que o(s) instrumento(s) poderia(m) ser tocados ao vivo
dos bastidores, coxias, ou outro lugar não acessível visualmente ao público. Há “playback” no
teatro quando todas as informações sonoras da música cantada são gravadas anteriormente,
como os instrumentos musicais e as vozes, e os atores “dublam” em cena – tal execução é, do
prisma que observo, muito difícil de ser assertiva no teatro. Parto do princípio de que dublar
uma canção em cena só é coerente se o ator busca efeito cômico, ou deixa claro que a
dublagem é sua proposta, também se utilizado em cenas que referenciam a dublagem tal como
utilizada em shows de drag queens, ou seja, quando o propósito é realmente dublar e não
enganar o público.
Acredito que a maior dificuldade do canto cênico (ao vivo) com a base instrumental
gravada resida na sincronização dos tempos e compassos fixos com as vozes (que podem
executar o canto de diferentes maneiras a cada apresentação), os atores necessitam de um bom
retorno, precisam estar ouvindo nitidamente a base para ter liberdade no canto.
Da trilha à sonoplastia, os sons concretos – termo utilizado em cruzamento com a
música concreta que “tinha a sua estratégia na gravação de ruídos reais” (WISNIK, 2002, p.
47) – podem agir como componentes de comunicação no espetáculo teatral; tais como o som
de uma batida de porta, o som do disparo de um revólver, o som do sino de uma igreja, o
“tique-taque” dos relógios, som de máquinas, motor de veículos, da derrapada dos pneus de
188
um automóvel, o estilhaçar de uma vidraça, uma lista sem tamanho de sons presentes no
cotidiano das sociedades e que oferecem leituras aos espectadores. Esses sons podem ser
executados em mídia de áudio, sons gravados e aplicados a momentos específicos na obra.
Lívio Tragtenberg (1999) discorre sobre cineastas com duas linhas de pensamento na
trilha sonora; há quem prefira que o som seja coadjuvante, no qual o espectador nem percebe
que se inseriu uma paisagem sonora, e há quem prefira que o som seja protagonista, que ajude
a contar a obra. As duas opções são possíveis, tanto no cinema como no teatro, inclusive a
mescla das duas linhas de pensamento na mesma obra em momentos diferentes. Percebo duas
aplicações padrões as quais exercito com os alunos-atores: (1) a música ou o som concreto
reafirma a ação/imagem; (2) a música ou o som concreto contrapõe a ação/imagem. Por
exemplificação da primeira opção: uma canção romântica reafirma uma cena romântica,
facilmente identificável em muitos filmes e peças teatrais. Já a contraposição da música com a
cena existe em aplicações diversas. Gosto de mostrar aos alunos a cena sexual de amor no
filme “Watchmen”188 (2009) conduzida pela música “Hallelujah”189, os padrões musicais e a
letra que remete ao louvor religioso, são elementos que ajudam a compor a cena mesmo em
distorção – informações distintas que se completam na cena, na qual a música fica em
primeiro plano. Outro exemplo com sons concretos que não reafirmam diretamente a imagem,
poderia estar no “tique-taque” do relógio sincronizado com imagem de um coração batendo.
Quais informações os criadores poderiam trabalhar neste exemplo? Alusão do corpo como
máquina? Alusão ao tempo e à contagem regressiva para a morte? Novamente pode-se
afirmar: questões abertas, leituras possíveis – não é necessário (nem possível, tampouco
aconselhável) resolver todas as perguntas, as respostas (caso sejam) dadas estarão no contexto
cultural e social em que se encontra o espectador.
Na aplicação de “Música e Cena” na UFGD, os alunos-atores trabalharam com
pesquisa de trilha e sonoplastia para uma cena individual. Algumas regras foram dadas para o
jogo: os alunos deveriam encontrar no mínimo três inserções sonoras/musicais gravadas que
dialogassem com suas interpretações cênicas. Na aula em que foram executados os exercícios,
um aluno interagia em cena e outro operava o som, todos passaram pela pesquisa de sons para
suas cenas e operaram o som para algum colega. Como resultado, os estudantes acharam
difícil interagir com os materiais escolhidos sem que ficassem aleatórios, bem como
apontaram dificuldades (notaram a responsabilidade) em operar o som na cena de um colega.
Os exercícios mais bem sucedidos mostraram que suas inserções sonoras eram necessárias
188
Filme dirigido por Zack Snyder, a partir da história em quadrinhos de Alan Moore (DC Comics).
189
Originalmente escrita e gravada pelo artista canadense Leonard Cohen (1984).
189
para o andamento da cena, não o contrário em que a cena está pronta e a pesquisa de sons vem
depois. Ressaltei aos alunos: se tirarmos o som ou a música e nada acontece, a cena fica igual,
qual a necessidade de mantê-lo? Ainda: a inserção sonora ou musical que não se unifica ao
corpo do ator e à cena, se não há relação constante, é gratuita. Há a necessidade de pensar nas
inserções sonoras não apenas como protagonistas ou coadjuvantes, ou como agentes de
contradição ou reafirmação, mas na musicalidade do teatro e sua expressividade, no jogo com
os padrões musicais na cena/ação performativa.
Um dos princípios que utilizo nessa etapa está na apropriação dos materiais sonoros.
Então, independentemente das escolhas estéticas dos artistas da cena em relação aos sons
inseridos na obra teatral, há de se ter interlocução dos atores com os sons, e do todo com o
público. Do contrário, as trilhas ou sonoplastias inseridas são subutilizadas ou desnecessárias.
190
produzidos os sons fazem toda a diferença na composição da cena. Nos edifícios teatrais
temos usualmente duas caixas de som apontadas aos espectadores, chamadas de “P.A.’s”
(public address). Como, geralmente, o palco é frontal aos espectadores e as P.A.’s estão ao
lado do palco, não é raro observar discrepâncias no teatro quando a informação visual está
desconexa com a informação sonora. Em minha visão, o artista cênico é quem deve ter a
sensibilidade de resolver problemas deste âmbito para uma junção de todos os elementos no
teatro; neste caso ele poderia pedir ao técnico que os sons da paisagem sonora saíssem apenas
do palco. Nos edifícios teatrais também é comum haver monitores de retorno, ou apenas
retorno, que são caixas de som direcionadas ao palco para que os artistas em cena possam
ouvir a (re)produção direta. Esse exemplo não poderia ser solucionado de forma simples se o
artista pedisse que os sons saíssem exclusivamente dos monitores de retorno? O princípio
pedagógico presente está na busca de conhecimento técnico para potencializar ações.
Um cozinheiro não compra qualquer batedeira para fazer um bolo: ele se informa da
potência, estabilidade, duração, especificidades, e isso tem relação direta com a massa
(resultado) que consegue: é ele quem vai usar a máquina. Nesse comparativo com as caixas de
som enfatiza-se: é o ator quem vai utilizar tal tecnologia. Os espectadores também, mas no
conjunto, ou seja, eles não estão no teatro para ouvir a trilha e sim para sentir e experimentar a
totalidade. Nesse prisma, é possível perceber a importância de transitar entre cena e técnica, e
o reforço que faço está no perceber que facilmente um aluno-ator desiste de olhar para estas
questões, ou simplesmente não se interessa, por achar que é responsabilidade de outro
profissional do teatro. Trata-se de questões distintas. São necessários outros profissionais
responsáveis pelas sonoridades de uma obra teatral, de funções criativas a técnicas, o que não
exime, na abordagem que proponho, que o artista cênico busque compreender o
funcionamento da cena para melhor interagir com o todo.
Aguçar a escuta, limpeza de ouvidos como propõe Murray Schafer, está no entrar no
edifício teatral e perceber que o som do ar-condicionado pode interferir negativamente na
cena. O ator deve fazer o exercício de ouvir os sons do espaço de apresentação e, então, terá a
propriedade de dialogar com os mesmos. O primeiro ponto de aparato técnico de som para o
ator é o direcionamento das caixas de som, tanto para paisagem sonora como na trilha que
servirá para o canto ou para diálogos expressivos em cena.
191
A utilização e referência aos exemplos nos edifícios teatrais é similar no teatro de rua
ou em espaços alternativos/não tradicionais. Ao instalar caixas de som no espaço de
apresentação, há de se pensar a propagação do som no ambiente. Possivelmente, para melhor
equalização em espaços abertos, o uso de várias caixas de som possibilitará execução estável,
sem que seja preciso muita potência em um ou dois focos (re)produtores de som para
abranger o espaço – a distribuição das caixas valoriza a dinâmica. Em referências técnicas, é
melhor espalhar no espaço de apresentação quatro caixas de som com potência “x” do que ter
uma caixa com potência “4x”, apesar de aparentar a mesma possibilidade de intensidade
sonora. Potência no teatro interessa muito menos do que dinâmica.
Para introduzir estudo em outro aparato de som que não raro é utilizado no teatro, o
microfone. Uma pergunta: microfone e teatro são palavras que combinam? Difícil responder.
Tentei encontrar um exemplo em alusão para facilitar essa relação, na tentativa de escrever o
que sinto sobre essa combinação que acredito possível – mas complicada e às vezes terrível. É
uma relação que pode passar de interessante a desastre em um detalhe. Seria como um
perfume que pode melhorar a apresentação de uma pessoa, mas precisa ser na medida porque
com uma borrifada a mais é um exagero e age contra? Até o exemplo em alusão é
complicado. Existem diversas maneiras de usar microfones no teatro, a que considero mais
difícil é a utilização de headset – microfone fixo na cabeça do ator em haste que pode estar na
testa ou do ouvido à boca, que pode ser dito ao microfone de lapela – preso no figurino, em
suma: microfones sem fio com um transmissor em alguma parte do corpo do ator, que servem
para amplificar a voz do artista nas P.A.’s. O problema está (1) na amplificação de outros sons
e ruídos indesejáveis, uma respiração ofegante, o atrito do figurino; (2) na qualidade técnica
da captação que varia dinâmica não pela intenção da fala do ator, mas por diversos fatores
fora do ator; mas sobretudo (3) quando o som da voz fica desconectado do corpo do ator.
192
193
194
nas caixas de som. O exercício é divertido e mais difícil do que parece. Os alunos que
assistem têm uma compreensão do todo, da mesma forma a pessoa que está no centro, mas
quando ela necessita posicionar-se em um lado e continuar na escuta do outro não é tarefa
simples.
Outros exercícios simples podem ser passados aos alunos-atores para que se sintam à
vontade com suas vozes; para que pensem no microfone não só como amplificação, mas
como possibilidades criativas no teatro e na performance. Como exemplo, cito
performance190 que não saiu do papel, mas em cujas possibilidades pensei em conjunto com o
professor Francisco Gaspar Neto (FAP/UNESPAR): imagine colocar um alto-falante na
cabeça de um performer e vê-lo andar pelo movimentado centro de uma cidade, onde um
outro performer, distante, fala o que quiser (sem ser visto); o professor paranaense e eu
imaginamos o artista com o equipamento na cabeça tachando as pessoas à sua volta com
rótulos sociais de padrão de beleza, por exemplo, e com o possível incômodo dos transeuntes
em relação à fala do performer que carrega o alto-falante: “não sou eu, só está na minha
cabeça”. No exemplo, temos uma ação performativa que só é possível com o uso e
apropriação de equipamentos sonoros.
Trabalhar com aprendizado técnico musical para a cena, em princípio desperta maior
interesse em quem pesquisa a sonoridade teatral. Todavia, quando pensamos no fator criativo
que tais elementos sugerem ou dialogam em uma montagem cênica, transitar em conceitos
técnicos pode auxiliar o ator desde o processo de ensaios às apresentações.
Nesse pensamento, também introduzo aos aluno-atores, no módulo “O som para o ator
[música e tecnologia]”, conceitos básicos a respeito da mesa de som, principalmente para que
a turma observe a equalização e os efeitos possíveis. O artista cênico não precisa dominar o
conhecimento de uma mesa de som, porém reconhecer alguns parâmetros de conexão e
organização servem como suporte para que ele possa, caso necessário, utilizar o equipamento
em cena – já que o teatro performativo abre essa possibilidade: operação em cena. Em
exercício aplicado na UFGD, sugeri que os estudantes atentassem para 6 especificidades
básicas da mesa de som, também chamada de mesa de mistura do som: canais (numerados),
entrada (IN), equalização (EQ), controle de volume individual (dB), controle de volume total
(Main) e saída (OUT).
190
O artista paranaense pensa em executá-la com o título “Talking Head”. Nas versões que penso em aplicar a
partir de Dourados (MS), imagino ação com nome “auto-falante” ou “alto-chapelante”.
195
Na figura acima temos os princípios básicos de uma mesa de som de quatro canais.
Cada canal representa quantas informações sonoras poderemos inserir ao mesmo tempo, uma
mesa de quatro canais no teatro pode ser suficiente, o mesmo não acontece em shows
musicais em que precisamos canais para cada instrumento musical e para cada microfone (em
canais diferentes). Na faixa amarela está a entrada (IN), que é o local onde “entra o som”,
onde de deve conectar os cabos – do computador, do microfone, do instrumento musical ou
demais aparelhos (re)produtores. Na parte cor-de-laranja temos a equalização (EQ), a qual
estudaremos na sequência. Abaixo, na linha verde, há o controle de volume (dB) individual,
ou seja, se conectados um notebook no canal 1 e um microfone no canal 2, o espaço
destacado serve para ajustar intensidade do som de cada canal. À direita e abaixo, temos o
controle de volume de todos os canais juntos, usualmente chamado Main e geralmente com
dois botões/dimmer que significam esquerda (L) e direita (R) – referentes às caixas de som à
esquerda e à direita em conexões stereo. Por último, a saída (OUT), que são botões e
conectores (jack) de saída da mesa para o amplificador (se preciso), e para as caixas de som.
Outros equipamentos poderiam ser conectados ao sistema de som, um equalizador, um
aparelho para efeitos, dentre outras alternativas. Da mesma forma, é importante ressaltar que
existem mais botões e aplicações em uma mesa de som do que fora destacado, e quanto mais
sofisticada a mesa maior a gama de ajustes de som – a partir daí é preciso estudo específico ao
profissional que deseja ampliar conhecimento técnico de som. Entretanto, as indicações
introdutórias servem para organizações básicas ao artista cênico interessado em utilizar, ou
observar, o equipamento de som em cena.
O aluno-ator que apreendeu o conteúdo de altura como componente do som, e fez
cruzamento com a frequência do som, encontrará na equalização (na mesa de som) uma
196
Três botões que significam frequências agudas (High), médias (Mid) e graves (Low).
A equalização parte de todos os botões no nível zero (0), chama-se tal ação de “flat”. A
equalização serve para corrigir sons que em sua entrada apresentam deficiências em algumas
frequências. Por exemplo, se o microfone de uma pessoa está “chiando” muito, pode-se
atenuar os agudos para diminuir o som de “sh”; se um instrumento musical soa com poucos
graves, está “sem peso”, pode-se amplificar os graves. A partir desse entendimento, o aluno-
ator pode experimentar equalizações e observar como a organização interfere no resultado
final da sonoridade. Cortando frequências em uma música é possível obter sons que remetem
ao tipo de sons produzidos por um rádio antigo, por exemplo.
Atribuição que considero mais útil na atual etapa de preparação musical para atores,
em cruzamento de música e tecnologia, está nos efeitos. Uma mesa de som pode ter efeitos,
mas também se encontram outros aparelhos que trabalhem nessa área – como os pedais de
efeitos para vozes ou instrumentos musicais, que iniciam efeito por meio de um interruptor
acionado com o pé. Ao observar microfones headset, no espetáculo teatral “Quartett”, de Bob
Wilson, montagem em que a voz do ator era modulada (inserção de efeitos) em tempo real – o
que causava deslocamento na plateia com o todo na obra do encenador estadunidense;
imagine uma condução corporal-vocal calma do ator que ao virar-se bruscamente adquiria
outra cor (imagem e voz), como em fúria seu corpo se tornava vermelho e a voz ficava
distorcida – e depois em um movimento voltava ao normal. Considero tal espetáculo de
Wilson um excelente uso de cena e técnica em relação contínua.
Nuno Fonseca afirma que “Os processadores de efeito são uma ferramenta essencial
no trabalho com áudio, quer seja para corrigir determinados problemas quer para fins
criativos” (FONSECA, 2007, p. 107). Segundo o autor português, existem alguns efeitos
197
padrões em mesas de som ou programas de edição: delay, que cria o que podemos chamar de
eco; reverb, que lida com diferentes tipos de reverberação; modulação “efeitos que provocam
a modulação do som, nomeadamente o chorus, o flanger e o phaser” (Idem, p. 117); distorção
e overdrive, muito utilizado em guitarras elétricas onde o efeito satura o sinal; pitch-shifter,
que altera a altura do som; detune, que pode deixar o som mais “aveludado”; exciters, “são
efeitos que geram harmônicos adicionais” (Idem, p. 121); variação de amplitude como um
tremolo, dentre outros. Na turma 3C da UFGD, fizemos exercício em que o grupo montava o
equipamento a ser utilizado na cena: uma mesa de som com efeitos, ligada à uma caixa ativa.
Na mesa de som conectamos um microfone dinâmico e um reprodutor de áudio (notebook). O
exercício colocava um ator frente ao microfone e outro ator na mesa de som para (1)
experimentar frequências em equalização; (2) escolher algum efeito para determinado fim.
Após eleita a organização sonora, eles combinavam os momentos de uso do microfone e da
inserção de efeitos ou outros sons, em uma narração dirigida à plateia. O resultado foi
satisfatório, praticamente todos os alunos-atores gastaram a maior parte do tempo no
manuseio dos efeitos; não por ser atribuição difícil, mas pelo leque de possibilidades que
gerava à cena.
Em outro exercício com a mesma turma, unindo todos os aparatos de som estudados,
no jogo da radionovela. Divididos em três grupos, montamos um equipamento no espaço de
ensaio – com microfones (dinâmico e condensador), mesa de som com efeitos, pedal de
efeitos vocais e monitor de retorno; fora do edifício, na rua, levamos uma caixa de som para o
público. Os alunos do grupo em execução ficavam na sala, e os outros apenas escutavam o
exercício na rua – atraindo a atenção de alguns transeuntes para as mirabolantes e
melodramáticas histórias improvisadas. Os alunos utilizaram o microfone condensador para
efetuar sonoplastia ao vivo, e os dinâmicos para narração e para as personagens. O princípio
pedagógico de divertir-se com o fazer sonoro-teatral concretizou-se em todas as etapas dos
exercícios com tecnologia de áudio.
Nessa etapa do módulo “O som para o ator [música e tecnologia]”, as fronteiras ficam
mais “borradas” do que já era possível observar: os temas, estudos e aplicações vão ganhando
caráter mais complexo, que parece se distanciar do objetivo inicial que é trabalhar com
preparação musical para atores, lidar com conhecimentos musicais para a cena – na relação
que parte do ator, passa pelo jogo com as sonoridades no espaço e observa a tecnologia
disponível como ação criativa. Na proposição do conjunto da obra, os três módulos servem
apenas como ponto de partida, no desejo de despertar curiosidades para que o ator sinta a sua
necessidade de ampliar relações no universo entre o teatro e a música.
198
199
200
193
“Música e Cena I” no Projeto Político-Pedagógico do Curso de Artes Cênicas (PPC) de 2013 era ofertada no
segundo ano do curso da UFGD, na atualização presente no PPC de 2015 a referida disciplina foi transferida
para o primeiro ano do Curso, e “Música e Cena II” para o quarto ano. O último PPC também contou com a
inserção de “Música e Cena III” como disciplina eletiva. Apesar do curso douradense ser semestral, o
pensamento “por ano” deriva do planejamento da oferta das disciplinas – que é anual.
201
em que se encontrava uma das turmas194 de “Música e Cena I” em 2015: o “Projetão”. Tal
projeto prevê uma construção teatral para apresentação no fim do segundo ano de curso, que
procura interação interdisciplinar em todas as disciplinas ofertadas no semestre em prol da
montagem de um espetáculo – que é dirigido pelo professor que ministra a disciplina
“Encenação II”. Foi pensado para que os alunos-atores tenham experiência compartilhada na
criação e apresentação teatral, e para que os discentes possam escolher posteriormente,
possivelmente com maior embasamento ou vivência teatral, o caminho a seguir no curso:
bacharelado ou licenciatura – na universidade douradense o ingresso na graduação em Artes
Cênicas é unificado, e no terceiro ano os alunos fazem a escolha de habilitação. Logo, foi
comum observar que a turma que estava no “Projetão” procurava relacionar os conteúdos de
“Música e Cena” para a montagem195.
Nos subcapítulos que seguem, pretendo analisar como material de pesquisa a
manifestação dos alunos-atores a partir dos exercícios em sala de aula, estudar o
posicionamento falado e escrito dos discentes196 de acordo com as provocações que eles
receberam por meio dos jogos, explanações teóricas, audições, visualizações e leituras; e de
que forma a conclusão dos discentes são estímulos de retorno que fomentam uma preparação
musical para atores. Opto por não escrever o nome dos alunos por entender que a pesquisa
está no desenvolvimento e na troca de experiências do grupo como um todo. Parte dos
princípios pedagógicos norteadores das disciplinas de “Música e Cena” serão revisitados na
interlocução com os discentes.
194
No capítulo 3 e na pesquisa survey desta tese, as turmas de “Música e Cena I” do 2o semestre letivo de 2015
da UFGD são tratadas como uma turma, pois se tratava da mesma disciplina; a única diferenciação neste
semestre se deu na oferta de dois dias, duas turmas da mesma matéria, uma na segunda-feira à noite para os
alunos do primeiro ano e outra nos sábados pela manhã para os alunos do segundo ano; o que no presente
capítulo chamo de turma 1 (T1) e turma 2 (T2).
195
No ano letivo de 2015, com a sexta turma de Artes Cênicas da UFGD, o “Projetão” montou “Liberdade,
liberdade” de Millôr Fernandes dirigido pelo professor João Marcos Dadico Sobrinho. Anteriormente desde o
início do “Projetão”, a segunda turma em 2011 montou “Sonho de uma noite de verão” de William Shakespeare,
direção João Marcos Dadico Sobrinho; a terceira turma em 2012 fez “A alma boa de Setsuan” de Bertolt Brecht,
espetáculo dirigido pelo professor Gil de Medeiros Esper; a quarta turma, 2013, elaborou “Marat-Sade” de Peter
Weiss, com direção do professor Braz Pinto Junior; em 2014 a quinta turma montou “Um chapéu de palha de
Itália”, de Eugène Labiche, dirigido pela professora Maria Regina Tocchetto de Oliveira.
196
Foram inseridos relatos/respostas, neste capítulo, de todos os discentes que se manifestaram nos referidos
encontros, exceto trechos repetidos de alguns alunos que aparecem nas escritas ou falas de outros estudantes. É
importante informar que alguns discentes, principalmente nos diálogos sobre a lógica do quadrado, preferiram
não se manifestar e julgaram melhor apenas acompanhar debate da turma.
202
Ao final da lógica do quadrado, primeira etapa da disciplina “Música e Cena I”, nós,
professor e alunos, sentamos para dialogar sobre como o trabalho reverberava naquele
momento197 na turma. A provocação lançada por minha pessoa em forma de pergunta foi
sucinta: “como vocês chegam ao final desta etapa?”, na tentativa de possibilitar abertura aos
posicionamentos pessoais. Em momento anterior, comentei que naquela conversação não
existia “certo” e “errado”, e sim impressões – as quais compartilharíamos no coletivo como
construção/movimento do conhecimento.
O presente subcapítulo poderia se chamar “Transcrição de aula”, de forma similar a
como aborda o educador musical Murray Schafer no seu livro O ouvido pensante (1991, p.
96), por também tratar-se de transcrição198 de diálogos com a classe, e pela inspiração para
este subcapítulo a partir da experiência do professor canadense – observações a partir da fala
dos alunos. Na disciplina ofertada na UFGD, a conversação iniciou em sala de aula após
repetição da música-exercício “Teu ta-ko”. Atento que um dos princípios pedagógicos
norteadores, que busca o aprendizado musical enfatizando a experimentação e as ações
corporais, esteve aliado ao desejo de alcançar desenvolvimento pessoal com divertimento
musical – segundo David Elliott (2015, p. 381).
ALUNA 2: Como eu tocava, quando eu comecei foi bem assim – qual o instrumento,
ensina a soprar as notas e a ler a partitura, e não passou por toda essa parte teórica. E esse
[formato de aprendizado] é bem básico. [Relatando experiência em banda] Eu sempre tive
problema com contratempo, ou eu ficava esperando a percussão – eu tocava junto com a
percussão, ou eu olhava para a mão do regente e esperava, mas nunca tive uma parte teórica
básica, talvez me daria apoio pra conseguir tocar o contratempo. Tiveram até que me trocar de
instrumento porque eu não conseguia tocar o contratempo. E essa teoria básica me deu uma
noção boa.
197
Na turma do segundo ano, T2, tal momento se deu no dia 27/02/2016, e na turma do primeiro ano, T1, a
conversação foi na data de 29/02/2016.
198
Arquivo de vídeo gravado em sala de aula.
203
ALUNA 4: Eu achei muito interessante isso, que a gente vê a música e não percebe o
que está por trás. Eu sempre ouvia a bateria, mas não sabia que o baterista segue o pulso.
Nesse momento, a turma interage e lembra de exercício proposto em sala de aula para
este coletivo de alunos-atores, que estavam em processo de montagem teatral. No jogo
passado tentou-se analisar as falas do texto que os atores estavam decorando (para o
“Projetão”), e relacionar com os padrões musicais, utilizá-los para a construção de cada frase.
ALUNA 4: Eu tive dificuldade de usar o pulso na fala, a gente pode usar o pulso e a
música em cena, não como na dança, na fala, mas eu ainda tenho dificuldade em compreender
como posso utilizar o pulso em uma cena.
ALUNA 5: Com essas aulas eu pensava que ia ter problema, muitas dúvidas, mas vi
que você aproveita, começa a conhecer, começa a pegar, fica marcando os sons, e aí eu fui ler
o meu texto e peguei da aula o que ficou marcado de pensar a música na leitura. Na hora em
que fui ler fiquei observando que tudo pulsa.
ALUNO 6: Duas coisas que eu queria comentar, primeiro é que eu não sabia nada de
música, eu tinha até um certo receio, um travamento psicológico... Eu até negava, sabe? Se
tinha uma proposta de música eu saía. Então, essa lógica do quadrado me abriu outra área, eu
posso tentar, eu posso conseguir entender alguma coisa. Segundo, em questão da cena eu já
estou “pirando”, por exemplo, no compasso, o compasso divide momentos da música, e eu
comecei a pensar que podemos dividir a cena, o espetáculo, em momentos como a divisão do
compasso, ou seja: em tal cena eu tenho que entrar, em tal compasso eu entro. A partir do
momento em que você deu o “play” na música é a mesma coisa com o espetáculo. Ou se
pensar em escrever a dramaturgia, dividir a história.
204
ALUNA 4: Ficou claro para todo mundo no momento de fazer o jogo juntos; mas os 5
tempos eu não sei diferenciar [o compasso complexo neste momento não tinha sido
trabalhado].
ALUNO 5: Eu acho legal a parte da teoria, porque tem coisas que a gente faz
naturalmente como, por exemplo, colocar uma entonação na fala. Quando eu vou ler o texto
naturalmente já dou uma ênfase em alguma fala, e quando a gente vem com a teoria, de
alguma forma damos ênfase na palavra sabendo o que estamos fazendo. Tenho experiência
com teatro amador, então existiam aplicações do teatro que eu já fazia, mas não sabia a teoria,
não sabia que tal coisa era do Stanislavski ou era do Brecht, e depois com os estudos parece
que vai abrindo mais, você começa a ficar conectado com aquilo, e com a música também,
você começa a entender como funcionam as notas musicais, como funciona o pulso que está
ali atrás, você começa a entender [de forma diferenciada] o ritmo.
205
ALUNO 8: Pegando o gancho, o tempo real, parece que dentro dessas informações
técnicas sobre a música, nos dá uma noção maior para perceber o tempo individual, tempo
psicológico, dialogando com o tempo real.
ALUNO 9: Eu uso muito o canto como atividade, e uma das principais dificuldades
que eu tenho é não conseguir fazer uma leitura da música, eu cantava mas não estava
entendendo como entendo agora, não entendo tudo, mas agora eu tenho uma noção que a
música pode ser em 4 tempos, ela pode ser em 3, ter tantos compassos, ela pode ter um
andamento mais rápido, um andamento mais lento... O entendimento da música é difícil.
ALUNO 10: Como eu gosto muito de músicas, gosto um pouco de cada gênero,
quando eu comecei a aprender esses exercícios eu comecei a buscar nas músicas, usar as
técnicas que eu aprendi na matéria, e ficava tentando encontrar o andamento, encontrar o
pulso, é lógico que em algumas eu não consegui encontrar, mas muitas músicas que são
populares eu consegui escutar e encontrar o tempo, o pulso, e é uma maneira diferente de
206
escutar música, agora parece que você vê mais detalhes, percebe a construção da música,
então você pode até encontrar detalhes da pessoa que escreveu. É uma nova maneira de
escutar.
ALUNO 11: A colega [que também é da área da dança] pode concordar comigo, como
a gente trabalha muito com música, trabalha com coreografias, a gente fazia algumas coisas
sem saber como eram essas divisões. Hoje eu consigo, na verdade até falei para minhas alunas
dessas semanas para cá, da facilidade que eu consigo passar para elas essa maneira de dividir
a música junto com o corpo, junto com esse conjunto todo, e mesmo tendo uma outra didática
nunca tinha aprofundado [na dança] a respeito da música com o corpo.
ALUNA 12: Como eu sou formada em balé clássico, então a gente tem algumas
noções, é lógico que na nomenclatura eu era bem perdida em algumas coisas, eu percebi que
as aulas foram bem importantes, até a forma que a gente passou a transmitir pro aluno ficou
totalmente diferenciada. Possuindo uma compreensão maior a gente consegue transmitir
melhor. A gente da dança, quando falam para nos movimentarmos é uma coisa muito
orgânica, e essa coisa do parar e pensar, eu não consigo escutar uma música e não pensar nela
coreograficamente, hoje eu escuto a música e também começo a procurar o pulso, começo a
querer procurar outras coisas que a gente viu na aula, facilita muito mais o trabalho.
ALUNA 13: Quando eu comecei a ter contato maior com a música, com instrumentos,
eu comecei mais com a cifra. A cifra para mim era mais fácil, o dó é representado pela letra
“C”, o ré pela “D”, e quando chegou na partitura eu falei “o que é isso?”, um monte de
bolinha que representava uma nota, para mim era muito difícil. E na lógica do quadrado, cada
uma das células rítmicas passadas, e no conjunto, querendo ou não são partituras, só que de
um modo mais simplificado, e antes quando me explicavam a partitura tradicional eu achava
tão maçante que eu acabava não aprendendo nada, e desta forma detalhada e dinâmica
facilitou muito para eu compreender melhor, e acho que até para ler uma partitura
possivelmente ali na frente.
ALUNO 14: Sei que agora a gente vai começar a trabalhar mais ainda, mas o que
achei interessante é que tenho afeto com algumas pessoas nessa turma, temos projetos juntos,
e nos ensaios com eles eu percebi, observando esses mesmos colegas, que após praticar esses
207
exercícios as pessoas que falavam que não conseguiam dançar, querendo ou não estão
dançando, os estudos ajudaram na expressão corporal.
Como conclusão dessa etapa, vejo a importância de trabalhar com o básico da teoria
musical tradicional, tonal, para que os alunos-atores tentem libertar-se de possíveis barreiras
pré-concebidas em cima de músicas e canções que fazem parte de seu dia-a-dia. Conceituar e
sentir no corpo as propriedades do som e da música, por exemplo, pode possibilitar o
sentimento de emancipação.
Rudolf Arnheim sugere na arte partamos do simples, dos aspectos estruturais, e
embora o autor alemão explane sobre percepção visual, há elementos que podemos absorver
na iniciação musical. Tal espectro como princípio na presente preparação musical para atores
foi assimilado, o que os alunos chamam de básico e demonstram sentimento comparável à
felicidade ou empolgação por conseguir desenvolver um exercício rítmico em seu corpo, está
no trabalho com elementos musicais simplificados, ou direcionados para explorar a facilidade
dos discentes. É possível dizer que esse pensamento está presente em educadores musicais
com enfoque na iniciação, na musicalização, como o trabalho da italiana Laura Bassi, que
buscou aplicação teórico-prática musical para crianças por meio da ludicidade e da
contextualização que possibilita fácil acesso aos alunos.
Me parece que os princípios pedagógicos norteadores para a etapa intitulada “Lógica
do quadrado” estiveram presentes na disciplina aplicada na UFGD, possivelmente com ênfase
na busca da simplicidade no intuito de que os alunos tenham facilitada conexão com os
conteúdos musicais. Todavia, há um elemento que desponta como diferenciado, ou ponto a
ampliar, quando penso em Jean-Jacques Lemêtre. De acordo com experiência que tive com o
compositor francês, trabalho de música para atores e não-atores, não me parece que partir de
elementos básicos seja seu norte, mesmo que ele enfatize elementos estruturais a cada início
de aula – sentir o pulso, mas um fundamento que acredito ser decisivo para Lemêtre dialoga
com um universo que busca incentivar o aluno, quebrar paradigmas de que o ensino e prática
de música é para poucos ou para quem possui “dom”: todos podem fazer música. De fato, os
dois pontos se interligam: a busca da facilidade musical do aluno e o ato de incentivar o
estudante. Do ponto de vista que observo, o profissional que age como professor de música no
trabalho com atores que visam ampliar suas relações teatrais-musicais, necessita acreditar em
seu aluno, trocar experiências com o mesmo, valorizar o fato da presença do discente –
levando em consideração que ele está disponível ao aprendizado musical por conta própria.
208
209
“[...] um avião a jato arranha o céu por sobre minha cabeça e eu pergunto: - Sim, mas
isso é música?” (SCHAFER, 1991, p. 119);
“[...] que eles [os atores] se habituem a conviver com as várias vozes que a encenação
exige, ampliando a sua capacidade de escuta cênica” (MALETTA, 2009, p. 30).
“Ao contrário de outros órgãos dos sentidos, os ouvidos são expostos e vulneráveis.
Os olhos podem ser fechados, se quisermos; os ouvidos não, estão sempre abertos”
(SCHAFER, 1991, p. 67);
“Já o trabalho de música voltado para o teatro, quando visto como uma barreira pelo
artista da cena, acaba por amplificar o não saber” (CHAVES, 2013, p. 60).
210
ALUNA 2: Murray Schafer discute com seus alunos sobre o que é música, e decidem
que para ser música precisa ter intenção, coloca como exemplo a lata de lixo, que em cena
pode fazer barulho e ser música, mas o lixeiro não tem a intenção de fazer música – por isso
não faz. Teatro e música estão sempre ligados. Um ator não precisa saber cantar
maravilhosamente bem para se aventurar na música, o que me alegra porque nosso “Projetão”
200
Imagem elaborada pelo artista gaúcho Ricardo Zigomático, por encomenda para a dissertação que concluí no
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2011); com o
seguinte estímulo ao artista visual: “todos os sons fazem parte do teatro”.
211
é um musical, precisamos ter noções básicas da música para poder usá-la a nosso favor, seja
cantando ou usando suas propriedades em cena.
ALUNA 3: Ao pensarmos em música e cena, para muitos [atores] já vem o cantar [...]
Ao estudar o que há por trás, pude ter um outro olhar do que é música.
ALUNA 5: A música chama o nosso corpo, engana-se aquele que acha não sentir o
pulsar. O ator que se limita no desconhecido acaba optando pelo “não saber”. O ator precisa
deixar fluir, o pulso interage com as batidas do nosso coração e acredito ser o coração da
música também.
ALUNO 6: Quão complexo se faz o sistema auditivo do ser humano, e o quão valioso
se faz, principalmente para o profissional das artes, compreender as nuances da captação e
emissão dos sons de modo a enriquecer as experiências individuais e coletivas.
ALUNA 8: Gostei muito de ler o artigo de Ernani Maletta, eu parei para pensar na
minha entrada em um grupo vocal e fui analisar se nós tínhamos trabalhado da forma como
ele mencionou, fiquei com vontade de continuar ensaiando e entrar logo em um novo trabalho
só para tentar fazer daquela forma. [...] Penso em continuar deixando me levar por essa aula.
212
ALUNO 10: Um som pode mudar assim como me acrescentar elementos tantos vocais
quantos corporais na criação teatral, e no convívio com esse mundo polifônico.
ALUNO 12: Abrir os ouvidos para o teatro e a música é perceber seus recursos mais
vitais. [...] Ouvimos o coração bater e isso é música? Tenho dificuldade nesta resposta, mas
uma coisa é certa, meu corpo não é silêncio.
ALUNO 13: O corpo é uma das ferramentas de ajuda na hora do trabalho musical. As
músicas transmitem vários sentimentos, isso pode transformar as cenas e passar para o
público, ampliando [potencializando] ainda mais a encenação.
ALUNA 14: A gente praticamente é som. Só precisamos saber usá-lo a nosso favor.
ALUNO 15: Temos sempre que estar abertos a tudo, ouvir com a maior atenção
possível, e se entregar de corpo e alma. [...] Mesmo tendo um enorme contato com a música,
achei que iria sentir muita dificuldade, mas não foi bem assim. Eu já havia imposto uma
barreira, mas, de ouvidos abertos, de corpo e alma abertos, consegui experienciar tudo. O som
reverbera para todos os lados, devemos ter a consciência que o som nos toca em todo lugar e
de diversas formas.
Ernani Maletta pontua que a experiência corporal na música deve vir antes das
tentativas de construção de definições (2010). Os alunos seguiram tal caminho, e suas
manifestações correspondem a um momento específico, de conceitos que irão se transformar
para cada um deles na sequência de sua trajetória artística. Os princípios norteadores da etapa
“Música e expressão” aparecem na fala dos discentes, na busca de atitude crítica, conforme
Koopman (2009), e na ampliação da percepção corporal na utilização da voz e do som, de
acordo com César Lignelli (2014). Não fixar padrões da música como imutáveis, lembrando
provocação de Bowman (2009), é norte que reverbera de diferentes formas nos alunos-atores,
apenas parte dos discentes enfatizam tal ponderação que seria, talvez, nevrálgica ao pensar
música e cena. Se configura um ponto a reforçar em novas aplicações de preparação musical.
213
ALUNO 16: Na cena podemos usar compassos de várias formas, uma respiração, ou
pausa dramática terá dois compassos em branco, por exemplo. Outro exemplo, a personagem
x tem três compassos para executar sua ação, tudo isso está englobando os outros elementos.
ALUNO 17: Pulso como batidas iguais e constantes, tempo na contagem dos pulsos,
compasso no conjunto de tempos, e ritmo que pode ser utilizado para criar sincronia de ações
durante uma peça de teatro, tanto em trabalho individual como em coletivo. Também penso
que estes elementos podem ser utilizados com recurso para enfatizar ações.
ALUNA 1: O fato de estudá-los trouxe enorme diferença para meu trabalho como
bailarina e professora de dança, pois hoje posso explicá-los, com conhecimento, auxiliando no
desenvolvimento dos meus alunos. [...] Posso caminhar numa sequência de pulsos, no
compasso, realizar gestos conforme determinados tempos, ordenar falas em determinados
ritmos. Pode-se criar uma música com ações, caminhadas, respirações.
ALUNA 14: Cada um tem sua função e todas elas se interligam de forma a “dividir” a
música. Apesar de os termos e sua natureza divisória me incomodarem, a partir destes termos
abre-se um leque de possibilidades, facilitam o trabalho com a música; em cena podem
pontuar pausas, determinar o andamento de uma ação.
ALUNA 18: Precisamos ter noção do ritmo de nossas falas, seguir um objetivo, dar
tempo aos sons, tempos às pausas, conhecer a duração, o andamento do que precisa ser
exposto e as diversas formas de fazer isso, o pulso sendo um apoio.
ALUNO 19: [Os termos] nos auxiliam na execução dos jogos em cena, tanto na fala
dos textos, quanto nos musicais.
214
ALUNO 21: Todos os conceitos citados acima dialogam entre si. Sendo o pulso o que
está na base de tudo.
ALUNO 22: Creio que como ator eu deva utilizar as propriedades do som não só na
voz, mas também através das reverberações corporais (físicas/internas) e sensitivas. [...]
Corpo é voz e voz é corpo, e entender isso me amplia não só a concentração da execução
sonora, mas a elementos teatrais que antes pareciam não se relacionar como a musicalidade
do meu texto, que mesmo não sendo em rimas ou repentes também expressam e comunicam
musicalmente.
215
personagem dentro do timbre do ator pode ser alterada e pensada com as propriedades, como
encurtar ou alongar o tempo das palavras (duração), fortalecer ou enfraquecer a fala
(intensidade), ou tornar a voz grave ou aguda (altura).
ALUNA 14: A consciência das definições [dos padrões musicais], permite que o ator
os use de forma a obter uma variedade de alternativas [para a cena].
ALUNA 23: Primeira forma nítida – me ajudou a compreender a utilizar a fala como
em um jogo, brincando com propriedades que a torne evidente, compreensiva, estética, não
apenas soltando um grupo de palavras sem importância. Segunda não tão nítida ainda (na
verdade, pouco explorado por mim), que meu corpo em cena tem um ritmo, um pulso, um
andamento. Fazer com que exista harmonia entre minhas ações e todos os elementos cênicos,
de forma consciente. Estou parando para prestar atenção nisso. [...] Sentir o contratempo com
mais facilidade, sem ser racional, o que fazia me perder em qualquer coisa que utilizava-se o
contratempo (só de ouvir falar nisso já me bloqueava com o não vou conseguir). [...]
Compreendo que sentir a música é tão importante quanto estudar métodos prontos de
execução [musical].
ALUNA 24: Notei desenvolvimento, até porque tinha muitos bloqueios com certos
tipos de músicas, como tantos outros alunos, mas senti evolução até mesmo por ter tirado
216
esses preconceitos. Quanto você deixa a música guiar seu corpo, não se nota muitas
dificuldades, este é o meu caso.
ALUNO 25: Como artista gosto muito de cantar, já participei de corais, fiz aulas de
técnica e teoria musical, porém sempre me senti com sérias dificuldades em reproduzir a
música em meu próprio corpo. Consegui ter uma base e uma melhor compreensão do meu
corpo e da música, e de como posso utilizá-la.
ALUNO 26: Agora sei que música na cena não é só trilha sonora.
ALUNO 28: Consigo compreender que as músicas não podem simplesmente ser
colocadas ou jogadas em uma cena, elas tem que estar em sintonia.
ALUNA 29: Eu percebi que durante as aulas tudo ajudava em uma conexão com meus
colegas, uma forma de juntar as energias, e fluía de uma maneira harmônica.
ALUNO 30: Confesso que me preocupei com o meu desempenho, acreditava que não
poderia ser ou perceber a música, imaginando algo muito longe de mim, eu me defendia como
“não ritmado”. [...] Pude perceber que já fazia [a utilização dos conceitos musicais em cena],
apenas não percebia.
ALUNA 31: Começamos a ouvir melhor os sons, a prestar atenção nas entrelinhas da
música, conseguimos acompanhar a melodia do que se ouvia.
ALUNO 32201: No meu caso a dificuldade não foi nem tanto em relação aos elementos
musicais, mas sim na parte de interpretação dos mesmos com o corpo. Eu notei
desenvolvimento principalmente em relação ao “não se censurar”.
ALUNO 33: A melhora, principalmente auditiva, vem com os jogos propostos, ouvir o
outro (que para a profissão escolhida é o básico).
201
Único aluno de “Música e Cena I” em 2015 que não era do Curso de Artes Cênicas. Na UFGD os alunos
podem fazer disciplinas obrigatórias de outros cursos como eletivas para si (com a autorização dos colegiados).
Foi o caso deste aluno de Zootecnia que se interessou pela matéria por ser músico.
217
ALUNA 34: Eu tenho um pouco de dificuldade, mas com as aulas fui conquistando
uma pequena evolução no corpo e no entendimento dos elementos do som e da música.
ALUNO 35: Ao meu ver a música em cena do teatro era mais para a criação do
“clima” em cena, agora percebo que a música cria diálogos onde o texto pode ser substituído
pela música.
ALUNA 2: Minha mãe é cantora profissional (quando está lavando louça) e desde
pequena a música sempre esteve presente na minha casa. Na aula tive certa facilidade para
aprender os termos na teoria e alguns na prática também.
ALUNO 11: Notei uma grande diferenciação no meu corpo e na percepção ao ouvir
músicas que já tinha ouvido antes da disciplina, de como pensá-la em cena, trabalhando
minhas intenções e ações em conformidade com os sons. [...] Senti uma leve facilidade no
começo da disciplina por saber ler partitura, e os conceitos passados sempre ficaram claros
para mim, mas sempre senti dificuldade na minha coordenação, porém, em trabalho com os
colegas, consegui ter sucesso nos exercícios e compreendê-los.
218
conhecimento, mas depois essa ideia foi modificada, pois notei que eu tinha um padrão
estético para a musicalidade que não levava em conta. Após compreender isso, creio que a
música será minha aliada no teatro.
ALUNO 17: Abri meus olhos e principalmente meus ouvidos para algo que antes eu
não dava muita importância e principalmente o devido valor merecido: a música no teatro.
[...] Notei o quanto nós somos musicais e como meu corpo é capaz de representar tais
elementos da música, embora eu ainda sinta dificuldade em me livrar de minha autocensura.
ALUNA 1: Hoje sou uma artista/bailarina muito mais pensante [musicalmente]. Senti
um imenso prazer em estudar música, e assim senti a necessidade de ter um conhecimento
mais aprofundado, uma vontade de mergulhar na área.
ALUNA 18: Notei um grande salto na percepção dos sons, tanto através do meu corpo
como nas músicas que escuto, nas melodias dos pássaros, nas gotas que caem do ar-
condicionado. [...] Houve uma ruptura no bloqueio que eu tinha sobre.
ALUNA 20: Já consigo perceber várias coisas em uma música, pois agora presto
muita atenção para identificar o pulso, o tempo. Senti dificuldade, pois é algo muito novo para
mim, e como são muitos nomes e significados, fazem confundir um pouco.
ALUNA 36: Talvez para alguns seja mais difícil e para outros mais fácil, porém todos
conseguem.
ALUNO 15: Cada um, em sua especificidade, contribuiu para o crescimento músico-
teatral de todos, até mesmo os que não tinham “nenhuma noção”.
ALUNA 14: Me enquadrei nos exemplos dados nos artigos, eu realmente tive certo
receio antes de começar a disciplina devido ao meu tal do “não saber”. Estou extremamente
aliviada com o andamento das aulas e com o conteúdo dos artigos. Fico feliz que a minha
falta de afinação é perdoada. As aulas de música e cena me tranquilizaram nesse sentido e me
fizeram prestar mais atenção nos sons à minha volta, sejam eles musicais ou não.
219
ALUNO 12: Me desconstruí. Diria que “saber cantar” na música e cena é perceber,
estar em relação. Teatro é isso, estar em relação com o outro.
ALUNO 7: Ainda que não haja música audível, os conteúdos trabalhados na disciplina
criam condições referenciais de tempo/espaço para ser e não ser o foco da ação em dado
momento. Desta forma, as técnicas ou noções de teoria geral da música, por si só, evidenciam
o quanto são oportunas, adequadas e convenientes, para não dizer necessárias e urgentes.
Certamente por isso ao conteúdo programático do curso de artes cênicas não passam
desapercebidas. Ao contrário, valorizadas.
202
Compartilhada por uma colega no curso “Voz e ação vocal” (2005) ministrado por Carlos Simioni no espaço
do grupo LUME (Campinas/SP), a artista baiana trouxe a canção como referência tradicional das baianas que
lavavam roupa no rio ou lagoa. Encontrei referência ao ato em reportagem que diz “Cantar para aliviar a dureza
do trabalho é tradição que resiste ao tempo. Agricultores e lavadeiras da Bahia ainda cantam o samba de roda
rural” (GLOBO RURAL, 2016). Atualizei o canto como apreendi, na letra da música algo próximo a: “Jesus
prometera que haverá de salvar, a todos fiéis que os pés da cruz beijar, beijemos, rebeijemos, tornemos a
rebeijar, beijemos os pés da cruz que é pra Jesus nos salvar”.
220
o canto, mas em conjunto nós temos a capacidade de enfrentar esse medo com várias outras
vozes, e fazer a música sem mesmo saber como a faz”. O referido exercício com a “música
das baianas” foi emblemático para a turma, por ter potencial de gerar experiência, conforme
aborda Jorge Larrosa Bondía (2002), e por desvelar a relação música e alteridade ao observar
o “outro” e notar que “Essa clara divisão nós/outros é hoje percebida, cada vez mais, como
não tão clara assim” (CAMBRIA, 2008, p. 65), se não é possível definir quem está na posição
de “outro”. Some-se a essa pontuação: “Também essa relação (música e alteridade) pode ser
discutida pensando-se nos chamados ‘estados alterados de consciência’” (Idem, p. 68). No
exercício citado e para o ator do teatro contemporâneo, a música pode estar intrínseca à ação
na tentativa de falar através da experiência, e não no falar sobre; compartilho essa pontuação
a partir de Matteo Bonfitto:
[...] a produção de significado por parte do ator e do performer será associada aqui
com a esfera da representação, portadora de referencialidade, que envolve, por sua
vez, a exploração de intenções. Já a produção de sentido será associada com a esfera
da presentação, portadora de autorreferencialidade, que envolve a exploração de
intensões. De qualquer forma, tais polaridades devem ser vistas [...] não como
instauradoras de dualismos, mas como extremos que constituem continuuns. [...]
Significado e sentido não são opostos que se excluem, mas sim polos que, quando
inter-relacionados, revelam um espaço potencializador de inúmeras possiblidades
expressivas. (BONFITTO, 2013, p. 112)
221
222
grupo de atores que para determinada encenação necessita de afinação para o canto tonal,
possui dificuldades nisso e com a percepção auditiva, e o diretor da obra solicita o
desenvolvimento em poucos meses. Por meio do exemplo não possuo o intuito de afirmar que
seja impossível ser feito o referido trabalho, mas que, nessa situação e a meu ver, aumentam
as chances de exposição desnecessária dos atores se os mesmos chegam inseguros ou
despreparados para as apresentações.
Para as turmas de “Música e Cena I” (2015) na universidade douradense, houve tempo
para trabalhar os conteúdos sugeridos no módulo que enfatiza o som no ator, cerca de 16
encontros204 para desenvolvimento dos conteúdos no turno da noite205. Todavia, é comum que
muitos alunos utilizem parte ou a integralidade de seu percentual possível de faltas
presenciais206, o que resulta na perda de até um quarto (1/4) de aulas por tais discentes. Essa
situação não colabora com o crescimento fluido da turma, pois os jogos que necessitam
conexão ou relação com exercícios trabalhados em aulas anteriores podem deixar lacunas no
entendimento do discente. Com um grupo numeroso, o que foi o caso de uma das turmas
desse módulo com 41 alunos matriculados, o acompanhamento individual dos alunos pelo
professor não é atribuição simples. Acredito que alguns estudantes, principalmente os que não
costumam manifestar suas dúvidas, acabaram com interrogações nessa disciplina: falo de
interrogações comuns de serem solucionadas ou debatidas, sobre os conteúdos, não das
questões que perpassam as inquietações artísticas de cada indivíduo – a respeito destas é
interessante que todos os envolvidos saiam com algum tipo de interrogação na interação
teatral-musical. Percebo tal fato nas perguntas de número dois e três, nas provocações que
visaram posicionamentos escritos dos alunos a respeito de suas apropriações dos exercícios e
conteúdos trabalhados, três alunos deixaram o campo para resposta em branco, não quiseram
se arriscar em posicionamentos pessoais sobre os termos ou matérias discutidas.
Há uma diferença bastante perceptível entre uma preparação musical para atores na
academia e em grupos teatrais. Em cursos de formação é possível que alguma matéria não
seja de grande interesse do aluno, por exemplo: um professor que ministra aula sobre a feitura
de projetos culturais pode não ter a imersão/interesse de todos os presentes, o mesmo
acontece com outras áreas. Na UFGD em 2013, tive uma aluna que relatou fazer “Música e
Cena I” apenas porque era disciplina obrigatória, já que a estudante observava ter algum tipo
204
As disciplinas de “Música e Cena” na UFGD possuem carga de 72 horas. 01 encontro (01 turno) por semana.
205
O Curso de Artes Cênicas da UFGD é noturno e possui oferta de disciplinas, também, no sábado diurno –
caso de uma das turmas de “Música e Cena I” em 2015.
206
Para ser aprovado o aluno necessita ter frequência presencial igual ou superior a 75%, ou seja, o aluno tem
direito a ter 25% de faltas.
223
de trauma com experiências musicais. Percebo também que em sala de aula não raro algum
aluno demonstra não querer participar ou estar distante em pensamento, mesmo de corpo
presente, talvez por outros motivos que não sejam ligados à disciplina, por momentos e
dificuldades pessoais diversas. O fato é que esta “falta de conexão”, pelas experiências
teatrais que vivenciei, não é recorrente em grupos de teatro. Em companhias profissionais, o
trabalho artístico é direcionado e/ou compartilhado, os envolvidos optam por participar dos
exercícios específicos em momentos determinados, se algum artista não tem interesse ou
disponibilidade de mergulhar, entregar-se, em algum segmento do processo de criação,
dificilmente irá continuar.
No somatório dos momentos que considero altos e baixos na troca de experiências
durante a disciplina, relação de maior ou menor interesse entre os participantes e os conteúdos
trabalhados, considero que os alunos compreenderam que se faz preciso que o ator
experimente e pense a respeito da emissão sonora – principalmente por meio de seu corpo/voz
– e da recepção sonora. Mesmo que as apropriações necessitem de maturação ou ampliação
de conceitos, como manifestos que trazem, por exemplo, a voz como “instrumento”, o ponto a
ressaltar positivamente está no posicionamento pessoal. Ao observar que o aluno começa a
ampliar subsídios teórico-práticos para a criticidade a respeito da voz, som e música no teatro,
penso que ele caminha para (ou fortalece) um pensamento autônomo na relação musical com
as artes cênicas. Silvia Davini posiciona-se desfavoravelmente à afirmação da voz como
instrumento musical, partindo do pressuposto que o instrumento é portátil e a voz faz parte do
que somos. Porém, esse ponto de vista da autora não foi visitado na disciplina, e eu avalio
como instigante pensar que: com a leitura da obra de Davini e outras referências sobre esse
tema, caso o referido aluno queira continuar pesquisa, poderá reforçar ou contrapor seus
próprios conceitos. A disciplina, primeiro módulo de preparação musical para atores, já
aconteceu, pertence a ele.
As disciplinas que abordam o som do ator (no espaço) e o som para o ator (música e
tecnologia), “Música e Cena II” e “Música e Cena III” respectivamente, foram ofertadas no 1o
semestre letivo de 2015 – ano em que pude ampliar experimentação em sala de aula para a
presente pesquisa. Na UFGD, “Música e Cena I” é disciplina obrigatória para a Licenciatura e
o Bacharelado em Artes Cênicas, o segundo módulo é obrigatório apenas para o Bacharelado,
224
O insight veio quando fazia a disciplina de “Música e Cena II” [...]. Estávamos
trabalhando reverberação e música atonal e, neste momento, pensei em usar esses
conceitos para incomodar o público, já que o atonalismo é a quebra de padrões – no
caso da música tonal. Pois sim, era necessário incomodar, era necessário dialogar
com a consciência do público. (Idem, ibidem)
Talita Raquel fez uma linda performance em espaço alternativo, uma casa onde o
público se deslocava pelos cômodos junto com a artista, em cada cômodo um momento
dialogado denunciando o que podemos chamar de postura machista presente na sociedade.
Nos espaços diferenciados dentro da casa, havia sons agrupados musicalmente de forma,
talvez, mais experimental-sonora do que atonal, com destaque para dois momentos: uma sala
pequena onde o público ficava “apertado” procurando algo nas gavetas por indicação da
artista, ao mesmo tempo em que na sala ao lado ouvia-se uma composição com som de taças
de vidro em colisão; e quase ao final da performance o público ficava em um porão escuro,
207
Montagem com apresentação efetuada no dia 05/11/2015, no Núcleo de Artes Cênicas – UFGD, com
orientação artística minha em conjunto com os professores Igor Schiavo e Michel Mauch.
208
Performance apresentada dia 04/05/2016 na Casa dos Ventos em Dourados/MS, com orientação artística da
professora Karla Neves, e orientação teórica elaborada por mim.
225
iluminado apenas por uma luz estroboscópica ao som de música eletrônica que continha, em
alguns momentos, falas ou reações de pessoas públicas que fomentavam a cultura do estupro.
Renato Cohen explicita que “O performer vai representar partes de si mesmo e de sua visão
do mundo” (COHEN, 2007, p. 106). Com esse pensamento, a discente conclui com seu
trabalho: “pude reverberar vivências que formam a pessoa que sou, trazer partes
desagradáveis presentes na sociedade, que infelizmente senti na pele, e dialogar com o
público na tentativa de olhar-me no espelho e convidá-lo a ato similar” (SANTOS, 2016, p.
20). Considero que a pesquisa da aluna-artista teve impacto para os alunos do curso de Artes
Cênicas da universidade douradense, um manifesto com poesia que iniciou na provocação do
estudo a respeito do atonalismo em sala de aula. A performance não foi sobre música, sobre a
atonalidade, apenas teve como ponto de partida um conteúdo presente em “Música e Cena II”,
fato o qual ressalto como um dos objetivos nos trabalhos musicais para o teatro: não se ensina
ou não se busca ampliar conhecimentos sobre música no teatro apenas para trabalhar com
música no teatro.
Já no trabalho artístico de conclusão de curso dos discentes José Pedro Disperati
Portugal e Tiago Teixeira Machado, o trabalho com som e espaço iniciou na configuração da
obra e no pensamento da disposição espacial dos espectadores. O enfoque estava no diálogo
com o teatro político, partindo das duas personagens do esquete de Brecht – o Imperador e o
Mendigo; e os alunos quiseram explorar relações de poder, do opressor e do oprimido –
visitando obras de Augusto Boal. Chegou-se em disposição espacial curiosa, a união de
quatro arquibancadas como uma pirâmide, e o espaço destinado para os espectadores estava
dentro da estrutura de metal – sentados/confinados embaixo da arquibancada onde seria o
espaço de atuação:
226
227
CONSIDERAÇÕES
Jean-Jacques Lemêtre defende que todos podemos fazer música, lembra as pessoas
que dizem não saber cantar e que podem falar, que a fala também pode ser considerada um
canto. O artista francês diz aos que proferem não ter ritmo, que todos possuem um coração
batendo em seu peito, então, como não ter ritmo? Lembro de estudar experiência de John
Cage em câmara anecoica quando o compositor quis “escutar o silêncio”, relatou que o
mesmo não existe porque dois sons não nos abandonam: um tipo de zumbido decorrente da
corrente elétrica em nosso sistema nervoso, e o pulsar do coração. Estes sons não cessam.
Poeticamente na junção de Lemêtre e Cage, é possível afirmar que enquanto há sons,
enquanto há ritmo, há vida.
Inspirado pelo “método” do educador musical Raymond Murray Schafer, cuja
filosofia e polêmicas resumidas em uma palavra por Marisa Trench Fonterrada (2004) seria
Ephtah! – Abre-te! – no desejo de abertura dos ouvidos; arrisco tal palavra de concisão para
Jean-Jacques Lemêtre em relação à música: Faça ou Experimente! No cruzamento com a
atual proposição de preparação musical para atores, escolho a palavra: Apropria-te! – do som
para articulação sonora/musical em cena.
Na pontuação inicial desta etapa, de término da pesquisa210, espero ter mostrado como
os alunos-atores que passaram pelas disciplinas de “Música e Cena” no ano letivo de 2015, na
Universidade Federal da Grande Dourados, tiveram subsídios para a apropriação de elementos
do som e da música no intuito de utilizá-los no teatro, mediante exercícios os quais
proporcionaram experimentação no fazer musical e no escutar. Por meio de manifestações dos
discentes (Capítulo 4), é possível afirmar que um dos propósitos presentes nesta pesquisa e
209
QUILLET, Jean-Marc. La musique de Jean-Jacques Lemêtre au Théâtre du Soleil. Paris, França:
L’Harmattan, 2013. p. 34. Tradução Maico Silveira e Iara Ungarelli. Original: “Combien de musiciens,
musiciens-musiciens […] écoutent les disques du « Soleil » disent : « Qu’est-ce qu’il joue ? Il s’est trompé, là.
Pourquoi n’a-t-il pas corrigé ? […] J’ai compris que, quand les acteurs me donnaient les mots, moi je
transposais en musique, avec noires et croches, c’est-à-dire longues et brèves, ou d’autres choses qu’on avait
inventées. […] Tu vois ? On fait croire que la langue parlée est parlée et que ça n’a rien à voir avec le chant”.
210
Etapa de finalização da escrita da tese, considerações finais, problematizando poeticamente a palavra término
de acordo com o compositor e cantor Humberto Gessinger: “A gente vive assim, sempre acabando o que não tem
fim” (1991); paradoxo que dialoga com a pesquisa em arte.
228
nas disciplinas aplicadas foi contemplado: os alunos saíram da experiência com a sensação de
abertura, ou seja, com o vislumbre de que articular música no teatro, seja por meio do canto,
da interação com o som, ou do pensamento crítico a respeito da musicalidade, é ação possível
respeitando o tempo e desenvolvimento de cada pessoa.
Na universidade douradense, na disciplina de “Música e Cena I”, 2013 foi ano de
observação e desenvolvimento inicial, em 2014 foi possível enfatizar a experimentação
ampliada de jogos relacionados aos conteúdos musicais, e em 2015 se deu a primeira
conclusão (já que a cada ano novo modelo será repensado de acordo com a troca de
experiências com a turma) de um formato conexo de preparação musical para atores que
contemple três módulos: o som no ator, o som do ator (no espaço), o som para o ator (música
e tecnologia). Nesses três anos, muitas adequações foram propostas no Curso de Artes
Cênicas da UFGD, já que este curso é relativamente novo se pensarmos que o mesmo foi
implantado em 2009 através do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão
das Universidades Federais (Reuni).
Acredito que os cursos de formação de atores estão sempre em construção,
atualização, pois as experimentações teatrais na contemporaneidade sempre nos trazem novos
elementos para estudo, mas creio que cursos como o de Dourados ensaiem ajustes com maior
frequência, por se tratar de uma graduação ainda estabelecendo identidades com a instituição,
com a comunidade local, com o estado e com a nação. Dessa forma, percebo empenho
coletivo – em conjunto com meus colegas professores – nas análises e proposições visando
fortalecimento do curso, na relação ou diálogo com as pesquisas do corpo docente. Tal quadro
favoreceu a atualização das disciplinas de “Música e Cena”, que desde o Projeto Político e
Pedagógico do Curso (PPC) de 2015 conta com três ofertas (três semestres) desta matéria –
sendo a terceira eletiva, optativa. A alteração do PPC de 2016211 inseriu outras disciplinas que
estão no universo teatral-musical, também de forma optativa aos alunos-atores: “Laboratório
de canto coral para atores”212, “Teoria musical e percepção auditiva”213 e “Introdução à flauta
doce”214. Todavia, não se trata de supervalorizar essa área híbrida em curso de formação
211
Aprovadas pelo NDE – Núcleo Docente Estruturante – do Curso de Artes Cênicas da UFGD em 2016.
212
Introdução ao canto coral para artistas da cena, harmonia vocal pensada em prol de espetáculos teatrais.
Construção de repertório e trabalho a duas, três e quatro vozes; divisão de naipes coral – soprano, contralto,
tenor e baixo; tessitura vocal. Coro dramático como interpretação vocal e corporal de canções populares, análise
de potencialidades na relação entre o canto musical e a prática teatral.
213
Leitura básica de partitura musical tradicional. Reflexões sobre o importância da leitura da partitura para o
artista musical e para o artista da cena. Percepção auditiva, vocalidade e escuta. Introdução à teoria musical
ocidental, solfejos, clave de sol e fá, notas musicais, intervalos de segunda menor à oitava justa, movimentos
ascendentes e descendentes, figuras e células rítmicas, compassos, unidade de tempo e unidade de compasso.
214
Estudo sobre o uso de instrumentos musicais por atores em cena, utilização da cena grega e medieval à
contemporaneidade. Introdução à prática de flauta doce como aporte musical para o ator, o uso da melodia da
229
teatral, até porque as disciplinas eletivas não são ofertadas em repetição a cada ano, e o aluno
necessita de poucas matérias optativas em seu histórico. Trata-se somente de tentar
oportunizar maior interação teatral-musical aos alunos. Se pararmos para pensar na estrutura
do curso em Dourados, apenas “Música e Cena I” é obrigatória para os alunos do Bacharelado
e Licenciatura em Artes Cênicas na UFGD, o segundo módulo é obrigatório apenas para o
Bacharelado e as outras disciplinas aqui citadas são opcionais aos alunos-atores, e, talvez, seja
um mérito: o discente tem a opção de ampliar suas trajetórias neste campo de pesquisa, caso
seja de seu interesse.
A iniciação ou a educação musical em curso de formação teatral é necessária? A
presente pesquisa defende que sim, principalmente por quatro fatores: 1) Conhecimento
musical – possibilitar aos alunos-atores um saber que não está ativo ou é desconhecido.
Apenas por este viés não se justifica a preparação musical para atores em cursos de teatro, já
que muitos artistas cênicos passam sua trajetória artística com incipiente conhecimento
musical e nem por isso deixam de ser exímios atores. Todavia, há de se levar em consideração
a 2) Musicalidade cênica – se a obra teatral é audiovisual, cercar-se de práticas no campo do
som e da música amplia o repertório do artista cênico e potencializa sua relação com toda a
obra. Tal quadro é propício para estudar a 3) Desconstrução de padrões – o trabalho a partir
da teoria musical tradicional às sociedades ocidentais, com os padrões musicais no corpo,
possibilita a compreensão destes termos e o vislumbre da possibilidade de “quebrá-los”,
porque muitos alunos veem a música como algo definido, no sentido estrutural, como “faixas”
de áudio, mas este pensamento é uma pequena parte do que a música pode ser, conectada,
inclusive, à ideia adorniana que leva à musica comercial ou difundida, e por meio do
aprendizado musical o aluno pode assimilar, de maneira mais acessível do que em outra arte,
a questão artística que dialoga com a quebra de estrutura, da superação, da desconstrução: o
que leva à possibilidade de 4) Transgressão – mais próxima à performance, é quando o
artista transcende os aprendizados, cria padrões ou relações próprias e as utiliza a seu favor
em cena, e esta autonomia/liberdade tem potencial para tornar-se dispositivo instaurador de
experiência, uma vez que deslocando a si o ator tem maior possibilidade de transformar
(dialogar com) o seu entorno. No cruzamento com as interações entre o teatro e a música,
conforme aborda Ernani Maletta (2014), o primeiro fator se justifica pelo conhecimento,
participação da música no teatro; o segundo e o terceiro se justificam pela relação inter-artes;
o quarto torna-se preciso pela possibilidade de polifonia, da música que é teatro, indissolúvel.
flauta doce na referência tonal. Notas musicais, diapasão. Conhecimento de instrumentos musicais melódicos e
harmônicos, audição e visualização de instrumentação em espetáculos teatrais.
230
O ator brasileiro, bem como o ator de outros países capitalistas no Ocidente, não pode
esquecer que nós vivemos em uma sociedade que prioriza o universo visual na comparação
com o universo sonoro. Ele pode confirmar tal afirmativa em suas vivências como estudante
desde a escola básica à sua formação profissional ao se fazer a pergunta: em quais momentos
da minha vida houve ênfases no ensino/estudo a respeito do som e da música como elemento
fundamental de meu desenvolvimento? Ao defender que o artista cênico deve se posicionar de
forma crítica às produções musicais existentes com as quais tem contato, e procurar novos
horizontes sonoros/musicais na diversidade presente na contemporaneidade, defende-se que
cursos de formação de atores tenham diálogo com distintos pensamentos que perpassam o
aprendizado e a interlocução musical, que tenham o desejo de trabalhar com a inteligência
musical do ator – cruzamentos com a teoria das inteligências múltiplas do psicólogo cognitivo
estadunidense Howard Gardner215.
Gardner comenta haver sete216 inteligências (de sua teoria proposta em 1983), e que
elas figuram em uma lista preliminar, “O ponto importante aqui é deixar clara a pluralidade
do intelecto”217 (GARDNER, 1995, p. 15). Na visitação de pontos observados nesta pesquisa
a respeito da educação no Brasil, cabe o questionamento: de que forma o ensino básico
contempla a pluralidade de intelecto? Na escrita de Celso Antunes (2009) podemos encontrar
uma resposta para essa questão:
215
“[Inteligências múltiplas:] A inteligência linguística é o tipo de capacidade exibida em sua forma mais
completa, talvez, pelos poetas. A inteligência lógico-matemática, como o nome implica, é a capacidade lógica e
matemática, assim como a capacidade científica. [...] A inteligência espacial é a capacidade de formal um
modelo mental de um mundo espacial e de ser capaz de manobrar e operar utilizando esse modelo. [...] A
inteligência musical é a quarta categoria de capacidade identificada por nós: Leonard Bernstein a possuía em alto
grau; Mozart, presumivelmente, ainda mais. A inteligência corporal-cinestésica é a capacidade de resolver
problemas ou de elaborar produtos utilizando o corpo inteiro, ou partes do corpo. [...] A inteligência interpessoal
é a capacidade de compreender outras pessoas [...] A inteligência intrapessoal, um sétimo tipo de inteligência, é
uma capacidade correlativa, voltada para dentro” (GARDNER, 1995, p. 15).
216
Howard Gardner iniciou sua teoria classificando sete inteligências, ao final da década de 1990 considerou
acrescer à lista as inteligências naturalista, espiritual e existencial, “Assim, fazendo passar a inteligência
naturalista pelo crivo dos critérios da definição de inteligências, Gardner [...] em 1999 considerou-a inteligência.
As outras duas candidatas, espiritual e existencial, [...] quando são analisadas pelo crivo dos critérios de
identificação de inteligências, não passam em todos eles, pelo que Gardner decidiu abandoná-las como
inteligências, pelo menos por enquanto” (DIAS, 2013, p. 43).
217
Grifo meu.
231
232
220
De diferentes maneiras e de acordo com o interesse e/ou disponibilidade do aluno-ator.
233
221
Márcia Visconti e Maria Zei Biagioni (2002) chamam de “Partitura tradicional” a representação gráfica usual
na música, com pentagrama, clave, fórmula de compasso, e demais signos a partir da teoria musical ocidental.
222
A “mochileta” é um acessório que criei na tentativa de facilitar a execução de três acordes de um instrumento
harmônico – tônica, subdominante e dominante; para ser explorada por um ator que não sabe tocar nenhum
instrumento musical. Trata-se de três escaletas colocadas nas costas do intérprete, com as notas requeridas já
pressionadas, onde três pequenos tubos/canos de ar (de cores diferentes) seriam manuseados pelo atuante, que
sopraria determinada cor em momentos a ser definidos. Com este instrumento musical não tradicional, o ator
poderia interpretar uma peça com três acordes sem ter domínio a respeito da construção do próprio acorde.
234
(MS), na qual recentes dados223 mostram que nas 45 escolas administradas pelo município,
em setembro de 2014, existiam 72 professores de artes – dentre eles não havia nenhum
docente formado em teatro, dança ou música224. O cumprimento das Leis de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional, na área das Artes, não acontece de forma rápida ou similar entre
distintos governos municipais e estaduais. A margem de interpretação, que é passível a todas
as leis, pode servir para ralentar o cumprimento efetivo das mesmas, ou, dependendo do caso,
para burlá-las. O cumprimento escuso das leis brasileiras que inserem o ensino de música e de
teatro nas escolas (apenas dois campos artísticos citados como recorte desta pesquisa),
dialogam com as possíveis dificuldades corporais e sonoras/musicais, na prática e na
articulação/posicionamento crítico, que os discentes-artistas podem ter ao ingressar em um
curso de graduação nas artes cênicas.
Quanto menor for o contato do aluno-ator com a educação e/ou a prática musical, em
seu desenvolvimento humano, maior a urgência de uma preparação para artistas cênicos que
perpasse a iniciação musical. A inserção dessa abordagem na formação teatral, ou em
montagens cênicas, calcada na pessoalidade, no contexto e na práxis social e cultural, é
potencial dispositivo que dialoga com a retomada de tradições locais, estabelece rupturas
estratégicas e provoca novas experiências para o público participante. A proposta presente na
tese é bastante aberta em termos poéticos, ou seja, não é direcionada a determinados formatos
de encenação, performances, métodos ou gêneros, estéticas cênicas e/ou performativas. Ao
estabelecer contato com a iniciação musical, a visitação aos princípios pedagógicos
norteadores desta pesquisa é passível de ser estudada por artistas que desejem imersão no
teatro realista ou no teatro performativo, por exemplo, de fato que durante e após os módulos
de aprendizado musical-teatral caberá ao artista se perguntar sobre a relação entre poética,
ideologia do espetáculo e intenção pretendida por ele – e o conteúdo apreendido.
Dos três módulos de relação musical-teatral, o componente música e tecnologia talvez,
até por ser disciplina eletiva, seja o mais deslocado na proposta preparação musical para
223
Dados coletados em pesquisa vinculada à Universidade Federal da Grande Dourados, da professora Flávia
Janiaski Vale e sua orientanda de iniciação científica Aline Maria Reginato, intitulada: “Professor-malabarista: o
caos e o improviso no ensino de teatro” (2014).
224
Tal fato aliado à demanda de professores-artistas da comunidade douradense, motivou posicionamento da
coordenação do Curso de Artes Cênicas da UFGD em distintas oportunidades para cobrar o município a
adequar-se às leis; em 2015 a coordenação e o coletivo de professores do mencionado curso mobilizaram
servidores e discentes da universidade, professores formados na área e artistas locais a participar e defender
aulas de teatro no ensino fundamental frente à tribuna livre na Câmara de Vereadores, o que gerou repercussão
dos representantes políticos da cidade, como publicou em jornal local o vereador e membro da Comissão
Permanente de Educação da Câmara Elias Ishy: “A reivindicação é justa” (2015). O cenário descrito deflagra a
falta de conhecimento de gestores da educação no município, e da própria comunidade local, frente ao ensino de
artes nas escolas.
235
atores – no sentido em que os dois primeiros módulos interagem melhor entre si ou tem maior
potencial de complementar um ao outro. Porém, defendo mantê-lo principalmente por dois
aspectos: primeiramente, por acreditar que o ator contemporâneo que consiga transitar nesse
universo, conexo à tecnologia, amplia sua relação criativa sonora extra-ator – dos acessórios
que podem complementar/transformar sua ação; em segundo lugar, por fomentar o debate do
teatro que fazemos no Brasil no cruzamento com ideologias presentes em nossa sociedade. O
Brasil é um dos países com maior desigualdade social225 em todo o mundo, fatores que trazem
ao debate a exclusão tecnológica ou a exclusão digital226. O termo “desigualdade tecnológica”
(GROSSI, COSTA, SANTOS, 2013, p. 81) me parece mais assertivo ao pensarmos em
distintos acessos dos alunos-atores a materiais (físicos ou virtuais) de som para teatro em
diferentes locais no Brasil, e na relação com outros países que possuam maiores investimentos
nesta área. A tecnologia por si só não afere qualidade, mas para vislumbrar que nossa
sociedade tem interferência da temática díspar, faço alusão à culinária. Para efeito de
exemplificação, imaginemos duas cozinhas: a primeira ampla, planejada e tecnológica, com
forno industrial, câmara frigorífica e equipamentos dentre os melhores disponíveis na área –
de elétricos como batedeiras a acessórios como facas; e a segunda com acentuados problemas
estruturais em seu espaço físico, com um forno que não consegue manter a temperatura
constante, sem geladeira, com acessórios escassos ou com defeitos como facas sem fio. A
diferença entre as cozinhas 227 existe com a pessoalidade, não adianta ter equipamentos
adequados e não haver pessoas que dominem os aparatos. Se inserirmos um indivíduo sem
conhecimento culinário na cozinha tecnológica e um renomado chef na cozinha com
problemas, certamente o chef irá elaborar um prato melhor; mas a questão não é essa e sim:
coloque o mesmo chef nas duas cozinhas, em qual local o profissional terá maior liberdade de
criação e execução? Nós, artistas brasileiros, tendemos a achar que um “jeitinho brasileiro” de
“fazer mais com menos” pode superar muitas adversidades. De fato, em muitos casos isso
pode acontecer, ter pouco recurso financeiro para uma montagem teatral, por exemplo, aguça
225
“Segundo relatório, apresentado em 2012, sobre as cidades da América Latina, realizado pelo Programa das
Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (ONU- Habitat), o Brasil é o quarto país mais desigual dentre
os países da América Latina em distribuição de renda, ficando atrás somente de Guatemala, Honduras e
Colômbia” (GROSSI, COSTA, SANTOS, 2013).
226
A professora Iracy Santos aborda “exclusão tecnológica” de forma similar ao que os doutores em Ciência da
Informação Márcia Grossi e José Costa, e o mestre em Educação Tecnológica Ademir Santos observam o termo
“exclusão digital”, “a exclusão digital é o termo utilizado para sintetizar todo um contexto que impede a maior
parte das pessoas de participar dos benefícios das novas tecnologias de informação” (GROSSI, COSTA,
SANTOS, 2013, p. 75).
227
Neste exemplo sugere-se imaginar duas cozinhas, uma com estrutura e outra precária, que possuam
finalidades similares; esta exemplificação não corresponde a cozinhas exóticas, temáticas ou com tradição que
responda a contextos específicos, pois neste caso a relação seria totalmente diferente pendendo potencialidades
às tradições.
236
a capacidade de resolver questões com a estética e a poética – mas se por um lado este quadro
é desafiador, é, por outro, limitador. No viés música e tecnologia para teatro, elementos de
som ou sonorização para a cena e seus equipamentos com conexão, procedência ou
manutenção duvidosa podem arruinar um espetáculo, mesmo se apenas houver um uso básico
– como o das caixas de som. A indicação para o ator nesta proposta de preparação musical, de
apropriar-se dos sons no acontecimento teatral, passa pela relação com o espaço de ensaio e
de apresentação, e com os equipamentos de (re)produção de som. O termo desigualdade
tecnológica no teatro pode ser ampliado a partir de diversos pontos de vista; me atenho aos
aspectos relacionais com o artista cênico que 1) muitas vezes não tem acesso a materiais e
espaços teatrais adequados; 2) pode sofrer com possíveis disparidades derivadas do escasso
investimento na cultura, por falta de comprometimento de administrações públicas com a
área. Atualmente, esse cenário dialoga com a desigualdade social em nosso país e com “a
dimensão político-ideológica do capitalismo atual [que] é a associação entre globalização e
neoliberalismo” (VESCE, 2007, p. 39), principalmente por não ser difícil presenciar, por
exemplo, o sucateamento de edifícios teatrais geridos pelo município ou pelo Estado no
Brasil, aliado a pessoas que defendam a reversão do quadro com a privatização de tais
espaços; o que deflagra um movimento contra a pluralidade e acessibilidade cultural. Se há
desigualdade em distintos níveis, como, dependendo do caso/montagem, a tecnológica para o
ator, cabe aos artistas entender onde e de que forma a carência está localizada, como isso pode
interferir no trabalho e quais as possibilidades de ultrapassá-la.
É importante salientar que o teatro não depende da tecnologia (como elementos
inovadores da eletrônica, comunicação e/ou informação), mas esta tecnologia está presente no
universo teatral, assim como a educação não depende da tecnologia, mas uma sala de aula
estruturada para o aprendizado (desde o espaço físico e sua relação tecnológica) age em favor
dos processos criativos/educacionais. Valorizar as “Perspectivas extraordinárias que se
abriram graças ao advento de instrumentos eletrônicos (ou digitais) e a generalização gradual
da informática” 228 (ABROMONT; MONTALEMBERT, 2005, p. 374), é um princípio
pedagógico musical-teatral contemplado na presente proposta de preparação musical.
Todos as sustentações norteadoras de um projeto de ensino musical para atores que
figuram nesta tese, reverberam uma finalidade (da proposta) encontrada em Rubem Alves –
ser a música, e com o princípio base: o desejo de sê-lo, que o ator consiga imaginar-se em
distintos ou novos diálogos musicais na cena, na vontade de deslocar a si e tentar deslocar o
228
Tradução minha. Original: Perspectivas extraordinarias se han abierto gracias a la aparición de los
instrumentos electrónicos (o digitales) y a la generalización paulatina de la informática.
237
espaço e o espectador. Alves observa que a morada da alegria se encontra na música, “Ensinar
a alegria: é isso que eu desejo” (ALVES, 2011, p. 120). Trago essa pontuação poética não
como uma máxima, pois um aprendizado que lide com o contexto e a pessoalidade tem
potencial de desvelar sentimentos múltiplos – da euforia à agonia, mas para ressaltar a busca
por uma vivência em que se tenha presente o prazer. Se a iniciativa de uma preparação
musical para artistas da cena se propõe a instigar experiências prazerosas, no campo das
descobertas, esta interação pode levar os envolvidos a diversos lugares na relação entre as
áreas do teatro e da música, em que haja aberturas às possibilidades e vontades de cada aluno-
ator.
Ao concluir a escrita, coloco em suspensão uma observação que pode ampliar
reverberação desta pesquisa: o presente trabalho tem enfoque na preparação musical de
atores, foi pensado para o aluno-ator, mas é material, também, para diretores/encenadores e
professores de teatro e de música.
238
239
ÍNDICE ONOMÁSTICO
240
Brecht, Bertolt 46, 47, 172, 173, 200, 204, 224, 225, 226
Bro MC’s 95
Brook, Peter 43
Bucci, Maria Elisabetta 77
C2C 120
Cage, John 46, 50, 69, 76, 78, 81, 125, 164, 176, 177, 227
Camargo, Roberto Gill 185
Cambria, Vicenzo 219
Campo, Giuliano 157, 158
Campos, Marcelo da Silveira 166
Cançado, Tauler 182
Carlson, Marvin 39, 40, 45
Carneiro Neto, Dib 52
Cesária Évora 125
Chamoro, Graciela 93
Charaudeau, Patrick 53
Chico Buarque 158
Chitãozinho & Xororó 151
Chopin, Frédéric 75
Cia. do Latão 174
Cia. Mungunzá de Teatro 174, 182
Cia. Oficina de Interpretação Teatral 158
Cia. Última Hora 111, 169, 170
Ciavatta, Lucas 115
Cintra, Fábio 20, 43
Clowns de Shakespeare 174
Cohen, Leonard 188
Cohen, Renato 225
Cuenca, Maria Isabel Megías 87
D'Arezzo, Guido 86
Dadico Sobrinho, João Marcos 201
Dal Vera, Rocco 58, 59, 60, 171, 172
Dave Brubeck 155
Davini, Silvia 99, 223
Deer, Joe 58, 59, 60, 171, 172
Delacroix, Marcelo 167
Dench, Judi 57
Desmond, Paul 155
Dias, Ana 19, 26, 230
Donizetti 151
Dream Theater 156
Duchamp, Marcel 45, 46
Duvignaud, Jean 39, 40, 44, 46
Dvořák, Antonín 133
Elliott, David James 22, 23, 29, 80, 81, 82, 84, 90, 102, 104, 106, 132, 208
Esper, Gil de Medeiros 201
Eurípides 41
Féral, Josette 50
Fernandes, Cleudemar Alves 55
Fernandes, Denise 46
241
242
Lignelli, César 19, 28, 131, 136, 137, 138, 147, 158, 160, 162, 180, 185, 212
Lines, David K. 84
Louro, Guacira Lopes 32
Macêdo, Rodrigo Perandré 26
Machado, Tiago Teixeira 224, 225
Maletta, Ernani 18, 20, 21, 23, 27, 42, 53, 67, 70, 73, 78, 82, 105, 110, 111, 112, 113, 115,
124, 147, 205, 208, 209, 211, 212, 229
Mansfield, Janet 184
Mariani, Silvana 87
Martins, Morgana 20
Mauch, Michel 223
Mauro, Helena 20
Med, Bohumil 105, 106, 107, 128, 138, 152, 155
Mendelssohn, Felix 144
Mendes, Emília 53
Meneguzzi, Vinícius 173
Meyerhold, Vsevolod 46
Michel Teló 55
Migliaccio, Carlo 76
Milton Nascimento 155
Mnouchkine, Ariane 61, 62
Molière (Jean-Baptiste Poquelin) 16, 158, 172, 173
Molik, Zygmunt 156, 157, 158
Montalembert, Eugene de 34, 49, 106, 107, 128, 141, 142, 145, 147, 152, 155, 176, 177, 184,
237
Monteiro, Gabriela Lírio Gurgel 65, 66
Moore, Alan 188
Moraes, Vinícius de 167
Mozart, Wolfgang Amadeus 99, 231
Mundim, Tiago 20
Naldo Benny 49
Naná Vasconcelos 59
Neves, Karla 223
Nicolaiewsky, Nico 19
Nunes, Lilia 57
Ocampo, Maurício Cardoso 151
Oetterli, Sabine 121, 129, 175
Oliveira, Esmael 166
Oliveira, Jacyan Castilho de 20, 42, 47, 70, 152
Oliveira, Maria Regina Tocchetto de 200
Orff, Carl 85, 86, 90, 103
Os Serranos 151
Otutumi, Cristiane 25
Paparotti, Cyrene 58, 139
Pasqualini, Juliana Campregher 101
Pavis, Patrice 51
Paynter, John 104
Pereira, Aires Manuel Rodeia dos Reis 41
Perla 151
Perrone, Lívia 167
243
244
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261
ANEXOS
262
263
Há a hipótese de que muitos atores brasileiros não possuem trânsito facilitado com
saberes musicais na cena; um dos motivos estaria na falta da educação musical no ensino
básico. Fui despertado para esse quadro a partir de experiências que tive como
preparador/diretor musical em espetáculos de teatro, quando encontrei artistas com
dificuldade de compreensão musical e percepção auditiva – fator que me levou a questionar se
suas deficiências estavam no “não acesso” ao ensino musical formal.
Ao ingressar na Universidade Federal da Grande Dourados, para ministrar aulas no
curso de Artes Cênicas na área de Música e Cena, pude ampliar relações nos trabalhos em que
desenvolvi direções musicais (ou preparações vocais) diretamente com grupos de atores no
Rio Grande do Sul. O cenário – a respeito de conhecimento musical – dos atores (ou alunos-
atores) sul-mato-grossenses era incrivelmente parecido com o dos artistas gaúchos. Leituras e
conversações me revelaram contexto similar em outros estados. Acredito em um
desvelamento que mostra conexão de tal similaridade com a educação musical brasileira (ou
sua falta).
Instigado por tal abordagem, fiz uma pesquisa survey (palavra com tradução possível
para exame, levantamento), que é uma técnica/método “que se refere a um tipo particular de
pesquisa social empírica” (BABBIE, 2005 apud. PARANHOS et al., 2014, p. 2). Existem
muitos tipos de survey, podemos encontrar sua aplicabilidade em “censos demográficos,
pesquisas de opinião pública, pesquisas de mercado sobre preferências do consumidor,
estudos acadêmicos sobre preconceito, estudos epidemiológicos, etc.” (idem, ibidem). No
Brasil, talvez a pesquisa survey que o público (espectador ou telespectador) mais conheça são
as pesquisas de intenção de votos nas eleições, como a pesquisa Ibope ou Datafolha.
Como temos proximidade com pesquisas nas corridas eleitorais, podemos ter uma boa
ideia do que é uma pesquisa survey; na intenção de votos para a presidência da Nação, por
exemplo, não se pergunta a todo o eleitorado, mas a um percentual. Isso deriva as variações
das especulações para o resultado final, por isso há também a chamada “margem de erro”.
Entendo que o survey não é pesquisa de exatidão, mas demonstra tendências.
No presente estudo há a hipótese de que grande parte dos alunos-atores não possuam
conhecimentos musicais porque não tiveram acesso à educação musical no ensino básico.
Nesse viés, o survey serve para nos dar uma base, uma ideia: “Sempre que o pesquisador
estiver interessado em identificar opiniões, atitudes, valores, percepções, etc., ele pode
empregar o survey como técnica de coleta de dados” (PARANHOS et al., 2014, p. 10). Opto
264
por uma pesquisa descritiva, na qual a técnica permite descobrir certos traços da população, e
transversal – período fixado.
Iniciei aplicação de questionário na universidade onde leciono, UFGD, e
posteriormente a ampliei, com o auxílio de professores colaboradores, para outras instituições.
Entrei em contato com mais de 20 universidades brasileiras que possuem curso de graduação
em artes cênicas/teatro, no mínimo três contatos por região geográfica (em estados
diferentes), concluindo estudo com a participação de 11 universidades e resposta de 265
alunos-atores em todo o Brasil. Turmas conforme lista abaixo:
Para aplicação nas graduações em artes cênicas/teatro, foi solicitada preferência para
as turmas de primeiro ou segundo ano, mas não houve restrição em aplicação aos anos
posteriores, não sendo necessário para o survey a resposta de todos os alunos-atores em cada
instituição. Aplicado em uma turma já fornece dados para nossa explanação.
Na UFGD, apliquei em minhas turmas de “Música e Cena I” por três anos
consecutivos, em outras instituições, professores de música ou voz, e em alguns casos de
outras áreas, colaboraram com este survey, aplicando o questionário a seus alunos. O
agradecimento aos colegas está registrado no início desta tese, mas também marca nota em
minha memória por sua gentileza.
Na sequência, imagens com as perguntas do questionário.
265
266
267
A primeira questão (figura 55) foi elaborada para obtermos dados em relação a alguma
vivência teatral que o aluno de artes cênicas traz à academia, até em contraponto ou
cruzamento com as questões que observam o conhecimento musical que esses atores
possuem. Dentro da hipótese de que o ensino básico não forneceu subsídios musicais
mínimos para os profissionais da cena, não é errôneo supor que o mesmo acontece com os
conhecimentos teatrais, até mesmo em relação ao fato de a disciplina teatro não ser uma
constante na escola brasileira. Todavia, enfoco o possível conhecimento musical que os
alunos carregam por interesse da presente tese, e também porque suponho, por vivências
como arte-educador, que exista maior acesso ao ensino de música nas escolas do que ao
ensino de teatro.
Na primeira pergunta, o que imagino ser uma surpresa: acredito ser alto o percentual
de alunos-atores que entram em uma graduação em artes cênicas, sem possuir algum contato
prático prévio. Na UFGD, percebo alunos, felizmente poucos, que tanto não praticaram teatro
como não assistiram a peças de teatro antes de entrar na graduação. Pelo gráfico, podemos
perceber que a maioria dos acadêmicos em artes cênicas, em todos os estados que
responderam o questionário, possui vivência anterior. Informo um número que não está no
gráfico, o qual chamarei de percentual total no Brasil, ou seja, o percentual de todos os
entrevistados de acordo com suas respostas. Neste survey, que tem respostas de 11
universidades nas 5 regiões brasileiras, o percentual de alunos-atores que já praticavam teatro
é de 74% em relação a 26% de alunos que não possuem vivência em artes cênicas antes de
entrar na graduação.
O segundo gráfico (figura 56) é para termos uma ideia do perfil, “faixa-etária”, dos
alunos entrevistados. No Brasil, esta pesquisa survey coletou dados de 49,4% de alunos-
atores que estão na faixa-etária entre 21 e 30 anos, 37% dos entrevistados possuem de 16 a 20
anos, 10,2% de 31 a 40 anos, e 3,4% com idade igual ou superior a 41 anos.
O próximo gráfico (figura 57) traz os resultados para a pergunta: você estudou música
no ensino fundamental ou médio? O questionário de múltipla escolha trouxe, para essa
questão, três alternativas: não; sim – como atividade extraclasse ou outras atividades; sim –
como disciplina regular. Na sequência, outro gráfico (figura 58) que procura mapear
conhecimentos musicais trazidos pelos alunos atores, pergunta em âmbito extra escolar,
principalmente visando aqueles alunos que possuem conhecimento musical adquirido em
escolas de canto ou instrumentos musicais, oficinas de música, prática autodidata, dentre
outras possibilidades: Na sua vida (até então) você teve algum contato com estudo ou prática
musical?
268
269
270
271
272
não no “a” como negação da tonalidade, mas como α (alfa) – no sentido de ser o princípio,
ter todas as tonalidades e suas rupturas.
Em analogia ao teatro, para que o aluno-ator possa entender o distanciamento
brechtiano, necessita entender o mergulho na ficção.
No gráfico que procura mapear o percentual de estudantes de artes cênicas que sabem
compreender (nem que seja o mínimo de) uma partitura musical – como resultado: 86,4% dos
alunos-atores não sabem ler partitura e apenas 13,6% possuem este conhecimento. Próximo
de uma teoria musical tradicional, este é um dos dados que demonstram o déficit de ensino
musical nas escolas básicas no Brasil.
Continuo com o pensamento de que não é imprescindível ao artista cênico a leitura de
uma partitura musical, mas recomendo com ênfase tal conhecimento aos atores que despertam
interesse em apreendê-lo. Ao ator entender partitura musical é uma abertura para um diálogo
facilitado entre as áreas da música e do teatro, um interessante meio para interpretação com
instrumentos musicais, registro de melodias vocais, além de auxiliar na compreensão de
literaturas teatrais que usam a notação musical para exemplificação de sons e ritmos – como o
livro Ator e método de Eugênio Kusnet.
Os dois últimos gráficos (figura 60 e figura 61) têm relação com autoconhecimento e
com o psicológico, o que os alunos-atores pensam sobre sua execução musical, que nota
(conceito) os estudantes dão a si mesmo: ao cantar (afinação) e ritmicamente. Salta aos olhos
um sentimento negativo que os artistas da cena possuem de si com a música. Frases tão
escutadas em preparações vocais ou musicais para atores – “eu não sei cantar” ou “eu não
tenho ritmo” – estão representadas nos gráficos abaixo.
Outra relação curiosa é que o ator brasileiro tem mais confiança em si com o ritmo do
que com o canto. Em curso que fiz na Itália em 2014, percebi que é uma imagem que temos
também fora de nosso território geográfico, alguns colegas de outros países entendem que o
artista brasileiro é naturalmente rítmico.
273
274
275
276
Com as facilidades tecnológicas de nossa época, alguns recursos sonoros para uso no
teatro existem de forma livre e podem ser vias criativos na cena. O recurso da voz em off, por
exemplo, é recorrente nas artes cênicas e por meio de programas abertos para computadores
consegue-se gravação e edição caseira. Por voz em off no teatro, entendo a voz falada do ator
gravada e executada em algum momento da obra.
Os programas de edição de som livres para instalação em computadores, como o
Audacity229, fornecem muitas possibilidades de edição e efeitos nos materiais sonoros. Os
efeitos perpassados (Capítulo 3) como reverb e delay podem sugerir imaginários
diferenciados do som da voz original. Se o artista quiser, com tais programas, organiza sons
de forma musical tradicional, ou experimental, e obtém resultados diversos para paisagem
sonora, trilha sonora ou sonoplastia de um espetáculo teatral.
Mediante esse tipo de programas, o aluno-ator pode ter fácil acesso para gravação e
edição da voz como elemento criador para a cena, bem como transformação de fragmentos
musicais em novas composições ou organizações. Na turma 3C da UFGD, trabalhei alguns
exercícios com o Audacity, por ser software livre no qual todos os alunos poderiam baixar e
trabalhar em suas casas, ou utilizar o programa em computadores na universidade. A abertura
sugere “home studio”, estúdio em casa. Experiências possíveis ao artista que tem interesse em
descobrir novas sonoridades para seu trabalho, com o auxílio da tecnologia.
Exemplifico uso de edição de som com o Audacity como suporte possível para uso do
aluno-ator criar materiais vocais/sonoros gravados para a cena, como o termo tão conhecido
no teatro: off. Exercito tal conteúdo na disciplina “Música e Cena III”. No Audacity, e em
muitos editores de som, existe a possibilidade de adicionar efeitos às matérias gravadas, tais
efeitos também podem sugerir ações/reverberações à cena, novas relações a partir da
transformação do som base.
Na exemplificação abaixo, cito apenas uma possibilidade dentre várias que o artista
pode descobrir por si no manuseio do programa de computador. Tal indicação trabalha com a
desconstrução de um material sonoro gravado. Pontuo que tais imagens e sugestões não
configuram e não desejam ser um tutorial, um modelo, ou parte de um método, são apenas
caminhos compartilhados que podem servir de estímulos aos alunos-atores. Na primeira
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Audacity é gratuito, open source, software multi-plataforma para gravação e edição de sons. [....] Audacity é
um software livre, desenvolvido por um grupo de voluntários e distribuído sobre a “GNU General Public
License (GPL)” (Licença Pública Geral). Tradução minha de texto no site: audacityteam.org/about – com acesso
em 18/01/2016.
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imagem de visualização no Audacity, apresento aqui um fragmento de voz gravada que possui
um pouco mais de 1 segundo de duração (circulado em vermelho).
Figura 62 – Audacity 1
No exercício que peço aos atores executarem, cada aluno elege um material sonoro
(arquivo de áudio) de sua escolha, voz gravada ou música. A primeira visualização e audição
de transformação do som é elaborada com o efeito “Paulstretch”230, que é um efeito que
estica o material sonoro como um elástico. Na versão acima do Audacity, basta selecionar o
áudio e seguir o caminho – clicar em “Effect” (1) e “Paulstretch” (2); após clica “ok”, assim
obtendo o seguinte resultado:
Figura 63 – Audacity 2
230
Elaborado por Nasca Octavian Paul, disponível na versão 2.0 do Audacity.
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Agora o material sonoro que tinha aproximadamente 1 segundo possui um pouco mais
de 13 segundos, uma “esticada” considerável que em audição descaracteriza o áudio original.
Para complementar e finalizar exercício, sigo os seguintes passos:
Figura 64 – Audacity 3
Figura 65 – Audacity 4
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para foto e vídeo, reprodutores e editores de som em programas – bem como aplicativos que
também simulam metrônomos, teclados eletrônicos e demais instrumentos musicais. O ator,
caso queira, pode operar a técnica de seu espetáculo/performance de seu aparelho celular ou
tablet.
O espetáculo teatral “Misanthrofreak” (2013), do Grupo Desvio de Brasília (DF), é
apresentado e executado tecnicamente por apenas uma pessoa, o ator Rodrigo Fischer, que
utiliza, segundo projeto do artista: “projeções pré-programadas, iluminação, som e projeção
controlados por dispositivos eletrônicos como controle de Wii [controle de videogame que
funciona como controle remoto] e sensores de movimento”231. A peça tem interessante
diálogo com os espectadores, o que considero devido em parte à sua concepção artística no
que concerne à apresentação do artista e ao enredo, e em parte ao jogo do ator com a
tecnologia para a cena.
Os alunos-atores das disciplinas de “Música e Cena”, da UFGD, passaram por
exercícios com operação de som em equipamentos de áudio, em duplas para facilitar diálogo
entre operação e cena, e com o intuito de experimentação. Os jogos, que avalio como bem
desenvolvidos, estavam nos exercícios nos quais os atores descobriam códigos corporais para
diálogo e interferência sonora de seu colega, sutilezas que organizavam informações e davam
fluidez à performance do artista. Levou-se o debate dos códigos corporais para operação e
interlocução sonoras, e os alunos aplicaram os experimentos em exercício importado de
modalidade performativa musical – em que existem torneios: “Air Guitar”. Trata-se de tocar
uma guitarra elétrica imaginária. O exercício é lúdico e teatral, e muitos praticantes desta
modalidade a defendem como uma categoria ao considerarem-se air-guitarristas. Acredito
que a execução de air guitar seja divertida, e possibilite interação do ator com vários padrões
musicais e elementos técnicos de som.
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Disponível em misanthrofreak.blogspot.com.br – acesso em 18/01/2016.
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A imagem elaborada pelo designer gráfico Tig Vieira representa o artista Vinicius Oliveira em exercício do
jogo “Air Guitar”, elaborado em disciplina do Curso de Artes Cênicas na UFGD.
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ANEXOS DIGITAIS
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Também disponíveis em - http://marcoschaves.blogspot.com.br/p/anexos.html