HARVEY, D. O "Novo Imperialismo" Ajustes Espaço-Temporais e Acumulação Por Desapossamento - Parte 1 PDF
HARVEY, D. O "Novo Imperialismo" Ajustes Espaço-Temporais e Acumulação Por Desapossamento - Parte 1 PDF
HARVEY, D. O "Novo Imperialismo" Ajustes Espaço-Temporais e Acumulação Por Desapossamento - Parte 1 PDF
Resumo:
Processos predatórios de desapossamento, com diversos recursos à
violência, o que passa pela intervenção estatal, longe de se restringirem a
um momento encerrado na pré-história do capitalismo, constituem, ao
lado da reprodução ampliada, um dos eixos fundamentais da expansão
deste modo de produção e seu exame é imprescindível para a
compreensão do “novo imperialismo”.
∗
Artigo publicado originalmente em Socialist Register, julho/03. Tradução de Maria
Izabel Lagoa, pesquisadora do NEILS. Revisão técnica de Lúcio F. R. Almeida. Neste
número, publicamos a primeira parte do presente artigo. A segunda sairá no número
15.
∗∗
Geógrafo, autor de A condição pós-moderna, The Limits to Capital, Espaços de
esperança e O novo imperialismo.
1 A maioria destes trabalhos dos anos 70 e 80 foi reeditada em Harvey (1999 e 2001).
9
imperialismo2“, parece útil reexaminar essas idéias gerais à luz dos
acontecimentos atuais.
A tese do ajuste espacial somente tem sentido se relacionada com a
tendência expansiva do capitalismo, entendida teoricamente mediante a
teoria marxista da queda da taxa de lucros que produz crises de
superacumulação (Harvey, 1999). Tais crises manifestam-se em excedentes
simultâneos de capital e de força de trabalho sem que aparentemente exista
nenhuma forma de coordená-los para realizar alguma tarefa socialmente
produtiva. Portanto, se a desvalorização (e mesmo a destruição) de capital e
de força de trabalho não se seguirem, então devem ser encontradas formas
para absorver o excedente. Expansão geográfica e reorganização espacial são
a saída possível. Mas isto tampouco pode se dissociar dos ajustes temporais,
uma vez que expansão geográfica freqüentemente acarreta investimentos em
infraestruturas físicas e sociais de longo prazo (redes de transporte e de
comunicações, educação e pesquisa, por exemplo) que demorariam muitos
anos para realizar seu valor através da atividade produtiva que apoiavam.
Proponho, então, aceitar o argumento de Brenner (2002) de que o Superacumulação -
capitalismo global tem sofrido um crônico problema de superacumulação problema crônico do
capitalismo global desde
desde os anos 70. Interpreto a volatilidade do capitalismo internacional os anos 70
durante esses anos como uma série de ajustes espaço-temporais que
fracassaram, mesmo a médio prazo, ao tratar de problemas de
superacumulação. Foi, entretanto, através da orquestração de tal volatilidade
que os Estados Unidos pretendiam preservar sua posição hegemônica dentro
do capitalismo mundial (Gowan, 1999). A recente guinada rumo a um
imperialismo aberto respaldado pela força militar por parte dos Estados
Unidos, pode ser visto como um sinal de fraqueza na dita hegemonia frente
às sérias ameaças de recessão e ampla desvalorização em sua própria casa,
como oposição aos diversos ataques de desvalorização anteriormente
infligidos em outras zonas (América Latina nos anos 80 e no início dos anos
90 e, ainda mais seriamente, a crise que consumiu o Leste e o Sudeste
Asiáticos em 1997 e se arrastou até a Rússia e boa parte da América do Sul).
Mas eu também gostaria de argumentar que a incapacidade de acumular por Desapossamento -
compensação à incapacidade de
meio da reprodução ampliada tem sido compensada por um aumento das
acumular via reprodução
tentativas de acumulação mediante desapossamento. Estas são em definitivo, ampliada
as características principais das novas formas do imperialismo. Uma vez que
o debate sobre este tema excede este artigo, continuo a exposição de maneira
esquemática e simplificada, deixando a análise mais detalhada para uma
publicação posterior (Harvey, 2004).
2 O tema do “novo imperialismo” foi tratado pela esquerda por Panitch, (2000), 5-20; ver também Gowan, Panitch e Shaw
(2001). Outras observações importantes são Petras e Veltmeyer (2001), Went (2002 03); Amin (2001);
feitas por -
Ignatieff (2003) e Cooper ( 2002).
10
Superacumulação
=
excedente de mão de obra +
A idéia principal sobre o ajuste espaço-temporal é bastante simples. excedente de capital
Superacumulação em um dado território implica em um excedente de mão- Solução
de-obra (aumento do desemprego) e excedente de capital (que se manifesta =
num mercado abarrotado de bens de consumo que não podem ser vendidos a) investimentos a longo prazo
para adiar a reentrada de capital
sem perdas, como uma alta improdutividade e/ou como excedente de capital
na circulação [reorientação
líquido carente de possibilidades de investimento produtivo). Tais excedentes temporal]
podem ser absorvidos por: a) uma reorientação temporal por meio de
investimentos de capital em longo prazo ou gastos sociais (como educação e b) abertura de novos mercados,
capacidades produtiva e
pesquisa) que adiam a reentrada na circulação do excesso de capital até um
possibilidades de recursos e
futuro distante; b) reorientações espaciais por meio da abertura de novos mão-de-obra em outro lugar
mercados, novas capacidades produtivas e novas possibilidades de recursos e [reorientação espacial]
mão-de-obra em outro lugar; c) alguma combinação de a e b.
c) a+b
A combinação de a e b é particularmente importante quando
focamos o capital fixo de natureza independente imobilizado em um
ambiente construído. Isto providencia as infraestruturas físicas necessárias
para que a produção e o consumo se mantenham no espaço e no tempo (tudo
desde parques industriais, portos e aeroportos, sistemas de transporte e
comunicação, água e esgoto, moradia, hospitais e escolas). Em suma, não se
trata de um setor econômico menor, mas capaz de absorver massivas
quantidades de capital e de mão-de-obra, particularmente sob condições de
rápida expansão e intensificação geográfica.
A realocação do excedente de mão-de-obra e capital por tais
investimentos requer a mediação das instituições financeiras e/ou estatais,
que têm capacidade de gerar e oferecer crédito. A quantidade de valores
fictícios criados equivale à superacumulação de capital na produção de
camisas e sapatos. Tal capital fictício pode ser realocado fora do circuito de
consumo em projetos futuramente orientados, como construção de estradas
ou na educação, revigorando assim a economia (incluindo, talvez, o aumento
da demanda por camisas e sapatos por parte dos professores e trabalhadores
da construção)3. Se os gastos em construções ou melhoras sociais se
revelarem produtivos (facilitando no futuro formas mais eficientes de
acumulação de capital), então os valores fictícios são reduzidos (seja
diretamente por amortização da dívida ou indiretamente por maiores retornos
através de impostos que permitem pagar a dívida pública). De outra forma, a
superacumulação na construção ou educação pode tornar-se evidente com a
desvalorização destes bens (moradia, escritórios, parques industriais,
aeroportos, etc.) ou em dificuldades para pagar a dívida estatal originada com
as infraestruturas física e social (crise fiscal do Estado).
O papel de tais investimentos na estabilização e desestabilização do
capitalismo tem sido significante. Por exemplo, a origem da crise de 1973 foi
um colapso mundial dos mercados imobiliários (começando com o Herstatt
Bank na Alemanha, que arrastou o Franklin National nos Estados Unidos),
3 O
s conceitos marxianos de “capital fixo independente” e “capital fictício” são elaborados em Harvey (1999), capítulos 8 e
10 respectivamente e sua importância política é considerada em Harvey
, , (2001), capítulo 15, “The geopolitics of
capitalism”
.
11
seguido imediatamente pela falência virtual da cidade de Nova Iorque em
1975. Por sua vez, a longa década de estagnação no Japão, em 1990, iniciou-
se com o estouro da bolha especulativa existente em ativos aplicados no
mercado imobiliário e em outros bens, que pôs em risco todo o sistema
bancário; o colapso asiático em 1997 começou com o rompimento das bolhas
na Tailândia e Indonésia; e o vigor especulativo nos mercados imobiliários
após o início de uma recessão geral em todos os outros setores desde meados
de 2001, foi o mais importante impulso para as economias estadunidense e
inglesa. Desde 1998, a China tem mantido sua economia em crescimento e
tem buscado absorver seu grande excedente de trabalho (controlando a
ameaça de descontentamento social) mediante financiamentos com
endividamento de investimentos em mega-projetos que deixam pequena a
imensa represa das Três Gargantas (8500 milhas de ferrovias, rodovias e
projetos de urbanização, trabalhos de engenharia massivos para desviar água
do rio Yangtze para o Amarelo, novos aeroportos, etc.). Surpreende-me que a
maioria das análises sobre a acumulação de capital (incluindo a de Brenner)
ignore completamente estes temas ou os tratem como epifenômenos.
O termo “ajuste” tem, entretanto, um duplo sentido. Uma certa
quantidade do capital total torna-se literalmente fixada em alguma forma
física por um período de tempo relativamente longo (dependendo de seu
tempo de vida físico e econômico). Existe um sentido no qual gastos sociais
também se tornam territorializados e permanecem geograficamente imóveis
através de compromissos estatais (de qualquer forma, não irei considerar
Capital fixo e Capital móvel
explicitamente as infraestruturas sociais uma vez que o tema é complexo e
requer um espaço maior para discuti-lo). Parte do capital fixo é
geograficamente móvel (como a maquinaria que pode facilmente ser
deslocada de um lugar para o outro), mas o resto esta tão fixado ao solo que
não se pode movê-lo sem destruí-lo. Os aviões são móveis, entretanto os
aeroportos aos quais eles voam não.
O “ajuste” espaço-temporal, por outro lado, é uma metáfora para
soluções das crises capitalistas mediante adiamento temporal e expansão
geográfica. A produção do espaço, a organização de novas divisões
territoriais de trabalho, a abertura de novos e mais baratos complexos de
recursos, de novos espaços dinâmicos de acumulação de capital, e a
penetração em formações sociais pré-existentes pelas relações sociais
capitalistas e acordos institucionais (tais como regras contratuais e acordos
de propriedade privada) são formas de absorver excedentes de capital e mão-
de-obra. Tais expansões geográficas, reorganizações e reconstruções
freqüentemente ameaçam os valores fixos, mas ainda não realizados. Vastas
quantidades de capital fixo em um lugar atuam como um obstáculo na busca
por ajuste espacial em outro lugar. Os valores dos ativos que constituem a
cidade de Nova Iorque não eram e não são triviais e a ameaça de sua
desvalorização massiva em 1975 (e agora de novo em 2003) foi (e é) vista
por muitos como a maior ameaça ao futuro do capitalismo. Se o capital sai
dali, deixa um rastro de devastação (a desindustrialização experimentada no
12
coração do capitalismo, como Pittsburgh e Sheffield, assim como em muitas
outras partes do mundo, como Bombaim, nos anos 70 e 80, é um exemplo
disso). Por outro lado, se o capital sobreacumulado não se move ou não pode
se mover, será diretamente desvalorizado. Resumo do processo: o capital
necessariamente cria, em um primeiro momento, um ambiente físico à sua
própria imagem unicamente para destruí-lo depois, quando busca expansões
geográficas e deslocamentos temporais como soluções para as crises de
superacumulação que o afetam ciclicamente. Esta é a história da destruição
criativa (com todas as suas conseqüências sociais e ambientais negativas)
escrita na evolução da paisagem física e social do capitalismo.
Outra série de contradições geralmente surge dentro da dinâmica das
transformações espaço-temporais. Se o excesso de capital e de força de
trabalho existe em dado território (como uma nação ou Estado) e não pode
ser absorvida internamente (tanto por ajustes geográficos ou gastos sociais)
então devem ser enviados a outro lugar a fim de encontrar um novo terreno
para sua realização rentável para não serem desvalorizados. Isto pode ocorrer
de diversas formas. Mercados para excedentes de produtos podem ser
encontrados, mas os espaços aos quais se enviam os excedentes devem
possuir reservas de meio de pagamentos como o ouro ou dinheiro (dólar) ou
bens intercambiáveis. O problema de superacumulação é aliviado apenas por
pouco tempo (pois se troca meramente o excedente de bens por dinheiro ou
outros bens, ainda que no caso de a troca se realizar em matérias-primas ou
outros insumos mais baratos seja possível aliviar temporariamente a pressão
da baixa taxa de lucro no lugar). Se o território não possuir reservas ou bens
para trocar, ele ou deve achá-las (os ingleses obrigaram a Índia a abrir o
comércio de ópio com a China no século XIX e extraindo ouro chinês através
do comércio indiano) ou deve receber crédito ou assistência. Neste caso um
território recebe o empréstimo ou a doação do dinheiro com que compra o
excedente de mercadorias geradas no território em questão. A Inglaterra fez
isto com a Argentina no século XIX e o excedente do comércio japonês
durante os anos 90 foi largamente absorvido por empréstimos aos Estados
Unidos destinados a sustentar o consumo dos produtos japoneses. Simples
transações comerciais e de créditos deste tipo podem aliviar problemas de
superacumulação ao menos em curto prazo. Elas funcionam muito bem sob
condições de desenvolvimento geográfico desigual em que os excedentes
disponíveis de um território são compensados pela carência dos mesmos em
outro local. Mas, simultaneamente, o recurso ao sistema de créditos volta aos
territórios vulneráveis aos fluxos de capital especulativo e fictício, que
podem tanto estimular como minar o desenvolvimento capitalista e mesmo,
como ocorreu recentemente, ser usado para impor selvagens desvalorizações
nesses territórios vulneráveis.
A exportação de capital, particularmente quando acompanhada pela
exportação de força de trabalho, opera de maneira bastante distinta e
freqüentemente surte efeitos em prazos mais longos. Neste caso, excessos de
capital (geralmente capital-dinheiro) e trabalho são enviados a outros lugares
13
para pôr em movimento a acumulação de capital no novo espaço. Excedentes
gerados na Inglaterra no século XIX e enviados para os Estados Unidos, para
as colônias no sul da África, Austrália e Canadá, criaram novos e dinâmicos
centros de acumulação nestes territórios, gerando uma demanda de bens da
Inglaterra. Uma vez que podem transcorrer muitos anos para que o
capitalismo amadureça nestes novos territórios (isso se algum dia o fizer) até
o ponto onde eles, também, comecem a produzir superacumulação de capital,
o país de origem pode esperar beneficiar-se por um período considerável de
tempo. Este é particularmente o caso quando os bens demandados em outra
parte são de tipo imobiliário. Investimentos de portfólio podem manter a
construção do capital fixo (ferrovias e represas) requeridas como base para
uma sólida acumulação no futuro. Mas a taxa de retorno destes investimentos
a longo prazo no ambiente construído depende da evolução de uma forte
dinâmica de acumulação no país receptor. A Grã-Bretanha foi assim
financiadora da Argentina na última parte do século XIX. Os Estados
Unidos, por meio do Plano Marshall para a Europa (Alemanha em particular)
e Japão, viu claramente que sua própria segurança econômica (deixando de
lado o aspecto militar derivado da Guerra Fria) dependia da revitalização da
atividade capitalista em tais lugares.
As contradições surgem porque os novos espaços dinâmicos de
acumulação de capital geram excedentes que devem ser absorvidos através
da expansão geográfica. Japão e Alemanha tornaram-se competidores do
capital estadunidense desde o final dos anos 60 em diante de modo parecido
ao como os Estados Unidos superaram o capital inglês (e colaboraram para
derrubada do império britânico) no transcurso do século XX. É sempre
interessante delimitar o momento em que o sólido desenvolvimento interno
transborda em uma busca por ajustes espaço-temporais. O Japão fez isso
durante os anos 60, primeiro através do comércio e em seguida por meio da
exportação de capital como investimentos diretos, primeiro para a Europa e
os Estados Unidos e mais recentemente na forma de investimentos massivos
(diretos e de portfólio) para o Leste e Sudeste da Ásia e, por último, mediante
empréstimos (particularmente para os Estados Unidos). A Coréia do Sul de
repente se voltou para o exterior nos anos 80, seguida por Taiwan nos anos
90. O dois países exportaram não apenas capital financeiro, mas algumas das
mais impiedosas práticas de gerenciamento do trabalho imagináveis, como a
terceirização feita pelo capital multinacional ao redor do mundo (na América
Central, na África, assim como no resto do Sul e Leste da Ásia). Mesmo
recentemente, países que tiveram sucesso ao aderirem ao desenvolvimento
capitalista, rapidamente se encontraram frente à necessidade de ajustes
espaço-temporais devido a sua superacumulação de capital. A rapidez com a
qual certos territórios, como Coréia do Sul, Singapura, Taiwan e agora até
mesmo a China deixaram de ser receptores líquidos para serem territórios
exportadores tem sido surpreendente, comparada ao ritmo lento de períodos
anteriores. Mas, pela mesma razão, tais territórios devem adaptar-se Pressão interna referente aos
ajustes espaço-temporais
rapidamente à pressão interna de seus próprios ajustes espaço-temporais. A
14
China, absorvendo excedentes na forma de investimentos diretos estrangeiros
do Japão, Coréia e Taiwan, está rapidamente suplantando estes países em
muitos setores de produção e exportação (particularmente aqueles de baixo
valor agregado e de trabalho intensivo, mas também está se movendo em
direção aos bens de consumo de alto valor agregado). A generalizada
sobrecapacidade que Brenner identifica pode desta forma decompor-se e
proliferar-se em uma cascata de ajustes espaço-temporais, primeiro no Sul e
Leste da Ásia, mas com elementos adicionais na América Latina (Brasil,
México e Chile em particular) e somados agora com a Europa Oriental. E em
uma estranha reviravolta, explicável em grande parte pelo papel do dólar
como moeda de reserva global que confere o poder de senhoriagem, os
Estados Unidos, com o imenso endividamento nos últimos anos, têm
absorvido capitais excedentes principalmente do Leste e Sudeste da Ásia.
De qualquer maneira, o resultado final é um aumento na ferocidade
da concorrência internacional na medida em que múltiplos e dinâmicos
centros de acumulação de capital emergem para competir no cenário mundial
em meio a importantes correntes de superacumulação. Como nem todos
podem ter sucesso em longo prazo, ou os mais fracos sucumbem e caem em
sérias crises de desvalorização ou confrontos geopolíticos emergem na forma
de guerras comerciais, guerras monetárias e até mesmo confrontos militares
(do tipo que nos deram duas guerras entre potências capitalistas no século
XX). Neste caso o que se exporta é desvalorização e destruição (do tipo que
as instituições financeiras estadunidenses induziram o Leste e o Sudeste da
Ásia em 1997-8) e os ajustes espaço-temporais assumem formas mais
sinistras. Existem, entretanto, outros pontos que precisam ser assinalados
para melhor compreender este processo.
Contradições internas
Em sua Filosofia do Direito, Hegel (1967) aponta como a dialética
interna da sociedade burguesa, que produz uma superacumulação de riqueza
por um lado e uma multidão de pobres por outro, leva à busca por soluções
através do comércio externo e das práticas coloniais e imperiais. Hegel
rejeita a idéia de que possam existir formas de solucionar os problemas de
desigualdade sociais e instabilidade através de mecanismos internos de
redistribuição. Lênin (s.d.) cita Cecil Rhodes ao dizer que o colonialismo e o
imperialismo eram a única maneira possível de evitar a guerra civil. Relações
e lutas de classes em uma formação social ligada a um território causam
impulsos de buscar ajustes espaço-temporais em algum outro lugar.
Um exemplo ilustrativo do final do século XIX é o de Joseph
Chamberlain. Conhecido como Joe, o radical, se identificava estreitamente
com os interesses liberais manufatureiros de Birmingham e inicialmente,
durante as guerras afegãs da década de 1850, se opunha ao imperialismo.
Dedicou-se à reforma educativa e à melhoria das infraestruturas físicas e
sociais da produção e do consumo em sua cidade natal. Pensava que isto
ofereceria uma saída produtiva para os excedentes, que devolveriam seu
15
valor a longo prazo. Figura importante dentro do movimento liberal
conservador, foi testemunha de primeira mão do ressurgimento da luta de
classes na Grã-Bretanha e em 1885 realizou um celebrado discurso no qual
convocava as classes proprietárias a assumir suas responsabilidades sociais
(melhorar as condições de vida dos menos favorecidos e investir em
infraestruturas sociais e físicas em nome do interesse nacional) em lugar de
preocupar-se apenas com seus direitos individuais como proprietários. O
escândalo que isto originou entre as referidas classes forçou-o a se retratar e,
deste momento em diante, tornou-se o mais ardente defensor do
imperialismo (como secretário colonial, levou a Grã-Bretanha ao desastre da
guerra dos Boers). Esta trajetória profissional foi bastante comum no
período. Jules Ferry na França, um ardente defensor das reformas internas
(especialmente da educação) nos anos 60, assumiu a defesa do colonialismo
logo após a Comuna de 1871, levando a França ao atoleiro do Sudeste
Asiático, que culminou com a derrota de Dien Bien-Phu, em 1954; Francesco
Crispi procurou resolver o problema agrário no sul da Itália por meio da
expansão imperialista na África; e até Theodore Roosevelt, nos Estados
Unidos, preferiu apoiar as práticas coloniais ao invés das reformas internas,
depois que Frederic Jackson declarou (erroneamente, ao menos no que se
refere às oportunidades de investimentos) que a fronteira americana estava
fechada4.
Em todos esses casos, a mudança para uma forma liberal de
imperialismo (associada a uma ideologia de progresso e a uma missão
civilizatória) não foi resultado de imperativos econômicos absolutos, mas da
falta de vontade política, por parte da burguesia, para renunciar a
determinados privilégios de classe, bloqueando assim qualquer possibilidade
de absorver a superacumulação através de reformas sociais internas. A feroz
oposição a qualquer política redistributiva ou de melhoria social, que existe
nos Estados Unidos, não deixa outra opção do que procurar no exterior
soluções para suas dificuldades econômicas. Políticas internas de classe deste
tipo forçaram muitas potências européias a buscar no exterior soluções para
seus problemas desde 1884 até 1945, e isto deu uma tonalidade especial às
formas que o imperialismo europeu adotou. Muitas figuras liberais e mesmo
radicais tornaram-se orgulhosos imperialistas durante estes anos e grande
parte do movimento operário foi persuadido a apoiar o projeto imperialista
como um fator essencial ao seu próprio bem-estar. Isto requeria que os
interesses burgueses se colocassem à frente do Estado, do aparato ideológico
e do poder militar. Dessa forma, em minha opinião, Arendt (1968: 18) Arendt X Lenin
interpreta corretamente este imperialismo eurocêntrico como “a primeira
etapa do domínio político da burguesia e não a última fase do capitalismo”
4 Toda esta história de mudanças radicais das soluções internas até as externas para os problemas sócio-políticos derivados da
dinâmica da luta de classe está explicado em uma pouco conhecida, mas fascinante coleção de Julien, C-A., Bruhat, J., Bourgin,
C. Crouzet, M. and Renouvin P. Les politiques d’expansion imperialiste, Paris, 1949, na qual são examinados e
PUF,
comparados detalhadamente Ferry, Chamberlain, Roosevelt, Crispi e outros.
16
como foi descrito por Lênin5. Examinarei mais detalhadamente esta idéia na
conclusão.
5 Existem muitos paralelismos entre a análise de Arendt no século XIX e a nossa situação atual. Consideremos por exemplo o
seguinte trecho: “A expansão imperialista tem sido impulsionada por uma curiosa forma de crise econômica, a sobreprodução de
capital e a criação de dinheiro “supérfluo”, produto do sobrepoupança que não pode mais encontrar investimentos produtivos
dentro das fronteiras nacionais. Pela primeira vez, investimentos de poder não abriam caminho para o investimento de dinheiro,
mas a exportação de poder se limitava a seguir, timidamente, a exportação de dinheiro, visto que os investimentos
incontroláveis em países distantes ameaçavam transformar longos estratos sociais em apostadores, para mudar toda a
economia capitalista de sistema de produção para sistema de especulação financeira e realocar os benefícios da produção pelos
benefícios das comissões. A década imediatamente anterior a era imperialista, a de
setenta do século XIX
testemunhou um aumento sem precedentes nas fraudes, nos escândalos financeiros
e especulações nas bolsas de valores” (p. 15).
6
Brenner (2002) apresenta o relato mais geral e sintético desta turbulência. Detalhes
sobre o desmoronamento do Leste Asiático podem ser encontrados em Wade &
Veneroso (1999: 3-23); Henderson, op. cit; Johnson, C. Blowback (2000), capítulo 9,
o artigo especial da Historical Materialism, n° 2 (2001) “Focus on East Asia after the
crisis”, (particularmente Burkett & Hart-Landsberg, “Crisis and recovery in East Asia:
the limits of capitalist development, pp. 3-48).
17
contrapartida resgatou Nova Iorque de sua própria crise econômica. Criou
um poderoso regime financeiro Wall Street/Federal Reserve7, com poderes
de controle sobre as instituições financeiras globais (tais como o FMI) e
capaz de fazer ou quebrar muitas economias mais fracas através da
manipulação do crédito e das práticas de administração da dívida. De acordo
com Gowan, este regime monetário e financeiro foi utilizado por sucessivas Regime financeiro
Wall street/Federal
administrações estadunidenses “como um formidável instrumento de Reserve
políticas de estado e controle econômico para impulsionar tanto o processo
de globalização quanto as transformações nacionais neoliberais”. O regime
se desenvolveu através das crises. “O FMI cobre os riscos e assegura que os
bancos estadunidenses não percam (os países pagam através de ajustes
estruturais, etc.) e a fuga de capitais provenientes de crises localizadas no
resto do mundo acaba reforçando o poder de Wall Street ...” (Gowan, 2001,
23 e 35). O efeito disto foi a projeção do poder econômico estadunidense Efeito do poder de
para o exterior (em aliança com outros quando possível), para forçar a Wall Street
abertura de mercados, particularmente aos fluxos financeiro e de capital
(atualmente um requisito para integrar o FMI), e impor outras políticas
neoliberais (culminando com a OMC) sobre boa parte do resto do mundo.
Existem dois aspectos importantes a serem destacados sobre este
sistema. Primeiro, o livre comércio de mercadorias é freqüentemente descrito 1/2 - sobre o comércio: o
como uma abertura do mundo a uma concorrência livre e aberta. Mas, como argumento do livre
Lênin observou há muito tempo, este argumento falha frente ao poder de comércio esbarra no
monopólio ou oligopólio (tanto na produção quanto no consumo). Os poder dos
monopólios/oligopólios
Estados Unidos, por exemplo, têm repetidamente utilizado a arma de negar o
acesso ao enorme mercado estadunidense para forçar outras nações a aceitar
seus desejos. O mais recente (e crasso) exemplo disto nos é oferecido por
Robert Zoellick, representante de comércio dos Estados Unidos, ao anunciar
que se Lula, o recente presidente eleito no Brasil pelo Partido dos
Trabalhadores, não se alinhasse com os planos de livre mercado para a
América, seria forçado a “exportar para a Antártida”. Taiwan e Cingapura
foram forçadas a aderir à OMC e, conseqüentemente, a abrir seu mercado
financeiro ao capital especulativo, frente às ameaças americanas de negar o
acesso ao seu mercado. Diante da insistência do Federal Reserve, a Coréia do
Sul foi forçada a fazer o mesmo como condição para que o FMI a financiasse
em 1998. Os Estados Unidos planejam agora agregar uma cláusula de livre
acesso aos mercados, segundo o modelo estadunidense, nas “ajudas de risco”
que oferecem aos países pobres. Na esfera produtiva, os oligopólios 2/2 - sobre a produção: os
localizados majoritariamente nas regiões capitalistas centrais controlam oligopólios controlam a
produção
efetivamente a produção de sementes, fertilizantes, eletrônicos, programas de
computador, produtos farmacêuticos, produtos do petróleo e muito mais.
Sob estas condições, a abertura dos mercados não amplia a
concorrência, mas apenas cria oportunidades para a proliferação de poderes
de monopólio com todas suas conseqüências sociais, ecológicas, econômicas
7 Vários nomes foram propostos para isto. Gowan opta por chamar de Dollar Wall Street Regime, mas eu prefiro a denominação
mais complexa Wall-Street-Treasury-IMF sugerida por Wade and Veneroso.
18
e políticas. O fato de que aproximadamente dois terços do comércio exterior
se concentram atualmente em transações dentro e entre as principais
corporações transnacionais é um indicador desta situação. Até mesmo algo
aparentemente benigno como a Revolução Verde, como a maioria dos
comentadores concorda, acompanhou o incremento da produtividade agrícola
com uma maior concentração de riqueza neste setor e um maior nível de
dependência dos monopólios através de todo o Sul e Leste da Ásia. A
penetração no mercado da China pelas companhias de tabaco estadunidense
compensa as perdas em seu próprio mercado e isto certamente gerará uma Argumentos em favor
crise da saúde pública nas próximas décadas. Em todos estes aspectos, os do livre M são
fraudulentos
argumentos que apresentam o neoliberalismo como uma concorrência ao
invés de um controle monopólico revelam-se fraudulentos, camuflados,
como de costume, pelo fetichismo da liberdade de mercado. Livre mercado
não significa mercado justo.
Existe também, como reconhecem até mesmo defensores do
mercado livre, uma imensa diferença entre o livre mercado de mercadorias e
M livre X livre M ?? a liberdade de movimento do capital financeiro (Bahgwati, 1998: 7-12). Isto
propõe imediatamente o problema de qual forma de liberdade de mercado de
que se esta falando. Alguns, como Baghwati, defendem ferozmente o livre
comércio de bens, mas resistem à idéia de que isto necessariamente seja
positivo para os fluxos financeiros. A dificuldade aqui é a seguinte. De um
lado os fluxos de capital são vitais para os investimentos produtivos e para as
realocações de capital de uma linha ou lugar de produção a outros. Eles
também jogam um importante papel ao equilibrar as necessidades de
consumo (de moradia, por exemplo) com as atividades produtivas, em um
mundo espacialmente desintegrado, com excedentes em um lugar e déficits
em outro. Em todos esses aspectos, o sistema financeiro (com ou sem
participação do Estado) é vital para coordenar a dinâmica da acumulação de
capital em um contexto de desenvolvimento geográfico desigual. Mas o
capital financeiro também engloba uma grande quantidade de atividades
improdutivas nas quais dinheiro é simplesmente utilizado para gerar mais
dinheiro através da especulação em mercados de futuro, valores monetários,
dívidas e outros. Quando grandes quantidades de capital se tornam
disponíveis para tais propósitos, então mercados de capital abertos se
convertem em veículos para atividades especulativas algumas das quais se
tornam profecias auto-realizáveis , como ocorreu, durante os anos 90, com os
“ponto.com” e as “bolhas” dos mercados de ações ou os hedge funds, que
contavam com trilhões de dólares à sua disposição, e forçaram a bancarrota
da Indonésia e até mesmo da Coréia do Sul, independentemente da força de
suas economias. Muito do que aconteceu em Wall Street não tem nada a ver
com facilitar o investimento em atividades produtivas. É puramente
especulação. Daí as descrições do capitalismo como “cassino”, “predatório”
ou mesmo “de rapina” - com o fracasso da gestão do capital a longo prazo,
que precisou de um socorro de US$2.3 bilhões, o que aponta aos Estados
Unidos que a especulação pode fracassar facilmente. Esta atividade tem,
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entretanto, profundos impactos sobre toda a dinâmica de acumulação de
capital. Sobretudo, isto facilitou a que o poder político e econômico voltasse
a se centrar nos Estados Unidos mas também em mercados financeiros de
outros países centrais (Tóquio, Londres, Frankfurt).
Como isto ocorre, depende da forma das alianças intraclasse
dominante existentes nos paises centrais, da relação de forças entre eles nas
negociações de acordos internacionais (como a nova arquitetura financeira
internacional implementada depois de 1997-98 para substituir o chamado
Consenso de Washington de meados dos anos 90) e das estratégias político-
econômicas postas em marcha pelos agentes dominantes com respeito ao
Alianças das classes capital excedente. A emergência do complexo “Wall Street-Federal Reserve-
dominantes dos
países centrais. FMI” dentro dos Estados Unidos, capaz de controlar as instituições globais e
projetar um vasto poder financeiro ao redor do mundo através de uma rede
Poder imperialistas de outras instituições financeiras e governamentais, tem jogado um papel
dos EUA determinante e problemático na dinâmica do capitalismo global
recentemente. Mas este centro de poder pode apenas operar da forma que faz
porque o resto do mundo está interconectado e enquadrado na estrutura das
instituições financeiras e governamentais (incluindo as supranacionais). Daí "Pode econômico"
a importância da colaboração entre, por exemplo, bancos centrais das nações seria melhor
do G-7 e os vários acordos internacionais (temporários no caso de estratégias
monetárias e mais permanentes no caso da OMC) designados para lidar com
dificuldades particulares8. E se o poder do mercado não for suficiente para
alcançar objetivos particulares e colocar elementos recalcitrantes ou “estados Poder militar como poder
auxiliar do poder econômico
delinquentes” (rogue States) na linha, então o inigualável poder militar
estadunidense (direto ou indireto) está preparado para resolver a situação.
Este complexo de acordos institucionais deveria, no melhor de todos
os capitalismos possíveis, ser utilizado para sustentar e apoiar a reprodução
ampliada (crescimento). Mas, assim como a guerra em relação à diplomacia,
a intervenção do capital financeiro respaldada pelo poder de Estado equivale
à acumulação por outrosmeios. Uma aliança non sancta entre os poderes de
Estado e os aspectos predatórios do capital financeiro forma a ponta da lança
de um “capitalismo de rapina” muito mais dedicado à apropriação e
desvalorização de ativos do que à sua construção por meio de investimentos
produtivos. Sob as condições de superacumulação, estes “outros meios”
podem ser dirigidos para forçar desvalorizações e práticas canibais
preferentemente praticadas em espaços alheios e sobre aqueles que têm
menos capacidade de reação. Mas como devemos interpretar estes “outros
meios” de acumulação ou desvalorização?
Bibliografia:
AMIM, S. (2001). “Imperialism and globalization,” Monthly Review, vol. 53, n. 2.
ARENDT, H. (1968). Imperialism. Harcourt Brace: New York.
8
Embora um autor não se refira ao outro, Gowan (1999) e Brenner (2002) tecem
considerações paralelas a respeito deste assunto.
20
BAHGWATI, J. (1998) “The capital myth: the difference between trade in widgets and
dollars”. Foreign Affairs, 77.3.
BRENNER, R. (2002). The boom and the bubble: the U.S. in the world economy.
London: Verso.
COOPER, R. (2002). “The new liberal imperialism.” The Observer, 7/abril.
GOWAN, P. (1999). The global gamble: Washington’s bid for world dominance.
London: Verso.
GOWAN, P.; PANITCH, L. & SHAW, M. (2001). “The state, globalization and the new
imperialism: a round table discussion”. Historical Materialism, 9.
PANITCH, L. (2000). “The new imperial state”. New Left Review, 11.
PETRAS, J. & VELTMEYER (2001), Globalization unmasked: imperialism in the 21st
century. London: Zed Books.
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