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Demanda Do Bobo PDF

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a demanda do bobo

saga assassino e o bobo / livro 3


robin hobb
Tradução de Jorge Candeias
A Rudyard . Ainda o me u Mai s Amado
depoi s de todos estes anos
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9
CAPÍTULO 19

A Estratégia

…mas a ilha está rodeada por magia, de forma que só aqueles


que já lá estiveram podem regressar. Nenhum forasteiro é capaz
de encontrar o caminho até lá. Contudo, raramente, nascem
crianças pálidas que, sem nunca lá terem estado, recordam o ca-
minho e por isso importunam os pais até serem levadas até lá,
para crescerem lentamente até serem velhas e sábias.
Nessa ilha, num castelo feito de ossos de gigantes, vive uma vi-
dente branca, rodeada pelos seus servos. Ela previu todos os fins
possíveis para o mundo e os servos anotam cada palavra que ela
profere, escrevendo-a com tinta de sangue de ave em pergami-
nho feito de pele de serpente marinha. Diz-se que os servos se ali-
mentam de carne e sangue de serpentes marinhas, para poderem
lembrar-se de passados que estão muito para lá dos seus próprios
nascimentos e que também essas recordações registam.
Se um forasteiro quiser ir até lá, deve encontrar como guia al-
guém que tenha aí nascido, e tem de se assegurar de levar con-
sigo quatro dádivas: uma de cobre, uma de prata, uma de ouro
e uma feita com um osso de homem. E as de cobre e ouro não
podem ser simples moedas; devem ser joias raras, feitas pelos
mais hábeis dos ourives. Com esses penhores, cada um na sua
bolsa de seda negra, atada com uma fita branca, o viajante deve
abordar o guia e pronunciar o seguinte encantamento: “Com
cobre te compro a fala, com prata te compro os pensamentos,
com ouro te compro as memórias e com um osso prendo o teu
corpo para teres de me acompanhar numa viagem até à ter-
ra onde nasceste.” Então, essa pessoa aceitará as quatro bolsas
oferecidas pelo viajante e falar-lhe-á e lembrar-se-á fielmente e
guiá-lo-á até à pátria onde nascera.
Mas mesmo depois, o caminho do viajante poderá não ser fá-
cil pois, embora o guia esteja obrigado a levá-lo a Clerrestria,

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nada pode obrigá-lo a levá-lo pelo caminho mais direto, nem a
falar-lhe em palavras simples.
Uma história de menestrel das Ilhas Externas,
registada por Breu

A
cordei sobressaltado com uma leve batida à porta. Estava vestido,
em cima da cama. A luz que entrava pelas portadas da minha janela
disse-me que era dia. Esfreguei a cara, tentando despertar-me, e de-
pois desejei não o ter feito. A costura pregueada na minha testa estava agora
dorida. A batida voltou a soar.
“Cinza?”, chamei baixinho e depois apercebi-me de que as batidas vi-
nham da porta escondida, não da que dava para o corredor. “Bobo?”, ques-
tionei e, em resposta, ouvi: “Matizada, Matizada, Matizada.” Ah. O corvo.
Acionei a porta e, quando ela se abriu, a ave saltitou para dentro do meu
quarto.
“Comida, comida, comida?”, perguntou.
“Lamento. Não tenho cá nada para ti.”
“Voar, voar, voar, voar!”
“Deixa-me primeiro olhar para ti.”
Ela saltitou para mais perto de mim e eu apoiei-me num joelho para a
inspecionar. A tinta parecia estar a durar. Não vi nela nenhum branco. “Vou
deixar-te sair, que sei que deves estar morta de vontade de voar. Mas se fores
sensata, vais evitar os da tua espécie.”
Ela não deu resposta a isto, mas observou-me enquanto eu ia até à janela
e a abria. Era um dia de céu azul. Olhei por cima de muralhas de castelo en-
cimadas por um talude adicional de neve. Esperara que fosse alvorada. Não
era. Eu passara a noite inteira e parte da manhã a dormir. Ela saltou para o
parapeito e lançou-se no ar, sem um olhar para trás. Fechei a janela e depois
tranquei a porta secreta. O ar frio na minha cara apertara os pontos defei-
tuosos. Teriam de sair. O Bobo estava cego e ser eu a tirá-los exigiria segurar
num espelho com uma mão e repuxá-los com a outra. E eu certamente não
queria voltar a chamar o curandeiro que me tinha feito aquilo.
Sem pensar, contactei Breu. Podias ajudar-me a tirar os pontos da testa?
O meu corpo está a tentar sarar e os pontos estão a franzir a pele.
Senti-o lá, na extremidade do meu fio de Talento. Andava à deriva
como uma gaivota montada na brisa. Depois disse baixinho: Consigo ver
o calor das chamas através da vigia. Aqui está frio mas tenho de cá ficar

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durante o turno inteiro. Detesto-o tanto. Quero ir para casa. Só quero ir para
casa.
Breu? Estás a sonhar? Estás em casa, em segurança, no Castelo de Torre
do Cervo.
Quero voltar para a nossa pequena quinta. Devia ter sido eu a herdá-la,
não ele. Ele não tinha nenhum direito de me mandar assim embora. Tenho
saudades da minha mãe. Porque teve ela de morrer?
Breu. Acorda! É um pesadelo!
Urtiga tentou calar-me. Fitz. Para, por favor. O seu contacto pelo Talento
comigo era estreito e privado. Nenhum dos seus aprendizes ou jornaleiros
nos ouviriam. Estamos a tentar mantê-lo calmo. Ando à procura de um sonho
que possa acalmá-lo e dar-lhe uma estrada por onde possa voltar para nós.
Mas só pareço encontrar os pesadelos. Vem até ao quarto dele, que te trato dos
pontos.
Lembra-te de vires como o Príncipe FitzCavalaria!, interrompeu
Respeitador, montado na corrente de pensamentos da minha filha. Já pro-
vocaste bastante falatório quando roubaste aquele cavalo. Eu comprei-o por ti,
pelo dobro do preço que qualquer cavalo devia valer! Tentei explicar que tinha
sido um engano, que tinhas mandado vir um cavalo e pensaste que a ruana
era para ti. Mas mostra-te circunspecto com todas as pessoas que encontrares e
tenta evitar conversas. Ainda estamos a tentar construir uma história plausível
para ti. Se alguém fizer comentários sobre a tua aparência jovem, sugere que é
efeito dos anos passados junto dos Antigos. E, por favor, mostra-te adequada-
mente misterioso a esse respeito!
Afirmei que o faria, numa apertada emissão de Talento dirigida a
Respeitador. Depois examinei-me cuidadosamente no espelho. Fervia de im-
paciência por ir atrás de Abelha, mas partir à sorte era tão provável que me le-
vasse para mais longe dela como para mais perto. Calquei a frustração. Tinha
de esperar. Tinha de aguentar e esperar. A sugestão do Bobo para nos preci-
pitarmos para Clerres, uma viagem de meses, parecia-me prematura. Todos
os dias que eu viajasse para sul seria mais um dia em que Abelha estava cativa
dos calcedinos. Era muito melhor recapturar Abelha e Esquiva cedo do que
tarde, antes de poderem ser levadas para fora dos Seis Ducados. Agora que
sabíamos quem e o que eles eram, parecia-me improvável que conseguissem
iludir as nossas buscas. Os relatórios seriam trazidos para ali, para Torre do
Cervo. Decerto que alguém teria visto algum sinal deles, algures.
E decidi ser entretanto tão tratável quanto possível. Já criara a
Respeitador e Urtiga dificuldades suficientes. E tinha a sensação de que ia

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pedir muita ajuda tanto a eles como ao tesouro real. Eles fá-lo-iam por amor
a mim e a Abelha, independentemente do custo. Mas ia ser difícil para o rei
emprestar-me os homens de armas de que eu poderia ter necessidade sem
que alguém fizesse uma ligação firme entre a filha raptada de Tomé Texugo, o
ataque a Floresta Mirrada e o há muito desaparecido FitzCavalaria. Sê-lo-ia
ainda mais difícil com Breu a divagar numa febre causada pelos ferimentos e
incapaz de aplicar a sua esperteza ao problema. O mínimo que eu podia fazer
era não dificultar mais o jogo de cordelinhos políticos que eles jogavam.
Cordelinhos políticos. Enquanto brutamontes tinham a minha filha
cativa. A raiva cresceu em mim. Senti o coração bater violentamente e os
músculos inchar com ela. Queria lutar, matar aqueles calcedinos como tinha
apunhalado, mordido e esganado os atacantes de Breu.
Fitz? Há alguma ameaça?
Nada, Respeitador. Nada. Nada para que eu tivesse um alvo. Por enquanto.
Quando saí do meu quarto, estava barbeado e o cabelo fora atado na
coisa mais parecida com um rabo de cavalo de guerreiro de que eu me podia
vangloriar. A roupa era o menos colorido dos trajes que Cinza pusera de
parte como adequados para o Príncipe FitzCavalaria. Usava a espada simples
à anca, um privilégio do meu estatuto no interior de Torre do Cervo. Cinza
engraxara-me as botas até as deixar a brilhar e o brinco que eu usava tinha o
que parecia ser uma safira verdadeira. A meia capa pregueada com bainhas
de renda era um aborrecimento, mas eu decidira que teria de confiar em
Cinza e esperar que trajes tão tolos não fossem nenhuma partida do rapaz.
Os corredores do castelo, que tinham estado repletos de gente durante
o Festival de Inverno, mostravam-se agora mais sossegados. Caminhei por
eles com confiança, endereçando um sorriso a cada criado que encontrava.
Já chegara à escada que me levaria ao piso dos apartamentos reais quando
uma mulher alta se empurrou de súbito para longe da parede a que estivera
encostada. O cabelo grisalho estava puxado para trás num rabo de cavalo de
guerreira e a postura fácil informou-me de que estava perfeitamente equili-
brada. Poderia atacar ou fugir num instante. Fiquei de repente muito alerta.
Ela sorriu-me e eu perguntei a mim mesmo se teria de a matar para passar
por ela. Falou baixinho. “Eh, Fitz. Tens fome? Ou será que agora és demasia-
do orgulhoso para me fazeres companhia na messe dos guardas?”
Os seus olhos cruzaram-se com os meus e aguardou. Foi preciso al-
gum tempo para a minha memória viajar tantos anos para trás. “Capitã
Rapoluva?”, consegui alvitrar.
O sorriso na cara dela tornou-se mais caloroso e os olhos reluziram.

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“Estava com curiosidade de saber se me reconhecerias depois de todos estes
anos. Estamos muito longe de Baía Limpa, em distância e em tempo. Mas
eu fiz uma aposta, e das grandes: que um Visionário não esquece quem o
protegeu.”
Estendi imediatamente uma mão e apertámos os pulsos. A mão dela era
quase tão firme como tinha sido em tempos e fiquei imensamente contente
por ela não estar ali para me matar.
“E passaram-se muitos anos desde que alguém me chamou capitã. Mas e
tu, o que tens feito? Esse corte não parece ter mais de uma semana.”
Toquei-o, embaraçado. “É uma história humilhante, sobre um encontro
muito pateta com o canto de uma parede de pedra.”
Ela abanou a cabeça ao ouvir aquilo. “É estranho que pareça um golpe
de espada. Estou a ver que o que tenho para te dizer devia ter sido dito há um
mês. Vem comigo, por favor.”
Atrasado, transmiti numa emissão de Talento apertada e pequena, diri-
gida a Respeitador e Urtiga. A Capitã Rapoluva quer ter uma conversa comigo.
Quem?, perguntou Respeitador, preocupado.
Ela protegeu a tua mãe na Batalha de Baía Limpa. Kettricken deverá
lembrar-se dela, julgo eu.
Ah.
Perguntei a mim mesmo o que saberia ele dessa história e, enquanto as
recordações desse dia sangrento me iam escorrendo pela mente, avancei a
passos largos, ao lado da velha. Ainda tinha o porte direito de uma guarda e
os passos compridos de alguém que é capaz de executar uma marcha rápida
durante quilómetros. Mas enquanto caminhava, ela disse: “Eu não sou capitã
nos guardas há muitos anos, meu príncipe. Quando a Guerra dos Navios
Vermelhos finalmente terminou, casei, e conseguimos ter três filhos antes de
eu ficar demasiado velha para dar à luz. E, a seu tempo, eles deram-me e ao
Rosse Vermelho uma dúzia de netos. Vós?”
“Ainda não tenho netos,” disse.
“Então o filho da Dama Urtiga será o primeiro?”
“O meu primeiro neto,” confirmei. As palavras soaram estranhas na mi-
nha boca.
Descemos ruidosamente a escada lado a lado e eu fiquei estranhamente
satisfeito com os olhares invejosos que outros criados deitavam à mulher
quando por eles passávamos. Houvera alturas em que a amizade com o
Bastardo não fora algo a acarinhar, mas ela dera-ma. E lá fomos descendo,
até ao piso do castelo onde era realizado o verdadeiro trabalho, passando

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pelos lavadeiros com os seus cestos de lençóis, tanto limpos como sujos, por
pajens que equilibravam bandejas cheias de comida e por um carpinteiro, o
seu empregado e três aprendizes, que se preparavam para reparar qualquer
coisa no castelo. Passámos pelas cozinhas onde Tempero em tempos reinara
e fizera de mim seu favorito apesar das ramificações políticas. E dirigimo-nos
para a porta arqueada que dava para a messe dos guardas, onde o clamor de
gente a comer com apetite raramente cessava.
Rapoluva levou uma mão ao meu peito e fez-me parar aí. Olhou-me
diretamente nos olhos. Tinha o cabelo grisalho e rugas enquadravam-lhe
a boca, mas os olhos escuros eram tão brilhantes e intensos como sempre.
“Sois um Visionário, e eu sei que um verdadeiro Visionário se lembra das
suas dívidas. Estou aqui em nome da minha neta e do meu neto. Sei que vos
lembrareis dos tempos em que algumas palavras vossas me levaram, com
Assobio e uma mancheia de outros bons soldados, a abandonar a Guarda do
Rei Veracidade e vestir o púrpura e branco e o emblema da raposa da nossa
rainha estrangeira. Lembrais-vos disso, não é verdade?”
“É.”
“Então aprontai um sorriso, senhor. O vosso momento chegou.”
Indicou-me com um gesto que a antecedesse. Entrei na sala, fortalecido
com temor e pronto para tudo. Exceto para ouvir alguém gritar “Hep!” e
ver todos os guardas que estavam à mesa saltar de súbito para se porem em
pé. Bancos rasparam ruidosamente no chão quando foram empurrados para
trás. Uma caneca inclinou-se precariamente quando a mesa deu um salto.
Depois assentou e o silêncio encheu a sala de homens e mulheres muito di-
reitos, formalmente em sentido para me saudar. Sustive a respiração.
Muitos anos antes, o Rei Expectante Veracidade tinha criado um sím-
bolo para mim. Eu fora o único a usá-lo. Era o cervo Visionário, mas com a
cabeça baixa em carga e não na pose altiva que um filho de rei usaria. E por
cima houvera a banda vermelha que me marcava como bastardo, ao mesmo
tempo que o cervo reconhecia a minha linhagem.
Agora eu enfrentava uma sala cheia de guardas em pé, e meia dúzia de-
les usava ao peito o cervo cortado. Os justilhos eram de azul de Cervo, com
uma risca vermelha pelo peito abaixo. Fitei-os, sem fala.
“Sentem-se, seus idiotas. Continua a ser só o Fitz,” anunciou Rapoluva.
Oh, ela estava a gostar daquilo e, quando alguns dos jovens presentes na sala
olharam para ela de boca aberta, assombrados pela temeridade, intensifi-
cou-a pegando-me no braço e puxando-me para um lugar num dos bancos
compridos que rodeavam a mesa. “Empurrem para aqui o jarro de cerveja

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e um bocado de pão escuro e de queijo fresco. Ele pode sentar-se agora na
mesa elevada, mas foi criado com rações de guardas.”
E eu sentei-me, e alguém me serviu uma caneca e perguntei a mim mes-
mo como aquilo me podia parecer tão bom, tão estranho e tão terrível ao
mesmo tempo. A minha filha estava desaparecida e em perigo, e ali estava eu,
com um sorriso tolo na cara, enquanto uma velha explicava que estava na al-
tura de eu ter a minha própria guarda e que, embora os outros netos fossem
todos membros da guarda de Kettricken, os dois mais novos ainda não ti-
nham prestado juramento. E quanto ao resto dos guardas instalados à mesa,
a trocar risinhos uns com os outros por verem um “príncipe” Visionário a
partilhar a sua comida simples, não podiam saber que a comida raramente
me soubera melhor. Aquele pão escuro, o queijo de sabor intenso e a cane-
ca de cerveja a transbordar de espuma eram os alimentos que me tinham
sustentado durante muitas horas sombrias. Era o melhor banquete que eu
poderia imaginar para aquele momento de peculiar triunfo.
Rapoluva pastoreou dois jovens na minha direção, com uma mão em
cada um dos seus ombros. Nenhum podia ter mais de vinte anos e a rapariga
endireitou-se visivelmente para tentar parecer mais alta. “São primos, mas
são tão parecidos como dois gatinhos da mesma ninhada. Esta é a Astuta e
este é o Pronto. Já usam o vosso símbolo. Quereis aceitar agora os juramen-
tos deles?”
“O Rei Respeitador está ao corrente de tudo isto?” Disse as palavras em
voz alta ao mesmo tempo que as enviava numa apertada emissão de Talento
dirigida a Respeitador. O pensamento é rápido. Ele testemunhou num ins-
tante o meu dilema e senti o divertimento que este lhe causava.
“Se não está, devia estar,” respondeu mordazmente Rapoluva e canecas
bateram na mesa mostrando acordo. “Não me lembro de terdes pedido auto-
rização antes de o símbolo da raposa branca assinalar um corpo de guardas.”
“Ah, mas isso foste tu e a Assobio, não fui eu!”, retorqui, e ela riu-se.
“Talvez. Mas eu recordo as coisas de outra forma.” Depois ficou séria.
“Ah, Assobio. Ela foi longe de mais, não foi?” Pigarreou. “Meus pequenos,
puxem pelas facas e apresentem-nas ao Fitz… ao Príncipe FitzCavalaria.
Vamos fazer isto à moda antiga.”
E a moda era mesmo antiga, tão antiga que eu não a conhecia, mas ela
orientou-nos e seguiram-se mais cinco. Ela fez um pequeno corte nas costas
da minha mão esquerda e, quando a ponta da sua faca transmitiu o meu
sangue para a palma estendida do rapaz, disse-lhe: “O sangue dos Visionário
está nas tuas mãos para que o protejas. Tens nas mãos a vida dele, agora e

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sempre que puxares por uma lâmina em seu nome. Não a desonres, nem
ponhas a tua vida à frente da dele.”
Houve mais e eu tomei consciência de Respeitador primeiro e depois
Urtiga se juntarem a mim enquanto os guardas que usavam o meu símbolo
se aproximavam de mim, um de cada vez. Ajuramentaram-me as espadas
e acolheram o meu sangue nas mãos e eu tentei respirar e manter alguma
espécie de pose régia enquanto o fazia. Quando o último se levantou, acei-
tando a espada ajuramentada que eu lhe devolvia, senti um murmúrio de
Talento vindo de Urtiga. Isso foi lindo.
Aposto que o Fitz está a chorar como uma donzela. Isto veio de
Respeitador, carregado de ironia, mas eu conseguia sentir que ele estava tão
comovido como Urtiga.
Ou a chorar como um homem que é finalmente bem-vindo a sua casa,
replicou Urtiga.
Que faço eu agora com eles? Estava um pouco atordoado.
Aquartela-os. Veste-os. Paga-lhes. Assegura-te de que mantêm a disciplina
e treinam todos os dias. Não é divertido fazer parte da família real? Vais preci-
sar de pessoal, Fitz. Das pessoas que fazem todas as coisas que é preciso fazer.
Não tenho tempo para isto! Tenho de ir à procura de Abelha!
Com eles atrás, Fitz. Vais precisar deles. Mas a maior parte parece verde
como relva. Queres que escolha um dos meus capitães e to envie?
Acho que tenho uma ideia melhor. Espero eu.
O meu silêncio durante a conversa com Respeitador fora tomado por
gravidade. Virei o olhar para Rapoluva. “Capitã Rapoluva, agora queria a
vossa espada.”
Ela fitou-me. “Eu sou uma velha, Fitz. Abandonei a guarda há muitos
anos, depois de o nosso rei ter expulsado os Navios Vermelhos das nossas
costas. Gostei da paz. Casei, tive filhos e vi-os todos os dias. Agora estou
velha. Tenho um cotovelo em mau estado e os joelhos estão perros e a minha
vista não é o que era.”
“Mas a mente é. Podes recusar-me se quiseres. Imagino que tenhas casa
e marido e…”
“O Rosse Vermelho já se foi há muitos anos.” Ficou muito imóvel. Vi
memórias passarem-lhe pelos olhos. Depois falou num suspiro enquanto
desprendia do cinto uma humilde faca. “Se ainda quiseres a minha faca, eu
ajuramento-ta, Fitz.”
“Quero. Vou precisar de alguém que mantenha estes cachorrinhos na
ordem.”

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E assim reabri o pequeno ferimento na minha mão e pus o meu sangue
na palma de alguém que já tivera nas mãos as vidas de descendentes dos
Visionário. Não deixei que ela se pusesse de joelhos à minha frente; acei-
tei a sua promessa em pé. “Face a face, como em tempos estivemos costas
contra costas,” disse-lhe. Ela sorriu e todos os guardas presentes na sala a
aclamaram.
“E as minhas ordens, senhor?”, perguntou.
“Fazer o que achares melhor. Sabes muito melhor do que eu como ca-
pitaneá-los. Aloja-os, veste-os, assegura-te de que não quebram a disciplina
e leva-os para os terreiros de treino. E paga-lhes quando o pagamento for
devido.” Tentei não revelar que não fazia a mínima ideia de onde esses fun-
dos viriam.
Os guardas são pagos com fundos do tesouro. Eu informo a Dama
Pé-Ligeiro de que temos um novo corpo de guardas. Neste momento, Breu está
acordado e quase sensato. A minha mãe está com ele. Eu e a Urtiga encontra-
mo-nos contigo lá.
A caminho.
Mas levei algum tempo a libertar-me da messe dos guardas. Tive de
fazer um brinde à minha nova Capitã da Guarda e de confirmar várias his-
tórias que ela contara sobre a batalha de Baía Limpa. Felizmente, nenhum
deles tocou na minha lendária capacidade de me transformar num lobo e
rasgar goelas. Finalmente consegui deixar Rapoluva à cabeceira da mesa
com os dois netos, radiantes de orgulho nela, enquanto eu me escapulia.
Baixei a cabeça, como se estivesse profundamente mergulhado em pen-
samentos, e percorri apressadamente os corredores e as escadas do Castelo
de Torre do Cervo, com tudo em mim a dizer que era um homem que não
tinha tempo para parar e conversar. A minha preocupação com Abelha com-
petia com a minha preocupação com Breu. Precisava que ele me ajudasse
a analisar tudo o que o Bobo me dissera sobre os Servos. Se alguém sabe-
ria como os ultrapassar em esperteza, seria Breu. Precisava dele para todos
os aspetos do meu regresso à vida em Torre do Cervo. Era desencorajador
perceber quanto dependia dele. Tentei imaginar a corte de Torre do Cervo
sem ele. Ou a minha vida sem ele a manipular todas as espécies de aconte-
cimentos, escondido atrás das cortinas como um bonecreiro muito hábil.
Eu contara com ele para fabricar e disseminar explicações plausíveis sobre
onde eu estivera e qual era a minha ligação a Tomé Texugo, caso houvesse
alguma. Quão depressa voariam as novidades de Floresta Mirrada até Mirra
e depois até Margem de Carvalhos? Eu lidaria com isso. Jurei a mim mesmo

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que, quando tivesse Abelha de volta, lidaria com tudo o resto, e subi o último
lanço de escadas dois degraus de cada vez.
Uma pajem com uma bandeja cheia de pratos vazios estava mesmo
a sair do quarto de Breu e atrás dela veio uma cavalgada de curandeiros
com bacias, ligaduras sujas e cestos de produtos para tratar ferimentos.
Acenaram-me saudações ao passar e eu respondi. Quando o último saiu,
enfiei-me pela porta aberta.
Breu repousava em grande estilo no meio dos seus lençóis e almofadas
verdes-esmeralda. Os pesados cortinados em volta da cama tinham sido pu-
xados para trás. Um fogo grande e alegre ardia na lareira e a sala estava tepi-
damente iluminada com velas. Kettricken encontrava-se lá, com um vestido
simples de branco e púrpura. Sentava-se numa cadeira perto da cabeceira da
cama de Breu, com um bocado de costura nas mãos. O Rei Respeitador man-
tinha-se aos pés da cama, formalmente ataviado com pesadas vestimentas. A
coroa pendia-lhe das pontas dos dedos. Suspeitei que tivesse acabado de vir
das Salas de Julgamento. Urtiga olhava pela janela, de costas voltadas para
mim. Ao virar-se, imaginei conseguir ver um ligeiro inchaço na sua barriga.
Uma criança em crescimento. Um bebé para ela e Enigma acarinharem.
Voltei a virar-me para Breu. Almofadas amparavam-no a toda a volta.
Olhava para mim. A periferia dos olhos estava rosada como se tivesse sido
recentemente limpa de uma crosta e a pele parecia solta na sua cara. As mãos
de dedos compridos repousavam na borda da colcha, imóveis como eu ra-
ramente as vira. Mas o seu olhar cruzou-se com o meu e reconheceu-me.
“Estás com péssimo aspeto,” cumprimentei.
“Sinto-me pessimamente. A espada daquela escumalha fez mais danos
do que eu pensava.”
“Mas mesmo assim acabaste com ele.”
“Acabei.”
Parámos aí. Eu não dissera a nenhum dos presentes como Breu pusera
fim ao traidor. Ou teria dito? Oh. Lembrei-me do que Respeitador me dis-
sera sobre os Remexidos e perguntei a mim mesmo o que pensariam eles de
tendões do jarrete cortados, de um nariz golpeado e de uma garganta rasga-
da. Mais tarde. Lidaria com isso mais tarde.
Apeteceu-me perguntar se também o pai adotivo de Esquiva já pagara o
preço da sua traição. Mas também essa não era pergunta que se fizesse à fren-
te de outros. Falei a todos. “Posso ter um pouco de boas notícias para nós.
É sopa aguada, mas é melhor que nada para alimentar as nossas esperanças.
O Bobo confirma o que eu suspeitava. O ataque veio de Servos do Profeta

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Branco. Os calcedinos que participaram eram provavelmente mercenários
contratados para brandir espadas, enquanto os Servos dirigiam o ataque. O
Bobo ouviu tudo o que a gente de Floresta Mirrada nos contou sobre aquela
terrível noite. Está convencido, pelo modo como vestiram Abelha de Branco
e a aninharam no trenó, que a julgam um, hm, shaysa… isto é, um candidato
a Profeta Branco. Ou qualquer coisa assim. Vão tratá-la bem e tentar levá-la
para o seu lugar de origem, em Clerres.”
“E Expressiva?”, perguntou Breu.
“Ouviste o que as pessoas de Floresta Mirrada disseram. Abelha fez os
possíveis para a proteger. Se os Servos dão valor a Abelha, como o Bobo crê,
espero que isso queira dizer que Abelha poderá continuar a manter alguma
proteção sobre Expressiva.”
Houve um silêncio. “Podemos ter essa esperança,” sugeriu-nos
Kettricken em voz baixa.
“Sopa aguada, realmente.” Breu estava a abanar lentamente a cabeça.
“Nunca as devias ter deixado lá sozinhas, Fitz.”
“Eu sei,” limitei-me eu a dizer. Pouco mais havia que pudesse responder
àquilo.
Urtiga pigarreou. “O mensageiro de Breu demonstrou a sua utilidade.
Eu tinha julgado o seu nível de aptidão para o Talento demasiado baixo para
pertencer a um círculo formal, mas nisto funcionou bem e vamos agora trei-
nar Siduel como um Solo.”
“Recebeste notícias de Floresta Mirrada?”
“Sim. Assim que o nevoeiro de Talento foi limpo, o mensageiro de Breu
foi capaz de nos contactar com clareza, e o mesmo fez o meu subalterno
Grandioso. Mas poucas das notícias são alegres. FitzVigilante está a cami-
nho de Torre do Cervo, acompanhado pelos restantes Remexidos. Vou dei-
xar Grandioso lá colocado. Eles trazem os corpos dos que vos atacaram na
Colina da Forca. Levámo-los a crer que tu e Breu foram atacados por assal-
tantes desconhecidos, que fugiram depois de os Remexidos terem protegido
lealmente a vossa entrada nas pedras.”
“Isso irrita-me,” disse Breu da cama, com amargura.
“Mas é o que melhor protege FitzVigilante e Obtuso durante a viagem
com os Remexidos de regresso a Torre do Cervo. Pelo menos um dos mortos
merece um funeral de herói, Breu. Quando chegarem a Torre do Cervo, sepa-
raremos as ovelhas das cabras, e já andamos a investigar para perceber como
uma tal traição pôde ocorrer entre as fileiras deles. Os Remexidos sempre
foram um corpo de ‘última oportunidade’ no seio dos guardas. Talvez esteja

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na altura de os dissolver por completo.” A voz de Respeitador baixou nestas
últimas palavras.
Breu tinha um ligeiro sorriso na cara. Apontou um dedo para o rei e
disse-me: “Ele aprende. Uma excelente característica num rei.” Soltou um
pequeno suspiro e acrescentou: “Quando me sentir um pouco mais for-
te, vou ajudar nessa investigação. Mas não dissolvam os meus Remexidos.
Tenho um homem…” As palavras esfumaram-se-lhe. A boca ficou levemen-
te entreaberta enquanto ele fitava as chamas. Virei o olhar para Urtiga. Ela
abanou a cabeça e levou um dedo aos lábios.
Respeitador virou-se para mim e falou quase num sussurro. “O Obtuso
acompanha-os, claro. Ele e o Lante olharão um pelo outro. E temos Siduel
com eles, para nos manter informados. Mesmo assim, será bom tê-los aos
dois de novo em segurança e em casa. O Lante manter-se-á na corte e, des-
ta vez, ficará aqui em segurança. Como devia ter estado sempre. Os filhos
de Dom Vigilante não serão apresentados à corte antes de passarem cinco
anos.” Parecia haver ali uma pequena censura dirigida a Breu. Poderia ele
nunca ter informado Respeitador de que a “madrasta” de Lante alimentava
ódio por ele? Bem, aquilo queria dizer que os rapazes tinham sobrevivido.
Apeteceu-me perguntar como estava a saúde da madrasta, mas não o fiz.
Respeitador encheu os pulmões de ar e informou-me: “Não recebe-
mos nenhum relatório sobre os atacantes depois de terem deixado Floresta
Mirrada para trás. É como se tivessem desaparecido por completo. Julgamos
que é por causa do nevoeiro que conseguem criar. Pedi a vários dos Talentosos
ao meu serviço para procurarem nos pergaminhos qualquer menção a um
uso semelhante de Talento e à forma como poderia ser detetado. Mas vamos
continuar a procurá-las e a vigiar localizações importantes. Grandioso está
colocado em Floresta Mirrada, com instruções para continuar a investigar e
para nos enviar relatórios diários.”
“Como está a minha gente?”
“A nossa gente está tão bem como se poderia esperar,” respondeu Urtiga
em voz baixa.
Um silêncio encheu a sala. Refleti em todo o alcance daquelas palavras.
Não havia nada que eu pudesse fazer a respeito do que fora feito.
Breu falou de súbito. “Ah, Fitz! Aí estás tu.”
Virei-me para Breu e forcei um sorriso a subir-me ao rosto. “Como es-
tás?”, perguntei-lhe.
“Estou… não muito bem.” Olhou para os outros em volta como se de-
sejasse que se fossem embora. Ninguém se mexeu para sair. Quando voltou

22
a falar, percebi que não estava a dizer a verdade completa. “Sinto-me como
se tivesse passado muito tempo longe. Muito, muito tempo. Respeitador e
Urtiga dizem-me que passámos menos de um dia completo nas pedras. Mas
sinto-me como se lá tivéssemos estado muito mais tempo. Muito mais tem-
po.” O seu olhar sustentou o meu, interrogador.
“Foi quase um dia inteiro, Breu. As coisas podem parecer muito estra-
nhas numa travessia de Talento.” Deitei um olhar a Respeitador. Acenava
com a cabeça, de olhar distante. “Acho que usá-las é mais perigoso do que
julgávamos. Há nelas mais do que compreendemos. Quando viajamos por
elas, atravessamos algo que é muito mais do que a distância. Não devíamos
usá-las como se fossem simples portas que vão daqui até ali.”
“Aí estamos de acordo,” disse Urtiga em voz baixa. Deitou um olhar a
Respeitador, reconhecendo-lhe a autoridade.
Este pigarreou. “E como te sentes tu, Fitz?”
“Acho que estou quase normal.”
“Temo que tenha de discordar de ti. E Urtiga partilha essa opinião
comigo. Mesmo agora, ambos ressoam estranhamente no meu sentido do
Talento, e sempre ressoaram desde que regressaram das pedras. Julgamos
que a viagem mudou qualquer coisa em ambos. E que talvez ambos deves-
sem abster-se de usar o Talento durante algum tempo.”
“Talvez,” concordou Breu. Soltou um pesado suspiro e depois
encolheu-se.
Eu sabia que discutiria a proibição de Talento em privado com Breu.
Mudei de assunto. “Quão grave é o teu ferimento?”
“Pensamos que a lâmina lhe atingiu o fígado. A hemorragia parou. O
curandeiro diz que o melhor que fazemos é deixá-lo sarar sozinho, que re-
mexer no ferimento pode causar mais danos do que deixá-lo simplesmente
repousar.” Fora Respeitador a falar. Breu revirou os olhos.
“Parece-me um bom plano.”
“E é,” asseverou Urtiga. “E também precisamos de outro plano.”
Afastou-se da janela para se ir pôr diretamente em frente de Respeitador.
Pigarreou. “Meu rei. Invasores ousaram trazer mercenários calcedinos até ao
coração do vosso reino. Atacaram a minha casa, matando e ferindo os meus
criados. E raptaram a minha irmã, uma criança de linhagem Visionário,
mesmo que ainda não tenha sido reconhecida!” Respeitador ouviu-a muito
sério. “Uma tal invasão não pode ser tolerada, nem por mim, nem por vós. O
Bobo disse-nos que vão tentar levá-las para Clerres. Esse é um lugar de que
nunca ouvi falar, mas certamente deve constar de algum mapa, algures em

23
Torre do Cervo. E, quer fique a norte, a sul, a leste ou a oeste de nós, podere-
mos bloquear-lhes o caminho! Suplico-vos, como súbdita e prima, que po-
nhais já as tropas no terreno. Se não conseguirmos encontrá-los no caminho,
pelo menos poderemos colocar uma vigia em cada via real, em cada travessia
de barca e em cada porto. Bloqueai-os, detende-os, e trazei a minha irmã e a
filha de Dom Breu para junto de nós, em segurança.”
Eu divulguei o pouco que sabia. “Clerres é uma cidade que fica mui-
to, muito para sul de nós. Depois de Calcede, depois das Ilhas dos Piratas,
depois de Jamaília, depois das Ilhas das Especiarias. É necessário viajar de
navio. A questão é: os mercenários irão levá-las primeiro para Calcede e zar-
parão daí? Ou irão dirigir-se para a costa e esperar encontrar um navio que
rume a sul?”
“Calcede.” Respeitador e Breu falaram ao mesmo tempo.
“Nenhum bando de mercenários calcedinos tentaria embarcar num
porto dos Seis Ducados. Seriam imediatamente identificados e interrogados
e, assim que se descobrisse que Abelha e Expressiva os acompanhavam con-
tra vontade, seriam presos.” Respeitador mostrava absoluta certeza.
Eu fiquei em silêncio, a aplicar a lógica invertida do Bobo. Bom. Os
Servos não podiam dirigir-se para Calcede. Então para onde e como se
dirigiriam?
Respeitador continuava a explicar. “Portanto, há muito território a atra-
vessar. E muito antes de chegarem a Calcede, terão de substituir os trenós
por carros ou carroças. Ou charretes, imagino. Ou então montarão todos a
cavalo… Como foi que vieram? Como lhes foi possível penetrarem tão pro-
fundamente nos Seis Ducados sem nos alertarem de todo? Achas que vieram
de Calcede? Atravessando todo esse território?”
“Onde mais contratariam eles mercenários calcedinos?”, perguntou
Breu a ninguém.
Respeitador levantou-se de repente. “Tenho de falar imediatamente
com os meus generais. Urtiga, reúne os teus Talentosos e passa palavra a
todos os postos avançados onde estejam colocados. Explica o melhor que
puderes o ‘nublamento’ e pede-lhes para ficarem alerta a qualquer uso es-
tranho do Talento… se é que eles estão mesmo a usar o Talento tal como
o conhecemos. Vamos enviar aves mensageiras aos postos avançados fron-
teiriços menos importantes. Mãe, conheceis as nossas bibliotecas quase tão
bem como os escribas. Podeis instruí-los para procurarem por esta cidade
de Clerres em todos os mapas ou cartas das terras mais longínquas do Sul
que tenhamos? A idade do mapa não importa. A lenta do Profeta Branco é

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muito antiga. Duvido que a cidade onde se originou tenha mudado de lugar.
Quero conhecer as rotas mais prováveis para eles, portos que possam visitar,
qualquer informação que possais encontrar!”
“Eliânia ajudar-me-á. Ela conhece as nossas bibliotecas tão bem como
eu.”
O fiozinho de ideia que me passara pela mente algum tempo antes ma-
nifestou-se de repente. “Teio!”, disse eu de repente.
Todos se viraram para olhar para mim.
“Aquilo que nubla a mente de um homem pode deixar um animal in-
tocado. Peçamos a Teio para passar palavra aos povoamentos de Sangue
Antigo, perguntando se algum dos animais vinculados reparou num grupo
de soldados e pessoas montadas em cavalos brancos. Os vinculados a aves de
rapina ou necrófagas podem ser a nossa melhor esperança. Essas aves veem
a grandes distâncias e é frequente as aves necrófagas assinalarem soldados.
Aprenderam demasiado bem que soldados em movimento podem represen-
tar batalhas, e as batalhas querem dizer carne morta.”
Kettricken fitou-me de sobrancelhas erguidas. “Inteligente,” disse baixi-
nho. “Sim. Teio partiu há um dia, a caminho de Vigas. O corvo tinha-o vi-
sitado e transmitido que encontrou companheiro. Ele queria ficar e dizer-te
adeus, mas não pôde. Um dragão tem sido visto regularmente nos céus de
Vigas e é possível que se tenha instalado lá. Teio vai aconselhar a Duquesa e o
Duque de Vigas sobre a melhor forma de lidar com ele. A gente de Vigas não
fica contente quando pensa na ideia de doar animais de tributo para saciar
a fome de um dragão, mas pode ser a coisa mais sensata a fazer. Espera-se
que Teio consiga conversar com o dragão e convencê-lo a aceitar o que for
oferecido, em vez de depredar os melhores animais reprodutores.” Suspirou.
“Que tempos, estes em que vivemos. Sinto-me relutante em chamá-lo de vol-
ta, mas suponho que teremos de o fazer. Este assunto é demasiado delicado
para o confiarmos a qualquer outra pessoa.”
Dirigi um aceno a Kettricken. Mais um atraso, e Abelha e Expressiva
afastavam-se cada vez mais. Mais uma ideia rebentou na minha men-
te. “Cortês Bresinga. Ele esteve aqui na corte, para o Festival de Inverno.
Mandou-me uma nota, oferecendo-me os seus serviços em tudo o que pu-
desse fazer.”
“Esteve mesmo!” Respeitador sorriu, e eu percebi que ficou contente por
eu me ter lembrado do seu amigo. “Cortês tem muitos amigos entre o Sangue
Antigo. Pode passar palavra mais rapidamente do que um mensageiro pode-
rá alcançar Teio.”

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“Apesar da minha filha, mesmo assim tenho de perguntar se queremos
espalhar muito a notícia de que tivemos invasores invisíveis em Cervo.” Breu
falou da sua cama, com a voz cheia de relutância.
A voz de Kettricken soou no silêncio. “Eu acabei por conhecer bem
Cortês. Nunca esqueci que, em rapaz, ele pôs Respeitador em perigo, que
chegou mesmo a fazer perigar-lhe a vida, mas todos nos lembramos também
da ameaça que pairava sobre a cabeça dele. Nos anos que decorreram desde
então, provou ser um verdadeiro amigo do meu filho, e um portador honro-
so do Sangue Antigo. Confio na inteligência dele. Deixai-me falar com ele.
Dir-lhe-ei para ser circunspecto na escolha dos destinatários das mensagens.
E só temos de lhes dizer que andamos à procura de um grupo de homens a
cavalo, de trenós e de gente vestida com peles brancas. Mas a minha tendên-
cia é gritá-lo de cima dos telhados. Quantos mais olhos estiverem à espreita,
maiores serão as possibilidades de alguém ver alguma coisa.”
“E às vezes as pessoas veem o que lhes é dito que poderão ver. A minha
escolha, por agora, é a circunspeção.” A palavra do rei era definitiva. O meu
coração perdeu um pouco de ânimo, ao mesmo tempo que eu compreendia
a sabedoria das suas palavras.
Respeitador já estava à porta. Urtiga seguia-o de perto e senti uma cor-
rente de ordens de Talento a fluir enquanto ela se afastava para executar a
sua tarefa. Obediente ao pedido que ela me fizera, não tentei expandir o meu
sentido de Talento para tomar consciência do que ela fazia. Não desejava
distraí-la aborrecendo-a. Kettricken foi a última a dirigir-se para a porta.
Fez uma pausa e abanou tristemente a cabeça ao olhar para Breu. “Devíeis
ter confiado mais em nós.” Depois fechou suavemente a porta atrás de si,
deixando sozinhos os dois assassinos.
Velhos hábitos. Deixados sós no quarto, ambos revertemos. Dom Breu
e o Príncipe FitzCavalaria desapareceram e dois homens que tinham execu-
tado durante muito tempo o trabalho discreto da justiça do rei trocaram um
olhar. Nenhum de nós proferiu palavra até algum eco de passos nos chegar
vindo do corredor. Fui até à porta e pus-me mais um momento à escuta.
Depois acenei com a cabeça.
“Que mais?”, perguntou-me Breu após um longo silêncio.
Não vi nenhuma razão para ter cuidado com as palavras. “Cinza reani-
mou o Bobo dando-lhe sangue de dragão.”
“O quê?”, perguntou Breu.
Não disse nada. Ele tinha-me ouvido.
Passado algum tempo, ele soltou um ruidinho com o fundo da garganta.

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“Cinza é um pouco atrevido em demasia, às vezes. Bem, o que foi que isso
lhe fez?”
Apeteceu-me perguntar-lhe o que esperava ele que fizesse. Em vez disso,
retorqui: “O rapaz disse que o Bobo estava perto da morte. Despejou um
fiozinho de sangue de dragão para dentro da boca dele. Isso reanimou-o.
Mais do que reanimou. Está muito melhor do que quando o trouxe para cá,
mais recuperado do que quando o deixei para correr para Floresta Mirrada.
O sangue parece estar a curá-lo, mas também está a alterá-lo. Ossos que ti-
nham sido partidos e depois sararam mal, nas mãos e nos pés, parecem estar
a endireitar-se. É doloroso para ele, claro, mas já consegue mover todos os
dedos e é capaz de se apoiar naquele pé mutilado. E os olhos tornaram-se
dourados.”
“Como eram dantes? Ele consegue ver?”
“Não, não é como eram dantes. Não são de um castanho muito claro. São
dourados. Como metal derretido e igualmente mutáveis.” Ocorreu-me de re-
pente. Eu vira os olhos de Tintaglia. Breu também. “Como olhos de dragão.
E continua sem conseguir ver. Mas diz que tem tido uns sonhos estranhos.”
Breu afagou o queixo. “Põe Cinza a falar com ele sobre como se sente e a
registar tudo o que diz. Diz-lhe que pode usar páginas do pergaminho bom.”
“Posso fazer isso.”
“E os sonhos também. Às vezes, os sonhos de um homem dizem-lhe
coisas que não admite a si próprio. Cinza devia anotar tudo o que o Bobo
sonhe.”
“Ele pode não querer partilhar o que sonha, mas podemos perguntar-lhe.”
Ele dirigiu-me um olhar semicerrado. “E o que mais te anda a morder?”
“O Bobo teme que os nossos inimigos possam já conhecer todas as nos-
sas jogadas.”
“Espiões entre nós? Aqui no Castelo de Torre do Cervo?” Sentou-se de
forma demasiado repentina, agarrou-se ao flanco e passou algum tempo a
arquejar.
“Não. Espiões, não. Ele teme que tenham acumulado profecias obtidas a
partir de crianças Brancas e meio-Brancas escravizadas.” Breu escutou aten-
tamente enquanto eu explicava o que o Bobo partilhara comigo.
Quando terminei, refletiu: “Extraordinário. Criar seres humanos para
obter poderes proféticos… Que conceito. Estudar os futuros possíveis e es-
colher a cadeia de acontecimentos que seria mais lucrativa para a ordem
deles. Exigiria extrema dedicação, pois estariam a agir para bem daqueles
Servos que viessem muito depois deles e não para ganho imediato. E enviam

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para o mundo o Profeta Branco que escolhem, aquele que cumprirá a sua
vontade na escultura do futuro. Depois aparece o Bobo, um profeta legítimo,
fora da sua criação controlada… Escreveste tudo isto para mim?”
“Não tive muito tempo para escrever.”
“Bem, arranja tempo, se puderes.” Apertou os lábios com força, a pensar.
Tinha os olhos muito brilhantes. Eu sabia que os pensamentos dele esta-
vam a ultrapassar os meus, correndo por escadarias de lógica acima. “Há
anos, quando o Bobo se isolou depois de levar Kettricken para o Reino da
Montanha, quando julgou que estavas morto e que todos os seus planos ti-
nham dado em nada, as pessoas foram à procura dele. Peregrinos. À procura
de um Profeta Branco nas montanhas. Como sabiam onde encontrá-lo?”
“Suponho que pelas profecias…”
Ele falou muito depressa. “Ou será que os ditos ‘Servos’ já nessa época
andavam à procura dele? É bastante óbvio para mim que não lhes agradava
que ele estivesse fora do seu controlo. Junta as coisas, Fitz. Eles fizeram a
Mulher Pálida. Ela era uma peça do seu jogo. Libertaram-na no tabuleiro
para dar ao mundo a forma que desejavam. Conservaram-no lá com a in-
tenção de que ninguém pudesse competir com ela, mas ele escapou-se-lhes.
E lá foi a rolar e aos tombos pelo tabuleiro como um dado mal arremessado.
Precisavam de o ter de volta. Que melhor forma de encontrar alguém do
que gerar uma procura por ele, divulgando profecias e deixando que outros
fossem a matilha de cães de caça que o perseguiam?”
Fiquei em silêncio. Era frequente a mente de Breu dar aquela espécie
de saltos. Ele soltou um pequeno som, que não era bem uma tosse. O brilho
nos seus olhos seria a luz da febre? Ouvi-o a respirar pelo nariz enquanto a
mente corria.
Ele espetou outro dedo. “Quando começaram a chegar, ele recusou-se
a recebê-los. Negou que era profeta e afirmou ser só um fabricante de
brinquedos.”
Eu confirmei com a cabeça.
“E quando partiram de Jhaampe, fizeram-no muito discretamente.”
“É verdade.”
“Portanto, podem ter-lhe perdido o rasto aí. Ele desaparece. Segue a
sua visão do futuro e ajuda-te a despertar os dragões. Assegura-se de que a
rainha regressa a Cervo, com um herdeiro Visionário a crescer na barriga.
Torna a desaparecer, para Jamaília, suspeito, e para Vilamonte.
“E anos mais tarde, volta a reaparecer em Torre do Cervo, como Dom
Dourado, mesmo a tempo de assegurar uma vez mais a sobrevivência do

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herdeiro Visionário. Está determinado a devolver dragões a este mundo.
Consegue ultrapassar-nos aos dois em estratégia e chegar à Ilha de Aslevjal.
E aí, por fim, os Servos capturam-no. E torturam-no quase até à morte.
Acham que o mataram.”
“Mataram-no mesmo, Breu. Ele disse-me que o matariam.” O olhar dele
cruzou-se com o meu. Não acreditava por completo em mim, mas eu decidi
que não importava se acreditava ou não. “Ele foi para Aslevjal acreditando
que isso tinha de acontecer para que Fogogelo fosse libertado do glaciar e
acasalasse com Tintaglia. Para devolver dragões ao nosso mundo.”
“Sim, e como todos desfrutámos disso!”, observou Breu com amargura.
Por nenhum motivo que eu conseguisse explicar, aquilo picou-me.
“Desfrutaste o suficiente para obter sangue de dragão,” retorqui.
Ele semicerrou ligeiramente os olhos. “É uma má vontade que não traz
nada de bom,” observou.
Eu hesitava à beira de uma decisão. Conversas sobre moralidade eram
raras entre assassinos. Fazíamos o que nos ordenavam que fizéssemos. Mas
Breu tratara pessoalmente de obter o sangue, não como uma missão ordena-
da pelo rei. Atrevi-me a questioná-lo.
“Não te sentes um pouco… desconfortável por comprares o sangue de
uma criatura que obviamente pensa e fala? Uma criatura que terá possivel-
mente sido assassinada para colher esse sangue?”
Ele fitou-me. Os olhos verdes estreitaram-se e reluziram como gelo
glacial. “É estranho traçares essa fronteira, Fitz. Manhoso como és, correste
com um lobo. Não abateram veados e coelhos para os comerem? Mas os
de Sangue Antigo que se vinculam a essas criaturas dir-te-ão que pensam e
sentem como nós.”
Mas eles são presas e nós somos o predador. É isso que estamos destinados
a ser uns para os outros. Abanei a cabeça para a limpar de pensamentos lupi-
nos. “Isso é verdade. Um homem vinculado a um cervo concordaria contigo.
Mas é assim que o mundo está estruturado. Os lobos comem carne. Nós só
apanhávamos aquilo de que necessitávamos. O meu lobo precisava de carne,
e apanhávamo-la. Sem ela, ele teria morrido.”
“Aparentemente, sem o sangue do dragão, o teu Bobo teria morrido.” O
tom de voz dele tornara-se acerbo. Desejei não ter dado início àquela con-
versa. Apesar de todos os anos que passáramos juntos, apesar de como ele
me treinara, tínhamos divergido na forma de pensar. Pensei com os meus
botões que Castro e Veracidade talvez não tivessem sido as melhores in-
fluências para um jovem assassino. Como uma cortina a abrir-se para revelar

29
a luz do dia, ocorreu-me que talvez nenhum deles me tivesse realmente visto
como um assassino real. O Rei Sagaz vira. Mas Castro fizera os possíveis por
me criar como filho de Cavalaria. E era possível que Veracidade sempre me
tivesse visto como seu herdeiro potencial.
Isso não diminuía Breu aos meus olhos. Eu acreditava que os assassi-
nos eram diferentes mas não inferiores aos homens criados como nobres.
Tinham o seu lugar no mundo. Como os lobos. Mas arrependia-me de ter
dado início a uma conversa que só nos poderia mostrar a ambos até que
ponto tínhamos divergido. Um silêncio caíra entre nós e parecia um golfo.
Pensei em dizer: “Eu não te julgo,” mas teria sido mentira e só pioraria as coi-
sas. Em vez disso, tentei reassumir um papel antigo e perguntei-lhe: “Estou
assombrado por teres conseguido obtê-lo. Para que o procuraste? Tinhas
planos para ele?”
Ele ergueu as sobrancelhas. “Várias fontes sugerem que é um poderoso
reconstituinte. Chegaram-me notícias de que o Duque de Calcede estava a em-
pregar todos os meios ao seu dispor para obter aquele frasco. Acreditava que
lhe restauraria a saúde e a vitalidade. E, ao longo de muitos anos, eu nutri um
grande interesse pela saúde do duque.” Um sorriso muito ligeiro mas muito
triunfante torceu-lhe a boca. “Aquele frasco de sangue ia a caminho de Calcede
quando foi… desviado. Em vez disso, veio para mim.” Esperou um momento,
para deixar a ideia penetrar-me na mente e acrescentou: “O dragão já estava
morto. Recusar-me a comprá-lo não o teria trazido de volta à vida. Desviá-lo do
Duque de Calcede provavelmente salvou vidas.” O sorriso voltou a tremeluzir
na cara dele. “Ou talvez não o ter tenha posto fim à vida do duque.”
“Tinha ouvido dizer que ele morreu quando dragões fizeram ruir o
castelo em cima dele. Se assim for, há alguma ironia no facto, não há? As
criaturas que ele andava a caçar para preservar a vida procuraram-no e
mataram-no.”
“Ironia. Ou destino. Mas sobre o destino terias de interrogar o teu
Profeta Branco.”
Não estava a falar a sério. Talvez. Respondi como se estivesse. “Depois
de o trazer de volta dos mortos, ele perdeu a capacidade para ver todos os
futuros. Agora vive dia a dia, tal como nós, seguindo às apalpadelas ao longo
do caminho que leva ao futuro.”
Breu abanou a cabeça. “Não há nenhum caminho que leve ao futuro,
Fitz. O caminho é o agora. O agora é tudo o que existe ou alguma vez exis-
tirá. Podes mudar talvez os próximos dez segundos da tua vida. Mas, de-
pois disso, a pura sorte volta a prender-te nas maxilas. Uma árvore cai-te em

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cima, uma aranha morde-te o tornozelo, e todos os teus grandiosos planos
para vencer uma batalha de nada servem. O agora é o que temos, Fitz, e o
agora é onde agimos para permanecermos vivos.”
O caráter lupino daquela ideia abalou-me e remeteu-me ao silêncio.
Ele respirou fundo, soltou um suspiro feroz e deitou-me um olhar que
era quase um relance. Aguardei. “Há mais uma coisa que deves saber. Duvido
que nos possa ajudar a recuperar as nossas filhas, mas deves ficar ciente dela,
para o caso de poder.” Soou quase zangado por ter de partilhar o segredo,
fosse ele qual fosse. Esperei.
“Expressiva tem Talento. E forte.”
“O quê?” A minha reação incrédula agradou-lhe.
Sorriu. “Sim. É estranho, mas o Talento que em mim é tão fraco que
ainda me debato para o usar, nela floriu em tenra idade. O sangue Visionário
corre fortemente pelas suas veias.”
“Como foi que descobriste isso?”
“Quando ela era muito pequena, contactou-me. Eu tive um sonho de
uma miudinha a puxar-me pela manga. A chamar-me papá e a pedir-me
para pegar nela ao colo.” O sorriso orgulhoso ficou mais forte. “Ela é forte no
Talento, Fitz. Forte o suficiente para me encontrar.”
“Julguei que não soubesse que eras pai dela.”
“E não sabe. A mãe abandonou-a para ser criada pelos avós. Gente ra-
zoavelmente boa, à sua maneira. Consigo reconhecê-lo, mesmo que me te-
nham sangrado de dinheiro. Era claro que não gostavam de mim, mas eram
leais ao seu sangue. Ela era inegavelmente sua neta, por isso educaram-na
como tal. Com a mesma educação desorganizada que tinham dado à mãe,
entristece-me dizer. Benigna mas não inteligente. Manter uma criança em se-
gurança não é o mesmo que educá-la.” Abanou a cabeça, com uma expressão
amarga na boca. “A mãe desdenhou-a desde o início e, mesmo em pequena,
Expressiva sabia-o. Mas também sabia que tinha um pai, algures, e ansiava
por ele. E, nos sonhos, seguiu esse anseio. E as nossas mentes tocaram-se.”
O sorriso incaracteristicamente terno na cara dele informou-me de que
esse era o seu verdadeiro segredo. A filha procurara-o e tocara-lhe na mente.
E ele estava orgulhoso dela, tão orgulhoso do seu Talento. Tinha pena de
não poder tê-la perto de si e de dar forma à esperteza inata que sentia haver
nela. Se tivesse tido Expressiva consigo desde o início, ela talvez pudesse ter
herdado o seu papel. Agora era demasiado tarde para isso, pensei. Aquelas
ideias passaram como relâmpagos pela minha mente, mas as minhas preo-
cupações imediatamente as dominaram.

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“Breu, parece-me muito provável que na verdade tenhas sido tu a to-
cá-la primeiro com o Talento. Como eu fiz, tanto com Urtiga como com
Respeitador, sem mesmo me aperceber do que estava a fazer. E depois ela
respondeu ao teu contacto. Portanto tu podes alcançá-la e ela pode dizer-nos
onde está e podemos recuperá-las! Breu, porque foi que não fizeste isso
imediatamente?”
O sorriso desapareceu como se nunca tivesse existido. “Vais julgar-me
severamente por isto,” avisou. “Eu selei-a. Contra todos menos eu. Enquanto
era ainda pequena. Muito antes de ta levar, selei-a contra o Talento. Para a
proteger.”
Senti-me doente de desilusão, mas a parte ordeira da minha mente arru-
mou os factos numa organizada pilha bifurcada. “Selada contra o Talento. E
foi por isso que só ela continuou a ser capaz de lutar contra os Servos quando
todos os outros ficaram tão passivos como gado à espera do abate.”
Ele baixou a cabeça num aceno lento.
“Não podes contactá-la e remover o selo? Transmitir-lhe a senha e
abrir-lhe a mente?”
“Já tentei. Não consigo.”
“Porque não?” Pânico, ira perante uma oportunidade perdida. A minha
voz quebrou-se nas palavras.
“O meu Talento não é forte o suficiente, talvez.”
“Então deixa-me ajudar-te. Ou o Obtuso. Aposto que o Obtuso era ca-
paz de dar cabo de qualquer muralha.”
Ele disparou-me um olhar. “Dar cabo. Não é a melhor expressão para
me tentares a fazer a experiência. Mas suponho que a faremos quando o
Obtuso cá chegar. No entanto, duvido que resulte. Acho que ela ergueu as
suas próprias muralhas e que podem ser robustas.”
“Ensinaste-a a fazer isso?”
“Não tive de ensinar. Ela é como tu. Há coisas que faz por instinto. Não
te lembras do que Veracidade dizia de ti? Que era frequente conseguir alcan-
çar-te com facilidade, mas no momento em que entravas nalguma espécie de
frenesim de batalha, ficavas perdido para ele?”
Aquilo fora verdade e aparentemente ainda era. “Mas ela não está numa
batalha. Elas foram levadas há dias…”
“Ela é uma jovem bonita nas mãos de brutamontes calcedinos.” A voz
ganhou densidade. “Sou um cobarde, Fitz. Recuso-me a imaginar o que foi a
vida dela desde que foi levada. Pode perfeitamente passar todos os momen-
tos de todos os dias em modo de batalha.”

32
Não penses nisso, avisei-me a mim próprio. O terror era tão capaz de
me engolir como o nevoeiro posto sobre Floresta Mirrada. Recuei para lon-
ge das especulações repletas de farpas sobre como as nossas filhas podiam
ser tratadas. Mas eles tinham tratado Abelha como algo de valor. Decerto
que isso a protegeria! Que sujo era oferecer-me o conforto de a minha filha
poder estar a salvo de tudo o que ameaçava a de Breu. Uma ardente náusea
cresceu-me ao fundo da garganta.
A voz de Breu soou baixa. “Para de sentir e pensa. Pensa e planeia.”
Ergueu uma mão, fazendo uma careta perante a dor que o movimento lhe
causou, e esfregou a testa. “Expressiva conseguiu resistir à magia porque es-
tava selada contra o Talento. Essa pode ser uma armadura a usar quando
avançarmos contra eles.”
“Mas não foi só ela que resistiu. Pândego combateu-os. E Lante também.”
A voz de Breu soou profunda. “Até deixarem de o fazer. Lembra-te do
que Lante disse. Que estava a tentar defender a porta e depois, de repente, os
invasores estavam a rir-se dele e a passar por si. Seja qual for a forma como
enredaram aquela magia em Floresta Mirrada, ela não estava no lugar quan-
do começaram o ataque. Porquê? Precisariam de estar mais perto das vítimas
para resultar? Que Expressiva, selada contra toda a influência do Talento,
tenha sido a única pessoa capaz de prosseguir a resistência sugere-me que
se eles não estão a usar o Talento propriamente dito, a magia que utilizam
é fortemente aparentada com ele.” Fez uma pausa e apontou-me um dedo
ossudo. “Bom. O que é que isto nos diz, Fitz?”
Senti-me como se tivesse voltado a ser aluno dele. Tentei encontrar o
caminho por onde os seus pensamentos já tinham viajado. “Talvez que os
seus utilizadores de Talento não sejam tão fortes…”
Ele já estava a sacudir o dedo na minha frente. “Não. Os que quebraram
as portas e os espadachins vieram à frente. Se eles tivessem múltiplos utili-
zadores de Talento, certamente estariam nas fileiras dianteiras. Decerto que
anular a resistência é melhor do que partir portas e matar, especialmente se
andassem mesmo à procura do tal Filho Inesperado. Para quê correr o risco
de os mercenários matarem precisamente o rapaz que se procurava? No en-
tanto nada disso é o que importa aqui. Pensa.”
Pensei, e depois abanei a cabeça, fitando-o.
Ele soltou um pequeno suspiro. “É frequente que ferramentas seme-
lhantes tenham fraquezas semelhantes. Como foi que derrotámos a magia
deles em Floresta Mirrada?”
“Chá de casco-de-elfo. Mas não consigo perceber como poderemos

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empregar essa forma de resistência contra eles quando nem sequer sabemos
onde estão.”
“Neste momento não sabemos onde estão. Portanto, apesar do nosso
desejo de correr de um lado para o outro, de espadas desembainhadas, por
cada estrada entre Torre do Cervo e Calcede, reunimos as nossas armas e
preparamo-las o melhor possível.”
“Preparamos pacotes de chá de casco-de-elfo?” Tentei não soar sarcásti-
co. Estaria a mente dele a derivar?
“Sim,” disse ele num tom penetrante, como se tivesse ouvido o meu
pensamento. “Entre outras provisões. Os meus pós explosivos foram muito
melhorados desde a última vez que tiveste experiência com eles. Quando a
Dama Rosamaria regressar do seu… recado, mando-a embalar alguns para
nós. Fá-lo-ia pessoalmente se este ferimento não me estivesse a causar tantos
problemas.” Voltou a tocar-lhe, levemente, com as pontas dos dedos, estre-
mecendo ao fazê-lo.
Não lhe pedi autorização, pois tinha a certeza de que não a obteria.
Inclinei-me para a frente e pousei-lhe as costas da mão na testa. “Febre,”
confirmei. “Devias estar a descansar, não a conspirar comigo. Queres que
mande vir um curandeiro?”
Ele estivera sentado. Agora compreendia que fora por não se conseguir
recostar devido à dor. Cerrou os dentes num sorriso. “Um príncipe não vai a
correr buscar um curandeiro. Tocas à campainha e mandas um criado. Mas
aqui não somos príncipes nem senhores, mas assassinos. E pais. Não descan-
samos enquanto bestas têm as nossas filhas cativas. Portanto ajuda-me a re-
costar-me. E não tragas cá nenhum curandeiro, vai simplesmente buscar-me
os remédios que achares melhores. Eles vão querer que eu durma, quando
bem sei que os fogos de uma febre podem fazer com que os meus pensamen-
tos ardam mais luminosamente.”
“Eu faço isso. Mas depois vais dizer-me a senha de Expressiva e, juntos,
vamos tentar alcançá-la.” Quanto a isto, eu estava determinado. Aquele era
um segredo que não se podia permitir que ele guardasse.
Ele apertou os lábios. Eu mantive-me firme. Foi só quando concordou
com a cabeça que lhe pus o braço em volta dos ombros e o apoiei enquanto
ele se recostava na cama. Mesmo assim, arquejou de dor e levou a mão ao
ferimento. “Oh, o sangue está outra vez a correr,” protestou. Depois ficou
em silêncio, com os lábios a projetar-se e a recolher-se enquanto respirava
contra a dor.
“Acho que um curandeiro devia examinar-te. Eu conheço venenos e o

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tipo de remédios que me mantiveram vivo quando não havia mais ninguém
por perto para me ajudar. Mas não sou nenhum curandeiro.”
Vi-o a quase ceder. Depois negociou: “Traz-me qualquer coisa para as
dores. Depois tentamos alcançar Expressiva. E depois disso, podes chamar
um curandeiro.”
“De acordo!”, disse eu, e apressei-me a sair porta fora antes de ele ter
tempo de amarrar alguma exigência ao acordo.
E lá fui eu de volta ao meu quarto, fechando a porta atrás de mim e
abrindo a escada secreta. Um tap tap tap surpreendeu-me. Afastei a cortina,
indo dar com o corvo agarrado ao parapeito de pedra da janela. No momen-
to em que a abri, a ave entrou. Saltou para o chão do meu quarto, olhou em
volta, após o que abriu as asas e voou pela escada acima. E eu lá fui atrás, dois
degraus de cada vez.
Aí, deparei com uma visão curiosa. O Bobo estava sentado à mesa com
uma rapariga de uns catorze anos. O cabelo dela encontrava-se puxado para
trás e bem preso sob um barrete rendado. Humilde como era, ainda exibia
três botões. A sua bem cuidada túnica de criada de azul de Torre do Cervo
tapava-lhe o modesto busto. Estava a observar atentamente enquanto o Bobo
movia uma pequena faca afiada por um bocado de madeira.
“…mais difícil sem a visão, mas sempre foram os dedos que me leram a
madeira quando eu estava a esculpir. Temo que me tenha tornado mais de-
pendente das pontas dos dedos do que me tinha apercebido. Ainda consigo
sentir a madeira, mas não é o mesmo que quando…”
“Quem és tu e quem te deixou entrar neste quarto?”, perguntei. Avancei
imediatamente para me interpor entre o Bobo e a rapariga. Ela ergueu o
olhar para mim com uma expressão desolada. Depois, Cinza falou pelos seus
lábios.
“Foi um descuido. Dom Breu não vai ficar contente comigo.”
“O que é? O que foi que te alarmou tanto?” O Bobo estava esbaforido de
ansiedade, com os olhos dourados muito abertos. A ferramenta de esculpir
que tinha na mão era agora agarrada como uma arma.
“Não é nada. Só mais uma das mascaradas de Breu! Entrei e deparei com
Cinza vestido de criada. A princípio não o reconheci e fiquei baralhado. Está
tudo bem, Bobo. Estás em segurança.”
“O quê?”, perguntou ele numa voz agitada, e depois conseguiu soltar
uma gargalhadinha nervosa. “Oh. Se é só isso, então…” Mas quando levou
a ferramenta à madeira, a mão tremia-lhe. Sem uma palavra, pousou-a.
Depois, rápida como uma serpente a atacar, a sua mão disparou até ao outro

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lado da mesa para agarrar o braço de Cinza. O rapaz soltou um grito mas o
Bobo segurou-o bem enquanto lhe agarrava também o outro pulso. “Porque
haverias tu de te disfarçar assim? Quem te paga?” Depois, quando a sua mão
desceu mais ao longo do braço do rapaz até ao pulso e depois à mão, re-
costou-se subitamente na cadeira. Não libertou o braço de Cinza, mas disse
numa voz trémula: “Não é Cinza com um vestido de criada, mas uma criada
que se mascarou de jovem aprendiz de Breu. Que se passa aqui, Fitz? Como
podemos ter sido tão estúpidos para confiarmos tão depressa?”
“A vossa confiança não foi mal dirigida, senhor. Eu teria possivelmente
revelado o meu segredo mais cedo, se Dom Breu não o tivesse proibido.” Em
voz mais baixa, acrescentou: “Estais a magoar-me. Por favor, fazei menos
força.”
A pele do antebraço da rapariga erguia-se em saliências brancas entre os
dedos do Bobo. Falei. “Bobo. Eu agarrei-a. Podes largá-la.”
Ele fê-lo, mas com relutância, abrindo lentamente as mãos. Voltou a sen-
tar-se na cadeira. Os olhos dourados rodopiaram e reluziram furiosamente à
luz pouco intensa. “E o que fiz eu para merecer esta vigarice de Dom Breu?”
Ela olhou para mim enquanto falava, esfregando o braço. Tinha as
bochechas muito rosadas e, agora que o Bobo anunciara que era rapariga,
perguntei a mim próprio como tinha podido ver nela outra coisa qualquer,
mesmo disfarçada de rapaz. Quando falou, a voz soou um grau mais aguda.
“Senhores, suplico-vos. Não havia nenhuma vontade de vos enganar, mas só
de permanecer como me tínheis visto. Como o rapaz, Cinza. Era assim que
estava disfarçada quando Dom Breu me conheceu inicialmente, embora ele
tenha percebido o disfarce em menos de uma noite. Disse que foi por causa
do pescoço e da finura das mãos. Deu-me muitos soalhos a esfregar para
as tornar mais ásperas, o que ajuda, mas diz que são os ossos que me de-
nunciam. Foi assim que percebestes, Dom Dourado? Pelos ossos das minhas
mãos?”
“Não me trates por esse nome. Não fales de todo comigo!”, declarou
infantilmente o Bobo. Perguntei a mim mesmo se ele se teria arrependido
das suas palavras se visse como a devastaram. Pigarreei e ela virou o olhar
magoado para mim.
“Fala comigo e conta-me a história desde o início. Desde que conheceste
inicialmente Dom Breu.”
Ela compôs-se, fechando as mãos reveladoras sobre a mesa, à sua frente.
Eu esquecera o corvo e, quando Matizada saltitou para mais perto, sobres-
saltei-me. O corvo balançou a cabeça e tocou-lhe a mão com o bico, como

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que para a sossegar. A Cinza-rapariga quase sorriu. Mas quando falou, eu vi
como ainda estava abalada. “A minha história começa bastante tempo antes
de conhecer Dom Breu, senhor. Sabeis que a minha mãe era prostituta. É aí
que começa a minha história de enganos. Eu nasci rapariga, mas a minha
mãe fez de mim um rapaz minutos depois do meu nascimento. Deu-me à luz
sozinha, mordendo um lenço dobrado para que os gritos não a denuncias-
sem. Quando fui descoberta, já estava embrulhada em roupa e ela declarou
à patroa do estabelecimento que tinha dado à luz um filho. Portanto, cresci
naquela casa de mulheres julgando-me rapaz. A minha mãe era inflexível
na insistência de que só ela podia cuidar de mim e na exigência de que eu
tivesse privacidade em qualquer momento em que o meu corpo pudesse es-
tar despido. Não tive companheiros de brincadeira, só saía de casa na com-
panhia da minha mãe e era severamente admoestada para que, sempre que
não estivesse com a minha mãe, permanecesse no seu quartinho de vestir
privativo e ficasse calada. Aprendi isto há tanto tempo que nem sequer me
lembro de como me foi ensinado.
“Tinha quase sete anos quando ela me revelou a verdade. Sem nunca
ter visto ninguém nu que não fosse uma mulher, nada sabia sobre como os
órgãos masculinos diferiam. Julgara-me rapaz durante todo aquele tempo.
Fiquei chocada e preocupada. E com medo. Porque na nossa casa havia rapa-
rigas não muito mais velhas do que eu que labutavam tristemente no ofício
da minha mãe, apesar de terem de fingir sempre estar alegres e animadas. Foi
por isso, disse-me a minha mãe, que ela me transformou em rapaz e era por
isso que eu tinha de continuar a ser rapaz. Ela disse-me que o meu verdadei-
ro nome é Centelha. Cinza é o que tapa um carvão em brasa e lhe esconde a
luz, e foi assim que criou os meus nomes.”
A contragosto, o Bobo estava arrebatado pela história dela, com a boca
levemente entreaberta de espanto ou de horror. Senti uma profunda tristeza
por ela.
“Como é que as mulheres trabalham nesse ofício como se fossem escra-
vas? A escravatura não é permitida nos Seis Ducados.”
A minha ignorância fê-la abanar a cabeça. “Pois não. Mas é frequen-
te que, quando se incorre numa dívida que não se pode pagar, a senten-
ça seja termos de trabalhar para a pagar. Quando a minha mãe era nova e
recém-chegada à Cidade de Torre do Cervo, não era esperta o suficiente para
perceber que o dono da casa de jogos lhe estava a dar créditos demasiado
fáceis. E quando ficou profundamente enredada, ele fechou a armadilha.”
Olhou para mim de cabeça inclinada. “E não foi, nem de perto, a primeira

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mulher, ou homem, a ser assim coagida. É bem sabido que existe um juiz,
Dom Sensível, que preside aos julgamentos de muitos devedores e envia
frequentemente homens e mulheres bem-parecidos para o ofício da carne.
Casas discretas, como aquela onde a minha mãe trabalhava, pagam as dívi-
das de jogo e reclamam para si a nova dívida. Se alguém se queixa, os donos
ameaçam vender a dívida aos que põem devedores nas docas e nas ruas, para
exercerem o seu ofício nas vielas. Mas depois de a minha mãe estar na casa,
era-lhe cobrada a comida que ingeria, a roupa, a cama e os lençóis limpos.
As prostitutas nunca conseguem sair das dívidas. Quando eu nasci e a minha
mãe ficou comigo, tornei-me uma despesa adicional para ela.”
“Dom Sensível,” disse eu, gravando o nome na memória e jurando fria-
mente que Respeitador iria ouvir aquela história dos meus lábios. Como ti-
nha eu vivido tanto tempo em Cervo sem nunca saber de uma coisa daquelas?
Centelha reatou a história. “As mulheres da casa começaram a usar-me
como moço de recados. Deixavam-me sair e andar por aí, para levar notas
aos cavalheiros delas ou trazer coisas especiais dos mercados. As nossas vi-
das prosseguiram. Uma noite conheci Dom Breu quando ele solicitou um
moço para levar uma mensagem sua a um navio ancorado nas docas fluviais.
Eu peguei na nota e fiz o que ele tinha pedido. Quando voltei, entreguei-lhe
a resposta escrita. Tinha-me virado para me ir embora quando ele me cha-
mou de volta, erguendo uma moeda de prata. Mas quando fui pegar nela, ele
pegou-me na mão, mesmo como fizestes, e depois, num murmúrio, pergun-
tou-me que jogo andava eu a fazer. Disse-lhe que não fazia jogo nenhum,
que era o moço de recados da minha mãe e que se tivesse perguntas a fazer,
devia fazer-lhas a ela. E nessa noite ele procurou-a em vez da sua favorita e
passou a noite inteira com ela. Ficou muito impressionado com o bem que
ela me tinha ensinado. E depois disso, sempre que vinha de visita, arranjava
sempre uma desculpa para me ver, para me mandar desempenhar alguma
tarefa, pagando-me sempre uma moeda de prata. Começou a ensinar-me
mais coisas. A projetar o queixo para ter mais maxilar e a tornar a mão mais
áspera com água fria e a enchumaçar os sapatos para parecer ter pés maiores.
“A minha mãe era muito boa no seu ofício, mas não fora o que quisera
para si, e muito menos para mim. Dom Breu prometeu que, quando eu fizes-
se quinze anos, me daria emprego como criada e me ensinaria outro ofício.”
Fez uma pausa, suspirando. “O destino interveio. Ele acolheu-me com onze
anos.”
“Espera. Que idade tens?”
“Como rapariga? Treze anos. Quando sou Cinza, digo às pessoas que

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tenho onze. Sou um rapaz bastante magricela, apesar de ser forte para
rapariga.”
“O que aconteceu quando tinhas onze anos?”, perguntou o Bobo.
A cara de Centelha perdeu toda a expressão. Os seus olhos ficaram ile-
gíveis. Mas manteve a voz firme. “Um cavalheiro achou que o divertiria par-
tilhar a cama com uma mãe e o seu filho. Já pagara à patroa da nossa casa
uma soma substancial para uma noite dessas quando veio até aos nossos
aposentos. Ninguém nos pediu autorização. Quando a minha mãe levantou
objeções, a dona da casa disse que a dívida era tão minha como da minha
mãe. E que se a minha mãe e eu não obedecêssemos, me expulsava da casa
naquele instante.” A cara ficou mais pálida, as narinas apertaram-se de de-
sagrado. “O cavalheiro veio aos nossos aposentos. Disse-me que eu ficaria
primeiro a ver enquanto ele fazia o que tinha a fazer com a minha mãe. E
que depois ela observaria enquanto ele me ensinava ‘um novo divertimen-
tozinho.’ Eu recusei e ele riu-se. ‘Criaste-o para ter espírito. Sempre desejei
uma montadazinha espirituosa.’
“A minha mãe disse: ‘Não o tereis, nem agora nem nunca.’ Eu julguei que
ele se zangaria, mas aquilo só pareceu excitá-lo. A minha mãe estava a usar
um agasalho bonito, como as mulheres da casa usavam frequentemente. Ele
agarrou na gola, rasgou-a e empurrou a minha mãe para cima da cama mas,
em vez de se debater, ela envolveu-o com as pernas e os braços e disse-me
para fugir, para sair de casa e nunca voltar.” Fez uma pausa, com a mente a
recuar no tempo. O lábio superior torceu-se duas vezes para cima. Se fosse
uma gata, teria cuspido um silvo.
“Centelha?”, incentivou-a gentilmente o Bobo.
A voz soou inexpressiva. “Fugi. Obedeci-lhe como sempre lhe tinha
obedecido e fugi. Escondi-me. Vivi nas ruas de Vilassuja durante dois dias.
Não me saí lá muito bem. Um dia, um homem apanhou-me. Julguei que me
ia matar ou violar, mas ele disse-me que Dom Breu queria falar comigo. Era
um nome diferente daquele por que eu o conhecia quando era freguês da
casa da minha mãe, claro. Mas o homem trazia um símbolo que reconheci,
portanto, mesmo apesar de temer uma armadilha, fui com ele. Dois dias de
fome e frio tinham-me feito perguntar a mim mesma se fora tola por recu-
sar o cavalheiro da minha mãe.” Suspirou. “O homem levou-me para uma
estalagem, deu-me uma refeição e trancou-me num quarto. Esperei durante
horas, com medo do que podia acontecer a seguir. Depois, Dom Breu veio.
Disse que a minha mãe tinha sido assassinada e que temera por mim…”
Foi esse o ponto em que a vida e a dor regressaram à sua voz. Percorreu

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o resto da história com a respiração presa. “Julguei que a tinha deixado na
iminência de uma surra. Ou perante a perspetiva de ter os rendimentos limi-
tados pela patroa da casa. Não para ser violada e estrangulada e deixada no
chão do seu quarto como um lenço sujo.”
As palavras dela pararam e, durante algum tempo, respirou como um
fole. Nem eu nem o Bobo falámos. Por fim, ela disse: “Dom Breu pergun-
tou-me quem tinha feito aquilo. A patroa da casa recusara-se a dizer quem
tinha comprado o tempo da minha mãe naquela noite. Eu não sabia o nome
dele, mas sabia tudo o resto sobre ele. Conhecia o nome do perfume que
usava e o padrão da renda nos seus punhos, e que tinha um sinal de nascença
por baixo da orelha esquerda. Não creio que algum dia consiga esquecer o
seu aspeto exato quando a minha mãe o prendeu a si para que eu me pudesse
escapar.”
As palavras sumiram-se-lhe e seguiu-se um longo silêncio. Ela soltou
um soluço, um som estranhamente normal no fim de uma história tão som-
bria. “Portanto vim para aqui. Para trabalhar para ele e aprender que ele
era realmente Dom Breu. Vim para cá como rapaz e vivo cá principalmen-
te como rapaz, mas ele às vezes pede-me para me vestir como criada. Para
aprender a ser rapariga, suponho. Suspeito que não será tão fácil para mim
usar o disfarce de rapaz quando me fizer mulher. Mas também para ouvir a
espécie de coisas que as pessoas não dizem à frente de um criado. Para ser
testemunha da espécie de coisas que um senhor ou uma senhora faz à frente
de uma simples criada, que não fariam à frente de mais ninguém. E para
trazer essas observações a Breu.”
Breu. E com aquela menção ao nome dele, aquilo que me trouxera ali
regressou de rompante à minha mente. “Breu! Ele tem uma febre causada
pelo ferimento e foi por isso que vim cá. Vim buscar qualquer coisa para as
suas dores. E mandar buscar um curandeiro para ir visitá-lo mais tarde para
lhe voltar a limpar o ferimento.”
Centelha pôs-se em pé de um salto. A preocupação na sua cara não era
fingida. “Vou já buscar-lhe um curandeiro. Conheço o velho que ele prefere.
Não é rápido, mas é bom. Fala com Dom Breu e oferece-lhe este tratamento
ou aquele, e dá ouvidos ao que Dom Breu acha que seria melhor. Vou já
buscá-lo, embora ele seja lento a levantar-se, e depois vou imediatamente
para o quarto de Dom Breu.”
“Vai lá,” concordei e ela correu para a porta da tapeçaria e desapareceu
do refúgio. Durante algum tempo, ficámos em silêncio.
Depois: “Papoila,” disse eu, e levantei-me para me dirigir às estantes.

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Breu tinha-a armazenada em várias formas. Escolhi um extrato potente que
podia diluir num chá.
“Ela foi um rapaz muito convincente,” observou o Bobo. Não consegui
identificar a emoção que tinha na voz.
Estava à procura de um recipiente mais pequeno onde pusesse levar par-
te do extrato. “Bem, tu saberás mais sobre isso do que eu,” disse sem pensar.
Ele riu-se. “Ah, Fitz, e sei mesmo.”
Tamborilou com os dedos no tampo da mesa. Virei-me, surpreendido,
para o ver fazer aquilo. “As tuas mãos parecem estar muito melhor.”
“E estão. Mas ainda me doem. Tens papoila para mim?”
“Temos de ter cuidado com a quantidade de remédios que te damos
para as dores.”
“Bom. O que estás a dizer é ‘não.’ Enfim.” Vi-o a tentar unir os dedos em
ponta. Ainda estavam demasiado rígidos. “Quero pedir desculpa. Não. Não
é bem pedir desculpa, mas… eu tenho estes ataques de terror. De pânico. E
transformo-me noutra pessoa. Em alguém que não quero ser. Quis magoar
Cinza. Foi esse o meu primeiro impulso. Magoá-lo por me assustar.”
“Conheço esse impulso.”
“E?”
Tinha desistido da busca. Teria de levar a garrafinha até ao quarto de
Breu e depois trazê-la de volta. “É a Cinza que tens de pedir desculpa. Ou
a Centelha. E quanto a esse ataque de fúria? Tempo. Tempo que passe sem
que ninguém tente magoar-te ou matar-te vai atenuar essa reação. Mas, se-
gundo a minha experiência, nunca desaparece por completo. Ainda tenho
sonhos. Ainda sinto ataques de fúria.” Veio-me à mente a cara do homem
que apunhalara o cão no mercado. A ira voltou a crescer em mim. Devia tê-lo
magoado mais, pensei. Para, disse a mim mesmo. Para de te lembrar disso.
Os dedos do Bobo tamborilaram levemente na madeira que ele estivera
a esculpir. “Cinza, Centelha. Ela é boa companhia, Fitz. Gosto dele. Suspeito
que vou gostar também dela. É frequente Breu ser mais sensato do que o
crédito que lhe dou. Permitir que ela se vista e viva segundo os dois papéis
que representa é brilhante da parte dele.”
Fiquei em silêncio. Acabara de me lembrar de quão indiferentemente
eu ficara em pelo à frente de Cinza. Uma rapariga. Uma rapariga que não
era muitos anos mais velha que a minha filha, a entregar-me roupa interior.
Julgo que havia anos que não corava tanto. Não mencionaria tal coisa ao
Bobo. Ele, nos últimos tempos, já tivera divertimento suficiente às minhas
custas.

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