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Andreza Barboza Nora: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Estudos Da Linguagem

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

ANDREZA BARBOZA NORA

“Igual ao biscoito recheado, aquele meio a meio, meio surda, meio


ouvinte”: línguas, identidades e representações em um curso
superior bilíngue (LIBRAS/Língua Portuguesa)

CAMPINAS,
2016
ANDREZA BARBOZA NORA

“Igual ao biscoito recheado, aquele meio a meio, meio surda, meio


ouvinte”: línguas, identidades e representações em um curso
superior bilíngue (LIBRAS/Língua Portuguesa)

Tese de doutorado apresentada ao Instituto de


Estudos da Linguagem da Universidade
Estadual de Campinas para obtenção do título
de Doutora em Linguística Aplicada, na área de
Linguagem e Educação.

Orientadora: Profª. Dra. Marilda do Couto Cavalcanti

Esse exemplar corresponde à versão final da tese


defendida pela aluna Andreza Barboza Nora e
orientada pela Profª. Drª. Marilda do Couto
Cavalcanti

CAMPINAS,
2016
Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): Não se aplica.

Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem
Crisllene Queiroz Custódio - CRB 8/8624

Nora, Andreza Barboza, 1983-


N75i Nor"Igual ao biscoito recheado, aquele meio a meio, meio surda, meio ouvinte"
: línguas, identidades e representações em um curso superior bilíngue
(LIBRAS/Língua Portuguesa) / Andreza Barboza Nora. – Campinas, SP : [s.n.],
2016.

NorOrientador: Marilda do Couto Cavalcanti.


NorTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Estudos da Linguagem.

Nor1. Surdos - Educação - Brasil. 2. Minorias - Educação (Superior) - Brasil. 3.


Educação bilíngüe - Brasil. 4. Língua portuguesa - Estudo e ensino (Superior) -
Método bílingüe. 5. Língua brasileira de sinais - Estudo e ensino (Superior) -
Método bílingüe. 6. Surdos - Identidade. 7. Representação (Linguística). I.
Cavalcanti, Marilda do Couto,1948-. II. Universidade Estadual de Campinas.
Instituto de Estudos da Linguagem. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: "Half and half like a sandwich cookie, half deaf, half hearing": :
languages, indentities and representations in a bilingual (Brazilian Sign
Language/Portuguese) undergraduate course
Palavras-chave em inglês:
Deaf - Education - Brazil
Minorities - Education (Higher) - Brazil
Education, Bilingual - Brazil
Portuguese language - Study and teaching (Higher) - Bilingual method
Brazilian sign language - Study and teaching (Higher) - Bilingual method
Deaf - Identity
Representation (Linguistics)
Área de concentração: Linguagem e Educação
Titulação: Doutora em Linguística Aplicada
Banca examinadora:
Marilda do Couto Cavalcanti [Orientador]
Terezinha de Jesus Machado Maher
Ivani Rodrigues da Silva
Cristina Broglia Feitosa de Lacerda
Maria Cristina da Cunha Pereira-Yoshioka
Data de defesa: 23-08-2016
Programa de Pós-Graduação: Linguística Aplicada

Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)


BANCA EXAMINADORA:

Marilda do Couto Cavalcanti

Terezinha de Jesus Machado Maher

Ivani Rodrigues Silva

Cristina Broglia Feitosa de Lacerda

Maria Cristina da Cunha Pereira-Yoshioka

Roberto de Freitas Júnior

Petrilson Alan Pinheiro da Silva

Wilma Favorito

IEL/UNICAMP
2016

Ata da defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no processo de


vida acadêmica do aluno.
À família em que me constituí e à família que construí.
AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, por terem sempre me incentivado a trilhar o caminho em busca do
conhecimento e por me garantirem, mesmo diante de tantas dificuldades, as
condições mínimas para que pudesse perseguir todos os meus sonhos e objetivos.
Ao Rafa, por ter me acompanhado a cada minuto dessa longa jornada e por tê-la
tornado menos penosa com sua compreensão e cuidado. Uma página inteira não seria
suficiente para tantos agradecimentos que lhe cabem. Amo você.
Aos professores do colegiado do Ensino Médio Integrado do CEFET-RJ, campus
Maria da Graça, pelo companheirismo, pelo incentivo e pela generosidade em
aprovarem a minha licença na reta final de produção desta pesquisa.
Aos amigos de toda uma vida, pelo incentivo, por trazerem sorrisos em dias difíceis e
pela escuta solidária. Em especial, agradeço a Daniel Rosa, Luciana Reis e Marcelle
Araújo.
Às queridas Andréa Silva, Catarina Labouré e Cláudia Antunes, companheiras da
docência com quem compartilhei as angústias e as alegrias da vida acadêmica,
profissional e pessoal.
Aos alunos de ontem, hoje e sempre, por muito me ensinarem no dia a dia e por me
instigarem a saber mais.
À Cristina, pela amizade que construímos no decurso do trabalho de campo.
Ao Eli Castanho, companheiro de turma no Doutorado, por ter tornado menos
solitárias e mais divertidas as viagens de volta para casa depois das aulas e pela
interlocução fundamental.
Ao DESU/INES, por ter acolhido o meu projeto e ter tornado possível a presente
pesquisa.
Aos estudantes, professores e intérpretes do DESU que participaram do estudo.
À minha orientadora Marilda Cavalcanti, pelo legado teórico ao campo da Linguística
Aplicada e por ter conduzido com serenidade a produção desta pesquisa.
Às professoras Terezinha Maher e Ivani Rodrigues, pelas fundamentais contribuições
nos Exames de Qualificação.
Às professoras Marilda Cavalcanti, Cristina Lacerda, Ivani Rodrigues, Maria Cristina
da Cunha Pereira e Terezinha Maher por integrarem a banca. E aos professores
suplentes Petrilson Alan Pereira da Silva, Roberto de Freitas Júnior e Wilma Favorito,
por se colocarem à disposição.
Aos servidores da Secretaria de Pós-graduação do IEL, pela presteza com quem
sempre cuidaram das minhas demandas.
Ao CEFET-RJ, por ter me concedido o afastamento na fase de conclusão desta
pesquisa.
RESUMO

A presente tese está inserida no campo dos estudos sobre contextos bilíngues de
minorias (CAVALCANTI, 1999). Desenvolvida sob o paradigma da pesquisa
interpretativista de cunho etnográfico (ERICKSON, 1984, 1989; CAVALCANTI, 2000,
2006; DENZIN e LINCOLN, 2006) e sob a ótica INdisciplinar (MOITA LOPES, 2006)
da Linguística Aplicada, contém registros gerados ao longo de dois semestres letivos
de permanência no campo, o Curso Superior Bilíngue de Pedagogia do Departamento
de Ensino Superior (DESU) do INES (Instituto Nacional de Educação de Surdos). O
objetivo geral da pesquisa foi focalizar, nesse espaço sociolinguisticamente complexo,
as representações que emergem acerca da identidade linguística de estudantes
surdos, assim como as representações que são construídas pelos participantes da
pesquisa sobre a condição bilíngue (LIBRAS/Língua Portuguesa) do Curso e a dos
seus integrantes. Para fundamentar teoricamente a construção de respostas para as
questões que nortearam a produção do estudo, empreendeu-se a interlocução entre
conceitos advindos de diferentes campos do conhecimento. Destacam-se,
inicialmente, aportes voltados ao fenômeno do bi/multilinguismo (CANAGARAJAH,
2011, 2013; GARCÍA, 2009), da educação bi/multilíngue (GARCÍA, 2009; MAHER,
2007; 2012), assim como ao da educação bilíngue para surdos no Brasil (SKLIAR,
1997b, 1998, 1999, 2010; FERNANDES, 2003, 2011, entre outros), basilares para a
compreensão e a problematização do contexto educacional em que a pesquisa foi
realizada. A esse aparato, somam-se os conceitos de representação (HALL, 1997;
SILVA, 2009; WOODWARD, 2009), de identidade (HALL, 2009, 2011; SILVA, 2009;
BAUMAN, 2005), de comunidade (BAUMAN, 2003), de políticas linguísticas (CALVET,
2007; SHOHAMY, 2006) e de ideologia linguística (KROSKRITY, 2004). No tocante à
identidade linguística dos estudantes surdos, observou-se que as representações
denotam um papel central e preponderante da língua de sinais. A prática de uso da
LIBRAS aparece, com certa regularidade, associada a um ideal de unidade, de
lealdade, como símbolo de pertencimento ao grupo e de uma identidade “legítima”.
Quanto às representações sobre o cenário bilíngue do Curso, notou-se certo contraste
entre a persistência de ideais monolíngues e o engajamento em práticas
bi/multilíngues de seus integrantes. Além disso, foi verificado que as representações
sobre o Curso vêm sendo construídas em dois diferentes polos, o do reconhecimento
e o da contestação de seu caráter bilíngue, refletindo os atravessamentos discursivos
inerentes à educação bilíngue para surdos no Brasil.

Palavras-chave: educação de surdos; curso superior bilíngue; identidade;


representação.
ABSTRACT

This thesis is part of the field of studies on bilingual contexts of minorities


(CAVALCANTI, 1999). It was developed under the paradigm of the interpretive
ethnographic research (ERICKSON, 1984, 1989; CAVALCANTI 2000, 2006; Denzin
and LINCOLN, 2006) and under the INdisciplinary perspective (MOITA LOPES, 2006)
of Applied Linguistics. This work contains records generated over two semesters of
fieldwork in the bilingual Pedagogy course of INES (National Institute for Deaf
Education). The overall objective of the research was to focus, in this sociolinguistic
complex space, on representations that emerge about the linguistic identity of deaf
students, as well as representations that are built by the participants about the bilingual
(LIBRAS – Brazilian sign language / Portuguese) condition of the course and of its
members. The theoretical support to the construction of answers for the questions that
guided the production of the study was undertaken from the dialogue between
concepts coming from different fields of knowledge. Initially, contributions focused on
bi/multilingual phenomenon (CANAGARAJAH, 2011, 2013; GARCÍA, 2009),
bi/multilingual education (GARCÍA, 2009; MAHER, 2007; 2012), and bilingual
education for deafs in Brazil (SKLIAR, 1997b, 1998, 1999, 2010; FERNANDES, 2003,
2011, etc.) are highlighted. These concepts are essential for understanding and
questioning the educational context in which the survey was conducted. The concepts
of representation (HALL, 1997; SILVA, 2009; WOODWARD, 2009), identity (HALL,
2009, 2011; SILVA, 2009; BAUMAN, 2005), community (BAUMAN, 2003), language
policies (CALVET, 2007; SHOHAMY, 2006) and linguistic ideology (KROSKRITY,
2004) are also added to this apparatus. Regarding the linguistic identity of deaf
students, it was observed that the representations denote a central and leading role of
sign language. The use of LIBRAS appears, with some regularity, associated with an
ideal of unity, loyalty, and as a symbol of belonging to the group and of “genuine”
identity. In relation to the representations about the bilingual scenery of the course,
certain contrast between the persistence of monolingual ideals and the engagement
at bi / multilingual practices of its members was noted. In addition, it was found that the
representations about the course have been built in two different poles: the recognition
and the contestation of its bilingual character, which reflects the discursive crossings
inherent in bilingual education for the deafs in Brazil.

Keywords: deaf education; bilingual undergraduate course; identity; representation.


LISTA DE SIGLAS

AEE – Atendimento Educacional Especializado

ASL – Língua Americana de Sinais

CAp/INES – Colégio de Aplicação do Instituto Nacional de Educação de Surdos

CAAF – Centro de Atendimento Alternativo Florescer

CNE/CP – Conselho Nacional de Educação/Conselho Pleno

CONAE – Conferência Nacional de Educação

DDHCT – Departamento de Desenvolvimento Humano, Científico e Tecnológico

DESU – Departamento de Ensino Superior

DEBASI – Departamento de Educação Básica

EJA – Educação de Jovens e Adultos

FENEIDA – Federação Nacional de Educação e Integração do Deficiente Auditivo

FENEIS – Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos

FUNAI – Fundação Nacional do Índio

GTDL – Grupo de Trabalho da Diversidade Linguística

IBC – Instituto Benjamin Constant

INDL – Inventário Nacional da Diversidade Linguística

IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

ISBE – Instituto Superior Bilíngue de Educação

IFG – Instituto Federal de Goiás

INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira

INES – Instituto Nacional de Educação de Surdos

IPOL – Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Linguística

LA – Linguística Aplicada

LIBRAS – Língua Brasileira de Sinais

MEC – Ministério da Educação e Cultura


MERCOSUL – Mercado Comum do Sul

TILS –Tradutor Intérprete de Língua de Sinais

PDI – Plano de Desenvolvimento Institucional

PEIBF – Projeto Escola Intercultural Bilíngue de Fronteira

PEIF – Programa Escolas Interculturais de Fronteira

PNE – Plano Nacional de Educação

PPP – Projeto Político Pedagógico

PROPP – Programa de Prática Profissional

PT – Partido dos Trabalhadores

SECADI – Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão

SESU – Secretaria de Educação Superior

UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul

UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas


SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................................12

1.1 ANTECEDENTES............................................................................................................................12
1.2 DE “O QUE SERÁ QUE ELA QUIS DIZER?” A “O QUE ESSE LUGAR TEM A ME DIZER?”: A MOTIVAÇÃO PARA A
PESQUISA ............................................................................................................................................16

1.3 PROBLEMATIZAÇÃO DO TEMA.........................................................................................................19


1.4 QUESTÕES NORTEADORAS .............................................................................................................26
1.5 DA JUSTIFICATIVA ........................................................................................................................28
1.6 APRESENTAÇÃO DOS CAPÍTULOS .....................................................................................................32

2. BILINGUISMO E EDUCAÇÃO BILÍNGUE: DO PLANO GERAL AO CONTEXTO BRASILEIRO DA


EDUCAÇÃO DE SURDOS ....................................................................................................................34

2.1 BI/MULTILINGUISMO: UMA APROXIMAÇÃO COM O(S) CONCEITO(S) ......................................................34


2.2 (DES)EMBARALHANDO CONCEITOS: BILINGUISMO, MULTILINGUISMO, PLURILINGUISMO, EDUCAÇÃO BILÍNGUE E
MULTILÍNGUE .......................................................................................................................................40

2.3 CONTEXTOS DA EDUCAÇÃO BI/MULTILÍNGUE NO BRASIL.....................................................................46


2.4 EDUCAÇÃO BILÍNGUE PARA SURDOS NO BRASIL: DA DÉCADA DE 90 AOS DIAS ATUAIS ................................59
2.4.1 ANTECEDENTES DA LEI Nº 10.436/2002 (LEI DE LIBRAS) .................................................................59
2.4.2 POLÍTICA LINGUÍSTICA PARA SURDOS SINALIZANTES: O CONTEXTO PÓS-LEI DE LIBRAS ..............................63
2.4.3 A INSURGÊNCIA DO MOVIMENTO “ESCOLA BILÍNGUE PARA SURDOS” ....................................................66
2.4.4 OS SIGNIFICADOS DA EDUCAÇÃO BILÍNGUE PARA SURDOS NO BRASIL .....................................................70
2.4.5 POLÍTICAS LINGUÍSTICAS PÓS-MOVIMENTO “ESCOLA BILÍNGUE PARA SURDOS” .......................................79

3. OUTROS APORTES TEÓRICOS.....................................................................................................83

3.1 DAS POLÍTICAS LINGUÍSTICAS ..........................................................................................................83


3.2 DAS IDEOLOGIAS LINGUÍSTICAS ..........................................................................................................89
3.3 DAS COMUNIDADES CLÁSSICAS ÀS REALMENTE EXISTENTES......................................................................93
3.4 DA IDENTIDADE E DA REPRESENTAÇÃO ................................................................................................99
3.4.1 A CRISE DA IDENTIDADE: A EMERGÊNCIA DO SUJEITO PÓS-MODERNO........................................................99
3.4.2 PERSPECTIVAS IDENTITÁRIAS ESSENCIALISTAS X CONSTRUCIONISTAS .......................................................103
3.4.3 ENTRE ESSENCIALISMO E HIBRIDISMO: AS IDENTIDADES SURDAS ............................................................105
4. CARACTERIZAÇÃO DA PESQUISA .............................................................................................109

4.1 NATUREZA DA PESQUISA .............................................................................................................109


4.1.1 NOS CAMINHOS DA LINGUÍSTICA APLICADA ...................................................................................109
4.1.2 PRESSUPOSTOS DA PESQUISA QUALITATIVA ...................................................................................114
4.1.3 PRINCÍPIOS DA ETNOGRAFIA .......................................................................................................117
4.2 O CENÁRIO DA PESQUISA .............................................................................................................120
4.2.1 A GÊNESE E A ESTRUTURA DO CURSO BILÍNGUE DE PEDAGOGIA DO DEPARTAMENTO DE ENSINO SUPERIOR
(DESU) DO INES ................................................................................................................................120
4.2.2 EXAME VESTIBULAR DE ACESSO AO CURSO BILÍNGUE DE PEDAGOGIA DO DESU.....................................122
4.2.3 QUADRO DE DOCENTES DO DESU ...............................................................................................124
4.2.4 OS TRADUTORES INTÉRPRETES DE LIBRAS/LÍNGUA PORTUGUESA (TILS) .............................................125
4.3 PERCURSO METODOLÓGICO.........................................................................................................127
4.3.1 (RE)APROXIMAÇÃO COM O CAMPO .............................................................................................127
4.3.2 A TURMA OBSERVADA ..............................................................................................................128
4.3.3 A INSERÇÃO NO CAMPO E OS PROCEDIMENTOS DA GERAÇÃO DOS REGISTROS ........................................130

5. ANÁLISE DOS REGISTROS.........................................................................................................133

5.1 “ELE TEM É QUE LUTAR PELA LIBRAS! SE ELE É SURDO, ELE PRECISA LUTAR PELA LIBRAS”: A MOBILIZAÇÃO
POR UNIDADE.....................................................................................................................................134

5.2 “ A IDENTIDADE DO SURDO É A LÍNGUA DE SINAIS”: A DIFERENÇA (ESTRATEGICAMENTE) ESSENCIALIZADA 158


5.3 “NO DESU O MODELO É INCLUSIVO”: REPRESENTAÇÕES SOBRE O CURSO BILÍNGUE ................................182
5.4 “...MAIS VALE UM PÁSSARO NA MÃO QUE DOIS VOANDO”: REPRESENTAÇÕES SOBRE A INSERÇÃO DO
PROFISSIONAL INTÉRPRETE NO CURSO BILÍNGUE .......................................................................................204

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................222

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................................233

ANEXO 1 .........................................................................................................................................250

ANEXO 2 .........................................................................................................................................251
12

1. INTRODUÇÃO

1.1 Antecedentes

No Brasil, o Decreto nº 5.626 de dezembro de 2005 é o responsável por


regulamentar a Lei nº 10.436 de abril de 2002 (Lei de LIBRAS), que reconhece a
Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS). Esse decreto, que figura como uma possível
oportunidade de política linguística para a comunidade surda, trouxe determinações
fundamentais: a inclusão da LIBRAS1 como disciplina obrigatória nos cursos de
formação de professores (em nível médio e superior); a oferta obrigatória, desde a
Educação Infantil, do ensino da LIBRAS e também da língua portuguesa (em sua
modalidade escrita) para alunos surdos e a organização de classes de educação
bilíngue2.

O decreto também tornou possível a criação de cursos, no âmbito do ensino


superior, com o propósito de atender às reivindicações há muito assinaladas pelas
comunidades surdas. Inicialmente, foram dois os cursos foram mencionados no texto
legal: a licenciatura plena em Letras/LIBRAS (ou em Letras-LIBRAS/Língua
Portuguesa), a fim de que sejam formados professores para lecionar a LIBRAS desde
o 6° ano do Ensino Fundamental até o Ensino Superior, e o curso de Pedagogia
Bilíngue (LIBRAS/Língua Portuguesa), para que sejam formados professores
bilíngues para a modalidade da Educação Infantil e séries iniciais do Ensino
Fundamental.

Antes da aprovação do Decreto nº 5.626/2005, documento de natureza


bastante específica, outro texto oficial, ainda que de forma superficial, demonstra
preocupação com a formação de professores que possam fazer face às diferentes
singularidades do alunado brasileiro. Trata-se da Resolução CNE/CP nº1/2002 que
institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da
Educação Básica. Nessa resolução, é clara a previsão de que as instituições de ensino

1
Parece claro que a inclusão da disciplina LIBRAS nos cursos de licenciatura e nos cursos que
substituíram as antigas Escolas Normais, por ser obrigatória em apenas um curto período de tempo
ao longo de toda a formação, não tem por finalidade formar professores ouvintes bilíngues
(LIBRAS/Língua Portuguesa), mas permite que se vislumbre, na formação desses profissionais, a
possibilidade de que desfaçam estigmas e quebrem rótulos pré-concebidos sobre a surdez e as
línguas de sinais.
2
As formas de organização da educação de surdos previstas nos documentos legais serão explicitadas
e problematizadas no capítulo 2.
13

superior, responsáveis pela formação de professores que irão atuar na Educação


Básica, precisam contemplar na organização curricular dos cursos de licenciatura
conhecimentos que estejam voltados para a questão da diversidade e das
especificidades dos estudantes.

É nesse contexto, em que também se insere a promulgação da Lei de


LIBRAS, que vem à tona, em 2002, o debate a respeito de uma proposta de criação
de um curso superior bilíngue (LIBRAS/Língua Portuguesa) voltado para a formação
de profissionais docentes com o potencial de atender às notórias demandas no âmbito
da educação de surdos no Brasil. Não surpreende que esse debate tenha sido
alimentado, de modo pioneiro, no Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES).

Criado em 1857, o INES3, desde meados dos anos 90, é considerado um


Centro de Referência Nacional no âmbito da surdez e único no domínio federal. O
Instituto assumiu o papel de produzir, desenvolver e divulgar conhecimentos
científicos e tecnológicos no campo da surdez, assim como de subsidiar a formulação
de políticas públicas e de apoiar a sua implementação nas esferas subnacionais de
governo. Entre suas atividades, como Centro de Referência, é possível destacar a
assessoria técnica prestada em diferentes áreas: audiologia, fonoaudiologia,
orientação para o trabalho e a oferta da Educação Básica no Colégio de Aplicação 4
(CAp/INES).

Paralelamente a essas atividades que já desempenhava há algumas


décadas no campo do atendimento especializado e na educação de surdos, o INES
avançou no propósito da criação de seu primeiro curso superior. Em 2004, pouco
tempo depois de iniciar a discussão sobre a já referida proposta e atendendo ao seu
Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI) do quadriênio 2004/2008, o Instituto
solicitou autorização ao Ministério da Educação para dar início a um Curso Superior
Bilíngue de Pedagogia (Licenciatura Plena).

3
O Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES) é uma instituição federal de ensino vinculada ao
Ministério da Educação (MEC), localizada na cidade do Rio de Janeiro, no bairro Laranjeiras, zona
sul da região metropolitana.
4
O Colégio de Aplicação do Instituto Nacional de Educação de Surdos – CAp/INES, sob
responsabilidade do Departamento de Educação Básica – DEBASI, atende crianças, adolescentes
e adultos surdos, em todos os segmentos da Educação Básica. O CAp/INES funciona em três turnos
(manhã, tarde e noite), oferecendo aos alunos o ensino regular numa proposta bilíngue, sendo a
Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS – considerada a língua de instrução no currículo da instituição
e a Língua Portuguesa é trabalhada nas modalidades de leitura e escrita. O Colégio possui, também,
o Centro de Atendimento Alternativo Florescer – CAAF e o Núcleo de Estudos Avançados - Pré-
vestibular.
14

Em 2005, o MEC autorizou5, entretanto, o funcionamento de um Curso


Normal Superior6, no modelo Licenciatura, com habilitação para o magistério da
Educação Infantil e para os anos iniciais do Ensino Fundamental. O Instituto então
promoveu seu primeiro concurso vestibular (em março de 2006) atendendo às
determinações oficiais. Foi assim que, em maio de 2006, tiveram início as aulas do
curso no formato então autorizado pelo Governo Federal.

No intervalo entre a autorização dada pelo MEC e o início das aulas do


Curso Normal Superior no INES, entraram em cena dois novos aparatos jurídicos: o
Parecer homologado CNE 03/2006 e a Resolução CNE/CP nº 01/2006 que dispunham
acerca das Diretrizes Curriculares Nacionais para Cursos de Pedagogia e que
tratavam da possibilidade de transformação dos cursos no formato Normal Superior
em cursos de graduação em Pedagogia.

Diante da possibilidade apresentada nos mencionados documentos, no


próprio ano de 2006, o INES decidiu transformar o curso que havia há pouco
inaugurado no modelo Normal Superior em um Curso Bilíngue de Pedagogia. Com as
aulas já iniciadas desde maio de 2006, o então Instituto Superior Bilíngue de
Educação7 (ISBE) deu início à modificação do projeto inicial, adaptando-o à nova
configuração de acordo com as Diretrizes Nacionais para Curso de Pedagogia,
expressas na Resolução CNE/CP nº 01/20068.

Consoante às determinações oficiais e buscando ampliar o escopo da


formação a ser oferecida aos alunos, o Instituto Nacional de Educação de Surdos

5
A autorização para o funcionamento do Curso Normal Superior, sob a modalidade Licenciatura, deu-
se por meio da Portaria Ministerial 2.830, de 17 de agosto de 2005, publicada no DOU de 18 de
agosto de 2005.
6
O Curso Normal Superior (Licenciatura) apenas propiciaria habilitações para o Magistério em
Educação Infantil e Anos Iniciais do Ensino Fundamental.
7
Quando do início, no INES, do Curso Normal Superior Bilíngue, o mesmo era desenvolvido pelo setor
então criado para esse fim, o Instituto Superior Bilíngue de Educação (ISBE). Diante da dificuldade
de se manter um Instituto na estrutura organizacional de outro, o ISBE foi transformado em
Departamento de Ensino Superior (DESU-INES) por meio da Portaria MEC nº 323, de 8 de abril de
2009, na qual foi aprovado o novo Regimento Interno do INES.
8
A possibilidade de alteração do formato do curso em desenvolvimento no INES se baseou nos
seguintes trechos da Resolução:

Art. 11. As instituições de educação superior que mantêm cursos autorizados


como Normal Superior e que pretenderem a transformação em curso de
pedagogia e as instituições que já oferecem cursos de pedagogia deverão
elaborar novo projeto pedagógico, obedecendo ao contido na Resolução.
§3º As instituições poderão optar por introduzir alterações decorrentes do
novo projeto pedagógico para as turmas em andamento, respeitando-se o
interesse e direitos dos alunos matriculados (BRASIL, 2006).
15

(INES) implantou, no ano de 2006, o primeiro Curso Bilíngue de Pedagogia do Brasil.


Esse último modelo – aprovado pela Portaria SESU nº 942, de 22 de novembro de
2006 – vigente até o momento, propicia Graduação em Pedagogia (Licenciatura
Plena) com as seguintes habilitações: Educação Infantil; Anos Iniciais do Ensino
Fundamental, contemplando inclusive a Educação de Jovens e Adultos (EJA);
Magistério das Disciplinas Pedagógicas do Ensino Médio e Funções Extraclasse
(administração, orientação e supervisão escolar).

Em decorrência das transformações na estrutura organizacional do INES,


que precisou se adaptar diante da implantação do Curso Superior Bilíngue de
Pedagogia, o Instituto reúne hoje em seu campus o tradicional Colégio de Aplicação
– que forma alunos surdos da Educação Infantil ao Ensino Médio –, e o recente
Departamento de Ensino Superior (DESU), que formou, no segundo semestre de
2009, sua primeira turma de professores/pedagogos bilíngues.

O Projeto do Curso Bilíngue de Pedagogia (MEC/INES, 2006) prevê a


Língua Brasileira de Sinais como uma das línguas de instrução do Curso Superior e o
português como uma disciplina obrigatória, porém na modalidade escrita. Por essa
razão, no processo de vestibular próprio para ingresso no Curso Bilíngue de
Pedagogia do Departamento de Ensino Superior (DESU) do INES, podem ser
admitidos candidatos surdos e ouvintes que obrigatoriamente apresentem “suficiente
fluência em LIBRAS” que é aferida por meio de uma avaliação nessa língua ao longo
do exame vestibular9.

O Projeto do Curso (2006), ao expor sua missão, além de fazer menção às


barreiras linguísticas que dificultam, ou mesmo impedem, a real inserção do surdo em
instituições de ensino superior (sobretudo nas públicas), assume que a proposta, de
caráter inovador, confirmará as intenções do próprio INES em continuar a participar
de esforços para que se supere esse indesejável panorama. O projeto deixa patente
que o Curso pretende formar profissionais da educação que venham a preencher uma
lacuna na rede de ensino brasileira, dando os primeiros passos no processo de torná-
la de fato possível para os sujeitos surdos. A proposta afirma que

a trajetória do Curso Bilíngüe de Pedagogia do INES estará

9
O processo do exame vestibular para o Curso Bilíngue de Pedagogia será pormenorizado no capítulo
4 desta tese.
16

significando, pois, uma efetiva participação também na luta em favor


de uma progressiva dissolução do infeliz desrespeito por uma
“igualdade ontológica”, desrespeito este que educadores críticos e
conscientes continuam insistindo em expurgar de nosso país
(MEC/INES, 2006, p. 12).

De fato, uma breve leitura do documento comprova o caráter inovador em


do Curso território nacional10, pois é o primeiro do gênero a estabelecer a LIBRAS
como uma das línguas de instrução em seu projeto pedagógico, a determinar como
disciplina obrigatória a língua portuguesa estritamente em sua modalidade escrita, a
firmar o compromisso de assegurar, na composição de seu corpo docente, a presença
de profissionais “conscientes”11 das especificidades linguísticas dos estudantes
surdos, a se comprometer com uma tentativa de mudança de paradigma na educação
de surdos em nível superior no Brasil.

1.2 De “O que será que ela quis dizer?” a “O que esse lugar tem a me dizer?”:
a motivação para a pesquisa

No início de 2009, acumulava cerca de seis anos de experiência lecionando


língua portuguesa. Havia atuado, até esse momento, apenas no Ensino Fundamental
(em turmas do 6º ao 9º ano de escolaridade, na rede pública de ensino do município
de Duque de Caxias) e no Ensino Médio (na rede estadual de ensino do Rio de
Janeiro). Depois de concluir o Curso de Mestrado em Letras, em 2008, comecei a
buscar oportunidades de poder lecionar também no Ensino Superior. Foi assim que,
atenta a editais públicos, fiz inscrição em um processo seletivo organizado pelo
Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES) no ano de 2009, cujo propósito era

10
A proposta é pioneira no âmbito da América Latina. Há registros de que no Japão é desenvolvida
experiência semelhante, no campo do ensino tecnológico. A Escola Superior de Saúde da
Universidade de Aveiro (ESSUA), em Portugal, também registra uma experiência no âmbito do
ensino superior para surdos. Já a Universidade de Gallaudet, em Washington, D.C., é uma
instituição privada de educação superior voltada para indivíduos surdos ou com dificuldades de
audição, cuja língua oficial é a Língua de Sinais Americana (ASL), usada por professores, alunos e
funcionários. Atualmente, a cada semestre Gallaudet também recebe estudantes ouvintes. Para
saber mais acessar http://www2.gallaudet.edu/ .
11
Ao longo de seu funcionamento, o Instituto contou com apenas dois concursos para contratação de
professore efetivos, em 2006 e 2014, respectivamente. Em ambos os processos seletivos não
houve obrigatoriedade de que os candidatos apresentassem certificação de proficiência em
LIBRAS. Embora não tenha requerido dos docentes tal certificação, o INES oferece a todos uma
formação por meio do Curso de LIBRAS que semestralmente tem novas turmas abertas pelo
Instituto e tem duração total de 5 semestres. No caso dos últimos concursados, os mesmos
puderam começar essa formação antes de iniciar suas atividades docentes no DESU.
17

preencher vagas para professores substitutos com vistas à atuação no Curso Superior
Bilíngue de Pedagogia ofertado pela instituição.

O Instituto buscava, nesse edital, o preenchimento de vagas em diferentes


áreas do conhecimento. Entre essas áreas, estava a de Letras. O edital, que exigia 12
dos candidatos a titulação mínima de Mestre, discriminava as disciplinas que
poderiam seriam ministradas pelo docente a ser contratado: Língua Portuguesa,
Apropriações Linguísticas, Práticas Discursivas e Especificidades Linguísticas,
Leituras e Escritas. Embora a nomenclatura não me causasse nenhum tipo de
estranhamento, não havia nenhum tipo de indicação sobre a ementa de cada uma
delas.

Até então, muito pouco havia ouvido falar sobre surdos, surdez, educação
de surdos. Não havia nenhuma pessoa surda no meu círculo familiar, no meu círculo
de amigos, nas escolas em que exercia o magistério. Durante o meu curso de
Licenciatura em Letras, concluído em 2005, a Educação Especial – umas das cadeiras
em que hoje imagino pudesse abrir algum espaço para discussão sobre a educação
de surdos – era ainda uma disciplina eletiva. Não tive, entretanto, a oportunidade de
cursá-la. Sabia que a surdez era uma “realidade”, mas em verdade, para mim, que
quando muito havia cruzado com grupos de surdos em shopping centers do Rio de
Janeiro, pensar a respeito da surdez e dos indivíduos surdos era uma completa
abstração.

Tudo começaria a mudar. Desde o dia em que me dirigi ao DESU/INES


para efetuar minha inscrição no já referido processo seletivo até o presente momento
em que escrevo estas linhas, a surdez e, sobretudo, a educação de surdos, ganhou
novos contornos em minha trajetória acadêmica e também profissional. Lembro-me
como se fosse hoje do dia em que pela primeira vez “interagi” com uma pessoa surda.
Em pouco tempo descobriria que seria minha aluna em uma das turmas que em breve
assumiria. Para quem, até então, somente havia realizado leituras sobre a Língua
Brasileira de Sinais e a Educação de Surdos, que se deram em caráter de preparação
para as etapas de seleção, considero não ter sido vergonhoso, de minha parte, não
ter entendido absolutamente nada do que a jovem sinalizava para mim.

“O que será que ela quis dizer”? Por perto não havia ninguém que pudesse

12
O edital não exigia dos candidatos certificado de proficiência em LIBRAS e previa duas etapas de
seleção: prova de títulos e entrevista.
18

“fazer a ponte” entre nós. Nesse dia, que nunca me sairá da memória, os alunos do
Curso Bilíngue de Pedagogia do Departamento de Ensino Superior (DESU) do INES
estavam realizando a (re)matrícula e eu, que dias atrás havia sido comunicada sobre
a aprovação na seleção, dirigia-me ao DESU para acertar questões relativas às
disciplinas que ministraria, assim como seus respectivos dias e horários. “E agora, o
que eu faço?”. Essa pergunta, que remeti a mim mesma de forma silenciosa nesse
dia, diante da situação da total incomunicabilidade entre mim e a jovem surda,
passaria a ser uma constante na minha prática docente neste novo universo que se
descortinava para mim.

Ao longo dos anos de 2009 e 2010 atuei como Professora de Língua


Portuguesa e Linguística no Curso Superior Bilíngue de Pedagogia oferecido pelo
INES. Responsável pelas disciplinas Língua Portuguesa I, III, IV; Práticas Discursivas/
Especificidades Linguísticas e Apropriações Linguísticas. Como as disciplinas sob
minha responsabilidade estavam concentradas na primeira metade do Curso (entre o
1º e o 4º período), sempre ministrei aulas em turmas onde havia um número
equilibrado13 de estudantes surdos e ouvintes.

Essa experiência profissional permitiu-me mergulhar em uma realidade


nunca antes explorada por mim: a da surdez, a das línguas de sinais e a das lutas
políticas travadas nesse contexto. Ao longo desse período, busquei, gradativamente,
suportes teóricos direcionados para o meu trabalho pedagógico nesse âmbito. Assim,
empenhada em aperfeiçoar o meu exercício docente nesse específico contexto
educacional, dediquei-me, inicialmente, a leituras sobre a história da educação de
surdos (BRITO, 1993), sobre a surdez como diferença (SKLIAR, 2010), sobre a Língua
Brasileira de Sinais (BRITO, 1995; QUADROS e KARNOPP, 2004), sobre práticas de
letramento com sujeitos surdos (LEBEDEFF, 2004; LACERDA e LODI, 2009) e sobre
o bilinguismo no contexto de minorias linguísticas (MAHER, 1997; CAVALCANTI,
1999).

A partir da prática docente cotidiana, do ingresso em um curso de

13
Conforme discorro no capítulo 4, a evasão, um problema que atinge a educação brasileira em todos
os seus níveis, também afeta o Curso Bilíngue de Pedagogia. Embora o quantitativo de vagas
oferecido semestralmente pelo DESU seja o mesmo para estudantes surdos e ouvintes e as turmas
se constituam, inicialmente, com esse número igualitário, há uma tendência de maior evasão entre
os surdos.
19

LIBRAS14, das leituras realizadas, do compartilhamento de experiências com outros


profissionais com os quais atuava no DESU/INES, começaram a me acompanhar
reflexões várias. Tais reflexões diziam respeito não somente à minha prática como
professora de disciplinas da área da linguagem, mas principalmente sobre a cena
educacional complexa em que se configurava o Curso Superior Bilíngue de
Pedagogia.

A experiência que pude acumular ao longo desse período, somada a muitos


questionamentos e inquietações sobre este novo universo no qual me vi inserida, fez-
me sentir a necessidade de retornar à academia. Desta vez, dentro do programa de
pós-graduação em Linguística Aplicada da Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP), pela sua excelência e pela sua tradição em acolher projetos de pesquisa
preocupados em criar inteligibilidade sobre questões relacionadas às minorias
linguísticas e a contextos considerados sociolinguisticamente complexos.

O mencionado cenário educacional, novo não apenas para mim, como para
todos os que dele participam (corpo docente, corpo discente, profissionais intérpretes,
corpo administrativo e diretivo), apresentou-se como um rico campo de pesquisa e
impulsionou a elaboração do estudo que ora apresento.

1.3 Problematização do tema

No levantamento bibliográfico que antecedeu minha entrada nesse novo


contexto educacional, uma sigla mostrou-se imperativa: LIBRAS (Língua Brasileira de
Sinais). Muitos dos trabalhos acadêmicos que lia sobre a educação de surdos no
Brasil abordavam a importância da LIBRAS para o desenvolvimento cognitivo do
indivíduo surdo, para o seu processo de aprendizagem, para sua socialização, para a
construção de sua identidade. Hoje é raro que um profissional que atue no contexto
da surdez não associe a mesma, de modo imediato, à Língua Brasileira de Sinais.
Porém, nem sempre foi assim.

14
Em virtude da pouca disponibilidade de horários de turmas e da grande concorrência, não consegui
ingressar no curso de LIBRAS oferecido pelo próprio INES, como costumeiramente fazem os
docentes que passam a integrar o corpo docente da instituição. Como a rede municipal de Duque
de Caxias (onde também atuava como docente à época) mantinha um programa voltado para a
educação de surdos nesta cidade, passei a integrar um grupo de docentes ao qual a rede municipal
de ensino de Caxias se propunha a oferecer formação específica para a educação de surdos,
incluindo-se a aprendizagem da língua de sinais.
20

Ao compreender que indivíduos surdos – não apenas no Brasil, mas


também no contexto internacional – passaram cerca de um século proibidos de fazer
uso das línguas de sinais no plano oficial15, aquela sempre referenciada nos trabalhos
que lia como a língua natural do surdo, surgiu em mim grande espanto. Tentava
imaginar-me surda, colocar-me em uma condição diferente da minha, ser “outra”.
Difícil tarefa, pois a minha realidade é a do som e, por mais que me esforçasse, não
conseguia me aproximar do que seria estar nessa outra posição.

O que também não imaginava, quando comecei a trabalhar no Curso


Bilíngue de Pedagogia, era que havia muitos alunos surdos que usavam o português
oral em suas interações e também outras línguas de sinais que não aquela
considerada convencional, a LIBRAS, não apenas referenciada como sua língua
natural, mas também, agora, finalmente regulamentada. Nesse sentido, a experiência
docente no DESU, articulada às leituras teóricas, contribuiu para o (re)conhecimento
da heterogeneidade da surdez, que é também uma heterogeneidade linguística e,
paralelamente, a problematizar determinados discursos totalizantes sobre os
indivíduos surdos.

Com o passar do tempo, fui ampliando a minha compreensão –


preliminarmente advinda da leitura do projeto do Curso e dos primeiros dias em sala
de aula – acerca do quanto não somente inovadora, mas também desafiadora, era a
proposta do Curso Superior Bilíngue em funcionamento no INES. Tal compreensão
esteve baseada sobretudo em dois pontos principais que delineio a seguir.

O primeiro ponto está relacionado à observação há muito feita por


Cavalcanti (1999, p. 7) de que o Brasil “não reconhece e não encoraja o ensino
bilíngue no contexto de minorias linguísticas”, razão pela qual, de acordo com a

15
No ano de 1880, ocorreu em Milão o II Congresso Internacional sobre a Educação de Surdos,
conhecido sob a denominação de Congresso de Milão. Nesse congresso, foram votadas
determinações que repercutem até os dias de hoje: a aprovação do uso exclusivo do método oralista
na educação de surdos e a total proibição do uso das línguas de sinais. As decisões do congresso,
considerado como uma instância de prestígio, foram acatadas em todo o mundo, principalmente na
Europa e na América Latina. Entretanto, conforme aponta Skliar (2010, p. 16), não foi essa a primeira
vez em que se decidiu por políticas e práticas engajadas em dar fim às línguas de sinais, sendo
então o referido congresso não o início “oficial” do oralismo, mas sim sua legitimação. O autor ainda
acrescenta que a legitimação do oralismo não pode ser compreendida de forma reducionista, ou
seja, apenas como um modo de transformar os surdos em falantes (tal como ouvintes): é preciso
atentar para outros pressupostos de cunho filosófico (oralidade/capacidade de abstração x
gestualidade/obscuridade no pensamento), de cunho religioso (necessidade da confissão oral) e de
cunho político (o fortalecimento do Estado italiano, a partir de uma coesão também linguística).
21

autora, são16 raros os contextos pedagógicos reconhecidamente bilíngues existentes


em nosso país. No caso particular da educação de surdos, embora desde a década
de 90 já fosse enfatizado o seu potencial para a problematização de questões relativas
ao bilinguismo tanto na literatura voltada especificamente para esse contexto como
na literatura dedicada aos cenários de educação e escolarização bilíngue de
diferentes minorias linguísticas (de que é exemplo o estudo de CAVALCANTI, 1999),
praticamente nada vinha sendo feito na esfera governamental no sentido de se
reconhecer oficialmente tal potencial.

Cabia então àqueles que se viam de fato inseridos nesse universo


específico (gestores, professores, alunos e suas famílias) e, por isso, diretamente
afetados pela falta de políticas públicas, buscar por si só novos caminhos e aportes
para começar a tentar reverter essa história de impossibilidades (SKLIAR, 2010) que
até então marcava a educação de surdos no Brasil e para construir uma escola
realmente possível para estudantes surdos.

Uma dessas tentativas começou a ser esboçada por profissionais do INES


no final da década de 90, motivada pelo momento crítico que atravessava a educação
formal de seus estudantes marcada por “minguados resultados” (FAVORITO, 2006,
p. 43). Nesse contexto de fracassos e frustações – no qual os estudantes surdos
concluíam o Ensino Médio na instituição sem que, necessariamente, os próprios
docentes os considerassem “letrados” –, é que o Instituto se engajou na reconstrução
de seu Projeto Político Pedagógico (PPP).

Aproveitando-se de um momento em que eram construídos e reforçados


laços entre os saberes acadêmicos e as práticas pedagógicas, o INES debruçava-se
sobretudo em dois propósitos: na revisão do currículo escolar tendo por base a
concepção da surdez como uma diferença política e como experiência visual e na
elaboração de uma política linguística (FAVORITO, 1999) em que a língua de sinais
fosse assumida como a primeira língua e o português como segunda língua, sendo
essa considerada meio de acesso à cultura escrita.

Em dissertação de mestrado em que empreende uma análise acerca do

16
Uso o verbo ser conjugado no tempo presente porque, embora a observação da autora
(CAVALCANTI, 1999) tenha sido realizada no findar do século XX, faz-se ainda bastante atual. Isso
porque as políticas linguísticas – incluindo-se aqui práticas de educação bilíngue – para grupos
minoritários ainda engatinham no Brasil, conforme buscarei apontar em uma das seções do próximo
capítulo.
22

processo de construção do projeto bilíngue para a educação de surdos desenvolvido


pelo CAp/INES na década de 1990, Freitas (2012, p. 90) apontou que, no
entendimento do corpo diretivo do Instituto, a assunção de uma proposta bilíngue no
PPP (em que se estabelece a entrada oficial da língua de sinais no espaço escolar)
teria como implicação uma “reconceitualização dos surdos e da surdez
secundarizando-se as questões metodológicas, anteriormente consideradas o ponto
crucial da educação desses discentes”.

A despeito de todo o suporte no campo teórico que se buscava oferecer


aos profissionais do Instituto por meio da realização de consultorias, fóruns,
seminários, oficinas e da reativação de publicações acadêmicas próprias, era sabido
que o novo projeto em consecução seria desafiador para toda a comunidade. Insurgir-
se contra o método oralista, secular na educação de surdos, e contra as práticas
clínico-terapêuticas que acabavam muitas vezes se sobrepondo às de fato educativas
se configurava como um ato de coragem.

De ampla magnitude, a implantação do projeto bilíngue no INES


preconizava de uma só vez mudanças no currículo, na prática linguística dos docentes
(almejava-se que todos os professores pudessem ministrar suas aulas em língua de
sinais) e na filosofia da escola. Todas as transformações que integravam também o
campo das políticas não eram, entretanto, unânimes no Instituto. Conforme observa
Favorito (2006) e também Freitas (2012), houve resistência por parte de diferentes
agentes escolares.

A principal barreira para a continuidade do projeto bilíngue no INES não


esteve representada, entretanto, na resistência imposta pelos profissionais que
alimentavam pontos de vista diferentes daqueles que capitaneavam a renovação. O
maior obstáculo para a persecução dos objetivos do novo PPP foi a intervenção do
MEC no processo de consulta interna realizada no INES com vistas à escolha de um
nome para a Direção Geral.

O nome vitorioso nas urnas não foi legitimado pelo MEC que indicou para
o cargo o segundo nome da lista tríplice. Com essa interdição, o recente projeto
bilíngue do Instituto foi não apenas desconfigurado, como interrompido. Nas palavras
de Favorito (2006, p. 47), todo o movimento institucional de renovação passou então
a sobreviver apenas na convicção individual de alguns e nas “pequenas brechas” que,
apesar da descontinuidade, ainda poderiam ser exploradas.
23

Acabo de empreender esse breve resgate sobre o histórico da tentativa de


construção de um projeto bilíngue no INES para reforçar o primeiro ponto sobre o qual
recai minha compreensão acerca do caráter inovador e desafiador da proposta do
Instituto de implantar um Curso Superior Bilíngue: era ainda bastante recente na
instituição a recusa da nova gestão em se engajar na implantação de um projeto
bilíngue oficial no CAp, apesar do envolvimento de muitos atores desse cenário na
elaboração do mesmo.

Enveredar pelo estabelecimento de um novo nível de ensino, o superior,


em uma instituição cuja tradição esteve secularmente voltada para a Educação
Básica, na qual a perspectiva bilíngue somente existia em “pequenas brechas”, foi,
talvez, somente o mais simples dos desafios. Buscar instituir tal curso sob uma
perspectiva oficialmente bilíngue, sem haver nenhuma outra experiência no âmbito
nacional17 em que pudesse se espelhar ou com a qual pudesse ao menos dialogar,
redimensiona esse cenário desafiador. Acrescenta-se a esses aspectos, o fato de que
a Lei de LIBRAS, em 2004 – quando o INES solicitou autorização ao MEC para dar
início ao seu Curso Bilíngue de Pedagogia –, não havia ainda sido regulamentada,
embora a língua de sinais já fosse reconhecida desde a promulgação da referida lei.

O processo de elaboração e implantação do Curso Bilíngue de Pedagogia


guarda, de certo modo, semelhança com o que vinha ocorrendo no CAp/INES no que
dizia respeito ao seu projeto bilíngue. Isso porque, ainda que esse tivesse envolvido
a comunidade em sua construção, com a mudança de ares políticos vivida no Instituto
a partir de 1999, a proposta de algum modo sobreviveu porque determinados
profissionais, ainda que em práticas individuais, abraçaram a continuidade da ideia
fomentada no projeto. Com relação ao Curso de Pedagogia, foi a proposta que nasceu
a partir de iniciativas e práticas individuais, conforme Plutão18, profissional docente do
Curso, relatou em seu depoimento19.

17
Hoje já existe, para além do Curso Bilíngue de Pedagogia do DESU/INES, outra iniciativa
semelhante, que vem sendo desenvolvida, desde o início de 2015, no IFG (Instituto Federal de
Goiás). Mais informações disponíveis em http://www.aparecida.ifg.edu.br/index.php/licenciatura-
em-pedagogia-bilingue Acesso em: 10/02/2016
18
Ao longo da tese, todos os profissionais docentes que figuram na pesquisa, como estratégia de
preservação do anonimato, receberam pseudônimos que correspondem a nomes de planetas do
sistema solar. No capítulo 4, apresento todos os nomes, sendo Plutão um deles.
19
Na entrevista que me concedeu, Plutão ratificou a falta de coletividade na construção da proposta do
Curso Bilíngue de Pedagogia do INES. Sobre o início de sua prática docente no DESU, fez o
seguinte relato:
24

O segundo ponto sobre o qual recai minha compreensão acerca do binômio


desafio e inovação do Curso Bilíngue de Pedagogia está diretamente relacionado ao
fato de que o mesmo se propõe a reunir estudantes surdos e ouvintes em uma
instituição como o INES, historicamente reconhecida como referência no âmbito da
educação, profissionalização e socialização exclusivamente de indivíduos surdos.
Embora a presença de profissionais ouvintes nos diferentes setores do INES ainda
seja substancialmente superior à de profissionais surdos, autorizar o ingresso de
ouvintes no quadro de discentes da instituição é uma significativa quebra de
paradigma em seu modus operandi.

Atualmente, a configuração do corpo discente está estruturada de modo


que estudantes surdos e ouvintes formem, em igual proporção, as turmas
ingressantes no Curso. Assim, a complexidade sociolinguística do cenário do Instituto,
já atestada no âmbito CAp/INES, parece se intensificar no DESU/INES.

Se a presença exclusiva de estudantes surdos por si só já resultaria em


uma cena complexa, posto que esses indivíduos, conforme sublinhado anteriormente,
não compõem, em nenhuma instância (incluindo-se aqui a linguística), um grupo
homogêneo (há surdos oralizados, surdos oralizados e sinalizantes, surdos somente
sinalizantes e implantados20); o ingresso de estudantes ouvintes maximiza a
heterogeneidade, sobretudo a linguística, desse lócus. Entre esses, alguns
apresentam certificado de proficiência em LIBRAS, atuando inclusive para além dos
muros do INES como profissionais intérpretes de língua de sinais; outros aprenderam
(ou estão aprendendo) LIBRAS como língua adicional nos diferentes cursos que têm
se espalhado na cidade do Rio de Janeiro e em diferentes municípios do estado e
também aqueles que desenvolveram o aprendizado da língua com familiares ou
amigos surdos (nesse último caso, principalmente por contato travado em igrejas de
orientação protestante), portanto fora de ambientes formais de ensino de LIBRAS.

Essa heterogeneidade também perpassa o quadro de docentes que vêm


atuando no Curso Bilíngue desde sua inauguração. Durante grande parte do tempo

“Tirando a parte problemática estrutural, que foi muito difícil, (...) nós percebemos que o projeto da
educação do ensino superior não foi um projeto coletivo, ele foi um projeto que algumas pessoas
encamparam, e o curso foi criado por duas pessoas que eram funcionárias do Instituto, né,
funcionárias públicas do instituto, e um professor de uma outra instituição e quase ninguém mais
colaborou com esse processo (...).” (Trecho de entrevista realizada com Plutão – Docente)
20
Na turma em que desenvolvi minha pesquisa de campo não havia (ou não tive conhecimento) a
presença de surdos portadores de implantes cocleares. Durante a realização das entrevistas,
entretanto, foi-me relatado que já se faz presente esse perfil de aluno no DESU.
25

em que o Curso está em funcionamento, esse quadro foi composto basicamente por
professores ouvintes. Dentre esses, alguns são considerados usuários experientes de
LIBRAS pela comunidade – mesmo que não necessariamente ministrem suas aulas
em língua de sinais (formam, entretanto, uma minoria) –, outros têm aprendido a
sinalizar ao longo do exercício docente no DESU e no curso oferecido pelo próprio
Instituto. Atualmente o quadro também é integrado por docentes surdos, ainda que do
ponto de vista numérico representem ainda uma minoria em atividade no
Departamento.

Soma-se a isso o fato de que o contexto desse curso, embora oficialmente


intitulado como bilíngue, poderia até mesmo ser considerado multilíngue. Não
necessariamente no sentido que a UNESCO (2003) atribuiu a esse termo21, mas a
partir da filiação a uma postura teórica que procure redimensionar o conceito de língua
para além de uma concepção reificadora. Se admitíssemos que somos multilíngues
em português (CÉSAR e CAVALCANTI, 2007, p. 62) e se contemplássemos as
diferentes configurações das línguas de sinais – entre as quais se incluem as caseiras
(GESSER, 2006; SILVA, 2008; KUMADA, 2012) que não costumam receber o status
de língua – ao lado da LIBRAS, considerada convencional, não seria demais assumir
o caráter multilíngue do cenário em questão.

É importante acrescentar também que, com a regulamentação da LIBRAS


pelo Decreto nº 5.626/2005, toda e qualquer proposta em caráter bilíngue no âmbito
da surdez, tal como a em desenvolvimento no Curso de Pedagogia do DESU, faz com
que novos atores passem a ter legitimidade e maior notabilidade no cenário das
instituições. Um novo ator, que no Curso Bilíngue em pauta assume papel
protagonista, é o profissional intérprete de LIBRAS/Língua Portuguesa.

De acordo com Silva (2012, p. 204), a atuação do intérprete, que se tornou


obrigatória em diferentes instituições concessionárias de serviço público (incluindo-se
aqui as universidades), passa a integrar aquilo que denomina de “mercado da
LIBRAS”22, em crescimento desde que a agenda do bilinguismo passou a ser

21
De acordo com a UNESCO (2003), instâncias de educação multilíngue são aquelas que usam, no
ensino, três línguas: uma materna, uma nacional ou regional e uma internacional. No capítulo 2,
discutirei a questão terminológica do bi/multilinguismo.
22
Segundo Silva (2012, p. 204), o mercado da LIBRAS tem no domínio da educação seu campo de
atuação mais profícuo: há, desde o reconhecimento dessa língua no plano legal, uma demanda
crescente por professores de língua de sinais, por profissionais intérpretes, por professores
bilíngues e, por conseguinte, de cursos de LIBRAS e de tradução/interpretação de LIBRAS/Língua
Portuguesa.
26

incorporada ao aparato legal. Conforme destacam Fernandes e Moreira (2014, p. 66),


a disseminação de tal mercado, que consideram ser não somente para a LIBRAS,
mas também para surdos sinalizantes, “instaura contradições e disputas materiais em
que múltiplos interesses e ideologias se contrapõem em busca de uma resposta para
a pergunta da educação bilíngue para surdos”.

1.4 Questões norteadoras

Antes de explicitar as questões que nortearam a produção da presente


pesquisa, considero importante ressaltar algumas premissas que contribuíram para o
seu delineamento:

a) no Curso Bilíngue de Pedagogia (LIBRAS/ Língua Portuguesa) circulam línguas


dotadas de diferentes prestígios em nossa sociedade (a LIBRAS, embora
reconhecida, permanece, diante do português, com o status de língua
minoritária);

b) o Curso Bilíngue de Pedagogia se desenvolve em uma instituição que é


referência no contexto da surdez no Brasil, o INES – berço de muitos
movimentos sociais surdos, inclusive do que culmina com a promulgação da Lei
nº 10.436/2002 (Lei de LIBRAS);

c) as propostas de educação bilíngue são complexas, conforme apontam


Fernandes e Moreira (2009, p. 234), justamente porque nelas se veem
atravessados “interesses econômicos, ideológicos e culturais contraditórios e
heterogêneos”.

Considerando os apontamentos até aqui delineados e as premissas acima


destacadas, esclareço que esta tese tem como objetivo geral buscar responder as
seguintes perguntas:
27

a) Que representações emergem sobre a identidade linguística de estudantes


surdos no cotidiano de um curso superior bilíngue (LIBRAS/Língua
Portuguesa)?
b) Que representações são construídas pelos participantes da pesquisa sobre
a condição bilíngue (LIBRAS/Língua Portuguesa) do curso e a dos seus
integrantes?

Nos caminhos a serem percorridos na construção de respostas possíveis


para essas questões, o presente estudo está inserido no escopo da Linguística
Aplicada em sua vertente INdisciplinar (MOITA LOPES, 2006), articulando conceitos
provenientes de diferentes campos do saber.

Dada a perspectiva bilíngue sobre a qual está sendo desenvolvido o Curso


que serve de cenário para a produção deste estudo, são fundamentais as discussões
travadas no campo do bi/multilinguismo, da educação bi/multilíngue e, logicamente,
da educação bilíngue para surdos no âmbito brasileiro. Em função do caráter basilar
que essas noções assumem na pesquisa, dedico um capítulo integralmente a essa
problematização.

No que tange à implantação e ao desenvolvimento do Curso de Pedagogia


do DESU/INES, já salientei nesta introdução que estão intimamente relacionados a
dois aparatos legais (a Lei de LIBRAS e o Decreto nº 5.626/2005) que fundam as
bases para a implementação de políticas linguísticas e educacionais voltadas para o
contexto da surdez. Uma vez que falar de políticas linguísticas remete também ao
campo das ideologias linguísticas – que tanto fomentam como são manifestadas em
mecanismos de política linguística (SHOHAMY, 2006) –, trago para a fundamentação
teórica ambos os conceitos.

Tendo em vista que no contexto bilíngue da surdez a LIBRAS vem sendo


compreendida como forma de dotar os indivíduos de uma identidade linguístico-
cultural e política e de conformar uma unidade social, integro ao aparato teórico da
tese os conceitos de identidade (e de identidade surda) e comunidade,
problematizando-os a partir do viés dos Estudos Culturais, da Sociologia e também
dos Estudos Surdos em Educação.

Finalmente, incorporo ao escopo teórico o conceito de representação, tal


28

como proposto por Hall (1997), uma vez que serão problematizados os significados
construídos pelos atores sobre a cena pedagógica em que interagem, incluindo-se
aqui os referentes à sua natureza bilíngue, à identidade linguística dos estudantes e,
também, às políticas linguísticas locais.

1.5 Da justificativa

Desde as décadas de 80 e 90 os movimentos sociais surdos e


pesquisadores do campo da Linguística e da Educação vinham apontando para a
necessidade de elaboração de políticas linguísticas e educacionais que primassem
pelo reconhecimento dos indivíduos surdos como integrantes de uma minoria
linguística, a partir de um modelo socioantropológico. Nesse contexto, emergiu a
proposta de educação bilíngue para surdos, compreendida em uma concepção para
além do plano estrito das línguas, enfatizando-se sua dimensão política23.

Apesar de já serem antigos os indícios da demanda por uma política


educacional bilíngue para surdos, ela somente passa a ser de algum modo traçada
nos documentos oficiais no Brasil, conforme dito anteriormente, na Lei de LIBRAS e
no Decreto nº 5.626/2005. É nesse sentido que Fernandes e Moreira (2009) afirmam
que o bilinguismo para surdos, assim como seus desdobramentos político-
pedagógicos, é ainda um fato novo no cenário educacional brasileiro.

É possível dizer que os estudos na grande área do bilinguismo na educação


de surdos no Brasil têm como divisor de águas a lei que reconhece a LIBRAS em
território nacional e o decreto que a regulamenta. Na década que antecede a vigência
desses instrumentos jurídicos, pesquisas e trabalhos acadêmicos tiveram suas lentes
voltadas, sobretudo, para três questões fundamentais que não são estanques entre
si, pelo contrário, estão intimamente relacionadas: para as representações sobre a
surdez e os surdos buscando-se deslocá-las para o campo socioantropológico, em
detrimento do campo clínico-terapêutico; para a defesa do bilinguismo
(LIBRAS/Língua Portuguesa escrita) como modelo e filosofia educacional mais
adequado e para a difusão das noções de cultura, identidade e comunidade surda.

23
Nessa dimensão, conforme aponta Skliar (1999, p. 7), o político tem duplo valor: político como
construção histórica, social e cultural; e político compreendido com as relações de poder e
conhecimento que “atravessam e delimitam a proposta e o processo educacional”.
29

Uma vez em vigor os já referidos aparatos legais, o panorama das


pesquisas que se inserem na esfera da educação bilíngue para surdos tem se
alargado principalmente em programas de pós-graduação em Educação, em
Linguística e em Linguística Aplicada, onde têm sido produzidas variadas teses e
dissertações. Além dessas investigações, uma série de estudos vêm sendo
publicizados por pesquisadores filiados a tais programas. Em possível diálogo com a
presente tese, porque se voltam à análise de determinadas políticas que visam à
implantação de propostas de educação bilíngue para surdos, há trabalhos como o de
Quadros (2006), Lacerda, Albres e Drago (2013) e Müller e Karnopp (2015).

Esses três estudos, entretanto, restringem-se a focalizar documentos de


políticas. O de Quadros (2006) empreende uma análise sobre o documento Política
de educação de surdos no Estado de Santa Catarina. A autora se volta para a
estruturação dessa política pública, destacando proposições, decisões e rumos que a
implementação está tomando. O trabalho de Lacerda, Albres e Drago (2013) analisa
a atual política para educação de alunos surdos no município de São Paulo a partir de
dois aparatos jurídicos, o decreto que cria escolas municipais de educação bilíngue
para surdos e a portaria que o regulamenta. Por último, Müller e Karnopp (2015) se
detêm na análise sobre o Regimento Escolar e a Proposta Político-Pedagógica de três
escolas de surdos situadas em uma capital 24 brasileira para discutir como está
constituída a educação bilíngue nessas escolas.

Ainda são pouco numerosos, entretanto, os trabalhos que, indo além do


plano documental, dedicaram-se à investigação etnográfica de experiências que, tal
como o Curso Bilíngue de Pedagogia do DESU/INES, buscam implementar
determinadas políticas linguísticas que, no contexto específico da surdez, apenas
recentemente passaram a ser financiadas pelo Estado. Essa não parece ser,
entretanto, uma carência específica do cenário brasileiro ou do contexto particular da
educação de surdos em nosso país, porque, conforme apontam Menken e García
(2010), poucos estudos têm dado atenção às formas como os documentos referentes
às políticas ganham corpo no contexto das instituições educacionais e das salas de
aula.

No que diz respeito a pesquisas que focalizam projetos oficialmente


bilíngues em execução, destaco o estudo de Machado (2009) que buscou realizar uma

24
As autoras não explicitam a que capital pertencem as escolas.
30

leitura da Proposta de Educação Bilíngue do Instituto Federal de Educação, Ciência e


Tecnologia de Santa Catarina (IF-SC), campus São José. O autor destaca que essa
leitura será empreendida “a partir do ponto de vista das narrativas do professor surdo”
(2009, p. 14). Para tanto, realizou entrevistas com os professores surdos integrantes
do corpo docente do IF-SC e buscou ressaltar, nas análises dessas narrativas, como
pode ser lida a forma como a diferença cultural é incorporada nas questões
curriculares da proposta bilíngue da referida instituição.

Hahn (2012), em sua dissertação de mestrado, focalizou o mesmo contexto


que Machado (2009): o Instituto Federal de Santa Catarina (campus São José). A
pesquisa esteve voltada, entretanto, à apresentação de um histórico sobre a
constituição do projeto de educação bilíngue da referida instituição. O estudo teve
como objetivo específico analisar como alunos surdos de uma turma do Curso de
Ensino Médio Bilíngue (LIBRAS/Português) e alunos ouvintes de uma turma regular25
significam a escola e como percebem o outro, diferente. Para tanto, foram realizadas
entrevistas individuais com quatro alunos surdos e quatro alunos ouvintes do campus.
Na discussão dos resultados, em que lança mão da concepção histórico-cultural sobre
língua(gem) e dos conceitos de poder disciplinar e norma, destaca que a escola é
percebida pelos alunos ouvintes como um espaço de disciplinamento e como uma
etapa obrigatória e necessária para se certificar para o mundo do trabalho. Já para os
alunos surdos, inseridos em uma proposta bilíngue, a escola representa um lugar
onde eles podem se olhar como seres humanos que partilham uma língua comum e
viva e o que os faz sentir parte de um grupo mais amplo que o instituído no seio
familiar.

Em recente tese de doutorado, Meireles (2014) buscou investigar o


“Programa de Bilinguismo”26 para estudantes surdos no município de Niterói/RJ.
Voltando seu foco para duas escolas dessa rede, o estudo teve como objetivo
específico analisar, à luz da Teoria Crítica, como o município de Niterói, pela adoção
do programa de bilinguismo, tem se estruturado em relação à demanda de educação
e inclusão dos alunos surdos, considerando os mecanismos de controle social na

25
Como fica claro ao longo da dissertação, estudantes surdos e ouvintes não dividem o espaço da sala
de aula: surdos estudam em classes voltadas especificamente para esse alunado.
26
De acordo com Meireles (2014, p. 278), o referido programa atende 145 alunos surdos, distribuídos
em 25 escolas da rede municipal de Niterói. As escolas que integram o estudo somam 107 desse total
de estudantes.
31

educação escolar, a legislação vigente, as contradições entre o que é preconizado e


o que é implementado e as políticas públicas de inclusão. Quanto aos procedimentos
metodológicos, para além da análise documental, a pesquisadora realizou
observações nas escolas, aplicou questionários a professores em turmas bilíngues e
em salas de recursos multifuncionais, como também entrevistou a coordenadora de
Educação Especial do referido município. No que tange aos resultados, a autora
ressaltou que o município de Niterói ainda não atende por completo às proposições
do MEC no que se refere à educação de surdos, embora admita que as propostas
implementadas fundamentam uma educação bilíngue que “valoriza a LIBRAS, a
identidade e a cultura surda”.

Em pesquisa realizada “de dentro” (CAVALCANTI, 2006), intitulada “O


cotidiano escolar do curso bilíngue de pedagogia do Instituto Nacional de Educação
de Surdos - INES: um olhar avaliativo, o pesquisador surdo Nembri (2011) teve por
objetivo avaliar até que ponto a LIBRAS se configura como instrumento mediador da
abordagem bilíngue proposta pelas diretrizes do referido Curso. Inserido no campo da
Avaliação, o estudo de natureza qualitativa teve como instrumento metodológico a
aplicação de questionários a professores e estudantes do Curso, antecedida por um
período de observação. Entre as considerações finais, o autor destaca que “a
abordagem bilíngue ainda não foi completa e efetivamente contemplada, em função
da não utilização plena da Língua de Sinais no cotidiano escolar”.

Aos trabalhos acima referenciados, a pesquisa ora apresentada se soma


e, em linhas gerais, se lança ao desafio, ainda que a partir de outra perspectiva
metodológica e conceitual, de voltar seu olhar para a arena complexa e contraditória
em que se configuram as práticas de educação bilíngue para surdos no Brasil. Como
focaliza uma experiência ainda incipiente no país, o ensino superior bilíngue
(LIBRAS/Língua Portuguesa), este estudo pode contribuir não apenas com possíveis
respostas para a problematização que enseja, mas também pode suscitar novas
questões que, decerto, ainda precisam ser investigadas nesse contexto.
32

1.6 Apresentação dos capítulos

A presente pesquisa compreende o total de seis capítulos, sendo o primeiro


esta introdução em que apresento a motivação para a sua produção, a problemática
em que está envolta e as questões que a norteiam.
No capítulo 2, em linhas gerais, busco problematizar o fenômeno do
bi/multilinguismo e da educação bi/multilíngue. Parto de um plano geral, discutindo
esses conceitos amparada em teóricos da virada do século XX para o XXI.
Apresentado esse panorama, retomo a discussão de Cavalcanti (1999), a fim de
destacar diferentes contextos da educação bilíngue para minorias no Brasil,
delineando algumas políticas a elas voltadas. Na última seção, minha atenção se
dirige para a questão específica do bilinguismo e da educação bilíngue para surdos
em nosso país, que é central neste estudo.

No capítulo 3, dou sequência à apresentação da arquitetura teórica da


pesquisa, apresentando noções que se somam às discutidas no capítulo 2. Aqui
problematizo os conceitos de representação, identidade (descentrada x
essencializada) e comunidade – reportando-me aos Estudos Culturais e à Sociologia
–, o de políticas linguísticas e, ainda, o de ideologia linguística.

No quarto capítulo, que está dividido em três partes, apresento o desenho


metodológico deste estudo. Na primeira seção, detenho-me na natureza da pesquisa,
explicitando a inserção da mesma no âmbito da Linguística Aplicada em sua vertente
INdisciplinar (MOITA LOPES, 2006) e no das pesquisas de caráter qualitativo. Em um
segundo momento, detalho o cenário onde foi desenvolvida, descrevendo o campo, o
Curso Bilíngue de Pedagogia do DESU/INES. Por último, relato como se deu minha
(re)aproximação com o DESU para fins da realização do trabalho de campo e exponho
os procedimentos adotados para a geração de registros (MASON, 1997;
CAVALCANTI, 2006).

O capítulo 5, dividido em quatro seções, é dedicado à análise de diferentes


registros gerados (notas, trechos de diário de campo e de entrevistas) que, à luz do
aparato teórico problematizado nos capítulos 2 e 3, tecem respostas possíveis para
as questões que guiam esta pesquisa.
33

Nas considerações finais, constantes do sexto e último capítulo, resgato


aspectos fundamentais da pesquisa e reflito sobre os principais resultados que a
análise me permitiu delinear para o estudo.
34

2. BILINGUISMO E EDUCAÇÃO BILÍNGUE: DO PLANO GERAL AO


CONTEXTO BRASILEIRO DA EDUCAÇÃO DE SURDOS

O presente capítulo está direcionado, em linhas gerais, à problematização


do fenômeno do bi/multilinguismo e da educação bi/multilíngue. Inicialmente,
apresento um breve panorama sobre esses conceitos amparada em teóricos da virada
do século XX para o XXI. Esse quadro mais geral, abre caminho para a apresentação
de diferentes contextos da educação bilíngue para minorias no Brasil, para, na
sequência, ser colocada em destaque a problemática específica da educação bilíngue
para surdos em nosso país.

2.1 Bi/multilinguismo: uma aproximação com o(s) conceito(s)

No século XIX, assistiu-se a uma intensa preocupação com a padronização


e a codificação de línguas. Essas foram construídas, em diferentes Estados europeus,
como sistemas limitados à gramática e léxico, tendo sua “pureza” de uso e expressão
monitoradas. Essas práticas de padronização e a tentativa de estabelecer limites às
línguas estiveram intimamente relacionadas à construção dos Estados-nação e da
regulação discursiva da cidadania (MARTIN-JONES, BLACKLEDGE, CREESE,
2012).
No pensamento ocidental, a concepção de Estado-nação como uma
entidade linguística e cultural homogênea vigorou ao longo do século XIX e ganhou
nova proeminência no século XX, após a Segunda Guerra Mundial, quando, em
consequência da descolonização, surgem vários Estados-nação. A transformação
dessas sociedades coloniais em Estados (pós-coloniais), reconfigurou não somente a
relação entre mercado e sociedade civil, entre atores e agentes de Estado, mas
também de práticas e ideias sobre as línguas e suas inter-relações.

Em diferentes movimentos de minorias étnicas na Europa e na América do


Norte, a língua foi tomada como peça-chave para a mobilização do grupo e para a
solidariedade entre seus membros. O que se viu, então, foram movimentos que,
buscando desafiar a ordem do monolinguismo imposta pelos Estados-nação, também
assumiram e promoveram, em menor escala, o discurso do nacionalismo linguístico
que representa as línguas como sistemas bem definidos.
35

O mito do monolinguismo, fomentado na defesa da ideologia de que uma


nação deve ter apenas um idioma compartilhado, teve na realidade do multilinguismo
uma clara barreira para sua vitalidade. Apesar dessa consistente barreira, o discurso
monolíngue vem mostrando sua persistência no debate público e político e também
em determinadas áreas de investigação linguística.

Conforme aponta Blackledge (2005), os debates em torno do


multilinguismo ganharam bastante destaque nos discursos midiático e político no
Reino Unido na primeira década do século XXI. Entretanto, em grande parte dessas
discussões, as línguas das diferentes minorias (representadas sobretudo no repertório
de imigrantes e refugiados) vêm sendo menosprezadas.

Nos Estados Unidos, por exemplo, diferentes estados vêm promovendo o


debate sobre a implementação de políticas a favor de uma educação conduzida
exclusivamente em inglês (English-only), em detrimento de programas bilíngues.
Também nesses movimentos em prol do English-only as línguas de grupos
minoritários costumam ser caracterizadas em termos depreciativos.

Apesar de diferentes discursos de orientação monolíngue ainda


apresentarem o multilinguismo como uma possível ameaça à ordem sociolinguística
em diferentes países, há muito a condição do monolinguismo vem sendo apontada na
literatura especializada como uma realidade pouco representativa do cenário
linguístico mundial.

Há mais de três décadas Grosjean (1982) já afirmava, a despeito da


vivacidade do mito do monolinguismo, que metade da população do mundo era
bilíngue. Desde então, diferentes autores (CAVALCANTI, 1999; CENOZ e JESSNER,
2000; RAJAGOPALAN, 2003; GARCÍA, 2009; BAKER, 2011; MAHER, 2013, entre
outros) já salientaram que a condição monolíngue a nível mundial nunca se configurou
como regra: muito pelo contrário, constitui-se em exceção. A norma, ou seja, o
bi/mulitilinguismo, é atestada a partir de uma análise do perfil sociolinguístico que
aponta para o fato de que o número de países sempre foi significativamente inferior
ao de línguas utilizadas27.

27
De acordo com dados da UNESCO, são mais de 6.000 as línguas faladas no mundo (MOSELEY,
2010). Oliveira (2009) pontua que em 94% dos países do mundo mais de uma língua é falada.
36

O fato de o conceito de língua ser uma construção social 28 muitas vezes


dificulta um consenso com relação ao número de idiomas existentes no mundo. Isso
não impediu, entretanto, que fossem mobilizadas ações por parte de diferentes
organismos internacionais no sentido não somente de mapear as línguas circulantes
mundialmente, como também de enfatizar a necessidade de elaboração de políticas
linguísticas que visem à preservação das que se encontram em perigo de extinção29.

No mundo contemporâneo, em que minorias linguísticas representadas por


imigrantes e refugiados, distribuídas sobretudo pela Europa, têm seus repertórios
linguísticos depreciados; em que diferentes estados norte-americanos investem em
programas de Englishy-one e produzem discursos que caracterizam as línguas dos
grupos minoritários como inferiores; em que, de modo geral, minorias são ainda
consideradas como ameaças à ordem sociolinguística dos Estados, García (2009, p.
21) defende a tese de que a “educação bilíngue é a única maneira de educar crianças
no século XXI”.

Conforme sinaliza a autora, o fato de haver mais pessoas bi/multilíngues


no mundo que monolíngues (assim como mais línguas que Estados) e de as escolas
normalmente legitimarem no ensino apenas a língua oficial denota que a maioria das
crianças no mundo são educadas em uma língua diferente daquela que é falada no
âmbito de casa, no espaço familiar. Nesse sentido, na defesa de sua tese está o
argumento de que a educação bilíngue proporciona educação equitativa e
significativa, além de ajudar a construir a tolerância para com outros grupos
linguísticos e culturais, fomentando a valorização da diversidade humana (GARCÍA,
2009).

Ainda que hoje se apresente a educação bi/multilíngue como uma possível


saída para questões relacionadas a diferentes contingentes populacionais
(imigrantes, refugiados, indígenas, comunidades de surdos, asiáticos, africanos, etc.)
e que os debates sobre o bi/multilinguismo tenham ganhado força a partir da primeira
década do século XXI na esfera pública e midiática (principalmente na Europa e nos
Estados Unidos), essa não é uma discussão nova no contexto internacional.

Conforme observa Maher (2007), a definição de bilinguismo vem há muito

28
Para Heller (2007), a língua, como um conceito social, não pode ser definida sem se levar em
consideração os falantes e o contexto que é utilizada.
29
De acordo com Moseley (2010), cerca de 43% das línguas existentes estão ameaçadas de risco de
extinção.
37

afligindo a academia e se mostra bastante controvertida. Nas diferentes leituras feitas


para esse fenômeno no século XX, destacaram-se duas: uma mais focada no aspecto
individual e considerada popular – embora corroborada por alguns estudiosos do tema
como Bloomfield (1935 [1970]) e Macnamara (1967) –, segundo a qual o indivíduo
bilíngue seria aquele que demonstra “perfeitas” competências (de fala, de
compreensão, de leitura, de escrita) em duas determinadas línguas; e outra focada no
aspecto social (e portanto mais abrangente) que não limita o bilinguismo à exibição
de comportamentos idênticos em duas línguas, admitindo que os indivíduos bilíngues
fazem uso das mesmas com diferentes propósitos, em contextos variados, com
diferentes interlocutores.

A primeira linha de entendimento se assenta em duas noções bastante


conhecidas na literatura sobre o bi/multilinguismo e que já eram criticadas no próprio
século XX por teóricos adeptos da segunda linha30. São as noções de falante nativo
e de bilinguismo equilibrado.

Conforme aponta Maher (1997, p. 72), os indivíduos bilíngues não podem


ser compreendidos em comparação com falantes nativos de uma língua simplesmente
pelo fato de que, entre esses, “encontramos uma variedade imensa de
comportamentos linguísticos, a depender da procedência, da faixa etária, do gênero,
da ocupação, do nível de escolarização etc.” É nesse sentido que a autora aponta que
tanto o “falante nativo” como sua competência não passam de abstrações.

No que tange à noção de bilinguismo equilibrado, Baker (2011) alerta para


a carga de idealização que a mesma carrega, razão pela qual a considera
problemática. García (2009) vai além, advertindo para o fato de que, embora tal
concepção ainda seja circulante (sobretudo entre educadores), encontra-se
ultrapassada. A autora observa (2009, p. 45) que o indivíduo bilíngue na atualidade é
compreendido para muito além da concepção de equilíbrio, uma vez que essa crença
equivaleria à representação de dois sujeitos monolíngues, sendo cada um fluente em
uma das línguas.

Maher (2012) faz a observação de que a construção do conceito de


bilinguismo tendo como referência o falante nativo e orientada por comportamentos
linguísticos idealizados possibilitou a emergência da ideia de semilinguismo. Ao

30
São exemplos de teóricos que tecem essa crítica, ainda no século XX, Grosjean (1982), Romaine
(1995).
38

descrever tal ideia, a autora observa (2012, p. 34) que “o indivíduo semilíngue seria
aquele que exibiria uma competência insuficiente em ambas as línguas quando
comparados aos monolíngues de cada uma delas”.

Ao tecer sua crítica a essa noção, Maher (2007) esclarece que a mesma
foi criada no seio de pesquisas que tinham por objetivo descrever o desempenho de
filhos de imigrantes trabalhadores na Suécia. Tendo em vista que essas crianças
tiveram testadas suas habilidades de leitura e escrita específicas da cultura escolar e
que “as funções sociais do letramento diferem de contexto para contexto, porque são
sempre culturalmente situadas” (2007, p. 76), a autora levanta suspeitas acerca dos
métodos que geraram tais resultados.

Maher (2007) e Baker (2011) chamam a atenção para o fato de ser muito
perigosa a noção de déficit que recai sobre os alunos que têm suas competências
avaliadas dessa forma, pois leva à leitura de que os mesmos teriam competências
atrofiadas. É importante ressaltar que além de não haver bases científicas sólidas no
conceito de semilinguismo, o mesmo costuma ser utilizado na descrição do
comportamento de indivíduos bilíngues somente no contexto de minorias, não sendo
aplicado nos diferentes contextos de bilinguismo de elite, o que demonstra que a
natureza político-ideológica do conceito se sobrepõe à natureza linguística.

Seguindo a problematização das duas noções, ressalto que, no plano


metafórico, a concepção obsoleta de bilinguismo equilibrado poderia ser entendida,
conforme ressalta García (2009), como uma bicicleta em que as rodas se movem para
uma única direção e precisam de equilíbrio para seguirem adiante. Entretanto, na
compreensão da pesquisadora, o bilinguismo é melhor representado pela imagem de
um veículo31 cujas rodas têm liberdade de se movimentar em diferentes direções,
podendo ser flexionadas ou esticadas, adaptando-se a todo e qualquer acidente de
terreno, de modo eficaz.

Em verdade, ao usar a metáfora do veículo, García (2009, p. 60) defende


a necessidade de se compreender as práticas de linguagem dos indivíduos bilíngues
a partir de um novo ângulo, que aponta para além das tradicionais discutidas até então
na literatura. Nesse novo ângulo, os modelos de bilinguismo são expandidos de modo
a incluir os que correspondem a realidades mais complexas. É nesse sentido que

31
García (2009, p. 24) cita como exemplo concreto o veículo lunar (moon buggy).
39

García (2009) descreve as práticas linguísticas dos sujeitos bilíngues não apenas pela
perspectiva do uso das línguas ou do contato linguístico, mas a partir dos próprios
falantes, adotando o termo translinguagem32 na caracterização das diferentes práticas
discursivas em que esses indivíduos se engajam a fim de dar sentido a seu mundo
bilíngue.

Assumindo tal perspectiva, autora sinaliza que a translinguagem é a norma


comunicativa em comunidades bilíngues e defende um bilinguismo cujo modelo seja
dinâmico, de modo a dar conta da complexidade linguística do século XXI. No mundo
atual, em que se reconhecem as práticas de linguagem como múltiplas, multimodais
e multilíngues, é preciso superar o ponto de vista monolíngue e o ângulo estritamente
linguístico que ajudou a sustentar a própria noção de semilinguismo problematizada
em parágrafos anteriores.

García (2009) salienta que tanto a noção de semilinguismo como a de


língua dominante, língua materna, aprendiz de segunda língua e aprendiz de língua
de herança se tornam frágeis com a adoção da perspectiva dos falantes que
translinguam. Sugere, ainda, que expressões como aprendiz de segunda língua ou de
língua de herança podem ser substituídas simplesmente por indivíduo bilíngue, o que
pode, de modo positivo, conduzir ao abandono de lentes monoglóssicas em prol de
lentes heteroglóssicas (2009, p. 56).

Indo ao encontro do pensamento de García (2009), Busch (2012) defende


que a compartimentalização tradicional entre primeira e segunda línguas pode ser
reexaminada a partir do conceito de translinguagem. Conforme aponta a autora, há
certo consenso entre estudiosos que operam com essa noção de que o foco de
interesse está se voltando para o repertório linguístico, de modo que categorias bem
definidas como as acima referidas devem ser questionadas.

No que tange à noção de repertório, Rymes (2014) observa que seu uso
tem se tornado cada vez mais comum na descrição das diferentes formas pelas quais
os indivíduos estabelecem seus modos de comunicação para além das línguas (o
repertório pode incluir também gestos, modo de vestir, postura corporal, etc.). De
acordo com Rymes (2014, p. 4), o repertório comunicativo de uma pessoa pode ser
entendido como algo similar ao acúmulo de camadas arqueológicas. Ao longo da vida,

32
Blackledge e Creese (2010) também usam o termo translanguaging que aqui traduzo como
translinguagem.
40

variadas experiências são acumuladas e a seleção a partir desse repertório é feita de


acordo com cada necessidade comunicativa.

As noções de translinguagem e de repertório linguístico estão em


consonância com a perspectiva sociolinguística de Makoni e Pennycook (2007). Esses
autores alertam para o fato de que a enumeração de línguas é uma invenção que
acaba por agir como uma medida de contenção e controle no âmbito dos estudos do
multilinguismo. Nesse sentido, preconizam “estratégias de desinvenção” (2007, p. 22)
para que as discussões sobre direitos linguísticos não reproduzam o mesmo conceito
de língua que está na base do pensamento linguístico tradicional e não tornem o
multilinguismo uma forma de pluralização do monolinguismo.

Ao empregarem o termo “desinvenção”, propõem, entre outras coisas, o


desenvolvimento de novos conceitos e ideias que amparem as disciplinas linguísticas.
Com isso, alertam que, caso a mesma não seja promovida, corre-se o risco da
construção da epistemologia do multilinguismo permanecer presa à do
monolinguismo, não havendo, assim, a quebra de paradigmas, mas sim uma
reprodução daqueles tradicionais (ainda persistentes) aos quais se pretende opor.

2.2 (Des)Embaralhando conceitos: bilinguismo, multilinguismo,


plurilinguismo, educação bilíngue e multilíngue

Apesar de diferentes autores (JAFFE, 2012; CANAGARAJAH e


LIYANAGE, 2012; GORTER e CENOZ, 2012, entre outros) apontarem que o
multilinguismo vem sendo celebrado no contexto comunicativo da modernidade tardia,
em que as fronteiras estão mais fluidas, em que diferentes línguas estão em contato
em contextos transnacionais, em comunidades de diáspora e na comunicação digital,
foi problematizado, no item anterior, que ideais monolíngues persistem com grande
força em diferentes sociedades, mesmo naquelas em que a soberania do Estado,
como os EUA por exemplo, está longe de ser ameaçada.

Da coexistência de ideologias linguísticas orientadas para o monolinguismo


ou para o bi/multilinguismo derivam também diferentes concepções acerca do que
venha a ser a educação bi/multilíngue. Por trás dessa expressão emergem diferentes
significados, sendo a mesma “uma etiqueta simples para um fenômeno complexo”
(CAZDEN e SNOW, 1990 apud GARCÍA, 2009, p. 22).
41

De início, considero relevante tratar especificamente da questão das


diferentes nomenclaturas empregadas na literatura especializada sobre o tema.
García (2009), na obra Education Bilingual in the 21st Century, esclarece que opta
pelo termo educação bilíngue no lugar de educação multilíngue como um termo
“guarda-chuva” para encobrir um amplo espectro de políticas e práticas. Nesse livro,
a autora considera que a educação bilíngue inclui tanto os casos em que duas ou mais
línguas são utilizadas na instrução como aqueles em que dois ou mais idiomas são
empregados em combinações complexas.

No que diz respeito ao uso da expressão educação multilíngue, cabe


ressaltar que a mesma foi adotada pela UNESCO, em 1999, para fazer referência ao
uso de pelo menos três línguas no ensino: uma língua materna, uma nacional ou
regional e uma internacional (UNESCO, 2003). Paralelamente à distinção que
possivelmente cabe entre os termos educação bilíngue e educação multilíngue,
Canagarajah e Liyanage (2012), Jaffe (2012) e Canagarajah (2013) consideram
relevante também diferenciar multilinguismo de plurilinguismo.

A noção de plurilinguismo vem recebendo certa atenção na literatura em


função da promoção da competência plurilíngue pela Divisão de Política Linguística
do Conselho da Europa (2000). Nos termos desse Conselho (2000), o plurilinguismo
é a capacidade intrínseca de todos os falantes de usar e aprender, por si só ou por
meio do ensino, mais de uma língua. Ainda de acordo com o documento, a capacidade
de usar várias línguas em diferentes graus e contextos e com finalidades distintas é
definida no Quadro Comum Europeu como a habilidade

de usar línguas para propósitos de comunicação e tomar parte em


interação intercultural, onde uma pessoa vista como um agente social
tem proficiência, de níveis variados, em diversas línguas e experiência
de diversas culturas (CONSELHO DA EUROPA, 2000, p. 168).

O plurilinguismo, nesse sentido, está no âmbito da competência e seu


desenvolvimento se configura como um objetivo de ensino. Essa capacidade é
concretizada em um repertório linguístico do qual o falante pode lançar mão em suas
práticas comunicativas. Nesse sentido, enquanto o multilinguismo está situado no
campo da oferta e da aprendizagem de diferentes línguas ao longo da instrução, o
plurilinguismo não se reduz ao uso de diversas línguas, mas à capacidade de o
42

indivíduo estabelecer relações entre línguas e culturas em diferentes contextos


comunicativos a partir do repertório de que dispõe.

Canagarajah e Liyanage (2012, p. 70) ressaltam que a definição de


plurilinguismo pode parecer estranha à perspectiva do multilinguismo de orientação
tradicional, que seria concebido como um somatório de dois ou mais monolinguismos,
com fronteiras claras entre as línguas, considerando-se a competência estanque em
cada uma delas. Já na competência plurilíngue o foco recai sobre o repertório e na
forma como diferentes línguas constituem uma competência integrada. Nesse sentido,
não se avalia a proficiência em cada idioma em separado e não é esperada uma
proficiência equilibrada entre as diferentes línguas, reconhecendo-se o fato de que
cada língua pode ser usada pelo falante com uma finalidade diferente e que o mesmo
pode desenvolver a competência plurilíngue tanto de modo informal (em diferentes
práticas sociais) como por meio de ensino formal (escolas ou outras instâncias).

Embora Canagarajah e Liyanage (2012) tenham focalizado a distinção


entre os termos multilinguismo e plurilinguismo, salientam, paralelamente, que, muitas
vezes, as diferenças detectadas são principalmente de ordem teórica. Segundo os
autores, as duas expressões conotam diferentes modos de perceber as relações entre
as línguas na sociedade e o repertório comunicativo de cada indivíduo. Lembram,
ainda, que os pressupostos monolíngues dominantes socialmente impediram que os
estudiosos se debruçassem sobre o plurilinguismo e atentassem para certos
preconceitos de tais pressupostos quando da descrição teórica do multilinguismo.

Desenhado esse painel conceitual, retomo García (2009) para buscar


explicitar a complexidade em que está envolta a temática da educação bilíngue.
Conforme observa a autora (2009, p. 22), a educação bilíngue não se confunde com
os tradicionais programas que se dedicam a ensinar uma segunda língua ou uma
língua estrangeira. Nesses, a língua é tratada como um conteúdo, diferente dos
programas de educação bilíngue que fazem dela uso como um meio de instrução. Isso
significa dizer que conteúdos são ministrados em mais de uma língua, incluindo-se a
chamada “primeira” e uma adicional.

Outra diferença apontada é que os programas tradicionais de ensino de


língua estrangeira ou segunda língua frequentemente têm por objetivo fazer uso
apenas da língua-alvo ao longo da instrução, enquanto programas educacionais
bilíngues incluem mais de uma língua em pelo menos alguns momentos do ensino.
43

Embora as duas abordagens sejam distintas, alguma espécie de bilinguismo é


desenvolvida em ambos os casos. (GARCÍA, 2009)

É importante pontuar que de acordo com o modelo de ensino desenvolvido,


seja ele de educação bilíngue ou de ensino de segunda língua ou estrangeira, pode
ser difícil diferenciá-los. Essa dificuldade possivelmente deriva, conforme aponta
García (2009), do fato de que no século XXI cada vez mais os programas de ensino
de língua buscam integrar língua e conteúdo, aproximando-se dos que se dedicam à
educação bilíngue; enquanto esses, por estarem cada vez mais preocupados com o
ensino explícito da língua, têm se aproximado de programas de ensino de línguas.

Além disso, embora muitos cursos de idioma tentem promover a ideia de


que apenas será utilizada a língua-lavo ao longo de toda a instrução, a presença de
algumas formas de bilinguismo é atestada por meio do material didático usado, dos
professores (que não usam a língua-alvo full time) e dos próprios aprendizes que, por
sua condição, lançam mão de todo seu repertório ao longo da aprendizagem. Por
outro lado, em certos programas de educação bilíngue, muitas vezes orientados por
uma ideologia monolíngue, o professor faz uso de somente uma língua – que pode
ser considerada como língua-alvo – desprezando a(s) outra(s).

A despeito de possíveis semelhanças que, por vezes, programas de ensino


de línguas e de educação bilíngue possam manter, a diferença fundamental entre
ambos está, conforme aponta García (2009, p. 23), no objetivo geral de cada um. No
caso da educação bilíngue, é o uso de duas ou mais línguas na educação em geral
com vistas à promoção da tolerância e da valorização da diversidade. Na busca por
uma educação ampla e equitativa, a educação bilíngue não está assentada na estrita
aprendizagem de línguas adicionais, como ocorre com os programas de ensino de
línguas que têm esse claro e restrito objetivo.

Os propósitos da educação bilíngue são mais abrangentes, na medida em


que, para além da questão das línguas, concentram-se também em ajudar os
estudantes a se tornarem cidadãos responsáveis e globais, vivendo no entremeio de
culturas, indo de encontro, assim, ao paradigma das fronteiras culturais que se veem
normalmente bem estabelecidas no ensino tradicional. Os objetivos gerais da
educação bilíngue apresentam-se, assim, fundamentais no processo educacional de
imigrantes, refugiados, povos indígenas, crianças de diferentes países asiáticos e
africanos, surdos, etc.
44

Ao desenvolver suas reflexões sobre a educação bilíngue no século XXI,


García (2009) baseia-se em uma visão plural e integral desse processo, segundo a
qual o bilinguismo não é compreendido como a simples soma separada de dois
códigos monolíngues. Essa última visão da soma de iguais é bastante redutora e entra
em choque com a noção de competência plurilíngue, na medida em que prevê para
os estudantes competências “completas” em cada uma das línguas em jogo no
processo educacional.

Indo de encontro a essa visão redutora, García (2009, p. 9) considera como


educação bilíngue qualquer instância em que as práticas comunicativas das crianças
e professores na escola normalmente incluem o uso de múltiplas práticas de
aprendizagem multilíngue que maximizam a eficácia da comunicação; e que, ao fazê-
lo, promovem e desenvolvem a tolerância para com as diferenças linguístico-culturais.

Embora a autora mostre claro alinhamento com a noção de competência


plurilíngue e que adote a concepção de translinguagem para descrever as práticas
comunicativas em que sujeitos bilíngues se engajam, não se furta de descrever e
problematizar diferentes modelos de bilinguismo, sejam esses mais tradicionais
(amparados em modelos monoglóssicos) ou mais adequados à dinâmica do século
XXI (amparados em modelos heteroglóssicos).

Muitos autores já propuseram diferentes classificações tipológicas para a


educação bilíngue. Hornberger (1991), por exemplo, aponta para a existência de três
diferentes modelos de educação bilíngue: de transição, de manutenção e de
enriquecimento. A separação entre esses tipos se dá em função de seus diferentes
objetivos linguísticos, culturais e sociais. No primeiro modelo, esses objetivos são,
respectivamente, a mudança de língua (a chamada primeira língua é subtraída), a
assimilaçao cultural e a incoporação social. No modelo de manutenção, os propósitos
são a manutenção da língua, o fortalecimento da identidade cultural e a afirmação de
direitos civis. No terceiro tipo, de enriquecimento, os objetivos são o desenvolvimento
da língua, o pluralismo cultural e a autonomia social.

García (2009), ainda que faça ressalvas quanto à enumeração de tipos de


educação bilíngue, por reconhecer nesse processo uma construção artificial e um
caráter demasiado generalista, considera que categorias podem ser úteis aos
educadores. Sendo assim, descreve diferentes modelos tendo por base duas
concepções gerais que os fundamentam: a monoglóssica e a heteroglóssica.
45

A concepção monoglóssica, preponderante ao longo de todo o século XX,


opera com a ideia de línguas compartimentadas e é útil na descrição dos modelos
subtrativo e aditivo. No modelo subtrativo, duas línguas são usadas na instrução
apenas temporariamente. Quando a meta do aprendizado da língua de maior prestígio
e poder é alcançada, a língua de menor prestígio vai sendo subtraída do espaço da
sala de aula, sendo o bilinguismo entendido como um problema. No tipo aditivo33,
ainda que se proponha a presença de duas línguas ao longo do processo educativo,
como uma forma de enriquecimento, o desenvolvimento do bilinguismo se baseia na
ideia de um aluno duplo monolíngue.

A partir de uma concepção heteroglóssica, García (2009, p. 134) propõe


dois outros modelos de educação bilíngue: o recursivo e o dinâmico. No tipo recursivo,
a autora compreende os casos em que, considerando-se a supressão de línguas de
determinadas comunidades, a educação bilíngue pode ser uma forma de revitalizar
as práticas linguísticas do grupo. Nesse modelo, é levado em consideração o
continuum bilíngue do aluno, que não é descrito como um aprendiz de segunda língua,
mas sim como um bilíngue emergente. Além disso, há uma aceitação das diferenças
linguísticas e culturais, visibilizando-se o hibridismo nas práticas linguísticas na sala
de aula. No modelo dinâmico, estão compreendidas interações linguísticas
multidirecionais e multimodais. Esse modelo, que está intimamente relacionado à
noção de competência plurilíngue (anteriormente abordada), considera o bilinguismo
para muito além de um direito: é compreendido como um importante recurso em
tempos de globalização, em que a mobilidade de pessoas, bens, serviços, capitais e
a comunicação para além das fronteiras nacionais é cada vez mais acentuada.

Os modelos recursivo e dinâmico, embora possam responder melhor às


transformações geopolíticas e tecnológicas hoje vivenciadas, coexistem com os dois
modelos anteriores, que valorizam apenas totalidades desconexas e desvalorizam as
peças soltas, insistindo na separação estrita das línguas.

Apresentadas essas noções preliminares, saliento que, no contexto no qual


a presente pesquisa foi desenvolvida, o da educação de surdos, grande parte das
discussões teóricas têm adotado as expressões bilinguismo e educação bilíngue. A
opção por esses termos, entretanto, não reflete, conforme a análise empreendida no

33
O tipo aditivo corresponde aos modelos de manutenção e enriquecimento proposto por Hornberger
(1991).
46

capítulo 5 irá problematizar, a perspectiva heteroglóssica defendida por García (2009),


Jaffe (2012), Canagarajah (2011, 2013) entre outros autores.

2.3 Contextos da Educação Bi/Multilíngue no Brasil

Em trabalho que se tornou referência no âmbito dos estudos sobre o


fenômeno do bilinguismo/multilinguismo e da escolarização de minorias linguísticas
no Brasil, Cavalcanti (1999) ressaltou o fato de que essa discussão era, por aqui, ainda
bastante recente. Ao apresentar o cenário sociolinguístico brasileiro, a pesquisadora
destacou duas possíveis razões para isso: a forte presença, em nosso país, do mito
do monolinguismo, que é eficaz na invisibilização e no apagamento das minorias; e o
fato de o bilinguismo ser um fenômeno costumeiramente atrelado somente às línguas
consideradas de prestígio.

Apesar de o Brasil apresentar diversificados contextos em que os


indivíduos fazem uso de mais de uma língua, a vivacidade do mito do monolinguismo,
em nosso país, conforme apontou Cavalcanti (1999, p. 387),

é eficaz para apagar as minorias, isto é, as nações indígenas, as


comunidades imigrantes e, por extensão, as maiorias tratadas como
minorias, ou seja, as comunidades falantes de variedades
desprestigiadas do português.

Na última década do século XX, a literatura apontava para além do


português, língua oficial do Brasil, a existência de mais de 200 outras línguas sendo
utilizadas em nosso território: ao menos 170 línguas indígenas34, cerca de 30 línguas
de imigrantes e duas línguas de sinais, a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) e a
Língua de Sinais Urubu-Kaapor, utilizada pelos Urubu-caapores, no sul do estado do
Maranhão (MAHER, 1997).

Hoje, para tentarmos esboçar um desenho sociolinguístico do Brasil,


podemos nos reportar a pesquisas desenvolvidas em programas de pós-graduação
de nossas universidades, como também a dados fornecidos por entidades civis ou por

34
Rodrigues (2005), ao tematizar a pesquisa sobre línguas indígenas no Brasil, apontou para a
existência de 181 línguas. O autor alertou, entretanto, que esse número admitiria margem de erro
para mais ou para menos, em função da distinção entre o que se poderia considerar como língua
ou dialeto.
47

órgãos oficiais do governo, como, por exemplo, o Instituto Brasileiro de Geografia e


Estatística (IBGE).

Esse Instituto, embora apresente os resultados de seu último Censo


Demográfico, realizado em 2010, como um “retrato de corpo inteiro do país” no qual
são divulgados o perfil de nossa população e dos nossos domicílios, ou seja, “como
somos, onde estamos e como vivemos”, faz um levantamento bastante tímido no que
tange à diversidade linguística do Brasil. No levantamento, somente teve a
oportunidade de responder questionamentos acerca das línguas faladas em seu
domicílio os respondentes que se declararam indígenas.

Embora seja sutil, a inovação do Censo é fruto de diferentes iniciativas


públicas que, frente a reivindicações de falantes de línguas minoritárias35, buscou
iniciar o mapeamento da diversidade linguística do Brasil. Em março de 2006, foi
realizado, na Câmara dos Deputados, o Seminário de Criação do Livro de Registro
das Línguas, promovido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN), pela Comissão de Educação e Cultura Câmara dos Deputados e pelo
Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Linguística (IPOL). Esse
seminário deu origem ao Grupo de Trabalho da Diversidade Linguística do Brasil
(GTDL), composto por representantes de diferentes órgãos estatais e civis, cuja
finalidade era

analisar a situação linguística do Brasil, estudar o quadro legal dentro


do qual a questão se insere e propor estratégias para a criação de uma
política patrimonial compatível com a diversidade linguística existente
no Brasil (GTDL, 2006-2007).

Como resultado do trabalho desenvolvido pelo GTDL – apresentado em


uma Audiência Pública realizada em 2009, em Brasília –, o presidente Luiz Inácio Lula
da Silva assinou, em 2010, o Decreto n° 7.387, que instituiu o Inventário Nacional da
Diversidade Linguística (INDL). O objetivo desse Inventário, segundo o IPHAN, é
mapear, caracterizar, diagnosticar e dar visibilidade às diferentes situações

35
Conforme aponta Altenhofen (2013, p. 94), embora a designação língua minoritária tenha surgido
como contraponto do que é majoritário e sugira certo dualismo entre uma língua “geral e comum” a
tudo que existe à sua margem, sua compreensão de língua minoritária ressalta que o status político
constitui o critério central, mais que a representatividade numérica. Acrescenta o autor que ao lado
de línguas numericamente inferiores, mas dominantes politicamente, também existem línguas com
grande número de falantes, mas com status político secundário.
48

relacionadas à pluralidade linguística brasileira, de modo a permitir que as línguas


sejam objeto de políticas patrimoniais que colaborem para sua continuidade e
valorização.

Embora tanto as pesquisas acadêmicas quanto os dados dos órgãos


governamentais e da sociedade civil apontem para o fato de que o Brasil é marcado
por uma pluralidade linguística e cultural, a ideia que povoa o imaginário coletivo é a
de que em nosso país se fala apenas uma língua, a língua portuguesa, e que aqui
vivemos em uma realidade de monolinguismo. Apesar de já existirem iniciativas no
âmbito governamental ou da sociedade civil – bastante recentes, por sinal – como por
exemplo a que nos referimos acima, ainda faltam muitos esforços, sobretudo por parte
do poder público, no sentido de avolumar as políticas que deem conta de visibilizar e
problematizar o multilinguismo do/no nosso país.

Nosso panorama linguístico, que é complexo e multifacetado, nem de longe


foi plenamente considerado quando da elaboração daquela que é tida como a mais
importante legislação educacional do país, a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional). Promulgada em 1996, a LDB, no que diz respeito à questão
linguística no processo educacional, assevera, no artigo 32, que “O ensino
fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às
comunidades indígenas a utilização de suas línguas maternas e processos próprios
de aprendizagem” (BRASIL, 1996). Além disso, acrescenta, no artigo 78, que

O Sistema de Ensino da União, com a colaboração das agências de


fomento à cultura e assistência aos índios, desenvolverá programas
integrados de ensino e pesquisa, para oferta da educação escolar
bilíngue e intercultural aos povos indígenas (...) (BRASIL, 1996).

O fragmento supracitado é o único, em toda a LDB, composta por 92


diferentes artigos e modificada mais de 25 vezes desde sua promulgação, no qual se
faz referência direta à educação bilíngue. A inclusão do artigo que trata da garantia
da educação escolar indígena na língua da comunidade, nesse instrumento legal,
orientada pela Constituição Federal de 198836, não significou, entretanto, uma efetiva
mudança quanto à percepção da complexidade do cenário linguístico brasileiro.

36
A Constituição de 1988 reconhece aos índios o direito às suas línguas, pelo menos no aparato
escolar, em dois artigos, 210 e 231.
49

A concepção predominante de homogeneidade linguística nacional, que é


socialmente naturalizada e muitas vezes presente também nas escolas, contribui para
que sejam apagadas ou invisibilizadas as inúmeras línguas utilizadas em contextos
de minorias (CAVALCANTI, 1999; CÉSAR e CAVALCANTI, 2007; OLIVEIRA, 2009;
MAHER, 2013). Cavalcanti (1999) elencou ao menos quatro tipos de contextos
bilíngues de minorias no mapa sociolinguístico do país: (a) comunidades indígenas;
(b) comunidades imigrantes; (c) contextos de fronteira e (d) comunidades de surdos.

Sem a pretensão de esgotar o tema, apresento na sequência um breve


painel sobre cada um desses três primeiros tipos de contextos descritos por
Cavalcanti (1999): (a) de fronteira, (b) indígena e (c) de imigração. O propósito maior
de retomar tal discussão é inserir a problematização da educação bilíngue para surdos
– constante da seção final deste capítulo – em um cenário mais amplo acerca dos
direitos linguísticos nos contextos de minorias no Brasil.

Direciono meu olhar principalmente para as políticas que, embora sejam


ainda incipientes, buscam reverter o quadro de invisibilidade e subalternidade
(MAHER, 2013) a que estão relegadas as línguas minoritárias em nosso país.
Enfatizo, por fim, que no jogo terminológico (minoria x maioria / minoritário x
majoritário) já evidenciado por diferentes autores,

o termo minoria nunca se refere a uma medida numérica de um grupo.


(...). Não é o quantitativo o que demarca o território do minoritário do
majoritário, é sim, um certo tipo de mecanismo de poder, aquele que
outorga tal condição: um mecanismo de poder que a nossa tradição
tentou traduzir em termos de uma relação entre dominantes e
subordinados. (SKLIAR, 2013, p. 9)

a) Bilinguismo e educação bilíngue em contexto de fronteira

Com dimensões continentais, o Brasil compartilha sua fronteira, que possui


15.719 km de extensão, com dez países da América do Sul. A Faixa de Fronteira37
brasileira corresponde a uma área de 27% do nosso território, compreendendo 588
municípios de 11 Unidades da Federação (Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso,

37
Considera-se como Faixa de Fronteira a faixa interna de 150 Km (cento e cinquenta quilômetros) de
largura, paralela à linha divisória terrestre do território nacional (BRASIL, 1979).
50

Mato Grosso do Sul, Pará, Paraná, Rio Grande do Sul, Rondônia, Roraima e Santa
Catarina) e aproximadamente dez milhões de habitantes.

Os laços entre o Brasil e alguns países com que divide linhas fronteiriças
foram estreitados sobretudo a partir de 199138, ano em que, por meio da assinatura
do Tratado de Assunção, criaram-se as bases para o Mercosul (Mercado Comum do
Sul), que está inserido em uma dinâmica crescente de integração econômica que se
observa em escala global.

No Tratado de Assunção39, foi estabelecido que o português e o espanhol


constituiriam as línguas oficiais desse Mercado Comum que seria instituído
oficialmente a partir de 1994 entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. No ano de
2006, também o guarani40 passou a ser considerado idioma oficial do bloco
econômico.

O Mercosul, conforme ressalta Dietz (2008, p.17), “emerge como uma nova
escala territorial a ser considerada tendo importante interferência nas funções de
fronteira”. Essa então incipiente configuração regional fez com que as cidades
fronteiriças adquirissem novo papel no que tange à articulação e à integração dos
países da América do Sul.

Foi então “neste contexto quase instrumental da língua como forma de


integração” (PEREIRA, 2014, p. 81) que emergiu o Projeto Escola Intercultural
Bilíngue de Fronteira (PEIBF). Esse projeto, criado no ano de 2005 por um acordo
bilateral envolvendo o Ministério da Educação do Brasil (MEC) e o da Argentina,
nasceu, segundo o documento oficial, “da necessidade de estreitar laços de
interculturalidade entre cidades vizinhas de países que fazem fronteira com o Brasil”
(PEIBF, 2008, p. 3).

O PEIBF sinaliza como principal objetivo a promoção da integração de


estudantes e professores brasileiros com os alunos e docentes dos países integrantes
do Mercosul. O projeto, que abrange não só questões linguístico-culturais, mas
também políticas e educacionais, passou a integrar a pauta do Setor Educacional do

38
Sagaz (2013) chama atenção para o fato de que desde 1950 vários países sulamericanos se
empenharam na construção de um espaço de compartilhamento econômico e cultural, que foi
determinante para a criação do Mercosul.
39
O Tratado pode ser visualizado em
http://www.desenvolvimento.gov.br/arquivos/dwnl_1270491919.pdf Acesso em: 14 de junho de
2014.
40
Em 1992, o guarani torna-se língua oficial do Paraguai, ao lado do espanhol.
51

Mercosul em 2006, configurando-se, a partir de então, como um projeto multilateral.

O referido Projeto, por meio da Portaria nº 798 de 19 de junho de 2012, foi


transformado no Programa Escolas Interculturais de Fronteira (PEIF), o que alargou o
âmbito de atuação dos trabalhos. No Brasil, as bases legais do Programa são
constituídas pela referida Portaria e também pelo Documento Marco Referencial de
Desenvolvimento Curricular41, criado e aprovado no âmbito do Mercosul.

Uma importante mudança, fruto do somatório das experiências


desenvolvidas em outras fronteiras e também do amadurecimento do PEIBF, que
passou a se denominar PEIF, foi a supressão do conceito de bilinguismo, que teve
por base a consideração de que há regiões fronteiriças em que mais de duas línguas
estão em contato permanente, como ocorre na fronteira do Brasil com o Paraguai,
país onde o guarani é língua oficial ao lado do espanhol. Embora o vocábulo
bilinguismo tenha sido retirado da sigla do Programa, a ideia da educação sendo
desenvolvida em somente duas línguas – no caso as de maior prestígio no âmbito do
Mercosul, o português e o espanhol – permanece ainda viva, conforme o próprio texto
da Portaria comprova.

No plano oficial, as Escolas Interculturais de Fronteira são todas as públicas


(municipais ou estaduais) que se situam em cidades brasileiras da faixa de fronteira
de um lado e em suas respectivas cidades-gêmeas42 de países que fazem fronteira
com o Brasil, de outro, e são instruídas por um modelo de ensino comum da zona de
fronteira, conforme constante do Programa estabelecido na Declaração Conjunta de
Brasília (firmada em 23 de novembro de 2003 ente Brasil e Argentina) e do Plano de
Ação do Setor Educativo do Mercosul (2006-2010).

O PEIF tem por base uma perspectiva da educação integral e está regido
por três diferentes princípios: a interculturalidade, “que reconhece fronteiras como loci
de diversidade e que valora positivamente as diversas culturas formadoras do

41
O documento pode ser visualizado em
http://educacaointegral.mec.gov.br/images/pdf/documento_referencial_mercosul.pdf Acesso em:
16 de junho de 2014.
42
Conforme a Portaria nº 125, de 21 de março de 2014, são cidades-gêmeas
os municípios cortados pela linha de fronteira, seja essa seca ou fluvial,
articulada ou não por obra de infraestrutura, que apresentem grande potencial
de integração econômica e cultural, podendo ou não apresentar uma
conurbação ou semi-conurbação com uma localidade do país vizinho, assim
como manifestações "condensadas" dos problemas característicos da
fronteira, que aí adquirem maior densidade, com efeitos diretos sobre o
desenvolvimento regional e a cidadania. (BRASIL, 2014)
52

Mercosul” (BRASIL, 2012), o bilinguismo, que “prevê que o ensino seja realizado em
duas línguas, o português e o espanhol, com carga horária paritária ou tendendo ao
paritário” (BRASIL, 2012) e na construção comum e coletiva do Plano Político-
Pedagógico das Escolas-Gêmeas.

Do ponto de vista teórico-metodológico, as bases legais preveem a


educação integral, organizada por meio de um currículo intercultural que busque a
integração das áreas de conhecimento e dos conteúdos curriculares e garanta o
direito à aprendizagem e ao desenvolvimento aos estudantes, com a perspectiva de
que se trabalhe com jornada diária de 7 horas.

A metodologia empregada está pautada em projetos de aprendizagem


como um possível caminho para as escolas interculturais multilíngues. Essa forma de
organização visa possibilitar que se definam os projetos a serem desenvolvidos
localmente, por grupo ou por escola, de acordo com o que se considere mais oportuno
e tendo por base as especificidades regionais.

Até o ano de 2013, o PEIF era desenvolvido em 17 unidades escolares


brasileiras e em 15 unidades distribuídas pela Argentina (sete escolas), Bolívia (uma
escola), Paraguai (uma escola), Uruguai (quatro escolas) e Venezuela (duas escolas).
Dados da Coordenação-Geral do Ensino Fundamental da Secretaria de Educação
Básica (SEB) do MEC, relativos ao ano de 2013, indicavam que o lado brasileiro
participava do Programa com 11 municípios, 7,5 mil estudantes dos anos iniciais do
ensino fundamental, 250 professores e dez universidades federais. Do total de 17
escolas brasileiras, 14 trabalham com o regime de educação integral.

Em 2014, o MEC trabalhava com o horizonte de ampliação do quantitativo


de escolas, alunos, professores, municípios e universidades integrantes do PEIF.
Nessa expansão estaria prevista a inserção de escolas de municípios brasileiros que
fazem fronteira com Colômbia, Peru, Guiana e Guiana Francesa. Com a previsão do
aumento no número de municípios brasileiros, vislumbrava-se também o crescimento
do número de cidades de países que já estavam no programa e dos quatro países
cujo o ingresso estava previsto para 2014. A expansão prevista pelo governo,
entretanto, não foi até o momento registrada.
53

b) Bilinguismo e educação bilíngue em contextos indígenas

O Censo Demográfico realizado em 2010 revelou que 896 mil pessoas se


autodeclararam como indígenas. Desse total, 572 mil residem em áreas rurais e 517
mil residem em terras indígenas oficialmente reconhecidas. Conforme dito no início
desta seção, esse último recenseamento realizado no país introduziu perguntas
específicas para as pessoas que se declararam indígenas: questionou-se a respeito
da etnia a que pertenciam e também a respeito das línguas que eram faladas em cada
domicílio.
De acordo com os dados obtidos, são 274 as línguas indígenas faladas no
Brasil por 37,4% de índios com mais de 5 anos e 305 são as etnias declaradas entre
os pesquisados. Do total de 896 mil índios, 37,4% falam uma língua indígena; 57,1%
afirma não falar uma língua indígena e 5,5% não declararam. Com relação à língua
portuguesa, 76,9% afirmaram que falam português; 17% afirmaram não falar
português e 5,6% não declararam. O levantamento também revelou que, do número
total, 6 mil índios falam mais de duas línguas (IBGE, 2012).

A drástica redução do número de línguas indígenas das estimadas 1200


que eram faladas em nosso território antes do início do processo de colonização pelos
portugueses em 1500 para as atuais 27443 citadas no Censo, assim como a redução
da população indígena de 5 milhões (RIBEIRO, 1995) para os atuais 896 mil, conforme
sabido, é resultado de um processo de colonização absolutamente violento e que não
foi terminantemente cessado com a independência do país em 1822 nem com a
instauração do regime republicano no final do século XIX.

O panorama da questão indígena no Brasil, inclusive no que diz respeito à


educação, começa a ser alterado de forma mais substancial a partir das décadas de
1970/1980, momento histórico em que se multiplicaram diferentes movimentos sociais
populares que se engajaram na luta por reconhecimento social e cultural, pelo
desvelamento de relações de dominação que se estabeleceram historicamente e pela
conquista de direitos. Aqui também está incluída a luta pelos direitos linguísticos.

Até a década de 80, as políticas que prevaleceram no cenário da educação


indígena foram marcadas pela negação da diferença cultural e pelo assimilacionismo

43
A FUNAI, conforme aponta Maher (2013), diferente dos resultados apontados pelo levantamento de
2010 do IBGE, estima que totalizam 180 as línguas indígenas no Brasil.
54

étnico. O Estatuto do Índio, aprovado no ano de 1973, foi majoritariamente dedicado


à questão das terras indígenas, bem como da sua ocupação e exploração. Apenas
dois artigos do título V foram reservados à questão da educação. O artigo 48 versa
sobre a extensão do sistema de ensino brasileiro, com as devidas adaptações, à
população indígena e o artigo 49 trata da alfabetização, que “far-se-á na língua do
grupo a que pertençam, e em português, salvaguardado o uso da primeira” (BRASIL,
1973).

Como o Estatuto do Índio concebe a educação como um processo com


vistas à “integração na comunhão nacional” (BRASIL, 1973), fica implícita a ideia de
que a alfabetização bilíngue referenciada assume um caráter estritamente
instrumental, sem corresponder à ideia de valorização das culturas dos diferentes
grupos indígenas.

No contexto da redemocratização do Brasil, esses grupos, com apoio de


suas assessorias, formularam propostas e visibilizaram iniciativas de resistência aos
modelos colonialistas e integracionistas estabelecidos até então no país, lançando
mão de estratégias em prol da retomada das autonomias internas e da conquista de
direitos coletivos. É nesse contexto de lutas dos movimentos indígenas que a nova
Constituição Federal, promulgada em 1988, dedica um capítulo inteiro aos índios e a
eles reconhece o direito à diferença, incluindo-se aqui a garantia do uso de suas
línguas maternas e seus processos próprios de aprendizagem.

Do ponto de vista legal, foi a Constituição de 1988 que provocou profundas


transformações nos rumos das políticas indigenistas, abrangendo-se também a
educação escolar dos índios. A Lei de Diretrizes e Bases de 1996, acatando os
pressupostos presentes nessa nova Constituição, determina que os Sistemas de
Ensino da União desenvolvam sistemas integrados de ensino e pesquisa que estejam
aptos para a oferta da educação bilíngue e intercultural aos grupos indígenas. O texto
das Diretrizes respalda, ainda, a criação de um sistema escolar direcionado para os
grupos indígenas. A tal sistema é garantido um modo de estruturação específico, que
proporcione aos índios a “recuperação de suas memórias históricas; a reafirmação de
suas identidades étnicas; a valorização de suas línguas e ciências” (BRASIL, 1996).

Um importante desdobramento da LDB de 1996 foi a elaboração do Plano


Nacional de Educação (PNE), cuja proposta foi encaminhada pelo Ministério da
Educação ao Congresso Nacional em 1998. O PNE dedicou todo um capítulo à
55

Educação Indígena e foi finalmente estabelecido em 2001, por meio da Lei nº 10.172,
de 09 de janeiro.

A partir da grande conquista no âmbito constitucional, que teve claro


impacto no mais importante documento da educação nacional e, posteriormente, no
PNE, outras normas e documentos específicos para os grupos indígenas foram
criados e aprovados no intuito de efetivar os direitos expressos no texto oficial da
Constituição de 88, inclusive o direito a uma educação intercultural bilíngue: o Decreto
nº 26 de 1991 (transfere a responsabilidade pela educação escolar indígena para as
secretarias municipais e estaduais, sob a coordenação do MEC); a Portaria
Interministerial 559 de 1991 (regulamenta o Decreto nº 26/1991 e cria a Coordenação
Nacional de Educação Indígena); as Diretrizes para a Política Nacional de Educação
Escolar Indígena (discute conceitos importantes como diferença, interculturalidade,
língua materna, bilinguismo; o Parecer 14/1999 e a Resolução 09/1999 (define
diretrizes para a política de educação escolar indígena e estabelece as atribuições
dos diferentes órgãos envolvidos na oferta de educação escolar indígena); o
Referencial para a Formação de Professores Indígenas (de 2002).

A luta em prol da integração das escolas indígenas no sistema oficial de


ensino em nosso país, conforme esse breve histórico demonstra, é ainda bastante
recente e se encontra em processo de construção que enfrenta dificuldades para a
implementação das garantias conquistadas no plano oficial.

Em que pese as normas e documentos acima referidos, o panorama geral


da educação indígena aponta para o fato de que ainda há muito a ser feito no sentido
de universalizar essa oferta educacional a todos os povos indígenas do Brasil. Essa
oferta, além de não ser ainda universal, está permeada por experiências com caráter
fragmentário e descontínuo. Se, por um lado, a transferência da responsabilidade pela
educação indígena da FUNAI para o MEC parecia uma maneira de unificar o
gerenciamento desse processo, por outro, agora a execução do mesmo cabe aos
estados (ou até mesmo aos municípios), não havendo, por conseguinte, uniformidade
nas ações de forma a assegurar a especificidade das escolas indígenas.

Atualmente, cabe à Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização,


Diversidade e Inclusão (SECADI), do Ministério da Educação, a garantia da oferta da
educação escolar indígena bilíngue e intercultural. Apesar de diferentes metas referentes
à educação escolar indígena figurarem no último PNE (Plano Nacional de Educação), que
56

compreende o período de 2014-2024, não parece haver ainda uma clara distribuição de
responsabilidades entre as esferas federal, estadual e municipal, o que dificulta a
implementação de uma política nacional que garanta a execução de modelos interculturais
bilíngues que contemplem a territorialidade das diferentes etnias.

c) Bilinguismo e educação bilíngue em contexto de imigração

No Brasil, onde a população indígena à época do “descobrimento” somava


cerca de 5 milhões de pessoas, adentraram cerca de 6 milhões de negros (RIBEIRO,
1995) trazidos forçosamente da África para trabalharem em regime de escravidão nas
terras que eram cedidas aos colonos portugueses. Aos índios, aos colonizadores e
aos negros escravizados, somou-se um contingente imigratório de aproximadamente
5 milhões de europeus. Os portugueses lideraram numericamente tal contingente,
com cerca de 1,7 milhão de imigrantes, seguidos pelos italianos (1,6 milhão), pelos
espanhóis (700 mil), pelos alemães (mais de 250 mil), pelos japoneses (30 mil), entre
outras nacionalidades em números de menor expressão.

O fluxo migratório para o Brasil intensificou-se depois de aqui ter sido


estabelecido o fim da escravidão: milhares de imigrantes passaram a trabalhar na
lavoura, o que antes era feito pelos negros escravizados. Houve, por parte do governo,
uma política de incentivo à migração alimentada principalmente pela tentativa de
garantir a ocupação do território brasileiro – sobretudo da região Sul, que passava por
conflitos constantes na fronteira. Esse incentivo também passava pela busca do
incremento das atividades artesanais e manufatureiras e do desenvolvimento das
pequenas propriedades rurais.

Embora houvesse por parte do governo, antes mesmo da Proclamação da


República, uma orientação de evitar a formação de extensos núcleos coloniais
“homogêneos”, ou seja, formados por imigrantes pertencentes a uma única
nacionalidade, por parte dos imigrantes observou-se justamente o oposto: a tendência
era constituir núcleos homogêneos, o que logicamente favorecia a organização
religiosa, social e escolar dos grupos que aqui se estabeleciam.

Uma vez estabelecidos no território brasileiro, os imigrantes passaram a


pressionar o Estado no sentido de a eles serem oferecidas escolas públicas. No final
do século XIX, quando o fluxo imigratório para o Brasil era intenso e o país (uma
57

recente república) contava com um sistema educacional altamente deficiente, a


população analfabeta somava mais de 80%. Diante desse cenário político-
educacional, o governo incentivou a população imigrante a abrir escolas étnicas.

Curiosamente, no âmbito das Américas, o Brasil foi o país em que se


desenvolveu o maior número de escolas étnicas, embora tenha recebido um fluxo
migratório inferior ao da América Anglo-Saxônica e até mesmo ao da Argentina44.
Aqui, o maior quantitativo de escolas étnicas está relacionado aos núcleos de
imigrantes alemães e italianos que, na década de 30, contavam, respectivamente,
com 1579 e 167 escolas (KREUTZ, 2001).

Se em um primeiro momento o funcionamento das escolas étnicas contou


com o incentivo do governo, já no período da Primeira Guerra Mundial a posição do
Estado começou a mudar. Com uma preocupação de nacionalização, o governo
começou a abrir escolas públicas em locais próximos de onde já havia escolas étnicas,
mas não impediu que essas continuassem a funcionar. No final da década de 20,
essas escolas voltadas aos imigrantes sofreram restrições e, oficialmente, foram
fechadas ou transformadas em escolas públicas em 1938/1939.

A política de nacionalização do ensino implementada no Estado Novo por


Getúlio Vargas não somente foi responsável por encerrar as atividades das escolas
étnicas, como também por tentar coibir o emprego das línguas dos grupos imigrantes,
sobretudo o alemão e o italiano. Por meio de diferentes decretos, o governo impôs
que todo o material a ser usado nas escolas fosse redigido em português, que todos
os diretores e professores de escolas fossem brasileiros natos, que nenhuma revista
ou jornal circulasse no meio rural em outra língua que não o português, que não fosse
ensinado aos jovens com menos de 14 anos nenhuma língua estrangeira.

Os esforços homogeneizantes da campanha de nacionalização do ensino


e as diversas práticas socialmente institucionalizadas que até hoje negam ou
invisibilizam a diversidade sociocultural do país não foram suficientes, felizmente, para
fazer desaparecer por completo as línguas de imigração no país. Conforme aponta
Fritzen (2007), ainda existem, atualmente, alguns grupos de imigrantes, sobretudo no
sul do país, que conseguiram preservar sua língua de herança. Línguas como o

44
A América Anglo-Saxônica recebeu cerca de 68% do total de europeus que migraram para a América,
enquanto a América do Sul recebeu 24% desses imigrantes. O Brasil, depois da Argentina, foi o
país que recebeu o maior número de imigrantes europeus que chegaram à América do Sul.
(CARNEIRO, 1950 apud KREUTZ, 2001).
58

alemão, o italiano e o polonês ainda são ensinadas pelas famílias e usadas no


ambiente familiar e até mesmo em escolas, que embora oficialmente não sejam
intituladas bilíngues, vivem uma realidade bi/multilíngue.

Mais recentemente, Maher (2013, p. 128) também sinalizou que


determinados municípios brasileiros conseguiram cooficializar as línguas 45 de
comunidades imigrantes que neles vivem. Em diferentes casos, por meio de leis
municipais, tornou-se obrigatório o ensino desses idiomas nos primeiros anos de
escolaridade.

Conforme apontou Altenhofen (2004), as questões relacionadas às línguas


de imigrantes possivelmente são as que mais se encontram em aberto no contexto do
multilinguismo no Brasil. O bilinguismo no contexto dos imigrantes não é amparado
em nenhuma legislação de caráter geral, tampouco em uma legislação específica no
campo educacional. Pode-se dizer que a atual LDB tangencia a questão das línguas
de imigrantes no artigo 26 (Título V), que trata da inserção obrigatória de uma língua
estrangeira moderna no currículo das escolas, a partir do atual sexto ano (antiga
quinta série). A escolha de tal idioma fica, de acordo com o texto legal, a cargo da
comunidade, o que abre a possibilidade para que se incluam as línguas de herança
no currículo. Entretanto, a possibilidade do estudo dessas línguas se dá apenas a
partir do componente curricular língua estrangeira que ainda é uma disciplina bastante
desprestigiada no contexto da educação pública brasileira.

Enquanto outrora, conforme apontou Altenhofen (2004, p. 83) “a política


linguística para essas populações de imigrantes alternou entre momentos de
indiferença e de imposição severa de medidas prescritivas e proscritivas”, hoje se
pode dizer, de acordo com Maher (2013), que é preponderante a omissão do Estado
brasileiro: vivemos então, um novo momento de indiferença em que, a despeito do
novo fluxo imigratório que se viu em nosso país na última década do século XX, a
questão da defesa dos direitos linguísticos e da necessidade de uma educação
linguística adequada à situação de bi/multilinguismo é negligenciada.

45
Entre essas línguas estão o pomerano, o talian, o alemão e o hunsrukisch.
59

2.4 Educação bilíngue para surdos no Brasil: da década de 90 aos dias atuais

2.4.1 Antecedentes da Lei nº 10.436/2002 (Lei de LIBRAS)

No recenseamento da população brasileira, promovido em 2010 pelo IBGE,


não foi incluída uma pergunta específica sobre as diferentes línguas utilizadas nas
residências. Somente no caso dos indígenas, como apontado na anterior seção, foi
aberta a possiblidade de se contemplar a diversidade linguística presente nos lares.
No caso dos indivíduos surdos, assim como no caso de outras minorias linguísticas
do país, não houve espaço para questionamentos a respeito da(s) língua(s) que
utilizavam.

Os indivíduos surdos, a surdez e as questões afetas a ela, no último


levantamento do IBGE (2010), foram alvo de perguntas que visavam unicamente a
identificação do grau de dificuldade da audição. Assim, os dados obtidos a partir das
entrevistas situam os entrevistados no campo das “pessoas com deficiência”, o que
certamente não responde aos anseios das comunidades surdas que fazem uso das
línguas de sinais.

Nas entrevistas, foram estipulados três graus de dificuldade com relação à


audição: tem alguma dificuldade em realizar; tem grande dificuldade e não consegue
realizar de modo algum (CARTILHA DO CENSO 2010, 2012). Os resultados obtidos
a partir dessa pergunta apontam que 9,7 milhões são deficientes auditivos ou surdos.
Esses números, quando somados, equivalem a 5,1% do total da população brasileira
(estimado em cerca de 190 milhões em 2010).

Uma leitura mais pormenorizada dos números do recenseamento realizado


em 2010 mostra que 776.884 mil pessoas categorizadas como surdas ou deficientes
auditivas se encontravam na faixa etária compatível com a de quem deveria frequentar
a Educação Básica (0-17 anos). Já no Censo Escolar realizado pelo Instituto Nacional
de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira, verificou-se que o número total de surdos ou
deficientes auditivos matriculados nas escolas da Educação Básica somava 74.54746,
o que representa apenas 9,5% do número total de indivíduos incluídos nessa

46
Os dados indicam que grande parte das matrículas está concentrada no ensino fundamental (51.330),
seguida pelas da EJA (9.611), do ensino médio (8.751), da educação infantil (4.485) e, por último,
da educação profissional (370). (INEP, 2012)
60

categoria e nessa faixa etária. No que diz respeito à Educação Superior, de acordo
com o Censo voltado a esse nível de ensino, há um total de 5.660 estudantes
matriculados. Dentre esses, 1.582 são considerados surdos, 4.078 são deficientes
auditivos e 148 são surdocegos (INEP, 2011).

Os números oficiais relativos à surdez, que sempre estiveram longe de


serem insignificantes, não foram suficientes para inverter a completa invisibilidade em
que se encontravam, até a última década do século XX, as pessoas surdas e as
línguas de sinais e, por conseguinte, as políticas linguísticas e educacionais a elas
voltadas. Não fossem os movimentos surdos47 insurgentes na década de 90,
fortalecidos ao lado de inúmeros outros movimentos sociais que multiplicaram nas
décadas de 80/90, possivelmente o quadro da completa invisibilidade permaneceria
por muito inalterado.

Uma das principais ações nas quais os movimentos surdos se engajaram


foi a luta em prol do reconhecimento da legitimidade da Língua Brasileira de Sinais
(LIBRAS) como meio oficial de comunicação. Essa luta, que começou a ser
notabilizada apenas na última década do século XX, tem seus antecedentes na
divulgação dos estudos48 promovidos pelo linguista americano William Stokoe nos
anos 60, que buscaram comprovar que as línguas de sinais possuíam uma estrutura
que se enquadrava nos mesmos parâmetros preconizados pela ciência linguística
para as línguas orais.

O trabalho de Stokoe – embora tenha sido inicialmente contestado por


acadêmicos norte-americanos, que temiam que a língua de sinais constituísse uma
barreira para o aprendizado da língua oral – ao trazer para o âmbito da Linguística
uma língua “virtualmente desconhecida, a língua de sinais dos surdos americanos”
(STOKOE, 2005, p. 3), abriu caminho para estudos relativos a outras línguas de sinais
nas décadas de 80 e 90, quando passou a ser reconhecido e divulgado.

No Brasil, os estudos acerca das línguas de sinais tiveram início na década


de 80. Lucinda Ferreira Brito, em 1984, dá a conhecer sua pesquisa relacionada a

47
Movimentos surdos constituem-se de diferentes organizações das comunidades surdas que buscam
o desenvolvimento e o acompanhamento de ações político-sociais destinadas aos indivíduos
surdos.
48
Sign Language Structure é o primeiro texto de William Stokoe sobre o sistema de comunicação via
sinais utilizado por indivíduos surdos. Inicialmente publicado em 1960, o trabalho veio a público
novamente em 2005, em versão desenvolvida por ocasião da comemoração dos 50 anos de suas
primeiras publicações.
61

duas línguas de sinais aqui correntes: a língua de sinais dos índios Urubu-Kaapor,
cuja tribo fica situada no sul do Maranhão, e a Língua de Sinais dos Centros Urbanos
Brasileiros (LSCB), hoje intitulada LIBRAS49. Posteriormente, dedicou-se ao estudo
sistemático da Língua Brasileira de Sinais, para a qual propôs uma gramática (BRITO,
1995). Ainda na década de 90, surgiram trabalhos relevantes de outras pesquisadoras
que incidiram sobre a descrição de determinados aspectos da LIBRAS e/ou de sua
aquisição: Felipe (1998), Karnopp (1994, 1999), Quadros (1997, 1999).

Paralelamente aos estudos sobre as línguas de sinais, ganhavam corpo os


debates sobre o bilinguismo e a questão bilíngue no contexto da surdez. Diferentes
eventos50 foram realizados com o objetivo de ampliar as discussões que antes
transitavam somente em restritos círculos do meio acadêmico e diversas pesquisas
relativas à educação bilíngue para surdos foram publicizadas: Fernandes (1999);
Freire (1998, 1999); Góes (1996, 1999); Lacerda (1998); Quadros (1997); Souza
(1996); Skliar (1997b, 1998), entre outros.

Começava a ser propagada entre pesquisadores e profissionais da


Linguística, da Psicologia e outras áreas afins, a ideia de que as línguas de sinais
eram de capital importância para a estruturação do pensamento da criança surda e
de que a língua portuguesa, embora devesse ter seu aprendizado garantido por parte
dos indivíduos surdos, como um direito fundamental para sua inserção social,
necessitaria ser efetivado de modo diferenciado (como uma segunda língua) e
somente depois de ser assegurado o aprendizado da língua de sinais.

Pouco antes do início da circulação de novos saberes acadêmicos sobre


as línguas de sinais e sobre a educação bilíngue para surdos, os movimentos sociais
surdos ganhavam novos contornos a partir da fundação, em 1987, da Federação
Nacional de Educação e Integração dos Surdos (FENEIS 51) – considerada até hoje

49
Em um de seus trabalhos, a pesquisadora Lucinda Brito (1995, p. 7) explica que a sigla LSCB foi
alterada para a sigla LIBRAS depois de uma reunião realizada em outubro de 1993 na FENEIS, em
que foi feita uma votação para eleger o nome “oficial” da língua de sinais em nosso país: LSCB ou
LIBRAS, tendo vencido esta última.
50
São exemplos o II Congresso Latino Americano de Bilingüismo (Língua de Sinais / Língua Oral) para
Surdos (setembro de 1993), coordenado por Lucinda Ferreira Brito; o Seminário Desafios e
Possibilidades na Educação Bilíngue Para Surdos (julho de 1997) e o seminário Surdez, Cidadania
e Educação (outubro de 1997), ambos promovidos pelo INES; o V Congresso Latino Americano de
Educação Bilíngüe para Surdos (abril de 1999), organizado pelo Núcleo de Pesquisa em Políticas
Educacionais para Surdos (NUPPES), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em
parceria com a FENEIS/RS.
51
Nos termos da própria federação, a FENEIS ”é uma entidade filantrópica, sem fins lucrativos, com
finalidade sociocultural, assistencialista e educacional que tem por objetivo a defesa e a luta dos
62

como a instituição de maior representatividade dos indivíduos surdos no Brasil. A nova


Federação surgiu no espaço do INES, em uma reunião de diferentes associações
ligadas à surdez, como resultado do encerramento das atividades da Federação
Nacional de Educação e Integração dos Deficientes Auditivos (FENEIDA), fundada
em 1977.

A emergência da FENEIS inaugurou uma “descontinuidade fundamental”


(SILVA, 2012), ao trazer para sua sigla o termo surdo, em substituição ao termo
deficiente auditivo, presente na sigla da associação que lhe deu origem. A troca do
termo tornou explícito um processo político que se intensificou desde então: o da
tentativa de deslocamento da representação da surdez sob a ótica clínico-terapêutica
(que concebe o indivíduo surdo a partir de um déficit, de uma deficiência) para a
representação da surdez em uma concepção socioantropológica (que compreende a
pessoa surda sob o prisma da diferença).

No Brasil, “um novo espaço acadêmico” e “uma nova territorialidade


educacional” (SKLIAR, 2010) que buscou focalizar e compreender a surdez a partir
da diferença foi engendrada sob a liderança de Carlos Skliar: são os chamados
Estudos Surdos em Educação que, segundo o autor, configuram-se como um
programa de pesquisa no campo da educação, no qual identidades, línguas, projetos
educacionais, a história, a arte, as comunidades e as culturas surdas são entendidos
a partir de seu reconhecimento político (SKLIAR, 2010).

Esse campo acadêmico, que veio à tona na década de 90, não só propõe
uma ruptura da discussão hegemônica da surdez no contexto da deficiência, das
patologias da linguagem, dos saberes clínico-terapêuticos, do campo da educação
especial, como também lança as primeiras bases com vistas a um planejamento de
políticas educacionais paras surdos baseadas em modelos bilíngues. Nas palavras de
Fernandes (2014, p.12), os Estudos Surdos

buscam dar visibilidade à diferença linguística, simbolizada pelo uso


de uma língua visual sinalizada, na qual a visão socioantropológica da
comunidade surda como minoria linguística é debatida em termos do
contestatório cenário de disputa política envolvendo a relação social
de bilinguismo de línguas minoritárias.

direitos da Comunidade Surda Brasileira. É filiada à Federação Mundial dos Surdos e suas
atividades foram reconhecidas como de utilidade pública federal, estadual e municipal”. Disponível
em www.feneis.org.br/page/feneis.asp Acesso em: 10 de fevereiro de 2013.
63

A criação desse espaço discursivo também favoreceu a aproximação entre


pesquisadores, ativistas surdos (e seus familiares) e profissionais da área (sobretudo
professores e intérpretes) e fortaleceu o movimento social na luta em prol do
reconhecimento oficial da LIBRAS que, em termos legislativos rigorosos, teve início
em 13 de junho de 1996, a partir do Projeto de Lei nº 131 da então Senadora pelo
Partido dos Trabalhadores (PT-RJ) Benedita da Silva.

Esse projeto, fruto das demandas do movimento social que, em grande


medida, foi protagonizado pela FENEIS, foi aprovado em 2002 52 pela Lei Federal nº
10.436, mais conhecida como Lei de LIBRAS. Esse dispositivo legal, nas palavras de
Silva (2012, p. 27), “representou o coroamento de um de um processo complexo que
envolveu diversos saberes e agentes” que buscou configurar a surdez em termos de
particularidade linguístico-cultural.

O reconhecimento da LIBRAS se configura, sem dúvidas, como o primeiro


marco de uma possível política linguística oficial para os surdos usuários de LIBRAS,
cujas primeiras repercussões serão apresentadas na próxima subseção.

2.4.2 Política linguística para surdos sinalizantes: o contexto pós-Lei de


LIBRAS

Conforme abordei no item anterior, a década de 90 foi bastante profícua no


que tange aos debates sobre a educação bilíngue para surdos: despontaram várias
publicações, seminários e congressos. Um dos eventos de maior destaque foi o V
Congresso Latino-Americano de Educação Bilíngue para Surdos, realizado em abril
de 1999, na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).

Semanas antes desse congresso ocorrer, como forma de preparar sua


participação, lideranças dos movimentos sociais surdos organizaram e promoveram
Grupos de Trabalho (GTs) nos quais se debruçaram sobre a discussão de diferentes
temáticas que se mostravam imperiosas para os membros das comunidades surdas:

52
O processo de reconhecimento legal da LIBRAS, aparentemente linear, foi, em verdade, bastante
complexo. Enquanto na instância federal os trâmites para a legalização jurídica perduraram entre
1996 a 2002, paralelamente, nos âmbitos municipal e estadual, outras legislações deram conta
desse reconhecimento. Foi o que ocorreu, por exemplo, em São Paulo, em que as Leis nº 10.958
de 27/11/2001 e nº 13.304, de 21/01/2002, respectivamente promulgadas no estado e na capital,
reconheceram a LIBRAS nesses âmbitos. Da mesma forma, outros estados e municípios,
principalmente das regiões Sul e Sudeste também reconheceram a legitimidade da língua de sinais.
(SILVA, 2012)
64

identidade(s), cultura(s) e educação de surdos e, de modo mais abrangente, seus


anseios no que tangia ao respeito pelos direitos humanos.

Os GTs culminaram na realização de um “pré-congresso” na UFRGS, nos


dois dias anteriores à abertura oficial do V Congresso. Nessa oportunidade, em que
se reuniram cerca de 300 surdos53 (entre brasileiros, latino-americanos, norte-
americanos e europeus), foram compartilhadas as discussões anteriormente travadas
e foi produzido um documento emblemático denominado A Educação que nós, surdos,
queremos (1999), uma espécie de manifesto coletivo organizado em três grandes
eixos temáticos: Políticas e Práticas Educacionais para Surdos; Comunidades,
Culturas e Identidades Surdas e Profissionais Surdos.

Durante a realização do referido Congresso, conforme apontam Thoma e


Klein (2010), cerca de 1500 pessoas (incluindo as 300 que estiveram reunidas no pré-
congresso) participaram de uma passeata por importantes ruas da cidade de Porto
Alegre/RS e nomearam uma comissão que ficou responsável por remeter o
documento elaborado a autoridades governamentais. O ato foi encerrado em frente
ao Palácio do Governo Estadual, onde a comissão pode entregar o manifesto ao então
governador do Rio Grande do Sul e à sua Secretária de Educação.

Depois de findo o congresso, o documento foi divulgado amplamente por


membros das comunidades surdas que também o encaminharam a representantes
governamentais de outros municípios e estados brasileiros. Tornou-se, assim, uma
referência para a elaboração do Decreto nº 5.626/2005, que regulamenta a Lei de
LIBRAS e, de forma mais ampla, para o debate acerca de políticas educacionais para
surdos em nosso país.

Se a década de 90 foi fundamental no que diz respeito à visibilização dos


movimentos sociais surdos, às discussões sobre bilinguismo na educação de surdos
e sobre um novo campo acadêmico (Estudos Surdos em Educação) que, pela primeira
vez, buscou deslocar as representações hegemônicas da surdez do âmbito clínico-
terapêutico para o viés da diferença, a primeira década do século XXI foi essencial

53
A participação de ouvintes (familiares e profissionais) foi limitada à observação. Apenas os intérpretes
de línguas de sinais, que trabalharam também como relatores, tiveram uma participação efetiva neste
encontro. O que se pretendeu, com essa limitação à participação de ouvintes, foi a garantia da
autonomia do debate sob a perspectiva dos indivíduos surdos (THOMA e KLEIN, 2010).
65

para o reconhecimento político dos direitos linguístico-educacionais dos indivíduos


surdos no Brasil.

Nesse contexto, merecem destaque a já referida Lei de LIBRAS e seu


decreto regulamentador. Enquanto o primeiro dispositivo se refere à legitimidade da
LIBRAS nos espaços públicos e à obrigatoriedade de seu ensino nos cursos de
formação de Educação Especial, Fonoaudiologia e Magistério (tanto no nível médio
como no superior), o segundo versa sobre a garantia de acesso à educação por
pessoas surdas; sobre as formas possíveis de se garantir esse acesso; sobre a
formação de profissionais (professores, instrutores e intérpretes de LIBRAS/Língua
Portuguesa) para atuação na educação de surdos; sobre a inclusão da LIBRAS
enquanto disciplina curricular nos cursos já previstos na Lei nº 10.436/2002 (sendo
explicitada a obrigatoriedade dessa inclusão em todos os cursos de licenciatura, nas
diferentes áreas do conhecimento) e acerca de outras questões relativas à
acessibilidade para surdos.

Na terminologia do campo das políticas linguísticas, esses dois


instrumentos jurídicos são considerados como intervenções no planejamento do
status da LIBRAS. Conforme esclarece Calvet (2007, p. 29), enquanto o planejamento
de corpus está voltado para intervenções no aspecto formal de uma determinada
língua (como padronizações ortográficas, legitimação de vocábulos, criação de
alfabeto, etc.), o planejamento de status remete a intervenções nas funções da língua,
no seu status social e nas relações com outras línguas (são exemplos o
reconhecimento oficial, a inclusão obrigatória no sistema de ensino, etc.).

O Decreto nº 5.626/2005, ao regulamentar a Lei nº 10.436/2002, aponta


uma série de intervenções que têm o propósito de promover a LIBRAS, ainda hoje
desconhecida por muitos, e estabelece as bases para a implementação da educação
bilíngue para surdos. De acordo com o Decreto,

Art. 22. As instituições federais de ensino responsáveis pela educação


básica devem garantir a inclusão de alunos surdos ou com deficiência
auditiva, por meio da organização de:
I - escolas e classes de educação bilíngüe, abertas a alunos surdos e
ouvintes, com professores bilíngües, na educação infantil e nos anos
iniciais do ensino fundamental;
66

II - escolas bilíngües ou escolas comuns da rede regular de ensino,


abertas a alunos surdos e ouvintes, para os anos finais do ensino
fundamental, ensino médio ou educação profissional, com docentes
das diferentes áreas do conhecimento, cientes da singularidade
lingüística dos alunos surdos, bem como com a presença de
tradutores e intérpretes de LIBRAS - Língua Portuguesa. (BRASIL,
2005).

O decreto, ainda em seu artigo 22, esclarece que escolas ou classes de


educação bilíngue são “aquelas em que a LIBRAS e a modalidade escrita da Língua
Portuguesa sejam línguas de instrução utilizadas no desenvolvimento de todo o
processo educativo. ” (BRASIL, 2005). Ao lado, portanto, da língua de sinais, figura o
português, isso porque, conforme salienta o parágrafo único da Lei nº 10.436/2002, “a
Língua de Sinais Brasileira − LIBRAS não poderá substituir a modalidade escrita da
Língua Portuguesa” (BRASIL, 2002).

Com a conquista da Lei de LIBRAS e sua regulamentação via decreto, a


condição dos indivíduos surdos sinalizantes de integrantes de uma minoria linguística
parece finalmente atestada. A inserção no paradigma das minorias linguísticas, no
caso das pessoas surdas, implica, no campo educacional, superar a perspectiva
patológica “para erigir a perspectiva educacional socioantropológica, imbuída de
concepções linguísticas (...), que rompe a política opressiva de imposição de uma
educação medicalizadora, que insiste em patologizar os métodos educacionais”
(NASCIMENTO e COSTA, 2014, p. 173).

2.4.3 A insurgência do movimento “Escola Bilíngue para Surdos”

Embora a Lei de LIBRAS e o Decreto nº 5.626/2005 representem uma


enorme (senão a principal) conquista para a história dos movimentos sociais surdos,
muito pouco tempo depois da circulação desses aparatos jurídicos uma nova e
importante luta começou a ser travada nesse contexto: trata-se da campanha
conhecida nacionalmente pelo nome de “Escola Bilíngue para Surdos”. Considerada
como a maior mobilização da história dos movimentos surdos, essa campanha foi fruto
de discussões travadas por ocasião da CONAE (Conferência Nacional de Educação)
de 2010, cuja temática, definida por uma Comissão Organizadora Nacional, debruçou-
67

se sobre o Plano Nacional de Educação (PNE), focalizando suas diretrizes e


estratégias de ação.

A CONAE 2010, ocorrida entre 28 de março e 1º de abril de 2010, foi


precedida por uma série de conferências municipais e estaduais que se deram ao
longo do ano de 2009. A participação de representantes de diferentes movimentos
sociais foi garantida na Conferência, que contou com a participação de delegados
surdos ligados à sua respectiva categoria.

Apesar de assegurada a presença e a participação desses delegados


representantes dos movimentos sociais surdos, a proposta por eles elaborada para
ser incluída no documento final do evento – possível subsídio para a elaboração do
Projeto de Lei do PNE54 –, foi rejeitada. Tal proposta buscava tornar clara a garantia
às famílias e aos surdos do direito de optar pela modalidade de ensino considerada
mais adequada para o pleno desenvolvimento de crianças, jovens e adultos, sendo
prevista o modelo da educação bilíngue (LIBRAS e Língua Portuguesa escrita) em
escolas e classes específicas (CAMPELLO e REZENDE, 2014, p. 74).

De acordo com Lucas e Madeira (2010, p. 23), a justificativa difundida para


a rejeição da proposta aventada pelos delegados surdos se baseou na crença de que
a inserção da emenda provavelmente reforçaria a “organização de escolas
segregadas com base na diferenciação pela deficiência, contrariando a concepção da
educação inclusiva”.

Somada à recusa da inserção da emenda proposta no documento final


elaborado na CONEN 2010, avultou-se a polêmica em torno da educação bilíngue
para surdos quando, em março de 2011, por ocasião da visita da então Diretora de
Políticas de Educação Especial Martinha Claret ao Instituto Nacional de Educação de
Surdos (INES), foi por ela ventilada a hipótese do fechamento do Colégio de Aplicação
(CAp/INES) mantido no Instituto.

54
O Plano Nacional de Educação (PNE) determina diretrizes, metas e estratégias para a política
educacional para um período de 10 anos (o Plano em vigência abarca o período de 2014-2024). O
primeiro grupo são metas estruturantes para a garantia do direito à educação básica com qualidade,
e que assim promovam a garantia do acesso, à universalização do ensino obrigatório, e à ampliação
das oportunidades educacionais. Um segundo grupo de metas diz respeito especificamente à
redução das desigualdades e à valorização da diversidade, caminhos imprescindíveis para a
equidade. O terceiro bloco de metas trata da valorização dos profissionais da educação,
considerada estratégica para que as metas anteriores sejam atingidas, e o quarto grupo de metas
refere-se ao ensino superior. Disponível em http://pne.mec.gov.br/ Acesso em: 10/01/2016
68

A ameaça do fechamento da mais antiga instituição brasileira dedicada à


educação de surdos (prontamente desmentida pelo MEC nos dias seguintes à visita
da referida Diretora ao INES) paralelamente à negativa sofrida pelos delegados
surdos na CONAE 2010 foi responsável por promover uma grande mobilização dos
movimentos surdos: em repúdio a tais acontecimentos, considerados grandes
retrocessos no que tange às conquistas já alcançadas nessa mesma década no
âmbito dos direitos linguísticos e educacionais dos surdos sinalizantes55, organizaram
uma passeata em Brasília nos dias 19 e 20 de maio de 2011.

Além dessa mobilização do mês de maio, considerada histórica, no mês de


setembro56 de 2011, foram promovidos seminários em defesa da “Escola Bilíngue
para Surdos”, ação conhecida como “Setembro Azul”57.

Figura 1 Logotipo da campanha Escola Bilíngue para Surdos58

Figura 2 Logotipo da campanha Setembro Azul59

55
Conforme destacou Favorito (2006, p. 103), parte da população surda oralizada tece críticas ao texto
da Lei de LIBRAS por não se ver representada na afirmação de que essa língua é o “meio de
utilização corrente das comunidades surdas do Brasil”.
56
Setembro é considerado um mês especial para as comunidades surdas. No Brasil, o Dia do Surdo é
comemorado em 26 de setembro. A data foi reconhecida pelo Ex-Presidente do Brasil Luís Inácio
Lula da Silva, com a Lei nº 11.796 de 29 de outubro de 2008. Data de 26 de setembro a criação da
primeira Escola de Surdos no Brasil, na cidade de Rio de Janeiro, o atual INES. Internacionalmente,
também se comemora o dia dos surdos em 30 de setembro. A comemoração é chamada de "Dia
Internacional dos Surdos". A data foi escolhida pela lembrança do Congresso de Milão ocorrido no
mês de setembro de 1880, no qual foi determinada a proibição do uso das línguas de sinais na
educação de surdos.
57
O “Setembro Azul”, conforme o site de divulgação da ação, “pode ser entendido como o marco
fundamental no que diz respeito à mobilização nacional na defesa das escolas bilíngues para
surdos”. O Setembro Azul foi criado como resposta crítica à política de educação especial que
priorizava o modelo da inclusão em detrimento das escolas especiais. Sobre a cor azul, foi escolhida
pelo Dr. Paddy Ladd (surdo), usado em laço de fita nesta cor como símbolo que representou, durante
o XIII Congresso Mundial de Surdos na Austrália, pessoas surdas vítimas de opressão. Disponível
em: http://setembroazul.com.br/ Acesso em: 10 de abril de 2015.
58
Embora de ampla circulação, a logomarca da Figura 1 foi obtida em
http://www.notisurdo.com.br/escolabilingue.html
59
Embora de ampla circulação, a logomarca da Figura 2 foi obtida em
https://informaLIBRAS.wordpress.com/2011/09/09/setembro-azul-2011-2/
69

Ocorridos em grande parte nas assembleias legislativas das capitais


brasileiras, na presença de parlamentares, esses seminários tinham como propósito
firmar a luta em prol de metas específicas sobre a educação de surdos a serem
incluídas no texto base do PNE que se encontrava em elaboração. Na ocasião, foram
entregues propostas de emendas redigidas pelas FENEIS aos representantes
governamentais presentes.

Essas mobilizações não apenas deram visibilidade à reivindicação em prol


das escolas bilíngues para surdos – que se tornou, nos últimos anos, a principal
agenda dos movimentos sociais surdos –, como fomentou inúmeros debates e
produções acadêmicas em torno da especificidade do modelo educacional bilíngue
reivindicado em oposição ao modelo inclusivo. Sem a inserção das emendas
elaboradas pela FENEIS ao Projeto de Lei do PNE que tramitava no Congresso
Nacional, o receio era o de que a educação de surdos em escolas no modelo inclusivo
passasse a ser considerada como regra, em detrimento da criação e organização de
escolas (ou classes) bilíngues nos moldes considerados ideais para crianças e jovens
surdos.

Em verdade, o paradigma educacional bilíngue sobre o qual se inclinou o


movimento específico em prol da “Escola Bilíngue para Surdos” é uma espécie de
síntese daquilo que há pouco mais de duas décadas tem se tornado uma das
prioridades nas demandas de determinadas comunidades surdas brasileiras. Esse
paradigma é, também, a representação do que, nesse referido período, vem sendo
problematizado e descrito de modo preponderante em pesquisas e eventos
acadêmicos que vêm se tornando ano após ano cada vez mais expressivos, seguindo-
se essa tendência na presente década.

Quero dizer com isso que a demanda pelo texto apresentado pelos
movimentos sociais surdos, acatado na Lei nº 13.005/2014 (que aprovou o PNE em
vigência) não se configura em novidade por completo no contexto da surdez e da
educação de surdos no Brasil. Nos dias atuais, o que se vê é a busca por uma
definição mais clara nos meios legais dos contornos que se anseiam para o
bilinguismo dessa população no sistema educacional.

A demanda por uma delimitação mais precisa desses contornos é


compreensível a partir da observação de que “definir uma situação educacional como
bilíngue não habilita, de forma simultânea, a definir a natureza interna dessa
70

experiência” (SKLIAR, 1997a, p. 56). A despeito dessas tentativas mais recentes de


delimitação, é possível afirmar que a “essência” da educação bilíngue para surdos já
está posta há pelo menos duas décadas, como exemplificam os estudos de Brito
(1993, 1995), Fernandes (1998), Lacerda (1998), Quadros (1997), Skliar (1997a,
1997b), entre outros.

2.4.4 Os significados da educação bilíngue para surdos no Brasil

Quando as discussões sobre o bilinguismo na educação de surdos


começaram a se avultar na década de 90 no Brasil e em diversos outros países, o
modelo educacional bilíngue não parecia assumir ainda um formato contínuo ou
homogêneo, como, em verdade, até hoje não assume. Pelo contrário, apresentava,
conforme apontou Skliar (1997a, p.146), “diversas alternativas e matizes de
organização institucional, de mecanismos didáticos, de relações entre as línguas e,
fundamentalmente, de objetivos pedagógicos”.

Nunca houve hesitação entre os teóricos do tema, entretanto, com relação


ao fato de a utilização do termo bilinguismo buscar descrever a condição linguística
dos indivíduos surdos que fazem uso da língua de sinais (considerada como primeira
língua e símbolo de identidade cultural) e que fazem uso do português, língua oficial
da comunidade onde estão inseridos, como meio de integração e comunicação com
as pessoas. O aprendizado dessa língua majoritária, assinalou há muito Brito (1993),
seria seguida da aquisição da língua de sinais.

Na década de 90, Lacerda (1998), ao tematizar as diferentes abordagens


na educação de surdos, explicitava que, no modelo bilíngue,

o que se propõe é que sejam ensinadas duas línguas, a língua de


sinais e, secundariamente, a língua do grupo ouvinte majoritário. A
língua de sinais é considerada a mais adaptada à pessoa surda, por
contar com a integridade do canal visogestual. Porque as interações
podem fluir, a criança surda é exposta, então, o mais cedo possível, à
língua de sinais, aprendendo a sinalizar tão rapidamente quanto as
crianças ouvintes aprendem a falar. Ao sinalizar, a criança desenvolve
sua capacidade e sua competência lingüística, numa língua que lhe
servirá depois para aprender a língua falada, do grupo majoritário,
como segunda língua, tornando-se bilíngüe, numa modalidade de
bilingüismo sucessivo.
71

Em uma proposta de educação com bilinguismo voltada para crianças


surdas elaborada para ser implementada em parceria entre a Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (UERJ) e o INES, Fernandes e Rios (1998, p.14) também defendiam
que

Educar com bilinguismo é “cuidar” para que, através do acesso a duas


línguas, se torne possível garantir que os processos naturais de
desenvolvimento do indivíduo, nos quais a língua se mostre
instrumento indispensável, sejam preservados. Isto ocorre através da
aquisição de um sistema linguístico o mais cedo e o mais breve
possível, considerando a Língua de Sinais como primeira língua.

Na apresentação dessa referida proposta de educação com bilinguismo, foi


esclarecido que a Língua Brasileira de Sinais seria a responsável pela constituição do
conhecimento acadêmico e se colocaria como instrumento de interação entre
educadores e alunos. O português, nessa proposta, figurava como segunda língua.
De acordo com as autoras (1998, p. 17), isso significava dizer que os momentos de
interação em língua portuguesa teriam como objetivo principal o aprendizado dessa
língua, sendo prioritária a aprendizagem de sua modalidade escrita em detrimento da
oral, embora a última também estivesse contemplada no projeto.

Carlos Skliar, pesquisador de destaque no contexto da surdez, sobretudo


na década de 90, tinha seu foco de pesquisa voltado mais para a localização da
educação bilíngue de surdos no campo político. Por essa razão, definiu essa
concepção educacional como “uma epistemologia de oposição aos discursos e às
práticas clínicas hegemônicas características da educação de surdos nas últimas
décadas” (SKLIAR, 1999, p. 7). Na concepção do autor, o adjetivo bilíngue na
expressão educação bilíngue apenas pressupõe a presença de duas línguas na
escola (no caso da surdez, a língua de sinais e o português), mas não um modelo
pedagógico completo (SKLIAR, 1997b, p. 49).

Apesar de defender que a questão educacional para surdos necessitava de


uma análise e uma definição sobre a ideologia e a arquitetura escolar para além de
suas qualificações de “bilíngue”, apontou que a educação bilíngue é um claro reflexo
de uma situação e uma condição sociolinguística dos próprios indivíduos surdos e que
“a escola bilíngue deveria encontrar neste reflexo o modo de criar e aprofundar, de
72

forma massiva, as condições de acesso à língua de sinais e à segunda língua”


(SKLIAR, 1997b, p. 53).

Sousa (1996) também conjugava dos ideais propagados à época nos


diferentes estudos sobre a escolarização bilíngue para surdos. Levando em
consideração o impeditivo biológico de uma criança surda em aprender uma língua
oral e a importância do desenvolvimento da linguagem na constituição da
subjetividade, ela ressaltou que “uma educação bilíngue pressuporia uma imersão da
criança surda, o mais cedo possível, na língua de sinais. A língua oral majoritária seria
sua segunda língua” (1996, p. 126).

O desenvolvimento e a manutenção dessa condição bilíngue, entretanto,


conforme apontou Souza (1996, p. 36), dependeria de políticas linguísticas e da
consciência política e da cumplicidade entre os membros desse grupo linguístico
minoritário. O que, em outras palavras, significa dizer que dependeria de como os
cidadãos surdos iriam se articular e definir a natureza dos contatos sociais com o
grupo majoritário.

Embora os trabalhos acadêmicos desenvolvidos no âmbito da educação


bilíngue para surdos antes da promulgação da Lei de LIBRAS já definissem a
“essência” desse modelo reivindicado, ou seja, a língua de sinais – pela possibilidade
de aprendizado de forma espontânea da mesma a partir da simples exposição –
deveria assumir o papel de primeira língua e o português deveria figurar como
segunda língua no processo, havia, conforme observou Santana (2007, p. 166), “falta
de consenso” no que dizia respeito ao aprendizado da língua portuguesa.

A falta de consenso existente à época dizia respeito ao fato de alguns


teóricos defenderem que a língua de sinais deveria ter seu aprendizado garantido
antes de se iniciar o trabalho com o português. Por outro lado, alguns apontavam que
o aprendizado de ambas as línguas poderia se dar de modo concomitante. Além disso,
havia também discordância quanto à modalidade da língua portuguesa que deveria
ser ensinada: somente a escrita ou a escrita e a oral de modo paralelo.

As divergências pontuadas em grande parte desapareceram, entretanto,


depois da promulgação da Lei de LIBRAS e de sua regulamentação. O Decreto nº
5.626 deixa claro no seu artigo 15 (e em outros que dele derivam) que o currículo da
base nacional comum deve contemplar “o ensino de LIBRAS e o ensino da
modalidade escrita da Língua Portuguesa, como segunda língua para alunos surdos”
73

(BRASIL, 2005). O aprendizado da modalidade oral do português por esses


educandos, ainda que tenha seu acesso resguardado como direito 60, torna-se
opcional e deve ser articulado entre ações da área da saúde e da educação,
preferencialmente em turno diferente daquele em que é feita a escolarização regular.

Assegurar que o português como segunda língua deveria ter seu trabalho
voltado para as habilidades de leitura e escrita não significou que estava por fim
terminada a problemática da educação bilíngue para surdos em nosso país. Nesse
sentido, é importante salientar que,

como um projeto em constante (re)construção, que se reinventa


histórica e temporalmente, uma educação escolar bilíngue é descrita
de modo múltiplo, ou seja, há diferentes experiências em instituições
escolares caracterizadas como bilíngues, que se movimentam
sobretudo a partir de discursos acadêmicos e de lutas das
comunidades surdas. (MÜLLER e KARNOPP, 2015)

Um dos pontos fulcrais em torno do qual gira a problemática da educação


de surdos na atualidade – uma vez ultrapassada no plano legal a garantia de que a
LIBRAS figure como a primeira língua na instrução – refere-se ao gerenciamento, na
esfera do MEC, de suas políticas e práticas. Isso porque, desde a década de 90,
apesar de terem aflorado os debates sobre o bilinguismo e sobre a necessidade de
reconhecimento dos surdos enquanto uma minoria linguística, a educação de surdos
vem sendo compreendida como incumbência da Educação Especial.

Essa tensão já antiga a respeito de como deve ser encarada a educação


de surdos no Brasil no âmbito das políticas do MEC, conforme aponta Lodi (2013, p.
51), longe de ser enfrentada, “ecoa nos documentos oficiais e mantém-se como tema
de debates e embates entre os que defendem a educação para surdos como um
campo específico de conhecimento e aqueles que a consideram como domínio da
educação especial. ”

Na base da defesa pela não vinculação da educação de surdos à Educação


Especial está o entendimento de que

60
O acesso ao aprendizado da modalidade oral do português está resguardado no artigo 16 do Decreto
nº 5.626/2005.
74

os surdos devem ser vinculados a uma educação linguístico/cultural e


não a uma educação especial marcada pela definição da surdez como
falta sensorial, como anomalia a ser reabilitada ou corrigida por
tentativas cirúrgicas. (MEC/SECADI, 2014, p. 6)

Acrescento que essa tensão, latente desde a década de 90 – quando já se


pontuava que o termo “especial” para se referir à educação de surdos dizia respeito
exclusivamente à diferença linguístico-cultural desses alunos perante os demais
(SKLIAR, 1999) – tornou-se mais notória nos anos 2000. Nesse período, três
importantes movimentos se voltam para a Educação Especial no Brasil: (a) a
introdução da mesma no âmbito da Educação Básica61; (b) a difusão de uma política
de educação inclusiva retratada na Política Nacional de Educação Especial na
Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008) e (c) a consolidação desta Política
a partir de sua gestão. Esses três movimentos apontam para uma nova compreensão
acerca da educação especial nas políticas governamentais: essa assumiu uma
perspectiva inclusiva (GARCIA, 2013).

É preciso ressaltar que, na década de 90, os movimentos sociais surdos e


teóricos da surdez demonstravam descontentamento para com a vinculação da
educação de surdos à educação especial sobretudo pelo fato de a mesma ter sido
marcada historicamente por uma concepção normalizadora. Não havia, entretanto,
sido concretizada uma política que priorizasse em suas diretrizes legais que a
educação especial deveria ser colocada em prática preferencialmente62 na rede
regular de ensino e que caminhava no sentido de eliminar de seus textos referenciais
o termo destacado, ficando subentendido que se daria exclusivamente no regime
inclusivo.

É compreensível, portanto, que entre os debates e embates em torno dessa


problemática, conforme salientado por Lodi (2013), um dos mais notáveis tenha sido

61
A introdução da Educação Especial na Educação Básica tem suas diretrizes na Resolução 2/2001. A
Resolução encontra-se disponível em http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CEB0201.pdf
Acesso em 16/02/2016.
62
A oferta do atendimento educacional especializado preferencialmente na rede regular de ensino é
preconizada na Constituição de 1988. Quando da elaboração do texto do atual PNE, cogitou-se, em
prol de uma concepção de “inclusão total”, eliminar o termo “preferencialmente” presente na Meta
4: “universalizar, para a população de quatro a dezessete anos com deficiência, transtornos globais
do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, o acesso à educação básica e ao
atendimento educacional especializado, preferencialmente na rede regular de ensino [...]”. (BRASIL,
2014). Para aprofundar o tema da radicalização do debate sobre inclusão escolar no Brasil,
consultar Mendes (2006).
75

justamente o que se deu por ocasião da CONAE 2010. Como observam Laplane e
Prieto (2010), o processo educacional de surdos foi um dos pontos de tensão na
discussão do Eixo VI63 na CONAE 2010 em razão do fato de os rumos adotados por
tal política de então ir de encontro aos ideais defendidos pelos movimentos sociais
surdos, na medida em que estes se colocam contrários à matrícula dos estudantes
surdos nas classes regulares, sobretudo nos anos iniciais, e ratificam a necessidade
de uma escola bilíngue em que a LIBRAS seja a língua de instrução sem a mediação
de intérpretes e a aprendizagem do português seja restrita à modalidade escrita.

De acordo com Lodi (op. cit., p. 51), a polarização nos debates acerca da
educação de surdos decorre das “diferenças nas significações atribuídas aos
conceitos de educação bilíngue para surdos e de inclusão, presentes na Política
Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva e no Decreto
nº 5.626/05”. Essa polarização, embora relacionada diretamente às práticas no
contexto da Educação Básica, parece migrar também para o âmbito do Ensino
Superior – conforme discutirei no capítulo 5 (destinado à análise dos registros) –,
tendo reflexos claros em determinados impasses que se notabilizam na experiência
do Curso Bilíngue de Pedagogia do DESU/INES, lócus sobre o qual recai o foco da
presente pesquisa.

Fernandes e Moreira (2014) também apontam outra incongruência que


circula nesses textos oficiais voltados para políticas de educação bilíngue para surdos.
De acordo com as autoras, neles se observa uma

ambígua representação dos surdos (...) oscilando em um pêndulo


discursivo que ora balança para uma categorização que toma os
surdos como integrantes de um grupo cultural por falarem uma língua
própria (a LIBRAS), e ora os classifica como estudantes com
deficiência, cujo tratamento diferenciado exigiria recursos de
acessibilidade e atendimento educacional especializado (AEE) para
ter garantida uma aprendizagem significativa, na qual a LIBRAS
figuraria como um recurso educacional. (FERNANDES e MOREIRA,
2014, p. 62)

63
O Eixo VI do PNE trata do tema Justiça Social, Educação e Trabalho: inclusão, diversidade e
igualdade.
76

Como a educação de surdos ainda vem sendo compreendida na esfera da


educação especial, o documento que lança diretrizes para a implementação dessa
política nacional sob a perspectiva da inclusão, ao tratar dos alunos a serem
atendidos, compreende também os estudantes surdos, que, nessa ótica, estão
inseridos na categoria dos deficientes64. Entre as diretrizes propostas está colocado
que

Para o ingresso dos alunos surdos nas escolas comuns, a educação


bilíngüe – Língua Portuguesa/LIBRAS desenvolve o ensino escolar na
Língua Portuguesa e na língua de sinais, o ensino da Língua
Portuguesa como segunda língua na modalidade escrita para alunos
surdos, os serviços de tradutor/intérprete de LIBRAS e Língua
Portuguesa e o ensino da LIBRAS para os demais alunos da escola.
O atendimento educacional especializado para esses alunos é
ofertado tanto na modalidade oral e escrita quanto na língua de sinais.
Devido à diferença lingüística, orienta-se que o aluno surdo esteja com
outros surdos em turmas comuns na escola regular. (BRASIL, 2008,
p. 11)

De modo da diferente da Política, cujos objetivos e orientações se voltam


para uma grande diversidade de alunos que nela se veem atendidos e que, no caso
dos surdos, prevê um único modelo educacional possível (o regular em escola
inclusiva com previsão de AEE65), o Decreto nº 5.626/2005 foi elaborado tendo como
público específico de suas disposições os educandos surdos. É nesse sentido que
este último documento legal leva em consideração a inserção do alunado surdo nas
diferentes etapas que compõem a Educação Básica.

No que diz respeito à educação infantil e aos anos iniciais do ensino


fundamental, o decreto prevê, no artigo 22, a oferta de escolas e classes de educação
bilíngue, abertas a alunos surdos e ouvintes, com professores bilíngues (BRASIL,
2005). Com relação aos anos finais do ensino fundamental, ao nível médio e à
educação profissional, prevê que sejam desenvolvidas em escolas bilíngues ou
escolas da rede regular de ensino, também abertas a alunos surdos e ouvintes, com

64
De acordo com o documento, “considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimentos
de longo prazo, de natureza física, mental ou sensorial que, em interação com diversas barreiras,
podem ter restringida sua participação plena e efetiva na escola e na sociedade” (BRASIL, 2008,
p. 9).
65
O Atendimento Educacional Especializado (AEE), nesse caso, é realizado por meio da atuação de
profissionais que tenham conhecimentos específicos no ensino de LIBRAS e de português escrito
como segunda língua. (BRASIL, 2008)
77

professores das diferentes disciplinas curriculares conscientes da singularidade


linguística dos educandos surdos, sendo garantida a presença de um profissional
tradutor/intérprete de LIBRAS/Língua Portuguesa (BRASIL, op. cit.).

No caso das escolas e classes bilíngues voltadas para a educação infantil


e o primeiro segmento do ensino fundamental, conforme salienta Lodi (2013, p. 54), a
organização prevista no decreto faz com que se depreenda que, nas mesmas, seja a
LIBRAS

a língua de interlocução entre professores e alunos, logo a língua de


instrução, responsável por mediar os processos escolares (por isso a
necessidade de os professores serem bilíngues), já que a linguagem
escrita da língua portuguesa não pode, por sua materialidade, ser
utilizada na relação imediata entre professor-aluno durante o processo
de ensino-aprendizagem.

Em um processo educacional bilíngue para surdos, tal como se depreende


ser garantido pelo decreto aos alunos desde o início da escolarização até o fim da
primeira etapa do ensino fundamental, pressupõe-se que o processo de ensino e de
aprendizagem, como apontou Fernandes (2008, p. 6), “está fundado em operações
linguísticas e metalinguísticas em que a primeira língua mobilize os sentidos e as
estratégias de aproximação com a segunda língua em questão (...)”, no caso, o
português escrito, sendo tal processo “mediado pelas experiências que desenvolveu
em sua língua materna, de referência.”

Depreende-se também da leitura do decreto que, uma vez garantida a


aprendizagem da língua de sinais nessa primeira etapa, caso a sequência da
escolarização do aluno surdo seja realizada em escolas regulares, o mesmo estará
minimamente preparado para ser acompanhado, no cotidiano escolar, pela figura do
profissional intérprete e por diferentes professores que levem em consideração sua
singularidade linguística na dinâmica das avaliações.

Enquanto no texto do decreto o delineamento da educação bilíngue nas


classes e escolas bilíngues aponta que a língua de instrução a ser utilizada em todo
o processo educacional é a LIBRAS, sendo o português restrito à sua modalidade
escrita (como segunda língua), no texto da Política, conforme já citado em parágrafos
78

anteriores, a educação bilíngue é conceituada como “o ensino escolar na Língua


Portuguesa e na língua de sinais” (BRASIL, 2008, p.11).

Presume-se, nas diretrizes para a educação de surdos na perspectiva


inclusiva, que a educação bilíngue é considerada como aquela na qual as duas línguas
(de sinais e portuguesa) circulam no processo educacional do educando surdo, sem
que, necessariamente, a LIBRAS seja a língua usada pelo professor na mediação de
suas aulas, tal como se infere do inciso I do decreto na caracterização dessa
modalidade. Possivelmente esse entendimento presente na Política esteja baseado 66
na avaliação isolada do próprio parágrafo primeiro do artigo 22 que conceitua escolas
ou classes de educação bilíngue como “aquelas em que a LIBRAS e a modalidade
escrita da Língua Portuguesa sejam línguas de instrução utilizadas no
desenvolvimento de todo o processo educativo” (BRASIL, 2005).

A ambivalência nos sentidos que a educação bilíngue para surdos assume


nesses dois documentos oficiais também parece ocorrer com a concepção de inclusão
que neles se retrata.

A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação


Inclusiva trata da inclusão como “uma ação política, cultural, social e pedagógica,
desencadeada em defesa do direito de todos os alunos estarem juntos, aprendendo
e participando, sem nenhum tipo de discriminação” (BRASIL, 2008, p. 1). Sem
garantir, entretanto, que a língua de sinais possa ser apropriada pelas crianças surdas
incluídas nos anos inicias de escolaridade no próprio espaço da sala de aula (uma vez
que os professores não farão uso dessa língua na mediação da aprendizagem), e ao
relegar ao espaço AEE, em LIBRAS, a aprendizagem “da base conceitual dos
conteúdos curriculares desenvolvidos na sala de aula” (ALVES, FERREIRA e
DAMÁZIO, 2010, p.12), a Política acaba por ressaltar a ideia de que incluir não
significa nada além de promover o convívio social/escolar, princípio da antiga
integração escolar (LODI, 2013).

Por outro lado, o Decreto nº 5.626/2005, no título que trata da garantia da


educação das pessoas surdas, inicia seu primeiro artigo (o já referenciado artigo 22)
imputando às instituições de ensino da Educação Básica a garantia da inclusão dos

66
A leitura do texto do documento “A Educação Especial na perspectiva da Inclusão Escolar:
abordagem bilíngue na escolarização de pessoas com surdez” (ALVES, FERREIRA e DAMÁZIO,
2010) parece corroborar que o texto do decreto não foi considerado em sua integralidade na
elaboração da Política.
79

alunos surdos por meio da organização das classes de educação bilíngue, das
escolas de educação bilíngue e das escolas comuns da rede regular. Parece claro
que, ao prever que a inclusão desse alunado deva se dar no âmbito de um desses
três modelos propostos (respeitando-se o modelo de acordo com os diferentes
segmentos), amplia o significado do termo inclusão para além daquele previsto na
Política. Inclusão, no caso específico do texto do decreto, remete à ideia de inclusão
social e não exclusivamente escolar.

2.4.5 Políticas linguísticas pós-movimento “Escola Bilíngue para Surdos”

É importante destacar que a ambivalência dos termos problematizada


anteriormente e os possíveis retrocessos no campo de direitos já consagrados na letra
da lei a que a educação de surdos poderia ser submetida caso se levasse a cabo os
sentidos difundidos na Política impulsionaram não somente o “Setembro Azul”
(ocorrido em 2011), como também outros embates entre representantes surdos e
representantes governamentais.

Depois de os representantes surdos, no ano de 2012, finalmente terem


convencido os parlamentares da Câmara de Deputados sobre a necessidade de o
PNE contemplar em uma de suas metas um texto específico sobre a educação
bilíngue para surdos (texto esse sobre o qual não pudesse recair dúvidas quanto a
sua interpretação), o texto proposto pela FENEIS foi alterado na tramitação da matéria
no Senado Federal.

A proposta original da FENEIS contemplava a seguinte redação para a


meta 4 (inicialmente estratégia 4.6):

Garantir a oferta de educação bilíngue, em Língua Brasileira de Sinais


– LIBRAS como primeira língua e na modalidade escrita da Língua
Portuguesa como segunda língua, aos alunos surdos e com
deficiência auditiva de 0 (zero) a 17 (dezessete) anos, em escolas e
classes bilíngues e em escolas inclusivas, nos termos do art. 22 do
Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005, e dos arts. 24 e 30 da
Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, bem
como a adoção do Sistema Braille de leitura para cegos e surdocegos.
(BRASIL, 2010)
80

No Senado, mais especificamente na Comissão de Assuntos Econômicos


(CAMPELLO e REZENDE, 2014), subtraiu-se em 2013, do texto proposto, o
fragmento “e em escolas”, o que significaria que a educação de surdos passaria a ser
compreendida, no texto do PNE, somente como incumbência do sistema regular de
ensino. Essa subtração ensejou nova passeata a Brasília com o objetivo de chamar a
atenção do Senado para o equívoco que seria cometido com essa alteração à revelia
dos representantes surdos. Ensejou também que a FENEIS publicasse, em setembro
de 2013, uma nota de esclarecimento (FENEIS, 2013) na qual se ratificavam (i) a
necessidade de se respeitar o direito às escolas e classes bilíngues já previstas no
Decreto nº 5.626/2005 e (ii) os sentidos que a educação bilíngue assume nos
movimentos sociais surdos.

De acordo com a referida nota, são três as formas possíveis para a


organização da educação de surdos na Educação Básica:

 escolas bilíngues (onde a língua de instrução é a LIBRAS e a


Língua Portuguesa é ensinada como segunda língua, mediada pela
língua de instrução, LIBRAS; essas escolas se instalam em espaços
arquitetônicos próprios e nelas devem atuar professores bilíngues,
sem mediação por intérpretes e sem a utilização do português
sinalizado. Os alunos não precisam estudar no contraturno em classes
de Atendimento Educacional Especializado – AEE, dado que a forma
de ensino é adequada e não demanda atendimento compensatório);
 as classes bilíngues (que podem ocorrer nos municípios em
que a quantidade de surdos não justificar a criação de uma escola
bilíngue específica para surdos). Podem existir na mesma edificação
de uma escola inclusiva;
 as escolas inclusivas, onde o português oral é a língua de
instrução, algumas vezes mediada por intérpretes, o aluno surdo tem
que estudar dois períodos, participando do Atendimento Educacional
Especializado (AEE) no contraturno e, são matriculados duas vezes
(dupla matrícula). (FENEIS, 2013)

No âmbito dos embates travados em torno do texto do PNE, os


representantes tiveram o pleito finalmente acatado, mantendo-se, na versão final do
projeto de lei do PNE, o texto proposto pela FENEIS, sem a referida subtração.

Os representantes dos movimentos sociais surdos, que já haviam se


debruçado sobre diferentes demandas que culminaram com a aprovação do texto do
81

PNE com a previsão da educação bilíngue para surdos, engajaram-se na criação de


um GT no âmbito do MEC cujo principal objetivo era delimitar metas e apresentar
recomendações para a elaboração de políticas linguísticas voltadas para esse modelo
educacional.

Fruto desse GT, designado pelas Portarias nº 1.060/2013 e nº 91/2013 do


MEC/SECADI, foi confeccionado um Relatório sobre a Política Linguística de
Educação Bilíngue – Língua Brasileira de Sinais e Língua Portuguesa (MEC/SECADI,
2014). Nesse recente documento, defende-se que é necessária uma revisão da
política de base da educação de surdos, argumentando-se que a atual política
colocada em prática tende a reforçar premissas sustentadas anteriormente em
modalidades de educação consideradas já fracassadas. De acordo com o texto do
Relatório, deve ser rompida a lógica, não superada em modelos anteriores e mantido
na sua variante mais atual (a escola inclusiva com atendimento no AEE), “de que os
surdos devem ser surdos em português por dever e em LIBRAS por concessão”
(MEC/SECADI, 2014, p. 3).

Nesse documento, é retomada a questão da desvinculação da educação


de surdos do âmbito da educação especial. É nesse sentido que nele se coloca a
seguinte questão:

Se os surdos constituem uma comunidade linguística, e se têm o


direito de decidirem a forma como seria a participação de sua língua
em todos os níveis de ensino, se esta escolha aponta uma educação
bilíngue, então quais seriam os dispositivos de governo para vinculá-
los à educação especial? (MEC/SECADI, 2014, p. 4)

Nessa defesa pela constituição da educação bilíngue de surdos como um


campo do conhecimento que não se confunde com as políticas da educação especial,
é que se ressalta o caráter específico e diferenciado das escolas bilíngues para
surdos, nas quais o critério de seleção e enturmação é a especificidade linguístico-
cultural dos alunos e não a deficiência (MEC/SECADI, 2014).

Nesse Relatório, a educação bilíngue para surdos é entendida como a


“escolarização que respeita a condição da pessoa surda e sua experiência visual
como constituidora de cultura singular, sem, contudo, desconsiderar a necessária
aprendizagem escolar do português” (MEC/SECADI, 2014, p. 6). Nesse sentido, todo
82

o desenvolvimento do documento aponta para demandas relativas a políticas


linguísticas que devem se voltar para a participação de ambas as línguas ao longo da
escolarização, destacando-se a necessidade de se conferir legitimidade e prestígio à
língua de sinais como língua de instrução e constituidora da subjetividade da pessoa
surda.

No seio da problematização da educação bilíngue que se buscou promover


ao longo de toda essa seção dedicada à educação de surdos no Brasil, cabe lembrar
que o Decreto nº 5.626/2005, ao definir pessoa surda como aquela que manifesta sua
cultura pelo uso da LIBRAS (BRASIL, 2005), promove uma conceituação “a ser
edificada como meta de uma política linguística e educacional” (FERNANDES, 2014,
p. 61). Essa política, entretanto, já está delineada em diferentes documentos aqui
discutidos, ressaltando-se entre esses, pelas metas gerais e específicas que
apresenta, assim como diferentes recomendações, o Relatório sobre a Política
Linguística de Educação Bilíngue – Língua Brasileira de Sinais e Língua Portuguesa
(MEC/SECADI, 2014), o mais atual e, a que tudo indica, o mais completo até então
elaborado.
83

3. OUTROS APORTES TEÓRICOS

Neste capítulo, discuto brevemente alguns conceitos que, ao longo da


análise empreendida no capítulo 5, entrecruzam-se de forma INdisciplinar (MOITA
LOPES, 2006) aos de bilinguismo e educação bilíngue que, devido à centralidade que
assumem na presente pesquisa, mereceram um capítulo particular, o número 2. Aqui
apresento, inicialmente, constructos como o de políticas linguísticas, a partir da
contribuição de diversos autores (CALVET, 2007; SPOLSKY, 2004; SHOHAMY, 2006)
e o de ideologia linguística, tal como discutido por Kroskrity (2004). Na sequência,
problematizo a noção de comunidade, valendo-me, sobretudo, da discussão
promovida por Bauman (2003, 2005). Por último, detenho-me nos conceitos de
identidade (HALL, 2011; SILVA, 2009; BAUMAN, 2005) e de representação (HALL,
1997; SILVA, 2009), a partir de contribuições dos Estudos Culturais e também da
Sociologia.

3.1 Das políticas linguísticas

No prefácio da versão em português de As políticas linguísticas, de Calvet


(2007), Gilvan Müller destaca que, no Brasil, o termo que dá título à obra passou a
circular de forma sistemática apenas recentemente. O fato de a Política Linguística ter
surgido enquanto disciplina na segunda metade do século XX, mas ser ainda
expressão bastante nova em nosso país, tem como uma possível justificativa a
hegemonia da ideologia do monolinguismo que aqui somente começou a ser
descortinada com a emergência de movimentos sociais que incluíram em suas
reivindicações questões que contribuíram para a visibilização de nosso panorama
multilíngue.

Entre os movimentos que colaboraram para a visibilização desse


panorama, conforme apontei no capítulo 2, estiveram (e ainda estão) os movimentos
sociais surdos, cujos primeiros notáveis esforços se detiveram no reconhecimento
oficial da LIBRAS. É nesse sentido que desde a introdução desta tese venho fazendo
referência à ideia de que a Lei de LIBRAS e o Decreto nº 5.626/2005 figuram como
uma possível oportunidade de política linguística para as comunidades surdas no
Brasil. Também no capítulo anterior reportei-me à terminologia tradicional do campo
84

da Política Linguística ao sugerir que esses aparatos legais se dirigiam ao


planejamento do status da LIBRAS, tendo em vista que a reivindicação inicial dos
movimentos estava voltada para a regulamentação dessa língua e, por conseguinte,
para sua inclusão no sistema de ensino.

Como o cenário educacional onde esta pesquisa foi desenvolvida se


estabelece em função da vigência desses instrumentos jurídicos, figurando ele próprio
como uma política linguístico-educacional para as comunidades surdas brasileiras,
apresento nesta seção um breve painel acerca dos principais pressupostos sobre os
quais a Política Linguística vêm se edificando enquanto área do saber. Sem pretensão
de me ater a um minucioso histórico da evolução das pesquisas do campo, interessa-
me, sobretudo, contrapor os pressupostos que orientaram a área no seu surgimento
e desenvolvimento inicial aos que balizam pesquisas mais recentes nesse âmbito.

Em primeiro lugar, cabe destacar, conforme aponta Calvet (2007), que a


intervenção humana nas questões que dizem respeito às línguas e aos seus usos
sociais não é algo recente: essas sempre foram alvo de tentativas de normatizações.
O autor aponta que, embora inúmeras intervenções sobre as línguas venham
ocorrendo desde nosso primeiro milênio, o binômio política linguística/planejamento
linguístico somente apareceu na literatura entre as décadas de 60 e 70 do século XX,
coincidindo com o surgimento da Sociolinguística.

Embora hoje considerados inseparáveis por diferentes autores, as


expressões política linguística e planejamento linguístico não nascem atreladas. Na
literatura linguística, é inicialmente o planejamento que ganha notabilidade. Aparece
pela primeira vez, conforme aponta Calvet (2007, p. 12), em um trabalho de Einar
Haugen, de 1959, no qual abordava “problemas linguísticos” da Noruega. Por outro
lado, a noção de política linguística aparece em inglês em 1970, em uma publicação
de Fishman. Para este autor, por exemplo, o planejamento linguístico era uma
aplicação da política linguística, entendimento esse que prevaleceu em diferentes
definições posteriores.

Na conceituação de Calvet (2007, p. 12), a política linguística se refere “à


determinação das grandes decisões referentes às relações entre as línguas e a
sociedade”, enquanto o planejamento linguístico diz respeito à implementação de tais
decisões. Ainda que diferencie os termos, defende que a política linguística é
inseparável de sua aplicação, posicionamento que é também assumido por autores
85

como McCarty (2011), Maher (2013) e Rajagopalan (2013). Conforme esclarece este
último, a expressão política linguística, em português, “encobre tanto as decisões
tomadas no nível mais geral e macro, como também as atividades que contribuem
para implementá-las”. (RAJAGOPALAN, 2013, p. 29).

Para além do binômio política e planejamento linguístico, Calvet (2007, p.


30) ressalta que na literatura dedicada ao tema sempre houve uma tendência em se
teorizar por meio de binarismos. Um desses é o que se estabelece na fase de
consolidação da Política Linguística como área do saber quando se distingue,
conforme propôs Heinz Kloss na década de 60, entre as intervenções na forma da
língua (planejamento de corpus) e em suas funções (planejamento de status).

Em fase incipiente, a Política Linguística ainda negligenciava por completo


o aspecto social nas intervenções sobre as línguas e considerava a diversidade
linguística dos Estados-nação então emergentes como um “problema” a ser resolvido,
sendo a modernização dos idiomas (ou das chamadas variantes linguísticas) um
propósito a ser alcançado como condição para a modernização desses novos
Estados. Nesse sentido, a diferenciação proposta por Heinz Kloss (1969) e retomada
por Haugen (1983), ainda que amparada por uma visão tradicional, ampliou
consideravelmente os horizontes do campo que, conforme aponta Calvet (2007, p.
29), até então estava interessado estritamente na padronização linguística, indo ao
encontro dos preceitos estruturalistas da linguística vigentes à época.

Para além da distinção tradicional entre planejamento de corpus e de


status, Cooper (1989) introduziu uma terceira categoria: o planejamento de aquisição.
Se o planejamento de corpus estava voltado para a seleção e codificação de línguas
a serem modernizadas por diferentes meios (seleção e/ou adoção de sistema de
escrita, transformação no léxico, criação de dicionários e livros de gramática etc.) e o
de status perpassava as atitudes dos falantes frente às línguas em processo de
modernização, o novo elemento proposto por Cooper (1989) estava baseado na ideia
de que forma, função e aquisição estavam intimamente relacionados.

Esse estreito relacionamento tem como argumento a observação de que o


processo de ensino e aprendizagem de uma língua é fundamental na implementação
de uma política linguística, tendo em vista que depois de ser selecionada e
modernizada, uma língua nova precisa avançar no propósito de ser ensinada à
população. Conforme aponta Cooper (1989), o processo de ensino e aprendizagem
86

de uma nova língua integra, ao mesmo tempo, o domínio do planejamento de status


e o de aquisição.

Cooper (1989) empreende, entretanto, uma distinção entre ambas as


esferas de planejamento. De acordo com o autor, quando os procedimentos de
difusão buscam ampliar os usos sociais da língua objeto de planificação, adentra-se
no domínio do status, já quando a difusão objetiva a expansão do número de usuários,
adentra-se no âmbito da aquisição. O planejamento de aquisição teria então a função
básica de expandir o número de usuários e, concomitantemente, gerir o ensino dessa
língua, definindo o que precisa ser ensinado e a quem.

Conforme aponta Ribeiro da Silva (2013, p. 295), a tríade (forma, status e


aquisição) proposta por Cooper (1989) consolidou-se e passou a demarcar o
desenvolvimento de diferentes pesquisas e práticas de políticas linguísticas, sendo
este modelo utilizado por Spolsky e Cooper (1991) e retomada em Spolsky (1998) em
obra introdutória à Sociolinguística. Apesar desse modelo triádico ter começado a
pautar diferentes estudos e práticas no âmbito da planificação linguística, isso não
significou um rompimento com a lógica binária em que emergiu: ele passa a existir
dentro do modelo tradicional binário, ou seja, naquele em que o binômio política
linguística e planejamento linguístico figuram em uma relação de hierarquia.

Tendo ainda como pano de fundo esse modelo hierárquico e binário,


Schiffman (1996) propôs uma diferenciação entre o que denominou de política
linguística explícita e política linguística implícita. Enquanto a primeira faz referência
aos aparatos legais sobre as questões relativas às línguas, a segunda está
relacionada às normas linguísticas não oficializadas e não formalizadas, mas que são
manifestadas nas práticas sociais.

Um exemplo claro citado por Schiffman (1996), que demonstra a relevância


dessa distinção por ele proposta, diz respeito ao que ocorria na sociedade norte-
americana à época67 em termos de política linguística. Conforme observou, não havia
no país nenhuma política oficial para o inglês ou para qualquer outro idioma,
entretanto, isso não significava que não existia uma política implícita em prol da língua
majoritária do país. De acordo com o autor, o fato de diferentes serviços públicos, nos

67
Embora a obra em que Schiffman faz menção ao cenário de políticas linguísticas dos Estados Unidos
seja da década de 1990, conforme problematizei no capítulo 2, diferentes estados norte-americanos
atualmente investem em programas de Englishy-one, em contraposição a modelos bi/multilíngues.
87

Estados Unidos, só serem acessados por meio do inglês, por exemplo, evidenciaria
uma significativa política que desencorajava a utilização de outras línguas que não
essa.

Além de estabelecer essa importante diferenciação, o autor também


incorporou em sua obra a ideia de que a política linguística está diretamente
relacionada à cultura linguística, que seria, em resumo, o conjunto de comportamentos
e crenças sobre a linguagem e as circunstâncias históricas de uma determinada língua
(SCHIFFMAN, 1996, p. 5). Schiffman (1996) sugere que as políticas explícitas e as
implícitas devem ser cotejadas, o que significa estabelecer relações entre práticas e
representações linguísticas e o panorama histórico-cultural de uma determinada
comunidade a respeito da qual se queira compreender a política linguística. Embora
enfatize o papel das representações ou crenças linguísticas nas decisões sobre as
línguas, o autor não desenvolveu um modelo de política ampliada que incorporasse
tanto as crenças como as atitudes e práticas sociais.

Um modelo ampliado de política linguística e que supera a lógica binária


tradicional vigente desde a década de 60 foi proposta por Spolsky (2004). No lugar da
relação hierárquica entre política e planejamento linguístico, o autor propõe que a
política linguística é composta por três elementos inter-relacionados e equivalentes
em termos hierárquicos: práticas (practices), representações ou crenças (beliefs) e
gerenciamento (management) (SPOLSKY, 2004, p. 5).

As práticas linguísticas nada mais são que as escolhas que os falantes


fazem, de modo mais ou menos consciente, quanto à(s) língua(s) utilizada(s) nas
variadas situações cotidianas, de forma independente da política linguística oficial. As
representações ou crenças referem-se às ideologias subjacentes às políticas.
Conforme observa Spolsky (2004, p. 14), a ideologia linguística, de forma simplificada,
“é a política linguística sem gestor, o que as pessoas acreditam que deveria ser feito”.
Por último, o gerenciamento abarca as intervenções que buscam controlar o
comportamento linguístico de um determinado grupo. Tais intervenções podem dizer
respeito a um nível micro, como por exemplo modificações de certos componentes
88

linguísticos (ortografia, léxico, etc.), ou a um nível macro, como exemplificaria a


promoção de uma dada língua68.

Ao refletir sobre os três componentes das políticas linguísticas sugeridos


por Spolsky (2004), Shohamy (2006) não apenas formaliza um quadro analítico que
reflete a proposta de Bernard Spolsky, como também a amplia. Para a autora, o
binômio política e planejamento linguístico, que balizou por algumas décadas os
estudos nesse campo, apenas visibiliza as políticas oficiais implementadas de modo
hegemônico pelos Estados, que muitas vezes não correspondem às reais políticas
linguísticas em funcionamento em diferentes sociedades multilíngues.

Ao ampliar a proposta de Spolsky (2004) e também a de Schiffman (1996),


na obra Language Policy: Hidden Agendas and New Approaches, de 2006, Shohamy
defende que é preciso analisar o funcionamento das políticas implícitas vigentes nas
sociedades contemporâneas. É nesse sentido que incorpora ao seu aparato teórico a
noção de política linguística oculta (hidden language policy) e a de política linguística
de fato (de facto language policy).

De acordo com Shohamy (2006), a política linguística real, “de fato”, dá-se
por meio de uma variedade de mecanismos para além das políticas oficiais expressas
nas legislações sobre as línguas. Assim, a política de fato precisa ser observada,
compreendida e interpretada não por meio dos documentos oficiais (mecanismos
explícitos), mas através de variados dispositivos implícitos de política – exames de
línguas, materiais didáticos, etc. – que são usados para influenciar, criar e perpetuar
as políticas reais. É por meio desses dispositivos que as decisões políticas são
tomadas e impostas e as ideologias se transformam em práticas.

Se, por um lado, o modelo tripartido proposto na obra de Spolsky (2004) foi
fundamental por romper com a lógica binária que por muito prevaleceu no campo da
Política Linguística, o modelo de funcionamento proposto por Shohamy (2006),
conforme observa Ribeiro da Silva (2013, p. 316), “consolida uma transformação
epistemológica na área”, a partir da defesa e da constatação de que “as ideologias
(ou representações) linguísticas fomentam/manifestam-se em mecanismos de política

68
Embora reconheça que há diferentes formas de intervenção nas questões linguísticas, Spolsky (2004,
p.10) considera indevida a distinção clássica entre planejamento de corpus e de status, em virtude
da forte ligação entre ambas as esferas.
89

linguística, e esses, por sua vez, definem a real política linguística da comunidade,
isto é, as práticas linguísticas” (RIBEIRO DA SILVA, 2013, p. 316).

3.2 Das ideologias linguísticas

Na Antropologia Social, conforme observa Kroskrity (2004), a ideologia


linguística não se configura como uma noção unidirecional. Essa expressão, que
apareceu na literatura pela primeira vez em 1979, usada por Michael Silverstein,
agrupa um conjunto de concepções convergentes que, embora sobrepostas,
distinguem-se do ponto de vista analítico. É a partir desse entendimento que Kroskrity
(2004) aponta cinco diferentes níveis de significação para a expressão ideologia
linguística, cujo conceito sumariza como “crenças ou sentimentos sobre as línguas
como são usadas na sociedade” (KROSKRITY, 2004, p. 498).

Dentre esses cinco níveis propostos por Kroskrity (2004), três figuram como
crenças e dois colaboram para o exame das mesmas: interesses de grupos ou
individuais, multiplicidade de ideologias, consciência de falantes, funções mediadoras
das ideologias e papel da ideologia linguística na construção identitária. Ainda que
possam diferir de modo analítico, tais níveis apresentam aspectos em comum, razão
pela qual o autor lança mão da ideia de camadas sobrepostas.

No que diz respeito aos já referenciados cinco níveis de significação para


o termo ideologia linguística, antes de buscar sublinhar o que guardam em comum,
passo a uma breve descrição de cada um deles. Cabe salientar que os três primeiros
níveis que apresento na sequência são considerados por Kroskrity (2004) como
significados propriamente ditos, enquanto os dois últimos são tidos como funções
ideológicas.

Sobre o primeiro nível, que se configura como um dos significados da


ideologia linguística, Kroskrity (2004) aponta aquele que diz respeito ao fato de a
ideologia representar uma concepção de língua de acordo com os interesses de
grupos culturais ou sociais específicos. Nesse sentido, toda forma de adjetivação de
uma língua, ou melhor, todo juízo de valor, é engendrado na experiência social e
normalmente relacionado a interesses de ordem política e econômica. É rejeitada,
assim, a hipótese da existência de usuários de uma determinada língua
desinteressados do ponto de vista político-social. Como exemplo desse nível
90

ideológico é possível citar programas nacionalistas que buscam promover a


estandardização linguística.

Quanto ao segundo nível, Kroskrity (2004) observa que a ideologia


linguística é concebida como múltipla, isso porque reflete a pluralidade de segmentos
sociais que acabam por gerar diferentes perspectivas. Por exemplo, as ideologias
linguísticas podem significar pertencimento a uma determinada faixa etária, a um
gênero, a uma classe social, a um segmento religioso, etc. Para ilustrar, o autor faz
referência ao trabalho de Errington (1998) no qual se observa que o emprego de
determinados termos do antigo javanês e do sânscrito na língua indonésia, por
contraposição ao uso de expressões em inglês, opera como meio de construção de
identidade nacional.

Tendo por base as noções de consciência discursiva e prática, de Giddens


(1984), Kroskrity (2004), naquele que é o terceiro nível, trata da variação de
consciência dos usuários de uma língua a respeito das ideologias linguísticas locais.
Se essa consciência é somente prática, isso significa que os falantes não discutem as
questões ideológicas, que já estariam incorporadas às suas condutas e relativamente
automatizadas. Se, por outro lado, essa consciência é do tipo discursiva, há uma
espécie de reflexão monitorada que possibilita aos usuários da língua falar de modo
explícito sobre questões de ideologia linguística. Como exemplo desse nível, o autor
refere-se à publicação de livros na língua swahili, na Tanzânia, que contou com o
auxílio do estado como forma de valorização deste idioma. Em razão do patrocínio
estatal, e não necessariamente por escolha, autores publicaram obras em swahili em
lugar de fazê-lo em outras línguas estrangeiras.

Além dos três significados anteriormente descritos como sendo os três


primeiros níveis, Kroskrity (2004) também aponta duas funções da ideologia linguística
interligadas. A primeira, considerada como o quarto nível, diz respeito ao fato de as
ideologias linguísticas mediarem a relação que se estabelece entre as estruturas
sociais e os usos linguísticos. De acordo com Kroskrity (2004, p. 508), as “ideias sobre
a língua emergem da experiência social e influenciam profundamente a percepção
das formas linguísticas e discursivas”. Para ilustrar como os indivíduos marcam
pertencimento a uma determinada categoria social, Kroskrity (2004) faz referência ao
estudo de Irvine e Gal (2000) e descreve três processos que operam como índices de
ideologia linguística: a iconização, a recursividade e o apagamento.
91

A iconização nada mais é que um processo semiótico que transforma a


relação sígnica entre os traços linguísticos e as imagens sociais às quais estão
ligados: as diferenças linguísticas parecem ser representações icônicas dos
contrastes sociais que elas indicam. Um exemplo de iconização citado é a produção
de cliques69 na língua khoisana da África do Sul. Tal produção, por parte de linguistas
imbuídos de certo espírito etnocêntrico, foi considerada, entretanto, não como unidade
fonológica, mas como mera imitação de sons produzidos por animais.

A recursividade é o processo pelo qual distinções significativas entre


grupos são reproduzidas, dando origem a subcategorias. Essas distinções se fazem
refletir na linguagem por meio de determinados ícones. No que tange a esse processo
semiótico, a partir do mesmo exemplo dos cliques, Irvine e Gal (2000) observam que
algumas etnias acabam por se apropriar dessa marca linguística originária das línguas
khoi, a fim de marcar uma posição perante outros grupos. Parece ter sido nesse
sentido que os cliques penetraram nas línguas nguni.

O último, o apagamento, é o processo por meio do qual uma ideologia


invisibiliza ou nega a existência do outro a partir das práticas da linguagem. A partir
de uma simplificação que atende a uma dimensão distintiva, determinados grupos
sociais ou determinadas línguas podem ser tidas como homogêneas, sendo as
possíveis variações internas desconsideradas. Um claro exemplo são os processos
de gramatização70 (AUROUX, 1992) que foram fundamentais na formação dos
Estado-nação europeus e no consequente anseio por uma língua oficial, por uma
'língua padrão', que contribuísse para a ideia de unificação inerente aos propósitos
dos Estados.

Diretamente relacionado ao processo de apagamento, o último e quinto


nível é a segunda função da ideologia que é a de fundar e diferenciar identidades
culturais e sociais, ou seja, diz respeito ao uso da linguagem como meio de marcar
uma determinada identidade, de marcar pertencimento. Conforme aponta Kroskrity
(2004), a língua tem sido um dos parâmetros utilizados, por exemplo, para classificar
um grupo como nacional ou étnico. O autor ressalta, seguindo esse pensamento, que

69
Clique é um tipo de som produzido por meio de diferentes tipos de estalos feitos com a língua.
70
De acordo com Auroux (1992, p. 15), gramatização é “o processo que conduz a descrever e a
instrumentar uma língua na base de duas tecnologias, que são ainda hoje os pilares de nosso saber
metalinguístico: a gramática e o dicionário”.
92

uma representação identitária pode se configurar, então, como uma representação


ideológico-linguística.

Embora Kroskrity (2004) exponha os cinco níveis aqui descritos, é possível


dizer que há um ponto de convergência entre essas camadas sobrepostas. Esse
ponto passa pelo entendimento de que a ideologia linguística diz respeito a um
conjunto de crenças sobre as línguas tal como são utilizadas nas sociedades,
independentemente de serem manifestas de forma explícita ou partilhadas de modo
implícito.

Importante salientar, ainda, conforme apontou Blackledge (2008, p. 51),


que as ideologias linguísticas “são sempre socialmente situadas e amarradas a
questões de poder nas sociedades”. Assim sendo, debates ideológicos sobre a
linguagem são normalmente sobre outra coisa, servindo a linguagem como um
elemento intermediário para temas mais delicados como por exemplo raça 71, classe e
etnia. A colocação de Blackledge (2008), nesse sentido, vai ao encontro do
pensamento de Wollard (1998), que reconheceu que a finalidade dos estudos em
ideologia linguística acaba por se voltar para as relações entre identidade e poder que
se travam em torno da linguagem e não, necessariamente, para a linguagem em si
mesma.

Para finalizar, considerando a problematização do conceito de ideologia


linguística aqui realizada, ressalto que é sobretudo o quinto nível descrito por Kroskrity
(2004) o que se mostra mais produtivo para a análise dos registros empreendida no
capítulo 5. Isso porque interessa-me discutir como as ideologias linguísticas
sustentadas por muitos dos sujeitos do contexto pesquisado concebe a LIBRAS como
o critério unificador de um determinado grupo social e de uma determinada
comunidade, sendo possível traçar um paralelo com o processo de constituição dos
Estados-nação, no qual somente uma língua unificada deveria prevalecer para fins de
consolidação dos mesmos.

71
Conforme aponta Hall (2011, p. 63), “a raça não é uma categoria biológica ou genética que tenha
qualquer validade científica”. De acordo com Munanga (2003), raça “é um conceito carregado de
ideologia, pois como todas as ideologias, ele esconde uma coisa não proclamada: a relação de poder
e de dominação”.
93

3.3 Das comunidades clássicas às realmente existentes

O subtítulo escolhido para esta seção busca apontar, já de início, para o


fato de que a noção de comunidade comporta variados sentidos. Embora entendida
como central no interior das teorias sociológicas desde o nascimento desse campo, a
ideia de comunidade permanece hoje controversa: não há uma definição que seja
preponderante na problematização do conceito. É possível observar, entretanto, que
entre os teóricos da Sociologia ou entre os usos comuns, o termo comunidade invoca
determinados conteúdos considerados bons e positivos. É nesse sentido que Bauman
(2003, p. 9) ressalta não apenas que “a palavra comunidade soa como música aos
nossos ouvidos”, como também que “o que quer que a comunidade signifique, ‘é bom
ter uma comunidade’, ‘estar numa comunidade’”. (BAUMAN, 2003, p. 7)

Para ilustrar o uso comum e cotidiano do termo comunidade e atestar que


o mesmo “produz uma sensação boa por causa dos significados (...) que carrega”
(BAUMAN, 2003, p. 7), pode-se recorrer aos diferentes sinônimos a ele conferidos em
um dicionário. Figuram, por exemplo, palavras como comunhão, confraria,
congregação, irmandade. No caso de se consultar um dicionário, tal como procede
Mocellim (2011), encontram-se diferentes possibilidades de definições para a palavra
comunidade, tão positivas quanto seus potenciais sinônimos: estado ou qualidade das
coisas comuns a diversos indivíduos; conjunto de habitantes de um mesmo Estado ou
qualquer grupo social cujos elementos vivam em dada área, sob um governo comum
e irmanados por um mesmo legado cultural e histórico; comunhão; concordância,
harmonia; conjunto de indivíduos organizados em um todo ou que manifestam algum
traço de união.

Representante da teoria social contemporânea, Bauman (2003), apoiado


no pensamento de Hobsbawm (1994), ressalta que a noção de comunidade nunca foi
utilizada de modo tão indiscriminado e vazio como nas décadas em que as
comunidades, tal como na concepção sociológica clássica, dificilmente são
encontradas na vida real. Na obra de Tönnies (1995), que reflete a teorização clássica,
ressalta-se que a comunidade foi desenvolvida a partir de três dimensões distintas, a
saber: o parentesco, a vizinhança e a amizade.

A primeira instância manifesta-se na vida em família e fundamenta-se na


autoridade – em termos de idade, força e saber – dos membros que a compõem. Já
94

a segunda se manifesta na vida em comum, a partir do compartilhamento do território.


Nessa instância, o compartilhamento de hábitos, de conhecimentos e o surgimento de
tradições são promovidos pelas necessidades de trabalho e, também, de uma
organização comum. Por último, a terceira instância emerge da similitude de
interesses e modos de pensar. De modo distinto, também é possível falar em
comunidade de sangue, de lugar e de espírito.

De acordo com Tönnies (1995, p. 239 apud MOCELLIM, 2011, p. 110-111),

A comunidade de sangue acha-se regularmente ligada às relações e


participações comuns, quer dizer, à possessão comum dos próprios
seres humanos. Na comunidade de lugar, as relações vinculam-se ao
solo e à terra; e, na comunidade de espírito, os elos comuns com os
lugares sagrados e com as divindades honradas. As três espécies de
comunidades estão estreitamente ligadas entre si no espaço e no
tempo, e, em consequência, em cada um de seus fenômenos
particulares e seu desenvolvimento, como na cultura humana geral e
sua história.

A comunidade na acepção clássica é normalmente entendida como um


lócus onde se pode encontrar os semelhantes e com eles partilhar valores e visões
de mundo. Comunidade, nesse sentido, também encampa a ideia de segurança, e é
nela que os indivíduos costumam buscar proteção contra possíveis perigos externos,
bem como apoio para problemas das mais diversas ordens. Em oposição à
comunidade – que, de acordo com Tönnies (1995), constitui um grupo espacialmente
delimitado, com alto grau de coesão e integração afetiva – a sociedade não é passível
de ser demarcada entre limites espaciais definidos, seus membros estão
organicamente separados e apresentam baixo grau de integração afetiva e de coesão.

Enquanto na teorização clássica a concepção de comunidade destaca as


questões relacionadas ao território e ao entendimento compartilhado pelos membros,
na teorização contemporânea – de que é exemplo a obra do sociólogo polonês
Zygmunt Bauman –, em tempos de modernidade líquida (BAUMAN, 2001), a
comunidade vem sendo ressignificada. E é a partir de diferentes dicotomias como
entendimento/consenso, segurança/liberdade, comunidade postulada/comunidade
realmente existente que o autor desenvolve sua argumentação, apontando para a
“decadência”, o “desaparecimento” ou o “eclipse” da comunidade.
95

A partir da discussão promovida por Tönnies (1995) e da ideia de que a


comunidade carece de um entendimento compartilhado pelos membros, Bauman
(2003) argumenta que no mundo líquido-moderno o entendimento ao estilo
comunitário foi substituído pelo consenso. Conforme observa Bauman (2003, p. 15),
“o consenso nada mais é do que um acordo alcançado por pessoas com opiniões
essencialmente diferentes, um produto de negociações e compromissos difíceis, de
muita disputa e contrariedade, e murros ocasionais”. Já o entendimento nos moldes
comunitários não precisaria ser buscado ou construído: estaria pronto para ser usado.
É nesse sentido que ressalta que “o entendimento em que a comunidade se baseia
precede todos os acordos e desacordos” (BAUMAN, 2003, p.15). O entendimento é,
assim, o “ponto de partida” da união do grupo e não a linha de chegada e está para a
comunidade assim como o consenso está para a sociedade.

Ainda no que tange à contraposição entre entendimento e consenso,


Bauman (2003) esclarece que é esse entendimento dado de antemão, evidente e
“natural”, que confere organicidade à coletividade e mantém a coesão e a união,
apesar de diferentes fatores que separam os membros. O entendimento comunitário
é tácito por natureza. Isso ocorre porque o conteúdo do entendimento partilhado não
pode ser expresso, determinado e compreendido (BAUMAN, 2003, p. 16-17). Caso
contrário, deixa de se configurar como acordo real e passa a ser artificialmente
produzido.

Porque dependente da homogeneidade e da mesmidade, na comunidade


acaba não havendo espaço para a reflexão, para a crítica e para a experimentação.
É a mesmidade que pode garantir seu status comunitário no decorrer do tempo e, para
que a mesma seja mantida, a comunidade precisa se definir como distinta de outros
possíveis grupos, assim como também é necessário que seja pequena e
autossuficiente.

Apoiado em Redfield (1971), Bauman (2003) explicita o significado desses


três atributos fundamentais das comunidades: a distinção, a pequenez e a
autossuficiência. Conforme esclarece Bauman (2003, p. 17-18), distinção significa que
a divisão entre ‘nós’/‘eles’ é bastante clara, não havendo casos ambíguos a excluir.
Pequenez diz respeito ao fato de a comunicação entre os membros “de dentro” ser
densa, alcançar tudo e colocar em desvantagem os sinais que eventualmente chegam
de fora. Por último, a autossuficiência significa que o isolamento em relação aos “de
96

fora” é praticamente completo, sendo poucos e espaçados os momentos em que se


poderia rompê-lo.

Conforma ressalta Bauman (2003, p. 18), na era líquido-moderna, a


manutenção da mesmidade encontra barreiras, pois depende, por exemplo, de um
equilíbrio da comunicação entre os “de dentro” e os “de fora” difícil de ser sustentado
diante da “fissura nos muros de proteção da comunidade”. O autor explica que essa
fissura se torna banal com o a surgimento dos meios mecânicos de transporte.
Acrescenta, ainda, que

A distância, outrora a mais formidável das defesas da comunidade,


perdeu muito de sua significação. O golpe mortal na “naturalidade” do
entendimento comunitário foi desferido, porém, pelo advento da
informática: a emancipação do fluxo da informação proveniente do
transporte dos corpos. A partir do momento em que a informação
passa a viajar independente de seus portadores, e numa velocidade
muito além da capacidade dos meios mais avançados de transporte
(como no tipo de sociedade que todos habitamos nos dias de hoje), a
fronteira entre o “dentro” e o “fora” não pode mais ser estabelecida e
muito menos mantida (BAUMAN, 2003, p. 18-19).

Desde então, toda e qualquer homogeneidade e mesmidade necessitam


ser construídas, não estão mais "dadas”, dando o entendimento lugar ao consenso. A
unidade só pode ser atingida por meio de um “acordo artificialmente produzido”, fruto
de negociação e adesão racional. Por mais estabelecido que acordos desse tipo
possam parecer, nunca será como o entendimento evidente das comunidades, tal
como naquelas descritas por Tönnies (1995).

Em oposição à comunidade de entendimento comum, hoje apenas


postulada, está a “realmente existente”, que precisa de constante vigilância. Na
comunidade “real”, não somente o entendimento é artificial, como também a própria
segurança da coletividade – antes garantida na comunidade de entendimento comum
– precisa ser reconstruída por meios artificiais, o que compromete em definitivo o
estatuto clássico da comunidade.

Conforme aponta Bauman (2003, p. 68), a comunidade postulada se


configura, diante da transitoriedade do mundo, “como um sonho agradável, uma visão
de paraíso: de tranquilidade, segurança física e paz espiritual”. A comunidade
representaria, acima de tudo, segurança:
97

(...) a comunidade é um lugar “cálido”, um lugar confortável e


aconchegante. É como um teto sob o qual nos abrigamos da chuva
pesada, como uma lareira diante da qual esquentamos as mãos num
dia gelado. Lá fora, na rua, toda sorte de perigo está à espreita; temos
que estar alertas quando saímos, prestar atenção com quem falamos
e a quem nos fala, estar de prontidão a cada minuto. Aqui, na
comunidade, podemos relaxar – estamos seguros, não há perigos
ocultos em cantos escuros (BAUMAN, 2003, p. 7-8).

No mundo líquido-moderno, busca-se reconstruir artificialmente a


segurança na forma de “comunidades cercadas” que são “pesadamente guardadas e
eletronicamente controladas” (BAUMAN, 2003, p. 52). Todo esse aparato busca
manter a distância segura dos possíveis intrusos que são representados por todas as
outras pessoas que têm suas próprias agendas e vivem suas vidas do modo como
desejam. Como uma espécie de refúgio, as “comunidades cercadas” apelam para
uma segurança artificial que, entretanto, não reconstrói o entendimento comum.

Se, por um lado, a comunidade é uma alternativa tentadora, porque parece


poder transmitir segurança e tranquilidade, por outro, conforme pontua Bauman (2005,
p. 68), para quem luta por liberdade de escolha e autoafirmação, essa mesma
comunidade pode representar uma visão do inferno ou da prisão. Isso porque, ao
exigir absoluta lealdade de quem quiser desfrutar de alguma segurança, a
comunidade impõe ao indivíduo uma significativa responsabilidade que entra em
choque com o anseio cada vez mais intenso das pessoas por “mais liberdade”.

Ao problematizar a comunidade desejada em oposição à realmente


existente, o sociólogo afirma, ainda, que esta última “se parece com uma fortaleza
sitiada, continuamente bombardeada por inimigos (muitas vezes invisíveis) de fora e
frequentemente assolada pela discórdia interna (...)” (BAUMAN, 2003, p. 19). Também
difere a comunidade dos sonhos da realmente existente no sentido de que esta pode
aumentar os medos e inseguranças, no lugar de os extinguir ou diluir, pois o estado
de vigilância é permanente não apenas para manter distantes os perigos advindos “de
fora”, como também para com os que podem representar ameaças em seu próprio
interior, os “vira-casacas”. É nesse sentido que o autor salienta que no lugar do
aconchego e da tranquilidade desejados, o que realmente se encontra na comunidade
são trincheiras e baluartes.
98

De acordo com a argumentação desenvolvida por Bauman (2003), embora


o termo comunidade possa evocar tudo aquilo de que as pessoas necessitam e
sentem falta para viver de modo seguro e confiante, não é a comunidade, de forma
lamentável, um mundo que esteja ao nosso alcance. Segundo o autor, nos dias de
hoje, comunidade é “outro nome do paraíso perdido – mas a que esperamos
ansiosamente retornar, e assim buscamos febrilmente os caminhos que podem levar-
nos até lá” (BAUMAN, 2003, p. 9).

Em Comunidades Imaginadas, um clássico sobre o nacionalismo publicado


em 1983 por Benedict Anderson, o autor afirma que “qualquer comunidade maior que
a aldeia primordial do contato face a face (e talvez mesmo ela) é imaginada. De acordo
com o autor, as comunidades são entidades imaginadas cujos membros “jamais
conhecerão, encontrarão ou nem sequer ouvirão falar da maioria dos seus
companheiros, embora todos tenham em mente a imagem viva da comunhão entre
eles” (ANDERSON, 2008, p. 32).

Anderson (2008) argumenta que as comunidades não se distinguem pela


sua autenticidade/falsidade, mas sim pelo modo como como são imaginadas.
Interessado particularmente nos Estados-nação modernos, apresenta três aspectos
que caracterizam o estilo por meio do qual a nação moderna é imaginada. Em primeiro
lugar, ela é imaginada como sendo limitada porque ainda que possa agregar bilhões
de habitantes, tem finitas suas fronteiras, dado que nenhuma imagina corresponder a
toda extensão da humanidade. Em segundo lugar, é imaginada como soberana por
influência do Iluminismo e da Revolução Francesa e do ideal de liberdade fomentado,
cujo emblema seria o Estado Soberano. Em último lugar, é imaginada como
comunidade porque apesar da desigualdade e da exploração que possam nela existir,
é concebida como uma “fraternidade”.

Ao analisar os aspectos apontados por Anderson (2008) – a limitação, a


soberania e a comunidade –, Pratt (2013, p. 440) comenta que o estilo de imaginar os
Estados-nação é vigorosamente utópico. A autora diz isso não somente no sentido
estrito de serem imaginadas como ilhas (espécie de entidades sociais discretas e
soberanas), como também no sentido mais amplo de que a versão imaginada é uma
idealização que professa valores tais como fraternidade, igualdade ou liberdade,
embora não os realize.
99

Tal como Anderson (2008), Bauman (2003 e 2005) também aponta para a
impossibilidade da comunidade e vai além na discussão. Para Bauman (2003), face a
tal impossibilidade, a noção de identidade é inventada e ganha proeminência. De
acordo com o autor (2003, p. 20), identidade é a palavra do dia, substituta da
comunidade que é tida como “lar aconchegante” ou como círculo que permanece
aconchegante apesar dos ventos frios que correm do lado de fora. O autor argumenta,
entretanto, que nem a comunidade nem a identidade estariam à disposição no mundo
líquido-moderno.

O colapso da identidade a que também se refere Bauman (2003) será


tematizado na próxima seção, em que problematizo não apenas o conceito que, de
acordo com o autor, é o potencial substituto de comunidade, mas também o de
representação, ambos fundamentais para as discussões promovidas no penúltimo
capítulo desta tese, dedicado à análise dos registros.

3.4 Da Identidade e da representação

3.4.1 A crise da identidade: a emergência do sujeito pós-moderno

Na obra Comunidade: a busca por segurança no mundo atual (2003)


Zygmunt Bauman ressalta que a identidade é “inventada” quando a ideia de
comunidade entra em colapso. Alerta o autor, entretanto, para a impossibilidade de
que a identidade possa se colocar no lugar da comunidade em função do fato de que
a primeira é um processo incompleto, nunca dado, fixo ou determinado. Conforme
destaca o sociólogo (2005, p. 22), no mundo líquido-moderno, “a fragilidade e a
condição eternamente provisória da identidade não podem mais ser ocultadas”.

No final do século XX, Stuart Hall, no clássico A Identidade cultural na pós-


modernidade72, já observava que a “crise” de identidade, ou seu colapso, é
compreendida como parte de amplo processo de transformações que vem abalando
e deslocando os diferentes quadros de referência que propiciavam aos indivíduos
determinada ancoragem no universo social (HALL, 2011, p. 7). Ao se debruçar sobre

72
Na redação da tese, apoio-me na 11ª edição da obra, publicada em 2011.
100

a compreensão e a avaliação dessa crise, o autor se mostra simpático à ideia de que


as identidades modernas vêm sendo descentradas e fragmentadas.

Para problematizar a chamada crise de identidade, Hall (2011, p.10)


descreve, inicialmente, três diferentes concepções de sujeito: o do Iluminismo, o
sociológico e o pós-moderno. O sujeito do Iluminismo baseou-se em uma concepção
de pessoa humana centrada e unificada, sendo o centro um núcleo interior que seria
mantido de modo essencial ao longo de toda a existência do indivíduo. O sujeito
sociológico refletiu a grande complexidade do mundo moderno, não concebendo que
o núcleo interior pudesse ser autônomo e autossuficiente, mas sim constituído por
meio da relação com outros membros da sociedade. Já o sujeito pós-moderno é
descrito como aquele que não tem identidade fixa, essencial ou permanente. Nessa
concepção, não se postula mais um núcleo interior, um “eu” coerente, tornando-se a
identidade uma “celebração móvel”.

O sujeito pós-moderno de que trata Hall (2011) assume diferentes


identidades. Nesse sentido, conforme aponta Woodward (2009, p. 30), ainda que cada
indivíduo possa se perceber como sendo a mesma pessoa em diferentes situações, é
clara a percepção de que somos posicionados de distintas formas, em diferentes
ocasiões e lugares, em função dos papeis sociais que por ventura exercemos.

Em seu estudo, Hall (2011), depois de descrever as transformações


conceituais pelas quais as noções de sujeito e de identidade passaram até atingir o
estágio do descentramento, volta seu olhar para o modo como esse sujeito
fragmentado é posto em termos de suas identidades culturais. Sua preocupação está
diretamente relacionada à questão das identidades nacionais e dos aspectos nelas
implicados. Nesse sentido, a pergunta que direciona sua argumentação busca
compreender de que modo as identidades culturais nacionais vêm sendo afetadas na
modernidade tardia.

Conforme aponta Hall (2011, p. 47), as culturas nacionais, no mundo


moderno, constituem uma das principais fontes de identidade cultural, mas elas não
são tipos genes, ou seja, não são coisas com as quais nós nascemos. O principal
argumento considerado pelo autor (2011, p. 49) é o de que as identidades nacionais
“são formadas e transformadas no interior da representação”.

Silva (2009), ao se debruçar sobre o conceito de representação, observa


que o mesmo possui longa história. O autor aponta que, segundo a história da filosofia
101

ocidental, a noção de representação estava relacionada à reprodução fiel da realidade


no interior do sistema de significação. Nessa perspectiva, a representação
apresentava-se em duas diferentes dimensões, uma externa (por meio dos sistemas
sígnicos, como a pintura ou própria linguagem) e outra interna ou mental, relacionada
à representação, na consciência, do “real”. Como reação a essa perspectiva clássica
de representação, surge outra possibilidade de significação, pelo viés pós-
estruturalista.

De acordo com a perspectiva pós-estruturalista, “o conceito de


representação incorpora as características de indeterminação, ambiguidade e
instabilidade atribuídas à linguagem” (SILVA, 2009, p. 91). Excluem-se, sob essa
ótica, quaisquer possibilidades de compreensão da representação como mimese,
espelho ou reflexo da realidade tal como sustentado na perspectiva clássica:

A representação (...) não é, nunca, representação mental. (...)


Se o significado, isto é, aquilo que é supostamente
representado, não está nunca plenamente presente no
significante, a representação – como processo e como produto
– não é nunca fixa, estável, determinada. A indeterminação é o
que caracteriza tanto a significação quanto a representação (...)
a representação só adquire sentido por sua inserção numa
cadeia diferencial de significantes. Ela é representação de
alguma ‘coisa’ não por sua identidade, coincidência ou
correspondência com essa ‘coisa’, mas por representá-la (por
meio de um significante) como diferente de outras ‘coisas’.
(SILVA, 2001, p. 41).

A concepção explicitada por Silva (2001, 2009) vai ao encontro do que


defende Hall (1997) para quem, em resumo, a representação é a produção de
significados por meio da linguagem. Considerando-se o fato de que a linguagem está
baseada em signos, que são de natureza arbitrária, falar em representação remete ao
fato de que os objetos, as pessoas e os eventos não guardam em si nenhum
significado final ou verdadeiro. São os indivíduos, no interior das diferentes culturas,
que fazem com que as coisas signifiquem algo (HALL, 1997, p. 61). A representação
é, então, um processo de significação determinado culturalmente e construído de
forma sócio-histórica.

Sob a ótica dos Estudos Culturais, aqui representando por Hall (1997) e
Silva (2001, 2009), os significados são produzidos na/pela linguagem, ou seja, são
102

construídos: não são inerentes às coisas, aos objetos e às pessoas, mas sim fixados
por nós. É nesse sentido que Silva (2009, p. 91) ressalta que

(...) a representação não aloja a presença do ‘real’ ou do significado


(...) não é simplesmente um meio transparente de expressão de algum
suposto referente. Em vez disso, a representação é, como qualquer
sistema de significação, uma forma de atribuição de sentido (...) é um
sistema linguístico e cultural: arbitrário, indeterminado, e estreitamente
ligado a relações de poder.

Ainda de acordo com Silva (2009), é por conta dessas particularidades que
a representação está diretamente relacionada tanto à identidade como à diferença.
Ambas são dependentes da representação, o que leva o autor a afirmar que “é por
meio da representação que (...) a identidade e a diferença passam a existir” (SILVA,
2009, p. 91).

Quando, ao se voltar para a questão das identidades culturais, mais


particularmente para as identidades nacionais, Hall (2011) explicita que as mesmas
se formam e se transformam no interior da representação, significa, portanto, que
apenas se sabe o que é ser brasileiro ou ser inglês, etc., em função do modo como a
“brasilidade” ou a “inglesidade” é representada como um conjunto de significados no
interior de cada uma dessas respectivas culturas73. Nesse sentido, Hall (2011, p. 49)
aponta que “a nação não é apenas uma entidade política, mas algo que produz
sentidos – um sistema de representação cultural”.

De acordo com Hall (2011), as diferentes culturas nacionais não são


compostas apenas de instituições culturais, como também de símbolos e
representações. O autor afirma que “a cultura nacional é um discurso” (HALL, 2011,
p. 11) e, como tal, produz diferentes sentidos sobre a “nação”. Ao produzir sentidos
com os quais os indivíduos podem se identificar, as culturas nacionais acabam por
construir identidades nacionais, que, de acordo com Anderson (2008), não passam de
“comunidades imaginadas”.

73
No que tange à definição de cultura, apoio-me em Canclini (2009, p. 41). De acordo com o autor,
“pode-se afirmar que a cultura abarca o conjunto dos processos sociais de significação ou, de um
modo mais complexo, a cultura abarca o conjunto de processos sociais de produção, circulação e
consumo da significação da vida social”.
103

Conforme pontua Hall (2011), uma cultura nacional procura unificar seus
membros, tentando anular as diferenças no tocante ao gênero, à classe, à raça, em
prol de uma identidade cultural unificadora que os represente como sendo
pertencentes a uma mesma “família nacional”. O autor alerta, em outra obra, que

Ao contrário do que se supõe, os discursos da nação não refletem um


estado unificado já alcançado. Seu intuito é forjar ou construir uma
forma unificada de identificação a partir das muitas diferenças de
classe, gênero, região, religião ou localidade, que na verdade
atravessam a nação. (HALL, 2003, p. 78)

A sugestão de Hall (2011, p. 62-63) é que se vislumbre as culturas


nacionais não como unificadas, mas sim como dispositivos discursivos que acabam
por representar as diferenças como unidades ou como identidades. O autor alerta para
as “profundas divisões” e para as distinções internas que atravessam as chamadas
culturas nacionais e que, embora a forma de “unificação” seja a representação como
expressão de “um único povo”, não existe nenhuma nação composta por somente
uma cultura ou etnia: todas as nações modernas, conforme destaca, são “híbridos
culturais”.

3.4.2 Perspectivas identitárias essencialistas x construcionistas

Pode-se dizer, de forma geral, que as abordagens sobre as identidades,


principalmente acerca das identidades culturais, vêm sendo compreendidas a partir
de perspectivas essencialistas ou perspectivas construcionistas. A partir da
problematização da noção de identidade nacional, Woodward (2009, p. 12) observa
que na base dessa discussão reside uma importante tensão que emerge entre essas
duas diferentes formas de lidar com as questões identitárias.

Conforme pontua a autora, definições identitárias essencialistas buscam


sugerir que há um conjunto autêntico e cristalino de características que seriam
partilhadas por um determinado grupo, conjunto esse que não seria modificado com
o passar do tempo. Por outro lado, definições não-essencialistas ajustam o foco para
as diferenças e para os possíveis traços comuns entre membros de um determinado
grupo, e também para possíveis semelhanças e diferenças perante outros grupos.
104

No que diz respeito às perspectivas identitárias essencialistas, além de


ressaltar que sob tal ótica a identidade é vista como fixa e imutável, Woodward (2009,
p. 13) observa que as reivindicações de cunho essencial a respeito de quem pertence
ou não a um determinado grupo podem estar baseadas em questões biológicas (como
por exemplo no apelo à ideia de “raça” e às relações de parentesco) ou em questões
relativas ao passado histórico, representado como uma “verdade imutável”. Em
qualquer dos casos, estaríamos diante de uma concepção unificada de identidade.

Também voltado para a questão da identidade e da diferença, Silva (2009,


p. 84) destaca que o processo de produção da identidade oscila entre dois
movimentos. Por um lado, há processos que revelam a tendência à fixação e à
estabilização das identidades; por outro, há aqueles processos cuja tendência é de
subversão e desestabilização. Ao comparar a identidade com o ocorre com a
linguagem, o autor assinala que a tendência é para a fixação, embora isso seja uma
impossibilidade, pois tal como a linguagem, a identidade está sempre “escapando”. O
autor também discute como a teoria cultural e social pós-estruturalista busca explicitar
movimentos identitários que caminham na direção do essencialismo e outros
movimentos que se contrapõem a essa tendência.

Conforme assinala Silva (2009), embora diferentes dimensões da


identidade cultural e social (nacional, sexual, de gênero, étnica e racial) sejam
perpassadas por ambos os movimentos, as dinâmicas funcionam de modos distintos.
Se, de um lado, nas dinâmicas da identidade sexual e da racial, o apelo ao essencial
se faz por meio de argumentos biológicos; de outro, no que diz respeito a
determinados movimentos étnicos, religiosos ou nacionalistas, o que é reivindicado
como argumento essencial para a identidade é uma cultura ou história em comum. No
caso específico das identidades nacionais, o autor destaca o papel central de uma
língua nacional comum, cuja imposição coincide com a emergência dos Estados
modernos.

A discussão promovida por Silva (2009) quanto à questão das diferentes


versões de essencialismo complementa a de Woodward (2009). Isso porque embora
os dois explicitem casos concretos de identidades culturais que apelam ou à biologia
ou a mitos fundadores de um passado histórico, Silva (2009, p. 86) avança no sentido
de reconhecer que “embora aparentemente baseadas em argumentos biológicos, as
tentativas de fixação da identidade que apelam para a natureza não são menos
105

culturais”. Conforme assinala, a tentativa de inferiorizar as mulheres ou determinados


grupos raciais baseada em suposto traço biológico ou natural não apenas se constitui
em um equívoco do ponto de vista científico, mas também demonstra “a imposição de
uma eloquente grade cultural sobre uma natureza que, em si mesma, é –
culturalmente falando – silenciosa” (SILVA, 2009, p. 86). Silva (2009) argumenta,
desse modo, que todos os essencialismos são culturais e que têm origem em um
movimento de fixação.

No que diz respeito aos movimentos não essencialistas, Silva (2009)


comenta que são aqueles que subvertem e “complicam” a identidade. O hibridismo,
por exemplo, de acordo com a teoria social contemporânea, põe em xeque as
tendências em se conceber identidades como fundamentalmente separadas e
divididas. Conforme apontam Moita Lopes e Bastos (2010, p. 12), a exacerbação dos
fluxos identitários aumentam e desafiam os repertórios de sentidos sobre quem
podemos ser, “provocando incertezas, desequilíbrios e ambiguidades (...) e nos
colocando, assim, na fronteira, no fluxo e em um contínuo devir”. Atualmente, as
perspectivas não-essencialistas, caminham no sentido de abandonar

a ótica da identidade (...), prestigiando uma lógica que, ao desvalorizar


os tradicionais binarismos identitários bem delimitados, procura
sentido nos espaços opacos, nos meandros pouco claros, nas
fronteiras em que as ideias, as pessoas e as culturas em fluxo se
entrecruzam e se misturam. (MOITA LOPES e BASTOS, 2010, p. 10).

3.4.3 Entre essencialismo e hibridismo: as identidades surdas

A emergência dos chamados “novos movimentos sociais” no mundo


ocidental em torno da década de 60 trouxe à tona a questão da política de identidade.
Conforme aponta Woodward (2009, p. 34), a política de identidade

concentra-se em afirmar a identidade cultural das pessoas que


pertencem a determinado grupo oprimido ou marginalizado. Essa
identidade torna-se, assim, um fator importante de mobilização
política. Essa política envolve a celebração da singularidade cultural
de um determinado grupo, bem como a análise de sua opressão
específica.
106

Na mesma direção de Woodward (2009), Vecchi, na introdução de


Identidade, de Zygmun Bauman (2005, p. 13), assinala que a política de identidade
“fala a linguagem dos que foram marginalizados pela globalização”. A identidade,
torna-se, por assim dizer, um recurso. As formas pelas quais se apela à identidade,
no entanto, nos movimentos de política identitária, são distintas e contraditórias entre
si.

De um lado, à identidade pode ser conferida uma espécie de qualidade


essencial que seria capaz de estabelecer uma distinção fundamental entre dois
diferentes grupos. A singularidade de um grupo, que é “a base da solidariedade
política” (WOODWARD, 2009, p. 34), acaba, nesse sentido, muitas vezes traduzindo-
se em essencialismos. Para ilustrar, a autora cita o caso do acampamento das
mulheres do Movimento pela Paz de Greenham, iniciado em 1981, quando a Real
Força Aérea Britânica passou a abrigar mísseis nucleares americanos. Algumas
participantes da campanha contra os mísseis defendiam representar como
características essencialmente femininas o pacifismo e a preocupação com o outro, o
que parece envolver apelo ao papel biológico das mulheres enquanto mães
potenciais, o que as tornaria “mais altruístas e pacíficas”.

Em outra perspectiva, alguns movimentos sociais, inclusive o das


mulheres, têm entendido a identidade como contingente, circunstancial, produto de
imbricamentos de diferentes componentes. Indo contra a apelos essencialistas,
enfatizam que as identidades são fluidas, não fixas e que não estão atreladas a
diferenças permanentes (WEEKS, 1994 apud WOODWARD, 2009, p. 35). Como
exemplo, a autora faz referência a mulheres negras que vêm buscando o
reconhecimento de uma pauta específica de luta no interior do movimento feminista,
o que é um contraponto à noção unificada de “mulher”.

Woodward (2009) aponta que a identidade compreendida como


contingente pode ser problemática para os movimentos sociais e, nesse sentido,
questiona se a compreensão das identidades como fluidas e mutantes seria
“compatível com a sustentação de um projeto político” (WOODWARD, 2009, p. 16).
Conforme argumenta, em uma política de identidade, o projeto precisa ser reforçado
por um apelo à solidariedade daqueles que pertencem a um movimento específico.
Esse apelo pode recair, reitero, em essencialismos de base biológica ou histórico-
cultural.
107

A problematização empreendida por Woodward (2009) quanto às políticas


de identidade mostra-se fundamental para o contexto específico em torno do qual a
presente pesquisa é desenvolvida, o da surdez. Nesse contexto, conforme pontuei no
capítulo 2, movimentos sociais conquistaram notabilidade entre as décadas de 80 e
90 e reivindicaram seu reconhecimento político baseado na diferença linguístico-
cultural.

Conforme observam Klein e Lunardi (2006, p. 16), temos presenciado um


movimento de afirmação das culturas e identidades surdas. Tais movimentos,
salientam a autoras, frequentemente têm se apresentado “como forma de cristalização
de um ideal onde a essência da cultura é algo a ser buscado no contato e na
aproximação entre esses sujeitos”. A necessidade de cristalização conforma, assim,
um determinado discurso acerca do “ser surdo”, a quem cabe o estatuto de Surdo
(grafado em maiúscula), subjetivado por uma condição que coloca no centro a
utilização da LIBRAS como um traço “autêntico” das culturas surdas e, deve-se
acrescentar, das identidades surdas.

Como explicitado anteriormente, na política de identidade, recorre-se à


identidade de formas distintas e, algumas vezes, apela-se a uma espécie de núcleo
essencial para substanciar os movimentos. É o que parece ocorrer, no contexto da
surdez, em determinados discursos e práticas materializados por parte de militantes
surdos ou por parte de teóricos que estão inseridos nessa grande área de estudos.
Nesse sentido, são esclarecedoras as palavras de Vilmar Silva:

Mesmo reconhecendo que o sujeito surdo é híbrido, inacabado e


ocupa diferentes posições e lugares, assumo em determinados
momentos um certo “essencialismo estratégico” (SPIVAK, 1999). As
comunidades de resistência surda não possuem culturas, línguas e
identidades fixas, mas em determinados momentos elas precisam
evidenciar uma dessas marcas como uma estratégia de
empoderamento contra as exclusões a que estão submetidas. (SILVA,
2009, p. 25)

Vilmar Silva (2009), ao contrapor o hibridismo em que entende estarem


imersos os indivíduos surdos e a necessidade de, às vezes, enquanto teórico, adotar
uma postura essencialista no tocante às identidades surdas, faz referência à noção
de essencialismo estratégico, expressão proposta por Spivak (1999, 2010). Em
síntese, esse termo remete ao fato de que em diferentes momentos determinados
108

grupos sociais tendem a posturas redutoras e simplificadoras com relação às


identidades, a fim de conquistarem espaço político na luta por direitos.

No tocante à contraposição entre essencialismo x não-essencialismo no


âmbito da surdez, é importante pontuar que, embora Perlin (2010, p. 56), em seu
reconhecido trabalho Identidades Surdas74 (publicado quando do estabelecimento dos
Estudos Surdos em Educação), tenha sugerido a “afirmação positiva de que a cultura
surda não se mistura à ouvinte” e tenha proposto categorias de identidades surdas,
com facetas diferentes, mas que seriam “facilmente classificáveis” (PERLIN, 2010, p.
62), hoje já circulam reflexões, como a de Vilmar Silva (2009) – reproduzida acima –,
no sentido de reconhecer a não-essencialidade das categorias cultura e identidade no
referido contexto, reservando o apelo ao essencial a momentos pontuais de
movimentos de resistência a que muitas vezes indivíduos surdos se veem impelidos.

Conforme observou Almeida (2009), em uma análise acerca do persistente


problema do essencialismo estratégico, nem sempre os movimentos sociais – entre
os quais tomo a liberdade teórica de incluir os chamados movimentos surdos – estão
alheios à reflexão teórica e se veem diante do dilema de, por um lado, compreenderem
e rejeitarem essencialismos e categorias fixas, mas, por outro, precisarem lançar mão
de ambos de forma a conseguirem “movimentar-se no espaço público”.

Para finalizar este item, ressalto que, ao falarmos acerca de identidade


surda, sempre estaremos adentrando no campo da representação, já que a identidade
surda ou qualquer outra identidade75 “não implica em essência alguma: trata-se,
antes, de uma construção discursiva permanentemente (re)feita a depender da
natureza das relações sociais que se estabelecem, entre sujeitos sociais e
étnico[linguísticos].” (MAHER, 2010, p. 37)

74
A primeira edição do referido trabalho veio a público em 1998. Faço uso, entretanto, da 4ª edição,
publicada em 2010.
75
No contexto dessa citação, Maher (2010) focaliza a identidade indígena.
109

4. CARACTERIZAÇÃO DA PESQUISA

A fim de buscar compreensão sobre os questionamentos responsáveis por


nortear o trabalho, resgatados na próxima subseção, estou inserida no paradigma da
pesquisa interpretativista de cunho etnográfico (ERICKSON, 1984, 1989;
CAVALCANTI, 2000, 2006; DENZIN e LINCOLN, 2006). Este trabalho, desenvolvido
sob a ótica INdisciplinar (MOITA LOPES, 2006) da Linguística Aplicada, teve como
cenário o Curso Superior Bilíngue de Pedagogia ofertado pelo Departamento de
Ensino Superior (DESU) do INES.

Este capítulo está dividido em três partes. Na primeira seção, falo sobre a
natureza da pesquisa, abarcando a inserção da mesma no escopo da Linguística
Aplicada em sua vertente INdisciplinar (MOITA LOPES, 2006) e no âmbito das
pesquisas de caráter qualitativo. Na segunda parte, pormenorizo o cenário onde se
desenvolveu o trabalho, empreendendo uma descrição do campo e dos atores nela
envolvidos. Na parte final, relato como se deu minha (re)aproximação com o DESU
para fins da realização da pesquisa e descrevo os procedimentos adotados para a
geração dos registros (MASON, 1997; CAVALCANTI, 2006) analisados no quinto
capítulo.

4.1 Natureza da pesquisa

4.1.1 Nos caminhos da linguística Aplicada

Certa vez, quando rascunhava o projeto de Doutorado, no intervalo entre


uma aula e outra na rede municipal de Duque de Caxias, onde atuava na docência,
um colega professor de inglês me perguntou sobre o que se tratava meu projeto.
Respondi que, em linhas gerais, era sobre um contexto bilíngue de educação para
surdos. Com um ar meio surpreso, ele também questionou em qual área minha
pesquisa estaria inserida. Ao esclarecer que minha proposta de trabalho tencionava
meu ingresso em um programa de Linguística Aplicada, seu semblante denotou ainda
maior estranhamento. Fui questionada: “mas na Linguística aplicada se estuda sobre
surdos?”.
Quando indagada pelo colega de profissão, não me enveredei para uma
discussão epistemológica sobre a Linguística Aplicada, restringindo-me a um “sim,
110

estuda”. A conversa parou por ali, mas me levou à reflexão posterior de que, embora
a Linguística Aplicada se constitua como um campo de pesquisa hoje já estabelecido
em nosso país, isso não significa dizer, conforme observou Moita Lopes (2006), que
as pessoas que estão fora dele saibam exatamente o que significa fazer pesquisa em
LA (Linguística Aplicada).

A LA, um campo de estudos que nasceu adjetivado (ROJO, 2013), teve


inicialmente que se preocupar com a demarcação de seus limites com relação ao
campo de investigação em Linguística, a “ciência-mãe”. Conforme assinalam César
e Cavalcanti (2007, p. 10), ao se debruçarem sobre a história da LA no Brasil, o
linguista aplicado, em função dessa preocupação, teve destacado seu caráter
militante:

Pensando na história do desenvolvimento de nossa área, talvez uma


metáfora mais apta seria a da territorialidade, pois a tentativa de
demarcar um espaço num campo já ocupado deu, por muito tempo, a
tônica da atuação do lingüista aplicado no Brasil, aquele que, na
implantação dos primeiros programas, se reconhecia como militante
na Linguística Aplicada.

O que ocorre é que, ao romper com a chamada “ciência-mãe”, a LA passa,


nos anos setenta e oitenta, a buscar sua própria identidade. Nos anos noventa,
entretanto, quando se estabeleceu no Brasil o consenso de que a LA se ocupava de
“problemas de uso da linguagem enfrentados pelos participantes do discurso no
contexto social” (MOITA LOPES, 1996, p. 20), a delimitação entre a Linguística e a LA
como áreas de investigação já se mostrava desnecessária.

Nos anos noventa, almejando não a demarcação do terreno, mas o


fortalecimento e o desenvolvimento de seu campo, observou-se a tentativa do
estabelecimento de regras e padrões para a pesquisa em LA como um modo de
“refinar” seu modus operandi. A essa época, admitiu-se que a maior parte da pesquisa
produzida em LA era baseada em métodos de base positivista (MOITA LOPES, 1996).

Esse modo de fazer LA influenciado por tendências positivistas, que


posteriormente passou a ser chamado de LA modernista (PENYCOOK, 1998), voltava
seu foco para a “resolução de problemas” (MOITA LOPES, 1996). Essa tradição que
operava com uma lógica solucionista foi revista em compreensões contemporâneas
como a de Moita Lopes (2006). Diante dos problemas com os quais se depara ou
111

constrói, observa o autor que

A LA procura problematizá-los ou criar inteligibilidade sobre eles, de


modo que alternativas para tais contextos de uso da linguagem
possam ser vislumbradas. Havia nessa perspectiva [solucionista] uma
simplificação da área, então entendida como lugar de encontrar
soluções para problemas relativos ao uso da linguagem, apagando a
complexidade e efemeridade das situações de uso estudadas, que
não, necessariamente, se replicam da mesma forma, o que
impossibilita pensar em soluções (MOITA LOPES, 2006, p. 20).

Diante de algumas limitações que impunha aos linguistas aplicados e da


compreensão dos mesmos de que o interpretativismo, enquanto paradigma
metodológico, estaria mais adequado à natureza subjetiva das Ciências Sociais
(MOITA LOPES, 1996), as metodologias positivistas foram, paulatinamente, perdendo
lugar. A nova tendência de pesquisa que então surgiu na LA, de base interpretativista,
contribuiu para a diversificação de estudos desenvolvidos na área, que passaram a
contemplar, por exemplo, a etnografia da sala de aula.

Em função da complexidade dos eventos que envolvem a linguagem no


espaço da sala de aula, passou-se a advogar a necessidade de um arcabouço teórico
interdisciplinar (MOITA LOPES, 2006, p. 19). O novo entendimento teve suas bases
na premissa de que os constructos teóricos com os quais o linguista aplicado
precisaria se envolver para gerar compreensão sobre suas questões de pesquisa
atravessavam outros campos do saber. Assim, a vertente da LA que surgia estreitava
seu diálogo com diferentes áreas do conhecimento como a Antropologia, a Sociologia,
a Psicologia Social, os Estudos Culturais.

No anseio por novas formas de fazer pesquisa, a LA mudou então seu foco
positivista (centrado na resolução de problemas) para um campo híbrido,
inter/transdisciplinar, que tenta “criar inteligibilidade sobre problemas sociais em que
a linguagem tem papel determinante” (MOITA LOPES, 2006, p. 14), difundindo a
vertente da LA denominada mestiça ou INdisciplinar, a que me filio no
desenvolvimento desta tese.

O viés inter/transdisciplinar, que Rojo (2006, p. 259) define como a “leveza


de pensamento necessária para compreender, interpretar e interferir nas realidades
complexas representadas nas práticas sociais situadas”, foi fundamental para o
112

desenvolvimento dessa forma INdisciplinar de abordagem da LA. É por estarem


preocupados com a teorização sobre contextos aplicados, onde as pessoas vivem e
agem, sobre as implicações do contexto de mudanças socioculturais, históricas e
políticas na vida desses sujeitos sociais, assim como em percebê-los como
heterogêneos e em constante transformação, que os linguistas aplicados da vertente
INdisciplinar conversam com diferentes áreas do saber.

A multiplicidade de constructos da qual a LA se alimenta responde às


demandas da produção do conhecimento em um mundo fluido e globalizado tal como
se nos apresenta. É nesse sentido que Moita Lopes (2006, p. 96) destaca que, para
“saber sobre linguagem e vida social nos dias de hoje, é preciso sair do campo da
linguagem propriamente dito: ler sociologia, geografia, história, antropologia,
psicologia cultural e social etc.”

Conforme aponta Fabrício (2006, p. 62), a multiplicidade de aportes


teóricos que se faz presente na LA híbrida e inter/transdisciplinar não deve acarretar,
de modo algum, o medo de que a área perca suas especificidades. A autora observa
que a pluralidade de referências costuma nos desconcertar, sendo importante, nesse
sentido, “desaprender a noção de negatividade atribuída à mestiçagem e apostar na
fluidez e nos entreespaços como um modo privilegiado de construção de
conhecimento sobre a vida contemporânea”.

O “preço” dessa “desaprendizagem” (FABRÍCIO, 2006) ou dessa


indisciplina, conforme observa Moita Lopes (2006), é ter que responder, de forma
contínua, perguntas como “O que é a LA”? Se muitos desconhecem o que é a
Linguística Aplicada, também é compreensível que, por conseguinte, não tenham
clara a ideia sobre a natureza das pesquisas que o campo acolhe e possíveis limites
dessa área de investigação que “requer um exercício constante do atravessamento
de fronteiras” (MOITA LOPES, op. cit., p. 26).

No meu caso especificamente, retomando o breve relato com o qual abri


essa seção, o “preço” a ser pago foi me deparar com um questionamento a respeito
justamente das fronteiras que a LA, enquanto área do saber, entrecruzava. Voltando
então ao ponto de partida: mas a Linguística Aplicada estuda sobre surdos?

Sim, estuda. Ao falar “à complexidade da vida contemporânea” (MOITA


LOPES, 2006a, p. 98) e ser responsiva ao mundo social, a LA vem assistindo ao
alargamento de seus limites, tal como vem ocorrendo com as ciências sociais em
113

geral, onde pesquisadores como Moita Lopes (1994, 1996, 2006), Cavalcanti (2006)
e Pennycook (1998) a localizam. Porém, mais importante que se preocupar com tais
limites da LA como campo de investigação, é operar com uma visão de construção de
conhecimento que busca compreender a(s) questão(ões) de pesquisa na perspectiva
de vários campos do saber, com o objetivo de integrá-los (MOITA LOPES, op. cit., p.
98).

Nesse sentido, esclareço que a presente pesquisa – cujas questões


norteadoras são

a) Que representações emergem sobre a identidade linguística de estudantes


surdos no cotidiano de um curso superior bilíngue (LIBRAS/Língua
Portuguesa)?
b) Que representações são construídas pelos participantes da pesquisa sobre
a condição bilíngue (LIBRAS/Língua Portuguesa) do curso e a dos seus
integrantes?

– está inserida no campo dos estudos sobre contextos bilíngues de minorias


(CAVALCANTI, 1999), atualmente uma subárea da Linguística Aplicada que tem dado
visibilidade a diferentes grupos sociais que, a despeito da organização de variados
movimentos político-sociais, ainda são minoritarizados e invisibilizados
(CAVALCANTI, 1999, 2011).

Práticas oficialmente reconhecidas como bilíngues no contexto da surdez,


conforme apontado na introdução deste trabalho, são ainda recentes. Os estudos que
se dedicam à investigação dessa problemática “compreendem o bilinguismo como
alternativa” (NOGUEIRA e SILVA, 2014) para diferentes contextos de minorias
linguísticas, entre os quais se localiza o da surdez, e voltam seu olhar para “os
métodos, as políticas linguísticas, as representações envolvidas, entre outros”.

No caso específico desta tese, o foco está voltado para a construção de


inteligibilidades sobre o cenário bilíngue de um Curso Superior de Pedagogia que
envolve estudantes surdos e ouvintes e tem a língua portuguesa e a LIBRAS se
dividindo como línguas de instrução. Por problematizar esse específico contexto
educacional, sociolinguisticamente complexo (CAVALCANTI, 1999), direcionando
meu olhar para questões relativas à construção de identidades, a representações, ao
114

bilinguismo e à educação bilíngue, a presente pesquisa também se filia, de algum


modo, à LA do emergente, por trazer à tona “não as grandes narrativas, mas as
pequenas histórias dos entrelugares da vida social” (MOITA LOPES, 2013, p. 233).

4.1.2 Pressupostos da pesquisa qualitativa

De acordo com Denzin e Lincoln (2006, p.17), a pesquisa qualitativa, de


modo genérico, pode ser definida como “uma atividade situada que localiza o
observador no mundo”. A abordagem qualitativa surge a partir do desejo de
compreender o “outro”, sendo este “o outro exótico, uma pessoa primitiva, não branca,
proveniente de uma cultura considerada menos civilizada do que a cultura do
pesquisador” (op. cit. p.15).

Apesar de oferecerem uma primeira conceituação geral para o que venha


a ser a pesquisa qualitativa, os autores deixam claro que a mesma não tem um método
ou um paradigma único, visto que trilhou histórias diferentes em cada disciplina e em
cada área que a adotou. Também um campo de investigação, a pesquisa qualitativa
atravessa diferentes escolas científicas, temas e objetos de estudo, sendo seu
contexto histórico bastante complexo.

Denzin e Lincoln (2006) apontam a existência de sete fases que marcam a


pesquisa qualitativa na América do Norte: o tradicional (1900-1950), o modernista ou
da era dourada (1950-1970), o dos gêneros obscuros (1970-1986), a crise da
representação (1986-1990), o pós-moderno (1990-1995), a investigação pós-
experimental (1995-2000) e o futuro (2000-dias atuais). Em cada um desses
momentos, a pesquisa qualitativa assume diferentes significados que, de forma breve,
passo a descrever.

No período tradicional (primeiro momento), os pesquisadores qualitativos


escreviam relatos que se pretendiam objetivos sobre suas experiências de campo.
Influenciados pelo positivismo, buscavam oferecer interpretações válidas, confiáveis
e objetivas em suas investigações. As pesquisas eram feitas sob uma perspectiva
colonialista em que o “outro” era estudado como forasteiro, estrangeiro, estranho. Os
textos eram construídos tendo por base certas premissas: compromisso com a
objetividade, cumplicidade com o imperialismo, crença na atemporalidade dos objetos
de estudo.
115

Na fase modernista (segundo momento), o paradigma pós-positivista era


responsável por sustentar as investigações que operavam com entrevista quase
estruturada e observação participante. A adoção de tal paradigma objetivava a
apresentação de análises padronizadas por modelos estatísticos com a preocupação
de garantir validade interna e externa. Nessa fase, ficou reforçada a imagem do
pesquisador qualitativo como um “romântico cultural”.

Na terceira fase, dos gêneros obscuros, a pesquisa social conta com uma
ampla diversidade de abordagens, métodos e estratégias de coleta e análise de
material empírico. Nesse momento, o observador não possui voz privilegiada nas
interpretações e o compromisso com a objetividade foi colocado em questão. Aqui
surgiram novas abordagens teóricas como o pós-estruturalismo, o neopositivismo, o
neomarxismo, o desconstrucionismo e questões éticas e políticas relacionadas ao
fazer pesquisa ganham relevo.

O quarto momento, o da crise da representação, situado em meados dos


anos oitenta, foi marcado pela luta dos pesquisadores “para encontrar maneiras de
situar a si mesmos e a seus sujeitos em textos reflexivos” (DENZIN e LINCONL, 2006,
p. 17). Nesse sentido, a crise da representação trata também da problematização
sobre a possibilidade de capturar de modo direto a experiência vivida. A crença
passou a ser a de que essa experiência é engendrada no texto do pesquisador, o que
levou ao questionamento, mais uma vez, a respeito das noções de validade e
confiabilidade.

Compreendido entre 1990 e 1995, o quinto momento, nomeado pós-


moderno na história delineada por Denzin e Lincoln (2006), foi marcado pela tentativa
de compreensão da crise da representação que se vivenciou na fase anterior.
Persistiu a preocupação com a representação do “outro”, surgiram epistemologias de
grupos que antes eram silenciados e a ideia de um observador distante foi
abandonada.

O sexto momento, o pós-experimental, foi marcado pela tentativa, por parte


dos autores, de vinculação dos seus textos aos anseios de uma sociedade
democrática livre. Aqui, tanto os textos multimidiáticos como as etnografias ficcionais
são incontestáveis. Depois do sexto momento, findo nos anos 2000, adentramos no
momento futuro, ou seja, o momento atual, a contemporaneidade, que, segundo
Denzin e Lincoln (2006, p. 16),
116

pede que as ciências sociais e a humanidade tornem-se terrenos para


conversas críticas em torno da democracia, da raça, do gênero, da
classe, dos Estados-nações, da globalização, da liberdade e da
comunidade.

Ainda que tracem um histórico acerca da pesquisa qualitativa,


problematizando os diferentes significados que assumiu em cada um desses
momentos delineados, Denzin e Lincoln (2006, p. 17) apresentam uma definição
genérica para o termo:

(...) a pesquisa qualitativa é uma atividade situada que localiza o


observador no mundo. Consiste em um conjunto de práticas materiais
e interpretativas que dão visibilidade ao mundo. Essas práticas
transformam o mundo em uma série de representações, incluindo as
notas de campo, as entrevistas, as conversas, as fotografias, as
gravações e os lembretes. Nesse nível, a pesquisa qualitativa
envolve uma abordagem naturalista, interpretativa, para mundo, o
que significa que seus pesquisadores estudam as coisas em seus
cenários naturais, tentando entender, ou interpretar os fenômenos
em termos dos significados que as pessoas a eles conferem.

É por fazer uso de uma gama de métodos, práticas e materiais empíricos


que o pesquisador qualitativo, segundo Denzin e Lincoln (2006), pode ser visto como
um “bricoleur”. Isso porque produz “um conjunto de representações que reúne peças
montadas que se encaixam nas especificidades de uma situação complexa” (2006, p.
18). O pesquisador, assim entendido, assume o ato de pesquisar como um processo
interativo do qual ele é apenas uma das partes envolvidas e sua visão, parcial, é
articulada à visão dos demais sujeitos. A comunhão entre a multiplicidade de métodos
e a inserção do ponto de vista dos participantes permite que os pesquisadores
qualitativos busquem “melhores formas de tornar mais compreensíveis os mundos da
experiência que estudam”. (DENZIN e LINCONL, 2006, p. 33)

Uma vez que os objetivos precípuos da presente pesquisa envolvem a


compreensão e a problematização de significados construídos por integrantes do
Curso Bilíngue de Pedagogia, é primordial que se coloque em tela, no
desenvolvimento do trabalho, seus pontos de vista, e não apenas as minhas
considerações enquanto pesquisadora. Nesse sentido, deu-se a opção pelo
117

paradigma da pesquisa interpretativista de cunho etnográfico (ERICKSON, 1984,


1989), cujos princípios abordarei no próximo item.

4.1.3 Princípios da etnografia

As raízes da etnografia estão relacionadas ao estudo da vida de grupos


humanos. Conforme aponta com Erickson (1984, p. 2), a palavra etnografia significa,
de modo literal, escrever sobre nações. Tal como Erickson (1984), Winkin (1998)
apresenta o significado do termo etnografia como sendo o estudo de um povo. Winkin
(1998) ressalta, entretanto, que o trabalho do etnógrafo pode ter como foco a análise
não necessariamente de um povo ou de uma nação.

A unidade de análise do etnógrafo pode vir a ser qualquer local em que as


relações sociais são reguladas por costumes. Isso significa que a etnografia não se
realiza somente com uma nação, uma tribo, uma região, um grupo linguístico, mas
também com outros contextos sociais (como uma família, uma fábrica, uma escola, a
enfermaria de um hospital, etc.), desde que os acontecimentos, ao menos em parte,
sejam focalizados sob o ponto de vista dos sujeitos envolvidos.

A palavra etnografia é utilizada para nomear toda uma tradição de


pesquisa. Ao realizar um traçado histórico sobre este tipo de pesquisa, Winkin (1998,
pp. 130-132) delineia três fases – que ele chama de três revoluções – a fim de explicar
os significados que a etnografia assumiu desde o século XIX até os tempos mais
atuais.

A primeira revolução citada por Winkin (1998), ocorrida entre 1915 e 1920
está relacionada à proposta de Bronislaw Malinowski, polonês que acabou por
transformar o campo de estudo. Isso porque, no século XIX, o etnógrafo elaborava
questionários etnográficos com base nas “lentes” dos viajantes ou comerciantes que
eram enviados, principalmente para a África ou Ásia, a fim de que capturassem
informações sobre comunidades desconhecidas do mundo ocidental. Malinowski
distanciou-se dessa etnografia “pré-científica” que se baseava em relatos de viajantes
e foi ele próprio diretamente ao campo coletar os seus dados e tentar compreender a
visão de mundo do nativo. Mantendo-se no campo por certo período de tempo, sem
intermediários, o antropólogo entra em contato com a cultura do outro, que deixa de
ser visto como um animal exótico e passa ser encarado como uma pessoa “cuja vida
118

social se deve tentar reconstituir por observação às vezes participante” (WINKIN,


1998, p.130).

No entreguerras (1930-1935), quando ocorre a segunda revolução,


antropólogos americanos começam a realizar estudos em seu próprio país.
Perceberam, à época, que não era necessário viajar para tão longe do seu lugar de
origem para fazer pesquisa de campo. É assim que pequenas cidades, vistas agora
como um “laboratório natural” (WINKIN, 1998, p. 131), passam a ser estudadas de
modo sistemático, como se fossem microssociedades.

Na terceira revolução, nos anos 50, os antropólogos ampliam seus


horizontes de possibilidades e se desprendem da tendência em pesquisar grupos
dominados (camponeses, índios, mendigos) e desajustados. A partir de então, bairros,
escolas e hospitais começam a ser vistos também como microssociedades que
podem ser estudadas.

Essas revoluções no campo dos estudos etnográficos fizeram com que o


pesquisador atualmente não vá a campo buscando descrever o outro “exótico”. O
distanciamento do pesquisador para com o campo a ser investigado, característico da
etnografia “pré-científica”, há muito deixou de ser uma prerrogativa para este tipo de
estudo. Na etnografia moderna, ocorre justamente o inverso: as pesquisas implicam
intenso e prolongado envolvimento com o campo, que é investigado e analisado a
partir de diferentes pontos de vista.

Na perspectiva de Erickson (1984), o que torna um estudo etnográfico é o


fato de o pesquisador tratar como um todo a unidade social a ser estudada (uma sala
de aula, uma escola, uma família, um setor de uma empresa, etc.), ou seja, qualquer
microcosmo em que as relações sociais são reguladas por determinados costumes,
além de retratar os eventos que estão sendo investigados levando em consideração,
ao menos em parte, os pontos de vista dos atores sociais envolvidos. No caso da
presente pesquisa, estudantes, professores e intérpretes do Curso Superior Bilíngue
de Pedagogia do DESU/INES.

A realização de um trabalho de campo, como pesquisador observador-


participante, requer, como aponta Erickson (1984, 1989) – contrariando princípios da
etnografia antiga – um intenso período de imersão na unidade social em estudo.
Durante o tempo em que permanece em campo, o investigador irá buscar, a partir do
registro de suas observações, uma descrição pormenorizada de tal unidade,
119

incorporando, como já dito, os significados construídos pelos participantes da


pesquisa. Considerar esses significados, entretanto, não se reduz à possível
reprodução de suas falas e seus depoimentos. É preciso atentar para o lugar de onde
falam, suas histórias de vida, suas línguas (PATEL, 2012), seus pontos de vista.

Moita Lopes (1994) compartilha das proposições de Erickson (op. cit.) ao


afirmar que

a pesquisa etnográfica leva em conta que em qualquer estudo


contextualizado é essencial que se leve em consideração a visão que
os participantes (sendo o observador-participante incluído aqui) têm
do contexto e o todo do contexto social. (MOITA LOPES, 1994, p. 334)

É consenso entre os autores aqui referenciados que, a fim de gerar


compreensão acerca dos significados construídos pelos atores sociais, a etnografia
toma como apropriada uma metodologia participativa e colaborativa, baseando-se na
ideia de que o pesquisador necessita do olhar dos sujeitos a fim de entender o que
está ocorrendo. Convergem, portanto, para o estabelecimento da proposição de que,
na etnografia, nenhuma compreensão é válida sem que haja a representação das
vozes (AGAR, 1998) dos participantes.

No desenrolar da pesquisa etnográfica, conforme aponta Erickson (1984),


certas questões devem ser de fundamental atenção para os investigadores, como, por
exemplo, aquelas que buscam aprofundar a compreensão tanto a respeito da unidade
social pesquisada, como também dos comportamentos dos sujeitos participantes da
pesquisa e dos seus próprios comportamentos enquanto pesquisador. Ainda de
acordo Erickson (2001, p. 13), uma das responsabilidades do pesquisador é buscar ir
além do que os sujeitos do contexto analisado entendem de modo explícito,
procurando identificar sentidos que possam estar fora do alcance da consciência dos
mesmos, nos “pontos cegos”. Para tanto, no fazer da pesquisa, não se deve deixar de
lado a natureza arbitrária dos comportamentos humanos. Isso porque muitos eventos
do dia a dia, que correm o risco de passar despercebidos por parecerem comuns, sem
importância, podem, no entanto, guardar aspectos relevantes quando de uma
investigação mais criteriosa. Seguindo essa linha de pensamento, o pesquisador deve
tentar compreender as interpretações dos atores sociais da pesquisa, buscando tornar
estranho o que é familiar e o que é familiar, estranho, detendo seu olhar sobre o que
pode parecer óbvio e questionando aquilo que é tido como convencional.
120

Winkin (1998, p. 141), ao focalizar a atividade da pesquisa de campo,


aponta que uma frustração relativamente comum, por parte do investigador que
pesquisa um contexto que lhe é familiar, é considerar, no início da investigação, que
não há eventos diferentes a serem observados, que não está “acontecendo nada”
naquele local. Aponta ainda, que a dificuldade de “saber ver”, é seguida pela
dificuldade de “saber estar” com os participantes da pesquisa (estar com o outro) e,
finalmente, “saber escrever”, isto é, por em prática o exercício da escrita etnográfica.

O saber escrever de que trata Winkin (1998), entretanto, não deve ser
entendido como uma simples narrativa de um conjunto de eventos. Isso porque a
escrita de base etnográfica, desde o momento em que se adentra o campo até a
produção da versão final do texto gerado pela investigação, deve ser encarada como
um processo de interpretação. Nesse sentido, advirto os leitores para fato de que a
presente tese, resultado final dessa escrita é, então, apenas uma versão possível
sobre o universo pesquisado e não uma reprodução espelhada do mesmo
(EMERSON, FRETZ e SHAW, 1995).

4.2 O cenário da pesquisa

4.2.1 A gênese e a estrutura do Curso Bilíngue de Pedagogia do


Departamento de Ensino Superior (DESU) do INES

O estudo que aqui apresento foi realizado no Departamento de Ensino


Superior (DESU) do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), instituição
federal de ensino vinculada ao Ministério da Educação (MEC), localizada na cidade
do Rio de Janeiro, no bairro Laranjeiras, zona sul da região metropolitana.

O Curso Bilíngue de Pedagogia do Departamento de Ensino Superior


(DESU) do INES, uma experiência precursora não apenas no Brasil, como em toda a
América Latina, funciona em um prédio situado na parte dos fundos do terreno do
INES, onde também estão localizados espaço de caráter desportivo e recreativo da
instituição, como um campo de futebol society e uma piscina semiolímpica, utilizados
sobretudo pelo DEBASI (Departamento de Educação Básica).

As instalações do Curso ocupam apenas o referido edifício de três andares,


inaugurado em 2005 pelo então Ministro da Educação Fernando Haddad, com a
121

finalidade de acolher a graduação que se iniciaria muito em breve. Esses três pisos
abrangem tanto as dependências voltadas para as atividades administrativas do
Curso (secretaria, salas de coordenação e direção) quanto para as pedagógicas
(salas de aula, laboratórios, sala de gravações/filmagens, etc.)

Todas as salas de aula disponíveis possuem um computador conectado à


internet em banda larga, monitores de TV LCD 42 polegadas e projetores para
exibição de apresentações em PowerPoint, filmes e demais conteúdos. Existe ainda
uma sala de aula dotada de quadro digital interativo, que permite a livre utilização e
projeção de conteúdos digitais, incluindo filmes, a pesquisa em rede, a intervenção na
tela e outros procedimentos que podem dinamizar o processo de ensino e
aprendizagem.

O Curso Bilíngue de Pedagogia tem sua grade curricular prevista para ser
concluída em 8 semestres letivos. Cada semestre está organizado em torno de um
Eixo Norteador, que, de acordo com a Proposta do Curso, “[permeará] a organização
de conteúdos curriculares e modos de operacionalização do trabalho pedagógico”
(MEC/INES, 2006, p. 19). Diferente de muitos cursos de graduação que trabalham
com o modelo de créditos, o Curso Bilíngue adotou um regime seriado. Nesse regime,
o estudante não monta sua grade de horários: é sempre matriculado, caso nunca
reprovado, em todas as disciplinas previstas para cada um dos oito períodos letivos.
Para ser promovido de forma direta para o período letivo subsequente, o aluno precisa
ser aprovado em todas as disciplinas. Caso, entretanto, seja reprovado em até duas
disciplinas em um mesmo semestre, o aluno é promovido, mas em caráter de
dependência, que, apenas quando cumprida, dá direito ao aluno de novamente
solicitar dependência. No caso de ser reprovado em mais de duas disciplinas em um
único período letivo – excetuando a de Língua Portuguesa76 -, o estudante está
automaticamente reprovado e precisa cursar novamente todas as disciplinas do
semestre em questão.

Os oito semestres são perpassados por diferentes eixos disciplinares que

76
A Língua Portuguesa Escrita não está incluída entre as duas disciplinas que o estudante do Curso
Bilíngue de Pedagogia pode reprovar em um único semestre. Isso significa que, caso reprovado
em duas disciplinas, sendo a terceira a Língua Portuguesa Escrita, o aluno será promovido ao
período letivo subsequente no regime de dependência, mas não poderá cursar a cadeira de Língua
Portuguesa subsequente enquanto não cumprir a dependência daquela em que ficou reprovado,
pois essa é uma disciplina em caráter sequencial, em que cada módulo é pré-requisito para o
posterior.
122

se dividem em três núcleos que perpassam toda a formação do licenciando: (i) Núcleo
de Estudos Básicos, (ii) Núcleo de Aprofundamento e Diversificação de Estudos e (iii)
e Núcleo de Estudos Integradores. A título de exemplo, a disciplina Língua Portuguesa
figura no Núcleo de Estudos Básicos e está prevista em 7 (sete) do total de 8 (oito)
períodos do Curso. Intitulada Língua Portuguesa Escrita – seguida do número que
indica a ordenação de cada período letivo (Língua Portuguesa Escrita I, II, II, etc.) – a
disciplina é obrigatória e conta, em cada semestre, com a carga média de 4 horas
semanais. Acrescento o importante dado de que essa é a única disciplina em que os
alunos são obrigatoriamente avaliados por meio de produções escritas. Todas as
outras ementas preveem que os alunos podem optar pela avaliação escrita ou pela
avaliação em língua de sinais, gravada em vídeo na presença do professor, do aluno
e de um intérprete de língua de sinais, que é assegurado em todas as aulas do Curso,
assim como nas atividades de extensão e pesquisa desenvolvidas no âmbito do
Departamento de Ensino Superior.

4.2.2 Exame vestibular de acesso ao Curso Bilíngue de Pedagogia do DESU

O primeiro vestibular realizado pelo INES, no ano de 2006, previa o


ingresso de 60 (sessenta) alunos – 30 (trinta) surdos e 30 (trinta) ouvintes – no Curso
Normal Superior (Licenciatura, habilitações em Magistério para Educação Infantil e
em Magistério para anos iniciais do Ensino Fundamental). Os sessenta primeiros
candidatos aprovados, conforme classificação, constituíram duas turmas: uma no
turno da tarde e outra no turno da noite.

Esse primeiro concurso vestibular do DESU ocorreu em duas etapas. Em


um primeiro momento, os candidatos foram submetidos à prova de redação e à prova
objetiva com oitenta questões de múltipla escolha de Língua Portuguesa e Literatura
Brasileira, língua estrangeira (inglês ou espanhol), Física, Química, Biologia,
Matemática, História e Geografia. Na segunda etapa, os candidatos realizaram um
exame cujo objetivo era verificar seus conhecimentos acerca da LIBRAS, uma das
línguas de instrução do Curso, sendo exigido um nível considerado básico.

No ano seguinte, o edital para o vestibular do INES previa que os futuros


alunos ingressariam no Curso Bilíngue de Pedagogia, e não mais no Curso Normal
123

Superior, conforme apontava o edital do ano anterior77. No que diz respeito ao modelo
de exame colocado em prática pelo edital de 2007, foi mantida a divisão em duas
etapas: a primeira contemplando questões objetivas das diferentes disciplinas
curriculares do Ensino Médio e uma prova de redação, já a segunda abrangendo a
prova de conhecimentos de LIBRAS.

Até o ano de 2011, o exame vestibular organizado pelo INES contemplou


esse modelo configurado em duas etapas, com aplicação de prova com questões
objetivas, referentes às disciplinas do currículo do Ensino Médio, prova de Redação e
também prova de LIBRAS para todos os candidatos. A partir do ano de 2012, o edital
do vestibular sofreu significativas mudanças: não apenas foi alterado o formato do
exame no que diz respeito às provas realizadas pelos candidatos, como também
foram alterados os turnos em que seriam abertas novas turmas.

O exame de vestibular promovido em 2012, cujas turmas iniciaram o


primeiro período letivo no primeiro semestre do ano de 2013, foi realizado em uma
única etapa que abrangia a prova de Redação, cuja pontuação máxima a ser obtida
era 50 pontos, e a avaliação de conhecimento e uso de LIBRAS, também com o limite
máximo a ser atingido de 50 pontos. As duas avaliações mantiveram seu caráter
eliminatório/classificatório: para não ser eliminado, o candidato não poderia obter nota
inferior a 50% do valor total de cada avaliação.

A partir do edital de 2012, o INES distribuiu as suas 60 vagas do Curso


Bilíngue entre os turnos matutino (30 vagas) e noturno (30 vagas), e não mais entre
os turnos vespertino e noturno. Essa mudança com relação aos turnos deveu-se, em
boa medida, à evasão verificada nas turmas da tarde. Eram frequentes os pedidos de
transferência por parte dos alunos das turmas da tarde para as turmas da noite,
sobretudo em razão do curso noturno ampliar a possibilidade de se conjugar a
graduação com o exercício de alguma atividade profissional.

Atualmente o Departamento continua ofertando 60 vagas: 30 (trinta) vagas


para surdos78 e 30 (trinta) vagas para ampla concorrência, distribuídas
equitativamente, nos turnos matutino e noturno, às quais podem concorrer candidatos

77
O processo da mudança na modalidade do curso oferecido pelo INES foi explicitado na introdução
desta tese.
78
Conforme previsto nos editais, os candidatos surdos, quando aprovados, devem apresentar laudo
médico no ato da matrícula a fim de comprovar perda auditiva nos termos do artigo 4º, inciso II, do
Decreto nº 3.298/1999, com a redação dada pelo Decreto nº 5.296/2004.
124

que tenham concluído o Ensino Médio ou estudos equivalentes e que tenham fluência
na Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS. Na prova de Redação é exigido que o
candidato desenvolva um texto dissertativo-argumentativo, em prosa. Os editais do
exame deixam claro que, na correção da prova de Redação “serão consideradas as
especificidades linguísticas dos candidatos surdos, usuários do português como
segunda língua, desde que sem prejuízo ao conteúdo”79.

A prova de LIBRAS também totaliza 50 (cinquenta) pontos e, assim como


a de Redação, possui caráter eliminatório/classificatório. A prova, gravada em vídeo,
é realizada individualmente, em período de tempo de 15 minutos, no qual se avalia a
fluência do candidato na língua, sendo considerados os seguintes aspectos: (1)
compreensão do tema proposto para a interação entre a banca e o candidato; (2)
sinais corretos; (3) competência de interação; (4) fluência; (5) adequação gramatical.

Para a obtenção da classificação final do exame vestibular, são somadas


as notas da prova de Redação e de LIBRAS. Os candidatos não eliminados têm suas
notas somadas e o desempate tem como critérios a maior nota na prova de LIBRAS,
seguida da maior nota na prova de Redação, a procedência da rede pública de ensino
do candidato e, por último, a idade (os mais velhos têm a preferência).

4.2.3 Quadro de docentes do DESU

Quando iniciado, em 2006, o ainda intitulado Curso Normal Superior


Bilíngue não possuía docentes efetivos. Já com as aulas das primeiras turmas em
andamento, foi realizado o primeiro concurso para compor o quadro de docentes
efetivos do Departamento de Ensino Superior do INES. Por meio desse concurso,
finalizado no início de 2007, oito professores foram admitidos e iniciaram suas
atividades ainda no primeiro semestre desse mesmo ano. Esse quantitativo de
professores, entretanto, não supria a necessidade do Curso, razão pela qual outros
profissionais, em regime temporário, foram também contratados.

Uma das dificuldades para o fortalecimento do Curso, normalmente


apontada pelos professores efetivos do Departamento, desde o tempo que nele atuei

79
O último edital publicado pelo DESU está disponível em
http://vestibular.ines.gov.br/vestibular_novo/docs/ines_vestibular_2016_edital_portugues.pdf
Acesso em 20/11/2015.
125

como substituta em disciplinas do campo da linguagem, era a rotatividade de


profissionais docentes. Como praticamente metade do quadro até o ano de 2013 era
composto por temporários, cujo período limite de contrato para atuação não poderia
ultrapassar dois anos seguidos, era grande a dificuldade de implementação de grupos
e projetos de pesquisa e outras atividades acadêmicas que demandam trabalho em
regime de dedicação exclusiva.

O panorama referente aos profissionais docentes do DESU finalmente seria


alterado, depois de alguns anos de funcionamento do Curso Bilíngue, no segundo
semestre de 2014, em virtude da realização de concurso público de provas e títulos
para preencher o seu quadro de efetivos. O concurso, que disponibilizou trinta e nove
vagas para professores doutores de diferentes áreas do conhecimento, buscou não
somente a recomposição do quadro, mas também ampliá-lo, visando à
implementação do Curso Bilíngue de Pedagogia na modalidade a distância e de
outros cursos de pós-graduação80. Com a implementação de mudanças no currículo
do Curso que estavam previstas para o início de 2015, a contratação de docentes
também buscou contemplar as disciplinas que integrariam a nova a grade curricular.

4.2.4 Os tradutores intérpretes de LIBRAS/Língua Portuguesa (TILS)

Conforme prevê o Projeto do Curso Bilíngue de Pedagogia (INES-MEC,


2006), o Departamento de Ensino Superior do INES (DESU/INES) tem como uma de
suas premissas básicas de funcionamento a garantia de que em todas as atividades
de sala de aula, assim como naquelas que se desenvolvem no âmbito da extensão ou
da pesquisa universitária, haverá a presença do profissional tradutor intérprete de
LIBRAS/Língua Portuguesa.

Diante de tal garantia, desde 2006 o Curso Bilíngue já possuía intérpretes


em seu quadro de funcionários. Até o início do ano de 2013, entretanto, o DESU
contou apenas com a atuação de intérpretes terceirizados. O número de profissionais
equivalia ao número de turmas em funcionamento, o que significa que o intérprete
atuava praticamente de forma ininterrupta durante todo o turno das aulas, com

80
Até o momento, o Departamento de Ensino Superior do INES oferece o curso de pós-graduação
denominado “Educação de Surdos: uma perspectiva bilíngue em construção”, que conta com aulas
semanais aos sábados e tem aberto turmas com periodicidade anual.
126

duração média de 4 horas.

Uma das dificuldades encontradas pelo INES para a contratação de TILS 81


(Tradutores Intérpretes de Língua de Sinais/Português) efetivos dizia respeito ao fato
de que, até o ano de 2010, não havia a previsão e o reconhecimento dessa profissão
no Plano de Carreira dos Cargos dos Técnico-Administrativos em Educação, que
regula os servidores na esfera federal. Essa regulamentação ocorreu somente por
meio da Lei nº 12.319/2010, o que finalmente permitiu, por parte do DESU, a
organização da contratação de intérpretes efetivos.

Tal contratação se deu em 2013, quando o DESU recebeu dezesseis


servidores intérpretes devidamente aprovados em concurso público de provas e títulos
que teve como exigência mínima aos candidatos a conclusão do Ensino Médio
completo e a proficiência em LIBRAS, a ser comprovada por meio da apresentação
do Certificado de Proficiência em Tradução e Interpretação da LIBRAS/Língua
Portuguesa (ProLIBRAS82). Esse número foi ampliado para trinta e dois no ano de
2014, quando o Departamento contratou mais dezesseis profissionais efetivos.

Do total de trinta e dois profissionais, vinte têm atuado na interpretação das


atividades em sala de aula. Na dinâmica do Departamento, cada turma conta com o
trabalho de dois profissionais que se revezam na interpretação a cada intervalo de
vinte minutos: enquanto um profissional está desenvolvendo a interpretação, o outro
membro da dupla aguarda seu próximo turno, procedendo-se assim desde o início até
o fim de cada dia de aula. Além desses, oito profissionais estão responsáveis pela
intepretação em atividades diversas do DESU (palestras, seminários, cursos de
extensão etc.) e seis desenvolvem a atividade de tradução de materiais, um grande
diferencial implementado no Departamento.

81
A sigla TILS (Tradutor Intérprete de Língua de Sinais) tem sido utilizada paralelamente à TILSP
(Tradutor Intérprete de Língua de Sinais e Português), tendo em vista que a Língua Portuguesa
também é instrumento de trabalho desses profissionais. No tocante à referência à profissão na
literatura, o termo intérprete de língua de sinais vem sendo usado paralelamente à expressão
tradutor intérprete de língua de sinais, que é utilizada na legislação regulamentadora. Ao logo da
tese, uso a sigla TILS, conforme nomenclatura então adotada no DESU e, quando não faço uso da
sigla, emprego apenas o termo intérprete.
82
O ProLIBRAS, instituído pelo Ministério da Educação MEC por meio do Decreto nº 5.626, de 22 de
dezembro de 2005, é o Exame Nacional para Certificação de Proficiência no Ensino da Língua
Brasileira de Sinais (LIBRAS) e para Certificação de Proficiência na Tradução e Interpretação da
LIBRAS/Língua Portuguesa. Podem se inscrever no ProLIBRAS pessoas surdas ou ouvintes que
concluíram o Ensino Médio ou que venham a concluí-lo até a data especificada em cada edital que
regulamenta o Exame. Cada candidato pode optar apenas por uma das certificações oferecidas por
edição do ProLIBRAS, o que significa que, caso queira a certificação tanto no Ensino da LIBRAS
quanto na Tradução e Interpretação, o candidato precisará se submeter a duas edições do Exame.
127

4.3 Percurso Metodológico

4.3.1 (Re)Aproximação com o campo

Depois de ter me desligado do quadro de docentes substitutos do Curso


Bilíngue, em 2010, em função do ingresso como efetiva em outra instituição federal
de ensino, minha inserção no INES ficou mais restrita. Como tencionava desenvolver
minha pesquisa de Doutorado no contexto da surdez desde quando iniciei a atividade
docente no DESU, além de frequentar diversos eventos acadêmicos promovidos no
âmbito do INES, inscrevi-me, em 2011, em um Programa de Prática Profissional83 que
havia sido recentemente criado no Instituto. Por incompatibilidade de horários,
entretanto, não pude ingressar no Programa, conforme planejava.

Embora não tenha ingressado no referido Programa, entre o término do


período em que compus o quadro de docentes do Curso e o início do trabalho de
campo, dirigi-me ao DESU em diferentes oportunidades. Tendo em vista que o meu
projeto de pesquisa foi pensado para ser desenvolvido no contexto do ensino superior,
inicialmente agendei uma conversa informal com a então diretora do Curso. O objetivo
do bate-papo era o de apresentar meu projeto de Doutorado e me certificar de que o
mesmo poderia ser acolhido pelo Departamento. Em outra visita, já mais próxima do
início da realização do trabalho de campo, a Diretora pôs-me em contato com o setor
de pesquisas do Instituto, a fim de me orientar a respeito dos trâmites necessários
para obter a autorização oficial do INES e, desse modo, poder dar início à minha
pesquisa.

Depois de meu trabalho de campo estar oficialmente cadastrado no setor


competente do INES, o DDHCT, estive novamente em visita ao DESU. Dessa vez,
para acertar junto à coordenadora pedagógica detalhes relativos ao desenvolvimento
da pesquisa. Diante dos propósitos do trabalho, que previa a permanência no campo
por dois semestres letivos, manifestei minha preferência por acompanhar uma turma
não esvaziada e com um número equilibrado de estudantes surdos e ouvintes. A partir
das informações que trocamos nessa conversa, relativa à composição do quadro

83
Denominado PROPP, o programa desenvolvido pelo INES tem como finalidade possibilitar aos
participantes que atuam ou pretendem atuar com surdos, sob a supervisão direta de profissionais de
diversas áreas do INES, a observação/coparticipação em ambientes reais de atuação técnico-
pedagógica.
128

discente, decidimos, juntas, em que turma viria desenvolver o trabalho. Finalmente,


então, estavam delineados os contornos metodológicos do estudo.

4.3.2 A turma observada

A turma escolhida para ser por mim acompanhada contava, no momento


da minha entrada em campo, com a frequência regular de vinte e quatro alunos. Entre
esses, havia onze alunos ingressantes nas vagas destinadas a surdos e treze alunos
que ocuparam vagas destinadas a ouvintes. Antes do primeiro semestre ser finalizado,
três alunos evadiram do Curso e dois trancaram-no depois da conclusão do referido
semestre. No início do segundo semestre letivo, portanto, o grupo era composto pelos
dezenove estudantes que mantiveram a matrícula ativa e por três alunas que se
transferiram do turno da manhã para o turno da noite, configurando uma turma de
vinte e dois estudantes. Devido a algumas modificações na composição da turma,
perdi a oportunidade de registrar o depoimento de alguns alunos que não integravam
mais o grupo quando do momento da realização das entrevistas.

A referida turma, como de costume no DESU, tinha um perfil bastante


heterogêneo: havia jovens surdos e ouvintes de todas as idades. Alguns desses
estudantes haviam acabado de concluir o Ensino Médio, enquanto outros já se
encontravam afastados há muito tempo dos bancos escolares. Entre os alunos
ouvintes, a maioria se enquadrava em ao menos uma das seguintes características:
familiar de surdo, fiel de igreja de orientação protestante, profissional com experiência
de trabalho no campo da surdez (intérprete, assistente educacional etc.). Apenas a
minoria desses alunos era recém-saída do Ensino Médio. Entre os estudantes surdos,
o perfil era um pouco diferente: a maioria havia finalizado há pouco a Educação
Básica, sendo alguns deles oriundos do CAp/INES, enquanto outros eram
provenientes de escolas inclusivas.

Em comum, guardam, por exemplo, o fato de serem oriundos dos mais


diversos bairros da cidade do Rio de Janeiro ou de cidades circunvizinhas, sobretudo
de algumas localizadas na baixada fluminense (Duque de Caxias, São João de Meriti
e Nova Iguaçu); de terem frequentado, em sua maioria, escolas da rede pública de
ensino ao longo da maior parte da escolarização básica e o de terem a LIBRAS
compondo seu repertório linguístico.
129

No quadro 1, apresento os estudantes que compuseram a turma ao longo


do desenvolvimento da pesquisa. Esclareço que a caracterização dos mesmos
enquanto surdos ou ouvintes, problematizada na análise, está de acordo com a
condição pela qual ingressaram no vestibular e que os nomes utilizados, para fins de
anonimato, são todos fictícios.

Quadro 1: Composição da turma

Estudantes Surdos Estudantes ouvintes

Amanda Carlos

Anita Denise

Cláudia Fabiana

Felipe Graziele

Jéssica Juliana

Júlia Lídia

Lucas Maiara

Manoel Marta

Marcos Milena

Miguel Pablo

Rute Raquel

Regina

Roberta

Rosa

Vitória

Wander
130

4.3.3 A inserção no campo e os procedimentos da geração dos registros

Apresentada a composição da turma e outros aspectos relativos ao cenário


da pesquisa, passo a descrever como se deu o processo de geração dos registros.
Os procedimentos adotados nesse processo consistiram:

a) na observação das aulas e de outros eventos acadêmicos (palestras,


seminários, reuniões etc.) que a turma acompanhada era convidada a
participar;

b) na elaboração de notas durante os momentos de observação;

c) na elaboração de diário de campo com entradas diferentes para cada dia de


observação;

d) na realização de entrevistas com estudantes, professores e intérpretes do


Curso Bilíngue.

Minha inserção no campo de pesquisa teve a duração total de dois


semestres letivos do Curso Bilíngue de Pedagogia. Ao longo desse período, em que
frequentei o DESU em média três vezes por semana, tive a oportunidade de
acompanhar a turma em nove diferentes disciplinas84 que serão identificadas pelos
professores responsáveis por ministrá-las. No total, são apenas sete docentes, tendo
em vista que dois deles acompanharam a turma em duas diferentes cadeiras. Na
análise dos registros, os professores serão identificados com pseudônimos que
correspondem a planetas do sistema solar: Júpiter, Mercúrio, Marte, Plutão, Saturno,
Urano e Vênus. Já os TILS receberam como pseudônimos Lua e Sol.

As entrevistas com os estudantes, professores e TILS foram realizadas nos


três últimos meses em que estive no campo. A decisão de deixar para o fim da
pesquisa a gravação de depoimentos, embora tenha me oportunizado a maior
familiarização com os participantes da pesquisa e uma melhor compreensão sobre o
cotidiano da turma, infelizmente também me trouxe alguns imprevistos que se
tornaram complicadores. Um desses complicadores foi a evasão de alunos, já referida
no início desta seção. Outro complicador diz respeito à busca por depoimentos dos

84
Optei por não nomear as disciplinas como estratégia de preservação do anonimato dos docentes.
131

professores que ministraram aulas na turma. A maioria dos docentes que ministrou
aulas para a turma acompanhada durante o período da pesquisa de campo não
pertencia ao quadro efetivo do DESU. Diante da finalização antecipada de alguns
contratos de trabalho, fiquei impossibilitada de buscar alguns depoimentos.

Todas as entrevistas foram registradas em áudio ou em áudio/vídeo, a


depender da(s) língua(s) em uso pelos participantes. Ao fazer o convite aos
voluntários que sabia previamente que usariam a língua de sinais, suscitando a
presença de um profissional intérprete, estive em consonância com o preconizado
pela FENEIS no que tange especificamente à questão da relação de confiança
necessária entre sujeito interpretado e a figura do profissional intérprete.

Sendo assim, informei a cada um a intenção de convidar para mediar a


gravação das entrevistas um intérprete que, no DESU, era também aluno da turma,
portanto, companheiro de sala dos estudantes participantes. Todos acordaram com
essa proposta e não fizeram ressalvas quanto à figura de Pablo85. A ideia de convidar
esse aluno para a atividade de interpretação das entrevistas visou contemplar três
requisitos principais: (1) a experiência profissional na atividade de interpretação; (2) a
desejável familiaridade entre sujeitos interpretados e o intérprete e (3) a
disponibilidade de horários para interpretação e posterior transcrição em conjunto com
a pesquisadora.

As entrevistas com os estudantes foram realizadas antes do turno das


aulas, em horários vagos, ou ao término das aulas, quando essas se encerravam
antes do horário regular. No caso dos intérpretes, os depoimentos foram gravados no
período da tarde, quando esses profissionais estavam fora da sala de aula e
dispunham de maior tempo livre. Com os professores, foram agendados horários em
dias em que estariam no DESU por ocasião de suas aulas e/ou demais atividades
acadêmicas.

No caso dos participantes cuja interação envolveria a língua de sinais, em


virtude das especificidades que a filmagem requer (iluminação, posicionamento
específico da câmera para filmar tanto o intérprete quanto o entrevistado), pedi
autorização à coordenação do Departamento para utilizar um laboratório de ensino
localizado no primeiro andar. Os demais depoimentos foram registrados em salas de

85
Pablo mantinha bom relacionamento interpessoal com todos os estudantes surdos que concederam
depoimento em língua de sinais.
132

aula que estivessem ociosas.

Uma vez realizadas as entrevistas, dei início ao trabalho de transcrição


daquelas que foram realizadas somente na linguagem oral, registradas somente em
áudio por meio de equipamento de mp3. As que foram registradas em áudio/vídeo em
minha filmadora, por terem decorrido também em língua de sinais, foram
posteriormente transcritas de forma conjunta com Pablo, o intérprete que já havia
participado da geração dos registros.

Em ambos os casos, a transcrição foi feita em português e fez valer o


conteúdo das falas, razão pela qual não foram utilizados os padrões de tradução em
glosas no caso dos depoimentos concedidos em língua de sinais. Nas transcrições, o
sinal “(...)” indica supressão de texto, as reticências sinalizam pausas prosódicas e os
colchetes introduzem informações contextuais que não figuram nos excertos.

Todos os registros integrantes da tese que reproduzem o discurso direto


em LIBRAS ou em língua portuguesa oral, quando originários do meu diário de campo
ou de notas, são grafados em itálico dentro ou fora dos boxes. No caso de a língua
em uso ser a LIBRAS, o trecho é antecedido pelo símbolo , conforme propõe Gesser
(2006).
133

5. ANÁLISE DOS REGISTROS

Neste capítulo, apresento a análise de registros gerados (CAVALCANTI,


2006; MASON, 1997) a partir da minha inserção durante dois semestres letivos, na
posição de pesquisadora, no Curso Superior Bilíngue (LIBRAS/Língua Portuguesa)
de Pedagogia ofertado pelo Departamento de Ensino Superior do Instituto Nacional
de Educação de Surdos (DESU/INES). Este trabalho, interpretativista de cunho
etnográfico (ERICKSON, 1984, 1989; DENZIN E LINCOLN, 2006), filiado à Linguística
Aplicada em sua vertente INdisciplinar (MOITA LOPES, 2006), buscou gerar
compreensão acerca das seguintes questões norteadoras:

a) Que representações emergem sobre a identidade linguística de estudantes


surdos no cotidiano de um curso superior bilíngue (LIBRAS/Língua
Portuguesa)?
b) Que representações são construídas pelos participantes da pesquisa sobre
a condição bilíngue (LIBRAS/Língua Portuguesa) do curso e a dos seus
integrantes?

As respostas para esses questionamentos serão construídas a partir da


análise dos registros gerados etnograficamente, que se constituíram de notas, diário
de campo, conversas informais e entrevistas em áudio e em áudio/vídeo. Quanto à
organização da apresentação dos registros ao longo do capítulo, esclareço que os
excertos que seguem dispostos em boxes com as linhas numeradas correspondem a
trechos de entrevistas e a trechos de meu diário de campo, enquanto notas curtas
aparecem inseridas no corpo do texto. Os trechos correspondentes a depoimentos
somente figuram em itálico quando dispostos fora dos boxes. Ressalto, ainda, que
foram negritadas as passagens consideradas mais relevantes para os propósitos da
análise.
134

5.1 “Ele tem é que lutar pela LIBRAS! Se ele é surdo, ele precisa lutar pela
LIBRAS”: a mobilização por unidade

A fala título com que abro a primeira seção dedicada à análise dos registros
– “Se ele é surdo, ele precisa lutar pela LIBRAS” – foi extraída de uma nota de
campo elaborada no contexto da disciplina ministrada por Mercúrio, que neste dia
específico, era destinada à apresentação/caracterização do discurso linguístico sobre
a surdez, ou seja, sobre a surdez como uma diferença linguística, e representava a
continuidade de uma aula reservada à problematização do discurso médico sobre a
surdez.

Neste dia de aula, foi indagado aos estudantes se eles haviam tomado
conhecimento de uma discussão sobre o procedimento de implante coclear que foi
travada, tempos atrás, no programa de Tv da apresentadora Ana Maria Braga. Foi
explicado que, por conta de haver um personagem surdo sinalizante na novela Cama
de Gato86, um grupo de médicos foi chamado ao programa para falar sobre a surdez,
apresentando o implante coclear como possibilidade de cura.

A discussão inicial da aula se pautou, nesse sentido, sobre o processo de


medicalização da surdez e da normalização que pode representar a cirurgia de
implante coclear. Foi projetado no quadro um vídeo (sinalizado com legenda em
português) para a turma em que um indivíduo surdo, bastante conhecido nos
movimentos surdos, explica o que ocorreu nesse programa da apresentadora Ana
Maria Braga e convida seus pares a se unirem e a se manifestarem, em repúdio ao
que foi dito sobre os surdos e sobre a LIBRAS ao longo do referido programa de
televisão. Depois de assistirem ao vídeo, alguns estudantes surdos da turma deram
depoimentos sobre pessoas conhecidas implantadas e o debate voltou-se para as
dificuldades que podem ocorrer com o indivíduo implantado no caso, por exemplo, de
o aparelho apresentar problemas de funcionamento.

A aluna Júlia, buscando apontar possíveis prejuízos da adoção do implante,


iniciou seu relato deixando claro que foi oralizada desde a infância e só teve acesso à
língua de sinais em certa altura da vida, já adolescente. Afirmou que quando começou

86
A novela foi transmitida pela Rede Globo de Televisão, entre 2009 e 2010, às 18 horas. O
personagem surdo se chamava Tarcísio e era um pianista que havia ficado surdo.
135

a ter contato com surdos que usavam LIBRAS, passou ela também a aprender essa
língua: foi quando se sentiu “mais leve”. Comentou que sua família não queria que
ela aprendesse língua de sinais, pois considerava que ela não precisaria daquilo, já
que foi oralizada. (Nota de campo da pesquisadora)

A partir do depoimento da aluna Júlia, Mercúrio chamou a atenção para o


fato de que algumas famílias tratam a LIBRAS como a última opção para a criança,
ou seja, para o fato de que muitas vezes os pais procuram viabilizar a realização do
implante coclear como a “solução” para o que consideram um problema, mas que
quando o procedimento não dá certo por alguma razão, buscam “oferecer a LIBRAS
para o filho” como uma espécie de último recurso. Foi enfatizado, durante a exposição
de Mercúrio, que, em sua concepção, o implante coclear não deveria inviabilizar o
aprendizado da LIBRAS pela criança, porque, caso contrário, pode representar um
prejuízo ao desenvolvimento da mesma. Segundo a argumentação, isso raramente
acontece porque o implante visa à eliminação da LIBRAS ou a não entrada do surdo
no mundo da LIBRAS. Afirmou, então, ser contra a cirurgia de implante nesses casos.
Na sequência, o aluno Felipe lançou o seguinte questionamento: “Como pode um
surdo querer ser implantado? Ele tem é que lutar pela LIBRAS! Se ele é surdo,
ele precisa lutar pela LIBRAS!”. (Nota de campo da pesquisadora)

O episódio acima narrado deixa patente o “choque de normatividades”


(SILVA, 2012, p. 25) sobre a surdez que, ainda na atualidade, continua vigente. De
um lado, o objeto discursivo surdez é concebido em um modelo medicalizante 87 que,
desde o século XIX, estabilizou certos significados que envolvem os indivíduos surdos
em torno da cura, da reabilitação, da normalização. De outro, esse mesmo objeto
insere-se em um modelo denominado socioantropológico (SKLIAR, 1997b) – cuja
emergência no Brasil se deu há cerca de três décadas – no qual a LIBRAS funciona
como elemento catalisador para a emergência das noções de cultura(s), identidade(s)
e comunidade(s) surda(s).

Na cena retratada, a partir do resgate de um dado ficcional com


desdobramentos em uma discussão real, foram problematizados, ao longo da aula,
certos saberes médicos que insistem em narrar a surdez como uma patologia passível

87
Na concepção de Skliar (1997, p. 111), medicalizar a surdez “significa orientar toda a atenção à cura
do problema auditivo, à correção de defeitos da fala, ao treinamento de certas habilidades menores,
como a leitura labial e a articulação, mais que a interiorização de instrumentos culturais significativos,
como a língua de sinais".
136

de ser curada por meio de procedimento do implante coclear que, conforme aponta
Santana (2007, p. 28), “é visto pelos surdos como mais uma tentativa “fracassada” de
tornar o surdo um ouvinte”.

Paralelamente à problematização ensejada, ressalta-se a reação de dois


estudantes à discussão travada em sala de aula. Júlia externa a visão de seus pais a
respeito da LIBRAS – visão essa que, pelo relato da aluna, limitou-se a considerar a
língua de sinais enquanto um mero recurso comunicativo do qual ela prescindiria – e
à leveza que essa modalidade linguística representa para ela. Já Felipe imprime um
“tom” de indignação à sua fala ao considerar a possibilidade de um indivíduo surdo
optar por ser implantado. Ele condiciona o “ser surdo” (“Se ele é surdo”...) à
assunção da luta política em prol da LIBRAS (... “ele precisa lutar pela LIBRAS”)
e assume a posição de quem está circunscrito no discurso normativo que narra a
surdez enquanto diferença ou particularidade “étnico-linguística” (SILVA, 2012).

Sentada ao fundo da sala de aula – posição estrategicamente escolhida


por mim para assistir às aulas –, não pude deixar de ouvir a conversa paralela travada
entre duas alunas ouvintes da turma em reação à fala do colega Felipe. Lançaram
questionamentos entre si: “mas ué, quer dizer então que o surdo não pode querer
ser implantado?”88. A pergunta foi replicada pela colega: “E se eu tiver um filho
surdo? Eu não tenho direito de querer fazer cirurgia nele?”.

Esse diálogo travado deixa transparecer que ambas alunas questionam


entre si o posicionamento do colega Felipe que, não apenas condena o desejo de uma
pessoa surda proceder ao implante coclear, como também aponta para o
estabelecimento do critério linguístico como preponderante e central no
reconhecimento da(s) identidade(s) surda(s) (FERNANDES, 2003, p. 22). Soma-se a
esse critério fundamental, um segundo condicionante: a necessidade da militância
política (... “ele precisa lutar pela LIBRAS”).

Sobre a necessidade de engajamento político enfatizada pelo aluno Felipe,


Lopes e Veiga-Neto (2006, p. 87-88) observam que a mesma parece funcionar como
uma espécie de

elemento estruturador de um tipo de identidade surda – um tipo de

88
Diálogo registrado em nota de campo.
137

identidade combatente que necessita estar em luta para poder existir


e ser reconhecida. Nessa forma de ser surdo, a luta travada
constantemente aparece como sendo uma marca cultural da diferença
surda. A luta é um imperativo alimentado por muitos surdos porque,
com ela, conseguem estabelecer a tensão que possibilitará a
demarcação das diferenças e de uma identidade surda.

Tema relativamente recorrente em diferentes aulas do Curso Bilíngue, os


movimentos sociais surdos tiveram destaque nas discussões no dia em que foi
apresentado em sala de aula o texto “O orgulho de ser surdo”89. O referido texto foi
projetado no datashow e, a pedido de Mercúrio, uma aluna ouvinte fez a leitura em
voz alta, enquanto os profissionais intérpretes se revezavam na atividade de
interpretação do texto para a língua de sinais.

Ao final da leitura/interpretação, espontaneamente, os alunos surdos


fizeram o sinal de aplausos numa forma de reverenciar o texto apresentado, ao passo
que lhes foi indagado se eles tinham orgulho de ser surdo. Os estudantes surdos
prontamente responderam que sim. Na sequência, buscando explicar determinadas
passagens do texto, Mercúrio citou o episódio que ficou conhecido como “Revolução
de Gallaudet”90, em que os alunos desta universidade americana promoveram
diversos protestos e se engajaram na luta pelo direito de poder eleger uma pessoa
surda para o cargo de reitor, já que, até a revolução, tal cargo só havia sido ocupado
por profissionais ouvintes.

Dando continuidade à explanação, Mercúrio fez a observação de que no


INES ações dessa natureza não estavam descartadas, desde que os alunos surdos
unissem esforços para tanto. Nesse momento, o aluno Miguel retrucou, afirmando que
“ali no INES” estava “todo mundo dormindo ainda”. Embora, na minha percepção,
Miguel tenha feito seu comentário no sentido de chamar a atenção dos colegas surdos
para a necessidade de maior mobilização, Mercúrio parece ter interpretado que o

89
McCLEARY, L. O Orgulho de ser surdo. In: 1º Encontro Paulista entre intérpretes e surdos. São
Paulo: Feneis-SP, 2003. Disponível em
http://wp.ufpel.edu.br/areadeLIBRAS/files/2012/04/OrgulhoSurdo.pdf Acesso em 09/11/2015.
90
Esse movimento ocorreu nos Estados Unidos, em março de 1988. Consistiu em uma série de
protestos nas ruas de toda a comunidade universitária, conhecidos como Deaf President Now (Reitor
surdo já!). Como consequência desse movimento, foi eleita uma pessoa surda para o cargo de reitor
(Dr. I. King Jordan) e se iniciou um processo de reforma administrativa para que ao menos 51% dos
cargos de direção da Universidade de Gallaudet fossem ocupados por surdos (SACKS, 1998).
138

aluno não acreditava na possibilidade de mudança de paradigmas no Instituto e que


não estaria interessado em se engajar nessa luta.

Diante do que possivelmente interpretou como sendo incredulidade de


Miguel para com a eficácia dos movimentos surdos no Brasil e, provavelmente,
buscando ressaltar a importância da mobilização, foi resgatado por Mercúrio o
episódio da ameaça de fechamento 91 do INES, tema que, conforme apontei no
capítulo 2, ganhou repercussão nacional. Como o desfecho desse episódio
representou uma vitória dos militantes envolvidos na causa, uma vez que o Colégio
de Aplicação do INES não foi fechado e, além disso, foi garantida a inclusão no
relatório do Plano Nacional de Educação (PNE)92 do texto proposto pelos
representantes da FENEIS (no qual se assume o compromisso, por parte do governo,
de garantir a educação para surdos em escolas bilíngues, classes bilíngues ou
escolas inclusivas), o resgate do episódio pareceu ter a finalidade de demonstrar a
Miguel e aos demais estudantes da turma, não somente a importância do
engajamento nas lutas dos movimentos sociais, mas também que a eleição de um
diretor geral surdo – uma reivindicação talvez ainda tímida no INES – , não é algo fora
da realidade, desde que os estudantes se mobilizem para isso.

Considero oportuno trazer aqui os apontamentos de Lopes e Veiga-Neto


(2006) a respeito daquilo que denominam como a “pedagogização dos movimentos
sociais surdos”. Para os autores, quando o espaço educacional é também o lugar
onde se constitui uma comunidade surda e nele se criam determinados marcadores
culturais, as práticas acabam por pedagogizar tais movimentos e, como decorrência
dessa pedagogização,

são estabelecidos modelos de ser surdo, servindo como balizas para


que ações de normalização sejam investidas na e pela própria
comunidade surda, quando essa estabelece um tipo normal de ser
surdo a ser seguido. (LOPES e VEIGA-NETO, 2006, p. 83)

91
Esse episódio diz respeito aos desdobramentos das discussões travadas por ocasião da CONAE
(Conferência Nacional de Educação) 2010 que levaram o MEC, representado pela Diretora de
Políticas Educacionais Especiais, Martinha Claret, a cogitar o fechamento das denominadas
escolas especiais, como o INES, com a justificativa de que esses espaços educacionais
contrariavam a política de educação inclusiva (CAMPELLO e REZENDE, 2014).
92
Esse texto se insere na Meta 4 do PNE. O documento está disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13005.htm Acesso em: 18/10/2015
139

Cabe lembrar que o Departamento de Ensino Superior (DESU) é


hierarquicamente subordinado93 ao INES. Está geograficamente situado no espaço
deste Instituto que “abrigou e educou vários dos líderes surdos de todo o país” e que
é descrito por muitos militantes dos movimentos sociais surdos como “o berço e
resistência da língua de sinais e da cultura surda” (CAMPELLO e REZENDE, 2014, p.
77). A essas particularidades citadas pode-se acrescentar a observação feita por
Plutão em entrevista, quando se refere à composição do corpo discente do Curso
Bilíngue:

Excerto 1
1 (...) se o exame vestibular para o curso exige um conhecimento em
2 língua de sinais, mesmo que seja só pra que ele [o aluno] se
3 comunique, pra que haja interação entre os alunos, quem vai ter
4 isso? Quem tem isso? Bom... surdo, quem é familiar de surdo, quem
5 é intérprete e quem é da igreja evangélica.

Trecho de entrevista realizada com Plutão (Docente)

Nesse trecho da entrevista, Plutão chama atenção para a forma singular


pela qual é composta o alunado do Curso Bilíngue. Conforme destaca, esse quadro é
composto por pessoas que, em sua maioria, já possuem envolvimento, em maior ou
menor grau, com alguma comunidade surda: ou em razão de ser surdo, ou porque já
atuam como intérprete de língua de sinais, ou porque há, na família, alguma pessoa
surda ou, por fim, em função de frequentar alguma igreja que desenvolvia trabalho de
evangelização em língua de sinais para surdos 94.

Levando-se em consideração todas essas especificidades, pode-se dizer


que o Curso Bilíngue de Pedagogia opera como uma extensão da comunidade surda

93
Uma das implicações diretas de tal subordinação é o fato de que todos os profissionais que até então
ocuparam o cargo de Direção no DESU foram indicados pela Direção Geral do INES, este sim
cargo para o qual já está prevista eleição pela comunidade.
94
De acordo com Silva (2012, p. 29), os agentes religiosos católicos foram os primeiros a utilizar o
termo “comunidade de surdos” para fazer referência a uma paróquia onde houvesse pessoas
surdas. Em momento posterior, os luteranos fizeram uma ampliação dessa categoria, passando a
considerar como parte de uma “comunidade de surdos” as escolas especiais, as igrejas e as
associações de surdos ligadas ao catolicismo. Por último, os filiados às congregações batistas
teriam ampliado ainda mais o escopo da referida categoria, incluindo bares, shoppings e outros
espaços que servem como ponto de encontro para surdos.
140

que se configura no INES e que ele é, por conseguinte, também um lócus onde se
espera ser possível organizar movimentos de resistência e, ainda, ressignificar a
surdez e a experiência de “ser surdo”. Essa percepção vai ao encontro do que é
pontuado por Bauman (2003, p. 91) que, apoiado no pensamento de Jeffrey Weeks,
observa que “o mais forte sentido de comunidade costuma vir dos grupos que
percebem as premissas de sua existência ameaçadas e por isso constroem uma
comunidade de identidade que lhes dá uma sensação de resistência (...)”.

O fato de o aluno Felipe condicionar o “ser surdo” à militância em prol da


LIBRAS, o de Miguel ressaltar uma espécie de passividade por parte do público do
Instituto (“no INES está todo mundo dormindo ainda”) e de Mercúrio buscar salientar
os resultados positivos de diferentes ações dos militantes surdos e simpatizantes em
prol de direitos pode indicar que alguns movimentos observados no Curso Bilíngue,
entendido aqui como uma comunidade surda instalada no espaço educacional –
tentam imprimir no grupo que a constitui uma mobilização por unidade (LOPES e
VEIGA-NETO, 2006).

Nessa tentativa de conformar uma unidade, determinados comportamentos


são considerados adequados e devem ser seguidos à risca em prol da garantia da
segurança (BAUMAN, 2003) da comunidade surda ali instituída. Um dos
comportamentos a que se faz referência com certa frequência nos discursos
circulantes no Curso é o imperativo da luta que se faz presente tanto na ideia de
garantia de determinadas políticas linguísticas junto às instâncias governamentais
como no interior das comunidades surdas.

Entendido aqui como um artefato cultural (STROBEL, 2008) reivindicado


por membros de diferentes comunidades surdas, o engajamento nos movimentos
sociais surdos foi tópico de outra aula de Mercúrio em que se discutiu a respeito de
diferentes documentos oficiais que fazem menção à garantia dos direitos linguísticos
de diferentes grupos populacionais, inclusive dos surdos.

Excerto 2
1 (...) A aula seguiu com a problematização referente à Declaração de
2 Salamanca e à Declaração Universal de Direitos Linguísticos. Foi
3 citado, ainda, o episódio em que integrantes do MEC queriam fechar
4 as escolas especiais, incluídos aqui o INES e o IBC. Foi ressaltado o
5 absurdo que seria não apenas o possível fechamento dessas
141

6 instituições, como também se alertou para o fato de que o governo


7 não poderia impor a ninguém estudar numa escola inclusiva. Neste
8 momento da aula, a aluna Jéssica, surda, questionou se um
9 estudante surdo não poderia querer estudar com alunos ouvintes
10 nesse tipo de estabelecimento. A reação de Mercúrio diante da
11 indagação pareceu-me de surpresa. Na resposta à aluna, deu a
12 entender que não haveria problema, desde que a pessoa surda fosse
13 feliz desse modo (...). Na sequência da aula, a explanação esteve
14 calcada na defesa da escola bilíngue para surdos e na crítica ao
15 modelo excludente das chamadas escolas inclusivas. (...)

Trecho de diário de campo da pesquisadora

No trecho de diário acima transcrito (excerto 2), ressalta-se, inicialmente, a


surpresa com que a pergunta da aluna surda foi recebida durante a aula. Em meio à
defesa predominante naquele espaço em favor da escola bilíngue como o melhor meio
de escolarização para uma pessoa surda, meio esse vislumbrado como capaz de
propiciar a formação de uma identidade linguística para a(s) comunidade(s) surda(s)
(CAMPELLO e REZENDE, 2014), a indagação a respeito da possibilidade de um
indivíduo surdo optar por estudar em uma escola inclusiva, ao lado de ouvintes, parece
ter representado uma dissonância para com a argumentação e com a defesa
preconizada nos movimentos sociais que

lutam por destacar a especificidade de suas lutas, promovendo


recortes identitários que ofereçam elementos para uma discussão
mais adensada e consistente de suas necessidades, de modo a se
distanciar e diferenciar dos demais, na proposição de políticas
públicas. (FERNANDES, 2011, p. 111)

Por serem os próprios surdos sinalizantes os principais atores dos


movimentos que reivindicam uma educação bilíngue que faça face a suas
especificidades linguísticas e culturais – o questionamento da aluna, colocando em
questão, de certa forma, o ideal da escola bilíngue defendido pelos militantes, poderia
significar uma ameaça a certos saberes que se busca estabilizar na comunidade
configurada no Curso. Isso porque a pedagogização que ali se investe, conforme a
minha análise busca aqui apontar, caminha no sentido da mobilização por unidade,
142

sendo necessário, para tanto, homogeneizar o grupo e apagar as diferenças


individuais (LOPES e VEIGA-NETO, 2006).

Não é novidade que a possibilidade da inclusão educacional a que se


referiu a aluna é bastante criticada em diferentes aspectos por muitos que vivenciam
essa experiência, por estudiosos da educação de surdos e pelos próprios movimentos
sociais surdos. A título de exemplo, em 2012, pesquisadores militantes surdos do
movimento que se organizou em prol das Escolas Bilíngues para Surdos 95, em carta
aberta96 ao então Ministro da Educação Aloízio Mercadante, argumentaram
contrariamente a esse modelo, apontando diferentes elementos que fazem com que
a escola regular inclusiva não seja o melhor espaço para a aprendizagem dessas
crianças e jovens.

Embora os movimentos em prol das escolas bilíngues, assim como muitos


pesquisadores da área da surdez, estejam em consenso com relação ao imperativo
do modelo bilíngue na educação de surdos, é importante colocar em pauta a
necessidade de que todo e qualquer outro modelo a que o educando surdo venha a
ser exposto passe também pelo seu direito de escolha, tal como se pode depreender
do trecho do depoimento da aluna Anita, em que faz um relato a respeito de sua
experiência educacional anterior ao Curso Bilíngue:

Excerto 3
1 Eu entrei na escola quando eu tinha seis anos de idade. Só que a
2 escola não existe mais, ela acabou. (...) Era uma escola muito legal,
3 eu tenho boas recordações. Eu estudei nessa escola até os doze
4 anos de idade, mas ela faliu. A minha mãe não queria que eu
5 estudasse aqui [no INES], porque estudando aqui eu acabaria
6 desenvolvendo a língua de sinais e não a prática oralista. Eu
7 sempre via as pessoas comentando sobre o INES, mas também
8 reforçando a dificuldade de ingressar aqui. Então elas me
9 aconselharam a estudar numa escola de ouvintes porque era menos
10 complexo o acesso. A partir dessas informações, toda a minha
11 educação, a educação básica, foi em escola inclusiva, de ouvintes.

95
Justifico aqui a grafia das iniciais em maiúscula por referir-me ao nome do movimento social adotado
pelas próprias lideranças surdas.
96
CARTA Aberta ao Ministro da Educação (CAMPELLO et al, 2012). Disponível em:
http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:Cl-fMYM9uRcJ:lenereispvh. blo-
gspot.com/2012/06/carta-aberto-dos-doutores-surdos-ao.html+&cd=1&hl=pt-BR&ct =clnk&gl=br
Acesso em: 21/04/2014
143

12 Eu acho que o surdo tem que estudar onde ele quiser! Se ele
13 quiser estudar na escola bilíngue de surdos, que ele possa estudar
14 na escola de surdos. Se ele quiser estudar na escola inclusiva, com
15 intérprete, que ele possa estudar nessa escola. Ninguém tem que
16 ser obrigado a nada. Tem que respeitar a nossa vontade, a vontade
17 do surdo. Cada um pode preferir uma coisa. No Ensino
18 Fundamental e no Ensino Médio, eu sempre estudei em escola
19 inclusiva sendo a única aluna surda e eu não vejo isso como um
20 problema. Eu tive um bom rendimento escolar e percebi a
21 necessidade de cursar o Ensino Superior. (...)

Trecho de entrevista realizada com Anita (Estudante surda)

O trecho contido no excerto 3 deixa patente que, para essa aluna, a


despeito de quaisquer modelos e/ou teorias educacionais, deveria ser priorizada a
opinião e a vontade das próprias pessoas surdas no que diz respeito ao processo de
escolarização. Anita parece imprimir uma crítica à ação de “tutela” a que muitas vezes
os indivíduos surdos, mesmo maiores de idade, são submetidos, porque “vistos como
incapazes de se autoconduzir” (VEIGA-NETO e LOPES, 2011, p. 10). Nesse processo
de “tutela”, normalmente conduzido por ouvintes, mas que também pode ser assumido
por surdos, sobra pouco espaço para o exercício da liberdade.

No seu relato, fica claro que essa “tutela” foi exercida primordialmente pela
mãe, que não queria que estudasse em uma escola voltada exclusivamente para
surdos, como o INES, porque naquele espaço ela “ acabaria desenvolvendo a língua
de sinais e não a prática oralista” (excerto 3, linhas 5-6). Talvez, pela falta de
oportunidade de escolha em sua adolescência, Anita tenha destacado a consideração
de “que o surdo tem que estudar onde ele quiser! (excerto 3, linha 12). Embora tenha
estudado no Ensino Fundamental e no Médio em escola inclusiva sendo a “única aluna
surda”, conforme relata, Anita afirma não considerar isso como um problema. A
estudante ainda destaca o que considera um ponto positivo em sua escolarização, o
seu desempenho, que teria a impulsionado a ingressar no DESU (“Eu tive um bom
rendimento escolar e percebi a necessidade de cursar o Ensino Superior” – excerto 3,
linhas 20-21).
144

O tema da inclusão educacional, ao longo do tempo em que estive em


campo, foi problematizado em diferentes oportunidades. No excerto 4, trecho do meu
diário de campo, retrato uma cena que se deu durante a apresentação de grupos de
seminários na disciplina ministrada por Urano:

Excerto 4
1 (...) O primeiro grupo a se apresentar na aula de hoje era composto
2 por quatro estudantes: dois surdos (Miguel e Felipe) e dois ouvintes
3 (Carlos e Fabiana). O tema da apresentação, projetado no primeiro
4 slide, era “Vantagens e desvantagens da inclusão escolar”.
5 Inicialmente, Carlos buscou apontar diferentes especificidades que
6 os alunos podem apresentar no cotidiano escolar, como questões
7 ligadas ao aspecto físico ou intelectual. Apresentou trechos relativos
8 a documentos oficiais que tratam da questão da inclusão, como por
9 exemplo, a Declaração de Salamanca. (...) Fabiana apresentou uma
10 reportagem que tratava do caso de um estudante com síndrome de
11 Down incluído na rede regular de ensino que foi veiculada, inclusive,
12 em um programa de Tv, em que se abordava os benefícios da
13 inclusão para o jovem. Por outro lado, apresentou o depoimento da
14 mãe de uma criança Down que justificava o porquê de ter optado
15 por matricular sua filha em uma escola especial. (...) O estudante
16 Felipe teve sua participação limitada a mostrar e explicar imagens
17 que refletiam momentos do processo de aprendizagem de crianças
18 incluídas em escolas regulares. Por último, Miguel contou como foi
19 sua experiência em estudar em três diferentes escolas. Apontou a
20 dificuldade que tinha na aprendizagem, chamando a atenção para
21 o fato de que na primeira escola era o único surdo e não havia
22 intérpretes. A segunda escola, segundo ele um centro integrado,
23 recebia alunos com diferentes particularidades: havia grupos de
24 surdos, de cegos, etc. Relatou que os surdos recebiam um tipo de
25 tratamento, os deficientes visuais outro, de forma que a escola
26 buscava buscar atender cada especificidade. De acordo com
27 Miguel, foi nessa escola em que começou a aprender língua de
28 sinais, mas esse aprendizado se solidificou quando passou a
29 estudar no INES, em certa altura do Ensino Fundamental. (...)
30 Miguel buscou enfatizar que para o surdo a inclusão não é boa
31 porque na escola inclusiva não se fala LIBRAS, a língua do
32 surdo. Ele pediu que os colegas de turma divulgassem aos amigos
33 e conhecidos que tenham surdos na família, que a escola inclusiva
34 é muito prejudicial. Ao finalizar, ressaltou que o melhor modelo para
145

35 as crianças e jovens surdos é a escola bilíngue, causa pela qual


36 todos ali deveriam lutar juntos.

Trecho de diário de campo da pesquisadora

Na cena retratada no excerto 4, mais uma vez a questão da inclusão


escolar volta a ser problematizada na turma. Dessa vez, o pano de fundo foi a
apresentação de grupos de seminários. Diferentemente de Anita, que no depoimento
concedido frisou a importância de se respeitar a vontade do surdo, tendo em vista que
“Cada um pode preferir uma coisa” (excerto 3, linha 17), ou seja, pode optar pela
escola regular ou pela escola bilíngue de surdos, Miguel enfatizou que para o surdo
a inclusão não é boa porque na escola inclusiva não se fala LIBRAS, a língua do
surdo (excerto 4, linhas 30-32).

A singular experiência de cada um, de Anita e de Miguel, parece ter sido


fundamental para o modo como se posicionam atualmente diante da questão dos
modelos educacionais disponíveis para estudantes surdos. Por parte de Anita, a
experiência na escola inclusiva não foi retratada de modo negativo, tendo salientado
que não considerou um problema ser a única surda da turma e que apresentou um
bom desempenho escolar. Por parte de Miguel, foi apontada, em contraposição, a
dificuldade que apresentava na aprendizagem, ressaltando, ainda, uma grande falha
da escola regular que frequentou: a indisponibilidade de intérpretes de língua de
sinais.

Em seu depoimento, Miguel ratificou dados que já havia apresentado à


turma no seminário sobre a inclusão e acrescentou outros elementos quando
indagado por mim acerca da sua trajetória educacional anterior ao Curso Bilíngue de
Pedagogia:

Excerto 5
1 Eu estudava numa escola inclusiva, mas não tinha intérprete
2 de língua de sinais, era somente a comunicação oral e isso
3 dificultava demais a comunicação. Era terrível. Eu não entendia
4 nada, absolutamente nada! Eu tinha um amigo, um outro aluno
5 ouvinte que tentava me ajudar. Eu era o único surdo incluído nessa
6 turma inclusiva. (...) Com o passar do tempo, a minha família percebeu
146

7 que a falta de comunicação era muito grande e descobriu outra


8 escola, c/e/i/s/p/, um centro educacional integrado, era uma escola
9 pública. (...) As aulas ficaram muito mais claras pra mim. Eu descobri
10 vários sinais, a questão visual era muito forte lá, e eu me senti
11 integrado, diferente da outra escola onde eu não tinha nem a própria
12 comunicação. (...)

Trecho de entrevista realizada com Miguel (Estudante surdo)

Conforme fica patente no depoimento de Miguel, sua experiência na


primeira escola em que estudou, inclusiva, foi penosa (“ Era terrível. Eu não entendia
nada, absolutamente nada!” – excerto 5, linhas 3-4). O principal problema apontado
pelo aluno era a falta de uma língua compartilhada, agravada pelo fato de a escola
sequer prover um profissional intérprete para acompanhá-lo ao longo das aulas. Essa
experiência contrasta com a vivenciada na segunda escola pela qual passou, um
centro educacional integrado, onde “as aulas ficaram muito mais claras”, onde
“descobri[u] vários sinais” e “se senti[u] integrado”. Diante desse histórico, torna-
se compreensível o posicionamento de Miguel no seminário, segundo o qual para
o surdo a inclusão não é boa porque na escola inclusiva não se fala LIBRAS, a
língua do surdo. (excerto 4, linhas 30-32).

No contraponto entre os relatos de Anita e Miguel, ambos surdos, considero


relevante destacar não apenas que o modo como cada um significa as experiências
influencia diretamente nos posicionamentos assumidos no que tange aos diferentes
modelos educacionais a que estiveram expostos. Convém ressaltar também que o
discurso é sempre interessado, uma vez que usamos a linguagem para agir no mundo
(FABRÍCIO e MOITA LOPES, 2010, p. 288). É nesse sentido que compreendo o
resgate da experiência escolar de Miguel durante a apresentação em grupo como uma
forma não só de apontar os possíveis prejuízos da escola inclusiva, onde “não se fala
LIBRAS”, “a língua do surdo”, como também de buscar uma espécie de entendimento
compartilhado (BAUMAN, 2003) entre os membros da turma a respeito do imperativo
da escola bilíngue para surdos, para a qual pede apoio, sugerindo que todos os
membros da turma possam lutar juntos (excerto 4, linha 36) por essa causa.

Como aponta Bauman (2003), toda unidade precisa ser construída, e o


entendimento comum só pode ser alcançado por uma espécie de acordo
147

artificialmente produzido a que se pode chegar por meio de argumentação que


compete com “um número indefinido de outras potencialidades (...) de tarefas e
soluções para os problemas da vida” (BAUMAN, 2003, p. 19). No caso em análise,
em que estão pautados diferentes modelos educacionais, sendo um deles o mote de
muitas lutas lideradas por movimentos surdos, a persuasão na qual Miguel investe
parece fundamental para a construção do acordo.

Pelo que pude acompanhar e registrar ao longo do período de observação


junto à turma, no que diz respeito a diferentes dicotomias consideradas polêmicas no
contexto da surdez, como oralização/sinalização x sinalização, a aceitação do
implante coclear x a recusa do implante, escola inclusiva x escola bilíngue, não parece
haver um entendimento compartilhado na comunidade ali constituída. O que há, para
usar a terminologia de Tönnies (1995), não é o entendimento comum – posto que
esse, conforme observa Bauman (2003, p. 15), já estaria “pronto para ser usado” –,
mas sim uma forma de consenso.

Embora o que exista nesse lócus específico possa muitas vezes parecer
ser um entendimento comum, compreendo, a partir da discussão promovida por
Bauman (2003) sobre a ideia de comunidade, que o que de fato ocorre nesse espaço
é um acordo artificialmente produzido. Artificialmente aqui assume, entretanto, uma
dupla significação: artificial no sentido de que é produzido (não “natural”) e também
no sentido de que, às vezes, é apenas um acordo aparente e não espontâneo.

Digo isso porque no contexto do Curso Bilíngue emergem por parte de seus
membros opiniões e posicionamentos distintos a respeito das já mencionadas
temáticas, tidas como polêmicas e consideradas fundamentais no âmbito da surdez e
da educação de surdos. Tais posicionamentos, entretanto, dificilmente se dão em um
espaço de discussão pública. As possíveis divergências ou possíveis contestações
com relação a certas premissas sustentadas na comunidade se dão, sobretudo, em
conversas mais restritas, como busco retratar em um trecho de meu diário de campo,
reproduzido no excerto 6:

Excerto 6
1 (...) Quando Urano saiu da sala para o intervalo entre os dois
2 tempos de aula, o aluno Carlos projetou os slides do grupo no
3 quadro e chamou os integrantes surdos para que eles pudessem
4 treinar para a apresentação que se daria na volta do intervalo.
148

5 Passaram os três a ensaiar o conteúdo do seminário a ser exposto


6 por Felipe e Miguel. Fabiana, a outra integrante, estudava sozinha
7 sua apresentação, sem, no entanto, participar do ensaio. Além
8 desses membros do grupo, havia na sala mais alguns alunos
9 compartilhando lanche e prestando atenção na prévia dos colegas.
10 Rosa e Lídia, sentadas ao meu lado, conversavam sobre o ensaio.
11 Em tom de brincadeira, Rosa sugeriu que ao final do seminário dos
12 colegas, no momento em que a professora abrisse para
13 questionamentos, Lídia perguntasse o que Miguel acharia se ela
14 tivesse um filho, matriculasse-o em uma escola inclusiva e o
15 ensinasse a oralizar. Lídia sorriu e questionou a colega: “você está
16 ficando maluca? Esqueceu que a gente não pode falar isso aqui?
17 Aqui a gente é só intruso. Rosa então, tentou incluir-me no diálogo
18 e, mais uma vez, em tom brincadeira, disse que ia “pedir pra
19 pesquisadora perguntar”, ao que Lídia comentou que não adiantaria
20 de nada, porque eu também era ouvinte. (...)

Trecho de diário de campo da pesquisadora

No excerto 6, retrato uma cena que se deu instantes antes da apresentação


do grupo a que fiz referência no excerto 4, que viria a ocorrer após o intervalo da aula
de Urano. Embora a sugestão feita por Rosa à colega tenha sido em tom de
brincadeira, chamou minha atenção o fato de a aluna ter salientado que, por se
considerar uma “intrusa” no Curso Bilíngue (“Aqui a gente é só intruso” – excerto 6,
linha 17), provavelmente por ser ouvinte e conceber aquele espaço como voltado
prioritariamente para estudantes surdos, não se sentia autorizada a questionar certos
saberes a respeito das possibilidades de identificação linguística desses alunos.

Na pergunta sugerida por Rosa, estavam envolvidos dois “tabus” nas


comunidades surdas e nos movimentos sociais que as representam: a oralização e o
modelo educacional inclusivo em oposição ao bilíngue. Conforme lembra Santana
(2007, p. 26), a opção pela oralização e/ou sinalização, não representa apenas uma
questão linguística: é uma escolha política. Sendo uma escolha política, inerente à
política de identidade em que se engajam diferentes comunidades surdas – entre as
quais está o Curso Bilíngue de Pedagogia – envolve a celebração da singularidade do
grupo (WOODWARD, 2009, p. 34), que pode se traduzir em afirmações com teor
essencialista como a de Miguel, segundo a qual a LIBRAS “é a língua do surdo”
(excerto 4, linhas 31-32).
149

Como toda comunidade é feita de mesmidade e homogeneidade


(BAUMAN, 2003, 2005), que precisa ser construída, ainda que na base do consenso,
o apelo a determinados essencialismos às vezes pode ser necessário. É o que parece
ocorrer quando Miguel faz referência à LIBRAS como “a língua do surdo”: o cunho
essencial da fala pode ser entendido como uma maneira de reforçar o imperativo da
luta em prol das escolas bilíngues a que o estudante surdo convoca a turma. Por mais
que o apoio à causa possa, às vezes, ser apenas fruto de um acordo artificialmente
produzido, ele é necessário na medida em que confere legitimidade aos membros da
comunidade e ajuda a “tornar claro como a água” (BAUMAN, 2003, p. 17) quem faz
parte do grupo e quem não faz, não abrindo margem para ambivalências.

Na turma acompanhada, uma das estudantes que poderia representar essa


ambivalência era Rute, surda oralizada que, na compreensão de alguns membros da
turma – esboçada em conversas informais – teria abandonado o Curso Bilíngue
possivelmente motivada por uma espécie de constrangimento de estar naquele
espaço não sendo uma usuária experiente da língua de sinais, fazendo uso
basicamente da oralização nas interações. Embora eu tenha participado de poucas
aulas antes de Rute ter evadido do Curso, o que se deu pouco tempo depois do início
do meu trabalho de campo, pude presenciar uma participação da aluna que considerei
um registro significativo. Refiro-me à apresentação do grupo de trabalho do qual Rute
fez parte em um seminário de uma das disciplinas ministradas por Vênus. A
apresentação do grupo tinha como grande tema “Escola e escrita” e o grupo do qual
Rute fazia parte contava ainda com mais dois estudantes, um surdo (Lucas) e um
ouvinte (Carlos).

Excerto 7
1 O primeiro a fazer a explanação para a turma foi Lucas, que se
2 deteve na explicação sobre os métodos de educação na Roma
3 antiga. O aluno projetou slides que continham sobretudo imagens
4 que retratavam desde artefatos utilizados naquela época (como
5 eram os blocos, cadernetas, lápis etc.) até fotos de personalidades
6 importantes, como Cícero, por exemplo. Conforme passava os
7 slides, sinalizava sua explicação. Na sequência, foi a vez de Rute,
8 que, ao iniciar, afirmou que trataria da questão da escolarização do
9 surdo. A aluna basicamente apresentou alguns importantes nomes
10 ligados à história do INES e também fez referência ao fato de a
11 língua de sinais ter tido seu uso proibido por grande período de
150

12 tempo, razão pela qual teria se tornado clandestina naquele espaço.


13 Ao final da parte que lhe cabia na apresentação, Rute me parecia
14 extremamente acanhada diante dos colegas. Minha impressão era
15 de que ela empreendia um pedido de desculpas à turma. Parecia
16 preocupada, dizendo que não havia estudado em escola de surdos,
17 que até então havia tido pouco contato com surdos e havia sido
18 submetida ao método da oralização. A aluna justificou que, por isso,
19 sabia poucos sinais e não era “fluente em LIBRAS”, mas que
20 pretendia “continuar aprendendo [língua de sinais] na
21 convivência com os colegas”. (...)

Trecho de diário de campo da pesquisadora

Na participação de Rute, ficou patente o claro desejo de mostrar adesão ao


grupo ali constituído. O fato da aluna ter justificado para os seus colegas a razão pela
qual não apresentou seu seminário em língua de sinais – conforme é esperado que
um estudante surdo do curso o faça e como, por exemplo, o outro integrante surdo do
seu grupo (Lucas) procedeu – e de fazer questão de esclarecer que estava disposta
a aprender LIBRAS na “convivência com os colegas” pode indicar que havia, da parte
dela, consciência de que estava contrariando um comportamento estabelecido
naquela comunidade.

Rute era a única aluna surda da turma que sempre se comunicava via
oralização e, como era perceptível, apresentava pouca intimidade com a língua de
sinais. O fato de ter procedido à apresentação do seminário integralmente por meio
do português oral, o que não havia sido foi feito até então por nenhum outro aluno
surdo nos seminários realizados nas demais disciplinas (e não o foi ao longo de todo
o tempo em que desenvolvi meu trabalho de campo), provavelmente causou certo
desconforto na aluna, o que fez com que ela se justificasse com os colegas, o que,
em minha compreensão, figurou como uma espécie de pedido de desculpas.

Por mais que houvesse outros estudantes surdos assumidamente


oralizados (ou não assumidos), e que muitas vezes inclusive lançavam mão da
linguagem oral na sala de aula, Rute parece ter compreendido que, naquela
comunidade, havia uma “norma surda” (LOPES e VEIGA-NETO, 2006) instituída. Para
estar dentro da norma e, consequentemente, pertencer ao grupo, ela precisaria se
comunicar em língua de sinais e, nesse contexto, apresentar seu seminário nessa
151

língua. Como seu repertório linguístico (BUSCH, 2012; RYMES, 2014) não abarcava
a competência de apresentar seu trabalho em LIBRAS, ela sentiu necessidade de dar
uma satisfação ao grupo, uma justificativa.

Em depoimento, quando indagada a respeito de como se dava, em sua


percepção, o relacionamento entre os estudantes surdos e ouvintes de sua turma,
Júlia externa a importância de que, no espaço do Curso do Bilíngue, todos os
membros possam aderir à língua de sinais:

Excerto 8
1  Eu acho que as relações são bastante agradáveis. Há uma
2 troca em relação a essas duas línguas, o português e a língua
3 de sinais. Os ouvintes ensinam o português e os surdos
4 ensinam a língua de sinais. Mas para entrar aqui no INES, nesse
5 curso bilíngue, na minha opinião, precisa ter uma mente aberta,
6 precisa aceitar as diferentes realidades. O mundo dito normal é
7 diferente do mundo aqui dentro. Quando eu ingressei no primeiro
8 período, eu conversava com algumas pessoas que não sabiam
9 muito bem língua de sinais, aí eu perguntava: “Por que você não
10 quer aprender língua de sinais?” Por que você não quer entrar
11 nesse mundo? "Bom, eu não sinalizo bem, eu acho
12 complicado." Então você está no lugar errado, precisa
13 procurar um curso que seja Pedagogia “normal", e não
14 bilíngue, porque aqui o foco é bilíngue e você tem que usar a
15 língua de sinais. Existe outro lugar que tenha esse curso
16 bilíngue? Não, não tem. Então aqui é o lugar de você
17 aproveitar isso.

Trecho de entrevista realizada com Júlia (Estudante surda)

No excerto 8, incialmente Júlia faz menção à importante “troca” que


considera haver no espaço no Curso Bilíngue. A aluna trata da questão das diferenças
linguísticas, apontando-a como um dos elementos positivos da interação que se dá
entre os membros da turma, ressaltando que “ouvintes ensinam o português e os
surdos ensinam a língua de sinais” (linhas 3-4). Posteriormente, a aluna fala sobre a
forma como abordou alguns integrantes do grupo que, segundo ela, faziam um uso
restrito língua de sinais, tendo como justificativa a pouca intimidade com a língua.
Nessa abordagem, de modo a destacar a necessidade de que os integrantes da
comunidade ali configurada se engajem no uso da LIBRAS, buscava ressaltar o
152

diferencial do DESU e do seu modelo educacional bilíngue (“...aqui o foco é bilíngue


e você precisa usar a língua de sinais. Existe outro lugar que tenha esse curso
bilíngue? Não, não tem.” – linhas 14-16).

Na argumentação desenvolvida, Júlia parece sugerir que se não houver a


intenção por parte dos estudantes ingressantes no DESU em se aperfeiçoarem no
uso da LIBRAS e de se engajarem na interação por meio dessa modalidade
linguística, não haveria razão de comporem o quadro discente de um curso que tem
como uma importante particularidade seu caráter bilíngue. Se não houver, por parte
do graduando, o desejo de aderir à LIBRAS, elemento central aglutinador da
comunidade ali constituída, isso denotaria, segundo Júlia, que o estudante estaria “no
lugar errado”, sendo mais coerente buscar por outro curso de Pedagogia, que, em
oposição ao desenvolvido no DESU, bilíngue, ela denomina como “normal” (“Então
você está no lugar errado, precisa procurar um curso que seja Pedagogia “normal", e
não bilíngue...” – excerto 8, linhas 12-14).

Nesse contexto, a adesão à língua de sinais por parte dos estudantes


surdos ou ouvintes parece não ser apenas uma questão de ampliação do repertório
linguístico ou forma de promover a interação, mas também a assunção de uma
posição política. Não só a adesão à língua, como a defesa da mesma são elementos
que parecem contribuir para o pertencimento legítimo de um determinado membro à
comunidade ali constituída. Enquanto Lídia assinala, conforme pontuado no excerto
6, que se considera uma “intrusa” naquele espaço, por ser ouvinte, Rute, que é surda,
porém não sinalizante, demonstra o desejo de pertencimento, de se tornar um
membro “legítimo”, ratificando que irá “continuar aprendendo [língua de sinais] com os
colegas” (excerto 7, linhas 20-21).

Cabe ressaltar, conforme apontam diferentes trabalhos (PADDEN, 1989;


FERNANDES, 2003, 2011, entre outros), que a etiologia e o grau da surdez não são
os principais fatores de identificação e de pertencimento no tocante aos indivíduos
surdos no interior das comunidades surdas. O “domínio” e o uso da língua de sinais
nas interações, quer por parte de surdos ou ouvintes, parecem se constituir nos
elementos-chave para tal pertencimento.

Levando-se em consideração que “uma comunidade surda pode incluir


pessoas que não são elas próprias surdas” (PADDEN e HUMPHRIES, 2000, p. 5),
tanto Lídia como os demais alunos ouvintes da turma ou mesmos surdos não
153

sinalizantes têm o potencial de serem reconhecidos como integrantes legítimos desse


grupo. Entretanto, os candidatos a se filiarem a essa comunidade, além de
demonstrarem adesão à LIBRAS, precisam demonstrar solidariedade para com os
objetivos em prol dos quais o grupo trabalha (BAUMAN, 2003). No caso do Curso
Bilíngue, a causa primeira pela qual se luta e para qual é necessária buscar
solidariedade dos membros é pela hegemonia do discurso normativo da surdez como
uma particularidade linguístico-cultural, inscrita no modelo socioantropológico.

Em entrevista, quando Júpiter procurou caracterizar, em linhas gerais, o


alunado surdo do DESU, fez referência a um tipo de comportamento que relatou ser
adotado naquele espaço e que pode ser entendido como expressão de solidariedade
ao grupo e desejo de demonstrar filiação.

Excerto 9
1 Aqui nós temos um espectro enorme de inserções na surdez. Desde o
2 cara que é implantado ao que faz leitura labial. Só que o cara que é
3 implantado... aqui ele tira porque ele é um traidor da causa surda,
4 ele pode ser...eu já tive aluno surdo implantado e já tive aluno
5 surdo que tira o implante aqui dentro pra não ser discriminado....
6 tira o aparelhinho...pra não ser alvo de... Eu já assisti no congresso
7 do INES pessoas que foram... não estou defendendo o implante coclear
8 não, não tenho nem conhecimento de causa pra isso. Tem também os
9 seus problemas. Também dizer que o implante coclear é a salvação é
10 produzir outro tipo de maluquice. (...) Mas aí … eu já vi debates ali
11 dentro do congresso do INES que a pessoa ia falar do implante coclear
12 e verdadeiras manifestações à frente, aquela pessoa era uma
13 criminosa (...)

Trecho de entrevista realizada com Júpiter (Docente)

Nesse trecho de seu depoimento, Júpiter aponta para o fato de que, a fim de
atender aos referenciais aceitos por essa comunidade, para estar dentro de uma
espécie de norma surda ali preconizada, há quem, por exemplo, adote o
comportamento de esconder “o aparelhinho” que comprova a condição de surdo
implantado. Essa condição poderia ser entendida, conforme é destacado no excerto
9, como uma traição à “causa surda” e parece apontar, ainda, para a tensão entre dois
154

valores quando se coloca em tela a ideia de comunidade: a liberdade de escolha e a


segurança oferecida pelo pertencimento (BAUMAN, 2005, p. 84).

É importante lembrar, conforme aponta Bauman (2005, p. 17), que “as


decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre e a maneira como
age – e a determinação de se manter firme a tudo isso – são fatores cruciais tanto
para o pertencimento quanto para a identidade”. Assim, a “sensação de aconchego”
e segurança que a comunidade sonhada parece transmitir entra em choque com a
lealdade incondicional que a “comunidade realmente existente” exige de seus
membros”.

No caso em questão no excerto 9, o ato de adentrar no espaço do Curso


Bilíngue, situado no INES, portando o aparelho de implante, poderia significar, nos
termos de Bauman (2003, p. 9), um “ato imperdoável de traição” por parte do aluno.
Não somente o uso do referido aparelho nesse espaço determinado conforme
relatado, mas também o emprego da língua oral como um dos recursos que compõem
o repertório linguístico significaria, nesse sentido, uma expressão dissonante que
poderia contribuir para a visibilização das diferentes formas de “ser surdo” circulantes.

É preciso apontar que a vigilância ou a autovigilância a que podem estar


sujeitos caminha no sentido de visibilizar somente determinadas formas aceitas de
“ser surdo” (LOPES e VEIGA-NETO, 2006). Isso porque, para conquistar a segurança
que enxergam na comunidade sonhada, estudantes surdos podem acabar muitas
vezes abdicando de parte de seu repertório comunicativo, encobrindo uma possível
identificação com a língua portuguesa oral e negando ou invisibilizando que essa
língua também participa do processo de sua constituição enquanto sujeito.

De modo semelhante, alunos ouvintes, almejando o ingresso e a


permanência nessa comunidade, também parecem seguir certos comportamentos e
normas: apesar de possuírem a “liberdade” de empregar todos os componentes do
seu repertório, no qual a LIBRAS e o português constituem importantes elementos,
tendem, por exemplo, a reproduzir – ou não se posicionar contrariamente (a) –, ainda
que em acordo artificialmente produzido, diferentes discursos que contribuem para a
estabilização da surdez enquanto diferença, enquanto particularidade linguístico-
155

cultural que postula a existência de uma identidade surda estável e unívoca e a de um


significado específico para a proposta bilíngue97 em desenvolvimento no DESU.

É pelo viés da tentativa de manter a homogeneidade do grupo, ressalte-se,


talvez temporariamente necessária para efeitos de ação social, que compreendo o
fato de que, no cenário do Curso Bilíngue, determinados estudantes surdos oralizados
tendem a usar apenas (ou majoritariamente) a língua de sinais e invisibilizar que são
também usuários da língua portuguesa oral. A referência a essa invisibilização
ressurge no depoimento do aluno Manoel quando indagado a respeito do apelido
“surdo do Paraguai” que alguns alunos da turma recebem:

Excerto 10
1 É uma gozaçãozinha. O Lucas é surdo do Paraguai, o Lucas fala.
2 Ele não fala aqui dentro, mas ele fala e fala muito. Aqui dentro
3 ele não fala, mas ele fala. Entendeu? Lá fora ele fala...aqui não. (...)

Trecho de entrevista realizada com Manoel (Estudante surdo)

Manoel ressalta que seu colega de turma, Lucas, é oralizado. Embora


tenha desenvolvido a habilidade de falar a língua portuguesa, esse aluno não a utiliza
“dentro” do DESU, restringindo-se a usá-la “lá fora”. Por conta de ser um aluno
oralizado, ele poderia ser considerado, naquele ambiente, como um “surdo do
Paraguai”, ou seja, falso, não legítimo. Em seu depoimento, Manoel deixa claro que
essa expressão, “surdo do Paraguai”, é uma “gozaçãozinha”, ou seja, uma brincadeira
feita com todos os alunos que se reconhecem enquanto surdos, mas utilizam também
o português oral, além da LIBRAS, em suas interações.

Se o critério apontado por Manoel para a distinção de “surdo do Paraguai”


for considerado como válido, ele próprio não poderia ser enquadrado nessa categoria,
posto que se reconhece como ouvinte e não como surdo, conforme voltarei a
problematizar na segunda seção deste capítulo. Já Lucas, que sabe oralizar, poderia
receber a referida alcunha, porém, dentro do DESU, “ele não fala”. Se não fala, Lucas
se afasta da possibilidade de ser reconhecido pela comunidade como um surdo falso,
ilegítimo e garante o seu pertencimento.

97
Este aspecto será discutido principalmente na terceira e quarta seções de análise.
156

Como o argumento linguístico é central na normatividade da surdez


enquanto diferença, é compreensível que alguns estudantes surdos oralizados do
Curso Bilíngue, que se situa no espaço que é considerado como a “casa do surdo”,
evitem a oralização ou reservem-na para as interações que se dão fora desse lócus,
uma vez que a “ambivalência comportamental” (BAUMAN, 2003, p.17), nesse
contexto entendida como o uso de diferentes modalidades linguísticas, poderia
eventualmente depor contra ações e/ou projetos políticos do grupo.

Não é somente no que concerne aos surdos, entretanto, que o emprego da


língua de sinais assume essa centralidade. No trecho de depoimento da aluna Lídia,
quando indagada a respeito do relacionamento que se estabelece em sala de aula
entre estudantes surdos e ouvintes, ela faz referência à relevância que o uso da
LIBRAS adquire no que diz respeito ao acolhimento dos ouvintes nessa comunidade
surda configurada no Curso:

Excerto 11
1 Eu acho que é bom, que é boa a relação. Assim, tem surdo que fala
2 que tem ouvinte que não quer treinar [LIBRAS], que não se esforça...
3 porque quando eles [os surdos sinalizantes] veem que a pessoa não
4 compreende muito a LIBRAS, não domina muito a LIBRAS, então
5 eles deixam de lado, mesmo que eles falem [português oral], eles
6 não querem ficar perto de você...eles têm aquilo, não sei bem o que
7 é, se é desprezo. Os [ouvintes] que sabem [língua de sinais], os que
8 sabem conversar com eles ou que pelo menos se esforçam... porque
9 eles... assim, por exemplo, eu não sei bem [língua de sinais], não
10 domino tudo, mas eles sabendo que eu me esforço, que eu quero,
11 que eu estou interessada, eles ficam perto.

Trecho de entrevista realizada com Lídia (Estudante ouvinte)

Assim como a aluna Lídia, Júpiter, ao falar a respeito de suas competências


em LIBRAS e dos possíveis impactos delas decorrentes na dinâmica das aulas,
também ressalta a questão da centralidade que os alunos surdos depositam na língua
de sinais e como a aprendizagem da mesma (ou o movimento de buscar aprendê-la)
pode influenciar não apenas na questão do acolhimento por parte da comunidade,
como também no tocante ao atributo da “respeitabilidade” que pode ser creditada aos
professores que atuam no Curso:
157

Excerto 12
1 (...) quando você conversa com o aluno em língua de sinais... isso eu
2 já faço um pouco, converso, arrumo a sala, oriento, faço perguntas.
3 Esse tipo de coisa assim de ordenamento da sala já dá pra fazer
4 perfeitamente em LIBRAS...o interesse em tentar dar aula [em língua
5 de sinais], em tentar conversar, isso já é um fator de motivação
6 excelente. Ele [o aluno surdo sinalizante] já sente: “não, essa pessoa,
7 no mínimo, tem um movimento de tentar se comunicar nessa língua”.
8 Isso já é um fator que te causa uma certa respeitabilidade. (...) Eu boto
9 os ouvintes pra se comunicarem em LIBRAS, os surdos pra
10 escreverem os textos também. Esses todos o resultado afetivo é
11 excelente. Eu quando falo afetivo eu não estou minorando isso não,
12 isso é importantíssimo. Então isso é um elemento que me, digamos,
13 iguala, aproxima dos alunos quando eu converso com eles, discuto
14 nota, faço uma piada, brinco, enfim, invento sinais. Eu invento sinais
15 errados de brincadeira. Isso cria uma certa comunicação. (...)

Trecho de entrevista realizada com Júpiter (Docente)

Para manter uma relação de maior proximidade com os alunos surdos


sinalizantes, Júpiter cita algumas atitudes que, conforme assinala, são muito
importantes inclusive do ponto de vista afetivo: a busca pela manutenção de diálogo
em língua de sinais, o interesse em aprender mais a respeito da LIBRAS e a tentativa
de engajar também os estudantes ouvintes em atividades que envolvam o uso dessa
modalidade linguística. Em seus depoimentos, tanto Lídia como Júpiter assinalam que
o movimento de se engajar na aprendizagem da língua de sinais ou ao menos o de
demonstrar interesse por tal processo parece ser mais importante que as próprias
competências que cada membro já demonstra na utilização da LIBRAS. Esses
movimentos funcionariam, então, como “prova convincente” (BUAMAN, 2003) de
desejo de pertencimento e aptidão para integrar legitimamente o grupo que ali se
constitui.

A prática de uso da língua de sinais, nesse sentido, seja por parte de


estudantes (surdos ou ouvintes) ou dos docentes, parece então diretamente
relacionada, nos registros aqui analisados, a um ideal de unidade e também de
lealdade. Destaco, ainda, que a utilização dessa modalidade linguística no espaço do
158

Curso pode ser compreendida como símbolo de pertencimento a um grupo que


depende de relações de solidariedade para se constituir enquanto tal.

5.2 “ A identidade do surdo é a língua de sinais”: a diferença


(estrategicamente) essencializada

A argumentação desenvolvida no item anterior foi desencadeada a partir


de uma fala do aluno Felipe em que ele condicionava o “ser surdo” à assunção da luta
política em favor da LIBRAS (“Se ele é surdo, ele precisa lutar pela LIBRAS”). A
noção de luta e de engajamento político se fez presente, então, como um marcador
identitário essencial que seria responsável por fundar uma alteridade determinada,
uma forma específica de “ser surdo”. Nessa tentativa de reconstrução de saberes e
representações sobre o “ser surdo”, em que a participação nas lutas ganha relevo, a
língua de sinais se pereniza como força motriz.

Muitos dos discursos de matriz identitária que circulam no Curso Bilíngue,


como foi possível perceber ao longo do trabalho de campo, fundam-se,
prioritariamente e, por vezes, exclusivamente, no critério linguístico. Entretanto, a
adoção estratégica (SPIVAK, 1999, 2010) desse critério fundamental, nesse contexto
sociolinguisticamente complexo, parece ter como barreira a própria heterogeneidade
do corpo discente, heterogeneidade essa que é evidente tanto no que diz respeito aos
usos linguísticos como no tocante aos singulares processos de construção identitária.

Para iniciar a discussão desta seção, resgato um episódio transcorrido


durante uma aula ministrada por Júpiter em que foi organizada uma dinâmica de
correção de um estudo dirigido cujas questões propostas para a turma estavam
baseadas em um texto de Ronice Quadros98 sobre o bilinguismo e os métodos da
educação de surdos. O trecho do meu diário de campo transcrito no excerto 13 ilustra
essa questão:

98
QUADROS, R.M. Educação de surdos: a aquisição da linguagem. Porto Alegre: Artes Médicas,
1997.
159

Excerto 13
1 (...) Durante a discussão de uma questão que tematizava o método
2 oralista na educação de surdos, Júpiter pediu para a aluna Juliana
3 complementar a resposta que ela havia colocado no quadro.
4 Segundo Júpiter, era preciso acrescentar, nessa resposta, que a
5 filosofia oralista destacava o surdo como deficiente auditivo (DA) e
6 trazia à tona o discurso da medicalização, ou seja, da surdez como
7 uma patologia. Nesse momento, chamou a minha atenção a
8 intervenção feita pela aluna Júlia. Ela relatou à turma que, aos 14
9 anos, foi a primeira vez que se viu inserida em um grupo de surdos
10 sinalizantes. Oralizada, e sem saber língua de sinais, ela afirmou ter
11 sido chamada pelos novos colegas de DA (Deficiente Auditiva) e que
12 eles negavam que ela fosse surda, porque era oralizada. Júlia
13 contou que não aceitou o que os colegas haviam dito sobre ela e “
14 entrou em um embate” com o grupo, porque retrucou afirmando que
15 “era tão surda como eles, porque não era ouvinte”. (...)

Trecho de diário de campo da pesquisadora

Nessa narrativa, em que relata um episódio de sua adolescência, Júlia


deixa patente o jogo do poder e da exclusão (HALL, 2009) em que se viu inscrita por
não ser, até então, uma surda sinalizante. Para os membros desse grupo do qual se
aproximou na fase da adolescência, Júlia, que até então estava desprovida do recurso
simbólico essencial que lhe daria o direito de a ele pertencer (a língua de sinais), era
uma deficiente auditiva (DA).

Nessa rede de saberes e poderes, a utilização da sigla D.A. para se referir


à Júlia não apenas marca, nesse contexto, a exclusão de um grupo do qual ela não
estaria “apta” a fazer parte legitimamente (o dos surdos), como também denota um
posicionamento em uma “disputa de significantes” (FERNANDES, 2011, p. 118).
Nessa disputa, ser surdo (ou Surdo) é uma condição inerente somente àqueles que
usam língua de sinais, enquanto os oralizados estariam relegados à condição de
deficiente auditivo, portanto, excluídos da normalidade.

A normalização que se investiu em Júlia para que pudesse ser deslocada


da representação baseada na “alteridade deficiente” (SKILAR, 2003) não estava
pautada no ouvintismo (SKLIAR, 2010) que concebia – e ainda concebe muitas vezes
160

– a língua oral como um imperativo para a socialização dos indivíduos surdos. O


discurso da normalização, conforme denota o relato da aluna, assumiu uma
configuração em que a própria comunicação via língua de sinais poderia ser entendida
como o aparato normalizador (THOMA e KUCHENBECKER, 2010).

Apesar de ter havido uma tentativa por parte desse grupo de apelar a uma
“qualidade essencial” (WOODWARD, 2009, p.13) que Júlia ainda não possuía, a
prática da sinalização, uma possível desestabilização desse significado acenou
quando a aluna respondeu a essa reivindicação essencialista – que mais remete à
marcação da diferença e da exclusão que a uma “unidade idêntica” (HALL, 2009, p.
109) – ressaltando que o fato de ser oralizada não inviabilizava o seu pertencimento
ao “grupo identitário dos surdos”.

Nesse processo de tentativa de subversão e fixação identitária, apoiada em


um binarismo fechado no qual haveria apenas dois únicos lugares para ocupar no
mundo social (FABRÍCIO e MOITA LOPES, 2010), Júlia salientou que “entrou em
um embate” junto a seus novos colegas sinalizantes, afirmando que “era tão surda
como eles, porque não era ouvinte” (excerto 13, linha 15). Ao reivindicar o
pertencimento a esse grupo específico, no qual o seu estatuto de normalidade estaria
“garantido”, relativiza o posicionamento de que a construção das identidades, por
pessoas surdas, estaria relacionada essencialmente à língua de sinais.

A intervenção de Júlia durante a aula de Júpiter, por meio do relato desse


episódio ocorrido na sua adolescência, mostrou-se intrigante para mim pelo fato de
que ela, entre todos os estudantes surdos da turma, era possivelmente a mais
alinhada ao discurso político-identitário que, estrategicamente, conforme propõe
Spivak (1999, 2010), reserva apenas à língua de sinais a capacidade de definir a
identidade da pessoa surda (SANTANA e BÉRGAMO, 2005).

Outra cena específica envolvendo a aluna Júlia foi por mim considerada
bastante significativa no que tange ao imbricamento entre as relações entre
língua(gem) e identidade. Essa cena se deu em uma aula em que Mercúrio solicitou
aos estudantes que se reunissem em grupos para realizar uma breve discussão
acerca dos dois tipos de discursos sobre a surdez problematizados nos últimos
encontros com a turma: o linguístico (da surdez como diferença linguística) e o médico
(da surdez como um déficit, como uma patologia). Depois de os membros debaterem
161

entre si, os grupos precisariam fazer uma apresentação que levasse a cabo um
apanhado da discussão.

Em virtude do pouco tempo que faltava para o término da aula, apenas um


grupo conseguiu realizar essa apresentação neste dia. O grupo era composto por um
aluno ouvinte (Pablo) e três alunas surdas (Júlia, Cláudia e Jéssica). Eles montaram
uma breve cena teatral em que Pablo representava um médico que aconselhava uma
mãe (Cláudia) a realizar o implante coclear em sua filha surda (Jéssica) e uma jovem
adulta surda sinalizante (Júlia) recomendava a essa mãe que não realizasse a cirurgia
na criança e a matriculasse em uma escola para surdos, a fim de que aprendesse a
língua de sinais.

Em termos gerais, a encenação dos alunos buscava enfatizar o


desenvolvimento que a LIBRAS proporciona às pessoas surdas e também a
capacidade que as mesmas têm, assim como as ouvintes, de avançar na vida
acadêmica. A cirurgia de implante coclear, por outro lado, foi apontada como uma
forma de violência física e de extermínio da comunidade surda brasileira. Na parte
final da apresentação, a aluna Júlia, única surda do grupo que não restringiu sua
participação à encenação, indo, portanto, além da representação de um personagem,
buscou salientar a necessidade de que todas as pessoas surdas possam ter acesso
à LIBRAS e de aprendê-la com propriedade. Justificou a relevância desse
aprendizado asseverando que “a identidade do surdo é a língua de sinais”:

Excerto 14
1 (...) Quando a encenação do grupo foi encerrada, Júlia virou-se para
2 a turma e disse que se enganava quem considerava que os surdos
3 não eram capazes. Ela usou os próprios professores surdos do
4 Curso como exemplo de que as pessoas surdas “não precisam de
5 implante” para darem seguimento ao processo de escolarização.
6 Complementando sua participação na cena representada pelo
7 grupo, a aluna enfatizou que é preciso que todas as famílias
8 garantam que os filhos surdos aprendam língua de sinais desde a
9 infância, porque, segundo ela, “ a identidade do surdo é a língua
10 de sinais”.

Trecho de diário de campo da pesquisadora


162

Nessa participação, percebe-se que Júlia atribui à LIBRAS o poder


definidor da identidade social das pessoas surdas e reconhece essa língua como o
único “passaporte de entrada para o universo social” (SANTANA e BÉRGAMO, 2005,
p. 570). Assumindo a identidade como “uma campanha de tema único” (BAUMAN,
2005, p. 18), o posicionamento da aluna vai ao encontro da argumentação
desenvolvida em determinados trabalhos (PERLIN, 2010; MOURA, 2000) alicerçados
na concepção socioantropológica da surdez que têm “como base a ideia de que a
identidade surda está relacionada a uma questão de uso da língua” (SANTANA e
BÉRGAMO, 2005, p. 567).

Para Júlia, a língua de sinais não é concebida como um dos elementos que
contribuem para a constituição social do surdo: a língua, ela própria, é a sua
identidade. Esse posicionamento da aluna sublinha o “caráter instrumental da língua”
e reflete que o jogo teórico que “toma a língua, num primeiro momento, como
determinada pelas práticas e interações sociais e, num segundo, faz dela a definidora
dessas mesmas práticas” (SANTANA e BÉRGAMO, 2005, p. 568).

Além dessa participação na apresentação do seminário em que concebe a


língua de sinais como um sinônimo perfeito de identidade, ou de identidade surda, na
entrevista que me concedeu, ao responder meu questionamento sobre como era, para
ela, a experiência de poder realizar determinadas avaliações em LIBRAS no DESU,
Júlia assume mais uma vez uma posição que tende a essencializar os processos de
construção identitária:

Excerto 15
1 Aqui é a primeira vez em que eu uso língua de sinais em uma
2 prova. Eu me senti bem aliviada porque antes eu sempre
3 acompanhava os ouvintes, parecia um robô copiando o que eles
4 faziam. "Parabéns, você fala bem, você escreve bem o português",
5 mas de que adianta isso tudo? Eu não usava língua de sinais...
6 onde estava a minha identidade, onde ela estava? Não tinha
7 identidade...(...)

Trecho de entrevista realizada com Júlia (Estudante surda)


163

Nesse trecho do seu depoimento, Júlia ressalta que foi somente no DESU
– onde é garantida a prerrogativa dos estudantes (sejam surdos ou ouvintes)
escolherem99 a modalidade linguística em que querem ser avaliados – que, pela
primeira vez, pode realizar uma avaliação em língua de sinais. No depoimento, a aluna
mais uma vez se refere ao uso da língua de sinais como um alívio100 (“...eu me senti
bem aliviada...”) e, ao resgatar experiências de avaliação anteriores ao Curso
Bilíngue, explica que por conta de não sinalizar nas provas que realizava e de somente
utilizar o português (oral ou escrito) sentia-se um “ robô copiando o que eles
[ouvintes] faziam” (linhas 3-4).

Ao se reportar a esse tempo passado, no qual ela “ não usava língua de


sinais”, a aluna se indaga a respeito do “paradeiro” de sua identidade (“...onde
estava a minha identidade, onde ela estava?” – excerto 15, linha 6), estabelecendo,
assim, uma relação direta entre a sua prática linguística e a construção de uma
determinada identidade social. Conclui que, à época, “Não tinha identidade”. Isso
porque, em uma relação inversa, na qual enfatiza que “a identidade do surdo é a
língua de sinais”, a ausência dessa prática específica significa, para ela, a ausência
da identidade (PENNA, 1998).

Maher (1996, p. 231), ao desenvolver sua reflexão acerca de questões


relativas à linguagem e identidade em contexto indígena, ressalta que “a construção
da identidade, embora seja essencialmente da ordem do discurso, (...) não é domínio
de língua alguma”, o que, por extensão da argumentação, esclarece que os processos
de constituição identitária de indivíduos surdos não depende exclusivamente da língua
de sinais, mesmo porque “a identidade não é fenômeno unitário que contenha em si
qualquer essência definitória, mas é uma construção feita em múltiplas direções,
direções estas muitas vezes contraditórias (MAHER, 1996, p. 29).

É interessante salientar que, embora o posicionamento da aluna, tanto


durante a apresentação do seminário em que participou da teatralização no papel da

99
A oportunidade de escolha, por parte dos alunos, da língua em que desejam ser avaliados, é um
importante diferencial do Curso Bilíngue de Pedagogia do DESU. A disciplina Língua Portuguesa
Escrita é única em que a modalidade escrita do português é obrigatória em termos de avaliação.
Além disso, conforme fica explícito no projeto do Curso, é garantida a “flexibilidade na correção de
provas e/ou trabalhos redigidos pelo discente surdo, quando serão considerados o aspecto
semântico e a singularidade linguística manifesta no nível formal de sua escrita. ” (MEC/INES, 2006,
p. 11)
100
No item anterior de análise, resgatei o relato de Júlia em que ela se refere ao alívio que significou
para ela o aprendizado e o uso da língua de sinais em detrimento da oralização.
164

personagem surda adulta sinalizante como em determinados momentos da entrevista


que me concedeu, aponte para um viés essencialista sobre identidade, a já
comentada participação de Júlia durante a aula em que fez referência ao “embate”
que entrou com os colegas surdos da adolescência indica que não foram apenas as
práticas linguísticas da aluna que mudaram.

Apesar de ficar claro que Júlia, desde a adolescência, já se reconhecia


enquanto surda, a interpretação dos registros parece apontar para o fato de que a
estudante passou da negação de que a ausência da prática da sinalização
inviabilizava sua alteridade surda – afinal, ela “era tão surda” (excerto 13, linha 15)
quanto os colegas surdos sinalizantes da adolescência, mesmo usando apenas o
português oral – à definição da identidade baseada exclusivamente no uso de uma
materialidade linguística específica, a língua de sinais.

A intervenção da aluna surda hoje sinalizante no Curso Bilíngue quando


comparada à adolescente usuária do português oral que figurou na cena retratada no
excerto 13 demonstra que Júlia se reposicionou discursivamente (FABRÍCIO e MOITA
LOPES, 2010): ela agora defende que “a identidade do surdo é a língua de sinais”
(excerto 14, linhas 9-10), corroborando a observação de Fabrício e Moita Lopes (2010,
p. 301) de que “o discurso pode ser um lócus de mudança”.

A partir da intervenção de Júlia em sua aula, Júpiter buscou destacar a ideia


de que é preciso entender que todas as pessoas são diferentes, “inclusive os surdos”,
porque esses não constituem uma exceção. Em favor da posição de que os indivíduos
surdos não podem ser vistos presos “a uma única forma de ser” (LOPES e VEIGA-
NETO, 2006, p. 91), uma vez que a identidade não é fixa e imutável (HALL, 2009;
WOODWARD, 2009; SILVA, 2009), ressalta então que “tem surdo que fala, surdo que
não fala, surdo implantado, tem de tudo”.

Esse posicionamento de Júpiter parece ter sido determinante para que


alguns alunos resgatassem, durante a aula, a história da colega de turma Rute, surda
oralizada que recentemente havia evadido do Curso Bilíngue. O trecho do diário que
figura no excerto 16 ilustra essa cena:

Excerto 16
1 (...) Depois do relato de Júlia, abordou-se a questão das diferenças.
2 Segundo Júpiter, é preciso “começar a desmistificar aqui” que os
165

3 surdos são todos iguais, porque “todos são diferentes, inclusive


4 os surdos”. Ressaltou, então, que “tem surdo que fala, surdo
5 que não fala, surdo implantado, tem de tudo”. Depois de Júpiter
6 ter feito essas observações, a aluna Rosa comentou que “nem
7 todo mundo pensa[va] assim” ali naquele espaço, porque, de
8 acordo com ela, se todos pensassem, “a Rute não teria sido
9 estigmatizada” e “não teria saído do curso”, complementou Regina.
10 Seguiu um breve silêncio.

Trecho de diário de campo da pesquisadora

Ao que parece, Júpiter buscava chamar a atenção da turma para o fato de


que, embora os colegas da adolescência a que Júlia fez referência tivessem negado
que ela fosse surda, por não ser sinalizante, não haveria razão para se conceber uma
essência ou uma forma correta de ser surdo (LOPES, 2007). Essa ideia da
homogeneização do “ser surdo” que Júpiter considerava presente também no próprio
cenário do Curso Bilíngue, conforme visto no primeiro item de análise, talvez tenha
apontado para a necessidade de ressaltar que é importante “desmistificar” que todos
os surdos são iguais.

Logo depois de Júpiter pontuar diferentes formas de viver a condição da


surdez, ou seja, possíveis diferenças que existem dentro da diferença surda (“tem
surdo que fala, surdo que não fala, surdo implantado, tem de tudo” – excerto 16, linhas
4-5), duas alunas fizeram referência à Rute. Rosa considera que essa aluna foi
“estigmatizada” possivelmente porque era diferente de outros surdos da turma: ela
apenas oralizava. Regina acabou por endossar a fala de Rosa dando a entender que
se naquele espaço fosse consensual a ideia de que “todos são diferentes, inclusive
os surdos”, a colega Rute “não teria saído do curso”.

Tematizando as “armadilhas do essencialismo” que determinadas políticas


de identidade dos movimentos sociais surdos criam “ao eleger como seu Outro grupos
igualmente marginalizados”, Fernandes (2011, p. 116) cita a negação da “existência
cultural” das pessoas surdas que não fazem uso da língua de sinais, como seria o
caso, por exemplo, da aluna Rute. Nesse sentido, a compreensão das estudantes
Rosa e Regina, de que a diferença da colega Rute não teria sido bem aceita no grupo,
poderia apontar para a (re)produção das mesmas “estratégias de exclusão,
166

estigmatização e subjugação” que surdos sinalizantes há muito denunciam sofrer por


parte de pessoas ouvintes.

Dando sequência à sua explanação motivada pela narrativa de Júlia,


Júpiter deixa claro que, segundo seu entendimento, as três filosofias da educação de
surdos discutidas em sala a partir do texto de Ronice Quadros (oralismo, bimodalismo
e bilinguismo) “trabalham com a ideia de um surdo ideal, idealizado, imaginado”. E
dessa idealização teria surgido a ideia da “proibição da fala” em alguns defensores do
modelo do bilinguismo e da proibição da sinalização pelos defensores da filosofia
oralista.

Em determinada parte de sua entrevista, quando, a meu pedido, Júpiter


empreende uma avaliação da perspectiva bilíngue do Curso em desenvolvimento no
DESU, aborda a centralidade que a língua de sinais parece assumir na filosofia do
bilinguismo e possíveis consequências de se postular a existência de um “surdo ideal”,
o falante “nativo” de língua de sinais:

Excerto 17
1 (...) eu acho que a história da surdez foi excessivamente
2 simplificada através da história dos métodos aplicados para o
3 ensino de surdos. Isso estabeleceu uma perspectiva meio... meio
4 não, totalmente evolucionista, quase de viés positivista que divide
5 a história dos surdos numa pré-história em que eles eram
6 assassinados etc. em oralismo, bimodalismo, bilinguismo, e depois
7 eu brinco com os meus alunos, e o abismo. Quer dizer, como se o
8 bilinguismo fosse o fim da história, a etapa positiva de
9 desenvolvimento. Eu acho que há centralidade excessiva na
10 língua, na questão da língua. Entendo historicamente isso, mas
11 entender não é justificar. É quase que uma divinização, como se a
12 língua de sinais fosse resolver todas as questões relativas à surdez.
13 (...) Eu acho, que como todo fenômeno, qualquer um, a surdez, ela
14 tem várias determinações, várias ligações etc. E eu acho que já
15 está na hora de se produzir um pensamento que relativize um
16 pouco essa questão do bilinguismo como etapa final da educação
17 de surdos e como se a língua de sinais fosse resolver todo e
18 qualquer problema relativo ao processo de ensino/aprendizagem
19 do surdo (...) E aí tem coisas muito curiosas porque se persegue
20 um modelo ideal de surdo, que é o falante nativo da língua [de
21 sinais]. Você nunca vê nenhum falante nativo da língua passar
22 andando ali pela rua porque simplesmente isso é um modelo.
167

23 Um modelo heurístico abstrato que serve pra definições para lá de


24 abstratas da língua no campo da Linguística, mas quando você
25 coloca isso como se fosse aplicável à realidade exterior
26 imediatamente, você cria aqui problemas do tipo: o surdo ideal tá
27 lá, é o sinalizante e o aluno que quer sentar aqui na frente fazer
28 leitura labial, ele é condenado ao inferno porque ele não
29 corresponde a essa característica. (...) E eu acho que esse é o
30 desafio no momento, respeitar a língua de sinais, mas sem
31 divinizá-la.

Trecho de entrevista realizada com Júpiter (Docente)

De acordo com o depoimento de Júpiter, explicitado no excerto 17,


atualmente parece haver uma crença de que a língua de sinais pode “resolver todo e
qualquer problema relativo ao processo de ensino/aprendizagem do surdo” (linhas 17-
19) e isso poderia levar à compreensão de que o bilinguismo é “a etapa positiva de
desenvolvimento” (linhas 8-9). Nesse trecho, Júpiter parece externar certa
preocupação com o fato de que a história da surdez, em sua visão, teria sido
excessivamente simplificada através da história dos métodos aplicados para o ensino
de surdos (linhas 1-3).

Júpiter enfatiza que é preciso “respeitar a língua de sinais” (excerto 17,


linhas 30-31), mas sem promover aquilo a que refere como uma espécie de
“divinização” da língua. Em minha compreensão, Júpiter busca salientar que em
outros momentos históricos, em outras fases da história da surdez, outros métodos e
filosofias também podem ter sido “divinizados” e a falta de relativização pode ter
contribuído para a construção e para a persecução de diferentes modelos ideais de
surdos, como, por exemplo, o próprio modelo do surdo oralizado pelo viés da filosofia
oralista.

A relativização a que se refere Júpiter, no excerto 17, parece ser necessária


no sentido de não se construir padrões. Conforme se depreende, no momento atual,
o modelo de surdo “ideal” seria o “falante nativo” da língua de sinais. Entretanto,
conforme observa, “Você nunca vê nenhum falante nativo da língua passar andando
ali pela rua porque simplesmente isso é um modelo” (excerto 17, linhas 21-22). Essa
observação vai ao encontro do pensamento de Maher (2012, p. 33) que aponta para
168

a impossibilidade de imaginar a existência de um falante de LIBRAS que possa ser


considerado como “modelo exemplar a ser seguido” pelos demais usuários dessa
língua.

A referência à concepção de um surdo idealizado no espaço do Curso


Bilíngue reaparece em um trecho do depoimento da aluna Anita, quando ela é
questionada a respeito do relacionamento cotidiano que mantém com os demais
colegas surdos de sua turma no Curso Bilíngue:

Excerto 18
1 Eu sinto que alguns surdos se distanciam de mim um pouco, não
2 querem conversar comigo, ficam entre as suas duplas, seus
3 grupos. Talvez eu não seja do jeito que eles gostariam, porque
4 eu não sei bem língua de sinais, eu não tenho essa identidade
5 surda que eles têm...essa cultura...eu fui oralizada, essa foi a
6 opção da minha mãe e eu não tenho culpa disso. Às vezes eu me
7 sinto sozinha aqui...

Trecho de entrevista realizada com Anita (Estudante surda)

Anita julga que talvez “ alguns surdos se distanci[e]m” (excerto 18, linha
1) dela pelo fato de que considera não saber “ bem língua de sinais” (linha 4). A
aluna acredita que o fato de não se enquadrar no perfil do surdo idealizado por alguns
estudantes naquele espaço (“Talvez eu não seja do jeito que eles gostariam” –
linha 3) pode ser o motivo para que os colegas não mantenham uma relação de
proximidade com ela. Outro trecho de depoimento analisado anteriormente (referente
à entrevista concedida por Lídia) pode vir a reforçar a crença de Anita, pois assinala
que os surdos sinalizantes do Curso quando “veem que a pessoa não compreende
muito a LIBRAS, não domina muito a LIBRAS, então eles deixam de lado” (excerto 9).

Anita ainda faz referência à “identidade surda que eles têm”, e que ela,
entretanto, considera não possuir (“...eu não tenho essa identidade surda que
eles têm” – linhas 4-5). A ausência dessa “protoidentidade” que ela credita à
oralização (“eu fui oralizada” – linha 5) não seria uma responsabilidade sua,
conforme observa, mas de sua mãe (“essa foi a opção da minha mãe” – linhas 5-
6), razão pela qual ela se isenta de uma possível responsabilidade (“...eu não tenho
culpa disso” – linha 6).
169

Como a aluna se isenta de uma possível “culpa” por não representar essa
“identidade surda” e essa “cultura”, é possível depreender que ela se sente, de alguma
forma, penalizada. Tal penalidade seria o próprio distanciamento que ela julga ocorrer
por parte de alguns colegas surdos ou, em outras palavras, a impossibilidade de
pertencer a tal grupo. Possivelmente vem daí a necessidade de afirmar que não tem
“culpa” dessa exclusão a que entende ter sido submetida, afinal, a oralização foi uma
opção feita no âmbito da família.

Anita, diferente da aluna Rute, usava a língua de sinais em diferentes


interações durante as aulas. A sinalização de Anita muitas vezes vinha acompanhada
da linguagem oral quando se comunicava com alunos ouvintes, com professores, com
intérpretes e até mesmo comigo. Nos seminários, utilizava majoritariamente a
sinalização, enquanto nas avaliações em que era possível ao surdo optar por realizar
em português escrito ou em língua de sinais, ela se sentia mais à vontade escrevendo,
conforme explica no trecho abaixo transcrito, em que responde sobre a sua
preferência linguística nos eventos de avaliação no DESU:

Excerto 19
1  É muito complicado para mim fazer prova sinalizando...não me
2 sinto confortável com a câmera na minha frente. Eu não estou
3 acostumada a essa prática, mas eu sinto que é importante... eu sei
4 que é importante a pessoa ter avaliações em língua de sinais, mas
5 a língua portuguesa escrita é fundamental! Eu já fiz uma avaliação
6 em língua de sinais e não me senti muito bem, eu me senti um tanto
7 quanto prejudicada. Eu normalmente prefiro o português
8 escrito, mas eu creio se houvesse... se eu pudesse misturar
9 tanto a língua de sinais quanto o português, seria melhor para
10 mim, mas não pode...

Trecho de entrevista realizada com Anita (Estudante surda)

A forma de “ser surdo” de Anita, de acordo com o depoimento, acena para


um espaço híbrido, no qual se concebe a “mistura” entre as línguas. Embora não se
sinta “confortável” fazendo avaliação em língua de sinais, “com a câmera na [sua]
frente” ou talvez porque considere que não sabe “bem língua de sinais”, ela usa essa
170

língua em diferentes contextos101. Quando colocada diante de uma situação de


escolha entre a sinalização ou a língua portuguesa escrita, admite que
“normalmente [prefere] o português escrito”, assim como também prefere o
português oral em certas interações.

Em determinadas participações suas em sala, ou até mesmo na realização


de provas, como pude acompanhar em pelo menos dois momentos distintos de
avaliação, quando Anita alternava entre a oralização e a sinalização, num claro
exemplo de translinguagem (GARCÍA, 2009), era comum ser interrompida e receber
a recomendação de fazer uso de uma só língua, “sem misturá-las”, tendo em vista que
essa “confusão não adianta[ria] de nada, porque as pessoas acabam não
entendendo nem uma coisa nem outra” (Nota de campo da pesquisadora).

É preciso lembrar, conforme aponta Rymes (2014), que não existe


nenhuma “parede” entre as línguas. Nesse sentido, os indivíduos podem mudar sua
linguagem e forma de expressão de atividade para atividade, podem intercalar
modalidades em uma mesma atividade (conforme pleiteia Anita no que que diz
respeito aos momentos de avaliação), podem, inclusive, mudar de um modo de
expressão para outro dentro de uma única sentença. Conforme aponta a autora (2014,
p. 9), a combinação ou mistura de línguas e modos de falar não é um comportamento
“aberrante”, mas sim um componente essencial da comunicação.

O repertório, de acordo com Rymes (2014), é acessado pelos indivíduos


em variadas configurações de modo a acomodar suas diferentes necessidades
comunicativas. Nesse sentido, é importante salientar que, embora alguns
interlocutores possam esperar dos estudantes bilíngues do Curso que os mesmos
empreguem somente uma forma de expressão, sem “misturar” as modalidades, não
é incomum, entretanto, que essas misturas ocorram. A título de exemplo, retrato uma
cena protagonizada pelas alunas surdas Cláudia e Júlia em um dia de aula em que o
grupo do qual faziam parte deveria proceder à apresentação de um seminário
previamente proposto por Vênus.

101
Quando convidei Anita para participar da pesquisa concedendo-me um depoimento, perguntei à
aluna como seria a melhor forma de proceder durante a entrevista, no que dizia respeito à(s)
língua(s). Expliquei que os surdos sinalizantes tinham seus depoimentos registrados em vídeo. Na
ocasião, ela disse não haver problema, pois realmente pretendia conceder o depoimento em língua
de sinais.
171

Excerto 20
1 (...) Cláudia, mediada por um TILS, explica a Vênus que ela era o
2 único membro do grupo que estava presente. Segundo a aluna, os
3 outros integrantes estariam atrasados, razão pela qual não poderia
4 dar início à apresentação. Era por volta de 19 horas. Como só
5 Cláudia estava presente, Vênus propôs que aguardassem os
6 outros três membros do grupo. Quando algum tempo depois, outra
7 integrante, Júlia, chegou à sala, Cláudia lhe explicou, em conversa
8 sinalizada, o desencontro que estaria ocorrendo com relação às
9 datas previstas para as apresentações na disciplina. As duas
10 então se dirigiram a Vênus, dispensando a interpretação, para
11 explicar o tipo de equívoco que estaria ocorrendo. Segundo as
12 alunas, no dia do sorteio dos temas, houve uma troca entre dois
13 grupos e esse seria o motivo da confusão. Nessa explicação, as
14 duas estudantes alternaram entre a língua de sinais e a oralização.
15 Para explicar a Vênus o porquê de o grupo não estar presente,
16 Júlia e Cláudia usavam o português oral e Vênus pedia para as
17 alunas falarem devagar, para que pudesse compreender bem as
18 falas. Quando Vênus dirigiu um questionamento às alunas,
19 também em português oral, a respeito de quem seria então a
20 responsabilidade por não haver apresentação de trabalho naquele
21 dia, as alunas, em LIBRAS, debatiam entre si, chegando à
22 conclusão de que anotaram o tema certo, mas se equivocaram na
23 data. Como Vênus parecia não estar acompanhando
24 satisfatoriamente o debate entre as alunas na língua de sinais,
25 pediu que o profissional intérprete traduzisse a conversa. Diante
26 das explicações apresentadas pelas alunas, ficou combinado que
27 os seminários recomeçariam na próxima semana com a
28 apresentação do grupo de Júlia e Cláudia.

Trecho de diário de campo da pesquisadora

Conforme observa Cole (2006 apud GARCÍA, 2009), estudantes surdos


também translinguam de modo a atribuir sentido a seu mundo bilíngue. Na cena
retratada no excerto 20, em um primeiro momento, Cláudia recorre à figura do
intérprete para tentar dar explicações a respeito do atraso do grupo e usa a língua de
sinais diante de Vênus. Posteriormente, Cláudia e a colega Júlia dispensam a
interpretação e buscam explicitar diretamente a Vênus, por meio do português oral,
as razões para o fato de o grupo não estar presente para a apresentação do seminário.
Ao que parece, a escolha pelo português oral na interação talvez tenha sido justificada
172

pelo desejo – diante de uma situação “grave” que configurava a ausência do grupo
em um dia preestabelecido para uma avaliação proposta – de as alunas se
comunicarem diretamente com Vênus, sem nenhuma forma de mediação.

Como se pode observar na interação entre Júlia, Cláudia e Vênus, as


estudantes transitavam entre o português oral e a LIBRAS de modo a buscar
possivelmente o que consideraram uma maior clareza e um contato mais aproximado
com a figura docente. Esse trânsito entre essas duas línguas também ocorre com
ouvintes que contam com uma língua de sinais e o português no repertório linguístico.
É o que aponta Gesser (2006) em pesquisa relativa a interações em uma sala de aula
de LIBRAS com estudantes ouvintes e professor surdo. Segundo a autora, esses
alunos transitavam entre o português escrito, o oral e a língua de sinais de modo a
tornar mais significativa as interações que se davam naquele espaço.

Quando se leva em consideração o processo de translinguagem, é


compreensível que a estudante Anita, que conta não apenas com a língua de sinais
em seu repertório, mas também com o português oral, manifeste explicitamente o
desejo de misturar as línguas, conforme destacado no excerto 19, optando pela língua
de sinais, pela linguagem oral ou pela língua portuguesa escrita de modo a adequá-
las a cada necessidade, tornando mais significativo o momento da avaliação a que a
se refere no depoimento.

Na recomendação a que me referi anteriormente no sentido da estudante


Anita optar por apenas uma das modalidades que compõe seu repertório, não parece
somente residir a ideia de que as “línguas seriam entidades puras (...) com fronteiras
rigidamente estabelecidas que jamais seriam, ou poderiam ser rompidas” (MAHER,
2012, p. 35), mas também parece estar em questão uma recusa à língua de sinais
utilizada pela aluna. Tal recusa pode estar calcada na avaliação, por parte de alguns
usuários experientes de língua de sinais do Curso, de que “isso que ela faz não é
LIBRAS”102, porque não se reconhece na prática da sinalização de Anita o uso de
uma língua de sinais legitimada, convencionada como padrão, dotada de um “espírito
de correção” (SILVA, 2008, p. 399).

102
Essa nota de campo retrata o comentário feito por um TILS que acompanhava Anita na interpretação
da prova final realizada pela aluna em uma das disciplinas de Vênus.
173

Nos eventos de avaliação, Anita crê que uma estratégia de desinvenção


(MAKONI e PENNYCOOK, 2007) poderia lhe beneficiar. É nesse sentido que
compreendo a afirmação da aluna de acordo com a qual considera que se sairia
melhor caso “pudesse misturar tanto a língua de sinais quanto o português” (excerto
19, linhas 8-10). Esse hibridismo ou essa “mistura de línguas”, embora seja comum
na interação entre surdos e ouvintes, é uma realidade ainda invisibilizada e
marginalizada (GESSER, 2006). Quando, contudo, não há um esforço por parte do
falante para escamotear essa condição híbrida – como é o caso de Anita –, o mesmo
pode vir a ser recriminado porque provavelmente não se reconhece a legitimidade das
línguas (SILVA, op. cit.) que compõem esse mosaico.

A “mistura” a que se refere Anita – que ela não apenas não faz questão de
esconder (ou não consegue) como também reivindica como fundamentais em
determinados eventos –, pode, entretanto, ser considerada como um distintivo seu
diante de alguns colegas surdos sinalizantes integrantes dessa comunidade que, na
luta por uma política de identidades que ainda opera com um ideal de “pureza
linguística” (FERNANDES, 2011), podem acabar não a reconhecendo como um
membro “legítimo”. Nesse sentido, cabe lembrar a observação feita por Pratt (1987
[2013], p. 441) de que ainda que “o falante ideal seja uma abstração, isso não pode
em princípio ser caracterizado ou mesmo concebido em um estilo socialmente neutro”.

Quando se pontua, por exemplo, que a língua de sinais usada por Anita
não seria LIBRAS, cabe salientar, conforme aponta Rajagopalan (2003, p. 27), que
não são apenas as línguas que são concebidas “em termos de tudo ou nada”: também
os falantes dessas mesmas línguas estão passíveis de serem classificados em
categorias binárias, sendo então considerados “nativos” ou “obrigatoriamente não
nativos”. Nessa ótica do tudo ou nada, que trabalha com modelos pré-concebidos, a
aluna em questão, por exemplo, estaria longe de encarnar a figura do “surdo ideal”:
isso porque ela se constitui, assim como muitos outros estudantes, como um modelo
híbrido, mas que pode vir a ser considerado como “não autêntico”, uma vez que estaria
“contaminada” pela comunicação oral dos ouvintes (FERNANDES, 2011, p. 117).

No tudo ou nada, o que vale para as línguas (“puras” ou “misturadas”) e


para os falantes (“nativos” ou “não-nativos”) vale também para as identidades
(autênticas ou não-autênticas). No tocante à Anita, como não se encaixa em um perfil
pré-concebido como ideal naquele ambiente, nela não se reconhece o “modelo de
174

identidade pura, perfeita e plenamente totalizada” (RAJAGOPALAN, 1998, p. 38), a


protoidentidade: a identidade surda que ela mesma afirma não ter quando se compara
a outros colegas surdos da turma (“... eu não tenho essa identidade surda que
eles têm” – excerto 18, linhas 4-5).

A referência a uma identidade fixa e estável no depoimento da estudante


Anita reaparece nas apresentações de seminários propostos por Mercúrio, que
objetivavam a problematização pelos estudantes da surdez a partir do viés da
diferença, em contraposição ao viés clínico. Na aula seguinte àquela em que Júlia
defendeu que a “ a identidade do surdo é a íngua de sinais” (excerto 14), mais dois
grupos procederam à apresentação do apanhado de suas discussões. No trecho de
diário que transcrevo abaixo, faço referência a um desses seminários:

Excerto 21
1 Na aula de hoje, o primeiro grupo a se apresentar era composto
2 por três alunos ouvintes (Carlos, Graziele e Regina) e um aluno
3 surdo (Lucas). Assim como os alunos da semana passada, esse
4 grupo também desenvolveu uma breve cena teatral em que
5 Carlos fazia o papel de um médico que palestrava sobre os
6 benefícios do implante coclear na vida da pessoa surda. Regina
7 e Graziele representaram duas mães de surdos que estavam
8 presentes nessa palestra, enquanto Lucas fez o papel do jovem
9 surdo sinalizante. Na encenação, as duas mães defendiam
10 posições contrárias: uma queria que o filho fosse implantado e a
11 outra era contra o implante coclear. Em cena, Lucas tentava
12 apaziguar a discussão travada entre as duas mães. Nessa
13 tentativa de conciliação, disse que não ia “ tomar partido
14 naquela briga”, dando a entender que não se posicionaria
15 favoravelmente ou contra o implante coclear. Na última fala de
16 seu personagem, com a qual foi encerrada a apresentação do
17 grupo, Lucas disse que “ todo surdo tem que se preocupar
18 com a sua identidade, em falar a língua de sinais”. (...)

Trecho de diário de campo da pesquisadora

O grupo cuja apresentação é retratada no excerto 21, de modo semelhante


ao grupo de Júlia, também escolheu problematizar o tema a partir de uma breve cena
teatral. Na encenação, o personagem de Lucas optou por não sair em defesa nem da
175

mãe que personificava a adesão ao implante coclear nem da que condenava o


procedimento. Na conciliação que propôs às duas personagens, tentou demonstrar
que, a despeito da pessoa surda ser ou não submetida à cirurgia de implante, é
fundamental que todos os surdos falem língua de sinais. Usar essa língua denota, na
visão desse aluno, que o surdo se preocupa “com a sua identidade”.

Terminada a encenação do grupo, Carlos fez o relato de uma história


pessoal. Contou para a turma o caso de uma criança surda cuja família conheceu na
igreja que frequenta. Segundo o aluno, essa família não aceitava a surdez e não
queria que o filho aprendesse a língua de sinais: buscava a oralização. Carlos disse
que aconselhou a família a buscar um lugar no qual a criança pudesse começar a
aprender a sinalizar. Numa espécie de complementação da fala do personagem de
Lucas, Carlos fez a observação de que “se o surdo for implantado, perde a
identidade surda e não atinge a identidade ouvinte”. (Nota de campo da
pesquisadora).

Seguindo um pensamento dicotômico que alimenta o caráter oposicional


entre surdos e ouvintes, e assumindo um posicionamento essencialista acerca dos
processos identitários, Carlos ressalta que é preciso negar a oralização e também o
implante coclear. Isso porque, caso contrário, o surdo “perde a identidade surda”, uma
vez que abdicaria da língua de sinais – entendida como marcador essencial da
identidade do surdo – e “não atinge a identidade ouvinte”.

No posicionamento que o estudante assume contra a oralização e o


implante que, nessa ótica, poderiam ameaçar a identidade surda, parece subjazer a
ideia de que só se pode estar em um dos extremos: ou no polo do ouvinte ou no polo
do surdo. Como Carlos parece desconsiderar o hibridismo que marca não somente os
ouvintes, mas também os surdos, admite apenas que os últimos se constituam em
uma dessas extremidades, negando, paralelamente, que as identidades “flutuam no
ar” (BAUMAN, 2003, p. 19).

O “nem-um-nem-outro” (“...perde a identidade surda e não atinge a


identidade ouvinte”) é apresentado pelo aluno como perturbador. Caso o indivíduo
seja implantado e não aprenda língua de sinais, não será, de acordo com Carlos, nem
uma coisa nem outra: será então aquilo que Skliar (2003), apoiado em Derrida 103,

103
DERRIDA, J. Of grammatology. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1974.
176

chama de “inominável”. Para Skliar (2003, p. 55), o inominável é aquele que não é isto
nem aquilo, é aquele que “não se presta ao jogo da oposição nem de sua lógica”, “que
desordena”, que “fragiliza o conhecimento” e adia toda classificação e catalogação.

Na concepção de Carlos, a indeterminação, o estar na fronteira, nas


bordas, no nem-um-nem-outro é uma opção da qual se deve fugir, razão pela qual
provavelmente, durante a apresentação de seu seminário, ressaltou a recomendação
que fez à família de assegurar ao filho a aprendizagem da língua de sinais, que
garantiria, em seu entendimento, uma “identidade verdadeira”, centrada e unificada.
Assim, é rejeitada a opção da hibridez, do terceiro espaço (BHABHA, 2013) em que
as pessoas surdas também podem se constituir.

Se, por um lado, Carlos faz referência a esse espaço pouco definido do
“nem-um-nem-outro” em que as identidades não são fixas, mas sim produto de
complicados cruzamentos (HALL, 2011) como uma possibilidade que deve ser
evitada, a aluna Amanda, ao ser indagada, na entrevista, sobre os seus processos
identitários e sobre uma possível autodefinição enquanto surda ou ouvinte, parece
não se incomodar em ser uma “inominável”, cujo “status” é de indefinição:

Excerto 22
1 Eu acho que é meio difícil responder né? Porque aqui um fala:
2 “surdo do Paraguai você não é não”. Assim, é meio complicado.
3 Eu não saberia responder assim, porque eu pergunto “e agora?”.
4 Depende, eu acho que depende. Tem hora que mais pra lá ou mais
5 pra cá...entendeu? É assim...acho que é um pouco de cada lado,
6 a metade/metade. Igual ao biscoito recheado, aquele meio a
7 meio, meio surda, meio ouvinte.

Trecho de entrevista realizada com Amanda (Estudante surda)

Esse trecho do depoimento de Amanda deixa claro que a questão das


identidades, para ela, não é “tão transparente ou tão sem problemas” (HALL, 1996, p.
68), pelo contrário, ela enfatiza que a solução não é simples ou de fácil resposta.
Nesse sentido, a aluna ressalta de diferentes formas a complexidade do tópico (“Eu
acho que é meio difícil responder né?” , “...é meio complicado”, “Eu não saberia
responder assim...” – excerto 22, linhas 1-3) e lança mão de uma inusitada metáfora
177

na tentativa de dar conta de uma explicação para sua condição híbrida: “acho que é
um pouco de cada lado, a metade/metade. Igual ao biscoito recheado, aquele
meio a meio, meio surda, meio ouvinte” (excerto 22, linhas 5-7).

De início, Amanda ressaltou que não é percebida pelos demais como


“surda do Paraguai” (“Porque aqui um fala: ‘surdo do Paraguai você não é não’.”
– excerto 22, linhas 1-2). Conforme explicou no início do seu depoimento, sua surdez
foi decorrente de uma meningite contraída na infância (aos nove meses). A surdez
profunda no ouvido esquerdo, segundo a aluna, não foi a única consequência: a visão,
a parte motora e também a cognição foram afetadas no lado esquerdo do corpo.
Segundo ela, sua audição no ouvido direito “não é 100%”, razão pela qual passou a
utilizar, já adolescente, aparelho auditivo e também passou a buscar o aprendizado
da língua de sinais.

Possivelmente Amanda não é designada como “surda do Paraguai” pelos


colegas de curso em função do fato de falar o português oral e não ser surda profunda
ou severa bilateralmente. Parece haver, assim, uma classificação baseada em
determinados critérios para ser reconhecido não somente como surdo “legítimo”, mas
também como surdo “do Paraguai”. É o que explica o aluno Manoel quando por mim
indagado se ele, surdo parcial bilateral104, recebia dos colegas o referido apelido:

Excerto 23
1 Eu, na verdade, eu me considero ouvinte, entendeu? Minha
2 língua é o português. Agora entre eles [surdos] tem sim essa
3 situação, de análise dessa situação. O surdo do Paraguai é o
4 surdo falso, que não é surdo verdadeiro, porque eles acham
5 que o surdo verdadeiro é o surdo profundo, que realmente
6 não escuta nada e não fala. Então esses, pra eles, são os surdos
7 verdadeiros. Agora, já aquele que ouve um pouquinho ou fala,
8 como a nossa amiga Júlia, porque ela fala também...ela é
9 oralizada. Aí pode ser sim do Paraguai.

Trecho de entrevista realizada com Manoel (Estudante surdo)

104
Manoel é um estudante com mais de 50 anos que apenas no ano de 2005 descobriu que tinha
comprometimento auditivo de 50% em cada ouvido. Segundo ele, sua surdez foi decorrência das
condições precárias de trabalho desenvolvido em uma empresa em que atuou.
178

Ao responder meu questionamento acerca da possibilidade de ele ser


apelidado de surdo do Paraguai, Manoel esclarece de antemão que não se reconhece
como surdo, mas sim como ouvinte (“Eu, na verdade, eu me considero ouvinte,
entendeu?” – linha 1). Manoel, embora tenha ingressado no DESU na reserva de
vagas destinada aos surdos, considera-se ouvinte e ratifica que tem o português como
a principal forma de expressão de seu repertório (“Minha língua é o português” –
linhas 1-2). Conforme me explicou em seu depoimento, utiliza aparelho auditivo desde
os 40 anos, para não “agravar sua perda” que, atualmente, é de 50% em cada ouvido.
Reserva a LIBRAS sobretudo para a interação com os colegas surdos da turma.

Manoel explicita, também no excerto 23, quais seriam os parâmetros


levados em consideração pelos colegas surdos da turma para diferenciar os surdos
“verdadeiros” e os “falsos”. Conforme ressalta, “o surdo verdadeiro é o surdo
profundo, que realmente não escuta nada e não fala” (excerto 23, linhas 5-6),
enquanto o surdo “falso” (do Paraguai), seria “aquele que ouve um pouquinho ou fala”
(linha 7), como exemplificaria a colega Júlia, citada por ele nesse trecho, e também o
aluno Lucas que, conforme já enfatizado no item anterior de análise, faz uso do
português oral, mas somente fora do INES.

Embora Manoel já antecipe que se autodefine como ouvinte, dificilmente


seria reconhecido pelos colegas como surdo do Paraguai e, muito menos, como surdo
“verdadeiro”: além de ouvir, ele fala. O mesmo parece ocorrer com a aluna Amanda:
por mais que se reconheça enquanto híbrida (“Igual ao biscoito recheado, aquele meio
a meio, meio surda, meio ouvinte” – excerto 22, linhas 6-7), se forem tomados
determinados critérios para uma categorização de sua condição, provavelmente seria
reconhecida enquanto ouvinte, tal como ocorre com o colega Manoel.

Essa categorização empreendida algumas vezes pelos alunos do Curso


que separa os surdos “legítimos” dos “falsos”, retratada nos depoimentos de Manoel
e Amanda, ajuda a reforçar a ideia, já ventilada anteriormente, de que “o grau da perda
auditiva é fator irrelevante para a autoidentificação” (FERNANDES, 2011, p. 117)
enquanto surdo. A despeito de suas capacidades auditivas, tanto Manoel como
Amanda poderiam se autoidentificar como surdos ou ouvintes, afinal, poderiam primar
pela audição que ainda possuem (considerando-se ouvintes) ou pela perda que os
afeta (considerando-se surdos).
179

Diferente da perda auditiva, o critério linguístico é preponderante tanto na


autodefinição, conforme explicita a fala de Manoel (“Eu, na verdade, eu me
considero ouvinte, entendeu? Minha língua é o português” – excerto 23, linhas 1-
2), quanto nas representações construídas pelos colegas da turma. Se o indivíduo fala
português, independente do seu grau de surdez (parcial, severo, profundo etc.), ele
provavelmente será considerado um surdo “não-legítimo”. Se, além de falar, possuir
algum grau de audição, como é o caso de Amanda e também de Manoel, dificilmente
será reconhecido como surdo, ainda que “do Paraguai”.

A categorização que parece ser empreendida nesse contexto não é,


entretanto, ausente de tensionamentos. O aluno Lucas, quando questionado, assim
como os demais alunos por mim entrevistados, sobre a alcunha “surdo do Paraguai”
reservada a alguns estudantes surdos do Curso Bilíngue, traz um posicionamento
enfático:

Excerto 24
1 Eu não sou surdo do Paraguai! Eu sou surdo, só surdo!
2 Aqui tem surdo falso sim, mas não é meu caso! Eu não tenho
3 dúvidas de que sou surdo e todo mundo aqui sabe também... Eu
4 falo LIBRAS há muito tempo, desde criança eu me desenvolvi
5 na língua de sinais. (...)

Trecho de entrevista realizada com Lucas (Estudante surdo)

No excerto 24, Lucas busca ressaltar a “autenticidade” de sua identidade


surda (“ Eu não sou surdo do Paraguai!” – linha 1), admitindo, entretanto, que no
Curso Bilíngue há quem não seja tão autêntico quanto ele acredita ser (“ Aqui tem
surdo falso sim, mas não é meu caso!” – linha 2). Embora o colega de turma Manoel
tenha observado, na entrevista concedida, que Lucas se enquadraria na categoria de
“surdo do Paraguai” (por falar, ainda que somente fora do espaço do INES), o jovem
enfatiza que é apenas surdo (“ Eu sou surdo, só surdo!” – linha 1), ou seja,
qualquer outra representação diferente dessa não lhe seria cabível.

Assim como Manoel, que tentou expressar certeza quanto à sua


autoidentificação como ouvinte a partir da ideia de que o português oral é a sua língua
180

(“Eu me considero ouvinte, entendeu? Minha língua é o português.” – excerto 23,


linhas 1-2), Lucas também parece querer provar sua condição de surdo “legítimo”
baseado em sua experiência enquanto usuário de LIBRAS (“Eu falo LIBRAS há
muito tempo, desde criança eu me desenvolvi na língua de sinais.” – excerto 24,
linhas 4-5). Entretanto, conforme aponta Bauman (2005), dificilmente um fator único –
no caso do depoimento em análise, o uso de uma língua específica (a de sinais) –,
pode dar conta da complexidade das identidades em livre curso.

A centralidade da língua nos processos de construção identitária que se


desenrolam nesse cenário não escapa da percepção mesmo daqueles que se
consideram “novatos” no contexto do INES. É o que deixa transparecer a aluna
Graziele, em um trecho do depoimento em que faz suas considerações, a meu pedido,
sobre a já referida brincadeira que ali circula de apelidar alguns estudantes do curso
como surdos do Paraguai:

Excerto 25
1 Eu sou nova por aqui...então, pra ser sincera, eu já ouvi várias
2 vezes, mas não entendo muito bem esse negócio de surdo do
3 Paraguai não... A professora fala, fala, fala, de identidade
4 surda, mas eu sinceramente não entendo. Porque assim, se [o
5 surdo] fala português não tem identidade surda, se fala LIBRAS
6 tem identidade surda. Mas eu não entendo não...quer dizer, eu
7 acho que é a língua né? É o que eles dizem. Eu não sei bem. Se
8 é isso então, eu posso ser surda também? (risos).

Trecho de entrevista realizada com Graziele (Estudante ouvinte)

Ainda que no excerto 25 Graziele inicialmente ressalte sua qualidade de


membro novo no cenário do INES (“Eu sou nova por aqui...” – linha 1), admite que já
“ouvi[u] várias vezes” a referência a esse “negócio de surdo do Paraguai”. A aluna
acredita não entender bem essa “brincadeira”, assim como também afirma não
compreender a noção de “identidade surda”, embora isso já tenha sido tematizado ao
longo do Curso. (“A professora fala, fala, fala, de identidade surda, mas eu
sinceramente não entendo” – linhas 3-4).
181

Em sua resposta, a estudante Graziele reproduz o entendimento que


parece predominante no contexto da surdez, de que “se [o surdo] fala português
não tem identidade surda, se fala LIBRAS tem identidade surda” (linhas 3-4).
Apesar de destacar mais uma vez que não domina o tópico, chega à conclusão de
que o ponto chave no qual os discursos identitários se baseiam é a língua (“Mas eu
não entendo não...quer dizer, eu acho que é a língua né?” – linhas 6-7).

O que, em verdade, parece fugir do entendimento da aluna, é o fato de as


identidades muitas vezes serem representadas, nesse contexto específico, como
tendo um “um núcleo essencial que distinguiria um grupo de outro” (WOODWARD,
2009, p. 38): o dos surdos “autênticos” em oposição aos “do Paraguai”. Levando ao
extremo aquele que se mostra o critério fundamental de (auto)identificação e
pertencimento ao grupo, a língua de sinais, a aluna finaliza sua resposta indagando,
de forma retórica e em tom de brincadeira, que “Se é isso então, eu posso ser surda
também?” (excerto 25, linhas 7-8).

Se “ a identidade do surdo é a língua de sinais” – conforme advoga Júlia


no excerto 14 –, “falar” essa língua, de acordo com Lucas (excerto 21, linhas 17-18),
reflete o cuidado e a preocupação que a pessoa surda deve ter para com a mesma,
razão possível pela qual Felipe enfatiza que “ se [o indivíduo] é surdo, ele tem que
lutar pela LIBRAS”. Nesse sentido, lutar pela língua de sinais parece significar mais
que uma questão de direitos linguísticos: é uma luta que diz respeito também à
identidade, o que vai ao encontro da observação feita por autores como Wollard (1998)
e Blackledge (2008) de que as ideologias linguísticas acabam se voltando para
questões que transcendem a linguagem propriamente dita.

No que tange ao caso específico do Curso Bilíngue, o vigor da ideologia


linguística aponta para uma diferenciação, seguida de uma classificação, que parece
destacar o surdo “legítimo”, experiente no uso da língua de sinais, engajado nas lutas
políticas, que se faz reconhecer como membro de uma comunidade surda, que “tem
identidade surda”, dos demais que não se enquadram nesse perfil idealizado. Assim,
busca-se “alinhavar”, ressalte-se, estrategicamente, toda a complexidade dos
processos identitários com a “linha” da Língua Brasileira de Sinais e utilizar a
especificidade da comunicação via sinais para unificar a comunidade de modo
semelhante ao que se refere Anderson (2008) quando descreve as comunidades
imaginadas.
182

Tendo por base as considerações tecidas por Woodward (2009), referente


às políticas de identidade, pode-se dizer que, tal como ocorre em outros contextos, no
espaço do Curso Bilíngue, o projeto de representação do grupo não escapa ao dilema
da igualdade e da diferença. Sendo assim, a afirmação política da diferença, baseada
sobretudo no critério linguístico, tende a construir novos universalismos que por um
lado diferenciam surdos de ouvintes e, por outro, surdos “legítimos” e “ilegítimos”.

É preciso ressaltar que embora a tentativa de unificar o grupo pareça


necessária e inevitável para a manutenção de uma agenda política que possa garantir
a luta por direitos, o apelo a determinados atributos essenciais, ou seja, a
essencialização da diferença pode também resultar em prejuízos para alguns
membros do grupo que se pretende unificar, uma vez que tende a “congelar”
identidades que são descentradas, fluidas e mutáveis.

É nesse sentido que Bauman (2005, p. 85) salienta que

as batalhas de identidade não podem realizar a sua tarefa de


identificação sem dividir tanto quanto, ou mais do que, unir. Suas
intenções includentes se misturam com (ou melhor são
complementadas por) suas intenções de segregar, isentar e excluir.

Vale lembrar que, se por um lado, alguns registros aqui analisados apontam
para a tentativa de estabelecimento de um núcleo identitário que, em uma “dose útil”
de essencialismo estratégico (SPIVAK, 2010), busca afirmar uma identidade coerente,
centrada e unificada a partir do uso (ou não) de uma materialidade linguística
específica (a língua de sinais); por outro, há no Curso Bilíngue, um movimento que
contribui para a relativização do peso “do carácter historicamente construído das
categorias em que nos encaixamos como pessoas” (ALMEIDA, 2009).

5.3 “No DESU o modelo é inclusivo”: representações sobre o Curso Bilíngue

No segundo capítulo desta tese, apresentei um breve panorama acerca do


bi/multilinguismo e da educação bilíngue, tal como vem sendo problematizados na
virada do século XX para o XXI. Nas considerações tecidas, destaquei, amparada em
diferentes estudiosos do tema (GARCÍA, 2009; MAHER, 2007, 2012, entre outros), a
183

complexidade que permeia esses fenômenos. Tal complexidade, torna controvertida


a configuração desse campo de estudos, sendo plurais não somente as concepções
existentes com relação ao que significa ser bilíngue como também as práticas
educacionais denominadas bilíngues.

Conforme apontei nesse mesmo capítulo, no particular contexto da surdez,


às questões que se colocam nos demais contextos de bilinguismo soma-se o fato de
que nele estão envolvidas línguas de modalidades diferentes, uma das razões que o
torna um caso atípico (SOUSA, 1998; QUADROS, 2005; SANTANA, 2007, entre
outros) e que o insere em diferentes controvérsias.

No caso específico da educação de surdos no Brasil, em que as


experiências bilíngues são ainda uma realidade bastante recente, a questão há muito
levantada por Skliar (1997a) – “o que é a educação bilíngue para surdos?” –
permanece ainda envolta a uma disputa de significados que se robusteceu, conforme
apontei no capítulo 2, sobretudo depois da circulação de dois documentos produzidos
na esfera governamental: o Decreto nº 5.626/05 e a Política Nacional de Educação
Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva.

Voltado para a regulamentação da língua de sinais, o referido decreto


também lança as bases da organização da educação bilíngue a ser ofertada na rede
pública de ensino brasileira. Isso se dá ao prever a garantia, aos surdos, de que sejam
matriculados: (i) na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental, em
escolas e classes de educação bilíngue105 com professores bilíngues; (ii) nos anos
finais do ensino fundamental, no ensino médio ou educação profissional, em escolas
bilíngues ou escolas comuns da rede regular de ensino, com docentes das diferentes
áreas do conhecimento, sem a necessidade dos mesmos serem bilíngues,
assegurada, no entanto, a presença de intérpretes de LIBRAS. Nas diferentes etapas
de escolarização, a oferta também se estende a alunos ouvintes.

A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação


Inclusiva opera com a lógica da valorização dos processos de inclusão dos alunos,
defendendo, nesse sentido, que todos eles, a despeito de suas diferenças, devem ser
matriculados na rede regular de ensino. Nesse documento, tal como no Decreto nº

105
Conforme já explicitado no capítulo 2, são denominadas escolas ou classes de educação bilíngue
aquelas em que a LIBRAS e a modalidade escrita da língua portuguesa sejam línguas de instrução
utilizadas no desenvolvimento de todo o processo educativo.
184

5.626/2005, a inclusão de alunos surdos preconizada também reconhece o direito dos


mesmos à educação bilíngue, sendo esta descrita, conforme assinalei anteriormente,
como o “o ensino escolar na Língua Portuguesa e na Língua de Sinais” (BRASIL,
2008, p. 11). Também aqui o ensino do português é previsto como segunda língua,
na modalidade escrita, para os alunos surdos.

Faço esse breve resgate para enfatizar que sendo o Curso Bilíngue de
Pedagogia do DESU uma experiência inovadora em todo o Brasil, não tem sua
formatação e modelo previstos em nenhum documento normativo. Em verdade, o
decreto regulamentador da LIBRAS apenas abre caminho para a criação de cursos
de pedagogia que busquem a formação de professores surdos e ouvintes com o
objetivo de viabilizar a educação bilíngue (LIBRAS/Língua Portuguesa) para
estudantes surdos da Educação Básica, mas não aprofunda de que modo cursos
dessa natureza podem e/ou devem ser configurados.

O Curso desponta e vem se desenvolvendo, então, conforme a análise dos


registros neste e no próximo item buscará problematizar, em um cenário em que as
representações (HALL, 1997; SILVA, 2009) construídas pelos atores participantes a
respeito dessa singular proposta do DESU/INES transitam, sobretudo, entre a
contestação de sua configuração bilíngue e a reafirmação dessa sua natureza
específica. Ambos os movimentos são possivelmente alimentados pelos principais
documentos que tratam de políticas linguísticas e educacionais para o contexto da
educação de surdos no Brasil e pelas ideologias linguísticas (KROSKRITY, 2004)
presentes em diferentes discursos dos movimentos sociais surdos, que, conforme
busquei destacar nos dois anteriores itens de análise, também circulam nesse espaço.

Dito isso, trago para o início da discussão um trecho do depoimento do


estudante Pablo em que explicita os motivos que o levaram a prestar o vestibular do
Curso Bilíngue de Pedagogia e também algumas impressões suas a respeito da
experiência de ingresso nesse espaço educacional.

Excerto 26
1 Eu comecei a aprender mais a língua de sinais em uma igreja
2 em Campo Grande. Aí me falaram do DESU, que tinha um
3 Curso Bilíngue de Pedagogia, que seria bom pra mim, pra eu
4 me aperfeiçoar na língua de sinais. Como eu trabalho como
5 intérprete em escola, mesmo eu não tendo a pretensão de
185

6 trabalhar dando aula pra crianças, foi muito bom vir pra cá. Só
7 que quando eu pesquisei sobre o que era bilinguismo,
8 logicamente seriam duas línguas, mas eu pensava que a língua
9 de instrução principal, a língua em que as aulas seriam dadas
10 seria a língua de sinais e tendo por apoio a língua portuguesa
11 escrita. Do que eu imaginava pra realidade, dois mundos
12 totalmente diferentes. Quando eu li o edital, pedia fluência em
13 língua de sinais. Então foi muito angustiante pra mim porque
14 eu pensava: “caramba, será que eu vou ficar atrasado? Todo
15 mundo lá fera em língua de sinais, as aulas tudo em língua de
16 sinais, tudo LIBRAS, já que lá é o mundo dos surdos. Como é
17 que eu faço?” Fiquei bastante preocupado mesmo. Só que
18 quando eu cheguei aqui no primeiro dia de aula a professora
19 me deu boa noite falando, né? Aí eu sinalizei “boa noite” e a
20 intérprete falou “boa noite” pra ela. No decorrer da aula, ela só
21 falava, falava, oralizava. Era linguagem oral e intérprete lá.
22 Então foi exatamente o contrário do que eu imaginava. Eu
23 trabalho numa escola onde o professor ministra as aulas,
24 mas aulas regulares na linguagem oral, com a presença do
25 intérprete, que no caso sou eu que faço a tradução para os
26 alunos surdos. O MEC chama de escola inclusiva. Aqui a
27 gente chama de Departamento de Ensino Superior
28 Bilíngue. Só que é exatamente o que acontece na escola
29 inclusiva. Então, eu acho que aqui ainda não temos um
30 bilinguismo. Porque eu acho que é o único no Brasil que tem
31 esse curso, né? É o único no Brasil que tem esse curso e foi o
32 pioneiro. Então é o começo. Então, eu creio que daqui a
33 algumas décadas a gente tenha aqui um bilinguismo de
34 verdade, onde as aulas sejam ministradas em língua de
35 sinais, em que todo mundo aqui saiba as duas línguas cem
36 por cento e a comunidade acadêmica inteira saiba a língua
37 de sinais...não um ensino bilíngue onde somente o professor
38 é bilíngue, só a sala é bilíngue, mas toda a conjuntura.

Trecho de entrevista realizada com Pablo (Estudante ouvinte)

Pablo, um aluno ouvinte que afirma ter buscado o ingresso no Curso


Bilíngue de Pedagogia com o objetivo de se “aperfeiçoar na língua de sinais”, por já
atuar como intérprete educacional de LIBRAS, revela as expectativas que criou sobre
a experiência de estudar nesse espaço ao realizar uma pesquisa sobre o tema do
bilinguismo. Embora considerasse que “logicamente seriam duas línguas”, ele
186

acreditava que “a língua em que as aulas seriam dadas seria a língua de sinais”, ou
seja, que todos as aulas seriam ministradas em LIBRAS. A expectativa criada pelo
aluno teria sido nutrida também a partir da leitura do edital106 do vestibular, que,
segundo relata, “pedia fluência em língua de sinais”, o que lhe causou certa
apreensão, embora já atuasse como intérprete de LIBRAS/Língua Portuguesa.

O aluno tece então uma comparação entre a realidade que vivencia em sua
atuação em uma escola regular como profissional intérprete, em que o professor
ministra as aulas na linguagem oral, com o que presencia no Curso Bilíngue onde está
na posição de aluno. Para Pablo, o que se passa nesse cenário “é exatamente o que
acontece na escola inclusiva” (excerto 26, linhas 28-29), chegando à conclusão de
que, no DESU, o bilinguismo ainda não seria uma realidade (“Então, eu acho que
aqui ainda não temos um bilinguismo” – linhas 29-30).

O fato de as aulas no Curso Bilíngue serem majoritariamente ministradas


pelos professores na língua portuguesa oral, com a presença do profissional
intérprete, não é a única razão pela qual o aluno parece questionar a legitimidade do
caráter bilíngue do Curso. Para ele, “um bilinguismo de verdade” (linhas 33-34)
somente será atingido no DESU quando todos os integrantes do Curso souberem “as
duas línguas cem por cento e a comunidade acadêmica inteira [souber] a língua
de sinais” (linhas 35-37).

No depoimento de Plutão, quando empreende uma avaliação sobre a


questão bilíngue no cenário do Curso, diferente do que se vê no depoimento de Pablo,
não figura uma contestação dessa perspectiva, mas sim o reconhecimento de que o
modelo bilíngue em desenvolvimento no DESU é parte integrante de uma agenda
político-linguística, agenda essa que não estaria ainda plenamente contemplada.

Excerto 27
1 Então...pro bilinguismo ao qual eu defendo, que ambas as
2 línguas, português e línguas de sinais, tenham o mesmo nível
3 de importância, a gente está muito longe. E isso não é devido
4 apenas às condições do próprio do INES, porque se você entra no
5 site do Instituto está dito que o INES oferece educação bilíngue
6 aos alunos desde a Educação Básica. (...) o problema nosso, do
7 DESU, é que quando nós éramos ISBE não havia professor de

106
O edital do Curso Bilíngue de Pedagogia foi problematizado no item 4.2.2 desta tese.
187

8 LIBRAS, que não havia o curso de Letras/LIBRAS. O Decreto 5626


9 tinha acabado de ser... era muito recente. E no Brasil, a gente já
10 sabe também que legislação não significa garantia de efetividade
11 das ações. Entre uma coisa e outra há um espaço grande, né?
12 Como a sistematização da política pública. O número de
13 professores de ensino superior que tinha alguma informação sobre
14 educação de surdos também era muito menor que hoje em dia já
15 é. E isso é conquista da comunidade surda e também dos
16 pesquisadores da área, militantes, muitos deles militantes. Tanto
17 a favor do bilinguismo esquisito que é esse que ele pode
18 escrever um português qualquer, ele pode ter uma LIBRAS
19 qualquer, não é esse bilinguismo o qual eu defendo. Mas
20 enfim, na perspectiva bilíngue que a gente quer a gente ainda
21 está longe. (...)

Trecho de entrevista realizada com Plutão (Docente)

Como é possível depreender do excerto 27, Plutão não nega que o Curso
se desenvolva em uma perspectiva bilíngue, porém salienta a defesa por uma
configuração para esse espaço de modo que “ambas as línguas, português e
línguas de sinais, tenham o mesmo nível de importância” (linhas 1-3), adentrando,
assim, no campo da ideologia linguística. Uma das razões apontadas no depoimento
para considerar que o bilinguismo no Curso estaria longe de uma perspectiva ideal foi
a implementação tardia de políticas públicas no âmbito da educação de surdos que
pudessem subsidiar práticas bilíngues nesse contexto, como, por exemplo, a
formação de professores de LIBRAS.

Quando Plutão se refere à perspectiva bilíngue que defende, em que


ambas as línguas possam alcançar “o mesmo nível de importância”, fica claro que um
dos propósitos sobre o qual seria necessário se debruçar se situa no âmbito do
planejamento de status (CALVET, 2007) da LIBRAS no espaço do Curso. Para tanto,
uma das ações em desenvolvimento no DESU que poderia contemplar o objetivo da
equalização das línguas é descrita por Plutão na sequência do seu depoimento:

Excerto 28
1 (...) Nessa perspectiva [na que se busca], a gente está
2 longe ainda do bilinguismo, mas a gente está caminhando
3 pra esse sentido. Por quê? Com a revisão do currículo e com
188

4 as novas condições do professor de LIBRAS e tal, os alunos


5 agora terão ensino de línguas em separado. Então vai ter
6 Língua Portuguesa pra quem tem [inaudível]...e LIBRAS,
7 também vai acontecer isso, tem uma perspectiva de
8 nivelamento, de avaliação inicial, de nivelamento. Então isso é
9 uma parte pra esse bilinguismo. Só que a outra parte é
10 produção acadêmica e isso eu sinto muita resistência
11 especialmente dos ouvintes. Que os surdos querem produzir
12 em LIBRAS e os ouvintes ficam: “não, porque tem que
13 produzir... é o curso bilíngue”. (...)

Trecho de entrevista realizada com Plutão (Docente)

No excerto 28, são ressaltadas por Plutão algumas das ações de


gerenciamento (SPOLSKY, 2004) a respeito das línguas em circulação no Curso. Uma
das intervenções que, segundo o relato, será realizada com a implementação de um
novo currículo107 no DESU, é o ensino em separado das duas modalidades
linguísticas (Língua Portuguesa escrita e LIBRAS) de forma a contemplar as
competências que cada estudante já traz consigo ao ingressar no Departamento. A
inserção108 da disciplina de LIBRAS no novo currículo do Curso e a transformação do
formato da disciplina Língua Portuguesa109 – que, em uma nova matriz, passaria a ser
desenvolvida tendo por base uma espécie de nivelamento – são, portanto, ações que,
de algum modo, buscam viabilizar a equalização das línguas.

Quando, no excerto 27, Plutão afirma que não se coloca em favor de um


“bilinguismo esquisito” que, segundo sua visão “é esse que ele pode escrever um
português qualquer, ele pode ter uma LIBRAS qualquer” (excerto 27, linhas 17-
18), demonstra uma concepção convencional acerca das competências linguísticas

107
Conforme dito anteriormente, uma nova matriz curricular para o Curso Bilíngue estava prevista para
ser implementada a partir das turmas ingressantes no ano de 2015.
108
A disciplina LIBRAS não constava na versão curricular da turma por mim acompanhada, embora os
alunos tenham podido participar, de forma experimental, de aulas voltadas para o aprendizado
dessa língua. Os alunos se dividiam em dois grupos: um grupo participava de aulas de LIBRAS e
outro de aulas de língua portuguesa como segunda língua. Na disciplina Língua Portuguesa Escrita
não havia, entretanto, separação.
109
No currículo em vigência no decorrer da pesquisa de campo, a disciplina Língua Portuguesa Escrita
estava contemplada do 1º ao 7º período do Curso Bilíngue e estudantes surdos e ouvintes,
independente dos seus conhecimentos prévios, participavam das mesmas aulas. Já era antiga, no
DESU, entretanto, a indicação, principalmente por parte dos professores de Língua Portuguesa, de
que as aulas dessa disciplina deveriam ser repensadas de modo a contemplar diferentes objetivos
de ensino que se vislumbram para surdos e ouvintes.
189

dos estudantes, que provavelmente se assenta em determinados padrões que


consideram o “bom uso” das línguas, ou seja, aquilo que é convencionalmente
estabelecido como o “bom padrão” de uso da LIBRAS e do português escrito.

Vale lembrar que no caso do depoimento de Pablo (excerto 26), ao afirmar


que uma das condições para que o DESU se configure de modo “genuinamente”
bilíngue é que todos os atores desse cenário saibam a LIBRAS e o português escrito
“cem por cento”, ele também aponta para a questão da equalização das línguas no
Curso e tem como referência “competências linguísticas completas”, numa clara
alusão à noção de bilinguismo equilibrado e não a uma ideia de repertório, em que
diferentes níveis de competência são validados. Nesse sentido, o aluno opera com
uma ideia de língua como uma “entidade pronta” (MAHER, 2007, p. 77) que é a que
sustenta essa noção tradicional e popularizada de bilinguismo balanceado.

Atualmente, conforme ressalta García (2009, p. 45), o sujeito bilíngue pode


ser compreendido, entretanto, para muito além dessa concepção. Mesmo no caso do
bilinguismo do âmbito da surdez, que normalmente é colocado à parte nos estudos
que se dedicam a contextos de minorias linguísticas, os modelos de educação bilíngue
descritos por García (2009) podem ser empregados. A autora (2009, p. 152) defende
que uma instituição educacional voltada para surdos pode incorporar recursos dos
diferentes tipos educacionais bilíngues (explicitados no capítulo 2). Acrescenta, ainda,
que programas voltados para estudantes surdos têm se tornado cada vez mais
complexos, sendo uma das razões apresentada os progressos nos procedimentos de
implante coclear que, segundo a autora, estão tornando a categorização de surdos
mais fluida, uma vez que a oralização e a sinalização passam muitas vezes a compor
o repertório desses indivíduos.

No depoimento da aluna Regina, tal como observado no de Pablo,


reaparece a ideia de que o bilinguismo no nível individual está atrelado a
competências “completas” em duas diferentes línguas, no caso, LIBRAS e português
escrito. Essa compreensão é explicitada pela aluna no excerto 29, trecho em que
expõe a sua visão acerca do relacionamento entre os estudantes de sua turma e
significa a experiência vivenciada no Curso Bilíngue:
190

Excerto 29
1 A minha turma até que é uma turma boa. O clima até que é de
2 paz porque a minha turma até agora graças a Deus não teve
3 problema nenhum de inimizade ou confusão entre surdos e
4 ouvintes, mas porque os ouvintes se colocam naquele
5 patamar que realmente eles têm que ajudar o surdo. E isso
6 também não é correto. O correto é o surdo chegar aqui na
7 universidade bilíngue. Não é o surdo depender da minha
8 ajuda...é porque ele é bilíngue. Eu tenho que ser bilíngue e
9 ele tem que ser bilíngue. Tem que ser igual. A interação tem que
10 ser igual porque é bilinguismo. Bilinguismo é eu ter, digamos,
11 100% da minha língua, que é o português, e, digamos, 90% da
12 LIBRAS. E o contrário também né? Para os surdos a mesma
13 coisa, só que eles têm que ter o português escrito. E eles não
14 têm...eles não conhecem nada. Então, a minha turma é boa
15 porque ela tem essa aceitação, ela aceita o surdo do jeito que ele
16 é, entende a questão do português, interage e tenta ajudar o
17 surdo. Mas isso daí não quer dizer que é bom, o bom é que todo
18 mundo seja bilíngue já... não é bilíngue ainda, não é só os
19 surdos, nós também. Eles não são 100% bilíngues e nem nós,
20 né? Porque nós não temos a língua de sinais 100% e nem eles
21 têm o português. Então não somos 100%, não somos
22 bilíngues ainda. Isso quer dizer que eu vou ter que olhar pro
23 intérprete quando o professor é surdo e o surdo também pro
24 intérprete quando o contrário estiver dando aula.

Trecho de entrevista realizada com Regina (Estudante ouvinte)

No excerto 29, Regina inicialmente destaca um dos fatores que contribuiu


para o que ela considera como um bom relacionamento entre os estudantes de sua
turma. Para a aluna, é o fato de que “os ouvintes se colocam naquele patamar que
realmente eles têm que ajudar o surdo” (linhas 4-5). Ao que parece, ela se refere à
questão relacionada às dinâmicas de realização de atividades acadêmicas (sobretudo
apresentação de seminários e desenvolvimento das demais avaliações) em que
surdos e ouvintes, quase sempre110 trabalham de forma integrada.

110
No Curso Bilíngue, há a recomendação, por parte dos professores, de que os grupos organizados
para a realização de atividades acadêmicas não sejam constituídos exclusivamente por discentes
surdos ou exclusivamente por discentes ouvintes.
191

A aluna considera que “o clima de paz” que percebe em sua sala de aula
se deve a uma espécie de “aceitação” que haveria por parte da sua turma, “[d]o surdo
do jeito que ele é”. Essa “aceitação”, pelo que se depreende, passa pela compreensão
hoje estabilizada e há muito difundida tanto em estudos dedicados à educação
bilíngue no contexto da surdez (PEREIRA, 2014; FERNANDES e RIOS, 1998;
FERNANDES, 2003; QUADROS, 1997, 2005; SKLIAR, 1997a, 1998, 2001, entre
outros) como em diferentes cenários de educação bilíngue para surdos (incluindo-se
aqui o DESU), de que a Língua Portuguesa, em sua modalidade escrita, é a segunda
língua dos indivíduos surdos. Também passa pelo entendimento de que sendo o
português uma segunda língua para esses alunos, é necessário os ouvintes – que,
seguindo esse parâmetro, têm o português como primeira língua – compreenderem
as dificuldades dos estudantes surdos nas práticas que envolvem leitura e escrita e
que, por conseguinte, tentem “ajudá-los”.

Diante dessa relação que significa como sendo de dependência dos alunos
surdos perante os ouvintes, não desejável e inadequada (“E isso também não é
correto” – excerto 29, linhas 5-6), Regina vê a condição bilíngue dos indivíduos surdos
como elemento-chave nessa problemática (“O correto é o surdo chegar aqui na
universidade bilíngue. Não é o surdo depender da minha ajuda...é porque ele é
bilíngue.” – linhas 6-7). Em sua percepção, entretanto, os colegas surdos da turma
ainda não são bilíngues porque eles “têm que ter o português escrito” (linha 13) e,
em sua avaliação, “eles não têm...eles não conhecem nada” (linhas 13-14).
Observa, ainda, que também os alunos ouvintes não seriam bilíngues porque os
mesmos “não [têm] a língua de sinais 100%” (linha 20).

A concepção de bilinguismo com a qual a aluna trabalha (“Bilinguismo é


eu ter, digamos, 100% da minha língua, que é o português e, digamos, 90% da
LIBRAS. E o contrário também né?” – linhas 10-12) opera a partir de lentes
monoglóssicas, de modo semelhante ao observado no depoimento de Pablo (excerto
26). Essa concepção remete a um sujeito bilíngue que “seria a ‘somatória perfeita’ de
dois monolíngues ‘perfeitos’” (MAHER, 2007, p. 73) ou, acrescento eu, “praticamente
perfeitos” (“90%”). Entretanto, como Maher (2012, p. 34) aponta, o sujeito bilíngue,
“não o idealizado, mas o de verdade – não exibe comportamentos idênticos em, por
exemplo, LIBRAS e Português”.
192

García (2009) também adverte para o fato de que o sujeito bilíngue


equilibrado não existe. A autora questiona esse modelo – que denomina como
“bilinguismo monoglóssico” – que opera com a nomeação de uma determinada língua
como sendo a primeira e a da língua adicional como sendo a segunda língua. Essa
visão dos indivíduos bilíngues como duplos monolíngues, de acordo com a autora,
não consegue mais responder à grande complexidade linguística do século XXI.

Argumentação semelhante é encontrada em Canagarajah (2011, 2013).


Para o autor, a competência linguística dos indivíduos bilíngues não deve se
concentrar no domínio de cada língua separadamente, mas na construção de um
repertório em que cada língua desempenha funções distintas. Assim, não caberia
avaliar se um estudante surdo sinalizante demonstra 100% ou 90% de competência
no português escrito ou se o estudante ouvinte demonstra esses mesmos percentuais
de competência na LIBRAS, a fim de que possam ser considerados bilíngues, como
sugere Regina (excerto 29). Conforme destaca Canagarajah (2013), as línguas
formam um sistema integrado e a competência bi/multilíngue não coincide com as
competências separadas em cada língua, tal como se observa na concepção obsoleta
de bilinguismo equilibrado.

Analisando o contexto da educação bilíngue para surdos, no qual se insere


o Curso Bilíngue de Pedagogia do DESU, Silva (2008, p. 400) argumenta que “noções
como língua, língua materna e segunda língua devem ser (re)dimensionadas por
fazerem parte de um continuum”. Isso aponta para a necessidade de que a
“desinvenção” a que se referiram Makoni e Pennycook (2007) possa também ser
considerada no contexto da surdez. Conforme aponta a autora, nesse
redimensionamento dos referidos conceitos, ou seja, nesse continuum pelo qual
advoga, haveria duas extremidades em que estariam localizadas a LIBRAS utilizada
por surdos adultos escolarizados e a língua portuguesa padrão ensinada nas escolas.

O que se vislumbra nos excertos em análise, ou seja, uma avaliação dos


indivíduos bilíngues como duplos monolíngues, ou bilíngues balanceados, que teriam
como estabelecer fronteiras claras entre as línguas, não é, entretanto, uma
particularidade do contexto da surdez ou do próprio Curso Bilíngue do DESU. Em
estudo sobre práticas linguísticas em contexto escolar na fronteira Brasil/Uruguai,
Bortolini, Garcez e Schlatter (2013) observaram que o programa de ensino bilíngue
desenvolvido em escolas uruguaias mantém os dois sistemas linguísticos muito
193

delimitados (no caso, o português e o espanhol), o que acaba interferindo na


percepção dos próprios indivíduos enquanto sujeitos bilíngues legítimos. Segundo os
autores (2013, p. 271), a definição de indivíduo bilíngue com a qual o programa
trabalha é aquela em que são consideradas as capacidades de empregar as duas
línguas (português e espanhol) nas modalidades oral e escrita (envolvendo a leitura,
a escrita, a fala e a escuta), demonstrando controle de todos os níveis gramaticais nas
duas línguas e sendo capaz de manter separados esses dois sistemas linguísticos.

Ainda no que diz respeito às representações construídas sobre a condição


bilíngue dos estudantes no Curso, é oportuno trazer um trecho do depoimento de
Júpiter, no qual responde ao meu questionamento acerca de possíveis dificuldades
que encontra em sua prática pedagógica em função da natureza bilíngue
(LIBRAS/Língua Portuguesa) do Curso de Pedagogia desenvolvido no DESU.

Excerto 30
1 Aqui a dúvida minha sempre foi avaliar. Não há dúvida! É avaliar,
2 porque você também não pode produzir, com base num modelo
3 hipotético, um massacre em termos de reprovação porque bem ou
4 mal esses alunos chegaram aqui como chegaram. Falo tanto dos
5 ouvintes quanto dos surdos. No caso dos surdos
6 especificamente, quase que completamente sem língua
7 portuguesa, quase não, totalmente sem língua portuguesa,
8 com grande dificuldade em português. E fosse para avaliar de
9 maneira rigorosa, eu acho que nós teríamos a obrigação de
10 produzir uma reprovação massiva e esse curso duraria oito, nove
11 anos. Talvez ele não se sustentasse. Então me causa... assim, eu
12 acho que de um modo geral, a gente não... enfim, faz tudo o que
13 pode por nossos alunos, mas os resultados são, na média, bastante
14 decepcionantes.

Trecho de entrevista realizada com Júpiter (Docente)

No excerto 30, ao tematizar a dificuldade que considera existir na atividade


de avaliação dos alunos do Curso Bilíngue, Júpiter, enfatizando especificamente o
caso dos surdos, considera como um possível obstáculo para a prática da avaliação
o fato de que, em sua concepção, esses estudantes chegam ao DESU “quase que
194

completamente sem língua portuguesa, quase não, totalmente sem língua


portuguesa, com grande dificuldade em português” (linhas 6-8).

É importante ressaltar que, ao considerar que os estudantes surdos não


teriam o português escrito em seu repertório linguístico, muito possivelmente a
avaliação de Júpiter está pautada, de forma semelhante ao explicitado por Regina
(excerto 29) e Pablo (excerto 26), em um modelo idealizado de “falante” que
normalmente têm por base uma concepção monoglóssica de língua e que estabelece
fronteiras rígidas entre as línguas que compõem o repertório dos indivíduos.

Conforme pontua na sequência de seu depoimento, ainda discorrendo


sobre possíveis dificuldades no trabalho docente na sala de aula bilíngue do DESU, o
que considera como a falta de competência dos estudantes surdos no português
escrito (“totalmente sem língua portuguesa” – excerto 30, linha 7) parece estar
relacionado a determinadas competências de leitura/escrita que se almejam para
estudantes de nível superior monolíngues em português, ou seja, um usuário
idealizado. Entretanto, essa “competência nula em português”, por parte dos
estudantes, não seria, em sua visão, o maior entrave encontrado na prática bilíngue
do curso.

Excerto 31
1 (...). Eu acho que a grande dificuldade do ensino superior
2 envolvendo surdos, se ele quiser ser ensino superior, vai ser a
3 produção de textos em LIBRAS. Não com aquela visão que se vê
4 por aqui do surdismo... de que o surdo só pode sinalizar, que aqui
5 você fala em bilinguismo, mas acaba sendo monolinguismo
6 porque...é monolinguismo porque muitas vezes se defende que
7 a pessoa tem que obter todo o conhecimento e expressar todo
8 esse conhecimento em LIBRAS. Mas eu acho que a língua
9 portuguesa é fundamental. Eu fico falando pra eles [alunos]
10 assim: “escrita é fundamental pra estruturar o pensamento, não
11 é pra se comunicar apenas não”. Mas então, se eu tivesse fazendo
12 um curso em alemão, por exemplo, eu ia querer uma tradução, uma
13 boa tradução em português pra eu poder me aproximar do texto em
14 alemão. Não que eu tenha que parar ali. Eu acho que é essa a
15 perspectiva, eu acho que esse é um trabalho que o ensino superior,
16 de qualquer área, pra surdos, vai ter que desenvolver. Mas eu
195

17 comecei a pensar, e acho que continuo pensando isso, que se for


18 esperar produzir textos inteiros...

Trecho de entrevista realizada com Júpiter (Docente)

De acordo com Júpiter, conforme se depreende do excerto 30, um dos


obstáculos inerentes à configuração bilíngue de cursos superiores voltados para
estudantes surdos, tal como o que é ofertado pelo DESU, diz respeito à produção de
textos acadêmicos em LIBRAS. Ao problematizar a falta de textos teóricos em LIBRAS
que estejam direcionados para o trabalho bilíngue nesse nível de ensino, o professor
está aludindo à carência de um tipo específico de política linguística, que Shohamy
(2006) chama de oculta (hidden language policy).

Quando Júpiter diz que cursos de nível superior voltados para estudantes
surdos, em qualquer área do conhecimento, precisam desenvolver o trabalho de
produção de material específico, como textos teóricos em LIBRAS, fica claro que são
mecanismos não explícitos, para muito além dos mecanismos legislativos – que são
do tipo explícito (SHOHAMY, 2006) – os responsáveis por criar e influenciar as
políticas linguísticas reais e, portanto, muito mais efetivos.

Essa questão dos textos acadêmicos em LIBRAS a que fez referência


Júpiter foi levantada por Sol (TILS) em seu depoimento, quando relata sua trajetória
enquanto intérprete e traça um paralelo entre o que ocorre em outras instituições de
ensino superior que recebem estudantes surdos e a experiência que vem sendo
possível desenvolver no Curso Bilíngue do DESU:

Excerto 32
1 (...) Muita coisa eu só vejo realmente por aqui. Aqui já estávamos
2 discutindo que deveria ter a monografia em LIBRAS. Isso foi
3 discutido, foi construído, agora vai ter a monografia feita só em língua
4 de sinais, que era uma reivindicação meio que antiga dos surdos. Os
5 alunos aqui vão passar a ter acesso a textos acadêmicos por
6 uma equipe agora que está chegando que vai começar a fazer.
7 Isso não se vê em qualquer lugar não. Eu pelo menos nunca vi,
8 porque em outras faculdades não têm isso. O surdo é simplesmente
9 jogado na sala de aula (...). Então pra mim aqui é uma ótima
196

10 experiência de trabalho, porque eu posso fazer várias atividades


11 além de interpretar as aulas. (...)

Trecho de entrevista realizada com Sol (TILS)

Ao significar sua experiência de trabalho no Curso Bilíngue, Sol cita alguns


aspectos que se configuram como diferenciais perante o que ocorre em outros
espaços de educação superior que também recebem surdos. Sol chama a atenção
para o fato de que, no DESU, estudantes surdos passaram a ter a possibilidade de
desenvolver o trabalho final, no formato monografia, na língua de sinais, conforme
pleiteavam. Além disso, também ressalta que o Departamento está começando a se
engajar na atividade de tradução de textos acadêmicos do português para a LIBRAS,
o que, segundo ele, “não se vê em qualquer lugar não” (linha 7), destacando, assim,
um dos diferenciais do Curso Bilíngue não apenas para os estudantes surdos, como
também para sua trajetória enquanto profissional intérprete.

Ainda no tocante à efetivação do mecanismo de política linguística implícito


(SHOHAMY, 2006) que é a produção de textos acadêmicos em LIBRAS, Júpiter
acrescenta, no excerto 31, que a mesma não deve ser pensada de modo a tornar a
leitura e a escrita em português prescindíveis para esses alunos. Em sua concepção,
a produção de textos em LIBRAS deve funcionar como uma estratégia de
aproximação entre os estudantes surdos e os textos teóricos correntes em sua
formação enquanto universitários. É feita, então, a ressalva de que a tradução desses
materiais para a língua de sinais não deve estar pautada em uma ideologia linguística
que vise ao monolinguismo nessa língua, correndo-se o risco, em sua compreensão,
de que se responda, por oposição ao ouvintismo 111, com uma espécie de
“surdismo112”.

Júpiter considera que o modelo educacional em desenvolvimento no DESU


deve se afastar do risco de operar em uma ótica monolíngue que estaria incutida, por
exemplo, na defesa que julga às vezes ser empreendida no Curso de que “a pessoa

111
Ouvintismo é o termo cunhado no Brasil por Skliar (2010) e definido como sendo um conjunto de
representações das pessoas ouvintes sobre a surdez e sobre as pessoas surdas, a partir do qual o
surdo estará obrigado a olhar-se e a narrar-se como se fosse ouvinte.
112
Surdismo é um termo usado informalmente, em diferentes contextos da surdez, para fazer
referência, por oposição, ao ouvintismo.
197

tem que obter todo o conhecimento e expressar todo esse conhecimento em LIBRAS”
(excerto 31, linhas 6-8). Com essa observação, parece acenar para a compreensão
de que em mundo cada vez mais multilinguístico, é importante a ampliação do
repertório dos estudantes surdos. Nesse sentido, defende que “a língua portuguesa é
fundamental” (excerto 31, linhas 8-9), apontando os benefícios que enxerga no
aprendizado do português em sua modalidade escrita (“...escrita é fundamental pra
estruturar o pensamento, não é pra se comunicar apenas não” – excerto 31, linhas
10-11).

Pelo que se compreende desse último trecho destacado do excerto 31


(linhas 10-11), é também a partir da lente do grafocentrismo (CAVALCANTI, 1999,
2004; CAVALCANTI e SILVA, 2007), salientando a questão interacional e o
desenvolvimento cognitivo, que Júpiter destaca para os alunos da turma a relevância
do português escrito na formação bilíngue que a eles se propõem.

Se, conforme apontaram Cavalcanti e Silva (2007, p. 219), a escrita rege a


vida escolar no Brasil, tal como em outros países, quando se trata do ensino superior,
as expectativas com relação às competências dos estudantes são ainda maiores,
mesmo que diante de um quadro discente que apresenta trajetórias educacionais e
repertórios tão diferentes entre si, como é o caso do Curso Bilíngue. É o que se
depreende do trecho do depoimento de Saturno, no excerto 33, em que buscava
explicar as práticas pedagógicas adotadas em sala em função da natureza bilíngue
do Curso do DESU.

Excerto 33
1 (...) O cenário aqui é bem crítico, eu acho bem crítico. Eu não
2 conheço o trabalho de base dos alunos surdos, eu não sei sequer
3 como foram alfabetizados e se foram alfabetizados. Eu sei que
4 muitos deles chegam ao DESU sem saber LIBRAS inclusive. E
5 aí eu penso que se ele não consegue se expressar ainda nem
6 na língua dele, que é a língua de sinais, é claro que vai ser bem
7 pior com o português escrito. E se você pensar...é crítico, porque
8 um aluno do ensino superior não saber português...é
9 inconcebível, né? Um curso bilíngue que forma professores,
10 pedagogos... E pior, não sabem nem português nem LIBRAS
11 (...) Eu não vejo como essa questão pode ser sanada aqui na
12 graduação do DESU. Eu acho que tem que resolver isso antes. Eu
198

13 tento, então, na medida do possível, fazer aquela que é sempre a


14 orientação aqui...que é a de evitar trabalhar só texto, só texto...mas
15 nem sempre dá...quando é possível contextualizar a aula com
16 imagens ou vídeos...se bem que também é complicado porque nem
17 sempre tem vídeo com legenda né? Mas quando dá, eu tento fazer
18 isso e acho que é positivo, que a gente prende mais o aluno, não
19 só o surdo inclusive. (...)

Trecho de entrevista realizada com Saturno (Docente)

No excerto 33, Saturno, ao tematizar suas atividades didático-pedagógicas


no Curso Bilíngue, parece resgatar a formação prévia dos estudantes surdos como
uma forma possível de justificar o que considera, no presente, como um “cenário
crítico”. De acordo com o depoimento, a dificuldade que considera haver no trabalho
que envolve leitura/escrita com graduandos surdos do DESU seria compreensível a
partir do entendimento de que se “ele não consegue se expressar ainda nem na
língua dele” (linhas 4-6), “é claro que vai ser bem pior com o português escrito”
(linhas 6-7).

Na percepção de Saturno, muitos alunos surdos “não sabem português”


(linha 10), o que se torna ainda mais grave, no seu entender, em se tratando de um
curso superior que forma professores/pedagogos. Nesse sentido, aponta que “é
inconcebível” que um aluno que está nesse estágio determinado da educação “não
saiba português” e defende que esse “problema” seja resolvido nas etapas anteriores
da escolarização (“Eu acho que tem que resolver isso antes” – linhas 11-12), uma vez
que não enxerga uma “solução” no desenrolar do Curso oferecido pelo DESU (“Eu
não vejo como essa questão pode ser sanada aqui na graduação do DESU” – linhas
10-11).

A compreensão explicitada no excerto 33 parece estar apoiada em


diferentes trabalhos no campo da educação bilíngue para surdos que postulam não
apenas o status da LIBRAS (entendida como língua natural) como a primeira língua
das pessoas surdas, mas também que o aprendizado da língua majoritária (a
chamada segunda língua, o português escrito) se baseia nas habilidades linguísticas
desenvolvidas na língua de sinais. Em sua concepção, o fato de alguns alunos não
saberem “se expressar ainda nem na língua deles” (linhas 4-5) figuraria como uma
199

das razões para um possível insucesso na língua escrita e, para além disso, na própria
formação dos graduandos que ali estão.

Ao afirmar que “não sabem nem português nem LIBRAS” (linha 10),
opera com a ideia de competências completas e separadas entre as duas línguas,
menosprezando o repertório que os alunos levam na bagagem ao ingressarem no
Curso e conferindo aos estudantes surdos o estatuto de semilíngues, uma vez que
considera somente as competências que os mesmos não apresentam, possivelmente
a LIBRAS acadêmica e o português escrito convencionalmente tido como padrão.

Conforme apontou García (2009, p. 56), em uma crítica à noção de


semilinguagem, a caracterização de alunos que não atingem determinados níveis de
proficiência tidos como padrão como semilíngues contribui para a estigmatização ou
vergonha linguística. Ambas são muitas vezes responsáveis pelo fracasso escolar
que, no contexto brasileiro da escolarização de surdos, vem sendo amplamente
problematizada na literatura (DORZIAT, 1999; FAVORITO, 2006; GÓES, 1996;
QUADROS, 2003; SKLIAR, 1997b; 2010; SOUZA, 1996; SOUZA e GÓES, 1999, entre
outros).

Conforme apontou Skliar (2010), em sua reflexão sobre o que a sociedade


considera como o fracasso educacional dos surdos, três são as justificativas
circulantes, por ele consideradas impróprias, para explicar os resultados considerados
negativos nesse processo: (1) a atribuição aos surdos por sua condição biológica; (2)
a culpabilização dos professores ouvintes e (3) a limitação dos métodos de ensino.
Para o autor, com essas três justificativas, evita-se a possível denúncia do fracasso
das instituições educacionais, das políticas implementadas e da responsabilidade do
Estado. Conforme defende o autor (2010, p. 19), “a educação de surdos não
fracassou”, ela apenas não teria atingido resultados previstos em função de
determinadas relações de poderes e saberes entre as quais estariam, por exemplo,
as representações da surdez como deficiência.

Embora a representação da surdez com base na noção de déficit já esteja


aparentemente superada no âmbito do Curso Bilíngue, isso não implica
necessariamente no fim da narrativa do fracasso no processo educacional. Vestígios
dessa narrativa podem ser observados nos trechos dos depoimentos de Saturno
(excerto 33) quando considerou esse cenário como “crítico” e no de Júpiter (excerto
31) quando buscou ressaltar que, apesar do engajamento dos docentes do Curso no
200

processo de ensino/aprendizagem lá desenvolvido (“[a gente] faz tudo que pode por
nossos alunos” – excerto 30, linhas 12-14), “os resultados são, na média, bastante
decepcionantes” (excerto 30, linha 12). A narrativa trazida à tona nesse trecho,
abrangendo todos os estudantes do Curso, independente da condição de surdo ou
ouvinte, esteve associada, no caso especificamente dos surdos, ao que considerou
como falta de competências linguísticas, já que, a seu ver, chegam ao Curso Bilíngue
“quase que completamente sem Língua Portuguesa” (excerto 30, linhas 6-7).

No decorrer de uma de suas aulas, quando efetuou a devolução de uma


avaliação escrita aplicada na turma, Júpiter construiu outro significado possível a
respeito dos resultados apresentados especificamente pelos estudantes surdos. O
excerto 34, trecho de meu diário de campo, ilustra essa cena.

Excerto 34
1 (...) Depois de entregar a cada aluno a prova, Júpiter comentou que
2 a turma teve um “desempenho razoável”. Disse que as duas maiores
3 notas foram de alunos ouvintes e que as duas mais baixas foram de
4 um aluno surdo e de um ouvinte. Eu, a princípio, não tinha entendido
5 a razão de ser desse comentário, entretanto, conforme continuou
6 sua fala, fui percebendo os sentidos que poderia assumir. Júpiter
7 encadeou o comentário sobre as notas na fala sobre a possível
8 razão que explicaria o desempenho inferior dos alunos surdos na
9 prova aplicada. Afirmou que “no DESU o modelo é inclusivo” e que
10 é comum no contexto desse modelo educacional haver um
11 desempenho por vezes discrepante entre os alunos. Baseou sua
12 explicação do insucesso na sua avaliação, por parte dos alunos
13 surdos, no fato de a aula ser ministrada em português, e não em
14 LIBRAS. Segundo sua compreensão, “o que chega ao estudante
15 surdo é uma versão da aula, a versão do intérprete”, ou seja, uma
16 tradução. Na sequência, comentando o futuro dos alunos surdos no
17 Curso, no que tange ao desempenho nas avaliações, afirmou que
18 eles não deveriam ficar muito preocupados com esses resultados
19 iniciais porque, com o passar do tempo, os mesmos seriam
20 melhores. Júpiter ressaltou que os alunos surdos iriam “se
21 adaptar ao cenário” e “o desempenho ir[ia] melhorar”. Enfatizou,
22 ainda, que esse resultado dos estudantes surdos não significava que
23 as pessoas surdas eram menos inteligentes que as ouvintes.
24 Finalizou essa avaliação global, argumentando, mais uma vez, que
201

25 o fator que muito prejudicava o desempenho do aluno surdo era o


26 fato de aula ser “em verdade, uma versão, uma tradução”.

Trecho de diário de campo da pesquisadora

Ao fazer uma avaliação global da turma no tocante ao desempenho dos


estudantes na prova aplicada, Júpiter ressaltou que os estudantes surdos
apresentaram um rendimento inferior ao dos ouvintes. A justificativa para esse
resultado específico seria o modelo educacional em desenvolvimento no DESU: o
“inclusivo”. Com esse posicionamento, desloca a responsabilidade das dificuldades
encontradas no processo de ensino/aprendizagem da questão das competências
relativas à leitura/escrita do português por parte dos estudantes surdos (ventilada no
trecho de depoimento presente no excerto 30) para as próprias práticas em
desenvolvimento na instituição como um todo.

Mais uma vez as representações construídas sobre o cenário bilíngue do


Curso acabam por se assentar em uma espécie de polarização entre o que
preconizam os documentos referenciais da educação de surdos no Brasil: o Decreto
nº 5.626/95 e a Política Nacional de Inclusão. De modo semelhante à compreensão
explicitada pelo estudante Pablo, que compara o DESU à escola em que já atua como
intérprete, considerando que o que ocorre no Curso Bilíngue é exatamente o que
ocorre na escola de modelo inclusivo, Júpiter faz referência a esse modelo
educacional a fim de justificar o desempenho de parte dos estudantes surdos.

A razão pela qual compreende que o modelo em desenvolvimento é


inclusivo está relacionada à língua na qual as aulas são majoritariamente ministradas:
o português oral acompanhado pela interpretação simultânea para a língua de sinais.
O fato de a maior parte das aulas ser ministrada em português e passarem pelo crivo
do profissional intérprete (“...o que chega ao estudante surdo é uma versão da
aula, a versão do intérprete – excerto 34, linhas 14-15) é, de acordo com Júpiter,
não só o que conferiria o caráter inclusivo ao Curso Bilíngue, como também o fator
preponderante para o que foi considerado, em um momento específico de avaliação,
como baixo rendimento dos estudantes surdos.

O entendimento de que as aulas ministradas chegam até os estudantes em


uma espécie de versão é, de certa forma, também retomado em determinado trecho
202

do depoimento da aluna Rosa, quando me relata a respeito de como foi, na sua


percepção, a experiência de ingressar em um espaço bilíngue.

Excerto 35
1 Assim, de uma certa forma, eu tive uma decepção nesse sentido,
2 porque quando falavam do INES, eu achava que aqui era o lugar
3 perfeito pros surdos, era o mundo dos surdos. (...). Quer dizer,
4 nós ouvintes somos mais beneficiados do que eles na questão
5 da língua. Porque eles não têm professores [surdos]... a maioria
6 é tudo ouvinte. Pelo menos até o meu primeiro período só tinham
7 dois professores surdos. Sei que até chegaram mais agora, mas a
8 maioria é de professores ouvintes. (...) Então, a gente vê que
9 realmente pra eles sempre está um pouco abaixo do nível do
10 que um aluno merece. Por mais... pode colocar o intérprete mais
11 excelente que for, mas sempre vai haver essa deficiência. Até há
12 quem diga que mesmo sendo interpretado tem como passar 100%.
13 Eu não acredito nisso, acho que sempre vai haver uma porcentagem
14 a menos, porque o intérprete, ele pode, mesmo se esforçando ao
15 máximo, ocultar uma ou outra coisa que pra mim, sendo ouvinte, isso
16 não vai ser oculto. Eu vou me apropriar de tudo que o professor
17 falar, de tudo que o professor passar. Agora, sendo
18 intermediado, não. O intérprete, ele pode deixar de falar o nome
19 de um autor, ele pode deixar de passar uma fala ali do professor.
20 E também, enquanto o aluno surdo está olhando lá pro intérprete, o
21 professor está rindo, está fazendo expressão e ele não pode se
22 utilizar disso. Então, quer dizer, já o contrário, conosco, os ouvintes,
23 a gente aproveita 100% porque está vendo o professor, o que está
24 fazendo, se ele está se mexendo, e ainda por cima ouvindo o que
25 ele está passando. Mesmo se fosse o contrário, com professores
26 surdos, a gente sempre vai ter vantagem na verdade né, a gente
27 escuta e vê... então não é a mesma coisa pra eles e isso pra mim
28 não é bacana. (...)

Trecho de entrevista realizada com Rosa (Estudante ouvinte)

De acordo com Rosa, a experiência bilíngue do Curso oferecido pelo


DESU, que ela considerava que seria o “mundo dos surdos”, ainda estaria, em sua
visão, abaixo das expectativas pela carência de professores que ministrem as aulas
203

diretamente na língua de sinais. Para ela, o fato de a maioria dos professores do Curso
serem ouvintes é uma vantagem para os alunos que estão nessa mesma condição e
uma desvantagem para os graduandos surdos (“...nós ouvintes somos mais
beneficiados do que eles na questão da língua. Porque eles não têm
professores... a maioria é tudo ouvinte” – excerto 35, linhas 4-6).

Embora não faça menção, no excerto 35, à questão específica do


desempenho dos estudantes surdos e ouvintes nas atividades avaliativas propostas
no Curso, a aluna, tal como Júpiter, problematiza o fato de a aula não ser ministrada
naquela que é tida, nesse cenário, como a primeira língua dos surdos. O fato de as
aulas passarem pelo processo de interpretação/tradução é apontado, assim, como um
possível prejuízo para esses alunos.

De acordo com a aluna, pela sua condição de ouvinte, ela vai se “apropriar
de tudo que o professor falar, de tudo que o professor passar” (linhas 16-17),
tirando proveito integralmente da aula ministrada (“...a gente aproveita 100%...” –
linha 23). Ela chama a atenção para o fato de que além de não terem a aula
intermediada pelo profissional intérprete, tal como se dá com os colegas surdos, os
ouvintes teriam o privilégio de poder acompanhar não somente aquilo que é falado
pelos professores, mas também suas expressões e movimentos, o que normalmente
é mais difícil para os que precisam seguir os passos dos intérpretes que – de acordo
com a metáfora usada por Rosa em outro momento do depoimento –, seriam “os
ouvidos dos surdos”.

Ainda que aponte a questão da língua em uso pela maior parte dos
docentes do Curso das aulas, o português oral, e a consequente necessidade de
interpretação como a desvantagem encontrada pelos graduandos surdos, no final do
excerto 35, a aluna acaba por relegar a questão linguística a um segundo plano. Isso
porque afirma que mesmo que a aula fosse ministrada por professores surdos em
língua de sinais (“Mesmo se fosse o contrário, com professores surdos...” – linhas
25-26), os ouvintes teriam uma vantagem sobre os colegas surdos, em razão do fato
de lançarem mão de dois órgãos dos sentidos, a visão e a audição (“...a gente sempre
vai ter vantagem na verdade né, a gente escuta e vê” – linhas 26-27), podendo,
dessa forma, acompanhar professor e intérprete.

Conforme já visto até aqui, alguns dos atores da pesquisa caracterizam o


Curso Bilíngue como sendo um contexto educacional inclusivo, comparando o
204

trabalho que se desenvolve no DESU com o que ocorre nas escolas regulares da
Educação Básica. Nesse sentido, é importante ressaltar que, embora a presença do
profissional intérprete se faça necessária na sala de aula e em diversas instâncias do
DESU – devido às inúmeras demandas que um Curso dessa natureza apresenta –, a
inserção desse profissional no espaço da sala de aula não parece ser concebida como
uma panaceia responsável por superar toda e qualquer dificuldade possível
encontrada no trabalho pedagógico, diferente do que vem correndo, conforme destaca
Lacerda (2013, p. 123), em muitos dos cenários da Educação Básica ditos inclusivos
para estudantes surdos.

5.4 “...mais vale um pássaro na mão que dois voando”: representações


sobre a inserção do profissional intérprete no Curso Bilíngue

Conforme problematizado no item anterior, alguns discursos circulantes


nos registros podem ser compreendidos como uma contestação da legitimidade do
caráter bilíngue do Curso. Uma das razões que levam alguns atores da pesquisa a
colocarem em suspeição a estrutura e o funcionamento bilíngue desse contexto
educacional é o fato de as aulas serem majoritariamente ministradas pelos docentes
no português oral, com interpretação simultânea para a língua de sinais, o que,
conforme destacado, levaria à hipótese de que o Curso se desenvolve tal como outros
contextos da Educação Básica ditos inclusivos.

As representações construídas sobre o processo de interpretação das


aulas do Curso não apenas levam alguns atores a creditarem ao DESU o cunho
inclusivo em detrimento do caráter bilíngue, como também significam tal processo
como uma possível desvantagem para os estudantes surdos perante os colegas
ouvintes.

Esse entendimento, explicitado no depoimento da aluna Rosa, no excerto


35, é também reproduzido pela aluna Júlia quando indagada por mim a respeito das
diferenças entre participar de aulas ministradas pelos professores em português oral
e de aulas ministradas na língua de sinais.
205

Excerto 36
1  Se as aulas são ministradas em língua de sinais, é lógico que
2 os surdos vão desenvolver melhor, vão aprender com mais
3 facilidade. Com a presença do intérprete... o.k. ... aprende, mas
4 não é da mesma forma... com a presença do intérprete também
5 vai aprender, mas não é da mesma forma se o professor
6 estivesse ensinando na nossa língua. Qualquer interpretação
7 nunca será cem por cento e também não é uma comunicação direta.
8 Se não está tendo contato direto com o professor, é mais difícil. Vai
9 e vem, vai e vem. No final, são vários caminhos percorridos para
10 chegar à mensagem. Por exemplo, eu estou fazendo em língua de
11 sinais e ele [o intérprete da entrevista] está fazendo a versão voz,
12 porque o português e a língua de sinais são totalmente diferentes,
13 são mundos diferentes. É bem diferenciado e bem complicado. Se
14 os professores soubessem língua de sinais, os surdos
15 aprenderiam melhor e os ouvintes desenvolveriam mais a
16 língua de sinais. Se o professor somente oraliza, vem o
17 intérprete e o surdo continua na mesma, o português continua
18 na mesma, tudo na mesma e a linguagem oral permanece acima
19 da língua de sinais aqui nesse ambiente.

Trecho de entrevista realizada com Júlia (Estudante surda)

Em um primeiro momento, ao pontuar possíveis diferenças entre aulas que


são ministradas pelos docentes em português e em língua de sinais, Júlia faz
referência à questão da aprendizagem. Para a aluna, os surdos “ vão se
desenvolver melhor, vão aprender com mais facilidade” (linhas 2-3) quando a
língua de sinais é utilizada pelo professor. Embora saliente que o aprendizado é
também viabilizado por meio do processo da interpretação (“... com a presença do
intérprete também vai aprender...” – linhas 4-5), ela considera que há um diferencial
no caso de a aula ser ministrada em língua de sinais (“...mas não é da mesma
forma se o professor estivesse ensinando na nossa língua.” – linhas 5-6).

Júlia também problematiza a questão levantada por outros participantes da


pesquisa: a de que nenhuma interpretação poderia corresponder integralmente ao
conteúdo ministrado pelo professor (“ Qualquer interpretação nunca será cem por
cento...” – linhas 6-7). A aluna ainda ressalta como um aspecto que considera
negativo no tocante aos professores não ministrarem as aulas em língua de sinais o
206

fato de a interação com o docente ficar aquém do desejado no processo de


ensino/aprendizagem (“Se não está tendo contato direto com o professor, é
mais difícil.” – linhas 8-9). Além de não haver essa interação direta com o professor
quando o mesmo está ministrando a aula, a partir do momento em que surgem
dúvidas ou questionamentos por parte do estudante sinalizante, conforme aponta a
aluna, “...são vários caminhos percorridos para chegar à mensagem” (linhas 9-
10), o que tende a tornar a construção do conhecimento sinuosa.

No final do excerto 36, amplia o significado da relevância das aulas serem


ministradas na língua de sinais para além da questão da melhoria do processo de
ensino/aprendizagem no que diz respeito aos estudantes surdos. De acordo com
Júlia, “Se os professores soubessem língua de sinais, os surdos aprenderiam
melhor e os ouvintes desenvolveriam mais a língua de sinais” (linhas 13-16).
Conforme se depreende do seu depoimento, a necessidade do profissional intérprete,
compreendida como consequência do fato de os professores não ministrarem suas
aulas em LIBRAS, impede que se altere a correlação de forças entre as línguas no
cenário do Curso Bilíngue: “ Se o professor somente oraliza, vem o intérprete e
o surdo continua na mesma, o português continua na mesma e a linguagem oral
permanece acima da língua de sinais aqui nesse ambiente” (linhas 14-17).

Em uma análise sobre o incipiente cenário da educação bilíngue para


surdos, Favorito (2006, p. 90) apontou que a desestabilização da assimetria de
poderes e saberes em jogo entre surdos e ouvintes no contexto educacional poderia
ser viabilizada por um projeto de educação bilíngue que não estivesse restrito à
aceitação e ao uso da língua de sinais e que visasse à mudança das representações
sobre os surdos e as línguas. No que se refere ao espaço do Curso Bilíngue, essas
questões já parecem estabilizadas, ou melhor, já parece superada a representação
da surdez enquanto uma patologia ou um déficit, assim como a língua de sinais é mais
que meramente aceita: ela é legitimada.

Essa legitimação, entretanto, ainda parece estar aquém do que alguns


integrantes do Curso consideram como desejável. Isso porque, embora seja uma das
línguas usadas nas interações cotidianas entre os estudantes ou entre estudantes e
docentes, nas avaliações e até mesmo na produção da monografia, a LIBRAS ainda
não é a modalidade linguística em que a maior parte dos docentes ministra suas aulas
no Curso.
207

Na visão de Júlia, para que a assimetria de poderes entre estudantes


surdos e ouvintes e também entre as línguas circulantes no cenário do DESU possam
ser reconfiguradas, é necessário que as aulas sejam ministradas pelos professores
em LIBRAS, sem a presença do profissional intérprete. Compreensão semelhante se
observa no excerto 37, trecho do depoimento do aluno Miguel em que tematiza a
questão das diferentes línguas envolvidas no processo de ensino/aprendizagem
nesse espaço.

Excerto 37
1  Eu entendo que os professores não têm o conhecimento da língua
2 de sinais para dar aula, então sempre utilizam o intérprete, mas
3 acaba perdendo um pouco do conteúdo por conta da interpretação.
4 Em alguns momentos, o intérprete não acompanha exatamente
5 aquilo que o professor está falando e sinto que o aluno surdo é
6 prejudicado. Eu acredito que os professores precisam aprender
7 a língua de sinais, é o melhor para ser todo mundo igual. Eu sinto
8 falta da língua de sinais... eu sei que os ouvintes vão reclamar
9 bastante se as aulas forem em língua de sinais, mas os ouvintes
10 precisam treinar a questão da língua de sinais. Vai ser difícil
11 para eles, mas eu desde pequeno sofri bastante para aprender
12 a língua portuguesa...precisa haver essa troca também para os
13 ouvintes perceberem como é a vida do surdo. A língua de
14 instrução sendo só a língua de sinais, a gente vai entender bem
15 melhor a língua portuguesa, as explicações vão se tornar bem
16 melhores e todos tendo esse contato com a língua, as relações serão
17 bem mais fáceis, vão acabar os problemas. Eu reforço que os
18 professores precisam aprender a língua de sinais. Tira o intérprete!
19 Chega de intérprete! Vamos ter uma comunicação direta, as
20 aulas sendo ministradas em língua de sinais! Só intérprete, só
21 intérprete! Fica meio cansativo. O intérprete já é um profissional
22 formado, o.k., eu respeito isso, mas eu sinto falta das aulas sendo
23 ministradas em LIBRAS. Os intérpretes em outros contextos sociais,
24 por exemplo médico, funcionam muito bem, na polícia, em lojas, são
25 muito importantes nesse contexto, devido à falta de comunicação lá
26 fora, lá na sociedade, mas no educacional eu acredito que os
27 professores precisam saber a língua de sinais. Aqui eu sinto que
28 precisava diretamente dessa questão da língua de sinais.

Trecho de entrevista realizada com Miguel (Estudante surdo)


208

Inicialmente, Miguel faz referência ao processo de interpretação como uma


possível desvantagem para os alunos surdos, já que, em sua ótica, “Em alguns
momentos, o intérprete não acompanha exatamente aquilo que o professor está
falando” (linhas 4-5), o que poderia acarretar prejuízos no que tange à aprendizagem
(“...e sinto que o aluno surdo é prejudicado” – linhas 5-6). Para ele, uma solução
para essa desigualdade que considera haver entre estudantes surdos e ouvintes seria
o aprendizado da língua de sinais pelos professores (“Eu acredito que os
professores precisam aprender a língua de sinais, é o melhor para ser todo
mundo igual”– linhas 6-7).

Assim como Júlia, que pondera que caso as aulas fossem ministradas em
língua de sinais os graduandos ouvintes iriam se “desenvolver na língua de sinais”,
Miguel acredita que “...os ouvintes precisam treinar a questão da língua de
sinais” (linhas 10-11), o que ocorreria, a seu ver, sendo essa língua utilizada pelos
docentes ao longo de todas as aulas. Na ótica de Miguel, se as aulas fossem
integralmente ministradas em LIBRAS no Curso Bilíngue, sem a presença de um
intérprete, ocorreria uma inversão que levaria “...os ouvintes [a] perceberem como
é a vida do surdo” (excerto 37, linhas 12-13).

O anseio de que os professores possam ministrar suas aulas sem a


presença dos TILS parece não somente se configurar como uma forma de promover
uma possível igualdade entre graduandos surdos e ouvintes do DESU, mas também,
como salienta o aluno no excerto 37, uma tentativa de inverter a lógica a que grande
parte dos estudantes surdos esteve (e ainda está em muitos casos) inserida ao longo
da trajetória educacional: fazer parte de um processo de ensino/aprendizagem em
uma língua (o português oral) que, dado o impedimento auditivo, não teriam como
aprender de forma espontânea.

Embora a situação não seja exatamente a mesma, uma vez que estudantes
ouvintes não têm um impedimento para aprender e desenvolver a língua de sinais de
modo espontâneo a partir da interação com falantes dessa língua, tal como ocorre
com os estudantes surdos com o português oral, Miguel crê que essa “troca” da língua
a ser usada pelos professores (a língua portuguesa oral pela LIBRAS), sem a
presença do intérprete, deslocaria os estudantes ouvintes para uma posição que
historicamente vem sendo ocupada pelos discentes surdos e diluiria possíveis
assimetrias entre os estudantes.
209

Um possível deslocamento das relações de poder/saber entre surdos e


ouvintes é creditado novamente – tal como sugerido por Júlia – à língua em uso pelos
professores no Curso. É nesse sentido que Miguel admite que a configuração
linguística da sala de aula almejada por ele desfavoreceria os colegas ouvintes (“Vai
ser difícil para eles...” – excerto 37, linhas 10-11) que, no seu entender, iriam
desaprová-la (“... eu sei que os ouvintes vão reclamar bastante se aulas forem
em língua de sinais...” – excerto 37, linhas 8-9).

Apesar de considerar que o modelo idealizado possivelmente iria contrariar


os estudantes ouvintes, Miguel pondera que, caso a língua de sinais se tornasse a
única língua de instrução no DESU, tanto o processo de ensino/aprendizagem como
a questão da interação entre os membros do Curso Bilíngue poderiam tornar-se
melhores. No tocante à interação, o estudante imagina que o fato de as aulas serem
ministradas somente em LIBRAS, faria com que os colegas ouvintes “treinassem”
essa língua a tal ponto que, atingida uma dada “proficiência”, seriam eliminados
possíveis conflitos e tensões que permeiam a interação na sala de aula (“...todos
tendo esse contato com a língua, as relações vão bem mais fáceis, vão acabar
os problemas” – excerto 37, linhas 16-17)

Quando, no excerto 37, Miguel exclama “Tira o intérprete! Chega de


intérprete! Vamos ter uma comunicação direta, as aulas sendo ministradas em
língua de sinais!” (linhas 18-20), fica claro que não há nenhuma espécie de desdém
para com a atividade desenvolvida pelos profissionais TILS, posto que ele mesmo
ratifica a importância dos intérpretes em diferentes contextos sociais (“ lá fora, lá na
sociedade” – linhas 25-26). O que está aí em questão é que os estudantes surdos que
demonstram maior identificação com a língua de sinais querem que essa modalidade
seja a privilegiada na instrução.

Esse entendimento fica explícito no depoimento de Felipe que, ao analisar


a perspectiva bilíngue do Curso, também manifesta o desejo de que as aulas sejam
ministradas em LIBRAS pelos docentes do Curso, sem a mediação do intérprete:

Excerto 38
1 De verdade, aqui não é bilíngue ainda devido à falta da
2 língua de sinais. Eu sinto que... parece que não é oficial aqui
3 ainda, porque a maioria dos professores ministram as suas
210

4 aulas usando a linguagem oral. Eu pensava que teria mais a


5 questão da língua de sinais, o que eu acho muito importante
6 dentro da sala de aula. Sempre com a presença do intérprete,
7 parece que descontextualiza um pouco e o aluno surdo acaba
8 ficando meio apático. Eu sinto que seria melhor um professor
9 surdo, porque ele teria a fluência em língua de sinais, eu
10 entenderia melhor e o professor estaria falando a minha
11 língua. (...)

Trecho de entrevista realizada com Felipe (Estudante surdo)

Analisando os trechos dos depoimentos de Júlia, Miguel e Felipe, todos


com perfil de militância em prol da língua de sinais, fica claro que a possibilidade a
que se referem de aprender nessa língua, demostrando certa resistência ao processo
de interpretação das aulas, ultrapassa a questão “puramente linguística”: é uma
questão também de política de identidade que acaba culminando na contestação de
um importante elemento constitutivo da política linguística que se fez possível no
contexto da surdez a partir do Decreto nº 5.626/2005, ou seja, a garantia do
profissional intérprete113 no contexto da educação superior.

Aprender na língua de sinais, com o professor fazendo uso dessa


modalidade linguística, situa-se, conforme observou Quadros (2005), no campo
político. Isso porque, segundo a autora, os surdos ainda estão buscando se afirmar
como um grupo social baseado em relações de diferença. Nessas relações – em que
a língua, conforme venho argumentando na análise, assume papel centralizador –, os
estudantes surdos buscam construir suas estratégias de resistência e autoafirmação
(QUADROS, 2005). Uma dessas estratégias seria, no contexto em questão, a
reivindicação por aulas sendo ministradas diretamente na língua de sinais, sem a
mediação do profissional intérprete e, preferencialmente, conforme parece apontar
Felipe, com a instrução sendo realizada por professores surdos.

Diferente do que ocorre em variados contextos da educação de surdos,


sobretudo os chamados inclusivos, em que parte dos esforços despendidos pelos
militantes engajados nos movimentos surdos ainda está voltada para a exigência do

113
A garantia do profissional intérprete nas instituições federais de educação superior está prevista no
artigo 23 do Decreto nº 5626/2005.
211

cumprimento da legislação que garante aos estudantes surdos sinalizantes a


presença do profissional intérprete em sala de aula, no contexto do DESU essa
presença é amplamente garantida nas atividades acadêmicas. Essa garantia,
entretanto, muito por conta das diferentes questões presentes na agenda dos
movimentos, que por um lado reivindicam a presença de profissionais intérpretes nos
espaços de educação regular e, por outro, que os estudantes surdos sejam
matriculados em escolas bilíngues com professores bilíngues, parece ser encarada
de forma ambivalente nesse espaço.

Como destacado até aqui, no Curso Bilíngue, a necessidade da presença


do profissional intérprete na sala de aula é questionada sobretudo tendo por base o
argumento de que se o Curso é bilíngue, as aulas deveriam ser ministradas pelos
professores em LIBRAS, excluindo-se esse profissional do processo de
ensino/aprendizagem. Tal processo, segundo a leitura de alguns registros aponta,
acabaria sendo comprometido tanto pela ausência de contato direto entre
professor/aluno como pela impossibilidade, conforme acreditam alguns participantes,
de uma interpretação fidedigna de todo o conteúdo ministrado pelos docentes.

Emergem, entretanto, outras representações possíveis para essa questão.


É o que destaco no excerto 39, trecho de entrevista em que a aluna Milena fala sobre
as expectativas que alimentava antes de ingressar no Curso.

Excerto 39
1 Assim, como a graduação não é uma novidade pra mim, porque
2 como eu estudei em outras universidades, até particular... eu
3 não tinha essa boa visão de uma faculdade, de uma
4 universidade ou de um instituição federal, porque você vê, tem
5 muitos recursos, tem... aqui nesse espaço nós temos intérprete
6 que fica à disposição, ali traduzindo, e a gente sabe que não é
7 uma realidade em todos os âmbitos. Então me agradou muito,
8 foi uma coisa assim que eu fiquei muito feliz quando me deparei
9 com essa realidade, de você ter intérprete, de... que eu achei
10 que você... achei que você teria que, no curso de graduação,
12 falar só em LIBRAS. Eu estava até muito temerosa: “como é
13 que eu vou me comunicar só em LIBRAS que eu não sei, né?”.
14 (...) Eu acho imprescindível a presença deles [dos
15 profissionais intérpretes], é fundamental. Porque sem eles
16 não tem como você dizer que isso aqui seria um espaço
212

17 bilíngue, por que seria o quê? Um professor dando aula em


18 português, o surdo não ouviria. Não tem como ouvir, não tem
19 como entender....vai fazer só leitura labial? Um professor dando
20 aula em LIBRAS, os ouvintes que não iam acompanhar bem.
21 (...)

Trecho de entrevista realizada com Milena (Estudante ouvinte)

Conforme pontua Milena no excerto 39, a disponibilidade do intérprete no


decorrer das aulas é o principal elemento que faz com que, em sua visão, o Curso
seja, de fato, bilíngue (Porque sem eles não tem como você dizer que isso aqui seria
um espaço bilíngue, por que seria o quê? – linhas 15-17). Ela destaca que,
independente da língua em que as aulas fossem ministradas (LIBRAS ou português
oral), se não houvesse o processo de interpretação, algum dos grupos sofreria as
consequências diretas da falta de uma língua em que pudesse construir
conhecimento.

Esse entendimento também foi reproduzido pela aluna Juliana no excerto


40, no qual explica como se deu sua entrada no DESU:

Excerto 40
1 Antes de eu vir pra cá, eu já estudava LIBRAS, porque na minha
2 igreja tem um ministério de surdos. Então eu me apaixonei pela
3 língua, aí depois de um tempo eu fiz nivelamento pra cá, pra cá
4 pro INES e concluí aqui o curso. Então eu me informei bastante
5 e como eu também já fazia o curso de LIBRAS aqui, eu já sabia
6 que a faculdade aqui era bilíngue, que tinha intérprete. Até
7 porque é de extrema importância a participação do
8 intérprete, né? Porque ele é o ouvido do surdo, né? Então
9 assim, sem o intérprete, acho que não haveria nem
10 ambiente bilíngue porque seria só... se fosse LIBRAS ou só
11 português? Como é que iriam entender? (...)

Trecho de entrevista realizada com Juliana (Estudante ouvinte)

Tal como a estudante Milena (excerto 39), que credita à participação do


intérprete no processo pedagógico o caráter bilíngue do curso, Juliana, a partir de uma
213

metáfora que se mostrou corrente nesse contexto (“Porque ele [o intérprete] é o ouvido
do surdo, né?” – excerto 40, linha 8) também ratifica a relevância da figura desse
profissional no Curso, ao expressar que, “sem o intérprete, acho que não haveria nem
ambiente bilíngue...” (excerto 40, linhas 9-10).

Conforme é possível depreender nesse trecho do depoimento de Juliana,


o profissional intérprete é concebido como um elemento fundamental responsável por
conferir legitimidade à nomenclatura bilíngue do curso desenvolvido no DESU.
Diferente do que esse observa nesse excerto e no excerto 39, há estudantes que
questionam a presença do intérprete no decorrer das aulas, tendo-se por base a ideia
de que a mesma vai de encontro aos preceitos de uma concepção bilíngue ideal.

Essa idealização também aparece no depoimento de Lua (TILS), que, ao


fazer uma avaliação sobre a questão do bilinguismo no DESU, construiu significados
semelhantes aos já vislumbrados aqui nos depoimentos de diferentes participantes.

Excerto 41
1 Eu acho que ainda falta muito amadurecer aqui a questão do
2 bilinguismo. Eu acho mesmo é que a partir do momento em que
3 o professor der a aula dele em língua de sinais, ele se fizer
4 entender sem, necessariamente, ter o intérprete ali do lado
5 dele, aí sim eu posso dizer que é realmente um ambiente
6 bilíngue. Também é importante que o aluno ouvinte que chega
7 aqui e... que não vai precisar do intérprete (...). Já ocorreu uma
8 situação de que uma professora sabia a língua de sinais, a
9 professora de [nome da disciplina] e ela decidiu dar a aula dela
10 em língua de sinais. E os alunos ouvintes... porque assim, se você
11 vai, você se propõe fazer um curso que é bilíngue, teoricamente
12 você já deveria saber, deveria conhecer essa língua, né? E aí
13 “não, não pode ser língua de sinais professora, eu não estou
14 entendendo nada.” Não, mas você não fez um vestibular pra um
15 ambiente bilíngue? Você tem que saber, pelo menos, o básico.
16 Você não vai ser tão eficiente, mas você tem que saber o básico
17 pra entender. E aí você não tem que ter o intérprete. Então esse
18 não é o ambiente bilíngue, ele está em processo de construção
19 mesmo.

Trecho de entrevista realizada com Lua (TILS)


214

Na visão de Lua, o Curso ofertado pelo DESU poderá ser considerado


“realmente bilíngue” quando professores e alunos ouvintes puderem prescindir da
figura do profissional intérprete na sala de aula. As representações construídas por
Lua acerca desse cenário parecem estar atreladas à ideologia de que ao se garantir
a instrução em LIBRAS via professor, e não via intérprete, a nomenclatura “bilíngue”
que o curso carrega tornar-se-ia apropriada (“...a partir do momento em que o
professor der a aula dele em língua de sinais, ele se fizer entender sem,
necessariamente, ter o intérprete ali do lado dele, aí sim eu posso dizer que é
um ambiente bilíngue.” – linhas 2-6).

É interessante apontar que, durante a entrevista, quando indago a Júpiter


a respeito de como é, em sua percepção, ter sua aula interpretada, vem à tona no
depoimento que a presença do profissional intérprete no contexto da sala de aula do
Curso Bilíngue não está restrita à interpretação dos conteúdos em si, o que não foi
problematizado nos registros até então analisados. É o que se depreende do excerto
42:

Excerto 42
1 (...) Alguns intérpretes ficam surpresos comigo porque eu
2 dialogo muito com eles. Acho que alguns gostam mais, outros
3 gostam menos, mas eu convoco o intérprete pra trabalhar
4 comigo como um coprodutor da aula. Alguns gostam mais,
5 outros gostam menos. E assim, eu acho que isso foi um negócio
6 legal que eu aprendi aqui no INES, assim, de saber que a aula
7 não é minha. Claro, que eu gostaria... eu acho que a gente
8 sempre vai precisar do intérprete, mesmo que eu tivesse
9 um domínio pleno de língua de sinais essa figura... essa
10 figura do intérprete é uma figura interessante (...) No
11 mínimo, no dia que eu tiver domínio pleno da língua de
12 sinais, eu vou querer o intérprete na minha sala pra me
13 corrigir, pra me apoiar, pra perguntar como é. Porque eu
14 acho uma figura fundamental nesse processo. A ideia do
15 intérprete educacional em LIBRAS, a ideia de poder dar apoio.
16 Porque ele [o TILS] é um diálogo essencial, a gente discute
17 sinais, né? Como essa língua, academicamente, está se
18 constituindo ainda também...

Trecho de entrevista realizada com Júpiter (Docente)


215

Nesse trecho de seu depoimento, Júpiter aborda a presença do intérprete


na sala de aula expandindo significados anteriormente problematizados por outros
participantes. Conforme pontua, considera esse profissional “uma figura fundamental
nesse processo” (linha 14), na medida em que o mesmo é um “coprodutor” das aulas
ministradas. Enquanto alguns atores ressaltam que é o intérprete que garante a
perspectiva bilíngue do curso e que se os professores fossem usuários experientes
de LIBRAS essa figura tornar-se-ia “dispensável”, Júpiter avalia que, caso atinja um
estágio de “plenitude” em língua de sinais, vai continuar precisando dessa figura no
decurso das aulas.

Conforme aponta Lacerda (2013, p. 124), o modo como o professor


compreende a presença do profissional intérprete tem forte influência sobre o
processo educacional e ressalta, ainda, a parceria que deve ser estabelecida com os
professores. De acordo com a autora, “o intérprete precisa poder negociar conteúdos
com o professor”, revelando suas dúvidas, assim como as dos alunos e, dessa forma,
contribuir para a construção do conhecimento.

Quando Júpiter afirma que “é um diálogo essencial, a gente discute sinais,


né?” (excerto 42, linha 16) demonstra a compreensão de que o intérprete não é
alguém que transpõe a aula de uma língua para outra, mas alguém que, em
cooperação com os docentes, negocia a construção de sentidos seja no
estabelecimento e na manutenção da interação entre os membros do grupo ou mesmo
no que diz respeito aos conteúdos ministrados. No caso específico do contexto do
nível superior, como ocorre no Curso Bilíngue, Júpiter chama atenção para a questão
de a LIBRAS ainda estar se constituindo do ponto de vista acadêmico, sendo
fundamental a parceria e a negociação de sentidos inclusive no que diz respeito aos
sinais a serem usados no decurso das aulas.

Essa compreensão acerca da necessidade de parceria entre professores e


intérpretes é retomada no depoimento de Saturno quando tece suas considerações a
respeito da participação do profissional intérprete em suas aulas:

Excerto 43
1 Eu não tenho proficiência para dar minhas aulas em LIBRAS,
2 então o mínimo que eu posso fazer é buscar apoio nesse
3 profissional para que as minhas aulas sejam as melhores
216

4 possíveis para os estudantes surdos. Pra todos né, mas em


5 especial para os surdos. Não que eu ache que é só botar
6 ali o intérprete e pá pum... pronto, está tudo resolvido.
7 Não, eu sei que não está. Sei que não está porque tem
8 muitas outras questões aí que precisam ser levadas em
9 conta, que a gente tem que levar em conta...o que se deu
10 antes do estudante surdo chegar aqui? Onde ele estudou?
11 Como ele estudou? O que ele aprendeu ou não aprendeu?
12 Então, eu sei que da mesma forma como ele [o
13 profissional intérprete] não resolve tudo, não tem culpa
14 de tudo. Porque tem isso né? “Ah, a culpa é sempre do
15 intérprete”. Não, lógico que não. Eu vejo como uma parceria
16 importante. Mas aí, “ah, não é o ideal, tem que ser aula em
17 LIBRAS, os professores têm que dar aula LIBRAS”. Ok!
18 Mas onde estão esses professores? Enquanto não tem,
19 faz o quê? Os surdos ficam foram da universidade? Ficam
20 excluídos? Como é que resolve isso? Eu já acho que mais
21 vale um pássaro na mão que dois voando. (...)

Trecho de entrevista realizada com Saturno (Docente)

No excerto 43, Saturno chama a atenção, tal como foi observado no excerto
42, para a atitude colaborativa que, a seu ver, professores e intérpretes devem manter
no Curso Bilíngue, de modo a tornar o processo de ensino/aprendizagem o melhor
possível, sobretudo no que tange aos estudantes surdos. Além disso, deixa claro que
não concebe a figura do intérprete como a solução de todo e qualquer problema que
possa ocorrer ao longo desse processo (“Não que eu ache que é só botar ali o
intérprete e pá pum... pronto, tá tudo resolvido” – linhas 5-6).

Saturno também ressalta que, se por um lado, a inserção da figura do


intérprete na sala de aula não é suficiente para solucionar todos os possíveis
problemas educacionais dos estudantes surdos – a panaceia a que se refere Lacerda
(2013) –, por outro, esses mesmos problemas também não podem recair sobre essa
figura. Nesse sentido, faz menção a diferentes questões que podem influenciar
diretamente no processo de ensino/aprendizagem dos discentes surdos do Curso
(“...o que se deu antes do estudante surdo chegar aqui? Onde ele estudou? Como ele
estudou? O que ele aprendeu ou não aprendeu?” – linhas 9-11) e que extrapolam os
217

limites da interpretação das aulas, ou seja, que não poderão ser sanadas somente
com a presença do intérprete.

Em um breve estudo sobre a inclusão de estudantes surdos no ensino


superior, Harrison e Nakasato (2015, p. 67) observaram que, em sala, os estudantes
surdos sofrem as consequências de uma escolarização que até bem pouco tempo
desconsiderou por completo suas especificidades linguísticas. Conforme discutem,
estudantes universitários surdos,

Devido ao seu histórico educacional e às dificuldades que enfrentaram


e enfrentam para terem acesso às informações usualmente veiculadas
através da audição, muitas vezes (...) não conhecem os conceitos
ligados às teorias, há palavras desconhecidas ou usadas em contexto
novo e/ou com outro sentido daquele que conhecem, o que
desestabiliza todos os conhecimentos até então adquiridos (...)
(HARRISON e NAKASATO, 2015, p. 67).

Talvez o fato de muitos estudantes surdos levarem na bagagem uma


história marcada pela dificuldade de acesso ao conhecimento universalmente
acumulado, o que que acaba, possivelmente, restringindo seu conhecimento de
mundo – sobretudo quando comparado a graduandos ouvintes – seja minimizado por
alguns atores no contexto do Curso Bilíngue. Por um lado, isso pode explicar o porquê
de alguns docentes por vezes demonstrarem decepção com determinados resultados
apresentados por estudantes surdos, tidos como abaixo do desejável para um aluno
do ensino superior; por outro, pode também ajudar a compreender o porquê de alguns
estudantes surdos considerarem que uma vez resolvida a questão linguística, ou seja,
uma vez as aulas sendo ministradas em LIBRAS, seriam solucionadas todas as
questões relativas ao processo educacional, sendo a língua de sinais entendida como
uma panaceia (FERNANDES, 2006).

A assimetria entre estudantes surdos e ouvintes a que alguns participantes


se referiram, dificilmente é minimizada com a presença do profissional intérprete no
decurso das aulas. Conforme apontam Lacerda e Lodi (2009, p. 16), ao focalizarem o
contexto da inclusão de alunos surdos na Educação Básica, embora a presença dos
TILS abra a possibilidade de os estudantes surdos terem acesso aos conteúdos pelo
intermédio de usuários competentes da língua de sinais, apenas a presença do
218

profissional e da circulação dessa língua na instrução não oferece garantias quanto à


aprendizagem.

Tendo em vista o histórico pessoal e educacional da maior parte dos


estudantes surdos, possivelmente essa assimetria não desapareceria
instantaneamente com as aulas sendo ministradas em LIBRAS, embora seja possível
perceber essa crença entre alguns participantes da pesquisa. Além de não parecer
crível que essa questão específica da defasagem possa ser sanada com a presença,
no Curso, de professores que ministrem suas aulas em língua de sinais, Saturno
salienta (no excerto 43, linhas 16-18) outra problemática para a qual nem sempre
alguns membros do DESU, principalmente os estudantes, atentam: a carência de
professores doutores que tenham as competências necessárias para trabalhar os
conteúdos de suas disciplinas em LIBRAS.

Ao lançar mão do ditado popular “...mais vale um pássaro na mão que dois
voando” (excerto 43, linhas 20-21), Saturno destaca que não considera prudente que
os estudantes surdos sejam excluídos do ensino superior enquanto não são
contemplados determinados anseios e reivindicações dos movimentos sociais surdos
e também de muitos integrantes do Curso. O dito popular a que fez referência em sua
argumentação entra em diálogo com o discurso circulante no DESU, recorrente em
diferentes depoimentos que me foram concedidos, de que no lugar da presença do
intérprete é necessário que os professores ministrem suas aulas em LIBRAS, algo
que é uma idealização difícil de ser concretizada até mesmo pela falta de profissionais
que aglutinem todas as particularidades necessárias (“Ok. Mas onde estão esses
professores?” – excerto 43, linhas 17-18).

No que diz respeito ao fato de as aulas serem ministradas majoritariamente


na língua oral, com a presença do profissional intérprete, o estudante Lucas, no
excerto 44, diferente de outros colegas da turma, busca fazer uma análise conjuntural
acerca do cenário da educação de surdos no Brasil, em que se insere o Curso
Bilíngue.

Excerto 44
1  Acho que as pessoas precisam entender que essa área
2 da língua de sinais é uma área muito nova. Quando os
3 professores tiverem interesse em trabalhar aqui, eles vão
219

4 desenvolver a língua de sinais aqui. É um processo que


5 ainda está em crescimento e que vai ser aperfeiçoado. É
6 importante que as pessoas entendam que por enquanto é
7 necessária sempre a presença do intérprete junto com o
8 professor, mas futuramente será importante que o professor
9 saiba um pouco da língua de sinais, mesmo que seja com a
10 presença do intérprete, até para ele mesmo poder entender o
11 que está sendo passado para os alunos. (...)

Trecho de entrevista realizada com Lucas (Estudante surdo)

Lucas destaca, nesse trecho de seu depoimento, que a língua de sinais “


é uma área muito nova” (linha 2), provavelmente em referência ao fato de que só foi
oficialmente reconhecida há cerca de dez anos. Essa é uma questão que, no seu
ponto de vista, precisa ser levada em consideração por parte dos que reivindicam que
a LIBRAS seja usada na instrução diretamente pelos professores, sem a mediação do
intérprete. O aluno demonstra compreensão com relação ao fato de parte do corpo
docente ter apenas conhecimentos básicos sobre a língua de sinais, ressaltando que
é no próprio desenvolvimento do trabalho no Curso Bilíngue que passarão a incorporar
a LIBRAS ao repertório.

Apesar de demonstrar essa compreensão, e de ratificar, nesse sentido, a


necessidade da presença do intérprete junto aos professores na sala de aula, não
descarta que os mesmos precisem se engajar no aprendizado da LIBRAS. Conforme
pontua, esse aprendizado, ainda que não torne dispensável a figura do TILS na sala
de aula, permitirá aos docentes negociar sentidos que são construídos nessa
triangulação (“ ...será importante que o professor saiba um pouco da língua de
sinais, mesmo que seja com a presença do intérprete, até para ele mesmo poder
entender o que está sendo passado para os alunos. – excerto 44, linhas 8-11).

É importante pontuar que, embora alguns estudantes ouvintes do Curso se


mostrem solidários à reivindicação no tocante às aulas serem ministradas em LIBRAS,
inclusive questionando o caráter bilíngue do espaço, é comum demonstrarem
resistência quando há o movimento, por parte de professores ouvintes, em tentar
ministrar a aula em LIBRAS sem a mediação do intérprete. É o que Plutão
problematiza no excerto 45, em que fez um relato sobre como procedeu em um dia
220

de trabalho no DESU em que deu sequência à sua aula sem o profissional TILS estar
em sala:

Excerto 45
1 (...) Aí teve um dia, eu fui dar a primeira aula, era uma disciplina
2 de terceiro período e não tinha intérprete. O que faz? Libera a
3 turma? Não libera? Passa o tempo de aula e depois fica aquele
4 inferno no final, reposição. (...) Aí eu fui, projetei, era só pra falar
5 do plano de curso e como seria a relação de sala de aula. Eu
6 projetei, aí comecei a explicar, a falar, dar uns avisos assim (...)
7 aqueles combinados de início (...). Aí eu virei e falei assim: “olha
8 só, o intérprete não chegou até agora, eu fiquei enrolando aqui.
9 Não chegou. Então é o seguinte: eu vou explicar o plano de
10 curso, mas eu vou explicar pra vocês o seguinte: eu não consigo
11 fazer LIBRAS e falar ao mesmo tempo, então está aqui
12 projetado...”. O texto estava projetado. “Está projetado o texto,
13 eu vou fazer em LIBRAS. (...) Aí eu comecei e os surdos ficaram
14 maravilhados, ficaram felizes da vida “pá pá pá, não sei o quê”.
15 Aí eu vi uma pessoa saindo da sala. Pensei “ah foi no banheiro,
16 sei lá o quê”. Eu estou lá, continuo pá pá pá e tal, não sei o quê.
17 Daqui a pouco eu sinto outra pessoa saindo. Aí ficou aquele ti ti
18 ti. Eu parei. “O que que foi?”. (...) “É que fulana não entende
19 LIBRAS, não está sabendo nada, ela está se sentindo muito
20 mal.” “Ah, entendi, né? Está se sentindo mal porque não está
21 entendendo nada em LIBRAS. O texto está projetado aqui.” “Ah
22 não, mas não tá entendendo e tal.” Eu falei: “Não, eu não vou
23 explicar mais porque eu não vou falar, eu não vou fazer em
24 português pra depois fazer em LIBRAS.” Tem gente que diz que
25 faz isso. Eu não vou fazer isso, sabe, é um desgaste enorme. Eu
26 também fico meio assim quando viram e dizem “eu dou a
27 minha aula em LIBRAS”. (...) Dá vontade de perguntar “qual
28 milagre que lhe produziu, que tipo de acordo você teve com
29 os alunos surdos e ouvintes pra que eles não se
30 digladiassem?” (...) Porque os ouvintes, eles se ressentem do
31 fato de não saberem bem língua de sinais.

Trecho de entrevista realizada com Plutão (Docente)


221

Conforme Plutão destaca nesse seu relato explicitado no excerto 45, em


uma de suas tentativas de dar prosseguimento à aula sem a presença de um
profissional intérprete, que ocasionalmente não estava presente em sala, percebeu o
incômodo por parte de estudantes ouvintes que, possivelmente, por não terem a
competência necessária para acompanhar as explicações sobre a dinâmica da
disciplina, chegaram a retirar-se da sala, como sinal de descontentamento com a
postura adotada por Plutão.

É por compreender que há resistência por parte dos estudantes ouvintes


diante da possibilidade de que as aulas sejam ministradas em LIBRAS, sem a
presença do intérprete, que provavelmente Plutão se questiona a respeito de outros
docentes do Curso afirmarem que ministram suas aulas em LIBRAS (“Dá vontade de
perguntar “qual milagre que lhe produziu, que tipo de acordo você teve com os alunos
surdos e ouvintes pra que eles não se digladiassem?” – excerto 45, linhas 27-30).

A resistência que percebe nesse espaço, creditada ao fato de os


estudantes ouvintes “não saberem bem língua de sinais”, foi também salientada por
Lua (TILS), em seu depoimento, quando fez referência à reclamação por parte de
estudantes ouvintes perante uma professora que “sabia língua de sinais (...) e decidiu
dar aula em língua de sinais” (excerto 41), ao que se subentende, sem o
acompanhamento do intérprete. No seu depoimento, Lua encadeou a observação
acerca da resistência em terem as aulas ministradas em LIBRAS, ressaltando que os
estudantes ouvintes ainda não estariam preparados para participarem de aulas nesse
formato sem a colaboração do TILS. Destaca, por fim, em função da dependência que
muitos professores e alunos mantêm para com a figura do intérprete no Curso, que
“esse não é o ambiente bilíngue, ele está em processo de construção mesmo” (excerto
41, linhas 17-19).

Por fim, destaco que parece notória a ambivalência acerca das


representações construídas sobre a inserção do TILS no Curso Bilíngue de
Pedagogia. Isso porque, por um lado, o profissional intérprete é entendido como figura
fundamental no desenrolar do Curso, funcionando como uma espécie de garantia do
caráter bilíngue desse cenário. Por outro, sua presença na sala de aula é questionada,
pois vai de encontro ao modelo de bilinguismo considerado ideal, no qual, entre outras
coisas, subentende-se que a língua de sinais deveria ser a única utilizada na instrução
e pela figura do professor.
222

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nas páginas iniciais deste estudo, destaquei a relevância de dois aparatos


jurídicos que funcionam como bases para a promoção de políticas linguísticas e
educacionais voltadas para o âmbito da surdez no Brasil: a Lei nº 10.436/2002 (Lei de
LIBRAS) e o Decreto nº 5.626/2005. É sobretudo a partir desses marcos legais que,
em nosso país, inúmeras demandas nesse campo foram não apenas notabilizadas,
como também tornadas eixos fundamentais na agenda de diferentes movimentos
sociais surdos.

Conforme salientei, é o texto do Decreto nº 5.626 que, ao tratar da garantia


de acesso das pessoas surdas à educação, vem servindo como a principal orientação
para a organização de um sistema educacional que, desde a educação infantil até o
ensino superior, possa fazer face às diferentes diferenças (CAVALCANTI e MAHER,
2009) e às especificidades desses alunos. Visando atender tal propósito, o referido
documento explicita medidas a serem tomadas por esse sistema, como a inclusão da
disciplina LIBRAS nos cursos de licenciatura e a incorporação, ao seu quadro de
profissionais, do professor ou instrutor para o ensino dessa língua e do intérprete de
LIBRAS/Língua Portuguesa.

É nesse contexto de promoção de políticas públicas posterior à


regulamentação da LIBRAS que o Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES)
se lançou ao desafio de criar, em 2006, o primeiro Curso Bilíngue de Pedagogia
(LIBRAS/Língua Portuguesa) em território nacional. Como indicadores da inovação
que o referido curso desenvolvido em seu Departamento de Ensino Superior
(DESU/INES) representa para o cenário da educação de surdos nesse nível de
ensino, destacam-se importantes disposições: a reserva de 50% de suas sessenta
vagas anuais para estudantes surdos; a garantia da LIBRAS como uma das línguas
por meio da qual se concretiza a instrução; a presença do profissional intérprete de
LIBRAS/Língua Portuguesa (hoje profissional concursado na instituição) ao longo de
todas as atividades desenvolvidas (aulas, cursos de extensão, palestras, etc.); a
opção por parte dos estudantes de realizar avaliações em LIBRAS com registro em
vídeo, inclusive o trabalho de final de curso; o respeito às especificidades linguísticas
dos discentes surdos quando da correção de avaliações realizadas na língua
portuguesa escrita.
223

A motivação para a produção da presente pesquisa, desenvolvida no


inovador cenário do Curso Bilíngue, teve origem a partir das reflexões que começaram
a me acompanhar ao longo dos dois anos em que, na qualidade de substituta, integrei
o quadro de professores do DESU. A constatação de que estava ingressando em um
cenário sociolinguisticamente complexo (CAVALCANTI, 1999, 2011) me foi possível
logo nos primeiros momentos da prática docente. De imediato, (re)conheci a
heterogeneidade da surdez que, para além dos variados graus categorizados e
difundidos pelas ciências médicas, também se via refletida nas práticas linguísticas
dos estudantes surdos para quem o imperativo da LIBRAS era desenhado em
variadas nuances, em contraposição às representações que povoavam meu
imaginário anteriormente à entrada nessa cena pedagógica peculiar. Começavam,
assim, a ser alinhavados os contornos da pesquisa a respeito da qual teço, nesse
espaço, minhas considerações finais.

Inserida no âmbito dos estudos sobre contextos bilíngues de minorias, esta


pesquisa foi desenvolvida sob um viés interpretativista de cunho etnográfico
(ERICKSON, 1984, 1989; CAVALCANTI, 2000, 2006; DENZIN e LINCOLN, 2006) e
contém registros gerados ao longo de dois semestres letivos de permanência no
campo. Esses registros, compostos por notas, trechos de diário de campo e
depoimentos, foram analisados à luz do objetivo geral de buscar compreender que
representações emergem, no cotidiano do Curso Bilíngue de Pedagogia, sobre a
identidade linguística de estudantes surdos e que representações são construídas,
pelos participantes da pesquisa, a respeito da condição bilíngue do referido cenário e
também a dos seus integrantes.

Para fundamentar teoricamente a construção de respostas para as


questões que nortearam a produção do estudo, busquei, ancorada no paradigma da
Linguística Aplicada INdisciplinar (MOITA LOPES, 2006), a interlocução entre
conceitos advindos de diferentes campos do conhecimento. Destacaram-se,
inicialmente, aportes voltados ao fenômeno do bi/multilinguismo (CANAGARAJAH,
2011, 2013; GARCÍA, 2009), da educação bi/multilíngue (GARCÍA, 2009; MAHER,
2007; 2012), assim como ao da educação bilíngue para surdos no Brasil (SKLIAR,
1997, 2010; FERNANDES, 2003, 2011, entre outros), basilares para a compreensão
e a problematização do contexto educacional em que a pesquisa foi realizada. A esse
aparato, somaram-se os conceitos de representação (HALL, 1997; SILVA, 2009;
224

WOODWARD, 2009), de identidade (HALL, 2009; SILVA, 2009; BAUMAN, 2005), de


comunidade (BAUMAN, 2003), de políticas linguísticas (CALVET, 2007; SHOHAMY,
2006) e de ideologia linguística (KROSKRITY, 2004).

Em virtude do imbricamento peculiar entre língua(gem) e identidade no


campo da surdez e da educação bilíngue para surdos, busquei contrapor, na análise,
a concepção de identidades descentradas e em fluxo, tal como sugerida em Hall
(2009, 2011), Silva (2009) e Moita Lopes (2013), à de identidade(s) surda(s), oriunda
dos Estudos Surdos em Educação. Foi também em virtude das singularidades do
contexto em que se desenvolveu a presente pesquisa que integrei ao aparato teórico
algumas considerações a respeito da noção de essencialismo estratégico (SPIVAK,
1999, 2010) e do conceito de comunidades imaginadas (ANDERSON, 2008).

Desde a década de 90, com a emergência dos Estudos Surdos em


Educação, temos presenciado, no âmbito geral da educação de surdos, um
distanciamento progressivo das concepções baseadas na ideologia clínico-
terapêutica e uma aproximação cada vez mais consistente e produtiva com o
paradigma socioantropológico. Essa aproximação esteve fundamentada, sobretudo,
no reconhecimento político da diferença (SKLIAR, 2010) em que a língua de sinais
vem se constituindo como um caminho para a construção não somente de políticas
linguísticas e educacionais, mas também para uma política de identidades.

Conforme a argumentação desenvolvida na análise buscou apontar, a


configuração dessa política de identidades no cenário do Curso Bilíngue, centra-se,
sobretudo, no fundamento de uma identidade linguística em que a prática de uso da
LIBRAS – que está envolvida em uma agenda político-ideológica como toda e
qualquer língua (SHOHAMY, 2006) – com certa regularidade aparece associada nos
registros a um ideal de unidade, de lealdade e como símbolo de pertencimento a um
grupo que depende de relações de solidariedade para se constituir enquanto tal.

De acordo com Wrigley (1996), a edificação de relações de solidariedade


de grupo, tal como se observou no contexto de desenvolvimento deste estudo, é um
projeto político de construir e afirmar uma identidade de grupo positiva. Na busca por
novas configurações de identidade que possam estabilizar os significados da surdez
enquanto diferença baseada em aspectos socioculturais, as representações
construídas no cotidiano do Curso sobre a identidade linguística dos estudantes
surdos apontam para um papel central e preponderante da língua de sinais.
225

Nessas configurações, o modo como cada estudante surdo se relaciona


com as línguas que compõem seu repertório linguístico (BUSCH, 2012; RYMES,
2014) parece se constituir no elemento-chave para as representações sobre sua
alteridade surda e também para o pertencimento à comunidade ali configurada.
Algumas representações construídas nesse lócus, ao ressignificarem a surdez e a
experiência de “ser surdo” com base nas práticas linguísticas dos indivíduos – em
clara resistência e oposição ao discurso monolítico em que a surdez era significada
como deficiência – acabam por recorrer a determinadas ideologias linguísticas que
associam as competências na LIBRAS a uma identidade “plena” ou “legítima”.

Nesse sentido, a identidade linguística é compreendida algumas vezes


como sinônimo de identidade(s) surda(s), o que não somente notabiliza o anseio por
uma lógica identitária binária bem delimitada, ou seja, a demarcação da diferença
surdo/ouvinte, mas também acaba por engendrar uma nova lógica nas relações de
poder não mais assentada nesse binarismo, mas a partir de uma tríade em que
figuram os ouvintes, os surdos “legítimos” e os demais surdos (FERNANDES, 2011).
No estabelecimento de novas delimitações, fruto de uma política de diferença que
tende à essencialização da língua de sinais como critério de uma identidade
“autêntica” e símbolo de “pureza”, por vezes invisibilizam-se os espaços opacos, os
meandros pouco claros das fronteiras em que os indivíduos e as culturas se cruzam
e se misturam (LOPES e BASTOS, 2010).

A língua de sinais sendo concebida como marca de uma identidade


“autêntica” e como principal símbolo de pertencimento a um grupo que se esforça pelo
entendimento comum e se pretende homogêneo tende a cristalizar a surdez a partir
de um único recorte e a preconizar, nesse espaço, uma forma politicamente correta
de “ser surdo”. Em outras palavras, a ausência ou a presença da prática da sinalização
no repertório linguístico contribui para que uma determinada identidade seja tida como
a norma, o que pode incorrer em uma hierarquização das identidades e dos sujeitos.
Por outro lado, esse recorte, como pontuei na discussão dos registros, também
precisa ser problematizado enquanto fator de mobilização política.

A tendência à essencialização observada nas representações construídas


no Curso Bilíngue, não parece, entretanto, ser uma singularidade desse cenário
educacional. Conforme observa Fernandes (2011), na construção de uma política de
identidades, diferentes comunidades surdas têm referenciado a identidade
226

localizando a língua no centro das autorrepresentações, o que segundo a autora,


constitui-se em uma “cilada tática”. Isso porque a forma de negar a submissão às
políticas logocêntricas do oralismo gera um ambíguo mecanismo de inclusão/exclusão
nas novas configurações identitárias acerca do “ser surdo”.

Cabe ressaltar que o apelo à língua de sinais como uma “qualidade


essencial” no contexto do Curso Bilíngue, observado na análise, parece se constituir
em uma reivindicação em prol do reconhecimento político do grupo como uma minoria
linguística. No território do INES, centro de referência e importante polo promotor de
pesquisas e discussões afetas à surdez, esse significado parece já estar estabilizado,
o que pode levar à crença de que essa reivindicação seria dispensável no cenário em
questão. Entretanto, é preciso levar em consideração que se trata de um Curso de
Pedagogia cujo grande diferencial e potencial perante os demais cursos dessa
natureza é o de formar professores/pedagogos bilíngues preparados para a atuação
na educação de surdos – ainda carente de profissionais especializados – que possam
ser agentes multiplicadores de saberes que ajudem a quebrar determinados rótulos e
preconceitos que as representações construídas sob a ótica do modelo medicalizante
da surdez legaram para os espaços educacionais.

O apelo à língua de sinais na reafirmação das identidades sociais surdas,


embora se constitua em um essencialismo, na medida em que corresponde a uma
simplificação dos complexos, fragmentados e transitórios processos de construção de
sociabilidades (HALL, 2009, 2011; WOODWARD, 2009; MOITA LOPES, 2013, entre
outros), não opera, conforme salientei na análise dos registros, em separado de uma
ação estratégica. Sem certa dose de essencialismo estratégico (SPIVAK, 1999, 2010),
a concretização de algumas ações por parte do grupo na esfera política poderia ser
dificultada. Tal como parece ocorrer em outros contextos de minorias e com diferentes
grupos sociais que sofreram ou sofrem algum tipo de opressão, a celebração de uma
dada singularidade, a linguística no caso específico do Curso Bilíngue, embora muitas
vezes se traduza em afirmações essencialistas como, por exemplo, “a identidade do
surdo é a língua de sinais” (título de uma das seções de análise), torna possível, por
outro lado, a constituição de uma comunidade de reivindicação.

Outro ponto importante que a análise permitiu observar se refere ao fato de


que certo ideal de “pureza” identitária, fundamentado sobretudo no papel que a língua
de sinais assume no repertório de cada estudante surdo, está intimamente
227

relacionado à concepção socialmente corrente – a despeito da maior visibilização do


fenômeno do multilinguismo – de língua enquanto sistema fechado e homogêneo,
difundida a partir da ideologia do monolinguismo. Nesse sentido, quanto mais amplas
e desenvolvidas as competências dos estudantes surdos na LIBRAS, mais estariam
próximos desse ideal de “pureza” e, pode-se dizer, maior o seu “grau” de
pertencimento ao grupo. No que diz respeito aos estudantes ouvintes, a adesão à
comunidade também está relacionada a tais competências, embora não figurem como
“símbolo identitário”, por lhes faltar o critério biológico.

A predominância de concepções monolíngues no cenário do Curso não foi


percebida somente no que tange a perspectivas identitárias essencialistas, em que
uma língua é sinônimo de uma identidade “legítima” determinada, mas também no
que diz respeito ao modo como são construídas as representações sobre as
competências linguísticas dos estudantes. No caso dos estudantes surdos, suas
competências em LIBRAS tendem a ser avaliadas com base em um modelo mítico de
falante nativo, já desconstruído na literatura especializada por diferentes autores
(RAJAGOPALAN, 2003; GARCÍA, 2009; MAHER, 2007, 2012, entre outros).

No tocante aos usos que tais graduandos fazem da língua portuguesa


escrita, a análise apontou que, por não se coadunarem com as expectativas criadas
socialmente para um estudante universitário – cujo modelo idealizado também se
apoia em uma ideologia monolíngue – são por vezes desconsiderados, ou melhor,
considerados como competências nulas, o que não apenas pode invisibilizar a
condição bilíngue desses estudantes, como também tende a contribuir para a
construção da representação dos mesmos enquanto indivíduos semilíngues.

Os registros também denotam que a já citada preponderância da norma


monolíngue, ao operar no sentido de privilegiar o reconhecimento das “competências
completas” nas línguas com que os falantes lidam em suas práticas interacionais,
também contribui para o não-reconhecimento dos estudantes ouvintes do Curso
enquanto indivíduos bilíngues, embora estes, assim como os estudantes surdos,
transitem entre a língua de sinais, o português oral e o escrito no cotidiano do DESU.

A tendência em se reconhecer somente as competências que respeitam


uma espécie de norma monolíngue em cada língua que transita nesse espaço pode
contribuir para a reprodução da ilusória ideia da existência de línguas puras e sistemas
linguísticos homogêneos, que não devem nem podem misturar-se com elementos de
228

outros sistemas, para não correrem o perigo de se tornarem “língua nenhuma”, “nem
uma coisa nem outra”, como pejorativamente são tratadas as línguas que mantêm
contato.

É importante ressaltar, entretanto, que a mistura, a hibridação e a influência


mútua que as línguas circulantes nesse espaço exercem umas sobre as outras não
devem ser consideradas como nocivas. Ao contrário, a necessidade de clara divisão
e pureza entre os sistemas linguísticos em que transitam os falantes bilíngues podem
trazer consequências prejudiciais para contextos multilíngues e sociolinguisticamente
complexos como o Curso Bilíngue de Pedagogia. Isso porque a separação das
competências de um indivíduo bilíngue, como se correspondesse a dois monolíngues
em paralelo (HELLER, 2007), despreza as práticas translíngues, o que muitas vezes
acaba resultando na reprodução do discurso do semilinguismo e na estigmatização
dos falantes.

Uma vez que se opere com a lógica do repertório linguístico (BUSCH, 2012;
RYMES, 2014) e das práticas translíngues (GARCÍA, 2009; CAVALCANTI, 2013;
CANAGARAJAH, 2013) ficará mais clara a compreensão de que estudantes surdos e
ouvintes e demais membros integrantes do Curso Bilíngue não têm necessidade de
saber a totalidade de uma modalidade linguística – mesmo porque isso está na ordem
da impossibilidade – para gozarem o status de bilíngues e para participarem de
interações bi/multilíngues. Ao se assumir essa perspectiva heteroglóssica, o
fenômeno do bi/multilinguismo passa a ser concebido não como uma possível ameaça
a um “todo monolítico”, mas sim como um recurso dinâmico de que todos podem
lançar mão.

A adoção de uma perspectiva monoglóssica ou heteroglóssica também


está intimamente relacionada às representações que são construídas sobre o cenário
bilíngue do Curso. De modo geral, a reivindicação pelo direito à educação bilíngue no
campo da surdez notabilizou-se na década de 90 e se acentuou posteriormente à Lei
de LIBRAS, ratificando o direito linguístico de que indivíduos surdos possam ser
educados na língua de sinais como sendo a primeira língua, atestando, também, o
papel da língua portuguesa nesse no processo como segunda língua (na modalidade
escrita). Essa ênfase na delimitação dos espaços que cada língua deve e/ou pode
ocupar nos processos educacionais no contexto da surdez, embora necessária e
compreensível no campo político, de reivindicação de direitos, parece estar ainda
229

atrelada a uma concepção objetivada de língua e a um aparato conceitual que opera


com modelos de bilinguismo monoglóssicos.

A educação bilíngue para surdos no Brasil, que do ponto de vista oficial é


um fenômeno ainda recente, dado o pouco tempo que passou a integrar as políticas
governamentais, tem no Curso Bilíngue Pedagogia do DESU, conforme já salientado,
uma experiência precursora. Em virtude de diferentes fatores: (a) do seu caráter
inovador; (b) do fato de que há, em nosso país, diferentes documentos que
parametrizam a educação no contexto da surdez e (c) de que o direito à educação
bilíngue é um dos pontos principais da agenda atual dos movimentos surdos, as
representações sobre o Curso vêm sendo construídas pelos seus integrantes em dois
diferentes polos.

Conforme a análise buscou apontar, por um lado é assumida a perspectiva


de que por se tratar de um cenário em que ao menos duas línguas estão em trânsito
constante na sala de aula, seja nas interações entre os estudantes, entre estudantes
e professores ou na própria instrução – realizada em português oral com interpretação
simultânea para a língua de sinais ou em LIBRAS com interpretação para o português
oral – o Curso tem atestado seu caráter bilíngue. Por outro lado, por persistir, nesse
espaço, um ideal de sujeitos bilíngues equilibrados e por nele se buscar uma
equiparação de forças entre o português e a LIBRAS, há certa desconsideração sobre
as práticas bi/multilíngues desenvolvidas, o que leva à negação ou à contestação da
legitimidade, pelos próprios membros DESU, acerca de seu cunho bilíngue.

Um importante ponto de tensionamento nas representações construídas


sobre o contexto bilíngue do Curso parece então relacionado à busca pela
concretização de um ideal de bilinguismo. Nesse modelo ideal, que figura em alguns
discursos circulantes, almeja-se que toda a instrução seja realizada diretamente em
língua de sinais pelos professores, sem a mediação do intérprete. Conforme destaquei
na análise, a presença permanente desse profissional no âmbito das atividades
desenvolvidas em sala de aula faz com que alguns participantes da pesquisa
considerem que o Curso não seja “legitimamente” bilíngue, ao passo que outros
creditam à garantia do processo de interpretação de todas as atividades a
“autenticidade” bilíngue desse cenário.

Essa polarização nas representações sobre o contexto bilíngue do Curso


também esteve voltada, conforme pontuei na análise, ao entendimento de alguns
230

participantes da pesquisa de que o Curso se desenvolve em um modelo


compreendido como inclusivo. Ao significarem a experiência que vivenciam como
inclusiva, tendem a negar a condição bilíngue do Curso, como se a perspectiva
inclusiva invalidasse o caráter bilíngue e vice-versa. Conforme foi possível perceber,
as representações repercutem os atravessamentos discursivos entre os textos legais
que vêm amparando a educação de surdos no Brasil.

De um lado, as representações refletem o preconizado no Decreto nº


5.626/2005 que, ao tratar da oferta da Educação de surdos nas diferentes etapas da
Educação Básica, concebe a educação bilíngue como aquela em que a língua de
sinais e o português escrito são as línguas usadas ao longo de todo o processo
educacional. A partir do decreto, subentende-se, conforme salientado no capítulo 2 da
tese, que nesse formato educacional a LIBRAS seria a língua usada na mediação das
aulas pelos professores, sem a participação de intérprete, cuja presença seria
preconizada a partir do segundo segmento do Ensino Fundamental e também no
Ensino Médio na ausência de professores bilíngues. Por outro lado, na previsão da
oferta da educação na escola regular, a educação bilíngue é compreendida como o
processo que se dá em português (modalidade escrita) e em LIBRAS, independente
do fato de essa língua ser usada diretamente pelo professor nas aulas ou na mediação
via intérprete.

Os significados construídos pelos integrantes refletem, em boa medida,


uma teia de diferentes discursos: os da esfera legal (fundamentalmente o Decreto nº
5.626 e a Política Nacional de Inclusão), o da própria instituição e o dos movimentos
sociais que, com o propósito de assegurar os direitos linguísticos das comunidades
surdas definiram, sobretudo por meio do movimento “Escola Bilíngue para Surdos”,
contornos específicos para o conceito de educação bilíngue no contexto da surdez no
último PNE. Embora esses contornos não estejam voltados necessariamente ao caso
específico da experiência em desenvolvimento no DESU, posto que se insere na
esfera do ensino superior, é possível perceber, a partir da análise de determinados
registros, que a política linguística local no Curso Bilíngue caminha no sentido de
buscar materializar nesse nível de ensino o que está legalmente previsto, ainda que
sujeito a diferentes atravessamentos e dissonâncias, no âmbito da Educação Básica
para surdos.
231

Em meio a essa teia de discursos, destaco que o Curso Bilíngue, cenário


sociolinguisticamente complexo, atravessado pelo bi/multilinguismo e por práticas
translíngues, configura-se como um terreno propício para que a perspectiva da
desinvenção das línguas ganhe maior notoriedade no contexto da educação de surdos
no Brasil. É nessa perspectiva que as relações entre a LIBRAS, o português (oral e
escrito) e outras línguas do repertório de cada falante serão compreendidas não mais
como parte de um jogo de forças, em uma lógica de competição, mas sim como
estratégicas, respondendo a necessidades funcionais e à dinâmica das linguagens no
século XXI. É também a partir desse novo olhar que a intercompreensão potencial
entre surdos e ouvintes do Curso, com os mais variados repertórios, será mais
valorizada e o trânsito entre as línguas compreendido como salutar, e não como
carência de competências ou problema a ser sanado.

Ressalto que, apesar de ter sido constatado certo vigor ideológico no que
diz respeito às representações sobre a identidade linguística dos que carregam a
marca da surdez associada ao imperativo do uso da língua de sinais, é no
imbricamento entre as diferentes línguas que compõem seu repertório que os
indivíduos se constituem. Ainda que, eventualmente, haja a necessidade de
reafirmação das identidades surdas de forma estratégica para fins políticos, conforme
aponta Rajagopalan (2003), a identidade linguística é construída socialmente, e não
algo pronto, definido, sem possibilidades de mudança. Com ou sem a marca da
surdez, todas as identidades sociais estão no território da multiplicidade, da fluidez,
do hibridismo, do dinamismo, da contradição e da fragmentação (FABRÍCIO e LOPES,
2002).

Nessas linhas de reflexões finais, gostaria de ressaltar que este rico campo
de pesquisa que é o Curso Bilíngue hoje se configura como um espaço marcado por
diferentes questões políticas e por atravessamentos ideológicos – tal como ocorre no
contexto mais amplo da educação de surdos no Brasil – em que políticas de identidade
e políticas linguísticas e educacionais se entrecruzam. A despeito desse notório
entrecruzamento, em que o recurso a uma identidade linguística é por vezes
manifestada com base em tendências essencialistas, julgo importante chamar à
reflexão sobre o fato de que falar sobre surdos – embora o ofício da redação imponha
certas amarras – não significa conceber uma totalidade. Ao falar dos surdos como
uma totalidade, conforme ressalta Skliar (2010, p. 14), pode-se cometer o equívoco
232

de considerá-los como parte de um grupo homogêneo, no qual estariam estabelecidos


sólidos processos de identificação. Saliento, nessas últimas linhas, justamente o
contrário. Surdos e ouvintes, embora nomeados normalmente de forma binária no
cenário do Curso (o que muitas vezes também se percebe na literatura especializada
e em outros contextos da surdez), não escapam ao hibridismo e não se configuram
como dois grupos que apresentam claras fronteiras definitórias: podem ser, para
seguir a metáfora inusitada que dá título ao trabalho, como “biscoito recheado, aquele
meio a meio.”
233

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ANEXO 1 – DECLARAÇÃO DE CADASTRO DA PESQUISA NO DDHCT/INES


251

ANEXO 2

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE)

Número do CAAE: 39599014.4.0000.5404

Declaro que fui devidamente informado(a) e esclarecido(a) pelo(a) pesquisador(a) Andreza Barboza
Nora sobre a pesquisa Formação bilíngue de professores surdos e ouvintes: poderes e saberes sobre
a surdez e as línguas em uso e dos procedimentos nela envolvidos. Fui informado(a) e esclarecido(a)
de que não há riscos previsíveis e benefícios diretos. Estou ciente de que o benefício indireto (social)
é a ampliação do conhecimento acerca da interação cotidiana entre surdos e ouvintes em um cenário
educacional bilíngue e a possibilidade de se discutir novas perspectivas no âmbito da educação de
surdos. Além do anonimato, foi-me garantido que posso retirar meu consentimento a qualquer
momento, sem que isso me traga prejuízo ou penalidade.

Participante:
Nome:
Data da Nascimento:
Assinatura:

Responsabilidade do Pesquisador:

Asseguro ter cumprido as exigências da resolução 466/2012 CNS/MS e complementares na


elaboração do protocolo e na obtenção deste Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Asseguro,
também, ter explicado e fornecido uma cópia deste documento ao participante. Informo que o estudo
foi aprovado pelo CEP perante o qual o projeto foi apresentado (Parecer 948.745). Comprometo-me a
utilizar o material e os dados obtidos nesta pesquisa exclusivamente para as finalidades previstas neste
documento ou conforme o consentimento dado pelo participante.

__________________________________________________
(Assinatura do pesquisador)

Data: ____/_____/______.

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