Andreza Barboza Nora: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Estudos Da Linguagem
Andreza Barboza Nora: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Estudos Da Linguagem
Andreza Barboza Nora: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Estudos Da Linguagem
CAMPINAS,
2016
ANDREZA BARBOZA NORA
CAMPINAS,
2016
Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): Não se aplica.
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem
Crisllene Queiroz Custódio - CRB 8/8624
Título em outro idioma: "Half and half like a sandwich cookie, half deaf, half hearing": :
languages, indentities and representations in a bilingual (Brazilian Sign
Language/Portuguese) undergraduate course
Palavras-chave em inglês:
Deaf - Education - Brazil
Minorities - Education (Higher) - Brazil
Education, Bilingual - Brazil
Portuguese language - Study and teaching (Higher) - Bilingual method
Brazilian sign language - Study and teaching (Higher) - Bilingual method
Deaf - Identity
Representation (Linguistics)
Área de concentração: Linguagem e Educação
Titulação: Doutora em Linguística Aplicada
Banca examinadora:
Marilda do Couto Cavalcanti [Orientador]
Terezinha de Jesus Machado Maher
Ivani Rodrigues da Silva
Cristina Broglia Feitosa de Lacerda
Maria Cristina da Cunha Pereira-Yoshioka
Data de defesa: 23-08-2016
Programa de Pós-Graduação: Linguística Aplicada
Wilma Favorito
IEL/UNICAMP
2016
Aos meus pais, por terem sempre me incentivado a trilhar o caminho em busca do
conhecimento e por me garantirem, mesmo diante de tantas dificuldades, as
condições mínimas para que pudesse perseguir todos os meus sonhos e objetivos.
Ao Rafa, por ter me acompanhado a cada minuto dessa longa jornada e por tê-la
tornado menos penosa com sua compreensão e cuidado. Uma página inteira não seria
suficiente para tantos agradecimentos que lhe cabem. Amo você.
Aos professores do colegiado do Ensino Médio Integrado do CEFET-RJ, campus
Maria da Graça, pelo companheirismo, pelo incentivo e pela generosidade em
aprovarem a minha licença na reta final de produção desta pesquisa.
Aos amigos de toda uma vida, pelo incentivo, por trazerem sorrisos em dias difíceis e
pela escuta solidária. Em especial, agradeço a Daniel Rosa, Luciana Reis e Marcelle
Araújo.
Às queridas Andréa Silva, Catarina Labouré e Cláudia Antunes, companheiras da
docência com quem compartilhei as angústias e as alegrias da vida acadêmica,
profissional e pessoal.
Aos alunos de ontem, hoje e sempre, por muito me ensinarem no dia a dia e por me
instigarem a saber mais.
À Cristina, pela amizade que construímos no decurso do trabalho de campo.
Ao Eli Castanho, companheiro de turma no Doutorado, por ter tornado menos
solitárias e mais divertidas as viagens de volta para casa depois das aulas e pela
interlocução fundamental.
Ao DESU/INES, por ter acolhido o meu projeto e ter tornado possível a presente
pesquisa.
Aos estudantes, professores e intérpretes do DESU que participaram do estudo.
À minha orientadora Marilda Cavalcanti, pelo legado teórico ao campo da Linguística
Aplicada e por ter conduzido com serenidade a produção desta pesquisa.
Às professoras Terezinha Maher e Ivani Rodrigues, pelas fundamentais contribuições
nos Exames de Qualificação.
Às professoras Marilda Cavalcanti, Cristina Lacerda, Ivani Rodrigues, Maria Cristina
da Cunha Pereira e Terezinha Maher por integrarem a banca. E aos professores
suplentes Petrilson Alan Pereira da Silva, Roberto de Freitas Júnior e Wilma Favorito,
por se colocarem à disposição.
Aos servidores da Secretaria de Pós-graduação do IEL, pela presteza com quem
sempre cuidaram das minhas demandas.
Ao CEFET-RJ, por ter me concedido o afastamento na fase de conclusão desta
pesquisa.
RESUMO
A presente tese está inserida no campo dos estudos sobre contextos bilíngues de
minorias (CAVALCANTI, 1999). Desenvolvida sob o paradigma da pesquisa
interpretativista de cunho etnográfico (ERICKSON, 1984, 1989; CAVALCANTI, 2000,
2006; DENZIN e LINCOLN, 2006) e sob a ótica INdisciplinar (MOITA LOPES, 2006)
da Linguística Aplicada, contém registros gerados ao longo de dois semestres letivos
de permanência no campo, o Curso Superior Bilíngue de Pedagogia do Departamento
de Ensino Superior (DESU) do INES (Instituto Nacional de Educação de Surdos). O
objetivo geral da pesquisa foi focalizar, nesse espaço sociolinguisticamente complexo,
as representações que emergem acerca da identidade linguística de estudantes
surdos, assim como as representações que são construídas pelos participantes da
pesquisa sobre a condição bilíngue (LIBRAS/Língua Portuguesa) do Curso e a dos
seus integrantes. Para fundamentar teoricamente a construção de respostas para as
questões que nortearam a produção do estudo, empreendeu-se a interlocução entre
conceitos advindos de diferentes campos do conhecimento. Destacam-se,
inicialmente, aportes voltados ao fenômeno do bi/multilinguismo (CANAGARAJAH,
2011, 2013; GARCÍA, 2009), da educação bi/multilíngue (GARCÍA, 2009; MAHER,
2007; 2012), assim como ao da educação bilíngue para surdos no Brasil (SKLIAR,
1997b, 1998, 1999, 2010; FERNANDES, 2003, 2011, entre outros), basilares para a
compreensão e a problematização do contexto educacional em que a pesquisa foi
realizada. A esse aparato, somam-se os conceitos de representação (HALL, 1997;
SILVA, 2009; WOODWARD, 2009), de identidade (HALL, 2009, 2011; SILVA, 2009;
BAUMAN, 2005), de comunidade (BAUMAN, 2003), de políticas linguísticas (CALVET,
2007; SHOHAMY, 2006) e de ideologia linguística (KROSKRITY, 2004). No tocante à
identidade linguística dos estudantes surdos, observou-se que as representações
denotam um papel central e preponderante da língua de sinais. A prática de uso da
LIBRAS aparece, com certa regularidade, associada a um ideal de unidade, de
lealdade, como símbolo de pertencimento ao grupo e de uma identidade “legítima”.
Quanto às representações sobre o cenário bilíngue do Curso, notou-se certo contraste
entre a persistência de ideais monolíngues e o engajamento em práticas
bi/multilíngues de seus integrantes. Além disso, foi verificado que as representações
sobre o Curso vêm sendo construídas em dois diferentes polos, o do reconhecimento
e o da contestação de seu caráter bilíngue, refletindo os atravessamentos discursivos
inerentes à educação bilíngue para surdos no Brasil.
LA – Linguística Aplicada
1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................................12
1.1 ANTECEDENTES............................................................................................................................12
1.2 DE “O QUE SERÁ QUE ELA QUIS DIZER?” A “O QUE ESSE LUGAR TEM A ME DIZER?”: A MOTIVAÇÃO PARA A
PESQUISA ............................................................................................................................................16
5.1 “ELE TEM É QUE LUTAR PELA LIBRAS! SE ELE É SURDO, ELE PRECISA LUTAR PELA LIBRAS”: A MOBILIZAÇÃO
POR UNIDADE.....................................................................................................................................134
ANEXO 1 .........................................................................................................................................250
ANEXO 2 .........................................................................................................................................251
12
1. INTRODUÇÃO
1.1 Antecedentes
1
Parece claro que a inclusão da disciplina LIBRAS nos cursos de licenciatura e nos cursos que
substituíram as antigas Escolas Normais, por ser obrigatória em apenas um curto período de tempo
ao longo de toda a formação, não tem por finalidade formar professores ouvintes bilíngues
(LIBRAS/Língua Portuguesa), mas permite que se vislumbre, na formação desses profissionais, a
possibilidade de que desfaçam estigmas e quebrem rótulos pré-concebidos sobre a surdez e as
línguas de sinais.
2
As formas de organização da educação de surdos previstas nos documentos legais serão explicitadas
e problematizadas no capítulo 2.
13
3
O Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES) é uma instituição federal de ensino vinculada ao
Ministério da Educação (MEC), localizada na cidade do Rio de Janeiro, no bairro Laranjeiras, zona
sul da região metropolitana.
4
O Colégio de Aplicação do Instituto Nacional de Educação de Surdos – CAp/INES, sob
responsabilidade do Departamento de Educação Básica – DEBASI, atende crianças, adolescentes
e adultos surdos, em todos os segmentos da Educação Básica. O CAp/INES funciona em três turnos
(manhã, tarde e noite), oferecendo aos alunos o ensino regular numa proposta bilíngue, sendo a
Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS – considerada a língua de instrução no currículo da instituição
e a Língua Portuguesa é trabalhada nas modalidades de leitura e escrita. O Colégio possui, também,
o Centro de Atendimento Alternativo Florescer – CAAF e o Núcleo de Estudos Avançados - Pré-
vestibular.
14
5
A autorização para o funcionamento do Curso Normal Superior, sob a modalidade Licenciatura, deu-
se por meio da Portaria Ministerial 2.830, de 17 de agosto de 2005, publicada no DOU de 18 de
agosto de 2005.
6
O Curso Normal Superior (Licenciatura) apenas propiciaria habilitações para o Magistério em
Educação Infantil e Anos Iniciais do Ensino Fundamental.
7
Quando do início, no INES, do Curso Normal Superior Bilíngue, o mesmo era desenvolvido pelo setor
então criado para esse fim, o Instituto Superior Bilíngue de Educação (ISBE). Diante da dificuldade
de se manter um Instituto na estrutura organizacional de outro, o ISBE foi transformado em
Departamento de Ensino Superior (DESU-INES) por meio da Portaria MEC nº 323, de 8 de abril de
2009, na qual foi aprovado o novo Regimento Interno do INES.
8
A possibilidade de alteração do formato do curso em desenvolvimento no INES se baseou nos
seguintes trechos da Resolução:
9
O processo do exame vestibular para o Curso Bilíngue de Pedagogia será pormenorizado no capítulo
4 desta tese.
16
1.2 De “O que será que ela quis dizer?” a “O que esse lugar tem a me dizer?”:
a motivação para a pesquisa
10
A proposta é pioneira no âmbito da América Latina. Há registros de que no Japão é desenvolvida
experiência semelhante, no campo do ensino tecnológico. A Escola Superior de Saúde da
Universidade de Aveiro (ESSUA), em Portugal, também registra uma experiência no âmbito do
ensino superior para surdos. Já a Universidade de Gallaudet, em Washington, D.C., é uma
instituição privada de educação superior voltada para indivíduos surdos ou com dificuldades de
audição, cuja língua oficial é a Língua de Sinais Americana (ASL), usada por professores, alunos e
funcionários. Atualmente, a cada semestre Gallaudet também recebe estudantes ouvintes. Para
saber mais acessar http://www2.gallaudet.edu/ .
11
Ao longo de seu funcionamento, o Instituto contou com apenas dois concursos para contratação de
professore efetivos, em 2006 e 2014, respectivamente. Em ambos os processos seletivos não
houve obrigatoriedade de que os candidatos apresentassem certificação de proficiência em
LIBRAS. Embora não tenha requerido dos docentes tal certificação, o INES oferece a todos uma
formação por meio do Curso de LIBRAS que semestralmente tem novas turmas abertas pelo
Instituto e tem duração total de 5 semestres. No caso dos últimos concursados, os mesmos
puderam começar essa formação antes de iniciar suas atividades docentes no DESU.
17
preencher vagas para professores substitutos com vistas à atuação no Curso Superior
Bilíngue de Pedagogia ofertado pela instituição.
Até então, muito pouco havia ouvido falar sobre surdos, surdez, educação
de surdos. Não havia nenhuma pessoa surda no meu círculo familiar, no meu círculo
de amigos, nas escolas em que exercia o magistério. Durante o meu curso de
Licenciatura em Letras, concluído em 2005, a Educação Especial – umas das cadeiras
em que hoje imagino pudesse abrir algum espaço para discussão sobre a educação
de surdos – era ainda uma disciplina eletiva. Não tive, entretanto, a oportunidade de
cursá-la. Sabia que a surdez era uma “realidade”, mas em verdade, para mim, que
quando muito havia cruzado com grupos de surdos em shopping centers do Rio de
Janeiro, pensar a respeito da surdez e dos indivíduos surdos era uma completa
abstração.
“O que será que ela quis dizer”? Por perto não havia ninguém que pudesse
12
O edital não exigia dos candidatos certificado de proficiência em LIBRAS e previa duas etapas de
seleção: prova de títulos e entrevista.
18
“fazer a ponte” entre nós. Nesse dia, que nunca me sairá da memória, os alunos do
Curso Bilíngue de Pedagogia do Departamento de Ensino Superior (DESU) do INES
estavam realizando a (re)matrícula e eu, que dias atrás havia sido comunicada sobre
a aprovação na seleção, dirigia-me ao DESU para acertar questões relativas às
disciplinas que ministraria, assim como seus respectivos dias e horários. “E agora, o
que eu faço?”. Essa pergunta, que remeti a mim mesma de forma silenciosa nesse
dia, diante da situação da total incomunicabilidade entre mim e a jovem surda,
passaria a ser uma constante na minha prática docente neste novo universo que se
descortinava para mim.
13
Conforme discorro no capítulo 4, a evasão, um problema que atinge a educação brasileira em todos
os seus níveis, também afeta o Curso Bilíngue de Pedagogia. Embora o quantitativo de vagas
oferecido semestralmente pelo DESU seja o mesmo para estudantes surdos e ouvintes e as turmas
se constituam, inicialmente, com esse número igualitário, há uma tendência de maior evasão entre
os surdos.
19
O mencionado cenário educacional, novo não apenas para mim, como para
todos os que dele participam (corpo docente, corpo discente, profissionais intérpretes,
corpo administrativo e diretivo), apresentou-se como um rico campo de pesquisa e
impulsionou a elaboração do estudo que ora apresento.
14
Em virtude da pouca disponibilidade de horários de turmas e da grande concorrência, não consegui
ingressar no curso de LIBRAS oferecido pelo próprio INES, como costumeiramente fazem os
docentes que passam a integrar o corpo docente da instituição. Como a rede municipal de Duque
de Caxias (onde também atuava como docente à época) mantinha um programa voltado para a
educação de surdos nesta cidade, passei a integrar um grupo de docentes ao qual a rede municipal
de ensino de Caxias se propunha a oferecer formação específica para a educação de surdos,
incluindo-se a aprendizagem da língua de sinais.
20
15
No ano de 1880, ocorreu em Milão o II Congresso Internacional sobre a Educação de Surdos,
conhecido sob a denominação de Congresso de Milão. Nesse congresso, foram votadas
determinações que repercutem até os dias de hoje: a aprovação do uso exclusivo do método oralista
na educação de surdos e a total proibição do uso das línguas de sinais. As decisões do congresso,
considerado como uma instância de prestígio, foram acatadas em todo o mundo, principalmente na
Europa e na América Latina. Entretanto, conforme aponta Skliar (2010, p. 16), não foi essa a primeira
vez em que se decidiu por políticas e práticas engajadas em dar fim às línguas de sinais, sendo
então o referido congresso não o início “oficial” do oralismo, mas sim sua legitimação. O autor ainda
acrescenta que a legitimação do oralismo não pode ser compreendida de forma reducionista, ou
seja, apenas como um modo de transformar os surdos em falantes (tal como ouvintes): é preciso
atentar para outros pressupostos de cunho filosófico (oralidade/capacidade de abstração x
gestualidade/obscuridade no pensamento), de cunho religioso (necessidade da confissão oral) e de
cunho político (o fortalecimento do Estado italiano, a partir de uma coesão também linguística).
21
16
Uso o verbo ser conjugado no tempo presente porque, embora a observação da autora
(CAVALCANTI, 1999) tenha sido realizada no findar do século XX, faz-se ainda bastante atual. Isso
porque as políticas linguísticas – incluindo-se aqui práticas de educação bilíngue – para grupos
minoritários ainda engatinham no Brasil, conforme buscarei apontar em uma das seções do próximo
capítulo.
22
O nome vitorioso nas urnas não foi legitimado pelo MEC que indicou para
o cargo o segundo nome da lista tríplice. Com essa interdição, o recente projeto
bilíngue do Instituto foi não apenas desconfigurado, como interrompido. Nas palavras
de Favorito (2006, p. 47), todo o movimento institucional de renovação passou então
a sobreviver apenas na convicção individual de alguns e nas “pequenas brechas” que,
apesar da descontinuidade, ainda poderiam ser exploradas.
23
17
Hoje já existe, para além do Curso Bilíngue de Pedagogia do DESU/INES, outra iniciativa
semelhante, que vem sendo desenvolvida, desde o início de 2015, no IFG (Instituto Federal de
Goiás). Mais informações disponíveis em http://www.aparecida.ifg.edu.br/index.php/licenciatura-
em-pedagogia-bilingue Acesso em: 10/02/2016
18
Ao longo da tese, todos os profissionais docentes que figuram na pesquisa, como estratégia de
preservação do anonimato, receberam pseudônimos que correspondem a nomes de planetas do
sistema solar. No capítulo 4, apresento todos os nomes, sendo Plutão um deles.
19
Na entrevista que me concedeu, Plutão ratificou a falta de coletividade na construção da proposta do
Curso Bilíngue de Pedagogia do INES. Sobre o início de sua prática docente no DESU, fez o
seguinte relato:
24
“Tirando a parte problemática estrutural, que foi muito difícil, (...) nós percebemos que o projeto da
educação do ensino superior não foi um projeto coletivo, ele foi um projeto que algumas pessoas
encamparam, e o curso foi criado por duas pessoas que eram funcionárias do Instituto, né,
funcionárias públicas do instituto, e um professor de uma outra instituição e quase ninguém mais
colaborou com esse processo (...).” (Trecho de entrevista realizada com Plutão – Docente)
20
Na turma em que desenvolvi minha pesquisa de campo não havia (ou não tive conhecimento) a
presença de surdos portadores de implantes cocleares. Durante a realização das entrevistas,
entretanto, foi-me relatado que já se faz presente esse perfil de aluno no DESU.
25
em que o Curso está em funcionamento, esse quadro foi composto basicamente por
professores ouvintes. Dentre esses, alguns são considerados usuários experientes de
LIBRAS pela comunidade – mesmo que não necessariamente ministrem suas aulas
em língua de sinais (formam, entretanto, uma minoria) –, outros têm aprendido a
sinalizar ao longo do exercício docente no DESU e no curso oferecido pelo próprio
Instituto. Atualmente o quadro também é integrado por docentes surdos, ainda que do
ponto de vista numérico representem ainda uma minoria em atividade no
Departamento.
21
De acordo com a UNESCO (2003), instâncias de educação multilíngue são aquelas que usam, no
ensino, três línguas: uma materna, uma nacional ou regional e uma internacional. No capítulo 2,
discutirei a questão terminológica do bi/multilinguismo.
22
Segundo Silva (2012, p. 204), o mercado da LIBRAS tem no domínio da educação seu campo de
atuação mais profícuo: há, desde o reconhecimento dessa língua no plano legal, uma demanda
crescente por professores de língua de sinais, por profissionais intérpretes, por professores
bilíngues e, por conseguinte, de cursos de LIBRAS e de tradução/interpretação de LIBRAS/Língua
Portuguesa.
26
como proposto por Hall (1997), uma vez que serão problematizados os significados
construídos pelos atores sobre a cena pedagógica em que interagem, incluindo-se
aqui os referentes à sua natureza bilíngue, à identidade linguística dos estudantes e,
também, às políticas linguísticas locais.
1.5 Da justificativa
23
Nessa dimensão, conforme aponta Skliar (1999, p. 7), o político tem duplo valor: político como
construção histórica, social e cultural; e político compreendido com as relações de poder e
conhecimento que “atravessam e delimitam a proposta e o processo educacional”.
29
24
As autoras não explicitam a que capital pertencem as escolas.
30
25
Como fica claro ao longo da dissertação, estudantes surdos e ouvintes não dividem o espaço da sala
de aula: surdos estudam em classes voltadas especificamente para esse alunado.
26
De acordo com Meireles (2014, p. 278), o referido programa atende 145 alunos surdos, distribuídos
em 25 escolas da rede municipal de Niterói. As escolas que integram o estudo somam 107 desse total
de estudantes.
31
27
De acordo com dados da UNESCO, são mais de 6.000 as línguas faladas no mundo (MOSELEY,
2010). Oliveira (2009) pontua que em 94% dos países do mundo mais de uma língua é falada.
36
28
Para Heller (2007), a língua, como um conceito social, não pode ser definida sem se levar em
consideração os falantes e o contexto que é utilizada.
29
De acordo com Moseley (2010), cerca de 43% das línguas existentes estão ameaçadas de risco de
extinção.
37
30
São exemplos de teóricos que tecem essa crítica, ainda no século XX, Grosjean (1982), Romaine
(1995).
38
descrever tal ideia, a autora observa (2012, p. 34) que “o indivíduo semilíngue seria
aquele que exibiria uma competência insuficiente em ambas as línguas quando
comparados aos monolíngues de cada uma delas”.
Ao tecer sua crítica a essa noção, Maher (2007) esclarece que a mesma
foi criada no seio de pesquisas que tinham por objetivo descrever o desempenho de
filhos de imigrantes trabalhadores na Suécia. Tendo em vista que essas crianças
tiveram testadas suas habilidades de leitura e escrita específicas da cultura escolar e
que “as funções sociais do letramento diferem de contexto para contexto, porque são
sempre culturalmente situadas” (2007, p. 76), a autora levanta suspeitas acerca dos
métodos que geraram tais resultados.
Maher (2007) e Baker (2011) chamam a atenção para o fato de ser muito
perigosa a noção de déficit que recai sobre os alunos que têm suas competências
avaliadas dessa forma, pois leva à leitura de que os mesmos teriam competências
atrofiadas. É importante ressaltar que além de não haver bases científicas sólidas no
conceito de semilinguismo, o mesmo costuma ser utilizado na descrição do
comportamento de indivíduos bilíngues somente no contexto de minorias, não sendo
aplicado nos diferentes contextos de bilinguismo de elite, o que demonstra que a
natureza político-ideológica do conceito se sobrepõe à natureza linguística.
31
García (2009, p. 24) cita como exemplo concreto o veículo lunar (moon buggy).
39
García (2009) descreve as práticas linguísticas dos sujeitos bilíngues não apenas pela
perspectiva do uso das línguas ou do contato linguístico, mas a partir dos próprios
falantes, adotando o termo translinguagem32 na caracterização das diferentes práticas
discursivas em que esses indivíduos se engajam a fim de dar sentido a seu mundo
bilíngue.
No que tange à noção de repertório, Rymes (2014) observa que seu uso
tem se tornado cada vez mais comum na descrição das diferentes formas pelas quais
os indivíduos estabelecem seus modos de comunicação para além das línguas (o
repertório pode incluir também gestos, modo de vestir, postura corporal, etc.). De
acordo com Rymes (2014, p. 4), o repertório comunicativo de uma pessoa pode ser
entendido como algo similar ao acúmulo de camadas arqueológicas. Ao longo da vida,
32
Blackledge e Creese (2010) também usam o termo translanguaging que aqui traduzo como
translinguagem.
40
33
O tipo aditivo corresponde aos modelos de manutenção e enriquecimento proposto por Hornberger
(1991).
46
34
Rodrigues (2005), ao tematizar a pesquisa sobre línguas indígenas no Brasil, apontou para a
existência de 181 línguas. O autor alertou, entretanto, que esse número admitiria margem de erro
para mais ou para menos, em função da distinção entre o que se poderia considerar como língua
ou dialeto.
47
35
Conforme aponta Altenhofen (2013, p. 94), embora a designação língua minoritária tenha surgido
como contraponto do que é majoritário e sugira certo dualismo entre uma língua “geral e comum” a
tudo que existe à sua margem, sua compreensão de língua minoritária ressalta que o status político
constitui o critério central, mais que a representatividade numérica. Acrescenta o autor que ao lado
de línguas numericamente inferiores, mas dominantes politicamente, também existem línguas com
grande número de falantes, mas com status político secundário.
48
36
A Constituição de 1988 reconhece aos índios o direito às suas línguas, pelo menos no aparato
escolar, em dois artigos, 210 e 231.
49
37
Considera-se como Faixa de Fronteira a faixa interna de 150 Km (cento e cinquenta quilômetros) de
largura, paralela à linha divisória terrestre do território nacional (BRASIL, 1979).
50
Mato Grosso do Sul, Pará, Paraná, Rio Grande do Sul, Rondônia, Roraima e Santa
Catarina) e aproximadamente dez milhões de habitantes.
Os laços entre o Brasil e alguns países com que divide linhas fronteiriças
foram estreitados sobretudo a partir de 199138, ano em que, por meio da assinatura
do Tratado de Assunção, criaram-se as bases para o Mercosul (Mercado Comum do
Sul), que está inserido em uma dinâmica crescente de integração econômica que se
observa em escala global.
O Mercosul, conforme ressalta Dietz (2008, p.17), “emerge como uma nova
escala territorial a ser considerada tendo importante interferência nas funções de
fronteira”. Essa então incipiente configuração regional fez com que as cidades
fronteiriças adquirissem novo papel no que tange à articulação e à integração dos
países da América do Sul.
38
Sagaz (2013) chama atenção para o fato de que desde 1950 vários países sulamericanos se
empenharam na construção de um espaço de compartilhamento econômico e cultural, que foi
determinante para a criação do Mercosul.
39
O Tratado pode ser visualizado em
http://www.desenvolvimento.gov.br/arquivos/dwnl_1270491919.pdf Acesso em: 14 de junho de
2014.
40
Em 1992, o guarani torna-se língua oficial do Paraguai, ao lado do espanhol.
51
O PEIF tem por base uma perspectiva da educação integral e está regido
por três diferentes princípios: a interculturalidade, “que reconhece fronteiras como loci
de diversidade e que valora positivamente as diversas culturas formadoras do
41
O documento pode ser visualizado em
http://educacaointegral.mec.gov.br/images/pdf/documento_referencial_mercosul.pdf Acesso em:
16 de junho de 2014.
42
Conforme a Portaria nº 125, de 21 de março de 2014, são cidades-gêmeas
os municípios cortados pela linha de fronteira, seja essa seca ou fluvial,
articulada ou não por obra de infraestrutura, que apresentem grande potencial
de integração econômica e cultural, podendo ou não apresentar uma
conurbação ou semi-conurbação com uma localidade do país vizinho, assim
como manifestações "condensadas" dos problemas característicos da
fronteira, que aí adquirem maior densidade, com efeitos diretos sobre o
desenvolvimento regional e a cidadania. (BRASIL, 2014)
52
Mercosul” (BRASIL, 2012), o bilinguismo, que “prevê que o ensino seja realizado em
duas línguas, o português e o espanhol, com carga horária paritária ou tendendo ao
paritário” (BRASIL, 2012) e na construção comum e coletiva do Plano Político-
Pedagógico das Escolas-Gêmeas.
43
A FUNAI, conforme aponta Maher (2013), diferente dos resultados apontados pelo levantamento de
2010 do IBGE, estima que totalizam 180 as línguas indígenas no Brasil.
54
Educação Indígena e foi finalmente estabelecido em 2001, por meio da Lei nº 10.172,
de 09 de janeiro.
compreende o período de 2014-2024, não parece haver ainda uma clara distribuição de
responsabilidades entre as esferas federal, estadual e municipal, o que dificulta a
implementação de uma política nacional que garanta a execução de modelos interculturais
bilíngues que contemplem a territorialidade das diferentes etnias.
44
A América Anglo-Saxônica recebeu cerca de 68% do total de europeus que migraram para a América,
enquanto a América do Sul recebeu 24% desses imigrantes. O Brasil, depois da Argentina, foi o
país que recebeu o maior número de imigrantes europeus que chegaram à América do Sul.
(CARNEIRO, 1950 apud KREUTZ, 2001).
58
45
Entre essas línguas estão o pomerano, o talian, o alemão e o hunsrukisch.
59
2.4 Educação bilíngue para surdos no Brasil: da década de 90 aos dias atuais
46
Os dados indicam que grande parte das matrículas está concentrada no ensino fundamental (51.330),
seguida pelas da EJA (9.611), do ensino médio (8.751), da educação infantil (4.485) e, por último,
da educação profissional (370). (INEP, 2012)
60
categoria e nessa faixa etária. No que diz respeito à Educação Superior, de acordo
com o Censo voltado a esse nível de ensino, há um total de 5.660 estudantes
matriculados. Dentre esses, 1.582 são considerados surdos, 4.078 são deficientes
auditivos e 148 são surdocegos (INEP, 2011).
47
Movimentos surdos constituem-se de diferentes organizações das comunidades surdas que buscam
o desenvolvimento e o acompanhamento de ações político-sociais destinadas aos indivíduos
surdos.
48
Sign Language Structure é o primeiro texto de William Stokoe sobre o sistema de comunicação via
sinais utilizado por indivíduos surdos. Inicialmente publicado em 1960, o trabalho veio a público
novamente em 2005, em versão desenvolvida por ocasião da comemoração dos 50 anos de suas
primeiras publicações.
61
duas línguas de sinais aqui correntes: a língua de sinais dos índios Urubu-Kaapor,
cuja tribo fica situada no sul do Maranhão, e a Língua de Sinais dos Centros Urbanos
Brasileiros (LSCB), hoje intitulada LIBRAS49. Posteriormente, dedicou-se ao estudo
sistemático da Língua Brasileira de Sinais, para a qual propôs uma gramática (BRITO,
1995). Ainda na década de 90, surgiram trabalhos relevantes de outras pesquisadoras
que incidiram sobre a descrição de determinados aspectos da LIBRAS e/ou de sua
aquisição: Felipe (1998), Karnopp (1994, 1999), Quadros (1997, 1999).
49
Em um de seus trabalhos, a pesquisadora Lucinda Brito (1995, p. 7) explica que a sigla LSCB foi
alterada para a sigla LIBRAS depois de uma reunião realizada em outubro de 1993 na FENEIS, em
que foi feita uma votação para eleger o nome “oficial” da língua de sinais em nosso país: LSCB ou
LIBRAS, tendo vencido esta última.
50
São exemplos o II Congresso Latino Americano de Bilingüismo (Língua de Sinais / Língua Oral) para
Surdos (setembro de 1993), coordenado por Lucinda Ferreira Brito; o Seminário Desafios e
Possibilidades na Educação Bilíngue Para Surdos (julho de 1997) e o seminário Surdez, Cidadania
e Educação (outubro de 1997), ambos promovidos pelo INES; o V Congresso Latino Americano de
Educação Bilíngüe para Surdos (abril de 1999), organizado pelo Núcleo de Pesquisa em Políticas
Educacionais para Surdos (NUPPES), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em
parceria com a FENEIS/RS.
51
Nos termos da própria federação, a FENEIS ”é uma entidade filantrópica, sem fins lucrativos, com
finalidade sociocultural, assistencialista e educacional que tem por objetivo a defesa e a luta dos
62
Esse campo acadêmico, que veio à tona na década de 90, não só propõe
uma ruptura da discussão hegemônica da surdez no contexto da deficiência, das
patologias da linguagem, dos saberes clínico-terapêuticos, do campo da educação
especial, como também lança as primeiras bases com vistas a um planejamento de
políticas educacionais paras surdos baseadas em modelos bilíngues. Nas palavras de
Fernandes (2014, p.12), os Estudos Surdos
direitos da Comunidade Surda Brasileira. É filiada à Federação Mundial dos Surdos e suas
atividades foram reconhecidas como de utilidade pública federal, estadual e municipal”. Disponível
em www.feneis.org.br/page/feneis.asp Acesso em: 10 de fevereiro de 2013.
63
52
O processo de reconhecimento legal da LIBRAS, aparentemente linear, foi, em verdade, bastante
complexo. Enquanto na instância federal os trâmites para a legalização jurídica perduraram entre
1996 a 2002, paralelamente, nos âmbitos municipal e estadual, outras legislações deram conta
desse reconhecimento. Foi o que ocorreu, por exemplo, em São Paulo, em que as Leis nº 10.958
de 27/11/2001 e nº 13.304, de 21/01/2002, respectivamente promulgadas no estado e na capital,
reconheceram a LIBRAS nesses âmbitos. Da mesma forma, outros estados e municípios,
principalmente das regiões Sul e Sudeste também reconheceram a legitimidade da língua de sinais.
(SILVA, 2012)
64
53
A participação de ouvintes (familiares e profissionais) foi limitada à observação. Apenas os intérpretes
de línguas de sinais, que trabalharam também como relatores, tiveram uma participação efetiva neste
encontro. O que se pretendeu, com essa limitação à participação de ouvintes, foi a garantia da
autonomia do debate sob a perspectiva dos indivíduos surdos (THOMA e KLEIN, 2010).
65
54
O Plano Nacional de Educação (PNE) determina diretrizes, metas e estratégias para a política
educacional para um período de 10 anos (o Plano em vigência abarca o período de 2014-2024). O
primeiro grupo são metas estruturantes para a garantia do direito à educação básica com qualidade,
e que assim promovam a garantia do acesso, à universalização do ensino obrigatório, e à ampliação
das oportunidades educacionais. Um segundo grupo de metas diz respeito especificamente à
redução das desigualdades e à valorização da diversidade, caminhos imprescindíveis para a
equidade. O terceiro bloco de metas trata da valorização dos profissionais da educação,
considerada estratégica para que as metas anteriores sejam atingidas, e o quarto grupo de metas
refere-se ao ensino superior. Disponível em http://pne.mec.gov.br/ Acesso em: 10/01/2016
68
55
Conforme destacou Favorito (2006, p. 103), parte da população surda oralizada tece críticas ao texto
da Lei de LIBRAS por não se ver representada na afirmação de que essa língua é o “meio de
utilização corrente das comunidades surdas do Brasil”.
56
Setembro é considerado um mês especial para as comunidades surdas. No Brasil, o Dia do Surdo é
comemorado em 26 de setembro. A data foi reconhecida pelo Ex-Presidente do Brasil Luís Inácio
Lula da Silva, com a Lei nº 11.796 de 29 de outubro de 2008. Data de 26 de setembro a criação da
primeira Escola de Surdos no Brasil, na cidade de Rio de Janeiro, o atual INES. Internacionalmente,
também se comemora o dia dos surdos em 30 de setembro. A comemoração é chamada de "Dia
Internacional dos Surdos". A data foi escolhida pela lembrança do Congresso de Milão ocorrido no
mês de setembro de 1880, no qual foi determinada a proibição do uso das línguas de sinais na
educação de surdos.
57
O “Setembro Azul”, conforme o site de divulgação da ação, “pode ser entendido como o marco
fundamental no que diz respeito à mobilização nacional na defesa das escolas bilíngues para
surdos”. O Setembro Azul foi criado como resposta crítica à política de educação especial que
priorizava o modelo da inclusão em detrimento das escolas especiais. Sobre a cor azul, foi escolhida
pelo Dr. Paddy Ladd (surdo), usado em laço de fita nesta cor como símbolo que representou, durante
o XIII Congresso Mundial de Surdos na Austrália, pessoas surdas vítimas de opressão. Disponível
em: http://setembroazul.com.br/ Acesso em: 10 de abril de 2015.
58
Embora de ampla circulação, a logomarca da Figura 1 foi obtida em
http://www.notisurdo.com.br/escolabilingue.html
59
Embora de ampla circulação, a logomarca da Figura 2 foi obtida em
https://informaLIBRAS.wordpress.com/2011/09/09/setembro-azul-2011-2/
69
Quero dizer com isso que a demanda pelo texto apresentado pelos
movimentos sociais surdos, acatado na Lei nº 13.005/2014 (que aprovou o PNE em
vigência) não se configura em novidade por completo no contexto da surdez e da
educação de surdos no Brasil. Nos dias atuais, o que se vê é a busca por uma
definição mais clara nos meios legais dos contornos que se anseiam para o
bilinguismo dessa população no sistema educacional.
Assegurar que o português como segunda língua deveria ter seu trabalho
voltado para as habilidades de leitura e escrita não significou que estava por fim
terminada a problemática da educação bilíngue para surdos em nosso país. Nesse
sentido, é importante salientar que,
60
O acesso ao aprendizado da modalidade oral do português está resguardado no artigo 16 do Decreto
nº 5.626/2005.
74
61
A introdução da Educação Especial na Educação Básica tem suas diretrizes na Resolução 2/2001. A
Resolução encontra-se disponível em http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CEB0201.pdf
Acesso em 16/02/2016.
62
A oferta do atendimento educacional especializado preferencialmente na rede regular de ensino é
preconizada na Constituição de 1988. Quando da elaboração do texto do atual PNE, cogitou-se, em
prol de uma concepção de “inclusão total”, eliminar o termo “preferencialmente” presente na Meta
4: “universalizar, para a população de quatro a dezessete anos com deficiência, transtornos globais
do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, o acesso à educação básica e ao
atendimento educacional especializado, preferencialmente na rede regular de ensino [...]”. (BRASIL,
2014). Para aprofundar o tema da radicalização do debate sobre inclusão escolar no Brasil,
consultar Mendes (2006).
75
justamente o que se deu por ocasião da CONAE 2010. Como observam Laplane e
Prieto (2010), o processo educacional de surdos foi um dos pontos de tensão na
discussão do Eixo VI63 na CONAE 2010 em razão do fato de os rumos adotados por
tal política de então ir de encontro aos ideais defendidos pelos movimentos sociais
surdos, na medida em que estes se colocam contrários à matrícula dos estudantes
surdos nas classes regulares, sobretudo nos anos iniciais, e ratificam a necessidade
de uma escola bilíngue em que a LIBRAS seja a língua de instrução sem a mediação
de intérpretes e a aprendizagem do português seja restrita à modalidade escrita.
De acordo com Lodi (op. cit., p. 51), a polarização nos debates acerca da
educação de surdos decorre das “diferenças nas significações atribuídas aos
conceitos de educação bilíngue para surdos e de inclusão, presentes na Política
Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva e no Decreto
nº 5.626/05”. Essa polarização, embora relacionada diretamente às práticas no
contexto da Educação Básica, parece migrar também para o âmbito do Ensino
Superior – conforme discutirei no capítulo 5 (destinado à análise dos registros) –,
tendo reflexos claros em determinados impasses que se notabilizam na experiência
do Curso Bilíngue de Pedagogia do DESU/INES, lócus sobre o qual recai o foco da
presente pesquisa.
63
O Eixo VI do PNE trata do tema Justiça Social, Educação e Trabalho: inclusão, diversidade e
igualdade.
76
64
De acordo com o documento, “considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimentos
de longo prazo, de natureza física, mental ou sensorial que, em interação com diversas barreiras,
podem ter restringida sua participação plena e efetiva na escola e na sociedade” (BRASIL, 2008,
p. 9).
65
O Atendimento Educacional Especializado (AEE), nesse caso, é realizado por meio da atuação de
profissionais que tenham conhecimentos específicos no ensino de LIBRAS e de português escrito
como segunda língua. (BRASIL, 2008)
77
66
A leitura do texto do documento “A Educação Especial na perspectiva da Inclusão Escolar:
abordagem bilíngue na escolarização de pessoas com surdez” (ALVES, FERREIRA e DAMÁZIO,
2010) parece corroborar que o texto do decreto não foi considerado em sua integralidade na
elaboração da Política.
79
alunos surdos por meio da organização das classes de educação bilíngue, das
escolas de educação bilíngue e das escolas comuns da rede regular. Parece claro
que, ao prever que a inclusão desse alunado deva se dar no âmbito de um desses
três modelos propostos (respeitando-se o modelo de acordo com os diferentes
segmentos), amplia o significado do termo inclusão para além daquele previsto na
Política. Inclusão, no caso específico do texto do decreto, remete à ideia de inclusão
social e não exclusivamente escolar.
como McCarty (2011), Maher (2013) e Rajagopalan (2013). Conforme esclarece este
último, a expressão política linguística, em português, “encobre tanto as decisões
tomadas no nível mais geral e macro, como também as atividades que contribuem
para implementá-las”. (RAJAGOPALAN, 2013, p. 29).
67
Embora a obra em que Schiffman faz menção ao cenário de políticas linguísticas dos Estados Unidos
seja da década de 1990, conforme problematizei no capítulo 2, diferentes estados norte-americanos
atualmente investem em programas de Englishy-one, em contraposição a modelos bi/multilíngues.
87
Estados Unidos, só serem acessados por meio do inglês, por exemplo, evidenciaria
uma significativa política que desencorajava a utilização de outras línguas que não
essa.
De acordo com Shohamy (2006), a política linguística real, “de fato”, dá-se
por meio de uma variedade de mecanismos para além das políticas oficiais expressas
nas legislações sobre as línguas. Assim, a política de fato precisa ser observada,
compreendida e interpretada não por meio dos documentos oficiais (mecanismos
explícitos), mas através de variados dispositivos implícitos de política – exames de
línguas, materiais didáticos, etc. – que são usados para influenciar, criar e perpetuar
as políticas reais. É por meio desses dispositivos que as decisões políticas são
tomadas e impostas e as ideologias se transformam em práticas.
Se, por um lado, o modelo tripartido proposto na obra de Spolsky (2004) foi
fundamental por romper com a lógica binária que por muito prevaleceu no campo da
Política Linguística, o modelo de funcionamento proposto por Shohamy (2006),
conforme observa Ribeiro da Silva (2013, p. 316), “consolida uma transformação
epistemológica na área”, a partir da defesa e da constatação de que “as ideologias
(ou representações) linguísticas fomentam/manifestam-se em mecanismos de política
68
Embora reconheça que há diferentes formas de intervenção nas questões linguísticas, Spolsky (2004,
p.10) considera indevida a distinção clássica entre planejamento de corpus e de status, em virtude
da forte ligação entre ambas as esferas.
89
linguística, e esses, por sua vez, definem a real política linguística da comunidade,
isto é, as práticas linguísticas” (RIBEIRO DA SILVA, 2013, p. 316).
Dentre esses cinco níveis propostos por Kroskrity (2004), três figuram como
crenças e dois colaboram para o exame das mesmas: interesses de grupos ou
individuais, multiplicidade de ideologias, consciência de falantes, funções mediadoras
das ideologias e papel da ideologia linguística na construção identitária. Ainda que
possam diferir de modo analítico, tais níveis apresentam aspectos em comum, razão
pela qual o autor lança mão da ideia de camadas sobrepostas.
69
Clique é um tipo de som produzido por meio de diferentes tipos de estalos feitos com a língua.
70
De acordo com Auroux (1992, p. 15), gramatização é “o processo que conduz a descrever e a
instrumentar uma língua na base de duas tecnologias, que são ainda hoje os pilares de nosso saber
metalinguístico: a gramática e o dicionário”.
92
71
Conforme aponta Hall (2011, p. 63), “a raça não é uma categoria biológica ou genética que tenha
qualquer validade científica”. De acordo com Munanga (2003), raça “é um conceito carregado de
ideologia, pois como todas as ideologias, ele esconde uma coisa não proclamada: a relação de poder
e de dominação”.
93
Tal como Anderson (2008), Bauman (2003 e 2005) também aponta para a
impossibilidade da comunidade e vai além na discussão. Para Bauman (2003), face a
tal impossibilidade, a noção de identidade é inventada e ganha proeminência. De
acordo com o autor (2003, p. 20), identidade é a palavra do dia, substituta da
comunidade que é tida como “lar aconchegante” ou como círculo que permanece
aconchegante apesar dos ventos frios que correm do lado de fora. O autor argumenta,
entretanto, que nem a comunidade nem a identidade estariam à disposição no mundo
líquido-moderno.
72
Na redação da tese, apoio-me na 11ª edição da obra, publicada em 2011.
100
Sob a ótica dos Estudos Culturais, aqui representando por Hall (1997) e
Silva (2001, 2009), os significados são produzidos na/pela linguagem, ou seja, são
102
construídos: não são inerentes às coisas, aos objetos e às pessoas, mas sim fixados
por nós. É nesse sentido que Silva (2009, p. 91) ressalta que
Ainda de acordo com Silva (2009), é por conta dessas particularidades que
a representação está diretamente relacionada tanto à identidade como à diferença.
Ambas são dependentes da representação, o que leva o autor a afirmar que “é por
meio da representação que (...) a identidade e a diferença passam a existir” (SILVA,
2009, p. 91).
73
No que tange à definição de cultura, apoio-me em Canclini (2009, p. 41). De acordo com o autor,
“pode-se afirmar que a cultura abarca o conjunto dos processos sociais de significação ou, de um
modo mais complexo, a cultura abarca o conjunto de processos sociais de produção, circulação e
consumo da significação da vida social”.
103
Conforme pontua Hall (2011), uma cultura nacional procura unificar seus
membros, tentando anular as diferenças no tocante ao gênero, à classe, à raça, em
prol de uma identidade cultural unificadora que os represente como sendo
pertencentes a uma mesma “família nacional”. O autor alerta, em outra obra, que
74
A primeira edição do referido trabalho veio a público em 1998. Faço uso, entretanto, da 4ª edição,
publicada em 2010.
75
No contexto dessa citação, Maher (2010) focaliza a identidade indígena.
109
4. CARACTERIZAÇÃO DA PESQUISA
Este capítulo está dividido em três partes. Na primeira seção, falo sobre a
natureza da pesquisa, abarcando a inserção da mesma no escopo da Linguística
Aplicada em sua vertente INdisciplinar (MOITA LOPES, 2006) e no âmbito das
pesquisas de caráter qualitativo. Na segunda parte, pormenorizo o cenário onde se
desenvolveu o trabalho, empreendendo uma descrição do campo e dos atores nela
envolvidos. Na parte final, relato como se deu minha (re)aproximação com o DESU
para fins da realização da pesquisa e descrevo os procedimentos adotados para a
geração dos registros (MASON, 1997; CAVALCANTI, 2006) analisados no quinto
capítulo.
estuda”. A conversa parou por ali, mas me levou à reflexão posterior de que, embora
a Linguística Aplicada se constitua como um campo de pesquisa hoje já estabelecido
em nosso país, isso não significa dizer, conforme observou Moita Lopes (2006), que
as pessoas que estão fora dele saibam exatamente o que significa fazer pesquisa em
LA (Linguística Aplicada).
No anseio por novas formas de fazer pesquisa, a LA mudou então seu foco
positivista (centrado na resolução de problemas) para um campo híbrido,
inter/transdisciplinar, que tenta “criar inteligibilidade sobre problemas sociais em que
a linguagem tem papel determinante” (MOITA LOPES, 2006, p. 14), difundindo a
vertente da LA denominada mestiça ou INdisciplinar, a que me filio no
desenvolvimento desta tese.
geral, onde pesquisadores como Moita Lopes (1994, 1996, 2006), Cavalcanti (2006)
e Pennycook (1998) a localizam. Porém, mais importante que se preocupar com tais
limites da LA como campo de investigação, é operar com uma visão de construção de
conhecimento que busca compreender a(s) questão(ões) de pesquisa na perspectiva
de vários campos do saber, com o objetivo de integrá-los (MOITA LOPES, op. cit., p.
98).
Na terceira fase, dos gêneros obscuros, a pesquisa social conta com uma
ampla diversidade de abordagens, métodos e estratégias de coleta e análise de
material empírico. Nesse momento, o observador não possui voz privilegiada nas
interpretações e o compromisso com a objetividade foi colocado em questão. Aqui
surgiram novas abordagens teóricas como o pós-estruturalismo, o neopositivismo, o
neomarxismo, o desconstrucionismo e questões éticas e políticas relacionadas ao
fazer pesquisa ganham relevo.
A primeira revolução citada por Winkin (1998), ocorrida entre 1915 e 1920
está relacionada à proposta de Bronislaw Malinowski, polonês que acabou por
transformar o campo de estudo. Isso porque, no século XIX, o etnógrafo elaborava
questionários etnográficos com base nas “lentes” dos viajantes ou comerciantes que
eram enviados, principalmente para a África ou Ásia, a fim de que capturassem
informações sobre comunidades desconhecidas do mundo ocidental. Malinowski
distanciou-se dessa etnografia “pré-científica” que se baseava em relatos de viajantes
e foi ele próprio diretamente ao campo coletar os seus dados e tentar compreender a
visão de mundo do nativo. Mantendo-se no campo por certo período de tempo, sem
intermediários, o antropólogo entra em contato com a cultura do outro, que deixa de
ser visto como um animal exótico e passa ser encarado como uma pessoa “cuja vida
118
O saber escrever de que trata Winkin (1998), entretanto, não deve ser
entendido como uma simples narrativa de um conjunto de eventos. Isso porque a
escrita de base etnográfica, desde o momento em que se adentra o campo até a
produção da versão final do texto gerado pela investigação, deve ser encarada como
um processo de interpretação. Nesse sentido, advirto os leitores para fato de que a
presente tese, resultado final dessa escrita é, então, apenas uma versão possível
sobre o universo pesquisado e não uma reprodução espelhada do mesmo
(EMERSON, FRETZ e SHAW, 1995).
finalidade de acolher a graduação que se iniciaria muito em breve. Esses três pisos
abrangem tanto as dependências voltadas para as atividades administrativas do
Curso (secretaria, salas de coordenação e direção) quanto para as pedagógicas
(salas de aula, laboratórios, sala de gravações/filmagens, etc.)
O Curso Bilíngue de Pedagogia tem sua grade curricular prevista para ser
concluída em 8 semestres letivos. Cada semestre está organizado em torno de um
Eixo Norteador, que, de acordo com a Proposta do Curso, “[permeará] a organização
de conteúdos curriculares e modos de operacionalização do trabalho pedagógico”
(MEC/INES, 2006, p. 19). Diferente de muitos cursos de graduação que trabalham
com o modelo de créditos, o Curso Bilíngue adotou um regime seriado. Nesse regime,
o estudante não monta sua grade de horários: é sempre matriculado, caso nunca
reprovado, em todas as disciplinas previstas para cada um dos oito períodos letivos.
Para ser promovido de forma direta para o período letivo subsequente, o aluno precisa
ser aprovado em todas as disciplinas. Caso, entretanto, seja reprovado em até duas
disciplinas em um mesmo semestre, o aluno é promovido, mas em caráter de
dependência, que, apenas quando cumprida, dá direito ao aluno de novamente
solicitar dependência. No caso de ser reprovado em mais de duas disciplinas em um
único período letivo – excetuando a de Língua Portuguesa76 -, o estudante está
automaticamente reprovado e precisa cursar novamente todas as disciplinas do
semestre em questão.
76
A Língua Portuguesa Escrita não está incluída entre as duas disciplinas que o estudante do Curso
Bilíngue de Pedagogia pode reprovar em um único semestre. Isso significa que, caso reprovado
em duas disciplinas, sendo a terceira a Língua Portuguesa Escrita, o aluno será promovido ao
período letivo subsequente no regime de dependência, mas não poderá cursar a cadeira de Língua
Portuguesa subsequente enquanto não cumprir a dependência daquela em que ficou reprovado,
pois essa é uma disciplina em caráter sequencial, em que cada módulo é pré-requisito para o
posterior.
122
se dividem em três núcleos que perpassam toda a formação do licenciando: (i) Núcleo
de Estudos Básicos, (ii) Núcleo de Aprofundamento e Diversificação de Estudos e (iii)
e Núcleo de Estudos Integradores. A título de exemplo, a disciplina Língua Portuguesa
figura no Núcleo de Estudos Básicos e está prevista em 7 (sete) do total de 8 (oito)
períodos do Curso. Intitulada Língua Portuguesa Escrita – seguida do número que
indica a ordenação de cada período letivo (Língua Portuguesa Escrita I, II, II, etc.) – a
disciplina é obrigatória e conta, em cada semestre, com a carga média de 4 horas
semanais. Acrescento o importante dado de que essa é a única disciplina em que os
alunos são obrigatoriamente avaliados por meio de produções escritas. Todas as
outras ementas preveem que os alunos podem optar pela avaliação escrita ou pela
avaliação em língua de sinais, gravada em vídeo na presença do professor, do aluno
e de um intérprete de língua de sinais, que é assegurado em todas as aulas do Curso,
assim como nas atividades de extensão e pesquisa desenvolvidas no âmbito do
Departamento de Ensino Superior.
Superior, conforme apontava o edital do ano anterior77. No que diz respeito ao modelo
de exame colocado em prática pelo edital de 2007, foi mantida a divisão em duas
etapas: a primeira contemplando questões objetivas das diferentes disciplinas
curriculares do Ensino Médio e uma prova de redação, já a segunda abrangendo a
prova de conhecimentos de LIBRAS.
77
O processo da mudança na modalidade do curso oferecido pelo INES foi explicitado na introdução
desta tese.
78
Conforme previsto nos editais, os candidatos surdos, quando aprovados, devem apresentar laudo
médico no ato da matrícula a fim de comprovar perda auditiva nos termos do artigo 4º, inciso II, do
Decreto nº 3.298/1999, com a redação dada pelo Decreto nº 5.296/2004.
124
que tenham concluído o Ensino Médio ou estudos equivalentes e que tenham fluência
na Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS. Na prova de Redação é exigido que o
candidato desenvolva um texto dissertativo-argumentativo, em prosa. Os editais do
exame deixam claro que, na correção da prova de Redação “serão consideradas as
especificidades linguísticas dos candidatos surdos, usuários do português como
segunda língua, desde que sem prejuízo ao conteúdo”79.
79
O último edital publicado pelo DESU está disponível em
http://vestibular.ines.gov.br/vestibular_novo/docs/ines_vestibular_2016_edital_portugues.pdf
Acesso em 20/11/2015.
125
80
Até o momento, o Departamento de Ensino Superior do INES oferece o curso de pós-graduação
denominado “Educação de Surdos: uma perspectiva bilíngue em construção”, que conta com aulas
semanais aos sábados e tem aberto turmas com periodicidade anual.
126
81
A sigla TILS (Tradutor Intérprete de Língua de Sinais) tem sido utilizada paralelamente à TILSP
(Tradutor Intérprete de Língua de Sinais e Português), tendo em vista que a Língua Portuguesa
também é instrumento de trabalho desses profissionais. No tocante à referência à profissão na
literatura, o termo intérprete de língua de sinais vem sendo usado paralelamente à expressão
tradutor intérprete de língua de sinais, que é utilizada na legislação regulamentadora. Ao logo da
tese, uso a sigla TILS, conforme nomenclatura então adotada no DESU e, quando não faço uso da
sigla, emprego apenas o termo intérprete.
82
O ProLIBRAS, instituído pelo Ministério da Educação MEC por meio do Decreto nº 5.626, de 22 de
dezembro de 2005, é o Exame Nacional para Certificação de Proficiência no Ensino da Língua
Brasileira de Sinais (LIBRAS) e para Certificação de Proficiência na Tradução e Interpretação da
LIBRAS/Língua Portuguesa. Podem se inscrever no ProLIBRAS pessoas surdas ou ouvintes que
concluíram o Ensino Médio ou que venham a concluí-lo até a data especificada em cada edital que
regulamenta o Exame. Cada candidato pode optar apenas por uma das certificações oferecidas por
edição do ProLIBRAS, o que significa que, caso queira a certificação tanto no Ensino da LIBRAS
quanto na Tradução e Interpretação, o candidato precisará se submeter a duas edições do Exame.
127
83
Denominado PROPP, o programa desenvolvido pelo INES tem como finalidade possibilitar aos
participantes que atuam ou pretendem atuar com surdos, sob a supervisão direta de profissionais de
diversas áreas do INES, a observação/coparticipação em ambientes reais de atuação técnico-
pedagógica.
128
Amanda Carlos
Anita Denise
Cláudia Fabiana
Felipe Graziele
Jéssica Juliana
Júlia Lídia
Lucas Maiara
Manoel Marta
Marcos Milena
Miguel Pablo
Rute Raquel
Regina
Roberta
Rosa
Vitória
Wander
130
84
Optei por não nomear as disciplinas como estratégia de preservação do anonimato dos docentes.
131
professores que ministraram aulas na turma. A maioria dos docentes que ministrou
aulas para a turma acompanhada durante o período da pesquisa de campo não
pertencia ao quadro efetivo do DESU. Diante da finalização antecipada de alguns
contratos de trabalho, fiquei impossibilitada de buscar alguns depoimentos.
85
Pablo mantinha bom relacionamento interpessoal com todos os estudantes surdos que concederam
depoimento em língua de sinais.
132
5.1 “Ele tem é que lutar pela LIBRAS! Se ele é surdo, ele precisa lutar pela
LIBRAS”: a mobilização por unidade
A fala título com que abro a primeira seção dedicada à análise dos registros
– “Se ele é surdo, ele precisa lutar pela LIBRAS” – foi extraída de uma nota de
campo elaborada no contexto da disciplina ministrada por Mercúrio, que neste dia
específico, era destinada à apresentação/caracterização do discurso linguístico sobre
a surdez, ou seja, sobre a surdez como uma diferença linguística, e representava a
continuidade de uma aula reservada à problematização do discurso médico sobre a
surdez.
Neste dia de aula, foi indagado aos estudantes se eles haviam tomado
conhecimento de uma discussão sobre o procedimento de implante coclear que foi
travada, tempos atrás, no programa de Tv da apresentadora Ana Maria Braga. Foi
explicado que, por conta de haver um personagem surdo sinalizante na novela Cama
de Gato86, um grupo de médicos foi chamado ao programa para falar sobre a surdez,
apresentando o implante coclear como possibilidade de cura.
86
A novela foi transmitida pela Rede Globo de Televisão, entre 2009 e 2010, às 18 horas. O
personagem surdo se chamava Tarcísio e era um pianista que havia ficado surdo.
135
a ter contato com surdos que usavam LIBRAS, passou ela também a aprender essa
língua: foi quando se sentiu “mais leve”. Comentou que sua família não queria que
ela aprendesse língua de sinais, pois considerava que ela não precisaria daquilo, já
que foi oralizada. (Nota de campo da pesquisadora)
87
Na concepção de Skliar (1997, p. 111), medicalizar a surdez “significa orientar toda a atenção à cura
do problema auditivo, à correção de defeitos da fala, ao treinamento de certas habilidades menores,
como a leitura labial e a articulação, mais que a interiorização de instrumentos culturais significativos,
como a língua de sinais".
136
de ser curada por meio de procedimento do implante coclear que, conforme aponta
Santana (2007, p. 28), “é visto pelos surdos como mais uma tentativa “fracassada” de
tornar o surdo um ouvinte”.
88
Diálogo registrado em nota de campo.
137
89
McCLEARY, L. O Orgulho de ser surdo. In: 1º Encontro Paulista entre intérpretes e surdos. São
Paulo: Feneis-SP, 2003. Disponível em
http://wp.ufpel.edu.br/areadeLIBRAS/files/2012/04/OrgulhoSurdo.pdf Acesso em 09/11/2015.
90
Esse movimento ocorreu nos Estados Unidos, em março de 1988. Consistiu em uma série de
protestos nas ruas de toda a comunidade universitária, conhecidos como Deaf President Now (Reitor
surdo já!). Como consequência desse movimento, foi eleita uma pessoa surda para o cargo de reitor
(Dr. I. King Jordan) e se iniciou um processo de reforma administrativa para que ao menos 51% dos
cargos de direção da Universidade de Gallaudet fossem ocupados por surdos (SACKS, 1998).
138
91
Esse episódio diz respeito aos desdobramentos das discussões travadas por ocasião da CONAE
(Conferência Nacional de Educação) 2010 que levaram o MEC, representado pela Diretora de
Políticas Educacionais Especiais, Martinha Claret, a cogitar o fechamento das denominadas
escolas especiais, como o INES, com a justificativa de que esses espaços educacionais
contrariavam a política de educação inclusiva (CAMPELLO e REZENDE, 2014).
92
Esse texto se insere na Meta 4 do PNE. O documento está disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13005.htm Acesso em: 18/10/2015
139
Excerto 1
1 (...) se o exame vestibular para o curso exige um conhecimento em
2 língua de sinais, mesmo que seja só pra que ele [o aluno] se
3 comunique, pra que haja interação entre os alunos, quem vai ter
4 isso? Quem tem isso? Bom... surdo, quem é familiar de surdo, quem
5 é intérprete e quem é da igreja evangélica.
93
Uma das implicações diretas de tal subordinação é o fato de que todos os profissionais que até então
ocuparam o cargo de Direção no DESU foram indicados pela Direção Geral do INES, este sim
cargo para o qual já está prevista eleição pela comunidade.
94
De acordo com Silva (2012, p. 29), os agentes religiosos católicos foram os primeiros a utilizar o
termo “comunidade de surdos” para fazer referência a uma paróquia onde houvesse pessoas
surdas. Em momento posterior, os luteranos fizeram uma ampliação dessa categoria, passando a
considerar como parte de uma “comunidade de surdos” as escolas especiais, as igrejas e as
associações de surdos ligadas ao catolicismo. Por último, os filiados às congregações batistas
teriam ampliado ainda mais o escopo da referida categoria, incluindo bares, shoppings e outros
espaços que servem como ponto de encontro para surdos.
140
que se configura no INES e que ele é, por conseguinte, também um lócus onde se
espera ser possível organizar movimentos de resistência e, ainda, ressignificar a
surdez e a experiência de “ser surdo”. Essa percepção vai ao encontro do que é
pontuado por Bauman (2003, p. 91) que, apoiado no pensamento de Jeffrey Weeks,
observa que “o mais forte sentido de comunidade costuma vir dos grupos que
percebem as premissas de sua existência ameaçadas e por isso constroem uma
comunidade de identidade que lhes dá uma sensação de resistência (...)”.
Excerto 2
1 (...) A aula seguiu com a problematização referente à Declaração de
2 Salamanca e à Declaração Universal de Direitos Linguísticos. Foi
3 citado, ainda, o episódio em que integrantes do MEC queriam fechar
4 as escolas especiais, incluídos aqui o INES e o IBC. Foi ressaltado o
5 absurdo que seria não apenas o possível fechamento dessas
141
Excerto 3
1 Eu entrei na escola quando eu tinha seis anos de idade. Só que a
2 escola não existe mais, ela acabou. (...) Era uma escola muito legal,
3 eu tenho boas recordações. Eu estudei nessa escola até os doze
4 anos de idade, mas ela faliu. A minha mãe não queria que eu
5 estudasse aqui [no INES], porque estudando aqui eu acabaria
6 desenvolvendo a língua de sinais e não a prática oralista. Eu
7 sempre via as pessoas comentando sobre o INES, mas também
8 reforçando a dificuldade de ingressar aqui. Então elas me
9 aconselharam a estudar numa escola de ouvintes porque era menos
10 complexo o acesso. A partir dessas informações, toda a minha
11 educação, a educação básica, foi em escola inclusiva, de ouvintes.
95
Justifico aqui a grafia das iniciais em maiúscula por referir-me ao nome do movimento social adotado
pelas próprias lideranças surdas.
96
CARTA Aberta ao Ministro da Educação (CAMPELLO et al, 2012). Disponível em:
http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:Cl-fMYM9uRcJ:lenereispvh. blo-
gspot.com/2012/06/carta-aberto-dos-doutores-surdos-ao.html+&cd=1&hl=pt-BR&ct =clnk&gl=br
Acesso em: 21/04/2014
143
12 Eu acho que o surdo tem que estudar onde ele quiser! Se ele
13 quiser estudar na escola bilíngue de surdos, que ele possa estudar
14 na escola de surdos. Se ele quiser estudar na escola inclusiva, com
15 intérprete, que ele possa estudar nessa escola. Ninguém tem que
16 ser obrigado a nada. Tem que respeitar a nossa vontade, a vontade
17 do surdo. Cada um pode preferir uma coisa. No Ensino
18 Fundamental e no Ensino Médio, eu sempre estudei em escola
19 inclusiva sendo a única aluna surda e eu não vejo isso como um
20 problema. Eu tive um bom rendimento escolar e percebi a
21 necessidade de cursar o Ensino Superior. (...)
No seu relato, fica claro que essa “tutela” foi exercida primordialmente pela
mãe, que não queria que estudasse em uma escola voltada exclusivamente para
surdos, como o INES, porque naquele espaço ela “ acabaria desenvolvendo a língua
de sinais e não a prática oralista” (excerto 3, linhas 5-6). Talvez, pela falta de
oportunidade de escolha em sua adolescência, Anita tenha destacado a consideração
de “que o surdo tem que estudar onde ele quiser! (excerto 3, linha 12). Embora tenha
estudado no Ensino Fundamental e no Médio em escola inclusiva sendo a “única aluna
surda”, conforme relata, Anita afirma não considerar isso como um problema. A
estudante ainda destaca o que considera um ponto positivo em sua escolarização, o
seu desempenho, que teria a impulsionado a ingressar no DESU (“Eu tive um bom
rendimento escolar e percebi a necessidade de cursar o Ensino Superior” – excerto 3,
linhas 20-21).
144
Excerto 4
1 (...) O primeiro grupo a se apresentar na aula de hoje era composto
2 por quatro estudantes: dois surdos (Miguel e Felipe) e dois ouvintes
3 (Carlos e Fabiana). O tema da apresentação, projetado no primeiro
4 slide, era “Vantagens e desvantagens da inclusão escolar”.
5 Inicialmente, Carlos buscou apontar diferentes especificidades que
6 os alunos podem apresentar no cotidiano escolar, como questões
7 ligadas ao aspecto físico ou intelectual. Apresentou trechos relativos
8 a documentos oficiais que tratam da questão da inclusão, como por
9 exemplo, a Declaração de Salamanca. (...) Fabiana apresentou uma
10 reportagem que tratava do caso de um estudante com síndrome de
11 Down incluído na rede regular de ensino que foi veiculada, inclusive,
12 em um programa de Tv, em que se abordava os benefícios da
13 inclusão para o jovem. Por outro lado, apresentou o depoimento da
14 mãe de uma criança Down que justificava o porquê de ter optado
15 por matricular sua filha em uma escola especial. (...) O estudante
16 Felipe teve sua participação limitada a mostrar e explicar imagens
17 que refletiam momentos do processo de aprendizagem de crianças
18 incluídas em escolas regulares. Por último, Miguel contou como foi
19 sua experiência em estudar em três diferentes escolas. Apontou a
20 dificuldade que tinha na aprendizagem, chamando a atenção para
21 o fato de que na primeira escola era o único surdo e não havia
22 intérpretes. A segunda escola, segundo ele um centro integrado,
23 recebia alunos com diferentes particularidades: havia grupos de
24 surdos, de cegos, etc. Relatou que os surdos recebiam um tipo de
25 tratamento, os deficientes visuais outro, de forma que a escola
26 buscava buscar atender cada especificidade. De acordo com
27 Miguel, foi nessa escola em que começou a aprender língua de
28 sinais, mas esse aprendizado se solidificou quando passou a
29 estudar no INES, em certa altura do Ensino Fundamental. (...)
30 Miguel buscou enfatizar que para o surdo a inclusão não é boa
31 porque na escola inclusiva não se fala LIBRAS, a língua do
32 surdo. Ele pediu que os colegas de turma divulgassem aos amigos
33 e conhecidos que tenham surdos na família, que a escola inclusiva
34 é muito prejudicial. Ao finalizar, ressaltou que o melhor modelo para
145
Excerto 5
1 Eu estudava numa escola inclusiva, mas não tinha intérprete
2 de língua de sinais, era somente a comunicação oral e isso
3 dificultava demais a comunicação. Era terrível. Eu não entendia
4 nada, absolutamente nada! Eu tinha um amigo, um outro aluno
5 ouvinte que tentava me ajudar. Eu era o único surdo incluído nessa
6 turma inclusiva. (...) Com o passar do tempo, a minha família percebeu
146
Embora o que exista nesse lócus específico possa muitas vezes parecer
ser um entendimento comum, compreendo, a partir da discussão promovida por
Bauman (2003) sobre a ideia de comunidade, que o que de fato ocorre nesse espaço
é um acordo artificialmente produzido. Artificialmente aqui assume, entretanto, uma
dupla significação: artificial no sentido de que é produzido (não “natural”) e também
no sentido de que, às vezes, é apenas um acordo aparente e não espontâneo.
Digo isso porque no contexto do Curso Bilíngue emergem por parte de seus
membros opiniões e posicionamentos distintos a respeito das já mencionadas
temáticas, tidas como polêmicas e consideradas fundamentais no âmbito da surdez e
da educação de surdos. Tais posicionamentos, entretanto, dificilmente se dão em um
espaço de discussão pública. As possíveis divergências ou possíveis contestações
com relação a certas premissas sustentadas na comunidade se dão, sobretudo, em
conversas mais restritas, como busco retratar em um trecho de meu diário de campo,
reproduzido no excerto 6:
Excerto 6
1 (...) Quando Urano saiu da sala para o intervalo entre os dois
2 tempos de aula, o aluno Carlos projetou os slides do grupo no
3 quadro e chamou os integrantes surdos para que eles pudessem
4 treinar para a apresentação que se daria na volta do intervalo.
148
Excerto 7
1 O primeiro a fazer a explanação para a turma foi Lucas, que se
2 deteve na explicação sobre os métodos de educação na Roma
3 antiga. O aluno projetou slides que continham sobretudo imagens
4 que retratavam desde artefatos utilizados naquela época (como
5 eram os blocos, cadernetas, lápis etc.) até fotos de personalidades
6 importantes, como Cícero, por exemplo. Conforme passava os
7 slides, sinalizava sua explicação. Na sequência, foi a vez de Rute,
8 que, ao iniciar, afirmou que trataria da questão da escolarização do
9 surdo. A aluna basicamente apresentou alguns importantes nomes
10 ligados à história do INES e também fez referência ao fato de a
11 língua de sinais ter tido seu uso proibido por grande período de
150
Rute era a única aluna surda da turma que sempre se comunicava via
oralização e, como era perceptível, apresentava pouca intimidade com a língua de
sinais. O fato de ter procedido à apresentação do seminário integralmente por meio
do português oral, o que não havia sido foi feito até então por nenhum outro aluno
surdo nos seminários realizados nas demais disciplinas (e não o foi ao longo de todo
o tempo em que desenvolvi meu trabalho de campo), provavelmente causou certo
desconforto na aluna, o que fez com que ela se justificasse com os colegas, o que,
em minha compreensão, figurou como uma espécie de pedido de desculpas.
língua. Como seu repertório linguístico (BUSCH, 2012; RYMES, 2014) não abarcava
a competência de apresentar seu trabalho em LIBRAS, ela sentiu necessidade de dar
uma satisfação ao grupo, uma justificativa.
Excerto 8
1 Eu acho que as relações são bastante agradáveis. Há uma
2 troca em relação a essas duas línguas, o português e a língua
3 de sinais. Os ouvintes ensinam o português e os surdos
4 ensinam a língua de sinais. Mas para entrar aqui no INES, nesse
5 curso bilíngue, na minha opinião, precisa ter uma mente aberta,
6 precisa aceitar as diferentes realidades. O mundo dito normal é
7 diferente do mundo aqui dentro. Quando eu ingressei no primeiro
8 período, eu conversava com algumas pessoas que não sabiam
9 muito bem língua de sinais, aí eu perguntava: “Por que você não
10 quer aprender língua de sinais?” Por que você não quer entrar
11 nesse mundo? "Bom, eu não sinalizo bem, eu acho
12 complicado." Então você está no lugar errado, precisa
13 procurar um curso que seja Pedagogia “normal", e não
14 bilíngue, porque aqui o foco é bilíngue e você tem que usar a
15 língua de sinais. Existe outro lugar que tenha esse curso
16 bilíngue? Não, não tem. Então aqui é o lugar de você
17 aproveitar isso.
Excerto 9
1 Aqui nós temos um espectro enorme de inserções na surdez. Desde o
2 cara que é implantado ao que faz leitura labial. Só que o cara que é
3 implantado... aqui ele tira porque ele é um traidor da causa surda,
4 ele pode ser...eu já tive aluno surdo implantado e já tive aluno
5 surdo que tira o implante aqui dentro pra não ser discriminado....
6 tira o aparelhinho...pra não ser alvo de... Eu já assisti no congresso
7 do INES pessoas que foram... não estou defendendo o implante coclear
8 não, não tenho nem conhecimento de causa pra isso. Tem também os
9 seus problemas. Também dizer que o implante coclear é a salvação é
10 produzir outro tipo de maluquice. (...) Mas aí … eu já vi debates ali
11 dentro do congresso do INES que a pessoa ia falar do implante coclear
12 e verdadeiras manifestações à frente, aquela pessoa era uma
13 criminosa (...)
Nesse trecho de seu depoimento, Júpiter aponta para o fato de que, a fim de
atender aos referenciais aceitos por essa comunidade, para estar dentro de uma
espécie de norma surda ali preconizada, há quem, por exemplo, adote o
comportamento de esconder “o aparelhinho” que comprova a condição de surdo
implantado. Essa condição poderia ser entendida, conforme é destacado no excerto
9, como uma traição à “causa surda” e parece apontar, ainda, para a tensão entre dois
154
Excerto 10
1 É uma gozaçãozinha. O Lucas é surdo do Paraguai, o Lucas fala.
2 Ele não fala aqui dentro, mas ele fala e fala muito. Aqui dentro
3 ele não fala, mas ele fala. Entendeu? Lá fora ele fala...aqui não. (...)
97
Este aspecto será discutido principalmente na terceira e quarta seções de análise.
156
Excerto 11
1 Eu acho que é bom, que é boa a relação. Assim, tem surdo que fala
2 que tem ouvinte que não quer treinar [LIBRAS], que não se esforça...
3 porque quando eles [os surdos sinalizantes] veem que a pessoa não
4 compreende muito a LIBRAS, não domina muito a LIBRAS, então
5 eles deixam de lado, mesmo que eles falem [português oral], eles
6 não querem ficar perto de você...eles têm aquilo, não sei bem o que
7 é, se é desprezo. Os [ouvintes] que sabem [língua de sinais], os que
8 sabem conversar com eles ou que pelo menos se esforçam... porque
9 eles... assim, por exemplo, eu não sei bem [língua de sinais], não
10 domino tudo, mas eles sabendo que eu me esforço, que eu quero,
11 que eu estou interessada, eles ficam perto.
Excerto 12
1 (...) quando você conversa com o aluno em língua de sinais... isso eu
2 já faço um pouco, converso, arrumo a sala, oriento, faço perguntas.
3 Esse tipo de coisa assim de ordenamento da sala já dá pra fazer
4 perfeitamente em LIBRAS...o interesse em tentar dar aula [em língua
5 de sinais], em tentar conversar, isso já é um fator de motivação
6 excelente. Ele [o aluno surdo sinalizante] já sente: “não, essa pessoa,
7 no mínimo, tem um movimento de tentar se comunicar nessa língua”.
8 Isso já é um fator que te causa uma certa respeitabilidade. (...) Eu boto
9 os ouvintes pra se comunicarem em LIBRAS, os surdos pra
10 escreverem os textos também. Esses todos o resultado afetivo é
11 excelente. Eu quando falo afetivo eu não estou minorando isso não,
12 isso é importantíssimo. Então isso é um elemento que me, digamos,
13 iguala, aproxima dos alunos quando eu converso com eles, discuto
14 nota, faço uma piada, brinco, enfim, invento sinais. Eu invento sinais
15 errados de brincadeira. Isso cria uma certa comunicação. (...)
98
QUADROS, R.M. Educação de surdos: a aquisição da linguagem. Porto Alegre: Artes Médicas,
1997.
159
Excerto 13
1 (...) Durante a discussão de uma questão que tematizava o método
2 oralista na educação de surdos, Júpiter pediu para a aluna Juliana
3 complementar a resposta que ela havia colocado no quadro.
4 Segundo Júpiter, era preciso acrescentar, nessa resposta, que a
5 filosofia oralista destacava o surdo como deficiente auditivo (DA) e
6 trazia à tona o discurso da medicalização, ou seja, da surdez como
7 uma patologia. Nesse momento, chamou a minha atenção a
8 intervenção feita pela aluna Júlia. Ela relatou à turma que, aos 14
9 anos, foi a primeira vez que se viu inserida em um grupo de surdos
10 sinalizantes. Oralizada, e sem saber língua de sinais, ela afirmou ter
11 sido chamada pelos novos colegas de DA (Deficiente Auditiva) e que
12 eles negavam que ela fosse surda, porque era oralizada. Júlia
13 contou que não aceitou o que os colegas haviam dito sobre ela e “
14 entrou em um embate” com o grupo, porque retrucou afirmando que
15 “era tão surda como eles, porque não era ouvinte”. (...)
Apesar de ter havido uma tentativa por parte desse grupo de apelar a uma
“qualidade essencial” (WOODWARD, 2009, p.13) que Júlia ainda não possuía, a
prática da sinalização, uma possível desestabilização desse significado acenou
quando a aluna respondeu a essa reivindicação essencialista – que mais remete à
marcação da diferença e da exclusão que a uma “unidade idêntica” (HALL, 2009, p.
109) – ressaltando que o fato de ser oralizada não inviabilizava o seu pertencimento
ao “grupo identitário dos surdos”.
Outra cena específica envolvendo a aluna Júlia foi por mim considerada
bastante significativa no que tange ao imbricamento entre as relações entre
língua(gem) e identidade. Essa cena se deu em uma aula em que Mercúrio solicitou
aos estudantes que se reunissem em grupos para realizar uma breve discussão
acerca dos dois tipos de discursos sobre a surdez problematizados nos últimos
encontros com a turma: o linguístico (da surdez como diferença linguística) e o médico
(da surdez como um déficit, como uma patologia). Depois de os membros debaterem
161
entre si, os grupos precisariam fazer uma apresentação que levasse a cabo um
apanhado da discussão.
Excerto 14
1 (...) Quando a encenação do grupo foi encerrada, Júlia virou-se para
2 a turma e disse que se enganava quem considerava que os surdos
3 não eram capazes. Ela usou os próprios professores surdos do
4 Curso como exemplo de que as pessoas surdas “não precisam de
5 implante” para darem seguimento ao processo de escolarização.
6 Complementando sua participação na cena representada pelo
7 grupo, a aluna enfatizou que é preciso que todas as famílias
8 garantam que os filhos surdos aprendam língua de sinais desde a
9 infância, porque, segundo ela, “ a identidade do surdo é a língua
10 de sinais”.
Para Júlia, a língua de sinais não é concebida como um dos elementos que
contribuem para a constituição social do surdo: a língua, ela própria, é a sua
identidade. Esse posicionamento da aluna sublinha o “caráter instrumental da língua”
e reflete que o jogo teórico que “toma a língua, num primeiro momento, como
determinada pelas práticas e interações sociais e, num segundo, faz dela a definidora
dessas mesmas práticas” (SANTANA e BÉRGAMO, 2005, p. 568).
Excerto 15
1 Aqui é a primeira vez em que eu uso língua de sinais em uma
2 prova. Eu me senti bem aliviada porque antes eu sempre
3 acompanhava os ouvintes, parecia um robô copiando o que eles
4 faziam. "Parabéns, você fala bem, você escreve bem o português",
5 mas de que adianta isso tudo? Eu não usava língua de sinais...
6 onde estava a minha identidade, onde ela estava? Não tinha
7 identidade...(...)
Nesse trecho do seu depoimento, Júlia ressalta que foi somente no DESU
– onde é garantida a prerrogativa dos estudantes (sejam surdos ou ouvintes)
escolherem99 a modalidade linguística em que querem ser avaliados – que, pela
primeira vez, pode realizar uma avaliação em língua de sinais. No depoimento, a aluna
mais uma vez se refere ao uso da língua de sinais como um alívio100 (“...eu me senti
bem aliviada...”) e, ao resgatar experiências de avaliação anteriores ao Curso
Bilíngue, explica que por conta de não sinalizar nas provas que realizava e de somente
utilizar o português (oral ou escrito) sentia-se um “ robô copiando o que eles
[ouvintes] faziam” (linhas 3-4).
99
A oportunidade de escolha, por parte dos alunos, da língua em que desejam ser avaliados, é um
importante diferencial do Curso Bilíngue de Pedagogia do DESU. A disciplina Língua Portuguesa
Escrita é única em que a modalidade escrita do português é obrigatória em termos de avaliação.
Além disso, conforme fica explícito no projeto do Curso, é garantida a “flexibilidade na correção de
provas e/ou trabalhos redigidos pelo discente surdo, quando serão considerados o aspecto
semântico e a singularidade linguística manifesta no nível formal de sua escrita. ” (MEC/INES, 2006,
p. 11)
100
No item anterior de análise, resgatei o relato de Júlia em que ela se refere ao alívio que significou
para ela o aprendizado e o uso da língua de sinais em detrimento da oralização.
164
Excerto 16
1 (...) Depois do relato de Júlia, abordou-se a questão das diferenças.
2 Segundo Júpiter, é preciso “começar a desmistificar aqui” que os
165
Excerto 17
1 (...) eu acho que a história da surdez foi excessivamente
2 simplificada através da história dos métodos aplicados para o
3 ensino de surdos. Isso estabeleceu uma perspectiva meio... meio
4 não, totalmente evolucionista, quase de viés positivista que divide
5 a história dos surdos numa pré-história em que eles eram
6 assassinados etc. em oralismo, bimodalismo, bilinguismo, e depois
7 eu brinco com os meus alunos, e o abismo. Quer dizer, como se o
8 bilinguismo fosse o fim da história, a etapa positiva de
9 desenvolvimento. Eu acho que há centralidade excessiva na
10 língua, na questão da língua. Entendo historicamente isso, mas
11 entender não é justificar. É quase que uma divinização, como se a
12 língua de sinais fosse resolver todas as questões relativas à surdez.
13 (...) Eu acho, que como todo fenômeno, qualquer um, a surdez, ela
14 tem várias determinações, várias ligações etc. E eu acho que já
15 está na hora de se produzir um pensamento que relativize um
16 pouco essa questão do bilinguismo como etapa final da educação
17 de surdos e como se a língua de sinais fosse resolver todo e
18 qualquer problema relativo ao processo de ensino/aprendizagem
19 do surdo (...) E aí tem coisas muito curiosas porque se persegue
20 um modelo ideal de surdo, que é o falante nativo da língua [de
21 sinais]. Você nunca vê nenhum falante nativo da língua passar
22 andando ali pela rua porque simplesmente isso é um modelo.
167
Excerto 18
1 Eu sinto que alguns surdos se distanciam de mim um pouco, não
2 querem conversar comigo, ficam entre as suas duplas, seus
3 grupos. Talvez eu não seja do jeito que eles gostariam, porque
4 eu não sei bem língua de sinais, eu não tenho essa identidade
5 surda que eles têm...essa cultura...eu fui oralizada, essa foi a
6 opção da minha mãe e eu não tenho culpa disso. Às vezes eu me
7 sinto sozinha aqui...
Anita julga que talvez “ alguns surdos se distanci[e]m” (excerto 18, linha
1) dela pelo fato de que considera não saber “ bem língua de sinais” (linha 4). A
aluna acredita que o fato de não se enquadrar no perfil do surdo idealizado por alguns
estudantes naquele espaço (“Talvez eu não seja do jeito que eles gostariam” –
linha 3) pode ser o motivo para que os colegas não mantenham uma relação de
proximidade com ela. Outro trecho de depoimento analisado anteriormente (referente
à entrevista concedida por Lídia) pode vir a reforçar a crença de Anita, pois assinala
que os surdos sinalizantes do Curso quando “veem que a pessoa não compreende
muito a LIBRAS, não domina muito a LIBRAS, então eles deixam de lado” (excerto 9).
Anita ainda faz referência à “identidade surda que eles têm”, e que ela,
entretanto, considera não possuir (“...eu não tenho essa identidade surda que
eles têm” – linhas 4-5). A ausência dessa “protoidentidade” que ela credita à
oralização (“eu fui oralizada” – linha 5) não seria uma responsabilidade sua,
conforme observa, mas de sua mãe (“essa foi a opção da minha mãe” – linhas 5-
6), razão pela qual ela se isenta de uma possível responsabilidade (“...eu não tenho
culpa disso” – linha 6).
169
Como a aluna se isenta de uma possível “culpa” por não representar essa
“identidade surda” e essa “cultura”, é possível depreender que ela se sente, de alguma
forma, penalizada. Tal penalidade seria o próprio distanciamento que ela julga ocorrer
por parte de alguns colegas surdos ou, em outras palavras, a impossibilidade de
pertencer a tal grupo. Possivelmente vem daí a necessidade de afirmar que não tem
“culpa” dessa exclusão a que entende ter sido submetida, afinal, a oralização foi uma
opção feita no âmbito da família.
Excerto 19
1 É muito complicado para mim fazer prova sinalizando...não me
2 sinto confortável com a câmera na minha frente. Eu não estou
3 acostumada a essa prática, mas eu sinto que é importante... eu sei
4 que é importante a pessoa ter avaliações em língua de sinais, mas
5 a língua portuguesa escrita é fundamental! Eu já fiz uma avaliação
6 em língua de sinais e não me senti muito bem, eu me senti um tanto
7 quanto prejudicada. Eu normalmente prefiro o português
8 escrito, mas eu creio se houvesse... se eu pudesse misturar
9 tanto a língua de sinais quanto o português, seria melhor para
10 mim, mas não pode...
101
Quando convidei Anita para participar da pesquisa concedendo-me um depoimento, perguntei à
aluna como seria a melhor forma de proceder durante a entrevista, no que dizia respeito à(s)
língua(s). Expliquei que os surdos sinalizantes tinham seus depoimentos registrados em vídeo. Na
ocasião, ela disse não haver problema, pois realmente pretendia conceder o depoimento em língua
de sinais.
171
Excerto 20
1 (...) Cláudia, mediada por um TILS, explica a Vênus que ela era o
2 único membro do grupo que estava presente. Segundo a aluna, os
3 outros integrantes estariam atrasados, razão pela qual não poderia
4 dar início à apresentação. Era por volta de 19 horas. Como só
5 Cláudia estava presente, Vênus propôs que aguardassem os
6 outros três membros do grupo. Quando algum tempo depois, outra
7 integrante, Júlia, chegou à sala, Cláudia lhe explicou, em conversa
8 sinalizada, o desencontro que estaria ocorrendo com relação às
9 datas previstas para as apresentações na disciplina. As duas
10 então se dirigiram a Vênus, dispensando a interpretação, para
11 explicar o tipo de equívoco que estaria ocorrendo. Segundo as
12 alunas, no dia do sorteio dos temas, houve uma troca entre dois
13 grupos e esse seria o motivo da confusão. Nessa explicação, as
14 duas estudantes alternaram entre a língua de sinais e a oralização.
15 Para explicar a Vênus o porquê de o grupo não estar presente,
16 Júlia e Cláudia usavam o português oral e Vênus pedia para as
17 alunas falarem devagar, para que pudesse compreender bem as
18 falas. Quando Vênus dirigiu um questionamento às alunas,
19 também em português oral, a respeito de quem seria então a
20 responsabilidade por não haver apresentação de trabalho naquele
21 dia, as alunas, em LIBRAS, debatiam entre si, chegando à
22 conclusão de que anotaram o tema certo, mas se equivocaram na
23 data. Como Vênus parecia não estar acompanhando
24 satisfatoriamente o debate entre as alunas na língua de sinais,
25 pediu que o profissional intérprete traduzisse a conversa. Diante
26 das explicações apresentadas pelas alunas, ficou combinado que
27 os seminários recomeçariam na próxima semana com a
28 apresentação do grupo de Júlia e Cláudia.
pelo desejo – diante de uma situação “grave” que configurava a ausência do grupo
em um dia preestabelecido para uma avaliação proposta – de as alunas se
comunicarem diretamente com Vênus, sem nenhuma forma de mediação.
102
Essa nota de campo retrata o comentário feito por um TILS que acompanhava Anita na interpretação
da prova final realizada pela aluna em uma das disciplinas de Vênus.
173
A “mistura” a que se refere Anita – que ela não apenas não faz questão de
esconder (ou não consegue) como também reivindica como fundamentais em
determinados eventos –, pode, entretanto, ser considerada como um distintivo seu
diante de alguns colegas surdos sinalizantes integrantes dessa comunidade que, na
luta por uma política de identidades que ainda opera com um ideal de “pureza
linguística” (FERNANDES, 2011), podem acabar não a reconhecendo como um
membro “legítimo”. Nesse sentido, cabe lembrar a observação feita por Pratt (1987
[2013], p. 441) de que ainda que “o falante ideal seja uma abstração, isso não pode
em princípio ser caracterizado ou mesmo concebido em um estilo socialmente neutro”.
Quando se pontua, por exemplo, que a língua de sinais usada por Anita
não seria LIBRAS, cabe salientar, conforme aponta Rajagopalan (2003, p. 27), que
não são apenas as línguas que são concebidas “em termos de tudo ou nada”: também
os falantes dessas mesmas línguas estão passíveis de serem classificados em
categorias binárias, sendo então considerados “nativos” ou “obrigatoriamente não
nativos”. Nessa ótica do tudo ou nada, que trabalha com modelos pré-concebidos, a
aluna em questão, por exemplo, estaria longe de encarnar a figura do “surdo ideal”:
isso porque ela se constitui, assim como muitos outros estudantes, como um modelo
híbrido, mas que pode vir a ser considerado como “não autêntico”, uma vez que estaria
“contaminada” pela comunicação oral dos ouvintes (FERNANDES, 2011, p. 117).
Excerto 21
1 Na aula de hoje, o primeiro grupo a se apresentar era composto
2 por três alunos ouvintes (Carlos, Graziele e Regina) e um aluno
3 surdo (Lucas). Assim como os alunos da semana passada, esse
4 grupo também desenvolveu uma breve cena teatral em que
5 Carlos fazia o papel de um médico que palestrava sobre os
6 benefícios do implante coclear na vida da pessoa surda. Regina
7 e Graziele representaram duas mães de surdos que estavam
8 presentes nessa palestra, enquanto Lucas fez o papel do jovem
9 surdo sinalizante. Na encenação, as duas mães defendiam
10 posições contrárias: uma queria que o filho fosse implantado e a
11 outra era contra o implante coclear. Em cena, Lucas tentava
12 apaziguar a discussão travada entre as duas mães. Nessa
13 tentativa de conciliação, disse que não ia “ tomar partido
14 naquela briga”, dando a entender que não se posicionaria
15 favoravelmente ou contra o implante coclear. Na última fala de
16 seu personagem, com a qual foi encerrada a apresentação do
17 grupo, Lucas disse que “ todo surdo tem que se preocupar
18 com a sua identidade, em falar a língua de sinais”. (...)
103
DERRIDA, J. Of grammatology. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1974.
176
chama de “inominável”. Para Skliar (2003, p. 55), o inominável é aquele que não é isto
nem aquilo, é aquele que “não se presta ao jogo da oposição nem de sua lógica”, “que
desordena”, que “fragiliza o conhecimento” e adia toda classificação e catalogação.
Se, por um lado, Carlos faz referência a esse espaço pouco definido do
“nem-um-nem-outro” em que as identidades não são fixas, mas sim produto de
complicados cruzamentos (HALL, 2011) como uma possibilidade que deve ser
evitada, a aluna Amanda, ao ser indagada, na entrevista, sobre os seus processos
identitários e sobre uma possível autodefinição enquanto surda ou ouvinte, parece
não se incomodar em ser uma “inominável”, cujo “status” é de indefinição:
Excerto 22
1 Eu acho que é meio difícil responder né? Porque aqui um fala:
2 “surdo do Paraguai você não é não”. Assim, é meio complicado.
3 Eu não saberia responder assim, porque eu pergunto “e agora?”.
4 Depende, eu acho que depende. Tem hora que mais pra lá ou mais
5 pra cá...entendeu? É assim...acho que é um pouco de cada lado,
6 a metade/metade. Igual ao biscoito recheado, aquele meio a
7 meio, meio surda, meio ouvinte.
na tentativa de dar conta de uma explicação para sua condição híbrida: “acho que é
um pouco de cada lado, a metade/metade. Igual ao biscoito recheado, aquele
meio a meio, meio surda, meio ouvinte” (excerto 22, linhas 5-7).
Excerto 23
1 Eu, na verdade, eu me considero ouvinte, entendeu? Minha
2 língua é o português. Agora entre eles [surdos] tem sim essa
3 situação, de análise dessa situação. O surdo do Paraguai é o
4 surdo falso, que não é surdo verdadeiro, porque eles acham
5 que o surdo verdadeiro é o surdo profundo, que realmente
6 não escuta nada e não fala. Então esses, pra eles, são os surdos
7 verdadeiros. Agora, já aquele que ouve um pouquinho ou fala,
8 como a nossa amiga Júlia, porque ela fala também...ela é
9 oralizada. Aí pode ser sim do Paraguai.
104
Manoel é um estudante com mais de 50 anos que apenas no ano de 2005 descobriu que tinha
comprometimento auditivo de 50% em cada ouvido. Segundo ele, sua surdez foi decorrência das
condições precárias de trabalho desenvolvido em uma empresa em que atuou.
178
Excerto 24
1 Eu não sou surdo do Paraguai! Eu sou surdo, só surdo!
2 Aqui tem surdo falso sim, mas não é meu caso! Eu não tenho
3 dúvidas de que sou surdo e todo mundo aqui sabe também... Eu
4 falo LIBRAS há muito tempo, desde criança eu me desenvolvi
5 na língua de sinais. (...)
Excerto 25
1 Eu sou nova por aqui...então, pra ser sincera, eu já ouvi várias
2 vezes, mas não entendo muito bem esse negócio de surdo do
3 Paraguai não... A professora fala, fala, fala, de identidade
4 surda, mas eu sinceramente não entendo. Porque assim, se [o
5 surdo] fala português não tem identidade surda, se fala LIBRAS
6 tem identidade surda. Mas eu não entendo não...quer dizer, eu
7 acho que é a língua né? É o que eles dizem. Eu não sei bem. Se
8 é isso então, eu posso ser surda também? (risos).
Vale lembrar que, se por um lado, alguns registros aqui analisados apontam
para a tentativa de estabelecimento de um núcleo identitário que, em uma “dose útil”
de essencialismo estratégico (SPIVAK, 2010), busca afirmar uma identidade coerente,
centrada e unificada a partir do uso (ou não) de uma materialidade linguística
específica (a língua de sinais); por outro, há no Curso Bilíngue, um movimento que
contribui para a relativização do peso “do carácter historicamente construído das
categorias em que nos encaixamos como pessoas” (ALMEIDA, 2009).
105
Conforme já explicitado no capítulo 2, são denominadas escolas ou classes de educação bilíngue
aquelas em que a LIBRAS e a modalidade escrita da língua portuguesa sejam línguas de instrução
utilizadas no desenvolvimento de todo o processo educativo.
184
Faço esse breve resgate para enfatizar que sendo o Curso Bilíngue de
Pedagogia do DESU uma experiência inovadora em todo o Brasil, não tem sua
formatação e modelo previstos em nenhum documento normativo. Em verdade, o
decreto regulamentador da LIBRAS apenas abre caminho para a criação de cursos
de pedagogia que busquem a formação de professores surdos e ouvintes com o
objetivo de viabilizar a educação bilíngue (LIBRAS/Língua Portuguesa) para
estudantes surdos da Educação Básica, mas não aprofunda de que modo cursos
dessa natureza podem e/ou devem ser configurados.
Excerto 26
1 Eu comecei a aprender mais a língua de sinais em uma igreja
2 em Campo Grande. Aí me falaram do DESU, que tinha um
3 Curso Bilíngue de Pedagogia, que seria bom pra mim, pra eu
4 me aperfeiçoar na língua de sinais. Como eu trabalho como
5 intérprete em escola, mesmo eu não tendo a pretensão de
185
6 trabalhar dando aula pra crianças, foi muito bom vir pra cá. Só
7 que quando eu pesquisei sobre o que era bilinguismo,
8 logicamente seriam duas línguas, mas eu pensava que a língua
9 de instrução principal, a língua em que as aulas seriam dadas
10 seria a língua de sinais e tendo por apoio a língua portuguesa
11 escrita. Do que eu imaginava pra realidade, dois mundos
12 totalmente diferentes. Quando eu li o edital, pedia fluência em
13 língua de sinais. Então foi muito angustiante pra mim porque
14 eu pensava: “caramba, será que eu vou ficar atrasado? Todo
15 mundo lá fera em língua de sinais, as aulas tudo em língua de
16 sinais, tudo LIBRAS, já que lá é o mundo dos surdos. Como é
17 que eu faço?” Fiquei bastante preocupado mesmo. Só que
18 quando eu cheguei aqui no primeiro dia de aula a professora
19 me deu boa noite falando, né? Aí eu sinalizei “boa noite” e a
20 intérprete falou “boa noite” pra ela. No decorrer da aula, ela só
21 falava, falava, oralizava. Era linguagem oral e intérprete lá.
22 Então foi exatamente o contrário do que eu imaginava. Eu
23 trabalho numa escola onde o professor ministra as aulas,
24 mas aulas regulares na linguagem oral, com a presença do
25 intérprete, que no caso sou eu que faço a tradução para os
26 alunos surdos. O MEC chama de escola inclusiva. Aqui a
27 gente chama de Departamento de Ensino Superior
28 Bilíngue. Só que é exatamente o que acontece na escola
29 inclusiva. Então, eu acho que aqui ainda não temos um
30 bilinguismo. Porque eu acho que é o único no Brasil que tem
31 esse curso, né? É o único no Brasil que tem esse curso e foi o
32 pioneiro. Então é o começo. Então, eu creio que daqui a
33 algumas décadas a gente tenha aqui um bilinguismo de
34 verdade, onde as aulas sejam ministradas em língua de
35 sinais, em que todo mundo aqui saiba as duas línguas cem
36 por cento e a comunidade acadêmica inteira saiba a língua
37 de sinais...não um ensino bilíngue onde somente o professor
38 é bilíngue, só a sala é bilíngue, mas toda a conjuntura.
acreditava que “a língua em que as aulas seriam dadas seria a língua de sinais”, ou
seja, que todos as aulas seriam ministradas em LIBRAS. A expectativa criada pelo
aluno teria sido nutrida também a partir da leitura do edital106 do vestibular, que,
segundo relata, “pedia fluência em língua de sinais”, o que lhe causou certa
apreensão, embora já atuasse como intérprete de LIBRAS/Língua Portuguesa.
O aluno tece então uma comparação entre a realidade que vivencia em sua
atuação em uma escola regular como profissional intérprete, em que o professor
ministra as aulas na linguagem oral, com o que presencia no Curso Bilíngue onde está
na posição de aluno. Para Pablo, o que se passa nesse cenário “é exatamente o que
acontece na escola inclusiva” (excerto 26, linhas 28-29), chegando à conclusão de
que, no DESU, o bilinguismo ainda não seria uma realidade (“Então, eu acho que
aqui ainda não temos um bilinguismo” – linhas 29-30).
Excerto 27
1 Então...pro bilinguismo ao qual eu defendo, que ambas as
2 línguas, português e línguas de sinais, tenham o mesmo nível
3 de importância, a gente está muito longe. E isso não é devido
4 apenas às condições do próprio do INES, porque se você entra no
5 site do Instituto está dito que o INES oferece educação bilíngue
6 aos alunos desde a Educação Básica. (...) o problema nosso, do
7 DESU, é que quando nós éramos ISBE não havia professor de
106
O edital do Curso Bilíngue de Pedagogia foi problematizado no item 4.2.2 desta tese.
187
Como é possível depreender do excerto 27, Plutão não nega que o Curso
se desenvolva em uma perspectiva bilíngue, porém salienta a defesa por uma
configuração para esse espaço de modo que “ambas as línguas, português e
línguas de sinais, tenham o mesmo nível de importância” (linhas 1-3), adentrando,
assim, no campo da ideologia linguística. Uma das razões apontadas no depoimento
para considerar que o bilinguismo no Curso estaria longe de uma perspectiva ideal foi
a implementação tardia de políticas públicas no âmbito da educação de surdos que
pudessem subsidiar práticas bilíngues nesse contexto, como, por exemplo, a
formação de professores de LIBRAS.
Excerto 28
1 (...) Nessa perspectiva [na que se busca], a gente está
2 longe ainda do bilinguismo, mas a gente está caminhando
3 pra esse sentido. Por quê? Com a revisão do currículo e com
188
107
Conforme dito anteriormente, uma nova matriz curricular para o Curso Bilíngue estava prevista para
ser implementada a partir das turmas ingressantes no ano de 2015.
108
A disciplina LIBRAS não constava na versão curricular da turma por mim acompanhada, embora os
alunos tenham podido participar, de forma experimental, de aulas voltadas para o aprendizado
dessa língua. Os alunos se dividiam em dois grupos: um grupo participava de aulas de LIBRAS e
outro de aulas de língua portuguesa como segunda língua. Na disciplina Língua Portuguesa Escrita
não havia, entretanto, separação.
109
No currículo em vigência no decorrer da pesquisa de campo, a disciplina Língua Portuguesa Escrita
estava contemplada do 1º ao 7º período do Curso Bilíngue e estudantes surdos e ouvintes,
independente dos seus conhecimentos prévios, participavam das mesmas aulas. Já era antiga, no
DESU, entretanto, a indicação, principalmente por parte dos professores de Língua Portuguesa, de
que as aulas dessa disciplina deveriam ser repensadas de modo a contemplar diferentes objetivos
de ensino que se vislumbram para surdos e ouvintes.
189
Excerto 29
1 A minha turma até que é uma turma boa. O clima até que é de
2 paz porque a minha turma até agora graças a Deus não teve
3 problema nenhum de inimizade ou confusão entre surdos e
4 ouvintes, mas porque os ouvintes se colocam naquele
5 patamar que realmente eles têm que ajudar o surdo. E isso
6 também não é correto. O correto é o surdo chegar aqui na
7 universidade bilíngue. Não é o surdo depender da minha
8 ajuda...é porque ele é bilíngue. Eu tenho que ser bilíngue e
9 ele tem que ser bilíngue. Tem que ser igual. A interação tem que
10 ser igual porque é bilinguismo. Bilinguismo é eu ter, digamos,
11 100% da minha língua, que é o português, e, digamos, 90% da
12 LIBRAS. E o contrário também né? Para os surdos a mesma
13 coisa, só que eles têm que ter o português escrito. E eles não
14 têm...eles não conhecem nada. Então, a minha turma é boa
15 porque ela tem essa aceitação, ela aceita o surdo do jeito que ele
16 é, entende a questão do português, interage e tenta ajudar o
17 surdo. Mas isso daí não quer dizer que é bom, o bom é que todo
18 mundo seja bilíngue já... não é bilíngue ainda, não é só os
19 surdos, nós também. Eles não são 100% bilíngues e nem nós,
20 né? Porque nós não temos a língua de sinais 100% e nem eles
21 têm o português. Então não somos 100%, não somos
22 bilíngues ainda. Isso quer dizer que eu vou ter que olhar pro
23 intérprete quando o professor é surdo e o surdo também pro
24 intérprete quando o contrário estiver dando aula.
110
No Curso Bilíngue, há a recomendação, por parte dos professores, de que os grupos organizados
para a realização de atividades acadêmicas não sejam constituídos exclusivamente por discentes
surdos ou exclusivamente por discentes ouvintes.
191
A aluna considera que “o clima de paz” que percebe em sua sala de aula
se deve a uma espécie de “aceitação” que haveria por parte da sua turma, “[d]o surdo
do jeito que ele é”. Essa “aceitação”, pelo que se depreende, passa pela compreensão
hoje estabilizada e há muito difundida tanto em estudos dedicados à educação
bilíngue no contexto da surdez (PEREIRA, 2014; FERNANDES e RIOS, 1998;
FERNANDES, 2003; QUADROS, 1997, 2005; SKLIAR, 1997a, 1998, 2001, entre
outros) como em diferentes cenários de educação bilíngue para surdos (incluindo-se
aqui o DESU), de que a Língua Portuguesa, em sua modalidade escrita, é a segunda
língua dos indivíduos surdos. Também passa pelo entendimento de que sendo o
português uma segunda língua para esses alunos, é necessário os ouvintes – que,
seguindo esse parâmetro, têm o português como primeira língua – compreenderem
as dificuldades dos estudantes surdos nas práticas que envolvem leitura e escrita e
que, por conseguinte, tentem “ajudá-los”.
Diante dessa relação que significa como sendo de dependência dos alunos
surdos perante os ouvintes, não desejável e inadequada (“E isso também não é
correto” – excerto 29, linhas 5-6), Regina vê a condição bilíngue dos indivíduos surdos
como elemento-chave nessa problemática (“O correto é o surdo chegar aqui na
universidade bilíngue. Não é o surdo depender da minha ajuda...é porque ele é
bilíngue.” – linhas 6-7). Em sua percepção, entretanto, os colegas surdos da turma
ainda não são bilíngues porque eles “têm que ter o português escrito” (linha 13) e,
em sua avaliação, “eles não têm...eles não conhecem nada” (linhas 13-14).
Observa, ainda, que também os alunos ouvintes não seriam bilíngues porque os
mesmos “não [têm] a língua de sinais 100%” (linha 20).
Excerto 30
1 Aqui a dúvida minha sempre foi avaliar. Não há dúvida! É avaliar,
2 porque você também não pode produzir, com base num modelo
3 hipotético, um massacre em termos de reprovação porque bem ou
4 mal esses alunos chegaram aqui como chegaram. Falo tanto dos
5 ouvintes quanto dos surdos. No caso dos surdos
6 especificamente, quase que completamente sem língua
7 portuguesa, quase não, totalmente sem língua portuguesa,
8 com grande dificuldade em português. E fosse para avaliar de
9 maneira rigorosa, eu acho que nós teríamos a obrigação de
10 produzir uma reprovação massiva e esse curso duraria oito, nove
11 anos. Talvez ele não se sustentasse. Então me causa... assim, eu
12 acho que de um modo geral, a gente não... enfim, faz tudo o que
13 pode por nossos alunos, mas os resultados são, na média, bastante
14 decepcionantes.
Excerto 31
1 (...). Eu acho que a grande dificuldade do ensino superior
2 envolvendo surdos, se ele quiser ser ensino superior, vai ser a
3 produção de textos em LIBRAS. Não com aquela visão que se vê
4 por aqui do surdismo... de que o surdo só pode sinalizar, que aqui
5 você fala em bilinguismo, mas acaba sendo monolinguismo
6 porque...é monolinguismo porque muitas vezes se defende que
7 a pessoa tem que obter todo o conhecimento e expressar todo
8 esse conhecimento em LIBRAS. Mas eu acho que a língua
9 portuguesa é fundamental. Eu fico falando pra eles [alunos]
10 assim: “escrita é fundamental pra estruturar o pensamento, não
11 é pra se comunicar apenas não”. Mas então, se eu tivesse fazendo
12 um curso em alemão, por exemplo, eu ia querer uma tradução, uma
13 boa tradução em português pra eu poder me aproximar do texto em
14 alemão. Não que eu tenha que parar ali. Eu acho que é essa a
15 perspectiva, eu acho que esse é um trabalho que o ensino superior,
16 de qualquer área, pra surdos, vai ter que desenvolver. Mas eu
195
Quando Júpiter diz que cursos de nível superior voltados para estudantes
surdos, em qualquer área do conhecimento, precisam desenvolver o trabalho de
produção de material específico, como textos teóricos em LIBRAS, fica claro que são
mecanismos não explícitos, para muito além dos mecanismos legislativos – que são
do tipo explícito (SHOHAMY, 2006) – os responsáveis por criar e influenciar as
políticas linguísticas reais e, portanto, muito mais efetivos.
Excerto 32
1 (...) Muita coisa eu só vejo realmente por aqui. Aqui já estávamos
2 discutindo que deveria ter a monografia em LIBRAS. Isso foi
3 discutido, foi construído, agora vai ter a monografia feita só em língua
4 de sinais, que era uma reivindicação meio que antiga dos surdos. Os
5 alunos aqui vão passar a ter acesso a textos acadêmicos por
6 uma equipe agora que está chegando que vai começar a fazer.
7 Isso não se vê em qualquer lugar não. Eu pelo menos nunca vi,
8 porque em outras faculdades não têm isso. O surdo é simplesmente
9 jogado na sala de aula (...). Então pra mim aqui é uma ótima
196
111
Ouvintismo é o termo cunhado no Brasil por Skliar (2010) e definido como sendo um conjunto de
representações das pessoas ouvintes sobre a surdez e sobre as pessoas surdas, a partir do qual o
surdo estará obrigado a olhar-se e a narrar-se como se fosse ouvinte.
112
Surdismo é um termo usado informalmente, em diferentes contextos da surdez, para fazer
referência, por oposição, ao ouvintismo.
197
tem que obter todo o conhecimento e expressar todo esse conhecimento em LIBRAS”
(excerto 31, linhas 6-8). Com essa observação, parece acenar para a compreensão
de que em mundo cada vez mais multilinguístico, é importante a ampliação do
repertório dos estudantes surdos. Nesse sentido, defende que “a língua portuguesa é
fundamental” (excerto 31, linhas 8-9), apontando os benefícios que enxerga no
aprendizado do português em sua modalidade escrita (“...escrita é fundamental pra
estruturar o pensamento, não é pra se comunicar apenas não” – excerto 31, linhas
10-11).
Excerto 33
1 (...) O cenário aqui é bem crítico, eu acho bem crítico. Eu não
2 conheço o trabalho de base dos alunos surdos, eu não sei sequer
3 como foram alfabetizados e se foram alfabetizados. Eu sei que
4 muitos deles chegam ao DESU sem saber LIBRAS inclusive. E
5 aí eu penso que se ele não consegue se expressar ainda nem
6 na língua dele, que é a língua de sinais, é claro que vai ser bem
7 pior com o português escrito. E se você pensar...é crítico, porque
8 um aluno do ensino superior não saber português...é
9 inconcebível, né? Um curso bilíngue que forma professores,
10 pedagogos... E pior, não sabem nem português nem LIBRAS
11 (...) Eu não vejo como essa questão pode ser sanada aqui na
12 graduação do DESU. Eu acho que tem que resolver isso antes. Eu
198
das razões para um possível insucesso na língua escrita e, para além disso, na própria
formação dos graduandos que ali estão.
Ao afirmar que “não sabem nem português nem LIBRAS” (linha 10),
opera com a ideia de competências completas e separadas entre as duas línguas,
menosprezando o repertório que os alunos levam na bagagem ao ingressarem no
Curso e conferindo aos estudantes surdos o estatuto de semilíngues, uma vez que
considera somente as competências que os mesmos não apresentam, possivelmente
a LIBRAS acadêmica e o português escrito convencionalmente tido como padrão.
processo de ensino/aprendizagem lá desenvolvido (“[a gente] faz tudo que pode por
nossos alunos” – excerto 30, linhas 12-14), “os resultados são, na média, bastante
decepcionantes” (excerto 30, linha 12). A narrativa trazida à tona nesse trecho,
abrangendo todos os estudantes do Curso, independente da condição de surdo ou
ouvinte, esteve associada, no caso especificamente dos surdos, ao que considerou
como falta de competências linguísticas, já que, a seu ver, chegam ao Curso Bilíngue
“quase que completamente sem Língua Portuguesa” (excerto 30, linhas 6-7).
Excerto 34
1 (...) Depois de entregar a cada aluno a prova, Júpiter comentou que
2 a turma teve um “desempenho razoável”. Disse que as duas maiores
3 notas foram de alunos ouvintes e que as duas mais baixas foram de
4 um aluno surdo e de um ouvinte. Eu, a princípio, não tinha entendido
5 a razão de ser desse comentário, entretanto, conforme continuou
6 sua fala, fui percebendo os sentidos que poderia assumir. Júpiter
7 encadeou o comentário sobre as notas na fala sobre a possível
8 razão que explicaria o desempenho inferior dos alunos surdos na
9 prova aplicada. Afirmou que “no DESU o modelo é inclusivo” e que
10 é comum no contexto desse modelo educacional haver um
11 desempenho por vezes discrepante entre os alunos. Baseou sua
12 explicação do insucesso na sua avaliação, por parte dos alunos
13 surdos, no fato de a aula ser ministrada em português, e não em
14 LIBRAS. Segundo sua compreensão, “o que chega ao estudante
15 surdo é uma versão da aula, a versão do intérprete”, ou seja, uma
16 tradução. Na sequência, comentando o futuro dos alunos surdos no
17 Curso, no que tange ao desempenho nas avaliações, afirmou que
18 eles não deveriam ficar muito preocupados com esses resultados
19 iniciais porque, com o passar do tempo, os mesmos seriam
20 melhores. Júpiter ressaltou que os alunos surdos iriam “se
21 adaptar ao cenário” e “o desempenho ir[ia] melhorar”. Enfatizou,
22 ainda, que esse resultado dos estudantes surdos não significava que
23 as pessoas surdas eram menos inteligentes que as ouvintes.
24 Finalizou essa avaliação global, argumentando, mais uma vez, que
201
Excerto 35
1 Assim, de uma certa forma, eu tive uma decepção nesse sentido,
2 porque quando falavam do INES, eu achava que aqui era o lugar
3 perfeito pros surdos, era o mundo dos surdos. (...). Quer dizer,
4 nós ouvintes somos mais beneficiados do que eles na questão
5 da língua. Porque eles não têm professores [surdos]... a maioria
6 é tudo ouvinte. Pelo menos até o meu primeiro período só tinham
7 dois professores surdos. Sei que até chegaram mais agora, mas a
8 maioria é de professores ouvintes. (...) Então, a gente vê que
9 realmente pra eles sempre está um pouco abaixo do nível do
10 que um aluno merece. Por mais... pode colocar o intérprete mais
11 excelente que for, mas sempre vai haver essa deficiência. Até há
12 quem diga que mesmo sendo interpretado tem como passar 100%.
13 Eu não acredito nisso, acho que sempre vai haver uma porcentagem
14 a menos, porque o intérprete, ele pode, mesmo se esforçando ao
15 máximo, ocultar uma ou outra coisa que pra mim, sendo ouvinte, isso
16 não vai ser oculto. Eu vou me apropriar de tudo que o professor
17 falar, de tudo que o professor passar. Agora, sendo
18 intermediado, não. O intérprete, ele pode deixar de falar o nome
19 de um autor, ele pode deixar de passar uma fala ali do professor.
20 E também, enquanto o aluno surdo está olhando lá pro intérprete, o
21 professor está rindo, está fazendo expressão e ele não pode se
22 utilizar disso. Então, quer dizer, já o contrário, conosco, os ouvintes,
23 a gente aproveita 100% porque está vendo o professor, o que está
24 fazendo, se ele está se mexendo, e ainda por cima ouvindo o que
25 ele está passando. Mesmo se fosse o contrário, com professores
26 surdos, a gente sempre vai ter vantagem na verdade né, a gente
27 escuta e vê... então não é a mesma coisa pra eles e isso pra mim
28 não é bacana. (...)
diretamente na língua de sinais. Para ela, o fato de a maioria dos professores do Curso
serem ouvintes é uma vantagem para os alunos que estão nessa mesma condição e
uma desvantagem para os graduandos surdos (“...nós ouvintes somos mais
beneficiados do que eles na questão da língua. Porque eles não têm
professores... a maioria é tudo ouvinte” – excerto 35, linhas 4-6).
De acordo com a aluna, pela sua condição de ouvinte, ela vai se “apropriar
de tudo que o professor falar, de tudo que o professor passar” (linhas 16-17),
tirando proveito integralmente da aula ministrada (“...a gente aproveita 100%...” –
linha 23). Ela chama a atenção para o fato de que além de não terem a aula
intermediada pelo profissional intérprete, tal como se dá com os colegas surdos, os
ouvintes teriam o privilégio de poder acompanhar não somente aquilo que é falado
pelos professores, mas também suas expressões e movimentos, o que normalmente
é mais difícil para os que precisam seguir os passos dos intérpretes que – de acordo
com a metáfora usada por Rosa em outro momento do depoimento –, seriam “os
ouvidos dos surdos”.
Ainda que aponte a questão da língua em uso pela maior parte dos
docentes do Curso das aulas, o português oral, e a consequente necessidade de
interpretação como a desvantagem encontrada pelos graduandos surdos, no final do
excerto 35, a aluna acaba por relegar a questão linguística a um segundo plano. Isso
porque afirma que mesmo que a aula fosse ministrada por professores surdos em
língua de sinais (“Mesmo se fosse o contrário, com professores surdos...” – linhas
25-26), os ouvintes teriam uma vantagem sobre os colegas surdos, em razão do fato
de lançarem mão de dois órgãos dos sentidos, a visão e a audição (“...a gente sempre
vai ter vantagem na verdade né, a gente escuta e vê” – linhas 26-27), podendo,
dessa forma, acompanhar professor e intérprete.
trabalho que se desenvolve no DESU com o que ocorre nas escolas regulares da
Educação Básica. Nesse sentido, é importante ressaltar que, embora a presença do
profissional intérprete se faça necessária na sala de aula e em diversas instâncias do
DESU – devido às inúmeras demandas que um Curso dessa natureza apresenta –, a
inserção desse profissional no espaço da sala de aula não parece ser concebida como
uma panaceia responsável por superar toda e qualquer dificuldade possível
encontrada no trabalho pedagógico, diferente do que vem correndo, conforme destaca
Lacerda (2013, p. 123), em muitos dos cenários da Educação Básica ditos inclusivos
para estudantes surdos.
Excerto 36
1 Se as aulas são ministradas em língua de sinais, é lógico que
2 os surdos vão desenvolver melhor, vão aprender com mais
3 facilidade. Com a presença do intérprete... o.k. ... aprende, mas
4 não é da mesma forma... com a presença do intérprete também
5 vai aprender, mas não é da mesma forma se o professor
6 estivesse ensinando na nossa língua. Qualquer interpretação
7 nunca será cem por cento e também não é uma comunicação direta.
8 Se não está tendo contato direto com o professor, é mais difícil. Vai
9 e vem, vai e vem. No final, são vários caminhos percorridos para
10 chegar à mensagem. Por exemplo, eu estou fazendo em língua de
11 sinais e ele [o intérprete da entrevista] está fazendo a versão voz,
12 porque o português e a língua de sinais são totalmente diferentes,
13 são mundos diferentes. É bem diferenciado e bem complicado. Se
14 os professores soubessem língua de sinais, os surdos
15 aprenderiam melhor e os ouvintes desenvolveriam mais a
16 língua de sinais. Se o professor somente oraliza, vem o
17 intérprete e o surdo continua na mesma, o português continua
18 na mesma, tudo na mesma e a linguagem oral permanece acima
19 da língua de sinais aqui nesse ambiente.
Excerto 37
1 Eu entendo que os professores não têm o conhecimento da língua
2 de sinais para dar aula, então sempre utilizam o intérprete, mas
3 acaba perdendo um pouco do conteúdo por conta da interpretação.
4 Em alguns momentos, o intérprete não acompanha exatamente
5 aquilo que o professor está falando e sinto que o aluno surdo é
6 prejudicado. Eu acredito que os professores precisam aprender
7 a língua de sinais, é o melhor para ser todo mundo igual. Eu sinto
8 falta da língua de sinais... eu sei que os ouvintes vão reclamar
9 bastante se as aulas forem em língua de sinais, mas os ouvintes
10 precisam treinar a questão da língua de sinais. Vai ser difícil
11 para eles, mas eu desde pequeno sofri bastante para aprender
12 a língua portuguesa...precisa haver essa troca também para os
13 ouvintes perceberem como é a vida do surdo. A língua de
14 instrução sendo só a língua de sinais, a gente vai entender bem
15 melhor a língua portuguesa, as explicações vão se tornar bem
16 melhores e todos tendo esse contato com a língua, as relações serão
17 bem mais fáceis, vão acabar os problemas. Eu reforço que os
18 professores precisam aprender a língua de sinais. Tira o intérprete!
19 Chega de intérprete! Vamos ter uma comunicação direta, as
20 aulas sendo ministradas em língua de sinais! Só intérprete, só
21 intérprete! Fica meio cansativo. O intérprete já é um profissional
22 formado, o.k., eu respeito isso, mas eu sinto falta das aulas sendo
23 ministradas em LIBRAS. Os intérpretes em outros contextos sociais,
24 por exemplo médico, funcionam muito bem, na polícia, em lojas, são
25 muito importantes nesse contexto, devido à falta de comunicação lá
26 fora, lá na sociedade, mas no educacional eu acredito que os
27 professores precisam saber a língua de sinais. Aqui eu sinto que
28 precisava diretamente dessa questão da língua de sinais.
Assim como Júlia, que pondera que caso as aulas fossem ministradas em
língua de sinais os graduandos ouvintes iriam se “desenvolver na língua de sinais”,
Miguel acredita que “...os ouvintes precisam treinar a questão da língua de
sinais” (linhas 10-11), o que ocorreria, a seu ver, sendo essa língua utilizada pelos
docentes ao longo de todas as aulas. Na ótica de Miguel, se as aulas fossem
integralmente ministradas em LIBRAS no Curso Bilíngue, sem a presença de um
intérprete, ocorreria uma inversão que levaria “...os ouvintes [a] perceberem como
é a vida do surdo” (excerto 37, linhas 12-13).
Embora a situação não seja exatamente a mesma, uma vez que estudantes
ouvintes não têm um impedimento para aprender e desenvolver a língua de sinais de
modo espontâneo a partir da interação com falantes dessa língua, tal como ocorre
com os estudantes surdos com o português oral, Miguel crê que essa “troca” da língua
a ser usada pelos professores (a língua portuguesa oral pela LIBRAS), sem a
presença do intérprete, deslocaria os estudantes ouvintes para uma posição que
historicamente vem sendo ocupada pelos discentes surdos e diluiria possíveis
assimetrias entre os estudantes.
209
Excerto 38
1 De verdade, aqui não é bilíngue ainda devido à falta da
2 língua de sinais. Eu sinto que... parece que não é oficial aqui
3 ainda, porque a maioria dos professores ministram as suas
210
113
A garantia do profissional intérprete nas instituições federais de educação superior está prevista no
artigo 23 do Decreto nº 5626/2005.
211
Excerto 39
1 Assim, como a graduação não é uma novidade pra mim, porque
2 como eu estudei em outras universidades, até particular... eu
3 não tinha essa boa visão de uma faculdade, de uma
4 universidade ou de um instituição federal, porque você vê, tem
5 muitos recursos, tem... aqui nesse espaço nós temos intérprete
6 que fica à disposição, ali traduzindo, e a gente sabe que não é
7 uma realidade em todos os âmbitos. Então me agradou muito,
8 foi uma coisa assim que eu fiquei muito feliz quando me deparei
9 com essa realidade, de você ter intérprete, de... que eu achei
10 que você... achei que você teria que, no curso de graduação,
12 falar só em LIBRAS. Eu estava até muito temerosa: “como é
13 que eu vou me comunicar só em LIBRAS que eu não sei, né?”.
14 (...) Eu acho imprescindível a presença deles [dos
15 profissionais intérpretes], é fundamental. Porque sem eles
16 não tem como você dizer que isso aqui seria um espaço
212
Excerto 40
1 Antes de eu vir pra cá, eu já estudava LIBRAS, porque na minha
2 igreja tem um ministério de surdos. Então eu me apaixonei pela
3 língua, aí depois de um tempo eu fiz nivelamento pra cá, pra cá
4 pro INES e concluí aqui o curso. Então eu me informei bastante
5 e como eu também já fazia o curso de LIBRAS aqui, eu já sabia
6 que a faculdade aqui era bilíngue, que tinha intérprete. Até
7 porque é de extrema importância a participação do
8 intérprete, né? Porque ele é o ouvido do surdo, né? Então
9 assim, sem o intérprete, acho que não haveria nem
10 ambiente bilíngue porque seria só... se fosse LIBRAS ou só
11 português? Como é que iriam entender? (...)
metáfora que se mostrou corrente nesse contexto (“Porque ele [o intérprete] é o ouvido
do surdo, né?” – excerto 40, linha 8) também ratifica a relevância da figura desse
profissional no Curso, ao expressar que, “sem o intérprete, acho que não haveria nem
ambiente bilíngue...” (excerto 40, linhas 9-10).
Excerto 41
1 Eu acho que ainda falta muito amadurecer aqui a questão do
2 bilinguismo. Eu acho mesmo é que a partir do momento em que
3 o professor der a aula dele em língua de sinais, ele se fizer
4 entender sem, necessariamente, ter o intérprete ali do lado
5 dele, aí sim eu posso dizer que é realmente um ambiente
6 bilíngue. Também é importante que o aluno ouvinte que chega
7 aqui e... que não vai precisar do intérprete (...). Já ocorreu uma
8 situação de que uma professora sabia a língua de sinais, a
9 professora de [nome da disciplina] e ela decidiu dar a aula dela
10 em língua de sinais. E os alunos ouvintes... porque assim, se você
11 vai, você se propõe fazer um curso que é bilíngue, teoricamente
12 você já deveria saber, deveria conhecer essa língua, né? E aí
13 “não, não pode ser língua de sinais professora, eu não estou
14 entendendo nada.” Não, mas você não fez um vestibular pra um
15 ambiente bilíngue? Você tem que saber, pelo menos, o básico.
16 Você não vai ser tão eficiente, mas você tem que saber o básico
17 pra entender. E aí você não tem que ter o intérprete. Então esse
18 não é o ambiente bilíngue, ele está em processo de construção
19 mesmo.
Excerto 42
1 (...) Alguns intérpretes ficam surpresos comigo porque eu
2 dialogo muito com eles. Acho que alguns gostam mais, outros
3 gostam menos, mas eu convoco o intérprete pra trabalhar
4 comigo como um coprodutor da aula. Alguns gostam mais,
5 outros gostam menos. E assim, eu acho que isso foi um negócio
6 legal que eu aprendi aqui no INES, assim, de saber que a aula
7 não é minha. Claro, que eu gostaria... eu acho que a gente
8 sempre vai precisar do intérprete, mesmo que eu tivesse
9 um domínio pleno de língua de sinais essa figura... essa
10 figura do intérprete é uma figura interessante (...) No
11 mínimo, no dia que eu tiver domínio pleno da língua de
12 sinais, eu vou querer o intérprete na minha sala pra me
13 corrigir, pra me apoiar, pra perguntar como é. Porque eu
14 acho uma figura fundamental nesse processo. A ideia do
15 intérprete educacional em LIBRAS, a ideia de poder dar apoio.
16 Porque ele [o TILS] é um diálogo essencial, a gente discute
17 sinais, né? Como essa língua, academicamente, está se
18 constituindo ainda também...
Excerto 43
1 Eu não tenho proficiência para dar minhas aulas em LIBRAS,
2 então o mínimo que eu posso fazer é buscar apoio nesse
3 profissional para que as minhas aulas sejam as melhores
216
No excerto 43, Saturno chama a atenção, tal como foi observado no excerto
42, para a atitude colaborativa que, a seu ver, professores e intérpretes devem manter
no Curso Bilíngue, de modo a tornar o processo de ensino/aprendizagem o melhor
possível, sobretudo no que tange aos estudantes surdos. Além disso, deixa claro que
não concebe a figura do intérprete como a solução de todo e qualquer problema que
possa ocorrer ao longo desse processo (“Não que eu ache que é só botar ali o
intérprete e pá pum... pronto, tá tudo resolvido” – linhas 5-6).
limites da interpretação das aulas, ou seja, que não poderão ser sanadas somente
com a presença do intérprete.
Ao lançar mão do ditado popular “...mais vale um pássaro na mão que dois
voando” (excerto 43, linhas 20-21), Saturno destaca que não considera prudente que
os estudantes surdos sejam excluídos do ensino superior enquanto não são
contemplados determinados anseios e reivindicações dos movimentos sociais surdos
e também de muitos integrantes do Curso. O dito popular a que fez referência em sua
argumentação entra em diálogo com o discurso circulante no DESU, recorrente em
diferentes depoimentos que me foram concedidos, de que no lugar da presença do
intérprete é necessário que os professores ministrem suas aulas em LIBRAS, algo
que é uma idealização difícil de ser concretizada até mesmo pela falta de profissionais
que aglutinem todas as particularidades necessárias (“Ok. Mas onde estão esses
professores?” – excerto 43, linhas 17-18).
Excerto 44
1 Acho que as pessoas precisam entender que essa área
2 da língua de sinais é uma área muito nova. Quando os
3 professores tiverem interesse em trabalhar aqui, eles vão
219
de trabalho no DESU em que deu sequência à sua aula sem o profissional TILS estar
em sala:
Excerto 45
1 (...) Aí teve um dia, eu fui dar a primeira aula, era uma disciplina
2 de terceiro período e não tinha intérprete. O que faz? Libera a
3 turma? Não libera? Passa o tempo de aula e depois fica aquele
4 inferno no final, reposição. (...) Aí eu fui, projetei, era só pra falar
5 do plano de curso e como seria a relação de sala de aula. Eu
6 projetei, aí comecei a explicar, a falar, dar uns avisos assim (...)
7 aqueles combinados de início (...). Aí eu virei e falei assim: “olha
8 só, o intérprete não chegou até agora, eu fiquei enrolando aqui.
9 Não chegou. Então é o seguinte: eu vou explicar o plano de
10 curso, mas eu vou explicar pra vocês o seguinte: eu não consigo
11 fazer LIBRAS e falar ao mesmo tempo, então está aqui
12 projetado...”. O texto estava projetado. “Está projetado o texto,
13 eu vou fazer em LIBRAS. (...) Aí eu comecei e os surdos ficaram
14 maravilhados, ficaram felizes da vida “pá pá pá, não sei o quê”.
15 Aí eu vi uma pessoa saindo da sala. Pensei “ah foi no banheiro,
16 sei lá o quê”. Eu estou lá, continuo pá pá pá e tal, não sei o quê.
17 Daqui a pouco eu sinto outra pessoa saindo. Aí ficou aquele ti ti
18 ti. Eu parei. “O que que foi?”. (...) “É que fulana não entende
19 LIBRAS, não está sabendo nada, ela está se sentindo muito
20 mal.” “Ah, entendi, né? Está se sentindo mal porque não está
21 entendendo nada em LIBRAS. O texto está projetado aqui.” “Ah
22 não, mas não tá entendendo e tal.” Eu falei: “Não, eu não vou
23 explicar mais porque eu não vou falar, eu não vou fazer em
24 português pra depois fazer em LIBRAS.” Tem gente que diz que
25 faz isso. Eu não vou fazer isso, sabe, é um desgaste enorme. Eu
26 também fico meio assim quando viram e dizem “eu dou a
27 minha aula em LIBRAS”. (...) Dá vontade de perguntar “qual
28 milagre que lhe produziu, que tipo de acordo você teve com
29 os alunos surdos e ouvintes pra que eles não se
30 digladiassem?” (...) Porque os ouvintes, eles se ressentem do
31 fato de não saberem bem língua de sinais.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
outros sistemas, para não correrem o perigo de se tornarem “língua nenhuma”, “nem
uma coisa nem outra”, como pejorativamente são tratadas as línguas que mantêm
contato.
Uma vez que se opere com a lógica do repertório linguístico (BUSCH, 2012;
RYMES, 2014) e das práticas translíngues (GARCÍA, 2009; CAVALCANTI, 2013;
CANAGARAJAH, 2013) ficará mais clara a compreensão de que estudantes surdos e
ouvintes e demais membros integrantes do Curso Bilíngue não têm necessidade de
saber a totalidade de uma modalidade linguística – mesmo porque isso está na ordem
da impossibilidade – para gozarem o status de bilíngues e para participarem de
interações bi/multilíngues. Ao se assumir essa perspectiva heteroglóssica, o
fenômeno do bi/multilinguismo passa a ser concebido não como uma possível ameaça
a um “todo monolítico”, mas sim como um recurso dinâmico de que todos podem
lançar mão.
Ressalto que, apesar de ter sido constatado certo vigor ideológico no que
diz respeito às representações sobre a identidade linguística dos que carregam a
marca da surdez associada ao imperativo do uso da língua de sinais, é no
imbricamento entre as diferentes línguas que compõem seu repertório que os
indivíduos se constituem. Ainda que, eventualmente, haja a necessidade de
reafirmação das identidades surdas de forma estratégica para fins políticos, conforme
aponta Rajagopalan (2003), a identidade linguística é construída socialmente, e não
algo pronto, definido, sem possibilidades de mudança. Com ou sem a marca da
surdez, todas as identidades sociais estão no território da multiplicidade, da fluidez,
do hibridismo, do dinamismo, da contradição e da fragmentação (FABRÍCIO e LOPES,
2002).
Nessas linhas de reflexões finais, gostaria de ressaltar que este rico campo
de pesquisa que é o Curso Bilíngue hoje se configura como um espaço marcado por
diferentes questões políticas e por atravessamentos ideológicos – tal como ocorre no
contexto mais amplo da educação de surdos no Brasil – em que políticas de identidade
e políticas linguísticas e educacionais se entrecruzam. A despeito desse notório
entrecruzamento, em que o recurso a uma identidade linguística é por vezes
manifestada com base em tendências essencialistas, julgo importante chamar à
reflexão sobre o fato de que falar sobre surdos – embora o ofício da redação imponha
certas amarras – não significa conceber uma totalidade. Ao falar dos surdos como
uma totalidade, conforme ressalta Skliar (2010, p. 14), pode-se cometer o equívoco
232
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250
ANEXO 2
Declaro que fui devidamente informado(a) e esclarecido(a) pelo(a) pesquisador(a) Andreza Barboza
Nora sobre a pesquisa Formação bilíngue de professores surdos e ouvintes: poderes e saberes sobre
a surdez e as línguas em uso e dos procedimentos nela envolvidos. Fui informado(a) e esclarecido(a)
de que não há riscos previsíveis e benefícios diretos. Estou ciente de que o benefício indireto (social)
é a ampliação do conhecimento acerca da interação cotidiana entre surdos e ouvintes em um cenário
educacional bilíngue e a possibilidade de se discutir novas perspectivas no âmbito da educação de
surdos. Além do anonimato, foi-me garantido que posso retirar meu consentimento a qualquer
momento, sem que isso me traga prejuízo ou penalidade.
Participante:
Nome:
Data da Nascimento:
Assinatura:
Responsabilidade do Pesquisador:
__________________________________________________
(Assinatura do pesquisador)
Data: ____/_____/______.