A Unidade Cultural Da África Negra: Esferas Do Patriarcado e Do Matriarcado Na Antiguidade Clássica - Cheikh Anta Diop
A Unidade Cultural Da África Negra: Esferas Do Patriarcado e Do Matriarcado Na Antiguidade Clássica - Cheikh Anta Diop
A Unidade Cultural Da África Negra: Esferas Do Patriarcado e Do Matriarcado Na Antiguidade Clássica - Cheikh Anta Diop
A
apolo: '
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Coleccao Reier Africa
N ota de Apresentacao
Victor Kajibanga
(Coordenador da Coleccao Reier Africa)
Copyright© 1982, Presence Africaine (2.� edicao revista e aumentada)
Tftulo Original: L'unite culturelle de L'Afrique noire. Domaines du patriarcat et du
matriarcat dans I' antlquite classique
AUNIDADE
Autor: Cheikh Anta Diop
Coleccao: Reier Africa
Coordenador da Coleccao: Victor Kajibanga
CULTURAL
Traducao: Silvia Cunha Neto
,
Revisao do Texto: Susana Ramos
Design e Paginacao: Marcia Pires
DA AFRICA
Irnpressao e Acabamento: Cafilesa, Solucces Graflcas
ISBN: 9789898655479
Dep6sito Legal: 382245/14
Outubro de 2014
�
edicoes pedago
,
Indite
Introducao 9
I.
Historial do Matriarcado 13. 24
Apresentacao das Teses de J.J. Bachofen, de Morgan 13
e de F. Engels. Crftica destas Teses
Tese de Bacho/en 13
Tese de Morgan 16
Tese de Engels 19
II.
Critica da Tese Classica de um Matriarcado Universal 25. so
Culto das Cinzas 31
Culto do Fogo 31
Berco Meridional e Matriarcado 32
Culto dos Martos 39
Critica das Teses de Morgan e de Engels 40
III.
Hist6ria do Patriarcado e do Matriarcado 51. 101
Berco Meridional, Berco N6rdico e Zona de Confluencia 51
Berea Meridional 51
Eti6pia 51
Egipto 54
Libia 58
Africa Negra 61
Berea N6rdico 66
Creta 67
Grecia 69
Roma 75
Germania 79
Citia 82
Zona de Confluencia 85
Arabia 85
Asia Ocidental: Fenicia 90
Indo e Mesopotamia 93
Mesopotamia 95
Blzancio 100
IV.
Anomalias Detectadas nas Tres Zonas 103.127
Introducao
Explanacao 103
Reinado da Rainha Hatsheput 103
Epoca Ptolomaica 105
Amazonismo 107 Desejei libertar a profunda unidade cultural que permaneceu vivaz
O Matriarcado Fula 110 sob ilus6rias aparencias de heterogeneidade.
Patriarcado Africano 112 Seria imperdodvel se aquele a quern o acaso o levou a viver de modo
Poligamia 113 profundo a realidade do seu pais, niio tentasse prover o intelecto com o
Matriarcado Neolitico 115 factor sociol6gico africano.
Matriarcado Germanico 117
Na medida em que os factores sociol6gicos estiio motivados desde a
Matriarcado Celtico 119
Matriarcado Etrusco 121 sua origem ao inves de serem gratuitos, basta agarrar a ponta do fio
Amazonismo do Termodonte 122 condutor para sair do labirinto.
Asia: Reino da Rainha Semframis 124 De acordo com esta perspectiva, este trabalho representa um esforco
Matriarcado Licio 126 de racionalizacao.
v.
E evidente que um investigador africano e mais privilegiado do que
129.162 os outros e, par esse motivo, niio possui nenhum merito particular par
Comparacao dos outros aspectos das Culturas Nordica e
Meridional desobstruir as leis sociol6gicas que parecem estar na base da realidade
Concepcao do Estado Patri6tico 129 social que o mesmo atravessa.
Africa 129 De resto, se inumeros investigadores niio nos tivessem ja precedido,
Europa 130 talvez niio alcancassemos hoje qualquer pretenso resultado.
Realeza 135
Neste sentido, manifestamos o nosso profundo reconhecimento para
Religiao 139
Aquila Que vi de Born na Conduta dos Negros 148 com todos os estudiosos cujos trabalhos nos foram uteis.
Literatura 149 Deva evocar aqui a mem6ria do meu Professor Marcel Griaule que, ate
O Nascimento da Traqedia ou Helenismo e Pessimismo (150\ duas semanas antes da sua mo rte, niio deixou de prestar a maior atencdo
de Nietzsche /
as minhas investiqacoes. Manifesto de igual modo o meu agradecimento
a M. Gaston Bachelard. Expresso tambem a minha maior qratidiio, en
VI.
Sera historlca a comparacao da Africa Negra actual e do 163. 166 quanto aluno, aos meus Professores Andre Aymard e LeroiGourhan.
Egipto antigo? Voltando ao assunto deste trabalho, passo a ·indicar os facto res que siio
de natureza a revelar as diliqencias do meu pensamento.
VII. Procurei partir das condicoes materiais para explicar todos os traces
Os factores perturbadores 167.172 culturais comuns a todos os Africanos, desde a vida domestica a da
Culto dos Antepassados 167
naciio, passando pela superestrutura ideol6gica, as sucessos, os fracas
Vocabulario Mediterranico 170
sos e as reqressiies tecnicas.
Conclusao 173 Fui entiio levado a analisar a estrutura da [amilia africana e ariana,
bem coma a tentar demonstrar que o fundamento matriarca/ sabre a
Apendice 177 qua/ se baseia a primeira niio e de todo universal, apesar das aparencias.
Anotacoes acerca de La Resurrection d'Homere. Au temps des 179 Abordei a nociio de estado, de realeza, a moral, a Jilosofia, a religiiio e
heros por Victor Berard
a arte consequente, a literatura ea estetica.
Referencias Bibliograficas 189
lntroducao
Em cada um destes dominios tiio diversificados, procurei desvendar o
denominador com um da cultura africana par oposiciio a cultura nordi
ca ariana.
Se escolhi a Europa enquanto zona de oposidio cultural, Joi pelo facto
de, para a/em do_s argumentos de ordem geografica, a docum�nta9a.o
Prefacio
proveniente do Mediterraneo setentrional ser actualmente mats abun da Primeira Edicao (1959)
�n� •
Caso alargasse o meu estudo comparatista para la da India, a China,
correria o risco de fazer afirmaciies acerca das qua is niio estaria total Os intelectuais devem estudar o passado nao para nele se comprazer,
mente convencido par falta de documentos. mas para dele extrair licoes ou, ainda, para se afastar dele com conheci
Apercebemonos de que um trabalho desta natureza, que se quer mento de causa, caso seja necessario. S6 um verdadeiro conhecimento
demonstrativo, niio pode evitar a apresentaciio e o alinhamento de do passado e passive! de manter na consciencia o sentimento de uma
provas que servem de fundamento, ao inves de as referir de modo mais continuidade historica, indispensavel para a consolidacao de um estado
au menos cavaleiroso. multinacional.
O /eitor teria o direito de duvidar; poderia, ao chegar a ultimo palavra, A psicologia classica advoga a favor de uma natureza humana essen
ser invadido par um sentimento de cepticismo, ter a impressiio de que cialmente universal; isto porque a mesma deseja o triunfo do humanis
acabou de !er um romance. mo. Para que este ultimo seja possivel, e necessario que o homem nao
/sto obrigounos a reproduzir as documentos sempre que nos pareceu seja intrinsecamente imperrneavel a qualquer manifestacao por parte
necessario. do seu semelhante. E necessario que a sua natureza, a sua consciencia,
Como e evidente, niio Jui vftima de um conformismo intelectua/. Se eu o seu espirito, estejam aptos para assimilar tudo aquilo que !he e estra
niio tivesse citado autores coma Lenormant, que representa um autor nho a priori atraves da aprendizagem.
antigo, niio poderia ter realcado a estratificaoio em castas das socie /Porem, isto nao significa que a consciencia humana se modifique
dades babi/6nias, indianas e sabeias. desde a sua origem pelas experiencias particulares realizadas em so
Osaki este trabalho contribua para reforcar o sentimento dos tacos ciedades que se desenvolveram separadamente. Neste sentido, exis
que sempre uniram os Africanos de um !ado ao outro do continente e tiam inicialmente, isto e, antes do contacto regular dos povos e das
demonstrar, deste modo, a nossa unidade cultural orqttnica. nacoes, antes da era das influencias rectprocas, diferencas nao essen
ciais, mas relativas entre os povos. Estavam relacionadas com o clima
e com as condicoes de vida particulares. Os povos que viveram durante
muito tempo na sua terra natal foram moldados de forma duradoura
pelo ambiente social. E possivel recuar ate este molde primitivo sa
bendo identificar as influencias estrangeiras que se sobrepuseram.
Nao e indiferente para um povo entregarse a uma investigacao desta
natureza, a um ta! reconhecimento de si pr6prio; isto porque, ao pro
ceder desta forma, o povo em causa apercebese daquilo que e s6lido
e valido nas suas pr6prias estruturas culturais e sociais, no seu pensa
mento em geral; para alem disso, da conta daquilo que existe de fragil
nestes ultimos e que, por conseguinte, nao resistiu ao tempo. Aquele
descobre a amplitude real dos seus ernprestimos, pode agora definirse
de modo positivo partindo de criterios end6genos nao imaginados,
mas reais. Possui uma nova consciencia dos seus valores e pode agora
definir a sua missao cultural, nao de modo entusiastico, mas de ma
neira objectiva; porque apreende melhor os valores culturais que esta
10 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra Prefiicio da Primeira Edic;.3o (1959) 1.1
mais apto, tendo em conta o seu estado de evolucao, a desenvolver e a
proporcionar aos outros povos.
Nao nos seria possivel desenvolver prematuramente as ideias de van
guarda. Limitamonos a referir o prefacio de Nations Neg res et Culture,
publicado em 195354. A partir de Setembro de 1946, dei a conhecer I.
aos estudantes africanos, em conferencias reiteradas, as ideias que sao
ali desenvolvidas. Ate estes ultimas dais anos, nao somente os homens
politicos africanos nao aceitavam estas ideias, mas ate mesmo alguns
Historial do Matriarcado
de entre eles procuraram criticalas no piano puramente doutrinario,
Mesmo aqueles que, atraves da escrita e da palavra, procuraram
demonstrar que a independencia nacional representa uma fase his Apresentacao das Teses deJ.J. Bachofen, de
toricamente ultrapassada na evolucao dos povos, e que nao se podem Morgan e de F. Engels. Critica estas Teses
elevar a nenhuma forma de federacao africana independente, a nocao
de um Estado africano multinacional, sao estes que desenvolvem Este capitulo e consagrado a exposicao sucinta das teses relativas
hoje, de modo subreptlcio, as ideias abrangidas no prefacio de Na ao predominio do matriarcado, considerado enquanto etapa geral da
tions Neqres et Culture. As suas plataformas politicas actuais emergem evolucao da humanidade. O primeiro historiador do matriarcado e J.J.
assim coma uma mera c6pia deste prefacio, quando nao estao ainda Bachofen, que publicou em 1861 Le droit de la Mere (Das Mutterrecht).
aquem das ideias que ali sao desenvolvidas. Em 1871, um investigador americano, Morgan, apresentou uma con
firmacao das vis6es de Bachofen acerca da evolucao das primeiras so
ciedades: Systems of Consanguinity and Affinity. Par ultimo, em 1884,
Friedrich Engels descreve os pontos de vista de Bachofen e de Morgan,
baseiase nas suas descobertas, coma em materiais reconhecidos com
conviccao, para melhor afirmar e demonstrar a historicidade da fami
lia: Origine de la famille, de la propriete privee et de l'Etat.
Tese de Bachofen
A exposicao desta tese e retirada essencialmente da obra que Adrien
Turel consagrou ao seu autor: Du reqne de la mere au patriarcat. Esta
e, segundo o meu conhecimento, a unica que existe a este respeito em
lingua francesa.
Bachofen considera que a humanidade conheceu, em primeiro lugar,
uma epoca de barbarie e de promiscuidade afrodita de tal modo que
a filiacao so podia ser calculada atraves da linhagem uterina, sendo
incerta qualquer filiacao paterna. 0 casamento nao existia.
Uma segunda epoca, dita ginecocratica, sucede a primeira enquanto
consequencia 16gica desta. A mesma caracterizase pelo casamento e
pela hegemonia da mulher; continua a calcularse a filiacao atraves da
linhagem uterina, tal coma durante o periodo precedente. Ea verda
deira epcca do matriarcado, segundo a coricepcao bachofeniana.
O Amazonismo e igualmente caracteristico desta epoca,
CORIFEU Foi entiio um profeta que te arrastou a ma tar a tua miie? ATENA Cabeme pronunciarme em ultimo lugar. juntarei o meu voto aos
ORESTES E ate aqui niio vejo raziio para me queixar da minha sorte. que foram dados a Orestes. E que eu niio tive miie que me desse a luz e, par
CORIFEU Seo voto te condenar, vais talvez falar de outra maneira. isso, sou em tudo e de todo o coraciio pelo homem, pelo menos ate que um
ORESTES Estou confiante. E o meu pai hade enviarme do tumulo o seu dia eu venha a celebrar as minhas niipcias. Sou inteiramente a favor do
auxilio. pai. Assim niio terei em conta especial a morte de uma mu/her, que matou o
CORIFEU A confiares nos mortos, tu que mataste a tua miiel marido, guarda do seu Jar. Orestes serti absolvido, mesmo em caso de igual
ORESTES Ela sofria o efeito de duas manchas. dade na votaciio.
CORIFEU Como assim? Exp/ica isso aos juizes. Tirai depressa os votos das umas.juizes a quern compete esta tarefa.
ORESTES Ao ma taro marido, ela matou o meu pai. (Eumenides, verso 734, e seg.)
CORIFEU O que? O facto e que tu estas vivo, enquanto ela ja expiou o assas
sinio com a sua morte. Para Bachofen, a ubiquidade do matriarcado e inegavel: este nao
ORESTES Mas porque e que tu niio a perseguiste em vida? representa a marca distintiva de um au de outro povo, mas regeu, a
CORIFEU E que e/a niio era do mesmo sangue daquele a quern matou. um dado momenta, a organizacao social de todos as povos da terra:
ORESTES E eu sou do sangue da minha miie? dai os inumeros vestigios extraidos da literatura classica da Anti
CORIFEU Celerado, coma Joi entiio que ela te criou no seu seio? Renegas guidade.
assim o sangue carissimo de uma miie? Neste sentido, existiu uma passagem universal do matriarcado para
(Eumenides, verso 595 e seg.) o patriarcado, o que nao implica que tal tenha sucedido durante a
I, Historial do Matriarcado 15
14 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra
mesma epoca para todos os povos. Porem, segundo a concepcao evo Engels considera que nao se trata aqui de meros nomes, mas de ter
lucionista do autor, tratase incontestavelmente de uma passagem de mos que exprimem o grau real do parentesco au, mais concretamente,
um estadio inferior para um estadio superior, de uma verdadeira as ideias que as Iroqueses tern acerca do parentesco consangufneo.
ascensao espiritual da humanidade abrangida no seu todo. Em seguida, insiste na amplitude e no vigor deste sisterna de parentes
co que se encontra em toda a America nenhuma excepcao a esta regra
foi encontrada nos Indios , na India com as Dravidas do Decao, nas
Tese de Morgan tribos "Gauras do Hindustao'' Mais de duzentas relacoes de parentesco
sao expressas nos mesmos termos com as Tarnules da India e com os
Por vias distintas, Morgan chega a mesma conclusao de Bachofen Iroqueses. Do mesmo modo, nos dais povos existe a contradicao entre
no que diz respeito ao matriarcado e a filiacao uterina. Este partiu do o parentesco real resultante do sistema familiar existente e a maneira
sistema de parentesco em vigor nos Indios Iroqueses da America coma esta se manifesta atraves da lingua.
(Estado de Nova Iorque) para reconstituir as formas primitivas da Morgan encontra a explicacao para esta anomalia numa configura
famflia humana. Constr6i deste modo uma teoria da qual se servira t;:ao familiar encontrada no Havai, durante a primeira metade do seculo
para explicar os aspectos obscuros da organizacao familiar e social da XIX, e que designa de "punaluana"; a mesma sera analisada de seguida.
Antiguidade classica (genos, fratrias, tribos, ... ). A sua teoria, inteira Segundo o antrop6logo, a familia representa o elemento dinamico,
mente exposta par Engels (op. cit.), ea seguinte: as suas formas evoluem constantemente, enquanto que as termos que
a representam permanecem estanques durante um Iapso de tempo
Morgan, que passou grande pa rte da sua vida entre os Iroqueses ainda hoje relativamente longo. Par conseguinte, produzse uma especie de
estabelecidos no Estado de Nova lorque, e que Joi adoptado numa das suas fossilizacao do sistema de parentesco traduzida atraves das palavras.
tribos, a dos Senecas, encontrou a/i um sistema vigente de parentesco que S6 hem mais tarde e que a lingua retern o progresso concretizado.
estava em contradicao com as suas verdadeiras relaciies Jamiliares. Reinava Porern, escreve Engels:
entre e/es este casamento individual, Jacilmente dlssoltsvel de ambas as par
tes, que Morgan designa de "[amilia sindiasmica" A descendencia de um casal Com a mesma certeza com que Cuvier pode, a partir da descoberta dos ossos
deste genera era entiio manifesta e reconhecida por toda a gente; niio havia marsupiais de um esqueleto animal em solo parisiense, deduzir que a mesmo
lugar para qualquer duvida acerca da questiio de saber a quern deviam ser pertencia a um sarique e que animais deste genera, entiio desaparecidos,
atribuidas as desiqnaciies de pai, miie.filho.filha, irmiio, irmii. Mas a utiliza tinham outrora vivido naquele local, com a mesma convicciio, podemos
ciio destes termos contraria esta constataciio. Niio siio unicamente os seus concluir que existiu um Sistema de parentesco historicamente transmitido e
pr6prios descendentes que os Iroqueses chamam de 'Ji/hos" e "filhas", mas que existiu uma familia correspondente, actualmente extinta. 2
tambem os dos seus irmiios, e estes apelidamnos de "pai". Em contrapartida,
aquele da o nome de "sobrinhos" e "sobrinhas" aos Ji/hos das suas irmiis, que Ao proceder assim, de modo recorrente, a partir de "sistemas
por sua vez a chamam de "tio" lnversamente, a lroquesa, ao !ado dos seus de parentesco historicamente transmitidos", Morgan reconstitui a
proprios descendentes, designa as das suas irmiis coma seus "filhos" e "filnas" hist6ria da famflia e evidencia quatro tipos que se sucederam.
e recebe de/es a nome de "miie". Contudo, a mesma nomeia de "sobrinhos" A mais antiga, aquela que resulta da promiscuidade primitiva, e a
e "sobrinhas" as Ji/hos dos seus irmiios, cujos Ji/hos a chamam de "tia". Do famflia dita consangufnea: esta caracterizase pelo facto de o casa
mesmo modo, as descendentes de irmiios nomeiamse entre eles "irmiios" e mento ser proibido apenas entre pais e filhos. Todos as homens de
"irmiis'; ta! coma a Jazem por seu turno as Ji/hos de irmiis. Os Ji/hos de uma uma dada geracao sao casados com todas as mulheres da mesma
mu/her e as descendentes de irmiios tratamse por "irmiios" e "irmiis" ta! geracao: todos os "av6s" a todas as "av6s", etc. e par conseguinte,
coma sucede entre as descendentes de irmiis. Os Ji/hos de uma mu/here as de todos as irrnaos e irmas sao casados entre eles. A famflia consan
seu irmiio designamse mutuamente de "primos" e "primas'" guinea desapareceu ate mesmo nos povos mais atrasados; mas
Morgan afirma a sua existencia na base do sistema de parentesco
encontrado no Havai.
1. Loriqine de la famille, de lo propriete privee et de /'Etat (trad. Bracke A.·M. Desrousseaux).
Alfred Costes, Paris, 1936. P. 12. 2. Engels; op. cit., p. 14.
A intensidade com a qua/ se manifestava a acciio deste progresso esta Esta demonstraciio elucidou, subitamente, as partes mais dificeis da antiga
demonstrada por uma instituidio que, imediatamente resultante deste, ultra hist6ria grega e romana e, simultaneamente, proporcionou esclarecimentos
passa em grande medida o objectivo primeiro, o da gens, que representa o inesperados acerca dos tracos fundamentais do regime social da epoca primi
fundamento da ordem social da maior parte, se niio mesmo de todos os povos tiva antes da instituicdo do Estado.4
btirbaros da terra, ea partir da qua/, na Grecia como em Roma, se alcancou,
sem transiciies, a civilizaciio.: Enquanto que Bachofen partiu dos vestigios do matriarcado que a
literatura classica da Antiguidade encerra em particular da Oresteia
·Segundo Morgan, este tipo de farnilia demonstra claramente o siste de Esquilo para afirmar a universalidade do matriarcado e a sua an
ma de parentesco dos Iroqueses. Com efeito, as irrnas tern, de algum terioridade, Morgan chega as mesmas conclusoes a partir da analise
modo, os filhos em comum. Reciprocamente, todos os irmaos sao pais das sociedades indianas da America. Este encontra ali um sistema
comuns; todos os filhos comuns se consideram enquanto irrnaos e de parentesco cuja originalidade desperta a sua atencao, Tomou
irrnas, Porern, estando o casamento interditado entre irmaos e irmas providencias no sentido de desenvolver uma .investigacao Ievada
verdadeiros, os descendentes de uma irma representarao os sobrinhos e a cabo pelo governo americano em todo o territ6rio habitado pelos
sobrinhas de um irrnao que sera seu tio, enquanto que a irrna e tia dos Indios, e pode assim constatar a generalidade do sistema. Outras in
deste ultimo. Os filhos encontramse entao divididos em duas classes: vestigacoes efectuadas noutras partes do mundo (Africa Negra, India,
por um ]ado, os filhos e filhas, por outro Iado, os sobrinhos e sobrinhas; Oceania) confirmaram estas observacoes.
estes dois grupos sao primos entre si. Ao mesmo tempo que reconstitui a hist6ria da familia partindo
Morgan faz derivar a filiacao uterina destas duas primeiras epocas destes dados, Morgan investiga a organizacao clanica iroquesa e che
da hist6ria da familia. 0 matriarcado esta implicado neste genero de ga a conclusao que o matriarcado que ali predomina representa uma
casamentos por grupos, uma vez que so a descendencia matrilinear se forma universal que, num dado momento da sua evolucao, dominou
mantem patente: neste sentido, e anterior ao patriarcado. todos os povos.
A terceira e a familia "sindiasmica" Consiste na monogamia, com
facilidade recfproca de div6rcio: era aquela que regia toda a socie
dade indiana quando Morgan a estudou. A filiacao e ali matrilinear e Tese de Engels
o homem oferece o dote a mulher. Esta nao abandona o seu cla e pode
dele excluir o marido ( que deve necessariamente pertencer a um cla As conclusoes de Bachofen e de Morgan sao da maior importancia
diferente ), caso este nao proporcione mantimentos suficientes para o para um marxista como Engels, convicto em demonstrar a historicidade, o
sustento comum. Qualquer que seja o motivo da separacao, todos os caracter provis6rio de todas as formas de organizacao politica e social.
filhos permanecem no cla materno. Os factos acima relatados serviramlhe de material para demonstrar
3. Engels; op. cit; pp. 26 a 27. 4. Engels; op. cit., pp. 94 e 95.
Orestes dirigese a Atena, explicalhe o seu caso e solicita a sua pro 6. "Eumenides"; verso 470 e seguintes.
teccao. Esta respondelhe em termos que levantam o problema da nova 7. Esquilo, op. cit., "Eumenides", verso 490 e seguintes.
[ustica: uma justica que parece transcender a fragilidade da consciencia 8. Bacho fen, Johann Jacob, Das Mutterrecht; mit Unterstiitzung van H. Fuchs, G. Meyer u. K. Sche
fold hrgg. van K. Meuli. Basel, Benno Schwabe, 1948.
9. Morgan, Lewis. M., Systems of Consanguinity and Affinity; publicado pela Smithsonian Institu
S. Esquilo, L'Orestie; trad. Paul Mazon. Edicoes Albert Fontemoing, 1903. tion, Vol. XVII, "Contribution to Knowledge", 1870 a 1871 (Washington, 1871).
10. Leenhardt, Maurice, "La personne melanesienne": Ecole des Hautes Etudes, seccao das cien
cias religiosas, Anuario 19411942, Imprimerie Administrative, Melun, 1942.
II.
Critica da Tese Classica
de um Matriarcado Universal
24 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra II. Critica da Tese Cliissica de um Matriarcado Universal 25
relacionada com o matriarcado e em particular com a mulher e
de procedencia uterina "que dao provas, afirma M. Durkheim, da sua com o respeito que a envolve, se lhe afigurarem coma o verdadeiro
reexistencia1. . progresso e contribuirem para estabelecer uma hierarquia objectiva
P Van Gennep demonstra que a posicao de Dur�he1m _a�erca desta dos valores, aquele apenas considerara este conjunto de instituicoes
stao nao era clara e que, par momentos, parecia admitir a au��no favoraveis a mulher e ao ser humano em geral, enquanto expressao
q�e O riginaria de cada sistema. Foi em consequencia de l'etude cr1t1qu_e de uma liberdade perigosa, quase satanica, A hierarquia estabelecida
m1a · � • deterrni
du second volume de Spencer e Guillen que a sua po�H;ao 01
nada: Resumindo a sua argumenta9ao, afirma de modo =»:
• • �
ciaro:
''A anterioridade da ftliacao uterina sabre a filiacao �aternal e de t�l
deste modo entre as dais sistemas carece, neste sentido, de uma fun
damentacao objectiva.
Um primeria crftica importante que pode ser feita a tese de Bachofen,
modo evidente nas diferentes sociedades que acabamos de refenr, e aquela que comporta uma lacuna primordial que nao foi suficiente
esta demonstrada atraves de uma tal abundancia de provas, que nos mente enfatizada. A dernonstracao da passagem universal de um ma
parece dificil pola em causa"
2•
• A_ triarcado para um patriarcado s6 seria cientificamente aceitavel caso
Van Gennep acusa Durkheim de ter resolvido o problema se� te lo se provasse, no seio de um determinado povo, que esta evolucao in
formulado. A (mica coisa que este teria provado na s�a profundaAm�es terna se tivesse de facto efectuado. Ora, esta condicao nunca foi preen
tiga�ao em torno das relacoes matrimoniais nas soc�e_da�es ocean:cas, chida nos trabalhos do autor. Nunca se pode determinar uma epoca
seria a combinacao infinita dos dais sistemas de flliacao. mas nao a hist6rica durante a qual as Gregas e as Romanos tivessem conhecido
anterioridade de um sabre o outro. o matriarcado. Contornase a dificuldade substituindo as povos abori
=r=
(sanscrito avi, lituano avis, grego ois, latim ovis, irlandes oi, altoalemii.o ouwi,
eslavo antigo ovinu). O boi, ta/ como o cavalo, era atrelado a carroca, uma vez
de vida e de morte sabre aquela: nao tern de prestar contas ao Estado
_di no que diz respeito ao destino que lhe possa atribuir. Esta instituicao
que O name joug permaneceu conservado de modo notavel n�s
alectos (yuga em siinscrito, jugum em latim, zygon em grego, JUk em qotico,
privada anterior a do Estado, e relativa ao periodo de vida comum nas
estepes eurasiatlcas, permaneceu durante muito tempo inviolavel, O
jungas em lituano). Da mes ma form a, encontrase um radical que se aplica quer
a
ao pr6prio carro (ratha em sanscrito, ratho em avestico), quer roda (rota em marido podia vender a sua esposa ou escolher um eventual esposo
/atim, roth em irlandes antigo, ratas em lituano, rad em altoalemiio antigo). para ela coma forma de prevencao da sua pr6pria morte..
Muito tempo ap6s a sedentarizacao, as mulheres indoeuropeias ainda
Daquila que precede parece resultar que os lndoEuropeus, cerca do final da
sua vida com um, eram um povo de pastores, criadores de bovinos e ovinos e, permaneceram enclausuradas. Engels relembra que estas aprendiam,
enquanto ta/, se niio semin6madas, pelo menos bastante m6veis ...
4
no maxima, a fiar, a tecer, a costurar e a ler um pouco; que apenas
podiam estabelecer relacoes com outras mulheres: mantinhamse iso
Esta vida nomada e caracteristica do IndoEuropeu: segundo Hero ladas no gineceu, que constituia uma parte distinta da casa localizada
doto e Diodoro da Sicilia, a casa do Cita era a carroca. 0 mesmo su no piso superior, ou na retaguarda, por forma a afastalas do olhar dos
cedeu na epoca posterior com os Germanos. A prova disto reside no homens e, sobretudo, dos estrangeiros. 'f:..s mulheres nao podiam sair
facto da ausencia de um termo generico designando a cidade no fundo sem estar acompanhadas par uma escrava. A criacao de eunucos para
primitivo do vocabulario: vigialas e tipicamente indoeuropeia e asiatica: no tempo de Her6doto,
Quios era o principal centro de comercio",
o chefe da Jam ilia e designado de chefe da casa: em stinscrito: dampati, em Um especie de poligamia latente existiu tambern nos IndoEuropeus:
grego despotes (para demspota), em latim dominus.
Um radical com um designa quer a casa, quer o grupo de casas ou aldeia (em Toda a Iliada se desenvolve, como sabemos, em torno do conjlito entre Aquiles
sanscrtto vie, em avestico vis, em latim vicus, em grego oikosJ, com um chefe e Agamemnon a respeito de uma das escravas. A prop6sito de cada her6i
da aldeia (vii;pati em stmscrito, vispaiti em avestico, vaszpats em Iituano). Niio homerico relevante, referese uma jovem prisioneira de guerra com quern
existe um termo para aldeia, mas uma palavra para lugar fortificado, que, depois, partilha a sua tenda e o seu /eito. Estas Javens donzelas siio de igual modo
grego5• trazidas para o pais e para a casa conjugal, ta[ como sucede com Cassandra
significar<i aldeia: pur em sanscrito, pilis em Iituano, polis em
par Agamemnon, em Esquilo; os filhos nascidos destas escravas tern uma par
':Nesta existencia que se reduzia a deslocacoes perpetuas, o papel te reduzida da heranca paterna e contam como homens livres; deste modo,
econ6mico da mulher era levado estritamente ao minima; esta era Teucro, filho ilegftimo de Telamon, possui o direito de adoptar o nome do pai.
apenas um fardo que o homem arrastava atras del:. Exceptuando a Quanta a esposa leqitima, esperase de/a que tudo suporte, guardando ela
procriacao, o seu papel na sociedade n6mada e nulo. E partindo destas pr6pria uma castidade, uma fidelidade conjugal rigorosa7•
consideracoes que uma nova explicacao pode ser tentada, para justi
ficar o destino da mulher na sociedade indoeuropeia. Tendo menor A poligamia estava igualmente em vigor na aristocracia germanica,
valor economico, e ela que abandona o seu cla para se juntar ao do seu durante a epoca de Tacito.
4. Les Premieres Civilisations, par Andre Aymard, F. Chapoutier, Georges Conteneau ... (Col. Peu
6. Engels, op. cit., p. 63.
pies et Civilisations). Ed. Presses Universitaires de France, 1950, pp. 200 a 202. 7. Engels, op. cit., pp. 60 e seguintes.
5. ld., p. 200.
12. Aymard, Andre, op. cit., p. 201. 13. Engels, op. cit., pp. 41 e 42.
14. Hubert, Henri, Les Celtes; col. Evolution de I'humanite Albin Michel, Paris, 1950, p. 247. 15. Delafosse, Maurice, Les Noirs de l'Afrique; Payot e Cia, Paris, 1922, pp. 140141.
36 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra II, Critica daTese Clo3ssica de um Matriarcado Universal 37
entar assim o "principle active" do seu corpo (fit em wolof). Logo Estas ideias, pela sua natureza, correspondem aos primeiros tem
a fug d c. · • • di · pos da mentalidade africana: neste sentido, as mesmas sao arcaicas e
que a vitima, considerada morta, seja enterra. a, o rerncetro nge�e representam, actualmente, uma especie de f6sseis que flutuam no am
tumulo. volta a reanimala e mataa verdadeiramente para consumir
a Osua carne, tal coma a de um acougue. E suposto este feiticeiro pos bito das reflexoes actuais. Constituem um conj unto que so podemos
suir um par de. olhos na nuca, para alern dos olhos vulgares, o que lhe considerar enquanto consequencia l6gica de um estadio anterior, mais
primitivo, no qual teria predominado, exclusivamente, a filiacao matri
permite nao ter de virar a cabeca, Possui bocas fortemente dentadas
ao nivel das articulacoes dos bracos e das pernas. Tern o poder de voar linear.
deixando escapar chamas atraves das axilas ou da boca. Consegue ver
facilmente as entranhas dos seus convivas e a medula dos seus ossos;
ve o seu sangue circular, o seu coracao bater; detern este curioso poder Culto dos Martos
de um ser da quarta dimensao, que nos poderia retirar um osso sem
nos abrir. Com efeito, o nosso corpo s6 se encontra hermeticamente E no ambito da vida sedentaria que a existencia do tumulo se justi
fechado, s6 esta protegido pela Natureza nas tres dirnensoes do nosso fica. Para alern disso, e impossivel encontrar, num pais agricola coma a
aspaco. Se existisse um ser que tivesse o sentido de uma quarta dimen Africa Negra, vestigios de cremacao, desde a antiguidade ate aos nos
sao, e que pudesse viver entre nos, este veria efectivamente as nossas sos dias. Todos os casos assinalados sao inautenticos: tratamse apenas
entranhas e poderia, gracas a esta quarta dimensao, que nos escapa de suposicoes de investigadores no espirito dos quais a demarcacao
e perante a qual estamos abertos, extrairnos os ossos dos nossos destas duas origens nao e clara e que, resultante do berco n6rdico, ten
membros sem ter necessidade de nos abrir. Quando e identificado e dem a identificar qualquer vestigio do fogo enquanto uma marca de
espancado pela populacao pelo facto de ser responsavel pela morte de incineracao, mesmo quando nao se encontra nenhum objecto cultual
uma vitima, este feiticeiro tern o poder de dissociar o seu ser; de man a� lado. 0 antigo Egipto tarnbem nao conheceu a pratica da crernacao.
ter no seu corpo o seu "principio vital", de expulsar o seu "principio Em qualquer parte onde se encontre a pratica da incineracao, quer
active" ligado a sua sensibilidade e a sua dor, e fazela suportar par seja na America ou na India, e possivel discernir a presenca de um
qualquer objecto pr6ximo. A partir deste momenta, deixa de sentir as elemento indoeuropeu proveniente das estepes eurasiaticas, Nao e
pancadas, ate que seja descoberto este nova "objectosuporte" do seu possivel explicar a formacao da America precolornbiana sem fazer in
"principio active" e par sua vez atacado. Deste modo, possui um poder tervir um elemento n6mada introduzido pelo estreito de Bering: esta e
mediuntco. Esta descricao detalhada dos poderes sobrenaturais do fei a tese geralmente aceite e permite justificar este ritual funebre que se
ticeiro tern par objectivo enfatizar melhor as ideias que os Africanos sobrepoe a pratica do enterro nos Indios da America. No Mexico, acre
tern acerca da heranca patrilinear e matrilinear. Apenas se pode ser macao dos chefes, isto e, da classe dirigente, enquanto que os cidadaos
feiticeiro, dotado de todas as qualidades aqui referidas, isto e, feiti do povo eram enterrados, parece atestar uma vit6ria de conquistado
ceiro total, caso se seja proveniente de uma rnae feiticeira do mesmo res n6rdicos n6madas, talvez de origem mong6lia, sabre uma popula
nivel; pouco importa aquilo que o pai e, Se a mae nao e dotada de c;:ao agricola e sedentaria, 0 facto de o termo para designar a piroga,
nenhum poder e se o pai e feiticeirototal [demn, em wolof), a crianca ou seja, o unico elemento passivel de servir de elo de ligacao entre a
e feiticeira apenas pela metade: este e nohor; nao possui nenhuma Africa e a America, ser o mesmo em algumas linguas africanas (lothio
qualidade positiva do feiticeiro, tern apenas os aspectos passivos. Sera em wolof) e em algumas linguas indianas da America precolornbiana
incapaz de matar uma vitima para se alimentar da sua carne, o que parece provar as relacoes maritimas entre os dais continentes, atraves
constitui a principal caracteristica do demn. Em contrapartida, podera do Atlantico, Assim, teria existido, tambern aqui, [ustaposicao de duas
contemplar passivamente as entranhas dos seus convivas. populacces do origem distinta: uma meridional, a outra n6rdica. Os
Portanto, vemos aqui que a participacao do pai na concepcao da cri tumulos representam a residencia dos Antepassados ap6s a morte. Ali
anca nao e pasta em causa, nao e ignorada, mas que e secundaria e se fazem libacoes, trazemse oferendas e rezase; quando se pretende
menos operante do que a da mae. Ao mesmo tempo que se sabe que aumentar as suas hip6teses na vida quotidiana, a prop6sito de uma
o pai contribui com alguma coisa, existe a conviccao acerca da identi diligencia especifica, dase a volta ao tumulo dos Antepassados, Dai a
dade do filho e da mae. expressao wolof, verseg = dar a volta aos cerniterios = so rte.'
40 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra II. Critica da Tese Classica de um Matriarcado Universal 41
as outras crians:as nao sac suas descendentes, ainda assim as designa imperio Mandinga (o Mali) viria a entrar em declfnio sob os golpes do Songoi,
coma tal. Neste case, a linguagem trai voluntariamente a realidade e ao mesmo tempo que conservava poder e prestfgio suficientes para que O seu
nao exprime o parentesco real, mas um parentesco social; e o facto e soberano neg�ciasse de igua/ para igual com o rei de Portugal( entiio no apo
tanto mats significativo que esta especie de alteracao devida a socie geu da sua gloria20•
dade ramonta.a epoca mais primitiva, a do "estadio inferior da barbti
rie". Desde a sua origem, a sociedade introduz insidiosamente motivos O sistema iroques de Morgan prevaleceu igualmente e ate aos
de erros e o sistema cuja objectividade parecia garantida, esta viciado no�sos dias nos Mandingas do Mali, enquanto que ja teria desapa
na base; este necessita, para se edificar, de confundir primeiramente recido nos IndoEuropeus das estepes que tinham atingido o "estadio
todas as maes, tornalas comuns, para justificar uma forma de denomi superior da barbarie", para la do qual ja nao deve existir pelo facto de
nacao: a tla chamada de mae pelos filhos da sua irrna; necessita, numa se entrar na civilizacao,
segunda operacao, de distinguir estas maes para dar conta da filiacao Por conseguinte, de acordo com aquilo que e previamente referido,
matrilinear. aquele nao deve relacionarse com o estado mais ou menos atrasado,
Esta contradicao que reside nos seus fundamentos nao foi correcta com o grau de evolucao das sociedadesl E peculiar o facto de o en
mente ultrapassada, mas foi abafada, esmagada pelo ediffcio te6rico. contrarmos de modo consistente apenas nas populacoes meridionais
Ao inves, parece que o sistema de parentesco, cuja descoberta por e agricolas (Africa Negra, Decao, Melanesia, America precolombiana).
Morgan se afigurou tao importante, traduz apenas relacoes puramente Sabese que a populacao da America proveio de outro lado, uma vez
sociais. Se tivesse sido de outro modo, perguntarnosiamos par que que ali nao sao encontrados homens f6sseis. Deste modo, este nao e
motivo o mesmo nao sobreviveu sob a forma de vestigios, par muito universal; s6 pode ser considerado enquanto tal se as lacunas forem
tenus que fossem, no berco n6rdico, nos prot6tipos dos indoeuropeus preenchidas par postulados. Parece evidente que, tal coma o matri
de quern conhecemos as tradicoes mitol6gicas e a hist6ria com con arcado, o sistema resulta de uma estrutura de organizacao politica e
viccao (Gregas, Romanos, Germanos). Par muito que se recue no pas social, de um tipo de vida sedentaria e agricola, irredutivel ao estilo de
sado, s6 se encontra o genos patrilinear com o sistema de parentesco vida n6rdica n6mada.
que caracteriza, ainda hoje, os seus descendentes. Tai coma e supramencionado, este sistema possui apenas um sig
E dificil sustentar que nesta epoca das estepes os indoeuropeus nificado social. Quando um Wolof ou um qualquer Africano chama de
fossem ja demasiado evoluidos para conservar o sistema de paren pai ou mae ao irrnao do seu pai au a irrna da sua mae, este sabe que
tesco encontrado nos Indios da America, na Africa e na India, que ja aqueles lhes sao substituiveis em caso de falecimento, de doenca, au
tivessem ultrapassado o "estadio inferior da barbarie" e que, par con de insuflciencia. A estrutura da sociedade africana tal coma sera
seguinte, ja nao tivessem conservado este sistema de parentesco, mes descrita mais adiante exige esta assimilacao dos tios e das tias aos
mo em estado de vestlgios. Poderlamos, entao, perguntarnos de que verdadeiros pais. Daqui resulta uma serie de obrigacoes reciprocas
modo este pode subsistir nos construtores de imperios da Africa Negra. que Delafosse nao deixou de revelar:
O imperio do Gana durou desde o seculo III ate 1240; antecedeu, por
tanto, de quinhentos anos o imperio de Carlos Magno, submeteu os Foi possivel, par outro /ado, afirmar justamente que niio existem 6rfiios nos
Berberes de Audagoste queJhe pagavam tributos. A organizacao social Negros. Poderseia acrescentar que tambem niio existem viuvas expostas a
e politica que alt prevalecia sera descrita nos capftulos seguintes. A sua miseria, uma vez que a viuva regressa para a sua famflia e permanece ao
proemmencia expandiase ate a Asia. Ora, o sistema de parentesco que en cargo desta ultimo, enquanto niio se voltar a casar, a niio ser que pertenca,
prevalecia no Gana e ainda hoje nos Soninqueses, descendentes dos a
ta/ coma acontece frequentemente, sucessiio do esposo defunto, e seja entregue
imperadores, e aquele que e descrito por Morgan, ainda que se tenham a responsabilidade do herdeiro deste. 21
convertido ao Islao. 0 Gana, em 1240, deu lugar ao irnperio do Mali, a
prop6sito do qual Delafosse escreve: Na verdade, introduzse com frequencia uma nuance para sublinhar
que nao se trata do verdadeiro pai ou da verdadeira mae, Um Wolof
No entanto, Gao tinha recuperado a sua independencia entre a morte de
CongoMoussa e o advento de Souleiman e, cerca de um seculo mais tarde, o 20. Delafosse, op. cit., p. 62.
21. Delafosse, op. cit., pp.142143.
42 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra II. Critica da Tese Cli:l.ssica de um Matriarcado Universal
43
d es1gnar a sempre
· o irrnao de seu pai Baybundaw
.. = pequeno
_ pai. Dlra
Assim, sao estes os traces relevantes dos dois regimes: matriarcado
= e patriarcado. O seu caracter exclusivo, quanto a filiacao e ao direito a
A
44 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra II. Critica da Tese Classica de um Matriarcado Universal 45
Os primeiros colonos albinos praticam a incineractio, ta/ coma o comprova restituiu. 0 Bramanista rise dos Jantasmas; a cremaciio confia o de/unto a
O nivel superior dos tumulos do Forum; diz a lenda que Numa recusou ser Agni para que este o eleve ao mundo dos antepassados, e a urna e simples
cremado. O ritual sabino teria talvez triunfado sem a invastio umbnoetrusca mente depositada numa f/oresta, sem monumento funebre na maior parte
do final do seculo VI... das vezes. Nos Judeus, e fortemente provavel que se encontrasse os dois tipos
Entre as dais rituais, as casos de contaminadio s{io frequentes ... de crenca que definimos ... Acreditamos que obteriamos uma resposta satis
Deste modo, ainda que naquele perfodo hist6rico a cremaciio e o sepultamento fat6ria se admitfssemos que os Cananeus praticavam o cu/to dos antepassados
tenham sido aplicados em simultaneo, estas duas tradicoes derivam de prdti segundo rituais analogos aos ct6nicos, e que os Jsrae/itas n6madas trouxe
cas de dais universos distintos, o universo pastoral n6rdico, que cremava os ram, se niio a cremaciio, pelo menos um costume diferente face aos defuntos,
seus defuntos, e o mundo agrfcola mediterrtinico que as enterrava25• a
seme/hante indiferenca aqueia au bramanista.26
Concordamos totalmente com esta conclusao, que representa uma A oposicao entre Cananeus sedentarios agrf colas e Israelitas noma
das ideias fundamentais da nossa tese. Nao nos e passive! enfatizar das e precisamente esta que acabarnos de apontar; esta vem confir
com maior clareza a origem nornada da incineracao, hem coma a ori mar a tese desenvolvida relativamente a zona de confluencia dos dois
gem agricola sedentaria do sepultamento. Porern, contrariamente bercos, Porern, e necessario apresentar integralmente a perspectiva de
a opiniao de Piganiol, consideramos que se trata, nao de duas cren Piganiol, acerca das religioes n6rdicas e meridionais, antes de critica
cas diferentes em torno da vida do alemtumulo, mas de um mesmo lo.
pensamento religioso o culto dos Antepassados interpretado por
Nornadas e por Sedentarios. Devese a escola dos fi/6/ogos ingleses uma interpretacao da reliqiao grega
O autor nao procurou a causa material que impedia os nomadas de muito subtil, sedutora e cotitestada. Esta teria surgido da fusiio de cultos
dedicar um culto a tumulos fixos; tersea apercebido que a cremacao ct6nicos e de cu/tos ouranianos. Os ultimas, deuses da c/ara vontade, siio
constituia o unico meio, para um povo sem domicilio, de transportar objecto de uma tsrapsia; siio homenageados na esperanca de um beneficio. Os
as cinzas dos seus ancestrais e de lhes dedicar um culto. Teria assim ct6nicos, pelo contrario, siio esplritos impuros que o cu/to visa afastar...
concordado com Fustel de Coulanges, que relata o culto dos antepas O duelo entre as reliqioes ct6nica e ouraniana corresponde a guerra entre as
sados nos antigos, sem insitir em demasia nas suas duas variantes. Pelasgos e os invasores n6rdicos, povos cuja fusiio produziu a Grecia ckissica ...
O nimulo e o estatuario sao absurdos na vida n6mada; a sua ausencia .coposiciio entre o cu/to do fogo n6rdico e o cu/to da pedra mediterranico.
explicase racionalmente, ao inves de traduzir inclinacoes intelectuais Os povos que idolatram o ceu possuem a ideia de um parentesco entre o Jogo
particulares. Deste modo, em vez de acreditar que foram as condicoes do lar, a atmosfera e o fogo solar. Par via do Jago, as oferendas que se quei
materiais que impuseram duas formas diferentes a um mesmo pensa mam dispersamse atraves do eter; que representa o imenso deus disperso
mento religioso, Piganiol argumenta que se trata de duas concepcoes par toda a parte; e este deus invisfve/ condensase, tornase sensivel atraves
fundamentalmente distintas: da chama. Os povos que adoram a terra comunicam com as suas divindades
transportando as suas dddivas para as grutas, precipitandoas nos abismos,
Estes rituais pareciam corresponder a duas crencas distintas relativamente a deixandoas atolarse lentamente pelos pantanos ...
vida alemtumulo ... Uma das tradiciies ensina que o cu/to do fogo, confiado a sacerdotes por
O sepultador vive num terror constante, o cremador quase Jaz Jembrar um R6mulo, passou mais tarde para sacerdotisas, por vontade do sabino Numa ...
livrepensador. Estas cren9as tiio diferentes niio se deixam abarcar por uma Sao os invasores n6madas, povos pastoris, que teriio introduzido o cu/to do Jogo.
formula comum; de cada uma de/as, niio podia resultar o mesmo sistema de O sacrif(cio pelo Jagoe desconhecido em Atenas antes de Cecrope, que e tambem
instituiciio. Nao estara ja enfraquecido o postulado de Fustel de Coulanges? o primeiro a atribuir a Zeus o titulo de Magniinimo ...
Seria necesstirio, na verdade, que uma analise comparativa atenta das Os povos que introduziram o cu/to do Jago na bacia do Mediterriineo, opera
reliqibes confirmasse as nossas conclusiies. Notese desde ja que este livre ram simultaneamente no sentido de afastar supersticiies selvagens27•
pensamento aqueu ou homerico se encontra no Rigveda, ta/ como Rodes o
nao no nordico que deveria reinar um Zeus, deus da luz. em grande parte devido aos pastores que /hes ensinavam o cristianismo.
· Iruimeros argumentos permitem justificar esta perspectiva. RA e de E partindo da comparaciio entre estas indicacoes tao diversas que se pode
facto um deus do Sul. Em contrapartida, Grenier e levado a constatar a extrair uma ideia da reliqiiio dos indoeuropeus antes da sua separaciio cerca
ausencia de uma divindade solar na religiao romana, o que se apresen do ano 200030•
ta, no minino, surpreendente, depois de todas as consideracoes que
formula acerca da etimologia de Zeus; todavia, a este respeito, sugere Desta analise comparatista resulta que o culto do fogo era comum a
se a consulta da pagina 198 para que se constate o quanta esta e todos os IndoArianos, ate aos PrussoLituanos do seculo XVI.
extremamente duvidosa e discutfvel!
Deve entreqarse a estes Briimanes arroz, em simultaneo com presentes, no
Osol ea lua regularam o calendario romano; as desiqnaciies de Sole de Lua, recinto consagrado ao ofert6rio para o /09031•
no entanto, niio aparecem. 0 Sol Indiges de Roma, que tinha o seu temple no
Quirinal, seria um deus de Lavlnio; Luna tinha um temp/a no monte Aventino, De entre todas as razoes que invocarnos para explicar o culto do fogo,
que teria sido fundado por Servius Tullius, mas sera necessario aquardar o podersea privilegiar aquela que ja foi apresentada: no frio glacial
imperio e as infiuincias estranqeiras para assistir ao desenvotvimento destes nordico, o deus benfeitor por excelencia e o fogo; gracas a sua incom
cultos. E provtive! que estes se encontrem representados na antiqa religiiio paravel utilidade nestas latitudes, a alma primitiva nordica nao tardou
romana, por desiqnacoes sob as qua is ainda niio foram reeonhecidos/" em prestarlhe culto. Tal tera sido a base material que tera originado,
consequentemente, uma superestrutura religiosa.
Na medida em que o calendario romano representa uma adaptacao Portanto, em consequencia da analise de Piganiol, de Grenier e das
de calendario egipcio, nao surpreende o facto de ali se encontrarem os Leis de Manou, concluise que a cremacao e o culto do fogo resultam
termos de Lua e de Sol. Apesar da constatacao que acaba de fazer a de uma tradicao especificamente indoeuropeia, tradicao esta que se
da ausencia de uma divindade solar autentica nos Romanos , Grenier perpetua nos nossos dias, mesmo nas consciencias de quern esqueceu
nao deixa de escrever notese, porem, com pouco conviccao: a sua origem: a chama da mem6ria, as tochas olimpicas, as associacoes
cujos membros, ainda que cristaos, sao cremados, explicamse pro
No seu todo, as divindades celestes seriam indoeuropeias; as da terra, pelo vavelmente a partir desta tradicao ariana. E plausivel afirmarse que
contrario, divindades do subsolo e das grutas, representariam as avatares da alguns Europeus nao pediriam hoje para ser crernados, mesmo por
Terra Mae, a grande divindade mediterrtinica primitiva: cu/to ouraniano par motivos de higiene, caso ja nao mantivessem esta tradicao dos seus
um lado, cu/to ct6nico par outro lado29• antepassados arianos, E notavel constatar que a crernacao representa
28. Grenier; op.cit., p. 88. 30. Grenier; op. cit., pp. 85 e 86.
29. /d. 31. Lois de Manou; Livre XI, "Penitence et Expiation" (trad. Loiseleur Deslongchamps, 1843).
48 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra 11. Crltica da Tese Clilssica de um Matriarcado Universal 49
etnol6gico, cultural, absolutamente distintivo do mundo ari
o ves t'gi
ano
e
1 ·0
do mundo meridional,
•
africano em
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particular.
E impossive 1 d es
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vendar um unico caso autentico d e cre�ac;:ao na nca egra, . es _e �
A •
III.
antiguidade ate aos nossos dias. Este e um facto que nunca f01 sufict
entemente s nhado.
Hist6ria do Patriarc o
e do Matriarcado
Berco Meridional
Limitaremos a sua analise a Africa, par forma a circunscrever o
assunto a factores convincentes. Efectivamente, a Africa e o continente
meridional que se encontra menos transformado pelas influencias
externas. A penetracao arabe foi travada no sul pela floresta, devido
a mosca tsetse que mata os cavalos; as primeiras expedicfies que
alcancaram o coracao da Africa, as de Livingstone e de Stanley, sao
posteriores a 1850.
Eti6pia
Tratase da Eti6pia tal coma e descrita par Her6doto e Diodoro da
Sicilia, e cuja antiga capital, Meroe, localizada pr6ximo do confluente
do Nila branco e do Nila azul, foi descoberta par Cailliaud sob a Res
tauracao, 0 seu posicionamento corresponde aproximadamente ao
actual Sudao: designouse tambem Nubia e Pais de Senar. A Eti6pia
actual, cuja capital e Aksurn, era apenas uma provfncia periferica.
A Eti6pia foi o primeiro pais do mundo a ser governado par uma
rainha depois do Egipto, que conheceu Hatshepsut na XVIII;! dinas
tia, e cujo reinado sera abordado no capitulo VI. Existiu em primeiro
50 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra 111. Hist6ria do Patriarcado e do Matriarcado 51
semilendaria de Saba, contemporanea de Salornao, Rei nao se estava acostumado a ideia de uma mulher a desempenhar um
I uga r a rainha , , .
cerca do ano rm·1 . Possuirnos pouquissimos d acumen tos papel politico e social.
d OS Hebreus, 1 ' . d Bfbli Straban refere que Cesar Augusto, que descansava entao numa ilha
elativos ao seu reinado ea sua vida. Uma passagem acomca a 1 ia
�nformanos que esta visitou Salomao, cuja sabedoria lhe tinha sido do Mediterraneo, em Rodes, acedeu com plena confianca as delegacoes
exaltada, e que .a mesma lhe levou presentes; a visita nao tera durado da Rainha. Esta reststencta gloriosa permaneceu na memoria dos Su
muito tempo, apenas alguns dias e a rainha tera voltado a partir em daneses; o prestigio de Candace foi de tal modo, que todas as rainhas
direccac aos seus Estados carregada de oferendas feitas por Salomao, posteriores adoptaram genericamente o mesmo name.
Nenhum documento historico permite afirmar o seu casamento com Herodoto menciona o facto de as Etiopes Macrlobes serem as mais
este ultimo, a Biblia nao faz qualquer alusao a este acontecimento. belos e as maiores de todos as homens. Estes sao dotados de uma
Os historiadores questionamse, par vezes, se aquela tera reinado na saude robusta; atribuirlhes a designacao de Macrfobes, e fazer
Etiopia, propriamente dita, ou na Arabia Feliz, que seria entao o ver referenda a sua longevidade, sendo o Rei escolhido de entre as mais
dadeiro pals de Saba. Porem, ate ao nascimento de Mahomet, a Arabia fortes. A abundancia dos recursos alimentares e simbolizada par aquilo
meridional e inseparavel da Etiopia: o seu destino histortco foi com um, que Herodoto ea Jenda referem coma "a Mesa do Sol": durante a noite,
a suserania da Etiopia sabre a Arabia foi interrompida apenas mornen alguns emissaries do Rei depositam discretamente uma quantidade
taneamente; factor este comprovado par um versiculo do Corao intitu de carne bem cozinhada sabre uma grama reservada para este efeito.
lado "os Elefantes". Mahomet narra ali de que modo a armada etiopia, Ao nascer do Sol, qualquer membro do povo pode vir usufruir deste
enviada do continente africano de modo a reprimir uma revolta dos alimento oferecido gratuita e anonimamente. Os prisioneiros eram
Arabes do Iernen contra o governador etiope Abraha, foi destrulda retidos com correntes de aura. Compreendese as raz6es materiais
pelos "Mensageiros do Ceu'', ainda que apenas com 40 000 homens. que mantinham as Etiopes no seu berco, e que os impediam de se tor
Cada um dos soldados foi miraculosamente atingido na parte superior nar conquistadores. Com efeito ainda segundo Herodoto quando
do seu casco par um projectil que o atravessou de um lado ao outro da Cambises conquistou o Egipto (525), este quis atravessar o Deserto
sua armadura. Admitese, geralmente, que o exercito etiope tera pro· da Nubia, mas esteve perto de ali sucumbir. Tera entao enviado Etiopes
vavelmente sido destruido por uma tempestade de areia, ou par uma "ictiofagos" coma espi6es para junta do rei; este descobriu a conspi
epidemia de peste que se teria manifestado durante a viagem. racao e deu uma lic;:ao de moral a Cambises, par interrnedio dos seus
Afigurase portanto, segundo os parcos documentos historicos de agentes nos seguintes termos:
que somos detentores, que e sobretudo a Etiopia, e nao a Arabia
"Sabeia" que se deve associar a rainha de Saba. "Saiba o Rei dos Persas, que Amon niio incutiu, no coraciio dos Etiopes, o
De qualquer modo, e de salientar que durante o primeiro milenio designio de conquistar territ6rios estrangeiros; mas que niio se atreva a vir
antes da nossa era, isto e, numa epoca que se situa entre a Guerra de atacar enquanto niio for capaz de dominar esta regiiio."
Troia e Homero, as paises meridionais ja poderiam ser governados par
mulheres. Segundo o mesmo autor, o respeito pela personalidade era tal que,
O reinado da rainha Candace foi verdadeiramente historico, Foi con quando um Nubia era condenado a morte, davaselhe ordem de acabar
ternporanea de Cesar Augusto no apogeu da sua gloria, Este, depois de com a sua vida sozinho, no seu lar. Herodoto afirma que, caso este pen
ter conquistado o Egipto, empurrou as suas armadas para o Deserto da sasse em abandonar o pals secretamente, era a sua propria mae quern o
Nubia ate as fronteiras da Etiopia. Segundo Straban, estas eram coman vigiava, e se encarregava de o entregar a morte antes que aquele tivesse
dadas pelo General Petronio. A Rainha assumiu, ela mesma, o comando conseguido executar o seu projecto. Como e evidente, a condenacao era
das suas tropas; para dirigilas, encarregou as soldados romanos, tal justificada par se tratar de um crime contra a humanidade, bem coma
coma viria a suceder posteriormente com Joana d'Arc, contra o exer contra a sociedade, e era esta a razao que levava a mae e nunca o pai
cito Ingles. A perda de um olho durante o combate apenas contribuiu que parece nao ter o direito a acabar com o seu filho.
para redobrar a sua coragem. Esta resistencia heroica impressionou Todas estas narrativas, mais ou menos lendarias, mencionadas par
toda a Antiguidade classica, nao pelo facto de a rainha ser negra, mas Herodoto, so sao importantes na medida em que reflectem, apesar de
pelo facto de se tratar de uma mulher: no mundo indoeuropeu, ainda tudo, os costumes e as tradicoes vigentes no pals, durante a epoca do
A analise do mito e do ritual de Osiris que antecede pode ser suficiente para
provar que, sob um dos seus aspectos, o deus representava uma personifica
1. Frazer, James George, Atys et Osiris: etude de religions orientates comparees; Librairie Orientaliste,
rao do trigo, acerca do qua/ se pode afirmar que se extingue e retorna a vida Paul Guthner, 1926, p. 117.
2. Frazer; op. cit., pp. 133134.
54 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra JIL HistOria do Patriarcado e do Matriarcado 55
i'Constatase aqui uma especie de confirmacao, atraves da lenda da da irrna � que pode_re_inar no_�ais; o do irrnao prevalecera no pals
tradicao. que atribui as mulheres um papel activo na descoberta da da su� �ae, caso o direito matrilinear se encontre ali em vigor; se for O
agricultura. contrano a suceder; nao tera direito ao trono, a menos que O usurp
· , . e em
Na epoca das colheitas, os Egipcios entregavamse a la�entas:oes em um d os d ms parses. Ao desposar a sua irrna, o fara6 conservava O trono
honra do espirito do trigo ceifado, isto e, em honra de Isis, criadora na mesma familia e eliminava, em simultaneo, os litigios de sucessao,
da verdura, Senhora do pao, Senhora da cerveja, Dona da abundancia, . 0 Fara6 que casa com a sua irrna e, ao mesmo tempo, o tio do seu
personificando o cam po de trigo. ,Frazer ve a prova desta identifica filho. Ora, no regime matrilinear, s6 o sobrinho e que herda do tio
r;:ao no epfteto Sochit, atribuido a Isis e que significa ainda, em lingua materno, e este ultimo possui o direito de vida e de morte sobre ele.
copta, campo de trigo. Em contrapartida, os seus pr6prios filhos nao sao seus herdeiros e
Os Gregas identificavamna tambern a Demetra e consideravamna ele pr6prio, nao pertence a familia da sua mulher. Todos estes incon
coma a deusa do trigo. Foi esta que deu origem aos "frutos da terra" venientes sao eliminados gracas aquilo que se designou por "incesto
O fundamento do misterio de Isis e de Osiris representa entao, �eal". Estee o unico exemplo de farnilia meridional, com base matri
essencialmente, a vida agraria, l�near e na qua! o homem ea mulher pertencem a mesma familia; e um
A monogamia constituia originalmente uma regra, ja que Osiris tinha �Ipo especffico no interior do matriarcado e que se justificava pelos
apenas uma mulher, Isis, cujo name e uma alteracao do termo egipcio mteresses superiores da nacao ligados a coesao da familia real. Pode
Sait ou Sit. E interessante notar, ocasionalmente, que estes dais termos, aqui entreverse a possibilidade de uma explicacao no caso da Rainha
numa lingua africana, o wolof, significam "a nova noiva", a esposa. Hatsheput, que sera apresentada no capitulo IV.
Seth, irmao de Osiris, e igualmente mon6gamo; a sua esposa que e I.No casamento, o homem traz o dote a mulher. Esta ultirna, durante
tambern sua irma e Neftis, toda � h�st6ria. e�fpcia fara6nica, usufrui de uma liberdade total que
Ate ao fim da hist6ria egipcia, o povo permaneceu mon6gamo. Unica se opoe a condicao de mulher sequestrada indoeuropeia dos tempos
mente a famflia real e os dignatarios da carte praticaram a poligamia, classicos, seja ela grega ou romana. ·:
em graus diferentes segundo a sua fortuna. Esta emergiu como um luxo Nao ha conhecimento de qualquer testemunho literario ou de docu
que foi transplantado na vida familiar e social, ao inves de constituir o mentos hist6ricos egipcios ou outros dando conta de um mau
seu fundamento primordial. Existiu no Egipto, tal como na Grecia no tratamento slstematico das mulheres egfpcias pelos ho mens. Estas
tempo de Agamemnon, na Asia e na aristocracia germanica na epoca eram honradas e circulavam livremente e sem veu, contrariamente a
de Tacito: poderseia tarnbem citar outros exemplos nas Cortes Reais algumas Aslaticas. '/;',. afeicao pela mae e, sobretudo, o respeito com O
ocidentais dos Tempos Modernos. qua! esta devia ser tratada, representava o mais sagrado dos devere
O casamento com a Irma e uma consequencia do direito matrilinear. O mesmo encontrase anotado num texto egfpcio bastante conhecido
Ja observamos que, no regime agricola, o pivo da sociedade ea mulher;
e ela que transmite todos os direitos, politicos e outros, porque :Quando tu nasceste, ela (a tua miie] tornouse verdadeiramente tua escrava·
representa o elemento fixo, podendo o homem ser relativamente as tare/as mais ingratas niio entristeciam o seu coraciio ao ponto de a /evar;
m6vel: este pode viajar, emigrar, etc., enquanto que a mulher educa pronunciar: "Por que terei de me submeter a isto?". Quando ias para a esco/a
as criancas e sustentaas. E, portanto, normal que estas herdem tudo para te instruir, ela instalavase perto do teu instrutor, trazendo todos os dias
daquela e nao do homem que, mesmo na vida sedentaria, mantern um os pties ea cerveja de casa. E agora que cresceste, que te casas, que constr6is
certo nomadismo. Originalmente, em cada cla, era ao elemento femi a tua pr6pria familia, lembrate sempre de todos os cuidados que a tua miie
nino e somente a ele que retornava a totalidade da heranca. A preo teve contiqo, a Jim de que ela nada ten ha a censurarte e niio venha a levantar
cupacao em evitar contendas de sucessao entre primos isto e, filhos as miios para deus, porque ele atenderia a sua maldiciio .
de irrnaos e irrnas parece ter levado estes ultimas, no ambito da fami
lia real, a perpetuar o exemplo do casal real original, Isis e Osiris. Com A este conselhos dados ao jovem egfpcio, poderseia opor a condu
efeito, imaginese um irmao e uma irrna descendentes de um casal real ta de Telemaco dando ordens a sua mae Penelope, fazendo figura de
que se casam, no exterior da sua pr6pria familia, com uma princesa um verdadeiro senhor da casa na ausencia de Ulisses, ou a de Orestes
e com um principe. Segundo o direito matrilinear, so o descendente matando a sua mae Clitemnestra para vingar o seu pai.
56 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra Ill. Hist6ria do Patriarcado e do Matriarcado
57
Libia tendo em con ta que a mesma nos levou a apreciar o caminho que percorre
mos desde entiio4•
Qualquer que tenha sido a populacao da Lfbia durante a epoca
prehist6rica, a partir do segundo milenio e, possivelmente, cerca de Sao estas tribos nornadas, tarnbem designadas por "povos do mar"
1 soo, a regiao ocidental do Delta do Nilo foi invadida por povoacoes no_s _documentos egipcios, que se vao instalar em torno do Lago de
IndoEuropeias, altas, loiras, de olhos azuis, tatuadas em todo o corpo T�1tao e que se tornarao nos Lebou, Rebou, ou ainda Lfbios, Sao tam
e vestidas com peles de animais. E este o modo como estas sao descri ?em por vez.es chamados Tehe nou; estes termos nao sao de origem
tas nos documentos encontrados por Champollion, em BibanelMo m,doeurope1a: pode verificarse que Rebou = pals de caca, em wolof
Iouk', Depois de ter descrito as diversas racas de homens conhecidas (lmgua senegalesa), e que Reh = cacador: na mesma lingua africana
dos Egipcios, ta! como as viu representadas em baixorelevo no tumulo Tahanou = pais onde se encontra floresta morta. '
de Ousirei I, e chegando a ultima, escreve: �s Libios formaram frequentemente coligacoes dirigidas contra O
Egipto: a mais importante fol fomentada por Mernephtah, no tempo
Finalmente, a ultimo possui um tom de pele que designamos par car da came, da XIX" dinastia.
au pele branca, com a mais delicada nuance, o nariz direito ou liqeiramente
protuberante, os olhos azuis, a barba loira ou ruiva, estatura a/ta e extrema Par volta do mes de Abril de 1922, Mernephtah teve conhecimento, em Mem
mente esquia, vestido com pele de gado ainda revestindo o seu pelo, verda phis, que o rei dos Libios, Meryey chegava da regiiio de Tehenou com as seus
deiro selvaqem tatuado em diversas partes do corpo; siio chamados de arqueiros e uma coliqacao dos "povos do Norte"formada por Shardanes, Sicu
Tamhou. los, Aqueus, Lfcios e Etruscos, trazendo a elite dos guerreiros de cada regiiio;
Apressavame a procurar a tabela correspondente a esta nos outros tiimulos o seu prop6sito consistia em a ta car a fronteira ocidental do Eqipto, nas plant
reais e, ao encontrala de facto em varios de/es, as variacoes que ali observava cies de Perir. 0 periqo era tanto maior que a provfncia da Palestina tinha
convenciamme plenamente de que se quis Jazer constar aqui os habitantes sido, ela mesma, atingida pela aqitaciio; ao que parece, as Hititas tinham sido
das quatro partes do mundo, de acordo com o antigo regime eqlpcio, a saber: arrastados na tormenta, ainda que Mernephtah tivesse prosseguido as seus
g os habitantes do Egipto que, por si s6, formavam uma pa rte do mundo, bans offcios para com aqueles, enviandolhes trigo nos seus navios, durante
segundo o assaz modesto costume do povo antigo; 211, os habitantes pr6prios um perfodo de escassez, para fazer sobreviver o pafs de Khati... A batalha
da Africa, os Negros; 39, os Asiaticos; 411, e por (iltimo (e tenho verqonha de o durou seis horas, durante as qua is as arqueiros do Eqipto levaram a cabo um
dize,;jci que a nossa rara ea ultimo ea mais barbara da serie), os Europeus, massacre entre os Bcirbaros: Meryey fugiu a sete pes, abandonando as suas
que nestas epocos recuadas, sejamosjustos, niio faziam boa figura neste mun armas, o seu tesouro, o seu harem; na tabela,foram inscritos, de entre as de
do. Entendase aqui todos os povos de rara loira e de pele branca habitando funtos, 6 359 Libios, 222 Sfculos, 742 Etruscos, a/guns mi/hares de Shardanes
niio somente a Europa, mas tambem a Asia, o seu ponto de partida. Este modo e Aqueus; mais de 9 000 espadas e armaduras e um grande esp6lio foram
e
de apreender estas tabe/as tiio mais autentico que, nos outros tumulos, os capturados no campo de batalha. Mernephtah qravou um hino de vit6ria
mesmos names qenericos reaparecem, e sempre pela mesma ordem ... no seu temp/a [unebre, em Thebes, no qua/ descreve a consternaciio dos seus
O mesmo sucede com os nossos hons antepassados, os Tamhou; a sua indu inimigos;nos Lfbios, os Javens dizem entre eles, a prop6sito das suas vit6rias:
e
mentaria par vezes diferente; as suas cabecas siio mais ou menos cabeludas niio tivemos outras desde o tempo de Ra; e o anciiio diz ao seu fi/ho: oh!
e cheias de ornamentos "diversos" a sua vestimenta selvaqem varia um pouco Pobre Libia! Os Tehenou foram esgotados num uni co ano. E as outras provfn
na sua forma; mas a sua tez branca, os seus olhos ea sua barba conservam a
cias externas ao Egipto foram, tambem etas, levadas obediencia. Tehenou e
todo o caracter de uma raca a parte. Copiei e colori esta curiosa serie et devastada, Khati e pacificada, Canaii e saqueada, Ascaliio e espoliada, Gazer e
a
noqrafica. Niio estava, de modo a/gum, espera de encontrar, ao chegar a tomada, Yanoem e destruida, Israel esta desolada e jd ntio possui sementes, 0
BibanelMolouk, esculturas que pudessem servir de vinhetas para a hist6ria Kharou transformase numa viuva sem apoio face ao Egipto. Todos os pafses
dos habitantes primitivos da Europa, isto, caso um dia se tenha a coragem silo unificados e pacificados5•
de assim proceder. Todavia, esta visiio tern alga de lisonjeiro e reconfortante,
4. Champollion Le Jeune, "Lettres publiees par ChampollionFigeac" in Egypte ancienne (Col
L'Univers, 1839), pp. 3031. ·
3. N.T: Vale dos Reis 5. Moret, A. e Davy, G., Des Clans aux empires; Col. "L'evolution de I'humanite" (La Renaissance du
70 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra 111. Hist6ria do Patriarcado e do Matriarcado 71
O autor mostra que Danae tinha uma esposa chamada Ethiopis e um
as mencoes de um matriarcado na epoca egeia estarem relacionadas mesmo
filha, Celena, cujo name significa: escuridao, Demonstra que o
com um factor meridional.
name era tarnbem usado par uma das filhas de Atlas. Celena teve um
varies factores parecem atestar esta extensao antiga dos valores do
filho de Neptuno chamado Celenus. Um outro Celenos, filho de Phlyos
berco agricola em direccao ao Norte. Estes sao, sobretudo, enumera
esta na base dos antigos cultos leleges do Peloponeso. Perseu, rei d�
dos e analisaq.os num estudo de Louis Benloew:
Argos, teve um neto chamado Celena. Celenea era igualmente a filha de
Em contrapartida, sustentouse varias vezes, e com uma certa persistencia,
Preto, rei de Tirinto, que tinha mandado construir uma cidadela ciclo
pea pelos Licios. A deusa Diana do Atico era etiope; era idolatrada em
que os resultados ainda niio justificaram que a Grecia tenha sido colo�izada
Braur6nia e tinha sido Apolo a trazela da Eti6pia; Anacreonte designa
par emigrantes provenientes do Egipto. Freret procurou identificar lnaco e
vaa a filha da Eti6pia; noutros lugares, e simplesmente chamada pelo
Enaque, Fara6 e Foroneu. Io, Ji/ha de fnaco, que adopta varios dos seus tra
a
ros deusa lsis. A semelnanca destes names niio deixa de ser discut[ve/, mas
name de Eti6pia. Esta tinha altares na Lidia e na Eubeia, dais paises
e
niio suJiciente para levar os qenios a abordar este assunto seriamente e de designados antigamente coma Eti6pia. Helaneis era o antigo name da
modo convicto. A tradiciio que Jaz vir Cecrope e Danaus do Egipto niio e mais cidade de Eritreia, na Eubeia: tera sido fundada par Melaneus. Uma
Venus negra era adorada em Corinto. Estes names melanesios expan
segura. Pretendeuse que Cecrope tinha introduzido no Atico a agricultura, a
arboricultura (principalmente a cultura da oliveira}, a instituidio do casa diramse igualmente no Peloponeso. Conhecese um Melanto, filho de
mento! Filocoro chegara a aJirmar que, sob Cecrope, Atenas contava com Neleu, rei de Elida; uma regiao da Sitonia chamase Melantia, Segundo
20000 a/mas ...
Homero, Proteu tinha partido do Egipto para se instalar na Macedonia,
... Foi Platiio que, em Timeu, segundo uma tradiciio dos sacerdotes egfpcios, na peninsula da Calcidia, Originariamente, as ilhas Samotracia, Lemnos
e Lesbos eram chamadas de Eti6pia. Segundo o mesmo autor, Pelope
aJirmou que Atenas tinha mantido relacoes estreitas com a terra do Egitpo, e
nomeadamemnte com Sais ... que deu o seu name a Peloponeso apenas significaria homem de tez
A mitologia grega Jaz de Libia a miie de Belo, e atribui a este ultimo Danao e morena. No tempo de Homero, esta regiao ainda nao se chamava Pelo
poneso; este termo s6 teria sido adoptado no seculo VII.
Egipto coma Ji/hos. Estas informacoes lenddrias provam unicamente as anti
A estratificacao da populacao na Grecia, segundo Benloew, e a
gas e intimas relacties que parecem ter unido, na mais a/ta antiguidade,
Mizraim, Sem e Java. Nao e de todo inverosimil que na epoca em que os Hicsos seguinte:
se apoderaram do vale do Nilo, os Egfpcios, guiados pelos Fenicios, tenham Uma primeira camada composta par Leleges, misturada com colo
tentado colonizar a/guns pontos do Peloponeso. Na Pausania, existe mais do nos fenicios, lfbios e talvez egipclos, foi vencida pelos Aqueus, povo
n6rdico, que representa a segunda camada. Par sua vez, os Aqueus
que uma lembranca, mais do que nome que relembra o antigo Egipto ...
... Her6doto conta que as Danaides ensinaram as mu/heres de Argos a celebrar foram vencidos pelos D6ricos (terceira camada), igualmente n6rdicos .
as Tesmoforias de Demetra, celebracoes cujo ceremonial estava relacionado Tanto o matriarcado da primeira camada, coma o patriarcado das
outras duas sao inegaveis".
principalmente com a uniiio conjugal ...
... Pouco importa, afinal, que os Egfpcios tenham Jun dado ou niio uma col6nia A primeira populacao estava embebida de uma cultura meridional
nas costas da peninsula helenica. Aquila que gostarfamos de demonstrar e que a segunda teimara em destruir, a ponto de actualmente existirem
vestigios apenas perceptiveis.
que o solo da Grecia niio tinha sido ocupado, nos tempos mais antigos, unica
mente por populacoes provenientes das reqiiies boreais, que o Oriente e o Sul
A mu/her, eis onde pretend[amos chegar, parece ter desempenhado uma fun
Jorneceram o seu contingente de colonos de pele morena. A nossa tarefa serti
9ao diferente nos povos primitivos da Grecia, em relaciio aos descendentes de
Jacilitada caso se concorde que os names encontrados na mitologia dos povos
Deucaliiio, com quern viriam a partilhar o solo. Do mesmo modo que Demetra
antigos representam outra coisa que niio um mero som. Ora,foi este tom que
deu o nome a estes Etiopes, de entre os quais os Gregas reconheciam duas e Atena eram, para eles, objecto de uma idolatria particularmente fervorosa,
a mu/her usufruia ali de uma particular consideractio, mas parece ter ocu
especies, aquela que habitava no Extrema Oriente, e aquela que permanecia
no Oeste, ou seja, na Libia (talvez tambem na Nubia). Teriio el��penetrado na pado, por vezes, uma posicao superior a do homem na constituiciio da tribo.
Grecia e terseiio misturado com os habitantes deste pafs?'120
Semites et loniens. Paris. Ed. Maisonneuve et Cie, 1877, pp. 132 a 135.
20. Benloew, Louis, La Grece avant /es Grecs: Etude linguistique et ethnographique. Pelasges, Leleges, 21. Existe actualmente a tendencia de considerar o movimento d6rico coma uma luta de classes.
De entre estas populacoes primitivas, aquelas que estao mais marca Par conseguinte, a influencia cananeia na Grecia foi profunda;
das pelo matriarcado meridional sao os Pelasgos, os Leleges e os Locri tersea perpetuado durante tres seculos par interrnedio de reis que
a
os Epiceffrios de que Fala Polibio. Aludiuse varias vezes influencia encontraram colaboradores no meio da populacao. Esta preponderan
fenicia. Porvolta de meados do segundo rnilenio (1450), sob o impulso cia e tambern relatada pela Bfblia, que refere Dodanim, que nao e outra
crescente, talvez, de tribos indoeuropeias que ocupavam o interior, e coisa que nao o oraculo de Dodona:
talvez tambern par razoes comerciais, os Fenicios fundaram as suas
primeiras col6nias na Be6cia para ali instalar o excesso populacional A tradiciio da Genesee a dos Gregas esta em consoruincia ao fazer de Dodona
da cidade de Sidon. Foi deste modo que foi criada Te bas na Beocia, cuja [Dodanim, em hebreu) o mais antigo centro da civilizaciio helenica. E curioso
escolha do name confirma as relacoes estreitas com o Egipto desde encontrar, na regiiio onde esta cidade esta situada, todos os names com os
esta epoca. Com efeito, este e o name da capital sagrada do Alto Egipto, quais os Gregas se designaram desde a sua chegada ao pals no qual per
de onde os Fenicios trouxeram as mulheres negras que construiram os maneceriam fixados. 24
oraculos de Dodona na Grecia e de Amon na Libia, Cadmo personifica
O periodo sid6nio, bem coma, o contributo fenicio a Grecia: os Gregas
Homero e Hesiodo foram os poetas que fixaram a tradicao nacional
dizem que foi ele que introduziu a escrita, tal coma diriamos hoje que grega. Hesiodo era Be6cio. A sua teogonia e directamente inspirada na
foi Marianne que introduziu os carninhosdeferro na Africa Ocidental cosmogonia fenfcia, revelada pelos fragmentos de Sanconlaton, traduzidos
Francesa. A col6nia fenicia teve a supremacia no inicio: mas cedo chegou par Filo de Biblos, e referidos par Eusebio. Aqueles que consideram
uma luta de emancipacao dos Gregas contra os Fenicios que, durante que o patriarcado era a base da organizacao social fenicia poderiam
este periodo anterior aos Argonautas, possuia o dominio dos mares e a levantar objeccoes: e passive! relembrar que importa distinguir
supremacia tecnica, Segundo Lenormant, esta epoca de conflito e sim essencialmente a Fenicia da epoca cananeia, da da epoca da Palestina
bolizada pela luta de Cadmo ( o fenicio) contra a serpente, descendente israelita. Os emigrantes fenicios de Tyr, que tinham fundado Cartago,
de Marte (o grego); esta durou cerca de tres seculos, estavam sob o dominio, nao de um rei, mas da rainha Dido. Os cana
neus, que eram sedentarios que praticavam a agricultura e o comercio,
A disc6rdia lancada, deste modo entre as autoctones, com a chegada dos colo resultavam do regime meridional matriarcal e tinham grandes afini
nos cananeus, esta representada na lenda mitica pelo com bate travado, ap6s dades culturais com os Egipcios.
a chegada de Cadmo, com as Espartos naturais daquela terra. Desde entiio, Tudo aquilo que precede demonstra que, so na medida em que nos
aqueles de entre as Espartos, cuja fabula faz sobreviver a este combate, e abstraimos da sobreposicao da cultura meridional e da cultura n6rdica
que se tornam Companheiros de Cadmo siio os representantes das principais em torno do Mediterraneo e na Grecia, em particular, e que se pode fa
famflias A6nias que aceitaram a dominaciio estrangeira. lar de uma passagem universal do matriarcado para o patriarcado, da
Cadmo niio permanece par muito tempo como detentor pacifico do seu imperio; omnipresenc;a de todas as formas de organizacao social e de crencas
e rapidamente escorracado e [orcado a retirarse para junta dos Enqueleus. humanas.
E o elemento end6geno que triunfa; depois de ter aceitado a autoridade dos
Penicios, depois de ter recebido destes ultimas as beneffcios da civitizacdo,
aquele reage contra estes e procura expulsalos ... Roma
... A unica coisa que se pode discernir, nesta parte das narrativas relativas
aos Cadmeus, e o pro/undo horror que a sua rara, enquanto estrangeira, bem A situacao hist6rica apresenta grandes semelhancas com a da
coma o seu culto, ainda marcado de toda a barbdrie e de toda a obscenidade Grecia, que acaba de ser descrita: ocupacao anterior do solo par
oriental, inspirava aos Gregas pobres e virtuosos, de quern tinham sido, no
23. Lenormant: Histoire ancienne des Pheniciens, Ed, Levy, 1890, pp. 497498.
22. Benloew, Louis, op. cit., pp. 186187. 24. Benloew, Louis, op. cit., p. 3.
74 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra Ill. HistOria do Patriarcado e do Matriarcado 75
povos aborigenes com as suas pr6prias tradicces, invasao e destruicao su::�ido pe/o sobrenome do pai, a Jim de distinguir os hom6nimos; a/guns
destes povos por elementos n6madas do Norte cbegados tardiamente. Asidticos, nomeadamente os Licios, preferiam o da miie, o que Joi por vezes
No entanto, as possibilidades de investigacao encontramse particu interpretado coma o vestigio de um regime matriarcal. Ora, se os Etruscos
larmente limitadas pela raridade dos documentos sublinhada por tambem utilizam estes dais sistemas, estes recorrem tambem outro, OU ate a
Andre Aymard. mesmo unicamente, transformandose o sobrenome, unico noutros locais,
num name individual colocado antes do name de familia. Este costume afir
fmporta precisar previamente os llrnites da nossa documentatiio: a sua in· ma convictamente a forca da continuidade familiar e, de facto, esta permite
suftciencia justifica a prudencia com que se inspirariio as paginas seguintes. estabelecer, para algumas familias etruscas, genealogias bastante extensas e
A/guns Gregos e Romanos interessaramse pe/os Etruscos, consaqrandoIhes, complexas26•
por vezes, obras importantes. Limitamonos.a dois exemplos, escolhidos devido
ci notariedade dos seus escritores: Arist6tefes niio negligenciou este povo de Upercebese, assim, que o matriarcado etrusco e, pelos menos, incer
entre os cento e cinquenta e oito dos quais estudou as "constituicoes" ou insti to. Porern, tendo em conta o seu caracter agrfcola e sedentario, bem
tuiciies politicas, em tantas monoqrafias, e o fervoroso erudito que Joi o im coma as relacoes constantes que este povo teve com o Egipto o uso
perador Claudio, que escreveu Tyrrhenica em vinte livros. Porem, ta/ coma do sarcofago comprovao , a pratica do matriarcado nao seria invero
os seus semelhantes, estes tratados sistemtiticos desapareceram e da abun simil. 0 sarcofago representa, de algum mode, a materializacao da
dante "literatura" antiga, relativa ao mais prestigiado epis6dio das origens ideia religiosa que o Egipcio tinha em relacao a imortalidade. Aquele
italianas, apenas restam hoje fnfimos e desordenados fragmentos.25 reflectia a esperanca de conquistar esta ultima: neste sentido, talvez
as nocoes de sobrevivencia, as praticas divlnatorias, que ocupam um
Andre Aymard reve as tres hip6teses em vigor acerca da origem dos lugar consideravsl na religiao etrusca, tenham tido uma origem meridi
Etruscos. Uma delas falos vir do Norte atraves dos "Alpes reticos": a onal. E evidente que os Etruscos sao bastante posteriores aos Egipcios.
outra consideraos coma autoctones, cuja civilizacao tera eclodido em Se os primeiros tivessem uma origem asiatica, tal como o supfie a
consequencia de um processo de evolucao interna e gracas aos contac maior parte dos escritores antigos, se fossem os refugiados de Troia,
tos maritimos com os povos do Mediterraneo oriental; a terceira, que teriam sido, segundo a tradicao, os aliados do Egipto antes da queda
reune o maior numero de adeptos nos Antigos, veos enquanto invaso desta cidade, uma vez que o rei do Egipto e da Etiopia daquele tem
res provenientes da Asia Menor depois deter vagueado longamente no po tinham enviado dez mil Etiopes para socorrer a cidade de Prfamo,
Mediterraneo, por volta do final do segundo milenio, em consequencia cercada pelos Gregas, conduzidos por Agamemnon. Neste caso, a in
da queda de Troia. fluencia egipcia seria anterior a Guerra de Troia, o que nao teria nada
Alguns factores parecem implicar que os Etruscos conheciam o ma de improvavel ja que, numa epoca mais recuada, o Egipto ja tinha in
triarcado. Estes eram sedentarios e agricultores e, como tal, pratica fluenciado a Fenfcia. Os Sabinos viviam em Alba, na vizlnhanca dos
vam todo um ritual para o tracado das cidades com o sulco do arado. Etruscos. A raiz do seu name nao e indoeuropeia e faz lembrar uma
Ao que parece, Romulo tersea inspirado nesta tradicao ao fundar a etnonimia meridional. Estes adoravam o deus Consus, segundo Fustel
cidade de Roma. Era frequente nomearem as criancas segundo o name de Coulanges; uma divindade egipcia conhecida e designada de Khon
da mae ou do pai. sou. Em egipcio antigo, Roma, cuja origem etimologica se desconhece,
poderia estar relacionada com a raiz Rornetou, que significa "os ho
Na Etruria existem grandes famflias e a sua coesiio manifestase atraves mens". A lenda relacionada com a fundacao da cidade revela praticas
de um sistema de desiqnacao individual, ate entiio desconhecido no mundo toternicas que parecem desconhecidas ao berco n6rdico.
mediterrtinico. Toda o Oriente tinha atribuido ao homem um unico name Nao e improvavel que, no momento em que a influencia eglpcia se
expandia na Grecia ( epoca de Cecrope), esta tambern tivesse conquis
tado a peninsula italica entao habitada par povos aborigenes.
25. Aymard, A. e Auboyer, ]., Rome et son empire (col. Histoire Generate des civilisations); P. U. F.,
1954,p.17. Este fundo primitivo de populacao sera completamente dizimado
com a chegada dos verdadeiros IndoEuropeus: os Latinos, enquanto
27. Livio, Tito, Histoire Romaine, Liv re 34: "Di scours de Caton pour le maintien de la loi Oppia contre
28. Cesar, la querre des Gau/es; Livro 6, cap. 22 e 23.
le luxe des femmes. 195 av. J.C.
A mutaciio de II em dd (som cacuminal no qua/ a ponta da lfngua se dobra No espaco deixado livre na camara, estes sepultam, ap6s telos estrangulado,
para tocar na parte superior do palato, por vezes ate com a parte inferior uma das concubinas do rei, o seu copeiromor, um cozinheiro, um palafrenei
da /fngua) na Sardenha, na Sicilia, Apulia e Calabre, niio apresenta uma ro, um valete, um mensageiro, cavalos, uma pa rte se/eccionada de entre todos
mudanr,:a de menor importancia de principio, nem de um interesse menos as seus outros hens, e tacos em ouro (nada de prata au de cobre); feito isto, to
consideravel. Segundo Merlo, este modo de articulaciio particular deverseia dos traba/havam para elevar umgrande outeiro rivalizando zelosamente para
ao povo mediterriinico que viveu no pais antes da sua romanizaciio. Ainda que fosse o maior possfvel. Ao cabo de um ano, realizam esta nova cerim6nia:
que tambem existam sonoridades cacuminais noutras linquas, a mutadio ar tomam, de entre as outras pessoas da casa do rei, aqueles que estiio mais
ticulat6ria procedeu aqui numa base amp/a e num timbito que, expandindose aptos para bem servilo (estes siio citas de nascenca; siio domesticos do rei
a/emmar, possui um caracter tiio evidentemente arcaico que a concepciio de aqueles a quern este da ordens, as Citas niio possuem domesticos comprados);
Merlo tern todas as aparencias de verdade. Sem duvida, Rohlfs manifestase estrangulam, entiio, cinquenta destes servos e as cinquenta cavalos mais
contra a ideia de se encontrarem igualmente sons cacuminais noutros locais. belos. Dos cinquenta Javens que foram estrangulados, cada um Joi montado
Porem, estes siio casos que, de certo modo, confirmam sobretudo a opiniiio de no seu cava/o do seguinte modo: cravase, atraves de cada um dos corpos,
Merlo. Deste modo, Pott e Benfey revelaram ha muito tempo que a articulaciio ao longo da espinha dorsal, um pedaco de madeira vertical que vai ate ao
cacuminal, que se introduziu nas linquas arianas faladas pelos invasores do pescoco; deste pedaco de madeira, uma extremidade permanece no exterior,
Deciio, era proveniente das populacoes Dravidas subJacentes.34 na pa rte de baixo; esta e Jixada num buraco apresentado par outro pedaco de
madeira que atravessa o cavalo. Depois de ter erguido este genera de cava
E notavel que na epoca de Cesar nao existisse nenhuma deusa no leiro em circulo a volta do tumulo, as Citas retiramse. Eis o modo coma se
panteao gerrnanico, Ao mesmo tempo que constitui uma contradicao fazem as obsequies aos reis. 35
para um povo que tera conhecido o matriarcado, este facto demonstraria
que os Nibelungos ( cancao de gesta alerna) surgiram posteriormente, I Era necessario citar inteiramente este excerto para dar uma ideia
talvez durante a ldade Media. do nfvel da cultura cita no tempo de Her6doto. 0 principio do enterro
parece ser inspirado nas tradicoes egfpcias; mas a crueldade que e ali
implantada representa um trace cultural aferente ao berco n6rdico
Citia eurasiatico.
A vida e fundada sobre uma organizacao social patriarcal, com uma
No seculo Va.C., os Citas ainda eram semin6madas. Os costumes hor tendencia exagerada para a luxuria caracteristica destas regi6es. Duran
rivets sao descritos por Her6doto no seu Livro IV. 0 seu caso e tao mais te as celebracoes de Mylitta, um escravo era elevado ao trono, algumas
importante, que estes parecem constituir o agrupamento humano que cortesas e todos os outros bens da realeza estavam a sua disposicao:
permaneceu mais pr6ximo do estado e do berco primitivo indoeuropeu. de seguida, este era queimado vivo. Uma promiscuidade total era regra
Quando um rei morre, estes arrastam o seu cadaver de tribo em tribo durante a festa. A religiao exigia que as mulheres se prostitufssem nos
depois de telo embalsamado a maneira egfpcia: o corpo e revestido de templos (lugares sagrados).
cera, o estomago, esvaziado das entranhas e lirnpo, e preenchido com
aromatizantes sendo novamente cosido. Sempre que o cortejo funebre Na regitio situada entre o Eu/rates e os Montes Tauro, encontravase um
santuario de Anahita, no qua/ as Javens raparigas mais nobres se tornavam
33. Cesar, op. cit., Livro 6, cap. 21.
34. Wartburg, Walter v., Problemes et methodes de la linguistique; P. U. F., 1946, p. 41. 35. Herodoto, op. cit., Livro IV. p. 71 a 73.
82 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra Ill. Hist6ria do Patriarcado e do Matriarcado 83
cortesiis sagradas ao sacrificar a sua virgindade a deusa. Estas eram rodea e de moral mais refinadas do que as figuras grosseiras, sensuais e cruels de
das de um pro/undo respeito e nenhum homem hesitava em tomalas como Astarte, Anahita e Cibele, entre outras.39
mu/heres. Exisitia, na Babilonia, uma prostituidio semelhante. Porem, en
quanta que as prostitutas babtlonicas, devotas de Mylitta, se deviam entregar As celebracoes de prostituicao religiosa eram comeni.oradas pelos
a quaiquer um, as mu/heres consaqradas a Anahita eram reservadas para os Babil6nios, pelos Armenios e pelos Persas. A sua origem e muito con
homens que pertenciam a sua classe social, a aristocracia. 36 troversa. Para alguns historiadores, estas sao de origem babil6nica.
Conhecese o detalhe do seu ritual atraves dos escritores bfblicos,
Este tipo de promiscuidade, bem coma os mitos de Ganfmedes, de coma Ezequiel. Turel afirma que, segundo a tradicao, tera sido Ciro, rei
Sodoma e de Gamarra sao especfficos da Eurasia e nao tern equiva dos Persas, a instituilas na sequencia de uma vit6ria sabre os Sacas
lente na tradicao, na mitologia e na literatura africana, quer se trate do (ou Citas): estas seriam assim de origem cita e, alias, nao diferem em
Egipto ou da Africa Negra. nada das tradicoes citas tal coma as conhecemos atraves de Her6doto.
Em todo o caso, o seu atributo saco parece comprovar a sua origem
Foram tambem os Egfpcios que estabeleceram, em primeiro lugar, uma lei cita. A sua analise deveria assim terminar o paragrafo relativo aos Citas
para niio se unirem as mu/heres dentro de santuarios e para niio entrarem para dar inf cio ao estudo da zona de confluencia, Pretendeu verse ali
naquele local, caso viessem de junta de mu/heres, antes de se terem lavado. um regresso ternporario a igualdade primitiva; de qualquer modo, as
Quase todos os outros homens, a excepdio de Eqipcios e Gregas, unemse a mesmas permanecem particulares a Asia e resultam especificamente
mu/heres em lugares sagrados ou, ao levantarse da sua cama, entram num
desta regiao,
santudrio sem se terem lavado previamente. Consideram que os humanos siio
e
como os animais: passive/ observar, afirmam eles, toda a especie de gado e
Zona de Confluencia
toda a especie de pdssaros a acasalar nos temp/as dos deuses ou nos recintos
sagrados; se isto desagradasse aos deuses, os animais niio o fariam. Eis aquilo
A Asia Ocidental e a verdadeira zona de confluencia destes dais
que afirmam para justificar a sua conduta. Contudo, niio os aprovo de modo
bercos, aquela que foi mais asperamente disputada pelos dais mun
algum.37
dos. A sua analise oferece, assim, um interesse particular, ja que a mes
ma conduz a nocao de uma verdadeira rnesticagern das influencias e
Par sua vez, Engels, depois deter analisado a prostituicao das rapari dos povos provenientes das duas regioes. A area geografica aqui con
gas consagradas a Anahita e a Mylitta, chega a mesma conclusao: siderada e limitada pelo Inda.
Costumes semelhantes, de distorciio religiosa, siio comuns a quase todos os
povos asiaticos entre o Mediterrtineo e o rio Ganges. 38 Arabia
Todos os historiadores e etn6logos que compararam as sociedades Esta foi em primeiro lugar povoada pelos elementos meridionais,
africana e asiatica foram levados a considerar a Asia Ocidental coma a que foram mais tarde submersos par populacoes provenientes do
terra da luxuria, por oposicao a sanidade das tradicoes africanas. Norte e do Leste.
Segundo Lenormant, um imperio Cuchita terseia constitufdo
Enquanto deusa da fecundidade, Isis respondia as grandes deusasmiies da primitivamente em toda a Arabia. Foi a epoca personificada pelos
Asia; mas diferia de/as pela castidade e pe/a fidelidade da sua vida conjugal: Aditas de Ad, neto Cham.
estas niio eram casadas e tinham costumes libertinos; Isis tinha um marido Cheddade, filho de Ad, e fundador do lendario "Paraiso terrestre"
e era uma esposa fie/, ta/ como era uma miie afectuosa com o seu Ji/ho. Para mencionado no Cerao, pertence a este perfodo dos primeiros Adi
alem disso, a sua be/a aparencia de madona reflecte um estado de sociedade tas. 0 imperio destes ultimas foi destruido no seculo XVIII antes da
era crista par tribos jectanidas incultas provenientes do Nordeste.
36. Turel, op. cit., p. 146.
37. Her6doto, op. cit., Livro 2, par. 64.
38. Engels, op. cit., p. 44. 39. Frazer, op. cit., p. 132.
84 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra 111. Hist6ria do Patriarcado e do Matriarcado 85
Estas misturaramse com a populacao cuchita. A profecia de Hud diz sob a direccao de la rob, e chegaram a triunfar: em geral, a data desta revoluciio
respeito a esta invasao. No entanto, o elemento cuchita nao tardou em e fixada no inicio do seculo Vlll antes da era cristii.41
retomar o domlnio no ponto de vista polftico e cultural; estas primei
ras vagas [ectanidas foram completamente absorvidas pelos Cuchitas. Segundo Lenormant, depois da vit6ria jectanida, uina parte dos
Esta ea epoca reconhecida coma sendo dos segundos Aditas. Aditas alcancara o Mar Vermelho, no estreito do Bab elMandeb, para
se instalar na Eti6pia, enquanto que a outra fraccao permanecera na
No entanto, ap6s o primeiro disturbio da invasiio, coma o elemento cuchi Arabia refugiada nas montanhas de Hadramaute e noutros locais, 0
ta continuava a ser o mais numeroso na populaciio, e pelo facto de possuir que explica o proverbio arabe: Dividirse coma os Sabeus.
uma grande superioridade de conhecimentos e de civilizaciio em rekuiio aos Tera sido este o motivo pelo qual a Arabia meridional e a Eti6pia se
Jectanidas, recentemente provindos da vida nomada, retomou rapidamente a terao tornado inseparaveis do ponto de vista linguistico e etnografico.
supremacia morale material, o domlnio politico. Um nova imperio eformado,
no qua/ o poder continua a pertencer aos Sabeus provenientes do rara de Muito tempo antes da descoberta da linqua e das inscricoes himtariticas,
Cuche. Durante um certo ruimero de seculos, as tribos jectanidas viveram sob tinhase dado con ta de que o quez, ou idioma abissinio, se mantinha um rema
a lei deste imperio, aumentando em silencio. A maior parte adoptou os nescente da lingua antiga do Iemen.t?
costumes, a lfngua, as instituicoes e a cultura, de ta/ modo que, mais tarde,
quando se assiste a sua ascensiio, niio se verifica nenhuma mudanca con O regime das castas, estranho aos "Semitas e aos Arianos", consti
sideravel nem na civilizacao, nem na linguagem, nem na reliqiiio. tyfa a base da organizacao social, tal coma na Babilonia, no Egipto, na
A era deste nova imperio representa, para os narradores tirabes, o dos segun Africa Negra, no Reino de Malabar, na India.
dos Aditas/"
Este regime e fundamentalmente cuchita e. em todo o /ado onde se encontra,
Estes factos, em torno dos quais os pr6prios autores arabes estao de e [acil constatar que o mesmo procede originariamente desta rara. Vimolo
acordo, demonstram que seria mais prudente considerar os Semitas f/orescer na Babilonia. Os Aryas da fndia, que o adoptaram, tinhamno apren
e a cultura semita, nao enquanto uma realidade sui generis, mas en dido das populacoes de Cuche que os tinham precedido nas bacias do fndo e
quanto o resultado de uma mesticagern cujos elementos hist6ricos do Ganges ...
sao conhecidos. E durante os primeiros seculos do imperio dos Segundos ... Lockman, o representante mftico da sabedoria adita, relembra Esopo, cujo
Aditas que o Egipto conquista o pals, no tempo da minoria de Tutm6sis name pareceu revelar a M. Welcker uma origem etiope. Na India, de igual
Ill. Lenormant considera que a Arabia e o Reino de Punt e da Rainha modo, a literatura dos cantos e dos ap6logos parece provir dos Sutras. Talvez
de Saba; deve relembrarse que a Bfblia situa Put, o filho de Cham, no este modo de ficciio, caracaterizado pela funciio que o animal ali desempenha,
mesmo pals. No seculo VIII antes da era crista, os Jectanidas, torna se nos apresente coma um genera de literatura pr6pria dos Cuchitas. 43
dos suficientemente fortes, terseiam apoderado do poder da mes
ma maneira e por volta da mesma epoca que os Assfrios face aos N otese que Lockman, que pertence ao segundo perfodo dos Aditas,
Babilonios, e que Lenormant considera igualmente coma Cuchitas. e tarnbem o construtor do famoso dique de Mareb, cujas aguas "eram
suficientes para regar e fertilizar a planfcie ate sete dias de caminhada
em torno da cidade ... Ainda existem, actualmente, rufnas consideraveis
Porem, ao mesmo tempo que possuem os mesmos costumes, a mesma lingua
que numerosos viajantes visitaram e estudaram ".44
gem, os dais elementos que constitufam a populadio da Arabia meridional
Os Jectanidas, "que ainda se encontravam, no momenta da sua chega
permaneciam bastante distintos e em conf/ito de interesses, ta/ como com os
da, num estado quase barbaro", apenas introduziram, na verdade, o
Assirios e os Babi/6nios na bacia do Eufrates, em que os primeiros eram igual
sistema das tribos pastoris caracterfsticas do berco nordico e o feu
mente Semitas, e os segundos, Cuchitas...
dalismo militar.
... Enquanto que o Imperio dos Segundos Aditas durou, os Jectanidas foram
submetidos aos Cuchitas. Porem, chegou um dia em que estes se sentiram su
41. Lenorrnant, op. cit., p. 373.
ficientemente poderosos para se tornarem dominadores. Atacaram os Aditas,
42. Lenormant, op. cit; p. 374.
43. ld., op. cit., pp. 384 e 385.
40. Lenormant, op. cit., pp. 260 a 261. 44. ld., op. cit., p. 361.
86 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra tu, HistOria do Patriarcado e do Matriarcado 87
Acima deste pano de [undo, sempre conservado, de instituiciies e de tradicoes ... A mesma evoluciio Joi mais lenta e mais tardia no Hejaz ou no Nedid, ... d .
'J • ,o av,a
provenientes dos Aditas da rara de Cuche, acima do regime das castas, os a mesma sucedeu tambem durante uma epoca mais recuada do que a '
. ,. , " que1 a
Jectanidas, uma vez transformados em soberanos, tmplantaram uma or que se acredita geralmente. 0 hero, romanesco da Arabia an.teislamica, An
ganiza900 politico que lembra a da maior parte dos outros povos semlticos, tat, e mulato devido a sua miie e, no entanto, a sua face totalmente africana
e que difere daquilo que se observa nos impertos chamitas, no Egfpcio, no niio o impede de desposar uma princesa de uma das tribos mats orgulhosas do
Fenfcia, em Babilonia, nos Ntirikas do Malabar, sendo as duas instituiciies sua nobreza, o que prova o quanta estas misturas rnelanicas eram comuns, e
' 45
estimadas par todos as Arabes. aceites h6. muito tempo nos co tumes, ao Longo dos seculos que antecederam
imediatamente Maomet47
A religiao e de origem cuchita e parece emanar directamente da dos
Babilonios; esta mantersea Imutavel ate ao advento do Islao. , 0 caracter misto das linguas semiticas explicase da mesma forma,
E deste modo que e possivel encontrar raizes comuns as linguas
E impossivel niio reconhecer os deuses caldeoassirios Illu, Bel, Samas, !star, arabes, hebraicas, siriaca, e as linguas indoeuropeias. Este vocabu
Sin, Samdan, Nisruk, nos deuses do Iemen, II, Bil, Schmas, Athor, Sin, Sindan, lario comum e mais importante do que aquilo que a curta listagem que
Nasr.46 se segue permite antever. Nenhum contacto entre Nordicos e .Arabes
no interior do periodo historico da humanidade, permite explicalo, �
O deus era objecto de um culto nacional; este usufruia dos seguintes um parentesco de origem e nao um emprestimo.
atributos: Senhor dos Ceus, Misericordioso, etc. A (mica Triade
venerada era: VenusSolLua, tal como na Babilonia; a religiao tinha arabe [ranees ingles alerniio
um caracter sideral extremamente vincado, sobretudo solar; rezavase ain oeil eye Auge (occulus latim)
ao Sol nas diferentes fases do seu desenvolvimento. Nao existia nem ard terre earth Erde
idolatria, nem imagens, nem sacerdocio, Dirigiase uma invocacao di be led Ian de land Land
recta aos sete planetas. 0 jejum de trinta dias ja existia semelhante aswadnoir schwarz
aquilo que se praticava no Egipto. Rezavase sete vezes por dia, com a
face virada para o Norte. Estas oracoes sao proximas das da religiao
muculmana, Todos os elementos necessaries para a emergencia do Por outro lado, algumas palavras arabes parecem ser de origem
Islao encontravamse assim instaurados mais de 1 000 anos antes do egipcia faraonica:
nascimento de Maomet, e o Islao surgira como uma "depuracao" do sa
beismo atraves do "mensageiro de Deus". Esta sobreposicao das duas tirabe egfpcio
influencias meridional e nordica na peninsula arabica produziuse em Nabi = profeta Nab= o senhor (da Sabedoria)
todos os dominios e nao poupou a literatura, nem os herois romanes Baraka = benyao divina BaRaKa= nocoes divinas
cos.
Apesar do apreco que tinham pela sua genealogia e pelo privileqio de sangue, E notavel o facto de muitos termos religiosos poderem ser obtidos
as Ara bes, sobretudo os habitantes sedentarios das cidades, niio conservam a atraves de uma simples cornbinacao das tres nocoes ontologicas BA,
sua rara pura de qualquer mistura ... RA, KA Pode citarse, por exemplo:
... Mas a infiltraoio do sangue negro, que se espalhou em todas as partes da
peninsula e que parece ter vindo, posteriormente, a/terar completamente KABAR (a) = accao de erguer as maos para rezar.
a raca, tern inicio numa antiquidade muito recuada. Esta produziuse em RAKA = accao de pousar a fronte na terra.
primeiro lugar no lemen, cuja situadio geogrcifica e cujo comercio o relacio KAABA = lugar santo de Meca48•
navam permanentemente com Africa ...
45. ld., op. cit., p. 385. 47. Id., op. cit; pp. 429430.
46. ld., op. cit., p. 392. 48. Cf. nota no final do capitulo, p. 119
· u1z· aroes meridionais, permaneceram estave1s ate a sua economico conservala par causa do leite e da multiplicac;ao da mana
todas as civ Y • • d 1 500 da .
. · um elemento externo: a mvasao ariana e ·
destr Ulyao por data todos os vestigtos , · d e civi · ·1·izacao m ateri al desa "O abandono das raparigas, os coleqios de Heteras, o far domesticn, a
A par tiir de sta
· , · ti cremaciio ", todos estes traces culturais existiam durante o periodo
necessario aguardar ate ao seculo III a.C. para assis tr a
�re�m. Sera , . vedico e eram trazidos, indubitavelmente, pelos Arias.
especie de renascimento com o imperador Asoka. "Toda a vida familiar e regida pelo ritual domestico. Este tern por pon
s�r atrib�ida a invasao ariana,
�adestruii;ao dos locais do Jndo deve
extensao do deserto na plamcie do Sind, uma vez que esta to central o fogo (agni) que e instalado no interior da casa, no meio de
e nao a uma
era fertil foi atravessada por Alexandre o Grande, uma vedaciio de madeira, ou ainda no exterior, e que representa o ver
regiao ainda quando
dadeiro senhor do far (garhapatya) ... "
no seculo IV a.C. , . , . , . _ . .
O culto falico, tao expandido na India, e anterior a 1.nvasao an��a.
Fazse uma toilette integral ao de/unto e transportase num cortejo ... Uma
nsiste num culto da fecundidade, indicio de uma vida sedentana,
�;ricola e matriarcal. Estee, indubitavelmente, im�ut�vel ao ele�ento vez chegado ao local da cremaciio, preparase o morto uma ultimo vez, para
pemnsul�. ser colocado na fogueira; a viuva deste toma Jugar ao seu /ado, mas e con
meridional aborigene que antecedeu o elemento nordico na
Os factos que se seguem, relativos a civilizacao do Indo, foram extrai vidada a voltar a descer (para mais tarde ser, ainda assim, queimada) e a
dos das tnvestigacoes de Jeannine Auboyer
55. tornarse esposa do irmiio do de/unto. 58
Com O advento dos Arianos (entre 1 500 e 800 a.C.), o Noroeste da
lndia era habitado por uma populacao cuja car de pele esc�ra (varna) Lado a lado com a monogamia, a poligamia era praticada pelas classes
tinha surpreendido as recemchegados, tal corno o seu nariz ac�a:ad� dirigentes, isto e, nos Arias e nos Dravidas de alta estirpe. Com efeito, na
e a sua Iinguagem. Foram designados co� o termo g�ral de Drav1d�s, epoca vedica, "as castas niio siio tiio rigorosamente limitadas coma nas
1.embra1 o epocas seguintes e ainda niio siio estanques entre si."59
alguns dos seus names particulares (AJa = cabra) fazem
totemismo. Estes opuseram uma resistencia vigoros� aos rnvasore_s, Percebese, assim, que na peninsula indiana a sobreposicao das
lsto, porque sao duas culturas meridional e nordica, matriarcal e patriarcal, nao deixa
porern, misturaramse com eles ao longo do tempo.
assinalados casamentos mistos, demonstrando qu�, nesta epo:a recua lugar para duvidas. Neste local, menos do que em qualquer outro, nao
ainda niio tinham sentido a necess1dad�, tal poderiamos falar de uma passagem universal, ou seja, interna ao mes
da, os conquistadores Arya
como sucedera posteriormente, de se precaver de modo demasiado mo povo, de uma para a outra. Existiu recuperacao e triunfo, com uma
mesti�agem."56 certa mudanca da cultura dos dirigentes.
rigoroso contra os possfveis maleficios da .
SS. Aymard, A. e Auboyer, J., i'Orient et Ja Grece antique; col, Histoire Generate des Civilisations,
P. u. F., 1955. 58. ld., op. cit; p. SSS.
56. Id., p. 547. 59. ld., op. cit., p. 556.
57. ld., pp. 548 a 550.
60. Citado por Lenormant, op. cit., pp. 96 e 98. 62. Id., op. cit; p. 98.
61. Contenau, G., op. cit., p. 97. 63. Contenau, G., la Civilisation des Hittites et des Mitanniens; Payor, Paris, I, 1934, p. 4849.
A leqislaoia hamurabina precede par varies seculos a legislarao assfria. Traduz Tai coma teremos ocasiao de constatar no capltulo VI, e sobretudo
assim, certamente, um estado social que nos levaria a consideralo coma sendo em Africa Negra precolonial, esta estratificacao social e identica, sob
a
mais evolufdo. Mase necessario tambem, no que concerne especie, ter em con ta todos as pontos de vista, a de uma sociedade de castas, no sentido
o caracter etnico. Nao se ajigura de todo surpreendente que, num povo guerreiro africano do termo, isto e, no sentido de Lenormant e de Renan. Foi
coma o povo assirio, a mu/her seja mantida numa situadio Jurfdica inferior.64 o que conduziu Lenormant a classificar a sociedade babil6nica entre
as sociedades de castas. Nestas ultimas, efectivamente, o conjunto dos
O mesmo sera dizer que a condicao da mulher regrediu com a chega homens sem profissao manual, guerreiros e sacerdotes, constituem a
da dos Semitas. Outrora, a mulher usufruia de uma personalidade casta superior, ou, para ser mais exacto, os semcasta, ou seja, os ho
juridica superior a da grega e da romana. Uma monogamia temperada mens por excelencia de que acabamos de tratar. 0 termo homemdecasta
era regra. Porern, um outro factor apresentado por Andre Aymard esta reservado para a categoria subalterna de homens livres que prati
sublinha, talvez ainda mais, as marcas Cuchitas da sociedade babil6ni cam o conjunto das profissoes artesanais; este nao pode ser escravo
ca, ja salientada por Lenormant. de ninguern, pode mesmo chegar a possuir escravos; porern, no ambito
das relacoes sociais, o mesmo deve "prostrarse" perante o homem da
De facto, seas fi/hos nascidos do casamento de uma rapariga livre com um es primeira categoria, deve cederlhe o passo. A sua posicao econ6mica
cravo siio livres, ta/ coma a sua miie, aqueles que nascem do relacionamento jamais podera influenciar ou melhorar a sua posicao social. Por ultimo,
do senhor com uma con cu bin a escrava s6 alcancam plenos direitos, ao mesmo o conjunto dos escravos forma uma terceira categoria.
tempo que a sua miie, aquando da morte do seu pai. 65 A origem dos Caldeus nao e mais segura do que a dos Surnerios,
ainda que se considerem mais prontamente as primeiros como Semi
A perspectiva meridional e matriarcal, segundo a qual o descendente tas. Segundo Diodoro da Sicilia, o primeiro agrupamento humano ao
equivale aquilo que a sua mae e, parece triunfar no C6digo de Hamurabi. qual a Caldeia devia o seu name era a uma casta de sacerdotes egipcios
que tinham emigrado e que, tendose fixado no Alto Eufrates, continuava
64. Aymard, A. e Auboyer; J., EOrient et la Grece antique, p. 132.
65. Id., op. cit., p. 130. 66. ld., op. cit., p. 129.
98 CheikhAnta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra Ill. Hist6ria do Patriarcado e do Matriarcado 99
a praticar e a ensinar a astrologia, segundo os prindpios transmitidos O mesmo acontecera mais tarde com as rainhas da Russia czarista, que
pela casta mae.67 sofreu a influencia de Bizancio.
Em todo o caso, este nucleo primitivo nao deve ter resistido por mul
to tempo, no piano temporal, a invasao de um elemento etnico dife ***
rente; foi no piano intelectual e espiritual que a sua resistencia deve
ter sido mais vivaz, perpetuandose. Em toda a extensao da zona de confluencia, desde a Arabia ate ao
Cerca de 1 250 antes da nossa era, os Assirios apoderaramse da Indo, foi possfvel, em certa medida, com base nos documentos encon
Babilonia. Era certamente uma vit6ria de montanhistas pastores, fa trados, e por vezes apesar da sua escassez, decompor as diferentes so
lando uma lingua semitica muito pr6xima do acadio, enquanto que a ciedades encontradas e analisadas nas suas componentes hist6ricas
lingua sumeria nao era nem semitica, nem indoeuropeia, nem chinesa. meridional e n6rdica para melhor examinaIas e penetrar na sua
Os Assfrios estabeleceram uma sociedade patriarcal de modo ex essencia.
tremamente evidente. E impossfvel, ao analisar os costumes e as leis Foi possfvel evidenciar, em todo o lado, a existencia de um substra
deste povo, pensar por um instante que este tenha sequer aflorado um to meridional que vira mais tarde a ser encoberto por um contributo
regime matriarcal. n6rdico. Porem, os problemas teriam sido simples se a realidade nao
apresentasse, frequentemente, um caracter embaracoso, se nao tives
semos encontrado, aqui e ali, nos diferentes bercos, anomalias apa
Bizancio rentes.
Explanacao
AFRICA
104 CheikhAnta Diop AUnidadeCultural daAfrica Negra IV. Anomalias Detectadas nas Tres Zonas 1.05
a sua mae. Ptolemeu X (ou Alexandre II) assumir� o trono apo� algu�as Amazonismo
dificuldades. Com efeito, depois da morte de Soter II que tinha sido
lembrado , a sua filha Berenice tornouse rainha. Alexandre II A lenda das Amazonas aqui retratada foi recolhida e transmitida por
�:sposoua
para se tornar rei e mando� assassinala ct.e seguida. 0 Diodoro da Sicilia. E indispensavel expor o seu resumo, antes de iniciar
povo egipcio jamais lhe perdoaria este cnme. Morre�1 exllado .em Tyr; o estudo detalhado da nocao de amazonismo.
apos ter tido o cuidado de legar, em testamento, o Re1�0 do Egipto aos Segundo Diodoro, as Amazonas ditas de Africa habitavam outrora a
Romanos. Chega entao o reinado do Au/eta, que foi escorracado e Libia. Estas desapareceram varias geracoes antes da Guerra de Troia,
substituido no trono pelas suas duas filhas, Cleopatra e Berenice. Com enquanto que as de Termodonte, na Asia Menor, ainda prosperavam.
a morte de Cleopatra, os Romanos voltaram a colocar Auleta no trono: Existiram, na Libia, varias racas de mulheres guerreiras, entre as quais
este aproveitou para assassinar a sua filha Berenice e todos os seus as G6rgonas, contra quern Perseu combateu. No oeste da Libia, nos
partidarios. confins da terra, habita um povo governado pelas mulheres. Estas per
o filho mais velho de Auleta e a sua irrna Cleopatra aquela que manecem virgens durante o service militar; depois, aproximarnse de
permanecera celebre na historia subiram ao trono, apos a morte do homens e ocupam todas as magistraturas e todas as funcoes publicas,
pai. Esta casou sucessivamente com os seus dois irmaos, mortos um Os homens sao mantidos afastados destas funcoes e do exercito, Apes
a seguir ao outro. Escorracada pelos Eglpcios, retirouse durante uns o parto das mulheres, estes servem de amas. Sao mutilados a nascen
tempos para a Siria, mas foi trazida pelas tropas vitoriosas de Julio ca por forma a tornarse inaptos para o porte de armas. As mulheres
Cesar, de quern teve um filho, Ptolemeu Caesar. A mesma seduziu Mar sao submetidas a uma excisao do seio direito para melhor lancar ao
co Antonio em Tarso, na Cilicia, e este proclamoua "Rainha dos Reis". arco. Habitam numa ilha chamada Hespera, situada no Ocidente, no
Apos a derrota de Antonio por Octavio, Cleopatra escondese num Lago Tritonis; este adopta esta designacao no rio Tritao que ali desa
tumulo e divulga o rumor da sua morte, a fim de se livrar de Antonio. gua. Encontrase proximo do Atlas. As Amazonas subjugaram todas as
Este nao deixou de se suicidar, porem, durante a sua agonia, teve a pe cidades da Ilha, exceptuando Menes, considerada sagrada e habitada
nosa surpresa de tomar conhecimento de que Cleopatra se encontrava por Etiopes Ictiofagos, Posteriormente conquistaram, nos arredores,
viva. A rainha contava com o seu charme para encantar Octavio; este as tribos libias nornadas e construiram a cidade de Quersoneso
resistiu, aquela sentiuse perdida, uma vez que tinha conspirado con ( = peninsula). Venceram os Atlantes. Myrina, rainha das Amazonas,
tra Roma, e suicidouse deixandose picar por uma serpente. 0 Egipto dispunha de um exercito de 2 000 mulheres experientes a cavalgar.
caiu sob o dorninio romano.1 No final das suas conquistas sobre os Atlantas, e ate mesmo sobre as
Apesar deste matriarcado adoptivo impasto aos soberanos es Gorgonas, mandou incinerar os corpos das suas companheiras. Por
trangeiros gregos pela tradicao do reinado egipcio, a violencia e as in fim, as Amazonas e as Gorgonas foram exterminadas por Hercules,
trigas continuaram a reger o verdadeiro destino dos principes e das aquando de uma expedicao ao Ocidente: dai, por conseguinte, as Colu
princesas. A historia egipcia da epoca ptolemaica apresenta mais do nas de Hercules.
que um traco de parentesco com a de Bizancio, As rainhas do periodo Durante o seu reinado, Myrina entrou no Egipto, criou amizade com
helenico sao todas provenientes do mesmo filao: fazem tanto mais Horus, filho de Isis, que era entao rei do pais, Daquele lugar, partiu
figura de cortesas e de conspiradoras quanta as rainhas autenticas para guerrear os Arabes, exterminando um grande numero de entre
acreditadas pela tradicao. Sao as Arianas que se adaptam aos cos eles. Mais tarde, subjugou a Siria, a Cilicia, a Frigia, parando no rio
tumes meridionais e o seu caso nao pode ser confundido com o das Caicus. Fundou Cime, Pitane, Priene e combateu contra as habitantes
rainhas provenientes de uma verdadeira tradicao matriarcal. De facto, da Tracia."
abstraindo Bizanzio, que ja consideramos como um complexo oriental Apesar da tese geralmente aceite, e facil constatar que a sociedade
a parte, seria vao procurar em Roma, menos afectada pela influencia descrita desta forma nada tern de matriarcal; reflecte antes, ainda que
meridional, uma rainha governando sozinha, mesmo durante esta se trate de uma lenda, a vinganca impiedosa e sisternatica de um sexo
epoca baixa. sabre o outro. Para permanecer na logica desta tradicao, somos levados
2. Diodoro da Sicilia, Histoire universelle; Livro III, par. 52 a SS, trad. Hoefer, Ed. Adolphe de la Trays,
1. Amelineau, E., Resume de l'Histoire de /'Egypte; Paris, 1894, pp. 170 a 176. Paris, 1851.
106 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra IV. Anomalias Detectadas nas Tres Zonas 107
a supor um periodo anterior, durante o qual as homens de uma certa E ususal afirmarse que os Egipcios em particular ea Africa em geral
regiao teriam por habito considerar todas as cidadas femininas da sua nao conhecem o cavalo das estepes eurasiaticas antes da invasao dos
comunidade coma escravas, a quern se podia infligir qualquer tipo de Hicsos. A domesticacao deste animal afigurase, assim. consistir no
tratamento. Estas ultimas, em consequencia de uma revolta vitoriosa, apanagio dos Arianos. Ora, o cavalo representa o suporte por excelen
levaram a cabo a sua vinganca praticando uma tecnica consumada de cia das Amazonas.
depreciayao do homem. Fisicamente, este era mutilado a nascenca, par Estas praticam igualmente a incineracao, tao caracteristica do berco
forma a manterse inapto para o service militar; a sua educacao era n6rdico. Combatem todos as Arianos n6madas e poupam a cidade dos
concebida de modo a que lhe fossem inculcados apenas sentimentos Etiopes, considerada sagrada e cujo name evoca o de Menes, primeiro
vis, e afastando qualquer nocao que pudesse despertar a coragem au rei do Egipto. A sua rainha cria laces de amizade com Horus, um rei
a honra. 0 mesmo teria sido eliminado, caso nao fosse necessario para sede!ltario. Em contrapartida, levara a cabo uma expedicao na regiao
a procriacao. A nocao de casamento au de lar; au ainda de qualquer dos Arabes n6madas. A tradicao afigurase, assim, bastante coerente,
sspecie de vida em com um, e impensavel. por muito surpreendente que possa parecer. A analise consequente
O matriarcado nao representa o triunfo absoluto e cfnico da mulher leva a pensar que as Amazonas sao de facto provenientes de um berco
abre o homem; consiste num dualismo harmonioso, uma associacao eurasiatico, no qual predominava um regime patriarcal feroz. Foi par
aceite pelos dais sexos para melhor construir uma sociedade seden este motivo que aquelas se revoltaram e que, depois do seu triunfo,
taria na qual cada um prospera plenamente entregandose a activi combateram em todo o lado os partidarios deste regime e terao poupado,
dade que esta em maior conformidade com a sua natureza fisiol6gica. e ate mesmo estabelecido relacoes amicais, com as representantes
Um regime matriarcal, longe de ser impasto ao homem par circunstan daquele, onde as cidadas do mesmos sexo sempre se realizaram livre
cias independentes da sua vontade, e aceite e defendido par eh mente.
O Amazonismo, longe de ser uma variante de matriarcado, sur e en E errado supor que existem Amazonas um pouco par toda aparte
uanto a consequencia 16gica dos excessos de um regime patriarcal no mundo. Foi par assimilacao abusiva que se alargou esta designacao
desenfreadoj Tudo, nas Amazonas habitos, factos apurados, local de a mu/heres da America do Sul, sob pretexto que estas combatiam tao
habitat leva a interpretar o seu regime no sentido que acaba de ser hem quanta as homens, quando na verdade, nao apresentam nenhuma
indicado. das outras caracteristicas relativas ao amazonismo, particularmente o
Se observarmos de perto, percebemos que as Amazonas quer se desprezo pelos homens, etc.
jam as de Africa ou da Asia Menor habitam exclusivamente com as Ea partir de um erro semelhante que se fala igualmente das Amazo
populacces arianas, n6madas, que praticam o regime patriarcal mais as de Daome. Um rei do Daorne, Gheza (18181858), lutando contra
ultrajante. os Ioruba, suseranos do seu pais, utilizou todos as recursos nacionais
A localizacao das G6rgonas e das outras Amazonas de Myrina em de que dispunha para veneer. Foi deste modo que, para se apoderar da
Africa enganou muitos genies. Porern, se prestarmos atencao ao de tutela do Benim, teve de criar companhias de cavalaria femininas que
talhe do local, verificamos que se trata essencialmente da Cirenaica combateram com tal vigor, que os historiadores modernos assimila
(Lago Tritonis) habitada pelos Lfbios bran cos n6madas, designados ramnas as Amazonas. 0 facto de estas companhias terem sido criadas
Povos do Mar, e cujos primeiros contingentes ja se encontravam pre e dirigidas par homens demonstra que a situacao destas mulheres foi
parados desde 1500. radicalmente diferente da das Amazonas classicas, que nao podiam
Convern relembrar que a Cirenaica e o local de origem de Atena e pensar em combater sob ordens masculinas. Nao se trata aqui de uma
de Poseidon, duas divindades adoptadas pelos Gregas, mas que sao organizacao feminina aut6noma, no seio de uma sociedade masculina,
sempre consideradas enquanto originarias da Libia. Poseidon era, de cuja autoridade seria ignorada. Estas nao sao mais Amazonas do que
facto, deus de um povo proveniente do mar, tal como o eram os Libi aquelas que sao membros dos Corpos auxiliares femininos dos exer
os. E nesta peninsula da Cirenaica que se encontra uma cidade desig citos europeus modernos. Todos as seus atributos lhes sao proveni
nada Hesperides, Par ultimo, a distancia das costas do Peloponeso a entes do homem, que concebeu a sua formacao: deste modo, estas
Cirenaica e mais curta do que aquela que separa esta regiao do Delta nao possuem nada de intrinseco e de cornparavel a autodeterminacao
do Nila. das Amazonas. 0 6dio ao homem eIhes desconhecido, possuem
108 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra IV. Anomalias Oetectadas nas Tr€s Zonas 109
informa a carne, embeleza o name, e atribui a vidaffsica e espiritual.
a consciencia de "recrutas" lutando unicamente pela libertacao do seu
Uma vez reunidos os dais elementos, Ka e Zetformam o ser total que realiza
pais. a perfeiciio. Este ser possui propriedades que o tornam um habitante do ceu,
que se designa BA (Alma?) e AKH (espfrito?). A Alma BA, fiqurada atraves do
O Matriarcado Fula pdssaro BA, detentora de uma cabeca humana, vive no ceu ... Assim que o rei
se une ao seu KA, tornase BA.4
A sociologia da comunidade fula e, indubitavelmente, do maior in
teresse para as ciencias humanas. Raros sao os povos que deram tanto Pouco importa se a interpretacao de Moret e correcta ou nao, Esta
permite sublinhar a importancia destes conceitos no pensamento
que falar. 0 conjunto das contradicoes aparentes que ali se encontram
desencorajou, ou desorientou, frequentemente os investigadores. egfpcio.
Encontramonos hoje perante as hip6teses mais extravagantes a seu Portanto, nao e um mero acaso que o name de KA seja o mais nobre
respeito. Deste modo, compreendese o interesse que apresenta uma e o mais autentico dos names fulas.
documentacao inedita acerca da sua sociedade. Presumiuse com frequencia que os Fulas estavam na origem dos
'A primeira dificuldade a ultrapassar consiste em conseguir explicar, Brancos, que se teriam negrificado progressivamente por via da mes
ticagem, A analise da lingua fula, o seu parentesco gramatical profun
partindo das hip6teses que se encontram na base do presente estudo,
de que modo e que os N6madas Fulas podem praticar o matriarcado. do com as outras linguas do grupo africano (wolof, serer, egfpcio an
O inverso poderia parecer evidente. A resposta esta relacionada com o tigo ... ), leva a supor o contrario", Com efeito, sea Franca actual tivesse
conhecimento das origens deste povo. De onde sao eles provenientes? de se negrificar com a invasao progressiva de um povo exterior, mes
'Com base em dois facto res importantes, e possivel afirmar, com mo em consequencia desta transforrnacao, o suporte da cultura, isto e,
quase toda a certeza, que os Fulas sao originarios do Egipto e que a lingua, permaneceria francesa, mesmo caso a pr6pria sociedade nao
alguns de entre eles pertencem mesmo ao ramo regio das antigas tivesse sido abalada. Os novas mesticos continuariam a falar frances,
dinastias fara6nicas. Com efeito, sao as nocoes ontol6gicas do BA e do Se as Fulas fossem um elemento conquistador, de um nivel cultural su
KA que se encontram enquanto names toternicos essenciais dos Fu perior, propagadores de uma civilizacao, provenientes nao se sabe de
las. Ora, o nome toternico representa essencialmente um indice etnico onde, mesmo ao misturaremse em tais condicoes de superioridade, e
na Africa Negra. BARA, BARI, KARA, KARE, todas estas designacces a sua cultura que deveria ser transmitida, e a sua lingua que deveria
mais compostas, visivelmente, por raizes egipcias, extraidas da teogo ser imposta aos aborfgenes da Africa, ao inves de se produzir o inverso.
nia mais autentica e mais secreta. Sabemos que, ate a revolucao pro Somos, portanto, forcados a supor que estes estavam na origem de
letaria que se produziu no final do Antigo Imperio, o Fara6, por si so, autenticos africanos, progressivamente mesticados com um elemento
possuia um KA imortal e usufruia da morte osiriana. exterior. Apenas esta hip6tese torna inteligivel os factos constatados,
Qualquer que seja a verdadeira essencia do BA e do KA nos antigos permitindo explicar o motivo pelo qual, apesar da sua mesticagern evi
Eglpcios, o facto de os reencontrarmos, sob a forma de names toterni dente, os Fulas falam uma lingua negra, que nao pode ser relacionada
cos, e sem qualquer duvida possivel nos Fulas, parece sustentar a tese com nenhum grupo sernitico ou indoeuropeu; e que o matriarcado se
de Moret que pretendia demonstrar o totemismo egipcio a partir da encontre na base da sua organizacao social, apesar do seu nomadismo.
analise destas nocoes.' De resto, estes possuem todos os traces culturais em comum com os
Por outro lado, Moret afirmara acerca de BA e de KA: outros povos mais ou menos mesticados da Africa Negra: Ioruba, Sara
coles, etc.
O Ka, que vem unirse ao zet, e um ser divino que habita no ceu e s6 se mani Na medida em que os Fulas sao de origem egipcia, estes foram Afri
festa ap6s a morte... canos sedentarios, agricultores e praticaram o matriarcado. Em conse
Nos textos do Antigo lmperio, para dizer morrer, recorrese a expressiio "pas quencia da deslocacao da sociedade egipcia antiga desaparecimento
sar para o seu Ka" Outros textos precisam que existe, no ceu, um Ka essencial ... da soberania terao emigrado bastante tardiamente, com as suas
e
este Ka ... preside as forces intelectuais e morais; ele que, simultaneamente,
4. Moret, l'Egypte et la Civilisation du Nil; p. 212.
3. Moret, Des clans aux empires. 5. Cf. Apendice.
110 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra IV. Anomalias Detectadas nas Tres Zonas n.1
Por flm, tornandose mais fracas as ligacoes ancestrais, por fotc;:a
manadas de bovinos. Par Iorca das circunstancias teriam, deste mo�o,
das exigencias da vida moderna que desagrega as antigas estruturas,
passado da vida sedenta�·ia �ara. a vida non:iada. Compreendese, en tao, o Africano sentese, cada vez mais, tao proximo do seu filho coma do
triarcado da prrmerra epoca contmue a regulamentar as rela
que O ma
tanto mais que e sem duvida abusivo falar d� u� noma ism�
di seu sobrinho uterino. Porem, em alguns povos que ainda nao estao em
c;:oes sociais;
absoluto do Fula. Na verdade, este e semin6mada: a Afnca Negra esta contacto intelectual e moral com o Ocidente, tal como os Sereres, a
heranca matrilinear ainda prevalece. 0 filho nao tern nada, o sobrinho
repleta de aldeias fulas habitadas em qualquer epoca do ano. S6 a
fraccao [ovem da colectividade caminha atras dos rebanhos, atrav�ssa herda tudo.
provincias inteiras em busca de pradaria, para voltar a descer ate ao
E tambem a estes tres factores que convern imputar a transformacao
ponto de partida com o fim da estacao, . _ _ , . do nome das criancas que deixam de usar o do seu tio materno, isto e,
Poderseia objectar que os names citados nao sao os umcos usa o da mae, para adoptar o do pai. Ja observamos que em 1253, quan
dos pelos Fulas. Certamente, sim; mas sao os mais autenticos, u�a vez do lbn Batouta visitou o Mali, esta importante operacao ainda nao se
que os Fulas nao os partilham com nenhum outro povo da Africa, en tinha efectuado na farnilia africana.
quanto que os seus outros nomes pode� ser �tiliz�d�s por individuos
de agrupamentos etnicos diferentes. Assirn, Diallo e, sirnultaneamente,
um nome fula e tukuler; Sow e, ao mesmo tempo, um nome fula e lao Poligamia
be, etc.
Esta explicacao permite compreender, em simultaneo, o_ matri�rc�do Tai coma outros pensadores ja o fizeram, Engels salienta que a poli
do Fula, o seu nomadismo, o seu totemismo, as suas ongens etmcas gamia nao e especifica de nenhum povo; foi e continua a ser praticada
e as da sua lingua. 0 matriarcado deste povo semin6mada deixa de pelas classes sociais elevadas de todos os paises, talvez nao em graus
constituir uma objeccao valida a tese aqui fundamentada. diferentes, mas sob formas diferentes. Era comum na aristocracia ger
manica do tempo de Tacito, na Grecia, na epoca de Agamemnon, em
toda a Asia, no Egipto na familia faraonica, e na dos dignatarios da car
Patriarcado Africano te. Em todos estes paises, sem prejufzo de danos morais, poderseia
usufruir deste luxo caso se possuisse os meios para tal; mas a mono
Verificase que a tendencia actual da evolueao interna da Fami gamia era regra no seio do povo, em particular na Africa. Na medida
lia africana se orienta para um patriarcado mais ou menos atenuado em que a A.frica e considerada enquanto a terra da poligamia, importa
pelas origens matriarcais da sociedade. Nao e demais realcar .o papel salientar este facto. N as representacoes esculturais e pict6ricas do
desempenhado, nesta transformacao, por factores externos, tats como antigo Egipto, a monogamia popular e comprovada pelos numerosos
as religi6es, Islao e Crtstianismo, e a presenca ternporarla da Europa casais representados.
em Africa. Ao que parece, assim sucedeu em toda a Africa da alta Idade Media,
O Africano islamizado e automaticamente dominado, pelo menos ate ao seculo X, que marca a extensao do Islao as populacoes aut6ctones,
no que concerne a heranca dos hens, pelo regime patriarcal. 0 mesmo pelos Almoravidas, A poligamia tera, entao, tendencia a generalizarse,
sucede com o Cristao, quer seja protestante ou cat6lico. Porem, para sem nunca deixar de representar o indicio de um estatuto social. Por
alern disso, a legislacao colonial tende a atribuir em toda a parte um outro lado, nao e raro verse cidadaos comuns que, procurando iludir
estatuto oficial a estas opcoes privadas, tal coma o comprova um julga se acerca do seu proprio estatuto social, casam com varias mulheres.
mento sucedido em Diourbel em 1936, sob a Administracao Champion, E com este paragrafo acerca da poligamia que convem relacionar a
relativo a heranca das terras da aldeia de Thiatou, perto de Gaouane: Investigacao daquilo que designamos por mau tratamento da mulher
o diferendo foi decidido a favor do partido de Magatte Diop, que fa africana. Uma vez mais, e a concepcao matriarcal que ira esclarecer
zia prevalecer a heranca patrilinear, em conformidade com o direito as factos de modo inteligivel. Esta implica, efectivamente, uma dualidade
frances, e em detrimento da sobrinha do seu pai GagneSiriFall, irma relativamente rigida na actividade quotidiana de cada sexo. A divisao
de Dieri Fall, que invocava a filiacao matrilinear, valida essencialmente,
do trabalho socialmente aceite reserva ao homem as tarefas arrisca
fundamentava esta, para os garmis, isto, e, as familias dinasticas e a das, de poder, de forca e de resistencia: se, em consequencia de uma
nobreza.
114 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra IV. Anomalias Detectadas nas Tres Zonas 115
qualquer epoca, parece ser natural que os trabalhos mais arduos se a bacia interior do Mediterriineo ficou a dever o cu/to da fecundidade e da
jam concretizados por bomens, qualquer que seja a latitude. Nao eram DeusaMiie?6
certamente as mulheres que fabricavam os instrumentos agrfcolas, tal
coma as enxadas, etc. Tarnbem nao foram elas que tiveram de desbra A opiniao de Furon, simultaneamente mais tenue, nao deixa de constt
1
var os primeiros territ6rios virgens. 0 homem tinha que acumular esta tuir uma especie de conftrmacao:
tarefa com a da pesca e da caca, tal coma acontece ate aos nossos dias
em muitas sociedades primitivas. A emergencia do matriarcado esta Durante este tempo, na Africa e no Oriente, que ignoram o Salutreano e O
relacionada com o facto de, numa vida verdadeiramente sedentaria, a Magdaleniano, os Auriqnacianos negr6ides pro/ongamse directamente
mulher, ao inves de representar, praticamente, um peso morto na so numa civilizaciio conhecida coma Capsiana, cujo centro parece ser a Tunisia.
ciedade, poder trazer uma contribuicao econ6mica consideravel e in A partir daqui, tera alcancado, par um lado, a Africa do Norte, a Espanha, a
cornparavel com aquela que e permitida pela vida n6mada; e percebe Sicilia e a Italia do Sul, disputando assim a Bacia do Mediterriineno com as
se, de imediato, que num regime desta natureza, esta mais digna e Caucasos e com as Mong6is; par outro lado, a Libia, o Egipto e a Palestina.
do que o hornem na transrnissao dos direitos de heranca. Com efeito, Tera, µ_or ultimo, dominado parcialmente o Saara, o Sudiio, a Africa Central e
mesmo na vida sedentarla, o homern e relativamente mais m6vel, tern ate a Africa do Sul. 7
menos ligacoes do que a mulher cuja missao social, ao que parece, con
siste em permanecer no lar. 0 rapaz de uma Familia africana, por exem A prop6sito das estatuetas esteatopigias, que temos vindo a tratar,
plo, e cornparavel a um passaro em cima de uma galho: este pode voar Furon escreve:
a qualquer momenta, e um potencial emigrante que, mesmo em alguns
casos, nao regressa ao Ian Por conseguinte, este apenas deve a sua Com · das estas estatuetas com um "ar de famllia" seremos levados a admitir a
perenidade as raparigas que lhe sao relacionadas: dai a transrnissao ideia do cu/to da fecundidade, uma vez que seria inacreditavel que a Franca, a
matrilinear dos interesses familiares. Se fosse o homem a transmitilos, Italia ea Siberia tivessem sido povoadas par povos da mesma raca, negr6ides,
cornpreendese que estes estariam rapidamente comprometidos, per cujas mu/heres fossem todas esteatopiqias. 8
didos no exterior. Estas ideias sao muito familiares aos Africanos, que
conhecem bem a sua sociedade. A presenc;:a de um elemento meridional negr6ide no Sul da Europa,
lNa epoca das cidades lacustres, a julgar pela importancia dos siste durante a epoca aurignaciana, e comprovada atraves da presenc;:a do
as de defesa erguidos para se protegerem contra a natureza externa, homem de Grimaldi.
inimigo primeiro, a precariedade da vida tera vindo a restringir o pa
pel que a mulher podia desempenhar na sociedade: esta devia nao s6
encontrarse paralisada num temor religioso, mas tambem material, Matriarcado Gerrnanico
constantemente alimentada pela luta pela vida, contra os animais, as
forc;:as da natureza e os vizinhos. Alguns indicios levam certos autores !al_ como o matriarcado neolftico n6rdico, se o matriarcado ger
a justificar a presenc;:a das estatuetas esteatopigias com a chegada de mamco fosse demonstrado, este tenderia a provar a universalidade do
populacoes meridionais, talvez africanas, para se instalarem na Eura fen6meno. Porem, quer num caso coma no outro, a escassez dos docu
mentos invocados e da mesma ordem.
sia do Sul, na epoca aurignaciana.
E o caso de Dumoulin de Laplante: Nada e mais duvidoso do que este matriarcado germanico, Bement
e Monad, apoiandose nos estudos de Cesare de Tacito, afirmam que:
Foi :ntiio que uma miqraciio de negr6ides de tipo hotentote teria, e do
O Germ a nos niio conheciam o dote; mas a mu/her oferecia tributos ao seu marido ...
da Africa Austral e Central, submergido a Africa do Norte, a Argelia, a Tuni
a
sia, o Egipto e trazido, a forca, uma nova civilizaciio Europa mediterranica:
Omero homem livre devia contentarse com uma tinica mu/her; a poligamia
s6 era permitida aos nobres. Em algumas tribos, a viuva niio podia voltar a
a Aurignaciana. Estes Bochimanos foram as primeiros a gravar nas rochas
desenhos qrosselros, e a esculpir estas estatuetas de calcario representando
6. Laplante, Dumoulin de Histoire generale synchronique; Paris, 194 7, p. 13.
adiposas, monstruosas mu/heres qravidas. Tera sido a estes Africanos que 7. Furon, Manuel d'orcheotoqie prehistorique, Paris, Ed. Payor, 1943, pp. 1415.
8. ld., p.151.
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casarse; "a mulher toma um unico esposo, ta/ coma possui um unico corpo, estupefacdio, o facto de se aceitar, no Egipto, "elevar" todas as crianr;:as: en
uma unica vida, a Jim de esta a mar o seu casamento e niio o seu marido" tendase que ali niio se praticava, ta/ coma na Grecia, a "exposiciio'; isto e, 0
[Tacita]. O pai de familia tinha direitos alargados sabre a sua mu/her, que abandono dos recemnascidos gemendo entre os dejectos da vida rnateriolw
podia escorracar caso esta /he fosse infiel, que podia ate vender em caso de
necessidade, hem coma sabre os seus Ji/hos que podia expor, sabre os seus O unico factor que subsiste a favor de um matriarcado, ap6s uma
alforriados e sabre os seus escravos; mas esta autoridade era interrompida analise profunda da sociedade germanica, e deste modo acordado ao
a
relativamente ao Ji/ho maior de idade e Ji/ha casada; mais velho, o pai j6. sobrinho, sobretudo em materia de tomada de refens, em que este
niio contava coma membro activo, era o Ji/ho que o substitufa. Os Germanos e preferido ao filho. Ora, isto poderia efectivamente constituir uma
niio conheciam os testamentos: os parentes mais proximos por consaquini pratica introduzida pelos Fenf cios, no ambito dos contratos comerciais
dade herdavam com plenos direitos; as mu/heres eram exclufdas do /egado que estabeleciam com os Germanos.
da terra. Os rapazes eram iguais entre si; niio existe qualquer vestfgio seguro
acerca do direito de primogenitura.9
atriarcado Celtico
E dificil considerar enquanto matriarcal um regime no qual, apesar
de tudo, a mulher presenteia o marido, enquanto que este pode vendela S6 foi possivel falar do matriarcado irlandes assimilando a este cos
caso seja necessario e expor os seus filhos, no qual aquela e excluida tume algumas praticas que lhe sao estrangeiras:
da heranca da terra, e onde o filho e que herda do pai e nao o sobrinho, Deste modo, Hubert cita Straban que parecia apoiarse em Pytheas
no qual os parentes mais pr6ximos por consaguinidade sao herdeiros, para afirmar que os Irlandeses nao conheciam nem mae, nem irrna.
exceptuando os de filiacao uterina. Uma vez que a filha casada esca Segundo Cesar, os Celtas da GraBretanha possuem uma mulher por
pa a autoridade do pai e pode ser vendida pelo marido, isto significa cada grupo de dez a doze homens, composto indistintamente por
que a mesma ja nao faz parte da sua familia natural, contrariamente irrnaos, pais e filhos. Aguele que trouxe a mulher para casa representa
aquilo que aconteceria numa sociedade matriarcal. Encontramonos, o pai nominal <las criancas que nascem. Estamos na presenca de um
portanto, na presenca de um regime patriarcal, com as suas exigencias caso de poliandria que nao deve ser confundido com o casamento em
mais atrozes, tal coma a exposicao das criancas: s6 num regime desta grupo.
natureza e que o pai pode expor os seus filhos quando ja nao os pode A poliandria e o apanagio exclusivo dos IndoArianos, exceptuando os
alimentar, vista que, num regime matriarcal, os seus pr6prios descen Semitas. Esta consiste em forcar uma mulher, contra a sua vontade, a as
dentes nao lhe pertencem. Neste ultimo caso, e o tio que possui o di segurar a descendencia de um grupo de irmaos ou outros. Assistiuse ao
reito de vender o seu sobrinho e e este ultimo que herda do primeiro: seu desenvolvimento em Atenas, bem coma aqui, em pais anglosaxao,
daqui resultam as expressoes wolof, anteriormente citadas. Ao que parece, por muito extraordinarlo que possa parecer, os Arabes
A exposicao das criancas e o enterro das raparigas em tenra idade, terao contribuido de modo significativo para a educacao refinada do
consideradas como bocas imiteis, eram praticas correntes em todo o homem ocidental da Idade Media. Cabe a estes o surgimento da vida
mundo eurasiatico patriarcal, onde isto surgia com frequencia coma da Corte.
uma dura necessidade. Com os habitos ancestrais a ajudar, mesmo Hubert explica a poliandria celtica pela inferioridade econ6mica da
ap6s a sedentarizacao, esta pratica mantersea usual nos Gregas, mulher no sistema social: sendo os homens detentores de um interesse
quase estupefactos por ver os Egipcios elevar todas as suas criancas, material em introduzir o menor mimero de mulheres possfvel no gru
sem distincao de sexo, ao inves de as expor, de entre elas, uma fraccao po. Este salienta que as Gaulesas realizavam o seu service militar tal
consideravel desde a nascenca, nas imundicies materiais: como os homens, que acompanhavam para o combate.
O mesmo sucedeu com as Irlandesas correlativamente com o seu
Mas o desejo de posteridade masculina, uma vez satisfeito, niio impedia o direito a propriedade fundiaria. Estas s6 foram isentas progressiva
sacrificio dos nascimentos ulteriores. Os Gregas salientaram, quase com mente pela Igreja Crista. Cornecaram inicialmente por readquirir o
service militar entregando metade da propriedade a familia.
9. Bemont, Ch. e Monod, G., Histoire de /'Europe au MayenAge; Vol I, Ed. F. Alvcan, Paris, 1921, pp.
21 e 22. 10. Aymard, A. e Au boyer,)., UOrient: et la Grece antique, op. cit., p. 49.
118 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra IV. Anomalias Detectadas nasTrCs Zonas 119
A famflia normal dos Celtas, �pesar destes !ac_tores
uma e quase exclusivamente
=r=: As
e destas
mu/heres
Encontramse novamente os mesmos costumes consanguinarine, tal
coma a "caca aos cranios" que era uma instituicao cultural comum aos
relfquias do passado, fam1lia agna:ica.
consitutem a instrumento de um parentesco natural, mas nao de parentesco Gauleses e aos Irlandeses.
civil. o descendente dafilha niio faz parte da linhagem do seu avo, excepto num O autor que cita Posid6nio demonstra que os cavaleiros suspendiam
caso: aquele em que um homem que niio tern herdeiro masculino case a sua os cranios embalsamados dos inimigos mortos na garupa dos seus
filha resguardandose a crianca que ira nascer, que se torna juridicamente cavalos. Gabavamse das avultadas somas oferecidas pelas familias
niio mais seu neto, mas sim seu Ji/ho. Esta familia agrupase em torno de um dos defuntos para recuperar estes trofeus de caca,
far que Joi o centro do seu cu/to e niio deixou de ocupar um lugar central na Os mesmos foram encontrados como efigies na moeda Gaulesa.
representariio da sua essencia e da sua unidade,'? A sociedade celta e, deste modo, claramente patrilinear e provida de
todos os outros traces culturais relativos a esta tradicao.
A patria potestas (poder paternal) do chefe de familia gaulesa e iden A filiacao matrilinear naquele local traduz sempre uma anomalia,
tica a do Romano. Segundo Cesar, possuia o direito de vida e de morte sempre que a sua existencia nao e contestavel,
sabre os seus filhos.
Nos Irlandeses, esta autoridade s6 tern um fim com a morte do pai, Afiliacao de individuos coma Cuchullain e Conchobar e apontada pelo name
e aos 14 anos (idade do service militar) com os Gauleses; de seguida, da miie. Estes eram de nascenca incomum e, precisamente, os irlandeses
O jovem entra entao na clientela de um chefe. Ainda de acordo com atribuiam a familia da miie as criancas nascidas fora do casamento.14
Cesar, citado por Hubert, o marido tinha o mesmo direito de vida e de
morte sobre a sua esposa.
A poligamia era corrente. Matriarcado Etrusco
As concubinas, em irlandes bem urnadma, compravamse nas grand es feiras A sua existencia nao teria nada de surpreendente, tendo em conta a
anuais e par um ano.12 profunda influencia meridional a que este povo deve ter sido submeti
do. No entanto, apesar de tudo, permanece extremamente duvidoso.
A condicao da mae nao exercia influencia sobre a dos filhos. Se adoptarmos, por um instante, a origem troiana dos Etruscos, relern
A transrnissao de um bem integral como a Realeza nao se efectuava bramonos que Eneias, ao correr nas destruidas ruas de Troia onde
de pai para filho. Escolhiase, de entre os agnados vivas, aquele que perdera a sua mae, procurou sobretudo salvar o seu pai e o altar do
tinha maior direito um irmao mais novo ou um primo, por exemplo. mestico, o lar, segundo Virgilio: o fogo sagrado do lar nao se apagara,
Tal como em todas as sociedades IndoArianas, a sociedade celta apesar da longa travessia maritima ate Roma, local onde servira para
possuia a sua plebe composta por "desclassificados" (sobretudo os fundar uma nova cidade, a maneira ariana. Sabese, segundo Fustel de
que tinham perdido nos jogos de Inverno ), desenquadrados expulsos Coulanges, que a manutencao de um fogo permanente representa uma
das familias para escapar a uma divida de sangue ou de dinheiro, etc. tradicao especificamente indoeuropeia. Pode recearse, no maxima,
Estes "sern lar nem abrigo" eram extremamente numerosos na Galla, que Virgilio tenha reconstituido as origens etruscas segundo as ideias
segundo Cesar. romanas.
A existencia desta imensa classe fora da lei (Outlaws) leva H. Hubert A presenca de figuras de amazonas na arte etrusca constitui um ar
a escrever: gumento suplementar contra a existencia do matriarcado na Etruria.
11. Hubert, H., op. cit; p. 248. 14. Hubert, H., !er de um modo geral pp. 247 e 236 a 292.
12. ld., op. cit., p. 248. Filhos de escravos rebeldes, os "Banis" reconquistaram a sua liberdade e restauraram hoje, na flo
13. ta, op. cit; p. 239 resta guianesa, o matriarcado africano. 0 marido volta para junta da sua mulher.
Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra IV, Anomalias Detectadas nas Tres Zonas
Amazonismo do Termodonte da Amazona Hipolita, Par conseguinte, Hercules empreende
. - u um
ex�e d_ icao e gan h au uma grande batalha, durante a qual destruiu
A narrativa da tradicao que se segue e extraida de Diodoro. Nas mar exercito das �mazonas ... Os Barbaros revoltaramse. Pentesileia, filh
gens do Rio Termodonte, habitava outrora um povo governado par de Marte e Ramha das Amazonas, uma sobrevivente ao massacre
b ateu d urante muito . .corn
mulheres experientes, tal coma as homens, na profissao da guerra. _ tempo ao lado dos Troianos, contra as Greg OS, e
Uma de entre elas, revestida pela autoridade real, e notavel pela sua morreu pea 1 mao de Aquiles.15
forca e pela sua. coragern, formou um exercito composto par mulheres, C�ncluise, a partir deste texto, que as Amazonas da Asia e as de Afri
acostumandoo com a dureza da guerra, e servindose dele para sub ca t�m o mesm,o c?mportamento. Ainda que de proventencia eurasian.
meter algumas povoacoes vizinhas, Tenda este triunfo aumentado o ca, e �a sua propna sociedade q,ue estas tern aversao, As suas conquis
seu prestigio, esta rnarchou contra outros povos limftrofes. A fortuna tas situamse na Europa e na Asia, excluindo a Africa. As ultimas de
que ainda !he era favoravel nesta expedicao encheua de orgulho. A entr: �las combaterao ao lado dos Troianos, aliados do Egipto, contra
Rainha, que se proclamava filha de Marte, obrigou os homens a fiar a Gr�c�a _que personifica o regime patriarcal. Depois das suas primei
a la e a entregarse a tarefas femininas; estabeleceu leis segundo as ras _v1tonas, estas sedentarizamse, constroem cidades e dedicamse a
quais as funcoes militares pertenciam as mulheres, enquanto que os agricultura, rejeitando a vida n6mada.
homens eram mantidos na humilhacao da escravatura. As mulheres
estropiavam as criancas do sexo masculino logo a nascenca, pernas e Tend� os �eu� empreendimentos guerreiros sido levados a born porto, as
braces, de modo a tornalas inaptas para o service militar; queimavam heroinas vitoriosas proveram domicilios, fundaram cidades e dedicaramse a
o mamilo direito as filhas para que a proeminencia do seio nao as in agricultura.16
comodasse durante os com bates. E devido a esta utlima razao que lhes
e atribuida a deslgnacao de Amazonas. Por ultimo, a sua Rainha, tao Na: Amazonas, existe uma sucessao sisternatica das rainhas ao trono.
celebre pela sua sabedoria e pelo seu espirito guerreiro, fundou, na foz Is�o e resultado de uma reaccao a um regime patriarcal; nao consti
do rio Termodonte, uma cidade consideravel, nomeada Temiscira e ali tut uma caracteristica do matriarcado. Neste ultimo, a filha herdeira
construiu um Palacio famoso. Esta teve o cuidado de implementer uma e guardia legitima do trono devido aos seus direitos inviolaveis
boa disciplina e, com a participacao do seu exercito, recuou os limites e associado um homem com frequencia, o seu irmao . que prepara
do seu imperio ate Tanais. Finalmente, apos numerosas exploracoes, e executa as .grandes decis6es de interes�e nacional. Nao existe, por
teve uma morte heroica num com bate, defendendose com valentia. A ta�to, excl�s1v1smo, mas sim associacao. E este o motivo pelo qual os
sua filha, que a sucedeu ao trono, imitando a mae ciosamente, chegou Remos da Asia Central, referidos par Turel, nao devem ser considera
a ultrapassala em varias coisas. Esta exercitava as jovens para a caca, dos enquanto dominados pelo matriarcado:
desde tenra idade e, tornavaas familiar com as dificuldades da guerra.
lnstituiu sacrificios sumptuosos em honra de Marte e de Diana, apeli Ao /ado destes fragmentos, vestfgios de um sistema primitivamente muito
dada de Tauro (habitante da Taurida}, Levando as suas armas para la mai� vasto, os relat6rios de autores chineses acerca do Estado ginecocr<itico
do Tanais, submeteu numerosas povoacoes alargando as suas conquis da ��ia Central (��de a mu/her p6de conservar a sua predomintincia quer
tas ate a Tracia. De regresso ao seu pals, carregada de despojos, a mes politica, quer familiar; ate ao seculo Vl// da nossa era) merecem toda a nossa
atenciiol?
ma ergeu Templos esplendidos a Marte e a Diana e conciliou o amor
dos seus siibditos pela justica do seu governo. De seguida, levando a
cabo uma expedicao para o lado oposto, conquistou uma grands parte A tecnica de subjugacao do homem e a mesma: este fia a la. Sabese
da Asia e expandiu o seu dominio ate a Siria. As rainhas que lhe que esta era a actividade do rei asiatico degenerado Sardanapalo.
sucederam, enquanto herdeiras directas, reinaram com esplendor e
ainda contribuiram para o poder e para o prestlgio da nacao das Ama O mesmo sera dizer que este se cobriu com o vestido transparente das prostitutas
zonas. Apes um grande numero de geracoes, tendose espalhado o ru
mor do seu valor por toda a terra de Hercules, filho de Alcmena e de 15. Diodoro, op. cit., Livro II. Par. 45, 46.
Jupiter, recebeu de Eristeu, afirmase, a tarefa de lhe trazer o cinturao 16. Turel, op. cit., p. 75.
17. ld., op. cit; p. 77.
122 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra IV. Anomalias Detectadas nas Tres Zonas 123
e que se ocupou a cardar a Iii, ta/ coma Sardanapalo e os outros soberanos Atraves da sua analise, e possivel alcancar as disposicdes sentimen
asiaticos correspondentes.18 tais e sociais dos povos que as criaram. Como e evidente, teria sido
necessario saber em que epoca a lenda surgiu, para alern de saber sea
Seria vao procurar o equivalente destes costumes em Africa e, em mesma nao tera sofrido modificacoes ao longo do tempo, isto e, se e de
particular, no Egipto, abstraindo qualquer influencia estrangeira. facto caracterfstica do periodo hist6rico ao qual se pretende atribuila.
Sendo estas condicoes ideais, impossfveis de preencher, permanecera
sempre uma ampla parte de interpretacao, que podemos, no maxirnn,
Asia: Reino da Rainha Semiramis esforcarnos por restringir. Mas seremos certamente obrigados a pro
ceder desta forma caso se pretenda tentar escrever a hist6ria destes
E ainda de Diodoro que se deve extrair a narrativa que relata as primeiros periodos da humanidade, cujos escassos testemunhos so
accoes da rainha lendaria Semiramis. breviveram.
Uma vez que se trata da mais celebre de todas as mulheres de que Semiramis nao e, como as rainhas africanas, princesa de nascenca,
tenhamos conhecimento, tornase necessario mostrar de que modo, consagrada rainha pela tradicao, E uma cortesa de condicao humilde,
proveniente de uma condicao humilde, esta alcancou um estado de cujas circunstancias favoraveis conduziram a tomada do poder. Repre
gl6ria. Filha de Venus e de um pastor sirio, segundo a lenda, a mesma senta, portanto, uma aventureira, tal como todas as rainhas asiaticas,
foi miraculosamente elevada por pombas que tinham feito ninho, em Por detras destas, nenhuma tradicao matriarcal.
grande quantidade, no local onde tinha sido exposta. Os pastores, tendo Ao considerar as tres zonas, Africa, Europa e Asia, e possfvel apre
descoberto a crianca, entregaramna ao chefe dos ovis reais chamado sentar a situacao da mulher do seguinte modo:
Simma: daf o nome Semiramis; outros afirmam que este nome signifi
ca pomba em sirio. Foi dada em casamento a Menone, um cortesao do Em Africa Egitpo e Eti6pia incluidos , a mulher usufrui de uma
rei, que a levou a Ninive e de quern teve dois filhos, Hyapate e Hydaspe. liberdade igual a do homem, de uma personalidade juridica e pode
Semiramis foi associada a todos os trabalhos do seu marido, dada a ocupar todas as funcoes (Candace, rainha da Eti6pia e general supe
sua inteligencia, 0 rei Ninus procurou conquistar a Bactria; cercou a ci rior do seu exercito). Ja e emancipada e nenhuma acto da vida publica
dade de Bactram, mas foi repelido. Semiramis, que era subsequente ao lhe e desconhecido.
rei devido a sua inteligencia, encontrou uma saida afortunada para a
empresa de Ninus, ao encontrar um meio de contornar as fortificacoes Na Asia, por tradicao, nao e nada. Toda a sua fortuna se encontra na
da cidade, ao mesmo tempo que distraia os defensores. Foi isto que lhe aventura e na vida cortesa pelo menos no que concerne o berco ao
valeu a homenagem do Rei, que a pediu em casamento, propondo ao qual limitarnos a nossa analise, Aqui, a nocao de concubina e de harem
seu antigo esposo que Iha concedesse. Aguele, que ameacava cravar reveste todo o seu sentido.
os olhos ao seu cortesao em caso de recusa, viu o seu desejo satisfeito,
mas este ultimo enforcouse e Semiramis tornouse rainha. Ninus teve Na Europa, na epoca classica (Grecia, Roma), nenhuma aventura cor
um filho com ela, Ninyas. Quando morreu, deixou a coroa a Semira tesa, nenhum representante, nenhum acidente poderia levar a mulher
mis. Atribuiselhe, se nao a criacao, pelo menos o embelezamento da a reinar. Esta era sobretudo assimilavel a uma escrava, na medida em
Babil6nia.19 que, nao possuindo personalidade jurldica, nao podendo sequer ser
Certamente, estes textos sao lendarios e nao seria conveniente in vir de testemunha, enclausurada no gineceu, nao podendo participar
terpretalos a letra. No entanto, Semiramis existiu tal como os outros em qualquer deliberacao publica, o marido possuia o direito de vida
soberanos lendarios acerca dos quais a hist6ria critica possui poucos e de morte, de venda sobre ela e sobre os seus filhos que podia ex
documentos: Menes, Minos, as Amazonas, etc. A sociologia que pro por. No entanto, as "prostitutas" sao as (micas que usufruem da estima
cura, entre outras coisas, apreender a mentalidade dos povos, longe e da consideracao da elite intelectual, sem contudo poder tornarse
de se incomodar com estas lendas, encontra ali materia para reflectir. "rainhas cortesas" como na Asia. Assim Aspasia foi amante de Pericles,
que mandou embora a sua mulher legi tima para viver com ela, apesar
18. ld., op. cit; p. 148. dos rumores publicos: assim sucedeu tarnbem com a cortesa grega
19. Diodoro, op. cit., Livro II, par. 4.
124 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra IV. Anomalias Detectadas nas Tres Zonas 125
Agathocleia com Ptolemeu IV Filotapor que matou o seu pai e a sua O [ilho, segundo os testemunhos antigos, recebe do pai o dardo e a espada.
irrnaesposa Arsinoe, e as outras Gregas cuja mais celebre e Rhodo lsto deve ser o suficiente para ultrapassar as necessidades da sua existencta.
phis. e
Porem, se a rapariga privada de heranca, esta tera de sacrificar a sua vir
A mulher europeia nem sequer sera emancipada com o C6digo Na gindade para adquirir a fortuna que um esposo The assegura.
poleao, tal coma sublinhou Engels: sera necessario esperar o final da ... e, apesar da instituiaio das formas fundamentalmente patriarcais do seu
ultima guerra para ver a Francesa votar. povo, a/guns autores aticos consideram que o melhor uso que se pode dar a
Voltando a Asia, podemos afirmar que, tal coma em Bizancio, a fortuna materna consiste em entregar um dote a filha, a Jim de preservar esta
sucessao ao trono s6 era regulamentada atraves da violencia, da intriga, utlima da corrupciio. 21
excluindo qualquer nocao de matriarcado. Os reis persas adoptaram
o habito de nomerar os seus sucessores em vida e, frequentemente, o Nao existe nada de surpreendente no facto de os Licios praticarem
assassinato politico fazia o restante. o matriarcado se, de facto, estes forem originarios de Creta, tal coma
Segundo Maspero, Ciro trata da sua sucessao antecipadamente desig reclama a tradicao. No entanto, nos dados apresentados, permanece
nando o seu filho mais velho, Cambises, que mata o irmao mais nova uma contradicao maior que convern revelar. Num regime matriarcal,
para evitar qualquer rivalidade. coma ja verificamos, e a pessoa que herda, isto e, uma rapariga, que
Cambises e tambern o primeiro Ariano que casa com a irrna, de acor recebe o dote em simultaneo, uma vez que e esta que nao abandona o
do com a tradicao egipcia, sem que se tenha conhecimento, tendo em seu cla, a sua familia. E isto e totalmente 16gico e bem fundamentado
conta as suas numerosas crises de epilepsia ea sua depravacao, men em acontecimentos, quando se remonta ate a origem. 0 facto de subor
cionadas por Her6doto acto este que revelaria ja uma intencao sadica dinar a heranca da rapariga a necessidade de lhe conceder um dote
e incestuosa. no momenta do seu casamento colocanos, assim, na presenca de um
regime patriarcal em pleno vigor, no qual a mulher deve compensar a
sua inferioridade com o contributo de um dote ao seu marido. Portan
Matriarcado Lf cio to, e para satisfazer esta exigencia imperiosa de dotar as raparigas em
todas as sociedades indoeuropeias, exigencia que levava, por vezes, a
Segundo Her6doto, Licio viria de Lico, filho de Pandiao, rei de Atenas; suprimilas ou a livrarse delas atraves da venda, que parece ter levado
mas os primeiros habitantes da Licia teriam sido emigrados de Creta, ao acordo da entrega de um legado, uma heranca que lhe possa servir
sob o comando de Sarpedao, irrnao de Minos. Os Licios nomeavam os de dote. Sendo este ultimo injustificavel fora das condicoes de vida pa
seus filhos exclusivamente segundo o name da sua mae. triacal, seria vao procurar na sociedade gercoromana, depois da seden
tarizacao, uma razao material que o pudesse legitimar: o mesmo e um
A sua genealogia baseavase unicamente na filiaciio materna e era somente prolongamento de uma tradicao que remonta a epoca da vida n6mada.
o estatuto social da miie que classificava a crianca. Nicolas de Damas comp/e Por conseguinte, o matriarcado licio e no minima duvidoso. Este com
tas estes dados com detalhes relativos aos direitos de sucessiio exclusivamente porta, com efeito, dais factores contradit6rios Inconcillaveis a partida:
reservados as raparigas e que, segundo ele, seria proveniente da tradiciio a transmissao dos direitos politicos por via da rapariga, por um lado, o
licia, direito niio escrito que Socrates definiu coma emanando da pr6pria que resulta de um matriarcado autentico e, por outro lado, o contributo
divindade. 20 de um dote para obter um esposo, costume proveniente do patriarcado
nao me�tentico. Porern, nao sera uma !al justaposicao de habitos
Nao e o filho de Sarpedao que lhe sucede, mas a sua filha Laodamia. pr6pria de uma zona de confluencia coma a Asia Menor?
Procurou justificarse este costume licio pela necessidade de dotar
as raparigas. Turel relembra a este respeito que em Roma se repetia,
constantemente, que a rapariga sem dote casada desta forma nao se
distinguia da concubina.
20. Turel, op. cit., pp. 25 e 26. 21. Id; op. cit., pp. 60 e 61.
126 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra IV. Anomalias Detectadas nas Tres Zonas 127
V. Cornparacao dos outros
aspectos das Culturas N 6rdica
e Meridional
O estudo comparativo das estruturas meridional e n6rdica, das suas
realizacoes, pode ser generalizada e alargada a outras areas que nao
a da familia. Foi o tema desta analise que impos o inicio a partir deste
ponto. Por outro lado, nao era indiferente saber, apesar das informa
coes gerais, qual dos dois berc;:os tinha, em primeiro lugar, oferecido a
mulher a possibilidade de se emancipar.
A cornparacao da gen Estados, no norte e no sul, nao e menos
edificante.
Africa
Sabemos que a estrutura do Vale do Nilo exigiu da populacao, desde
a sua instalacao, empreendimentos e uma actividade geral comuns a
todos os Nomos e a todas as cidades, por forma a fazer face a fen6
menos naturais, tal como as cheias do rio. A obrigacao de quebrar o
enquadramento demasiado estreito, isolador, da familia primitiva, isto
e, do cla, a necessidade de um poder central forte, que transcendesse
o indivf duo e coordenando o trabalho, a unificacao administrativa e
cultural, a nocao de Estado e de Nacao, tudo isto estava implicado nas
condicoes materiais de existencia, Para alem disso, os clas primitivos
fundiramse, desde cedo, para vir a constituir apenas divisoes adrninis
trativas (os Nomos). 0 Estado surgiu com o seu aparelho de Governo
aperfeic;:oado ate nos mfnimos detalhes, sem que se possa apreender,
4. ld., op. cit., p. 125. 6. Fontanes, Marius, Les Egyptes; Paris, 1880. p. 169.
5. ld., op. cit., pp. 233 e 234. 7. Coulanges, Fustel, op. cit., p. 265266.
132 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra V, Comperecsc dos outros aspectos das Culturas NOrdica e Meridional 133
o
que resta entao da liberdade individual que parecia tao carac marca a delimitacao: e a partir deste que os costumes sao suavizados
teristica do berco n6rdico desde a antiguidade? Nada para o perfodo que se cornecam a substituir os seres humanos par animals, destma,
que nos interessa; observarnos que a mesma deixou de existir pouco dos ao sacrificio. A substituicao de Isaque, seu filho, pelo carneiro tra
depois da sedentarizayao e que, mesmo anteriormente, s6 era valida zido par um anjo apos a terrfvel ordem divina que a tradicao tern tanta
para o paterfamilias. dificuldade em justificar, so pode ser interpretada desta forma.
Com o contacto dos Estados meridionais e com o fim da vida n6ma No Egipto, cenas representando, talvez, sacrificios humanos que
da, as N6rdicos vao conceber um tipo particular de Estado que per remontam a Prehistoria estao esculpidas na Paleta de Narmer, desco
manece marcado de sequelas do perfodo precedente. Este culmina berta par Quibell em Hierac6mpolis. Em contrapartida, ao que parece,
rapidamente num totalitarismo que qualificarfarnos de "nazi" actual os Hebreus ainda os praticavam ate ao seculo V, no tempo em que
mente, e que nao tern correspondente no sul, Egipto, Eti6pia e no resto Herodoto visitou o Egipto. Foram igualmente assinalados em algumas
da Africa Negra. E bastante provavel que o cidadao egipcio tenha sido tribos germanicas,
esmagado pelo peso dos impastos e dos trabalhos arduos durante a Na Africa Negra, apenas subsistiram de modo muito parcial em
epoca da construcao das Pirarnides, mas nunca conheceu esta intro Daorne, no pals Massi, contrariamente a opiniao generalizada. Quanta
missao do Estado na sua vida privada. E impossivel citar, na historia a antropologia propriamente dita, nos casos reals, esta esta sobretudo
do Egipto antigo, da Etiopia e da Africa Negra, um (mica caso em que a relacionada com a penuria econornica, tal coma foi o caso na Europa
autoridade estatal tenha impasto expor as criancas pelo simples facto durante a Idade Media, ou na Antiguidade, para as armadas de Cam
de terem nascido disformes, ou de permitir a limitacao do seu nasci bises em marcha contra a Etiopia,
mento. Pelo contrario, o respeito pela vida, pela pessoa humana era de A diferenca dos bercos nao engendrou unicamente, portanto, duas
tal modo que, segundo Herodoto, quando um cidadao mibio era con famflias diferentes; esteve de igual modo na origem de dois tipos de
denado a morte, o Estado contentavase em intimalo com a ordem de Estado irredutfveis um ao outro. Mas a CidadeEstado nordica, que e
se suprimir, mas a sua propria mae velava entao, par patriotismo e por uma organizacao sedentaria baseada nas ideias adquiridas sob a vida
civismo, pela execucao da sentenca e encarregavase ela propria caso nornada, revelarsea a menos adaptada as novas condicoes de vida
o filho viesse a falhar. Isto relembra, certamente, a morte de Socrates, dos cidadaos que a servem. Explodira entao, por assim dizer, debaixo
condenado a beber o suco da cicuta. Porern, a influencia meridional dos nossos olhos na epoca prehistorica, para dar lugar ao tipo de
nos paises nordicos nao se limitou ao ambtto estatal, esteve presente Estado meridional: aquele que poderfamos designar de Estado ter
tambern ao nfvel da legislacao, para a melhoria das condicoes de vida ritorial, par oposicao a CidadeEstado, recobrindo varias cidades e
e pela igualdade dos cidadaos, Quando Solon foi designado palos Ate transformandose, par vezes ate, em Imperio, Tai foi a evolucao da
nienses para lhes redigir um Codigo que viesse a gerir as suas vidas cidade Romana, ate ao momenta do seu apogeu durante o qual podia
publica e privada, este inspirouse oficialmente na Sabedoria egi pcia. considerar o Mediterraneo coma um mar interior: mare nostrum.
Platao refere que aquele se deslocou ao Egipto para se iniciar jun to dos A evolucao do patriotismo sera corolaria com a do Estado, com o
sacerdotes que, outrora, consideravam os Gregas coma criancas: na desaparecimento da xenofobia ariana.
verdade, eram simplesmente mais jovens na via da civilizacao.
Seria possfvel conciliar este lugar atribuido ao individuo nas so
ciedades meridionais com os casos de sacrificios humanos que ali Realeza
detectarnos? Na realidade, estes sao comuns a toda a humanidade. Nos
Gregas, originariamente, comiamse os inimigos vencidos, crus ou co Os imperativos da vida agrfcola colectiva exigiram, desde cedo, a
zidos; encontramse vestigios deste costume na Iliada. Agamemnon, existencia de uma autoridade temporal, coordenadora, que nao tardou
general superior dos Gregas, sacrifica a sua filha Ifigenia, antes da par em transcender a sociedade para adoptar um caracter sobrenatural,
tida para Troia, a fim de se conciliar com os deuses da Vitoria. 0 seu divino.
av6 ja tinha servido ao seu irrnao, a mesa, a carne dos seus sobrinhos.
Foi esta, segundo a tradicao, a origem do destino pavoroso que se aba Desde o inicio, o rei e deus. Niio par imagem, a Jim de relembrar o seu poder
teu no ramo dos Atridas, isto e, de Agamemnon. Nos Hebreus, Abraao e a sua superioridade sabre o homem com um. E, pelo contrtirio, a expressiio
136 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra V. Comparacdo dos outros aspectos das Cultu,as N6rdica e Meridional 137
dos quais se considera que o vigor, que lhe permitia assegurar a sua de um canal. Segundo Caillaud, que descobriu Meroe, era chamado de
funcao, se esgotou. primeiro agricultor, no pafs de Sennar, isto e, na Nubia. E a ele que se
deve a fertilidade dos campos e a ausencia de calamidades sociais de
Durante o reinado, renovamse cerim6nias do mesmo genera. Siio jubileus; qualquer especie, Para alem disso, era considerado normal que este
mas o sentido da maior parte de entre e/as e mais rico do que o de simples reservasse ritualmente, por assim dizer uma parte das colheitas de
festas. Tratase de voltar a dar ao rei, na frescura vigorosa de outrora, es cada um para o mantimento da sua pr6pria famflia e dos seus servos.
tas forcas reliqiosas e maqicas de que depende a prosperidade do pafs. Sem , Assim sucedeu durante os primeiros reinados, ate que o aparelho
duvida, estas cerim6nias representam a adaptaciio de costumes brutais que, administrativo introduziu a corrupcao, Como e evidente, a funcao de
inicialmente, culminavam na sua morte e na sua substituiciio por um sucessor defesa do pafs cabia tarnbern ao rei, mas nos pafses meridionais agrari
mais jovem.t? os, durante perfodos alargados de paz, o papel militar do rei era rele
gado para segundo plano, depois do seu papel sacerdotal e agrfcola. As
Seligman demonstrou que esta concepcao vitalista do Egipto antigo coisas aconteceram desta forma ate a epoca em que o mundo meridi
e tambern a do resto da Africa Negra, mesmo actualmente12• Em alguns onal foi arneacado e invadido pelo mundo indoeuropeu, no decorrer
povos de Africa, o rei e efectivamente entregue a morte depois de uma do segundo milenio,
duracao variavel de reinado, que e de dez anos nos Mboum da Africa
Central, e a cerim6nia tern lugar antes da colheita do painco, Entre os Numerosos soberanos egipcios parecem ter vivido pacificamente, e o [re
povos que ainda praticam a execucao ritual do rei, deve citarse os quente elogio da paz, com acentos quase modernos, niio representa a oriqi
Ioruba, os Dagbani, os Tchamba, os Djoukon, os lgara, os Songhai, os nalidade menos notavel da pr6pria literatura oficial do Egipto.15
Ouaddal, os Hausa de Gobir, do Katsina e de Daoura, os Shilluk13• Esta
pratica existia igualmente no antigo Meroe, isto e, no Sudao de Cartum, Nern a guerra era o apanagio do sul, antes da guerra dos N6rdicos,
no UgandaRuanda. nem a agricultura era o do berco setentrional. Foi portanto, muito pro
Um rei desta natureza era simultaneamente o sacerdote que, no vavelmente, com o contacto com o mundo meridional da epoca egeia
Egipto, delegava as suas funcoes sacerdotais a um oficiante que as que os invasores n6rdicos da Grecia e da Italia, adoptaram, gradual
cumpria diariamente no templo. mente, o habito de praticar, de respeitar, e ate mesmo de considerar
O rei africano distinguese do rei n6rdico pela sua essencia divina e finalmente a agricultura enquanto sagrada, tal como e tradicao no
pelo caracter vitalista das suas funcoes, Um deles e um homem berco meridional. Existe, de facto, contradicao no que concerne a di
sacerdote, o outro e um deussacerdote entre os viventes: o rei do vinizacao do cultivo do solo por n6madas. Para alern disso, diversas
Egipto e de facto o Deus Falcao, Horus, vivendo para o maior beneficio provas demonstram que, na peninsula italica, foram os Etruscos que
de todos, mesmo na sua actividade desportiva: iniciaram os Romanos ate no tracado ritual da cidade com o arado.
Na Grecia, a tradicao faz remontar a Cecrope e Egito, ambos filhos de
Cacando e pescando, este ainda cumpre a sua funciio convencional de so Egipto, a adopcao da agricultura como actividade nacional.
berano, uma vez que se mostra sempre, consequentemente, hdbil, poderoso e
preocupado, pelo menos na cara mesmo o crocodilo e o hipop6tamo existem
nos ptuitanos em purgar o pais de animais se/vagens.14 Religiao
O rei no Egipto e na Eti6pia era tambern o primeiro agricultor: e No domfnio da religiao, de igual modo, a diferenc;a nao e menos
frequentemente visto nas representacoes dando a primeira pancada significativa entre as concepcoes n6rdica e meridional.
com a picareta (como sinal de bencao") para dar infcio a escavacao Mircea Eliade, em Histoire des religions, quis demonstrar o caracter
universal de algumas crencas religiosas, tal como os rituais ctonico
11. Aymard, A. e Aubayer, J., op. cit.. p. 24. agrarios, que poderfamos encontrar de forma mais ou menos signifi
12. Seligman, A Study in Divine Kingship; Landres, 1934.
13. Westermann e Baumann, Peuples et Civilisations de l'Afrique; trad. Mlle Hamburger, Payor, cativa, em todas as sociedades na sua origem. No en tan to, uma analise
1941, p. 328.
14. Aymard, A., op. cit., p. 25. 15. /d., op. cit., p. 26.
138 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra v. Ccrnparacdc dos outros aspec.tos das Culturas N6rdica e Meridional 139
atenta dos factos obriga a rejeitar este ponto de vista. E contraditorio, este cu/to com elas, umas nas margens do Gange, outras nas do Mediterriineo.
par exemplo, que a cultura e o pensamento religioso de um povo Posteriormente, entre estas tribos divididas e que ja niio tinham relap'io entre
nomada se inicie par rituais agrarios, Tera sido, portanto, depois da si, umas adoraram Bra ma, os outros Zeus, e outros ainda Jana; cada grupo
sedentarizacao que os n6madas arianos terao adoptado, ao mesmo providenciou os seus pr6prios deuses. Porem, todos conservaram, coma um
tempo que a agricultura, os rituais ea religiao corolaria, De modo que, legado antigo, a religiiio primeira que tinham concebido e praticado no berco
se nao tivermos em conta a cronologia, corremos o risco de generali com um da sua racal?
zar crencas que, originalmente, eram extremamente Iocalizadas.
Eliade mostrou, de facto, que com a descoberta da agricultura surgiu Segundo o autor, visivelmente, os deuses da Natureza, tal coma Zeus
uma religiao fundada numa Triade cosmica, transformada em atmos foram adoptados tardiamente, contrariamente a opiniao que faz rernon
ferica: o Ciel, ou DeusPai, por interrnedio da chuva, fecunda a Terra, tar a sua origem ao tempo das estepes e que se baseia em analogias
ou DeusaMae para que nasca a VegetacaoFilha, Estas tres divindades linguisticas, no minima duvidosas. Ao demonstrar que nao faz parte da
c6smicas nao tardaram a antropomorfizarse entendase, encarnar sua natureza Intima nao serem adorados pelo estrangeiro, nao serem
em seres humanos nas pessoas de Osiris, Isis, Horus, mas numa xenofobos, este op6eos aos deuses do lar que nao saberiam submeterse
epoca em que, sem duvida, os Arianos ainda eram nomadas e prati a presenca ou a veneracao do estrangeiro. 0 culto dornestico separava
cavam um culto claramente diferente, sabre o qual a lingufstica com os individuos ate na morte, porque ate mesmo alerntumulo, as fami
parada permite obter alguns esclarecimentos. 0 testemunho de Cesare lias nao se misturavam. Este teve durante muito tempo a supremacia
peremptorio sabre este ponto e atesta que, ate uma epoca recente, as em relacao aos outros cultos; Agamemnon, generalissimo vitorioso,
crencas nordicas e meridionais permanecem distintas. regressando de Troia, dirigese em primeiro lugar ao seu lar para lhe
agradecer:
Os costumes dos Germanos siio muito diferentes: porque niio possuem
qualquer druida para presidir ao cu/toe niio se preocupam, de todo, com sacrifi l}Jiio e a jupiter que este vai agradecer; niio e num templo que ele vai manifestar
cios. Apenas consideram os deuses que apreendem e cujas beneficiencias siio a sua alegria e a sua gratidiio; este oferece o sacrificio da acetic de qracas ao
sensfveis, o sol, Vulcano ea lua: nem sequer ouviram Jalar dos outros.
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lar que se encontra na sua casal"
Com Tacito, ja se percebe a influencia meridional nos Germanos Sue Inicialmente, as divindades nacionais eram elas proprias dornesticas
vos (actuais Suabios] que sacrificam a [sis, cornecando assim a adoptar e pertenciam a famflias privadas.
os rituais agrarios do sul. Vendryes mostrou qual foi a extensao e a
profundidade desta influencia religiosa meridional recente. Foi necessario muito tempo antes que estes deuses saissem do seio das famf
Com Fustel de Coulanges, ficamos a saber que a base religiosa da lias que os tinham concebido e que os viam coma patrim6nio pessoal. Sabe
farnilia patriarcal nornada e o culto dos Antepassados: mos ate que muitos de entre eles nunca se libertaram desta liga9ao domesti
ca. A Demetra de Eulesis permanece a divindade particular da familia dos
Constitui uma grande prova da antiguidade destas crencas e destas praticas, Eumolpides; o Ateneu da Acr6pole de Aten as pertencia a famllia dos Butades.
o facto de as encontar simultaneamente nos homens da margem do Mediter Os Potitii de Roma tin ham um Hercules e os Nautii uma Minerva ...
rtineo e nos da peninsula indiana. Certamente, os Gregas niio adoptaram esta Acontece que, com o passar do tempo, a divindade de uma famflia que tivesse
religiiio dos Hindus, nem estes ultimas dos primeiros. Mas os Gregas, os Italia angariado um grande prestfgio na imaqinacdo dos homens e parecendo
nos, os Hindus pertenciam a uma mesma raca; os seus antepassados, numa poderosa proporcionalmente a prosperidade desta famflia, qualquer cidade
epoca muito recuada, tinham vivido em conjunto na Asia Central. Foi ali que desejava adoptala e prestarlhe um cu/to publico para obter os seus benefi
conceberam, em primeiro lugar, estas crencas e estabeleceram estes rituais. cios. Foi o que aconteceu com a Demetra dos Eumolpides, com o Ateneu dos
A religiiio do Jago sagrado data, assim, da epoca longfnqua e obscura em que Butades, e com o Hercules dos Politii.19
ainda niio existiam nem Gregas, nem ltalianos, nem Hindus, e em que s6 exis
tiam Arias. Quando as tribos se separaram umas das outras, transportaram
17. Fustel de Coulanges, op. cit; p. 26.
18. ld., op. cit., p. 23.
16. Cesar, La Guerre des Gau/es, Livro I, cap. 21. 19. ld., op. cit., pp. 140· 141.
140 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra V. Comparadic dos outros aspectos das Culturas N6rdica e Meridional 141
Este caracter privado, dornestico, constitui um trace comum aos cultural n6rdica. Os pr6prios Citas, nao obstante o seu estado prirni
deuses arianos e semiticos. Com efeito, mesmo ap6s o triunfo do tivo, apenas representavam Ares (Marte, deus da guerra) sob a forma
monoteismo na consciencia humana, Jave perrnanecera o deus do seu sumaria de uma espada plantada num monte de madeira.
"povo eleito", tal como acontecia, inicialmente, com o deus da tribo que A situacao religiosa era completamente diferente no sul, em Africa.
nenhum estrangeiro podia adorar. Nada de redencao universal: este Com a adjuvante da brandura do meio fisico, os Nubios e os Egipcios ti
apenas ama e · salva os seus. Tai como Zeus, e rancoroso e colerico e veram, desde cedo, mais de um milhao de anos antes dos GrecoLatinos
manifestase atraves do trovao". Era provavelmente tambern, origi e dos Semitas, a nocao de um Deus todopoderoso, criador de tudo O
nalmente, uma especie de deus Agni cul to do fogo tao caracteristico que existe, benfeitor de toda a humanidade sem distincao, podendo
do berco n6rdico. Lembrernonos que e sob a forma de uma coluna qualquer um tornarse seu adepto e alcancar a salvacao. Assim aconte
de fumo, de arvoredo a arder ou de outra manifestacao vulcanica, que ceu com Amon que, ate aos nossos dias, e o Deus de toda a Africa Oci
este emerge quer a Moises, quer ao povo, como guia. Fustel de Cou dental: e aquele que Marcel Griaule descreveu em Dieu d'Eau, Amma,
langes insiste no facto de, durante muito tempo, a ideia de um deus Deus dos Dagon, e de facto o deus da agua, da humidade, da fecun
universal nao ter aflorado o pensamento grecoromano: didade. Possui os mesmos atributos que Amon, tanto no Sudao, como
na Nigeria, com os Ioruba, Plutarco, em fsis e Osiris considera que o
Deve forcosamente reconhecerse que os antigos, exceptuando raros genios seu nome significa, em egf pcio: escondido, invisivel. Podemos apontar
de elite, nunca se representaram Deus enquanto um ser unico que exerce a que, numa lingua africana actual, como o wolof, cujo parentesco com o
a sua acciio no universo. Cada um dos seus inumerdveis deuses tinha o seu egipcio antigo e indubitavel, a raiz Amm significa o facto de existir, que
dominio restrito: a um, a familia, ao outro, uma tribo, a este, uma cidade; era e, a existencia por oposicao ao nada. (
este o mundo que bastava para a providencia de cada um deles. Quanta ao Em todo o caso, no Egipto, o culto de Amon nao tardou a enriquecer
Deus do genera humano, a/guns fi/6sofos souberam adivinhalo, os misterios e a tornar muito importante a casta de sacerdotes que o serviam.
de Eleusis deixaramno entrever; aos mais inteligentes dos seus iniciados, mas Seguiuse a reaccao de Akhnaton, rodeada de circunstancias mal
o vulgar nunca acreditou. Durante muito tempo, o homem apenas apreendeu conhecidas, Breasted considera este fara6 como o primeiro inventor
o ser divino enquanto uma forca que o protegia pessoalmente, e cada homem do monoteismo mais puro na hist6ria da humanidade23• 0 deus Aton
au cad a grupo de ho mens quis ter as seus deuses. 21 que este concebeu nao era apreensivel sob forma de uma representacao
estatuaria: o disco solar simbolizava o seu poder, pela sua lurninosi
E provavel que a vocacao nao se encontrasse no monoteismo, uma dade e pelos seus raios que vivificavam toda a natureza. Tinha, deste
vez que Fustel de Coulanges contou o numero de deuses que existiam modo, um trace comum com os deuses n6rdicos e alguns historiadores
em Roma: eram mais numerosos que os cidadaos: "Em Roma, existem tendem a considerar que este facto poderia estar relacionado com a
mais deuses do que cidadiios'"? origem mitania da av6 de Akhnaton ou com a influencia da sua esposa
Aquila que sabemos acerca do culto primitivo nesta cidade permite Nefertiti.
afirmar que os Latinos nao representavam os seus deuses original Quando Her6doto insiste na devocao dos Egipcios e afirma que "es
mente. Esta particularidade, ao inves de resultar de um genie de abstraccao, tes siio tambem os primeiros a enunciar esta doutrina segundo a qua/
enquadrarseia sobretudo com as necessidades da vida n6mada. As a alma do homem e imortal", os historiadores consideram que aquele
mesmas razoes materiais que obrigavam a cremar os antepassados, a nao esta a exagerar24.
fim de tornalos transportaveis, inibiam tambem o transporte das figu Certamente, podern alientar como um trace particular do Egipto
ras de antepassados esculpidas, ou de qualquer outro deus durante as e da Africa Negra este culto desenfreado dos animais, esta zoolatria
longas jornadas. Deve assim reconhecerse que a nao representacao que os Gregas tanto ridicularizaram e acerca da qual Andre Aymard
material da divindade parece ser, em primeiro lugar, uma caracteristica aponta que nao se encontra qualquer vestigio na Asia semftica. Estas
crencas quer se designem de totemismo ou de zoolatria que
20. Seria interessante estudar a etimologia de Tor, termo atraves do qua! os actuais semitas tornam possfvel a identificacao de um ser humano e de um animal,
(arabes) designam o Sinai, onde Moises se encontrou com Jave pela voz do trovao, Thor e o deus
gerrnanico do trovao.
21. Fustel de Coulanges, op. cit., pp.172 e 173. 23. Breasted, La conquete de la civilisation; Payot.
22. Id., op. cit., p. 255. 24. Her6doto, op. cit., Livro II, par, 124.
143
142 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra v, comperecso dos outros aspectos das Culturas NOrdica e Meridional
apreendidas e analisadas do exterior, enganaram, durante um certo de duas formas externas diferentes; o cervo de Diana ou o galo gaules
tempo, pensadores ocidentais, tal como LevyBruhl, E na sequencia sao apenas simbolos, caso contrario os IndoEuropeus teriam conhe
da sua investigacao generalizada que este afirma que o principio de cido o totemismo.
identidade nao deve operar nos povos cujos indivfduos sao capazes E no ambito de um tal pensamento que se situam logicamente as
de se autoconsiderar simultaneamente animais e seres humanos doutrinas filos6ficas tais como a da reencarnacao ou metempsicose de
autenticos: estes estariam dominados por uma mentalidade primitiva, Pitagoras, Herodoto, no paragrafo 124 do seu Livro II, refere, ironica
prelogica, cuja diferenca com a do homem branco adulto civilizado mente, esta atribuicao da doutrina a Pitagoras. Afirma que conhece
nao pode ser preenchida por progressos intelectuais concretizados ao alguern na Grecia que, ao querer atribuir a si mesmo uma reputacao
longo de uma vida humana. Existiriam dois patamares distintos. 0 au de sabio e de fil6sofo, reivindica a invencao desta doutrina que, na
tor, antes de falecer, reconsiderou e afirmou que a palavra simbolismo verdade, foram os Egf pcios que inventaram, mas que, por discricao,
seria mais justa para caracterizar este tipo de mentalidade. Her6doto nao quer nomear.
Na verdade, s6 o conhecimento da ontologia dos povos onde reina a A concepcao do alern, hem como a dos valores morals, sao as tenden
zoolatria teria permitido evitar cair nestes erros. Numa mentalidade cias naturais da religiao e da filosofia. Ainda neste dorninio, as con
na qual a essencia das coisas, a ontologia por excelencia, ea forca vital, cepcoes meridional e n6rdica sao irredutfveis e carregarn, indubitavel
mente, as marcas dos bercos que as viram emergir.
a forma exterior dos seres e dos objectos tornase secundaria e ja nao
! No berco nomada, onde predomina um estado de guerra endernico
pode constituir uma barreira, seja para adicionar duas forcas vitais,
em consequencia de uma falta de poder central que separe as tribos
seja para identificar duas delas, uma vez que estas tern a mesma quan
e os individuos a defesa do grupo constitui a primeira das preocupa
tidade ou porque os seres que animam foram levados, durante a sua
coes, Todos os valores morais serao aferentes a guerra, contrariamente
existencia, a estabelecer um contrato social, uma especie de pacto de
a qualquer expectativa para individuos provenientes do berco meridi
sangue. Assim, se a beleza da plumagem do papagaio ou do pavao me
onal. S6 e posslvel entrarse no paraiso germanico, o Valhala, caso se
seduz, se confunde com o meu ideal estetico, nada me impede de o es
seja um guerreiro caido no campo de batalha. S6 neste caso e que as
colher, apenas devido a este traco especifico, como meu totem. Poderia
Valqufrias vern colher, no terreno, o corpo do combatente defunto e o
tambern ter sido tentado a escolher o leao, dada a sua forca, ou o falcao, levam para o paraiso, Porem, tarnbem aqui, os deuses passam o tempo,
devido a sua vigilancia ... Evidentemente, todas estas escolhas que, na para se distrair, a combater entre si durante o dia e a beber durante a
origem se faziam a escala clanica, traduzemse por uma identificacao noite. Estes morreriam todos a fome caso Frigga, filha de Wotan, nao
de essencias que s6 e concebfvel por uma mentalidade vitalista, regida lhes cultivasse macas em ouro no seu jardim. De resto, os deuses sao
por uma filosofia de tipo bantou. E compreendese que nao constitua mortals, tal como os homens; serao corrompidos pela vida e morrerao
um acaso o facto de, nos Negros da Africa Negra e nos antigos Egfpcios, todos para que renasca um outro mundo regenerado e puro. Tal e o
que praticam todos o totemismo ou a zoolatria, o vitalismo esteja na pensamento que se extrai da Tetralogia de Wagner e que foi retomada
base da concepcao do universo. Enquanto que no mundo sernitico e num sentido particular pelos nazis, mas que nao e outra coisa senao
ariano a associacao de um animal e de um ser humano, tal como sa aquela que esta contida nos Niebelungen.
lientou Andre Aymard, apenas tera um caracter simb6lico, no mundo
africano, a filosofia que esta na base da vida permite identificar estes Aqueles que caiam na confusiio ou que morriam devido as suas feridas eram
dois seres sem entrar em contradicao com o principio de identidade, admitidos no ceu.jornada do eleitos (wahlhalle) onde residiam as Valqu[rias
sem que possamos evocar uma mentalidade prelogica. Percebese o e Frigga, esposa de Odin, que recebiam os her6is e os presenteavam com o
embaraco do investigador que aborda esta realidade a partir do exte chifre para beber. As sombras passavam o dia na guerra, a noite nos festins,
rior e que so esta provido pela 16gica conceptual, a l6gica da gramatica e o Germano niio desejava recompensa mais digna do seu valor. Alias, estes
de Arist6teles. Aqui, a forma exterior nao se confunde com a essencia deuses, ta/ coma o universo criado por eles, niio eram imortais; deixarseiam
do conceito, esta nao e a realidade primeira, talvez nao seja ilusoria, corromper, ta/ coma os homens, palos maus costumes; seriam entiio condena
mas secundaria: nenhuma classificacao seria poderia partir dela. 0 dos com o mundo e pereceriam, porem, da mesma forma que o dia sucede a
Fara6 e o falcao sao uma s6 e mesma essencia, ainda que usufruindo noite, estes ressuscitariam purificados para niio mais morrer. Os elementos
144 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra v Comparacao dos outros aspectos das Culturas N6rdica e Meridional 145
destas epocas primitivas encontramse misturados com tradicoes antiqas e conquistadores, mas distinguiamse pelo seu espirito de justica e
cristiis nos Eddas, antologias de tradidies escandinavas compostas na Islan de devocao, Quando a Rainha Candace assumiu o comando dos seus
dia do seculo X<J QO XIII'125• exercitos, foi para defender o solo nacional contra as tropas de Cesar
Augusto, comandadas pelo general Petronio. Nern por isso deixara de
Um jovem Germano so tinha o direito de se barbear humedecendo com bater; com um tal vigor, que Estrabao vira a afirmar: "esta teve
o rosto com a· sangue de um inimigo morto em combate. Segundo uma coragem acima do seu sexo". 0 Egipto so se tornou numa nacao
Tacito, o roubo era um exercfcio honrado e de endurecimento, desde conquistadora e imperialista por reaccao, por autodefesa apos a
que fosse cometido no exterior da tribo. ocupacao dos Hicsos, na XVlll1! dinastia; em particular com Tutrno
O Olimpo grego e identico ao Valhala gerrnanico, relativamente aos sis Ill, frequentemente designado de Napoleao da antiguidade. Este
valores morais que ali predominam e as ocupacoes e sentimentos dos conquistou a Palestina e a Siria e levou a fronteira do Egipto ate ao
deuses. Zeus triunfara, de entre o conjunto dos deuses, pela violencia alto Eufrates, em Kadesh. Foram necessarias dezassete expedic;oes.
exercida numa batalha organizada, com o auxilio de Prometeu. A sua Na oitava, partiu para o Egipto por via marftima e desembarcou na
alma e o centro de intrigas indescritiveis, de ideias de crimes, de pro Fenfcia, mandou construir barcos em Biblos, fazendoos transportar
fusees colericas, Este nao recua perante nenhuma injustica, nenhum atraves do deserto ate ao Eufrates, que viria a atravessar desta forma,
sentimento, por mais horrivel que possa ser, ele, o mestre do Olimpo, e desafiou os Mitanios. 0 reconhecimento desta vitoria assegurou
para cobicar a mulher de outro deus. lhe a submissao destes grandes guerreiros que eram os Assfrios, os
A concepcao assiria do alern aproximase significativamente da dos
Babilonios e os Hititas, que, todos eles, viriam a pagarlhe um tributo.
Arianos; nos Assfrios, de facto, e o soldado caido no campo de batalha
Por conseguinte, a dorninacao egfpcia sob Tutmosis III estendese ate
que vai para o paraiso. A crueldade destes e reconhecida: considerou
aos contrafortes da cadeia elamita. Os Egi pcios praticaram en tao uma
se nao sem pavor que se a sua arte e tao anatornica, e grac;as ao
especie de polftica de assimilacao, que consistia em tomar os jovens
conhecimento profundo da musculatura humana que adquiriram ao
principes herdeiros dos reinos vencidos, proporcionarlhes uma edu
esfolar vivas os seus prisioneiros e sobretudo os chefes. Nada era mais
cacao egfpcia e reenvialos para sua casa para que pudessem expan
banal, no que lhes concerne, do que a mutilacao de um membro ou o
dir a civilizacao egf pcia.
furamento de um olho, ou ainda o carte de um nariz ou de uma orelha.
Deste modo, durante todo o perfodo nomada e muito tempo depois As conquistas de Chaka, tambern designado de Napoleao da Africa
da sedentarizacao, a nocao de justic;a parece desconhecida aos Aria do Sul dos tempos modernos, sao, sob varies pontos de vista, com
nos. Todos os valores morais se encontram no lado oposto aos do berc;o paraveis as de Tutmosis IIl26•
meridional e so se tornarao mais atenuados com o contacto com este O esplrito de conquista parece ter sido introduzido na Africa Ociden
ultimo. 0 crime, a violencia, a guerra e o gosto pelo risco, tantos senti tal durante o peri odo islamico, com os conquistadores religiosos tais
mentos nascidos do clima e das primeiras condicoes de existencia, pre como ElHadji Omar no seculo XIX.
dispunham o mundo ariano, por muito extraordinario que isto possa Quanta a atitude de Samory, esta e comparavel a de Vercinget6rix.
parecer, para um grande designio historico, Quando se lanc;ar, para o Tratavase de uma resistencia nacional.
conquistar; sabre o berc;o meridional, encontraloa mal defendido, sem Por conseguinte, e atraves do contacto com o exterior que a Africa
fortificacoes notaveis, uma vez que este estava acostumado com uma Negra, de uma maneira geral, vai introduzirse intensamente na apren
coexistencia pacffica. Foi depois de ter sofrido estas primeiras invas6es dizagem da guerra para ali se superar, de ta! modo as adaptacoes sao
que os Egl pcios, em particular, elevaram fortificacoes nas portas de faceis para o ser humano, sobretudo quando as mesmas sao ditadas
entrada do pais, tal coma no Sinai. Foi em resultado de circunstancias pela necessidade.
semelhantes que os Sidonios protegeram a sua cidade, que nem por isso A mediocridade das condicoes de vida oferecidas pela natureza, os
deixou de ser destruida no seculo XII, para dar lugar a Tyr. Nordicos responderam atraves de concepcoes religiosas mediocres,
Os Nubios e os Egfpcios da Antiguidade encontravamse bem em sua
casa e nao tinham vontade de sair daquele lugar: estes nao eram 26. Mofolo, Thomas, Chaka, une epopee bantou; Gallimard, 1940.
146 Cheikh Ania Oiop A Unidade Cultural da Africa Negra V. Cornparecao dos outros aspectos das Culturas N6rdica e Meridional 147
fortemente marcadas pelo materialismo. Estes nao tinham, por assim Literatura
dizer; razoes para agradecer esta natureza hostil.
No que concerne ao berco meridional, que parece ser a terra de A enfase sera colocada sabre aquilo que diferencia essencialmenrs a
eleicao do idealismo religioso, e completamente diferente. Os deuses literatura grega dado Egipto: o gosto particular que os Gregas tiveram
egfpcios transcendern a humanidade devido as suas virtudes, a sua em desenvolver o genera tragico,
generosidade, ao seu espirito de justica. Com a ernergencia da nacao, Podemos procurar encontrar o motivo, fazendo abstraccao da es
Osiris ja se encontrava alt, com o seu espirito de equidade: no alern, timulacao das vontades criadoras dos artistas por meios artificiais, tal
no seu trono divino, este preside ao tribunal dos mortos; a sua justica como a atribuicao de prernios nas Olimpfadas.
absoluta e simbolizada pela balanca de Thot e Anubis que pesam as Os temas sao tratados, sempre, pela representacao da accao do des
tino, de uma fatalidade cega que tende sistematicamente a perder toda
accoes dos defuntos antes de recompensalos ou de punilos. E o mes
mo estado de espirito que se encontra em todo o lado na Africa Negra; uma raca ou linhagem. Estes atraicoam todo um sentimento de cul
a este respeito, pode invocarse o testemunho de Ibn Batouta, que visi pabililidade simultaneamente original e especffico do berco n6rdico.
Quer se trate de Edipo, das Atrides com Agamemnon, existe sempre
tou o Sudao no seculo XIII:
um erro, um crime cometido pelos antepassados que sera irremedia
velmente expiado pela sua descendencia: por conseguinte, o que quer
que faca, esta esta totalmente condenada pelo destino. Esquilo procu
Aquila Que Vi de Born na Conduta dos Negros ra atenuar este estado de coisas, esforcandose por introduzir a nocao
de justica que permitiria nao mais atingir a posteridade inocente, ou
Os actos de injustica siio neles raros; de todos os povos, e aquele que tern me
seja, absolvela.
nos tendencia a cometelos, e o Su/tao [rel negro), nunca perdoa a quern quer A concepcao semftica e identica, 0 pecado original foi cometido
que se declare culpado. Em toda a extensiio do pais, predomina uma sequranca pelos pr6prios antepassados da raca humana e toda a humanidade,
perfeita; e possivel ali permanecer e viajar sem temer o roubo ou a rapina. Estes doravante condenada a ganhar o seu pao com o suor do seu rosto, deve
niio conftscam os hens dos homens brancos que morrem no seu pals, mesmo redimirse. Esta perspectiva foi adoptada e ensinada pelas religioes
quando o valor seja avultado, niio lhe tocam; pelo contrdrio, nomeiam cura modernas, tais como o cristianismo e o islao,
dores escolhidos de entre homens brancos para deliberar acerca da heranca, Se um tal sentimento de culpa invadiu verdadeiramente a conscien
tornandose estes responstiveis ate que os legftimos a venham reclamar27. cia indoeuropeia, ao ponto em que a literatura permite antevelo,
mesmo actualmente, tornase forcoso admitir que existe uma especie
O conjunto destas concepcoes morais e a solidariedade social que de incomensurabilidade entre a consciencia n6rdica e a meridional.
daqui resulta atribui a Africa Negra o seguinte caracter triplice acerca Nenhuma nocao, para o Africano, e tao herrnetica como o sentimento
do qual podemos meditar. de culpa concebido desta forma. Nao se encontra qualquer indfcio
A Africa Negra e um dos paises do mundo em que o homem e o desta na literatura egf pcia antiga. Mes mo para o africano cristianizado
mais pobre, isto e, possui menos actualmente; porem, e o unico pais ou islamizado, este permanece um dogma misterioso, que nunca e
do mundo onde a miseria nao existe apesar desta pobreza, em resul vivenciado conscientemente.
tado da existencia de uma solidariedade de direito. De igual modo, e Tendo em conta que o modo como este sentimento de culpabilidade
o primeiro pals do mundo onde a actividade criminal e a mais baixa. e introduzido na literatura n6rdica e sempre artificial, poderiamos
Seria interessante aproximar as estatfsticas dos crimes cometidos no questionarnos quais sao as verdadeiras motivacoes, especfficas do
resto do mundo sobretudo os crimes devassos e os verdadeira berco n6rdico, que o fizeram surgir. Entre outros crimes, poderfamos
mente cometidos por Africanos autenticos na Africa Negra28• invocar, uma vez mais, o papel mediocre atribuido a mulher na socie
dade ariana? Tersea a consciencia nordica sentido culpada face a
esta? Um erudito poderia dernonstralo sem dificuldade baseandose na
27. Batouta, lbn, op. cit; p. 36. analise do teatro tragico da antiguidade. Os temas tratados reflectem,
28. Se pensarmos apenas nos EUA, segundo um relat6rio recente do F. 8.1., um crime e cometido
a cada determinada fraccao de segundos. Compreendese a necessidade de incentivar os estudos frequentemente, apenas este aspecto. Edipo, as Suplicantes de Esquilo.
sociologicos preventivos na Africa Negra. etc. No que concerne a esta ultima peca, importa salientar que a lenda
148 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra Y. ccrnperacsc dos outros aspectos das Culturas NOrdica e Meridional 149
a partir da qual Esquilo se baseia a das Danaides e de origem grega. Segundo Nietzsche, foi necessario, para dar origem a tragedia, a sin
Mas uma parte das cenas relatadas acontecem no Egipto, e deduzse tese de um elemento dionisfaco musical e de urn elemento apolineo
erradamente que se trata de uma lenda egipcia29• plastico e inteligivel, racional. Para demonstrar esta tese, este e levado
Em todo o caso, e notavel que os Egipcios nao tenham criado um a apresentar uma signiflcacao particular ao Satire do teatro grego:
teatro tragico ..Podemos supor que a sua estrutura social, o rumo da aquele ve neste uma entidade imaginaria oponivel ao homem civili
vida e o seu psiquismo nao eram favoraveis a uma tal actividade cul zado engrenado numa especie de carapaca politicosocial excisante
tural. que o impede de realizar esta identificacao primordial com a Natureza
cantada pelo coro de Satiro: pelo menos, e ao ser submetido ao efeito
da sua rmisica dionisfaca, ao deixarse aniquilar por ela, que se pode
O Nascimento da Traqedia ou Helenismo e Pessi atingir este estado de extase que permite apreender a vida na sua uni
mismo de Nietzsche dade primordial.
Podemos afirmar que a tragedia, sob a sua forma classica, aquela sob Creio que o homem civilizado grego se sentia assim suspenso na presenca do
a qual nos foi transmitida, representa o genero literario tipicamente coro das satires, e este e o efeito mais imediato da traqedia dionisiaca que as
grego para nao dizer ariano. Se e facil apreender, na origem de to instituicoes polfticas da sociedade ou, par outras palavras, as abismos que
das as tradicoes, uma literatura dramatica embrionaria [Misterios de separam as homens uns dos outros, desaparecem perante um sentimento
Osiris), s6 nos Gregos e que encontramos um terreno moral propicio irresistivel que as transporta para o estado de identificaciio primordial com
a exaltacao do genero e a sua elevacao ao nivel de um classicismo; o a natureza. 0 conso/o metaf[sico transmitido, ta/ coma ja o afirmtunos, par
conteudo da consciencia do Grego era e permaneceu a materia natural qualquer verdadeira traqedia, o pensamento segundo o qua/ a vida, no [undo,
de qualquer tragedia, Deve lembrarse o lugar preponderante que ali apesar da variaciio das aparencias, permanece imperturbavelmente podero
ocupava o sentimento vivo do crime, que por reaccao social se exprime sa e cheia de alegria, este consolo surge com uma evidencia material, sob a
corn frequencia pelo horror do assassinato, pela nocao de culpa que representaciio do coro das stitiras, do coro de entidades naturais, cuja vida
lhe e corolaria, pelo ressentimento na consciencia masculina da rela subsiste de uma forma quase indetevel por detras de qualquer civilizacao,
yao desarmoniosa, injusta, dos sexos, em consequencia do constrangi e que, apesar de todas as metamorfoses das qeracoes e das vicissitudes da
mento social da mulher. Devemos pensar em todos estes factores para hist6ria dos povos, permanecem eternamente imutaveis.
compreender que a Grecia era o territ6rio de eleicao da tragedia, Uma E sob a tonica deste coro que a alma profunda do Helena se reconforta, tiio in
das originalidades de Nietzsche consistiu em larga medida em colocar comparavelmente apto para sentir o mais ligeiro ou o mais cruel sofrimento:
o problema. ele que tinha contemplado, com um o/har penetrante, as terriveis calamidades
daqui/o que designamos por hist6ria universal, e reconhecido a crueldade da
Teremos agora de recorrer a todos os princfpios esteticos expostos ate aqui natureza; encontravase, assim, exposto ao perigo da ambiciio pela negar;iio
para nos podermos orientar neste labirinto, que constitui verdadeiramente a budista da vontade. A a rte salvao e atraves da arte, a vida reconquistao+.
origem da traqedia grega. Creio niio estar a pronunciar nenhum absurdo ao
sugerir que este problema ainda niio foi abordado seriamente e muito menos, Infelizmente, a exaltacao extatica do estado dlonisiaco cessa com a
par conseguinte, resolvido, par mais numerosas que ja tenham sido as espe musica e a realidade quotidiana volta a surgir em toda a sua nudez,
culacoes tentadas com o auxilio dos fragmentos dispersos da tradidio antiga, com tudo aquilo que tern de decepcionante e de cruel; no entanto, esta
tiio frequentemente dilacerados e reunidos um ao outro. visao breve da "verdade pura" e suficiente para destruir a vontade e
Esta tradiciio indica, do modo mais categ6rico, que a traqedia e proveniente torna praticamente absurda a actividade hurnana.
do coro traqico e que, originalmente, este era apenas coro e nada mais'".
Neste sentido, o homem dionisiaco e semelhante a Hamlet: ambos mer
gulharam profundamente na essencia das coisas; ambos viram e sentem re
29. Esquilo, vol. I, Texto organizado e traduzido por Paul Mazon, Societe d'Edition "Les Belles
Lettres", 19 5 3.
puqntincia pela acciio, uma vez que a sua actividade niio pode mudar nada
30. Nietzsche, Naissance de la traqedie ou Hellenisme et pessimisme; tract. por Jean Marnold e
Jacques Morland, Ed. Mercure de France, 1947, p. 67. 31. Itl., op. cit., p. 7 4.
150 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra V 4 ccmparecac dos outros aspectos das Culturas N6rdica e Meridional 151
relativamente a essencia das coisas: afiguraseJhes ridiculo au r= Tratase dos mesmos previamente referidos: sentimento do crime, da
culpabilidade, do pecado original e, ainda que expresso de modo mais
terem, eles pr6prios, que reordenar um mundo desagregado. 0 conhecimen
to destr6i a accao; aquela necessita da miraqem da f/usiio eis aquilo que
discreto, um terrivel sentimento de inc6modo face a mulher, usada
nos ensina Hamlet; niio se trata daquela sabedoria banal de Hans, o sonha
como bode expiat6rio na sociedade ariana. Todos estes sentimentos
sao especificamente indoarianos e semiticos: Nietzsche reivindicaos
dot, que, par refiectir demasiado, e talvez par se deparar com um numero
para estas duas racas, em graus diferentes, para dar conta das ideias
superfiuo de possibilidades, ja niio consegue agir; niio se trata da rejtexao,
niio! tratase do verdadeiro conhecimento, da visiio da terrivel verdatie, que pessimistas que estao na base da sua concepcao do Universo e da civi
destr6i qualquer impulso, qualquer raziio de agit; tanto em Hamlet coma no lizacao, \E na analise do mito de Prometeu que o mesmo encontra os
homem dionisiaco. argumentos que lhe permitem fundamentar o seguinte ponto de vista:
Deste modo, nenhum consolo pode prevalecer, o desejo difundese acima de
a
todo um universo em direcciio morte, e menospreza os pr6prios deuses; a A lenda de Prometeu constitui uma propriedade original de toda a rara ari
existencia e negada, e com ela o reflexo ilus6rio da sua imagem no mundo ana, hem coma um documento que do. provas da sua aptidiio para o pro/undo
dos deuses, ou num a/em imortal. Sob a infiuencia da verdade contemplada, e para o traqico, poderia mesmo ntio ser inverosimil que este mito tivesse tido,
para a natureza ariana, precisamente o mesmo significado caracteristico que
O homem apenas apreende agora, par toda a parte, o horrivel e o absurdo da
existencia; compreende agora aquilo que existe de simb6/ico no destino de a lenda da queda do homem para a rara semitica, e que existisse entre estes
dais mitos um grau de proximidade semelhante ao de um irmiio e de uma
Ofelia; reconhece a sabedoria de Sileno, o Deus das fiorestas: apoderase dele
a abominariio e,face ao perigo iminente da vontade, a a rte avanra entiio coma irmii. A origem deste mito de Prometeu reside no valor inestimavel que uma
um Deus redentor, trazendo o btilsamo protector. S6 ele tern o poder de trans humanidade inqenua concede ao Jago ... Mas que o homem pudesse dispor
livremente do Jago, que niio o recebesse coma uma dadiva celestial, reltim
formar esta aversiio pelo que existe de terrfvel e absurdo na existencia em
imagens ideias, com a ajuda das qua is a vida se torna possivel. Estas imagens pago, raio, isto parecia um sacrileqio a alma primitiva, um roubo levado a
representam o sublime, enquanto arte que domina e submete o horrivel, e o cabo contra a natureza divina. Aquila que a humanidade podia adquirir de
c6mico, enquanto arte que nos liberta da abominaciio do absurdo. 0 coro das mais precioso e de mais elevado, a mesma obteveo atraves de um crime, e
satires do ditirambo constitui o acto redentor da arte grega; os acessos de de e necessario, doravante, aceitar as consequencias, isto e, toda a torrente de
sespero evocados previamente desvaneceram qracas ao mundo intermediario males e de tormentos com que os imortais siio enfurecidos devem afliqir a
destes acompanhantes de Dionisio32• ra9a humana na sua nobre ascensiio. Tratase de um pensamento amargo
que, pela dignidade que con/ere ao crime, contrasta estranhamente com o
Segundo o autor, a satira, tal como o pastor dos romances modernos, mito semitico da queda do homem, ou a curiosidade, a mentira, a cobica,
simboliza uma aspiracao ao estado primitivo original: este representa enfim, um cortejo de sentimentos mais especificamente femininos siio vistas
a natureza ainda intacta de qualquer detraccao do conhecimento, ain coma a origem do ma/. Aquila que distingue a concepciio ariana e a ideia
da inviolada por qualquer civilizacao, Para alern disso, aos olhos dos sublime do pecado eficaz, considerado coma a verdadeira virtude prometeica;
Gregos, tratavase de algo totalmente diferente de um fantoche: e isto desvendanos simultaneamente o fundamento etico da traqedia pes
simista; a justificaciio do sofrimento humano, justiftcaciio niio somente por
O satire ... simboliza a omnipotencia sexual da natureza, que o Grego tinha culpa do homem, mas tambem dos males que daqui resultam34.)
't 33
aprendido a considerar com uma consternacao temerosa e respet uosa .
Originalmente, a tragedia era assim a completa encenacao do sofri
Nietzsche, ate aqui, apenas sublinhou o efeito da tragedia, da musica mento humano, qualquer que fosse a sua causa; Nietzsche e peremp
dionisfaca, recorrendo a meios plasticos apolineos, na alma do Grego t6rio: o her6i primitivo de toda a tragedia grega e Dionisio, os her6is
civilizado. Depois deter insistido sobre este efeito louvavel, este pene posteriores sao apenas as suas mascaras, as suas transfiguracoes.
tra de modo mais profundo no conteudo do drama para extrair os sen Do mesmo modo, o elemento tragico dionisiaco do drama diminuira
timentos que se encontram na base, que lhe servem de fundamento. progressivamente, a partir deste inicio: a individualizacao dos tipos
gerais, o refinamento do estudo psicol6gico das personagens com
32. Id., op. cit., p. 75.
33. ld., op. cit., p. 76. 34. ld., op, cit., p. 76,
35. Id., op. cit., pp. 96, 98, 100, 158 a 160.
156 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra V. Ccmparaceo dos outros aspectos das Culturas N6rdica e Meridional 157
a exaltacao da mulher ao seu grau mais elevado e colocar ao hornem
Certamente, no memento da tntctacao, entre outras praticas relacio ariano o problema mais grave que este jamais teve de resolver. A vida
nadas com a vida agricola e com o culto da fecundidade, "descobrimos nas estepes eurasiaticas, nas condicoes do nomadismo tal como
O Jalo
escondido por baixo do estofo; fazse com que este caia, junta
vimos tinhao acostumado a ver a mulher nao tanto como uma
mente com outros simbolos, sobre o recipiendario inclinado. 0 efeito
companheira na sociedade, mas como um instrumento que permitia
destas cerim6nias consistia, ao assimilar o bacante ao seu deus, em asse
assegurar a sua descendencia, saldar uma divida para com os antepas
gurarlhe a beatitude eterna'T', sados ao prolongar a linhagem racial, ao nao permitir que esta nao
Para Grenier, citando Cumont, os misterios de Baco que assim se
se extinguisse a partir dele, ao assegurar assim a imortalidade. Neste
praticavam em Roma eram de origem egiptoasiatica. 0 material litur caso, as condicoes econ6micas estao essencialmente em causa: estas
gico deste culto comporta um conjunto de simbolos da fecundidade, tinham impasto este estilo de vida ea superestrutura religiosa e moral
O que se opoe a representacdes pornograficas, estes sao os elementos
respectivas. Porern, o homem encontrase agora instalado na vida
de urna religiao agraria, As procissoes, aquando das festas em honra
sedentaria: ja para nao dizer que a maior parte das ideias herdadas
de Dionisio no Egipto, tal coma Her6doto as descreve, aplicamse ate
da vida n6mada se tornaram inadequadas, em particular as concep
ao minima detalhe as procissoes que acompanham, a 25 de Dezern
coes sociais, se e que o podemos afirmar. 0 drama resulta dos habitos
bro, as fanais ao Senegal: tratase de uma procissao que celebra o nas
cimento de Cristo, mas e pouco provavel que tenha sido o Ocidente adquiridos: nao se muda a consciencia de um momento para o outro.
cristao a introduzir estas particularidades rituais em Africa, a menos As unicas ideias que convern ao seu novo estilo de vida serao ideias
estrangeiras elaboradas paralelamente no mundo meridional agricola,
que os "carnavais" meridionais da Europa tenham tido este caracter, o
sedentario, 0 choque na sua consciencia produzira a reviravolta mais
que se deveria venficar, Deste modo, e provavel que exista aqui uma
extraordinaria que jamais experienciara. Nao se trata aqui de concep
[ustaposicao de dois fragmentos de tradicoes de origem aparente
mente distintas, mas ambas sagradas no que diz respeito ao seu fundo. coes do espirito ou de especulacoes gratuitas. Tivemos ocasiao de ob
Afigurase tndispensavel reproduzir o excerto de Her6doto ao qual faz servar que na realidade da vida quotidiana, em Roma como na Grecia,
alusao para fixar as ideias e facilitar a investigacao. este choque provocou uma reaccao de autodefesa que chegou ate a
morte nos homens, uma vez que e impossivel sobrestimar a quan
Quan to ao resto, a festa de Dionisio e celebrada pelos Eqipcios exactamente, tidade de mulheres efectivamente condenadas a morte pelo simples
ou quase, da mesma forma coma com os Gregas, com a diferenca minima de facto de se terem tornado discipulas de Dionisio. Mas uma atitude
que niio existem coros. Porem, ao inves do falo, estes imaginaram outra coisa: pratica, provisoriamente eficaz, nao basta para resolver um problema
estatuetas articuladas, de cerca de um c6vado, que siio movidas com a ajuda de moral social tao profundo e delicado. Este viria assim, fatalmente, a
de cordas, e cujo membro viril, em nada menor do que o resto do corpo, se ser recolocado e repensado no plano superior da arte e da filosofia;
abana; as mulheres passeiam estas estatuetas nas cidades com um tocador apenas neste nivel, em que a serenidade de espirito e mais assegu
a
de flauta sua frente; aquelas prosseguem Iouvando Dionisia. Relativamente rada, e possfvel tentar novamente procurar uma solucao de caracter
ao motivo pelo qua/ estas estatuetas possuem um membro desproporcionado permanente, e na sua ausencia, colocar o problema de um modo mais
e apenas movem esta parte do corpo, existe a este respeito uma Jenda saqrada ou menos velado, sem resolvelo. Uma tal transposicao da realidade e
que se conta'". espedfica da arte e cornpreendese que a tragedia grega tenha encon
trado o seu tema predilecto no mito, ainda que estrangeiro, de Dionisio.
Agora que a essencia moral do deus esta suficientemente esclare Devido ao seu duplo caracter, este era mais conveniente do que os mi
cida, ao mesmo tempo que as concepcoes dornesticas meridionais e tos end6genos. Dionisio, ou Osiris, e o Deus que sofreu .; fisicamente
arianas, tornase mais facil compreender as catastrofes e as perturba falando na medida em que foi cortado aos pedacos, Os Egipcios en
coes que o ensinamento de Dionisio viria a provocar nas sociedades cenaram apenas este aspecto do sofrimento fisico de Osiris, reflectido
indoeuropeias: viria a quebrar a couraca de bronze com que o homem no sofrimento moral de Isis. Tal como Nietzsche salientou, Dionisio e
ariano as tinha cercado, abrir as portas da consciencia feminina, levar um prot6tipo: este sera a mascara divina que abarcara todas as formas
de sofrimento da consciencia humana nos Gregas: Prometeu, Edipo,
39. /d., op. cit., p. 204. etc. sao apenas replicas. Mas e impossivel colocar Dionisio em cena
40. Her6doto, op. cit., Livro II, par. 48.
160 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra V. Ccmpareceo dos outros aspectos das Culturas N6rdica e Meridional 161
. os Semitas sao lndoEuropeus quanto ao
vahda; mas d e monstra que
VI. Sera hist6rica a
·
serviram de apoio, de regulador entre os dots b ercos,
seu amago,
A
que ·
entre o mundo ariano e o Extremo o nente. E m
tal corno os Eslavos
ambos 05 casos, existe uma reviravolta mais ou menos profunda dos
traces normais e fisicos originais. . _ . . .
cornparacao da Africa N
e,
A
162 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra VI. Sera histOrica a comparacao da Africa Negra actual e do Egipto antigo? i63
ajudalos sob todos os pontos de vista: mesrno que sejam rnenos rices, Egfpcio classico' Wolof
05 mesmos devem despojarse caso um homem de casta "inferior" se
dirija a eles. Em troca, este ultimo develhe respeito moral. KEFi eu agarrei KEFna eu agarrei
A originalidade deste sistema provern do facto de o trabalhador KEF ek (masc)} KEFnga tu agarrasrs
manual, em vez de ser desprovido do produto do seu trabalho tal coma tu agarraste KEFna2 ele agarrou
O artesao ou oservo da Idade Media, ou ainda o operario moderno, em KEFet (fem)
menores proporcoes , poder, pelo contrario, ser aumentado com a KEFef }
adicao dos bens oferecidos pelo senhor. Por conseguinte, se tivesse de agarrouse/agarramn,
KEFef(masc)}
existir uma revolucao social, esta efectuarseia de cima para baixo e nao
ele ou ela agarrou KEFes
o oposto. Adernais, os cidadaos provenientes de todas as castas, inclu
KEFes (fem) KEFnen n6s agarrarnos
indo os escravos, estao estreitamente ligados ao poder; o que conduz
a monarquias constitucionais, governadas por Conselhos de ministros KEFnen n6s agarramos KEFngen v6s agarrastes
onde figuram todos os representantes autenticos do povo. KEFtem v6s agarrastes KEFnanu eles agarraram
Compreendese que nao tenha existido, em Africa, qualquer revolucao KEFsem eles agarraram
contra o regime, mas somente contra aqueles que o aplicam mal, isto e,
contra prfncipes indignos.
Para cada casta, inconvenientes e vantagens, alienacao e cornpensa O wolof, actualmente, exprime o feminino atraves de um outro pro
e
c;ao entram em equilibria. Para alern disso, no exterior das conscien cesso gram a ti cal diferente do egipcio classico. Este consiste em fazer
cias, no progresso material, nas influencias recebidas do exterior que suceder o nome por masculino ou feminino. De resto, este procedi
se deve procurar o motor da hist6ria. Se tivermos em conta o Isola mento existia no egipcio em alguns casos, mas nunca foi generalizado3•
mento, compreenderemos por que motivo as sociedades africanas Segundo Mlle Hamburger, s6 nas Iinguas africanas e que a generaliza
permaneceram relativamente imutaveis, ao ponto de podermos hoje c;ao ira ocorrer, como uma especie de prolongamento de uma evolucao
estabelecer pontos de cornparacao com o antigo Egipto. esbocada na lingua egipcia durante o perfodo de declinio.
0 unico elemento que teria interesse em ser abalado na ordem da Compreendese, assim, que as formas femininas da conjugacao egf p
sociedade africana, pelo facto de estar alienado e sem cornpensacao, cia desaparecam no wolof ou, quando se mantem, tal como na terceira
seria o escravo da casa do pai. Nao foi capaz de fazelo por razoes que pessoa do singular, estas se tornem equivalentes as formas masculinas
resultam do caracter preindustrial da sociedade: concentracao fraca, e o conjunto traduzse atraves de um pleonasmo. Esclarecemse, deste
etc. 0 sistema clanico que se encontra igualmente em Africa e um es modo, alguns factos gramaticais wolof, ate entao mantidos obscuros.
tadio primitivo em que a divisao ernbrionaria do trabalho ainda nao Investigacoes cada vez mais numerosas vern gradualmente confir
ganhou a forma do sistema de castas. Com a ausencia dos modos de mar este parentesco cultural profundo do Egipto antigo e do resto da
alienacao das sociedades mais evoluidas, este tende, de igual modo, a Africa Negra. E deste modo que Jean Capart e Georges Contenau se
petrificarse. interrogam acerca do pretenso caracter semitico da lingua egf pcia.
A proximidade gramatical das Iinguas africanas actuals, tal como
wolof, e do egipcio antigo da XVIII!! dinastia, tal coma se verifica, sem A que famflia lingufstica se realciona entiio a lfngua das inscriciies hieroqli
qualquer duvida, na conjugacao abaixoindicada, demonstra que a ficas? Depois de ter afirmado, de modo cada vez mais evidente, nas edicties
comparacao destas duas realidades, longe de ser ilus6ria, e legitima e sucessivas da sua qramatica egfpcia (1894, 1902, 1911), o parentesco da lfngua
que se concebe tambern em diferentes dominios.
A raiz KEF = capturar, agarrar violentamente, arrancar, que no wolof
1. Gardiner, Egyptian Grammar; Londres, 1927.
actual, quer em egipcio antigo (2 400 a 750 a.C.), sera escolhida como Lefebvre, Grammaire egyptienne; Le Caire, 1953.
exemplo de conjugacao: 2. Genese do pronome na 3• p. do singular na a partir do egipcio:
EG!PCIO: hs (y) t nt ntr = (aquela) que favorece o deus
WOLOF: hed n a ti tOr = (ela) e favorecida pelo deus
Hed na .... = (ele/ela) e favorecido/a ...
3. /d.
164 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra VI. Sera hist6rica a ccmperacao da Africa Negra actual e do Egipto antigo? 165
egfpcia com as lfnguas semlticas, as lfnguas do Leste africano e as lfnguas
berberes da Africa do Norte, o Professor Erman exprime estas relaciies com
muito menos convicciio na ultimo edicao da sua obra (1928) .. Perante estas
hesita9i5es, parece assim mais sabio, no momento actual, inspirarse nas ulti
mas conclusi5es do Professor Erman: "Os Egfpcios stio Nubios semitizados'". VII.
As ultimas investigacoes de MassonOursel tendem, pura e simples
mente, a identificar o genie egipcio antigo e actual africano, e insistem
Os factores perturbantes
na amplitude e na profundidade da influencia cultural egipcia sabre a
Africa Negra atraves da Nubia.
Nesta rubrica, serao analisados um certo numero de factores sugeri
Ao adaptarse, o intelectualismo resultante de Socrates e de Arist6teles, de dos pelo vocabulario das linguas dos povos estudados.
a
Euclides e de Arquimedes, acomodavase menta/idade neqra, que o egip
t6/ogo apreende, coma pano de fundo, par detras dos refinamentos da civili
zaciio com a qua! se des/umbra. Culto dos Antepassados
levados a considerar aquilo que deveria ser um truismo, o aspecto africano
do espirito eqipcio, compreendemos atraves de/e mais do que um dos traces O seu caracter universal foi enfatizado: a t6nica foi sobretudo colo
da sua cultura. cada sabre a diferenca das formas que este culto reveste quando se
A partir de agora, de acordo com esta ordem de pesquisas tiio preciosa para a passa do berco indoeuropeu para o berco meridional.
investiqacdo do pensamento, come9amos a entrever que umagrande pa rte do
continente negro, ao inves de ser tiio grosseiro e "selvaqem" como se supunha, Com os IndoEuropeus, tudo gravitava em torno do genes: cla do pai
repercutese em inumeras direccoes atraves do extenso isolamento do deserto simbolizando o regime patriarcal, filiacao patrilinear; todas as concep
ou da floresta, das influencias que, atraves da Nubia, da Libia ou da Etiopia, coes do parentesco consaguf neo patrilinear estao contidas neste ter
chegavam do Nilo. 5 mo que se afigura tipicamente indoeuropeu. E um dos raros termos
cuja autenticidade nao se coloca em duvida sempre que se procura ex
Assim, por forca do caracter relativamente estatico da sociedade trair o minimo de raizes possiveis que constituem, no estado actual do
africana, que incitou Frobenius a escrever que a Africa e "uma lata de nosso conhecimento, o fundo primitivo do indoeuropeu.
conservas das civilizacoes antigas"6, e possivel, actualmente, estabelecer O final do capftulo precedente mostra que o vocabulario de algumas
uma comparacao com o passado resguardandose contudo com as linguas africanas, coma o wolof, poderia provir de uma antiguidade
precaucoes indispensaveis para permanecer no terreno cientffico. extremamente recuada. Ora, em wolof, existe uma raizgeno = a cintura
paterna, a filiacao patrilinear no sentido estritamente indoeuropeu,
a tal ponto que a expressao Sama gefi.o (a)g bay!= sobre a cintura do
meu pai, e um sermao, Esta raiz proliferou tanto em wolof como nas
linguas indoeuropeias e, curiosamente, o sentido destas proliferacoes
e frequentemente comparavel.
Wolof Indoeuropeu qermiinico
gen= sair
4. Capart, Jeane Contenau, Georges, Histoire de /'Orient ancien; Hachette, 1936, p. 52. qent« = baptismo ( cerim6nia da saida
5. MassonOursel, "La philosophie en Orient"; fasciculo suplementar a l'Histoire de la Philosophie, do recemnascido, 8 dias ap6s o
por Emile Brehier; Presses Universitaires, 1948, p. 43.
seu nascimento)
6. Frobenius, Leo, Histoire de la Civilisation Africaine; trad. D. H. Back e D. Errnont, Gallimard,
1933.
166 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra VII. Os factores perturbantes 167
gen = ser melhor O principio do parentesco niio era o acto material do nascimento; era o cu/to.
gen men= de meio mais nobre, gen men = o nobre, geracao: gen lsto e visivel na fndia. Ali, o chefe de famflia oferece, duas vezes por mes, a
homem hem nascido men >germen>germano = o nobre refeiciio funebre; este apresenta um bolo aos manes do seu pai, outro ao avo
gen = sexo masculino, cauda do animal (por dtssimilacao regressiva don) paterno, um terceiro ao seu bisavo paterno, e nunca aos descendentes das
mu/heres. Para a/em disso, recuando mais ainda, mas sempre na mesma
linhagem, o mesmo faz uma oferenda ao quarto, ao quinto, ao sexto ascen
A cornparacao seria mais convincente, mais exaustiva se fosse pos dente. 56 que, para estes, a dadiva e mais ligeira; tratase de uma simples
sfvel encontrar a mesma raiz em egf pcio anti go. libaciio de cigua ea/guns griios de arroz. Tai ea refeiciio funebre: e e seguindo
Ora, existe na escrita hieroglifica um sinal representativo de uma o cumprimento destes rituais que o parentesco se concretiza. 2
cauda de animal, cujo nome se transcreve qen. Nao se chegou a identifi
car o animal em questao: nao se sabe exactamente se o termo transcrito Estes rituais encontramse no que diz respeito a refeicao funebre
representa o nome de animal ou o do determinativo: de res to, em egf p nos Sereres do Senegal, mas o antepassado ao qual o culto e oferecido
cio, o determinativo possui com frequencia um valor vocalico e pro e da linhagem materna; o uso do totemismo faz com que este seja
nunciase do mesmo modo que o name determinado. Deste modo, a sempre representado sob a sua "forrna animal": o Tur, que e, na maior
existencia da raiz gen parece bastante provavel em egf pcio. As incerte parte das vezes, uma serpente nao venenosa que habita nos locais
zas que dominam o vocabulario nao permitem ser mais afirmativo. reservados as libacoes e circula livremente no interior da casa3• E isto
que justifica o facto de Tur significar "libacao" em wolof e em serer;
Os dicionarios da lfngua egfpcia encerram uma infinitude de palavras cujo tiiru = fazer libacoes. Estas ultimas sao reservadas, tal coma acontece
sentido s6 pode ser atribuido, par enquanto, atraves de uma indicaciio muito com os lndoEuropeus, unicamente aos individuos pertencentes a
geral: "Verba exprimindo um movimento, au uma acdio violenta" Frequentemente, familia proveniente do mesmo antepassado: a relacao de paren
a traduciia mais segura fazse acompanhar pela reserva: "ou alga de anaio tesco que existe entre eles dizse mbok = partilha ( subentendese: da
qo". Chega mesmo a acontecer que as determinaciies zoo/6gicas botanicas refeicao funebre"), Bok= partilhar, e o verbo correspondente. E carac
se deparem com dificu/dades, de entre as quais temos aqui um exemplo. Os terfstico que este sirva para designar a nocao de parentesco; reflecte
textos fa/am, desde as epocas mais antigas, de uma madeira de construciio bastante mais o aspecto cultural do que o biol6gico da linhagem. S6
que as Egfpcios iam buscar ao Libano. Os primeiros egipt6logos traduziram o por extensao e que a palavra pode significar: ter em comum; boknday
name Ash por acacia. Victor Loret demonstrou que se tratava do pinheiro da = ter em comum a mesma mae,
Cilicia, que se encontra hoje no Tauro. A traduciio que muitos autores tin ham Cada famflia possui o seu nome toternico, o do seu antepassado mi ti
adoptado: "Cedro do Libano" esta, deste modo, errada.1 co, do seu cla, ou por outras palavras, do seu geno, mas de base matri
linear. Por exernplo, os guelwar Diouf tern como totem uma especie de
Podemos salienter tambern que as Egipcios nao mais do que lagarto, chamado Mbosse: estes sac os unicos a poder fazer libacoes
qualquer outro povo antigo jamais elaboraram um dicionario aca para este animal.
dernico e que, por conseguinte, o vocabulario recolhido segundo os
textos (Livro dos Martos, Textos das Pirarnides, etc.) e necessaria Jar = Deus do Jar (Etrusco, Romano, PeuJ)4
mente fragmentario, Assim, acontecera com frequencia que alguns Jar= objecto de cuJto em wolof.
termos egf pcios nao comprovados tenham prevalecido nas lfnguas
africanas aparentadas; porern, s6 investlgacoes sistematicas ulteriores Nao e apenas no ambito dos cultos dos antepassados que se encon
e que tornarao este ponto de vista suficientemente convincente. tram factores tao perturbantes devido a etimologia das palavras que
Segundo Fustel de Coulanges, o parentesco patrilinear esta marcado os designam.
pelo culto: a partilha da refeicao funebre, a concretizacao do mesmo
culto para o mesmo antepassado.
2. Fustel de Coulanges, op.cit., p. 59.
3. Capart, op. cit., p. 45.
1. Capart, op. cit., p. 45. 4. Harnpate Ba, Culture Peul; Presence Africaine, ng JunhoNovembro de 1956, p. 85.
168 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra VII. Os factores perturbantes 169
Vocabulario Mediterranico sua linqua e preferido um name estrangeiro. Os Fenicios tinham dominado as
aquas dos Pelasgos antes dos Helenos Aqueus; a historia posterior a ocupariio
Existe todo um vocabulario, datado da epoca egeia, ou seja, de um aqueia ja niio menciona a sua soberania ... A Odisseia fornece, acerca deste
periodo em que o mundo indoeuropeu, devido a sua inconsistencia aspecto, o indicio decisivo. 6
cultural, era particularmente perrneavel as influencias estrangeiras,
que poderia ser posto em causa. Nada e mais discutivel do que a etimologia do termo "barbaro", fre
Talvez ninguern tenha insistido tanto quanta Victor Berard sabre a quentemente considerado indoeuropeu. Segundo Tucidides, Homero
lnfluencia unilateral egiptofenicia sofrida pela Grecia, nunca o utilizou e fornece uma razao para tal:
Foi tambem do mare das suas gentes que o poeta grego (Homero) recebeu Ele (Homero}, de resto, niio utilizou muito a palavra barbaro, isto porque, se
iniuneras palavras estrangeiras, quer se trate de names de lugares e names gundo me parece, as Gregas ainda niio estavam agrupados, no que /hes dizia
proprios, quer se trate de names comuns. Poder[amos a partir daqui esta respeito, sob um regime unico que pudesse oporse/he.7
belecer um vocabultirio bastante amplo e demonstrar convenientemente, isto
e, recorrer as nociies e teorias dos Fenicios au dos seus mestres do Egipto, para No Livro II de Herodoto, encontrase uma passagem bastante curiosa
explicar inumeras formulas e metaforas homericas ... relativa ao termo "barbaro": o Fara6 Nekao levou a cabo a perfuracao
Para chegar ate Egyptos au para ali regressar, Menelau e o pirata cretense de um canal ligando o Nilo ao Mar Vermelho; porern, este teve de parar
passaram pe/a Fenicia. Para chegar aos poem as homericos, o canto eqipcio (o os trabalhos "depois de um ordculo ter iniciado a travessia, afirmando
canto do ndufraqo] pode ter adoptado a mesma via ... que trabalhava para o Barbaro; as Egfpcios designam de Bdrbaros todos
O nosso canto odisseico apresenta assim uma mistura de coisas eqipcias e aqueles que niio possuem a mesma lfngua que e/es."8
semiticas, o que constitui exactamente o caracter das produciies fenicias ... Poderseia ter pensado que "Barbaro" representa um termo essen
Niio creio, portanto, no papel de um Homero Ulisses. Creio no trabalho de cialmente grego e que Her6doto o utilizou para traduzir uma ideia
um poeta erudito, sabendo tao bem fer coma escrever e facultando a materia egipcia equivalente. Aquila que precede ja permite duvidar desta
literaria a materia das suas descricoes e das suas lendas. Esta Jonte provinha interpretacao. Deve acrescentarse que o termo nao proliferou nas lln
lhe directa au indirectamente dos Fen(cios.5 guas indoeuropeias; que a sua estrutura duplicacao da raiz "Bar"
A maior pa rte das outras ilhas gregas conservaram ate nos a memoria indelevel para formar um substantivo caracteriza essencialmente as linguas
desta epoca, nos names que usam ainda hoje. africanas, por oposicao as linguas indoeuropeias.
Estes names, de facto, que as Helenos transmitem desde ha trinta seculos, E curioso notar que Bar= falar rapidamente em wolof; barbarlu =
Delos, Syros, Casas, Paxos, Tharos, Samas, etc. niio significam nada em grego; fingir falar rapidamente; poderseia multiplicar os exemplos para
mas faziamse acompanhar, durante a antiquidade, par names gregos, que salientar a proliferacao desta raiz em wolof:
qualquer ouvinte helenico compreendia imediatamente: Ortygia "a i/ha das
Okeanos: extensao de agua, em grego. Fol Homero que introduziu a palavra
codomizes". Aghne "a ilha da espuma", Plateia "a ilha plana", Aeria "a ilha sus
pensa" Estas desiqnacoes gregas hoje esquecidas eram a mera traduciio dos na poesia depois de Her6doto. Cf, Livro II, nao e indoeuropeu.
names misteriosos, cuja etimologia semltica pode certamente darnos con ta: Cyane = escavacao preenchida com agua, em wolof.
CasosAchne, PaxosPlateia, ThasosAeria, SamosHypsele, DelosOrtyqia
representam umas quantas "pare/has'; coma diriam as geografos ... Zeus e considerado coma o Deus Europeu por excelencia. E identi
Nas antigas pare/has do Mediterrtineo grego, o primeiro termo e o origi ficavel com todos os fen6menos atmosfericos, celestiais; e sucessiva
nal, ao que parece, e o segundo e uma copia posterior: as Semitas criaram o mente Deus da luz, da trovoada, da chuva, segundo Albert Grenier que
primeiro; as Helenos substituiramno pelo segundo. lsto porque niio se per salienta de igual modo a unidade etimol6gica do seu name nas diferentes
cebe quando, coma, nem par que motivo e que as Helenos, se a desiqnaciio
linguas indoeuropeias.
grega fosse o original primitivo, teriam depois abandonado este termo da
6. Id., pp. 52, 53, 54.
7. Tucldides, La Guerre du Peloponese; Livro I, par. III, tract. Jacqueline de Romilly, Ed. "Les Belles
5. Berard, Victor, La Resurrection d'Homere. Au temps des heres; Ed. B. Grasset, Paris, 1930, pp. Lettres", Paris, 1953.
99, 102, 145 e 153. 8. Her6doto, op. cit., Livro II, par; 158.
170 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra VII. Os factores perturbantes 171
Ao sanscrito Dydus [raiz div, irradiar] corresponde o grego Zeus, o latim
juppiter, o nordico antigo Tyr, o qermtinico Ziu. Em concreto, representa o
ceu /uminoso.9
a
Perfeitamente fie/ tradicao indoeuropeia, os Persas atribuem o nome de Conclusao
Zeus a todo o espaco celestel"
Conclusao 173
172 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africo Negra
quantos factores que tornam diflcil o esforco para relembrar a antiga que e tangivel. A questao e tao desconcertarite que muitos eruditos
condicao de serva da mulher ariana. ocidentais (fisicos, maternaticos, bi6logos) chegam a um vago deismo.
o genera Iiterario por excelencia ea tragedia ou o drama. O Africano, Segundo aquilo que ate aqui foi dito, pode deduzirse que a maior
depois dos mitos agrarios do Egipto, nunca ultrapassou o drama cos parte dos futuros sabios africanos, tendo em conta o seu passado
mico. cultural, pertencerao sobretudo a categoria dos que adoptam uma
A solidarie .de africana nao e uma solidariedade cientifica, sendo perspectiva optimista reflectida.
esta tao eficaz quanto desprovida de calor humano. Esta poderia Talvez estes venham a considerar que, quando a humanidade esti
enriquecer o socialismo cientifico com este ultimo factor. ver concretizada, ao inves de morrer de tedio na mais completa oci
A angustia social previamente em causa resulta da inseguranca osidade, o homem apercebersea que a sua tarefa apenas comecou,
material e da solidao moral; e completamente distinta da decepcao e Descobrira, entao, que lhe e inteiramente possivel, muito antes de 15
do malestar intelectual e moral do sabio moderno. bili6es de anos de reflexao, domesticar o sistema solar e dominalo
O sabio mantevese tranquilo durante todo o reino do sistema ate ao planeta periferico de Plutao, de modo praticamente eterno.
geocentrico isto e, ate ao Renascimento. Depois, a descoberta do in Talvez consiga alcancar este prop6sito alimentando o sol recorrendo
finito veio abalar a sua razao e ate mesmo a sua consciencia. Na sua a satelites precarios formados a partir da materia sideral que acabam
nova concepcao do universo em devir, as galaxias que se movimen por cair na sua massa, ou quern sabe restituindo ao sol a ener
tam no abismo a distancias que so podem ser medidas em anosluz, gia irradiada na aceleracao dos nucleos de hidrogenio a partir de
a imensidao da duracao face ao fen6meno humano, provocamlhe um imensos campos electromagneticos artificiais? Recusar a morte ter
desvario intelectual. Este e esmagado pela infinitude do espaco e do modinamlca, estabilizar o sistema solar, protegelo dos meteoritos
tempo; e decepcionado pela divisao periferica do homem no universo, perigosos, solidificar os planetas gasosos, aquecer os da periferia par
pela sua presenca puramente acidental. Tern tendencia a questionarse, forma a tornalos habitaveis, impedir o aparecimento e a prollferacao
tal como Salornao, se tudo nao e pura vaidade. de monstros biol6gicos, controlar os climas e a evolucao dos planetas,
No entanto, e necessario que as coisas tenham um sentido; a tarefa descobrir e cuidar de todas as vias praticaveis do sistema, comuni
do sabio deve inserirse no ambito de uma actividade geral grande car com as estrelas pr6ximas da galaxia, criar um superhomem com
mente util para a civilizacao e para o universo, caso contrario, este uma esperanca de vida mais prolongada, talvez estas venham a ser as
seria o reino do absurdo a escala do cosmos. Como escapar a esta fa preocupacoes entusiastas do futuro. A vida teria assim, a seu modo,
talidade? Quinze bili6es de anos, a duracao da vida que os eruditos triunfado sobre a morte, o homem teria realizado um paraiso terrestre
atribuem hoje ao sistema solar; depois, o sol apagase: se nao tiver praticamente eterno, teria triunfado, ao mesmo tempo, sabre todos os
explodido ate entao para gerar uma morte geral atraves do fogo, sera sistemas metafisicos e filos6ficos pessimistas, sobre todas as vis6es
uma morte atraves do frio. E, talvez, ao cabo de um periodo incomen apocalipticas do destino da especie, Uma etapa grandiosa da evolucao
suravel, o mesmo ciclo seja novamente esbocado algures no espaco da consciencia humana seria alcancada, 0 homem emergiria coma um
e volte a atravessar as mesmas fases. E necessario que o intelectual Deus em devir no sentido hegeliano.
encontre um meio para afastar esta eventualidade desconcertante que O universo do futuro estara, muito provavelmente, impregnado pelo
o conduz nas suas pr6prias investigacoes, a vontade indestrutivel de optimismo africano.
penetrar no desconhecido.
Aqui, de igual modo, o passado cultural das nacoes e dos povos pode
influenciar as perspectivas pessimistas ou optimistas que podemos
adoptar para atribuir um sentido a actividade superior do espfrito hu
mano, de modo a perspectivar o futuro da especie,
Em Le Phenomene Humain, Pere Teilhard de Chardin, num esforco
gigantesco de sintese, procura demonstrar que a evolucao vai neces
sariamente ao encontro de um fim; mas o fim em causa e metafisico e
nao satisfaz o intelectual preocupado com a objectividade, com aquilo
174 Cheikh Ania Diop A Unidade Cultural da Africa Negra Conclusso 175
A pen dice
Anotacoes acerca de La Resurrection d' Homere.
Au temps des heros por Victor Berard
Foram raras as vezes em que, tanto quanta Victor Berard, um histo
riador insistiu na influencia egfpcia na Grecia,
Este sublinha, em primeiro lugar, a frequencia das relacoes desde a
epoca hornerica, o imenso luxo em que vivia o mundo egeu: Helena
ja recebia oferendas preciosas dos habitantes "de Tebas do Egipto, a
cidade onde as casas abundam em riquezas".
O Egitpo ja era reconhecido par ter os medicos mais sabios do
mundo:
Ao que parece, treze seculos antes dos Ptolemeus, que teriio a mesma tare/a,
vinte e dais seculos antes dos califas, que tornariio a repetila, trinta e dais
seculos antes de Mehemet Ali, que a conquistara e a manterd durante um
instante, os Fara6s anexam a Jlha de Creta ao seu imperio: os seus vassalos e
tributdrios da Fenicia representam ali os seus agentes politicos, bem coma os
seus agentes comerciais2•
1. Berard, Victor; La Resurrection d'Homere. Au temps des heres; Ed. Bernard Grasser, 1930, pp.
34 e 35.
2. Id., pp. 36.
Apendice, Anotac;Oes acerca de La Resurrection d' Hom�re.Au temps des heros par Victor Berard 179
A hist6ria dos poises gregos iniciase nos seculos XVIXV antes da nossa era: simbolo da formacao do povo grego, nao era de sangue puramente
os monumentos egeus e micenicos podem desde logo enquadrarse numa cro aqueu, nem mesmo de cultura e de raca helenica, uma vez que este
nologia sugerida pelos documentos do Egipto e da pr6pria Grecia. Os selos e filho de Atreu e neto de Pelops o Frfgio, que se tinha instalado em
de Amen6fis e da sua rainha Titi (14111380), encontrados no Chipre, em Argos em consequencia de um casamento com uma princesa aqueia.
Rodes, em Creta e em Micenas, fornecem a primeira data assegurada para o Devia o seu name a sua fortuna. A sua suserania expandiuse ate a
pleno desenvolvimento desta civilizaciio egeolevantina, a quern os Helenos peninsula que se tornou no Peloponeso.
atribufam a entrada a Minos, Ji/ho de Europa a Fenicia, a Cadmo o Tirreno e
a Dana us o Eqipcio, importadores das leis escritas, do alfabeto, do cavalo, do Egfpcios, Fenicios e Hititas foram assim os educadores da Acaia, mas sobre
tanque de guerra e da embarcaciio a cinquenta remadores3• tudo os Egfpcios e os Fenfcios.7
Os Aqueus foram introduzidos na escola dos EgiptoFenicios, apren O autor mostra que os her6is da epoca hornerica conservam relacoes
deram a construir as ernbarcacoes rapidas hornericas com cinquenta estreitas com a Tebas do Egipto, [a que Menelau se expatriou dali du
e dais homens par equipa "que compunham as /rotas de Tyre de rante sete anos e voltou a regressar carregado de ofertas. Tebas estava
Sfdon e cujos monumentos egipcios, a partir do seculo XV antes da nos repleta de estrangeiros, Semitas, Libios, Aqueus, tal coma viria a suceder
sa era, conservaram a imagem: todos os detalhes da construciio e do posteriormente em Bizancio durante o perfodo do Baixo Imperio,
equipamento correspondem as caracteristicas do cruzeiro homerico e
desta tripulaciio de cinquenta remos que os Levantinos, e mais tarde os Encontravase mesmo reduzida a defender o seu territorio, o seu passado,
Ocidentais, receberam dos Fenicios e que todo o Mediterraneo da epoca a sua p6pria lfngua, contra estes estrangeiros que se apresentam enquanto
classica, da Idade Media e dos tempos modernos adoptou durante tres amigos, aliados, em servos e que a penetram pacificamente ... Esta permanece
mil anos e cujos ultimas exemplares aindafiguravam nos esquadriies do a cidade mais celebre e mais rica do mundo; esta cidade do ouro ainda atrai
nosso Luis XV4." os a/hares e as cobicas dos Aqueus...
Quantos senhores aqueus teriio, antes e depois de Mene/au, chegado e per
A pesada carroca com as suas rodas de madeira, que era a casa do manecido durante longos meses, longos anos, nesta capital da civiltzacaol"
n6mada, transformouse, no contacto com os Egf pcios, em tanque
metalico ligeiro com os Aqueus, "em tudo semelhantes aos tanques do }fa verdade, e todo o Egipto que recebe uma vaga cada vez mais im
Fara6 que Maspero descreveu'", portante de estrangeiros de raca aqueia. Sempre que o Fara6 venceu
O autor cita uma passagem na qual Maspero descreve a carrocaria e os "povos do mar", "este poupa os sobreviventes, alistaos e distribuios
a cavalaria egipcias levantando a seguinte questao: pelos seus terrenos de construciio ou nos seus pastas militares. Estes
tornamse os me/hares operarios e os melhores so/dados do rei... "
Tratase de guerreiros homericos ou de guerreiros eqipcios aque/es acerca
dos quais G. Maspero fa/a? Niio seria um ta/ verso homerico "Os cavalos ... Domiciliados ou aquartelados em Tebas e nas provlncias, estes mercenaries
esvoar;avam livremente em direcdio a planicie" a traduciio mais exacta de desposam Eqipcias, misturamse com a populadio, tornamse pessoas hones
uma representadio eg(pcia de um tanque em plena corrida, cujos cavalos de tas e ate grandes personagens, alcancam as honras e a riqueza. Sob a XX,1
longas crinas (segundo o epiteto homerico] levantam voo, com as duas patas dinastia {12001100 a.C.J, mesmo em Tebas, boa parte dos oficiais e dos fun
dianteiras batendo o ar?6 cionarios era composta par Sirios e Berberes de adaptacao recente ...
Esta troca de mu/heres operava sobretudo uma mistura das rar;as e das civili
As relacoes com o Egipto e com o Oriente Pr6ximo eram tao profun zacoes, cujas narrativas de Eumeu nos forneceriio um born exemplo ...
das que o autor supfie que Agamemnon, o chefe do feudalismo aqueu, Em ftaca, o heroi Egito, o Egfpcio, e sempre escutado quando se ergue para
falar ao povo.9
180 Cheikh Ania Diop A Unidade Cultural da Africa Negra Apendtce. Anota4rOes acerca de La Resurrection d' Homere.Au temps des heros porVictor Berard 181
o autor revela, na toponimia mediterranica, a amplitude da influen grandes embarcaciies de Tarsis com o intuito de ali negociarem. 0 Robinson
cia egitpofenfcia. eqipcio e vitima de um naufrdqio nas aguas lonqinquas que ladeiam
ToNoutri, o Pais dos Deuses (Ulisses vai citar pa/avras provenientes da lin
Daise tres mil anos de intimidade quase continua entre as llhas Verdes e as gua dos Deuses). Uma tempestade afunda o navio e toda a tripuladio, e s6
civilizar;oes levantinas exerceram a influencia directa e indirecta que se pode o nosso her6i e lancado numa ilha habitada por uma serpente gigantesca,
imaginar na vida polftica dos Aqueus: Roma niio agiu de modo mais significa dotada de uma voz humana (coma Circe e Calipso): esta serpente, chefe de
tivo e mais pro/undo na nossa Europa Ocidental ... famflia, acolhe o ndufraqo, cuida dele, alimentao, adivinhalhe um regresso
... A arte desta epoca, mesmo no que concerne as suas obras seguramente feliz e encheo de oferendas colocandoo a bordo do navio que o leva de volta
mais nativas, e orientalista, com todas as caracteristicas que este conceito (Circe faz o mes mo)12•
implica: o gosto pelo ornamento e pela pompa, pelo bri/ho e pela cot; pela
riqueza e ate mesmo pelo extravagante; a fantasia e a exuberancia na com Proteu, o feiticeiro divino, encontrado por Menelau na foz do Nilo e
binaciio das linhas cultas com materias preciosas; o sentimento da vida uni toda a hist6ria que lhe diz respeito, e a qual Eidoteia se mistura, en
versal, da beleza animal e vegetal tanto quanta da beleza humana; um ardor contram o seu equivalente na literatura egfpcia: Prouti e o nome de um
sensual aspirando ao movimento e a fe/icidade, e uma especie de languidez Fara6 egf pcio, magi co lendario.
contemplativa e de resiqnaciio no deleite; em suma, de niio se sabe que exo Nos papiros do seculo XIII antes da nossa era, encontrase relata
tismo aos olhos da nossa Europa 1°. da a hist6ria de dois prfncipes feiticeiros: estes sao filhos de Prouti e
dos pr6prios futuros Prouti. Estao em busca do livro de Thot, o livro
Porern, nesta epoca recuada, os Fenicios que serviam de inter magico por excelencia, que permite aqueles que o possuem posiciona
mediarios com o Egipto eram, sem contestacao possivel, os vassalos remse imediatamente abaixo dos Deuses; atraves das suas formulas,
do Fara6: o autor encontra a prova disto na correspondencia trocada. e possfvel encantar o ceu, a terra, o mundo da noite, as montanhas e as
aguas: conhecer os passaros e os repteis, os peixes que se encontram
Os reis ou sufetes de Tyr, de Sidon, de Arad e de Biblos, das mais nobres no fundo do abismo, porque uma forca divina falas vir a superffcie.
metr6poles fenicias.fiquravam entre estes correspondentes que se afirmavam
servidores de Amen6fis, os ciies da sua casa, os degraus e o p6 dos seus pes", O Proteu odisseico conhece os abismos do mar na sua plenitude e faz emergir
as focas da profundidade espumante.13
Victor Berard chega a analise de Homero. Segundo ele, a dependen
cia entre a Odisseia e os romances marl timos egi pcios transmitidos Quando, ap6s todas estas metamorfoses, o Proteu odisseico retomara
atraves do papiro e estreita. Muitas das passagens da primeira con uma forma humana, este nao tera "a majestosa cabe/eira branca ea bar
sistem apenas, de certa maneira, na versificacao grega de fragmentos ba prateada do Pai eterno que se imaqina comummente. Ostenta uma
de romances egf pcios. peruca neqra ericada pelo zefiro, ta/ como convem a Proteu o Eqipcio.
Porque o verdadeiro Prouti nunca sai sem uma peruca azul ou negra."14
Ha muito tempo, as naveqadies eqipcias no Mediterrtineo ou no Mar Vermelho
e os seus periplos tinham dado origem a cantos ou romances marftimos, de O Fara6 do Egipto ostentava uma peruca ligeira, nao de cabelo ou
entre os quais os papiros ainda s6 nos divulgaram dais... A segunda narrativa de crina, mas de metal e sobretudo de esmalte. Tratavase, portanto,
muito mais romanesca e este con to do naufraqio ao qua/ aludi mais acima: e de um verdadeiro penteado, e nao de uma imitacao de cabeleira. As
o primeiro, quanta a dataciio, dos Robinson Crusoe. Este transporta o leitor perucas ainda existem na Africa Negra, na Abissinia. A nobreza egfpcia
para os tempos lonqinquos em que os Pepi e os Mentuhotep das Vig e XJg di ostentava perucas em lapislazuli,
nastias (24002100 antes da nossa era) fa enviavam as suas [rotas do Punt, O Fara6 odisseico domina as focas "ta/ como os Fara6s das fabuias e
no sul do Mar Vermelho, para ir comprar as fraqrancias, os narcoticos e os as caricaturas eqipcias reinavam sobre os ratos, os leiies ou os qatos ... "
animais raros: Salomiio e Hirao viriam a associarse para enviar as suas
12. /d., op. cit., pp. 107 a 109.
10. ld., op. cit., pp. 47 e 48. 13. ld., op. cit., p. 90.
11. Id., op. cit., p. 72. 14. ld., op. cit., p. 90.
182 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra Apendice, Anotacaes acerca de La Resurrect.ion d' Homere.Au temps des heros per Victor Berard 183
o conto do Rei Khoufoui e os M<igicos colocavam em cena um certo Didi que, entre as quais os Hebreus e os Helenos que, longe de as ignorar, admiraram e
grafas aos /ivros de Thot, se fazia seguir pelos leiies atraves do pals, ta/ como imitaram, e, por vezes, ate copiaram. A Caldeia, o Egipto ea Fenicia, a Babilo
o nosso Proteu se faz suceder pe/as focas.15 nia, Tebas e Sidon representaram para os Hebreus e para os Helenos a mesma
be/a, sii, douta e veneravel antiguidade que Jerusalem, Atenas e Roma repre
Por ultimo, as profecias da grande Serpente barbuda no conto egip sentaram para os Ocidentais.18
cio do naufrago sao as mesmas que as do divino Tiresias a Ulisses.
o autor demonstra que o Zefiro e um vento benfeitor e digno de ! Os sacerdotes egipcios nao assinavam as suas descobertas como as
ser cantado em poesia apenas no Egipto; que tendo em conta o seu gregos individualistas, nenhum name de inventor foi perpetuado. Em
caracter funesto na Grecia e no Mediterraneo setentrional em geral, contrapartida, mantiveramnas invejosamente nas suas castas e apenas
"s6 um emprestimo aos modos ea literatura do Egipto poderiam ter tor disponibilizavam um ensino elementar esoterica ao povo.
nado o mistral na aprovaciio suprema de um paraiso helenico. Contudo, Estes inventaram a nocao de iniciacao, que constituiu a grande
afirmar que, hci vinte seculos, o inconveniente zefiro (assim [ala sabia fragilidade que viria um dia a destruir a sua civilizacao, Adoravam
mente o poeta odisseico) se tornou, em todas as literaturas ocidentais conferir ao conhecimento um caracter anunciador e atribuiarn as suas
discipulas da Grecia, o vento dos suspiros afectuosos, da felicidade tran descobertas e as resultados das suas experiencias ao Deus That (Mer
quila e do amorf "16 curio Hermes). Para alem disso, foi bastante facil para os discipulos
Nas suas metamorfoses, Proteu transforrnase sucessivamente em iniciados imputarernse a si pr6prios as descobertas dos seus men
leao com crina, em pantera, em porco gigante, etc. Ora, e ao hipopota tores. Sabemos hoje, de modo praticamente assegurado, que Tales de
mo que os Egipcios designavam como porco do rio. Era a divindade do Mileto, Pitagoras de Samas, Arquimedes da Sicilia, Platao, Solon, etc.
parto. Este s6 se encontra na Grecia nos monumentos min6icos de ori foram discipulos de sacerdotes egipcios que nesta epoca, mesmo
gem egipcia. A sua presenca, refere Berard, representa a prova indubl segundo Platao, consideravam as Gregas como espiritos relativamente
tavel, para os arque6logos, da influencia egipcia na Creta prehelenica, imaturos. Ora, e notavel que nenhum destes sabios gregos educados
cujos cultos foram transmitidos aos Cretenses helenizados. Para con desta forma no Egipto, em particular Pitagoras, fundador da escola de
cluir, o autor levanta a seguinte questao: "De um modo geral, podersea matematica grega, nao tenha pensado em estabelecer um equilibria
negar que o poeta odisseico retirou o seu epis6dio de Proteu aos cantos entre as suas pr6prias descobertas e aquelas que recebeu do Egipto.
e romances do Egipto fara6nico? Mas tera este emprestimo sido directo, E tan to mais inexplicavel que Plutarco, em Isis e Osi.ris, insiste no facto
de um texto egfpcio para um texto grego?"17 de que, de entre todos as sables gregos que se iniciaram no Egipto,
Este considera que nao: as Fenicios, agentes e vassalos dos Egipcios, Pitagoras e o mais estimado pelos Egipcios, devido ao seu espirito
teriam servido de intermediaries. Mas segundo ele, os EgiptoFenicios rnistico. Sabese que a sua ciencia do Numero fol durante muito tempo
desempenharam, face a Grecia e aos Hebreus, a mesma funcao civili uma ciencia matematicomistica,
zadora, se nao mais ainda do que a Antiguidade grecolatina face ao Tai apreco pela reputacao individual da imortalidade do name, tal
Ocidente moderno. defeito de probidade intelectual nao deixou de indignar o honesto
Her6doto, que manifesta sem rodeios o facto de Pitagoras ter sido um
O erro dos nossos precursores consistiu somente em acreditar que esta auro plagiador19•
ra dos tempos modernos correspondia tambem ao despertar da humanidade Her6doto, cu]o nascimento distaria apenas de 16 anos (?) da morte
pensante e criadora e que Homero e a Biblia eram as primeiras e subitas ex de Pitagoras nao fala de todo deste ultimo coma de um mito, mas sim
plosoes do qenio literario. As descobertas recentes dos arque6/ogos no Egipto coma de um homem que realmente existiu. Isto nao deixa de levar
e na Ca/deia revelaramnos indubitavelmente que, durante uma longa anti alguns a considerar Pitagoras apenas coma a personificacao da nova
guidade levantina, alguns sabios, artistas e poetas j<i tinham criado obras tendencia (escola) filosoficornatematlca.
primas que serviram, tambem elas, de modelo a uma centena de qeracoes, A existencia deste ultimo pode ser posta em duvida: o mesmo nao
sucede com a de Arquimedes. 0 seu tumulo foi encontrado em Siracusa,
15. ld., op. cit., pp. 91 e 92.
16. /d., op. cit., p. 96. 18. /d., op. cit., pp. 81 e 82.
17. ld., op. cit., p. 97. 19. Cf. Livro II.
184 Chelkh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra Apendlce. Anota�Oes acerca de La Resurrection d' Homere.Au temps des heros par Victor BE!rard 185
na Sicilia. Ora, todas as invencoes mecanicas atribuf das a Arquimedes das desigualdades relativamente aos contributos estrangeiros a Gre
apresentam um caracter duvidoso; estas existiam no Egipto milenios cia, para quern pretendesse colocar a Africa e a Asia na mesma balanca
antes do seu nascimento. Os construtores das piramides do antigo im sob este ponto de vista.
perio conhecem o principle da alavanca; recorriam a este de modo di Gracas ao engenho dos sables alexandrinos, os progressos tecnicos
versificado para erguer toneladas de pedras ate ao topo das piramides concretizados na antiguidade permitiriam passar directamente para
em construcao. ·Neste sentido, e impossivel utilizar tal instrumento uma fase industrial com a utilizacao sisternatica da maquina,
sem associar de imediato a relacao das massas e das distancias sem A energia hidraulica era domesticada par "Demetra". A forca motriz
teorizar. do vapor tambern o era virtualmente.
Arquirnedes teria descoberto o parafuso sem fim que esta na ori Porern, nenhum investigador sentira a necessidade de aligeirar as
gem de um progresso mecanico consideravel. Porem, Diodoro da dificuldades dos trabalhadores escravos (tao baratos) ao substituir a
Sicilia e categ6rico, Arquimedes so poderia ter levado a cabo esta in sua maodeobra servil pela maquina,
vencao ap6s a sua viagem para o Egipto, onde o parafuso hidraulico Os escravos, cuja questao poderia interessar, nao estavam em
ja era utilizado e servia para bombear a agua. lsto afigurase de ta! posicao de levar a cabo investigacoes e aplicacces. Por outro lado, os
modo evidente que e hoje geralmente aceite o facto de Arquimedes resultados cientfficos serviram para o divertimento das classes diri
ter, no maxima, adaptado uma invencao egipcia. 0 parafuso egipcio, gentes que chegavam mesmo a apreender a transformacao brutal que
assim exportado por Arquimedes, serviu, tal coma no pals de _origem, resultaria da introducao da maquina nos costumes tecnicos.
para "bornbear a agua" das minas de prata em Espanha. Por utlimo, o Arist6teles afirmava ironicamente: "Quando a lancadeira funcionar
pr6prio prindpio de Arquimedes esta relacionado com esta mecanlca por si s6, o escravo deixara de ser necessario." De facto, a sentenca
dos fluidos. Ha lugar; portanto, para prosseguir as Investigacoes. 0 re estava ditada para a escravatura.
sultado, ao que parece, encontrase no fundo. Porem, nao era possfvel que lhe tivesse surgido a ideia de consagrar
Outro factor nao menos paradoxal fica par desvendar. 0 genie in as suas investlgacoes a tornar possfvel o funcionamento da lancadeira
telectual heleno eclodiu e desenvolveuse principalmente no exterior por si s6, de modo a que todos os homens se tornassem livres. Este
de Atenas e da Grecia continental, na Asia Menor (Pergamo, Mileto, pretendia demonstrar com isto que a escravatura constitui uma neces
Halicarnasso ), na Palestina (Antioquia) e sobretudo no Egipto, em sidade natural
Alexandria.
Esta ea verdade durante e depois do reinado de Alexandre. Para de
tectar a anomalia, seria necessario supor que Dakar e hoje o centro
permanente do poder criador da Franca no apogeu da sua gl6ria.
E na Alexandria que a filosofia ira atravessar um nova desenvolvi
mento com o neoplatonismo de Plotino.
A biblioteca mais importante do mundo daquela epoca ( que viria
mais tarde a ser incendiada por cristaos fanaticos], os medicos mais
proeminentes que praticavam a dissecacao, os engenheiros constru
tores de maquinas "modernas" (taumaturgos): pombo voador em ma
deira, turbina a vapor par reaccao ... "eolfpila de Heron", etc, encon
tramse na Alexandria, exceptuando Atenas. Perque? Nenhuma razao
aparente, a nao ser o facto de a infraestrutura e da tradicao intelectual
egfpcia serern ja milenares, e oferecerem condicoes de trabalho aos
investigadores que nao podiam concorrer com a Asia nem corn a Eu
ropa de outrora. Mesmo que se tratasse apenas desta escolha perma
nente e do desenvolvimento das ciencias alexandrinas, comparala a
dos outros centros da Asia e da Europa ja forneceria uma ideia acerca