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A Unidade Cultural Da África Negra: Esferas Do Patriarcado e Do Matriarcado Na Antiguidade Clássica - Cheikh Anta Diop

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Desejei libertar a profunda unidade cultural que

permaneceu viva sob ilus6rias aparencias de hetero­


geneidade.
S6 um verdadeiro conhecimento do passado e passive!
de inanter na consciencia o sentimento de uma con­
tinuidade hist6rica, indispensavel para a consolidacao
de um estado multi­nacional. [ ... ] Nao e indiferente
para um povo entregar­se a uma investigacao desta
natureza, a um tal reconhecimento de si pr6prio; isto
porque, ao proceder desta forma, o povo em causa
apercebe­se daquilo que e s6lido e valido nas suas
pr6prias estruturas culturais e sociais, no seu pensa­
mento em geral; para alern disso, da conta daquilo que
existe de fragil nestes ultimas, e que por conseguinte
nao resistiu ao tempo. Aquele descobre a amplitude
real dos seus ernprestimos, pode agora definir­se de
modo positivo partindo de criterios end6genos nao
imaginados, mas reais. Possui uma nova consciencia
dos seus valores e pode agora definir a sua missao
cultural, nao de modo entusiastico, mas de maneira
objectiva; porque apreende melhor os valores culturais
que esta mais apto, tendo em conta o seu estado de
evolucao, a desenvolver e a proporcionar aos outros
povos.

A
apolo: '
'
Coleccao Reier Africa
N ota de Apresentacao

Uma das lacunas do mercado editorial dos paises de lingua oficial


portuguesa ea ausencia, em lingua portuguesa, de obras de referencia
de autores africanos e africanistas, que fizeram catedra no dominio
dos chamados "estudos africanos" nas academias dos paises angl6fo­
nos e franc6fonos.
A Coleccao Reier Africa pretende colmatar essa lacuna. Trata­se de
uma coleccao especializada em ternaticas africanas no dominio das
Ciencias Sociais e Humanas. Ao inaugurar esta coleccao, as Edicoes
Mulemba da Faculdade de Ciencias Sociais da Universidade Agostinho
Neto (Luanda ­ Angola) e as Edicoes Pedago (Mangualde ­ Portugal)
pretendem criar um espaco de debate, alteridade e reflexao critica
so bre 'O continente africano.
A coleccao publicara obras, textos e artigos compilados de reconheci­
dos autores africanos e africanistas, que contribuam para a compreen­
sao e a reinterpretacao do continente africano.
Alern de apresentar uma visao end6gena ( de dentro) do continente,
a coleccao esta aberta a comunidade cientifica internacional que tern o
continente africano coma objecto da sua pesquisa.
Publicar e divulgar conhecimentos e saberes sabre Africa e provenien­
tes de Africa e, assim, um desafio que a coleccao abraca, contribuindo
para a construcao de uma nova epistemologia e uma nova hermeneu­
tica dos estudos africanos no espaco lus6fono, livre de estere6tipos e
de um olhar folcl6rico e exotica. Ao abracar esse desafio, a coleccao
pretende ser uma galeria de conhecimentos e saberes de Africa e
sabre Africa, que interpele os leitores e investigadores especializados
a reler Africa para compreende­la e reinterpreta­la,

Luanda, 19 de Agosto de 2012.

Victor Kajibanga
(Coordenador da Coleccao Reier Africa)
Copyright© 1982, Presence Africaine (2.� edicao revista e aumentada)
Tftulo Original: L'unite culturelle de L'Afrique noire. Domaines du patriarcat et du
matriarcat dans I' antlquite classique

CHEIKH ANTA DIOP


© desta edicao
Edicoes Mulemba da Faculdade de Ciencias Sociais da Universidade Agostinho Neto
Tftulo: A Unidade Cultural da Africa Negra. Esferas do Patriarcado e do Matriarcado na
Antiguidade Classica

AUNIDADE
Autor: Cheikh Anta Diop
Coleccao: Reier Africa
Coordenador da Coleccao: Victor Kajibanga

CULTURAL
Traducao: Silvia Cunha Neto

,
Revisao do Texto: Susana Ramos
Design e Paginacao: Marcia Pires

DA AFRICA
Irnpressao e Acabamento: Cafilesa, Solucces Graflcas
ISBN: 978­989­8655­47­9
Dep6sito Legal: 382245/14

Outubro de 2014

A presente publicacao e uma coedicao das Edicoes Mulemba da Faculdade de Cieri­


cias Sociais da Universidade Agostinho Neto, Luanda, Angola e das Edicdes Pedago,
NEG RA
Portugal. ESFERAS DO PATRIARCADO
Nenhuma parte desta publicacao pode ser transmitida ou reproduzida por qualquer E DO MATRIARCADO
meio ou forma sem a autorizacao previa dos editores. Todos os direitos desta edicao
reservados por NA ANTIGUIDADE CLASSICA
EDI<;:OES MULEMBA
Faculdade de Ciencias Sociais da
Universidade Agostinho Neto
Rua Ho Chi Minh, 56
Caixa Postal 1649
LUANDA­ANGOLA
emulemba@fcs.uan.ao
emulembafcsuan@yahoo.com.br
facisouan@fcs.uan.ao
facisouan@yahoo.com.br

EDI<;:OES PEDAGO, LOA.


Rua Bento de Jesus Caraca, 12
Serra da Amoreira
2620­379 Ramada
PORTUGAL
geral@edicoespedago.pt
www.edicoespedago.pt


edicoes pedago
,
Indite

Introducao 9

Prefacio da Primeira Edirao (1959) 11

I.
Historial do Matriarcado 13. 24
Apresentacao das Teses de J.­J. Bachofen, de Morgan 13
e de F. Engels. Crftica destas Teses

Tese de Bacho/en 13
Tese de Morgan 16
Tese de Engels 19
II.
Critica da Tese Classica de um Matriarcado Universal 25. so
Culto das Cinzas 31
Culto do Fogo 31
Berco Meridional e Matriarcado 32
Culto dos Martos 39
Critica das Teses de Morgan e de Engels 40

III.
Hist6ria do Patriarcado e do Matriarcado 51. 101
Berco Meridional, Berco N6rdico e Zona de Confluencia 51

Berea Meridional 51
Eti6pia 51
Egipto 54
Libia 58
Africa Negra 61

Berea N6rdico 66
Creta 67
Grecia 69
Roma 75
Germania 79
Citia 82

Zona de Confluencia 85
Arabia 85
Asia Ocidental: Fenicia 90
Indo e Mesopotamia 93
Mesopotamia 95
Blzancio 100

IV.
Anomalias Detectadas nas Tres Zonas 103.127
Introducao
Explanacao 103
Reinado da Rainha Hatsheput 103
Epoca Ptolomaica 105
Amazonismo 107 Desejei libertar a profunda unidade cultural que permaneceu vivaz
O Matriarcado Fula 110 sob ilus6rias aparencias de heterogeneidade.
Patriarcado Africano 112 Seria imperdodvel se aquele a quern o acaso o levou a viver de modo
Poligamia 113 profundo a realidade do seu pais, niio tentasse prover o intelecto com o
Matriarcado Neolitico 115 factor sociol6gico africano.
Matriarcado Germanico 117
Na medida em que os factores sociol6gicos estiio motivados desde a
Matriarcado Celtico 119
Matriarcado Etrusco 121 sua origem ao inves de serem gratuitos, basta agarrar a ponta do fio
Amazonismo do Termodonte 122 condutor para sair do labirinto.
Asia: Reino da Rainha Semframis 124 De acordo com esta perspectiva, este trabalho representa um esforco
Matriarcado Licio 126 de racionalizacao.
v.
E evidente que um investigador africano e mais privilegiado do que
129.162 os outros e, par esse motivo, niio possui nenhum merito particular par
Comparacao dos outros aspectos das Culturas Nordica e
Meridional desobstruir as leis sociol6gicas que parecem estar na base da realidade
Concepcao do Estado Patri6tico 129 social que o mesmo atravessa.
Africa 129 De resto, se inumeros investigadores niio nos tivessem ja precedido,
Europa 130 talvez niio alcancassemos hoje qualquer pretenso resultado.
Realeza 135
Neste sentido, manifestamos o nosso profundo reconhecimento para
Religiao 139
Aquila Que vi de Born na Conduta dos Negros 148 com todos os estudiosos cujos trabalhos nos foram uteis.
Literatura 149 Deva evocar aqui a mem6ria do meu Professor Marcel Griaule que, ate
O Nascimento da Traqedia ou Helenismo e Pessimismo (150\ duas semanas antes da sua mo rte, niio deixou de prestar a maior atencdo
de Nietzsche /
as minhas investiqacoes. Manifesto de igual modo o meu agradecimento
a M. Gaston Bachelard. Expresso tambem a minha maior qratidiio, en­
VI.
Sera historlca a comparacao da Africa Negra actual e do 163. 166 quanto aluno, aos meus Professores Andre Aymard e Leroi­Gourhan.
Egipto antigo? Voltando ao assunto deste trabalho, passo a ·indicar os facto res que siio
de natureza a revelar as diliqencias do meu pensamento.
VII. Procurei partir das condicoes materiais para explicar todos os traces
Os factores perturbadores 167.172 culturais comuns a todos os Africanos, desde a vida domestica a da
Culto dos Antepassados 167
naciio, passando pela superestrutura ideol6gica, as sucessos, os fracas­
Vocabulario Mediterranico 170
sos e as reqressiies tecnicas.
Conclusao 173 Fui entiio levado a analisar a estrutura da [amilia africana e ariana,
bem coma a tentar demonstrar que o fundamento matriarca/ sabre a
Apendice 177 qua/ se baseia a primeira niio e de todo universal, apesar das aparencias.
Anotacoes acerca de La Resurrection d'Homere. Au temps des 179 Abordei a nociio de estado, de realeza, a moral, a Jilosofia, a religiiio e
heros por Victor Berard
a arte consequente, a literatura ea estetica.
Referencias Bibliograficas 189

lntroducao
Em cada um destes dominios tiio diversificados, procurei desvendar o
denominador com um da cultura africana par oposiciio a cultura nordi­
ca ariana.
Se escolhi a Europa enquanto zona de oposidio cultural, Joi pelo facto
de, para a/em do_s argumentos de ordem geografica, a docum�nta9a.o
Prefacio
proveniente do Mediterraneo setentrional ser actualmente mats abun­ da Primeira Edicao (1959)
�n� •
Caso alargasse o meu estudo comparatista para la da India, a China,
correria o risco de fazer afirmaciies acerca das qua is niio estaria total­ Os intelectuais devem estudar o passado nao para nele se comprazer,
mente convencido par falta de documentos. mas para dele extrair licoes ou, ainda, para se afastar dele com conheci­
Apercebemo­nos de que um trabalho desta natureza, que se quer mento de causa, caso seja necessario. S6 um verdadeiro conhecimento
demonstrativo, niio pode evitar a apresentaciio e o alinhamento de do passado e passive! de manter na consciencia o sentimento de uma
provas que servem de fundamento, ao inves de as referir de modo mais continuidade historica, indispensavel para a consolidacao de um estado
au menos cavaleiroso. multinacional.
O /eitor teria o direito de duvidar; poderia, ao chegar a ultimo palavra, A psicologia classica advoga a favor de uma natureza humana essen­
ser invadido par um sentimento de cepticismo, ter a impressiio de que cialmente universal; isto porque a mesma deseja o triunfo do humanis­
acabou de !er um romance. mo. Para que este ultimo seja possivel, e necessario que o homem nao
/sto obrigou­nos a reproduzir as documentos sempre que nos pareceu seja intrinsecamente imperrneavel a qualquer manifestacao por parte
necessario. do seu semelhante. E necessario que a sua natureza, a sua consciencia,
Como e evidente, niio Jui vftima de um conformismo intelectua/. Se eu o seu espirito, estejam aptos para assimilar tudo aquilo que !he e estra­
niio tivesse citado autores coma Lenormant, que representa um autor nho a priori atraves da aprendizagem.
antigo, niio poderia ter realcado a estratificaoio em castas das socie­ /Porem, isto nao significa que a consciencia humana se modifique
dades babi/6nias, indianas e sabeias. desde a sua origem pelas experiencias particulares realizadas em so­
Osaki este trabalho contribua para reforcar o sentimento dos tacos ciedades que se desenvolveram separadamente. Neste sentido, exis­
que sempre uniram os Africanos de um !ado ao outro do continente e tiam inicialmente, isto e, antes do contacto regular dos povos e das
demonstrar, deste modo, a nossa unidade cultural orqttnica. nacoes, antes da era das influencias rectprocas, diferencas nao essen­
ciais, mas relativas entre os povos. Estavam relacionadas com o clima
e com as condicoes de vida particulares. Os povos que viveram durante
muito tempo na sua terra natal foram moldados de forma duradoura
pelo ambiente social. E possivel recuar ate este molde primitivo sa­
bendo identificar as influencias estrangeiras que se sobrepuseram.
Nao e indiferente para um povo entregar­se a uma investigacao desta
natureza, a um ta! reconhecimento de si pr6prio; isto porque, ao pro­
ceder desta forma, o povo em causa apercebe­se daquilo que e s6lido
e valido nas suas pr6prias estruturas culturais e sociais, no seu pensa­
mento em geral; para alem disso, da conta daquilo que existe de fragil
nestes ultimos e que, por conseguinte, nao resistiu ao tempo. Aquele
descobre a amplitude real dos seus ernprestimos, pode agora definir­se
de modo positivo partindo de criterios end6genos nao imaginados,
mas reais. Possui uma nova consciencia dos seus valores e pode agora
definir a sua missao cultural, nao de modo entusiastico, mas de ma­
neira objectiva; porque apreende melhor os valores culturais que esta

10 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra Prefiicio da Primeira Edic;.3o (1959) 1.1
mais apto, tendo em conta o seu estado de evolucao, a desenvolver e a
proporcionar aos outros povos.
Nao nos seria possivel desenvolver prematuramente as ideias de van­
guarda. Limitamo­nos a referir o prefacio de Nations Neg res et Culture,
publicado em 1953­54. A partir de Setembro de 1946, dei a conhecer I.
aos estudantes africanos, em conferencias reiteradas, as ideias que sao
ali desenvolvidas. Ate estes ultimas dais anos, nao somente os homens
politicos africanos nao aceitavam estas ideias, mas ate mesmo alguns
Historial do Matriarcado
de entre eles procuraram critica­las no piano puramente doutrinario,
Mesmo aqueles que, atraves da escrita e da palavra, procuraram
demonstrar que a independencia nacional representa uma fase his­ Apresentacao das Teses deJ.­J. Bachofen, de
toricamente ultrapassada na evolucao dos povos, e que nao se podem Morgan e de F. Engels. Critica estas Teses
elevar a nenhuma forma de federacao africana independente, a nocao
de um Estado africano multi­nacional, sao estes que desenvolvem Este capitulo e consagrado a exposicao sucinta das teses relativas
hoje, de modo sub­reptlcio, as ideias abrangidas no prefacio de Na­ ao predominio do matriarcado, considerado enquanto etapa geral da
tions Neqres et Culture. As suas plataformas politicas actuais emergem evolucao da humanidade. O primeiro historiador do matriarcado e J.­J.
assim coma uma mera c6pia deste prefacio, quando nao estao ainda Bachofen, que publicou em 1861 Le droit de la Mere (Das Mutterrecht).
aquem das ideias que ali sao desenvolvidas. Em 1871, um investigador americano, Morgan, apresentou uma con­
firmacao das vis6es de Bachofen acerca da evolucao das primeiras so­
ciedades: Systems of Consanguinity and Affinity. Par ultimo, em 1884,
Friedrich Engels descreve os pontos de vista de Bachofen e de Morgan,
baseia­se nas suas descobertas, coma em materiais reconhecidos com
conviccao, para melhor afirmar e demonstrar a historicidade da fami­
lia: Origine de la famille, de la propriete privee et de l'Etat.

Tese de Bachofen
A exposicao desta tese e retirada essencialmente da obra que Adrien
Turel consagrou ao seu autor: Du reqne de la mere au patriarcat. Esta
e, segundo o meu conhecimento, a unica que existe a este respeito em
lingua francesa.
Bachofen considera que a humanidade conheceu, em primeiro lugar,
uma epoca de barbarie e de promiscuidade afrodita de tal modo que
a filiacao so podia ser calculada atraves da linhagem uterina, sendo
incerta qualquer filiacao paterna. 0 casamento nao existia.
Uma segunda epoca, dita ginecocratica, sucede a primeira enquanto
consequencia 16gica desta. A mesma caracteriza­se pelo casamento e
pela hegemonia da mulher; continua a calcular­se a filiacao atraves da
linhagem uterina, tal coma durante o periodo precedente. Ea verda­
deira epcca do matriarcado, segundo a coricepcao bachofeniana.
O Amazonismo e igualmente caracteristico desta epoca,

Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra I, Historial do Matriarcado 13


Par ultimo, a terceira etapa distingue­se das outras atraves de uma O caso e tanto mais significativo que foi Apolo que, de acordo com
nova forma de casamento sob a hegemonia do homem, par um imperi­ a vontade de Zeus, ordenou o crime a Orestes. Para alern disso, toma
alismo masculino: e o reino do Patriarcado. tambern a sua defesa. Atena preside o tribunal que deve julgar este
O patriarcado e superior ao matriarcado: e antes de mais espiritu­ ultimo. Eis a defesa de Apolo antes do voto dos Are6pagos:
alidade, luz, razao, delicadeza. E simbolizado pelo sol, pelas elevacoes
celestiais onde reina uma especie de espiritualidade eterea, Em con­ APOLO ­ Vou responder as tuas perguntas e tu veras se o meu raciocinio
trapartida, o matriarcado esta ligado as profundezas cavernosas da e correcto. Aque/a a quern chamam miie niio e a geradora do seu Ji/ho, mas
terra, a noite, a lua, a materia, a esquerda que pertence a feminilidade tiio s6 a alimentadora do germe nela recentemente semeado. Quern gera e o
passiva, par oposidio a direita, relacionada com a actividade masculina. semeador; ela, coma estrangeira a estrangeiro, limita­se a conservar o jovem
Bachofen extrai o seu principal argumento a partir da analise da rebento, a menos que um deus o impeca.
Oresteia de Esquilo, que considera enquanto representante da luta Vou dar­te uma prova do que afirmo e e que se pode ser pai sem a ajuda da
entre as direitos maternal e paternal. Durante o peri odo her6ico, as miie. Pode testemunha­lo alquem aqui presente, afilha de Zeus Olimpico, que
Gregas eram regidos pela ginecocracia; esta alterou­se progressi­ niio Joi criada nas trevas do seio materno e, no entanto, nem uma deusa seria
vamente e, deixando de estar adaptada as circunstancias, viria a ser capaz de dar a luz um ta/ rebento.
eliminada com o seu cortejo de antigas divindades terrestres: as
(Eumenides, verso 667 e seg.)
Eumenides; estas darao lugar as novas divindades celestiais do patri­
arcado: Apolo e Atena, a filha sem mae, O tema da peca e o seguinte:
Agamemnon, generalissimo dos Gregas, regressa da guerra de Troia e Ap6s a defesa de Apolo, o contraste entre as dais sisternas, o seu
encontra a sua esposa com um amante, Egisto. Clitemnestra ve­se livre caracter irredutivel e suficientemente pasta em evidencia, Os Aeropa­
do marido atraves de um homicidio. Orestes, filho de Agamemnon, gos votam: uma segunda volta sucede, isto porque as dais partidos
vinga o seu pai matando a sua mae: consequentemente, e perseguido angariaram o mesmo mimero de votacoes: mas Atena, que preside
pelas divindades protectoras do direito maternal, as Erlnias ­ ou Eu­ e que ainda nao tomou parte no sufragio, entrega o seu boletim
menides, ou Furias. Para estas, o homicidio mais grave que se pode a Orestes absolvendo­o deste modo do homicfdio da sua mae, Este
cometer, 0 unico que e inexpiavel, e O de uma mae, gesto consagrava o triunfo do segundo regime; Atena esclarece­o da
Nas Eumenides, Corifeu exprime­se do seguinte modo: seguinte maneira:

CORIFEU ­ Foi entiio um profeta que te arrastou a ma tar a tua miie? ATENA ­ Cabe­me pronunciar­me em ultimo lugar. juntarei o meu voto aos
ORESTES ­ E ate aqui niio vejo raziio para me queixar da minha sorte. que foram dados a Orestes. E que eu niio tive miie que me desse a luz e, par
CORIFEU ­ Seo voto te condenar, vais talvez falar de outra maneira. isso, sou em tudo e de todo o coraciio pelo homem, pelo menos ate que um
ORESTES ­ Estou confiante. E o meu pai ha­de enviar­me do tumulo o seu dia eu venha a celebrar as minhas niipcias. Sou inteiramente a favor do
auxilio. pai. Assim niio terei em conta especial a morte de uma mu/her, que matou o
CORIFEU ­A confiares nos mortos, tu que mataste a tua miiel marido, guarda do seu Jar. Orestes serti absolvido, mesmo em caso de igual­
ORESTES ­ Ela sofria o efeito de duas manchas. dade na votaciio.
CORIFEU ­ Como assim? Exp/ica isso aos juizes. Tirai depressa os votos das umas.juizes a quern compete esta tarefa.
ORESTES ­Ao ma taro marido, ela matou o meu pai. (Eumenides, verso 734, e seg.)
CORIFEU ­ O que? O facto e que tu estas vivo, enquanto ela ja expiou o assas­
sinio com a sua morte. Para Bachofen, a ubiquidade do matriarcado e inegavel: este nao
ORESTES ­ Mas porque e que tu niio a perseguiste em vida? representa a marca distintiva de um au de outro povo, mas regeu, a
CORIFEU ­ E que e/a niio era do mesmo sangue daquele a quern matou. um dado momenta, a organizacao social de todos as povos da terra:
ORESTES ­ E eu sou do sangue da minha miie? dai os inumeros vestigios extraidos da literatura classica da Anti­
CORIFEU ­ Celerado, coma Joi entiio que ela te criou no seu seio? Renegas guidade.
assim o sangue carissimo de uma miie? Neste sentido, existiu uma passagem universal do matriarcado para
(Eumenides, verso 595 e seg.) o patriarcado, o que nao implica que tal tenha sucedido durante a

I, Historial do Matriarcado 15
14 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra
mesma epoca para todos os povos. Porem, segundo a concepcao evo­ Engels considera que nao se trata aqui de meros nomes, mas de ter­
lucionista do autor, trata­se incontestavelmente de uma passagem de mos que exprimem o grau real do parentesco au, mais concretamente,
um estadio inferior para um estadio superior, de uma verdadeira as ideias que as Iroqueses tern acerca do parentesco consangufneo.
ascensao espiritual da humanidade abrangida no seu todo. Em seguida, insiste na amplitude e no vigor deste sisterna de parentes­
co que se encontra em toda a America ­ nenhuma excepcao a esta regra
foi encontrada nos Indios ­, na India com as Dravidas do Decao, nas
Tese de Morgan tribos "Gauras do Hindustao'' Mais de duzentas relacoes de parentesco
sao expressas nos mesmos termos com as Tarnules da India e com os
Por vias distintas, Morgan chega a mesma conclusao de Bachofen Iroqueses. Do mesmo modo, nos dais povos existe a contradicao entre
no que diz respeito ao matriarcado e a filiacao uterina. Este partiu do o parentesco real resultante do sistema familiar existente e a maneira
sistema de parentesco em vigor nos Indios Iroqueses da America coma esta se manifesta atraves da lingua.
(Estado de Nova Iorque) para reconstituir as formas primitivas da Morgan encontra a explicacao para esta anomalia numa configura­
famflia humana. Constr6i deste modo uma teoria da qual se servira t;:ao familiar encontrada no Havai, durante a primeira metade do seculo
para explicar os aspectos obscuros da organizacao familiar e social da XIX, e que designa de "punaluana"; a mesma sera analisada de seguida.
Antiguidade classica (genos, fratrias, tribos, ... ). A sua teoria, inteira­ Segundo o antrop6logo, a familia representa o elemento dinamico,
mente exposta par Engels (op. cit.), ea seguinte: as suas formas evoluem constantemente, enquanto que as termos que
a representam permanecem estanques durante um Iapso de tempo
Morgan, que passou grande pa rte da sua vida entre os Iroqueses ainda hoje relativamente longo. Par conseguinte, produz­se uma especie de
estabelecidos no Estado de Nova lorque, e que Joi adoptado numa das suas fossilizacao do sistema de parentesco traduzida atraves das palavras.
tribos, a dos Senecas, encontrou a/i um sistema vigente de parentesco que S6 hem mais tarde e que a lingua retern o progresso concretizado.
estava em contradicao com as suas verdadeiras relaciies Jamiliares. Reinava Porern, escreve Engels:
entre e/es este casamento individual, Jacilmente dlssoltsvel de ambas as par­
tes, que Morgan designa de "[amilia sindiasmica" A descendencia de um casal Com a mesma certeza com que Cuvier pode, a partir da descoberta dos ossos
deste genera era entiio manifesta e reconhecida por toda a gente; niio havia marsupiais de um esqueleto animal em solo parisiense, deduzir que a mesmo
lugar para qualquer duvida acerca da questiio de saber a quern deviam ser pertencia a um sarique e que animais deste genera, entiio desaparecidos,
atribuidas as desiqnaciies de pai, miie.filho.filha, irmiio, irmii. Mas a utiliza­ tinham outrora vivido naquele local, com a mesma convicciio, podemos
ciio destes termos contraria esta constataciio. Niio siio unicamente os seus concluir que existiu um Sistema de parentesco historicamente transmitido e
pr6prios descendentes que os Iroqueses chamam de 'Ji/hos" e "filhas", mas que existiu uma familia correspondente, actualmente extinta. 2
tambem os dos seus irmiios, e estes apelidam­nos de "pai". Em contrapartida,
aquele da o nome de "sobrinhos" e "sobrinhas" aos Ji/hos das suas irmiis, que Ao proceder assim, de modo recorrente, a partir de "sistemas
por sua vez a chamam de "tio" lnversamente, a lroquesa, ao !ado dos seus de parentesco historicamente transmitidos", Morgan reconstitui a
proprios descendentes, designa as das suas irmiis coma seus "filhos" e "filnas" hist6ria da famflia e evidencia quatro tipos que se sucederam.
e recebe de/es a nome de "miie". Contudo, a mesma nomeia de "sobrinhos" A mais antiga, aquela que resulta da promiscuidade primitiva, e a
e "sobrinhas" as Ji/hos dos seus irmiios, cujos Ji/hos a chamam de "tia". Do famflia dita consangufnea: esta caracteriza­se pelo facto de o casa­
mesmo modo, as descendentes de irmiios nomeiam­se entre eles "irmiios" e mento ser proibido apenas entre pais e filhos. Todos as homens de
"irmiis'; ta! coma a Jazem por seu turno as Ji/hos de irmiis. Os Ji/hos de uma uma dada geracao sao casados com todas as mulheres da mesma
mu/her e as descendentes de irmiios tratam­se por "irmiios" e "irmiis" ta! geracao: todos os "av6s" a todas as "av6s", etc. e par conseguinte,
coma sucede entre as descendentes de irmiis. Os Ji/hos de uma mu/here as de todos as irrnaos e irmas sao casados entre eles. A famflia consan­
seu irmiio designam­se mutuamente de "primos" e "primas'" guinea desapareceu ate mesmo nos povos mais atrasados; mas
Morgan afirma a sua existencia na base do sistema de parentesco
encontrado no Havai.
1. Loriqine de la famille, de lo propriete privee et de /'Etat (trad. Bracke ­ A.·M. Desrousseaux).
Alfred Costes, Paris, 1936. P. 12. 2. Engels; op. cit., p. 14.

16 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra I. Historial do Matriarcado 17


A segunda e a famflia "punaluana", A humanidade, tendo ressenti­ Neste sentido, o regime do matriarcado, sob a sua forma mais
do obscuramente o inconveniente resultante da uniao dos irmaos e amadurecida, e­nos transmitido pela familia dita "sindiasmica"
irmas que provoca a debilidade da descendencia. proibiu­a como se A quarta familia e a monogamica patriarcal na qual o div6rcio se
da ernergencia de uma necessidade se tratasse. Doravante, todo um torna, se nao impossivel, pelo menos extremamente dificil; a mulher
grupo de irrnas e de primas casar­se­ao com um grupo de irmaos ou vive sob a dependencia total do marido, sob a sua autoridade juridica,
de primos vindos do exterior. Estes irmaos nomeiam­se entao entre si sendo a descendencia patrilinear.
punalua, tal como tambern o fazem as mulheres. Daqui decorre a desig­ Uma outra descoberta de Morgan, cuja importancia e sublinhada por
nacao atribuida por Morgan a este tipo de familia. Engels, consiste na identificacao dos clas "toternicos" dos Indios com o
A familia "punaluana" reveste uma grande importancia na teoria do genos grego e a gens romana. Este demonstra que as formas indianas
antrop6logo, no sentido em que dali extrai o "genes" que se encontra de organizacao social sao as mais antigas e que as formas greco­latinas
na base de qualquer organizacao politico­social da Antiguidade classica derivam destas: foi o cla totemico que deu origem ao genos.

A intensidade com a qua/ se manifestava a acciio deste progresso esta Esta demonstraciio elucidou, subitamente, as partes mais dificeis da antiga
demonstrada por uma instituidio que, imediatamente resultante deste, ultra­ hist6ria grega e romana e, simultaneamente, proporcionou esclarecimentos
passa em grande medida o objectivo primeiro, o da gens, que representa o inesperados acerca dos tracos fundamentais do regime social da epoca primi­
fundamento da ordem social da maior parte, se niio mesmo de todos os povos tiva ­ antes da instituicdo do Estado.4
btirbaros da terra, ea partir da qua/, na Grecia como em Roma, se alcancou,
sem transiciies, a civilizaciio.: Enquanto que Bachofen partiu dos vestigios do matriarcado que a
literatura classica da Antiguidade encerra ­ em particular da Oresteia
·Segundo Morgan, este tipo de farnilia demonstra claramente o siste­ de Esquilo ­ para afirmar a universalidade do matriarcado e a sua an­
ma de parentesco dos Iroqueses. Com efeito, as irrnas tern, de algum terioridade, Morgan chega as mesmas conclusoes a partir da analise
modo, os filhos em comum. Reciprocamente, todos os irmaos sao pais das sociedades indianas da America. Este encontra ali um sistema
comuns; todos os filhos comuns se consideram enquanto irrnaos e de parentesco cuja originalidade desperta a sua atencao, Tomou
irrnas, Porern, estando o casamento interditado entre irmaos e irmas providencias no sentido de desenvolver uma .investigacao Ievada
verdadeiros, os descendentes de uma irma representarao os sobrinhos e a cabo pelo governo americano em todo o territ6rio habitado pelos
sobrinhas de um irrnao que sera seu tio, enquanto que a irrna e tia dos Indios, e pode assim constatar a generalidade do sistema. Outras in­
deste ultimo. Os filhos encontram­se entao divididos em duas classes: vestigacoes efectuadas noutras partes do mundo (Africa Negra, India,
por um ]ado, os filhos e filhas, por outro Iado, os sobrinhos e sobrinhas; Oceania) confirmaram estas observacoes.
estes dois grupos sao primos entre si. Ao mesmo tempo que reconstitui a hist6ria da familia partindo
Morgan faz derivar a filiacao uterina destas duas primeiras epocas destes dados, Morgan investiga a organizacao clanica iroquesa e che­
da hist6ria da familia. 0 matriarcado esta implicado neste genero de ga a conclusao que o matriarcado que ali predomina representa uma
casamentos por grupos, uma vez que so a descendencia matrilinear se forma universal que, num dado momento da sua evolucao, dominou
mantem patente: neste sentido, e anterior ao patriarcado. todos os povos.
A terceira e a familia "sindiasmica" Consiste na monogamia, com
facilidade recfproca de div6rcio: era aquela que regia toda a socie­
dade indiana quando Morgan a estudou. A filiacao e ali matrilinear e Tese de Engels
o homem oferece o dote a mulher. Esta nao abandona o seu cla e pode
dele excluir o marido ( que deve necessariamente pertencer a um cla As conclusoes de Bachofen e de Morgan sao da maior importancia
diferente ), caso este nao proporcione mantimentos suficientes para o para um marxista como Engels, convicto em demonstrar a historicidade, o
sustento comum. Qualquer que seja o motivo da separacao, todos os caracter provis6rio de todas as formas de organizacao politica e social.
filhos permanecem no cla materno. Os factos acima relatados serviram­lhe de material para demonstrar

3. Engels; op. cit; pp. 26 a 27. 4. Engels; op. cit., pp. 94 e 95.

18 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra I, Historial do Matriarcado 19


que a famflia mon6gama burguesa tradicional, longe de ser uma estru­ dos mortais, responsavel sobretudo par sentimentos de vinganca, de
tura permanente, sera abalada pela mes ma caducidade das instiuicoes subjectividade odiosa, em suma, uma justica absolutamente serena.
anteriores. Percebe­se, entao, o motive pelo qua! o te6rico foi levado
a adoptar as teorias de Bachofen e de Morgan acerca do matriarcado e
ATENA - A materia demasiado grave para que um mortal a possa ju/gar.
universal. Aquele procurou enriquece­las com uma contribuicao sobre e
Tampouco me licito pronunciar­me sabre um crime cometido sob a acdio da
"La gens chez /es Celtes et les Germains" (capitulo VU da sua obra). e
c6lera vingadora ... A sttuadio portanto esta: acolhendo ou repelindo um dos
Considerando que Engels forneceu sobretudo um complemento de dois partidos, assumo, irremediavelmente, uma dolorosa responsabilidade.
argumentos para apoiar as teorias do matriarcado de que necessitava Mas, atendendo a qravtdade da questiio, vou elegerjuizes, obrigados porjura­
para a sua pr6pria tese, e no capitulo II, consagrado a critica, que teremos mento, para julgarem os casos de sangue, criando assim um tribunal que fun­
ocasiao de retornar as suas ideias. A analise de que estas serao objecto cionara para sempre. Quanta a v6s, reuni testemunhos e provas que, cobertos
nao procura, de modo algum, atacar as fundamentos do marxismo: pelo juramento, auxiliem a justice. Eu voltarei, trazendo comigo os melhores
trata­se tao somente de demonstrar que um marxista recorreu, numa dos meus cidadiios, para que eles decidam rectamente esta questiio, sem em
construcao te6rica, a materiais cuja consistencia nao estava provada. nada transgredirem a equidade e o seujuramento.6
Esquilo, o criador da tragedia atica, estava convicto de que todo o
acto humano levantava um problema de direito, de [ustica: a tragedia O coro reage coma seria de esperar ao manifestar a sua preocupacao
deveria, de igual modo, tratar essencialmente da justica. Tai parece ter face a novas leis que a deusa vai instaurar para a eternidade, a partir
sido o objectivo que o autor procurou atingir de modo consciente. Desta do julgamento divino.
forma, foi levado a utilizar materiais relativos a uma epoca durante a
qua! a nocao de justica praticamente se confundia com uma especie de CORO ­ Novas leis derrubariio hoje as antigas, se a causa ­ o crime ­ deste
resignacao est6ica ao destino, a fatalidade. A este rigor dos costumes matricida triunfar. A acontecer isto, todos os mortais achariio mais facil a
das primeiras sociedades, Esquilo, que pertencia a uma outra epoca, prtitica do crime. Muitas e reaisferidas, rasgadas pelos Ji/hos, esperam os pais
quis opor uma [ustica mais flexivel, mais adequada ao progresso da nofuturo.7
consciencia humana do seu tempo, menos elementar.
No entanto, todo o material cultural implementado reflecte igual­ Uma nova edicao das obras de Bachofen foi publicada na Basileia,
mente a luta consciente dos principios sociais n6rdicos e meridionais. entre 1943 e 1948. Os volumes II e III sao consagrados ao matriarcado8•
Foi par este motivo que Bachofen nao teve qualquer dificuldade em Nestas, o autor analisa as costumes e as tradicoes das populacoes do
ver na Oresteia a luta do matriarcado e do patriarcado, com o triunfo Egeu, ta! coma as Licios, as Cretenses, as Atenienses, as habitantes de
deste ultimo. Lemnos, as Egipcios, as Indios e as habitantes da Asia Central, as L6crios
Voltando a nocao de justica, pode citar­se a atitude do coro das Furias Epicefirios, as habitantes de Lesbos; culmina com a analise do Pitago­
hostis a Orestes: rismo e do seu aspecto tardio. No total, a obra compreende mil paginas,
O autor revela, em todas as populacoes estudadas, as traces culturais
Ah! La achou ele um novo refuqio: abracado a estatua de uma deusa imortal, que atribui ao matriarcado, as mesmos que se encontram expostos ao
quer serjulgado pelo acto de sua miio. Mas niio pode serf Uma vez derramado longo da tese. Considera" que o papel desempenhado pela mulher na
na terra o sangue materno, niio e assim tiio [dcil traze­lo de novo as veias. iniciacao pitag6rica representa um elemento matriarcal. E a analise
0 liquido espalhado no solo perde­se para sempre. destes factores que vai constituir a critica da tese de Bachofen.
Em troca, ainda vivo, teras de deixar­me sorver a oferenda rubra do teu A obra de Morgan9 compreende tres partes. Na primeira, ap6s uma
sangue. Que em ti eu possa saciar a minha sede dessa horrivel bebida!5 Introducao geral acerca do sistema de parentesco, o autor demonstra

Orestes dirige­se a Atena, explica­lhe o seu caso e solicita a sua pro­ 6. "Eumenides"; verso 470 e seguintes.
teccao. Esta responde­lhe em termos que levantam o problema da nova 7. Esquilo, op. cit., "Eumenides", verso 490 e seguintes.
[ustica: uma justica que parece transcender a fragilidade da consciencia 8. Bacho fen, Johann Jacob, Das Mutterrecht; mit Unterstiitzung van H. Fuchs, G. Meyer u. K. Sche­
fold hrgg. van K. Meuli. Basel, Benno Schwabe, 1948.
9. Morgan, Lewis. M., Systems of Consanguinity and Affinity; publicado pela Smithsonian Institu­
S. Esquilo, L'Orestie; trad. Paul Mazon. Edicoes Albert Fontemoing, 1903. tion, Vol. XVII, "Contribution to Knowledge", 1870 a 1871 (Washington, 1871).

20 Cheikh Anta Diop A Unldade Cultural da Africa Negra


I. Historial do Matriarcado
a extstencia de dais sistemas, um deles classificador ­ nao Ariano­, e o DIAGRAMA
outro descritivo ­ Ariano. A partir desta distincao, exarnina o sistema
de parentesco nas famflias Ariana, Sernltica e Uralica._
Na segunda parte, analisa a familia Ganowaniana (Indios da Ameri­
ca) ea dos Esquimos,
Na terceira parte, exarnina­se a familia Turanica, a dos Malaios e
outros povos da Asia.
/Depois de cada analise consta uma tabela do sistema correspondente:
dois desses quadros encontram­se aqui reproduzidos e dizem respeito
ao parentesco no sistema de classificacao nao ariana.
Segundo o Pastor Leenhardt, a dualidade e a paridade desempenham
um papel fundamental na nocao de parentesco nos Melanesios:

OUALIDADE ­ Quando a base da relaciio emerge orqanica, miie e Ji/ho, irmiio


e irmii e tambem, num outro piano, pai e Ji/ho, marido e esposa.
PARIDADE ­ Quando os dais elementos se encontram em posictio de reci­
procidade, iguais em direito e constituindo uma replica uma da outra. Por
ex.: tio uterino e sobrinho, etc. Paridade e mais concreto do que dualidade ...
O dual ( dualidade) ajuda entiio o Canaco a situar as paridades humanas nos
diferentes dominios, espacial, social e parental.
Nestes domfnios, apenas um tern Jronteiras deJinidas e Jragmenta­se em
divisiies circunscritas: o domlnio parental.
As balizas que marcam estas divisi5es siio permanentes, bem como o espaco
existente entre elas. Aqueles circunscrevem­no ta/ como uma parcela, e o Ca­
naco ve nesta ultimo o territ6rio pr6prio onde se desenvolve a relaciio entre
dois parentes conJundidos numa paridade. Este nomeia este conjunto atraves
de um unico vocdbulo que e um substantivo dual. Assim, ego:amale

duaeri, significa a paridade de avo e neto;


duarnara, siqnifica a paridade de tio uterino e sobrinho; Sistema de Parentesco a partir de um Homem da Tribo Iroquesa
duawe, significa a paridade de conjuqes;
duavene, siqnifica a paridade hom6nima, porque o hom6nimo corresponde a "Diagram of consanguinity: Seneca Iroquois", em Systems of Consanguinity and Affinity
identidade das pessoas. de Lewis M. Morgan (quadro IV). A traducao em frances e o reforco do cfrculode base
sao nossos.
Poderiamos de igual modo aproximar da analise de Maurice Leen­
hardt, a de Pierre Metals em Mariage et Equilibre social dans Jes socie­
tes primitives";

10. Leenhardt, Maurice, "La personne melanesienne": Ecole des Hautes Etudes, seccao das cien­
cias religiosas, Anuario 1941­1942, Imprimerie Administrative, Melun, 1942.

22 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra


I Histonal do Matriarcado 23
DIAGRAMA

II.
Critica da Tese Classica
de um Matriarcado Universal

Esta critica poderia ter uma utilidade consideravel no piano das


Investigacoes hist6ricas. Com efeito, caso fosse demonstrado ­ con­
trariamente a tese geralmente aceite ­ que em vez de uma passagem
universal do matriarcado para o patriarcado, a humanidade se dividiu,
originalmente, em dais conjuntos geograficamente distintos, entre
os quais um deles propiciou a eclosao do matriarcado e o outro a do
patriarcado, e que estes dois sistemas se reencontraram e chegaram
mesmo a disputar as diferentes sociedades humanas, que em determi­
nadas localidades, estes se sobrepuseram ou justapuseram, dar­se­ia
inicio ao esclarecimento de um dos aspectos obscuros da hist6ria da
Antiguidade. Dispor­se­ia, desde logo, de um criteria que permitiria
identificar alguns vestfgios do passado, tal como as marcas incon­
tornaveis do matriarcado durante a epoca egeia.
,.A tese classica, que e de igual modo adoptada pela maior parte dos
soci6logos e dos etn6logos ­ a de Durkheim­, ja foi pasta em causa por
Van Gennep que, ele pr6prio, se baseava, em certa medida, nos trabalhos
de Graebner.
ego: a female A posiciio que o Sr Graebner adopta face a este problema e, se e que
entendo a sua afirmaciio, a seguinte: "Parece­rne, diz o autor, que pelo
menos na Australia um dos sistemas de filiacao nao ­constitul um de­
Sistema de Parentesco a partir de uma Mulher da Tribo Iroquesa
senvolvimento continua do outro, mas que aqueles se cruzaram e mis­
turaram, tendo um dos sistemas conservado a preponderancia numa
das regi6es e o outro, na outra." 0 mesmo sera dizer, segundo me parece,
que algumas populaciies de filiaciio masculina teriam estabelecido
contacto com populaciies de filiaciio uterina, e que teria havido com­
penetracdo dos dais sistemas, sendo um e outro, originariamente, insti­
tuiciies aut6nomas.
O facto e que, em varias tribos da Australia Central, o conjunto dos dais
sistemas de filia9iio encontram­se aplicados.
Nos Arunta, par exemplo, onde a fitiacoo masculina rege a maior
pa rte das instituicoes, verificam­se simultaneamente vestiqios ineqaveis

24 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra II. Critica da Tese Cliissica de um Matriarcado Universal 25
relacionada com o matriarcado ­ e em particular com a mulher ­ e
de procedencia uterina "que dao provas, afirma M. Durkheim, da sua com o respeito que a envolve, se lhe afigurarem coma o verdadeiro
reexistencia1. . progresso e contribuirem para estabelecer uma hierarquia objectiva
P Van Gennep demonstra que a posicao de Dur�he1m _a�erca desta dos valores, aquele apenas considerara este conjunto de instituicoes
stao nao era clara e que, par momentos, parecia admitir a au��no­ favoraveis a mulher e ao ser humano em geral, enquanto expressao
q�e O riginaria de cada sistema. Foi em consequencia de l'etude cr1t1qu_e de uma liberdade perigosa, quase satanica, A hierarquia estabelecida
m1a · ­ � • deterrni
du second volume de Spencer e Guillen que a sua po�H;ao 01
nada: Resumindo a sua argumenta9ao, afirma de modo =»:
• • �
ciaro:
''A anterioridade da ftliacao uterina sabre a filiacao �aternal e de t�l
deste modo entre as dais sistemas carece, neste sentido, de uma fun­
damentacao objectiva.
Um primeria crftica importante que pode ser feita a tese de Bachofen,
modo evidente nas diferentes sociedades que acabamos de refenr, e aquela que comporta uma lacuna primordial que nao foi suficiente­
esta demonstrada atraves de uma tal abundancia de provas, que nos mente enfatizada. A dernonstracao da passagem universal de um ma­
parece dificil po­la em causa"
2•
• A_ triarcado para um patriarcado s6 seria cientificamente aceitavel caso
Van Gennep acusa Durkheim de ter resolvido o problema se� te lo se provasse, no seio de um determinado povo, que esta evolucao in­
formulado. A (mica coisa que este teria provado na s�a profundaAm�es­ terna se tivesse de facto efectuado. Ora, esta condicao nunca foi preen­
tiga�ao em torno das relacoes matrimoniais nas soc�e_da�es ocean:cas, chida nos trabalhos do autor. Nunca se pode determinar uma epoca
seria a combinacao infinita dos dais sistemas de flliacao. mas nao a hist6rica durante a qual as Gregas e as Romanos tivessem conhecido
anterioridade de um sabre o outro. o matriarcado. Contorna­se a dificuldade substituindo as povos abori­

A anterioridade e a inferioridade da filiacao uterina poderiam est�r.


nadas apenas, nas nossas teorias, com um preconceito: �s.nossas c1v1.J,zaroes
=: genes que foram encontrados no local, no momenta da sua seden­
tarizacao, e que foram destruf dos enquanto representantes de uma
cultura que lhes era estrangeira: e deste modo que somos forcados a
· ao mesmo tempo que revelam par vezes vestiqios• de . utertsmo,
europews, . . es­ remontar aos Etruscos ­ completamente suprimidos pelos Roma­
tao de ta/ modo fundadas no outro sistema, que a nossa tendenc1� tnconscien­ nos ­ para demonstrar a existencia do matriarcado em Italia. Ora, nada
te consiste em considerar a filiaf;{io masculina enquanto superior, enquanto e mais duvidoso do que a ginecocracia etrusca, tal coma sera referido
culturalmente posterior outra. aE este o princfpio "" a�lic��os a �utr:m. de seguida. Quando se trata dos Atenienses, e nos Pelasgos que se
e a
Como legftimo, explicamos posteriori esta teoria apnonst1ca: af1r";a_mos devern procurar as elementos justificativos de um matriarcado.
que o parentesco da crianca com a mi.ie niio deixa margem para duv1das, ' Quando examinada de perto, a tese de Bachofen afigura­se antici­
e
enquanto que afiliari.io com O poi niio de modo a/gum certa,
sobretud� no entffica. E improvavel que bercos tao distintos geograficamente coma
que diz respeito a "selvagens''. Porem, resguardamo­nos ao fazer antecipor as estepes eurasiaticas ­ propfcias a vida n6mada ­ e as regioes me­
esta afirmaciio por um estudo aprofundado das opinibes dos barbaros acerca ridionais do globo, em particular a Africa ­ propicias a agricultura e a
do mecanismo da concepciio, antilise esta que, apesar de a/guns estudos de­ vida sedentaria ­ tenham engendrado as mesmos tipos de organiza­
talhados, permanece ainda hoje por fazer.
3 cao social. Esta crftica adquire todo o seu valor se admitir�os a in­
fluencia do meio sabre as formas sociais e politicas, Supondo que o
Ao que parece, a tendencia inconsciente m_encionada par Va� Genne� matriarcado surgiu no sul e o patriarcado no norte, que o primeiro
no Ocidental _ cuja ctvilizacao se encontra tao fundada no patr�arcado precedeu o segundo na Bacia do Mediterraneo, e que na Asia Ociden­
��tr�a�cado e tal as dais sistemas se sobrepuseram em alguns locais, a hip6tese de
justifica a hierarquia estabelecida par Bachofen entre o
Recorde­se que para est�: o p�t�iarcado _e smorumo de uma evolucao universal de um para o outro deixa de ser necessaria:
O patriarcado.
aspiracao espiritual em direccao as regioes divinas do firmamen:o, ?e as lacunas das teorias deixam de existir e o conjunto dos factos torna­se
explicavel: posicao da mulher, sistema de legado, dote, natureza do
pureza e de castidade moral, enquanto que o matriarcado :onst1tm o
sin6nimo de dependencia passiva da vida terrestre, matenal, das ne: parentesco, etc.
cessidades do corpo. Ao inves de a realizacao do ser humano, que esta Par mais que se possa recuar no passado indo­europeu, sobretudo
par via da lingufstica comparada, encontra­se apenas uma forma de
farnflia patriarcal que se afigura comum a todas as tribos antes da sua
1. Gennep, A. Van, Mythes et Jegendes d'Australie; Ed. E. Guilmoto, Paris, s/d., P· 23.
separacao (Arianos, Gregas, Romanos). Os termos relativos a vida
2. Id., p. 24.
3. Op. cit., p. 26.

IL Critica da Tese Cliissica de um Matriarcado Universal 27


26 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra
marido, contrariamente a tradicao matriarcal que exige o inverso. Nos
n6mada sao comuns, contrariamente aqueles que dizem respeito a
Gregas, nos Romanos e nos Arianos da India, a mulher que abandona O
vida politica a a agricultura: seugenos ( ougens), para se unir ao do seu marido passa a estar sujeita
a este ultimo e deixa de ser herdeira do seu: a mesma rompeu com a
As ralzes comuns para a desiqnacao do gado atestam tradiciies pastoris. 0 re­
sua familia natural, perante a qual nao passa de uma estrangeira. Ja
banho ou gado .(pai;u em stmscrito, pecu em Iatim, filhu = vieh em alemiio]
nao pode participar no culto domestico, sem o qual nenhum parentes­
era a principal riqueza (pecunia). Consistia, sobretudo, em bovinos (sanscrito
co e possfvel: deve mesmo compensar a sua inferioridade econ6mica
e avestico grau, armenio kov, grego bous, latim bos, iriandes boJ e em ovelhas
atraves de um dote que oferece ao seu conjuge. Este possui o direito

=r=
(sanscrito avi, lituano avis, grego ois, latim ovis, irlandes oi, alto­alemii.o ouwi,
eslavo antigo ovinu). O boi, ta/ como o cavalo, era atrelado a carroca, uma vez
de vida e de morte sabre aquela: nao tern de prestar contas ao Estado
_di­ no que diz respeito ao destino que lhe possa atribuir. Esta instituicao
que O name joug permaneceu conservado de modo notavel n�s
alectos (yuga em siinscrito, jugum em latim, zygon em grego, JUk em qotico,
privada anterior a do Estado, e relativa ao periodo de vida comum nas
estepes eurasiatlcas, permaneceu durante muito tempo inviolavel, O
jungas em lituano). Da mes ma form a, encontra­se um radical que se aplica quer
a
ao pr6prio carro (ratha em sanscrito, ratho em avestico), quer roda (rota em marido podia vender a sua esposa ou escolher um eventual esposo
/atim, roth em irlandes antigo, ratas em lituano, rad em alto­alemiio antigo). para ela coma forma de prevencao da sua pr6pria morte..
Muito tempo ap6s a sedentarizacao, as mulheres indo­europeias ainda
Daquila que precede parece resultar que os lndo­Europeus, cerca do final da
sua vida com um, eram um povo de pastores, criadores de bovinos e ovinos e, permaneceram enclausuradas. Engels relembra que estas aprendiam,
enquanto ta/, se niio semin6madas, pelo menos bastante m6veis ...
4
no maxima, a fiar, a tecer, a costurar e a ler um pouco; que apenas
podiam estabelecer relacoes com outras mulheres: mantinham­se iso­
Esta vida nomada e caracteristica do Indo­Europeu: segundo Hero­ ladas no gineceu, que constituia uma parte distinta da casa localizada
doto e Diodoro da Sicilia, a casa do Cita era a carroca. 0 mesmo su­ no piso superior, ou na retaguarda, por forma a afasta­las do olhar dos
cedeu na epoca posterior com os Germanos. A prova disto reside no homens e, sobretudo, dos estrangeiros. 'f:..s mulheres nao podiam sair
facto da ausencia de um termo generico designando a cidade no fundo sem estar acompanhadas par uma escrava. A criacao de eunucos para
primitivo do vocabulario: vigia­las e tipicamente indo­europeia e asiatica: no tempo de Her6doto,
Quios era o principal centro de comercio",
o chefe da Jam ilia e designado de chefe da casa: em stinscrito: dampati, em Um especie de poligamia latente existiu tambern nos Indo­Europeus:
grego despotes (para demspota), em latim dominus.
Um radical com um designa quer a casa, quer o grupo de casas ou aldeia (em Toda a Iliada se desenvolve, como sabemos, em torno do conjlito entre Aquiles
sanscrtto vie, em avestico vis, em latim vicus, em grego oikosJ, com um chefe e Agamemnon a respeito de uma das escravas. A prop6sito de cada her6i
da aldeia (vii;pati em stmscrito, vispaiti em avestico, vaszpats em Iituano). Niio homerico relevante, refere­se uma jovem prisioneira de guerra com quern
existe um termo para aldeia, mas uma palavra para lugar fortificado, que, depois, partilha a sua tenda e o seu /eito. Estas Javens donzelas siio de igual modo
grego5• trazidas para o pais e para a casa conjugal, ta[ como sucede com Cassandra
significar<i aldeia: pur em sanscrito, pilis em Iituano, polis em
par Agamemnon, em Esquilo; os filhos nascidos destas escravas tern uma par­
':Nesta existencia que se reduzia a deslocacoes perpetuas, o papel te reduzida da heranca paterna e contam como homens livres; deste modo,
econ6mico da mulher era levado estritamente ao minima; esta era Teucro, filho ilegftimo de Telamon, possui o direito de adoptar o nome do pai.
apenas um fardo que o homem arrastava atras del:. Exceptuando a Quanta a esposa leqitima, espera­se de/a que tudo suporte, guardando ela
procriacao, o seu papel na sociedade n6mada e nulo. E partindo destas pr6pria uma castidade, uma fidelidade conjugal rigorosa7•
consideracoes que uma nova explicacao pode ser tentada, para justi­
ficar o destino da mulher na sociedade indo­europeia. Tendo menor A poligamia estava igualmente em vigor na aristocracia germanica,
valor economico, e ela que abandona o seu cla para se juntar ao do seu durante a epoca de Tacito.

4. Les Premieres Civilisations, par Andre Aymard, F. Chapoutier, Georges Conteneau ... (Col. Peu­
6. Engels, op. cit., p. 63.
pies et Civilisations). Ed. Presses Universitaires de France, 1950, pp. 200 a 202. 7. Engels, op. cit., pp. 60 e seguintes.
5. ld., p. 200.

It Critica da Tese Classics de um Matriarcado Universal 29


28 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra
A monogamia que parecia const�tuir ­ a pri�eira vista ­ � apanagio este e marcado pela necessidade de "enfatizar que a forma do rapto (simu­
do mundo indo­europeu e traduzir um resperto qua�e religioso �­ela lado) das mu I heres ea mais pronunciada e a mais expressiva precisamente
mulher, por oposicao ao desprezo de qu� esta era objecto �as regioes nos povos onde domina o parentesco masculino (isto e, a descendencia em
meridionais, esta monogamia, apenas se mstaurou com rnuito custo ao linha paternal), e escreveu, de igual modo: "O facto de o assassinato das
longo do tempo sob a pressao das condlcoes econ6micas8• . . criancas nao ser, tanto quanto sabernos, sistematicamente praticado em ne­
•1 o parentesco inatrilinear e inexistente nos Indo­Europeus: os filhos nhum local onde a exogamia e a mais antiga forma de parentesco existiam
de duas irmas pertencem a duas famlllas diferentes, as dos seus pais. !ado a !ado constitui um dado peculiar. Duplo acontecimento que vai ao
contrariamente a tradicao matriarcal, nao possuem nenhum laco pa­ encontro do seu modo de exp/icar os factos, e ao qua! apenas pode opor novas
rental. O mesmo acontece com as suas maes que nao herdarn uma da hip6teses ainda mais contuses»,
outra. Apenas o irrnao mais velho de sexo masculino e que herda; caso
nao haja descendentes, e o irmao e nao a irma. Se nao houver irrnao,
procura­se, no ramo colateral mats proximo, um antepassado homem, Culto das Cinzas
cu]o descendente ­ tambern ele de sexo masculino e vivo ­ se torna o
herdeiro", i Partindo da hip6tese da dupla origem, a pratica da crernacao tor­
Neste regime, no qual todos os direitos ­ sobretudo politicos ­ sao na­se inteligivel, E certo, com efeito, que sob o nomadismo nao e pos­
transmitidos pelo pai, cornpreende­se por que motivo os diversos dia­ sivel dedicar um culto a sepulcros fixos; ora, o culto dos antepassados
lectos nao exprimem objectivamente o parentesco feminino: ja existia e traduzia­se sob a forma de uma religiao domestica a qual
voltaremos mais adiante. A (mica solucao que emergia era a de reduzir
J Em todos os dialectos indo­europeus, observam os linguistas, os termos de o corpo dos defuntos a um peso e um volume minimos por forma a
i parentesco encontram­se admiravelmente conservados pela famflia do torna­los transportaveis, Desta forma, as urnas contendo as cinzas dos
homem. Em contrapartida, existe uma total imprecisiio relativamente a fami­ antepassados nao eram outra coisa que nao um cerniterio ambulante
lia da mulher'". arras do bando em bus ca de novas pradarias ­. E sabido que as praticas
mais imutaveis, as mais dificeis de abandonar, sao aquelas que resul­
Em caso de periodo de crise, a mulher transforrna­se numa boca tam da religiao: do mesmo modo, o culto das cinzas foi perpetuado,
desnecessaria. E a (mica explicacao sociol6gica que possa ser atribui­ mesmo ap6s a sedentarizacao, na Grecia, em Roma e nas f ndias.
da para explicar, nos nomadas, a supressao das raparigas a nascenca, Por conseguinte, deixou de se afigurar como uma pratica 16gica e ex­
Tornada inutil com a sedentarizacao, esta pratica foi interditada pela plicavel a partir do contexto local. Tornou­se tanto mais ininteligivel
Bfblia e pelo Cerao. Encontra­se no prefacio da obra de Engels uma que o tumulo, doravante necessario, foi adoptado paralelamente; con­
crftica dirigida a um autor, Mac­Lennan, que procurou explicar a ori­ sequentemente, manifestavam­se ritos bastante curiosos, com o pas­
gem da filiacao matrilinear considerada, tambern por ele, coma a mais sado a exigir sempre os seus direitos, cremavam­se frequentemente
antiga, a mais primitiva, Este parte de uma hip6tese de trabalho segun­ os mortos antes de os enterrar. Cesar foi cremado, Gandhi e Einstein
do a qual o matriarcado esta relacionado com o rapto das mulheres e tambem,
corn o assassinio das criancas, Esta e apenas uma hip6tese que, sendo
justa, deve ser comprovada atraves dos factos. Porem, a experiencia
demonstra o contrario e Mac­Lennan teve a boa fe de constata­lo, com Culto do Fogo
alguma surpresa, ta! como Engels refere:
A tranquilidade dos Manes dependia da manutencao de um fogo
Ao que parece, contudo, a teoria de Mac­Lennan, com toda a sua plausibili­ que jamais devia ser apagado. Era o asilo domestico iluminado sobre
dade, niio se /he afigurou de modo suficientemente consistente. No maxima, um altar. A originalidade reside na presenca do fogo, uma vez que o
culto dos Antepassados nao constitui o apanagio de nenhum povo:
8. /d. admite­se facilmente a sua universalidade. Por conseguinte, os altares
9. Fustel de Coulanges, la Cite antique; Hachette, 1930, pp. 59 a 62.
10. Aymard, Andre, op. cit., p. 200. 11. Engels, op. cit., p. 25.

30 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra


11. Critica da Tese Clilssica de um Matriarcado Universal 31
perante um regime patriarcal; coma e evidente, originariamente a
resultantes existem igualmente em todos os paises, mas s6 nos In­
do­Europells e que estes serao superados par um fogo sagrado que
familia confundia­se com o cla. Inversamente, quando a estrutura so­
cial e de tal forma que o homem que se casa abandona o seu cla para
nunca se pode extinguir. E dtftcil nao relacionar a presenca deste fogo
ao caracter frio do clima n6rdico: a sua funcao benfeitora e primordial.
ir viver com o da mulher, estamos perante um regime matriarcal. Ora,
o primeiro s6 e concebivel na vida n6mada; o segundo, apenas na vida
Par forca da sua utilidade, tornou­se sagrado e foi idolatrado enquanto
tal. E deste modo que o culto do fogo se torna caracteristico do berco sedentaria e agricola. Efectivamente, s6 neste ambito e que a mulher
n6rdico; se a "sociologia" da chama da mem6ria fosse realizada, seria pode, apesar da sua inferioridade ffslca, trazer um contributo con­
difkil nao recuar ate esta origem. sideravel para a vida econ6mica. Esta chega ate a tornar­se o elemento
A hip6tese da dupla origem permitlu, entao, dar conta dos aeon­ estabilizador enquanto dona de casa, guardia das provisoes: ao que
teclmentos caracterfsticos da sociedade indo­europeia, cujo nornadis­ parece, esta tambern desempenhou uma funcao importante na
mo foi, na sua origern e de modo incontestavel, o trace dominante: descoberta da agricultura, hem coma na seleccao das plantas, enquan­
to que o homem se dedicava a cac;:a. Nestas epocas primitivas, durante
e
O termo "laborar" comum a todos os dialectos, excepto ao indo­iraniano as quais a seguranc;:a do grupo representava a maior preocupacao, a
consideracao de que usufruia um dos sexos estava relacionada com a
(aroo em grego, aro em iatim, alrim em ir/andes, arlu en lituano, arja em
sua contribuicao para esta seguranc;:a colectiva. Par conseguinte, num
g6ticoJ e arado diz­se arow em armenio}. A ausencia da palavra "loborar"
nos fndo­lranianos pode explicar­se supondo que estes povos a tivessem per­ regime agricola, e expectavel que a mulher receba o dote ao inves de
dido durante as suas migra�oes proiongadas na sequencia de um periodo o trazer; tal coma acontece na vida n6mada. E deste modo que se deve
transit6rio da vida n6mada12• explicar, sociologicamente, o significado do dote: uma compensacao
ou uma garantia trazida pelo sexo economicamente menos favorecido.
Podemos supor que se a lingua tivesse registado o termo antes da Se a indo­europeia que oferece o seu dote nao compra o seu marido, o
africano que da O seu, tambern nao a cornpra. i
separacao do ramo indo­iraniano, as regioes cultivadas, os campos
atravessados durante a migracao deveriam ter perpetuado. a sua Compreende­se igualmente que a filiacao seja contabilizada, nestas
mem6ria. duas estruturas sociais, a partir do conjuge que nao abandona o seu
A lingua pode conter alguns termos designando plantas sem que o cla depois do casamento. No nomadismo indo­europeu, a filiacao sera
patrilinear, sendo a sua esposa apenas uma estrangeira no seu genos;
povo falante as cultive. Neste sentido, nao podemos partir da existencia
de uma palavra referente a um cereal para daqui deduzir o caracter agri­ em contrapartida, no sedentarismo, a filiacao sera matrilinear uma vez
cola de um povo. E, portanto, quase certo que no momenta da separacao, que e o homem que e estrangeiro e que a sua mulher pode, a qualquer
todas as tribos indo­europeias ainda eram n6madas. Sendo a seden­ altura, repudiar caso este nao satisfaca todos os seus deveres conjugais.
tarizacao e a pranca da agricultura nestes povos, posteriores a este
acontecimento, compreende­se que aqueles que se sedentarizaram. de Em qeral, a parte feminina governava o Jar, as provisiies eram comuns; mas
modo mais ou menos simultaneo, no norte do Mediterraneo, tenham ai do pobre marido ou amante que fosse demasiado prequicoso ou demasiado
desajeitado para trazer a sua contribuiciio para o aprovisionamento comum.
adoptado o mesmo conceito enquanto que os lndo­Iranianos tenham
Qualquer que fosse o numero de Ji/hos ou a quantidade de influencias pes­
optado por uma palavra diferente, possivelmente, devido ao contacto
com as populacoes agricolas dravidas, soais que tivesse dentro de casa, este podia a qualquer momenta ser convi­
dado a embruihar as suas coisas e a ir­se embora. Alem disso, niio /he valia
de nada oferecer resistencia; estava demasiado calor dentro de casa para ele;
Berco Meridional e Matriarcado s6 /he restava reqressar ao seu pr6prio clii (gens}, ou ainda, o que /he acon­
tecia com mais frequencia, a procurar um nova casamento num outro clii. As
0 exposto precedente estabelece que, quando a estrutura social e de mu/heres eram as grandes potencies nos cliis (gentes), ta/ coma em qualquer
modo tal que, no casamento, a esposa abandona a sua famflia para outro /ado. Se a ocasiiio se apresentasse, estas niio hesitavam em destronar
construir uma nova em conjunto com o seu marido, encontramo­nos um chefe e a rebaixa­lo ao nfvel de um simples guerreiro13.

12. Aymard, Andre, op. cit., p. 201. 13. Engels, op. cit., pp. 41 e 42.

11. Critica da Tese Cli3ssica de um Matriarcado Universal 33


32 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra
Este texto de um missionario, Arthur Wright, citado par Engels, diz Na Didy = que ele venda = tio
respeito aos costumes iroque_ses. 0 mes_mo poder.ia ter co.locado Djar bat= valer um resgate = sobrinho
Engels ao abrigo de um erro de interpretacao do matriarcado, firrnado
a partir da ideia de uma promiscuidade primitiva: isto porque demonstra A generalidade destas tradicoes para toda a Africa Negra e compro­
que a mulher deve o seu estatuto social e a sua consideracao exclu­ vada atraves de um estudo de Delafosse:
sivamente a estrutura da sociedade, que lhe permite desempenhar
um papel econ6mico preponderante. E de lamentar que este factor Isto niio impede, alias, que o papel de chefe defamilia seja desempenhado par um
"econ6mico" tenha escapado a um marxista. homem, ainda que o seja algumas vezes par uma mu/her; porem, nas popula­
A existencia das "familias azuis" da Irlanda ilustra tudo aquilo que foi 96es que apenas admitem o parentesco uterino, o chefe da famflia e o irmiio
referido. Estando realizadas as condicoes necessarias, e possfvel ver o uterino da miie. Nas outras populacoes, e o pai.
matriarcado emergir sob o nosso olhar na epoca moderna, indepen­ Na realidade, nos Negros, a mu/her niio e considerada enquanto incorporada
dentemente da raca, na famflia do esposo em lado nenhum; esta continua, depois do casamento, a
Jazer parte da sua propria familia, mas e momentaneamente iludida em bene­
Quando o marido, par outro /ado, e um estrangeiro, sem familia na lrlanda, ficio do seu marido e. par conseguinte, em beneffcio da famflia deste ultimo.
a pequena famflia que e/e funda passa a estar agregada a da sua esposa; E este o motivo pelo qua/ a tradidio universalmente aceite na Africa Negra
designa­se par familia azul, "qlas­fine", porque e suposto que o marido ten ha exige, para que haja uma uniiio vdlida e regular, que a famf/ia do futuro en­
chegado par mar; diz­se entiio que o "casamento" e do homem e o "hem" da tregue a familia da futura uma indemnizaciio, coma forma de compensacao
mulher14• pelo prejuizo causado a esta ultimo devido a recolha de um dos seus mem­
bros. Niio existe, ta/ coma se pretendeu erradamente, a compra da mu/her
O imigrante que deixa o seu pals, o seu "cla" por assim dizer, encon­ pe/o marido.ja que a esposa niio deixa de pertencer legalmente a sua pr6pria
tra­se em desvantagem, ainda que o sistema em vigor na Irlanda seja familia e niio se torna, de modo a/gum, no objecto do homem que desposou;
patrilinear. existe unicamente a entrega de uma compensaciio, au, mais precisamente,
O modo de heranca, por conseguinte, esta subordinado ao sistema de uma cauciio, cujo valor varia alias significativamente consoante as paises
de flliacao,' No sisterna matriarcal no seu estado puro, nao se herda e de acrodo com a condicao dos futuros c6njuges, podendo ir desde varios
do pai, mas sim do tio materno e desposa­se a sua filha, a fim de que mi/hares de francos, a um objecto que apenas valha a/guns centimos; neste
esta nao seja totalmente desfavorecida. Todos os direitos politicos sao ultimo caso, ja s6 ha lugar para a concretizaciio de uma simples formalidade
transmitidos pela mae: exceptuando o recurso a usurpacao, nenhum exigida pelo respeito das tradiciies usuais15•
principe pode herdar um trono sea sua mae nao for uma princesa. A
importancia do tlo rnaterno reside no facto de que e este que auxilia a. Nas sociedades meridionais, tudo aquilo que concerne a mae e
sua irma, que a representa em todo o !ado e, caso seja necessario, toma sagrado; a sua autoridade e, par assim dizer, ilimitada. Esta pode
a sua defesa. Este papel de assistencia a mulher, incialmente, nao cabia escolher um conjuge para o seu filho sem consultar antecipadamente
ao marido considerado antes coma um estrangeiro aos olhos da Fami­ o interessado. Este costume ligado a vida agrf cola existe tambem nos
lia da mulher. Esta concepcao encontra­se diametralmente oposta a lroqueses:
do indo­europeu. 0 tio, em algumas lfnguas africanas, significa aquele
que tern o direito de vender [subentende­se, o seu sobrinho): isto quer Por outro /ado, nos Indios da America e noutros poises (no mesmo estddio],
dizer que, caso se torne prisioneiro, este pode voltar a comprar­se a conclusiio do casamento niio representa um assunto relativo aos interes­
entregando o seu sobrinho para ocupar o seu lugar. Dai a etimologia sados ­ que muitas vezes nem sequer siio consultados ­ mas as suas miies.
de sobrinho, na mesma lfngua: aquele que pode servir de resgate, que Frequentemente, dais seres totalmente desconhecidos um do outro tornam­se
pode ser vendido para libertar o primeiro das correntes da escrava­ noivos, e siio in/armadas do acordo concluldo quando o momenta do casa­
tura. mento se aproxima. Antes da boda, o noivo oferece aos parentes gentflicos
Em wolof, lingua falada no Senegal, existe a seguinte terminologia: da noiva (isto e, aos seus pais maternos e niio ao seu pr6prio pai e aos seus

14. Hubert, Henri, Les Celtes; col. Evolution de I'humanite Albin Michel, Paris, 1950, p. 247. 15. Delafosse, Maurice, Les Noirs de l'Afrique; Payot e Cia, Paris, 1922, pp. 140­141.

34 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra


II. Critica da Tese crassica de um Matriarcado Universal 35
r6ximos) prendas que siio consideradas coma valor de compra da jovem Percebe­se, deste modo, par que vias estes especialistas chegam
:ancedida. O casamento permanece dissoluvel com o acordo de ambos as mesmo a adoptar a mesma escala de valores que Bachofen: nao
c6njuges16, existe qualquer duvida em relacao a superioridade do patriarcado,
e a sua espiritualidade destaca­se na materialidade dos primeiros
Qualquer sermao invocando a rnae deve ser executado sob pena de tempos. Existiu, portanto, uma evolucao universal, uma passagem
depreciac;ao: originariar12ente, as �1ais s�grados foram aquel:s que se do inferior para o superior.':
pronunciavam com a mao estendida acima da cabeca da mae. A sua E de lamentar que esta tese s6 tenha podido ser formulada com base
maldic;ffo acaba irremediavelmente com o futuro do seu descendente: nas investigacoes das sociedades oceanicas efectuadas pelos etn6lo­
esta representa a maior desgraca que deve ser evitada a qualquer cus­ gos e soci6logos supracitados: as pr6prios, cujos trabalhos foram criti­
to. Um africano de formacao universitarta ocidental (que deveria ser cados par Van Gennep ( cf. p. 26). Com efeito, se quisermos que um
um emancipado da tradicao) poderia ser apenas ligeiramente sensivel problema relativo as ciencias humanas seja insohivel, basta coloca­lo
a uma maldicao lancada pelo seu pai; o mesmo seria completamente a partir da Oceania. 0 alargamento das terras habitaveis no Oceana, a
diferente caso esta se manifestasse atraves das palavras da mae, Toda sua exiguidade na maior parte do tempo, o cruzamento das direccces
a sociedade africana negra esta convicta da ideia segundo a qual o des­ das migracoes, o numero de racas que se confrontaram, justapuseram,
tino da crianca depende unicamente da sua mae e, em particular, do sobrepuseram au que se fundiram, atribuem aquilo que convem desig­
labor que esta concretiza no lar conjugal. Para alem disso, nao e raro nar par continente oceanico. um aspecto cuja originalidade se opoe a
ver as mulheres suportar voluntariamente injusticas par parte do seu solucao de qualquer problema humano. 0 fen6meno de regressao e
marido, com a conviccao de que dali resulta o maior beneficio para as de degenerescencia emergente a partir deste estado de coisas s6 pode
criancas: par isto se deve entender que estes terao todas as facilidades desorientar mais ainda o espirito do investigador. Teria sido impor­
para ter sucesso em quaisquer que sejam os seus empreendimentos, tante prosseguir estas analises num outro continente "atrasado", a
que serao poupados pela "ma sorte", e pel.as desgracas de qualquer Africa au a America, onde o nativo beneficia de uma base de resisten­
especie, que estes representarao um triunfo e nao um fracasso social. cia aos factores externos mais ampla e mais s6lida.
Um conceito soctol6gico precise corresponde a esta ideia na mentali­ Pelo contrario, segundo parece, nas sociedades ditas primitivas, o
dade africana: deste modo, diz­se em wolof: nativo nunca pos em causa a participacao do pai e da mae, mas nao as
situa no mesmo plano. No caso particular da Africa Negra, acredita­se,
N'Day dju liquey = uma mae que trabalhou. em quase todo o lado, que a crianca deve muito mais, biologicamente
falando, a sua mae do que ao seu pai. A heranca biol6gica do lado ma­
Etn6logos e soci6logos procuraram fundamentar o matriarcado ex­ terno e mais s61ida, mais importante do que a heranca do lado paterno.
traido nas sociedades meridionais com base na ideia que estas tern acer­ Par conseguinte, e­se aquilo que a mae e, e­se apenas metade daquilo
ca da hereditariedade. Aqueles nao afirmam, propriamente, tal coma que o pai e. Eis um exemplo retirado das crencas africanas que ilustra
Bachofen, Morgan e Engels, que a incerteza que paira sabre a paternidade esta ideia.
se deve a uma promiscuidade primitiva: para estes ultimas, o "primiti­ No Senegal, tal coma no Uganda, na Africa Central, acredita­se na
vo" nao esta inapto para reconhecer o papel do homem na concepcao da existencia, entre as humanos, de um ser que deveria ser designado es­
crianca: nao existe qualquer duvida acerca da participacao do pai, mas pecificamente de "feiticeiro ­ devorador de seres vivas" par forma a
a estrutura social nao permite identificar este ultimo, e e este o unico distingui­lo do feiticeiro tradicional mencionado nas obras dos etn6lo­
motivo pelo qual a filiacao teria sido, primeiramente, matrilinear17• gos. Aas olhos dos Africanos, apenas o primeiro merece a designacao de
( Para etn6logos e soci6logos, o "primitive" nao pode ser elevado a feiticeiro; o segundo e simplesmente detentor de uma ciencia secreta
nocao "abstracta" da participacao do pai. A funcao deste e mais tenue, ­ a qual cobica grandemente ­, que s6 revela no momenta da iniciacao
mais dificil de apreender pelo espirito humano; a sua concepcao exige a pessoas que o merecem, quer porque a sociedade !hes da esse direito
uma maturidade e uma 16gica que carecem na mentalidade arcaica. ( classes idosas ), quer porque sao discipulos. 0 primeiro e dotado de um
poder sobrenatural, gracas ao qual pode tranformar­se em toda a espe­
16. Engels, op. cit., p. 40. cie de animais para amedrontar a sua vitima, em geral durante a noite,
17. O culto falico da pre­htstoria e prova disto.

36 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra II, Critica daTese Clo3ssica de um Matriarcado Universal 37
entar assim o "principle active" do seu corpo (fit em wolof). Logo Estas ideias, pela sua natureza, correspondem aos primeiros tem­
a fug d c. · • • di · pos da mentalidade africana: neste sentido, as mesmas sao arcaicas e
que a vitima, considerada morta, seja enterra. a, o rerncetro nge­�e representam, actualmente, uma especie de f6sseis que flutuam no am­
tumulo. volta a reanima­la e mata­a verdadeiramente para consumir
a Osua carne, tal coma a de um acougue. E suposto este feiticeiro pos­ bito das reflexoes actuais. Constituem um conj unto que so podemos
suir um par de. olhos na nuca, para alern dos olhos vulgares, o que lhe considerar enquanto consequencia l6gica de um estadio anterior, mais
primitivo, no qual teria predominado, exclusivamente, a filiacao matri­
permite nao ter de virar a cabeca, Possui bocas fortemente dentadas
ao nivel das articulacoes dos bracos e das pernas. Tern o poder de voar linear.
deixando escapar chamas atraves das axilas ou da boca. Consegue ver
facilmente as entranhas dos seus convivas e a medula dos seus ossos;
ve o seu sangue circular, o seu coracao bater; detern este curioso poder Culto dos Martos
de um ser da quarta dimensao, que nos poderia retirar um osso sem
nos abrir. Com efeito, o nosso corpo s6 se encontra hermeticamente E no ambito da vida sedentaria que a existencia do tumulo se justi­
fechado, s6 esta protegido pela Natureza nas tres dirnensoes do nosso fica. Para alern disso, e impossivel encontrar, num pais agricola coma a
aspaco. Se existisse um ser que tivesse o sentido de uma quarta dimen­ Africa Negra, vestigios de cremacao, desde a antiguidade ate aos nos­
sao, e que pudesse viver entre nos, este veria efectivamente as nossas sos dias. Todos os casos assinalados sao inautenticos: tratam­se apenas
entranhas e poderia, gracas a esta quarta dimensao, que nos escapa de suposicoes de investigadores no espirito dos quais a demarcacao
e perante a qual estamos abertos, extrair­nos os ossos dos nossos destas duas origens nao e clara e que, resultante do berco n6rdico, ten­
membros sem ter necessidade de nos abrir. Quando e identificado e dem a identificar qualquer vestigio do fogo enquanto uma marca de
espancado pela populacao pelo facto de ser responsavel pela morte de incineracao, mesmo quando nao se encontra nenhum objecto cultual
uma vitima, este feiticeiro tern o poder de dissociar o seu ser; de man­ a� lado. 0 antigo Egipto tarnbem nao conheceu a pratica da crernacao.
ter no seu corpo o seu "principio vital", de expulsar o seu "principio Em qualquer parte onde se encontre a pratica da incineracao, quer
active" ligado a sua sensibilidade e a sua dor, e faze­la suportar par seja na America ou na India, e possivel discernir a presenca de um
qualquer objecto pr6ximo. A partir deste momenta, deixa de sentir as elemento indo­europeu proveniente das estepes eurasiaticas, Nao e
pancadas, ate que seja descoberto este nova "objecto­suporte" do seu possivel explicar a formacao da America pre­colornbiana sem fazer in­
"principio active" e par sua vez atacado. Deste modo, possui um poder tervir um elemento n6mada introduzido pelo estreito de Bering: esta e
mediuntco. Esta descricao detalhada dos poderes sobrenaturais do fei­ a tese geralmente aceite e permite justificar este ritual funebre que se
ticeiro tern par objectivo enfatizar melhor as ideias que os Africanos sobrepoe a pratica do enterro nos Indios da America. No Mexico, acre­
tern acerca da heranca patrilinear e matrilinear. Apenas se pode ser macao dos chefes, isto e, da classe dirigente, enquanto que os cidadaos
feiticeiro, dotado de todas as qualidades aqui referidas, isto e, feiti­ do povo eram enterrados, parece atestar uma vit6ria de conquistado­
ceiro total, caso se seja proveniente de uma rnae feiticeira do mesmo res n6rdicos n6madas, talvez de origem mong6lia, sabre uma popula­
nivel; pouco importa aquilo que o pai e, Se a mae nao e dotada de c;:ao agricola e sedentaria, 0 facto de o termo para designar a piroga,
nenhum poder e se o pai e feiticeiro­total [demn, em wolof), a crianca ou seja, o unico elemento passivel de servir de elo de ligacao entre a
e feiticeira apenas pela metade: este e nohor; nao possui nenhuma Africa e a America, ser o mesmo em algumas linguas africanas (lothio
qualidade positiva do feiticeiro, tern apenas os aspectos passivos. Sera em wolof) e em algumas linguas indianas da America pre­colornbiana
incapaz de matar uma vitima para se alimentar da sua carne, o que parece provar as relacoes maritimas entre os dais continentes, atraves
constitui a principal caracteristica do demn. Em contrapartida, podera do Atlantico, Assim, teria existido, tambern aqui, [ustaposicao de duas
contemplar passivamente as entranhas dos seus convivas. populacces do origem distinta: uma meridional, a outra n6rdica. Os
Portanto, vemos aqui que a participacao do pai na concepcao da cri­ tumulos representam a residencia dos Antepassados ap6s a morte. Ali
anca nao e pasta em causa, nao e ignorada, mas que e secundaria e se fazem libacoes, trazem­se oferendas e reza­se; quando se pretende
menos operante do que a da mae. Ao mesmo tempo que se sabe que aumentar as suas hip6teses na vida quotidiana, a prop6sito de uma
o pai contribui com alguma coisa, existe a conviccao acerca da identi­ diligencia especifica, da­se a volta ao tumulo dos Antepassados, Dai a
dade do filho e da mae. expressao wolof, ver­seg = dar a volta aos cerniterios = so rte.'

II. Critica da Tese Ctasstca de um Matriarcado Universal 39


38 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra
Mas em lado nenhum da Africa existe esta lmensidao de �)tares do­ Engels nao fornece mais esclarecimentos acerca deste processo.
' sticos dominados por fogos sagrados que devern queimar tanto
me , l d'
quanto a famflia durar, tradicao esta que parece resu tar irectamente Como e quando se concretiza esta revoluctio nos povos civilizados, niio sabe­
do cutlo n6rd'ico do fogo. mos realmente. Esta recai inteiramente no perfodo pre­historico. Maso facto
I Tais sao as Ideias gerais que se podem opor ao sistema construido de esta se ter concretizado esta sobejamente demonstrado pelos numerosos
por Bachofen, com base nos vestlgios d� matria.rcado encontrados na vestfgios do matriarcado reunidos nomeadamente par Bacho/en; e a [acili­
Antiguidade classics ­ marcas que serao exammadas em detalhe no dade com que a mesma se cumpre e visivel atraves de toda uma serie de tribos
pr6ximo capitulo. No entanto, poderiamos q�­�stionar se.' aos argu­ indias onde acaba de se concretizar e onde ainda permanece, actualmente,
mentos apresentados anteriormente para [ustificar o matnarcado das em parte sob a influencia de uma prosperidade crescente e de um tipo de
popula�oes rneridionais.nao seria judicioso acrescentar outro, relativo vida modificado [miqraciio da floresta para a pradaria), em parte devido a
ao ciclo da vida vegetal.\com efeito, sabemos com toda a certeza que, influencia moral da civilizadio e dos missionarios'".
com a descoberta da agricultura, a Terra afigurou­se como uma divin­
dade periodicamente fecundada pelo Ceu por intermedio da chuva. Nos capitulos seguintes, veremos que e necessario distinguir a
A partir desse momenta, a funcao do segundo e determinada e e este evolucao de um povo especifico que, sob a influencia de factores ex­
que alimenta as sementes depositadas no seio da primeira; da origem ternos, muda de sistema de filiacao sem alterar as condicoes materiais
a vagetacao. Dai a Trlade ctontco­agraria: Ceu­Terra­Vegetas;ao. Em al­ de vida. Segundo esta citacao de Engels, e evidente que o processo do
guns palses, tal coma o Egipto, esta acabou par ser identificada com qual se trata e postulado, mas a sua existencia nao e demonstrada.
uma triade de semideuses: Osirls­lsis­Horus. A assirnilacao do papel Deve sublinhar­se que a historicidade das diferentes formas de fami­
da Terra na origem da vegetacao ao da mulher no nascimento da cri­ lia nao e posta em causa, cada uma delas evolui de modo constante; e
anca e evidente. Esta triade contribuiu para a formacao das ideias dos quase certo tarnbern que o casamento par grupos mencionado por
povos meridionais relativamente a heranca biol6gica, tal como esta e Engels e Morgan existiu, mas nao se encontra nem na origem do "siste­
acima descrita. Estas, por sua vez, puderam reagir as concepcoes ma de parentesco" de Morgan, nem na origem da filiacao matrilinear.
matriarcais, reforcando­as.
Em todas as Jormas de familia par grupos, niio e possivel saber­se com toda
a certeza quern e o pai de uma crianca, mas sabe­se quern ea sua miie. Ainda
Critica das Teses de Morgan e de Engels que esta designe coma seus Ji/hos todos os Ji/hos da familia comum, e tenha
para com eles deveres maternos, a mesma niio deixa de distinguir os seus
Na tese de Morgan, trata­se de fazer o levantamento de duas ideias pr6prios Ji/hos de entre os outros. E portanto evidente que em toda a parte
especificas que estao na base do sistema. onde existam casamentos em grupos, a descendencia s6 pode ser demonstra­
Par um lado, os sistemas de parentesco, que lhe permitiram reconsti­ da pelo lado materno, e por conseguinte, a filiactio Jeminina ea uni ca que
tuir a hist6ria da familia, nao correspondem a interpretacao que lhes e reconhecida. E efectivamente o caso em todos os povos barbaros e perten­
atribui; estes reflectem pura e simplesmente as relacoes sociais dos centes ao estadio inferior da barbarie; te­lo descoberto em primeiro lugar
povos nos quais estao em vigor. constiui o segundo grande merito de Bacho/en 19•
Par outro lado, aquele extraiu de facto o significado sociol6gico do
cla totemico fundado no matriarcado, mas nao conseguiu estabelecer O postulado sabre o qua! o sistema e fundamentado ­ visivel se­
a relacao 16gica, de filiacao, que permita passar de um para o outro, gundo as citacoes anteriores e esta ultima ­ e que todas as nuances de
que permita afirmar a universalidade do processo que conduz do ma­ parentesco objectivo sao, primitivamente, reproduzidas atraves da lin­
triarcado ao patriarcado. Ora, enquanto esta dernonstracao tardar em guagem. Este regista apenas relacoes que realmente existiram a um
ser feita, temos o direito de supor, a luz de tudo aquilo que precede, dado momento. Portanto, nao seria compreensivel o motivo pelo qual,
que se trata de dois sistemas irredutiveis, adaptados aos seus meios no caso do casamento por grupos, a mae, sabendo propriamente que
reciprocos, e provocados por esta dialectica que liga o homem a na­
tureza. 18. Engels, op. cit., pp. 52­53.
19. Engels, op. cit., pp. 30­31.

40 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra II. Critica da Tese Classica de um Matriarcado Universal 41
as outras crians:as nao sac suas descendentes, ainda assim as designa imperio Mandinga (o Mali) viria a entrar em declfnio sob os golpes do Songoi,
coma tal. Neste case, a linguagem trai voluntariamente a realidade e ao mesmo tempo que conservava poder e prestfgio suficientes para que O seu
nao exprime o parentesco real, mas um parentesco social; e o facto e soberano neg�ciasse de igua/ para igual com o rei de Portugal( entiio no apo­
tanto mats significativo que esta especie de alteracao devida a socie­ geu da sua gloria20•
dade ramonta.a epoca mais primitiva, a do "estadio inferior da barbti­
rie". Desde a sua origem, a sociedade introduz insidiosamente motivos O sistema iroques de Morgan prevaleceu igualmente ­ e ate aos
de erros e o sistema cuja objectividade parecia garantida, esta viciado no�sos dias ­ nos Mandingas do Mali, enquanto que ja teria desapa­
na base; este necessita, para se edificar, de confundir primeiramente recido nos Indo­Europeus das estepes que tinham atingido o "estadio
todas as maes, torna­las comuns, para justificar uma forma de denomi­ superior da barbarie", para la do qual ja nao deve existir pelo facto de
nacao: a tla chamada de mae pelos filhos da sua irrna; necessita, numa se entrar na civilizacao,
segunda operacao, de distinguir estas maes para dar conta da filiacao Por conseguinte, de acordo com aquilo que e previamente referido,
matrilinear. aquele nao deve relacionar­se com o estado mais ou menos atrasado,
Esta contradicao que reside nos seus fundamentos nao foi correcta­ com o grau de evolucao das sociedadesl E peculiar o facto de o en­
mente ultrapassada, mas foi abafada, esmagada pelo ediffcio te6rico. contrarmos de modo consistente apenas nas populacoes meridionais
Ao inves, parece que o sistema de parentesco, cuja descoberta por e agricolas (Africa Negra, Decao, Melanesia, America pre­colombiana).
Morgan se afigurou tao importante, traduz apenas relacoes puramente Sabe­se que a populacao da America proveio de outro lado, uma vez
sociais. Se tivesse sido de outro modo, perguntar­nos­iamos par que que ali nao sao encontrados homens f6sseis. Deste modo, este nao e
motivo o mesmo nao sobreviveu sob a forma de vestigios, par muito universal; s6 pode ser considerado enquanto tal se as lacunas forem
tenus que fossem, no berco n6rdico, nos prot6tipos dos indo­europeus preenchidas par postulados. Parece evidente que, tal coma o matri­
de quern conhecemos as tradicoes mitol6gicas e a hist6ria com con­ arcado, o sistema resulta de uma estrutura de organizacao politica e
viccao (Gregas, Romanos, Germanos). Par muito que se recue no pas­ social, de um tipo de vida sedentaria e agricola, irredutivel ao estilo de
sado, s6 se encontra o genos patrilinear com o sistema de parentesco vida n6rdica n6mada.
que caracteriza, ainda hoje, os seus descendentes. Tai coma e supramencionado, este sistema possui apenas um sig­
E dificil sustentar que nesta epoca das estepes os indo­europeus nificado social. Quando um Wolof ou um qualquer Africano chama de
fossem ja demasiado evoluidos para conservar o sistema de paren­ pai ou mae ao irrnao do seu pai au a irrna da sua mae, este sabe que
tesco encontrado nos Indios da America, na Africa e na India, que ja aqueles lhes sao substituiveis em caso de falecimento, de doenca, au
tivessem ultrapassado o "estadio inferior da barbarie" e que, par con­ de insuflciencia. A estrutura da sociedade africana ­ tal coma sera
seguinte, ja nao tivessem conservado este sistema de parentesco, mes­ descrita mais adiante ­ exige esta assimilacao dos tios e das tias aos
mo em estado de vestlgios. Poderlamos, entao, perguntar­nos de que verdadeiros pais. Daqui resulta uma serie de obrigacoes reciprocas
modo este pode subsistir nos construtores de imperios da Africa Negra. que Delafosse nao deixou de revelar:
O imperio do Gana durou desde o seculo III ate 1240; antecedeu, por­
tanto, de quinhentos anos o imperio de Carlos Magno, submeteu os Foi possivel, par outro /ado, afirmar justamente que niio existem 6rfiios nos
Berberes de Audagoste queJhe pagavam tributos. A organizacao social Negros. Poder­se­ia acrescentar que tambem niio existem viuvas expostas a
e politica que alt prevalecia sera descrita nos capftulos seguintes. A sua miseria, uma vez que a viuva regressa para a sua famflia e permanece ao
proemmencia expandia­se ate a Asia. Ora, o sistema de parentesco que en cargo desta ultimo, enquanto niio se voltar a casar, a niio ser que pertenca,
prevalecia no Gana e ainda hoje nos Soninqueses, descendentes dos a
ta/ coma acontece frequentemente, sucessiio do esposo defunto, e seja entregue
imperadores, e aquele que e descrito por Morgan, ainda que se tenham a responsabilidade do herdeiro deste. 21
convertido ao Islao. 0 Gana, em 1240, deu lugar ao irnperio do Mali, a
prop6sito do qual Delafosse escreve: Na verdade, introduz­se com frequencia uma nuance para sublinhar
que nao se trata do verdadeiro pai ou da verdadeira mae, Um Wolof
No entanto, Gao tinha recuperado a sua independencia entre a morte de
Congo­Moussa e o advento de Souleiman e, cerca de um seculo mais tarde, o 20. Delafosse, op. cit., p. 62.
21. Delafosse, op. cit., pp.142­143.

42 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra II. Critica da Tese Cli:l.ssica de um Matriarcado Universal
43
d es1gnar a sempre
· o irrnao de seu pai Bay­bu­ndaw
.. = pequeno
_ pai. Dlra
Assim, sao estes os traces relevantes dos dois regimes: matriarcado
= e patriarcado. O seu caracter exclusivo, quanto a filiacao e ao direito a
A

de i g ual modo Yay­dju­ndav pequena mae. Estas expressoes tern para


· 22 heranca, revela uma escolha consciente, sisternatica, e nao uma impos­
ele apenas um valor social . .
E curioso que Morgan nunca tenha conseguido levantar nenhuma sibilidade de optar decorrente da tndeterminacao de uma qualquer
coincidencia entre o seu sistema de parentesco e o verdadeiro paren­ paternidade. Foi demonstrado que as coisas ainda acontecem desta
tesco que existe nas farnilias, no seio das quais o detecta. Nos Iroque­ forma sob o nosso olhar; nos dois bercos e em plena consciencia, Deste
ses, a correspondencia com a familia dita sindiasmica esta errada: e modo, nao faz sentido imaginar um salto qualitativo que explicaria a
no Havai, na Polinesta. na Familia designada punaluana _que �quele passagem de um para o outro. Afigura­se mais cientffico considerar
encontra o tipo correspondente ao sistema de parentesco iroques. os dois sistemas enquanto irredutiveis; porem, se assim e, devemos
ser capazes de prova­lo melhor; reconstituindo rapidamente a hist6ria
Mas, espantosamente, o sistema de parentesco que estava em vigor no Havai, geral destas duas origens e das suas zonas de confluencia, Este sera o
tambem niio correspondia ao tipo de [amilia que ali existia de facto
23•
objecto do capitulo III.
: Piganiol, na sua tese acerca das origens de Roma, e formal: foram os
Explica­se esta contradicao afirmando que a familia continua a viver; Indo­Europeus n6madas das estepes eurasiaticas, Celtas, Germanos,
ao passo que a lingua se fossiliza e deixa­se ultrapassar pela realidade: Eslavos, Aqueus, Latinos, que introduziram a cremacao e o culto do
fogo no Mediterraneo, Os povos agricolas que viviam nesta regiao
Enquanto que a Jamili a continua a viver, o sistema de parentesco [ossiliza­se, praticavam o sepultamento; para alern disso, nao e raro encontrar os
e enquanto que se maniem pela forca do habito, a familia uitrapassa­o". dois rituais nas populacoes mistas, como os Pelasgos. Este critica a
ideia de Fustel de Coulanges que extraia todas as Instituicoes antigas
Perguntamo­nos, entao, por que motivo nao e possivel encontrar um do culto dos mortos; deste modo, e levado a observar nos dois rituais
fen6meno de fossilizacao desta natureza, revelado atraves da lingua­ de enterro e de cremacao duas concepcoes diferentes do alem.Veremos,
gem, no sistema de parentesco indo­europeu, ha ja 4 000 anos. de seguida, o quao dificil e sustentar esta perspectiva. �
o caracter sagrado da mae nas sociedades sedentarias, agricolas,
matriarcais, adapta­se mal a ideia de uma promiscuidade primitiva Do cu/to dos defuntos dependem, segundo Fustel de Cou/anges, todas as
anterior, das quais estas seriam provenientes. Por toda a parte onde instituiciies da cidade antiga. Ora, os antepassados dividiam­se em povos que
existiu, parece ter conduzido directamente aoamazonismo, que nao enterravam e povos que cremavam. Niio teremos n6s o direito de questionar
deve ser confundido com o matriarcado: esta distincao sera feita pos­ se as diferentes praticas niio seriio inspiradas nas diferentes crencas, se os
teriormente. cremadores e os sepultadores niio concebiam de modo distinto a relaciio
A facilidade de divorcio nos casamentos do berco matriarcal nao entre os vivas e os mortos? 0 problema co/oca­se nos mesmos termos em
pode, objectivamente, ser considerada como um sinal de inferioridade Italia e na Grecia: os Umbrios cremadores subjugaram os Lfgures sepulta­
e de anterioridade, ao ponto de distinguir uma familia dita sindias­ dores, do mesmo modo que os Aqueus cremadores subjugaram os Minoicos
mica, arcaica, de outra dita monogamica, na qual o div6rcio e quase sepu ltadores.
impossivel. A espontaneidade da separacao nao deve ser encarada Foram os invasores provenientes da Europa de Leste e do Centro que intro­
enquanto reveladora de costumes dissolutos, mas como o Indice do duziram no mundo mediterrtinico e na Europa Ocidental o rito da incinera­
grau de desenvolvimento que uma sociedade concede a todos os seus ctio: Umbrios, Aqueus, Celtas, eram os mesmos povos que traziam as linquas
cidadaos, sem distincao de genero ... indo­europeias; dada a persistencia do ritual de sepultamento, podemos
.1 A mulher africana, mesmo depois do casamento, conserva toda a sua
avaliar a resistencia do _{undo mediterrdnico.
personalidade e os seus direitos; esta continua a usar o nome da sua
Os Pelasqos, que siio um povo misto, praticavam os dais rituais. Uma /enda
farnilia, contrariamente a mulher indo­europeia que perde o seu para
infinitamente valiosa sensibiliza­nos para a confusiio das consciencias deste
adoptar o do seu marido. ·
tempo, Em Creta, Pollis e Delphos conduziram uma col6nia mista de Pelasgos
tirrenos e de Lac6nios; os colonos, ap6s um perfodo de incerteza, dividiram­se
22. Designam os pals "secundarios"
23. Engels, op. cit., p. 13. em fieis da tradiciio minoica e em adeptos do nova evangelho...
24. Engels, op.cit., p. 14.

44 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra II. Critica da Tese Classica de um Matriarcado Universal 45
Os primeiros colonos albinos praticam a incineractio, ta/ coma o comprova restituiu. 0 Bramanista ri­se dos Jantasmas; a cremaciio confia o de/unto a
O nivel superior dos tumulos do Forum; diz a lenda que Numa recusou ser Agni para que este o eleve ao mundo dos antepassados, e a urna e simples­
cremado. O ritual sabino teria talvez triunfado sem a invastio umbno­etrusca mente depositada numa f/oresta, sem monumento funebre na maior parte
do final do seculo VI... das vezes. Nos Judeus, e fortemente provavel que se encontrasse os dois tipos
Entre as dais rituais, as casos de contaminadio s{io frequentes ... de crenca que definimos ... Acreditamos que obteriamos uma resposta satis­
Deste modo, ainda que naquele perfodo hist6rico a cremaciio e o sepultamento fat6ria se admitfssemos que os Cananeus praticavam o cu/to dos antepassados
tenham sido aplicados em simultaneo, estas duas tradicoes derivam de prdti­ segundo rituais analogos aos ct6nicos, e que os Jsrae/itas n6madas trouxe­
cas de dais universos distintos, o universo pastoral n6rdico, que cremava os ram, se niio a cremaciio, pelo menos um costume diferente face aos defuntos,
seus defuntos, e o mundo agrfcola mediterrtinico que as enterrava25• a
seme/hante indiferenca aqueia au bramanista.26

Concordamos totalmente com esta conclusao, que representa uma A oposicao entre Cananeus sedentarios agrf colas e Israelitas noma­
das ideias fundamentais da nossa tese. Nao nos e passive! enfatizar das e precisamente esta que acabarnos de apontar; esta vem confir­
com maior clareza a origem nornada da incineracao, hem coma a ori­ mar a tese desenvolvida relativamente a zona de confluencia dos dois
gem agricola sedentaria do sepultamento. Porern, contrariamente bercos, Porern, e necessario apresentar integralmente a perspectiva de
a opiniao de Piganiol, consideramos que se trata, nao de duas cren­ Piganiol, acerca das religioes n6rdicas e meridionais, antes de critica­
cas diferentes em torno da vida do alem­tumulo, mas de um mesmo ­lo.
pensamento religioso ­ o culto dos Antepassados ­ interpretado por
Nornadas e por Sedentarios. Deve­se a escola dos fi/6/ogos ingleses uma interpretacao da reliqiao grega
O autor nao procurou a causa material que impedia os nomadas de muito subtil, sedutora e cotitestada. Esta teria surgido da fusiio de cultos
dedicar um culto a tumulos fixos; ter­se­a apercebido que a cremacao ct6nicos e de cu/tos ouranianos. Os ultimas, deuses da c/ara vontade, siio
constituia o unico meio, para um povo sem domicilio, de transportar objecto de uma tsrapsia; siio homenageados na esperanca de um beneficio. Os
as cinzas dos seus ancestrais e de lhes dedicar um culto. Teria assim ct6nicos, pelo contrario, siio esplritos impuros que o cu/to visa afastar...
concordado com Fustel de Coulanges, que relata o culto dos antepas­ O duelo entre as reliqioes ct6nica e ouraniana corresponde a guerra entre as
sados nos antigos, sem insitir em demasia nas suas duas variantes. Pelasgos e os invasores n6rdicos, povos cuja fusiio produziu a Grecia ckissica ...
O nimulo e o estatuario sao absurdos na vida n6mada; a sua ausencia .coposiciio entre o cu/to do fogo n6rdico e o cu/to da pedra mediterranico.
explica­se racionalmente, ao inves de traduzir inclinacoes intelectuais Os povos que idolatram o ceu possuem a ideia de um parentesco entre o Jogo
particulares. Deste modo, em vez de acreditar que foram as condicoes do lar, a atmosfera e o fogo solar. Par via do Jago, as oferendas que se quei­
materiais que impuseram duas formas diferentes a um mesmo pensa­ mam dispersam­se atraves do eter; que representa o imenso deus disperso
mento religioso, Piganiol argumenta que se trata de duas concepcoes par toda a parte; e este deus invisfve/ condensa­se, torna­se sensivel atraves
fundamentalmente distintas: da chama. Os povos que adoram a terra comunicam com as suas divindades
transportando as suas dddivas para as grutas, precipitando­as nos abismos,
Estes rituais pareciam corresponder a duas crencas distintas relativamente a deixando­as atolar­se lentamente pelos pantanos ...
vida alem­tumulo ... Uma das tradiciies ensina que o cu/to do fogo, confiado a sacerdotes por
O sepultador vive num terror constante, o cremador quase Jaz Jembrar um R6mulo, passou mais tarde para sacerdotisas, por vontade do sabino Numa ...
livre­pensador. Estas cren9as tiio diferentes niio se deixam abarcar por uma Sao os invasores n6madas, povos pastoris, que teriio introduzido o cu/to do Jogo.
formula comum; de cada uma de/as, niio podia resultar o mesmo sistema de O sacrif(cio pelo Jagoe desconhecido em Atenas antes de Cecrope, que e tambem
instituiciio. Nao estara ja enfraquecido o postulado de Fustel de Coulanges? o primeiro a atribuir a Zeus o titulo de Magniinimo ...
Seria necesstirio, na verdade, que uma analise comparativa atenta das Os povos que introduziram o cu/to do Jago na bacia do Mediterriineo, opera­
reliqibes confirmasse as nossas conclusiies. Note­se desde ja que este livre ram simultaneamente no sentido de afastar supersticiies selvagens27•
pensamento aqueu ou homerico se encontra no Rigveda, ta/ como Rodes o

26. Piganiol; op. cit., pp. 90 e 91.


25. Piganiol, Les origines de Rome; Librairie Fontemoing, Paris, 1916. Cap. I, pp. 87 a 91. 27. Piganiol; op. cit., cap. II, pp. 93 a 101.

Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra


II. Critica da Tese Classrca de um Matriarcado Universal
47
Este ultimo ponto de vista e certamente exagerado. Depois do tri- �a :verdade, �quilo qu� se sa,be com m�ior certeza acerca das crens:as
unfo do elemento nordtco. durante a epoca classica em Roma, existiam nordicas, Gremer resumiu­o: e o seu caracter vetusto. Existe uma espe­
mais divindades do que cidadaos: Fustel de Coulanges teve justamente cie de indigencia do pensamento religioso. Os documentos sao raros e
O cuidado de recensea­las. 0 conjunto do texto citado reflecte clara­
relativamente recentes. ·
mente a tendencia persistente em muitos escritores ocidentais, para
erigtr tudo aquilo que e nordico em qualidades superiores. Observa­se, Os documentos mais antiqos que possufmos acerca da religiao indo­an.
com efeito, a oposicao classica da religiao das grutas, dos pantanos ea ana, as poemas do Riqveda, datam apenas do seculo VI a.C.
da declarada vontade celestial. A reliqiiio grega, ta/ coma a encontramos em Homero, permite remontar um
Oeve, antes de mais, aflrmar­se que nada e mais duvidoso do que a pouco mais no tempo, mas esta reliqiiio surge qrandemente misturada com
atribuis:ao de uma religiao celestial ou solar ao elemento indo­euro­ elementos estranqeiros ao mundo indo­europeu. 56 relativamente a uma
peu, procurando excluir qualquer outro povo. Muito provavelmente, e
epoca pr6xima da nossa era que as reliqiiies dos Celtas e dos Germanos nos
uma tal religiao deveria ser o apanagio do Sul, onde o sol brilha vigoro­ siio conhecidas. As informacoes que possufmos acerca das reliqiiies antigas
samente, onde o ceu e realmente limpido. E no ceu mediterranlco e dos Lituanos e dos Eslavos reportam­se apenas ao seculo XVI da nossa era I

nao no nordico que deveria reinar um Zeus, deus da luz. em grande parte devido aos pastores que /hes ensinavam o cristianismo.
· Iruimeros argumentos permitem justificar esta perspectiva. RA e de E partindo da comparaciio entre estas indicacoes tao diversas que se pode
facto um deus do Sul. Em contrapartida, Grenier e levado a constatar a extrair uma ideia da reliqiiio dos indo­europeus antes da sua separaciio cerca
ausencia de uma divindade solar na religiao romana, o que se apresen­ do ano 200030•
ta, no minino, surpreendente, depois de todas as consideracoes que
formula acerca da etimologia de Zeus; todavia, a este respeito, sugere­ Desta analise comparatista resulta que o culto do fogo era comum a
­se a consulta da pagina 198 para que se constate o quanta esta e todos os Indo­Arianos, ate aos Prusso­Lituanos do seculo XVI.
extremamente duvidosa e discutfvel!
Deve entreqar­se a estes Briimanes arroz, em simultaneo com presentes, no
Osol ea lua regularam o calendario romano; as desiqnaciies de Sole de Lua, recinto consagrado ao ofert6rio para o /09031•
no entanto, niio aparecem. 0 Sol Indiges de Roma, que tinha o seu temple no
Quirinal, seria um deus de Lavlnio; Luna tinha um temp/a no monte Aventino, De entre todas as razoes que invocarnos para explicar o culto do fogo,
que teria sido fundado por Servius Tullius, mas sera necessario aquardar o poder­se­a privilegiar aquela que ja foi apresentada: no frio glacial
imperio e as infiuincias estranqeiras para assistir ao desenvotvimento destes nordico, o deus benfeitor por excelencia e o fogo; gracas a sua incom­
cultos. E provtive! que estes se encontrem representados na antiqa religiiio paravel utilidade nestas latitudes, a alma primitiva nordica nao tardou
romana, por desiqnacoes sob as qua is ainda niio foram reeonhecidos/" em prestar­lhe culto. Tal tera sido a base material que tera originado,
consequentemente, uma superestrutura religiosa.
Na medida em que o calendario romano representa uma adaptacao Portanto, em consequencia da analise de Piganiol, de Grenier e das
de calendario egipcio, nao surpreende o facto de ali se encontrarem os Leis de Manou, conclui­se que a cremacao e o culto do fogo resultam
termos de Lua e de Sol. Apesar da constatacao que acaba de fazer ­ a de uma tradicao especificamente indo­europeia, tradicao esta que se
da ausencia de uma divindade solar autentica nos Romanos ­, Grenier perpetua nos nossos dias, mesmo nas consciencias de quern esqueceu
nao deixa de escrever ­ note­se, porem, com pouco conviccao: a sua origem: a chama da mem6ria, as tochas olimpicas, as associacoes
cujos membros, ainda que cristaos, sao cremados, explicam­se pro­
No seu todo, as divindades celestes seriam indo­europeias; as da terra, pelo vavelmente a partir desta tradicao ariana. E plausivel afirmar­se que
contrario, divindades do subsolo e das grutas, representariam as avatares da alguns Europeus nao pediriam hoje para ser crernados, mesmo por
Terra Mae, a grande divindade mediterrtinica primitiva: cu/to ouraniano par motivos de higiene, caso ja nao mantivessem esta tradicao dos seus
um lado, cu/to ct6nico par outro lado29• antepassados arianos, E notavel constatar que a crernacao representa

28. Grenier; op.cit., p. 88. 30. Grenier; op. cit., pp. 85 e 86.
29. /d. 31. Lois de Manou; Livre XI, "Penitence et Expiation" (trad. Loiseleur Deslongchamps, 1843).

48 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra 11. Crltica da Tese Clilssica de um Matriarcado Universal 49
etnol6gico, cultural, absolutamente distintivo do mundo ari­
o ves t'gi
ano
e
1 ·0
do mundo meridional,

africano em

particular.
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E impossive 1 d es­
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vendar um unico caso autentico d e cre�ac;:ao na nca egra, . es _e �
A •
III.
antiguidade ate aos nossos dias. Este e um facto que nunca f01 sufict­
entemente s nhado.
Hist6ria do Patriarc o
e do Matriarcado

Berco Meridional, Berco N ordico e Zona de


Confluencia
Nao se trata propriamente de resumir, mesmo que brevemente, a
hist6ria das tres origens; nao teria qualquer interesse para o objectivo
em vista. 0 metodo que sera aplicado consiste em escolher, em cada
berco, os factores hist6ricos relevantes de modo a demonstrar que
este e efectivamente caracteristico de um ou outro sistema.

Berco Meridional
Limitaremos a sua analise a Africa, par forma a circunscrever o
assunto a factores convincentes. Efectivamente, a Africa e o continente
meridional que se encontra menos transformado pelas influencias
externas. A penetracao arabe foi travada no sul pela floresta, devido
a mosca tse­tse que mata os cavalos; as primeiras expedicfies que
alcancaram o coracao da Africa, as de Livingstone e de Stanley, sao
posteriores a 1850.

Eti6pia
Trata­se da Eti6pia tal coma e descrita par Her6doto e Diodoro da
Sicilia, e cuja antiga capital, Meroe, localizada pr6ximo do confluente
do Nila branco e do Nila azul, foi descoberta par Cailliaud sob a Res­
tauracao, 0 seu posicionamento corresponde aproximadamente ao
actual Sudao: designou­se tambem Nubia e Pais de Senar. A Eti6pia
actual, cuja capital e Aksurn, era apenas uma provfncia periferica.
A Eti6pia foi o primeiro pais do mundo a ser governado par uma
rainha ­ depois do Egipto, que conheceu Hatshepsut na XVIII;! dinas­
tia, e cujo reinado sera abordado no capitulo VI. Existiu em primeiro

50 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra 111. Hist6ria do Patriarcado e do Matriarcado 51
semilendaria de Saba, contemporanea de Salornao, Rei nao se estava acostumado a ideia de uma mulher a desempenhar um
I uga r a rainha , , .
cerca do ano rm·1 . Possuirnos pouquissimos d acumen tos papel politico e social.
d OS Hebreus, 1 ' . d Bfbli Straban refere que Cesar Augusto, que descansava entao numa ilha
elativos ao seu reinado ea sua vida. Uma passagem acomca a 1 ia
�nforma­nos que esta visitou Salomao, cuja sabedoria lhe tinha sido do Mediterraneo, em Rodes, acedeu com plena confianca as delegacoes
exaltada, e que .a mesma lhe levou presentes; a visita nao tera durado da Rainha. Esta reststencta gloriosa permaneceu na memoria dos Su­
muito tempo, apenas alguns dias e a rainha tera voltado a partir em daneses; o prestigio de Candace foi de tal modo, que todas as rainhas
direccac aos seus Estados carregada de oferendas feitas por Salomao, posteriores adoptaram genericamente o mesmo name.
Nenhum documento historico permite afirmar o seu casamento com Herodoto menciona o facto de as Etiopes Macrlobes serem as mais
este ultimo, a Biblia nao faz qualquer alusao a este acontecimento. belos e as maiores de todos as homens. Estes sao dotados de uma
Os historiadores questionam­se, par vezes, se aquela tera reinado na saude robusta; atribuir­lhes a designacao de Macrfobes, e fazer
Etiopia, propriamente dita, ou na Arabia Feliz, que seria entao o ver­ referenda a sua longevidade, sendo o Rei escolhido de entre as mais
dadeiro pals de Saba. Porem, ate ao nascimento de Mahomet, a Arabia fortes. A abundancia dos recursos alimentares e simbolizada par aquilo
meridional e inseparavel da Etiopia: o seu destino histortco foi com um, que Herodoto ea Jenda referem coma "a Mesa do Sol": durante a noite,
a suserania da Etiopia sabre a Arabia foi interrompida apenas mornen­ alguns emissaries do Rei depositam discretamente uma quantidade
taneamente; factor este comprovado par um versiculo do Corao intitu­ de carne bem cozinhada sabre uma grama reservada para este efeito.
lado "os Elefantes". Mahomet narra ali de que modo a armada etiopia, Ao nascer do Sol, qualquer membro do povo pode vir usufruir deste
enviada do continente africano de modo a reprimir uma revolta dos alimento oferecido gratuita e anonimamente. Os prisioneiros eram
Arabes do Iernen contra o governador etiope Abraha, foi destrulda retidos com correntes de aura. Compreende­se as raz6es materiais
pelos "Mensageiros do Ceu'', ainda que apenas com 40 000 homens. que mantinham as Etiopes no seu berco, e que os impediam de se tor­
Cada um dos soldados foi miraculosamente atingido na parte superior nar conquistadores. Com efeito ­ ainda segundo Herodoto ­ quando
do seu casco par um projectil que o atravessou de um lado ao outro da Cambises conquistou o Egipto (­525), este quis atravessar o Deserto
sua armadura. Admite­se, geralmente, que o exercito etiope tera pro· da Nubia, mas esteve perto de ali sucumbir. Tera entao enviado Etiopes
vavelmente sido destruido por uma tempestade de areia, ou par uma "ictiofagos" coma espi6es para junta do rei; este descobriu a conspi­
epidemia de peste que se teria manifestado durante a viagem. racao e deu uma lic;:ao de moral a Cambises, par interrnedio dos seus
Afigura­se portanto, segundo os parcos documentos historicos de agentes nos seguintes termos:
que somos detentores, que e sobretudo a Etiopia, e nao a Arabia
"Sabeia" que se deve associar a rainha de Saba. "Saiba o Rei dos Persas, que Amon niio incutiu, no coraciio dos Etiopes, o
De qualquer modo, e de salientar que durante o primeiro milenio designio de conquistar territ6rios estrangeiros; mas que niio se atreva a vir
antes da nossa era, isto e, numa epoca que se situa entre a Guerra de atacar enquanto niio for capaz de dominar esta regiiio."
Troia e Homero, as paises meridionais ja poderiam ser governados par
mulheres. Segundo o mesmo autor, o respeito pela personalidade era tal que,
O reinado da rainha Candace foi verdadeiramente historico, Foi con­ quando um Nubia era condenado a morte, dava­se­lhe ordem de acabar
ternporanea de Cesar Augusto no apogeu da sua gloria, Este, depois de com a sua vida sozinho, no seu lar. Herodoto afirma que, caso este pen­
ter conquistado o Egipto, empurrou as suas armadas para o Deserto da sasse em abandonar o pals secretamente, era a sua propria mae quern o
Nubia ate as fronteiras da Etiopia. Segundo Straban, estas eram coman­ vigiava, e se encarregava de o entregar a morte antes que aquele tivesse
dadas pelo General Petronio. A Rainha assumiu, ela mesma, o comando conseguido executar o seu projecto. Como e evidente, a condenacao era
das suas tropas; para dirigi­las, encarregou as soldados romanos, tal justificada par se tratar de um crime contra a humanidade, bem coma
coma viria a suceder posteriormente com Joana d'Arc, contra o exer­ contra a sociedade, e era esta a razao que levava a mae ­ e nunca o pai
cito Ingles. A perda de um olho durante o combate apenas contribuiu que parece nao ter o direito ­ a acabar com o seu filho.
para redobrar a sua coragem. Esta resistencia heroica impressionou Todas estas narrativas, mais ou menos lendarias, mencionadas par
toda a Antiguidade classica, nao pelo facto de a rainha ser negra, mas Herodoto, so sao importantes na medida em que reflectem, apesar de
pelo facto de se tratar de uma mulher: no mundo indo­europeu, ainda tudo, os costumes e as tradicoes vigentes no pals, durante a epoca do

Ill. Hist6ria do Patriarcado e do Matriarcado 53


52 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra
autor' Se assim nao fosse, nao teria sido possivel inventa­las com todos a cada ano. Atraves de toda a pompa e gl6ria com as quais os sacerdotes re­
os fragmentos. vestiram o seu cu/to, a concepciio de Osiris como deus do trigo emerge de
modo evidente na celebraciio da sua morte e da sua ressurreiciio, que era
concretizada no mes de Khoiak e, posteriormente, durante o mes de Athyr.
Egipto Esta festividade parece ter sido essencialmente uma comemoraciio das se­
menteiras, que coincidia justamente com a data em que o agricultor confiava
Este e um dos paises da Africa onde o matriarcado foi mais manifesto as sementes a terra. Nesta ocasiiio, enterrava­se, com rituals funebres, uma
e mais duradouro. Com efeito, foi posslvel determinar, atraves de cal· ef[gie do deus do trigo, construlda com este ultimo e terra; esperava­se que
culos astron6micos, com um rigor rnaternatico, que 4 241 anos antes ao morrer naque/e local, o mesmo poderia ressuscitar com uma nova
da nossa era, o calendario ja era usado no Egipto. 0 que significa que co/heita. A cerim6nia era, de facto, um en canto, destinado a fazer crescer o
os Egipcios chegaram a adquirir conhecimentos cientificos te6ricos ou trigo atraves de uma magia simpatico',
praticos suficientes para inventar um calendario, cuja periodicidade
e de 1 461 anos. E o intervalo de tempo que separa os dois nascimen­ De seguida, o autor descreve a cerim6nia identificando Osiris a ar­
tos heliacos de Sothis ou Sirius: a cada 1 461 anos, Sirius e o Sol ele­ vore: no interior de um pinheiro oco, colocava­se o corpo modelado
vam­se simultaneamente sob a latitude de Menfis, E provavel que este de Osiris, juntamente com material de linho. 0 autor considera que
numero tenha sido fixado mais por calculos do que pela experiencia, esta e, sem duvida, a contrapartida ritual da descoberta lendaria
isto e, atraves da observacao, E dificil, de facto, imaginar que quarenta do corpo de Osiris encarcerado numa arvore, Mais adlante, descreve
a Celebracao do Djed, que terminava a 13 do mes Khoiak com o le­
e oito geracoes possam transmitir as suas observacoes celestes para
vantamento de um pilar, que nao era outra coisa senao uma arvore
que, chegado o momento previamente referido, a quadragesima oitava
com os ramos cortados: esta elevacao simbolizaria a ressurreicao
geracao, durante uma aurora especifica, se prepare para assistir, pela
de Osiris, visto que, na teologia egipcia, o pilar era interpretado en­
primeira vez, ao nascimento heliaco de Sothis. Isto levaria a supor, de
quanto a coluna vertebral do mesmo.
resto, a existencia de arquivos astron6micos por escrito, com uma cro­
Originalmente, Isis era, de acordo com Frazer, uma deusa da fecun­
nologia precisa, durante o periodo considerado como pre­historico.
didade. E a grande benfeitora Deusa­Mae cuja influencia e cujo amor
Em todo o caso, o mito de f sis e de Osiris e anterior a esta data, uma prevalecem em toda a parte, quer seja nos vivos, ou nos mortos. Esta
vez que esta na origem da nacao egipcia. Portanto, desde esta epoca representa, a sernelhanca de Osiris, a Deusa do trigo, do qual tinha
recuada ­ e ate ao final da hist6ria egipcia ­ o casamento entre irrnaos inventado o cultivo:
permaneceu em vigor na familia real, ja que Isis e Osiris sao, em si­
multaneo, conjuges e irmaos, Durante este longo perfodo, unico pela lsis deve certamente ter sido a deusa do trigo. Com efeito, existem bastantes
sua duracao nos anais hist6ricos do mundo, o Egipto tera conhecido motivos que justificam esta apreciaciio. Diodoro da Sicilia, cuja autoridade
todos os refinamentos da civilizacao e iniciado todos os jovens povos parece ter sido o historiador Manetiio, atribuia a lsis a descoberta do trigo
do Mediterraneo, sem que a sua estrutura social deixasse de ser e da cevada; nas suas celebracties transportavam­se, em procissiio, caules
fundamentalmente matriarcal. Podemos, entao, ficar legitimamente destes cereals para comemorar a dadiva que esta tinha dado aos homens.
surpreendidos com o facto de nao ter existido uma passagem do ma­ Santo Agostinho acrescenta um outro deta/he: lsis tera descoberto a cevada
triarcado para o patriarcado. no momenta em que oferecia um sacrificio aos antepassados do seu esposo,
O caracter agrario e matriarcal da sociedade egipcia fara6nica en­ que eram tambem os seus e que tinham todos sido reis; esta tera mostrado
contra­ss suficientemente representado no mito de Isis e de Osiris. as espigas recentemente descobertas a Osiris e ao seu conselheiro That (ou
Segundo Frazer, Osiris e o deus do trigo, o espirito da arvore, o deus Mercurio, ta/ coma o designavam os escritores romanos). E este o motivo pe/o
da fertilidade: qua/, acrescenta Santo Agostinho, Isis e Ceres se identificam2•

A analise do mito e do ritual de Osiris que antecede pode ser suficiente para
provar que, sob um dos seus aspectos, o deus representava uma personifica­
1. Frazer, James George, Atys et Osiris: etude de religions orientates comparees; Librairie Orientaliste,
rao do trigo, acerca do qua/ se pode afirmar que se extingue e retorna a vida Paul Guthner, 1926, p. 117.
2. Frazer; op. cit., pp. 133­134.

54 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra JIL HistOria do Patriarcado e do Matriarcado 55
i'Constata­se aqui uma especie de confirmacao, atraves da lenda da da irrna � que pode_re_inar no_�ais; o do irrnao prevalecera no pals
tradicao. que atribui as mulheres um papel activo na descoberta da da su� �ae, caso o direito matrilinear se encontre ali em vigor; se for O
agricultura. contrano a suceder; nao tera direito ao trono, a menos que O usurp
· , . e em
Na epoca das colheitas, os Egipcios entregavam­se a la�entas:oes em um d os d ms parses. Ao desposar a sua irrna, o fara6 conservava O trono
honra do espirito do trigo ceifado, isto e, em honra de Isis, criadora na mesma familia e eliminava, em simultaneo, os litigios de sucessao,
da verdura, Senhora do pao, Senhora da cerveja, Dona da abundancia, . 0 Fara6 que casa com a sua irrna e, ao mesmo tempo, o tio do seu
personificando o cam po de trigo. ,Frazer ve a prova desta identifica­ filho. Ora, no regime matrilinear, s6 o sobrinho e que herda do tio
r;:ao no epfteto Sochit, atribuido a Isis e que significa ainda, em lingua materno, e este ultimo possui o direito de vida e de morte sobre ele.
copta, campo de trigo. Em contrapartida, os seus pr6prios filhos nao sao seus herdeiros e
Os Gregas identificavam­na tambern a Demetra e consideravam­na ele pr6prio, nao pertence a familia da sua mulher. Todos estes incon­
coma a deusa do trigo. Foi esta que deu origem aos "frutos da terra" venientes sao eliminados gracas aquilo que se designou por "incesto
O fundamento do misterio de Isis e de Osiris representa entao, �eal". Estee o unico exemplo de farnilia meridional, com base matri­
essencialmente, a vida agraria, l�near e na qua! o homem ea mulher pertencem a mesma familia; e um
A monogamia constituia originalmente uma regra, ja que Osiris tinha �Ipo especffico no interior do matriarcado e que se justificava pelos
apenas uma mulher, Isis, cujo name e uma alteracao do termo egipcio mteresses superiores da nacao ligados a coesao da familia real. Pode
Sait ou Sit. E interessante notar, ocasionalmente, que estes dais termos, aqui entrever­se a possibilidade de uma explicacao no caso da Rainha
numa lingua africana, o wolof, significam "a nova noiva", a esposa. Hatsheput, que sera apresentada no capitulo IV.
Seth, irmao de Osiris, e igualmente mon6gamo; a sua esposa ­ que e I.No casamento, o homem traz o dote a mulher. Esta ultirna, durante
tambern sua irma ­ e Neftis, toda � h�st6ria. e�fpcia fara6nica, usufrui de uma liberdade total que
Ate ao fim da hist6ria egipcia, o povo permaneceu mon6gamo. Unica­ se opoe a condicao de mulher sequestrada indo­europeia dos tempos
mente a famflia real e os dignatarios da carte praticaram a poligamia, classicos, seja ela grega ou romana. ·:
em graus diferentes segundo a sua fortuna. Esta emergiu como um luxo Nao ha conhecimento de qualquer testemunho literario ou de docu­
que foi transplantado na vida familiar e social, ao inves de constituir o mentos hist6ricos ­ egipcios ou outros ­ dando conta de um mau
seu fundamento primordial. Existiu no Egipto, tal como na Grecia no tratamento slstematico das mulheres egfpcias pelos ho mens. Estas
tempo de Agamemnon, na Asia e na aristocracia germanica na epoca eram honradas e circulavam livremente e sem veu, contrariamente a
de Tacito: poder­se­ia tarnbem citar outros exemplos nas Cortes Reais algumas Aslaticas. '/;',. afeicao pela mae e, sobretudo, o respeito com O
ocidentais dos Tempos Modernos. qua! esta devia ser tratada, representava o mais sagrado dos devere
O casamento com a Irma e uma consequencia do direito matrilinear. O mesmo encontra­se anotado num texto egfpcio bastante conhecido
Ja observamos que, no regime agricola, o pivo da sociedade ea mulher;
e ela que transmite todos os direitos, politicos e outros, porque :Quando tu nasceste, ela (a tua miie] tornou­se verdadeiramente tua escrava·
representa o elemento fixo, podendo o homem ser relativamente as tare/as mais ingratas niio entristeciam o seu coraciio ao ponto de a /evar;
m6vel: este pode viajar, emigrar, etc., enquanto que a mulher educa pronunciar: "Por que terei de me submeter a isto?". Quando ias para a esco/a
as criancas e sustenta­as. E, portanto, normal que estas herdem tudo para te instruir, ela instalava­se perto do teu instrutor, trazendo todos os dias
daquela e nao do homem que, mesmo na vida sedentaria, mantern um os pties ea cerveja de casa. E agora que cresceste, que te casas, que constr6is
certo nomadismo. Originalmente, em cada cla, era ao elemento femi­ a tua pr6pria familia, lembra­te sempre de todos os cuidados que a tua miie
nino ­ e somente a ele ­ que retornava a totalidade da heranca. A preo­ teve contiqo, a Jim de que ela nada ten ha a censurar­te e niio venha a levantar
cupacao em evitar contendas de sucessao entre primos ­ isto e, filhos as miios para deus, porque ele atenderia a sua maldiciio .
de irrnaos e irrnas ­ parece ter levado estes ultimas, no ambito da fami­
lia real, a perpetuar o exemplo do casal real original, Isis e Osiris. Com A este conselhos dados ao jovem egfpcio, poder­se­ia opor a condu­
efeito, imagine­se um irmao e uma irrna descendentes de um casal real ta de Telemaco dando ordens a sua mae Penelope, fazendo figura de
que se casam, no exterior da sua pr6pria familia, com uma princesa um verdadeiro senhor da casa na ausencia de Ulisses, ou a de Orestes
e com um principe. Segundo o direito matrilinear, so o descendente matando a sua mae Clitemnestra para vingar o seu pai.

56 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra Ill. Hist6ria do Patriarcado e do Matriarcado
57
Libia tendo em con ta que a mesma nos levou a apreciar o caminho que percorre­
mos desde entiio4•
Qualquer que tenha sido a populacao da Lfbia durante a epoca
pre­hist6rica, a partir do segundo milenio e, possivelmente, cerca de Sao estas tribos nornadas, tarnbem designadas por "povos do mar"
1 soo, a regiao ocidental do Delta do Nilo foi invadida por povoacoes no_s _documentos egipcios, que se vao instalar em torno do Lago de
Indo­Europeias, altas, loiras, de olhos azuis, tatuadas em todo o corpo T�1tao e que se tornarao nos Lebou, Rebou, ou ainda Lfbios, Sao tam­
e vestidas com peles de animais. E este o modo como estas sao descri­ ?em por vez.es chamados Tehe nou; estes termos nao sao de origem
tas nos documentos encontrados por Champollion, em Biban­el­Mo­ m,do­europe1a: pode verificar­se que Rebou = pals de caca, em wolof
Iouk', Depois de ter descrito as diversas racas de homens conhecidas (lmgua senegalesa), e que Reh = cacador: na mesma lingua africana
dos Egipcios, ta! como as viu representadas em baixo­relevo no tumulo Tahanou = pais onde se encontra floresta morta. '
de Ousirei I, e chegando a ultima, escreve: �s Libios formaram frequentemente coligacoes dirigidas contra O
Egipto: a mais importante fol fomentada por Mernephtah, no tempo
Finalmente, a ultimo possui um tom de pele que designamos par car da came, da XIX" dinastia.
au pele branca, com a mais delicada nuance, o nariz direito ou liqeiramente
protuberante, os olhos azuis, a barba loira ou ruiva, estatura a/ta e extrema­ Par volta do mes de Abril de 1922, Mernephtah teve conhecimento, em Mem­
mente esquia, vestido com pele de gado ainda revestindo o seu pelo, verda­ phis, que o rei dos Libios, Meryey chegava da regiiio de Tehenou com as seus
deiro selvaqem tatuado em diversas partes do corpo; siio chamados de arqueiros e uma coliqacao dos "povos do Norte"formada por Shardanes, Sicu­
Tamhou. los, Aqueus, Lfcios e Etruscos, trazendo a elite dos guerreiros de cada regiiio;
Apressava­me a procurar a tabela correspondente a esta nos outros tiimulos o seu prop6sito consistia em a ta car a fronteira ocidental do Eqipto, nas plant­
reais e, ao encontra­la de facto em varios de/es, as variacoes que ali observava cies de Perir. 0 periqo era tanto maior que a provfncia da Palestina tinha
convenciam­me plenamente de que se quis Jazer constar aqui os habitantes sido, ela mesma, atingida pela aqitaciio; ao que parece, as Hititas tinham sido
das quatro partes do mundo, de acordo com o antigo regime eqlpcio, a saber: arrastados na tormenta, ainda que Mernephtah tivesse prosseguido as seus
g os habitantes do Egipto que, por si s6, formavam uma pa rte do mundo, bans offcios para com aqueles, enviando­lhes trigo nos seus navios, durante
segundo o assaz modesto costume do povo antigo; 211, os habitantes pr6prios um perfodo de escassez, para fazer sobreviver o pafs de Khati... A batalha
da Africa, os Negros; 39, os Asiaticos; 411, e por (iltimo (e tenho verqonha de o durou seis horas, durante as qua is as arqueiros do Eqipto levaram a cabo um
dize,;jci que a nossa rara ea ultimo ea mais barbara da serie), os Europeus, massacre entre os Bcirbaros: Meryey fugiu a sete pes, abandonando as suas
que nestas epocos recuadas, sejamosjustos, niio faziam boa figura neste mun­ armas, o seu tesouro, o seu harem; na tabela,foram inscritos, de entre as de­
do. Entenda­se aqui todos os povos de rara loira e de pele branca habitando funtos, 6 359 Libios, 222 Sfculos, 742 Etruscos, a/guns mi/hares de Shardanes
niio somente a Europa, mas tambem a Asia, o seu ponto de partida. Este modo e Aqueus; mais de 9 000 espadas e armaduras e um grande esp6lio foram
e
de apreender estas tabe/as tiio mais autentico que, nos outros tumulos, os capturados no campo de batalha. Mernephtah qravou um hino de vit6ria
mesmos names qenericos reaparecem, e sempre pela mesma ordem ... no seu temp/a [unebre, em Thebes, no qua/ descreve a consternaciio dos seus
O mesmo sucede com os nossos hons antepassados, os Tamhou; a sua indu­ inimigos;nos Lfbios, os Javens dizem entre eles, a prop6sito das suas vit6rias:
e
mentaria par vezes diferente; as suas cabecas siio mais ou menos cabeludas niio tivemos outras desde o tempo de Ra; e o anciiio diz ao seu fi/ho: oh!
e cheias de ornamentos "diversos" a sua vestimenta selvaqem varia um pouco Pobre Libia! Os Tehenou foram esgotados num uni co ano. E as outras provfn­
na sua forma; mas a sua tez branca, os seus olhos ea sua barba conservam a
cias externas ao Egipto foram, tambem etas, levadas obediencia. Tehenou e
todo o caracter de uma raca a parte. Copiei e colori esta curiosa serie et­ devastada, Khati e pacificada, Canaii e saqueada, Ascaliio e espoliada, Gazer e
a
noqrafica. Niio estava, de modo a/gum, espera de encontrar, ao chegar a tomada, Yanoem e destruida, Israel esta desolada e jd ntio possui sementes, 0
Biban­el­Molouk, esculturas que pudessem servir de vinhetas para a hist6ria Kharou transforma­se numa viuva sem apoio face ao Egipto. Todos os pafses
dos habitantes primitivos da Europa, isto, caso um dia se tenha a coragem silo unificados e pacificados5•
de assim proceder. Todavia, esta visiio tern alga de lisonjeiro e reconfortante,
4. Champollion Le Jeune, "Lettres publiees par Champollion­Figeac" in Egypte ancienne (Col
L'Univers, 1839), pp. 30­31. ·
3. N.T: Vale dos Reis 5. Moret, A. e Davy, G., Des Clans aux empires; Col. "L'evolution de I'humanite" (La Renaissance du

58 Cheikh Anta Diop A Unldade Cultural da Africa Negra


Ill. HistOria do Patriarcado e do Matriarcado
59
Muito tempo depois desta derrota, os Llbios tinham delxado de origem fol precisamente a dos Libios nordicos, Estes, en anto Indo­
representar um perigo para o Egipto, enquanto nao tiverarn outro ­Europeus emigrados do berco "nordico" e tendo permanecido norna­
transporte rapido, para alem do a,sno. das, nunca praticaram o matriarcado.
MiJ anos ap6s a sua chegada a Africa, estes ainda se mantern noma­
das: Herodoto descreve a sua expansao em torno do Lago de Tritao,
na Cirenaica e ate aos arredores de Cartago. Ao partir do Egitpo em di­ Africa Negra
recc;:ao ao Atlantico, encontram­se segundo a ordem seguinte: Os Adyr­
machides sao os primeiros, influenciados por um contacto prolongado A hist6ria �a.Africa Negra e conhecida, sem solucao de continuidade,
com o Egipto, nas suas tradicoes e costumes; de seguida, surgem os desde o Imperio do Gana [seculo III da nossa era) ate aos nossos dias,
Giligames, que ocupam um territ6rio alargado ate a "ilha Aphrodisias": pelo menos no que diz respeito a parte setentrional do continente. Ao
na sequencia destes, encontrarn­se os Asbystes, que hab.itam acima de que parece, ao longo da Pre­historia, este foi povoado a partir da Africa
Cirene: estes vivem no interior das terras e estao separados do mar do Sul,� da Reg�ao dos Grandes Lagos. Com efeito, nao se encontram
pelos Cireneus e deslocam­se em carrocas de quatro cavalos; depots, os paleoliticos na Africa Ocidental; o unico local onde e possivel encon­
Auchises que habitam acima de Barke: estes possuem uma fraccao do trar com toda a certeza, e em Pita, na Guine: no sul do Saara, em geral,
literal, [unto aos Hesperides e perto do meio do seu territ6rio, esrao os apenas se encontram neoliticos, enquanto que o pr6prio Saara possui
Baca/es; de seguida, encontram­se os Nasamons: todas as epocas da Pre­historia,
Fomos entao levados a supor que depois da secagem do deste ul­
Tern par tradiciio cada um possuir varias esposas, usando porem varias timo, culminada 7 000 anos antes da nossa era, a populacao primitiva
mu/heres em com um, um pouco coma as Massagetas6• teve que emigrar parcialmente em direccao ao Vale do Nila, onde en­
controu outros agrupamentos, provavelmente provenientes da Regiao
Surgem ainda os Psylles, que foram destruf dos em circunstancias do,s Grandes L,a�os. Estes povos terao, durante muito tempo, consti­
misteriosas, talvez devido a um fen6meno natural, segundo Her6doto, tmdo uma especie de aglomerado ao longo do Vale; e, devido ao sobre­
como uma tempestade de areia. Acima dos Nasamfies, em direccao ao povoamento e a i?vas6es, estes reagruparam­se de novo em direccao
Sul, encontram­se os Gamphasantes ou Garamantes: ao centro do �ontmente, afugentando diante deles os Pigmeus. E o que
parecem confirmar as lendas recolhidas da boca dos Africanos actuais
... que fogem a todos as homens ea qualquer sociedade, niio possuem nenhuma e segundo as quais os Antepassados dos Negros terao surgido do Leste'.
arma de guerra e niio sabem defender­se7• ?o lado da "Grande agua": durante muito tempo, nao se pensou em
identtftcar a "Grande agua" ao Nilo. As tradicoes bfblicas e as primei­
Os Maces estao instalados ao longo do litoral e depois destes en­ ras des_cobertas �r�ueol6gicas levavam os sabios a situar o berco da
contram­se os Gindanes, que vivem proximos dos lot6fagos. A estes humamdade na Asia. Era, portanto, l6gico procurar povoar o resto do
sucedem os Mach/yes que se estendem ate ao rio Tritao: este ultimo mundo a partir do continente asiatico, onde se tinha exumado O Pite­
desagua no Lago Tritao. Her6doto enumera ainda: os Auses que, igno­ cantropo (Java) e o Sinantropo (China). Surge a teoria do continente
rando o casamento, agrupavam as mulheres em comum, os Amonios, lemuri�no: esta consistia em fazer descender os Negros Africanos dos
os Atlantas. Austrahanos, sendo a rota de migracao o Oceana f ndico e servindo as
Tai e a situacao demografica da Libia, desde o Egipto ate ao monte diferentes ilhas de escala aos pirogueiros. '
Atlas, no seculo V antes da nossa era. Se esta enumeracao de Her6doto As. desco?ef!as_ recentes, que tendem a provar que o berco da hu­
foi rigorosamente respeitada, foi pelo facto de, no capitulo IV, quando mamdade ea Afnca do Sul, tornam cada vez menos necessaria a hipo­
tese lemuriana.
tratarmos das Amazonas, ditas de Africa, constataremos que a sua
A_ toponfi_nia e a etnonfmia da Africa revelam um berco comum que
sena, efectivamente, o Vale do Nilo. A linguistica apresenta uma prova
Livre, 1923), p. 389. praticamente segura.
6. Her6doto, Histoires; Livro IV e seguintes. Trad. Ph. E. Legrand, Societe d'edttion "Les Belles O Imperio do Gana surge, historicamente, como uma transicao en­
Lettres", Paris, 1945.
7. Ibid. tre a Antiguidade e os Tempos Modernos. Na verdade, afirma­se, no

60 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra


111. Hist6ria do Patriarcado e do Matriarcado 61
Os Kounta e os Beni Hassan sao duas tribes arabes que s6 entraram
Tarikh­es­Soudan, que a cidad� de Ko�lda, sobre o Ni�er, perto de Gao, na Africa Negra no seculo XV: estas fazem parte dos elementos que
· desde O tempo do Farao. As rumas de Gana, situadas no·,.Noro­
axis tia
I ld M' povoam a Mauritania.
este da curva do Niger, foram d�scober�s por Bonne _ e ez1�res e Percebe­se, entao, que a penetracao arabe na Africa Negra relati­
!mhas,
Desplagnes. A hist6ria do Gana e conheclda, nas suas gt andes vamente recente e que nao poderia, de modo algum, explicar O regime
as aos textos dos escritores arabes. lbn­Khaldoun, nascido na
�;Jfsia em 1332, apresenta, na sua Historia dos Berberes, inform�­ matriarcal do Gana.
_d�s ,m.1­ 0 matriarcado prevalecia igualmente no Imperio do Mali, com os
�oes acerca dos Imperies negros da Africa, hem como acerca Malinke. Ibn Batouta apresenta uma confirmacao neste sentido; este
gra�oes Norte­Sul dos povos de raca branca. lbn­Haoukal, ongm�no
tomou nota deste costume enquanto pratica especifica no mundo
de Bagdad [seculo X), era um comerciante viajante que tomou muitas
negro, e contraria aquilo que tinha por habito observar em qualquer
anota�oes acerca dos paises que atravessou; a ele se deve_ Les Routes et
les Royautnes­ El Bekri, ge6grafo arabe de_ Espanha: n�sc1do em 1032, outra parte do mundo, exceptuando na India com outros negros.
fornece tndicacces abundantes sobre a vida aconomrca do Gana. lbn
Batouta, nascido em Tinger em 1302, visitou o lmperio do Mali du­ Efes (os Negros) nomeiam­se segundo o seu tio materno e niio segundo o seu
rante a Guerra dos Cem Anos em 1352­53: este foi a Tombouctou, Ga�, pai; niio siio os Ji/hos que herdam dos pois, mas os sobrinhos, Ji/hos da irmii
Oualata e Mali, a capital do lmperio que tinha sucedido o Gana a partir do pai. Nunca encontrei este costume noutro lugar, excepto nos infiets de
de 1240; redigiu Voyage au Soudan. Malabar na fndia8.'
Os dados fornecidos por estes diversos autores informam­nos, entre
outras coisas, que no Gana a filiacao era matrilinear, particularmente com a islamizacao, isto e, sob a influencia de um factor externo, e
no que concerne a sucessao ao trono. A dinastia real era a dos Sara­ nao devido a um processo de evolucao interna, a maior parte das
kolle Cisse. Os historiadores defendem, por vezes ­ sem poder, no en­ populacfies que, na Idade Media, eram matrilineares, tornaram­se
tanto, fundamentar a partir de documentos ­. que a di�astia dos Cisse patrilineares, pelo menos aparentemente.
foi antecedida por uma dinastia de raca branca serruta, que alguns
principes teriam reinado antes de Maho,met; t,eria co_mpreendi�o 4.4 Os au tores arabesque nos fa la ram do Gana e do Mandigue (Mali) na epoca da
reis, antes de passar o poder aos Cisse. E possivel salientar aqui d�1s ldade Media chamaram a atenciio para o facto de, nestes Estados, a sucessiio
aspectos. Esquece­se, por um lado, que antes de Mah�met e do ls�ao, se transmitir, niio de pai para Ji/ho, mas de irmiio para irmiio uterino, ou
os Arabes nao tinham qualquer potencial de expansao, que precisa­ ainda de tio para sobrinho descendente de uma irmii. Segundo as tradiciies
mente, neste perlodo, era um Estado Negro, tal como o Su�ao (Meroe). endoqenas, os Bambara teriam sido os primeiros a romper com esta prati­
que exercia a sua suserania sobre a Arabia; portanto, ?�o e possivel ca, e e dai que resulta o seu name ­ Ban­ba­ra ou Ban­ma­na, significando
a
explicar, partir do lemen, a origem desta forca polltica capaz de a separaciio da miie ­, enquanto que aqueles que pertenciam aos Ouangara,
construir um irnperio tao vasto em pals negro nesta ep?�a. Por o�tro a
que tinham permanecido fieis velha tradicao teriam recebido o name de
lade, quanto aos Semitas que praticavam a filiar;:ao pa1:_:1Imea1� tenam Manding ou Mande ­ ma­nding ou ma­nde, que significa "filho a mtie". Actua/­
sido os seus costumes que teriam regulado a sucessao ao trono do mente, o parentesco masculino ou consangufneo permaneceu nos Bambara e
Gana caso estivessem verdadeiramente na sua origem. prevaleceu nos Sarakolle, bem coma numa parte dos Mandingues ou Malinke;
"So em 710, sob a direccao de Obka ben Nafi, e que os Arabes alcancam porem, muitos de entre estes ultimas continuam a admitir apenas o paren­
Marrocos e o Atlantrco. E verdade que se afirma que durante o seculo tesco feminino ou uterino, enquanto aque/e que confere o direito de heranca,
Ida nossa era uma tribe de Ara bes nomadas, os Berabich, terao aban­ ta/ coma acontece na maior parte dos Peu/s e dos Sereres, bem coma com um
donado o Iernen para parar na Tripolitania: dai o facto de, no seculo numero consideravel de povos negros do Sudiio, da Costa da Guine e da Africa
II esta se ter estabelecido no sul de Marrocos. Ali tera permanecido, sul­equatoria/9. ·
j�nto dos Berberes Messoufa, ate ao seculo Vlll. E neste momenta q�e,
empurrada pelos muculmanos, tera chegado ao,deserto e, desde e�tao,
servido de ligacao entre a Africa do Norte ea Africa Negra a parttr de 8. Batouta, lbn, Voyage au Soudan; (trad. Slane), p. 12.
9. Delafosse, M., op. cit., p. 139.
Tombouctou. S6 no seculo XVII e que estes terao sido islarnizados pelos Batouta era o maior viajante do seu tempo; percorreu o mundo desde Pequim ate ao Mali. A sua
Arabes Kounta. experiencia das tradi�oes estrangeiras nao era, portanto, parcial.

Ill. Hist6ria do Patriarcado e do Matriarcado 63


62 CheikhAnta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra
A islamizac;:Jio da Africa O�idental foi iniciada com o movimen­ fil�o, de espo�o e de pai; o mesmo niio deve responder num acesso de furia.
to AJmoravida, no seculo X. E possfvel notar­se que este introduziu A enfase recat sempre na mile pura: "a mile que me carregou". A sua cabana
urna sspecie de dernarcacao na evolucao da consciencia religiosa, em e keftu ­ a nossa casa'",
primeiro Jugar dos principes, e por consequencia, mais tarde, nos po­
vos. A reltgtao tradiclonal desvaneceu gradualmente sob a influencla O parentesco nos Tswana que habitam na Bechuanalandia na Africa
islamica, bem coma os costumes e as tradicoes, Foi deste modo que do Sul, e igualmente matrilinear: '
O regime patrilinear se substituiu, parcial e progressivamente, ao re­
gime matrilinear desde o seculo X. Asslm, compreendem­se as causas
externas que originaram esta mudanca,
Na Africa Ocidental, a adopcao do sobrenorne do pai pelas criancas
mo� de =r=
Os pais maternos niio silo, em prindpio, implicados nas situacoes que acabd­
Estes niio podem ser rivais na propriedade ou na posicao
social, e muitas vezes, "ainda que isto niio seja absolutamente qeral'; perten­
parece derivar desta mesma influencia arabe. De facto, acabamos de cem a uma outra comunidade local. Talvez por isso sejam, de modo evidente,
to mar conhecimento, com lbn Batouta, que em 1253, as criancas eram notavelm:nte rnais afectuosos e devotos do que os agnados. Os descendentes,
nomeadas de acordo com o tio materno, ou seja, com o irmao da mae, quando sao pequenos, silo frequentemente enviados, durante a/gum tempo,
Portanto, o descendente adoptava o sobrenome de um homem, mas para o far dos seus pais maternos, que os encorajam depois a vir visitd­los
o regime era purarnente matrilinear; s6 deixou de o ser a partir do com �eg�laridade. Ali, �­!hes reservada uma calorosa recepciio e uma generosa
momenta em que o do pai substituiu o do tic, de acordo com a pratica h�sp1talzdade, �ara a/em de usufruirem de numerosas vantagens. Diz O prover­
islamica. bio que uma crianca tern um lugar no far dos pais da sua mile. Um tio materno
E importante salientar que, a partir da mesma epoca, a des­ vinculado deve, em particular, ser consultado em todos as assuntos relaciona­
trtbalizacao era um facto concretizado na Africa Ocidental: o mesmo dos especialmente com os Ji/hos da sua irmii; a sua opiniiio tao importante e
e demonstrado atraves da possibilidade que o indivfduo possui de que, par ve:es, no momenta em que se trata do casamento, o seu veto pode ser
adoptar um sobrenome proprio, de farnllia, e ja nao relativo ao cla. Nas decisivo ... E do tio materno, talvez mais do que de qualquer outra pessoa, que
regices nao destriballzadas do continente, os indivfduos tern apenas um homem espera a opiniiio desinteressada ea assistencia em caso de neces­
um nome. Quando sao questionados acerca do seu nome de familla, sidade ... Os pais e as irmiis da miie siio, geralmente, reconhecidos coma sendo
estes respondem que pertencem a um determinado cla totemico, cuja mais afaveis e indulgentes do que os do par'",
designacao s6 pode ser adoptada colectivamente. S6 quando os mem­
bros do cla se dispersam e que podem conservar individualmente, Nos Ashanti do Gana, a flliacao e de igual modo matrilinear.
como lembranca da sua comunidade primitiva, o nome do cla que se
torna no seu sobrenome de famflla. Os Ashanti consideram a ligariio entre miie e Ji/ho coma a forca motriz de
No entanto, e necessario sublinhar um modo particular de nomear todas as relaciies sociais... Consideram­na como um parentesco moral absolu­
o descendente, que parece resultar de uma concepcao duallsta da tamente obrigat6rio. Uma mu/her Ashanti niio se poupa no que concerne ao
vida social. Ao nome do rapaz, acrescenta­se o da mae: e ao name da trabalho au aos sacrijfcios para o bem dos seus descendentes. E sobretudo
rapariga, o do pai. Por exemplo, Cheikh Fatma designa o filbo de Fatma, para /hes Jornecer o alimento, o vestudrio, e actualmente as despesas de edu­
Magatte Massamba­Sassoum e filha de Massarnba­Sassoum, Certa­ �ara.o que esta traba/ha tao arduamente, importuna o seu marido e vigia
mente que isto nao provern, de modo algum, de uma influencia arabe. invejosamente o seu irmiio para assegurar que este ultimo cumpre criterio­
6 matriarcado africano existe a escala do continente: sament: os s�us deveres de tutor legal. Nenhuma exiqencia exagerada para e
uma mae. Ainda que esta abomine punir e nunca repudie o seu Ji/ho, uma
O comportamento de um filho para com a sua mile nos Swazi (que vivem na miie Ashanti exige dos seus descendentes obediencia e respeito afectuoso ...
.Africa do Sul) combina o respeito e o afecto. Para ele.jurar, despir­se, au com­ Dar provas de fa/ta de respeito face a uma miie equiva/e a um sacrilegio':12
portar­se de modo indecente na sua presence, d6 origem .acredita­se, a um
castigo directo dos antepassados; par outro lado, sera publicamente repreen­
dido e talvez forcado, pelo seu conselho familiar, a pagar uma indemnizactio. 10. �a�cliffe·Brown, A.·R e Forde, D., Systemes familiaux et matrimoniaux en Afrique; Presses Uni­
versitaires de France, 1953, p. 120.
Espera­se que a sua miie o censure, caso aquele ne9/i9ende os seus deveres de
11. Radcliffe­Brown, A.·R e Forde, D., op. cit., pp. 184­185.
12. Radcliffe­Brown, A.·R e Forde, D., op. cit., pp. 345­346.

64 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra


111. HistOria do Patriarcado e do Matriarcado 65
tambern a organizacao social dos Bantou, do da sua civilizacao, e com a analise desta que e desejavel iniciar este
O matriarcado rege capitulo.
centro da Africa.

dos povos bantou da Africa Central determinam a Jiliarao se­


A ma ior pa rte · d Cr eta
matrilinear, mais do que segundo a patrilinear; � muitos e
gundo a linh(l
en tre eles praticam uma certa Jorma daquilo que conhecemos, hab1tualmente,
, .
e
sob a designarao de matrim6nio matrilocal. Com efeito, este caracter matri­
Quais os nossos conhecimentos acerca de Creta? Segundo Tucfdides,
linear da organizarao familiar que os distingue tao claramente dos Bantou
os Cretenses estabeleceram uma talassocracia sabre todo o Mediter­
do Leste e do Sul da Africa, e e por esta raziio que o territ6rio que se estende
ranee egeu.
a
dos distritos do Qeste e do Centro do Congo belga ate plataforma Noroeste da
Rodesia setentrional e dos Montes da Niassalimdia, e frequentemente referido e
Segundo a tradtciio, Minos o rei mais antigo a criar uma marina. Expan­
como a "cintura matrilinear"13• a
diu o seu imperio maior parte do marque hoje designamos de helenico (o
Mar Egeu). Dominou as Clclades, onde designou coma chefes os seus pr6prios
Conclui­se do exposto que o regime matriarcal e geral em Afri<:_a, Ji/hos. Expulsou das ilhas os piratas que as infestavam e fundou col6nias na
quer na Antiguidade, quer nos nossos dias, e este trayo cult�ral nao
maior parte de entre elas. Desde entiio, os habitantes das costas comeraram
resulta de uma ignorancia do papel do pai na concepcao d� cnanca .. 0 a enriquecer e a possuir habltaciies menos precdrias; a/guns, cuja abas­
culto falico que e corolario do regime agricola (pedras erguidas, obehs­ tanca tinha aumentado, chegaram mesmo a rodear as suas cidades com
cos do Egipto, templos da India do Sul) comprova­o largamente; este muralhas/":
demonstra que no momenta em que a humanidade arcaica optava pela
flltacao matrilinear, a mesma tinha conhecimento do papel f�c�ndante Nada mais se sabia acerca de Creta ate que Schliemann, em 1876,
do pai. Em nenhum dos regimes descritos no berco mend10n�l �e e Evans, em 1900, levaram a cabo escavacoes no teatro das facanhas
negligencia sistematicamente o parentesco patrilinear. Pelo contrano, homericas, Schliemann nao era um profissional, mas um autodidacta
a conduta social face aos parentes patrilineares e mais severa do que de genio: estava portanto, em certo sentido, menos incapacitado nas
face aos parentes matrilineares. Com estes ultimas, o compor�am�nto suas iniciativas por uma formacao classica, Depois de ter tido sucesso
e livre, sem hipocrisia social; o mesmo nao acontece com os pnmeiros, nos negocios e ganho muito dinheiro, dedicou­se a ciencia, ao estudo
uma vez que se deve sempre salvar as aparencias. No campo de das linguas antigas para melhor se entregar a arqueologia. Ao interpre­
batalha, pode abandonar­se um irrnao ou um melo­irmao maternos, tar literalmente os textos dos Antigos (Homero, Esquilo, Euripides,
mas jamais um meio­irrnao paterno, ainda que se goste menos dele do Sofocles ), este descobriu as localizacoes das cidades antigas como
que dos primeiros e que se esteja mais afastado dele. �ste representa Troia, Micenas e Tirinto. Realizou ali escavacoes e conseguiu transfor­
um rival social, deve ser ultrapassado ou, pelo menos, igualado em �o­ mar a lenda em verdade hist6rica. Em Troia, exumou um tesouro e as
das as coisas, para honrar, no ambito da poligamia, a "casa" da sua mae, fundacoes de um palacio que considerou ser ode Priamo. Em Micenas,
isto e, a sua linhagem, a sua matria. encontrou o "tesouro de Atreu", em Tirinto, um palacio cujos muros
estavam ornados de frescos. Teve a ideia de comparar os objectos de
ceramica encontrados nestas duas ultimas cidades. Pela sua aparen­
Beryo N6rdico cia, provinham todos, por assim dizer, da mesma fabrica, Os vasos
com motivos geornetricos existiam no Egipto na epoca de Tutmosis
A area geografica que sera aqui abordada compreen�e .as estep�s III (XVIII" dinastia). Em Micenas, Schliemann desenterrou tambern
eurasiaticas (a chamada clvtlizacao dos tumulus), a Germania, a Gracia, um ova de avestruz que, provavelmente, provinha de Africa. Um dos
Roma e Creta. Na verdade, Creta surge ja coma uma zona de transicao, frescos do Palacio de Tirinto representava a luta de um homem com
em pleno oceano, entre o Sule o Norte. Tenda em conta a anterioridade um touro. Aquele nao teve tempo de vasculhar para se dar conta de

14. Thucydide, Guerre du Peloponese, livro I, tract, Betant,


13. Radcliffe­Brown, A.­R e Forde, D., op. cit., p. 274.

Ill. Hist6ria do Patriarcado e do Matriarcado 67


66 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra
ue esta cena era tipica da arte cretense. Todavia, pressentiu, com base tido consequencias tao imediatas. Foi depois de ter sido testemunha
q estes indicios, que outrora uma mesma civilizacao ­ cujo centro era de um sismo na Ilha que Sir Evans teve esta ideia.
esta ilha ­
originaria da Africa ou da Asia ter­se­a expandido sabre o No entanto, e notavel que a destruicao da civilizacao min6ica se situe
Mediterraneo oriental. na epoca das grandes invasoes dos Indo­Europeus; e por volta de
Cabera a Sir Evans demonstrar a existencia da civilizacao egeia exu­ 1 500 que o berco meridional sera invadido, e em parte submerso,
mando o Palacio de Minos em Cnossos. Deste modo, foi confirmada pelos povos n6madas provenientes da estepes.
a tradicao apresentada por Tucidides: Creta era de facto a residencia
de um imperio maritime, cujas cidades continentais eram col6nias.
Devido ao seu comercio, estava em relacao com o mundo meridional e, Grecia
em particular, com o Egipto desde a Pre­historia. Com efeito, segundo
Capart, as estatuas gerzeanas, com cabeca triangular, caracteristicas A Grecia comeca a existir; historicamente, depois da destruicao da
do final da pre­historia egfpcia, sao muito correntes em Creta. A colo­ civilizacao cretense. Os Aqueus, tribo indo­europeia, teriam sido os
nizacao do Atico e simbolizada pela lenda de Teseu. Todos os anos, os responsaveis, tal coma o demonstra Andre Aymard. 0 autor sublinha a
Atenienses tinham que enviar; como tributo, sete rapazes e sete rapari­ influencia cretense na sociedade aqueia, que se enriqueceu material e
gas ao Palacio de Minos, em Cnossos. No Labirinto do Palacio vivia um espiritualmente gracas aos bens e aos "instrutores" trazidos de Creta:
monstro com cabeca de touro e corpo de homem, o Minotauro, que era
suposto devorar os jovens Atenienses. Teseu libertou a sua cidade No entanto, excelentes guerreiros utilizando o cavalo atre/ado ao carro,
natal matando o Minotauro, com a ajuda de Ariadne ­ filha de Minos. cheios de forca nova e expansiva, atrafdos pelas riquezas dos seus educado­
Esta lenda confirma o estado de vassalagem, no qual se encontrava o res, as Aqueus acabaram par a ta car estes ultimas. Cerca de 1400, o Palacio de
Arico em relacao a Creta. Cnossosfoi completamente destruido, e niio mais se reergueu ...
Podemos supor que, sob o dominio cretense, as influencias culturais ... na civilizaciio que entiio se desenvolveu, sobretudo em Micenas ­ de onde
se expandiam de norte a sul, talvez a partir do Egipto. Ora, em provem o seu nome tradiciona/ ­ e em Tirinto, a influencia cretense parece
Creta, o regime matriarcal estava em vigor; tal coma no Egipto. 0 Cre­ ter permanecido s6/ida. Ao pilhar a ilha e ao permitir­lhe prossequir apenas
tense chamava o seu pals natal: a sua matria": mas de onde vinha ele uma vida limitada, as Aqueus tinham retirado de/a as tesouros, as artistas
pr6prio? Sabemos, apenas, que nao se trata nem de um Indo­Europeu, e as operarios a Jim de embelezar a sua propria existencia material; mas a
nem de um Semita, nem de um Amarelo: era pequeno e moreno e deve presenca destes objectos e deste homens niio podia permanecer sem conse­
ter pertencido a uma raca mestica desde muito cedo. Esta nao era, cer­ quencias no piano moral, nomeadamente em materia religiosa"16.
tamente, nativa, uma vez que a Ilha era desertica duante o Paleolf tico.
A raca que a habitou transformou­se entao num qualquer continente; Par volta desta epoca ­ em meados do segundo milenio ­, a Grecia
porem, com o seu inegavel matriarcado, pode deduzir­se que era tera conhecido, para alern da influencia de Creta, a dos Egfpcios e dos
originaria de um berco agrfcola. A talassocracia cretense durou aproxi­ Fenfcios.
madamente mil anos (2500 a 1500); a sua influencia teve assim tempo Foi neste momenta que estes ultimas, simbolizados par Cadmo,
de ser implantada no Mediterraneo: talvez o primeiro matriarcado das substituindo os Cretenses no mar; introduziram o alfabeto e fundaram
populacfies aborigenes do Atico se deva, em parte, a Creta. o Oraculo de Dodona, considerado coma o mais antigo centro cultural
As interrogacoes ainda permanecem quanta as causas do desmoro­ da Grecia,
namento brusco da civilizacao egeia. Sir Evans, que a descobriu, con­
sidera que se deve invocar um fen6meno natural, como um tremor de A prop6sito destes orticulos, aquele que se encontra na Grecia e aque/e que
terra. Ao examinar as ruinas do Palacio de Minos, pode determinar os esta na Libia, eis aquilo que contam as Egfpcios. Acerca de Tebas, contaram­
vestfgios de uma destruicao, tao violenta e tao repentina, que se pode ·me as sacerdotes tebenses que duas mu/heres consagradas ao deus teriam
comparar a de Pompeia: as vftimas nao tiveram tempo de realizar a sido raptadas par Fenfcios; e teriam tornado conhecimento que uma de entre
causa da sua morte. Nenhuma invasao de "povos do mar" poderia ter
16. Aymard, Andree Auboyer, Jeannine, l'Orient et la Grece antique (Histoire Generals des Civili­
15. Turel, Adrien, op. cit; p. 37. sations, vol. I), ed. P. U. F., 1955, pp. 214­215.

68 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra


Ill. Hist6ria do Patriarcado e do Matriarcado 69
e/as teria sido conduzida para a Libia e a outra para a Grecia; teriam ', Geralmente, situa­se o reinado de Cecrope ­ rei lendario originario
sido estas mu/heres que, em primeiro lugar, teriam estabelecido as oraculos o Egipto ­ nesta mesma epoca dos Pelasgos. Tera sido ele a intro­
nos povos supracitados. Perquntava­lhes de onde tinham obtido um conhe­ duzir os costume do Sul na Grecia: a agricultura e, ate mesmo, a pratica
cimento tao preciso acerca daquilo que me contavam; aqueles responderam do casamento. 0 matriarcado dos povos primitivos da peninsula esta
a minha pergunta afirmando que tinham procurado activamente estas relacionado com o seu nome. Ainda que se trate de uma lenda, nao e
mu/heres, que /hes tinha sido impassive/ encontra­las, mas que mais tarde demais insistir sobre esta tripla correlacao: e um rei do Sul que traz
tinham vindo a saber, a respeito de/as, aquilo que acabavam de me relatar. a agricultura e o seu corolario, o matriarcado. A luta que os Gregos
Eis aquilo que ouvi da boca dos sacerdotes de Tebas; e aqui esta aquilo que travaram consequentemente, para rejeitar estes valores culturais
afirmam as sacerdotisas de Dodona. Duas pombas negras teriam voado de meridionais, encontra­se justamente expressa num lenda que relata
Tebas no Egipto; uma tera ido para a Libia, a outra para Dodona; pousada acontecimentos que datam do tempo de Cecrope.
sabre uma corrente, esta teria dec/arado, com uma voz humana, que era
necessario estabelecer neste local um ordculo de Zeus'". Chama em primeiro lugar a atenciio para uma narrativa de Varron, que
Santo Agostinho conservou (De Civitate Dei, 18, 9). Sob o reinado de Cecrope,
Segundo Her6doto, quase to dos os deuses da Grecia sao originarios produziu­se um duplo prodiqio. Em simultiineo, surqiram do solo a oliveira e,
do Egipto. Tera sido igualmente sob a influencia dos Egipcios que os num outro local, uma Jonte. 0 rei, assustado, mandou perguntar ao oraculo
Pelasgos terao aprendido a designar as suas divindades. A fundacao de De/fas o que isto siqnificava e o que teria de se fazer perante ta/ ocorren­
do Oraculo de Dodona, do qual acaba de se tratar, situa­se na sua cia: 0 deus respondeu que a o/iveira siqnificava Minerva ea Jonte Neptuno,
epoca: e que cabia aos cidadiios nomear a sua cidade segundo um dos dais sinais,
e uma das divindades. lmediatamente, Cecrope convocou as cidadiios para
Quase todos os deuses vieram do Egipto para a Grecia ... Que estes provem dos uma assembleia, tanto as mu/heres coma as homens, uma vez que nesta epoca
Barbaros, as minhas investiqaciies /evam­me a constata­lo; e creio virem sobre­ era usual fazer participar as mu/heres nas deliberaciies publicas. Os homens
tudo do Egipto. Isto porque, a excepciio de Poseidon e dos Dioscuros, alga que votaram entiio a favor de Neptune, e as mu/heres de Minerva; e coma exis­
ja afirmei acerca de Hera, de Hestia, Temis, das Carites e das Nereidas, tia uma mu/her a mais, Joi a segunda que venceu. Neptuno, assim rejeitado,
as outras personagens divinas existem nos Egfpcios de qualquer epoca. Afirmo enfureceu­se e o mar cobriu as terras dos Atenienses. Para a ca/mar a furia do
aqui aquilo que as pr6prios Egipcios afirmam. Quanta as personagens divinas deus, os cidadiios viram­se forcados a infliqir tres puniciies as suas mu/heres:
que declaram desconhecer, creio que teriio recebido a sua desiqnacao dos Pelas­ estas deveriam perder o direito de voto; as seus Ji/hos deixariam de ser
gos, excepto Poseidon ... nomeados segundo a sua miie; elas pr6prias niio mais teriam o direito de ser
... Portanto, as tradicoes de que falamos, e outras ainda, acerca das qua is designadas de Atenienses (segundo o name da deusa]. Santo Agostinho
falaremos, chegaram aos Gregas atraves dos Eqipcios ... Outrora, segundo acrescenta as consideracoes seguintes: porque face as mu/heres castigadas,
ouvi dizer em Dodona, os Pelasgos ofereciam todos os sacrificios invocando Minerva, que primeiro triunfou, Joi vencida. Esta abandonou de ta/ modo as
as deuses, sem designar nenhum de entre eles com um atributo au name suas companheiras que /he tinham atribuido os seus sufraqios, que as mesmas
individual; porque ainda niio tinham ouvido nada deste genera. Tinham­nos niio s6 perderam o direito de voto, coma tambem o de cha mar os seus Ji/hos
chamado assim [thees] partindo da consideraciio segundo a qual, era par ter segundo o name da miie, para a/em de niio mais poderem ser designadas de
estabelecido a ordem no universo que as deuses presidiam a reparticao de Atenienses e manter o name da deusa que, qracas ao seu voto, tinha vencido
todas as coisas. Mais tarde, ao cabo de muito tempo, as Pelasgos aprenderam a divindade masculina19•
a conhecer, provenientes do Egipto, as desiqnacoes individuais dos outros
deuses que niio Dionisio; ap6s mais a/gum tempo, obtiveram conselho acerca Este texto, tao explicito quanto a Oresteia de Esquilo, situa, tal como
destas desiqnaciies em Dodona; o oraculo de Dodona e vista, de facto, coma o este ultimo, a dernarcacao no solo helenico, entre a epoca durante a
mais antigo nos Gregas e era o unico nesta epoca"18• qual os valores culturais meridionais foram preponderantes, e aquela
em que cederam aos valores n6rdicos. E representativo o facto de todas

17. Her6doto, Livro II, pp. 54­55.


18. Her6doto, op. cit., Livro II, pp. 50­51­52. 19. Turel, op. cit., pp. 95­96.

70 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra 111. Hist6ria do Patriarcado e do Matriarcado 71
O autor mostra que Danae tinha uma esposa chamada Ethiopis e um
as mencoes de um matriarcado na epoca egeia estarem relacionadas mesmo
filha, Celena, cujo name significa: escuridao, Demonstra que o
com um factor meridional.
name era tarnbem usado par uma das filhas de Atlas. Celena teve um
varies factores parecem atestar esta extensao antiga dos valores do
filho de Neptuno chamado Celenus. Um outro Celenos, filho de Phlyos
berco agricola em direccao ao Norte. Estes sao, sobretudo, enumera­
esta na base dos antigos cultos leleges do Peloponeso. Perseu, rei d�
dos e analisaq.os num estudo de Louis Benloew:
Argos, teve um neto chamado Celena. Celenea era igualmente a filha de
Em contrapartida, sustentou­se varias vezes, e com uma certa persistencia,
Preto, rei de Tirinto, que tinha mandado construir uma cidadela ciclo­
pea pelos Licios. A deusa Diana do Atico era etiope; era idolatrada em
que os resultados ainda niio justificaram que a Grecia tenha sido colo�izada
Braur6nia e tinha sido Apolo a traze­la da Eti6pia; Anacreonte designa­
par emigrantes provenientes do Egipto. Freret procurou identificar lnaco e
va­a a filha da Eti6pia; noutros lugares, e simplesmente chamada pelo
Enaque, Fara6 e Foroneu. Io, Ji/ha de fnaco, que adopta varios dos seus tra­
a
ros deusa lsis. A semelnanca destes names niio deixa de ser discut[ve/, mas
name de Eti6pia. Esta tinha altares na Lidia e na Eubeia, dais paises
e
niio suJiciente para levar os qenios a abordar este assunto seriamente e de designados antigamente coma Eti6pia. Helaneis era o antigo name da
modo convicto. A tradiciio que Jaz vir Cecrope e Danaus do Egipto niio e mais cidade de Eritreia, na Eubeia: tera sido fundada par Melaneus. Uma
Venus negra era adorada em Corinto. Estes names melanesios expan­
segura. Pretendeu­se que Cecrope tinha introduzido no Atico a agricultura, a
arboricultura (principalmente a cultura da oliveira}, a instituidio do casa­ diram­se igualmente no Peloponeso. Conhece­se um Melanto, filho de
mento! Filocoro chegara a aJirmar que, sob Cecrope, Atenas contava com Neleu, rei de Elida; uma regiao da Sitonia chama­se Melantia, Segundo
20000 a/mas ...
Homero, Proteu tinha partido do Egipto para se instalar na Macedonia,
... Foi Platiio que, em Timeu, segundo uma tradiciio dos sacerdotes egfpcios, na peninsula da Calcidia, Originariamente, as ilhas Samotracia, Lemnos
e Lesbos eram chamadas de Eti6pia. Segundo o mesmo autor, Pelope
aJirmou que Atenas tinha mantido relacoes estreitas com a terra do Egitpo, e
nomeadamemnte com Sais ... ­ que deu o seu name a Peloponeso ­ apenas significaria homem de tez
A mitologia grega Jaz de Libia a miie de Belo, e atribui a este ultimo Danao e morena. No tempo de Homero, esta regiao ainda nao se chamava Pelo­
poneso; este termo s6 teria sido adoptado no seculo VII.
Egipto coma Ji/hos. Estas informacoes lenddrias provam unicamente as anti­
A estratificacao da populacao na Grecia, segundo Benloew, e a
gas e intimas relacties que parecem ter unido, na mais a/ta antiguidade,
Mizraim, Sem e Java. Nao e de todo inverosimil que na epoca em que os Hicsos seguinte:
se apoderaram do vale do Nilo, os Egfpcios, guiados pelos Fenicios, tenham Uma primeira camada composta par Leleges, misturada com colo­
tentado colonizar a/guns pontos do Peloponeso. Na Pausania, existe mais do nos fenicios, lfbios e talvez egipclos, foi vencida pelos Aqueus, povo
n6rdico, que representa a segunda camada. Par sua vez, os Aqueus
que uma lembranca, mais do que nome que relembra o antigo Egipto ...
... Her6doto conta que as Danaides ensinaram as mu/heres de Argos a celebrar foram vencidos pelos D6ricos (terceira camada), igualmente n6rdicos .
as Tesmoforias de Demetra, celebracoes cujo ceremonial estava relacionado Tanto o matriarcado da primeira camada, coma o patriarcado das
outras duas sao inegaveis".
principalmente com a uniiio conjugal ...
... Pouco importa, afinal, que os Egfpcios tenham Jun dado ou niio uma col6nia A primeira populacao estava embebida de uma cultura meridional
nas costas da peninsula helenica. Aquila que gostarfamos de demonstrar e que a segunda teimara em destruir, a ponto de actualmente existirem
vestigios apenas perceptiveis.
que o solo da Grecia niio tinha sido ocupado, nos tempos mais antigos, unica­
mente por populacoes provenientes das reqiiies boreais, que o Oriente e o Sul
A mu/her, eis onde pretend[amos chegar, parece ter desempenhado uma fun­
Jorneceram o seu contingente de colonos de pele morena. A nossa tarefa serti
9ao diferente nos povos primitivos da Grecia, em relaciio aos descendentes de
Jacilitada caso se concorde que os names encontrados na mitologia dos povos
Deucaliiio, com quern viriam a partilhar o solo. Do mesmo modo que Demetra
antigos representam outra coisa que niio um mero som. Ora,foi este tom que
deu o nome a estes Etiopes, de entre os quais os Gregas reconheciam duas e Atena eram, para eles, objecto de uma idolatria particularmente fervorosa,
a mu/her usufruia ali de uma particular consideractio, mas parece ter ocu­
especies, aquela que habitava no Extrema Oriente, e aquela que permanecia
no Oeste, ou seja, na Libia (talvez tambem na Nubia). Teriio el��penetrado na pado, por vezes, uma posicao superior a do homem na constituiciio da tribo.
Grecia e ter­se­iio misturado com os habitantes deste pafs?'120
Semites et loniens. Paris. Ed. Maisonneuve et Cie, 1877, pp. 132 a 135.
20. Benloew, Louis, La Grece avant /es Grecs: Etude linguistique et ethnographique. Pelasges, Leleges, 21. Existe actualmente a tendencia de considerar o movimento d6rico coma uma luta de classes.

Hl, Hist6ria do Patriarcado e do Matriarcado 73


72 Chelkh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra
entanto, os mentores. Par outro lado, nas tradicoes helenicas, um temor
A mtie, sobretudo, era considerada coma a base da famflia e da sociedade, e
supersticioso alia­se a lembranca dos reis da rara de Cadmo. Siio estes que
atribuiam­se­lhe direitos e prerrogativas que, nas nossas sociedades, perten­
cem unicamente aos h omens .
,,zz fornecem o maior numero de temas a tradiciio antiga"23•

De entre estas populacoes primitivas, aquelas que estao mais marca­ Par conseguinte, a influencia cananeia na Grecia foi profunda;
das pelo matriarcado meridional sao os Pelasgos, os Leleges e os Locri­ ter­se­a perpetuado durante tres seculos par interrnedio de reis que
a
os Epiceffrios de que Fala Polibio. Aludiu­se varias vezes influencia encontraram colaboradores no meio da populacao. Esta preponderan­
fenicia. Porvolta de meados do segundo rnilenio (1450), sob o impulso cia e tambern relatada pela Bfblia, que refere Dodanim, que nao e outra
crescente, talvez, de tribos indo­europeias que ocupavam o interior, e coisa que nao o oraculo de Dodona:
talvez tambern par razoes comerciais, os Fenicios fundaram as suas
primeiras col6nias na Be6cia para ali instalar o excesso populacional A tradiciio da Genesee a dos Gregas esta em consoruincia ao fazer de Dodona
da cidade de Sidon. Foi deste modo que foi criada Te bas na Beocia, cuja [Dodanim, em hebreu) o mais antigo centro da civilizaciio helenica. E curioso
escolha do name confirma as relacoes estreitas com o Egipto desde encontrar, na regiiio onde esta cidade esta situada, todos os names com os
esta epoca. Com efeito, este e o name da capital sagrada do Alto Egipto, quais os Gregas se designaram desde a sua chegada ao pals no qual per­
de onde os Fenicios trouxeram as mulheres negras que construiram os maneceriam fixados. 24
oraculos de Dodona na Grecia e de Amon na Libia, Cadmo personifica
O periodo sid6nio, bem coma, o contributo fenicio a Grecia: os Gregas
Homero e Hesiodo foram os poetas que fixaram a tradicao nacional
dizem que foi ele que introduziu a escrita, tal coma diriamos hoje que grega. Hesiodo era Be6cio. A sua teogonia e directamente inspirada na
foi Marianne que introduziu os carninhos­de­ferro na Africa Ocidental cosmogonia fenfcia, revelada pelos fragmentos de Sanconlaton, traduzidos
Francesa. A col6nia fenicia teve a supremacia no inicio: mas cedo chegou par Filo de Biblos, e referidos par Eusebio. Aqueles que consideram
uma luta de emancipacao dos Gregas contra os Fenicios que, durante que o patriarcado era a base da organizacao social fenicia poderiam
este periodo anterior aos Argonautas, possuia o dominio dos mares e a levantar objeccoes: e passive! relembrar que importa distinguir
supremacia tecnica, Segundo Lenormant, esta epoca de conflito e sim­ essencialmente a Fenicia da epoca cananeia, da da epoca da Palestina
bolizada pela luta de Cadmo ( o fenicio) contra a serpente, descendente israelita. Os emigrantes fenicios de Tyr, que tinham fundado Cartago,
de Marte (o grego); esta durou cerca de tres seculos, estavam sob o dominio, nao de um rei, mas da rainha Dido. Os cana­
neus, que eram sedentarios que praticavam a agricultura e o comercio,
A disc6rdia lancada, deste modo entre as autoctones, com a chegada dos colo­ resultavam do regime meridional matriarcal e tinham grandes afini­
nos cananeus, esta representada na lenda mitica pelo com bate travado, ap6s dades culturais com os Egipcios.
a chegada de Cadmo, com as Espartos naturais daquela terra. Desde entiio, Tudo aquilo que precede demonstra que, so na medida em que nos
aqueles de entre as Espartos, cuja fabula faz sobreviver a este combate, e abstraimos da sobreposicao da cultura meridional e da cultura n6rdica
que se tornam Companheiros de Cadmo siio os representantes das principais em torno do Mediterraneo e na Grecia, em particular, e que se pode fa­
famflias A6nias que aceitaram a dominaciio estrangeira. lar de uma passagem universal do matriarcado para o patriarcado, da
Cadmo niio permanece par muito tempo como detentor pacifico do seu imperio; omnipresenc;a de todas as formas de organizacao social e de crencas
e rapidamente escorracado e [orcado a retirar­se para junta dos Enqueleus. humanas.
E o elemento end6geno que triunfa; depois de ter aceitado a autoridade dos
Penicios, depois de ter recebido destes ultimas as beneffcios da civitizacdo,
aquele reage contra estes e procura expulsa­los ... Roma
... A unica coisa que se pode discernir, nesta parte das narrativas relativas
aos Cadmeus, e o pro/undo horror que a sua rara, enquanto estrangeira, bem A situacao hist6rica apresenta grandes semelhancas com a da
coma o seu culto, ainda marcado de toda a barbdrie e de toda a obscenidade Grecia, que acaba de ser descrita: ocupacao anterior do solo par
oriental, inspirava aos Gregas pobres e virtuosos, de quern tinham sido, no
23. Lenormant: Histoire ancienne des Pheniciens, Ed, Levy, 1890, pp. 497­498.
22. Benloew, Louis, op. cit., pp. 186­187. 24. Benloew, Louis, op. cit., p. 3.

74 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra Ill. HistOria do Patriarcado e do Matriarcado 75
povos aborigenes com as suas pr6prias tradicces, invasao e destruicao su::�ido pe/o sobrenome do pai, a Jim de distinguir os hom6nimos; a/guns
destes povos por elementos n6madas do Norte cbegados tardiamente. Asidticos, nomeadamente os Licios, preferiam o da miie, o que Joi por vezes
No entanto, as possibilidades de investigacao encontram­se particu­ interpretado coma o vestigio de um regime matriarcal. Ora, se os Etruscos
larmente limitadas pela raridade dos documentos sublinhada por tambem utilizam estes dais sistemas, estes recorrem tambem outro, OU ate a
Andre Aymard. mesmo unicamente, transformando­se o sobrenome, unico noutros locais,
num name individual colocado antes do name de familia. Este costume afir­
fmporta precisar previamente os llrnites da nossa documentatiio: a sua in· ma convictamente a forca da continuidade familiar e, de facto, esta permite
suftciencia justifica a prudencia com que se inspirariio as paginas seguintes. estabelecer, para algumas familias etruscas, genealogias bastante extensas e
A/guns Gregos e Romanos interessaram­se pe/os Etruscos, consaqrando­Ihes, complexas26•
por vezes, obras importantes. Limitamo­nos.a dois exemplos, escolhidos devido
ci notariedade dos seus escritores: Arist6tefes niio negligenciou este povo de Upercebe­se, assim, que o matriarcado etrusco e, pelos menos, incer­
entre os cento e cinquenta e oito dos quais estudou as "constituicoes" ou insti­ to. Porern, tendo em conta o seu caracter agrfcola e sedentario, bem
tuiciies politicas, em tantas monoqrafias, e o fervoroso erudito que Joi o im­ coma as relacoes constantes que este povo teve com o Egipto ­ o uso
perador Claudio, que escreveu Tyrrhenica em vinte livros. Porem, ta/ coma do sarcofago comprova­o ­, a pratica do matriarcado nao seria invero­
os seus semelhantes, estes tratados sistemtiticos desapareceram e da abun­ simil. 0 sarcofago representa, de algum mode, a materializacao da
dante "literatura" antiga, relativa ao mais prestigiado epis6dio das origens ideia religiosa que o Egipcio tinha em relacao a imortalidade. Aquele
italianas, apenas restam hoje fnfimos e desordenados fragmentos.25 reflectia a esperanca de conquistar esta ultima: neste sentido, talvez
as nocoes de sobrevivencia, as praticas divlnatorias, que ocupam um
Andre Aymard reve as tres hip6teses em vigor acerca da origem dos lugar consideravsl na religiao etrusca, tenham tido uma origem meridi­
Etruscos. Uma delas fa­los vir do Norte atraves dos "Alpes reticos": a onal. E evidente que os Etruscos sao bastante posteriores aos Egipcios.
outra considera­os coma autoctones, cuja civilizacao tera eclodido em Se os primeiros tivessem uma origem asiatica, tal como o supfie a
consequencia de um processo de evolucao interna e gracas aos contac­ maior parte dos escritores antigos, se fossem os refugiados de Troia,
tos maritimos com os povos do Mediterraneo oriental; a terceira, que teriam sido, segundo a tradicao, os aliados do Egipto antes da queda
reune o maior numero de adeptos nos Antigos, ve­os enquanto invaso­ desta cidade, uma vez que o rei do Egipto e da Etiopia daquele tem­
res provenientes da Asia Menor depois deter vagueado longamente no po tinham enviado dez mil Etiopes para socorrer a cidade de Prfamo,
Mediterraneo, por volta do final do segundo milenio, em consequencia cercada pelos Gregas, conduzidos por Agamemnon. Neste caso, a in­
da queda de Troia. fluencia egipcia seria anterior a Guerra de Troia, o que nao teria nada
Alguns factores parecem implicar que os Etruscos conheciam o ma­ de improvavel ja que, numa epoca mais recuada, o Egipto ja tinha in­
triarcado. Estes eram sedentarios e agricultores e, como tal, pratica­ fluenciado a Fenfcia. Os Sabinos viviam em Alba, na vizlnhanca dos
vam todo um ritual para o tracado das cidades com o sulco do arado. Etruscos. A raiz do seu name nao e indo­europeia e faz lembrar uma
Ao que parece, Romulo ter­se­a inspirado nesta tradicao ao fundar a etnonimia meridional. Estes adoravam o deus Consus, segundo Fustel
cidade de Roma. Era frequente nomearem as criancas segundo o name de Coulanges; uma divindade egipcia conhecida e designada de Khon­
da mae ou do pai. sou. Em egipcio antigo, Roma, cuja origem etimologica se desconhece,
poderia estar relacionada com a raiz Rornetou, que significa "os ho­
Na Etruria existem grandes famflias e a sua coesiio manifesta­se atraves mens". A lenda relacionada com a fundacao da cidade revela praticas
de um sistema de desiqnacao individual, ate entiio desconhecido no mundo toternicas que parecem desconhecidas ao berco n6rdico.
mediterrtinico. Toda o Oriente tinha atribuido ao homem um unico name Nao e improvavel que, no momento em que a influencia eglpcia se
expandia na Grecia ( epoca de Cecrope), esta tambern tivesse conquis­
tado a peninsula italica entao habitada par povos aborigenes.
25. Aymard, A. e Auboyer, ]., Rome et son empire (col. Histoire Generate des civilisations); P. U. F.,
1954,p.17. Este fundo primitivo de populacao sera completamente dizimado
com a chegada dos verdadeiros Indo­Europeus: os Latinos, enquanto

26. Aymard, A. e Auboyer, )., op. cit., p. 22.

76 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra


UL Hist6ria do Patriarcado e do Matriarcado 77
resentantes de uma cultura e de tradicoes estrangeiras. Aqui, tal
Germania
rep na Grecia, a descontinui d a d e e' eviid ente entre an ti gos
' e novos
mo
co e nao saberiamos considerar, d 'l'd .
d e mo o va 1 o, o patriarca­ Devem­se a Cesare a Tacito as poucas informacoes que se conhecem
habitantes
do dos segundos, enquanto consequencia loglca do matriarcado dos acerca da Germania e da Galla. Segundo estes documentos, os Ger­
primeiros. Trata­se, de facto, de dois sistema� irr�dutiveis q�e se ,s?­
manos ainda eram semin6madas e lutavam com todas as suas forcas
contra a sedentarizacao definitiva. Permaneciam conscientes do seu
brepuseram uma vez mais. 0 discurso de Catao, citado par Tito L1v10
passado pastoral e recusavam conscientemente dedicar­se a agricul­
para a manutencao da lei Oppia, contra a luxuria das mulheres, revela
todo o fundamento patriarcal da sociedade latina: tura. Correlativamente as tradicoes n6madas, a cremacao estava em
vigor. Segundo Tacito, a poligamia era geral nos barbaros: nos Ger­
Os nossos antepassados niio permitiram as mu/heres tratar de nenhum manos, todos aqueles que dispunham de meios, isto e, a aristocracia,
assunto, ate mesmo domestico, sem uma autorizaciio especial; estes nunca praticavam­na, Entregavam­se ao mesmo tipo de guerra devastadora
deixaram de as manter na dependencia dos seus pais, dos seus irmiios, dos que os Romanos; segundo Fustel de Coulanges, estes ultimas nao ata­
seus maridos. Para nos, para agradar aos deuses, permitir­lhes­emos, em cavam somente os homens, mas tambem a natureza circundante, as
breve, tomar parte na direcciio dos assuntos publicos, de frequentar o Forum, colheitas, etc. Ap6s a sua passagem, os campos eram transformados
de ouvir os discursos, e de se intrometer nas decisiies dos com[cios ... A ausencia em desertos incultos. 0 mesmo sucedia com os Germanos.
de vantagens contra as quais estas reclamam actualmente siio as de menor
importancia para aqueles, para seu grande desprazer, cujo deleite /hes e
Estes niio se dedicam, de modo a/gum, a agricultura e vivem essencialmente de
interditado pelos nossos costumes e pelas nossas leis ... Enumerem todas as leite, de queijo e de carne. Ninquem possui uma porciio de terra espedfica ou
disposicoes legislativas atraves das quais os nossos antepassados trataram limites determinados; porem, a cada ano, os magistrados e os chefes atribuem
de acorrentar a independencia das mu/heres e submete­las aos seus mari­ as diversas populacoes e as familias que se reuniram uma determinada
dos; e vejam o quanta, com todos estes entraves legais, nos custa mante­las extensiio de terreno, e num determinado cantiio que consideram adequado,
neste dever. O que?! Se as deixarem romper estes elos uns atras dos outros, e, no ano seguinte, obrigam­nos a deslocar­se para outro local. Fomecem, para
Jibertar­se de qualquer dependencia, e assimilar­se inteiramente aos seus tal, varios motivos: receiam que o apelo ea forca do habito provoquem o aban­
maridos, julgais que /hes sera possivel suportci­las? Elas jci niio se tomariio dono do gosto pelas armas em pro/ da agricultura ... A maior honra para as
nossas semelhantes, mas dominar­nos­tio.
27 cidades consiste em reunir em torno de/as fronteiras devastadas e grandes
extensiies isoladas. Acreditam que a especificidade da coragem e a de Jarrar
Este texto dispensa comentarios: e dificil pensar que o povo que se os povos vizinhos a desertar os seus territories e niio ver ninquem que ouse
pronuncia desta forma sabre a condicao da mulher, atraves da boca estabelecer­se perto de/es: em simultaneo, julgam estar assim em maior se­
de uma das suas mais importantes individualidades politicas, tenha quranca, niio tendo que temer invasiies subitas ... 0 roubo cometido para a/em
conhecido um matriarcado esquecido; o excerto citado expressa exacta­ das fronteiras da cidade nada tern de vergonhoso: este serve, afirmam eles,
mente o contrario, tendo em conta que consiste sobretudo em relern­ para exercitar os jovens e diminuir a prequica'".
brar as virtudes coercivas dos antepassados para com as mulheres.
Inicialmente, existiu uma submissao total que s6 foi atenuada com a Tacito retrata de modo ainda mais expressivo o espirito guerreiro e
evolucao. Na epoca em que Catao pronunciava estas palavras no Forum a barbarie dos Germanos.
romano, no berco meridional,__em Africa, as mulheres participavam na
vida publica com direito de voto, podiam ser rainhas, e usufr,uiam de O cumulo da desonra consiste em ter abandonado o seu escudo ... Restitui­se
toda a sua personalidade juridica, semelhante a do homem. E impos­ as feridas a uma mile, a uma esposa; e estas niio receiam contar as feridas,
sivel encontrar o equivalente deste texto em toda a literatura egipcia medir a sua grandeza. No meio da confusiio, trazem aos combatentes comida
desde a sua origem e em toda a literatura africana negra, seja escrita e exortaciies ... Se a cidade que as viu nascer esmorece na ociosidade de uma
ou oral. paz prolongada, estes chefes dajuventude viio procurar a guerra com um povo

27. Livio, Tito, Histoire Romaine, Liv re 34: "Di scours de Caton pour le maintien de la loi Oppia contre
28. Cesar, la querre des Gau/es; Livro 6, cap. 22 e 23.
le luxe des femmes. 195 av. J.­C.

Ill. Hist6ria do Patriarcado e do Matriarcado 79


78 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra
· Tal e' 0 6dio que estes povos sentem pelo descanso! Alias, e• mais exterior e sobretudo meridional. Esta perspectiva deve ser afastada,
estrangeiro.
°' ·1 tornar­se celebre com as perigos e e necessaria a prevalenc,a
11 .
da forca e na medida em que aqueles foram submetidos a esta influencia ate nas
fiuCI cuidar de numerosos companheiros ... Persua di­ / os­teis
r • ·
mwto suas crencas religiosas.
das armas para
menos para trabalhar a terra e para esperar todo o ano do que para apelar a Os Germanos Suevos ofereciam sacrificios a Isis; Tacito, que apre­
inimigos e procurarferimentos. Aos seus olhos, adquirir pelo suor oquilo que senta este facto, surpreende­se e atribui­o a uma influencia externa.
podem obter atraves do sangue equivale a prequica e cobardia ...
... Vestem tambem peles de animais, mais grosseiras em dtrecdio ao Reno, Uma parte dos Suevos oferece tambem sacrificios a Isis. Niio encontro nem
mais procuradas no interior, onde o comercio ntio fornece outros adornos. Ali, a causa, nem a origem deste cu/to estrangeiro. 56 a figura de um navio, que
escolhem­se as animais e, para embelezar a sua pele, espalham­se manchas representa o seu simbolo, anuncia que o mesmo proveio do ultramar31•
e matizam­se com a pele dos monstros que alimentam as praias desconheci­
das do oceano mais longfnquo .... E no ambtto religioso que as povos sao, de um modo geral, mais
... Nada de pompa nas suas cerim6niasfu.nebres; apenas se observa a crema­ impermeaveis a qualquer influencia externa. Quando esta fortaleza
cdo do corpo dos homens ilustres com uma madeira especifica
29•
mental e destruida, as outras, menos consistentes, tal coma as rela­
coes familiares e outras, ja terao sofrido grandes danos, modificacoes
Uma passagem de Taclto, relativa a Importancia do tio materno nos profundas. Ora, a influencia religiosa do Sul, na Germania de outrora
Germanos, levou, com frequencia, a pensar que estes ultimas conhe­ e em toda a Europa do Norte, e mais extensa, mais profunda e mais
ciam o matriarcado. Esta opiniao teria fundamento se o sobrinho her­ duradoura do que se imagina frequentemente. Esta alargava­se ate
dasse do tio na sociedade germanica: mas Tacito indica­nos o oposto; a Inglaterra, provavelmente par intermedio dos Fenicios que iam ali
o filho herda do seu pai. procurar estanho.
Todavia, neste pois, os casamentos siio virtuosos; niio existem tracos nas suas De acordo com Tdcito (Germanos 9), uma parte dos Suevos, povo qermtmico.
tradiciies que mereram maior /ouvor. Praticamente sozinhos no meio dos bar­ oferecia sacrijfcios a Isis; com efeito,foram encontradas inscriciies nas quais
baros, estes contentatn­se com uma mu/her, exceptuando um grande numero
Isis e associada a cidade da Noreia divinizada; Noreia e hoje Neumarkt; na
de ilustres que adquirem varies, niio par espfrito de devassidiio, mas porque
Estfria. Isis, Osiris, Se rap is e Anubis tiveram a/tares em Frejus, em Nimes,
varias famllias ambicionam a sua alianca. Niio ea mu/her, mas sim o marido
em Aries, em Riez [Baixos­Alpes), em Parizet [lsere], emManduel (Gard), em
que traz o dote.
... a Ji/ho de uma irmii e tao importante para o seu tio, quanta para o seu pai; Bolonha (Alta Garona), em Lyon, em Besancon, em Langres e em Soissons. Isis
era idolatrada em Melun, e Serapis, em Iorque e em Brougham Castle, mas
a/guns chegam mesmo a pensar que o primeiro destes tacos e o mais siio e o
mais estreito; e, ao receber refens, preferem sobrinhos enquanto sin6nimos tambem na Pan6nia e na N6rica.32
de um Jayo mais forte e interessante para a familia em varios locais. Toda via,
' . descen den tes 30 .
mantem­se por herdeiros e sucessores os seus proprtos No tempo de Cesar, que escreveu cerca de 150 anos antes de Tacito,
os Germanos ignoravam a maior parte dos deuses que viriam a idola­
Caso estes factores nao representassem uma excepcao confirmando trar mais tarde: entre eles, apenas conhecem tres, 0 culto era reduzido
a regra, poder­se­ia tentar explica­los_ atraves de uma influencia, ex­ a sua expressao mais simples. Posteriormente, viriam a enriquecer o
terna. A inconsistencia da cultura nacional dos Germanos nesta epo­ seu panteao integrando, cada vez mais, deuses meridionais.
ca, e dos barbaros em geral, tornava­os particularmente perrneaveis
aos costumes do Sul, que lhes eram trazidos ao mesmo tempo que os As tradiciies dos Germanos sfio muito diferentes: isto porque estes niio possuem
produtos manufacturados dos Fenicios. Existe a tendencia de se repre­ Druidas para presidir ao cu/toe niio se ocupam, de todo, de sacrificios. Entre
sentar os povos germanicos situados no Norte do imperio romano, as deuses, apenas contam com aqueles que observam e cujas beneficiencias
entre o Reno e o Danubio, coma desligados de qualquer influencia sao sensfveis, o sol, Vulcano e a lua: nem sequer ouviram falar dos outros.

31. Tacito, op. cit., cap. 9.


29. Tacito, Moeurs des Germains; cap. 6, 7, 14, 17, 27.
32. Vend ryes, J., Les religions des Celtes, des Germains et des anciens Slaves; col. "Mana", vol. Ill, p. 244.
30. Tacito, op. cit; cap. 18 e 20.

Ill. Hist6ria do Patriarcado e do Matriarcado 81


Bo Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra
Passam toda a sua vida na caca ou nos exercicios guerreiros, e aplicam­se chega a uma tribo, os seus membros entregam­se a toda a especie de
33
desde a infilncia a endurecer­se face ao cansaco. mutilacces: corta­se a extremidade da orelha, rapa­se o cabelo, outros
fazem incis6es nos braces ou laceram a testa ou o nariz: alguns espe­
Esta Influencia estrangeira, meridional, no Norte da Europa e em tam flechas na mao esquerda. Depois disto, a tribo amplia o cortejo e
todo O Mediterraneo chega mesmo a ser comprovada por f6sseis a ronda continua ate alcancar os Gauras, o povo mais setentrional do
lingufsticos. grupo. 0 cadaver e, entao, depositado na camara funebre:

A mutaciio de II em dd (som cacuminal no qua/ a ponta da lfngua se dobra No espaco deixado livre na camara, estes sepultam, ap6s te­los estrangulado,
para tocar na parte superior do palato, por vezes ate com a parte inferior uma das concubinas do rei, o seu copeiro­mor, um cozinheiro, um palafrenei­
da /fngua) na Sardenha, na Sicilia, Apulia e Calabre, niio apresenta uma ro, um valete, um mensageiro, cavalos, uma pa rte se/eccionada de entre todos
mudanr,:a de menor importancia de principio, nem de um interesse menos as seus outros hens, e tacos em ouro (nada de prata au de cobre); feito isto, to­
consideravel. Segundo Merlo, este modo de articulaciio particular dever­se­ia dos traba/havam para elevar umgrande outeiro rivalizando zelosamente para
ao povo mediterriinico que viveu no pais antes da sua romanizaciio. Ainda que fosse o maior possfvel. Ao cabo de um ano, realizam esta nova cerim6nia:
que tambem existam sonoridades cacuminais noutras linquas, a mutadio ar­ tomam, de entre as outras pessoas da casa do rei, aqueles que estiio mais
ticulat6ria procedeu aqui numa base amp/a e num timbito que, expandindo­se aptos para bem servi­lo (estes siio citas de nascenca; siio domesticos do rei
a/em­mar, possui um caracter tiio evidentemente arcaico que a concepciio de aqueles a quern este da ordens, as Citas niio possuem domesticos comprados);
Merlo tern todas as aparencias de verdade. Sem duvida, Rohlfs manifesta­se estrangulam, entiio, cinquenta destes servos e as cinquenta cavalos mais
contra a ideia de se encontrarem igualmente sons cacuminais noutros locais. belos. Dos cinquenta Javens que foram estrangulados, cada um Joi montado
Porem, estes siio casos que, de certo modo, confirmam sobretudo a opiniiio de no seu cava/o do seguinte modo: crava­se, atraves de cada um dos corpos,
Merlo. Deste modo, Pott e Benfey revelaram ha muito tempo que a articulaciio ao longo da espinha dorsal, um pedaco de madeira vertical que vai ate ao
cacuminal, que se introduziu nas linquas arianas faladas pelos invasores do pescoco; deste pedaco de madeira, uma extremidade permanece no exterior,
Deciio, era proveniente das populacoes Dravidas subJacentes.34 na pa rte de baixo; esta e Jixada num buraco apresentado par outro pedaco de
madeira que atravessa o cavalo. Depois de ter erguido este genera de cava­
E notavel que na epoca de Cesar nao existisse nenhuma deusa no leiro em circulo a volta do tumulo, as Citas retiram­se. Eis o modo coma se
panteao gerrnanico, Ao mesmo tempo que constitui uma contradicao fazem as obsequies aos reis. 35
para um povo que tera conhecido o matriarcado, este facto demonstraria
que os Nibelungos ( cancao de gesta alerna) surgiram posteriormente, I Era necessario citar inteiramente este excerto para dar uma ideia
talvez durante a ldade Media. do nfvel da cultura cita no tempo de Her6doto. 0 principio do enterro
parece ser inspirado nas tradicoes egfpcias; mas a crueldade que e ali
implantada representa um trace cultural aferente ao berco n6rdico
Citia eurasiatico.
A vida e fundada sobre uma organizacao social patriarcal, com uma
No seculo Va.C., os Citas ainda eram semin6madas. Os costumes hor­ tendencia exagerada para a luxuria caracteristica destas regi6es. Duran­
rivets sao descritos por Her6doto no seu Livro IV. 0 seu caso e tao mais te as celebracoes de Mylitta, um escravo era elevado ao trono, algumas
importante, que estes parecem constituir o agrupamento humano que cortesas e todos os outros bens da realeza estavam a sua disposicao:
permaneceu mais pr6ximo do estado e do berco primitivo indo­europeu. de seguida, este era queimado vivo. Uma promiscuidade total era regra
Quando um rei morre, estes arrastam o seu cadaver de tribo em tribo durante a festa. A religiao exigia que as mulheres se prostitufssem nos
depois de te­lo embalsamado a maneira egfpcia: o corpo e revestido de templos (lugares sagrados).
cera, o estomago, esvaziado das entranhas e lirnpo, e preenchido com
aromatizantes sendo novamente cosido. Sempre que o cortejo funebre Na regitio situada entre o Eu/rates e os Montes Tauro, encontrava­se um
santuario de Anahita, no qua/ as Javens raparigas mais nobres se tornavam
33. Cesar, op. cit., Livro 6, cap. 21.
34. Wartburg, Walter v., Problemes et methodes de la linguistique; P. U. F., 1946, p. 41. 35. Herodoto, op. cit., Livro IV. p. 71 a 73.

82 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra Ill. Hist6ria do Patriarcado e do Matriarcado 83
cortesiis sagradas ao sacrificar a sua virgindade a deusa. Estas eram rodea­ e de moral mais refinadas do que as figuras grosseiras, sensuais e cruels de
das de um pro/undo respeito e nenhum homem hesitava em toma­las como Astarte, Anahita e Cibele, entre outras.39
mu/heres. Exisitia, na Babilonia, uma prostituidio semelhante. Porem, en­
quanta que as prostitutas babtlonicas, devotas de Mylitta, se deviam entregar As celebracoes de prostituicao religiosa eram comeni.oradas pelos
a quaiquer um, as mu/heres consaqradas a Anahita eram reservadas para os Babil6nios, pelos Armenios e pelos Persas. A sua origem e muito con­
homens que pertenciam a sua classe social, a aristocracia. 36 troversa. Para alguns historiadores, estas sao de origem babil6nica.
Conhece­se o detalhe do seu ritual atraves dos escritores bfblicos,
Este tipo de promiscuidade, bem coma os mitos de Ganfmedes, de coma Ezequiel. Turel afirma que, segundo a tradicao, tera sido Ciro, rei
Sodoma e de Gamarra sao especfficos da Eurasia e nao tern equiva­ dos Persas, a institui­las na sequencia de uma vit6ria sabre os Sacas
lente na tradicao, na mitologia e na literatura africana, quer se trate do (ou Citas): estas seriam assim de origem cita e, alias, nao diferem em
Egipto ou da Africa Negra. nada das tradicoes citas tal coma as conhecemos atraves de Her6doto.
Em todo o caso, o seu atributo ­saco­ parece comprovar a sua origem
Foram tambem os Egfpcios que estabeleceram, em primeiro lugar, uma lei cita. A sua analise deveria assim terminar o paragrafo relativo aos Citas
para niio se unirem as mu/heres dentro de santuarios e para niio entrarem para dar inf cio ao estudo da zona de confluencia, Pretendeu ver­se ali
naquele local, caso viessem de junta de mu/heres, antes de se terem lavado. um regresso ternporario a igualdade primitiva; de qualquer modo, as
Quase todos os outros homens, a excepdio de Eqipcios e Gregas, unem­se a mesmas permanecem particulares a Asia e resultam especificamente
mu/heres em lugares sagrados ou, ao levantar­se da sua cama, entram num
desta regiao,
santudrio sem se terem lavado previamente. Consideram que os humanos siio
e
como os animais: passive/ observar, afirmam eles, toda a especie de gado e
Zona de Confluencia
toda a especie de pdssaros a acasalar nos temp/as dos deuses ou nos recintos
sagrados; se isto desagradasse aos deuses, os animais niio o fariam. Eis aquilo
A Asia Ocidental e a verdadeira zona de confluencia destes dais
que afirmam para justificar a sua conduta. Contudo, niio os aprovo de modo
bercos, aquela que foi mais asperamente disputada pelos dais mun­
algum.37
dos. A sua analise oferece, assim, um interesse particular, ja que a mes­
ma conduz a nocao de uma verdadeira rnesticagern das influencias e
Par sua vez, Engels, depois deter analisado a prostituicao das rapari­ dos povos provenientes das duas regioes. A area geografica aqui con­
gas consagradas a Anahita e a Mylitta, chega a mesma conclusao: siderada e limitada pelo Inda.
Costumes semelhantes, de distorciio religiosa, siio comuns a quase todos os
povos asiaticos entre o Mediterrtineo e o rio Ganges. 38 Arabia
Todos os historiadores e etn6logos que compararam as sociedades Esta foi em primeiro lugar povoada pelos elementos meridionais,
africana e asiatica foram levados a considerar a Asia Ocidental coma a que foram mais tarde submersos par populacoes provenientes do
terra da luxuria, por oposicao a sanidade das tradicoes africanas. Norte e do Leste.
Segundo Lenormant, um imperio Cuchita ter­se­ia constitufdo
Enquanto deusa da fecundidade, Isis respondia as grandes deusas­miies da primitivamente em toda a Arabia. Foi a epoca personificada pelos
Asia; mas diferia de/as pela castidade e pe/a fidelidade da sua vida conjugal: Aditas ­ de Ad, neto Cham.
estas niio eram casadas e tinham costumes libertinos; Isis tinha um marido Cheddade, filho de Ad, e fundador do lendario "Paraiso terrestre"
e era uma esposa fie/, ta/ como era uma miie afectuosa com o seu Ji/ho. Para mencionado no Cerao, pertence a este perfodo dos primeiros Adi­
alem disso, a sua be/a aparencia de madona reflecte um estado de sociedade tas. 0 imperio destes ultimas foi destruido no seculo XVIII antes da
era crista par tribos jectanidas incultas provenientes do Nordeste.
36. Turel, op. cit., p. 146.
37. Her6doto, op. cit., Livro 2, par. 64.
38. Engels, op. cit., p. 44. 39. Frazer, op. cit., p. 132.

84 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra 111. Hist6ria do Patriarcado e do Matriarcado 85
Estas misturaram­se com a populacao cuchita. A profecia de Hud diz sob a direccao de la rob, e chegaram a triunfar: em geral, a data desta revoluciio
respeito a esta invasao. No entanto, o elemento cuchita nao tardou em e fixada no inicio do seculo Vlll antes da era cristii.41
retomar o domlnio no ponto de vista polftico e cultural; estas primei­
ras vagas [ectanidas foram completamente absorvidas pelos Cuchitas. Segundo Lenormant, depois da vit6ria jectanida, uina parte dos
Esta ea epoca reconhecida coma sendo dos segundos Aditas. Aditas alcancara o Mar Vermelho, no estreito do Bab el­Mandeb, para
se instalar na Eti6pia, enquanto que a outra fraccao permanecera na
No entanto, ap6s o primeiro disturbio da invasiio, coma o elemento cuchi­ Arabia refugiada nas montanhas de Hadramaute e noutros locais, 0
ta continuava a ser o mais numeroso na populaciio, e pelo facto de possuir que explica o proverbio arabe: Dividir­se coma os Sabeus.
uma grande superioridade de conhecimentos e de civilizaciio em rekuiio aos Tera sido este o motivo pelo qual a Arabia meridional e a Eti6pia se
Jectanidas, recentemente provindos da vida nomada, retomou rapidamente a terao tornado inseparaveis do ponto de vista linguistico e etnografico.
supremacia morale material, o domlnio politico. Um nova imperio eformado,
no qua/ o poder continua a pertencer aos Sabeus ­ provenientes do rara de Muito tempo antes da descoberta da linqua e das inscricoes himtariticas,
Cuche. Durante um certo ruimero de seculos, as tribos jectanidas viveram sob tinha­se dado con ta de que o quez, ou idioma abissinio, se mantinha um rema­
a lei deste imperio, aumentando em silencio. A maior parte adoptou os nescente da lingua antiga do Iemen.t?
costumes, a lfngua, as instituicoes e a cultura, de ta/ modo que, mais tarde,
quando se assiste a sua ascensiio, niio se verifica nenhuma mudanca con­ O regime das castas, estranho aos "Semitas e aos Arianos", consti­
sideravel nem na civilizacao, nem na linguagem, nem na reliqiiio. tyfa a base da organizacao social, tal coma na Babilonia, no Egipto, na
A era deste nova imperio representa, para os narradores tirabes, o dos segun­ Africa Negra, no Reino de Malabar, na India.
dos Aditas/"
Este regime e fundamentalmente cuchita e. em todo o /ado onde se encontra,
Estes factos, em torno dos quais os pr6prios autores arabes estao de e [acil constatar que o mesmo procede originariamente desta rara. Vimo­lo
acordo, demonstram que seria mais prudente considerar os Semitas f/orescer na Babilonia. Os Aryas da fndia, que o adoptaram, tinham­no apren­
e a cultura semita, nao enquanto uma realidade sui generis, mas en­ dido das populacoes de Cuche que os tinham precedido nas bacias do fndo e
quanto o resultado de uma mesticagern cujos elementos hist6ricos do Ganges ...
sao conhecidos. E durante os primeiros seculos do imperio dos Segundos ... Lockman, o representante mftico da sabedoria adita, relembra Esopo, cujo
Aditas que o Egipto conquista o pals, no tempo da minoria de Tutm6sis name pareceu revelar a M. Welcker uma origem etiope. Na India, de igual
Ill. Lenormant considera que a Arabia e o Reino de Punt e da Rainha modo, a literatura dos cantos e dos ap6logos parece provir dos Sutras. Talvez
de Saba; deve relembrar­se que a Bfblia situa Put, o filho de Cham, no este modo de ficciio, caracaterizado pela funciio que o animal ali desempenha,
mesmo pals. No seculo VIII antes da era crista, os Jectanidas, torna­ se nos apresente coma um genera de literatura pr6pria dos Cuchitas. 43
dos suficientemente fortes, ter­se­iam apoderado do poder da mes­
ma maneira ­ e por volta da mesma epoca ­ que os Assfrios face aos N ote­se que Lockman, que pertence ao segundo perfodo dos Aditas,
Babilonios, e que Lenormant considera igualmente coma Cuchitas. e tarnbem o construtor do famoso dique de Mareb, cujas aguas "eram
suficientes para regar e fertilizar a planfcie ate sete dias de caminhada
em torno da cidade ... Ainda existem, actualmente, rufnas consideraveis
Porem, ao mesmo tempo que possuem os mesmos costumes, a mesma lingua­
que numerosos viajantes visitaram e estudaram ".44
gem, os dais elementos que constitufam a populadio da Arabia meridional
Os Jectanidas, "que ainda se encontravam, no momenta da sua chega­
permaneciam bastante distintos e em conf/ito de interesses, ta/ como com os
da, num estado quase barbaro", apenas introduziram, na verdade, o
Assirios e os Babi/6nios na bacia do Eufrates, em que os primeiros eram igual­
sistema das tribos pastoris caracterfsticas do berco nordico e o feu­
mente Semitas, e os segundos, Cuchitas...
dalismo militar.
... Enquanto que o Imperio dos Segundos Aditas durou, os Jectanidas foram
submetidos aos Cuchitas. Porem, chegou um dia em que estes se sentiram su­
41. Lenorrnant, op. cit., p. 373.
ficientemente poderosos para se tornarem dominadores. Atacaram os Aditas,
42. Lenormant, op. cit; p. 374.
43. ld., op. cit., pp. 384 e 385.
40. Lenormant, op. cit., pp. 260 a 261. 44. ld., op. cit., p. 361.

86 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra tu, HistOria do Patriarcado e do Matriarcado 87
Acima deste pano de [undo, sempre conservado, de instituiciies e de tradicoes ... A mesma evoluciio Joi mais lenta e mais tardia no Hejaz ou no Nedid, ... d .
'J • ,o av,a
provenientes dos Aditas da rara de Cuche, acima do regime das castas, os a mesma sucedeu tambem durante uma epoca mais recuada do que a '
. ,. , " que1 a
Jectanidas, uma vez transformados em soberanos, tmplantaram uma or­ que se acredita geralmente. 0 hero, romanesco da Arabia an.te­islamica, An­
ganiza900 politico que lembra a da maior parte dos outros povos semlticos, tat, e mulato devido a sua miie e, no entanto, a sua face totalmente africana
e que difere daquilo que se observa nos impertos chamitas, no Egfpcio, no niio o impede de desposar uma princesa de uma das tribos mats orgulhosas do
Fenfcia, em Babilonia, nos Ntirikas do Malabar, sendo as duas instituiciies sua nobreza, o que prova o quanta estas misturas rnelanicas eram comuns, e
' 45
estimadas par todos as Arabes. aceites h6. muito tempo nos co tumes, ao Longo dos seculos que antecederam
imediatamente Maomet47
A religiao e de origem cuchita e parece emanar directamente da dos
Babilonios; esta manter­se­a Imutavel ate ao advento do Islao. , 0 caracter misto das linguas semiticas explica­se da mesma forma,
E deste modo que e possivel encontrar raizes comuns as linguas
E impossivel niio reconhecer os deuses caldeo­assirios Illu, Bel, Samas, !star, arabes, hebraicas, siriaca, e as linguas indo­europeias. Este vocabu­
Sin, Samdan, Nisruk, nos deuses do Iemen, II, Bil, Schmas, Athor, Sin, Sindan, lario comum e mais importante do que aquilo que a curta listagem que
Nasr.46 se segue permite antever. Nenhum contacto entre Nordicos e .Arabes
no interior do periodo historico da humanidade, permite explica­lo, �
O deus era objecto de um culto nacional; este usufruia dos seguintes um parentesco de origem e nao um emprestimo.
atributos: Senhor dos Ceus, Misericordioso, etc. A (mica Triade
venerada era: Venus­Sol­Lua, tal como na Babilonia; a religiao tinha arabe [ranees ingles alerniio
um caracter sideral extremamente vincado, sobretudo solar; rezava­se ain oeil eye Auge (occulus latim)
ao Sol nas diferentes fases do seu desenvolvimento. Nao existia nem ard terre earth Erde
idolatria, nem imagens, nem sacerdocio, Dirigia­se uma invocacao di­ be led Ian de land Land
recta aos sete planetas. 0 jejum de trinta dias ja existia ­ semelhante aswadnoir schwarz
aquilo que se praticava no Egipto. Rezava­se sete vezes por dia, com a
face virada para o Norte. Estas oracoes sao proximas das da religiao
muculmana, Todos os elementos necessaries para a emergencia do Por outro lado, algumas palavras arabes parecem ser de origem
Islao encontravam­se assim instaurados mais de 1 000 anos antes do egipcia faraonica:
nascimento de Maomet, e o Islao surgira como uma "depuracao" do sa­
beismo atraves do "mensageiro de Deus". Esta sobreposicao das duas tirabe egfpcio
influencias meridional e nordica na peninsula arabica produziu­se em Nabi = profeta Nab= o senhor (da Sabedoria)
todos os dominios e nao poupou a literatura, nem os herois romanes­ Ba­ra­ka = benyao divina Ba­Ra­Ka= nocoes divinas
cos.

Apesar do apreco que tinham pela sua genealogia e pelo privileqio de sangue, E notavel o facto de muitos termos religiosos poderem ser obtidos
as Ara bes, sobretudo os habitantes sedentarios das cidades, niio conservam a atraves de uma simples cornbinacao das tres nocoes ontologicas BA,
sua rara pura de qualquer mistura ... RA, KA Pode citar­se, por exemplo:
... Mas a infiltraoio do sangue negro, que se espalhou em todas as partes da
peninsula e que parece ter vindo, posteriormente, a/terar completamente KABAR (a) = accao de erguer as maos para rezar.
a raca, tern inicio numa antiquidade muito recuada. Esta produziu­se em RAKA = accao de pousar a fronte na terra.
primeiro lugar no lemen, cuja situadio geogrcifica e cujo comercio o relacio­ KAABA = lugar santo de Meca48•
navam permanentemente com Africa ...

45. ld., op. cit., p. 385. 47. Id., op. cit; pp. 429­430.
46. ld., op. cit., p. 392. 48. Cf. nota no final do capitulo, p. 119

88 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra


111. HistOria do Patriarcado e do Matriarcado 89
Veio, pois, Hamor e Siquem, seu filho, a porta da sua cidade, e falaram aos
Deduz­se facilmente, de acordo com o anteriorme�nte exp�s:o, q�e homens da sua cidade dizendo: Estes homens siio pac[Jicos, estiio connosco;
a Arabia foi primeiramente habitada por populacoes mend1on�1s, portanto, habitariio nesta terra e neqociartio nela. Eis que a terra e larga de
sedentarias e agricolas, tendo preparado a via aos N6madas nos dife­ espaco para eles; tomaremos n6s as suas Ji/has por mulheres dar­lhes­emos e
rentes domfnios do progresso. Nesta primeira sociedade, a mulher as nossasr"
usufrufa de todas as vantagens correlativas ao regime matriarcal: pro­
va disso e o facto de a mesma poder ser rainha. 0 reinado da Rainha
Esta passagern que, no contexto biblico, consiste numa astucia des­
de Saba, que dominava simultaneamente a Eti6pia ea Arabia meridional,
tinada a suprimir os Cananeus, nao deixa de fazer transparecer os
foi O mais glorioso e o mais celebre da hist6ria desta regiao. 0 triun­
imperativos econ6micos que, na epoca, terao regido as relacoes en­
fo do elemento n6rdico n6mada far­se­a acompanhar por uma pre­
tre invasores e aut6ctones. A hist6ria da Fenicia torna­se assim mais
ponderancia do Sistema patriarcal mar_cado por a,no�ali�s ararentes, compreensivel se tivermos em conta as inforrnacoes biblicas segundo
remanescentes do regime anterior. Assirn, o dote e atribuldo a mulher;
ta! como no regime matriarcal. Este factor s6 pode ser explicado invo­ as quais os Cananeus ­ posteriormente designados de Fenicios ­ es­
cando a influencia do sabeismo na sociedade islamica. tavam na origem dos Meridionais sedentarios, agricolas, aos quais se
vieram juntar, consequenternente, tribos n6madas provenientes do
Nordeste. Desde entao, o termo Leucosirios, aplicado a algumas popula­
sia Ocidental: Fenicia coes desta regiao, ao inves de representar uma contradicao, tal como
Hoefer acredita, constitui uma confirmacao do testemunho da Biblia:
Deve ser distinguida essencialmente de Israel, cujo nome apenas
sera mencionado nos textos hist6ricos a partir da XlX11 dinastia egl p­ O name dos Sirios parece ter­se alargado desde a Babilonia ate ao Go/Jo de
cia, enquanto que a Fenicia, isto e, Canaa, ja tlnha mais de um milenio. lssus, e, mesmo anteriormente, a partir deste Go/Jo ate ao Ponto Euxino. De igual
O homem encontrado em Canaa durante a pre­historla. o Natufiano, modo, os Capad6cios, tan to os do Taurus coma os do Ponto, conservaram ate
e um meridional; a industria capsiana, que tera irradiado desde a Afri­ ao presente o name de Leucosirios (Sfrios broncos), coma se existissem tam­
e
ca do Norte (regiao de Tunis) ate este local, iguahnente de origem bem Sfrios negros. 51
meridional. Segundo a Biblia, quando as primeiras populacoes nordi­
cas alcancaram estes locais, encontraram um povo do Sul: os Cananeus, Talvez um parentesco original explicasse parcialmente a alianca ­ ao
descendentes de Canaa, irrnao de Mizraim o Egf pcio e de Cuc he o Etiope, longo de toda a hist6ria ­ de Mizraim e de Canaa, Mesmo nas epocas
todos eles filhos de Cham. mais conturbadas, o Egipto podia contar com a Fenicia, da mesma
forma que se pode, de algum modo, contar com um irrnao,
E disse o Senhor a Abraiio: Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu
pai, para a terra que te mostrarei ... Entre as narrativas monumentais gravadas nas mura/has dos temp/as do
Assim partiu Abraiio coma o Senhor /he tin ha dito, e Joi L6 com ele ... Egipto, e relativas as grandes insurreiciies que, durante este perfodo de cinco
E tomou Abraiio Sarai, sua mulher, e L6, filho de seu irmiio, e todos os bens seculos, rebentaram par varias vezes na Stria contra a supremacia egipcia,
que haviam adquirido, e as almas que lhes acresceram em Horii; e sairam par incitamento dos Assirios, ou dos Rotennou, ou ainda dos Heteus setentri­
para irem a terra de Canaii, e ali entraram. E passou Abraiio par aquela terra onais ou Khetas, cujas mais admiraveis Joram controladas par Tutmes l/l, Seti
ate ao lugar de Siquem, ate a planlcie de More, e estavam entiio OS cananeus I, Ramses II e III; o name dos Sid6nios nunca figura na lista dos revo/tados e
na terra.49 dos vencidos, nem o da sua capital, bem coma de nenhuma das suas cidades ....
Um precioso papiro do museu britanico contem a narrativa ficcional da
Depois de rmiltiplas paripecias, os Cananeus e as tribos norte­orien­ viagem realizada na Siria par um funcionario egipcio, no final do reinado de
tais, sirnbolizadas por Abraao e pela sua descendencla (linhagem de Ramses II, ap6s a conclusiio da paz definitiva com os Heteus ...
Isaque), fundiram­se para se tornar, ao longo do tempo, no actual povo
hebraico:
50. Genesis: 34, 20 e 21.
51. Hoefer; Cha/dee, Babylonie (col. L'Univers]: ed. Didot freres, 1852, p. 158.
49. Genesis: 12, 1 a 6.

Ill Hist6ria do Patriarcado e do Matriarcado 91


go Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra
Os textos de Ras­Shamra representaram uma ocasiao de analisar de nova a
Em toda esta regiao, o viajante encontra­se em terra egipcia, circula com a
com a mesma sequranca que teria no Vale do Nila, che­ origem dos Fenfcios. Enquanto que as tabuas da vida corrente diio conta dos
mesma liberdade 1 • 52 diversos elementos estrangeiros que participavam nas trocas quotidianas da
virtude das suas funcoes, a dar provas de autondade.
gando ate, em cidade, aquelas que siio consagradas ao recenseamento dos mitos e das len­
das fazem alusiio a um passado completamente diferente e, niio obstante O
Nao devemos, certamente, minimizar o papel das relacfies economi­
facto de interessar uma cidade do extrema norte fenicio, adoptam o extrema
cas entre o Egipto e a Fenicia para explicar esta lealdade, que parece
sul, o Negeb, enquanto moldura dos acontecimentos que descrevem. Estas
ter existido entre os dais pafses.
atribuem aos her6is nacionais, aos antepassados, um habitat localizado entre
Compreende­se, partindo deste parentesco orlginario, que a religiao
o Mediterriineo e o Mar Vermelho. Esta tradiciio Joi, alias, anotada por Her6­
e as crencas cananeias tenham sido apenas replicas das do Egipto.
doto (seculo VI) e anteriormente a ele, por Sofonias [seculo Vll).54
A cosmogonia fenicia e conhecida pelos fragmentos de S�n�o�i�t�n,
tal como e referido previamente. Segundo estes textos, existia inictal­
mente uma materia incriada e ca6tica, em perpetua desordem (Bohu); Geograficamente, a porcao de terra situada entre o Mar Vermelho e
acima do Caos. A uniao destes dois principi_os o Mediterraneo e, essencialmente, a Arabia Petrea, pais dos Inus, que
O Sopro (Rouah) pairava
foi designada par Chephets, o Oesejo que esta na origem de toda a cna­ fundaram o Pilar do Norte (Heliopolis), nos tempos pre­historicos,
Os Fenicios, na medida em que se fundiram com os Hebreus, constituem
r;:ao.
E surpreendente a samelhanca desta Trindade cosmica com aquela aquilo que designamos como o ramo semita, a partir de Abraao ­ linhagem
de Isaque ­, enquanto que os Arabes formam o segundo ramo ­
que encontramos no Egipto, tal co1:no a refereQ\.melineau em Proleg6­
menos ao estudo da reliqiiio eqipcia De igual modo, segundo a cosmo­ linhagem de Ismael. Quer num caso, quer no outro, o substrato me­
gonia egipcia, existiu origtnalrnente uma mate�ia ca6tica in�ri�d�, ? ridional e evidente; e este o motivo pelo qual nao e historicamente
Nun primitivo; esta continha, em estado germinal, e no estadio uu­ correcto abstrai­lo para erigir em absoluto o semitismo. Este deve
cial ­ os arquetipos futuros de Platao ­ todos os seres possiveis. ser considerado enquanto a sintese mais pronunciada dos elementos
o princfpio ou deus do Devir, Khepru, estava igualmente incluldo, n6rdicos e meridionais.
Assim que o Nun ­ ou Nu ­ der origem ao demiurgo Ra, a sua funcao
tera terminado; doravante, a filiar;:ao sera continua ate Osiris, Isis e
H6rus, antepassados dos Egf pcios. A Trindade primitiva passou en tao Indo e Mesopotamia
do plano do Universo para o da Humanidade.
Do mesmo modo, na cosmogonia fenicia, chega­se ao mesmo ante­ As localidades de Mohenjo­Daro e de Harappa revelaram a existen­
passado egipico atraves de geracoes sucessivas; Misor, que deu origem cia de uma civilizacao urbana e agricola que remonta provavelmente
a Taaut, criador das letras e das ciencias ( que representa simplesmente ao terceiro milenio, e que entrou em declinio bruscamente (1 500 anos
o Thot egipcio); e culmina­se, por ftliacao, a Osiris e Canaa, N ote­se que a.C.), com a invasao dos Arianos. Esta caracteriza­se por um urbanismo
Misor nao e outro que nao Mizraim. extremamente desenvolvido (uso de esgotos). As cidades, fundamen­
talmente comerciais, nao estavam rodeadas de fortificacoes, a lingua
E todas estas coisas foram anotadas nos livros sagrados, sob a dominadio de falada nao era indo­europeia: segundo os especialistas, era provavel­
Taaut, pelos sete Cabiros, filhos de Zedek e pelo seu oitavo irmiio, Eshmun. mente uma lingua dravidica, ou munda. A escrita estava desenvolvi­
E aqueles que receberam esta heranca, cuja iniciaciio transmitiram aos seus da: 400 caracteres eram utilizados, que se podem resumir, de acordo
sucessores,foram Osiris e Canaii, o antepassado dos Fenicios.
53
com os estudos realizados, a 250, ao passo que a escrita cuneiforme
da epoca contemporanea de Ourouk ainda continha 2 000 signos. As
As descobertas arqueol6gicas recentes confirmam a origem meridi­ escavacoes arqueol6gicas demonstaram que na epoca de El'Obeid, na
onal dos Cananeus. Os textos de Ras­Shamra situam o berco dos herois Mesopotamia, a civilizacao do Indo ja tinha atingido o seu apogeu. Esta
nacionais no Sul, nas pr6prias fronteiras do Egipto. e a razao pela qual existe uma tendencia cada vez maior em explicar a

52. Lenormant, op. cit., p. 484 a 486.


54. Contenau, Dr. G., Manuel d'Archeologie Orientale; IV: Ed. A. e J. Picarde Cia, 1947, p. 1791.
53. Lenormant, op. cit; p. 583.

Ill. Hist6ria do Patriarcado e do Matriarcado 93


s das civiliza<;oes do Indo. Estas ultimas, tal como A vaca ja e sagrada; e proibido mata­la e come­la. Talvez fosse mais
Mesopotamia atrave , . , ,
A •

· u1z· aroes meridionais, permaneceram estave1s ate a sua economico conserva­la par causa do leite e da multiplicac;ao da mana­
todas as civ Y • ­ • d 1 500 da .
. · ­ um elemento externo: a mvasao ariana e­ ·
destr Ulyao por data todos os vestigtos , · d e civi · ·1·izacao­ m ateri al desa ­ "O abandono das raparigas, os coleqios de Heteras, o far domesticn, a
A par tiir de sta
· , · ti cremaciio ", todos estes traces culturais existiam durante o periodo
necessario aguardar ate ao seculo III a.C. para assis tr a
�re�m. Sera , . vedico e eram trazidos, indubitavelmente, pelos Arias.
especie de renascimento com o imperador Asoka. "Toda a vida familiar e regida pelo ritual domestico. Este tern por pon­
s�r atrib�ida a invasao ariana,
�adestruii;ao dos locais do Jndo deve
extensao do deserto na plamcie do Sind, uma vez que esta to central o fogo (agni) que e instalado no interior da casa, no meio de
e nao a uma
era fertil foi atravessada por Alexandre o Grande, uma vedaciio de madeira, ou ainda no exterior, e que representa o ver­
regiao ainda quando
dadeiro senhor do far (garhapatya) ... "
no seculo IV a.C. , . , . , . _ . .
O culto falico, tao expandido na India, e anterior a 1.nvasao an��a.
Faz­se uma toilette integral ao de/unto e transporta­se num cortejo ... Uma
nsiste num culto da fecundidade, indicio de uma vida sedentana,
�;ricola e matriarcal. Estee, indubitavelmente, im�ut�vel ao ele�ento vez chegado ao local da cremaciio, prepara­se o morto uma ultimo vez, para
pemnsul�. ser colocado na fogueira; a viuva deste toma Jugar ao seu /ado, mas e con­
meridional aborigene que antecedeu o elemento nordico na
Os factos que se seguem, relativos a civilizacao do Indo, foram extrai­ vidada a voltar a descer (para mais tarde ser, ainda assim, queimada) e a
dos das tnvestigacoes de Jeannine Auboyer
55. tornar­se esposa do irmiio do de/unto. 58
Com O advento dos Arianos (entre 1 500 e 800 a.C.), o Noroeste da
lndia era habitado por uma populacao cuja car de pele esc�ra (varna) Lado a lado com a monogamia, a poligamia era praticada pelas classes
tinha surpreendido as recem­chegados, tal corno o seu nariz ac�a:ad� dirigentes, isto e, nos Arias e nos Dravidas de alta estirpe. Com efeito, na
e a sua Iinguagem. Foram designados co� o termo g�ral de Drav1d�s, epoca vedica, "as castas niio siio tiio rigorosamente limitadas coma nas
1.embra1 o epocas seguintes e ainda niio siio estanques entre si."59
alguns dos seus names particulares (AJa = cabra) fazem
totemismo. Estes opuseram uma resistencia vigoros� aos rnvasore_s, Percebe­se, assim, que na peninsula indiana a sobreposicao das
lsto, porque sao duas culturas meridional e nordica, matriarcal e patriarcal, nao deixa
porern, misturaram­se com eles ao longo do tempo.
assinalados casamentos mistos, demonstrando qu�, nesta epo:a recua­ lugar para duvidas. Neste local, menos do que em qualquer outro, nao
ainda niio tinham sentido a necess1dad�, tal poderiamos falar de uma passagem universal, ou seja, interna ao mes­
da, os conquistadores Arya
como sucedera posteriormente, de se precaver de modo demasiado mo povo, de uma para a outra. Existiu recuperacao e triunfo, com uma
mesti�agem."56 certa mudanca da cultura dos dirigentes.
rigoroso contra os possfveis maleficios da .

Ao nomadismo dos recem­chegados opunha­se a vida sede�tana


e agricola dos Dravidas. Podemos aqui relemb:ar as con_s1de1�a­
d�alectos Mesopotamia
<;oes formuladas a respeito do termo /�vrar nos _d1fe�·entes
indo­europeus. Nao tendo ainda a agncultura sido mtrodu�1da nos
costumes dos Aria no momenta da sua chegada, o termo designando Originariamente, por volta de ­ 3000, tres regioes devem ser distin­
esta actividade encontrava­se ausente da sua linguager_n, tendo este,s guidas: o antigo Elam ou Susiane, a Sumeria com a capital Ure Acadia
que adoptar um conceito dravida. A lavoura ­ que e
d,es19n�da atraves com Acade. A historia mesopotamica destes primeiros milenios e pou­
de uma palavra comum aos fndios e aos iranianos ­ e realizada com a co conhecida. No entanto, no que concerne Elam, a arqueologia, gracas
ajuda de um arado, que e provavelmente puxado por duos ==. Esta as escavacoes de Dieulafoy, lanca uma luz particular acerca da nature­
vida rural e aqraria e baseada numa sociedade aide�, de tipo pa�na:ca!, za das primeiras dinastias. Ao demolir um muro sassanido, construido
que oferece tambem vest(gios de matriarcado, e CUJOS actos pnnc1pms com materiais mais antigos encontrados no local, foram descobertos
se baseiam no sacrif[cio.57 monumentos que remontam ao periodo elamita da historia de Susa.

SS. Aymard, A. e Auboyer, J., i'Orient et Ja Grece antique; col, Histoire Generate des Civilisations,
P. u. F., 1955. 58. ld., op. cit; p. SSS.
56. Id., p. 547. 59. ld., op. cit., p. 556.
57. ld., pp. 548 a 550.

Ill, Hist6ria do Patriarcado e do Matriarcado 95


9't Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra
Arianos­Negr6ides correspondendo aos antigos Susanos, que pertenciam em
Ao retirar um ttJmulo, colocado transversalmente num muro de tijolos que
revela��m uma grande parte aos Negritos, raca negra de pequena estatura, de fraca capaci­
fazia parte da fortificafiiO da porta elamita, as trabalhad�re:
urn a fi'mebre e, a vol ta desta, uma faixa em alvenaria constituida par tijolos em
dade craniana ...
esma/te. Estes eram provenientes de um painel no qual estava representada
uma personagem trajada esplendorosamente com um vestido verde, sobre­ Trata­se de uma das tres camadas da populacao actual. O Dr. Contenau
prossegue:
carregada de bordados amarelos, azuis e broncos, de uma pele de tiqre, e se­
e
gurando uma bengala ou uma lanca em outo. 0 mais curioso que a personagem
Ainda que esta classificacao possa ainda sofrer a/guns ajustes, deve reter­se o
cuja parte inferior da face encontrei, com a barba, o pescoco e a miio, era
negra. o labia e Jina, a barba abundante e os bordados das vestimentas, de
lugar que a mesma atribui aos Negr6ides.62
carticter arcaico, parecem ser obra de trabalhadores babil6nios.
Em outros muros sassanidos, construfdos com materiais anteriores, foram Nao se conhece praticamente nada acerca da organizacao da farnflia
encontrados tijolos esmaltados que proviam dais pes calcados com ouro, uma no antigo Elam. Os documentos que possuimos, tal como se conclui do
miio extremamente hem desenhada; o punho estava coberto de pulseiras, os que antecede, permitem unicamente afirmar a anterioridade de um
dedos seguravam a grande bengala que se torna, com as Aquemenidas, no substrata meridional; ora, sabemos que a este ultimo esta ligada a vida
emblema do poder soberano; um pedaco de vestido ornado com o brasiio de agricola, sedentaria e matriarcal. A invasao ariana, a partir do planalto
Susa (isto e, uma visiio da cidade assiria] parcialmente escondida par baixo do Irao, permanecera continua ate aos Medos e aos Persas que trarao,
de uma pele de tigre. Por Jim, umfriso distinto com/undo escuro. Miios e pes entre outras praticas n6rdicas, o tao caracteri stico cul to do fogo.
eram negros. Era ate visive/ que toda a decoracdo tinha sido preparada com o Quanto aos Sumerios, ainda nao chegarnos ao ponto de desvendar
objectivo de faze­la combinar com a tonalidade escura da figura. S6 as perso­ o misterio <las suas origens; porem, sabemos com toda a certeza que
nagens poderosas tinham o direito de usar grandes bengalas e pulseiras; s6 o nao eram nem Arianos (ou seja, lndo­Europeus), nem Semitas, nem
Amarelos. Estes eram sedentarios e agricultores, ja praticavam a irri­
governador de um lugar belico poderia mandar bordar estas imagens na sua
tunica. Ora, o proprietario da bengala, o senhor da cidadela e negro: existem gacao, Remonta­se o periodo mais antigo da sua civilizacao a ­ 3000,
assim maiores probabilidades para que o Elam tenha sido o aparuipio de uma sobretudo para faze­la corresponder ao inicio da hist6ria egf pcia, "por
dinastia negra, e se nos remetermos aos caracteres da figura ja encontrada, solidariedade"63• Durante muito tempo, s6 existiram Reinos­Cidade,
de uma dinastia etiope. Estaremos n6s perante um destes Etfopes do Levante ainda que a Baixa Mesopotamia apresente todas as caracteristicas fa­
de que fa/a Homero? Teriam os Nakhuntas sido descendentes de uma famflia voraveis a uma unlficacao territorial. E necessario esperar ate cerca
principesca aparentada com as ra9as que reinaram no sul do Egipto:'6° de ­ 2100, na epoca designada babil6nica de Hamurabi, para assistir
ao surgimento do primeiro Imperio Mesopotamia. A hist6ria sumeria
O Dr. Conteneau chega a constatacoes semelhantes: apresenta uma particularidade importante: toda a sua primeira fase
s6 nos e dada a conhecer atraves de inferencias a partir do C6digo de
O Susa no, nomeadamente, consequencia provavel de alguma mesticaqem de Hamurabi.
Cuchita e de Negro com o seu nariz relativamente achatado, as suas narinas Ao analisar atentamente os documentos babil6nicos, quer os textos,
di/atadas, as suas maciis do rosto salientes e os seus labios carnudos, repre­ quer o sistema de organizacao, os especialistas aperceberam­se que
.
senta um tipo de ra9a riqorosamente o bserva d a e res tiituiid a.
61 esta epoca nao representava um infcio, mas um estado avancado,
implicando uma epoca anterior. Foi deste modo que se descobriu o
E provavel que este elemento meridional se tenha misturado desde conhecido perfodo sumerio.
cedo com um elemento n6rdico. E o que parece comprovar o estudo da O unico reinado da epoca Sumeria que deixou vestigios relativa­
populacao actual, cujos resultados ainda sao apresentados pelo Dr. G. mente memoraveis foi o de Gudea. Existe uma serie de estatuas rela­
Contenau, citando Houssaye: tivas a este, bastante enigmaticas, devido a escolha invariavel da pe­
dra ( diorito negro ), a mutilacao quase sistematica das estatuas, e a

60. Citado por Lenormant, op. cit., pp. 96 e 98. 62. Id., op. cit; p. 98.
61. Contenau, G., op. cit., p. 97. 63. Contenau, G., la Civilisation des Hittites et des Mitanniens; Payor, Paris, I, 1934, p. 48­49.

Ill. Hist6ria do Patriarcado e do Matriarcado 97


96 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra
particularidade dos traces do rosto. Uma destas, encontrada em Tello, Mesmo que este seja um Semita proveniente do Oeste au de outro lo­
representa Gudea amparando, sobre os seus [oelhos, o plano de um cal, a sociedade que o mesmo construiu nao deixou de estar imbuida
temple destinado ao deus Nin­Girsu: uma das inscricdes que glorifica de cuchitismo. Tudo acontece como se um fundo cuchita se perpetu­
O deus contern uma ideia que parece estar na origem das celebracoes asse no plano cultural, apesar das mudancas etnicas, frequentes nesta
sacas. Com efeito, e mencionado que na inauguracao do Templo, re­ regiao, Porem, este pano de fundo viria a alterar­se profundamente
alizaram­se sete dias de festa durante os quais tera reinado urna igual­ com o tempo.
dade total entre as habitantes da cidade: Uma outra chamada de atencao de Andre Aymard permite com­
preender melhor esta ideia.
A serva rivalizou com a sua senhora, o servo caminhou a par com o seu senhor;
na minha cidade, o poderoso e o fraco andaram /ado a /ado; na linpua A oriqinalidade desta reparticiio (a sociedade em tres classes) consiste na
impr6pria, as palavras nocivas foram alteradas para benevolentes. existencia da classe intermedia. lgnoramos a sua origem; ignoramos iqual­
mente se esta esta confinada em determinadas profissoes. Devemos resiqnar­
Esta inscricao da estatua de Gudea, conhecida coma o Arquitecto ­nos a constatar somente que esta existe e que a lei submete­se a ela a meio
(­ 2 400), constitui o mais antigo documento conhecido relativo as fes­ caminho das outras duas ...
tas sacas: esta reforca a tese da origem babil6nica das mesmas. Talvez O C6digo de Hamurabi atesta vigorosamente a existencia, pelo menos nas
as Citas as tenham adaptado a ponto de alterarem completamente o cidades, de tres categorias de seres humanos: o homem pura e simplesmente,
seu objectivo. isto e, o homem par excelencia, o homem livre; o homem que se prostra, o
Ao analisar o C6digo de Hamurabi, Andre Aymard procura extrair a subalterno, inferior, o homem com pouco; par fim, o escravo, propriedade de
legislacao familiar babil6nica e a estratificacao social: outro homem, livre au subalterno.66

A leqislaoia hamurabina precede par varies seculos a legislarao assfria. Traduz Tai coma teremos ocasiao de constatar no capltulo VI, e sobretudo
assim, certamente, um estado social que nos levaria a considera­lo coma sendo em Africa Negra pre­colonial, esta estratificacao social e identica, sob
a
mais evolufdo. Mase necessario tambem, no que concerne especie, ter em con ta todos as pontos de vista, a de uma sociedade de castas, no sentido
o caracter etnico. Nao se ajigura de todo surpreendente que, num povo guerreiro africano do termo, isto e, no sentido de Lenormant e de Renan. Foi
coma o povo assirio, a mu/her seja mantida numa situadio Jurfdica inferior.64 o que conduziu Lenormant a classificar a sociedade babil6nica entre
as sociedades de castas. Nestas ultimas, efectivamente, o conjunto dos
O mesmo sera dizer que a condicao da mulher regrediu com a chega­ homens sem profissao manual, guerreiros e sacerdotes, constituem a
da dos Semitas. Outrora, a mulher usufruia de uma personalidade casta superior, ou, para ser mais exacto, os sem­casta, ou seja, os ho­
juridica superior a da grega e da romana. Uma monogamia temperada mens por excelencia de que acabamos de tratar. 0 termo homem­de­casta
era regra. Porern, um outro factor apresentado por Andre Aymard esta reservado para a categoria subalterna de homens livres que prati­
sublinha, talvez ainda mais, as marcas Cuchitas da sociedade babil6ni­ cam o conjunto das profissoes artesanais; este nao pode ser escravo
ca, ja salientada por Lenormant. de ninguern, pode mesmo chegar a possuir escravos; porern, no ambito
das relacoes sociais, o mesmo deve "prostrar­se" perante o homem da
De facto, seas fi/hos nascidos do casamento de uma rapariga livre com um es­ primeira categoria, deve ceder­lhe o passo. A sua posicao econ6mica
cravo siio livres, ta/ coma a sua miie, aqueles que nascem do relacionamento jamais podera influenciar ou melhorar a sua posicao social. Por ultimo,
do senhor com uma con cu bin a escrava s6 alcancam plenos direitos, ao mesmo o conjunto dos escravos forma uma terceira categoria.
tempo que a sua miie, aquando da morte do seu pai. 65 A origem dos Caldeus nao e mais segura do que a dos Surnerios,
ainda que se considerem mais prontamente as primeiros como Semi­
A perspectiva meridional e matriarcal, segundo a qual o descendente tas. Segundo Diodoro da Sicilia, o primeiro agrupamento humano ao
equivale aquilo que a sua mae e, parece triunfar no C6digo de Hamurabi. qual a Caldeia devia o seu name era a uma casta de sacerdotes egipcios
que tinham emigrado e que, tendo­se fixado no Alto Eufrates, continuava
64. Aymard, A. e Auboyer; J., EOrient et la Grece antique, p. 132.
65. Id., op. cit., p. 130. 66. ld., op. cit., p. 129.

98 CheikhAnta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra Ill. Hist6ria do Patriarcado e do Matriarcado 99
a praticar e a ensinar a astrologia, segundo os prindpios transmitidos O mesmo acontecera mais tarde com as rainhas da Russia czarista, que
pela casta mae.67 sofreu a influencia de Bizancio.
Em todo o caso, este nucleo primitivo nao deve ter resistido por mul­
to tempo, no piano temporal, a invasao de um elemento etnico dife­ ***
rente; foi no piano intelectual e espiritual que a sua resistencia deve
ter sido mais vivaz, perpetuando­se. Em toda a extensao da zona de confluencia, desde a Arabia ate ao
Cerca de 1 250 antes da nossa era, os Assirios apoderaram­se da Indo, foi possfvel, em certa medida, com base nos documentos encon­
Babilonia. Era certamente uma vit6ria de montanhistas pastores, fa­ trados, e por vezes apesar da sua escassez, decompor as diferentes so­
lando uma lingua semitica muito pr6xima do acadio, enquanto que a ciedades encontradas e analisadas nas suas componentes hist6ricas
lingua sumeria nao era nem semitica, nem indo­europeia, nem chinesa. meridional e n6rdica para melhor examina­Ias e penetrar na sua
Os Assfrios estabeleceram uma sociedade patriarcal de modo ex­ essencia.
tremamente evidente. E impossfvel, ao analisar os costumes e as leis Foi possfvel evidenciar, em todo o lado, a existencia de um substra­
deste povo, pensar por um instante que este tenha sequer aflorado um to meridional que vira mais tarde a ser encoberto por um contributo
regime matriarcal. n6rdico. Porem, os problemas teriam sido simples se a realidade nao
apresentasse, frequentemente, um caracter embaracoso, se nao tives­
semos encontrado, aqui e ali, nos diferentes bercos, anomalias apa­
Bizancio rentes.

O Imperio Romano prevaleceu no Oriente, durante 9 seculos, com


Bizancio por capital, que se tinha tornado na cidade de Constantino,
ou Constantinopla.
Nenhum texto ou costume regulamentava a sucessao ao trono:
reinava uma indeterminacao absoluta a este respeito. As intrigas dos
OS TRILITAS WOLOFS (ver p. 89)
Palacios forneciam os melhores direitos e as melhores oportunidades.
Por vezes, os imperadores, em vida, associavam o seu herdeiro ao
Os trilitas wolofs parecern provir rnaioritariarnente de urna antiga prefixacao que ja
trono: foi o caso de Justiniano, sucedido pela sua esposa, a impera­ nao se pronuncia actualrnente.
triz Teodora. Esta, ao mesmo tempo que sabia apresentar­se enquan­ ex: djgen dja bot (rnulher que carrega as costas) ­ dja bot ­ djabot = rnulher que
to uma imperatriz digna da sua posicao, nao deixava de ser, quanto carrega as costas, mae de farnflia;
as suas origens, uma cortesa que se elevou gradualmente a custa ex: aren bu sev (arnendoirn que pequeno) ­ bu sev ­ busev ­ buse = pequena
de intrigas. Foi gracas a sua presenca de espirito que Justiniano con­ sernente de arnendoirn;
seguiu dominar a famosa revolta espontanea do hip6dromo, durante a ex: vay djay rnber (o tipo que carnpeao] ­ djay rnber ­ djambar? = corajoso.
qual 30 000 manifestantes terao sido massacrados.68
Com os Porfirogenetas, procurou instaurar­se um costume curio­ Algurnas prefixacoes recentes ainda se fazern sentir.
ex: nit ku gav ( o hornern que rapido] ­ ku gav = que e rapido:
so: para ser herdeiro, era necessario ter nascido em Constantinopla,
ex: nit ku bah (o hornern que born) ­ ku bah= que e born.
na Sala purpura do Palacio. Nesta sociedade complexa, tudo parecia etc.
estar dominado por uma crueldade requintada. A rainha Irene, con­
ternporanea de Carlos Magno, que reinou sozinha, nao deixava de per­ Nao se afigura irnprudente explicar o "triliterisrno" sernita atraves deste rnodo de
tencer a esta categoria de soberanas asiaticas, a partir das quais nao prefixacao, Cornpreender­se­ia por que rnotivo, ao suprirnir a prirneira consoante de
seria possfvel relacionar o reinado com qualquer pratica matriarcal. urna raiz arabe, por exernplo, nos depararnos frequentemente com urna raiz africana
ou indo­europeia.
ex: b­led ­ land= pals [indo­europeu)
67. Sicile, Diodore de, Histoire Universe/le; trad Abbe Terrasson, 1758, Livro I, seccao I, pp. 56­57.
68. Teodora exerceu a profissao de comediante, antes de se tornar imperatriz. O biliterisrno surge assirn enquanto o estado prirnitvo da lingua.

100 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra


Ill, HistOria do Patriarcado e do Matriarcado
IV.
Anomalias Detectadas
nas Tres Zonas

Explanacao
AFRICA

Mesmo neste berco que parece ser o do matriarcado par excelencia,


sao visiveis factores que, a primeira vista, parecem surpreendentes e,
ate mesmo, contradit6rios.

Reinado da Rainha Hatsheput


Esta rainha e a primeira que reina sozinha na hist6ria da humani­
dade. Este factor, par si s6, merece que se conceda uma atencao particular
as circunstancias que envolveram o seu acesso ao trono. Representa
um dos curiosos traces da hist6ria egipcia, que mais intriga os histo­
riadores modernos. Para compreender estes ultimas, vejamos com
Maspero a sua genealogia.
Hatsheput era a uni ca descendente viva da rainha Am6sis e de Tutm6­
sis I. Ambos, irrnao e irma, e filhos de Amen6fis I e da sua irma Akhop­
tou II. Algum tempo antes da sua morte, Tutm6sis coroou Hatsheput,
sua filha, e casou­a com Tutm6sis II, filho de outra das suas mulheres;
portanto, Hatsheput e Tutm6sis II sao meios­irmaos. Contrariamente
a opiniao geral entre os historiadores ocidentais, a mae de Tutm6sis II
nao era concubina de Tutm6sis I, no que concerne a mae de Hatsheput.
E igualmente uma mulher legltima sabre a qual a esposa do Fara6 tern
apenas uma certa precedencia, A mesma nao pode ser comparada a
uma mulher adquirida atraves de razia ou outro meio, e atirada para
um harem para dar bastardos a um rei, cujos iinicos filhos legitimos, os
unicos herdeiros, seriam os descendentes provenientes da rainha. Se
assim fosse, o rei jamais poderia entregar ao seu bastardo a sua nobre
herdeira em casamento.

IV. Anomalias Detectadas nas Tr€s Zonas 103


Consideremos o caso hipotetico em que um Farao tivesse desposa­ reinar, ao mesmo tempo que mantinha estes filhos do lar afastados do
do no mesmo dia, e do mesmo modo, as suas duas irmas, nascidas da poder. Foi com a sua morte que Tutmosis III, com 20 anos de idade, se
mesma mae e do mesmo pai e , par conseguinte, possuindo o mesmo tornou Farao.
grau de nobreza. Nenhum texto profbe este procedimento ao Farao, Se Apoiada pelos sacerdotes de Amon, a mesma quis ser Farao em toda
estas duas mulheres trouxerem ao mundo, no mesmo dia, duas crian­ a acepcao do termo e chegou mesmo a ostentar a barba postica, sirnbo­
cas do mesmo sexo, estas terao o mesmo direito ao trono. Alteremos, lo de autoridade. Este modo de se apresentar coma um Farao e pura­
agora, uma de entre estas duas condicoes: data de casamento, grau de mente simbolica,
nobreza entre estas duas mulheres. Daqui resultam automaticamente Com a morte de Tutmosis II, o seu filho, o futuro grande conquis­
consequencias relativamente aos direitos de sucessao dos descenden­ tador era apenas uma crianca e esta e uma das razfies pelas quais
tes, mas que estao longe de ser assimilaveis aquelas que seriam im­ Hatshepsut nao teve qualquer dificuldade em exercer o seu reinado e
postas pela condicao dos bastardos. Tenda em conta a igualdade de em prolonga­lo durante 22 anos.
nobreza, no que concerne as duas maes, e o filho da primeira esposa Na verdade, no Egipto, ao que parece, ea mulher que herda direitos
que e detentor dos direitos, sendo ele o primeiro a nascer. Caso a se­ politicos; porern, dada a sua inferioridade ffsica natural, e o seu marido
gunda mulher, estando casada tao legitimamente quanta a primeira, que domina enquanto que esta assegura a continuidade uterina da di­
seja detentora de sangue menos nobre, os seus filhos terao menos di­ nastia. Hatshepsut deu tambern provas de uma energia quase mascu­
reito ao trono, mesmo que sejam os mais velhos. Par outro lado, se esta lina ao organizar a primeira expedicao na Costa da Somalia, ao Reino
for de proveniencia escrava, os seus descendentes terao ainda meno­ de Punt, de onde trouxe, entre outras riquezas, essencias vegetais que
res direitos de heranca, nao ficando, porern, totalmente desprovidos aclimatou no Egipto. Desenvolveu tambem o comercio e mandou
e permanecendo filhos legitimos. Um bastardo, do ponto de vista construir o sumtpuoso tumulo de Deir­el­Bahari,
africano, e uma crianca que se teve com uma mulher com quern nao se
casou perante a tradicao, quer seja ela princesa, de origem popular ou .,
escrava. Este nao pode herdar nada. Epoca Ptolomaica
Ora, a rainha Hatshepsut, segundo Maspero, possuia da sua mae,
Amosis, e da sua ave, Akhoptou, direitos de sucessao superiores, nao Esta corresponde a XXVIII!! Dinastia, que representa tambern a ulti­
somente aos do seu marido e irmao, Tutm6sis II, mas aos do seu ma dinastia estrangeira. Posteriormente, o Egipto tornar­se­a numa
proprio pai Tutmosis I, farao reinante. Deste modo, torna­se aqui evi­ provincia romana. A mesma contou com vinte soberanos e durou 275
dente o matriarcado em vigor: e a maior ou menor nobreza da mae anos. Relativamente a este periodo, abordaremos apenas as rainhas,
que sustenta os direitos de sucessao ao trono, excluindo os do pai que, tendo em conta que sao estas que assumem importancia relativamente
mesmo em alguns casos, coma este, pode ser substituido por um pai ao assunto presentemente tratado. Os soberanos gregos adaptaram­se
divino. Hatshepsut, apoiada pelos sacerdotes, acabara por substituir a tradicao e aos costumes egipcios: foi deste modo que o casamento
Amon ao seu proprio pai. Relembramos que, quando Atena procedeu entre irrnaos foi praticado por aqueles. E o caso de Ptolemeu IV Filopa­
desta forrna, segundo a lenda grega, contrariamente a Hatshepsut, foi tor que, apos ter assassinado o seu pai, casa com a sua irrna, cansa­se
para apagar a sua fillacao uterina, ideia esta que jamais chegara ao dela e, par isso, mata­a,
Egipto, onde o matriarcado prevalece. 'Ptolemeu IV subiu ao trono com a idade de cinco anos, sob a tutela
Maspero afirma que, aos olhos da nacao egipcia, Hatshepsut era a da sua mae, Cleopatra. Com a sua morte, o seu irmao Ptolemeu Ever­
herdeira legitima das antigas dinastias. Esta teve um filho de Tutmo­ geta apoderou­se do trono do Egipto, casou com a sua cunhada, e as­
sis II; mas este ultimo teve, de uma das suas mulheres nomeada Isis, sassinou o seu sobrinho. Ptolemeu VII Soter II veio a suceder­lhe: este
um filho Tutmosis III educado para o sacerdocio no Templo de Amon casou sucessivamente com as suas duas irrnas e teve de se exilar aban­
de Tebas. Apesar do seu papel secundario, Tutmosis II soube associar donando o trono em consequencia das intrigas da sua mae, Cleopatra.
Tutmosis III ao trono e coloca­lo sob a tutela de Hatshepsut. Esta, Foi substituido pelo seu irrnao mais novo, Ptolemeu IX, que era o
desempenhando o papel de mae, casou­o com a sua filha, tarnbem filho favorito de Cleopatra. No entanto, esta nao tardou em procu­
chamada Hatshepsut Mariri. Hatshepsut mae nao deixou, por tsso, de rar Iivrar­se dele, mas o filho foi mais rapido e mandou assassinar

104 CheikhAnta Diop AUnidadeCultural daAfrica Negra IV. Anomalias Detectadas nas Tres Zonas 1.05
a sua mae. Ptolemeu X (ou Alexandre II) assumir� o trono apo� algu�as Amazonismo
dificuldades. Com efeito, depois da morte de Soter II ­ que tinha sido
lembrado ­, a sua filha Berenice tornou­se rainha. Alexandre II A lenda das Amazonas aqui retratada foi recolhida e transmitida por
�:sposou­a
para se tornar rei e mando� assassina­la ct.e seguida. 0 Diodoro da Sicilia. E indispensavel expor o seu resumo, antes de iniciar
povo egipcio jamais lhe perdoaria este cnme. Morre�1 exllado .em Tyr; o estudo detalhado da nocao de amazonismo.
apos ter tido o cuidado de legar, em testamento, o Re1�0 do Egipto aos Segundo Diodoro, as Amazonas ditas de Africa habitavam outrora a
Romanos. Chega entao o reinado do Au/eta, que foi escorracado e Libia. Estas desapareceram varias geracoes antes da Guerra de Troia,
substituido no trono pelas suas duas filhas, Cleopatra e Berenice. Com enquanto que as de Termodonte, na Asia Menor, ainda prosperavam.
a morte de Cleopatra, os Romanos voltaram a colocar Auleta no trono: Existiram, na Libia, varias racas de mulheres guerreiras, entre as quais
este aproveitou para assassinar a sua filha Berenice e todos os seus as G6rgonas, contra quern Perseu combateu. No oeste da Libia, nos
partidarios. confins da terra, habita um povo governado pelas mulheres. Estas per­
o filho mais velho de Auleta e a sua irrna Cleopatra ­ aquela que manecem virgens durante o service militar; depois, aproximarn­se de
permanecera celebre na historia ­ subiram ao trono, apos a morte do homens e ocupam todas as magistraturas e todas as funcoes publicas,
pai. Esta casou sucessivamente com os seus dois irmaos, mortos um Os homens sao mantidos afastados destas funcoes e do exercito, Apes
a seguir ao outro. Escorracada pelos Eglpcios, retirou­se durante uns o parto das mulheres, estes servem de amas. Sao mutilados a nascen­
tempos para a Siria, mas foi trazida pelas tropas vitoriosas de Julio ca por forma a tornar­se inaptos para o porte de armas. As mulheres
Cesar, de quern teve um filho, Ptolemeu Caesar. A mesma seduziu Mar­ sao submetidas a uma excisao do seio direito para melhor lancar ao
co Antonio em Tarso, na Cilicia, e este proclamou­a "Rainha dos Reis". arco. Habitam numa ilha chamada Hespera, situada no Ocidente, no
Apos a derrota de Antonio por Octavio, Cleopatra esconde­se num Lago Tritonis; este adopta esta designacao no rio Tritao que ali desa­
tumulo e divulga o rumor da sua morte, a fim de se livrar de Antonio. gua. Encontra­se proximo do Atlas. As Amazonas subjugaram todas as
Este nao deixou de se suicidar, porem, durante a sua agonia, teve a pe­ cidades da Ilha, exceptuando Menes, considerada sagrada e habitada
nosa surpresa de tomar conhecimento de que Cleopatra se encontrava por Etiopes Ictiofagos, Posteriormente conquistaram, nos arredores,
viva. A rainha contava com o seu charme para encantar Octavio; este as tribos libias nornadas e construiram a cidade de Quersoneso
resistiu, aquela sentiu­se perdida, uma vez que tinha conspirado con­ ( = peninsula). Venceram os Atlantes. Myrina, rainha das Amazonas,
tra Roma, e suicidou­se deixando­se picar por uma serpente. 0 Egipto dispunha de um exercito de 2 000 mulheres experientes a cavalgar.
caiu sob o dorninio romano.1 No final das suas conquistas sobre os Atlantas, e ate mesmo sobre as
Apesar deste matriarcado adoptivo impasto aos soberanos es­ Gorgonas, mandou incinerar os corpos das suas companheiras. Por
trangeiros gregos pela tradicao do reinado egipcio, a violencia e as in­ fim, as Amazonas e as Gorgonas foram exterminadas por Hercules,
trigas continuaram a reger o verdadeiro destino dos principes e das aquando de uma expedicao ao Ocidente: dai, por conseguinte, as Colu­
princesas. A historia egipcia da epoca ptolemaica apresenta mais do nas de Hercules.
que um traco de parentesco com a de Bizancio, As rainhas do periodo Durante o seu reinado, Myrina entrou no Egipto, criou amizade com
helenico sao todas provenientes do mesmo filao: fazem tanto mais Horus, filho de Isis, que era entao rei do pais, Daquele lugar, partiu
figura de cortesas e de conspiradoras quanta as rainhas autenticas para guerrear os Arabes, exterminando um grande numero de entre
acreditadas pela tradicao. Sao as Arianas que se adaptam aos cos­ eles. Mais tarde, subjugou a Siria, a Cilicia, a Frigia, parando no rio
tumes meridionais e o seu caso nao pode ser confundido com o das Caicus. Fundou Cime, Pitane, Priene e combateu contra as habitantes
rainhas provenientes de uma verdadeira tradicao matriarcal. De facto, da Tracia."
abstraindo Bizanzio, que ja consideramos como um complexo oriental Apesar da tese geralmente aceite, e facil constatar que a sociedade
a parte, seria vao procurar em Roma, menos afectada pela influencia descrita desta forma nada tern de matriarcal; reflecte antes, ainda que
meridional, uma rainha governando sozinha, mesmo durante esta se trate de uma lenda, a vinganca impiedosa e sisternatica de um sexo
epoca baixa. sabre o outro. Para permanecer na logica desta tradicao, somos levados

2. Diodoro da Sicilia, Histoire universelle; Livro III, par. 52 a SS, trad. Hoefer, Ed. Adolphe de la Trays,
1. Amelineau, E., Resume de l'Histoire de /'Egypte; Paris, 1894, pp. 170 a 176. Paris, 1851.

106 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra IV. Anomalias Detectadas nas Tres Zonas 107
a supor um periodo anterior, durante o qual as homens de uma certa E ususal afirmar­se que os Egipcios em particular ea Africa em geral
regiao teriam por habito considerar todas as cidadas femininas da sua nao conhecem o cavalo das estepes eurasiaticas antes da invasao dos
comunidade coma escravas, a quern se podia infligir qualquer tipo de Hicsos. A domesticacao deste animal afigura­se, assim. consistir no
tratamento. Estas ultimas, em consequencia de uma revolta vitoriosa, apanagio dos Arianos. Ora, o cavalo representa o suporte por excelen­
levaram a cabo a sua vinganca praticando uma tecnica consumada de cia das Amazonas.
depreciayao do homem. Fisicamente, este era mutilado a nascenca, par Estas praticam igualmente a incineracao, tao caracteristica do berco
forma a manter­se inapto para o service militar; a sua educacao era n6rdico. Combatem todos as Arianos n6madas e poupam a cidade dos
concebida de modo a que lhe fossem inculcados apenas sentimentos Etiopes, considerada sagrada e cujo name evoca o de Menes, primeiro
vis, e afastando qualquer nocao que pudesse despertar a coragem au rei do Egipto. A sua rainha cria laces de amizade com Horus, um rei
a honra. 0 mesmo teria sido eliminado, caso nao fosse necessario para sede!ltario. Em contrapartida, levara a cabo uma expedicao na regiao
a procriacao. A nocao de casamento au de lar; au ainda de qualquer dos Arabes n6madas. A tradicao afigura­se, assim, bastante coerente,
sspecie de vida em com um, e impensavel. por muito surpreendente que possa parecer. A analise consequente
O matriarcado nao representa o triunfo absoluto e cfnico da mulher leva a pensar que as Amazonas sao de facto provenientes de um berco
abre o homem; consiste num dualismo harmonioso, uma associacao eurasiatico, no qual predominava um regime patriarcal feroz. Foi par
aceite pelos dais sexos para melhor construir uma sociedade seden­ este motivo que aquelas se revoltaram e que, depois do seu triunfo,
taria na qual cada um prospera plenamente entregando­se a activi­ combateram em todo o lado os partidarios deste regime e terao poupado,
dade que esta em maior conformidade com a sua natureza fisiol6gica. e ate mesmo estabelecido relacoes amicais, com as representantes
Um regime matriarcal, longe de ser impasto ao homem par circunstan­ daquele, onde as cidadas do mesmos sexo sempre se realizaram livre­
cias independentes da sua vontade, e aceite e defendido par eh mente.
O Amazonismo, longe de ser uma variante de matriarcado, sur e en­ E errado supor que existem Amazonas um pouco par toda aparte
uanto a consequencia 16gica dos excessos de um regime patriarcal no mundo. Foi par assimilacao abusiva que se alargou esta designacao
desenfreadoj Tudo, nas Amazonas ­ habitos, factos apurados, local de a mu/heres da America do Sul, sob pretexto que estas combatiam tao
habitat ­ leva a interpretar o seu regime no sentido que acaba de ser hem quanta as homens, quando na verdade, nao apresentam nenhuma
indicado. das outras caracteristicas relativas ao amazonismo, particularmente o
Se observarmos de perto, percebemos que as Amazonas ­ quer se­ desprezo pelos homens, etc.
jam as de Africa ou da Asia Menor ­ habitam exclusivamente com as Ea partir de um erro semelhante que se fala igualmente das Amazo­
populacces arianas, n6madas, que praticam o regime patriarcal mais as de Daome. Um rei do Daorne, Gheza (1818­1858), lutando contra
ultrajante. os Ioruba, suseranos do seu pais, utilizou todos as recursos nacionais
A localizacao das G6rgonas e das outras Amazonas de Myrina em de que dispunha para veneer. Foi deste modo que, para se apoderar da
Africa enganou muitos genies. Porern, se prestarmos atencao ao de­ tutela do Benim, teve de criar companhias de cavalaria femininas que
talhe do local, verificamos que se trata essencialmente da Cirenaica combateram com tal vigor, que os historiadores modernos assimila­
(Lago Tritonis) habitada pelos Lfbios bran cos n6madas, designados ram­nas as Amazonas. 0 facto de estas companhias terem sido criadas
Povos do Mar, e cujos primeiros contingentes ja se encontravam pre­ e dirigidas par homens demonstra que a situacao destas mulheres foi
parados desde ­ 1500. radicalmente diferente da das Amazonas classicas, que nao podiam
Convern relembrar que a Cirenaica e o local de origem de Atena e pensar em combater sob ordens masculinas. Nao se trata aqui de uma
de Poseidon, duas divindades adoptadas pelos Gregas, mas que sao organizacao feminina aut6noma, no seio de uma sociedade masculina,
sempre consideradas enquanto originarias da Libia. Poseidon era, de cuja autoridade seria ignorada. Estas nao sao mais Amazonas do que
facto, deus de um povo proveniente do mar, tal como o eram os Libi­ aquelas que sao membros dos Corpos auxiliares femininos dos exer­
os. E nesta peninsula da Cirenaica que se encontra uma cidade desig­ citos europeus modernos. Todos as seus atributos lhes sao proveni­
nada Hesperides, Par ultimo, a distancia das costas do Peloponeso a entes do homem, que concebeu a sua formacao: deste modo, estas
Cirenaica e mais curta do que aquela que separa esta regiao do Delta nao possuem nada de intrinseco e de cornparavel a autodeterminacao
do Nila. das Amazonas. 0 6dio ao homem e­Ihes desconhecido, possuem

108 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra IV. Anomalias Oetectadas nas Tr€s Zonas 109
informa a carne, embeleza o name, e atribui a vidaffsica e espiritual.
a consciencia de "recrutas" lutando unicamente pela libertacao do seu
Uma vez reunidos os dais elementos, Ka e Zetformam o ser total que realiza
pais. a perfeiciio. Este ser possui propriedades que o tornam um habitante do ceu,
que se designa BA (Alma?) e AKH (espfrito?). A Alma BA, fiqurada atraves do
O Matriarcado Fula pdssaro BA, detentora de uma cabeca humana, vive no ceu ... Assim que o rei
se une ao seu KA, torna­se BA.4
A sociologia da comunidade fula e, indubitavelmente, do maior in­
teresse para as ciencias humanas. Raros sao os povos que deram tanto Pouco importa se a interpretacao de Moret e correcta ou nao, Esta
permite sublinhar a importancia destes conceitos no pensamento
que falar. 0 conjunto das contradicoes aparentes que ali se encontram
desencorajou, ou desorientou, frequentemente os investigadores. egfpcio.
Encontramo­nos hoje perante as hip6teses mais extravagantes a seu Portanto, nao e um mero acaso que o name de KA seja o mais nobre
respeito. Deste modo, compreende­se o interesse que apresenta uma e o mais autentico dos names fulas.
documentacao inedita acerca da sua sociedade. Presumiu­se com frequencia que os Fulas estavam na origem dos
'A primeira dificuldade a ultrapassar consiste em conseguir explicar, Brancos, que se teriam negrificado progressivamente por via da mes­
ticagem, A analise da lingua fula, o seu parentesco gramatical profun­
partindo das hip6teses que se encontram na base do presente estudo,
de que modo e que os N6madas Fulas podem praticar o matriarcado. do com as outras linguas do grupo africano (wolof, serer, egfpcio an­
O inverso poderia parecer evidente. A resposta esta relacionada com o tigo ... ), leva a supor o contrario", Com efeito, sea Franca actual tivesse
conhecimento das origens deste povo. De onde sao eles provenientes? de se negrificar com a invasao progressiva de um povo exterior, mes­
'Com base em dois facto res importantes, e possivel afirmar, com mo em consequencia desta transforrnacao, o suporte da cultura, isto e,
quase toda a certeza, que os Fulas sao originarios do Egipto e que a lingua, permaneceria francesa, mesmo caso a pr6pria sociedade nao
alguns de entre eles pertencem mesmo ao ramo regio das antigas tivesse sido abalada. Os novas mesticos continuariam a falar frances,
dinastias fara6nicas. Com efeito, sao as nocoes ontol6gicas do BA e do Se as Fulas fossem um elemento conquistador, de um nivel cultural su­
KA que se encontram enquanto names toternicos essenciais dos Fu­ perior, propagadores de uma civilizacao, provenientes nao se sabe de
las. Ora, o nome toternico representa essencialmente um indice etnico onde, mesmo ao misturarem­se em tais condicoes de superioridade, e
na Africa Negra. BA­RA, BA­RI, KA­RA, KA­RE, todas estas designacces a sua cultura que deveria ser transmitida, e a sua lingua que deveria
mais compostas, visivelmente, por raizes egipcias, extraidas da teogo­ ser imposta aos aborfgenes da Africa, ao inves de se produzir o inverso.
nia mais autentica e mais secreta. Sabemos que, ate a revolucao pro­ Somos, portanto, forcados a supor que estes estavam na origem de
letaria que se produziu no final do Antigo Imperio, o Fara6, por si so, autenticos africanos, progressivamente mesticados com um elemento
possuia um KA imortal e usufruia da morte osiriana. exterior. Apenas esta hip6tese torna inteligivel os factos constatados,
Qualquer que seja a verdadeira essencia do BA e do KA nos antigos permitindo explicar o motivo pelo qual, apesar da sua mesticagern evi­
Eglpcios, o facto de os reencontrarmos, sob a forma de names toterni­ dente, os Fulas falam uma lingua negra, que nao pode ser relacionada
cos, e sem qualquer duvida possivel nos Fulas, parece sustentar a tese com nenhum grupo sernitico ou indo­europeu; e que o matriarcado se
de Moret que pretendia demonstrar o totemismo egipcio a partir da encontre na base da sua organizacao social, apesar do seu nomadismo.
analise destas nocoes.' De resto, estes possuem todos os traces culturais em comum com os
Por outro lado, Moret afirmara acerca de BA e de KA: outros povos mais ou menos mesticados da Africa Negra: Ioruba, Sara­
coles, etc.
O Ka, que vem unir­se ao zet, e um ser divino que habita no ceu e s6 se mani­ Na medida em que os Fulas sao de origem egipcia, estes foram Afri­
festa ap6s a morte... canos sedentarios, agricultores e praticaram o matriarcado. Em conse­
Nos textos do Antigo lmperio, para dizer morrer, recorre­se a expressiio "pas­ quencia da deslocacao da sociedade egipcia antiga ­ desaparecimento
sar para o seu Ka" Outros textos precisam que existe, no ceu, um Ka essencial ... da soberania ­ terao emigrado bastante tardiamente, com as suas
e
este Ka ... preside as forces intelectuais e morais; ele que, simultaneamente,
4. Moret, l'Egypte et la Civilisation du Nil; p. 212.
3. Moret, Des clans aux empires. 5. Cf. Apendice.

110 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra IV. Anomalias Detectadas nas Tres Zonas n.1
Por flm, tornando­se mais fracas as ligacoes ancestrais, por fotc;:a
manadas de bovinos. Par Iorca das circunstancias teriam, deste mo�o,
das exigencias da vida moderna que desagrega as antigas estruturas,
passado da vida sedenta�·ia �ara. a vida non:iada. Compreende­se, en tao, o Africano sente­se, cada vez mais, tao proximo do seu filho coma do
triarcado da prrmerra epoca contmue a regulamentar as rela­
que O ma
tanto mais que e sem duvida abusivo falar d� u� noma ism�
di seu sobrinho uterino. Porem, em alguns povos que ainda nao estao em
c;:oes sociais;
absoluto do Fula. Na verdade, este e semin6mada: a Afnca Negra esta contacto intelectual e moral com o Ocidente, tal como os Sereres, a
heranca matrilinear ainda prevalece. 0 filho nao tern nada, o sobrinho
repleta de aldeias fulas habitadas em qualquer epoca do ano. S6 a
fraccao [ovem da colectividade caminha atras dos rebanhos, atrav�ssa herda tudo.
provincias inteiras em busca de pradaria, para voltar a descer ate ao
E tambem a estes tres factores que convern imputar a transformacao
ponto de partida com o fim da estacao, . _ _ , . do nome das criancas que deixam de usar o do seu tio materno, isto e,
Poder­se­ia objectar que os names citados nao sao os umcos usa­ o da mae, para adoptar o do pai. Ja observamos que em 1253, quan­
dos pelos Fulas. Certamente, sim; mas sao os mais autenticos, u�a vez do lbn Batouta visitou o Mali, esta importante operacao ainda nao se
que os Fulas nao os partilham com nenhum outro povo da Africa, en­ tinha efectuado na farnilia africana.
quanto que os seus outros nomes pode� ser �tiliz�d�s por individuos
de agrupamentos etnicos diferentes. Assirn, Diallo e, sirnultaneamente,
um nome fula e tukuler; Sow e, ao mesmo tempo, um nome fula e lao­ Poligamia
be, etc.
Esta explicacao permite compreender, em simultaneo, o_ matri�rc�do Tai coma outros pensadores ja o fizeram, Engels salienta que a poli­
do Fula, o seu nomadismo, o seu totemismo, as suas ongens etmcas gamia nao e especifica de nenhum povo; foi e continua a ser praticada
e as da sua lingua. 0 matriarcado deste povo semin6mada deixa de pelas classes sociais elevadas de todos os paises, talvez nao em graus
constituir uma objeccao valida a tese aqui fundamentada. diferentes, mas sob formas diferentes. Era comum na aristocracia ger­
manica do tempo de Tacito, na Grecia, na epoca de Agamemnon, em
toda a Asia, no Egipto na familia faraonica, e na dos dignatarios da car­
Patriarcado Africano te. Em todos estes paises, sem prejufzo de danos morais, poder­se­ia
usufruir deste luxo caso se possuisse os meios para tal; mas a mono­
Verifica­se que a tendencia actual da evolueao interna da Fami­ gamia era regra no seio do povo, em particular na Africa. Na medida
lia africana se orienta para um patriarcado mais ou menos atenuado em que a A.frica e considerada enquanto a terra da poligamia, importa
pelas origens matriarcais da sociedade. Nao e demais realcar .o papel salientar este facto. N as representacoes esculturais e pict6ricas do
desempenhado, nesta transformacao, por factores externos, tats como antigo Egipto, a monogamia popular e comprovada pelos numerosos
as religi6es, Islao e Crtstianismo, e a presenca ternporarla da Europa casais representados.
em Africa. Ao que parece, assim sucedeu em toda a Africa da alta Idade Media,
O Africano islamizado e automaticamente dominado, pelo menos ate ao seculo X, que marca a extensao do Islao as populacoes aut6ctones,
no que concerne a heranca dos hens, pelo regime patriarcal. 0 mesmo pelos Almoravidas, A poligamia tera, entao, tendencia a generalizar­se,
sucede com o Cristao, quer seja protestante ou cat6lico. Porem, para sem nunca deixar de representar o indicio de um estatuto social. Por
alern disso, a legislacao colonial tende a atribuir em toda a parte um outro lado, nao e raro ver­se cidadaos comuns que, procurando iludir­
estatuto oficial a estas opcoes privadas, tal coma o comprova um julga­ ­se acerca do seu proprio estatuto social, casam com varias mulheres.
mento sucedido em Diourbel em 1936, sob a Administracao Champion, E com este paragrafo acerca da poligamia que convem relacionar a
relativo a heranca das terras da aldeia de Thiatou, perto de Gaouane: Investigacao daquilo que designamos por mau tratamento da mulher
o diferendo foi decidido a favor do partido de Magatte Diop, que fa­ africana. Uma vez mais, e a concepcao matriarcal que ira esclarecer
zia prevalecer a heranca patrilinear, em conformidade com o direito as factos de modo inteligivel. Esta implica, efectivamente, uma dualidade
frances, e em detrimento da sobrinha do seu pai Gagne­Siri­Fall, irma relativamente rigida na actividade quotidiana de cada sexo. A divisao
de Dieri Fall, que invocava a filiacao matrilinear, valida essencialmente,
do trabalho socialmente aceite reserva ao homem as tarefas arrisca­
fundamentava esta, para os garmis, isto, e, as familias dinasticas e a das, de poder, de forca e de resistencia: se, em consequencia de uma
nobreza.

IV. Anomalias Detectadas nas Tres Zonas 113


Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra
a
mudan�a de sttuacao devido mtervencao de um qualquer factor ex­ EURASIA
terno ­ interrupc;ao do estado de guerra, etc. ­ as tarefas do homem
viessem a ser diminuidas, tanto pior para a mulher: esta nao deixara A extensao da regiao considerada ea multiplicacaoY dos. facto res a ter
de assegurar todos os trabaJhos dornesticos e outros que a sociedade em conta, leva­nos a reter apenas os mais significativos de entre eles.
Ihe reserve. lsto porque o homem nao poderia substitui­la sem ser
desprestigiado aos olhos de todos. E impensavel, de facto, que par
exemplo, um Africano partilhe uma tarefa feminina com a sua mulher, Matriarcado N eolitico
tal coma cozinhar, lavar a roupa, ou exercer funcoes de puericultura,
abstraindo qualquer influencia europeia, evidentemente. A diminuicao No VI milenio, ap6s o degelo, com a amenizacao do clima, os homens
das tarefas do homem provern da supressao das soberanias nacionais, agruparam­se em aldeias fortificadas ou em cidades lacustres. Nao sa­
que provoca o desaparecimento de uma fraccao importante das fun­ bemos se se trata de Magdalenianos provenientes das cavernas, ou d
c;oes de responsabilidade. Pode tambern ser sazonal, em funcao das uma raca nova originaria da Asia. Em todo o caso, os homens dest e
, ., . a
culturas e das colheitas; nos pafses tropicals, com duas epocas, du­ epoca ja praticavam a criacao e uma agricultura embrionaria. Entre 05
rante o longo pertodo de seca, o desemprego Involuntario e frequente animais domesticados, assinalarn­se o boi, a ovelha, o porco, o cavalo e
nos homens, a quern a fraca actividade econ6mica nao permite manter o ca?. Para _alem disso, entre os cereais cultivados, sobretudo o trigo; 0
ocupados. Nos campos, e o marido que cava a terra e ea mulher que cult1v� do hnho fornecia as fibras para tecer (vestimentas). Os homens
semeia Durante a colheita, e o marido que desenraiza as amendoins, desta epoca eram, portanto, agricultores semin6madas e os especialis­
par exernplo, e e a mulher que apanha. Na verdade, as preocupacfies tas da Pre­historia atribuem­lhes a pratica do matriarcado. E o caso de
e
campestres estao longe de ser tao rigidas e nao raro ver­se a mulher Menghin e Kern, citados par Turel.
a concretizar algumas tarefas que nao sao demasiado pen.osas, coma
o cultivo do solo. Porern, podemos afirmar, com toda a certeza, que Esta aqricultura arcaica caracteriza­se pelo desbravamento atraves da enxa­
a fraccao que cabe ao hornem neste trabalho e claramente superior da, pelo aperfeicoamento com o machado, pela mara, o escudo de madeira, o
aquela que cabe a mulher, Geralmente, esta prepara os alimentos e tra­ matriarcado, as mitos lunares ... 0 papel predominante da mu/her no trabalho
­los para o carnpo, enquanto que aquele trabalha, Os viajantes europeus, da fresagem Joi a causa do matriarcado, que design a a concentradio da vida
que atravessam a Africa coma um meteoro, trazem frequentemente humana em torno dos recursos da sua alimentadio. A mu/her, na posse das
descricoes surpreendentes, compadecendo­se com o destino destas c�lturas, adquire a predomintincia social. A sucessiio procede de miie para
pobres rnulheres, cujos maridos obrigam a trabalhar enquanto que os filha e o homem entra nafamflia da sua esposa ...
pr6prios permanecem a sombra. Em contrapartida, os Europeus que Os agricultores primitivos niio diio tanto valor aos ornamentos quanta as cltis
visitaram a Africa e ali se mantiveram durante um maior ou menor totemicos. Parecem ter tido menos imaqinaciio, as suas concepciies siio mais
perlodo de tempo, nao sentem pena das Africanas: consideram que estreitas. Em contrapartida, eram amedrontados par acessos de temor reli­
estas estao felizes. gioso.
De resto, esta situacao nao mudou desde a antiguidade; os casais que
se observam nos monumentos africanos do Egipto estao unidos por
uma ternura, uma amizade, uma vida Intima comum, absolutamente _Na �erdade, ��o possuim�s documentos explicitos relativos a orga­
ruzacao da familia humana ha 8 000 anos. As conclusoes supra­referidas
impossivel de encontrar no mundo eurasiatico da epoca: Grecia, Roma, apenas puderam ser alcancadas analisando as sociedades actuais que
Asia ... Este facto, par si so, tenderia a provar que o antigo Egipto nao
se encontram no estado neolftico e extrapolando os resultados en­
e semitico: na tradicao semita, a hist6ria da terra corneca pela queda contrados durante as epocas arcaicas. Concluimos apenas, com mais
do homem (mito de Adao e Eva). No Egipto antigo e no resto da Africa
ou menos certeza, a existencia, nesta epoca, de um culto da fecundi­
Negra, em todas as epocas ­ excluindo qualquer lnfluencia arabe ­, o dade gracas a descoberta de estatuetas esteatopfgias (Venus de Wil­
sequestro das mulheres vigiadas pelos eunucos, esta pratica tao tipica­
mente eurasiatica, e totalmente desconhecida. lendo,rf e outras), cuja area de expansao se estende da Europa Ociden­
tal a Asi�, ate ao Lago Baikal e ao [apao, E muito provavel que "o papel
predominante da mu/her no trabalho da fresagem" seja exagerado. Em

114 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra IV. Anomalias Detectadas nas Tres Zonas 115
qualquer epoca, parece ser natural que os trabalhos mais arduos se­ a bacia interior do Mediterriineo ficou a dever o cu/to da fecundidade e da
jam concretizados por bomens, qualquer que seja a latitude. Nao eram Deusa­Miie?6
certamente as mulheres que fabricavam os instrumentos agrfcolas, tal
coma as enxadas, etc. Tarnbem nao foram elas que tiveram de desbra­ A opiniao de Furon, simultaneamente mais tenue, nao deixa de constt­
1
var os primeiros territ6rios virgens. 0 homem tinha que acumular esta tuir uma especie de conftrmacao:
tarefa com a da pesca e da caca, tal coma acontece ate aos nossos dias
em muitas sociedades primitivas. A emergencia do matriarcado esta Durante este tempo, na Africa e no Oriente, que ignoram o Salutreano e O
relacionada com o facto de, numa vida verdadeiramente sedentaria, a Magdaleniano, os Auriqnacianos negr6ides pro/ongam­se directamente
mulher, ao inves de representar, praticamente, um peso morto na so­ numa civilizaciio conhecida coma Capsiana, cujo centro parece ser a Tunisia.
ciedade, poder trazer uma contribuicao econ6mica consideravel e in­ A partir daqui, tera alcancado, par um lado, a Africa do Norte, a Espanha, a
cornparavel com aquela que e permitida pela vida n6mada; e percebe­ Sicilia e a Italia do Sul, disputando assim a Bacia do Mediterriineno com as
­se, de imediato, que num regime desta natureza, esta mais digna e Caucasos e com as Mong6is; par outro lado, a Libia, o Egipto e a Palestina.
do que o hornem na transrnissao dos direitos de heranca. Com efeito, Tera, µ_or ultimo, dominado parcialmente o Saara, o Sudiio, a Africa Central e
mesmo na vida sedentarla, o homern e relativamente mais m6vel, tern ate a Africa do Sul. 7
menos ligacoes do que a mulher cuja missao social, ao que parece, con­
siste em permanecer no lar. 0 rapaz de uma Familia africana, por exem­ A prop6sito das estatuetas esteatopigias, que temos vindo a tratar,
plo, e cornparavel a um passaro em cima de uma galho: este pode voar Furon escreve:
a qualquer momenta, e um potencial emigrante que, mesmo em alguns
casos, nao regressa ao Ian Por conseguinte, este apenas deve a sua Com · das estas estatuetas com um "ar de famllia" seremos levados a admitir a
perenidade as raparigas que lhe sao relacionadas: dai a transrnissao ideia do cu/to da fecundidade, uma vez que seria inacreditavel que a Franca, a
matrilinear dos interesses familiares. Se fosse o homem a transmiti­los, Italia ea Siberia tivessem sido povoadas par povos da mesma raca, negr6ides,
cornpreende­se que estes estariam rapidamente comprometidos, per­ cujas mu/heres fossem todas esteatopiqias. 8
didos no exterior. Estas ideias sao muito familiares aos Africanos, que
conhecem bem a sua sociedade. A presenc;:a de um elemento meridional negr6ide no Sul da Europa,
lNa epoca das cidades lacustres, a julgar pela importancia dos siste­ durante a epoca aurignaciana, e comprovada atraves da presenc;:a do
as de defesa erguidos para se protegerem contra a natureza externa, homem de Grimaldi.
inimigo primeiro, a precariedade da vida tera vindo a restringir o pa­
pel que a mulher podia desempenhar na sociedade: esta devia nao s6
encontrar­se paralisada num temor religioso, mas tambem material, Matriarcado Gerrnanico
constantemente alimentada pela luta pela vida, contra os animais, as
forc;:as da natureza e os vizinhos. Alguns indicios levam certos autores !al_ como o matriarcado neolftico n6rdico, se o matriarcado ger­
a justificar a presenc;:a das estatuetas esteatopigias com a chegada de mamco fosse demonstrado, este tenderia a provar a universalidade do
populacoes meridionais, talvez africanas, para se instalarem na Eura­ fen6meno. Porem, quer num caso coma no outro, a escassez dos docu­
mentos invocados e da mesma ordem.
sia do Sul, na epoca aurignaciana.
E o caso de Dumoulin de Laplante: Nada e mais duvidoso do que este matriarcado germanico, Bement
e Monad, apoiando­se nos estudos de Cesare de Tacito, afirmam que:
Foi :ntiio que uma miqraciio de negr6ides de tipo hotentote teria, e do
O Germ a nos niio conheciam o dote; mas a mu/her oferecia tributos ao seu marido ...
da Africa Austral e Central, submergido a Africa do Norte, a Argelia, a Tuni­
a
sia, o Egipto e trazido, a forca, uma nova civilizaciio Europa mediterranica:
Omero homem livre devia contentar­se com uma tinica mu/her; a poligamia
s6 era permitida aos nobres. Em algumas tribos, a viuva niio podia voltar a
a Aurignaciana. Estes Bochimanos foram as primeiros a gravar nas rochas
desenhos qrosselros, e a esculpir estas estatuetas de calcario representando
6. Laplante, Dumoulin de ­ Histoire generale synchronique; Paris, 194 7, p. 13.
adiposas, monstruosas mu/heres qravidas. Tera sido a estes Africanos que 7. Furon, Manuel d'orcheotoqie prehistorique, Paris, Ed. Payor, 1943, pp. 14­15.
8. ld., p.151.

116 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra IV. Anomalias Detectadas nas Tres Zonas 117
casar­se; "a mulher toma um unico esposo, ta/ coma possui um unico corpo, estupefacdio, o facto de se aceitar, no Egipto, "elevar" todas as crianr;:as: en­
uma unica vida, a Jim de esta a mar o seu casamento e niio o seu marido" tenda­se que ali niio se praticava, ta/ coma na Grecia, a "exposiciio'; isto e, 0
[Tacita]. O pai de familia tinha direitos alargados sabre a sua mu/her, que abandono dos recem­nascidos gemendo entre os dejectos da vida rnateriolw
podia escorracar caso esta /he fosse infiel, que podia ate vender em caso de
necessidade, hem coma sabre os seus Ji/hos que podia expor, sabre os seus O unico factor que subsiste a favor de um matriarcado, ap6s uma
alforriados e sabre os seus escravos; mas esta autoridade era interrompida analise profunda da sociedade germanica, e deste modo acordado ao
a
relativamente ao Ji/ho maior de idade e Ji/ha casada; mais velho, o pai j6. sobrinho, sobretudo em materia de tomada de refens, em que este
niio contava coma membro activo, era o Ji/ho que o substitufa. Os Germanos e preferido ao filho. Ora, isto poderia efectivamente constituir uma
niio conheciam os testamentos: os parentes mais proximos por consaquini­ pratica introduzida pelos Fenf cios, no ambito dos contratos comerciais
dade herdavam com plenos direitos; as mu/heres eram exclufdas do /egado que estabeleciam com os Germanos.
da terra. Os rapazes eram iguais entre si; niio existe qualquer vestfgio seguro
acerca do direito de primogenitura.9
atriarcado Celtico
E dificil considerar enquanto matriarcal um regime no qual, apesar
de tudo, a mulher presenteia o marido, enquanto que este pode vende­la S6 foi possivel falar do matriarcado irlandes assimilando a este cos­
caso seja necessario e expor os seus filhos, no qual aquela e excluida tume algumas praticas que lhe sao estrangeiras:
da heranca da terra, e onde o filho e que herda do pai e nao o sobrinho, Deste modo, Hubert cita Straban ­ que parecia apoiar­se em Pytheas ­
no qual os parentes mais pr6ximos por consaguinidade sao herdeiros, para afirmar que os Irlandeses nao conheciam nem mae, nem irrna.
exceptuando os de filiacao uterina. Uma vez que a filha casada esca­ Segundo Cesar, os Celtas da Gra­Bretanha possuem uma mulher por
pa a autoridade do pai e pode ser vendida pelo marido, isto significa cada grupo de dez a doze homens, composto indistintamente por
que a mesma ja nao faz parte da sua familia natural, contrariamente irrnaos, pais e filhos. Aguele que trouxe a mulher para casa representa
aquilo que aconteceria numa sociedade matriarcal. Encontramo­nos, o pai nominal <las criancas que nascem. Estamos na presenca de um
portanto, na presenca de um regime patriarcal, com as suas exigencias caso de poliandria que nao deve ser confundido com o casamento em
mais atrozes, tal coma a exposicao das criancas: s6 num regime desta grupo.
natureza e que o pai pode expor os seus filhos quando ja nao os pode A poliandria e o apanagio exclusivo dos Indo­Arianos, exceptuando os
alimentar, vista que, num regime matriarcal, os seus pr6prios descen­ Semitas. Esta consiste em forcar uma mulher, contra a sua vontade, a as­
dentes nao lhe pertencem. Neste ultimo caso, e o tio que possui o di­ segurar a descendencia de um grupo de irmaos ou outros. Assistiu­se ao
reito de vender o seu sobrinho e e este ultimo que herda do primeiro: seu desenvolvimento em Atenas, bem coma aqui, em pais anglo­saxao,
daqui resultam as expressoes wolof, anteriormente citadas. Ao que parece, por muito extraordinarlo que possa parecer, os Arabes
A exposicao das criancas e o enterro das raparigas em tenra idade, terao contribuido de modo significativo para a educacao refinada do
consideradas como bocas imiteis, eram praticas correntes em todo o homem ocidental da Idade Media. Cabe a estes o surgimento da vida
mundo eurasiatico patriarcal, onde isto surgia com frequencia coma da Corte.
uma dura necessidade. Com os habitos ancestrais a ajudar, mesmo Hubert explica a poliandria celtica pela inferioridade econ6mica da
ap6s a sedentarizacao, esta pratica manter­se­a usual nos Gregas, mulher no sistema social: sendo os homens detentores de um interesse
quase estupefactos por ver os Egipcios elevar todas as suas criancas, material em introduzir o menor mimero de mulheres possfvel no gru­
sem distincao de sexo, ao inves de as expor, de entre elas, uma fraccao po. Este salienta que as Gaulesas realizavam o seu service militar tal
consideravel desde a nascenca, nas imundicies materiais: como os homens, que acompanhavam para o combate.
O mesmo sucedeu com as Irlandesas correlativamente com o seu
Mas o desejo de posteridade masculina, uma vez satisfeito, niio impedia o direito a propriedade fundiaria. Estas s6 foram isentas progressiva­
sacrificio dos nascimentos ulteriores. Os Gregas salientaram, quase com mente pela Igreja Crista. Cornecaram inicialmente por readquirir o
service militar entregando metade da propriedade a familia.
9. Bemont, Ch. e Monod, G., Histoire de /'Europe au Mayen­Age; Vol I, Ed. F. Alvcan, Paris, 1921, pp.
21 e 22. 10. Aymard, A. e Au boyer,)., UOrient: et la Grece antique, op. cit., p. 49.

118 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra IV. Anomalias Detectadas nasTrCs Zonas 119
A famflia normal dos Celtas, �pesar destes !ac_tores
uma e quase exclusivamente
=r=: As
e destas
mu/heres
Encontram­se novamente os mesmos costumes consanguinarine, tal
coma a "caca aos cranios" que era uma instituicao cultural comum aos
relfquias do passado, fam1lia agna:ica.
consitutem a instrumento de um parentesco natural, mas nao de parentesco Gauleses e aos Irlandeses.
civil. o descendente dafilha niio faz parte da linhagem do seu avo, excepto num O autor que cita Posid6nio demonstra que os cavaleiros suspendiam
caso: aquele em que um homem que niio tern herdeiro masculino case a sua os cranios embalsamados dos inimigos mortos na garupa dos seus
filha resguardando­se a crianca que ira nascer, que se torna juridicamente cavalos. Gabavam­se das avultadas somas oferecidas pelas familias
niio mais seu neto, mas sim seu Ji/ho. Esta familia agrupa­se em torno de um dos defuntos para recuperar estes trofeus de caca,
far que Joi o centro do seu cu/to e niio deixou de ocupar um lugar central na Os mesmos foram encontrados como efigies na moeda Gaulesa.
representariio da sua essencia e da sua unidade,'? A sociedade celta e, deste modo, claramente patrilinear e provida de
todos os outros traces culturais relativos a esta tradicao.
A patria potestas (poder paternal) do chefe de familia gaulesa e iden­ A filiacao matrilinear naquele local traduz sempre uma anomalia,
tica a do Romano. Segundo Cesar, possuia o direito de vida e de morte sempre que a sua existencia nao e contestavel,
sabre os seus filhos.
Nos Irlandeses, esta autoridade s6 tern um fim com a morte do pai, Afiliacao de individuos coma Cuchullain e Conchobar e apontada pelo name
e aos 14 anos (idade do service militar) com os Gauleses; de seguida, da miie. Estes eram de nascenca incomum e, precisamente, os irlandeses
O jovem entra entao na clientela de um chefe. Ainda de acordo com atribuiam a familia da miie as criancas nascidas fora do casamento.14
Cesar, citado por Hubert, o marido tinha o mesmo direito de vida e de
morte sobre a sua esposa.
A poligamia era corrente. Matriarcado Etrusco
As concubinas, em irlandes bem urnadma, compravam­se nas grand es feiras A sua existencia nao teria nada de surpreendente, tendo em conta a
anuais e par um ano.12 profunda influencia meridional a que este povo deve ter sido submeti­
do. No entanto, apesar de tudo, permanece extremamente duvidoso.
A condicao da mae nao exercia influencia sobre a dos filhos. Se adoptarmos, por um instante, a origem troiana dos Etruscos, relern­
A transrnissao de um bem integral como a Realeza nao se efectuava bramo­nos que Eneias, ao correr nas destruidas ruas de Troia onde
de pai para filho. Escolhia­se, de entre os agnados vivas, aquele que perdera a sua mae, procurou sobretudo salvar o seu pai e o altar do­
tinha maior direito ­ um irmao mais novo ou um primo, por exemplo. mestico, o lar, segundo Virgilio: o fogo sagrado do lar nao se apagara,
Tal como em todas as sociedades Indo­Arianas, a sociedade celta apesar da longa travessia maritima ate Roma, local onde servira para
possuia a sua plebe composta por "desclassificados" (sobretudo os fundar uma nova cidade, a maneira ariana. Sabe­se, segundo Fustel de
que tinham perdido nos jogos de Inverno ), desenquadrados expulsos Coulanges, que a manutencao de um fogo permanente representa uma
das familias para escapar a uma divida de sangue ou de dinheiro, etc. tradicao especificamente indo­europeia. Pode recear­se, no maxima,
Estes "sern lar nem abrigo" eram extremamente numerosos na Galla, que Virgilio tenha reconstituido as origens etruscas segundo as ideias
segundo Cesar. romanas.
A existencia desta imensa classe fora da lei (Outlaws) leva H. Hubert A presenca de figuras de amazonas na arte etrusca constitui um ar­
a escrever: gumento suplementar contra a existencia do matriarcado na Etruria.

O mundo celta encontrava, nas suas instituiciies, motivacoes internas de


evoluciio que as /evavam, depois de ter constituido aristocracias, a criar
plebes que tendiam a tornar­se democracias.13

11. Hubert, H., op. cit; p. 248. 14. Hubert, H., !er de um modo geral pp. 247 e 236 a 292.
12. ld., op. cit., p. 248. Filhos de escravos rebeldes, os "Banis" reconquistaram a sua liberdade e restauraram hoje, na flo­
13. ta, op. cit; p. 239 resta guianesa, o matriarcado africano. 0 marido volta para junta da sua mulher.

Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra IV, Anomalias Detectadas nas Tres Zonas
Amazonismo do Termodonte da Amazona Hipolita, Par conseguinte, Hercules empreende
. - u um
ex�e d_ icao e gan h au uma grande batalha, durante a qual destruiu
A narrativa da tradicao que se segue e extraida de Diodoro. Nas mar­ exercito das �mazonas ... Os Barbaros revoltaram­se. Pentesileia, filh
gens do Rio Termodonte, habitava outrora um povo governado par de Marte e Ramha das Amazonas, uma sobrevivente ao massacre
b ateu d urante muito . .corn­
mulheres experientes, tal coma as homens, na profissao da guerra. _ tempo ao lado dos Troianos, contra as Greg OS, e
Uma de entre elas, revestida pela autoridade real, e notavel pela sua morreu pea 1 mao de Aquiles.15
forca e pela sua. coragern, formou um exercito composto par mulheres, C�nclui­se, a partir deste texto, que as Amazonas da Asia e as de Afri­
acostumando­o com a dureza da guerra, e servindo­se dele para sub­ ca t�m o mesm,o c?mportamento. Ainda que de proventencia eurasian.
meter algumas povoacoes vizinhas, Tenda este triunfo aumentado o ca, e �a sua propna sociedade q,ue estas tern aversao, As suas conquis­
seu prestigio, esta rnarchou contra outros povos limftrofes. A fortuna tas situam­se na Europa e na Asia, excluindo a Africa. As ultimas de
que ainda !he era favoravel nesta expedicao encheu­a de orgulho. A entr: �las combaterao ao lado dos Troianos, aliados do Egipto, contra
Rainha, que se proclamava filha de Marte, obrigou os homens a fiar a Gr�c�a _que personifica o regime patriarcal. Depois das suas primei­
a la e a entregar­se a tarefas femininas; estabeleceu leis segundo as ras _v1tonas, estas sedentarizam­se, constroem cidades e dedicam­se a
quais as funcoes militares pertenciam as mulheres, enquanto que os agricultura, rejeitando a vida n6mada.
homens eram mantidos na humilhacao da escravatura. As mulheres
estropiavam as criancas do sexo masculino logo a nascenca, pernas e Tend� os �eu� empreendimentos guerreiros sido levados a born porto, as
braces, de modo a torna­las inaptas para o service militar; queimavam heroinas vitoriosas proveram domicilios, fundaram cidades e dedicaram­se a
o mamilo direito as filhas para que a proeminencia do seio nao as in­ agricultura.16
comodasse durante os com bates. E devido a esta utlima razao que lhes
e atribuida a deslgnacao de Amazonas. Por ultimo, a sua Rainha, tao Na: Amazonas, existe uma sucessao sisternatica das rainhas ao trono.
celebre pela sua sabedoria e pelo seu espirito guerreiro, fundou, na foz Is�o e resultado de uma reaccao a um regime patriarcal; nao consti­
do rio Termodonte, uma cidade consideravel, nomeada Temiscira e ali tut uma caracteristica do matriarcado. Neste ultimo, a filha herdeira
construiu um Palacio famoso. Esta teve o cuidado de implementer uma e guardia legitima do trono devido aos seus direitos inviolaveis
boa disciplina e, com a participacao do seu exercito, recuou os limites e associado um homem ­ com frequencia, o seu irmao ­. que prepara
do seu imperio ate Tanais. Finalmente, apos numerosas exploracoes, e executa as .grandes decis6es de interes�e nacional. Nao existe, por­
teve uma morte heroica num com bate, defendendo­se com valentia. A ta�to, excl�s1v1smo, mas sim associacao. E este o motivo pelo qual os
sua filha, que a sucedeu ao trono, imitando a mae ciosamente, chegou Remos da Asia Central, referidos par Turel, nao devem ser considera­
a ultrapassa­la em varias coisas. Esta exercitava as jovens para a caca, dos enquanto dominados pelo matriarcado:
desde tenra idade e, tornava­as familiar com as dificuldades da guerra.
lnstituiu sacrificios sumptuosos em honra de Marte e de Diana, apeli­ Ao /ado destes fragmentos, vestfgios de um sistema primitivamente muito
dada de Tauro (habitante da Taurida}, Levando as suas armas para la mai� vasto, os relat6rios de autores chineses acerca do Estado ginecocr<itico
do Tanais, submeteu numerosas povoacoes alargando as suas conquis­ da ��ia Central (��de a mu/her p6de conservar a sua predomintincia quer
tas ate a Tracia. De regresso ao seu pals, carregada de despojos, a mes­ politica, quer familiar; ate ao seculo Vl// da nossa era) merecem toda a nossa
atenciiol?
ma ergeu Templos esplendidos a Marte e a Diana e conciliou o amor
dos seus siibditos pela justica do seu governo. De seguida, levando a
cabo uma expedicao para o lado oposto, conquistou uma grands parte A tecnica de subjugacao do homem e a mesma: este fia a la. Sabe­se
da Asia e expandiu o seu dominio ate a Siria. As rainhas que lhe que esta era a actividade do rei asiatico degenerado Sardanapalo.
sucederam, enquanto herdeiras directas, reinaram com esplendor e
ainda contribuiram para o poder e para o prestlgio da nacao das Ama­ O mesmo sera dizer que este se cobriu com o vestido transparente das prostitutas
zonas. Apes um grande numero de geracoes, tendo­se espalhado o ru­
mor do seu valor por toda a terra de Hercules, filho de Alcmena e de 15. Diodoro, op. cit., Livro II. Par. 45, 46.
Jupiter, recebeu de Eristeu, afirma­se, a tarefa de lhe trazer o cinturao 16. Turel, op. cit., p. 75.
17. ld., op. cit; p. 77.

122 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra IV. Anomalias Detectadas nas Tres Zonas 123
e que se ocupou a cardar a Iii, ta/ coma Sardanapalo e os outros soberanos Atraves da sua analise, e possivel alcancar as disposicdes sentimen­
asiaticos correspondentes.18 tais e sociais dos povos que as criaram. Como e evidente, teria sido
necessario saber em que epoca a lenda surgiu, para alern de saber sea
Seria vao procurar o equivalente destes costumes em Africa e, em mesma nao tera sofrido modificacoes ao longo do tempo, isto e, se e de
particular, no Egipto, abstraindo qualquer influencia estrangeira. facto caracterfstica do periodo hist6rico ao qual se pretende atribui­la.
Sendo estas condicoes ideais, impossfveis de preencher, permanecera
sempre uma ampla parte de interpretacao, que podemos, no maxirnn,
Asia: Reino da Rainha Semiramis esforcar­nos por restringir. Mas seremos certamente obrigados a pro­
ceder desta forma caso se pretenda tentar escrever a hist6ria destes
E ainda de Diodoro que se deve extrair a narrativa que relata as primeiros periodos da humanidade, cujos escassos testemunhos so­
accoes da rainha lendaria Semiramis. breviveram.
Uma vez que se trata da mais celebre de todas as mulheres de que Semiramis nao e, como as rainhas africanas, princesa de nascenca,
tenhamos conhecimento, torna­se necessario mostrar de que modo, consagrada rainha pela tradicao, E uma cortesa de condicao humilde,
proveniente de uma condicao humilde, esta alcancou um estado de cujas circunstancias favoraveis conduziram a tomada do poder. Repre­
gl6ria. Filha de Venus e de um pastor sirio, segundo a lenda, a mesma senta, portanto, uma aventureira, tal como todas as rainhas asiaticas,
foi miraculosamente elevada por pombas que tinham feito ninho, em Por detras destas, nenhuma tradicao matriarcal.
grande quantidade, no local onde tinha sido exposta. Os pastores, tendo Ao considerar as tres zonas, Africa, Europa e Asia, e possfvel apre­
descoberto a crianca, entregaram­na ao chefe dos ovis reais chamado sentar a situacao da mulher do seguinte modo:
Simma: daf o nome Semiramis; outros afirmam que este nome signifi­
ca pomba em sirio. Foi dada em casamento a Menone, um cortesao do Em Africa ­ Egitpo e Eti6pia incluidos ­, a mulher usufrui de uma
rei, que a levou a Ninive e de quern teve dois filhos, Hyapate e Hydaspe. liberdade igual a do homem, de uma personalidade juridica e pode
Semiramis foi associada a todos os trabalhos do seu marido, dada a ocupar todas as funcoes (Candace, rainha da Eti6pia e general supe­
sua inteligencia, 0 rei Ninus procurou conquistar a Bactria; cercou a ci­ rior do seu exercito). Ja e emancipada e nenhuma acto da vida publica
dade de Bactram, mas foi repelido. Semiramis, que era subsequente ao lhe e desconhecido.
rei devido a sua inteligencia, encontrou uma saida afortunada para a
empresa de Ninus, ao encontrar um meio de contornar as fortificacoes Na Asia, por tradicao, nao e nada. Toda a sua fortuna se encontra na
da cidade, ao mesmo tempo que distraia os defensores. Foi isto que lhe aventura e na vida cortesa ­ pelo menos no que concerne o berco ao
valeu a homenagem do Rei, que a pediu em casamento, propondo ao qual limitarnos a nossa analise, Aqui, a nocao de concubina e de harem
seu antigo esposo que Iha concedesse. Aguele, que ameacava cravar reveste todo o seu sentido.
os olhos ao seu cortesao em caso de recusa, viu o seu desejo satisfeito,
mas este ultimo enforcou­se e Semiramis tornou­se rainha. Ninus teve Na Europa, na epoca classica (Grecia, Roma), nenhuma aventura cor­
um filho com ela, Ninyas. Quando morreu, deixou a coroa a Semira­ tesa, nenhum representante, nenhum acidente poderia levar a mulher
mis. Atribui­se­lhe, se nao a criacao, pelo menos o embelezamento da a reinar. Esta era sobretudo assimilavel a uma escrava, na medida em
Babil6nia.19 que, nao possuindo personalidade jurldica, nao podendo sequer ser­
Certamente, estes textos sao lendarios e nao seria conveniente in­ vir de testemunha, enclausurada no gineceu, nao podendo participar
terpreta­los a letra. No entanto, Semiramis existiu tal como os outros em qualquer deliberacao publica, o marido possuia o direito de vida
soberanos lendarios acerca dos quais a hist6ria critica possui poucos e de morte, de venda sobre ela e sobre os seus filhos que podia ex­
documentos: Menes, Minos, as Amazonas, etc. A sociologia que pro­ por. No entanto, as "prostitutas" sao as (micas que usufruem da estima
cura, entre outras coisas, apreender a mentalidade dos povos, longe e da consideracao da elite intelectual, sem contudo poder tornar­se
de se incomodar com estas lendas, encontra ali materia para reflectir. "rainhas cortesas" como na Asia. Assim Aspasia foi amante de Pericles,
que mandou embora a sua mulher legi tima para viver com ela, apesar
18. ld., op. cit; p. 148. dos rumores publicos: assim sucedeu tarnbem com a cortesa grega
19. Diodoro, op. cit., Livro II, par. 4.

124 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra IV. Anomalias Detectadas nas Tres Zonas 125
Agathocleia com Ptolemeu IV Filotapor que matou o seu pai e a sua O [ilho, segundo os testemunhos antigos, recebe do pai o dardo e a espada.
irrna­esposa Arsinoe, e as outras Gregas cuja mais celebre e Rhodo­ lsto deve ser o suficiente para ultrapassar as necessidades da sua existencta.
phis. e
Porem, se a rapariga privada de heranca, esta tera de sacrificar a sua vir­
A mulher europeia nem sequer sera emancipada com o C6digo Na­ gindade para adquirir a fortuna que um esposo The assegura.
poleao, tal coma sublinhou Engels: sera necessario esperar o final da ... e, apesar da instituiaio das formas fundamentalmente patriarcais do seu
ultima guerra para ver a Francesa votar. povo, a/guns autores aticos consideram que o melhor uso que se pode dar a
Voltando a Asia, podemos afirmar que, tal coma em Bizancio, a fortuna materna consiste em entregar um dote a filha, a Jim de preservar esta
sucessao ao trono s6 era regulamentada atraves da violencia, da intriga, utlima da corrupciio. 21
excluindo qualquer nocao de matriarcado. Os reis persas adoptaram
o habito de nomerar os seus sucessores em vida e, frequentemente, o Nao existe nada de surpreendente no facto de os Licios praticarem
assassinato politico fazia o restante. o matriarcado se, de facto, estes forem originarios de Creta, tal coma
Segundo Maspero, Ciro trata da sua sucessao antecipadamente desig­ reclama a tradicao. No entanto, nos dados apresentados, permanece
nando o seu filho mais velho, Cambises, que mata o irmao mais nova uma contradicao maior que convern revelar. Num regime matriarcal,
para evitar qualquer rivalidade. coma ja verificamos, e a pessoa que herda, isto e, uma rapariga, que
Cambises e tambern o primeiro Ariano que casa com a irrna, de acor­ recebe o dote em simultaneo, uma vez que e esta que nao abandona o
do com a tradicao egipcia, sem que se tenha conhecimento, tendo em seu cla, a sua familia. E isto e totalmente 16gico e bem fundamentado
conta as suas numerosas crises de epilepsia ea sua depravacao, ­ men­ em acontecimentos, quando se remonta ate a origem. 0 facto de subor­
cionadas por Her6doto ­ acto este que revelaria ja uma intencao sadica dinar a heranca da rapariga a necessidade de lhe conceder um dote
e incestuosa. no momenta do seu casamento coloca­nos, assim, na presenca de um
regime patriarcal em pleno vigor, no qual a mulher deve compensar a
sua inferioridade com o contributo de um dote ao seu marido. Portan­
Matriarcado Lf cio to, e para satisfazer esta exigencia imperiosa de dotar as raparigas em
todas as sociedades indo­europeias, exigencia que levava, por vezes, a
Segundo Her6doto, Licio viria de Lico, filho de Pandiao, rei de Atenas; suprimi­las ou a livrar­se delas atraves da venda, que parece ter levado
mas os primeiros habitantes da Licia teriam sido emigrados de Creta, ao acordo da entrega de um legado, uma heranca que lhe possa servir
sob o comando de Sarpedao, irrnao de Minos. Os Licios nomeavam os de dote. Sendo este ultimo injustificavel fora das condicoes de vida pa­
seus filhos exclusivamente segundo o name da sua mae. triacal, seria vao procurar na sociedade gerco­romana, depois da seden­
tarizacao, uma razao material que o pudesse legitimar: o mesmo e um
A sua genealogia baseava­se unicamente na filiaciio materna e era somente prolongamento de uma tradicao que remonta a epoca da vida n6mada.
o estatuto social da miie que classificava a crianca. Nicolas de Damas comp/e­ Por conseguinte, o matriarcado licio e no minima duvidoso. Este com­
tas estes dados com detalhes relativos aos direitos de sucessiio exclusivamente porta, com efeito, dais factores contradit6rios Inconcillaveis a partida:
reservados as raparigas e que, segundo ele, seria proveniente da tradiciio a transmissao dos direitos politicos por via da rapariga, por um lado, o
licia, direito niio escrito que Socrates definiu coma emanando da pr6pria que resulta de um matriarcado autentico e, por outro lado, o contributo
divindade. 20 de um dote para obter um esposo, costume proveniente do patriarcado
nao me�tentico. Porern, nao sera uma !al justaposicao de habitos
Nao e o filho de Sarpedao que lhe sucede, mas a sua filha Laodamia. pr6pria de uma zona de confluencia coma a Asia Menor?
Procurou justificar­se este costume licio pela necessidade de dotar
as raparigas. Turel relembra a este respeito que em Roma se repetia,
constantemente, que a rapariga sem dote casada desta forma nao se
distinguia da concubina.

20. Turel, op. cit., pp. 25 e 26. 21. Id; op. cit., pp. 60 e 61.

126 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra IV. Anomalias Detectadas nas Tres Zonas 127
V. Cornparacao dos outros
aspectos das Culturas N 6rdica
e Meridional
O estudo comparativo das estruturas meridional e n6rdica, das suas
realizacoes, pode ser generalizada e alargada a outras areas que nao
a da familia. Foi o tema desta analise que impos o inicio a partir deste
ponto. Por outro lado, nao era indiferente saber, apesar das informa­
coes gerais, qual dos dois berc;:os tinha, em primeiro lugar, oferecido a
mulher a possibilidade de se emancipar.
A cornparacao da gen Estados, no norte e no sul, nao e menos
edificante.

Concepcao do Estado Patri6tico


A vida sedentaria e n6mada nao deu apenas origem a dois tipos de
familia, mas tambern a duas formas de Estado. 0 colectivismo e a con­
sequencia 16gica do sedentarismo agricola. Este culmina, desde cedo,
sobretudo no caso concreto do Egipto, naquilo que Andre Aymard
designa a vocaciio imperial do Pr6ximo Oriente.

Africa
Sabemos que a estrutura do Vale do Nilo exigiu da populacao, desde
a sua instalacao, empreendimentos e uma actividade geral comuns a
todos os Nomos e a todas as cidades, por forma a fazer face a fen6­
menos naturais, tal como as cheias do rio. A obrigacao de quebrar o
enquadramento demasiado estreito, isolador, da familia primitiva, isto
e, do cla, a necessidade de um poder central forte, que transcendesse
o indivf duo e coordenando o trabalho, a unificacao administrativa e
cultural, a nocao de Estado e de Nacao, tudo isto estava implicado nas
condicoes materiais de existencia, Para alem disso, os clas primitivos
fundiram­se, desde cedo, para vir a constituir apenas divisoes adrninis­
trativas (os Nomos). 0 Estado surgiu com o seu aparelho de Governo
aperfeic;:oado ate nos mfnimos detalhes, sem que se possa apreender,

v. Cornparacao dos outros aspectos das Culturas N6rdica e Meridional 129


nem que seja atraves da lenda, a existencia anterior de um perf odo de deste modo que se produziu a reliqiiio domestica, que niio poderia ter emer­
vida n6mada. 0 mesmo e valido para o Egipto, para a Eti6pia e para o gido numa sociedade constitufda de outro modo, e que deve mesmo ter sido
resto da Africa N egra. um obstaculo para o desenvolvimento social. Assim, tambem foi estabelecido
O sentimento patri6tico e, antes de mais, um sentimento de orgulho o antigo direito privado, que mats tarde entrou em conflito com os interesses
nacional. 0 individuo e suhordinado a colectividade, uma vez que e do de uma sociedade pouco alargada, masque estava em perfeita harmonia com
hem publicoque depende o hem individual; assim, o direito privado o estado de sociedade na qua/ tin ha surgido ...
e suhordinado ao direito publico, 0 que nao significa que o indivlduo ... Ate mesmo na morte ou na existencia que /he sucede, as Jamflias niio se
seja um numero negligenciavel e que as civilizacoes meridionais, por misturam. Cada uma continua a viver a parte no seu tumulo, de onde O
oposicao as n6rdicas, atrihuam pouca importancia as unidades huma­ estrangeiro e exclufdo. Cadafamflia possui tambem a sua propriedade, isto e,
nas, a personalidade humana. o seu bocado de terra que /he esta ligada inseparavelmente pela sua reliqiao:
os seus deuses Termes guardam o recinto, e os seus Manes velam par ela. o
isolamento da propriedade e tao obrigat6rio que dais domfnios niio se devem
Europa confinar um ao outro e devem manter entre si uma extensiio de terreno que
seja neutra e inviolavel. 2
Em contrapartida, nos Arianos, o estilo nomada da vida faz de cada
cla, isto e, de cada famflia, uma entidade ahsoluta, uma celula autono­ A contiguidade, mesmo entre duas casas, era um sacrilegio. Com a
ma, independente em todas as suas determinacoes, auto­suficiente do formacao das cidades, a lei do isolamento prevaleceu.
ponto de vista econ6mico e outros. Para alem disso, o chefe de famllia
nao tern que prestar contas a ninguem, nenhuma autoridade acima da Entre duas cidades vizinhas, existia a/go de mais intransponfvel que uma
sua, nenhuma religiao acima da sua, nenhuma moral exterior a moral montanha: era a serie dos limites sagrados, era a diferenca dos cultos, era a
domestica, Esta situacao, originada durante a vida nornada, perpetua­ barreira que cada cidade erguia entre o estranqeiro e os seus deuses.3
­se durante muito tempo apos a sedentarizacao: Fustel de Coulanges
demonstrou que o direito privado, nos Arianos, e anterior a fundacao Nada devia ser comum entre duas cidades. Devido a religiao, ne­
da cidade, e que e a razao pela qual, durante um longo perf odo, o Estado nhuma outra forma de organizacao social que nao a cidade era pos­
nao tinha qualquer poder para intervir na vida privada das familias, isto sfvel. Cada uma era soherana, possuia o seu pr6prio sistema de pesos e
e, em Roma e na Grecia, durante seculos, podia matar­se um filho, uma medidas, o seu calendario e as suas festas, os seus anais, e nao podiam
esposa, um escravo, ou vende­los sem cometer um crime face ao Estado, conceher nenhuma autoridade transcendente. Quando uma cidade era
que era entao a Cidade. 0 poder publico terminava a porta das casas. vencida, afirma Fustel de Coulanges, a mesma podia ser saqueada, os
seus hahitantes podiam ser mortos ou vendidos coma escravos, mas
Os tempos em que o homem s6 acreditava nos deuses domesticos e tambem o nao era possivel suhstituir a soherania estrangeira a dos seus cidadaos
tempo em que s6 existiam Jam Was. E verdade que estas crencas conseguiram e governa­la como uma col6nia. A pr6pria natureza das instituicces
subsistir depois, e ate por bastante tempo, quando as cidades e as naciies es­ opunha­se, portanto, a unificacao dos territories para a forrnacao de
tavam [ormadas. 0 homem niio se liberta Jacilmente das opinioes que alguma urna nacao,
vez tiveram influencia sabre ele.1 Deste modo, e na sequencia de uma influencia externa, provavelmente
meridional e egf pcia, com a ajuda da alteracao das condicoes de vida,
Tai como o autor salienta, estas instituicoes concehidas unicamente que os Greco­Latinos acederam, gradualmente, a nocao de uma unidade
para a vida n6mada, constituirao durante muito tempo um obstaculo nacional, de um imperio, Fustel de Coulanges refere justamente:
para a evolucao polltica e social depois da sedentarizacao,
Se compararmos as instituiciies polfticas dos Artas do Oriente, com a dos Arias
E possfvel, assim,
entrever um longo perfodo durante o qua/ os homens niio do Ocidente, niio se encontra quase nenhuma analogia. Se compararmos, em
conheceram nenhuma outra Jorma de sociedade que niio a da familia. Foi
2. Id; op. cit., p. 239.
1. Coulanges, Fustel de, op. cit., pp, 124 e 125. 3. Id; op. cit., p. 126.

V. Ccmperacec dos outros aspectos das Culturas NOrdica e Meridional 131


130 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra
contrapartida, as instituicoes domesticas destes diversos povos, percebemos a nacionalidade ateniense, enquanto que no Egipto, segundo Fontanes,
que a familia era constitufda segundo o mesmo princfpio que a Grecia e a desde a Xiii! dinastia, Negros, Brancos e Amarelos ja eram admitidos a
Italia. 4 viver como cidadao iguais.6
Quanto mais a forca do direito privado revelava, no inicio da for­
Enquanto que as instituicoes domesticas dos Arianos lhes perten­ macao das cidades, a existencia de um periodo n6mada anterior, do
cem integralmente, as suas instituicoes politicas parecem ter sido pro­ mesmo modo o direito publico vai sobrepor­se, com o tempo, as insti­
venientes do exterior. tuicoes privadas; e, no final, a vida do individuo estara completamente
Este particularismo das instituicoes que nao leva em considera­ subordinada a do Estado. Na verdade, a liberdade individual s6 exis­
cao o caso do estrangeiro, com a xenofobia como sua consequencia tiu na epoca patriarcal e unicamente para os chefes de familia. Actu­
16gica, justifica o patriotismo desenfreado dos antigos greco­latinos. almente, ja nao existe para ninguern, com o reforco da autoridade da
O homem livre, quando era estrangeiro numa cidade, pelo menos ate Cidade­Estado; este encarrega­se da educacao das criancas, pode dar
as primeiras revolucoes, devia obrigatoriamente tornar­se "cliente", ordens a cada cidadao daquilo que deve fazer, exila aqueles de entre os
isto e, escravo, de um habitante da cidade que o protegia. � ideia de quais sao demasiado virtuosos ( ostracismo ), intervem ate nos senti­
um estrangeiro livre e usufruindo de uma personalidade jurldica nao mentos dos cidadaos,
aflorava os Greco­Latinos. Matar um estrangeiro nao representava um
crime; nao prevendo as leis o seu caso, nao podia apresentar queixa Niio existia nada no homem que fosse independente ... A vida privada niio es­
contra ninguern e nao podia ser julgado por nenhum tribunal. S6 se era capava a omnipotencia do Estado. Muitas cidades gregas proibiam o homem
homem no seu pr6prio lar: de permanecer solteiro. Esparta punia niio somente aquele que niio se casava,
mas tambem aquele que o fazia tardiamente. 0 Estado podia determinar o
A pequena patria era o recinto da familia, com o seu tumulo e o seu far. A trabalho a Atenas ea ociosidade a Esparta. Exercia a sua tirania ate nas mais
grande patria era a cidade, com o seu Pritaneu e as seus herois, com o seu pequenas coisas; em L6crida, a lei proibia os homens de beber vinho puro;
recinto sagrado e o seu territorio marcado pela retiqiiio. Terra sagrada da em Roma, em Mileto, em Marse/ha, proibia­o as mu/heres: Era corrente que a
patria, afirmavam as Gregas. Niio era uma palavra vii. Este solo era verda­ tradiciio fosse fixada invariavelmente pelas leis de cada cidade; a legisla9ii.o
deiramente sagrado para a homem, tendo em conta que era habitado pelos de Esparta regulamentava o penteado das mu/heres, a de Atenas proibia­as de
seus deuses. Estado, Cidade, Patria, estas palavras niio representavam uma levar mais de ires vestidos para viajar. Em Rodes, a lei proibia que se fizesse
abstraccao, ta/ coma nos modernos; estas representavam realmente todo um a barba, em Bizancio, punia com uma mu/ta aquele que possufa uma lamina
conjunto de divindades locais com um cu/to a cada dia e crencas poderosas de barbear; em Esparta, pelo contrario, exigia­se que se desfizesse o bigode.
acerca da alma ... O Esta do tin ha o direito de niio tolerar que as seus cidadii.os fossem disformes.
... Uma ta/ patria niio representa um mero domicflio para o homem. Caso Por conseguinte, este ordenava ao pai que tivesse um filho desta natureza
abandone as suas muralhas sagradas, caso ultrapasse as limites sagrados do que o matasse. Esta lei vigorava nos antigos c6digos de Esparta e de Roma.
territ6rio, este jamais encontrara uma religiii.o ou laco social de qualquer es­ Niio temos conhecimento se o mesmo existia em Atenas; sabemos apenas
pecie. Em qualquer outro /ado que niio a sua patria, este encontra­se excluido que Arist6teles e Platiio o inscreveram nas suas legisla96es idea is. Existe, na
da vida regular e do direito; em qualquer outro local, este permanece sem historia de Esparta, uma caracteristica que Plutarco e Rousseau admiravam
deus e fora da vida normal. 56 ali e que ele possui a sua dignidade de homem grandemente. Esparta acabava de ser submetida a uma derrota em Leuctra
e os seus deveres. 56 ali e que ele pode serum homem.5 e muitos dos seus cidadiios tin ham perecido. Dada esta noticia, os pais dos
defuntos tiveram de se mostrar publicamente com um rosto de felicidade. A
' 0 patriotismo greco­latino, n6rdico, e portanto especificamente dife­ miie que sabia que o seu Ji/ho tinha escapado ao desastre e que ia voltar e
nte do patriotismo egipto­africano, no que concerne as raz6es que ve­lo demonstrava afliciio e chorava. Aquela que sabia que niio voltaria a ver o
estao na sua origem. A xenofobia dos paises n6rdicos, por oposicao Ji/ho dava provas de alegria e percorria as templos agradecendo aos deuses.
a xenofilia dos paises com regime matriarcal, era tal que, durante a Tai era, portanto, o poder do Estado que ordenava a inversiio dos sentimentos
epoca de Her6doto, no seculo V, s6 um adivinho e que tinha adquirido naturais e que era obedecido!7

4. ld., op. cit., p. 125. 6. Fontanes, Marius, Les Egyptes; Paris, 1880. p. 169.
5. ld., op. cit., pp. 233 e 234. 7. Coulanges, Fustel, op. cit., p. 265­266.

132 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra V, Comperecsc dos outros aspectos das Culturas NOrdica e Meridional 133
o
que resta entao da liberdade individual que parecia tao carac­ marca a delimitacao: e a partir deste que os costumes sao suavizados
teristica do berco n6rdico desde a antiguidade? Nada para o perfodo que se cornecam a substituir os seres humanos par animals, destma,
que nos interessa; observarnos que a mesma deixou de existir pouco dos ao sacrificio. A substituicao de Isaque, seu filho, pelo carneiro tra­
depois da sedentarizayao e que, mesmo anteriormente, s6 era valida zido par um anjo apos a terrfvel ordem divina que a tradicao tern tanta
para o paterfamilias. dificuldade em justificar, so pode ser interpretada desta forma.
Com o contacto dos Estados meridionais e com o fim da vida n6ma­ No Egipto, cenas representando, talvez, sacrificios humanos que
da, as N6rdicos vao conceber um tipo particular de Estado que per­ remontam a Pre­historia estao esculpidas na Paleta de Narmer, desco­
manece marcado de sequelas do perfodo precedente. Este culmina berta par Quibell em Hierac6mpolis. Em contrapartida, ao que parece,
rapidamente num totalitarismo que qualificarfarnos de "nazi" actual­ os Hebreus ainda os praticavam ate ao seculo V, no tempo em que
mente, e que nao tern correspondente no sul, Egipto, Eti6pia e no resto Herodoto visitou o Egipto. Foram igualmente assinalados em algumas
da Africa Negra. E bastante provavel que o cidadao egipcio tenha sido tribos germanicas,
esmagado pelo peso dos impastos e dos trabalhos arduos durante a Na Africa Negra, apenas subsistiram de modo muito parcial em
epoca da construcao das Pirarnides, mas nunca conheceu esta intro­ Daorne, no pals Massi, contrariamente a opiniao generalizada. Quanta
missao do Estado na sua vida privada. E impossivel citar, na historia a antropologia propriamente dita, nos casos reals, esta esta sobretudo
do Egipto antigo, da Etiopia e da Africa Negra, um (mica caso em que a relacionada com a penuria econornica, tal coma foi o caso na Europa
autoridade estatal tenha impasto expor as criancas pelo simples facto durante a Idade Media, ou na Antiguidade, para as armadas de Cam­
de terem nascido disformes, ou de permitir a limitacao do seu nasci­ bises em marcha contra a Etiopia,
mento. Pelo contrario, o respeito pela vida, pela pessoa humana era de A diferenca dos bercos nao engendrou unicamente, portanto, duas
tal modo que, segundo Herodoto, quando um cidadao mibio era con­ famflias diferentes; esteve de igual modo na origem de dois tipos de
denado a morte, o Estado contentava­se em intima­lo com a ordem de Estado irredutfveis um ao outro. Mas a Cidade­Estado nordica, que e
se suprimir, mas a sua propria mae velava entao, par patriotismo e por uma organizacao sedentaria baseada nas ideias adquiridas sob a vida
civismo, pela execucao da sentenca e encarregava­se ela propria caso nornada, revelar­se­a a menos adaptada as novas condicoes de vida
o filho viesse a falhar. Isto relembra, certamente, a morte de Socrates, dos cidadaos que a servem. Explodira entao, por assim dizer, debaixo
condenado a beber o suco da cicuta. Porern, a influencia meridional dos nossos olhos na epoca pre­historica, para dar lugar ao tipo de
nos paises nordicos nao se limitou ao ambtto estatal, esteve presente Estado meridional: aquele que poderfamos designar de Estado ter­
tambern ao nfvel da legislacao, para a melhoria das condicoes de vida ritorial, par oposicao a Cidade­Estado, recobrindo varias cidades e
e pela igualdade dos cidadaos, Quando Solon foi designado palos Ate­ transformando­se, par vezes ate, em Imperio, Tai foi a evolucao da
nienses para lhes redigir um Codigo que viesse a gerir as suas vidas cidade Romana, ate ao momenta do seu apogeu durante o qual podia
publica e privada, este inspirou­se oficialmente na Sabedoria egi pcia. considerar o Mediterraneo coma um mar interior: mare nostrum.
Platao refere que aquele se deslocou ao Egipto para se iniciar jun to dos A evolucao do patriotismo sera corolaria com a do Estado, com o
sacerdotes que, outrora, consideravam os Gregas coma criancas: na desaparecimento da xenofobia ariana.
verdade, eram simplesmente mais jovens na via da civilizacao.
Seria possfvel conciliar este lugar atribuido ao individuo nas so­
ciedades meridionais com os casos de sacrificios humanos que ali Realeza
detectarnos? Na realidade, estes sao comuns a toda a humanidade. Nos
Gregas, originariamente, comiam­se os inimigos vencidos, crus ou co­ Os imperativos da vida agrfcola colectiva exigiram, desde cedo, a
zidos; encontram­se vestigios deste costume na Iliada. Agamemnon, existencia de uma autoridade temporal, coordenadora, que nao tardou
general superior dos Gregas, sacrifica a sua filha Ifigenia, antes da par­ em transcender a sociedade para adoptar um caracter sobrenatural,
tida para Troia, a fim de se conciliar com os deuses da Vitoria. 0 seu divino.
av6 ja tinha servido ao seu irrnao, a mesa, a carne dos seus sobrinhos.
Foi esta, segundo a tradicao, a origem do destino pavoroso que se aba­ Desde o inicio, o rei e deus. Niio par imagem, a Jim de relembrar o seu poder
teu no ramo dos Atridas, isto e, de Agamemnon. Nos Hebreus, Abraao e a sua superioridade sabre o homem com um. E, pelo contrtirio, a expressiio

134 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra


v. Comparar;Bo dos outros aspectos das Culturas N6rdica e Meridional 135
literal de uma cren9a que constitui uma das particularidades essenciais do A escolha do africano, seja ele egf pcio antigo, etfope, ou cidadao do
Egipto. A crenca, alias, evoluiu, mas nunca perdeu o seu vigor.6 resto da Africa N egra, em particular Baotou, esta relacionada com a
concepcao que este tern acerca do mundo dos seres, das essencias·
A ideia de Rei­Deus parece nunca ter particularmente retido a aten­ assim, a toda uma ontologia, a toda uma metafisica a que o R. P. Tern­
cao dos Arianos; os reis, com eles, eram no maxima lntermediarios en­ pels designa "A filosofia Baotou". Toda o universo esta fragmentado
tre a divindade e o comum dos mortais, a quern transmitiam as ordens numa serie de seres, de forc;:as quantitativamente diferentes, e portan­
divinas no ambito de uma cerimonia ritual bem estabelecida. Porem, to, tarnbem qualitativamente. Daqui resulta uma hierarquia ou ordem
estes eram homens aos olhos de todos e mesmo nas epocas mais recua­ natural. Cada uma destas parcelas de essencias, de seres ontologicos,
das. emerge por intermedio de um corpo material animado ou inorganico.
Neste tempo, em que a funcao social do rei ariano ainda nao era Estas forcas, que se dizem vitais, sao aditivas, isto e, se eu carrego em
superflua, este ultimo, salienta Fustel de Coulanges, usufruia de uma mim, sob a forma de talisma, amuleto, fetiche ... ­ designar­se coma
autoridade sagrada e inviolavel. A realeza era realmente vivida pelo bem se entender ­ o orgao onde a forca vital de um animal e suposta
povo e o soberano dispensava completamente o aparelho repressivo, estar localizada (garra ou presa de leao, par exemplo ), acrescento esta
de que os Estados modernos precisam para se fazerem obedecer. forca a minha. Para que um inimigo proveniente do exterior me possa
destruir de modo ontologico, e por via das consequencias, de modo
A realeza estabeleceu­se muito naturalmente, em primeiro lugar na familia, fisico, e necessario que totalize, por meios similares, uma soma de forca
mais tarde na cidade. Esta niio Joi imaginada pe/a ambiciio de a/guns; surgiu vital superior aquela de que disponho agora que me associei a do leao.
de uma necessidade que era manifesta aos olhos de todos. Durante longos Este universo de forc;:as e submetido a uma gravidade, uma especie de
seculos, Joi pacifica, honrada, obedecida. Os reis niio tin ham necessidade de lei de gravitacao que exige que a posicao de cada corpo exista natural­
recorrer a forca material; niio possuiam nem exercito, nem finances; porem, mente em funcao do seu peso do ser, da sua quantidade de forca vital.
apoiados por crencas que eram poderosas acerca da alma, a sua autoridade O contrario romperia a harmonia universal e a concretizacao natural
era sagrada e invioldvel. 9 dos fenomenos seria gravemente abalada. Ea uma desordem ontologi­
ca deste tipo que se imputa a emergencia das secas, as mas colhei­
Reinava, assim, uma confusao do sacerdocio e do poder temporal. tas, as nuvens de gafanhotos, as epidemias de peste, etc. Portanto, e a
Era­se verdadeiramente rei­sacerdote, interprete da vontade divina, ordem e a harmonia universais que exigem que cada ser animado ou
mas nao deus. Quando a realeza for derrubada, mantendo­se as cren­ inorganico esteja no seu lugar e que, em particular, o homem correcto
cas religiosas, recorrer­se­a a "sorte" para conhecer a vontade divina ocupe o lugar correcto.
relativamente aos magistrados. Tal e a necessidade que preside a escolha do rei. Este deve ser, de
ntre todos os seres viventes, aquele que dispoe da maior quantidade
Platiio exprimia o pensamento dos Antigos quando afirmava: "o homem que o de forca vital. So nesta condicao e que o pafs nao atravessara calami­
destino designou, diz­se caro a divindade e consideramos Justo que comande. dades. Compreende­se, deste modo, par que motivo, segundo Hero­
Para todas as magistraturas que tern a ver com as coisas sagradas, deixando doto, os Etfopes Macrobios designavam coma rei o mais forte e o mais
a divindade a escolha daqueles que /he convem, entregamo­nos ao destine;" sao de entre eles. Penetramos igualmente no sentido profundo da
A cidade acreditava assim receber os seus magistrados de deus.t" celebracao do ZED no Egipto, conhecida coma a supressao ritual do
Rei. Trata­se, quando este resulta de um longo reinado e de uma certa
As motivacoes que presidem a escolha do Rei Africano, daquele que idade, quando perdeu realmente o seu vigor aos olhos de todos, de
poderfamos chamar de primeiro magistrado, sao totalmente diferen­ Iha renovar atraves de rituais magicos que, dirfamos nos, so podem
tes. Nao sao deuses que designam o candidato mais apto, por interme­ incrementar a sua forca vital ja que, no final da cerimonia, o rei esta
dio de um sorteio e com base num criteria que se desconhece. aparentemente tao velho quanta antes. Seo seu vigor mudou, so e pos­
sfvel de um modo ontologico, no ambito daquilo que se pode designar,
num ser, a sua forca vital.
8. Aymard, A e Au boyer,)., L'Orient et la Grece antique, op. cit., p. 22. Ao que parece, nos tempos primitivos, o rei era pura e simplesmente
9. Coulanges, Fustel, op. cit., p. 208.
10. ld., op. cit., p. 213.
entregue a morte, depois de um certo mirnero de anos a reinar, ao fim

136 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra V. Comparacdo dos outros aspectos das Cultu,as N6rdica e Meridional 137
dos quais se considera que o vigor, que lhe permitia assegurar a sua de um canal. Segundo Caillaud, que descobriu Meroe, era chamado de
funcao, se esgotou. primeiro agricultor, no pafs de Sennar, isto e, na Nubia. E a ele que se
deve a fertilidade dos campos e a ausencia de calamidades sociais de
Durante o reinado, renovam­se cerim6nias do mesmo genera. Siio jubileus; qualquer especie, Para alem disso, era considerado normal que este
mas o sentido da maior parte de entre e/as e mais rico do que o de simples reservasse ­ ritualmente, por assim dizer ­ uma parte das colheitas de
festas. Trata­se de voltar a dar ao rei, na frescura vigorosa de outrora, es­ cada um para o mantimento da sua pr6pria famflia e dos seus servos.
tas forcas reliqiosas e maqicas de que depende a prosperidade do pafs. Sem ,­ Assim sucedeu durante os primeiros reinados, ate que o aparelho
duvida, estas cerim6nias representam a adaptaciio de costumes brutais que, administrativo introduziu a corrupcao, Como e evidente, a funcao de
inicialmente, culminavam na sua morte e na sua substituiciio por um sucessor defesa do pafs cabia tarnbern ao rei, mas nos pafses meridionais agrari­
mais jovem.t? os, durante perfodos alargados de paz, o papel militar do rei era rele­
gado para segundo plano, depois do seu papel sacerdotal e agrfcola. As
Seligman demonstrou que esta concepcao vitalista do Egipto antigo coisas aconteceram desta forma ate a epoca em que o mundo meridi­
e tambern a do resto da Africa Negra, mesmo actualmente12• Em alguns onal foi arneacado e invadido pelo mundo indo­europeu, no decorrer
povos de Africa, o rei e efectivamente entregue a morte depois de uma do segundo milenio,
duracao variavel de reinado, que e de dez anos nos Mboum da Africa
Central, e a cerim6nia tern lugar antes da colheita do painco, Entre os Numerosos soberanos egipcios parecem ter vivido pacificamente, e o [re­
povos que ainda praticam a execucao ritual do rei, deve citar­se os quente elogio da paz, com acentos quase modernos, niio representa a oriqi­
Ioruba, os Dagbani, os Tchamba, os Djoukon, os lgara, os Songhai, os nalidade menos notavel da pr6pria literatura oficial do Egipto.15
Ouaddal, os Hausa de Gobir, do Katsina e de Daoura, os Shilluk13• Esta
pratica existia igualmente no antigo Meroe, isto e, no Sudao de Cartum, Nern a guerra era o apanagio do sul, antes da guerra dos N6rdicos,
no Uganda­Ruanda. nem a agricultura era o do berco setentrional. Foi portanto, muito pro­
Um rei desta natureza era simultaneamente o sacerdote que, no vavelmente, com o contacto com o mundo meridional da epoca egeia
Egipto, delegava as suas funcoes sacerdotais a um oficiante que as que os invasores n6rdicos da Grecia e da Italia, adoptaram, gradual­
cumpria diariamente no templo. mente, o habito de praticar, de respeitar, e ate mesmo de considerar
O rei africano distingue­se do rei n6rdico pela sua essencia divina e finalmente a agricultura enquanto sagrada, tal como e tradicao no
pelo caracter vitalista das suas funcoes, Um deles e um homem­ berco meridional. Existe, de facto, contradicao no que concerne a di­
­sacerdote, o outro e um deus­sacerdote entre os viventes: o rei do vinizacao do cultivo do solo por n6madas. Para alern disso, diversas
Egipto e de facto o Deus Falcao, Horus, vivendo para o maior beneficio provas demonstram que, na peninsula italica, foram os Etruscos que
de todos, mesmo na sua actividade desportiva: iniciaram os Romanos ate no tracado ritual da cidade com o arado.
Na Grecia, a tradicao faz remontar a Cecrope e Egito, ambos filhos de
Cacando e pescando, este ainda cumpre a sua funciio convencional de so­ Egipto, a adopcao da agricultura como actividade nacional.
berano, uma vez que se mostra sempre, consequentemente, hdbil, poderoso e
preocupado, pelo menos na cara ­ mesmo o crocodilo e o hipop6tamo existem
nos ptuitanos ­ em purgar o pais de animais se/vagens.14 Religiao
O rei no Egipto e na Eti6pia era tambern o primeiro agricultor: e No domfnio da religiao, de igual modo, a diferenc;a nao e menos
frequentemente visto nas representacoes dando a primeira pancada significativa entre as concepcoes n6rdica e meridional.
com a picareta (como sinal de bencao") para dar infcio a escavacao Mircea Eliade, em Histoire des religions, quis demonstrar o caracter
universal de algumas crencas religiosas, tal como os rituais ctonico­
11. Aymard, A. e Aubayer, J., op. cit.. p. 24. ­agrarios, que poderfamos encontrar de forma mais ou menos signifi­
12. Seligman, A Study in Divine Kingship; Landres, 1934.
13. Westermann e Baumann, Peuples et Civilisations de l'Afrique; trad. Mlle Hamburger, Payor, cativa, em todas as sociedades na sua origem. No en tan to, uma analise
1941, p. 328.
14. Aymard, A., op. cit., p. 25. 15. /d., op. cit., p. 26.

138 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra v. Ccrnparacdc dos outros aspec.tos das Culturas N6rdica e Meridional 139
atenta dos factos obriga a rejeitar este ponto de vista. E contraditorio, este cu/to com elas, umas nas margens do Gange, outras nas do Mediterriineo.
par exemplo, que a cultura e o pensamento religioso de um povo Posteriormente, entre estas tribos divididas e que ja niio tinham relap'io entre
nomada se inicie par rituais agrarios, Tera sido, portanto, depois da si, umas adoraram Bra ma, os outros Zeus, e outros ainda Jana; cada grupo
sedentarizacao que os n6madas arianos terao adoptado, ao mesmo providenciou os seus pr6prios deuses. Porem, todos conservaram, coma um
tempo que a agricultura, os rituais ea religiao corolaria, De modo que, legado antigo, a religiiio primeira que tinham concebido e praticado no berco
se nao tivermos em conta a cronologia, corremos o risco de generali­ com um da sua racal?
zar crencas que, originalmente, eram extremamente Iocalizadas.
Eliade mostrou, de facto, que com a descoberta da agricultura surgiu Segundo o autor, visivelmente, os deuses da Natureza, tal coma Zeus
uma religiao fundada numa Triade cosmica, transformada em atmos­ foram adoptados tardiamente, contrariamente a opiniao que faz rernon­
ferica: o Ciel, ou Deus­Pai, por interrnedio da chuva, fecunda a Terra, tar a sua origem ao tempo das estepes e que se baseia em analogias
ou Deusa­Mae para que nasca a Vegetacao­Filha, Estas tres divindades linguisticas, no minima duvidosas. Ao demonstrar que nao faz parte da
c6smicas nao tardaram a antropomorfizar­se ­ entenda­se, encarnar sua natureza Intima nao serem adorados pelo estrangeiro, nao serem
em seres humanos ­ nas pessoas de Osiris, Isis, Horus, mas numa xenofobos, este op6e­os aos deuses do lar que nao saberiam submeter­se
epoca em que, sem duvida, os Arianos ainda eram nomadas e prati­ a presenca ou a veneracao do estrangeiro. 0 culto dornestico separava
cavam um culto claramente diferente, sabre o qual a lingufstica com­ os individuos ate na morte, porque ate mesmo alern­tumulo, as fami­
parada permite obter alguns esclarecimentos. 0 testemunho de Cesare lias nao se misturavam. Este teve durante muito tempo a supremacia
peremptorio sabre este ponto e atesta que, ate uma epoca recente, as em relacao aos outros cultos; Agamemnon, generalissimo vitorioso,
crencas nordicas e meridionais permanecem distintas. regressando de Troia, dirige­se em primeiro lugar ao seu lar para lhe
agradecer:
Os costumes dos Germanos siio muito diferentes: porque niio possuem
qualquer druida para presidir ao cu/toe niio se preocupam, de todo, com sacrifi­ l}Jiio e a jupiter que este vai agradecer; niio e num templo que ele vai manifestar
cios. Apenas consideram os deuses que apreendem e cujas beneficiencias siio a sua alegria e a sua gratidiio; este oferece o sacrificio da acetic de qracas ao
sensfveis, o sol, Vulcano ea lua: nem sequer ouviram Jalar dos outros.
16
lar que se encontra na sua casal"

Com Tacito, ja se percebe a influencia meridional nos Germanos Sue­ Inicialmente, as divindades nacionais eram elas proprias dornesticas
vos (actuais Suabios] que sacrificam a [sis, cornecando assim a adoptar e pertenciam a famflias privadas.
os rituais agrarios do sul. Vendryes mostrou qual foi a extensao e a
profundidade desta influencia religiosa meridional recente. Foi necessario muito tempo antes que estes deuses saissem do seio das famf­
Com Fustel de Coulanges, ficamos a saber que a base religiosa da lias que os tinham concebido e que os viam coma patrim6nio pessoal. Sabe­
farnilia patriarcal nornada e o culto dos Antepassados: mos ate que muitos de entre eles nunca se libertaram desta liga9ao domesti­
ca. A Demetra de Eulesis permanece a divindade particular da familia dos
Constitui uma grande prova da antiguidade destas crencas e destas praticas, Eumolpides; o Ateneu da Acr6pole de Aten as pertencia a famllia dos Butades.
o facto de as encontar simultaneamente nos homens da margem do Mediter­ Os Potitii de Roma tin ham um Hercules e os Nautii uma Minerva ...
rtineo e nos da peninsula indiana. Certamente, os Gregas niio adoptaram esta Acontece que, com o passar do tempo, a divindade de uma famflia que tivesse
religiiio dos Hindus, nem estes ultimas dos primeiros. Mas os Gregas, os Italia­ angariado um grande prestfgio na imaqinacdo dos homens e parecendo
nos, os Hindus pertenciam a uma mesma raca; os seus antepassados, numa poderosa proporcionalmente a prosperidade desta famflia, qualquer cidade
epoca muito recuada, tinham vivido em conjunto na Asia Central. Foi ali que desejava adopta­la e prestar­lhe um cu/to publico para obter os seus benefi­
conceberam, em primeiro lugar, estas crencas e estabeleceram estes rituais. cios. Foi o que aconteceu com a Demetra dos Eumolpides, com o Ateneu dos
A religiiio do Jago sagrado data, assim, da epoca longfnqua e obscura em que Butades, e com o Hercules dos Politii.19
ainda niio existiam nem Gregas, nem ltalianos, nem Hindus, e em que s6 exis­
tiam Arias. Quando as tribos se separaram umas das outras, transportaram
17. Fustel de Coulanges, op. cit; p. 26.
18. ld., op. cit., p. 23.
16. Cesar, La Guerre des Gau/es, Livro I, cap. 21. 19. ld., op. cit., pp. 140· 141.

140 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra V. Comparadic dos outros aspectos das Culturas N6rdica e Meridional 141
Este caracter privado, dornestico, constitui um trace comum aos cultural n6rdica. Os pr6prios Citas, nao obstante o seu estado prirni­
deuses arianos e semiticos. Com efeito, mesmo ap6s o triunfo do tivo, apenas representavam Ares (Marte, deus da guerra) sob a forma
monoteismo na consciencia humana, Jave perrnanecera o deus do seu sumaria de uma espada plantada num monte de madeira.
"povo eleito", tal como acontecia, inicialmente, com o deus da tribo que A situacao religiosa era completamente diferente no sul, em Africa.
nenhum estrangeiro podia adorar. Nada de redencao universal: este Com a adjuvante da brandura do meio fisico, os Nubios e os Egipcios ti­
apenas ama e · salva os seus. Tai como Zeus, e rancoroso e colerico e veram, desde cedo, mais de um milhao de anos antes dos Greco­Latinos
manifesta­se atraves do trovao". Era provavelmente tambern, origi­ e dos Semitas, a nocao de um Deus todo­poderoso, criador de tudo O
nalmente, uma especie de deus Agni ­ cul to do fogo ­ tao caracteristico que existe, benfeitor de toda a humanidade sem distincao, podendo
do berco n6rdico. Lembrerno­nos que e sob a forma de uma coluna qualquer um tornar­se seu adepto e alcancar a salvacao. Assim aconte­
de fumo, de arvoredo a arder ou de outra manifestacao vulcanica, que ceu com Amon que, ate aos nossos dias, e o Deus de toda a Africa Oci­
este emerge quer a Moises, quer ao povo, como guia. Fustel de Cou­ dental: e aquele que Marcel Griaule descreveu em Dieu d'Eau, Amma,
langes insiste no facto de, durante muito tempo, a ideia de um deus Deus dos Dagon, e de facto o deus da agua, da humidade, da fecun­
universal nao ter aflorado o pensamento greco­romano: didade. Possui os mesmos atributos que Amon, tanto no Sudao, como
na Nigeria, com os Ioruba, Plutarco, em fsis e Osiris considera que o
Deve forcosamente reconhecer­se que os antigos, exceptuando raros genios seu nome significa, em egf pcio: escondido, invisivel. Podemos apontar
de elite, nunca se representaram Deus enquanto um ser unico que exerce a que, numa lingua africana actual, como o wolof, cujo parentesco com o
a sua acciio no universo. Cada um dos seus inumerdveis deuses tinha o seu egipcio antigo e indubitavel, a raiz Amm significa o facto de existir, que
dominio restrito: a um, a familia, ao outro, uma tribo, a este, uma cidade; era e, a existencia por oposicao ao nada. (
este o mundo que bastava para a providencia de cada um deles. Quanta ao Em todo o caso, no Egipto, o culto de Amon nao tardou a enriquecer
Deus do genera humano, a/guns fi/6sofos souberam adivinha­lo, os misterios e a tornar muito importante a casta de sacerdotes que o serviam.
de Eleusis deixaram­no entrever; aos mais inteligentes dos seus iniciados, mas Seguiu­se a reaccao de Akhnaton, rodeada de circunstancias mal
o vulgar nunca acreditou. Durante muito tempo, o homem apenas apreendeu conhecidas, Breasted considera este fara6 como o primeiro inventor
o ser divino enquanto uma forca que o protegia pessoalmente, e cada homem do monoteismo mais puro na hist6ria da humanidade23• 0 deus Aton
au cad a grupo de ho mens quis ter as seus deuses. 21 que este concebeu nao era apreensivel sob forma de uma representacao
estatuaria: o disco solar simbolizava o seu poder, pela sua lurninosi­
E provavel que a vocacao nao se encontrasse no monoteismo, uma dade e pelos seus raios que vivificavam toda a natureza. Tinha, deste
vez que Fustel de Coulanges contou o numero de deuses que existiam modo, um trace comum com os deuses n6rdicos e alguns historiadores
em Roma: eram mais numerosos que os cidadaos: "Em Roma, existem tendem a considerar que este facto poderia estar relacionado ­ com a
mais deuses do que cidadiios'"? origem mitania da av6 de Akhnaton ou com a influencia da sua esposa
Aquila que sabemos acerca do culto primitivo nesta cidade permite Nefertiti.
afirmar que os Latinos nao representavam os seus deuses original­ Quando Her6doto insiste na devocao dos Egipcios e afirma que "es­
mente. Esta particularidade, ao inves de resultar de um genie de abstraccao, tes siio tambem os primeiros a enunciar esta doutrina segundo a qua/
enquadrar­se­ia sobretudo com as necessidades da vida n6mada. As a alma do homem e imortal", os historiadores consideram que aquele
mesmas razoes materiais que obrigavam a cremar os antepassados, a nao esta a exagerar24.
fim de torna­los transportaveis, inibiam tambem o transporte das figu­ Certamente, podern alientar como um trace particular do Egipto
ras de antepassados esculpidas, ou de qualquer outro deus durante as e da Africa Negra este culto desenfreado dos animais, esta zoolatria
longas jornadas. Deve assim reconhecer­se que a nao representacao que os Gregas tanto ridicularizaram e acerca da qual Andre Aymard
material da divindade parece ser, em primeiro lugar, uma caracteristica aponta que nao se encontra qualquer vestigio na Asia semftica. Estas
crencas ­ quer se designem de totemismo ou de zoolatria ­ que
20. Seria interessante estudar a etimologia de Tor, termo atraves do qua! os actuais semitas tornam possfvel a identificacao de um ser humano e de um animal,
(arabes) designam o Sinai, onde Moises se encontrou com Jave pela voz do trovao, Thor e o deus
gerrnanico do trovao.
21. Fustel de Coulanges, op. cit., pp.172 e 173. 23. Breasted, La conquete de la civilisation; Payot.
22. Id., op. cit., p. 255. 24. Her6doto, op. cit., Livro II, par, 124.

143
142 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra v, comperecso dos outros aspectos das Culturas NOrdica e Meridional
apreendidas e analisadas do exterior, enganaram, durante um certo de duas formas externas diferentes; o cervo de Diana ou o galo gaules
tempo, pensadores ocidentais, tal como Levy­Bruhl, E na sequencia sao apenas simbolos, caso contrario os Indo­Europeus teriam conhe­
da sua investigacao generalizada que este afirma que o principio de cido o totemismo.
identidade nao deve operar nos povos cujos indivfduos sao capazes E no ambito de um tal pensamento que se situam logicamente as
de se auto­considerar simultaneamente animais e seres humanos doutrinas filos6ficas tais como a da reencarnacao ou metempsicose de
autenticos: estes estariam dominados por uma mentalidade primitiva, Pitagoras, Herodoto, no paragrafo 124 do seu Livro II, refere, ironica­
pre­logica, cuja diferenca com a do homem branco adulto civilizado mente, esta atribuicao da doutrina a Pitagoras. Afirma que conhece
nao pode ser preenchida por progressos intelectuais concretizados ao alguern na Grecia que, ao querer atribuir a si mesmo uma reputacao
longo de uma vida humana. Existiriam dois patamares distintos. 0 au­ de sabio e de fil6sofo, reivindica a invencao desta doutrina que, na
tor, antes de falecer, reconsiderou e afirmou que a palavra simbolismo verdade, foram os Egf pcios que inventaram, mas que, por discricao,
seria mais justa para caracterizar este tipo de mentalidade. Her6doto nao quer nomear.
Na verdade, s6 o conhecimento da ontologia dos povos onde reina a A concepcao do alern, hem como a dos valores morals, sao as tenden­
zoolatria teria permitido evitar cair nestes erros. Numa mentalidade cias naturais da religiao e da filosofia. Ainda neste dorninio, as con­
na qual a essencia das coisas, a ontologia por excelencia, ea forca vital, cepcoes meridional e n6rdica sao irredutfveis e carregarn, indubitavel­
mente, as marcas dos bercos que as viram emergir.
a forma exterior dos seres e dos objectos torna­se secundaria e ja nao
! No berco nomada, onde predomina um estado de guerra endernico
pode constituir uma barreira, seja para adicionar duas forcas vitais,
­ em consequencia de uma falta de poder central que separe as tribos
seja para identificar duas delas, uma vez que estas tern a mesma quan­
e os individuos ­ a defesa do grupo constitui a primeira das preocupa­
tidade ou porque os seres que animam foram levados, durante a sua
coes, Todos os valores morais serao aferentes a guerra, contrariamente
existencia, a estabelecer um contrato social, uma especie de pacto de
a qualquer expectativa para individuos provenientes do berco meridi­
sangue. Assim, se a beleza da plumagem do papagaio ou do pavao me
onal. S6 e posslvel entrar­se no paraiso germanico, o Valhala, caso se
seduz, se confunde com o meu ideal estetico, nada me impede de o es­
seja um guerreiro caido no campo de batalha. S6 neste caso e que as
colher, apenas devido a este traco especifico, como meu totem. Poderia
Valqufrias vern colher, no terreno, o corpo do combatente defunto e o
tambern ter sido tentado a escolher o leao, dada a sua forca, ou o falcao, levam para o paraiso, Porem, tarnbem aqui, os deuses passam o tempo,
devido a sua vigilancia ... Evidentemente, todas estas escolhas que, na para se distrair, a combater entre si durante o dia e a beber durante a
origem se faziam a escala clanica, traduzem­se por uma identificacao noite. Estes morreriam todos a fome caso Frigga, filha de Wotan, nao
de essencias que s6 e concebfvel por uma mentalidade vitalista, regida lhes cultivasse macas em ouro no seu jardim. De resto, os deuses sao
por uma filosofia de tipo bantou. E compreende­se que nao constitua mortals, tal como os homens; serao corrompidos pela vida e morrerao
um acaso o facto de, nos Negros da Africa Negra e nos antigos Egfpcios, todos para que renasca um outro mundo regenerado e puro. Tal e o
que praticam todos o totemismo ou a zoolatria, o vitalismo esteja na pensamento que se extrai da Tetralogia de Wagner e que foi retomada
base da concepcao do universo. Enquanto que no mundo sernitico e num sentido particular pelos nazis, mas que nao e outra coisa senao
ariano a associacao de um animal e de um ser humano, tal como sa­ aquela que esta contida nos Niebelungen.
lientou Andre Aymard, apenas tera um caracter simb6lico, no mundo
africano, a filosofia que esta na base da vida permite identificar estes Aqueles que caiam na confusiio ou que morriam devido as suas feridas eram
dois seres sem entrar em contradicao com o principio de identidade, admitidos no ceu.jornada do eleitos (wahl­halle) onde residiam as Valqu[rias
sem que possamos evocar uma mentalidade pre­logica. Percebe­se o e Frigga, esposa de Odin, que recebiam os her6is e os presenteavam com o
embaraco do investigador que aborda esta realidade a partir do exte­ chifre para beber. As sombras passavam o dia na guerra, a noite nos festins,
rior e que so esta provido pela 16gica conceptual, a l6gica da gramatica e o Germano niio desejava recompensa mais digna do seu valor. Alias, estes
de Arist6teles. Aqui, a forma exterior nao se confunde com a essencia deuses, ta/ coma o universo criado por eles, niio eram imortais; deixar­se­iam
do conceito, esta nao e a realidade primeira, talvez nao seja ilusoria, corromper, ta/ coma os homens, palos maus costumes; seriam entiio condena­
mas secundaria: nenhuma classificacao seria poderia partir dela. 0 dos com o mundo e pereceriam, porem, da mesma forma que o dia sucede a
Fara6 e o falcao sao uma s6 e mesma essencia, ainda que usufruindo noite, estes ressuscitariam purificados para niio mais morrer. Os elementos

144 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra v Comparacao dos outros aspectos das Culturas N6rdica e Meridional 145
destas epocas primitivas encontram­se misturados com tradicoes antiqas e conquistadores, mas distinguiam­se pelo seu espirito de justica e
cristiis nos Eddas, antologias de tradidies escandinavas compostas na Islan­ de devocao, Quando a Rainha Candace assumiu o comando dos seus
dia do seculo X<J QO XIII'125• exercitos, foi para defender o solo nacional contra as tropas de Cesar
Augusto, comandadas pelo general Petronio. Nern por isso deixara de
Um jovem Germano so tinha o direito de se barbear humedecendo com bater; com um tal vigor, que Estrabao vira a afirmar: "esta teve
o rosto com a· sangue de um inimigo morto em combate. Segundo uma coragem acima do seu sexo". 0 Egipto so se tornou numa nacao
Tacito, o roubo era um exercfcio honrado e de endurecimento, desde conquistadora e imperialista por reaccao, por auto­defesa apos a
que fosse cometido no exterior da tribo. ocupacao dos Hicsos, na XVlll1! dinastia; em particular com Tutrno­
O Olimpo grego e identico ao Valhala gerrnanico, relativamente aos sis Ill, frequentemente designado de Napoleao da antiguidade. Este
valores morais que ali predominam e as ocupacoes e sentimentos dos conquistou a Palestina e a Siria e levou a fronteira do Egipto ate ao
deuses. Zeus triunfara, de entre o conjunto dos deuses, pela violencia alto Eufrates, em Kadesh. Foram necessarias dezassete expedic;oes.
exercida numa batalha organizada, com o auxilio de Prometeu. A sua Na oitava, partiu para o Egipto por via marftima e desembarcou na
alma e o centro de intrigas indescritiveis, de ideias de crimes, de pro­ Fenfcia, mandou construir barcos em Biblos, fazendo­os transportar
fusees colericas, Este nao recua perante nenhuma injustica, nenhum atraves do deserto ate ao Eufrates, que viria a atravessar desta forma,
sentimento, por mais horrivel que possa ser, ele, o mestre do Olimpo, e desafiou os Mitanios. 0 reconhecimento desta vitoria assegurou­
para cobicar a mulher de outro deus. ­lhe a submissao destes grandes guerreiros que eram os Assfrios, os
A concepcao assiria do alern aproxima­se significativamente da dos
Babilonios e os Hititas, que, todos eles, viriam a pagar­lhe um tributo.
Arianos; nos Assfrios, de facto, e o soldado caido no campo de batalha
Por conseguinte, a dorninacao egfpcia sob Tutmosis III estende­se ate
que vai para o paraiso. A crueldade destes e reconhecida: considerou­
aos contrafortes da cadeia elamita. Os Egi pcios praticaram en tao uma
­se ­ nao sem pavor ­ que se a sua arte e tao anatornica, e grac;as ao
especie de polftica de assimilacao, que consistia em tomar os jovens
conhecimento profundo da musculatura humana que adquiriram ao
principes herdeiros dos reinos vencidos, proporcionar­lhes uma edu­
esfolar vivas os seus prisioneiros e sobretudo os chefes. Nada era mais
cacao egfpcia e reenvia­los para sua casa para que pudessem expan­
banal, no que lhes concerne, do que a mutilacao de um membro ou o
dir a civilizacao egf pcia.
furamento de um olho, ou ainda o carte de um nariz ou de uma orelha.
Deste modo, durante todo o perfodo nomada e muito tempo depois As conquistas de Chaka, tambern designado de Napoleao da Africa
da sedentarizacao, a nocao de justic;a parece desconhecida aos Aria­ do Sul dos tempos modernos, sao, sob varies pontos de vista, com­
nos. Todos os valores morais se encontram no lado oposto aos do berc;o paraveis as de Tutmosis IIl26•
meridional e so se tornarao mais atenuados com o contacto com este O esplrito de conquista parece ter sido introduzido na Africa Ociden­
ultimo. 0 crime, a violencia, a guerra e o gosto pelo risco, tantos senti­ tal durante o peri odo islamico, com os conquistadores religiosos tais
mentos nascidos do clima e das primeiras condicoes de existencia, pre­ como El­Hadji Omar no seculo XIX.
dispunham o mundo ariano, por muito extraordinario que isto possa Quanta a atitude de Samory, esta e comparavel a de Vercinget6rix.
parecer, para um grande designio historico, Quando se lanc;ar, para o Tratava­se de uma resistencia nacional.
conquistar; sabre o berc;o meridional, encontra­lo­a mal defendido, sem Por conseguinte, e atraves do contacto com o exterior que a Africa
fortificacoes notaveis, uma vez que este estava acostumado com uma Negra, de uma maneira geral, vai introduzir­se intensamente na apren­
coexistencia pacffica. Foi depois de ter sofrido estas primeiras invas6es dizagem da guerra para ali se superar, de ta! modo as adaptacoes sao
que os Egl pcios, em particular, elevaram fortificacoes nas portas de faceis para o ser humano, sobretudo quando as mesmas sao ditadas
entrada do pais, tal coma no Sinai. Foi em resultado de circunstancias pela necessidade.
semelhantes que os Sidonios protegeram a sua cidade, que nem por isso A mediocridade das condicoes de vida oferecidas pela natureza, os
deixou de ser destruida no seculo XII, para dar lugar a Tyr. Nordicos responderam atraves de concepcoes religiosas mediocres,
Os Nubios e os Egfpcios da Antiguidade encontravam­se bem em sua
casa e nao tinham vontade de sair daquele lugar: estes nao eram 26. Mofolo, Thomas, Chaka, une epopee bantou; Gallimard, 1940.

25. Bemont, Ch. e Monod, G., op. cit., pp. 28 e 29.

146 Cheikh Ania Oiop A Unidade Cultural da Africa Negra V. Cornparecao dos outros aspectos das Culturas N6rdica e Meridional 147
fortemente marcadas pelo materialismo. Estes nao tinham, por assim Literatura
dizer; razoes para agradecer esta natureza hostil.
No que concerne ao berco meridional, que parece ser a terra de A enfase sera colocada sabre aquilo que diferencia essencialmenrs a
eleicao do idealismo religioso, e completamente diferente. Os deuses literatura grega dado Egipto: o gosto particular que os Gregas tiveram
egfpcios transcendern a humanidade devido as suas virtudes, a sua em desenvolver o genera tragico,
generosidade, ao seu espirito de justica. Com a ernergencia da nacao, Podemos procurar encontrar o motivo, fazendo abstraccao da es­
Osiris ja se encontrava alt, com o seu espirito de equidade: no alern, timulacao das vontades criadoras dos artistas por meios artificiais, tal
no seu trono divino, este preside ao tribunal dos mortos; a sua justica como a atribuicao de prernios nas Olimpfadas.
absoluta e simbolizada pela balanca de Thot e Anubis que pesam as Os temas sao tratados, sempre, pela representacao da accao do des­
tino, de uma fatalidade cega que tende sistematicamente a perder toda
accoes dos defuntos antes de recompensa­los ou de puni­los. E o mes­
mo estado de espirito que se encontra em todo o lado na Africa Negra; uma raca ou linhagem. Estes atraicoam todo um sentimento de cul­
a este respeito, pode invocar­se o testemunho de Ibn Batouta, que visi­ pabililidade simultaneamente original e especffico do berco n6rdico.
Quer se trate de Edipo, das Atrides com Agamemnon, existe sempre
tou o Sudao no seculo XIII:
um erro, um crime cometido pelos antepassados que sera irremedia­
velmente expiado pela sua descendencia: por conseguinte, o que quer
que faca, esta esta totalmente condenada pelo destino. Esquilo procu­
Aquila Que Vi de Born na Conduta dos Negros ra atenuar este estado de coisas, esforcando­se por introduzir a nocao
de justica que permitiria nao mais atingir a posteridade inocente, ou
Os actos de injustica siio neles raros; de todos os povos, e aquele que tern me­
seja, absolve­la.
nos tendencia a comete­los, e o Su/tao [rel negro), nunca perdoa a quern quer A concepcao semftica e identica, 0 pecado original foi cometido
que se declare culpado. Em toda a extensiio do pais, predomina uma sequranca pelos pr6prios antepassados da raca humana e toda a humanidade,
perfeita; e possivel ali permanecer e viajar sem temer o roubo ou a rapina. Estes doravante condenada a ganhar o seu pao com o suor do seu rosto, deve
niio conftscam os hens dos homens brancos que morrem no seu pals, mesmo redimir­se. Esta perspectiva foi adoptada e ensinada pelas religioes
quando o valor seja avultado, niio lhe tocam; pelo contrdrio, nomeiam cura­ modernas, tais como o cristianismo e o islao,
dores escolhidos de entre homens brancos para deliberar acerca da heranca, Se um tal sentimento de culpa invadiu verdadeiramente a conscien­
tornando­se estes responstiveis ate que os legftimos a venham reclamar27.­ cia indo­europeia, ao ponto em que a literatura permite anteve­lo,
mesmo actualmente, torna­se forcoso admitir que existe uma especie
O conjunto destas concepcoes morais e a solidariedade social que de incomensurabilidade entre a consciencia n6rdica e a meridional.
daqui resulta atribui a Africa Negra o seguinte caracter triplice acerca Nenhuma nocao, para o Africano, e tao herrnetica como o sentimento
do qual podemos meditar. de culpa concebido desta forma. Nao se encontra qualquer indfcio
A Africa Negra e um dos paises do mundo em que o homem e o desta na literatura egf pcia antiga. Mes mo para o africano cristianizado
mais pobre, isto e, possui menos actualmente; porem, e o unico pais ou islamizado, este permanece um dogma misterioso, que nunca e
do mundo onde a miseria nao existe apesar desta pobreza, em resul­ vivenciado conscientemente.
tado da existencia de uma solidariedade de direito. De igual modo, e Tendo em conta que o modo como este sentimento de culpabilidade
o primeiro pals do mundo onde a actividade criminal e a mais baixa. e introduzido na literatura n6rdica e sempre artificial, poderiamos
Seria interessante aproximar as estatfsticas dos crimes cometidos no questionar­nos quais sao as verdadeiras motivacoes, especfficas do
resto do mundo ­ sobretudo os crimes devassos ­ e os verdadeira­ berco n6rdico, que o fizeram surgir. Entre outros crimes, poderfamos
mente cometidos por Africanos autenticos na Africa Negra28• invocar, uma vez mais, o papel mediocre atribuido a mulher na socie­
dade ariana? Ter­se­a a consciencia nordica sentido culpada face a
esta? Um erudito poderia dernonstra­lo sem dificuldade baseando­se na
27. Batouta, lbn, op. cit; p. 36. analise do teatro tragico da antiguidade. Os temas tratados reflectem,
28. Se pensarmos apenas nos EUA, segundo um relat6rio recente do F. 8.1., um crime e cometido
a cada determinada fraccao de segundos. Compreende­se a necessidade de incentivar os estudos frequentemente, apenas este aspecto. Edipo, as Suplicantes de Esquilo.
sociologicos preventivos na Africa Negra. etc. No que concerne a esta ultima peca, importa salientar que a lenda

148 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra Y. ccrnperacsc dos outros aspectos das Culturas NOrdica e Meridional 149
a partir da qual Esquilo se baseia ­ a das Danaides ­ e de origem grega. Segundo Nietzsche, foi necessario, para dar origem a tragedia, a sin­
Mas uma parte das cenas relatadas acontecem no Egipto, e deduz­se tese de um elemento dionisfaco musical e de urn elemento apolineo
erradamente que se trata de uma lenda egipcia29• plastico e inteligivel, racional. Para demonstrar esta tese, este e levado
Em todo o caso, e notavel que os Egipcios nao tenham criado um a apresentar uma signiflcacao particular ao Satire do teatro grego:
teatro tragico ..Podemos supor que a sua estrutura social, o rumo da aquele ve neste uma entidade imaginaria oponivel ao homem civili­
vida e o seu psiquismo nao eram favoraveis a uma tal actividade cul­ zado engrenado numa especie de carapaca politico­social excisante
tural. que o impede de realizar esta identificacao primordial com a Natureza
cantada pelo coro de Satiro: pelo menos, e ao ser submetido ao efeito
da sua rmisica dionisfaca, ao deixar­se aniquilar por ela, que se pode
O Nascimento da Traqedia ou Helenismo e Pessi­ atingir este estado de extase que permite apreender a vida na sua uni­
mismo de Nietzsche dade primordial.

Podemos afirmar que a tragedia, sob a sua forma classica, aquela sob Creio que o homem civilizado grego se sentia assim suspenso na presenca do
a qual nos foi transmitida, representa o genero literario tipicamente coro das satires, e este e o efeito mais imediato da traqedia dionisiaca que as
grego ­ para nao dizer ariano. Se e facil apreender, na origem de to­ instituicoes polfticas da sociedade ou, par outras palavras, as abismos que
das as tradicoes, uma literatura dramatica embrionaria [Misterios de separam as homens uns dos outros, desaparecem perante um sentimento
Osiris), s6 nos Gregos e que encontramos um terreno moral propicio irresistivel que as transporta para o estado de identificaciio primordial com
a exaltacao do genero e a sua elevacao ao nivel de um classicismo; o a natureza. 0 conso/o metaf[sico transmitido, ta/ coma ja o afirmtunos, par
conteudo da consciencia do Grego era e permaneceu a materia natural qualquer verdadeira traqedia, o pensamento segundo o qua/ a vida, no [undo,
de qualquer tragedia, Deve lembrar­se o lugar preponderante que ali apesar da variaciio das aparencias, permanece imperturbavelmente podero­
ocupava o sentimento vivo do crime, que por reaccao social se exprime sa e cheia de alegria, este consolo surge com uma evidencia material, sob a
corn frequencia pelo horror do assassinato, pela nocao de culpa que representaciio do coro das stitiras, do coro de entidades naturais, cuja vida
lhe e corolaria, pelo ressentimento na consciencia masculina da rela­ subsiste de uma forma quase indetevel por detras de qualquer civilizacao,
yao desarmoniosa, injusta, dos sexos, em consequencia do constrangi­ e que, apesar de todas as metamorfoses das qeracoes e das vicissitudes da
mento social da mulher. Devemos pensar em todos estes factores para hist6ria dos povos, permanecem eternamente imutaveis.
compreender que a Grecia era o territ6rio de eleicao da tragedia, Uma E sob a tonica deste coro que a alma profunda do Helena se reconforta, tiio in­
das originalidades de Nietzsche consistiu em larga medida em colocar comparavelmente apto para sentir o mais ligeiro ou o mais cruel sofrimento:
o problema. ele que tinha contemplado, com um o/har penetrante, as terriveis calamidades
daqui/o que designamos por hist6ria universal, e reconhecido a crueldade da
Teremos agora de recorrer a todos os princfpios esteticos expostos ate aqui natureza; encontrava­se, assim, exposto ao perigo da ambiciio pela negar;iio
para nos podermos orientar neste labirinto, que constitui verdadeiramente a budista da vontade. A a rte salva­o e atraves da arte, a vida reconquista­o+.
origem da traqedia grega. Creio niio estar a pronunciar nenhum absurdo ao
sugerir que este problema ainda niio foi abordado seriamente e muito menos, Infelizmente, a exaltacao extatica do estado dlonisiaco cessa com a
par conseguinte, resolvido, par mais numerosas que ja tenham sido as espe­ musica e a realidade quotidiana volta a surgir em toda a sua nudez,
culacoes tentadas com o auxilio dos fragmentos dispersos da tradidio antiga, com tudo aquilo que tern de decepcionante e de cruel; no entanto, esta
tiio frequentemente dilacerados e reunidos um ao outro. visao breve da "verdade pura" e suficiente para destruir a vontade e
Esta tradiciio indica, do modo mais categ6rico, que a traqedia e proveniente torna praticamente absurda a actividade hurnana.
do coro traqico e que, originalmente, este era apenas coro e nada mais'".
Neste sentido, o homem dionisiaco e semelhante a Hamlet: ambos mer­
gulharam profundamente na essencia das coisas; ambos viram e sentem re­
29. Esquilo, vol. I, Texto organizado e traduzido por Paul Mazon, Societe d'Edition "Les Belles
Lettres", 19 5 3.
puqntincia pela acciio, uma vez que a sua actividade niio pode mudar nada
30. Nietzsche, Naissance de la traqedie ou Hellenisme et pessimisme; tract. por Jean Marnold e
Jacques Morland, Ed. Mercure de France, 1947, p. 67. 31. Itl., op. cit., p. 7 4.

150 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra V 4 ccmparecac dos outros aspectos das Culturas N6rdica e Meridional 151
relativamente a essencia das coisas: afigura­se­­Jhes ridiculo au ­r= Trata­se dos mesmos previamente referidos: sentimento do crime, da
culpabilidade, do pecado original e, ainda que expresso de modo mais
terem, eles pr6prios, que reordenar um mundo desagregado. 0 conhecimen­
to destr6i a accao; aquela necessita da miraqem da f/usiio ­ eis aquilo que
discreto, um terrivel sentimento de inc6modo face a mulher, usada
nos ensina Hamlet; niio se trata daquela sabedoria banal de Hans, o sonha­
como bode expiat6rio na sociedade ariana. Todos estes sentimentos
sao especificamente indo­arianos e semiticos: Nietzsche reivindica­os
dot, que, par refiectir demasiado, e talvez par se deparar com um numero
para estas duas racas, em graus diferentes, para dar conta das ideias
superfiuo de possibilidades, ja niio consegue agir; niio se trata da rejtexao,
niio! ­ trata­se do verdadeiro conhecimento, da visiio da terrivel verdatie, que pessimistas que estao na base da sua concepcao do Universo e da civi­
destr6i qualquer impulso, qualquer raziio de agit; tanto em Hamlet coma no lizacao, \E na analise do mito de Prometeu que o mesmo encontra os
homem dionisiaco. argumentos que lhe permitem fundamentar o seguinte ponto de vista:
Deste modo, nenhum consolo pode prevalecer, o desejo difunde­se acima de
a
todo um universo em direcciio morte, e menospreza os pr6prios deuses; a A lenda de Prometeu constitui uma propriedade original de toda a rara ari­
existencia e negada, e com ela o reflexo ilus6rio da sua imagem no mundo ana, hem coma um documento que do. provas da sua aptidiio para o pro/undo
dos deuses, ou num a/em imortal. Sob a infiuencia da verdade contemplada, e para o traqico, poderia mesmo ntio ser inverosimil que este mito tivesse tido,
para a natureza ariana, precisamente o mesmo significado caracteristico que
O homem apenas apreende agora, par toda a parte, o horrivel e o absurdo da
existencia; compreende agora aquilo que existe de simb6/ico no destino de a lenda da queda do homem para a rara semitica, e que existisse entre estes
dais mitos um grau de proximidade semelhante ao de um irmiio e de uma
Ofelia; reconhece a sabedoria de Sileno, o Deus das fiorestas: apodera­se dele
a abominariio e,face ao perigo iminente da vontade, a a rte avanra entiio coma irmii. A origem deste mito de Prometeu reside no valor inestimavel que uma
um Deus redentor, trazendo o btilsamo protector. S6 ele tern o poder de trans­ humanidade inqenua concede ao Jago ... Mas que o homem pudesse dispor
livremente do Jago, que niio o recebesse coma uma dadiva celestial, reltim­
formar esta aversiio pelo que existe de terrfvel e absurdo na existencia em
imagens ideias, com a ajuda das qua is a vida se torna possivel. Estas imagens pago, raio, isto parecia um sacrileqio a alma primitiva, um roubo levado a
representam o sublime, enquanto arte que domina e submete o horrivel, e o cabo contra a natureza divina. Aquila que a humanidade podia adquirir de
c6mico, enquanto arte que nos liberta da abominaciio do absurdo. 0 coro das mais precioso e de mais elevado, a mesma obteve­o atraves de um crime, e
satires do ditirambo constitui o acto redentor da arte grega; os acessos de de­ e necessario, doravante, aceitar as consequencias, isto e, toda a torrente de
sespero evocados previamente desvaneceram qracas ao mundo intermediario males e de tormentos com que os imortais siio enfurecidos devem afliqir a
destes acompanhantes de Dionisio32• ra9a humana na sua nobre ascensiio. Trata­se de um pensamento amargo
que, pela dignidade que con/ere ao crime, contrasta estranhamente com o
Segundo o autor, a satira, tal como o pastor dos romances modernos, mito semitico da queda do homem, ou a curiosidade, a mentira, a cobica,
simboliza uma aspiracao ao estado primitivo original: este representa enfim, um cortejo de sentimentos mais especificamente femininos siio vistas
a natureza ainda intacta de qualquer detraccao do conhecimento, ain­ coma a origem do ma/. Aquila que distingue a concepciio ariana e a ideia
da inviolada por qualquer civilizacao, Para alern disso, aos olhos dos sublime do pecado eficaz, considerado coma a verdadeira virtude prometeica;
Gregos, tratava­se de algo totalmente diferente de um fantoche: e isto desvenda­nos simultaneamente o fundamento etico da traqedia pes­
simista; a justificaciio do sofrimento humano, justiftcaciio niio somente por
O satire ... simboliza a omnipotencia sexual da natureza, que o Grego tinha culpa do homem, mas tambem dos males que daqui resultam34.)
­ 't 33
aprendido a considerar com uma consternacao temerosa e respet uosa .
Originalmente, a tragedia era assim a completa encenacao do sofri­
Nietzsche, ate aqui, apenas sublinhou o efeito da tragedia, da musica mento humano, qualquer que fosse a sua causa; Nietzsche e peremp­
dionisfaca, recorrendo a meios plasticos apolineos, na alma do Grego t6rio: o her6i primitivo de toda a tragedia grega e Dionisio, os her6is
civilizado. Depois deter insistido sobre este efeito louvavel, este pene­ posteriores sao apenas as suas mascaras, as suas transfiguracoes.
tra de modo mais profundo no conteudo do drama para extrair os sen­ Do mesmo modo, o elemento tragico dionisiaco do drama diminuira
timentos que se encontram na base, que lhe servem de fundamento. progressivamente, a partir deste inicio: a individualizacao dos tipos
gerais, o refinamento do estudo psicol6gico das personagens com
32. Id., op. cit., p. 75.
33. ld., op. cit., p. 76. 34. ld., op, cit., p. 76,

V� Comparac;ao dos outros aspectos das Culturas N6rdica e Meridional 153


152 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra
do mito com Euripides; em• suma, o advento do em hierarquizar o papel da musica e do sofrimento na concepcao do
01oc l es, a ralsiftcacao
S," Y • , •
autor. Sera a musica pura, com os seus efeitos divinos, wagnerianos
Deus ex machina, acabaram por destruir a tragedia antiga,
sabre a alma, ou sera o sofrimento humano, cuja musica representa
apenas a expressao particular, tragics, que constitui o elernento fun­
Consitui uma tradiriio indiscutivel o facto de a traqedia 9re9a, na sua forma
mais antiga, ter par objecto unicamente os sofrimentos de Dionisio e de,
damental? 0 autor parece ter preferido a primeira hip6tese, quando
durante um /ongo perfodo da sua existencia, o {mica her6i da cena ter sido a segunda se afigura mais sustentavel, A delicadeza e a nuance do
seu pensamento nao permitem confundir a sua perspectiva com a do
precisamente Dion(sio. Porem, podemos assequrar com i9ua/ certeza q11e an­
tes, e ate Euripides, Dionisio jamais deixou de ser o her6i tragico, e que todas Conde de Gobineau, acerca da origem da arte em geral. Este utlimo
as personagens celebres do teatro gre90, Prometeu, Edipo, etc. siio simples­ afirma sem ambiguidade que em todo o lado onde exista uma arte
mente mascaras do her6i original, Dionfsio. Que par detrtis destas mascaras valida, a mesma e resultado de uma sintese de dois factores comple­
se esconde um Deus, ta/ e a causa essencial do idealismo tfpico tiio frequente­ mentares: um, de origem negra e proveniente da sensibilidade, lado
mente admirado destas figuras gloriosas... inferior da alma humana, o outro, de origem ariana e proveniente da
Deste modo, possufmos todos os elementos de uma concepciio de mundo pes­ razao, do cerebral, lado superior do ser humano. Torna­se tentador
simista e profunda e, em simultiineo, o ensino dos misterios da traqedia. identificar este duplo caracter com os factores dionisiaco e apolineo
Qua/ era portanto o teu prop6sito, sacrflego Eurfpides, ao procurares ainda de Nietzsche. E, se assim for, o livro de Nietzsche poderia ter sido
subjugar este agonizante? Este pereceu no meio das tuas miios brutais e inti�lado, nao O Nascimento da Traqedia, que e restritivo, mas sim "O
recorreste entiio a uma mascara, a uma falsificaiiio do mito ... Nascimento da Arte".
Reconhecemos, par outro lade, a acciio deste espirito anti­dionisfaco inimigo Parece mais satisfat6rio considerar a tragedia como a encenacao das
do mito, a importancia crescente dos refinamentos psico/6gicos e da repre­ ideias mais angustiantes, do destino de um povo, por parte de um
sentaciio dos caracteres na traqedia de S6foc/es. 0 caracter j6 niio deve cidadao privilegiado, isto e, um artista nacional cuja alma foi passive}
deixar­se generalizar, ampliar num tipo eterno, deve pelo contrario agir in­ de servir de receptaculo a qualquer emotividade colectiva. Neste caso,
dividualmente atraves de traces acess6rios e nuances artificiais, atraves da a rmisica, ou mais exactamente a musicalidade da expressao dramati­
mais minuciosa exactidiio de todas estas /inhas, par forma a que o espectador ca, e apenas o reflexo de uma realidade profundamente vivenciada e
deixe de receber a impressiio do mito, mas sim a de uma verdade natural transposta para a cena.
impressionante e do poder imitativo do artista ... Poderiamos, portanto, procedendo cronologicamente, procurar uma
Mase durante o desenlace dos dramas que o nova espfrito antidionisfaco se outra explicacao partindo desta hip6tese.
manifesta de modo mais evidente. 0 Jim da traqedia antiga evocava o consolo Uma primeira ideia parece an6mala. Par que motivo e que os Gregas
metafisico, sem o qua/ o gosto da traqedia permanece inexplicdvel: estas har­ teriam escolhido, nao um mito end6geno, mas o mito ex6geno de
monias de paz provenientes de um outro mundo, ta/vez seja de um Edipo em Dionisio? Porque Dionisio e de facto um mito estrangeiro, facilmente
Colona que as mesmas ressoam de modo mais puro. Agora, o genio da musica identificavel a Osiris, quer se parta da tradicao grega ou egipcia. 0
abandonou a traqedia, e esta esta morta, no sentido estrito da palavra: isto pr6prio Nietzsche refere que, segundo a lenda, Dionisio tinha sido cor­
porque, doravante, onde ir retirar este reconforto metaffsico? Adema is, pro­ tado aos pedacos e disperso pelos Titas durante a sua infancia: a sua
curou­se uma resoluciio terrestre conveniente para esta dissoruincia trdqica;
mae, Demetra, mergulhara entao no luto e s6 viria a sentir­se aliviada
depois de ter sido suficientemente torturado pelo destino, o her6i obtinha, depois de saber que teria hip6tese de voltar a gerar um Dionisio: o
atraves de um born casamento, de homenagens divinas, uma recompensa bem
Deus renascera, Quando foi cortado em pedacos, este era adorado sob
merecida. O her6i tinha­se tornado um gladiador ao qual, depois de ter sido
o nome de Zagreu. Reconhece­se aqui facilmente, nesta lenda "grega"
convenientemente esfolado e coberto de feridas, era eventualmente acordada
o mito da morte e da ressurreicao de Osiris, cortado em pedacos e es­
a liberdade. 0 "Deus ex machina" substituiu o consolo metaffsico35•
palhado pelo seu irmao Seth; este ultimo personificando o Deus do
Mal, da esterilidade, e da inveja. Do mesmo modo, Osiris ressuscitara.
A explicacao do nascimento da tragedia por Nietzsche permanece,
Segundo Her6doto, os Egipcios identificam Osiris e Dionisio.
apesar de tudo, insuficiente; o leitor ressente imimeras dificuldades

35. Id., op. cit., pp. 96, 98, 100, 158 a 160.

v, Ccmparacac dos outros aspectos das Culturas N6rdica e Meridional 155


154 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra
... orque todos os Egfpcios, sem distinciio, niio prestam cu/to aos mesmos Dionisio "cavalgando a sua pantera" representa o oposto da luxuria,
p ' '· 36
deuses, a niio ser Isis e Osiris que, aprmam, sertam D'10ms10 .
,F! ·
Tal como Turel demonstrou, Dionisio nao e o Deus da anarquia na vida
domestica, a uniao conjugal e sagrada para ele, bem coma a fidelidade
o
"pal da historia" esta convicto da origem estrangeira do Deus, �os c�njuges. Porem,, e inimigo da submissao fisica, de tudo aquilo que
uma vez que todos os seus atributos contrastam com os costumes e e anti­natural; este e a favor do pleno desenvolvimento dos seres e
as rradicoes dos Gregos. Este e urna figura de adopcao, Como e que o em particular, o da mulher. E o deus cujo ensinamento continha as as-
mesmo tera chegado ao solo nacional? Her6doto refere: piracoes se�retas da mulher ariana, tao constrangida e sufocada pela
sociedade. E o deus da liberdade individual, da dualidade dos sexos na
Isto /eva­me a pensar que Melampo, filho de Amythaon, niio ignorava de ordem. Apresenta­lo sob a forma de um Baca, deus do vinho, sempre
modo a/gum o sacrif[cio que acabo de mencionar, mas que tinha perfeito ebrio e em busca de prazeres hibricos desmesurados, representa, por
conhecimento do mesmo. Efectivamente, Joi Melampo que deu a conhecer assim dizer, um sacrilegio. Dionisio nao e outra coisa senao o simbolo
Dionisio aos Gregas, o sacrif[cio que /he e ofertado, a procissiio do fa/o. Para do casal harmonioso de Isis e Osiris; ea exportacao para um pafs aria­
ser mais exacto, este ultimo niio /hes ensinou tudo de uma s6 vez; os sabios no do ideal social, dornestico, conjugal e meridional. Desde logo, o mito
que /he sucederam desenvolveram as suas licoes; porem, no que diz respeito lanca uma luz cruel sabre a realidade; o entusiasmo das mulheres
a procissiio do fa/o em honra de Dionisio, Joi Me/ampo que a introduziu, e tanto quanto a resistencia dos homens sao justificaveisjNa Grecia, tal
Joi de/e que os Gregas aprentleram a fazer aquilo que a/i [azem. Par outras coma em Roma, as mulheres casadas, ou nao, que praticavam o culto
palavras, enquanto homem sensate, que se tornou mestre da a rte divinat6ria, de Dionisio eram condenadas a morte pelo seu tutor. Encontramo­nos
aprendeu dos Egfpcios para importa­los para jun to dos Gregas, afastando­se aqui perante um aspecto dramatico de luta dos valores meridionais
sob poucos pontos de vista em relaciio ao seu mode/a, mas sob muitos no que e arianos para se apoderar da consciencia humana. 0 grau de uma
concerne a Dionisio. lsto porque, segundo me parece, e inadmissivel que entre civilizacao mede­se atraves das relacces entre o homem e a mulher.)
o cu/to prestado a este deus no Egipto e aquele que e prestado com os Gregas, Dionisio e o libertador da mulher ariana: este espalha o seu ensina­"
a semelhanca seja uma coincidencia: no que a isto sere/ere, este cu/to deveria mento na Grecia no momenta em que era possivel observar, neste pals,
estar em harmonia com os costumes dos Gregas e a sua introduciio niio tera dais irmaos casar com a mesma mulher para assegurar a unica coisa
sido recente. De igual modo, niio admito que os Egfpcios tenham importado que contava no mundo ariano, uma descendencia,
estes rituais dos Gregas, tan to coma qualquer outro costume37• Aqueles que de entre os sociologos modernos assimilam, talvez in­
conscientemente, progresso tecnico e moral, nao podem evitar, nas
Percebe­se, assim, de que modo Dionisio, deus nacional egipcio, foi conclusoes <las suas investigacoes em paises meridionais, de deturpar
introduzido tardiamente na Grecia e no resto do Mediterraneo seten­ esta vantagem moral das sociedades agricolas matriarcais, explicando o
trional. Este tera provavelmente recorrido a uma via terrestre, o que lugar que a mulher ali ocupa por conta de um instinto primitivo ainda
explicaria as numerosas inscrtcoes relatives ao seu culto encontradas solidamente enraizado na materialidade grosseira da terra ­ deusa di­
na Tracia, e as quais Grenier faz alusao. Mas nenhum factor, nenhuma onisiaca fertilizavel, tal como Isis ­, por oposicao a espiritualidade das
outra tradicao, permitiria situar a sua origem na Tracia ou na Asia. regioes etereas onde reina, sem contestacao, Apolo, o Deus da racionali­
Por agora, e necessario examinar os seus atributos, que contrastam dade pura que abdica de uma mulher para gerar Hera, a sua filha.
de modo tao evidente com os costumes gregos e arianos de um modo
geral. Estes explicam simultaneamente o entusiasmo indescritivel com Outros sociologos, em contrapartida, devolvem a este conjunto de
o qual as mulheres o acolheram e a resistencia, a luta impiedosa tra­ crencas o seu significado autentico,
vada pelos homens no Mediterraneo ariano.
Os Indo­Europeus tiveram muitas dificuldades em transmitir clara e Os misterios (de Dionisio = Baca}, que tinham destituido grande parte do
fielmente o mito de Dionisio, sem o alterar tornando­o em alga gros­ antigo furor, eram um cu/to da Jecundidade natural, da qeraciio e da vida.
seiro, imoral, lubrico, etc., enquanto que o espirito, a essencia de Mas niio se tratava unicamente da vida terrestre; ... 38.

36. Herodoto, Livro II, par. 42, op. cit.


37. ld., op. cit., vol. II, par. 49. 38. Grenier, op. cit., p. 204.

156 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra V. Ccmparaceo dos outros aspectos das Culturas N6rdica e Meridional 157
a exaltacao da mulher ao seu grau mais elevado e colocar ao hornem
Certamente, no memento da tntctacao, entre outras praticas relacio­ ariano o problema mais grave que este jamais teve de resolver. A vida
nadas com a vida agricola e com o culto da fecundidade, "descobrimos nas estepes eurasiaticas, nas condicoes do nomadismo ­ tal como
O Jalo
escondido por baixo do estofo; faz­se com que este caia, junta­
vimos ­ tinha­o acostumado a ver a mulher nao tanto como uma
mente com outros simbolos, sobre o recipiendario inclinado. 0 efeito
companheira na sociedade, mas como um instrumento que permitia
destas cerim6nias consistia, ao assimilar o bacante ao seu deus, em asse­
assegurar a sua descendencia, saldar uma divida para com os antepas­
gurar­lhe a beatitude eterna'T', sados ao prolongar a linhagem racial, ao nao permitir que esta nao
Para Grenier, citando Cumont, os misterios de Baco que assim se
se extinguisse a partir dele, ao assegurar assim a imortalidade. Neste
praticavam em Roma eram de origem egipto­asiatica. 0 material litur­ caso, as condicoes econ6micas estao essencialmente em causa: estas
gico deste culto comporta um conjunto de simbolos da fecundidade, tinham impasto este estilo de vida ea superestrutura religiosa e moral
O que se opoe a representacdes pornograficas, estes sao os elementos
respectivas. Porern, o homem encontra­se agora instalado na vida
de urna religiao agraria, As procissoes, aquando das festas em honra
sedentaria: ja para nao dizer que a maior parte das ideias herdadas
de Dionisio no Egipto, tal coma Her6doto as descreve, aplicam­se ate
da vida n6mada se tornaram inadequadas, em particular as concep­
ao minima detalhe as procissoes que acompanham, a 25 de Dezern­
coes sociais, se e que o podemos afirmar. 0 drama resulta dos habitos
bro, as fanais ao Senegal: trata­se de uma procissao que celebra o nas­
cimento de Cristo, mas e pouco provavel que tenha sido o Ocidente adquiridos: nao se muda a consciencia de um momento para o outro.
cristao a introduzir estas particularidades rituais em Africa, a menos As unicas ideias que convern ao seu novo estilo de vida serao ideias
estrangeiras elaboradas paralelamente no mundo meridional agricola,
que os "carnavais" meridionais da Europa tenham tido este caracter, o
sedentario, 0 choque na sua consciencia produzira a reviravolta mais
que se deveria venficar, Deste modo, e provavel que exista aqui uma
extraordinaria que jamais experienciara. Nao se trata aqui de concep­
[ustaposicao de dois fragmentos de tradicoes de origem aparente­
mente distintas, mas ambas sagradas no que diz respeito ao seu fundo. coes do espirito ou de especulacoes gratuitas. Tivemos ocasiao de ob­
Afigura­se tndispensavel reproduzir o excerto de Her6doto ao qual faz servar que na realidade da vida quotidiana, em Roma como na Grecia,
alusao para fixar as ideias e facilitar a investigacao. este choque provocou uma reaccao de autodefesa que chegou ate a
morte nos homens, uma vez que e impossivel sobrestimar a quan­
Quan to ao resto, a festa de Dionisio e celebrada pelos Eqipcios exactamente, tidade de mulheres efectivamente condenadas a morte pelo simples
ou quase, da mesma forma coma com os Gregas, com a diferenca minima de facto de se terem tornado discipulas de Dionisio. Mas uma atitude
que niio existem coros. Porem, ao inves do falo, estes imaginaram outra coisa: pratica, provisoriamente eficaz, nao basta para resolver um problema
estatuetas articuladas, de cerca de um c6vado, que siio movidas com a ajuda de moral social tao profundo e delicado. Este viria assim, fatalmente, a
de cordas, e cujo membro viril, em nada menor do que o resto do corpo, se ser recolocado e repensado no plano superior da arte e da filosofia;
abana; as mulheres passeiam estas estatuetas nas cidades com um tocador apenas neste nivel, em que a serenidade de espirito e mais assegu­
a
de flauta sua frente; aquelas prosseguem Iouvando Dionisia. Relativamente rada, e possfvel tentar novamente procurar uma solucao de caracter
ao motivo pelo qua/ estas estatuetas possuem um membro desproporcionado permanente, e na sua ausencia, colocar o problema de um modo mais
e apenas movem esta parte do corpo, existe a este respeito uma Jenda saqrada ou menos velado, sem resolve­lo. Uma tal transposicao da realidade e
que se conta'". espedfica da arte e cornpreende­se que a tragedia grega tenha encon­
trado o seu tema predilecto no mito, ainda que estrangeiro, de Dionisio.
Agora que a essencia moral do deus esta suficientemente esclare­ Devido ao seu duplo caracter, este era mais conveniente do que os mi­
cida, ao mesmo tempo que as concepcoes dornesticas meridionais e tos end6genos. Dionisio, ou Osiris, e o Deus que sofreu .; fisicamente
arianas, torna­se mais facil compreender as catastrofes e as perturba­ falando ­ na medida em que foi cortado aos pedacos, Os Egipcios en­
coes que o ensinamento de Dionisio viria a provocar nas sociedades cenaram apenas este aspecto do sofrimento fisico de Osiris, reflectido
indo­europeias: viria a quebrar a couraca de bronze com que o homem no sofrimento moral de Isis. Tal como Nietzsche salientou, Dionisio e
ariano as tinha cercado, abrir as portas da consciencia feminina, levar um prot6tipo: este sera a mascara divina que abarcara todas as formas
de sofrimento da consciencia humana nos Gregas: Prometeu, Edipo,
39. /d., op. cit., p. 204. etc. sao apenas replicas. Mas e impossivel colocar Dionisio em cena
40. Her6doto, op. cit., Livro II, par. 48.

V. Compara�ao dos outros aspectos das Culturas N6rdica e Meridional 159


158 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra
sem transpor para esta, consciente ou inconscientemente, o conflito em conta que seria necessario, segundo este, que o conhecimento, a
social gerado pela arnergencia do deus no mundo ariano. E este as­ conternplacao resoluta da verdade pura conduzisse a inactividade
pecto do problema que transparece nos corns das satiras. A funcao das caso nao existisse o auxflio da magia da arte. '
satiras simboliza uma situacao social, um problema que os Gregos pa­ Neste caso, uma vez rnais, a explicacao da criminalidade ariana, do
recem ter temido colocar correcta e convenientemente; foram, deste pecado sernitico, nao resiste a cornparacao ea analise. Nao podemos
modo, levados a deforma­lo, a desfea­lo, a ponto de este se tornar irre­ negar que as Egi pcios antigos tenham adquirido o conhecimento
conhedvel a primeira vista, mascarando o papel das satiras, 0 satire e ao mesmo nfvel que nas exegeses precedentes. Deveriam assim, por
uma criacao grega, acrescentada ao mito egi pcio de Osiris, de Dionisio, conseguinte, adquirir o mesmo sentimento de culpabilidade, con­
­Tal como Nietzsche refere, o caracter fundamental do mito tendera trair a mesma nocao de pecado alargada a toda a especie humana,
a desaparecer no teatro ulterior da Grecia: este sera apenas apreen­ se este fosse o corolario fatal, na consciencia humana, da aquisicao da
sivel na permanencia dos temas tratados, possuindo as tragedias, sabedoria. Aconteceu de modo completamente diferente e o universo
tftulos quase exculsivamente de nomes de mulheres. Eurfpides que, mental egi pcio ­ e meridional, em geral ­ e de facto optimista, e trata­
de resto, retomou aproximadamente os mesmos temas que Esquilo e ­se de um optimismo consciente e reflectido. Nao seria correcto afir­
S6focles, escreveu Helena, as Fenicias, as Troianas, Ifigenia em Tduris, mar ou apoiar que os Dogons da Falesia de Bandiagara dispoern de
Electra. Mes mo quando, aparentemente, tal como em Edipo, o ti tulo e um sistema filos6fico, na medida em que se considera, atraves desta
um nome masculino, o conteudo varia pouco e vemo­nos, atraves de expressao, um sistema de pensamento especulativo consciente de si;
um qualquer meio, colocados perante o mesmo problema. mas nao e exagero admitir que estes possuem uma cosmogonia
A analise do mito de Prometeu levou Nietzsche a fazer da criminali­ coerente que explica de modo satisfat6rio para a sua consciencia to­
dade eficaz um elemento constitutivo da consciencia ariana41• Ao apro­ dos os aspectos do Universo, tal coma demonstrou Marcel Griaule em
fundar o mito do ferrador na Africa Negra e no antigo Egipto, facil­ Dieu d'Eau. Para eles, o antepassado primitivo tarnbem tinha roubado
mente se chega a um her6i equivalente ao Prometeu ladrao de fogo e o segredo dos deuses; um pecado foi cometido desde a origem na pro­
benfeitor da humanidade com as novas tecnicas que apresenta. Tam­ criacao, mas era sobretudo um erro verificado nos seres criados pelos
bern aqui a nocao de crime nao esta ausente, mas e atenuada e colo­ deuses depois de uma certa experiencia, para alem de ter sido cor­
cada sobretudo ao nfvel de um erro grave, uma especie de indiscricao rigido de imediato, reabsorvido, ao inves de constituir ate ao fim dos
cometida para com os deuses. As suas consequencias sao apenas fatais tempos o sentimento de nao se sabe que erro injusto, irracional e que
para a linhagem daquele que o cometeu, estas serao circunscritas; nao deve ser expiado ate ao fim da vida.
resultara qualquer sentimento de culpabilidade permanente pairando : Por conseguinte, e remetendo­nos aos respectivos bercos dos Aria­
sobre o conj unto da humanidade, forcando esta ultima a criar um uni­ nos e dos Meridionais que poderemos compreender esta divergencia
verso pessimista. 0 universo do mundo meridional e optimista. Osiris no conteudo da consciencia humana que, aparentemente, deveria ser
nao possui qu:3Iquer sentimento de culpa, nem o seu filho, Horus, nem uma so, uniforme. Ja observamos que ao passar do Sul para o Norte,
a sua esposa, Isis. Seth, o criminoso, poderia quando muito, te­lo: e ele a geografia e o clima, as condicoes de existencia invertiam efectiva­
que personifica o mal, apenas ele excluindo todo o resto da humani­ mente os valores morais que se tornam opostos, tal coma os polos:
dade honesta, sofrera as consequencias, qualquer defeito ali representa uma virtude alem, E relembrando as
O sentimento de culpa ariano aproxima­se do pecado sernitico origi­ criterios da moral guerreira n6rdica e em particular gerrnanica ariana,
nado pelo "erro de uma mulher" e alguns exegetas observam ali o resul­ moral necessaria pelas condicoes de vida, que podemos compreender
tado do conhecimento: conhecimento = consciencia do hem e do mal. a forrnacao lenta com o contacto de influencias externas antag6nicas
A maca que Eva levou Adao a comer apenas simbolizaria isto. Neste de um sentimento de mal­estar moral, culminando na nocao de culpa
sentido, e na verdade devido ao seu conhecimento que Prometeu se nuns, ou de pecado nos outros, todos eles sentimentos especifica­
tornou pecador, criminoso. Nietzsche nao faz esta aproximacao tendo mente nordicos efectivamente colectivos. I
Deste modo, Nietzsche tern razao ao fazerda criminalidade e do peca­
do um elemento constitutivo da consciencia ariana ... A ligeira nuance
4_1. �.embremo­nos dos combates dos gladiadores que constitufam jogos nacionais. Alguns "eris­
taos �obertos de resma transformados em tochas acesas iluminavam os jardins de Neron; quan­ que este introduz entre a consciencia profunda ariana e semitica parece
tos crimes cometidos no pr6prio apogeu da civllizacao romana.

160 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra V. Ccmpareceo dos outros aspectos das Culturas N6rdica e Meridional 161
. os Semitas sao lndo­Europeus quanto ao
vahda; mas d e monstra que
VI. Sera hist6rica a
·
serviram de apoio, de regulador entre os dots b ercos,
seu amago,
A
que ·
entre o mundo ariano e o Extremo­ o nente. E m
tal corno os Eslavos
ambos 05 casos, existe uma reviravolta mais ou menos profunda dos
traces normais e fisicos originais. . _ . . .
cornparacao da Africa N
e,
A

t A rragedia deste modo, uma cnacao espec1f1camente da c�nsc1en­


cia ariana que e talvez a (mica, no mundo, a conter desde a ongem os actual e do Egipto antigo?
elementos indispensaveis para a sua criacao.:

Fustel de Coulanges demonstrou que uma das principais causas de


erro do historiador consiste em imaginar espontaneamente o passado
de acordo com o presente. Deste modo, as comparacoes precedentes
estabelecidas entre a Africa e o Egipto antigo s6 serao consideradas
objectivas, cientificas, na medida em que e passive! demonstrar que se
conseguiu evitar esta tendencia e que se esta suficientemente munido
de garantias. Trata­se, atraves de uma breve analise, de mostrar que o
sistema de castas que domina a sociedade africana conserva as estru­
turas e se opoe as perturbacces internas e que permite, actualmente,
reaproximar, sob numerosos aspectos, factotes africanos e egipcios.
De resto, foi demonstrado em l'Afrique Noire precoloniale que as
caracteristicas africanas em causa remontavam provavelmente pelo
menos ao primeiro milenio.
[}orna­se indispensavel insistir, a partida, na especificidade do
sistema de castas. A sua originalidade reside no facto de os elemen­
tos dinamicos da sociedade, cuja insatisfacao poderia ter provocado
transforrnacoes, se contentarem com a sua condicao social e de nao
procurarem altera­la: um homem, dito de casta inferior, recusaria
categoricamente ser introduzido numa casta superior caso so os in­
teresses materiais estivessem em jogo; contrariamente ao proletario,
que adoptaria de born grado o lugar do patra� A sociedade encontra­
­se dividida em escravos e homens livres. No Senegal, os homens livres
sao os gor, compostos por ger e fiefio,
Os ger incluem a nobreza e todos os homens livres sem outra pro­
fissao manual que nao a agricultura, considerada sagrada.
Os fiefio englobam todos os artesaos: sapateiros, ferreiros, ourives,
etc. Estas profissoes sao hereditartas. Os djam ( escravos) repartem­se
em tres categorias: os djam hour, que sao os escravos do rei, os djam
neguday, que sao os escravos da familia ou da patria da mae, os djam
neg bay, que sao os escravos da familia ou da patria do pai.
Os ger formam a casta dita "superior". Estes nao podem explorar
materialmente os cidadaos das castas inferiores sem serem descon­
siderados aos olhos do povo; sao, pelo contrario, responsaveis por

162 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra VI. Sera histOrica a comparacao da Africa Negra actual e do Egipto antigo? i63
ajuda­los sob todos os pontos de vista: mesrno que sejam rnenos rices, Egfpcio classico' Wolof
05 mesmos devem despojar­se caso um homem de casta "inferior" se
dirija a eles. Em troca, este ultimo deve­lhe respeito moral. KEFi eu agarrei KEFna eu agarrei
A originalidade deste sistema provern do facto de o trabalhador KEF ek (masc)} KEFnga tu agarrasrs
manual, em vez de ser desprovido do produto do seu trabalho ­ tal coma tu agarraste KEFna2 ele agarrou
O artesao ou oservo da Idade Media, ou ainda o operario moderno, em KEFet (fem)
menores proporcoes ­, poder, pelo contrario, ser aumentado com a KEFef }
adicao dos bens oferecidos pelo senhor. Por conseguinte, se tivesse de agarrou­se/agarramn,
KEFef(masc)}
existir uma revolucao social, esta efectuar­se­ia de cima para baixo e nao
ele ou ela agarrou KEFes
o oposto. Adernais, os cidadaos provenientes de todas as castas, inclu­
KEFes (fem) KEFnen n6s agarrarnos
indo os escravos, estao estreitamente ligados ao poder; o que conduz
a monarquias constitucionais, governadas por Conselhos de ministros KEFnen n6s agarramos KEFngen v6s agarrastes
onde figuram todos os representantes autenticos do povo. KEFtem v6s agarrastes KEFnanu eles agarraram
Compreende­se que nao tenha existido, em Africa, qualquer revolucao KEFsem eles agarraram
contra o regime, mas somente contra aqueles que o aplicam mal, isto e,
contra prfncipes indignos.
Para cada casta, inconvenientes e vantagens, alienacao e cornpensa­ O wolof, actualmente, exprime o feminino atraves de um outro pro­
e
c;ao entram em equilibria. Para alern disso, no exterior das conscien­ cesso gram a ti cal diferente do egipcio classico. Este consiste em fazer
cias, no progresso material, nas influencias recebidas do exterior que suceder o nome por masculino ou feminino. De resto, este procedi­
se deve procurar o motor da hist6ria. Se tivermos em conta o Isola­ mento existia no egipcio em alguns casos, mas nunca foi generalizado3•
mento, compreenderemos por que motivo as sociedades africanas Segundo Mlle Hamburger, s6 nas Iinguas africanas e que a generaliza­
permaneceram relativamente imutaveis, ao ponto de podermos hoje c;ao ira ocorrer, como uma especie de prolongamento de uma evolucao
estabelecer pontos de cornparacao com o antigo Egipto. esbocada na lingua egipcia durante o perfodo de declinio.
0 unico elemento que teria interesse em ser abalado na ordem da Compreende­se, assim, que as formas femininas da conjugacao egf p­
sociedade africana, pelo facto de estar alienado e sem cornpensacao, cia desaparecam no wolof ou, quando se mantem, tal como na terceira
seria o escravo da casa do pai. Nao foi capaz de faze­lo por razoes que pessoa do singular, estas se tornem equivalentes as formas masculinas
resultam do caracter pre­industrial da sociedade: concentracao fraca, e o conjunto traduz­se atraves de um pleonasmo. Esclarecem­se, deste
etc. 0 sistema clanico que se encontra igualmente em Africa e um es­ modo, alguns factos gramaticais wolof, ate entao mantidos obscuros.
tadio primitivo em que a divisao ernbrionaria do trabalho ainda nao Investigacoes cada vez mais numerosas vern gradualmente confir­
ganhou a forma do sistema de castas. Com a ausencia dos modos de mar este parentesco cultural profundo do Egipto antigo e do resto da
alienacao das sociedades mais evoluidas, este tende, de igual modo, a Africa Negra. E deste modo que Jean Capart e Georges Contenau se
petrificar­se. interrogam acerca do pretenso caracter semitico da lingua egf pcia.
A proximidade gramatical das Iinguas africanas actuals, tal como
wolof, e do egipcio antigo da XVIII!! dinastia, tal coma se verifica, sem A que famflia lingufstica se realciona entiio a lfngua das inscriciies hieroqli­
qualquer duvida, na conjugacao abaixo­indicada, demonstra que a ficas? Depois de ter afirmado, de modo cada vez mais evidente, nas edicties
comparacao destas duas realidades, longe de ser ilus6ria, e legitima e sucessivas da sua qramatica egfpcia (1894, 1902, 1911), o parentesco da lfngua
que se concebe tambern em diferentes dominios.
A raiz KEF = capturar, agarrar violentamente, arrancar, que no wolof
1. Gardiner, Egyptian Grammar; Londres, 1927.
actual, quer em egipcio antigo (2 400 a 750 a.C.), sera escolhida como Lefebvre, Grammaire egyptienne; Le Caire, 1953.
exemplo de conjugacao: 2. Genese do pronome na 3• p. do singular na a partir do egipcio:
EG!PCIO: hs (y) t nt ntr = (aquela) que favorece o deus
WOLOF: hed n a ti tOr = (ela) e favorecida pelo deus
Hed na .... = (ele/ela) e favorecido/a ...
3. /d.

164 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra VI. Sera hist6rica a ccmperacao da Africa Negra actual e do Egipto antigo? 165
egfpcia com as lfnguas semlticas, as lfnguas do Leste africano e as lfnguas
berberes da Africa do Norte, o Professor Erman exprime estas relaciies com
muito menos convicciio na ultimo edicao da sua obra (1928) .. Perante estas
hesita9i5es, parece assim mais sabio, no momento actual, inspirar­se nas ulti­
mas conclusi5es do Professor Erman: "Os Egfpcios stio Nubios semitizados'". VII.
As ultimas investigacoes de Masson­Oursel tendem, pura e simples­
mente, a identificar o genie egipcio antigo e actual africano, e insistem
Os factores perturbantes
na amplitude e na profundidade da influencia cultural egipcia sabre a
Africa Negra atraves da Nubia.
Nesta rubrica, serao analisados um certo numero de factores sugeri­
Ao adaptar­se, o intelectualismo resultante de Socrates e de Arist6teles, de dos pelo vocabulario das linguas dos povos estudados.
a
Euclides e de Arquimedes, acomodava­se menta/idade neqra, que o egip­
t6/ogo apreende, coma pano de fundo, par detras dos refinamentos da civili­
zaciio com a qua! se des/umbra. Culto dos Antepassados
levados a considerar aquilo que deveria ser um truismo, o aspecto africano
do espirito eqipcio, compreendemos atraves de/e mais do que um dos traces O seu caracter universal foi enfatizado: a t6nica foi sobretudo colo­
da sua cultura. cada sabre a diferenca das formas que este culto reveste quando se
A partir de agora, de acordo com esta ordem de pesquisas tiio preciosa para a passa do berco indo­europeu para o berco meridional.
investiqacdo do pensamento, come9amos a entrever que umagrande pa rte do
continente negro, ao inves de ser tiio grosseiro e "selvaqem" como se supunha, Com os Indo­Europeus, tudo gravitava em torno do genes: cla do pai
repercute­se em inumeras direccoes atraves do extenso isolamento do deserto simbolizando o regime patriarcal, filiacao patrilinear; todas as concep­
ou da floresta, das influencias que, atraves da Nubia, da Libia ou da Etiopia, coes do parentesco consaguf neo patrilinear estao contidas neste ter­
chegavam do Nilo. 5 mo que se afigura tipicamente indo­europeu. E um dos raros termos
cuja autenticidade nao se coloca em duvida sempre que se procura ex­
Assim, por forca do caracter relativamente estatico da sociedade trair o minimo de raizes possiveis que constituem, no estado actual do
africana, que incitou Frobenius a escrever que a Africa e "uma lata de nosso conhecimento, o fundo primitivo do indo­europeu.
conservas das civilizacoes antigas"6, e possivel, actualmente, estabelecer O final do capftulo precedente mostra que o vocabulario de algumas
uma comparacao com o passado resguardando­se contudo com as linguas africanas, coma o wolof, poderia provir de uma antiguidade
precaucoes indispensaveis para permanecer no terreno cientffico. extremamente recuada. Ora, em wolof, existe uma raizgeno = a cintura
paterna, a filiacao patrilinear no sentido estritamente indo­europeu,
a tal ponto que a expressao Sama gefi.o (a)g bay!= sobre a cintura do
meu pai, e um sermao, Esta raiz proliferou tanto em wolof como nas
linguas indo­europeias e, curiosamente, o sentido destas proliferacoes
e frequentemente comparavel.
Wolof Indo­europeu qermiinico

gen= sair
4. Capart, Jeane Contenau, Georges, Histoire de /'Orient ancien; Hachette, 1936, p. 52. qent« = baptismo ( cerim6nia da saida
5. Masson­Oursel, "La philosophie en Orient"; fasciculo suplementar a l'Histoire de la Philosophie, do recem­nascido, 8 dias ap6s o
por Emile Brehier; Presses Universitaires, 1948, p. 43.
seu nascimento)
6. Frobenius, Leo, Histoire de la Civilisation Africaine; trad. D. H. Back e D. Errnont, Gallimard,
1933.

166 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra VII. Os factores perturbantes 167
gen = ser melhor O principio do parentesco niio era o acto material do nascimento; era o cu/to.
gen men= de meio mais nobre, gen men = o nobre, geracao: gen lsto e visivel na fndia. Ali, o chefe de famflia oferece, duas vezes por mes, a
homem hem nascido men >germen>germano = o nobre refeiciio funebre; este apresenta um bolo aos manes do seu pai, outro ao avo
gen = sexo masculino, cauda do animal (por dtssimilacao regressiva don) paterno, um terceiro ao seu bisavo paterno, e nunca aos descendentes das
mu/heres. Para a/em disso, recuando mais ainda, mas sempre na mesma
linhagem, o mesmo faz uma oferenda ao quarto, ao quinto, ao sexto ascen­
A cornparacao seria mais convincente, mais exaustiva se fosse pos­ dente. 56 que, para estes, a dadiva e mais ligeira; trata­se de uma simples
sfvel encontrar a mesma raiz em egf pcio anti go. libaciio de cigua ea/guns griios de arroz. Tai ea refeiciio funebre: e e seguindo
Ora, existe na escrita hieroglifica um sinal representativo de uma o cumprimento destes rituais que o parentesco se concretiza. 2
cauda de animal, cujo nome se transcreve qen. Nao se chegou a identifi­
car o animal em questao: nao se sabe exactamente se o termo transcrito Estes rituais encontram­se ­ no que diz respeito a refeicao funebre ­
representa o nome de animal ou o do determinativo: de res to, em egf p­ nos Sereres do Senegal, mas o antepassado ao qual o culto e oferecido
cio, o determinativo possui com frequencia um valor vocalico e pro­ e da linhagem materna; o uso do totemismo faz com que este seja
nuncia­se do mesmo modo que o name determinado. Deste modo, a sempre representado sob a sua "forrna animal": o Tur, que e, na maior
existencia da raiz gen parece bastante provavel em egf pcio. As incerte­ parte das vezes, uma serpente nao venenosa que habita nos locais
zas que dominam o vocabulario nao permitem ser mais afirmativo. reservados as libacoes e circula livremente no interior da casa3• E isto
que justifica o facto de Tur significar "libacao" em wolof e em serer;
Os dicionarios da lfngua egfpcia encerram uma infinitude de palavras cujo tiiru = fazer libacoes. Estas ultimas sao reservadas, tal coma acontece
sentido s6 pode ser atribuido, par enquanto, atraves de uma indicaciio muito com os lndo­Europeus, unicamente aos individuos pertencentes a
geral: "Verba exprimindo um movimento, au uma acdio violenta" Frequentemente, familia proveniente do mesmo antepassado: a relacao de paren­
a traduciia mais segura faz­se acompanhar pela reserva: "ou alga de anaio­ tesco que existe entre eles diz­se mbok = partilha ( subentende­se: da
qo". Chega mesmo a acontecer que as determinaciies zoo/6gicas botanicas refeicao funebre"), Bok= partilhar, e o verbo correspondente. E carac­
se deparem com dificu/dades, de entre as quais temos aqui um exemplo. Os terfstico que este sirva para designar a nocao de parentesco; reflecte
textos fa/am, desde as epocas mais antigas, de uma madeira de construciio bastante mais o aspecto cultural do que o biol6gico da linhagem. S6
que as Egfpcios iam buscar ao Libano. Os primeiros egipt6logos traduziram o por extensao e que a palavra pode significar: ter em comum; boknday
name Ash por acacia. Victor Loret demonstrou que se tratava do pinheiro da = ter em comum a mesma mae,
Cilicia, que se encontra hoje no Tauro. A traduciio que muitos autores tin ham Cada famflia possui o seu nome toternico, o do seu antepassado mi ti­
adoptado: "Cedro do Libano" esta, deste modo, errada.1 co, do seu cla, ou por outras palavras, do seu geno, mas de base matri­
linear. Por exernplo, os guelwar Diouf tern como totem uma especie de
Podemos salienter tambern que as Egipcios ­ nao mais do que lagarto, chamado Mbosse: estes sac os unicos a poder fazer libacoes
qualquer outro povo antigo ­ jamais elaboraram um dicionario aca­ para este animal.
dernico e que, por conseguinte, o vocabulario recolhido segundo os
textos (Livro dos Martos, Textos das Pirarnides, etc.) e necessaria­ Jar = Deus do Jar (Etrusco, Romano, PeuJ)4
mente fragmentario, Assim, acontecera com frequencia que alguns Jar= objecto de cuJto em wolof.
termos egf pcios nao comprovados tenham prevalecido nas lfnguas
africanas aparentadas; porern, s6 investlgacoes sistematicas ulteriores Nao e apenas no ambito dos cultos dos antepassados que se encon­
e que tornarao este ponto de vista suficientemente convincente. tram factores tao perturbantes devido a etimologia das palavras que
Segundo Fustel de Coulanges, o parentesco patrilinear esta marcado os designam.
pelo culto: a partilha da refeicao funebre, a concretizacao do mesmo
culto para o mesmo antepassado.
2. Fustel de Coulanges, op.cit., p. 59.
3. Capart, op. cit., p. 45.
1. Capart, op. cit., p. 45. 4. Harnpate Ba, Culture Peul; Presence Africaine, ng Junho­Novembro de 1956, p. 85.

168 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra VII. Os factores perturbantes 169
Vocabulario Mediterranico sua linqua e preferido um name estrangeiro. Os Fenicios tinham dominado as
aquas dos Pelasgos antes dos Helenos Aqueus; a historia posterior a ocupariio
Existe todo um vocabulario, datado da epoca egeia, ou seja, de um aqueia ja niio menciona a sua soberania ... A Odisseia fornece, acerca deste
periodo em que o mundo indo­europeu, devido a sua inconsistencia aspecto, o indicio decisivo. 6
cultural, era particularmente perrneavel as influencias estrangeiras,
que poderia ser posto em causa. Nada e mais discutivel do que a etimologia do termo "barbaro", fre­
Talvez ninguern tenha insistido tanto quanta Victor Berard sabre a quentemente considerado indo­europeu. Segundo Tucidides, Homero
lnfluencia unilateral egipto­fenicia sofrida pela Grecia, nunca o utilizou e fornece uma razao para tal:

Foi tambem do mare das suas gentes que o poeta grego (Homero) recebeu Ele (Homero}, de resto, niio utilizou muito a palavra barbaro, isto porque, se­
iniuneras palavras estrangeiras, quer se trate de names de lugares e names gundo me parece, as Gregas ainda niio estavam agrupados, no que /hes dizia
proprios, quer se trate de names comuns. Poder[amos a partir daqui esta­ respeito, sob um regime unico que pudesse opor­se­/he.7
belecer um vocabultirio bastante amplo e demonstrar convenientemente, isto
e, recorrer as nociies e teorias dos Fenicios au dos seus mestres do Egipto, para No Livro II de Herodoto, encontra­se uma passagem bastante curiosa
explicar inumeras formulas e metaforas homericas ... relativa ao termo "barbaro": o Fara6 Nekao levou a cabo a perfuracao
Para chegar ate Egyptos au para ali regressar, Menelau e o pirata cretense de um canal ligando o Nilo ao Mar Vermelho; porern, este teve de parar
passaram pe/a Fenicia. Para chegar aos poem as homericos, o canto eqipcio (o os trabalhos "depois de um ordculo ter iniciado a travessia, afirmando
canto do ndufraqo] pode ter adoptado a mesma via ... que trabalhava para o Barbaro; as Egfpcios designam de Bdrbaros todos
O nosso canto odisseico apresenta assim uma mistura de coisas eqipcias e aqueles que niio possuem a mesma lfngua que e/es."8
semiticas, o que constitui exactamente o caracter das produciies fenicias ... Poder­se­ia ter pensado que "Barbaro" representa um termo essen­
Niio creio, portanto, no papel de um Homero Ulisses. Creio no trabalho de cialmente grego e que Her6doto o utilizou para traduzir uma ideia
um poeta erudito, sabendo tao bem fer coma escrever e facultando a materia egipcia equivalente. Aquila que precede ja permite duvidar desta
literaria a materia das suas descricoes e das suas lendas. Esta Jonte provinha­ interpretacao. Deve acrescentar­se que o termo nao proliferou nas lln­
­lhe directa au indirectamente dos Fen(cios.5 guas indo­europeias; que a sua estrutura ­ duplicacao da raiz "Bar"
A maior pa rte das outras ilhas gregas conservaram ate nos a memoria indelevel para formar um substantivo ­ caracteriza essencialmente as linguas
desta epoca, nos names que usam ainda hoje. africanas, por oposicao as linguas indo­europeias.
Estes names, de facto, que as Helenos transmitem desde ha trinta seculos, E curioso notar que Bar= falar rapidamente em wolof; barbar­lu =
Delos, Syros, Casas, Paxos, Tharos, Samas, etc. niio significam nada em grego; fingir falar rapidamente; poder­se­ia multiplicar os exemplos para
mas faziam­se acompanhar, durante a antiquidade, par names gregos, que salientar a proliferacao desta raiz em wolof:
qualquer ouvinte helenico compreendia imediatamente: Ortygia "a i/ha das
Okeanos: extensao de agua, em grego. Fol Homero que introduziu a palavra
codomizes". Aghne "a ilha da espuma", Plateia "a ilha plana", Aeria "a ilha sus­
pensa" Estas desiqnacoes gregas hoje esquecidas eram a mera traduciio dos na poesia depois de Her6doto. Cf, Livro II, nao e indo­europeu.
names misteriosos, cuja etimologia semltica pode certamente dar­nos con ta: Cyane = escavacao preenchida com agua, em wolof.
Casos­Achne, Paxos­Plateia, Thasos­Aeria, Samos­Hypsele, Delos­Ortyqia
representam umas quantas "pare/has'; coma diriam as geografos ... Zeus e considerado coma o Deus Europeu por excelencia. E identi­
Nas antigas pare/has do Mediterrtineo grego, o primeiro termo e o origi­ ficavel com todos os fen6menos atmosfericos, celestiais; e sucessiva­
nal, ao que parece, e o segundo e uma copia posterior: as Semitas criaram o mente Deus da luz, da trovoada, da chuva, segundo Albert Grenier que
primeiro; as Helenos substituiram­no pelo segundo. lsto porque niio se per­ salienta de igual modo a unidade etimol6gica do seu name nas diferentes
cebe quando, coma, nem par que motivo e que as Helenos, se a desiqnaciio
linguas indo­europeias.
grega fosse o original primitivo, teriam depois abandonado este termo da
6. Id., pp. 52, 53, 54.
7. Tucldides, La Guerre du Peloponese; Livro I, par. III, tract. Jacqueline de Romilly, Ed. "Les Belles
5. Berard, Victor, La Resurrection d'Homere. Au temps des heres; Ed. B. Grasset, Paris, 1930, pp. Lettres", Paris, 1953.
99, 102, 145 e 153. 8. Her6doto, op. cit., Livro II, par; 158.

170 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra VII. Os factores perturbantes 171
Ao sanscrito Dydus [raiz div, irradiar] corresponde o grego Zeus, o latim
jup­piter, o nordico antigo Tyr, o qermtinico Ziu. Em concreto, representa o
ceu /uminoso.9

Esta perspe acerca da etimologia de Zeus e tambem a de Piganiol:

a
Perfeitamente fie/ tradicao indo­europeia, os Persas atribuem o nome de Conclusao
Zeus a todo o espaco celestel"

O autor remete para o paragrafo 131 do Livro I de Her6doto, onde a


Para concluir, o berco meridional confinado ao continente africano
mesma ideia se encontra mencionada.
em particular caracteriza­se pela famllia matriarcal, pela criacao do
Destas citacoes, resulta essencialmente que Zeus nao e identificado
Estado territorial, por oposicao a Cidade­Estado ariana, pela emanci­
com o ceu, mas sim com o espaco celestial, este espaco entre o ceu e a
pacao da mulher na vida domestics, pela xenofilia, pelo cosrno­
terra no qua) se desenrolam todos os fen6menos atmosfericos e que,
politismo, por uma especie de colectivismo social tendo coma coro­
atraves de uma coincidencia nao tao perturbadora, e tambern desig­
lario a quietude, chegando ate a despreocupacao em relacao ao futuro,
nado Dyau em wolof. Djaw = dia, em bantou.
por uma solidariedade material de direito para cada individuo, e que
Como e evidente, seria ingenuo da nossa parte pretender alcancar
faz com que a miseria material ou moral seja desconhecida ate aos
certezas cientificas por conta de uma aproximacao tao vaga de termos
nossos dias; existem pessoas pobres, mas ninguem se sente so, ninguern
africanos e indo­europeus, sobretudo quando as provas anteriores das
esta angustiado. No domlnlo moral, um ideal de paz, de justica, de bon­
linguas africanas sao tao raras. E possfvel mesmo relembrar que em
dade, um otpimismo que elimina qualquer nocao de culpa ou de peca­
lingufstica, e sempre relativamente facil aproximar duas linguas quais­
do original nas criacoes religiosas ou metafisicas. O genera literario
quer do globo; o contrario e que seria sobretudo dificil: provar que
predilecto e o narrativo ­ o romance, o conto, a fabula e a comedia,
duas linguas nao possuem qualquer grau de parentesco.
O berco nordico confinado a Grecia e a Roma caracteriza­se pela
Nao obstante, o misterio subsiste, uma vez que a comparacao foi es­
familia patriarcal, pela Cidade­Estado ( entre duas cidades existia
tabelecida, nao com termos secundarios do indo­europeu, mas com
afirma Fustel de Coulanges, algo de mais intransponfvel do que urna
alguns termos seguros, autenticos de que pudemos dispor para construir
montanha); percebe­se facilmente que e no contacto com o mundo
a pr6pria teoria do indo­europeu: genes, Zeus, etc ...
meridional que os n6rdicos expandiram a sua concepcao estatal para
se erguer ao nivel da ideia de um Estado territorial e de um im­
perio. 0 caracter particular destas Cldades­Estado, no exterior das
quais se era um fora da lei, desenvolveu o patriotismo no seu interior,
hem como a xenofobia. 0 individualismo, a solidao moral e material, a
repugnancia pela existencia, toda a materia da literatura moderna que,
mesmo sob os seus aspectos filos6ficos, nao representa outra coisa se
nao a expressao da tragedia de uma vida, cujo estilo remonta aos ante­
passados, constituem o apanagio deste berco,
Um ideal de guerra, de violencia, de crime, de conquistas, herdado da
vida n6mada, tendo par corolario um sentimento de culpabilidade ou
de pecado original que representa o fundamento dos sistemas religio­
sos ou metafisicos pessimistas sao o apanagio do mesmo.
O progresso tecnico e a vida moderna, a ernancipacao progressiva
da mulher moderna, mesmo sob a influencia deste individualismo,
9. Gr�nie'., Albert, Les religions etrusque et romaine; col. Mana, P. U. F., s/1, 1948, p. 88.
10. Ptganiol, Les oriqines de Rome; ed. Librairie Fontemoing et Cie, s/1. 1916, p. 117.

Conclusao 173
172 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africo Negra
quantos factores que tornam diflcil o esforco para relembrar a antiga que e tangivel. A questao e tao desconcertarite que muitos eruditos
condicao de serva da mulher ariana. ocidentais (fisicos, maternaticos, bi6logos) chegam a um vago deismo.
o genera Iiterario por excelencia ea tragedia ou o drama. O Africano, Segundo aquilo que ate aqui foi dito, pode deduzir­se que a maior
depois dos mitos agrarios do Egipto, nunca ultrapassou o drama cos­ parte dos futuros sabios africanos, tendo em conta o seu passado
mico. cultural, pertencerao sobretudo a categoria dos que adoptam uma
A solidarie .de africana nao e uma solidariedade cientifica, sendo perspectiva optimista reflectida.
esta tao eficaz quanto desprovida de calor humano. Esta poderia Talvez estes venham a considerar que, quando a humanidade esti­
enriquecer o socialismo cientifico com este ultimo factor. ver concretizada, ao inves de morrer de tedio na mais completa oci­
A angustia social previamente em causa resulta da inseguranca osidade, o homem aperceber­se­a que a sua tarefa apenas comecou,
material e da solidao moral; e completamente distinta da decepcao e Descobrira, entao, que lhe e inteiramente possivel, muito antes de 15
do mal­estar intelectual e moral do sabio moderno. bili6es de anos de reflexao, domesticar o sistema solar e domina­lo
O sabio manteve­se tranquilo durante todo o reino do sistema ate ao planeta periferico de Plutao, de modo praticamente eterno.
geocentrico ­ isto e, ate ao Renascimento. Depois, a descoberta do in­ Talvez consiga alcancar este prop6sito alimentando o sol recorrendo
finito veio abalar a sua razao e ate mesmo a sua consciencia. Na sua a satelites precarios formados a partir da materia sideral que acabam
nova concepcao do universo em devir, as galaxias que se movimen­ por cair na sua massa, ou quern sabe restituindo ao sol a ener­
tam no abismo a distancias que so podem ser medidas em anos­luz, gia irradiada na aceleracao dos nucleos de hidrogenio a partir de
a imensidao da duracao face ao fen6meno humano, provocam­lhe um imensos campos electromagneticos artificiais? Recusar a morte ter­
desvario intelectual. Este e esmagado pela infinitude do espaco e do modinamlca, estabilizar o sistema solar, protege­lo dos meteoritos
tempo; e decepcionado pela divisao periferica do homem no universo, perigosos, solidificar os planetas gasosos, aquecer os da periferia par
pela sua presenca puramente acidental. Tern tendencia a questionar­se, forma a torna­los habitaveis, impedir o aparecimento e a prollferacao
tal como Salornao, se tudo nao e pura vaidade. de monstros biol6gicos, controlar os climas e a evolucao dos planetas,
No entanto, e necessario que as coisas tenham um sentido; a tarefa descobrir e cuidar de todas as vias praticaveis do sistema, comuni­
do sabio deve inserir­se no ambito de uma actividade geral grande­ car com as estrelas pr6ximas da galaxia, criar um super­homem com
mente util para a civilizacao e para o universo, caso contrario, este uma esperanca de vida mais prolongada, talvez estas venham a ser as
seria o reino do absurdo a escala do cosmos. Como escapar a esta fa­ preocupacoes entusiastas do futuro. A vida teria assim, a seu modo,
talidade? Quinze bili6es de anos, a duracao da vida que os eruditos triunfado sobre a morte, o homem teria realizado um paraiso terrestre
atribuem hoje ao sistema solar; depois, o sol apaga­se: se nao tiver praticamente eterno, teria triunfado, ao mesmo tempo, sabre todos os
explodido ate entao para gerar uma morte geral atraves do fogo, sera sistemas metafisicos e filos6ficos pessimistas, sobre todas as vis6es
uma morte atraves do frio. E, talvez, ao cabo de um periodo incomen­ apocalipticas do destino da especie, Uma etapa grandiosa da evolucao
suravel, o mesmo ciclo seja novamente esbocado algures no espaco da consciencia humana seria alcancada, 0 homem emergiria coma um
e volte a atravessar as mesmas fases. E necessario que o intelectual Deus em devir no sentido hegeliano.
encontre um meio para afastar esta eventualidade desconcertante que O universo do futuro estara, muito provavelmente, impregnado pelo
o conduz nas suas pr6prias investigacoes, a vontade indestrutivel de optimismo africano.
penetrar no desconhecido.
Aqui, de igual modo, o passado cultural das nacoes e dos povos pode
influenciar as perspectivas pessimistas ou optimistas que podemos
adoptar para atribuir um sentido a actividade superior do espfrito hu­
mano, de modo a perspectivar o futuro da especie,
Em Le Phenomene Humain, Pere Teilhard de Chardin, num esforco
gigantesco de sintese, procura demonstrar que a evolucao vai neces­
sariamente ao encontro de um fim; mas o fim em causa e metafisico e
nao satisfaz o intelectual preocupado com a objectividade, com aquilo

174 Cheikh Ania Diop A Unidade Cultural da Africa Negra Conclusso 175
A pen dice
Anotacoes acerca de La Resurrection d' Homere.
Au temps des heros por Victor Berard
Foram raras as vezes em que, tanto quanta Victor Berard, um histo­
riador insistiu na influencia egfpcia na Grecia,
Este sublinha, em primeiro lugar, a frequencia das relacoes desde a
epoca hornerica, o imenso luxo em que vivia o mundo egeu: Helena
ja recebia oferendas preciosas dos habitantes "de Tebas do Egipto, a
cidade onde as casas abundam em riquezas".
O Egitpo ja era reconhecido par ter os medicos mais sabios do
mundo:

Esta mesma Helena podia adquir livremente, em Tebas, o famoso nepenthes,


simultaneamente anestesico e narc6tico, com o qua/ adormecia instantanea­
mente as dares e as preocupaciies dos seus convivas.1

Segundo o autor, os objectos encontrados em Creta fazem remon­


tar as relacoes com o Egipto a um antiguidade inalcancavel: um vaso
encontrado em Cnossos "resulta de um modelo que so se encontra no
Nila nos tempos predindsticos ou sob a /fl e Ilfl dinastia". A ilha tera sido
mesmo anexada pelos Fara6s:

Ao que parece, treze seculos antes dos Ptolemeus, que teriio a mesma tare/a,
vinte e dais seculos antes dos califas, que tornariio a repeti­la, trinta e dais
seculos antes de Mehemet Ali, que a conquistara e a manterd durante um
instante, os Fara6s anexam a Jlha de Creta ao seu imperio: os seus vassalos e
tributdrios da Fenicia representam ali os seus agentes politicos, bem coma os
seus agentes comerciais2•

Os selos de Amen6fis III e da sua rainha Titi encontrados no Mediter­


ranee permitem datar com exactidao o inicio da hist6ria grega.

1. Berard, Victor; La Resurrection d'Homere. Au temps des heres; Ed. Bernard Grasser, 1930, pp.
34 e 35.
2. Id., pp. 36.

Apendice, Anotac;Oes acerca de La Resurrection d' Hom�re.Au temps des heros par Victor Berard 179
A hist6ria dos poises gregos inicia­se nos seculos XVI­XV antes da nossa era: simbolo da formacao do povo grego, nao era de sangue puramente
os monumentos egeus e micenicos podem desde logo enquadrar­se numa cro­ aqueu, nem mesmo de cultura e de raca helenica, uma vez que este
nologia sugerida pelos documentos do Egipto e da pr6pria Grecia. Os selos e filho de Atreu e neto de Pelops o Frfgio, que se tinha instalado em
de Amen6fis e da sua rainha Titi (1411­1380), encontrados no Chipre, em Argos em consequencia de um casamento com uma princesa aqueia.
Rodes, em Creta e em Micenas, fornecem a primeira data assegurada para o Devia o seu name a sua fortuna. A sua suserania expandiu­se ate a
pleno desenvolvimento desta civilizaciio egeo­levantina, a quern os Helenos peninsula que se tornou no Peloponeso.
atribufam a entrada a Minos, Ji/ho de Europa a Fenicia, a Cadmo o Tirreno e
a Dana us o Eqipcio, importadores das leis escritas, do alfabeto, do cavalo, do Egfpcios, Fenicios e Hititas foram assim os educadores da Acaia, mas sobre­
tanque de guerra e da embarcaciio a cinquenta remadores3• tudo os Egfpcios e os Fenfcios.7

Os Aqueus foram introduzidos na escola dos Egipto­Fenicios, apren­ O autor mostra que os her6is da epoca hornerica conservam relacoes
deram a construir as ernbarcacoes rapidas hornericas com cinquenta estreitas com a Tebas do Egipto, [a que Menelau se expatriou dali du­
e dais homens par equipa "que compunham as /rotas de Tyre de rante sete anos e voltou a regressar carregado de ofertas. Tebas estava
Sfdon e cujos monumentos egipcios, a partir do seculo XV antes da nos­ repleta de estrangeiros, Semitas, Libios, Aqueus, tal coma viria a suceder
sa era, conservaram a imagem: todos os detalhes da construciio e do posteriormente em Bizancio durante o perfodo do Baixo Imperio,
equipamento correspondem as caracteristicas do cruzeiro homerico e
desta tripulaciio de cinquenta remos que os Levantinos, e mais tarde os Encontrava­se mesmo reduzida a defender o seu territorio, o seu passado,
Ocidentais, receberam dos Fenicios e que todo o Mediterraneo da epoca a sua p6pria lfngua, contra estes estrangeiros que se apresentam enquanto
classica, da Idade Media e dos tempos modernos adoptou durante tres amigos, aliados, em servos e que a penetram pacificamente ... Esta permanece
mil anos e cujos ultimas exemplares aindafiguravam nos esquadriies do a cidade mais celebre e mais rica do mundo; esta cidade do ouro ainda atrai
nosso Luis XV4." os a/hares e as cobicas dos Aqueus...
Quantos senhores aqueus teriio, antes e depois de Mene/au, chegado e per­
A pesada carroca com as suas rodas de madeira, que era a casa do manecido durante longos meses, longos anos, nesta capital da civiltzacaol"
n6mada, transformou­se, no contacto com os Egf pcios, em tanque
metalico ligeiro com os Aqueus, "em tudo semelhantes aos tanques do }fa verdade, e todo o Egipto que recebe uma vaga cada vez mais im­
Fara6 que Maspero descreveu'", portante de estrangeiros de raca aqueia. Sempre que o Fara6 venceu
O autor cita uma passagem na qual Maspero descreve a carrocaria e os "povos do mar", "este poupa os sobreviventes, alista­os e distribui­os
a cavalaria egipcias levantando a seguinte questao: pelos seus terrenos de construciio ou nos seus pastas militares. Estes
tornam­se os me/hares operarios e os melhores so/dados do rei... "
Trata­se de guerreiros homericos ou de guerreiros eqipcios aque/es acerca
dos quais G. Maspero fa/a? Niio seria um ta/ verso homerico "Os cavalos ... Domiciliados ou aquartelados em Tebas e nas provlncias, estes mercenaries
esvoar;avam livremente em direcdio a planicie" a traduciio mais exacta de desposam Eqipcias, misturam­se com a populadio, tornam­se pessoas hones­
uma representadio eg(pcia de um tanque em plena corrida, cujos cavalos de tas e ate grandes personagens, alcancam as honras e a riqueza. Sob a XX,1
longas crinas (segundo o epiteto homerico] levantam voo, com as duas patas dinastia {1200­1100 a.C.J, mesmo em Tebas, boa parte dos oficiais e dos fun­
dianteiras batendo o ar?6 cionarios era composta par Sirios e Berberes de adaptacao recente ...
Esta troca de mu/heres operava sobretudo uma mistura das rar;as e das civili­
As relacoes com o Egipto e com o Oriente Pr6ximo eram tao profun­ zacoes, cujas narrativas de Eumeu nos forneceriio um born exemplo ...
das que o autor supfie que Agamemnon, o chefe do feudalismo aqueu, Em ftaca, o heroi Egito, o Egfpcio, e sempre escutado quando se ergue para
falar ao povo.9

3. ld., op. cit., pp. 36 e 37.


4. Id., op. cit., p. 38. 7. Id., op. cit., p. 43.
5. Id., op. cit., p. 39. 8. Id., op. cit., p. 44.
6. ld., op. cit., p. 40. 9. Id., op. cit., pp. 47 e 48.

180 Cheikh Ania Diop A Unidade Cultural da Africa Negra Apendtce. Anota4rOes acerca de La Resurrection d' Homere.Au temps des heros porVictor Berard 181
o autor revela, na toponimia mediterranica, a amplitude da influen­ grandes embarcaciies de Tarsis com o intuito de ali negociarem. 0 Robinson
cia egitpo­fenfcia. eqipcio e vitima de um naufrdqio nas aguas lonqinquas que ladeiam
To­Noutri, o Pais dos Deuses (Ulisses vai citar pa/avras provenientes da lin­
Daise tres mil anos de intimidade quase continua entre as llhas Verdes e as gua dos Deuses). Uma tempestade afunda o navio e toda a tripuladio, e s6
civilizar;oes levantinas exerceram a influencia directa e indirecta que se pode o nosso her6i e lancado numa ilha habitada por uma serpente gigantesca,
imaginar na vida polftica dos Aqueus: Roma niio agiu de modo mais significa­ dotada de uma voz humana (coma Circe e Calipso): esta serpente, chefe de
tivo e mais pro/undo na nossa Europa Ocidental ... famflia, acolhe o ndufraqo, cuida dele, alimenta­o, adivinha­lhe um regresso
... A arte desta epoca, mesmo no que concerne as suas obras seguramente feliz e enche­o de oferendas colocando­o a bordo do navio que o leva de volta
mais nativas, e orientalista, com todas as caracteristicas que este conceito (Circe faz o mes mo)12•
implica: o gosto pelo ornamento e pela pompa, pelo bri/ho e pela cot; pela
riqueza e ate mesmo pelo extravagante; a fantasia e a exuberancia na com­ Proteu, o feiticeiro divino, encontrado por Menelau na foz do Nilo e
binaciio das linhas cultas com materias preciosas; o sentimento da vida uni­ toda a hist6ria que lhe diz respeito, e a qual Eidoteia se mistura, en­
versal, da beleza animal e vegetal tanto quanta da beleza humana; um ardor contram o seu equivalente na literatura egfpcia: Prouti e o nome de um
sensual aspirando ao movimento e a fe/icidade, e uma especie de languidez Fara6 egf pcio, magi co lendario.
contemplativa e de resiqnaciio no deleite; em suma, de niio se sabe que exo­ Nos papiros do seculo XIII antes da nossa era, encontra­se relata­
tismo aos olhos da nossa Europa 1°. da a hist6ria de dois prfncipes feiticeiros: estes sao filhos de Prouti e
dos pr6prios futuros Prouti. Estao em busca do livro de Thot, o livro
Porern, nesta epoca recuada, os Fenicios que serviam de inter­ magico por excelencia, que permite aqueles que o possuem posiciona­
mediarios com o Egipto eram, sem contestacao possivel, os vassalos rem­se imediatamente abaixo dos Deuses; atraves das suas formulas,
do Fara6: o autor encontra a prova disto na correspondencia trocada. e possfvel encantar o ceu, a terra, o mundo da noite, as montanhas e as
aguas: conhecer os passaros e os repteis, os peixes que se encontram
Os reis ou sufetes de Tyr, de Sidon, de Arad e de Biblos, das mais nobres no fundo do abismo, porque uma forca divina fa­las vir a superffcie.
metr6poles fenicias.fiquravam entre estes correspondentes que se afirmavam
servidores de Amen6fis, os ciies da sua casa, os degraus e o p6 dos seus pes", O Proteu odisseico conhece os abismos do mar na sua plenitude e faz emergir
as focas da profundidade espumante.13
Victor Berard chega a analise de Homero. Segundo ele, a dependen­
cia entre a Odisseia e os romances marl timos egi pcios transmitidos Quando, ap6s todas estas metamorfoses, o Proteu odisseico retomara
atraves do papiro e estreita. Muitas das passagens da primeira con­ uma forma humana, este nao tera "a majestosa cabe/eira branca ea bar­
sistem apenas, de certa maneira, na versificacao grega de fragmentos ba prateada do Pai eterno que se imaqina comummente. Ostenta uma
de romances egf pcios. peruca neqra ericada pelo zefiro, ta/ como convem a Proteu o Eqipcio.
Porque o verdadeiro Prouti nunca sai sem uma peruca azul ou negra."14
Ha muito tempo, as naveqadies eqipcias no Mediterrtineo ou no Mar Vermelho
e os seus periplos tinham dado origem a cantos ou romances marftimos, de O Fara6 do Egipto ostentava uma peruca ligeira, nao de cabelo ou
entre os quais os papiros ainda s6 nos divulgaram dais... A segunda narrativa de crina, mas de metal e sobretudo de esmalte. Tratava­se, portanto,
muito mais romanesca e este con to do naufraqio ao qua/ aludi mais acima: e de um verdadeiro penteado, e nao de uma imitacao de cabeleira. As
o primeiro, quanta a dataciio, dos Robinson Crusoe. Este transporta o leitor perucas ainda existem na Africa Negra, na Abissinia. A nobreza egfpcia
para os tempos lonqinquos em que os Pepi e os Mentuhotep das Vig e XJg di­ ostentava perucas em lapis­lazuli,
nastias (2400­2100 antes da nossa era) fa enviavam as suas [rotas do Punt, O Fara6 odisseico domina as focas "ta/ como os Fara6s das fabuias e
no sul do Mar Vermelho, para ir comprar as fraqrancias, os narcoticos e os as caricaturas eqipcias reinavam sobre os ratos, os leiies ou os qatos ... "
animais raros: Salomiio e Hirao viriam a associar­se para enviar as suas
12. /d., op. cit., pp. 107 a 109.
10. ld., op. cit., pp. 47 e 48. 13. ld., op. cit., p. 90.
11. Id., op. cit., p. 72. 14. ld., op. cit., p. 90.

182 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra Apendice, Anotacaes acerca de La Resurrect.ion d' Homere.Au temps des heros per Victor Berard 183
o conto do Rei Khoufoui e os M<igicos colocavam em cena um certo Didi que, entre as quais os Hebreus e os Helenos que, longe de as ignorar, admiraram e
grafas aos /ivros de Thot, se fazia seguir pelos leiies atraves do pals, ta/ como imitaram, e, por vezes, ate copiaram. A Caldeia, o Egipto ea Fenicia, a Babilo­
o nosso Proteu se faz suceder pe/as focas.15 nia, Tebas e Sidon representaram para os Hebreus e para os Helenos a mesma
be/a, sii, douta e veneravel antiguidade que Jerusalem, Atenas e Roma repre­
Por ultimo, as profecias da grande Serpente barbuda no conto egip­ sentaram para os Ocidentais.18
cio do naufrago sao as mesmas que as do divino Tiresias a Ulisses.
o autor demonstra que o Zefiro e um vento benfeitor e digno de ! Os sacerdotes egipcios nao assinavam as suas descobertas como as
ser cantado em poesia apenas no Egipto; que tendo em conta o seu gregos individualistas, nenhum name de inventor foi perpetuado. Em
caracter funesto na Grecia e no Mediterraneo setentrional em geral, contrapartida, mantiveram­nas invejosamente nas suas castas e apenas
"s6 um emprestimo aos modos ea literatura do Egipto poderiam ter tor­ disponibilizavam um ensino elementar esoterica ao povo.
nado o mistral na aprovaciio suprema de um paraiso helenico. Contudo, Estes inventaram a nocao de iniciacao, que constituiu a grande
afirmar que, hci vinte seculos, o inconveniente zefiro (assim [ala sabia­ fragilidade que viria um dia a destruir a sua civilizacao, Adoravam
mente o poeta odisseico) se tornou, em todas as literaturas ocidentais conferir ao conhecimento um caracter anunciador e atribuiarn as suas
discipulas da Grecia, o vento dos suspiros afectuosos, da felicidade tran­ descobertas e as resultados das suas experiencias ao Deus That (Mer­
quila e do amorf "16 curio Hermes). Para alem disso, foi bastante facil para os discipulos
Nas suas metamorfoses, Proteu transforrna­se sucessivamente em iniciados imputarern­se a si pr6prios as descobertas dos seus men­
leao com crina, em pantera, em porco gigante, etc. Ora, e ao hipopota­ tores. Sabemos hoje, de modo praticamente assegurado, que Tales de
mo que os Egipcios designavam como porco do rio. Era a divindade do Mileto, Pitagoras de Samas, Arquimedes da Sicilia, Platao, Solon, etc.
parto. Este s6 se encontra na Grecia nos monumentos min6icos de ori­ foram discipulos de sacerdotes egipcios que nesta epoca, mesmo
gem egipcia. A sua presenca, refere Berard, representa a prova indubl­ segundo Platao, consideravam as Gregas como espiritos relativamente
tavel, para os arque6logos, da influencia egipcia na Creta pre­helenica, imaturos. Ora, e notavel que nenhum destes sabios gregos educados
cujos cultos foram transmitidos aos Cretenses helenizados. Para con­ desta forma no Egipto, em particular Pitagoras, fundador da escola de
cluir, o autor levanta a seguinte questao: "De um modo geral, poder­se­a matematica grega, nao tenha pensado em estabelecer um equilibria
negar que o poeta odisseico retirou o seu epis6dio de Proteu aos cantos entre as suas pr6prias descobertas e aquelas que recebeu do Egipto.
e romances do Egipto fara6nico? Mas tera este emprestimo sido directo, E tan to mais inexplicavel que Plutarco, em Isis e Osi.ris, insiste no facto
de um texto egfpcio para um texto grego?"17 de que, de entre todos as sables gregos que se iniciaram no Egipto,
Este considera que nao: as Fenicios, agentes e vassalos dos Egipcios, Pitagoras e o mais estimado pelos Egipcios, devido ao seu espirito
teriam servido de intermediaries. Mas segundo ele, os Egipto­Fenicios rnistico. Sabe­se que a sua ciencia do Numero fol durante muito tempo
desempenharam, face a Grecia e aos Hebreus, a mesma funcao civili­ uma ciencia matematico­mistica,
zadora, se nao mais ainda do que a Antiguidade greco­latina face ao Tai apreco pela reputacao individual da imortalidade do name, tal
Ocidente moderno. defeito de probidade intelectual nao deixou de indignar o honesto
Her6doto, que manifesta sem rodeios o facto de Pitagoras ter sido um
O erro dos nossos precursores consistiu somente em acreditar que esta auro­ plagiador19•
ra dos tempos modernos correspondia tambem ao despertar da humanidade Her6doto, cu]o nascimento distaria apenas de 16 anos (?) da morte
pensante e criadora e que Homero e a Biblia eram as primeiras e subitas ex­ de Pitagoras nao fala de todo deste ultimo coma de um mito, mas sim
plosoes do qenio literario. As descobertas recentes dos arque6/ogos no Egipto coma de um homem que realmente existiu. Isto nao deixa de levar
e na Ca/deia revelaram­nos indubitavelmente que, durante uma longa anti­ alguns a considerar Pitagoras apenas coma a personificacao da nova
guidade levantina, alguns sabios, artistas e poetas j<i tinham criado obras­ tendencia (escola) filosofico­rnatematlca.
­primas que serviram, tambem elas, de modelo a uma centena de qeracoes, A existencia deste ultimo pode ser posta em duvida: o mesmo nao
sucede com a de Arquimedes. 0 seu tumulo foi encontrado em Siracusa,
15. ld., op. cit., pp. 91 e 92.
16. /d., op. cit., p. 96. 18. /d., op. cit., pp. 81 e 82.
17. ld., op. cit., p. 97. 19. Cf. Livro II.

184 Chelkh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra Apendlce. Anota�Oes acerca de La Resurrection d' Homere.Au temps des heros par Victor BE!rard 185
na Sicilia. Ora, todas as invencoes mecanicas atribuf das a Arquimedes das desigualdades relativamente aos contributos estrangeiros a Gre­
apresentam um caracter duvidoso; estas existiam no Egipto milenios cia, para quern pretendesse colocar a Africa e a Asia na mesma balanca
antes do seu nascimento. Os construtores das piramides do antigo im­ sob este ponto de vista.
perio conhecem o principle da alavanca; recorriam a este de modo di­ Gracas ao engenho dos sables alexandrinos, os progressos tecnicos
versificado para erguer toneladas de pedras ate ao topo das piramides concretizados na antiguidade permitiriam passar directamente para
em construcao. ·Neste sentido, e impossivel utilizar tal instrumento uma fase industrial com a utilizacao sisternatica da maquina,
sem associar de imediato a relacao das massas e das distancias sem A energia hidraulica era domesticada par "Demetra". A forca motriz
teorizar. do vapor tambern o era virtualmente.
Arquirnedes teria descoberto o parafuso sem fim que esta na ori­ Porern, nenhum investigador sentira a necessidade de aligeirar as
gem de um progresso mecanico consideravel. Porem, Diodoro da dificuldades dos trabalhadores escravos (tao baratos) ao substituir a
Sicilia e categ6rico, Arquimedes so poderia ter levado a cabo esta in­ sua mao­de­obra servil pela maquina,
vencao ap6s a sua viagem para o Egipto, onde o parafuso hidraulico Os escravos, cuja questao poderia interessar, nao estavam em
ja era utilizado e servia para bombear a agua. lsto afigura­se de ta! posicao de levar a cabo investigacoes e aplicacces. Por outro lado, os
modo evidente que e hoje geralmente aceite o facto de Arquimedes resultados cientfficos serviram para o divertimento das classes diri­
ter, no maxima, adaptado uma invencao egipcia. 0 parafuso egipcio, gentes que chegavam mesmo a apreender a transformacao brutal que
assim exportado por Arquimedes, serviu, tal coma no pals de _origem, resultaria da introducao da maquina nos costumes tecnicos.
para "bornbear a agua" das minas de prata em Espanha. Por utlimo, o Arist6teles afirmava ironicamente: "Quando a lancadeira funcionar
pr6prio prindpio de Arquimedes esta relacionado com esta mecanlca por si s6, o escravo deixara de ser necessario." De facto, a sentenca
dos fluidos. Ha lugar; portanto, para prosseguir as Investigacoes. 0 re­ estava ditada para a escravatura.
sultado, ao que parece, encontra­se no fundo. Porem, nao era possfvel que lhe tivesse surgido a ideia de consagrar
Outro factor nao menos paradoxal fica par desvendar. 0 genie in­ as suas investlgacoes a tornar possfvel o funcionamento da lancadeira
telectual heleno eclodiu e desenvolveu­se principalmente no exterior por si s6, de modo a que todos os homens se tornassem livres. Este
de Atenas e da Grecia continental, na Asia Menor (Pergamo, Mileto, pretendia demonstrar com isto que a escravatura constitui uma neces­
Halicarnasso ), na Palestina (Antioquia) e sobretudo no Egipto, em sidade natural
Alexandria.
Esta ea verdade durante e depois do reinado de Alexandre. Para de­
tectar a anomalia, seria necessario supor que Dakar e hoje o centro
permanente do poder criador da Franca no apogeu da sua gl6ria.
E na Alexandria que a filosofia ira atravessar um nova desenvolvi­
mento com o neoplatonismo de Plotino.
A biblioteca mais importante do mundo daquela epoca ( que viria
mais tarde a ser incendiada por cristaos fanaticos], os medicos mais
proeminentes que praticavam a dissecacao, os engenheiros constru­
tores de maquinas "modernas" (taumaturgos): pombo voador em ma­
deira, turbina a vapor par reaccao ... "eolfpila de Heron", etc, encon­
tram­se na Alexandria, exceptuando Atenas. Perque? Nenhuma razao
aparente, a nao ser o facto de a infra­estrutura e da tradicao intelectual
egfpcia serern ja milenares, e oferecerem condicoes de trabalho aos
investigadores que nao podiam concorrer com a Asia nem corn a Eu­
ropa de outrora. Mesmo que se tratasse apenas desta escolha perma­
nente e do desenvolvimento das ciencias alexandrinas, compara­la a
dos outros centros da Asia e da Europa ja forneceria uma ideia acerca

186 Cheikh Anta Diop A Unidade Cultural da Africa Negra


Apendice. Anota�Oe.s acerca de La Resurrection d' Homere.Au temps des neros porVictor Berard 187
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O estudo cientifico da Politica: abordagens epistemolcgicas e metodologicas
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