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UNIveRSIDADe FeDeRAl DO PARÁ

PROgRAMA De PóS-gRADUAÇÃO eM lINgUAgeNS e SABeReS NA


AMAzÔNIA – PPlSA

PeDRO IvAN OlAIA RIBeIRO FIlHO

TRANSMARgINAlcABOcA
sophias, drags e outras dissidências nas Amazônias

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Linguagens e Saberes na
Amazônia da UFPA – Campus Bragança, como
requisito parcial para a obtenção do título de Mestre.

Orientador: Professor Dr. Luis Costa Junior Saraiva

BRAgANÇA-PA
2019
À minha mãe
ReSUMO

Este processo de escrita é a ousadia de um devir marginal coletivo que se propõe ser chamado
de narrativa performática transdisciplinar, pois pensa-se a performance como arte-vida na
perspectiva etnográfica em que “pesquisador” e “pesquisado” são a mesma pessoa, ou seja, o
observador está na observação do processo de pesquisa que também inclui a observação de
outras pessoas que observam o pesquisador-pesquisado e contribuem com a formação
identitária de Sophia e de desdobramentos deste corpo-amazônia. Pedro é o pesquisador, Sophia
é sua drag queen – as duas identidades pertencem ao mesmo corpo, porém, Pedro refere-se à
identificação cisnormativa designada no nascimento do corpo e reforçada performativamente a
partir do convívio com a família, igreja, escola, trabalho e outros contextos socioculturais em
um determinado período da história; e Sophia – da mesma maneira sendo uma construção
performativa a partir do convívio em contextos socioculturais de determinado tempo, se difere
da performatividade cisnormativa (do corpo primeiramente identificado como Pedro) por ser
processo artístico inacabado onde eus, outros e outros eus se diluem e tomam uma dimensão
maior que o corpo, para além do físico, dialogando sobre possíveis descolonizações arte-vida
nas questões sobre gêneros e sexualidades. Este trabalho tem o objetivo de – a partir da relação
com teóricos da antropologia, teoria queer e artes, refletir a respeito das performances de Sophia
como práticas de resistência poética e política por uma encruzilhada transdisciplinar onde teoria
dialoga com prática em interações extra-muros acadêmicos próximas do convívio social e
discussões do cotidiano de corpos dissidentes e normatizações impostas sobre estes corpos.  

Palavras-chave: performance; drag queen cabocla; etnografia visual; corpo-amazônia;


identidade cuír
ABSTRAcT

This writing process is the boldness of a collective marginal becoming that purports to be
called a transdisciplinary performative narrative, because performance is thought of as art-life
in the ethnographic perspective where “researcher” and “researched” are the same person, or
In other words, the observer is observing the research process that also includes the
observation of other people who observe the researcher-researcher and contribute to the
identity formation of Sophia and the unfolding of this Amazon body. Pedro is the researcher,
Sophia is her drag queen - the two identities belong to the same body, but Pedro refers to the
cisnormative identification designated at the birth of the body and performatively reinforced
by living with family, church, school, work and other sociocultural contexts in a given period
of history; and Sophia - just as it is a performative construction based on coexistence in
sociocultural contexts of a given time, it differs from the cisnormative performativity (of the
body first identified as Pedro) in that it is an unfinished artistic process where selves, others
and other selves dilute and take over. a larger dimension than the body, beyond the physical,
dialoguing about possible art-life decolonizations in the questions about gender and sexuality.
This work aims to - from the relationship with theorists of anthropology, queer theory and the
arts, reflect on Sophia's performances as practices of poetic and political resistance through a
transdisciplinary crossroads where theory dialogues with practice in academic extra-wall
interactions. close to social life and daily discussions of dissident bodies and norms imposed
on these bodies

Keywords: performance; drag queen cabocla; visual etnography; corpo-amazônia; cuír identity
SUMÁRIO

NA SOPHIA OU A INTRODUÇÃO ________________________________ 9

1 – Histórias de Travas, Monstrxs e Overdrags ________ 15

1.1 – No início era o verbo ou Não quero ser Roberta Close: a saga da
curiosidade e do medo __________________________________________ 21

1.1.1 – j e s u s __________________________________________ 37

1.2 – As Encantada ou E o verbo se fez carne _______________________ 43

1.2.1 – De)leite in process __________________________________ 55

1.3 – E habita entre nós ou Sujas Noites Borradas Maquiagens _______ 75

1.3.1 – Renascida do coma _________________________________ 93

2 – As negociações da alma ou os desejos de dizer não


ou sim ou talvez _________________________________________ 103

2.1 – Sophia Marginal: Performance e Identificação ________ ______ 105

2.1.1 – Carta ao pai ou a vontade de devorar você, bb __________ 135

2.2 – Sophia Traíra: traição, antropofagia e marginalidade _________ 139

2.2.1 – F1 B07E 234 C 7A D 1E2 C0A FADA 69 ABACABA BEA7A


FODA E DEDADA ____________________________________________ 149

2.3 – Transophia: Teorias Queer, Cuír, Okê Cabôca ________________ 151

2.3.1 – Entre bits e terabis _____________________________________ 181


3 – Sophia e outros processos de produção do desejo ________________ 193

3.1 – Sophia Flaneur busca a Aura e se perde (por um ensaio etnofotográfi-


co) __________________________________________________________ 201

3.2 – Sou Fia do Batom (por um vídeo etnonográfico) _______________ 223

3.3 – Quiirck me contas? (por um crônica etnográfica) _____________ 225

A GAAGGUERA ______________________________________________ 237

REFERÊNCIAS ______________________________________________ 241


9

KIUÁ NGANGA PAMBU NJILA!


(SALVE O SENHOR DOS CAMINHOS!)
KIUÁ NJILA!

NA SOPHIA OU A INTRODUÇÃO

Este processo de escrita é a ousadia de um devir marginal coletivo que se propõe ser
chamado de narrativa performática transdisciplinar, pois pensa-se a performance como arte-
vida no trânsito entre o estudo teórico do teatro, performance, antropologia e tradução cultural
sob a perspectiva etnográfica em que “pesquisador” e “pesquisado” são a mesma pessoa, ou
seja, o observador está na observação do processo de pesquisa que também inclui a observação
de outras pessoas que observam o pesquisador-pesquisado e contribuem com a formação
identitária de Sophia. Pedro é o pesquisador, Sophia é sua “drag” – as duas identidades
pertencem ao mesmo corpo, porém, Pedro refere-se à identificação cisnormativa designada no
nascimento do corpo e reforçada performativamente a partir do convívio com a família, igreja,
escola, trabalho e outros contextos socioculturais em um determinado período da história; e
Sophia – da mesma maneira sendo uma construção performativa a partir do convívio em
contextos socioculturais de determinado tempo, se difere da performatividade cisnormativa (do
corpo primeiramente identificado como Pedro) por ser processo artístico inacabado onde eus,
outros e outros eus se diluem e tomam uma dimensão maior que o corpo, para além do físico,
dialogando sobre possíveis descolonizações do corpo-mente a partir de questões de gênero e
sexualidade.
Adotando a realidade em que teoria e prática são suplementares, o ato de escrever torna-
se um desafio inacabado em des)construção tal qual a própria vida, e na melancolia de um
processo tradutório que continua sendo escrito-traduzido, busca-se manter a qualidade na
articulação científica dialógica entre teorias, autores e as experiências cotidianas e memórias
de Sophia e suas alteridades e discursos ditos e não-ditos. Para isto, neste trabalho, as imagens
(em fotografias e vídeos) transitam o texto como linguagem não-verbal que descreve Sophia
nos instantes efêmeros da cena onde a linguagem verbal não alcança e se torna secundária na
dissertação, ou seja, os registros imagéticos fazem parte de uma etnografia visual que compõe
a pesquisa e acrescenta observações e detalhes impossíveis de serem descritos através das
palavras – é através da captura imagética que podemos registrar (congelar no tempo) o instante
único e efêmero em que acontece a cena e a interação performática das pessoas como reação ao
momento em que são interpeladas e têm seu cotidiano atravessado-friccionado por Sophia e
outras entonações e inclinações do espaço-ambiente (feira, rua, palco) re-significado.
10

E como nesta narrativa há uma relação direta com outras pessoas, incluindo as relações
de alteridade (ANDRADE, 1995, p. 157-159) e discursos suplementares que se somam ao corpo
do texto como em camadas sobrepostas que se liquefazem e fundem em um todo feito de partes;
a proposta de escrita coletiva é apresentada aqui por várias vezes com o uso do pronome na
primeira pessoa do plural “nós” como recurso de quebra do discurso unívoco acadêmico a partir
da inserção de discursos diversos aglutinados compondo um trabalho científico que envolve
teorias e práticas científicas e não-científicas e performances textuais e imagéticas como
assemblagem do vir a ser sophia. Além disso, também optamos por colar o texto da mesma
maneira como foi dito em conversa gravada (transcrição exata da conversa, bate-papo com
outrxs artistas), e também optamos por misturar a narrativa e os sujeitos desta, de certa maneira
que em certos momentos da leitura não dá para o leitor identificar quem está falando no diálogo
(quem é quem) é entrevistador ou entrevistado(?), ou seja, não se é empregado o uso de aspas
ou a mudança da fonte textual para indicar que aquele trecho do texto é originalmente
proveniente da fala de umx amigx; e estas características de escrita estão mais presentes no
capítulo 1, bem como em 1.3 nas conversas com Matheus Aguiar e Flores Astrais. Também há
algumas possibilidades de escrita em que coloco o pronome “ela” referindo-me a mim mesmo,
como nós, bichas, fazemos quando estamos conversando entre amigas e falamos sobre nós
mesmas todas nos referindo a “elas” como se houvessem outras identificações colocadas em
nossos corpos com nomes femininos e características femininas que perpassam pela linguagem
e colocam o pronome em sua segunda pessoa.
A marginalidade da escrita desta dissertação – que é resultado do processo de pesquisa
das ações da drag Sophia como prática de resistência poética e política – também é manifestada
na linguagem e formato estético da estrutura textual-imagética: o bajubá (ou pajubá) –
vocabulário das bichas brasileiras, com termos oriundos das línguas yorubá e banto – vez ou
outra será aquendado, e quando isto ocorrer, haverá uma nota lateral ou hipertextualização
traduzindo aos dizados do babado o que o termo ou expressão ou frase se refere, reconhecendo-
se porém que os termos deste vocabulário também variam e se diversificam em cada região e
comunidade e ao longo do tempo (LAU, 2015; CAVALCANTE, 2015).
Este texto não foi des)construído somente para a comunidade científica, ele também se
dedica axs amigxs com acesso limitado ao ambiente acadêmico, às irmãs e primas das esquinas
que pouco ouvem falar a respeito de teses, dissertações e “Judith Butler”, aos erês pretxs, pretas
e pretos periféricxs que após uma ação artístico-cultural na rua olham pedindo um retorno, uma
frequência de apresentações e não apenas uma noite de evento esporádico na praça (como
podemos ver nas ações da “Égua, Sarau!”) ; ou seja, este trabalho em processo se dedica à todxs
11

excluídxs do acesso à informação acadêmica, e por isso este texto-imagem narrativo se adequa
às periferias e inclui frases, termos e imagens que simbolicamente representam a diversidade
de “minorias” que não participam do compartilhamento de informações que circulam entre
doutores e mestres acadêmicos. E mesmo reconhecendo que este trabalho escrito talvez não
tenha tanta repercussão nas periferias; simbolicamente o ato de subversão linguística e
estrutural propostas forçam o acadêmico que lê à reflexão sobre suas teorias e práticas aplicadas
no dia a dia e como suas práticas colaboram para que “xs excluídxs” e a academia dialoguem
horizontalmente sem hierarquias e egos inflados após a leitura e escrita de muitos livros teóricos
que não ultrapassam as fronteiras da caixa universitária.
O ato subversivo de escrita desta dissertação ainda se propõe a uma leitura performática
a partir da tradução da normatividade cartesiana sequencial e linear em uma hipertextualidade
com metadados e metanarrativas em links e imagens que podem ser acessadas a qualquer
momento no texto, levando o leitor para fora da dissertação (links de vídeos compartilhados em
plataformas e redes sociais na web) ou para referências dentro do próprio texto-imagem que
saltam capítulos e retornam páginas. Justificando a marginalidade do processo bem como o
questionamento das fronteiras disciplinares, as imagens e textos vez ou outra extrapolam as
margens padronizadas, assim como as notas de rodapé estão colocadas na margem lateral, como
nota lateral justificando a marginalidade do processo, e impulsionando que esta margem lateral
também indique externalizações poéticas pessoais e referências poéticas de outras pessoas,
sendo que estas externalizações acrescentam ao trabalho outras possibilidades hipertextuais e
divagações, alterações do espaço-tempo que também dialogam com a teoria abordada. A
des)construção biopolítica do binarismo na linguagem – utilizando-se o “x” como artigo
definido nas orações que se referirem a corpos transgêneros, ou quando se referirem a todxs xs
corpos (masculinos, femininos, trans e outras possibilidades de construção de gênero). A
palavra tachada (riscada) com outra palavra em seguida, como forma maneira de demonstrar
que achou-se a escolha de uma palavra mais adequada em relação à outra, mas preferiu-se
manter a palavra anterior como metodologia para provocar o pensamento descolonizador das
palavras e dos sentidos simbólicos incutidos nestas. A utilização de palavras suplementares
juntas sem espaçamento, como por exemplo, corpo-amazônia, ou corpoamazonia. O parêntese
aberto para acrescentar outro sentidosignosignificado à palavra, como por exemplo, o termo
des)construção utilizado logo no primeiro parágrafo introdutório. A utilização do nome Sophia
como sophia (com a primeira letra minúscula), dando uma substantividade ao nome próprio da
identidade Sophia, sugerindo que “sophia” é um substantivo tal qual “drag queen”,
considerando-a ainda como estado performático substantivado; e na mesma tentativa de quebrar
12

o etnocentrismo e a colonização das palavras-signos, em busca de um termo de origem nativa


afro-indígena da Amazônia, também é adotado o termo “cuír” ou “viada” ou “sophia” para
substituição do termo “queer”.
Neste processo dissertativo apresentado como dissertação de mestrado acadêmico há a
sobreposição de processos narrativos, principalmente registros imagéticos e descrições das
ações imersivas com Sophia e Pedro ao longo da história de artista no processo arte-vida; desses
processos narrativos pode-se considerar que o corpo e suas ações se sobrepõem às palavras e
às teorias sobre (a respeito de) o próprio corpo; e como em uma mostra artística, ícones e perda
de links desdobram fins buscando meios de concorrer a um categoria estilo de narrativa
performática interativa, ou seja, a pessoa leitora deve se dispor a ler a obra com dramaticidade
e também a estabelecer jogos a partir de suas perspectivas, desejos e perversões no tato
simbólico das folhas de papel, no som folheado com cheiro de novas impressões, cócegas no
cérebro e pulsações neurais que arrepiam espinha; e caso a brincadeira seja em formato digital
de e-book, as gostosuras se atrelam a linkados que enchem a tela de janelas e espaços e tempos
feitos em html’s java’s redes surfs interações virtuais.

jogo
Foi dada a largada no destrinchar de uma dissertação de mestrado, bole suas ideias e
acenda uma proposta, bote sua proposta e ascenda suas ideias, proponha um bote e idealize uma
seda, faça uma vela de papel e espere o vento da correnteza te levar, como um pássaro, uma
fênix ou uma brasa de um baseado:

PROPOSTA 1 (não precisa aceitar só uma proposta e também se pode rejeitar todas)
Este trabalho escrito-dissertativo, como Haroldo de Campos situa sua obra Galáxias, é
um livro-caleidoscópio, livrocaleidoscópio; caleidoscópio é um aparelho ótico cilíndrico com
o fundo revestido de espelhos e pequenos pedaços de vidro colorido, e que produz uma mistura
infinita de imagens com formatos e cores diferentes. Mais do que isso é proposta de jogo cênico-
performático porque temos que ler com entonações e intenções assim como os textos
dramáticos escritos para serem apresentados nos teatros da vida; e como falamos muito sobre
improviso e jogo, se você, carx leitorx, quiser pode jogar com estas linhas e junções de letras
que proponho. Por exemplo: caso você não tá afim de ler, e só quer ver os trabalhos e registros
das ações táticas da drag apresentada neste estudo, VÁ DIRETO PARA O CAPÍTULO 3,
passando pelos itens 1.2.1 e 2.3.1 é lá que temos os vídeos, ensaios etnográficos e crônicas; se
você bateu um papo com a gata sobre seus trabalhos com a drag queen Sophia, e quer ver o seu
13

textão digitado aki, VÁ DIRETO PARA O CAPÍTULO 1 é lá que temos as conversas e


observações dxs amigs de sophia; caso só queira dar um close pela marginalidade, aquende
primeiro os textos e links escritos nas bordas; caso não entenda nada, comece do começo; caso
seja acadêmico e pense o ato de escritura-leitura como brincadeira-jogo, conserve seu método
e adeque-se ao nosso.

PROPOSTA 2 (não precisa aceitar só uma proposta e também se pode rejeitar todas)
Esta narrativa aproxima-se de um pensamento local e também utiliza-se de teóricos de
outras culturas e perspectivas, como por exemplo as obras de Peter Stearns (2010, 2017) que
neste trabalho são significativamente importantes para a observação do comportamento social
dos nossos ancestrais e de outras civilizações em relação aos gêneros e sexualidades apesar de
suas observações da história da sexualidade e gênero serem a partir das construções sociais das
civilizações denominadas por ele como “civilizações mais importantes”, e que aqui nesta obra,
a partir de nosso contexto amazônida, as denomino como civilizações colonizadoras, pois aqui
na Amazônia já haviam sociedades tão bem formadas e elaboradas quanto as sociedades
patriarcais europeias, porém devido a um poder bélico e colonizador maior estas sociedades
subalternizaram aquelas sociedades indígenas a partir de um pensamento paradigmático de
homem branco e rico proprietário, que é o patriarca patrão, “dono de tudo”. E com a mesma
metodologia antropofágica utilizada para a escrita do trabalho, pode-se ler devorando as teorias,
digerindo o que precisa ficar e vomitando o que não interessa

PROPOSTA 3 (não precisa aceitar só uma proposta e também se pode rejeitar todas)
Considerando sophia como estado performático des)moldado nas interações sociais ao
longo do tempo, você conta sua própria história e des)constrói sophia um pouco mais.

PROPOSTA 4 (não precisa aceitar só uma proposta e também se pode rejeitar todas)
Brooks, Capítulo 11: “Mostre-me seu [código] e esconda suas
[estruturas de dados] e eu poderei continuar mistificado. Mostre-me
suas [estruturas de dados] e eu provavelmente não necessitarei do seu
[código]; ele será óbvio.”

De fato, ele disse “gráficos” e “tabelas”. Mas considerando trinta anos


de terminologias/mudanças culturais, é praticamente o mesmo ponto.
(RAYMOND, 2010, p. 21)

O processo de análise feito por Eric S. Raymond em seu documento “A Catedral e o


Bazar” – que disserta a respeito de “um projeto bem sucedido de software livre” a partir de
14

sugestões da história do Linux em tecnologia da programação, como o próprio autor afirma o


documento discute sobre os dois diferentes modelos na natureza de depuração do software livre
que podem ser seguidos: “o modelo catedral da maior parte do mundo comercial contra o
modelo bazar do mundo do Linux” (RAYMOND, 2010, p. 4). Basicamente este “modelo
bazar” sugerido por Raymond indica-nos modos de compartilhamento de processos, códigos e
principalmente da estrutura de dados, como Raymond parafraseia Fred Brooks na citação
acima, apesar de salientar a ressalva:
Embora pouco do que os autores têm a dizer é diretamente aplicável às comunidades
do código aberto do Linux, as idéias do autor sobre as condições necessárias para um
trabalho criativo é incisivo e válido para qualquer um que tente importar um pouco
das virtudes do modelo bazar para o contexto comercial. (RAYMOND, 2010, p. 4)

O “modelo bazar” como o próprio nome diz, sugere a construção coletiva de projetos
tecnológicos de desenvolvimento de software onde a abertura de todos os processos
assemelham-se às características dos compartilhamentos e trocas efetivados em feiras,
bazares, praças e locais abertos de livre circulação pública; “sistemas agóricos” que segundo o
autor aproximam-se do termo “bazar” na definição do termo grego “ágora”, que representa
“um mercado aberto ou um lugar de encontro público” (RAYMOND, 2010, p. 44)
Sabendo-se que para a tecnologia da informação: algoritimo é uma sequência de passos
que resolve um problema, e estrutura de dados é a lógica que organiza/administra os dados que
são disponibilizados e recebidos na interface com o usuário; e parafraseando Raymond, que
parafraseia Brooks, podemos sugerir os seguintes algoritimos:
Mostre-me seu [roteiro] e esconda suas [esquizofrenias processuais] e eu poderei
continuar mistificado. Mostre-me suas [esquizofrenias processuais] e eu provavelmente não
necessitarei do seu [roteiro]; ele será óbvio.
15

cAPÍTUlO 1 – Histórias de Travas, Monstrxs e Overdrags

Irmã H: Mas tu serás assim tão velho? E tão triste? (...)


(O Rato no Muro, Hilda Hilst)

Neste trecho narrativo iremos descrever as ações e histórias de Sophia e outras drags
pelas ruas-estradas Belém-Bragança na Amazônia, a partir da nomenclatura “corpos-amazônia”
para pessoas nascidas e/ou criadas no contexto da região amazônica; e dialogar sobre o corpo-
amazônia Sophia desde seu nascimento incerto, perpassando pelo seu re)nascimento do coma
profundo no processo “de)leite” até o presente momento em que este processo textual é
efetivamente escrito. O objetivo deste capítulo não é fazer um apanhado geral da história das
drag ao longo do tempo, mas pontuar fatos históricos e contextos socioculturais globais e locais
a partir da história de Sophia e Pedro, sendo que para isto propomos apresentar o início de tudo,
com ênfase na performance “de)leite” até os dias atuais em que sophia é proposta metodológica
dúbio Danúbio caudaloso donde Amazonas cantam hinos de guerra. As narrativas textuais de
lembranças e memórias estão em fragmentos de ilusão do vir a ser real, são processos
tradutórios da tradução de registros cênicos efêmeros sensorialmente guardados no sistema de
armazenamento de dados mais complexo e poderoso que é o corpo ciborgue (HARAWAY,
2009, p. 33-118); e com o propósito de suplementar a história de drags amazônidas à história
geral universal, destacamos referências externas em links e oralidades do período dos anos 1990
à atualidade com ações efetivadas em duas cidades-polo da região paraense e a participação da
drag queen caboca Sophia neste contexto.
Os títulos dos subcapítulos 1.1, 1.2 e 1.3 referem-se diretamente a dois trechos de João
1.1 e João 1.14 (Sociedade Bíblica do Brasil, Tradução João Ferreira de Almeida), em que Jesus
é referido como o verbo: “No princípio era o verbo, e o verbo estava com deus e o verbo era
deus”; e é reafirmado como o componente principal da oração nos versículos posteriores: “E o
verbo se fez carne e habitou entre nós”. Os trechos bíblicos citados neste trabalho referem-se
por analogia a três principais motivações que nos levam a escrever deste modo: em primeiro
lugar, a minha formação, na infância e adolescência, em uma igreja evangélica neopentecostal
que reflete-se na escrita martelada de admoestações em que estes dois versículos fazem parte
de um todo construído institucionalmente sobre o meu corpo em regras de controle impostas;
em segundo lugar, Sophia assemelha-se a identificação de Jesus (Sophia como sizígia de Jesus,
segundo a tradição agnóstica), que corporalmente descreve suas proximidades e
distanciamentos com o signo Jesus no processo performático “Sophia Christi: louvores em tons
16

de rosa” (2013. Colares-PA. “Égua, Sarau do Corpo Poelytico”), compartilhado na praça e orla
do centro da ilha de Colares-PA, sendo que a drag amazônida se monta na praça, próxima ao
cemitério, ritualiza um banho de cheiro e caminha até a orla em procissão, para lavar os pés da
imagem de Jesus que está erguida em monumento no local, como podemos ver no registro em
vídeo: https://bit.ly/sophiachristi; e, por último, mas não menos importante, podemos dizer que
os trechos bíblicos se relacionam ao trabalho devido à temporalidade narrativa da identificação
“Jesus”, descrita no evangelho de São João, assemelhar-se à temporalidade narrativa da
identificação “Exu” ou “Nzila” ou “Mavambo”, descrita oralmente nas tradições do candomblé
(bantu e ketu), pois da mesma forma maneira que Jesus é indicado como interlocutor entre os
planos terrestre e céus, Exu também é o próprio caminho, a comunicação. “Ninguém chega aos
orixás senão por mim” – é uma fala de Exu, que assemelha-se à fala de Jesus que também é
caminho, verdade e vida; e este diálogo mais profundo sobre Jesus e Exu se dilui ao longo do
texto, pois a palavra – o verbo – pertence a estas duas divindades únicas e binárias, sendo Exu-
Jesus identificações energéticas de deidades mais próximas às energias humanas tanto no
cristianismo quanto no candomblé.
Sophia Christi: Louvores em tons de Rosa
Neste processo Sophia descobriu o vir a ser sizígia de Jesus
(...) E eu poderia ainda te cantar como um dia te cantei? (...)
(O Rato no Muro, Hilda Hilst)

Arte nas ruas e encruzilhadas arte-vida são descrições de momentos da temporalidade


que se iniciam por uma palavra, um verbo, até o instante de tempo em que esta palavra torna-
se ação e é executada na prática deixando de ser somente teoria. Este período de tempo, do
surgimento da palavra na mente à iminência de falar e o próprio ato de falar, bem como o ato
de executar o que se fala, são instantes ínfimos de tempo que diferem a intenção da ação per si;
esta percepção do tempo – a partir de um tempo performático como processo que vai e vem do
pensamento ao ato de falar – nos linka ao que sugere Juliana Jayme (2010) quando se refere ao
tempo cronológico de permanência “montada” que varia da travesti para uma drag queen,
quando a autora diferencia os corpos não-binárixs pela diferença do tempo de permanência
montadxs, relacionando assim a “incorporação” temporal com a diversidade de corpos não-
binárixs. “A partir do momento em que passou a ser feminina o tempo todo, Michelle começou
a se denominar travesti” (JAYME, 2010, p. 178; o grifo em negrito é deste trabalho); ou seja, a
jESUs
marca temporal como intervenção no corpo da drag que se monta por algumas horas se
diferencia da travesti que está “feminina 24 horas por dia”, pois são processos específicos de
resistência política corporal cotidiana, assim como o tempo entre o pensar e o ato de falar e o
17

de rosa” (2013. Colares-PA.


sOPHIA “Égua,
dissolveSarau do Corpo
o tempo Poelytico”),
e o espaço compartilhado
na ilha de na praça
Colares; se monta e orla
na praça,
do centro da ilha de ao lado do cemitério,
Colares-PA, sendo quesimboliza ritualisticamente
a drag amazônida um na
se monta banho de próxima
praça, ervas, e em
ao
oração e louvor vai andando até a orla para lavar os pés da imagem de Jesus
cemitério, ritualiza umconstruída
banho de cheiro e caminha
em concreto até apróximo
armado orla emàprocissão,
orla e quepara lavar os
apresenta umpés da
Jesus
imagem de Jesus quecom estáum braçoem
erguida estendido para anoBaía
monumento do como
local, Sol, depodemos
onde geralmente há relatos
ver no registro em
da incidência de ovnis.
vídeo: https://youtu.be/DZm5Em7Iuvc; e, por último, mas não menos importante, podemos
https://bit.ly/sophiachristi
dizer que os trechos bíblicos se relacionam ao trabalho devido à temporalidade narrativa da
Sophia descrita
identificação “Jesus”, Christi:no
Louvores emdeTons
evangelho Sãode Rosa
João, assemelhar-se à temporalidade
Segunda Égua: Sarau do Corpo Poelytico. 2013
narrativa da identificação “Exu” ou “Nzila” ou “Mavambo”, descrita oralmente nas tradições
Colares-PA
do candomblé (bantu e ketu), pois da mesma forma maneira que Jesus é indicado como
interlocutor entre os planos terrestre e céus, Exu também é o próprio caminho, a comunicação.
“Ninguém chega aos orixás senão por mim” – é uma fala de Exu, que assemelha-se à fala de
Jesus que também é caminho, verdade e vida; e este diálogo mais profundo sobre Jesus e Exu
se dilui ao longo do texto, pois a palavra – o verbo – pertence a estas duas divindades únicas e
binárias, sendo Exu-Jesus identificações energéticas de deidades mais próximas às energias
humanas tanto no cristianismo quanto no candomblé.

(...) E eu poderia ainda te cantar como um dia te cantei? (...)


(O Rato no Muro, Hilda Hilst)

Arte nas ruas e encruzilhadas arte-vida são descrições de momentos da temporalidade


que se iniciam por uma palavra, um verbo, até o instante de tempo em que esta palavra torna-
se ação e é executada na prática deixando de ser somente teoria. Este período de tempo, do
surgimento da palavra na mente à iminência de falar e o próprio ato de falar, bem como o ato
de executar o que se fala, são instantes ínfimos de tempo que diferem a intenção da ação per si;
esta percepção do tempo – a partir de um tempo performático como processo que vai e vem do
pensamento ao ato de falar – nos linka ao que sugere Juliana Jayme (2010) quando se refere ao
tempo cronológico de permanência “montada” que varia da travesti para uma drag queen,
quando a autora diferencia os corpos não-binárixs pela diferença do tempo de permanência
montadxs, relacionando assim a “incorporação” temporal com a diversidade de corpos não-
binárixs. “A partir do momento em que passou a ser feminina o tempo todo, Michelle começou
a se denominar travesti” (JAYME, 2010, p. 178; o grifo em negrito é deste trabalho); ou seja, a
marca temporal como intervenção no corpo da drag que se monta por algumas horas se
diferencia da travesti que está “feminina 24 horas por dia”, pois são processos específicos de
resistência política corporal cotidiana, assim como o tempo entre o pensar e o ato de falar e o
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ato de exercer o que se fala variam em negociações temporal e espacial a partir de onde estamos
falando e com que falamos e em qual período de tempo nos referimos e estamos referidxs.
O tempo deste trabalho também se relaciona ao trecho da música “Atropelo” de MC
Pokaroupas feat Lipe Candy (disponível no youtube: https://youtu.be/qLo1-ppo-vg) em que a
gata canta à Kitembo, declamando que: “O tempo, é o tempo. O tempo é babado com as gata!”
Kitembo, ou Kidembu, o Nkisi Tempo, o senhor do tempo na tradição Banto, é representado
por uma bandeira branca hasteada em mastro fincado no terreiro, bem como mostra a pesquisa
de Carlos Vera Cruz (2017) sobre a tradição do culto a Kitembo e sua relação com a
performance ritual e a antropologia da performance a partir da observação da “Procissão de
Tempo” (ritual da casa de candomblé Angola Mansu Nangetu, Mansu Banduqueque Neta).
Tempo, na tradição Bantu-Kongo (“Time concepts of the Kongo of West Central Africa”) –
segundo Kimbwandende Kia Bunseki Fu-kiau (1994, p. 17-34), é algo cíclico sem início e fim,
e somente através dos “eventos” (“dunga”) “naturais ou artificiais, biológicos ou ideológicos,
materiais ou imateriais” que podemos entender o conceito de tempo e torná-lo compreensível,
pois o tempo é fluido e somente nos “dams of time”, nos pontos em que o tempo é “represado”,
é que podemos conceituá-lo e dividi-lo, ou seja, o tempo é abstrato (por não ter início ou fim,
existindo per si) e também é concreto (pois em seu fluxo interminável, há “dams”, eventos ou
“períodos de tempo” onde ele se manifesta perceptível), desta forma o tempo é suplemento de
processos biológico, social e natural, e assim: “O tempo, para o Bakongo, pode ser
argumentado em todos os aspectos da vida, porque cada um é um agente criador de eventos na
linha do tempo”. Entre o princípio e o termo, a origem de um início se dilui no fim das contas
de um começo, o tempo é de Kitembo e as dobraduras do tempo são de Exu, pois, segundo o
ditado yorubano, ELE é o que “atira uma pedra hoje para matar o pássaro de ontem”.
Se o tempo é processo, conforme o que nos referimos acima, as artes – a partir da
perspectiva arte-vida – também são processos que se manifestam no corpo dx artista e
des)constroem o discurso cientificista amarrado com início, meio e fim; e isto se torna mais
evidente neste processo de escrita quando o jogo com o tempo cronológico e emocional são
colocados em prática em uma narrativa que vai e vem nas bordas das identidades onde as
memórias se borram junto com o que não se quer dizer. E seguindo a linha orientadora deste
processo, o texto neste capítulo suplementa-se com diálogos entre eu e Matheus Aguiar (drag
queen Simone Drag), num bate-papo no círio de 2017, em Belém-PA, no Casulo Cultural
(espaço de resistência que no período do Círio geralmente reúne artistas amigos para pulsarem
proposições artísticas que dialoguem sobre corpos dissidentes, territorialidades, religiosidade e
colonização-descolonização dos pensamentos). Vale ressaltar que na noite da conversa, era a
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noite da transladação (uma noite antes do domingo de círio) e estávamos dentro do Casulo
Cultural ainda assustados, pois um vizinho deste se sentiu ofendido e indignado com a presença
de nossos corpos, e soltou rojões de cima de sua janela em direção à rua, atingindo de raspão
alguns de nós.
Matheus Aguiar (Simone Drag): - E aí eu tenho uma pergunta pra Sophia, Sophia por
Sophia, Transophia, existe um trabalho, existe instalação, existe texto, e tua relação com o que
tu faz na rua e no casulo tua história por exemplo no Noite Suja ela tem uma relação com essa
Sophia do Reator, é uma conversa é uma extensão ou são processos diferentes?
Olaia (Sophia): - No Transophia lá no Reator eu procurei muito aproximar, ficar mais
evidente a história do consumo e da tecnologia...
M. A. (S. D.) - é uma relação de videoarte e performance
- é, de performance, eu pegava sucata eletrônica e ia colocando no corpo, ia construindo
coisas, bem crítica do que consumimos desse lixo eletrônico sendo que na Europa em todo
canto tá todo mundo com a melhor internet, e a gente ainda tá com uma internet de merda.
- a gente ainda pena, né. a gente ainda pena. E também eu tenho uma formação em
engenharia elétrica em graduação, e pensando quais são as possibilidades de discussão dessa
tecnologia no meu corpo, mais evidente, e a desconstrução dessa Sophia, porque a Sophia não
é essa beleza toda construidinha, bonitona, belíssima, estilo... Égua quando eu vejo a Fabritiney,
eu digo, porra, puta que pariu, égua da produção queridãã... ela é desconstruidona, e produz...
é desconstruidona e tem toda uma construção muito bem elaborada, a Sophia não vai pra isso
ela busca rabiscar tudo e rasgar todas essas coisas, que é muito meu também, muito de mim,
que é meio exagerado, meio desastrado, que é meio torto. a shirleytão e outras drags que
caminham pra isso. e de forma diferente. não é porque a maquiagem tá borrada que não foi
pensada. a forma bufonica da shirleytao é ótima ela explora umas coisas que assim, nossa! sim,
verdade. pra mim a sophia é um dispositivo de ligar e desligar a arte e dialogar, e querer
enfrentar a ferida assim, querendo se meter na rua na frente do carro. é tua arma, tua arma que
tu desenvolveu, teu gatilho. se eu tivesse ali na frente nunca que teria cruzado, eu cruzei no
fogo, ele jogou o rojão, Sophia cruzou no fogo lá, quando ele soltou o rojão passou do lado.
assim como tem aquele documentário, Paris is Burn, tem Belem está em chamas, olha só,
estamos à queima roupa da rua, a gente sai pra se divertir, até pra beber uma cerveja é o
enfrentamento, é o enfrentamento, e ao mesmo tempo que se cria essa coragem, ao mesmo
tempo se eu to muito tempo com ela também cria-se o medo também cria todo um receio, e tem
o corpo que fica muito cansado, tem um salto que me consome pra caralho, tem um impulso e
uma energia que me consome. por isso que eu gosto do égua Sarau, corpo poético-político, acho
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que poético politico são coisas que se confundem, sem querer as vezes a gente faz poesia a
gente faz politica, mesmo sem consciência, só por estar inserido, só por estar só por ser e só por
fazer a gente incomoda, e as pessoas que não fazem nada elas não incomodam, quem incomoda
e quem causa furor, rancor, quem provoca essas coisas são pessoas que produzem que fazem
alguma coisa, então só o fato da gente ter saído do lugar comum, da comodidade que todos nós
podemos buscar a gente procura tá se enfrentando a todo momento, é uma escolha e estamos
sem querer inseridos nisso, a mana, aconteceu isso com a mana, não, me atingiu também, não
é só físico é uma corrente, e observo isso na questão do evento, funciona como evento mas não
é só festa, é no sentido de associação, somos uma associação, por uma noite, por uma semana.
não tem lugar, nós somos bem ciganos. é bem Zona Autônoma Temporária. é onde a gente
veste, acho que os lugares são noite suja, por uma noite quando acontece o Noite Suja. é um
levante que acontece de resistência e tem que desmanchar e tem que acontecer em outro lugar
justamente pra ele poder sobreviver, ele vem como a fênix. é sempre se renovando, e a cada
vez a gente aprende coisas, não tem como a gente não aprender, e a cada vez quando a gente
não aprende a gente é forçado, não tem como não aprender, quando a gente não aprende a gente
é forçado na arma a aprender, a queima roupa, a queima look. é a queima look!
[....................................................................................................................................................]
a gente tem urgências, a sophia vai se montar, não, a sophia precisa se montar, é uma
demanda, é uma urgência, é intransponível, a drag é intransponível, eu falo isso pra Fabritney,
a drag é instransponível, se a Sophia não fizer, não vai, não vai ter representante, não é outra
pessoa que vai entrar em cena não é que nem o ator que é substituível.

(...) Se algum irmão de sangue, de poesia, mago de duplas cores no meu


manto, testemunhou seu anjo em muitos cantos, eu, de alma tão sofrida
de inocências, o meu não cantaria? E antes deste amor, que passeio
entre sombras! Tantas luas ausentes e veladas fontes!! Que asperezas
de tato descobri nas coisas de contexto delicado. Andei, em direção
oposta aos grandes ventos. Nos pássaros mais altos meu olhar de novo
incandescia. Ah, fui sempre a das visões tardias! Desde sempre
caminho entre dois mundos, mas a tua face é aquela onde me via... Mas,
tu serás assim tão velho e tão triste? (entra a Irmã I. Abraçam-se)
(HILST, 2000, p. 70)
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1.1- No início era o verbo ou Não quero ser Roberta close: a Quiirck: uma história
para crianças e pessoas
saga da curiosidade e do medo
com coração de criança
(Sophia negada)
Era uma criança, assim
A narrativa “Quirck”, escrita nas margens deste capítulo, como vocês, e assim
faz parte do processo de construção de uma narrativa como nós que já fomos
criancas e ainda temos
performática co-criada com o artista paraense Lucas Alberto; esta um pouco delas dentro
história fala de uma criança – definida na maternidade como dos nossos peitos. Ao
nascer, todos disseram:
sendo do sexo masculino, e que ao vestir a saia de sua mãe se vê é um menino! E com-
cheio de curiosidades, medos e questionamentos a respeito de sua praram roupas da cor
azul, e o encheram de
performatividade de gênero e de quanto se sente perdido na busca
brinquedos: bola, car-
por uma identificação que não esteja preocupada com a rinho, peteca, avião, e
normatividade pré-determinada e brinque com a desconstrução da todos esses brinquedos
que os adultos acham
regra binária de gênero. A narrativa escrita é desenvolvida em um que devem dar para
processo criativo em que Lucas Alberto lê o texto e Sophia com uma criança dita do
sexo masculino. Essa
os olhos vendados des)constrói ações e objetos com seu corpo e criança foi crescendo,
dois tecidos coloridos dialogando com o narrador e a plateia em e gostava de brincar de
bola e o pai dizia:”Meu
um jogo cênico de improviso, ou seja, a narrativa imagética de filho vai ser jogador
Sophia traduz a narrativa escrita que está sendo lida pelo narrador, de futebol!” Gostava
de brincar de carrinho,
compondo assim um diálogo de camadas sobrepostas
e seu avô dizia: “Meu
suplementares que ao todo podem ser descritas como narrativa neto vai ser bombeiro e
performática: o texto e a performance voz-corpo do narrador salvar o mundo!” E sua
mãe dizia: “Meu filho
sobreposta à performance corpo-tecido de Sophia. é um machão, lindo da
“Quiirck: uma história para crianças e pessoas com mamãe!” Gostava de
brincar de trenzinho e
coração de criança” (2015) é uma narrativa inventada, mas que se pira com seus amigos
aproxima muito de meus depoimentos de menino, pré- da escola, gostava de
correr e empinar pipa...
determinado como Pedro e minhas brincadeiras com Sophia.
Mas de vez em quando
Anterior à Sophia ou quando a drag monstrx cabocla ainda era sentia um vaziiiio no
muito inocente e não havia despertado de seu primeiro sono, peito. Certo dia, papai
e mamãe haviam saído
quando alguns bocejos acordados se encantavam pelas roupas e pruma festa, eles não
brincadeiras ditas femininas ou os amigos da escola me estavam em casa, e só
a tia legal tava assistin-
chamavam de “mulherzinha” ou viado mesmo, bicha, bichinha, do novela lááá na sala.
baitola, fresco, viadinho. Nessa época, adorava brincar de E a criança entrou no
quarto de seus pais,
“casinha/amigos/vizinhos”, de “elástico”, ficava mais próximo e a primeira coisa
que viu, foi uma saia
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das meninas que dos meninos, odiava jogar bola na escola, tinha colorida que sua mãe
havia deixado em cima
pavor da educação física da escola, pois a turma era dividida a da cama na hora de
partir do gênero binário, e quando o “professor dos meninos” escolher a roupa para
sair. O garoto ficou
simplesmente “largava” uma bola com a gente – e dizia que
encantado com o col-
aquela aula era pra se divertir jogando bola, minhas pernas orido daquele tecido,
tremiam e eu suava frio enquanto os outros alunos vibravam e resolveu vestir, pra
experimentar em seu
felizes com aquele outro recreio dado pelo professor; eu me sentia corpo. E foi aí que se
des-locado, fora daquele contexto todo, e morria de vergonha encantou mais ainda:
a leveza que o pano
disso. Aprendi muito cedo que homem não deve chorar, mas vez fazia no ar enquanto
em quando vinha um nó na minha garganta, por qualquer coisa, e ele rodava, como era
refrescante compara-
eu não aguentava e lacrimejava, e muitas vezes engolia o choro.
da com os shorts e as
Me preocupava com o outro que me perseguia, tinha pena e não calças abafadas que ele
vestia. Ele se viu difer-
conseguia revidar a porrada que levava, não conseguia ser
ente quando se olhou
agressivo ou violento, e muitas vezes me sentia diferente, no espelho, e se sentiu
“estranho”, “efeminado”, como vez ou outra me diziam; mais feliz, sentiu o vazio
saindo de seu peito, e
fraco que os outros “amigos” da escola, mais sentimental e chorão teve vontade de se pin-
que outros amigos da rua. E o que re-estruturava a cristalização tar igual sua mãe, quiz
colocar um daqueles
de uma performatividade do gênero masculino sobre meu corpo sapatos pontudos, bril-
era fundamentalmente na instituição Igreja – Assembleia de Deus hosos e altos que ela
usava pra ir nas festas.
da Sacramenta, a qual frequentava assiduamente: lá eu era o
Ao pegar o batom lilás
“garanhão”, “pegador” e potencial líder religioso, lá eu tinha o e aproximar da sua
status de “homem” gentil e “honroso” que na escola era boca, percebeu que as
coisas estavam fazendo
socialmente traduzido como delicado e coisa de menina. E assim mais sentido agora, ele
desde sempre estive em dois mundos, Escola e Igreja, que se sentia mais próximo
das meninas do que
institucionalizavam o meu corpo, impondo regras através da dor dos meninos, se sentia
crítica da não aceitação do fora do padrão e/ou do afeto receptivo mais a vontade com
elas, e sempre teve
de uma pessoa do sexo masculino dedicada no estudo e com um
vergonha de seu corpo
futuro promissor, que vez ou outra era classificada como “CDF”. no uniforme da escola.
Enquanto passava o
Eu sempre me vi muito próximo de duas realidades que
batom, se lembrou do
aparentemente não conversavam, éramos crianças e eu acreditava dia em que seu vizinho
que os meus colegas da escola nunca compreenderiam a real disse para ele que ele
era muito delicado e
situação de meus amigos da rua e da igreja – nunca meninos não deveriam
compreenderiam o que é morar na ponte e não ter um prato de ser assim.
Até antes daquela noite
comida para o almoço, não entenderiam o que é ter apenas um na frente do espelho
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brinquedo ou não ter nenhum e ficar babando pela grade vendo o no quarto de seus pais
ele ainda não havia
filho do vizinho brincar com seu mais novo carro de controle entendido o que seu
remoto. Apesar de eu ser o filho do vizinho que tinha o carro novo vizinho queria diz-
er, mas enquanto se
e brincava pra dentro da grade de casa, percebia a diferença de
enfeitava e colocava o
poder de consumo e compra entre vizinhos, e também ao mesmo colar de pérolas de sua
tempo não me sentia incluído no círculo de amigos da escola que mãe no pescoço, em
gotas, pouco a pouco
moravam em prédios de luxo na José Malcher e Batista Campos; as coisas foram ficando
durante a infância e adolescência morei na Sacramenta, bairro mais objetivas e ele foi
entendendo que talvez
periférico de Belém-PA, do colégio para casa tínhamos que pegar não fosse tão menino,
o “sacrabala” (o apelido que dávamos na época para a linha de mas também não fosse
tão menina; e aí ele se
ônibus Sacramenta-Nazaré, que geralmente era lotado com
assustou, ficou com
motoristas e cobradores bem estressados e nada treinados e que medo e confuso. Tirou
a roupa de sua mãe,
sempre andava com muita pressa em velocidade bem maior que
voltou a colocar sua
os ônibus de outras linhas), estudava no centro, e morava na bermuda de menino,
perifa, estudava numa escola particular onde um amigo de classe limpou a maquiagem
do rosto e foi para o
nunca havia pego um ônibus, e ao mesmo tempo morava numa seu quarto, escondendo
rua que quando chovia muito geralmente alagava até quase chegar a saia e o batom dentro
da mochila da escola.
à nossa casa; quando alagava lá pro “gapó” os vizinhos iam caçar Na manhã seguinte,
muçum, e eu ficava da janela, dentro de casa, vendo os meninos tudo amanhece normal:
sabiás cantam pelas
tentando pegar e o muçum escorregando. “Tem gente que até
árvores enquanto ele
come muçum, é gostoso” – dizia a vizinha. Mucura, muçum, caminha segurando
tamatá, gorijuba, nenhum desses animais se comia em casa; a mão de seu pai em
direção à escola. Chega
éramos os “ricos” da rua e os “pobres” no colégio, os ricos da na sala de aula, cum-
igreja e os pobres de sala de aula, e apesar de sermos praticamente primenta a professora e
seus amiguinhos mais
a única família da igreja em que os filhos frequentavam uma próximos, assiste as
escola particular, eu me sentia mais próximo da perifa, minha duas primeiras aulas,
e a hora do recreio
empatia era maior pelo mano que morava lá no “elo perdido”
começa com uma
(como chamávamos uma região de invasão, próximo à Av. Pedro grande piramaromba
pela quadra. Mas ele
Álvares Cabral, onde as pontes se perdiam para dentro de um
pouco interessado não
alagado infindo com casas de madeira sem nenhuma estrutura foi brincar com seus
sanitária, na década de 1980). Presenciar duas realidades distintas amigos, e preferiu ficar
do lado de uma garota
e ter certeza de que não morava nas pontes do gapó, mas também da sua sala olhando
não estava nas alturas em um apê no centro sem saber pegar seus lindos cabelos
longos e cacheados.
ônibus, afetivamente me aproximava mais dos meus amigos do Sentiu vontade de ter
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bairro. No contexto econômico binário escola-igreja duas o cabelo grande e quiz


falar isso para sua nova
realidades se contrastavam pela diferença da concentração de amiga, mas não teve
ricos e pobres e se assemelhavam pela norma binária da coragem.
Depois que acabou
heterossexualidade compulsória e falocentrismo, eu presenciava
o recreio, antes da
as duas e me fundia na construção heteronormativa de um corpo professora voltar para
com identificação Pedro Ivan. Relembro uma repreensão de a sala de aula, ele
rapidamente pegou
minha mãe a uma vizinha que com tom de voz jocoso me chamou sua mochila sem que
de “Vanzinho” – todos na rua me chamavam assim, por eu ter o ninguém notasse, e
foi no banheiro sozin-
mesmo nome de meu pai, e na rua chamarem ele de seu Ivan, e ho. Abriu a mochila,
em casa me chamarem de Van, mas a crítica de minha mãe foi a pegou a saia de sua
mãe e quiz novamente
atitude da vizinha que, para minha mãe, duvidava da minha
se ver feliz no espelho
masculinidade e colocava meu nome no diminutivo, referindo-se com aquela roupa, e
enquanto tentava dar
a uma suposta inferioridade diminutiva da linguagem e identidade
um nó na cintura da
linkada a uma suposta sexualidade divergente da norma. saia da mãe, para que
ela se ajustasse em
sua cintura de criança
– Vanzinho não. Vanzão!, disse minha mãe. nem percebeu que seu
melhor amigo do colé-
gio entrou no banheiro
A imagem do meu pai, na infância, é a de um cara legal e estava boquiaberto
que tínhamos que agradar sempre e de todas as formas; todas as vendo toda a cena. O
garoto de saia tomou
noites quando chegava do trabalho, e ele trabalhava muito,
um susto, mas logo foi
tínhamos que servi-lo e cada um tinha uma função, não lembro relaxando, pois aquele
quais eram as das minhas duas irmãs mais velhas, mas lembro que era seu grande ami-
go e achou que ele ia
eu, toda a noite quando ele chegava, tinha que descalçar os seus entender o que estava
sapatos e meias enquanto ele estava sentado na poltrona da sala, acontecendo; foi aí
então que o garoto de
depois lhe levava um copo com água e na hora que ele fosse ao saia tirou o batom da
banho, sua toalha deveria estar no banheiro. Aos domingos, que mochila e quando fez
o grande movimento
era o dia que normalmente ele ficava em casa, eu tinha a
para tocar o batom em
obrigação de deitar na cama do lado dele e ler as notícias do jornal seus lábios e pintá-los,
seu amigo bradou:
“O Liberal” junto com ele. Era divertido, eu gostava porque
mulherzinha! (risos de
líamos as manchetes como se fossem anunciadas na TV; a escárnio) garoto de
brincadeira se tornava um exercício básico de dramaticidade e eu saia se sentiu enver-
gonhado, não porque
nem percebia; porém a brincadeira era somente essa, ler as achasse ruim ser mul-
manchetes, não conversávamos sobre outras coisas nem her, mas por causa da
forma como seu mel-
aprofundávamos o assunto das manchettes; meu pai falava pouco hor amigo lhe chamou,
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e um pouco enrolado na dicção e geralmente nossas conversas com deboche, queren-


do humilhar, como se
giravam em um tema com frases que ele repetia muitas vezes, ser mulher fosse algo
mais ainda quando percebia que eu estava achando engraçado, e inferior e ruim. O garo-
to de saia saiu correndo
ele repetia tantas vezes e tantas vezes que eu ficava cansado de
do banheiro, pulou o
achar engraçado, mas ele continuava a repetir, e houve uma época muro da escola e foi
que a brincadeira de ler as manchetes do jornal se tornou sem direção pela rua,
debaixo de uma chuva
repetitiva e em um certo período de tempo da minha vida, eu já fina, que parecia mais
não queria ler o jornal com o velho, e já me sentia obrigado a fazer um choro fino em cima
do calor do meiodia.
isso aos domingos mesmo não querendo. Minha mãe, ao Quando suas roupas já
contrário, sempre falou muito, dava aulas nas matérias que estavam bem molhadas
e o garoto de saia se
tínhamos dificuldades, e nos contava histórias incríveis,
sentia perdido, parou
engraçadas, e muita muita história da Bíblia; ela nos fazia ler a em uma esquina sem
saber onde se encontra-
Bíblia e depois “interpretá-la”, líamos um versículo e depois
va e o que faria.
tínhamos que explanar sobre o que aquele versículo queria dizer; Coincidência ou não
este exercício rotineiro me ajudou muito na escola, no seu pai estava saindo
da loja de doces na
conhecimento de palavras que outros amigos da mesma idade não esquina onde o garoto
ouviam com frequência. Lembro que minha mãe sempre disse de saia parou perdido.
E quando viu seu filho
muitos ditados e provérbios populares, e um deles, eu gravei com vestido naquela saia
um gravadorzinho que tínhamos e geralmente usávamos para bonita que tinha dado
a sua mulher ficou sem
brincar de gravar nossa voz ou músicas da igreja. Mais do que no
entender muita coisa,
gravadorzinho, o provérbio ficou gravado na verdade em mim, e e olhou seu filho com
não sei em que momento do processo tradutório – entre o texto, aquele mesmo olhar
de surpresa que seu
minha mãe e eu, as palavras chegaram para mim assim: “Se a melhor amigo dentro
todos os condiscípulos te julgas superior, sê mérito esforça-te e do banheiro o olhou.
Foi neste instante
aplica-te sem ostentar teu valor”; atualmente buscando a que o garoto de saia
referência do “provérbio” percebo que o que mais se aproxima num susto chorou um
choro desconsolado e a
deste, é o poema “Modéstia” de Olavo Bilac (2018, p. 53): “Se a
chuva ficou mais forte.
todos os condiscípulos/ Te julgas superior,/ Esconde o mérito, e O medo de seu pai
rir alto e chamálo de
cala-te/ Sem ostentar teu valor [...]”. Minha mãe era professora de
“mulherzinha” daquele
Matemática e conheceu meu pai dando aula, foi ela quem deu aula jeito que seu amigo
particular pra ele, e numa dessas aulas engravidou da minha irmã da escola o chamou
foi tão grande, que ele
mais velha e depois disso os dois saíram de Santarém e foram desabou em lágrimas
morar em Belém. Meu pai disse pra ela largar tudo o que havia e soluços, junto com
a chuva e os trovões
construído profissionalmente e deixar ele sustentar sozinho a fortes que se tornaram
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casa, e a minha mãe, subjugada e iludida em um “amor”, largou mais fortes desabando
do céu.
o emprego e se dedicou à educação e cuidado dos filhos. Minha Sem perceber o instan-
mãe teve um papel fundamental em minha formação e não é à toa te exato que seu pai
se aproximou e ficou
que a primeira performance de Sophia se relaciona com o sonho
bem junto dele, sentiu
que ela teve quando eu já estava na faculdade e queria largar o o calor forte de um
curso de engenharia. abraço amável que o
manteve suspenso no
Mas antes de falar da primeira performance de Sophia, ar e sussurrou ao seu
ainda vale a pena lembrar que quando comecei a me interessar ouvido: “Calma, está
tudo bem.”
por sexo e me masturbar, lá pelos meus 13-14 anos, eu desejava Aliviado e cansado
meninas, mas percebia que cada vez mais me interessava por de toda a fuga, da
chuva e dos trovões,
meninos; adorava ver os meninos da sala de aula nas brincadeiras
que perturbavam sua
de pegar na bunda e no pau uns dos outros, me excitava vendo um cabeça, respirou fundo
e adormeceu.
deles “imitar um gay”; foi neste período que me dei conta que eu
Acordou já era a
já batia o bolo pensando nele e nas sacanagens isinuadas em sala tardinha, raios alaran-
de aula; na época não havia internet (ela é barroca), e eu às bancas jados abriam fendas
luminosas nas frestas
de revistas e sempre havia uma parte para as revistas de da janela e do telha-
sacanagem e às vezes haviam revistas gays masculinas também, do, ouviu uma voz
doce como o cheiro de
e eu queria comprá-las, desejava comprar a “Guy”, “Hermes”, jasmin da casa da vovó
“Sui Generis”, “GMagazine”, mas me contentava em comprar a em Outeiro, era sua tia
legal, e uma maçã que
“Muscle”, ou outra revista que mostrava muitas imagens de
o oferecia, para ele não
homens esculpidos. Morria de medo que alguém descobrisse ficar de barriga vazia
minhas verdadeiras intenções comprando uma revista com por tanto tempo.
- “Vamo andar de
homens musculosos, morria de medo de ser gay, porque na bicicleta? Eu te levo!”
adolescência a imagem de ser gay era ser Roberta Close e eu não - disse a tia legal toda
empolgada já abrindo
queria ser a Roberta Close, eu não queria vir a ser mulher, não a janela e mostrando
queria fazer uma cirurgia para mudar meu sexo de nascença, tinha um pôr do sol em tons
de vermelho alaranjado
medo, achava que era doença, queria me curar, orava, chorava,
verdeazulado cítrico.
pedia a Deus pra me ajudar, pra me fazer esquecer, e ao mesmo Sua tia estava tão ani-
mada, que o garoto se
tempo queria ficar com o vizinho e nas brincadeiras com os
sentiu contagiado pela
moleques na rua de casa queria agarrar uns deles; também sua euforia, e topou
desejava os amigos da igreja e ficava com todas as irmãs do coral sair da cama, estava
vestido só com o short
de adolescentes para tentar esquecer os meninos, o que não deu velho de dormir, e
muito certo. olhou sua tia com um
olhar triste, sem saber
o que fazer ou vestir.
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Das memórias descritas aqui, desta vida dupla em que “Leva a saia, ela é lin-
da! Sua mãe usava ela
uma bicha se escondia no corpo-mente de um futuro “pregador da para dançar carimbó”.
palavra de deus” lembro-me de um trecho do poema que Hilda Ele sempre soube que
sua tia legal era muito
Hilst (2000) coloca na fala da personagem “Irmã H” na peça
legal, mas nunca imag-
teatral “O Rato no Muro”, e que está referido ao longo desta inou que ela fosse tão
narrativa; o caminhar entre dois mundos na ambivalência de estar tão legal a esse ponto
de lhe dizer isso! Cara!
rato, ter dois tons e ir de cima do muro e ao fundo do poço na que legal! Rapida-
dualidade ambivalente de estar sendo ter sido. mente o garoto colocou
sua saia, vestiu uma
Aquendaissime que a gata já pernou horrores camisa qualquer e saiu
nos babadéucimes pra alaissime e acaissime,
e num é que a bicha cora o mesmo carão da depressa pra frente da
gata acaissima? casa esperando sua tia
(Tradução de Sophia do trecho de “O Rato no o colocar na garupa da
Muro” de Hilda Hilst: magrela preles darem
“Desde sempre caminho por entre dois umas voltas de bike.
mundos, mas a tua face é aquela onde me via Tia legal:
[...]”) “Te segura! E cuidado
com essa saia pra não
No período da adolescência e início da juventude, eu tinha
deixar ela pegar na
muitas dúvidas do que viria a ser, mas desde aí, desde antes, desde roda!!!
Seu pai que deu de
sempre, já percebo a ambivalência do certo-errado, sim-não, e a
presente pra tua mãe,
multiplicidade de papéis e construções sociais desempenhadas viu?”
pelo meu corpo, pois apesar de Sophia não estar evidente sempre Viraram a esquina da
padaria, passaram a
houveram outras identidades que construí a partir das adaptações feira, deram a volta
sociais cotidianas: o irmão pegador da Escola Dominical, o nerd no retorno lááá de
baixo, perto da igreja
fracote da escola, o relaxado estudante de piano, a bicha tarada, o e quando já estavam
estudante de engenharia, estereótipos, devires do vir a ser, que na segunda volta, sua
tia legal começou a
confortavelmente satisfaziam minhas necessidades e desejos e
explicarlhe:
desdobravam minha sexualidade, e o que ninguém poderia saber, “Tá vendo aquela
o que nunca tinha acontecido, mas era desejo. E quando fui para arvore? Tu sabias que
não existe uma folha
a AFA (Academia da Força Aérea), já com 17 anos e com uma igual a outra?
formação estruturada no evangelho institucionalizado da Igreja, Todas são diferentes!
Nenhuma folha é igual.
percebendo uma religiosidade que me cobrava a negação do Elas parecem iguais,
desejo por um outro corpo mais próximo da construção social do mas se você prestar
bem atenção uma a
masculino, pedi aos céus que eu pudesse esquecer tudo aquilo que
uma, todas são difer-
me perturbava nas caladas da noite, pedi aos céus que toda aquela entes, umas maiores
outras menores, umas
vontade de tocar o corpo dos boys e de dar o cú passasse;
mais verdes outras
menos, outras ama-
28

frequentei uma igreja evangélica em Pirassununga-SP (onde a relas, outras vermelhas,


sempre há uma sutil
AFA é localizada), orava todos os dias, lia a bíblia, mas tudo foi diferença entre uma ou
esforço em vão, ainda nos 40 primeiros dias morando na outra folha, que mesmo
estando juntas e pare-
Academia e compartilhando a vida com mais de 200 neguinhos
cerem serem
de todo o Brasil – com direito a todos os sabores, tamanhos, iguais, possuem iden-
cheiros e cores que sua cabecinha criadora imaginar, fui tidade e são únicas no
mundo que vivem.
“seduzida” (risos-gritos) por um amigo, ficamos no meio do Tu sabias que é normal
acampamento dentro da barraca onde tantos outros boys dormiam em um pais chama-
do Escocia homens
e nós ficamos enquanto todos dormiam matamos desejos ou usarem saia? É moda
acendemos o desconhecido, e depois desse evento ele me dizou e significa que você é
descendente de grandes
.......................................................................................................
guerreiros! Se tu pen-
A primeira vez que fui a uma boate, ainda morava no sares bem até o padre
da igreja lá daquela es-
interior de São Paulo, mas fui visitar minha irmã na capital e
quina usa vestido, todo
aproveitei para sair e conhecer um pouco da noite paulistana, preto ou branco. O
conheci um cara mais velho no bate-papo da uol, fomos no padeiro da padaria usa
um chapéu curtinho
Autorama (lugar de pegação em sampa na época), depois de muito engraçado toda
ficarmos ele me deixou na porta da boate mais badalada de São vez que vai na igreja
dele, ele é judeu.
Paulo, e eu com meus 20 aninhos fiquei ao mesmo tempo perdido Quando eu tinha a sua
e achado em um ambiente em que eu não conhecia ninguém e idade era muuuuito
dificil uma mulher
justamente por não conhecer ninguém eu poderia conhecer
sair com calça jens era
qualquer um: dancei bastante, fiquei com uns cinco caras um horror para todo
diferentes, e lembro que o último da noite me deixou na parada, e mundo. Mas sabe,
meu sobrinho querido,
trocamos número de telefone, nos ligamos algumas vezes ainda, normal mesmo não é
mas nunca mais nos encontramos. Depois da primeira vez que fui vestir saia ou calça isso
são só roupas. O que
à boate, queria sair todos os finais de semana de Guaratinguetá tu tens de se importar
(onde eu morava e estudava engenharia na UNESP) e ir pra casa é preencher os vazios
que moram dentro do
da minha irmã para poder dar uma volta em sampa com as novas
seu peito, e as pergun-
amigas que eu estava conhecendo e que adoravam ir pro Club Z, tas que não querem
calar e devem ser
um bar das lésbicas, mas as gay que iam pra lá eram minhas
respondidas para que
amigas e comecei a frequentar este bar junto com elas e a gostar surjam novas perguntas
do que rolava por lá, e ainda mais que lembro de ter ficado sobre você.
Ah meu pequenino de
apaixonada por um barman do local e que vez ou outra nos nos saia, saiba que as pes-
agarrávamos dentro do banheiro do bar-boate. Indo às boites e soas tem medo daquilo
que sai dos padrões do
sempre assistindo shows de drags que faziam sucesso naquele que acham normal. E
29

tempo, como Silvete Montila, que desde sempre já dava um show o que é normal? Tem
gente que tem medo
à parte e eu me deliciava com seus improvisos, e ia frequentando até de onde uma pessoa
paulatinamente os ciclos de tempo vida e morte do vir a ser veio ou das cores das
outras pessoas, mas
Sophia tendo suas primeiras memórias borradas entre meus 21
o importante é aceit-
anos quando descobri o encantamento de me montar, quando ar as diferenças que
retornei a Belém, depois de um período tentando vir a ser outra existem entre nós, por
que normal mesmo... é
coisa em sampa, conheci o amigo Davis Minori, e juntos pela ser humano… Ou ser
primeira vez iniciamos o processo de montagem para ir dar close folha!!!
Sua tia pedalou com
nas boites da noite belemita, e depois desta primeira vez sempre mais velocidade e o ga-
queríamos sair montadas. Escolhi meu nome com muita cautela, roto de saia se lembrou
da garota da escola e
depois de pensar muito, lembro que ao dobrar no cemitério da
seus cabelos longos
Soledade, pegando a Gentil, dentro do ônibus, dentro de um e cacheados. Talvez
um dia ele pudesse ter
Sacrabala, voltando do centro para casa, escolhi denominar este
cabelos longos e cac-
devir como Sophia (ou Sophia me escolheu, e naquele momento heados, decidiu a partir
apenas decidi chamar toda esta energia pelo nome de Sophia), daquele dia não cortar
mais o cabelo. Os dois
como Sophia Laurent, uma atriz bela e italiana, tendo ainda na sorriam um anoitecer
época como referência minha formação neoclássica em piano no estrelado e tranquilo,
e a tia meio cansada
conservatório Carlos Gomes e a influência de um convívio com parou a bicicleta em
descendentes de italianos em São Paulo, e por lembrar que frente ao canal, que
antes era um rio e seu
quando participei da Festa da Achiropita em sampa, a italiana
avô tomava banho.
ficou na minha cabeça na noite, na feira, na festa, a italiana me “Tia, você sabe se
ofereceu uma pizza: “Mezzo Muzzarella Mezzo Calabrezza”, e eu sou mulher ou
homem?” perguntou
esta imagem-texto, com a pronúncia característica da mama o garoto, meio enver-
vendedora mezzo brasileira mezzo italiana, ficou em mim, como gonhado “Será que eu
sou normal?”
tatuagem, e quando escolhi o nome da drag que estava “E o que é ser normal,
despertando dentro de mim, me lembrei de Sophia Laurent, e da menino?” perguntou a
tia.
italiana que estava vendendo sua pizza, e assim nasceu o nome
Vocês sabem o que
Sophia Mezzo. Sophia Mezzo, Mezzo Donna Mezzo Uomo. é ser normal? (per-
guntando para o públi-
Neste mesmo período de tempo minha mãe teve um sonho
co)
em que eu estava em um lugar e havia uma mesa e três baldes Talvez você seja uma
cheios de leite em cima da mesa, e então eu pegava o primeiro garota ou um garoto,
você vai descobrir isso,
balde, colocava na cabeça e brincando-dançando derramava este dentro do seu coração,
balde cheio de leite no chão, depois disso eu pegava o segundo lá no fundo você vai
sentir o olho dágua
balde e novamente colocava na cabeça e brincava com o balde e brotando, fazendo
30

deixava este cair, quando eu ia para o terceiro balde de leite, cócegas e dizendo pra
você qual caminho se-
minha mãe muito aflita por não querer que o leite derramasse guir. Existem pessoas
acordou do sonho com aquela palpitação e desespero de sonhos que nascem e são vis-
tas como meninas, mas
que soam como pesadelos. Ela me contou o sonho com muita
são meninos, assim
seriedade e rapidamente traduziu o sonho e os baldes de leite como existem crianças
como o conhecimento que eu estava “derramando”, que parecem que são
meninos, mas são
“desperdiçando”, pois nos meus 16 anos eu abandonava o curso meninas, mas isso é só
de piano depois de oito anos de formação no conservatório, e este teu coração que pode
dizer pra ti. Ninguém
seria o primeiro balde de leite; o segundo balde derramado seria mais pode te chamar
o curso na AFA (Academia da Força Aérea) que eu havia a atenção ou querer
que tu mude. Descobre
ingressado e estava cursando e no meio do ano de 1995 saí por
isso com o tempo, sem
não me adaptar ao regime educacional da academia militar; e o pressa e agonia.
Ás vezes sua tia legal
terceiro balde que estava na minha cabeça na iminência de ser
parece uma professora,
derramado, segundo minha mãe, este balde era o balde de leite e é nessas horas que
que representava o curso de Engenharia Elétrica que eu estava ela fica mais amável.
Com um sorriso ami-
querendo abandonar (e inclusive demorei mais de 10 anos para go nos lábios, encheu
terminar). Segundo a tradução do sonho da minha mãe feita por de beijos o rosto da
criança de saia e lhe
ela mesma, tudo já está concretizado atualmente, sendo que o deu um saquinho cheio
terceiro balde realmente não se derramou, porque eu consegui de bombons, doces e
pirulitos, porque apesar
terminar a graduação em Engenharia em 2010. Porém, a
do dia difícil também
simplicidade e completude da tradução do sonho da minha mãe era dia de são cosme e
me incomodou tanto, ao ponto de eu demorar anos para digeri-lo damião.
E continuaram peda-
e re)traduzi-lo tal como o leite que azeda com o passar do tempo lando de volta para a
e torna-se coalho re)transformando-se em outras possibilidades casa.

lácteas, com anos de digestão, o tilintar sonoro de líquido leite no


balde metal ressoa na cabeça momentos in)oportunos, com a má
digestão da coalhada azeda da sensação de vômito, da recusa e
não aceitação da tradução proposta pela barroca, e já conhecendo
as ferramentas teatrais e a linguagem da performance, o tilintar
líquido ressoava signos, links, imagens e o que realmente o sonho
queria dizer ao re)traduzi-lo em ações performáticas, e assim
surgiram os primeiros indícios da ação imersiva “de)leite”, que é
a des)tradução e o des)dobramento do sonho de minha mãe em
que derramo leite, baldes de leite.
31

O sonho de derramar os três baldes de leite é vislumbrado


no poema “arredão”, e re)significado em duas ações públicas em
dois momentos distintos: “de)leite”, a primeira ação quando
Sophia ressurge após ter se montado com 21 anos para ir pra
boates e festas de aniversário e depois ter adormecido durante sete
anos (esta ação é melhor detalhada no capítulo 1.2 e 1.2.1); e
“depilei-te” que é a segunda ação em que Sophia derrama o balde
de leite, em um banho de leite na rua, na frente do antigo “8 bar”
(bar de referência e influência subversiva que reuniu artistas e
amigos com ações e intervenções que dialogavam sobre as
questões sociais e políticas atuais; foi um bar que aconteceu no
período de 2012 a 2015 em Belém-PA, e que inicialmente era um
boteco onde as pessoas que chegavam para beber ocupavam as
calçadas e ruas, posteriormente mudou-se para um espaço maior,
mas com um público no mesmo costume de beber nas calçadas e
ocupar o espaço bar e rua; em 2015 policiais entraram na casa dos
donos do bar, implantaram drogas e os levaram presos, como
vemos no link que descreve o ocorrido:
https://www.vice.com/pt_br/article/z4bgn3/karllana-e-joao-
bar-8-belem-para;
Após o ocorrido, o bar foi fechado e seus donos ficaram
impossibilitados de reabrir o espaço):
https://www.huffpostbrasil.com/paloma-franca-
amorim/liberdade-para-a-resistencia-o-caso-do-8-bar-e-
bistro_a_21685229/.
Depileite é o trabalho consecutivo ao Deleite em que Sofia
convida todxs a depilarem seu corpo que fica totalmente aberto e
vulnerável aos afiados barbeadores nas mãos de um publico ébrio
na esquina da Dr. Moraes com José Malcher, na calçada-rua em
frente a porta do antigo 8 Bar. Os registros fotográficos desta ação
imersiva são de João Paupério, e estão dispostas ao longo deste
trabalho.
.
32
33
34
35
36
37

1.1.1 – j e s u s

Aquele que matou um pássaro ontem com a pedra que jogou hoje.
01000101 01111000 11111010
KIUÁ MAVAMBO! 00101100 00100000 01101111 01110101 00100000 01000101
KIUÁ NZILA
01110011 11111010 00101100 00100000
KIUÁ NKOSSI! 01001100
não acredito 01100001
num deus que não01110010
dança 01101111 01111001
11101010 00101100 00100000 01001011 01101001 01110101 11100001 00100000 01001101
01100001 01110110 01100001 01101101 01100010 01101111 00100001 00100000 01001011
01101001 01110101 11100001 00100000 01001110 01111010 01101001 01101100 01100001
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00101101 01110100 01100101 0111001KIUÁ NKOSSI0 01110010 01100001 00100000
01110101 01101110 01101001 11100011 01101111 00100000 01100100 01101111 00100000
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faca amolada
01101101 01100001 01101110 01101000 11100011 00101110 00100000 01000101 01111000
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00100000 01101111 01101110
quem com01110100 01100101
ferro fere 01101101
o filho do ferreiro 00100000 01100011 01101111
... se ferra...
01101101 00100000 01100001 00100000 01110000 01100101 01100100 01110010 01100001
00100000 01110001 01110101 01100101 00100000 01101010 01101111 01100111 01101111
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01100011
eu01101000 01101001
acredito num 01100110
deus que 01110010 01100101 01110011 00100000 01110011
sabe dançar
01100101
eu01101101 01110000
acredito num 01110010
deus que 01100101 00100000 01100110 01101111 01110010
sabe dançar
01100001
eu01101101 00100000
acredito num 01110010
deus que 01100101 01110000
sabe dançar 01110010 01100101 01110011
exu é rei!!
01100101 01101110 01110100 01100001 11100111
eu acredito num deus que sabe dançar 11110101
01100101 01110011
salve o rei do 00100000
congo!!
01100100 01100001 00100000 01101100 01110101
eu acredito num deus que sabe dançar 01111010 00101100 00100000 01100100
01100001
eu00100000 01110011
acredito num 01100001
deus que 01100010 01100101
sabe dançar LAROYÊ 01100100 01101111 01110010
01101001 01100001 00100000 01100101 00100000 01100100 01101111 00100000 01100011
01101111 01101110 01101000 01100101 01100011 01101001 01101101 01100101 01101110
KIUÁ MAVAMBO!!!!
01110100 01101111 00100000 01100101 01101110 01110100 01110010 01100101 00100000
01101111 01110011 00100000 01110000 01101111 01110110 01101111 01110011 00100000
01100001 01101110 01110100 01101001 01100111 01101111 KIUÁ REI 01110011
DO CONGO!00101110 00100000
01000011 01101000 01101001 01100110 01110010 01100101 01110011 00100000 01101110
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exu é rei!! 01101101 01101111 01101110 01101001 01111010 01100001 01100100 01101111
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salve 01100101
o rei do congo!!
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LAROYÊ exu é rei!!
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KIUÁ MAVAMBO!!!!
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KIUÁ REI11100001
DO CONGO!01110010 01101001 01101111 00100000 01101111 01100011 01101001 KIUÁ MAVAMBO
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01101110 01101000 01100001 01110011


1903 00100000 01100111 01101100 11110011 01110010
01101001 01100001 01110011 00100000
A primeira01100101
vez um 00100000
homem branco01100100 01100101
observou 01110011
um homem
01100101 01110011 01110000 01100101 01110010 01101111 01110011 00101100 00100000
identidade negro
01101111 00100000 01100001 01100110
Não como 01110101
um animal01101110 01100100
agressivo, ou força01100001 01110010
braçal desprovida
00100000 01100100 01100001 00100000 01110000
de inteligência 01100101 01100100 01110010 01100001
pulsa
00100000 01110001 01110101 01100101
Desta vez,00100000 01100010
percebe-se 11110011
o talento, 01101001
a criatividade, 01100001
a música!
00101100 00100000 01101111 00100000
identidade 01100011 01100001 01101101 01101001 01101110
arte-vida O mundo branco nunca havia sentido algo como o blues
01101000 01100001 01110010 00100000
Um negro, 01110011 01101111
um violão 01100010 01110010 01100101
e um canivete
00100000 11100001
pulsa01100111 01110101 01100001 01110011 00101100 00100000 01100001
zero-um Nasce na luta pela vida, nasce forte, nasce pungente
00100000 01100011 01100001 01110011
Pela real 01100001
necessidade 00100000 01100101 01101101 00100000
de existir
01110001 01110101 01100101 00100000
arte-vida 01101000 01100001 01100010 01101001 01110100
souteutua O que é ser um Bluesman?
01101111 00101100 00100000 01110100
identidade 01110101
É ser o inverso 01100001
do que 00100000
os outros pensam01100011 01100001
01110011 01100001 00100000 01101101
zero-um 01100101 01110101
É ser contra a corrente 00100000 01100011 01101111
01110010 01110000
pulsa 01101111 00101100
identidade 00100000
Ser a própria força,01110100 01100101
a sua própria raiz 01110101 00100000
01100011 01101111 01110010 01110000
souteutua 01101111 00100000 01110011
É saber que nunca fomos uma reprodução 01101111 01100010
automática
01110010 01100101 00100000 01101101
arte-vida
pulsa Da imagem 01100101 01110101
submissa que foi 00100000
criada por01110100
eles 01110101
01100001 01110011 00100000 01100100
Foda-se a01100101
imagem que01101100 11101101 01100011 01101001
vocês criaram
01100001 01110011
zero-um
arte-vida 00100000 01100101 00100000 01100100 01100101 01110011 01110110
Não sou legível, não sou entendível
01100101 01101110 01110100 01110101
Sou meu01110010 01100001
próprio Deus, 01110011
meu próprio 00101100
santo, 00100000
meu próprio
01110100 01100101 01110101
souteutua
zero-um 00100000
poeta 01100011 01100001 01101100 01100101 01101110
01110100 01101111 00100000 01100101 00100000
Me olhe como uma01101001
tela preta,01101110
de um único01101010
pintor11111010
01110010 01101001
souteutua 01100001 01110011 00100000
Só eu posso 01110100
fazer minha arte 01110101 01100001 01110011
00100000 01100100 01100101 01110011
Só eu posso me descrever 01100001 11100111 11110101
01101111 01101100
01100101 01110011 00100000 01100001
Vocês não 01101100
têm esse01100101
direito 01100111 01110010 01101001
01100001 01110011 00100000 01100110
Não sou obrigado a ser o que01100111
01101111 01101100 01110101 01100101
vocês esperam
01100100 01101111 01110011 00101110 00100000
Somos muito mais!01001111 00100000 01110000 11101001
00100000 01110001 01110101 01100101 00100000
Se você não 01100001
se enquadra 01110100
ao que esperam01110010 01100001
01110110 01100101 01110011 01110011 01101111
Você é um Bluesman 01110101 00100000 01110011 01100101
01101101 00100000 01110100 01101111 01100011 01100001 01110010 00100000 01101111
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TEM COISAS QUE SÃO PARA SEREM
01101001 01101110 01110011 01110000 01101001 01110010 01100001 11100111 11100011
01101111 00101100 00100000 01100001 00100000 01100101 01101110 01100101 01110010
SENTIDAS IDIOTAS
01100111 01101001 01100001 00101100 00100000 01101111 00100000 01110000 01110010
01101111 01100011 01100101 01110011 01110011 01101111 00100000 01100001 00100000
“A partir
01110000 01110010 11110011 01110000 de agora
01110010 01101001 considero
01100001 00100000 01100001
11100111 11100011 01101111 00100000 01110000 01100101 01110010 01100110 01101111
tudo
01110010 01101101 11100001 01110100 blues”
01101001 01100011 01100001 00101100 00100000
Baco Exu do
01101111 00100000 01100101 01101110 01110100 Blues
01110101 01110011 01101001 01100001
01110011 01101101 01110101 01110011 00100000 01100101 00100000 01101111 00100000
11101010 01111000 01110100 01100001 01110011 01100101 00101100 00100000 01101111
Tudo
00100000 01100011 01100001 01101001 que
01110010 quando
00100000 01101110 era01101111 preto
00100000
01100011 01101000 11100011 01101111 00100000 01100100 01100101 00100000 01110100
era00100000
01100001 01101110 01110100 01101111 do demônio 01110000 01101111 01100100 01100101
01110010 00101100 00100000 01101111 00100000 01110010 01101111 01101100 01100001
01110010 00100000 01101110 01100001 00100000 01100111 01110010 01100001 01101101
E depois
01100001 00100000 01110010 01101001 01101110 virou branco
01100100 01101111 00100000 e01101111
foi
aceito
00100000 01110110 01101111 01100001 01110010 eu vou01100110
00100000 chamar 01101100de 01110101
01110100 01110101 01100001 01101110 01100100 01101111 00100000 01100101 01101101
Blues
00100000 01100011 01101000 01101111 01110010 01101111 01110011 00101100 00100000
41

01101101 01101001 01101110 01101000 01100001 00100000 01101001 01101110 01110100


01110010 01101111 01100100 01110101 11100111 11100011 01101111 00101100 00100000
01110000 01110010 01101001 01101101 01100101 01101001 01110010 01101111 00100000
preto é chave abre portões
01100010 01100001 01110100 01101001 01110011 01101101 01101111 00101100 00100000
preto é chave abre portões
01100001 00100000 01100110 01100101 01100011 01110101 01101110 01100100 01100001
preto é chave abre portões
11100111 11100011 01101111 00101100 00100000 01101111 00100000 01101001 01101110
preto é chave abre portões
11101101 01100011 01101001 01101111 00101101 01100110 01101001 01101101 00101110
preto é chave abre portões
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preto é chave abre portões
01101001preto
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preto 01100001
preto preto01100100 01100101
preto preto preto 00101100
preto 00100000 01101111 00100000
preto épreto
chavepreto
abre portões
01100110quatro
01100001 01101100 01101111 00100000
elementos pra mim ainda são poucos 01100101 01101101 00100000 01110001
preto é chave abre portões
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preto é chave abre portões
01100011chave
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preto é chave abre portões
00100000chave
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preto é chave abre portões
01101001chave
01110011 01110100 01100101 01101101 01100001 00100000 01100010 01101001
preto é chave abre portões
01101110chave
11100001 01110010 01101001 01101111 00100000 01100011 01100001 01101001
preto é chave abre portões
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preto é chave abre portões
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preto é chave abre portões
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preto é chave abre portões
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01100001 01101101 01101111 00100001 00100000

Quando aprendemos a ideia de número e contagem, o sistema que nos é apresentado é um


sistema de numeração decimal posicional, ou seja, os símbolos 0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9 são
chamados de algarismos , e dependendo de como ordenamos estes símbolos eles representam
quantidades diferentes, por exemplo, 963 é diferente de 369, pois utilizando-se os mesmos
algarismos, alterou-se a posição deles ao longo da ordenação unidade, décimo e centésimo.

já no caso do sistema de numeração binário posicional só há dois símbolos que são utiliza-
dos para representar as quantidades, e estes símbolos são o “0” e “1”., ou seja, a quantidade
que conhecemos no sisttema decimal como 2, é representada por 10; 3 no sistema decimal, é
representado por 11 no sistema binário; 4 é representado por 110; logo 111 binário seria 5 no
decimal e assim por diante.

O “pensamento binário”, vem da ideia cartesiana, ou seja, oriunda dos pensamentos de Rene
Decartes e consequentemente do plano cartesiano.
No plano cartesiano os pares ordenados definem pontos que dependendo da função são
definidos como raízes e sempre podem ser relacionados, para cada x sempre haverá um y,
mesmo que este tenda ao infinito, Ou seja, por mais complexa que seja a equação sempre
42

haverá um x que corresponde a um y, há um par ordenado de números, e neste pensamento


cartesiano a vida é relacionada a estes pares ordenados um em função do outro. não há x sem
y, há uma relação infinita de pares que se ttorna binária assim como a vida se torna binária,
pobres em função de ricos, feios em função de bonitos e assim o pensamento se planifica em
duas posições em uma visão chapada, plasmada em um plano com duas referências, definidas
em duas retas chamadas de “x” e “y”, sendo a vida resumida a gráficos binários de páres orde-
nados.

Diferente do pensamento bináriokm

neste trabalho o sistema de numeração binário, o mesmo utilizado na linguagem dos computa-
dores, é utilizado para traduzirmos a compreensão do binário Jesus-Exu, que é dualidades e
representações sígnicas de quantidades e palavras que podem ser traduzidas.
Para o texto acima no sistema binário há tradução, e quem queira pode acessar a tabela ou

Rei Congo e a Cabanagem na webTV Azuelar


Roda de conversa com João Lúcio Mazzini da Costa e Mametu Nangetu
https://youtu.be/8gfB6e3Q_a4
Salve o Rei do Congo! Kiuá
43

1.2- As encantada ou e o verbo se fez carne

A primeira vez que vi a “Banda Bagaço” era final da década de 1990 e eu tinha uns 21
anos, o coro de várias drags dublando em conjunto era hino melódico aos meus olhos, a força
do corpo-político de Isolda Matarazzo e Biba Little era o que mais se destacava no grupo,
depois, obviamente do corpo-performance de Liz Babeth Taylor, a famosíssima Babeth.
Naquela noite a atuação de Babeth foi marcante para mim talvez por ter sido a primeira vez que
a tenha visto, porém o mais certo em minhas lembranças é que a atuação da drag como uma
gata foi inigualável, de quatro sob a luz negra a gata bebia, lambia e se lambuzava com o leite
derramado de dentro de um pratinho. A máscara-maquiagem, o leite e o pratinho destonavam
efeito luz de onde a drag transbordava miaus. Naquela cena, no lamber e ronronar leite,
vislumbrei litros como se um universo mágico nunca antes visto tivesse aberto as portas e me
engolido; as meninas eram vívidas, existentes em um mundo mágico que só acabava depois das
dez horas da manhã do outro dia, pois na Doctor Dance era assim as festas noturnas eram
prorrogadas dando a impressão de nunca acabarem e efetivamente fecharem as portas lá pelas
10 horas da manhã do outro dia – de certa forma a boate belemita reproduzia ou traduzia a
mesma cena da noite paulistana que reproduzia ou retraduzia a mesma cena do movimento
clubber (movimento das décadas de 1980 e 1990 iniciado pelo club kids em NY e que neste
período influenciou a cultura de boate, montação e liberdade do corpo como podemos ver no
filme “Party Monster” de 2003, baseado na autobiografia “Disco Bloodbath” de James St.
James, um dos co-participantes do club kids. O filme narra um pouco da história de Michael
Alig, amigo de James St. James, e um dos maiores influencers do club kids, este filme é
ficcional, e foi produzido após o documentário de mesmo nome, e detalha um pouco da cena
clubber e de seus integrantes na época auge desta manifestação cultural alternativa). Recebi
grandes influencias do movimento clubber que indiretamente chegava até mim, pois mesmo
ainda sem conhecer a origem deste movimento meu corpo-amazônia re)traduzia o que clubbers
desconstruíam em NY, a partir da leitura de outros corpos-amazônia que também re)traduziam
a cena clubber nova-iorquina a partir de suas referências; somente depois de um bom tempo, já
com 30 anos, que fui realmente conhecer a cena clubber nova-iorquina através do filme “Party
Monster”, e perceber a influência das pulseiras, brincos e anéis multicoloridas que nós
gostávamos de usar sempre, os cabelos tingidos de papel crepom, andar estiloso era a sensação
e o que se tinha de mais “cool” nos meados da década de 1990 na região metropolitana de
Belém. Todas iam pra alguma boite das tantas que haviam na cidade, e no final da noite, onde
elas estivessem, todas as bichas se encontravam e todas desciam para a Doctor Dance, onde
44

tinha o melhor dark room da cidade (risos) Fiz muitos amores dentro do dark room, eu era a
“bicha novinha que está começando a se montar”, carne nova no pedaço, sucesso no carão, eu
me montava principalmente para sentir por segundos o glamour de uma estrela e ao mesmo
tempo não pagar a entrada da boate além de encontrar na montação solventes para a inquietação
sobre minha sexualidade que consumia meu corpo-mente. Quando eu me montava ficava muito
parecida com uma outra drag famosa da época e todas sempre iam falar comigo de uma forma
ou de outra, ou porque me confundiam com a outra bicha, ou porque queriam me dizer que eu
estava muito bem montada e parecida com a amiga. Nos montávamos eu e minhx amigx
japonesx Ayummi Furukawa, que era quem me produzia. Tínhamos poucas roupas, roupas
básicas que variávamos na cor, pois éramos pobres, não tínhamos aqué pra congar as outras
com vários modelos e a criatividade artística e insight de compor um figurino a partir de sucata
e reutilização de materiais ainda não havia despertado em mim. Tínhamos uns 5 modelitos de
minissaia e top de pelúcia colorida que faziam sucesso na boite, pois mostrava os nossos corpos
esquálidos e nossa beleza curiosa de “novinhas na boite”. Mas no aniversário de Ayummi a
produção de Sophia foi um hino, era uma calça branca boca de sino com um top branco e papel
filme enrolado sobre o corpo e rolos finos de isopor trabalhados no cabelo e no corpo, sendo aí
o meu primeiro figurino próximo ao que a Sophia é hoje, e que foi construído pela própria
aniversariante, Davis Minori, que me maquiou também.
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Festa de aniversário de Davis Minori (Ayummi Furukawa)


Registro de Byron (Antonio)
Na foto, da esquerda para a direita: ainda Marcelo (hoje Symmy Larrat), Davis, Nielson
Bargas, Sophia, Samir Oliveira e Marcelo
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Neste dia do aniversário de Ayummi meu corpo-amazônia esteve totalmente entregue a


outra pessoa para ser montado e foi neste dia que percebi a necessidade do teatro como
ferramenta para a des)construção de sophia em meu corpo-mente, pois percebi os
questionamentos a respeito de quem era aquela pessoa que encarava o público de frente e os
olhares próximos de curiosidade, percebi que ela, mais do que eu, queria muita mais do que a
dublagem de uma música; os lip sync’s das drags que eu conhecia sempre eram muito bons,
mas a repetição e a tradição de imitar o que anteriormente deu certo tornava muitas
performances ações repetidas de bate-cabelo, maquiagem bem feita, troca de roupas
absurdamente lindas em cima do palco, e articular a boca escandalosamente dando a impressão
de que a música saía do seu próprio corpo e que o sistema de caixas amplificadas que envolvia
o ambiente era a própria bixa emanando frequências em alto volume sonoro. No dia do
aniversário de Davis Minori, Sophia era a atração principal do aniversário, era quem recebia os
convidados e dublava a música, e até então eu ainda não havia performado em um palco, e só
tínhamos ensaiado sair na rua montadas e entrar na boate pra dar close, nunca tinha dublado,
nunca tinha performado outras ações artísticas além de sair na rua e dar close, e também a ação
tradicional de dublagem no palco me incomodava, eu queria e ainda não conseguia
des)construir a repetição idêntica do que a drag anterior havia feito e que repetia o que a anterior
a ela também havia feito, e poucas drags conseguiam se diferenciar deste marasmo de shows
repetitivos com músicas que finalizavam em um bate-cabelo com giradas de cabeça e paradas
no ar com cara de “eu não estou tonta”. Na década de 1990, a Banda Bagaço era tudo entre as
drags e o público LGBT da cidade de Belém, Babeth comandava o show e arrancava uivos de
loucura com suas performances encantadoras e diferenciadas. Lembro-me muito de Isolda
Matarazzo, Biba Little, Surama, Passarinho, Marabá bichas, drags e travestis que me
influenciaram profundamente, na atitude, na representatividade, no encantamento da cena, no
que é interessante e o que não é para o vir a ser Sophia. A minha “old school” são essas drags
que aconteceram em um tempo onde as boates LGBTQI+ ainda eram sucesso em Belém; das
noites de sampa, em um período anterior à cena de Belém, quando morava em São Paulo, posso
me referenciar principalmente improviso sensacional de Silvetty Montilla que animava os
guetos daquela metrópole, embora Nany People fosse a mais famosa; Silvetty tinha resposta
pra tudo na ponta da língua em um timing de comédia que deixava as outras ofuscadas, e Sophia
almeja isso, ocupar o timing de Montilla somado às performances criativas de Babeth.
Eu não conhecia Divine, nunca tinha ouvido falar de drags de fora a não ser Lolita dos
Patins pela TV, somente fui conhecer a Festa da Chiquita após voltar para Belém e começar a
fazer teatro, pois anterior a isso meu mundo era limitado a atividades da igreja, aulas de piano
47

e ir para a escola, e minha mãe nunca deixou eu ir a uma festa profana e pagã, segundo ela,
como é o Círio. Meu corpo-mente amazônida compreendia as instituições família, igreja e
formação militar na AFA, porém a necessidade da montagem de Sophia foi maior do que as
proibições impostas por estas instituições, nascendo do desejo de vir a ser “mulher”, da
curiosidade de usar salto alto e se maquiar, das brincadeiras próximas à palhaçaria e o timing
da improvisação. Estas ferramentas montadas no corpo compõem o que é Sophia hoje, a partir
de seu re)nascimento pela percepção artística e política e outras possibilidades de
desdobramento de performances com a drag queen, principalmente após iniciarmos o curso de
formação de ator da Escola de Teatro e Dança da UFPA, desenvolver outros trabalhos em teatro
e performance, e relacionar, traduzir o sonho que a minha mãe teve (em que eu derramava
baldes de leite) com o que estava se formando na nossa arte-vida enquanto performer que
compartilha ações imersivas na rua derramando, distribuindo, dialogando, compartilhando a
lactose diarréica de atravessamentos e pulsações. Minha mãe dizia e vivia repetindo que os
baldes de leite derramados, que ela viu em sonhos era porque eu estava abandonando as
oportunidades de estudos que tinha na época. Eu ainda era novo, mas sempre fui muito ligado
à espiritualidade, sonhos e premonições, e por isso fiquei bem apreensivo com este sonho, e
quando completei 30 anos, lembrei novamente do sonho e rapidamente associei o ato de
derramar o leite a derramar ações artísticas na rua, como costumeiramente já estava fazendo
como performer na cidade de Belém. Era isso: distribuir, compartilhar, derramar na rua toda
minha oferenda, todo meu leite axs que tem fome, axs que precisam se alimentar, porque eu
também preciso me alimentar delxs, destes momentos únicos de compartilhamento nas
encruzilhadas da vida arte-vida; a rua, espaço democrático onde todos podem tudo, na
encruzilhada, na boca do mundo, onde se tem fome, fome e sede, deleites de cura energética
na Sophia retroalimentada, abre peito, compartilhado coração, na encruza sophia me ensina que
o erro é irmão do pecado, ambos discursos da colonização sobre nossos corpos-mentes e são
estes discursos que nos tolhem, cristalizam nossos corpos-mentes nos impedindo de alcançar
mais além. Não vim para determinar momentos e instituir missões, mas sim apreender bebendo
das nossas indagações leitosas, dúvidas coalhadas, regurgitar, vomitar, intolerância láctea, vaca
profana de divinas tetas.
Na montagem/montaria/montação sempre peço ajuda às fina prelas arrazarem na
construção colaborativa do look dessa persona, deidade eleita como puta da rua que não vale
um centavo. O movimento em rede que sophia consegue articular provoca eventos como
“deleite” e “depilei-te” que são duas performances em que a participação das pessoas presentes
está extremamente ligada ao acontecimento.
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Na performance de)leite sophia articulou que amigxs artistas participassem


efetivamente de um grande evento em que Sophia se monta e é montada na escadinha ao lado
da Estação das Docas, após montada, a drag atravessa a Estação das Docas tirando fotos em
flash glamourosos, renascida do coma, a monstrx cabocla dá um close pela sociedade belemita
e ao sair da Estação, encontra o balde de leite do sonho de sua mãe. O balde é carregado por
Sophia até o Ver-o-Peso, e ao longo do caminho da feira, a drag vai encontrando objetos em
que ela derrama o leite, re)significando os objetos, compartilhando desejos de um corpo-mente-
amazônia que se propõe a dialogar sobre a construção cristalizada de uma binaridade polarizada
ordenadamente em homem-mulher ativo-passivo macho-fêmea forte-fraco. Sophia termina a
ação “de)leite” com um banho de)leite na pedra do Ver-o-Peso, e este foi o primeiro trabalho
em que percebi a potência do discurso de des)construção normativa iniciada no processo de
colonização do territórios-amazônias e corpos-amazônias depois de tantos anos que Sophia
havia saído pela primeira vez descompromissadamente para ir à boate, e depois que ficou
desmaiada em coma por um bom tempo.
Sophia surgiu em minha arte-vida antes mesmo de fazer teatro, enquanto eu me montava
de drag para ir nos guetos LGBT’s de Belém, porém esta identidade dissidente somente foi
des)construída efetivamente no dia do meu aniversário em 12 de novembro de 2010, quando
pela manhã eu recebi o diploma de engenheiro eletricista pela UFPA, e a noite executamos a
ação na rua como celebração do meu aniversário de 33 anos e também como um renascimento,
o ressurgimento da fênix; e é então que vejo o sonho de minha mãe se realizar: o balde de leite
na cabeça é despejado na rua em uma ação que se dá desde o momento em que eu, como Pedro,
chego no espaço da “escadinha”, praça localizada entre a estação das Docas e o armazém 4 do
porto de Belém – CDP, para ser montada como Sophia até a desprodução no espaço Pedra do
Ver-o-Peso, em que o banho de)leite acontece. Como em um sonho, a ação performática
pensada para ser executada no dia 12 de novembro tornou-se vivência e experimentação sólida
que se diluiu nas entrelinhas do acontecimento leitento; e o que estava escrito para ocorrer,
efetivamente aconteceu. No link https://deleitep.wordpress.com/ (webblog construído para a
ação) podemos observar o seguinte texto:
Todos os que de modo direto ou indireto interagem com a ação são considerados
também artistascriadores, e juntamente com o artista, montam a personagem Sofia Mezzo. O
corpo do artista é a montagem conjunta de artistascriadores da imagem de um corpo-amazônia
rizomático, com colagens sobrepostas de vários eus. A montagem feita por cada artistacriador
une-se à teia de características e comportamentos da sophia, e resulta em uma cadeia de ações,
sendo um processo cíclico inacabado que de forma objetiva descreve-se em ações/objetivos
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propostos para o dia do evento desde o seu inicio às 15:00h, chegando na praça da Escadinha
com a composição corporal e maquiagem, com um desfile/ao encontro – Sofia Mezzo anda em
direção ao Balde de leite, atravessando por dentro da Estação das Docas. caso ocorra
interrupção, atravessar pela calçada entre a rua e a Estação das Docas. Sophia Mezzo está
desfilando como se fosse numa passarela (dinheiro/sucesso/fama/glamour – a ostentação do
consumo lhe enche os olhos). Mas ao mesmo tempo está preocupada, tem um encontro marcado
com o seu Leite. O seu Leite a está esperando depois da estação das docas, depois do
brilhantismo de um desfile, Sophia está preparada para distribuir o leite e banhar-se.
Convido os amigos para no dia 12 de novembro de 2010 participarem da ação imersiva
“de)leite”, e estarem presentes no dia do evento concordando que a ação aconteça como
planejado com antecedência, peço ainda que alguns amigos me dêem de presente objetos
cênicos que utilizo durante a performance.
A ação, como podemos observar no ensaio-registro etnofotográfico a seguir, acontece
com Sophia sendo montada pelos amigos, e depois da drag ser montada, como uma celebrity
ela atravessa a Estação das Docas tirando fotos e selfies com as pessoas que se surpreendem
com a ação inesperada; na saída da Estação, ao lado da feira do Ver-o-Peso, Sophia encontra o
balde de leite, o carrega na cabeça e vai atravessando a feira ao encontro de seis objetos que
estão dispostos ao longo do caminho desde o começo das barracas e do estacionamento do
Veropa (nome carinhoso dado à feira) até a “pedra do Ver-o-Peso”, onde o último objeto está
assentado. Estes objetos-signos são re)significados, ou seja, re)traduzidos em re)signos
des)construídos, sendo um jarro de barro o primeiro objeto a ser derramado o leite e que
representa o cântaro em que Sophia derrama e trans)forma este leite em vinho, re)significando
o que é considerado o primeiro milagre do messias cristão relatado na bíblia como Jesus
transformando a água em vinho; o segundo objeto é um vaso de cerâmica marajoara,
simbolizando a mãe-terra afro-indígena, a tradição e o leite da mãe que alimenta o filho; o copo,
o terceiro objeto, simboliza a intolerância à lactose que meu corpo-amazônia suporta (ou não
suporta) e esta relação re)significa-se com o texto “Brasil Diarréia” de Oiticica (1970); o vaso
sanitário é o quarto objeto que Sophia encontra caminhando pelo Ver-o-Peso, ele é a privada,
o que se faz no privativo entre quatro paredes de um banheiro, o testemunho não revelado com
jorros de leite e gozo dos mais confidenciosos desejos, e a ação de derramar leite neste objeto
remete-nos ao banheirão (às pegações em banheiros públicos) e ao escondido, soturno entre
quatro paredes onde ninguém vê e tudo se mostra; a gata tomando leite em uma tigela, é a
simbologia do quinto objeto, o pratinho de leite, o ronronar da gata arisca, o lamber-se e lambe
pratos, a gata de rua, a confiança de uma felina selvagem em baixar a cabeça para lamber o
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leite, a fome felina e a providência láctea despejada em um prato; por último, o sexto objeto,
finalizando a ação imersiva, é um alguidar que coincide em estar disposto na pedra do Ver-o-
Peso e simbolicamente associa-se ao banho de cheiro, traduzido trans)formado em leite, e é na
pedra do Ver-o-Peso que os pescadores e barqueiros se envolvem com Sophia, e o derramar e
banhar-se de leite evidencia-se como rejuvenescimento da pele, como renovação das células,
estabelecendo um link com o renascer de Sophia em um banho renovador que a impulsiona
para um segundo momento em que como uma fênix, Sophia sai do coma profundo e volta às
ruas, re-des)configurada para ações imersivas que dialogam sobre o direito à existência e
convivência de corpos dissidentes (fora dos padrões normativos colonizadores) nas possíveis
Amazônias construídas simbolicamente por cada um de nós.
https://deleitep.wordpress.com/2010/10/27/signos/
Os sonhos imagéticos da minha mãe são cheios de misticismo e admoestações que vêm
depois dela os interpretar: os três baldes de leite sobre a mesa, a brincadeira com cada um dos
três, o derramar de dois baldes e a iminência de derrubar o terceiro fixa-se na minha cabeça
desde o período de tempo que ela me contou seu sonho.
https://deleitep.wordpress.com/2010/10/27/baldeleite/
Desde este primeiro trabalho artístico com a drag cuír caboca Sophia, a montagem já é
traduzida como parte das intervenções que outras pessoas fazem no meu corpo-amazônia
trans)formando-o, e também compreendendo-se que o corpo de Sophia não é composto somente
de adereços e gestualidade diferenciada, mas principalmente de re)ações que surgem a partir
das re)ações de artistascriadores. E um dos questionamentos – do período de tempo em que
elaborava-se a ação deste trabalho em processo, é a preocupação em atravessar a Estação das
Docas (estação das dondocas, para alguns) sem ser impedidx pelos seguranças do espaço. Esse
espaço realmente é publico? Este é um desafio já previsto na ação: atravessar a Estação das
Docas, e talvez o atravessar seja o mais facil e eu querendo complicar coisas…
https://deleitep.wordpress.com/2010/10/27/nao-pode/
Para quem não conhece a estação das docas: este espaço era região portuaria,
pertencente a CDP, foi concedido para o governo do estado para utilização como espaço de
cultura e lazer. obviamente o espaço tornou-se elitista, e apesar de as vezes ocorrerem shows
teatro e filmes bem interessantes por preços baixos ou gratuitos, a grande massa não é
frequentadora do lugar pelo espaço ter a imponência de um local frequentado por um público
seleto com preços para consumação de comidas e bebidas bastante elevado para o padrão
popular.
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Para sophia, ao contrário do pensamento elitista conservador da família tradicional


frequentadora da Estação das Docas, toda e qualquer pessoa – transeunte, feirante, passageiro
e/ou motorista de transporte publico ou privado – que por um instante de tempo contemplar a
ação/obra é considerada platéia/espectador; todo e qualquer espectador que de alguma forma
interfira/intervenha na ação/obra de modo direto e/ou indireto e transforme a ação de modo a
(des)construi-la em seu processo de montagem é considerada artistacriador; e todo
artistacriador é disponibilizado o direito de alterar a ação vendo-a como obra de arte moldável
e em processo, tanto esteticamente no corpo montado de Sophia e/ou no seu próprio quanto na
ação propriamente dita e re)significação de seus signos. A ação performatica é montada
conjuntamente coletivamente, e agrega-se ao ambiente imerge no espaço rua e dialoga outras
possibilidades de interação arte-vida e novas propostas de pensar o corpo a partir de questões
de gênero e sexualidade.

não pode!
27/10/2010
https://deleitep.wordpress.com/2010/10/27/nao-pode/

o publico/privado. sempre a mesma tecla. este trabalho novamente me coloca nesse


questionamento desde quando proponho abrir paginas da minha vida na grande rede até o
instante que preciso por questões esteticas atravessar por dentro da eStação das Docas em
uma ação interventiva. Quem já foi a estação com certeza apreciou a baia e o por do sol. Sofia
Mezzo também quer sentir essa sensação, conhecer este espaço publico tão comentado como
turistico. A preocupação é: Irão deixar Sofia Mezzo passear livremente pela Dondoca? Esse
espaço realmente é publico? Este é um desafio ja previsto na ação: atravessar a Estação das
Docas. Talvez o atravessar seja o mais facil e eu querendo complicar coisas…
Para quem não conhece a estação das docas: este espaço era região portuaria, pertencente a
CDP, foi concedido para o governo do estado para utilização como espaço de cultura e lazer.
obviamente o espaço tornou-se elitista, e apesar de as vezes ocorrerem shows teatro e filmes
bem interessantes por preços baixos ou gratuitos, a grande massa não é frequentadora do lugar
pelo espaço ter a imponencia de um local de publico seleto, e os preços para consumação de
comidas e bebidas é bem elevado para o padrao popular.

montagem
26/10/2010
https://deleitep.wordpress.com/2010/10/26/montagem/

Montagem é a transformação corporal e de personalidade do


transexual/transformista/travesti/drag-queen. É ritualistica, e como descreve Gadelha:
“pintados, travestidos e adornados às mil maneiras muitos dos corpos dessas personagens se
apresentam como verdadeiros artefatos rizomáticos”.
Neste projeto a montagem é a construção corporal da personagem q o artista irá encenar. Esta
construção será feita pelos artistas criadores que se proporem a interferir no corpo de Sofia
Mezzo, desde que mantendo a integridade do corpo do artista q a representa. O corpo de Sofia
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Mezzo não é composto somente de adereços e trejeitos, mas principalmente de (re)ações que
surgem a partir de (re)ações de artistascriadores.

por a caos
02/10/2010
https://deleitep.wordpress.com/2010/10/02/por-a-caos/

estive em um trabalho, o Por a Caos, que foi apresentado em agosto e setembro desse ano, e
me colocou a prova a respeito do falar sobre mim mesmo. a ultima cena do espetaculo é um
dos atores entrarem no palco e revelarem um pouco de suas vidas. falarem sobre suas
escolhas, suas opções pessoais em meio a tantas possibilidades. essa cena foi muito dificil de
ser feita. tanto é que não consegui faze-la nunca. na verdade uma vez a fiz ao publico, e foi
um fracasso. me sinto total inibido em deitar coisas sobre mim msm, e acho q a ação explica
tudo melhor. mas me vê como são os fatos e o acaso, q justamente esse trabalho me indica:
desde uns anos atrás me proponho a fazer um trabalho no dia do meu aniversario a respeito da
minha produção e uma releitura de um sonho tido pela minha mãe. e no ano q vou completar
33 ans proponho apresentar algo na rua, e acontece um espetaculo, e eu to dentro do processo,
e no meio do processo vc tem q falar ao publico sobre vc mesmo e suas escolhas e suas
opções. e eu no ensaio recorri pro poema, pra onde sempre fujo.

DePOIMeNTO

tenho uma novidade p contar p vcs


mas antes de contar, queria dizer que este processo me surpreende/bifurca cada vez mais
to td partido em frames linkads/mergulhados num lamaçal de
espaços/dimensões/quartos/quartas/quintas/sei lá até onde vai

admoestarei meu filho a ser um bom menino, e deixar as palavras cairem como elas
queiram/poracaso

e formem o que formam


seja o que seja:
já saiu
assim que faço.
morria de medo de falar assim.
vinte segundos pra escrever pra correr pra conseguir detalhar
um microsecond preciso de palavras incertas correndo nas veias despencando chãos já me
senti sem cem diversas vezes.
e já foram tantos chãos que por isso acho que misturei tudo num bolor de (in)matéria e
(in)aperfeiçoamento de eu e mim mesmo

preceitos religiosos
ensaios fatigantes
disciplina de treinos marciais

era pra eu ser um


homem de fé
era pra eu ser um
homem de honra
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era pra ser um


artista

agilidade de dedos
relações
eloquência

pra acreditar em Deus


pra aprender matemática
pra ser mais acessível

adoro esse numero 3

pra não se fechar


pra não ler qualquer coisa
pra não te ouvir

há dúbias/triplas alternativas que não coincidem e estão juntas


não sei te explicar

tu acreditas que “as más companhias corrompem os bons costumes”?


“Diga-me com quem andas que eu te direi quem és”
“Se a todos os condiscípulos te julgas superior; sê mérito esforça e aplica-te sem ostentar teu
valor”
………………………………………
ah!
ia esquecendo…

agora sou engenheiro.


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1.2.1 - De)leite in process

https://youtu.be/gdtuHCQzIvY
56 https://deleitep.wordpress.com/arreda/
arredão
e disse mãe:
“eis que te via sob mandrágoras e dromedários jasmim
carmim entrepastos entrepassados, e te dispunhas em
baldes… em baldes baldes de leite se liquefaziam e jaz
temiam. ou temiam o jaz? q mais me importa? e so-
bremesa alta mesa sobre sobressalente sobre saliente
que se enturmou a querer balançá-la desabá-la. e temi
prantos, lembro-me perfeitamente. e te dizia: ‘segura o
leite’, porque desta forma é a norma forma enorme onde
se assa pães asmos enformados. e te digo, segura o leite,
pois desta forma, a farta farpa rata que te corrói veias
será suplantada e não mais te admoestarei para que se-
gures o leite.”

e eram três baldes sobre a mesa tenra mesa de


pernas grossas macho viris. em riste de quatro
sustentavam arcas marcas e procissões. e em
tal momento, frente a precipícios caminhos e
distraídos se via a sustentar três jarras jorros
de leite deleite enfeite dentro e fora de mim.
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e disse mãe:

“e ao pores uma como adorno cabeça, ‘com


baldes não se brinca’, logo disse e teimosa-
mente enfiaste aos teus sensores pueris tra-
ma de se querer quedar em brincadeiras
gostosas sobre leite. que mistura afã. reclamo
aos céus as sobrepujações que um dia tive e
continuo tendo… não pode ser meu erro, e
nem minha estima que o tenham devorado.
talvez a condenação ao que se desperdiça a
tenha dominado de tal forma que nem ele se
dê conta de tamanhos baldes que em risco se
põe a balançar!”

eram três baldes…


da árvore que o bloco deu, do suor másculo
de braços fortes a cortar puxar talhar afrouxar
alinhar aplainar empenar depenar madeiriço
fronteiriço, já tarde disse isso: ‘que vários ver-
bos são meras merdas’. o vôo de costas entre
mesa e céu. as marcas de chuva na pele azul. ca-
leidoscópios em manchas de ébano e marfim.
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eram tres baldes…

e disse mãe:

“não vedes que a tormenta de tua vida é pôr-


te a balançar ancas sobrepujadas em diretrizes
escandalizantes e que tua fé em ti é hóstia de
angústia e dor???”

pó de até ser. pó de até existir. quero aspirar


sensações. e dou-te vidas e amargos ais. se te
esbaldas em baldes ou achas desperdício, te
dou suspiro de más alucinações ou loucuras de
avantajar olhos e lavar calçada.
? 59

e disse mãe:

“pois quando se balançava se via leite servia


deleite a olhos que desejavam ver cair, mas eu
não! disse há séculos, Laticínio, que se entornas
o leite aos porcos, a quem irás amamentar?”

salve leite salve lei de desejar beber mais.

sal vi mesmo desabar em campos. e tudo ressecar.


sal e leite aquece estômago. só teu deleite perman-
ece insano. e minhas mãos param, se estendem em
direção ás às que tem fome e sede de leite.
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olha o leite!

disse mãe:
sc tsc tsc. humpf. humhum…
espiração profunda de desaparecimento d’alma)”
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1.3 - e habita entre nós ou Sujas Noites Borradas Maquiagens

conversa com Alan – Flores Astrais:


Eu sou o Alan, o Alan ainda existe quanto pessoa, mas eu me apresento como Flores
Astrais, drag, mas a Flores cada vez mais está invadindo meu espaço, as fronteiras estão muito
borradas hoje em dia. Drag queen pra mim antes de tudo é uma expressão artística, uma
expressão artística e política, pra mim são duas palavras-chave pra gente entender isso, e essa
expressão atua em cima do gênero, e aí abre o leque de drag queen pra drag, a performance
drag, a performance de gênero, sempre com um teor político, porque você alterar sua imagem
e comportamento, que é isso que a drag pra mim é, drag pra mim é alteração de imagem e
comportamento, você alterar sua imagem e seu comportamento dentro de uma sociedade já é
política por si só.., e aí entram 3 categorias, drag queen, que é a performance de gênero
feminino, drag king, que é a performance de gênero masculina e drag queer, que é a
performance da ausência do gênero, de todas as possibilidades do ser, pra mim drag vai por aí.
Me aproxima muito do palhaço, sabe, foi quando eu entendi o palhaço que me veio a drag na
cabeça, porque assim como o palhaço elas não estão no âmbito do personagem, personagem
vem da dramaturgia, né, e ele vai passar aquela trajetória e ele tá preso naquilo, vai viver só
aquilo, o personagem, a drag , assim como o palhaço tem vida própria por si só, né, eles são
estados alterados da nossa personalidade, por isso que a Flores é muito próxima do Alan, porque
é o Alan em outro estado, assim como o palhaço. E o que dispara pra mim drag é a maquiagem,
e assim como o palhaço tem a máscara mínima que é o nariz, pra mim a maquiagem é o
fundamental do drag, porque drag pode existir sem salto, pode existir sem peruca, sem tudo,
mas a maquiagem é alteração da imagem, e aí em cima disso vem o comportamento, quando a
gente estuda no teatro por mais que drag.. Eu venho do teatro, né, eu sou formado pela Escola
de Teatro e Dança da UFPA, mas a minha atuação é na rua, na noite e o que eu trago do teatro,
no estudo de visualidade a gente divide o cenário, o figurino e a maquiagem separado de tudo
isso, porque a primeira coisa que a gente olha quando a gente vê uma pessoa, quando alguém
entra em cena ninguém olha pro figurino, todo mundo olha pra cara da bonita, pra saber quem
é, né? Então a cara é muito importante, a maquiagem é a alteração total da imagem, e aí entra
o comportamento que pode ser igual a essa imagem ou pode se opor a essa imagem, nessa
brincadeira da construção, né?
Eu comecei a me montar tem 3 anos, e a cena drag de Belém ela teve o boom na década
de 1980, assim como no Brasil todo, né, e depois disso pela década de 1990 continuou a existir,
sempre existiu, mas voltou a se tornar uma cultura marginalizada e escondida, mais periférica
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mesmo, hoje em dia a drag voltou pra atualidade, primeiro por influência midiática, o mundo
tá voltando os olhos pra drag, até porque discute política, gênero, conceitos que o mundo tá
passando por toda essa revolução de novo, né. Assim como se passou na década de 1970 que
desabou nos 1980 e o boom da drag.
Quando eu comecei a me montar aqui em Belém primeiro foi pela busca de um espaço
que a gente não tinha, porque eu venho de um rolê da galera da rua, da galera de boteco, da
galera que bebe sentado na calçada, e é uma galera que não vai pagar uma grana pra entrar
numa boite, por exemplo, entende? Pra um lugar onde se faz drag queen padronizadamente
onde é institucionalizado a drag, é na boite, e não é em qualquer boite, é na boite GLBT, né? E
eu comecei a fazer drag na tentativa de trazer isso pra gente, trazer isso pra vala, trazer isso pra
rua, e eu comecei a fazer no antigo 8 bar (oito bar) e ai pra gente ver como a política sempre tá
aliado a drag, né, o 8bar foi um espaço de resistência que foi silenciado pela polícia, os donos
foram incriminados, estão morando em outro país, tão se sentindo perseguidos, e a minha drag
também carrega muito nisso, porque nasceu no 8bar, com a viada cultural, foi quando eu
comecei a me montar, a Flores Astrais surgiu ali. E a Noite Suja que é o meu outro espaço que
eu luto muito, junto com outras drags, que é um espaço também que a gente busca tirar essa
característica do espaço GLS, porque o nosso rolê de drag, a gente tem uma ideia de que drag
vai para além de construção sexual, drag você pode ser homem, você pode ser mulher, você
pode ser homem trans, você pode ser mulher trans, você pode ser não-binário, você pode ser o
que você quiser, você vai poder fazer drag, então restringir essa arte só para o público GLBT é
o não-fazer político, né, você ficar falando a mesma coisa pras mesmas pessoas que já
escutaram isso, então a área de atuação que eu participo do rolê que eu participo é uma galera
que faz festas em espaços alternativos, galpões, faz em bares, já fizemos festas nas ruas,
buscando trazer justamente essa nova visão de drag, lógico que a drag nasce primeiramente da
fala do público GLBT, mas a gente viu que já não comporta mais, o mundo tá passando por
muitas transformações e são muitas demandas, o papel da mulher na sociedade. Porque antes
drag era muito próximo do que hoje a gente separa como transformismo, né, era muito mais
você aparentar ser uma mulher, era muito mais uma imagem fetichista da mulher, o prazer de
estar vestido como mulher, e despertar o fetiche sexual disso tava muito intrínseco no início da
drag, e a gente foi vendo que as demandas são outras, o papel da mulher na sociedade, a imagem
da mulher na sociedade mudou, as questões de gênero entraram na drag também, não existe só
um tipo de mulher, existem vários tipos de mulheres, não existe só mulher, existem homens,
existem trans, existe toda uma gama de performances de gênero, e drag sempre vai tá associado
à performance de gênero e não com performances de condição sexual, homossexual, bissexual,..
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Não tá aliado a isso tá aliado a gênero, que lógico se você puxa a pauta do gênero você puxa
todas as pautas, da condição sexual, da condição da mulher na sociedade, da condição da
periferia na sociedade, porque no período que ficou, digamos assim, no ostracismo da grande
mídia social, drag se manteve pela periferia, então também é falar de periferia, mesmo que você
falar de periferia, vem tudo à tona junto.
O que acontece é porque como a Noite Suja surgiu... Ouve um boom de Ru Paul, né, e
que foi um grande boom no mundo todo, e a galera começou a querer se montar, querer se
montar, querer se montar, só o que acontece, primeiro vou falar desse boom, o que acontece...
Ru Paul, drag race, acontece nos Estados Unidos, a drag ela sempre vai refletir os valores e os
padrões da sociedade em que ela está inserida, por isso é político, ela é um espelho daquela
sociedade; lá é um padrão midiático da mídia hollywoodiana, onde eles tem investimento em
imagem, maquiagem, onde a imagem de beleza padronizada é a cultura de lá, a cultura do
glamour, a cultura do luxo, a nossa cultura é outra, nossos materiais são outros, isso vai acarretar
e transformar o nosso modo de fazer drag. E quando a noite suja começou eram batalhas de lip
sync seguindo esse padrão, e a gente começou a perceber que a demanda de drag era
completamente absurda e diferente desse padrão, então esse padrão não comporta mais, a Noite
Suja boas festas já não faz mais batalhas de lip sync e abre espaços pra apresentação, o que
acontece eu acho que quando se olha de fora, você pensa assim, a Noite Suja elegeu 4, 5 rainhas
durante essas batalhas, e nunca mais houve outra rainha, a gente não quer mais eleger rainha, a
Noite Suja quer que todo mundo suba no palco e todo mundo faça, que seja aberto, existe a
galera que começou e que carrega essa bandeira, até porque produzir isso em Belém não é fácil,
não é fácil, e sempre vão ter pessoas que vão falar contra, sempre, você fazendo, você não
fazendo, vão ter pessoas que não vão concordar com você, em todas as situações que você
queira produzir culturalmente em Belém, e principalmente contra-cultura em Belém, né, que é
uma cidade muito provinciana ainda, de valores provincianos, sabe, onde as pessoas ainda são
presas a uma sociedade que te exige a seguir àquele padrão ainda é forte isso em Belém, apesar
de ser uma cidade imersa em loucuras, imersa no imaginário mítico, mas socialmente na
estrutura ainda temos grandes famílias oligárquicas que comandam a cidade, que te dão patrões
da cidade, então fazer a noite suja em Belém, não só a noite suja, qualquer evento que vai de
encontro a essa cultura imposta, que em Belém principalmente a Secretaria de Cultura, acha
que a cultura é a cultura elitista, eles investem milhões em óperas, investem milhões pra trazer
artistas da puta que o pariu, mas o olhar daqui é esvaziado pras pessoas que ficam aqui, nós
artistas, e isso eu me posiciono como artista da cidade, como Alan o artista da cidade, a gente
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é muito carente disso, a nossa cultura é muito marginalizada ainda, a nossa cultura, os nossos
costumes, os nossos valores, então a Noite Suja é mais um espaço de lutar contra essa cultura.
A Flores ela surgiu como uma busca de algo que já tava dentro de mim há muito tempo,
sabe, eu nunca me senti confortável dentro de um padrão de imagem, tenho 22 anos, e a Flores
começou com essa inquietude de querer transformar a minha imagem, porque não tava de
acordo com o meu comportamento, com o meu pensamento, e eu comecei a me montar como
um espelho da grande mulher da minha vida, que é a minha vó, por isso eu comecei a fazer uma
personagem... uma personagem não, uma drag mais velha, ela começou com essa história do
mais velho, e começou a refletir os gostos do Alan, eu sou uma pessoa que amo música
brasileira, então faço questão de só dublar música brasileira, o nome da minha drag é uma
homenagem a uma música brasileira dos Secos e Molhados, Flores Astrais, então eu acho muito
legal tudo o que se faz de drag, mas eu acho que a drag brasileira precisa olhar a sua terra,
precisa olhar pros seus artistas, pra cultura que é produzida aqui, e levar isso pro palco, carregar
isso, porque isso tá no nosso DNA, né, às vezes a gente se baseia num padrão lá de fora e tá
cagando pro que tá rolando aki, e eu sou um artista que quero tá fazendo sempre a minha arte
aliado ao meu contexto cultural, social, étnico, tudo isso quero trazer na minha arte, sabe, por
isso eu luto, minha drag é uma drag nacional, eu dublo as músicas nacionais. E tem outra coisa
da Flores também, quanto à imagem, da construção do comportamento que vem dessa velha
louca que fala palavrão que arrota que peida que vem do grotesco, é meio bufônico e a imagem
vem muito de uma desconstrução da imagem antiga de drag, da reprodução do valor da mulher,
é mostrar que eu não quero reproduzir uma mulher, eu vou do over do over do over, pra mostrar
que eu sou outra coisa, eu faço questão de permanecer a barba na minha montação, mesclar
elementos que são masculinos, femininos, híbridos, o não-binário, o que aconteceu, isso acabou
vindo pra minha vida, eu passo a andar sem sobrancelha por causa da drag eu passo a andar de
unha feita por causa da drag, e o guarda-roupa começa a se mesclar, e há dois anos eu venho
trabalhando uma descoberta em mim, e hoje em dia eu me entendo como um transexual não-
binário graças à drag, porque a drag me mostrou que há possibilidade para além de ser homem
para além de ser mulher, porque nunca me encaixei quanto homem na sociedade, sempre me
incomodou muito, sempre me doeu muito, mas também nunca me percebi enquanto uma
mulher, absurdo pra mim me enxergar como uma mulher é muito distante de mim, e a drag veio
me mostrar, não existe só homem e mulher, não existe, tudo isso são performances você
aprendeu a performar homem, você pode desaprender a performar um homem, sabe, e isso eu
trouxe pra minha vida, por isso eu te digo que a fronteira é muito turva, muito turva hoje em
dia.
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A cultura drag, e isso veio da cultura dos Estados Unidos, principalmente, por ser um
espaço periférico, então você precisa se apoiar uma na outra, então o que acontece, na época
quando você se assumia gay, quando você se montava era muito comum você ser expulsa de
casa, então começaram a se formar famílias drags, e aí surgiu essa cultura, se você é uma drag
que me ajuda a me montar, eu te tenho como minha mãe e a gente vai lutar pelo nome da
casa, e nessa brincadeira começou a surgir uma montação eu e a drag Fabritiney Akadela, que
é o Fabrício de Souza, e a gente só se montava junta por um bom tempo, não tem um babado
aqui, e nós nos declaramos irmãs drag, e o absurdo é que ela sempre teve uma imagem mais
padronizada e eu mais grotesca, hoje em dia tá tudo mesclado eu peguei um pouco da finesse
dela, e ela pegou um pouco da minha loucura e tá tudo misturado hoje em dia, e a família foi
crescendo, meu namorado e o esposo dela também fazem drag, aí vem a Alexia Turner e a
Lady Blade pra família Caninana assim como existem outras famílias drags em Belém, várias
famílias, e as Caninanas ainda estão aí na luta na resistência na batalha.
Olha, a primeira vez que eu vi drag foi na Praça é Nossa, Vera Verão, pra mim começou
com drag brasileira, depois sempre foi em programas de tarde, Eliana, sabe, sempre aparecia
uma drag, Thalia Bombinha, Silvete Montila começavam a aparecer, e depois de um tempo eu
fui conhecendo drags internacionais, mas a minha grande referência na construção da minha
drag não são drags, são cantoras brasileiras, eu trago muita referencia da Gal Costa pro meu
trabalho, pra estética dela, pra estética tropical que ela carregava, Bethânia, a Elis, Tete
Espindola, e as grandes damas, por ser uma senhora mais velha, meu grande parâmetro é minha
vó, né, eu olho: minha vó vestiria isso? então vai! Porque a minha vó também é essa velha louca
que anda de salto que anda de brilho, purpurinada, fala palavrão, é mãe de santo, entende, então
eu trago toda essa história que tem que ser contada, tem que ser carregada comigo, e essas
mulheres são referência, as grandes damas mais antigas, Derci Gonçalves, Hebe Camargo,
Lolita Rodrigues, Nair Belo, tudo isso me grita aos olhos, me chama muito, mas a gente se suja
muito com o trabalho das drags daqui, quando começou a rolar as drags mulheres a entrarem
no rolê, as mulheres que fazem drag, isso mexeu com a nossa cabeça da galera que faz aqui,
porque até antes nós estávamos performando outro gênero e elas passaram a performar o próprio
gênero mostrando facetas que a gente nem imaginava, então isso foi uma outra configuração:
Luna Sky, Cílios de Nazaré, Black Jambu, as drags que começaram a fazer coisas absurdas:
Sophia Mezzo, Byxa do Mato, que já nem se enquadra mais como drag, Sid Manequim, sabe,
toda essa performance suja, por isso que eu gosto desse nome da Noite Suja e me atrai, por isso
que eu luto, porque eu acredito que Belém vive essa noite muito suja, um vai se sujando do
80

outro, vai rasgando mais a cara da outra, todas que estão uma do lado da outra são referência
sem dúvida, sem dúvida.
Eu comecei a ver a Sophia Mezzo nas ruas de Belém, em eventos como a Viada Cultural,
acho que a primeira vez que eu vi foi no carnaval, e em muito em Viada Cultural, a gente sempre
se encontrava muito em Viada Cultural e a Sophia me abriu os olhos para as possibilidades do
fora do comum, da transformação do objeto, eu acho mais genial do teu trabalho, a
transformação do objeto, algo que a gente olha e não enxergaria alguma coisa tu consegues
enxergar, eu lembro muito daquele look de material de limpeza, um look todo feito de material
de limpeza, com tamanco de panela, com uma peruca de escovão, sabe, nunca que eu vou olhar
praquilo e vou ver um look, quando eu vi o look de barraca de camping, todo pronto, Mauricio
Franco, é a ressignificação do objeto. A Sophia Mezzo, a maquiagem dela é mais dura... e é
uma construção muito mais condinzente com a nossa realidade, sabe, acho que a pessoa
consegue muito mais... eu me enxergo muito mais na Sophia Mezzo do que numa drag belíssima
toda enfeitada e maquiadíssima, eu me enxergo muito mais, me traz uma coisa lúdica, porque
a maquiagem dela eu completo na cabeça, como uma criança que se maqueia na frente do
espelho que ela tá toda cagada, mas na cabeça dela ela é a bonita da bonita da bonita. E a
ressignificação do objeto a partir do elemento principal pra mim da Sophia, que é corpo, eu
vejo a expressão corporal a maior marca de todas, a carne, eu vejo uma carne treinada uma
carne amarrada, uma carne dobrada, uma carne curvada, toda vez que eu vejo Sophia, eu vejo
carne, eu vejo corpo, parece que é o corpo que transforma, quando eu digo a transformação do
objeto é o corpo que transforma, porque aquilo que é do material de limpeza só funciona como
look no corpo, e não é o corpo relaxado, é o corpo arqueado, é o corpo montado, a barraca de
camping só vira look no corpo, no corpo correndo, no corpo voando, esvoaçando tecido, ali vira
o vestido, então acho que esse trabalho de corpo é muito forte... e eu tô com saudades...
(Conversa em agosto de 2017)

conversa com Matheus – Simone Drag:


Começou dentro do próprio Noite Suja mesmo, foi um processo construído com o
Maruzo no começo, a gente pensou em fazer um evento, não pensava exatamente em drag, mas
em montação a gente adorava essa coisa: Marilin Manson, bicha louca, Dizzy Croquetes,
Babete, Elke Maravilha é uma referencia muito forte pra gente na época, ela estava viva na
época, e a gente queria fazer uma frescura diferente uma montação, e aí foi a partir disso que
surgiu a drag, a Simone, da própria construção da festa, então meio que surgiu dentro, foi meio
que a serviço até da festa, bem produtora mesmo.
81

Noite Suja surgiu em 2013 a ideia a gente começou a tocar em festas, tudo mais, se
apresentar na festa das amigas, a gente era do Noite Suja, então o projeto começou com
discotecagem, e aí outras personagens surgiram também dentro da festa, como a Flores, que a
primeira montação dela foi no Noite Suja, depois iniciou um processo no teatro e tudo mais e
culminou na Viada Cultural no 8. Então as nossas historias se confundem a gente tá sempre se
encontrando nesse mar.
Tinha uns 19 anos... Eu ouvi falar de Lis Babete Taylor, aí eu joguei no facebook, na
verdade no google imagens e apareceu umas fotos dela, que até o meu professor de artes tinha
tirado. E aí eu conheci assim, alguém me falou assim “ah, a Babete existiu em Belém, foi uma
drag importante, morreu e tudo mais”. Aí eu quis saber até pra que a gente entenda o que
aconteceu antes, porque a gente não cria nada, né, a gente só se apropria, transforma, recorta,
cola, tricola, bricola, e aí somos resultado de referencias.
Essa historia surgiu de conversas comigo e com o Maruzo, que ele é mais velho que eu
e ele conhecia o Kaveira, essa movimentação punk, montação, Helida Brás, que eu não tinha,
porque eu não cresci em Belém, mas que por histórias influenciaram a nossa ideia do Noite
Suja. Sim. Sou de Capitão Poço moro aqui desde 2009, aí eu brinco eu digo que antes de 2009
eu não sei de nada, só o que aprendi em Estudos Amazônicos sobre Belém eu digo, ne, porque
eu não sabia o que acontecia, outras movimentações como PogoBol, outras festas. Vim com 15
anos pra cá, então não existia nada disso, só estudar mesmo.
Voltar pra lá (Capitão Poço), sempre é no sentido de exilio mesmo, de fugir um pouco
disso, nunca fiz um evento. E o contrário se dá, pessoas de lá, drags, minhas amigas vem pra cá
se apresentam no Noite Suja, a gente já teve a Maely, a Feminile, a Condessa, que também é de
Capitão Poço, outras pessoas que estão ligadas à cidade estão envolvidas no Noite Suja.
Quando eu vou pra Capitão Poço hoje em dia, é uma rede, Noite Suja criou uma rede,
quando eu vou pro Rio fico na casa da Uhura, quando vou pra Capitão Poço nem fico mais na
casa do meu pai, fico na casa da drag, mas eu falo é por uma escolha própria não é por nenhum
problema de família, eu vou ficar lá porque eu sei que vou frescar, eu sei que eu vou sair tarde
vou chegar tarde vou ficar louca toda hora, vou construir um pouco do que eu construo aqui lá,
eu gosto dessas trocas, eu resido. Só quem mora lá é meu pai e meu avô, minha mãe e as minhas
irmãs já moram aqui em Belém, eles não tem noção eles não sabem que a gente já ganhou
prêmio, por exemplo, eles não sabem que eu apareço na TV, eles não estão ligados nesse papo.
Também parte de mim, eu vivo tantas coisas, também sou artista visual, também produzo, sou
designer, então é muita coisa, quando eu começo a falar o que eu faço pra eles, aí eu falo que
eu produzo eventos, eles sabem que eu produzo, sabem que eu sou produtor cultural, sabe que
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eu faço festa, que eu sou dj, mas eles não sabem qual o tamanho disso, que tem tanta gente
envolvida, que Noite Suja pode partir de mim, do Maruzo...
Eu não sei direito, minha mãe sabe, não é uma aceitação que é tão legal assim, questões
de família, religião, mas eu acho que a gente não tem por que conversar sobre isso com eles,
mas eles sabem que eu faço alguma coisa, que eu sou artista, que eu tô na rua, que eu tô
produzindo, que eu tô fora de casa, que eu tô fazendo alguma coisa estranha que é o
deslocamento, eles sabem que eu me desloco, mas eles não sabem drag queer trans cis agenero
essas relações mais especificas conceituais acadêmicas classificatórias não sei nem como
conversar com eles, já tô muito dentro do furacão apenas vivendo. Não tem certo e errado, é
certo pra ti porque foi uma construção que começou há cinquenta anos atrás, e é certo pra mim
porque é uma construção que começou seja no caso na academia, com os amigos, geralmente é
na rua que a gente se desenvolve, não é na escola, a gente aprende, mas o desenvolvimento é
no fazer a gente sabe o que funciona e o que não funciona. São construções que levam a
caminhos diferentes, claro que o preconceito é errado sempre, mas eu acho que existe mais
desconhecimento de causa, assim como entre as próprias drags existe essa questão (e eu não sei
se tu já teve outras amigas de outras épocas) de achar que a drag tem parâmetro, plumas e paetês
e tudo mais, assim como existe isso, existem outros parâmetros que é tudo o que a gente
aprende, a gente aprende as coisas, a gente pode desaprender, aprender a evoluir, mudar de
costume quebrar. “Ninguém nasce drag, né, a gente nasce nu o resto é drag” (essa fala é da Ru
Paul). Ru Paul? Primeiramente Fora Ru Paul! Adoro falar isso, eu acho que a Ru Paul é um
programa, um produto, as provas da Ru Paul são em reverência própria, a própria Ru Paul,
então o programa ele gira em torno de alguma coisa, ela é o milhão da história. No começo do
Noite Suja a gente tinha batalha de lip sync com inspiração em Ru Paul, mas eu acho que a
gente tem muita inspiração nas inspirações de Ru Paul também, Club Kids, Bailes de Vogue
em Nova York, surgiu dessa base, as nossas bases são parecidas, o programa Ru Paul é
construído com histórias americanas, né, do Vogue, Paris is Burn, club Kids, James st James,
nós consumimos o programa mas uma coisa não tem a ver com a outra, porque a gente nasce,
cresce e desenvolve ideias na Amazônia. Tupiniqueers, não tem nome é uma coisa estranha,
não tem definição ainda. Falando sobre Ru Paul, é legal também o que se faz lá porque o
programa mostra trabalhos, mostra artistas então não importa como o programa é editado,
pensado, porque é pensado pro capital, mas existem os artistas por trás, então vale entrar no
instagram, vale pesquisar o quê que eles fazem realmente não o que o programa mostra e edita
e é isso que o programa faz: expõe, e é legal, mas no Noite Suja a gente até tirou a batalha de
lyp sinc em 2015, porque a gente não gosta de competição entre artistas amadores, decidimos,
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e percebemos que não é algo bom, não aconteceu nenhuma cagada, nenhuma situação ruim,
mas a gente vislumbrou no futuro: Bixa, isso poderia ser ruim pros artistas!
(Conversa em outubro de 2017)

Sobre TAz’s amazônicas

Para Hakim Bey (1991), TAZ (Temporary Autonomous Zone, trad. Zona Autônoma
Temporária) é um ensaio, “uma tentativa” de uma “fantasia poética” que foge da cristalização
de dogmas políticos e de definições. A TAZ não é teoricamente definida, nem tão pouco é
revolução – quando pensamos revolução como Revolução Política X Estado, na recusa da
teoria, a TAZ é prática, o exercício do fazer diário é que torna a TAZ autoexplicativa como
revolução interna, micropolítica do afeto e tática de guerrilha estética. Por ser autoexplicativa
– sem a necessidade de termos que a prendam em uma estética definida teoricamente como é a
arte institucionalizada que conhecemos na contemporaneidade, a TAZ, segundo Bey, almeja
“uma estética que não se comprometa, que se remova da História e mesmo do Mercado” e que
esteja próxima à vida, ao cotidiano, pois como o “poder” é “pura Simulação” sob o fracasso da
revolução política ou social, a TAZ é uma “tática de desaparecimento”, a recusa das
instituições, do Estado e da revolução; o desaparecimento do projeto radical pela “contínua
revolução de todo dia: a luta que não pode cessar”, é a prática da arte como tática combativa
para descentralização do poder, ou seja, é uma rebelião próxima da arte-vida sem violência e
martírio. TAZ é a operação tática de guerrilha que ocupa temporariamente territórios e
territorialidades físicas, virtuais e/ou imaginárias, para se dissolver em sua efemeridade e tornar
a levantar-se em outro espaço e/ou tempo, podendo assim co-existir com o Estado sem ser
esmagada por ele. Nesses aspectos, podemos concordar que as amazônidas nas amazônias
fazem acontecer TAZ’s solúveis como processos de resistência em redes imbricadas de pirataria
e afetividade, desde as viagens de barco em redes atadas umas sobres as outras e embaladas em
trocas de informações, mercadorias e conhecimento, até as redes de com)vivência artística,
relações festivas e práticas de empoderamento e re)existência do corpo livre como projeto de
vida. Nesttes aspectos, podemos citar o coletivo de monstrxs “Noite Suja” como uma TAZ
amazônida que faz acontecer eventos transitórios e efêmeros destinados às pessoas com corpos-
mentes dissidentes em espaços da cidade de Belém (e fora dela) que são des)construídos, com
o projeto radical diluído em pequenas revoluções diárias de recusa das instituições para a
formação e estruturação de redes e micropolíticas do afeto que dialoguem sobre a
descolonização dos corpos-amazônias. O trabalho de Luna Skyyssime, drag monstrx de Juliana
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Bentes (Nascimento, 2019), produzido no mesmo período que o nosso, aponta com mais
detalhes manifestações e desdobramentos do Noite Suja com suas famílias e monstrxs em
trânsito. Mais do que um coletivo artístico-festivo, Noite Suja é uma irmandade que em seus
desdobramentos instaura zonas autônomas pela cidade de Belém e fora dela, bem como nas
redes sociais, com sua “rede de informações” pirata de drags que se autodenominam como
“themônias”, corpos demonizados, corpos-mentes rejeitados pelo cis)tema (VERGUEIRO,
2015) e que agora se levantam em suas “ilhas na rede” propondo a recusa das instituições, a
recusa da arte como mercadoria, e “a remoção de todas as barreiras entre artistas e "usuários"
da arte”, em busca da mudança consciente do mundo por uma sociedade livre e uma cultura
livre.
Quando a “Revolução triunfa e o estado retorna”, há também o retorno da naturalização
de uma normalidade instituída que, pós-revolução, se almejava não ter, e assim, o ideal
revolucionário é traído e o anseio por uma nova revolução torna-se recusa e provoca outros
tipos de revoluções que são na prática levantes de guerrilheiros cotidianos per si prontos para
atacar e fugir, ou seja, como vimos em tantos relatos e evidências históricas, o projeto
revolucionário ideal é falido, mas o projeto de vida continua em sua resistência por existir, por
estar em busca de uma liberdade mesmo que utópica.
Continue movendo a tribo inteira, mesmo que ela seja apenas dados na web.
A TAZ deve ser capaz de se defender; mas, se possível, tanto o "ataque"
quanto a "defesa" devem evadir a violência do Estado, que já não é uma
violência com sentido. O ataque é feito às estruturas de controle,
essencialmente às ideias. As táticas de defesa são a "invisibilidade", que é uma
arte marcial, e a "invulnerabilidade", uma arte "oculta" dentro das artes
marciais. A "máquina de guerra nômade" conquista sem ser notada e se move
antes do mapa ser retificado. (BEY, 1991)

Essa máquina de guerra nômade, que é a TAZ, quando apropriada ao contexto corpos-
amazônias, faz-nos perceber que os movimentos neocabanos – de micropolíticas de resistência
ao longo da territorialidade denominada Amazônia, provém das revoluções cabanas que
ocorreram ao longo dos rios e do tempo desde o período da invasão europeia e regência do
império português até os nossos dias, como podemos ver no documentário “A Revolta dos
Cabanos” (2017), que relata a “Cabanagem”, também conhecida como “Guerra dos Cabanos”
como um movimento de resistência organizado por ribeirinhos, pretxs, indígenas e periféricos
que se iniciou no século XIX e perdura em na contemporaneidade em movimentos neocabanos,
que são práticas de resistência cotidianas que envolvem as relações sociais, a cultura local, a
vida e as artes.
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A “revolta popular iniciada em janeiro de 1835 e violentamente reprimida durante os


cinco anos seguintes” tem o nome de Cabanagem devido os insurgentes em sua grande maioria
serem populares e habitarem casas como cabanas de palha e barro que costumeiramente ainda
vemos ao longo dos rios e matas como moradia de ribeirinhxs e caboclxs e também em
periferias de grandes centros urbanos, como por exemplo Belém e Bragança, ou seja, estes
insurgentes populares eram na verdade um grande número de indígenas, negros africanos,
caboclos, mestiços e brancos pobres que moravam na capital Belém, bem como em outros
centros urbanos no interior da Amazônia rios adentro, pois a insurgência cabana inundou os
pensamentos amazônidas de ideais libertários que incluíam a todos os povos habitantes da
floresta até os mais afastados das cidades; almejando o fim da escravatura, o fim do império e
da colonização e melhores condições de vida, os povos da floresta, longo do curso do Amazonas
e afluentes suspiravam anseios por processos de reestruturação política e social entre
colonizadores e colonizados, escravizados e escravocratas, europa e Amazônia, europeus
brancos e corpos-amazônias, Quem requeria uma mudança política e social eram os povos
indígenas de diferentes nações com mais de setecentas línguas, negrxs escravizadxs,
quilombolas e mocambos, caboclos, além de mestiços de uma pequena elite social belemita que
discordavam dos legalistas e das ordens da coroa portuguesa; todxs se aproximaram da
Cabanagem por um ideal de melhoria de vida, com pensamentos e objetivos divergentes que
tangiam para uma vontade comum de se ter um poder próximo do povo, o que de certa forma
aconteceu quando os “mentores da elite social”, que movimentavam a grande massa da
província do Pará, destituíram do poder o regente que representava a coroa portuguesa e
libertaram Félix Malcher, líder cabano que fazia parte da classe média paraense, que depois de
liberto assumiu a primeira governança cabana em Belém do Pará, porém seu governo durou
apenas quarenta dias, pois as lideranças “médias e mais populares” da Cabanagem – isto é, os
líderes dos grupos da sociedade paraense que estavam marginalizados e eram a grande maioria
dos insurgentes, não gostaram das atitudes de Félix Malcher; pois como Hakim Bey comenta
em sua obra: no momento do triunfo da Revolução e o retorno do Estado, “o sonho e o ideal já
estão traídos”, e desta maneira se sucedeu com a insurgência cabana que teve três governadores
em Belém que estavam mais vinculados aos interesses de uma “elite paraense” do que com os
interesses dos populares, pois os governadores cabanos faziam parte do grupo dominante da
sociedade paraense e tinham dificuldade em dialogar com suas bases revolucionárias – que
eram indígenas catequizados e/ou escravizados e outros indígenas de outras nações que se
aproximaram da revolução, quilombolas, pretxs escravizadxs, pretxs descendentes de
escravizadxs, ribeirinhos em regime de semi-escravidão, entre tantos que tinham como
86

reivindicações a liberdade e o governo da província dado ao povo. Eduardo Angelim, o terceiro


governador da revolução, não dava conta de convencer todos os líderes negros e indígenas,
como por exemplo, Joaquim Afonso que exigia a libertação de todxs xs escravxs, e foi fuzilado
pelo próprio Angelim, governador revolucionário que foi ao poder através da população
escravizada, mas mesmo assim era um escravocrata com pensamentos escravocratas; as
contradições entre as lideranças cabanas dificultavam muito a interlocução entre seus
insurgentes, podendo até se dizer que a revolta da cabanagem não pode ser observada como
uma única revolução, mas sim como as Cabanagens com revoluções de interesses divergentes
entre alguns poucos da classe elitizada belemita e o grande número de pessoas da população
que viviam na extrema miséria; além disso, devemos considerar que em cada uma das
Amazônias os interesses se especificam de acordo com a região, necessidades e negociações
variam entre locais ocupados, tendo assim o desdobramento do movimento cabanagem em
movimentos cabanagens conforme especificidades da cultura local, do espaço e do tempo em
que o movimento acontece.
Em 1936, um ano após a insurgência cabana de tomada da capital e governo cabano na
antiga província do Grão-Pará, o poder do império bloqueou (com frotas navais francesa,
portuguesa e brasileira) a baía do Guajará, na entrada de Belém, pressionando severamente os
revoltosos com o corte do abastecimento de mercadorias na capital; com a falta de alimentos,
houveram saques nos armazéns, aumentando mais ainda a escassez de alimentos junto com uma
epidemia de varíola que assolava a população, completou-se o quadro caótico na capital do
Pará. As tropas cabanas foram obrigadas a recuarem, em processos de fuga e disseminação do
movimento cabano Amazônia adentro com a resistência de seus líderes oriundos diretamente
do povo e de suas insurgências cotidianas. E apesar da morte de Angelim, e a repressão aos
cabanos ser massiva e de extrema violência em Belém, os insurgentes foram literalmente
infiltrando-se em canoas pelos afluentes do Amazonas e com apoio de nações indígenas,
comerciantes e alguns políticos locais das regiões, em um movimento descentralizado,
autônomo e com bases de insurgência temporárias alcançou até a região do Rio Negro e
Solimões, chegando às fronteiras do Peru, Colômbia e Venezuela. De um movimento
democrático-burguês iniciado pela classe dominante de Belém para uma revolução liderada por
indígenas, negrxs, tapuixs, caboclxs, mestiçxs e brancos pobres, as Cabanagens sempre tiveram
sua história contada a partir do branco rico eurocêntrico, porém a resistência neocabana ainda
pulsa em nossas veias de onde corre sangue ancestral cabano, e re)traduzimos a história contada
pela coroa portuguesa e pelo sonho de um Brasil universal. Joaquim Afonso, preto liberto e
líder cabano com mais de 500 insurgentes em sua tropa, é um de tantos nomes de escravizadxs
87

que movimentaram ações cabanas, Negro Patriota e Diamante, amigos de Joaquim Afonso;
Francisco Sipião, capitão dos cabanos; Félix, Cristóvão e Belizário, que, por influências das
redes haitianas na Amazônia, defendiam o fim do império e uma república negra livre;
Domingos Onça, notável combatente que matou o presidente da província no dia 07 de janeiro
de 1835, dando início à revolução cabana; Francisco Bernardes Cena, pretx letrado que com
800 homens invadiu Manaus e sem nenhuma violência assumiu um governo diferenciado, que
favorecia as classes excluídas e libertava os escravizados, destoando da afirmativa de Bey
mostrada anteriormente em que o ideal revolucionário é traído quando a revolução consegue
chegar ao poder. Tão foi a influência dos ideais cabanos ao longo dos rios que nações indígenas
como os Mawé e Mura envolveram-se totalmente na guerra cabana, citando como líderes mawé
os caciques Manoel Marques e Crispim Leão, que chegaram a liderarem tropas com mais de
980 cabanos portando apenas arcos e flechas; os indígenas Muras eram conhecidos pelas suas
notáveis táticas de guerrilha com arco e flecha, ataque aéreos e estruturas de madeira afundadas
nos rios com o propósito de impedir de passarem das embarcações e afundar navios; neste
contexto cabano insurgente do século XIX, haviam também os Tapuios, que não é uma nação
indígena, mas eram chamados assim todos os indígenas e descendentes de indígenas que foram
escravizados e/ou catequizados pelas missões jesuítas e europeus que invadiram o território
Amazônia, os tapuios tiveram grande influência na disseminação da insurgência cabana, eles
dominavam o “nheengatu”, que foi uma língua criada para ser a língua universal da Amazônia,
e devido a esta universalização línguística, os ideais da cabanagem foram mais facilmente
difundidos, tendo quem diga que o nheengatu é a “língua cabana”. O movimento Cabanagem
além de chegar às fronteiras do oeste amazônico, alcançou a região nordeste do Brasil, e
inclusive se estendeu também pela América caribenha onde já havia um tráfico de ideias entre
escravizados e ex-excravizados. A Cabanagem assim, mostra-se como luta de classes contra a
hegemonia imperialista e contra as formas da colonização e seus desdobramentos, e nestes
aspectos de seus ideais, a revolução Cabana, o levante popular cabano, ainda permanece em
nós, dissolvido em um caldo grosso com o sangue de nossos ancestrais, como uma TAZ
dissolvida em pequenas micropolíticas de afeto e processos de resistência, nossos ideais
cabanos transitam autonomamente ao longo do tempo em espaços físicos e virtuais; o “tráfico
de ideias” desde os Andes até as Guianas (RICCI, 2006, p. 11), tendo os rios da Amazônia
como as teias da web, as canoas dos cabanos como navegadores e dispositivos conectados à
rede, e os cabanos como os próprios internautas trafegando informações, compartilhando ideais
e sonhando com uma deep web anti-imperialista. Essa rede de comunicação e informações entre
caboclos e europeus – que movimentou a maior insurreição popular registrada na história do
88

Brasil, ainda hoje move corpos-mentes a repensarem a estrutura social instituída pelo Estado
desde o período da colonização; essa identidade revolucionária cabana (onde o povo assume o
poder em detrimento da coroa colonial) após tantas mortes principalmente de tapuios, indígenas
e negrxs, no século XIX, foi se re)transformando se re)configurando e dissolvendo-se em ideais
e identidades cabanas com processos de resistência internos e em ambientes familiares, pois
apesar de muitas vezes a história cabana apresentar-se com nomes de líderes cabanos homens,
principalmente de líderes burgueses da cabanagem, as mulheres tiveram um papel fundamental
na disseminação do movimento bem como em sua perpetuação ao longo dos séculos com
práticas difundidas no afeto e que alcançam a atualidade dialogando sobre processos cabanos
de com)vivência.
Segundo a pesquisa de Eliana Ramos Ferreira (2003), sabe-se que as mulheres e famílias
de cabanos tiveram grande influência no tráfico de informações, proteção dos refugiados, ações
de deslocamento nômade pela floresta e inclusive na participação em armas na linha de frente
do tiroteio; eram as mulheres cabanas que abasteciam as tropas, eram as mulheres cabanas que
sustentavam as “ilhas de rede”, as ilhas de refúgio de esconderijo cabano, e as ilhas de
intercomunicação entre refúgios e esconderijos, eram elas que avisavam quando as tropas
legalistas estavam se aproximando e eram as mulheres que mantinham a cumplicidade e
encobriam cabanos em suas casas; e quando repensamos a cena das mulheres cabanas, ainda
podemos refletir sobre a quantidade de homens mortos e que deixaram parentes como esposas,
mães, irmãs, e que essas mulheres sozinhas ou isoladas em uma sociedade extremamente
heteropatriarcal re)configuraram-se e tiveram que assumir a responsabilidade do lar, das terras,
a administração da família, o trabalho para sustentar a casa, e a responsabilidade antes atribuída
aos homens. Essas mulheres deram continuidade aos movimentos cabanos e neocabanos
re)transformando a revolução em levantes cotidianos de re)existir em seu território sem perder
sua territorialidade e tradição local, e, como afirma Ricci (2007, p. 29), “a matriz desta luta
nunca foi totalmente esquecida”, está presente nas pesquisas acadêmicas e jornalísticas, em
ideais políticos e debates, bem como, podemos acrescentar o campo das artes que é
extremamente influenciado pelos ideais cabanos.
Se re)traduzirmos a obra TAZ de Hakim Bey, a partir de nossa territorialidade, podemos
dizer que os piratas e corsários do século XVIII, são xs cabanxs nas vicinais ribeirinhas do
século XIX, re)existindo aos poderes emanados do império; e que ao longo do tempo estes
cabanos se trans)formaram em movimentos das cabanagens com processos de re)existência
praticados cotidianamente por cada neocabano (cabanos re-significados ao longo do tempo)
com ideários amazônidas específicos a partir das necessidades individuais, coletivas e locais,
89

como é o caso das themônias no coletivo “Noite Suja”, com várias drags colocando em prática
suas discussões e estabelecendo redes e propostas anárquicas de eventos temporários e efêmeros
que somem e aparecem desordenando espaços cristalizados e alterando o tempo normalizado
em busca de uma proposta de outro tempo que é festivo e/ou de combate e que após o ataque
se re)transformam em fuga como “recusa de participar da violência espetacular, retirar-se da
área de simulação, desaparecer” (BEY, 1990).
As piratarias cabanas são movimentos do pensamento e principalmente de ações
práticas, são exercícios diários de convivência na arte-vida pensando estratégias de
descolonização de corpos-mentes; nesse mesmo sentido, o evento “Égua, Sarau!” também é
outro exemplo de TAZ observando o evento como manifestação artístico-cultural que dialoga
nas amazônias sobre corpos “que se pintam para a festa e para a guerra” (https://bit.ly/3_egua),
referindo-se a Arthur Leandro (in memorian) – que nesse plano era um “pirata dos bons
pensamentos e princípios do bem” (citação da música “Navegantes da Ilusão” da banda “Mato
Seco”) –, que provocou as éguas para acontecer pela primeira vez o “Égua, Sarau!” em Belém
no GEMPAC (Grupo de Mulheres Prostitutas do Bairro da Campina), sendo que este
movimento desdobrou-se até o ano de 2018 em cinco eventos, cada um com seu nome,
características, territorialidades e especificidades de com)vivência, diálogos e práticas artísticas
onde Sophia esteve “artivisticamente” (RAPOSO, 2915, p. 4), em uma urgência necessária “das
dissidências sexuais e de gênero no Brasil da atualidade” (COLLING, 2018), pulsando junto
com outros corpos-amazônias, como podemos ver nos links seguintes:
Égua: Sarau do corpo Poético
http://bit.ly/1egua
A primeira égua foi organizada por astúcia de Arthur Leandro que no período do Círio,
outubro de 2012, movimentou os artistas locais e artistas que estavam em trânsito pela cidade
para juntos participarem de diálogos sobre nossos corpos e possibilidades de descolonização.
Neste encontro, a partir da articulação de Arthur, artistas do “Grupo Empreza”, que neste
período ganharam uma premiação artística patrocinada pela emissora local da TV Globo
aproveitaram a estadia pela cidade e também se juntaram ao movimento. Na “Primeira Égua”,
Sophia compartilhou processos artísticos nas proximidades da praça da República no centro de
Belém em que ela e sua prima Byxa do Mato ofereciam pedaços de carne e jambu para os
ttranseuntes, oferecendo um grande prato tradicional ode travesti no tucupi, em simbologia aos
assassinatos de travestis nas esquinas de Belém e o signo culinário da maior festividade
religiosa regional paraense, que é o patto no tucupi. E como podemos ver na playlist:
https://bit.ly/travacarne e nos vídeos “Primeira Égua: Trava Carne, a pata do Círio”
90

(https://bit.ly/travapata) e “Trava Carne: O Enforcamento” (https://bit.ly/travaenforca), que é o


registro áudio-vídeo do final da performance Trava Carne, na esquina do GEMPAC, as bixas
são enforcadas pela bandeira nacional cantando o hino nacional em processos neocabanos de
resistência e gritos por liberdade em um país que as enforca em processos imperialistas de
apagamento e invisibilidade.

Segunda Égua: Sarau do corpo Poelytico


https://bit.ly/egua2
https://bit.ly/2egua
Este segundo encontro das éguas ocorreu na ilha de Colares, em 2013, tendo como base
para pastagem das equinas o sítio Brilho Verde e a casa no centro da ilha, propriedades dos
artistas Fernando D’Padua e Bruna Suelen. As ações ocorreram no sítio bem como nas ruas da
cidade (centro e orla). Nesta edição da égua, vários artistas, inclusive latinos fora do país,
enviaram seus trabalhos para executarmos/expormos na ilha durante o evento. As ações com
Sophia envolveram fotoperformances, videoperformances e a performance “Sophia Christi”,
citada anteriormente no capítulo 1 e no vídeo-registro https://bit.ly/sophiachristi.

Terceira Égua
http://bit.ly/egua3
http://bit.ly/3_egua
A terceira égua foi um encontro com)vivência de retorno à cidade de Belém, em 2014,
e ocorreu durante uma semana na casa Reduto 560 , que na época era a casa onde artistas
moravam e foi cedida para habitarmos e com)vivermos durante o período do evento com rodas
de conversa, ações coletivas, oficinas, exposições e ações interventivas na rua. Foram realizadas
ações internas como “karaoqueer” e rodas de conversa, e ações externas como a festa
“Pirigótika” na praça da República e a ação pelas ruas do baixo Reduto, onde resiste o ponto de
travestis, e tem como registro áudio-video “O Pixo das Égua”: https://bit.ly/pixoegua

Égua de 4
https://bit.ly/4egua
2017. Em uma edição reduzida, a quarta égua, ou mais conhecida como “égua de
quatro”, aproveitando a estadia de Arthur em Bragança, aconteceu uma via crucis pelas ruas,
orla e bar Viúva Negra em Bragança-PA, sendo esta performance analisada no artigo Sophia
Palhaço (CONCEIÇÃO, OLAIA, 2017) e comentada no subcapítulo 2.3.1.
91

Égua D Kinta’l
https://bit.ly/5_egua
2018. Em memória de Arthur Leandro. Contemplados com o prêmio SEIVA 2018 para
Produção e Difusão Artística da SECULT-PA, a quinta edição do Égua Sarau, ou mais
conhecida como “égua de quinta” foi organizada diretamente por vinte artistas que conviveram
primeiramente durante uma semana em Belém do Pará, no espaço artístico-cultural Casarão do
Boneco e posteriormente uma semana em Bragança no espaço artístico-cultural Mundo de
Sophia (casa de Pedro).

Apresentamos essas duas TAZ (Noite Suja e Égua Sarau), pois este trabalho não se
destina a analisar eventos temporários de resistência na Amazônia, mas somente apresentar
eventos onde Sophia atravessa e é atravessada, e continuando nesta mesma linha de raciocínio,
suplementamos este capítulo com a apresentação de outra TAZ neocabana que se difere das
duas citadas anteriormente por esta ter um espaço físico local estabelecido onde vivenciamos a
prática cotidiana arte-vida continuamente: Estúdio Reator (https://www.reator.net/) é o espaço
cultural dentro da casa do artista paraense multimídia Nando Lima
(https://www.nandolima.net/), que se insere e está inserido no processo artístico de tal forma
que não conseguimos perceber onde há rupturas entre teoria e prática. Nando Lima mora em
um espaço físico geograficamente dividido entre andar térreo, onde habitam seus familiares,
segundo andar onde está o espaço do Estúdio Reator com seus equipamentos de som,
iluminação e cenotécnica, terceiro andar onde está o espaço de acolhimento em que Nando
Lima e seu companheiro Dudu Lobato habitam como casa, e subindo por uma escadinha ainda
há um terraço para encontros, diálogos e trocas compartilhadas. Neste espaço geográfico
acontecem experimentações artísticas, criações performáticas e projetos artísticos como
“Reator Eterno” (https://estudioreator.wixsite.com/reatoreterno), À Sombra dos Homens
Ausentes (https://nandolima.wixsite.com/asha), Mostra Mídia Movediça
(https://estudioreator.wixsite.com/mmm2017) e NY Second Life
(https://nandolima.wixsite.com/nandoyip).

No espaço estúdio Reator


Transophia é uma experimentação artística realizada por mim, Sophia, Nando Lima e
Dudu Lobato dentro do espaço cultural multimidiático Estúdio Reator, localizado na cidade de
Belém, Estado do Pará, com projetos voltados para a contemporaneidade em relacionamentos
92

de parcerias e solidariedade para a construção de uma sociedade justa e crítica que enxergue
em seus semelhantes motivos para conquistar seus objetivos. Suplementações de teatro, som,
projeções visuais texto e fotografia são experimentados neste espaço e compartilhados com o
público de forma intimista e envolvente. Em Transophia, eu estou me des)montando em
possibilidades corpóreas a partir de sucatas eletrônicas que estão penduradas no cenário criando
um ambiente que leva o público ora para dentro de um quarto, camarim em que a intimidade de
uma drag é exposta, e ora para um palco de show onde os fragmentos de HDs e outras peças de
computador vão sendo gradativamente incorporadas ao corpo de Sophia, proporcionando ao
público uma visão cada vez mais onírica. Transophia é a performance que descreve a trajetória
de Sophia que muitas vezes se confunde à minha própria identidade e principalmente questiona
o uso das tecnologias na Amazônia e ideias desconstruidas de ciborgue, drags e heroínas falidas.
Afetos e desafetos nos movem à des)construção deste jogo que às vezes chamamos de
“performance cênica” para adequar-se em uma classificação de linguagem artística e definir a
TAZ pirata Sophia como uma divindade mítica com possessão glitérica, escudo rosa e defesa
purpurinada de reafirmação colorida, salvação e libertação.
Sophia tem asas, é a liberdade de extravasar as mais íntimas repressões/proibições que
sofro no meu corpo todos os dias nas pequenas ações/atitudes; e em Transophia, a reutilização
de diversos materiais no corpo de sophia vai para além do figurino tradicional, pois os
recicláveis e lixos eletrônicos entrelaçam-se e constroem uma história extraordinária em um
mítico alegórico colaborativo que performa o cotidiano em estereótipos de uma montagem em
que ela não está vestida comumente – não é Pedro no cotidiano, e se trans)forma, vem a ser, a
explícita tecnologia do possível do faça você mesmx, da truquenologia, da gambiarra
amazônida. No próximo subcapítulo vemos um pouco dos registros do processo Transophia em
que sophia é substantivada na própria rede (como o cabelo de rede de pesca em Sophia Flaneur,
2017, que vemos descrita como narrativa etnofotográfica no subcapítulo 3.1); o material que se
tem nas mãos em processo de des)construção e incorporação na montagem do corpo com
composições estéticas provocadoras para um jogo aleatório descompromissado em um diálogo
com o público a respeito das opressões, fobias, machismos e achismos sobre o corpo-mente e
atitudes do próximo. “Amai-vos atai-vos” - Exu falou.
[...] Quando a tecnologia atua sobre o corpo, nosso hor-
ror mescla-se, sempre, com uma intensa fascinação. Mas
de que forma, exatamente, age a tecnologia? E em que 93
profundidade ela penetrou sob a membrana de nossa
1.3.1 – Renascida do Coma pele? (KUNZRU, 2009, p. 19)

https://bit.ly/transpaloma

https://bit.ly/transophia

https://bit.ly/transphenix

https://bit.ly/transdepoimento

https://www.reator.net/transophia

Transophia é a performance que descreve a trajetória de Sophia


que muitas vezes se confunde à minha própria identidade e principalmente questiona o
uso das tecnologias na Amazônia, ideias desconstruidas de ciborgue, drag queens e
heroínas falidas. (OLAIA, 2016)

Divindade mítica possessão glitérica escudo rosa defesa purpurinada reafirmação colorida
salvação: Sofia tem asas, é a liberdade de extravasar as mais íntimas
repressões/proibições que sofro no meu corpo todos os dias nas pequenas ações/atitudes.

Nunca quiz fazer a linha lypsinc nunca quiz ser bonita sempre quiz ser bonita nunca
quiz ser sempre quiz existir quiz show somos celebração fortaleza de corpo presente
2 arredão: texto produzido em 2010 como mote para a performance de-leite.

https://deleitep.wordpress.com/arreda/

máquina de guerra nas ruas, meu corpo se expõem enquanto suas idéias ficam no papel
não gosto da linha Ru Paul, adoro vê-las, mas não quero segui-las, a bicha na Amazônia
é outra coisa, são outras tonalidades exagerando por aqui, e gritando necessariamente,
que nem o chiado da internet de antigamente. Aqui somos low tech, somos sucata
eletrônica jogada no lixão das ryKa somos o próprio lixão, louvação ao ciborgue
incompleto ao projeto inacabado o que não deu certo o erro inacabado monstrx nunk
quis fazer a bailante cantante do palco dubladora miss sempre quis dar closet nuk nua
suada colo quente fluidos fervem numa batida nervosanos pés invoca ação signos que
constroem a performance resignificacoes informacoes do improviso
94

https://www.reator.net/transophia

Abrir os HD’s e usar os ímans como eletromaquiagem, é sexy colocar e tirar os


objetos da boca e também é dolorido, pois os ímas grudam nas bochechas e são difíceis
de tirar e muitas vezes machuco a mucosa bucal. Todas as exposições e riscos e gritos
choros e risos que exponho nesta performance resignifico e transporto o ímã, por
exemplo, para o fetiche, pro amordaçar, pro afogamento pra junção corpo carne metal
propriedades ferromagneticas controles e poderes energéticos presentes nas mãos.
Antecedendo ao interior do teatro, na antesala quando o público chega há uma
exposição de bonecos de super-heróis de animação e quadrinhos, e quando se entra no
teatro sofia está em uma passarela acima do público toda envolta em tecido branco e a
visão é onírica, remetendo a um corpo moldável, transcedente, poderoso e ao mesmo
tempo mutável efêmero impotente o almejo da perfeição, pensamentos upados para uma
máquina e a vida eterna, a queda, o declínio do homem e sua incapacidade, seu corpo
perecível suas aflições, a incapacidade de regeneração, a finitude da vida, a dependência
das palavras e o angustiante vazio. Como será este ciborgue na amazônia, no CTRL+C
CTRL+V, na biopirataria low tech, no corpo masculino em busca do feminino. Monto e
desmonto possibilidades corpóreas a partir do que você cospe.

Não é a grande loucura, pois Pedro tem tan-


tas identidades que é dificil traduzi-lo existe o
Pedro engenheiro que poucos conhecem, por
exemplo, e milhões de outras camadas que
afinaladas se moldam em identificações que se
assemelham e distanciam uma das outras. A
Sophia é mais um renascimento de uma iden-
tificação que critica as construções de gênero
binário, e o feminino é arrastado pelas margens
para uma discussão corporal que se envolve
com o consumo de lixo e a esquizofrenia.
NANDO LIMA
95

Da Transophia eu acho que o que a gente propôs dessa interação natural tem a ver
com a questão da tecnologia e da interferencia na vida da gente, no sentido não da alta
tecnologia, pois na verdade nós nao vivemos no mundo da alta tecnologia, nós vive-
mos no mundo da sucata tecnológica, e de como isso interfere no dia a dia da gente,
como vamos diariamente lidando com isso, como perdemos um tempo enorme nos
caixas eletrônicos do banco, porque os bancos aqui tem um sistema arcaico e os caixas
eletrônicos em si são objetos velhos, a internet é de baixa qualidade e aí o nosso dia a dia
já começa assim, se tu vai de manhã pagar uma conta já começa assim, quer dizer quan-
do tu colocas esse trabalho da Transophia de toda a tua experiência com esses aparatos
tecnologicos com essas traquitanas todas que tu estavas fazendo, imediatamente fica
relacionado com esse cotidiano atravanacado de que a gente mal consegue se expressar
como ser humano, como artista sei lá como, por conta de estar atravessado por essas
coisas todas, todas essas minúcias, essa coisa do celular que toca toda hora, a sedução
que a gente tem por essa pseudo-comunicação, porque as pessoas acham que elas estão
falando com um público enorme, quando na verdade no máximo duas ou três pessoas
leram a mensagem delas, e aí as pessoas vivem disputando a atenção pela internet e
como isso reverbera em tudo, desde o que a gente come até ao sexo, a vida de todo mun-
do está ligada de uma forma ou de outra a essa rede. NANDO LIMA

96

chapa testa
ferro
fogo
foi assim que se descobriu a vida
sentido sentindo das coisas que sobre)vivi ou que te disse já nem sei mais que conto
que
conto estive dedilhando teclado? contas quantas contas e letras formam uma palavra
meu corpo frágil jah se foi transmutou transcendeu transliteração do que há de vir
agora
comunico-em pelos outros eus binários refratários suspiros de zeros e uns hums ais ás
de copas cópulas conexões como pássaros como asas como penas de pavão voo longe
dependurado em suas inquietações não creio mais nos outros nem em mim transfigu-
ras
liquefazem nos jardins afetos luminescentes afeto fios cabos plug and play toca o além
toca na cabeça toca de felino voraz pontas afiadas unhas e dentes amolados imolado
corpo táctil oferenda mítica mitiga carne e sangue transforma transporta transcreve
pulsos pulsações incorrupto majestoso vai além transmatéria translate transcorpo

(Poema de 2014 para a performance Transophia)


97

NANDO LIMA
Quando a Transophia está dentro desse universo, quando ela entra em casa, porque a Sophia é da rua, mas
quando ela entra em casa, ela vai pra esse universo atravancado dessa comunicação , pois se na rua tem o
feedback imediato, quando ela entra nesse espaço físico restrito ela passa a tentar se igualar à máquina e aí
98
ela é tão sucata quanto as sucatas que a gente utiliza, aí ela percebe que o corpo tem todas as limitações e es-
sas questões que não são fechadas, que são absolutamente abertas porque nós vivemos numa época em que
tudo está por se construir o tempo inteiro, e aí enquanto artista algumas pessoas levam isso muito a sério
e eu acho que nós acabamos tendo que de alguma forma debochar disso, que é uma maneira de conviver
com esse inferno, com esse surrealismo todo, na falta de palavras novas pra descrever esse trans)torno tec-
nológico que vivemos, essa coisa do trans): da trans)fobia, da trans)tecnologia, da trans)formação, da trans)
filosofia, todas essas questões condensadas, espremidas, amassadas na Transophia. E no teu caso acho que tu
és uma pessoa do corpo, do físico e de ir fazendo, atuando, armando essas coisas, vai vivendo e vai fazendo,
vai vivendo e vai fazendo, por exemplo, aquela cena do ímã é sublinhar muito essa situação toda, como que
aquela cena fosse a síntese de tudo que é um pedaço de metal que se coloca dentro do corpo e que nunca vai
funcionar bem com o corpo, até pela própria natureza do metal e esta natureza de ser humano então aquela
cena pra mim ela é a sintese de tudo o que tem na Transophia, que no fim a gente morre e toda essa tecno-
logia fica, com maior ou menor qualidade, ela fica, pelo menos por enquanto não existe nenhuma garantia
de alma assim como não existe nenhuma garantia que você vai conseguir o éter através da sua obra colocada
nas páginas da internet, basta uma falta de energia elétrica para se perder tudo. E ao mesmo tempo o ímã
tem essa propriedade de atração, mas ele atrai metal, atrai o igual, atrai a matéria inanimada, não combina
com o espírito, com o corpo, com a alma. A Transophia pra mim é esse dilema entre o físico, alguma coisa
que está para além do físico que a gente não sabe o que é,que a gente sabe assim como o som, que ouvimos,
e sabemos que é físico mas não enxergamos, e a linguagem que tem por trás de cada um desses objetos que a
gente sabe que ela existe, mas a gente não domina, interage com ela por outros caminhos. A Transophia está
nessa esfera
99

Não sei quando eu conheci Sophia, aliás, eu nem sei se a conheço, pois a cada encontro ela se mos-
tra renovada em um outro ser, em um outro corpo, uma outra sintonia. Lembro de tê-la visto em
Colares - a cidade dos ETs, famosa pela incidência de aparição de OVNIs e por relatos de humanos
abduzidos por seres extra terrestres, estávamos na Terceira Égua, o Sarau do Corpo Poelytico
(essa palavra é uma referência ao conceito de poética política proposto por Fernando de Padua, e a
Égua-Sarau é um encontro anual realizado por coletivos independentes que coloca em debate e em
experimentação identidades corpo resistência e poética na Amazônia oriental). Sofia, quer dizer,
Pedro, ou sei lá quem lhe habitava o corpo naquele momento - me permito e até vou cultivar essa
dúvida sobre a identidade - chegou num ambiente desconhecido em uma cidade que também era
pouco conhecida... Corpo masculino em movimentos femininos. A praça, palco das representações
de personagens sociais - alguns bastante fictícios.... E assim, num misto de realidade e ficção, entre
seres terrenos e personagens mitológicos, meio humano - meio deusa vinda de algum céu de outro
planeta, aquele corpo vai se transmutando em Sofia... Sofia é provocadora, e não deixa ninguém
sem resposta, ela é dúbia.... Amável e agressiva, deusa e humana, real e fictícia. Sofia comanda
soberana um ritual de passagem entre passantes, brincantes, amantes..
ARTHUR LEANDRO
100

A era do ciborgue é aqui e agora, onde quer que haja um carro, um telefone ou
um gravador de vídeo. Ser um ciborgue não tem a ver com quantos bits de silício
temos sob nossa pele ou com quantas próteses nosso corpo contém. Tem a ver
com o fato de Donna Haraway ir à academia de ginástica, observar uma pratelei-
ra de alimentos energéticos para bodybuilding, olhar as máquinas para malhação
e dar-se conta de que ela está em um lugar que não existiria sem a ideia do corpo
como uma máquina de alta performance. Tem a ver com calçados atléticos.
(KUNZRU, 2009, p.23)
101
102

A Transophia foi meu primeiro trabalho no Reator, meu primeiro trabalho com Nando
Lima e com Pedro Olaia e este trabalho significa muito para mim não só porque fiquei
encarregado pela parte do som e da trilha sonora da performance, mas o mais legal foi
trabalhar numa performance com uma personagem da rua que pela primeira vez ia pra
dentro de um espaço fechado, “caixa preta”, em um trabalho em processo. As músicas que
sugeri foram logo aceitas pelo Pedro e Nando e ver o Pedro aliar essas músicas com as
ações performáticas, brincando junto com os efietos que eram colocados com a mesa de
som e das caixas amplificadas e que tudo isso se incorporou a performance de uma forma
homogênea contribuindo para os questionamentos e provocações que eram vomitadas ao
público junto com as projeções, os textos, aquele video absurdo do final q o Nando coloca
e a próprio cenário que podia ser o quarto da personagem, por exemplo. O público en-
trava na antesala e tinha uma exposição com figuras de animação de uma coleção pessoal
que tenho há muitos anos, no espaço de apresentação tinha fitas zebradas impedindo o
acesso para o espaço onde as pessoas podiam ficar mais a vontade, as pessoas tinham q
romper essas fitas e se colocar pelo espaço, se colocar livremente pelo chão se elas quises-
sem ficar sentadas confortavelmente. E esperar a performance começar, e ela começava
nos altos em uma passarela que liga a casa do Nando, da cozinha para o quanto, dentro
da sua própria casa. O Pedro descia dos altos para o tablado, e depois não tinha mais
como você tirar os olhos do tablado, era uma hora intensa e muito elétrica, e pretendo sim
experimentar mais este trabalho com novos recursos e possibilidades de interação cor-
po+equipamentos sonoros, e também levar esse trabalho pra rua.
DUDU LOBATO

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qu7hPA” frameborder=”0” allow=”accelerometer; autoplay; encrypted-media; gyro-
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103

cAPÍTUlO 2 – As negociações da alma ou a vontade de dizer não ou sim ou talvez


Traduzimos em forma dissertativa as negociações de corpo, fala, corpo-fala, discursos
ditos e não-ditos a partir de referências bibliográficas, imagéticas e hipertextuais que
suplementam este capítulo relacionando teorias e teóricos às práticas descolonizadoras de
Sophia por um processo de escrita que repensa e relê o pensamento colonial propondo distúrbios
e desconstruções que subvertem o cotidiano com práticas artístico-criativas descolonizadoras
de nossos corpos-mentes. Em direção a este objetivo, podemos observar, por exemplo, logo no
início do capítulo 2.1, que a famosa citação poética de Olavo Bilac “Ora direis, ouvir estrela!”,
desvirtua-se com Haroldo de Campos (“Ora direis, ouvir Galáxias!”) e finalmente é regurgitada
no processo de Sophia (Ora, pirateeis, devir estrela!); e desta pequena citação trans)formada,
podemos repensar o processo des)construtivo do texto e de como práticas antes coloniais e
colonizadoras podem ser renegociadas em ações anticoloniais a partir de um pensamento
decolonial. A pirataria de Sophia é para além da devoração antropofágica, da digestão e da
diarreia “oiticiquiana” (Oiticica, 1973), pois estrela não caga, estrela pulveriza constelações e
faíscas de luz. E assim, este capítulo está dividido em três momentos que costuram o texto e se
relacionam com outros capítulos através de links, margens, citações e referências. E ainda
também temos como objetivo que a produção textual suplemente a leitura imagética desta
narrativa estreitada entre textos e imagens onde o foco central é o questionamento a respeito
das práticas de Sophia como des)construções identitárias e registros etnográficos visuais da
contemporaneidade que detalham e traduzem as relações de gênero e sexualidade construídas
historicamente e socialmente por povos nos territórios e territorialidades Amazônias. Nossos
corpos-desejos estão entrelaçados a discursos e práticas colonizadoras e descolonizadoras em
trânsito ambivalente de forças que vão além da palavra e do dizer “não” que o boy te dá no
primeiro momento. O “talvez” da entre-dúvida duvida a palavra afirmativa e põe em cheque o
que queremos des)construir nos processos da vida que vão para além desta produção texto-
imagética. Sigamos.
104
105

2.1 - Sophia Marginal: Performance e Identificação

Como Judith Butler (2015) sugere em seu livro “Ora (direis) ouvir
estrelas!”
“Problemas de Gênero”, a identidade é socialmente construída,
(Olavo Bilac)
fluida e performática, pois a partir do contexto histórico e social
em que estamos inseridos, performamos uma identidade, como “Ora, direis, ouvir Galá-
por exemplo, as identidades performáticas acadêmicas de xias” (CAMPOS,
2004, p. 119)
professores e alunos, as quais nos identificamos e performamos
dentro do espaço e territorialidade de um programa de mestrado ora, pirateeis, devir
Estrela!
acadêmico – interdisciplinar, como é o nosso caso. E assim eu me (paródia de Sophia
apresento aqui como pesquisador e escritor desta dissertação e Estrela)
assumo a identidade de Pedro Olaia, aluno do Programa de Pós-
Graduação em Linguagens e Saberes na Amazônia – PPLSA, e
performo a escrita e defesa de um pensamento acadêmico que
precisa negociar discursivamente com teóricos de diferentes áreas
de conhecimento, pensamentos decoloniais, paradigmas
Bixa, tu tá ou não tá? Coé
modernos e práticas cotidianas, sendo que minha pesquisa é sobre o texto da gata?
Sophia, minha outra identidade, que não é o Pedro-pesquisador, Tu que diz, mona se é
babado ou não:
pois Sophia é arte, é pulsação, é tênue atravessamento, lascas e Ou tu aceita e engole todo
arranhões na pele dura da heterossexualidade compulsória. esse leci dizado,
Ou tu diza desse plano?
Sophia é – para além do ser ou não ser, estar ou não estar:
Desaquendar: dizar
To be, or not to be: that is the question: (Tradução de Sophia do
Whether 'tis nobler in the mind to suffer
The slings and arrows of outrageous fortune,
trecho da obra Hamlet de
Or to take arms against a sea of troubles, Shakespeare)
And by opposing end them? To die: to sleep;
(SHAKESPEARE, 1999, p. 63)

Citando o trecho acima do Ato III Cena 1 de “Hamlet” –


dramaturgia de William Shakespeare, e em paralelo traduzindo o
texto para o bajubá (pajubá) – que é a linguagem viva utilizada
pelo movimento queer (LAU, 2015), exercemos a crítica de
Atonin Artaud (1999, p. 86) ao teatro tradicional e desinteressado
que coloca a plateia distante da cena vivenciada, como é o caso
do teatro elisabetano; a perspectiva cartesiana da dramaturgia
inglesa de Shakespeare é questionada por Artaud que propõe
como alternativa uma dramaturgia que esteja próxima do que ele
106

chama de “teatro da crueldade”, que é a proposta de fuga dos


padrões institucionais por um teatro com profunda relação entre
vida e arte em processos criativos que buscam desestruturar
(desnormatizar) nossos corpos institucionalizados; e por isso
aqui, nesta narrativa, nos apropriamos de observações e sugestões
do autor para utilizarmos o termo “teatro-vida”, “arte-vida” que é
a performance como linguagem artística utilizando-se do teatro
como suporte técnico para a execução de ações, onde o jogo de
improviso a partir de técnicas e jogos teatrais de Augusto Boal
(2014), o teatro invisível (p. 32-48) de onde se dialoga sophia substantivada,
antropologia e teatro (CONCEIÇÃO, OLAIA, 2020), e a para além das catego-
rias ou classificação
participação coletiva de todos os que estão inseridos e se inserem cartesiana; sophia vem
na performance provocam uma cadeia de processos de produção a ser processos de resis-
tência, táticas de guer-
artístico-culturais que aqui denominaremos como sophia. rilha estético-corpórea,
“Sea of troubles”. Shakespeare relaciona os “problemas TAZ neocabana pirata
dos bons pensamentos.
da vida” com o mar (“Mar de problemas”, tradução minha); e nós
– considerando que o problema faz parte do processo, aqui neste
trabalho propomos simbolizar o mar em duas situações-
problema-solução: como por onde navegamos, naufragamos,
nadamos, afundamos e voltamos a navegar, como o “mar-livro” onde se afunda e se
mergulha
de Haroldo de Campos (2004), que surfa pelas narrativas, solta onde se afoga e afaga
palavras juntando-as e formando um caleidoscópio maior de onde o azul infindo
tem fim
pequenos caleidoscópios em fragmentos da hipertextualidade
meu livro é você eu
linkada em textos, imagens e códigos; e, também simbolizamos o escrito sobre você
mar como o mar de narrativas que Trinh T. Minh-Ha (1989) nos
descreve, a partir de uma ancestralidade matriarcal valorizada
pelas histórias-estórias contadas por sua vó e por todas as
mulheres mais velhas pelo mundo, onde todos os gestos e
palavras envolvem nosso passado, presente e futuro, pois estas
histórias-estórias são atemporais, e anteriores à própria
humanização destas, são processos fluindo sem começo meio e
fim, sem avanços e retrocessos. As narrativas são:
only a stream that flows into another stream,
an open sea – is the vision of a madwoman.
107

‘The unleashed tides of muteness,’ as Clarice


Lispector puts it”. We fear heights, we fear 4
the headless, the bottomless, the boundless. 00:01:30,853 -->
00:01:32,373
And we are in terror of letting ourselves be Eu não pretendo falar
engulfed by the depths of muteness. (p.123) sobre.
5
00:01:33,000 -->
Um rio que corre dentro de outro rio formando um grande 00:01:34,478
mar aberto, onde nos afogamos nas ondas da mudez e somente a Apenas falar ao lado.
(Reassemblage de T.
palavra e a forma que nos farão navegar por este mar
Minh Ha)
A palavra e a forma serão a tábua onde boiarei
sobre vagalhões de mudez. E se estou adiando
começar é também porque não tenho guia. O
relato de outros viajantes poucos fatos me
oferecem a respeito da viagem: todas as
informações são terrivelmente incompletas.
(LISPECTOR, 1988, p. 14)

Rios, correndo por entre matas até o mar, são gigantes


serpentes caudalosas saindo da floresta, abrindo caminhos até a
grande mamãe de seios fartos: Yemanjá; seguindo a correnteza, o
fluxo da consciência, a corrente de palavras e imagens flui e as
narrativas se misturam e se adornam de tradições e oralidades de
nossos ancestrais indígenas e africanos, bem como de nós
mesmos e dos que estão por vir, em uma fruição aquífera de
discursos ditos e não-ditos que só pairam no mar quando a palavra
toma forma e a narrativa é escrita. Clarice Lispector fala que
Da proxima vez que a
dentro deste mar – tempestuoso de narrativas infindas e ondas
gente for mergulhar...
agitadas, podemos nos afogar emudecendo (“vagalhões de Lembra de
mudez”) ou vir à tona construindo um barco a partir da palavra e Do q não foi dito

da forma. Haroldo de Campos, já cita sua obra como o próprio


mar, remetendo a simbologia que Lispector nos sugere, podemos
dizer que Campos está afogado no mar de narrativas e emerge
construindo um livro-mar, a partir de narrativas soltas, e
fragmentadas que juntas formam uma narrativa caleidoscópica.
Nesse processo de escrita esquizo e fragmentário, Campos deixa
solta pesca narrativas aleatoriamente para construir seu barco.
Ainda sobre processos de escrita, Clarice Lispector (1988) nos
diz:
108

Essa incapacidade de atingir, de entender, é que


faz com que eu, por instinto de… de quê? procure
um modo de falar que me leve mais depressa ao
entendimento. Esse modo, esse “estilo” (!), já foi
chamado de várias coisas, mas não do que
realmente e apenas é: uma procura humilde.
(...)
Humildade como técnica é o seguinte: só se
aproximando com humildade da coisa é que ela
não escapa totalmente. Descobri este tipo de
humildade, o que não deixa de ser uma forma

MATHEUS AGUIAR (SIMONE DRAG)


a drag é intransponível a drag não é que nem Hamlet ou Peter Pan que a gente pode interpretar, ela é
engraçada de orgulho. (291)

Nesse trecho do livro “A paixão segundo GH”,


percebemos que Clarice Lispector se aproxima do que Oswald de
Andrade sugere como “homem cordial” (1995, p. 157-159), que
veremos sua definição com mais detalhes adiante neste mesmo
subcapítulo; esta concepção de alteridade, de ver o outro em si –
“se aproximando com humildade da coisa”, é manifestada tanto
na obra de Clarice quanto de Haroldo, bem como nas obras de
Antonin Artaud e Hélio Oiticica, como vemos as proximidades
desses autores explanadas ao longo dessa dissertação.
Retornando à reflexão em cima do pequeno trecho da obra
de Hamlet, citada mais acima e traduzida paralelamente para o
bajubá, nos perguntamos se a identidade Sophia Mezzo, ou
simplesmente sophia, é ou não é? Te decide, viado! Sophia é o baú, ela tem o HD alí ela não é uma construção
acomodação e aceitação de sua condição, e emudece, se cala,
afogando-se em tantas narrativas deste mar revolto, ou sophia é
não é outra pessoa que vai entrar em cena

resistência à revolta dos mares bravios e da tempestade de


discursos hegemônicos e contra-hegemônicos? Sophia constrói
uma narrativa como tábua de salvação? Um barco-livro, livro-mar
que navega no mar de narrativas, mar de onde se pesca as
narrativas que se quer contar, as oralidades, imagens e memórias
que se quer tornar palavra e forma, para assim construir este barco
e navegar como barco-mar, que se confunde com os vagalhões de
mudez, mas resiste e não se cala.
Shakespeare, em Hamlet, de outra maneira, associa a vida
a um mar de problemas, de desventuras, onde estamos fadados a
mergulhar, sendo que nem a morte torna-se uma possível solução
109

para essa tempestividade, pois não sabemos o que nos espera após
a morte, desconhecemos quais sonhos o sono da morte nos
reserva, e por este medo da morte é que aceitamos os males que
nos assolam e afundamos nesse mar revolto. Artaud, subverte a
sugestão do autor inglês e propõe que os espectadores estejam no
meio da cena, dialogando sobre seus problemas, abandonando a como uma fênix quero
psicologia da cena e propondo a agitação das multidões nas ruas queimar meu rabo
como uma fênix e engulo
(ARTAUD, 1999, p. 91-96), pois o autor busca o “teatro da luz

MENTECORPOMENTECORPOMENTECORPOMENTECORPOMENTECORPOMENTE
crueldade”, o teatro-vida; e enquanto Hamlet se lamenta se com sua feliz mala me pus
como a atriz segredos dor
afogando em um mar de desventuras, Campos e Lispector e nabo
navegam com seus ferryboats, jet skis e iates furando os
vagalhões de mudez e Artaud traduz a morte como renascimento.
E a partir deste raciocínio e sugestões, sophia pode ser sugerida
como a morte da heterossexualidade compulsória e do patriarcado
e o renascimento de uma identidade fluida que foge do padrão
binário homem-mulher e liquefaz as cristalizações sobre
sexualidade e gênero através da arte e do afeto; e navega no mar
de narrativas atravessando as vagas de mudez na marginalidade
de uma pirataria neocabana.
Das tantas possíveis identidades, que o “eu” como “sujeito
pós-moderno” ao menos por um instante pode se identificar
(HALL, 2005, p. 13), a identidade fluida da drag está próxima das
críticas sobre a naturalização do sexo e as construções sociais
performativas que são produzidasfortalecidas-crescidas no
interior de suas categorias e por meio delas; e assim como Judith
Butler observa Divine (BUTLER, 2015, p. 9), podemos sugerir
que a drag queen e suas práticas performáticas são paródias do
pensamento construído socialmente, e cristalizado ao longo do
tempo, e que naturalizam o gênero em classificação binária a
partir do sexo masculino e de uma heterossexualidade
compulsória, e tudo o que foge dessa estilização repetida e
naturalizada do corpo é visto como anormal e monstruosidade
(BUTLER, 2015, p. 69). E como Stuart Hall (2005) ainda sugere:
devemos falar de “identificação” ao invés de “identidade”, pois
110

esta identidade única e cristalizada que construímos sobre nós


mesmos faz parte de uma estruturação social ao longo do tempo
meu corpo são regras
a partir de nossas interações com o meio e o contexto histórico meu corpo
meu corpo sãosão pregras
regras
em que vivemos; porém sempre haverá uma fantasia ou algo meu corpo são
meu corpo são regras
meu
meu corpo
corpo sãosão pregras
imaginado sobre esta identidade, que a deixará sempre meu corpo
meu corpo sãosão réguas
regras
“incompleta”, “em processo”, “sendo formada”. meu corpo são éguas
meu corpo são réguas
As partes “femininas” do eu masculino, por
meu
meu corpo
corpo sãosão tréguas
éguas
exemplo, que são negadas, permanecem com ele meu corpo
meu corpo são tréguas
e encontram expressão inconsciente em muitas meu corpo
formas não reconhecidas na vida adulta (...)
Psicanaliticamente, nós continuamos buscando a 20
“identidade” e construindo biografias que tecem
00:03:30,399 -->
as diferentes partes de nossos eus divididos numa
unidade porque procuramos esse prazer 00:03:31,535
fantasiado de plenitude. (HALL, 2005, p. 38-39) Em diversas histórias...
21
Em uma perspectiva fragmentária, Henri Michaux 00:03:32,192 -->
descreve sua mesa esquizofrênica “em função do processo de 00:03:33,978
a mulher é retratada
produção que é o do desejo” (DELEUZE; GUATTARI, 2004, p. como aquela...
12): a identidade re-des-construída em um processo de 22
00:03:34,035 -->
assemblagem na tentativa de pulverizar, liquefazer as estruturas
00:03:35,516
rígidas, reificadas e cristalizadas do falocentrismo, da que possuía o fogo.
heterossexualidade compulsória e do patriarcado. 23
00:03:36,638 -->
Vir a ser drag é vir a construir criticamente a 00:03:38,604
estigmatização do corpo feminino pré-discursivo, vir a fantasiar Apenas ela sabia como
fazer fogo.
o “ser mulher”, trans-formar o corpo, resignificar, mudar e voltar 24
a estar ou não estar, pois: 00:03:39,722 -->
00:03:41,505
Se há algo de certo na afirmação de Beauvoir de
que ninguém nasce e sim torna-se mulher decorre Ela o guardava em diver-
que mulher é um termo em processo, um devir, sos locais.
um construir de que não se pode dizer com acerto 25
que tenha uma origem ou um fim. Como uma
00:03:42,450 -->
prática discursiva contínua, o termo está aberto a
intervenções e ressignificações. Mesmo quando o 00:03:45,263
gênero parece cristalizar-se em suas formas mais Na ponta de um graveto
reificadas, a própria “cristalização” é uma prática que usava para
insistente e insidiosa, sustentada e regulada por
cavoucar o chão,
vários meios sociais. (BUTLER, 2015, p. 69)
26
Escrever sobre o devir sophia é também escrever sobre 00:03:45,263 -->
00:03:46,631
mim mesmx. Sophia é a busca por uma autobiografia, uma por exemplo.
etnografia de si, uma “escrita de si mesmo” (FOUCAULT, 1992) 27
00:03:46,930 -->
atenuando os perigos da solidão e revelando os movimentos da
00:03:48,840
Em suas unhas ou seus
dedos
111

alma sob a estética da existência; a escrita associada à meditação,


[...]Se quiser dizer que
o exercício do pensamento sobre si mesmo, registros de memória existo, direi <<sou>>.
em cadernos de anotação, pulsações nervosas, memórias de mim, Se quiser dizer que
existo como alma
memórias de si, memórias de amigos, registros em áudio e/ou separada, direi <<Sou
vídeo, registros fotográficos, são estes, como um todo em partes, eu>>. Mas se quiser
dizer que existo como
meu material de pesquisa é o conjunto de des)construções entidade que a si mes-
coletivas a partir de muita conversa com amigos que criam Sophia ma se dirige e forma,
que exerce junto de si
juntxs, pois: “Tudo o que dizemos tem um ‘antes’ e um ‘depois’
mesma a função divina
uma ‘margem’ na qual outras pessoas podem escrever” (HALL, de se criar, como hei
2005, p. 41), pois o que nós dizemos foge do nosso controle em de empregar o verbo
<<ser>> senão conver-
prol de um mundo fixo e estável, porém Renato Cohen, em sua tendo-o subtamente
obra que detalha a performance como trabalho em processo em transitivo? E então,
triunfalmente, antigra-
(“Work in process”), sugere que na contemporaneidade há uma maticalmente supremo,
nova consciência contemporânea que estabelece relações com as direi <<Sou-me>>.
Terei dito uma filosofia
artes, onde a ação, o jogo cênico composto de “narrativas em duas palavras pe-
superpostas e simultâneas” é desarmônico e aberto para livres quenas. Que preferível
não é isto a não dizer
interpretações, com texto e imagens se suplementando através de
nada em quarenta fra-
jogos semióticos de discursos ditos e não-ditos (COHEN, 2004, ses? Que mais se pode
p. 22), sendo a leitura do fragmento como um todo, e o todo em exigir da filosofia e da
dicção?
partes. (PESSOA, 1999, p. 114)
O todo sem a parte não é todo,
A parte sem o todo não é parte,
Mas se a parte o faz todo, sendo parte, sophia-me
Não se diga, que é parte, sendo todo.
(Trecho do poema “Ao Braço do Menino Jesus
Quando Apareceu” de Gregório de Matos Guerra
apud Silva 2007, 169)

A superposição de narrativas são discursos e fragmentos


de discursos justapostos que resignificam o corpo como corpo-
mídia, corpo-diálogo, proposta de jogo cênico que não esconde a
multiplicidade da autoria de seus trabalhos, e por isso
preferencialmente procuramos utilizar os pronomes na terceira
pessoa do plural, sendo nós amarrados em nós, pois a
performance, bem como a antropologia da performance são
campos científicos transdisciplinares e politicamente engajados,
112

como uma colcha de retalhos mal costurada, desalinhada e


esquizofrênica, parafraseando Silvia Raposo (2017, p. 94).
A esquizofrenia como metodologia de pesquisa, e como
prática performática de vida, pois a performance per si é
esquizofrência, cheia de códigos resignificados e embaralhados
em outras traduções possíveis a partir da costura de discursos
ditos e não ditos.
O esquizo dispõe de modos muito próprios de
referência, pois dispõe de um código de registro
particular que não coincide com o código social
ou que só coincide com ele para o parodiar. O
código delirante ou desejante apresenta uma
fluidez extraordinária. Dir-se-ia que o
esquizofénico passa de um código a outro, que
baralha todos os códigos, num deslizar veloz,
conforme as questões que lhe são postas, não
dando nunca duas vezes seguidas a mesma
explicação, não invocando nunca a mesma
genealogia, não registrando nunca do mesmo
modo o mesmo acontecimento, e aceitando até,
quando lho impõem e não está irritado, o banal
código edipiano, pronto a re-entulhá-lo com todas
as disjunções de cuja exclusão se encarrega esse
código. (DELEUZE-GUATTARI, 2004, p.20)

ESCREVA AQUI SEU CALEIDOSCÓPIO


A colcha de retalhos que Silvia Raposo (2017, p. 94)
sugere como referencial imagético para as des)construções
performáticas do cotidiano também podem ser visualizadas como
a assemblagem enquanto objeto artístico, ou ainda como o
caleidoscópio onde os pedaços de vidro colorido sempre se
rearrumam e se desalinham para formar uma outra imagem ainda
mais encantadora do que a primeira – e é a partir destas
comparações que dissertamos esta narrativa, que se destrinchada
em muitas, fugindo da generalização e da universalização de
resultados científicos pesquisados, tal como uma TAZ neocabana.
olhado por este caleidoscópio eles dizem
teleidoscope você vira também objeto do jogo
uma rosa de braços se abre entre vidros e mãos
cabeças simetrizam um leque de arestas e este
quadro na parede se despenha num abismo de
duplos vertiginosos (CAMPOS, 2004, p. 46)

“Duplos vertiginosos”, caleidoscópios de um


caleidoscópio maior onde mergulho o olhar apaixonado sobre
minha existência e também me distancio objetivamente a partir
113

da perspectiva de uma pesquisa crítica sobre um processo (Luz violenta junto à cerca
e sobre a Superiora e a Irmã
inacabado no entre-lugar do jogo, da brincadeira, em “sistemas D)
semânticos dinâmicos”, que se desdobram e se re)significam
SUPERIORA - Ainda
(TURNER 2015, 28) através de relações afetivas e da
que elas consigam tocar o
compreensão de arte-vida que altera o espaço-tempo instituído e muro, não adianta.
experimenta processos de retrospecção e reflexividade
IRMÃ D - Ainda que exis-
ESCREVA AQUI SEU CALEIDOSCÓPIO

interconectados em um caos de harmonias e dissonâncias em uma tam ótimas fotografias...


narrativa da indeterminação, do vir a ser (TURNER 2015, 106- deles.
108). SUPERIORA - E relatórios.
Deste modo, quando falo de Sophia, ou quando falo de
IRMÃ D - E monografias.
mim, falo dos outros, principalmente analisando as performances
da sophia como práticas de subversão e resistência poética e SUPERIORA - E estatísti-
política que interagem com o meio e provocam o diálogo a cas convincentes.
respeito das estruturas de poder e controle hegemônico, como IRMÃ D - Auditórios
podemos observar no artigo “Sophia e Palhaço: dos Reencontros repletos.
e Outras Performances” (CONCEIÇÃO; OLAIA, 2017, p. 39-60) SUPERIORA - Conferên-
em que buscamos a perspectiva etnográfica para analisamos a cias.
reação das pessoas que estão na rua ao receberem a ação e IRMÃ D - Pesquisas.
consequentemente terem, de alguma forma, que jogar com o
SUPERIORA - Trocas.
instante efêmero, porém de profundo discurso onde sem se
perceber automaticamente já se está imerso. IRMÃ D - De órgãos vitais.
E assim podemos dizer que a “anti-disciplina” Sophia,
SUPERIORA - Substancio-
pela metodologia do jogo cênico de improviso como Augusto sas.
Boal (1988) sugere, é o Estudo da Performance tanto no campo
IRMÃ D - (apontando a
da performance art, quanto da antropologia pós-estruturalista, cabeça) O tálamo, o hipo-
onde tudo o que outrora foi considerado “contaminação”, tálamo.
“promiscuidade”, “impureza”, “erro” e “hesitação” é de interesse
SUPERIORA - Devassado.
como campo de estudo em uma “antropologia libertada” com uma
“nova narrativa performativa que nasce das ruas, como uma terra IRMÃ D - Compreendido.
de ninguém” (RAPOSO 2013: 13-17) em uma trama complexa de SUPERIORA - (aponta a
negociações e renegociações em um campo intercultural, onde o cabeça) A zona do silêncio.
pesquisador é o performer, os transeuntes também se tornam Irmã D: Distendida, disse-
atores e entram na cena, não há público e as manifestações cada
artístico-culturais vão espontaneamente acontecendo: Sophia, a Superiora: Aproveitada.
114
IRMÃ D - Em mil tare-
partir de uma ação, provoca o diálogo e altera o espaço e o tempo
fas exatas...
cotidianos; e quem recebe as ações, reage a partir de suas
SUPERIORA - Ainda
construções culturais e sociais influenciadas pela história ao
assim.
longo do tempo. Ou seja, as ações-sophia envolvem o outro – a
pessoa que no instante se friccionou com a ação performática da IRMÃ D - Não adianta-
ria...
gata, e daí resultam outros trabalhos artístico-culturais que
geralmente fogem de um possível controle, sendo que a situação SUPERIORA - Um
outro muro maior se
que mais acontece durante as ações performáticas, e que podemos ergueria. (somem)
aqui descrever, é quando no instante em que a ação está ocorrendo
IRMÃ G - Olhe um rato.
muitas pessoas pegam seus smartphones e filmam e/ou
fotografam Sophia, e estas imagens são distribuídas pelas nuvens IRMÃ H - Onde?
livremente e quem as vê interpreta-traduz a partir de sua “carga
IRMÃ G - Lá, lá... Agora
cultural” construída a partir de suas interelações sociais e escondeu-se.(pausa)
tradições históricas fortalecidas ao longo do tempo. A prática da Dizem que o rato tem
dois tons.
linguagem da performance está longe da busca por uma
uniformidade de pensamentos e comportamentos; quando se está IRMÃ A - Dois tons?
Como é isso?
na ação performática – estabelecendo-se o jogo cênico de
improviso, é fundamental perceber o outro, ver o outro como a IRMÃ G - Um é sobre a
pele, escuro e modulado,
um espelho, reflexo de nós mesmos – além de nos vermos nos
conforme suas heranças
outros como reflexo deles mesmos, entender as nossas e seu
diversidades e que somos iguais como pessoas, mas totalmente patriarcado.

diferentes como indivíduos, e muitas das vezes nossas opiniões IRMÃ H - Às vezes é
não coincidem e não adianta insistir que elas coincidam. Na branco.
efemeridade da ação coletiva, onde vários discursos ditos e não- IRMÃ I - Ah, isso é raro.
ditos percorrem as conexões de pensamentos e trocas de energia,
IRMÃ G - Mas nem
o respeito ao outro deve ser executado durante os jogos cênicos
tanto... Se a senhora qui-
de improviso, onde as fricções e choques de dor e prazer – ser ver um rato branco,
referenciando-se aos choques evocativos de experiências procure na
limpeza. Homens do
passadas que são revividas no presente (TURNER, 2005, p. 79), mesmo tom descobrem
são as intrínsecas negociações estabelecidas no instante ínfimo de as suas vísceras com tais
delicadezas, que é
tempo (nanosegundos) em que a próxima atitude da drag pode vir preciso parar para espiar
a reconfigurar totalmente o espaço e o tempo histórico da tanta pesquisa e sutileza.
modernidade – entendido como “normal” e universal a partir de
IRMÃ B - Então é o rato
pressupostos eurocêntricos – para processos da modernidade na que ajuda o homem a ser
mais homem?
115

Amazônia – em contradição e desigualdade na interseção de IRMÃ C - Ou menos


realeza. (pausa)
diferentes temporalidades históricas (LANDER, 2005, p. 15).
Em “uma perspectiva Outra, colocada enfim no lugar de Nós”, IRMÃ H - (pensando) O
rato tem dois tons?
para Maritza Montero (1998, apud LANDER, 2015), “o
reconhecimento do Outro como Si Mesmo” – com o sujeito- IRMÃ G - Um outro
objeto da pesquisa como “attor social e construtor do mais fundo uma ânsia de
ser vertical e agudo. A
conhecimento” – é uma das características atuais do pensamento senhora nunca
latino-americano em prol de outras maneiras de se ver o mundo. viu um rato sobre o
muro... naquela pedra
Deste mesmo modo, x outrx é a personagem principal das ações lisa?
performáticas da sophia, x que nos induz a refletir sobre o
IRMÃ I - Não... mas
significado e o conteúdo simbólico construído sobre o termo
talvez fosse porque havia
“alteridade”, pois a dicotomia sujeito/objeto da epistemologia o gato.
ocidental (BUTLER, 2015, p. 77 - 84) é adotada como estratégia
IRMÃ G - Nem por
de dominação embasada na hipótese de um provável isso... E se o rato chegas-
conhecimento e resgate do “Outro” a partir da oposição binária se até lá, na manhã ou no
escuro, não
“que estabelece o “eu” na e através da oposição e que reifica essa poderia libertar-se?
oposição como uma necessidade, ocultando o aparato discursivo
IRMÃ A - De qualquer
pelo qual o próprio binário é constituído” (IBDEM, p. 248-249); forma não seria sempre
Enrique Dussel (2005, p. 24-32) disserta a respeito da um rato?
modernidade como “justificativa de uma práxis irracional de
IRMÃ G - Seria um rato
violência”, onde a Modernidade seria como emancipadora da sobre um muro. Olhando
culpa que outros povos carregam por serem “bárbaros” e para o alto, pode ver o
mais fundo.
desconhecerem o desenvolvimento unilinear eurocêntrico, e por
isso no processo civilizatório inevitavelmente acontecem IRMÃ C - E olhando
para baixo.
sacrifícios em que os “outros povos .atrasados. (imaturos), das
outras raças escravizáveis, do outro sexo por ser frágil, etcetera”, IRMÃ G - Você quer
dizer para dentro de si
sofrem “custos” da “modernização” em um “desenvolvimento”
mesmo?
ilustrado a partir de como a civilização moderna se autodescreve
e justifica ser superior e mais desenvolvida que outros povos, e IRMÃ C - Assim como
eu tenho feito sempre.
além disso se achar na obrigação moral de desenvolver os povos
eurocentricamente considerados “não-civilizados” (p. 28-29). IRMÃ G - Pode ver san-
gue. Mas no alto, saberá
Dussel ainda sugere que nós, povos que fomos negados e resistir.
vitimados no processo civilizatório, devemos primeiramente nos
descobrir inocentes e vítimas de um “sacrifício ritual” causado
116
IRMÃ B - (repensando)
pela Modernidade que é “culpada da violência sacrificadora,
De qualquer forma, ser
conquistadora originária, constitutiva, essencial”, ou seja, o autor rato é primeiro, sendo
branco, ficar
propõe um processo de transcendência da razão moderna por uma
entre tramas de alguns
descoberta da dignidade dos Outros como identidades fora da homens de branco.
Modernidade (Identidades na Exterioridade), como “pessoas que
IRMÃ H - Segundo ser
foram negadas pela Modernidade”. A Transmodernidade não é escuro e moldado segun-
negação da razão, ela é “projeto mundial de libertação”, onde a do suas heranças e seu
patriarcado, mas
“Modernidade e sua Alteridade negada (as vítimas)” se co- tentar subir, subir sem-
realizam em “mútua fecundidade criadora”, ou seja, o pre. (sorrindo) Imaginar
que é homem e nunca
“eurocentrismo” hegemônico, a razão ilustrada e a falácia do
desistir.
processo desenvolvimentista são rejeitados por uma “Trans-
modernidade” como negação do caráter mítico da Modernidade e IRMÃS I, A, B, C - (fa-
zendo um gesto vertical,
como “novo projeto de libertação político, econômico, ecológico, com a mão distendida)
erótico, pedagógico, religioso, etcetera” (p. 30) em que centros e Assim?

periferias (“o mundo periférico colonial, o índio sacrificado, o IRMÃ G - Sem limites.
negro escravizado, a mulher oprimida, a criança e a cultura
IRMÃ I - (na janela) De-
popular alienadas, etc”) são co-realizados. A alteridade, segundo
víamos ter pensado nisso
Dussel, que somos nós, os outros, fomos vítimas de ações antes. Muito antes.
irracionais do ideal emancipatório moderno, porém processos
IRMÃ A - No quê? No
realmente emancipatórios perpassam pelo reconhecimento de rato?
nossas identidades e práticas solidárias e de reconhecimento da
IRMÃ I - Não. Em olhar
“injustiça estrutural” que vemos sofrendo ao longo do tempo (p. pela janela e sossegar.
31). O pensamento moderno com práticas violentas de Tivemos tanto sobressal-
to quando era
emancipação transcendido ao pensamento transmoderno com tão simples olhar.
características amazônidas, em que nós, as-os-xs afro-indígenas,
IRMÃ G - Parece sim-
jogamos com o meio e negociamos discursos que dialogam a
ples... parece simples.
respeito do controle hegemônico das leis estratificadoras de uma
unicidade por uma solidariedade do Centro com a Periferia “Os parça” é gíria de ma-
Alteridade (Modernidade/Alteridade mundial); fechando com os landro, ou dos mano da
qubrada, traduzido para
parças garantimos a diversidade e autoafirmamos a minoria o bajubá poderia tornar-
dissidente a qual fazemos parte compreendendo que as minorias se o grito de guerra: “As
gay, as bi, as trans, as sa-
somadas são a maioria da população que ainda vive lutando, em
patão tão tudo organiza-
suas guerrilhas cotidianas, por direitos iguais em contraponto aos da pra fazer revolução”
privilégios de uma minoria branca cisgênera heterossexual rica. E ou ainda a música da MC
Xuxu (2017).

youtu.be/SMLM1K8t-p4
117

a tática de guerrilha aplicada ao “Estado terminal – esta


megacorporação/Estado de informações, o império do Espetáculo
e da Simulação” (BEY, ANO, p. 17) – é operacionalizada neste
trabalho a partir das munições tecnológicas da montagem:
maquiagem, glitter, salto, calcinha, objetos re)significados, teatro
e performance, como podemos observar no Ensaio
Etnofotográfico “Sophia Flaneur” (OLAIA, 2017), em que a
artista resignifica uma rede de pesca em longos cabelos, e CD’s
usados em saia como escamas de peixe, se transformando em uma
O documentário “Good
pescaria, ou pescada, ou sereia, ou piranha. Copy Bad Copy” (2007),
Ao que Hakim Bey denomina como centrando-se na produção
musical e audiovisual alter-
megacorporação/Estado de informações, Spivak (APUD nativa, percorre diferentes
CUSICANQUI, 2010, p.63) chama de “think tank”, e Cusicanqui cidades no mundo, mos-
trando como cada cultura
vai mais além se referindo aos “tanques de pensamento dos
tem seu modo característi-
poderes imperiais” (tradução minha, CUSICANQUI, 2010, p.63) co de “piratear” informa-
ções. Neste doc, o copyri-
como as ideias, pensamentos e discursos que prevalecem nas
ght é posto em xeque e a
nossas universidades e bibliotecas a partir de uma “economia cena tecnobrega de Belém
política do conhecimento” (CUSICANQUI, 2010, p.65) que se é exemplificada como pre-
cursora da tendência de
reconfigura ao longo do tempo não somente por um colonialismo distribuição de conteúdo
externo, mas principalmente por um “colonialismo interno” que musical livremente e o en-
foque nos eventos perfor-
precisa ser percebido e combatido. máticos chamados de “fes-
Wittig argumenta que a “mentalidade hétero” tas de aparelhagem”.
evidente nos discursos das ciências humanas, “nos O filme sugere que as gam-
oprime a todos, lésbicas, mulheres e homens
homossexuais”, porque eles “aceitam sem biarras e a tecnologia do
questionar que o que funda a sociedade, qualquer possível utilizadas nas pe-
sociedade, é a heterossexualidade” (BUTLER, riferias e regiões pobres
2015, p. 201) mundiais, como por exem-
plo, em Belém, assim como
Porém os discursos não-coloniais de desvirtuamento do
na Nigéria - para a produ-
pensamento tradicional acadêmico são proposições de pirataria, ção gigantesca de audiovi-
como Hakim Bey descreve, um espaço autônomo coletivo que suais nigerianos, subvertem
o sistema e pirateiam novas
surge e se dissolve como tática de resistência estética e política alternativas de con-vivên-
por um esvaziamento do poder e libertação anárquica. E das cia em negociações políti-
cas reinventadas a partir da
tradições piratas e levantes neocabanos, a tradição do ctrl+C necessidade local.
ctrl+V, copie e cole, a pirataria de CD’s subverte o mercado das
Do Documentário “Good
produtoras nas amazônias, onde a gambiarra e a truquenologia do
Copy Bad Copy” (2007)
ao curta “A Queda do Céu”
(2018)
118

faça você mesmo supera o “hi-tec”, e a pirataria se reconfigura,


morre e nasce em outro lugar em uma pirataria neocabana que,

SISTÊNCIA
principalmente com o advento da internet, o compartilhamento de
arquivos-informações (músicas, vídeos, livros), se torna mais do
que necessário contrapondo-se ao “perigo” dos enquadramentos
das leis antipirataria. Se não fosse o avanço tecnológico o acesso
às informações seria mais limitado, e talvez este trabalho não
fosse tão enriquecido de referências e imagens. Save Nkossi!
Salve Ogum! Ogunhê! Se não fosse pela dificuldade de acesso às
tecnologias de ponta (hi-tec) que são consumidas na Europa e
Estados Unidos, e a facilidade de consumo do lixo eletrônico que
chega na Amazônia, o discurso de Sophia seria outro, e o lixo
eletrônico não estaria tão atrelado ao corpo-sophia, que desdobra-

R)EX
se em ações artísticas na linguagem da performance (CARLSON,
2010, p. 115-138) e aproximam-se das performances de Divine
quando pensamos globalmente a paródia e o jogo cênico nas
práticas performáticas de uma drag queen; porém, por um
pensamento local e sua descendência amazônida, sophia também
são projetos artísticos como práticas de resistência poética e
Nkossi é o Nkissi do ferro,
política, que dialogam sobre as colonizações em terras indígenas da manipulação de instru-
mentos com metal tanto na
(RIVERA CUSICANQUI, 2010), o embranquecimento
caça quanto no arado. Este
discursivo (FANON, 2008, p. 26) e outras perspectivas Nkissi (Orixá para os yoru-
etnocêntricas. Mas nem sempre foi assim, como vimos no banos) tem as característi-
cas semelhantes à do Orixá
Capítulo 1, onde este texto se aproxima mais de minhas memórias Ogum da cultura yorubana.
de infância, do início de Sophia, e suas primeiras referências Nkossi é para o povo do
Congo, o porteiro, o abre
ainda preocupadas com a perspectiva europeia e norte-americana; caminhos, o senhor do fer-
e onde também, neste mesmo capítulo, vimos o devir Estrela- ro, o senhor da guerra, o
senhor da tecnologia e do
Fênix ressurgindo após o coma induzido de anos em que Sophia
avanço científico.
“desapareceu do mapa”, e como posteriormente a tthemônia Nkossi é muito próximo de
trans-formou-se (empoderou-se), e ressurgiu das cinzas, da poeria Pambu Nzila, são irmãos e
às vezes, muitas vezes não
etérea como a fênix ou uma estrela em explosão-nascimento. tem como se distinguir a
Devir sophia é querer permutar possíveis diferenças que diferença entre a entrada
para o caminho e a própria
re)conduzem a re)flexão sobre ações re)definidoras de estrada.
masculinidade e feminilidade, pois xs transgêneros (travestis,
119

transformistas, trasnsexuais, drag queens, entre outrxs) têm o e O QUE É SeR Nor-
corpo dissidente como discurso transgressor através de práticas MAL??
cotidianas de outras des)construções possíveis do pré-determismo
A pergunta foi jogada
sexualizado binariamente na maternidade. “E o que é ser normal? para o público durante a
Vocês sabem o que é normal?” O gênero masculino atribuído a cena de “Quiirck: Uma
História para Crianças e
mim, como Pedro, se dissolve, dilui em uma transitoriedade Pessoas com Coração de
definida pela “montagem”, “montaria” ou “montação”, que são Criança”.
A narrativa performática
termos usados corriqueiramente entre nós, bichas, para definir – “Quiirck” conta a história
a partir do uso de tecnologias que alteram/confundem o padrão de um garoto que em cer-
to momento da sua vida
binário masculino-feminino, e o processo de construção do
se viu em dúvida de ser
gênero naturalizado ao corpo de uma pessoa desde o seu menino ou menina e por
nascimento. isso se achando fora do
padrão, mas a sua tia su-
Para Gilles Deleuze e Felix Guattari (2004), o objeto per legal ajuda o garoto,
esquizofrênico, implica na reflexão sobre o processo de produção e através do narrador per-
gunta joga a problemática
do desejo, pois para os autores: para a platéia que deixa de
“tudo é produção: produção de produções, de ser plateia e participa da
acções e de reações; produções de registros, de ação, questionando-se so-
distribuições e de pontos de referência; produções
bre: O que é ser normal?
de consumos, de volúpias, de angústias e de
dores” (DEZELUZE E GUATTARI, 2004, p. 9).
(O texto desta narrativa
Os autores franceses além de sugerirem que devemos está na margem do subca-
inserir o registro e o consumo como produção do mesmo pítulo 1.1)

processo; ainda acrescentam que não há distinção entre homem e


natureza, e que este processo não deve ser tomado como um fim
nem como uma continuação infinita. O processo acontece, e a
produção como processo gira em torno do desejo (IBDEM, p. 10),
a produção desejante é a produção de produção e, dessa maneira,
pensando o corpo-sophia como esquizo-objeto, não podemos
descrever este corpo sem observar o processo de produção, pois
“não se pode distinguir o produzir do seu produto; ou, pelo
menos, o objeto produzido leva o seu aqui para um novo
produzir” (IBDEM, p. 12): a mesa inacabada é a própria produção
desta, e o que mais nos interessa é o processo da sophia
(substantivada, as ações de sophia e seus desdobramentos como
prática de resistência contra-hegemônica) do que a própria Sophia
120

(como identidade), ou seja, os processos de produção do desejo-


sophia vêm a ser identificações neocabanas que para essa
pesquisa são manifestações de TAZ ao longo do tempo e espaço
– como performances, registros, narrativas, oralidades,
vídeoperformances, fotoperformances, etnofotografias,
videoetnografias, metanarrativas, links, hiperlinks e a própria
narrativa performática, que é a escrita textual apresentada como
como identidade
dissertação de mestrado. E, falando ainda da identificação que como sophia
coma sophia
Stuart Hall (2005, p. 39) sugere como um processo em
como coma sophia
andamento, propomos reconhecer em nós a identificação coma como sophia
periférica excluída na construção histórica do homem
heterossexual branco rico colonizador, que se faz presente na obra
de Franz Fanon (2008):
Todo povo colonizado — isto é, todo povo no seio
do qual nasceu um complexo de inferioridade
devido ao sepultamento de sua originalidade
cultural — toma posição diante da linguagem da
nação civilizadora, isto é, da cultura
metropolitana.
Quanto mais assimilar os valores culturais da
metrópole, mais o colonizado escapará da sua
selva. Quanto mais ele rejeitar sua negridão, seu
mato, mais branco será. (FANON, 2008, p. 34).

Os incômodos presentes na obra “Pele Negras Máscaras


Brancas” do autor caribenho da Martinica foram rejeitados na
academia pela comissão julgadora de seu doutorado e só foi
publicada após Fanon obter o título de mestre, pois como a autora
Rivera-Cusicanqui (2010) aborda, os tanques de pensamento dos
poderes imperiais tentaram impedir sem sucesso a difusão de seus
pensamentos piratas. Talvez os professores de Fanon nunca
tenham percebido que os pensamentos piratas do aluno já estavam
difundidos desde a época das guerras caribenhas e interações e
interpelações, redes afetivas de comunicação e compartilhamento
com as Cabanagens, perdurando e se desdobrando ao longo do
tempo. Vale ressaltar ainda que os controles dos poderes
imperiais sobre pensamentos e pensadores acadêmicos nas
Amazônias e Caribes também se desdobram e permanecem
mesmo no estudo das teorias “pós-coloniais”, como Cusicanqui
121

percebe em algumas pesquisas teóricas na Bolívia que são feitas


“para” os indígenas e não “com” os indígenas e “encobrem e
“[...] pop, como se nosso
renovam práticas de colonização e subalternização”
contexto fosse o de um
(CUSICANQUI, ANO, 62, tradução livre). Essa característica do café às margens do Sena,
“pensamento moderno” de distanciamento do outro – e que e não de um pós-golpe
institucional branco e
permanece reconfigurada nas teorias pós-coloniais, é criticada hetero-pratriarcal” (FER-
por Artaud (1999) quando se refer à cristalização no tempo das NANDES E GONTIJO,
2016
“obras primas” de autores como Shakespeare. Para o autor: “As p. 20)
obras-primas do passado são boas para o passado, não para nós”
(p. 83), logo, devemos deixar de idolatrar obras-primas fixadas
no tempo, e ter os nossos ditos e não-ditos como próprios; e
“Militar é agir. Pouco
apesar de nossos discursos serem construídos e desconstruídos a
importam as palavras,
partir de discursos já ditos, a nossa resposta imediata, o nosso dito o que interessa são os
atos” (GUATTARI,
não-dito, corresponde ao que sentimos e como compreendemos o
1985, p. 12)
mundo atualmente. “E se, por exemplo, a massa de hoje já não
compreende Édipo rei, ouso dizer que a culpa é de Édipo rei e
não da massa.” (ARTAUD, 1999, p. 84).
Não se trata de uma antitradição por derivação
directa, que isto seria substituir uma linearidade
por outra, mas do reconhecimento de certos
desenhos ou percursos marginais, ao longo do
roteiro preferencial da historiografia normativa.
(CAMPOS, 1981, p. 17)

A marginalidade sugerida por Campos é compreendida


por “la mestiza” (ANZALDÚA, 1999) de origem indígena e
europeia, Rivera Cusicanqui (2010), como guerrilha de
pensamento combativa ao “discurso modernizante” das elites e
que discorda do discurso do multiculturalismo e do hibridismo
cultural, pois são teorias que ao invés de contribuírem
efetivamente para práticas descolonizadoras do corpo-mente e do
pensamento, causam um efeito inverso em um embate na área do
conhecimento científico pela manutenção dos ideais de
colonização.
Su función es la de suplantar a las poblaciones
indígenas como sujetos de la historia, convertir
sus luchas y demandas en ingredientes de una
reingeniería cultural y estatal capaz de someterlas
a su voluntad neutralizadora. Un “cambiar para
122

que nada cambie” que otorgue reconocimientos


retóricos y subordine clientelarmente a los indios
em funciones puramente emblemáticas y
simbólicas, una suerte de “pongueaje cultural” al
servicio del espectáculo pluri-multi del estado y
de los médios de comunicación massiva.
(RIVERA CUSICANQUI, 2010, p. 62)

O que a aymara-europeia enfatiza é que as teorias


pensadas sobre as Amazônias invadidas, colonizações e discursos
colonizadores permanecem reconfiguradas através de outras
teorias como a pós-colonial, em que uma rede de privilegiados se
apropria das ideias dos “outros”, pensadores e pensamentos
subalternizados (mestrxs da cultura popular, povos tradicionais,
ribeirinhos, pescadores, outras oralidades e práticas cotidianas
entre tantas) em uma economia política do conhecimento.
Las ideas recorren, como ríos, de sur a norte, y se
convierten en afluentes de grandes corrientes de
pensamiento. Pero como en el mercado mundial
de bienes materiales, las ideas también salen del
país convertidas en materia prima, que vuelve
regurgitada y en gran mescolanza bajo la forma de
produto terminado. Se forma así el canon de una
nueva área del discurso científico social: el
“pensamento postcolonial”. Ese canon visibiliza
ciertos temas y fuentes, pero deja en la sombra a
otros. (RIVERA CUSICANQUI, 2010, p. 68)

E como Cláudia de Lima Costa frisa:


Com grande força retórica, a teórica aymara nos
mostra que para a descolonização do saber não
basta articular um discurso descolonial, mas é
preciso, sobretudo, desenvolver práticas Você precisa observar
descolonizadoras.
Dando seguimento ao gesto dessa teórica aymara, seu ambiente. As limita-
gostaria de argumentar que o feminismo
brasileiro, em sua articulação pós-colonial,
ções de seu ambiente e as
precisa trazer para o centro de suas traduções vantagens. E então fazer
figuras tradutoras e traidoras de qualquer noção de
original, de tradição, de pureza, de unicidade e de coisas que tem a ver com
binarismos. Porém, para tal seria necessário
você. E se orgulhar delas.
também confrontarmos radicalmente as práticas
racistas, sexistas e homofóbicas que insistem em (Diretor Nigeriano.
emudecer nossas mestiças, índias, negras, lésbicas
e queers nos seus vários lugares de enunciação, “Good Copy Bad Copy”,
porém particularmente na academia (COSTA, 2007)
2012, p. 55).

Sophia – como corpo-amazônia afro-indígena, próximo


da marginalidade, e em contradiscurso ao logocentrismo
ocidental – é projeto “que vislumbra la descolonización y la
123

realiza al mismo tiempo” (RIVERA CUSICANQUI, 2010, p.


55)?
A performance per si é esquizofrênica, cheia de códigos
resignificados e embaralhados em outras traduções possíveis a
partir da costura de discursos ditos e não-ditos, tal qual Haroldo
de Campos (1981) observa o processo de escrita do poeta
Gregório de Matos Guerra
A “musa criola”, a “musa praguejadora”. O
primeiro antropófago-malandro. Não falo de uma
biografia. Falo de um biografema preservado na
tradição oral e disperso em códices apógrafos. De
uma persona por trás da qual ressoa um texto. Um
texto de textos. Universal e diferencial. Paródico.
Paralelográfico. Um “canto paralelo” de
tradutor/devorador: descentrado, excêntrico.
(CAMPOS, 1981, p. 18)

A paródia, sophia-paródia – como Butler sugere que a


drag se aproxima da paródia – é global e local, devora os
discursos e traduz esquizo e excentricamente processos e
fragmentos cênico-performáticos de guerreiras piratas?
(...)
Direis agora: “Tresloucado amigo!
Que conversa com ellas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão comtigo?”

E eu vos direi: “Amae para entendel-as!


Pois só quem ama póde ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas.”
(BILAC, 1935, p. 55)

Sim, como na música “Dê Um Rolê” dos “Novos


Baianos” (Moraes Moreira e Galvão, 1971): “Eu sou eu sou eu
sou amor da cabeça aos pés”, a drag ama e é amor para que possa
entender o que as estrelas dizem; para que possa negociar
discursos, circunscrever poemas e suplantar discursos
transcendendo significados a partir da micropolítica do afeto e
percepção do outro como a si mesmo sujeitos-vítimas de um
processo de colonização violador de direitos e liberdade. Como COMA COMA COM A
uma estrela, como uma constelação inteira, como uma chuva de Sophia
MACO COMA AMOC
meteoros, como as energias compartilhadas entre as themônias,
como a abóboda celeste que está caindo desconstruída a partir da coma induzido com a
sophia coma
cena e do teatro. Na ação “Fia Sophia” (vídeo etnográfico
124
apresentado no subcapitulo 3.3), Sophia faz um jogo/exercício
convidando as pessoas que estão presentes na ação para
escreverem as opressões sofridas por elas no corpo-midia da drag,
e estas escritas de muitas pessoas e as traduções de tantas outras
opressões são absorvidas na ação performática em que a drag
devora, come estrelas e constelações de discursos vorazmente
para depois vomitar, cagar processos tradutórios em uma
trans)criação cultural (CAMPOS, 2004, 47). Processos
performáticos como traduções culturais de discursos
renegociados, devorados, digeridos, vomitados e tomados
novamente como sopa. “(...) a teoria/Dos “espasmos golfados
ruivamente;/São êxtases da cor que eu fremiria” (SÁ
CARNEIRO, 1995, p. 67). Devorando e regurgitando as
sugestões nos textos citados até aqui, sugerimos nesta narrativa
que as alteridades-identidades de corpos-amazônias neocabanos
ocorrem nas periferias desde as comunidades tradicionais
quilombolas até os “bolsões de miséria” dos grandes centros
urbanos, incluindo os pontos de prostituição de travestis e as TAZ
de práticas de guerrilha estética de themônias e outros corpos
dissidentes que emergem e se dissolvem nas cidades da Amazônia
paraense; e estas identificações estão como constelações
salpicadas sobre o corpo-paródia de Sophia que traduz dores de
barriga, incômodos e devorações em práticas de resistência
poética e política chamadas de ações cênico-performáticas
(TAZ’s neocabanas) que são devoradas, retraduzidas e
desdobradas em outras sophias – substantivadas como projeto
estético em narrativas verbais, não verbais e performáticas.
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percebe em algumas pesquisas teóricas na Bolívia que são feitas


“para” os indígenas e não “com” os indígenas e “encobrem e
renovam práticas de colonização e subalternização”
(CUSICANQUI, ANO, 62, tradução livre). Essa característica do
“pensamento moderno” de distanciamento do outro – e que
permanece reconfigurada nas teorias pós-coloniais, é criticada
por Artaud (1999) quando se refer à cristalização no tempo das
“obras primas” de autores como Shakespeare. Para o autor: “As
obras-primas do passado são boas para o passado, não para nós”
(p. 83), logo, devemos deixar de idolatrar obras-primas fixadas
no tempo, e ter os nossos ditos e não-ditos como próprios; e
apesar de nossos discursos serem construídos e desconstruídos a
partir de discursos já ditos, a nossa resposta imediata, o nosso dito
não-dito, corresponde ao que sentimos e como compreendemos o
mundo atualmente. “E se, por exemplo, a massa de hoje já não
compreende Édipo rei, ouso dizer que a culpa é de Édipo rei e
não da massa.” (ARTAUD, 1999, p. 84).
Não se trata de uma antitradição por derivação
directa, que isto seria substituir uma linearidade
por outra, mas do reconhecimento de certos
desenhos ou percursos marginais, ao longo do
roteiro preferencial da historiografia normativa.
IO

(CAMPOS, 1981, p. 17)


EIDOSCÓP

A marginalidade sugerida por Campos é compreendida


por “la mestiza” (ANZALDÚA, 1999) de origem indígena e
L

europeia, Rivera Cusicanqui (2010), como guerrilha de


QUI SEU CA

pensamento combativa ao “discurso modernizante” das elites e


que discorda do discurso do multiculturalismo e do hibridismo
cultural, pois são teorias que ao invés de contribuírem
ESCREVA A

efetivamente para práticas descolonizadoras do corpo-mente e do


pensamento, causam um efeito inverso em um embate na área do
conhecimento científico pela manutenção dos ideais de
colonização.
Su función es la de suplantar a las poblaciones
indígenas como sujetos de la historia, convertir
sus luchas y demandas en ingredientes de una
reingeniería cultural y estatal capaz de someterlas
a su voluntad neutralizadora. Un “cambiar para
131
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2.1.1 – Carta ao pai ou a vontade de devorar você, bb

https://vimeo.com/116365079

Há lacunas e páginas brancas


brandas

do vazio e da fome

fome de devorar você

https://vimeo.com/340514137

Gasolina neles

Quando eu voltei para El Dourado


Não sei se antes ou depois
Quando eu vi a paisagem mutável, a natureza
A mesma gente perdida em sua infinita grandeza
Eu trazia uma forte amargura dos encontros perdidos
E outra vez me perdia no fundo dos meus sentidos
Eu não acreditava em sonhos, em mais nada
Apenas a carne me ardia
E eu não me encontrava
Apenas a carne me ardia
(trecho da música Gasolina do
Grupo Teto Preto)
136

Eu sou o pão vivo que desceu do céu


E quem comer deste pão para sempre viverá
E esse, esse é o meu sangue
Eu andarei por aí
Pela vida a fundo
E quem come da minha carne e bebe do meu sangue
permanece em mim e eu nele

(trecho da música Gasolina do


Grupo Teto Preto)

EU SOU UMA METRALHADORA EM ESTADO DE GRAÇA


EU SOU UMA METRALHADORA EM ESTADO DE GRAÇA
EU SOU UMA METRALHADORA EM ESTADO DE GRAÇA
EU SOU UMA METRALHADORA EM ESTADO DE GRAÇA
EU SOU UMA METRALHADORA EM ESTADO DE GRAÇA
EU SOU UMA METRALHADORA EM ESTADO DE GRAÇA
EU SOU UMA METRALHADORA EM ESTADO DE GRAÇA
EU SOU UMA METRALHADORA EM ESTADO DE GRAÇA
EU SOU UMA METRALHADORA EM ESTADO DE GRAÇA
EU SOU UMA METRALHADORA EM ESTADO DE GRAÇA
EU SOU UMA METRALHADORA EM ESTADO DE GRAÇA

Eu era uma criança medrosa; é claro que apesar disso também era teimoso como o são as
crianças; certamente também minha mãe me mimou, mas não posso crer que fosse um
menino difícil de lidar, nem que uma palavra amável, um silencioso levar pela mão, um
lhar bondoso não pudessem conseguir de mim tudo o que se quisesse. Ora, no fundo você é
um homem bom e brando (o que se segue não vai contradizer isso, estou falando apenas da
aparência na qual você influenciava o menino), mas nem toda criança tem a resistência e o
destemor de ficar procurando até chegar à bondade. Você só pode tratar um filho como você
mesmo foi criado, com energia, ruído e cólera, e neste caso isso lhe parecia, além do mais,
muito adequado, porque queria fazer de mim um jovem forte e corajoso. (Trecho de “Carta
ao Pai” de KAFKA)
137

da janela olhei pra lua


da foto que vejo nua
nem se compara à crua lua
embaça sobreluz da nuvem

era

escuro céu ela e eu


escuto véu que soltei
agora na sozinha vela
espera ................................................................................................................. há meia
lua
que nem aquela fatia
comendo uma melancia

juntos

fatia prata
tanto maltrata

ou

nos deixa besta de sorrir


e o tempo vai e vem pra ti

amanhã

como ontem o presente


devora sente e pressente

talvez

ou uma busca de dúvidas e

saudades
138

te amo

Felizmente havia também exceções a isso, sobretudo quando você sofria em silêncio
e o amor e a bondade superavam com a sua força qualquer oposição e comoviam
de forma imediata. Embora raro, era maravilhoso. Por exemplo, quando nas tardes
quentes de verão eu o via depois do almoço dormir um pouco, cansado, na loja, com
os cotovelos apoiados no balcão; ou quando você chegava aos domingos, esfalfado,
para nos visitar nas férias de verão; ou a vez em que, durante uma doença grave da
minha mãe, você se apoiou nas estantes de livros, trêmulo de tanto chorar; ou quan-
do na minha última doença você veio em silêncio me ver no quarto de Ottla, ficou
parado na soleira da porta, apenas esticou o pescoço para me avistar na cama e por
consideração só fez um cumprimento com a mão. Naqueles momentos eu me esten-
dia no leito e chorava de felicidade, e choro ainda agora enquanto escrevo. (Trecho
de “Carta ao Pai” de Franz Kafka)
139

2.2 - Sophia Traíra: traição de caleidoscópios e devoração da


vala

Peter Burke, em seu artigo “Culturas da tradução nos


primórdios da Europa Moderna” (BURKE, 2009, p. 13-46) –
presente no livro “A Tradução Cultural nos primórdios da Europa
Moderna” (BURKE; HSIA, 2009), enseja a respeito do processo ora, direis, ouvir galáxias
(...)
tradutório como sendo desde a mediação feita pelos historiadores Audiovideotexto, videotex-
entre passado e presente até o próprio ato de falar, e que a togame, as galáxias se situ-
am na fronteira entre prosa
“tradução implica ‘negociação’” (BURKE, 2009, p. 15), com
e poesia. (texto de Haroldo
possibilidades de renegociações. Assim, podemos dizer que o de Campos para o CD “isto
não é um livro de viagem”,
processo de escrita des)construção desse trabalho é negociação
1992)
tradutória, pois transita pelas histórias de Pedro, de Sophia,
histórias de outras drags e travas e monstrxs, referências
artísticas, histórias de pessoas que atravessam o corpo-paródia de
Sophia no cotidiano belemita e bragantino, histórias de
movimentos de resistência, oralidades e tradições ancestrais
indígenas e de matrizes africanas, teorias e práticas de guerrilha
estética e resistência poética e política, oralidades, poemas e
ESCR

poesias, músicas, páginas na web e des)afetos; esse o processo ESC


E

tradutório é tanto a co-relação entre histórias de nossos


V S ÓPIO

ESCREV
A

antepassados (cabanxs e Cabanagens) e as nossas histórias


E
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contemporâneas (neocabanxs e TAZ’s neocabanas) quanto a


A
LEIDOSÓPIO
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negociação de discursos ditos e não ditos ao longo do tempo; e


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dessa maneira, tanto o processo de escrita acadêmica (e


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USCCÓPIO

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subversões) do autor (autodenominado como narrador


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performático) quanto o de leitura do leitor-navegador dessa obra


O
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(mar-livro) são processos de tradução, são negociações de


A
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registros verbais e não verbais – as conversas com pessoas


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próximas de Sophia, literaturas científicas e artísticas, e registros


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em áudio e vídeo – apresentados ou escondidos na escrita


ESCREU

ESC
S
AQ
E

performática de uma narrativa que está viva e propõe ax leitorx


ESCREVA

uma leitura que provoque o ir e vir estético e corporal de quem lê


além de ser retraduzida a partir do arcabouço teórico e prático
140

próprio de cada umx. Nesse processo de ir e vir – “(‘world’-


traveling para Lugones [“Playfulness, ‘World’-Traveling”]),
estar no entrelugar (Santiago), na zona de contato (Pratt), ou na
fronteira (Anzaldúa Borderlands/La Frontera)” (COSTA, 2012,
p. 44) –, a narrativa performática apresentada na estética de livro
acadêmico propõe a transitoriedade pelas (nas) margens e peraus
das histórias de sophias, falas, discursos, escritas e leituras de
gestos, ações e interpretações de outros escritos, observações das
ações e comportamentos dos outros onde x autorx, afogado pelos
vagalhões de mudez, propõe construir um barco-livro-mar para x
leitorx navegar pelos escritos, mergulhar, nadar e se afundar para
também vir à tona impulsionado pela vontade de des)construir
uma tábua para também não se afogar nas ondas bravias da
mudez, tornando-se o processo, assim, inacabado; a fala/escrita
como des)construção do discurso, ou seja, o próprio ato de
enunciar é processo tradutório e o processo de escrita-leitura –
aqui apresentado como narrativa performática, é processo
tradutório de ir e vir entre leitorx e escritorx, escritores e leitores,
onde identidade e alteridade se misturam e onde há um
desenraizamento necessário, onde o outro habita em nós
temporariamente, estando dessa maneira em estado “des-
locada/o” (COSTA, 2012, p. 44), nos levando a uma
inteligibilidade de mundo – a partir da descolonização do
pensamento, sem hierarquias onde o sentido do processo
tradutório da transferência de significados entre interlocutores de
uma linguagem para outra é transcendido para “negociações”
Concluímos que,
dialógicas no ir e vir compartilhado de afetos, desafetos, para Artaud, o corpo
inquietações e desejos de corpo-liberto. encarcerado é aquele
que abriu mão das
Em outro artigo de Peter Burke intitulado “Traduzindo forças intensivas para
Histórias” (BURKE, 2009, p. 143-161) – presente no mesmo ligar-se aos discur-
sos que contornam o
livro citado no parágrafo anterior, o autor reconhece que as
dualismo cartesiano
fronteiras entre uma obra de história, uma obra de ficção e uma e metafísico/religio-
so. (SOARES; HUR,
biografia são sempre muito abertas, ou seja, diferenciar estas
2017, p. 3)
obras em uma classificação cartesiana de “ser ou não ser”
141

(HAMLET-cartesianismo-ARTAUD) muitas vezes torna-se Por sua vez, a caracterização


da cisnormatividade como ele-
arriscado, pois com a metodologia binária de conceituação da mento institucionalizado e que
vida o entre-lugar torna-se alheio, fora do controle classificatório atravessa sociedades e culturas
de formas interseccionais, feita
e muitas obras perdem suas qualidades sendo vistas e
a partir da autoetnografia como
interpretadas como apenas de uma categoria, e não estando em metodologia, pretende atuar no
um região fronteiriça em que a narrativa transita pela história, sentido de abrir uma espécie de
‘fresta epistemológica’ – suste-
memória, relato de vida, autobiografia e ficção. Essa ntada, politicamente, em per-
transitoriedade, para Marvin Carlson (2010), está presente na spectivas decoloniais – para as
diversidades corporais e de gêne-
performance como linguagem artística que tem seus estudos ro, um processo de abertura e
transitando pelas fronteiras dos campos de pesquisa, sendo a arte tensionamento que demanda a
legitimação destas vozes diver-
performática como “um campo complexo e em constante
sas enquanto produtoras de con-
mudança” dentro de uma “densa rede de interconexões” hecimento crítico. Sendo assim,
existentes entre a arte e outras áreas de conhecimento e também este segundo caminho analítico
vai no sentido de defender esta
entre “as muitas preocupações intelectuais, culturais e sociais legitimação, considerando as
colocadas por quase todos os projetos de performance possibilidades e limitações de
(por exemplo) autoetnografias
contemporâneos” (CARLSON, 2010, p. 18). E as indicações trans* para o questionamento e
apresentadas por Carlson, são vivenciadas nas práticas de Sophia, interpelação crítica de diversas
esferas cistêmicas, para a co-
pois como podemos perceber desde o início do primeiro capítulo locação incisiva de demandas
desse trabalho dissertativo, a pesquisa das performances da drag políticas outrora marginaliza-
das, silenciadas, neutralizadas,
amazônida transita pelas áreas de conhecimento, sendo
e para a promoção de uma rede
praticamente impossível dissertar sobre as ações artísticas da de saberes, recursos e afetos que
performer focando o estudo somente no campo artístico (teatro e façam da teoria, segundo hooks
(1994, 61), um lugar em que é
arte performática) sem dialogarmos com outras áreas do possível encontrar curas, curas
conhecimento como antropologia, tradução, devoração, contra processos cisnormativos
e cissexistas. Porque, até onde
sociologia, história, tradição e resistência política. chega minha percepção autoet-
Não se trata apenas de chamar a atenção aos nográfica, se chegamos à teoria
processos de poder e dominação, mas de torná-los – privilégio de pouquíssimas de
lugar de fala; trata-se de se tomar como lugar
privilegiado a fronteira, o não lugar, a “zona de
nós,
não-ser” (Fanon), o in-between, o pós-posicional, pessoas trans –, chegamos a ela
o relacional, o estar-siendo de que nos fala sangrando.
Rodolfo Kusch Alhures (FERNANDES; E “quando nossa experiência
GONTIJO, 2016, p. 18)
vivida de teorização é funda-
Judith Butler (2010), como veremos mais adiante, mentalmente ligada a processos
de autorrecuperação, ou liber-
também disserta sobre fronteiras, direcionando nosso olhar mais ação coletiva, não há intervalo
especificamente sobre as fronteiras do corpo e as nossas relações entre teoria e prática” (ibid.,61).
(VERGUEIRO, p. 26)
interpessoais com estas regiões fronteiriças, pois para Butler o
142

gênero é performático e construído histórico e socialmente. E


dissertando ainda sobre tradução, performance fronteira, Gloria
Anzaldúa (1998), autora da obra “Borderlands/La Frontera: The
New Mestiza”, sugere narrativas que se aproximem de uma
autobiografia de mestiçagem com fronteiras invisíveis entre prosa
e poema, latinxs e não-latinxs, entre gêneros, ou seja, devemos
reconhecer as fronteiras e traçar inúmeras possibilidades de
reconciliação fronteiriça que vão desde a “cicatrização” dos
rompimentos até a mudança total de atitude e ação efetiva a favor
da não permanência do lado da margem dominante.
A uma determinada altura, no nosso caminho
rumo a uma nova consciência, teremos que deixar
a margem oposta, com o corte entre os dois
combatentes mortais cicatrizado de alguma
forma, a fim de que estejamos nas duas margens
corte ou cura?
ao mesmo tempo e, ao mesmo tempo, enxergar
tudo com olhos de serpente e de águia. Ou talvez
decidamos nos desvencilhar da cultura
dominante, apagá-la por completo, como uma
causa perdida, e cruzar a fronteira em direção a
um território novo e separado. Ou podemos trilhar
uma outra rota. As possibilidades são inúmeras,
uma vez tenhamos decidido agir, em vez de
apenas reagir. (ANZALDÚA, 2005, p.706)

É a partir dessa mestiçagem “com olhos de serpente e de


águia” que Anzaldúa propõe a quebra das formações teóricas e
práticas cristalizadas e a tolerância às contradições e
ambiguidades, equilibrando-se as culturas em uma
“personalidade plural”, onde as ambivalências são resignificadas
em uma panela temperada com todas as possibilidades de
rompimento do pensamento binário (feio-bonito, rico-pobre,
bom-ruim, homem-mulher, ativo-passivo, serhumano-natureza,
etc.) em uma atividade da alma na tentativa de unir tudo o que
está separado. E assim, para nós, o estudo do projeto artístico
sophia é um estudo da arte performática como prática de
resistência poética e política que navega por entre-mares, ou seja,
a análise desse projeto artístico, denominado sophia como
proposta de escrita científica, perpassa por regiões fronteiriças
das disciplinas acadêmicas onde a teorias se misturam e
143

permanecem em processo, e as escritas verbais e não-verbais são Assim que meu Mestre se esquiva
para um lado para evitar a minha
negociadas em empatias discursivas por uma proposta de traição- tentativa de dar-lhe uma cabeçada,
tradução em que a emoção, fricção ou frisson do momento como resposta ele desliza a unha
do seu indicador ao longo do meu
influenciam a narrativa de quem escreve. Esse projeto de pesquisa
pescoço, exclamando, quase que
– que disserta sobre as ações performáticas de uma drag, é num suspiro: “Dançou!”. Envolvi-
sugerido como processo tradutório a partir da observação das do inteiramente na pressão do mo-
mento, nem sei se outros viram o
histórias da própria drag e de suas ações performáticas como seu gesto jocoso de assassinato,
traduções culturais onde história, ficção e biografia se mas sinto o corte afiado do senti-
do do seu gesto, aumentado pela
complementam em regiões fronteiriças aos relatos de vida, iconicidade de sua unha com o
autobiografia e ficcionalidade des)construídas antes durante e fio da navalha. O gesto desaparece
tão rápido quanto veio, a invisível
após as ações estratégicas de negociação poética e política em que
“navalha” posta de volta no bolso
teorias e práticas se fundem e diluem em processos físicos e de trás das calças do meu Mestre,
químicos ainda não estudados, porém vislumbrados em propostas e nós continuamos a jogar, como
se nada tivesse acontecido. Con-
intermediárias que dialogam pelas disciplinas em uma ostentação tinuamos a elaborar o nosso diálo-
transdisciplinar. Essa dissertação são narrativas e performances go corporal, iniciado uns tantos
minutos antes, mas por enquanto
desde os primeiros ensaios de Sophia até o glamour estético- estendido ao infinito através da
político-acadêmico que a drag está atualmente, e também as intensidade do jogo; e aí, justa-
mente quando nosso jogo começa
narrativas visuais que detalham outros aspectos das performances a tomar um ritmo mais vagaro-
da drag e dialogam com a escrita, ou seja, essa narrativa so, como resposta indireta a uma
mudança sutil no ritmo sonoro,
performática é suplementada por processos tradutórios que vão se
Mestre Angolinha consegue fazer
apresentando como peças-fragmentos de vários caleidoscópios o “mesmo” gesto outra vez, só que
que transmutam-se em um caleidoscópio maior, como Haroldo de dessa vez com dois dedos em vez
de um, e sem a pressão da unha
Campos descreve sua obra: “Há neste livro caleidoscópio um – e dessa vez, ele acompanha o
gesto épico, narrativo (...)” (CAMPOS, 2004, p. 119). Essa gesto com a palavra em um inglês
bem carioca, “Band-eide”. Inver-
narrativa é tradução cultural de outras narrativas que são tendo o mesmo gesto, ele conseg-
traduções culturais de outras transcriações em um ue me fazer rir, ao mesmo tempo
que me informa que ainda estou
desencadeamento de traduções a partir do contexto histórico e
jogando muito “aberto” – porque
cultural a quem se quer traduzir, estando cada obra traduzida em do ponto de vista do jogo, era ain-
região fronteiriça do discernimento entre tradução da obra da a navalha que ele havia usado.
(HEAD, 2013, p. 263)
original e nova obra; como podemos observar nas análises de
Maria Lúcia Pallares-Burke (2009, p. 163-181) sobre o jornal
“Spectator” e suas traduções como novas obras. O periódico já
era por si uma tradução cultural, suplementava os três modelos
tradicionais de periódicos existentes na época, traduzindo
144

assuntos de interesses distintos sobre política, cultura e moda de


Considero esta disser-
forma estratégica com uma linguagem universal de acesso fácil
tação, em suas possibili-
tanto para mulheres quanto para homens sem a necessidade do dades e limitações, como
leitor possuir um conhecimento aprofundado sobre o tema uma tentativa precária e
sequelada diante dos de-
abordado; e além disso as traduções do Spectator “original” para safios representados nes-
outras línguas e suas imitações mais ou menos livres ou criativas tas questões, procurando
estudar alguns caminhos
deram maior teor à discussão a respeito da infidelidade da decoloniais possíveis
tradução cultural e a busca utópica e incessante por um modelo por entre os diferentes
cistemas que normati-
ideal de se fazer jornal. As estratégias e negociações utilizadas
zam corpos e gêneros,
nas transcriações do periódico “Spectator” nos ajudam a refletir particularmente aqueles
situados em intersecções
sobre a manutenção da imagem simbólica de uma obra e o seu
de marginalizações so-
desdobramento em inúmeras outras obras em uma tempestade de cioculturais, políticas,
devorações e traições de um “livro-agora” que suplementa existenciais. (VER-
GUEIRO, 2015, p. 15)
traduções culturais, transcriações, transvalorações (CAMPOS,
1981, p. 11-12) da leitura de comportamentos e controles
‘Cistema-mundo’, uso-a
superpostos em nossos corpos socialmente estigmatizados, e enquanto referência a
leituras do cotidiano de corpos transfemininos amazônidas e suas Grosfoguel (2012, 339),
que caracteriza um “[c]
práticas de guerrilha política e estética.
istemamundo ociden-
(...) e nada trairá senão talvez um mínimo tremor talizado/cristianocên-
no canto das pálpebras este safári iminente por
regiões de pele humana e faminta platina canibal
trico moderno/colonial
pergunta as horas ao cavalheiro da esquerda e capitalista/patriarcal”
acerta um minúsculo relógio de pulso como quem que produz “hierarquias
está num navio a fábula neste livro é um mero epistêmicas” em que – na
regime de palavras e o que conta é o conto mas os
desvios e desacordes os vícolos e vielas os becos
leitura específica desta
e bitegas os cantos e as esquinas os bívios e os dissertação – perspectiv-
trívios os quadrívios dessa escura suburra de as não cisgêneras são ex-
palavras que emite funiculares e raízes aéreas que cluídas, minimizadas, ou
sacode esporos e pólens numa germinação fécula
apodrecida e matéria albuminal passar da palavra
silenciadas. A corrupte-
garça à palavra albina (...) (CAMPOS, 2004, p. ) la ‘cistema’, entre outras
corruptelas do tipo, têm
Sophia se torna necessária na academia, como prática o objetivo de enfatizar
descolonizadora de enfrentamento e traição ao tradicionalismo da o caráter estrutural e
institucional – ‘cistêmi-
família bragantina heterocisnormativa: sophia traíra é co’ – de perspectivas
“trairagem” como se diz quando umx manx age de má fé no setor, cis+sexistas, para além
do paradigma individ-
porém traição com quem não é parceiro não é traição, é dar o troco ualizante do conceito
pro que safadia com a galera. Adotando o termo “bragantinx” – à de ‘transfobia’. (ibdem)
todxs pessoas que se identificam com uma identidade paraense
145

próxima a região dos caetés ao nordeste do estado do Pará, e/ou Ao experimentar com pa-
lavras, imagens e sons, eu
que residem na região de Bragança e cidades circunvizinhas –, me vejo lutando constan-
continuamos na proposta marginal desse projeto com temente com os limites
tanto da linguagem quan-
impossibilidades de desatrelamento arte-vida-teoria-prática,
to da imagem. Alguns
como Atonin Artaud descreve seu processo artístico denominado espectadores se relacio-
como “teatro da crueldade” e que utiliza como metodologia nam com meus filmes e
instalações como trilhas
fundamental a respiração onde cada afeto e desafeto tem uma sonoras, outros usam
respiração própria, e em que o ator deve atentar ao seu corpo para com frequência os termos
“poético”, “escultural”,
alcançar um teatro próximo do transe, com atores trabalhando a “espacial e arquitetural”
respiração inversamente proporcional ao ato exterior (quanto para descrevê-los. O filme
Espaços descobertos: viver
menor e mais contido o ato, maior e mais densa deve ser a
é circular (Naked spaces:
respiração), e percebendo os seis estados da respiração e living is round, 1985) foi
principalmente o sétimo estado, denominado de “sativa”, como comparado, por exemplo,
a um raga musical indi-
sendo o estado que está acima das respirações e onde o manifesto ano, enquanto o uso do
e o não-manifesto acontecem juntos (ARTAUD, 1999, p.151- silêncio em Remontagem
(Reassemblage, 1982) foi
160). visto como indutor de um
O estado sativa, onde a narrativa flui, esse estado “in- estado no qual o especta-
dor “vê sons e ouve ima-
between” do que é e não é man)infestado também é próximo do gens”. Forma e conteúdo
que sugere Trinh T. Minh-ha, cineasta vietnamita feminista, cujos são inseparáveis no meu
trabalho, pois ambos são
pensamentos adotamos como referência para a estética
igualmente históricos e
dissertativa do projeto sophia e também para a criação dos filmes plásticos. Aqui, a reali-
de Sophia (registros em áudio e vídeo das ações performáticas da dade em sua dimensão
social e histórica não é um
drag), pois os filmes autorais fronteiriços de Minh-ha transitam material para a reflexão
pelas diferentes classificações fílmicas (documentário, filme artística ou o engajamento
político; ela é o que atrai
etnográfico, cinema experimental e cinema narrativo) com fortemente uma pessoa
interseções entre a teoria e a prática, as artes e as ciências, ao cinema, embora não
possa ser capturada sem se
dialogando a respeito de questões de identidade-alteridade, da
dissolver em sua frágil es-
condição feminina e da diversidade cultural em processos de ir e sência, quando abordada
vir entre quem filma e quem é filmado provocando um diálogo sem sutileza e delicadeza.
Como é dito em Remonta-
entre antropologia, cinema e artes; são processos esquizos como gem, e realizado em todos
as narrativas da vovó (1989, p. 119-151), tradições da oralidade os aspectos da minha
prática cinematográfica,
como relatos contados de mãe pra filha, ou seja, na prática fílmica “eu não tenho a intenção
da autora áudios e imagens se repetem, se borram, se anulam, de falar sobre, apenas de
falar próximo” (MINH-
como a narração oral da lembrança de um evento, de um ocorrido HA, 2015, p. 23)
146

onde algumas cenas se fixam na memória enquanto outras se


esvaem rapidamente, onde algumas melodias ou repetições
sonoras quebradas permanecem como trilha e se compõem em
detrimento de trilhas feitas para a ocasião. Minh-ha repensa o
Patriarcado e hegemonia
fazer cinema, e em seu artigo “Olho mecânico, ouvido eletrônico, não são exatamente duas
e a atração da autenticidade” (2016, p 29-35) propondo uma coisas diferentes, mas
também não são uma
estética marginal de formatação textual, que é refletida nesta coisa só. Minha história
obra-livro-agora a partir da imagem da vala entre a calçada e a e minha história pes-
soal são as histórias das
rua onde o esgoto escoa e as relíquias e moedas se perdem; a vala
relações entre Primeiro
é signo próximo da periferia e da exclusão social, é o território Mundo e Terceiro Mun-
simbólico por onde transitam os corpos trans)femininos, drags, do, entre dominante e
oprimido e entre homem
travestis, pretxs pobres entre outrxs corpos que fogem da e mulher. Quando falo
hegemonia branca patriarcal cisnormativa heterosexualizada do Senhor, estou sem-
pre falando tanto d’Ele
normalizadora de discursos. A vala onde as gotas de chuva se quanto do Ocidente. Pa-
acumulam, onde talvez antes era um rio, a vala podre e necessária triarcado e hegemonia.
Do patriarcado ortodoxo
para o escoamento do que não presta e do que alaga é a mesma ao liberal, da coloni-
vala que acumula lodo, onde as crianças pobres brincam, onde os zação direta à hegemo-
nia indireta e sutilmente
peixinhos de vala vivem. Uma vala correndo dentro de outra vala,
penetrante, as coisas se
se tornando um grande rio, fluindo dentro de outro rio e em um refinaram bastante, mas
grande mar aberto (MINH-HA, 1989, p. 123) em estado sativa a estrada ainda é longa
e a luta ainda continua.
pulsando memórias e referências de vida relacionadas com as (MINH-HA, 2015, p. 52)
teorias apreendidas durante o processo de des)construção de uma
“Sophia Teórica” e desejos de uma teoria sophia. O ato de
escrever como ato performático de resistência, marginalidade e
descolonização do pensamento, por uma economia política do
conhecimento solidária ao outro é tradução cultural das ações
performáticas em processo que são revisitadas como em um
diário de bordo – como o caderno de anotações que o ator utiliza
durante seus ensaios como diário de suas construções e
desconstruções no processo criativo, onde as pulsações e sentidos
tornam-se anotações, desenhos, riscos, rabiscos de impressões
retraduzidas e/ou resignificadas num processo contínuo de
des)estruturação cênica, fricções e atravessamentos de vida. Vale
ressaltar ainda que a tradução de palavras e frases para o bajubá e
147

a proposta de texto em margem lateral são manifestações estéticas


de aquendações das bee e dos babadéucime acaissime no batalho MERDAAA!!
pra samba na cara de ocós e mapôs desaquendadas e/ou dizadas. A gente na praça da Re-
Essas manifestações marginais são a vala lateral esquizo desse pública, e, de madrugada,
batendo papo de pois de
trabalho onde correm desejos vicinais que pulsam sangue suor e um ou dois goles depois de
merda (expressão do teatro, para sorte para você). várias andando até chegar
na praça, e enfiadas de fu-
maça.
Sentia-me livre, sentia que
tinham tirado a viseira que
cobria metade da minha
Mesmo assim, uma vez
visão; e a outra metade era
que passamos a perceber
linda!
o escrever da etnografia
Ouvimos um grito seco.
segundo tal imaginário,
no meio àquele silêncio
até então cinematográf-
sepulcral de um banco
ico, uma certa dúvida
afastado do Bar do Parque:
emerge a respeito da dif-
MERDAAAA!!!
erença entre a montagem
Nosso amigo passava pe-
como uma forma exper-
dalando na Assis de Vas-
imental e a composição
concelos, provavelmente
de uma etnografia dita
depois de um ensaio, e um
“convencional”. Pois,
bom papo no lanche ou bar
como observou Robert
perto do teatro; e como
Thornton (1988), e de-
cumprimento Mardock nos
pois comentou Marilyn
manda um salve de merda!
Strathern (2004), apesar
E foi neste dia que eu re-
do fluir de uma narra-
conheci minha identidade
tiva etnográfica ou da
-identificação de ator, ou à
sensação de unidade em-
toa, como minha mãe fala.
prestada pelo casamento
entre uma dada descrição
éramos jovens, mana!
etnográfica e um argu-
éramos jovens!
mento antropológico, a
composição textual mes-
mo das etnografias mais
“convencionais” tende a
envolver inúmeros saltos,
justaposições e cortes en-
tre entidades aparente-
mente incomensuráveis.
(HEAD, 2013, p. 255)
148

260.

A arte consistte em fazer os outros sentir o que nós sentimos, em


os libertar deles mesmos, propondo-lhes a nossa personalidade
para especial libertação. O que sinto, na verdadeira substância
com que o sinto, é absolutamente incomunicável; e quanto mais
profundamentte o sinto, tanto mais incomunicável é. Para que eu,
pois, possa transmitir a outrem o que sinto, tenho que traduzir os
meus sentimentos na linguagem dele, isto é, que dizer tais coisas
como sendo as que eu sinto, que ele, lendo-as, sinta exactamente
o que eu senti. E como este outrem é, por hipótese de arte, não
esta ou aquela pessoa, mas toda a gente, isto é, aquela pessoa que é
comum a todas as pessoas, o que, afinal, tenho que fazer é convert-
er os meus sentimentos num sentimento humano típico, ainda que
pervertendo a verdadeira natureza daquilo que senti.
[...]
Fingir é amar. Nem vejo nunca um lindo sorriso ou um olhar
significativo que não medite, de repente, e seja de que for o olhar
ou o sorriso, qual é, no fundo da alma em cujo rostto se sorri ou
olha, o estadista que nos quer comprar ou a prosituta que quer que
a compremos. Mas o estadista que nos compra amou, ao menos, o
comprar-nos; e a prostituta, a quem compremos, amou, ao menos,
o comprarmo-la. Não fuginmos, por mais que queiramos, à frater-
nidade universal. Amamo-nos todos uns aos outros, e a mentira é o
beijo que trocamos.
(PESSOA, 1999, p. 255-257)
149

2.2.1 - F1 B07e 234 c 7A D 1e2 c0A FADA 69 ABAcABA BeA7A FODA e DeDADA

53 45 20 56 4f 43 c3 8a 20 50 52 45 54 45 4e 44 45 20 53 41 42 45 52 20 51 55 45 4d
20 45 55 20 53 4f 55 20 45 55 20 50 4f 53 53 4f 20 4c 48 45 20 44 49 5a 45 52 2c 20 4d 41 53
20 54 45 4d 20 51 55 45 20 44 41 52 20 42 45 49 4a 49 4e 48 4f 20 54 45 4d 20 51 55 45 20 4d
41 4d 41 52 20 45 20 44 45 49 58 41 52 20 55 4d 20 52 45 43 41 44 49 4e 48 4f 2c 20 53 4f 55
20 54 55 41 20 4c 49 53 49 4e 48 41 2c 20 47 4f 53 54 4f 53 49 4e 48 41 20 45 20 46 49 4e 49
4e 48 41 2c 20 42 45 4d 20 44 45 44 49 43 41 44 41 20 45 4d 20 53 45 4e 54 41 52 20 4d 41
4c 41 53 20 41 4c 43 41 4e 49 41 53 20 4f 44 41 52 41 53 20 45 20 47 4f 53 54 4f 53 41 53 20
47 4f 54 41 53 2e 20 4d 45 20 43 4f 4e 56 45 52 54 45 20 45 20 41 44 56 45 52 54 45 20 4f 55
20 43 4f 4e 56 45 52 54 45 52 2d 53 45 20 45 4d 20 54 45 4d 50 4f 20 54 41 4c 56 45 5a
2d2048756d616e6f732073e36f2074e36f20726573747269746f732e456c65732
06ee36f2073e36f20707265736f73206170656e61732070656c61732070616c61767261
73207175652066616c616d2c206d61732074616d62e96d2070656c61732070616c6176
72617320656d2073756173206d656e7465732e205175616e746f206d6169732070616c
617672617320656c6573206a756e74616d206d61696f7265732073e36f206f73206d616
c20656e74656e6469646f732071756520656c657320637269616d2e0d0a0d0a2d20456
e74e36f2c20706f72207175653f20506f722071756520617320706573736f6173206465
70656e64656d206461732070616c61767261733f0d0a0d0a2d2054616c76657a207365
6a6120706f7271756520656c61732073e36f2074e36f20736f6c6974e1726961732e204
56c61732074656d2074616e746f206d65646f20646520666963617220736f7a696e6861
732e20456c61732071756572656d20717565206f73206f7574726f7320617320726563
6f6e6865e7616d2c20656e74e36f20656c617320637269616d2070616c61767261732e0
d0a0d0a2d204d61732070617261206d696d2c206ee36f20696d706f727461207175616
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065206ee36f20696d706f727461207175616e74617320706573736f617320706f737361
6d20736572207072f378696d617320e0206d696d2c20e9206d7569746f206d61697320
747269737465207365206575206ee36f20707564657220706173736172206f20717565
2073696e746f206e6f206d657520636f7261e7e36f2e0d0a
150
7C
HEXADECIMAL
4c 41 52 4f 59 45 20 45 58 c3 9a
jogo hexa:
F1 BINÁRIO
B07E 010011000100000101010010010011110101100101000101001000
234 0001000101010110001100001110011010
C DECIMAL
7A 1.0104242788387923e+38
D
1E2 http://www.calculadoraonline.com.br/conversao-bases
C0A
FADA O sistema hexadecimal é um sistema de numeração posicion-
69 al em base 16, ou seja, são 16 algarismos que representam os
ABACABA números, diferente do sistema de numeração de base 10 que
utiliza 10 algarismos (0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9) o qual somos habit-
BEA7A uados. O sistema hexadecimal é representado pelos algarismos: 0,
F0DA 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, A, B, C, D, E, F. Já o sistema binário, como
E o próprio nome diz é composto por apenas dois algarismos: 0
DEDADA e 1. Utiliza-se o sistema hexadecimal para representar números
binários de forma mais compacta e geralmente é utilizado como
linguagem em computadores e microprocessadores. O link acima
indica uma calculadora que traduz/converte números binários
trad. decimal: em hexadecimais e decimais.
241 O texto em ASCII (que aparece na tela do seu computador) só é
possível ser lido porque foi convertido de binário para a as letras
45182
e palavras do nosso vocabulário. E para traduzir/decodificar estes
564 hexadecimais e binários em formato de texto, podemos utilizar
12 ferramentas disponíveis online, tais como:
122
http://www.insecuritynet.com.br/ferramentas-online/convert-
13
er-texto-para-hexadecimal
482
3082 https://www.4devs.com.br/tradutor_codigo_binario
64218
105
em alguns momentos utilizamos somente o jogo com os algaris-
180013754 mos hexadecimais para formarmos palavras do nosso vocabular-
780922 io, como o exemplo ao lado.
61658
14
14605018
151

2.3 - Transophia: Teorias Queer, cuír, Okê cabôca

As histórias das relações de gênero e as histórias da


sexualidade são revisitadas por Peter Stearns em duas obras, com
traduções de Mirna Pinsky (STEARNS, 2017) e Renato Marques
(STEARNS, 2010), que apresentam o advento da agricultura
ligado a ideia de propriedade privada, separada da coletividade
como garantia de boa produção e lucro, e a mudança nas relações
homem-mulher e na posição do homem que passou a ser
proprietário de um pedaço de terra e também proprietário da
família como núcleo familiar em que um homem dono de “suas É portanto uma es-
pécie de razao de
mulheres” (esposas) e filhos garantia a produtividade e Estado que determina
permanência do pedaço de terra com aquele núcleo (2017, p. 31- os maridos guayaki a
aceitar a poliandria.
32) – apesar da obra citada utilizar termos como “história
Cada um deles renun-
mundial” (2017, p. 16), “civilizações mais importantes” (p. 35), cia ao uso exclusivo da
além de termos carregados de conotação patológica como sua mulher em ben-
eficio de urn qualquer
homossexualismo e bissexualismo (p.36); Stearns contribui para celibatário da tribo, a
o conhecimento de diferentes culturas com padrões diferentes de fim de que esta possa
subsistir como uni-
domínio de maridos e pais nas sociedades fora da generalização e dade social. Alienando
“sem um modelo único de cultura sexual ou prática sexual” metade dos seus dire-
itos matrimoniais, os
(2010, p. 16). O autor ainda afirma que com o crescimento e
maridos achê tornam
estruturação da economia agrícola as desigualdades entre possiveis a vida em co-
mulheres e homens aumentaram, ficando o homem cada vez mais mum e a sobrevivencia
da sociedade. (CLAS-
com o papel de dominante enquanto o papel ornamental estava TRES, 1979, p. 117)
reservado às mulheres, principalmente às de “classe alta” (2017,
p. 33). “A agricultura e, depois, a civilização aprofundaram
progressivamente as desigualdades entre homens e mulheres” (p.
34), porém os sistemas patriarcais com características de
agricultura e “civilização” (a partir de uma visão eurocêntrica) se
diferenciavam, variando de acordo com a cultura e política locais
(2017, p. 38), além de existirem outros sistemas de tantas outras
civilizações que estabeleciam outras economias (sistemas
pastoris nômades, sistemas de caça e agricultura, entre outros
onde o patriarcado não estava instaurado) e outros formas de
152

relações entre homens e mulheres e atribuições dadas a cada um


(p. 24-25). A estruturação do patriarcado na “história mundial” é
generalizada ao longo das histórias, mas de fato, como o autor

do
epistêmi-

ar o
a indi-
apresenta, haviam outras possibilidades de sistema, nas

a um “[c]istemamun

s, minimi-
objetivo de enfatiz
sociedades indígenas anteriores à colonização, por exemplo, ;

ra além do paradigm
oduz “hierarquias
além disso no cotidiano as relações sociais não obedeciam

êneras são excluída


restritamente às leis e ocorriam várias outras possibilidades de
reconfigurações das relações sexuais e de gênero, como por
exemplo nas culturas grega e romana em que suas literaturas

iz

o
er

m
clássicas relatam “inúmeras histórias de deusas ativas e

ct


pr

pa
ra

o,
extravagantes, assim como deuses” (p. 38). O cistema-mundo

ca
e

,
tip
qu

as
sg
e

st
qu

ci
(VERGUEIRO, 2015, p.15) europeu com definições

do
l”

xi
o
ca

se
,

s

9)

2015, p. 15).
heterocisnormativas sobre sexo e sexualidade (patriarcado,

la
ar

s+
uel (2012, 33

tras corrupte
as
ri

ci
homossexualidade, bissexualidade são padrões definidos a partir

at
iv

as
ct
capitalista/p

perspectiv
pe
da ocidentalização do pensamento) foi violentamente implantado

dissertação – pers
a partir das invasões europeias que justificavam a colonização de

a’ (VERGUEIRO,
ferência a Grosfog

‘cistema’, entre ou
povos “incivilizados” – com outras culturas, cosmologias, outras

al – ‘cistêmico’ – de
moderno/colonial
formas de observar e conceituar o mundo, e alheios à moralidade
cristã (STEARNS, 2017, p. 112-123) – a partir da tradição
eurocentrada e normatividade hegemônica que incutia nos
st a

bi
de

europeus a ideia de que habitavam na América povos bárbaros


re

fo
la
a

ns
to

fic
te

com “desvio sexual” e com a necessidade de um “refreamento ra


an
co

on
up

o:

‘t
ri
qu

pe
ir

ci
rr

sexual conforme a definição europeia”, ao mesmo tempo que a


nt

de
ue

itu
es
en

co

Verg

to

nudez feminina era exaltada com a erotização dos corpos das


itura

st
a
no

ei
o-

in
s.
tia

nc
us

mulheres indígenas em pinturas e narrativas feita pelos brancos;


da
e
tradução de Viviane

cas” em que – na le

vidualizante do co
is

al
‘Cistema-mundo’,

zadas, ou silencia
cr

ur

e assim, as mulheres foram “as vítimas preferenciais”, vistas


ocidentalizado/

caráter estrut

como “inferiores, e fonte de tentações sexuais”, e os jesuítas


tiveram o papel fundamental de reestruturar intensamente os
relacionamentos entre homens e mulheres nas Américas (p. 118).
O domínio europeu com ênfase no “pecado” e na “punição”
normalizou as relações de gênero, bem como a sexualidade de
vários povos – principalmente indígenas e africanos que pela
força e violência mudaram seus hábitos (FERNANDES, 2016a).
153

Nas tradições e moralidade indígenas não havia a mesma


ideia de homossexualidade como a estigmatizada pelo
pensamento ocidental; como Diógenes Cariaga (2015) observa
em seu artigo – a respeito das transformações nas relações
geracionais e de gênero entre os Kaiowá e os Guarani do Mato
Grosso do Sul a partir das relações homoafetivas –, há relatos de
relacionamentos afetivos e sexuais entre homens indígenas
anterior à chegada dos brancos no território indígena Guarani e,
segundo Chamorro (2009, apud Cariaga, 2015, p. 452-453), as
práticas homossexuais masculinas foram mudadas ao longo do
86.
tempo por influência de programas de ocidentalização
(STEARNS, 2017, p. 161), como as missões normalizadoras da Penso se tudo na
vida não será a
moralidade cristã.
degeneração de
Em suas considerações, a autora sugere que a tudo! O ser não
imposição de monogamia e a total reprovação das
será uma aprox-
práticas homossexuais são condutas e traduções
missionárias que, ancoradas na perspectiva moral imação - uma
cristã, produziram efeitos marcantes na véspera, ou uns
socialidade dos coletivos guarani e tiveram seus arredores.
efeitos potencializados com a experiência da
Assim como o
conversão evangélica neopentecostal a partir da
metade do século XX. (CARIAGA, 2015p. 453) Cristianismo não
foi senão a degen-
Pierre Clastres (1979, p. 99-125) – em uma tradução eração bastarda
binária heteropatriarcal das relações de gênero entre indígenas do neoplatonis-
mo abaixado, a
nômades da etnia Ache, registra que, durante sua convivência na judaização do
floresta com a nação indígena pesquisada, haviam pelo menos helenismo pelo
romano, assim
dois homens que não se identificavam com o padrão social dito nossa época, senil
“masculino” adotado no convívio cotidiano. Entre os Ache, os e cancerígena, é
o desvio múlti-
homens que se identificam com as tarefas femininas não eram
plo de todos os
tratados como “com comportamentos preocupantes ou grandes propósit-
os, confluentes ou
inferiores”, estes homens apenas não caçavam, mas tinham um
opostos, de cuja
papel social importante tanto quanto as outras mulheres e falência surgiu
homens, e como o autor descreve – apesar de seu olhar a era com que
faliram.
heteronormativo, um destes homens era panema, não sabia caçar,
e o outro, o indígena que Clastres chama de “sodomita”, Vivemos um
entreacto com
“pederasta incompreensível”, tinha comportamentos mais orquestra.
próximos do feminino e também tinha relacionamentos sexuais
(PESSOA, 1999, p.
115)
154

com outros homens sem a moralidade ocidental cristã que em


todas as instâncias e épocas históricas foi se reconfigurando e
colonizando as sexualidades de nossos povos tradicionais
indígenas e africanos, e estabelecendo outras relações sociais
reforçando paradigmas de controle dos corpos sexualizados dos
“sujeitos modernos".
Estevão Rafael Fernandes (2016b) é exitoso em fazer um
levantamento histórico de registros de “cronistas, missionários,
antropólogos, viajantes e historiadores” (p. 17) europeus a
respeito dos comportamentos sexuais dos indígenas e suas
relações de gênero bem como as ações de extrema violência
tomadas pelos brancos para disciplinamento dos corpos indígenas
como parte do projeto colonial cartesiano binário de classificação
dominante-dominado em que a “colonização das sexualidades
indígenas formam parte de um complexo inerente às dinâmicas
de colonização, ainda em curso” a partir de um “modelo de
civilização heteronormado” (2016a, p. 51) em que “processos de
heterossexualização compulsória, racialização e civilização
interpelam-se e [re]constroem-se mutuamente”; sendo a
homossexualidade indígena, segundo o autor, meio de justificar a
dominação sobre esses povos que eram incivilizados, sodomitas,
selvagens, entre tantas outras classificações a partir da
normalização heterossexualizada das sexualidades indígenas (p.
52). E como o autor nos apresenta – desde os primórdios da
invasão imperialista europeia no território denominado por estes
como Amazônia, há relatos de práticas homoafetivas,
especialmente entre os Tupinambás, como o relato de Pero
Correia, em 1551, sobre “mulheres casadas com outras
mulheres”, hábeis em armas e que desempenhavam “papéis
masculinos”, sendo que: “A maior injuria que lhes podem fazer é
chama-las mulheres.” (DESCONHECIDO, 1931 apud
FERNANDES, 2016b, p. 17); neste trecho da carta de Pero
Correia, retraduzindo a narrativa heteronormativa podemos
considerar que haviam outros gêneros entre os povos indígenas
155

como estxs indígenas que não se reconheciam como as outras


mulheres e também eram “casadas” (a partir da ideia dos
colonizadores sobre casamento). “Estas deixam todo o exercicio
de mulheres e imitam os homens e seguem seus officios, como
senam fossem femeas.” (GANDAVO, 1858 [1576] apud
FERNANDES, 2016b, p. 17); outro trecho que retraduzido – a
partir da desconstrução do pensamento colonial e negociação de
discursos decoloniais com discursos ocidentalizados – poderia vir
a ser a existência de corpos transexuais indígenas.
Da mesma época, anterior à invasão e durante o período
de colonização, Fernandes ainda cita trechos narrativos que
apresentam “práticas incestuosas”, “poligamia”, – na concepção
branca ocidentalizada – entre os tupinambás;
e o que se serve de macho, se tem por valente, e
contam esta bestialidade por proeza; e nas suas
aldeias pelo sertão há alguns que têm tenda
pública a quantos os querem como mulheres
públicas. (SOUSA, 2000 [1587] apud
FERNANDES, 2016b, p. 17)

Este trecho narrativo poderia ser retraduzido como as


trava indígena que atendiam os ocóssima aláissimi antes dessas
gay dizada virem se dizar pra cá e destruir com o carão das gata
acaissime, foi uó, foi uerro na carreira delas, porque elas nunca
serão perdoadas, “VOU ME VINGAR DE VOCÊ VOU ME
VINGAR DE VOCÊ VOU ME VINGAR DE VOCÊ!” (trecho da
música single “Shake de Amor” da Banda UÓ, 2011)
Https://youtu.be/7DYNuUMDLf4. Morte ao patriarcado,
à heteronormatividade compulsória, à heteronormatização dos
corpos indígenas, à colonização de nossos corpos.
Estevão Fernandes ainda reúne em seu artigo outros
trechos narrativos que apresentam outros povos indígenas tais
como os Tupinambás – com “comportamentos sodomitas e
práticas bestiais” a partir observação etnocêntrica excludente: as
travas Guaykurus denominadas Cudinas; as travas “berdaches”
dos Mbayás; a prática da homossexualidade entre os Tupis como
método de contenção do crescimento populacional exacerbado; a
156

“singular casta” de homens com o papel de servir sexualmente os quem tem cu tem
outros homens nas comunidades dos Chambioás; o bissexualismo medo

entre os Karajás, os Curajahis e os hawakyni dos Javaés e seus


pajés homossexuais; a homoafetividade e bissexualidade entre os aqui só sai
Bororos; a mitologia Apapocuva-Guarani; Teneteharas,
Kuikurus, Trumais, Guayakis; o homem-mulher dos Tapirapés tá nessa!
que ficou grávido e morreu de complicações de parto; o mito dos
Xerentes da origem das mulheres; os Mehinakus; Barasanas; olha o papo desse
“fazer cunin” entre os Krahós; as cudinas dos Kadiwéu; Guarani bicho

Nhandevas; Kaiowás; Terenas; os guaxus dos Guaranis Mbyás e


a mitologia do homem grávido; os Aikewaras e o mito da esse bicho é mó onda

kusó'angaw (mulher-simulacro) conhecida como


ga'ipymonó'monó-tara (“aquele-que-dádemasiadamente-o- é tu q faz o papel de
mulher. tá espérto
ânus”); os Napu ainbu (huni aimbu) dos Kaxinawá
(FERNANDES, 2016b, p. 17-27).
tu sabe que nunca ro-
O “fiscal de cu” (como se denomina pelas redes sociais
lou isso aí com outro.
atualmente as pessoas que se incomodam com o comportamento tá ligado.
dos outros por ser diferente dos seus padrões) e as repressões às
“práticas de sodomia” foram destruidoras da construção social e aí mano esse papo
moral indígena anterior à colonização, sendo que a partir da não rola.
sexualidade branca, se determinou e se estabeleceu leis e condutas
onde já existiam outras leis ancestrais amazônidas que
escandalizavam a moralidade imperialista do colono que
enxergou os indígenas como bárbaros, sodomitas, maliciosos,
selvagens e merecedores de punição até por morte caso não
aceitassem a normatividade imposta pelos
paradigmas Na performance “Fia Sophia”,
sexualizados do domínio patriarcal vigente homogeneizante. compartilhada no Centro de Con-
venções do Hangar em Belém (e
Ivo D’Evreux em seu livro Viagem ao Norte do Brasil melhor detalhado no supcapítulo
(1613-1614) – Voyage au nord du Brésil fait en 1613 et 1614 – 3.3) logo depois de Sophia explicar
que o jogo era dar o batom para as
(DEVREUX, 1874, p. 230 - 233) descreve uma cena típica de pessoas escreverem no corpo de
violência, apagamento e imposição corporal do período de Sophia discursos colonizatórios que
já ouviram outras pessoas falarem
invasão colonial, o relato sobre o assassinato da Tibira
e condenarem seus corpos, e no
Tupinambá – Tibiras eram líderes religiosxs da nação Tupinambá momento que Sophia leva entrega
que mantinham relações sexuais com os homens da comunidade o batom a um indígena, ele escreve
em seu braço: “Indio Sujo”.
157
Na performance Trava Carne - onde
– executado pelos franceses, apoiado pelo narrador – que Sophia e outrxs amigxs estão com
descreve x indígena como “selvagem iniquo, impuro e imundo”, pedaços de carnes e vísceras de açou-
“bruto, mais cavalo do que homem”, e ainda admite omitir fatos, gue distribuindo para as pessoas na
induzindo x indígena a aceitar o batismo cristão como forma de rua - os pedaços de carne represen-
tam pedaços dos corpos de travestis
redenção e mesmo assim articular o assassinato dx inocente
assassinadas que são oferecidas,
Timbira –, e acompanhado ainda por outros indígenas da mesma
jogadas na rua, ignoradas no nojo,
nação Tupinambá, inclusive sendo um indígena quem acende o esquecidas na pressa cotidiana de ir e
pavio do canhão cuja boca a Tibira está amarrada e que quando vir. Trava Carne é o grito de dor por
explode parte o corpo delx ao meio com metade do corpo ficando amigxs assassinadxs e também é o
no chão e a outra metade lançada ao mar. grito de resistência ao silenciamento
Feito isso, levaram-no para junto da peça montada
sistêmico.
na muralha do Forte de S. Luiz, junto ao mar, Trava Carne é uma performance co-
amarraram-no pela cintura á bocca da peça e o
Cardo vermelho lançou fogo á escorva, em letiva que ocorreu pela primeira vez
presença de todos os Principaes, dos selvagens e em 2011 na UFPA, com o coletivo
dos francezes, e immediatamente a bala dividio o
corpo em duas porções, cahindo uma ao pé da [Aparelho]-: e Qualquer Quoletivo
muralha, e outra no mar, onde nunca mais foi no eventto Mídia Cidadã e tem como
encontrada (p. 233)
caleidoscópio o vídeo do artista Icaro
Os processos de colonização dos corpos indígenas foram Gaya que está disponível em seu
tão grandes e efetivos – através da repressão violenta e atos de canal no youtube.
crueldade, que durante um certo período criou-se o mito de que https://youtu.be/9mJDhNrizVs
foram as práticas homossexuais do ocidente que desvirtuaram a
Posteriormente esta ação foi des)
moralidade dos indígenas, porém Luiz Mott (1998) nos mostra
construída em uma segunda perfor-
que já haviam relações homoafetivas entre os povos na “América
mance no evento “Primeira Égua
pré-colombiana” conforme registros em escrituras, cerâmicas, Sarau” com seu desdobramento em
mitos da oralidade local e os primeiros relatos de cronistas em dois vídeos-caleidoscópios.
contato com nações indígenas; além disso Mott põe em cheque
põe em xeque o conceito de “homossexualidade” para definir as https://bit.ly/travapata
relações sexuais entre indivíduos de mesmo sexo e até outras
https://bit.ly/travaenforca
possibilidades de gêneros fora do padrão binário homem-mulher
e para além do two spirits e do entendimento de gêneros e das
designações atuais influenciadas pela ocidentalização do
pensamento (homem trans, mulher trans, travesti, crossdressing,
drags).
Diógenes Cariaga (2015) em seus relatos sobre as
entrevistas feitas atualmente com jovens indígenas Kaiowá,
158

confirma que mesmo estes jovens tendo “relatado


relacionamentos afetivos e sexuais esporádicos com outros
Quando o colonizado passa
indígenas”, os mesmos avaliam que a homossexualidade é um a pensar em suas amarras,
aspecto da cultura dos brancos (CARIAGA, 2015, p. 447), ou a inquietar o colono, en-
viam-lhe boas almas que, nos
seja, é uma cultura que está fora da cultura indígena. Uma “Congressos de cultura”, lhe
percepção equivocada que foi cristalizada no imaginário dos expõem a especificidade, as
riquezas dos valores ociden-
povos indígenas através de um conjunto histórico de interações
tais. Mas todas as vezes que
culturais, repressões e imposições sobre seus corpos e se trata de valores ocidentais
sexualidades “inclusive por meio da violência, se necessário” produz-se, no colonizado,
uma espécie de retesamento,
(STEARNS, 2010, p. 121), sendo tão profundo ao ponto de de tetania muscular.
modificar ao longo do tempo o pensamento e as práticas de várias No período da descoloni-
zação apela-se para a razão
gerações étnicas ancestrais. dos colonizados.
Também podemos observar as influências do sistema Propõem-lhes valores se-
guros, explicam-lhes abun-
patriarcal ocidental sobre os corpos dos africanos que vieram
dantemente que a descolo-
escravizados para o Brasil e sofreram violências, estupros, nização não deve significar
regressão, que é preciso
choques culturais, devorações feitas e regurgitadas com tentativas
apoiar-se em valores exper-
de apagamento e resistência, tanto por estes povos africanos imentados, sólidos, citados.
escravizados e seus descendentes quanto pelos filhos de famílias Ora, acontece que quando
ouve um discurso sobre a cul-
tradicionais de culturas e religiões de matrizes africanas, e que se tura ocidental, o colonizado
reflete atualmente nas tolerâncias e intolerâncias às pessoas saca da faca de mato ou pelo
menos se certifica de que a
definidas como transexuais, e a aceitação destes corpos dentro tem ao alcance da mão.
dos terreiros a partir de negociações e muitas vezes renegociações A violência com que se
afirmou a supremacia dos
que envolvem afeto, respeito à tradição instituída na casa e
valores brancos, a agressivi-
principalmente saber jogar e relacionar-se com um sistema dade que impregnou o con-
matriarcal que adaptou-se ao longo do tempo e que tem grandes fronto vitorioso desses valores
com os modos de vida ou de
marcas de colonizações, como a regra do respeito ao “mais velho” pensamento dos colonizados
adotada no militarismo sendo confundida com o respeito aos fazem com que, por uma justa
reviravolta das coisas, o colo-
ancestrais e às pessoas mais velhas da casa, que são as bibliotecas nizado ria com escárnio
vivas de narrativas orais, como Min-ha nos lembra a respeito da ante a evocação de tais va-
lores. (FANON, 1968, p. 32)
atitude dos africanos em relação à sua ancestralidade, e a
comparação que a autora faz das contadoras de história “griotte”
como detentoras de conhecimento que quando morrem são como
bibliotecas incendiadas (MIN-HA, 1989, p. 121).
159

A lei homogeneizante que busca determinar e categorizar


conclusivamente o sexo, “parece assim advir da organização
social da reprodução sexual, através da construção de identidades
Fia Sophia : ação na
e posições claras e inequívocas dos corpos sexuados em relação
UFPA, campus Bra-
uns aos outros” (BUTLER, 2015, p. 192). A lei simbolicamente é gança
o conjunto de caixas, fôrmas, máquinas enquadradoras que a todo
Negociação política
instante nos re-enquadram retornam à normalidade; máquinas a
na UFPA-Campus
cada microsegundo atualizadas para uma nova versão, máquinas Bragança, em que
automáticas, atóctones e poderosíssimas que questionam até as Sophia, durante um
intermitências das relações de poder e controle nas intimidades evento, apresenta uma
performance a partir
mais profundas do cotidiano do ser humano. Perceber a lei como da música de Criolo
caixas cristalizadoras que enrijecem nossas moldáveis (“Ainda há tempo”) e
identificações é o início do enfrentamento e da disputa por questiona o enquadra-
mento dos intra-mur-
territórios simbólicos presentes tanto dentro da universidade
os acadêmicos e as
quanto fora dela nas relações cotidianas mais privadas, sendo que caixinhas limítrofes
de forma alguma conseguimos escapar das políticas e que ignoram corpos
dissidentes de trav-
micropolíticas onde as relações de poder são negociadas e muitas
estis e naturalizam a
vezes percebemos que desconfortavelmente nos adequamos- violência e a falta de
enquadramos em um modelo para que possamos negociar e acesso às instituições
alcançar outras propostas que nos interessam (p. 184-185). As de ensino (VERGUE-
IRO, 2015, p. 77-78)
críticas sobre os comportamentos e relações sociais, construídas
e oportunidades de
historicamente e tidas como universais, envolvem desde a obra de emprego para além do
Judith Butler (2015) até a música “Little Boxes” de Malvina trabalho como garota
de programa “fazendo
Reynolds (1967), compositora e ativista política, que vislumbrou
ponto” nas esquinas.
uma letra de música a partir de seus incômodos com construções
de moradias em conjuntos habitacionais que pareciam “caixinhas
de tick tack” (tanto pelo tamanho, quanto pela qualidade), e
também pela perspectiva da classe média americana, com o
“padrão” de vida adotado como sendo a norma: nascer, crescer,
estudar, ter um bom emprego, casar, ter um carro e uma boa casa,
ter filhos, envelhecer e morrer; e a vida se repete dentro de caixas,
caixas que nos tornam padrões e repetições como máquinas.
(…)
And the people in the houses
All went to the university
160

Where they were put in boxes [...] Uma nota: o meu


And they came out all the same livro cabe na arte que
And there's doctors and lawyers
And business executives eu aconselho. Apesar do
And they're all made out of ticky tacky erro das digressões e da
And they all look just the same realidade da forma, ex-
plora, não infinito, mas
And they all play on the golf course
And drink their martinis dry loucura - que é um out-
And they all have pretty children ro infinito. É ‘asa longín-
And the children go to school qua a sacudir a loucura,
And the children go to summer camp
nuvem precoce de
And then to the university
Where they are put in boxes sutil vapor”, se não via
And they come out all the same já outros sentidos. Aliás,
(…) ampliação completa há
(Música Little Boxes de Malvina Reynolds)
numa das coisas menos
Malvina Reynolds aponta o pensamento acadêmico como valorosas do livro:
Página dum suicida. É
paradigmático e enquadrador: “Todos vão para a justamente alguém que à
universidade/Onde eles foram colocados em caixas” (“All went força quer partir para o
desconhecido - a morte.
to the university/Where they were put in boxes”. Tradução Esta “justificação” é uma
minha). Porém a autora de Little Boxes não se coloca dentro da coquetterie que você
perdoará. Mas não acha
questão (utiliza o pronome em terceira pessoa no plural “they” –
que é verdade o que eu
“eles”) , por algum motivo ela se se julga fora da caixinha “tick digo? [...]
Descculpe-me, creia na
tack”, talvez por ter feito a música observando a vida de sua
minha estima e ad-
vizinhança, ou talvez por denunciar o enquadramento que todos miração por si e pelas
sabemos existir mas não nos rebelamos contra (?) Ou por só ver suas obras e conte-me
no número dos seus
o outro e não ver-se a si dentro da caixa, ou por ser impossível maiores amigos.
sair da caixa, reiterando a lei em uma ambivalência de sujeição e
Um grande, grande
rebeldia, como Butler sugere (BUTLER, 2015, p. 184-185) abraço
“Sair da caixa” seria uma proposta de pensamento
Sá Carneiro
desalinhador e contra-hegemônico, por uma desconstrução dos
(Carta endereçada à
paradigmas naturalizados durante a história geral Fernando Pessoa em 26
homogeneizante da humanidade a partir de processos de de fevereiro de 1913. In
SÁ-CARNEIRO, 1995,
pensamento e práxis decoloniais. Uma proposta desafiadora, p. 752)
como a obra de Judith Butler que observa os teóricos
contemporâneos e questiona-os a respeito das construções
discursivas normalizadoras e naturalizantes.
Analisando a obra de Julia Kristeva (p. 141-164), Judith
aponta que a autora feminista prefere explicar a experiência
lésbica como um estado libidinal regressivo, anterior à própria
161

aculturação, em vez de aceitar o desafio que o lesbianismo propõe


Esta depreciação eurocêntrica
à sua visão restrita das leis culturais paternalmente sancionadas. ao pensamento produzido a
(p. 154), ou seja, Butler propõe que Kristeva “saia da caixa” e partir de epistemologias do
sul tem uma longa duração
perceba que a sua teoria – imersa nas relações de poder que dizem no “sistema-mundo ociden-
a respeito da sexualidade e do corpo, é fruto de uma percepção talizado/cristianocêntrico
moderno/colonial capitalista/
unívoca do sexo e que o “feminino” e o “corpo materno” são patriarcal”4
construções sociais contextualizadas histórica e culturalmente. O . Desde 1492 até
hoje, uma das hierarquias do
construto unívoco e causal do sexo provém de negociações de
sistema-mundo mais invisibi-
discurso e poder em um “sistema histórico aberto” onde o “Sexo” lizada é a hierarquia
epistêmica global, da qual os
(impropriamente definido) é produzido estrategicamente “para
conhecimentos produzidos no
ocultar e portanto perpetuar as relações de poder” (p. 167). E para “ocidente” são considerados
Foucault, como observa Butler, o sexo é efeito e não origem superiores e os conhecimentos
produzidos no mundo carac-
a noção de sexo acarretou uma inversão
terizado
fundamental; tornou possível inverter a
representação das relações entre poder e como “não ocidental” são
sexualidade, fazendo esta última aparecer não em considerados inferiores.
sua relação essencial e positiva com o poder, mas (GROSFOGUEL, 2012, p.
como enraizada numa urgência específica e
339)
irredutível que o poder faz todo o possível para
dominar (FOUCAULT, apud BUTLER, 2015, p.
167)

Como exemplo das afirmações de Foucault, das


considerações de Butler e outras até aqui apresentadas sobre sexo
“sistema-mundo ocidentaliza-
e poder, referenciamos as culturas indígenas antecessoras ao do cristianocêntrico capitalis-
processo de colonização no período em que estas sociedades ta patriarcal
moderno colonial” (Quijano,
adotavam outras relações de poder, gênero e sexualidade, Aníbal and Wallerstein, Immanuel
diferente das relações concebidas e impostas contextualmente e (1992). “Americanity as a Concept,
or the Americas in the Modern
historicamente pelos colonizadores; pois o pensamento ocidental World-System.” International Jour-
nal of Social Sciences 134: 583-591
incutiu nos habitantes locais a ideia de nação, territorialidade, apud GROSFOGUEL, 2012, p. 341)
deus, pecado, civilizado não-civilizado, dentre tantas outras
palavras e discursos que contribuíram para uma construção
simbólica de um novo corpo, um corpo próximo ao corpo-padrão
do “cidadão de bem europeu” (o tão conhecido-desconhecido
“bom selvagem”), mas que nunca será igual, uma tentativa de ser
branco, um processo de embranquecimento de um corpo ilusório
cristalizado e encaixotado na normattividade de um corpo pré-
discursivo onde a sexualidade indígena é unívoca e a afirmação
162

de indígenas não reconhecerem a cultura gay dentro da cultura


indígena, como comentado acima na pesquisa de Diógenes
Cariaga (2015).
X indígena Tibira, referenciadx acima – condenada
impiedosamente pelo imperialismo sobre os corpos Tupinambás
meu corpo
– teve seu corpo partido ao meio em uma ação punitiva de um minhas regras
comportamento dito “sodomita” a partir da perspectiva situada minhas éguas
minhas tréguas
em um contexto histórico e cultural de “domesticação” do corpo, minhas léguas
onde a Inquisição e Colonização subjugavam em atos minhas quedas
meus amores
interventórios o “novo território” denominado Brasil.
teus amores
O corpo materno não é unívoco (BUTLER, 2015, p. 154, minhas contra-regras
159 e 162), bem como a sexualidade indígena (FERNANDES, minhas desnormatividades
descolonizações das pregas
2016), pois o discurso da sexualidade está impregnado de decolonialidades e gozo
relações de poder (BUTLER, 2015, p. 163), sendo que devemos
recontextualizar o sexo nos termos da sexualidade, pois o poder
oculta “o mecanismo de sua própria produtividade” (p.167).
O conjunto de regulações e controles sociais norteia a
categoria do sexo e a naturaliza, estabelecendo leis que afirmam
que a pessoa é de um sexo e não é de um outro, e que este sexo é
unificado em funções e relações determinadas e invariáveis.
Foucault afirma que a sexualidade e o poder são coextensivos; e
Butler (p. 165-193) observa que, na narrativa de Foucault sobre o
corpo intersexuado de Herculine, o autor romanceia o mundo de
prazeres de Herculine e reifica uma sexualidade múltipla anterior
à lei, sendo que o modelo foucaultiano de política sexual
emancipatória seria a invocação do “tropo de uma multiplicidade
pré-discursiva que efetivamente pressupõe uma sexualidade
‘antes da lei’, a rigor, uma sexualidade à espera da sua
emancipação dos grilhões do ‘sexo’” (p. 170-185).
E para que não romanceemos a sexualidade entre os povos
indígenas devemos considerar que estes também mantinham
construções sociais e relações de poder que fundamentavam e
estruturavam suas sexualidades, apesar de não estarem sob o jugo
das mesmas leis heteropatriarcais ocidentais homogeneizantes; e
163

ainda podemos sugerir que as sexualidades indígenas e africanas


pré-colonização seriam outras alternativas de estruturação do
pensamento a respeito das sexualidades e do corpo a partir de leis
por um man)in)
onde cultura e natureza estão juntas e imbrincadas e onde o festo cuír cabokéty-
binarismo cartesiano não subsiste (ESCOBAR, 2005, p. 67). ca encatada
O binarismo cartesiano que Foucault tenta tanto afastar e
Meu corpo é en-
não consegue, “esse lúgubre binário do Mesmo e do Outro se dá cantaria do lugar,
em conformidade com o eixo da diferença sexual” (BUTLER, das amazônias sugo
as vidas, minhas
2015, p. 180), pois: identidades transi-
(...) a lei não é meramente uma imposição cultural tam espaços não-
feita a uma heterogeneidade de outro modo visíveis neste plano,
natural; ela exige a conformidade à sua própria meus planos são
noção de “natureza”, e ganha sua legitimidade
através da naturalização binária e assimétrica de de sabotar o mun-
corpos em que o Falo, embora claramente não do, devoro mares,
idêntico ao pênis, ainda assim exibe o pênis como vomito desgostos
seu instrumento e signo naturalizados. (p.184) e gosto de engolir
leci. A garganta
Irigaray afirma que a dialética binária do Mesmo e do
arranha quando o
Outro é falsa, com uma ilusão de simetria entre ambas, pois, leite é derramado,
segundo Butler, Irigaray sugere que o sexo feminino é e também arranha
quando dá um
irrepresentável mediante a “economia metafísica do nó de desgosto
falocentrismo, a economia do mesmo”, ou seja, o Outro e o e desespero. Diz
espero porque em
Mesmo são marcados pelo masculino (p. 180). Mais adiante jah há ambivalên-
Judith Butler, confirmando as considerações de Irigaray, cita as cia, bem como em
exu. Somos porta
geneticistas Eva Eicher e Linda L. Washburn que expõem em sua
aberta, nocaute
pesquisa mal dado, tombo e
que a determinação dos ovários nunca é levanto, nos intem-
considerada na literatura sobre determinação peries de ventos em
sexual, e que a feminilidade é sempre conceituada popa navegamos
em termos da ausência do fator determinante sem naufraga ou
masculino ou de presença passiva desse fator (p.
188-189) afundamos mar
adentro abissais.
Ou seja, as autoras sugerem que as construções históricas Os dois caminhos
em que não há cura
e culturais a respeito do sexo influenciam as pesquisas
ou cortes de sepa-
acadêmicas, e Butler – como Cusicanqui (2010) denomina estas ração, sobrepostos,
relações de poder acadêmicas de “economia política do posto um grito de
liberdade afogada.
conhecimento” (p. 65) – sugere que este “preconceito cultural” E sigamos cantando
(BUTLER, 2015, p. 189) é construído por relações de poder borbulhas de amor
à luz da lua, pra
fundamentadas sob o jugo da ideia de um ”gene mestre” e o referendar um brega
carinhoso teimoso,
ou vagoso. Vá gozo!
A partir deste trecho, permito-me uma
164 breve divagação sobre que lugar existe
para uma mulher trans pesquisadora na
paradigma binário homem/mulher, e que estas relações tendem a academia: ‘marcar minha subjetividade’
esvaziar os discursos sobre outras hipóteses de como a a partir de um trabalho de campo com
travestis e transexuais? Transformar-me
sexualidade é determinada geneticamente. em transexual ou travesti política – seja
Dr. David Page classifica o cromossomo Y humano como lá o que isso signifique para uma pes-
soa trans*? Ser a transexual que ‘marca
sendo o determinante do sexo (é homem ou não é) mesmo a subjetividade’ de pesquisadores? Ou,
admitindo em contradição que pelo menos 10 por cento da talvez, não se encontrar nestas perspec-
tivas epistemológicas e analisar a cis-
população mundial não se adequa a classificação XX = mulher e
colonialidade do saber que atravessa a
XY = homem, pois justifica a divergência em sua pesquisa através academia?
Afinal, o texto acadêmico se dirige às
da construção binária do sexo.
pessoas trans, às travestis, às mulheres e
Page reagiu a essa curiosa descoberta afirmando homens trans e transexuais, ou se re-
que talvez o fator decisivo não fosse a presença da
sequência de genes nos homens versus sua stringe a falar sobre elas, supondo (e
ausência nas mulheres, mas sim o fato de ela ser produzindo)
ativa nos machos e passiva nas fêmeas (p. 187) nossa inexistência na academia? E, se
fala sobre elas, fala sobre elas para quem,
E Butler (p. 191) provoca ao questionamento quando Page e para quê? Estas questões, que agora
admite uma pessoa XX como homem através da sua genitália orientam minhas fundamentações para a
autoetnografia, também servirão para al-
devido uma “convenção puramente cultural”. O falo como signo
gumas reflexões sobre cistemas acadêmi-
definitivo do sexo, é determinante nas cirurgias de recém- cos, mais adiante.
nascidos intersexuados: se a pessoa nasce com um pênis ela é Gradualmente, assim, fui sentindo que,
para produzir um trabalho acadêmico
homem, se na ausência ou um pênis de tamanho inferior ao padrão crítico sobre diversidades corporais e de
admitido considera-se a pessoa como mulher, como ocorreu no identidades de gênero, implicar minhas
próprias experiências e refletir sobre
processo cirúrgico feito no corpo de Herculine. como minha subjetividade enquanto
A autora de Problemas de Gênero ainda nos apresenta a pesquisadora trans se constituíam como
requisitos fundamentais, particular-
crítica feminista a respeito da perspectiva nucleocêntrica presente mente em um contexto em que exclusões
na maioria das pesquisas em biologia celular molecular; enquanto e marginalizações de pessoas trans* e
gênero-diversas restringem as complex-
a preocupação de muitos pesquisadores ainda que ainda
idades destas existências. Neste sentido,
permanece no modo como o núcleo celular vai mudando, porém pensar as des+colonizações de corpos e
Eicher e Washburn sugerem que as pesquisas devem voltar-se às gêneros inconformes requeriria trazer
meu corpo e minhas vivências, minha
interações citoplasmáticas nucleares e como estas se alteram “vida corporal que não pode estar aus-
durante todo o processo de diferenciação do sexo (p. 189-190). ente da teorização” (BUTLER, 1993, IX)
(tradução nossa).
A racionalidade cartesiana de Page em confronto com a VERGUEIRO, 2015, p. 22-23
natureza de Herculine é a "estrutura binária que aceitamos sem
questionar" (p. 191); porém um pensamento fora do padrão
dialético natureza/razão, mulher/homem se aproxima das
165

perspectivas ameríndias em que não há separação e classificação


hierárquica como as aplicadas pelo pensamento ocidental.
A intersex Herculine, assim como x Timbira assassinada
pelos franceses em concordância com D’evreux, recebeu sua
“punição” por ter um corpo fora da normalidade hegemônica;
Herculine como é descrito em seu diário, esteve psicologicamente
tão abaladx, que cometeu suicídio talvez na esperança de uma
última “fuga da caixa” que a tentava enquadrar em um sexo
unívoco – Herculine, como afirma Butler, tinha um vasto
conhecimento e muita leitura, e talvez deva ter percebido que
mesmo se esforçando para entender seu sexo e sexualidade,
porém a partir do pensamento homogeneizante dominador,
Herculine se sentia sufocada por tantas repressões ao seu corpo
que não se encaixava na naturalização do sexo unívoco, e assim
Herculine optou por tirar a vida não suportando mais os homens
e a humanidade; de outra maneira mais cruel x Timbira foi morta
sem ao menos compreender qual ato tão “grave e falho” havia Precisamos aprender e mul-
tiplicar truques, mandingas,
cometido ao longo de sua vida. estratégias de resistência,
Herculine apresenta em seus escritos uma profunda internalização de recursos,
autogestão, debate público
relação com a gargalhada, que é enfatizada por Judith Butler em
de ideias, entre tantas out-
sua obra, primeiramente por Herculine ter pavor de ser motivo de ras coisas para estes gêneros
tão deslegitimados.
risadas para as outras pessoas, e posteriormente a própria
O quanto nossas episte-
Herculine gargalha desdenhando o seu médico que não assume mologias queer, feministas
um posicionamento crítico a respeito da natureza do corpo de e trans*feministas estão
contribuindo para estes
Herculine; neste sentido a gargalhada de Herculine, segundo processos? Devemos am-
Butler, parece designar “humilhação ou desdém, duas posições pliar e aprofundar nossas
contribuições?
inequivocamente ligadas a uma lei condenatória, estando a ela Estamos priorizando as
sujeitas como seu instrumento ou objeto” (p. 181). Mas a pautas mais necessárias e
urgentes, de forma crítica?
sexualidade de Herculine não está “fora da lei”, ela é a “produção
Que estratégias estamos
ambivalente da lei”, pois Herculine é ao mesmo tempo sujeição e utilizando para questionar e
rebeldia a esta lei, permanecendo dentro da “economia enfrentar os musgos colo-
nialistas
significante da masculinidade” onde a lei abrange o que está “fora sobre as ciências mais
da lei”, engolindo-a; é um jogo estratégico da própria lei que institucionalizadas e disci-
plinadas?
negocia discursos com os que se opõem a ela e permite que as (VERGUEIRO, 2015, p.
193)
166

rebeliões sejam feitas até o ponto em que a própria lei possa


contê-las e os sujeitos se submetam e reiterem a lei de sua gênese
(p. 185).
A categoria do sexo pertence a um sistema de
heterossexualidade compulsória que claramente
opera através de um sistema de reprodução sexual
compulsória. (...) “masculino” e “feminino”,
“macho” e “fêmea” existem unicamente no
âmbito da matriz heterossexual; de fato, são esses
os termos naturalizados que mantêm essa matriz
oculta, protegendo-a consequentemente de uma
crítica radical. (p. 194-193)

Para Monique Wittig, segundo Butler (p. 193-222), o


gênero é uma espécie de “devir ou atividade”, “uma espécie de
ação cultural/corporal que exige um novo vocabulário” (p. 195),
ou seja, o gênero é performático-performativo, e assim devemos
observá-lo através dos processos de interação cultural ao longo
das histórias (fugindo do nucleocentrismo, como Eicher e “- Sou sujeito homem”.
Quantas mona não ouvi-
Washburn propõem); a exigência de um novo vocabulário,
ram algum boy em algum
provém do reconhecimento de que a construção cultural do momento de seus viço
dizer isso: “- Sou sujeito
gênero possibilita diversas outras possibilidades além do padrão
homem, pow, não curto
binário da heterossexualidade compulsória e da naturalização dos essas parada”. O “eu” aqui
corpos como masculino e feminino. designado como sujeito
homem é a definição
O sexo é nomeado a partir do construto falocêntrica de uma dom-
discursivo/perceptivo e determinado através de dominação e inação cultural e conse-
quentemente linguística
coerção para admitirmos a ideia naturalizada de comportamentos e discursiva; o “sujeito” é
e padrões estabelecidos politicamente em categorias binárias (p. “homem” e tem “atitudes
de homem”.
201), como vimos no caso dos indígenas e a mudança do
pensamento e práticas sexuais ao longo do tempo.
E Butler ainda acrescenta sobre o pensamento de Wittig
que:
(...) as reificações sociais do sexo mascaram ou
distorcem uma realidade ontológica anterior,
sendo esta realidade a oportunidade igual que
todas as pessoas tiveram, antes de serem marcadas
pelo sexo, de exercer a linguagem na afirmação da
subjetividade. (p. 204)

A saída, a fuga da caixinha (little box), que Wittig propõe,


é exercer a linguagem a partir de um obsolescência das categorias
167

sexuais na linguagem, e operando a obra literária como “máquina


de guerra”, destruir para restaurar.
457.
Em Les Guérrillères [As guerrilheiras], ela busca
eliminar todas as conjunções ele-eles (il-ils), ou, a
rigor, todos os “ele” (il), e colocar elas (elles) na As coisas modernas são
posição do geral, do universal. “O objetivo dessa (1) A evolução dos espe-
abordagem”, escreve ela, “não é feminizar o lhos;
mundo, mas tornar as categorias do sexo obsoletas
na linguagem” (p. 208) (2) Os guarda-fatos.
Passámos a ser criaturas
Assim como também propomos nesta narrativa- vestidas, de corpo e alma.
Mas tu serás assim? Tão velho? E tão triste? (Trecho do poema recitado por irmã H quando esta depara-se com o

E, como a alma corre-


performática – utilizar “X” na posição do geral (elxs), e para
sponde sempre ao corpo,
pessoas trans (“x travesti” ou “x trans”, por exemplo), Wittig um traje espiritual esta-
utiliza o texto literário como máquina de guerra a favor das beleceu-se. Passámos a
ter a alma essencialmente
lésbicas, o feminino da linguagem para subverter o pensamento, vestida, assim como
sugerindo que a lesbianização do discurso faz parte do projeto de passámos - homens,
corpos - à categoria de
“travar uma guerra linguística contra um ‘mundo’ que constitui animais vestidos.
um ataque semântico e sintático contra ela” (p. 208). Não é só o facto de que o
nosso traje se torna uma
Devemos entender a dominação como a negação
da unidade anterior e primária de todas as pessoas parte de nós. É também
num ser pré-linguístico. A dominação ocorre por a complicação desse traje
meio de uma linguagem que, em sua ação social e a sua curiosa qualidade
anjo de Odilon Redon na peça teatral “O Rato no Muro” de Hilda Hilst)

plástica, cria uma ontologia artificial de segunda


ordem, uma ilusão de diferença e disparidade e,
de não ter quase nen-
consequentemente, uma hierarquia que se huma relação com os
transforma em realidade social (p. 205) elementos da eleg^^ancia
natural do corpo nem
Esta plasticidade ontológica sobre o “eu” – que determina com os dos seus movi-
“a noção de ‘sujeito’ como território masculino exclusivo” e que mentos.
Se me pedissem que ex-
Wittig considera como “little box” e também propõe a fuga: “o plicasse o que é este meu
Ser como ser não é dividido” (WITTIG apud BUTLER, 2015, p. estado de alma, através
de uma razão social, eu
204) – é criticada por Judith Butler, que questiona: “a que relações
responderia mudamente
sociais contingentes serve pressupor o ser, a autoridade e a apontando para um
condição universal de sujeito?”, ou seja, a proposta de Butler, ao espelho, para um cabide
e para uma caneta com
contrário do sujeito universal de Wittig, é descentrar a unidade tinta. (PESSOA, 1999, p.
deste “eu” pré-linguístico, e “suas estratégias epistemológicas 402)chora na odara

universalizantes” (BUTLER, 2015, p. 204-205). Além disso,


Wittig acredita na “purificação da homossexualidade”, isto é, a
homossexualidade está situada fora da heterossexualidade.
Ao que parece, a visão de Wittig recusa a
possibilidade de uma heterossexualidade volitiva
ou optativa; todavia, mesmo que a
heterossexualidade seja apresentada como
168

obrigatória ou presumida, não decorre daí que jogue


todos os atos heterossexuais sejam radicalmente
determinados. Além disso, a disjunção radical de
Wittig entre hétero e gay reproduz o tipo de
binarismo disjuntivo que ela mesma caracteriza
como o gesto filosófico divisório da mentalidade
hétero. (p. 210-211)

Nas ações cotidianas já me deparei muitas vezes com


reações de “machos” que replicaram o discurso opressor de uma
“mentalidade hétero”, e sim, também já me senti coagidx, mas
outras fui mais ougsadaann e aquendei, fazendo a egípicia, a mala
do ocossima, e o ocó não dizou a gata. O discurso
heteronormativo é tão influente, poderoso e opressor sobre nossos
corpos, que mesmo querendo fazer, muitos boys não fazem, se mais uma
limitam ao receio e medo de vir a ser outra coisa que não um vez

“macho alfa”. Um jogo estreito e tênue é estabelecido nas


relações homoafetivas entre monas e ocós, que perpassa desde o
discurso do ativo e passivo até as intermitências das relações de
sexo por dinheiro, porém as gata que são gata, que estão no
cotidiano dos viço todas sabe que “não é bem assim”, existem
profundidades muito mais imbricadas que estabelecem uma
relação em que uma bicha “namora” um “cara” que também fica
com mulheres. Essas ações homoafetivas, que parecem destoar
com a realidade heteronormativa assumida pelo boy, são
negociações de uma estrutura de poder que se fundamenta na
jogo tuas doídas
ambivalência entre a afirmativa de que o homem é superior à
bicha e a transformação desta afirmativa (o dito) em ações entre
quatro paredes onde as identificações de sexo binário e unívoco
se diluem em cama, suor e gozo.
E por isso que Butler afirma que “a disjunção radical
proposta por Wittig entre heterossexualidade e homossexualidade
é simplesmente falsa” (p. 211). Para a autora mais babadera, que
destrói em seu livro sobre desconstruções de gênero, o foco é na
paródia e na subversão do poder ao invés de desejar uma pureza
e “completa transcendência” (p. 215) de uma identidade lésbica
politicamente necessária do feminismo. Butler, analisando os
Prática I - O ânus solar de Ron Athey
Encontro de um dildo sobre sapatos com salto
agulha, seguido de autopenetração anal 169
pensamentos de Wittig, se questiona sobre a possibilidade do [...]
nome lésbica vir a ser categoria compulsória e a possibilidade d a Princípio que dirige a
prática: Esta prática foi
sexualidade lésbica contestar as categorias de “sexo”, planejada como a repetição
“mulheres”, “corpos naturais” e inclusive “lésbica” (p. 221). da sequência da performance
de Ron Athley. O ânus solar,
Contudo vale ressaltar que a ficção de Wittig é “uma luta no espaço doméstico. É
erótica para criar novas categorias a partir das ruinas das velhas”, recomendada especialmente
para maridos desocupados e
novas estruturações culturais de corpo descritas por novas
solitários no lar, que ttenham
linguagens (p. 220); porém a estratégia lésbica que exclui tendências transgêneras ou
homossexuais ainda enexplo-
radicalmente a heterossexualidade impossibilita a ressignificação
radas. Também é recomen-
dos construtos heterossexuais que a constituem, resultando “que dada para: as caminhoneiras
essa estratégia lésbica consolidaria a heterossexualidade e as butchs, lésbicas com
identificação masculina (com
compulsória em formas opressivas”. E por isso que Butler propõe ou sem parceiro) passíveis
a ousada estratégia de problematizar a categoria do sexo e de term abandonado toda
atividade sexual dirante
“articular a convergência de múltiplos discursos sexuais” e um período superior a seis
“identidades” (p. 222). meses.
A separação alma/corpo interior/exterior mente/corpo
Número de corpos (ou su-
cultura/natureza, o corpo como uma página em branco, corpo- jeitos falantes) que compar-
pecado, são paradigmas referenciais modernos cristãos e tilham esta prática: 1

cartesianos (LANDER, 2005) que de uma forma ou de outra ainda Tecnologia: Translação
permanecem ao longo das fundamentações teóricas de autores contrassexual do dildo sobre
sapatos com salto agulha
que Butler referencia: como Sartre e Beauvoir, que adotam a seguiddos de autodildagem
perspectiva de um corpo anterior à algum significado e uma
Material: Um enema, um par
“consciência transcendental” para compreendê-lo; Wittig por
de sapatos com salto agulha,
sugerir que “o corpo” não admite genealogia; e Foucault por dois dildos (um pequeno e
duro, outro maior e macio),
observar o corpo “como superfície e cenário de uma inscrição
duas cordas, uma poltrona.
cultural” sob o modelo civilizatório de Freud, ou seja, um corpo
que é necessário “ser destruído e transfigurado para que surja a Duração toal: 11 minutos.

‘cultura’” (BUTLER, 2015, p. 224-226) Objetivo da prática: apren-


Dos boys que não conseguem assumir um relacionamento der a trafegar com dildos
recorrendo a uma tecnologia
homoafetivo podemos concluir que o medo de ser descoberto, de sexual similar à da collage ou
sair do armário é muito grande; e pensando a respeito do que é à da gramatologia. O exer-
cício consiste em reunir uma
“sair do armário” podemos dizer que as padronizações culturais
prática de cross-dressing ou
sobre o sexo instituíram que nós, bichas, devemos nos enquadrar travestimento (para homens
em uma categoria diferenciada de homem, e que somos separadxs ou mulheres com identi-
ficação masculina) e uma
prática de autopenetração
com dildos.
170

da identidade masculina, e muitas das vezes replicamos estes Descrição da Prática: Dis-
pa-se. Prepare um enema
discursos e negociamos relações sexuais com ditos homens nos
anal. Deite-se de lado e
sujeitando a acordos tácitos entre bichas e machos que na prática repouse nu durante dois
minutos depois do enema.
não são efetivamente influenciadas por este discurso, mas por
Levante-se e repitaem voz
relações culturais, sociais e afetivas construídas ao longo da alta: dedico o prazer do
história de nossos corpos e das convivências, interações e fricções meu ânus a todas as pes-
soas portadoras de HIV.
com outros corpos. Aqueles que já sejam por-
E por isso Mary Douglas fala em “desordem”, pois “as tadores do vírus poderão
dedicar o prazer de seu
fronteiras do corpo se tornam os limites do social per se” (p. 227). ânus a seus próprios ânus e
O “socialmente hegemônico” é poluído por forças distoantes, à abertura do ânus de seus
entes queridos. Coloque
“erradas” que ultrapassam as fronteiras e consequentemente
um par de sapatos com
assustam e causam medo para os que estão confortavelmente salto agulha e amarre dois
estruturados e encaixados. O corpo representa um sistema dildos aos tprnozelose aos
sapatos. Prepare seu ânus
delimitado e suas fronteiras são vulneráveis, e justamente por para a penetração com um
serem vulneráveis são perigosas, “todo tipo de permeabilidade lubrificante adequado.

não regulada constitui um lugar de poluição e perigo” (p. 229). Deite-se em uma poltro-
“O” corpo naturalizado, construído a partir de privações na e tente dar o cu a cada
dildo. Utilize sua mão para
e proibições baseadas na punição modelam comportamentos
que o dildo penetre seu
binários com “fronteiras estáveis” (p. 229). Passar o cheque, dar ânus, grite seu contranome
copiosamente. Por exem-
o edi com a pata, dizar a nena, fazer a chuca. Ou então não;
plo: “Juúia,” “Júlia”. Depois
higienizar-se, “essa via é de mão única”, “aqui só sai”, “só como de sete minutos de auto-
viado, não dou”. “Essa vedação de suas superfícies constituiria a dildagem emita um grito
estridente para simular um
fronteira sem suturas do sujeito; mas esse enclave seria orgasmo violento.
invariavelmente explodido pela própria imundície excrementícia
A duração total da prática
que ele teme” (p. 231); e assim os discursos se amolecem na deve ser controlada por um
cama, a alcânia tá de idê, ela vai troá depois do viço, e todas faz cronômetro que indicará,
como um voyeur do tempo,
a egípicia, ninguém aquendou nada, essa função tá babado, “eu
o final do prazer e o apogeu
não entendo nada, pai” (trecho da música “Ponta de Lança, Verso orgástico. A simulaçãoi do
Livre” de Rincón Sapiencia, 2017). orgasmo será mantida por
dez segundos. Em seguida,
As negociações feitas na cama são denominadas por Félix a respiração se fará mais
Guattari como “micropolítica do desejo”: lenta e profunda, as pernas
e o ânus ficarão totalmente
Antes de explicar qualquer coisa, seria preciso
primeiro procurar compreender o que se passa
relaxados.
entre a prostituta e seu cafetao. Há o triangulo (PRECIADO, 2014, p.
prostituta-cafetao-dinheiro. Mas há também toda 53-57. Imagens do texto
uma micropolítica do desejo, extremamente original suprimidas)
171
O corpo da multidão
complexa, que está em jogo entre cada pólo deste queer aparece no centro
triângulo e diversos personagens tais como o
cliente e o polícia. As prostitutas têm certamente do que poderíamos
coisas muito interessantes a nos ensinar a respeito chamar, para retomar
disso. E ao invés de persegui-las, tinha-se mais é uma expressão
que subvenciona-las, como se faz com os de Deleuze/Guattari, de
laboratórios de pesquisa! Quanto a mim, estou
convencido de que é estudando toda esta um trabalho de “dester-
micropolitica da prostituição que se poderia ritorialização”
esclarecer, sob uma nova luz, pedaços inteiros da da heterossexualidade.
micropolitica conjugal e familiar - a relação de Uma desterritorial-
dinheiro entre o marido e a mulher, os pais e os
filhos, e, mais além, o psicanalista e seu cliente. ização que afeta tanto o
(GUATTARI, 1985, p. 37) espaço urbano (portan-
to, se haveria de falar de
As fronteiras instituídas pela lei sobre o corpo são desterritorialização do
taticamente invadidas, rompidas, borradas, a partir das espaço majoritário, e
não de gueto) como o
micropolíticas entre homens que se desejam, como Guattari fala espaço
sobre a micropolitica do desejo entre a prostituta, o cafetão, o corporal. Este processo
de “desterritorialização”
cliente e o policial.
do
Segundo Edgardo Lander, a “lei”, que Butler se refere é a corpo supõe uma re-
sistência aos processo
“objetividade e neutralidade dos principais instrumentos de
de chegar
naturalização e legitimação” do discurso hegemônico de um a ser “normal”. O fato
modelo civilizatório universal denominado sociedade capitalista- de que haja tecnologias
precisas
liberal (LANDER, 2005, p. 8); onde a “auto-consciência europeia de produção de corpos
da modernidade” afirma uma colonialidade “entre ocidental ou “normais” ou de nor-
malização
europeu (concebido como o moderno, o avançado) e os ‘Outros’, dos gêneros não acarre-
o restante dos povos e culturas do planeta” (p. 10); a construção ta um determinismo
nem uma impossibili-
eurocêntrica de um conhecimento objetivo e universal, com uma
dade de ação política.
“fissura ontológica entre a razão e o mundo”; fronteiras Pelo contrário.
institucionalizadas entre corpo e alma; fronteiras que são Dado que a multidão
queer traz consigo
devoradas nesse trabalho a partir de observações de nossas mesma,
ancestrais matriarcais, no cozinhar e esquentar o ventre no fogão como fracasso ou
resíduo, a história das
do terreiro, na oralidade de narrativas geracionais, afetividade e tecnologias
admoestações a partir da experiência e convívio, subversões e de normalização dos
corpos, ela tem também
processos de resistência em linguagem, cultura e religiosidades
a
de origens africanas e indígenas. possibilidade de intervir
nos dispositivos biotec-
Os corpos-fronteiras não são “um ser”, eles estão
nológicos
marcados por um gênero hierarquicamente construído em um de produção de subje-
contexto histórico e cultural; e o que seria para Sartre um “estilo tividade sexual. (PRE-
CIADO, p.15 )
172 eis o desafio!
de ser” e para Foucault uma “estilística da existência” – na CONTRATO CONTRASSEXUAL
(MODELO)
tradução de Butler, baseada na leitura de Beauvoir, são “estilos
da carne”, sendo que estes estilos não são plenamente originais; EU, .............................., voluntária e
corporalmente, renuncio à minha
pois o gênero é um projeto corporal contínuo e repetido, “que tem
condição natural de homem ou de
como fim sua sobrevivência cultural (...) o gênero é uma mulher, a todo privilégio (social,
performance com consequências claramente punitivas” econômiico, patrimonia) e a toda
obrigação (social, econômica, repro-
(BUTLER, 2015, p. 240-241). Performamos um gênero “que dutiva)derivados de minha condição
produz um efeito de núcleo ou substância interna”, que organiza sexual no âmbito do sistema hetero-
centrado naturalizado. RECON-
e mantém a ilusão de regularidade da “sexualidade nos termos da HEÇO-ME e reconheço os outros
estrutura obrigatória da heterossexualidade reprodutora” (p. 234- como corpos falantes e aceito, de
pleno consentimento, não manter rel-
235).
acionamentos sexuais naturalizantes
Se a verdade interna do gênero é uma fabricação, nem estabelecer relações sexuais fora
e se o gênero verdadeiro é uma fantasia instituída
de contratos contrassexuais tem-
e inscrita sobre a superfície dos corpos, então
parece que os gêneros não podem ser nem porário e consensuais. RECON-
verdadeiros nem falsos, mas somente produzidos HEÇO-ME como produtor de dildos
como efeitos da verdade de um discurso sobre a e como transmissor e difusor de dil-
identidade primária e estável (p. 236)
dos sobre meu próprio corpo e sobre
E assim, Esther Newton, segundo Butler, sugere que x qualquer outro corpo que assine este
contrato. RENUNCIO de antemão
travesti é a subversão dos espaços psíquicos interno e externo, e a todos os privilégios e à todas as
nós acrescentamos ainda que x travesti é x “fora da lei”, a obrigações que poderiam derivar das
posições desiguais de poder geradas
gargalhada de Herculine, a “fuga da caixa”, onde todxs almejam pela reutilização e a reinscrição do
estar, mas não tem coragem e continuam mantendo a fantasia de dildo. RECONHEÇO-ME como
um ânus e como um trabalhador do
uma dita “verdadeira” identidade de gênero construto da
cu. RENUNCIO a todos os laços
“caixinha” da heterossexualidade compulsória. Algumas teorias de filiação (maritais ou parentais) que
me foram atribuídos pela sociedade
feministas observam a tradução das “identidades parodísticas”
etnocentrada, assim como aos privilé-
(das drags e do travestimento) como formas “degradantes das gios e às obrigações que delas deri-
mulheres”, porém Butler sugere que a “performance da drag vam RENUNCIO a todos os meus
direitos de propriedade sobre meus
brinca com a distinção entre a anatomia do performista e o gênero fluxos seminais ou produções de meu
que está sendo performado”, e suas “gargalhadas” e “fugas da útero. Reconheço meu direito de usar
minhas células reprodutivas unica-
caixa” cruzam as fronteiras do que Buttler denomina como mente no âmbito dde um contrato
“dimensões contingentes da corporeidade significante: sexo livre e consensual, e renuncio a todos
os meus direitos de propriedade sobre
anatômico, identidade de gênero e performance de gênero”, pois
o corpo falante gerado por tal ato de
a drag, que imita o gênero, desnuda “a estrutura imitativa do reproudução.
próprio gênero – assim como sua contingência” (p. 237). O “le
O presentte contrato é válido por ......
pastiche”, assim como a “paródia” são imitações de uma unidade meses (renovável)

......................, ..... de ................ de .........


173

discursiva, que se diferem entre si pela comicidade que a paródia


possui e a falta de humor característica do pastiche (JAMESON,
1993, p.14 apud BUTLER, 2015, p. 239). Para Butler “o normal”,
“o original” é uma cópia distorcida de um ideal inalcançável, e a
subversão da paródia, a gargalhada, é sugerida pela autora como
“disruptiva” e perturbadora, apesar da “hegemonia cultural”
tentar engolir as práticas subversivas em uma tentativa de
domesticá-las a partir da naturalização do discurso binário.
E que tipo de performance de gênero representará
e revelará o caráter performativo do próprio
gênero, de modo a desestabilizar as categorias
naturalizadas de identidade e desejo? (p. 240)

As ações performáticas criam a ideia de gênero, e sem


essas ações não há “ideal” ou “essência” ou realidade nesta ideia, “Desidentificação”
(para retomar a for-
logo acreditar na necessidade e naturalidade do gênero é mulação de De Lau-
construção social elaborada e imposta historicamente a partir de rentis), identificações
estratégicas, recon-
possíveis estilos corporais, reificações do binarismo das versão das tecnologias
sexualidades e sexos, “ficções culturais punitivamente reguladas, do corpo e desontolo-
gização do sujeito da
alternadamente incorporadas e desviadas sob coação” (p. 241). O
política sexual, estas
gênero é uma “temporalidade social constituída”, ou seja, são algumas
das estratégias políti-
processo que se constitui ao longo do tempo a partir das
cas das multidões
interações culturais estratégicas e possíveis e das relações de queer.
poder impostas e/ou negociadas, e representadas simbolicamente Preciado, 2011, p. 15

pela “repetição estilizada de atos”. (p. 242).


E traduzindo para a linguagem teatral: Os atores (sociais)
dramatizam, performam, para a “plateia social mundana”, ações
a partir da construção fantasiosa de uma identidade de gênero. E
Butler acrescenta:
O fato de a realidade do gênero ser criada
mediante performances sociais contínuas
significa que as próprias noções de sexo essencial
e de masculinidade e feminilidade verdadeiras ou
permanentes também são constituídas, como parte
da estratégia que oculta o caráter performativo do
gênero e as possibilidades performativas de
proliferação das configurações de gênero fora das
estruturas restritivas da dominação masculinista e
da heterossexualidade compulsória (p. 244)
174
Des-identificação.
A grande questão de Judith Butler, em sua mais conhecida Surge das bolachas que
obra, é o “sujeito” e a relação “sujeito” e “objeto” e a não
são mulheres, das
possibilidade da política feminista subsistir na categoria de bichas que não são
mulheres sem um “nós” feminista. “O raciocínio fundacionista da homens, dos
trans que não são
política da identidade” (p. 245) obriga a existência de um “eu” homens nem mulheres.
identitário para que haja a ação política; e para a autora, o “ator Neste sentido,
se Witting foi recu-
social” o “agente é diversamente construído no e através do ato”,
perada pelas multidões
e este “sujeito”, este “eu” não é pré-discursivo e também não é queer
é precisamente porque
determinado pelo discurso, “com a determinação excluindo a
sua declaração “as
possibilidade de ação” (p. 246), então o etecetera no final das lésbicas
enumerações das teorias da identidade feminista nunca consegue não são mulheres” é
um recurso que per-
alcançar todas as identidades. mite combater
Trata-se de um sinal de esgotamento, bem como por meio da des-iden-
do próprio processo ilimitável de significação. É tificação a exclusão da
o supplément, o ecesso que necessariamente
identidade
acompanha qualquer esforço de postular a
identidade de uma vez por todas. Entretanto, este lésbica como condição
et cetera ilimitável se oferece como um novo de possibilidade da
ponto de partida para a teorização política formação
feminista (p.247)
do sujeito político do
Ao invés das teorias do conhecimento moldadas na feminismo moderno.
Identificações estratégi-
epistemologia e que relacionam a identidade em um controle cas. Identificações
experimental lógico, Butler sugere explicar a identidade nas negativas
como “bolachas”
“práticas de significação” e percebe “o próprio modo ou “bichas” se con-
epistemológico como prática significante possível e contingente” verteram em lugares
de produção de iden-
(p. 249), ou seja, a identidade é significada e significa, resignifica
tidades que resistem à
os vários discursos interligados que a simbolizam; a afirmação do normalização,
“eu” é composta por uma estrutura de significação, normas que que desconfiam do
poder totalitário, das
regulam a linguagem e práticas com códigos corporais chamadas à “universal-
estabelecidos para a sua compreensão; e a subversão da ização”.
(PRECIADO, trad. R.
identidade só é possível “no interior das práticas de significação Rosas)
repetitiva” em que estamos enquadrados por processos
regulatórios de repetição, que ocultam e impõem regras, pois A tradução é de Ricardo
“toda significação ocorre na órbita da compulsão à repetição”, e Rosas, que vale a pena ser
rememorado como uma
devemos fugir dessa repetição em processos e possibilidades de
bicha autodidata babadeira
gênero fora do padrão binário hieraquirzado (p. 250) do midiativismo que já dizou
deste plano.
O texto pode ser lido em out-
ra tradução (Maria Ribeiro)
em PRECIADO, 2011, p.15.
175

O gênero é um “ato” sujeito a paródias de si mesmo, A escravatura é a lei


da vida, e não há out-
críticas subversivas das “estruturas políticas generativas” e ra lei [...] Eu mesmo,
gargalhadas contorcionistas dentro da caixinha de presente vinda que anseio alto pelo
sol puro e os cam-
direto do “Mundo de Alice” para a “realidade”.
pos livres, pelo mar
visível e o horizonte
- E o que é a “little box” para Sophia? inteiro, quem me diz
que não estranharia
a cama, ou a comida,
A lógica totalizante e universal de estruturação da ou não ter que descer
os oito lanços de es-
humanidade naturaliza os corpos, porém estes mesmos corpos cada até à rua, ou não
podem vir a ser dissonantes e desnaturalizados através de entrar na tabacaria da
esquina, ou não tro-
processos artístico-performáticos que revelam a própria
car os bons-dias com
performatividade do natural como uma cópia mal feita, um o barbeiro ocioso?
arremedo da “mulher natural” ou “homem natural” (drag queen Tudo que nos cerca
se torna parte de
ou drag king) e uma suposta realidade que é construída nós, se nos infiltra
ficticiamente e se desmorona na maquiagem borrada de Sophia na sensação da carne
e da vida, e, baba da
depois de suores sonoros saberes na cara da gata (p. 252) grande Aranha, nos
Corpo-amazônida, corpo-encantaria, corpo-midia, corpo- liga subtilmente ao
que está perto, enle-
resistencia; através do diálogo que busca entender a diversidade ando-nos num leito
de discursos a partir da compreensão de gênero e sexualidade leve de morte lenta,
onde baloiçamos ao
sugerida por Butler e também perceber que ao longo da história
vento.
nem sempre em todas as culturas o padrão heterossexual binário Tudo é nós e nós
foi adotado, Sophia se monta e se prepara para a festa e o somos tudo; mas de
que serve isto, se tudo
combate; ou seja, a sophia possui ideais de um ser humano que é nada? Um raio de
faz parte da natureza e se opõe ao pensamento messiânico sol, uma nuvem que a
sombra súbita diz que
“civilizatório” da cultura patriarcal que, ao inverso, distancia o passa, uma brisa que
ser humano da natureza e o torna “especial” em detrimento aos se ergue, o silêncio
que se segue quando
outros seres (animais, plantas, encantarias e encantados) que
ela cessa, um rosto
deixam de ser gente que nem a gente, bem como Benedito Nunes ou outro, algumas
(2011, p. 200) disserta sobre os “cortes modernos” entre o ser vozes, o riso casual
entre elas que falam,
humano e o animal. Assim, sugerimos que as teorias queer e depois a noite onde
suplementadas pelas teorias decoloniais proponham processos de emergem sem sentido
os hieróglifos que-
desconstrução tanto do pensamento quanto de nossas ações e que brados das estrelas.
gargalhemos com armas em punho metralhando os cistemas e (PESSOA, 1999, p.
180-181, grifo nosso)
processos de colonialidade (VERGUEIRO, 2015, p. 76), a massa
176

colonizada rindo alto, zombando, insultando, vomitando O meu desejo é


(FANON, 1968, p. 32) as ciscolonialidades violentamente fugir. Fugir ao que
conheço, fugir ao
impregnadas; nossos corpos rejeitando o que nos enfiaram goela que é meu, fugir ao
abaixo, vomitamos, purificamos o corpo das impurezas e amarras que amo. Desejo
partir - não para as
cisnormativas, preparamos nossos corpos para a festa e para a Índias impossíveis,
guerra, nossos corpos-metralhadoras em estado de graça, nossos ou para as grandes
ilhas ao Sul de tudo,
corpos monstruosos, fora da forma, fora das normas, fugindo de
mas para o lugar
padrões, a fuga do rato, a tão sonhada fuga das irmãs de “O rato qualquer - aldeia ou
no muro” e o que lhes aprisiona no convento, a “fuga” da ermo - que tenha
em si o não ser
“caixinha” nas suas mais estreitas percepções semióticas do que este lugar. Quero
é uma fuga: fugir do domínio território-corporal delimitado pelo não ver mais estes
rostos, estes hábitos
patriarcado; fugir dos alibam, olha o carro da tia Cleide, nunca se e estes dias. Quero
sábado o que poderá acontecer a noite na esquina; fuga da cadeia, repousar, alheio do
meu fingimento
Liniariamente a te aprisiona; o lunático fora da caixinha; fuga das galinhas;
do que
orgânico. Quero
minha poesia pode-
fuga na música como composição contrapontista, polifônica e sentir o sono chegar
se representar assim:
como vida, e não
imitativa, variações sobre o tema, variando tom, ritmo e voz.
como repouso. uma
“Tocata e Fuga em Ré Menor” de Bach ou por outro compositor, cabana à beira-mar,
originalmente para violino ou órgão; fuga do barroco de Bach que uma caverna, até, no
socalco rugoso de
transfigura-se no barroco brasileiro Gregório. umaserra, me pode
(“o primeiro antropófago experimental da nossa dar isto. Infeliz-
SÁ CARNEIRO, poesia”) num instigante estudo-poema de 1974. O mente, só a minha
1995, p. 752 nosso primeiro transculturador: traduziu, com
vontade mo não
traço diferencial personalíssimo, revelado no
próprio manipular irônico da combinatória tópica pode dar. (PESSOA,
[...] na sua síntese dialética inesperada, que os 1999, p. 180)
comentadores acadêmicos, até hoje, não se
conseguem aproximar desse produto monstruoso
sem murmurar santimoniosamente o produto
protetor da palavra “plágio”...) (CAMPOS, 1981,
p. 16).

Porém, substituir uma linearidade por outra em uma


síntese dialética como Campos comenta o trabalho de tradução de
Gregório de Matos Guerrra, transcende para o pensamento
e/
dialógico que reconhece povos amazônidas que foram youtu.b
/
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marginalizados e tiveram seus corpos colonizados durante o ht QY2dS
XX
“roteiro preferencial da historiografia normativa” (CAMPOS,
1981, p. 17), e por isso falamos de teorias cuír (queer) ou, para
e
nos aproximarmos mais ainda do local, sugerimos falar sobre as r te of Th ll
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177
Desvios das tecnologias
teorias da viadagem ou teorias das byxa das mata ou teoria das
do corpo. Os corpos da
cabôca (okê caboca). multidão queer são tam-
O termo “queer” costumeiramente é utilizado para definir bém as reapropriações e
os desvios dos discursos da
a “cultura queer ocidental” e universalizar “o queer” sob um medicina anatômica e da
pensamento etnocêntrico, porém podemos pensar as questões que pornografia, entre outros,
que construíram o corpo
envolvem “a cultura queer” globalmente e ao mesmo tempo straight e o corpo desviante
considerarmos toda uma gama diversa de culturas com outras moderno. A multidão queer
não tem relação com um
formas de sexo e gênero para além da cultura americana de onde
“terceiro sexo” ou com um
se adotou o nome queer. Estudos como o de Peter A. Jackson “mais além dos gêneros”.
(2009) sobre a cultura “queer” asiática mostram como há uma Ela se faz na apropriação
das disciplinas de saber/
gama diversa de identidades de gênero e sexualidades que são poder sobre os sexos, na
diferentes tanto da tradição histórica quanto das culturas queer rearticulação e no desvio
das tecnologias sexo-políti-
ocidentais (p. 15-16) em um projeto que leva ao questionamento cas específicas de produção
da criação de uma identidade gay/lésbica universal e a dos corpos “normais” e
“desviantes”. Por oposição
diversidade local das culturas gays e transgêneras kathoey na
às políticas “feministas” ou
Tailândia, sugerindo a “hibridização das historiografias queer” a “homossexuais”, a política
da multidão queer repousa
partir de uma história queer transnacional moderna. Traduzindo o
sobre uma identidade
termo hibridização para uma devoração das culturas queers, e natural (homem/mulher),
considerando a práxis na Amazônia aliada ao estudo de uma nem sobre uma definição
pelas práticas (heterossex-
historiografia da viadagem, nos aproximamos da ual/homossexual), mas
“epistemopolítica radical” em que a diversidade sexual e de sobre uma multiplicidade
de corpos que se levantam
gênero e os descentramentos estão compreensíveis em ideias que contra os regimes que os
analisam com olhar crítico o colonial e as estruturas “políticas, constroem como “normais”
ou “anormais”: são os drag
históricas e culturas de normalização e consolidação da práxis
kings, as gouines garous,
heteropatriarcal, branca, moderna e de classe média” as mulheres de barba, os
(FERNANDES & GONTIJO, 2016, p. 19). “Um Manifesto transbichas sem paus, os
deficientesciborgues... O
Queer Caboclo” vomitado pelos pensadores Fernandes e Gontijo que está em jogo é como
em que observam a “racionalização moderna” construída em resistir ou como desviar
das formas de subjetivação
“caixinhas conceituais bem delimitadas” de uma perspectiva sexopolíticas. (PRECIADO,
ocidental que limita e tenta apagar “outras formas de ser/estar no 2011, p. 16)
mundo” (p. 16).
E para nossa história local amazônida intitulada sophia, a
partir de autores até aqui apresentados e que estão fora/além da
visão etnocêntrica europeia e norte-americana, sugere-se que a
178

afirmação de uma manifestação viada cabôca sophia é


transgressão, subversão radical e radicalizadora do pensamento
homogeneizante, pulando “fora da caixa”, “fora do muro, fora do
armário, fora da sala de aula. Em vez de inclusão, transgressão
para subversão” (p. 16). A “colonialidade” e a “diferença
colonial” são historicamente formadas a partir da região e práticas
colonizadoras executadas no local por um determinado período
de tempo, ou seja, se deve reconhecer a influência da moralidade
cristã em nossos corpos a partir da observação da presença
massiva de igrejas neopentecostais no contexto urbano e não-
urbano, assim como a atual naturalização da homofobia em
mídias e redes sociais brasileiras (p. 19). E em contrapartida à
imposição de poder hegemônico sobreposto e inseparável com

ecodrags e mosntrxs amazônidas contam suas histórias


características locais, o manifesto alerta sobre os “silenciamentos
sistemáticos” e sugere a proposta de mudarmos radicalmente
nosso olhar sobre os lugares de enunciação e valorizarmos os
guetos invisibilizados ao longo das histórias além de repensarmos
“conceptos, perceptos, metodologias e objetos de pesquisa”,
sendo necessário mudarmos na teoria – analisando o “aparato
heteropatriarcal” sua formação e como se mantém e se amplia –
e também na prática, participando de debates, fóruns,
organizando textos em coletividade, formando redes de pesquisa
e trocas de conhecimento, compartilhamento de afetos e
informações, entre outras tantas possibilidades de resistência
executadas no dia a dia (FERNANDES & GONTIJO, 2016,
p.22).
Judith Butler conclui sua obra – dialogando com o
Manifesto Queer Caboclo de Fernandes e Gontijo, apontando que
as periferias são silenciadas a partir de domínios culturais
fundamentados em uma identidade fixa com interesses políticos
específicos de um grupo social minoritário, porém dominante; e
caso consigamos mudar esta atual situação “uma nova
configuração política surgiria certamente das ruínas da antiga”
(BUTLER, 2015, p. 256) – já citamos também, mais acima, a
179

autora Rivera-Cusicanqui, 2010, que fala sobre a economia


política do pensamento e propõe mudanças radicais no
pensamento teórico e nas práxis cotidianas – ; pela proliferação
de guetos periféricos amazônidas com maior articulação de
discursos em prol de um descentramento não-binário de arte-vida.
E como processo de descentramento teórico-prático,
apresentamos esse livro-caleidoscópio, relatos e registros de
ações imersivas na rua e em locais públicos que propõem o
diálogo sobre gênero e sexualidade, e ainda possíveis
desdobramentos em rede dessas ações coletivas – pensando em
uma educação para a diversidade sexual; a Viada Cabôca Sophia
está no contexto das periferias das Amazônias Bragança-Belém
como vemos suas primeiras histórias locais até as ações mais
recentes, como as histórias da Cabôca nas margens da cidade de
Bragança-PA, pensando o consumo, a tecnologia, o refugo que
consumimos e o copia e cola das aparelhagens, o que se pesa e se
vende em ambientes geográficos onde todos os olhos do mundo
estão voltados, onde a colonização em mega-projetos ainda
acontece, onde o vislumbre de uma terra com abundâncias
persiste como estigma e a o extermínio de populações indígenas
e negras assola todos os dias nossas cabeças.
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180
181

2.3.1 – entre Bits e Terabytes


Este trabalho é a sobreposição das linguagens oral, escrita, visual e performática, tal
qual as imagens que compõem o método de “pixelização” da tela do computador, do
smartphone e da maioria das visualidades videográficas disponíveis no cotidiano, em que – a
partir da técnica de computação gráfica do modelo aditivo cromático do sistema RGB True
Color (POYNTON, 2003, 36-37) – cada pixel1 é composto de 4 bytes, ou seja, quatro
componentes que podem ser vistos como camadas possuindo 1 byte (8 bits) cada camada. Estas
quatro camadas correspondem a um canal de 8 bits para a tonalidade vermelha, um canal de 8
bits para a tonalidade verde, um canal de 8 bits para a tonalidade azul e um canal de 8 bits para
o “Alpha Channel” ou “Alpha Compositing”, o “Alpha Keyng” (key signal) que desempenha a
operação de composição do vídeo, equivalendo a uma modulação da imagem produzida em um
“shape” que varia da total transparência à total opacidade da imagem que está sendo montada
(POYNTON, 2003, 613). Esta camada alpha do RGB True Color pode ser comparada a uma
“película” que “renderiza”2 as três cores (vermelha, verde e azul) e sobrepõe informações
adicionais com a finalidade de compor um pixel, ou seja, a imagem que se vê projetada na tela
é a união de vários pixels quantificados e dispostos a partir da resolução e tamanho da imagem;
e a “cromaticidade” (Poynton 2003, 91) da imagem é composta por um conjunto de pixels com
“32 bits de cor” (8 bits R + 8 bits G + 8 bits B + 8 bits alpha) formando 256 tonalidades de
vermelho, de verde e de azul, com um total de 16.777.216 tonalidades possíveis justapostos a
“luminância” de um alpha channel com 256 possibilidades de intensidade e composição3.
Em tão poucos detalhes e características apesentadas aqui sobre o sistema RGB True
Color somos incapazes de explanar totalmente sobre o diversificado e complexo sistema de
armazenamento e processamento de imagens, com diferenciadas resoluções e projeções em
diferentes tipos de telas; e assim, nos limitamos ao conceito básico de que há um canal
“Chroma” que contém as informações de cor (RGB) e um canal “Luma” (alpha) com as
informações de luminância (Hunt 2004, 68-91) para então propomos uma analogia comparada
desse método de armazenamento de dados na memória do computador ao método de escrita

1
Pixel é o menor elemento de imagem; todas as imagens da computação gráfica são feitas de pixels, e os
reconhecemos quando ampliamos ao máximo uma imagem e reconhecemos vários “quadradinhos”, cada um com
sua tonalidade e que juntos compõem a imagem como um todo (1 pixel = 4 bytes = 2^8 * 2^8 * 2^8*2^8).
2
Verbo a partir do termo “renderizar”, “renderização” de vídeo (do inglês “render vídeo”). Renderizar um vídeo
é juntar todos os elementos que Compõem o vídeo preparando-o para sua finalização. Renderização é a própria
criação da imagem.
3
O “color depth” (profundidade de cor) para o sistema RGB True Color é denominado como “32 bits” (3 camadas
de 8 bits cada), com 24 bits de 16.777.216 cores somados aos 8 bits restantes destinados ao alpha channel com a
finalidade de sobrepor as informações (Poynton 2003, 37).
182

utilizado nesse trabalho: o “alpha channel” pode ser comparado à linguagem performática que
“renderiza” os outros três componentes-linguagens (oral, escrita e visual) em um conjunto de
pixels que variam em suas 256 possíveis tonalidades e que sobrepostos nos dão a possibilidade
de projeções para além do espectro visível do olho humano. A simbologia do texto como
narrativa performática das performances artísticas de Sophia – e a comparação dessa narrativa
com o sistema RGB True Color, também nos remete à ousadia de escrever um texto ao mesmo
tempo em primeira pessoa do singular, como x drag Sophia, ou como o artista-pesquisador
Pedro, ou como Luis que orienta academicamente a pesquisa do ator-performer-pesquisador
Pedro, ou como outrx pessoa que escreve junto com depoimentos imagens e olhares externos
em um canal que renderiza essas escritas concorrendo para o uso da primeira pessoa do plural
como “nós” (nós em nós), em composições de quatro canais que anseiam vir a ser um “todo”,
em quatro componentes, quatro partes diferentes que juntas são a técnica de um todo feito de
partes tal qual descreve Gregório de Matos Guerra transpirando poeticamente os versos de “Ao
Braço do Menino Jesus Quando Apareceu”.
A hipertextualidade performática é proposta como provocação ao leitor que observa, lê
e traduz o texto como a si mesmo e como x outrx pensando suas ações em um jogo de improviso
em que a etnografia é simultaneamente aglutinada em camadas de si e dx outrx na proposta de
considerar a diversidade dos discursos como uma reconstrução renegociada de instantes
efêmeros de liberdade artística, política e poética, onde estratégicas “Zonas Autônomas
Temporárias” (BEY, 1981) invadem o espaço local comum e resignificam o pensamento a partir
de uma metodologia esquizofrênica de sentir x outrx e corresponder às suas interações
percebendo o jogo ousado e sagaz em uma “malandragem” preocupada com a não imposição
ideológica, e sim com a conversa e o respeito ao pensamento do outro a partir de um pensamento
de desconstrução do sexo, da sexualidade e do gênero.
(...) uma torção do tempo famous ille fabulator que se faz memória
mementomomentomonumental matéria evêntica desventurada do tempo da marsúpia
vide espaço do tempo um livro também constrói o leitor um livro de viagem em que
o leitor seja a viagem um livro-areia escorrendo entre os dedos e fazendo-se da figura
desfeita onde há pouco era o rugitar da areia constelada um livro perime o sujeito e
propõe o leitor como um ponto de fuga este livro-agora travessia de significantes que
cintilam como asas migratórias de novo a quina pulverulenta do edifício (...)
(CAMPOS, 2004, p. 113)

Esta torção no tempo, como sugere Haroldo de Campos, é o que Sophia propõe no ir e
vir, na transcriação de suas ações, como por exemplo no desdobramento do processo
performático “Fia Sophia” em interação na praça da UFPA-Campus Bragança na semana de
recepção dos novos alunos do PPLSA em 2018, quando a proposta é que Sophia se monte
durante o evento cultural – onde antes da montação foram exibidos vídeos etnográficos, curtas
183

que dialogam sobre práticas de descolonização dos corpos e performances musicais com
temática feminista – , como de praxe, se monta na frente do público, e ao mesmo tempo
dançando com a música “Capim Guiné” do Baiana System, a drag vai compondo seu look-axó,
make e picumã, em seguida a drag assume o microfone, agradece a negociação com a Academia
para que o evento ocorresse, e em seguida propõe o jogo com o batom-corpo no qual Sophia
oferece o batom às pessoas para que elas escrevam no corpo-camadas suas dores, sofrimentos,
incômodos, o que lhes machucam, o que ouvem como palavras agressivas contras seus corpos
dissidentes. Durante a música, Sophia recebe “porradas”, resignificando as palavras escritas em
seu corpo, como se o pixo de batom fossem marcas de agressões que a drag recebe naquele
momento e ao mesmo tempo resiste aos choques se levantando, caminhando ao encontro e
enfrentado as ondas adversas da mudez no caminho; e Sophia performa o rap da música “Ainda
Há Tempo”, do artista Criolo (2016), traduzindo sua música em encontros da maré em
pororocas que invadem territórios, de encontro ao pensamento colonizador, batendo de frente
de encontro ao que se luta, se persiste e vai, diante do que cai e se levanta e segue a caminhada,
do que se afoga e emerge, do que navega por mares bravios. O jogo simbólico traduz as palavras
escritas no corpo da drag como golpes do sistema patriarcal heteronormativo binário cistemico4,
inclusive o cistema acadêmico (VERGUEIRO, 2015, p. 76-98); e em diálogo e fricção Sophia
responde aos golpes cantando: “Não quero ver você triste assim não. Que a minha música possa
te levar amor” (Trecho da música “Ainda Há Tempo” de Criolo). O evento ocorreu na praça da
UFPA, e cenas dessa etnografia borrada de batom-corpomaré-camadas desdobra-se em um
vídeo-registro feito por Samuel Silva e Porfiro (2018) e que está disponível no canal de Olaia
no youtube:

https://youtu.be/4NK_3RwaA-0

A cuír caboca negocia momentos de imersão transcriado que se re)configuram no


cistema acadêmico em um período de tempo, um “dams of time” – “uma demarcação temporal
variável de minutos a horas e dias, dependendo do contexto” (tradução minha), a partir do
conceito de tempo da cultura Bantu-Kongo, segundo K. K. Bunsseki Fu-Kiau (1994, p. 30), ou
seja, um evento, um período de tempo que possibilita que o tempo cíclico (sem início ou fim)
seja percebido e compreendido (p. 20) –, um represamento no fluxo de tempo cíclico acadêmico

4
Referimos aqui sistema como cis)tema, fazendo menção ao sistema sexista binário que prioriza a população
cisgênera em contraposição a outros corpos dissidentes (intersexuados, assexuados, transgênerxs, entre outras
possibilidades fora da normatividade) (VERGUEIRO, 2015)
184

a partir do atravessamento de um corpo-amazônia afro-indígena filho de Mavambo, corpo


humano tradicionalmente em relação íntima com a terra, a mata, animais, água, seres
encantados e tantos outros que podem(os) dizer que são gente que nem a gente, corpo-terra,
corpo-onça, corpocatitu, corpo-água, corpo-gavião, corpo-cobra-grande, corpo-flauta, dentre
tantas outras possibilidades cosmológicas de corpos que não estão isolados e convivem em
“uma comunidade socioeconômica, submetida às mesmas regras que os humanos” (Escobar
2005, p. 65); corpo-contraacademico, corpo-rua, corpo-resistencia, corpo-guerrilha que propõe
experimentar diálogos corpóreos em espaços públicos em processos de transvaloração paródica
do gênero e da sexualidade no campo imaginário do dizível-indizível e traduzível-intraduzível,
no entre lugar, no estar sendo ter sido, e – como sugere Armindo Bião (2009) e ainda adaptando
seu discurso para o contexto local – nas encruzilhadas das ciências humanas (antropologia,
filosofia, história e sociologia) e exatas (óptica, eletromagnetismo, matemática, computação
gráfica), com as ciências sociais aplicadas (comunicação, midiattivismo), as letras (bajubá,
bantu, ioruba, portuguesa, espanhola e inglesa) e as artes (performance, teatro, dramaturgia
música, poema, dança, ópera).
entre os objetos do real e do ideal, do material e do espiritual e entre os objetos que
possuem e aqueles que não possuem existência (Bião 2009, 91).

Os processos transdisciplinares da performance estão nas sophias pela comunicação


entre teoria e prática no ir e vir de processos tradutórios em que a energia em ondas
eletromagnéticas se intensifica e se propaga quantificada e qualificada do interior das
encruzilhadas na boca do mundo para a vida, em relações corpo-matéria-corpo-energia
próximas dos visíveis e não visíveis, do que se aproxima e do que se distancia para observar –
tal qual a probabilidade de se encontrar uma partícula em uma determinada região do espaço,
segundo a teoria quântica em que a realidade pode variar dependendo de quem a observa, que
é diferente da física clássica, utilizada para observações e análises macroscópicas, onde as
propriedades quânticas são imperceptíveis (para objetos grandes os efeitos quânticos não são
visíveis, mas isso não quer dizer que eles não influenciam o sistema), já para pequenas
partículas em escala nanométrica o próprio observador pode ter duas impressões sobre o
observado, que de longe se comporta como partícula e quando se é aproximado a mesma
partícula torna-se onda, ou seja, as informações de uma onda-partícula são subjetivas,
dependendo do distanciamento do observado, e quando esse está próximo, a realidade pode
variar de umx observadorx para outrx (PROIETI et al, 2019) –, na encruzilhada da física
quântica com a física clássica, as fronteiras borradas da observação onda-partícula, de seres
humanos, Padilhas, Exus, Mavambos, Nzilas e ruas (Areda 2008), no entre-lugar do jogo, da
185

brincadeira, em produções do desejo e “sistemas semânticos dinâmicos” que se desdobram e se


resignificam (Turner 2015, 28) em camadas sobrepostas de diferentes materiais que
nanometricamente são onda-partícula podendo vir a ser outras realidades, materiais diversos
batidos todos juntos em um grande liquidificador, liberando energias quânticas que os aquecem
ao ponto de liquefazer solidificações, fundir componentes e borrar as fronteiras da realidade e
do que se des)constrói; através de relações afetivas e da compreensão de arte-vida, Sophia
entrega seu corpo para riscarem, alterando o espaço, o tempo e as energias instituídas (e
negociadas) trazendo (compartilhando) memórias de outros espaços, tempos e energias,
experimentando processos de retrospecção e reflexividade interconectados em um caos de
harmonias e dissonâncias em uma narrativa do vir a ser da indeterminação (Turner 2015, 106-
108) em uma escrita corporal borrada de tons batons e camadas sobrepostas da comunicação
efetiva entre teoria e prática, entre o que se discute em sala de aula e o que se tem no cotidiano,
do que se observa, de quem observa, quem é observado e de como é observado, ou seja,
processos de observação das ondas-partículas que suplementam as sophias nas encruzilhadas
da academia e das ruas bragantinas em que processos de resistência e existência anti-coloniais
de corpos-mentes vem a ser des)construções (de sistemas espaciais, temporais e energéticos) e
paródias da “construção performativa de um sexo original e verdadeiro” (Butler 2015, 9); a
partir de um “contexto interiorano”, situado em um “centro fora do centro”, em corpos-
amazônias decoloniais neocabanos que re)desdobram e manipulam a performatividade corporal
criticamente em prol das diversidades sexuais e de gênero na territorialidade local que foge de
um modelo pronto de compreensão da realidade e vai para além da perspectiva do colonizador
(LOPES 2016, 24-37) em gargalhadas periféricas, comendo pelas bordas as margens borradas
e vomitando processos de violência colonial e colonialidades, bem como gozos em espasmos
ansiosos de existência “fora da caixa”.
Por isso a ação de cortejo fúnebre-festivo do evento Égua de 4 (agosto, 2017) bem como
seus desdobramentos em camadas de poemas, registros imagéticos e artigos científicos se
revelam tão significativos e significantes para o trabalho da Sophia quanto performer e
performance na academia e fora dela. No Égua de 4, Byxa do Mato e Sophia saem às ruas
velando o corpo da amiga travesti assassinada, acendendo velas, jogando flores, derramando
cachaça, bebendo a morta, e ouvindo um som agitado na caixa de som portátil, porque a amiga
sempre quis ser velada com alegria, e não com tristeza; e em certo momento da ação, encontram
uma pessoa que altera o percurso do tempo e espaço propostos pelas performers e esta pessoa,
que se intitula poetapalhaço, é interferido e interfere na ação, fricciona corpo-mente se
permitindo imergir e desdobrar as tessituras da performance que efemeramente se bordava no
186
187

instante único de detalhes de pontos e bricolagens da colcha de retalhos que se costurava. Entre
o poeta e o momento de registro em vídeo que é a “fixação etnográfica do discurso social do
Artista Palhaço” e ao mesmo tempo é material documental de uma tradução como resposta à
fricção recebida, ao “choque de dor-prazer recebido ao imergir na ação performática
(CONCEIÇÃO, OLAIA, 2017, p. 56). E assim, o olhar etnográfico se redireciona da ação de
Byxa e Sophia para o poetapalhaço – o artista-feira que estabeleceu a interação narrativa
registrada por Sophia na ação imersiva do evento “Égua de 4” –, pois a partir de seu poema de
improviso, pode-se observar a performance sempre em processo, se reconfigurando a partir da
interpretação do outro (neste caso, o Palhaço); e também pode-se iniciar uma análise etnográfica
da cultura local a partir dos comportamentos e discursos ditos e não ditos de um senhor por
volta dos 40 e 50 anos, trabalhador da feira, preto, pobre, periférico, mergulhado em um
contexto histórico e social onde a cisheteronormatividade está naturalizada e onde o ambiente
(espaço geográfico, tempo e estado de espírito que movimenta suas energias internas-externas)
em que se localiza, no instante da situação que ocorreu a interação com as monas, é um ambiente
de feira, à noite, em que vários homens jogam baralho e bebem – e especificamente no horário
em que a ação performativa aconteceu havia bastante movimento, com uma turba de mulheres
e homens que ao verem as performers na ação instigaram o Palhaço para que este respondesse
à proposta de jogo cênico invisível, e estavam ávidos pela diversão a mais a partir do diferente
e fora do comum.
A observação da performance se transforma, transfigura transmuta transpõe para outrx
observadorx, e por conseguinte uma outra realidade é observada; o poetapalhaço desdobra os
“choques de dor e prazer, do jogo cênico invisível e de improviso, das interações na rua com o
outro” (CONCEIÇÃO, OLAIA, 2017, p. 51), produzindo outros esquizo-desejos em uma ação
artística viva que opera com o espectador-ator diluindo-se enquanto objeto artístico e
apresentando-se em estado ambivalente ora onda ora partícula, ora energia ora matéria, ora
visível ora não visível, ora perto ora distante, permitindo aos múltiplos observadores múltiplas
definições em diversas probabilidades de camadas compondo um sistema RGB True Color
tendendo ao infinito com vários canais, além dos quatro padrões (RedGreenBlueAlpha), que
estão aglutinados na suplementação de ditos e não ditos dissolvidos em uma sopa de se tomar
cantando e retomar outras possibilidades de observação e propor ainda outras indefinições de
medidas, padrões e normas em um processo inacabado de arte-vida combativa que transforma
a marginalidade, quebrando as cristalizações normativas fundindo a ferro e fogo academia e
cotidiano, dissolvendo paradigmas, bebendo e vomitando afetos desafetos dores prazeres
gargalhadas choros nervosos coragens derrotas vitórias violência e paz.
188
189

E assim, sugerimos que pensar as ações sophia é documentar/analisar o cotidiano (em


vídeo, áudio, ação-reação, texto, discursos, entre tantas possibilidades de como observar) a
partir de diversxs observadorxs, uma vez que o campo da antropologia da performance foge a
um enfoque definitivo, transcendendo a proposta de uma “anti-disciplina” que observa a
sociedade como uma “sociedade do espectáculo” executando “uma performance do mundo
social” onde as ações humanas são performativas – bem como linguagem, recursos linguísticos
e interelações sociais, e se manifestam no “campo da fachada”, legitimando as estruturas de
poder em uma “teatrocracia” de relações de poder entre governantes e governados (RAPOSO,
2017, p. 76). Os dramas sociais no metateatro de representação da vida e realidade social coloca
os atores sociais no entre-lugar do discernimento entre o que é cena performática e o que é
“realidade”, pois a cena já é a própria realidade quando as renegociações do jogo teatral
invisível se estabelecem e se está envolvidx na ação, envolvidx em episódios de conflito e
tensão (choques de dor-prazer) onde as margens são inundadas de cópias, desmembramentos e
ressignificações que envolvem performance, política e resistência.
Dos intramuros de um cistema acadêmico às gírias de rua e oferendas nas encruzilhadas,
da marginalização de corpos-mentes às encantarias ancestrais, sophias são pesquisas muito
recentes e não estão fundamentadas como paradigmas (ainda bem!), elas estão simbolicamente
à margem dos rios caudalosos de discursos, teóricos e teorias; e a proposta de transcender a
marginalidade através da escrita às margens, da proposta transmoderna de Enrique Dussel e da
marginalidade de processos artísticos que estão fora da lei e inseridos na lei (pois os discursos
nas sophias em sua maioria linkam memórias de violência cistêmica) para renegociar outras
probabilidades de se ver o mundo (para subervertes essas memórias e resignificá-las em críticas,
figuras de linguagem, jogos de improviso, diarreias, vômitos e risos).
O desafio das composições “true colorizadas” sophias é se essas ações realmente fogem
do enquadradamento ou continuam reproduzindo a paródia da paródia de um círculo vicioso
que nunca acaba, de onde se está presx e nunca consegue se sair, onde as ações contra-
hegemônicas se reconfiguram e reestruturam dentro da ordem bagunçando somente o que se é
autorizado bagunçar pela ordem pré-determinada. Talvez a proposta de fuga deste círculo
vicioso viciante sejam equações espiraladas, helicoidais, propostas e probabilidades observadas
microscopicamente, nas micropolíticas e ações cotidians que tendam se deslocar para fora do
eixo centro de planificações e normas, e para fora de hierarquias em um bando aberto
“horizontalizado de costumes, parentescos, contratos e alianças, afinidades espirituais etc.”
(BEY, p. 24). A utopia pirata é possível?
190

Irmã H: Mas a cerca não é frágil?


Irmã I: Mas o muro é altíssimo. E nem tem porta.
Irmã H: Deve haver cordas. Nós acharemos cordas. As do poço!
Irmã I: Mas não vão até a metade do muro.
Irmã H (rude): Você mente. Mentira.
Irmã I: Mas por que você acha que eu minto?
Irmã H: Porque nenhum muro pode ser tão alto, nenhum poço, tão profundo. (pausa)
(Trecho da peça teatral “O Rato no Muro” de H. Hilst, 2000, p. 72)

Há ousadias em propor um trabalho narrativo em que a imagem conversa de maneira mais livre
com o leitor, porém esta ousadia também faz parte do processo de transpor o muro acadêmico
para uma proposta mais próxima da realidade com visualidades que são mais adequadas para a
descrição narrativa, além de que o acesso a um vídeo de Sophia no youtube ou compartilhada
no whatsapp e sua linguagem midiática por exemplo, estão muito mais próximas da linguagem
que as ditas – pelo padrão etnocêntrico – “periferias” alcançam do que uma escrita rebuscada
de uma dissertação de mestrado acadêmico em que o mínima de conhecimento de sua existência
e acesso à sua leitura se tornam bem mais difícil que o touch em um smartphone. Fazendo um
paralelo com o poeta barroco, as camadas-linguagens desta narrativa performática, bem como
as camadas-pele (projeção sobre corpo, maquiagem, figurino, adereços, riscos-confessos de
batom, gestos, olhar do outro, etc.) que vão sobrepondo a montagem do corpo de Sophia, são
partes que não são o todo mas estão intrinsicamente ligadas a ele; e o todo deste trabalho só
acontece por ter estas partes como processo de um todo, ou seja, são camadas-linguagens
suplementadas e renderizadas para tonalizar e esmaecer vívidas cores em uma ação de tradução,
processo tradutório do corpo que se monta, que experiencia, vive e é protagonista da cultura,
influencia a sociedade e é influenciado por ela em uma construção de autoidentidade que
perpassa pela alteridade, pela transitoriedade da performance no ritual de se montar em um
processo ambivalente de recuperação do self em críticas e re)afirmações do binário e
desestabilização da dicotomia essencializada das sexualidades e gêneros (Jayme 2010, 185-
186). A face dizada5, maquiagem por fazer, picumã6 uerro7, poucas poucas poucas roupas, a
gata tá uó – algumas podem dizer, mas o fato é que com uma maquiagem borrada, Sophia brinca
de criança que se pinta para imitar a mãe ou a moça da novela, deixa a ideia de incompletude,
de “faça você mesmx”, e abre possibilidades criativas de terminar a maquiagem a partir do
referencial e de quem a observa. O figurino que monta desmonta e o cabelo que cai e volta ao
lugar provoca o jogo e a ressignificação de improviso e revelam a fluidez da identidade de
Sophia, sua autoidentificação (Hall 2005, 39) e as fronteiras borradas na ambivalência de estar
e não estar montandx, se des)montando a partir da alteridade negada pela Modernidade em um
projeto transmoderno (DUSSEL, p. 29) de desvio centro-periferias que: reconhece os processos
de violência cometidos (vilipendiados) durante a Modernidade dos quais nossos ancestrais de
diversas nações indígenas e nações africanas foram vítimas desde a invasão dos colonizadores
europeus nos territórios e corpos-mentes até hoje em colonialidades que perpetuam e
cristalizam teorias e práticas que controlam o corpo através da cultura da violência; e propõe
estratégias combativas de resistência estética e política contra os tanques de pensamento do
poder imperial que comandam a academia e querem comandar nossas vidas com a cultura da
violência, propostas contra-culturais contra-academicas que desorganizem as hierarquizações e
confunda as classificações. Um “novo projeto de libertação político, econômico, ecológico,
erótico, pedagógico, religioso, etcetera” (DUSSEL, p.30) é transcriado nas ações e escritas
marginais da pirata neocabana? Eis a questão!

5
Dizada no bajubá possui várias traduções e neste contexto refere-se a uma face mal feita, uó, inacabada ou
esteticamente feia.
6
Cabelo.
7
Uó, um erro, dizado.
191
192
193

capítulo 3 – Sophia e outros processos de produção do desejo


Juliana Jayme sugere que a montagem é “hiper-realidade”, ou seja, a drag hiper-realiza
seu corpo e desestabiliza o gênero, binarismos e dicotomias, buscando incorporar outra
subjetividade apreendida através da repetição de gestos, ações, retornando o apelo às
dicotomias, mas com outra observação (a partir de outros observadores) em que a ambivalência
embaralha e dissolve as fronteiras do corpo-mente que dessa maneira vem a ser uma forma
inacabada como paródia – da construção social de um corpo pré-discursivo a partir do padrão
homem-mulher dentro da cultura hegemônica – em um sistema aberto de tradução cultural que
subverte o “corpo intraduzível” através de táticas de guerrilha cotidianas em que o corpo é meio
de expressão, corpo midiático: corpo-mídia psicologicamente liberto; corpo-ciborgue que
abandonou a utopia do espaço cibernético, mas percebe a web aparelhada ao corpo-mente como
um novo sentido, como arma contra-net; corpo-desaparecimento propício a se esvaziar das
ânsia de poder; corpo-rato percorrendo labirintos de túneis, subindo e descendo muros,
transpondo barreiras, rato-livre por entre buracos de parede; corpo-arte-vida transcendendo a
contracultura em impérios de desejos gozosos pelas festas e louvores ao caos linguístico,
criações e fractais de linguagem (BEY, 2001, p. 71-77)
Os processos de fabricação do corpo da drag também se comparam analogamente ao
processo “Brasil Diarréia” (Oitcica 1970), em que o artista propõe a “multi-valência” cultural
a partir da devoração, regurgitamento, digestão e vômito, engolindo criticamente o fenômeno
da universalização e objetivando “o experimental” afastado da predominância de valores
absolutos, como é o caso da experimentação desse texto como narrativa performática que
sobrepõe camadas de teorias cientificas, textos etnográficos e literários, fricções das ações
performáticas, choques de dor-prazer, etnofotografias e videoetnografias, e outras tantas
possíveis narrativas que são partes de um todo que é Sophia onde os campos acadêmicos borram
limites e o engajamento político é atrelado à arte-vida como uma colcha de retalhos mal
costurada, desalinhada e esquizofrênica (RAPOSO, 2017, 94), uma colcha caleidoscópica tal
qual o corpo-mente da drag que se monta, se des)constrói em camadas sobrepostas pela
“incorporação” em um corpo que “transmite um significado, mas também expressa a
performance” (Jayme 2010, 168) através de “marcas”, “códigos”, signos tais como maquiagem,
roupa, ações, cabelo e batom que risca a pele, armazena dados, sobrepõe mais camadas e
tonalidades de desabafos, expurgos e gritos. É o entre-lugar do corpo-ciborgue (HARAWAY,
2009) onde aparatos tecnológicos, biológicos, mente e I.A. estão atrelados em um sistema
biotecnológico com processos ambivalentes, sem pré-determinações e que se produz (se
monta). É nos campos da antitradição ciborgue, da antidisciplina antropologia-performance, da
194

transmoderinidade transmarginal, da transcriação e mestiçagem cabôca, da malandragem e


paródia e do descentramento, nas encruzilhadas de historiografias e processos de produção de
identificações drags, do jogo cênico de improviso e da performance como ressignificação (de
objetos, ambientes, estados de espírito, etc.) e transmutação (de espaços, tempos e energias)
que montamos corpo-sophia e borramos as fronteiras da escrita acadêmica, do pensamento
discursivo, e da práxis; ou seja, des)construímos uma dissertação de mestrado acadêmico a
partir de performances experimentais críticas (Raposo 2015 ) que utilizam o jogo cênico de
improviso na percepção e observação dos “dramas sociais”, da “antropologia performática e
reflexiva”, e da vida cotidiana (Turner 2015, 85-176) no contexto histórico e cultural da
Amazônia no período de tempo (Fu-Kiau 1994, 20-21) contemporâneo em que os eventos
“Sophia” acontecem. E por isso ousamos nesse capítulo utilizar a antropologia, a performance
e as mídias do corpo-ciborgue para apresentarmos três modos de detalhar registros visuais
etnográficos a partir de um pensamento científico em uma pesquisa que valoriza e sente a
necessidade de recursos câmeras e smartphones para a produção de ensaios etnofotográficos,
vídeos etnográficos e crônicas etnográficas, seguindo a tradição vanguardista de narrativas
textuais-imagéticas existente no programa de pós graduação em que esta pesquisa se fixa como
processo de produção dissertativa. Em diálogo acadêmico com a “Nova Revista Amazônica”,
revista acadêmica do programa PPLSA (Programa de Pós-Graduação em Linguagens e Saberes
na Amazônia, UFPA, Campus Bragança), que aceita em suas publicações periódicas propostas
de registros etnográficos que utilizam a visualidade como parte da ambivalência descritiva
expondo a incapacidade do texto de descrever momentos únicos captados pela objetiva da
câmera e a incompletude textual que suplementa a imagem com outras observações em camadas
sobrepostas somente possíveis através das palavras e das imagens. E assim, para finalizar esse
trabalho, propomos apresentar três camadas dissertativas (um ensaio etnofotográfico, um vídeo
etnográfico e uma crônica etnográfica) a partir da metodologia da Nova Revista Amazônica,
relacionando essas produções etnográficas com três ações performáticas entre os anos de 2017
e 2018 em que estávamos na pesquisa nos indagando sobre os processos de Sophia como
práticas de resistência poelítica de re)transcriações devorativas das dissidências sexuais e de
gênero a partir do corpo-monstrx. E assim, nos subcapítulos a seguir, des)construímos
primeiramente o ensaio etnofotográfico da ação “Sophia Flaneur em busca da aura perdida”,
sendo que este ensaio é o desdobramento do ensaio etnofotográfico apresentado na revisa
Visagem (2017), porém nesta versão do ensaio acrescentamos um número maior de fotos e o
texto foi novamente repensado e reescrito.
195

No segundo momento des)construímos o registro do terceiro desdobramento da performance


“Fia Sophia” e apresentamos o vídeo etnográfico “Sou Fia do Batom”, que é o desdobramento
do vídeo etnográfico “Fia Sophia: Etnografia do Batom”, sendo que o que os diverge um do
outro é a camada de informações da sinopse do vídeo que fundamentalmente alteram o sentido
e o efeito das imagens na pele-batom a partir de como as palavras foram escritas para apresentar
o vídeo como registro ou como poética etnográfica do desejo e da loucura de traçoscamadas de
bytes, megabytes, terabytes e linguagens html e java – o processo performático de Fia Sophia
se iniciou a partir de um jogo de improviso que propomos em uma mesa redonda que ocorreu
no IV Encontro Regional de Engenharia e Desenvolvimento Social da região Norte (IV
EREDS/NORTE) em 2017 na UEPA – Campus V, Centro de Ciências Naturais e Tecnologia
(CCNT) em Belém-PA. A mesa dialogava sobre “opressões na engenharia”, e como eu, Pedro,
sou graduado em Engenharia Elétrica e tenho a identidade de Sophia como prática de resistência
poética e política de corpos dissidentes, estive na mesa, falando sobre minhas vivências na
engenharia, meus relatos de experiência como gay no curso de engenharia elétrica e os nossos
processos performáticos com Sophia, a mesa era formada por Pedro Olaia e uma estudante
mestiça (como ela própria se identificou na mesa) do movimento feminista graduanda de
Engenharia Ambiental e tinha como mediador um jovem gay graduando de engenharia; a
conversa com a estudante de engenharia ambiental se inicia com ela afirmando que a presença
de mulheres nos cursos de formação e mercado de trabalho das engenharias ainda é
subalternizado por um discurso heteropatriarcal em que as mulheres não são capazes de estudar
em áreas que envolvem muitos cálculos e naturalmente não são hábeis para exercerem funções
de chefia ou comando, a estudante ainda fala sobre a ocupação destes espaços performatizados
como “ambientes masculinos” e reflete se de fato conseguimos desconstruir a performatividade
de gênero instituída hegemonicamente sobre nossos corpos em um padrão binário homem-
mulher, em que características e comportamentos são atribuídos a um gênero em detrimento de
outro; além disso, a graduanda enfatiza a diversidade de gêneros, percebendo as colonizações
que influenciam diretamente em nossos cotidianos e as especificidades de cada grupo de
mulheres (lésbicas, negras, trans, entre outras tantas), bem como o reconhecimento de práticas
decoloniais que favoreçam o diálogo a respeito da igualdade de direitos para as tantas
possibilidades de corpos fora da normatividade; seguidamente, eu, como Pedro Olaia,
compartilhei algumas vivências no curso de engenharia elétrica, onde vivia uma vida dupla,
onde não assumia a identificação gay, muito menos a identificação de Sophia, e sentia-me como
vivendo entre dois mundos bem distintos, em que performava duas identificações: uma próxima
da performance do homem estudante de engenharia e outra próxima da performance da bicha
196

que se monta, vai pra boite dar close, e aquenda os boys no banheirão da UFPA; gradativamente
essas identificações foram se borrando, e as fronteiras foram diluídas em um processo que
atualmente envolve a pesquisa acadêmica da minha identificação Sophia, e para finalizar o
diálogo na mesa os organizadores do evento me convidaram para que apresentássemos uma
performance, e e assim propus que colocassem na projeção o vídeo da performance “O
Enforcamento” (Primeira Égua – 2013) e enquanto o registro – da cena de Sophia e Byxa do
Mato se enforcando com a Bandeira do Brasil na esquina do GEMPAC, era compartilhado, eu
me montava entre o projetor e a tela, fazendo uma sombra que incomodava e chamava a atenção
do público presente; após me montar completamente, Sophia propôs que as pessoas
escrevessem em seu corpo de drag os incômodos de palavras e/ou atitudes de outras pessoas
que tentam subalternizar nossos corpos. Sophia através de uma conversa descompromissada
provocava as pessoas presentes a rememorarem histórias de ações criminosas e violentas de
homofobia, transfobia e misoginia e estendia seu batom e seu corpo até a outra pessoa, e lhe
pedia para que lhe escrevesse uma palavra e/ou uma ação que condenava seu corpo a partir de
questões de gênero, sexualidade, etnia ou outra percepção que foge do padrão hegemônico
heterossexual branco rico. Essa ação desdobrou-se em outros momentos, pois percebemos o
quanto esse exercício/jogo tocava aquelas mulheres que participavam do encontro de
engenharia; o corpo de Sophia ficou cheio de palavras como: “burra”, “puta”, “putinha” “vadia,
“você é mulher não pode”, “você não consegue”, “bruxa”, “nerd”, “despreparada”, “gorda”,
“violência verbal”, e achamos interessante a participação de homens que performavam a
identificação masculina heteronormativa e que também pegaram o batom e riscaram Sophia, e
em contra-resposta ao jogo proposto, Sophia, que estava de vestido, se despiu e ficou somente
de calcinha, e depois dos desabafos borrados de vermelho sangue batom-corpo, Sophia saiu da
sala onde ocorria a mesa-redonda e deu um close pelo CCNT onde outros alunos estavam em
um momento de lazer, e Sophia aproveitou para também “descer para o play”, e brincou de ser
a “estranha” no meio de tantos homens que timidamente brincaram com Sophia, ou
simplesmente a ignoraram. O que mais nos tocou neste evento e na primeira ação como Fia
Sophia, foi um abraço forte de uma estudante de engenharia que estava na plateia, e que durante
a performance se tornou artista, e pintou o corpo de Sophia, a tatuou com seus incômodos e
também chorou, agradeceu, nos abraçou e chorou, dizendo que aquela ação lhe fazia muito
bem; Sophia propunha que riscassem o corpo dela e depois a drag levava as palavras para um
grande exorcismo, que consequentemente foi simbolizado pela saída de Sophia de dentro da
sala para a área aberta do Centro do Campus V da UEPA e os incômodos e choros de tantas
mulheres foi simbolicamente queimado na fogueira das bruxas em meio a praça pública, no
197

corpo de Sophia onde as palavras queimavam, e escorria batom sangue suor numa puta vadia
só de calcinha no meio da “universidade”. Esse jogo de improviso com “Fia Sophia” novamente
foi experimentado no início do ano de 2018, em uma cultural na semana de recepção dos novos
alunos do PPLSA, na UFPA, Campus Bragança, e que já foi descrita um pouco mais alaissime,
e também no IFPA, Campus Bragança em outra mesa redonda com diálogos sobre corpos
dissidentes nas instituições públicas de ensino. Nesse vídeo apresentado no subcapítulo 3.2, Fia
Sophia é compartilhada em um evento internacional organizado no Centro de Convenções
Hangar em Belém-PA, e esse vídeo é a transcriação da transcriação de memórias, vídeos,
imagens e discursos ditos e não ditos lanhados no corpo-mídia sophia.
O terceiro momento, apresentado no subcapíttulo 3.3 como crônica etnográfica a partir
do trabalho “Quiirck: uma história para crianças e pessoas com coração de criança” finaliza o
trabalho propondo uma circularidade que volta ao início deste processo – como no fluxo de
tempo sem início nem fim – utilizando “Quiirck” com devoração da doce narrativa performática
apresentada no primeiro capítulo e re)translocada para o último. Nesse subcapítulo, detalhamos
“Quiirck” como uma crônica a partir do compartilhamento da narrativa em Fortalezinha – na
ilha de Maiandeua, Maracanã, Pará – em um evento independente organizado pelo Casarão do
Boneco – espaço cultural de Belém-PA com artistas de diversas linguagens – em que levamos
teatro, contações de história e performances à outras comunidades fora do eixo centro Belém.
A crônica etnográfica é suplementada por um texto em formato de crônica e imagens
etnográficas que dialogam com o texto, sendo que essa proposta de material registro científico
é a ousadia acadêmica do programa de mestrado ao qual fazemos parte, e a apresentação dessa
crônica além de exercício acadêmico é a difusão de outras possibilidades de escrita cientificista
de notas e registros etnográficos.

Teus cabellos contêm uma visão completa:


- Largas aguas, movendo a superfície inquieta
Cheia de um turbilhão de vélas e de mastros,
Sob o claro decel palpitante dos astros;
Cava-se o mar, rugindo, ao peso dos navios
De todas as nações e todos os feitios
Desenrolando no alto as flammulas ao vento,
E recortando o azul do limpo firmamento,
Sob o qual há uma eterna, uma infinita calma.
(...)
Ah! se pudesse vêr tudo o que nelles vejo!
Meu desvairado amor! Meu insano desejo!
(Olavo Bilac)

A completude da visão do poeta é alcançada em momentos de desvairado amor e insano


desejo de onde fios soltos não completam, mas fazem parte e são fundamentais para um todo
198

cabelo, como as renegociações das micropolíticas do desejo (GUATTARI, 1981) desdobrando-


se na ação “Fia Sophia” em que a toalha de mesa da mãe de Pedro é o vestido da drag – a toalha
da mesa inacabada que é a própria produção desta, pois o que nos interessa mais é o processo
da sophia (substantivada, como prática de resistência contra-hegemônica) do que a própria
identificação Sophia, ou seja, a mesa esquizofrênica “em função do processo de produção que
é o do desejo” (Deleuze and Guattari 2004, p. 12) – se co-relaciona-se simbolicamente com as
admoestações da mãe “assembleiana” de Pedro e estão postas à mesa sobre Sophia que as veste
e des)veste na proposta de uma des)construção da moral cristã de formação neopentecostal
evangélica representada pela toalha de mesa da mãe que rejeita Sophia e seu figurino posto na
corpo-mesa de jantar. Além disso, a toalha rememora a mesa em que os baldes de leite estavam
no sonho de sua mãe, e Sophia novamente derrama, distribui e compartilha momentos e choques
de dor-prazer no jogo performático e simbólico em que representa a sua montagem literalmente
através da multiplicidade, multivalência de relações sociais e novas possibilidades de recriá-las
através do desabafo, do expurgo do que sufoca, pensando a drag como camadas de uma
des)construção, de um sistema aberto que desestabiliza o sistema de gêneros binários (Jayme
2010, 171) e o atravessamento de outras relações sociais e questionamentos que estão próximos
das práticas de descolonização dos corpos-mentes. E para além da mesa, toalha de mesa e
Sophia, a proposta de make e picumã des)construídas a partir da brincadeira de se montar é
proposta – a cabeça por fazer, o cabelo por completar, a maquiagem borrada, de magias
construídas por quem sonha, como numa brincadeira de criança, e como a amiga drag paraense
Flores Astrais diz: “você completa a maquiagem da Sophia na sua cabeça”. Essa incompletude
mágica do processo de montagem de Sophia, somado ao jogo de improviso com pessoas em
ambiente público aberto, aproximam-se do que sugere Paulo Raposo (2013, 13-17) sobre o
Estudo da Performance tanto no campo da performance art, quanto da antropologia pós-
estruturalista, onde tudo o que outrora foi considerado “contaminação”, “promiscuidade”,
“impureza”, “erro” e “hesitação” é de interesse como campo de estudo em uma “antropologia
libertada” com uma “nova narrativa performativa que nasce das ruas, como uma terra de
ninguém”. Na antidisciplina que vem das ruas-encruzilhadas, a performatividade corporal e a
performance como linguagem artística se aproximam da energia de Exu, que segundo Victor
Turner é “uma representação da indeterminação que ronda as rachaduras e fendas de todas as
‘construções socioculturais da realidade’” (Turner 2015, 109); e para nós, conhecedores do
Nkissi – na tradição Banto, do candomblé Angola/Congo, Nkissi corresponde ao que os
yorubanos do candomblé Keto denominam de Orixá – Pambu Nzila, Mavambo, o orixá Esú é
a busca por uma fuga do binarismo simbolizado por Turner como uma entidade com duas
199

cabeças, e a aproximação de nós mesmos e da nossa ambivalência – multivalência, como diria


Oiticica – como seres humanos que sempre estamos nas fronteiras invadindo e des)construindo
“processos de heteronormatização, enquadramentos coloniais, domesticação do corpo e dos
afetos, etc” (Fernandes and Gontijo 2016, 18); pois Esú é a subversão à colonização cristã de
nossos corpos e por isso é simbolicamente “demonizado” pela cristandade cristalizada.
E como sugere o “Manifesto Queer Caboco”:
Não se trata apenas de chamar a atenção aos processos de poder e dominação, mas de
torná-los lugar de fala; trata-se de se tomar como lugar privilegiado a fronteira, o não
lugar, a “zona de não-ser” (Fanon), o in-between, o pós-posicional, o relacional, o
estar-siendo de que nos fala Rodolfo Kusch alhures (Fernandes and Gontijo 2016, 18)

A incompletude de uma arte-vida como processo de prática libertária em expressão de


impulsos fúnebres-festivos de dor sofrimento alegria celebração dão lugar ao não-lugar e a
afetividade estreita nas interpelações entrecruzadas das tramas de uma rede que pesca as
encruzilhadas dxs marginalizadxs que contam suas histórias de criança para pessoas que se
propõe a ser gente que nem a gente e perceber que o derramar leite nas encruzilhadas vai
tornando-se festivo e gozozo nas perdas que se re)significam em compartilhamentos de
instantes únicos de dobraduras de tempo onde camadas e camadas de re)transcriações
re)gurgitações e re)devorações incompletam a obra e fazem-na sentir como os dedos choram
de incompetência analógica-digital no dedilhar e clicar sem a possibilidade finda na confusão
multiplicada de desd)obras e desdobramentos que fogem de alguma proposta de controle em
re)traduções e re)significações (Conceição and Olaia 2017, 55-59), sobre “piscadelas de
piscadelas de piscadelas,...” (Geertz 1989, 19)
E aonde o processo inacabado finaliza? Ou se repete ...?...
200
201

3.1 - Sophia Flaneur busca a Aura e se perde (por um ensaio etnofotográfico)


As imagens deste ensaio etnofotográfico são de Luis Junior Saraiva e Jessica Leite e são
registros a partir do olhar-observador sensível às re)ações provocadas por Sophia durante a
imersão artística na feira. O diálogo de movimentos fluidos entre planos e mundos que alteram
o espaço e o tempo comum para novas proposições des)construídas é a performance-sophia
compartilhada na segunda-feira na feira – o espaço feira no tempo segunda-feira. Segunda-feira
é dia de Esú, segundo dia da semana, o número 2, a ambivalência, a dupla face da moeda, yin-
yang, deushomem, que além da encruzilhada é a própria feira, o mercado é Esú, o local da
comunicação, da troca, da moeda, da negociação. Exu. Laroyê! Segundo a tradição Banto,
Nzila, Mavambo, é o Nkissi (Senhor) dos caminhos, a encruzilhada, a escolha, senhor
mensageiro, guia, luz, caminho verdade e vida, possibilidade e contradição, e assim como nós
seres humanos, Esú gosta de brincadeiras e do jogo. A ação performática “Sophia Flaneur: em
busca da Aura perdida”, surge a partir da leitura e reflexão sobre o texto “Pequena História da
Fotografia” de Walter Benjamin (1987, p. 91-107), onde o autor sugere que a “aura” é uma
essência presente nas coisas, e que no princípio da fotografia essa aura ainda podia ser
capturada, porém o “fenômeno aurático” se perdeu entre a técnica e o objeto no “período de
declínio” (p. 99) da fotografia onde o avanço tecnológico com novos recursos disponíveis ao
fotógrafo estimularam a produção massiva de retratos de família e álbuns fotográficos. A
reflexão de Benjamin – sobre o distanciamento entre a fotografia e a arte a partir do
"aperfeiçoamento das técnicas de reprodução" (p. 104), nos provoca a repensar sobre a atual
popularização e hábito de cotidianamente editarmos e produzirmos imagens digitais na web,
bem como o bombardeamento de aplicativos que imitam efeitos fotográficos que antes eram
somente produzidos tecnicamente em laboratórios, a produção massiva e constante de selfies
nas redes sociais e a digitalização dos momentos comuns da vida. Para Benjamin (1987, 165-
172), a “aura”, o insight, a “aparição” poética no instante único foi destruída, e para Sophia, a
autenticidade da obra de arte, sua unicidade se faz a partir de suas reproduções, pois qualquer
pessoa pode fazer uma fotografia de boa qualidade a partir da câmera de um smartphone, com
aplicativos que imitam técnicas manuais de edição para fotografias analógicas. E nesta segunda-
feira, com Sophia Flaneur nos flashs e lúmens virtuais, quantos perfis nas redes compartilham
estes instantes únicos de dobraduras do tempo? Sophia tira quantos selfies? Sophia Flaneur
ganha quantos "likes"? Como o próprio autor sugere (BENJAMIN, 1987, p. 192), a “massa”
atualiza a obra de arte para uma nova relação e atitude em que a quantidade é mais importante
que a qualidade; porém a ação de Sophia na feira difere-se das sugestões de Benjamin a respeito
do distanciamento entre as massas e o conhecedor da obra de arte, pois Sophia envolve o povo
202

que está na feira e aproxima a distração da devoção, a arte que se oferece como objeto de
diversão é devocionada pelxs próprixs consumidores dessa arte, que espontaneamente se
envolvem atraídxs pelo cabelo-rede de pescaria e a saia-escama de CD's trançados em arame,
em um jogo de tradução de códigos-fontes normatizados para outras diferentes linguagens e
possibilidades identificáveis que conversam entre si e possibilitam que ao mesmo tempo os
objetos que compõem o corpo de Sophia sejam facilmente reconhecidos por um feirante ou um
cliente, e também estejam fetichizados como desejo-fantasia, realidade-mágica, em um corpo
que às vezes parece ser feminino, que não é masculino, que é gente e não é gente; rede-cabelo
que transmuta Sophia Flaneur, deforma rosto, vira-bicho pescada sereia piranha, cabelo-rede
que atrai-prende-pesca trabalhador das margens do rio Caeté. A massa da feira emana sophias
participativamente, se encanta, constrói sua própria história, cria vídeos e re-distribui o corpo
sophia para além do presente e do tátil e a infinidade de narrativas performáticas foge do
controle de um todo, que é parte e parte para uma busca paródica de uma autenticidade ilusória.
Através da arte, Sophia mergulha na feira e a feira mergulha nas sophias e as partes como um
todo se dissolvem no jogo proposto em que feirantes são performers e o coletivo foge de uma
concepção limitada por desdobramentos em rede para além dos mares que a rede-cabelo
alcança. Como nem tudo são boas pescarias, os olhares e comentários de reprovação também
ameaçam o jogo estabelecido, porém os dribles acordados socialmente se estabelecem, de forma
que os espaços e os tempos de cada um são respeitados e não há choques-quebras
desnecessários, porque Sophia consegue perceber o limite-território do espaço do outro no qual
não se deve entrar, e isto é algo próprio da Sophia, que eu costumeiramente não tenho como
qualidade. Na segunda-feira, na feira, uns entendiam que a ação era para um programa
televisivo, outros entendiam que era aquilo mesmo: uma garota perdida atrás de sua amiga
Aura; e eu entendi, dos momentos de choquedoce, quatro mil mundos, quatro mil fontes de
emanação estreitas em quatro ações: o toque da mãe preocupada com a maquiagem borrada de
sua filha Sophia, o toque na rede como se toca a pele aveludada de uma donzela, o toque da
benção do irmão, e o desejo no olhar-desejo.
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3.2 – Sou Fia do Batom (por um vídeo etnográfico)

SINOPSE: Fia Sophia é a proposta de jogo de improviso em que Sophia oferece um batom para
que as pessoas risquem o seu corpo, escrevendo palavras ou ações que descaracterizam os
comportamentos e estéticas corporais dissidentes a partir de uma estigmatização normativa e
fantasística de corpos hegemônicos. A ação performática se desdobra a partir da ação das
pessoas sobre o corpo de Sophia, das escritas, dos discursos em que Sophia atravessa e é
atravessada. A brincadeira de riscar o corpo, de pintar as mazelas, de reviver os choques de dor-
prazer são memórias de uma etnografia contemporânea, ao mesmo tempo que são munições e
potências de diálogo sobre a diversidade de gêneros e sexualidades, ou seja, o paradigma de um
mundo como máquina capaz de ser manipulado pelos homens torna-se a crítica manifesta pela
paródia sobre a fabricação performativa naturalizada do sexo e do gênero (BUTLER 2015, 233-
236); e é observada através do registro em áudio e/ou visual das ações imersivas de Sophia em
que não há distanciamento entre pesquisador e pesquisado, homem e natureza. Uma mulher, no
evento Belém +30 pintou meu olho com o batom vermelho, e enquanto aquela mulher forte, de
aparência de guerreira bruxa, me pintava ao mesmo tempo ela desabava sobre mim, lacrimejava
224

e dizia baixinho: “foi um soco no olho...”. Eu também chorava dentro de mim, lembrava que
na noite anterior, eu mesma, tinha sofrido agressão na rua, quando levaram minha bolsa com
materiais de trabalho e me deixaram um soco no olho. A dor naquele momento, enquanto ela
pintava meu olho, era mais do que real, imagens me vieram a cabeça, lembranças de agressões
que tantas amigas mulheres e bichas e travestis já sofreram; suei frio, gaguejei, engoli o
desespero e me fortaleci na troca afetiva espontânea, na troca de olhares, no abraço, e nas forças
de tantas palavras escritas e ouvidas que me dão coragem para prosseguir com ações e práticas
artísticas de resistência. Bora escrever no corpo da gata, pra gente comer, devorar, e vomitar e
cagar, expurgar na cara desse patriarcado e desse cis)tema momentos colaborativos de risco e
pixo sobre tela-corpo.

PALAVRAS-CHAVE: Videoetnografia. Batom-corpo. Performance


FICHA TÉCNICA
Produção: Samily Maria, Elis Tarcila, Pedro Olaia e Sophia
Câmera: Samily Maria
Edição: Pedro Olaia
Roteiro/Texto: Sophia

LINK PARA ACESSO:


https://youtu.be/YqMcFfWs0z4

 
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3.3. – Quiirck me contas? (por uma crônica etnográfica)


A curiosidade do menino balançou bandeiras ao vento, foi bandeira branca em mastro
alto fincada em pau forte fincado no chão do terreiro. Quuirck me conta, menino? Te perguntar
mais uma vez sobre olhos doces que absorviam a cena como nas encantarias dos bois-tatás e
flautas encantadas que encantam quando sopradas. Soprou-se uma brisa que de vento pode ser
tempestade. E o menino veste saia e cai uma trovoada. O que que me conta a história e o que
que me colocaram como lembrança, o que que se derramou, o que que me disseram e o que
não? O narrador canta conta e os desenhos são pintados em tecido colorido. E o garoto de saia
anda na garupa da bicicleta segurando as pontas, equilibrando e escondendo o excesso de pano
pra não engatar na engrenagem. Que engrenagem se fez dos movimentos corpóreos que de
mecânicos se tornaram fantasia respiração e choro? O que que quirrck me contas de tuas ações?
Quer era um homem ou assim o haviam definido, todos sabemos, mas sua coragem de vestir a
saia e passar o batom talvez seja a montagem que eu mais queria ter na minha vida. Quer quer
ser o vir a ser. Volta o tempo lá pra época de escola. Queria ter uma tia legal também, que me
desse um cheiro de frutas de inverno chuvoso úmido em que mofo deu. Esquenta um vinagre
que de mofo cuido eu. Numa panela quente, vinagre fumaça é o que sufoca a frieza de tuas
pálpebras e as deixam turvas ou a turva quentura do brando que te chamou de viadinho tu já
esqueceu? Memórias de tantas recordações e anseios de querer se escrever bem. E a mãe no
final dizendo que seu filho estava precisando daquela esquentada para liquefazer suas
petrificações de Pedro pedra pedreira pedregulho. Marteladas de pontos pregos e aquecimentos
de alma nos bules blues efervescentes de destreza. E às vezes, só às vezes, parece que estou
contigo um dia e a esquizofrenia não é processo de desespero angústia e dor. Volto no tempo,
regresso a vida, e vejo o mesmo menino tentando colocar o salto de sua mãe. Se abstenho
palavras ou desenho canções no ar, dos momentos narrando Quiirck, bebo os olhos curiosos,
como as gargalhadas indecisas e tateio o invisível. As piruetas de dias e sóis sem torós e paus
dágua também se tornam tristes quando os paus não deságuam. Da proposta de contar contos e
dos desejos de que eu menino lá no passado encontrasse alguém pra me explicar tudo. Esú atira
a pedra hoje para matar o pássaro de ontem. O que é ser normal?
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A gAAggUeRA
Concluindo...

Nunca quis fazer a linha lypsinc nunca quis ser bonita sempre quis ser bonita nunca quis
ser sempre quis existir quis quiz cuír show somos celebração fortaleza de corpo presente
máquina de guerra nas ruas, meu corpo se expõem enquanto suas ideias ficam no papel não
gosto da linha Ru Paul, adoro vê-las, mas não quero segui-las, a bicha na Amazônia é outra
coisa, são outras tonalidades, outros RGB True Color, mo(n)strando, cuírizando, dragzando
caboquéticamente por aqui em gritos necessários que nem o chiado da internet de antigamente.
Aqui somos low tech, somos sucata eletrônica jogada no lixão das ryKa somos o próprio lixão,
louvação ao ciborgue incompleto ao projeto inacabado, o que não deu certo o erro-acerto
inacabado monstruosx; nunk quiz fazer a bailante cantante do palco dubladora miss sempre quis
dar closet nuk nua suada colo quente fluidos fervem numa batida nervosa nos pés invoca ação
signos que constroem a performance re)significações in)formações do improviso. Acho lindo
saltos e saltos, como os sapatos de salto alto, como saltos de panela, como saltos improvisados,
como todxs elxs e no salto como tecnologias, o salto como a mais bela e opressora composição
do corpo-tecologia ao mesmo tempo que é estética e afirmação de uma postura e remodelagem
do corpo que fica pronto para uma iminente ação. O salto opressor – por ser dolorido,
desgastante, prejudicial à saúde como o uso de várias drogas que a gente tem por aí – , é como
o uso e a foda com os boys que a gente tem por aí, tudo muito viciante, queria deixar alguns
víço (viçosa refere-se à pessoa que é viciada em sexo) de lado mas não consigo, queria deixar
alguns saltos de lado, mas sempre tenho vontade de saltar mais. Sophia não é uma mulher, mas
o arremedo da performatividade de gênero e da construção dicotômica, é uma monstrx themônia
feminina no corpo de um homem cis, os erros do olhar condenatório normativo binário, as
acusações dos outros, o errado, as questões de sobrevivência em meio a este cistema, o uso de
tecnologias e sucatas do meio ambiente amazônico em diálogo inclusivo. Prefiro sentir a falar,
a palavra é necessidade humana para atribuir nome às coisas, preencher o espaço vazio tentativa
de explicar o que se vê ouve sente, só que a palavra que se atribuiu para definir algo pode não
ser o que se esperava em seu significado e assim vão se formando percepções individuais da
palavra e quanto mais nos prendemos à palavra mais nos tornamos dependentes e quanto mais
palavras se juntam em nossas mentes mais mal entendidos temos e mais mal entendidos
ficamos. Referindo-se à cisnormatividade incutida no sistema heteronormativo binário
“ocidentalizado/cristianocêntrico moderno/colonial capitalista/patriarcal” (VERGUEIRO,
2014, p. 15), Sophia propõe jogos cênicos paródicos a partir do princípio de Augusto Boal
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(1982,) de que o “jogo está intrinsicamente em nós quando agimos nas nossas interações sociais
cotidianas” (CONCEIÇÃO, OLAIA, 2017, p. 51), e desta forma Sophia provoca outras
interpretações, outros impulsos processuais dialógicos de construções identitárias e ações que
refletem o processo colonizador “civilizatório” sofrido por nossos ancestrais, primeiros
habitantes da Amazônia, que foi devastador de toda uma relação íntima e profunda do corpo-
ancestral com separações homem e natureza. Através do jogo paródico de identificação, tal qual
a roda de capoeira e seus improvisos carregados de afetos e sentidos (Head 2013, 265),
interagimos e compartilhamos diálogos sobre a desconstrução do discurso binário e de sexo
unívoco a partir de um pensamento local. Deste modo, Sophia são performances, ou seja, as
performances de resistência artístico-políticas são sophias, períodos de tempo transitório,
instantes das identificações com Sophia, que são não-binárixs (fora dos padrões “homem” e
“mulher”), são identidades fluidas localizadas no espaço e no tempo simbólicos. As sophias
possíveis são realizações performáticas, são reais ações que perpassam pelas discussões nos
diversos campos do conhecimento a partir de uma perspectiva local sendo performático o
método utilizado para esta pesquisa, ou seja, indo e vindo com aliterações, gagueiras, piscadelas
e piscadelas, interpretações de interpretações e obras de obras, com uma linguagem
performática, cujo cotidiano conhecido como “realidade” interage através desta linguagem,
responde, pergunta, traduz e re-traduz suas leituras através da ressignificação de signos do
cotidiano por um pensamento e prática descol onizadora em corpos-menttes dissidentes na
Amazônia.Sophia é o corpo liberto em contato com o sobrenatural e o real na virtualidade
digitofágica e na ritualística dos caminhos e da rua. Entrego e confio meu corpo à rua, minha
mãe e companheira, o local mais justo e afetivo realmente público e ao mesmo tempo injusto
violento perigoso mortal – a ambivalência dos multivalentes caminhos. A arte – como prática
libertária, expressão de impulsos fúnebres-festivos de dor sofrimento alegria celebração, é
afetividade estreita nas interpelações entrecruzadas nas encruzilhadas da vida onde todos se
confundem, e os ditos marginalizados estão em destaque. As Sophias possíveis, são realizações
performáticas, são reais ações que perpassam pelas discussões nos diversos campos do
conhecimento a partir de uma perspectiva local sendo performático o método utilizado para esta
pesquisa, ou seja, indo e vindo com aliterações, gagueiras, piscadelas de piscadelas (GEERTZ,
1989, p.19), interpretações de interpretações e obras de obras, com uma linguagem
performática, cujo cotidiano conhecido como “realidade” interage através desta linguagem,
responde às perguntas na língua performática, traduz e re-traduz suas leituras na ressignificação
de signos provocadas pela performance como linguagem artística. Acho que já disse isso.
Engasgagatogago ou repete tudo de uma vez como se engolisse todo o leci. Nós consumismo o
239

lixo tecnológico europeu/americano e não tem como escapar disso ou ainda há tempo? Os
stream de videos e imagens são desdobramentos de ações sophia, ou apenas terabytes de dados?
SOPHIA são manifestações artísticoperformáticas, processos coletivos de improviso, imersões
colaborativas, narrativa textual-imagética de interações corporais e energéticas ou somente um
texto dissertativo? As pulsações em imagens, áudios e textos que provocam o leitor e aceitam
as possibilidades de interpretações traduções transcriações devorações a partir do contexto
social e histórico do espectador que vem a ser o devir performer/autorx compartilhando o
instante único da leitura? Sophia é rua, é ao mesmo tempo sobrenatural e carnal , é público e
também registros, infos e dados, links e frames, além de ternos dedos dedilhando coisas que
nem se quer sabe se se garante fazer? #medo. Talvez melhor do que concluir é sentir. O que
sentir? Processos de desespero e desejo.
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