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Marina Tsvietaieva - Vivendo Sob Fogo

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1

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Marina Tsvetáieva

Vivendo sob o fogo


CONFISSÕES
seleção, organização E prefácio Tzvetan Todorov
TRADUÇÃO DO RUSSO E DO FRANCÊS Aurora Fornoni Bemardini

martins
Martins Fontes
Ooriginal desta obra foi publicado com otítulo Vivre dam lefeu: confessiot
©2005, Editions Robert Laffont / Susanna Lea Associates.
©2008, Martins Editora Livraria Ltda., São Paulo, para apresente ed.ção

Preparação: Laura Rivas


Revisão: Huendel Viana, Simone Zaccarias e Dinarte Zorzanelli da Silva
Projeto gráfico ecapa: Renata Miyabe Ueda
Diagramação: Negrito Produção Editorial
Produção gráfica: Demétrio Zanin
Produção editorial. Eliane de Abreu Santoro

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Tsvetáieva, Marina, 1892-1941, Este livro é dedicado aos editores dos escritos
Vivendo sob ofogo : confissões / Marina Tsvetáieva ; seleção
organização e prefácio Tzvetan Todorov ; tradução Aurora Fornoni íntimos de Marina Tsvetáieva em russo,
Bemardini. - São Paulo : Martins, 1008. - (Coleção Prosa)
Lev Mnúchkin e Elena Kórkina.
Título emfrancês: Vivre dans le feu : confessions
Bibliografia.
15BN 978-85-99102-29-9

1. Autores russos - Século 20 - Biografia 1. Tsvetáieva, Ma


rina, 1892-1941 1. Todorov, Tzvetan, 1939-. 11. Título. 111. Série.
07-5613
CDo-891.784092

índices para catálogo sistemático:


1. Autores russos : Século 20 : Biografia 891.784092

Todos osdireitos desta edição reservados à


Martins Editora Livraria Ltda.
R. Prof. Laerte Ramos de Carvalho, 163
01315-030 São Paulo sp Brasil
Te].: (11) 3116 0000 Fax: (11) 3115 1072
info@martinseditora.com.br
www.martinseditora.com.br
pi.
li
Él

A morte de Irina

A Revolução de Outubro tumultuará a vida de MT. Ela pretende


reunir-se aos seus em Moscou, onde já começam os en/rentamentos
entre os que apoiam o antigo regime (entre os quais, Serguei) e os re
volucionários. Ela consegue tomar um trem para Moscou; no caminho
escreve, em seu caderno, uma carta para o marido, cujo destino ela
ignora, onde se lê esta promessa (2 de novembro de J917):

Se Deus realizar este milagre —deixar você viver, eu o se-


guirei como um cão.

Serioja esta vivo; MT e ele partem de novo para a Criméia, dei


xando mais uma vez as_filhas em Moscou. No dia 25 de novembro MT
resolve ir vê-las; separa-se provisoriamente de seu marido, que entra
para o Exército Branco.
Em Moscou, vivendo sozinha com as filhinhas, MT descobre as
novas dificuldades mateíiais da existência. Seus antigos recursos fi
nanceiros esgotaram-se. Em novembro de J9J8 entra para o Comissa-

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nado dos Negócios Nacionais (quer dizer, das populações que fazem E tudo junto - que.miséria^
parte da Federação Russa) elá permanece alguns meses; esse trabalho
Aqui esta exclamação encontra realmente seu lugar: sejam
não a impede de consagrar parte essencial de seu tempo à escrita. Em semelhantes aos deuses!
seguida, ela teráfontes de renda irregulares epassará aviver muito pre Qualquer exclusão notória - um horror.
cariamente, escapando da fome, do frio edas doenças apenas graças à
generosidade de alguns amigos.
Éno decorrer desses anos que se elabora avisão de mundo àqual
Em 1918 liga-se a um grupo de atores do teatro Vakhtángov. MT se atertí até ojim de sua vida. Mergulhada numa existência quo
Seus amigos se chamam Pavel Antókolski (mais tarde poeta soviético tidiana desastrosa, ela escolhe viver no absoluto. Aimagem pela qual
reconhecido), ítíri Zavádski (futuro famoso diretor de teatro), Voiddia ela o representa é a do fogo, e a essa imagem ela voltará muitas vezes.
Alekséiev, Sónetchka Holliday. Complexas relações, hétero ehomosse Nos primeiros dias de janeiro de J9J8, ela transcreve em seu diário
xuais se estabelecem no interior do grupo, imersa na vida teatralJVíT uma frase deAlia:
escreve peças e mais peças: a última e mais longa de todas é consa
grada aum episódio da vida de Casanova ese chama Fênix_(J9I9). As salamandras dançam,
Sua produção poética, entretanto, não enfraquece. ElapreencheTTus E Marina pensa:
cadernos dia após dia com anotações sobre avida quotidiana; alguns - É tão bom viver no meio do fogo!.
anos mais tarde, extrairá deles alguns fragmentos que, levemente reto
cados, serão publicados em revistas. Planeja publicá-los em um livro
Alguns meses mais tarde, por sua conta, ela retoma aimagem (30
que teria otitulo de Indícios terrestres (uma versão dele só será pu de julho de 1918):
blicada bem depois de sua morte). Aambiência amigável desse meio
teatral será evocada no último texto longo em prosa de MT, História
Asalamandra não é feita de fogo, ela é ininflamável. Que
de Sónetchka (1937). MT está apaixonada por Sónetchka: ela pode frio demente, para viver no meio do fogo!
amar tanto homens quanto mulheres. Ela escreve em seu caderno (9
de junho de 1921):
Afrase volta a aparecer em suas cartas: "Serei fogo", escreve, a
Akhmátova, no dia 17 de agosto de 1921. Outras expressões designam
Arnar^pen_as_ mulheres (para uma mulher^ ou amar_ape- igualmente essa necessidade de intensidade máxima:
nas homens (para um homem), excluindo.de _modo_notório]o
habitual inverso - que horror!
\Eu inteirinha sou em itálico {abril de 1920).
^aIaE!-nas_mulheres (Pam um homem) ou amar apenas O homem só vê o mundo corretamente na exaltação su
homens (para uma mulher), excluindo de modo notório o_que prema. Deus^criou o mundo em estado de exaltação (N. B.! o
é inabitual - que tédio! ~
homem - com uma exaltação menor, isso é visível), e o homem
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•m

II:
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que não está em estado de exaltação não pode ter uma visão batente antibolchevique, MT é bastante crítica quanto ao novo regime.
correta das coisas (n de abril de 1920). No dia 24 de julho de 1919, ela confia aseu diário oprojeto de escrever
um artigo ("pela primeira vez em minha vida"), intitulado "Justificativa
A parte delaque entra em contato como absoluto cha ma-se alma. do mal". Omal é o boíchevismo; paradoxalmente, MT consegue tirar
algumas vantagens de sua presença:
De que preciso neste mundo? De minha emoção, ponto
mais alto de minha alma. Da tensão mais forte. Da presença de O que, por subtração, deu-me o boíchevismo:
minha alma. Qualquer meio é omelhor (21 de agosto de ,918). [...] '
3) Aconfirmação definitiva de que o céu vale mais do que
O que sou - eu? [...] Pois, juro por Deus - em mim nada o pão (provei-o em minha própria carne e tenho agora odireito
foi capricho, tudo - cada anel! - é absoluta necessidade, não de dizer isso!)
fará os outros, mas para a minha alma (21 de abril de 1919). 4) A confirmação definitiva de que não são as convicções
políticas - em nenhum caso as convicções políticas! - que reú
Sei quem sou: uma Dançarina da Alma (novembro de 1919). nem e separam as pessoas (eu tenho amigos maravilhosos entre
os comunistas!).
Em minhas veias não corre sangue, mas a alma {março de 5) Aaniquilação das fronteiras de classe - não pela violên
1920). cia das idéias - mas pela desgraça de todos em Moscou, em
1919 - pela fome, pelo frio, pelas doenças, pelo ódio ao boíche
Essa escolha tem como conseqüência colocá-la àparte dos outros vismo e assim por diante.
seres humanos:

Nesses anos em que a paixão revolucionária se desencadeia a suo


Sou completamente déclassée [desclassificada], [...] Estou volta, MT mergulha na leitura de escritos contra-revolucionários que
realmente, absolutamente, até a medula, fora de qualquer cas datam da época da Revolução Francesa.
ta, de qualquer profissão, de qualquer nível. -Atrás do .impe
rador, há imperadores; atrás dos miseráveis - miseráveis; atrás Les Femmes - les Nobles - et les Prêtres [as Mulheres - os
de mim - ovazio (27 e 28 de agosto de 1928). Nobres - e os Padres] - aqui está minha Contra-Revolução!
Francesa! (30 de julho de içiç).
Concretamenre, sua existência se estrutura em três patamares.
No mais babco encontram-se as preocupações para sobreviver, as rela Ela também lê os contos de Andersen:
ções sociais, a interação com o poder político. Casada com um com-

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A Revolução e Andersen. -Absurdo.


E - conclusão: se Andersen foi criado por Deus, a Re Eu nunca escrevo, sempre transcrevo (como se alguém
estivesse ditando).
volução - e quem mais poderia ser - foi criada pelo Diabo
(novembro de 1919).
Sou simplesmente um espelho fiel do mundo, um ser im
pessoal (y de julho de 1919).
Seus diários relatam as palavras que circulam por Moscou:
Estenógrafa da Vida. - Étudo oque eu quero que escre
Ele diz dos bolcheviques (boa tirada!): "Claro! São con vam em meu túmulo (uma cruz!) - apenas da Vida, em maiús
denados - etransportaram para cá aprisão inteira!" (março de culo, obrigatoriamente. Se eu fosse homem, gostaria que es
1920).
crevessem: do Ser (10 de abril de 1920).

Andrei conta que viram passar um cachorro quejevava o Na mesma época ela escreve em seus diários (incluídos em Indí
cartaz: "Abaixo Trótski e Lênin - ou eu.sereLçormdo!'' (To de cios terrestres, com um acréscimo que data de dois anos mais tarde):
abril de 1920).
As duas coisas que prefiro, mais que todas: o canto - e a
MT não faz uma análise política, ela simplesmente reage àquilo expressão. (Ou seja, a nota é de 1921: os elementos - e a vitória
que está a sua volta. Ela também tem amigos comunistas, mas suas sobre eles!)
simpatias não vão, geralmente, nessa direção. Não se trata de unir-se
aos Brancos contra os Vermelhos: ela recusa, antes, esse tipo de enga Opoeta toma-se, portanto, um representante exemplar da hu
jamento. Ela escreve, em 27 de julho de 1919: manidade:

Tpdo.meu credo político é contido numa única pdayra: Apalavra - segunda pele do indivíduo.. Trindade:, alma,
jrondeuse [crítica] e,_para maior precisão, posso_acrescentar corpo, palavra. Épor isso que só opoeta é perfeito (i2 de de
outra: essentiellement [essencialmente], ~ " zembro de 1917).

Osegundo patamar, bem superior ao dos engajamentos políticos, MT prefere pensar em si mesma como poeta, enão como mulher:
diz respeito aos trabalhos artísticos, ou seja, no caso de Tsvetáieva, à
criação poética. Produzir belas obras de arte dá sentido ávida. Ao criar, ... como mulher sou impensável, como poeta - apenas na-

a poeta não deixa fluir livremente seu eu, mas capta a identidade do
tural. Eessa éaminha - (durante um tempo demasiado longo
mundo e a converte em palavras. reneguei minhas opiniões!) - única medida - de uma vez por
todas! (28 de julho de 1919).
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Com um vestido velho - sou eu: Ser Humano! Alma! Ins Aqueles a quem o teu être não atrapalha - são eles pró
piração! - com um vestido novo - sou uma mulher. prios essenciais, ou seja, têm a mesma categoria que a tua: ina
É por isso que eu não uso um vestido novo (29 de jiãho cessível e inalcançável (novembro de 1922).
de 1919).
Meu sonho: jardim de convento - biblioteca de convento
Se comparadas com a intensidade alcançada no trabalho poético, - vinho velho da adega de um monastério - calças bufantes à
as relações humanas comuns parecem negligenciáveis: turca [charovari] - cachimbo longo - e qualquer um de meus
ex-ci-devant de setenta anos que venha, todas as tardes, me
Penso que nasci para a maravilhosa Solidão, povoada de ouvir e me dizer o quanto ele me ama (30 de março de 1920).
sombras de heróis e heroínas; que não preciso de nada além
dela - deles - de mim, que é indigno de mim tornar-me gato e Entretanto, esse patamar não é o último. Ofato é que o trabalho
pombo, enrodilhar-me e aninhar-me no peito de alguém; que do poeta não é um trabalho como os outros, que possa ser isolado do
tudo isso está abaixo de mim (14 dejulho de 1919). resto da existência e admirado de longe. É assim que agem os que MT
chama de "estetas". Para ela, na verdade, a separação entre "obra" e
Nada pode exceder a alegria com a qual eu largo o caderno 'vida" é impossível.
por um ser humano, senão a alegria de largar um ser humano
pelo caderno (outubro de 1919). Para cantar os vasos japoneses - ou a pontada unha de sua
amada - ou as faianças (ou - para os futuristas - os arranha-
Encontrei meu lema - em dois verbos auxiliares: Etre vaut céus), é suficiente, para vocês estetas, aparecer.
mieux qu'avoir [Melhor ser que ter] (início de setembro de 1919). Para falar de Deus, da vida, do sol, do amor, é preciso ser.
O poema é o ser: de outra forma é impossível (19 de março
Etre e civoir [ser e ter]. de 1919).
Avoir - não atrapalha.
Etre - ATRAPALHA. Aliteratura? - Não! - Que "literata" sou eu, se estou pron
Mais: Teu avoir não atrapalha (não pode atrapalhar) os ou ta a doar todos os livros do mundo - os dos outros e os meus
tros de être, nem que seja porque eles usam, ainda que pelas - por uma pequena centelha da fogueira de Joana d'Are!
bordas, o teu avoir - queiras ou não, eles se encostam. Não a literatura - a autodevoração pelo fogo (25 de abril
Teu être atrapalha, não deixa os outros adormecerem, de 1920).
porque está claro que ele é um bem e é inacessível. Uma van
tagem claramente inacessível. "De meus ex-admiradores". (N. de T.)

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Este "ser" ocorre tambémfora da criação poética eatinge seu pon O único milagre de minha vida - o encontro com Serioja
to culminante no amor. Osuicídio de seu amigo, oteatrdlogo Alekséi - e o segundo: -Alia.
Stahhdvitch, leva MT a pensar assim: Ergo": o único milagre de minha vida - meu casamento (31
de março de 1920).
Para viver - eu preciso amar, ou seja, estar junto. [...]
Eu preciso de todos, pois sou insaciável. Mas, a maior O casal tem outrafilha, Irina. Mas MT não tempor ela os mes
parte do tempo, os outros nem fome têm, donde esta atenção mos sentimentos.
eternamente tensa: será que alguém precisa de mim?
Stakhóvitch morreu precisamente devido àquilo que me Em Alia acreditei desde o primeiro momento, mesmo an
atormenta tanto neste momento (quero morrer): ninguénTpre- tes de ela nascer, eu sonhava com ela (estranhamente).
cisa de mim.
Irina - Zufallskind'. Não sinto nenhuma ligaçãpçqmela.
Ninguém tem a idéia do abismo que essa coincidência (Perdoe-me, Senhor!) - Como será adiante? (21 de agosto de 1918).
abre em mim (16 de março de 1919).
Não posso amar Alia e Irina ao mesmo, tempo, preciso de
MT sente pela primeira vez esse amor irreversível, inabalável, por unicidade no amor (28 de agosto de 1918).
aquele com quem ela decidiuviver:

A situação torna-se tensa quando a fome começa a grassar em


Sempre joguei, a vida toda; salvo com oamor por Serioja Moscou e MT encontra-se reduzida à miséria:
(21 de abril de 1919).
A quem dar a sopa da cantina: a Alia ou a Irina?
Se ela nãofala dele mais freqüentemente em seus diários éporque Irina é menor e mais fraca, mas eu amo mais Alia. Além
o amor por ele pertence a uma outra ordem.
disso, Irina já está mal de qualquer maneira, enquanto Alia
ainda resiste—seria uma pena.
Quase não escrevo sobre Serioja neste caderno. Receio Isso é um exemplo.
mesmo escrever seu nome. Eis o que é sagrado para mim, na O raciocínio (à parte meu amor por Alia) poderia tomar
terra (21 de julho de 1919). outro rumo. Mas o resultado é o mesmo: ou Irina toma a sopa
eAlia fica sem, ou Alia toma a sopa e Irina fica sem.
Essa relação excepcional se estende àcriança que tiveram jjuntos.
' Em latim, no original: "portanto", "logo". (N. deT.)
Em alemão, no original: "filho do acaso".
'::;?.;•'••

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Mas o pior é que essa sopa da cantina - gratuita - não ra - ela estava sentada à minha escrivaninha e escrevia - suas
passa de água fervida com restos de batata ealgumas gotas de derradeiras palavras.
gordura de origem desconhecida (19 de março de içi9). - Oh, meu Deus!

No outono de 1919, MT acha que já não pode suprir as neces


sidades das filhas. Ouve falar de um abrigo para órfãos em Kúntsevo,
um lugarejo nos arredores de Moscou, onde as crianças seriam bem
-Alia, veja bem, tudo isso é um jogo. Você brinca de órfã.
alimentadas. Entra em contato com Lídia Aleksándrovna Tamhurer, Cortarão seus cabelos, vestirá um vestido comprido - até os
dentista egrande amiga da família Tsvetáiev, dezoito anos mais velha
pés - sujo e cor-de-rosa - e terá um número em volta do pesco
que MT, e decide deixar suas filhas lá, por algum tempo. Em seu
ço. Você deveria ter vivido num palácio, mas ficará num abrigo.
diário ela descreve os acontecimentos que sobrevêm, estilizando a
- Você compreende como isso é extraordinário?
forma do relato. Apartida para oabrigo dá-se no dia 27 de novembro M,\,f...
- Oh, Marina!
de I9J9.
- E uma aventura, será a Grande Aventura de sua infância.
- Você compreende, Alia?
[1] Apartida de Alia para o orfanato 1
- Oh, Marina!
- Para Irina, ovestido de algodão cinza -Alia, não esque
- Então, amanhã esteja pronta um pouco mais cedo. Lídia
ça! Para-você, estou pondo as calças azul-marinho, duas cami
Aleksándrovna virá por volta das onze. Às duas horas épreciso if sas... Alia, se alguém bater em você - bata também. Não fique
f. 1 estar lá.
de braços cruzados, senão quebrarão você inteirinha!
Asilhueta alta, em um magnífico casaco cinza, desapareceu. - Sim, Marina, e eu espero poder guardar um pouco de
Eu olho para Alia. Ela perdeu as forças devagarinho. E, comida para você. - Mas, e se, de repente, no Natal, nos de
um minuto depois - com uma voz em que tremem todas as ij &:•.
"'i SÍ?'-'

lágrimas de seu coração: m rem alguma coisa que não dá para conservar? Frutas em calda,
por.exemplo? Então eu guardarei todas as ameixas e as escon
- Oh, Marina! Você sabe que toda a minha alma ficará
!?• derei. - Oh, Marina, pena que não se pode secar a comida
aqui! - Toda, toda! - Eu levarei comigo apenas um pedacinho como as flores!
-para a saudade!
- Alia, o principal - coma o máximo possível, não tenha
Ela passou os últimos dias escrevendo uma carta para mim vergonha, évocê quem deve comer mais. Lembre que é só por
no caderno eeu me esforcei por alimentá-la melhor, surrupian causa disso que estou mandando você para lá!
do ostensivamente e sem remorso parte da comida de Irina.
- Sim, Marina, são inimigos - eu comerei mais do que
Na última manhã - confusão, eneaixotar as coisas, loucu-
eles! E- sabe, Marina, estou contente assim mesmo de ir para
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:.«
Mi
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um abrigo enão para um reformatório. Abrigo - tem algo de Lídia Aleksándrovna pega Irina, eu passo com Alia pela
mais velho...
entrada de serviço. Sentamo-nos. Gênia, dos Goldman1, grita:
De joelhos, arrumo em sua cestinha: um punhado de rou "Até logo".
pa branca (mesmo assim - vão roubá-la), um caderno - dos
velhos tempos - de papel bom, mas sem linhas - durante a
noite as fiz - alguns livros: os Contos biográficos de Tchistiakov m&:.
(sobre Byron, Beethoven, Napoleão etc), Aladim ealâmpada Alia está sentada no meu colo eaos poucos vai escorregan
maravilhosa (uma edição antiga de trechos escolhidos, com be
do. Cobri sua cabeça com meu lenço preto enfeitado de rosas.
las ilustrações), Aviagem maravilhosa de Nils Holgersson -pela Ela está calada.
Suécia, de Lagerlof e Eichtenstein, de Hauff. Esses dois últi
mos ela já leu e releu - eles serão um pouco da casa materna Sua primeira exclamação - ao passarmos por um poste -
- Marina! Uma loja Korolieva3!
no exílio. -Acrescento um estojo com um lápis novo apontado - Koroliova, corrige Lídia Aleksándrovna.
e um porta-pena. - Tinta não dá, pode derramar. - E ainda, m Irina, no colo de Lídia Aleksándrovna, anuncia, irritando-
meu livrinho azul, Alanterna mágica, enele enfio - sem que me, de maneira um pouco pedante e absurda:
ela veja - minha fotografia - em Feodóssia - eu tinha 21 anos
- "Sen-tar é mu-i-to bom!" - e canta: Ai, dudu, dudu,
e me parecia com Charlotte Corday. Depois - no último mo dudu...
mento - coloco em seu caderno uma pequena gravura: uma
menina com oalaúde. The lys ofthe valley. Passamos de Paklónnaia Gora... - Neve, neve, neve. - Eu
Batem à porta. Tiro a corrente. É Lídia Aleksándrovna.
havia esquecido que océu era tão imenso. -As faixas negras da
floresta. Deus sabe por que me vêm àlembrança "As mulheres
Seu rosto magnífico, febril, emerge do enorme capuz da capa russas"4. Lá, porém, era ainda mais deserto. Alia quase escor
que cobria ocasaco. - Uma tempestade de neve!
regou de vez para ofundo do trenó. Ela está calada. "Alia, você
Ponho a roupa nas crianças. Alia usa dois vestidos, um não está com frio?" - "Não, estou muito bem."
par de calças azuis de tricô que passei a noite remendando,
Eu ainda não sinto a separação, estou totalmente absorvi
seu eterno casaquinho azul no qual ela parece Mary Stuart
da pela viagem: aneve desesperadora, océu grande demais, as
Irina, um vestido cor-de-rosa e um colete branco, sujo. Visto pernas já dormentes.
em Alia acapinha que foi encomendada para ela quando tinha
dois anos - na época chegava-lhe aos pés, agora, aos joelhos.
"Seus olhos são como acapa, acapa - como seus olhos" (eter 1A filha dos vizinhos de MT.
na exclamação dos passantes, na rua. Acapa tem acor do céu). J Em russo, no original: "Rainha".
- Touca azul. Luvas remendadas durante a noite. " Poema de Nikolai A. Nekrássov (1821-1877) dedicado às mulheres
f. fe.
dos decabristas.
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Acaba de me dizer isso Lídia Aleksándrovna. PrevinoÁlia.


A pergunta das crianças sobre quem sou eu, ela já responde:
Em seguida, escarpas, descidas, encostas; o trenó voa. Um "Não sei - uma tia qualquer".
parque. Abetos enormes, lagoas geladas, bosques de bétulas. Lídia Aleksándrovna consegue dar um jeito de me cochi
- Oh, como deve ser bonito, aqui, no verão! Neste momento char no ouvido que avigilante está surpresa porque as crianças
é só uma lembrança ou uma promessa. O inverno, para mim, estão tão bem vestidas.
é como para os bebês, não tem presente. - Abetos imensos, - Por acaso podia ter deixado elas virem todas rasgadas?
muito tranqüilos, como dançarinas congeladas (o abeto, mais &•-•
Passei a noite remendando as calças e o vestido de Alia!
do que qualquer outra árvore, evoca a mulher - é só conferir - Pois fez mal, devia ter rasgado - ao contrário.
- é bem isso! Seugesto - todo ele feminino!). - Crianças, tragam o sal! - Sal! - Sal!
Abetos imensos, embaixo deles seria bom viver.
Sentaram Irina num banco, puseram em sua mão uma co
No fundo de um vale há um clarão amarelo: uma datcha lher de pau e sob o nariz - uma cuia. Ela se ajeita, cantarola.
- o abrigo. Descemos. Um soldado segura Irina. A primeira Ouço alguém dizer: "Esta menina é bobinha mesmo".
coisa que eu vejo: um cachorro preto, sem pêlo e frenético, que - Hum! Concordo.
come num balde de lixo.
As crianças correm para o refeitório. A maioria é mais ve
Algumas crianças entram pulando. "Trouxeram mais um lha que Alia, veste roupas sujas, compridas, um lugar de roupas
menino!" Entramos: está escuro, quente, e tudo é de madeira. remendadas -buracos. Barrigas inchadas. Rostos estúpidos.
Enquanto Lídia Aleksándrovna se explica com uma cari - Está na hora de ir embora, agora elas vão almoçar, diz
catura magra de vigilante de abrigo - colocaram Irina sentada Lídia Aleksándrovna.
numa cadeira - eu e Alia vamos para a cozinha. Há um gato -Áletchka, acompanhe-me!
e um cão bege. Grandes caldeirões. Calor. Chegamos bem na Ficamos em pé, junto à porta. Vejo Alia com o rosto le
hora do almoço. Aisso é que se chama "pegar o touro pelos vantado.
chifres". - Fico contente porAlia. - Marina, abaixe-se!
Alia precisava "ir fazer xixi". - Parece que todas (?) as Eu me abaixo.
dependências estão fechadas, é preciso ir atrás de uma moita, - Depressa, Marina, - o Leão5!
na neve.
Faço o leão para ela (a cara de leão - herança de Serioja).
- Hum!
- Beijo-a. "Áletchka, não esqueça, amo você, só você..."
"E sua filha?" - "Sim" - "As duas são suas?" - "Sim!" Acho
que devia ter dito "não", porque as meninas foram inscritas
como órfãs de pai e mãe. 5Apelido de Serioja.

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S8?j'.'
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Ela não chora - Não choro. Ao sair, faço osinal da cruz na dos chegavam perto uns dos outros,, se cumprimentavam, per
porta. - Sentamos no trenó. - Partimos.
guntavam alguma coisa - nomes - os .planos para.o.dia - e eu
- Pois é, é um grande dia hoje! - diz Lídia Aleksándrovna, estava sozinha, para todos eles. tanto, fazia se eu tomasse ou
i .
i: .
entusiasmada. - Cubra-se com sua capa! Você reparou quanta não o trem.

£•'" sopa distribuíram? Eela não cheirava mal... (Pausa)... Mas que
rostos!!! •;'4L-

E me lembrei de outra plataforma - de nove anos atrás!


- mas foi à noite, já tarde - e longe - na província de Ufa. Es
Na casa de Lídia Aleksándrovna havia duas estufas acesas: perávamos o trem, Serioja e eu. - O outono já estava no fim. -
;iife
uma na frente da outra, eu ficava de cócoras ora na frente de Lembro-me da terrível tristeza nascida do sentimento de nosso
uma, ora na frente da outra. Um soldado gentil ia trazendo duplo abandono - aquele fim do mundo! - a hora adiantada,
sem parar novas braçadas de lenha. Volódia6 fechou os pos- os silvos dos trens, a plataforma vazia. - Pois bem, agora, esse
tigos. Depois de comermos, Lídia Aleksándrovna deu-me um momento me parece feliz. - Como saber? Pode serque dentro
bloco, uma caneta, tinta vermelha. "Escreva para Alia." Eu não de nove anos também este momento de solidão na plataforma
parava de brincar de soltar fumaça pela boca: ela produzia va de Kúntsevo possa me parecer feliz?!
por? - para meu grande espanto, nem uma gota. Eu lamentava
que Alia não pudesse ver esse milagre.
Anoite, banhei-me na cozinha. Sentada na banheira, fi Ao chegar ao solo moscovita, rejubilei-me. Havia uma
quei surpresa quando me vi coberta de flocos de aveia quei leve nuvem rosada pairando sobre Moscou - um clarão de
mados. Sem querer, havia enchido a banheira com o balde de incêndio sufocado. Meninos vendiam cigarros, e velhinhas
lixo. - Sozinha, na água, ri feito louca. - E, de manhã - bem - doces folhados. Senti-me feliz durante o caminho todo,
cedinho - saí para ir à estação. Tive de perguntar umas trinta até chegar em casa. Passei por uma lojinha e me lembrei de
vezes que caminho tomar, mas consegui chegar. Quando saí, ter comprado ali uns morangos da última vez que voltei de
tinha certeza de que não iria chegar e que, se chegasse, não Kúntsevo - era verão. (Toda vez que desço de um trem, tenho
conseguiria pegar o trem. Mas cheguei e subi no trem. a sensação de festa e sempre compro alguma coisa que, em
Enquanto esperava o trem na plataforma, eu.pj?ns_ava no tempos normais, nunca teria me "permitido"). Comprei -pela
fato de que todos tinham amigos, família, conhecidos, que to- primeira vez desde a Revolução - um maço de cigarros "lava"
- de 130 rublos, apenas pelo prazer de ter voltado a Moscou
' Sobrinho de LídiaAleksándrovna Tamburer. (novembro de 1919).

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RÚSSIA SOVIÉTICA (1917-1922) Vivendo sob ofogo

O segundo capítulo ê anotado, pela primeira vez, no dia 11 de um pequeno leão japonês de pedra sobre um pedestal, em
dezembro de 1919, mas será reescrito e completado no dia 4 de janeiro brulho tudo isso numa trouxinha, volto correndo à praça So
de 1920.
bátchaia, procuro a diretora da Liga de Ajuda às Crianças
- Nastássia Sergueievna - entrego-lhe a trouxinha, a carta e
[2] A epopéia de Kúntsevo pergunto das crianças.
-Alia é uma menina muito boa, adiantada demais para a
Eu descrevi a ida a Kúntsevo. idade; poderia dar-lhe doze anos - doze? - Não, dezesseis! Eu
Dezdias mais tarde, atravessando a praça Sobátchaia, ouvi não converso com ela intencionalmente, procuro interromper
uma vozinha aguda: um pouco seu desenvolvimento. Ela fica o dia inteiro lendo,
-A sua Alia sente saudades suas, chora. escrevendo, é tão inteligente. Hoje, é verdade, ela chorou um
Olho a meu redor. Um cavalo alazão, um trenó cheio de pa pouco: estava com um livro; um menininho - que ainda não
lha e uma garotinha de uns dez anos, com um lenço na cabeça. sabe ler - se aproximou, ele também queria olhar. Ela não dei
- Você conhece Alia?! Você vem do abrigo? Então, como xava, então ele pegou o livro...
está Alia? - E Irina?
- Ela chora o tempo inteiro, sente saudade. -Ah! Irina! Ela é bem mais incapaz, vê-se. Come exagera-
Oh, como isso apertou meu coração! damente e está sempre com fome, sempre se mexendo, sempre
- Mas ela não fez amizade com alguém? cantando. É só alguém dizer uma palavra que ela a memoriza e
- Ela fez amizade com todos. começa a repeti-la, sem nenhum nexo. - Lá ela tem um trata
- Ela lê, escreve? mento especial - etc.
- Ela lê e escreve em seu caderno. Combino com a diretora que em dois dias ela passará para
- E ela passeia? me apanhar.
- Não, ninguém passeia - agora faz frio. No dia marcado, espero meia hora, espera interminável.
- Mas alguém bate nela? O tempo passa e a diretora não aparece. Vou até a Liga e a
- Não, ninguém bate em ninguém. encontro lá.
Combino com a menina que me espere, vou para casa - E então, posso ir com a senhora?
voando, apanho às pressas a carta para Alia que passei tardes - Não, não pode, temos ainda de ir até o distrito.
escrevendo, entro no quarto das meninas, sem olhar pego a Tem algo de frio, no rosto e na voz.
gaiola vazia do esquilo, um carrinho quebrado e alguns outros - E as crianças, como estão?
monstros -infantis inúteis postos de lado - depois, para Alia, - SuaAlia parece que adoeceu.
uma pequena imagem (é antiga, é a Virgem Maria de íversk) - - Meu Deus! O que ela tem?

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IO
RÚSSIA SOVIÉTICA (1917-1922) SR»
Vivendo sob ofogo

- Não sei, o médico ainda não veio. Febre, dor de cabeça. Anoto todas as curvas; o medo de não encontrar o ca
Hoje nem a deixei sair da cama. minho me distrai um pouco do pensamento de que Alia está
- Um minutinho só. Vou dar um pulo até em casa, escre doente. - Amínievo - a chaminé de Otchákovo - Centro - e
ver uma palavrinha para ela - é pertinho daqui, na rua Boris e assim adormeço.
Gleb, volto num instante. Dê um beijo por mim aela ediga-lhe
que amanhã estarei lá sem falta...
Vou até em casa, escrevo uma palavrinha - tudo desmoro
nou dentro de mim - aangústia não éno peito, éno estômago. Na manhã seguinte, saio às onze horas - havia levantado
Em casa, vagueio pelo quarto - de repente decido que às oito e já poderia estar com Alia há muito tempo, mas, de
é hoje mesmo que irei. Passo correndo na casa dos Balmont7 um lado, o medo e, de outro, os esforços de Volódia e de Lídia
para deixar-lhes o creme de arroz-doce (o alimento enriqueci Aleksándrovna em me encher de chá (minha eterna e fatal de
do para as crianças da rua Pretchístenka; os cartões de racio licadeza) seguraram-me.
namento das meninas ficaram aqui, depois que elas partiram) Olho para meu papelzinho - vou. Volódia, queestá saindo
- não consigo engolir nada, não adianta, e no abrigo as crian para cuidar de negócios do Hospital (é médico-chefe), acom
W:
ças são alimentadas - entre os Balmont e a estação, como panha-me durante um pedaço do caminho.
sempre, hesito sobre qual caminho tomar, pergunto mil vezes, - Bem, agora, sempre reto, até a chaminé de Otchákovo...
sinto dor nos pés (os sapatos já sem salto), cada passo é um Desço num pulo, agradeço. Àdireita, os abetos; à esquer
tormento - faz frio - estou sem galochas - angústia - e medo da e à frente, os campos desertos. Vou.
- um horror. No lugarejo deAmínievo as crianças zombam de mim, gri
Em Kúntsevo vou ver Lídia Aleksándrovna, conto-lhe, ela tam palavrões. O caminho é cheio de subidas e descidas - uma
me tranqüiliza. Já está escuro (eu havia partido com o trem das ladeira íngreme - uma lagoa gelada. Alguém me pergunta se
quatro horas), impossível ir até oabrigo. Pergunto a Lídia Alek tenho tabaco para trocar.
sándrovna e a Volódia mil vezes qual é o caminho. -A mesma Sigo adiante, perguntando-me sempre, ansiosa, se é o ca
distância que há entre a rua Boris e Gleb e a praça Lubianka minho certo, apesar de haver só um. Finalmente, como que por
- sempre reto, sempre reto; depois da chaminé da usina de um milagre no qual não se acredita- a chaminé de Otchákovo.
Otchákovo, à direita, lê-se num portão: "Centro-álcool" - ou A direita, o portão. Centro.
"Centro-óleo". Mas, antes - olugarejo de Amínievo. Vou andando pela imensa alameda. O medo, Deus sabe
por que, diminuiu - agora verei Alia! - Passo a pontezinha
7E a casa do poeta russo Konstantin Balmont (1867-1942), amigo - depois um declive brusco - o vale que já conheço - o abri
de mt. go. Entro. Uma das crianças: "Vossa Alia adoeceu!" - "Eu sei,
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RÚSSIA SOVIÉTICA (1917-1922) Vivendo sob ofogo

estou aqui, levem-me até ela, por favor." Atravessamos a lon - Álechka, acalme-se, não é nada, tudo isso é bobagem,
ga escadaria interna, amarela, imersa na escuridão. Cheira a vou levar você daqui. Elas rasgaram tudo?
pinheiro. Primeiro andar. Uma menina corre diante de mim. - Não, apenas as folhas em branco. E eu tentei me defen
"Alia! A tia veio ver você!" Entro. Uma multidão de camas. Não der! Mas a capa do livro... O caderno consegui amarrar com
consigo distinguir nada. (Sou completamente míope.) uma cordinha...
Um grito: "Marina!". Chama a inspetora —Lídia Konstantínovna —e suplica-lhe
Sempre sem nada ver, dirijo-me ao fundo do cômodo, que traga o caderno.
guiada pela voz. Pergunto-lhe sobre a doença de Alia.
Um miserável cobertor de algodão inacreditavelmente (Esqueci de dizer que os doentes são muitos - uns quinze,
sujo. Debaixo dele, os olhos imensos de Alia, inflamados e ver e há dois ou três em cada cama.)
melhos de lágrimas. Rosto febril, coberto de lágrimas. Cabeça §• Parece que o médico não veio nem virá —é longe demais
raspada. Alia levanta-se: vejo que ela está deitada com sua rou —e não há remédios - nem um termômetro sequer.
pa de lã xadrez. Perto de Alia está deitada uma menina de uns cinco anos
- Alia!!! O que aconteceu? com a cabeça raspada. Ela faz todas suas necessidades na cama,
E ela, atirando-se em meus braços, aos soluços: geme e mexe a cabeça de um lado para o outro sem parar. Num
- Oh, Marina! Quantas desgraças! Quantas desgraças! As leito adiante, dois meninos, um virado para a cabeceira, outro
crianças rasgaram meu caderno - e a capa do livro - daquele para o pé da cama. Noutro mais distante —uma menina e seu
que você gosta - e eu não consigo ficar em pé! irmãozinho, Piétia.
Í':-
Aperto-a contra mim. Não consigo articular uma única Só então vejo Irina, que perambula pelo cômodo. O ves
palavra. Ela chora. tido cor-de-rosa indizivelmente sujo, até os pés, cabelos corta
-Alia! Rasparam seu cabelo? dos, o pequeno pescoço magro esticado. Ela perambula entre
- Sim, mas eu guardei um cacho para você, está no seu os leitos.
livro, na Lanterna mágica. - Irina! —Levanto [falta uma palavra], olho: não, ela não
Ela.pega de debaixo do travesseiro meu pequeno volume engordou; talvez, ao contrário, emagreceu. O rosto está um pou
de veludo azul, abre-o: um cacho dourado de seu maravilhoso co diferente — ainda mais sério. Imensos olhos verdes-cinza-
cabelo - Stuart! - colocado como marcador de um poema [o escuro. Não sorri. Cabelos rebeldes.
título não está anotado}. - Marina! Não me leve a mal, mas ela se parece terrivel
- Mas meu caderno, meu caderno! Marina, acredite, eu mente com uma foca. Ter-ri-vel-men-te!, dizAlia.
não sou culpada, as crianças... - Ela é terrível, e esse hábito que ela tem de fazer xixi à
noite —queixa-se Lídia Konstantínovna —, não adianta eu fazer

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Vivendo sob ofogo

ela levantar e colocá-la no penico a cada meia hora, não, ela ficar" - se a inspetora não os estaria enganando com o número
faz pelo menos três vezes durante anoite, enão há como lavar, de colheradas.
o encanamento está quebrado. - Ela pede para ir e quando se Gelada de pavor, compreendo: de fato - isso éfome. Então
senta: "Não quero!". E haja gritos! O que ela quer dizer com «Pi é esse o arroz com chocolate com o qual me seduziu Pávluch-
isso?! -A mais velha, ao contrário, é até ajuizada demais - O kov! (O médico que fez as crianças entrarem no abrigo.)
modo como ela escreve! Isso que ela mantém como uma espé Irina, sentindo minha presença, comporta-se bem. Nada
cie de diário, eu o li. Como ela descreveu nosso Piétiaü! mais de "Não quero!" - (a única frase que ela aprendeu no
Dou uma bolacha aAlia, e a Irina, uma batata. Alia conta abrigo). Ela deixa que a levem aopenico. Lídia Konstantínovna
que Irina não aceita nada das mãos de ninguém, a não ser de desfaz-se em elogios.
Lídia Konstantínovna. Se as crianças lhe dão alguma coisa, ela —Irina, quem veio ver você?
não a toca: fica lá, olhando. É assim:
Irina, como sempre, depois de ter me olhado, vira-se. Ela
- Irina, dê-me a batata!
I está calada.
- Minha batata!
Eu mesma dou comida a Alia. As colheres de madeira,
t: - Irina, dê o Conselho de Kozlóv!
enormes, não entram na boca. Alia, apesar da febre, come com
- Minha (!!!) cônsul de Kozlóv!
avidez.
E assim por diante. As crianças não gostam de Irina, zom "E então, de manhã, o que eles dão para vocês comerem?"
bam dela. Quando querem levá-la ao penico, ela se joga ebate - "Leite aguado e metade de um biscoito - às vezes, um pe
a cabeça no chão.
dacinho de pão." - "E de noite?" - "Sopa." - "Sem pão?" - "Às
Pouco a pouco compreendo ohorror que é oabrigo: nada vezes pão, mas raramente."
de água, as crianças - por falta de roupas quentes - não poden Depois de comer, as crianças choram um pouco menos.
do passear - sem médico nem remédios - uma sujeira incrível "Estou com fome!", não cessa de gemer a vizinha de Alia. "O
- ochão cheio de fuligem - um frio de lascar (o aquecimento que ela tem?" - "Ela tem fome." - "É sempre assim que eles
não funciona). - Em breve, o almoço. dão comida para vocês?" - "Sempre."
Lídia Konstantínovna distribui: aentrada - água com algu Olho pela janela. A neve já não brilha tanto, logo vai cair
mas folhas de couve no fundo de um prato raso. Não acredito a tarde. La mort dans le cceur [com a morte no coração] —digo
em meus olhos. Prato principal: uma colherada de sopa (nor adeus. Beijo e abençôo Alia. "Álechka, não chore, voltarei ama
mal) de lentilhas, depois, como "suplemento" - uma segunda. nhã, sem falta. E levarei você daqui!"
Nada de pão. Isso étudo. As crianças comem as lentilhas^uma Beijo e abençôo. "Marina, não esqueça meu caderno! Pe
por uma, para sentir o gosto por mais tempo. Durante a distri gue os livros também, senão as crianças vão rasgá-los."
buição, no cômodo dos doentes irrompem os sadios para "veri-
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Saio. E, de novo, a alameda - os pilares vermelhos do abri [3] Retorno no dia seguinte
go - eu os abençôo - e de novo a pontezinha - a lagoa - a neve.
Sigo, com um pavor que aumenta, mas omedo de perder meu Da primeira vez em que fui visitar Alia no abrigo, não esta
caminho consegue me distrair um pouco. Dobro à direita, per va tão assustada: a preocupação com o caminho desconhecido
gunto a um mujique que passa - se aquele é o caminho para (não o encontro -jamais - chega a ser idiota) - a boa reputa
Kúntsevo - não, é à esquerda. ção das casas de assistência para as crianças - certa irrealidade
E assim - numa imensidão de neve - sozinha - os pés da doença de Alia (nunca a havia visto doente) - sentia-me
doendo - uma angústia mortal no coração - sigo. inquieta - preocupada - mas não com medo.
Na segunda vez, entretanto - depois da primeira visita e da
leitura do caderno - e ainda uma noite inteira passada num es
critório gelado, sem metrocar e coberta apenas com minha capa
Na casa de Lídia Aleksándrovna já estava escuro. Entrei - na segunda vez, fui para lá como uma condenada à morte.
devagarinho, sentei numa cadeira e comecei a chorar. Neve, neve. A escuridão dos abetos..A morte,.Eu cami
A gorda Maria (que tinha sido empregada numa casa de nho como um fantasma, claudicando sobre meus saltos gastos
gente rica e me desprezava) trouxe à mesa a comida. Fiquei - tempestade de neve. -Agora, o caminho, de tão reluzente, é
sentada no escuro; não comia e continuava chorando. Lídia pouco visível - como conseguirei voltar? - Estou levando para
m i Aleksándrovna, no cômodo ao lado, conversava com Volódia. Alia dois tabletes de açúcar e dois.biscoitos - Lídia Aleksán
Depois, chamou-me: drovna os deu para mim - é impossível comprar qualquer coisa
- E então? em Kúntsevo.
- Um pesadelo - respondi em voz baixa, para esconder as Ah, se pudesse entrar em qualquer isbá e trocar minha
lágrimas. pulseira por um pedaço de pão, mas eu tenho um ar tão suspei
- Ou seja? to - e minha voz ficaria logo tão pouco natural - ou lamuriosa
- Lá não são alimentados, não são tratados - não há ter ou insolente demais (é sempre assim, quando vendo alguma
mômetro, nem remédios, nem médico. E não há aquecimento. coisa) - ninguém irá acreditar que tenho uma filha no abrigo.
Alia vai morrer. A estrada não termina. Oh, não são três verstas, é evi
dente: são, no mínimo, seis. A tempestade desaba, meus pés
O terceiro capítulo que conta os acontecimentos do dia 5 de de afundam na neve fresca.
zembro de 1919 é igualmente escrito no dia 4 de janeiro de 1920. Um pouco antes de chegar ao abrigo, um mujique que
encontro pela estrada se oferece para me levar. Subo em sua
carroça. Barba ruiva, olhos azuis vivos - astutos e infantis.

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Sfe-':
m
Pergunta se eu trabalho. Sinto uma vaga vergonha - como A cama dela está no canto entre duas janelas não calafeta-
sempre - e, pressentindo seu juízo caso responda "não", digo das. Cabeça raspada. Ela passou frio. - Só tem uma camisa no
que sim. "Onde?" - "Na cooperativa. Meu mando é marinhei Píri; corpo - não a dela - toda rasgada.
ro, desapareceu em Sebastópol." - "Bem, bem." Quando passei, vi que hoje tinham lavado o chão.
Ali está o"Centro" - desço, agradeço. Aaflição que sinto "Sim, ela chora o tempo todo, sem parar, e aí está: dói a
na barriga (entrailles [entranhas]) acalmou-se um pouco com cabeça", diz Lídia Konstantínovna. - Escondendo com dificul
a conversa com o mujique, mas agora virou náusea. Obrigo as dade minha indignação, dou a Alia pó de quinino. "O que a
pernas a irem adiante.
senhora está dando para ela?" - "Quinino." - "Seriamelhor não
Os pilares vermelhos do abrigo. - Oh, Deus! - sinto-me dar, incha o estômago e dá zumbido no ouvido."
petrificar.
"O médico ainda não passou?" "Não - é longe - antes,
Oedifício. Aescada. Ocheiro de pinheiro. Um monte de quando estávamos perto do hospital, eu os levava até lá."
crianças, não consigo distinguir ninguém. Algumas crianças sararam porconta própria. A todo instan
Digo, com voz suplicante: "Vim verÁlechka". te, os que estão bem invadem o quarto, Lídia Konstantínovna
Ealguém, no meio das crianças (um menino, parece): m
os manda embora, mas eles não obedecem. Alia tosse feito doi
- Alechka está pior! - Álechka morreu! da, a tosse comprida voltou. As veias da testa e do pescoço estão
Já estou no andar de cima. Encostada à parede - Lídia tensas, parecem cordas. O branco dos olhos de Alia é azulado,
Konstantínovna. Agarro-lhe as mãos, quase acomprimo contra um pouco mais pálido que a íris - estávermelho sangue.
a parede.
A inspetora resmunga: "Elas já chegaram com coquelu
- Pelo amor de Deus - pelo amor de Deus - pelo amor de che, eu falei desde o começo que elas estavam doentes. Agora
Deus - diga-me: é verdade? todos estão tossindo".
- Que nada - como a senhora se assustou! Não lembro como, a conversa passou para a escola:
- Suplico-lhe!!!
- Ela teimava, teimava, e depois obedeceu, foi à escola.
- Que nada, eles estão brincando - são assim mesmo - Como pode? - Lá, além de dar o almoço, projetam imagens!
não fazem por mal.
No começo elarepetia que. não_ queria.escrever sem iat8 e eu
- Então, nada? Suplico-lhe!!! dizia: "teremos tempo de chegar até o iat, espere um pouco,
- E verdade - eles brincam. Vamos lá! assista às projeções, você vai aprender alguma coisa, os profes
Com passos imensos aproximo-me da cama de Alia. Aca sores são bons...".
beça raspada descoberta - os braços estendidos - viva!
-Alia, chorando, de novo! Oque você tem? Está pior?
8Letra do alfabeto cirílico suprimida durante a Revolução, da qual mt
-A cabeça dói muito, e os ouvidos também. fazia muita questão.

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Pi
EAlia, aos prantos: "Não, eu não fui àescola! Marina, não Éfi: Vou até a escada, lá fora, para fumar. Converso com as
acredite! Eu fiquei o tempo inteiro no pátio...". crianças. Uma menininha: "É sua filha?" - "Sim, minha filha".
- Bem, bem, tudo isso é bobagem, acalme-se, Alechka, No espaço exíguo entre a escada e a parede - Irina, brava,
acredito em você... bate a cabeça no chão.
(Sozinha contra todos! - Por acaso eu não estava certa?) - Crianças, não mexam com ela, deixem-na. Eu decidi
Preocupo-me em mudar Alia para outra cama - desocupa não dar atenção, assim ela pára mais rápido - diz a diretora,
da. As tábuas não se encaixam. Agir como se estivesse em mi Nastássia Sergueievna.
nha própria casa, em um lugar estranho - e ainda por cima "Irina!!!", chamo. Irina levanta-se, obediente. Um segundo
cuidar de uma criança que não é a sua - (sim, pois sou uma iP«r' depois, desequilibra-se nos degraus da escada. "Irina, sai daí,
"tia") é algo completamente contrário à minha natureza - oh, você vai cair!", grito. "Não caiu, não caiu, e vai cair?", diz uma
maldita educação! menina.

Mas se trata da vida de Alia - e me obrigo a impor meu "É isso mesmo", digo com uma voz arrastada - tranqüila e
ponto de vista. Sinto um vago descontentamento da parte da maldosa —"não caiu, não caiu - e vai cair. E sempre assim."
inspetora. "E vai se quebrar toda", confirma a menina, tranqüilizada.
Finalmente Alia está instalada em outro leito. Lídia Kons Volto paraAlia. Avizinha de Alia queixa-se:
tantínovna veste-lhe uma camisa limpa, eu - um vestido e uma - Fome... tô com fome...
jaqueta. Piétia - que tem a mesma idade de Irina - também cho
-A senhora a agasalha demais, isso não é bom. raminga.
- Mas aqui não há aquecimento. m "Pare de chorar!", diz um dos meninos, "chorar porque
Irina perambula entre as camas. Dou açúcar a Alia. Um está com fome? É bobagem!"
ataque de tosse, Alia, com os olhos dilatados de medo, devolve- "Hoje, os doentes não terão o prato principal!", anuncia
me otablete de açúcar que tirou da boca: há sangue. alguém que passou correndo.
Açúcar e sangue! Estremeço. - Hoje só batata e não prato principal.
- Não é nada, Alechka, são pequenas veias que se rom "Terão sim", digo eu obstinada - e horrorizada.
pem por causa da tosse. A mesma sopa —a mesma quantidade - sem pão. Nova
Apesar da febre, ela come avidamente. mente os mais crescidos assistem à partilha. Lídia Konstantí
- Mas como é, não oferece nada à pequena? novna resmunga: "Podem ver, não vou sumir com nada. Vocês
Faço de conta que não ouvi. - Deus! - Tirar de Alia? - Por estão pensando o quê? Que sou eu que vou comer?".
que foi Alia quem ficou doente e não Irina?!! (Eu me esqueci de dizer que, com o coração apertado, não

i:
W:
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satisfiz ao pedido de Alia: não pude trazer uma colher menor, - Está bem, está bem, vou colocá-lo no sapato dela.
na casa de Lídia Aleksándrovna só havia colheres de prata.) Olho pela janela: a neve agora está muito menos reluzente.
Alguém pega Irina no colo e aleva para almoçar. Ela de Uma enorme tempestade. Vê-se que logo irá escurecer. Bem
vora a sopa.
que eu queria esperar pelo ovo, mas não posso me demorar
l:r.: Eu espero, espero. Pelo visto, não haverá prato principal. mais - já nem sei como voltarei para casa.
Alguém chega com a notícia de que os doentes receberão um - Bem, Alia, que Deus a proteja! - Inclino-me, beijo-a
ovo.
com uma pena infinita. - Não chore, amanhã, sem falta, tiro
As provisões de Alia terminaram. Sento, acabrunhada. i
você daqui - e estaremos juntas de novo - não se esqueça do
"Seria bom se você dormisse um pouco agora, você me quinino! Até, alegria de minha vida...
dá pena", diz Lídia Konstantínovna a Irina, "mas não sei onde
colocá-la - você ainda vai fazer xixi". Coloca-a atravessada
numa cama grande sobre uma espécie de esteira e a cobre
com uma capa.
Quando saí, já estava tudo cinza. Lembrei-me da maré alta
E- três minutos depois - ogrito de sobressalto da mesma e baixa - do fluxo e refluxo inevitáveis.
Lídia Konstantínovna - "Oh, oh, oh! Vai começar de novo!". Mesmo que tivesse asas - a escuridão estaria do mesmo
Ela agarra Irina eacoloca sobre openico. Tarde demais. jeito à minha frente. - Tempestade de neve. - Com certeza
Depois de algum tempo, Alia pede para fazer xixi. Trago o vou me perder e morrerei de frio. Mas é preciso ir em frente,
utensílio com água e a ajudo a se sentar. enquanto tiver pernas. Sigo - num desespero tranqüilo - pela
Quando Lídia Konstantínovna retorna, ergue os braços: estrada que mal se enxerga. As pernas afundam profundamen
-Ah! Veja oque asenhora fez! Aágua que eu trouxe era te na neve.
para lavar! Agora, onde éque vou encontrar água?! Ando por uns dez minutos, mas continuo em Kúntsevo.
Mantenho-me em um silêncio raivoso. Uma voz de uma velha: "Senhorita, aonde vai?" - "Para Kúnt
Ao sair, deixo com Alia meio saquinho de quinino: sevo." - "Oh, não chegará lá - o caminho foi completamente
-Alechka, você tomará isso de noite - olhe bem, vou pô-lo coberto pela neve. E, agora, vai anoitecer."
aqui, não esqueça, - e, dirigindo-me a Lídia Konstantínovna: -A senhora vai para onde? Para Kúntsevo, também?
- Eeste pozinho, peço àsenhora que odê aela de manhã, —Não. Sou daqui.
suplico-lhe, não esqueça. A esperança esmoreceu. A velha envereda por uma ruazi-
m
- Está bem, está bem, só que a senhora está errada em nha e, de repente, de longe, grita vendo um trenó passar:
enchê-la de quinino, isso dá zumbido no ouvido. - Querida! Pegue-a! Vai também a Kúntsevo! Não vá a pé
- Pelo amor de Deus, não esqueça! —está escuro! Você vai para a estação?

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- Sim, pego o trem das quatro! É a terceira crise. - Tenho, agora, a experiência do deses
- Venha se quiser, suba se conseguir; só não posso parar o pero - eu ia começar uma frase, mas, por superstição, no bom
cavalo - estou com pressa! ou no mau sentido, receio terminá-la.
Subo num pulo enquanto otrenó anda - no primeiro mo Enfim, queira Deus!
mento não compreendo se estou no trenó ou na neve - não, a Vivo envolvida porindiferença, Alia e eu estamos comple
neve se move - significa que estou no trenó. tamente sozinhas neste mundo.
- Salva! Ninguém está mais só do que nós em Moscou inteira!
Aboa mulher no trenó é uma doméstica, ela vai à esta Todos permanecem à cabeceira da cama das outras crian
ção encontrar seus patrões, tem medo de se atrasar. Conver ças, sem ter de sair, enquanto eu - Alia com 40,7o - tenho de
samos.
deixá-la sozinha para ir procurar lenha no inferno.
Digo-lhe quem sou e por que estou em Otchákovo. Ela não tem ninguém a não ser eu, e eu, ninguém a não
ser ela. - Não se aborreçam, senhores, tomo não tem e tem no
Depois dessa visita, MT toma uma decisão: ela traz Alia, doen sentido mais profundo: se ela tem, morrerá se eu morrer; se ela
te, de volta para casa, mas deixa Irina no abrigo. Na luta contra a não morrer —quer dizer que ela não tem.
fome, ofrio eadoença, ela éfreqüentemente ajudada por um casal, Mas isso é no sentido mais profundo - e não é sempre
Vera Zviaguíntseva, atriz emais tarde poeta etradutora, eseu mando, que vivemos no mais profundo - e tão logo eu voltar a ser feliz
Aleksandr Erofiéev, economista. Nas cartas que MT lhes envia, pode- - isto é, livre do sofrimento de outrem - eu direi novamente
se ler acontinuação da história. Aprimeira, que data provavelmente que vocês dois —Sacha e Vera - estão perto de mim. —Eu me
de 17 de janeiro de 1920, parece não ter sido enviada. conheço.
AVera Zviaguíntseva eAleksandr Erofiéev: Nos últimos dias, justamente, estava tão feliz: Alia estava
sarando e eu - depois de dois meses —estava escrevendo de
Amigos meus, novo, mais e melhor do que nunca. Acordava e cantava, andava
pelas lojas - uma alegria! -Alia e a poesia.
Obrigada pelo carinho. Estava preparando uma coletânea —de 1913 a 1915 —os
Estou escrevendo para vocês de minha cama. É noite. versos antigos ressurgiam e chamavam de volta à vida, eu os
Alia está com 40,4o de febre - ela teve 40,7o. - Éamalária. corrigia, os ordenava, completamente encantada pelos meus
Durante dez dias esteve quase boa, lia, escrevia; ontem de vinte anos e por todos aqueles a quem eu amava então: a mim
noite estava com 37o - e, de repente, hoje de manhã, 39,6o - e própria - Alia - Serioja - Ássia - Piotr Efron - Sônia Parnok -
de noite, 40,7o. minha jovem avó —os generais do ano de 1812 —Byron —e - não
dá para enumerar a todos!

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RÚSSIA SOVIÉTICA (1917-1922)
Vivendo sob ofogo

Mas, de repente, a doença de Alia - e eu não posso escre Quando estiver de pé, vá ver Balmont pelo mero prazer
vi}*0Jen^0...0Ai,:eito. de escrever, pois isso é um gozoe um - apenas a visão dele - sob o cobertor xadrez - é suficiente!
luxo. Então escrevo cartas eleiodivros. Disso deduzo que, para
mim, oJuxo_é o_ofício_para_o_qual nasci. A carta seguinte foi escrita três dias mais tarde.
Sentirão frio ao ler esta carta, mas compreendam-me,_s_ou Aos mesmos:
um ser solitário - sozinha sob o céu - (pois eu e Alia somos
um todo), nada tenho a perder. Ninguém me ajuda a viver, Moscou, sexta-feira, 20 de fevereiro de 1920.
não tenho nem pai, nem mãe, nem avó, nem avô, nem amigos.
Estou terrivelmente sozinha, e, por isso, tenho todos os direitos Meus amigos!
- mesmo o de cometer um crime!
Abateu-me uma infelicidade tremenda: Irina morreu no
orfanato nojha_3_deJevereiro, quatro dias atrás. Sou a cul-
pada. Estava tão tomada pela doença_..de_Ália (malária - com
acessos repetidos) - e tinha tanto medo de ir ao abrigo (medo
5es^e_.clue..nasci sou excluída do círculo dos humanos, da de que acontecesse aquilo que aconteceu), que deixei tudo na
sociedade. Atrás de mim não_há.um.muro^yo_-^ájjma ro mão do destino.
cha: o Destino. Vivo observando minha vida - toda a vida - a Você se lembra, Verotchka, de quando estávamos emmeu
Vida! - Nãojenho idade nem rosto. Pode ser que eu seja aVida quarto, sentadas no sofá, ainda lhe perguntei evocê respondeu
í:. I
mesma. Não temo a velhice, não temo o ridículo, não temo a "pode ser" - e eu gritei, cheia de pavor: "Pelo amor de Deus!"
miséria - a hostilidade - a maledicência. Sob meu envoltório - E agora aconteceu e nada poderá mudá-lo. Fiquei sabendo
de alegria e de fogo, sou pedra, ou seja, invulnerável. - Mas há disso por acaso, passei pela Liga de Ajuda às Crianças, na pra
Alia. Serioja. - Que eu desperte amanhã com cabelos brancos e ça Sobátchaia, para me informar sobre um sanatório para Alia
cheia de rugas - o que importa! - criarei minha velhice - ama - e, de repente, reconheci ocavalo de pelagem avermelhada e
ram-me tão pouco mesmo!
o trenó com a palha - de Kúntsevo. Entrei, chamaram-me. "A
Viverei - as Vidas - dos outros.
senhora é a cidadã tal e tal?" - "Sim, sou eu." - E disseram-
E, ao mesmo tempo, eu me alegro tanto com cada camisa me; "Morreu sem estar doente, de fraqueza". Nem fui ao en
lavada de Alia, com cada prato limpo! - Ecom opão do comitê! terro. -Alia, nesse dia, estava com 40,7o de febre e - para di
E gostaria tanto de um vestido novo!
zer a verdade?! - eu simplesmente não podia. -Ah, senhores!
Deliro. - E preciso dormir. - Verotchka, restabeleça-se e - Haveria muito para dizer, aqui. Direi apenas que é um sonho
reencontre seus olhos febris - da Vida inteira - suas faces rosa ruim do qual eu ainda acho que acordarei. Durante alguns
das. - Lembro-me de seu vestido negro e de seus cabelos claros. momentos esqueço completamente, alegro-me que a febre de
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Alia tenha baixado, ou com o tempo que está fazendo - e, de Alia está com malária, com acessos muito freqüentes; ela
repente - Senhor, Deus do céu! -Ainda não consigo acreditar! teve febre de 40,5o - 40,7o portrês dias seguidos, ora um pouco
- Vivo com um nó na garganta, à beira do abismo. —Agora menos ora um pouco mais. Os médicos falam em sanatório:
compreendo muita coisa: culpado de tudo é meu aventurei- isso significa - separação. Mas ela vive através de mim, e eu,
rismo*, minha atitude leviana diante das dificuldades, enfim através dela - como que freneticamente.
- minha saúde, minha capacidade monstruosa de agüentar. Senhores, se acontecer de Alia ter de ir para o sanatório,
Se algo nos é fácil, não percebemos as dificuldades do outro. irei morar com vocês, nem que seja para dormir no corredor
II E —por fim - eu estava tão abandonada! Todos têm alguém: ou na cozinha - pelo amor de Deus! - na rua Boris e Gleb não
marido, pai, irmão - eLi só tinha a Alia e Alia estava doente posso ficar, eu me enforcaria.
e eu me deixei levar completamente pela doença dela - e aí Ou, então, levem-nos ambas para vossa casa, onde faz ca
Deus me castigou. lor. Tenho medo de que no sanatório ela também possa morrer,
Ninguém sabe - apenas uma das moças daqui, a madri tenho medo de tudo, estou em pânico, ajudem-me!
nha de Irina, amiga de Vera Efron. Eu havia falado com ela A malária cura-se com boas condições de vida, vocês da
para que desse um jeito de Vera não ir buscar Irina - eu estava riam o calor, eu, o alimento. Antes daquilo que lhes escrevi no
me preparando para isso e já tinha até falado com uma mulher começo da carta, eu havia começado a preparar uma coletânea
que traria Irina -justamente, no domingo. de poemas (1913—1916) - eu estava tão compenetrada - e, além
Oh! disso, precisava de dinheiro.
Senhores! Digam alguma coisa para mim, expliquem-me. E agora - tudo desmoronou.
Outras mulheres esquecem seus filhos para ir aos bailes Por esses dias um médico virá examinar Alia - o terceiro!
- por amantes - por jóias - pela festa da vida. A festa de minha - falarei com ele; se ela puder se restabelecer em condições
vida são meus versos, mas não foi por eles que me esqueci de normais, eu lhes suplicarei: será possível tirar de seus inqui
Irina - fiquei dois meses sem escrever! E - o que é mais ter linos a sala de jantar? Adoença de Alia não é contagiosa nem
rível para mim! - eu não me esqueci dela, eu não a esquecia permanente e não lhes trará nenhuma preocupação. Eu sei
e sempre me afligia e perguntava para Alia: "Alia, o que você que estou pedindo uma ajuda exorbitante, mas - senhores! - é
acha...?". Durante todo o tempo preparei-me para ir buscá-la porque sei que gostam de mim!
e vivia pensando: "Então, é só Alia melhorar e eu vou buscar Os médicos falam em sanatório porque a temperatura de
a Irina!". —E agora é tarde. manhã aqui em casa não passa de 40 ou 50, apesar de aquecê-la
à tarde e também à noite.

' Termo várias vezes usado por mt, significando "tendência paraaven Para a comida, os parentes de meu marido ajudarão e eu
tura". (N. de T.) venderei meu livrinho com a ajuda de Balmont - daremos um

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RÚSSIA SOVIÉTICA (1917-1922) • Vivendo sob o fogo • i

jeito. Por acaso não receberam os víveres de Riazan? - Senho Estou escrevendo em cima de um piano de cauda, o sol
res! Não se assustem com meu pedido, eu mesma vivo num bate em cheio sobre o caderno, meus cabelos estão quentes.
horror permanente, enquanto escrevia de Alia me esqueci de Alia está dormindo. Querida Vera, estou completamente perdi
Irina, mas agora voltei a lembrar e estou atordoada. da e vivo de um jeito horrível. Sinto-me completamente como
Bem, um beijo, Vera, espero que fique boa. Se for me es um autômato: aquecer, ir à rua Boris e Gleb procurar lenha
crever, o endereço é: V A. Jukóvskaia (para M. I. T[svetáieva]) - lavar a blusa de Alia - comprar cenouras - não esquecer de
- ou - para Marina, rua Merzliákov, 16, apartamento 29. Não desligar o conduto - pronto, já é noite. Alia adormece cedo e
estou registrada aqui. Quem sabe Sachenka passe por aqui? eu fico sozinha com meus pensamentos; à noite sonho com
Mesmo que lhe seja difícil deixar Vera sozinha, eu sei. Irina, que - parece - viva - e fico tão feliz - para mim é tão
Beijo a ambos. - Se for possível, não contem - por en natural alegrar-me - e é tão natural que ela esteja viva. Até
quanto - anenhum de nossos amigos comuns - como um lobo agora não consigo entender que ela não mais esteja viva, não
que se esconde em seu covil, escondo minha dor, as_p_e_sisas consigo acreditar, compreendo as palavras, mas não as sinto,
são um fardo. tenho sempre a impressão - quando não considero olado sem
M.T saída - de que tudo tem remédio, de que isso para mim - no
meu sonho - é uma lição, que - e aí eu acordo.
[Acrescentado àsmargens:] Querida Viérochka.
Neste momento, sinto-me mal com as pessoas, ninguém
w
Além disso, Viérochka, você traria de volta aAlia um pou gosta de mim, ninguém - simplesmente - decididamente -
co de alegria, ela a ama tanto, e a Sacha também, na casa de tem pena de mim, sinto tudo o que pensam de mim, é tão
vocês o ambiente é suave, agradável. Eufico tanto tempo cala pesado. De resto, não vejo ninguém.
da agora - e- apesar de não saber nada, ela acaba percebendo. Neste momento, preciso de alguém que acredite em mim
- Estou apenas lhes pedindo uma casa - por um tempo! e diga: "Mesmo assim você é uma boa pessoa - não chore
M.
- [Serioja] está vivo - você vai encontrá-lo - vocês terão um
filho, tudo ainda pode dar certo".
Alguns dias mais tarde, ela escreve apenas a Vera Zviaguíntseva:
Agarro-me febrilmente aAlia. Ela está melhor -já sorrio,
Moscou, quarta-feira, [25] de fevereiro de 1920. mas - de repente - 39,3o e, mais uma vez, tudo me é tirado,
acostumo-me à morte. - Querida Vera, não tenho futuro, von
Viérochka! tade, tenho medo de tudo. Seria melhor - parece - morrer. De
Neste momento, você é a única pessoa com a qual quero qualquer maneira, se S[erioja] não estiver vivo, não poderei
If - posso - falar. Talvez porque você goste de mim. viver. Imagine - a vida é tão longa - imensa - tudo é estranho
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RÚSSIA SOVIÉTICA (1917-1922)


Vivendo sob ofogo

- cidades, pessoas - e Alia e eu - tão abandonadas - ela e eu. enorme, cheia de sabedoria, olhos sombrios, profundos - ou,
Por que prolongar o sofrimento quando se pode não sofrer? quem sabe, vazios - des yeux perdus [uns olhos perdidos] - uma
O que. me prende à vida? Tenho 27 anos, mas sou como uma graciosa boca vermelha - um nariz redondo achatado - alguma
velhinha, nunca terei presente. coisa de negróide na estrutura do rosto - um negro branco.
Além disso, tudo em mim já está roído, devorado por uma - Irina! - Penso pouco nela agora, nunca a amei na realidade,
grande tristeza. EAlia - é um pequeno broto tão terno! s.emp_re_ew sonho - amava-a quando, chegando à casa de Lília,
Cara Vera, escrevo, o sol brilha e choro - porque eu amava encontrava-a gordinha e saudável, amava-a naquele outono,
tudo no mundo com tanta força! quando Nádia (a babá) a trouxe de volta do campo, encantava-
Se houvesse agora, à minha volta, um círculo de pessoas me com seus cabelos maravilhosos. Mas a atração da novidade
- ninguém pensaria que eu também sou um ser humano. As passava, o amor esfriava e eu ficava irritada com seu embo-
pessoas vêm, trazem comida para Alia - fico muito agradeci tamento (uma cabeça como que tapada com uma rolha), sua
da, mas sinto vontade de chorar porque ninguém - ninguém sujeira, sua gulodice, de uma certa maneira, eu não acreditava
- ninguém, durante esse tempo todo, passou a mão na minha que ela iria crescer - embora eu absolutamente não pensasse
cabeça. - E essas noites! -A luz enfraquecida da lâmpada na em sua morte - simplesmente, era uma criatura sem futuro.
parede (o abajur baço, redondo). Alia dorme, a cada meia hora Com - talvez - com um futuro de gênio?
ponho a mão em sua testa - não quero dormir, não quero es Irina nunca foi uma realidade para mim, eu não a conhe
crever - até pensar é horrível! - fico deitada no sofá e leio Jack cia, não a compreendia. Mas lembro-me agora de seu sorriso
London, depois adormeço, vestida, com o livro nas mãos. envergonhado - tão indeciso - tão estranho! - um sorriso que
Além disso, Viérochka, opior de tudo: começo a achar que ela se esforçava logo por abafar.
para Serioja eu - sem Irina - não sou absolutamente necessá E ojeito de me acariciar os cabelos: "Ai-i, ai-i, ai-i" (que
ria - que seria melhor se eu morresse - mais digno! - Tenho rida) - e como ela ria - quando eu a pegava no colo (umas dez
vergonha de estar viva. - Como vou dizer a ele? vezes, em toda a sua vida!).
E com que desprezo eu penso em meus versos! E um pensamento - não um pensamento, uma frase, que
Quanto ao passado - uma tristeza que devora... avivando a dor, quase em voz alta, digo a mim mesma:
- Se a própria Irina não quis comer, significa que a dor da
A carta é interrompida neste ponto. morte já estava lá...
No dia 31 de março de 1930, MT comenta em seu diário: Irina! - Como será que morreu? O que será que sentiu?
Será que ela se balançava? O que via em sua memória? Talvez,
Às vezes contemplo a fotografia de Irina. Um rostinho re um fragmento da casa da Boris e Gleb - Alia - a mim? Será
dondo (outrora!) emoldurado por cachos dourados, uma testa que ela cantava: "Ai - dudu - dudu - dudu..."? Será que ela
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Vivendo sob ofogo

compreendia alguma coisa? Qual foi a última coisa que ela bastado um pedaço de pão! Se de malária - um pouquinho de
disse? E do que ela morreu?
quinino - oh! - um pouco de amor, [frase inacabada].
Jamais o saberei.
Amorte de Irina é tão terrível, pois poderia tão facilmente
não ter acontecido. Se o médico tivesse diagnosticado a malá
ria de Alia - eu teria tido um pouco mais de dinheiro - e Irina História da vida e da morte de Irina:
não teria morrido.
Para uma pequena criança neste mundo faltou amor.
4_^-°-rt-e-Ae-IIina. é< Para...™m,_ t_ãp_ irreajjzorno a s_ua viçla. ffi?:;-

- Nada sei de sua doença, não avi doente, não estive lá quando [O restante dapágina está em branco.]
ela morreu, não a vi morta e não sei onde está seu túmulo.
Doze anos mais tarde ela escreve em seu caderno (agosto de
Monstruoso? - Sim, se visto de fora. Mas Deus, que vê 1932):
meu coração, sabe que não foi por indiferença que deixei de ir
me despedir, no orfanato, mas porque não podia. (Não a teria Quand on aun enfant qui est mort defaim, on croit toujours
encontrado viva... —)
que 1'autre na pas assez mangé.
Irina! Se o céu existe, você está no céu, compreenda-me, On na jamais eu un enfant, on l'a toujours*.
perdoe-me, a mim que fui uma mãe tão ruim, que não soube
superar a aversão por sua natureza sombria, incompreensível.
_Zara-5He.vo.clveio ao mundo? - Conhecer a fome - cantar
"Ai dudu...", andar pelas camas, sacudir a gradeT balançar-se, li'
levar broncas...
Estranha, incompreensível. - mis.t.exio.sii_crijitu_ra, isolada
de todos, não amava ninguém.- com olhos tão bonitos!^Tum
vestido rosa, tão horrível!
C°.m_.que,.rpupa..a..enterraram? - E o casaquinho dela
ficou lá.

A morte de Irina é horrível pelo que ela tem de absolu Em francês, no original: "Quando temos um filho que morreu de
tamente contingente. (Se ela tivesse morrido de fome - teria fome, pensamos sempre que o outro não comeu osuficiente. Jamais tive
mos um filho, sempre o temos". (N. de T.)
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