E-Book Versão 01 ESCRITOS SOBRE DIREITO CIDADANIA E PROCESSO PDF
E-Book Versão 01 ESCRITOS SOBRE DIREITO CIDADANIA E PROCESSO PDF
E-Book Versão 01 ESCRITOS SOBRE DIREITO CIDADANIA E PROCESSO PDF
1ª Edição
Niterói
2018
EDITORA PPGSD — PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E DIREITO
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
Rua Tiradentes 17, Ingá
24210-510 Niterói/RJ
+55 (21) 3674-7477
sociologia_direito@yahoo.com.br
Capa
Manuela Duarte
Xxxx
Rafael Mario Iorio Filho, Ana Paula Faria Felipe. Delton Meirelles (coordenadores).
—
2017.
174 p.
-- bytes ; .pdf
Outono de 2018
OBSERVA PROCESSOS
Bárbara, Delton, Fernanda e Rafael.
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
APRESENTAÇÃO
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 2
PARTE I........................................................................................................................................... 10
EU NÃO QUERO DINHEIRO!!! ............................................................................................................. 11
O MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO COMO PRINCÍPIO
FUNDAMENTAL E A NECESSIDADE DO JUÍZO DE PONDERAÇÃO ........................................... 21
DESCONSTRUÇÃO HERMENÊUTICA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ................. 33
A PROTEÇÃO JURÍDICA DOS DIREITOS HUMANOS NA ESFERA INTERNACIONAL: O
SISTEMA ONU E OS SISTEMAS REGIONAIS .................................................................................... 74
SACRIFÍCIO DE ANIMAIS E LIBERDADE RELIGIOSA: O EQUÍVOCO DO EXERCÍCIO LIVRE
DIANTE DA LAICIDADE DO ESTADO BRASILEIRO ..................................................................... 123
PARTE II ....................................................................................................................................... 150
ADMINISTRAÇÃO DE CONFLITOS NO ÂMBITO DA SAÚDE ...................................................... 151
JULGAMENTO MONOCRÁTICO OU COLEGIADO? ENTRE OS AVANÇOS, OS RETROCESSOS
E AS POSSIBILIDADES DO NOVO CPC ............................................................................................. 163
ACESSO À JUSTIÇA E EFETIVIDADE DO PROCESSO LEGAL: CIDADANIA E
RECONHECIMENTO INTERSUBJETIVO ......................................................................................... 173
A ARBITRAGEM E O PODER PÚBLICO PARA ENFRENTAR A CRISE DO JUDICIÁRIO NA
SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA ...................................................................................................... 189
O PROCESSO CONSTITUCIONAL E A LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA DOS ATOS
LEGISLATIVOS E JURISDICIONAIS ................................................................................................. 208
A MEDIAÇÃO NO PROCESSO DE FORMAÇÃO DO ACADÊMICO DE DIREITO: A
EXPERIÊNCIA DA ESCOLA DE DIREITO DO CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA 227
ALTERNATIVIDADE OU PLURALISMO? ABRAÇANDO NOVAS FORMAS DE ADMINISTRAR
CONFLITOS............................................................................................................................................. 238
2
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
INTRODUÇÃO
Fernanda Duarte
1 A temática poder e direito tem sido objeto de muitos estudos, com diferentes perspectivas. Veja-se
FOUCAULT (2007) e SCHIMITT (1989).
2 ―A problemática da igualdade jurídica, no campo do Direito, se destaca por certas características bastante
peculiares. De um lado, tem-se a produção doutrinária marcada pela lógica da repetição que decorre de uma
tradição reprodutora de conceitos, categorias e estruturas, descoladas da realidade social brasileira. Em
geral, essa doutrina se contenta apenas em dar notícia (ainda que com argumentação bem apresentada e
articulada) do debate que se passa no mundo ocidental, pretendendo-o incorporá-lo de forma automática, no
Brasil, como se o seu registro em texto escrito, bastasse para nos ―atualizar‖ e civilizar, colocando nossos
autores em sintonia com o que se pensa alhures. De outro lado, em decorrência da reprodução, tem-se a
naturalização de uma sociedade verticalizada e hierarquizada (Kant de Lima, 2004 e Amorim et al., 2005),
isto é, onde a desigualdade se incorpora à sabedoria convencional (Mendes, 2003), como nos revela a
equação: ―igualdade é tratar os iguais na medida da sua igualdade e os desiguais na medida de sua
desigualdade‖. Paradoxalmente, essa mesma sociedade inscreve em seus instrumentos normativos
(constituição ou lei) - e repete em seus manuais jurídicos - a consagração da igualdade jurídica, definidora de
um estado democrático de direito e republicano, com o repúdio normativo à desigualdade‖ (DUARTE, 2010).
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Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
atuação das instituições judiciárias, tem sido o grande motor de nossas
investigações ao longo dos anos.
Estas, por sua vez, exercem funções importantes nas sociedades complexas,
tal como oferecer prestação jurisdicional aos cidadãos e administrar os conflitos que
ocorrem na sociedade, por isso debilidades em suas funções permanentes podem
contribuir para que os conflitos se transformem em violências explícitas e, muitas
vezes, não administráveis pelo direito e pelos tribunais. Somente essa circunstância
já indica a necessidade de investigações sobre as funções sociais do judiciário,
sobretudo as que se referem ao seu papel nas sociedades democráticas e à forma de
construção de suas decisões, através do processo.
Nesse sentido, nossa pesquisa tem por objeto geral a administração
institucional de conflitos, recortada no estudo das relações entre o direito e o
processo como instrumentos de ―pacificação social‖ e ―acesso ao direito pelo
cidadão‖, mediadas no plano discursivo 3, especialmente quando da entrega da
prestação jurisdicional pelo Estado, centrando-se aqui, nas implicações que tais
aspectos trazem para a própria administração dos conflitos, em suas distintas
modalidades (quer através do processo tradicional, dos juizados especiais, e/ou dos
meios alternativos, como mediação e conciliação, etc.).
Com a experiência acumulada pela pesquisa que temos realizado ao longo dos
anos, percebemos o papel fundamental do processo, enquanto ―palco‖ onde se
coloca perante o Estado, o conflito e a demanda para sua solução, e a necessidade
de que distintas perspectivas sejam consideradas para melhor surpreender e
explicitar suas diferentes e diversas dimensões. É através processo que podemos
―ver e compreender‖ como nosso direito funciona. É através do processo que o
direito se ―corporifica‖ e assim, entre os possíveis objeto de investigação que o tema
propicia, problematizar: a) o déficit democrático (legitimidade) e na distribuição
igualitária de justiça pelos juízes; b) o uso do processo pelas Cortes no exercício da
jurisdição, inclusive no controle de constitucionalidade difuso e concentrado; c) as
concepções regulares e dissonantes da garantia e do acesso ao direito fundamental
constitucional; d) o sentido e o papel da doutrina processual enquanto criadora de
―verdades‖ doutrinárias; e) a forma de construção da decisão pelos juízes
(gramática da decisão) e os sentidos por eles atribuídos aos direitos, valores,
princípios e regras constitucionais e legais em apreço, em especial a igualdade
jurídica; f) as formas de atualização dos usos do processo e suas categorias
(normativas e dogmáticas), em perspectiva histórica.
O esforço desenvolvido na rede busca identificar e analisar os sentidos
atribuídos pelos interlocutores das pesquisas, em especial no campo do direito e do
judiciário, a categorias tais como ―igualdade‖, ―cidadania‖, ―democracia‖, ―justiça‖,
―desigualdade‖, ―direitos‖, entre outras. Dessa forma, tem por proposta levar em
consideração a permanente tensão entre modelos normativos e abstratos da
3 No que toca a espécie discurso jurídico, ele é o processo lógico-mental que permite a produção de sentido de
um conteúdo normativo a partir de fórmulas linguísticas encontradas em textos, enunciados, preceitos e
disposições. Em outras palavras, ele é o resultado concreto da interpretação realizada pela alografia dos
atores/intérpretes do campo jurídico. Esta produção de sentido é uma questão de interação e, portanto, o
pensamento jurídico se elabora a partir dos modos de interação e da identidade dos participantes implicados,
o que permite a distinção de três lugares de fabricação desse pensamento: a doutrina jurídica, a retórica
jurídica e a cultura jurídica.
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Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
realidade social (por exemplo, aqueles consolidados e reproduzidos nas leis,
estatutos, na doutrina jurídica e em modelos institucionais como o ―estado
democrático de direito‖) e éticas e moralidades que orientam as ações, discursos e
práticas dos atores.
Esse esforço busca aproximar a reflexão jurídica a outras áreas de
conhecimento, como as das ciências sociais aplicadas e das ciências humanas,
marcando-se assim uma abordagem interdisciplinar.
Neste volume, a presente coletânea dialoga especialmente com os dois eixos
temáticos - Direitos Fundamentais e Administração de Conflitos - que estão
diretamente ligados aos trabalhos de pesquisa desenvolvidos pelo Núcleo de
Estudos sobre Direito, Cidadania, Processo e Discurso/NEDCPD do PPGD/UNESA
e pelo OBSERVA PROCESSOS associado ao PPGSD e À Faculdade de Direito da
UFF.
Na Parte I, que cobre os capítulos de 01 a 06, os autores e autoras privilegiam
a dimensão dos direitos e suas distintas esferas de proteção, destacando a
problemática da efetivação dos direitos fundamentais na sociedade ocidental
contemporânea, quer no plano normativo, quer no plano das demandas na via
jurisdicional. A dimensão discursiva aqui é o que aglutina esses trabalhos e ainda
que não seja a mesma problematizada diretamente, os textos são valiosas
contribuições para se pensar como o discurso jurídico se articula, levando em conta
os três lugares de produção do mesmo4 .
No primeiro capítulo, o autor Adriano Stanley faz uma análise sobre a
judicialização em torno da reparação por dano moral questionando e sugerindo
outras formas de tutela dos direitos de personalidade, já que os juízes têm julgado
os pedidos de reparação por danos morais como se fossem ações de cobrança:
limitando-se a condenar o réu a pagamento de valores pecuniários. Entretanto, o
bem jurídico a pedir a tutela continua sem qualquer reparação: o direito de
personalidade agredido
No segundo capítulo, Alexandre Oheb Sion aborda o princípio do meio
ambiente ecologicamente equilibrado em nível de princípio constitucional
fundamental e pontua a possibilidade de colisão de referido princípio com outros
direitos fundamentais, surgindo, assim, a necessidade de ponderação dos princípios
em conflito caso a caso, circunstância que se analisa à luz do juízo de ponderação de
valores.
4 Observe-se que estes lugares de produção do discurso são comuns a qualquer tipo de discurso
particularizado em um campo. Para um aprofundamento da questão, consulte-se o verbete ―discurso‖ do
Dicionário de Análise do Discurso (MAINGUENEAU e CHARAUDEAU, 2004: 314) – ―Noção utilizada no
estudo das interações verbais, extraída de Flahault: ‗Cada um tem acesso a sua identidade a partir e no
interior de um sistema de lugares que o transcende; esse conjunto implica que não existe fala que não seja
emitida de um lugar e que não convoque o interlocutor a um lugar correlativo; seja porque essa fala
pressupõe apenas que a relação de lugares está em vigor, seja porque o locutor espera reconhecimento de seu
lugar específico, ou obriga seu interlocutor a se inscrever na relação‖ (1978:58). Para Vion, ‗pela relação de
lugares exprime-se de modo mais ou menos consciente qual posição se deseja ocupar na relação e, ao mesmo
tempo, define-se, de modo correlativo, o lugar do outro‘. Consequentemente, ‗uma das questões que está em
jogo na relação que se constrói consistirá em aceitar ou negociar essa relação de lugares identitários, de
maneira que os lugares ocupados no final da interação serão, muito frequentemente, distintos das tentativas
iniciais de posicionamentos‘ (1992:80-81).‖
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Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
Bruno César Fonseca e Renata Dias de Araújo Lima trazem, no capítulo 3,
resultados de trabalhos desenvolvidos no Programa de Pós-Graduação, nível
Mestrado, da Faculdade Mineira de Direito da PUC Minas, linha de pesquisa ―O
processo na construção do Estado Democrático de Direito‖. Após pesquisa de
julgados, nos quatro maiores tribunais do país, e munidos da exposição teórica de
hermenêutica, desconstrução, Estado Democrático de Direito e decisões judiciais,
verificou-se que há realmente um sincretismo teórico que obstaculiza a concreção
do plus normativo e teórico propiciado pela Constituição.
―Qual seria o veredito se o caso do ensino domiciliar no Brasil fosse julgado
pelo Supremo Tribunal da Filosofia?‖ é a pergunta que Carlos Alberto Lima de
Almeida enfrenta no Capítulo 04, tratando do tema do ensino domiciliar, em uma
perspectiva interdisciplinar entre filosofia, direito e educação, o autor propõe uma
elaboração teórica crítica sobre o problema de fundo - a relação entre o Estado e a
família quanto à educação, bem como os limites da autonomia privada contra
imposições estatais – a partir das contribuições da filosofia para a área da educação,
empreendendo um diálogo com o campo do direito.
Como capítulo 05, autores Fernanda Duarte, Rafael Mário Iorio Filho e
Ronaldo Lucas reconhecendo o quadro de incertezas provocado por um mundo
altamente globalizado e marcado, sobretudo pelo terrorismo, pela violência urbana,
pelo crescimento tecnológico e por uma multiplicidade de culturas, apresentam a
proteção jurídica dos direitos humanos na esfera internacional, descrevendo, para
tanto o Sistema da Organização das Nações Unidas (ONU) e os Sistemas Regionais
das Américas, Europa e África, explicitando o ideal de proteção multinível que os
direitos humanos recebem.
E, no sexto capítulo, Lúcia Frota e Edna Raquel Hogemann expõem sobre a
necessidade de regulamentação da liberdade religiosa, demonstrando o atual
panorama no Direito Comparado português e norte-americano e as críticas
pertinentes a ambos os sistemas. Para tanto, consideram três vertentes, dentre as
quais duas filosóficas e uma normativa. A filosofia baseada na ética da compaixão
de Schopenhauer e na alteridade levinasiana convidam a uma reflexão provocativa
de Derrida sobre o ato sacrificial. E, por fim, tratam da regra constitucional visando
a ponderação de direitos fundamentais normatizados como a demonstração de uma
evolução legislativa.
Já na Parte II desta coletânea, estão reunidos oito artigos restantes que
completam esta obra. O questionamento se volta para o processo e são discutidas as
relações entre o direito e o processo como instrumento de ―pacificação social‖ e
acesso ao direito pelo cidadão, especialmente quando da entrega da prestação
jurisdicional pelo Estado. Também são considerados outros espaços de
administração de conflitos que dispensando a intervenção estatal podem ser vistos
como efetivas ―alternativas‖ ao processo judicial.
Ana Paula Faria Felipe e Manuela Duarte Almeida Pinto, no Capítulo 7,
abordam a administração de conflitos no âmbito da saúde, fazendo um recorte no
campo hospitalar. Registram as autoras que em outros países, a utilização de
formas alternativas ao Judiciário para solucionar as demandas nessa área já é uma
realidade, porém no Brasil ainda é incipiente. O conteúdo trazido é resultado das
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Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
pesquisas teóricas e práticas vivenciadas pelas autoras no decorrer de suas atuações
profissionais como psicóloga (atuando no ambiente hospitalar), advogada, atuando,
em especial, como facilitadora restaurativa e mediadoras de conflitos.
Bárbara Lupetti e Manoela Medeiros Sales pretendem refletir sobre as duas
possibilidades básicas que a legislação processual brasileira oferece na ocasião do
julgamento dos recursos: a decisão monocrática do Relator ou a decisão colegiada
da Câmara ou da Turma. Nessa linha, o texto propõe pensar sobre as implicações
decorrentes dessa ―escolha‖ dos magistrados, que passa por decidir entre julgar o
caso de modo colegiado ou monocrático. E também propõe discute a dificuldade de
se articular duas expectativas do legislador do Novo CPC, situadas entre a promessa
de garantir celeridade ao processo e o dever de constitucionalizar os seus ritos.
Os autores Fernando José Armando Ribeiro e Luciano Gomes dos Santos, no
Capítulo 9, fazem uma análise sobre o acesso à justiça e a efetividade do processo
legal numa perspectiva social, perpassando pela construção da cidadania através da
inclusão social no processo legal.
No capítulo 10, com o título ―A Arbitragem e o poder Público para enfrentar a
crise do Judiciário na Sociedade Contemporânea‖, Haroldo Lourenço faz uma breve
análise sobre o instituto da arbitragem, principalmente após as mudanças trazidas
pela Lei nº 13.129/15, que consagrou definitivamente tal técnica de solução de
litígios envolvendo a Fazenda Pública.
No décimo primeiro capítulo, os autores Lorena Machado Rogedo Bastianetto
e Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias, utilizando-se da lógica dedutiva, propoem-se ao
estudo do processo constitucional no empenho normativo de defesa e concretização
dos direitos fundamentais, objetivando a busca contínua pela legitimidade
democraticamente processualizada na tomada de decisão do Estado.
Ludmila Stigert, no capítulo 12, narra alguns aspectos da história e
construção da instituição de Ensino Newton Paiva diante do cenário da
autocomposição. A autora apresenta, através da experiência obtida no ano de 2016
no CEJU, a possibilidade de reconstrução do sistema tradicional de ensino bem
como do conceito de justiça. Assim, através da Mediação, a referida instituição vem
construindo um cenário acadêmico apto à implementação de uma democracia
procedimental tão cara a um Estado que se diz Democrático e de Direito e ainda
comprometido com a Paz.
Maria Carolina Freitas e Maria-Maria Stancati, no Capítulo 13 intitulado
‗Alternatividade ou Pluralismo? Abraçando novas formas de Administrar Conflitos‘,
abordam o Direito e o conflito e a influência na construção de outra forma de
administrá-los, para além da tradicional sub-rogação produzida pela prestação
jurisdicional.
Finalizando a presente obra, o autor Ricardo Perlingeiro propõe uma reflexão
sobre os mecanismos de impugnação judicial dos atos administrativos gerais e dos
atos administrativos concretos que atingem interesses difusos, coletivos e
individuais homogêneos, sob a perspectiva da segurança jurídica e da estabilidade
das decisões judiciais, a partir da redefinição da legitimidade ad causam e dos
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Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
limites subjetivos da coisa julgada no contencioso judicial administrativo e no
processo coletivo.
Por fim, ainda que a coletânea, neste seu primeiro volume, não seja uma
reunião de pesquisas empíricas, os capítulos reunidos nos permitem identificar uma
inquietude com as disfunções do Poder Judiciário e uma insatisfação com o seu
baixo grau de legitimidade social. E nos ajudam a entender um pouco mais o campo
jurídico e o papel da dogmática na construção do saber jurídico e da própria
identidade de seus operadores.
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Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
PARTE I
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Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
1. Introdução
O nosso Poder Judiciário se perdeu nos pedidos de reparação por danos
morais.
Em sua grande maioria, os juízes têm julgado os pedidos de reparação por
danos morais como se fossem ações de cobrança: limitando-se a condenar o réu a
pagamento de valores pecuniários. Entretanto, o bem jurídico a pedir a tutela
continua sem qualquer reparação: o direito de personalidade agredido.
Utilizam o instituto dos punitive damages, do common law, desprezando de
maneira espantosa e absurda a nossa base romanística.
Com esta postura, sem que percebam, nossos juízes e advogados estão
transformando a sociedade brasileira em uma sociedade doente. Estamos perdendo
nosso encantamento maior: nossa alegria e jocosidade. Somos uma sociedade
amedrontada, pois qualquer coisa pode ser utilizada contra você, para lhe retirar
algum dinheiro por ter ofendido o outro, simplesmente porque o chamou de chato.
Ou seja: os meros dissabores e aborrecimentos estão sendo interpretados por
nossos Tribunais como ensejadores de dano moral. Absurdo dos absurdos!!!! Meros
aborrecimentos elevados à condição de agressão aos direitos de personalidade!!!
Este breve artigo procura colocar em cheque esta postura. Questionar e
sugerir outras formas de tutela dos direitos de personalidade. A começar por
explicar o que é um direito de personalidade.
2. O Caso
Era uma quarta feira. Início de noite. O tempo estava abafado e quente, típico
do mês de agosto. Entra no escritório, então, um jovem casal com uma criança que
pela aparência não tinha mais que cinco anos. A criança apresentava claros
problemas físicos: tinha os membros do lado esquerdo atrofiados, a boquinha torta
e o olhinho do lado esquerdo não piscava.
Os três se sentaram à minha frente e passaram a narrar o que os levara até a
mim.
Tatiana (nome fictício) era a primeira filha daquele jovem casal. Quando se
casaram, Jorge e Madalena (nomes também fictícios) planejavam ter dois filhos.
Entretanto, diante de todo o drama pela qual passaram (que será narrado abaixo),
decidiram por ficar apenas com esta filha.
Quando Madalena estava grávida de Tatiana, durante todo o período pré-
natal, em seus exames que fazia questão de realizar todos os meses, Madalena ouvia
sempre a mesma advertência de sua ginecologista: ―- Madalena. Não sou obstetra.
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Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
Não faço partos. Portanto, não farei o seu parto. Quando você for para o hospital
ganhar a Tatiana, não se esqueça de mostrar todos os seus exames e pedir que o
parto seja por cesariana, pois você não tem passagem suficiente para a sua
criança, que é grande e saudável!‖
Em todas as suas consultas, Jorge e Madalena ouviam, invariavelmente, os
mesmos conselhos por parte de sua ginecologista.
Pois bem. Eis que é chegado o dia. Madalena passa a sentir fortes contrações.
E foi levada ao hospital por Jorge. Lá chegando, Madalena e Jorge transmitem à
obstetra que faria o parto, as advertências da ginecologista.
Entretanto, a obstetra teve outro entendimento: ―- Imagine!!! De forma
alguma!!!! Faremos o seu parto de maneira natural!!! A sua bebê está muito bem
encaixada já! Você tem quadril largo! Você tem passagem sim! Claro! Sua
ginecologista, como ela própria dizia, não faz partos. Eu faço partos há anos.
Fique tranquila! Sei o que estou fazendo. O parto natural é o melhor para você e
para o seu bebê‖. E desta forma pôs fim à discussão e aos pedidos de Madalena e
Jorge para que fosse feita a cesariana.
Madalena entrou, então, em trabalho de parto. Como o parto seria natural,
Madalena recebeu a anestesia peridural (que anestesia apenas da cintura para
baixo), a fim de que ficasse consciente e pudesse ajudar em seu trabalho de parto.
A sua bebê começou a sair... a cabecinha da criança já estava ―coroando‖ (no
linguajar médico) quando, de repente... a criança ficou presa!
Madalena, que estava acordada, passou a presenciar cenas traumáticas. A
obstetra, em claros sinais de nervosismo pela desagradável surpresa, se desesperou.
No seu desespero, passou a gritar com Madalena.... mandava que ela fizesse força...
mais força... para expelir a sua criança, que poderia até morrer se não fizesse força.
Chamou-a de fraca. Madalena começou então a chorar compulsivamente... a
obstetra pediu, então, a uma das técnicas de enfermagem que lhe auxiliavam, que
subisse sobre a maca e sentasse sobre a barriga de Madalena e fizesse pressão; mais
pressão sobre o abdômen de Madalena para expelir a criança. Nada...
Então, como a criança já começa a sofrer stress, a obstetra lançou mão do
fórceps. Ao puxar a cabecinha da criança lesionou sua coluna, provocando o que em
seu relatório médico foi descrito como um deslocamento bracofacial grave.
Assim Tatiana foi recebida neste mundo. As ações daquela obstetra
resultaram na paralisia permanente do lado esquerdo daquela criança.
A pediatra de Tatiana disse aos seus pais, Jorge e Madalena, que Tatiana
necessitaria de fisioterapia por toda a vida e, quando chegasse em idade escolar,
convivendo com outras crianças, seguramente necessitaria, também, de auxílio
psicológico.
Nos dois primeiros anos de vida de Tatiana o hospital responsável pelo parto
forneceu, gratuitamente, todo o tratamento fisioterápico de que a criança
necessitava. Entretanto, à partir do terceiro ano, o hospital já não estava tão solícito
mais em atender às necessidades de Tatiana. Quando Jorge e Madalena pediram,
então, para que o hospital prestasse também tratamento psicológico à criança (que
13
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
já começava a perguntar porque ela era diferente de seus coleguinhas), este foi
categórico e parou de fornecer até mesmo o tratamento fisioterápico.
A interrupção deste tratamento atrapalhou drasticamente na melhora de
Tatiana.
Diante da recusa do hospital em dar continuidade aos tratamentos da menor,
Jorge e Madalena vieram até meu escritório na busca de um meio judicial que
fizesse com que o hospital reparasse o dano causado à Tatiana por conta do trágico
parto.
Estávamos no ano de 1998. As ações de danos morais ganhavam fama pelo
país afora como meio de se ganhar vultuosas importâncias em dinheiro. A mera
negativação do nome da pessoa nos serviços de proteção ao crédito, por si só, já era
o bastante para que a justiça garantisse ao autor da ação polpudos ganhos, em que
os julgadores justificavam com a alegação de que aquela decisão deveria servir
como punição ao ofensor pela prática de ato danoso e, ainda, como caráter
pedagógico, para que outras pessoas não incorressem no mesmo tipo de erro.
Jorge e Madalena, entretanto, de início já se ocuparam em dizer: ―- Doutor.
Dinheiro algum vai trazer a melhora de saúde para nossa filha. Mas um
tratamento sim. Queremos que o hospital nos dê simplesmente o que ele tirou de
nossa filha logo ao nascer: as condições de ter uma vida normal!!! Afinal, ela era
um bebê super saudável nos exames de pré-natal. Ela não tinha nada! Queremos
que o hospital devolva ela, ao menos em parte, o que tirou: qualidade de vida‖.
Aquele encontro com estas três pessoas não foi por acaso. Eu estava no meio
dos meus estudos de mestrado, onde escrevia sobre o descabimento de reparações
pecuniárias em sede de danos morais e o despropósito dos argumentos que as
fundamentavam. Este caso foi decisivo para os meus escritos. Foi um marco no meu
pensamento. E um caso grande o bastante sobre o qual poderemos nos debruçar
fartamente para analisar a questão do descabimento das condenações pecuniárias
por danos morais em todos os seus termos. Vamos lá.
Sem que fizesse a menor ideia do que estava profetizando, o Professor Wilson
Melo estava descrevendo, exatamente, aqueles bens que cerca de vinte anos mais
tarde, viriam a ser tratados por nossa Constituição da República como sendo os
direitos da personalidade.
O reconhecimento constitucional desta categoria de direitos é fundamental
para se falar em dano moral. Afinal, recebe o nome de dano moral aquele dano
perpetrado contra um destes direitos de personalidade.
Há de se registrar que o reconhecimento do dano moral no Brasil é fenômeno
recente. Tem menos de 30 anos. O ordenamento brasileiro apenas veio a reconhecer
o dano moral à partir da Constituição da República de 1988, que diz expressamente
em seu artigo 5º, incisos V e X, respectivamente:
Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
(...)
(...)
4.1. Common Law X Civil Law: duas escolas; múltiplas diferenças. Conceito e
críticas à utilização dos punitives damages no direito brasileiro
Como já cuidamos de argumentar fartamente em outra obra de nossa autoria
(DANO MORAL E PUNITIVE DAMAGES. Belo Horizonte: Ed. Del Rey, 2013), a
doutrina dos punitive damages é adotada pelos países do sistema do common law,
principalmente na Inglaterra e nos Estados Unidos.
Maria Celina Bodin de Moraes conceitua os punitive damages como:
―Danos punitivos, algumas vezes chamados de danos exemplares ou vingativos,
ou ainda, de ‗dinheiro esperto‘, consiste em uma soma adicional, além da
compensação ao réu pelo mal sofrido, que lhe é concedida com o propósito de
punir o acusado de admoestá-lo a não repetir o ato danoso e para evitar que
outros sigam o seu exemplo‖. (W. PROSSER; J. WADE; V. SCHWARTZ, apud
MORAES, 2007, p. 7)
Non già al fine de risolverìa (chè io mi rendo ben conto dela sua eccezionale
difficoltà), ma di portare alla sua risoluzione qualche nuovo elemento, credo che si
opportuno prospettare la distinzione, di solito considerata soltanto dal lato
passivo, anche nel suo profilo ativo, contrapponendo come da un lato il debito alla
responsabilità, cosi dall`altro al crédito ciò che costituisce il lato ativo dela
responsabilità e io debbo chiamare l`azione del creditore‖ (CARNELUTTI,
Francesco. Diritto e Processo nella Teoria delle Obbligazioni. In: Studi in Onore di
Giuseppe Chiovenda. Padova: Cia Litotipo, 1927, p. 227).
Em tradução livre:
17
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
―Neste sentido, eu acho que posso considerar como ponto de partida (ou seja, para
o estágio ainda a percorrer) a distinção entre dívida e responsabilidade, no
sentido de que, pelo menos dívida e responsabilidade sejam dois conceitos
diferentes (...)
Não para resolver (porque eu mesmo tenho bastante ciência de sua excepcional
dificuldade), mas para trazer à sua resolução, alguns elementos novos, acho que é
adequado prever a distinção, geralmente considerada apenas pelo lado passivo,
mesmo no seu perfil ativo, contrastando de um lado a responsabilidade da
dívida, e de outro a responsabilidade de crédito que constitui o lado ativo
para a chamada ação de cobrança‖ (grifos nossos).
***
19
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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CARNELUTTI, Francesco. Diritto e Processo Nella Teoria Delle Obbligacioni, in
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21
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
5 BARROSO, Luís Roberto. A proteção do meio ambiente na Constituição brasileira. In MILARÉ, Édis;
MACHADO, Paulo Affonso Leme, coord. – Direito Ambiental: Fundamentos do Direito Ambiental
(Coleção Doutrinas Essenciais; v. 1) – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p.1007
6 SION, Alexandre Oheb. Conflito Aparente de Princípios Constitucionais Ambientais e Indigenistas. In
BRAGA FILHO, Edson de Oliveira (coord) et al. Advocacia Ambiental: Segurança Jurídica para
Empreender. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p.148
7 Disponível em: http://www.onu.org.br/rio20/img/2012/01/rio92.pdf
8 MILARÉ, Édis. Princípios fundamentais do direito do ambiente. In MILARÉ, Édis; MACHADO, Paulo
9 ―Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e
preservá- lo para as presentes e futuras gerações."
10 MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente: A gestão ambiental em foco. 7ª ed. São Paulo: Editora Revista
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II
- a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V -
o pluralismo político‖.
13 ―Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade
livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.‖
14 ―Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e
aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e
à propriedade [..]‖
23
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
Desconsiderar a importância que o constituinte outorgou aos primeiros
artigos da CRFB/88 e dizer que aqueles direitos que estão muito ao sul de seu texto
possuem a mesma relevância é rasgar um dos mais importantes princípios da
hermenêutica jurídica, qual seja, a lei não contém palavras inúteis, traduzido do
verbete ―verba cum effectu sunt accipienda‖15. Se a lei não possui palavras inúteis
por que a ordem e a lógica com que seu texto é escrito deveriam ser inúteis e
desprovidas de valor?
Frise-se, entretanto, que a defesa da importância que se deve dar à escolha
geográfica legislativa não encerra entendimento de que não possam existir direitos
fundamentais ―fora do catálogo‖16 do art. 5o da CRFB/88, na forma do seu parágrafo
2o.
Conforme leciona Ingo Wolfgang Sarlet, é de se ter cautela com o fato de que
a CRFB/88 se encontra repleta de normas de caráter principiológico em todo o seu
texto, de modo que se impõe certa reserva com o fito de evitar o extremo de criar
novos direitos fundamentais com apoio em toda e qualquer disposição
constitucional, inclusive as de cunho organizacional e programático, o que por certo
conduziria a uma ampliação desarrazoada do catálogo de direitos fundamentais.17
Não é, contudo, o caso do princípio em comento, que compõe o rol dos direitos
denominados de terceira dimensão, cuidando-se de típico direito difuso, que ao
mesmo tempo resguarda a existência digna do ser humano, na sua dimensão
individual e social.18
Assim, também a Constituição da República Portuguesa de 1976 alçou o
Princípio do Equilíbrio do Meio Ambiente a nível de princípio constitucional,
rezando, em seu artigo 66°, que ―todos têm direito a um ambiente de vida humano,
sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender‖.
Como se sabe, embora resulte de um impulso naturalmente político que
deflagra o poder constituinte originário, a Constituição de uma nação, tão logo
colocada em vigência, é um documento jurídico, um sistema de normas que
conserva entre seus vários atributos o da imperatividade. 19 Disso decorre, por
evidente, que como qualquer outra norma ela contém mandamentos, prescrições e
ordens com força jurídica, e não apenas moral. Assim, geram ao jurisdicionado o
poder de exigir do Estado prestações que lhe proporcionem o desfrute do bem
jurídico consagrado, e ao próprio Estado o poder-dever de fazê-lo.20
15MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito, 20a. ed. Rio de Janeiro: Ed. Forense,
2011., p. 264).
16SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais – Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2004. P.105-107.
17 Ibid.
18 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit. p.134.
19 BARROSO, Luís Roberto. op. cit.
20 Ibid.
24
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
A propósito, conforme será exposto adiante, filiamo-nos ao entendimento
generalizadamente aceito hoje de que as normas jurídicas – e assim também as
normas constitucionais – comportam divisão binária quanto à sua estrutura,
subdividindo-se em duas categorias: princípios e regras. 21 Entretanto, conforme
aponta Ana Paula de Barcellos a respeito, mesmo os autores que não se detêm em
apresentar um esquema ordenado, em que princípios e regras figurem como
espécies do gênero norma jurídica, corroboram o entendimento de que, assim como
as regras, os princípios são normas dotadas de imperatividade.22
A constatação da imperatividade dos princípios, assim, é o que se afigura
relevante a nós, posto que constitui característica balizadora da ação do Estado,
com o poder-dever de diligenciar rigorosamente pelo seu cumprimento, o que faz
mediante políticas públicas legislativas e administrativas, entre as quais as
fiscalizatórias, no regular exercício do poder de polícia.23
21 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: O princípio da
dignidade da pessoa humana. – Rio de Janeiro: São Paulo, 2002. p.44.
22 Ibid.
23 Nesse sentido é que o §1° do art. 225 da Constituição Federal brasileira estabelece: 1º ―Para assegurar a
efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: I - preservar e restaurar os processos ecológicos
essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; II - preservar a diversidade e a
integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação
de material genético; III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus
componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente
através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua
proteção; IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de
significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará
publicidade; V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias
que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; VI - promover a educação
ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente;
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função
ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.‖
Também a Constituição portuguesa assenta, em seu art. 66°, 2, que: 2. ―Para assegurar o direito ao
ambiente, no quadro de um desenvolvimento sustentável, incumbe ao Estado, por meio de organismos
próprios e com o envolvimento e a participação dos cidadãos: a) Prevenir e controlar a poluição e os seus
efeitos e as formas prejudiciais de erosão; b) Ordenar e promover o ordenamento do território, tendo em
vista uma correcta localização das actividades, um equilibrado desenvolvimento sócio-económico e a
valorização da paisagem; c) Criar e desenvolver reservas e parques naturais e de recreio, bem como
classificar e proteger paisagens e sítios, de modo a garantir a conservação da natureza e a preservação de
valores culturais de interesse histórico ou artístico; d) Promover o aproveitamento racional dos recursos
naturais, salvaguardando a sua capacidade de renovação e a estabilidade ecológica, com respeito pelo
princípio da solidariedade entre gerações; e) Promover, em colaboração com as autarquias locais, a
qualidade ambiental das povoações e da vida urbana, designadamente no plano arquitectónico e da
protecção das zonas históricas; f) Promover a integração de objectivos ambientais nas várias políticas de
âmbito sectorial; g) Promover a educação ambiental e o respeito pelos valores do ambiente; h) Assegurar
que a política fiscal compatibilize desenvolvimento com protecção do ambiente e qualidade de vida.‖
25
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
Ronald Dworkin24 e de Robert Alexy25, que embora em certo ponto dissonantes,
confluem no que nos parece o ponto chave para a solução de conflitos de princípios
e direitos fundamentais, conforme se verá.
Nesse sentido, Dworkin estabelece de forma magistral a conceituação dos
princípios como espécie do gênero norma, diferenciando-os da espécie das regras.
Segundo o autor, denomina-se como ―princípio‖ um padrão que deve ser observado,
não porque promove ou assegura uma situação econômica, política ou social
considerada desejável, mas porque se trata de exigência de justiça ou equidade, ou
alguma outra dimensão da moralidade.26
Na medida em que pressupõem juízo axiológico, assim, os princípios
possuem dimensão de peso ou importância, de modo que podem intercruzar-se,
ocasião em que será levada em conta a força relativa de cada um no caso concreto. 27
As regras, por sua vez, não teriam essa dimensão, afigurando-se
funcionalmente importantes ou desimportantes, posto que uma delas desempenha
papel de maior relevância na regulação do comportamento. 28 Assim, havendo
conflito entre regras, há que se reconhecer a sobreposição entre elas, de modo que
uma delas não pode ser válida em face da outra.29
Nesse sentido, Alexy também aborda os princípios como elementos
coexistentes no mundo normológico, juntamente com as regras. 30 Assim, descreve-
os como ―normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida, dentro das
possibilidades jurídicas reais e existentes‖ e, destarte, como bem observa Gilmar
Mendes, os princípios e normas configuram pontas extremas do conjunto das
normas, havendo, contudo, diferença que constituiria chave para a solução dos
problemas centrais da dogmática dos direitos fundamentais.31
Assim, para Alexy, enquanto os princípios concitam a sua aplicação e
satisfação no mais intenso grau possível, as regras contêm determinação, de modo
que se um princípio pode ser cumprido em maior ou menor escala, as regras
somente serão cumpridas ou descumpridas, caso em que a solução pautar-se-á nos
critérios clássicos de solução de antinomias (hierarquia, especialidade, cronologia).
Com esteio nesses pressupostos, considerar-se-ão princípios comandos de
otimização, aplicáveis em vários graus segundo as possibilidades normativas e
fáticas: normativas, porquanto sua aplicação depende dos princípios e regras que a
eles se contrapõem e fáticas, em razão do fato de a delimitação do seu conteúdo
como norma de conduta só ser passível de aferição no caso concreto.32
24 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
25 In Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993.
26 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 36.
27 DWORKIN, Ronald. Op. cit. 42.
28 DWORKIN, Ronald. Op. cit. 43.
29 Ibid.
30 MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional – 8. Ed.
33 SILVA, Solange Teles da. Direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado: avanços e
desafios. In MILARÉ, Édis; MACHADO, Paulo Affonso Leme, coord. – Direito Ambiental:
Fundamentos do Direito Ambiental (Coleção Doutrinas Essenciais; v. 1) – São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2011. p.1123.
34 Ibid.
35 SUPREMO Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 3540. Relator Ministro Celso de
36 ―Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por
fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes
princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre
concorrência; V - defesa do consumidor;‖
37 ―São tarefas fundamentais do Estado: [...] d) Promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a
igualdade real entre os portugueses, bem como a efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e
ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais;‖
38 CAMPOS, Ana Cândida de Paula Ribeiro e Arruda. Desenvolvimento Sustentável: avanços e desafios. In
MILARÉ, Édis; MACHADO, Paulo Affonso Leme, coord. – Direito Ambiental: Fundamentos do
Direito Ambiental (Coleção Doutrinas Essenciais; v. 1) – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
p.651.
39 MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. op. cit. p.183.
28
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
Nesse sentido, Canotilho também destaca a possibilidade da existência de
tensão entre os diversos princípios constitucionais, até porque, lembra o autor, a
Constituição de uma nação é o resultado de um processo de compromissos sociais
entre diversas classes, e diversos interesses.40 Para ele, assim, ―a pretensão da
validade absoluta de certos princípios com sacrifício de outros originaria a criação
de princípios reciprocamente incompatíveis, com a consequente destruição da
tendencial unidade axiológico-normativa da lei fundamental.41‖
Complementa o autor, destarte, ser natural o aparecimento de antagonismos
e tensões, cuja solução deve perpassar a ―ponderação‖ ou ―concordância prática‖,
consoante seu ―peso‖ e as circunstâncias do caso, e não se subordinar a uma lógica
do ―tudo ou nada‖.42
Dessas características, resulta que num eventual confronto de princípios
incidentes sobre situação concreta, a solução será diversa daquela que acode aos
casos de conflito entre regras, de modo que, no conflito entre princípios, deve-se
buscar forma de conciliação, ―uma aplicação de cada qual em extensões variadas,
segundo a respectiva relevância no caso concreto, sem que se tenha um dos
princípios como excluído do ordenamento jurídico por irremediável contradição
com o outro.‖43 Entretanto, sendo certo que o princípio do meio ambiente
ecologicamente equilibrado como direito fundamental da pessoa humana não é
absoluto, por certo, como ponderá-lo no caso concreto?
No esteio dos ensinamentos de Alexy44 que concebem os princípios como
comandos de otimização, tem-se utilizado, como mecanismo de realização da
aludida ponderação, o princípio da proporcionalidade, também denominado
princípio do devido processo legal em sentido substantivo, ou ainda, princípio da
proibição do excesso. Assim, conforme aponta Gilmar Mendes citando referido
autor em seu magistral voto proferido no âmbito do HC 82.424 45, constitui-se a
proporcionalidade em exigência positiva e material relacionada ao conteúdo de atos
restritivos de direitos fundamentais, de modo a estabelecer um ―limite do limite‖ ou
uma ―proibição de excesso‖ na restrição de tais direitos. Assim, em síntese, dá-se a
aplicação da proporcionalidade quando, verificada a restrição a determinado direito
fundamental ou um conflito entre diversos princípios constitucionais, exige-se que
se estabeleça o peso relativo de cada um dos direitos por meio da sua aplicação,
mediante aplicação das máximas ―adequação‖, ―necessidade‖ e ―proporcionalidade
em sentido estrito‖.46
Destarte, o aplicador do direito, ao analisar a concorrência de princípios
constitucionais, deve procurar a afirmação de todos, sem, no entanto, negá-los, o
que deve ser conseguido por meio de restrições mínimas em cada um dos princípios
em altercação.
40 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6ª ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1993.
p. 213.
41 Ibid.
42 Ibid.
43 MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. op. cit. p.183.
44 ÁVILA, Humberto. Op. cit.
45 SUPREMO Tribunal Federal. HC 82.424. Rel. Min. Moreira Alves. Julgamento em 17/09/2003.
46 Ibid.
29
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
Nesse sentido, Alexandre de Moraes47 também defende que:
Quando houver conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, o
intérprete deve utilizar-se do princípio da concordância prática ou da harmonização
de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício
total de uns em relação aos outros, realizando redução proporcional no âmbito de
alcance de cada qual (contradição dos princípios), sempre em busca do verdadeiro
significado da norma e da harmonia do texto constitucional com sua finalidade
precípua.
4. Conclusão
Ante o exposto desde o enceto, vimos que a preocupação global com a
proteção ao meio ambiente de forma universalizada se traduziu na tutela
constitucional do princípio do meio ambiente ecologicamente equilibrado, sendo
elevado a patamar de direito fundamental.
Sem embargo, no âmbito do gênero norma, os princípios jurídicos
constitucionais, diferentemente das regras, não admitem interpretação exclusiva
quando colocados em altercação no caso concreto. Assim, na medida em que se
tratam os princípios de comandos de otimização, como bem descreve Alexy, devem
ser sopesados sob a ótica do princípio da proporcionalidade e ponderados à luz da
concretude do caso e suas peculiaridades, não de forma abstrata.
Disso resulta reconhecer que o princípio do meio ambiente ecologicamente
equilibrado como direito fundamental da pessoa humana também sujeita-se a juízo
de ponderação, sendo desarrazoado concebê-lo como absoluto, até porque nenhum
princípio o é, sobretudo quando colocado a par de outros princípios fundamentais,
a exemplo da livre iniciativa, do desenvolvimento nacional e da ordem econômica,
também figuras necessárias à promoção da dignidade da pessoa humana.
47 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 13ª ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 62.
48 BARCELLOS, Ana Paula de. op. cit. p.83.
30
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
Destarte, no intuito de se evitar a aniquilação de outros direitos fundamentais
com fundamento no princípio do meio ambiente ecologicamente equilibrado como
direito fundamental da pessoa humana, há que se ponderar concretamente, em
cada caso ocorrente, os interesses e direitos postos em situação de conflito, de
forma a harmonizá-los, cujo palco de aplicação adequado deve ser o do
licenciamento ambiental a ser conduzido de forma adequada, independente e
proporcional pelo órgão ambiental competente.
***
31
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
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32
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
SION, Alexandre Oheb. Conflito Aparente de Princípios Constitucionais Ambientais
e Indigenistas. In BRAGA FILHO, Edson de Oliveira (coord) et al. Advocacia
Ambiental: Segurança Jurídica para Empreender. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2009.
SUPREMO Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 3540. Relator
Ministro Celso de Mello. Julgamento em 01/09/20015.
SUPREMO Tribunal Federal. HC 82.424. Rel. Min. Moreira Alves. Julgamento em
17/09/2003.
33
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
Introdução
Lança-se de pronto um texto de Manoel de Barros, inserto no livro Matéria de
Poesia, segundo capítulo (Com os loucos de água e estandarte), poema nº2:
Para lobisomem
Me inventei
Aprendi grande
Só as dúvidas santificam
Os seus destroços
Aparecem bogalhos
Eu falo desmendado
- cabelos de capivara
34
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
Casaca de tatu...
é que são!
Só o guarda me escreve
Inclusive músicas!
Entro em águas...‖49
49 BARROS, Manoel. Matéria de Poesia, p.31-32. A única parte do poema não transliterada é a que se
encontra com reticências entre parênteses, mas não afeta o objetivo, as demais, inclusive a estrutura, estão
fidedignas.
50 Cf. GALUPPO, Marcelo Campos. Da idéia à defesa:monografias e teses jurídicas, p.153-155.
51 MÜLLER JR., Adalberto. Em pleno uso da poesia, p.1 ―orelha assinada‖.
35
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
―A metalinguagem, característica fundamental de qualquer sistema de significação,
como já foi bastante propalado, é responsável por duas propriedades essenciais que
distinguem as línguas naturais dos demais sistemas sígnicos: 1) onipotência — toda
língua natural é metalinguagem universal, é com ela que o homem traduz com mais
eficiência os outros sistemas semióticos que o cercam no seu cotidiano; 2)
reflexibilidade — toda língua natural constitui-se em sua própria metalinguagem.‖
52
esboço para enunciá-las se tornar arrogância intolerável ante os que delas se servem em seu esplendor e
magia. A linguagem adquiriu a condição inabalável de guardiã do homem e de sua razão de ser, indispensável
a uma ‗comunicação‘ natural e a um agir respeitoso, insuscetível de violações em seu arcabouço estrutural. É
como se o sagrado e o profano, numa quimera arquetípica, lutassem nela pela posse exclusiva de seu saber
intrínseco e poderoso. O saber e a ignorância passaram a ser linguagem em si mesma em suas
metamorfoses fantásticas e mirabolantes, no seu jogo de desvelamentos e fugas malabarísticas, de rendição e
dominações, de amor e ódio, alegria e tristeza.‖ LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como Teoria da Lei
Democrática, p.230.
36
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
seus estudos de semântica, a uma linguagem artificial secundária denominada por
ele metalinguagem.‖ 56
1 Desconstrução Hermenêutica
Esta etapa da pesquisa importa em demarcar 62 a acepção de desconstrução
hermenêutica, para que desta enunciação se possa analisar as decisões judiciais, no
contexto do Estado Democrático de Direito.
Não se pretendeu estabelecer um centro de significação irretorquível para os
termos63, mas um campo (teoria-hipótese-enunciação) em que se torne possível as
60―Se o signo for convencional, ou seja, signo de lei, por exemplo, uma palavra ou frase, o interpretante será
um pensamento que traduzirá o signo anterior em um outro signo da mesma natureza, e assim ad infinitum‖
(SANTAELLA, Lúcia. O que é semiótica, p.82).
61 Cf. LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, p.13.
62 Aqui utilizada a demarcação como razão que leva a ―propor convenção adequada‖, sem preocupar-se em
distinguir a natureza das expressões. No sentido de Popper, demarcação equivale à ―proposta para que se
consiga um acordo ou se estabeleça uma convenção.‖(POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica, p.37 e
39).
63 Cf. POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica, p.27. O ―significado transcendental‖ em Derrida importa
numa reconceituação de estrutura, que historicamente ―a estruturalidade da estrutura era limitada pela
38
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
substituições, aperfeiçoamentos, a permuta e transformação de seus elementos 64,
nesse inacabado projeto democrático da pós-modernidade.
existência de um centro, de uma origem fixa, de um ponto de presença‖, o que fazia presumir uma ―origem
absoluta do sentido‖(SANTIAGO, Silviano. Glossário de Derrida, p.84)
64 Cf. SANTIAGO, Silviano. Glossário de Derrida, p.83. Como expõe Leyla Perrone-Moisés, ao comentar as
últimas impressões de Roland Barthes sobre a desconstrução, ―Derrida nos convida a substituir a utopia
política por uma abertura ao por-vir que, embora baseada na justiça e na crítica com relação ao capitalismo
neoliberal, é menos diretiva, menos impositiva, por isso mesmo mais corajosa.‖( PERRONE-MOISÉS, Leyla.
Aquele que desprendeu a ponta da cadeia, p.101); Cf. POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica, p.27 e
ss.
65 RAZ, Joseph. Interpretação sem restabelecimento, p.235-240.
66 LAWN, Chris.Compreender Gadamer, p.50-53. O autor acentua que ―A tradição filosófica, começando
com Descartes, deu à razão este status exaltado e se transformou numa arma para combater idéias e práticas
que eram consideradas como nada mais que resíduos redundantes do passado herdado.‖(p.51-52). A palavra
procedural é originária do inglês procedure e significa, segundo John Lee Cook Jr, ―a sequence of actions or
operations which have to be executed in the same manner in order to always obtain the same result under the
same circumstances (for example, emergency procedures).‖(p.1)( uma seqüência de ações ou operações que
devem ser executados da mesma maneira, a fim de obter sempre o mesmo resultado sob as mesmas
circunstâncias (por exemplo, procedimentos de emergência).
67 Cf.POPPER, Karl R.A lógica da pesquisa científica, p.27-29.
39
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
Wilhelm Dilthey68, a partir dos trabalhos de Schleiermacher, desenvolveu a
ideia de que a compreensão se contextualiza cultural e historicamente com o
sentido original do texto, isto significa, como assevera Nelson Saldanha, em
tentativa de Dilthey para correlacionar compreensão e realidade, fazendo-o a partir
de uma tríade de conceitos, quais sejam, ―vivência, expressão e compreensão.
Partindo-se do vivido, que se projeta na expressão, chega-se à compreensão.‖ 69 Vê-
se, nessa tríade, um círculo hermenêutico.
Em que pesem as visões dos romancistas alemães(Schleiermacher e Dilthey)
serem essencialmente metafísicas, aperfeiçoadas ulteriormente por filósofos que
influenciaram e influenciam até hoje a filosofia do direito estudada e aplicada 70,
permitiu a hermenêutica desde tais primórdios oitocentistas o desenvolvimento do
pensamento crítico, a partir de técnicas de comparação e visão de etapas, permitiu-
se a criação de uma teoria hermenêutica, não mais restrita à filosofia, ingressando
na teoria do direito associada à questão da interpretação.71
No século XX, como destaca Herkenhoff, a compreensão surge como tema
central em Gadamer, com esteio em Heidegger, influenciando a hermenêutica
jurídica moderna.72
Luís Carlos Balbino Gambogi expõe longamente sobre a impossibilidade de se
separar da interpretação as subjetividades do intérprete e toda gama de
conhecimento que este carrega, todavia, ressalta que não há um condicionamento
absoluto, já que ―o intérprete pode superar a ideologia, que cega, fazendo sobre ela
incidir o senso crítico.‖73
Segundo Paulo Ghiraldelli Júnior na transição dos séculos XIX e XX, os
filósofos passam a elaborar críticas do sujeito, ou subjetividades que não se
sustentassem no padrão já estabelecido. Nesse sentido:
―Arthur Schopenhauer (1788-1870) aliou o conhecimento ao corpo; para ele,
haveria um conhecimento especial, para além do Entendimento, que seria
fornecido por processos ligados à compaixão. Friedrich Nietzsche (1840-1900)
disse que o sujeito era uma ―ficção da linguagem‖, isto é, apenas uma função
gramatical que, por motivos sociais, se cristalizou ontologicamente no discurso da
filosofia. Sigmund Freud (1856-1939) fez a consciência ficar tripartida e deu ênfase
ao que seria o subconsciente: Id e Superego controlariam o Ego e seriam, de certo
modo, responsáveis por muito mais atos e falas do que se poderia imaginar. Os
pragmatistas disseram que Charles Darwin (1809-1882) os havia ensinado a ver
continuidade entre seres com consciência e seres sem consciência; desse modo, a
68 ―Wilhelm Dilthey (Wiesbaden, 19 de novembro de 1833 — Siusi allo Sciliar, 1 de Outubro de 1911) foi um
filósofo hermenêutico, psicólogo, historiador, sociólogo e pedagogo alemão.‖ (Wilhelm Dilthey. Wikipedia,
p.1)
69 SALDANHA, Nelson. Ordem e hermenêutica: sobre as relações entre as formas de organização e o
pensamento interpretativo, principalmente no direito, p.218.
28 Cf. CARVALHO NETTO, Menelick de. A Hermenêutica Constitucional sob o paradigma do Estado
Democrático de Direito, p.30 a 44. O autor realiza um esboço histórico da visão de mundo quanto à figura do
direito na sociedade, desde as sociedades pré-modernas, com a atitude hermenêutica que lhes corresponde
demonstrando a evolução das técnicas hermenêuticas, mas confirmando o que aqui foi exposto, isto é, as
práticas metafísicas foram aperfeiçoadas, mas não substituídas.
71 Cf. SALDANHA, Nelson. Ordem e hermenêutica: sobre as relações entre as formas de organização e o
74 GHIRALDELLI JR.,Paulo. Virada lingüística-um verbete, p.2. Cf. LEAL, Rosemiro Pereira.Processo como
Teoria da Lei Democrática, p.144.
75 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea, p.105.
resolver questões filosóficas, discutindo a linguagem ordinária: com ele estavam Strawson, Ryle e Hare, entre
outros. Mas foi Austin quem introduziu de maneira definitiva os conceitos de performativo, ilocucionário e
de ato de fala, conceitos através dos quais deslancha toda a sua argumentação. Estes três conceitos tanto se
perpetuaram nas discussões posteriores da filosofia analítica quanto nas da lingüística.‖(OTTONI, Paulo.
John Langshaw Austin e a Visão Performativa da Linguagem, p.120)
77 Cf. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea,
p.154-157, 158-161.
78 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea, p.168.
79 ―Fenomenologia é definida como o estudo da estrutura da consciência. Ao invés de explicar a consciência
em termos de teoria filosófica, a fenomenologia coloca de lado as suposições teóricas e permanece no nível de
uma descrição, em primeira mão, da experiência da consciência. Dessa forma, ela procura entender a
41
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
Manfredo Araújo explicita que Gadamer(1900-2002)81 sustentou uma
hermenêutica baseada além da discussão meramente metodológica, a compreensão
sustentada por Gadamer é ―constitutivo fundamental do ser histórico‖, a ―análise da
temporalidade‖, o que representa ―uma passagem da hermenêutica psicologizante‖,
sustentada por Schleiermacher e Dilthey, desenvolvidas na modernidade, ―para
uma hermenêutica propriamente histórica.‖82
As críticas à filosofia da consciência, empreendidas no início do século XX,
levam à tentativa de seu abandono. Para tanto, realizam uma abdicação do
psicologismo na filosofia. Despontam-se as teorias analíticas de Husserl, George
Moore, Bertrand Russel, e também dos integrantes do chamado círculo de Viena 83.
―Surgiu, então, a filosofia analítica e, em certa medida, desenvolveu-se de fato um
tipo de prática filosófica que bem mais tarde passou a ser denominado de o
resultado da ‗virada lingüística‘.‖ 84
A ―pragmática transcendental‖ de Karl-Otto Apel, da qual Manfredo de
Oliveira atribui o início da reviravolta da filosofia contemporânea, surge para tentar
suplantar a subjetividade própria da filosofia moderna para a intersubjetividade.
Em que pesem as críticas ao pensamento de Apel 85, há aqui ―uma superação do
solipsismo metodológico, que marcou a filosofia moderna da consciência.‖ 86
consciência como é vivida e experenciada. O fundador e pai da fenomenologia moderna é Edmund Husserl,
um pioneiro nesse procedimento, apesar de o termo haver sido usado anteriormente por G.W.F. Hegel em
sua obra Fenomenologia do espírito. As figuras mais importantes no cenário da fenomenologia, depois de
Husserl, são: Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty e outros.‖ LAWN, Chris.Compreender Gadamer, p.192-193.
80 HERKENHOFF, João Baptista. Como aplicar o Direito:à luz de uma perspectiva axiológica,
fenomenológica e sociológico-política, p.6. Para o autor toda hermenêutica seria ―uma metafísica, uma
ontologia fenomenológica.‖
81 ―Hans-Georg Gadamer (Marburg, Alemanha 11 de Fevereiro de 1900 – Heidelberg, Alemanha 13 de Março
de 2002) foi um filósofo alemão considerado como um dos maiores expoentes da hermenêutica filosófica.
Sua obra de maior impacto foi Verdade e método (Wahrheit und Methode), de 1960.‖(HANS-GEORG
GADAMER.Wikipedia.p.1.)
82 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea, p.225-
226.
83 ―O Círculo de Viena foi um grupo de filósofos, organizado informalmente em Viena à volta da figura de
Apel apenas repete a tese central do Wittgenstein das Investigações filosóficas sem esforço algum de
demonstração.‖ OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia
contemporânea, p.256, nota 20.
86 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea, p.256-
257. Cf. ainda a referência de Manfredo de Oliveira à discussão de Apel sobre a substituição da filosofia
transcendental pela filosofia da linguagem, na teoria do conhecimento: ―É isso que Apel vai denominar a
superação do ‗solipsismo metodológico‘, pois essa postura vai entender o conhecimento não como resultado
de uma consciência solitária no esquema relação ‗sujeito-objeto‘, que é o esquema básico da filosofia
moderna, mas como produto de um processo interativo de entendimento, em que a relação ‗sujeito-sujeito‘
passa para o centro. Para Apel, isso vai significar a articulação de um terceiro paradigma para a reflexão
filosófica: a ontologia clássica teve o ‗ser‘ como paradigma, a filosofia transcendental a ‗subjetividade‘, agora
42
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
A postura hermenêutica inaugurada pela pragmática 87 transcendental pode
ser resumida no seguinte excerto:
―A hermenêutica vai mostrar que a consciência originária da ‗compreensão‘ de algo
só se pode fazer a partir de um horizonte de sentido, que é sua condição de
possibilidade; em outras palavras, condição de possibilidade da experiência é a
familiaridade com um mundo vivido já sempre aberto pela mediação de
determinada linguagem histórica. Aqui se manifesta a constituição do sentido como
algo social e histórico em contraposição ao esquema da filosofia transcendental
clássica, em que o sentido se constitui no sujeito isolado.‖ 88
defendem não só uma distinção entre teoria e prática, mas sobretudo o primado da razão prática em relação
à razão teórica, incluindo desde Kant, cuja última obra de 1804 intitulou-se precisamente ‗Antropologia de
um ponto de vista pragmático, até algumas correntes da filosofia contemporânea.‘ O termo ―pragmática‖ é
derivado do grego pragma, significando coisa, objeto, principalmente no sentido de algo feito ou produzido,
sendo que o verbo pracein, significa precisamente agir, fazer. Os romanos traduziram pragma pelo latim res,
o termo genérico para coisa, perdendo talvez com isso a conotação do fazer ou agir presente no
grego.‖(MARCONDES, Danilo. Desfazendo mitos sobre a pragmática, p.38)
88 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea, p.260.
89 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso, p.180.
90 Cf. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso, p.181.
91 CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Hermenêutica jurídica e(m) debate: O constitucionalismo brasileiro entre
92 CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Hermenêutica jurídica e(m) debate: O constitucionalismo brasileiro
entre a teoria do discurso e a ontologia existencial, p. 98.
93 CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Hermenêutica jurídica e(m) debate: O constitucionalismo brasileiro
entre a teoria do discurso e a ontologia existencial, p. 99. ―De maneira absolutamente diversa da dimensão
locucionária da fala, que se limita à afirmação de algo sobre determinado objeto, a ilocucionária faz a
comunicação assumir seu espectro performativo por meio da expressão de um apelo, de uma ameaça, de uma
advertência, de uma intenção ou de um compromisso. Já o conteúdo perlocucionário da comunicação
humana seria um terceiro sentido que se vincula às consequências ou aos resultados particulares, não
convencionais, do ato de linguagem‖(p.99).
94 LEAL, Rosemiro Pereira.Processo como Teoria da Lei Democrática, p.188.
95 Cf.POPPER, Karl R.A lógica da pesquisa científica, p.38-42. Popper em nota assevera que apresenta seu
critério de demarcação como critério de falseabilidade, não como critério de significado, pois para ele o
contrário seria admitir um dogma do siginificado, o que ele combate. ―A falseabilidade separa duas classes de
enunciados perfeitamente significativos: os falseáveis e os não falseáveis; traça uma linha divisória no seio da
linguagem dotada de significado e não em volta dela.‖(p.42)
96 LEAL, Rosemiro Pereira.Processo como Teoria da Lei Democrática, p.56.
44
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
Na leitura, sempre profícua de Rosemiro Pereira Leal, em Popper, ―não há
proibição, pela via da discussão crítica (linguístico-evolucionária-problematizante),
de eleger uma entre várias teorias como marco de controle do nosso pensar‖, o que
não impede que tal teoria seja substituída, buscando-se entre as teorias
concorrentes ―o melhor padrão teórico-regulador‖. 97
Para rematar esse escorço teórico acerca da hermenêutica, vê-se que a
filosofia da linguagem e a hermenêutica se imbricaram, a partir da concepção de
que o mundo é linguagem, restando a tarefa da hermenêutica em teorizar a forma
de compreensão do mundo.
Importante, nessa exposição evolutiva, é que a metodologia hermenêutica
tradicional, fundada em subsunções, induções e deduções, ou no esquema sujeito-
objeto, foi suplantada ou substituída por trabalhos de diversos filósofos, outrossim,
isto não significa uma permissividade de relativismo, no sentido de assentir com a
discricionariedade do intérprete, já que na própria evolução da teoria hermenêutica
demonstra-se a incongruência do solipsismo, tampouco devemos ignorar os ganhos
teóricos nas reviravoltas da história hermenêutica.98
Com base em Rosemiro Pereira Leal, podemos concluir que a hermenêutica
que se apoia na razão eminentemente historicista, ou psicologizante, ou moralista,
ou na crença de saberes depositados em esclarecidos, desprestigiando a
argumentação a partir de teorias (pensamentos objetivos), não será uma
hermenêutica de estabilização dos sentidos, aliás, é justamente o oposto que
experienciamos99, isto é, permite-se ao intérprete dar o sentido a partir de métodos
que privilegiam a razão natural, a intenção, a destinação histórica, ao invés de uma
discussão ―crítica (descritivo-argumentativa)‖ e, portanto, ―desideologizante‖, não-
mítica.100
O presente texto busca expor uma acepção hermenêutica que permita fugir da
indeterminação interpretativa, apontar alternativa para sair de um contexto social
pressuposto, bem como, se afastar de teorias que depositem no intérprete
esclarecido o significado, para tanto, novamente, nos louvamos de Rosemiro Pereira
Leal, que adequou a ―teoria do interpretante‖, de Edward Lopes, para sua teoria da
lei democrática, lançando aos juristas a oportunidade de buscar uma interpretação
isomênica.
Conforme expõe Rosemiro Pereira Leal, as teorias semânticas se apoiam nos
seguintes postulados:
“a) a sensatez da mensagem afirma que o discurso tem um sentido, mas não
algum sentido imanente porque, se o tivesse, não seria necessário interpretá-lo.
Isso significa que o ‗sentido do discurso está fora dele, situando-se, por assim dizer,
97 LEAL, Rosemiro Pereira. O paradigma processual ante as seqüelas míticas do poder constituinte
originário, p.316.
98 Cf. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso.p189.
99 Andrei Marmor ao pesquisar sobre a interpretação de obras de arte chega a afirmar: ―as interpretações
admitem pluralidade e incompatibilidade até em um único e mesmo esquema.‖ Isso porque ―intérpretes e
críticos de arte normalmente supõem que não há verdade na matéria referente à escolha do esquema
adequado à interpretação de uma obra de arte‖, ao contrário do Direito a ―reivindicação interpretativa é
abrangente‖, isto é, ―reinvindica verdade‖ e, para Marmor, só será inteligível no Direito se a interpretação
eleger um esquema desse tipo. (MARMOR, Andrei. Três conceitos de objetividade, p.301)
100 Cf. LEAL, Rosemiro Pereira.Processo como Teoria da Lei Democrática, p.134-135.
45
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
em um espaço que o transcende e ao qual chamamos texto‘, não podendo,
portanto, prevalecer o brocardo: interpretatio cessit in claris.
Dessas liçes, e com base na leitura de Rosemiro Pereira Leal, pode-se: (em a)
desdogmatizar uma interpretação exegética, já que a linguística demonstra que o
sentido não é imanente, situa-se no texto, fora do próprio discurso. Ademais (em b),
a polissemia é ambiente profícuo à dominação, ―a manipulação de sentidos‖
transforma o manipulador em ―árbitro todo-poderoso da comunidade‖ e, por fim
(em c), a supervalorização da autoridade do destinador do discurso, sendo o único
sublocador capaz de dar sentido engendrando um texto ―segundo sua
inteligência‖.102
Como observa Edward Lopes, na ―decodificação (output)‖ de uma mensagem
temos um ―interpretante do código‖, que também serve para sua ―codificação
(input)‖, contudo o código(a palavra, o termo, o sema) pode amealhar diversos
significados, assim surge um ―interpretante do contexto‖(sintagma), este por sua
vez encontra significação na língua, a qual está envolta numa cultura, daí a
necessidade de um ―interpretante ideológico‖. Tais interpretantes são apresentados
pelo autor, da seguinte maneira:
―a) um interpretante do código tem a função de traduzir a mensagem a luz das
informações fornecidas pelo código de partida que a organizou.(...)
cujo plano do conteúdo é uma semiótica.‖ NASCIMENTO, Edna Maria F. S. Metalinguagem natural e teoria
da linguagem, p.117.
105 NASCIMENTO, Edna Maria F. S. Metalinguagem natural e teoria da linguagem, p.116-117.
106 LOPES, Edward. Discurso, texto e significação: uma teoria do interpretante, p.1.
107 LEAL, Rosemiro Pereira.Processo como Teoria da Lei Democrática, p.274-275.
108 LOPES, Edward. Discurso, texto e significação: uma teoria do interpretante, p.5; LEAL, Rosemiro
117 Cf. LEAL, Rosemiro Pereira.Processo como Teoria da Lei Democrática, p.274
118 Francis Vanine de Andrade Reis, ao tratar da metodologia da mecânica social popperiana, esclarece o
seguinte:―Uma metodologia de mecânica social gradual propugna uma reforma gradual e setorial controlada
por uma comparação crítica entre os resultados esperados e os obtidos, através da apresentação de crítica
racional, ou seja, formulada por argumentos apresentados por meio da linguagem. Tudo isso tem como
finalidade a redução paulatina dos níveis de violência no conviver humano.‖(REIS, Francis Vanine de
Andrade. Interesse processual e intersubjetividade racional, p.53).
119 Cf. LEAL, Rosemiro Pereira.Processo como Teoria da Lei Democrática, p.280.
50
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
teorizar os meios em que o povo ―soberano‖ vai efetivar seus direitos fundamentais
constitucionalizados.
A hermenêutica que servirá de baliza para esta dissertação, tem no próprio
discurso o lugar de significação, o que representa o avanço hermenêutico que aqui
se buscou expor.
Se aplicados os ensinamentos da teoria da lei democrática, que visa uma
hermenêutica estabilizadora de sentidos, temos o ―interpretante (neo-paradigma
processual)‖ que ―já é posto na rede normativa(sintagmática) como referente lógico-
jurídico(devido processo) para toda a comunidade linguística constitucionalizada
(co-institucionalizada).‖120
Ao utilizarmos o devido processo (com função metalinguística) como
interpretante, é possível a denotação do intérprete (texto), vinculada ao
discurso(lei-conotação), firmando-se uma ―veredição (correspondência)‖ entre o
texto e o discurso, no mesmo momento de elaboração da obra ―(construção
normativa)‖.121
Ainda que não se tenha legislação construída sob a consciência democrática, é
possível formar, no processo, uma significação que coadune com o embate realizado
pelas partes e pelo juiz, delimitada pelo que fora discutido e com norte de sentido
no ordenamento jurídico, sendo a decisão, sob essas bases, um provimento
constitucional.
A correspondência (veredição) ocorrerá, portanto, no interior do discurso, é
intradiscursiva, os textos pré-dados (LEI) se constituídos sob a mesma forma
dantes referida, assegurariam a estabilização dos sentidos, além de permitir
revisitar seus fundamentos e avançar sobre eles, por meio da argumentação.122
A ―relação semântica entre o enunciado e o mundo não é verdadeira‖ por uma
crença, ―mas é verossímil pelo médium linguístico teórico-dedutivo de asserções
hipotéticas ou conjecturais abertas à crítica (testes de resistência), visando à
obtenção de conhecimento científico.‖123
Em suma, a significação deverá ser construída pelos elementos que se
encontram no bojo do próprio discurso. No direito democrático, os autos serão o
espaço dessa significação, o local no qual os discursos são produzidos e dos quais se
extrairão a solução compartilhada do conflito.
O contexto, que auxiliará na construção do provimento, se transforma em
objeto de discussão, e o elemento extradiscursivo que se admite é advindo do código
pré-dado, leia-se, ordenamento jurídico.
120 Cf. LEAL, Rosemiro Pereira.Processo como Teoria da Lei Democrática, p.277-278.
121 Cf. LEAL, Rosemiro Pereira.Processo como Teoria da Lei Democrática, p.275-278.
122 Cf. LEAL, Rosemiro Pereira.Processo como Teoria da Lei Democrática, p.277-278.
123 Cf. LEAL, Rosemiro Pereira.Processo como Teoria da Lei Democrática, p.279.
51
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
1.2 Sobre a desconstrução
124 Cf. STRATHERN, Paul. Derrida: em 90 minutos, p.42; CULLER, Jonathan. Sobre a desconstrução, p.99.
125 Cf. PERRONE-MOISÉS, Cláudia. A justiça e o perdão em Jacques Derrida. p.1.
126 Expressão utilizada por Marco Lucchesi na apresentação da obra de Jonathan Culler. (CULLER,
que se propunha a abordar qualquer língua como um sistema no qual cada um dos elementos só pode ser
definido pelas relações de equivalência ou de oposição que mantém com os demais elementos. Esse conjunto
de relações forma a estrutura. O estruturalismo é uma abordagem que veio a se tornar um dos métodos mais
extensamente utilizados para analisar a língua, a cultura, a filosofia da matemática e a sociedade na segunda
metade do século XX. (...) De um modo geral, o estruturalismo procura explorar as inter-relações (as
"estruturas") através das quais o significado é produzido dentro de uma cultura. (...) De acordo com a teoria
estrutural, os significados dentro de uma cultura são produzidos e reproduzidos através de várias práticas,
fenômenos e atividades que servem como sistemas de significação(...) Lévi-Strauss explicou que os
antônimos estão na base da estrutura sócio-cultural.(...) Cultura, explicou Lévi-Strauss, é um processo
dialético: tese, antítese, síntese.‖(ESTRUTURALISMO. Wikipedia, p.1)
128 DERRIDA, Jacques. Una filosofia Deconstructiva, p.1.No original: ―Entonces, no se trata de desconstruir
la idea crítica para volver a un dogmatismo precrítico, sino para reactivar una memoria conceptual ligada a
su historia.(...) No se trata entonces de levantarse contra las instituciones sino de transformarlas mediante
luchas contra las hegemonías, las prevalencias o prepotencias en cada lugar donde éstas se instalan y se
recrean.‖
129 LUCCHESI, Marco. In: CULLER, Jonathan. Sobre a desconstrução, p.10.
52
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
Não parece ser outra a impressão que o desconstrutivismo acarreta em alguns
estudiosos, em especial quanto ao aspecto de taxá-lo de radical, ao ―negar a própria
pretensão de racionalidade, afirmando que a única resposta é que não há nenhuma
resposta‖, como afirmara Francisco de Castilho Prates, que, em nota de rodapé,
teceu as seguintes considerações:
―Os desconstrutivistas podem ser definidos, grosso modo, como aqueles
pensadores que negam radicalmente o projeto moderno de racionalidade,
pautando-se pela máxima de que a única resposta é que não existe resposta
alguma, em uma postura demasiadamente cética. O autor que melhor representa
essa vertente é Jacques Derrida.‖130
de Derrida, afirma que a desconstrução derridiana surgiu num contexto de dominação estatal autoritária,
propugnada pelo governo patriarcal de Charles de Gaulle, e o movimento a que se denominou pós-
estruturalismo, capitaneado por Derrida, Foucault e Barthes, os quais representaram a defesa da
relativização frente à rígida estrutura francesa. (STRATHERN, Paul. Derrida: em 90 minutos, p.47-48.)
53
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
A terceira formulação diz respeito ao combate à filosofia que o discurso a ser
desconstruído afirma, à identificação das ―operações retóricas que produzem o
fundamento de discussão suposto, o conceito chave ou premissa.‖134
Portanto, a desconstrução reverte a posição hierárquica, mas não leva à
conclusão de que o discurso fora ilegítimo e deva ser apagado, isto porque o
discurso anterior é indispensável para o argumento da desconstrução e em sua
genealogia pode ter sido útil em determinada época, não se sustentando
ulteriormente. As premissas, das quais lança mão o texto, ou a teoria que se quer
desconstruir são normalmente compostas de um núcleo rígido que deve ser
objetado pelo desconstrutor.
Paul Strathern afirma, ao comentar a cisão entre Foucault e Derrida, que para
este o texto histórico estava aberto a interpretação, podendo ―mudar de época para
época‖, não sendo possível ―supor que o pensamento pode usar uma linguagem que
se coloca ‗fora‘ da própria linguagem que ele descreve‖.135
De acordo com Leyla Perrone-Moisés, Derrida consegue fazer ―da linguagem
ao mesmo tempo um alvo e uma arma, relança indefinidamente a significação,
desarmando a representação‖, nesse sentido é possível ―estar, ao mesmo tempo,
fora de uma fala objeto que é desconstruída, e dentro de uma nova fala
provisoriamente construída, que refunde a primeira.‖136
A desconstrução é uma tentativa de escapar da prisão às questões de uma
―metafísica da presença‖, que foi combatida por Jacques Derrida, e que pode ser
ilustrada na seguinte passagem:
―Já se pressente, portanto, que o fonocentrismo se confunde com a determinação
historial do sentido do ser em geral como presença, com todas as
subdeterminações que dependem desta forma geral e que nela organizam seu
sistema e seu encadeamento historial (presença da coisa ao olhar como eidos,
presença como substância/essência/existência(ousia), presença temporal como
ponta (stigmé) do agora ou do instante(nun), presença a si do cogito, consciência,
subjetividade, co-presença do outro e de si, intersubjetividade como fenômeno
intencional do ego etc.). O logocentrismo seria, portanto, solidário com a
determinação do ser do ente como presença.‖ 137
p.15-25.
145 Cf. CULLER, Jonathan. Sobre a desconstrução, p.115. SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística
Geral, p.89-93.
55
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
Literatura Comparada (2001), publicado em capítulo de livro em
2007(Desconstruindo os ―discursos culturais‖), que adiante se comenta.
Leyla Perrone-Moisés ao analisar os estudos culturais146 que buscaram aplicar
a desconstrução, e terminaram por se desconstruir em seu próprio bojo, adverte que
―De modo geral, o que não é absolutamente derridiano nos estudos culturais é a
essencialização de seus objetos, as conclusões apresentadas como sentidos plenos,
verdadeiros, dogmáticos e moralizantes, enquanto a desconstrução é uma crítica
infinita, um deslocamento, uma abertura de horizonte, um adiamento
(diferimento) constante da conclusão, da Verdade. Também não é derridiana a
ilusão de exercer uma prática política pelo simples fato de se usar, no espaço
restrito da universidade, uma terminologia politicamente correta. Exercidos sem as
devidas precauções, os estudos culturais se tornam tão ideológicos quanto os
discursos ideológicos que pretendem criticar, por uma simples inversão de sinal
que jamais poderia ocorrer na desconstrução derridiana.‖ 147
148 CULLER, Jonathan. Sobre a desconstrução, p.113; Cf.DERRIDA, Jacques. Gramatologia, p.36-58.
149 STRATHERN, Paul. Derrida: em 90 minutos, p.68.
150 Cf. LEAL, Rosemiro Pereira.Processo como Teoria da Lei Democrática, p.98-108.
151 Conforme consta na advertência da tradução: ―a obra é dividida em duas partes, a primeira parte, Do
direito à justiça, original Deconstruction and the Possibility of Justice, foi proferida por Derrida na abertura
de um colóquio na Cardozo Law School, em Nova York, em outubro de 1989, a segunda parte, intitulada
Prenome de Benjamin, foi entregue aos participantes, sem contudo ter sido proferida por Derrida naquela
oportunidade.‖ A primeira publicação do texto, conforme nota de rodapé, constante ao final da advertência,
foi em agosto de 1990, com o nome ―Deconstruction and the Possibility of Justice‖, na Cardozo Law Review,
de Nova York. Posteriormente, com o mesmo título, pela editora Routledge, em1992, ambas publicações na
forma de artigos. A primeira edição da obra como livro, foi em alemão e data de 1991, cujo título foi
Gesetzeskraft. Der mystische Grund der Autorität, em 1991.‖ (DERRIDA, Jacques. Força de lei: o
fundamento místico da autoridade, p.VII-VIII).
57
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
por ele no referido ensaio, tratou das relações entre direito e justiça, sob as
perspectivas do poder, da autoridade e da violência.
Como afirmado na seção anterior, sobre a desconstrução derridiana, o autor
tratou de demonstrar os paradoxos que permeiam os fundamentos das instituições
as quais visa (des)construir, por óbvio não visou desconstruir o direito enquanto tal,
tampouco a justiça, valendo-se das contradições que podem advir da relação entre
direito e justiça, pelo fundamento da força.
Derrida aduz que um questionamento desconstrutivo que opõe lei e
convenção, ou instituição e natureza, ou ainda, um questionamento que
desestabiliza, ou aponta paradoxos entre valores, será sempre um questionamento
sobre o direito e a justiça. Ocorre que, por vezes, haverá excessos nas buscas destes
fundamentos, chegando-se mesmo a por em dúvida a necessidade do próprio
questionamento, tudo porque existe uma autoridade, ―portanto uma força legítima
da forma questionadora, a respeito da qual podemos nos perguntar de onde ela tira
uma força tão grande em nossa tradição.‖152
A desconstrução, segundo Derrida, apesar de não se endereçar ao problema
da justiça, acabou por fazê-lo, ainda que indiretamente. Para o filósofo, qualquer
tentativa de falar diretamente que algo seja justo é oblíquo, trairá a própria justiça,
ou o direito.153
Derrida demonstra, a partir das teses de Pascal e Montaigne, as relações entre
a justiça e a força, ou melhor, a necessidade desta para que aquela seja seguida e
que seja justo segui-la154. Nesse sentido, Derrida destaca o que esses pensadores
denominavam de ―fundamento místico da autoridade‖, e a distinção entre direito e
justiça, notadamente no que é pertinente à obediência das leis, cuja autoridade
repousa sobre elas próprias, ao crédito que damos a elas, baseado na fé, num ato
não racional, nem ontológico.155
Alexandre Araújo Costa, em artigo que buscou elucidar a obra Força de Lei,
ora em comento, faz as seguintes afirmações:
―A base de todo jusnaturalismo é a idéia de que o direito positivo só é válido na
medida em que pode ser derivado de um direito natural composto por normas e
valores intrinsecamente justos. Contra essa postura de que o direito é válido, em
última instância, porque é justo, Montaigne sustentou que as leis mantêm-se
credíveis, não por serem justas, mas por serem leis. É o fundamento místico de
sua autoridade, elas não têm outro. Essa idéia encontra eco no pensamento de
Pascal, que chegou a dizer que o costume faz a equidade, pela simples razão de ser
recebido; tal é o fundamento místico da autoridade.‖ 156
Tais elucubrações são utilizadas por Derrida para afirmar que, apesar da
conclusão de Pascal e Montaigne estarem baseadas num ―pessimismo cristão‖, suas
obras representam as premissas de uma ―filosofia crítica moderna, ou uma crítica
seguido, é necessário que aquilo que é mais forte seja seguido.‖ (DERRIDA, Jacques. Força de lei: o
fundamento místico da autoridade, p.18).
155 Cf. DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade, p.19-21.
156 COSTA, Alexandre Araújo. Direito, Desconstrução e Justiça: reflexões sobre o texto Força de Lei, de
Todavia, não quer dizer que a ideia de justiça deva ser abandonada, porque,
como afirma Rosemiro Pereira Leal, o ―direito sem o conceito de justiça não seria o
direito democrático de que cuida minha teoria neoinstitucionalista do processo‖. A
justiça do direito democrático, segundo Rosemiro Pereira Leal, seria equacionável
juridicamente, ―uma variável teórica do processo que a própria lei expressaria
como fundamento de sua validade e legitimidade, desmitificando os apelos
(clamores) por justiça num campo ausente da teoria da palavra legal‖.173
A lei deve ―possibilitar a investigação processual da validade e legitimidade do
sistema jurídico que se mostra injusto e a causar atrocidades pelo seu equívoco
manejamento (operacionalização).‖ O devido processo é a estrutura que permitirá
uma desconstrução compartilhada, argumentativa, e, portanto, justa. 174
175 DERRIDA, Jacques. Una filosofia Deconstructiva, p.1.No original: ―Las relaciones entre desconstrucción y
hermenéutica son también complejas. Lo que se llama en general ―hermenéutica‖ designa una tradición de
exégesis religiosa que pasa por Schleiermacher y la teología alemana hasta Gadamer entre otras fuentes, y
supone que la interpretación de los textos debe descubrir su ―querer decir‖ verdadero y oculto. La
desconstrucción no tiene que ver con esa tradición sino, por el contrario, pone en duda la idea de que la
lectura deba finalmente descubrir la presencia de un sentido o una verdad oculta en el texto. Pero hay
también otra manera de pensar la hermenéutica, que se percibe en Nietzsche o en Heidegger, donde la
interpretación no consiste en buscar la última instancia de un sentido oculto sino en una lectura activa y
productiva: una lectura que transforma el texto poniendo en juego una multiplicidad de significaciones
diferentes y conflictuales. Ese sentido nietzscheano de la interpretación es mucho más cercano a la
desconstrucción, tal como lo es la mención de Heidegger a la hermeneuin que no busca descifrar ni revelar el
sentido depositado en el texto sino producirlo a través de un acto poético, de una fuerza de lectura-escritura.‖
176 PERRONE-MOISÉS, Leyla. Desconstruindo os ―discursos culturais‖, p.166.
177 Cf. SILVA, Francisco de Fátima da. A indecidibilidade enquanto desconstrução da hermenêutica:a
que possibilitaria desconstruir a autoridade infundada. Nas palavras do autor: ―A experiência da aporia,
expressão de Derrida, o que para mim designa aspectos do contraditório na teoria neoinstitucionalista, é
um dito radical em Derrida, quando afirma: ‗Mas acredito que não há justiça sem essa experiência da aporia
por impossível que seja.‘‖( LEAL, Rosemiro Pereira.Processo como Teoria da Lei Democrática, p.103).
62
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
aporias. ―Nem isso, nem aquilo‖, ―por um lado, por outro‖, são formulações
freqüentes no discurso de Derrida. A aporia é o limite da desconstrução, que
visa ao deslocamento do sentido, numa atitude de crítica permanente.
Outro limite assumido pela desconstrução, é o que existe entre o
pensar e o fazer. A desconstrução é uma prática filosófica, acadêmica, que não se
confunde com uma práxis política. (O que não impede que, como pessoa física,
Derrida tenha tomado e continue tomando várias atitudes políticas: com relação ao
apartheid na África do Sul, ao comunismo soviético na antiga Tchecoslováquia, na
criação de ―cidades refúgio‖ para os escritores perseguidos, na defesa explícita dos
sem-terra brasileiros, etc.)‖ 180
185 SILVA, Francisco de Fátima da. A indecidibilidade enquanto desconstrução da hermenêutica:a primazia
da metáfora da escritura, p.3.
186 LEAL, Rosemiro Pereira.Processo como Teoria da Lei Democrática, p.103.
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Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
Também é possível falar em uma autodesconstrução das decisões judiciais
que contrariassem os próprios fundamentos, contudo, o alcance que se pretende
enunciar da expressão desconstrução hermenêutica, apesar de denotado do bojo da
decisão judicial, é conotado do discurso constitucional que servirá para orientar o
texto decisional.
Por fim, a desconstrução hermenêutica é um método interpretativo que
aponta os centros rígidos de significação dos discursos, como fundados numa
verdade metafísica, ou num positivismo sociológico, ou num amálgama de teorias
incompatíveis, que têm o condão de não possibilitar uma hermenêutica harmônica
ao paradigma que lhe deve servir de suporte.
Assim, se o discurso se afasta do código interpretante, que lhe deveria servir
de matriz (aqui a matriz autocrítico-discursiva do devido processo), pratica a
desconstrução hermenêutica, independente da intenção do locador. Igualmente, se
aufere a desconstrução hermenêutica, no discurso cuja significação tenha sido
buscada fora do movimento entre o texto e o discurso, isto é, em elementos
idiossincráticos não postos à discussão, mas que determinaram a significação, a
decisão, a aplicação da norma no caso concreto.
A autodesconstrução ocorrerá se a própria decisão não condiz com o suporte
teórico que indica como fundamento. É possível utilizar a técnica demarcada da
desconstrução para criticar os discursos, em especial aqueles que tendem a levantar
uma hipótese que se autoproclama verdadeira e irretorquível.
Dessarte, duas espécies de desconstrução são possíveis, uma determinada
(com o intuito de desconstruir), e outra não intencional (desconstrução de um
referente ou autodesconstrução), a primeira pode ser usada como método crítico, a
segunda como modo de leitura a desvelar a contrariedade inserta no bojo do
próprio texto, muitas vezes desconstruindo o próprio discurso que visa ser
denotado.
Conclusões
Diante dos apontamentos teóricos trazidos à crítica, podemos pontuar o
seguinte, em conclusão do trabalho escrito:
1º) A decisão que foge a uma teoria hermenêutica instalada na Constituição é
como um poema de Manoel de Barros, cujo significado é inteligível somente pelo
locador do discurso e cada locatário ideologicamente e não teoricamente eleja o que
ele venha a significar.
2º) A decisão proferida com seu centro de significação no arbítrio do juiz, na
experiência do julgador, no contexto social, antes de inaugurar um Estado
Democrático de Direito, coaduna a um Estado liberal ou social de Direito.
3º) A metodologia hermenêutica tradicional, fundada em subsunções,
induções e deduções, ou no esquema sujeito-objeto foi suplantada ou substituída
por trabalho de diversos filósofos, outrossim, isso não significa uma permissividade
de hermenêutica relativista, no sentido de assentir com a discricionariedade do
65
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
hermeneuta, já que na própria evolução da teoria hermenêutica demonstra-se a
incongruência do solipsismo.
4º) A hermenêutica não deve ser compreendida especificamente como um
fenômeno subjetivo, um momento auto-reflexivo sobre a realidade, conjugando-se
ora o transcendental e ora o empírico, em busca de uma verdade a ser revelada
(metafísica). Não deve haver cisão entre a fundamentação e a aplicação, pois
―compreendemos aplicando e aplicamos compreendendo‖.
5º) Com base em Rosemiro Pereira Leal, podemos concluir que a
hermenêutica que se apoia na razão historicista, ou psicologizante, ou moralista, ou
na crença de saberes depositados em esclarecidos, desprestigiando a argumentação
a partir de teorias (pensamentos objetivos), não será uma hermenêutica de
estabilização dos sentidos, aliás, é justamente o oposto que experienciamos, isto é,
permite-se ao intérprete dar o sentido a partir de métodos que privilegiam a razão
natural, a intenção, a destinação histórica ao invés de uma discussão ―crítica
(descritivo-argumentativa)‖ e, portanto, ―desideologizante‖, não-mítica.
6º) É preciso desdogmatizar uma interpretação exegética, já que a linguística
demonstra que o sentido não é imanente, situa-se no texto, fora do próprio
discurso. Ademais, a polissemia é ambiente profícuo à dominação, ―a manipulação
de sentidos‖ transforma o manipulador em ―árbitro todo-poderoso da comunidade‖,
e por fim, deve-se evitar a supervalorização da autoridade do destinador do
discurso, como o único sublocador capaz de dar sentido, engendrando um texto
―segundo sua inteligência‖.
7º) Como assevera Rosemiro Pereira Leal, a teoria do interpretante de
Edward Lopes substitui a ―variável da declaração do sentido do discurso engastada
no sujeito da enunciação (locador-locadatário do discurso) pela variável dos códigos
sociais de sentido como bens coletivos a dessujeitizarem a linguagem‖. Tais códigos
são ―possuídos‖ tanto pelo destinador quanto pelo destinatário do discurso e esses
não mais possuem ―o monopólio do sentido‖.
8º) Caminha-se, portanto, para uma hermenêutica não desabrida, em que os
diversos sentidos que se possam enunciar de um determinado discurso, poderão ser
reduzidos a um ―meta-sentido que os reabsorva conjuntamente, estando eles,
portanto, hierarquizados por relações de dominação intradiscursiva.‖ Assim, na
teoria do interpretante, o contexto ―alude a um lugar semiótico (linguístico): ele se
refere, sempre, a elementos que existem no interior do discurso‖ (intradiscursivos).
9º) O termo ideologia refere-se a ―elementos extradiscursivos‖, que somente
influenciará o ato de comunicação se declarados a partir de outro discurso, seria,
portanto, a ideologia um ―discurso heterodiscursivo.‖ A questão que se levanta é a
impossibilidade dos participantes do discurso estarem ingressados na ideologia do
decididor, portanto, não pode soerguer um viés interpretativo.
10º) Segundo Rosemiro Pereira Leal, Edward Lopes aduz que ―na produção
do discurso, muitos textos já se acham adrede na consciência do locador‖, portanto,
temos que a escolha do ―interpretante para a produção e atuação do direito nas
democracias‖ é bastante relevante. A ―compatibilidade (coexistência) do texto com o
discurso há de ocorrer na mesma instância instituinte da co-institucionalidade
66
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
jurídica como se uma ‗obra‘ ali estivesse sendo editada (constitucionalizada)‖.
Teríamos, portanto, uma significação construída no bojo da própria obra, o que
denotaria que o texto (resultado da produção), seria o ―produtor daquilo mesmo
que o produziu (o discurso).‖
11º) O devido processo constitucional é garantia fundamental regente de toda
estrutura normativa procedimental, que irá resguardar a participação, em
contraditório, na construção do provimento em conformidade com a Constituição, é
o paradigma do Estado, a reger a hermenêutica;
12º) A desconstrução demarcada permite três formulações a balizar uma
técnica, (a) a primeira formulação diz respeito ao papel que os termos filosóficos
ocupam entre si, isto é, existe uma posição de hierarquia entre termos contrapostos,
seja por razões axiológicas ou lógicas, há uma posição de comando. (b) A segunda
formulação diz respeito à investigação da ―genealogia estruturada de seus
conceitos‖, determinando ―de uma certa perspectiva externa‖, aquilo que essa
história pode ter se olvidado e que se constituiu enquanto tal e de conseguinte
tornou-se repressiva. (c) A terceira formulação diz respeito ao combate à filosofia
que o discurso a ser desconstruído afirma, à identificação das ―operações retóricas
que produzem o fundamento de discussão suposto, o conceito chave ou premissa.‖
13º) A hermenêutica, porquanto impõe um sentido em detrimento de outros,
impede uma inequivocidade, a desconstrução põe em xeque os dualismos
hierárquicos, ―o sentido último é sempre diferido‖, a desconstrução revela o sentido
da escrita e seus fundamentos.
14º) A desconstrução hermenêutica é um método interpretativo que aponta
os centros rígidos de significação dos discursos, como fundantes de uma verdade
metafísica, ou de um positivismo sociológico, ou de um amálgama de teorias
incompatíveis, que têm o condão de não possibilitar uma hermenêutica harmônica
ao paradigma que lhe deve servir de suporte. Assim, se o discurso se afasta do
interpretante que lhe deveria servir de matriz (aqui a matriz autocrítico-discursiva
do devido processo) pratica a desconstrução hermenêutica, independente da
intenção do locador em fazê-la.
15º) Se o sentido deve ser construído no bojo do próprio discurso, como
exposto na pesquisa, a desconstrução, enquanto estratégia filosófica ou modo de
leitura, nos soergue de técnica para desvelar os fundamentos aporéticos, paradoxais
e axiomáticos, que constituirão as bases de uma decisão judicial. Não menos
importante se revela a questão de que, ao contrariar o paradigma que dá orientação
teórica hermenêutica àquele ato, estaria tal discurso desconstruindo as enunciações
que lhe dão condição de possibilidade e de justificação, necessárias ao fenômeno
hermenêutico.
***
67
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Fernanda Duarte
Ronaldo Lucas
Introdução
O presente trabalho objetiva, didaticamente, apresentar o estado da arte dos
sistemas de proteção internacional dos Direitos Humanos.
É notório o destaque que o tema dos Direitos Humanos detém nos discursos
políticos e acadêmicos no mundo contemporâneo, principalmente após a Segunda
Guerra Mundial. A violência e a coisificação (Arendt, 1983) à qual vários povos se
entregaram durante aquele conflito fez com que, após o seu término, um amplo
compromisso de povos e Estados tenha sido firmado como tentativa de se evitar a
ocorrência de novas barbáries em tempos futuros. Nesse sentido constata-se a força
que, nesses últimos setenta anos, assumem os Direitos Humanos, principalmente
numa perspectiva de sua efetivação na ordem internacional.
Esse quadro histórico fundamentou, para os constitucionalistas pós-1945,
uma compreensão de que as novas constituições deveriam ser moldadas em novas
bases institucionais e políticas. Graças a esses fatos houve, também, a consciência
da necessidade de se vencer a estreiteza normativa resultante do legalismo
construído no século XIX e nas primeiras décadas do século passado. Uma
percepção consolidou-se no sentido de que somente uma estrutura valorativa
incorporada às constituições poderia concretizar os Direitos Humanos e dotar as
cartas políticas de uma efetiva força normativa (Hesse, 1991).
Esse amplo conjunto institucional, reconhecido pelo constitucionalismo
europeu após a Segunda Grande Guerra, no contexto da Guerra Fria, com sua
bipolaridade EUA e URSS, é o que se denomina de legado constitucional pós-
1945187. A sua mensagem foi tão forte, que várias outras sociedades ocidentais
alinhadas o incorporaram, como, por exemplo, a brasileira, que o adotou na
formulação da Constituição Federal de 1988. (Häberle, 2000).
O debate dos Direitos Humanos, entretanto, enfrenta hoje, uma situação
―paradoxal‖. Nas palavras de Vicente Barreto (2002:499)
os Direitos Humanos encontram-se nesse final de século em situação paradoxal: de
um lado, proclamam-se em diversos textos legais um número crescente de direitos
civis, políticos, sociais, econômicos e culturais, que constituem, na história do
direito, a afirmação mais acabada da crença do homem na sua própria dignidade;
de outro lado, esses mesmos direitos transformam-se em ideais utópicos, na
medida em que são sistematicamente desrespeitados por grupos sociais e governos.
187 Sobre o legado do constitucionalismo pós-1945 cf. Gustavo Zagrebelsky (1995) e Peter Häberle (1998).
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Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
Os próprios governos autoritários, contribuem para a idealização dos Direitos
Humanos, pois se preocupam mesmo em declarar a sua fidelidade a esses direitos,
ainda que, cuidadosamente, defendam interpretações particulares sobre a
abrangência dos Direitos Humanos.
188 Paulo Rangel (2003:1-3) situa as sociedades contemporâneas, principalmente as ocidentais, como fruto da
globalização e da medievalização do poder. Esse novo quadro político mundial marca ―a nova coisa política
(...) pela pluralidade, heterogeneidade e alta diferenciação dos actores políticos, com um nítido e acentuado
enfraquecimento — uma relativização — dos poderes estaduais (aquilo a que, por vezes, se tem chamado,
tant bien que mal, a ‗medievalização do poder‘). Sobre o enfraquecimento do poder estatal: ―Essa
diferenciação de forças políticas e o tecido resultante da sua imbricação recordam inapelavelmente o mundo
político medieval, a sua estrutural diversidade e a sua condição radicalmente interdependente‖. Sobre
multiculturalismo cf. Denninger (2003:32): ―O pluralismo de opiniões, organizações e partidos, na mídia,
para a composição de vários órgãos que exercitam a supervisão de funções, desde há muito parecia constituir
uma condição tanto necessária quanto suficiente para gerar resultados normativos cuja realização pudesse
ser aceita como bem comum. (...) Mas, no contexto de novas demandas de diversidade, não mais
direcionadas à síntese de um (todo) universal, e sim, ao invés, à possibilidade de coexistência de uma
multiplicidade de particularidades frequentemente incompatíveis, essas pressuposições não mais obtêm
efetividade, ou, no mínimo, esta se encontra profundamente minada.‖
189 A título de ilustração histórica, para que não se tenha a impressão de que tais paradigmas revolucionários
tenham sido indiscutíveis desde sua origem – encontrando só agora a necessidade de uma revisitação teórica
–, vale a referência à forte crítica perpetrada por Robespierre (1999: 88-89), ainda por ocasião dos trabalhos
de sistematização teórica dos ideais revolucionários. A contradita dirige-se particularmente aos termos em
que, na Declaração dos Direitos do Homem, o tema da liberdade viu-se tratado vis-à-vis o tema da
propriedade: ―... Ao definir a liberdade, o primeiro dos bens do homem, o mais sagrado dos direitos que ele
recebe da natureza, dissestes com razão que os limites dela eram os direitos de outrem; porque não aplicastes
esse princípio à propriedade, que é uma instituição social? Como se as leis eternas da natureza fossem menos
invioláveis que as convenções dos homens. Multiplicastes os artigos para assegurar a maior liberdade ao
exercício da propriedade, e não dissestes uma única palavra para determinar o caráter legítimo desse
exercício; de maneira que vossa declaração parece feita não para os homens mas para os ricos, para os
monopolizadores, para os agiotas e para os tiranos.‖
76
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
sejam consagrados no futuro‘. Alguns, também, referiram-se à ideia dos Direitos
Humanos como sendo normas gerais, relativas à prática jurídica, que se
expressariam através dos princípios gerais do direito. Esses últimos seriam uma
forma de ‗direito natural empírico‘, que ultrapassa a normatividade estrita do
positivismo dogmático, mas não se identificando com os Direitos Humanos
expressam a vontade do constituinte, que não especifica em que consistem esses
direitos e nem prescreve a natureza de suas prescrições; sob este ponto de vista,
cabe ao intérprete, quando da aplicação da lei, dar conteúdo a essa categoria de
direitos. Vemos, portanto, como o emprego abrangente das mesmas palavras
contribuiu, certamente, para a imprecisão conceitual de uma mesma ideia dos
fundamentos comuns para o seu diversificado uso.
190 Importante ressaltar que a tradução desta passagem deu-se de forma livre.
191 Sobre as perspectivas epistemológicas em Direitos Humanos cf. Barreto (2002:506): ―Nesse contexto, é
que se torna imperativo distinguir na análise dos Direitos Humanos dois níveis epistemológicos correlatos:
no primeiro nível, examina-se a questão de sua fundamentação – questão esta, como fizemos referência
acima, que foi relegada a segundo plano; no segundo nível, examinam-se os mecanismos da garantia e
prática dos Direitos Humanos, tema que ocupa de forma crescente a atenção do pensamento jurídico e social
contemporâneo. No que se refere à questão da fundamentação, a influência positivista na teoria do direito
aprisionou a temática dos Direitos Humanos dentro dos seus próprios parâmetros conceituais e
metodológicos, fazendo com que a análise da sua fundamentação fosse considerada uma questão
metajurídica e, como tal, irrelevante para a prática jurídica.‖
192 Para Norberto Bobbio (1992b:24) ―O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não
é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político‖. Nesse
sentido também escreve Barreto (2002:508) O relevante está na proteção efetiva e não na fundamentação
que remete análises de abrangência e da complexidade da moralidade e da racionalidade.
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Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
195 Esse pacto foi promulgado no Brasil pelo Decreto no 591 de 6 de julho de 1992.
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Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
No período histórico de discussão sobre a edição de um pacto que reunisse
todos os direitos da pessoa humana que ocorreu no início dos trabalhos da
Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, foram
idealizados dois modelos de acordos. Um conjugaria as duas categorias de direito
(Declaração Universal dos Direitos Humanos) e o outro promoveria a separação de
direitos civis e políticos numa esfera (concretizado no PIDCP) e em outra estariam
os direitos sociais, econômicos e culturais (efetivado no PIDESC). (Leite e
Maximiano, 2016).
A divergência que ocorria entre os países ocidentais e os países do bloco socialista
era sobre a auto-aplicabilidade dos direitos que viessem a ser reconhecidos. Os
países ocidentais, cuja orientação acabou prevalecendo, entendiam que os direitos
civis e políticos eram auto-aplicáveis, enquanto que os direitos sociais, econômicos
e culturais eram "programáticos", necessitando de uma implementação
progressiva. A ONU continuou reafirmando, no entanto, a indivisibilidade e a
unidade dos direitos humanos, pois os direitos civis e políticos só existiriam no
plano nominal se não fossem os direitos sociais, econômicos e culturais, e vice-
versa.
Dessa forma o PIDCP, que agrega em si os direitos civis e políticos, pode ser
sistematizado em partes que determinam e expõem direitos, como por exemplo,
àqueles referentes ao Direito à Autodeterminação, conforme consta no Artigo 1. 1
―Todos os povos têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito,
determinam livremente seu estatuto político e asseguram livremente seu
desenvolvimento econômico, social e cultural.‖ (PDICP Art. 1. 1).
Em uma segunda parte, é destacada a efetividade do pacto e como os Estados
devem aplicá-lo, o que pressupõe que os mesmos respeitem e garantam os direitos
nele contido, sem nenhum tipo de discriminação, bem como a criação de medidas e
recursos para tornar efetivos esses direitos e evitar violações dos mesmos. Assim,
explicita o artigo 2:
1. Os Estados Partes do presente pacto comprometem-se a respeitar e garantir a
todos os indivíduos que se achem em seu território e que estejam sujeitos a sua
jurisdição os direitos reconhecidos no presente Pacto, sem discriminação alguma
por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza,
origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer condição.
2. Na ausência de medidas legislativas ou de outra natureza destinadas a tornar
efetivos os direitos reconhecidos no presente Pacto, os Estados Partes do presente
Pacto comprometem-se a tomar as providências necessárias com vistas a adotá-las,
levando em consideração seus respectivos procedimentos constitucionais e as
disposições do presente Pacto. 3. Os Estados Partes do presente Pacto
comprometem-se a: a) Garantir que toda pessoa, cujos direitos e liberdades
reconhecidos no presente Pacto tenham sido violados, possa de um recurso efetivo,
mesmo que a violência tenha sido perpetra por pessoas que agiam no exercício de
funções oficiais; b) Garantir que toda pessoa que interpuser tal recurso terá seu
direito determinado pela competente autoridade judicial, administrativa ou
legislativa ou por qualquer outra autoridade competente prevista no ordenamento
jurídico do Estado em questão; e a desenvolver as possibilidades de recurso
judicial; c) Garantir o cumprimento, pelas autoridades competentes, de qualquer
decisão que julgar procedente tal recurso.
80
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
Nesse sentido, o PIDCP define, em sua terceira porção, o rol de direitos de
primeira geração, isto é, as liberdades individuais, o direito à vida, direito de
liberdade e segurança, direito de ir e vir, liberdade de pensamento, de consciência,
de religião, de opinião, de reunião e associação, assim como garantias processuais
de acesso à justiça e participação política, dentre alguns outros. Tomando como
exemplo o Direito à Vida o artigo 6 expõe que196
1. O direito à vida é inerente à pessoa humana. Esse direito deverá ser protegido
pela lei. NINGUÉM poderá ser ARBITRARIAMENTE privado de sua vida.
•HIPÓTESE: situação excepcional que ameace a existência da nação e assim seja
declarada oficialmente. •Direitos que não podem ser suspensos: •direito à vida;
•vedação à tortura; •vedação à escravidão, servidão ou trabalhos forçados; •vedação
à prisão do depositário infiel; •princípio da anterioridade penal, da vedação à lex
gravior e aplicação da lei considerada mais benéfica ao condenado;
•reconhecimento da personalidade jurídica; e •liberdade de pensamento, de
consciência e de religião. SUSPENSÃO DAS OBRIGAÇÕES ASSUMIDAS NO
PIDCP: Direitos Humanos PIDCP Prof. Ricardo Torques Prof. Ricardo Torques
www.estrategiaconcursos.com.br 7 de 30 2. Nos países em que a pena de morte não
tenha sido abolida, esta poderá ser imposta apenas nos casos de crimes mais
graves, em conformidade com legislação vigente na época em que o crime foi
cometido e que não esteja em conflito com as disposições do presente Pacto, nem
com a Convenção sobra a Prevenção e a Punição do Crime de Genocídio. Poder-se-
á aplicar essa pena apenas em decorrência de uma sentença transitada em julgado e
proferida por tribunal competente. 3. Quando a privação da vida constituir crime
de genocídio, entende-se que nenhuma disposição do presente artigo autorizará
qualquer Estado Parte do presente Pacto a eximir-se, de modo algum, do
cumprimento de qualquer das obrigações que tenham assumido em virtude das
disposições da Convenção sobre a Prevenção e a Punição do Crime de Genocídio. 4.
Qualquer condenado à morte terá o direito de pedir indulto ou comutação da pena.
A anistia, o indulto ou a comutação da pena poderá ser concedido em todos os
casos. 5. A pena de morte NÃO deverá ser imposta em casos de crimes cometidos
por pessoas menores de 18 anos, nem aplicada a mulheres em estado de gravidez.
6. Não se poderá invocar disposição alguma do presente artigo para retardar ou
impedir a abolição da pena de morte por um Estado Parte do presente Pacto.
Art. 41 - 1. Com base no presente Artigo, todo Estado Parte do presente Pacto
poderá declarar, A QUALQUER MOMENTO, que reconhece a competência do
Comitê para RECEBER E EXAMINAR AS COMUNICAÇÕES em que um Estado
Parte alegue que outro Estado Parte não vem cumprindo as obrigações que lhe
impõe o presente Pacto. As referidas comunicações só serão recebidas e
examinadas nos termos do presente artigo no caso de serem apresentadas por um
Estado Parte que houver feito uma declaração em que reconheça, com relação a si
próprio, a competência do Comitê. O Comitê não receberá comunicação alguma
relativa a um Estado Parte que não houver feito uma Direitos Humanos PIDCP
Prof. Ricardo Torques Prof. Ricardo Torques www.estrategiaconcursos.com.br 21
de 30 declaração dessa natureza. (...)197
198 Cf . registrado pelo Escritório do Alto Comissariado para os Direitos Humanos das Nações (Office of the
United Nations High Commissioner for Human Rights - OHCHR), disponível em :
http://www.ohchr.org/EN/HRBodies/SP/Pages/Currentmandateholders.aspxv. Acesso em: 14 de outubro
de 2017.
199 Cf registrado pelo Escritório do Alto Comissariado para os Direitos Humanos das Nações (Office of the
16 – O Fundo das Nações Unidas para as Vítimas de Tortura tem ajudado centenas
de milhares de vítimas de tortura a reconstruir suas vidas. Da mesma forma, o
Fundo Voluntário das Nações Unidas sobre Formas Contemporâneas de
Escravidão, com a sua abordagem única voltada para a vítima, tem prestado ajuda
humanitária, legal e financeira através de mais de 500 projetos para os indivíduos
cujos direitos humanos foram violados.
A fim de alargar o seu rol normativo originário, ainda nos ensina Mazzuoli
(2010).
foram ainda concluídos no sistema regional europeu – ao contrário do sistema
interamericano, que conta com apenas dois protocolos substancias à Convenção
Americana: um sobre direitos econômicos, sociais e culturais, de 1988, e outro
sobre abolição da pena de morte, de 1990 – vários protocolos à Convenção
Europeia que preveem direitos substantivos [...]
Relacionado a este primeiro aspecto, advém a gramática dos ―direitos dos povos‖,
que, no dizer do preâmbulo, devem necessariamente garantir os direitos humanos.
Diversamente dos demais instrumentos de proteção, notadamente a Convenção
Europeia e a Convenção Americana, a Carta Africana adota uma perspectiva
coletivista, que empresta ênfase nos direitos dos povos e é a partir desta
perspectiva que se transita ao indivíduo. No caso das Convenções mencionadas a
ótica é liberal individualista, a fundamentar o catálogo de direitos civis e políticos
nelas contemplados.
201Este conteúdo é uma adaptação das informações que constam na página oficial da Organização dos
Estados Americanos. Disponível em: < http://www.oas.org/pt/topicos/direito_internacional.asp > Acesso
em: 10 de outubro de 2017.
98
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
E constitui o principal fórum governamental político, jurídico e social do
hemisfério. Além disso, a Organização concedeu o estatuto de observador
permanente a 69 Estados e à União Europeia (EU).
A sede da OEA está na cidade de Washington, capital dos EUA.
Para atingir seus objetivos mais importantes, em 2014, a OEA adotou quatro
pilares que constam da ―Visão Estratégica da OEA‖ (AG/RES. 2814/14).
Nos termos da resolução, ―a OEA é o fórum hemisférico de caráter político
integrado por todos os países das Américas que, em condições de igualdade e de
maneira interdependente, fortalece a democracia, promove e protege os direitos
humanos, incentiva o desenvolvimento integral, e fomenta a segurança
multidimensional, em benefício do bem-estar com justiça e inclusão social dos
povos das Américas‖.
Os pilares da OEA são: a) a democracia, b) os direitos humanos, c) a
segurança e, d) o desenvolvimento.
Para realizar os princípios em que se baseia e para cumprir com suas
obrigações regionais, de acordo com a Carta das Nações Unidas, a Organização dos
Estados Americanos estabelece como propósitos essenciais os seguintes: a) garantir
a paz e a segurança continentais; b) promover e consolidar a democracia
representativa, respeitado o princípio da não-intervenção; c) prevenir as possíveis
causas de dificuldades e assegurar a solução pacífica das controvérsias que surjam
entre seus membros; d) organizar a ação solidária destes em caso de agressão; e)
procurar a solução dos problemas políticos, jurídicos e econômicos que surgirem
entre os Estados membros; f) promover, por meio da ação cooperativa, seu
desenvolvimento econômico, social e cultural; g) erradicar a pobreza crítica, que
constitui um obstáculo ao pleno desenvolvimento democrático dos povos do
Hemisfério; e h) alcançar uma efetiva limitação de armamentos convencionais que
permita dedicar a maior soma de recursos ao desenvolvimento econômico-social
dos Estados membros.
Os Estados americanos se comprometem com os seguintes princípios que
deverão orientar a atuação dos estados interna e externamente: a) o direito
internacional é a norma de conduta dos Estados em suas relações recíprocas; b) a
ordem internacional é constituída essencialmente pelo respeito à personalidade,
soberania e independência dos Estados e pelo cumprimento fiel das obrigações
emanadas dos tratados e de outras fontes do direito internacional; c) a boa-fé deve
reger as relações dos Estados entre si; d) a solidariedade dos Estados americanos e
os altos fins a que ela visa requerem a organização política dos mesmos, com base
no exercício efetivo da democracia representativa; e) todo Estado tem o direito de
escolher, sem ingerências externas, seu sistema político, econômico e social, bem
como de organizar-se da maneira que mais lhe convenha, e tem o dever de não
intervir nos assuntos de outro Estado. Sujeitos ao acima disposto, os Estados
americanos cooperarão amplamente entre si, independentemente da natureza de
seus sistemas políticos, econômicos e sociais; f) a eliminação da pobreza crítica é
parte essencial da promoção e consolidação da democracia representativa e
constitui responsabilidade comum e compartilhada dos Estados americanos; g) os
Estados americanos condenam a guerra de agressão: a vitória não dá direitos; h)
99
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
agressão a um Estado americano constitui uma agressão a todos os demais Estados
americanos; i) as controvérsias de caráter internacional, que surgirem entre dois ou
mais Estados americanos, deverão ser resolvidas por meio de processos pacíficos; j)
a justiça e a segurança sociais são bases de uma paz duradoura; k) a cooperação
econômica é essencial para o bem-estar e para a prosperidade comum dos povos do
Continente; l) os Estados americanos proclamam os direitos fundamentais da
pessoa humana, sem fazer distinção de raça, nacionalidade, credo ou sexo; m) a
unidade espiritual do Continente baseia-se no respeito à personalidade cultural dos
países americanos e exige a sua estreita colaboração para as altas finalidades da
cultura humana; n) a educação dos povos deve orientar-se para a justiça, a
liberdade e a paz.
Entre os objetivos da OEA destacamos a relevância que a Organização tem
dado ao desenvolvimento do Direito Internacional, por meio de sua Secretaria de
Assuntos Jurídicos, ao apoiar atividades para a padronização e harmonização da
legislação em matéria de direito internacional público e privado nos Estados
membros, incluindo os aspectos jurídicos da integração econômica da região.
A OEA é composta por 35 países independentes que integram o continente
americano e que ratificaram a Carta da OEA. O Brasil faz parte a OEA desde a sua
criação. Conforme indica a própria OEA em seu sítio oficial 202, estes são os estados
membros da Organização: Antígua e Barbuda; Argentina; Bahamas; Barbados;
Belize; Bolívia; Brasil; Canadá; Chile; Colômbia; Costa Rica; Cuba; Dominica; El
Salvador; Equador; Estados Unidos da América; Grenada; Guatemala; Guiana;
Haiti; Honduras; Jamaica; México; Nicarágua; Panamá; Paraguai; Peru; República
Dominicana; Saint Kitts e Nevis; Santa Lúcia; São Vicente e Granadinas; Suriname;
Trinidad e Tobago; Uruguai; Venezuela. Quanto a Cuba, em 3 de junho de 2009,
pela 39ª Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos, a Resolução de
1962 (que excluiu o Governo de Cuba de sua participação no sistema
interamericano) cessa seu efeito na Organização dos Estados Americanos (OEA).
Focou estipulado que a participação da República de Cuba na OEA será o resultado
de um processo de diálogo iniciado na solicitação do Governo de Cuba, e de acordo
com as práticas, propósitos e princípios da OEA.
Os principais instrumentos do sistema interamericano são, entre outros, a
Convenção Americana de Direitos Humanos e seu Protocolo Adicional, como
estudaremos a seguir.
Além, desses dois grandes instrumentos, a partir dos anos 80, há vários
outros instrumentos voltados para uma proteção específica de Direito Humanos.
Entre eles citamos: a) Declaração de Cartagena sobre Refugiados (1984); b)
Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1985); c) Protocolo
para a Convenção Americana de Direitos Humanos para Abolir a Pena de Morte
(1990); d) Convenção Interamericana Sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas
(1994); e) Convenção Interamericana Para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
Contra a Mulher (1994); f) Convenção Interamericana Para a Eliminação de Todas
as Formas de Discriminação Contra as Pessoas Portadoras de Deficiência (1999); g)
***
107
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Introdução
Este artigo203 trata do tema do ensino domiciliar, em uma perspectiva
interdisciplinar entre filosofia, direito e educação. O ponto de partida envolve a
apresentação de um caso relacionado ao denominado ensino domiciliar 204, em que
o Supremo Tribunal Federal reputou constitucional o tema e reconheceu a
existência de repercussão geral205 da questão submetida à sua apreciação, conforme
a seguinte a ementa:
DIREITO CONSTITUCIONAL. EDUCAÇÃO. ENSINO DOMICILIAR.
LIBERDADES E DEVERES DO ESTADO E DA FAMÍLIA. PRESENÇA DE
REPERCUSSÃO GERAL. 1. Constitui questão constitucional saber se o ensino
domiciliar (homeschooling) pode ser proibido pelo Estado ou viabilizado como
meio lícito de cumprimento, pela família, do dever de prover educação, tal como
previsto no art. 205 da CRFB/1988. 2. Repercussão geral reconhecida. (BRASIL,
2015)
Unschooling, Home Education, Ensino Doméstico e Educação Familiar sugere-se a visita ao sítio da
Associação Nacional De Educação Domiciliar (ANED), que se apresenta como uma instituição sem fins
lucrativos, fundada no ano de 2010, por iniciativa de um grupo de famílias e que tem como principal causa
defendida a autonomia educacional da família. Informações disponíveis em https://www.aned.org.br/.
Acesso em: 27 fev. 18.
205 Instrumento processual que possibilita ao Supremo Tribunal Federal selecionar os Recursos
Extraordinários que serão analisados, de acordo com os critérios de relevância jurídica, política, social ou
econômica. O uso desse filtro recursal resulta numa diminuição do número de processos encaminhados ao
STF, uma vez que, constatada a existência de repercussão geral, a Corte analisa o mérito da questão e a
decisão proveniente dessa análise será aplicada posteriormente pelas instâncias inferiores, em casos
idênticos. Fundamentação Legal: Artigo 102, § 3°, da CF/1988 e Artigo 1.035 do CPC/2015. Disponível em
http://www.stf.jus.br/portal/glossario/. Acesso: 27 fev. 18.
206 As pesquisas ―A Judicialização da Educação: Um olhar sobre a relação escola-família a partir da
jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro após a Constituição Federal de 1988‖ e
―Objeção de Consciência e Educação: Um estudo sobre a objeção de consciência e a judicialização da
educação a partir da jurisprudência brasileira após a Constituição Federal de 1988‖ estão sendo realizadas
pelo autor, respectivamente, no Doutorado em Educação (UFF) e no Estágio Pós Doutoral em Direito
(UERJ).
110
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
trabalho não enfrenta diferentes abordagens filosóficas sobre a educação, uma vez
que o objetivo geral consiste em proporcionar ao leitor que não seja iniciado no
campo da filosofia, a partir de um caso real e problematizado, elementos
introdutórios para que possa refletir sobre o que seria uma possível abordagem
filosófica do tema.
Finalizando – para não concluir – são apresentadas algumas inquietações do
autor a partir da seguinte questão: E se o caso do ensino domiciliar
(homeschooling) tivesse que ser julgado por um Supremo Tribunal da Filosofia?
207Ação intentada para assegurar à pessoa, física ou jurídica, direito líquido e certo, individual ou coletivo,
ameaçado ou violado, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou
agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público. No Supremo Tribunal Federal, essa
ação é representada pela sigla MS. Fundamentação Legal: Artigos 5º, LXIX e LXX; 102, I, "d" e II, "a", da
CF/1988. Lei 12.016/2009. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/glossario/. Acesso: 27 fev. 18.
111
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
morais, quer por aspectos religiosos e até sexuais‖ (RE 888815, 2015, v.1 parte 1, p.
5).
Para o juiz prolator da sentença ―a escola é um ambiente de socialização
essencial na formação dos indivíduos. Nela se aprende a conviver com o outro,
desenvolvendo-se a alteridade necessária à vida em sociedade‖ (RE 888815, 2015,
v.1 parte 1, p. 74). Ao fundamentar a decisão em que indeferiu a petição inicial, por
entender que havia pedido juridicamente impossível, o magistrado sustentou:
No Brasil, a educação é dever do Estado e da família, conforme estabelece o artigo
205 da Constituição Federal. Assim sendo, foi devidamente regulamentada
mediante a sua divisão em ensino infantil, fundamental, médio e superior.
Consequentemente, cabe à impetrante frequentar o ensino regularmente
estabelecido e reconhecido pelo Poder Público. (RE 888815, 2015, v.1 parte 1, p.
75).
Com tantos sujeitos envolvidos com o tema não causa estranheza que muitas
pessoas falem ao mesmo tempo sobre o assunto de interesse comum: a educação 210.
Neste contexto, ―não se pode retirar da educação o seu sentido de manifestação
global em termos espaciais e conteudísticos. Tal rol é meramente exemplificativo‖
(LOPES, 1999, p. 30).
208 Este link foi inserido pelo Ministro Roberto Barroso em sua decisão.
209 Assim, podemos dizer que os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são
prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas
constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar
a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito da igualdade.
Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais
propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o
exercício efetivo de liberdade. (SILVA, 2001, p. 289)
210 Para saber sobre a evolução do conceito de educação veja-se, dentre outras obras, o trabalho de
MACHADO JUNIOR, César Pereira da Silva. O Direito à Educação na Realidade Brasileira, São Paulo, Ltr,
2003, p. 25 a 47; MARTINS, Rosilene Maria Sólon Fernandes. Direito à Educação: Aspectos legais e
constitucionais. Rio de Janeiro, Letra Legal, 2004, p.13 a 56.
114
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
Entender a amplitude do tema educação naturalmente nos remete a
diferentes espaços sociais e se pensarmos no processo educacional em relação à
criança, vale lembrar a perspectiva sustentada por Ronca (2004, p. 19) no sentido
de ―que a criança já nasce com um sócio. O seu sócio é o mundo!‖
E nesse nosso mundo tem muita gente interessada em falar sobre educação,
defender seus pontos de vista e afirmar suas convicções, afinal, como se depreende
do texto constitucional, a educação é um ―direito de todos e dever do Estado e da
família‖. E, como ―será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade‖,
ouvir alguém falando sobre educação já não surpreende ninguém, afinal, quem fala
está apenas oferecendo, pelo menos na sua perspectiva, a contribuição que pode
dar.
Quando os pais entendem que podem promover a educação dos filhos por
intermédio do ensino domiciliar (homeschooling), diferentes fundamentos se
prestam para sustentar tal ponto de vista, como visto no recorte realizado na
decisão do Ministro Roberto Barroso. Mas, diante do conflito de interesses, qual o
lugar do sistema educacional?
O lugar do sistema educacional é a sociedade civil. É aqui que se implantam as
leis. Se estas já representavam uma forma de materialização da concepção do
mundo, a sua verdadeira concretização somente se dá quando for absorvida pelas
instituições sociais que compõem a sociedade civil. Essas, por sua vez, a inculcam
aos dominados de tal maneira que estes a transformam em padrões de orientação
de seu próprio comportamento. O ―senso comum‖ é pois a forma mais adequada
de atuação das ideologias. A escola é um dos agentes centrais de sua formação. A
implantação da legislação educacional na sociedade civil significa criar ou
reestruturar o sistema educacional no ―espírito da lei‖, ou seja, de acordo com os
interesses da classe dominante traduzidos em sua concepção de mundo e
reinterpretados na lei. (FREITAG, 1980, p. 41)
E sendo assim, considerando que o Supremo Tribunal Federal terá que decidir a
relação entre o Estado e a família quanto à educação e não se pretende um exercício
211Freitag menciona em sua bibliografia John Dewey (1971), autor de Vida e Educação, publicado pela
Melhoramentos.
116
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
de adivinhação dos votos que estão por vir, opta-se, para os fins deste trabalho, por
reunir elementos visando a elaboração teórica crítica sobre o problema de fundo a
partir das contribuições da filosofia para a área da educação, empreendendo um
esforço de diálogo com o campo do direito.
212Neste ponto é preciso reiterar que este texto decorre de um esforço de reflexão para a disciplina Teoria I,
no curso de Doutorado em Educação (UFF). Sua ampliação, como se perceberá ao final, poderá ser feita,
tanto para um artigo mais denso e que venha a incorporar outras reflexões do campo da filosofia, quanto, em
hipótese a ser oportunamente verificada com o orientador da tese, Prof. Dr. Marcos Marques de Oliveira, de
consolidação de um quadro teórico a partir das contribuições do campo da filosofia e voltadas para a
educação, cujos critérios de escolhas serão decorrentes do processo de orientação para a construção da tese.
120
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
função do real existente e de suas contradições, indagar a opinião geral sobre o
fenômeno escola, verificar o prestígio concedido ou negado à figura do profissional
da educação e assim por diante.
E para não concluir, divido uma última inquietação: se você tivesse o poder
de indicar 11 Ministros para compor o Supremo Tribunal Filosófico, quais seriam os
nomes que o amigo leitor escolheria?
***
213Uma contribuição crítica à denominação mutação constitucional pode ser conferida em SACCHETTO
(2015): As mutações constitucionais no contexto brasileiro de crise da representação democrática. Disponível
em Disponível em <http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2183-
184X2015000100007&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 27 fev. 18.
121
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
REFERÊNCIAS
Introdução
A banalização do sofrimento está presente na história da humanidade desde
tempos imemoriais. Seja qual for o sofrimento, ele tem sido associado aos rituais de
iniciação e dominação por parte não apenas de religiões, mas, sobretudo, e de modo
invasor e político, para efeitos de dominação de um povo sobre o outro. Assim,
sofrimento e religião são termos que guardam conexão; e, para que seja possível
refletir com propriedade a respeito da liberdade religiosa prima facie e dos
desdobramentos de seu exercício que possam significar a imposição do sacrifício ao
outro, necessário preliminarmente introduzir a noção desses conceitos, a saber:
liberdade e religião, para, a seguir, vincular-lhes ao sofrimento e sua banalização.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos adotada pelos cinquenta e oito
países membros das Nações Unidas em Paris no ano de 1948, conceituava a
liberdade de religião e de opinião no seu artigo 18, dispondo que "Todo o homem
tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião". 214 Feito isso,
passar-se-á à abordagem do sacrifício religioso em si mesmo.
A expressão "liberdade de religião" está muito próxima ao sentimento de
tolerância em diversos credos; por outro lado a utilização de "liberdade de culto"
está muito mais relacionada à liberdade de cada indivíduo de professar a religião
que mais lhe aprouver. Essas formas de liberdade coexistiram em diferentes
medidas ao longo da história, tanto no Ocidente quanto no Oriente. No entanto,
desde a Antiguidade até os nossos dias, os registros históricos dão conta de que não
foram raros os episódios em que tal forma de liberdade foi cerceada, na prática, por
meio seja de punições, de legislações repressivas socialmente ou pela privação dos
direitos políticos.
De todo modo, ao se cuidar do tema ―liberdade‖ necessariamente se faz
necessário traçar seus limites e para tanto se busca o socorro da filosofia, mesmo
porque liberdade sem limites conduz ao caos social em quaisquer circunstâncias. É
preciso lembrar que há sempre seres imponderados, que precisam de regras sólidas
para que sejam resguardadas as liberdades alheias.
A Constituição Brasileira é clara ao afirmar como direito fundamental a
liberdade religiosa e de culto, entretanto não as regulamenta, como o faz a Lei de
215PORTUGAL, Lei de Liberdade Religiosa. Consolidação Lei n.º 16/2001 - Diário da República n.º 143/2001,
Série I-A de 2001-06-22 – Disponível em https://dre.pt/web/guest/legislacao-consolidada/-
/lc/106639383/201704281757/exportPdf/normal/1/cacheLevelPage?_LegislacaoConsolidada_WAR_drefrontoff
iceportlet_rp=indice . Acessado em 05 de dez. 2017- A Lei de Liberdade Religiosa de Portugal, por ser mais
antiga, datada de 2001, em seu artigo 26 autoriza a realização de atos sacrificiais, e com isso merece urgente
revisão, uma vez que está na contramão da mais recente atualização normativa do Código Civil Português, que
hoje dispõem que os animais não são coisas , e sim ―entes‖. Tal mudança foi o primeiro passo à inserção
conceitual-normativa dos conceitos de senciência animal.
125
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
reunião, de uma re-união, de uma re-coleção. De uma resistência ou de uma reação
à disjunção. À alteridade ab-soluta.216
Nesse ponto o autor está acenando para aquilo que seria uma evolução social
máxima, ou seja, uma verdadeira religião universalizada, para uma ética global de
responsabilidade pela vida na Terra, o que muito se aproxima do princípio
constitucional brasileiro que garante a equidade intergeracional ao determinar o
ambiente ecologicamente equilibrado como um direito fundamental e tutelado pelo
Estado.
Sua crítica é atroz e ao mencionar que ―a vida não vale absolutamente, a não
ser valendo mais que a vida‖.220 Desaparece assim todo o sentido lógico de uma
religião que mata para sacralizar desrespeitando o que há de mais sagrado, a vida. O
autor continua, afirmando que ― Assim era o fantoche, a máquina morta e mais do
que viva, o fantasma espectral do morto, como princípio de vida e de sobre-vida.[...]
E, portanto, carregando seu luto, tornando-se o que ela é no trabalho de luto
infinito, na indenização de uma espectralidade sem limites. 221
Depreende-se do texto de Derrida seu apreço pelos animais e sua indignação
diante do sacrifício religioso. ―Qual é a mecânica dessa dupla postulação (respeito à
vida e sacrificialidade)?‖ 222 Sua resposta vem atacando o próprio conceito religioso
de vida:
Ela não é sagrada, santa, infinitamente respeitável a não ser em nome do que, em
seu âmago, vale mais do que ela e não se limita à naturalidade do biozoológico
(sacrificável) – ainda que o verdadeiro sacrifício deva sacrificar não só a vida‖
natural‖, dita ―animal‖ ou ―biológica‖, mas o que vale também mais do que a dita
vida natural.223
232Para se situar no tempo, o período chamado de Modernidade se refere à Europa do século XVII que
passou a influenciar o mundo todo com suas concepções culturais e com a busca pela Liberdade.
128
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
―ler‖ o que for desigual. A ininteligibilidade é traço marcante da crítica da alteridade
proposta por Levinás.
É certo dizer que Levinás não chega a cuidar da chamada ‗Ética Animal‘ nem
traduz sua alteridade com conceitos detalhados sobre o cão a que se refere no
campo de concentração. Esse trabalho foi por ele iniciado e caberá a outros
fornecerem os contornos da senciência englobando os seres não humanos.
O importante aqui é destilar o produto extremo da ideologia que fez a
mudança paradigmática do olhar individualizado para o olhar inclusivo. Isso
lembrando sempre que não se pode abordar o sacrifício animal sem antes
considerar que a ideia do abate antes englobava com facilidade conceitual o outro
―humano‖. Então primeiro é preciso que se conscientize a humanidade sobre as
diferenças entre humanos, para então depois de considerar a aceitação da diferença
em relação aos animais.
A crítica levinasiana à filosofia da Era Moderna reside, portanto, na
coisificação do outro e na supervalorização do eu. E é por isso que o autor coloca o
papel da Ética da Responsabilidade para com o outro como a Filosofia Primeira,
aquela que deve vir antes de todas as outras, como meio de civilizar o próprio
homem, como parte de um tecido social.
Nessa medida ele se distancia do ‗Cogito logo sou‘ de Descartes, repleto de
autossuficiência e de potência para reforçar a ideia do cuidado em relação ao outro.
A Ética para Levinás dá-se a partir de uma responsabilidade pré-original em face da
alteridade, não da morte, e sim da vida do Outro e, sobretudo, no ‗não
consentimento na morte alheia‘.
A responsabilidade pelo outro precede a minha liberdade. Não deriva do tempo
tecido de presenças – nem de presenças esvaecidas no passado e representáveis –
do tempo de inícios ou de assunções. Não me permite que me constitua num eu
penso substancial como uma pedra, ou como um coração de pedra, em si e para si.
233
A Ética da Alteridade é algo que deveria ser estudado nas Escolas pelas
crianças ensinando a aceitação da diferença. O princípio fundamental dessa ética é
a responsabilidade com o existir do outro. E quem é o outro? ―O terceiro é outro
distinto que o próximo, porém é também outro próximo, é também o próximo do
outro e não simplesmente o seu semelhante.‖ 234.E Carlos Naconency ao abordar o
Direito dos Animais informa que nossa cultura antropocêntrica especista está
sempre buscando eufemismos para os animais, como atenuantes: ―A retórica dos
eufemismos consiste em substituir certos termos por outras palavras eticamente
neutras, como ―abater‖ no lugar de ―matar‖ ou ―assassinar‖. 235 Assim, tem se
liberado indevidamente o gênero humano da responsabilidade inevitável em relação
aos outros seres.
O ‗outro‘ metafísico é o outro de uma alteridade que não é formal, de uma
alteridade que não é um simples inverso da identidade, nem de uma alteridade feita
de resistência ao Mesmo, mas de uma alteridade anterior a toda a iniciativa, a todo
Theodor Adorno seguiu o autor que inicialmente escreveu sobre ―as dores do
mundo‖, o pessimista Arthur Schopenhauer, trazendo ambos então, um olhar
existencial de compaixão para todas as suas abordagens. Assim, Schopenhauer
afasta-se da teoria kantiana, sempre pautada na dignidade, e desenvolve a sua Ética
da Compaixão calcada na filosofia oriental baseada em desenvolvimento de atos de
caridade, bondade e compaixão como meios de combater o egoísmo e crueldade
inerentes ao gênero humano. Então honestidade, fidelidade, tolerância, serenidade,
benevolência e generosidade acompanham a tônica da compaixão.
Não tenho reparo em colocar-me em aberta oposição a Kant, que não reconhece
bondade ou outra virtude que as derivadas da reflexão abstrata e particularmente
da noção de dever e do imperativo categórico, considerando o sentimento de
compaixão como uma debilidade, porém, de nenhum modo, como uma virtude. 239
238 SHOPENHAUER, A. Mínima moralia. Reflexionen aus dem beschãdigten Leben © 1951 by Suhrkamp
Verlag Tradução: Artur Morão Capa de Edições 70 Depósito Legal n.°166799/01 ISBN 972-44-1071-4
Direitos reservados para língua portuguesa por Edições 70 - Lisboa - Portugal EDIÇÕES 70, LDA. Disponível
em http://www.mom.arq.ufmg.br/mom/babel/textos/adorno-minima-moralia.pdf. Acessado em 28 de nov.
2017. p.47
239 SHOPENHAUER, A. O Mundo como Vontade e Representação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001. 431p.
240 SCHOPENHAUER, A. Sobre a Ética. Ed. Hedra. Tradução de Flamarion C. Ramos, 2012
241Ibidem, p.432
242 HOBBES, Thomas. Leviatã, ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução de João
Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. ‗O homem é o lobo do homem‘ é uma frase muito familiar na
obra do autor, mas não foi originariamente criada por ele. Homo homini lupus é uma sentença latina que
significa o homem é o lobo do homem. Foi criada por Plauto (254-184 a.C.) em sua obra Asinaria. No texto se
diz exatamente; "Lupus est homo homini non homo". Foi reproduzida por Thomas Hobbes, filósofo inglês do
século XVII. Gramaticalmente, segundo a construção em latim, está formada com o nominativo e dativo de
homo,-inis (homem), e o nominativo de lupus-i (lobo). Foi popularizada no Leviatã, publicado em 1651. O
livro, cujo título por extenso é Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil, trata da
estrutura da sociedade organizada. Hobbes alega serem os humanos egoístas por natureza. Com essa
natureza tenderiam a guerrear entre si, todos contra todos (Bellum omnia omnes). Assim, para não
131
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
Só o conhecemos domesticado, domado, nesse estado que se chama civilização: por
isso recuamos assustados ante as explosões acidentais do seu temperamento. Se
caíssem os ferrolhos e as cadeias da ordem legal, se a anarquia rebentasse, ver-se-ia
então o que é o homem. (as dores do mundo. p. 51)243
Compaixão é a aptidão de se sentir na posição do ser que sofre, some a
diferença entre o eu e outro, atenua-se o valor do ego que quer apenas satisfazer-se.
A compaixão é praticada pelas pessoas caridosas, de excelência de caráter, e pelos
santos. É assim uma espécie de amor que ―procura evitar o sofrer, neutralizar as
dores da existência (...) em vez de perpetuá-las‖244. Assim é preciso que o ser
humano compreenda os valores dos outros seres e como diz Graciliano Ramos,
compreenda também ―a força feia do sofrimento e não a qualidade do sofrente‖. A
senciência animal já foi demonstrada por vários estudos desde a década de setenta
sobre os Direitos dos Animais, assim, parafraseando Jeremy Bentham, não importa
se eles podem raciocinar ou falar, mas sim se podem sofrer. E se sofrem por meio de
rituais de fé para satisfazer o gênero humano nas inquietudes da alma e nas crenças
de cura, sucesso, imortalidade e poder, então já está no momento de serem
limitados e repensados em benefício da própria evolução planetária. A ética de uma
responsabilidade global já exige do homem que ele seja vigilante e atento à fauna e à
flora conforme preceitua corretamente a norma constitucional brasileira.
Todas as vezes que o indivíduo, entregue a si próprio, seja incapaz de
compreender os desígnios da natureza, ou impelido a resistir-lhe, ela faz surgir o
instinto; eis por que este foi dado aos animais e mormente aos animais inferiores
mais destituídos de inteligência; porém, o homem não se lhe submete senão no caso
especial de que nos ocupamos. Não é porque o homem fosse incapaz de
compreender o fim da natureza, mas não o levaria a cabo com todo o necessário
zelo, mesmo à custa da sua felicidade particular. Assim, neste instinto, como em
todos os outros, a verdade reveste-se de ilusão para atuar sobre a vontade.245
Muito se discutiu filosoficamente sobre a separação entre Estado e Religião, e
hoje o Pós-Secularismo proposto por Habermas já demonstrou que mesmo a
sociedade já secularizada demanda pela presença e diálogo entre as múltiplas
religiões, como exortação da democracia participativa. Deste modo não há que se
exterminarmo-nos uns aos outros será necessário um contrato social que estabeleça a paz, a qual levará os
homens a abdicarem da guerra contra outros homens. Mas, egoístas precisam de um soberano (Leviatã) que
puna aqueles que não obedecem ao contrato social. Hobbes aborda a religião e a liberdade, oferece regras e
menciona o sacrifício em: ―Sexto, nas orações, ações de graças, ofertas e sacrifícios, é um ditame da razão
natural que eles devem ser em sua espécie os melhores e os mais significantes de honra. Por exemplo, que as
rezas e ações de graças sejam feitas com palavras e frases que não sejam nem abruptas, nem frívolas, nem
plebéias, mas belas e bem compostas, pois de outro modo não honraremos a Deus tão bem quanto podemos.
E, portanto, os gentios procederam de maneira absurda venerando imagens de deuses, mas era razoável fazê-
lo em verso, e com música, quer de vozes, quer de instrumentos. Estavam também concordes com a razão,
por resultarem de uma intenção de venerá-lo, os animais que ofereciam em sacrifício, e as ofertas que faziam,
e os seus atos de veneração estavam cheios de submissão e celebravam os benefícios recebidos.‖p 122
Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/marcos/hdh_thomas_hobbes_leviatan.pdf .
Acessado em 05 de dez. 2017
243 SCHOPENHAUER, Arthur. As dores do mundo. p. 51
244 BARBOZA, Jair. Schopenhauer: a decifração do enigma do mundo. São Paulo: Moderna, 1997.
245SHOPENHAUER, A. As dores do mundo. Disponível em http://abdet.com.br/site/wp-
content/uploads/2015/01/Dores-do-Mundo.pdf. Acessado em 29 de nov. 2017 . SCHOPENHAUER DORES
DO MUNDO O Amor — A Morte — A Arte — A Moral — A Religião — A Política — O Homem e a Sociedade
EDICÖES DE OURO p.19
132
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
afastar ou demonizar nenhuma religião no atual panorama sócio-político mundial,
mas tão só limitar as variadas práticas para que fiquem em consonância com os
princípios constitucionais normativos que são por sua vez garantidores de um
estado laico e ambiental, consciente dos direitos da natureza. Assim têm os homens
grande conforto na religião abraçada. Diante da inexorável finitude humana
nenhum sistema legal por si só seria capaz de guarnecer o coração humano com
argumentos acolhedores. O papel das religiões já foi definido como aponta
Schopenhauer:
Também assim se explica o interesse que nos inspiram os sistemas filosóficos
e as religiões. Este poderoso interesse liga-se principalmente ao dogma de uma
duração qualquer após a morte; e se as religiões parecem cuidar acima de tudo da
existência dos seus deuses, e empregar todo o zelo a defendê-la, é unicamente
porque ligam a essa existência o dogma da imortalidade de que a consideram
inseparável: só a imortalidade os preocupa. Se fosse possível assegurar de outra
maneira a vida eterna ao homem, o seu zelo ardente pelos deuses esfriaria
imediatamente, e daria até lugar a uma indiferença quase absoluta, desde que lhe
fosse mostrada com evidência a impossibilidade de uma vida futura. Por esse
motivo os sistemas completamente céticos ou materialistas nunca hão de exercer
uma influência geral ou duradoura.
O pluralismo religioso é a realidade brasileira e cada vez mais vem se
tornando uma realidade mundial. Uma consciência multifacetada das diferentes
religiões é filosoficamente relevante para se obter uma conclusão como a de
Schopenhauer:
Acrescento que não se pode admirar assaz o acordo, a perfeita unanimidade
de sentimentos que se nota, se lermos a vida de um santo ou a de um penitente
cristão, e a de um hindu. Através da variedade, da oposição absoluta dos dogmas,
dos costumes, dos meios, do esforço, a vida íntima de um e de outro são idênticas.
246
IV – não dar morte rápida e indolor a todo animal cujo extermínio seja necessário
para consumo;
248 AGUIAR, Lucia Frota Pestana de. A Tutela Preventiva na Proteção dos Animais. Ed Max Limonad, 2015.
p. 181
249 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE nº 494.601/RS. Rel. Min. Marco Aurélio. Em 03.03.2007
250 ―Art. 1º – O Estado do Rio Grande do Sul, integrante com seus Municípios, de forma indissolúvel, da
República Federativa do Brasil, proclama e adota, nos limites de sua autonomia e competência, os princípios
fundamentais e os direitos individuais, coletivos, sociais e políticos, universalmente consagrados e
reconhecidos pela Constituição Federal a todas as pessoas no âmbito de seu território‖.
134
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
VI – enclausurar animais com outros que os molestem ou os aterrorizem;
VII – sacrificar animais com venenos ou outros métodos não preconizados pela
Organização Mundial de Saúde – OMS, nos programas de profilaxia da raiva.
BRASIL, RE 859376 rg / PR- repercussão geral no recurso extraordinário –relator Min. Luiz Roberto
253
Barroso - julgamento: 29/06/2017- órgão julgador: tribunal pleno -processo eletrônico dje-168 divulg 31-07-
2017 public 01-08-2017. Disponível em:
254 AGUIAR, 2015.Loc. Cit. 195
255 AGUIAR, Loc.Cit. p.195
136
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
5. Breve Ponderação entre as Normas do Artigo 5º, VII, e o Artigo 225,
§1º, inciso VII, da CF
De forma objetiva, tem-se dois valores fundamentais em questão: liberdade
de culto, crença e prática de um lado (art. 5º, inciso VI da Constituição Federal) e
dever do estado de zelar pelos animais, como parte integrante do meio-ambiente
ecologicamente equilibrado. (Art. 225, § 1º, VII da Constituição Federal). Dentro
deste último entra o Direito dos Animais, que por sua vez já é objeto de defesa
acadêmica por grandes expoentes desde a década de 70 e até hoje vem sendo
sempre uma causa crescente na sociedade. Usualmente animais utilizados em
sacrifícios são dóceis e muitos deles são abatidos ainda filhotes. Importa registrar
que atos religiosos envolvendo animais são usualmente secretos e nãos seguem
regras de saúde pública para descarte dos restos mortais de cada animal sacrificado.
Em 2013 o então Prefeito Eduardo Paes sancionou lei municipal nº 5653, de autoria
do Vereador Átila Nunes, que isenta de multa o lixo deixado em vias públicas por
rituais religiosos 256. Tal lei, apelidada de Lei do Axé ofende frontalmente os
princípios regulamentares de posturas municipais, e até mesmo do programa Lixo
Zero, na ocasião criado pelo então Prefeito. Ainda assim a lei agradou muito a
comunidade religiosa. Deste modo compreende-se que há uma necessidade latente
do Supremo Tribunal Federal decidir a questão dos rituais religiosos. Sobre a
importância dos Direitos dos Animais vai-se aqui resumir doutrinariamente:
Chega a ser risível pensar que Peter Singer, da Universidade de Princeton, Tom
Regan, da Universidade da Carolina do Norte, Laurence Tribe, da Universidade de
Harvard, Steven Wise, das Universidades de Vermont, Lewis & Clark e Miami e que
lecionou em Harvard, Cass Sunstein, da Universidade de Chicago e depois de
Harvard, Andrew Linzey, da Universidade de Oxford, David Favre, da Universidade
de Michigan, Fernando Araújo, da Universidade de Lisboa, além de vários outros,
em diversos países, inclusive de Professores brasileiros das mais prestigiadas
instituições nacionais, como a UFRJ, a UFRRJ, a UFF, a UFBA, a PUC/PR, a UFSC,
a PUC/RS e a USP, estão ocupados de uma doutrina frágil, carente de solidez
argumentativa.257
256RIO DE JANEIRO, Lei LEI Nº 5653 DE 19 DE DEZEMBRO DE 2013, apelidada de Lei do Axé , foi criada
para alterar a lei nº 3.273, de 6 de setembro de 2001, que dispõe sobre a gestão do sistema de limpeza urbana
no município do rio de janeiro. disponível em : https://leismunicipais.com.br/a/rj/r/rio-de-janeiro/lei-
ordinaria/2013/565/5653/lei-ordinaria-n-5653-2013-altera-a-lei-n-3273-de-6-de-setembro-de-2001-que-
dispoe-sobre-a-gestao-do-sistema-de-limpeza-urbana-no-municipio-do-rio-de-janeiro . Acessado em 6 de
dez. 2017.
257LOURENÇO, Daniel Braga e Fábio Corrêa Souza de Oliveira Heróis da natureza, inimigos dos
animais. Disponível em:
https://www.academia.edu/8287938/Her%C3%B3is_da_natureza_Inimigos_dos_Animais Acessado em
6 de dez. 2017.
137
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
Os sacrifícios em geral nas crenças de origem africana têm por objeto os
caprinos, ovinos, suínos e bovinos ou galináceos e pombos, 258 e tais rituais visam
fortalecer como meio de agrado ou de alimento simbólico às divindades, como
meios de alcançar benefícios, curas e milagres.259 Roger Bastide explora o tema ao
mencionar que a visão do sangue revigora entre os não-iniciados os estereótipos
sobre a barbárie ou o caráter supersticioso da religião africana. 260
Assim a ideia de sacrifício, etimologicamente (sacro + ofício) merece uma
reflexão para que se possa compreender o motivo de tanta energia vital na luta pela
permanência desses hábitos, que em verdade vão muito além disso, pois surgem
preenchidos de dogmas cruciais,
―antes de ir mais longe, convém dar uma definição exterior dos fatos que
designamos por 'sacrifício.' A palavra sugere imediatamente a idéia de consagração,
e poder-se-ia pensar que as duas noções se confundem. Com efeito, é certo que o
sacrifício sempre implica uma consagração: em todo sacrifício um objeto passa do
domínio comum ao domínio religioso – ele é consagrado.) 261
259SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nagô e a Morte. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 228-229.
260BASTIDE, Roger. O Candomblé da Bahia. Tradução de Maria Isaura Pereira de Queiroz. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001. p. 31.
261 Ibidem, p.31
262Ibidem. p. 31.
263MAUSS, Marcel; HUBERT, Henri. Sobre o sacrifício. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify,
2005. p. 15-19.
138
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
A força sagrada é atribuída a cada orixá, que são entidades que são meio-
humanas e que se comunicam com as divindades, agindo como verdadeiros
intermediários entre o mundo terreno e o divino. E, seguindo as liturgias, essa
atuação só ocorre mediante oferendas ou sacrifícios para troca ou distribuição do
Axé.266
O sacrifício ou a oferenda é o único meio que pode ocasionar a troca. [...]. Da oferta
(o Ebó) depende toda a dinâmica do sistema no Candomblé, pois justamente a
dinâmica da existência é dependente do relacionamento e do equilíbrio entre os
dois níveis de existência‖ [o material e o espiritual].267
268CLÈVE, Clèmerson Merlin; FREIRE, Alexandre Reis Siqueira. Algumas notas sobre colisão de direitos
fundamentais. In: GRAU, Eros Roberto; CUNHA, Sérgio Sérvulo da (Coord.). Estudos de direito
constitucional em homenagem a José Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 238-239.
269LOURENÇO, Daniel Braga. A liberdade de culto e o direito dos animais não-humanos. Revista de Direito
Constitucional e Internacional, São Paulo, Ano 13, n. 51, p. 295-318, abr./jun. 2005.
140
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
A liberdade religiosa nos Estados Unidos da América está presente em duas
cláusulas: a proibição de que o governo apoie qualquer religião (establishment
clause) e livre exercício (free exercise clause). A Emenda de nº14 determinou que
essas cláusulas fossem oponíveis não só ao Congresso, mas também aos estados
membros.
Assim sendo leis municipais criaram duas normas, uma que anotava a
desconformidade com a moral, paz e a segurança; e outra que, proibiu
categoricamente o sacrifício de animais em rituais religiosos. Só que as leis
municipais de fato focavam na igreja que vinha praticando tais atos religiosos sem o
cuidado de preservar a própria municipalidade, então a Igreja Lukumi, que tinha
acabado de adquirir uma propriedade para construção de uma escola e de um
centro de convivência, objetivando abrir a ‗Santeria‘ para o mundo, sentiu-se
afrontada em seus propósitos e provocou a questão de violação à liberdade religiosa
prevista na Cláusula de Livre Exercício da Primeira Emenda da Constituição
americana. A demanda, portanto, chegou até a Suprema Corte, e hoje é considerada
um dos precedentes mais mal compreendidos da história norte-americana. Isso
porque entendeu a Suprema Corte que teria havido uma violação frontal a um
direito fundamental de liberdade ao exercício de culto religioso por razões
discriminatórias. 270
A decisão em si não é o que mais nos importa nesse estudo, e sim as razões
que levaram ao equívoco no julgamento. É importante salientar que a decisão não
enfrentou a inconstitucionalidade precisa de leis de proteção aos animais e sim as
razões discriminatórias que os julgadores entenderam estar presentes na
Municipalidade para tomarem uma decisões restritivas de direitos a religiões de
origem africanista. 271.
Nessa medida torna-se impossível conceber o que teria decidido aquela Corte
se a questão não tivesse sido direcionada para discriminação racial.
Conclui-se, deste modo que, se os regulamentos não objetivassem atingir com
hostilidade específica a ‗Santeria‘, seria absolutamente aceitável uma decisão
declaratória de validade e de compatibilidade com a Primeira Emenda [...]. A Corte
não concorda com a proposição de que a uma certa motivação religiosa, criada por
um determinado segmento religioso, não seja aplicada uma lei genérica, que não é
direcionada especificamente às práticas de sua religião, enquanto sua incidência é
constitucionalmente admitida em atos de mesma espécie praticados por quaisquer
outras razões que não religiosa.272 E a base para tal compreensão se dá a partir do
entendimento firmado desde 1879 sobre a liberdade religiosa discutida a partir da
suposta poligamia dos mórmons em Utah. Trata-se do caso Reynolds vs. United
270Church of the Lukumi Babalu Aye, Inc. v. Hialeah, 508 U.S. 520 (1993)·Disponível em
https://supreme.justia.com/cases/federal/us/508/520/case.html , Acessado em 04 de dez. 2017
271 LEITE, Fábio Carvalho. Veredas do Direito, Belo Horizonte, ž v.10 ž n.20 ž p.163-177 ž
Julho/Dezembro de 2013
272PASSALACQUA, Gabriella Palhares. Estado e religião na constituição brasileira de 1988 apartheid
religioso: a Suprema Corte dos EUA e o caso Church of the Lukumi Babalu Aye v. City of Hialeah. A autora
cita: ainda que este posicionamento foi assumido pela Suprema Corte no caso Employment Div. Dept. of
Human Resources of Oregon v. Smith, julgado dois anos antes, quando esta entendeu que uma estipulação
aplicável de forma geral e válida que apresenta efeito meramente incidental à proibição do exercício de
religião, não ofende a Primeira Emenda.
141
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
States. O caso tem como foco o religioso, mórmon, George Reynolds, sentenciado a
dois anos de prisão e multa de quinhentos dólares por prática criminosa de
bigamia.273. O texto da Primeira Emenda à Constituição Norte-Americana, de 1791,
é bem claro:
"O congresso não deverá fazer qualquer lei a respeito de um estabelecimento de
religião, ou proibir o seu livre exercício; ou restringindo a liberdade de expressão,
ou da imprensa; ou o direito das pessoas de se reunirem pacificamente, e de
fazerem pedidos ao governo para que sejam feitas reparações de queixas". 274
Este trabalho não excederá o tema pretendido, que é o animal como objeto de
sacrifícios no exercício exclusivo de cultos religiosos,275 ainda assim há que se
sinalizar a amplitude da pesquisa alcançando os abates religiosos para fins
primários de consumo, que merecem também um estudo próprio. O abate religioso
com o fim primário do consumo da carne do animal é um ponto nevrálgico porque
dissimula a ideia limitada do sofrimento e morte apenas para fins religiosos.
Considerando a realidade mercadológica da utilização variada dos animais para
consumo humano tal prática torna-se muito difícil de ser mapeada, investigada e
impedida. Ainda assim há que se reiterar que os abates religiosos, mesmo para
consumo imediato primam por uma crueldade excessiva em descompasso total com
a realidade de consciência global da senciência animal.
que haja fins secundários de consumo. O abate religioso como o Kosher (judaico) e o Halal (muçulmano),
consideradas as especificidades envolvidas merecerem estudos específicos.
276 O processo se encontra concluso ao Relator, Min. Marco Aurélio, desde 2005. Disponível em
http://www.gazetadopovo.com.br/.../stf-tera-que-decidir-se-sacrificio-de-animais-para-culto. Acessado em
05 de dez. 2017 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 494.601/RS. Rel. Min.
Marco Aurélio. O processo está concluso com o relator desde 19.12.2007, conforme andamento processual
disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2419108>.
conforme andamento processual disponível em: . Acesso em: 5 de dez. 2017.
142
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
claramente em sede de seu artigo 2º vedava o sacrifício de animais em cultos
religiosos.
Diante de muito protesto das religiões africanistas, surgiu de autoria do
Deputado Estadual Edson Portilho do Partido dos Trabalhadores o projeto de lei nº
282/2003, com a ressalva à redação do art. 2º do Código Estadual de Proteção aos
Animais para permissão das religiões de matriz africana continuar livres para
exercer essa prática, já que através delas se autodeterminavam em sua identidade
cultural. Foi então, tal projeto, aprovado pela Assembleia Legislativa Gaúcha, por
maioria de votos, e o texto da ressalva foi inserido no Código Estadual de Proteção
aos Animais, através da Lei nº 12.131, a exceção ―não se enquadra nessa vedação o
livre exercício dos cultos e liturgias das religiões de matriz africana‖. Curiosamente,
ainda com o tema em discussão houve uma regulamentação dessa ressalva inserida,
pela Lei nº 12.131/04. E o Decreto nº 43.252, estabeleceu em seu artigo 3º que nas
liturgias de matriz africana ―somente poderão ser utilizados animais destinados à
alimentação humana, sem a utilização de recursos de crueldade para a sua morte‖.
Essa alteração legislativa causou desconforto no Ministério Público local, que
propôs Ação direta de inconstitucionalidade de nº 70010129690 contra a
Assembleia Legislativa e do Governador do Estado do Rio Grande do Sul. O Des.
Araken de Assis, julgou o pedido improcedente, ao argumento de que o sacrifício de
animais nas cerimônias religiosas de matriz africana não configura afronta direta
aos dispositivos penais estatuídos nos art. 32 da Lei Federal nº 9.605/98 e no art.
64 da Lei de Contravenções Penais. No voto do relator ele faz um comparativo entre
o sacrifício de animais e os matadouros, afirmando ser impossível presumir que a
morte de um animal em um culto religioso seja a forma mais cruel.
Ocorre que da decisão do TJ Gaúcho foi objeto do Recurso Extraordinário n.º
494601 distribuído em 29/09/2006 ao Ministro Marco Aurélio, e já obteve o
parecer do Procurador-Geral da República pelo conhecimento e desprovimento do
recurso ou pelo provimento parcial para haver a exclusão da expressão ‗matriz
africana‘, e, portanto, permanecendo com o texto: ―não se enquadra nesta vedação
o livre exercício dos cultos e liturgias das religiões‖. Isso para não ferir a laicidade
estatal.
No Município do Rio de Janeiro o Sacrifício Religioso objeto de projeto de lei
municipal 1.577 de 26 de Dezembro de 2007, de autoria do Vereador Cláudio
Cavalcanti, sendo rejeitado no Plenário da Câmara dos Vereadores.277. E, na
Justificativa da Lei, o Ver. Cláudio Cavalcanti assim fundamentou com paralelismo
aos rituais satânicos, que em última análise também configuram rituais de cunho
religioso:
JUSTIFICATIVA: [...] Também é norma constitucional a liberdade religiosa, de
culto e de fé, desde que esta liberdade não determine ato volitivo, premeditado e
ritualizado de privar um ser vivo de seus mais essencial bem – a vida. O princípio
da razoabilidade nos obriga a estender aos animais a repugnância moral que
sentimos diante de sacrifícios humanos em rituais religiosos. [...] Devemos
277RIO DE JANEIRO, Projeto de Lei 1.577 de 26 de dezembro de 2007, de autoria do Ver. Cláudio Cavalcanti.
http://www.camara.rj.gov.br/spldocs/pl/2007/pl1577_2007_009717.doc - PROJETO DE LEI N
º1577/2007 Proíbe a utilização, mutilação e/ou o sacrifício de animais em rituais religiosos ou de
qualquer outra natureza no Município do Rio de Janeiro, e dá outras providências.
143
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
ressaltar que toda liberdade garantida pela Constituição Federal não inclui a
prática de crime. Se assim fosse os rituais satânicos seriam legais e não o são,
porque ali são utilizados restos mortais, vísceras, órgãos ou sacrifício de seres
humanos adultos ou crianças. (Grifo nosso)
Conclusão
Harmonizar direitos fundamentais é um tema que por si só já merece um
estudo muito aprofundado. O objeto deste trabalho foi pontuar que no caso
específico da liberdade religiosa diante do sacrifício de animais, a discussão ainda é
bem mais complexa. Isto ocorre porque a maioria das religiões que usa o sacrifício
como prática religiosa também se auto define culturalmente através da sacralização
destes ritos. Sem que o tema se tinja de cores fortes ambientalistas ou ‗animalistas‘,
fica claro com a evolução do panorama normativo, e com a evolução sócio-filosófica,
que há a urgente necessidade de coerência com a mutação do próprio fato social,
que hoje não admite mais o sofrimento como mola propulsora de ritos religiosos, e,
sobretudo, com os ditames constitucionais de laicidade estatal e de proteção à fauna
inserida no ambiente ecologicamente equilibrado.
A Conferência de São José, ocorrida na Costa Rica, em 1989, obteve um
avanço reflexivo por uma responsabilidade universal de todos os seres viventes. E o
texto clama pela responsabilidade da geração atual de assegurar o desenvolvimento
e a sobrevivência das gerações futuras, pela consciência de um só mundo, justo e
pacífico, fundamentado na cooperação com a natureza. Em seu art. 1° enfatiza:
―Tudo que existe faz parte de um universo interdependente. Todos os seres
dependem uns dos outros para sua existência, seu bem-estar e seu
desenvolvimento.‖278
Todos os direitos precisam ser regulamentados pelas responsabilidades.
Assim, as liberdades de culto, crença e prática não podem ser blindadas por meio do
manto de dogmas e da sacralização de sua história cultural. Após o Holocausto foi
preciso reunir os dirigentes mundiais para se alcançar uma Declaração dos Direitos
Humanos, a fim de evitar novamente a repetição das barbáries. Hoje mais do que
nunca é preciso repensar a ética da compaixão e da alteridade a fim de civilizar o
homem e suas religiões para a preservação da vida e a abolição do sofrimento
desnecessário.
Aceitar uma prática religiosa pautada no sofrimento de um outro ser inocente
é permanecer na apatia estimulando a violência gratuita em nome de dogmas que já
mereciam ser superados por homens pós-convencionais em uma sociedade
278COSTA RICA, Declaração das Responsabilidades Humanas - Declaração das Responsabilidades humanas
para a Paz e o Desenvolvimento Sustentável. Realização: Universidade da Paz das Nações Unidas na Costa
Rica - Disponível em
http://www.unipazrecife.org.br/Declaracao%20das%20Responsabilidades%20Humanas.htm:http://.
Acessado em 05 de Dez. 2017
145
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
secularizada, livre de dogmas e com a separação premente entre Estado e Religião.
Pensar de modo libertário é então permitir que qualquer culto, por mais primitivo
que seja, possa ser praticado sem ser regulamentado. Se for permitido sacrificar
animais para oferecer aos orixás, o princípio da isonomia também oportunizará a
uma tribo indígena matar suas crianças que nasçam com alguma limitação física
para sustentar suas crenças.
Sendo o Brasil um Estado Democrático de Direito secular, que prima pela
isonomia entre os cultos religiosos, não há como se priorizar religiões de matriz
africanas às demais sem ferir a laicidade e a isonomia. Por outro lado, pretendeu
esse trabalho demonstrar que a liberdade constitucionalmente referendada é de
culto, devendo a prática sempre ser regulamentada pelos próprios ditames
constitucionais e por leis infraconstitucionais que venham a fazê-lo com este
propósito. Para garantir devidamente a liberdade religiosa é preciso regulamentá-
la. E isso irá certamente encorajar toda e qualquer religião ao abandono da
clandestinidade por meio do respeito, convivência, igualdade e a paz.
***
146
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
PARTE II
151
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
Introdução
Frente ao processo de globalização, o homem busca ajustar as demandas
jurídicas ao mundo contemporâneo. Esta adequação ultrapassa a esfera
propriamente política ou socioeconômica e alcança a regulação das práticas sociais.
Têm-se, assim, a sistematização de novíssimas dimensões da experiência social,
além de todo um conjunto de práticas e de normas pouco delimitados pelos
sistemas jurídicos anteriores. Essa crescente invasão do direito na organização da
vida social é chamada de ―judicialização das relações sociais‖. 280
No Brasil, o processo de judicialização das relações sociais teve, na criação
dos Juizados de Pequenas Causas, um dos mais louváveis esforços para tornar a
justiça acessível a todas as classes sociais. Posteriormente, com a criação dos
Juizados Cíveis e Criminais (Lei 9.099/95), foram expostas, ao Judiciário, questões
sociais em sua expressão bruta, que passou, então, a conhecer os dramas vividos
pelo seguimento mais pobre da população, os seus clamores e expectativas em
relação à justiça.
Reconhece-se que a criação dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais foi um
movimento em direção à criação de formas mais democráticas e rápidas de acesso à
justiça. Contudo, tais instrumentos foram insuficientes e ineficientes para aplacar
as demandas da população para atendimento dos seus anseios por justiça, tanto de
forma quantitativa quanto qualitativa. O ‗abarrotamento‘ de processos e a carência
de acesso ao Judiciário continuou sendo uma realidade.
Com essa explosão de litigiosidade (surgimento de novos sujeitos de direitos e
de novas categorias de direitos), o Poder Judiciário, buscando fornecer respostas
mais efetivas, mais satisfatórias e menos desgastantes, aderiu ao desenvolvimento
de procedimentos alternativos para dirimir os conflitos sociais, como a arbitragem,
a conciliação, a negociação e, com especial destaque nesse momento, a mediação
(Lei 13.140 de 26 de junho de 2015 e o Código de Processo Civil/2015).
279 O presente trabalho interdisciplinar é fruto de pesquisas teóricas e práticas vivenciadas no decorrer das
nossas profissões. Como advogada, mediadora de conflitos e facilitadora restaurativa é possível compreender
os conflitos e direcionar a administração dos mesmos para meios que permitem, dentre outros fatores, o
estabelecimento de uma comunicação restaurativa e a construção conjunta da melhor forma de resolver ou
de administrar os conflitos. Como psicóloga e mediadora de conflitos, exercendo aquela profissão no
ambiente hospitalar, foi possível detectar e vivenciar a existência de seus conflitos. Tal vivencia, nos permite
dizer que a Mediação e o Círculo Restaurativo, no âmbito da saúde, em especial no âmbito hospitalar,
administra os conflitos de forma humanizada, levando em consideração as emoções e os sentimentos de cada
um dos envolvidos no conflito, respeitando suas necessidades e verdades.
280 Sobre o tema, consultar a obra ―Judicialização da política e das relações sociais no Brasil‖; Luiz Werneck
Planos
Serviços Setor
de Saúde Operadoras
terceirizados Privado de
de Seguro
Saúde
Setor Público de
Pacientes e Setor Privado
Saúde – Sistema
seus familiares de Saúde
Único de Saúde /SUS
Profissionais
diversos
Conflitos Conflito
Relacionais Contratuais Conflito equipe
médica-paciente-
familiares
Conflito paciente-
plano de
saúde/operadoras
de seguro
154
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
Nesse contexto, a mediação e os círculos restaurativos (ferramenta da Justiça
Restaurativa284) são considerados os meios mais adequados para administrar os
conflitos e evitar a judicialização. Importante ponderar que uma ação judicial, cuja
morosidade é incontestável, causará mais dores e insatisfações aos envolvidos,
sentimentos estes que se prolongarão no tempo causando um sofrimento ainda
maior.
Parágrafo único. Dizem respeito também à saúde as ações que, por força do
disposto no artigo anterior, se destinarem a garantir às pessoas e à coletividade
condições de bem-estar físico, mental e social. (Art. 3º da CF/88)
O sujeito que adoece e chega para um atendimento, seja qual for o local,
possui, além da enfermidade, a sua própria história. Essa história perpetua seu lar,
seus familiares, seus colegas, seu trabalho, suas emoções, sejam elas boas ou ruins,
e seus problemas. O cuidado com a sua saúde deve ser realizado de forma a se
transcender a enfermidade física para que o indivíduo seja atendido de forma
integral, em seu caráter multidimensional. ―A saúde humana nunca será o produto
de comprimidos, de anestésicos, de soros, de alimentação artificialíssima. O homem
terá de voltar os olhos para a terapêutica natural, que reside em si mesmo, na sua
personalidade e no seu meio ambiente‖ (XAVIER, 1938, p.125).
O ambiente hospitalar é considerado hostil, sendo sinônimo de sofrimento,
de dor e traz implícito o temor de muitos seres humanos: a morte.
[...] Diante da morte inexorável, o médico não faz outra coisa que não renunciar:
por vezes, ele se esquiva do doente, estimando que seu papel terminou; ou então ele
continua a segui-lo com tratamento inúteis e enganosos nos quais, é claro, nem ele
próprio crê. Mas ainda há duas coisas a fazer. Uma, técnica, indispensável: aliviar a
dor. A outra, humana simplesmente: continuar mais do que nunca a relação, e
amais viva possível, entre o doente e a pessoa que está ali, parente, amigo, visitante.
É a vida, ainda e sempre, a vida da qual a morte faz parte, é a vida que é o mediador
entre o doente e aqueles que ali estão – entre eles, o próprio médico que conheceu
bem o doente cuidando dele – e isto até o último momento. (SIX, p. 129, 2001).
Considerações Finais
A Reforma do Judiciário vem trabalhando, nos últimos 16 anos, numa
política pública de ampliação de acesso à justiça e, nesse processo contínuo de
judicialização das relações sociais, tornou-se imprescindível a utilização de
metodologias mais humanizadas que busquem soluções mais individualizadas para
atender aos fins dos envolvidos na demanda, bem como do Direito. Com a Lei
13.140/2015 e o Código de Processo Civil/2015, as formas alternativas de resolução
de conflitos são consideradas os caminhos adequados e/ou complementares que
podem ajudar a administrar os conflitos.
160
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
Buscando auxílio para grandes melhorias, as ciências da saúde puderam
realizar a interface com outras ciências. Dessa forma, um dos meios que podem ser
utilizados para melhorar o diálogo e a resolução de conflitos que surgem nos locais
de tratamento à saúde, faz-se necessária a interface entre ciências da saúde e uma
forma adequada de administrar seus conflitos com um diálogo pacificador e
humano. Neste contexto, se insere a Mediação e os Círculos Restaurativos.
A Mediação e o Círculo Restaurativo sofrerão as adaptações necessárias para
atender a demanda do ambiente hospitalar. Este local possui como ferramenta
indispensável a comunicação e trabalha, na grande maioria das vezes, com a
urgência de atendimento. Desde a chegada do paciente, que possui a sua própria
urgência, até a sua saída, às vezes demorada devido ao quadro em que se encontra,
a comunicação e a boa relação se fazem necessárias. Como dito anteriormente, o
meio da saúde é uma complexa organização que potencializa o surgimento de
conflitos ou intensifica os já existentes. Razão pela qual a comunicação é ferramenta
indispensável para que os relacionamentos existentes se mantenham firmes e
sustentáveis.
No ambiente hospitalar, dependendo da peculiaridade do conflito, não é
possível o agendamento de sessões para o procedimento da Mediação. A
necessidade de urgência nos atendimentos faz com que, muitas vezes, só exista um
momento específico de oportunidade para que o conflito seja trabalhado. Neste
caso, talvez seja recomendado instalar um Círculo Restaurativo para que todos
juntos, com a ajuda do Facilitador, possam administrar sentimentos, emoções e
construírem um acordo ou uma melhor forma de administrar aquela demanda.
As experiências existentes na área de saúde, demonstram que são inúmeros
os benefícios na utilização das ADR‘s para administrar os conflitos. A utilização da
Mediação e do Círculo Restaurativo são recomendados, em especial, pelo elemento
emocional tão presente no ambiente hospitalar, bem como pela fragilidade do
momento vivenciado pelos pacientes, por seus familiares e por todos os
profissionais envolvidos no atendimento (funcionários da recepção do hospital,
enfermeiros, médicos e técnicos). Com o auxílio de um terceiro devidamente
preparado – mediador ou facilitador – pode-se trabalhar: os reais motivos (conflito
oculto) que levaram as partes ao conflito, os medos, inseguranças, necessidades etc.
A comunicação adversarial pode ser transformada numa comunicação restaurativa
(escuta ativa e fala ponderada).
Desta forma, pode-se fornecer um atendimento mais humanizado ao paciente
e à sua família, bem como um espaço para que haja a escuta das dificuldades,
frustrações, medos e limitações, não apenas do paciente, mas também, da equipe de
saúde e dos familiares. Os Círculos Restaurativos e a Mediação são considerados
meios adequados de intercessão e humanização na saúde para que os conflitos daí
advindos possam ser tratados, administrados, levando-se em conta a importância
do ser humano e, principalmente trabalhando nos mesmos a validação dos seus
sentimentos e das histórias vivenciadas por cada um dos envolvidos no conflito.
***
161
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Bárbara Lupetti
Manoela Medeiros Sales
286Dedicamos este texto ao querido e saudoso Professor José Carlos de Araújo Almeida Filho, o Puca, que,
durante a sua vida docente na UFF, ministrou aulas sobre Recursos Cíveis, sempre criticando os excessivos
poderes monocráticos conferidos aos relatores e o desprestígio das garantias dos jurisdicionados. Esta
singela homenagem é a demonstração da nossa gratidão pela convivência na UFF, que, embora breve, foi
suficientemente especial, para deixar saudades.
164
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
características que tornam esta prática mais demorada do que a simples prolação de
uma decisão monocrática, proferida por um único magistrado, no silêncio de seu
gabinete, de forma isolada.
Em função disso, ainda sob a vigência do CPC de 1973, por atualização
decorrente de diversas leis e, definitivamente, por uma Lei Federal de 1998, a Lei nº
9756/98, o julgamento monocrático dos recursos se transformou, na prática, em
regra de procedimento recursal, passando a ser, o colegiado, excepcional, fato que, a
princípio, se configurara como inversão à ideologia do sistema recursal, pensado,
desde sempre, para ser colegiado.
Sendo assim, na tentativa de conciliar o inconciliável, os Tribunais, do ponto
de vista empírico (que, de certo modo, orienta este trabalho), passaram a usar, de
modo regular (e desmedido), a regra processual do art. 557 do CPC de 1973, que
autorizava o julgamento monocrático, no lugar de decisões colegiadas, sob o
fundamento de que as decisões monocráticas permitiriam uma entrega mais célere
da prestação jurisdicional em grau recursal.
No entanto, os abusos empíricos respaldados pelo artigo 557 do CPC de 1973
ensejaram descontentamentos, especialmente por parte dos advogados, que,
frequentemente, viam o desprestígio do julgamento colegiado como prejuízo
processual.
A doutrina também passou a se manifestar nesse sentido.
Leonardo Greco advertira, em artigo intitulado ―A falência do sistema de
recursos‖, que a supressão da colegialidade, em substituição à prolação de decisões
monocráticas, vinha repercutindo negativamente sob a perspectiva das garantias
fundamentais (GRECO, 2003, p. 93). Nelson Nery Jr. e Rosa Maria Nery (2006, p.
815), igualmente, sustentavam que o julgador somente estaria autorizado a decidir
sozinho o recurso de forma excepcional, defendendo que ―havendo dúvida, o relator
não poderia indeferir o recurso nem julgá-lo improcedente, devendo,
obrigatoriamente, remetê-lo ao julgamento do órgão colegiado‖.
Assim, com a promulgação do Novo CPC, mudanças (ou propostas de
mudanças) ocorreram no sistema recursal e, quanto ao tratamento dos julgamentos
monocráticos, a nosso ver, o legislador previu uma disciplina bastante mais
restritiva do que aquela conferida aos magistrados pelo antigo artigo 557 do CPC de
1973.
Nessa medida, o texto está situado nesse lugar: de pensar sobre como as
práticas judiciárias readaptaram os seus ritos para, a partir do Novo CPC, ampliar
os julgamentos colegiados, de fato, ressuscitando-os, em um sistema que pretendia
esquecê-los e que vinha adotando posturas vorazes no sentido de quase restringir os
julgamentos recursais à decisões monocráticas.
Metodologicamente, para a elaboração deste texto, realizamos breve análise
legislativa e jurisprudencial, além de reflexões (ainda bastante incipientes),
decorrentes de nossa experiência pessoal, como advogadas de contencioso cível em
escritórios privados, que nos permitiu realizar conversas informais com nossos
colegas advogados e entrevistas breves com 5 (cinco) Desembargadores do Tribunal
de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
De modo sistemático, o trabalho traz uma breve descrição do sistema recursal
anterior em comparação com o atual e, logo após, descreve e problematiza alguns
casos que foram selecionados e as entrevistas realizadas, a fim de contrastar os usos
165
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
do antigo artigo 557 e do atual artigo 932 do CPC, pensando nas mudanças
introduzidas pela atual legislação processual e suas consequências empíricas.
[...]
III - não conhecer de recurso inadmissível, prejudicado ou que não tenha
impugnado especificamente os fundamentos da decisão recorrida;
IV - negar provimento a recurso que for contrário a:
Da mera leitura dos dispositivos verifica-se, prima facie, uma restrição maior
do Novo CPC ao subjetivismo judicial, na medida em que o art. 932 restringe a
possibilidade de decisão monocrática a situações já sumuladas ou decididas pelos
Tribunais Superiores, em confronto com a redação bastante mais aberta do CPC
anterior, de 1973.
Como se sabe, e aqui convém um parêntese, a última redação do artigo 557 do
Código de Processo Civil de 1973, que prevaleceu até o advento do Código de
Processo Civil de 2015, foi fruto da Lei nº 9.756/98, sendo certo que, desde a
promulgação do Código em 1973, outras redações já haviam sido conferidas ao art.
557 (e que, no caso, não convêm, neste texto, historicizar).
166
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
Mas, o fato é que, na última redação do artigo 557, além de terem sido
mantidas todas as prerrogativas anteriormente conferidas ao relator, que já vinha
ganhando poderes de decidir monocraticamente (em desprestígio do colegiado), foi
incluída a possibilidade de decisão monocrática para negar seguimento a recurso
com fundamento na orientação predominante (Súmula e Jurisprudência
dominante) do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal e não
apenas em súmula, como na versão anterior.
Tal alteração legislativa confirmou a crescente valorização da jurisprudência
dos tribunais superiores, estendendo, ao mesmo tempo, e sobremaneira, as
hipóteses de julgamento monocrático, em desprestigio do colegiado, especialmente
devido ao conteúdo vago da última redação do art. 557 do antigo CPC.
Por exemplo, o termo ―jurisprudência dominante‖ é extremamente amplo e
vago, conferindo poderes praticamente irrestritos ao relator, já que não há uma
definição precisa sobre o que seria dominante (ou não), na análise das decisões dos
Tribunais e na construção de sua jurisprudência.
―Manifestamente improcedente‖ é, igualmente, categoria indeterminada, que,
na prática, acabou permitindo usos ampliados do art. 557, que passou a configurar a
regra do sistema, em vez de sua exceção (GRECO, 2003; ASSIS, 2013).
Ou seja, as alterações legislativas sucessivas na redação do art. 557 do CPC de
1973 modificaram de modo muito significativo a dinâmica dos julgamentos nos
Tribunais, autorizando, de forma quase irrestrita, o deslocamento do colegiado para
o julgamento monocrático.
É possível dizer, inclusive, que o relator deixou de ser mero examinador de
requisitos extrínsecos de admissibilidade recursal (como o era na primeira redação
do art. 557, que permitia, apenas, o indeferimento do recurso por via monocrática)
e passou a, cada vez mais, decidir unipessoalmente o mérito do recurso, tornando-
se (e substituindo), ele próprio, o ―órgão colegiado‖ (a última redação do art. 557
falava em dar ou em negar provimento aos recursos, por via monocrática).
Certamente, como já mencionado, no bojo dessas alterações estava
circunscrita a ideologia da celeridade processual, presumindo-se que uma decisão
monocrática proferida pelo relator, pelo menos em uma primeira análise,
diminuiria o tempo de tramitação de um recurso no tribunal, reduzindo o número
de demandas a serem julgadas pelo órgão colegiado e, com isso, contribuindo para a
duração razoável do processo.
Ocorre que, na prática, não foi bem assim que ocorreu, especialmente, devido
à redação do §1º do art. 557 do antigo CPC:
§ 1oDa decisão caberá agravo, no prazo de cinco dias, ao órgão competente para o
julgamento do recurso, e, se não houver retratação, o relator apresentará o
processo em mesa, proferindo voto; provido o agravo, o recurso terá seguimento.
***
172
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASSIS, Araken. Manual dos recursos. 7. ed. Revista dos Tribunais, 2013.
CÂMARA, Alexandre Freiras. Lições de Direito Processual Civil. Vol. I. 9. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2003.
DIDIER, Fredie. Curso de direito processual civil. 17. ed. v. 1. Editora Jus Podvm,
2015.
GRECO, Leonardo. A falência do sistema de recursos. In: Revista Dialética de
Direito Processual, n° 1, abril de 2003, ed. dialética, São Paulo, pp. 93/108.
NERY JÚNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil
Comentado e Legislação Extravagante. São Paulo: RT, 2006, p. 815.
173
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
1. Introdução
No âmago da justiça, entendemos a igual dignidade de todos os homens. Este
fundamento é o objeto de uma experiência moral que ocorre toda vez que o eu se
reconhece na alteridade, uma dignidade idêntica à de qualquer outro ser humano,
não importa qual, uma dignidade que exige de mim um respeito incondicional. ―A
dignidade presente em todo ser humano pode ser considerada o fundamento
objetivo de toda exigência de justiça. Entretanto, esta dignidade não existe sem o
reconhecimento humano: a objetividade que ela possui é inerente à rede de relações
inter-humanas‖ (DURAND, 2012, p. 41). O ser humano se efetiva somente por meio
desta rede de relações.
A dignidade humana não se coisifica. É inviolável e inalienável em si mesma.
Dignidade humana e indivíduo são inseparáveis. A necessidade da justiça se
justifica por reconhecimento incondicional ao ser humano. A justiça é ―exigência
moral arraigada na experiência do outro‖ (DURAND, 2012, p. 42). Pressupõe o
reconhecimento da alteridade como fim em si. ―O outro é aquele a quem devo
reconhecer em todas as circunstâncias a exigência, de minha parte, de um respeito
que não está, e nem pode estar, condicionado a nada‖ (DURAND, 2012, p. 42). O
centro da justiça é o reconhecimento da dignidade humana.
O acesso à justiça é direito de todos os cidadãos que devem ser reconhecidos
e respeitados na efetivação do processo legal. A cidadania e o reconhecimento
intersubjetivo são meios de acesso à Justiça e à inclusão social. A suspenção da
práxis da justiça impede o desenvolvimento da cidadania e a marginalização do
sujeito.
Considerações Finais
Após o percurso realizado, constatamos que o acesso à justiça e a efetividade
do processo legal está disponível para pessoas e grupos privilegiados na sociedade
brasileira. Temos uma população pobre e marginalizada socialmente que não
consegue o acesso à justiça, em vista de seus direitos pessoais e coletivos. O acesso à
justiça não é privilégio de uma classe social, é direito de todos os cidadãos, é
fundamento constitucional. Negar a justiça aos excluídos é relativizar a Constituição
Federal que prima em construir uma sociedade livre, justa e solidária.
O acesso à justiça requer o modelo constitucional do processo legal. A
Constituição é o lócus do processo legal, ou seja, ninguém será privado da liberdade
ou de seus bens sem o devido processo legal. A efetivação do processo legal é
garantia do cumprimento da lei e do respeito à cidadania de cada indivíduo. Vimos
que o ―§4°, inc. IV, do art. 60 da Constituição, proíbe ao legislador a deliberação de
qualquer emenda ao texto constitucional que tenha como objetivo abolir direitos e
garantias individuais.
O Poder Judiciário deve assumir em sua práxis, a transformação dos
mecanismos e dos procedimentos excludentes que impedem as pessoas pobres,
excluídas e marginalizadas de acesso à justiça. O acesso à justiça é uma questão de
186
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
cidadania e de reconhecimento intersubjetivo. A justiça é direito de todos os
cidadãos. O processo legal é fator de segurança jurídica e garantia de que a justiça
está sendo cumprida em seus procedimentos legais.
A cidadania é o reconhecimento nos direitos civis, políticos e sociais. A
ausência de cidadania impede o acesso à justiça e ao processo legal. A efetivação da
cidadania é forma de reconhecimento intersubjetivo. O Estado Democrático de
Direito tem por dever trabalhar em prol da cidadania de seus pares. Os sujeitos por
sua vez, devem lutar por seus direitos e cumprir seus deveres justos e legais. A
cidadania é a práxis de inclusão social. Constatamos que, os pobres, os indigentes e
os miseráveis da sociedade brasileira não têm os seus direitos individuais
assegurados. Esses sujeitos vivem a experiência do não reconhecimento: maus-
tratos, exclusão de direitos e degradação da honra e da dignidade humana.
A teoria do reconhecimento de Axel Honneth contribui com os indivíduos ou
grupos que, não são reconhecidos em seus direitos, em sua dignidade humana e no
acesso à justiça, a lutarem por reconhecimento, como forma de efetivar, a
autoconfiança, o autorrespeito e a autoestima. O reconhecimento intersubjetivo
implica-se no amor, no direito e na solidariedade. São esferas fundamentais para a
formação da identidade social dos sujeitos não reconhecidos e impedidos à justiça e
o processo legal.
***
187
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Haroldo Lourenço
1. Introdução
O presente artigo busca analisar um pouco da arbitragem, principalmente
após as mudanças trazidas pela Lei nº 13.129/15, que consagrou definitivamente tal
técnica de solução de litígios envolvendo a Fazenda Pública.
Cumpre, de início, esclarecer que não pode se justificar tal adoção com a
falácia de que seria uma medida que contribuiria para um esvaziamento do
Judiciário ou se estaria criando uma fuga mais eficiente, como fizeram o Senado
Federal287 e a Câmara dos Deputados288 nos seus respectivos pareceres, pois o
incentivo da arbitragem envolvendo a Fazenda Pública justifica-se, isso sim, pela
constatação de que em diversos casos ela se apresenta como um mecanismo mais
adequado para dirimir conflitos, muitas vezes extremamente complexos,
decorrentes de contratos com valores extremamente elevados, sobressaltando
inúmeras vantagens, como a maior especialização pela escolha consensual do
árbitro, tempo de duração do procedimento, entre inúmeras outras.
Assim, a arbitragem não é uma via de escape do Judiciário, mas uma solução
adequada, inserida na lógica de um sistema ―multiportas‖ de solução de disputas,
sem que se possa identificar um mecanismo ―preferencial‖ e outros ―alternativos‖,
mas sim em analisar as circunstâncias do caso concreto para escolha do mecanismo
mais ―adequado‖289.
287 Parecer da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, relatado pelo Senador José
Pimentel, datado de 11.12.2013, com adendo da mesma data da lavra do Senador Vital do Rêgo, disponível
em http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=143478&tp=1, consulta em 22.04.2015.
288 Parecer da Comissão Especial designada para análise do projeto, relatado pelo Deputado Edinho Araújo,
290 CÂMARA, Alexandre Freitas. Arbitragem lei nº 9.307/96. Rio de janeiro: Lumen Juris, 2007.
291 CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 15. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
v. 2, p. 174; DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: execução. 2. ed. Salvador: JusPodivm,
2010. v. 5, p. 167.
292 STJ, 3ª T., Resp 1.433.940/MG, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, por unanimidade, julgado em
294 DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil cit., 11. ed., v. 1, p. 83.
295 STJ, CC 111.230-DF, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 8/5/2013, informativo 522.
296 CAPPELLETTI, Mauro; TALLON, Denis. Fundamental guarantees of parties in civil litigation. Milano:
juízo arbitral. Revista do Direito Civil, n. 72. p. 90; CARNELLUTTI, Francesco. Instituiciones del processo
civil. Tradução de Santiago Santís Melendo. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa América, 1989. p. 20.
192
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
Existe um monopólio da jurisdição pelo Estado, mas não do seu exercício pelo
Judiciário, existindo outros setores estatais que a exercem como, por exemplo, na
hipótese de o Senado julgar o Presidente por crimes de responsabilidade (art. 52, I,
da CF).
Atualmente, emerge um terceiro entendimento, mais conciliatório, afirmando
que a arbitragem é um instituto sui generis ou híbrido, pois nasce da vontade das
partes (caráter obrigacional e de direito privado) e, ao mesmo tempo, regula
determinada relação de direito processual (caráter público)299, com o qual
concordamos, onde no momento da instituição há características tipicamente
contratuais e, no segundo momento, o decisório, haveria uma natureza
jurisdicional, em que seriam aplicáveis os princípios que lhe são inerentes300.
299 FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Manual da arbitragem. São Paulo: RT, 1997. p. 92.
300 LEMES, Selma. Arbitragem. Princípios jurídicos fundamentais. Direito brasileiro e comparado. Revista
dos Tribunais, v. 686, p. 73-89, dez. 1992.
301 Sobre a discussão, amplamente, WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Nulidades do processo e da sentença.
4. ed. São Paulo: RT, 1998. p. 63-68; CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo. 2. ed. São Paulo:
Atlas, 2004. p. 387. Entendendo que a não arguição, pelo réu, da existência de compromisso arbitral é causa
de renúncia: CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 17. ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2008. v. 1, p. 290.
193
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
Assim, deve-se considerar que o silêncio do Réu quanto à existência da
convenção de arbitragem deve ser compreendido como aceitação da proposta tácita
feita pelo Autor de um ―distrato‖ tácito da convenção anteriormente celebrada (art.
337 §6º do CPC/15). Essa aceitação também pode revelar-se quando o réu, não
obstante alegue a existência da convenção de arbitragem (art. 337, X, do CPC/15),
apresente uma reconvenção, em que se discutam questões que também deveriam
ser resolvidas por árbitro, pois haveria, aí, um comportamento contraditório,
conduta ilícita à luz da boa-fé objetiva (art. 5º CPC), que deve orientar o
comportamento das partes.
STF, SE 5.206/Espanha (AgRg), rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 12.12.2001. Informativo n. 254.
302
303A alegação de convenção de arbitragem deverá ser examinada à luz do princípio da competência-
competência.
194
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou vista especialmente para
essa cláusula‖, como se observa do art. 4º §2º da LA).
304 STJ, REsp 819.519/ PE, 3ª T., rel. Min. Humberto Gomes de Barros, j. 09.10.2007, DJ 05.11.2007, p. 264,
RDDP v. 58, p. 114.
305 Nesse sentido: NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil comentado. 6. ed.
rev. ampl. e atual. até 28 de março de 2008. São Paulo: RT, 2008. No comentário 7 ao art. 4º da Lei de
Arbitragem, p. 1396, Joel Dias Figueira Júnior e Nilton César Antunes da Costa em: COSTA, Nilton César
Antunes da. A convenção de arbitragem no contrato de adesão. Revista de Arbitragem e Mediação, ano 3, n.
8, p. 131, jan.-mar. 2006.
306 Nesse sentido: ANDRIGHI, Fátima Nancy. Arbitragem nas relações de consumo: uma proposta concreta.
Revista de Arbitragem e Mediação, ano 3, n. 9, p. 13-21, especialmente p. 18, São Paulo: RT, abr.-jun. 2006;
ZULIANI, Evandro. Arbitragem e os órgãos integrantes do sistema nacional de defesa do consumidor.
Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, ano 3, n. 11, p. 7-58, especialmente p. 46, out.-dez. 2006;
AZEVEDO, Antonio Junqueira de. A arbitragem e o direito do consumidor. Revista de Direito do
Consumidor, São Paulo: RT, n. 23-24, p. 33-40, especialmente p. 38, jul.-dez. 1997.
195
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
Enfim, a limitação em relação aos contratos de consumo não permite,
contudo, afastar a possibilidade de realização de compromisso arbitral para dirimir
conflito existente em uma relação de consumo, como já acentuado pelo STJ307.
307 ―[…] O art. 51, VII, do CDC se limita a vedar a adoção prévia e compulsória da arbitragem, no momento da
celebração do contrato, mas não impede que, posteriormente, diante de eventual litígio, havendo consenso
entre as partes (em especial a aquiescência do consumidor), seja instaurado o procedimento arbitral. As
regras dos arts. 51, VIII, do CDC e 34 da Lei nº 9.514/97 não são incompatíveis. Primeiro porque o art. 34
não se refere exclusivamente a financiamentos imobiliários sujeitos ao CDC e segundo porque, havendo
relação de consumo, o dispositivo legal não fixa o momento em que deverá ser definida a efetiva utilização da
arbitragem.‖ (STJ, REsp 1169841/RJ, Rel. Mi-nistra Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe 14/11/2012).
308 Arbitragem e processo. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 39
309 ―Seja sob a ótica do artigo 114, §§ 1º e 2º, da Constituição Federal, seja à luz do artigo 1º da Lei nº
9.307/1996, o instituto da arbitragem não se aplica como forma de solução de conflitos individuais
trabalhistas. Mesmo no tocante às prestações decorrentes do contrato de trabalho passíveis de transação ou
renúncia, a manifestação de vontade do empregado, individualmente considerado, há que ser apreciada com
naturais reservas, e deve necessariamente submeter-se ao crivo da Justiça do Trabalho ou à tutela sindical,
mediante a celebração de válida negociação coletiva. Inteligência dos artigos 7º, XXVI, e 114, caput, I, da
Constituição Federal‖ (E-ED-RR – 25900-67.2008.5.03.0075. Data de Julgamento: 16/04/2015. Rel. Min.
João Oreste Dalazen, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais)
196
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
2.12. Do árbitro e do dever de revelação.
O árbitro deve ser pessoa capaz, alfabetizada e designada pelos conflitantes,
portanto, da confiança das mesmas (art. 13 LA), sendo muito comum se buscar uma
instituição especializada.
No desempenho de suas funções, os árbitros são equiparados a funcionários
públicos para fins penais (art. 17), possuindo status de juiz de direito (art. 18) e as
decisões por eles proferidas não se sujeitarão a recurso ou homologação pelo Poder
Judiciário (art. 18).
Neste sentido, ao ser indicado como árbitro deve o mesmo revelar os fatos
que sejam de seu conhecimento, bem como atentar para aqueles que deveria
conhecer em razão da atividade e vinculação profissional desenvolvidas, a existência
de relação de amizade estreita com as partes, que possa gerar dúvida razoável
quanto a sua independência e imparcialidade, ou seja, o arbitro se sujeita as causas
de impedimento ou suspeição do CPC, denominado aqui de dever de revelação (art.
14 §1º LA)310.
310 Enunciado 489 do FPPC: Observado o dever de revelação, as partes celebrantes de convenção de
arbitragem podem afastar, de comum acordo, de forma expressa e por escrito, hipótese de impedimento ou
suspeição do árbitro.
311 STJ, REsp 1.231.554/RJ, 3ª T., rel. Min. Nancy Andrighi, j. 24.05.2011.
197
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
LA), contudo, nessa hipótese, o Judiciário não irá complementar a decisão ou
substituir o árbitro, mas tão somente determinar que ele analise os demais pedidos
que lhe foram submetidos, novamente exercendo um controle judicial dessa
atividade arbitral.
Como a sentença arbitral condenatória gera um título executivo judicial (art.
515, VII CPC c/c art. 31 LA) é possível se cogitar em um processo de cumprimento
de sentença no judiciário, nos termos do art. 515 §1º do CPC/15, portanto, tal
declaração de nulidade também poderá ser arguida na forma de impugnação, nos
termos do art. 525 do CPC, na forma dos arts. 33 §3º LA e art. 1.061 CPC/15).
312 STJ, 4ª T., REsp 1.331.100-BA, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, Rel. para acórdão Min. Raul Araújo,
julgado em 17/12/2015, DJe 22/2/2016.
313 LOURENÇO, Haroldo. Processo Civil Sistematizado. 4ª ed. Ed. Método, p. 263.
198
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
permite que receba tratamento diferenciado em relação à prescrição para as
demandas submetidas à jurisdição estatal, portanto, pode ocorrer prescrição devido
a não instituição do procedimento arbitral, como ocorreria pela não formulação da
pretensão perante o Judiciário, nos exatos termos do art. 189 do CC/02.
315 TCU, Acórdão n. 2145/2013, Plenário, Relator Ministro Benjamin Zymler, j.: 14.08.2013
316 OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Licitações e contratos administrativos, 4. ed., São Paulo: Método,
2015 – p. 249-250; MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo; SOUTO, Marcos Juruena Villela. Arbitragem em
contratos firmados por empresas estatais. RDA, n. 236, p. 215-261, abr.-jun. 2004; TÁCITO, Caio.
Arbitragem nos litígios administrativos. RDA, n. 210, p. 111-115, out.-dez. 1997.
317 STJ, 2.ª Turma, REsp 612.439/RS, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ 14.09.2006, p. 299 (Informativo
de Jurisprudência do STJ n. 266). Nesse caso, a Corte admitiu a arbitragem em contratos celebrados por
sociedade de economia mista: ―são válidos e eficazes os contratos firmados pelas sociedades de economia
mista exploradoras de atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de
serviços (CF, art. 173, § 1.º) que estipulem cláusula compromissória submetendo à arbitragem eventuais
litígios decorrentes do ajuste‖.
200
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
A utilização da arbitragem envolvendo o Poder Pública reforça a necessidade
de releitura de diversos dogmas, como o princípio da supremacia e da
indisponibilidade do interesse público, a tendência de releitura das cláusulas
exorbitantes, do princípio da legalidade, propiciando solução de litígios por juízos
técnicos, com um espaço reduzido de tempo, prestigiando a eficiência
administrativa e a boa administração.
Há, a rigor, peculiaridades inerentes à jurisdição estatal e não estatal,
principalmente no que se refere a participação do Poder Público, como será melhor
analisado adiante.
Vários institutos, procedimentos e regras do processo judicial não se aplicam
ao procedimento arbitral, como a remessa necessária (art. 496 CPC), os prazos
processuais diferenciados da Fazenda Pública (art. 183 CPC), as isenções de taxas e
emolumentos (art. 91 CPC), as disposições específicas sobre os honorários
sucumbenciais (art. 85 §3º CPC), sem falar na inexistência de vinculação dos
árbitros ao Conselho Nacional de Justiça, entre outros.
Da mesma forma, muitas regras da arbitragem não têm aplicabilidade no
processo judicial, como escolha do julgador (art. 13 §1º LA), existência de prazo
fixado em lei para a prolação da sentença (art. 23 LA), possibilidade de instituição
de um julgamento por equidade em casos que não envolvam a Administração (art.
2º LA) etc.
Além disso, vale lembrar que o árbitro – que somente será considerado
agente público para fins penais (art. 17 da Lei 9.307/96) – não goza das
prerrogativas inerentes aos juízes togados e sua nomeação independe de concurso
público.
318 Veja-se, por exemplo, peremptório julgado do Tribunal de Contas das União proferido em sessão de
05.07.2006, o qual assentou ser ―ilegal, com afronta a princípios de direito público, a previsão, em contrato
administrativo, da adoção de juízo arbitral para a solução de conflitos‖ (Acórdão n. 1099/2006, Plenário,
Relator Ministro Augusto Nardes). Outro julgado da mesma Corte destaca que ―É ilegal a previsão, em
contrato administrativo, da adoção de juízo arbitral para a solução de conflitos‖ (Acórdão n. 537/2006,
Segunda Câmara, Relator Ministro Alencar Rodrigues, j.: 14.03.2006). Esse entendimento demorou a ser
alterado, mas se consolidou, sendo dominante atualmente (v.g., Acórdão n. 2145/2013, Plenário, Relator
Ministro Benjamin Zymler, j.: 14.08.2013).
319 Nesse sentido: arts. 100 e 101 do Código Civil: ―Art. 100. Os bens públicos de uso comum do povo e os de
uso especial são inalienáveis, enquanto conservarem a sua qualificação, na forma que a lei determinar‖ e
―Art. 101. Os bens públicos dominicais podem ser alienados, observadas as exigências da lei‖. No caso de
terras públicas com área superior a 2.500 hectares, não basta a autorização legal; há também a exigência de
201
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
públicos podem celebrar transação321, além de inúmeras outras circunstâncias que
ultimamente cresceram substancialmente322.
Assim, disputas sobre o equilíbrio da equação econômico-financeira, como a
fixação de indenizações por rescisão unilateral dos contratos em geral, a
encampação de uma concessão ou a solução de disputas envolvendo a reversão de
bens ao final da concessão são espaços ―naturais‖ para a utilização da arbitragem,
por outro lado, disputas envolvendo a execução de contratos administrativos, como
serviços públicos objeto de concessão ou que envolvem o exercício de ―autoridade‖
por parte do ente público face ao particular – podem gerar desafios em torno da
definição sobre sua arbitrabilidade323.
autorização do Congresso Nacional (art. 49, XVII, da Constituição Federal), salvo se o objetivo da alienação
gira em torno da reforma agrária (art. 188, §2º, da mesma Carta).
320 Conforme exige o art. 180 do CTN.
321 Por exemplo, art. 1º da Lei n. 9.469/97, com redação dada pela Lei nº 13.140/2015 (―Art. 1º. O Advogado-
Geral da União, diretamente ou mediante delegação, e os dirigentes máximos das empresas públicas federais,
em conjunto com o dirigente estatutário da área afeta ao assunto, poderão autorizar a realização de acordos
ou transações para prevenir ou terminar litígios, inclusive os judiciais.‖); art. 10 da Lei n. 10.259/01 (―Art. 10
(…) Parágrafo único. Os representantes judiciais da União, autarquias, fundações e empresas públicas
federais, bem como os indicados na forma do caput, ficam autorizados a conciliar, transigir ou desistir, nos
processos da competência dos Juizados Especiais Federais‖); e art. 8º da Lei n. 12.153/09 (―Art. 8º. Os
representantes judiciais dos réus presentes à audiência poderão conciliar, transigir ou desistir nos processos
da competência dos Juizados Especiais, nos termos e nas hipóteses previstas na lei do respectivo ente da
Federação‖) e, de resto, os arts. 32 a 40 da Lei nº 13.140/2015.
322 art. 23-A da Lei n. 8.987/95 (relativo aos contratos de concessão em geral); arts. 93, XV e 120, X, da Lei n.
relacionado à arbitragem, desde que a confidencialidade seja comprovada perante o Poder Judiciário,
ressalvada em qualquer caso a divulgação das decisões, preservada a identidade das partes e os fatos da causa
que as identifiquem‖. Enunciado 15 do FPPC: As arbitragens que envolvem a Administração Pública
respeitarão o princípio da publicidade, observadas as exceções legais (vide art. 2º, § 3º, da Lei 9.307/1996,
com a redação da Lei 13.129/2015).
202
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
Por outro lado, na arbitragem que envolva o Poder Público é vedada a
celebração de tal cláusula, por força do princípio da publicidade esculpido no art. 37
da CR/88 c/c art. 2º §3º LA.
325 REsp 904.813/PR, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 20/10/2011, DJe
28/02/2012. Enunciado 571 do FPPC: A previsão no edital de licitação não é pressuposto para que a
Administração Pública e o contratado celebrem convenção arbitral.
326 Enunciado 572 do FPPC: A Administração Pública direta ou indireta pode submeter-se a uma arbitragem
ad hoc ou institucional.
203
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
singularidade e exclusividade na prestação desses serviços, que tampouco se
revestem de notória especialização.
327 Arts. 3º e 4º da Lei 13.303/2016 (Lei das Estatais). Destaque-se que, de forma excepcional, o STF aplica,
por exemplo, o regime do precatório e outras prerrogativas típicas da Fazenda Pública à Empresa de Correios
e Telégrafos – ECT, especialmente em razão das prerrogativas previstas no DL 509/59, o que acarreta uma
espécie de ―autarquização‖ desta empresa pública federal (STF, RE 220.906/DF, Rel. Min. Maurício Corrêa,
DJ 14/11/2002, p. 15).
328 Interessante notar que se o ato praticado pela Sociedade de Economica Mista ou pela Empresa Pùblica foi
um ato típico do regime de direito público, portanto um ato administrativo, as regras inerentes a tal sistema
deverão ser observadas, cabendo, inclusive, mandado de seguranaça na hipótese de sua inobservância,
porém, se for somente um ato da administração, meramente de gestão comercial, o legislador sequer admite
mandado de segurança, como se observa do art. 1º §2º Lei 12.016/09.
329 CUNHA, Leonardo Carneiro da. Opinião 47. A Arbitragem e a Administração Pública. Disponível em
http://www.leonardocarneirodacunha.com.br/opiniao/opiniao-47-a-arbitragem-e-a-administracao-publica-
2/. Acesso em 12.12.16. COUTO, Leonardo Lício. Parecer 58/PGF/LLC/2008. Processo Administrativo
00407.001306/2009-57. Disponível em
http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:Vm3O0xzZ_twJ:www.agu.gov.br/page/download
/index/id/25049633+&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br. Acesso em 09.12.16.
204
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
República‖330, portanto, será necessária dotação orçamentária específica, para não
prejudicar a dotação orçamentária para o pagamento do precatórios, não sendo
novidade que o Poder Público pode realizar pagamentos sem precatórios,
realizando acordos, como na desapropriação, reconhecendo dívidas331.
Ademais, não há que se falar em violação à impessoalidade, eis que a
arbitragem é uma solução prevista em lei, sendo considerada pelos interessados que
participam da licitação, tendo plena ciência de tal possibilidade, prestigiando a
autonomia privada e o autoregramento da vontade, principalmente no momento de
se firmar a convenção de arbitragem, onde será possível se escolher entre a
jurisdição estatal e não estatal.
330 SCHMIDT, Gustavo da Rocha. A arbitragem nos conflitos envolvendo a administração pública: uma
proposta de regulamentação. Dissertação apresentada para obtenção do título de Mestre em Direito da
Regulação pela Fundação Getúlio Vargas – FGV Direito, Rio de Janeiro, 2016.
331 OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. A arbitragem nos contratos da Administração Pública e a Lei
13.129/2015: novos desafios. In: Revista Brasileira de Direito Público n. 51, p.59-79, out./dez., 2015.
332 Enunciado 164 do FPPC: A sentença arbitral contra a Fazenda Pública não está sujeita à remessa
necessária.
333 Enunciado da Súmula 232 STJ: A Fazenda Pública, quando parte no processo, fi ca sujeita à exigência do
4. CONCLUSÃO.
Não obstante ainda restarem algumas indagações sobre como a
Administração Pública poderá lançar mão da arbitragem em seus contratos, pois o
legislador pouco resolveu, tais pontos merecem maiores reflexos e consolidações,
sob pena de se comprometer as regras estruturantes da arbitragem, podendo
ocasionar a sua judicialização.
Outro pilar é a necessidade de maior especialização dos árbitros para
conhecimentos aprofundados do funcionamento do aparato estatal em todas as
suas dimensões, bem como dos operadores do direito em geral, o que pode
estimular a utilização da arbitragem pela Administração Pública, criando uma nova
tendência no meio jurídico.
***
334 ADC 4, Relator: Min. Sydney Sanches, Relator(a) p/ Acórdão: Min. Celso De Mello, Tribunal Pleno,
julgado em 01/10/2008.
335 SICA, Heitor Vitor Mendonça. Arbitragem e Fazenda Pública. Disponível em
http://genjuridico.com.br/2016/03/24/arbitragem-e-fazenda-publica/. Acesso em 09.12.16, p. 7.
206
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Introdução
Após a promulgação da Constituição de 1988, cumpre-se destacar a
importância e a dimensão alçadas pela legitimidade democrática na tomada de
decisão do Estado ao exercer suas funções. De acordo com o escólio de Ronaldo
Brêtas, a legitimidade jurídica evidencia-se pela obediência às normas – regras e
princípios do ordenamento brasileiro –, enquanto a legitimidade política
determina-se pelo assentimento do povo quanto à atuação dos agentes públicos,
mormente os agentes políticos336.
Entretanto, a tomada de decisão jurídico-política que acompanhou o
evolucionismo da ―família do sistema jurídico romano-germânico‖337 qualificava-se
por uma legitimidade bastante assimétrica à buscada na contemporaneidade,
estritamente vinculada à figura da auctoritas338. O imperador romano investia-se
também como pontifex maximus legitimado pelo primado petrino339, cujo marco
histórico determinou-se pelo Édito de Milão (331 d.C), o qual tornou o cristianismo
lícito e inaugurou, durante o período do dominato 340, a era da Igreja Imperial de
Roma. Assim, o cesaropapismo341, expressão cunhada para designar a fusão da
política com a religião, manifestava a supremacia da figura do imperador, misto de
santidade e monarca absoluto.
336 BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Legitimidade dos Atos Jurisdicionais no Estado Democrático de
Direito. Virtuajus, Belo Horizonte, v. 13, n. 1, p. 9-18, 1º semestre 2017, p. 10. Disponível em:
<http://www.periodicos.pucminas.br>. Acesso em: 12 jul. 2017.
337 Entenda-se a Escola de Civil Law.
338 Segundo Cláudio Brandão, ―em Roma, o direito não é uma arte exercida por todos, mas somente por
aqueles que eram reconhecidos por separar o justo do ímpio e o lícito do ilícito‖ (BRANDÃO, Cláudio. Lições
de história do Direito Canônico e história do Direito em perspectiva. Belo Horizonte: D‘Plácido, 2017, p.
39).
339 Quem totius Ecclesiae principem fecit. Segundo Cohen, ―a relação especial de Pedro com Jesus Cristo e
sua posterior liderança universal da Igreja significou que os julgamentos dos sucessores de Pedro, os bispos
de Roma, eram então aplicáveis a todos os cristãos‖ (COHEN, Samuel. Heresy, authority and the bishops of
Rome in the fifth century: Leo I (440-461) and Gelasius (492-496). Toronto: Department of History,
University of Toronto, 2014, p. 27-28, tradução nossa. Disponível em:
<http://www.tspace.library.utoronto.ca>. Acesso em: 12 jul. 2017. [―Peter‘s special relationship with Christ
and his later leadership of the universal church meant that the judgements of Peter‘s successors, the bishops
of Rome, were in turn universally applicable to all Christians‖.]
340 Assente nas diferentes formas de governo em Roma, o período do dominato (285 a 565 d.C) implantou a
monarquia absoluta em Roma com a ascensão de Dioclesiano ao poder. Ver MOREIRA ALVES, José Carlos.
Direito Romano. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 43-56.
341 Ver os ensinamentos de Cláudio Brandão com alicerce em Hubertus Drobner: BRANDÃO, Cláudio. Lições
de história do Direito Canônico e história do Direito em perspectiva. Belo Horizonte: D‘Plácido, 2017, p. 44-
45.
209
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
Essa dogmatização do Direito remonta à escolástica aristotélica 342 e vem
acompanhando a ciência até os tempos atuais, mantendo seus alicerces de
propagação de preceitos incontestáveis e indemarcáveis mesmo sob a principiologia
do Estado Democrático de Direito343. Esse fato impinge ao sistema jurídico, de
forma velada, ideologias344 que reforçam a instrumentalidade do processo e
denotam uma posição hierárquica do juiz e legislador perante o povo 345, bem como
a noção de que o processo funcionaliza-se em prol do Estado no desempenho de
suas funções.
Por esta razão é que a concepção de ―Estado Constitucional‖ tem de
empreender mudança de viés revolucionário que reforce a distinção que há entre
Estado Constitucional e Estado de Direito346.
Segundo Canotilho,
[...] se quisermos um Estado Constitucional assente em fundamentos não
metafísicos, temos que distinguir claramente duas coisas: (1) uma é a da
legitimidade do direito, dos direitos fundamentais e do processo de legislação no
sistema jurídico; (2) outra é a da legitimidade de uma ordem de domínio e da
legitimação do exercício do poder político 347.
342 Aristóteles, em Ética a Nicômaco [1139b18], diz: ―[...] Todos nós julgamos que aquilo de que temos
ciência não pode ser de outro modo. Por outro lado, passa-nos despercebido se as coisas que podem ser de
outro modo são o caso ou não, quando não as estamos considerando. Assim, o objeto de ciência é por
necessidade e, portanto, é eterno, pois todas as coisas que são por necessidade, sem mais, são eternas, e as
coisas eternas não são suscetíveis de geração e corrupção‖ (ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Livro VI.
Tradução de Lucas Angioni. Dissertatio, Revista de Filosofia, v. 34, p. 285-300, 2011, p. 288).
343 Segundo Brêtas, ―[…] já no século XX, como aponta Karl Larenz, a ideia de Estado de Direito foi alçada
SILVA, Ovídio A. Batista da. Processo e ideologia: o paradigma racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2004,
p. 23.
345 Cf. LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. Belo Horizonte: D‘Plácido, 2016, p.
16-17.
346 Canotilho reforça que o ―Estado Constitucional é ‗mais‘ que Estado de Direito. Ele é um Estado de Direito
Democrático‖. Ver CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. 14.
reimp. Coimbra: Edições Almedina, 2003, p. 97-100.
347 CANOTILHO, J.J Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. 14. reimp. Coimbra:
atributos de um substractum da soberania – a decisão. Esta última tem de ser independente e livre, não
admitindo superioridade. Ver BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria geral da soberania. In: HORTA,
José Luiz Borges (Org.). Direito e Política: ensaios selecionados. Florianópolis: Conpedi, 2015, p. 83. Para
Canotilho, a legitimidade e a legitimação fundamentam a soberania, uma vez que justificam a titularidade e
exercício do poder (CANOTILHO, J.J Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. 14.
reimp. Coimbra: Edições Almedina, 2003, p. 112).
210
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
as constituições transatas haviam representado menos do que uma norma para o
povo brasileiro349.
A cogência das disposições constitucionais, construída pelas teorias da
Constituição dirigente de Canotilho,350 a qual se fundamentou na força normativa
da Constituição de Hesse351, foi um primeiro passo para o estabelecimento, no
cenário nacional, de uma ―utopia constitucionalista‖352.
A ruptura com a ideologia ditatorial inaugurou um sentimento popular que
buscou ressignificar a Constituição e divulgar a utopia 353 da necessidade de se
construir um ―patriotismo constitucional‖354.
É nessa conjuntura que exsurge a eminência do processo constitucional, sob
pena de os direitos fundamentais permanecerem ―autoconceptivos de si
mesmos‖355, isto é, mantiverem-se presentes apenas no texto sem concretude
prática. E essa concepção programática ampla de Constituição já fora infirmada
pelo denominado ―constitucionalismo do futuro‖356, o qual, sem que se adentre nas
concepções filosóficas acerca do que seria a verdade, prescreve que a Constituição
deve comprometer-se com ela – a verdade –, ou seja, deve-se apor no texto
fundamental apenas os programas que, efetivamente, forem viáveis de ser
cumpridos. Este desestímulo a ficções textuais robustece, em igual modo, o
processo constitucional, alevantando os procedimentos de resistência postos à
disposição do povo para contenção de quaisquer abusos conflitantes com a garantia
de fruição dos direitos fundamentais357.
À vista disso, este texto propõe-se ao estudo do devido processo
constitucional no sistema jurídico-normativo do Estado Democrático de Direito,
com objetivo de fomentar reflexões acerca da legitimidade dos atos legislativos e
jurisdicionais na democracia, desvelando concepções dogmático-analíticas
349 O autor atribui a ―doutrina da efetividade‖ a Luís Roberto Barroso e a Clèmerson Merlin Clève, citados por
GODOY, Miguel Gualano de. Devolver a Constituição ao povo: crítica à supremacia judicial e diálogos
interinstitucionais. 2015. 266 f. Tese (Doutorado Direito do Estado) – Faculdade de Direito, Universidade
Federal do Paraná, Curitiba, 2015, p. 30-31. Disponível em: <http://www.acervodigital.ufpr.br>.
350 CANOTILHO, J.J. Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. 2. ed. Coimbra: Coimbra
Editora, 2001.
351 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1991.
352 Expressão cunhada por BINENBOJM, Gustavo. A nova jurisdição constitucional brasileira: legitimidade
democrática e instrumentos de realização. 4. ed. rev. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 1.
353 A utopia liga-se ao presente e ao futuro, procurando introduzir na realidade algo que seria desejável,
porém inexistente. Cf. SILVA, Ovídio A. Batista da. Processo e ideologia: o paradigma racionalista. Rio de
Janeiro: Forense, 2004, p. 23.
354 A expressão é de Jürgen Habermas, Cf. ABBOUD, Georges. Processo Constitucional brasileiro. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2016, p. 49. Ronaldo Brêtas denomina o mesmo fenômeno de ―um ardente caso de
amor com a Constituição‖ (BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Processo Constitucional e Estado
Democrático de Direito. 3. ed. rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2015, p. 49).
355 Expressão de LEAL, Rosemiro Pereira. Direitos fundamentais do processo na desnaturalização dos
Eduardo Garcia de; ARÉVALO, Manuel Clavero (Coord.). El Derecho Público de Finales de Siglo: una
perpectiva iberoamericana. Madri: Fundación BBV, 1997. p. 107-116.
357 Cf. BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Processo constitucional e Estado Democrático de Direito. 3. ed.
358 O modelo constitucional de processo é concepção de Andolina e Vignera. Ver ANDOLINA, Ítalo. O papel
do processo na atuação do ordenamento constitucional e transnacional. Revista de Processo, São Paulo, v.
87, p. 63-69, jul./set. 1997.
359 Baracho fundamenta-se em Bertrand de Jouvenel e Montesquieu. Ver BARACHO, José Alfredo de
Estado contemporâneo passou a ser a capacidade de realizar (…) certos objetivos predeterminados‖
(COMPARATO, Fábio Konder. Juízo de constitucionalidade das políticas públicas. In: MELLO, Celso
Antônio Bandeira de (Org.). Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba. São Paulo: Malheiros, 1997. v. 2, p.
350).
361 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito Processual Constitucional. Belo Horizonte:
363 Ver art. 19 (3) da Lei Fundamental de Bonn: ALEMANHA. Lei Fundamental de Bonn. Disponível em:
<https://www.btg-bestellservice.de>. Acesso em: 12 jul. 2017.
364 ―Por isso, existem por princípio objec oes contra a extensao da capacidade para ser titular de direitos
daqueles nao sao em princípio aplicáveis às pessoas jurídicas de direito público quando estas estiverem
realizando tarefas públicas, deve enta o valer algo diferente quando, excepcionalmente, a titular do direito em
questao tiver relacao imediata com a área da vida protegida pelos direitos fundamentais. Por esta raza o, o
Tribunal Constitucional Federal reconheceu a capacidade de as universidades e faculdades serem titular de
direitos fundamentais, no que tange ao direito fundamental do Art. 5 III 1 GG, e isso até mesmo
independentemente de sua capacidade jurídica (cf. BVerfGE 15, 256 [262])‖. (SCHWABE, Jürgen.
Organização e Introdução de Leonardo Martins. Cinquenta anos de jurisprudência do Tribunal
Constitucional Federal Alemão. Montevideo: Konrad-Adenauer-Stiftung E.V, 2005, p. 172).
366 Expressão utilizada na obra de Gilmar Mendes, Paulo Gustavo Gonet Branco e Inocêncio Mártires Coelho,
citada no acórdão que decidiu a Ação Cautelar (AC) n o 2.895/PE. A nosso ver, a expressão é equivocada, uma
vez que se trata de garantias fundamentais ao devido processo legal e à ampla defesa, e não a meros ―direitos
procedimentais‖ (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Cautelar (AC) n o 2.895/PE. Min. Rel. Celso de
Mello. – Tribunal Pleno. Brasília, 22 de junho de 2011. Diário de Justiça, Brasília, 30 out. 2014. Disponível
em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 12 jul. 2017).
367 Ver BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário (RE) 140.195/SC. Min. Rel. Ilmar
Galvão. - Primeira Turma. Brasília, 7 de março de 1996. Diário de Justiça, Brasília, 27 set. 1996. Disponível
em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 12 jul. 2017; BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso
Extraordinário (RE) 191.480/SC. Min. Rel. Marco Aurélio. - Segunda Turma. Brasília, 7 de março de 1996.
Diário de Justiça, Brasília, 26 abr. 1996. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 12 jul. 2017;
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário (RE) 199.800/SP. Min. Rel. Carlos Velloso. –
Tribunal Pleno. Brasília, 4 de junho de 1997. Diário de Justiça, Brasília, 11 jun. 1997. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 12 jul. 2017; BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Cautelar (AC)
2.032/QO-SP. Min. Rel. Celso de Mello. - Tribunal Pleno. Brasília, 15 de maio de 2008. Diário de Justiça,
Brasília, 20 mar. 2009. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 12 jul. 2017.
213
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
naturais que o ―presentam‖368, possui a titularidade de direitos e garantias
fundamentais para contenção do abuso de poder a ele próprio outorgado no
cumprimento de suas funções constitucionais.
O controle de constitucionalidade brasileiro, portanto, entende que os
direitos fundamentais atrelam-se, axiologicamente, tanto à dignidade da pessoa
humana – compreensão da jurisprudência alemã – quanto à contenção do poder,
podendo o Estado invocar o processo constitucional em prol de si, em decorrência
de atos abusivos perpetrados por seus próprios plexos de competência.
Essa intelecção acerca da limitação do poder remete à compreensão de que a
legitimidade democrática – ou política – deve submeter-se à ordem jurídica, cujo
cerne é a garantia dos direitos fundamentais369, o que transforma a Constituição em
um estatuto político-jurídico do povo. E como o povo é a fonte do poder
democrático, conferindo legitimidade jurídica370 à funcionalização do poder pelo
Estado, é precípua a compreensão, segundo o escólio de Ronaldo Brêtas, de que o
povo é integrado por governantes e governados 371, isto é, tanto por aqueles que
formalmente ―presentam‖ o Estado como por aqueles que não detêm qualquer
vínculo especial com este.
A concepção de povo é crucial para se delimitar a funcionalização do poder, e
tomando-se como fundamento a doutrina de Müller, essa categoria político-jurídica
pode conformar diferentes idealizações, quais sejam: povo como povo-ativo, povo
como instância global de atribuição de legitimidade, povo como ícone e povo como
destinatário das prestações civilizatórias do Estado 372.
As categorizações de povo como instância global de atribuição de legitimidade
e como destinatário das prestações civilizatórias do Estado são as mais inclusivas,
haja vista que o qualificam como alicerce de legitimação política, melhor dizendo,
ao eleger seus representantes, o povo estabelece sua estrita vinculação com o
exercício das funções de Estado, do que deriva sua sujeição ao ordenamento
jurídico, pois é ele genuína expressão da soberania popular.
Da mesma forma, o povo como destinatário das prestações civilizatórias do
Estado possui um viés integralizador ao concebê-lo como corpo total de pessoas
atingidas pelo ordenamento jurídico e pelas decisões tomadas a partir deste. Esta
categorização remonta à qualidade da decisão no Estado Democrático de Direito, a
qual deve revestir-se dos princípios da democracia e do princípio do Estado de
Direito.
368 Ver a Teoria do Órgão ou Teoria da Imputação Volitiva de Otto von Gierke sobre a manifestação da
vontade do Estado. MAIA, Paulo Sávio Peixoto. Teoria do órgão e jurisdição administrativa no contexto
constitucional alemão do século XIX. Revista Controle, v. 7, n. 1, p. 383-396, 2009.
369 Cf. DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos Direitos Fundamentais. 2. ed. rev., atual.
ícone seria uma idealização figurativa do povo como bloco uno e indivisível, desconsiderando-se suas
múltiplas tensões internas; cf. MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo?: a questão fundamental da democracia.
Introdução de Ralph Christensen; tradução Peter Naumann; revisão da tradução Paulo Bonavides. 4. ed. rev.
e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p-47-56.
214
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
Revela-se, assim, que o vínculo unificador do povo, ao qual se reportou
anteriormente, é a soberania popular, cuja substância precípua é a decisão de viés
integrador e incorporadora de uma identidade de sentido373. Por esta razão é que a
tomada de decisão legislativa, executiva e jurisdicional deve ser respaldada pelo
pensamento do povo, já que sua funcionalização é fruto justamente da necessidade
de sua racionalização e da imperatividade de se fazer representado
democraticamente pelo ente ficcional do Estado na conjuntura complexa das
sociedades atuais, dotada de múltiplas tensões.
Esta representação democrática, a qual se submete à garantia dos direitos
fundamentais e, ao mesmo tempo, legitima a submissão do povo ao ordenamento
jurídico, tem encontrado sua efetividade pelo exercício, principalmente, do direito
de petição374, tendo-se em vista que o voto constitui-se apenas o impulso inicial
desse ciclo democrático375.
Salienta-se que o direito de petição, segundo o constitucionalismo alemão, é
reconhecido como garantia de natureza processual que se equipara aos direitos
fundamentais – grundrechtsgleiche Recht 376 – expressos na atual Constituição da
Alemanha unificada377.
Ademais, o direito de petição, juntamente com o voto e o direito de reunião,
estabelecem o bloco preambular de direitos do povo com vista à correção das
atuações estatais em dissonância com o ciclo democrático 378.
E é sobretudo pelo direito de petição, pela provocação das funções de Estado
pelo povo, que o princípio da legalidade do Estado Democrático de Direito tem sido
continuamente interpretado não mais como obrigação de respeito a preceitos 379, e
sim, como obrigação de respeito a princípios que efetivem os direitos fundamentais,
o que impõe às funções jurisdicional, legislativa e executiva a ampla oportunização
de concretude do quadrinômio estrutural do contraditório380 na dinâmica do
procedimento para a tomada de decisão normativa do Estado.
373 Baracho desenvolve esse pensamento com base em Carl Schmitt e Hobbes. Cf. BARACHO, José Alfredo de
Oliveira. Teoria geral da soberania. In: HORTA, José Luiz Borges (Org.). Direito e Política: ensaios
selecionados. Florianópolis: Conpedi, 2015. p. 72-208, p. 83.
374 Cf. art. 5º, XXXIV, a da Constituição de 1988.
375 Cf. BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito. 3. ed.
colonos americanos contra o Stamp Act de 1765, emanado do governo britânico. Cf. GODOY, Miguel Gualano
de. Devolver a Constituição ao povo: crítica à supremacia judicial e diálogos interinstitucionais. 2015. 266 f.
Tese (Doutorado Direito do Estado) – Faculdade de Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2015,
p. 55. Disponível em: <http://www.acervodigital.ufpr.br>. Acesso em: 12 jul. 2017. Na Constituição de
Weimar de 1919, os arts. 22, 123, 126 tratam, respectivamente, do direito ao voto, direito de reunião e direito
de petição. Cf. ALEMANHA. Constituição de Weimar de 1919. Disponível em:
<http://www.verfassungen.de>. Acesso em: 12 jul. 2017.
379 Cf. Aragão, com fundamento em Lucio Iannotta. ARAGÃO, Alexandre Santos de. O Princípio da
Eficiência. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, Salvador, Instituto de Direito Público
da Bahia, n. 4, nov./dez 2005/jan. 2006, p. 1-17. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com>. Acesso
em: 12 jul. 2017.
380 Cf. Brêtas, que expressa uma noção completa do contraditório, o qual engloba a ―informação-reação-
remete-se ao exercício da função legislativa pelo Estado. Cf. BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Processo
Constitucional e Estado Democrático de Direito. 3. ed. rev. atual. E ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2015, p.
17-26.
383 MÜLLER, Friedrich. Métodos de trabalho do Direito Constitucional. 3. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro:
386 LEAL, Rosemiro Pereira. O due processo e o devir processual democrático. Revista da Faculdade Mineira
de Direito, v. 13, n. 26, jul/dez. 2010, p. 113. Disponível em: <http://www.periodicos.pucminas.br>. Acesso
em: 12 jul. 2017.
387 Entenda-se a participação do povo por meios telemáticos.
388 Cf. GODOY, Miguel Gualano de. Devolver a Constituição ao povo: crítica à supremacia judicial e diálogos
interinstitucionais. 2015. 266 f. Tese (Doutorado Direito do Estado) – Faculdade de Direito, Universidade
Federal do Paraná, Curitiba, 2015, p. 228-229. Disponível em: <http://www.acervodigital.ufpr.br>. Acesso
em: 12 jul. 2017.
389 BRASIL. Congresso Nacional. Senado Federal. Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil de 2009.
Comissão de Juristas instituída pelo Ato do Presidente do Senado Federal nº 379, de 2009, destinada a
elaborar Anteprojeto de Novo Código de Processo Civil. Disponível em: <http://www.senado.gov.br>. Acesso
em: 12 jul. 2017.
390 Cf. MADEIRA, Dhenis Cruz. Um breve histórico da Legislação Processual Civil Brasileira: das ordenações
do Reino ao Novo CPC de 2015. In: SOARES, Carlos Henrique; ÁVILA, Luiz Augusto Lima de (Org.).
Reflexões sobre teoria e técnica procedimental civil: a convolutosa sistemática ametódica do Direito
Processual Civil. Belo Horizonte: FUMARC, 2015. p. 22-25.
391 Exemplificativamente, conferir a participação de Ronaldo Brêtas, Professor representando a Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, na audiência pública realizada no Senado federal, sessão de
01/12/2010: BRASIL. Senado Federal. Audiência pública, sessão de 01 de dezembro de 2010. Diário do
Senado Federal, Brasília, p. 55085-55086, 2 dez. 2010. Disponível em: <http://www.senado.gov.br>. Acesso
em: 12 jul. 2017.
392 Cf. SOUZA, Carlos Affonso; LEMOS, Ronaldo. Marco civil da Internet: construção e aplicação. Juiz de
dos princípios jurídicos. 11. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2010, p. 30-31.
396 Cf. nota 47 deste trabalho.
397 Raymundo Faoro (1986), citado por Arcanjo dos Santos, enfatiza que o Estado opera em duas categorias
de poder: pela sociedade política e pela sociedade civil, as quais inutilizam o apelo à repressão popular desse
poder. ARCANJO DOS SANTOS, Luiz Sérgio. Processo e Poder Constituinte Originário: a construção do
Direito na processualidade jurídico-democrática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 36.
218
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
4. A Tomada de Decisão Normativa pela Função Jurisdicional Brasileira
A doutrina da efetividade398, associada à ineficiência e fraturas do ―devido‖
processo legislativo e administrativo no Brasil – os quais, apesar da difusão
tecnológica e dos esforços da ciência jurídica em propagar a importância da
processualidade democrática, apresentam distorções e vícios gravíssimos –, têm
concentrado no Judiciário a função de cumprimento da Constituição e de
efetividade dos direitos fundamentais.
A especialidade do procedimento constitucional de investidura dos juízes e
ministros399, apartado do sufrágio universal, alicerça a intelecção de que aos juízos,
especialmente ao constitucional (STF), cabe a função contramajoritária com o
objetivo de correção e consequente estruturação protetiva dos direitos individuais e
coletivos colocados à margem pelas demais funções estatais.
Essa função de fortalecimento da Constituição já fora detectada por
Tocqueville, quando estudava a função jurisdicional nos EUA no século XIX, ao
dizer:
[...] os norte-americanos reconheceram o direito dos juízes de ―encontrar‖ suas
decisões preferencialmente na constituição do que nas leis. Em outras palavras,
eles deram-lhes liberdade de não aplicar as leis caso essas aparentassem a eles
inconstitucionais400.
de 1997, tradução nossa, [s.p]. Disponível em: <http://www.gutenberg.org>. Acesso em: 12 jul. 2017. [...]
―Americans have acknowledged the right of the judges to found their decisions on the constitution rather
than on the laws. In other words, they have left them at liberty not to apply such laws as may appear to them
to be unconstitutional‖.
401 MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo?: A questão fundamental da democracia. Introdução de Ralph
Christensen; tradução Peter Naumann; revisão da tradução Paulo Bonavides. 4. ed. rev. e atual. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2009, p. 47-56.
402 Concepção de democracia contemporânea; cf. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução de
Alfredo Bosi. 6. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012, p. 277.
403 Destaca-se que o direito de ação é espécie do direito constitucional de petição. Cf. art. 34, alínea a e 35 da
Constituição de 1988.
219
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
políticas de eventuais maiorias‖, e sua razão primeira de existir seria a de ―assegurar
proteção a direitos fundamentais contra uma agressão praticada pela maioria‖ 404.
A jurisprudência brasileira tem construído os alicerces da fiscalidade vertical
– propulsionada pelo direito constitucional de petição – de proteção à dignidade da
pessoa humana com base na doutrina alemã, especialmente por meio da fórmula de
Dürig405, que analisa a lesão aos direitos fundamentais a partir da detecção da
reificação das partes no processo, ou seja, por indícios ou provas de degradação das
pessoas, de sua humilhação ou transformação em objeto no âmbito dos processos
estatais406.
Dessa forma, reconhece-se que o processo constitucional é aquele que
compreende os direitos fundamentais como elementos integrantes da identidade e
continuidade da Constituição407, encontrando-se aí os traços comuns dos princípios
do Estado Democrático e do Estado de Direito. Os direitos fundamentais, segundo
Ronaldo Brêtas, são fim e conteúdo do Estado de Direito, tornando-o democrático
por meio de sua processualização408.
Por conseguinte, o exercício da fiscalidade, segundo a matriz disciplinar do
Estado Democrático de Direito, só se legitima por meio do processo constitucional,
o qual está intrinsecamente vinculado não somente aos procedimentos
constitucionais409 próprios para a provocação da jurisdição na democracia
brasileira, mas, precipuamente, à observância do devido processo constitucional
aglutinante de toda a estrutura técnico-normativa para a efetivação dos direitos
fundamentais. Esse reconhecimento enaltece o âmbito de proteção dos direitos de
defesa e de resistência, haja vista que estes são requisitos primaciais para uma
tutela jurisdicional legítima, melhor dizendo, há que se empreender esforço
continuado para a identificação lógico-normativa do âmbito protetivo desses
direitos pela hermenêutica constitucional.
Na esteira de Gilmar Mendes,
[...] no âmbito das garantias do processo é que o devido processo legal assume uma
amplitude inigualável e um significado ímpar como postulado que traduz uma série
de garantias hoje devidamente especificadas e especializadas nas várias ordens
jurídicas410.
986/BO. Min. Rel. Eros Grau. - Tribunal Pleno. Brasília, 15 de agosto de 2007. Diário de Justiça, 5 out. 2007.
Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 12 jul. 2017.
407 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Extradição: Ext no 986/BO. Min. Rel. Eros Grau. - Tribunal Pleno.
Brasília, 15 de agosto de 2007. Diário de Justiça, 5 out. 2007, p. 43. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>.
Acesso em: 12 jul. 2017.
408 BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Processo constitucional e Estado Democrático de Direito. 3. ed. rev.
Data, Mandado de Segurança, Mandado de Injunção, Ação Popular, Ação Civil Pública, Controle de
Constitucionalidade concentrado e difuso. A respeito, consultar: art. 5º, incisos LXVIII, LXIX, LXX, LXXI,
LXXII, LXXIII; art. 129, III, art. 103, art. 97 da Constituição de 1988 .
410 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito
411 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito
constitucional. 4. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 385.
412 MARTINS, Leonardo. Direito Processual constitucional alemão. São Paulo: Atlas, 2011, p. 77-78.
413 Cf. LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. Belo
Segunda Turma. Brasília, 11 de outubro de 2005. Diário de Justiça, Brasília, 27 out. 2006, p. 593-594..
Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 12 jul. 2017.
416 Cf. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário (RE) n o 201.819. Min. Rel. Ellen Gracie. -
Segunda Turma. Brasília, 11 de outubro de 2005. Diário de Justiça, Brasília, 27 out. 2006. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 12 jul. 2017.
221
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
Essa ampliação do âmbito protetivo do direito de defesa e resistência com a
eficácia horizontal imediata dos direitos fundamentais robustece o processo
constitucional e a Constituição brasileira, a qual nunca foi adequadamente
valorizada na historiografia nacional, seja por representar utopias próprias de uma
―carta de intenções‖ ou por sujeitar-se a ideologias ditatoriais de um Estado
eminentemente policial417.
O fenômeno da ―juristocracia‖ ou ―supremocracia‖418, isto é, de hipertrofia da
função jurisdicional por sua atuação expansiva e de viés contramajoritário, pode ser
ponderado sob duas questões principais. A primeira delas seria justamente atinente
ao vínculo frágil que há entre as funções estatais, sem que se lhes implemente maior
diálogo para a consolidação legítima do ordenamento jurídico.
Adicionalmente, o aliciamento do propulsor primeiro do ciclo democrático –
o voto – pela sociedade política e sociedade civil dirigente419 e a instrumentalização
técnica do abuso de poder pelas funções executiva e legislativa acabam por
transformar o Judiciário no último bastião para se opor às disfunções da
democracia brasileira.
Por sua vez, a segunda questão, corolário da juristocracia, seria referente ao
envaidecimento dos agentes públicos que desempenham a função jurisdicional pela
conjuntura inescapável do povo de fazer valer seus direitos, o que favorece o
solipsismo e a investidura dos juízes e ministros em ideologias autoritárias e
prejudicias à efetividade do contraditório420.
Esse assombroso panorama de aparelhamento estatal, bastante palpável na
realidade brasileira, obscurece a era democrática e divulga a eminência da
legitimidade dos atos legislativos e jurisdicionais, cuja única salvaguarda é o
processo constitucional, assegurando a participação política do povo.
A genuína concretização do princípio da democracia, desamarrado dos ardis
de dominação, é o maior desafio do povo brasileiro, e só efetivar-se-á pela
reconquista da Constituição e saneamento continuado das arbitrariedades e
corrompimentos estatais.
5. Considerações Finais
De todo o exposto, conclui-se que a era democrática contemporânea
ressignificou a Constituição por meio da divulgação de teorias que a alçaram
primeiramente, ao status de norma, realçando sua importância ao povo brasileiro.
Oscar Vilhena Vieira, ambos citados por GODOY, Miguel Gualano de. Devolver a Constituição ao povo:
crítica à supremacia judicial e diálogos interinstitucionais. 2015. 266 f. Tese (Doutorado Direito do Estado) –
Faculdade de Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2015, p. 43-44. Disponível em:
<http://www.acervodigital.ufpr.br>. Acesso em: 12 jul. 2017.
419 Cf. nota 64 deste trabalho.
420 Ver a estruturação da comparticipação por NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional
***
223
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Ludmila Stigert
1 Introdução
A Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva é uma unidade de
ensino comprometida com a ética, com o respeito e com a qualidade do
aprendizado.
Nesse condão, associa em sua estruturação ensino, pesquisa e extensão de
modo a tornar o aprendizado uma forma completa de formação do aluno em um
profissional do Direito habilitado a exercer sua profissão de uma maneira mais
humana e responsável.
Para melhor adequar sua atuação aos ditames de uma Justiça Social bem
como aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU 421, a Escola de Direito
do Centro Universitário Newton Paiva alterou a sua matriz curricular em 2013 e
comprometeu-se formalmente com o desenvolvimento e com a disseminação da
Mediação e da Conciliação.
Em outubro de 2013 a coordenação da Escola de Direito Centro Universitário
Newton Paiva realizou um workshop sobre reforma curricular a respeito do perfil
do egresso, ou seja, qual perfil profissional do aluno a Newton gostaria de formar,
que tipo de competências e habilidades esse aluno ao final do curso teria que
demonstrar para que atingisse o perfil profissional desejado alinhando à tendência
do mercado jurídico com relação à mediação e à conciliação, na esteira da
Resolução 125 do Conselho Nacional de Justiça bem como do novo Código de
processo Civil, a coordenação da Escola de Direito percebeu que, dentro do perfil
profissional do aluno, as habilidades para conciliação e mediação deveriam ser
tratadas de formas mais abrangentes do que já se abordavam.
Antes, estes meios autocompositivos eram observados enquanto técnicas, ou
seja, o aluno conhecia as mesmas e as aplicava em alguns casos, da maneira que lhe
fosse satisfatória. Porém, percebeu-se que tal dinâmica de se tratar e abordar a
conciliação e a mediação não se mostrava adequada e influenciaria a formação do
perfil profissional do aluno, ou seja, de um jurista, de um advogado, de um
promotor, de um defensor público que viesse realmente a vislumbrar estas práticas
como cotidianas a serem incluídas em suas atividades profissionais e não apenas
como meras possibilidades alternativas
421Os objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU são: Erradicação da pobreza; fome zero e agronomia
sustentável; saúde e bem estar; educação de qualidade; igualdade de gênero; agua potável e saneamento;
energia limpa e acessível; trabalho decente e crescimento econômico; indústria, inovação infraestrutura;
redução das desigualdades; cidades e comunidades sustentáveis; consumo e produção sustentável; ação
contra a mudança global do clima; vida na água; vida terrestre; paz, justiça e instituições eficazes e parcerias
meios de implementação.
228
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
Para tanto, percebeu-se a necessidade de se atrelar tais práticas ao Centro de
Exercício Jurídico (CEJU), bem como de se inserir a conciliação e a mediação em
todas as disciplinas do Curso de Direito, ou seja, do início ao fim do curso, além de
incluir na grade uma disciplina específica para Mediação de Conflitos.
No que diz respeito ao Centro de Exercício Jurídico da Escola de Direito do
Centro Universitário Newton Paiva (CEJU) destaca-se que o mesmo dispõe de uma
moderna arquitetura, com total acessibilidade em todos os andares do prédio, para
garantir aos alunos um efetivo aprendizado através dos laboratórios de prática e de
mediação, que possui um ambiente propício para o acolhimento das partes, sendo
possível que os demais alunos visualizem em tempo real as mediações e conciliações
realizadas. Importante ressaltar que somente é possível a observação de demais
pessoas com autorização das partes, mantendo a privacidade do ambiente e a
garantia de que as informações concedidas estarão sob total sigilo.
O Laboratório de Mediação é um ambiente de aprendizagem que favorece ao
emprego de todas as técnicas de medição na prática, de modo a que os alunos
tenham um efetivo contato com os meios autocompositivos de solução pacífica de
conflitos, acompanhando as novas tendências do judiciário e do próprio senso de
justiça.
Todos os atendimentos feitos no CEJU passam por uma triagem, na qual os
próprios estagiários, diante da demanda apresentada, identificam se cabe mediação
ou conciliação e, logo após, a demanda é encaminhada para esses setores ou, se for
o caso, para o processual.
Ainda dentro desse contexto de mudança, todos os planos de Ensino, bem
como o Projeto Pedagógico do Curso foram readequados ao contexto da Mediação
ne da Conciliação. Ou seja, a Mediação de Conflitos tornou-se um recorte
transversal em todas as disciplinas do curso de Direito da Newton.
Destaca-se que a Mediação é um estilo de ensino adotado pela Newton e que a
sua prática extrapola as aulas teóricas ministradas e as mediações realizadas in loco
em seu Laboratório. Por isso, o presente artigo elucidará os principais aspectos da
Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva no processo de formação de
um novo profissional do Direito: um bacharel mais humanizado e comprometido
com a justiça social.
4.2 Resultados
Para melhor elucidar a atuação do Núcleo de Mediação e Conciliação do Ceju,
serão apresentados alguns dados estatísticos importantes para demonstrar a
efetividade alcançada para além dos números de acordos realizados.
Ao longo do ano de 2016 o Centro de Exercício Jurídico da Newton recebeu
diversos casos sendo que destes, em 230 atendimentos, foram observadas as
relações intersubjetivas futuras que permitiram, inicialmente, o encaminhamento
ao setor de mediação (gráfico 1).
A metódica da mediação foi apresentada para todos os casos ao longo dos
meses de março a novembro de 2016, e após, o aceite dos indivíduos envolvidos,
permitiu-se que 121 (nova sessão – gráfico 2) casos chegassem a realizar a primeira
sessão de mediação. Essas sessões tiveram o seu prosseguimento (reagendadas –
gráfico 2) em um total de 180 sessões. Portanto, no ano de 2016 foram realizadas
301 (gráfico 2) sessões de mediação nas quais foram tratadas as seguintes
demandas, com destaque em número expressivo para aquelas relacionadas ao
âmbito das relações familiares: divórcio; guarda; convivência; alimentos; bens;
indenização por dano moral e por dano material; conflitos entre vizinhos e de
locação de imóveis.
Ao longo do trabalho, realizado através das sessões de mediação, foi possível
a realização de 52 acordos que foram encaminhados ao TJMG para devida
homologação conforme previsto no artigo 3° parágrafo 2° da Lei de Mediação que
menciona a possibilidade de serem tratados na mediação direitos indisponíveis que
admitem transação, desde que caso as partes cheguem a um acordo, o mesmo seja
levado à homologação do magistrado após oitiva do Ministério Público.
Desses 230 casos encaminhados a mediação 91 (gráfico 1) foram
encaminhados ao setor processual do Ceju, pela ausência de consenso, nos casos em
que a mediação foi iniciada ou simplesmente pela não aderência a pratica da
mediação, lembrando que um dos princípios da mediação expresso tanto em lei
própria quanto no CPC/15 é o da voluntariedade, ou seja, a participação e a
continuidade ao longo das sessões de mediação não é obrigatória.
Ainda vale mencionar que, mesmo não sendo possível a realização de um
acordo nesses casos os indivíduos envolvidos tiveram consciência de que seus
conflitos podem ser solucionados através de uma via de cooperação
autocompositiva, que os mesmos são os autores das decisões que serão mutuamente
satisfatórias e autônomas do Estado-Juiz.
232
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
O acordo não é o principal objetivo a ser alcançado pela dinâmica da
mediação; ele é sim uma consequência e a formalização das soluções alcançadas e
construídas pelos envolvidos com o auxílio do mediador. Pode-se aduzir que os
principais objetivos são: a emancipação do sujeito constitucional; a conscientização
e a responsabilização das pessoas pelos seus atos; o ensino de uma nova gestão de
conflitos; a prevenção de novos conflitos; a inclusão social (conscientização de
direitos e acesso à justiça); a paz social; a difusão de uma nova maneira de se
compreender o Direito, os conflitos e a justiça dentro dos liames institucionais.
Nesse sentido o Ceju, através de seu Núcleo de Conciliação e Mediação,
contribui para implementação da democracia procedimental tão cara aos ditames
de um Estado Constitucional
Gráfico 1: Mediação Ceju/Newton – 2016. Em 2016 foram encaminhados ao núcleo de Mediação 230
casos dos quais 121 aceitaram participar das sessões de mediação culminando em 52 acordos assinados. 91
casos foram reencaminhados para o núcleo processual do Ceju.
Gráfico 2: Sessões de Mediação Ceju/Newton – 2016. Ao longo do ano de 2016 foram realizadas 301
sessões de mediação sendo que dessas 121 referem aos números de casos que foram atendidos e 180 refere-se
a continuação das sessões desses casos até sua conclusão.
5 Conclusão
Depois de narrar a história da mediação na Escola de Direito do Centro
Universitário Newton Paiva pode-se elucidar que a mesma ainda se encontra
inacabada. A mediação não se estrutura do dia para a noite. Ela precisa ser
exercitada em todas as searas institucionais para começar a fluir naturalmente e
atingir seus objetivos.
Este trabalho não se mostra fácil nem disperso de empecilhos. Pelo contrário,
fazer com que a cultura da autocomposição, da colaboração e da paz se dissemine
nos corredores de uma instituição de ensino é um grande desfio.
Nas entrelinhas desse texto ficou claro que a Newton ousou e introjetou a
mediação e a conciliação no curso de Direito de maneira teórica e prática. A Teoria
se apresenta em todas as disciplinas do curso e a prática se aplica em seu Centro de
Exercício Jurídico (Ceju).
Cabe aqui ressaltar o quanto o Ceju está atento às mudanças sociais e
acadêmicas do âmbito do Direito que são voltadas à sociedade e ao indivíduo. Não é
somente pela teoria que uma comunidade igualitária, respeitosa, fraterna e ordeira
é construída, mas sim com um trabalho prático e árduo como o desenvolvido neste
centro jurídico.
Dentro da perspectiva da mediação, o Ceju, através de seu núcleo, trabalha
tanto o ser humano quanto o problema, caminhando pelas Escolas de Mediação e
trilhando as esteiras da sua própria Escola: a da Alteridade, do Amor!
O reconhecimento do outro é fundamental para a construção de uma solução
mais eficaz e satisfatória para as pessoas envolvidas, além de ser no outro o local
onde nós nos encontramos e nos percebemos.
As crises causadoras dos conflitos e dos problemas são uma oportunidade de
mudança social, pessoal e coletiva e, dentro desse contexto, é objetivo do Ceju a
conscientização e a emancipação do sujeito tanto dos constituintes, quanto dos
alunos, professores e funcionários.
A Escola de Direito, dentro dessa construção sempre em constante
movimento, está cada dia mais efetivando e materializando os direitos
235
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
fundamentais e a democracia, uma vez que a mediação e a conciliação são
percebidas enquanto políticas públicas educacionais, inclusivas e emancipatórias.
***
236
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Introdução
Toda sociedade experimenta o conflito, até sociedades primitivas manifestam
algum tipo de disputa entre seus membros. Em sendo assim, a vida em
comunidades deve ser encarada como um espaço de consenso que não exclui o
dissenso. Resta então questionarmos como nossa sociedade lida com estes conflitos
ínsitos a todas as relações sociais.
O modelo de sociedade e de Estado fundado pela modernidade concebeu que
o conflito era um sintoma de disfunção da estrutura social que deveria ser
dissipado. Por sua vez, restou fundada a ideia de que o monopólio do ordenamento
jurídico e do poder coercitivo com o Estado seria capaz de regulamentar a sociedade
e promover a efetividade dos ideais de igualdade, justiça social e a garantia dos
direitos humanos fundamentais.
Este trabalho pretende apresentar uma virada na perspectiva sobre o Direito
e sobre o conflito e a influência na construção de outra forma de administrá-los,
para além da tradicional sub-rogação produzida pela prestação jurisdicional.
422Cf.HOBBES, Thomas, Leviatã ou matéria forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Tradução de
João Paulo Monteiro. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 143-148.
239
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
procederia a eliminação do conflito na sociedade, garantindo a necessária harmonia
social ao grupo. Logo, para esta teoria contratualista, que serve de base filosófica
para a instituição dos Estados Modernos, o conflito é visto como uma disfunção a
ser combatida.
Sendo o Estado uma estrutura que seria capaz de proporcionar segurança e
estabilidade à sociedade, precisa dispor de regras para organizar as relações sociais.
E neste bojo que se manifesta o Direito. As relações sociais passam a ser
contingenciado por normas jurídicas423, regras que estão previamente estabelecidas
e limitam atuação da vontade individual, cuja a violação implicará na intervenção
do Estado sobre a vontade dos contendores para reestabelecer a convivência social.
Este modelo concebeu que o monopólio do poder coercitivo pelo Estado e a
existência de um ordenamento jurídico pautado pela legalidade, impositividade,
formalidade, universalidade e objetividade seria capaz de regulamentar a sociedade
e garantir a pacificação social.
Se pensarmos sobre a construção do Direito na modernidade, retornando ao
momento de formação dos Estados Nacionais, veremos que se pretendia o
estabelecimento de uma normatividade única e o monopólio da jurisdição, negando
a pluralidade das fontes do direito e de órgãos que poderiam dizer quem tinha o
direito ao que. O Estado, através do Poder Judiciário na sua função jurisdicional,
passa a ser o único detentor do direito de nomear 424 quem tinha razão ao fim e ao
cabo e impor o interesse do vitorioso contra terceiros.
O Judiciário, através de um agente público, supostamente neutro e imparcial,
com uso de um procedimento técnico, pautado em regras jurídicas, tem a função de
reequilibrar a disputa entre sujeitos quando estes não consegue compor ajuste,
substituindo a vontade dos litigantes através de uma decisão compulsória e
definitiva que irá aplicar a lei e solucionar o conflito425.
A compreensão mais aceita na Teoria do Processo Civil é esta que
compreende o conflito como uma fonte de desarmonia e por isso pode e deve ser
423
Utilizamos para a definição de direito aquela forjada por Boaventura de Souza Santos: ―o direito é um
corpo de procedimentos regularizados e de padrões normativos, considerados justificáveis num dado grupo
social, que contribui para a criação e prevenção de litígios, e para a sua resolução através de um discurso
argumentativo, articulado com a ameaça de fora‖. Cf. SANTOS, Boaventura de Souza. Para um novo senso
comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. São Paulo: Cortez, 2002, v. 1, p. 290.
424O ato de nomear significa o ato realizado por um sujeito que detém uma autoridade para especificar ou
designar algo ou alguém, atribuindo um tratamento diferenciado para este algo ou alguém. Nos empresta
mais uma vez sentido a fala de Pierre Bourdieu ao definir o veredito do juiz como ato de nomeação: ―forma
por excelência da palavra autorizada, palavra pública, oficial, enunciada em nome de todos e perante todos:
estes enunciados performativos, enquanto juízo de atribuição formulado publicamente por agente que
actuam como mandatários autorizados de uma colectividade e constituídos assim em modelos de todos os
actos de categorização, são actos mágicos que são bem sucedidos porque estão à altura de se fazerem
reconhecer universalmente, portanto, de conseguir que ninguém possa recusar ou ignorar o ponte de vista, a
visão, que eles impõem‖. Cf. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução Fernando Tomaz. Lisboa:
Difel, 1989, p.236-237
425 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. Campinas: Bookseller, 2008. p. 8.
240
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
extraído da sociedade426. O Estado Democrático brasileiro tem como escopo
assumido no preambulo da Constituição Federal de 1988427, assegurar os direitos
fundamentais, a igualdade e a justiça de uma sociedade apoiada na harmonia e
engajada com a pacificação social. Logo, se o Estado quer atender uma sociedade
que deseja a pacificação, não há espaço para permanência de conflitos, sendo uma
de suas funções a de eliminá-lo da sociedade.
De fato, a barbárie e a violência que relações não disciplinadas e a autotutela
representaram no curso da história ocidental foram postas de lado com a crescente
sistematização da prestação jurisdiciona. O Direito de forma inescusável,
racionalizou, profissionalizou, centralizou e, pelo menos abstratamente, trouxe
mais isonomia à resolução dos conflitos.
No final do século XX, diante de um incremento quantitativo pela prestação
jurisdicional, tornou-se questionável a efetividade do Direito enquanto extirpador
de disputas sociais. Com as mazelas do pós-guerra e, algumas décadas depois, a
falência do modelo de Estado Providência, verifica-se que o Estado legalista foi
incapaz de promover a igualdade e a justiça social prometidas. É neste bojo de
críticas que se passa a questionar se a proposta de pacificação de conflitos pelo
judiciário foi bem-sucedida.
Em um importante movimento de guinada sobre a concepção do conflito na
sociedade, o sociólogo alemão Georg Simmel, inaugura a compreensão dos conflitos
como um fenômeno positivo. O conflito seria não só inerente à sociedade como
também um elemento de sociação428, importante para a coesão da comunidade, um
veículo de criação de uma nova unidade, com valores reforçados pela existência de
uma oposição. Outrossim, o conflito estabeleceria as identidades e hierarquias do
grupo429, estruturar que dão sentido à realidade da comunidade.
Logo, de acordo com esta perspectiva, sendo o conflito um fenômeno inerente
e importante para as relações sociais, o Estado não tem a missão de eliminar o
conflito da sociedade, até porque isto seria impossível. A posição do Estado passa a
ser a de administrador destes conflitos430, para que a polarização das posições não
426Compartilham deste entendimento: MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de Processo Civil: Teoria
Geral do Processo Civil. São Paulo: RT, 2006, v. 1, p. 28; SILVA, Ovídio Baptista da. Curso de processo
civil. Rio de Janeiro: Forense, 2006, v. 1, p. 20.
427 Conforme expresso no preâmbulo da Constituição de 1988: ―Nós, representantes do povo brasileiro,
reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar
o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos,
fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das
controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA
FEDERATIVA DO BRASIL.
428 Por sociação, ou, no vocábulo original em alemão, Vergellschaftung, se compreende as formas pelas quais
431 VASCONCELOS, Carlos Eduardo de. Mediação e práticas restaurativas. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p.
20-21.
432 AZEVEDO, André Gomma de. Autocomposição e processos construtivos: uma breve análise de projetos
piloto de mediação forense e alguns de seus resultados. In: AZEVEDO, André Gomma de (Org.). Estudos
em Arbitragem, Mediação e Negociação. Brasília: Grupo de Pesquisa, 2004, v.3, p.150.
433 DEUTSCH, Morton. A Resolução Do Conflito. Tradução Arthur Coimbra de Oliveira. In: AZEVEDO,
Internacional de Gestão em Segurança Pública e Justiça Criminal, NUFEP - Núcleo Fluminense de Estudos e
Pesquisas da UFF, Niterói, julho de 2007.
242
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
próprios, menos burocráticos e informais436 para acomodar seus conflitos fora do
poder judiciário. Com a percepção que a heterocomposição não passa
necessariamente pela aplicação de normas jurídicas ou a discussão sobre a
disponibilidade de direitos, ainda que o objeto do conflito possa ser avaliado pelo
enfoque jurídico.
Partindo da concepção de pluralismo jurídico apresentada pelo professor
Boaventura de Souza Santos437, devemos compreender que em nossa sociedade há a
coexistência de várias normatividades que atuam e se combinam em diversos
campos sociais. Em sendo assim, o direito estatal não é a única normatividade que
regula nossas condutas e nos fornece parâmetros para administrar nossos conflitos.
Estas normatividades são ocultadas pelo senso comum, que só reconhece o
direito estatal como normatividade. Ele foi construído pela teoria do Estado e a
teoria jurídica como a única forma de direito existente na sociedade. Por esta razão,
o direito do Estado se faz presente em todos os campos sociais numa perspectiva
integralizadora, atuando em todas as relações sociais.
O direito oficial estatal, tanto na sua produção quanto na sua aplicação, trava
negociações com outras fontes de regulação social. Assim ele não é o único, ainda
que hegemônico, e sua juridicidade se manifesta de acordo com as negociações que
estabelece com estas outras normatividades. Ademais, nem sempre ele é o mais
importante na contensão de conflitos do cotidiano438. Muitos sistemas jurídicos
paralelos ao estatal dão conta de conter a litigiosidade de fatos que representam
uma violação as leis.
A compreensão de que a lei é a única fonte do direito e que o judiciário é o
único responsável pela contensão de conflitos direciona os sujeitos para a prestação
jurisdicional. A sociedade nos apresentar uma variedade de mecanismos de
autorregularão e de autocomposição de litígios, com ou sem recurso a uma terceira
parte, mas o Estado não as legitima, o que desestimula seu uso.
Pensar que todo conflito experimentado na sociedade é levado à apreciação
do judiciário é uma arrogância deste poder. Como já asseverado pelo professor
Boaventura de Sousa Santos439, há uma área cinzenta de conflitos que sequer batem
436 Cf. SANTOS, Boaventura de Souza. Os tribunais nas sociedades contemporâneas: o caso
português. Porto: Aforamento, 1996, p.47-51. O sociólogo nos alerta ―que o tribunal de primeira instância
chamado a resolver o litígio é, sociologicamente, quase sempre uma instância de recurso, isto é, é accionado
depois de terem falhado outros mecanismos informais utilizados numa primeira tentativa de resolução (...)
ele não ocorre num vazio social nem significa o ponto zero da resolução do litígio a resolver‖ (p.49)
437 Para o autor nossa sociedade é formada por constelações de poder, de direito e de conhecimento. Cada
3. Alternatividade ou dissimulação?
Hodiernamente o Estado tem um discurso de promoção de outros métodos
de administração de conflito, porém a própria nomenclatura de alternativos a estes
métodos já demonstram que identifica a jurisdição como o principal método estatal
para administrar as dualidades nas relações sociais.
Não há como esse trabalho afirmar hodiernamente as pessoas procuram
mais o judiciário para solucionar seus litígios porque não temos como quantificar o
número de pessoas que não buscam a prestação jurisdicional. A avaliação que
podemos fazer é que grande parte da população identifica no judiciário um espaço
principal para realizar a heterocomposição em litígios. Tal afirmação encontra
fundamento em algumas pesquisas estatísticas que apontam os litígios de família
como uma das principais causas para busca da prestação jurisdicional.
244
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
Na única Pesquisa Nacional por Amostra de Domocílios (PNAD) que abordou
a temática do acesso ao judiciário realizada em 2009 440, das 12,6 milhoes de
pessoas com mais de 18 anos que declararam ter experimentado situações de
conflito nos cinco anos anteriores, 70,2% recorreram a algum órgão do Poder
Judiciário para solucionar a celeuma.
Uma vez manifestado o conflito, identificada pelas partes uma questão
jurídica e reconhecida a impossibilidade de administrar autonomamente, há,
abstratamente, uma alta propensão de que este conflito seja judicializado. Digo
abstratamente porque vários fatores interferem na decisão individual de judicializar
o conflito, podendo esta porcentagem indicada pela pesquisa não vir de fato a
propor uma demanda quando se envolverem num conflito.
Embora tenha sido reconhecido o instituto da arbitragem (Lei nº 9.307/96) e
da conciliação extrajudicial há algumas décadas (art. 5º, LXXVIII da Constituição
Federal), o Estado pouco estimula o seu uso441e continua a fomentar uma política de
acesso à justiça que invariavelmente direciona as demandas ao Poder Judiciário.
Até as experiências de promover conciliações prévias, são esforços realizados pelo
Poder Judiciário e obviamente seguem sua lógica e sua retórica, não podendo ser
qualificadas como extrajudiciais.
O Conselho Nacional de Justiça, na tentativa de promover o acesso à justiça e
estimular uma cultura da solução pacífica dos conflitos, estabeleceu com a
Resolução 125/10 as diretrizes para a implementação, através do judiciário, do uso
de mecanismos cooperativos de construção de consenso.
O pai das ondas reformistas do processo civil, Mauro Cappelletti, já
despertava este olhar e apontava os rumos do processo para uma abertura à outros
mecanismos de resolução de conflito442. Nesta vereda, a grande voga no processo
civil é a discussão sobre os métodos alternativos de resolução e conflito, que
também possuem expressa previsão no art. 3º e seus parágrafos tornando-se uma
leitura ampliativa do art. 5º, XXXV, CRFB/88, onde afirma que não se exclui da
apreciação jurisdicional, englobando, assim, a jurisdição contenciosa e voluntária,
que conta com as vertentes judiciais e extrajudiciais 443.
A abertura do processo civil à mecanismos alternativos, judiciais e
extrajudiciais, representa não só dar novos espaços para contensão de conflito
social como também proporcionar uma reforma nos valores e conceitos que
organizam a prática processual oficial em razão da coexistência entre estas esferas.
440 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios:
Características da vitimização e do acesso à justiça no Brasil. Rio de Janeiro, 2010, p. 248. Disponível em:
<Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios>. Acesso em: 08 fev. 2015.
441 Apesar do Novo CPC trazer como requisito da petição inicial (art. 319, VII) a opção pela realização ou não
da audiência de conciliação e mediação, que também poderá ser utilizada no pós-saneamento do processo ou
na abertura da Audiência de Instrução e Julgamento (art. 359), os relatos trazidos pelos advogados e alunos
que estão cursando a matéria de estágio forense, é da não aplicação do instituto.
442 CAPPELLETTI, Mauro. Algunas reflexiones sobre el rol de los estúdios procesales en la actualidad.
444 ALMEIDA, Gabriel Guarino Sant'anna Lima de; DUARTE, Fernanda. Sentimentos de justiça e(m)
conflito.: uma experiência de mediação judicial no Rio de Janeiro. Revista da SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20,
n. 38, p.157-168, dez. 2013.
445 SANTOS, op.cit. (1990), p. 36.
246
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
Diante destas novas compreensões, o direito processual civil tem se mostrado
como insuficiente para resolver os conflitos e garantir os direitos fundamentais
numa sociedade em que a litigiosidade aumenta em níveis exponenciais e o
judiciário se agiganta. Partindo da premissa básica de que o processo é um
instrumento de realização de direitos, para concretização desta função o direito
processual civil deve prover mecanismos aptos à intervir na sociedade como ela se
apresenta e não como ela foi idealizada.
O processo é então inundado pelo texto constitucional e já não basta vê-lo
como garantia de acesso à jurisdição judicial somente. O processo representa uma
função social e constitui um espaço de manifestação da democracia, tanto para os
substancialistas, quanto para os procedimentalistas. Destarte, sendo o processo um
instrumento democrático deve o judiciário estar atento à compreensão da sociedade
sobre o justo.
Diante da necessária abordagem do direito como fenômeno cultural, o
processo também deve ser compreendido nesta seara. Souza Santos nos empresta,
mais uma vez, sentido à esta fala na medida que enquanto fenômeno social o
processo oficial, operado pelas instituições estatais, não pode negar a existência de
uma pluralidade de ordenamento, sendo este mais um dentre as manifestações
sociais de contensão de conflito.
Com o reconhecimento da existência de diversos espaços decisórios
concorrentes à jurisdição estatal, o direito se aproxima da realidade que pretende
disciplinar não através de um discurso impositivo, como é a retórica judicial, mas
através do incentivo ao diálogo e da educação para construção de consensos.
Evidente que em Estado de democracia débil como é o Brasil, onde o
executivo é um dos grandes violadores de direitos, o intervencionismo judicial,
embebido daquele viés substancialista, nos garante no poder judiciário um espaço
de realização dos direitos fundamentais. Mas em relações privadas é perfeitamente
cabível, e até preferível, que a sociedade civil se autodiscipline, sem perder de vista
aquele núcleo básico do pacto constitucional.
Indo além, fomentar a busca excessiva ao judiciário para solução de conflitos,
seja ele entre cidadão e Estado ou entre sujeitos da sociedade civil, e dar como
resposta um crescente intervencionismo judicial na sociedade e na política é alienar
ainda mais o cidadão das suas capacidades de interação democrática. A criação
deste fetichismo legal e judicial atende aos interesses de um Estado não
democrático que quer uma sociedade civil não organizada e fraca.
Sendo assim, seja para viabilizar uma reeducação cívica dos cidadãos, por
uma questão contingencial, pois não é possível ao judiciário suportar o exponencial
crescimento das demandas, ou por uma razão de incredulidade da sociedade quanto
ao poder judiciário, a desjudicialização das contendas e reformulação do processo
civil se torna cada vez mais necessária e alvo das novas teorias do direito.
Conclusão
247
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
Por fim, para uma sociedade complexa, devemos dispor de meios variados
para atender suas demandas e pacificar seus conflitos, meios judiciais e
extrajudiciais. Adotar um processo, uma forma, uma técnica exclusiva representa
cair de novo na armadilha reducionista e totalizadora do modernismo. Assim, dar
um passo à frente e promover a virada no modo de pensar o direito, como de fato
deve propor uma abordagem pós-modernista, implica em se afastar destas
estruturas e abraçar a ideia de pluralidade de ordenamentos jurídicos e
descentralização da jurisdição.
Não se pode perder de vista que enquanto fenômeno cultural, queiram ou não
os seus teóricos, o direito já está impregnado pelo modo de pensar pós-moderno. As
legislações recentes, ainda que em passos muito lentos, se abriram para a
diversidade cultural, albergando categorias sociais antes marginalizadas, num
movimento de integração do subversivo e reavaliação de valores.
O poder judiciário foi ―colonizado‖ pela ética do capitalismo tardio e
hodiernamente vem sendo regido por regras de eficiência de procedimentos e
resultados quantitativos. Também tem sido crescente o interesse dos juristas pelo
diálogo com outros saberes, tais como a sociologia, a antropologia e a psicologia,
como forma de melhor compreender a sua atuação. Em sendo assim uma teoria do
direito moderna se tornou obsoleta para uma realidade iminentemente pós-
moderna.
Se se quer superar a carência de efetividade e a perda de sentido que o Direito
vem experimentando devemos abandonar aqueles paradigmas da modernidade.
Talvez a experiência dionisíaca de subverter todas as regras conhecidas e abalar
todas os fundamentos estabelecidos nos permita colocar as coisas de volta no lugar,
construindo novas bases de pensar e de realizar o direito.
***
248
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Ricardo Perlingeiro
1. Introdução
A ação popular é um importante exemplo de tutela coletiva na defesa do
interesse difuso,447 tendo sido em diversos sistemas jurídicos o embrião do que hoje
denominamos ―direito processual coletivo‖.448 Apesar do vínculo indissociável entre
a ação popular e o contencioso judicial administrativo, pois o objetivo maior
daquela é a discussão sobre a validade de atos administrativos, pouco ou nada se
fala a respeito de uma correspondente interdisciplinaridade (processo coletivo e
contencioso judicial administrativo). A doutrina e a legislação que vêm sendo
produzidas a respeito das tutelas coletivas consideram apenas aspectos de direito
privado que nem sempre são compatíveis com as relações jurídicas de direito
público ou com os princípios fundamentais e regras gerais do contencioso judicial
administrativo.449
446 Texto apresentado no XXVIII Congreso Colombiano de Derecho Procesal, organizado pelo Instituto
Colombiano de Derecho Procesal, entre os dias 5 e 7 de setembro de 2007, em Bogotá, Colômbia. Publicado
originariamente na RDE - Revista de Direito do Estado, Rio de Janeiro, v. 7, p. 255-272, 2007.
447 MOREIRA (1977).
448 GRINOVER, 2005: 14.2005.
449 O descompasso entre o direito processual administrativo e as tutelas coletivas foi notado por CASSAGNE
(2003: 124-25): ―Si queremos que el país progrese y que retornen las inversiones en un clima de seguridad se
impone la revisión y hasta la transformación de algunos de los actuales esquemas del derecho procesal
administrativo, sin mengua de las garantías debidas a las personas, em um marco de equilibrio entre el bien
común, los llamados interesses colectivos (que no siempre aparecen debidamente representados y suelen
contradecir el interés público) y la protención de los derechos individuales. En esse escenario, frente a las
perspectivas que se plantean no cabe sino elaborar los criterios para encarar las soluciones más justas y
razonables, tratando de construir antes que destruir las instituciones existentes‖.
450 GRINOVER, 2006:88.
250
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
Nos sistemas que a adotam, a tutela judicial coletiva depende da extensão da
legitimidade ad causam a pessoas que não participam efetivamente do processo
judicial, para que, dessa maneira, sujeitem-se igualmente aos efeitos da coisa
julgada e, ainda, para que haja garantia da unidade de jurisdição. A questão é saber
quais são os limites razoáveis para atribuir essa legitimidade e, consequentemente,
quais são os limites razoáveis para impor a terceiros essa sujeição à coisa julgada.
Mais uma vez socorrendo-se ao Código de Processos Coletivos para Ibero-América,
são legitimados para defesa do interesse difuso qualquer pessoa física ou membro
do grupo atingido e, para o interesse individual homogêneo, diversas entidades
públicas e representativas; a sentença fará ―coisa julgada erga omnes, exceto se o
pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que
qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento valendo-
se de nova prova‖, e, ―mesmo na hipótese de improcedência fundada nas provas
produzidas, qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico
fundamento, no prazo de dois anos contados da descoberta de prova nova,
superveniente, que não poderia ser produzida no processo, desde que idônea, por si
só, para mudar seu resultado‖; nas ações de interesse individual homogêneo, ―em
caso de improcedência do pedido, os interessados poderão propor ação de
indenização a título individual‖. Nota-se, portanto, que o Código Modelo de
Processos Coletivos para Ibero-América preocupou-se em restringir a coisa julgada
nos casos de improcedência, sempre admitindo, entretanto, a definitividade do
julgado no caso de procedência.
No entanto, até que ponto é adequado que uma única pessoa física ou jurídica
detenha o poder de iniciar um processo de interesse de toda uma sociedade? Até
que ponto deve ter o poder de ensejar uma coisa julgada que alcance toda uma
sociedade ou coletividade? O que é capaz de justificar a proteção judicial de
interesses difusos a partir da iniciativa de uma única pessoa? Essas perguntas não
têm sido mais formuladas em grande parte dos sistemas jurídicos que adotam as
tutelas coletivas. No entanto, essas mesmas perguntas continuam sem resposta e as
questões decorrentes não apresentam uma solução ideal. Afirma-se que a
legitimidade extraordinária na ação popular ou nas ações de classe é um mal
necessário, ante a fragilidade dos Estados em criar mecanismos eficazes de controle
da Administração Pública e de acesso à Justiça451. Um mal necessário porque, na
451FÁBRICA (2003: 240-241), referindo-se a FORSTHOFF e à obra Der Staat der Industriegesellschaft, cita
que ―quando existe um número ideal de titulares de um interesse para que este seja eficazmente perseguido,
retirando daí a conclusão de que os interesses com um número de titulares muito elevado só podem ser
adequadamente realizados se forem assumidos pelo Estado‖. Ressalva FÁBRICA (ibidem), em complemento,
que a observação de FORSTHOFF ―é arguta; a conclusão, muito polêmica e porventura errada. Mas errada
no âmbito para que foi pensada – sociedade alemã (outro tanto se poderá dizer das sociedades anglo-
saxônicas) – já talvez não errada em âmbitos diversos, como o das sociedades com escasso nível cultural e
com elites quantitativa e qualitativamente débeis – como a nossa. De facto, em países com nível educacional
elevado, elites sociais fortes e estruturas administrativas e jurisdicionais eficientes, o alargamento da ação
popular pode com plausibilidade ser considerado não só desnecessário como perigoso – desnecessário,
porque a tutela dos bens susceptíveis de construir objeto de interesses difusos é assegurada satisfatoriamente
pela Administração e pelos tribunais; perigoso, porque a abertura descontrolada dos tribunais ao activismo
social e político arriscar-se-ia a destruir, designadamente, o equilíbrio entre o poder judicial e o poder
executivo. A situação afigura-se diversa em países como Portugal, que vivem encerrados num paradoxo
trágico, em que apetece dizer que a acção popular é inútil, mas necessária; inútil, dada a raridade do seu
exercício (por mais generoso que seja o regime jurídico), porque o nível educacional é baixo, porque o
activismo social é reduzido, porque as elites são débeis e preferem viver do Estado a afrontá-lo; mas, por
outro lado, a ação popular torna-se paradoxalmente necessária, porque o Estado revela-se demasiado débil
251
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
prática, de nada adianta estender a legitimidade ad causam e ao mesmo tempo
restringir o alcance da coisa julgada apenas aos que tenham participado
efetivamente do processo.452 A tese da representatividade adequada merece maior
reflexão, para evitar a possibilidade de alguém sempre alegar prejuízo; alguém que
não tenha participado efetivamente do processo ou alguém que não tenha se sentido
efetivamente representado no processo. Do contrário, o resultado prático pode ser o
seguinte: estimula-se a ação coletiva, porém os efeitos da coisa julgada, ao menos os
efeitos prejudiciais, restringem-se aos que tiveram oportunidade de participar
efetivamente do processo. Com isto, seria aberta a oportunidade de um novo
processo e de uma nova decisão judicial a cada instante que alguém se sentisse
prejudicado. Concebido justamente para assegurar o amplo acesso à Justiça e a
uniformidade de tratamento entre os jurisdicionados na defesa de interesses difusos
e coletivos, o sistema passa a conviver com o risco de um elevado grau de
insegurança jurídica devido à possibilidade de decisões judiciais conflitantes. 453
para proteger eficazmente os interesses dos grandes grupos, sendo relativamente fácil aos lobbys mais fortes
e coesos (titulares de interesses colectivos e não de interesses difusos) manietar ou até dirigir a sua
actuação‖.
452 TALAMINI (2005: 128-129) anota que a coisa julgada erga omnes nas ações coletivas, a coisa julgada que
decorrer de decisão de improcedência por razões outras que não a falta de provas, não afronta as garantias do
devido processo legal e contraditório, sendo o eventual erro daquele julgado ―um mal menor do que a
possibilidade de reiterada repetição da demanda – o que seria arbitrário e excessivamente sacrificante para o
demandado‖. TRAVI (2006: 327) não acolhe a posição de LIEBMAN a respeito do julgamento secundum
eventum litis e sustenta ser erga omnes a coisa julgada decorrente da anulação de ato administrativo
normativo, por se tratar de um ato jurídico indivisível. GRINOVER (2006), ao comentar os efeitos da decisão
judicial que anula uma deliberação social de sociedade anônima, considera-os genéricos (erga omnes),
porém, restringe a coisa julgada às partes litigantes, invocando os princípios da defesa, do contraditório e da
bilateralidade da ação e da exceção, especialmente nos casos em que a decisão judicial invalida o ato e um
outro sócio pretende a validade do mesmo. Diante do conflito entre duas coisas julgadas, registra
GRINOVER (ibidem) que ―a segunda deve prevalecer, mas sobretudo porque, não fosse assim, conferir aos
demais sócios seria inútil – e equivaleria a se lhes estender a coisa julgada gerada no processo alheio‖
(TALAMINI, op. cit., p. 102). Com efeito, assiste razão a ANTUNES (1989: 188) em criticar a coisa julgada
secundum eventum litis: ―É preciso ter presente que, também nas controvérsias respeitantes aos interesses
difusos são sempre duas partes (ou grupo de partes) contrapostas. Se nós dizemos que os efeitos favoráveis se
aplicam a terceiros e os desfavoráveis não, devemos ter em mente que em relação à ‗outra parte‘ a solução
secundum eventum litis opera somente em sentido negativo‖.
453 GRINOVER (2005: 13) demonstra preocupação com a possibilidade de diversas ações coletivas
455 YOSHIDA (2005: 127) comunga da mesma opinião: ―A origem comum dos direitos e interesses
individuais homogêneos (causa de pedir próxima e remota) pode se identificar com a mesma origem (causa
de pedir próxima e remota) dos direitos e interesses difusos ou coletivos da respectiva sociedade. A origem
comum dos direitos e interesses individuais homogêneos, sob o aspecto da causa de pedir remota, pode ser
fática, identificando-se com as circunstâncias de fato comuns ao universo de titulares de direitos difusos; ou
jurídica, correspondendo à relação jurídica base da coletividade de pessoas titulares de direitos coletivos em
sentido estrito‖.
253
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
difuso ou coletivo implica sempre a impugnação de um ato administrativo ou a
obrigação de editar um ato administrativo. A ação judicial sobre interesse individual
homogêneo está mais relacionada com as medidas de prestação e de reparação de
dano que são, por excelência, pretensões divisíveis e, por isso, não pressupõem o
desfazimento (nulidade ou anulabilidade) de ato administrativo ou uma obrigação
de editá-los. Basta a reparação do dano para que o direito alegado seja satisfeito; daí
a afirmação – um pouco precipitada – de que nas ações de prestação não há
nulificação de atos administrativos;456 na verdade, o que não existe é a necessidade
do desfazimento de atos administrativos que servirem de fundamento para uma
ação de prestação. A única ressalva que se faz é quanto aos atos administrativos
normativos (gerais e impessoais); quanto a estes, de fato, o mais adequado seria a
nulificação em um procedimento autônomo de controle abstrato de normas.
456 Nem mesmo no direito italiano persiste tal dicotomia. Desde o advento da Lei 205/2000, o próprio juiz
administrativo que nulifica o ato administrativo condena ao ressarcimento dos danos decorrentes do
exercício ilegítimo do poder administrativo (CORSO, 2005: 69).
457 No sistema alemão, os atos administrativos devem ser concretos e não exatamente individuais; podem
atingir uma pessoa ou um fato (MAURER, 2001: 94). De acordo com o § 35, frase 1, da VwVfG, é
determinante a concretude do objeto de regulação, não a individualidade dos destinatários (Verwaltungsakt
ist jede Verfügung, Entscheidung oder andere hoheitliche Ma nahme, die eine Berörde zur Regelung eines
Einzelfalls auf dem Gebeit des öffentlichen Rechts triff und die auf unmitellbare Rechtswirkung nach au em
gerichtet ist). No § 35, frase 2, da VwVfG, está registrado que ―um ato administrativo que se dirige a um
círculo de pessoas determinado ou determinável segundo características gerais concerne à qualidade
jurídico-pública de um objeto ou ao seu uso pela comunidade‖ (Allgemeinverfügung ist ein Verwaltungsakt,
der sich an einen nach allgemeinen Merkmalen bestimmten oder bestimmbaren Personkreis richtet oder die
öffentlich-rechtliche Eigenschaft einer Sache oder ihre Benutzung durch die Allgemeinheit betrifft). A
necessidade do interesse individual como condição da ação judicial contra a Administração Pública,
afastando o cabimento da ação popular, decorreria do art. 19, IV, da Lei Fundamental: ―Quem for lesado nos
seus direitos por ato de autoridade pública...‖ (SOMMERMANN, 1993: 48).
458 O sistema francês de controle objetivo da legalidade administrativa, embora permita que haja o controle
dos atos administrativos gerais e impessoais em sede de contencioso judicial administrativo, não afasta a
necessidade de o autor justificar o seu interesse; não leva automaticamente à ação popular (MELLO, 2006:
905). É apenas compatível o sistema francês com a ideia de que não haveria necessidade de demonstração de
interesse individual para questionar a validade de atos administrativos, já que a proteção dos direitos do
cidadão seria uma consequência do controle objetivo da legalidade, o que abre espaço para as ações
populares.
459 O regime do controle objetivo da atuação administrativa facilita a impugnação judicial de atos
equilíbrio entre os poderes estatais; o autor utilizou a expressão ―gobierno de los jueces‖ para referir-se à
deformidade do sistema argentino que permite que haja um controle difuso e que qualquer tribunal do
extenso território daquele país anule, com efeitos erga omnes, um decreto do poder executivo.
255
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
pois assegura o controle democrático da legalidade e moralidade administrativa
face à ausência ou omissão dos órgãos que possuiriam responsabilidade para tanto.
Desta maneira, antes de tudo, não há como ignorar duas premissas: (a) a ação
popular e a extensa legitimidade para ações judiciais de impugnação de atos
administrativos decorrem de uma deficiência estrutural dos órgãos de controle
estatais; (b) o cabimento da ação popular para impugnar atos administrativos gerais
e impessoais leva à ideia de um controle judicial abstrato de normas
administrativas.
CASSAGNE (2003: 129-130): ―Ello al par de unificar la jurisprudencia, através de los juicios plenarios si así
correspondiera, instituyendo una competencia más concentrada para el control jurisdiccional de los actos
estatales, sobretodo en algunos procesos como los de amparo contra actos del Poder Ejecutivo y/o dictados
por delegación de éste en las acciones declarativas de inconstitucionalidad y en las medidas cautelares, sería
una contribución trascendente a la seguridad juridica. Esa competencia podría ser asignada, como en los
Estados Unidos, a las Camaras Federales en lo Contencioso Administrativo creadas o a crearse, en lo futuro,
256
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
A legitimidade para dar início ao controle judicial dos atos administrativos
gerais e impessoais deveria ser fruto de um mandato constitucional e restrito a
determinados órgãos, pois a possibilidade de ―qualquer do povo‖ impugnar um ato
administrativo geral e impessoal leva às seguintes perplexidades 465: (a) de que
maneira assegurar a segurança jurídica e evitar as decisões conflitantes sobre o
mesmo ato administrativo geral e impessoal, sem que haja restrição do acesso à
Justiça por outro cidadão igualmente legitimado? (b) não seria incompatível com o
princípio do acesso à Justiça a alternativa de unificação perante um único tribunal o
julgamento de tais questões, distanciando, dificultando ou inviabilizando o acesso
de grande parte dos cidadãos? (c) como explicar o efeito subjetivo da coisa julgada,
em detrimento de um cidadão que não participou do processo no qual tenha sido
proferida uma decisão favorável a outro cidadão que tomou a iniciativa e propôs a
ação popular? Não haveria ofensa ao devido processo legal ou quebra da isonomia
de tratamento?
Suponhamos um ato administrativo que institui um concurso público para
preenchimento de vagas em um cargo público qualquer em que duas mil pessoas
possam se inscrever ou tenham efetivamente se inscrito. Um dos candidatos
poderia reclamar um direito individual e postular a inobservância de uma regra
administrativa em seu favor. A procedência dessa reclamação poderia causar danos
a terceiros que, por sua vez, poderiam adotar a seguinte postura: ingressar como
terceiro interessado ou entrar com uma ação, sempre reclamando um direito
individual. A multiplicidade desses litígios pode ser evitada por meios alternativos:
ações coletivas, processo exemplar, precedentes judiciais ou súmulas vinculantes.
Porém, em uma ação individual, a decisão judicial jamais deveria declarar a
ilegalidade do concurso, vale dizer, afastar ou impedir a realização do concurso (que
é genérico), pois transcenderia os limites da lide. Caso algum direito individual
dependesse da decretação de nulidade desse certame, de duas uma: (a) ou o seu
direito seria convertido em perdas e danos, (b) ou o processo seria suspenso até que
em um procedimento abstrato de controle de normas houvesse uma solução. Por
outro lado, imaginem a gravidade da situação se a cada candidato fosse autorizado
reclamar em uma ação própria e individual a nulidade de um concurso... Imaginem
as medidas liminares distintas por diversos tribunais... Decisões finais produzindo
coisa julgada erga omnes, decisões contraditórias e por tribunais distintos...
en diferentes lugares del país, como un fuero especializado‖. SOMERMANN informa que no regime do
Código de Jurisdição Administrativa (VwGO) qualquer pessoa está legitimada a promover o controle abstrato
de normas (Normenkontrollverfahren), desde que, contudo, demonstre um interesse particular. Apenas a
Administração está eximida de demonstrar interesse para dar início a um controle abstrato de normas, que,
entretanto, é sempre, frise-se, concentrado! (SOMMERMANN, 1993: 93). No direito alemão, não se admite o
controle abstrato de normas infralegais via ação declaratória (competência difusa) no âmbito do contencioso
judicial administrativo (KOPP, 2003: 468).
465 CASSAGNE (2003: 127-128) acrescenta, ainda, que ―es una realidad palpable que la judicialización de la
política, apoyada en la generalización de una suerte de acción popular en materia de amparo, no ha impedido
la corrupción ni las arbitrariedades de turno, como tampoco pudo poner remedio a la afectación de la
seguridad física de las personas ni de las libertades de circular y de trasladarse de un lugar a otro por la
acción ilegítima de organizaciones que no representan a la mayoría de los ciudadanos que conforman el
pueblo o a los usuarios de un determinado servicio. Surge entonces, la conveniencia de reflexionar acerca de
la posibilidad que puede ofrecer un nuevo sistema procesal para mejorar esse estado de cosas, dejando para
una segunda etapa la revisión de las reformas introducidas a la Constitución em 1994, algunas de las cuales
han contribuido a la anarquia institucional que padecemos, elevando el costo de funcionamiento de los tres
poderes y de otros órganos que se han adicionado con un ‗status‘ especial, transformando algunos de los
nuevos derechos en semillas que generan continuos conflictos colectivos e individuales‖.
257
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
Imaginem como seria gritante a ofensa ao devido processo legal, já que muitos
seriam atingidos pela decisão de nulidade...
pronúncias da mesma entidade administrativa, digam respeito à mesma relação jurídica material ou, ainda
que respeitantes a diferentes relações jurídicas coexistentes em paralelo, sejam susceptíveis de ser decididos
com base na aplicação das mesmas normas a idênticas situações de facto, o presidente do tribunal pode
determinar, ouvidas as partes, que seja dado andamento a apenas um ou alguns deles, que neste último caso
são apensados num único processo, e se suspenda a tramitação dos demais‖.
467 Com fundamento no princípio da igualdade e da segurança jurídica, o art. 110 da Lei Espanhola 29/1998
dispõe que ―en materia tributaria y de personal al servicio de la Administración pública, los efectos de una
sentencia firme que hubiera reconocido uma situación jurídica individualizada a favor de una o varias
personas podrán extenderse a otras, em ejecución de la sentencia, cuando concurran las siguientes
circunstancias...‖. De acordo com a jurisprudência e a doutrina espanholas, esse dispositivo tem a finalidade
de evitar ―la multiplicación de procesos sobre identicas situaciones jurídicas em materia tributaria y de
personal al servicio de la Administración Pública‖ (PÉREZ, 2005: 2519; CASTRO, 2003: 913).
468 ZAVASCKI aponta uma acentuada semelhança entre a decisão judicial proferida no controle concentrado
de normas e a proferida nas ações coletivas de interesse individual homogêneo: ―Ambas constituem título
jurídico, em favor de todos os titulares individuais de direitos subjetivos, autorizando-os a demandar em
juízo o cumprimento dos direitos nelas reconhecidos. Com a sentença na ação coletiva, a proferida no
controle concentrado tem caráter de sentença genérica. Seus efeitos se irradiam sobre todas as situações
concretas, permitindo aos interessados, desde logo, usufruir as correspondentes consequências produzidas
em relação aos direitos subjetivos‖ (ZAVASCKI, 2006: 278).
259
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
ainda, os atos administrativos concretos que atingem terceiros, mas em um número
reduzido e incapaz de movimentar massas ou justificar um interesse difuso ou
coletivo. Nesses casos, estaríamos diante de uma ação judicial individual, não fosse
a possibilidade de ação popular ―contra qualquer ato administrativo‖, levando ao
legislador a necessidade de uma consideração especial. Nos regimes como o
colombiano e o brasileiro, em que for admitida a ação popular contra qualquer ato
administrativo concreto e individual, ainda que o ato administrativo não atinja
terceiros, o que, na verdade, estará se concebendo é a natureza difusa e coletiva à
qualquer ação judicial que envolver a atuação administrativa!
Portanto, também nos casos de litígios individuais, a ideia de um tribunal
único para decidir a questão subsistiria; não que fosse necessária uma regra de
competência concentrada, mas que, havendo a competência difusa ou concorrente
entre juízes de mesma instância, somente um deles deve ser o competente para
decidir sobre o litígio, ainda que haja pluralidade de processos com partes
aparentemente distintas. Vale dizer, o tribunal da ação individual deve ser o
competente para decidir a ação popular ou as ações populares fundadas no mesmo
ato administrativo impugnado. Perante este tribunal, que deve ser o do local dos
efeitos do ato administrativo indesejado, assegurar-se-ia a impugnação do ato
administrativo por qualquer cidadão ou prejudicado. A coisa julgada, entretanto,
não atinge os terceiros, sendo possível que a qualquer momento a questão seja
reaberta em favor daqueles, assegurando-lhes o devido processo legal, o que, por
outro lado, gera inevitavelmente uma instabilidade, esta agravada no regime da
ação popular.
7. Considerações finais
As decisões em ações coletivas que tenham por objeto a impugnação ou a
obrigação de editar um ato administrativo geral e impessoal (interesse difuso ou
coletivo) devem gerar coisa julgada erga omnes. As decisões em ações coletivas que
tenham por objeto uma medida de prestação (interesse individual homogêneo)
fundada em um ato administrativo geral e impessoal não estão sujeitas
necessariamente à coisa julgada erga omnes; apesar de a coisa julgada erga omnes,
quanto às questões de natureza coletiva, ser altamente recomendável para evitar a
pulverização dos litígios (litígios de massa) ou decisões conflitantes, acompanhadas
de um sentimento de injustiça por quebra do princípio da isonomia. Da mesma
forma, não produzem coisa julgada erga omnes, embora esta também fosse
recomendável, as decisões judiciais em ações coletivas que tenham por objeto a
impugnação ou a obrigação de edição dos atos administrativos individuais e
concretos que, ao mesmo tempo, atinjam indiretamente a sociedade ou uma
coletividade; assim como as decisões judiciais em ações coletivas que tenham por
objeto medidas de prestação fundadas em ações ou omissões administrativas,
concretas ou individuais, que atinjam indiretamente a sociedade ou uma
coletividade.
As decisões em ações individuais que tenham por objeto a impugnação ou a
obrigação de editar um ato administrativo concreto e pessoal, ou que estejam
associadas às medidas de prestação, devem produzir coisa julgada inter partes;
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Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
todo aquele que se sentir prejudicado, inclusive um cidadão qualquer, no regime da
ação popular, tem o direito de invocar a garantia ao devido processo legal, ainda
que isso represente insegurança jurídica.
A impugnação judicial de um ato administrativo geral e impessoal
(normativo) tem natureza jurídica de controle abstrato de normas e deve ser
atribuída a um único tribunal; vale dizer, o controle abstrato de normas
administrativas deve ser concentrado, no âmbito de um procedimento judicial para
o qual seja legitimado órgão dotado de independência, sujeito à provocação de
qualquer interessado ou, no regime de ação popular, de qualquer cidadão. A ação
judicial coletiva ou individual de prestação e que tiver por fundamento ou estiver
associada à impugnação de ato administrativo geral e impessoal deve ser suspensa
até que a impugnação daquele ato seja decidida em incidente de controle abstrato
dos atos administrativos gerais e impessoais. A ação judicial que tenha por objeto a
impugnação de um ato administrativo concreto e individual atingindo terceiros, em
quantidade significativa e com a potencial de provocar litígios de massa, também
deve ser suspensa, e a questão de índole coletiva deve ser submetida a um tribunal
específico, em procedimento análogo ao do controle abstrato e concentrado dos atos
administrativos gerais e impessoais.
Com efeito, atribuir nas ações coletivas legitimidade ad causam aos cidadãos
(ação popular) ou a determinadas entidades associativas e, ao mesmo tempo, impor
a coisa julgada erga omnes põe em risco o devido processo legal em relação àqueles
que não participaram efetivamente do processo ou que não tenham se sentido
adequadamente representados pelos que participaram ou foram considerados
legitimados a participar; põe em dúvida, sobretudo, o princípio da isonomia entre
os titulares do direito à ação coletiva. Não me refiro aos casos de improcedência
genérica ou improcedência por falta de provas, mas às decisões de procedência que
eventualmente atinjam pessoas estranhas ao litígio. Assim, a possibilidade de novo
litígio e de nova coisa julgada, sobrepondo-se à coisa julgada anterior, na prática,
abre margem a uma instabilidade jurídica generalizada que, no contencioso judicial
administrativo é extremamente grave, pois além de gerar a sensação de tratamento
diferenciado entre os cidadãos, pode inviabilizar a Administração Pública e o
atendimento dos seus fins essenciais.
Os mecanismos procedimentais até então conhecidos não têm logrado êxito.
Por exemplo, em um litígio individual que objetive a impugnação de um ato
administrativo individual ou geral, em que houvesse risco de ofensa indireta a
interesse difuso ou coletivo, a participação de estranhos àquele litígio seria
normalmente facultada via intervenção de terceiros. Ocorre que essa intervenção de
terceiros não pode ser obrigatória e a cargo do autor, pois, na maioria das vezes,
consiste obstáculo intransponível à obtenção de uma tutela judicial. A mesma
dificuldade ocorre em uma ação para postulação inicial de interesse difuso ou
coletivo; nem sempre é possível chamar ao processo todas as pessoas que seriam
potencialmente atingidas pela decisão. Por outro lado, até que ponto os terceiros
interessados poderiam sujeitar-se à formação da coisa julgada em processos em que
não tiveram participação efetiva? E até que ponto seria possível, a qualquer
momento, rediscutir a questão de fundo? O conceito de legitimidade para postular
judicialmente os interesses da coletividade deve ser revisto, especialmente nas
261
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
causas de direito público, e, consequentemente, encontrar alternativas para
assegurar a estabilidade das decisões sobre questões que interessem à coletividade
no âmbito do contencioso judicial administrativo.
A proposta para que nas causas de direito público, de interesse difuso ou
coletivo, haja atribuição constitucional da legitimidade ad causam a órgãos
públicos dotados de independência e imparcialidade não atenta contra o princípio
do acesso à Justiça, mas sim, pelo contrário, reafirma a tese da representatividade
adequada. Se, em um litígio individual, o desnível entre o cidadão e a
Administração Pública já exige do legislador um tratamento compensatório, o que
dizer dos litígios difusos ou coletivos? É necessário que as partes litigantes,
especialmente o autor de uma ação de interesse difuso ou coletivo contra a
Administração Pública, detenham uma infraestrutura compatível com os interesses
sub judice para que tenham reais possibilidades de êxito. Ademais, pelo sistema
proposto, a toda sociedade seria conferida o direito de provocar a atuação desse
órgão na defesa judicial do interesse difuso ou coletivo, o que assegura a
participação popular em uma fase prévia ao procedimento judicial. Restringindo-se
a legitimidade a determinados órgãos dotados de independência, chega-se com
mais facilidade à coisa julgada erga omnes dessas decisões judiciais, sem que haja
alegação de ofensa ao devido processo legal. A fim de evitar pluralidade de litígios
ou decisões conflitantes, a competência para o julgamento dessas causas seria
concentrada em um único tribunal especializado ou de instância superior, com
jurisdição territorial sobre a área em que produziu efeitos a atuação ou a omissão
administrativa sub judice. Assim, as ações judiciais que objetivassem direta e
inicialmente a proteção de um interesse difuso, coletivo ou individual homogêneo,
seriam propostas por aquele órgão dotado de independência perante um único
tribunal, instituído previamente por lei. Daí, com a garantia da representatividade
adequada e a garantia da unidade da prestação jurisdicional, resultaria a
possibilidade de coisa julgada erga omnes, condição sine qua non à efetividade da
prestação jurisdicional de natureza difusa ou coletiva no âmbito do contencioso
judicial administrativo.
Reconheço, finalmente, que este é um assunto que ensejará sempre aos
Estados uma opção política, fruto de uma ponderação de valores de acordo com a
realidade local. O que será melhor? Adotar um regime concentrado de controle da
legalidade e da moralidade da Administração Pública, restringindo a legitimidade
dessas medidas de controle a entidades representativas da sociedade, porém,
objetivando a segurança jurídica e a coisa julgada erga omnes? Ou seria melhor
que, diante da possibilidade de os órgãos de controle concentrado ou as entidades
legitimadas não serem suficientemente confiáveis ou independentes, houvesse um
controle difuso e abstrato, alargando a legitimidade ad causam para a propositura
dessas ações, mesmo diante do risco de insegurança jurídica? Afinal, qual o melhor
modelo? Será o possível e o adequado à realidade de cada Estado.
As considerações finais que merecem reflexão são as seguintes: (a)
reconhecer a impossibilidade de anulação de ato administrativo em ação popular ou
em ação de grupo, sob o fundamento de que essa anulação resultaria,
necessariamente, em produção de coisa julgada erga omnes ou de coisa julgada
ultra partes, atingindo terceiros com ofensa ao devido processo legal, seria o
262
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
mesmo que esvaziar a tutela judicial contra a administração pública para a defesa
de interesse difuso ou coletivo; (b) por outro lado, admitir a anulação de ato
administrativo em ação popular ou em ação de grupo e ao mesmo tempo restringir
a coisa julgada àqueles que tenham participado efetivamente do processo levaria a
uma grave insegurança dos cidadãos e a uma grave instabilidade do sistema do
contencioso administrativo capaz de dificultar ou inviabilizar a atuação
administrativa; (c) solução que se faria viável, para que, nos litígios coletivos de
contencioso administrativo, fosse compatibilizada a segurança jurídica com a
observância às garantias do devido processo legal, seria a atribuição da legitimidade
ad causam a órgãos públicos dotados de independência efetiva e a adoção da
competência concentrada em um único tribunal, evitando-se a pluralidade de
litígios e a existência de decisões conflitantes.
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Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
SOBRE OS AUTORES
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Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas
271
Escritos sobre Direito, Cidadania e Processo: Discursos e Práticas