Patricio Carneiro Araujo PDF
Patricio Carneiro Araujo PDF
Patricio Carneiro Araujo PDF
PUC-SP
São Paulo
2011
O SEGREDO NO CADOMBLÉ: RELAÇÕES DE PODER E CRISE DE
AUTORIDADE
PUC-SP
São Paulo
2011
BANCA EXAMINADORA:
São Paulo,_____________________
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À minha Mãe D. Maria Jóca (no aiyê): por me ensinar a viver.
Ao meu sobrinho Celso Ricardo (no Orum – In Memorian): covardemente assassinado aos
dezesseis anos.
À Mãe Gaúcha de Xangô (no Orum – In Memorian), que viu esta pesquisa começar mas não
pôde ver a sua conclusão.
Quando é hora de agradecer...
parciais. Correrei esse risco uma vez que, ao longo dessa pesquisa, me envolvi
minha mãe. Meus irmãos e irmãs: Sérgio e sua família, Paula e sua família, Sueli e sua
À minha família de santo (Ilê Axé Funfun Oxalufã) representada nas pessoas de Pai Jean
de Oxalufã, Mãe Gaúcha de Xangô (no Orum), Pai Paulo de Oxum, Nice de Oxalufã e todo o
À Mãe Leda de Oxum (“A Mãe do segredo”) e todo o seu povo do Ilê Axé Oxum
(especialmente Valéria de Oxum, Salviano de Ogum, Mãe Tutu de Ogum, Pai Marcos de
Ao Tata Silvio de Akuerã, Yá Janaína de Oxum e todo o povo do Ilê Axé Odé Ofá Omi
sinceridade e apoio.
À ialorixá Mãe Silvia de Oxalá e todo povo do Aché Ilê Obá (principalmente Paula de
Oyá, Yamorô, Renato de Ogum, Sidney de Logun Edé e Júlio de Oxósse) pela
Aos babalorixás: Pai Irapuã de Logun Edé (Ilê Axé Orô Nifã Logun Edé e Omolu –
Araçatuba/SP), Daniel de Ogum (Aché Ire-ô – Diadema/SP), Jerôncio de Xangô (Egbé Axé
Obá Ogodô - Taboão da Serra/SP) e a ialorixá Mãe Xina de Oxum (do culto batuque em
a mim concedida, sem a qual esta pesquisa não teria se realizado. Tenho profunda gratidão e
respeito pela Fundação Ford e faço questão que fique aqui registrada tal gratidão.
À Fundação Carlos Chagas, nas pessoas das professoras: Fúlvia Rosemberg, Ida
Lewkowicz , Márcia Caxeta, Sueli, Raquel Ribeiro, Maria Luisa Ribeiro, professor Leandro
Maria Lúcia Rangel, Carmem Junqueira, Marisa Borim, Maura Pardine Veras, Dorothea
Voegueli Passeti, Profo. Dr. Edgard de Assis, entre outros; pelo apoio e paciência.
Identidade e Imaginário. Como aprendo com vocês! Espero crescer ainda mais nesse Núcleo.
Obrigado!
Profunda gratidão à minha orientadora Profa. Dra. Teresinha Bernardo, pela atenção e
paciência quase maternal. Obrigado por tão transparente convivência e pela honra da sua
amizade e convívio. Como é bom aprender com “nossos mais velhos”. Espero poder contar
sempre com o privilégio da sua convivência e crescer ainda mais com a sua sabedoria.
Agradecimentos sinceros também aos professores doutores José Reginaldo Prandi e Acácio
ocasião do Exame de Qualificação. Suas observações e dicas foram mais do que importantes:
me apoiaram, antes, durante e depois da pesquisa. Entre eles: Luciélio Alves Nogueira, cujos
motivos de gratidão são tantos que aqui seria difícil arrolá-los; Thiago Moreira Melo e Silva
(pelo apoio diário e incondicional, e pela paciente leitura de todos os capítulos, além das
longas e despretensiosas discussões sobre candomblé); Leandro Sabino (pela manutenção dos
computadores, nos momentos em que mais precisei); minha prima Maria Rejânia Nunes Elias
(pela manutenção dos computadores e pela ajuda com os textos em inglês). Ao professor
Antonio Pereira dos santos. À Maria Célia Virgolino, pela amizade, carinho e cuidado. Ao
Claudinei Moreira dos Santos, pela paciência e compreensão. Ao Professor Carlos Alberto
Povoa, pela amizade e apoio desde a graduação. Ao povo do santo de São Paulo, e da Paraíba,
Aos amigos e colegas: Isabel Camacho Torres, pelo trato com os textos em outros
Em fim, a todos aqueles que me franquearam o convívio do seu cotidiano, das suas
casas e templos, permitindo-me acessar os lugares e tempos sagrados. Lugares e tempos que
Que o segredo do candomblé seja uma seta a nos orientar na direção do segredo da
Muito obrigado!
RESUMO
Este trabalho trata da relação entre conhecimento, segredo ritual e poder no candomblé. Ao
longo da história das religiões afro-brasileiras, podemos perceber que o segredo ritual assume
diferentes configurações. Ao observarmos a vida religiosa do povo do santo, podemos
perceber que a prática do segredo ritual constitui um poderoso mecanismo de elaboração e
manutenção do poder. O conhecimento religioso tradicional, que geralmente é transmitido no
contexto iniciático, funciona então como elemento fundamental na composição das
hierarquias sagradas. Assim, apropriar-se dos conteúdos do segredo é encontrar seu lugar nas
esferas hierárquicas da religião. À medida que tais conhecimentos começam a circular de
forma paralela à vida religiosa nos terreiros, as formas tradicionais de transmissão passam a
ser burladas e se instala um conflito de poder que pode resultar em uma crise de autoridade,
por parte dos mais velhos. É na perspectiva de uma análise dessas relações de poder que este
trabalho pretende contribuir no contexto dos estudos acerca das religiões afro-brasileiras.
This research is about the relation between knowledge, secret rituals and power in Candomble
religion. Throughout history in African-Brazilian religious communities we realize the
secret ritualassumes different configurations. Looking at the religious life of the adherents of
Candomblé we can seethat the practice of secret ritual is a powerful mechanism for
establishing and maintaining power. The traditional religious knowledge, which is
usually transmitted in an initiatory context, can be considered as a key element in the
composition of sacred hierarchies. In this case, the appropriation of the secret ritual
contents is a way to find its place in the hierarchical spheres of religion.
When knowledge takes a different way to the religious life on the Candomblé terraces, the
traditional forms of its transmission gets circumvented and settle a power struggle which can
result in a crisis of authority, by the elders. In a perspective of power relations analysis, this
research looks to contribute in the studies context of the Afro-Brazilian religions.
Este trabajo tiene como asunto una relación entre el conocimiento, el secreto del
rito y el poder del Camdomblé, a lo largo de la historia de las religiones afro
brasileñas podemos ver que el secreto del culto, asume diferentes representaciones.
Al observar la vida religiosa de los seguidores del Candomblé podemos notar que
el secreto del rito en la práctica constituye un mecanismo de poder, tanto en su
elaboración así como también en la manutención del poder. El conocimiento
religioso tradicional, que es generalmente transmitido en el ámbito de la iniciación,
funciona entonces como un elemento fundamental en la constitución de las
jerarquías sagradas. Así al apropiarse de las cualidades del secreto del rito se puede
conseguir un lugar dentro del círculo jerárquico de la religión. A medida que dichos
conocimientos comienzan a fluir de forma paralela en la vida religiosa y los
“terreiros” al transmitir sus expresiones tradicionales, pasan a ser burladas, inicia se
un conflicto de poder que puede resultar en una crisis de autoridad por parte de los
más viejos. Es en esta perspectiva de análisis, que este trabajo pretende contribuir a
través de los estudios sobre las relaciones de poder en las religiones afro-brasileñas.
Introdução........................................................................................................................14
Capítulo I
Capítulo II
Capítulo III
3. Segredo e poder........................................................................................................103
3.1. Nos interstícios do segredo e do poder...................................................................104
3.2. A prática do segredo e o controle do poder ............................................................109
3.3. A tensão em torno do conhecimento e o conflito como disputa de poder..............121
3.4. Quando a magia desempenha seu papel:
o segredo na fronteira entre religião e magia .........................................................125
Capítulo IV
Glossário........................................................................................................................169
Anexos ...........................................................................................................................176
Caderno 3: Adornos.........................................................................................................19
Introdução
do santo e analisa sua relação com os mecanismos de poder intra-terreiro. Trata, também, da
crise de autoridade enfrentada atualmente por grande parte das lideranças da religião, em
ritual constituiu parte delas, distinguindo-as das outras existentes na mesma época, como
Em pleno século XXI, a prática do segredo ainda se mantém viva e assume diferentes
formas nas diversas religiões que ainda se pautam na restrição e controle de informações
de uma forma bem peculiar que será analisada sistematicamente neste trabalho.
sua prática tem ultimamente voltado à tona com uma grande força.
Nas últimas décadas, o segredo tem recebido uma indisfarçável atenção por parte dos
meios de comunicação e das agências de produção cultural, entre elas o cinema, a literatura e
a televisão. Apenas para lembrarmos, um dos maiores best selers da literatura de auto-ajuda,
na última década, abordava o tema segredo (The Secret). Esse livro rapidamente foi adaptado
para o cinema. Da mesma forma outros best selers, anteriores a The Secret, já exploravam a
Algumas instituições cuja história sempre esteve marcada pela prática do segredo
também têm sido alvos de especulações e documentários pelas mais variadas emissoras de
televisão como a BBC. Para citarmos apenas alguns casos lembremos o documentário A
14
Maçonaria Revelada, produzido pela BBC, e O Documento Secreto do Vaticano, também
produzido pela mesma emissora britânica. Apesar de lidarem com instituições e temas
diferenciados, todas essas iniciativas possuem um fio motivador que inspira-lhes interesse:
segredos e revelação de segredos. Não podemos negar que em grande parte dessas produções
segredo parece estar na ordem do dia, contrariando a principal característica desse nosso
amargava 74 anos sem ganhar o título de campeã do carnaval carioca, conseguiu a façanha de
quebrar o “jejum de títulos”, abordando justamente o tema segredo, com o premiado samba-
enredo “É segredo”. E com esse samba-enredo a escola levou para a avenida “os grandes
segredos da humanidade”, como noticiou a Agência Estado, no dia três de fevereiro de 2010
manutenção do chamado sigilo eterno, que pesa sobre uma gama de documentos oficiais e
secretos que envolvem parte da história desse país. Novamente, as relações de poder se
confrontam quando a discussão é suspender ou manter o segredo que paira sobre tais
documentos.
segredo ou sociedades secretas, como é o caso da coleção que leva o nome de Sociedades
português no Brasil e despejada nas bancas de revistas, para alimentar o insaciável público,
15
produzidos nas décadas de 1980 e antes, as lojas especializadas em material de culto afro-
brasileiro tiveram que ampliar suas prateleiras a fim de abrigar esse material que é facilmente
reproduzido e largamente vendido, principalmente para o próprio povo do santo que, entre um
ritual e outro, se coloca diante da televisão (hoje de plasma) para assistir Feitura de Yaô, Mãe
Nos últimos meses do ano de 2010, algumas das maiores nações mundiais, e
principalmente os EUA, entraram em polvorosa depois que o site wikileaks, idealizado pelo
países. Sendo esses segredos considerados segredos de estado, seu vazamento estabeleceu um
nunca a questão do segredo esteve tão em pauta quanto nos últimos tempos.
Nas religiões afro-brasileiras o segredo sempre foi uma prática inerente ao culto e à vida
presente tanto nos espaços físicos e simbólicos do terreiro quanto no ethos do povo do santo,
como atestam as primeiras etnografias e alguns dos mais recentes estudos sobre essas formas
de religiosidade.
Meu interesse pelo tema do segredo remonta ao período em que estudei Filosofia e
16
estudos do Fenômeno Religioso, fui levado a frequentar os terreiros de João Pessoa, nos quais
fiz bastantes amizades, o que me fez estreitar meus laços com o candomblé. Ainda ali,
principalmente no terreiro Palácio Xangô Alafin, do Babalorixá Pai Gilberto de Xangô, pude
rituais secretos, mesmo quando executados em festas e ambientes públicos, despertavam, nos
sua importância para a manutenção desta religião. Só fui perceber bem depois que este tema
ainda continuava tabu, tanto entre os acadêmicos, que não queriam ser confundidos com
chamada de “segredismo”), quanto pelo povo do santo, que sempre evitava falar sobre
segredos, reservando sempre aos mais velhos a responsabilidade de dar explicações sobre esse
assunto. No entanto, como já foi dito, nas últimas décadas o tema do segredo voltou à tona
nas discussões e produções acadêmicas e culturais, e vejo nesse momento uma boa
segredo no candomblé.
Por meio de uma sistemática pesquisa de campo, somada a uma cuidadosa passagem
candomblé, este trabalho pretende analisar a importância do segredo nesta religião e suas
e outras formas de transmissão externas aos terreiros e ao processo iniciático, o propósito aqui
em nada se relaciona com o desejo de revelar segredos. A pesquisa pretende somente analisar
17
a forma assumida pela prática do segredo no candomblé, em pleno século XXI e ao mesmo
tempo analisar também os resultados daquilo que aqui está sendo chamado de “circulação
A pesquisa foi realizada entre janeiro de 2010 e setembro de 2011, em terreiros de São
Paulo e junto à pessoas do santo ligadas a terreiros também de outras regiões do Brasil, apesar
do nosso foco ter sido os terreiros de candomblé de São Paulo e sua região metropolitana.
Entre as principais casas pesquisadas estão: Ilê Axé Funfun Oxalufã, do Pai Jean de
Oxalufã, em Taboão da Serra – SP; Ilê Axé Oxum, da Mãe Leda de Oxum, São Paulo –SP;
Aché Ilê Obá, da Mãe Sylvia de Oxalá, São Paulo – SP e Ilê Axé Odé Ofá Omi e Caboclo
Entre os critérios de seleção das casas, achamos por bem acompanhar duas que já
conhecíamos (Ilê Axé Funfun Oxalufã e Ilê Axé Odé Ofá Omi e Caboclo Itayguara) - o que
nos daria um relativo conforto para falarmos sobre segredos - e duas casas nas quais teríamos
que estabelecer vínculos durante a pesquisa (Aché Ilê Obá e Ilê Axé Oxum). E assim fizemos.
Dessas quatro casas, três têm suas origens na umbanda e mantém até hoje uma relação
não mantendo culto às entidades de umbanda. Três delas se afirmavam como de nação Ketu e
uma de nação Angola. Duas delas são lideradas por mulheres e duas lideradas por homens.
Entre as lideranças encontrava-se uma mulher negra e as demais lideranças eram brancas.
Procuramos também não ficar presos às casas mais famosas de São Paulo, assim como
lideranças das casas pesquisadas, uma ialorixá tem grande visibilidade na mídia e outra tem
uma considerável passagem pela televisão. Já os babalorixás mais ouvidos, lideram casas de
menor visibilidade, mais de grande procura, tanto por filhos de santo quanto por clientes de
18
diversas partes de São Paulo e do país. Assim, podemos dizer que nosso campo de pesquisa
pode ser caracterizado como relativamente diversificado, apesar de ter se limitado mais
Em cada casa foram entrevistadas três pessoas ligadas a diferentes níveis hierárquicos
(abiã, iaô, ebôme) e observados diferentes cerimônias e rituais. A opção por entrevistar e
manter uma conversa contínua com pessoas das três diferentes esferas hierárquicas se deve à
nossa compreensão de que cada nível hierárquico possibilita uma relação específica com os
conhecimentos que, pretensamente, são transmitidos ao longo da vida iniciática. Dessa forma,
teríamos uma tripla aproximação com os conteúdos do segredo através dessas pessoas, ao
ritos, os principais teóricos nos quais encontramos respaldo para a análise, são: Georg Simmel
(1977), Pierre Bourdieu (1974), Georges Balandier (1997), Arnold Van Gennep (1977) e
partida para a análise em curso. Por isso mesmo, este ensaio é constantemente retomado ao
longo da análise.
Pierre Bourdieu, por sua vez, foi fundamental para a compreensão do conhecimento
Ao tratar da gênese e estrutura do campo religioso, ele dá valiosas pistas para uma
constantes disputas entre seus agentes (corpo sacerdotal, profetas, feiticeiros e leigos).
Também no candomblé podemos aplicar estas tipologias, ao tratarmos dos conflitos existentes
19
em torno dos processos de recriação, transmissão e conservação do saber religioso, que
estabelecimento de uma nova ordem. E é nesse movimento que acreditamos estarem situadas
de candomblé.
Quanto a Arnold Van Gennep e Victor Turner, suas análises a respeito dos ritos são
indispensáveis à análise que levamos a cabo. Os estudos de Van Gennep continuam atuais
quando o assunto é o estudo de ritos e mais precisamente, de ritos de iniciação. Dessa forma,
não podemos prescindir de suas palavras ao estudarmos o segredo ritual. Já Victor Turner
muito ajudou com seus estudos acerca dos ritos e de seus sentidos.
estudos desenvolvidos por diversos autores, entre eles: Roger Bastide (2001), Reginaldo
Prandi (1991; 2001; 2005; 2007), Vagner Gonçalves da Silva (1995; 2006), Teresinha
Bernardo (2003), Muniz Sodré (1988), Júlio Braga (1995; 2006), Armando Vallado (2010),
Fernando de Tacca (2009) e Lisa Earl Castillo (2005). Todos eles são indispensáveis à
qualquer estudo e pesquisa que se venha realizar a respeito das religiões afro-brasileiras. Da
uma forma mais específica, oferecem pistas muito seguras quando o assunto é segredo ritual e
relações de poder nessas religiões. Dessa forma, ao longo deste trabalho a consulta a seus
estudos é recorrente.
antropologia, no sentido mais amplo, com a antropologia e sociologias das religiões afro-
20
brasileiras, constitui o nosso referencial teórico básico para a análise que nos propomos
hierarquia das casas pesquisadas. Dessa forma, para cada casa foram selecionadas três
pessoas: o babalorixá ou ialorixá (ou ainda um ebôme da casa), um(a) iaô e um(a) abiã. Em
hierárquico, por motivos que serão explicados com clareza ao longo da análise do material
coletado. A escolha pelas técnicas qualitativas se justifica pela já comprovada eficácia dessas
possibilita uma proximidade maior com os sujeitos da pesquisa por parte do pesquisador,
inspirava certa preocupação, uma vez que, no candomblé as relações hierárquicas delimitam
se verifica uma conversa franca sobre segredos, estabelecida entre iaô e ebôme, por exemplo.
Minha preocupação era de ter o diálogo com meus interlocutores, comprometido, em função
da minha condição de iaô. No entanto, depois pude ver que a condição de iniciado em nada
facilitava do que dificultava. Neste aspecto, concordo com Geertz (1973 [2008]), quando diz
que, quanto mais próximo estou do objeto de estudo mais eu o conheço. Isso também me
21
ajudou a manter um aprofundamento, cada vez mais constante e consistente, na elaboração de
segurança o acesso à convivência das suas casas. Uma das estratégias metodológicas que
resolvi adotar consistiu em não revelar inicialmente a condição de iaô (naquelas casas aonde
ninguém me conhecia) até que alguém me perguntasse diretamente sobre isso. Como era de se
um empecilho metodológico. Pelo contrário, quando as pessoas ficavam sabendo que eu era
feito, o diálogo fluía com mais desenvoltura e interesse. Pude, então, me certificar de que ser
iniciado, longe de representar uma barreira metodológica, constituía mesmo uma condição
sine qua non para a viabilidade da pesquisa a respeito do segredo no candomblé. Dessa forma,
minhas maiores dificuldades durante a realização da pesquisa foram: não ter um carro à
disposição (o que restringia bastante a mobilidade) e não dirigir. Além de ter que voltar à sala
de aula, como professor de História na rede pública, durante as últimas etapas da pesquisa
Antropologia, apesar de, durante muito tempo, o estudo do segredo ter se mantido atrelado à
Entre os ensaios e trabalhos mais conhecidos podemos citar Simmel (1977), Gennep
(1978), Davis (1986) e outros. No que concerne ao segredo no candomblé, a bibliografia não
maioria desses trabalhos não ser satisfatoriamente específica na análise do tema. Entre os
trabalhos mais conhecidos e consistentes estão: Landes (1967), Santos (1976), Sodré (1983),
22
Verger (1995), Jonhson (2002), Prandi (2005), Silva (2006), Tacca (2009), Castillo (2010),
entre outros.
tema do segredo é tratado detidamente. Isso pode ser facilmente perceptível em trabalhos
como os de Edson Carneiro (1948), Nina Rodrigues (1935) e Roger Bastide (1958 [2001]),
por exemplo. Da mesma forma Olga Cacciatore, já em 1977, não se preocupou em reservar
se apenas a explicar o termo Eró, e, mesmo assim, não lhe reservando grandes explicações. E
aqui cabe algumas perguntas: por que o tema do segredo foi sucessiva e historicamente
existência do candomblé? Seria uma tentativa dos estudiosos de fugirem do tão criticado
modalidades religiosas? Essa lacuna no estudo do segredo teria a ver com a relação do
detida e sistemática, a respeito desse elemento inerente aos cultos afro-brasileiros, sendo que
entre os trabalhos que melhor explicaram o fenômeno do segredo e de suas rupturas estão
que desenvolve um inquestionável papel de coesão social no interior dos terreiros, além de
organizar os espaços sagrados e engendrar as relações de poder. Porém, tanto o segredo como
sua prática são arbitrários e permutáveis. Isso fica ainda mais evidente diante dos processos de
transformações pelos quais passa essa prática nas últimas décadas, em função da circulação
diversos meios de comunicação, entre eles a Internet. Esse “vazamento” de fundamentos, por
23
sua vez, tem provocado uma espécie de “conflito entre gerações iniciáticas” que se traduz em
poder que tem provocado uma verdadeira crise de autoridade. Isso por que a base da
hierarquia se estrutura sobre o princípio da senioridade e da submissão ritual, que por sua vez
Penso que a literatura existente não deu conta ainda de tratar de forma satisfatória a
análise mais sistemática do segredo, tanto no que diz respeito à sua estrutura e mecanismos de
funcionamento quanto à sua importância e constantes transformações. É isso que este trabalho
Capítulo mais teórico, no qual discorrerei sobre o conceito de segredo e sua aplicação na
Sociais a fim de fazer uma incursão pelo estudo do segredo entre as populações afro-
forma como se organiza o segredo no candomblé e as formas através das quais o segredo
24
Capítulo III: Segredo e poder. Aqui será analisada a relação entre conhecimento,
mecanismos de manutenção do poder entre o povo do santo, e mais precisamente pela esfera
dos ebômes.
serão discutidas as diferentes formas de tratamento que têm sido dispensadas ao segredo.
santo, assim como a circulação paralela dos fundamentos na internet e outras formas
midiáticas. Também será discutido a respeito da crise de autoridade instalada no interior das
Aqui se dirá que a crise de autoridade revela, em parte, a disputa da esfera dos ebômes pelo
um futuro próximo.
Ao final deste trabalho, caso nossos interlocutores (tanto na academia quanto entre o
povo do santo) tiverem claro que o segredo no candomblé sofre grandes transformações neste
momento devido ao “vazamento de fundamentos”, e que esse processo tem incidido sobre as
relações estabelecidas dentro dos terreiros, o propósito do trabalho terá sido alcançado.
25
Capítulo I
“O segredo impedia que os viajantes se entregassem a uma observação mais completa das
seitas africanas”
(Roger Bastide - As religiões africanas no Brasil).
começaremos esta abordagem esclarecendo aquilo que o candomblé não é. Este recurso a uma
espécie de via negativa sobre a natureza do candomblé ficará claro durante a análise das
abordagens acerca do segredo, tanto nas sociedades secretas ao longo da história, quanto no
candomblé do século XXI, desde as primeiras etnografias sobre esta religião até os trabalhos
mais atuais a este respeito. De fato, a maioria das etnografias sobre o candomblé sempre
começa reconstituindo a história do candomblé. E para isso retoma suas origens mais remotas
até chegar à forma atual dessa modalidade religiosa. É dispensável citar aqui a bibliografia,
religião afro-brasileira1
candomblé não é uma sociedade secreta, apesar de ser uma religião de segredos e ser
devedora das sociedades secretas africanas, como se verá no segundo capítulo deste trabalho.
segredo nesta religião, se faz necessário passar, mesmo que de forma rápida, pela história das
1
Tal bibliografia será constantemente citada e retomada ao longo desse trabalho.
26
sociedades secretas, como já foi dito na Introdução. Essa passagem se mostra imperativa
(i) Pelo fato de o estudo do segredo ter se mantido durante muito tempo atrelado à
História das Sociedades Secretas.2
(ii) Pela hesitação de boa parte dos sociólogos e antropólogos em relação ao tema do
segredo, talvez por não desejarem ser associados à caça de segredos, típica de alguns
antropólogos à serviço de instituições européias e norte americanas que, ávidas pelo lucro,
(Davis, 1986).3
Fica então esclarecido aqui que o candomblé não constitui uma sociedade secreta,
(aqui nos referindo ao segredo da confissão e ao segredo ligado aos processos burocrático-
administrativos, como a eleição e a sucessão de bispos, por exemplo), uma vez que naquela o
segredo assume um caráter mais corporativo enquanto nesta o segredo está mais ligado a uma
preservação da identidade dos agentes envolvidos, o que não encontra paralelo nas relações
2
E sobre essa relação entre o estudo do segredo e das sociedades secretas, uma frase de Schreiber, de
1956, pode nos indicar o desafio que esse estudo representa. Assim ele falou: “A história das
sociedades secretas ainda não foi escrita e exigirá forças sobre-humanas para o ser um dia”
(SCHREIBER & SCHREIBER, 1956).
3
Ao resenhar o conhecido livro de Paul Christopher Johnson, Secrets, Gossip and Gods (2002), Brian
Brazeal ironiza: “É verdade que a Antropologia tem um apetite voraz pelos segredos de candomblé,
mas a ameaça apresentada a esses segredos pela disciplina é exagerada nessa obra”. (BRAZEAL,
Brian. Reseña de Secrets, Gossip and Gods. In: Afro-Ásia, nº 032. Universidade federal da Bahia,
Bahia, Brasil, 2005. pp. 315-320).
27
Ao fazermos essa distinção entre o segredo no candomblé e em outras instituições,
Segundo a maioria dos dicionários a ideia de segredo está ligada ao “que não pode ser
envolve o recurso aos sentidos, como, por exemplo, a audição, sendo que o segredo impõem à
passa a ser “dizer em voz baixa”. Este mesmo campo semântico construído em torno do
substantivo Segredo, pressupõe uma relação estabelecida entre mais de um sujeito, quando se
trata de segredar, ou produzir o segredo. Podemos então concluir que sem relação não há
segredo, fato do qual também podemos inferir que quando falamos de segredo
na maioria dos loci do segredo, e no contexto desta pesquisa, no universo simbólico religioso,
28
Quando transposto para as ciências humanas e sociais como objeto de análise, o segredo
tem seu sentido dilatado, passando então a ser visto como um elemento que estabelece
Como já foi dito, durante muito tempo o estudo do segredo encontrou-se mais retido no
campo da história das Sociedades Secretas. E isso, como veremos, resultou em significativas
vantagens para o estudo do segredo, mas também deu margem a análises superficiais, e até
distorcidas, quando se arriscou uma análise do segredo nas religiões afro-brasileiras. E aqui
Georg Schreiber (1956) e As Sociedades Secretas (s/d), de Serge Hutin. Apesar de provirem
de área distinta da nossa, estes trabalhos nos serão muito úteis como ferramentas de análise no
Um dos méritos destes trabalhos está na constatação, que hoje nos parece um tanto
óbvia, de que nestas sociedades a iniciação corresponde à fronteira entre o mundo profano e o
mundo sagrado da associação. É nessa fronteira que o segredo se impõe como chave-mestra
4
Entre os quais podemos acrescentar a manutenção das relações de poder, como ficará claro ao longo
deste trabalho.
5
Aqui já podemos vislumbrar uma das diferenças entre a relação estabelecida entre essas sociedades e
o que se dá no candomblé, quando o assunto é o segredo. Enquanto nelas a manutenção do segredo é
formalizada ritualmente, no candomblé a preservação do segredo se apóia em um acordo tácito. De
fato, ao longo da minha passagem pela religião, tanto na condição de iniciado quanto na condição de
pesquisador, só presenciei “juramento de segredo” uma única vez, sendo que nesta ocasião a exigência
do juramento me pareceu mais relacionado com o caráter dos sujeitos que ora se iniciavam, uma vez
29
Já na introdução da sua obra, Hutin nos apresenta uma esclarecedora análise das
distingui-las de forma clara e minuciosa (pp. 11ss). Na sua compreensão, o que parece
bastante plausível, a iniciação é esse umbral que separa e ao mesmo tempo une o mundo dos
sociedade em questão, sendo que este mesmo processo, como nos mostra o exceto acima,
tanto pode incluir rituais públicos quanto privados, ou secretos, como prefere o autor.
sociedade, como defende o autor. Esta sociedade, de iniciados que iniciam, se estrutura sobre
a base dos conhecimentos adquiridos na iniciação pregressa que, por sua vez, estabelece uma
hierarquia pautada na detenção dos conhecimentos secretos que, através das sucessivas
30
Esta reflexão do autor pode ser aplicada, também, à estrutura iniciática no candomblé,
e ao seu sentido. Mais adiante veremos como os “desvios” do respeito pelas tradições e a
inobservância da minuciosa execução dos ritos (o que se poderia associar a uma pretensa
Voltando à questão mais ampla dos processos iniciáticos e das formas de aquisição
dos conhecimentos esotéricos, podemos afirmar que esses graus relativos de perfeição, dos
quais fala Hutin, podem mesmo serem associados a uma verdadeira mutação ontológica, para
utilizar uma expressão de Micea Eliade (2010, p. 148), cuja mutação se traduz em um
engendramento de uma nova personalidade por parte do iniciado7, aspecto sobre o qual a
realizada pelos Schreiber’s (1959), já citados. Sua obra, que levou o sugestivo título de
História e Mistério das Sociedades Secretas, nos parece ir na direção evitada por boa parte
dos cientistas sociais que não desejavam ser confundidos com caçadores de segredos9. No
primeiro livro dessa obra, publicada inicialmente em 1956 com o título de Mysten, Maurer
6
Gíria oriunda dos falares baianos e que terminou sendo absorvida pelo povo do santo de modo geral,
sendo utilizada ainda hoje para se referir às práticas tido como pouco ortodoxas. Ver Glossário, no
final deste trabalho, verbete “Marmotagem”.
7
Como sempre insistiu Pierre Verger (1981), ao falar sobre a iniciação no candomblé.
8
Para ficarmos, inicialmente, apenas com dois exemplos citemos ELIADE, Micea. O sagrado e o
profano. WmMartinsfontes, São Paulo, 2010 e WACH, Joachim. Sociologia da religião. Edições
Paulinas, São Paulo, 1990.
9
E aqui estamos chamando de “caçadores de segredos” a uma certa categoria de antropólogos que,
como aconteceu com Wade Davis (mais não só com ele), assumiu uma postura pouco ética ao se
infiltrar (ou pagar a alguém que se infiltrasse) nas sociedades tradicionais por eles pesquisadas, a fim
de descobrir supostos segredos que poderiam ser capitalizados por eles, numa semelhança não muito
distante de certos aventureiros como o lendário personagem de cinema Indiana Jones. Continuamos
com o caso de Wade Davis como emblemático. A propósito o título em português do seu conhecido
livro, já nos dá uma boa pista do que teria sido sua incursão entre as sociedades secretas do Haiti na
década de 1970: A serpente e o arco-íris: zumbis, vodu, magia negra. Viagens de um antropólogo às
sociedades secretas do Haiti e suas aventuras dignas de um novo Indiana Jones. (Publicado pela Jorge
Zahar Editor em 1986, cujo título original em inglês era The Serpent and the Rainbow).
31
und Mormonen (“Místicos, maçons e mórmons”), e depois traduzida, em 1959, para
análise deles, estaria, durante a segunda metade do século XIX, envolvida em práticas de
feitiçaria10 e sacrifícios humanos. Ao analisar a dispersão dos negros ligados à suposta “Liga
da Macumba” através do Rio Amazonas e pela floresta e cidades adentro, os autores não
Muito poderia ser dito a respeito dessas palavras dos autores. Desde que eles
antecipam em algumas décadas o discurso da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), até
10
Mais adiante analisaremos a relação entre religião e magia (feitiçaria) no candomblé e veremos
como o segredo também permeia esta relação, engendrando as relações de poder entre os agentes
envolvidos nessas práticas.
11
Orixás? Voduns? Inquices?
32
por enquanto, com a ideia de que a análise nos convida a refletir a respeito de uma prática de
dividir segredos entre o povo do santo e aqueles que não o são necessariamente.
Isso para entendermos que o movimento que tomará força a partir da década de 1950, a
que estamos chamando de “vazamento de fundamentos”, pode ter precedentes já nas últimas
Ainda na tentativa de explicar o que eles chamam de “macumba”, e que não podemos
afirmar seguramente que seja exatamente a mesma coisa a qual Roger Bastide (1960) define
Um pouco mais adiante, terminam revelando o que de fato pensam sobre estes cultos e
Unidos e à “civilização”:
33
preferido de famosos aventureiros e, no século dezenove mais ainda, o local
das diabruras dos grupos ítalo-americanos da Máfia. Subindo de Nova-
Orleans pelo Missisipi, os costumes da macumba encontram velhas regiões
de fixação de negros, portanto terreno propício para inoculação, ainda que
de maneira geral se possa dizer que as populações de cor dos Estados
Unidos se servem para a defesa dos seus interesses, de meios que se
acomodam melhor às condições de um estado civilizado moderno do que ao
tremeluzir das ligas secretas religiosas. (Ibidem, p. 27. Grifos nossos)
Aqui, assim como ao longo de toda a abordagem reservada pelos autores à análise da
“macumba”, esses cultos são apresentados como uma sociedade secreta perigosa que avança
em direção aos Estados Unidos, se apoiando nos nichos negros e inoculando seu veneno
perigoso entre os norte-americanos, que se veem diante de um risco à sua civilização, uma vez
que estes, segundo os autores, se servem para a defesa dos seus interesses, de meios que se
com os atuais estudos de Ari Pedro Oro12 , Ismael Jr. Pordeus13 e outros estudiosos que se
dedicam aos estudos da expansão dos cultos afro-brasileiros pela Europa e pelo mundo,
fenômeno que ganha cada vez mais força e visibilidade política e acadêmica.
margem a práticas tanto por parte do povo do santo que, na tentativa de evitar falsas
interpretações, passaram a agir com uma discrição cada vez maior no que se refere a
determinadas rituais privados dos seus cultos, quanto por parte da academia em relação ao
12
ORO, Ari Pedro. Axé Mercosul: as religiões afro-brasileiras nos países do Prata. Vozes, Rio de
Janeiro, 1999.
13
PORDEUS, Jr. Ismael. Uma casa luso-afro-brasileira com certeza: emigrações e metamorfoses da
umbanda em Portugal. Terceira Margem. São Paulo, 2000.
34
Com isso, muitos pesquisadores passaram a evitar os estudos do segredo a fim de não
impôs, então, cada vez mais imperioso, provocando, assim, um afastamento relativo dos
segredo14.
relação entre o candomblé e o segredo, que achamos necessário deixar bem claro que na nossa
abordagem, o candomblé não é visto como uma sociedade secreta, apesar de podermos
analisá-lo a partir de categorias de análise próprias da história das sociedades secretas, como é
desde suas primeiras manifestações nas religiões de mistério da antiguidade, como as que
esoterismo islâmico e pelas iniciações do mundo medieval, até desembocar nas formas de
Máfia (Hustin, s/d; Schreiber & Schreiber, 1956) as Ciências Sociais, e principalmente a
Sociologia, analisam o papel do segredo como uma das primeiras e mais eficientes formas de
socialização. E nesse sentido, o estudo de Georg Simmel, Estúdios Sobre las Formas de
14
E, de fato, ao analisar a maior parte das etnografias a respeito das religiões afro-brasileiras até o
final da década de 1990 percebe-se que um dos aspectos que menos atraia o interesse dos
pesquisadores era justamente o tema do segredo ritual. Talvez pelo fato de o segredo realmente não
existir ou ser dado como suposto, como defendem Reginaldo Prandi (2005) e Johnson (2002).
35
Ao lado do ensaio de Mário Dal Pra, elaborado para a Enciclopédia Einaudi,
No referido ensaio Simmel começa por situar o segredo como umas das primeiras e
relaciones de los hombres entre si, descansan, naturalmente, en que saben algo unos de
otros. (Simmel, 1977, p. 357). Assim, a prática do segredo funcionaria como um movimento
predispostos a uma relação. Porém, nas teias que constituem essa relação se esconde o risco
E Simmel continua:
conhecimento mútuo que por sua vez constrói a confiança necessária para que se produza a
36
Cómo en algunas esferas el conocimiento mutuo no necesita ser igual por
ambas partes; cómo ciertas relaciones, ya establecidas, se determinan en su
evolución por el creciente conocimiento de uno por otro o de los dos por los
dos; y, finalmente, al contrario, cómo nuestra imagen objetiva del otro es
influenciada por las relaciones de la práctica y de la sensibilidad. (p. 358)
Mas, como nunca se puede conocer a otro en absoluto (Idem), (...) nuestras relaciones
van desenvolviéndose sobre la base de uno saber mutuo, y este saber se funda a su vez sobre
sentido cuantitativo, lo que revelamos incluso a las personas más íntimas, no son sino
segredo, por sua vez, atua como regulador do conhecimento mútuo e desigual que age no
equilíbrio (ou desequilíbrio) da relação entre indivíduos e grupos, como afirma Simmel:
(...) La limitación del conocimiento que uno tiene de otro – no es más que
uno de los médios, una táctica, que puede calificarse de positiva, y, por
decirlo así, agresiva, siendo así que el fin puede conseguirse, y en general se
consigue, por el secreto y la ocultación. (Simmel, op. cit. p. 355-356)
O controle então que se dá sobre aquilo que um sabe do outro passa então a servir de
manter coesos os sujeitos dessa relação estabelecida. Porém é preciso também manter o
respeito pelo segredo do outro, uma vez que o contrário poderia resultar no mesmo efeito
37
El grado de conocimiento que supone el ser “conocido”, no se refiere a lo
que el otro es “en si”, no a lo que es en su interior, sino en aquella parte que
manifiesta a los demás, al mundo. Por eso el “conocimiento” en este sentido
del trato social es el lugar adecuado de la “discreción”. Esta no consiste tan
solo en respetar el secreto del otro, su voluntad directa de ocultarnos tal e
cual cosa, sino en evitar conocer del otro lo que el positivamente no los
revele. (p. 369, grifos nossos)
frente al tercero”. Isso seria o que se pode chamar de segredo. Ou seja, o segredo também
Esse “segundo mundo”, de que fala Simmel, para o povo do santo é justamente o
mundo da religião e dos terreiros. Das hierarquias e do espaço sagrado. E nesse mundo, o
segredo ritual funciona como chave de acesso e de controle. A busca pelo saber, pelo
Una de las características de toda relación entre dos personas o entre dos
grupos es el haber en ella secreto y la medida en que lo hay; pues aun en el
caso de que el otro no note la existência del secreto, este modifica la actitud
del que lo guarda y, por consiguinte, de toda la relación. (p. 378).
38
?Hasta qué punto la cuantía del secreto es modificada en sus consecuencias
por la importância o indiferencia de su contenido? (...) El secreto es una
forma sociológica general, que se mantiene neutral por encima del valor de
sus contenidos. (p.379)
No entanto, não se deve ceder com facilidade a quase irresistível atração que o segredo,
e a possibilidade de conhecer seu conteúdo, exercem sobre os sujeitos. Na maioria das vezes,
inclusive, seu conteúdo nem sempre é profundo e importante, podendo inclusive confundir-se
com o vazio, como veremos nos próximos capítulos através de alguns exemplos. De início, a
única certeza que o segredo pode oferecer é que o mesmo impõe uma barreira
(hierarquização) entre os homens que, por sua vez, querem por força transporem-na. É
justamente aqui que percebemos o quanto o segredo está visceralmente ligado às relações de
poder. E como as relações de poder são conflitantes, podemos nos arriscar a dizer que onde há
segredos (ou mesmo suposição de segredos) há, da mesma forma, conflitos e pontos de
tensão.
O artigo já citado de Dal Pra (1990) ao mesmo tempo em que retoma as abordagens da
Para Dal Pra, o estudo do binômio Esotérico/Exotérico passa pela análise da prática do
segredo e consequentemente da história das sociedades secretas. Estas, mesmo não podendo
serem associadas à forma inicial de agregação social, são um fato quase universal e estão
iniciados seus mistérios, está ligada ao fato de elas ajudarem a conservar a moralidade da
tribo e da religião. Isso possui uma dupla implicação, ligada tanto às aristocracias quanto à
desta pesquisa. A precisão das suas palavras, não obstante os ajustes necessários à
na análise que nos propomos fazer das transformações pelas quais a prática do segredo no
Muitos dos elementos da sua abordagem são recorrentes em outras, como na de Hutin e
Simmel (1977). Um desses exemplos é quando ele fala do processo iniciático nas sociedades
primitivas:
40
A passagem de um nível a outro da iniciação e, portanto, a progressiva
aquisição de uma maior dignidade sacro-religiosa não dependem tanto do
nível social do iniciado quanto do tempo que passou nos graus inferiores e
de algumas qualidades pessoais. (...) Só os graus mais elevados conhecem
os segredos mais recônditos e o respectivo culto religioso. (Idem, p. 222)
atinge um nível de abrangência de análise que parece mesmo abarcar os fenômenos pelos
prática associativa corroborando, como foi dito, o pensamento de Simmel. Sua conclusão, no
metamorfosear, chegando, inclusive, a assumir outras formas e natureza, como acontece com
41
É no rol desses posicionamentos de Simmel e Dal Pra que desenvolveremos nossa
análise das transformações pelas quais a prática do segredo no candomblé vem passando. A
seguir, faremos uma análise de parte dos trabalhos e pesquisas já desenvolvidas nesse sentido.
século XXI, com trabalhos como o de Johnson (2002), Prandi (2005), Silva (2006), Tacca
candomblé desde o início dos estudos afro-brasileiros. Nina Rodrigues, Artur Ramos, Edson
Carneiro, Ruth Landes, Roger Bastide, Pierre Verger, entre outros, estão entre aqueles que,
segredo como elemento constitutivo do imaginário religioso do candomblé e dos cultos afro-
brasileiros. Entre os trabalhos mais recentes e que melhor sistematizaram os estudos sobre
posicionamento no estilo diplomático, através do qual fica claro que a prática do segredo
existe, mas que, no entanto, esse mesmo segredo em nada impede o desenvolvimento da
pesquisa proposta. Isso fica claro no clássico e controverso estudo realizado por Ruth Landes,
por exemplo. No seu famoso livro A cidade das mulheres (1947), todo o clima de suspense
criado em torno da figura do babalaô Martiniano do Bomfim, se esvai no jogo de búzios que
este realiza para Landes e sua companheira, contratada para se submeter também ao jogo do
velho e misterioso babalaô. O leitor termina com a sensação de ‘ter nadado muito e morrido
42
na praia’. Da mesma forma paira sobre o leitor a sensação de que o segredo e seus pretensos
dos não-adeptos, a fim de atrair-lhes à religião, como a mosca é atraída pela irresistível luz da
detentores dos segredos da religião, tem sido colocada em xeque pelos movimentos
controlados pela tradição oral dos terreiros. Isso tem dado lugar a contradições e conflitos no
interior dos terreiros, conflitos estes que envolvem gerações diferentes e incita os jovens a
pressionarem os mais velhos em busca de supostos segredos guardados. Esta situação tem
imposto à religião, novas configurações que se mostram inevitáveis. Ainda segundo Prandi,
esses conflitos, que se instalam no interior dos terreiros e da religião, podem ser percebidos
nas opiniões de alguns adeptos que, em se tratando de segredos guardados, assumem uma
dupla divisão de opiniões: (i) aqueles que acreditam na existência de segredos guardados
pelos mais velhos, e que devem ser recuperados, em nome da sobrevivência da religião e (ii)
aqueles que acreditam que estes mesmos segredos já estão irrecuperavelmente perdidos.
os tais segredos guardados. Segundo Prandi, essa tentativa se explica da seguinte forma:
43
Para essa parcela do povo do santo que reivindica a retomada destas tradições
para restaurar o grande poder mágico da religião (Ibid). Mesmo que, para isso, tenha-se
que pagar. O que geralmente implica em possível submissão ritual em relação àquele que
Diante dessa análise, nos cabe algumas questões que serão trabalhadas de forma mais
detida nos próximos capítulos: o revelar dos segredos seria então a solução para o impasse dos
cultos? Até que ponto a revelação implica na perca de poder por parte da esfera dos ebômes?
as relações sociais estabelecidas no interior dos terreiros? Estaria a autoridade dos mais velhos
sendo ameaçada pela curiosidade inveterada dos mais novos, ávidos por segredos que talvez
não existam? Não seria as relações de poder que estariam em conflito? Estaria o poder
No conjunto dos estudos sobre as transformações pelas quais o candomblé tem passado
15
Tema que também é retomado por Lisa Louise Earl Castillo na sua tese de doutoramento no
departamento de Letras da UFBA: CASTILLO, Lisa Louise Earl. Entre a oralidade e a escrita:
Percepções e usos do discurso etnográfico no candomblé da Bahia (tese de doutoramento). Salvador,
2005 (Depois publicada em 2008 pela Editora EDUFBA).
44
antropólogo e sua magia (2006) o autor reservará um capítulo para a compreensão da relação
pela pesquisa do campo religioso afro-brasileiro, Silva aborda, de forma tão sucinta quanto
clássicos de “revelação dos segredos” e “preservação dos segredos” que compõem a história e
e dos livros Le Cheval des Dieux (1951) e Dieux d’Afrique17 (1954), respectivamente de
Henri-Georges Clouzot e Pierre Verger, assim como O Segredo das folhas (1993), de Flavio
Pessoa de Barros, são discutidos à luz das opiniões de religiosos e religiosas que veem com
reservas publicações (sejam escritas, fotográficas, filmográficas, etc.) que levam ao domínio
Entre as muitas contribuições do texto de Silva (2006) para essa análise estão as
conclusões seguintes:
(i) “[...] o segredo nessas religiões é menos uma questão de ‘conteúdo’ de informações
específicas e mais de controle do acesso dos religiosos aos fragmentos dos conhecimentos
litúrgicos com os quais se pode sistematizar o corpus religioso de uma forma mais legítima”
16
E repetimos que a nossa compreensão de segredo está estreitamente ligada à adotada por Silva.
17
Ambos os casos são estudados depois por Fernando de Tacca (TACCA, Fernando de. Imagens do
Sagrado. Unicamp & ImprensaOficial, São Paulo, 2009)
18
Essa mesma reflexão abrange a discussão em torno dos pressupostos éticos que envolvem tanto o
fazer religioso do povo do santo quanto o fazer científico dos pesquisadores envolvidos nos casos
citados. Sobre o fazer dos pesquisadores o trabalho de Silva é fundamental. Sobre o fazer do povo do
santo é o que este presente trabalho pretende analisar.
45
(ii) “[...] o segredo opera como uma estrutura de termos de significação variável que se
definem por oposição e contraste, em meio às relações de poder e concorrência existente entre
A conclusão (i) nos servirá como ponte para a análise da estrutura e natureza do segredo
no candomblé (matéria do próximo capítulo). Já a conclusão (ii) nos servirá como elemento
básico na construção do conceito de segredo que será adotado neste trabalho. Tal conceito
patrimônio simbólico do povo do santo, que se produz e reproduz nas relações intra e extra-
terreiro.20
segredo. E devemos confessar que foi preciso observarmos bem as dinâmicas do candomblé
até percebemos que não era o segredo que estava em crise. Aliás, em algumas casas
observadas ficou claro, como diremos mais adiante, que o segredo “estava muito bem
19
Estas mesmas conclusões serão retomadas ao longo dos próximos capítulos.
20
Sobre as dinâmicas pelas quais tem passado a prática do segredo ritual no candomblé, ver também A questão
do segredo no candomblé, de Vagner Gonçalves da Silva, disponível em:
http://revistadehistoria.com.br/secao/artigos/a-questao-do-segredo-no-candomble
21
Só após o exame de qualificação, com as observações da banca examinadora, ficou claro que, na
verdade, é a autoridade daquilo que Weber chamou de “corpo sacerdotal” (WEBER, 2000) que se acha
ameaçado pelas dinâmicas de circulação paralela dos conhecimentos religiosos.
46
poder, sendo que estas se fundamentam nos sistemas de transmissão do conhecimento. Esse
conhecimento, por sua vez, é o que o povo do santo costuma chamar de “fundamentos”.
Estes fundamentos, ao serem gerenciados pela hierarquia, que aqui se confunde com o
que Weber denominou “gerontocracia”, compõe então a pedra de toque, sobre a qual se
hierarquia, poder e conflito, no interior desta religião. Para tanto, propomos uma análise
minuciosa tanto da natureza do segredo no candomblé quanto do seu papel como elemento
do santo.
trabalho. Por isso, antes mesmo de procedermos com a descrição e análise da natureza do
segredo, do seu papel como mecanismo de poder e das transformações pelas quais ele vem
passando, queríamos tecer um breve comentário sobre sua natureza. Nos valeremos então, de
Além do seu livro Segredos Guardados (Prandi, 2005), outro livro do mesmo autor nos
livro intitulado: Contos e lendas afro-brasileiras: A criação do mundo (Prandi, 2007). Nele, o
autor desenvolve uma ficção em torno da saga de uma jovem mulher africana, que, durante a
47
viagem entre a África e o Brasil, no porão do navio negreiro, tem um longo sonho, através do
qual ela entra em contato com os orixás, conhecendo assim a sua história e recebendo a
Ao narrar para as crianças o processo da vinda de Adetutu, seu povo e os orixás, para as
Américas, através de uma linguagem que lhes facilite a compreensão, o autor prossegue com
que, por sua vez, acompanha todos os passos e ações dos orixás, na deslumbrante tarefa de
criar o mundo com tudo que nele existe. A cada etapa da criação, Adetutu ganha dos orixás
(terra, peixe, metais incandescentes, inhame pilado, pó de terra, noz de cola, etc.), que a
48
jovem guarda com cuidado em uma sacolinha que ganhara de Exu, como relata esta parte da
narração:
Esta narração foi evocada aqui, justamente pela correspondência entre a narração da
os deuses, sendo que estes vão compondo com seus servidores o conteúdo da “sacolinha do
permanente criação e recriação do mundo, levada a cabo pelos orixás todos os dias, através
dos rituais que tornam novamente presente o momento da criação, como afirma Micea Eliade
(2010).
definitivamente.
E mais uma vez Prandi (op. cit.) nos ajuda a entender isso, no seu livro sobre a criação, escrito
49
completamente curvado sobre seu cajado. Ele a viu e a fez recostar a seus
pés e acariciou seus cabelos. Curioso, fez sinal para que ela abrisse o saco
de segredos e mostrasse o que havia dentro. Ela soltou o cordão que fechava
a sacolinha. Oxalá olhou dentro do saco e soprou. Ela também olhou e viu
que a sacolinha também continha o vento, as chuvas, as matas, o mar, tudo,
tudo. O universo inteiro estava lá dentro, pulsante, luminoso. Adetutu sentiu
medo. Rapidamente puxou o cordão de palha-da-costa e fechou o saco de
segredos. O grande orixá lhe sorriu, e ela, mais tranqüila, cerrou os olhos.
(Ibid. p. 110-112)
enfraquecimento dessa pulsação que o mesmo povo do santo teme, quando vê o segredo ser
do segredo faz com que o mesmo povo do santo se sinta meio traído, uma vez que a
preservação do segredo lhes parece uma das tarefas mais eminentes entre as quais os orixás
lhes legaram, como atesta o final da história de Adetutu, presente na ficção de Reginaldo
Prandi:
Num pequeno quarto do novo templo, mãe Conceição montou os altares dos
orixás, onde eles receberiam as oferendas dos devotos. Nos altares,
representando os deuses, foram depositados os objetos da sacolinha de
segredos, as relíquias sagradas trazidas dos sonhos de Adetutu na longa
jornada do navio negreiro através do Atlântico. Dos segredos e mistérios da
sacolinha mágica, o maior era o de sua preservação. (Ibid. p. 148)
A história de Adetutu nos ajuda a entender que o segredo no candomblé também pode
ser visto como patrimônio. Patrimônio esse que não é apenas material. E assim, seu valor está
mais ligado ao processo de sacralização do que à sua materialidade, compreensão essa que
está de acordo com o pensamento de Silva evocado anteriormente. Como veremos adiante, e
de acordo com outra abordagem (como é o caso de Johnson, 2002), a acentuação sobre este
caráter do segredo pode ser percebida historicamente até por volta da década de 1930. Depois
disso o segredo começa a assumir outras naturezas, chegando inclusive a ser influenciado
50
pelos processos de fetichização próprias do caráter de mercadoria, ao ser comercializado e
colaborar com a luta pela sobrevivência das populações negras e pobres que, em certas
santo que, em tempos de capitalismo, passam a vê-lo, inclusive, como meio de vida (e por que
composição das hierarquias, o segredo também se torna mecanismo de poder. Como então
Como viver do segredo sem dividir poder com aqueles que o compram? E como
comercializá-lo sem entrar em choque com as estruturas tradicionais da religião, que advogam
algumas das perguntas que nortearão nossa trajetória ao longo dos capítulos seguintes.
51
Capítulo II
O segredo, nos moldes praticados até hoje no candomblé, tem suas origens mais
remotas nas culturas africanas pré-coloniais, mais especificamente, nas chamadas sociedades
secretas presentes em algumas culturas dos países que forneceram escravos para as Américas.
ou mágicas, ou mesmo a grupos políticos e sociais. Dessa forma, poderíamos ter tanto
mesmo tempo pressuposto para a manutenção nela. Preservar o segredo era então requisito
transmitidos de forma esotérica, progressiva e gradual. Ora, como sabemos, muitas das
que tiveram que sofrer (RAMOS, 1979). Uma dessas práticas africanas que sobreviveu em
solo americano foi justamente a prática do segredo, que, no candomblé, passaria a ter um
No entanto, essas ditas sociedades secretas, presentes nos países africanos que
alimentaram o comércio de escravos vindo para as Américas, não morreram com o fim do
52
tráfico negreiro. Na verdade, as duas pontas que unem o segredo do candomblé às sociedades
secretas africanas estão mais próximas do que distante. Sobre isso Lisa Earl Castillo (2010),
Sudão anglo-egípcio na década de 1920, nos põem diante das sociedades dos mágicos que
para as Américas, vamos perceber em trabalhos como o controvertido livro de Wade Davis,
Mesmo não sendo o candomblé uma sociedade secreta – como já foi dito – nos moldes
deva muito à essas instituições africanas que aqui se mantiveram, até certo ponto, resistentes.
Visto nesta ótica, o fundamento dos “fundamentos” do candomblé teria sua origem ainda em
solo africano, fato também sinalizado por Johnson (2002) e Castillo (2010).
africanas, no meio do povo do santo no Brasil, podem ser percebidas em algumas etnografias
53
pioneiras como, por exemplo, em Bastide (1989). Nesta renomada tese de doutoramento, ele
atesta a existência de sociedades secretas africanas de natureza política, no Brasil por volta de
1809. Segundo Bastide (op. Cit. p. 148), essas sociedades secretas ligadas aos nagôs, eram
punirem os criminosos. Seus líderes eram chamados de Ologbo, e Ahogbo era sua divindade.
Citando Bascom, Bastide (op. Cit.) afirma ainda que tais sociedades tinham a mesma natureza
das confrarias dos deuses e teriam continuado com o culto da Terra-Mãe, anterior ao culto dos
Brasil:
(i) primeiro, a ligação entre estas sociedades e os nagôs, povo que com o passar do
religiosas ainda existentes aqui (como o tronco angola-congo, por exemplo). Dessa forma a
prática do segredo na forma adotada pelos candomblés jêje-nagô (mas não só por eles)
E isso incidirá também sobre a ideia construída em torno da tão contestada “pureza jêje-
nagô”, ideia totalmente superada hoje, sendo que a conservação do segredo passará a ser
associada à pureza e ao relaxamento do segredo, como veremos mais adiante, será associada à
degeneração do culto.
22
Sobre estas sociedades Prandi (2005: 144-146), mais uma vez, nos dá valiosas pistas. Também
Joanice Santos Conceição (2011, p. 30) faz referência às mesmas sociedades ligadas ao antigo
candomblé da Barroquinha.
23
Fartamente analisada desde Nina Rodrigues (1935), passando por Édison Carneiro (1942) até J.
Lorand Matory (1990).
54
(ii) segundo, a relação entre as ditas sociedades secretas e a prática da justiça24. E como
segredo também funciona como mecanismo de legitimação do poder, como ficará melhor
(iii) terceiro, a dupla natureza (político-religiosa) dessas organizações, sendo que na sua
modalidade religiosa teriam, segundo Bascom e Bastide, conservado o culto, hoje perdido, da
Terra-Mãe (Onilé?), cujo culto seria mesmo anterior ao culto dos orixás. Isso nos faz crer que
sociedades secretas africanas que sobreviveram no Brasil em meio às novas configurações das
práticas sociais, políticas e religiosas dos diversos povos africanos que aqui se ambientaram,
femininas existentes em África, como é o caso das Geledés e Yalodês, e que, segundo alguns
contribuindo na emancipação da mulher, que irá viver a matrifocalidade. Ora, nessa cadeia de
24
Neste particular podemos perceber certa semelhança entre as sociedades secretas citadas por
Bascom e Bastide e as sociedades secretas abordadas por Wade Davis no Haiti. Da mesma forma há
confluência quanto à utilidade do segredo para estas organizações, uma vez que em ambos os casos as
sociedades secretas se ocupam de punir os criminosos, processo esse que deve se dá sob o manto do
segredo, imposto aos componentes da confraria. E aqui o segredo atua como mecanismo de
empoderamento, ficando assim explicitada a relação entre segredo e poder. No entanto, as diferenças
entre essas instituições são da mesma forma abundantes.
25
BERNARDO, Teresinha. Negras, mulheres e mães: lembranças de Olga do Alaketu.
EDUC/Pallas. São Paulo/Rio de Janeiro, 2003.
55
prática e conservação do segredo – matrifocalidade/poder feminino – consolidação do
candomblé.
Morte, hoje sediada da cidade de Cachoeira, no recôncavo baiano. Dois trabalhos que
merecem ser consultados, pela sua grande relevância nessa discussão, são os trabalhos de
Acácio Sidinei Almeida dos Santos (1996), e Joanice Santos Conceição (2004; 2011). Neles
origem ao famoso e legendário Terreiro da Casa Branca (Ilê Axé Yá Nassô Oká).
Tanto Acácio Almeida (op. Cit.) como Joanice Conceição (op. Cit.) tratam dessa
confirmar tal possibilidade) entre a Irmandade e a antiga sociedade feminina Geledé. São
palavras de Almeida:
Do que podemos depreender que a prática do segredo, oriunda das práticas societárias
africanas, pode ter resultado em um mecanismo legítimo de coesão social entre o povo do
santo no Brasil.
26
Igualmente gestados no departamento de Ciências Sociais da PUC-SP.
56
Joanice Conceição, cuja tese de doutoramento está inteiramente permeada de
referências ao segredo ritual e sua importância para os grupos que pesquisa, afirma, na
introdução que:
candomblé, sejam eles acadêmicos ou não, também existem diversas referências a essas
sociedades. É o caso, por exemplo, de O Candomblé bem explicado: nações bantu, yorubá e
fon. Nesta obra que se propõe explicar, com minúcias, a natureza e funcionamento do
confrarias divinas” que, segundo eles, constituem parte do corpus do candomblé. Aqui são
apresentadas aos leitores as sociedades: Geledê, Ogboni (já citada por Bastide), Elecó,
Gonocô, sociedade dos Oxôs, dos Ajás e dos Ajés (BARROS, 2009, p. 179-181). Já o culto
dos eguns, cujas casas mais tradicionais estão alocadas na ilha de Itaparica, Bahia, é um caso
específico de como o segredo permanece vivo e atuante nas práticas religiosas afro-
brasileiras27.
Dessa forma, a obra em questão reforça as palavras de Bastide e de outros autores que
27
Como o culto de Babá Egun não é objeto de estudo dessa pesquisa (apesar da sua muito estreita
relação com o segredo ritual), para aqueles que desejarem aprofundar seus conhecimentos, acerca da
relação desse culto com o segredo, recomendamos, entre outros, os seguintes trabalhos: BRAGA,
Júlio. Ancestralidade afro-brasileira: o culto de Babá Egun. Salvador, EDUFBA/Ianamá, 1995;
SANTOS, Juana Elbein dos. Os nagô e a morte: pàde, àsèsè e o culto égun na Bahia. Petrópolis,
Vozes, 2008. Além dos trabalhos já citados de Acácio Almeida e Joanice Conceição.
57
segredo ritual. Por isso podemos admitir a relação entre a prática do segredo no candomblé e a
prática do segredo, no formato que observamos hoje no candomblé. Entre eles podemos citar
a escravidão e suas imposições, assim como Johnson (2002, p. 59-76), entre outros, já havia
constatado.
segredo. Hoje, em épocas de disputas pelo mercado religioso e mágico, o segredo se reinventa
ainda mais, se afastando gradativamente das suas remotas origens e assumindo um caráter de
Retomando as palavras de Silva (2006, p.134) e uma das compreensões do segredo que
adotamos neste trabalho, a saber, patrimônio simbólico do povo do santo28 que se produz e
reproduz nas relações dessa população (e desta com as demais, dentro e fora do terreiro),
28
Para uma compreensão básica da noção de patrimônio recomendamos a leitura do livro de Pedro
Paulo Funari e Sandra C. A. Pelegrini: Patrimônio Histórico e Cultural (Jorge Zahar Editor, 2006). Já
para uma melhor compreensão da natureza do patrimônio religioso e cultural do povo do santo,
recomendamos o artigo de Gilberto Velho, a respeito do tombamento do Ilê Axé Yá Nassô Oká
(Terreiro da Casa Branca) em Salvador: Antropologia e patrimônio cultural. In: Revista do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº 20/1984, pp. 37-39. No mesmo livro citado de Funari é
abordado o caso exemplar do tombamento do Terreiro da Casa Branca (pp. 49-50). Da mesma forma
é recomendável a leitura dos processos de tombamento dos terreiros, como nos casos do Aché Ilê Obá,
em São Paulo, entre outros.
58
analisemos agora como essa prática do segredo permeia todas as relações do povo do santo,
O que aqui chamamos de segredo refere-se a este patrimônio do povo do santo que
inclui um diversificado conjunto de elementos simbólicos que vai desde o complexo sistema
de fórmulas rezadas, cantadas, representadas, durante os rituais ligados à religião, até o saber
fazer do ofício religioso. Todo este patrimônio está continuamente em construção e esta
forma fechada, estática, dada ou codificada. Ao que parece, esse segredo é construído
formas. Por estar em constante construção, esse mesmo segredo é engendrado pela
comunidade do terreiro, como veremos mais claramente nos depoimentos coletados entre o
povo do santo de São Paulo. Assim, de acordo com nossas observações, não existe um corpus
Ou seja, como cada terreiro é um terreiro, aquilo que é considerado segredo em uma
determinada casa de candomblé pode não o ser em outra, mesmo que ambas façam parte da
mesma casa originária. Dessa forma, cada grupo elabora e preserva seus segredos de acordo
com aquilo que é negociado como o que constitui seu segredo, como atestam as palavras do
Cada casa tem seu segredo. Cada orixá tem seu segredo. Cada axé tem seu
segredo. (...) Para mim isso é muito importante por que eu posso ter cinco
oyás, cinco oxums, mas cada um é uma energia diferente. Então isso é um
segredo na parte espiritual. (Pai Irapuã de Logun Edé).29
29
Como não houve nenhuma restrição ou oposição da parte dos entrevistados, todos os nomes que
aparecerão daqui por diante são nomes reais, sendo que optamos por identificar os interlocutores
através do nome pelo qual eram mais conhecidos ou pela sequência do nome seguido do orixá ao qual
o/a entrevistado/a pertence.
59
Percebemos que o caráter do segredo também varia de acordo com as lideranças e sua
equipe de ebômes. Em outras palavras, segredo é aquilo que o grupo convenciona chamar
assim. E como veremos mais adiante, são os babalorixás/ialorixás, auxiliados pela sua equipe
de ebômes, que dão vida e forma ao segredo. E nessa relação entre a pessoa e o segredo
caracterizando. Sobre esse caráter social do segredo, as palavras da Mãe Sylvia de Oxalá são
muito esclarecedoras; falando da forma como o fundador da casa, Pai Caio de Xangô, lidava
com o segredo, Mãe Sylvia afirma que ele tinha um jeito bem peculiar de controlar o fluxo do
(..) Ele era assim: “Vai fazer um ebó! Vai faz!”. “Faz isso assim, assim, assim!”
(...) Quando você pensava que sabia aí ele gritava assim: “Para com isso! Você
não sabe nada!” Mudava tudo. (Mãe Sylvia de Oxalá)
E ainda falando do processo de transição entre o fundador da casa e ela, que o sucedeu
no trono, Mãe Sylvia fala da importância que teve um certa equéde que teria se disposto a
Tive uma pessoa muito boa: equéde Angelina dos Santos. Ela é da casa de Becém
[Oxumarê]. Lá de Salvador. E ela passou muita coisa. Muito fundamento. Muito
segredo. Muitas cantigas. (...) Ela ficou durante dez anos fazendo as minhas festas
aqui. (..) Mas não era fazer a festa. Era o fundamento. O segredo de como fazer e
de que jeito fazer. (Ibid.)
E, apesar de não existir um cânon do segredo, esses segredos dos quais fala a Mãe
segredos.
60
Como é de se imaginar, no conjunto desse patrimônio simbólico e cultural do povo do
santo, parece existir uma gradação de conhecimentos e práticas tidas como “segredos”.
orôs, pintura, atribuição do nome e preparação geral do iaô para o dia da saída), ebós
(composição, sequência de atos, forma de identificar o tipo de ebó do qual o consulente está
performance do iaô quando possuído pelo orixá se encontra envolto em segredos não
reveláveis aos “de fora”, assim como a composição e preparação de determinados compostos
ligados ao campo dos rituais religiosos e mágicos também se rodeia de segredos. Esse é o
elemento cuneiforme afixado no alto da cabeça (orí) do neófito, por ocasião da sua iniciação.
distendem de acordo com os agentes e grupos envolvidos, uma vez que o segredo, assim
como os iaôs, é feito e engendrado pelo grupo. Pode-se, então, comparar o movimento das
combinação entre dilatação e distensão depende a coesão do grupo que se organiza em torno
do segredo. Da mesma forma, sendo o candomblé uma espécie de organismo vivo, o segredo
funciona da mesma forma também como um sistema de controle ligado à manutenção da vida
da religião. E assim controla também as relações de poder ali estabelecidas. O equilíbrio das
práticas e relações sociais intra-grupo depende também (mais não só) da forma de circulação
daquilo que o grupo convenciona chamar de segredo, uma vez que este sistema de circulação,
61
Para melhor compreendermos a natureza do segredo no candomblé comecemos
entanto, na sua análise, a percepção de que tanto o tempo quanto o espaço sagrados do
segredo. Isso por que tanto as relações sociais como as formas de transmissão dos
conhecimentos ali, nunca prescindem do segredo ritual. Percebemos, então, que a constância
com que o povo do santo se refere ou se comporta através da prática do segredo é quase
transe, o uso das ervas, a festa, a morte, etc. sempre ocuparam lugares privilegiados nesses
estudos, enquanto que o segredo ritual sempre esteve em uma situação menos prestigiada
tivemos a impressão de que no candomblé quase tudo respira segredos. Temos que admitir
que a festa também ocupa um grande espaço nas conversas e na vida do povo do santo, mas
da mesma forma o segredo medeia todas essas relações. De forma que, se é verdade que
podemos dizer que o ethos do povo do santo é a festa, por esta apresentar características de
fato social total30 entre esta população (AMARAL, 2005); da mesma forma, é verdade que,
pensar o candomblé sem levar em conta o papel da prática do segredo como elemento
30
Sobre a noção de Fato Social Total ver: MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. In: Sociologia e
Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p. 183-314.
62
De fato, nossas observações nas casas de candomblé e dos rituais ali realizados, nos
deixou a impressão de que desde a porta principal (seja ela física ou simbólica, portão do
terreiro ou jogo de búzios) até o roncó; do Borí ao carrego despachado, é o segredo que “dá o
tom” a tudo que é realizado. Da mesma forma, quando assistimos deslumbrados a uma iaô
dançando frenética, possuída pelo seu orixá, a impressão que temos é que, na verdade, é
possuída pelo segredo que ela se encontra. As portas constantemente fechadas, os ibás
reclusos nas “casas de santo”, os potes com as águas sagradas protegidos dos olhos dos
curiosos, a reclusão dos neófitos, os convites franqueados a uns e recusados a outros, são
elementos simbólicos que definem as fronteiras impostas pelo segredo. Enxergando por este
prisma, somos levados a crer que o segredo termina sendo a alma dessa religião e o eixo de
gravitação em torno do qual tudo que se refere ao candomblé gravita. Isso ficará mais claro
A festa então seria, tão somente, uma vitrine que tanto revela31 quanto re-vela32 o
representar sua ponta, diante de tudo aquilo que a prática do segredo oculta aos “de fora”, ou
Assim, a festa parece possuir também a mesma ambigüidade de sentido, fazendo assim
31
No sentido de tornar público.
32
No sentido de velar (esconder, ocultar) novamente.
63
Ao observar um número significativo de casas de candomblé pode-se perceber que
dentro de um terreiro, aonde quer que se vá, se deparará com as fronteiras impostas pelo
segredo. Sua transgressão pode representar conseqüências tão imprevisíveis quanto funestas,
o que faz do segredo também um mecanismo regulador da coesão do grupo que gira em torno
do orixá, mas que, na verdade, é administrado pelo babalorixá ou ialorixá e sua equipe. No
entanto, esse elemento estruturante do candomblé não atua de forma totalmente difusa e
(i) Permeia todos os espaços físicos e simbólicos do terreiro (e de sua extensão como
(iii) Define as fronteiras físicas e simbólicas da religião e seu espaço e tempo sagrado
(hierarquias);
(iv) Atua como mistério, revelando-se sem se revelar (adornos) ou, como diria Jonhson
33
Outra esfera que também toca, apesar de minimamente, o conteúdo do segredo é a esfera dos
clientes, no entanto, devido à diferença da natureza da relação entre esta categoria e o terreiro, seu
papel e relação com o segredo será analisada mais detidamente no decorrer deste trabalho.
64
2.2.1 O segredo permeia todos os espaços físicos e simbólicos do terreiro
segredo na organização do espaço físico e simbólico nessa religião. Um símbolo claro dessas
terreiro. Aliás, mais adiante veremos como o orixá Exu no ajuda a compreender melhor a
comunicação.
Geralmente a Casa de Exu pode ser tanto um quarto de grande proporção, a fim de
abrigar todos os exus dos componentes da casa, quanto uma casinhola, que abriga apenas um
Exu específico ligado ao babalorixá ou à casa. Esta casa, na maioria das vezes, se encontra
Esse costume de mantê-la fechada a chaves já foi passivo de muitas interpretações nos
estudos afro-brasileiros. Uma das interpretações dadas estaria ligada ao fato de se tratar de um
deus dado à peripécias, sendo então necessário mantê-lo trancado a fim de se evitar suas
De fato, assim como Roger Bastide (2001) analisou, no capítulo dedicado a esta
divindade, Exu preside tanto a comunicação quanto a ordem. Na nossa compreensão, ele
preside da mesma forma o segredo, e através dele a ordem, uma vez que no candomblé esta
parece se fundamentar sobre aquele. Exu é então a figura paradoxal e desconcertante que
tanto instala a desordem quanto estabelece e mantém a ordem. Sua ação ambivalente tem tudo
a ver com a natureza mesma do segredo que, no final das contas, consiste nessa relação de
MORIN, 2007). Um dos informantes de Bastide deixa claro essa ligação entre Exu e o
65
“O senhor escolheu um dos deuses mais difíceis de estudar, pois os negros
transformaram Exu e os eguns em sua arma mais poderosa, eis por que seu
culto era celebrado no maior segredo, não sendo revelado nem mesmo aos
amigos fiés os mistérios desse deus” (BASTIDE, 2001, p. 162).
divindade e a comunicação. Aqui o segredo aparece como alter ego da comunicação, sempre
Exu é então senhor tanto da comunicação como do segredo. Sua relação com Fa (Ifá)
demonstra bem sua posição limítrofe. Na verdade esse orixá representa o que há de mais
acesso ao conteúdo do segredo, Exu seria a liminaridade da liminaridade, uma vez que sem
ele não existe iniciação. E vivendo na fronteira ele a controla. Dessa forma, a localização da
preservados. Ordem da qual Exu, paradoxalmente, é senhor. Exu então se confunde com o
34
Assim como era (e ainda o é?) na entrada das aldeias africanas.
66
segredo. Ele é o segredo. E sua ubiquidade é a própria ubiquidade do segredo. Assim, ter a
chave da casa de Exu é ter poder sobre o segredo. Atuar sobre ele.
continua fechada aos olhos dos “de fora”. Ele se mostra então como: (i) a primeira fronteira
física do terreiro (sua casa à entrada) e (ii) primeira fronteira simbólica da religião (ao presidir
o oráculo).
Sem passar por estas fronteiras controladas por Exu não se tem acesso ao universo do
candomblé. Exu, então, é o segredo e sendo o segredo é a fronteira. Não se adentra o terreiro
ou o candomblé sem passar por ele, da mesma forma que não se sai do terreiro ou do
Muitos episódios poderiam ser aqui evocados para exemplificar como ele brinca com
Antes mesmo de começar a minha pesquisa presenciei no Ilê Axé Funfun Oxalufã do
Pai Jean de Oxalufã, em Taboão da Serra, SP, um caso curioso envolvendo um Exu. Naquele
ano de 2008 o Pai Jean havia encomendado uma escultura de Exu de aproximadamente um
metro e meio de altura. Um dos ogãs da casa35, excelente artista tanto em ferro quanto em
madeira, produziu uma belíssima escultura de Exu que foi instalada à entrada do terreiro, à
constantemente fechada, esta escultura foi deixada à mostra de quem quer que visitasse o
terreiro. No entanto, entre os atributos de Exu estavam presentes nesta bela escultura um par
35
Ogã Sérgio de Oxaguiã.
67
Ali, à vista de todos, este Exu recebeu durante algum tempo seus sacrifícios e oferendas
devidas, assim como a grande admiração ou críticas dos visitantes. Porém, certo dia chegando
à casa, percebi curioso que a escultura já não estava lá. Preferi não comentar sobre o caso e só
muito tempo depois, já durante a minha pesquisa, voltei a conversar com o Pai Jean sobre o
Patrício: Pai Jean (...) eu percebi que a maioria das portas elas ficam
geralmente fechadas, e eu percebi também que um exu que antes se via ali
na entrada não está mais lá. E eu lembro que era um exu enorme, com
algumas características bem próprias de um exu, com todos os elementos
que um exu deve ter. E (...) um outro dia voltando à casa, eu percebi que
esse exu não estava mais lá. O senhor poderia explicar essa mudança que
houve? Tem alguma coisa a ver com o segredo? por que aquele exu passou
algum tempo ali e de repente ele foi recolhido? Ou ele não está mais lá?
Pai Jean: então meu filho, um exu é um orixá muito audacioso. Ele tem
uma presença marcante. E esse exu que você citou, ele estava muito à
vontade. Então o que acontece? Ele chamou muita atenção. Causou muita
polêmica. Por que as pessoas que adentravam a casa já batiam o olho
nesse exu e se deslumbravam. Uns criticavam outros achavam muito
bonito. Mas a respeito do recolhimento desse exu, dentro do quarto, foi
através dessa repercussão. Repercutiu muito.
Pai Jean: repercutiu meu filho, por que as pessoas não estão acostumadas
com o natural. Por que esse exu era um exu grande, robusto, em ferro e
tinha o pênis ereto.
Pai Jean: por causa do pênis. (...) Então as pessoas não estão ainda
acostumadas. Eu como sou um sacerdote que gosto de prosseguir, de
quebrar (...) lacunas, eu decidi colocar esse exu em frente a minha casa. Na
entrada da minha casa. Que eu achei uma escultura bonita. Uma forma
presente de exu. Então eu quis quebrar estigmas. Como eu quebro até hoje.
36
Os trechos que seguem são reproduzidos da entrevista que ele nos concedeu no dia 20/05/2010, no
barracão do terreiro.
68
Mas eu decidi guardá-lo por que repercutiu muito, demais, né? Aquela
forma audaciosa de exu. O ogó, né? O pênis ereto. Então ele existe, ele está
dentro do quarto, mas eu decidi guardá-lo por que as pessoas não estão
ainda preparadas com essa imagem (...) uma escultura muito aprimorada,
uma essência maravilhosa (...) por que (...) quando se fala de exu se fala
unicamente o quê? “Ah, o grande comunicador”, né? “O que dá
movimento ao mundo”. Mas exu ele tem uma participação muito
fundamental aos seres humanos. (...) E a respeito da grande escultura, eu
achei uma pena por que a sociedade não está preparada para essa forma
presente de exu. Né?
estabelecer fronteiras. Os espaços dos terreiros, assim como a configuração das hierarquias,
geralmente seguem os ditames do segredo. Neste caso a ação pudica dos visitantes
provocou o deslocamento das opiniões pré-estabelecidas. Mas o interessante é que tudo isso
gerou uma grande movimentação tanto na casa quanto no bairro. Só se falava no Exu da casa
do Pai Jean. Isso terminou atraindo bastantes visitantes que desejavam ver a figura do grande
falo. Muitos deles que foram atraídos por tão inusitada figura terminaram ficando ligados à
casa posteriormente. Ou seja, Exu novamente brincou com a comunicação estabelecendo uma
desordem que resultou em uma nova ordem naquela casa. É assim que o segredo se produz e
“(...) eu adorei. Não vou dizer pra você que eu não gostei. Gostei meu filho!
Por que exu é isso. É audácia. É brincadeira. É comunicação, né? Eu
gostei. Gostei por que exu ficou famoso. Estava na boca dos adeptos, na
boca das pessoas que não são adeptos do candomblé... eu gostei. Por que
causa um condimento. Tem que haver movimento meu filho. (...) Eu falo
isso por que eu tinha feito uma compra né? E as pessoas vieram trazer o
produto. E essas pessoas, os entregadores, viram a escultura de exu. No
meu bairro todo repercutiu a presença desse exu. Todos comentavam, no
mercado, na padaria, na praça, da existência desse exu”.
( Pai Jean de Oxalufã)
69
Exu então é aquele que estabelece as fronteiras, e assim fazendo é também artífice das
Legba atravessa com suas turbulências os territórios dos poderes. (...) traça
os limites do poder. (...) opõe sua indisciplina divina à disciplina da ordem
social e universal. Mostra que esta carrega em si, necessariamente, o
aleatório e a desordem; manifesta o que esconde por trás das aparências
tranqüilizadoras da estabilidade e da repetição. (Ibid. p. 141-142).
A partir das nossas observações podemos perceber que o candomblé parece se estruturar
sobre as compreensões que se tem de segredo. Isso porque, nesta religião, a base de poder que
conhecimento. E como já foi dito, aqui conhecimento e poder estão sempre relacionados,
como afirma Castillo: “No candomblé, o saber e o poder são entrelaçados. Para
relação com o sistema de poder” (2010, p. 33). Este segredo, por sua vez, se organiza em um
com três esferas específicas deste sistema, deixando para um momento posterior a análise de
outras esferas que também podem ser percebidas em uma análise acurada do funcionamento
aqui analisadas.
No entanto, pode-se alegar que, nos seus primórdios, os cultos que deram origem ao
70
sendo uma religião iniciática de sociedade não-moderna, também não apresentaria uma
organização nesses moldes. Esclarecemos então que, quando tratamos de esferas concêntricas
durante a pesquisa. E de fato a observação mostra que, tal divisão sócio-hierárquica, está
presente nas relações estabelecidas entre os adeptos desta religião. Ademais, a divisão em
esferas nos parece deveras eficiente para se explicar como funciona este sistema religioso,
além de encontrar respaldo nas situações de convivência observadas nas casas de candomblé
que acompanhamos. O elemento que diferencia cada uma destas esferas é justamente o poder,
religioso.
Estas três esferas básicas do segredo são definidas pela combinação entre o tempo de
iniciação (ou ausência dela) e as obrigações rituais cumpridas pelo adepto. Explicando
consiste. Quanto mais se aproxima do centro de gravitação das esferas, mais se obtém poder e
tese, se vai apreendendo partes mais significativas dos conteúdos do segredo. O ápice desse
aquisição da senioridade iniciática. A partir daí o novo ebôme passa a fazer parte da esfera
mais profunda da estrutura do segredo, podendo inclusive reproduzi-lo. Isso também significa
da seguinte forma
71
1ª Esfera do segredo (mais externa e, portanto, detentora de uma parcela menor dos
conteúdos do segredo): abiãs. (ver: CASTILLO, 2010, p. 33) Faz parte desta esfera os
adeptos ou simpatizantes do candomblé que o frequentam, mantém uma relação ritual com a
religião, mas que ainda não passaram pelo processo da iniciação ou “feitura”. Muitas vezes se
encontra pessoas que frequentam a religião há décadas mas que se mantém nessa condição.
Enquanto durou a minha pesquisa foram entrevistados os seguintes componentes dessa esfera:
Cibele de Obá37 (Ilê Axé Funfun Oxalufã), Reginaldo de Ogum38 (Ilê Axé Odé Ofá Omi) e
parcela dos conteúdos do segredo): iaôs. Fazem parte dessa segunda esfera todos os iniciados
que ainda não se submeteram à obrigação de sete anos e não passaram pela cerimônia da
deká. Como acontece com os abiãs, pode-se encontrar pessoas que já são iniciados há
décadas, mas que continuam na condição de iaô por não terem ainda se submetido à
cerimônia de deká (obrigação de sete anos). Durante a minha pesquisa nos terreiros de São
Paulo faziam parte dessa esfera os seguintes entrevistados: Paulo de Oxum(40(Ilê Axé Funfun
Oxalufã), Renato de Ogum41 (Aché Ilê Obá), Carla de Oxósse42 (Ilê Axé Ode Ofá Omi e
Caboclo Itayguara).
37
Que em janeiro de 2010 viria a se iniciar, passando à condição de iaô. Tive o privilégio de
acompanhar sua iniciação e descrevê-la no meu Diário de Campo (pp. 21-63).
38
Sendo que até o final da pesquisa se mantinha na mesma condição.
39
Mantendo-se na mesma condição até o final da pesquisa.
40
Este, durante o curso da pesquisa, mesmo na condição de iaô já exercia, devido à designação de
Oxalá, o cargo de Babá Jibonâ da casa, tomando sua deká em 2011, o que o levaria a fazer parte da
esfera imediatamente subseqüente.
41
Em meados da pesquisa (janeiro de 2011) Renato tomaria sua deká com a Mãe Sylvia de Oxalá,
passando a compor o quadro de ebômes daquela casa.
72
3ª Esfera do segredo (esfera mais profunda e que se presume detentora da plenitude do
confirmados (equédes e ogãs). Esta esfera constitui a esfera do poder dentro da religião e, por
podem assumir este posto pelo menos sete anos após a iniciação, depois de terem passado
pela cerimônia de deká. Faziam parte dessa esfera os seguintes entrevistados na pesquisa:
Mãe Leda de Oxum (Ilê Axé Oxum), Pai Jean de Oxalufã (Ilê Axé Funfun Oxalufã), Pai Silvio
de Oxósse (Ilê Axé Odé Ofá Omi), Pai Daniel de Ogum (Aché Irê-ô), Pai Irapuã de Logun Edé
(Ilê Axé Orô Nifã Logun Edé e Omolu) e Mãe Sylvia de Oxalá (Aché Ilê Obá).
(ii) Pessoas de cargo (axogum, pejigã, iamorô, ialaxé, ialodê, iabassé, iá/babájibonã...).
(iii) Não-rodantes confirmados (equédes e ogãs). Muitos desses, após cerimônias apropriadas,
42
Assim como Paulo de Oxum, Carla de Oxósse também já exercia na casa do Pai Silvio de Odé, o
cargo de Mãe Pequena, por designação do próprio Odé do babalorixá.
43
A respeito da figura do babalaô (literalmente “Pai do segredo”), pode ser classificado na 3ª esfera
do segredo. Sua relevância para o povo do santo é fundamental por vários motivos, entre eles a função
que lhe é reservada de consultar o oráculo em momentos políticos de grande importância para o povo
do santo, como é o caso dos processos de sucessão das lideranças dos terreiros. Sobre ele Reginaldo
Prandi tem falado que o último grande babalaô do Brasil morreu em 2004, se referindo a Agenor
Miranda Rocha. Apesar da grande fama de Martiniano do Bomfim e outros babalaôs que viveram e
atuaram no Brasil (como nos relata Ruth Landes), nos parece que a figura do babalaô teve muito mais
importância na África do que no Brasil, como nos mostra a mitologia dos orixás. O fato é que não
caberia neste trabalho, por questão de tempo e espaço, uma análise mais substantiva dessa figura e sua
relação com o segredo, ficando para outra ocasião esta desafiadora tarefa. Para maiores informações
sobre Martiniano do Bomfim ver Braga (1995) e Castillo (2008).
44
Durante a nossa pesquisa de campo tivemos a oportunidade de assistir a um ritual de concessão de
cargo de axogum (sacrificador), concedido pela Mãe Leda de Oxum a um ogâ de Ogum na sua casa.
Isso se deu no contexto da festa de Ogum no dia 24/04/2010 e foi registrado no nosso diário de campo
nas páginas 18 a 23.
73
São os sujeitos ligados a esta terceira esfera que produzem e reproduzem os conteúdos
do segredo (conhecimentos) que, como será explicado melhor mais adiante, não são estáticos
e sim dinâmicos.
Segundo essa configuração, temos então uma estrutura circular que gravita em torno de
intervalos de um, três, cinco e sete anos (podendo variar de acordo com a “nação” e em casos
particulares, como a prática de conceder a senioridade aos filhos de Xangô em seis anos, por
Cabe aqui algumas palavras a respeito dos processos de apreensão dos conteúdos do
religioso também se submete à adequada utilização dos sentidos. E como é sabido por todos, a
apreensão desses mesmos conteúdos confunde-se com a aprendizagem que todo bom iaô deve
ter, principalmente, caso alimente o desejo de se tornar ialorixá ou babalorixá. Dessa forma,
todos aqueles que pretendem galgar os degraus hierárquicos da religião e acumular poder,
devem estar dispostos a aprimorar cada vez mais seus sentidos e sua capacidade de colocá-los
Como a prática do segredo permeia todo o universo do candomblé, como já foi dito,
tudo nele desafia os sentidos. Imaginemos, por exemplo, um iniciado que deseja conhecer os
segredos da culinária dos deuses. Necessariamente, teria que, além de ser um bom e paciente
observador, estar disposto a degustar diversificadas comidas, aprimorando assim o seu paladar
de tal forma que, a certa altura, fosse capaz de identificar os ingredientes de uma comida, sem
necessariamente, tê-la visto ser preparada. Da mesma forma a aprendizagem das cantigas e
74
rezas exigiria, desse iniciado imaginário, uma grande e paciente capacidade de comparecer às
cerimônias, assim como de estar com seus ouvidos sempre à espreita, a fim de captar os,
muitas vezes inaudíveis, sons emitidos pelo babalorixá. O mesmo se pode dizer a respeito dos
O segredo, então, passa pelos sentidos. Isso fica bem claro nos depoimentos dos nossos
informantes.
Nas palavras do Pai Jean fica clara a dependência entre revelação do segredo e o
segredo, sendo em muitos casos confundidos com ele) prepara a pessoa, tornando-a apta a
75
presenciar os rituais secretos. Já Renato, ao utilizar as expressões: “determinados momentos”,
“determinadas pessoas” e “determinados fins”, chama a atenção para as restrições que se tem
ao manejar o fluxo dos conhecimentos religiosos. Ao falar da estreita relação existente entre a
inerente a cada ritual. Sem essa vivência não se aprimora os sentidos, ao ponto de não se
tornar vítima dos inúmeros “truques” do segredo, uma vez que este é tão multifacetado quanto
apreensão dos conhecimentos, para ser legítima, deve se submeter à regra da convivência e
assiduidade ao terreiro. As palavras de Renato de Ogum, acima citadas, demonstram bem essa
Depende muito da vivência. Eu acho que para você aprender não basta só
ler um livro ou entrar na internet, buscar alguma coisa... Aí vai mesmo da
convivência dentro do quarto. (...) então eu acho muito importante a
vivência. (...) Eu acho que o segredo ele tem que ser aprendido mesmo é na
vivência. É você está no dia-a-dia. Ajudando ao pai de santo, desde fazer a
limpeza do banheiro, no terreiro, você varrer, você fazer a comida do
santo, lavar prato, lavar panela, então essa vivência é muito importante
para você no futuro dar valor você vai ter uma bagagem para você também
ter o conhecimento do segredo, né? E é essa vivência que vai te dar o
conhecimento do segredo. Se você não estiver lá dentro do roncó,
participando desse processo, ou mesmo fora do roncó também, no terreiro
como um todo, participando desse processo, no xirê ou então no dia-a-dia (...)
então eu acho que o segredo para ser aprendido tem que está no dia-a-dia,
por dentro do negócio, por que senão, por fora assim, você vai aprender de
uma maneira suspeita.
(Reginaldo de Ogum)
76
b) Transmissão dos conteúdos do segredo: movimento centrífugo e gradativo.
Imagina-se que os ebômes diretamente envolvidos na iniciação dos mais novos lhes revelam,
a cada obrigação dada, uma parcela dos conteúdos do segredo, de acordo com a
seria então esse centro? De acordo com nossas observações e com as conversas levadas a
efeito com meus interlocutores, o núcleo do segredo, em torno do qual gira o candomblé não é
nada mais do que o próprio orixá. O orixá é o segredo, assim como já foi dito a respeito de
Exu. As falas dos babalorixás indicam isso. Vejamos, por exemplo, as falas de alguns deles
Olha meu filho, o miolo, o núcleo, como eu estava falando, do segredo (...)
O núcleo, (...) o miolo ele está dentro do dirigente da casa. Ele está ali
dentro do sacerdote e da sacerdotisa. No sacerdote e na sacerdotisa (...) O
segredo ele existe em cada um, mas no momento que o sacerdote ou a
sacerdotisa, no momento em que ela é citada para ser uma mãe, um pai, o
segredo, o miolo, meu filho, ele acaba tomando uma proporção gigantesca
por que é uma responsabilidade muito grande se tomar conta de cabeças.
Cada pessoa tem um gênio. Cada pessoa tem seu pensamento. Então é
muito difícil meu filho ser um sacerdote ou uma sacerdotisa. Então, eu falo
por mim, por que eu tenho satisfação de ser que sou, que foi dada essa
participação com essas grandes essências. O sacerdote, a sacerdotisa, vai
sendo emanado no tempo que vai passando ele vai tomando uma proporção
grande por que, querendo ou não, o orixá ele não está em uma forma
divinizada de que ele está ali em cima daquela pilastra e eu só vou ali até
ele para pedir súplicas e ele tá ali. Não. O orixá, ele faz parte da família. O
orixá ele está em todos os momentos. Então... mas um sacerdote, uma
sacerdotisa ele vive, ele bebe, ele se alimenta dessas essências (...).
(Pai Jean de Oxalufã)
45
Lembramo-nos, por exemplo, do caso de uma ialorixá filha de uma das casas pesquisadas (em
período anterior à pesquisa) que vez por outra se queixava do babalorixá que lhe entronara sacerdotisa
pelo fato de este não ter realizado duas cerimônias (fundamentos) previstas na obrigação de sua deká:
a lavagem dos olhos (ritual relacionado com a concessão da vidência) e da incisão por trás da orelha
(relacionada com o aguçamento da audição), ambas relacionadas com o ato de consulta ao oráculo
(jogo de búzios) e tanto indispensáveis quanto fundamentais ao exercício do seu sacerdócio como
ialorixá.
77
Olha, o núcleo do segredo... tudo dentro do nosso culto é redondo.
(...) A nossa terra. O planeta é redondo. A nossa cabeça ela é redonda. Os
nossos olhos são redondos. A nossa boca que tem a abertura ela é redonda.
Isso quer dizer que nesse redondo existe o núcleo. Existe o centro. (...)
Existe um núcleo do segredo. Esse núcleo é o segredo de escutar e ver
quando me for permitido. E se calar e abrir nossas bocas só no momento
preciso. E demora um pouco. A nossa religião, nosso culto ela não é do
imediatismo. Ela é do surú. Ou seja, surú da língua yorubá significa: “ela é
da paciência”. Da longevidade. Da tranqüilidade. Então não precisa abrir
a boca antes do tempo. (...) Este é o segredo: surú, paciência.
Contudo, localizar o centro de gravitação do segredo no candomblé não é tarefa tão fácil
quanto parece. Que o diga o próprio Clouzot. Quando em Le chevale des dieux (CLOUZOT,
1951) ele expressa sua frustração por (depois de se empenhar tanto em penetrar o “santo dos
chamou de “cheiro forte”, na verdade ele revela que sua busca pelo conteúdo do segredo do
candomblé trilhou caminhos equivocados. Ou seja, ele caiu no truque dos disfarces do
O próprio Pai Jean de Oxalufã, na entrevista que nos concedeu,46 pareceu muito seguro
em apontar o núcleo do segredo. Porém, dias antes47 havia sido bem mais prolixo a respeito
do assunto. Nesta ocasião anterior, ao passarmos uma tarde no terreiro, tivemos uma rica
conversa informal com ele. Essa mesma conversa, pelo seu teor e relevância, foi registrada no
nosso diário de campo (p. 28 e 29) posteriormente. Transcrevo abaixo, conforme está
46
No dia 20/05/2010.
47
Em 13/05/2010.
78
do segredo?” Ele passou quase uma hora respondendo. Tentarei resumir sua
fala abaixo. Voltarei com essa pergunta durante a entrevista filmada. “Não.
Não existe um miolo do segredo no candomblé. E se algum babalorixá ou
ialorixá te disser que existe não acredite. É jogo. Com certeza durante essa
sua pesquisa você vai ouvir muita coisa. Vai ter pai de santo que vai criar
um clima de mistério e de segredos a fim de atrair a curiosidade. Mas não
existe miolo do segredo. Sabe por que não existe? Eu te explico: por que o
segredo quem faz é você. O segredo está dentro de você. dentro de cada
um. O segredo é aquilo que você tem dentro de você. No meio da sua
cabeça. Do seu orí.
Aqui ele já começa chamando a atenção para o poder que repousa sobre a pessoa (e ele
se refere à esfera dos ebômes) no que tange à capacidade de engendrar ou recriar o segredo;
Isso por que o segredo (orixá) é inerente à pessoa. Está dentro dela. Repousa no seu orí. E
continua:
Por exemplo, você quando nasceu trouxe dentro de você o seu segredo.
Quando fez santo você despertou e potencializou o seu segredo, com a força
do meu segredo que sou seu babalorixá e com a ajuda de cada membro do
axé. Cada pessoa tem seu segredo. Mais um exemplo: eu recolhi você e seu
irmão. Iniciei os dois juntos. São irmãos de esteira. Gêmeos univitelinos,
mas cada um tem e é um segredo. Odé Nisojí é um segredo e Ofá Berunjá é
outro segredo, assim como Obá Delejí é outro e eu sou outro. Cada orixá é
diferente do outro. Então não existe um miolo do segredo. O segredo é
aquilo que cada um tem dentro de si. No meio da cabeça. Seu segredo é
aquilo que foi plantado no seu orí. Só que depois que você desperta esse
segredo ele nunca para de crescer. Só se expande. Lógico que eu, por ser seu
babalorixá, conheço o seu segredo, apesar de você não conhecer o meu. (Diário de
Campo, página 29, anotações do dia 13/05/2010)48.
Ora, muita coisa poderia ser dita a respeito dessas palavras do Pai Jean. Desde a dupla
natureza do caráter do segredo (tanto individual quanto comunitário) até sua pré-existência
em relação ao ritual de iniciação, como reza o mito de Ajalá, o fazedor de cabeças (PRANDI,
2001, p. 470-471). No entanto, quero destacar aqui as partes em negrito na fala do pai Jean.
Quando ele diz: o segredo quem faz é você, está se referindo, a nosso ver, à legitimidade que
os ebômes têm de produzir e reproduzir o segredo. E isso nos remete ao seu poder, ou seja,
48
Grifos e negrito acrescidos.
79
assim como o orixá, o segredo é feito. Já quando ele diz que O segredo está dentro de você.
Dentro de cada um. O segredo é aquilo que você tem dentro de você. No meio da sua cabeça.
Do seu ori; e ainda, O segredo é aquilo que cada um tem dentro de si. No meio da cabeça.
Seu segredo é aquilo que foi plantado no seu orí, me parece que ele quer dizer que o segredo
é o orixá. Entendemos então que, não sendo o segredo apenas o orixá, uma vez que tanto a
forma quanto o conteúdo dos rituais também são tidos como segredo, o orixá só pode ser o
núcleo desse segredo. No entanto, sendo a esfera dos ebômes que constantemente o manipula,
nos parece que há aqui uma relação entre orixá, segredo/conhecimento, ebôme e poder. O
orixá, então, seria a fonte da qual se origina o poder da esfera dos ebômes.
Porém, esse mesmo centro de gravitação que se confunde com o orixá, também se
confunde com o ideal de pessoa humana. Ou seja, a pessoa que passou por todo o ciclo
iniciático, e que, portanto, está mais próximo dos ancestrais, representa o ideal de pessoa. Isso
o coloca em situação de simbiose com o orixá, até porque aqui a existência do orixá parece
Não acredito que exista um núcleo. Eu não acredito que exista esse núcleo
por que eu parto sempre da idéia de que o segredo e a experiência, e o agir
sobre o mundo eles estão juntos. Então (...) eu posso saber determinadas
fórmulas: “O yaô se faz assim e assim, pronto”. Mas, na realidade, quando
eu pego aquele orí, e olho pra ele. Ele está nas minhas mãos, eu sinto ele
pulsando, despertando uma energia ali, aquele orí está ali, naquele
momento para eu cuidar. Eu tenho a fórmula. Mas aquele orí é único. Foi
escolhido na casa de Ajalá, com determinado odú, com determinada
divindade que acompanha ele, com determinada possibilidade de ser e está
80
no mundo, naquele momento, pelo que eu aprendi na minha casa, aquele
momento é único.
Assim como na fala do Pai Jean, alguns elementos são recorrentes na fala do
entrevistado, como é o caso do orí. Isso nos leva a entender que o orí, elemento de
Eu tenho a fórmula, “um iaô se faz assim”, mas naquele orí existe um
detalhe, existe um segredo. Eu olhando aquele orí eu desvendei um
segredo. Olhando para aquele orí naquele momento. Eu sei a fórmula, mas
olhando para aquele orí naquele momento da iniciação. Ali a minha
percepção, naquele orí (...) vai dizer alguma coisa pra mim. O segredo está
ali. (...) Eu posso tentar aplicar aquilo, muitas vezes passar por aquilo e
passar despercebido, “Ah, é apenas um orí, vou fazer, vou raspar”. Mas ali
existe uma coisa a mais que você tem que desvendar. Por que cada cabeça
é diferente uma da outra.
centralidade dada ao Orí (ponto de encontro entre o orixá e a pessoa) revela em parte que o
81
orixá ocupa um papel central na compreensão do segredo. Novamente reaparecem as idéias, já
presentes na fala do Pai Jean, do Orí, da unicidade da pessoa e da relação entre essa unicidade
Na relação estabelecida entre estas esferas se percebe claramente a estreita ligação entre
transmissão do segredo, tarefa reservada à esfera dos ebômes, e atribuição de poder. E aqui
esbarramos em um dilema que, até certo ponto, nos remete a uma clássica discussão da
Sociologia em torno da relação entre as dimensões social e religiosa da vida. Quem precede
quem? Seria o poder que forja o segredo ou o segredo que forja o poder? Se considerarmos
que quem detém o segredo é também quem detém e reproduz o poder, admitiremos que o
segredo precede o poder. No entanto, parece que a hierarquia precede o segredo (uma vez
que é esta que o engendra em meio às interações sociais da vida do terreiro). Assim, o poder
parece ser anterior ao segredo. O poder parece ser controlado no mesmo movimento em que
sociais e simbólicas está o orixá. Ele aparenta ser a personificação do segredo e nele o segredo
parece encontrar sua melhor forma. Portanto, como falou o Pai Jean, são os sacerdotes e
sacerdotisas que fazem o segredo, ao “fazerem o santo” de alguém, são eles mesmos que estão
produzindo o segredo que se recria. São eles que detêm o poder legítimo de fazerem o orixá,
Visto por esse ângulo, o orixá assume a forma de produto e resultado da prática do
Por isso, quando aqueles que não são ainda nem resultado nem promotores do segredo (não-
iniciados, abiãs) estão diante dele (orixá-plenitude do segredo) devem evitar olhá-lo
82
diretamente (assim como se fazia aos reis africanos). Na casa da Mãe Leda de Oxum essa
reverência se dá mantendo-se os abiãs distantes do orô e curvados para baixo, com o rosto por
terra. Na casa da Mãe Sylvia de Oxalá eles podem se manter em pé e assistir o orô, mas só
terceira esfera do segredo (ebômes). Sendo assim, mesmo vendo o orô (reprodução do
definido. Ainda no Aché Ilê Obá da Mãe Sylvia, quando o Oxalufã da ialorixá está em terra só
os ebômes podem vê-lo de frente. Iaôs e abiâs devem se manter prostrados com o rosto em
terra até esta divindade se retirar. Assim, o gesto corporal e desvio visual presentes na casa da
Mãe Leda na hora do orô, aqui são percebidos na hora do rum de Oxalufã. Ora, tanto quando
o orixá “come” (orô), quanto quando o orixá dança (“toma rum”), é a recriação do segredo
primeira e segunda esferas do segredo, revelam a reverência dos mais novos e as prerrogativas
Já na casa do Pai Jean, assim como na casa do Pai Silvio e da Mãe Leda, quando
acontece de o orixá dos líderes vir em terra, todos os seus filhos de santo entram em transe.
Tais fenômenos corroboram as palavras do Pai Jean quando diz: “Lógico que eu, por ser seu
babalorixá, conheço o seu segredo, apesar de você não conhecer o meu”. É o mesmo que
dizer: “o babalorixá pode fazer/ver o orixá do iaô, mas este deve evitar ver o orixá do
babalorixá”. Mais uma das regras impostas pelo segredo que possui sua lógica no jogo do
poder. Ainda sobre os loci do segredo e do poder, assim como as fronteiras impostas pelo
do fundamento.
83
Na casa do Pai Jean, por exemplo, durante o orô, o transe se impõe aos rodantes49
animal propiciatório.
E caso alguém não caia no transe nesse momento, o que é muito raro, no momento
exato em que o babalorixá vai ministrar o ejé50 na boca do orixá que recebe a obrigação, este
alguém mergulha no transe antes que suas retinas presenciem o ato. Da mesma forma, ao
preparar o adôxu, basta o som do pilão manipulado pelo babalorixá, para que o transe se
produza nos iaôs. Ou seja, o segredo impõe suas regras. Só se dá a conhecer quando quer.
Trata-se claramente de uma fronteira simbólica imposta pelo segredo mesmo no espaço mais
interno do terreiro e entre aqueles que participam diretamente dos círculos internos do
segredo. Novamente aqui se percebe as três esferas do segredo, que no momento do ritual
Com esta breve exposição da estrutura do segredo, queremos dizer que conhecer o
segredo (e mergulhar nele através das etapas iniciáticas), é ao mesmo tempo, conhecer o orixá
orixá pessoal e de si mesmo. Daí se compreende que as pessoas que mais conhecem o segredo
do orixá, e portanto de si mesmas (ebômis), são quem têm o poder de fazer, refazer e
49
Adeptos propensos ao transe do orixá.
50
Sangue resultado do sacrifício.
51
Se para nós já está claro a natureza do “fazer” e “refazer” o segredo, cabe esclarecer que quando nos
referimos ao “desfazer o segredo” estamos nos referindo às cerimônias mortuárias que incluem um
complexo conjunto de rituais que, em tese, teria o objetivo de desfazer os laços do sujeito falecido
com o ayê, libertando-o assim do mundo dos vivos, a fim de retornar ao mundo dos ancestrais (Orum),
como descreve Juana Elbein dos Santos no seu clássico trabalho Os Nagô e a Morte (2008) e Prandi,
em Segredos guardados (2005). Da mesma forma, o “desfazer o segredo” também pode ser
relacionado às práticas mágicas que envolvem feitiços e que para serem neutralizados carecem ser
84
Banalizar o segredo seria então banalizar a própria existência divina e humana.
forte” (CLOUZOT, 1951), constituem (no seu conjunto, interação e compreensão) um dos
elementos que dão sentido à existência humana para povo do santo. Existência essa que é
constrói na relação entre a pessoa, sua comunidade (terreiro) e os orixás, assim como o
próprio Prandi já havia sinalizado no seu livro Contos e lendas afro-brasileiras: a criação do
o próprio orixá. E qualquer busca em outras direções resultará frustrante e estéril. Disso
análise, à natureza humana. Não existe então uma forma fixa do segredo. Perde tempo quem
sistematização.
“desfeitos”. Sobre a relação entre os feitiços e o segredo ver a resenha de Brian Brazeal (2005) já
citada anteriormente.
52
Conforme um antigo adágio do candomblé que diz: “ninguém pode oferecer a outro aquilo que
nunca recebeu”.
53
Como em algumas situações pode parecer.
85
2.2.3. O segredo define as fronteiras físicas e simbólicas da religião
Lembro-me que a primeira vez que estive no terreiro da Casa Branca (Ilê Axé Yá Nassô
Oká) em Salvador, tida por muitos como o primeiro terreiro de candomblé, fomos
imposição da discrição com os visitantes, foi nos conduzindo escada acima, a fim de nos levar
para conhecer as dependências da casa. De repente, do interior da cozinha veio uma voz de
repreensão àquela que nos apresentava a casa que dizia em tom de represália: “-Fulana (não
lembro o nome da senhora) você está levando quem pra onde?” Só muito tempo depois de
A frase da ebôme da Casa Branca (que depois soubemos se tratar de Mãe Ojicutu), por
ocasião da nossa primeira visita àquele terreiro, reflete perfeitamente o papel do segredo
Ao que nos parece, no candomblé as fronteiras físicas e simbólicas são definidas pelo
segredo. E, assim como os medievais já diziam: Audi, vide, tace si vis vivere in pace, no
candomblé o melhor a fazer é ouvir, ver e calar. Nas palavras da Mãe Sylvia, a regra é: “Não
falar nada demais e de nada demais”. A propósito, essa mesma frase nos foi apresentada pela
Mãe Sylvia em francês, o que aumentava ainda mais a atmosfera de código cifrado, no
Dessa forma, o próprio espaço físico e simbólico do terreiro se organiza de acordo com
a prática do segredo. Nem todos podem ter acesso a todas as partes da casa. Sempre fechadas
aos curiosos, sejam eles “de dentro” ou “de fora”, as portas das casas de santo são categóricas
na mensagem que querem transmitir: portas fechadas guardam segredos aos quais só alguns
devem ter acesso. Da mesma forma o acesso aos rituais (e em alguns casos até às festas
86
públicas) é franqueado a alguns enquanto são vetados, ou negados, a outros. Nós mesmos,
durante a pesquisa, por várias ocasiões, ficamos sabendo de festas que aconteceram, muitas
vezes em um dia anterior à nossa visita ao terreiro, para as quais não fomos convidados e que,
oficial.
Até mesmo algumas peculiaridades da arquitetura de boa parte dos terreiros parecem
obedecer à lógica da manutenção do segredo. Tal divisão arquitetural possuiria uma ligação
Da mesma forma, as interações entre pessoas ligadas aos diferentes graus hierárquicos,
às vezes, também parecem ser delimitadas por essa regra. Um bom momento de se perceber
os diferentes níveis e esferas do segredo, além dos vários já citados, é a hora da refeição.
Ebômes, equédes e ogâs comem em mesas. Iaôs e abiãs comem no chão. Seria essa etiqueta
entre eles poderiam se estabelecer? Uma “brecha” nessa configuração se dá quando são os
iaôs que servem à mesa dos ebômes. Quando isso acontece (e geralmente são iaôs muito
astutos que conseguem tal proeza) pode-se perceber clara, e quase que escandalosamente,
seus sentidos aguçados para “pescar” qualquer informação que lhe seja útil futuramente.
ebômes que conversam. Isso faz com que os ebômes fiquem sempre “espertos” quando
Quando o iaô em questão consegue pescar algo, em muitos casos, a matéria adquirida
torna-se conteúdo de uma boa conversa socializadora na cozinha de santo, território comum
54
E aqui percebe-se, na forma mais aprimorada, a prática do “fuxico” ou fofoca (também chamada por
alguns de “olofofô” ou “mavula”), costume muito comum no candomblé, eleita por Johnson (2002),
como um dos elementos constitutivos das formas de sociabilidade do povo do santo. Para uma análise
87
No entanto, como “macaco velho não põe a mão em cumbuca”, sempre que isso
acontece os ebômes em questão suspendem sua conversa até o serviçal se afastar, momento
no qual, para a frustração do iaô que se julgava muito esperto, a conversa é retomada.
hierárquicas e a detenção do poder. Na roda de dentro (e portanto mais junto ao ariaxé, poste
central do qual emana o axé dos orixás) ficam os ebômes, portando nas mãos e nas roupas as
insígnias que demonstram sua estreita relação com o poder e com os conteúdos do segredo.55
Na roda de fora ficam os iaôs e abiãs que, na escassez de distintivos, denunciam seu pouco
poder e sua distância em relação aos conhecimentos guardado pelos mais velhos. Pés calçados
uma cadeira cabe aos mais velhos ou pessoas de cargo na hierarquia. Aos abiâs e iaôs cabe a
Aos mais velhos o direito de andar erguido e falar com os demais olhando-os nos olhos.
Àqueles que ainda não tomaram deká, o andar encurvado e o olhar fugidio.
Orixá que se movimenta livremente pela casa, que abre os olhos e que conversa (nem
sempre em ioruba) com os mais velhos é orixá de ebôme. Orixá parado no mesmo lugar, de
olhos fechados e esperando a hora de tomar rum (dançar) ou ser “desvirado” é orixá de iaô.
Ser ebôme significa então possuir a dignidade perante o grupo. Ora, essa dignidade só
mais profunda do papel do fuxico no candomblé ver: BRAGA, Júlio. Fuxico de candomblé. Feira de
Santana: Editora UEFS, 1998.
55
Item que será analisado mais detalhadamente adiante quando tratarmos dos adornos.
88
(conhecimento profundo do orixá) representa também a posse da dignidade. O olhar altivo de
um ebôme, quando comparado ao olhar fugidio do iaô, demonstra a força que o segredo tem
de interferir, tanto nas fronteiras físicas e simbólicas da religião quanto na postura do corpo e
do comportamento do adepto.
O percurso realizado entre a situação de abiâ e a de ebôme dá-se então na mesma lógica
apontada por Van Gennep no seu clássico Os ritos de passagem (GENNEP, 1960), quando
diz que todo rito de passagem implica uma sequência tripartite de estados: separação, margem
liminaridade, como prefere Victor Turner (TURNER, 1967 e 1974), se daria na fase de iaô e a
agregação teria efeito com a situação de ebôme. Neste momento, o novo ebôme também é
diversificadas formas. Isso faz parte de suas regras. E aqui podemos mesmo falar de uma
Como já foi dito, tanto para reconhecê-lo quanto para apreendê-lo requer uma aguçada
capacidade de observação, assim como um grande refinamento e treino dos sentidos. Até por
que não existe uma forma definida e fechada do segredo nem mesmo entre o povo do santo. E
equivocadas ou, no mínimo, precipitadas, como é o caso do que aconteceu com Clouzot
(1951) e Johnson (2002). Aquele, ao afirmar que o segredo do roncó se resumia a um cheiro
89
forte.56 Este, reduzindo o sentido do segredo à relação que se estabelece com a moeda,
deixando assim de existir no ato da revelação. Tanto a um quanto ao outro faltou o treino dos
sentidos e a perspicácia suficientes para não se deixarem cair nos truques que o segredo impõe
No entanto, o segredo também seduz. E, para tanto, ele tem seus truques; tendo o povo
do santo, e principalmente a esfera dos ebômes, como seus cúmplices na tarefa de se revelar
sem se revelar, o segredo age, por vezes, combinado a outras estratégias próprias do universo
afro-brasileiro, como atesta Muniz Sodré (1988). Este autor analisa o segredo e a luta como
afirmação e legitimação.
Trabalhos como os de Johnson (2002), Castillo (2005) e Sodré (1988), além de muitos outros,
O segredo, como prática, seria então umas dessas estratégias aprimoradas em meio ao
56
Quanto ao “cheiro forte” ao qual Clouzot se refere, imaginamos se tratar do cheiro característico dos
roncós e pejis, do qual Vagner Gonçalves da Silva fala, no seu O Antropólogo e sua magia (Silva,
2006: 68, nota 46) ao explicar uma expressão utilizada pelo antropólogo Roberto Motta. Sobre tal
cheiro Silva esclarece na nota explicativa: “O sangue dos animais, símbolo importante, também deve
ser aspergido nos ibás tornando visível a realização dos sacrifícios. Alguns dias após a realização
desses, as carnes e os outros alimentos ofertados são despachados em locais fora do terreiro. Os pejis
do candomblé, por esse motivo, têm um cheiro característico que com o tempo passa a fazer parte da
memória olfativa dos adeptos da religião e dos pesquisadores. Um pai de santo disse que a magia do
peji consiste exatamente nesses ‘cheiros’ combinados de sangue, álcool, velas, flores, etc.”. É aqui
que Clouzot confunde um dos produtos do segredo com o próprio segredo. Talvez por possuir pouco
tempo de convivência com o ambiente do candomblé. O que é de certa forma compreensível.
90
seriam protegidas pelo segredo. O disfarce então passa a atuar como parte da forma do
E continua:
assumir muitas formas, dificultando assim o trabalho daqueles que se arriscam em analisar a
Essa forma de se apresentar ora como de fato é, ora de forma disfarçada, faz da prática
referido trabalho. Em nosso trabalho, assim como em Sodré, a palavra aparência não se
assumindo. Trata-se do mesmo sentido adotado por Sodré quando fala que:
Dessa forma, o segredo joga também com as aparências. Isso fica mais do que claro nos
ialorixá do Aché Ilê Obá e de seu filho de santo, cuja fala segue abaixo:
91
Existe exceção à regra. (...) Até por que o candomblé joga um outro jogo.
Às vezes a exceção vira regra. (...) Não é um jogo maniqueísta. O jogo bem
e mal. O certo e o errado, que está sempre ali. [Não] é um axioma, direto:
“É assim!”. Não. No candomblé não. Ele joga um outro jogo. Ele seduz
com o segredo. Ele seduz com o feitiço. Ele seduz até com a transmissão do
segredo. (...) Eu acho que a própria figura de Exu representa bem o que
estas religiões fazem hoje em dia, com esse moderno, com essa
modernidade.
(Renato de Ogum)
E esse “outro jogo” do qual fala o ebôme citado acima, é justamente os disfarces
assumidos pelo segredo. Disfarces que visam também à sedução. Estratégia bem afro-
brasileira. E tão eficaz que chega mesmo a confundir espertos observadores, chegando ao
ponto de passar uma idéia de inexistência do segredo, como o próprio Renato insinua:
(...) Claro que agora minha fala pode dizer: “então se não há fórmula não
há segredo”. É uma contradição. Pode ser que o segredo seja um vazio.
Que engendre uma prática. Pode ser. Seria um falso vazio. Mas eu acredito
que... eu acredito que em determinadas vezes ele é um vazio. (Idem)
(...) Ele tem uma forma e tem um conteúdo. Que é aparente. Mas que é
necessária. (...) em determinados momentos ele é um vazio e em outros
determinados momentos não. Ele existe sim o segredo. Ele existe. (Ibid).
Assim como Exu, o segredo também tem suas peripécias. Como Simmel (1977), falava
Renato também admite que o disfarce e a aparência podem ocultar o conteúdo do segredo:
92
Essa aparência, no entanto, longe de constituir uma mentira, faz o papel, como afirma
confundindo, as aparências estabelecem relação. Mais uma vez, a questão da ligação entre
É Sodré (op. Cit.) novamente que nos ajuda a compreender melhor o papel da aparência
Claro, as aparências enganam, como atesta o provérbio. Mas só o fazem por que
tem o vigor de aparecer, a força de dissimulação e de ilusão, que é um dos muitos
caminhos em que se desloca o ser humano. Aparência não implicará aqui, no
entanto, em facilidade ou na simples aparência que uma coisa dá. O termo valerá
como indicação da possibilidade de uma outra perspectiva de cultura, de uma
recusa do valor universalista de verdade que o ocidente atribui a seu próprio modo
de relacionamento com o real, a seus regimes de veridificação (...). As aparências
não se referem, portanto, a um espaço voltado para a expansão, para a continuidade
acumulativa, para a linearidade irreversível, mas à hipótese de um espaço curvo,
que comporte operações de reversibilização, isto é, de retorno simbólico, de
reciprocidade na troca, de possibilidades de respostas (SODRÉ, (op. Cit.)1988, p.
135-136)
É assim que o segredo lida com as aparências. Aparências que não significam
necessariamente falsidade quanto ao seu conteúdo. Pelo contrário: as aparências fazem o jogo
segredo, terá que se submeter às regras do jogo. Nas palavras de Sodré: “Entrar no segredo de
alguém é entrar na regra – de um jogo”. Simmel já havia falado quase a mesma coisa (1977,
p. 357-358) quando afirmava que, nas relações pessoais, o nível de conhecimento que uma
pessoa tem a respeito da outra define o poder que terá sobre ela. Cabe, no entanto, esclarecer
que, em muitos casos, só a aparência do segredo já é suficiente para manter a coesão entre as
partes, sem que, necessariamente, o conteúdo de fato seja revelado. O importante é “conhecer
as regras”.
93
Afirma Sodré:
Mas se engana quem acha que, ao conhecer a regra, terá conhecido o segredo. Qualquer
pesquisador do segredo no candomblé terá como certo que conhecer a regra não significa
necessariamente ter conhecido o segredo. Mais uma vez o caso de Clouzot parece
emblemático. Ele conhecia a regra. No entanto, parece nunca ter conhecido o segredo. Isso
porque:
Apesar de terem sido escritas uma década antes, as palavras de Sodré parecem ter sido
direcionadas a Johnson. Segundo este, o segredo do candomblé só existe para ser revelado e,
ao sê-lo, deixa de existir, como afirma Monique Augras a respeito da quizila, como veremos
natureza e sentido do segredo no candomblé, ainda aponta para uma possível vítima do jogo
das aparências impostas pelo segredo e cujo conhecimento das regras é fundamental para
57
Grifos nossos.
94
estratégias do segredo. Conhecimento esse que, como repetem tanto os nossos interlocutores,
só é possível adquirir na vivência do terreiro. Vivência esta que faltava a Johnson, como
2.2.4.2. Os adornos
Não foi à toa que Simmel (1977) acrescentou, à sua análise do segredo e da sociedade
secreta, uma digressão a respeito do adorno. Como uma espécie de jóia incrustada no corpo da
sua teoria do segredo, Simmel teve uma acertada intuição ao apresentar a função do adorno
como forma de exteriorizar o íntimo segredo humano. Aqui o adorno atuaria como um
mecanismo que amplia a esfera do indivíduo, criando assim uma esfera relacional entre o
constante apelação aos sentidos. Assim, os adornos também desempenham um grande papel.
Para se ter uma ideia, através dos adornos utilizados por uma pessoa é possível inferir, por
exerce algum cargo sacerdotal, etc. Assim, através dos adornos é possível saber a que esfera
do segredo (abiâ, iaô ou ebôme) a pessoa pertence. Como a apreensão do segredo (ou a
que vai da margem para o centro, em direção ao centro de gravitação do segredo (cuja
personificação já afirmamos ser o próprio orixá), a configuração dos adornos, assim como as
95
etapa iniciática na qual a pessoa se encontra. Essa modificação, grosso modo, obedece à
seguinte ordem:58
Uma das primeiras observações que podemos fazer, ao observar o quadro acima, é que
públicos - uma performance aparentemente simples, mas que carrega um grande significado
58
Como é de se imaginar, o quadro que segue está baseado no que se observa nas casas de candomblé
pesquisadas. Outras configurações da utilização dos adornos podem ser percebidas em outras casas,
uma vez que “cada casa é uma casa”, como costuma repetir o povo do santo. Porém, a configuração
apresentada a seguir pode ser observada em um considerável número de terreiros.
96
dentro do candomblé. Na maioria das casas, orixá de iaô de olhos abertos é tido como ekê
(falso transe, marmotagem), orixá de ebôme de olhos abertos é tido como direito adquirido.
inferir, aproximativamente, o grau de apreensão que ele possui dos conteúdos do segredo,
assim como sua posição na hierarquia e nas esferas do poder. Tais adornos vão desde as
roupas (ebômes usam richelieu, iaô usa lésse) até as jóias como anéis de búzios etc., passando
cabeça, ojás, etc. etc. etc. Assim, mesmo em uma situação informal na qual ebômes, iaôs e
Perguntamos em uma das entrevistas, durante a nossa pesquisa, para um abiâ, sobre o
uso dos fios-de-contas. Sobre sua importância e significado. Sua resposta foi:
Às vezes não é só um fio que você carrega no pescoço, ou vários fios que
vai dizer a sua responsabilidade ou não. Cada fio daquele tem um peso e
uma responsabilidade a ser seguida. E assim, é também com o
conhecimento principalmente. (...) Tem casa que trabalha com
determinados fundamentos que algumas pessoas trabalham com poucos
fios, mas embora ela tenha grande importância na casa, às vezes tem anos
na casa, às vezes começou a casa com o pai de santo. E às vezes ocupa um
cargo que ela não necessita ter muitos fios. Porém há um lado que você vê
nos fios da pessoa, você reconhece o santo, você reconhece se ela já é
raspada ou não. Os adornos. Não somente os fios, né? Você reconhece
alguns cargos que ela pode ter na casa, por exemplo. (Reginaldo de Ogum)
Novamente, o depoimento desse adepto nos convida a refletir sobre a relação entre os
adornos e as responsabilidades evocadas por eles. Responsabilidades estas que provêm da sua
proximidade com o conhecimento adquirido. Apesar de não constituir uma regra, os adornos
fronteiras simbólicas, como já foi dito. A cada etapa iniciática que o adepto ascende
97
corresponde um tipo de adorno que ele passa a exibir. Aqueles que ocupam um grau inferior
na hierarquia, mirando os adornos dos mais velhos, provavelmente se mantenham cada vez
sso porque, ainda segundo Simmel, o adorno possui uma capacidade de emanação que
pensa Simmel para as situações genéricas das relações humanas e sociais. Estados de
evidenciam nos adornos dos adeptos. Junto com a condição de cada um, vai também
evidenciada nos adornos exibidos, a distribuição do poder e da hierarquia, que têm tudo a ver
98
Silva (2010), chama nossa atenção para os sentidos de um tipo de adorno muito comum
para evidenciar os compromissos sociais dos indivíduos que os portam em relação aos demais
religiosos lhes trouxeram junto. Esse aspecto da relação entre o adorno e a vida social também
Esse “ser para os demais”, essa “dedicação aos demais” é justamente aquelas
responsabilidades representadas nos fios dos ebômes, dos quais o último depoimento falou.
Isso ajuda a explicar tanto as reverências prestadas pelos mais novos aos mais velhos, quanto
a disponibilidade que os mais velhos devem ter para iniciar os que estão adentrando a religião,
autênticos, ou seja, o processo iniciático não pode ter sido burlado. O perigo dos “fura
99
roncó”59 é uma constante no imaginário do povo do santo. E os ebômes geralmente se
mostram muito atentos a isso. O sentido do adorno, então, está diretamente relacionado a sua
autenticidade que, por sua vez, está relacionada com as formas tradicionais de transmissão dos
El valor del adorno auténtico va más allá; arraiga em las ideas que del valor
tiene todo el circulo social, y se ramifica em ellas. Por eso, el encanto y la
acentuación que presta a su portador individual, se nutre en esto suelo
supraindividual. Su valor estético, que es uno “valor para los demás”, se
convierte por la autenticidad, em símbolo de estimación general, y encaja
dentro del sistema general de valores sociales. (Ibid. p. 391)
compromisso com o grupo. E este é legitimado por aquele. Traduzindo para a linguagem do
candomblé: o brajá, a terracota, o lagdibá, etc. longe de serem apenas enfeites, são também
sinais da responsabilidade com o grupo. É o segredo falando através dos adornos e os adornos
adornos. Segundo ele, tanto a forma como a aplicação dos adornos podem carregar diferentes
sentidos:
59
Para uma compreensão mais ampla do que vem a ser o “fura-roncó”, ver: Braga (1998), e Castillo
(2010, p. 38 s).
100
No entanto, cabe discordar de Lody (op. Cit.), no que se refere à sua opinião a respeito
de uma suposta distância entre os conceitos de adornar e significar. Segundo suas palavras:
49). Na nossa compreensão esta distância pode até se aplicar no contexto mais amplo do
legitima a senioridade do novo ebôme lança com certa violência simbólica (na intenção de
tornar bem visível o ato), sobre o pescoço e os ombros do neo-ebôme, os adornos que a partir
daquele momento, o distinguirá dos iniciados com menos de sete anos. Isso o retira da
condição marginal de iaô e o introduz no seu mais novo status. Na linguagem de Van Gennep
101
Para nós, o fio-de-contas (e demais adornos utilizados pelo povo do santo), ao se situar
candomblé, até por que a própria personalidade do fio (do adorno) é engendrada no contexto
da produção e recriação do segredo. Imaginemos que tenha sido isso que Lody (op. Cit.) quis
dizer ao afirmar:
Para saber enfiar contas para o uso próprio ou para servir outro membro do
terreiro e mesmo para o comércio, é fundamental dominar o código
cromático e simbólico da Nação, dos tipos de fios-de-contas e funções
religiosas e hierárquicas, constituindo etapa do processo do aprendizado
iniciático que ocorre na reclusão do roncó no longo período destinado à
feitura de santo. (Ibid. p. 60).
Podemos, então, afirmar que o adorno não só indica posição hierárquica como também
102
Capítulo III
3. Segredo e poder
Mesmo por que eu vou dizendo: “meu filho, olha, axé é segredo. E eu só posso lhe
confiar o axé no dia que eu perceber que você mantém o segredo”.
(Mãe Leda de Oxum)
mecanismo de coesão social do grupo. Resta-nos, agora, falar do segredo como mecanismo de
candomblé, quanto mais se aproximar dessa religião mais perceberá que aqui, segredo e poder
caminham lado a lado - relação que também se estabelece com o conhecimento - sinônimo de
axé. Assim, conhecimento, segredo, axé e poder são elos de uma mesma corrente, ou fios de
uma mesma trama. Para usar uma expressão de Geertz (2008), é sobre a teia de sentidos
composta pela combinação desses elementos que o povo do santo se sustenta. Veremos como
Antes de começarmos a análise dessa relação entre segredo e poder devemos ter claro
que a “dobradiça” entre a análise que fizemos do segredo como patrimônio do povo do santo
e a análise que ora começamos do segredo como mecanismo de poder é o conhecido texto de
Veremos neste capítulo e no próximo, como as palavras de Bourdieu neste texto explicam,
com muita propriedade, os fenômenos que envolvem a relação entre o povo do santo e o
segredo ritual. Também ali, nas palavras de Bourdieu, estão parte das ferramentas de análise
103
3. 1. Nos interstícios do segredo e do poder
Temos que confessar que quando começamos esta pesquisa estávamos fortemente
influenciados por grande parte da literatura existente que aponta na direção do vazio do
segredo no candomblé, ou mesmo da sua inexistência, como afirma Johnson (2002), por
exemplo. Porém, ao longo da observação sistemática, levada a cabo junto a quatro terreiros, e
por meio das várias entrevistas realizadas, podemos nos certificar de que o segredo continua
vivo e atuante; haja vista a grande recorrência de respostas positivas, quando interrogávamos
relação à antiga visão que dele se formou ao longo da história. Mas, segundo o povo do santo,
ele continua lá. E se um dia ele pôde ser visto apenas como um conjunto definido de fórmulas
rituais, hoje ele supera esta forma, passando a abranger diferentes elementos, sendo que um
deles é a natureza de instrumento de poder, como veremos adiante. Um exemplo disso é o que
A primeira vez que fui autorizados pela Mãe Leda de Oxum a presenciar o orô na sua
casa, fiquei bastante empolgado. Teria uma boa oportunidade de observar as minúcias dessa
cerimônia em uma das casas de candomblé que estava observando durante a pesquisa. Devido
a minha limitação em termos de deslocamento saí de casa muito cedo a fim de estar no
terreiro um pouco antes das 10h00, horário para o qual estava marcado o início da cerimônia.
Cheguei lá muito antes disso, por volta das 8h30. O terreiro ainda acordava e as gostosas
conversas do povo na cozinha, quebravam o silêncio da mata atlântica que circunda a casa.
Até então, o silêncio só havia sido quebrado pelo cantar dos pássaros.
Fui conduzido por uma iaô ao barracão a fim de esperar o café que “logo-logo sairia”.
Como o barracão fica sobre a cozinha, procurei ocupar um banco que ficasse em uma posição
104
estratégica, de onde pudesse escutar as conversas e os fuxicos que vinham da cozinha. Como
socializador.
Enquanto algumas abiâs varriam o barracão, o café chegou até mim por meio das mãos
de uma iaô de Obá (Camila). Deliciei-me com ele. Algumas horas depois, a Mãe Leda
com bastante atenção e recomendou-me aguardar um pouco que “logo o orô começaria”. No
entanto, eu já sabia que esse “logo” poderia significar muito tempo. E já imaginei que a
cerimônia ainda demoraria muito a começar e que, por isso, deveria já ir observando o
máximo do ambiente e fazendo contatos com aqueles que demonstrassem algum tipo de
interesse em conversar. Foi isso que fiz. Um pouco depois do meio dia anunciou-se o início
do orô.
Após um ebó comunitário, tirado pela ialorixá e sua equipe de ebômes nas
início das cerimônias do orô da festa anual de Ogum. Descrevi no diário de campo toda a
sequência do orô, incluindo a participação da equipe de ebômes, que, com a Mãe Leda,
analisarmos a relação entre o segredo e o poder, objeto central deste capítulo, assim como
No Ilê Axé Oxum da Mãe Leda, cada orixá tem sua casa. Os orixás “de fora” (do tempo)
estão (assim como estão as casas dos outros orixás) espalhados pela chácara e assentados em
contato direto com a natureza, de forma que, vai-se andando pela chácara e encontrando-se
com os deuses.
105
Os assentamentos dos orixás “do tempo” são cercados por touceiras de pés de peregum
(Dracaena Fragrans) que crescem em torno do ibá, escondendo-os dos olhos curiosos dos
leigos que visitam a casa. Isso ajuda a manter o segredo em torno do ibá, pois, quem olha de
longe vê apenas uma montanha de plantas. Lá de dentro, o orixá vê quem passa, sem ser visto
pelo transeunte. Descreveremos, a seguir, como estava organizado o espaço do orô a fim de
percebermos, através desta disposição, a organização do poder. Pois, assim como já dissemos,
Na grande praça externa do terreiro foram colocadas diversas esteiras estendidas sobre a
grama verde. Tomando como ponto de referência o ibá de Ogum, tínhamos a seguinte
disposição: (i) Ialorixá, ebômes e pessoas de cargo; (ii) Uma fileira de esteiras mais distantes
para as abiâs (a aproximadamente uns cinquenta metros do ibá), de forma que estas não
tinham acesso visual aos detalhes do orô, mesmo que o mirassem. (iii) A aproximadamente
uns trinta metros do ibá ficava outra fileira de esteiras, estas reservadas às iaôs. Aqui também
ficavam os ebômes sem cargo. Até por que, no caso de algum iaô “virar”, estes ebômes
seriam fundamentais para “desvirá-los”. Dessa esteira, caso houvesse interesse (e coragem
para tal!), era possível ter acesso a alguns detalhes do orô. Dessa forma, quem estivesse nesta
esteira, ao romper o medo de encarar visualmente o orô, teria acesso à quase totalidade dos
propositalmente, entre o olhar de quem olhava e o ibá que recebia o sacrifício. Na maioria das
vezes os ogâs se antepunham entre o olhar dos iaôs e o orô em curso. Assim estava
A disposição das pessoas para o orô deixava claro aquilo que estamos chamando de
106
revelava a relação das mesmas tanto com a hierarquia quanto com as estruturas de poder
naquela casa.
com o segredo e com o poder.60 Em pé, em torno do ibá (com exceção da ialorixá que cantava
momento tão importante (como já falamos no capítulo II). Os iaôs, por sua vez, mantinham-se
sentados na sua esteira, mas com o olhar erguido na direção do orô. Já os abiâs mantinham-se
o tempo todo deitados de bruços, ou ajoelhados, e com o tronco reclinado, com o rosto por
terra e jamais erguendo o olhar na direção do orô. Novamente aqui, percebemos as fronteiras
Toda essa disposição do espaço, das personagens e das performances corporais, falam
muito a respeito das relações entre segredo e poder no candomblé. E é com essa descrição que
Algum tempo depois, ao entrevistarmos a abiã Valéria de Oxum, ligada há sete anos a
este terreiro, ela voltaria a falar a respeito dessa organização do espaço e distribuição das
pessoas, dando-nos a entender que existe uma relação entre o lugar ocupado por cada um
durante o orô e seu papel dentro da hierarquia da casa. Ao falar a respeito da convivência no
60
Posturas corporais idênticas também foram percebidas e descritas por Castillo (2010, pp. 34-35) nos terreiros
baianos que ela estudou. Na sua descrição de um Padê de Exu ela relata a postura corporal assumida pelos
presentes, posturas essas que são muito esclarecedoras e similares ao que segue aqui.
107
E tem um grau de como você chega até o que está se fazendo ali no
momento. Aonde, se você é abiã você está muito mais afastado, você não
tem todo esse acesso, nem de visão. Você não pode ter esse acesso. Mas
você tem que saber responder também. Não vai está ali à toa, por qualquer
motivo. Se você é um ebôme você já tem que está ali muito mais perto, se
você é uma equéde você está ajudando nos preparos de tudo, nas
atividades, em fim... e essa forma também é a forma de você conhecer.
Quem está mais lá atrás não vai ver muito coisa, não vai interpretar muita
coisa. Quem está ali na frente tem que ter esse conhecimento. Está ali
participando, na primeira roda, digamos assim, desse orô, tem que ter
muito mais conhecimento do que quem está lá atrás...
(Abiã Valéria de Oxum)
Assim Valéria nos explicou o porquê daquela disposição no dia do orô. Pela sua fala
fica patente que aquela organização não é aleatória. E se a ialorixá explica tal disposição a
partir do segredo, por trás dessa disposição também se esconde a configuração do poder.
Como já foi dito, o centro de gravitação de toda essa estrutura é o próprio orixá (aqui
materializado no ibá). Dele, através dos ebômes (mais velhos), esse poder (axé) se expande,
Podemos, então, falar de uma relação simbiótica entre poder e segredo de forma que o
poder distribui o segredo, ao mesmo tempo em que o segredo engendra poder. E sendo o
conhecimento uma das faces desse segredo pode-se afirmar, junto com Foucault, que “Não é
possível que o poder se exerça sem saber, não é possível que o saber não engendre poder”
candomblé.
poder. E aqui, novamente, vem à baila as palavras de Simmel (1977), quando diz que nas
relações interpessoais, o poder de uma pessoa sobre a outra se fundamenta nos segredos que
esta sabe sobre aquela. Quanto mais se transmite seus segredos a outrem mais você lhe atribui
poder sobre si mesmo e sobre a relação estabelecida. É por isso que só revelamos nossos
segredos mais íntimos a nossos amigos mais próximos. E mesmo assim, sempre há aqueles
108
segredos que preferimos não revelar nem mesmo para os mais íntimos amigos. A mesma
compreensão pode ser aplicada às relações estabelecidas intra-terreiro. Isso porque segredo é
estabelece entre o babalorixá/ialorixá e seus filhos de santo. Relação essa menos freqüente, ou
mesmo inexistente, entre esses mesmos sacerdotes e seus “clientes”. Em tese, a transmissão
do segredo só se justifica entre os sacerdotes e seus filhos de santo. Quanto aos clientes, não
haveria sentido essa transmissão. E quando falamos da relação estabelecida entre o feiticeiro e
seus clientes, aí é que a relação com o segredo se modifica sobremaneira. Mas essa discussão
é matéria para mais adiante. Voltaremos a ela no momento oportuno. Por enquanto, vejamos
controle do poder. Sendo assim, a transmissão dos conteúdos tidos como secretos pode ser
vista como um processo de empoderamento. Este, por sua vez, está estreitamente ligado ao
foi dito no capítulo anterior) é o jogo do poder que está se imbricando no jogo do segredo. E
devido a isso, as regras do segredo também passam a ser as regras do poder. Essas regras do
convivência e interlocução com o povo do santo, fica claro que essa população, e
principalmente os ebômes, se comporta de acordo com uma espécie de código ético tácito
109
quando se refere àquilo que comumente costuma chamar de “fundamentos”. Este código, que
(iii) Sempre trate como segredo aquilo que o grupo considera como tal;
(v) Limite, sempre que puder, o acesso de algumas pessoas àquilo que se tem como
segredo;
(vi) Mantenha sempre o clima de segredo, dando a entender que existe mais segredos do
(vii) Sempre que puder (e se fizer necessário) exponha parte daquilo que se tem como
(viii) Com aqueles que julgam já terem galgado os últimos estágios do segredo
estabeleça um pacto tácito para mantê-los no seu entorno, e para que, também, eles façam o
jogo do segredo;
(ix) Sempre que o segredo correr riscos mude as regras, e mostre quem é que tem a
durante a pesquisa, que podemos compreender as palavras do Pai Jean quando nos falou no
61
Sobre essa “dica” (ix), as palavras da Mãe Sylvia de Oxalá, sobre o Pai Caio, são mais do que ilustrativas.
Sempre que os ebômes achavam que já sabiam tudo ele afirmava o contrário, mudando as regras em seu favor.
110
criar um clima de mistério e de segredos a fim de atrair a curiosidade. Mas
não existe miolo do segredo. Sabe por que não existe? Eu te explico: por
que o segredo quem faz é você. O segredo está dentro de você. Dentro de
cada um.
(Pai Jean de Oxalufã)
povo do santo, e corroboradas pelas palavras do Pai Jean (apesar da sua posterior mudança de
opinião acerca de um possível núcleo do segredo), é possível perceber a estreita relação entre
segredo e poder. Regras do segredo e regras do poder, portanto, organizam o mesmo jogo.
Apesar de as regras não terem sentidos por si só, uma vez que carecem do substrato
daquilo que o grupo tem como segredo, elas desempenham um elemento fundamental de
sustentação tanto da estrutura do segredo quanto das estruturas do poder, uma vez que poder e
segredo são fios do mesmo tecido. À frente desse processo de administração do segredo e
forja o poder. Essa estreita relação entre poder e segredo é quase sempre explícita nas casas
observadas por nós durante a pesquisa. Assim como também pode ser bastante clara em boa
parte das casas de candomblé. Por exemplo, no Aché Ilê Obá, sempre ao final dos toques
(festas públicas, xirê) a ialorixá, Mãe Sylvia de Oxalá, faz questão de dar as mãos com uma
pequena equipe de ebômes e pessoas de cargo, dançando elegantemente com eles em volta do
ariaxé. Tal dança pode mesmo ser chamada de “dança do poder” ou “dança do segredo”.
Da mesma forma, na casa da Mãe Leda de Oxum, durante o orô, percebe-se claramente,
pela proximidade com os ibás que recebem os sacrifícios, quem detém o poder naquela casa.
Na casa do pai Jean a cena se repete. Tais atitudes parecem nos remeter a essa cumplicidade
que há entre as lideranças religiosas e suas equipes mais próximas, em torno do segredo e do
ser motivo de poder para um concorrente em potencial, encontra uma brecha. Mas é preciso
111
que neste momento de exibição de cumplicidade, os ebômes de fato estejam “do lado” da mãe
de santo. Essa proximidade revela para os mais novos, assim como já falamos dos adornos, o
lugar que eles ocuparão futuramente, caso sejam capazes de guardar e manter o segredo.
Já começamos a falar a respeito das relações de poder no candomblé. É sabido por todos
que cada casa é uma casa e que dentro de uma casa de candomblé o babalorixá/ialorixá são as
autoridades máximas. E, uma vez que o candomblé não possui uma estrutura de subordinação
entre as casas, os sacerdotes são então “reis e rainhas na sua casa”, como costumam repetir os
pais e mães de santo. E mesmo a divisão de poder com a equipe de ebômes e “pessoas de
das vezes, essa divisão de poder não ultrapassa a responsabilidade por algumas práticas
rituais. No fim das contas, quem manda mesmo é o pai ou a mãe de santo, que, quase sempre,
procura legitimar suas ações através da identificação entre ela/ele e seu orixá pessoal. A
preeminência desse orixá, em detrimento dos demais, se justificaria pelo fato de ele ser tido
no grupo como o mais poderoso, uma vez que é o mais velho e, normalmente, ter “feito” os
demais. Ouve-se muitas vezes alguém dizer “fui feito por oxum e devo tudo a ela”, ou:
“minha navalha é Oxalá e por isso vou ser eternamente lése (fiel) a ele”. Isso quer dizer que o
orixá do babalorixá/ialorixá da casa termina por exercer sobre os demais uma espécie de
“dominação legitima”, no sentido weberiano62 sobre todos aqueles que se encontram sob seus
pessoal sobre as demais cultuadas na casa. Sobre esse poder do sacerdote, Reginaldo Prandi,
62
Para uma maior compreensão das formas de dominação legítimas em Max Weber, ver: WEBER, Max.
Economia e Sociedade. Editora Universidade de Brasília & Imprensaoficial, São Paulo: Vol. I, cap. III, p. 139-
198.
112
diretamente proporcional entre o saber iniciático do filho-de-santo (Omo-
orixá, em ioruba) e a capacidade de expressão do orixá. Orixá novo não tem
querer, como iaô não tem saber – esta é uma lei do candomblé. Um pai ou
mãe-de-santo é, em geral, a pessoa com maior tempo de iniciação numa
casa de candomblé, mesmo por que foi ele ou ela quem iniciou os demais.
O orixá da mãe-de-santo é, ipso facto, o orixá que atingiu a maior perfeição
e mais poder. (PRANDI, 1991, p. 172)
Também Monique Augras explica essa relação entre tempo de iniciação e aquisição de
poder: “As mais velhas são depositárias do saber, seu poder provém da longa convivência
com o sagrado, e através delas é todo o valor da tradição ancestral que se afirma”
exagero repetir!), da mesma forma que numa relação de amizade quanto mais você revela
seus segredos a seu amigo, mais você lhe dá poder sobre sua pessoa, como afirma Simmel
o babájibonã Pai Paulo de Oxum, por ocasião da entrevista a nós concedida, quando lhe
Equédes, ogãs, pessoas apontadas como cargos na casa, até mesmo uma
pessoa que se iniciou... depende da dedicação que ela vai ter para com a
casa e para com os orixás da casa. Esse segredo está relacionado, também,
à tempo de iniciação, mas a pessoa tem que ter uma passagem de atuação
dentro da casa de candomblé para conter esses segredos. (...) o processo de
transmissão dos segredos ele varia de pessoa para pessoa. (...) Varia de
cada um. Se a pessoa ela tem um desenvolvimento na casa, dedicação, ela é
presente em atos, em festas para o público, para a sociedade (...) [se outra
pessoa] já não tem essa passagem, a mesma, de destaque da casa, o
conhecimento vai para essa pessoa que se faz presente na casa. Conforme
ela estiver “pegando idade”. De acordo com a obrigação que o iaô, o
noviço está tomando axé, as nossas obrigações, ela contém mais um pouco
de informação. Que é passado pelos mais velhos.
(Pai Paulo de Oxum)
113
Controlar as fronteiras do segredo é controlar o poder e o direito legítimo de obtê-lo. É
por isso que o segredo também é visto, na maioria das vezes, como tabu, no sentido discutido
por Monique Augras (1987; 1989). E sendo tabu permanece como ponto de tensão entre o
povo do santo. A propósito, essa tensão foi claramente percebida por nós durante as
entrevistas coletadas. A maioria dos entrevistados não-êbomes preferiu nos dar a entrevista ou
nas suas residências (como no caso de Carla de Oxósse, Reginaldo de Ogum e Cibele de Obá)
ou no terreiro, com a supervisão do Pai de Santo ou Mãe de santo. Ainda em outros casos
(como aconteceu com Valéria de Oxum) a entrevistada preferiu deslocar-se até a casa do
Ficava claro que “falar sobre segredo” era prerrogativa dos mais velhos e que, portanto,
ninguém falaria sobre isso comigo sem que antes eu pedisse permissão aos seus respectivos
conseguirmos coletar a entrevista de um abiã (como no caso do Aché Ilê Obá). Ao que parece,
falar de segredo é falar de poder. E, sendo assim, só os mais velhos (ebômes) teriam a
autoridade para tal. E sempre que os não-ebômes se dispunham a falar demonstravam estar
Essa tensão, em torno do tema segredo, durante muito tempo, influenciou até a
produção acadêmica sobre a religião, uma vez que só recentemente a academia começou a
discutir e estudar com mais afinco a questão e os sentidos do segredo ritual no candomblé.
Assim, fica claro que as regras do segredo também são as regras do poder. Há aqui uma
simbiose entre ambas. Simbiose esta que converge na direção da manutenção do poder nas
mãos das lideranças. Sempre que estas regras são de alguma forma, ou por algum motivo,
se na tensão existente entre aqueles que detêm o poder, através do controle do conhecimento
114
religioso, e aqueles que desejam obtê-lo ou mesmo usurpá-lo. Essa tensão é própria do campo
religioso como bem já demonstrou Pierre Bourdieu, no ensaio citado acima, a respeito da
gênese e estrutura do campo religioso (BOURDIEU, 1974). Nesse sentido, temos o clássico
conflito entre aqueles que administram a gestão do “depósito do capital religioso”, nas
palavras de Bourdieu, e aqueles que almejam controlar-lhe. Ora, aqui o segredo pode ser visto
também à noção de patrimônio, como já dissemos) uma vez que é no campo do segredo que
aos babalorixás e ialorixás. Todo o poder, assim como se presume, todo conhecimento,
repousa nas mãos dessas lideranças. Transmitir conhecimentos é então atribuir poder, assim
como retê-los pode representar controle deste mesmo poder. Novamente, as palavras do Pai
Paulo de Oxum são esclarecedoras para nós. Quando lhe perguntamos se seria possível
conhecer o segredo do candomblé fora do terreiro, sua resposta foi contundente: Impossível.
conhecimento e de aquisição de poder não é nada tranqüilo. Engana-se quem imagina esse
processo como algo do tipo romântico, em que os mais velhos transmitem pacificamente seus
Deve-se lembrar que, além de futuros mantenedores da religião, esses mesmos neo-ebômes
115
constituirão a reserva de concorrentes dos mais velhos, no já muito disputado mercado
religioso do candomblé. Assim, esse processo às vezes assume uma forma tensa e conflituosa.
momento afirma:
diferentes estratégias de adquirir esse conhecimento nem que seja “de tabela”. O fuxico é uma
do seu conteúdo. Os mais velhos são tão peritos em guardá-los quanto os mais novos se
tornam peritos em granjeá-los. E até roubá-los se for necessário. Cria-se, então, um constante
santo vão sobrevivendo ao tempo e às mudanças, como bem demonstra Júlio Braga em seu
116
Yvonne Maggie também relata, em Guerra de Orixá: um estudo de ritual e conflito
(2001) casos de conflito e disputa de poder entre membros de um terreiro no Rio de janeiro,
cuja motivação principal era o choque entre diferentes formas de aquisição e transmissão de
(op. Cit.), quando este, posteriormente, viria a desenvolver seus estudos sobre poder e conflito
No texto de Yvonne Maggie, que é resultado do seu trabalho de campo junto ao terreiro
Tenda Espírita Caboclo Serra Negra, em 1972, no bairro do Andaraí, na cidade do Rio de
Janeiro, a autora nos relata os constantes conflitos entre os membros do terreiro (cujo culto
era misto de umbanda e candomblé) em torno do poder. Tal conflito teria se estabelecido a
demandas, provocando, inclusive, uma “guerra de orixá”. Percebe-se então que, à medida que
comprometida. E nesse caso, não adiantou apelar para a autoridade das divindades das
lideranças em guerra. Os próprios orixás entraram na guerra, assim como faziam os deuses
gregos na mitologia. Da mesma forma, alguns dos nossos interlocutores assumiram a defesa
63
Sobre as peculiaridades inerentes à relação entre esses diferentes tipos de conhecimentos e formas de
transmissão, a consulta ao já citado trabalho de Castillo (2010) se mostra cada vez mais indispensável.
117
O Pai Jean de Oxalufã, por exemplo, quando perguntamos sua opinião sobre a
Ora, por trás dessa crítica convicta também está a questão do monopólio dos “bens de
salvação”, como diria Bourdieu, e do controle do poder, por parte dos sacerdotes e
sacerdotisas - controle esse que se dá através dos mecanismos tradicionais de transmissão dos
conhecimentos (fundamentos). Isso fica claro quando ele diz que deveria haver uma união
64
A respeito da relação entre candomblé e internet, além dos trabalhos já citados (entre eles o de Castillo),
tomamos conhecimento, no XI Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais (realizado em Salvador,
Bahia, Brasil, entre os dias 07 a 10 de agosto de 2011), da pesquisa que vem sendo desenvolvida pelo Professor
Emmanuel Bastos Lopes (UFPE), a respeito do ciberterreiro, principalmente entre o povo do santo de Fortaleza,
Ceará. Aguardamos ansiosos seus resultados.
118
ou para combater os “desvios” que se tem percebido. “Para que não criassem essas fendas”,
religioso (seja através do fuxico, seja através de cursos, apostilas, DVD’s, etc.) pode-se
explicar a partir desse desejo de manter o poder, enquanto há como que uma “conspiração”
por parte dos mais novos que desejam usurpar o poder e controle sobre o “depósito de capital
religioso” ou do “monopólio dos bens de salvação”. E aqui fica ainda mais claro a estreita
relação existente entre o saber e o poder. São verso e anverso de uma mesma moeda.
Michel Foucault (1979, p. 142), em sua Microfísica do poder, já havia analisado essa
relação entre saber e poder. Segundo suas próprias palavras: “Ora, tenho a impressão de que
existe, e tentei fazê-la aparecer, uma perpétua articulação do poder com o saber e do saber
com o poder”.
transmitido de acordo com uma tradição que se tem como legítima, a transmissão do poder,
Essa configuração de poder que se apóia sobre a base do saber religioso, encontra, da
mesma forma, apoio nas palavras de Foucault (op. Cit. p.142), que diz: “O exercício do poder
continua: “Não é possível que o poder se exerça sem saber, não é possível que o saber não
máxima dentro da sua casa, o babalorixá faz as vezes de principal detentor do conhecimento
que é protegido pela prática do segredo, ao mesmo tempo que assume o lugar de centro de
irradiação do poder, uma vez que possui o orixá mais velho. Sendo o orixá a fonte primeira,
119
tanto do conhecimento quanto do poder, e sendo o babalorixá o legitimo intérprete das suas
vontades, como afirmou Vallado (2010), ele não hesita em personificar e exigir para si o papel
de centro irradiador também do poder. No entanto, a nosso ver, o babalorixá é, de fato, apenas
o centro de transmissão e legitimação do poder, pois o centro mesmo é o próprio orixá, como
já afirmamos no capítulo II. E isso concorda com Foucault (1979) quando diz que:
segredo e do poder, à medida que vai tomando suas obrigações iniciáticas, como comprova os
120
3.3. A tensão em torno do conhecimento e o conflito como disputa de poder
poder, pode ser compreendida à luz das palavras de Bourdieu (1974), quando fala da gênese e
estrutura do campo religioso. Da mesma forma, a natureza deste poder em jogo pode ser
compreendida com a ajuda das suas palavras a respeito do poder simbólico (BOURDIEU:
2009).
Ora, quando Bourdieu fala de uma divisão do trabalho religioso (e aqui ele já se baseia
analisada por Bourdieu (1974). Assim ele se expressa sobre esse processo:
secreto. Ao “corpo dos sacerdotes” que detém o poder legitimo de administrar o capital
religioso e atribuir poder, Bourdieu (1974) vai contrapor os leigos, os profetas e os feiticeiros.
Sendo que esses últimos seriam vistos sempre como o elemento de desordem
121
elementos são tão indesejados pelo corpo de sacerdotes como necessários para a
Quando se trata então de transmissão de conhecimento, seja pela via da oralidade seja
pela via do segredo, a tensão está presente. Isso porque também é a transmissão do poder que
no candomblé e suas relações com o segredo e a crise de autoridade) aumenta ainda mais a
Porém essa mesma tensão que pode desencadear o conflito a qualquer momento também pode
funcionar como mecanismo de coesão social desde que bem administrado pelo corpo de
conhecimentos tidos como secretos, representaria uma espécie de ruptura com o sistema de
legitimação das formas de dominação legítimas (no sentido weberiano) estabelecidas ali
através do processo iniciático. Práticas desse tipo, no entanto, despertam um sentimento quase
generalizado de reprovação e censura entre os mais velhos, haja vista a utilização do termo
“marmotagem” na gíria do povo do santo, como já falamos anteriormente. Por trás de tudo
isso, há na verdade, uma luta por poder. Sendo que aqueles a quem Bourdieu (1974) chama de
122
“leigos” e “profetas” apostam todas as suas fichas em prol da conquista do poder, enquanto
aqueles a quem ele chama de “corpo de sacerdotes” fazem o que for necessário para se
manterem no poder. Trata-se então de uma luta pelo poder. Parafraseando Maggie (2001),
dele, do axé. O conflito então se justifica como uma atitude de resistência ao monopólio da
gestão dos bens de salvação, e diríamos: do axé. Aqui o axé significa, de acordo com a
coisa que no primeiro capítulo chamamos de patrimônio. Ou seja, o axé – elemento protegido
pela prática do segredo ritual – é o mesmo capital religioso em torno do qual o conflito se
tipo de prática, mais uma vez somos tentados a ver aí uma tensão fruto desse embate em torno
do axé e do poder. Isso porque, para o povo do santo, nessa relação de compra e venda são os
perigo. Assim, os “vendedores de fundamentos” (como o Robson de xangô que assina o site
acima citado) são vistos pelos mais ortodoxos como aqueles que usurpam o poder que
legitimamente deveria estar apenas nas mãos do corpo sacerdotal. A regra é burlada. Outras
65
Que será melhor analisado no próximo capítulo.
66
(T’OGUN) OLIVEIRA, Altair B. Elégùn: iniciação no candomblé: feitura de Ìyàwó, Ogán e Ekéji. 3 ed. –
Rio de Janeiro: Pallas, 2009.
123
relações são colocadas. Tratar-se-ia apenas de uma realocação do corpo sacerdotal? Seriam os
para o espaço do mercado? Mas na história do candomblé (assim como na história de toda
apenas de mais uma das brincadeiras de Exu, a fim de dinamizar a religião e as relações de
ir na direção da concorrência com o corpo sacerdotal, uma vez que disputam com eles não só
o poder mas, até mesmo, os resultados financeiros que a venda de bens e serviços religiosos
poderiam lhes proporcionar. E isso tem acontecido com demasia entre o povo do santo.
Por sua vez, o feiticeiro pode alugar abertamente seus serviços em troca de
remuneração material, ou seja, pode assumir explicitamente seu papel na
relação vendedor/cliente que constitui a verdade objetiva de toda relação de
especialistas religiosos e leigos. (Idem. p. 61)
disfarça a verdadeira disputa que a fundamenta: a luta pelo poder. Manter o segredo é manter-
67
Por se tratar de uma fonte móvel, não temos a certeza se o site em questão permanecerá por muito tempo no
ar. Por isso mesmo tivemos o cuidado de imprimi-lo na sua totalidade, a fim de procedermos com uma análise
mais minuciosa do seu conteúdo, como o fizemos durante o desenvolvimento dessa pesquisa. De qualquer forma
vale dar uma olhada nele, para perceber quão forte é o apelo comercial ali presente. Da mesma forma a natureza
e os propósitos do site parecem ir de encontro a toda a concepção de transmissão tradicional de conhecimento do
povo do santo. E aqui nos perguntamos: seria este tipo de sites uma radicalização dos “cadernos de axé
(fundamentos)”?
124
se no poder. Revelá-lo indiscriminadamente, ou comercializá-lo, é trocar poder por dinheiro.
Esses processos que dão origem ao conflito, a saber: concentração do capital religioso,
recentemente, têm dado origem a uma espécie de “reforma protestante” dentro do candomblé.
E isso pode ser percebido nas próprias dinâmicas do segredo e daquilo que se considera como
tal. Essa “reforma protestante” pode ser percebida justamente em movimentos de legitimação
de processos que surgiram como atos contestatórios a uma ordem preexistente. E aqui
estamos falando, por exemplo, dos processos de reafricanização do culto. Dá-se, então, aquilo
3.4. Quando a magia desempenha seu papel: o segredo na fronteira entre religião e
magia
Historicamente a relação entre religião e magia sempre foi tensa. Da mesma forma é
juntas e, até hoje, quem procura o candomblé tanto pode está procurando-o motivado por
questões religiosas quanto pode procurá-lo a fim de contratar algum serviço relacionado com
a prática mágica. Aqui as fronteiras entre religião e magia são tão tênues quanto móveis. Não
seria prudente dizer que religião e magia aqui se confundem. No entanto, seria da mesma
forma imprudente não admitir que, na maioria das vezes, as duas caminham lado a lado. Isso
faz com que as dinâmicas de uma interfiram, mesmo que de forma indireta, nas dinâmicas da
outra.
Esboço de uma teoria geral da magia (1904), podemos perceber que o segredo está tão
presente na prática da magia quanto na da religião, apesar de a magia possuir uma grande
125
Entre os elementos que caracterizam o rito mágico Mauss (op. Cit.) apresenta os
mágicos algumas semelhanças e diferenças. De qualquer forma sempre há uma tensão entre
ambos. Sobre os conhecimentos próprios do mágico Mauss (MAUSS, 1904 [2003, p. 79])
quando analisa os atos mágicos Mauss (Idem) admite que estes atos geralmente são cercados
de mistérios e segredos, assim como têm como cenários os lugares mais afastados da maior
parte da população e em um clima quase clandestino, o que contribui ainda mais para que esta
prática seja vista como socialmente reprovável. Segundo Mauss (Op. Cit. p. 83-84), a prática
da magia está ligada a um conjunto bem definido de condições de tempo e lugar. Esses
elementos constituem parte daquele conjunto que diferencia a religião da magia. E Mauss
(1904) acrescenta:
Mas há muitos outros sinais que devemos agrupar. Primeiro, a escolha dos
lugares onde deve se passar a cerimônia mágica. Esta não costuma ocorrer
no templo ou no altar doméstico, mas geralmente nos bosques, longe das
habitações, na noite ou na sombra, ou nos recônditos da casa, isto é, num
lugar isolado. Enquanto o rito religioso busca em geral a luz do dia e o
público, o rito mágico os evita. Mesmo lícito, ele se esconde, como o
malefício. Mesmo quando é obrigado a agir diante do público, o mágico
busca evadir-se; seu gesto se faz furtivo, sua fala indistinta; o médico
feiticeiro, o curandeiro que trabalha diante da família reunida, murmura
entredentes suas fórmulas, dissimula seus passes e envolve-se em êxtases
fingidos ou reais. Assim, em plena sociedade o mágico se isola, com mais
forte razão quando se retira no fundo dos bosques. Mesmo em relação aos
colegas, ele mantém quase sempre uma atitude de reserva. O isolamento,
como o segredo, é um sinal quase perfeito da natureza íntima do rito
mágico. Este é sempre obra de um indivíduo ou de indivíduos que agem de
modo privado; o ato e o ator são cercados de mistério. (...) Obtivemos com
isso uma definição provisoriamente suficiente do rito mágico. Chamamos
assim todo rito que não faz parte de um culto organizado, rito privado,
secreto, misterioso, e que tende, no limite, ao rito proibido. (MAUSS, 1904
[2003, p. 60-61]. Primeiros grifos nossos).]
126
Assim, para Mauss, o segredo é próprio da magia, assim como no candomblé também é
da religião. Podemos perceber então que, para Mauss, a prática do segredo é um dos
elementos que caracterizam a magia, no que ela se diferencia em parte da religião. Émile
Durkheim (1996), também estabelece as diferenças entre religião e magia, sendo que este
autor faz questão de evidenciar a relação tensa que sempre existiu entre ambas. Assim, ele
Será que se deveria então dizer que a magia não pode ser distinguida com
rigor da religião? Que a magia está repleta de religião, como a religião de
magia, e que, por conseguinte, é impossível separá-las e definir uma sem a
outra? Mas o que torna essa tese dificilmente sustentável é a marcada
repugnância da religião pela magia e, em contrapartida, a hostilidade da
segunda pela primeira. A magia tem uma espécie de prazer profissional em
profanar as coisas sagradas; em seus ritos, realiza em sentido
diametralmente oposto as cerimônias religiosas. (DURKHEIM, 1996, p. 27)
Durkheim também admite que o mágico tende a se isolar do público para desenvolver
suas práticas mágicas (Idem, p. 29). E isso de fato acontece. No entanto, esse “prazer
profissional em profanar as coisas sagradas”, de que fala Durkheim, também tem aparecido
candomblé, outras dinâmicas têm acontecido. Uma delas é a transgressão, por parte dos
feiticeiros profissionais, da prática do segredo. E aqui poderíamos dizer que mais uma vez a
sacerdotal, quando se tem como objeto de disputa o controle do capital religioso - como diria
da Avenida 9 de julho, em São Paulo, durante a nossa pesquisa, evidencia um pouco essa
transgressão:
127
Imagem 1. Serviços mágico-religiosos em divulgação nas ruas de São Paulo:
A magia contrariando a religião
Foto: Patrício C. Araújo. Abril de 2011
categoria “adepto”, ou mesmo “filho de santo”, para a população ligada à vida dos terreiros, e
principalmente para os ebômes e sacerdotes, este anúncio, assim como a prática de quem o
divulga, é impensável. Beira o sacrilégio. Pois as regras do segredo (que também são as regras
do poder) não recomendam abrir para quem não é da religião a forma de se fazer o ritual.
Assim, a frase “todos os trabalhos são feitos na presença da pessoa”, soa como um absurdo
para aqueles que advogam a preservação das formas tradicionais de transmissão dos
conhecimentos. Mas podemos analisar este tipo de anúncio e de práticas ligados a ele, a partir
das palavras do próprio Durkheim (op. Cit.), quando diferencia a relação dos sacerdotes com
128
um mesmo corpo moral, comparável àquele formado pelos fiéis de um
mesmo deus, pelos praticantes de um mesmo culto. O mágico tem uma
clientela, não uma igreja, e seus clientes podem perfeitamente não manter
entre si nenhum relacionamento, ao ponto de se ignorarem uns aos outros;
mesmo as relações que estabelecem com o mágico são, em geral, acidentais
e passageiras; (DURKHEIM, 1996, p. 28-29)
Isso explicaria a relativização do segredo por parte do feiticeiro que divulga seus
serviços pelos postes da cidade de São Paulo, e diríamos, pelo Brasil afora. Não há entre ele e
o cliente uma disputa ou concorrência de poder que pudesse ser colocada em cheque com a
disputa de poder não há necessidade de segredo. Nas relações religiosas do povo do santo,
intra-terreiro, o segredo é necessário para manter as estruturas do poder. Por isso o segredo é
mantido. Como a magia se afirma como independente da religião (apesar dos agentes na
maioria das vezes serem os mesmos) ela acha-se no direito de relativizar o segredo. Isso, no
entanto, acirra ainda mais a rivalidade entre o espaço da religião e o espaço da magia, que
segundo Durkheim (DURKHEIM, 1996, p. 27): “tem uma espécie de prazer profissional em
cerimônias religiosas”.68
do segredo, por parte dos feiticeiros, nos lembra um fato narrado por nossa orientadora, em
uma das nossas agradáveis conversas. Contou-nos ela que, à certa altura da sua pesquisa junto
a uma ialorixá, terminada a fase mais densa da pesquisa, a sua interlocutora lhe propôs revelar
todos os segredos do seu orixá pessoal: “agora sente aqui que vou lhe explicar todos os
que ouvi este relato (relatado inclusive no meu diário de campo) de imediato o interpretei
68
Movimento muito semelhante foi percebido por Castillo, ao comparar diferentes sites ligados a terreiros de
Salvador. A respeito veja Castillo, 2010, p. 130.
129
como resultado da inexistência entre elas de disputa por poder. A ialorixá achava-se à vontade
para revelar à pesquisadora os segredos por saber que tal revelação não resultaria em uma
possível concorrente no campo religioso. A pesquisadora, por sua vez, recusava a oferta por
não ter interesse no poder inerente aos segredos que ora lhe eram oferecidos. Ou seja, como
não havia disputa de poder não havia necessidade de controlar o fluxo do segredo. É muito
provável que, caso a pesquisadora também fosse da religião, a oferta não acontecesse. Isso
porque revelar segredos pode implicar divisão de poder. Controlar os segredos significa, por
Nesse sentido, as dinâmicas que temos visto por parte dos feiticeiros que fazem “todos
aqueles que advogam que “No trabalho de cura e feitiço, a sabedoria secreta opera sem ser
transmitida nem aniquilada” (BRAZEAL, 2005, 319), como diria Brian Brazeal.
quando se fala de segredos e fundamentos - isso porque - mesmo quando diante das situações
feitiçaria, curandeirismo e falsa medicina69 estudados largamente por Yvonne Maggie (1992)
e por Júlio Braga (1995). Na maioria dos casos ali estudados, o comportamento dos acusados
69
Como nos explica Yvonne Maggie (1992), estes crimes estavam previstos no Código Penal de 1890, através
dos artigos 156, 157 e 158, nos quais estavam dispostas as penas para os crimes daquilo que as autoridades
judiciais e policias chamavam de “falsa medicina”, “espiritismo, magia e seus sortilégios”. (Ver: MAGGIE,
Yvonne. Medo do feitiço: relação entre magia e poder no Brasil. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, 1992, p.
22).
130
era quase padrão: respostas evasivas e vagas, de forma a não entrar nos detalhes das
medicina”, Júlio Braga chama a atenção para a postura que o acusado assume e que, na
verdade, é a mesma postura assumida pela maioria do povo do santo acusado dos mesmos
Pode-se dizer que posturas como a do religioso/feiticeiro que divulga seus trabalhos nos
poste da Avenida 9 de julho, em São Paulo, propondo realizar todos os trabalhos “na presença
Mais uma vez religião e magia parecem estar em disputa, senão pelo controle da
70
Assim também tem procedido uma parcela dos pesquisadores/autores iniciados, , como é o próprio Júlio
Braga, que é elogiado por Castillo uma vez que: “Sua obra navega habilmente entre os dois pólos do contínuun
etnográfico/paraetnográfico, dialogando com o trabalho científico sobre o universo religioso e, ao mesmo
tempo, abordando o cotidiano dos terreiros com uma apreciação profunda dos seus aspectos sociais e
históricos, evidenciando também um respeito cuidadoso pelos limites dos segredo” (p. 154)
71
Segundo inquérito instaurado na Delegacia da Terceira Circunscrição Policial de Salvador, Bahia, em três de
outubro de 1939, cf. BRAGA Júlio. Na gamela do feitiço: repressão e resistência nos candomblés da Bahia.
Salvador, 1995, pp. 125-145.
131
Como falamos anteriormente, quando se trata de candomblé é deveras difícil falar de
babalorixá/ialorixá, muitas vezes, o principal agente tanto dos serviços religiosos como dos
serviços mágicos, vamos perceber esses sujeitos assumindo diferentes posturas em relação ao
segredo ritual, dependendo dos seus consulentes. Se estão diante de um filho de santo a
atitude é uma. Se diante de um cliente a relação é outra. Mas, na maioria das vezes, àqueles
ligados à vida nos terreiros advogam a idéia de que os segredos devem ser sempre
preservados quando se trata de clientes. Até porque a natureza da relação estabelecida entre o
cliente e a religião é totalmente diferente daquela estabelecida pelo adepto, como já afirmara
Durkheim (1996). As falas dos nossos entrevistados revelam bem essa tendência a evitar
“revelação de segredos” para clientes. Quando lhes perguntamos se os clientes tinham acesso
Não. Eles não podem ter acesso ao segredo. (...) Eles podem matar uma série de curiosidades, mas o
segredo não. (Pai Paulo de Oxum)
Num primeiro momento não. Ele está preocupado em resolver um problema. (...) Mas quando ele se
depara com uma religião rica em representações ele se encanta. A partir do momento em que ele se
encanta ele está assim encantado no mistério, com o mistério e com o segredo. (...) como o diálogo
nessa religião é também um encantamento, nesse encantamento eu posso fazer uma falsa aparência
do segredo. Aquele que não conhece fica ali, em um primeiro momento, pode achar que eu estou
revelando um segredo. (...) É claro que eu posso simular. (Renato de Ogum)
Não. Eles vêm (...), pela sua necessidade, tirar um ebó, fazer o que é preciso e acabam seguindo o
caminho. Retornam quando precisam de outras coisas. Mas não têm direito de fazer parte do segredo
da casa. Dos mistérios da existência do axé. Do ilê. Do abassé. Por quê? Porque essas pessoas só
estão de passagem. (...) eles participam aqui em baixo. Mas, por trás de todo o fundamento, por trás
de todo o preparo, não sabem o que existem. (Pai Silvio do Oxósse)
Não. Não tem como aprender o fundamento em um dia, em um jogo de búzios ou em uma festa. (...)
Então eles têm acesso aí a uma festa e mais à parte superficial mesmo. O ritual todo, a festa maior
dos orixás, ocorreu já lá dentro do roncó. Dentro do quarto de santo (...). Lá dentro do salão é só uma
festa para mostrar, para tentar passar aquilo que foi feito lá dentro, mas eles não têm acesso ao que
foi feito dentro do roncó. (Carla de Oxósse)
132
(...) se for simplesmente um consulente que vem passar nas consultas com os guias, aí ele também
pode vislumbrar um segredo, mas ele não vai saber. (Reginaldo de Ogum)
relação ao mundo extra-candomblé, quanto nas fronteiras entre religião e magia72, esta
mensurar até que ponto a prática do segredo ainda encontra respaldo entre o povo do santo. E
essas que, na maioria das vezes, dão margem a uma crise de autoridade no interior da religião.
Mas essa crise de autoridade, resultante da transgressão da prática do segredo ritual, é matéria
72
E novamente Reginaldo Prandi nos ajuda a compreender o papel dos clientes nesta religião, no seu já citado
livro Os candomblés de São Paulo (1991[2001], p. 26) quando afirma: “Os clientes têm sido sempre importantes
para o candomblé como religião, isto é, enquanto grupo de culto organizado. Mas essa clientela procura o
candomblé como serviço mágico, magia que lida o tempo todo com a manipulação do mundo através do
sacrifício”.
133
Capitulo IV
de 2010, ao chegarmos nas casas da Mãe Leda de Oxum, Mãe Sylvia de Oxalá, Tata Silvio de
Oxósse, e nas demais casas nas quais conversamos sobre segredos, tivemos uma forte
tendência observada na academia, que, na maioria das vezes, parece ter total convicção da
ou jogo, o fato é que, segundo eles, o candomblé continuava sendo uma religião de segredos.
No Axé Oxum da Mãe Leda, por exemplo, nos dias de festas, os assentamentos dos orixás do
tempo, além dos arbustos sagrados que os protegem constantemente, formando-lhes uma
espécie de cortina em volta, eram (assim como continuam sendo) protegidos por um biombo
formado por duas estacas que abrigam um tecido colorido protegendo assim os sinais do
sacrifício, realizado alguns dias antes. Da mesma forma, levamos um bom tempo para sermos
admitidos aos rituais secretos da casa, mesmo já tendo uma relação de amizade bem
consolidada com a ialorixá. Já o acesso às casas dos orixás (como as de Oxum, Oxalá e
Obaluayê) só muito tempo depois do início de nossas visitas ao axé, nos foi franqueada, sendo
134
que até o momento em que escrevemos estas linhas ainda não nos foi concedida uma visita
Na casa da Mãe Sylvia de Oxalá, por sua vez, tivemos que conviver e aguardar por
cinco longos meses até conseguirmos autorização para presenciar o orô de Ibeji. Orô este que
se realizou na grande cozinha do terreiro e não na casa do santo, talvez devido a nossa
presença ali. As portas das casas dos orixás, sempre hermeticamente fechadas, deixavam claro
que ali o segredo continuava preservado e sua prática mantida. Lembramo-nos que apenas
uma vez, ao transladarem os ibás dos ibejis, contendo os axés dos orôs, da cozinha para a casa
de Oyá, algumas ebômes esqueceram a porta entreaberta, revelando em parte seu interior.
Antes e depois disso não nos vem à mente nenhum outro momento em que tenhamos visto o
Já na casa do Tata Silvio de Oxósse, mesmo sendo sempre bem recebidos nas festas e
privilégio de sermos convidados a presenciá-lo. Não que o nível de confiança entre nós e o
tata fosse insuficiente, mas porque as fronteiras existentes entre nós (fronteiras essas impostas
pela condição de iniciado que implica diferenças de nação, condição hierárquica, além da
situação de pesquisa, etc.) impunham uma etiqueta que jogava a favor da manutenção da
discrição inerente à prática do segredo. No entanto, como nossa intenção durante a pesquisa
não era ter acesso aos segredos dessas casas, mas compreendermos seu funcionamento e
metamorfoses dentro e fora dos terreiros, todas essas performances só nos ajudavam, cada vez
Evocamos esses episódios apenas para dizermos que, à primeira vista, o objeto da nossa
pesquisa (o segredo ritual) nos pareceu dinâmico e versátil, mas raramente insustentável,
apesar de seus disfarces. Quanto à idéia de uma crise do segredo, temos que confessar que,
135
inicialmente, parecia ser uma realidade bastante evidente. No entanto, com o decorrer da
pesquisa e, mais precisamente, após o exame de qualificação, ficou claro que se existia uma
crise envolvendo o segredo, essa crise não era exatamente do segredo em si, mas da
independentes da vida no terreiro. E isso provocava um conflito ainda mais acentuado entre os
agentes dessa circulação paralela e as autoridades religiosas que lutavam pelo monopólio da
conhecimentos tidos como secretos estavam mesmo “vazando” e que o povo do santo tinha
plena consciência disso. E mais: o povo do santo e, principalmente, a esfera dos ebômes, já
tinha opinião formada a respeito, assim como essas dinâmicas já influenciavam as relações
sociais no interior das casas. Nosso objeto de estudos, que por um momento nos pareceu
Isso nos fez entender que o vazamento de fundamentos se dava num duplo sentido:
partindo de dentro para fora e retornando de fora para dentro. Isso porque os agentes que
terreiros, haja vista os conteúdos das informações que ali têm circulado. E essas dinâmicas
candomblé, a ponto de forçarem uma nova relação tanto com os conhecimentos religiosos
Como resultado disso, podemos perceber, inclusive, uma acentuação nas formas de se
preservar aquele conjunto de práticas e conhecimentos tidos como secretos. Talvez isso
explique a impressão que tivemos inicialmente de que o segredo estava “muito bem
segredo viraram mais uma questão comercial, como veremos ao longo deste capítulo. Pode-se
136
então cogitar a idéia de que: transmissão de conhecimentos, vazamento do segredo e crise de
autoridade, constituem realidades contíguas. Isso porque, uma análise detida do material
divulgado (seja nas etnografias, vídeos na internet, apostilas, cursos especializados, etc.)
mostrará que tal divulgação é levada a cabo ou pelo próprio povo do santo ou por agentes
consentidos por ele. Seria isso um sintoma de que a compreensão de segredo entre o povo do
compreendido até a década de 1930? O fato é que, mesmo o segredo continuando preservado,
Surge então uma questão bastante complexa de ser analisada: quem promove o
vazamento de fundamentos faz parte dos quadros dos terreiros. Isso se pode constatar ao
analisarmos o conteúdo dos materiais comercializados por sites como axeorixa. Assim, o
mesmo raciocínio que se fez a respeito da natureza do segredo (capitulo II) pode-se fazer a
respeito da crise: frustra-se quem procura crise do segredo no interior dos terreiros. Esta é
percebida nas relações exteriores e em torno dele, pois é lá que ela está se estruturando. Seus
Neste capítulo isso ficará mais claro, principalmente através dos depoimentos dos
interlocutores.
137
Segundo o Dicionário de Filosofia73, o termo “crise” (in. Crisis; fr. Crise; al. Krisis; it.
Crisi) é um termo que teve sua origem no universo da medicina hipocrática, na qual indicava
a transformação decisiva que ocorre no ponto culminante de uma doença e orienta o seu curso
em sentido favorável ou não.74 O mesmo Dicionário ainda continua dizendo que “Em época
recente, este termo foi estendido, passando a significar transformações decisivas em qualquer
solicitamos uma redobrada atenção para o trecho que se segue, por ser de extrema importância
73
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. Alfredo Bosi. Martins fontes, São Paulo, 2007.
Edição revista e ampliada. p. 259.
74
Cf. HIPÓCRATES, Prognosticon, 6, 23-24; Epidemias, I, 8, 22, ainda segundo o mesmo Dicionário de
Filosofia.
75
Dicionário de Ciências Sociais. Coord. Geral: Benedicto Silva. Ed. FGV, Rio de Janeiro, 1986. p. 284.
138
“As crises sociais não são necessariamente disfunções, já que podem ser
importante fator de mudança. A tal respeito E. Durkheim fala de ‘crises
afortunadas’ (El Suicidio. Buenos Aires, Schopire, 1965, p. 192). O
fenômeno das crises tem sido relacionado na literatura sociológica com o
fenômeno da desintegração do sistema de valores (...)” (Idem)
exposição:
O Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa77, por sua vez, apresenta (em meio aos
treze significados que atribui ao termo crise) os seguintes significados, que nesta discussão
Na discussão que propomos aqui, essa compreensão de crise como tensão e conflito é
76
CUNHA, Antonio Geraldo. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua portuguesa. Ed. Nova
Fronteira, 2ª Edição, 9ª reimpressão, 1997.
77
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 3ª Edição, Revista e
Atualizada. Ed. Positivo, Curitiba, 2004, PP. 576.
139
4.3. Os precedentes da crise
das transformações pelas quais o candomblé passava nas grandes cidades brasileiras e discutia
prática do segredo ritual, esse mesmo estudo iria ser ainda mais alargado, com os posteriores
estudos já citados de Johnson (2002), Prandi (2005), Castillo (2005), Tacca (2009) entre
No entanto, antes mesmo desses estudos virem à tona e a temática do segredo ocupar
candomblé já haviam sacudido o universo dessa religião, episódios esses que, inclusive,
tanto no Brasil (O Cruzeiro) quanto na Europa (Paris Match), como nos mostra tão
Esses episódios, que não retomaremos aqui por motivos óbvios78, foram emblemáticos e
fundamentais no contexto das discussões em torno do polêmico assunto, pelo fato de terem
chamado a atenção tanto do povo do santo quanto da academia, para um processo que viria a
se intensificar cada vez mais e que desembocaria naquilo que aqui estamos chamando de
Tal crise, que atinge “de cheio” a prática do segredo, apesar de ter suas origens mais
78
Àqueles que desejarem revisitar os episódios da revista O Cruzeiro, os casos Clouzot e Paris Match,
recomendamos o já citado trabalho de Fernando de Tacca: TACCA, Fernando. Imagens do sagrado: entre Paris
Match e O Cruzeiro. Ed. Unicamp & ImprensaOficial, São Paulo, 2009.
140
religioso, parecem ter se intensificado com a interferência de agentes externos à religião
qual informações e práticas religiosas do candomblé; antes tidas como restritas aos iniciados,
com o passar do tempo, vão caindo no domínio público, ao ponto de imporem adaptações por
parte da religião, incidindo assim sobre as relações sociais estabelecidas no interior das
etnografias, e mais recentemente, e de uma forma muito mais intensa e comercial, através da
trabalhos como os de Nina Rodrigues (1900), Edson Carneiro (1937), Ruth Landes (1947)81 e
Pierre Verger (1982; 1999), em se tratando de veiculação textual. Há também quem defenda
que o impacto das fotografias de José Medeiros, publicados em O Cruzeiro, tenha sido o
79
Em um recente artigo intitulado: Imagens do segredo, Juliana Barreto Farias discute esses processos de
divulgação de imagens privadas do interior de terreiros na cidade baiana de Cachoeira e suas implicações entre o
povo do santo do recôncavo baiano. (FARIAS, Juliana Barreto. Imagens do segredo. In: Revista de História da
Biblioteca Nacional. Ano 6, nº 62, novembro de 2010, pp. 42-44.
80
A respeito das rápidas transformações das tecnologias da informação e suas possíveis interferências no modus
vivendi do povo do santo de Salvador, ao final do seu trabalho de doutoramento, Castillo afirma: “Quando este
estudo se encerrou, em meados da primeira década do século XXI, a Bahia estava sendo transformada pela
revolução digital. O uso de computadores e da internet, anteriormente restrito às classes mais abastardas,
estava se espalhando também na periferia urbana. Em 2006, a maioria dos bairros populares já tinham pelo
menos uma Lan House e tecnologias audiovisuais mais portáteis também estavam ganhando espaço: máquinas
digitais, telefones celulares que tiravam fotos e pequenos gravadores de MP3. Mudanças no quadro social já
estavam repercutindo na dinâmica da transmissão, circulação preservação do saber. Os jovens do candomblé
de hoje em dia nasceram após o fim da repressão policial, o que influencia sua noção de segredo” (Castillo,
2010, pp. 190-191).
81
Como é o caso de Johnson (2002).
82
Tacca, Opus Cit.
141
E, ainda, há quem defenda que a revelação dos ditos segredos rituais parte, inclusive, do
povo do santo, pois: “Os adeptos do candomblé não precisam mais guardar seus segredos
brasileira”.83 Aliás, é nessa dinâmica que se pode classificar uma gama relativamente
considerável de materiais produzidos por pessoas do santo como é o caso da obra já bastante
pelo renomado babalaô Agenor Miranda Rocha, a tensão em torno do elemento segredo já
pode ser percebida. Ao se referir à volumosa produção bibliográfica sobre religiões afro-
antagônicas. Uns não concordam com a revelação de segredos da seita e outros acreditam
que sua divulgação tem um lado pedagógico que não deve ser desprezado”. Ao que parece,
essas palavras do babalaô nos remetem claramente à opinião de que o trabalho ora prefaciado,
Mais adiante, as palavras do babalaô são ainda mais contundentes, ao ponto de admitir
que a dinâmica revelar/não-revelar segredos interfere nas relações sociais estabelecidas entre
83
BRAZEAL, Brian. Reseña de “Secrets, Gossip and gods” de Paul Christopher Johnson. Afro-Ásia, número
032, Universidade federal da Bahia, Bahia, Brasil, p. 318.
142
Em tão poucas palavras o Professor Agenor Miranda fala muito. Aí está presente desde
a relação entre segredo e poder – visceral no candomblé - até a relação entre manutenção do
atualmente se dá de forma mais fácil, acirrando as divergências entre o povo do santo. E aqui
do povo do candomblé, através das seguintes palavras: “Sem entrar no mérito da polêmica
acerca do que deva ou não ser publicado, saudamos mais esta contribuição aos estudos da
responsabilidade, ao revelar aquilo que é tido como segredo no interior dos terreiros.
Percebemos que ele, mesmo tentando se justificar, tem consciência de que incorre neste risco:
universo religioso, como já explicamos no capítulo II, passar detalhes importantes implica
importantes que constitui o savoir-faire do povo do santo? E esse savoir-faire não constitui o
143
E T’Ogun segue então descrevendo, minuciosamente, todo o processo de iniciação de
iaô, ogã e equéde; Desde o momento da consulta ao oráculo, para identificar a que orixá o
aspirante à iniciação pertence, até às etapas finais do processo iniciático, passando por um
Ora, pode-se, então, perguntar: até que ponto esse conjunto de rituais possui status de
segredo entre o povo do santo? E até que ponto a revelação de seus detalhes é vista como
Polêmicas à parte, fato é que, desde estes primeiros trabalhos uma enxurrada de
mostra a epígrafe a este capítulo, nos mais variados meios de comunicação. O refinamento
desta prática de alargamento da circulação de fundamentos vai atingir uma expressão máxima
títulos de alguns livros desta coleção demonstram o propósito da mesma: “Todos os segredos
144
de Ogum”84, “Todos os segredos de Xangô”.85 De uma literatura mais “leve” para outra mais
substancial, livros como os de Altair T’Ògún86, muitas vezes acompanhado de Cd’s com as
aquilo que antes era mantido na discrição dos terreiros e dos roncós. E assim o segredo vai se
metamorfoseando.
No limiar do século XXI, enquanto a economia mundial parece dar sinais de que o
direção de uma reconfiguração de muitas das suas estruturas e elementos estruturais. No que
tange à prática do segredo ritual isso fica ainda mais claro. Posturas as mais radicais, no
sentido de manter o segredo, convivem com outras visivelmente revisionistas. Tudo isso
também pode ser compreendido à luz das diversas transformações pelas quais passa nosso
tempo e nossas práticas. Há quem atribua essas diferentes posturas às dificuldades de algumas
lideranças religiosas, no tocante ao convívio e diálogo com o mundo cada vez mais
84
SILVA, Jacimar. Todos os segredos de Ogum. Col. Espiritualismo, nº 51880, Ed. Ediouro, s/d, Rio de Janeiro.
85
Idem (1988)
86
T’OGUN, Altair. Elégùn: iniciação no candomblé. Feitura de Ìyàwó, ogán e ekéji. Pallas, Rio de Janeiro,
2001.
145
O candomblé não fica fora desses movimentos. Ao afirmar que os candomblés de São
Paulo surgiram e se desenvolveram como uma resposta a uma demanda por esses bens
simbólicos e religiosos, Prandi87 já chamava nossa atenção para uma das principais
qual a especulação vai se estruturando de uma forma compatível com as próprias dinâmicas
do mercado capitalista. E as regras deste mercado nem sempre levam em conta as antigas
tradições. O desejo de lucro, assim como acontece em qualquer relação capitalista, suprime
antigos princípios e dilui fronteiras antes tidas como intocáveis e indiscutíveis. O segredo
possui seu fetiche. Em torno desse fetiche do segredo surge uma nova categoria de
www.axeorixa.com. Vender segredos deixa de ser sacrilégio e passa a ser meio de vida. As
atinge um ponto até então não praticado. Tudo isso vai atingir, “de cheio”, as relações de
Multiplica-se, então, cada vez mais, o número de cursos88, apostilas, websites, DVD’s,
87
PRANDI, Reginaldo. Os candomblés de São Paulo. HUCITEC, São Paulo, 1991 [2001], pp. 20-21.
88
A respeito desses cursos (assim como de outras práticas como é o caso dos famosos “Cadernos de Axé”)
muito já foi falado. Indicamos aqui apenas dois trabalhos, já citados, o de Vagner Gonçalves da Silva: Orixás da
Metrópole (1995), onde o autor aborda de forma bastante satisfatória estas práticas entre o povo do santo de São
Paulo, e o de Júlio Braga: Na gamela do feitiço (1995), no qual o autor faz um contraponto, chamando a atenção
para o lado positivo da utilização dos cadernos. Já o trabalho de Lisa Louise Earl Castillo (Entre a oralidade e a
escrita: percepções e usos do discurso etnográfico no candomblé da Bahia, 2005) merece destaque especial por
abordar, de forma muito profunda, a relação entre oralidade e escrita no universo do candomblé.
146
Alguns desses veículos nem objetivam comercializar, mas apenas divulgar rituais, cantigas,
www.youtube.com, no qual se pode encontrar, até a exaustão, vídeos e fotografias dos mais
variados rituais religiosos do candomblé, desde os sacrifícios de animais (orôs) até a iniciação
de iaô.
comercialização dos fundamentos; Outros, por seu turno, alegam propósitos diversos que vão
Outra reação bastante clássica e sintomática é a que evoca a gíria “marmotagem” entre o
santo parece querer dizer que marmotagem tanto pode ser “fazer errado” (ou “de qualquer
jeito”) quanto fotografar e divulgar aquilo que se faz no contexto do segredo ritual - mesmo
que seja feito conforme a tradição prescrita. Nessa compreensão é “marmoteiro” quem faz
errado, mas é da mesma forma marmoteiro quem faz certo e divulga através de fotos, vídeos,
fundamento é marmotagem.
uma grande preocupação em deixar bem claro seu posicionamento contra esse tipo de
147
Você vai na internet, o que você buscar você acha. Mas isso é uma falha
da casa. (...) uma falha da casa de saber como divulgar. Quem está
liderando essa casa tem que falar: “Isso aqui é uma informação que não
deve ser divulgada”. Que eu vejo, tem muito colega que está no orkut,
facebook, ou outras redes sociais, o cara vai lá e “pluga” uma foto porque:
“ - não, isso aqui sou eu e é o meu orixá”. Mas tem que entender que
aquilo ali não é para qualquer um ver. Eu normalmente faço a parte de
fotografar e documentar todos os rituais e, normalmente tem outro evento
que precisa registrar e a ialorixá pede, eu vou lá e registro, normalmente
são festas. E todas as fotos eu sempre pergunto o que eu posso divulgar ou
não. Se eu peguei uma foto que de repente saiu algum elemento que tem que
ser guardado, que não pode ser divulgado, eu não posso publicar. E essa
publicação sou eu que controlo. Eu controlo isso, em parceria com a mãe
de santo da casa. Eu pedi pra ela pra poder registrar, como que a gente vai
fazer? As primeiras festas eu sentava com ela, “Isso pode. Isso não pode.
Isso vai. Isso não vai”. Entendeu? E a partir daí, eu já fui tendo
conhecimento do que pode e do que na pode.
A maioria das festas pode. Exceto uma saída de iniciação. Nas primeiras
saídas não pode tirar, até que saia com a primeira roupa branca. Aí eu
posso começar a registrar. Uma festa...a maioria das fotos, eu posso até
registrar para um arquivo da própria mãe de santo, mas eu não posso
divulgar. Exatamente. Depois de a comida já está rodando, já está
louvando e tudo o mais, algumas fotos, de algumas pessoas que estão
carregando determinados elementos eu posso tirar. Outros eu ainda não
posso. Xangô, dependendo da posição que eu tire dele com o pilão eu já
não posso divulgar essa foto. E assim para os demais. Conserva-se a
mesma forma. Sacrifícios eu já não posso tirar. Mesmo as publicações que
eu faço hoje é um blog particular. Só se eu permitir com usuário e senha.
Isso não fica aberto como uma rede social ou um site que qualquer um vai
lá e entra. (Valéria de Oxum)
Uma vitrine que mostra, de forma bastante crítica, a divulgação indevida por parte
umbandomblé”, etc.
março de 2011, ao digitarmos na janela inicial do site citado a expressão “feitura de iaô”
tanto. Para a palavra “orô” tivemos 27 resultados, sendo que na esteira desses vinha uma
148
enxurrada de outros vídeos divulgando apostilas com: ritual de corte, ritual de raspagem de
iaô, catulagem, fundamento de candomblé, orucó (de Exu a Oxalá!), fundamentos e segredos
assentamento de abaçá, etc. etc. etc. Ou seja, tudo se divulga. Tudo se vende. E se está à
venda é porque há quem compre. Uma pesquisa quantitativa que analise o volume dessa
desenvolva.
jogo de búzios à distância para quem tiver interesse em consultar os oráculos sem se deslocar
até o terreiro. Nós mesmos fizemos o teste durante a pesquisa. Ao criarmos um endereço de e-
mail entramos em contato com um babalorixá que se dizia residente em São José do Rio Preto
(SP) e, através do site, fornecemos uma data de nascimento fictícia e um nome também
fictício, perguntando a respeito da possibilidade de nos informar sobre nosso orixá de cabeça.
Três dias depois nos chegou o e-mail de resposta, esclarecendo que, mediante o pagamento no
valor de R$ 100,00 (a ser depositado na conta corrente, cujo número acompanhava em anexo)
teríamos todas as informações, e outras mais, diretamente na nossa caixa de e-mail, em três
parece andar sempre associada ao anonimato. Na maioria das vezes os envolvidos preferem
utilizar nomes fictícios ou se esconderem por trás do anonimato. Isto em parte se explica pela
recriminação do ato de divulgar fundamentos, que entre o povo do santo, é tido como uma
espécie de traição e classificado como “marmotagem”, como já foi dito. Assim, quem se
apresenta como “Robson de Xangô”, para citar o caso do já referido site www.axeorixa.com,
149
Fizemos também a experiência de testar a disposição do povo do santo em termos de
que ela se destinava àqueles que estivessem dispostos e interessados em falar sobre o assunto.
Durante os dois anos que a comunidade esteve no ar não conseguimos um único adepto, além
de nós mesmos, claro. Com isso, pudemos confirmar nossa suspeita: a divulgação de
fundamentos sempre corre “por debaixo dos panos”. O manto do anonimato protege aqueles
que divulgam os fundamentos. Talvez pela compreensão de que se trata de uma prática
como acontece com o site axeorixa.com, as relações são estritamente comerciais, frias e
digitalizadas. Sobre essa frieza da internet e sua diferença com o universo da religião, Valéria
Tem sites aí que você consegue fazer o jogo de búzios pela internet. Onde já
se viu isso? Como é que ele vai pegar minha vibração? Eu trabalho nessa
área e sei como isso funciona. É tudo muito frio. E orixá, entidade, a
religião em si ela é muito contato. Tem que sentir a vibração. Se ela não
sentir a vibração não adianta rodar que ela não vai rodar nada ali.
(Valéria de Oxum)
Determinadas informações que você pode pegar da Internet elas têm uma
aparência de segredo. Mas quando você pega essa aparência e traz para a
experiência (...) aí tem um problema, porque se você entender que aquilo,
numa outra dimensão comunicativa, que é a Internet, numa revista, num
livro... se você entender, se as pessoas entenderem que aquilo está ali, o
segredo, a chave, a fórmula, é essa, e você aplica isso (...) você vai lidar
com um iaô ali, você vai lidar com uma pessoa, se você pensar que aquilo
que você está vendo ali, numa outra plataforma de comunicação, vai ser
aplicado como uma fórmula ali numa experiência (...) ai é que está o
problema. Por que naquele momento, aquilo que você está captando
naquela pessoa, naquela essência, ou vendo, tocando, pegando, é
totalmente... não há fórmula. Então, por exemplo, eu posso saber
determinadas fórmulas: “O iaô se faz assim e assim, pronto”. Mas, na
150
realidade, quando eu pego aquele orí, e olho pra ele. Ele está nas minhas
mãos, eu sinto ele pulsando, despertando uma energia ali, aquele orí está
ali, naquele momento para eu cuidar. Eu tenho a fórmula. Mas aquele orí é
único. Foi escolhido na casa de Ajalá, com determinado odú, com
determinada divindade que acompanha ele, com determinada possibilidade
de ser e está no mundo, naquele momento, pelo que eu aprendi na minha
casa, aquele momento é único. Eu tenho a fórmula, “um iaô se faz assim”,
mas naquele orí existe um detalhe, existe um segredo. Eu olhando aquele
orí eu desvendei um segredo. Olhando para aquele ori naquele momento.
Eu sei a fórmula, mas olhando para aquele ori naquele momento da
iniciação. Ali a minha percepção, naquele orí, aquele ori vai dizer alguma
coisa pra mim. (Renato de Ogum)
Porém, uma prática recriminada pelo grupo não é necessariamente uma prática deixada
de lado. Isso se pode perceber através da multiplicação de lojas virtuais relacionadas com a
religioso.
vê o anúncio: “Faça você mesmo sua macumbinha” (frase que, aliás, já era título de livro
desde a década de 1980, e que em épocas de internet também virou título de box de DVD’s)
despejam no mercado (e às vezes até no interior dos terreiros) informações que, inclusive, são
comparadas pelo povo do santo com as práticas da casa, em alguns casos até suplantando
151
4.5. “Batendo o pezinho de mãos na cintura”: quando as informações de fora afetam
as relações de poder no interior do terreiro
Não foi à toa que a maioria dos nossos interlocutores ebômes se posicionou
internet. Dos sete ebômes entrevistados por nós, apenas dois não foram radicalmente contra
claro então que, por trás da preocupação com a preservação das tradições, também está a
questão da manutenção do poder, pois como diria Mãe Leda de Oxum: “Possuir os segredos é
como ter algumas cartas na manga”. Da mesma forma, quando a Mãe Sylvia de Oxalá diz
que Yá Tolokê não possuía segredos que legitimassem sua assunção do cargo de ialorixá da
casa, pois o Pai Caio, sempre que podia, mudava as regras do segredo e não lhe transmitia os
segredos da casa. Percebe-se claramente uma jogada que atua como dispositivo de
Mas, por mais que a esfera dos ebômes se empenhe em manter o segredo, os espaços de
transgressão das regras estão aí; E, como diria Augras (1987;1989) a respeito do tabu e das
quizilas, talvez o segredo só exista mesmo para ser revelado, como costuma afirmar a maioria
têm sofrido interferências mais da forma de revelação desses segredos do que mesmo da
revelação em si. É como se o segredo existisse sim para ser revelado, mas devesse ser
tradições religiosas e sob a batuta dos ebômes. Ou seja, a revelação é legítima, desde que não
Mas, como já não tem mais acontecido apenas assim, chega um momento em que os
mais novos, influenciados pelas informações que circulam em espaços alternativos, começam
152
a questionar. É o momento em que alguns põem as mãos na cintura e batem o pezinho (para
utilizar uma conhecida expressão do povo do santo). A curiosidade assume então feições de
desaforo e a tensa relação entre os mais velhos e os mais novos toma forma de enfrentamento
que beira o desaforo. Está instalada a crise da autoridade. Surge no cenário das relações de
A grande maioria dos pesquisadores que transitam na análise das formas de transmissão
ritual, têm se pronunciado sobre esses conflitos envolvendo os conhecimentos adquiridos fora
dos terreiros e aqueles acumulados conforme as tradições convencionais. Sobre isso Prandi
(2005) afirmou:
metrópoles como São Paulo, cuja vida intensa e movimentada é fortemente marcada por todas
diretamente nas relações de poder vigentes no interior dos terreiros. O mesmo Prandi constata
153
Essa nova maneira de conceber o aprendizado, a idade e o tempo interfere
muito nas noções de autoridade religiosa, hierarquia e poder religioso,
dando lugar a contradições e conflitos no interior do candomblé,
questionando a legitimidade do poder dos mais velhos, provocando
mudanças no processo de iniciação sacerdotal. (Idem, p. 44).
Isso porque:
Apesar de não concordarmos com a ideia de que a ciência teria desmascarado o segredo,
as palavras do autor são mais do que fundamentais para a compreensão dos novos processos
perguntar: será que a intensa comercialização de fundamentos, aqui analisada, seria uma das
facetas dessa “luta pela sobrevivência” por parte do povo do santo, aonde o conhecimento
religioso atuaria como forma de ganhar a vida? Até que ponto essa forma de se relacionar
Mas o conflito está lá. Como diria o povo do santo: “está feito o pajubá!” Os
questionamentos são cada vez mais comuns. Diante disso, a autoridade dos mais velhos
É inegável que tanto a autoridade dos mais velhos como as práticas rituais no candomblé
mais novos e daqueles que aderem à religião já é totalmente diferente daquele que se
154
Eu tive aquela criação com os mais velhos. Então, se falava muito pouco,
não se falava quase nada, era mais aquela coisa de olhar, entender... Você
ir aprendendo à medida que você estava dentro da casa, ao lado do seu
zelador, isto é, se ele tivesse uma confiança, uma credibilidade na sua
pessoa. Que aquilo que você estaria vendo ouvindo, você estaria
guardando o segredo, que você não estaria contando pra ninguém, então,
hoje, dentro da minha casa, eu ainda mantenho esse segredo. É muito
pouca coisa que você abre, que você fala. Agora, os tempos mudaram, né?
Antigamente se você falava: “isso você não pode saber”, o filho acatava e
não questionava. Hoje já tem os questionamentos né? Porque um filho
chega e diz: “mas por que eu preciso fazer isso?” “Mas por que o meu
orixá é dessa forma?” E você percebe que a pessoa tem uma necessidade
de saber o que é que ela está fazendo, o que é que ela está cultuando (...)
hoje você vê que o culto ao orixá, o candomblé, adentrou pelas portas das
universidades. Hoje você vê um promotor que é iniciado, um advogado que
é iniciado, um juiz cultua o orixá. E como essas pessoas vão chegar e você
vai dizer: “olha o senhor vai fazer isso, isso e isso” e ele vai levantar e vai
embora, sem dizer o que é que ele está fazendo? O porquê que ele está
fazendo... mas só que nós também temos uma forma hábil e delicada de
passar isso, né?
(Mãe Leda de Oxum)
Renato de Ogum também constata essas profundas mudanças pelas quais passam a
religião e as relações ali estabelecidas:
Eu volto a dizer aqui das nossas formas de viver hoje num mundo
globalizado: hoje em dia você não tem mais tempo para ficar dentro de
uma roça recolhido três meses, você não tem mais tempo de carregar um
kelê três meses, você não tem mais tempo de ter uma vivência numa forma
de sociabilidade pra determinado tipo de aprendizado que é de forma oral,
que é demorado, que é uma outra temporalidade. Por que hoje em dia a
percepção do tempo é outra. O tempo passa como sempre passou desde o
início, desde os primórdios, mas a forma como você utiliza o seu tempo
hoje não te permite você ter uma vivência no candomblé como você tinha
tempos atrás. (Renato de Ogum)
poder nessa religião. De acordo com alguns analistas, a crise de autoridade enfrentada pelas
lideranças religiosas do candomblé seria resultado da dificuldade que essas mesmas lideranças
teriam de dialogarem com o novo e com a modernidade dos tempos atuais. Mas isso já é
155
Considerações finais
Ou
Para que a conversa possa continuar
candomblé, estamos ainda mais convencidos de que esta conversa carece de uma continuação
séria e comprometida.
convívio com o povo do santo de São Paulo e sua região metropolitana. Nesse convívio
pudemos, com muito gosto, compreender melhor os sentidos do segredo ritual no candomblé
e suas estreitas relações com o poder dos babalorixás, ialorixás e ebômes. Também ficou clara
organização do espaço e tempo sagrados. As muitas festas, às quais acorremos com o duplo
olhar de iniciado e pesquisador, nos mostraram, de forma ainda mais clara, como o substrato
das manifestações públicas do candomblé é de fato aquilo que se protege por trás das portas
fechadas e dos rituais secretos. É por isso que, neste momento de conclusão desta etapa da
“Para que a conversa possa continuar”. Achamos que este convite faz mais sentido ao
chegarmos a esta altura da luta pela compreensão mais substancial dos sentidos do segredo no
candomblé.
segredo de forma a não ficarmos no lugar-comum daqueles que se dedicaram com mais afinco
aos estudos do segredo, a saber, os historiadores. Junto àqueles que, nas Ciências Sociais,
156
dedicaram parte das suas preocupações à análise do segredo como forma de socialização
(SIMMEL, 1977, DAL PRA, 1990) caminhamos na tentativa de entendermos até que ponto o
engendramento das relações de poder. E acabamos por perceber que, de fato, o segredo,
indiscutível eficácia.
encontrarmos caminhos mais esclarecedores acerca do nosso objeto de estudos. Vimos que
durante muito tempo o tema do segredo ritual foi respeitado de tal forma que pouco se
escreveu sobre o assunto, pelo menos até a década de 1990. A partir daí, o segredo voltou a
ser tema das análises de alguns dos nossos mais conhecidos e respeitados estudiosos,
Quanto mais nos aprofundávamos na nossa pesquisa, no diálogo com a academia e com
os terreiros, mais percebíamos que a crise que antes pensávamos ser do segredo, na verdade
atingia a autoridade das lideranças do candomblé. Essa crise de autoridade, como já nos
posicionamento dos sujeitos do que nas relações diretas entre os mais novos e os mais velhos.
É como se ninguém admitisse a crise mas admitisse a existência do conflito. E isso fica bem
157
assunto é fundamentos. E se a conversa envolve agentes das diferentes esferas, o diálogo fica
ainda mais tenso. O teor dos depoimentos por nós conseguidos é uma boa prova disso.
As longas conversas com os ebômes, babalorixás, ialorixás, iaôs e abiãs, nos fizeram
entender, de forma mais lúcida, a constante luta dos mais velhos na tentativa de manterem as
tradições que parecem não resistirem às incontroláveis dinâmicas do mundo moderno. A era
da comunicação, com todas as suas peculiaridades, parece insistir em dizer aos mais velhos
que o conhecimento não está mais reduzido apenas aos terreiros. E assim as relações vão
mudando.
Ao estabelecermos diálogo com estudiosos como Silva (1995; 2006), Prandi (2005),
Castillo (2005), Braga (2006), entre outros, ficamos ainda mais tentados a imaginar que, todo
qualquer cultura que pretenda resistir ao fluxo do tempo. Trata-se, então, de um movimento
de constante invenção e reinvenção da cultura religiosa, uma vez que as tradições são por
Júlio Braga (2006) fala sobre isso, da confortável posição de quem goza tanto do
sacerdote), ao discutir sobre o tema “Candomblé: tradição e mudança”. Segundo Braga (op.
Cit.), a essas mudanças os mais velhos não conseguem fugir, restando-lhes a opção de fazer o
permanece, mudando e muda para poder permanecer. E, apesar dos queixumes, terminam por
158
Na corrida das mudanças, os mais velhos participam com a autoridade que
se lhes empresta o tempo e o saber acumulado. Mas eles não podem delas
escapar, sob pena de estacionar no próprio tempo, tendo por obstáculo
maior o próprio saber acumulado. Eles são, de certa maneira, o exército de
prontidão, a refrear os possíveis excessos que podem ser cometidos pelas
pressões do mundo atual. Eles indicam, de maneira sub-reptícia, os limites
das transformações possíveis e aceitáveis, a ponte que deve ser atravessada
sem danos maiores e sem acidentes graves para alcançar o outro lado.
Contudo, ainda que à revelia, são os responsáveis maiores pelas mudanças,
posto que nada acontece sem o conhecimento dos mais velhos e quando
fazem ouvido de mercador, tacitamente se colocam como peça principal de
engrenagem transformacional da tradição. (BRAGA, 2006, p. 117).
antropólogo, como queiram!), nos ajudem a entender que por trás de uma iniciativa como o
fundamentos é por que os conhece. E, apesar das críticas vindas tanto dos mais velhos como
dos mais novos, como acontece com as palavras da abiã Valéria de Oxum: “Só se for uma
pessoa que não é da religião. Por que se ela for cem por cento ela vai saber que aquilo não
pode ser divulgado pra qualquer um”, o que se percebe é que o teor dos conhecimentos que
vazam demonstra que tal conhecimento foi adquirido através do processo iniciático. O
problema mais desafiador, ao que nos parece, é como lidar com esse processo de circulação
conhecimentos religiosos fazem o jogo inverso da ação dos mais velhos. Movimento esse que
ninguém consegue barrar ou impedir. Assim como Exu, essa circulação veloz de fundamentos
na internet e demais formas midiáticas, parece não ter controle e nem fronteiras. Por outro
lado, processos como esses sempre estão ligados a Exu e Ogum, senhores da comunicação e
dos caminhos. E se Exu preside este processo como contrariar uma ação de tão poderoso
orixá? Seria a livre circulação de fundamentos uma das costumeiras peripécias de Exu?
159
Estaria ele brincando com os tabus da religião? Tal desordem seria uma tentativa de Legbara
de estabelecer uma nova ordem das coisas? E, em caso positivo, o que o senhor do segredo e
da comunicação estaria querendo nos dizer? Peripécia ou não, fica a impressão de que o
candomblé atravessa um período de intensas transformações das quais não poderá fugir.
Então, o que resta ao povo do santo é enfrentar esse processo de frente, e, assim, buscar
de dialogar com esse mundo globalizado que há muito tempo deixou de ser aquele dos
Entre as conclusões às quais podemos chegar está o fato de que esse movimento de
dentro dos terreiros e retorna a ele de forma adaptada às mídias contemporâneas. Não dá para
afirmar que tal movimento é alheio à vida do terreiro. Ele parte dali. E retornando ali
interfere, indiscutivelmente, nas relações ali estabelecidas. A propósito, nenhum dos nossos
que o fenômeno existe. Da mesma forma, quase todos (com pouquíssimas exceções) se
posicionam veementemente contra tal procedimento e, sempre que podem, fazem questão de
desqualificar os responsáveis por tal movimento (novamente a fala de Valéria de Oxum): “Só
se for uma pessoa que não é da religião. Por que se ela for 100% ela vai saber que aquilo
la carte” termina por interferir nas relações de poder ali existentes, criando assim um
verdadeiro clima de tensão entre os mais novos e os mais velhos. Instala-se um verdadeiro
próprio abandono da vida no terreiro em detrimento de uma prática religiosa mais pessoal,
160
autônoma e intimista, uma vez que não há mais necessidade da convivência no terreiro para
adquirir os conhecimentos rituais que agora se compram na internet, através das mais variadas
Tá! Então eu posso entrar lá, comprar um livro e saber como me inicio,
chegar em casa e eu mesmo me inicio? Pra quê que eu preciso de um axé?
Pra que eu preciso participar de tanto tempo de conhecimento, de estudos,
pra quê que eu vou num orô? “Ah, eu já sei o que vai acontecer”, então
“eu peço da minha casa”. Entendeu? Eu não preciso ir lá. E isso eu acho
totalmente errado. A pessoa só pensa no dinheiro. Ela não pensa na
informação. Como isso tem que ser passado. Pra quem isso foi passado.
(Valéria de Oxum)
É com essa nova realidade que o povo do santo está tendo que lidar no momento em que
desenvolvemos esta pesquisa. E é para essa nova realidade que o candomblé terá que
encontrar soluções práticas que durem pelo menos até o surgimento de novas problemáticas
que exijam novas respostas, uma vez que a religião é por natureza dinâmica.
Há quem diga, e Júlio Braga está entre os que assim pensam, que há entre o povo do
santo uma espécie de tendência a quebrar as regras e tradições. Como se elas existissem
justamente para serem quebradas, assim como Augras fala a respeito do Tabu (1987; 1989).
povo do santo. Ao contrário, tal ruptura é que faz a tradição continuar viva. E nisso Braga está
161
de acordo com o pensamento de Bornheim (1987), no que tange às transformações às quais as
tradições estão sujeitas.89 O próprio Braga sinaliza nessa direção ao questionar (e a questão
colocada nos parece uma pergunta meramente retórica): A mudança no candomblé implicou
garanti-la mais como poder do que conduta a ser seguida? (p. 119). Nos parece que a
Nesse sentido, as palavras de Augras sobre o tabu, também podem ser aplicadas ao
segredo ritual no candomblé, uma vez que ambos tocam na questão do poder. E, em se
fala de poder - do poder dos mais velhos, da esfera dos ebômes. E como Braga afirma
candomblé estão em constante redefinição, mesmo que isso mexa com o status daqueles que
exigem para si as prerrogativas de legítimos transmissores desse saber. E é assim que Braga
E, junto com Braga (2006) e Castillo (2010), podemos dizer: ora, se na Bahia, tida
como fonte primeira e legítima das tradições religiosas mais autênticas do candomblé, a coisa
está “nesse pé”, o que não dizer dos candomblés de São Paulo?
89
BORNHEIM, Gerd. O conceito de tradição. Tradição contradição. São Paulo: Zahar, 1987.
162
Assim, ao chegarmos a esta etapa de conclusão da pesquisa que nos propusemos a
desenvolver, deixamos o convite à discussão, a todos que tenham interesse em discutir essas
dinâmicas, seja na academia seja nos terreiros. E acreditamos, sinceramente, que tal
discussão, longe de ter como objetivo apenas encontrar soluções para o problema do conflito
de gerações em torno das formas de transmissão dos conhecimentos religiosos, nos ajudará
ainda mais a compreendermos melhor esta prática tão fundamental para o povo do santo que é
o segredo ritual.
163
Referências bibliográficas
AMARAL, Rita. Xirê! O modo de crer e viver no candomblé. Rio de janeiro: Pallas; São
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_____ . O que é tabu. Col. Primeiros passos. Ed. Brasiliense, São Paulo, 1989. 75 p.
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www.lojasobrenatural.com.br
(Acessado em diferentes momentos da pesquisa)
www.oriaxe.com.br
(Acesso em 20/08/2011)
168
Glossário
O Glossário que segue é direcionado mais àqueles que não têm muita familiaridade
com as religiões afro-brasileiras do que aos pesquisadores dessas religiões e ao povo do santo.
Por isso mesmo não é feito referências às suas origens etimológicas, sendo que as mesmas são
grafadas de acordo com a forma como as escutamos de seus falantes ou com as fontes às quais
Para aqueles que desejarem aprofundar seus conhecimentos, acerca de seus sentidos e
respeito do assunto, cujo número hoje, felizmente, chega a ser considerável. Entre os
Africana, de Nei Lopes (2004) e O Candomblé bem explicado, de Odé Kileuy & Vera de
Oxaguiã (organizado por Marcelo Barros – 2009). Todos constantes da bibliografia indicada
ao final deste trabalho, entre outros que são, da mesma forma, úteis e acessíveis.
Abassá: Espaço público da casa de candomblé. Barracão. Termo também utilizado para se
referir ao templo religioso. Terreiro.
Abiã: Não iniciado. Adepto da religião, que aspira à iniciação mas que ainda não se submeteu
à ela. Posto hierárquico elementar no candomblé.
Adôxu: Elemento sagrado em forma de cone, geralmente afixado no alto da cabeça (orí) do
iaô durante sua iniciação. É composto por uma vasta combinação de elementos animais,
vegetais e minerais. Sua preparação ritual é prerrogativa dos ebômes e sua fórmula é cercada
de muito mistério. Pode ser tido como elemento representativo do segredo ritual. Por
extensão, o termo também é utilizado para àqueles que se iniciaram na casa referida.
Exemplo: “Eu sou adôxu da casa de Oxalá”. Que quer dizer: “Eu fui iniciado na casa de
Oxalá”. Ou: “Ele não é adôxu dessa casa”, que quer dizer: “Ele não foi iniciado nessa casa”.
Ahogbo: Sociedade secreta que, segundo Roger Bastide, teria existido entre os nagôs no início
do século XIX no Brasil. O mesmo nome também é utilizado para se referir à divindade dos
membros dessa mesma sociedade. Uma das suas principais tarefas era perseguir e punir
criminosos.
169
Ajás: Divindades guerreiras e aguerridas como Ajagunã, Jagun e Ogunjá. Segundo Odé
Kileuy e Vera de Oxaguiã: “Irascíveis, os Ajás revidam a toda violação de regras, a falta de
zelo e à desobediência do homem perante as normas da ética e da moral religiosa” (2009, p.
181).
Apoti: Pequeno banco de madeira utilizado no interior das casas de candomblé para acomodar
as divindades, os iniciados em procedimentos rituais, ou os ebômis, quando auxiliando ou
assistindo rituais internos. Tamborete.
“Audi, vide, tace, si vis vivere in pace”: Expressão latina medieval que significa: “Escuta, vê e
cala, se quiser viver em paz”. Tornou-se refrão que evoca a ideia de segredo. Muito utilizada
nos meios maçônicos.
Ariaxé: Entre os muitos sentidos que essa palavra possui entre o povo do santo está o lugar no
qual a força sagrada (axé) se concentra. Quarto sagrado. Poste central do barracão. Banho
lustral durante a iniciação.
Axé: Uma das palavras cujo sentido desperta mais explicações, tanto entre os pesquisadores
quanto entre o povo do santo. “Força dinâmica das divindades, poder de realização,
vitalidade que se individualiza em determinados objetos (...), oferendas. Ordem, comando,
poder”. (Cacciatore, 1977, p. 55); “(...) corresponde mais ou menos ao que os sociólogos
chamam mana e é sempre empregado não para designar uma força impessoal, mas para
certas espécies de encarnação de forças (ervas, alicerces do candomblé, etc.)”. (Bastide,
2001, p. 308); “Força mística dos orixás; força vital que transforma o mundo” (Prandi, 2001,
p. 564). Linhagem ritual, conhecimento religioso, segredo, poder.
Baba(ia)jibonã: Sacerdot(isa)e auxiliar do(a) líder da casa de candomblé. Uma das suas
principais atribuições é ajudar na iniciação dos iaôs e nas obrigações dos filhos da casa.
Geralmente este cargo é atribuído aos adeptos propensos ao transe (rodantes) que já possuem
mais de sete anos de iniciação e se submeteram à cerimônia de (A)Decá.
Babalaô: Sacerdócio relacionado à consulta dos oráculos (Opelê Ifá, Búzios...). Possui a
prerrogativa de presidir a consulta aos mecanismos de divinação e adivinhação. Entre os
babalaôs mais conhecidos no Brasil estão Martiniano Eliseu do Bomfim, que viveu na Bahia
entre 1859 e 1943, e Agenor Miranda Rocha, que faleceu em 2004. Com o passar do tempo a
função de consultar os oráculos foi, gradativamente, passando às mãos dos babalorixás e
ialorixás. Função essa que sempre esteve ligado ao segredo.
170
Brajá: Fio-de-contas elaborado a partir de búzios trançados, utilizados por ebômis e pessoas
de altos cargos sacerdotais nas religiões afro-brasileiras. É símbolo de senioridade, sabedoria
e poder. Também é usado por pessoas pertencentes aos orixás Omolu e Oxumarê.
Clientes: Pessoas que acorrem aos terreiros em busca dos serviços mágico-religiosos da
religião, sem no entanto assumir com ela compromissos iniciáticos.
“De dentro”: Expressão utilizada pelo povo do santo para se referir às pessoas adeptas das
religiões afro-brasileiras.
“De fora”: Expressão que se refere aos não-adeptos das religiões afro-brasileiras.
Decá (ou Adecá): Cerimônia pública na qual o iniciado com mais de sete anos de iniciação
recebe (das mãos do seu/sua babalorixá/ialorixá) a sua senioridade religiosa e iniciática.
“Depositum Fidei”: Expressão latina que quer dizer: “Depósito da fé”, muito usada no meio
teológico católico. Aqui é empregada como sinônimo do conjunto do saber religioso do povo
do santo.
Ebó: Cerimônia de purificação que inclui contato de comidas rituais com o corpo do
paciente/cliente. Também é sinônimo de oferenda ou mesmo despacho e feitiço.
Ebômi: Iniciado rodante (propenso ao transe) com mais de sete anos de iniciação e que já se
submeteu à cerimônia de (A)decá.
Egun: Espírito de algum ancestral divinizado e cultuado pelos vivos. Tido por muitos como
espírito perigoso e malfazejo. Em alguns contextos específicos é associado à ideia que o senso
comum crostruiu de “alma penada”.
Ejé: Sangue animal, obtido no contexto ritual através do sacrifício. É utilizado para diversos
fins, entre eles a sacralização de pessoas e coisas.
Elecós: Sociedade composta por divindades femininas ligadas à guerra e lideradas por Obá.
(Kileuy & Oxaguiã, 2009, p. 180. Org. Marcelo Barros).
Equéde: Pessoa do sexo feminino que não entra em transe. Geralmente exerce o papel de
auxiliar dos ebômes, no trato com as divindades e com os iniciados.
Fios-de-conta: Diferentes adornos utilizados pelo povo do santo e que possuem diversas
formas e significados.
171
Fundamento(s): Sinônimo de conhecimento religioso. Segredos, saber. Abrange partes do
sentido de “axé”. Origem, poder, legitimidade, prestígio.
Gonocô: “(...) entidade possivelmente de origem tapa (...) (Prandi, 2005, 145) que teria dado
origem a um culto muito secreto na cidade de Salvador, Bahia (Kileuy & Oxaguiã, 2009, p.
180. Org. Marcelo Barros) em tempos remotos.
Iabassé: Cargo sacerdotal da alta hierarquia do candomblé, cuja função principal é cuidar da
cozinha sagrada e da preparação das comidas e bebidas votivas dos orixás.
Ialaxé: Título e cargo sacerdotal da alta hierarquia do candomblé. Auxiliar do/a baba(ia)lorixá
na liderança da casa de candomblé.
Ialodês: Assim como as Gueledés, constituíam uma sociedade feminina ioruba que,
transplantada para o Brasil, sobreviveu como cargo sacerdotal feminino no candomblé.
Iamorô: Título e cargo sacerdotal da alta hierarquia do candomblé, cuja função e atribuições
estão ligados ao culto de Exu.
Iaô: Iniciado(a) com menos de sete anos de iniciação e que ainda não passou pela cerimônia
de (A)Decá.
Ibá: Altar ritual que personifica a representação material do orixá. É sobre ele que são feitas
as libações do sangue (ejé) sacrificial e outros líquidos sagrados, através das quais o adepto
estreitará suas relações com sua divindade pessoal e com a casa de candomblé à qual
pertence.
Inquices: Divindades do panteão de origem banta, cultuados até hoje nos candomblés de
nação Angola, Congo e Angola-congo.
Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte: Confraria afro-católica surgida por volta das
primeiras décadas do século XIX em Salvador, Bahia, Brasil, em torno do culto e da devoção
à Nossa Senhora da Boa Morte. Formada exclusivamente por mulheres negras ligadas aos
terreiros de candomblé esta irmandade já foi muitas vezes apontada como nicho de
sobrevivência de antigas sociedades secretas femininas vinda da África. Hoje continua viva e
atuante na Bahia, principalmente na cidade de Cachoeira, que abriga a sua atual sede. Às
“irmãs da Boa Morte” Acácio Almeida (1996) chamou de “Senhoras do Segredo”.
172
IURD: Abreviação de “Igreja Universal do Reino de Deus”, fundada por Edir Macedo, em
1977, no Rio de Janeiro, Brasil.
Lagdibá: Tipo de adorno (colar) confeccionado a partir de uma sequência de pequenos discos
pretos, de coquinhos ou chifre, e enfiados em um cordão. Geralmente são reservados às
pessoas da alta hierarquia do candomblé ou pessoas ligadas aos orixás Omolu e Oxumarê.
Marmotagem: Termo pejorativo usado pelo povo do santo para se referir àqueles que
contrariam as práticas tidas pelos terreiros tradicionais como ortodoxas. Entre as práticas
classificadas como “marmotagem” estão a mistura de rituais de diferentes origens e a
revelação indiscriminada de práticas e conhecimentos tidos como fundamentos e segredos.
Sobre a marmotagem Olga Cacciatore (1977, 178) escreveu: “Termo de desprezo, dos
membros do candomblé tradicional, para a mistura de rituais de outros terreiros”.
Obrigação: Rituais periódicos pelos quais um iniciado tem que passar. Geralmente se dão nos
intervalos entre um, três, cinco e sete anos, podendo variar de acordo com a casa, o orixá, a
nação ou outras variáveis e interferências.
Ologbô: Segundo Bastide (1989, 148) os ologbôs eram os líderes da sociedade secreta nagô
Ogboni, que existira no Brasil nas primeiras décadas do século XIX.
173
Onilé: Orixá feminino cujo culto no Brasil é pouco difundido, estando estreitamente
relacionado à terra.
Orí: Cabeça.
Orô: Sacrifício. Também é nome de uma antiga divindade ioruba cujo culto não sobreviveu
com muita intensidade no Brasil. Da mesma forma Orô era o nome que se dava aos líderes da
sociedade secreta Ogboni, da qual fala Roger Bastide (1989).
Oruncó: Nome ritual atribuído ao iniciado pelo orixá, durante a cerimônia “do nome”,
cerimônia essa que ocorre na festa “da saída”, durante a iniciação. O mesmo que Dijina.
Oxôs: Segundo Kileuy & Oxaguiã (2009, p. 180. Org. Marcelo Barros) os Oxôs são
poderosos feiticeiros que formam uma confraria liderada por divindades muito velhas ligadas
à terra e à turbulência e que, quando desagradadas, costumam provocar turbulências e
desarmonia, instabilidade e desajustes nas funções litúrgicas. Seriam os contrapontos das ajés.
Dessa confraria fariam parte: Exu, Ogum, Obaluaiê, Oxaguiã, Oxetuá, Oxósse e babá Okô.
Pejigã: Título honorífico concedido a alguns ogâs, cuja atribuição é cuidar do peji ou altares
rituais.
Povo do santo: Termo genérico utilizado para se referir aos adeptos e seguidores das religiões
afro-brasileiras.
Richelieu: Tipo de tecido ricamente trabalhado, usado nos candomblés pelos ebômis e pessoas
da alta hierarquia sacerdotal
Segredismo: Discurso feito a respeito do segredo ou pretenso segredo praticado nas religiões
afro-brasileira. Com o tempo a ideia de segredismo foi adquirindo um sentido pejorativo,
entre os pesquisadores dessas religiões, e passou a significar também a falsa ideia da
existência de segredos que na verdade não existem.
Segredo ritual: Prática do povo do santo que se caracteriza por não franquear aos “de fora”
determinados conhecimentos ou práticas ligadas ao cotidiano do candomblé.
174
Terracota: Espécie de adorno (colares, pulseiras, etc.) utilizado pelos ebômes ou pessoas da
alta hierarquia sacerdotal do candomblé.
Tomar Rum: Executar sua dança ritual. O orixá está tomando rum = O orixá está
desempenhando sua dança ritual.
Tronqueira: Casa de Exu, ou local reservado à seu culto, nas nos terreiros de candomblé de
nação Angola e de Umbanda. Geralmente é localizado à entrada do terreiro.
175
Anexos
176
Anexo 1
Casas pesquisadas
177
Anexo 2
PESQUISA DE CAMPO
178
Aché Ilê Obá
179
Anexo 3
(Semi-estruturada)
180
Anexo 4
Cadernos iconográficos
Caderno 1
EXU
Imagem 02: Casa de Exu Akessan, no interior do barracão do Ilê Axé Funfun Oxalufã.
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Julho de 2010.
Imagem 03: Porta fechada da “Casa de Exu”, no Ilê Axé Funfun Oxalufã.
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Julho de 2010.
181
Imagem 04: Um Exu “comendo” no portão do Ilê Axé Funfun Oxalufã.
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Junho de 2011.
Imagem 05: 2º plano: Casa de Obaluayê, no Ilê Axé Oxum. 1º plano: Pequena casa do exu que acompanha
Obaluayê.
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Julho de 2011.
182
Imagem 06: Casa de Exu, no Ilê Axé Oxum.
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Julho de 2011.
Imagem 07: Casa de Bombojira (Pomba Gira), forma feminina de Exu, no Ilê Axé Oxum.
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Julho de 2011.
183
Imagem 08: Cazinhola do exu que acompanha Obaluayê, guardado por um cão. Ilê Axé Oxum.
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Julho de 2011.
Imagem 09: Porta sempre fechada da casa de Exu (tronqueira), no Ilê Axé Odé Ofá Omi e Caboclo Itayguara.
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Agosto de 2011.
184
Caderno 2
Casas pesquisadas
Imagem 10: Porta de entrada do Ilê Axé Odé Ofá Omi e Caboclo Itayguara.
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Agosto de 2011.
185
Imagem 11: Aspecto de uma festa no Ilê Axé Odé Ofá Omi e Caboclo Itayguara.
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Agosto de 2011.
Imagem 12: Festa de Oxósse no Ilê Axé Odé Ofá Omi e Caboclo Itayguara.
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Junho de 2011.
186
Ilê Axé Oxum
Imagem 14: Assentamento do orixá Oxósse no Ilê Axé Oxum. As plantas em volta atuam como elemento de
preservação do segredo em torno do ibá.
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Julho de 2011.
187
Imagem 15: Ibá protegido pelas plantas no Ilê Axé Oxum.
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Julho de 2011.
188
Imagem 17: Ibá do orixá Ogum protegido pelo mariô, sua roupa ritual, no Ilê Axé Oxum.
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Julho de 2011.
Imagem 18: A ialorixá do Ilê Axé Oxum (Mãe Leda de Oxum), em um momento de conversa descontraída
com uma das suas ebômes.
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Maio de 2010.
189
Imagem 29: Aspecto da festa de Oxósse.
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Maio de 2010.
190
Imagem 21: Interior do barracão do Ilê Axé Funfun Oxalufã, em um dia em que não houve festa pública.
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Maio de 2010
191
Imagem 23: Vista panorâmica do barracão do Aché Ilê Obá.
Foto Moacyr Lopes Junior/Folha Imagem-folha.uol.com.br - /01/2008
Fonte: http://www.axeileoba.com.br/indexHistoria.htm
Acesso em: 26/09/2011
Imagens 24, 25, 26: Aspectos de momentos festivos no barracão do Aché Ilê Obá, por ocasião das festividades
dos 60 anos da fundação da casa.
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Novembro de 2010
192
(25)
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Novembro de 2010
(26)
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Novembro de 2010
193
Caderno 3
Adornos
194
Imagem 29: Adornos do tipo usado pelos iaôs. Ilê Axé Odé Ofá Omi e Caboclo Itayguara.
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Agosto de 2011.
195