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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Patrício Carneiro Araújo

O SEGREDO NO CADOMBLÉ: RELAÇÕES DE PODER E CRISE DE


AUTORIDADE

MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

São Paulo
2011
O SEGREDO NO CADOMBLÉ: RELAÇÕES DE PODER E CRISE DE
AUTORIDADE

Patrício Carneiro Araújo


PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Patrício Carneiro Araújo

O SEGREDO NO CADOMBLÉ: RELAÇÕES DE PODER E CRISE DE AUTORIDADE

MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS - ANTROPOLOGIA

Dissertação de mestrado apresentada à Banca


Examinadora do Programa de Estudos Pós
Graduados em Ciências Sociais/Antropologia, da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP), como exigência parcial para a obtenção
do título de mestre em Ciências Sociais/
Antropologia, sob a orientação da Professora Dra.
Teresinha Bernardo.

São Paulo
2011
BANCA EXAMINADORA:

São Paulo,_____________________

______________________________

______________________________

______________________________

______________________________

______________________________
À minha Mãe D. Maria Jóca (no aiyê): por me ensinar a viver.

Ao meu sobrinho Celso Ricardo (no Orum – In Memorian): covardemente assassinado aos
dezesseis anos.

À Mãe Gaúcha de Xangô (no Orum – In Memorian), que viu esta pesquisa começar mas não
pôde ver a sua conclusão.
Quando é hora de agradecer...

Ao nos propormos tecer agradecimentos, nos expomos sempre ao risco de sermos

parciais. Correrei esse risco uma vez que, ao longo dessa pesquisa, me envolvi

progressivamente em uma teia de relações que me impõe agora o compromisso ético de

manifestar minha profunda gratidão.

Começarei agradecendo carinhosamente à minha família biológica (D. Maria Jóca –

minha mãe. Meus irmãos e irmãs: Sérgio e sua família, Paula e sua família, Sueli e sua

família. Pelo constante e incondicional apoio, sempre disponibilizado e nunca economizado.

À minha família de santo (Ilê Axé Funfun Oxalufã) representada nas pessoas de Pai Jean

de Oxalufã, Mãe Gaúcha de Xangô (no Orum), Pai Paulo de Oxum, Nice de Oxalufã e todo o

povo do Axé Funfun, pelo apoio, compreensão e paciência.

À Mãe Leda de Oxum (“A Mãe do segredo”) e todo o seu povo do Ilê Axé Oxum

(especialmente Valéria de Oxum, Salviano de Ogum, Mãe Tutu de Ogum, Pai Marcos de

Xangô) pela confiança, amizade e colaboração.

Ao Tata Silvio de Akuerã, Yá Janaína de Oxum e todo o povo do Ilê Axé Odé Ofá Omi

e Caboclo Itayguara (principalmente Carla de Oxósse e Reginaldo de Ogum), pela confiança,

sinceridade e apoio.

À ialorixá Mãe Silvia de Oxalá e todo povo do Aché Ilê Obá (principalmente Paula de

Oyá, Yamorô, Renato de Ogum, Sidney de Logun Edé e Júlio de Oxósse) pela

disponibilidade em partilharem comigo seus conhecimentos e pela honra da sua amizade.

Aos babalorixás: Pai Irapuã de Logun Edé (Ilê Axé Orô Nifã Logun Edé e Omolu –

Araçatuba/SP), Daniel de Ogum (Aché Ire-ô – Diadema/SP), Jerôncio de Xangô (Egbé Axé

Obá Ogodô - Taboão da Serra/SP) e a ialorixá Mãe Xina de Oxum (do culto batuque em

Itapevi), pela disponibilidade e apoio.


Ao International Fellowships Program (IFP) da Fundação Ford, pela bolsa de estudos

a mim concedida, sem a qual esta pesquisa não teria se realizado. Tenho profunda gratidão e

respeito pela Fundação Ford e faço questão que fique aqui registrada tal gratidão.

À Fundação Carlos Chagas, nas pessoas das professoras: Fúlvia Rosemberg, Ida

Lewkowicz , Márcia Caxeta, Sueli, Raquel Ribeiro, Maria Luisa Ribeiro, professor Leandro

F. Andrade e demais membros da Equipe de Acompanhamento dos bolsistas Ford do Brasil.

Agradecê-las com palavras é pouco. Obrigado por tudo!

À Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) onde vivi saborosos

momentos de crescimento humano e acadêmico. À equipe de professores do departamento de

Pós-graduação em Ciências Sociais, entre eles as professoras doutoras: Josildeth Consorte,

Maria Lúcia Rangel, Carmem Junqueira, Marisa Borim, Maura Pardine Veras, Dorothea

Voegueli Passeti, Profo. Dr. Edgard de Assis, entre outros; pelo apoio e paciência.

A todos os amigos e colegas do núcleo de estudos Relações Raciais: Memória,

Identidade e Imaginário. Como aprendo com vocês! Espero crescer ainda mais nesse Núcleo.

Obrigado!

Profunda gratidão à minha orientadora Profa. Dra. Teresinha Bernardo, pela atenção e

paciência quase maternal. Obrigado por tão transparente convivência e pela honra da sua

amizade e convívio. Como é bom aprender com “nossos mais velhos”. Espero poder contar

sempre com o privilégio da sua convivência e crescer ainda mais com a sua sabedoria.

Profunda gratidão ao professor Vagner Gonçalves da Silva, pelo apoio desde a

elaboração do projeto de pesquisa, na condição de Orientador Pré-acadêmico.

Agradecimentos sinceros também aos professores doutores José Reginaldo Prandi e Acácio

Sidinei Almeida Santos, pelas fundamentais e indispensáveis colaborações e orientações, por

ocasião do Exame de Qualificação. Suas observações e dicas foram mais do que importantes:

foram fundamentais para que esse trabalho ficasse mais robusto.


Aos meus amigos mais íntimos (com quem partilho meus segredos) que pacientemente

me apoiaram, antes, durante e depois da pesquisa. Entre eles: Luciélio Alves Nogueira, cujos

motivos de gratidão são tantos que aqui seria difícil arrolá-los; Thiago Moreira Melo e Silva

(pelo apoio diário e incondicional, e pela paciente leitura de todos os capítulos, além das

longas e despretensiosas discussões sobre candomblé); Leandro Sabino (pela manutenção dos

computadores, nos momentos em que mais precisei); minha prima Maria Rejânia Nunes Elias

(pela manutenção dos computadores e pela ajuda com os textos em inglês). Ao professor

Antonio Pereira dos santos. À Maria Célia Virgolino, pela amizade, carinho e cuidado. Ao

Claudinei Moreira dos Santos, pela paciência e compreensão. Ao Professor Carlos Alberto

Povoa, pela amizade e apoio desde a graduação. Ao povo do santo de São Paulo, e da Paraíba,

minha terra natal.

Aos amigos e colegas: Isabel Camacho Torres, pelo trato com os textos em outros

idiomas. E Ednalvo Apóstolo Campos, pelas correções do português.

Em fim, a todos aqueles que me franquearam o convívio do seu cotidiano, das suas

casas e templos, permitindo-me acessar os lugares e tempos sagrados. Lugares e tempos que

os iniciados compreendem melhor.

Que o segredo do candomblé seja uma seta a nos orientar na direção do segredo da

nossa própria existência e do encontro futuro com nossos ancestrais.

Muito obrigado!
RESUMO

Este trabalho trata da relação entre conhecimento, segredo ritual e poder no candomblé. Ao
longo da história das religiões afro-brasileiras, podemos perceber que o segredo ritual assume
diferentes configurações. Ao observarmos a vida religiosa do povo do santo, podemos
perceber que a prática do segredo ritual constitui um poderoso mecanismo de elaboração e
manutenção do poder. O conhecimento religioso tradicional, que geralmente é transmitido no
contexto iniciático, funciona então como elemento fundamental na composição das
hierarquias sagradas. Assim, apropriar-se dos conteúdos do segredo é encontrar seu lugar nas
esferas hierárquicas da religião. À medida que tais conhecimentos começam a circular de
forma paralela à vida religiosa nos terreiros, as formas tradicionais de transmissão passam a
ser burladas e se instala um conflito de poder que pode resultar em uma crise de autoridade,
por parte dos mais velhos. É na perspectiva de uma análise dessas relações de poder que este
trabalho pretende contribuir no contexto dos estudos acerca das religiões afro-brasileiras.

Palavras-chave: Candomblé, conhecimento, segredo ritual, poder, conflito, crise de


autoridade.
ABSTRACT

This research is about the relation between knowledge, secret rituals and power in Candomble
religion. Throughout history in African-Brazilian religious communities we realize the
secret ritualassumes different configurations. Looking at the religious life of the adherents of
Candomblé we can seethat the practice of secret ritual is a powerful mechanism for
establishing and maintaining power. The traditional religious knowledge, which is
usually transmitted in an initiatory context, can be considered as a key element in the
composition of sacred hierarchies. In this case, the appropriation of the secret ritual
contents is a way to find its place in the hierarchical spheres of religion.
When knowledge takes a different way to the religious life on the Candomblé terraces, the
traditional forms of its transmission gets circumvented and settle a power struggle which can
result in a crisis of authority, by the elders. In a perspective of power relations analysis, this
research looks to contribute in the studies context of the Afro-Brazilian religions.

Key-words: Candomblé, knowledge, secret ritual, power, conflict, crisis of authority.


Sumarió

Este trabajo tiene como asunto una relación entre el conocimiento, el secreto del
rito y el poder del Camdomblé, a lo largo de la historia de las religiones afro
brasileñas podemos ver que el secreto del culto, asume diferentes representaciones.
Al observar la vida religiosa de los seguidores del Candomblé podemos notar que
el secreto del rito en la práctica constituye un mecanismo de poder, tanto en su
elaboración así como también en la manutención del poder. El conocimiento
religioso tradicional, que es generalmente transmitido en el ámbito de la iniciación,
funciona entonces como un elemento fundamental en la constitución de las
jerarquías sagradas. Así al apropiarse de las cualidades del secreto del rito se puede
conseguir un lugar dentro del círculo jerárquico de la religión. A medida que dichos
conocimientos comienzan a fluir de forma paralela en la vida religiosa y los
“terreiros” al transmitir sus expresiones tradicionales, pasan a ser burladas, inicia se
un conflicto de poder que puede resultar en una crisis de autoridad por parte de los
más viejos. Es en esta perspectiva de análisis, que este trabajo pretende contribuir a
través de los estudios sobre las relaciones de poder en las religiones afro-brasileñas.

Palabras claves: Candomblé, Conocimiento, Secreto del rito, Poder, conflicto,


Crisis de autoridad.
Índice

Introdução........................................................................................................................14

Capítulo I

1. O segredo no candomblé: o problema da conceituação e das abordagens...........26

1.1. O que o candomblé não é .........................................................................................26


1.2. Retomando algumas abordagens e suas limitações ..................................................28
1.3. Da História para as Ciências Sociais: o segredo como forma de socialização.........35
1.3.1. O que é para “os de dentro” e o que é para “os de fora” .......................................39
1. 4. O segredo do candomblé na Sociologia e Antropologia brasileira e brasilianista ..42
2. Esclarecendo nossa proposta e desafio.....................................................................46
3. Uma palavra inicial sobre o segredo no candomblé .................................................47

Capítulo II

2.A natureza e a forma do segredo no candomblé......................................................52

2.1. O fundamento dos fundamentos: as origens do segredo do candomblé...................52


2.2. O segredo da religião e a religião do segredo: como a prática do segredo organiza o
candomblé que por sua vez produz e recria o segredo ....................................................58
2.2.1. O segredo permeia todos os espaços físicos e simbólicos do terreiro ...................65
2.2.2. O segredo estrutura-se basicamente em três esferas sócio-hierárquicas:
a dos ebômes, a dos iaôs e a dos abiãs...................................................................70
2.2.2.1. Quando segredo e poder se tocam ......................................................................82
2.2.3. O segredo define as fronteiras físicas e simbólicas da religião .............................86
2.2.4. Atua como mistério, revelando-se sem se revelar .................................................89
2.2.4.1. O jogo das aparências .........................................................................................89
2.2.4.2. O adornos............................................................................................................95

Capítulo III

3. Segredo e poder........................................................................................................103
3.1. Nos interstícios do segredo e do poder...................................................................104
3.2. A prática do segredo e o controle do poder ............................................................109
3.3. A tensão em torno do conhecimento e o conflito como disputa de poder..............121
3.4. Quando a magia desempenha seu papel:
o segredo na fronteira entre religião e magia .........................................................125

Capítulo IV

4. A comercialização do segredo e a crise de autoridade .........................................134


4.1. Ilusão de ótica.........................................................................................................134
4.2. Compreendendo o termo crise e seu papel nessa discussão ...................................137
4.3. Os precedentes da crise...........................................................................................140
4.4. Fundamentos à venda: o segredo e o mercado .......................................................145
4.5. “Batendo o pezinho de mãos na cintura”: quando as informações de fora
afetam as relações de poder no interior do terreiro ...............................................152

Considerações finais ou Para que a conversa possa continuar................................156

Referências bibliográficas .............................................................................................164

Web sites .......................................................................................................................168

Glossário........................................................................................................................169

Anexos ...........................................................................................................................176

Anexo 1: Casas pesquisadas ..........................................................................................177

Anexo 2: Pesquisa de campo .........................................................................................178

Anexo 3: Roteiro de questões para as entrevistas sobre o segredo


no candomblé (Semi-estruturada)...................................................................180

Anexo 4: Cadernos iconográficos..................................................................................181

Caderno 1: Exu ..............................................................................................................181

Caderno 2: Casas pesquisadas .......................................................................................185

Caderno 3: Adornos.........................................................................................................19
Introdução

Esta dissertação trata do segredo no candomblé como forma de patrimônio do povo

do santo e analisa sua relação com os mecanismos de poder intra-terreiro. Trata, também, da

crise de autoridade enfrentada atualmente por grande parte das lideranças da religião, em

função da circulação paralela de fundamentos na internet e em outras formas midiáticas.

A prática do segredo sempre esteve presente na maioria das religiões desde a

antiguidade. Em algumas religiões específicas, como os cultos órficos e mistéricos, o segredo

ritual constituiu parte delas, distinguindo-as das outras existentes na mesma época, como

atestam Schreiber & Schreiber (1956) e Hutin (s/d), entre outros.

Em pleno século XXI, a prática do segredo ainda se mantém viva e assume diferentes

formas nas diversas religiões que ainda se pautam na restrição e controle de informações

secretas, cujo conhecimento esotérico é transmitido, a princípio, apenas no contexto iniciático,

de uma forma bem peculiar que será analisada sistematicamente neste trabalho.

Não obstante as diferentes formas de democratização do conhecimento e da informação,

preconizados e levados a cabo pelo advento e massificação da internet, o tema do segredo e

sua prática tem ultimamente voltado à tona com uma grande força.

Nas últimas décadas, o segredo tem recebido uma indisfarçável atenção por parte dos

meios de comunicação e das agências de produção cultural, entre elas o cinema, a literatura e

a televisão. Apenas para lembrarmos, um dos maiores best selers da literatura de auto-ajuda,

na última década, abordava o tema segredo (The Secret). Esse livro rapidamente foi adaptado

para o cinema. Da mesma forma outros best selers, anteriores a The Secret, já exploravam a

relação entre segredos e revelação de segredos, como no caso de O Código Da Vinci.

Algumas instituições cuja história sempre esteve marcada pela prática do segredo

também têm sido alvos de especulações e documentários pelas mais variadas emissoras de

televisão como a BBC. Para citarmos apenas alguns casos lembremos o documentário A

14
Maçonaria Revelada, produzido pela BBC, e O Documento Secreto do Vaticano, também

produzido pela mesma emissora britânica. Apesar de lidarem com instituições e temas

diferenciados, todas essas iniciativas possuem um fio motivador que inspira-lhes interesse:

segredos e revelação de segredos. Não podemos negar que em grande parte dessas produções

existe uma boa dose de sensacionalismo, no entanto, sensacionalismos à parte, o tema do

segredo parece estar na ordem do dia, contrariando a principal característica desse nosso

tempo: a transparência das ideias e a democratização do conhecimento.

Recentemente (2010), no Brasil, a famosa escola de samba Unidos da Tijuca, que

amargava 74 anos sem ganhar o título de campeã do carnaval carioca, conseguiu a façanha de

quebrar o “jejum de títulos”, abordando justamente o tema segredo, com o premiado samba-

enredo “É segredo”. E com esse samba-enredo a escola levou para a avenida “os grandes

segredos da humanidade”, como noticiou a Agência Estado, no dia três de fevereiro de 2010

e, posteriormente, o site da escola. Ainda no Brasil, enquanto desenvolvemos esta pesquisa, o

Congresso Nacional se encontra absorvido em uma intensa discussão a respeito da quebra ou

manutenção do chamado sigilo eterno, que pesa sobre uma gama de documentos oficiais e

secretos que envolvem parte da história desse país. Novamente, as relações de poder se

confrontam quando a discussão é suspender ou manter o segredo que paira sobre tais

documentos.

Nas livrarias e bancas de revistas se multiplicam as publicações envolvendo temas como

segredo ou sociedades secretas, como é o caso da coleção que leva o nome de Sociedades

Secretas, publicadas pela editora Larousse e, recentemente, traduzida também para o

português no Brasil e despejada nas bancas de revistas, para alimentar o insaciável público,

ávido por desvendar “os últimos mistérios do mundo”.

Em se tratando de segredos de candomblé, com a popularização do computador e a

massificação da internet, a digitalização de antigas novelas, minisséries e documentários

15
produzidos nas décadas de 1980 e antes, as lojas especializadas em material de culto afro-

brasileiro tiveram que ampliar suas prateleiras a fim de abrigar esse material que é facilmente

reproduzido e largamente vendido, principalmente para o próprio povo do santo que, entre um

ritual e outro, se coloca diante da televisão (hoje de plasma) para assistir Feitura de Yaô, Mãe

de Santo, Segredos dos Vodus, Mojubá, Orixás da Bahia, e inúmeros outros.

Nos últimos meses do ano de 2010, algumas das maiores nações mundiais, e

principalmente os EUA, entraram em polvorosa depois que o site wikileaks, idealizado pelo

australiano Julian Assange, começou a divulgar informações confidenciais destes mesmos

países. Sendo esses segredos considerados segredos de estado, seu vazamento estabeleceu um

clima de animosidade entre os países envolvidos e trouxe novamente à tona a questão da

manutenção e vazamento de segredos. Ou seja, em épocas de Big-Brother’s e casas de vidro,

nunca a questão do segredo esteve tão em pauta quanto nos últimos tempos.

Nas religiões afro-brasileiras o segredo sempre foi uma prática inerente ao culto e à vida

do povo do santo. No Candomblé, mais do que na Umbanda, o segredo sempre esteve

presente tanto nos espaços físicos e simbólicos do terreiro quanto no ethos do povo do santo,

como atestam as primeiras etnografias e alguns dos mais recentes estudos sobre essas formas

de religiosidade.

No entanto, assim como acontece com qualquer cultura, as religiões afro-brasileiras

também se transformam. E se adaptaram. No rol dessas adaptações e transformações,

podemos perceber um conjunto de fatores de transformações que se impõem sobre a prática

do segredo, resultando-o num ‘produto’ de profunda transformação. Estas transformações têm

culminado em modificações também dos mecanismos de coesão social afro-brasileiro, no

interior dos terreiros.

Meu interesse pelo tema do segredo remonta ao período em que estudei Filosofia e

Teologia no Instituo de Filosofia e Teologia da Arquidiocese da Paraíba. Em meio aos

16
estudos do Fenômeno Religioso, fui levado a frequentar os terreiros de João Pessoa, nos quais

fiz bastantes amizades, o que me fez estreitar meus laços com o candomblé. Ainda ali,

principalmente no terreiro Palácio Xangô Alafin, do Babalorixá Pai Gilberto de Xangô, pude

perceber como a prática do segredo era um elemento estrutural do candomblé e como os

rituais secretos, mesmo quando executados em festas e ambientes públicos, despertavam, nos

“de fora”, um grande desejo de saber.

Essa curiosidade em relação ao conteúdo do segredo despertou em mim o desejo de

compreender, de forma mais sistemática, como se estrutura o segredo no candomblé e qual a

sua importância para a manutenção desta religião. Só fui perceber bem depois que este tema

ainda continuava tabu, tanto entre os acadêmicos, que não queriam ser confundidos com

“caçadores de segredos” (prática já desgastada e mal vista no meio acadêmico, posteriormente

chamada de “segredismo”), quanto pelo povo do santo, que sempre evitava falar sobre

segredos, reservando sempre aos mais velhos a responsabilidade de dar explicações sobre esse

assunto. No entanto, como já foi dito, nas últimas décadas o tema do segredo voltou à tona

nas discussões e produções acadêmicas e culturais, e vejo nesse momento uma boa

oportunidade para desenvolver esta pesquisa sobre a natureza, importância e sentidos do

segredo no candomblé.

Por meio de uma sistemática pesquisa de campo, somada a uma cuidadosa passagem

pelos estudos desenvolvidos até agora, a respeito do segredo no universo simbólico do

candomblé, este trabalho pretende analisar a importância do segredo nesta religião e suas

metamorfoses. Tendo em vista que as formas de transmissão dos conhecimentos inerentes ao

processo iniciático e seus desdobramentos (fundamentos) têm sofrido os reflexos da

circulação paralela desses conhecimentos através da internet, livros, revistas, documentários,

e outras formas de transmissão externas aos terreiros e ao processo iniciático, o propósito aqui

em nada se relaciona com o desejo de revelar segredos. A pesquisa pretende somente analisar

17
a forma assumida pela prática do segredo no candomblé, em pleno século XXI e ao mesmo

tempo analisar também os resultados daquilo que aqui está sendo chamado de “circulação

paralela de fundamentos” ou “vazamento de segredos”, dentro dos terreiros e nas relações

sociais estabelecidas pelo povo do santo nestas comunidades.

A pesquisa foi realizada entre janeiro de 2010 e setembro de 2011, em terreiros de São

Paulo e junto à pessoas do santo ligadas a terreiros também de outras regiões do Brasil, apesar

do nosso foco ter sido os terreiros de candomblé de São Paulo e sua região metropolitana.

Entre as principais casas pesquisadas estão: Ilê Axé Funfun Oxalufã, do Pai Jean de

Oxalufã, em Taboão da Serra – SP; Ilê Axé Oxum, da Mãe Leda de Oxum, São Paulo –SP;

Aché Ilê Obá, da Mãe Sylvia de Oxalá, São Paulo – SP e Ilê Axé Odé Ofá Omi e Caboclo

Itayguara, do Tata Silvio de Oxósse, São Paulo – SP.

Entre os critérios de seleção das casas, achamos por bem acompanhar duas que já

conhecíamos (Ilê Axé Funfun Oxalufã e Ilê Axé Odé Ofá Omi e Caboclo Itayguara) - o que

nos daria um relativo conforto para falarmos sobre segredos - e duas casas nas quais teríamos

que estabelecer vínculos durante a pesquisa (Aché Ilê Obá e Ilê Axé Oxum). E assim fizemos.

Dessas quatro casas, três têm suas origens na umbanda e mantém até hoje uma relação

de conciliação entre umbanda e candomblé. Outra delas teria se originado já no candomblé,

não mantendo culto às entidades de umbanda. Três delas se afirmavam como de nação Ketu e

uma de nação Angola. Duas delas são lideradas por mulheres e duas lideradas por homens.

Entre as lideranças encontrava-se uma mulher negra e as demais lideranças eram brancas.

Procuramos também não ficar presos às casas mais famosas de São Paulo, assim como

evitamos procurar as lideranças de maior visibilidade na mídia. Dessa forma, entre as

lideranças das casas pesquisadas, uma ialorixá tem grande visibilidade na mídia e outra tem

uma considerável passagem pela televisão. Já os babalorixás mais ouvidos, lideram casas de

menor visibilidade, mais de grande procura, tanto por filhos de santo quanto por clientes de

18
diversas partes de São Paulo e do país. Assim, podemos dizer que nosso campo de pesquisa

pode ser caracterizado como relativamente diversificado, apesar de ter se limitado mais

detidamente apenas à quatro casas.

Em cada casa foram entrevistadas três pessoas ligadas a diferentes níveis hierárquicos

(abiã, iaô, ebôme) e observados diferentes cerimônias e rituais. A opção por entrevistar e

manter uma conversa contínua com pessoas das três diferentes esferas hierárquicas se deve à

nossa compreensão de que cada nível hierárquico possibilita uma relação específica com os

conhecimentos que, pretensamente, são transmitidos ao longo da vida iniciática. Dessa forma,

teríamos uma tripla aproximação com os conteúdos do segredo através dessas pessoas, ao

mesmo tempo em que analisávamos o processo de empoderamento inerente à ascensão na

vida iniciática e à aquisição do conhecimento religioso.

No que concerne aos estudos sociológicos e antropológicos a respeito de religião e de

ritos, os principais teóricos nos quais encontramos respaldo para a análise, são: Georg Simmel

(1977), Pierre Bourdieu (1974), Georges Balandier (1997), Arnold Van Gennep (1977) e

Victor Turner (2008).

De Simmel foram preciosas as análises acerca do segredo como mecanismo de

socialização. Seu ensaio sobre as sociedades secretas e o segredo, constitui um ponto de

partida para a análise em curso. Por isso mesmo, este ensaio é constantemente retomado ao

longo da análise.

Pierre Bourdieu, por sua vez, foi fundamental para a compreensão do conhecimento

religioso do povo do santo como forma de capital religioso em disputa.

Ao tratar da gênese e estrutura do campo religioso, ele dá valiosas pistas para uma

análise do funcionamento desse campo, que encontra-se em permanente tensão, devido às

constantes disputas entre seus agentes (corpo sacerdotal, profetas, feiticeiros e leigos).

Também no candomblé podemos aplicar estas tipologias, ao tratarmos dos conflitos existentes

19
em torno dos processos de recriação, transmissão e conservação do saber religioso, que

sempre está envolto por uma atmosfera de segredos.

Georges Balandier, foi de grande utilidade para compreendermos melhor os conflitos no

interior do candomblé na perspectiva da dinâmica relação entre ordem, desordem e

estabelecimento de uma nova ordem. E é nesse movimento que acreditamos estarem situadas

as transformações pelas quais passam a prática e a compreensão de segredo, quando se trata

de candomblé.

Quanto a Arnold Van Gennep e Victor Turner, suas análises a respeito dos ritos são

indispensáveis à análise que levamos a cabo. Os estudos de Van Gennep continuam atuais

quando o assunto é o estudo de ritos e mais precisamente, de ritos de iniciação. Dessa forma,

não podemos prescindir de suas palavras ao estudarmos o segredo ritual. Já Victor Turner

muito ajudou com seus estudos acerca dos ritos e de seus sentidos.

No que se refere às religiões afro-brasileiras, recorremos durante toda a pesquisa aos

estudos desenvolvidos por diversos autores, entre eles: Roger Bastide (2001), Reginaldo

Prandi (1991; 2001; 2005; 2007), Vagner Gonçalves da Silva (1995; 2006), Teresinha

Bernardo (2003), Muniz Sodré (1988), Júlio Braga (1995; 2006), Armando Vallado (2010),

Fernando de Tacca (2009) e Lisa Earl Castillo (2005). Todos eles são indispensáveis à

qualquer estudo e pesquisa que se venha realizar a respeito das religiões afro-brasileiras. Da

mesma forma, a passagem por seus escritos é imprescindível quando o assunto é

conhecimento religioso, poder e conflito no candomblé. Prandi, Silva, Tacca e Castillo, de

uma forma mais específica, oferecem pistas muito seguras quando o assunto é segredo ritual e

relações de poder nessas religiões. Dessa forma, ao longo deste trabalho a consulta a seus

estudos é recorrente.

O diálogo entre os autores estrangeiros e os nacionais; entre a sociologia e a

antropologia, no sentido mais amplo, com a antropologia e sociologias das religiões afro-

20
brasileiras, constitui o nosso referencial teórico básico para a análise que nos propomos

realizar acerca do segredo ritual e das relações de poder no candomblé.

A técnica adotada foi a Observação Sistemática, com instituição e manutenção de diário

de campo, e entrevistas semi-estruturadas. A seleção dos sujeitos a serem entrevistados se

pautou na condição dos mesmos em relação à iniciação, e na sua posição ocupada na

hierarquia das casas pesquisadas. Dessa forma, para cada casa foram selecionadas três

pessoas: o babalorixá ou ialorixá (ou ainda um ebôme da casa), um(a) iaô e um(a) abiã. Em

algumas casas houve a necessidade de entrevistarmos mais de um membro por grau

hierárquico, por motivos que serão explicados com clareza ao longo da análise do material

coletado. A escolha pelas técnicas qualitativas se justifica pela já comprovada eficácia dessas

técnicas em pesquisas com as populações de terreiros, e pela natureza do campo de pesquisa

que é deveras complexo, porém, constitui um universo relativamente pequeno, o que

possibilita uma proximidade maior com os sujeitos da pesquisa por parte do pesquisador,

dando margem a uma observação sistemática, fértil e rica em resultados.

Durante a pesquisa vieram à tona questões fundamentais ligadas à minha condição de

iniciado. De fato, desde a fase de elaboração do projeto de pesquisa, essa questão já me

inspirava certa preocupação, uma vez que, no candomblé as relações hierárquicas delimitam

as fronteiras da comunicação a respeito de determinados assuntos. Dessa forma, dificilmente

se verifica uma conversa franca sobre segredos, estabelecida entre iaô e ebôme, por exemplo.

Minha preocupação era de ter o diálogo com meus interlocutores, comprometido, em função

da minha condição de iaô. No entanto, depois pude ver que a condição de iniciado em nada

atrapalharia o desenvolvimento da pesquisa.

Durante as atividades em campo, pude perceber que a condição de iniciado mais me

facilitava do que dificultava. Neste aspecto, concordo com Geertz (1973 [2008]), quando diz

que, quanto mais próximo estou do objeto de estudo mais eu o conheço. Isso também me

21
ajudou a manter um aprofundamento, cada vez mais constante e consistente, na elaboração de

estratégias metodológicas, muitas vezes estabelecidas em conjunto com os interlocutores que,

à medida que a relação de confiança ia se dilatando, passavam a me franquear com mais

segurança o acesso à convivência das suas casas. Uma das estratégias metodológicas que

resolvi adotar consistiu em não revelar inicialmente a condição de iaô (naquelas casas aonde

ninguém me conhecia) até que alguém me perguntasse diretamente sobre isso. Como era de se

esperar, em algumas casas a pergunta já aparecia nos primeiros contatos. Em outras, a

convivência ia evidenciando minha condição. No entanto, em nenhuma delas isso representou

um empecilho metodológico. Pelo contrário, quando as pessoas ficavam sabendo que eu era

feito, o diálogo fluía com mais desenvoltura e interesse. Pude, então, me certificar de que ser

iniciado, longe de representar uma barreira metodológica, constituía mesmo uma condição

sine qua non para a viabilidade da pesquisa a respeito do segredo no candomblé. Dessa forma,

minhas maiores dificuldades durante a realização da pesquisa foram: não ter um carro à

disposição (o que restringia bastante a mobilidade) e não dirigir. Além de ter que voltar à sala

de aula, como professor de História na rede pública, durante as últimas etapas da pesquisa

(fato que reduziu em parte meu tempo de atuação no campo).

Vários autores já trataram do tema do segredo tanto na Sociologia quanto na

Antropologia, apesar de, durante muito tempo, o estudo do segredo ter se mantido atrelado à

História das Sociedades Secretas, como veremos.

Entre os ensaios e trabalhos mais conhecidos podemos citar Simmel (1977), Gennep

(1978), Davis (1986) e outros. No que concerne ao segredo no candomblé, a bibliografia não

chega a ser extensa. Naturalmente, existem trabalhos importantes e significativos, apesar de a

maioria desses trabalhos não ser satisfatoriamente específica na análise do tema. Entre os

trabalhos mais conhecidos e consistentes estão: Landes (1967), Santos (1976), Sodré (1983),

22
Verger (1995), Jonhson (2002), Prandi (2005), Silva (2006), Tacca (2009), Castillo (2010),

entre outros.

Porém, em se tratando das primeiras etnografias sobre o candomblé, nem sempre o

tema do segredo é tratado detidamente. Isso pode ser facilmente perceptível em trabalhos

como os de Edson Carneiro (1948), Nina Rodrigues (1935) e Roger Bastide (1958 [2001]),

por exemplo. Da mesma forma Olga Cacciatore, já em 1977, não se preocupou em reservar

um espaço para o vocábulo segredo no seu Dicionário de Cultos Afro-Brasileiros, limitando-

se apenas a explicar o termo Eró, e, mesmo assim, não lhe reservando grandes explicações. E

aqui cabe algumas perguntas: por que o tema do segredo foi sucessiva e historicamente

negligenciado nos estudos afro-brasileiros, se ele é tão fundamental para a estrutura e

existência do candomblé? Seria uma tentativa dos estudiosos de fugirem do tão criticado

“segredismo”? ou seria o segredo um tema realmente pouco importante no estudo dessas

modalidades religiosas? Essa lacuna no estudo do segredo teria a ver com a relação do

segredo com as estruturas de poder dentro da religião? Acreditamos que a primeira

possibilidade parece mais plausível. Só recentemente se começou a falar, de forma mais

detida e sistemática, a respeito desse elemento inerente aos cultos afro-brasileiros, sendo que

entre os trabalhos que melhor explicaram o fenômeno do segredo e de suas rupturas estão

Jonhson (2002), Prandi (2005) e Tacca (2009).

Nossa compreensão é que o segredo é um dos elementos constitutivos do candomblé e

que desenvolve um inquestionável papel de coesão social no interior dos terreiros, além de

organizar os espaços sagrados e engendrar as relações de poder. Porém, tanto o segredo como

sua prática são arbitrários e permutáveis. Isso fica ainda mais evidente diante dos processos de

transformações pelos quais passa essa prática nas últimas décadas, em função da circulação

paralela de conhecimentos antes restritos ao contexto iniciático e que, agora, circulam em

diversos meios de comunicação, entre eles a Internet. Esse “vazamento” de fundamentos, por

23
sua vez, tem provocado uma espécie de “conflito entre gerações iniciáticas” que se traduz em

um afrouxamento das relações sociais estabelecidas entre o povo do santo e um conflito de

poder que tem provocado uma verdadeira crise de autoridade. Isso por que a base da

hierarquia se estrutura sobre o princípio da senioridade e da submissão ritual, que por sua vez

se fundamentam no sistema tradicional de transmissão de conhecimentos. E uma vez o

sistema de transmissão de conhecimentos entrando em crise, também as estruturas de poder se

expõem à crise instalada.

Penso que a literatura existente não deu conta ainda de tratar de forma satisfatória a

questão do segredo no candomblé. Portanto, parto do pressuposto da necessidade de uma

análise mais sistemática do segredo, tanto no que diz respeito à sua estrutura e mecanismos de

funcionamento quanto à sua importância e constantes transformações. É isso que este trabalho

pretende desenvolver: uma análise mais detida e sistemática da importância e das

metamorfoses do segredo no universo simbólico do candomblé. Para tanto, o trabalho está

estruturado nos seguintes capítulos:

Capítulo I: O segredo no candomblé: o problema da conceituação e das abordagens.

Capítulo mais teórico, no qual discorrerei sobre o conceito de segredo e sua aplicação na

Sociologia e Antropologia. O capítulo propõe uma migração da História para as Ciências

Sociais a fim de fazer uma incursão pelo estudo do segredo entre as populações afro-

brasileiras, com um enfoque especial sobre a prática do segredo no candomblé. Tratarei

também a respeito do conceito de segredo que será adotado na pesquisa.

Capítulo II: A Natureza e a forma do segredo no candomblé. Aqui se apresentará a

forma como se organiza o segredo no candomblé e as formas através das quais o segredo

organiza o candomblé. Também tratará da natureza do segredo nesta religião. Será

apresentada ainda, de forma mais aprofundada, a compreensão de segredo como patrimônio

simbólico do povo do santo, assim como mecanismo de empoderamento.

24
Capítulo III: Segredo e poder. Aqui será analisada a relação entre conhecimento,

segredo e poder. Da mesma forma, serão analisadas as diferentes faces do segredo e os

mecanismos de manutenção do poder entre o povo do santo, e mais precisamente pela esfera

dos ebômes.

Capítulo IV: A comercialização do segredo e a crise de autoridade. Neste capitulo

serão discutidas as diferentes formas de tratamento que têm sido dispensadas ao segredo.

Aprofundarei também o processo de mercantilização do conhecimento religioso do povo do

santo, assim como a circulação paralela dos fundamentos na internet e outras formas

midiáticas. Também será discutido a respeito da crise de autoridade instalada no interior das

relações sociais próprias do povo do santo, em função dessas transformações anunciadas.

Aqui se dirá que a crise de autoridade revela, em parte, a disputa da esfera dos ebômes pelo

monopólio da administração do capital religioso do candomblé.

Considerações Finais: reflexões finais a respeito dos fenômenos analisados e

perspectivas a respeito do segredo no candomblé e das novas configurações dessa religião em

um futuro próximo.

Ao final deste trabalho, caso nossos interlocutores (tanto na academia quanto entre o

povo do santo) tiverem claro que o segredo no candomblé sofre grandes transformações neste

momento devido ao “vazamento de fundamentos”, e que esse processo tem incidido sobre as

relações estabelecidas dentro dos terreiros, o propósito do trabalho terá sido alcançado.

25
Capítulo I

1. O Segredo no candomblé: o problema da conceituação e das abordagens

“O segredo impedia que os viajantes se entregassem a uma observação mais completa das
seitas africanas”
(Roger Bastide - As religiões africanas no Brasil).

1.1. O que o candomblé não é

Controvertendo as práticas comuns da maioria dos estudiosos do candomblé,

começaremos esta abordagem esclarecendo aquilo que o candomblé não é. Este recurso a uma

espécie de via negativa sobre a natureza do candomblé ficará claro durante a análise das

abordagens acerca do segredo, tanto nas sociedades secretas ao longo da história, quanto no

candomblé do século XXI, desde as primeiras etnografias sobre esta religião até os trabalhos

mais atuais a este respeito. De fato, a maioria das etnografias sobre o candomblé sempre

começa reconstituindo a história do candomblé. E para isso retoma suas origens mais remotas

até chegar à forma atual dessa modalidade religiosa. É dispensável citar aqui a bibliografia,

que é deveras extensa, na qual se explica as origens, a estrutura e o funcionamento dessa

religião afro-brasileira1

Portanto, como trabalharemos com a questão do segredo, começaremos dizendo que o

candomblé não é uma sociedade secreta, apesar de ser uma religião de segredos e ser

devedora das sociedades secretas africanas, como se verá no segundo capítulo deste trabalho.

No entanto, para se estudar e compreender bem a estrutura, importância e metamorfoses do

segredo nesta religião, se faz necessário passar, mesmo que de forma rápida, pela história das

1
Tal bibliografia será constantemente citada e retomada ao longo desse trabalho.
26
sociedades secretas, como já foi dito na Introdução. Essa passagem se mostra imperativa

principalmente por dois motivos simples:

(i) Pelo fato de o estudo do segredo ter se mantido durante muito tempo atrelado à
História das Sociedades Secretas.2
(ii) Pela hesitação de boa parte dos sociólogos e antropólogos em relação ao tema do

segredo, talvez por não desejarem ser associados à caça de segredos, típica de alguns

antropólogos à serviço de instituições européias e norte americanas que, ávidas pelo lucro,

financiavam determinadas “pesquisas” em troca de fórmulas que, na sua opinião, poderiam

resultar em ganhos financeiros junto a empresas farmacêuticas e laboratórios, como aconteceu

no caso da incursão de Wade Davis, ao estudar as sociedades secretas voduns haitianas

(Davis, 1986).3

Fica então esclarecido aqui que o candomblé não constitui uma sociedade secreta,

apesar de ser uma religião de segredos.

Da mesma forma, faz-se necessário esclarecer que o papel do segredo no candomblé se

diferencia, quanto à função do segredo em instituições como a Maçonaria e a Igreja Católica

(aqui nos referindo ao segredo da confissão e ao segredo ligado aos processos burocrático-

administrativos, como a eleição e a sucessão de bispos, por exemplo), uma vez que naquela o

segredo assume um caráter mais corporativo enquanto nesta o segredo está mais ligado a uma

preservação da identidade dos agentes envolvidos, o que não encontra paralelo nas relações

que envolvem a prática do segredo no candomblé.

2
E sobre essa relação entre o estudo do segredo e das sociedades secretas, uma frase de Schreiber, de
1956, pode nos indicar o desafio que esse estudo representa. Assim ele falou: “A história das
sociedades secretas ainda não foi escrita e exigirá forças sobre-humanas para o ser um dia”
(SCHREIBER & SCHREIBER, 1956).
3
Ao resenhar o conhecido livro de Paul Christopher Johnson, Secrets, Gossip and Gods (2002), Brian
Brazeal ironiza: “É verdade que a Antropologia tem um apetite voraz pelos segredos de candomblé,
mas a ameaça apresentada a esses segredos pela disciplina é exagerada nessa obra”. (BRAZEAL,
Brian. Reseña de Secrets, Gossip and Gods. In: Afro-Ásia, nº 032. Universidade federal da Bahia,
Bahia, Brasil, 2005. pp. 315-320).

27
Ao fazermos essa distinção entre o segredo no candomblé e em outras instituições,

filosóficas ou religiosas, entramos então na questão da definição do segredo. Para

compreendermos melhor as definições até agora atribuídas a essa prática retomemos,

brevemente, parte da literatura existente sobre o assunto.

1.2. Retomando algumas abordagens e suas limitações

Segundo a maioria dos dicionários a ideia de segredo está ligada ao “que não pode ser

revelado”, “sigilo”, “confidência”, “mistérios”, “conhecimento só de uns poucos”. Em alguns

o segredo também está ligado a “assunto, manobra, negócios”.

Da mesma forma, quando se fala do ato de segredar, o campo semântico sempre

envolve o recurso aos sentidos, como, por exemplo, a audição, sendo que o segredo impõem à

comunicação o controle do nível e dos agentes envolvidos na transmissão. Assim segredar

passa a ser “dizer em voz baixa”. Este mesmo campo semântico construído em torno do

substantivo Segredo, pressupõe uma relação estabelecida entre mais de um sujeito, quando se

trata de segredar, ou produzir o segredo. Podemos então concluir que sem relação não há

segredo, fato do qual também podemos inferir que quando falamos de segredo

necessariamente estamos falando de relação. Da mesma forma, é possível inferir que a

existência do segredo passa, necessariamente, pela experiência sensorial, fortemente acionada

na maioria dos loci do segredo, e no contexto desta pesquisa, no universo simbólico religioso,

dos quais o candomblé faz parte.

28
Quando transposto para as ciências humanas e sociais como objeto de análise, o segredo

tem seu sentido dilatado, passando então a ser visto como um elemento que estabelece

relações das mais variadas naturezas e com os mais variados fins4.

Como já foi dito, durante muito tempo o estudo do segredo encontrou-se mais retido no

campo da história das Sociedades Secretas. E isso, como veremos, resultou em significativas

vantagens para o estudo do segredo, mas também deu margem a análises superficiais, e até

distorcidas, quando se arriscou uma análise do segredo nas religiões afro-brasileiras. E aqui

nos referimos, especifica e diretamente, ao texto já citado dos Schreiber’s.

Para citar apenas alguns, entre os diversos trabalhos existentes, retomemos os

conhecidos trabalhos História e Mistérios das Sociedades Secretas, de Hermann Schreiber e

Georg Schreiber (1956) e As Sociedades Secretas (s/d), de Serge Hutin. Apesar de provirem

de área distinta da nossa, estes trabalhos nos serão muito úteis como ferramentas de análise no

estudo do segredo no candomblé.

Um dos méritos destes trabalhos está na constatação, que hoje nos parece um tanto

óbvia, de que nestas sociedades a iniciação corresponde à fronteira entre o mundo profano e o

mundo sagrado da associação. É nessa fronteira que o segredo se impõe como chave-mestra

entre um universo e outro. Assim se expressa Hutin:

Os ritos iniciáticos são essencialmente “provas”, físicas e morais, que procuram


atuar sobre o psiquismo do indivíduo. Desenrolam-se por vezes em público (por
exemplo, os ritos que marcam a passagem da adolescência para a idade adulta entre
os povos primitivos) mas, na maior parte das vezes, em segredo: os ritos iniciáticos
praticados pelas sociedades secretas são, por definição, “mistérios”, que o neófito
se compromete por juramento a nunca revelar aos profanos. (Hutin, s/d, p. 14).5

4
Entre os quais podemos acrescentar a manutenção das relações de poder, como ficará claro ao longo
deste trabalho.
5
Aqui já podemos vislumbrar uma das diferenças entre a relação estabelecida entre essas sociedades e
o que se dá no candomblé, quando o assunto é o segredo. Enquanto nelas a manutenção do segredo é
formalizada ritualmente, no candomblé a preservação do segredo se apóia em um acordo tácito. De
fato, ao longo da minha passagem pela religião, tanto na condição de iniciado quanto na condição de
pesquisador, só presenciei “juramento de segredo” uma única vez, sendo que nesta ocasião a exigência
do juramento me pareceu mais relacionado com o caráter dos sujeitos que ora se iniciavam, uma vez
29
Já na introdução da sua obra, Hutin nos apresenta uma esclarecedora análise das

sociedades secretas políticas e sociedades secretas iniciáticas, tendo o lúcido cuidado de

distingui-las de forma clara e minuciosa (pp. 11ss). Na sua compreensão, o que parece

bastante plausível, a iniciação é esse umbral que separa e ao mesmo tempo une o mundo dos

iniciados ao dos não-iniciados, através da transmissão dos conhecimentos esotéricos da

sociedade em questão, sendo que este mesmo processo, como nos mostra o exceto acima,

tanto pode incluir rituais públicos quanto privados, ou secretos, como prefere o autor.

Naturalmente, ninguém inicia a si mesmo. Desta forma, a iniciação pressupõe uma

sociedade, como defende o autor. Esta sociedade, de iniciados que iniciam, se estrutura sobre

a base dos conhecimentos adquiridos na iniciação pregressa que, por sua vez, estabelece uma

hierarquia pautada na detenção dos conhecimentos secretos que, através das sucessivas

iniciações, se reproduzirão, reproduzindo, assim, também, esta mesma hierarquia. Ao tratar

dessa hierarquia e diferenciar o místico do iniciado Hutin afirma:

Enquanto o “místico” atinge logo à primeira a plenitude da intuição, o


iniciado só progressivamente adquire o conhecimento: a “via iniciática” é,
diz-se frequentemente, “activa”, “longa” e “laboriosa” para o indivíduo que
a aborda. Daí a existência de uma hierarquia em todas as organizações
iniciáticas: os diversos “graus” marcam as etapas sucessivas da iniciação, os
graus relativos de perfeição que os iniciados atingem. Toda uma
organização, por vezes muito complicada, preside a escolha dos adeptos e
ao respeito pelas tradições; observa-se uma graduação minuciosa na
execução dos ritos e na sua revelação progressiva aos filiados... (Opus Cit,
p. 15)

que comentava-se sobre as pretensões de um deles de instrumentalizar, precocemente, a reprodução


dos rituais que naquele momento se realizavam. Isso me faz crer que o juramento de segredo está
longe de ser uma regra. Segundo um dos meus interlocutores, o único ritual mais aproximado da
formalização de um juramento de segredo é o momento em que, durante a iniciação, o babalorixá faz
uma incisão na língua do neófito. No entanto, segundo outros, este mesmo ritual em vez de remeter à
manutenção do segredo, representaria a concessão da fala ao orixá que nasce naquele momento. Na
minha opinião, tal ritual mereceria um estudo mais profundo.

30
Esta reflexão do autor pode ser aplicada, também, à estrutura iniciática no candomblé,

e ao seu sentido. Mais adiante veremos como os “desvios” do respeito pelas tradições e a

inobservância da minuciosa execução dos ritos (o que se poderia associar a uma pretensa

ortodoxia) é interpretada e classificada pelo povo do santo como “marmotagem”.6

Voltando à questão mais ampla dos processos iniciáticos e das formas de aquisição

dos conhecimentos esotéricos, podemos afirmar que esses graus relativos de perfeição, dos

quais fala Hutin, podem mesmo serem associados a uma verdadeira mutação ontológica, para

utilizar uma expressão de Micea Eliade (2010, p. 148), cuja mutação se traduz em um

engendramento de uma nova personalidade por parte do iniciado7, aspecto sobre o qual a

maioria das sociologias da religião são concordantes.8

Outra abordagem emblemática a respeito do segredo nas sociedades secretas foi

realizada pelos Schreiber’s (1959), já citados. Sua obra, que levou o sugestivo título de

História e Mistério das Sociedades Secretas, nos parece ir na direção evitada por boa parte

dos cientistas sociais que não desejavam ser confundidos com caçadores de segredos9. No

primeiro livro dessa obra, publicada inicialmente em 1956 com o título de Mysten, Maurer

6
Gíria oriunda dos falares baianos e que terminou sendo absorvida pelo povo do santo de modo geral,
sendo utilizada ainda hoje para se referir às práticas tido como pouco ortodoxas. Ver Glossário, no
final deste trabalho, verbete “Marmotagem”.
7
Como sempre insistiu Pierre Verger (1981), ao falar sobre a iniciação no candomblé.
8
Para ficarmos, inicialmente, apenas com dois exemplos citemos ELIADE, Micea. O sagrado e o
profano. WmMartinsfontes, São Paulo, 2010 e WACH, Joachim. Sociologia da religião. Edições
Paulinas, São Paulo, 1990.
9
E aqui estamos chamando de “caçadores de segredos” a uma certa categoria de antropólogos que,
como aconteceu com Wade Davis (mais não só com ele), assumiu uma postura pouco ética ao se
infiltrar (ou pagar a alguém que se infiltrasse) nas sociedades tradicionais por eles pesquisadas, a fim
de descobrir supostos segredos que poderiam ser capitalizados por eles, numa semelhança não muito
distante de certos aventureiros como o lendário personagem de cinema Indiana Jones. Continuamos
com o caso de Wade Davis como emblemático. A propósito o título em português do seu conhecido
livro, já nos dá uma boa pista do que teria sido sua incursão entre as sociedades secretas do Haiti na
década de 1970: A serpente e o arco-íris: zumbis, vodu, magia negra. Viagens de um antropólogo às
sociedades secretas do Haiti e suas aventuras dignas de um novo Indiana Jones. (Publicado pela Jorge
Zahar Editor em 1986, cujo título original em inglês era The Serpent and the Rainbow).

31
und Mormonen (“Místicos, maçons e mórmons”), e depois traduzida, em 1959, para

português sob o título já indicado, a pergunta de certa forma sensacionalista provoca a

curiosidade do leitor: ainda há sociedades secretas?

Segundo a abordagem dos autores a resposta é positiva. E para o espanto dos

pesquisadores sobre as religiões afro-brasileiras, eles reservam as últimas cinco páginas do

primeiro livro às manifestações religiosas afro-brasileiras do Maranhão e Ceará, associando-

as a sociedades secretas ao falarem de uma suposta “Liga da Macumba”, cuja sociedade, na

análise deles, estaria, durante a segunda metade do século XIX, envolvida em práticas de

feitiçaria10 e sacrifícios humanos. Ao analisar a dispersão dos negros ligados à suposta “Liga

da Macumba” através do Rio Amazonas e pela floresta e cidades adentro, os autores não

conseguem disfarçar seu pouco conhecimento a respeito dessas manifestações religiosas,

assim como seu preconceito quanto às mesmas. São deles as palavras:

As amas e empregadas exercem seus misteres em São Paulo e no Rio de


Janeiro exatamente pela mesma forma como o fazem na Europa; elas
contam às crianças das famílias em que servem, com os olhos esbugalhados,
histórias horríveis de demônios e fantasmas11 e até mesmo se mancomunam
com a dona da casa para tolice de muito segredinhos espiritistas. (Schreiber
& Schreiber, 1959, p. 26, grifos nossos)

Muito poderia ser dito a respeito dessas palavras dos autores. Desde que eles

antecipam em algumas décadas o discurso da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), até

mesmo que não conseguem se desvencilhar do olhar etnocêntrico europeu, ao candidatarem-

se a analisar as manifestações religiosas afro-brasileiras do período em questão. Ficaremos,

10
Mais adiante analisaremos a relação entre religião e magia (feitiçaria) no candomblé e veremos
como o segredo também permeia esta relação, engendrando as relações de poder entre os agentes
envolvidos nessas práticas.
11
Orixás? Voduns? Inquices?

32
por enquanto, com a ideia de que a análise nos convida a refletir a respeito de uma prática de

dividir segredos entre o povo do santo e aqueles que não o são necessariamente.

Isso para entendermos que o movimento que tomará força a partir da década de 1950, a

que estamos chamando de “vazamento de fundamentos”, pode ter precedentes já nas últimas

décadas do século XIX.

Ainda na tentativa de explicar o que eles chamam de “macumba”, e que não podemos

afirmar seguramente que seja exatamente a mesma coisa a qual Roger Bastide (1960) define

com a mesma terminologia, associando-a a uma “sociedade Secreta”, os autores continuam:

Dessa maneira a macumba se converteu hoje numa forma secreta de culto


que não mais se limita à floresta e é privilégio dos negros que nela habitam;
macumba é a misteriosa liga que já arrebanhou dez mil, talvez cem mil
pessoas e que não se contenta só em penetrar na moderna civilização
americana, nem nas formas mercantis americanas da cristandade religiosa
(Schreiber & Schreiber, Opus Cit, p. 26)

Um pouco mais adiante, terminam revelando o que de fato pensam sobre estes cultos e

sobre o povo a eles ligado:

Onde a capacidade do entusiasmo ou a predisposição ao transe se mostram


fracas, há a ajuda de cigarros de ópio e o emborcar da cachaça; onde o
interesse pelas coisas religiosas não é tão ardente, há a fortuita obscenidade
e crueldade das festas comuns à liga, como sacrifícios de sangue, que, com
mais freqüência, cada vez maior, são encabeçadas por pitonisas da
macumba. (Idem, p. 27)

E continuam falando, espantados, do avanço da “macumba” em direção aos Estados

Unidos e à “civilização”:

São bastante pronunciados os indícios de que a Liga da Macumba, partindo


do sul, penetra nos Estados Unidos. O seu primeiro centro evidente é a
tradicionalmente intranquila cidade de Nova-Orleans, que, com a sua
cultura franco-americana misturada, foi, no século dezoito, o lugar

33
preferido de famosos aventureiros e, no século dezenove mais ainda, o local
das diabruras dos grupos ítalo-americanos da Máfia. Subindo de Nova-
Orleans pelo Missisipi, os costumes da macumba encontram velhas regiões
de fixação de negros, portanto terreno propício para inoculação, ainda que
de maneira geral se possa dizer que as populações de cor dos Estados
Unidos se servem para a defesa dos seus interesses, de meios que se
acomodam melhor às condições de um estado civilizado moderno do que ao
tremeluzir das ligas secretas religiosas. (Ibidem, p. 27. Grifos nossos)

Aqui, assim como ao longo de toda a abordagem reservada pelos autores à análise da

“macumba”, esses cultos são apresentados como uma sociedade secreta perigosa que avança

em direção aos Estados Unidos, se apoiando nos nichos negros e inoculando seu veneno

perigoso entre os norte-americanos, que se veem diante de um risco à sua civilização, uma vez

que estes, segundo os autores, se servem para a defesa dos seus interesses, de meios que se

acomodam melhor às condições de um estado civilizado moderno do que ao tremeluzir das

ligas secretas religiosas.

Diante de palavras tão desprovidas de espírito crítico, é impossível não confrontá-las

com os atuais estudos de Ari Pedro Oro12 , Ismael Jr. Pordeus13 e outros estudiosos que se

dedicam aos estudos da expansão dos cultos afro-brasileiros pela Europa e pelo mundo,

fenômeno que ganha cada vez mais força e visibilidade política e acadêmica.

Abordagens como as dos Schreiber (Opus Cit.), fortemente condicionadas pela

ignorância a respeito da natureza e funcionamento das religiões afro-brasileiras, deram

margem a práticas tanto por parte do povo do santo que, na tentativa de evitar falsas

interpretações, passaram a agir com uma discrição cada vez maior no que se refere a

determinadas rituais privados dos seus cultos, quanto por parte da academia em relação ao

estudo do segredo nessas religiões.

12
ORO, Ari Pedro. Axé Mercosul: as religiões afro-brasileiras nos países do Prata. Vozes, Rio de
Janeiro, 1999.
13
PORDEUS, Jr. Ismael. Uma casa luso-afro-brasileira com certeza: emigrações e metamorfoses da
umbanda em Portugal. Terceira Margem. São Paulo, 2000.

34
Com isso, muitos pesquisadores passaram a evitar os estudos do segredo a fim de não

serem vistos como meros especuladores e “caçadores de segredos”. O termo “segredismo” se

impôs, então, cada vez mais imperioso, provocando, assim, um afastamento relativo dos

pesquisadores acerca desse tema, e dificultando a realização de etnografias sobre a prática do

segredo14.

É para evitar falsas compreensões como estas, e possíveis idiossincrasias a respeito da

relação entre o candomblé e o segredo, que achamos necessário deixar bem claro que na nossa

abordagem, o candomblé não é visto como uma sociedade secreta, apesar de podermos

analisá-lo a partir de categorias de análise próprias da história das sociedades secretas, como é

o caso da abordagem de Hustin.

1.3. Da História para as Ciências Sociais: o segredo como forma de socialização

Se a história das sociedades secretas reconstitui a trajetória da prática do segredo, indo

desde suas primeiras manifestações nas religiões de mistério da antiguidade, como as que

existiram no antigo Egito, na Grécia, no Império Romano, passando pelas formas de

esoterismo islâmico e pelas iniciações do mundo medieval, até desembocar nas formas de

sociedades secretas mais atuais como o rosacrucianismo, franco-maçonaria, Ku-Klux-Klan e

Máfia (Hustin, s/d; Schreiber & Schreiber, 1956) as Ciências Sociais, e principalmente a

Sociologia, analisam o papel do segredo como uma das primeiras e mais eficientes formas de

socialização. E nesse sentido, o estudo de Georg Simmel, Estúdios Sobre las Formas de

Socialización (Simmel, 1977), é um bom exemplo.

14
E, de fato, ao analisar a maior parte das etnografias a respeito das religiões afro-brasileiras até o
final da década de 1990 percebe-se que um dos aspectos que menos atraia o interesse dos
pesquisadores era justamente o tema do segredo ritual. Talvez pelo fato de o segredo realmente não
existir ou ser dado como suposto, como defendem Reginaldo Prandi (2005) e Johnson (2002).

35
Ao lado do ensaio de Mário Dal Pra, elaborado para a Enciclopédia Einaudi,

Esotérico/Exotérico (Dal Pra, 1990), o ensaio de Simmel, El Secreto y la sociedad secreta, é

indispensável para a análise que nos propomos do segredo no candomblé.

No referido ensaio Simmel começa por situar o segredo como umas das primeiras e

indispensáveis práticas humanas relacionadas à socialização ao afirmar que: Todas las

relaciones de los hombres entre si, descansan, naturalmente, en que saben algo unos de

otros. (Simmel, 1977, p. 357). Assim, a prática do segredo funcionaria como um movimento

de atribuição de poder de um sobre o outro, através do compartilhamento de conhecimento

mútuo. Evidentemente, esse compartilhamento, quando espontâneo, só se daria entre sujeitos

predispostos a uma relação. Porém, nas teias que constituem essa relação se esconde o risco

da relação de poder um sobre o outro, o que pode desembocar no jogo da dominação.

E Simmel continua:

Indudablemente, de no existir tal saber, no podrían verificarse las relaciones


de hombre a hombre aqui referidas. La intensidad y matiz de las relaciones
personales diferenciadas – con reservas que fácilmente se comprenden -, es
proporcional al grado en que cada parte se revela a la otra por palabras e
actos. No importa la cantidad de error y mero prejuicio que pueda haber en
estos muchos conocimientos. (...) El saber com quine se trata es la primera
condición para tener trato com alguien. La representación corriente que se
forman una de otra las dos personas, trás una conversación algo prolongada
o al encontrase en la misma esfera social, aunque parezca forma huera, es
uno símbolo jusco de aquel conocimiento mutuo, que constituye la
condición a priori de toda relación. (Opus Cit, p. 357-358)

Para o autor, o processo de socialização tem sua base na construção de um

conhecimento mútuo que por sua vez constrói a confiança necessária para que se produza a

convivência. No entanto, esse conhecimento mútuo é progressivo, desigual e parcial, como

ele afirma mais adiante:

36
Cómo en algunas esferas el conocimiento mutuo no necesita ser igual por
ambas partes; cómo ciertas relaciones, ya establecidas, se determinan en su
evolución por el creciente conocimiento de uno por otro o de los dos por los
dos; y, finalmente, al contrario, cómo nuestra imagen objetiva del otro es
influenciada por las relaciones de la práctica y de la sensibilidad. (p. 358)

Mas, como nunca se puede conocer a otro en absoluto (Idem), (...) nuestras relaciones

van desenvolviéndose sobre la base de uno saber mutuo, y este saber se funda a su vez sobre

la relación de hecho (Idem, p. 359)

A argumentação de Simmel se prolonga analisando os recursos geralmente adotados

pelos indivíduos no jogo da socialização. A mentira, a ocultação e dissimulação, atuam como

elementos de mediação entre o dar-se a conhecer e o conhecer o outro, sendo que: En el

sentido cuantitativo, lo que revelamos incluso a las personas más íntimas, no son sino

fragmentos de nuestra vida real interior. (p. 361)

Se a mentira dificulta o estabelecimento da confiança e compromete a relação, o

segredo, por sua vez, atua como regulador do conhecimento mútuo e desigual que age no

equilíbrio (ou desequilíbrio) da relação entre indivíduos e grupos, como afirma Simmel:

(...) La limitación del conocimiento que uno tiene de otro – no es más que
uno de los médios, una táctica, que puede calificarse de positiva, y, por
decirlo así, agresiva, siendo así que el fin puede conseguirse, y en general se
consigue, por el secreto y la ocultación. (Simmel, op. cit. p. 355-356)

O controle então que se dá sobre aquilo que um sabe do outro passa então a servir de

elemento dinamizador da relação estabelecida. E assim, juntamente com Simmel, podemos

depreender que o segredo, além de estabelecer relações, possui a indispensável capacidade de

manter coesos os sujeitos dessa relação estabelecida. Porém é preciso também manter o

respeito pelo segredo do outro, uma vez que o contrário poderia resultar no mesmo efeito

negativo da mentira, por exemplo. Sobre isso Simmel afirma:

37
El grado de conocimiento que supone el ser “conocido”, no se refiere a lo
que el otro es “en si”, no a lo que es en su interior, sino en aquella parte que
manifiesta a los demás, al mundo. Por eso el “conocimiento” en este sentido
del trato social es el lugar adecuado de la “discreción”. Esta no consiste tan
solo en respetar el secreto del otro, su voluntad directa de ocultarnos tal e
cual cosa, sino en evitar conocer del otro lo que el positivamente no los
revele. (p. 369, grifos nossos)

Em seguida, Simmel (op. cit.) analisa mais detidamente a natureza do segredo

relacionando a uma “disimulación y enmascaramiento tendencioso (...), defensa agresiva

frente al tercero”. Isso seria o que se pode chamar de segredo. Ou seja, o segredo também

implica o grupo, a relação coletiva. Ele afirma:

El secreto en este sentido, el disimulo de ciertas realidades, conseguidos por


médios negativos o positivos, constituye una de las más grandes conquistas
de la humanidad. (...) El secreto significa una enorme ampliación de la vida,
por que en completa publicidad muchas manifestaciones de esta no
pondrían producirse. El secreto ofrece, por decirlo así, la possibilidad de
que surja uno segundo mundo, junto al mundo patente, y este sufre con
fuerza la influencia de aquel. (p. 378).

Esse “segundo mundo”, de que fala Simmel, para o povo do santo é justamente o

mundo da religião e dos terreiros. Das hierarquias e do espaço sagrado. E nesse mundo, o

segredo ritual funciona como chave de acesso e de controle. A busca pelo saber, pelo

conhecer, interage com a dinâmica do segredo. Isso por que:

Una de las características de toda relación entre dos personas o entre dos
grupos es el haber en ella secreto y la medida en que lo hay; pues aun en el
caso de que el otro no note la existência del secreto, este modifica la actitud
del que lo guarda y, por consiguinte, de toda la relación. (p. 378).

A respeito do conteúdo do segredo Simmel se pergunta e já responde:

38
?Hasta qué punto la cuantía del secreto es modificada en sus consecuencias
por la importância o indiferencia de su contenido? (...) El secreto es una
forma sociológica general, que se mantiene neutral por encima del valor de
sus contenidos. (p.379)

E isso só reforça a importância do segredo na estrutura das relações recíprocas dos

sujeitos, conforme palavras do próprio autor.

No entanto, não se deve ceder com facilidade a quase irresistível atração que o segredo,

e a possibilidade de conhecer seu conteúdo, exercem sobre os sujeitos. Na maioria das vezes,

inclusive, seu conteúdo nem sempre é profundo e importante, podendo inclusive confundir-se

com o vazio, como veremos nos próximos capítulos através de alguns exemplos. De início, a

única certeza que o segredo pode oferecer é que o mesmo impõe uma barreira

(hierarquização) entre os homens que, por sua vez, querem por força transporem-na. É

justamente aqui que percebemos o quanto o segredo está visceralmente ligado às relações de

poder. E como as relações de poder são conflitantes, podemos nos arriscar a dizer que onde há

segredos (ou mesmo suposição de segredos) há, da mesma forma, conflitos e pontos de

tensão.

1. 3. 1. O que é para “os de dentro” e o que é para os “de fora”

Retomando os estudos acerca da natureza dos conhecimentos iniciáticos, é válido

retomarmos o que escreveu Dal Pra sobre o binômio Esotérico/Exotérico.

O artigo já citado de Dal Pra (1990) ao mesmo tempo em que retoma as abordagens da

história das sociedades secretas, corrobora a análise de Simmel.

Para Dal Pra, o estudo do binômio Esotérico/Exotérico passa pela análise da prática do

segredo e consequentemente da história das sociedades secretas. Estas, mesmo não podendo

serem associadas à forma inicial de agregação social, são um fato quase universal e estão

presentes mesmo na fase primordial da sociedade. Retomando Weber (1980), o autor


39
concorda com a idéia de que a utilidade das sociedades secretas, ao esconderem dos não

iniciados seus mistérios, está ligada ao fato de elas ajudarem a conservar a moralidade da

tribo e da religião. Isso possui uma dupla implicação, ligada tanto às aristocracias quanto à

comunidade como um todo, como explica Dal Pra:

Qualquer que seja a ligação entre as práticas de iniciação e o poder dos


grupos aristocráticos de anciãos, não se deve perder de vista o fato de que,
nas sociedades primitivas, essas práticas têm uma importância decisiva na
vida da comunidade. De facto, numa condição social caracterizada pela falta
de uma autoridade política centralizada, a iniciação constitui o meio mais
válido para alcançar a subordinação dos interesses do indivíduo ao bem da
sociedade. Por conseguinte, sempre que a organização do poder na
sociedade evolui para uma forma de uma centralização mais acentuada, dá-
se uma deslocação do poder dos anciãos para os chefes da tribo e, nessa
altura, o conjunto das práticas de iniciação sofre, também ele, uma alteração
de significado. Essas práticas dão lugar a verdadeiros freios sociais em
sociedades onde o poder está ainda em vias de formação; quando, pelo
contrário, se desenvolve a função central do poder, há tendência para
emergirem nelas os aspectos mais tipicamente religiosos e dramáticos do
esoterismo; temos assim uma evolução das sociedades secretas de funções
mais directamente de organização político-social para grupos de sacerdotes
a quem é confiada a execução de ritos religiosos da comunidade (1990, p.
222)

As palavras de Dal Pra são significativamente elucidativas no contexto da abordagem

desta pesquisa. A precisão das suas palavras, não obstante os ajustes necessários à

acomodação da sua abordagem à situação do candomblé e do seu segredo, cabe perfeitamente

na análise que nos propomos fazer das transformações pelas quais a prática do segredo no

candomblé tem se submetido nas últimas décadas.

Muitos dos elementos da sua abordagem são recorrentes em outras, como na de Hutin e

Simmel (1977). Um desses exemplos é quando ele fala do processo iniciático nas sociedades

primitivas:

40
A passagem de um nível a outro da iniciação e, portanto, a progressiva
aquisição de uma maior dignidade sacro-religiosa não dependem tanto do
nível social do iniciado quanto do tempo que passou nos graus inferiores e
de algumas qualidades pessoais. (...) Só os graus mais elevados conhecem
os segredos mais recônditos e o respectivo culto religioso. (Idem, p. 222)

Já sobre as mutações, no tempo e no espaço, dessa estrutura social e religiosa, ele

atinge um nível de abrangência de análise que parece mesmo abarcar os fenômenos pelos

quais passa o candomblé e seu segredo:

Pode também acontecer que o desenvolvimento da organização política


origine, nas sociedades primitivas, uma decadência gradual das estruturas
de iniciação e, em vez de dar lugar a sociedades secretas de acentuado
caráter religioso e mágico, dê origem a um quase completo desaparecimento
do esoterismo e das suas cerimônias; caem então o rigor e a dureza das
provas, e a própria segregação entre iniciados e não iniciados se atenua. Ás
vezes, porém, continuam a subsistir alguns ritos de iniciação mesmo após a
constituição de sistemas políticos mais evoluídos; e muitas vezes acontece
que aqueles que detêm o poder os utilizam como sustentáculo do próprio
poder. (Idem, p. 223)

Novamente, retomando a rota do segredo na história, Dal Pra relaciona esoterismo à

prática associativa corroborando, como foi dito, o pensamento de Simmel. Sua conclusão, no

entanto, é que este mesmo esoterismo associativo tende a se dilatar, e diríamos

metamorfosear, chegando, inclusive, a assumir outras formas e natureza, como acontece com

o segredo no candomblé. São dele as palavras abaixo:

O esoterismo associativo que visa corrigir as deficiências de uma


organização social excessivamente dilatada e complexa atinge também os
grupos que, institucionalmente, mais facilmente deveriam conseguir
manter-se distante de sugestões iniciáticas e do fascínio do segredo. (...) o
esoterismo tende a dilatar-se e complicar-se, assumindo características
simultaneamente associativas, religiosas e cognitivas. (Idem, p. 236-237)

41
É no rol desses posicionamentos de Simmel e Dal Pra que desenvolveremos nossa

análise das transformações pelas quais a prática do segredo no candomblé vem passando. A

seguir, faremos uma análise de parte dos trabalhos e pesquisas já desenvolvidas nesse sentido.

1.4. O segredo do candomblé na Sociologia e Antropologia brasileira e brasilianista

Apesar de raramente ter merecido a atenção devida no conjunto das análises

etnográficas, o que só vai acontecer de forma sistemática a partir da primeira década do

século XXI, com trabalhos como o de Johnson (2002), Prandi (2005), Silva (2006), Tacca

(2009) e Castillo (2010), é possível encontrar referências à importância do segredo no

candomblé desde o início dos estudos afro-brasileiros. Nina Rodrigues, Artur Ramos, Edson

Carneiro, Ruth Landes, Roger Bastide, Pierre Verger, entre outros, estão entre aqueles que,

mesmo de forma superficial, não negligenciaram em chamar a atenção para a prática do

segredo como elemento constitutivo do imaginário religioso do candomblé e dos cultos afro-

brasileiros. Entre os trabalhos mais recentes e que melhor sistematizaram os estudos sobre

essa temática estão os já citados trabalhos de Johnson, Silva, Prandi e Tacca.

Grosso modo, o que se percebe nesses estudos, quando se fala do segredo, é um

posicionamento no estilo diplomático, através do qual fica claro que a prática do segredo

existe, mas que, no entanto, esse mesmo segredo em nada impede o desenvolvimento da

pesquisa proposta. Isso fica claro no clássico e controverso estudo realizado por Ruth Landes,

por exemplo. No seu famoso livro A cidade das mulheres (1947), todo o clima de suspense

criado em torno da figura do babalaô Martiniano do Bomfim, se esvai no jogo de búzios que

este realiza para Landes e sua companheira, contratada para se submeter também ao jogo do

velho e misterioso babalaô. O leitor termina com a sensação de ‘ter nadado muito e morrido

42
na praia’. Da mesma forma paira sobre o leitor a sensação de que o segredo e seus pretensos

conteúdos não passam de discursos construídos deliberadamente, para aguçar a curiosidade

dos não-adeptos, a fim de atrair-lhes à religião, como a mosca é atraída pela irresistível luz da

lamparina (para repetir uma conhecida e velha expressão).

Segundo a abordagem de Prandi (2005), a autoridade dos anciãos, tidos como

detentores dos segredos da religião, tem sido colocada em xeque pelos movimentos

contemporâneos de codificação escrita e eletrônica de conhecimentos antes retidos e

controlados pela tradição oral dos terreiros. Isso tem dado lugar a contradições e conflitos no

interior dos terreiros, conflitos estes que envolvem gerações diferentes e incita os jovens a

pressionarem os mais velhos em busca de supostos segredos guardados. Esta situação tem

imposto à religião, novas configurações que se mostram inevitáveis. Ainda segundo Prandi,

esses conflitos, que se instalam no interior dos terreiros e da religião, podem ser percebidos

nas opiniões de alguns adeptos que, em se tratando de segredos guardados, assumem uma

dupla divisão de opiniões: (i) aqueles que acreditam na existência de segredos guardados

pelos mais velhos, e que devem ser recuperados, em nome da sobrevivência da religião e (ii)

aqueles que acreditam que estes mesmos segredos já estão irrecuperavelmente perdidos.

Ambos os posicionamentos, no entanto, se sustentam na crença da existência dos segredos,

sejam eles recuperáveis ou não.

O resultado mais visível dessas dinâmicas são os movimentos de tentativa de recuperar

os tais segredos guardados. Segundo Prandi, essa tentativa se explica da seguinte forma:

A idéia de que é preciso recuperar o mistério perdido ao longo da história


da religião no Brasil parte da suposição de que em algum lugar existe
sobrevivência ou registros do que se perdeu, que alguém de grande
conhecimento é capaz de ensinar a fórmula almejada, que algum processo
iniciático em outro templo, nação ritualística, cidade ou país pode resgatar o
patrimônio que as gerações anteriores de pais e mães-de-santo, por
impedimento sócio-cultural, egoísmo ou desleixo, não souberam transmitir
às gerações seguintes. (Prandi, 2005, p. 246)

43
Para essa parcela do povo do santo que reivindica a retomada destas tradições

“perdidas”, impõem-se então a condição de que Recobrar segredos guardados é imperativo

para restaurar o grande poder mágico da religião (Ibid). Mesmo que, para isso, tenha-se

que pagar. O que geralmente implica em possível submissão ritual em relação àquele que

detém os segredos em questão, como afirma o próprio Prandi.

Diante dessa análise, nos cabe algumas questões que serão trabalhadas de forma mais

detida nos próximos capítulos: o revelar dos segredos seria então a solução para o impasse dos

segredos guardados? Se a retenção dos segredos implica risco à religião, a

revelação/transmissão desses segredos representaria a segurança da sobrevivência desses

cultos? Até que ponto a revelação implica na perca de poder por parte da esfera dos ebômes?

Em que medida o “vazamento” de fundamentos na Internet, por exemplo, facilita ou dificulta

as relações sociais estabelecidas no interior dos terreiros? Estaria a autoridade dos mais velhos

sendo ameaçada pela curiosidade inveterada dos mais novos, ávidos por segredos que talvez

não existam? Não seria as relações de poder que estariam em conflito? Estaria o poder

travestido de “segredo”, a fim de justificar a disputa entre novos e velhos? Caminharia o

candomblé para um ocaso da gerontocracia tradicional?

No conjunto dos estudos sobre as transformações pelas quais o candomblé tem passado

se localizam os trabalhos de Vagner Gonçalves da Silva. Já na etnografia resultante da sua

pesquisa de mestrado Orixás da Metrópole (1995), o autor analisa as dinâmicas resultantes da

utilização da codificação escrita (“caderno de fundamentos”) no candomblé e seu impacto

sobre a tradição de transmissão oral dos conhecimentos esotéricos dessa religião15. Em O

15
Tema que também é retomado por Lisa Louise Earl Castillo na sua tese de doutoramento no
departamento de Letras da UFBA: CASTILLO, Lisa Louise Earl. Entre a oralidade e a escrita:
Percepções e usos do discurso etnográfico no candomblé da Bahia (tese de doutoramento). Salvador,
2005 (Depois publicada em 2008 pela Editora EDUFBA).

44
antropólogo e sua magia (2006) o autor reservará um capítulo para a compreensão da relação

entre os segredos do escrever e o escrever dos segredos.16

Ao analisar as implicações do fazer etnográfico dos pesquisadores que enveredaram

pela pesquisa do campo religioso afro-brasileiro, Silva aborda, de forma tão sucinta quanto

esclarecedora, as questões que envolvem os imperativos éticos da prática etnográfica ao se

deparar com a questão do segredo, própria dessas manifestações religiosas.

Analisando discursos de babalorixás, yalorixás, e pesquisadores, o autor passa por casos

clássicos de “revelação dos segredos” e “preservação dos segredos” que compõem a história e

o desenvolvimento das pesquisas afro-brasileiras. Casos como o da revista O Cruzeiro (1951)

e dos livros Le Cheval des Dieux (1951) e Dieux d’Afrique17 (1954), respectivamente de

Henri-Georges Clouzot e Pierre Verger, assim como O Segredo das folhas (1993), de Flavio

Pessoa de Barros, são discutidos à luz das opiniões de religiosos e religiosas que veem com

reservas publicações (sejam escritas, fotográficas, filmográficas, etc.) que levam ao domínio

público informações tidas pelas comunidades de terreiros como sigilosas e secretas18.

Entre as muitas contribuições do texto de Silva (2006) para essa análise estão as

conclusões seguintes:

(i) “[...] o segredo nessas religiões é menos uma questão de ‘conteúdo’ de informações

específicas e mais de controle do acesso dos religiosos aos fragmentos dos conhecimentos

litúrgicos com os quais se pode sistematizar o corpus religioso de uma forma mais legítima”

(Silva, 2006, p. 133-134)

16
E repetimos que a nossa compreensão de segredo está estreitamente ligada à adotada por Silva.
17
Ambos os casos são estudados depois por Fernando de Tacca (TACCA, Fernando de. Imagens do
Sagrado. Unicamp & ImprensaOficial, São Paulo, 2009)
18
Essa mesma reflexão abrange a discussão em torno dos pressupostos éticos que envolvem tanto o
fazer religioso do povo do santo quanto o fazer científico dos pesquisadores envolvidos nos casos
citados. Sobre o fazer dos pesquisadores o trabalho de Silva é fundamental. Sobre o fazer do povo do
santo é o que este presente trabalho pretende analisar.

45
(ii) “[...] o segredo opera como uma estrutura de termos de significação variável que se

definem por oposição e contraste, em meio às relações de poder e concorrência existente entre

os membros dos grupos religiosos e destes entre si” (Ibid, p. 134).19

A conclusão (i) nos servirá como ponte para a análise da estrutura e natureza do segredo

no candomblé (matéria do próximo capítulo). Já a conclusão (ii) nos servirá como elemento

básico na construção do conceito de segredo que será adotado neste trabalho. Tal conceito

agrega a compreensão de Silva e inclui a compreensão do segredo como o conjunto do

patrimônio simbólico do povo do santo, que se produz e reproduz nas relações intra e extra-

terreiro.20

2. Esclarecendo a nossa proposta e desafio.

Inicialmente nossa pretensão era analisar o que chamávamos de crise da cultura do

segredo. E devemos confessar que foi preciso observarmos bem as dinâmicas do candomblé

até percebemos que não era o segredo que estava em crise. Aliás, em algumas casas

observadas ficou claro, como diremos mais adiante, que o segredo “estava muito bem

obrigado!”.21 Redirecionamos, então, nossa pesquisa, chegando à conclusão de que a

compreensão do segredo no candomblé passa necessariamente pela análise das relações de

19
Estas mesmas conclusões serão retomadas ao longo dos próximos capítulos.

20
Sobre as dinâmicas pelas quais tem passado a prática do segredo ritual no candomblé, ver também A questão
do segredo no candomblé, de Vagner Gonçalves da Silva, disponível em:
http://revistadehistoria.com.br/secao/artigos/a-questao-do-segredo-no-candomble
21
Só após o exame de qualificação, com as observações da banca examinadora, ficou claro que, na
verdade, é a autoridade daquilo que Weber chamou de “corpo sacerdotal” (WEBER, 2000) que se acha
ameaçado pelas dinâmicas de circulação paralela dos conhecimentos religiosos.

46
poder, sendo que estas se fundamentam nos sistemas de transmissão do conhecimento. Esse

conhecimento, por sua vez, é o que o povo do santo costuma chamar de “fundamentos”.

Estes fundamentos, ao serem gerenciados pela hierarquia, que aqui se confunde com o

que Weber denominou “gerontocracia”, compõe então a pedra de toque, sobre a qual se

estruturam as relações de poder no candomblé. Assim, ao tratarmos de segredos no

candomblé estaremos tratando de poder e, consequentemente , de relações de dominação e

conflito (matéria do terceiro capítulo).

Nosso desafio, então, é entender a relação existente entre transmissão do conhecimento,

hierarquia, poder e conflito, no interior desta religião. Para tanto, propomos uma análise

minuciosa tanto da natureza do segredo no candomblé quanto do seu papel como elemento

fundamental na construção, reconstrução e manutenção das estruturas de poder entre o povo

do santo.

3. Uma palavra inicial sobre o segredo no candomblé

O tema do segredo ritual no candomblé é um dos elementos predominantes neste

trabalho. Por isso, antes mesmo de procedermos com a descrição e análise da natureza do

segredo, do seu papel como mecanismo de poder e das transformações pelas quais ele vem

passando, queríamos tecer um breve comentário sobre sua natureza. Nos valeremos então, de

um conhecido livro de Reginaldo Prandi.

Além do seu livro Segredos Guardados (Prandi, 2005), outro livro do mesmo autor nos

ajuda bastante a compreendermos a natureza do segredo entre o povo do santo. Trata-se do

livro intitulado: Contos e lendas afro-brasileiras: A criação do mundo (Prandi, 2007). Nele, o

autor desenvolve uma ficção em torno da saga de uma jovem mulher africana, que, durante a

47
viagem entre a África e o Brasil, no porão do navio negreiro, tem um longo sonho, através do

qual ela entra em contato com os orixás, conhecendo assim a sua história e recebendo a

incumbência de implantar no novo continente o culto a essas divindades. Assim o autor

começa a sua narração/ficção:

Adetutu sentiu nos lábios ressequidos o sal de suas lágrimas; soluçava. No


escuro do porão apertado e fétido do navio negreiro, que se arrastava pelo
oceano na noite sem estrelas, a mulher deitada ao lado fez um esforço para
vencer o peso das correntes que as uniam e apertou o braço de Adetutu num
gesto de conforto. E de dor compartilhada pelo destino comum dos que
haviam sido caçados para ser escravos em terras estrangeiras. Adormeceu e
sonhou com seu mundo e sua gente, dos quais fora arrancada para sempre.
Sonhou com os dias em que, no templo, cuidava de seu deus Xangô, de
quem era filha e sacerdotisa devotada. O pensamento aflito de que Xangô
talvez a tivesse abandonado se desvaneceu no sonho. Teve a impressão de
ouvir, através das paredes do navio, palavras de encorajamento vindas de
Xangô no soar de um trovão. O movimento das ondas, agora suave,
embalava seus sentimentos, numa calmaria que lhe renovava as esperanças.
Procurava recuperar em suas lembranças as coisas boas que ninguém nunca
poderia lhe tirar. Seus deuses, que sua gente chamava de orixás, eram
grandes e poderosos. Também haviam sofrido e se desesperado, mas nunca
desistiram de ser felizes, realizados, eternos. Adetutu também não desistiria,
prometeu a si mesma. Afinal, não tinham lhe tirado tudo; ela tinha suas
memórias, sabia quem era, de onde vinha. Tinha orgulho de sua origem
nobre, de seus deuses, de seus ancestrais, que venerava com desvelo
sincero. Seu nome, Adetutu, significava A-Coroa-É-Paciente ou A-
Princesa-Sabe-Esperar. Ela resistiria. No sonho embalado pelo sobe e desce
das ondas, Adetutu se agarrou aos orixás, que reacendiam suas esperanças.
Juntou-se a eles no sonho, que não era mais um simples sonho, e reviveu
com fé as aventuras dos deuses na criação do mundo (...) A caminho do
cativeiro, Adetutu sonhou com a criação do mundo. (Prandi, 2007, p. 8-11)

Ao narrar para as crianças o processo da vinda de Adetutu, seu povo e os orixás, para as

Américas, através de uma linguagem que lhes facilite a compreensão, o autor prossegue com

sua narrativa na condição de narrador-onisciente que acompanha todos os passos de Adetutu

que, por sua vez, acompanha todos os passos e ações dos orixás, na deslumbrante tarefa de

criar o mundo com tudo que nele existe. A cada etapa da criação, Adetutu ganha dos orixás

uma pequena lembrancinha, na maioria das vezes fragmentos de um elemento da natureza

(terra, peixe, metais incandescentes, inhame pilado, pó de terra, noz de cola, etc.), que a

48
jovem guarda com cuidado em uma sacolinha que ganhara de Exu, como relata esta parte da

narração:

Adetutu foi transportada para o alto, e de lá viu o mundo acabado de nascer.


(...) Lá do alto ela achou tudo tão bonito que não se conteve e aplaudiu a
criação. Exu, que lhe fazia companhia, se sentiu lisonjeado pelo aplauso,
que julgou ser dirigido exclusivamente a ele. Em retribuição, deu a Adetutu
um saquinho de pano com a boca amarrada por um cordão de palha-da-
costa. “É para guardar segredos”, ele disse. Ela agradeceu e pendurou o
saquinho no pescoço. (Ibid, p. 25-26)

Esta narração foi evocada aqui, justamente pela correspondência entre a narração da

composição da sacolinha de segredos de Adetutu e a nossa compreensão em relação à

natureza do segredo no candomblé. Assim como na saga de Adetutu, o segredo no candomblé

é algo em permanente construção. E esta construção se dá na convivência entre os humanos e

os deuses, sendo que estes vão compondo com seus servidores o conteúdo da “sacolinha do

segredo”. Para se reproduzir/recriar o segredo é necessário, então, que se acompanhe a

permanente criação e recriação do mundo, levada a cabo pelos orixás todos os dias, através

dos rituais que tornam novamente presente o momento da criação, como afirma Micea Eliade

(2010).

É nessa perspectiva que enxergamos o segredo do candomblé: como uma “sacolinha

permanentemente recheada”. Realidade sempre em construção e jamais acabada

definitivamente.

No entanto, na “sacolinha do segredo” está contida toda a existência do povo do santo.

E mais uma vez Prandi (op. cit.) nos ajuda a entender isso, no seu livro sobre a criação, escrito

para as crianças, mas que também ensina muito aos adultos:

Quando se sentiu cansada, procurou junto ao trono um lugar para se


encostar. Olorum já se retirara, deixando a festa para os filhos, e Oxalá,
decerto exaurido pela dança, se aboletara num banquinho ao lado do trono,

49
completamente curvado sobre seu cajado. Ele a viu e a fez recostar a seus
pés e acariciou seus cabelos. Curioso, fez sinal para que ela abrisse o saco
de segredos e mostrasse o que havia dentro. Ela soltou o cordão que fechava
a sacolinha. Oxalá olhou dentro do saco e soprou. Ela também olhou e viu
que a sacolinha também continha o vento, as chuvas, as matas, o mar, tudo,
tudo. O universo inteiro estava lá dentro, pulsante, luminoso. Adetutu sentiu
medo. Rapidamente puxou o cordão de palha-da-costa e fechou o saco de
segredos. O grande orixá lhe sorriu, e ela, mais tranqüila, cerrou os olhos.
(Ibid. p. 110-112)

É esse “universo pulsante”, cuidadosamente guardado na sacolinha de Adetutu, que o

povo do santo pretende preservar quando insiste em manter a prática do segredo. E é o

enfraquecimento dessa pulsação que o mesmo povo do santo teme, quando vê o segredo ser

revelado aleatória e inconsequentemente. Da mesma forma, a mercantilização indiscriminada

do segredo faz com que o mesmo povo do santo se sinta meio traído, uma vez que a

preservação do segredo lhes parece uma das tarefas mais eminentes entre as quais os orixás

lhes legaram, como atesta o final da história de Adetutu, presente na ficção de Reginaldo

Prandi:

Num pequeno quarto do novo templo, mãe Conceição montou os altares dos
orixás, onde eles receberiam as oferendas dos devotos. Nos altares,
representando os deuses, foram depositados os objetos da sacolinha de
segredos, as relíquias sagradas trazidas dos sonhos de Adetutu na longa
jornada do navio negreiro através do Atlântico. Dos segredos e mistérios da
sacolinha mágica, o maior era o de sua preservação. (Ibid. p. 148)

A história de Adetutu nos ajuda a entender que o segredo no candomblé também pode

ser visto como patrimônio. Patrimônio esse que não é apenas material. E assim, seu valor está

mais ligado ao processo de sacralização do que à sua materialidade, compreensão essa que

está de acordo com o pensamento de Silva evocado anteriormente. Como veremos adiante, e

de acordo com outra abordagem (como é o caso de Johnson, 2002), a acentuação sobre este

caráter do segredo pode ser percebida historicamente até por volta da década de 1930. Depois

disso o segredo começa a assumir outras naturezas, chegando inclusive a ser influenciado

50
pelos processos de fetichização próprias do caráter de mercadoria, ao ser comercializado e

colaborar com a luta pela sobrevivência das populações negras e pobres que, em certas

situações, só dispõe desse capital para sobreviver.

Assim, com o passar do tempo, e com o desenvolvimento da religião; cessadas as

perseguições policiais e os momentos de maiores dificuldades, os segredos da religião se

metamorfoseiam, chegando, inclusive a ajudar a manter a sobrevivência do próprio povo do

santo que, em tempos de capitalismo, passam a vê-lo, inclusive, como meio de vida (e por que

não?!). No entanto, por estar ligado aos processos de transmissão do conhecimento e da

composição das hierarquias, o segredo também se torna mecanismo de poder. Como então

conciliar a comercialização do segredo, seja no âmbito da religião ou da magia (feitiço) com

as relações de poder daqueles que reivindicam a preservação das tradições e da ortodoxia?

Como viver do segredo sem dividir poder com aqueles que o compram? E como

comercializá-lo sem entrar em choque com as estruturas tradicionais da religião, que advogam

a transmissão do mesmo apenas no espaço do terreiro e da comunidade religiosa? São estas

algumas das perguntas que nortearão nossa trajetória ao longo dos capítulos seguintes.

51
Capítulo II

2. A natureza e a forma do segredo no candomblé

2.1. O fundamento dos fundamentos: as origens do segredo do candomblé

“Biri-biri bò won lójú / Ògbèri nko mo Màrìwo


Trevas cobrem seus olhos.
O não-iniciado não pode conhecer o mistério do Màrìwò”
(Os nagô e a morte, p. 21)

O segredo, nos moldes praticados até hoje no candomblé, tem suas origens mais

remotas nas culturas africanas pré-coloniais, mais especificamente, nas chamadas sociedades

secretas presentes em algumas culturas dos países que forneceram escravos para as Américas.

Estas mesmas sociedades secretas, geralmente, estavam associadas ou a confrarias religiosas

ou mágicas, ou mesmo a grupos políticos e sociais. Dessa forma, poderíamos ter tanto

sociedades de ferreiros e metalúrgicos quanto sociedades de mágicos e adivinhos. Entre essas

organizações o segredo funcionava como mecanismo de controle de acesso à confraria e ao

mesmo tempo pressuposto para a manutenção nela. Preservar o segredo era então requisito

para fazer parte da comunidade. Da mesma forma os conteúdos do segredo só eram

transmitidos de forma esotérica, progressiva e gradual. Ora, como sabemos, muitas das

instituições políticas e religiosas da África quinhentista, apesar de terem sofrido as

conseqüências, às vezes irreversíveis, do sistema de tráfico negreiro, se reestruturaram aqui no

Novo Mundo, chegando, inclusive, a sobreviverem, não obstante as novas ressignificações

que tiveram que sofrer (RAMOS, 1979). Uma dessas práticas africanas que sobreviveu em

solo americano foi justamente a prática do segredo, que, no candomblé, passaria a ter um

papel fundamental, como veremos mais detidamente no desenvolvimento deste capítulo.

No entanto, essas ditas sociedades secretas, presentes nos países africanos que

alimentaram o comércio de escravos vindo para as Américas, não morreram com o fim do

52
tráfico negreiro. Na verdade, as duas pontas que unem o segredo do candomblé às sociedades

secretas africanas estão mais próximas do que distante. Sobre isso Lisa Earl Castillo (2010),

em sua já citada tese de doutoramento, afirma:

Apter (1992), observa que, no culto aos orixás na Nigéria contemporânea,


existem restrições de acesso de saber religioso semelhantes às que comentei
aqui. Isso ressalta que a existência do segredo independe das
especificidades do contexto social do Brasil. Entretanto, parece ser
igualmente claro que o ambiente social no qual as religiões de matriz
africana se reconfiguraram no Brasil, extremamente hostil às práticas
religiosas não-cristãs, só podia ter intensificado a importância da ideia de
que elementos do conhecimento religioso deveriam circular exclusivamente
entre iniciados. (CASTILLO, 2010, p. 41)

Estudos como os de E. E. Evans-Pritchard (1937), desenvolvido entre os azande do

Sudão anglo-egípcio na década de 1920, nos põem diante das sociedades dos mágicos que

guardavam os segredos do combate à bruxaria (PRITCHARD, 1937, p. 211-224). Da África

para as Américas, vamos perceber em trabalhos como o controvertido livro de Wade Davis,

“A Serpente e o arco-íris” (1986), sociedades secretas de caráter mágico-religioso no Haiti,

fundamentadas também na prática do segredo, aqui relacionado com os rituais ligados à

produção de zumbis. Ou seja, lá e cá a prática do segredo organiza e ajuda a manter essas

sociedades e associações: intra-grupo, conferindo poder aos seus componentes e extra-grupo,

conferindo poder à sociedade secreta junto à sociedade mais ampla.

Mesmo não sendo o candomblé uma sociedade secreta – como já foi dito – nos moldes

destas organizações citadas, imaginemos que a prática do segredo presente no candomblé

deva muito à essas instituições africanas que aqui se mantiveram, até certo ponto, resistentes.

Visto nesta ótica, o fundamento dos “fundamentos” do candomblé teria sua origem ainda em

solo africano, fato também sinalizado por Johnson (2002) e Castillo (2010).

Algumas referências às sobrevivências dessas práticas e mesmo das sociedades secretas

africanas, no meio do povo do santo no Brasil, podem ser percebidas em algumas etnografias

53
pioneiras como, por exemplo, em Bastide (1989). Nesta renomada tese de doutoramento, ele

atesta a existência de sociedades secretas africanas de natureza política, no Brasil por volta de

1809. Segundo Bastide (op. Cit. p. 148), essas sociedades secretas ligadas aos nagôs, eram

chamadas de Ogboni ou Ahogbo, ou ainda Oro, e eram encarregadas de perseguirem e

punirem os criminosos. Seus líderes eram chamados de Ologbo, e Ahogbo era sua divindade.

Citando Bascom, Bastide (op. Cit.) afirma ainda que tais sociedades tinham a mesma natureza

das confrarias dos deuses e teriam continuado com o culto da Terra-Mãe, anterior ao culto dos

orixás.22 Sobre estas palavras de Bastide em As religiões africanas no Brasil, é possível

relacionar três elementos fundamentais na análise do translado do segredo da África para o

Brasil:

(i) primeiro, a ligação entre estas sociedades e os nagôs, povo que com o passar do

tempo, se sobreporia com seus elementos culturais e religiosos às demais expressões

religiosas ainda existentes aqui (como o tronco angola-congo, por exemplo). Dessa forma a

prática do segredo na forma adotada pelos candomblés jêje-nagô (mas não só por eles)

também seria uma resultante da tão conhecida hegemonia cultural jêje-nagô.23

E isso incidirá também sobre a ideia construída em torno da tão contestada “pureza jêje-

nagô”, ideia totalmente superada hoje, sendo que a conservação do segredo passará a ser

associada à pureza e ao relaxamento do segredo, como veremos mais adiante, será associada à

degeneração do culto.

22
Sobre estas sociedades Prandi (2005: 144-146), mais uma vez, nos dá valiosas pistas. Também
Joanice Santos Conceição (2011, p. 30) faz referência às mesmas sociedades ligadas ao antigo
candomblé da Barroquinha.
23
Fartamente analisada desde Nina Rodrigues (1935), passando por Édison Carneiro (1942) até J.
Lorand Matory (1990).

54
(ii) segundo, a relação entre as ditas sociedades secretas e a prática da justiça24. E como

a prática da justiça é pressuposto para a legitimação do poder, pode-se depreender que o

segredo também funciona como mecanismo de legitimação do poder, como ficará melhor

explicado no terceiro capítulo.

(iii) terceiro, a dupla natureza (político-religiosa) dessas organizações, sendo que na sua

modalidade religiosa teriam, segundo Bascom e Bastide, conservado o culto, hoje perdido, da

Terra-Mãe (Onilé?), cujo culto seria mesmo anterior ao culto dos orixás. Isso nos faz crer que

o fundamento dos “fundamentos” é bem mais remoto do que imaginamos e remontaria ao

patrimônio cultural e religioso dos povos da África Ocidental seicentista.

Diversos outros trabalhos deveras significativos também fazem referências às

sociedades secretas africanas que sobreviveram no Brasil em meio às novas configurações das

práticas sociais, políticas e religiosas dos diversos povos africanos que aqui se ambientaram,

forçados pela escravidão.

Um dos casos a serem citados é o trabalho de Teresinha Bernardo, Negras, mulheres e

mães: lembranças de Olga do Alaketu25. Aqui a autora também menciona as sociedades

femininas existentes em África, como é o caso das Geledés e Yalodês, e que, segundo alguns

autores, teriam assumido a forma de sociedades secretas. Na compreensão da autora, essas

sociedades, no Brasil, foram ressignificadas e passaram a atuar no interior do candomblé,

contribuindo na emancipação da mulher, que irá viver a matrifocalidade. Ora, nessa cadeia de

influências, dá-se um movimento conseqüente que segue a dinâmica: sociedades secretas –

24
Neste particular podemos perceber certa semelhança entre as sociedades secretas citadas por
Bascom e Bastide e as sociedades secretas abordadas por Wade Davis no Haiti. Da mesma forma há
confluência quanto à utilidade do segredo para estas organizações, uma vez que em ambos os casos as
sociedades secretas se ocupam de punir os criminosos, processo esse que deve se dá sob o manto do
segredo, imposto aos componentes da confraria. E aqui o segredo atua como mecanismo de
empoderamento, ficando assim explicitada a relação entre segredo e poder. No entanto, as diferenças
entre essas instituições são da mesma forma abundantes.
25
BERNARDO, Teresinha. Negras, mulheres e mães: lembranças de Olga do Alaketu.
EDUC/Pallas. São Paulo/Rio de Janeiro, 2003.

55
prática e conservação do segredo – matrifocalidade/poder feminino – consolidação do

candomblé.

Outros trabalhos26 fazem referência à manutenção da prática do segredo entre confrarias

religiosas católicas afro-baianas, como é o caso da Irmandade de Nossa Senhora da Boa

Morte, hoje sediada da cidade de Cachoeira, no recôncavo baiano. Dois trabalhos que

merecem ser consultados, pela sua grande relevância nessa discussão, são os trabalhos de

Acácio Sidinei Almeida dos Santos (1996), e Joanice Santos Conceição (2004; 2011). Neles

os autores recorrem constantemente à possível relação entre as práticas da Boa Morte e as

antigas sociedades secretas ligadas ao Candomblé da Barroquinha, que, posteriormente, deu

origem ao famoso e legendário Terreiro da Casa Branca (Ilê Axé Yá Nassô Oká).

Tanto Acácio Almeida (op. Cit.) como Joanice Conceição (op. Cit.) tratam dessa

questão, quando se referem às irmãs da Irmandade como “Senhoras do Segredo”. Ambos

apontam na direção de uma possível relação (apesar de admitirem a dificuldade para

confirmar tal possibilidade) entre a Irmandade e a antiga sociedade feminina Geledé. São

palavras de Almeida:

Os dados obtidos através de pesquisa não nos possibilitam confirmar uma


possível ligação entre as irmãs da Boa Morte e a sociedade secreta Geledés.
Podemos apenas afirmar que a condição de mistério que cerca a confraria, o
fato de admitirem como irmãs somente mulheres negras e as profundas
ligações estruturais existentes entre a irmandade e o candomblé abrem a
possibilidade para diversas interpretações (ALMEIDA, 1996, p. 110.).

Do que podemos depreender que a prática do segredo, oriunda das práticas societárias

africanas, pode ter resultado em um mecanismo legítimo de coesão social entre o povo do

santo no Brasil.

26
Igualmente gestados no departamento de Ciências Sociais da PUC-SP.

56
Joanice Conceição, cuja tese de doutoramento está inteiramente permeada de

referências ao segredo ritual e sua importância para os grupos que pesquisa, afirma, na

introdução que:

Quanto ao segredo, este constitui a base dos grupos pesquisados; além


disso, ele revela-se como uma forma de poder, visto que os bens simbólicos,
quando encontrados nas mãos de poucos, revestem-se desse caráter.
(CONCEIÇÃO, 2011, p. 22)

Na a literatura (assim como nas etnografias) produzida por sacerdotes e sacerdotisas do

candomblé, sejam eles acadêmicos ou não, também existem diversas referências a essas

sociedades. É o caso, por exemplo, de O Candomblé bem explicado: nações bantu, yorubá e

fon. Nesta obra que se propõe explicar, com minúcias, a natureza e funcionamento do

candomblé, os autores reservam o capítulo 18 para a apresentação das “sociedades secretas e

confrarias divinas” que, segundo eles, constituem parte do corpus do candomblé. Aqui são

apresentadas aos leitores as sociedades: Geledê, Ogboni (já citada por Bastide), Elecó,

Gonocô, sociedade dos Oxôs, dos Ajás e dos Ajés (BARROS, 2009, p. 179-181). Já o culto

dos eguns, cujas casas mais tradicionais estão alocadas na ilha de Itaparica, Bahia, é um caso

específico de como o segredo permanece vivo e atuante nas práticas religiosas afro-

brasileiras27.

Dessa forma, a obra em questão reforça as palavras de Bastide e de outros autores que

advogam a contigüidade entre as duas instituições, demonstrando que, ainda hoje, as

sociedades secretas trazidas d’África persistem no interior do candomblé através da prática do

27
Como o culto de Babá Egun não é objeto de estudo dessa pesquisa (apesar da sua muito estreita
relação com o segredo ritual), para aqueles que desejarem aprofundar seus conhecimentos, acerca da
relação desse culto com o segredo, recomendamos, entre outros, os seguintes trabalhos: BRAGA,
Júlio. Ancestralidade afro-brasileira: o culto de Babá Egun. Salvador, EDUFBA/Ianamá, 1995;
SANTOS, Juana Elbein dos. Os nagô e a morte: pàde, àsèsè e o culto égun na Bahia. Petrópolis,
Vozes, 2008. Além dos trabalhos já citados de Acácio Almeida e Joanice Conceição.

57
segredo ritual. Por isso podemos admitir a relação entre a prática do segredo no candomblé e a

ligação deste com as antigas sociedades secretas africanas. No entanto, cabem

questionamentos a respeito do nível de influências destas sobre aquela.

Outros elementos históricos e culturais também contribuíram para o engendramento da

prática do segredo, no formato que observamos hoje no candomblé. Entre eles podemos citar

a escravidão e suas imposições, assim como Johnson (2002, p. 59-76), entre outros, já havia

constatado.

Da mesma forma, ao retomarmos a história da constituição do candomblé, podemos

perceber que tanto a autonomia dos sacerdotes/sacerdotisas quanto a possível concorrência

entre estes e seus filhos-de-santo, contribuíram significativamente na elaboração da prática do

segredo. Hoje, em épocas de disputas pelo mercado religioso e mágico, o segredo se reinventa

ainda mais, se afastando gradativamente das suas remotas origens e assumindo um caráter de

mecanismo de empoderamento e moeda de troca.

2.2. O segredo da religião e a religião do segredo: como a prática do segredo organiza


o candomblé que por sua vez produz e recria o segredo

Retomando as palavras de Silva (2006, p.134) e uma das compreensões do segredo que

adotamos neste trabalho, a saber, patrimônio simbólico do povo do santo28 que se produz e

reproduz nas relações dessa população (e desta com as demais, dentro e fora do terreiro),

28
Para uma compreensão básica da noção de patrimônio recomendamos a leitura do livro de Pedro
Paulo Funari e Sandra C. A. Pelegrini: Patrimônio Histórico e Cultural (Jorge Zahar Editor, 2006). Já
para uma melhor compreensão da natureza do patrimônio religioso e cultural do povo do santo,
recomendamos o artigo de Gilberto Velho, a respeito do tombamento do Ilê Axé Yá Nassô Oká
(Terreiro da Casa Branca) em Salvador: Antropologia e patrimônio cultural. In: Revista do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº 20/1984, pp. 37-39. No mesmo livro citado de Funari é
abordado o caso exemplar do tombamento do Terreiro da Casa Branca (pp. 49-50). Da mesma forma
é recomendável a leitura dos processos de tombamento dos terreiros, como nos casos do Aché Ilê Obá,
em São Paulo, entre outros.

58
analisemos agora como essa prática do segredo permeia todas as relações do povo do santo,

no espaço e no tempo sagrados, engendrando as relações de poder e compondo as hierarquias.

O que aqui chamamos de segredo refere-se a este patrimônio do povo do santo que

inclui um diversificado conjunto de elementos simbólicos que vai desde o complexo sistema

de fórmulas rezadas, cantadas, representadas, durante os rituais ligados à religião, até o saber

fazer do ofício religioso. Todo este patrimônio está continuamente em construção e esta

construção se dá socialmente. Dessa forma, o segredo do candomblé não se apresenta em uma

forma fechada, estática, dada ou codificada. Ao que parece, esse segredo é construído

socialmente e, por isso, ele se apresenta com variadas configurações e em diversificadas

formas. Por estar em constante construção, esse mesmo segredo é engendrado pela

comunidade do terreiro, como veremos mais claramente nos depoimentos coletados entre o

povo do santo de São Paulo. Assim, de acordo com nossas observações, não existe um corpus

do segredo. Não existe um cânon.

Ou seja, como cada terreiro é um terreiro, aquilo que é considerado segredo em uma

determinada casa de candomblé pode não o ser em outra, mesmo que ambas façam parte da

mesma casa originária. Dessa forma, cada grupo elabora e preserva seus segredos de acordo

com aquilo que é negociado como o que constitui seu segredo, como atestam as palavras do

Pai Irapuã de Logun Edé:

Cada casa tem seu segredo. Cada orixá tem seu segredo. Cada axé tem seu
segredo. (...) Para mim isso é muito importante por que eu posso ter cinco
oyás, cinco oxums, mas cada um é uma energia diferente. Então isso é um
segredo na parte espiritual. (Pai Irapuã de Logun Edé).29

29
Como não houve nenhuma restrição ou oposição da parte dos entrevistados, todos os nomes que
aparecerão daqui por diante são nomes reais, sendo que optamos por identificar os interlocutores
através do nome pelo qual eram mais conhecidos ou pela sequência do nome seguido do orixá ao qual
o/a entrevistado/a pertence.

59
Percebemos que o caráter do segredo também varia de acordo com as lideranças e sua

equipe de ebômes. Em outras palavras, segredo é aquilo que o grupo convenciona chamar

assim. E como veremos mais adiante, são os babalorixás/ialorixás, auxiliados pela sua equipe

de ebômes, que dão vida e forma ao segredo. E nessa relação entre a pessoa e o segredo

desenrola-se um processo de engendramento do segredo/poder/axé que aos poucos vão lhes

caracterizando. Sobre esse caráter social do segredo, as palavras da Mãe Sylvia de Oxalá são

muito esclarecedoras; falando da forma como o fundador da casa, Pai Caio de Xangô, lidava

com o segredo, Mãe Sylvia afirma que ele tinha um jeito bem peculiar de controlar o fluxo do

conteúdo do mesmo. Ela diz:

(..) Ele era assim: “Vai fazer um ebó! Vai faz!”. “Faz isso assim, assim, assim!”
(...) Quando você pensava que sabia aí ele gritava assim: “Para com isso! Você
não sabe nada!” Mudava tudo. (Mãe Sylvia de Oxalá)

E ainda falando do processo de transição entre o fundador da casa e ela, que o sucedeu

no trono, Mãe Sylvia fala da importância que teve um certa equéde que teria se disposto a

transmitir-lhe alguns segredos da religião, fundamentais para a manutenção da casa:

Tive uma pessoa muito boa: equéde Angelina dos Santos. Ela é da casa de Becém
[Oxumarê]. Lá de Salvador. E ela passou muita coisa. Muito fundamento. Muito
segredo. Muitas cantigas. (...) Ela ficou durante dez anos fazendo as minhas festas
aqui. (..) Mas não era fazer a festa. Era o fundamento. O segredo de como fazer e
de que jeito fazer. (Ibid.)

E, apesar de não existir um cânon do segredo, esses segredos dos quais fala a Mãe

Sylvia, se referem a um conjunto de elementos que geralmente se convenciona chamar de

segredos.

60
Como é de se imaginar, no conjunto desse patrimônio simbólico e cultural do povo do

santo, parece existir uma gradação de conhecimentos e práticas tidas como “segredos”.

Entre o conjunto de elementos que geralmente se convenciona atribuir o caráter de

segredo, estão: os rituais de “feitura” e seus elementos constitutivos (raspagem, catulação,

orôs, pintura, atribuição do nome e preparação geral do iaô para o dia da saída), ebós

(composição, sequência de atos, forma de identificar o tipo de ebó do qual o consulente está

necessitado, etc.), além de alguns procedimentos ligados à magia. Da mesma forma a

performance do iaô quando possuído pelo orixá se encontra envolto em segredos não

reveláveis aos “de fora”, assim como a composição e preparação de determinados compostos

ligados ao campo dos rituais religiosos e mágicos também se rodeia de segredos. Esse é o

caso, por exemplo, da composição do adôxu (também chamado às vezes de “assunto”),

elemento cuneiforme afixado no alto da cabeça (orí) do neófito, por ocasião da sua iniciação.

Tudo isso se encontra no campo daquilo que geralmente os grupos convencionam

chamar de segredo. As fronteiras desses segredos, como já dissemos, se dilatam ou se

distendem de acordo com os agentes e grupos envolvidos, uma vez que o segredo, assim

como os iaôs, é feito e engendrado pelo grupo. Pode-se, então, comparar o movimento das

fronteiras do segredo com os movimentos cardíacos de sístole e diástole, movimentos estes

responsáveis pela manutenção da vida e pelo bom funcionamento do organismo vivo. Da

combinação entre dilatação e distensão depende a coesão do grupo que se organiza em torno

do segredo. Da mesma forma, sendo o candomblé uma espécie de organismo vivo, o segredo

funciona da mesma forma também como um sistema de controle ligado à manutenção da vida

da religião. E assim controla também as relações de poder ali estabelecidas. O equilíbrio das

práticas e relações sociais intra-grupo depende também (mais não só) da forma de circulação

daquilo que o grupo convenciona chamar de segredo, uma vez que este sistema de circulação,

como veremos, possui ambivalência.

61
Para melhor compreendermos a natureza do segredo no candomblé comecemos

retomando o que tem sido dito sobre ele na literatura especializada.

Novamente recorreremos à Bastide, agora em O Candomblé da Bahia (2001), para

compreendermos como se dá essa relação entre o segredo e o candomblé. De fato Bastide

analisou o tempo e o espaço sagrados do candomblé (BASTIDE, 2001, p. 72-111). Faltou, no

entanto, na sua análise, a percepção de que tanto o tempo quanto o espaço sagrados do

candomblé se estruturam sobre a base do segredo. Achamos inclusive, demasiado

comprometedor imaginar o candomblé sem esse elemento estruturante que é a prática do

segredo. Isso por que tanto as relações sociais como as formas de transmissão dos

conhecimentos ali, nunca prescindem do segredo ritual. Percebemos, então, que a constância

com que o povo do santo se refere ou se comporta através da prática do segredo é quase

proporcional à carência do tema nos estudos afro-brasileiros. Aspectos como a iniciação, o

transe, o uso das ervas, a festa, a morte, etc. sempre ocuparam lugares privilegiados nesses

estudos, enquanto que o segredo ritual sempre esteve em uma situação menos prestigiada

como objeto de análise.

De acordo com as observações e diálogos levados a cabo durante a nossa pesquisa,

tivemos a impressão de que no candomblé quase tudo respira segredos. Temos que admitir

que a festa também ocupa um grande espaço nas conversas e na vida do povo do santo, mas

da mesma forma o segredo medeia todas essas relações. De forma que, se é verdade que

podemos dizer que o ethos do povo do santo é a festa, por esta apresentar características de

fato social total30 entre esta população (AMARAL, 2005); da mesma forma, é verdade que,

pensar o candomblé sem levar em conta o papel da prática do segredo como elemento

estruturante, é incorrer no risco de não apreender profundamente sua natureza.

30
Sobre a noção de Fato Social Total ver: MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. In: Sociologia e
Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p. 183-314.

62
De fato, nossas observações nas casas de candomblé e dos rituais ali realizados, nos

deixou a impressão de que desde a porta principal (seja ela física ou simbólica, portão do

terreiro ou jogo de búzios) até o roncó; do Borí ao carrego despachado, é o segredo que “dá o

tom” a tudo que é realizado. Da mesma forma, quando assistimos deslumbrados a uma iaô

dançando frenética, possuída pelo seu orixá, a impressão que temos é que, na verdade, é

possuída pelo segredo que ela se encontra. As portas constantemente fechadas, os ibás

reclusos nas “casas de santo”, os potes com as águas sagradas protegidos dos olhos dos

curiosos, a reclusão dos neófitos, os convites franqueados a uns e recusados a outros, são

elementos simbólicos que definem as fronteiras impostas pelo segredo. Enxergando por este

prisma, somos levados a crer que o segredo termina sendo a alma dessa religião e o eixo de

gravitação em torno do qual tudo que se refere ao candomblé gravita. Isso ficará mais claro

adiante, com as palavras do abiã Reginaldo de Ogum:

Então eu colocaria desde a porta de entrada que seria a tronqueira de um


Exu, ou de uma Pomba Gira, logicamente do Exu que sempre toma a frente.
Ao meu ver, desde lá até o roncó, até o terreiro, passando pelo barracão,
passando pelos assentamentos que tiver no ilê da pessoa, da mãe de santo
ou do pai de santo, eu acho que tudo tem um segredo e tem o seu
fundamento. (Reginaldo de Ogum)

A festa então seria, tão somente, uma vitrine que tanto revela31 quanto re-vela32 o

conteúdo da religião. Comparando-se o candomblé a um iceberg, a festa não chegaria e

representar sua ponta, diante de tudo aquilo que a prática do segredo oculta aos “de fora”, ou

mesmo aos “de dentro” não iniciados.

Assim, a festa parece possuir também a mesma ambigüidade de sentido, fazendo assim

o “jogo do segredo”, do qual falaremos mais adiante.

31
No sentido de tornar público.
32
No sentido de velar (esconder, ocultar) novamente.

63
Ao observar um número significativo de casas de candomblé pode-se perceber que

dentro de um terreiro, aonde quer que se vá, se deparará com as fronteiras impostas pelo

segredo. Sua transgressão pode representar conseqüências tão imprevisíveis quanto funestas,

o que faz do segredo também um mecanismo regulador da coesão do grupo que gira em torno

do orixá, mas que, na verdade, é administrado pelo babalorixá ou ialorixá e sua equipe. No

entanto, esse elemento estruturante do candomblé não atua de forma totalmente difusa e

assistemática, apesar de seu conteúdo o ser.

A observação sistemática do espaço e do tempo sagrados do candomblé nos leva a

perceber que o segredo se organiza de forma estrutural e racionalmente compreensível. Essa

organização obedece a uma estrutura básica cujos pressupostos são os seguintes:

(i) Permeia todos os espaços físicos e simbólicos do terreiro (e de sua extensão como

matas, fontes naturais, encruzilhadas, mercado, cemitérios, etc.).

(ii) Estrutura-se basicamente em três esferas sócio-hierárquicas: a dos ebômes, a dos

iaôs e a dos abiãs.33

(iii) Define as fronteiras físicas e simbólicas da religião e seu espaço e tempo sagrado

(hierarquias);

(iv) Atua como mistério, revelando-se sem se revelar (adornos) ou, como diria Jonhson

(2002), “revelando a forma sem revelar o conteúdo”;

Analisemos então, detidamente, cada um desses pressupostos:

33
Outra esfera que também toca, apesar de minimamente, o conteúdo do segredo é a esfera dos
clientes, no entanto, devido à diferença da natureza da relação entre esta categoria e o terreiro, seu
papel e relação com o segredo será analisada mais detidamente no decorrer deste trabalho.

64
2.2.1 O segredo permeia todos os espaços físicos e simbólicos do terreiro

Uma simples visita a um terreiro de candomblé é suficiente para perceber o papel do

segredo na organização do espaço físico e simbólico nessa religião. Um símbolo claro dessas

fronteiras estabelecidas pelo segredo é a Casa de Exu, geralmente instalada da entrada do

terreiro. Aliás, mais adiante veremos como o orixá Exu no ajuda a compreender melhor a

relação do segredo como elemento básico situado na fronteira entre o segredo e a

comunicação.

Geralmente a Casa de Exu pode ser tanto um quarto de grande proporção, a fim de

abrigar todos os exus dos componentes da casa, quanto uma casinhola, que abriga apenas um

Exu específico ligado ao babalorixá ou à casa. Esta casa, na maioria das vezes, se encontra

fechada, inclusive à cadeado.

Esse costume de mantê-la fechada a chaves já foi passivo de muitas interpretações nos

estudos afro-brasileiros. Uma das interpretações dadas estaria ligada ao fato de se tratar de um

deus dado à peripécias, sendo então necessário mantê-lo trancado a fim de se evitar suas

traquinices rua à fora. Vejo nessa interpretação certa parcialidade.

De fato, assim como Roger Bastide (2001) analisou, no capítulo dedicado a esta

divindade, Exu preside tanto a comunicação quanto a ordem. Na nossa compreensão, ele

preside da mesma forma o segredo, e através dele a ordem, uma vez que no candomblé esta

parece se fundamentar sobre aquele. Exu é então a figura paradoxal e desconcertante que

tanto instala a desordem quanto estabelece e mantém a ordem. Sua ação ambivalente tem tudo

a ver com a natureza mesma do segredo que, no final das contas, consiste nessa relação de

interação criativa entre desordem/ordem, desorganização/organização (BALANDIER, 1997;

MORIN, 2007). Um dos informantes de Bastide deixa claro essa ligação entre Exu e o

segredo, muitas vezes associado à magia:

65
“O senhor escolheu um dos deuses mais difíceis de estudar, pois os negros
transformaram Exu e os eguns em sua arma mais poderosa, eis por que seu
culto era celebrado no maior segredo, não sendo revelado nem mesmo aos
amigos fiés os mistérios desse deus” (BASTIDE, 2001, p. 162).

Da mesma forma, Balandier (1997), ao analisar a figura de Legbara (Exu), como

elemento de desordem/ordem, não negligencia em evidenciar a grande relação entre esta

divindade e a comunicação. Aqui o segredo aparece como alter ego da comunicação, sempre

na relação de interação criativa entre um e outro, na produção de ordem:

Legba ou Eshù (...) não recebe a responsabilidade de nenhum setor do


universo, mas apenas a capacidade de dominar todas as palavras e de jogar
com todas as significações. (...). A ubiqüidade de Legba não se inscreve
somente no espaço, mas também no tempo: ele é essencialmente aliado à
adivinhação, à comunicação com o futuro, à palavra e à escrita de Fa,
senhor do destino, a ponto de os mesmo mitos tratarem tanto de um como
do outro. Com a capacidade de intervir em todos os lugares e de se fazer
comunicar, este deus da presença múltipla, do movimento e das
transgressões tem o poder de brincar com as restrições que regem a ordem
do mundo e da sociedade. (BALANDIER, 1997, p. 139-140).

Exu é então senhor tanto da comunicação como do segredo. Sua relação com Fa (Ifá)

demonstra bem sua posição limítrofe. Na verdade esse orixá representa o que há de mais

liminar na religião. E se a iniciação representa a liminaridade entre o desconhecimento e o

acesso ao conteúdo do segredo, Exu seria a liminaridade da liminaridade, uma vez que sem

ele não existe iniciação. E vivendo na fronteira ele a controla. Dessa forma, a localização da

casa de Exu, à entrada do terreiro, é estratégica. 34

Já o cadeado à porta é um lembrete de que o segredo é a fronteira. Da mesma forma o

cadeado evoca o controle, a ordem e a segurança de que a forma e o conteúdo estão

preservados. Ordem da qual Exu, paradoxalmente, é senhor. Exu então se confunde com o

34
Assim como era (e ainda o é?) na entrada das aldeias africanas.

66
segredo. Ele é o segredo. E sua ubiquidade é a própria ubiquidade do segredo. Assim, ter a

chave da casa de Exu é ter poder sobre o segredo. Atuar sobre ele.

O culto a Exu continua cercado de segredos e mistérios no candomblé. Sua casa

continua fechada aos olhos dos “de fora”. Ele se mostra então como: (i) a primeira fronteira

física do terreiro (sua casa à entrada) e (ii) primeira fronteira simbólica da religião (ao presidir

o oráculo).

Sem passar por estas fronteiras controladas por Exu não se tem acesso ao universo do

candomblé. Exu, então, é o segredo e sendo o segredo é a fronteira. Não se adentra o terreiro

ou o candomblé sem passar por ele, da mesma forma que não se sai do terreiro ou do

candomblé sem por ele passar. Ele é a soleira e o umbral.

Muitos episódios poderiam ser aqui evocados para exemplificar como ele brinca com

as fronteiras da comunicação, responsáveis pela manutenção da ordem no micro-cosmo do

candomblé. Citaremos apenas um que nos parece emblemático.

Antes mesmo de começar a minha pesquisa presenciei no Ilê Axé Funfun Oxalufã do

Pai Jean de Oxalufã, em Taboão da Serra, SP, um caso curioso envolvendo um Exu. Naquele

ano de 2008 o Pai Jean havia encomendado uma escultura de Exu de aproximadamente um

metro e meio de altura. Um dos ogãs da casa35, excelente artista tanto em ferro quanto em

madeira, produziu uma belíssima escultura de Exu que foi instalada à entrada do terreiro, à

direita de quem chegava e exatamente de frente à Casa de Exu.

Diferentemente de todos os outros Exus, que se encontravam protegidos pela porta

constantemente fechada, esta escultura foi deixada à mostra de quem quer que visitasse o

terreiro. No entanto, entre os atributos de Exu estavam presentes nesta bela escultura um par

de chifres, um tridente e um destacado falo ereto (ogó), de aproximadamente sessenta

centímetros de cumprimento por quatro de diâmetro.

35
Ogã Sérgio de Oxaguiã.

67
Ali, à vista de todos, este Exu recebeu durante algum tempo seus sacrifícios e oferendas

devidas, assim como a grande admiração ou críticas dos visitantes. Porém, certo dia chegando

à casa, percebi curioso que a escultura já não estava lá. Preferi não comentar sobre o caso e só

muito tempo depois, já durante a minha pesquisa, voltei a conversar com o Pai Jean sobre o

fato. Nos meus registros chamei o fato de “O caso do Exu escondido”. 36

Patrício: Pai Jean (...) eu percebi que a maioria das portas elas ficam
geralmente fechadas, e eu percebi também que um exu que antes se via ali
na entrada não está mais lá. E eu lembro que era um exu enorme, com
algumas características bem próprias de um exu, com todos os elementos
que um exu deve ter. E (...) um outro dia voltando à casa, eu percebi que
esse exu não estava mais lá. O senhor poderia explicar essa mudança que
houve? Tem alguma coisa a ver com o segredo? por que aquele exu passou
algum tempo ali e de repente ele foi recolhido? Ou ele não está mais lá?

Pai Jean: então meu filho, um exu é um orixá muito audacioso. Ele tem
uma presença marcante. E esse exu que você citou, ele estava muito à
vontade. Então o que acontece? Ele chamou muita atenção. Causou muita
polêmica. Por que as pessoas que adentravam a casa já batiam o olho
nesse exu e se deslumbravam. Uns criticavam outros achavam muito
bonito. Mas a respeito do recolhimento desse exu, dentro do quarto, foi
através dessa repercussão. Repercutiu muito.

Patrício: mas por que repercutiu tanto Pai Jean?

Pai Jean: repercutiu meu filho, por que as pessoas não estão acostumadas
com o natural. Por que esse exu era um exu grande, robusto, em ferro e
tinha o pênis ereto.

Patrício: que é um elemento próprio de Exu, né?

Pai Jean: com certeza. É um elemento próprio de exu. Que é a força de


exu. É a audácia de exu que está aí, né? Então as pessoas começaram a
admirar demais exu. E como a casa de candomblé é freqüentada por muitas
pessoas vieram pessoas curiosas, principalmente as mulheres e começaram
a ver a escultura de exu e via naquela forma de sonho e até de desejo.

Patrício: por causa do pênis?

Pai Jean: por causa do pênis. (...) Então as pessoas não estão ainda
acostumadas. Eu como sou um sacerdote que gosto de prosseguir, de
quebrar (...) lacunas, eu decidi colocar esse exu em frente a minha casa. Na
entrada da minha casa. Que eu achei uma escultura bonita. Uma forma
presente de exu. Então eu quis quebrar estigmas. Como eu quebro até hoje.

36
Os trechos que seguem são reproduzidos da entrevista que ele nos concedeu no dia 20/05/2010, no
barracão do terreiro.

68
Mas eu decidi guardá-lo por que repercutiu muito, demais, né? Aquela
forma audaciosa de exu. O ogó, né? O pênis ereto. Então ele existe, ele está
dentro do quarto, mas eu decidi guardá-lo por que as pessoas não estão
ainda preparadas com essa imagem (...) uma escultura muito aprimorada,
uma essência maravilhosa (...) por que (...) quando se fala de exu se fala
unicamente o quê? “Ah, o grande comunicador”, né? “O que dá
movimento ao mundo”. Mas exu ele tem uma participação muito
fundamental aos seres humanos. (...) E a respeito da grande escultura, eu
achei uma pena por que a sociedade não está preparada para essa forma
presente de exu. Né?

Este caso me parece simbólico na compreensão da atuação de Exu quando se trata de

estabelecer fronteiras. Os espaços dos terreiros, assim como a configuração das hierarquias,

geralmente seguem os ditames do segredo. Neste caso a ação pudica dos visitantes

influenciou na decisão do babalorixá de reduzir a escultura à Casa de Exu. No entanto, ele

provocou o deslocamento das opiniões pré-estabelecidas. Mas o interessante é que tudo isso

gerou uma grande movimentação tanto na casa quanto no bairro. Só se falava no Exu da casa

do Pai Jean. Isso terminou atraindo bastantes visitantes que desejavam ver a figura do grande

falo. Muitos deles que foram atraídos por tão inusitada figura terminaram ficando ligados à

casa posteriormente. Ou seja, Exu novamente brincou com a comunicação estabelecendo uma

desordem que resultou em uma nova ordem naquela casa. É assim que o segredo se produz e

reproduz, marcando presença em todos os lugares de uma casa de candomblé.

As últimas palavras do Pai Jean na entrevista revelam o resultado do rebuliço gerado

pelo Exu em questão:

“(...) eu adorei. Não vou dizer pra você que eu não gostei. Gostei meu filho!
Por que exu é isso. É audácia. É brincadeira. É comunicação, né? Eu
gostei. Gostei por que exu ficou famoso. Estava na boca dos adeptos, na
boca das pessoas que não são adeptos do candomblé... eu gostei. Por que
causa um condimento. Tem que haver movimento meu filho. (...) Eu falo
isso por que eu tinha feito uma compra né? E as pessoas vieram trazer o
produto. E essas pessoas, os entregadores, viram a escultura de exu. No
meu bairro todo repercutiu a presença desse exu. Todos comentavam, no
mercado, na padaria, na praça, da existência desse exu”.
( Pai Jean de Oxalufã)

69
Exu então é aquele que estabelece as fronteiras, e assim fazendo é também artífice das

fronteiras do poder, como atesta Balandier:

Legba atravessa com suas turbulências os territórios dos poderes. (...) traça
os limites do poder. (...) opõe sua indisciplina divina à disciplina da ordem
social e universal. Mostra que esta carrega em si, necessariamente, o
aleatório e a desordem; manifesta o que esconde por trás das aparências
tranqüilizadoras da estabilidade e da repetição. (Ibid. p. 141-142).

2.2.2. O segredo estrutura-se basicamente em três esferas sócio-hierárquicas: a dos


ebômes, a dos iaôs e a dos abiãs

A partir das nossas observações podemos perceber que o candomblé parece se estruturar

sobre as compreensões que se tem de segredo. Isso porque, nesta religião, a base de poder que

sustenta as relações (tanto no que concerne à constituição da hierarquia quanto no sistema de

reprodução e manutenção da mesma) se apóia sobre o sistema de transmissão de

conhecimento. E como já foi dito, aqui conhecimento e poder estão sempre relacionados,

como afirma Castillo: “No candomblé, o saber e o poder são entrelaçados. Para

compreender melhor a circulação e o funcionamento do saber, há de se entender também sua

relação com o sistema de poder” (2010, p. 33). Este segredo, por sua vez, se organiza em um

complexo sistema de esferas concêntricas, sendo que o fluxo de conhecimentos se dá

seguindo um movimento vetorialmente centrífugo. Temporariamente trabalharemos apenas

com três esferas específicas deste sistema, deixando para um momento posterior a análise de

outras esferas que também podem ser percebidas em uma análise acurada do funcionamento

do segredo no candomblé e que se interceccionam, em diferentes direções, com as esferas

aqui analisadas.

No entanto, pode-se alegar que, nos seus primórdios, os cultos que deram origem ao

candomblé não apresentavam esferas de segredo e que, consequentemente, o candomblé,

70
sendo uma religião iniciática de sociedade não-moderna, também não apresentaria uma

organização nesses moldes. Esclarecemos então que, quando tratamos de esferas concêntricas

do segredo no candomblé, estamos nos baseando principalmente nas observações feitas

durante a pesquisa. E de fato a observação mostra que, tal divisão sócio-hierárquica, está

presente nas relações estabelecidas entre os adeptos desta religião. Ademais, a divisão em

esferas nos parece deveras eficiente para se explicar como funciona este sistema religioso,

além de encontrar respaldo nas situações de convivência observadas nas casas de candomblé

que acompanhamos. O elemento que diferencia cada uma destas esferas é justamente o poder,

concedido e controlado através das formas tradicionais de transmissão do conhecimento

religioso.

Estas três esferas básicas do segredo são definidas pela combinação entre o tempo de

iniciação (ou ausência dela) e as obrigações rituais cumpridas pelo adepto. Explicando

melhor: cada esfera do segredo corresponde a um movimento progressivo (dessa vez

vetorialmente centrípeto) em direção a um centro de gravitação, que logo se saberá em que

consiste. Quanto mais se aproxima do centro de gravitação das esferas, mais se obtém poder e

ascende na hierarquia. Daí podermos dizer que a obtenção de conhecimentos funciona

também como um processo legítimo de empoderamento.

À medida que se vai amadurecendo em termos iniciáticos, através das “obrigações”, em

tese, se vai apreendendo partes mais significativas dos conteúdos do segredo. O ápice desse

movimento, teoricamente, se dá na cerimônia de deká, na qual se oficializa publicamente a

aquisição da senioridade iniciática. A partir daí o novo ebôme passa a fazer parte da esfera

mais profunda da estrutura do segredo, podendo inclusive reproduzi-lo. Isso também significa

uma integração do sujeito na estrutura de poder da hierarquia religiosa.

Na configuração hierárquica do candomblé, essas três esferas se apresentam articuladas

da seguinte forma

71
1ª Esfera do segredo (mais externa e, portanto, detentora de uma parcela menor dos

conteúdos do segredo): abiãs. (ver: CASTILLO, 2010, p. 33) Faz parte desta esfera os

adeptos ou simpatizantes do candomblé que o frequentam, mantém uma relação ritual com a

religião, mas que ainda não passaram pelo processo da iniciação ou “feitura”. Muitas vezes se

encontra pessoas que frequentam a religião há décadas mas que se mantém nessa condição.

Enquanto durou a minha pesquisa foram entrevistados os seguintes componentes dessa esfera:

Cibele de Obá37 (Ilê Axé Funfun Oxalufã), Reginaldo de Ogum38 (Ilê Axé Odé Ofá Omi) e

Valéria de Oxum39 (Ilê Axé Oxum)

2ª Esfera do segredo (esfera intermediária e, portanto, detentora de uma pequena

parcela dos conteúdos do segredo): iaôs. Fazem parte dessa segunda esfera todos os iniciados

que ainda não se submeteram à obrigação de sete anos e não passaram pela cerimônia da

deká. Como acontece com os abiãs, pode-se encontrar pessoas que já são iniciados há

décadas, mas que continuam na condição de iaô por não terem ainda se submetido à

cerimônia de deká (obrigação de sete anos). Durante a minha pesquisa nos terreiros de São

Paulo faziam parte dessa esfera os seguintes entrevistados: Paulo de Oxum(40(Ilê Axé Funfun

Oxalufã), Renato de Ogum41 (Aché Ilê Obá), Carla de Oxósse42 (Ilê Axé Ode Ofá Omi e

Caboclo Itayguara).

37
Que em janeiro de 2010 viria a se iniciar, passando à condição de iaô. Tive o privilégio de
acompanhar sua iniciação e descrevê-la no meu Diário de Campo (pp. 21-63).
38
Sendo que até o final da pesquisa se mantinha na mesma condição.
39
Mantendo-se na mesma condição até o final da pesquisa.
40
Este, durante o curso da pesquisa, mesmo na condição de iaô já exercia, devido à designação de
Oxalá, o cargo de Babá Jibonâ da casa, tomando sua deká em 2011, o que o levaria a fazer parte da
esfera imediatamente subseqüente.
41
Em meados da pesquisa (janeiro de 2011) Renato tomaria sua deká com a Mãe Sylvia de Oxalá,
passando a compor o quadro de ebômes daquela casa.

72
3ª Esfera do segredo (esfera mais profunda e que se presume detentora da plenitude do

segredo, assim como do direito legítimo de reproduzi-lo): ebômes e não-rodantes

confirmados (equédes e ogãs). Esta esfera constitui a esfera do poder dentro da religião e, por

sua vez, se subdivide nas seguintes categorias:

(i) Babalorixás e ialorixás. São as lideranças legítimas do candomblé. Segundo a tradição só

podem assumir este posto pelo menos sete anos após a iniciação, depois de terem passado

pela cerimônia de deká. Faziam parte dessa esfera os seguintes entrevistados na pesquisa:

Mãe Leda de Oxum (Ilê Axé Oxum), Pai Jean de Oxalufã (Ilê Axé Funfun Oxalufã), Pai Silvio

de Oxósse (Ilê Axé Odé Ofá Omi), Pai Daniel de Ogum (Aché Irê-ô), Pai Irapuã de Logun Edé

(Ilê Axé Orô Nifã Logun Edé e Omolu) e Mãe Sylvia de Oxalá (Aché Ilê Obá).

(ii) Pessoas de cargo (axogum, pejigã, iamorô, ialaxé, ialodê, iabassé, iá/babájibonã...).

Geralmente compõem a equipe auxiliar dos babalorixás ou ialorixás.43

(iii) Não-rodantes confirmados (equédes e ogãs). Muitos desses, após cerimônias apropriadas,

também ocupam a posição de pessoas de cargo44.

42
Assim como Paulo de Oxum, Carla de Oxósse também já exercia na casa do Pai Silvio de Odé, o
cargo de Mãe Pequena, por designação do próprio Odé do babalorixá.
43
A respeito da figura do babalaô (literalmente “Pai do segredo”), pode ser classificado na 3ª esfera
do segredo. Sua relevância para o povo do santo é fundamental por vários motivos, entre eles a função
que lhe é reservada de consultar o oráculo em momentos políticos de grande importância para o povo
do santo, como é o caso dos processos de sucessão das lideranças dos terreiros. Sobre ele Reginaldo
Prandi tem falado que o último grande babalaô do Brasil morreu em 2004, se referindo a Agenor
Miranda Rocha. Apesar da grande fama de Martiniano do Bomfim e outros babalaôs que viveram e
atuaram no Brasil (como nos relata Ruth Landes), nos parece que a figura do babalaô teve muito mais
importância na África do que no Brasil, como nos mostra a mitologia dos orixás. O fato é que não
caberia neste trabalho, por questão de tempo e espaço, uma análise mais substantiva dessa figura e sua
relação com o segredo, ficando para outra ocasião esta desafiadora tarefa. Para maiores informações
sobre Martiniano do Bomfim ver Braga (1995) e Castillo (2008).
44
Durante a nossa pesquisa de campo tivemos a oportunidade de assistir a um ritual de concessão de
cargo de axogum (sacrificador), concedido pela Mãe Leda de Oxum a um ogâ de Ogum na sua casa.
Isso se deu no contexto da festa de Ogum no dia 24/04/2010 e foi registrado no nosso diário de campo
nas páginas 18 a 23.

73
São os sujeitos ligados a esta terceira esfera que produzem e reproduzem os conteúdos

do segredo (conhecimentos) que, como será explicado melhor mais adiante, não são estáticos

e sim dinâmicos.

Segundo essa configuração, temos então uma estrutura circular que gravita em torno de

um núcleo e que funciona da seguinte forma:

a) Apreensão dos conteúdos do segredo: movimento centrípeto e progressivo. A

progressão se materializa nas obrigações periódicas que progridem em sentido aritmético em

intervalos de um, três, cinco e sete anos (podendo variar de acordo com a “nação” e em casos

particulares, como a prática de conceder a senioridade aos filhos de Xangô em seis anos, por

exemplo, por motivos relacionados à sua mitologia).

Cabe aqui algumas palavras a respeito dos processos de apreensão dos conteúdos do

segredo e apropriação do conhecimento religioso. Sendo o candomblé uma religião rica em

recursos simbólicos, a apreensão dos conteúdos do segredo e a apropriação do conhecimento

religioso também se submete à adequada utilização dos sentidos. E como é sabido por todos, a

apreensão desses mesmos conteúdos confunde-se com a aprendizagem que todo bom iaô deve

ter, principalmente, caso alimente o desejo de se tornar ialorixá ou babalorixá. Dessa forma,

todos aqueles que pretendem galgar os degraus hierárquicos da religião e acumular poder,

devem estar dispostos a aprimorar cada vez mais seus sentidos e sua capacidade de colocá-los

a serviço desse processo.

Como a prática do segredo permeia todo o universo do candomblé, como já foi dito,

tudo nele desafia os sentidos. Imaginemos, por exemplo, um iniciado que deseja conhecer os

segredos da culinária dos deuses. Necessariamente, teria que, além de ser um bom e paciente

observador, estar disposto a degustar diversificadas comidas, aprimorando assim o seu paladar

de tal forma que, a certa altura, fosse capaz de identificar os ingredientes de uma comida, sem

necessariamente, tê-la visto ser preparada. Da mesma forma a aprendizagem das cantigas e

74
rezas exigiria, desse iniciado imaginário, uma grande e paciente capacidade de comparecer às

cerimônias, assim como de estar com seus ouvidos sempre à espreita, a fim de captar os,

muitas vezes inaudíveis, sons emitidos pelo babalorixá. O mesmo se pode dizer a respeito dos

sacrifícios, ebós, processos divinatórios, etc.

O segredo, então, passa pelos sentidos. Isso fica bem claro nos depoimentos dos nossos

informantes.

Para presenciar as cerimônias tem que ser pessoas de dentro do culto.


Pessoas iniciadas, né? Por que? Por que as pessoas vão assim “ao
segredo”. Existe segredo no candomblé? Existe. É como eu falei pra você
meu filho: o segredo está dentro de cada pessoa. Mas pra pessoa poder
saciar, poder ser emanados por essa essência, dentro desses segredos, a
pessoa tem que ter uma preparação meu filho. Não pode ser uma pessoa
que não seja da religião para presenciar uma cerimônia, os segredos do
candomblé. Então a pessoa tem que passar pelos fundamentos para se
encaixar dentro desse... dessas cerimônias, meu filho.
(Pai Jean de Oxalufã)

Bom, na minha experiência dentro do terreiro de candomblé, eu posso te


afirmar que ele é revelado em determinados momentos, pra determinadas
pessoas, com determinados fins. Ninguém, nenhuma autoridade religiosa
vai revelar um segredo para uma pessoa que não tenha uma certa, uma
determinada confiança. Eles são revelados na vivência. É isso. Às vezes
determinadas coisas que você acha que aparentemente não é segredo está
tendo uma revelação ali naquela vivência. E eu acho que a vivência
também é muito importante para você ter a percepção da totalidade da
religião e até do segredo. Eu volto a dizer aqui das nossas formas de viver
hoje num mundo globalizado: hoje em dia você não tem mais tempo para
ficar dentro de uma roça recolhido três meses, você não tem mais tempo de
carregar um kelê três meses, você não tem mais tempo de ter uma vivência
numa forma de sociabilidade pra determinado tipo de aprendizado que é de
forma oral, que é demorado, que é uma outra temporalidade. Por que hoje em
dia a percepção do tempo é outra. O tempo passa como sempre passou desde o
início, desde os primórdios, mas a forma como você utiliza o seu tempo
hoje não te permite você ter uma vivência no candomblé como você tinha
tempos atrás.
(Renato de Ogum)

Nas palavras do Pai Jean fica clara a dependência entre revelação do segredo e o

vínculo com a religião. Da mesma forma os “fundamentos” (que em si já constituem parte do

segredo, sendo em muitos casos confundidos com ele) prepara a pessoa, tornando-a apta a

75
presenciar os rituais secretos. Já Renato, ao utilizar as expressões: “determinados momentos”,

“determinadas pessoas” e “determinados fins”, chama a atenção para as restrições que se tem

ao manejar o fluxo dos conhecimentos religiosos. Ao falar da estreita relação existente entre a

vivência no terreiro e a apreensão do segredo (conhecimento) o mesmo Renato afirma que

com o tempo o adepto adquire a capacidade e perspicácia de perceber o caráter de segredo

inerente a cada ritual. Sem essa vivência não se aprimora os sentidos, ao ponto de não se

tornar vítima dos inúmeros “truques” do segredo, uma vez que este é tão multifacetado quanto

“malandro” nos seus disfarces.

Da mesma forma, a maioria dos informantes é unânime em relação à opinião de que a

apreensão dos conhecimentos, para ser legítima, deve se submeter à regra da convivência e

assiduidade ao terreiro. As palavras de Renato de Ogum, acima citadas, demonstram bem essa

opinião. Também filho do mesmo orixá, Reginaldo corrobora a opinião de Renato:

Depende muito da vivência. Eu acho que para você aprender não basta só
ler um livro ou entrar na internet, buscar alguma coisa... Aí vai mesmo da
convivência dentro do quarto. (...) então eu acho muito importante a
vivência. (...) Eu acho que o segredo ele tem que ser aprendido mesmo é na
vivência. É você está no dia-a-dia. Ajudando ao pai de santo, desde fazer a
limpeza do banheiro, no terreiro, você varrer, você fazer a comida do
santo, lavar prato, lavar panela, então essa vivência é muito importante
para você no futuro dar valor você vai ter uma bagagem para você também
ter o conhecimento do segredo, né? E é essa vivência que vai te dar o
conhecimento do segredo. Se você não estiver lá dentro do roncó,
participando desse processo, ou mesmo fora do roncó também, no terreiro
como um todo, participando desse processo, no xirê ou então no dia-a-dia (...)
então eu acho que o segredo para ser aprendido tem que está no dia-a-dia,
por dentro do negócio, por que senão, por fora assim, você vai aprender de
uma maneira suspeita.
(Reginaldo de Ogum)

Convivência/assiduidade e aprimoramento dos sentidos funcionam então como o ponto


de apoio euclidiano, sem o qual a apreensão do segredo e a apropriação do conhecimento, em
teoria, não resultaria em sucesso. É preciso conviver. É preciso “afinar a viola”. E para afinar
a viola o diapasão mais recomendável é o cotidiano da casa de candomblé.

76
b) Transmissão dos conteúdos do segredo: movimento centrífugo e gradativo.

Imagina-se que os ebômes diretamente envolvidos na iniciação dos mais novos lhes revelam,

a cada obrigação dada, uma parcela dos conteúdos do segredo, de acordo com a

compatibilidade da obrigação e o merecimento do iaô. Apesar desse movimento nem sempre

ser tão uniforme essa é a regra considerada legítima45

Tais esferas se organizam, como se disse, em torno de um centro de gravitação. E qual

seria então esse centro? De acordo com nossas observações e com as conversas levadas a

efeito com meus interlocutores, o núcleo do segredo, em torno do qual gira o candomblé não é

nada mais do que o próprio orixá. O orixá é o segredo, assim como já foi dito a respeito de

Exu. As falas dos babalorixás indicam isso. Vejamos, por exemplo, as falas de alguns deles

quando lhes perguntei se era possível falar de um núcleo do segredo no candomblé:

Olha meu filho, o miolo, o núcleo, como eu estava falando, do segredo (...)
O núcleo, (...) o miolo ele está dentro do dirigente da casa. Ele está ali
dentro do sacerdote e da sacerdotisa. No sacerdote e na sacerdotisa (...) O
segredo ele existe em cada um, mas no momento que o sacerdote ou a
sacerdotisa, no momento em que ela é citada para ser uma mãe, um pai, o
segredo, o miolo, meu filho, ele acaba tomando uma proporção gigantesca
por que é uma responsabilidade muito grande se tomar conta de cabeças.
Cada pessoa tem um gênio. Cada pessoa tem seu pensamento. Então é
muito difícil meu filho ser um sacerdote ou uma sacerdotisa. Então, eu falo
por mim, por que eu tenho satisfação de ser que sou, que foi dada essa
participação com essas grandes essências. O sacerdote, a sacerdotisa, vai
sendo emanado no tempo que vai passando ele vai tomando uma proporção
grande por que, querendo ou não, o orixá ele não está em uma forma
divinizada de que ele está ali em cima daquela pilastra e eu só vou ali até
ele para pedir súplicas e ele tá ali. Não. O orixá, ele faz parte da família. O
orixá ele está em todos os momentos. Então... mas um sacerdote, uma
sacerdotisa ele vive, ele bebe, ele se alimenta dessas essências (...).
(Pai Jean de Oxalufã)

45
Lembramo-nos, por exemplo, do caso de uma ialorixá filha de uma das casas pesquisadas (em
período anterior à pesquisa) que vez por outra se queixava do babalorixá que lhe entronara sacerdotisa
pelo fato de este não ter realizado duas cerimônias (fundamentos) previstas na obrigação de sua deká:
a lavagem dos olhos (ritual relacionado com a concessão da vidência) e da incisão por trás da orelha
(relacionada com o aguçamento da audição), ambas relacionadas com o ato de consulta ao oráculo
(jogo de búzios) e tanto indispensáveis quanto fundamentais ao exercício do seu sacerdócio como
ialorixá.

77
Olha, o núcleo do segredo... tudo dentro do nosso culto é redondo.
(...) A nossa terra. O planeta é redondo. A nossa cabeça ela é redonda. Os
nossos olhos são redondos. A nossa boca que tem a abertura ela é redonda.
Isso quer dizer que nesse redondo existe o núcleo. Existe o centro. (...)
Existe um núcleo do segredo. Esse núcleo é o segredo de escutar e ver
quando me for permitido. E se calar e abrir nossas bocas só no momento
preciso. E demora um pouco. A nossa religião, nosso culto ela não é do
imediatismo. Ela é do surú. Ou seja, surú da língua yorubá significa: “ela é
da paciência”. Da longevidade. Da tranqüilidade. Então não precisa abrir
a boca antes do tempo. (...) Este é o segredo: surú, paciência.

(Pai Daniel de Ogum)

Contudo, localizar o centro de gravitação do segredo no candomblé não é tarefa tão fácil

quanto parece. Que o diga o próprio Clouzot. Quando em Le chevale des dieux (CLOUZOT,

1951) ele expressa sua frustração por (depois de se empenhar tanto em penetrar o “santo dos

santos” em um tradicional terreiro de candomblé de Salvador) só encontrar aquilo que

chamou de “cheiro forte”, na verdade ele revela que sua busca pelo conteúdo do segredo do

candomblé trilhou caminhos equivocados. Ou seja, ele caiu no truque dos disfarces do

segredo. O segredo estava lá. Ele é que era incapaz de decodificá-lo.

O próprio Pai Jean de Oxalufã, na entrevista que nos concedeu,46 pareceu muito seguro

em apontar o núcleo do segredo. Porém, dias antes47 havia sido bem mais prolixo a respeito

do assunto. Nesta ocasião anterior, ao passarmos uma tarde no terreiro, tivemos uma rica

conversa informal com ele. Essa mesma conversa, pelo seu teor e relevância, foi registrada no

nosso diário de campo (p. 28 e 29) posteriormente. Transcrevo abaixo, conforme está

registrado no referido diário:

[Nesta tarde do dia 20 de maio de 2010] Conversamos bastante sobre a


presença dos pesquisadores no candomblé e sobre as grandes ialorixás do
Rio, principalmente Gisèle Cossard, Mãe Meninazinha e Beata de Iemanjá.
Mas a discussão mais produtiva e rica foi quando lhe perguntei: “Pai Jean, é
possível falar de um ‘miolo do segredo’ no candomblé? Existe um núcleo

46
No dia 20/05/2010.
47
Em 13/05/2010.

78
do segredo?” Ele passou quase uma hora respondendo. Tentarei resumir sua
fala abaixo. Voltarei com essa pergunta durante a entrevista filmada. “Não.
Não existe um miolo do segredo no candomblé. E se algum babalorixá ou
ialorixá te disser que existe não acredite. É jogo. Com certeza durante essa
sua pesquisa você vai ouvir muita coisa. Vai ter pai de santo que vai criar
um clima de mistério e de segredos a fim de atrair a curiosidade. Mas não
existe miolo do segredo. Sabe por que não existe? Eu te explico: por que o
segredo quem faz é você. O segredo está dentro de você. dentro de cada
um. O segredo é aquilo que você tem dentro de você. No meio da sua
cabeça. Do seu orí.

Aqui ele já começa chamando a atenção para o poder que repousa sobre a pessoa (e ele

se refere à esfera dos ebômes) no que tange à capacidade de engendrar ou recriar o segredo;

Isso por que o segredo (orixá) é inerente à pessoa. Está dentro dela. Repousa no seu orí. E

continua:

Por exemplo, você quando nasceu trouxe dentro de você o seu segredo.
Quando fez santo você despertou e potencializou o seu segredo, com a força
do meu segredo que sou seu babalorixá e com a ajuda de cada membro do
axé. Cada pessoa tem seu segredo. Mais um exemplo: eu recolhi você e seu
irmão. Iniciei os dois juntos. São irmãos de esteira. Gêmeos univitelinos,
mas cada um tem e é um segredo. Odé Nisojí é um segredo e Ofá Berunjá é
outro segredo, assim como Obá Delejí é outro e eu sou outro. Cada orixá é
diferente do outro. Então não existe um miolo do segredo. O segredo é
aquilo que cada um tem dentro de si. No meio da cabeça. Seu segredo é
aquilo que foi plantado no seu orí. Só que depois que você desperta esse
segredo ele nunca para de crescer. Só se expande. Lógico que eu, por ser seu
babalorixá, conheço o seu segredo, apesar de você não conhecer o meu. (Diário de
Campo, página 29, anotações do dia 13/05/2010)48.

Ora, muita coisa poderia ser dita a respeito dessas palavras do Pai Jean. Desde a dupla

natureza do caráter do segredo (tanto individual quanto comunitário) até sua pré-existência

em relação ao ritual de iniciação, como reza o mito de Ajalá, o fazedor de cabeças (PRANDI,

2001, p. 470-471). No entanto, quero destacar aqui as partes em negrito na fala do pai Jean.

Quando ele diz: o segredo quem faz é você, está se referindo, a nosso ver, à legitimidade que

os ebômes têm de produzir e reproduzir o segredo. E isso nos remete ao seu poder, ou seja,

48
Grifos e negrito acrescidos.

79
assim como o orixá, o segredo é feito. Já quando ele diz que O segredo está dentro de você.

Dentro de cada um. O segredo é aquilo que você tem dentro de você. No meio da sua cabeça.

Do seu ori; e ainda, O segredo é aquilo que cada um tem dentro de si. No meio da cabeça.

Seu segredo é aquilo que foi plantado no seu orí, me parece que ele quer dizer que o segredo

é o orixá. Entendemos então que, não sendo o segredo apenas o orixá, uma vez que tanto a

forma quanto o conteúdo dos rituais também são tidos como segredo, o orixá só pode ser o

núcleo desse segredo. No entanto, sendo a esfera dos ebômes que constantemente o manipula,

nos parece que há aqui uma relação entre orixá, segredo/conhecimento, ebôme e poder. O

orixá, então, seria a fonte da qual se origina o poder da esfera dos ebômes.

Porém, esse mesmo centro de gravitação que se confunde com o orixá, também se

confunde com o ideal de pessoa humana. Ou seja, a pessoa que passou por todo o ciclo

iniciático, e que, portanto, está mais próximo dos ancestrais, representa o ideal de pessoa. Isso

o coloca em situação de simbiose com o orixá, até porque aqui a existência do orixá parece

estar condicionada à existência humana.

Dessa forma, o núcleo do segredo também reside, em última análise, na pessoa do

ebôme. Isso o faz apto a reproduzir legitimamente o segredo.

As palavras do Pai Jean oscilam então entre a negação inicial da existência de um

núcleo do segredo e a posterior admissão de que o núcleo do segredo é o próprio orixá.

Algo parecido acontece na fala de Renato de Ogum. Em suas palavras abaixo, a

existência de um núcleo do segredo inicialmente parece estranha:

Não acredito que exista um núcleo. Eu não acredito que exista esse núcleo
por que eu parto sempre da idéia de que o segredo e a experiência, e o agir
sobre o mundo eles estão juntos. Então (...) eu posso saber determinadas
fórmulas: “O yaô se faz assim e assim, pronto”. Mas, na realidade, quando
eu pego aquele orí, e olho pra ele. Ele está nas minhas mãos, eu sinto ele
pulsando, despertando uma energia ali, aquele orí está ali, naquele
momento para eu cuidar. Eu tenho a fórmula. Mas aquele orí é único. Foi
escolhido na casa de Ajalá, com determinado odú, com determinada
divindade que acompanha ele, com determinada possibilidade de ser e está

80
no mundo, naquele momento, pelo que eu aprendi na minha casa, aquele
momento é único.

Assim como na fala do Pai Jean, alguns elementos são recorrentes na fala do

entrevistado, como é o caso do orí. Isso nos leva a entender que o orí, elemento de

individualização do sujeito e de ligação com seu princípio mitológico (orixá), é indispensáveis

à explicação do segredo. Na continuação da sua fala, o orí assume presença constante:

Eu tenho a fórmula, “um iaô se faz assim”, mas naquele orí existe um
detalhe, existe um segredo. Eu olhando aquele orí eu desvendei um
segredo. Olhando para aquele orí naquele momento. Eu sei a fórmula, mas
olhando para aquele orí naquele momento da iniciação. Ali a minha
percepção, naquele orí (...) vai dizer alguma coisa pra mim. O segredo está
ali. (...) Eu posso tentar aplicar aquilo, muitas vezes passar por aquilo e
passar despercebido, “Ah, é apenas um orí, vou fazer, vou raspar”. Mas ali
existe uma coisa a mais que você tem que desvendar. Por que cada cabeça
é diferente uma da outra.

E, ao traçar comparações entre o orí e os elementos de diferenciação e singularização


da identidade do sujeito (D.N.A., íris,digital...), nosso interlocutor vai deixando claro que o
segredo do candomblé está diretamente relacionado com as estruturas mais profundas do
iniciado. A identidade da pessoa (cuja representação mitológica é o orixá pessoal) é parte
constitutiva e indispensável do segredo. Pessoa, orí e orixá, compõem então um conjunto
indissociável sob o qual repousa o segredo.

É como esmo um DNA. Ou seja, agente pode comparar, o DNA é uma


forma inteligível de eu explicar que o ser humano é único. (...) Então cada
Eu, cada orí é diferenciado, é diferente. Então pode se ter vários filhos de
Ogum, mas cada um carrega uma essência diferente. É a mesma energia
mas cada orí é único. Cada cabeça é única. É como uma digital. Eu acho
que isso já comprova que cada ser humano é único. A íris do olho (...) A
mesma coisa o orí. Cada orí sacralizado é um orí diferenciado do outro.
Existem pessoas que têm uma similaridade muito grande mas eu acho que é
ai que mora o segredo. É na experiência.
(Renato de Ogum)

Assim, mesmo inicialmente discordando da existência de um núcleo do segredo, a

centralidade dada ao Orí (ponto de encontro entre o orixá e a pessoa) revela em parte que o

81
orixá ocupa um papel central na compreensão do segredo. Novamente reaparecem as idéias, já

presentes na fala do Pai Jean, do Orí, da unicidade da pessoa e da relação entre essa unicidade

e o segredo que cada um carrega; ou seja: o orixá pessoal.

2.2.2.1. Quando segredo e poder se tocam

Na relação estabelecida entre estas esferas se percebe claramente a estreita ligação entre

transmissão do segredo, tarefa reservada à esfera dos ebômes, e atribuição de poder. E aqui

esbarramos em um dilema que, até certo ponto, nos remete a uma clássica discussão da

Sociologia em torno da relação entre as dimensões social e religiosa da vida. Quem precede

quem? Seria o poder que forja o segredo ou o segredo que forja o poder? Se considerarmos

que quem detém o segredo é também quem detém e reproduz o poder, admitiremos que o

segredo precede o poder. No entanto, parece que a hierarquia precede o segredo (uma vez

que é esta que o engendra em meio às interações sociais da vida do terreiro). Assim, o poder

parece ser anterior ao segredo. O poder parece ser controlado no mesmo movimento em que

se controla a transmissão dos conteúdos do segredo; no centro desse sistema de relações

sociais e simbólicas está o orixá. Ele aparenta ser a personificação do segredo e nele o segredo

parece encontrar sua melhor forma. Portanto, como falou o Pai Jean, são os sacerdotes e

sacerdotisas que fazem o segredo, ao “fazerem o santo” de alguém, são eles mesmos que estão

produzindo o segredo que se recria. São eles que detêm o poder legítimo de fazerem o orixá,

e, portanto, de fazerem o segredo.

Visto por esse ângulo, o orixá assume a forma de produto e resultado da prática do

segredo; consequentemente, produto e resultado da ação da hierarquia (esfera dos ebômes).

Por isso, quando aqueles que não são ainda nem resultado nem promotores do segredo (não-

iniciados, abiãs) estão diante dele (orixá-plenitude do segredo) devem evitar olhá-lo

82
diretamente (assim como se fazia aos reis africanos). Na casa da Mãe Leda de Oxum essa

reverência se dá mantendo-se os abiãs distantes do orô e curvados para baixo, com o rosto por

terra. Na casa da Mãe Sylvia de Oxalá eles podem se manter em pé e assistir o orô, mas só

tomam parte na promoção do segredo (cortar) aqueles que já ultrapassaram as fronteiras da

terceira esfera do segredo (ebômes). Sendo assim, mesmo vendo o orô (reprodução do

segredo) as fronteiras do segredo continuam claras e o locus do poder inconfundivelmente

definido. Ainda no Aché Ilê Obá da Mãe Sylvia, quando o Oxalufã da ialorixá está em terra só

os ebômes podem vê-lo de frente. Iaôs e abiâs devem se manter prostrados com o rosto em

terra até esta divindade se retirar. Assim, o gesto corporal e desvio visual presentes na casa da

Mãe Leda na hora do orô, aqui são percebidos na hora do rum de Oxalufã. Ora, tanto quando

o orixá “come” (orô), quanto quando o orixá dança (“toma rum”), é a recriação do segredo

que está sendo representada e desempenhada. Assim, lá e cá, as performances corporais da

primeira e segunda esferas do segredo, revelam a reverência dos mais novos e as prerrogativas

dos mais velhos no contexto dos rituais.

Já na casa do Pai Jean, assim como na casa do Pai Silvio e da Mãe Leda, quando

acontece de o orixá dos líderes vir em terra, todos os seus filhos de santo entram em transe.

Tais fenômenos corroboram as palavras do Pai Jean quando diz: “Lógico que eu, por ser seu

babalorixá, conheço o seu segredo, apesar de você não conhecer o meu”. É o mesmo que

dizer: “o babalorixá pode fazer/ver o orixá do iaô, mas este deve evitar ver o orixá do

babalorixá”. Mais uma das regras impostas pelo segredo que possui sua lógica no jogo do

poder. Ainda sobre os loci do segredo e do poder, assim como as fronteiras impostas pelo

segredo, cabe analisar o transe produzido compulsoriamente no exato momento da realização

do fundamento.

83
Na casa do Pai Jean, por exemplo, durante o orô, o transe se impõe aos rodantes49

presentes (iniciados ou não) exatamente no momento em que a lâmina rompe a jugular do

animal propiciatório.

E caso alguém não caia no transe nesse momento, o que é muito raro, no momento

exato em que o babalorixá vai ministrar o ejé50 na boca do orixá que recebe a obrigação, este

alguém mergulha no transe antes que suas retinas presenciem o ato. Da mesma forma, ao

preparar o adôxu, basta o som do pilão manipulado pelo babalorixá, para que o transe se

produza nos iaôs. Ou seja, o segredo impõe suas regras. Só se dá a conhecer quando quer.

Trata-se claramente de uma fronteira simbólica imposta pelo segredo mesmo no espaço mais

interno do terreiro e entre aqueles que participam diretamente dos círculos internos do

segredo. Novamente aqui se percebe as três esferas do segredo, que no momento do ritual

também constituem três esferas do poder.

Com esta breve exposição da estrutura do segredo, queremos dizer que conhecer o

segredo (e mergulhar nele através das etapas iniciáticas), é ao mesmo tempo, conhecer o orixá

pessoal. E sendo o orixá pessoal o arquétipo mítico da pessoa, conhecê-lo é conhecer a si

mesmo; ou seja, o segredo é, simultaneamente, a forma e o conteúdo do conhecimento do

orixá pessoal e de si mesmo. Daí se compreende que as pessoas que mais conhecem o segredo

do orixá, e portanto de si mesmas (ebômis), são quem têm o poder de fazer, refazer e

desfazer51 o segredo. E só elas estão autorizadas legitimamente a fazê-lo.52

49
Adeptos propensos ao transe do orixá.
50
Sangue resultado do sacrifício.

51
Se para nós já está claro a natureza do “fazer” e “refazer” o segredo, cabe esclarecer que quando nos
referimos ao “desfazer o segredo” estamos nos referindo às cerimônias mortuárias que incluem um
complexo conjunto de rituais que, em tese, teria o objetivo de desfazer os laços do sujeito falecido
com o ayê, libertando-o assim do mundo dos vivos, a fim de retornar ao mundo dos ancestrais (Orum),
como descreve Juana Elbein dos Santos no seu clássico trabalho Os Nagô e a Morte (2008) e Prandi,
em Segredos guardados (2005). Da mesma forma, o “desfazer o segredo” também pode ser
relacionado às práticas mágicas que envolvem feitiços e que para serem neutralizados carecem ser
84
Banalizar o segredo seria então banalizar a própria existência divina e humana.

Preservá-lo, pelo contrário, seria consequentemente, preservar a divindade e a pessoa, nas

suas estruturas mais complexas e sagradas. Dessa forma, os “segredos guardados” do

candomblé, longe de serem “segredos de polichinelo”53 ou de se reduzirem a um “cheiro

forte” (CLOUZOT, 1951), constituem (no seu conjunto, interação e compreensão) um dos

elementos que dão sentido à existência humana para povo do santo. Existência essa que é

constantemente significada pela iniciação e posteriores “obrigações”. Esse mesmo segredo se

constrói na relação entre a pessoa, sua comunidade (terreiro) e os orixás, assim como o

próprio Prandi já havia sinalizado no seu livro Contos e lendas afro-brasileiras: a criação do

mundo (PRANDI, 2007).

Somos, então, levados a concluir que o centro de gravitação do segredo no candomblé é

o próprio orixá. E qualquer busca em outras direções resultará frustrante e estéril. Disso

também se depreende que a natureza do segredo corresponde à natureza do orixá, e, em última

análise, à natureza humana. Não existe então uma forma fixa do segredo. Perde tempo quem

se dedica a uma busca do cânon, ou de um corpus do segredo. O segredo é mais um

patrimônio simbólico do grupo do que um conjunto de conteúdos passível de codificação ou

sistematização.

“desfeitos”. Sobre a relação entre os feitiços e o segredo ver a resenha de Brian Brazeal (2005) já
citada anteriormente.

52
Conforme um antigo adágio do candomblé que diz: “ninguém pode oferecer a outro aquilo que
nunca recebeu”.
53
Como em algumas situações pode parecer.

85
2.2.3. O segredo define as fronteiras físicas e simbólicas da religião

Lembro-me que a primeira vez que estive no terreiro da Casa Branca (Ilê Axé Yá Nassô

Oká) em Salvador, tida por muitos como o primeiro terreiro de candomblé, fomos

recepcionados por uma senhora já em idade avançada que, aparentemente desapegada à

imposição da discrição com os visitantes, foi nos conduzindo escada acima, a fim de nos levar

para conhecer as dependências da casa. De repente, do interior da cozinha veio uma voz de

repreensão àquela que nos apresentava a casa que dizia em tom de represália: “-Fulana (não

lembro o nome da senhora) você está levando quem pra onde?” Só muito tempo depois de

nos apresentarmos e explicar nossas desinteressadas pretensões ali (e se tratava simplesmente

de conhecer o barracão da casa), e depois de esperarmos aproximadamente quinze minutos,

tivemos o privilégio de conhecer o barracão daquele famoso terreiro.

A frase da ebôme da Casa Branca (que depois soubemos se tratar de Mãe Ojicutu), por

ocasião da nossa primeira visita àquele terreiro, reflete perfeitamente o papel do segredo

como delimitador de fronteiras: “ – Você está levando quem pra onde?”.

Ao que nos parece, no candomblé as fronteiras físicas e simbólicas são definidas pelo

segredo. E, assim como os medievais já diziam: Audi, vide, tace si vis vivere in pace, no

candomblé o melhor a fazer é ouvir, ver e calar. Nas palavras da Mãe Sylvia, a regra é: “Não

falar nada demais e de nada demais”. A propósito, essa mesma frase nos foi apresentada pela

Mãe Sylvia em francês, o que aumentava ainda mais a atmosfera de código cifrado, no

contexto daquela conversa.

Dessa forma, o próprio espaço físico e simbólico do terreiro se organiza de acordo com

a prática do segredo. Nem todos podem ter acesso a todas as partes da casa. Sempre fechadas

aos curiosos, sejam eles “de dentro” ou “de fora”, as portas das casas de santo são categóricas

na mensagem que querem transmitir: portas fechadas guardam segredos aos quais só alguns

devem ter acesso. Da mesma forma o acesso aos rituais (e em alguns casos até às festas

86
públicas) é franqueado a alguns enquanto são vetados, ou negados, a outros. Nós mesmos,

durante a pesquisa, por várias ocasiões, ficamos sabendo de festas que aconteceram, muitas

vezes em um dia anterior à nossa visita ao terreiro, para as quais não fomos convidados e que,

em alguns, casos, nem constavam da programação anual da casa, divulgada no calendário

oficial.

Até mesmo algumas peculiaridades da arquitetura de boa parte dos terreiros parecem

obedecer à lógica da manutenção do segredo. Tal divisão arquitetural possuiria uma ligação

com o cuidado que se deve ter com a preservação dos “fundamentos”?

Da mesma forma, as interações entre pessoas ligadas aos diferentes graus hierárquicos,

às vezes, também parecem ser delimitadas por essa regra. Um bom momento de se perceber

os diferentes níveis e esferas do segredo, além dos vários já citados, é a hora da refeição.

Ebômes, equédes e ogâs comem em mesas. Iaôs e abiãs comem no chão. Seria essa etiqueta

apenas referente à hierarquia ou trata-se de um cuidado em relação às possíveis conversas que

entre eles poderiam se estabelecer? Uma “brecha” nessa configuração se dá quando são os

iaôs que servem à mesa dos ebômes. Quando isso acontece (e geralmente são iaôs muito

astutos que conseguem tal proeza) pode-se perceber clara, e quase que escandalosamente,

seus sentidos aguçados para “pescar” qualquer informação que lhe seja útil futuramente.

Pode-se mesmo dizer que dificilmente um iaô “ronda” despretensiosamente um grupo de

ebômes que conversam. Isso faz com que os ebômes fiquem sempre “espertos” quando

conversam e um iaô se aproxima.

Quando o iaô em questão consegue pescar algo, em muitos casos, a matéria adquirida

torna-se conteúdo de uma boa conversa socializadora na cozinha de santo, território comum

aos mais novos.54

54
E aqui percebe-se, na forma mais aprimorada, a prática do “fuxico” ou fofoca (também chamada por
alguns de “olofofô” ou “mavula”), costume muito comum no candomblé, eleita por Johnson (2002),
como um dos elementos constitutivos das formas de sociabilidade do povo do santo. Para uma análise
87
No entanto, como “macaco velho não põe a mão em cumbuca”, sempre que isso

acontece os ebômes em questão suspendem sua conversa até o serviçal se afastar, momento

no qual, para a frustração do iaô que se julgava muito esperto, a conversa é retomada.

A composição das rodas no xirê também evidencia as esferas do segredo, as posições

hierárquicas e a detenção do poder. Na roda de dentro (e portanto mais junto ao ariaxé, poste

central do qual emana o axé dos orixás) ficam os ebômes, portando nas mãos e nas roupas as

insígnias que demonstram sua estreita relação com o poder e com os conteúdos do segredo.55

Na roda de fora ficam os iaôs e abiãs que, na escassez de distintivos, denunciam seu pouco

poder e sua distância em relação aos conhecimentos guardado pelos mais velhos. Pés calçados

ou descalços também podem evocar a diferença hierárquica.

Durante as bênçãos, rituais secretos, etc. o direito a manter-se de pé ou sentar-se em

uma cadeira cabe aos mais velhos ou pessoas de cargo na hierarquia. Aos abiâs e iaôs cabe a

imposição de manterem-se sentados ou agachados sobre o chão nu, ou em algumas situações

específicas sobre uma simples esteira de fibras vegetais.

Aos mais velhos o direito de andar erguido e falar com os demais olhando-os nos olhos.

Àqueles que ainda não tomaram deká, o andar encurvado e o olhar fugidio.

Orixá que se movimenta livremente pela casa, que abre os olhos e que conversa (nem

sempre em ioruba) com os mais velhos é orixá de ebôme. Orixá parado no mesmo lugar, de

olhos fechados e esperando a hora de tomar rum (dançar) ou ser “desvirado” é orixá de iaô.

Ser ebôme significa então possuir a dignidade perante o grupo. Ora, essa dignidade só

se adquire ao adquirir a senioridade (tomar deká). Como a cerimônia de deká representa a

posse do segredo e a legitimação do poder, podemos inferir que a apreensão do segredo

mais profunda do papel do fuxico no candomblé ver: BRAGA, Júlio. Fuxico de candomblé. Feira de
Santana: Editora UEFS, 1998.
55
Item que será analisado mais detalhadamente adiante quando tratarmos dos adornos.

88
(conhecimento profundo do orixá) representa também a posse da dignidade. O olhar altivo de

um ebôme, quando comparado ao olhar fugidio do iaô, demonstra a força que o segredo tem

de interferir, tanto nas fronteiras físicas e simbólicas da religião quanto na postura do corpo e

do comportamento do adepto.

O percurso realizado entre a situação de abiâ e a de ebôme dá-se então na mesma lógica

apontada por Van Gennep no seu clássico Os ritos de passagem (GENNEP, 1960), quando

diz que todo rito de passagem implica uma sequência tripartite de estados: separação, margem

e agregação. A situação de separação começaria com a condição de abiâ. A margem, ou

liminaridade, como prefere Victor Turner (TURNER, 1967 e 1974), se daria na fase de iaô e a

agregação teria efeito com a situação de ebôme. Neste momento, o novo ebôme também é

agregado à esfera do poder.

2.2.4. Atua como mistério, revelando-se sem se revelar

2.2.4.1. O jogo das aparências

É próprio do segredo do candomblé a capacidade de se disfarçar e assumir

diversificadas formas. Isso faz parte de suas regras. E aqui podemos mesmo falar de uma

“malandragem do segredo”, que possivelmente tenha sido reforçada na época da perseguição

policial ao candomblé, como afirma Castillo (2010, p. 33).

Como já foi dito, tanto para reconhecê-lo quanto para apreendê-lo requer uma aguçada

capacidade de observação, assim como um grande refinamento e treino dos sentidos. Até por

que não existe uma forma definida e fechada do segredo nem mesmo entre o povo do santo. E

ignorar isso, no contexto de um estudo acerca do candomblé, pode resultar em conclusões

equivocadas ou, no mínimo, precipitadas, como é o caso do que aconteceu com Clouzot

(1951) e Johnson (2002). Aquele, ao afirmar que o segredo do roncó se resumia a um cheiro

89
forte.56 Este, reduzindo o sentido do segredo à relação que se estabelece com a moeda,

deixando assim de existir no ato da revelação. Tanto a um quanto ao outro faltou o treino dos

sentidos e a perspicácia suficientes para não se deixarem cair nos truques que o segredo impõe

aos desavisados, assim como Exu faz com os distraídos e displicentes.

No entanto, o segredo também seduz. E, para tanto, ele tem seus truques; tendo o povo

do santo, e principalmente a esfera dos ebômes, como seus cúmplices na tarefa de se revelar

sem se revelar, o segredo age, por vezes, combinado a outras estratégias próprias do universo

afro-brasileiro, como atesta Muniz Sodré (1988). Este autor analisa o segredo e a luta como

estratégias da cultura negra, ao fazer frente à cultura ocidental em um movimento de auto-

afirmação e legitimação.

Tais estratégias remontam mesmo ao período de escravidão quando os negros careciam

de formas de resistência que lhes garantissem a sobrevivência e, em alguns casos, a liberdade.

Trabalhos como os de Johnson (2002), Castillo (2005) e Sodré (1988), além de muitos outros,

atestam essa relação.

O segredo, como prática, seria então umas dessas estratégias aprimoradas em meio ao

suor e sangue provocados pelo sofrimento da escravidão. E, ainda em consonância com

Sodré, os momentos de lazer (“brincadeiras de negros”) permitidos pelos senhores de

escravos, funcionavam como lócus de engendramento de estratégias que, posteriormente,

56
Quanto ao “cheiro forte” ao qual Clouzot se refere, imaginamos se tratar do cheiro característico dos
roncós e pejis, do qual Vagner Gonçalves da Silva fala, no seu O Antropólogo e sua magia (Silva,
2006: 68, nota 46) ao explicar uma expressão utilizada pelo antropólogo Roberto Motta. Sobre tal
cheiro Silva esclarece na nota explicativa: “O sangue dos animais, símbolo importante, também deve
ser aspergido nos ibás tornando visível a realização dos sacrifícios. Alguns dias após a realização
desses, as carnes e os outros alimentos ofertados são despachados em locais fora do terreiro. Os pejis
do candomblé, por esse motivo, têm um cheiro característico que com o tempo passa a fazer parte da
memória olfativa dos adeptos da religião e dos pesquisadores. Um pai de santo disse que a magia do
peji consiste exatamente nesses ‘cheiros’ combinados de sangue, álcool, velas, flores, etc.”. É aqui
que Clouzot confunde um dos produtos do segredo com o próprio segredo. Talvez por possuir pouco
tempo de convivência com o ambiente do candomblé. O que é de certa forma compreensível.

90
seriam protegidas pelo segredo. O disfarce então passa a atuar como parte da forma do

segredo, uma vez que:

(...) nesse espaço permitido, por que inofensivo dentro da perspectiva


branca, os negros reviviam clandestinamente os ritos, cultuavam deuses e
retomavam a linha do relacionamento comunitário. (SODRÉ, 1988, p. 123-
124)

E continua:

Já se evidencia aí a estratégia africana de jogar com as ambigüidades do


sistema, de agir nos interstícios da coerência ideológica. (Ibid.).

É essa ambigüidade ideológica que pode ser percebida na estratégia do segredo em

assumir muitas formas, dificultando assim o trabalho daqueles que se arriscam em analisar a

sua natureza e sentido.

Essa forma de se apresentar ora como de fato é, ora de forma disfarçada, faz da prática

do segredo uma espécie de cultura da aparência, na forma que Sodré apresentou no já

referido trabalho. Em nosso trabalho, assim como em Sodré, a palavra aparência não se

submete à semântica imposta pelas conotações pejorativas que historicamente terminou

assumindo. Trata-se do mesmo sentido adotado por Sodré quando fala que:

Diferentemente do que o ocidente busca em seu modo de relacionamento


com o real – uma verdade universal e profunda -, a cultura negra é uma
cultura das aparências. Esta palavra ganhou no ocidente um significado
quase tão pejorativo quanto boçal no Brasil. (Ibid. p. 133-134)

Dessa forma, o segredo joga também com as aparências. Isso fica mais do que claro nos

depoimentos dos nossos interlocutores na pesquisa, como atestam as palavras já citadas da

ialorixá do Aché Ilê Obá e de seu filho de santo, cuja fala segue abaixo:

91
Existe exceção à regra. (...) Até por que o candomblé joga um outro jogo.
Às vezes a exceção vira regra. (...) Não é um jogo maniqueísta. O jogo bem
e mal. O certo e o errado, que está sempre ali. [Não] é um axioma, direto:
“É assim!”. Não. No candomblé não. Ele joga um outro jogo. Ele seduz
com o segredo. Ele seduz com o feitiço. Ele seduz até com a transmissão do
segredo. (...) Eu acho que a própria figura de Exu representa bem o que
estas religiões fazem hoje em dia, com esse moderno, com essa
modernidade.
(Renato de Ogum)

E esse “outro jogo” do qual fala o ebôme citado acima, é justamente os disfarces

assumidos pelo segredo. Disfarces que visam também à sedução. Estratégia bem afro-

brasileira. E tão eficaz que chega mesmo a confundir espertos observadores, chegando ao

ponto de passar uma idéia de inexistência do segredo, como o próprio Renato insinua:

(...) Claro que agora minha fala pode dizer: “então se não há fórmula não
há segredo”. É uma contradição. Pode ser que o segredo seja um vazio.
Que engendre uma prática. Pode ser. Seria um falso vazio. Mas eu acredito
que... eu acredito que em determinadas vezes ele é um vazio. (Idem)

Mas depois volta atrás:

(...) Ele tem uma forma e tem um conteúdo. Que é aparente. Mas que é
necessária. (...) em determinados momentos ele é um vazio e em outros
determinados momentos não. Ele existe sim o segredo. Ele existe. (Ibid).

Assim como Exu, o segredo também tem suas peripécias. Como Simmel (1977), falava

da relação entre a mentira e a falsidade, ao lado do segredo, no processo de socialização,

Renato também admite que o disfarce e a aparência podem ocultar o conteúdo do segredo:

(...) como o diálogo nessa religião é também um encantamento, nesse


encantamento eu posso fazer uma falsa aparência do segredo. Aquele que
não conhece fica ali, em um primeiro momento, pode achar que eu estou
revelando um segredo. (...) É claro que eu posso simular. Agente sabe
disso, que existe tanta simulação. (Ibid.).

92
Essa aparência, no entanto, longe de constituir uma mentira, faz o papel, como afirma

Renato, de elemento de sedução. O disfarce a serviço da sedução. Isso é relacional. Mesmo

confundindo, as aparências estabelecem relação. Mais uma vez, a questão da ligação entre

segredo e coesão social.

É Sodré (op. Cit.) novamente que nos ajuda a compreender melhor o papel da aparência

assumida pelo segredo:

Claro, as aparências enganam, como atesta o provérbio. Mas só o fazem por que
tem o vigor de aparecer, a força de dissimulação e de ilusão, que é um dos muitos
caminhos em que se desloca o ser humano. Aparência não implicará aqui, no
entanto, em facilidade ou na simples aparência que uma coisa dá. O termo valerá
como indicação da possibilidade de uma outra perspectiva de cultura, de uma
recusa do valor universalista de verdade que o ocidente atribui a seu próprio modo
de relacionamento com o real, a seus regimes de veridificação (...). As aparências
não se referem, portanto, a um espaço voltado para a expansão, para a continuidade
acumulativa, para a linearidade irreversível, mas à hipótese de um espaço curvo,
que comporte operações de reversibilização, isto é, de retorno simbólico, de
reciprocidade na troca, de possibilidades de respostas (SODRÉ, (op. Cit.)1988, p.
135-136)

É assim que o segredo lida com as aparências. Aparências que não significam

necessariamente falsidade quanto ao seu conteúdo. Pelo contrário: as aparências fazem o jogo

de exibirem, e ao mesmo tempo, disfarçarem o conteúdo do segredo, como veremos mais

adiante ao tratarmos dos adornos. E qualquer um que se propuser o desafio de entender o

segredo, terá que se submeter às regras do jogo. Nas palavras de Sodré: “Entrar no segredo de

alguém é entrar na regra – de um jogo”. Simmel já havia falado quase a mesma coisa (1977,

p. 357-358) quando afirmava que, nas relações pessoais, o nível de conhecimento que uma

pessoa tem a respeito da outra define o poder que terá sobre ela. Cabe, no entanto, esclarecer

que, em muitos casos, só a aparência do segredo já é suficiente para manter a coesão entre as

partes, sem que, necessariamente, o conteúdo de fato seja revelado. O importante é “conhecer

as regras”.

93
Afirma Sodré:

A tensão é mantida viva em todo o grupo, graças à aparência do segredo,


exibida tanto através de sinais de ritos secretos quanto através de
ritualização pública (por exemplo, as “festas” de terreiro) das vicissitudes
míticas dos orixás ou de ancestrais. A própria dinâmica do segredo
estrutura as relações no interior do grupo.57 (Ibid. p. 139)

Mas se engana quem acha que, ao conhecer a regra, terá conhecido o segredo. Qualquer

pesquisador do segredo no candomblé terá como certo que conhecer a regra não significa

necessariamente ter conhecido o segredo. Mais uma vez o caso de Clouzot parece

emblemático. Ele conhecia a regra. No entanto, parece nunca ter conhecido o segredo. Isso

porque:

Conhecer a regra, entretanto, não implica em acabar com o segredo. A idéia


corrente nas sociedades modernas é de que, em todo segredo, o fundamental
é o que se esconde. (...) No auô, no segredo nagô, não há nada a ser dito que
possa acabar com o mistério, daí a sua força. O segredo não existe para
depois da revelação, se reduzir a um conteúdo (lingüístico) de informação.
O segredo é uma dinâmica de comunicação, de redistribuição de axé, de
existência e vigor das regras do jogo cósmico. Elas circulam como tal,
como auô, sem serem “reveladas”, porque dispensam a hipótese de que a
Verdade existe e de que deve ser trazida à luz. (Ibid. p. 142-143).

Apesar de terem sido escritas uma década antes, as palavras de Sodré parecem ter sido

direcionadas a Johnson. Segundo este, o segredo do candomblé só existe para ser revelado e,

ao sê-lo, deixa de existir, como afirma Monique Augras a respeito da quizila, como veremos

no próximo capítulo. Tal interpretação, além de revelar uma compreensão limitada da

natureza e sentido do segredo no candomblé, ainda aponta para uma possível vítima do jogo

das aparências impostas pelo segredo e cujo conhecimento das regras é fundamental para

entendê-lo. Talvez faltasse a Johnson um conhecimento mais aprofundado das regras e

57
Grifos nossos.

94
estratégias do segredo. Conhecimento esse que, como repetem tanto os nossos interlocutores,

só é possível adquirir na vivência do terreiro. Vivência esta que faltava a Johnson, como

afirma Brian Brazeal (2005).

2.2.4.2. Os adornos

Não foi à toa que Simmel (1977) acrescentou, à sua análise do segredo e da sociedade

secreta, uma digressão a respeito do adorno. Como uma espécie de jóia incrustada no corpo da

sua teoria do segredo, Simmel teve uma acertada intuição ao apresentar a função do adorno

como forma de exteriorizar o íntimo segredo humano. Aqui o adorno atuaria como um

mecanismo que amplia a esfera do indivíduo, criando assim uma esfera relacional entre o

sujeito que possui o adorno e aquele que não o tem.

No candomblé, religião na qual os recursos simbólicos são abundantes, ocorre uma

constante apelação aos sentidos. Assim, os adornos também desempenham um grande papel.

Para se ter uma ideia, através dos adornos utilizados por uma pessoa é possível inferir, por

exemplo, a que divindade pertence, se essa divindade é masculina ou feminina, se a pessoa é

iniciada ou não, se já adquiriu a senioridade iniciática ou não, a que “nação” pertence, se

exerce algum cargo sacerdotal, etc. Assim, através dos adornos é possível saber a que esfera

do segredo (abiâ, iaô ou ebôme) a pessoa pertence. Como a apreensão do segredo (ou a

apropriação do capital simbólico e religioso do grupo) obedece a um movimento progressivo,

que vai da margem para o centro, em direção ao centro de gravitação do segredo (cuja

personificação já afirmamos ser o próprio orixá), a configuração dos adornos, assim como as

performances corporais e os direitos e privilégios rituais, vão se modificando de acordo com a

95
etapa iniciática na qual a pessoa se encontra. Essa modificação, grosso modo, obedece à

seguinte ordem:58

Etapa Adornos Performances Direitos/privilégios


iniciática corporais rituais
(Esferas do
segredo)
Pouco Menos Extremamente
volumosos e de impositivas e limitados
Abiâ confecção simples relativamente
simples
Mais Mais Consideravelmente
volumosos e de impositivas e poucos e rigorosamente
Iaô confecção relativamente controlados
relativamente complexas
complexa
Densos e de Menos Concedidos em
confecção impositivas, plenitude
Ebômi altamente complexa consideravelmente
complexas

Uma das primeiras observações que podemos fazer, ao observar o quadro acima, é que

entre a condição de abiã e a de ebôme os adornos (assim como as performances corporais e os

privilégios rituais) oscilam entre o pouco e o grande volume e entre a simplicidade e a

complexidade da confecção. Da mesma forma a natureza impositiva das performances vão se

complexificando à medida que a idade iniciática vai avançando.

Um bom exemplo a ser lembrado é a fato do orixá incorporado na pessoa ter a

autonomia de abrir os olhos, ou mesmo de se comunicar com alguém da casa em rituais

públicos - uma performance aparentemente simples, mas que carrega um grande significado

58
Como é de se imaginar, o quadro que segue está baseado no que se observa nas casas de candomblé
pesquisadas. Outras configurações da utilização dos adornos podem ser percebidas em outras casas,
uma vez que “cada casa é uma casa”, como costuma repetir o povo do santo. Porém, a configuração
apresentada a seguir pode ser observada em um considerável número de terreiros.

96
dentro do candomblé. Na maioria das casas, orixá de iaô de olhos abertos é tido como ekê

(falso transe, marmotagem), orixá de ebôme de olhos abertos é tido como direito adquirido.

Assim, ao olharmos para os adornos exibidos por um adepto do candomblé podemos

inferir, aproximativamente, o grau de apreensão que ele possui dos conteúdos do segredo,

assim como sua posição na hierarquia e nas esferas do poder. Tais adornos vão desde as

roupas (ebômes usam richelieu, iaô usa lésse) até as jóias como anéis de búzios etc., passando

pelos tipos de tecidos, formas de costuras, pulseiras e braceletes, fios-de-contas, panos de

cabeça, ojás, etc. etc. etc. Assim, mesmo em uma situação informal na qual ebômes, iaôs e

abiãs conversem descontraidamente, é possível visualizar, de forma bem definida, as três

esferas do segredo através dos seus adornos.

Perguntamos em uma das entrevistas, durante a nossa pesquisa, para um abiâ, sobre o

uso dos fios-de-contas. Sobre sua importância e significado. Sua resposta foi:

Às vezes não é só um fio que você carrega no pescoço, ou vários fios que
vai dizer a sua responsabilidade ou não. Cada fio daquele tem um peso e
uma responsabilidade a ser seguida. E assim, é também com o
conhecimento principalmente. (...) Tem casa que trabalha com
determinados fundamentos que algumas pessoas trabalham com poucos
fios, mas embora ela tenha grande importância na casa, às vezes tem anos
na casa, às vezes começou a casa com o pai de santo. E às vezes ocupa um
cargo que ela não necessita ter muitos fios. Porém há um lado que você vê
nos fios da pessoa, você reconhece o santo, você reconhece se ela já é
raspada ou não. Os adornos. Não somente os fios, né? Você reconhece
alguns cargos que ela pode ter na casa, por exemplo. (Reginaldo de Ogum)

Novamente, o depoimento desse adepto nos convida a refletir sobre a relação entre os

adornos e as responsabilidades evocadas por eles. Responsabilidades estas que provêm da sua

proximidade com o conhecimento adquirido. Apesar de não constituir uma regra, os adornos

utilizados evocam a proximidade que se tem com o segredo.

A função dos adornos é fundamental nas distinções hierárquicas e na delimitação das

fronteiras simbólicas, como já foi dito. A cada etapa iniciática que o adepto ascende

97
corresponde um tipo de adorno que ele passa a exibir. Aqueles que ocupam um grau inferior

na hierarquia, mirando os adornos dos mais velhos, provavelmente se mantenham cada vez

mais motivados a galgarem os níveis iniciáticos ascendentes, a fim de exibirem um dia os

mesmo adornos. Nas palavras de Simmel esse movimento se dá porque:

En el sentido del adorno hállanse peculiares combinaciones de estos


motivos, en que se entretejen lo externo y lo interno de sus formas. Este
sentido consiste em hacer resaltar la personalidad, en acentuarla como algo
sobresaliente, pero no por una inmediata manifestación de poder, no por
algo que, exteriormente, fuerce al otro, sino merced al agrado que en el otro
se despierta y que, por tanto, contiene algún elemento voluntario. Es esta
una de las combinaciones sociológicas más maravillosas: um acto que sirve
exclusivamente a acentuar la personalidad del que lo hace y a aumentar su
importancia, consigue su fin por médio del placer que proporciona al otro,
por uma suerte de gratitud que despierta em los demás. (SIMMEL, 1977, p.
386-387).

sso porque, ainda segundo Simmel, o adorno possui uma capacidade de emanação que

influencia diretamente os sujeitos envolvidos na relação estabelecida. São suas as palavras:

Las emanaciones del adorno, la atención sensible que el adorno despierta,


amplian o intensifican la aureola que rodea a la personalidad. La persona es,
por decirlo así, más, cuando se halla adornada. Àñádase a esto que el
adorno suele ser al próprio tiempo un objeto de valor considerable.
Constituye, pues, uma síntesis del haber y del ser del sujeto. Gracias a el, la
mera posesión se convierte em uma intensa manifestación sensible del
hombre. (Ibid. p. 388). (Grifos nossos).

No candomblé os adornos revelam então a personalidade social do sujeito, assim como

pensa Simmel para as situações genéricas das relações humanas e sociais. Estados de

separação, margem (liminaridade, segundo Turner) e agregação (GENNEP, 1977) se

evidenciam nos adornos dos adeptos. Junto com a condição de cada um, vai também

evidenciada nos adornos exibidos, a distribuição do poder e da hierarquia, que têm tudo a ver

com a proximidade com o segredo.

98
Silva (2010), chama nossa atenção para os sentidos de um tipo de adorno muito comum

entre o povo do santo, os fios-de-contas:

As contas, por exemplo, identificam os deuses através de um sistema de


cores. Quando usadas como colares, braceletes, bordadas na palha ou nas
vestimentas, associam quem as utiliza às divindades em termos de filiação
mítica ou outros laços de devoção. O uso de determinados tipos de colares
denota, também, a função ou cargo de seu portador ou momentos litúrgicos
específicos da prática ritual. Usados por adeptos ou simpatizantes, os fios-
de-contas são vistos como um poderoso símbolo que traz proteção aos seus
usuários.

Na nossa compreensão, os adornos no mundo do candomblé servem da mesma forma

para evidenciar os compromissos sociais dos indivíduos que os portam em relação aos demais

componentes do grupo. Ou seja, a responsabilidade que a aquisição de conhecimentos

religiosos lhes trouxeram junto. Esse aspecto da relação entre o adorno e a vida social também

foi analisado por Simmel. Ele afirma:

Mas allá de su estilización formal, el adorno emplea um médio material para


conseguir su finalidad social; este médio consiste en ese “resplandor” del adorno,
por virtud del cual, su portador se convierte em el centro de un circulo de
irradiación, que incluye a todo el que se encuentre próximo, a todo ojo que mire.
(...) Em esa radiación está contenido el significado social del adorno, el ser para
los demás, la dedicación a los demás, que amplía la importância del sujeto, y así
cargada torna a este. (Ibid. p. 390). (Grifos nossos).

Esse “ser para os demais”, essa “dedicação aos demais” é justamente aquelas

responsabilidades representadas nos fios dos ebômes, dos quais o último depoimento falou.

Isso ajuda a explicar tanto as reverências prestadas pelos mais novos aos mais velhos, quanto

a disponibilidade que os mais velhos devem ter para iniciar os que estão adentrando a religião,

transmitindo-lhes assim os conteúdos e sentidos do segredo – seus adornos denunciam a

legitimidade que têm para isso.

Naturalmente, os adornos para possuírem de fato esse “resplendor”, devem ser

autênticos, ou seja, o processo iniciático não pode ter sido burlado. O perigo dos “fura

99
roncó”59 é uma constante no imaginário do povo do santo. E os ebômes geralmente se

mostram muito atentos a isso. O sentido do adorno, então, está diretamente relacionado a sua

autenticidade que, por sua vez, está relacionada com as formas tradicionais de transmissão dos

conhecimentos. Nas palavras de Simmel:

El valor del adorno auténtico va más allá; arraiga em las ideas que del valor
tiene todo el circulo social, y se ramifica em ellas. Por eso, el encanto y la
acentuación que presta a su portador individual, se nutre en esto suelo
supraindividual. Su valor estético, que es uno “valor para los demás”, se
convierte por la autenticidad, em símbolo de estimación general, y encaja
dentro del sistema general de valores sociales. (Ibid. p. 391)

Ou seja, o privilégio de usar o adorno autêntico se traduz necessariamente, em um

compromisso com o grupo. E este é legitimado por aquele. Traduzindo para a linguagem do

candomblé: o brajá, a terracota, o lagdibá, etc. longe de serem apenas enfeites, são também

sinais da responsabilidade com o grupo. É o segredo falando através dos adornos e os adornos

atuando como catalisadores da coesão social do grupo.

No já citado trabalho de Raul Lody (2010), a respeito da joalheria afro-brasileira, este

antropólogo analisa sistematicamente as origens, categorias e sentidos da vasta produção

material afro-religiosa chamando atenção para os empregos e aplicações sociais desses

adornos. Segundo ele, tanto a forma como a aplicação dos adornos podem carregar diferentes

sentidos:

As cores e tipos de materiais que formam cada fio-de-contas variam


conforme a intenção, podendo marcar hierarquia, situações especiais, uso
cotidiano, além de identificar os deuses. (LODY, 2010, p. 33)

59
Para uma compreensão mais ampla do que vem a ser o “fura-roncó”, ver: Braga (1998), e Castillo
(2010, p. 38 s).

100
No entanto, cabe discordar de Lody (op. Cit.), no que se refere à sua opinião a respeito

de uma suposta distância entre os conceitos de adornar e significar. Segundo suas palavras:

“o conceito de adornar está distanciado do conceito de significar conscientemente” (Ibid, p.

49). Na nossa compreensão esta distância pode até se aplicar no contexto mais amplo do

conjunto geral da indumentária afro-brasileira. No entanto, quando se trata do contexto

religioso do candomblé, adornar e significar são duas faces de um mesmo processo de

atribuição de sentidos. Adornar se confunde com significar conscientemente, haja vista a

cerimônia de entronização do ebôme na festa de deká. Nesse momento, o babalorixá que

legitima a senioridade do novo ebôme lança com certa violência simbólica (na intenção de

tornar bem visível o ato), sobre o pescoço e os ombros do neo-ebôme, os adornos que a partir

daquele momento, o distinguirá dos iniciados com menos de sete anos. Isso o retira da

condição marginal de iaô e o introduz no seu mais novo status. Na linguagem de Van Gennep

(1977): retirando-o da condição de margem e agregando-o à categoria de sênior. Assim, aqui

adornar possui um poderosos sentidos de atribuir poder, empoderar.

Há concordância entre a abordagem de Lody e a nossa, no tocante ao sentido social da

utilização do adorno. Concordamos com ele quando afirma que:

O fio-de-contas é emblema social e religioso que marca um compromisso


ético e cultural entre o homem e o santo. É um objeto de uso cotidiano,
público, situando o indivíduo na sociedade do terreiro. Há critérios que
compõem os textos visuais dos fios-de-contas, proporcionando identificação
de santos, papéis sociais, rituais de passagem – o quelê -, ou ainda fios-de-
contas mais sofisticados que, além de identificar o indivíduo, sua atuação no
terreiro, ainda identifica o tipo de Nação, ora por cor, ora por emblema
como é o caso do runjeje ou runjebe para os jeje. (...) O texto visual do fio-
de-contas que é lido, compreendido e estabelecido por artesãos, filhos-de-
santo, pais e mães-de-santo, ogâs, equedes, iaôs, abiãs, entre outros, sinaliza
a vida religiosa e social dos terreiros, transitando entre códigos tradicionais
e outros emergentes e dinâmicos, contudo mantenedores do próprio ser fio-
de-contas. (Ibid. p. 59)

101
Para nós, o fio-de-contas (e demais adornos utilizados pelo povo do santo), ao se situar

nesse universo de sentidos e de significações, constitui também parte do segredo do

candomblé, até por que a própria personalidade do fio (do adorno) é engendrada no contexto

da produção e recriação do segredo. Imaginemos que tenha sido isso que Lody (op. Cit.) quis

dizer ao afirmar:

Para saber enfiar contas para o uso próprio ou para servir outro membro do
terreiro e mesmo para o comércio, é fundamental dominar o código
cromático e simbólico da Nação, dos tipos de fios-de-contas e funções
religiosas e hierárquicas, constituindo etapa do processo do aprendizado
iniciático que ocorre na reclusão do roncó no longo período destinado à
feitura de santo. (Ibid. p. 60).

Podemos, então, afirmar que o adorno não só indica posição hierárquica como também

evidencia etapas de conhecimento iniciático, como reforça Lody (op. Cit.):

As contas especiais e fios respectivos refletem tipo de luxo, de sofisticação


estética e principalmente saber religioso – conhecimento aprofundado sobre
o candomblé, o Xangô, o Mina, geralmente chamado pelo povo do santo de
fundamento – sabedoria tradicional harmônica entre o homem e a natureza.
(Ibid. p. 88).

Então, o diálogo entre o segredo, o conhecimento e os adornos, se dá de tal forma que


a escassez ou abundância destes, opera como indicativo do nível de aquisição daqueles.

102
Capítulo III

3. Segredo e poder

“(...) Isto também é axé, é conhecimento, é poder, é fundamento”.


(Reginaldo Prandi, Os candomblés de São Paulo, 1991[2001], p. 104)

Mesmo por que eu vou dizendo: “meu filho, olha, axé é segredo. E eu só posso lhe
confiar o axé no dia que eu perceber que você mantém o segredo”.
(Mãe Leda de Oxum)

Já falamos do segredo como patrimônio, como instituição do povo do santo e como

mecanismo de coesão social do grupo. Resta-nos, agora, falar do segredo como mecanismo de

empoderamento e instrumento de manutenção do poder. De fato, qualquer pesquisador do

candomblé, quanto mais se aproximar dessa religião mais perceberá que aqui, segredo e poder

caminham lado a lado - relação que também se estabelece com o conhecimento - sinônimo de

axé. Assim, conhecimento, segredo, axé e poder são elos de uma mesma corrente, ou fios de

uma mesma trama. Para usar uma expressão de Geertz (2008), é sobre a teia de sentidos

composta pela combinação desses elementos que o povo do santo se sustenta. Veremos como

essa relação se dá.

Antes de começarmos a análise dessa relação entre segredo e poder devemos ter claro

que a “dobradiça” entre a análise que fizemos do segredo como patrimônio do povo do santo

e a análise que ora começamos do segredo como mecanismo de poder é o conhecido texto de

Pierre Bourdieu (1974, p. 27-28), a respeito da gênese e estrutura do campo religioso.

Veremos neste capítulo e no próximo, como as palavras de Bourdieu neste texto explicam,

com muita propriedade, os fenômenos que envolvem a relação entre o povo do santo e o

segredo ritual. Também ali, nas palavras de Bourdieu, estão parte das ferramentas de análise

fundamentais para compreendermos os conflitos ligados às transformações da compreensão

de segredo ritual no candomblé e as consequências daí advindas. Passemos então à análise.

103
3. 1. Nos interstícios do segredo e do poder

Temos que confessar que quando começamos esta pesquisa estávamos fortemente

influenciados por grande parte da literatura existente que aponta na direção do vazio do

segredo no candomblé, ou mesmo da sua inexistência, como afirma Johnson (2002), por

exemplo. Porém, ao longo da observação sistemática, levada a cabo junto a quatro terreiros, e

por meio das várias entrevistas realizadas, podemos nos certificar de que o segredo continua

vivo e atuante; haja vista a grande recorrência de respostas positivas, quando interrogávamos

nossos interlocutores a respeito da existência e persistência do segredo nessa religião. Este

segredo, de que fala o povo do santo, porém, apresenta-se substancialmente modificado em

relação à antiga visão que dele se formou ao longo da história. Mas, segundo o povo do santo,

ele continua lá. E se um dia ele pôde ser visto apenas como um conjunto definido de fórmulas

rituais, hoje ele supera esta forma, passando a abranger diferentes elementos, sendo que um

deles é a natureza de instrumento de poder, como veremos adiante. Um exemplo disso é o que

temos visto na casa da Mãe Leda de Oxum durante os rituais de orô.

A primeira vez que fui autorizados pela Mãe Leda de Oxum a presenciar o orô na sua

casa, fiquei bastante empolgado. Teria uma boa oportunidade de observar as minúcias dessa

cerimônia em uma das casas de candomblé que estava observando durante a pesquisa. Devido

a minha limitação em termos de deslocamento saí de casa muito cedo a fim de estar no

terreiro um pouco antes das 10h00, horário para o qual estava marcado o início da cerimônia.

Cheguei lá muito antes disso, por volta das 8h30. O terreiro ainda acordava e as gostosas

conversas do povo na cozinha, quebravam o silêncio da mata atlântica que circunda a casa.

Até então, o silêncio só havia sido quebrado pelo cantar dos pássaros.

Fui conduzido por uma iaô ao barracão a fim de esperar o café que “logo-logo sairia”.

Como o barracão fica sobre a cozinha, procurei ocupar um banco que ficasse em uma posição

104
estratégica, de onde pudesse escutar as conversas e os fuxicos que vinham da cozinha. Como

sempre, as conversas eram bastante jocosas e animadas. As deliciosas gargalhadas disputavam

com os pássaros o controle do silêncio. O fuxico desempenhava seu papel de elemento

socializador.

Enquanto algumas abiâs varriam o barracão, o café chegou até mim por meio das mãos

de uma iaô de Obá (Camila). Deliciei-me com ele. Algumas horas depois, a Mãe Leda

surgiria majestosa, em suas roupas alvíssimas e de agradável odor de limpeza. Acolheu-me

com bastante atenção e recomendou-me aguardar um pouco que “logo o orô começaria”. No

entanto, eu já sabia que esse “logo” poderia significar muito tempo. E já imaginei que a

cerimônia ainda demoraria muito a começar e que, por isso, deveria já ir observando o

máximo do ambiente e fazendo contatos com aqueles que demonstrassem algum tipo de

interesse em conversar. Foi isso que fiz. Um pouco depois do meio dia anunciou-se o início

do orô.

Após um ebó comunitário, tirado pela ialorixá e sua equipe de ebômes nas

aproximadamente sessenta pessoas presentes (inclusive em mim), a Mãe Leda anunciou o

início das cerimônias do orô da festa anual de Ogum. Descrevi no diário de campo toda a

sequência do orô, incluindo a participação da equipe de ebômes, que, com a Mãe Leda,

dividia o exercício do sacerdócio e, consequentemente, o poder, durante a realização da

cerimônia. No entanto, aqui me deterei apenas à descrição do ambiente do orô a fim de

analisarmos a relação entre o segredo e o poder, objeto central deste capítulo, assim como

deste trabalho como um todo.

No Ilê Axé Oxum da Mãe Leda, cada orixá tem sua casa. Os orixás “de fora” (do tempo)

estão (assim como estão as casas dos outros orixás) espalhados pela chácara e assentados em

contato direto com a natureza, de forma que, vai-se andando pela chácara e encontrando-se

com os deuses.

105
Os assentamentos dos orixás “do tempo” são cercados por touceiras de pés de peregum

(Dracaena Fragrans) que crescem em torno do ibá, escondendo-os dos olhos curiosos dos

leigos que visitam a casa. Isso ajuda a manter o segredo em torno do ibá, pois, quem olha de

longe vê apenas uma montanha de plantas. Lá de dentro, o orixá vê quem passa, sem ser visto

pelo transeunte. Descreveremos, a seguir, como estava organizado o espaço do orô a fim de

percebermos, através desta disposição, a organização do poder. Pois, assim como já dissemos,

no candomblé o segredo delimita e organiza o espaço. E os espaços do segredo também se

confundem com os espaços do poder.

Na grande praça externa do terreiro foram colocadas diversas esteiras estendidas sobre a

grama verde. Tomando como ponto de referência o ibá de Ogum, tínhamos a seguinte

disposição: (i) Ialorixá, ebômes e pessoas de cargo; (ii) Uma fileira de esteiras mais distantes

para as abiâs (a aproximadamente uns cinquenta metros do ibá), de forma que estas não

tinham acesso visual aos detalhes do orô, mesmo que o mirassem. (iii) A aproximadamente

uns trinta metros do ibá ficava outra fileira de esteiras, estas reservadas às iaôs. Aqui também

ficavam os ebômes sem cargo. Até por que, no caso de algum iaô “virar”, estes ebômes

seriam fundamentais para “desvirá-los”. Dessa esteira, caso houvesse interesse (e coragem

para tal!), era possível ter acesso a alguns detalhes do orô. Dessa forma, quem estivesse nesta

esteira, ao romper o medo de encarar visualmente o orô, teria acesso à quase totalidade dos

detalhes do orô, desde que os sacrificadores não se antepusessem, involuntária ou

propositalmente, entre o olhar de quem olhava e o ibá que recebia o sacrifício. Na maioria das

vezes os ogâs se antepunham entre o olhar dos iaôs e o orô em curso. Assim estava

organizado o espaço do orô.

A disposição das pessoas para o orô deixava claro aquilo que estamos chamando de

“esferas do segredo”. E, da mesma forma, a disposição dessas mesmas pessoas no espaço

106
revelava a relação das mesmas tanto com a hierarquia quanto com as estruturas de poder

naquela casa.

Conduzindo a cerimônia, portanto mais próximos do ibá, estavam: a ialorixá, os ebômes

portadores de cargo, um grupo de ogâs (presidido pelo axogum) e algumas equédes.

Também as performances corporais diziam muito a respeito da relação de cada sujeito

com o segredo e com o poder.60 Em pé, em torno do ibá (com exceção da ialorixá que cantava

sentada em um apoti) os ebômes usufruíam do seu privilégio de manterem-se em pé em um

momento tão importante (como já falamos no capítulo II). Os iaôs, por sua vez, mantinham-se

sentados na sua esteira, mas com o olhar erguido na direção do orô. Já os abiâs mantinham-se

o tempo todo deitados de bruços, ou ajoelhados, e com o tronco reclinado, com o rosto por

terra e jamais erguendo o olhar na direção do orô. Novamente aqui, percebemos as fronteiras

impostas pelo segredo.

Toda essa disposição do espaço, das personagens e das performances corporais, falam

muito a respeito das relações entre segredo e poder no candomblé. E é com essa descrição que

começaremos essa parte da nossa discussão.

Algum tempo depois, ao entrevistarmos a abiã Valéria de Oxum, ligada há sete anos a

este terreiro, ela voltaria a falar a respeito dessa organização do espaço e distribuição das

pessoas, dando-nos a entender que existe uma relação entre o lugar ocupado por cada um

durante o orô e seu papel dentro da hierarquia da casa. Ao falar a respeito da convivência no

terreiro e a aquisição do conhecimento, ela disse:

60
Posturas corporais idênticas também foram percebidas e descritas por Castillo (2010, pp. 34-35) nos terreiros
baianos que ela estudou. Na sua descrição de um Padê de Exu ela relata a postura corporal assumida pelos
presentes, posturas essas que são muito esclarecedoras e similares ao que segue aqui.

107
E tem um grau de como você chega até o que está se fazendo ali no
momento. Aonde, se você é abiã você está muito mais afastado, você não
tem todo esse acesso, nem de visão. Você não pode ter esse acesso. Mas
você tem que saber responder também. Não vai está ali à toa, por qualquer
motivo. Se você é um ebôme você já tem que está ali muito mais perto, se
você é uma equéde você está ajudando nos preparos de tudo, nas
atividades, em fim... e essa forma também é a forma de você conhecer.
Quem está mais lá atrás não vai ver muito coisa, não vai interpretar muita
coisa. Quem está ali na frente tem que ter esse conhecimento. Está ali
participando, na primeira roda, digamos assim, desse orô, tem que ter
muito mais conhecimento do que quem está lá atrás...
(Abiã Valéria de Oxum)

Assim Valéria nos explicou o porquê daquela disposição no dia do orô. Pela sua fala

fica patente que aquela organização não é aleatória. E se a ialorixá explica tal disposição a

partir do segredo, por trás dessa disposição também se esconde a configuração do poder.

Como já foi dito, o centro de gravitação de toda essa estrutura é o próprio orixá (aqui

materializado no ibá). Dele, através dos ebômes (mais velhos), esse poder (axé) se expande,

chegando, enfim, aos mais novos.

Podemos, então, falar de uma relação simbiótica entre poder e segredo de forma que o

poder distribui o segredo, ao mesmo tempo em que o segredo engendra poder. E sendo o

conhecimento uma das faces desse segredo pode-se afirmar, junto com Foucault, que “Não é

possível que o poder se exerça sem saber, não é possível que o saber não engendre poder”

(FOUCAULT,1979 [2011] p. 142). E é assim que se dá a relação entre segredo e poder no

candomblé.

Mas a prática do segredo também limita os poderes. O segredo controla as relações de

poder. E aqui, novamente, vem à baila as palavras de Simmel (1977), quando diz que nas

relações interpessoais, o poder de uma pessoa sobre a outra se fundamenta nos segredos que

esta sabe sobre aquela. Quanto mais se transmite seus segredos a outrem mais você lhe atribui

poder sobre si mesmo e sobre a relação estabelecida. É por isso que só revelamos nossos

segredos mais íntimos a nossos amigos mais próximos. E mesmo assim, sempre há aqueles

108
segredos que preferimos não revelar nem mesmo para os mais íntimos amigos. A mesma

compreensão pode ser aplicada às relações estabelecidas intra-terreiro. Isso porque segredo é

poder. E aqui vislumbramos também a relação de confiança que, em muitos casos, se

estabelece entre o babalorixá/ialorixá e seus filhos de santo. Relação essa menos freqüente, ou

mesmo inexistente, entre esses mesmos sacerdotes e seus “clientes”. Em tese, a transmissão

do segredo só se justifica entre os sacerdotes e seus filhos de santo. Quanto aos clientes, não

haveria sentido essa transmissão. E quando falamos da relação estabelecida entre o feiticeiro e

seus clientes, aí é que a relação com o segredo se modifica sobremaneira. Mas essa discussão

é matéria para mais adiante. Voltaremos a ela no momento oportuno. Por enquanto, vejamos

como se dá essa relação entre segredo e poder no candomblé.

3.2. A prática do segredo e o controle do poder

A prática do segredo no candomblé também pode ser visto como um processo de

controle do poder. Sendo assim, a transmissão dos conteúdos tidos como secretos pode ser

vista como um processo de empoderamento. Este, por sua vez, está estreitamente ligado ao

processo iniciático. Assim, quando a atmosfera de segredo torna-se onipresente no espaço do

terreiro e no imaginário religioso do candomblé; quando essa mesma atmosfera de segredo

define as fronteiras físicas e simbólicas do terreiro e da religião; quando o acesso (ou a

negação dele) organiza a hierarquia, (tripartindo-a em esferas ou graus hierárquicos, como já

foi dito no capítulo anterior) é o jogo do poder que está se imbricando no jogo do segredo. E

devido a isso, as regras do segredo também passam a ser as regras do poder. Essas regras do

segredo em lugar nenhum encontram-se sistematizadas. No entanto, a partir da nossa

convivência e interlocução com o povo do santo, fica claro que essa população, e

principalmente os ebômes, se comporta de acordo com uma espécie de código ético tácito

109
quando se refere àquilo que comumente costuma chamar de “fundamentos”. Este código, que

(repetimos) em lugar nenhum encontra-se sistematizado, se pudesse ser escrito e organizado,

segundo os padrões ocidentais de estatuto, incluiriam os seguintes pressupostos:

(i) Admita sempre a existência do segredo e evite a sua negação;

(ii) Comporte-se sempre como se ele existisse;

(iii) Sempre trate como segredo aquilo que o grupo considera como tal;

(iv) Em se tratando de conhecimento, nunca revele tudo de uma vez;

(v) Limite, sempre que puder, o acesso de algumas pessoas àquilo que se tem como

segredo;

(vi) Mantenha sempre o clima de segredo, dando a entender que existe mais segredos do

que de fato há;

(vii) Sempre que puder (e se fizer necessário) exponha parte daquilo que se tem como

segredo, sem, no entanto, ser muito generoso nessa exposição;

(viii) Com aqueles que julgam já terem galgado os últimos estágios do segredo

estabeleça um pacto tácito para mantê-los no seu entorno, e para que, também, eles façam o

jogo do segredo;

(ix) Sempre que o segredo correr riscos mude as regras, e mostre quem é que tem a

autoridade para definir o que é e o que não é segredo.61

É à luz desses pressupostos observados no comportamento dos nossos interlocutores,

durante a pesquisa, que podemos compreender as palavras do Pai Jean quando nos falou no

início dessa pesquisa:

Não. Não existe um miolo do segredo no candomblé. E se algum babalorixá


ou ialorixá te disser que existe não acredite. É jogo. Com certeza durante
essa sua pesquisa você vai ouvir muita coisa. Vai ter pai de santo que vai

61
Sobre essa “dica” (ix), as palavras da Mãe Sylvia de Oxalá, sobre o Pai Caio, são mais do que ilustrativas.
Sempre que os ebômes achavam que já sabiam tudo ele afirmava o contrário, mudando as regras em seu favor.

110
criar um clima de mistério e de segredos a fim de atrair a curiosidade. Mas
não existe miolo do segredo. Sabe por que não existe? Eu te explico: por
que o segredo quem faz é você. O segredo está dentro de você. Dentro de
cada um.
(Pai Jean de Oxalufã)

A partir dessas regras elementares, existentes de forma difusa no comportamento do

povo do santo, e corroboradas pelas palavras do Pai Jean (apesar da sua posterior mudança de

opinião acerca de um possível núcleo do segredo), é possível perceber a estreita relação entre

segredo e poder. Regras do segredo e regras do poder, portanto, organizam o mesmo jogo.

Apesar de as regras não terem sentidos por si só, uma vez que carecem do substrato

daquilo que o grupo tem como segredo, elas desempenham um elemento fundamental de

sustentação tanto da estrutura do segredo quanto das estruturas do poder, uma vez que poder e

segredo são fios do mesmo tecido. À frente desse processo de administração do segredo e

engendramento do poder está a figura do babalorixá/ialorixá que, administrando o segredo,

forja o poder. Essa estreita relação entre poder e segredo é quase sempre explícita nas casas

observadas por nós durante a pesquisa. Assim como também pode ser bastante clara em boa

parte das casas de candomblé. Por exemplo, no Aché Ilê Obá, sempre ao final dos toques

(festas públicas, xirê) a ialorixá, Mãe Sylvia de Oxalá, faz questão de dar as mãos com uma

pequena equipe de ebômes e pessoas de cargo, dançando elegantemente com eles em volta do

ariaxé. Tal dança pode mesmo ser chamada de “dança do poder” ou “dança do segredo”.

Da mesma forma, na casa da Mãe Leda de Oxum, durante o orô, percebe-se claramente,

pela proximidade com os ibás que recebem os sacrifícios, quem detém o poder naquela casa.

Na casa do pai Jean a cena se repete. Tais atitudes parecem nos remeter a essa cumplicidade

que há entre as lideranças religiosas e suas equipes mais próximas, em torno do segredo e do

poder. É como se as lideranças dividissem com os ebômes o seu poder em troca da

cumplicidade na manutenção do segredo. Aqui, o conhecido princípio maquiavelino, de nunca

ser motivo de poder para um concorrente em potencial, encontra uma brecha. Mas é preciso

111
que neste momento de exibição de cumplicidade, os ebômes de fato estejam “do lado” da mãe

de santo. Essa proximidade revela para os mais novos, assim como já falamos dos adornos, o

lugar que eles ocuparão futuramente, caso sejam capazes de guardar e manter o segredo.

Já começamos a falar a respeito das relações de poder no candomblé. É sabido por todos

que cada casa é uma casa e que dentro de uma casa de candomblé o babalorixá/ialorixá são as

autoridades máximas. E, uma vez que o candomblé não possui uma estrutura de subordinação

entre as casas, os sacerdotes são então “reis e rainhas na sua casa”, como costumam repetir os

pais e mães de santo. E mesmo a divisão de poder com a equipe de ebômes e “pessoas de

cargo” nunca chega a comprometer a autoridade soberana do babalorixá/ialorixá. Na maioria

das vezes, essa divisão de poder não ultrapassa a responsabilidade por algumas práticas

rituais. No fim das contas, quem manda mesmo é o pai ou a mãe de santo, que, quase sempre,

procura legitimar suas ações através da identificação entre ela/ele e seu orixá pessoal. A

preeminência desse orixá, em detrimento dos demais, se justificaria pelo fato de ele ser tido

no grupo como o mais poderoso, uma vez que é o mais velho e, normalmente, ter “feito” os

demais. Ouve-se muitas vezes alguém dizer “fui feito por oxum e devo tudo a ela”, ou:

“minha navalha é Oxalá e por isso vou ser eternamente lése (fiel) a ele”. Isso quer dizer que o

orixá do babalorixá/ialorixá da casa termina por exercer sobre os demais uma espécie de

“dominação legitima”, no sentido weberiano62 sobre todos aqueles que se encontram sob seus

cuidados. Assim, o poder do sacerdote legitima-se através da preeminência da sua divindade

pessoal sobre as demais cultuadas na casa. Sobre esse poder do sacerdote, Reginaldo Prandi,

no seu conhecido livro, Os candomblés de São Paulo, falou:

Maior o tempo de iniciação do filho, maior o grau de autonomia, privilégio,


prerrogativas e poder que alcançará o orixá. Há uma relação de equivalência

62
Para uma maior compreensão das formas de dominação legítimas em Max Weber, ver: WEBER, Max.
Economia e Sociedade. Editora Universidade de Brasília & Imprensaoficial, São Paulo: Vol. I, cap. III, p. 139-
198.

112
diretamente proporcional entre o saber iniciático do filho-de-santo (Omo-
orixá, em ioruba) e a capacidade de expressão do orixá. Orixá novo não tem
querer, como iaô não tem saber – esta é uma lei do candomblé. Um pai ou
mãe-de-santo é, em geral, a pessoa com maior tempo de iniciação numa
casa de candomblé, mesmo por que foi ele ou ela quem iniciou os demais.
O orixá da mãe-de-santo é, ipso facto, o orixá que atingiu a maior perfeição
e mais poder. (PRANDI, 1991, p. 172)

Também Monique Augras explica essa relação entre tempo de iniciação e aquisição de

poder: “As mais velhas são depositárias do saber, seu poder provém da longa convivência

com o sagrado, e através delas é todo o valor da tradição ancestral que se afirma”

(AUGRAS, 1987, p.66).

Assim, o tempo de iniciação, que também representa o período de apreensão dos

conteúdos do segredo, funciona como processo de atribuição de poder, e (não achamos

exagero repetir!), da mesma forma que numa relação de amizade quanto mais você revela

seus segredos a seu amigo, mais você lhe dá poder sobre sua pessoa, como afirma Simmel

(1977). Trata-se então de um processo de empoderamento. Idade de santo, em regra,

representaria acúmulo de conhecimento e, consequentemente, acúmulo de poder, como afirma

o babájibonã Pai Paulo de Oxum, por ocasião da entrevista a nós concedida, quando lhe

perguntamos: Então, quem pode ter acesso ao segredo no candomblé, afinal?

Equédes, ogãs, pessoas apontadas como cargos na casa, até mesmo uma
pessoa que se iniciou... depende da dedicação que ela vai ter para com a
casa e para com os orixás da casa. Esse segredo está relacionado, também,
à tempo de iniciação, mas a pessoa tem que ter uma passagem de atuação
dentro da casa de candomblé para conter esses segredos. (...) o processo de
transmissão dos segredos ele varia de pessoa para pessoa. (...) Varia de
cada um. Se a pessoa ela tem um desenvolvimento na casa, dedicação, ela é
presente em atos, em festas para o público, para a sociedade (...) [se outra
pessoa] já não tem essa passagem, a mesma, de destaque da casa, o
conhecimento vai para essa pessoa que se faz presente na casa. Conforme
ela estiver “pegando idade”. De acordo com a obrigação que o iaô, o
noviço está tomando axé, as nossas obrigações, ela contém mais um pouco
de informação. Que é passado pelos mais velhos.
(Pai Paulo de Oxum)

113
Controlar as fronteiras do segredo é controlar o poder e o direito legítimo de obtê-lo. É

por isso que o segredo também é visto, na maioria das vezes, como tabu, no sentido discutido

por Monique Augras (1987; 1989). E sendo tabu permanece como ponto de tensão entre o

povo do santo. A propósito, essa tensão foi claramente percebida por nós durante as

entrevistas coletadas. A maioria dos entrevistados não-êbomes preferiu nos dar a entrevista ou

nas suas residências (como no caso de Carla de Oxósse, Reginaldo de Ogum e Cibele de Obá)

ou no terreiro, com a supervisão do Pai de Santo ou Mãe de santo. Ainda em outros casos

(como aconteceu com Valéria de Oxum) a entrevistada preferiu deslocar-se até a casa do

pesquisador, a fim de ficar mais à vontade para falar.

Ficava claro que “falar sobre segredo” era prerrogativa dos mais velhos e que, portanto,

ninguém falaria sobre isso comigo sem que antes eu pedisse permissão aos seus respectivos

superiores. Em algumas das casas pesquisadas terminamos a pesquisa sem, no entanto,

conseguirmos coletar a entrevista de um abiã (como no caso do Aché Ilê Obá). Ao que parece,

falar de segredo é falar de poder. E, sendo assim, só os mais velhos (ebômes) teriam a

autoridade para tal. E sempre que os não-ebômes se dispunham a falar demonstravam estar

pisando em terreno movediço. Aqui o segredo assume também a natureza de tabu.

Essa tensão, em torno do tema segredo, durante muito tempo, influenciou até a

produção acadêmica sobre a religião, uma vez que só recentemente a academia começou a

discutir e estudar com mais afinco a questão e os sentidos do segredo ritual no candomblé.

Assim, fica claro que as regras do segredo também são as regras do poder. Há aqui uma

simbiose entre ambas. Simbiose esta que converge na direção da manutenção do poder nas

mãos das lideranças. Sempre que estas regras são de alguma forma, ou por algum motivo,

burladas, instala-se o conflito.

A instalação do conflito (que será mais aprofundado no próximo capítulo) personifica-

se na tensão existente entre aqueles que detêm o poder, através do controle do conhecimento

114
religioso, e aqueles que desejam obtê-lo ou mesmo usurpá-lo. Essa tensão é própria do campo

religioso como bem já demonstrou Pierre Bourdieu, no ensaio citado acima, a respeito da

gênese e estrutura do campo religioso (BOURDIEU, 1974). Nesse sentido, temos o clássico

conflito entre aqueles que administram a gestão do “depósito do capital religioso”, nas

palavras de Bourdieu, e aqueles que almejam controlar-lhe. Ora, aqui o segredo pode ser visto

como a personificação do depósito de capital religioso do povo do santo (que corresponde

também à noção de patrimônio, como já dissemos) uma vez que é no campo do segredo que

se mantém as formas de se engendrar o axé. Esse controle, em se tratando do candomblé, cabe

aos babalorixás e ialorixás. Todo o poder, assim como se presume, todo conhecimento,

repousa nas mãos dessas lideranças. Transmitir conhecimentos é então atribuir poder, assim

como retê-los pode representar controle deste mesmo poder. Novamente, as palavras do Pai

Paulo de Oxum são esclarecedoras para nós. Quando lhe perguntamos se seria possível

conhecer o segredo do candomblé fora do terreiro, sua resposta foi contundente: Impossível.

Perguntamos-lhe, então: “por quê?” Ao que ele respondeu:

Por que o segredo do candomblé ele é um patrimônio que só é passado aos


adeptos, pessoas que se sacrificam, pessoas que muitas vezes abdicam de
fazer várias coisas nas próprias casas pra está ali presente ao orixá, se
sacrificando, se doando para o orixá, é essas pessoas que são merecedoras
do segredo.
(Pai Paulo de Oxum)

No entanto, mesmo que pareça ser linear e pacífico, o processo de transmissão de

conhecimento e de aquisição de poder não é nada tranqüilo. Engana-se quem imagina esse

processo como algo do tipo romântico, em que os mais velhos transmitem pacificamente seus

conhecimentos acumulados aos mais novos, fazendo-lhes sacerdotes eficientes na religião.

Deve-se lembrar que, além de futuros mantenedores da religião, esses mesmos neo-ebômes

115
constituirão a reserva de concorrentes dos mais velhos, no já muito disputado mercado

religioso do candomblé. Assim, esse processo às vezes assume uma forma tensa e conflituosa.

Armando Vallado (2010), em Lei do santo: poder e conflito no candomblé, em certo

momento afirma:

No candomblé, o desejo de poder pode ser acalentado, mas o seu exercício


será sempre susceptível a julgamentos divinos, cujo intérprete é sempre o
pai de santo. (...) Por isso mesmo, são sempre muito tensas as relações
sociais no terreiro, pois se refletem no poder que o pai de santo destina a
cada uma das pessoas que ali congrega. Não existe igualdade neste local. O
candomblé é o lugar da diferença e da hierarquia. (VALLADO, 2010, p. 36)

A aquisição do conhecimento e do poder acirra-se ainda mais. Desenvolvem-se

diferentes estratégias de adquirir esse conhecimento nem que seja “de tabela”. O fuxico é uma

das formas que se engendrou para driblar os processos tradicionais de aquisição de

conhecimento. O segredo seria um obstáculo àqueles que desejam ardentemente se apropriar

do seu conteúdo. Os mais velhos são tão peritos em guardá-los quanto os mais novos se

tornam peritos em granjeá-los. E até roubá-los se for necessário. Cria-se, então, um constante

clima de “vela”, “revela”, “re-vela”. E, dinamicamente o candomblé, e a vida do povo do

santo vão sobrevivendo ao tempo e às mudanças, como bem demonstra Júlio Braga em seu

livro Candomblé tradição e mudança (2006).

Já Armando Vallado (2010), ao abordar as formas de transmissão de conhecimentos e as

prerrogativas dos mais velhos no candomblé, afirma:

Nos terreiros há sempre uma forma de saber de tudo. Parece contraditório


numa religião que tem por ideal o zelo pelo mistério que envolve os rituais
sagrados das divindades. Esse mistério que compõe o saber religioso é
prerrogativa principal dos “mais velhos”, que consequentemente detêm o
poder. Ensinar aos mais novos significa redistribuir o poder, o que é feito
com muita parcimônia e critério, (Idem. p. 45)

116
Yvonne Maggie também relata, em Guerra de Orixá: um estudo de ritual e conflito

(2001) casos de conflito e disputa de poder entre membros de um terreiro no Rio de janeiro,

cuja motivação principal era o choque entre diferentes formas de aquisição e transmissão de

conhecimentos. Os resultados da pesquisa dessa autora daria substrato às palavras de Vallado

(op. Cit.), quando este, posteriormente, viria a desenvolver seus estudos sobre poder e conflito

no candomblé, através da análise daquilo a que ele chamou de “Lei do Santo”.

No texto de Yvonne Maggie, que é resultado do seu trabalho de campo junto ao terreiro

Tenda Espírita Caboclo Serra Negra, em 1972, no bairro do Andaraí, na cidade do Rio de

Janeiro, a autora nos relata os constantes conflitos entre os membros do terreiro (cujo culto

era misto de umbanda e candomblé) em torno do poder. Tal conflito teria se estabelecido a

partir do momento em que as formas de transmissão dos conhecimentos se chocaram entre a

oralidade, própria dessa modalidade religiosa, e os conhecimentos sistemáticos provenientes

da vida acadêmica de um membro do terreiro que ingressara no curso de Ciências Sociais da

Universidade Federal do Rio de Janeiro.63

Os desencontros entre conhecimento e poder teriam desencadeado o conflito que viria a

culminar com o fechamento e extinção do terreiro, depois de mobilizar uma sequência de

demandas, provocando, inclusive, uma “guerra de orixá”. Percebe-se então que, à medida que

as formas de transmissão do conhecimento entraram em xeque, a coesão do grupo foi

comprometida. E nesse caso, não adiantou apelar para a autoridade das divindades das

lideranças em guerra. Os próprios orixás entraram na guerra, assim como faziam os deuses

gregos na mitologia. Da mesma forma, alguns dos nossos interlocutores assumiram a defesa

das formas tradicionais de transmissão dos conhecimentos religiosos, em nome de uma

pretensa manutenção e preservação das tradições.

63
Sobre as peculiaridades inerentes à relação entre esses diferentes tipos de conhecimentos e formas de
transmissão, a consulta ao já citado trabalho de Castillo (2010) se mostra cada vez mais indispensável.

117
O Pai Jean de Oxalufã, por exemplo, quando perguntamos sua opinião sobre a

transmissão de conhecimentos tidos como secretos (fundamentos) pela internet64, cursos ou

apostilas, ele nos respondeu de forma veemente:

Olha, eu critico sumariamente porque, se nós estamos falando em segredos,


fundamentos, então são essências gigantescas. (...) Eu repudio
sumariamente a venda de segredos, de fundamentos, onde antigamente não
havia isso. (...) Se são fundamentos, raízes, e são uma coisa que tem que ser
ressaltadas, e esses fundamentos vieram trazidos por pessoas, entendeu?
muito sábias, que lutaram, que reivindicaram seu ato de culto. Os orixás.
Os negros que vieram da África à base de ferro quente, de chicotes, e
trazerem essas maravilhas pra nós... e as pessoas colocarem essas
maravilhas, essas dádivas à casas de artigos religiosos, DVD’s, livros...
então, eu não concordo viu?! O segredo, está dentro da casa de candomblé.
O fundamento, a pessoa, se adquire esse fundamento, é emanada dessa
essência. Esse fundamento é dentro da casa de candomblé. Não é em livro.
Não é em DVD... Então eu discordo plenamente com essa forma de mostrar
a todos o que é o fundamento de Ossayin, o que é um fundamento de Ewá.
Hoje em dia está muito fácil. Há pessoas que não estão no candomblé que
entendem mais de candomblé do que as pessoas que estão. (...) Mas... essa
coisa distorcida que as pessoas fazem, quase sempre é questão de tipo
financeiro. Então eu realmente discordo. (...) Eu acho, e tenho a certeza,
que se todos os sacerdotes, todas as sacerdotisas, se unissem mais para que
não criassem essas fendas, essas aberturas. Para que o culto, o segredo (...)
não se tornasse público de uma forma financeira, (...) as coisas seriam com
mais confiança, com mais... as coisas seriam mais plenas de fé. A questão
somente da fé. E isso meu filho, publicar fundamentos, publicar segredos de
orixá, tá entendendo? (...) portanto, eu discordo plenamente. Eu não
concordo.
(Pai Jean de Oxalufã)

Ora, por trás dessa crítica convicta também está a questão do monopólio dos “bens de

salvação”, como diria Bourdieu, e do controle do poder, por parte dos sacerdotes e

sacerdotisas - controle esse que se dá através dos mecanismos tradicionais de transmissão dos

conhecimentos (fundamentos). Isso fica claro quando ele diz que deveria haver uma união

maior entre os sacerdotes e as sacerdotisas em defesa das formas tradicionais de transmissão,

64
A respeito da relação entre candomblé e internet, além dos trabalhos já citados (entre eles o de Castillo),
tomamos conhecimento, no XI Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais (realizado em Salvador,
Bahia, Brasil, entre os dias 07 a 10 de agosto de 2011), da pesquisa que vem sendo desenvolvida pelo Professor
Emmanuel Bastos Lopes (UFPE), a respeito do ciberterreiro, principalmente entre o povo do santo de Fortaleza,
Ceará. Aguardamos ansiosos seus resultados.

118
ou para combater os “desvios” que se tem percebido. “Para que não criassem essas fendas”,

como afirma o babalorixá.

Os posicionamentos, quase sempre em tom de censura, dos mais velhos (principalmente

dos sacerdotes e ebômes) em relação às formas alternativas de circulação do conhecimento

religioso (seja através do fuxico, seja através de cursos, apostilas, DVD’s, etc.) pode-se

explicar a partir desse desejo de manter o poder, enquanto há como que uma “conspiração”

por parte dos mais novos que desejam usurpar o poder e controle sobre o “depósito de capital

religioso” ou do “monopólio dos bens de salvação”. E aqui fica ainda mais claro a estreita

relação existente entre o saber e o poder. São verso e anverso de uma mesma moeda.

Michel Foucault (1979, p. 142), em sua Microfísica do poder, já havia analisado essa

relação entre saber e poder. Segundo suas próprias palavras: “Ora, tenho a impressão de que

existe, e tentei fazê-la aparecer, uma perpétua articulação do poder com o saber e do saber

com o poder”.

No candomblé não há nenhuma dúvida a respeito dessa articulação. E sendo o saber

transmitido de acordo com uma tradição que se tem como legítima, a transmissão do poder,

em teoria, também deve obedecer à mesma forma tradicional de transmissão.

Essa configuração de poder que se apóia sobre a base do saber religioso, encontra, da

mesma forma, apoio nas palavras de Foucault (op. Cit. p.142), que diz: “O exercício do poder

cria perpetuamente saber e, inversamente, o saber acarreta efeitos de poder”. E depois

continua: “Não é possível que o poder se exerça sem saber, não é possível que o saber não

engendre poder”. (Ibidem). E assim tem sido no candomblé.

Na pessoa do babalorixá, ou da ialorixá, poder e saber se encontram. Sendo a autoridade

máxima dentro da sua casa, o babalorixá faz as vezes de principal detentor do conhecimento

que é protegido pela prática do segredo, ao mesmo tempo que assume o lugar de centro de

irradiação do poder, uma vez que possui o orixá mais velho. Sendo o orixá a fonte primeira,

119
tanto do conhecimento quanto do poder, e sendo o babalorixá o legitimo intérprete das suas

vontades, como afirmou Vallado (2010), ele não hesita em personificar e exigir para si o papel

de centro irradiador também do poder. No entanto, a nosso ver, o babalorixá é, de fato, apenas

o centro de transmissão e legitimação do poder, pois o centro mesmo é o próprio orixá, como

já afirmamos no capítulo II. E isso concorda com Foucault (1979) quando diz que:

O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não


só circulam mas estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer
sua ação. Nunca são o alvo inerte ou consentido do poder, são sempre
centros de transmissão. Em outros termos, o poder não se aplica aos
indivíduos, passa por eles. Não se trata de conceber o indivíduo como uma
espécie de núcleo elementar, átomo primitivo, matéria múltipla e inerte que
o poder golpearia e sobre o qual se aplicaria, submetendo os indivíduos ou
estraçalhando-os. Efetivamente, aquilo que faz com que um corpo, gestos,
discursos e desejos identificados e constituídos enquanto indivíduos é um
dos primeiros efeitos do poder. Ou seja, o indivíduo não é o centro do
poder: é um dos seus primeiros efeitos. O indivíduo é um efeito do poder e
simultaneamente, ou pelo próprio fato de ser um efeito, é seu centro de
transmissão. O poder passa através do indivíduo que ele constitui. (Ibid. p.
183-184).

Diríamos, então, que, no candomblé, as dinâmicas da transmissão dos conhecimentos

(fundamentos, segredos) e do poder, colocam o babalorixá na posição de centro de

engendramento e transmissão do poder (ao lado do orixá). Da mesma forma o conhecimento

transmitido plasma a personalidade social do adepto que, gradativamente, se aproxima do

segredo e do poder, à medida que vai tomando suas obrigações iniciáticas, como comprova os

depoimentos dos nossos interlocutores.

120
3.3. A tensão em torno do conhecimento e o conflito como disputa de poder

A constante tensão existente no interior do candomblé, em torno do conhecimento e do

poder, pode ser compreendida à luz das palavras de Bourdieu (1974), quando fala da gênese e

estrutura do campo religioso. Da mesma forma, a natureza deste poder em jogo pode ser

compreendida com a ajuda das suas palavras a respeito do poder simbólico (BOURDIEU:

2009).

Ora, quando Bourdieu fala de uma divisão do trabalho religioso (e aqui ele já se baseia

em Weber) e do surgimento de uma classe de “especialistas na gestão dos bens de salvação”,

sua análise pode tranquilamente se aplicar às estruturas hierárquicas que se estabelecem no

interior do candomblé. Já a relação que se estabelece entre segredo-conhecimento-poder,

nesta religião, é resultante dessa especialização da administração do capital religioso

analisada por Bourdieu (1974). Assim ele se expressa sobre esse processo:

O processo conducente à constituição de instâncias especificamente


organizadas com vistas à produção, reprodução e difusão dos bens
religiosos, bem como a evolução [...] do sistema destas instâncias no sentido
de uma estrutura mais diferenciada e mais complexa, ou seja, em relação a
um campo religioso relativamente autônomo, se fazem acompanhar por um
processo de sistematização e de moralização das práticas e das
representações religiosas [...]. (BOURDIEU, 1974, p. 37)

No caso do candomblé estas representações incluem tanto a ideia do segredo como a

aquisição do poder através do sistema de transmissão do conhecimento que se afirma como

secreto. Ao “corpo dos sacerdotes” que detém o poder legitimo de administrar o capital

religioso e atribuir poder, Bourdieu (1974) vai contrapor os leigos, os profetas e os feiticeiros.

Sendo que esses últimos seriam vistos sempre como o elemento de desordem

(BALANDIER,1997) que dinamizarão as relações no interior do grupo. Instalando sempre o

conflito e alterando as relações estabelecidas, e aparentemente definidas como estáticas, estes

121
elementos são tão indesejados pelo corpo de sacerdotes como necessários para a

sobrevivência e renovação do quadro religioso. Os sacerdotes seriam a tradição enquanto os

profetas e feiticeiros representariam a renovação.

Quando se trata então de transmissão de conhecimento, seja pela via da oralidade seja

pela via do segredo, a tensão está presente. Isso porque também é a transmissão do poder que

está em jogo. Assim também, quando as formas de transmissão se modificam a tensão se

acentua (cf. CASTILLO, 2010).

A concorrência entre os pais de santo, seus filhos, os “profetas” da religião

(reformadores) e os feiticeiros (mais adiante analisaremos a relação entre a magia e a religião

no candomblé e suas relações com o segredo e a crise de autoridade) aumenta ainda mais a

tensão, desencadeando, assim, uma verdadeira crise de autoridade no interior da religião.

Porém essa mesma tensão que pode desencadear o conflito a qualquer momento também pode

funcionar como mecanismo de coesão social desde que bem administrado pelo corpo de

sacerdotes. Isso porque:

As relações de transação que se estabelecem, com base em interesses


diferentes, entre os especialistas e os leigos, e as relações de concorrência
que opõe os diferentes especialistas no interior do campo religioso, constitui
o princípio da dinâmica do campo religioso e também das transformações
das ideologias religiosas. (BOUDIEU, 1974, p. 50)

A quebra do pacto tácito de segredo, ou mesmo a comercialização indiscriminada dos

conhecimentos tidos como secretos, representaria uma espécie de ruptura com o sistema de

legitimação das formas de dominação legítimas (no sentido weberiano) estabelecidas ali

através do processo iniciático. Práticas desse tipo, no entanto, despertam um sentimento quase

generalizado de reprovação e censura entre os mais velhos, haja vista a utilização do termo

“marmotagem” na gíria do povo do santo, como já falamos anteriormente. Por trás de tudo

isso, há na verdade, uma luta por poder. Sendo que aqueles a quem Bourdieu (1974) chama de

122
“leigos” e “profetas” apostam todas as suas fichas em prol da conquista do poder, enquanto

aqueles a quem ele chama de “corpo de sacerdotes” fazem o que for necessário para se

manterem no poder. Trata-se então de uma luta pelo poder. Parafraseando Maggie (2001),

trata-se de uma “guerra de autoridades religiosas” pelo controle do conhecimento e, através

dele, do axé. O conflito então se justifica como uma atitude de resistência ao monopólio da

gestão dos bens de salvação, e diríamos: do axé. Aqui o axé significa, de acordo com a

reflexão de Bourdieu, o verdadeiro e legitimo capital religioso do povo do santo. A mesma

coisa que no primeiro capítulo chamamos de patrimônio. Ou seja, o axé – elemento protegido

pela prática do segredo ritual – é o mesmo capital religioso em torno do qual o conflito se

instala e sobre o qual o poder se estrutura.

Quando nos deparamos com uma série de agências comercializadoras de

“fundamentos”, como é o caso do site www.axeorixa.com65 e livros do tipo “Elégùn”

(T’OGUN, 2009)66, somos tentados a vê-los como elementos desencadeadores de conflitos

entre o povo do santo.

E quando vemos babalorixás e ialorixás se posicionarem veementemente contra este

tipo de prática, mais uma vez somos tentados a ver aí uma tensão fruto desse embate em torno

do axé e do poder. Isso porque, para o povo do santo, nessa relação de compra e venda são os

fundamentos que estão em jogo.

É o axé que é mercantilizado. Portanto, é a autoridade e o poder que se encontram em

perigo. Assim, os “vendedores de fundamentos” (como o Robson de xangô que assina o site

acima citado) são vistos pelos mais ortodoxos como aqueles que usurpam o poder que

legitimamente deveria estar apenas nas mãos do corpo sacerdotal. A regra é burlada. Outras

65
Que será melhor analisado no próximo capítulo.

66
(T’OGUN) OLIVEIRA, Altair B. Elégùn: iniciação no candomblé: feitura de Ìyàwó, Ogán e Ekéji. 3 ed. –
Rio de Janeiro: Pallas, 2009.

123
relações são colocadas. Tratar-se-ia apenas de uma realocação do corpo sacerdotal? Seriam os

“vendedores de fundamentos” apenas ebômes realocados do espaço religioso institucional

para o espaço do mercado? Mas na história do candomblé (assim como na história de toda

religião) sempre houve um intenso comércio de serviços e bens religiosos e mágicos.

Tratar-se-ia apenas de diferentes especialistas religiosos ocupando posições homólogas

diferentes: os ebômes no terreiro e os “vendedores de fundamentos” no mercado? Tratar-se-ia

apenas de mais uma das brincadeiras de Exu, a fim de dinamizar a religião e as relações de

poder, para que a religião não caia no marasmo e morra?

Ao que parece, o papel tanto do feiticeiro quanto do “vendedor de fundamentos” parece

ir na direção da concorrência com o corpo sacerdotal, uma vez que disputam com eles não só

o poder mas, até mesmo, os resultados financeiros que a venda de bens e serviços religiosos

poderiam lhes proporcionar. E isso tem acontecido com demasia entre o povo do santo.

Não conseguimos deixar de relacionar, por exemplo, o caso já citado do site

www.axeorixa.com67 com as palavras de Bourdieu a respeito do feiticeiro:

Por sua vez, o feiticeiro pode alugar abertamente seus serviços em troca de
remuneração material, ou seja, pode assumir explicitamente seu papel na
relação vendedor/cliente que constitui a verdade objetiva de toda relação de
especialistas religiosos e leigos. (Idem. p. 61)

Aqui estaria o grande embate entre a ortodoxia (representada pelos

babalorixás/ialorixás) e a heresia (personificada nos chamados “marmoteiros”). Essa disputa

disfarça a verdadeira disputa que a fundamenta: a luta pelo poder. Manter o segredo é manter-

67
Por se tratar de uma fonte móvel, não temos a certeza se o site em questão permanecerá por muito tempo no
ar. Por isso mesmo tivemos o cuidado de imprimi-lo na sua totalidade, a fim de procedermos com uma análise
mais minuciosa do seu conteúdo, como o fizemos durante o desenvolvimento dessa pesquisa. De qualquer forma
vale dar uma olhada nele, para perceber quão forte é o apelo comercial ali presente. Da mesma forma a natureza
e os propósitos do site parecem ir de encontro a toda a concepção de transmissão tradicional de conhecimento do
povo do santo. E aqui nos perguntamos: seria este tipo de sites uma radicalização dos “cadernos de axé
(fundamentos)”?

124
se no poder. Revelá-lo indiscriminadamente, ou comercializá-lo, é trocar poder por dinheiro.

Esses processos que dão origem ao conflito, a saber: concentração do capital religioso,

concorrências no interior da religião e conflitos pela conquista da autoridade e do poder,

recentemente, têm dado origem a uma espécie de “reforma protestante” dentro do candomblé.

E isso pode ser percebido nas próprias dinâmicas do segredo e daquilo que se considera como

tal. Essa “reforma protestante” pode ser percebida justamente em movimentos de legitimação

de processos que surgiram como atos contestatórios a uma ordem preexistente. E aqui

estamos falando, por exemplo, dos processos de reafricanização do culto. Dá-se, então, aquilo

que Bourdieu (1974) chamou de “absolutização do relativo e legitimação do arbitrário”.

3.4. Quando a magia desempenha seu papel: o segredo na fronteira entre religião e
magia

Historicamente a relação entre religião e magia sempre foi tensa. Da mesma forma é

sabido que, em se tratando de religiões afro-brasileiras, religião e magia sempre caminharam

juntas e, até hoje, quem procura o candomblé tanto pode está procurando-o motivado por

questões religiosas quanto pode procurá-lo a fim de contratar algum serviço relacionado com

a prática mágica. Aqui as fronteiras entre religião e magia são tão tênues quanto móveis. Não

seria prudente dizer que religião e magia aqui se confundem. No entanto, seria da mesma

forma imprudente não admitir que, na maioria das vezes, as duas caminham lado a lado. Isso

faz com que as dinâmicas de uma interfiram, mesmo que de forma indireta, nas dinâmicas da

outra.

Ao estudarmos as teorias acerca da magia, como o conhecido texto de Marcel Mauss,

Esboço de uma teoria geral da magia (1904), podemos perceber que o segredo está tão

presente na prática da magia quanto na da religião, apesar de a magia possuir uma grande

tendência a contrariar as práticas da religião, como afirma Durkheim (1996).

125
Entre os elementos que caracterizam o rito mágico Mauss (op. Cit.) apresenta os

seguintes: o mágico, os atos e as representações.

Ao analisar as características do mágico Mauss reconhece haver entre os sacerdotes e os

mágicos algumas semelhanças e diferenças. De qualquer forma sempre há uma tensão entre

ambos. Sobre os conhecimentos próprios do mágico Mauss (MAUSS, 1904 [2003, p. 79])

afirma: “É freqüente os segredos do mágico não serem transmitidos incondicionalmente”. Já

quando analisa os atos mágicos Mauss (Idem) admite que estes atos geralmente são cercados

de mistérios e segredos, assim como têm como cenários os lugares mais afastados da maior

parte da população e em um clima quase clandestino, o que contribui ainda mais para que esta

prática seja vista como socialmente reprovável. Segundo Mauss (Op. Cit. p. 83-84), a prática

da magia está ligada a um conjunto bem definido de condições de tempo e lugar. Esses

elementos constituem parte daquele conjunto que diferencia a religião da magia. E Mauss

(1904) acrescenta:

Mas há muitos outros sinais que devemos agrupar. Primeiro, a escolha dos
lugares onde deve se passar a cerimônia mágica. Esta não costuma ocorrer
no templo ou no altar doméstico, mas geralmente nos bosques, longe das
habitações, na noite ou na sombra, ou nos recônditos da casa, isto é, num
lugar isolado. Enquanto o rito religioso busca em geral a luz do dia e o
público, o rito mágico os evita. Mesmo lícito, ele se esconde, como o
malefício. Mesmo quando é obrigado a agir diante do público, o mágico
busca evadir-se; seu gesto se faz furtivo, sua fala indistinta; o médico
feiticeiro, o curandeiro que trabalha diante da família reunida, murmura
entredentes suas fórmulas, dissimula seus passes e envolve-se em êxtases
fingidos ou reais. Assim, em plena sociedade o mágico se isola, com mais
forte razão quando se retira no fundo dos bosques. Mesmo em relação aos
colegas, ele mantém quase sempre uma atitude de reserva. O isolamento,
como o segredo, é um sinal quase perfeito da natureza íntima do rito
mágico. Este é sempre obra de um indivíduo ou de indivíduos que agem de
modo privado; o ato e o ator são cercados de mistério. (...) Obtivemos com
isso uma definição provisoriamente suficiente do rito mágico. Chamamos
assim todo rito que não faz parte de um culto organizado, rito privado,
secreto, misterioso, e que tende, no limite, ao rito proibido. (MAUSS, 1904
[2003, p. 60-61]. Primeiros grifos nossos).]

126
Assim, para Mauss, o segredo é próprio da magia, assim como no candomblé também é

da religião. Podemos perceber então que, para Mauss, a prática do segredo é um dos

elementos que caracterizam a magia, no que ela se diferencia em parte da religião. Émile

Durkheim (1996), também estabelece as diferenças entre religião e magia, sendo que este

autor faz questão de evidenciar a relação tensa que sempre existiu entre ambas. Assim, ele

constrói seus argumentos:

Será que se deveria então dizer que a magia não pode ser distinguida com
rigor da religião? Que a magia está repleta de religião, como a religião de
magia, e que, por conseguinte, é impossível separá-las e definir uma sem a
outra? Mas o que torna essa tese dificilmente sustentável é a marcada
repugnância da religião pela magia e, em contrapartida, a hostilidade da
segunda pela primeira. A magia tem uma espécie de prazer profissional em
profanar as coisas sagradas; em seus ritos, realiza em sentido
diametralmente oposto as cerimônias religiosas. (DURKHEIM, 1996, p. 27)

Durkheim também admite que o mágico tende a se isolar do público para desenvolver

suas práticas mágicas (Idem, p. 29). E isso de fato acontece. No entanto, esse “prazer

profissional em profanar as coisas sagradas”, de que fala Durkheim, também tem aparecido

entre os feiticeiros ligados ao candomblé, no que tange ao segredo. No universo do

candomblé, outras dinâmicas têm acontecido. Uma delas é a transgressão, por parte dos

feiticeiros profissionais, da prática do segredo. E aqui poderíamos dizer que mais uma vez a

magia desempenha seu papel de contestadora da ordem e de opositora direta da classe

sacerdotal, quando se tem como objeto de disputa o controle do capital religioso - como diria

Bourdieu. O cartaz de anúncio de trabalhos mágico-religiosos que fotografamos em um poste

da Avenida 9 de julho, em São Paulo, durante a nossa pesquisa, evidencia um pouco essa

transgressão:

127
Imagem 1. Serviços mágico-religiosos em divulgação nas ruas de São Paulo:
A magia contrariando a religião
Foto: Patrício C. Araújo. Abril de 2011

Considerando o tipo de relação existente entre a categoria “cliente” no candomblé e a

categoria “adepto”, ou mesmo “filho de santo”, para a população ligada à vida dos terreiros, e

principalmente para os ebômes e sacerdotes, este anúncio, assim como a prática de quem o

divulga, é impensável. Beira o sacrilégio. Pois as regras do segredo (que também são as regras

do poder) não recomendam abrir para quem não é da religião a forma de se fazer o ritual.

Assim, a frase “todos os trabalhos são feitos na presença da pessoa”, soa como um absurdo

para aqueles que advogam a preservação das formas tradicionais de transmissão dos

conhecimentos. Mas podemos analisar este tipo de anúncio e de práticas ligados a ele, a partir

das palavras do próprio Durkheim (op. Cit.), quando diferencia a relação dos sacerdotes com

seus fiéis e a do mágico com seus clientes:

Claro que as crenças mágicas jamais deixam de ter alguma generalidade;


com frequência estão difusas em largas camadas de população e há
inclusive muitos povos em que seu número de praticantes não é menor que
o da religião propriamente dita. Mas elas não têm por efeito ligar uns aos
outros seus adeptos e uni-los num mesmo grupo, vivendo uma mesma vida.
(...) entre o mágico e os indivíduos que os consultam, como também entre
esses indivíduos, não há vínculos duráveis que façam deles os membros de

128
um mesmo corpo moral, comparável àquele formado pelos fiéis de um
mesmo deus, pelos praticantes de um mesmo culto. O mágico tem uma
clientela, não uma igreja, e seus clientes podem perfeitamente não manter
entre si nenhum relacionamento, ao ponto de se ignorarem uns aos outros;
mesmo as relações que estabelecem com o mágico são, em geral, acidentais
e passageiras; (DURKHEIM, 1996, p. 28-29)

Isso explicaria a relativização do segredo por parte do feiticeiro que divulga seus

serviços pelos postes da cidade de São Paulo, e diríamos, pelo Brasil afora. Não há entre ele e

o cliente uma disputa ou concorrência de poder que pudesse ser colocada em cheque com a

revelação do segredo, que se dá na exposição da forma de fazer o feitiço. Como não há

disputa de poder não há necessidade de segredo. Nas relações religiosas do povo do santo,

intra-terreiro, o segredo é necessário para manter as estruturas do poder. Por isso o segredo é

mantido. Como a magia se afirma como independente da religião (apesar dos agentes na

maioria das vezes serem os mesmos) ela acha-se no direito de relativizar o segredo. Isso, no

entanto, acirra ainda mais a rivalidade entre o espaço da religião e o espaço da magia, que

segundo Durkheim (DURKHEIM, 1996, p. 27): “tem uma espécie de prazer profissional em

profanar as coisas sagradas; em seus ritos, realiza em sentido diametralmente oposto as

cerimônias religiosas”.68

A relação, mutatis mutandis, existente entre a disputa de poder e revelação/ transgressão

do segredo, por parte dos feiticeiros, nos lembra um fato narrado por nossa orientadora, em

uma das nossas agradáveis conversas. Contou-nos ela que, à certa altura da sua pesquisa junto

a uma ialorixá, terminada a fase mais densa da pesquisa, a sua interlocutora lhe propôs revelar

todos os segredos do seu orixá pessoal: “agora sente aqui que vou lhe explicar todos os

segredos...”. Incontinente, a pesquisadora agradeceu-lhe e recusou a oferta. A primeira vez

que ouvi este relato (relatado inclusive no meu diário de campo) de imediato o interpretei

68
Movimento muito semelhante foi percebido por Castillo, ao comparar diferentes sites ligados a terreiros de
Salvador. A respeito veja Castillo, 2010, p. 130.

129
como resultado da inexistência entre elas de disputa por poder. A ialorixá achava-se à vontade

para revelar à pesquisadora os segredos por saber que tal revelação não resultaria em uma

possível concorrente no campo religioso. A pesquisadora, por sua vez, recusava a oferta por

não ter interesse no poder inerente aos segredos que ora lhe eram oferecidos. Ou seja, como

não havia disputa de poder não havia necessidade de controlar o fluxo do segredo. É muito

provável que, caso a pesquisadora também fosse da religião, a oferta não acontecesse. Isso

porque revelar segredos pode implicar divisão de poder. Controlar os segredos significa, por

sua vez, controlar o poder.

Nesse sentido, as dinâmicas que temos visto por parte dos feiticeiros que fazem “todos

os trabalhos na frente da pessoa” representam um convite a um diálogo mais demorado com

aqueles que advogam que “No trabalho de cura e feitiço, a sabedoria secreta opera sem ser

transmitida nem aniquilada” (BRAZEAL, 2005, 319), como diria Brian Brazeal.

Tal prática, diga-se de passagem, contraria um comportamento típico do povo do santo,

quando se fala de segredos e fundamentos - isso porque - mesmo quando diante das situações

mais constrangedoras e humilhantes, as pessoas ligadas às religiões afro-brasileiras sempre se

comportam com reservas e discrição quando o assunto é segredos e fundamentos. E isso se dá

tanto no âmbito da religião quanto da magia.

Tal fato se dá por ser claramente percebido no comportamento dos acusados de

feitiçaria, curandeirismo e falsa medicina69 estudados largamente por Yvonne Maggie (1992)

e por Júlio Braga (1995). Na maioria dos casos ali estudados, o comportamento dos acusados

69
Como nos explica Yvonne Maggie (1992), estes crimes estavam previstos no Código Penal de 1890, através
dos artigos 156, 157 e 158, nos quais estavam dispostas as penas para os crimes daquilo que as autoridades
judiciais e policias chamavam de “falsa medicina”, “espiritismo, magia e seus sortilégios”. (Ver: MAGGIE,
Yvonne. Medo do feitiço: relação entre magia e poder no Brasil. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, 1992, p.
22).

130
era quase padrão: respostas evasivas e vagas, de forma a não entrar nos detalhes das

cerimônias, quando a acusação de fato procedia.70

No já citado trabalho de Júlio Braga (1995), ao analisar o caso do auxiliar de comércio e

pai-de-santo, Nelson José do Nascimento71, acusado de “prática de feitiçaria e falsa

medicina”, Júlio Braga chama a atenção para a postura que o acusado assume e que, na

verdade, é a mesma postura assumida pela maioria do povo do santo acusado dos mesmos

“crimes”, por ocasião do interrogatório policial. Analisando o processo do interrogatório

policial aplicado ao acusado em questão, Braga afirma que:

De qualquer maneira, Nelson responde a todas as perguntas, sem


escamotear seu compromisso religioso e na linha do que se poderia esperar
de um sacerdote do culto afro-brasileiro, isto é, laconicamente. Quando diz
não saber para que servem os búzios, ainda aí, reage de acordo com o
padrão comportamental típico das pessoas do candomblé que se mostram
quase sempre reticentes ou evasivas toda vez que está em jogo a
preservação de elementos mais secretos, as coisas mais privativas, o saber
iniciático, em fim, as chamadas “coisas de fundamentos da seita”, como se
diz. (BRAGA, 1995, p. 135)

Pode-se dizer que posturas como a do religioso/feiticeiro que divulga seus trabalhos nos

poste da Avenida 9 de julho, em São Paulo, propondo realizar todos os trabalhos “na presença

da pessoa”, fogem à prática comum adotada pela maioria do povo do santo.

Mais uma vez religião e magia parecem estar em disputa, senão pelo controle da

administração do capital religioso, ao menos pelo controle do mercado de bens mágico-

religiosos. E aqui a preservação do segredo passa a ser também um elemento de disputa.

70
Assim também tem procedido uma parcela dos pesquisadores/autores iniciados, , como é o próprio Júlio
Braga, que é elogiado por Castillo uma vez que: “Sua obra navega habilmente entre os dois pólos do contínuun
etnográfico/paraetnográfico, dialogando com o trabalho científico sobre o universo religioso e, ao mesmo
tempo, abordando o cotidiano dos terreiros com uma apreciação profunda dos seus aspectos sociais e
históricos, evidenciando também um respeito cuidadoso pelos limites dos segredo” (p. 154)
71
Segundo inquérito instaurado na Delegacia da Terceira Circunscrição Policial de Salvador, Bahia, em três de
outubro de 1939, cf. BRAGA Júlio. Na gamela do feitiço: repressão e resistência nos candomblés da Bahia.
Salvador, 1995, pp. 125-145.

131
Como falamos anteriormente, quando se trata de candomblé é deveras difícil falar de

religião e magia como duas realidades totalmente distintas e separadas. E sendo o

babalorixá/ialorixá, muitas vezes, o principal agente tanto dos serviços religiosos como dos

serviços mágicos, vamos perceber esses sujeitos assumindo diferentes posturas em relação ao

segredo ritual, dependendo dos seus consulentes. Se estão diante de um filho de santo a

atitude é uma. Se diante de um cliente a relação é outra. Mas, na maioria das vezes, àqueles

ligados à vida nos terreiros advogam a idéia de que os segredos devem ser sempre

preservados quando se trata de clientes. Até porque a natureza da relação estabelecida entre o

cliente e a religião é totalmente diferente daquela estabelecida pelo adepto, como já afirmara

Durkheim (1996). As falas dos nossos entrevistados revelam bem essa tendência a evitar

“revelação de segredos” para clientes. Quando lhes perguntamos se os clientes tinham acesso

aos segredos da religião as respostas dadas foram as seguintes:

Eles não ficam sabendo dos segredos. (Pai Jean de Oxalufã)

Não. Eles não podem ter acesso ao segredo. (...) Eles podem matar uma série de curiosidades, mas o
segredo não. (Pai Paulo de Oxum)

Num primeiro momento não. Ele está preocupado em resolver um problema. (...) Mas quando ele se
depara com uma religião rica em representações ele se encanta. A partir do momento em que ele se
encanta ele está assim encantado no mistério, com o mistério e com o segredo. (...) como o diálogo
nessa religião é também um encantamento, nesse encantamento eu posso fazer uma falsa aparência
do segredo. Aquele que não conhece fica ali, em um primeiro momento, pode achar que eu estou
revelando um segredo. (...) É claro que eu posso simular. (Renato de Ogum)

Não. Eles vêm (...), pela sua necessidade, tirar um ebó, fazer o que é preciso e acabam seguindo o
caminho. Retornam quando precisam de outras coisas. Mas não têm direito de fazer parte do segredo
da casa. Dos mistérios da existência do axé. Do ilê. Do abassé. Por quê? Porque essas pessoas só
estão de passagem. (...) eles participam aqui em baixo. Mas, por trás de todo o fundamento, por trás
de todo o preparo, não sabem o que existem. (Pai Silvio do Oxósse)

Não. Não tem como aprender o fundamento em um dia, em um jogo de búzios ou em uma festa. (...)
Então eles têm acesso aí a uma festa e mais à parte superficial mesmo. O ritual todo, a festa maior
dos orixás, ocorreu já lá dentro do roncó. Dentro do quarto de santo (...). Lá dentro do salão é só uma
festa para mostrar, para tentar passar aquilo que foi feito lá dentro, mas eles não têm acesso ao que
foi feito dentro do roncó. (Carla de Oxósse)

132
(...) se for simplesmente um consulente que vem passar nas consultas com os guias, aí ele também
pode vislumbrar um segredo, mas ele não vai saber. (Reginaldo de Ogum)

Sendo os clientes os sujeitos que se encontram nas fronteiras, tanto da religião em

relação ao mundo extra-candomblé, quanto nas fronteiras entre religião e magia72, esta

categoria de agentes é fundamental para que se compreenda as fronteiras do segredo e da sua

prática. Observando seu comportamento em relação à religião, assim como o comportamento

das lideranças religiosas em relação a eles, é possível vislumbrar um termômetro capaz de

mensurar até que ponto a prática do segredo ainda encontra respaldo entre o povo do santo. E

da mesma forma, é possível também especular acerca dos mecanismos de revelação do

segredo/transgressão das formas tradicionais de transmissão do conhecimento. Transgressões

essas que, na maioria das vezes, dão margem a uma crise de autoridade no interior da religião.

Mas essa crise de autoridade, resultante da transgressão da prática do segredo ritual, é matéria

para o próximo (e último) capítulo desse trabalho.

72
E novamente Reginaldo Prandi nos ajuda a compreender o papel dos clientes nesta religião, no seu já citado
livro Os candomblés de São Paulo (1991[2001], p. 26) quando afirma: “Os clientes têm sido sempre importantes
para o candomblé como religião, isto é, enquanto grupo de culto organizado. Mas essa clientela procura o
candomblé como serviço mágico, magia que lida o tempo todo com a manipulação do mundo através do
sacrifício”.

133
Capitulo IV

4. A comercialização do segredo e a crise de autoridade

“Exclusivo: revelados os segredos das fundamentações de cada qualidade de Obaluaiye (Omolu) no


candomblé Ketu. Segredos que são guardados à sete chaves. Aqui você encontra o que não encontrará em
nenhum outro livro, apostila, cursos, e até mesmo na grande maioria das... Esta é a ‘oportunidade’ de você ter
acesso a todos esses fundamentos da feitura de cada qualidade de Obaluwaiye (Omolu) hoje mesmo!”
(“Robson de Xangô”, Site http://www.axeorixa.com – Acesso em 15/08/2010)

4.1. Ilusão de ótica

Desde os primeiros momentos em que começamos nossa pesquisa de campo, no início

de 2010, ao chegarmos nas casas da Mãe Leda de Oxum, Mãe Sylvia de Oxalá, Tata Silvio de

Oxósse, e nas demais casas nas quais conversamos sobre segredos, tivemos uma forte

impressão de que o segredo no candomblé estava “muito bem obrigado!”. Diferentemente da

tendência observada na academia, que, na maioria das vezes, parece ter total convicção da

inexistência de segredos nessa religião, sempre que perguntávamos sobre a existência de

segredos no candomblé a resposta de nossos interlocutores era sempre positiva. Sinceridade

ou jogo, o fato é que, segundo eles, o candomblé continuava sendo uma religião de segredos.

No Axé Oxum da Mãe Leda, por exemplo, nos dias de festas, os assentamentos dos orixás do

tempo, além dos arbustos sagrados que os protegem constantemente, formando-lhes uma

espécie de cortina em volta, eram (assim como continuam sendo) protegidos por um biombo

formado por duas estacas que abrigam um tecido colorido protegendo assim os sinais do

sacrifício, realizado alguns dias antes. Da mesma forma, levamos um bom tempo para sermos

admitidos aos rituais secretos da casa, mesmo já tendo uma relação de amizade bem

consolidada com a ialorixá. Já o acesso às casas dos orixás (como as de Oxum, Oxalá e

Obaluayê) só muito tempo depois do início de nossas visitas ao axé, nos foi franqueada, sendo

134
que até o momento em que escrevemos estas linhas ainda não nos foi concedida uma visita

aos assentamentos das Iyá mi Oxorongá.

Na casa da Mãe Sylvia de Oxalá, por sua vez, tivemos que conviver e aguardar por

cinco longos meses até conseguirmos autorização para presenciar o orô de Ibeji. Orô este que

se realizou na grande cozinha do terreiro e não na casa do santo, talvez devido a nossa

presença ali. As portas das casas dos orixás, sempre hermeticamente fechadas, deixavam claro

que ali o segredo continuava preservado e sua prática mantida. Lembramo-nos que apenas

uma vez, ao transladarem os ibás dos ibejis, contendo os axés dos orôs, da cozinha para a casa

de Oyá, algumas ebômes esqueceram a porta entreaberta, revelando em parte seu interior.

Antes e depois disso não nos vem à mente nenhum outro momento em que tenhamos visto o

interior de nenhuma das casas dos orixás no Aché Ilê Obá.

Já na casa do Tata Silvio de Oxósse, mesmo sendo sempre bem recebidos nas festas e

demais momentos do cotidiano do terreiro, quando se tratava de orô nunca tivemos o

privilégio de sermos convidados a presenciá-lo. Não que o nível de confiança entre nós e o

tata fosse insuficiente, mas porque as fronteiras existentes entre nós (fronteiras essas impostas

pela condição de iniciado que implica diferenças de nação, condição hierárquica, além da

situação de pesquisa, etc.) impunham uma etiqueta que jogava a favor da manutenção da

discrição inerente à prática do segredo. No entanto, como nossa intenção durante a pesquisa

não era ter acesso aos segredos dessas casas, mas compreendermos seu funcionamento e

metamorfoses dentro e fora dos terreiros, todas essas performances só nos ajudavam, cada vez

mais, a compreendermos as formas de atuação do segredo e as fronteiras impostas por ele,

conforme tratamos nos capítulos anteriores.

Evocamos esses episódios apenas para dizermos que, à primeira vista, o objeto da nossa

pesquisa (o segredo ritual) nos pareceu dinâmico e versátil, mas raramente insustentável,

apesar de seus disfarces. Quanto à idéia de uma crise do segredo, temos que confessar que,

135
inicialmente, parecia ser uma realidade bastante evidente. No entanto, com o decorrer da

pesquisa e, mais precisamente, após o exame de qualificação, ficou claro que se existia uma

crise envolvendo o segredo, essa crise não era exatamente do segredo em si, mas da

autoridade dos babalorixás e ialorixás que viam os fundamentos circularem em canais

independentes da vida no terreiro. E isso provocava um conflito ainda mais acentuado entre os

agentes dessa circulação paralela e as autoridades religiosas que lutavam pelo monopólio da

administração do capital religioso do povo do santo. De fato, bastou começar as entrevistas e

tocar no assunto da divulgação de fundamentos na Internet para percebermos que os

conhecimentos tidos como secretos estavam mesmo “vazando” e que o povo do santo tinha

plena consciência disso. E mais: o povo do santo e, principalmente, a esfera dos ebômes, já

tinha opinião formada a respeito, assim como essas dinâmicas já influenciavam as relações

sociais no interior das casas. Nosso objeto de estudos, que por um momento nos pareceu

escorrer por entre os dedos, voltava novamente às teias da nossa análise.

Isso nos fez entender que o vazamento de fundamentos se dava num duplo sentido:

partindo de dentro para fora e retornando de fora para dentro. Isso porque os agentes que

alimentam os meios de circulação paralela de fundamentos são oriundos dos próprios

terreiros, haja vista os conteúdos das informações que ali têm circulado. E essas dinâmicas

têm influenciado sobremaneira a vida e as relações sócio-hierárquicas no interior das casas de

candomblé, a ponto de forçarem uma nova relação tanto com os conhecimentos religiosos

como com suas formas de transmissão.

Como resultado disso, podemos perceber, inclusive, uma acentuação nas formas de se

preservar aquele conjunto de práticas e conhecimentos tidos como secretos. Talvez isso

explique a impressão que tivemos inicialmente de que o segredo estava “muito bem

obrigado!”. No entanto, fora dos terreiros, os conhecimentos geralmente associados ao

segredo viraram mais uma questão comercial, como veremos ao longo deste capítulo. Pode-se

136
então cogitar a idéia de que: transmissão de conhecimentos, vazamento do segredo e crise de

autoridade, constituem realidades contíguas. Isso porque, uma análise detida do material

divulgado (seja nas etnografias, vídeos na internet, apostilas, cursos especializados, etc.)

mostrará que tal divulgação é levada a cabo ou pelo próprio povo do santo ou por agentes

consentidos por ele. Seria isso um sintoma de que a compreensão de segredo entre o povo do

santo se modificou? Existiriam ainda segredos nos moldes da tipologia de segredo

compreendido até a década de 1930? O fato é que, mesmo o segredo continuando preservado,

os movimentos de divulgação e venda de fundamentos parecem promover um movimento

bastante consequente no universo dessa religião.

Surge então uma questão bastante complexa de ser analisada: quem promove o

vazamento de fundamentos faz parte dos quadros dos terreiros. Isso se pode constatar ao

analisarmos o conteúdo dos materiais comercializados por sites como axeorixa. Assim, o

mesmo raciocínio que se fez a respeito da natureza do segredo (capitulo II) pode-se fazer a

respeito da crise: frustra-se quem procura crise do segredo no interior dos terreiros. Esta é

percebida nas relações exteriores e em torno dele, pois é lá que ela está se estruturando. Seus

efeitos sim, são percebidos nas relações intra-terreiro.

Neste capítulo isso ficará mais claro, principalmente através dos depoimentos dos

interlocutores.

4.2. Compreendendo o termo CRISE e seu papel nesta discussão

Antes de caracterizarmos e analisarmos a crise de autoridade, resultante da divulgação

indiscriminada e comercialização massiva de fundamentos, comecemos esclarecendo o

conceito de crise, e a compreensão que aqui será adotada.

137
Segundo o Dicionário de Filosofia73, o termo “crise” (in. Crisis; fr. Crise; al. Krisis; it.

Crisi) é um termo que teve sua origem no universo da medicina hipocrática, na qual indicava

a transformação decisiva que ocorre no ponto culminante de uma doença e orienta o seu curso

em sentido favorável ou não.74 O mesmo Dicionário ainda continua dizendo que “Em época

recente, este termo foi estendido, passando a significar transformações decisivas em qualquer

aspecto da vida social”.

Já o Dicionário de Ciências Sociais75 ao comentar o verbete crise diz:

H. P. Fairchild, no Dicionario de Sociología (México, FCE, 1949)


caracteriza o fenômeno da CRISE como ‘toda interrupção do curso regular
e previsível dos acontecimentos’. Refere-se de maneira concreta à crise
social, ‘situação grave da vida social, quando o curso dos acontecimentos
alcançou um ponto em que a mudança é iminente, para o bem ou para o
mal, a partir da perspectiva do bem-estar humano; nessa situação a
capacidade de direção do controle social é incerta. Do ponto de vista do
bem-estar social, o critério único para julgar uma crise é o de suas
conseqüências na união ou na desunião maior ou menor do grupo’”.

E continua aprofundando o sentido do termo, aplicado ao mundo social (e aqui

solicitamos uma redobrada atenção para o trecho que se segue, por ser de extrema importância

no contexto da abordagem que propomos):

73
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. Alfredo Bosi. Martins fontes, São Paulo, 2007.
Edição revista e ampliada. p. 259.
74
Cf. HIPÓCRATES, Prognosticon, 6, 23-24; Epidemias, I, 8, 22, ainda segundo o mesmo Dicionário de
Filosofia.
75
Dicionário de Ciências Sociais. Coord. Geral: Benedicto Silva. Ed. FGV, Rio de Janeiro, 1986. p. 284.

138
“As crises sociais não são necessariamente disfunções, já que podem ser
importante fator de mudança. A tal respeito E. Durkheim fala de ‘crises
afortunadas’ (El Suicidio. Buenos Aires, Schopire, 1965, p. 192). O
fenômeno das crises tem sido relacionado na literatura sociológica com o
fenômeno da desintegração do sistema de valores (...)” (Idem)

Caso nos aventuremos na busca da compreensão da etimologia do termo crise

encontraremos, por exemplo, no Dicionário Etimológico Nova Fronteira76 a seguinte

exposição:

“CRISE: sf. ‘Alteração, desequilíbrio repentino’, ‘estado de dúvida e


incerteza’, ‘tensão, conflito’ / Crysis 1813 / do lat. Crisis –is, deriv. Do Gr.
Krisis”

O Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa77, por sua vez, apresenta (em meio aos

treze significados que atribui ao termo crise) os seguintes significados, que nesta discussão

podem nos ser úteis: 3. Manifestação violenta e repentina de desequilíbrio. 5. Estado de

dúvidas e incertezas. 7. Momento perigoso e decisivo. 9. Tensão e conflito.

Na discussão que propomos aqui, essa compreensão de crise como tensão e conflito é

indispensável. Por isso mesmo os destacamos em negrito. E é como elemento resultante de

um conflito, que analisaremos a crise de autoridade vivida no candomblé na atualidade, em

função do vazamento e comercialização de fundamentos.

76
CUNHA, Antonio Geraldo. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua portuguesa. Ed. Nova
Fronteira, 2ª Edição, 9ª reimpressão, 1997.
77
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 3ª Edição, Revista e
Atualizada. Ed. Positivo, Curitiba, 2004, PP. 576.

139
4.3. Os precedentes da crise

Quando em 1992 o professor Vagner Gonçalves da Silva se debruçava sobre o estudo

das transformações pelas quais o candomblé passava nas grandes cidades brasileiras e discutia

o candomblé na era do chip (SILVA, 1995, p. 19) delimitava-se um horizonte bastante

promissor no que concerne aos estudos sobre as dinâmicas e metamorfoses do universo

religioso afro-brasileiro e, mais especificamente, sobre a questão do segredo. No tocante à

prática do segredo ritual, esse mesmo estudo iria ser ainda mais alargado, com os posteriores

estudos já citados de Johnson (2002), Prandi (2005), Castillo (2005), Tacca (2009) entre

outros, além do próprio Silva (2006).

No entanto, antes mesmo desses estudos virem à tona e a temática do segredo ocupar

tanto a preocupação dos estudiosos, alguns episódios envolvendo a questão do segredo no

candomblé já haviam sacudido o universo dessa religião, episódios esses que, inclusive,

ultrapassaram as fronteiras do Brasil, ocupando as páginas de revistas de grande circulação

tanto no Brasil (O Cruzeiro) quanto na Europa (Paris Match), como nos mostra tão

brilhantemente o trabalho já citado de Fernando de Tacca.

Esses episódios, que não retomaremos aqui por motivos óbvios78, foram emblemáticos e

fundamentais no contexto das discussões em torno do polêmico assunto, pelo fato de terem

chamado a atenção tanto do povo do santo quanto da academia, para um processo que viria a

se intensificar cada vez mais e que desembocaria naquilo que aqui estamos chamando de

“vazamento de fundamentos” e “crise de autoridade” no candomblé.

Tal crise, que atinge “de cheio” a prática do segredo, apesar de ter suas origens mais

remotas nos próprios processos de mudanças e transformações intrínsecos à qualquer universo

78
Àqueles que desejarem revisitar os episódios da revista O Cruzeiro, os casos Clouzot e Paris Match,
recomendamos o já citado trabalho de Fernando de Tacca: TACCA, Fernando. Imagens do sagrado: entre Paris
Match e O Cruzeiro. Ed. Unicamp & ImprensaOficial, São Paulo, 2009.

140
religioso, parecem ter se intensificado com a interferência de agentes externos à religião

(sejam estudiosos, jornalistas, fotógrafos, cineastas, etnógrafos etc.) no cotidiano dos

terreiros. Isso porque estas interferências perpassam um campo largamente heterogêneo, no

qual informações e práticas religiosas do candomblé; antes tidas como restritas aos iniciados,

com o passar do tempo, vão caindo no domínio público, ao ponto de imporem adaptações por

parte da religião, incidindo assim sobre as relações sociais estabelecidas no interior das

comunidades de terreiros79. Veremos que o “vazamento de fundamentos” se dará através dos

mais variados veículos de comunicação como fotografias, documentários, reportagens,

etnografias, e mais recentemente, e de uma forma muito mais intensa e comercial, através da

rede mundial de computadores, a Internet.80

Há quem diga que o processo de “exposição de segredos” tenha começado através de

trabalhos como os de Nina Rodrigues (1900), Edson Carneiro (1937), Ruth Landes (1947)81 e

Pierre Verger (1982; 1999), em se tratando de veiculação textual. Há também quem defenda

que o impacto das fotografias de José Medeiros, publicados em O Cruzeiro, tenha sido o

estopim da questão da revelação indevida dos segredos do candomblé.82

79
Em um recente artigo intitulado: Imagens do segredo, Juliana Barreto Farias discute esses processos de
divulgação de imagens privadas do interior de terreiros na cidade baiana de Cachoeira e suas implicações entre o
povo do santo do recôncavo baiano. (FARIAS, Juliana Barreto. Imagens do segredo. In: Revista de História da
Biblioteca Nacional. Ano 6, nº 62, novembro de 2010, pp. 42-44.
80
A respeito das rápidas transformações das tecnologias da informação e suas possíveis interferências no modus
vivendi do povo do santo de Salvador, ao final do seu trabalho de doutoramento, Castillo afirma: “Quando este
estudo se encerrou, em meados da primeira década do século XXI, a Bahia estava sendo transformada pela
revolução digital. O uso de computadores e da internet, anteriormente restrito às classes mais abastardas,
estava se espalhando também na periferia urbana. Em 2006, a maioria dos bairros populares já tinham pelo
menos uma Lan House e tecnologias audiovisuais mais portáteis também estavam ganhando espaço: máquinas
digitais, telefones celulares que tiravam fotos e pequenos gravadores de MP3. Mudanças no quadro social já
estavam repercutindo na dinâmica da transmissão, circulação preservação do saber. Os jovens do candomblé
de hoje em dia nasceram após o fim da repressão policial, o que influencia sua noção de segredo” (Castillo,
2010, pp. 190-191).
81
Como é o caso de Johnson (2002).

82
Tacca, Opus Cit.

141
E, ainda, há quem defenda que a revelação dos ditos segredos rituais parte, inclusive, do

povo do santo, pois: “Os adeptos do candomblé não precisam mais guardar seus segredos

porque o candomblé já virou o troféu da herança africana na identidade nacional

brasileira”.83 Aliás, é nessa dinâmica que se pode classificar uma gama relativamente

considerável de materiais produzidos por pessoas do santo como é o caso da obra já bastante

conhecida de Altair B. Oliveira (Altair T’Ogun), entre inúmeras outras.

Em Elégùn: iniciação no candomblé (OLIVEIRA, 2009), desde o prefácio, assinado

pelo renomado babalaô Agenor Miranda Rocha, a tensão em torno do elemento segredo já

pode ser percebida. Ao se referir à volumosa produção bibliográfica sobre religiões afro-

brasileiras, o famoso prefaciador argumenta: “Essa volumosa produção levanta opiniões

antagônicas. Uns não concordam com a revelação de segredos da seita e outros acreditam

que sua divulgação tem um lado pedagógico que não deve ser desprezado”. Ao que parece,

essas palavras do babalaô nos remetem claramente à opinião de que o trabalho ora prefaciado,

revela informações e procedimentos até então tidos como secretos.

Mais adiante, as palavras do babalaô são ainda mais contundentes, ao ponto de admitir

que a dinâmica revelar/não-revelar segredos interfere nas relações sociais estabelecidas entre

os adeptos do candomblé. São dele as seguintes palavras:

Para aumentar esta diáspora, há a questão da forma de transmissão do


conhecimento sagrado. Sendo oral, somente alguns detinham o domínio dos
preceitos mais fundamentais, que passavam aos escolhidos por suas
qualidades ou aos designados pelos orixás. Não era o fato de fazer santo que
habilitava a pessoa a ser pai ou mãe-de-santo ou a ocupar um cargo na casa.
Os segredos eram ensinados por quem os tinha para quem os merecia
receber. Era, no entanto, um outro tempo. Tempo em que religião era caso
de polícia, tempo em que através do segredo e da transmissão do saber a
pessoas de confiança preservava-se a própria religião. Foi assim que ela
atravessou os séculos e chegou até os tempos atuais. Atualmente, como os
segredos são apropriados com mais facilidade, é de se prever que as
divergências se acentuem. (Apud: T’OGUN, 2009. Grifos nossos).

83
BRAZEAL, Brian. Reseña de “Secrets, Gossip and gods” de Paul Christopher Johnson. Afro-Ásia, número
032, Universidade federal da Bahia, Bahia, Brasil, p. 318.

142
Em tão poucas palavras o Professor Agenor Miranda fala muito. Aí está presente desde

a relação entre segredo e poder – visceral no candomblé - até a relação entre manutenção do

segredo, transmissão sistemática dele e manutenção da religião. Aí também está a

preocupação com as novas formas de apropriação do segredo que, segundo o babalaô,

atualmente se dá de forma mais fácil, acirrando as divergências entre o povo do santo. E aqui

parece existir uma simetria entre o pensamento do professor e o nosso, no tocante às

interferências do “relaxamento”, da prática do segredo e as mudanças dos mecanismos de

coesão social intra e inter-terreiros.

Ao final do prefácio, o babalaô se isenta do envolvimento em uma conhecida polêmica

do povo do candomblé, através das seguintes palavras: “Sem entrar no mérito da polêmica

acerca do que deva ou não ser publicado, saudamos mais esta contribuição aos estudos da

cultura e religiões afro-brasileiras” (Idem). Segundo uma conhecida expressão bem

brasileira, diríamos ao renomado babalaô: “Boa saideira!”

O autor de Elégùn, no entanto, não tem a mesma facilidade em se isentar do peso da

responsabilidade, ao revelar aquilo que é tido como segredo no interior dos terreiros.

Percebemos que ele, mesmo tentando se justificar, tem consciência de que incorre neste risco:

Aqui, tive o cuidado de não infringir o awo e passar segredos do culto,


coloco tão-somente detalhes importantes das práticas rituais às quais me
reporto, que tem o objetivo de ilustrar e informar as pessoas que as
executam (...) (Idem, p. 1-2)

Ora, se o segredo (awô) consiste justamente no conjunto simbólico e performático deste

universo religioso, como já explicamos no capítulo II, passar detalhes importantes implica

também em revelação de segredos. Mesmo porque, não é a interação desses detalhes

importantes que constitui o savoir-faire do povo do santo? E esse savoir-faire não constitui o

próprio segredo desse mesmo povo?

143
E T’Ogun segue então descrevendo, minuciosamente, todo o processo de iniciação de

iaô, ogã e equéde; Desde o momento da consulta ao oráculo, para identificar a que orixá o

aspirante à iniciação pertence, até às etapas finais do processo iniciático, passando por um

conjunto de rituais que inclui:

(i) Ebo Èsù ònòn (ebó de Exu no caminho).


(ii) Ebo ikú (ebó para despachar a morte, doenças e outras negatividades).
(iii) Ebo Onílè (ebo para o Senhor da Terra).
(iv) Igbá Èsù (assentamento de Exu).
(v) Ebo omidùn (ebó das águas doces).
(vi) Ebo omi iyó (ebó das águas salgadas).
(vii) Ebo Igbó (ebó das matas com oferendas para Òsónyín, Òsóòsì, Aginjù e
Ìyámi Àjé).
(viii) Wè ariàse (banho das folhas consagradas do Òrìsà a ser iniciado).
(ix) Fárí èkinní (primeira raspagem da cabeça).
(x) Ebo Èsù (para o Exu da casa e o Exu que está sendo assentado).
(xi) Ebo Òrìsà (èjè wè ou sundide, banho de èjè da iniciação do ìyàwó).
(xii) Eborí (oferenda à cabeça). (Ibid. p. 6-7)

Ora, pode-se, então, perguntar: até que ponto esse conjunto de rituais possui status de

segredo entre o povo do santo? E até que ponto a revelação de seus detalhes é vista como

“quebra do segredo” por parte do mesmo povo?

Polêmicas à parte, fato é que, desde estes primeiros trabalhos uma enxurrada de

imagens e informações, antes tidas como conhecimento esotérico inerentes à condição de

iniciados, passa a circular livremente. E, posteriormente, passa a ser comercializada, como

mostra a epígrafe a este capítulo, nos mais variados meios de comunicação. O refinamento

desta prática de alargamento da circulação de fundamentos vai atingir uma expressão máxima

em materiais como a coleção Espiritualismo da Editora Ediouro, na década de 1980, onde os

títulos de alguns livros desta coleção demonstram o propósito da mesma: “Todos os segredos

144
de Ogum”84, “Todos os segredos de Xangô”.85 De uma literatura mais “leve” para outra mais

substancial, livros como os de Altair T’Ògún86, muitas vezes acompanhado de Cd’s com as

“cantigas de fundamento”, acompanham a tendência de tornar público e comercializável

aquilo que antes era mantido na discrição dos terreiros e dos roncós. E assim o segredo vai se

metamorfoseando.

4.4. Fundamentos à venda: o segredo e o mercado

No limiar do século XXI, enquanto a economia mundial parece dar sinais de que o

capitalismo teria atingido seu paroxismo, as dinâmicas religiosas do candomblé apontam na

direção de uma reconfiguração de muitas das suas estruturas e elementos estruturais. No que

tange à prática do segredo ritual isso fica ainda mais claro. Posturas as mais radicais, no

sentido de manter o segredo, convivem com outras visivelmente revisionistas. Tudo isso

também pode ser compreendido à luz das diversas transformações pelas quais passa nosso

tempo e nossas práticas. Há quem atribua essas diferentes posturas às dificuldades de algumas

lideranças religiosas, no tocante ao convívio e diálogo com o mundo cada vez mais

modernizado. O que está claro, no entanto, é que, em tempos de capitalismo dominante e

concorrência religiosa nas grandes metrópoles, o mercado de bens simbólicos e serviços

religiosos incide diretamente sobre as dinâmicas religiosas, interferindo, consequentemente,

nas estruturas mais fundamentais das religiões tradicionais.

84
SILVA, Jacimar. Todos os segredos de Ogum. Col. Espiritualismo, nº 51880, Ed. Ediouro, s/d, Rio de Janeiro.
85
Idem (1988)

86
T’OGUN, Altair. Elégùn: iniciação no candomblé. Feitura de Ìyàwó, ogán e ekéji. Pallas, Rio de Janeiro,
2001.

145
O candomblé não fica fora desses movimentos. Ao afirmar que os candomblés de São

Paulo surgiram e se desenvolveram como uma resposta a uma demanda por esses bens

simbólicos e religiosos, Prandi87 já chamava nossa atenção para uma das principais

características das religiões afro-brasileiras: o mercado religioso envolvendo essas

modalidades religiosas está sempre em ebulição.

Em meio a tudo isso, os fundamentos (segredos rituais) do candomblé se

metamorfoseiam de patrimônio do povo do santo em mercadoria disputadíssima, em torno da

qual a especulação vai se estruturando de uma forma compatível com as próprias dinâmicas

do mercado capitalista. E as regras deste mercado nem sempre levam em conta as antigas

tradições. O desejo de lucro, assim como acontece em qualquer relação capitalista, suprime

antigos princípios e dilui fronteiras antes tidas como intocáveis e indiscutíveis. O segredo

assume então outro status. É capitalizado. Converte-se em mercadoria. E como mercadoria

possui seu fetiche. Em torno desse fetiche do segredo surge uma nova categoria de

vendedores de axé, como é o caso do já citado “Robson de Xangô”, idealizador do site

www.axeorixa.com. Vender segredos deixa de ser sacrilégio e passa a ser meio de vida. As

dinâmicas do mercado se impõem e o comércio de conhecimentos religiosos (fundamentos)

atinge um ponto até então não praticado. Tudo isso vai atingir, “de cheio”, as relações de

poder e autoridade, próprias da vida no terreiro e na religião.

Multiplica-se, então, cada vez mais, o número de cursos88, apostilas, websites, DVD’s,

CD’s, revistas especializadas etc. com o objetivo de comercializar os fundamentos da religião.

87
PRANDI, Reginaldo. Os candomblés de São Paulo. HUCITEC, São Paulo, 1991 [2001], pp. 20-21.

88
A respeito desses cursos (assim como de outras práticas como é o caso dos famosos “Cadernos de Axé”)
muito já foi falado. Indicamos aqui apenas dois trabalhos, já citados, o de Vagner Gonçalves da Silva: Orixás da
Metrópole (1995), onde o autor aborda de forma bastante satisfatória estas práticas entre o povo do santo de São
Paulo, e o de Júlio Braga: Na gamela do feitiço (1995), no qual o autor faz um contraponto, chamando a atenção
para o lado positivo da utilização dos cadernos. Já o trabalho de Lisa Louise Earl Castillo (Entre a oralidade e a
escrita: percepções e usos do discurso etnográfico no candomblé da Bahia, 2005) merece destaque especial por
abordar, de forma muito profunda, a relação entre oralidade e escrita no universo do candomblé.

146
Alguns desses veículos nem objetivam comercializar, mas apenas divulgar rituais, cantigas,

ebós, e outros procedimentos religiosos. Um caso bastante sugestivo é o do site de vídeos

www.youtube.com, no qual se pode encontrar, até a exaustão, vídeos e fotografias dos mais

variados rituais religiosos do candomblé, desde os sacrifícios de animais (orôs) até a iniciação

de iaô.

Como já foi dito, alguns desses veículos de comunicação objetivam exclusivamente a

comercialização dos fundamentos; Outros, por seu turno, alegam propósitos diversos que vão

desde a democratização do patrimônio cultural e religioso afro-brasileiro, até a quebra de

preconceitos e estigmas, geralmente associados às práticas religiosas dessas religiões.

Naturalmente as reações a este tipo de prática variam tanto qualitativa como

quantitativamente. Os depoimentos dos nossos interlocutores em campo mostram bem

algumas das reações típicas.

Outra reação bastante clássica e sintomática é a que evoca a gíria “marmotagem” entre o

povo do santo. Ao classificar as práticas tidas como desviantes de “marmotagem” o povo do

santo parece querer dizer que marmotagem tanto pode ser “fazer errado” (ou “de qualquer

jeito”) quanto fotografar e divulgar aquilo que se faz no contexto do segredo ritual - mesmo

que seja feito conforme a tradição prescrita. Nessa compreensão é “marmoteiro” quem faz

errado, mas é da mesma forma marmoteiro quem faz certo e divulga através de fotos, vídeos,

ou quaisquer outras formas de comunicação de massa. Em outras palavras, divulgar

fundamento é marmotagem.

Entre aqueles que criticam a divulgação de fundamentos na internet percebe-se mesmo

uma grande preocupação em deixar bem claro seu posicionamento contra esse tipo de

procedimento, como vemos abaixo, no depoimento de Valéria de Oxum:

147
Você vai na internet, o que você buscar você acha. Mas isso é uma falha
da casa. (...) uma falha da casa de saber como divulgar. Quem está
liderando essa casa tem que falar: “Isso aqui é uma informação que não
deve ser divulgada”. Que eu vejo, tem muito colega que está no orkut,
facebook, ou outras redes sociais, o cara vai lá e “pluga” uma foto porque:
“ - não, isso aqui sou eu e é o meu orixá”. Mas tem que entender que
aquilo ali não é para qualquer um ver. Eu normalmente faço a parte de
fotografar e documentar todos os rituais e, normalmente tem outro evento
que precisa registrar e a ialorixá pede, eu vou lá e registro, normalmente
são festas. E todas as fotos eu sempre pergunto o que eu posso divulgar ou
não. Se eu peguei uma foto que de repente saiu algum elemento que tem que
ser guardado, que não pode ser divulgado, eu não posso publicar. E essa
publicação sou eu que controlo. Eu controlo isso, em parceria com a mãe
de santo da casa. Eu pedi pra ela pra poder registrar, como que a gente vai
fazer? As primeiras festas eu sentava com ela, “Isso pode. Isso não pode.
Isso vai. Isso não vai”. Entendeu? E a partir daí, eu já fui tendo
conhecimento do que pode e do que na pode.
A maioria das festas pode. Exceto uma saída de iniciação. Nas primeiras
saídas não pode tirar, até que saia com a primeira roupa branca. Aí eu
posso começar a registrar. Uma festa...a maioria das fotos, eu posso até
registrar para um arquivo da própria mãe de santo, mas eu não posso
divulgar. Exatamente. Depois de a comida já está rodando, já está
louvando e tudo o mais, algumas fotos, de algumas pessoas que estão
carregando determinados elementos eu posso tirar. Outros eu ainda não
posso. Xangô, dependendo da posição que eu tire dele com o pilão eu já
não posso divulgar essa foto. E assim para os demais. Conserva-se a
mesma forma. Sacrifícios eu já não posso tirar. Mesmo as publicações que
eu faço hoje é um blog particular. Só se eu permitir com usuário e senha.
Isso não fica aberto como uma rede social ou um site que qualquer um vai
lá e entra. (Valéria de Oxum)

Uma vitrine que mostra, de forma bastante crítica, a divulgação indevida por parte

daqueles que divulgam fundamentos é o já citado site www.youtube.com no qual

encontramos uma gama de vídeos intitulados ironicamente de “marmotagem no candomblé”,

“marmotagem”, “para os marmoteiros”, “o circo marmotagem real”, “marmotagem no

umbandomblé”, etc.

Ainda é no Youtube que se pode encontrar o maior número de propaganda divulgando

cursos, vídeos e apostilas, contendo os mais variados “segredos” da religião. Assim, em

março de 2011, ao digitarmos na janela inicial do site citado a expressão “feitura de iaô”

tínhamos, aproximadamente, 82 sugestões de vídeos, sendo que cada um “puxava” outro

tanto. Para a palavra “orô” tivemos 27 resultados, sendo que na esteira desses vinha uma

148
enxurrada de outros vídeos divulgando apostilas com: ritual de corte, ritual de raspagem de

iaô, catulagem, fundamento de candomblé, orucó (de Exu a Oxalá!), fundamentos e segredos

no angola, fundamentos de candomblé, ritual de bori, ritual do adegã, iniciação ao candomblé,

assentamento de abaçá, etc. etc. etc. Ou seja, tudo se divulga. Tudo se vende. E se está à

venda é porque há quem compre. Uma pesquisa quantitativa que analise o volume dessa

circulação de informações nessas diferentes fontes midiáticas ainda aguarda quem a

desenvolva.

Da mesma forma se avoluma cada vez mais a quantidade de sites especializados em

jogo de búzios à distância para quem tiver interesse em consultar os oráculos sem se deslocar

até o terreiro. Nós mesmos fizemos o teste durante a pesquisa. Ao criarmos um endereço de e-

mail entramos em contato com um babalorixá que se dizia residente em São José do Rio Preto

(SP) e, através do site, fornecemos uma data de nascimento fictícia e um nome também

fictício, perguntando a respeito da possibilidade de nos informar sobre nosso orixá de cabeça.

Três dias depois nos chegou o e-mail de resposta, esclarecendo que, mediante o pagamento no

valor de R$ 100,00 (a ser depositado na conta corrente, cujo número acompanhava em anexo)

teríamos todas as informações, e outras mais, diretamente na nossa caixa de e-mail, em três

dias. “Assim que o pagamento for confirmado”, dizia o e-mail.

No entanto, a disposição para divulgar segredos, ou mesmo para comercializá-lo, nos

parece andar sempre associada ao anonimato. Na maioria das vezes os envolvidos preferem

utilizar nomes fictícios ou se esconderem por trás do anonimato. Isto em parte se explica pela

recriminação do ato de divulgar fundamentos, que entre o povo do santo, é tido como uma

espécie de traição e classificado como “marmotagem”, como já foi dito. Assim, quem se

apresenta como “Robson de Xangô”, para citar o caso do já referido site www.axeorixa.com,

pode ser, na verdade, Antonio de Ogum, Marieta de Iemanjá, Carlos de Oxum...

149
Fizemos também a experiência de testar a disposição do povo do santo em termos de

conversar sobre segredos de candomblé na Internet. Em 2008, portanto bem antes de

começarmos a desenvolver esta pesquisa, no momento em que o famoso site de

relacionamento Orkut estava começando a se popularizar no Brasil, criamos uma comunidade

a qual chamamos de “Segredos de Candomblé”. Na apresentação da comunidade explicamos

que ela se destinava àqueles que estivessem dispostos e interessados em falar sobre o assunto.

Durante os dois anos que a comunidade esteve no ar não conseguimos um único adepto, além

de nós mesmos, claro. Com isso, pudemos confirmar nossa suspeita: a divulgação de

fundamentos sempre corre “por debaixo dos panos”. O manto do anonimato protege aqueles

que divulgam os fundamentos. Talvez pela compreensão de que se trata de uma prática

recriminada. Assim, sempre que se trata de uma comercialização declarada de fundamentos,

como acontece com o site axeorixa.com, as relações são estritamente comerciais, frias e

mecânicas, como pagamentos em cartão de crédito ou débito e fundamentos em apostilas

digitalizadas. Sobre essa frieza da internet e sua diferença com o universo da religião, Valéria

de Oxum e Renato de Ogum nos disseram:

Tem sites aí que você consegue fazer o jogo de búzios pela internet. Onde já
se viu isso? Como é que ele vai pegar minha vibração? Eu trabalho nessa
área e sei como isso funciona. É tudo muito frio. E orixá, entidade, a
religião em si ela é muito contato. Tem que sentir a vibração. Se ela não
sentir a vibração não adianta rodar que ela não vai rodar nada ali.
(Valéria de Oxum)

Determinadas informações que você pode pegar da Internet elas têm uma
aparência de segredo. Mas quando você pega essa aparência e traz para a
experiência (...) aí tem um problema, porque se você entender que aquilo,
numa outra dimensão comunicativa, que é a Internet, numa revista, num
livro... se você entender, se as pessoas entenderem que aquilo está ali, o
segredo, a chave, a fórmula, é essa, e você aplica isso (...) você vai lidar
com um iaô ali, você vai lidar com uma pessoa, se você pensar que aquilo
que você está vendo ali, numa outra plataforma de comunicação, vai ser
aplicado como uma fórmula ali numa experiência (...) ai é que está o
problema. Por que naquele momento, aquilo que você está captando
naquela pessoa, naquela essência, ou vendo, tocando, pegando, é
totalmente... não há fórmula. Então, por exemplo, eu posso saber
determinadas fórmulas: “O iaô se faz assim e assim, pronto”. Mas, na

150
realidade, quando eu pego aquele orí, e olho pra ele. Ele está nas minhas
mãos, eu sinto ele pulsando, despertando uma energia ali, aquele orí está
ali, naquele momento para eu cuidar. Eu tenho a fórmula. Mas aquele orí é
único. Foi escolhido na casa de Ajalá, com determinado odú, com
determinada divindade que acompanha ele, com determinada possibilidade
de ser e está no mundo, naquele momento, pelo que eu aprendi na minha
casa, aquele momento é único. Eu tenho a fórmula, “um iaô se faz assim”,
mas naquele orí existe um detalhe, existe um segredo. Eu olhando aquele
orí eu desvendei um segredo. Olhando para aquele ori naquele momento.
Eu sei a fórmula, mas olhando para aquele ori naquele momento da
iniciação. Ali a minha percepção, naquele orí, aquele ori vai dizer alguma
coisa pra mim. (Renato de Ogum)

Porém, uma prática recriminada pelo grupo não é necessariamente uma prática deixada

de lado. Isso se pode perceber através da multiplicação de lojas virtuais relacionadas com a

venda de fundamentos, ou mesmo de sites especializados na venda desde mesmo serviço

religioso.

Lojas virtuais do tipo www.lojasobrenatural.com.br e www.oriaxe.com.br, nas quais se

vê o anúncio: “Faça você mesmo sua macumbinha” (frase que, aliás, já era título de livro

desde a década de 1980, e que em épocas de internet também virou título de box de DVD’s)

despejam no mercado (e às vezes até no interior dos terreiros) informações que, inclusive, são

comparadas pelo povo do santo com as práticas da casa, em alguns casos até suplantando

rituais que há muito eram desenvolvidos. E os exemplos poderiam se multiplicar. Mas

fiquemos inicialmente apenas com estes.

Diante desse livre comércio de fundamentos pasteurizados, como ficam as relações de

poder no interior dos terreiros?

151
4.5. “Batendo o pezinho de mãos na cintura”: quando as informações de fora afetam
as relações de poder no interior do terreiro

Não foi à toa que a maioria dos nossos interlocutores ebômes se posicionou

categoricamente contra a comercialização de fundamentos e a divulgação de segredos na

internet. Dos sete ebômes entrevistados por nós, apenas dois não foram radicalmente contra

esse tipo de procedimento. E mesmo ao se posicionarem de forma maleável fizeram questão

de afirmarem-se defensores das formas tradicionais de transmissão dos conhecimentos. Fica

claro então que, por trás da preocupação com a preservação das tradições, também está a

questão da manutenção do poder, pois como diria Mãe Leda de Oxum: “Possuir os segredos é

como ter algumas cartas na manga”. Da mesma forma, quando a Mãe Sylvia de Oxalá diz

que Yá Tolokê não possuía segredos que legitimassem sua assunção do cargo de ialorixá da

casa, pois o Pai Caio, sempre que podia, mudava as regras do segredo e não lhe transmitia os

segredos da casa. Percebe-se claramente uma jogada que atua como dispositivo de

manutenção do poder em prol da liderança da casa.

Mas, por mais que a esfera dos ebômes se empenhe em manter o segredo, os espaços de

transgressão das regras estão aí; E, como diria Augras (1987;1989) a respeito do tabu e das

quizilas, talvez o segredo só exista mesmo para ser revelado, como costuma afirmar a maioria

dos pesquisadores. No entanto, na nossa humilde opinião, as relações de poder intra-terreiro

têm sofrido interferências mais da forma de revelação desses segredos do que mesmo da

revelação em si. É como se o segredo existisse sim para ser revelado, mas devesse ser

revelado no espaço do terreiro, no contexto do cotidiano da religião, sob os auspícios das

tradições religiosas e sob a batuta dos ebômes. Ou seja, a revelação é legítima, desde que não

contrarie as relações de poder no interior da religião.

Mas, como já não tem mais acontecido apenas assim, chega um momento em que os

mais novos, influenciados pelas informações que circulam em espaços alternativos, começam

152
a questionar. É o momento em que alguns põem as mãos na cintura e batem o pezinho (para

utilizar uma conhecida expressão do povo do santo). A curiosidade assume então feições de

desaforo e a tensa relação entre os mais velhos e os mais novos toma forma de enfrentamento

que beira o desaforo. Está instalada a crise da autoridade. Surge no cenário das relações de

poder a guerra declarada pelo controle do “depósitum fidei” do candomblé. É o controle do

monopólio do capital religioso, que ocupa o centro do “conflito de gerações iniciáticas”.

A grande maioria dos pesquisadores que transitam na análise das formas de transmissão

de conhecimentos no candomblé, assim como aqueles que estudam os sentidos do segredo

ritual, têm se pronunciado sobre esses conflitos envolvendo os conhecimentos adquiridos fora

dos terreiros e aqueles acumulados conforme as tradições convencionais. Sobre isso Prandi

(2005) afirmou:

Em nossa sociedade, a velhice é concebida como a idade da estagnação, do


atraso, da aposentadoria, que significa etimologicamente recolhimento aos
aposentos e conseqüente abandono da vida pública. O jovem não aprende
mais convivendo com os mais velhos, aprende com a leitura e as
instituições da palavra escrita, e não há professor sem livro. O
conhecimento através da escrita, cujo acesso se amplia com a aquisição de
livros, com as consultas às bibliotecas, e agora com a navegação na internet,
não tem limites, e muito menos segredos. Tudo está ao alcance dos olhos e
nem é preciso esperar. Etapas do aprendizado podem ser queimadas, nada
parece deter a vontade de saber. (PRANDI, 2005, p. 43-44)

E é isso mesmo que percebemos entre o povo do santo hoje. Principalmente em

metrópoles como São Paulo, cuja vida intensa e movimentada é fortemente marcada por todas

essas formas de circulação de conhecimentos e possibilidades midiáticas. Tudo isso interfere

diretamente nas relações de poder vigentes no interior dos terreiros. O mesmo Prandi constata

isso ao afirmar que:

153
Essa nova maneira de conceber o aprendizado, a idade e o tempo interfere
muito nas noções de autoridade religiosa, hierarquia e poder religioso,
dando lugar a contradições e conflitos no interior do candomblé,
questionando a legitimidade do poder dos mais velhos, provocando
mudanças no processo de iniciação sacerdotal. (Idem, p. 44).

Isso porque:

Numa sociedade como a nossa, em que a ciência já desmascarou o segredo,


é difícil acreditar que tudo tem seu tempo, e que é preciso esperar a hora
certa, pois a vida diária e a luta pela sobrevivência se encarregam de
mostrar o contrário. Em nossa cultura é premiado quem chega primeiro.
(Ibid. p. 44-45. Grifos nossos).

Apesar de não concordarmos com a ideia de que a ciência teria desmascarado o segredo,

as palavras do autor são mais do que fundamentais para a compreensão dos novos processos

de reconfiguração do saber religioso no candomblé. E, junto com o autor, arriscamos nos

perguntar: será que a intensa comercialização de fundamentos, aqui analisada, seria uma das

facetas dessa “luta pela sobrevivência” por parte do povo do santo, aonde o conhecimento

religioso atuaria como forma de ganhar a vida? Até que ponto essa forma de se relacionar

com o saber religioso é considerada legítima entre povo do santo?

Mas o conflito está lá. Como diria o povo do santo: “está feito o pajubá!” Os

questionamentos são cada vez mais comuns. Diante disso, a autoridade dos mais velhos

encontra-se em crise - crise nos sentidos já apresentados anteriormente: conflito, tensão,

interrupção dos acontecimentos previsíveis, momento decisivo, reconfiguração, instabilidade.

É inegável que tanto a autoridade dos mais velhos como as práticas rituais no candomblé

atravessam um momento liminar de reconfiguração e transformação. O comportamento dos

mais novos e daqueles que aderem à religião já é totalmente diferente daquele que se

observava há algumas décadas, haja vista os depoimentos dos nossos interlocutores:

154
Eu tive aquela criação com os mais velhos. Então, se falava muito pouco,
não se falava quase nada, era mais aquela coisa de olhar, entender... Você
ir aprendendo à medida que você estava dentro da casa, ao lado do seu
zelador, isto é, se ele tivesse uma confiança, uma credibilidade na sua
pessoa. Que aquilo que você estaria vendo ouvindo, você estaria
guardando o segredo, que você não estaria contando pra ninguém, então,
hoje, dentro da minha casa, eu ainda mantenho esse segredo. É muito
pouca coisa que você abre, que você fala. Agora, os tempos mudaram, né?
Antigamente se você falava: “isso você não pode saber”, o filho acatava e
não questionava. Hoje já tem os questionamentos né? Porque um filho
chega e diz: “mas por que eu preciso fazer isso?” “Mas por que o meu
orixá é dessa forma?” E você percebe que a pessoa tem uma necessidade
de saber o que é que ela está fazendo, o que é que ela está cultuando (...)
hoje você vê que o culto ao orixá, o candomblé, adentrou pelas portas das
universidades. Hoje você vê um promotor que é iniciado, um advogado que
é iniciado, um juiz cultua o orixá. E como essas pessoas vão chegar e você
vai dizer: “olha o senhor vai fazer isso, isso e isso” e ele vai levantar e vai
embora, sem dizer o que é que ele está fazendo? O porquê que ele está
fazendo... mas só que nós também temos uma forma hábil e delicada de
passar isso, né?
(Mãe Leda de Oxum)

Renato de Ogum também constata essas profundas mudanças pelas quais passam a
religião e as relações ali estabelecidas:

Eu volto a dizer aqui das nossas formas de viver hoje num mundo
globalizado: hoje em dia você não tem mais tempo para ficar dentro de
uma roça recolhido três meses, você não tem mais tempo de carregar um
kelê três meses, você não tem mais tempo de ter uma vivência numa forma
de sociabilidade pra determinado tipo de aprendizado que é de forma oral,
que é demorado, que é uma outra temporalidade. Por que hoje em dia a
percepção do tempo é outra. O tempo passa como sempre passou desde o
início, desde os primórdios, mas a forma como você utiliza o seu tempo
hoje não te permite você ter uma vivência no candomblé como você tinha
tempos atrás. (Renato de Ogum)

Ficam patentes as influências da vida moderna sobre as práticas rituais e as estruturas de

poder nessa religião. De acordo com alguns analistas, a crise de autoridade enfrentada pelas

lideranças religiosas do candomblé seria resultado da dificuldade que essas mesmas lideranças

teriam de dialogarem com o novo e com a modernidade dos tempos atuais. Mas isso já é

matéria para outra discussão.

155
Considerações finais
Ou
Para que a conversa possa continuar

Ao término dessa reflexão e análise, acerca da natureza e sentidos do segredo no

candomblé, estamos ainda mais convencidos de que esta conversa carece de uma continuação

séria e comprometida.

Foram dois anos de intensas leituras e pesquisa de campo, além de um profundo

convívio com o povo do santo de São Paulo e sua região metropolitana. Nesse convívio

pudemos, com muito gosto, compreender melhor os sentidos do segredo ritual no candomblé

e suas estreitas relações com o poder dos babalorixás, ialorixás e ebômes. Também ficou clara

a importância da prática do segredo no processo de composição das hierarquias e da

organização do espaço e tempo sagrados. As muitas festas, às quais acorremos com o duplo

olhar de iniciado e pesquisador, nos mostraram, de forma ainda mais clara, como o substrato

das manifestações públicas do candomblé é de fato aquilo que se protege por trás das portas

fechadas e dos rituais secretos. É por isso que, neste momento de conclusão desta etapa da

pesquisa, gostaríamos de substituir o costumeiro título “Considerações finais” pela proposta

“Para que a conversa possa continuar”. Achamos que este convite faz mais sentido ao

chegarmos a esta altura da luta pela compreensão mais substancial dos sentidos do segredo no

candomblé.

Buscamos, durante esta pesquisa, perscrutarmos as origens mais remotas dos

“fundamentos” do candomblé, sem, no entanto, nos arvorarmos em uma pretensão

megalomaníaca de esgotarmos qualquer assunto. Nisto a bibliografia existente nos ajudou

significativamente. Também buscamos apresentar uma possibilidade de análise do sentido do

segredo de forma a não ficarmos no lugar-comum daqueles que se dedicaram com mais afinco

aos estudos do segredo, a saber, os historiadores. Junto àqueles que, nas Ciências Sociais,

156
dedicaram parte das suas preocupações à análise do segredo como forma de socialização

(SIMMEL, 1977, DAL PRA, 1990) caminhamos na tentativa de entendermos até que ponto o

segredo ritual do candomblé funcionava como mecanismo de socialização ou de

engendramento das relações de poder. E acabamos por perceber que, de fato, o segredo,

quando mediador de relações, faz as vezes de um mecanismo de controle social de

indiscutível eficácia.

Em seguida, procuramos dialogar com a Antropologia e a Sociologia brasileira e

brasilianista, a fim de, ao conversarmos com os nossos “mais velhos na academia”,

encontrarmos caminhos mais esclarecedores acerca do nosso objeto de estudos. Vimos que

durante muito tempo o tema do segredo ritual foi respeitado de tal forma que pouco se

escreveu sobre o assunto, pelo menos até a década de 1990. A partir daí, o segredo voltou a

ser tema das análises de alguns dos nossos mais conhecidos e respeitados estudiosos,

chegando, inclusive, a despertar o interesse de estudiosos de outras nacionalidades. Aqui os

estudos já existentes foram fundamentais como pontos de partida de nossa reflexão.

Quanto mais nos aprofundávamos na nossa pesquisa, no diálogo com a academia e com

os terreiros, mais percebíamos que a crise que antes pensávamos ser do segredo, na verdade

atingia a autoridade das lideranças do candomblé. Essa crise de autoridade, como já nos

dissera alguns dos nossos mestres, denunciava um longo e complexo processo de

reconfiguração das formas de transmissão dos conhecimentos religiosos. E foi aí que

percebemos que a crise de autoridade na religião pode representar o início de um sério e

consequente processo de transformação da própria religião e de algumas das suas práticas

rituais. No entanto, essa crise de autoridade é melhor percebida no comportamento e

posicionamento dos sujeitos do que nas relações diretas entre os mais novos e os mais velhos.

É como se ninguém admitisse a crise mas admitisse a existência do conflito. E isso fica bem

claro na constante tensão entre as diferentes esferas do segredo, principalmente quando o

157
assunto é fundamentos. E se a conversa envolve agentes das diferentes esferas, o diálogo fica

ainda mais tenso. O teor dos depoimentos por nós conseguidos é uma boa prova disso.

As longas conversas com os ebômes, babalorixás, ialorixás, iaôs e abiãs, nos fizeram

entender, de forma mais lúcida, a constante luta dos mais velhos na tentativa de manterem as

tradições que parecem não resistirem às incontroláveis dinâmicas do mundo moderno. A era

da comunicação, com todas as suas peculiaridades, parece insistir em dizer aos mais velhos

que o conhecimento não está mais reduzido apenas aos terreiros. E assim as relações vão

mudando.

Ao estabelecermos diálogo com estudiosos como Silva (1995; 2006), Prandi (2005),

Castillo (2005), Braga (2006), entre outros, ficamos ainda mais tentados a imaginar que, todo

esse processo (que envolve as mudanças e transformações das formas de transmissão do

conhecimento tradicional das comunidades de terreiros) compõem um intrincado conjunto de

mudanças que levam o candomblé na inevitável direção das transformações inerentes a

qualquer cultura que pretenda resistir ao fluxo do tempo. Trata-se, então, de um movimento

de constante invenção e reinvenção da cultura religiosa, uma vez que as tradições são por

natureza “inventadas” e “reinventadas”, como diriam Hobsbawm e Ranger (1997). O próprio

Júlio Braga (2006) fala sobre isso, da confortável posição de quem goza tanto do

conhecimento acadêmico (antropólogo que é) quanto do conhecimento tradicional (por ser

sacerdote), ao discutir sobre o tema “Candomblé: tradição e mudança”. Segundo Braga (op.

Cit.), a essas mudanças os mais velhos não conseguem fugir, restando-lhes a opção de fazer o

jogo. O duplo jogo da mudança e da permanência. Da tradição e da mudança. Do segredo que

permanece, mudando e muda para poder permanecer. E, apesar dos queixumes, terminam por

participar do processo do qual não podem se esquivar. Assim Braga afirma:

158
Na corrida das mudanças, os mais velhos participam com a autoridade que
se lhes empresta o tempo e o saber acumulado. Mas eles não podem delas
escapar, sob pena de estacionar no próprio tempo, tendo por obstáculo
maior o próprio saber acumulado. Eles são, de certa maneira, o exército de
prontidão, a refrear os possíveis excessos que podem ser cometidos pelas
pressões do mundo atual. Eles indicam, de maneira sub-reptícia, os limites
das transformações possíveis e aceitáveis, a ponte que deve ser atravessada
sem danos maiores e sem acidentes graves para alcançar o outro lado.
Contudo, ainda que à revelia, são os responsáveis maiores pelas mudanças,
posto que nada acontece sem o conhecimento dos mais velhos e quando
fazem ouvido de mercador, tacitamente se colocam como peça principal de
engrenagem transformacional da tradição. (BRAGA, 2006, p. 117).

Talvez essas palavras de um tão experimentado antropólogo-sacerdote (ou sacerdote

antropólogo, como queiram!), nos ajudem a entender que por trás de uma iniciativa como o

site www.axeorixa.com está um ebôme. Ou seja, se há alguém vendendo ou divulgando

fundamentos é por que os conhece. E, apesar das críticas vindas tanto dos mais velhos como

dos mais novos, como acontece com as palavras da abiã Valéria de Oxum: “Só se for uma

pessoa que não é da religião. Por que se ela for cem por cento ela vai saber que aquilo não

pode ser divulgado pra qualquer um”, o que se percebe é que o teor dos conhecimentos que

vazam demonstra que tal conhecimento foi adquirido através do processo iniciático. O

problema mais desafiador, ao que nos parece, é como lidar com esse processo de circulação

paralela de fundamentos, e, portanto, com a mudança de foco da prerrogativa de poder, no que

tange aos tidos como os legítimos transmissores.

Paralelamente as formas, cada vez mais aprimoradas, de comercialização dos

conhecimentos religiosos fazem o jogo inverso da ação dos mais velhos. Movimento esse que

ninguém consegue barrar ou impedir. Assim como Exu, essa circulação veloz de fundamentos

na internet e demais formas midiáticas, parece não ter controle e nem fronteiras. Por outro

lado, processos como esses sempre estão ligados a Exu e Ogum, senhores da comunicação e

dos caminhos. E se Exu preside este processo como contrariar uma ação de tão poderoso

orixá? Seria a livre circulação de fundamentos uma das costumeiras peripécias de Exu?

159
Estaria ele brincando com os tabus da religião? Tal desordem seria uma tentativa de Legbara

de estabelecer uma nova ordem das coisas? E, em caso positivo, o que o senhor do segredo e

da comunicação estaria querendo nos dizer? Peripécia ou não, fica a impressão de que o

candomblé atravessa um período de intensas transformações das quais não poderá fugir.

Então, o que resta ao povo do santo é enfrentar esse processo de frente, e, assim, buscar

formas de contornar as dificuldades advindas desse movimento, encontrando a melhor forma

de dialogar com esse mundo globalizado que há muito tempo deixou de ser aquele dos

fundadores e das fundadoras da religião dos orixás no novo mundo.

Entre as conclusões às quais podemos chegar está o fato de que esse movimento de

circulação paralela de fundamentos (assim como sua comercialização indiscriminada) parte de

dentro dos terreiros e retorna a ele de forma adaptada às mídias contemporâneas. Não dá para

afirmar que tal movimento é alheio à vida do terreiro. Ele parte dali. E retornando ali

interfere, indiscutivelmente, nas relações ali estabelecidas. A propósito, nenhum dos nossos

interlocutores afirmou desconhecer a circulação de fundamentos na internet. Todos admitem

que o fenômeno existe. Da mesma forma, quase todos (com pouquíssimas exceções) se

posicionam veementemente contra tal procedimento e, sempre que podem, fazem questão de

desqualificar os responsáveis por tal movimento (novamente a fala de Valéria de Oxum): “Só

se for uma pessoa que não é da religião. Por que se ela for 100% ela vai saber que aquilo

não pode ser divulgado pra qualquer um”.

No entanto, de volta ao terreiro, esse conhecimento (agora pasteurizado) adquirido “a

la carte” termina por interferir nas relações de poder ali existentes, criando assim um

verdadeiro clima de tensão entre os mais novos e os mais velhos. Instala-se um verdadeiro

“conflito de gerações iniciáticas”. E neste conflito de gerações os sintomas mais superficiais

são os questionamentos constantes, inexistentes até então. Já a radicalização dessa tensão é o

próprio abandono da vida no terreiro em detrimento de uma prática religiosa mais pessoal,

160
autônoma e intimista, uma vez que não há mais necessidade da convivência no terreiro para

adquirir os conhecimentos rituais que agora se compram na internet, através das mais variadas

formas de pagamentos. Essas mudanças, na concepção da religião, novamente, aparecem no

depoimento de Valéria, quando afirma:

Tá! Então eu posso entrar lá, comprar um livro e saber como me inicio,
chegar em casa e eu mesmo me inicio? Pra quê que eu preciso de um axé?
Pra que eu preciso participar de tanto tempo de conhecimento, de estudos,
pra quê que eu vou num orô? “Ah, eu já sei o que vai acontecer”, então
“eu peço da minha casa”. Entendeu? Eu não preciso ir lá. E isso eu acho
totalmente errado. A pessoa só pensa no dinheiro. Ela não pensa na
informação. Como isso tem que ser passado. Pra quem isso foi passado.
(Valéria de Oxum)

É com essa nova realidade que o povo do santo está tendo que lidar no momento em que

desenvolvemos esta pesquisa. E é para essa nova realidade que o candomblé terá que

encontrar soluções práticas que durem pelo menos até o surgimento de novas problemáticas

que exijam novas respostas, uma vez que a religião é por natureza dinâmica.

Há quem diga, e Júlio Braga está entre os que assim pensam, que há entre o povo do

santo uma espécie de tendência a quebrar as regras e tradições. Como se elas existissem

justamente para serem quebradas, assim como Augras fala a respeito do Tabu (1987; 1989).

No mesmo trabalho já citado, Braga afirma:

A rigor, existe quase uma tradição de se quebrar a tradição, com a inclusão


de elementos novos no contexto do ritual, e o binômio tradição/mudança
encontra no próprio grupo religioso sua justificativa, e tudo leva a crer que a
mudança engendra a continuidade da tradição, mesmo que nisso possa ser
identificado algum tipo de contradição formal. (Idem. p. 119)

No entanto, mesmo considerando essa possibilidade, a ruptura da tradição não

significaria necessariamente um comprometimento do patrimônio religioso e simbólico do

povo do santo. Ao contrário, tal ruptura é que faz a tradição continuar viva. E nisso Braga está

161
de acordo com o pensamento de Bornheim (1987), no que tange às transformações às quais as

tradições estão sujeitas.89 O próprio Braga sinaliza nessa direção ao questionar (e a questão

colocada nos parece uma pergunta meramente retórica): A mudança no candomblé implicou

na eliminação da tradição, ou apenas no desrespeito aos postulados éticos que pretendem

garanti-la mais como poder do que conduta a ser seguida? (p. 119). Nos parece que a

segunda possibilidade é mais plausível.

Nesse sentido, as palavras de Augras sobre o tabu, também podem ser aplicadas ao

segredo ritual no candomblé, uma vez que ambos tocam na questão do poder. E, em se

tratando de candomblé, quando se fala em conhecimento, segredo e fundamentos, também se

fala de poder - do poder dos mais velhos, da esfera dos ebômes. E como Braga afirma

(juntamente com Prandi, Silva, Castillo...), as formas de transmissão do saber religioso no

candomblé estão em constante redefinição, mesmo que isso mexa com o status daqueles que

exigem para si as prerrogativas de legítimos transmissores desse saber. E é assim que Braga

deixa isso claro:

Os mecanismos com os quais se preserva o saber religioso no continente


africano, no Brasil e, muito particularmente, na Bahia, vêm sendo
permanentemente redefinidos. Um dos que estão perdendo para novas
formas de preservação do saber é a oralidade, gradativamente substituída
por instrumentos cada vez mais sofisticados de anotações, gravações
mecânicas, filmagens e, até mesmo, de leitura informatizada. (Ibid, p. 120)

E, junto com Braga (2006) e Castillo (2010), podemos dizer: ora, se na Bahia, tida

como fonte primeira e legítima das tradições religiosas mais autênticas do candomblé, a coisa

está “nesse pé”, o que não dizer dos candomblés de São Paulo?

89
BORNHEIM, Gerd. O conceito de tradição. Tradição contradição. São Paulo: Zahar, 1987.

162
Assim, ao chegarmos a esta etapa de conclusão da pesquisa que nos propusemos a

desenvolver, deixamos o convite à discussão, a todos que tenham interesse em discutir essas

dinâmicas, seja na academia seja nos terreiros. E acreditamos, sinceramente, que tal

discussão, longe de ter como objetivo apenas encontrar soluções para o problema do conflito

de gerações em torno das formas de transmissão dos conhecimentos religiosos, nos ajudará

ainda mais a compreendermos melhor esta prática tão fundamental para o povo do santo que é

o segredo ritual.

163
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São Paulo: IBRASA – Instituição Brasileira de Difusão Cultural, 1959.

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_____ . O antropólogo e sua magia: trabalho de campo e texto etnográfico nas pesquisas
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Editora da Unicamp, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009. 196 p.

TURNER, Victor. La selva de los símbolos: aspectos del ritual ndembu. Ed. Madrid: Ed.
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WACH, Joaquim. Sociologia da religião. Edções paulinas, São Paulo, 1990.

WEBER, Max. Economia e sociedade. Vl. I. Brasília: Ed. UnB, 2000. 422. p.

VALLADO, Armando. Lei do santo: poder e conflito no candomblé. Rio de Janeiro: Pallas,
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VELHO, Gilberto. Antropologia e patrimônio cultural. In: Revista do Patrimônio Histórico e


Artístico Nacional. Nº 20, ano 1984, pp. 37-39.

Web sites

http://www.axeorixa.com
(acesso em 15/08/2010)

www.lojasobrenatural.com.br
(Acessado em diferentes momentos da pesquisa)

www.oriaxe.com.br
(Acesso em 20/08/2011)

168
Glossário

O Glossário que segue é direcionado mais àqueles que não têm muita familiaridade

com as religiões afro-brasileiras do que aos pesquisadores dessas religiões e ao povo do santo.

Por isso mesmo não é feito referências às suas origens etimológicas, sendo que as mesmas são

grafadas de acordo com a forma como as escutamos de seus falantes ou com as fontes às quais

recorremos durante a pesquisa realizada.

Para aqueles que desejarem aprofundar seus conhecimentos, acerca de seus sentidos e

origens, recomendamos os diversos dicionários, minidicionários e obras de referência a

respeito do assunto, cujo número hoje, felizmente, chega a ser considerável. Entre os

dicionários e obras de referência que recomendamos estão: Dicionário de cultos afro-

brasileiros, de Olga Gudolle Cacciatore (1977); Enciclopédia Brasileira da Diáspora

Africana, de Nei Lopes (2004) e O Candomblé bem explicado, de Odé Kileuy & Vera de

Oxaguiã (organizado por Marcelo Barros – 2009). Todos constantes da bibliografia indicada

ao final deste trabalho, entre outros que são, da mesma forma, úteis e acessíveis.

Abassá: Espaço público da casa de candomblé. Barracão. Termo também utilizado para se
referir ao templo religioso. Terreiro.

Abiã: Não iniciado. Adepto da religião, que aspira à iniciação mas que ainda não se submeteu
à ela. Posto hierárquico elementar no candomblé.

Adôxu: Elemento sagrado em forma de cone, geralmente afixado no alto da cabeça (orí) do
iaô durante sua iniciação. É composto por uma vasta combinação de elementos animais,
vegetais e minerais. Sua preparação ritual é prerrogativa dos ebômes e sua fórmula é cercada
de muito mistério. Pode ser tido como elemento representativo do segredo ritual. Por
extensão, o termo também é utilizado para àqueles que se iniciaram na casa referida.
Exemplo: “Eu sou adôxu da casa de Oxalá”. Que quer dizer: “Eu fui iniciado na casa de
Oxalá”. Ou: “Ele não é adôxu dessa casa”, que quer dizer: “Ele não foi iniciado nessa casa”.

Ahogbo: Sociedade secreta que, segundo Roger Bastide, teria existido entre os nagôs no início
do século XIX no Brasil. O mesmo nome também é utilizado para se referir à divindade dos
membros dessa mesma sociedade. Uma das suas principais tarefas era perseguir e punir
criminosos.

169
Ajás: Divindades guerreiras e aguerridas como Ajagunã, Jagun e Ogunjá. Segundo Odé
Kileuy e Vera de Oxaguiã: “Irascíveis, os Ajás revidam a toda violação de regras, a falta de
zelo e à desobediência do homem perante as normas da ética e da moral religiosa” (2009, p.
181).

Ajés: Iabás mais velhas do panteão afro-brasileiro. Geralmente associadas a poderosas


feiticeiras que representam à ancestralidade e o poder feminino. Também costumam ser
chamadas de Iyámi Agbá. Entre elas se encontram as Iyá Mi Oxorongá. Seu culto geralmente
é cercado de muito mistério e segredo, chegando a ser vetado a algumas categorias de
iniciados.

Apoti: Pequeno banco de madeira utilizado no interior das casas de candomblé para acomodar
as divindades, os iniciados em procedimentos rituais, ou os ebômis, quando auxiliando ou
assistindo rituais internos. Tamborete.

“Audi, vide, tace, si vis vivere in pace”: Expressão latina medieval que significa: “Escuta, vê e
cala, se quiser viver em paz”. Tornou-se refrão que evoca a ideia de segredo. Muito utilizada
nos meios maçônicos.

Ariaxé: Entre os muitos sentidos que essa palavra possui entre o povo do santo está o lugar no
qual a força sagrada (axé) se concentra. Quarto sagrado. Poste central do barracão. Banho
lustral durante a iniciação.

Axé: Uma das palavras cujo sentido desperta mais explicações, tanto entre os pesquisadores
quanto entre o povo do santo. “Força dinâmica das divindades, poder de realização,
vitalidade que se individualiza em determinados objetos (...), oferendas. Ordem, comando,
poder”. (Cacciatore, 1977, p. 55); “(...) corresponde mais ou menos ao que os sociólogos
chamam mana e é sempre empregado não para designar uma força impessoal, mas para
certas espécies de encarnação de forças (ervas, alicerces do candomblé, etc.)”. (Bastide,
2001, p. 308); “Força mística dos orixás; força vital que transforma o mundo” (Prandi, 2001,
p. 564). Linhagem ritual, conhecimento religioso, segredo, poder.

Axogum: Importante cargo sacerdotal no candomblé. Sacrificador.

Babalorixá: Sacerdote do candomblé. “Pai-de-santo”. Zelador. Maior autoridade dentro de


um terreiro.

Baba(ia)jibonã: Sacerdot(isa)e auxiliar do(a) líder da casa de candomblé. Uma das suas
principais atribuições é ajudar na iniciação dos iaôs e nas obrigações dos filhos da casa.
Geralmente este cargo é atribuído aos adeptos propensos ao transe (rodantes) que já possuem
mais de sete anos de iniciação e se submeteram à cerimônia de (A)Decá.

Babalaô: Sacerdócio relacionado à consulta dos oráculos (Opelê Ifá, Búzios...). Possui a
prerrogativa de presidir a consulta aos mecanismos de divinação e adivinhação. Entre os
babalaôs mais conhecidos no Brasil estão Martiniano Eliseu do Bomfim, que viveu na Bahia
entre 1859 e 1943, e Agenor Miranda Rocha, que faleceu em 2004. Com o passar do tempo a
função de consultar os oráculos foi, gradativamente, passando às mãos dos babalorixás e
ialorixás. Função essa que sempre esteve ligado ao segredo.

170
Brajá: Fio-de-contas elaborado a partir de búzios trançados, utilizados por ebômis e pessoas
de altos cargos sacerdotais nas religiões afro-brasileiras. É símbolo de senioridade, sabedoria
e poder. Também é usado por pessoas pertencentes aos orixás Omolu e Oxumarê.

Catulação: Processo de retirada ritual do cabelo (com tesoura ou navalha) do iniciando.


Corte. Raspagem.

Clientes: Pessoas que acorrem aos terreiros em busca dos serviços mágico-religiosos da
religião, sem no entanto assumir com ela compromissos iniciáticos.

“De dentro”: Expressão utilizada pelo povo do santo para se referir às pessoas adeptas das
religiões afro-brasileiras.

“De fora”: Expressão que se refere aos não-adeptos das religiões afro-brasileiras.

Decá (ou Adecá): Cerimônia pública na qual o iniciado com mais de sete anos de iniciação
recebe (das mãos do seu/sua babalorixá/ialorixá) a sua senioridade religiosa e iniciática.

“Depositum Fidei”: Expressão latina que quer dizer: “Depósito da fé”, muito usada no meio
teológico católico. Aqui é empregada como sinônimo do conjunto do saber religioso do povo
do santo.

Ebó: Cerimônia de purificação que inclui contato de comidas rituais com o corpo do
paciente/cliente. Também é sinônimo de oferenda ou mesmo despacho e feitiço.

Ebômi: Iniciado rodante (propenso ao transe) com mais de sete anos de iniciação e que já se
submeteu à cerimônia de (A)decá.

Egun: Espírito de algum ancestral divinizado e cultuado pelos vivos. Tido por muitos como
espírito perigoso e malfazejo. Em alguns contextos específicos é associado à ideia que o senso
comum crostruiu de “alma penada”.

Ejé: Sangue animal, obtido no contexto ritual através do sacrifício. É utilizado para diversos
fins, entre eles a sacralização de pessoas e coisas.

Elecós: Sociedade composta por divindades femininas ligadas à guerra e lideradas por Obá.
(Kileuy & Oxaguiã, 2009, p. 180. Org. Marcelo Barros).

Empoderamento: Processo gradual de atribuição de poder. No candomblé, geralmente, se dá


através da transmissão de conhecimentos religiosos dos mais velhos para os mais novos, ao
longo do processo iniciático e da convivência no cotidiano da religião.

Equê (ou Ekê): Transe fingido ou forçado. Mentira. Simulação do transe.

Equéde: Pessoa do sexo feminino que não entra em transe. Geralmente exerce o papel de
auxiliar dos ebômes, no trato com as divindades e com os iniciados.

Fios-de-conta: Diferentes adornos utilizados pelo povo do santo e que possuem diversas
formas e significados.

171
Fundamento(s): Sinônimo de conhecimento religioso. Segredos, saber. Abrange partes do
sentido de “axé”. Origem, poder, legitimidade, prestígio.

Gueledés: Sociedade feminina ioruba, existente em algumas regiões da África ocidental a


partir do século XVIII, e que no Brasil, segundo alguns autores, teria dado origem a alguns
cargos sacerdotais e sociedades secretas, também femininas, no candomblé. Segundo Nei
Lopes (2004, 312): “No Brasil, a sociedade funcionou nos mesmos moldes iorubanos e sua
última sacerdotisa foi Omoniké, de nome cristão Maria Júlia Figueiredo. Com sua morte,
encerraram-se as festas anuais, bem como a procissão, que se realizava no bairro da Boa
Viagem”.

Gonocô: “(...) entidade possivelmente de origem tapa (...) (Prandi, 2005, 145) que teria dado
origem a um culto muito secreto na cidade de Salvador, Bahia (Kileuy & Oxaguiã, 2009, p.
180. Org. Marcelo Barros) em tempos remotos.

Iabassé: Cargo sacerdotal da alta hierarquia do candomblé, cuja função principal é cuidar da
cozinha sagrada e da preparação das comidas e bebidas votivas dos orixás.

Ialaxé: Título e cargo sacerdotal da alta hierarquia do candomblé. Auxiliar do/a baba(ia)lorixá
na liderança da casa de candomblé.

Ialodês: Assim como as Gueledés, constituíam uma sociedade feminina ioruba que,
transplantada para o Brasil, sobreviveu como cargo sacerdotal feminino no candomblé.

Ialorixá: Sacerdotisa do candomblé. “Mãe-de-santo”. Zeladora. Maior autoridade dentro de


um terreiro.

Iamorô: Título e cargo sacerdotal da alta hierarquia do candomblé, cuja função e atribuições
estão ligados ao culto de Exu.

Iaô: Iniciado(a) com menos de sete anos de iniciação e que ainda não passou pela cerimônia
de (A)Decá.

Ibá: Altar ritual que personifica a representação material do orixá. É sobre ele que são feitas
as libações do sangue (ejé) sacrificial e outros líquidos sagrados, através das quais o adepto
estreitará suas relações com sua divindade pessoal e com a casa de candomblé à qual
pertence.

Inquices: Divindades do panteão de origem banta, cultuados até hoje nos candomblés de
nação Angola, Congo e Angola-congo.

Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte: Confraria afro-católica surgida por volta das
primeiras décadas do século XIX em Salvador, Bahia, Brasil, em torno do culto e da devoção
à Nossa Senhora da Boa Morte. Formada exclusivamente por mulheres negras ligadas aos
terreiros de candomblé esta irmandade já foi muitas vezes apontada como nicho de
sobrevivência de antigas sociedades secretas femininas vinda da África. Hoje continua viva e
atuante na Bahia, principalmente na cidade de Cachoeira, que abriga a sua atual sede. Às
“irmãs da Boa Morte” Acácio Almeida (1996) chamou de “Senhoras do Segredo”.

172
IURD: Abreviação de “Igreja Universal do Reino de Deus”, fundada por Edir Macedo, em
1977, no Rio de Janeiro, Brasil.

Jogo do segredo: Aqui, refere-se ao conjunto de performances, discursos e estratégias


desenvolvidas pelo povo do santo, a fim de manter a prática do segredo ritual e preservar
parte da sua cultura e conhecimentos religiosos. Na maioria das vezes o jogo do segredo
também atual como mecanismo de manutenção do poder da esfera dos ebômes e das
lideranças religiosas. Deve-se evitar confundi-lo com “segredismo”.

Lagdibá: Tipo de adorno (colar) confeccionado a partir de uma sequência de pequenos discos
pretos, de coquinhos ou chifre, e enfiados em um cordão. Geralmente são reservados às
pessoas da alta hierarquia do candomblé ou pessoas ligadas aos orixás Omolu e Oxumarê.

Liga da Macumba: Pretensa organização de origem e objetivos pouco conhecidos que,


segundo Hermann Schreiber e Georg Schreiber (em História e mistérios das sociedades
secretas. São Paulo: IBRASA – Instituição Brasileira de Difusão Cultural, 1959), teria se
originado no norte do Brasil e se espalhado pelos Estados Unidos, entrando pelo sul desse
país, principalmente através da cidade de Nova-Orleans, conhecido centro de resistência negra
na América do Norte. Porém, pouco se sabe da existência real dessa controversa organização.

Macumba: Termo de origem e significados bastante controversos que geralmente é utilizado


com sentido pejorativo entre os não-adeptos das religiões afro-brasileiros e de forma jocosa
pelos adeptos dessas religiões.

Marmotagem: Termo pejorativo usado pelo povo do santo para se referir àqueles que
contrariam as práticas tidas pelos terreiros tradicionais como ortodoxas. Entre as práticas
classificadas como “marmotagem” estão a mistura de rituais de diferentes origens e a
revelação indiscriminada de práticas e conhecimentos tidos como fundamentos e segredos.
Sobre a marmotagem Olga Cacciatore (1977, 178) escreveu: “Termo de desprezo, dos
membros do candomblé tradicional, para a mistura de rituais de outros terreiros”.

Obrigação: Rituais periódicos pelos quais um iniciado tem que passar. Geralmente se dão nos
intervalos entre um, três, cinco e sete anos, podendo variar de acordo com a casa, o orixá, a
nação ou outras variáveis e interferências.

Ojá: Longa faixa de tecido utilizado para diversos fins no candomblé.

Olofofô: Fuxico, fofoca.

Ologbô: Segundo Bastide (1989, 148) os ologbôs eram os líderes da sociedade secreta nagô
Ogboni, que existira no Brasil nas primeiras décadas do século XIX.

Ogã: Pessoa do sexo masculino não propensa ao transe (não-rodante) no candomblé.


Geralmente atua como auxiliar do(a) baba(ia)lorixá exercendo diversas funções auxiliares de
grande importância como sacrificar os animais propiciatórios, tocar os atabaques, dançar com
as divindades, etc.

Ogboni: O mesmo que Ahogbo.

173
Onilé: Orixá feminino cujo culto no Brasil é pouco difundido, estando estreitamente
relacionado à terra.

Orí: Cabeça.

Orixás: Divindades do panteão ioruba, cultuadas no candomblé.

Orô: Sacrifício. Também é nome de uma antiga divindade ioruba cujo culto não sobreviveu
com muita intensidade no Brasil. Da mesma forma Orô era o nome que se dava aos líderes da
sociedade secreta Ogboni, da qual fala Roger Bastide (1989).

Oruncó: Nome ritual atribuído ao iniciado pelo orixá, durante a cerimônia “do nome”,
cerimônia essa que ocorre na festa “da saída”, durante a iniciação. O mesmo que Dijina.

Oxôs: Segundo Kileuy & Oxaguiã (2009, p. 180. Org. Marcelo Barros) os Oxôs são
poderosos feiticeiros que formam uma confraria liderada por divindades muito velhas ligadas
à terra e à turbulência e que, quando desagradadas, costumam provocar turbulências e
desarmonia, instabilidade e desajustes nas funções litúrgicas. Seriam os contrapontos das ajés.
Dessa confraria fariam parte: Exu, Ogum, Obaluaiê, Oxaguiã, Oxetuá, Oxósse e babá Okô.

Pajubá: Confusão, briga, lorogun, olorogun, desarmonia. Desinteligência.

Pejigã: Título honorífico concedido a alguns ogâs, cuja atribuição é cuidar do peji ou altares
rituais.

Peregun: Erva votiva de Ogun e outros orixás (Dracaena Fragrans).

Povo do santo: Termo genérico utilizado para se referir aos adeptos e seguidores das religiões
afro-brasileiras.

Quizila: Restrição ritual temporária ou definitiva. Preceito. Tabu. Resguardo. Proibição.

Raspagem: Um dos rituais que compõem o conjunto de rituais inerentes à iniciação.


Catulação.

Richelieu: Tipo de tecido ricamente trabalhado, usado nos candomblés pelos ebômis e pessoas
da alta hierarquia sacerdotal

Runjeje/Rungebe: Adornos que envolvem colares e pulseiras elaborados a partir de contas


pretas, próprias dos filhos do orixá Omolu. Muito utilizado nos candomblés de origem jeje.

Segredismo: Discurso feito a respeito do segredo ou pretenso segredo praticado nas religiões
afro-brasileira. Com o tempo a ideia de segredismo foi adquirindo um sentido pejorativo,
entre os pesquisadores dessas religiões, e passou a significar também a falsa ideia da
existência de segredos que na verdade não existem.

Segredo ritual: Prática do povo do santo que se caracteriza por não franquear aos “de fora”
determinados conhecimentos ou práticas ligadas ao cotidiano do candomblé.

174
Terracota: Espécie de adorno (colares, pulseiras, etc.) utilizado pelos ebômes ou pessoas da
alta hierarquia sacerdotal do candomblé.

Tomar Rum: Executar sua dança ritual. O orixá está tomando rum = O orixá está
desempenhando sua dança ritual.

Tronqueira: Casa de Exu, ou local reservado à seu culto, nas nos terreiros de candomblé de
nação Angola e de Umbanda. Geralmente é localizado à entrada do terreiro.

Voduns: Divindades africanas ou afro-brasileiras de origem daomeanas. Geralmente são


cultuadas nas casas de Tambor de Mina, cujo maior foco atual no Brasil se encontra no
Maranhão.

Xirê: Festa pública do candomblé. Brincadeira.

175
Anexos

176
Anexo 1

Casas pesquisadas

Aché Ilê Obá

Rua Azor Silva, 77


Vila Fachini
São Paulo, SP, Brasil
CEP: 04326-010
Nação Ketu
Ialorixá: Mãe Sylvia de Oxalá
Telefones: (11) 5588-2437 e (11) 5588-0017
www.axeileoba.com.br

Ilê Axé Funfun Oxalufã

Rua Maurício Antunes Ferraz, 259


Bairro Parque Marabá
Taboão da Serra, SP, Brasil
CEP: 06766-260
Nação: Ketu
Babalorixá: Pai Jean de Oxalufã
Telefone: (11) 4135-1602 / (11) 7360-7082
E-mail: ca.maleao16@hotmail.com

Ilê Axé Odé Ofá Omi e caboclo Itayguara

Rua Atucupê, 246


Bairro Jardim Leônidas Moreira
São Paulo, SP, Brasil
CEP: 05792-050
Nação: Angola
Babalorixá: Tata Sílvio de Oxósse
Telefone: (11) 5842-3662 / (11) 6825-0908

Ilê Axé Oxum

Rua: Barão Antonio de Angra, 759


Bairro Jardim Apurá
São Paulo, SP, Brasil
CEP: 04470-280
Nação: Ketu
Ialorixá: Mãe Leda de Oxum
Telefone: (11) 5560-5456
E-mail: maedosegredo@uol.com.br

177
Anexo 2

PESQUISA DE CAMPO

Ilê Axé Funfun Oxalufã


Nome pelo qual é
Nível hierárquico mais conhecido Data

Babalorixá Pai Jean de Oxalá 20/05/2010


iaô Pai Paulo de Oxum 18/09/2010
Entrevistas (Babá Jibonâ)
Abiâ Cibele de Obá 01/01/2010
Feitura de iaô (iniciação) De 03/02/2010 a
21/02/2010
Presente na praia para Iemanjá 13/02/2010
Queda de quelê 19/04/2010
Cerimônias Adurá de Obaluayê 16/08/2010
observadas Orô de Obaluayê 25/08/2010
Obrigação de cinco anos de Dona Jô de 15/01/2011
Yansã
Orô de Yansã 15/01/2011
Rituais funerários da Mãe Gaúcha de 13/08/2011
Xangô

Ilê Axé Oxum (Jd. Apurá)

Nível hierárquico Nome pelo qual é Data


mais conhecido
Ialorixá Mãe Leda de Oxum 10/07/2011
Entrevistas iaô
abiâ Valéria de Oxum 03/04/2011
Orô (Exu, Ogun, Onilé, Exu Iangui,
Oxumarê, Ossaiyn, Oxum, Iemanjá, Ocô) 21/04/2010
Festa de Ogum 24/04/2010
Concessão de cargo de Axogum 24/04/2010
Cerimônias Orô e festa de Oxósse 29/05/2010
observadas Obrigação de catorze anos de Mãe Tutu
de Ogum e de três anos dos gêmeos 15/05/2011
Beatriz e Bernardo
Saída de iaô (Salviano de Ogum) 15/05/2011
Festa anual de Oxósse 28/05/2011
Obrigação de três anos da equéde Raquel 28/05/2011

178
Aché Ilê Obá

Nível hierárquico Nome pelo qual é Data


mais conhecido
ialorixá Mãe Sylvia de 28/05/2010
Oxalá
Entrevistas iaô Renato de Ogun 01/10/2010
abiã
Festa de Xangô 26/06/2010
Olubajé 14/08/2010
Festa de Oxalufã 12/09/2010
Pilão de Oxaguiã 19/09/2010
Oro de Ibeji 26/09/2010
Cerimônias Festa de Erê 26/09/2010
observadas Festa de Ogum 30/10/2010
Festividades em comemoração dos 60 27/11/2010
anos do Aché Ilê Obá
Festa das iabás 11/12/2010
Festa de Oxósse 14/05/2011
(Um boi para Exu) Mesa de Exu 22/05/2011
Festa de Nanã 23/07/2011
Festa de Oxaguiã 18/09/2011

Ilê Axé Ode Ofá Omi e Caboclo Itayguara


Nível hierárquico Nome pelo qual é Data
mais conhecido
Babalorixá Pai Silvio de 29/08/2010
Oxósse
Entrevistas Iaô (iá jibonã) Carla de Oxósse 13/09/2010
abiã Reginaldo de Ogum 13/09/2010
Festa de Exu Capa-preta 27/02/2010
Olubajé 28/08/2010
Festa de Mutalambô 25/06/2011
Olubajé 27/08/2011
Cerimônias
observadas

179
Anexo 3

ROTEIRO DE QUESTÕES PARA AS ENTREVISTAS SOBRE O SEGREDO NO


CANDOMBLÉ

(Semi-estruturada)

1. O candomblé continua sendo uma religião de segredos?


2. Quais os aspectos da religião (consulta aos búzios, iniciação, festas...) que estão mais
relacionados com o segredo?
3. Qual a importância do segredo para a religião?
4. Existe alguma relação entre o segredo e a hierarquia? Como se dá essa relação?
5. No candomblé segredo tem a ver com poder?
6. Como se dá o processo de transmissão dos segredos?
7. A quem geralmente são transmitidos os segredos?
8. Qual a sua opinião a respeito da divulgação de fundamentos na mídia (Internet, livros,
revistas, documentários...)?
9. E a respeito da venda de fundamentos na internet (como no site www.axeorixa.com
por exemplo)?
10. Divulgação desta natureza pode resultar em algum tipo de consequência para a
religião? Quais?
11. Há alguma coisa a mais a respeito do segredo no candomblé que a senhora gostaria de
acrescentar e que não foi perguntado?

180
Anexo 4

Cadernos iconográficos

Caderno 1

EXU

Imagem 02: Casa de Exu Akessan, no interior do barracão do Ilê Axé Funfun Oxalufã.
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Julho de 2010.

Imagem 03: Porta fechada da “Casa de Exu”, no Ilê Axé Funfun Oxalufã.
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Julho de 2010.

181
Imagem 04: Um Exu “comendo” no portão do Ilê Axé Funfun Oxalufã.
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Junho de 2011.

Imagem 05: 2º plano: Casa de Obaluayê, no Ilê Axé Oxum. 1º plano: Pequena casa do exu que acompanha
Obaluayê.
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Julho de 2011.

182
Imagem 06: Casa de Exu, no Ilê Axé Oxum.
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Julho de 2011.

Imagem 07: Casa de Bombojira (Pomba Gira), forma feminina de Exu, no Ilê Axé Oxum.
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Julho de 2011.

183
Imagem 08: Cazinhola do exu que acompanha Obaluayê, guardado por um cão. Ilê Axé Oxum.
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Julho de 2011.

Imagem 09: Porta sempre fechada da casa de Exu (tronqueira), no Ilê Axé Odé Ofá Omi e Caboclo Itayguara.
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Agosto de 2011.

184
Caderno 2

Casas pesquisadas

Ilê Axé Odé Ofá Omi e Caboclo Itayguara

Imagem 10: Porta de entrada do Ilê Axé Odé Ofá Omi e Caboclo Itayguara.
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Agosto de 2011.

185
Imagem 11: Aspecto de uma festa no Ilê Axé Odé Ofá Omi e Caboclo Itayguara.
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Agosto de 2011.

Imagem 12: Festa de Oxósse no Ilê Axé Odé Ofá Omi e Caboclo Itayguara.
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Junho de 2011.

186
Ilê Axé Oxum

Imagem 13: Portão de entrada no Ilê Axé Oxum.


Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Julho de 2011.

Imagem 14: Assentamento do orixá Oxósse no Ilê Axé Oxum. As plantas em volta atuam como elemento de
preservação do segredo em torno do ibá.
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Julho de 2011.

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Imagem 15: Ibá protegido pelas plantas no Ilê Axé Oxum.
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Julho de 2011.

Imagem 16: Pedra sagrada à mostra no Ilê Axé Oxum.


Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Julho de 2011.

188
Imagem 17: Ibá do orixá Ogum protegido pelo mariô, sua roupa ritual, no Ilê Axé Oxum.
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Julho de 2011.

Imagem 18: A ialorixá do Ilê Axé Oxum (Mãe Leda de Oxum), em um momento de conversa descontraída
com uma das suas ebômes.
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Maio de 2010.

189
Imagem 29: Aspecto da festa de Oxósse.
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Maio de 2010.

Ilê Axé Funfun Oxalufã

Imagem 20: Fachada frontal do Ilê Axé Funfun Oxalufã.


Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Maio de 2010.

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Imagem 21: Interior do barracão do Ilê Axé Funfun Oxalufã, em um dia em que não houve festa pública.
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Maio de 2010

Imagem 22: Entrada do Aché Ilê Obá


Fonte: http://www.axeileoba.com.br/indexAbaca.htm
Acesso em: 26/09/2011

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Imagem 23: Vista panorâmica do barracão do Aché Ilê Obá.
Foto Moacyr Lopes Junior/Folha Imagem-folha.uol.com.br - /01/2008
Fonte: http://www.axeileoba.com.br/indexHistoria.htm
Acesso em: 26/09/2011

Imagens 24, 25, 26: Aspectos de momentos festivos no barracão do Aché Ilê Obá, por ocasião das festividades
dos 60 anos da fundação da casa.
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Novembro de 2010

192
(25)
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Novembro de 2010

(26)
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Novembro de 2010

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Caderno 3

Adornos

Imagem 27: Adornos do tipo usado pela esfera dos ebômes.


Fonte: http://apeuumbanda.blogspot.com/2011/07/as-guias-fios-de-conta-as-guias-sao-os.html
Acesso em: 26/09/11

Imagem 28: Idem.


Fonte: http://ocandomble.wordpress.com/2008/05/02/fios-de-contas/
Acesso em: 26/09/11

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Imagem 29: Adornos do tipo usado pelos iaôs. Ilê Axé Odé Ofá Omi e Caboclo Itayguara.
Foto de Patrício Carneiro Araujo – São Paulo – SP, Agosto de 2011.

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