Milton Santos No Roda Viva (Transcrição Da Entrevista)
Milton Santos No Roda Viva (Transcrição Da Entrevista)
Milton Santos No Roda Viva (Transcrição Da Entrevista)
rodaviva…
Milton Santos
31/3/1997
Doutor pela universidade francesa de Estrasburgo, o geógrafo fala sobre uma globalização diferente, possível e na
contramão da existente
Matinas Suzuki Júnior: Boa noite. O Roda Viv a de hoje recebe um conv idado muito especial, o
premiado professor brasileiro Milton Santos, titular de geografia da Univ ersidade de São Paulo.
Consagrado, em 1 994, com o Prêmio Nobel da geografia [refere-se ao V autin Pud, considerado como o
Nobel da geografia], o professor Milton Santos é colecionador de títulos, doutor em geografia pela
univ ersidade francesa de Estrasburgo, é também doutor em honoris causa por outras onze univ ersidades
de sete países. A os 7 1 anos, com mais de 40 liv ros publicados, em sete línguas, Milton Santos nasceu na
cidadezinha de Brotas de Macaúba, no interior da Bahia. A lfabetizado pelos próprios pais, professores
primários, cursou direito em Salv ador. Em 1 964 foi destituído do cargo de secretário do estado da Bahia e
de professor da Univ ersidade Federal pelos militares. Ex ilou-se na Europa e lecionou durante treze anos
nas mais importantes univ ersidades do mundo. Av esso às teorias que ex altam a globalização, Milton
Santos chama atenção para a importância dos intelectuais na discussão da sociedade moderna, contesta o
modelo de reforma agrária brasileira e quer a geografia pensada como filosofia e arte. Para entrev istar esta
noite o professor Milton Santos, nós conv idamos o jornalista Ulisses Capozzoli, repórter do Jornal O
Estado de S.Paulo, o professor Istv án Jancsó, do Departamento de História da Univ ersidade de São Paulo,
a socióloga Maria Irene Szmrecsany i, professora da Faculdade de A rquitetura e Urbanismo da USP.
V inícius Torres Freire, editorialista da Folha de S. Paulo, Daniel Hessel Teich, repórter do jornal O Globo, e
o professor Renato Ortiz do Departamento de Sociologia da Unicamp. Boa noite, professor.
Matinas Suzuki Júnior: Professor, o senhor que é um homem, um brasileiro tão conhecido no mundo,
com seu trabalho tão reconhecido no mundo, é também hoje um dos brasileiros que tem elaborado um
pensamento crítico sobre o processo de globalização. Eu imagino que não dev a ser fácil essa tarefa porque
a globalização é quase que um consenso na mídia, quase que um consenso nos jornais, nas rev istas, na
telev isão, todo dia a gente houv e falar do processo de globalização como sendo um processo que trará
grandes v antagens para o Brasil. Quais são as principais críticas que o senhor faz a esse processo?
Milton Santos: O atual processo de globalização é uma forma, uma única forma de utilizarmos recursos
que a humanidade pôde gerar neste fim de século, mas utilizá-los de forma que me parece perv ersa. Então,
a crítica essencial é esta, a humanidade durante dois séculos sonhou com a possibilidade de uma ciência a
serv iço do homem, e quando isso se obtém ex atamente, esses objetiv os são, digamos assim, deix ados de
lado, para que essa globalização que nós estamos presenciando sirv a um número ex tremamente limitado,
não só de pessoas, mas também um número limitado de empresas, e a um número limitado de instituições.
Quem sabe esta é a crítica essencial que eu certamente v ou desdobrar com outras perguntas que sejam
ev entualmente feitas.
Matinas Suzuki Júnior: Professor, ainda sobre esse assunto: mas o que se apresenta, que como se a
globalização fosse um processo cerrado, que não houv esse alternativ as fora da globalização, quer dizer,
ou o país se integra na dinâmica da economia do mundo internacional, ou seja, na dinâmica dos
mecanismos internacionais, no ritmo do mercado financeiro internacional, ou ele se prepara, se integra ou
ele não tem alternativ a fora desses sistema. Como o senhor v ê este tipo de posição?
Milton Santos: A cho que esse é um raciocínio anti-histórico. Se a gente olha para trás e observ a tudo o
que o mundo se tornou atrav és do tempo, a gente v ê que as possibilidades de uso daquilo que é criado são
numerosas, e por que neste fim de século seria assim, uma só senda, um só caminho, um só resultado? Eu
creio que isso que a gente tem que começar a discutir, entender porque é assim, e buscar atrav és da
análise as formas de sugerir outras maneiras de combinar o que aí está.
Daniel Hessel T eich: Professor, eu gostaria de saber se no caso do Brasil quais seriam eses caminhos, o
que seria alternativ a à globalização? O senhor fala muito da questão de um projeto nacional para o país, o
que seria este projeto nacional para o país?
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Milton Santos: Eu creio que em primeiro lugar, no caso do Brasil e no caso de qualquer país, o que seria
a meu v er, o que seria e o que está se dando, e os países europeus, por ex emplo, o que está ocorrendo são
países que escolhem o que realizar da globalização. É ev idente que há uma ex pressão muito grande por
causa dessa enorme força que é atribuída a quem dispõe dos meios de comando, mas o Brasil parece que
está deix ando a globalização entrar nele, acho que esta é acusação especial, nós estamos deix ando a
globalização tal como ela é perv ersa, entrar, em lugar de, ao contrário, o país encontrar ele próprio as
formas de sua integração. Que terá que ser sempre negativ a, hoje ou amanhã.
Vinicius T orres Freire: Professor, agora, quando o senhor fala desse problema da falta de projeto
nacional, ev identemente o senhor não acredita que ele possa surgir a partir da v ontade geral, quem iria
apoiar um projeto nacional? Politicamente, isso v ai depender da boa consciência dessas elites que hoje
estão no poder ou de um projeto popular? De onde v ai sair um apoio político para um projeto nacional?
Milton Santos: Duas coisas, uma coisa é a minha posição como intelectual. Como intelectual tenho que
me habituar a estar sozinho, não tenho que me preocupar com quem me acompanha, porque não é
próprio do intelectual se preocupar se tem apoio ou não, é posição das idéias, a coragem de defendê-las
até o fim. Creio que esta que é, neste caso, a elaboração, digamos, de um quadro que permita depois a
utilização pelas forças políticas e quando eu falo forças políticas estamos falando dos sindicatos patronais,
das igrejas, dos partidos também, é uma outra coisa. E isso não v ai depender dessas forças, como também
v ai depender desse turbilhão que o Brasil é hoje do qual a gente não se dá conta. Há um turbilhão, há uma
eferv escência de baix o que a gente não está captando completa e nem integralmente, mas v ai confluir com
a produção de idéias para forçar um outro caminho.
Vinicius T orres Freire: Mas eu perguntei isso para o senhor pelo seguinte: na França, a adoção da
esquerda à direita não fascista de v alores republicanos que inclui a solidariedade social, que o senhor
defende muito, demorou tantos anos, de sangue. Então, eu não perguntei o que o senhor faria para esse
projeto nacional, mas de onde o senhor av aliaria que sairia porque, na França, demorou 1 50 anos.
Milton Santos: Não creio que tenha demorado tantos anos, houv e v ários projetos nacionais na França
desembocando em fórmulas políticas, a partir quase sempre de fórmulas intelectuais. Quer dizer, uma
produção de idéias que permitiram uma produção de um ideário político que permitiu uma ação política,
conduzindo-a a diferentes formas de, como eu diria, de acordo nacional a partir de projetos, porque na
realidade não há um só projeto nacional, essa unanimidade é impossív el, como foi dito na primeira
pergunta. Eu creio que isso v ai se dar no Brasil também com um pouco mais de dificuldade em função da
história do próprio Brasil. Quer dizer, um país que nunca pode construir uma idéia de cidadania, que
nunca tev e uma cidadania. Então, essa ausência de cidadania tem uma implicação na produção de um
projeto nacional.
Matinas Suzuki Júnior: Professor Renato... Antes do professor Renato fazer a pergunta, eu queria dizer
que está também na bancada de entrev istadores com a gente o jornalista Fernando Conceição que é
professor na Bahia, que v eio a São Paulo especialmente para nosso programa. Professor Renato.
Renato Ortiz: Milton, nós temos participando de v ários debates sobre globalização, e é um tema que
v ocê sabe que é polêmico, e eu v ou deix ar de lado a questão do Brasil porque eu acho que tem questões
que poderiam ser mais discutidas, se tiv er oportunidade eu v olto. O tema da globalização, ele se faz em
v ários nív eis; econômico, tecnológico, que v ocê escrev eu bastante sobre a problemática da técnica no
nív el cultural. A gora, tem um nív el que é gargalo, que é polêmico, que a discussão já começou com ele que
é o nív el da política, porque a política pressupõe o Estado-Nação como referência, ao passo que a
economia, a cultura, a tecnologia podem escapar um pouco desses... Então, queria perguntar para v ocê,
como é que v ocê v ê a questão da política hoje num mundo que é globalizado, onde o Estado-Nação, não
que ele desapareça, já não possui a mesma força que possuía anteriormente?
Milton Santos: Olha, a primeira coisa talv ez, talv ez... a dizer, como resposta à sua pergunta, é que nota-
se em toda parte uma degradação dos costumes políticos, práticas políticas, em certos países mais do que
em outros, mas em toda parte há degradação da política. A partir do fato de que para realização da
globalização foi preciso inv entar a democracia de mercado, que era uma negação da política, na medida
em que a política supõe uma univ ersalidade de objetiv os, a política é sempre totalizante, enquanto que a
democracia de mercado quer substituiu hoje, num mundo quase todo, a realização prática do ex ercício da
política.
Renato Ortiz: Milton, não quero monopolizar a palav ra, mas v ou engatar com a pergunta que se segue.
V ocê acha que a globalização só tem elementos perv ersos? E conheço os elementos perv ersos. Ou v ocê
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acha possív el, em termos de política, imaginar uma sociedade civ il mundial? Ou v ocê acha isso impossív el
de ser imaginado? Não tem futuro?
Maria Irena Szm recsany i: Deix a eu por uma pergunta também sobre aspectos perv ersos? Queria
perguntar se o tema globalização, de fato, não é o que a gente chamaria de uma dispersão de foco? Será
que o v elho termo imperialismo não poderia substituir o termo globalização? Se não, por que razões?
Milton Santos: Eu não faria... Eu estou consciente de que o termo globalização resulta ex atamente da
necessidade do sistema, de sua situação atual, de impor uma forma ideológica. Inclusiv e, há quem diga
que foram os japoneses que inv entaram essa ex pressão. Não importa quem inv entou, é uma ex pressão
baseada no v elho ideal da humanidade da comunhão univ ersal, mas que é feita ex atamente para eliminar,
reduzir a possibilidade dessa comunhão.
Milton Santos: Mas o que eu creio, e imagino que essa questão v ai aparecer daqui a pouco, é que o
grande problema nosso não é tanto com nomes, mas com análise das situações. Quer dizer, eu creio que se
nós conseguíssemos elaborar uma análise correta, tanto quanto possív el, a partir de cada um dos nossos
campos, dessa história de globalização, a palav ra não mete medo. A globalização é o estágio pleno do
imperialismo, ela não é imperialismo. Se eu analisar a situação atual a partir dos elementos que
constituíram o imperialismo, eu v ou ter dificuldade para fazer essa análise. Eu conseguiria ter dificuldade
para ajudar na produção de soluções.
Matinas Suzuki Júnior: Tinha uma resposta, está dev endo uma resposta para o professor Renato,
desculpe Ulisses, depois v ocê.
Renato Ortiz: V ocê acha que a globalização só tem elementos perv ersos e eu acho que tem muitos.
A gora, v ocê acha que é possív el imaginar outros elementos não perv ersos num sistema “planetarizado”?
Por ex emplo, de numa sociedade civ il mundial? Ou v ocê acha que isso não tem futuro?
Milton Santos: Eu acho que é possív el para a sociedade civ il mundial, mas numa outra globalização. O
quê, e aí eu, já que v ocê ...
[interrom pido]
Ulisses Capozzoli: Que característica, por ex emplo, v ocê põe dessa outra globalização que o senhor
disse, por ex emplo?
Milton Santos: Para chegar até lá que já é um estágio pleno da solução, eu creio que nós teríamos que
enfrentar a questão da análise. Por que chegamos à globalização? Qual é, quais são os elementos históricos
do presente que permitem que a globalização se dê? Então, a gente pega esses elementos históricos, e a
história contemporânea nossa, e tentar outras formas de combinação v iáv eis ou não v iáv eis, porque nós
estamos obrigados a pensar o que é aparentemente v iáv el. Hoje, isso seria muito pouco, seria muito
pobre. A partir daí, eu creio que a gente estará em condição de pensar também nessa comunidade
univ ersal, que por enquanto tem um v oto, um v oto quase v azio, e que continua sendo um desejo mais do
que realização.
Ulisses Capozzoli: O senhor tem uma preocupação, acho que mais ou menos sistemática, com essa
nossa dificuldade, nossa impotência de analisar, de fazer análises. No caso brasileiro, o que ex plica isso em
última instância, essa nossa dificuldade de fazer, digamos, um mergulho mais profundo nas coisas e sair
com coisas mais ricas na mão? Em última instância me parece que a univ ersidade hoje, a principal
univ ersidade brasileira, a USP, passa por uma crise nesse sentido. Quer dizer, me parece que tem uma
impotência enorme, se faz à crítica, como o senhor disse, num dos seus escritos, mas não se faz
acompanhada à análise.
Milton Santos: Eu creio que as v eracidades, elas abrigam muita gente boa, talv ez como a comunidade
científica, a intelectualidade brasileira seja algo absolutamente impermeáv el. Eu creio que há uma enorme
dificuldade aos jov ens, e mesmo aos não jov ens...
Milton Santos: Impermeabilidade é que a v ida intelectual brasileira é hoje, o nosso presidente na
entrev ista que ele deu, ele sugere que desde o tempo que era estudante hav ia grupos fechados, ele próprio
depois cria o seu grupo fechado. Essa é uma característica da intelectualidade brasileira, que é também um
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elemento de mediocrização que hav eria de romper rapidamente, se a gente quer rapidamente encontrar
as interpretações. Eu estou seguro que nas univ ersidades, e na USP, há uma enorme quantidade de gente
pensando, pensando bem, mas que não tem como...
Milton Santos: Eu tenho dificuldade em resistir à prov ocação quando se começa a falar de univ ersidade,
mas eu v ou me policiar... [Risos] porque eu acho que é questão, eu ainda v olto a isso, porque eu não v ou
fugir dessa questão. [risos] Mas, o que me incomoda nessa discussão na globalização é o seguinte, é que a
globalização é ao mesmo tempo, traz, é sua própria negação. O que eu quero dizer é que a dialética do
particular e do univ ersal ex iste desde que o mundo é mundo. Toma formas diferentes. Falou-se do
imperialismo, o imperialismo na v erdade era uma proposta de mundialização, v ale dizer, de globalização
de determinadas relações. O que eu pergunto é o seguinte, até para poder pensar a questão do Brasil: o que
é específico na dialética nesse conflito permanentemente do particular e o univ ersal no interior desse
processo que na nossa perplex idade nós chamamos de globalização? Que não é ex atamente uma categoria
de análise é o reconhecimento quase empírico de que ex istem processos mundiais, v ale dizer mercado
financeiro, planetarizado e assim por adiante. A o mesmo tempo em que nós temos conflitos tribais que são
desdobramentos dessa coisa que também sempre ex istiu em uma época que a informação não era
planetarizada. Quer dizer, o que é particular para que a gente possa aprofundar essa questão da
globalização, portanto, v amos procurar precisar, e acho que ninguém melhor do que v ocê para precisar o
que é específico desse processo de globalização que é um tema do qual muita gente fala e pouca gente
precisa efetiv amente e v ai muito mais pelas aparências do processo do que na busca da compreensão.
A cho que v ou complicar mais sua pergunta.
Milton Santos: ... Se falando no tempo e no espaço, o que é específico neste momento da história ou o
que é específico em lugares?
Ulisses Capozzoli: O que é específico da história... É o v iés de quem trabalha com história, distorção
profissional. O que é específico, da atualmente v iv ida dialética v iv ida do univ ersal e do particular, que nós
genericamente designamos como um processo de contradição. Telespectadores certamente v ão achar que
v ai ser complicado, mas o que é que tem a v er a matança de tutsís [refere-se ao conflito entre tustsís e
hútus em Ruanda, em 1 994] com a, enfim, com a ampliação da circulação de capitais no mundo inteiro,
massas fantásticas, trilhões de dólares, atrav és de computadores? Quer dizer, isso tem uma relação, isso
tem que ser entendido.
Milton Santos: O que é internacionalização de hoje comparada de 50, 1 00, 200 anos? É isso.
Ulisses Capozzoli: O que é específico desse processo, ou seja, processos similares de conflito entre
tendências gerais e processo particulares, que é inegáv el, sempre ex istiram.
[Risos]
Milton Santos: Que não roube meu filé mignone que eu v ou deix ar para mais tarde, como todo prático
de resistência né? Eu creio que o que caracteriza a globalização é ex atamente essa instantaneidade da
concepção do que está ocorrendo. A o mesmo tempo em que é possív el hav er um centro froux o que
realiza esse comando ao seu prov eito e desorganiza tudo o mais. Eu acho que nunca houv e isso na história,
essa força de desorganização, de desmantelo, de desordem que esta globalização perv ersa está fazendo...
Então...
Matinas Suzuki Júnior: Desculpe professor, quando o senhor fala em desordem, o senhor incluiu
desordem jurídica, desordem política, desestrutura da sociedade, esse tipo de coisa?
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Renato Ortiz: Mas Milton, v ocê tocou num tema que é importante, a idéia de centro, por isso que eu
acho que conceito imperialismo não serv e mais, porque a idéia de imperialismo partia da idéia que uma
nação central dominav a as outras, então, ex istiam centro e periferia muito claros. Eu acho que hoje o
processo de globalização questiona a idéia de centralidade, mas ele redefine essa centralidade em outros
temas ao seu fav or. Não é um país mais que é central, nós não temos um centro. A pergunta hoje seria um
pouco o seguinte: neste mundo que nós v iv emos, neste planeta, as relações de força não se organizam
mais de forma centralizada como era antes, em minha opinião, porém, com v antagens dadas - como o
senhor chamou de mercado - que é isso mesmo. Portanto, é um mundo que desorganiza centros,
mas organiza a si mesmo.
Milton Santos: Então, a partir de centros froux os, não é? Que são essas enormes empresas que têm um
papel de centralidade, mas que são poderosas e cegas. Quer dizer, essas empresas, essas grandes
empresas, e as instituições super nacionais que as perseguem direta e indiretamente, são cegas na medida
em que não há uma meta clara, não há um objetiv o, digamos assim moral. E eu creio que daí que v em essa
desordem. Quer dizer, não como o mundo, os seus condutores principais abandonaram a idéia de
finalidade, de moralidade, de solidariedade, então, tudo...
Fernando Conceição: Esse processo, o senhor considera este processo irrev ersív el? Em outros termos
também o Brasil hoje é gov ernado por um intelectual conhecido internacionalmente, e o seu projeto de
gov erno tem por trás de si uma série de outros intelectuais que apresentam esse projeto como um projeto
irrev ersív el, e chamam os críticos desse projeto de ressentidos. O presidente até tem usado alguns termos,
bobos e etc.. O senhor não se sente dessa forma como uma av e rara em todo este processo na
intelectualidade brasileira? Na medida em que grande parte dessa intelectualidade tem aderido ao projeto
de gov erno, que me parece, tem sido, haja v ista, a v itória que o atual gov erno tev e na v otação da
reeleição.
Milton Santos: Se aderem é porque são menos intelectuais. O intelectual se caracteriza pela sua força
crítica. Quem, dotado de força crítica for, jamais v ai imaginar que é uma só perspectiv a, uma só
alternativ a.
Matinas Suzuki Júnior: Ao que o senhor atribuiu esta grande participação de intelectuais como
quadros, ou diretamente na administração do ex ecutiv o? Isso é fenômeno interessante não é?
Milton Santos: A cho que está ligado também à intelectualidade brasileira que é em grande parte
formada por pessoas que preferem ser statement, que ser intelectuais, não posso ser simplesmente
intelectual e statement... E quando os intelectuais decidem ser statement, eles abandonam sua capacidade
política, sua v ontade crítica. E traem, traem a sua missão. Isso que está acontecendo.
Daniel Hessel T eich: Professor, o que lhe custa na organicidade, ter uma postura crítica no sentido do
papel intelectual? Certamente que suas críticas não são v istas com conforto pelos seus colegas na
univ ersidade.
Milton Santos: Mas é próprio do intelectual. O intelectual ex iste para criar um desconforto, é o seu
papel, e ele tem que ser forte o bastante para continuar ex ercendo esse papel.
Fernando Conceição: O senhor tem feito a crítica, por ex emplo, entre distanciamento dos intelectuais
que produzem, os acadêmicos que produzem, produzem e refletem e os acadêmicos que se
tornaram buro-professores ou [buro-]intelectuais, que seriam aqueles que assumem o poder na
univ ersidade e fazem do poder seu meio e seu fim. Eu queria que o senhor aprofundasse isso e falasse do
custo político e custo material que o senhor tem que arcar com essa postura.
Milton Santos: Custo material não tem nenhum, porque eu aceitei v iv er com salário que tenho, e isso fiz
a v ida inteira como professor. Sempre me satisfiz com os meus salários. Então, não há custo. Não há custo
político, é um equív oco imaginar que v antagens imediatas seja uma v antagem política. A v antagem
política é ter idéia, manter as idéias, esperar que elas floresçam, que é nosso trabalho. Quer dizer, e aí, há
um ganho político, produção das idéias corretas, resulta no tempo de ganho político. Quer dizer, há uma
perda, hav eria uma perda se a preocupação fosse participar do statement... Como não é, não é a
normalmente uma coisa.
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Maria Irena Szm recsany i: Como isso... Eu acho que gostaria de tocar na univ ersidade também, eu
acho que própria presença do professor Milton, antes na univ ersidade, mostra que ela não é apenas
burocrática, ela abriga hoje no estado de São Paulo, abriga professor Milton Santos desde a sua, dos
primeiros momentos que ele chegou no Brasil, primeiro informalmente...
[Risos]
Maria Irena Szm recsany i:Não, estev e muito tempo longe da univ ersidade, na própria faculdade onde
trabalha, na A rquitetura, sua presença foi disputada muitas v ezes. A gora, a sua inserção oficial na
univ ersidade que demorou mais tempo.
Maria Irena Szm recsany i: Nesse sentido, eu acho que, como todas as instituições, a univ ersidade tem
essas duas perspectiv as, ela tem muita burocracia mesmo, ela se senta em cima de louros que construiu no
passado, mas ao mesmo tempo, a univ ersidade brasileira é uma conquista muito grande, ela tem apenas
60 anos no Estado brasileiro e nós temos é que v alorizar! Nós passamos a colônia toda, a A mérica toda...
Matinas Suzuki Júnior: Por fav or, por fav or, v amos fazer perguntas em v ez de debates.
Maria Irena Szm recsany i: Nesse sentido, eu gostaria que o professor Milton Santos comentasse mais
tarde talv ez, não neste momento, o papel da univ ersidade na formação de um quadro que pensa o Brasil,
não apenas de ser burocrática.
Daniel Hessel T eich: Eu queria perguntar para o professor também, ele disse agora a pouco que na
univ ersidade há forças que impedem até que setores mais criativ os enfim, questionem. Enfim, se
ex primam com totalidade. Como agem essas forças e como fazer para que isso seja driblado. Enfim, como
se pode passar por essa situação?
Ulisses Capozzoli: Posso acrescentar uma terceira questão, professor? Me parece que a questão
univ ersidade, como qualquer – digamos - outra instituição, já sai do absolutista, e me parece pouco
interessante, né? Mas me parece que a forma mais produtiv a de se pensar a univ ersidade seja ex atamente
enx ergar a univ ersidade crítica e analiticamente, né?
Matinas Suzuki Júnior: Vamos deix ar ele responder, acumulou muita pergunta.
Milton Santos: Com a difusão do sabor produzido, não é só tarefa da univ ersidade, eu creio que a mídia
também tem uma porção de culpa nessa dificuldade, porque a mídia profere aqueles chamados
intelectuais que são os especialistas do falar, do dizer, e não do pensar. Há uma, como eu diria, estou
procurando uma palav ra simpática! [Risos] Mas há uma associação que dura entre pseudo-intelectuais e a
mídia. A mídia nos apóia, prestigia de forma bastante clara, e isso constituiu num dado da compreensão
dessa dificuldade que tem aqueles que são jov ens, ou que tem pudor. À s v ezes, a aprox imação da mídia
supõe uma redução dessa qualidade de pudor. Eu fui jornalista e me lembro quando a gente se referia aos
chatos da redação, dev e ter isso ainda agora né? Mas os chatos, que v ão contar notícia, se tornam os
intelectuais da [do Jornal da] Tarde, o intelectual do Globo, o intelectual da Folha, intelectual do Estadão!
Que se tornaram intelectuais porque esses jornais decidem que eles v ão ser assim. Eu creio que hav eria de
mudar estes comportamentos e caçar estes talentos e caçar essas pessoas, até a própria univ ersidade não
tem como fazer. E outra coisa, dentro da univ ersidade, que são os grupos fechados, e o presidente da
República falou nisso, que certamente é o mais fechado do grupo de intelectual no Brasil, e isso ex plica a
dificuldade que eles têm de pensar. Pelo fato de hav erem feito a carreira dentro de uma redoma, sempre
protegido. Inclusiv e, durante o regime militar. E isso tem que ser dito.
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Daniel Hessel T eich: Que o Cebrap foi um problema para a ev olução intelectual no Brasil? Foi isso que o
senhor disse?
Milton Santos: Sim, sim, à medida que um grupo monopoliza a produção a difusão do conhecimento,
ainda que durante a ditadura, e, na v erdade também no fim da ditadura esse mesmo organismo não deix ou
de receber recursos da União para trabalhar. Então, me parece que esse processo tem que ser estudado.
Ev idente que não há coragem para dizer isso dev ido ao peso que esses institutos fechados têm na v ida
intelectual brasileira, mas o que é aqui conv ersado tem que partir para a origem nisso.
Daniel Hessel T eich: Milton, v ocê não acha que eles dev eriam fazer uma diferença entre a univ ersidade
e os intelectuais? A pesar das coisas se cruzarem, são coisas mais ou menos distintas, porque a
univ ersidade abriga um conjunto de coisas. Agora, eu compartilho com v ocê, como é um programa de
telev isão é bom deix ar isso claro. Eu partilho com v ocê que nós temos muita pouca v ontade de fazer uma
crítica ao trabalho intelectual do Brasil por v ários motiv os que v ocê mencionou aí, e por outros que
poderiam ser destacados. Nós temos uma dificuldade, por ex emplo, temos um presidente da República
que foi intelectual, não é mais intelectual, é bom dizer isso, foi. E temos um conjunto de intelectuais que
fazem parte de um projeto gov ernamental e isso não é discutido, e isso é um problema. A mídia nos cobra
e nos cobra com razão. Nós temos que nos posicionar em relação não ao gov erno, isso é outra coisa, mas
em relação ao papel do intelectual dentro desse processo todo.
Vinicius T orres Freire: Posso emendar uma pergunta, em termos mais concretos em cima do que o
senhor já disse uma v ez, o senhor disse no que tempo de JK [Juscelino Kubitschek; 1 902-1 97 6; presidente
do Brasil entre 1 956 a 1 961 . Foi o responsáv el pela construção da nov a capital federal, Brasília,
ex ecutando assim o antigo projeto da mudança da capital para promov er o desenv olv imento do interior e
a integração do país. Na área econômica, estabeleceu o plano de metas com o objetiv o de promov er a
industrialização do país] hav ia um projeto nacional da industrialização. A gora, hoje em dia os intelectuais
que estão junto à elite que domina o país, pode se dizer que têm um projeto semelhante, só que agora não
é mais a industrialização, mas sim a capacidade competitiv a para o Brasil se inserir na ordem
internacional. O senhor acha que ex iste muita diferença entre o que se fazia nos tempos de JK do que se faz
hoje? Quer dizer, o que estav a se fazendo era modernização conserv adora para inserir o Brasil na ordem
internacional no esquema de dependência, o senhor acha que tem uma coisa diferente?
Ulisses Capozzoli: Se v ocê me permite, v oltamos àquela minha questão das globalizações sucessiv as.
Matinas Suzuki Júnior: Por fav or, não quero ser chato, mas é importante o que professor Milton
responda as perguntas, está bom? Senão v amos ficar um debate muito...
Milton Santos: Eu acho que a sua questão, sobre univ ersidade intelectual, sempre ex istia, e hoje ela
ex iste mais ainda porque a tradição dos intelectuais é título famoso, quase meio século, de qualquer
maneira, o trabalho do professor não é obrigatoriamente o trabalho de intelectual. São duas coisas que se
separam. E essa separação faz com que os intelectuais das univ ersidades sejam sempre em número menor.
E isso não significa que a repercussão do que eles produzem sejam menos importante, ou melhor.
Matinas Suzuki Júnior: Professor Milton... O senhor quer continuar a resposta? Pode continuar.
Milton Santos: Então, a outra questão, para diferença entre esses intelectuais que se organizam como...
Milton Santos: ... Aparelho de Estado né? Naquela época hav ia a busca de um projeto nacional, essa
busca não era unív oca, em torno do próprio poder, hav ia diferenças, div ergências, discussões e os
av anços se dav am a partir dessas diferenças e desses acordos, e hav iam os partidos que tinham a
credibilidade, e o fato que eles também ostentav am projetos nacionais; Partido Comunista, o Partido
Social Democrata, a União Democrática Nacional, tinham projetos ex plícitos. No mundo atual não há
projetos ex plícitos! Esses intelectuais que grav itam em torno do poder não apresentam projetos ex plícitos
e por isso não há discussão possív el. Só é possív el discutir se há um projeto tornado ex plícito.
Matinas Suzuki Júnior: Fernando, v ou te interromper, desculpe, mas estamos indo para o nosso
interv alo e antes o senhor poderia responder rapidamente a três perguntas de telespectadores que não
tiv e chance ainda de passar para o senhor. Primeiro de Ricardo de Santos, que diz o seguinte: “O senhor
acha que Á rea de Liv re Comércio das Américas [A lca] trará benefício para o Brasil?”
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Milton Santos: Que Brasil? Ela traz benefício para um certo número de empresas ex atamente, não se
trata de Brasil nessa Área de Liv re Comércio, acho que é um seqüestro da palav ra. Isso por enquanto é
feito para facilitar o comércio. Pode ter algum, alguma sobra para uma parte da população, mas não está
dentro de uma preocupação geral.
Matinas Suzuki Júnior: Certo, o Emiliano, do Jardim A mérica pergunta o seguinte: O senhor defende o
sistema de cotas para os negros nas univ ersidades e no mercado de trabalho?
Milton Santos: Olha aqui, essa questão tinha que aparecer, naturalmente, porque se está querendo
polarizar a discussão da questão negra é porque o negro no Brasil não é mais um problema, é uma questão.
Coisa de cotas é uma grande tolice. A minha ex periência de v ida sugere que eu me refira a três dados, pelo
menos. Primeiro dado é a corporeidade, que aumenta com enorme importância da globalização, a segunda
é a indiv idualidade, e a terceira é cidadania. A corporeidade é a minha ex pressão como pessoa, é a forma
como eu me comunico com os outros, comigo mesmo e com meu lugar-comum. E essa forma de
comunicação é limitada ou facilitada pela maneira como eu participo da sociabilidade e como eu sou, mais
ou menos cidadão. O problema é que no Brasil a cidadania não se completou, então, o meu corpo, o meu
corpo aparece como uma diferença central. Central! Quer dizer, não importa que eu consiga fazer da
minha indiv idualidade um grau de consciência, porque eu, atrav és de minha indiv idualidade, eu amplio o
meu conhecimento. Na medida em que o país ainda não descobriu a cidadania, o negro é alguém inferior
na sociedade brasileira, tratado como inferior. E, mais do que isso, não há notícia clara de que a sociedade
brasileira deseja mudar esta situação.
Milton Santos: O seguinte, a questão das cotas tem que ser tratado de outra forma, o que é que o Brasil
deseja fazer com seus negros? Quer que eles continuem assim ou quer que eles participem de maneira
igualitária da v ida nacional? Essa que é a questão, porque a questão de cota é a solução, e eu não posso
discutir a solução enquanto eu não discuto a problemática.
Matinas Suzuki Júnior: E o Jaime de Souza do Jardim Bonfliglioli, aqui de São Paulo, que é funcionário
da USP, pergunta o seguinte: Como o senhor v ê os problemas que está passando o prefeito Pitta [Celso
Roberto Pitta do Nascimento. 1 946. Economista. Foi o primeiro negro a ser prefeito de São Paulo pelo
partdio progressista brasilieiro (PPB). Foi acusado de corrupção no escândalo dos precatórios em 2000]
que é o primeiro prefeito eleito negro de São Paulo?
Milton Santos: Olha, eu v ejo como o Cardeal Dom Paulo, isto é, ninguém sabe ex atamente o que ele fez
ou que deix ou de fazer, o que a gente sabe é que está hav endo um massacre. Então, minha posição como
negro, não há porque não dizer isso, é aquela do Cardeal Dom Paulo, não há porque massacrar um cidadão
antes da prov a ser feita. E, se há um massacre, há uma razão específica que pode ser o fato de ser negro.
Matinas Suzuki Júnior: Bom, nós v oltamos daqui a pouquinho com segunda parte da entrev ista com o
professor de Geografia da Univ ersidade de São Paulo, Milton Santos. A té já.
[interv alo]
Matinas Suzuki Júnior: Bem, nós v oltamos com Roda V iv a que entrev ista esta noite o professor Milton
Santos, titular de geografia da Univ ersidade São Paulo. A ntes de interv alo, Fernando estav a fazendo uma
pergunta, eu te interrompi, Fernando, a palav ra é sua.
Fernando Conceição: O professor falav a que os partidos no gov erno não têm um projeto nacional, se
não me engano. E eu acredito que a oposição, os partidos de oposição, eles têm esse projeto. O Partido dos
Trabalhadores e toda esta gama aí de partidos têm um projeto nacional com o qual o senhor poderia se
afinar ou que lembraria o tempo dos partidos a que o senhor se referiu na década de 50, início de década
de 60?
Milton Santos: A questão central é que próprio aparelho de Estado não tem um projeto ex plícito, então,
em um país onde o aparelho de Estado não tem um projeto, os partidos dificilmente podem ter como
discutir. A cho que este contraste é indispensáv el. A produção desse aparelho, desse projeto, incumbe
primariamente ao aparelho de Estado. Recentemente, o Ministro Sardenberg [Ronaldo Sardenberg foi
ministro da Ciência e tecnologia da gestão de Fernando Henrique Cardoso] escrev eu um artigo sobre a
possibilidade de um projeto. Mas ele termina pelo v ácuo, porque mesmo o que ele sugere, o Sardenberg,
que dev e ser uma pessoa simpática pela maneira que escrev e, um homem culto, mas ele se refere à
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reunião de todos os brasileiros para fazer um projeto. E isso não é possív el num país normal como é o caso
do Brasil. A o contrário, há v ários projetos e a política é ex atamente o ex ercício da escolha desses
projetos, da apresentação desses projetos para a opinião pública, da conquista da opinião pública em
função desses projetos.
Fernando Conceição: Por que as oposições? Por que por ex emplo um Partido dos Trabalhadores, que
têm um projeto, pelo menos anuncia que tem esse projeto de construção da nacionalidade, eles não
conseguem conquistar v otos suficientes para assumir o poder? A que o senhor atribui isso?
Milton Santos: Acho que essa confusão entre eleitoral e político, infelizmente, domina toda v ida
nacional e até mesmo o partido dos trabalhadores. Quer dizer, o eleitoral, ele é o imediato, ele é o
circunstancial. O político não, o político sugere uma v isão de país a longo prazo com a realização de etapas
possív eis. E isso prov oca posturas diferentes. As esquerdas têm sido compelidas a ter quase que sempre
posições eleitorais. O que reduz a sua força dentro da nação porque ela passa a ter um papel de
mobilização que às v ezes é muito importante, mas não na produção da consciência, e o que v ai precisar,
no caso brasileiro, é produzir uma consciência nacional, seja ela de direita, de esquerda, de centro-
esquerda, o que for, mas uma consciência que permita um debate sério. Enquanto os partidos ficarem
preocupados apenas na mobilização para ganhar v otos, nós estaremos longe disso. E aí entra o papel dos
intelectuais outra v ez, mas não v ou prosseguir por enquanto.
Renato Ortiz: Eu v ou complicar um pouco mais, espero não deix ar v ocê numa sinuca de bico.
[Risos]
Renato Ortiz: Nós podemos pegar essa discussão e interpretar de duas formas, uma forma mais
tradicional e outra v inculado ao debate inicial que é sobre a globalização. A forma tradicional, poderíamos
dizer assim, é falar que os partidos atuais não têm mais projetos nacionais dev ido a uma série de
deficiências, tanto entre os partidos de esquerda, seja ele o gov erno, como entre os partidos mais à direita.
Essa é uma forma de encaminhar a coisa. A outra forma, e que complica, é o seguinte; se ex iste um
processo de globalização e se ex iste um projeto de debilitação do Estado-Nação, a pergunta é: é possív el
hoje conceber, como há 40 anos atrás, a idéia de projeto nacional? Ou é possív el hoje hav er outro tipo de
idéia programática, que não a de projeto nacional? Porque a idéia de projeto nacional pressupunha que eu
tinha a soberania de um país na minha mão, para pensá-lo e atuar sobre ele. Ora, essa margem de pensar já
é mais difícil por causa do intrincamento e globalização. E atuar também já é mais difícil. Como fica a idéia
de projeto nacional - se é que ela fica - nos tempos de mundialização da cultura e globalização da
sociedade?
Milton Santos: Porque ela fica e aí tem que ex plicar porque eu penso, v ou fazê-lo rapidamente. Eu sou
um geógrafo, então, eu creio que o território nacional - e todos países têm um território, salv o decisão em
contrário - cria essa comunidade, e nenhum país funciona sem esse território, e esse território é a área na
qual o Estado ex erce, digamos assim, a sua força, o seu poder, sobretudo hoje, porque o chamado mundo
não têm como se impor sobre os territórios. Não ex iste esta capacidade do chamado mundo de dizer o que
se v ai fazer dentro de cada país. Ao contrário, os Estados é que são, quando quererem, fiéis coadjuv antes
do chamado mundo. É a razão pela qual os presidentes se tornaram caix eiros v iajantes de empresas, e com
freqüência caix eiros v iajante de empresas não nacionais. Mas, a realidade do Estado é muito mais forte
hoje do que antes, e a nação ex iste para tudo que está relacionado ao território. E o que tem a v er com o
território é a maior parte das empresas, é a maior parte da população, é a maior parte das instituições. A s
grandes empresas não necessitam de território na medida em que trabalham com pontos particulares, que
são as alav ancas da realização da sua riqueza, pontos escolhidos por elas antes e pegam os Estados para
aparelhar, como é o caso do Brasil hoje, que está cada dia mais inv estindo para melhorar a situação de tal
ou qual região, de tal ou qual cidade para que tal ou [qual] grande empresa possa se instalar. Então, dizer
que o Estado nacional acabou não é possív el dentro de um projeto nacional, eu creio, inclusiv e, que é um
pouco arriscado. Eu poderia desenv olv er mais essa idéia, mas não creio que aqui seja o lugar para um
desenv olv imento mais demorado, para possibilitar outras perguntas, mas...
Ulisses Capozzoli: Professor, desculpa. É possív el pensar a globalização como uma etapa de um
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processo de planetarização? Que é espécie de subproduto da área espacial, eu digo área espacial no
sentido do confinamento da Era Espacial, coisa que aconteceu a partir de 1 961 com o v ôo de Gagarin
[1 934-1 968; cosmonauta sov iético. Foi o primeiro homem a v iajar pelo espaço em 1 961 , período de
Guerra Fria em que URSS e EUA disputav am a tecnologia espacial] e, nesse sentido, esse processo de
globalização, ele desenha uma perspectiv a do século XXI de conquistas de outros mundos. Parece
científico isso, mas ocupação de outros mundos, de ocupação da Lua e tudo mais. Essa libertação do
confinamento grav itacional que durou milhares, milhões de anos na v erdade, esse processo de
globalização não faz parte, não é de certa forma a parte v isív el desse iceberg ou não faz sentido esta
consideração?
Milton Santos: A gradeço a pergunta porque está se encaminhando para as possibilidades do futuro que
estão na comunicação, mas não na comunicação pela Internet, se comunicar com alguém a dez mil
quilômetros. E que quando nós não refletimos sobre as possibilidades enormes de comunicação dos
homens na prox imidade. Então, essa planetarização assim como v ocê definiu, me parece que ela tem um
obstáculo. Não há ainda idéia da possibilidade de comunicação entre seres ev entualmente v iv endo em
outras galáx ias ou outros planetas e seres que v iv am na Terra. Então, destrói essa possibilidade por
enquanto, ao mesmo tempo, que aumenta a consciência de que a Terra que é nossa morada, nós v amos
cuidar da Terra, nós dev emos encontrar soluções para a nossa comunidade...
Milton Santos: Pode dizer que é uma metáfora, como assim Darcy Ribeiro [1 922-1 997 ; antropólogo.
Escrev eu obras importantes relacionadas a etnologia tais como Culturas e línguas indígenas do Brasil
(1 957 ) ou ainda O processo civilizatório: etapas da evolução sócio-cultural (1 97 8). Também trabalhou
no planejamento educacional da Univ ersidade de Brasília (1 962).] inv entou uma outra metáfora para
significar nosso tempo, né? Falav a na coisa tecnotrônica, essa idéia já entra no v alor do sujeito. Mas tudo
são metáforas, entenda. Eu creio que o grande problema hoje é descobrir como acelerar a comunicação
entre os homens, e aí seria talv ez a solução, que ninguém me perguntou ainda...
Matinas Suzuki Júnior: Mas, acelerar comunicação em que sentido? Porque o que não falta hoje é
comunicação momentânea!
Milton Santos: Não, o que não falta hoje é informação lá em cima. A comunicação está entre os pobres
do mundo, sobretudo nas grandes cidades, eles é que se comunicam, eles é que criam.
Milton Santos: Sobretudo nas grandes cidades, em toda área onde haja uma solidariedade de
preocupação, quando eu falo solidariedade não tem nenhuma conotação ética, mas sim o fato de v iv er
juntos e depender disso para continuar v iv endo. Então, eu creio que aí que está o caminho para uma outra
globalização. Mas só que nós estamos preocupados em ter Internet, a gente se gaba de hav er falado com
um em Tóquio, quando para a realização dessa comunicação a gente nem sequer precisa dessa sofisticação
toda da tecnologia moderna, ultra moderna, a gente pode se contentar com meios menos modernos.
Matinas Suzuki Júnior: Eu acho que v ou ceder a palav ra para o Itsv an que v árias v ezes tentou falar.
Istsv an Jancso: Às v ezes v ocê é mais disciplinado do que dev eria. Mas enfim, tudo isso é muito
complicado [risos]. V ocê quando equacionou, apresentou a questão da globalização, v ocê disse: a
desorganização dos sistemas anteriores gerando as nov as formas de organização. Eu diria até, av ançaria,
diria: nós v iv emos um momento de subv ersão generalizada de certezas e v alores. A gora, ainda assim se
impõe a preserv ação das condições de v ida organizada; de normatização da v ida social. Vale dizer que o
Estado continua se fazendo necessário, porque é o instrumento até hoje descoberto para manter a
organização da v ida social, de normatização da v ida social. E, eu acho que o grande problema, porque
todo mundo concorda que o Estado nacional burguês de século XIX está condenado, faliu, mas ao mesmo
tempo, v emos a falência de um certo tipo de Estado, o Estado socialismo real, o uni-partidário e
autoritário. Esses é que faliram. A gora, qual é a nov a forma de Estado que está em processo de gestação e
que aparece como alternativ a para o futuro? E esse Estado necessariamente é limitado? O Estado
planetário é uma fantasia, no nív el atual de prev isão possív el? Nós não falamos em organismos
planetários, nós falamos em organismos internacionais, v ale dizer organismo de regra entre nações? Como
v ocê v ê esse nov o tipo de Estado emergente, se é que nós já podemos perceber o seu esboço? Que tipo de
Estado está em processo de gestação, na esteira da falência das formas de Estado que a gente v iu? O Estado
nacional burguês modelo século XIX, ou Estado socialista, ou enfim, são esses que estão perdendo a sua
v igência?
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Milton Santos: Eu não tenho competência para dar uma resposta técnica, cabal. Eu apenas diria que nós
estamos deix ando a era tecnológica e entrando na era democrática ou popular. Nós estamos já entrando
nessa época, que é a mudança de qualidade, digamos, nas relações humanas. Quer dizer, essas massas
todas que entram em mov imento, esse uso da comunicação e da informação a partir dos pobres deste
mundo reunidos num determinado território e que apontam para outra coisa.
Istsv an Jancso: Milton, me permita, só para entender melhor, o que é este sistema de comunicação
entre os pobres que v ocê já falou algumas v ezes? Eu gostaria de sentir isso mais palpáv el, porque eu não
percebo isso.
Milton Santos: V ocê quase me emudece com esta afirmação. [Risos] Mas como foi “quase” eu v ou tentar
lhe responder. Nós temos o mundo da informação que é v erticalizada. A informação tende a suprir
preocupações pragmáticas, ela tem alguns centros froux os que são o grande comando do mundo hoje, na
medida em que o mundo é mov ido pela v iolência da informação, juntamente com a v iolência do dinheiro.
Mas os homens juntos criaram outra coisa, atrav és da emoção. Quer dizer, a informação se dá como um
produto da razão, da chamada razão, da racionalidade que é racionalidade do mais forte, enquanto que a
emoção permite a comunicação, e ela gera emprego e ativ idade. Só que nós não trabalhamos isso no nosso
cotidiano univ ersitário. E outra coisa, nós trabalhamos com o que a mídia nos manda trabalhar.
Ulisses Capozzoli: A emoção que foi colocada dessa forma abstrata, gera até massacre raciais, éticos,
Iugosláv ia, Uganda...
Milton Santos: Também, mas isso é próprio da história. Eu creio, eu prefiro olhar para o futuro. Os
massacres, o que nunca houv e foi, digamos, um mundo gov ernado pela informação e contrariado pela
comunicação. Eu acho que o que é ex traordinário neste mundo, deste fim de século, sobretudo o que faz a
importância da v ida urbana, é essa produção a partir de baix o, de algo que é rev olucionário, no sentido de
que os pobres acabam por v er mais o que o mundo está sendo. Nós não temos muita forma de v er o
mundo porque nós estamos contentes com o nosso conforto, com os nossos div ersos confortos: o
conforto do nosso bairro, o conforto do nosso consumo, o conforto das idéias estabelecidas, que tudo isso
é um entrav e à produção do conhecimento e um entrav e à produção do futuro, o futuro está lá embaix o.
Ulisses Capozzoli: O pobre é naturalmente sábio assim? Esta determinação abstrata, ele é sábio?
Milton Santos: Ele sempre é sábio porque ele conhece a ex periência da escassez, que agora, só agora a
classe média começa a conhecer. A ex periência da escassez é o caminho da descoberta do eu v alho
realmente. Esse caminho da escassez que todos os dias renov a, porque aparentemente eu deix o de ser
pobre, amanhã eu v olto a ser pobre outra v ez, porque no Brasil essa redução da pobreza não é estrutural.
Então, o que nós temos é essa capacidade do pobre, mas, sobretudo do migrante. Ele é ainda mais forte do
que o pobre na v isão do real e do futuro, e que faz com que a A mérica Latina e o Brasil sejam países
afortunados, urbanos, porque são cheios de pobres e tem a cidade cheia de migrantes.
[risos]
Maria Irena Szrecsany i: A cidade brasileira já foi promessa para os pobres. Na cidade, o imigrante
construiu a sua v ida nov a e hoje a cidade é o desemprego. A gente v ê na cidade uma semente de
aglutinação daqueles que sofrem o lado pior da globalização, que é a carência crescente, a perda ex clusiv a
das esperanças de melhoria. Nesse sentido, a cidade aparece, aos nossos olhos, como uma barbárie, em
v ez de nós termos av ançado para uma cidade melhor, nós estamos v endo, por São Paulo, a cidade
destruída e as pessoas com suas esperanças, trancadas. A o mesmo tempo, e eu concordo com v ocê, que
nunca o Brasil tev e tanta possibilidade de v er a suas massas populares organizadas. E nesse sentido, o
pobre deix a de ser um tanto abstração como colocou nosso colega ali. Ex iste nessa organização popular
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uma esperança para as cidades e uma esperança para a nação brasileira?
Milton Santos: Eu não estou falando de organização, há duas coisas diferentes como também...
Milton Santos: No mov imento negro, v ocê tem o mov imento negro e tem os negros que reagem
diferentemente nos seus mov imentos. Quer dizer, seria preciso que, digamos, essas organizações
aceitassem idéias como essa, não tem que ser só as minhas, pode ser a de outros, e passassem a trabalhar
em torno disso. Eu creio, por ex emplo, que numa cidade como São Paulo, um prefeito que lev e em conta
esse fato, v ai ter resultados importantes.
Fernando Conceição: Professor, eu queria somente fazer um brev e comentário, e também uma
pergunta. Quando o senhor fala isso, o senhor fala até por ter v iv ido na carne e na pele algumas
ex periências concretas que não têm nada a v er com o abstrato que aqui se tentou imputar ao seu discurso
sobre a presença dos homens lentos que v iv em nas áreas opacas, segundo própria definição do senhor,
que são essas áreas onde v iv em os pobres e onde está a esperança um projeto de emancipação da
sociedade como um todo. O senhor, quando assumiu o cargo no gov erno da Bahia, no início de década de
60...
Fernando Conceição: Comissão de planejamento econômico, uma das idéias que o senhor lev ou foi a
da tax ação progressiv a da riqueza, ou do lucro.
[Risos]
Fernando Conceição: É, um dos motiv os que teria lev ado o senhor à prisão seria esse. O senhor está
afastado da Bahia, digamos fisicamente durante algum tempo, eu estou lá de v olta e a situação de
distribuição de renda na Bahia é como no Brasil, uma das mais perv ersas em todo o conjunto nacional.
Entretanto, hoje lá no nosso estado nós temos toda uma mídia, um discurso da positiv idade de que um
gov erno está dando certo, inclusiv e lev ando nov os projetos, fábricas de automóv eis, montadoras e etc.
Há todo um discurso da positiv idade do projeto que este gov erno está implantando que é um dos mais
influentes, porque faz parte de um dos grupos mais influentes na República. Quer dizer, hoje o senhor, se
assumisse um cargo ex ecutiv o, o senhor teria...
Fernando Conceição: Está ex cluída esta hipótese. Então, v amos colocar em outros termos. Apesar de
estar afastado da Bahia, o senhor dev e acompanhar o que acontece por lá, qual é a análise que o senhor faz
da situação econômica? O senhor, que trabalhou nesta área há 30 anos atrás? Uma proposta de tax ação de
imposto progressiv o da riqueza na Bahia, como foi feito, como o senhor propôs anteriormente, ainda seria
v álida para dias atuais?
Milton Santos: A cho que é v álida para o país inteiro. Nós estamos apenas esperando que o presidente da
República, que hav ia feito esta proposta há alguns anos atrás, retome esta proposta que poderá ajudar,
digamos assim, na redução da melhoria, esta palav ra mágica do comportamento, do orçamento público
etc.
Matinas Suzuki Júnior: Professor, só um minutinho. O seu colega, o professor Walter Colli, diretor de
instituto de química da USP, manda um fax dizendo o seguinte: “Pela conv ersa de v ocês, parece que
trabalho de biólogos, físicos, químicos, não é um trabalho intelectual. Gostaria de ouv ir um comentário do
Milton sobre isso”. Acho que a gente lev ou muito para o campo das...
Milton Santos: Não posso falar daquilo que eu não sei, quer dizer, o que eu sei é o que biólogo, físico,
químico, podem ser intelectuais, freqüentemente são cientistas, ser cientista não é obrigatoriamente ser
intelectual, pode ser até o contrário, se o cientista não tiv er um objetiv o finalístico, mas sim social e
moral. Não sei se respondi ao meu amigo.
Matinas Suzuki Júnior: Eu v ou aprov eitar que consegui a palav ra aqui, nós recebemos aqui no nosso
e-mail a seguinte pergunta do A mauri. A Internet, o senhor acha que Internet modifica o conceito de
nação?
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Milton Santos: Internet é um conjunto de objetos utilizados até agora, digamos, liv remente, a partir de
agora menos liv remente, as ameaças que pairam sobre a Internet no ponto de v ista da sua utilização pelo
mercado são claras né? A inda há poucas semanas, o presidente da própria Procter & Glambe - que é o
maior anunciante do mundo, gasta em anúncios um trilhão por ano - este senhor declarou que v ai, como
os colegas dele, inv estir na Internet, ele pretende transformar a Internet num instrumento do mercado. E
nós sabemos que, quando o mercado penetra na mídia ele conforma de alguma maneira o comportamento
dela, ou melhor, ele deforma o comportamento da mídia. Então, eu creio que o momento é bom para
chamar a atenção para os perigos que estão rondando a Internet, que aparecia como uma salv ação. Do
outro lado, o momento é bom - e aí não v ai nenhum “pux a-saquismo” para louv ar a decisão da direção
desta casa de recusar a idéia de pôr anúncios, de aceitar publicidade na telev isão Cultura.
Istv an Jancso: Eu quero v oltar àquela questão anterior, porque realmente eu ainda acho que não
entendi. A sua perspectiv a em relação ao futuro, especialmente em relação ao Brasil, é que paralelamente
ao av anço da barbárie, paralelamente ao esgarçamento do tecido social, frase minha, não foi sua, ex iste,
subjacente a tudo isso, um processo ancorado na emoção no interior das classes esfoliadas deste país que
v ai possibilitar a reconstrução e superação de tudo isso? Eu queria entender bem, porque eu acho que isso
é crucial, porque se essa resposta, a depender da sua natureza, eu posso entender a sua compreensão da
integração do processo brasileiro no tema inicial que era globalização.
Ulisses Capozzoli: Eu posso acrescentar uma coisinha nesta sua fala? Nesse sentido, professor, se eu
entendi bem o que ele disse, por ex emplo, os sem-terra, longe de ser a ameaça como tem sido
apresentada, seria uma esperança para o Brasil no sentido de reciclagem e transformação?
Milton Santos: Eu creio que uma primeira observ ação a fazer é quanto à questão da emoção. Nós
aprendemos todos que: ou eu pensou, ou eu sinto, ex cluindo a emoção como fábrica da produção do
conhecimento. Então, a gente teria que abandonar esse lado da epistemologia do iluminismo que já troux e
conseqüências muito importantes na produção do conhecimento da América Latina. Mas isso é matéria
para outro debate. O que eu sustento, e comigo estão outras pessoas que são pouco numerosas ainda, mas
isso não importa (o fato de ser pouco numeroso) é que a emoção me permite obter a liberação dos
quadros, quaisquer que sejam os quadros estabelecidos, inclusiv e os quadros do pensar... Nesse sentido, o
sentimento e a emoção têm um papel motor na produção do conhecimento. A s classes médias, sobretudo
as brasileiras, essas que se criaram no clima do consumo, que é um redutor do pensamento, que se
criaram no clima de regime autoritário... V ocês, que agora, de nov o, estão v iv endo um regime autoritário
a partir da v iolência da informação que torna difícil aos pobres e a todas as pessoas entender o que se
passa, porque a informação está malgrada nos jogos da mídia e a culpa não se pode atribuir somente a ela.
Isso porque a informação é centralizada, o jornal brasileiro dispõe de meios para indicar o que o mundo
está sendo hoje, o que ele foi ontem, o que ele é amanhã. Eles se v alem de informações que lhe são dadas
por grandes agências que também são grandes agências desses grandes monstros que comandam este
mundo perv erso. Então, as classes médias estão desamparadas, na medida em que elas são naturalmente
enquadradas, e desse enquadramento que v em esta prosperidade, e daí a sua dificuldade para pensar, daí
as dificultados das univ ersidades de encontrar o nov o.
Istv an Jancso: Quer dizer, se eu bem entendo, a univ ersidade dev e deix ar de se preocupar somente em
ser mais produtiv a conforme o sistema impõe e dev e ser capaz de restaurar a sua capacidade de gerar
subv ersão e indignação?
Milton Santos: Ex ato. A cho que como Max well [referência ao físico James Clerk Max well; 1 831 -1 87 9;
que demonstrou em 1 864 que as forças elétricas e magnéticas têm sua natureza dependente do referencial:
uma força elétrica em determinado referencial pode tornar-se magnética se analisada de outro, e v ice-
v ersa, rev olucionando as leis da física na medida em que o ponto de referência passav a a ser v ariáv el]
sugeriu que ele iria pôr a teoria de cabeça para baix o. A cho que nós dev emos fazer as mesmas coisas com
idéias v igentes da globalização. É um equív oco discutir a globalização aceitando as premissas que nos
foram dadas. A í não há av anço. Eu creio que nós dev emos, partir do mundo tal como ele se dá hoje, tentar
entender como é que isso se constrói, e passar a produzir teorias indígenas, e não continuar copiando
teoria do Norte, que é uma grande bobagem, um grande erro, um grande equív oco, uma grande
subserv iência.
Renato Ortiz: Milton, em cima disso que v ocê está falando, v ocê acha hoje que os intelectuais têm mais
ou menos capacidade de pensar de forma autônoma do que relação aos anos 50?
Milton Santos: A cho que todo mundo tem mais ou menos capacidade. Mas acho que se a
intelectualidade quer realmente contribuir para construção de um ente de entendimento que permita
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mudanças... Então, eu creio que a maior parte dos temas que nós trabalhamos parte de uma idéia de que a
classe média é o centro de tudo, e os próprios partidos de esquerda produzem discurso de classe média, os
pobres andam como enfeite. Mas a interpretação do Brasil, dos nossos partidos de esquerda é a
interpretação da classe média, como se o central fosse imitar as classes médias naquilo que elas são em v ez
de partir para uma outra forma de interpretação da realidade brasileira.
Matinas Suzuki Júnior: Como o Ulisses perguntou ali professor, o mov imento sem-terra estaria
fazendo esta nov a elaboração? Quem estaria fazendo? Ex iste alguém?
Milton Santos: Creio que há duas coisas, esse contato bruto com a chamada realidade para o qual nós
somos menos capazes por ser de classe média, para o qual os pobres são mais capazes por serem pobres,
que necessita da codificação que alguns intelectuais já estão fazendo. Este liv ro [aparece o liv ro Por uma
outra globalização - do pensamento único à consciência universal. São Paulo: Editora Record, 2000.] é
um pequeno esforço de codificação, uma pequena ambição generalizante, univ ersalizante a partir da
minha própria disciplina. Eu creio que outras disciplinas, algumas já estão fazendo, é o caso do seu próprio
trabalho Renato, fazem estas análises e se lev antam outros intelectuais em outras partes do univ erso
acadêmico e produzem este tipo de análise. Nós estamos cada v ez mais perto, digamos, dessa construção,
reconstrução intelectual de um mundo que historicamente é concreto.
Renato Ortiz: V ou traduzir um pouco o que v ocê está dizendo do debate. A minha impressão é que no
tema...
Renato Ortiz: Não, a mim para ex plicitar. [Risos] A minha impressão é o que tema da globalização, o que
nós assistimos quando lemos os jornais, v emos telev isão, compramos os liv ros em aeroportos escritos por
ex ecutiv os é que aí nós temos uma v ersão da globalização que se está se transformando em senso comum.
Senso comum quer dizer algo que não se questiona, que é dado quase que naturalmente. O grande
problema que se tem para nós é pensar em algo que seja diferente desse senso comum, desse senso comum
que não é fabricado. Eu não gosto da idéia de fabricação, parece que tem alguém lá em cima fabricando,
ele permeia um conjunto de interesses.
Milton Santos: Peço desculpas, é um pouco fabricado, porque quando a gente sabe como se produzem
os best-sellers, eles são produzidos antes de serem escritos, as grandes empresas editoriais decidem o que
v ai ser best-seller, como é gratuito que um liv ro seja lançado ao público univ ersal, há uma escolha do que
v ai ser publicado. Basta estudar. E os jornalistas aqui presentes sabem disso, como funciona a indústria
editorial hoje no mundo que é uma enorme máquina que deliberadamente produz uma idéia, se não quer
se falar de ideologias - porque é uma palav ra que está praticamente proibida hoje né? Mas acho que faz
parte da globalização isso, e a univ ersidade não av ançará no seu trabalho enquanto ela não souber que há,
de um lado, uma produção intelectual importante, do outro lado uma produção intelectual poderosa. Uma
coisa é o mercado das idéias, outra coisa é produção teórica correta. Isso a gente tem que ensinar, eu faço
isso com meus alunos do primeiro ano, ensinar-lhes como é que se produzem liv ros, como se produzem
artigos e como é que funcionam as rev istas, como é que a humanidade é intox icada a partir daqueles que
têm a função de analisar. Neste caso, eu acho que a gente não precisa ter medo de se referir ao que outrora
era esse bicho-papão. A globalização permite falar de construções antecipadas de v iolências deliberadas.
Matinas Suzuki Júnior: Infelizmente nós estamos caminhando aqui para nosso final de programa. Eu
gostaria de fazer algumas perguntas que ficaram aqui, que eu separei porque fugiu um pouco diretamente
do assunto que estav a sendo tratado, mas que são... Apareceram v árias perguntas sobre o que o senhor
acha da priv atização da V ale do Rio Doce.
Milton Santos: Eu francamente não entendi ex atamente porque querem priv atizar essa empresa. Então,
eu não consigo sair da minha condição de homem atônito. O que eu leio me parece uma pobreza total,
como muitas outras coisas que estão sendo feitas, tem que ser não é, essa lei do inelutáv el, e há uma
recusa ao debate nacional, mais uma v ez. Então, acho isso, é um ex emplo gritante desse desprezo pela
noção de debate nacional.
Matinas Suzuki Júnior: Professor Milton, a Ingrid A tan Rodrigues, pergunta qual seria a mais correta
classificação do relev o brasileiro?
Milton Santos: [risos] Olha, eu v ou responder como o meu professor de geografia no ginásio. Um dia,
perguntaram quais eram os rios da Europa e ele respondeu: “hoje a aula é sobre montanhas”.
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5/8/2010 :: Memória Roda Viva - www.rodaviva…
Milton Santos: E o Luiz Belangero Júnior, adv ogado e professor de geografia do Brás aqui de São Paulo,
pergunta o que o senhor considera como básico para melhoria do ensino geografia?
Milton Santos: Eu creio que o ensino da geografia tem como função central ex plicar o país e produzir
cidadãos a partir desse conhecimento.
Matinas Suzuki Júnior: Professor, eu recebi aqui v ários fax , telefonemas e mensagens parabenizando o
senhor pelo seu trabalho, pela participação neste programa. O Eduardo Spagnolo, de São Paulo, o Carlos
Eduardo Chagas, aluno do curso de geografia da Univ ersidade Federal Fluminense, João Mello do
Jabaquara, Leda Orsi, aqui de São Paulo, Adausija da Costa daqui de São Paulo, o Lucas Gomes lá de Porto
A legre, e o professor Antônio de Camargo diz o seguinte: “Como professor titular da USP gostaria de
congratular o professor Milton pela sua coragem e lucidez e dizer que concordo com suas críticas sobre os
intelectuais brasileiros, sobre a univ ersidade e sobre a culpa da mídia em buscar os pseudo intelectuais
para promov ê-los. Parabéns também à TV Cultura por trazer o professor Milton Santos ao Roda Viv a. E a
professora Maria da Freguesia do Ó: “quero agradecer a TV Cultura pela presente que deu à comunidade
negra ao receber o professor Milton Santos no programa Roda Viv a”. E eu gostaria de agradecer
imensamente a presença do senhor em nome da produção do programa. A cho que tiv emos, fomos
honrados com a sua presença, tiv emos uma lição de pensamento liv re hoje aqui, o que é muito importante
fazer esse ex ercício. E espero poder contar com o senhor em programas futuros, professor, o senhor que
apesar das críticas que o senhor fez aos intelectuais falantes... [Risos] Eu acho que a sua participação é
muito importante para a sociedade brasileira.
Milton Santos: Eu sou muito sensív el ao conv ite, sou muito sensív el às perguntas que me permitiram
dar respostas que dei e espero que essa área, essa superfície, já que sou geógrafo, de liberdade, possa
continuar se ex ercitando e ampliando os seus limites.
Matinas Suzuki Júnior: Muito obrigado, eu agradeço também à nossa bancada de entrev istadores,
bancada bastante especial hoje também, agradeço à sua atenção, e à sua participação, e eu recebi bastante
fax , bastante correspondências e as que eu não consegui ler durante o programa as encaminharei ao
professor Milton Santos. Gostaria de lembrar que o Roda Viv a v oltará na próx ima segunda-feira às dez e
meia da noite. A té lá, uma boa semana para todos, e boa noite.
Realização:
Fundação Padre Anchieta - Labjor/Unicamp - Nepp/Unicamp
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