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Ecomig 2018 - Democracia e Comunicação: Entre Disputas e Resistências

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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da UFJF.

Encontro dos Programas de Pós-graduação em Comunicação


Social de Minas Gerais (11. : 2018 : Juiz de Fora, MG).
Democracia e Comunicação [recurso eletrônico]: entre
disputas e resistências / Caroline Marino ... [et al.]
organizadores. – Juiz de Fora, MG : UFJF, 2019.
Dados eletrônicos (1 arquivo: 21,9 kb)

Trabalhos apresentados no 11º Ecomig realizado entre os


dias 18 e 19 de outubro de 2018 na UFJF.
ISBN: 978-85-93128-37-0

1. Comunicação social – Aspectos políticos. I. Marino,


Caroline. II. Universidade Federal de Juiz de Fora. Programa de
Pós-Graduação em Comunicação Social. III. Título.
CDU: 316.77:32
XI ECOMIG – Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação Social de Minas Gerais
Faculdade de Comunicação - Universidade Federal de Juiz de Fora | 18 e 19 de outubro de 2018

A organização para a realização do XI Encontro dos Programas de Pós-Graduação em


Comunicação - Ecomig - foi feita com muito afinco pelos alunos do Programa de Pós-
Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Juiz Fora, e o evento aconteceu nos
dias 18 e 19 de outubro de 2018. Num ano atribulado, durante o período eleitoral, os alunos
propuseram o debate sobre “Democracia e Comunicação: entre disputas e resistências”, que se
mostrou muito rico e de suma importância dado o contexto social e político que o país
atravessava.
Importante ressaltar também que durante a reunião de coordenadores dos PPGs foi
criada a Rede MIGS - Rede de Pesquisadores em Comunicação, que tem o intuito de estreitar
os laços entre os professores e os alunos do Programas da UFMG, UFOP, UFJF, UFU, CEFET-
MG e PUC-MG com a realização de várias atividades conjuntas.
Sendo assim, gostaríamos de agradecer aos alunos do PPGCOM da UFJF, que
organizaram e participaram ativamente do evento; aos coordenadores e representantes dos
Programas de Pós-Graduação em Comunicação de Minas Gerais que compuseram a mesa de
abertura; aos palestrantes convidados e aos mestrandos e doutorandos mineiros que vieram à
UFJF apresentar seus projetos, trocar ideias e enriquecer as discussões do Ecomig.
Essa publicação atende a uma política de divulgação cientíica e democratização do
conhecimento e foi viabilizada pelo Selo Editorial Pesquisa em Comunicação e Sociedade do
Programa de Pós graduação em Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora.
XI ECOMIG – Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação Social de Minas Gerais
Faculdade de Comunicação - Universidade Federal de Juiz de Fora | 18 e 19 de outubro de 2018

Coordenação: Prof. Dr. Renato Caixeta da Silva


Área de Concentração: Tecnologias e Processos Discursivos
Linhas de Pesquisa: Literatura, Cultura e Tecnologia; Discurso, Mídia e Tecnologia; Linguagem,
Ensino, Aprendizagem e Tecnologia; Edição, Linguagem e Tecnologia
Site: www.posling.cefetmg.br

Coordenação: Prof. Dra. Ana Cristina Menegotto Spannenberg


Área de Concentração: Tecnologias, Comunicação e Educação
Linhas de Pesquisa: Tecnologias e Interfaces da Comunicação; Mídias, Educação e Comunicação
Site: www.ppgce.faced.ufu.br

Coordenação: Prof. Dr. Mozahir Salomão Bruck


Área de concentração: Interações Midiatizadas
Linhas de pesquisa: Mediação, Imagens e Narrativas; Processos Midiatizados de Interação Social
Site: portal.pucminas.br/pos/fca/

Coordenação: Prof. Dra. Gabriela Borges Martins Caravela


Área de concentração: Comunicação e Sociedade
Linhas de pesquisa: Competência Midiática, Estética e Temporalidade; Mídias e Processos Sociais
Site: www.ufjf.br/ppgcom

Coordenação: Prof. Dr. Carlos Magno Camargos Mendonça


Área de concentração: Comunicação e Sociabilidade Contemporânea
Linhas de pesquisa: Pragmáticas da Imagem; Processos Comunicativos e Práticas Sociais;
Textualidades Mediáticas
Site: www.fafich.ufmg.br

Coordenação: Prof. Dr. Frederico de Mello Brandão Tavares


Área de concentração: Comunicação e Temporalidades
Linhas de pesquisa: Práticas Comunicacionais e Tempo Social; Interações e Emergências da
Comunicação
Site: www.ppgcom.ufop.br

Coordenação: Prof. Dra. Viviane Dias Loiola


Área de Concentração: Estudos Culturais Contemporâneos
Linhas de Pesquisa: Cultura e Interdisciplinaridade; Cultura e Tecnologia
Site: www.ppg.fumec.br/ecc/
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Caroline Marino
Isabela Norton
Laryssa Moreira Prado
Vitor Pereira de Almeida

Isabela Norton Aline Andrade Pereira (UFJF)


André Brasil (UFMG)
André Melo (UFMG)
Matheus Bertolini Bruno Leal (UFMG)
Carlos Alberto Carvalho (UFMG)
Carlos Pernisa Júnior (UFJF)
Christina Musse (UFJF)
Coordenação Geral do XI Ecomig – 2018 Claudia Thome (UFJF)
Caroline Marino Cristiane Lima (UFMG)
Isabela Norton Ércio Sena (PUC Minas)
Laryssa Moreira Prado Erika Savernini (UFJF)
Vitor Pereira de Almeida Fábia Lima (UFMG)
Comissão Organizadora Flavio Lins (UFJF)
Antonione Alves Grassano Gabriela Borges (UFJF)
Armando de Jesus do Nascimento Júnior Geane Alzamora (UFMG)
Bruna Pfeiffer Salgado Glória Gomide (PUC Minas)
Carla Ramalho Procópio Iluska Coutinho (UFJF)
Caroline Marino Jhonatan Mata (UFJF)
Deborah Luísa Vieira dos Santos Juçara Gorski Brittes (UFOP)
Felipe Reis Gasparete Lara Linhalis (UFJF)
Gustavo Teixeira de Faria Pereira Lorena Tárcia (UFMG)
Helena Cristina Amaral Silva Luiz Ademir de Oliveira (UFJF)
Helena Oliveira Teixeira de Carvalho Marcio Simeone (UFMG)
Iolanda Pedrosa Borges da Silva Maria Lucília Borges (UFOP)
Isabela Norton Marta Regina Maia (UFOP)
Isabella Gonçalves Mirna Tonus (UFU)
Laryssa Gabriele Moreira do Prado Paulo Roberto Leal (UFJF)
Luiza de Mello Stefano Potiguara Mendes Júnior (UFJF)
Matheus Bertolini Amorim Vanessa Matos (UFU)
Pedro Augusto Silva Miranda Vinicius Dorne (UFU)
Raphael Vieira Pires
Tatiana Vieira Lucinda
Iluska Coutinho (UFJF)
Valeria Fabri Carneiro Marques
Márcio de Oliveira Guerra (UFJF)
Vitor Pereira de Almeida
Potiguara Mendes Júnior (UFJF)
Willian José de Carvalho
Soraya Maria Ferreira Vieira (UFJF)

Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social - PPGCOM UFJF


Direção Prof. Dra. Gabriela Borges Martins Caravela
Área de concentração: Comunicação e Sociedade
Site: www.ufjf.br/ppgcom

ecomig.org
www.facebook.com/Ecomig
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No início de 2018, os acadêmicos do Programa de Pós-Graduação em Comunicação


(PPGCom) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) receberam o desafio de sediar o 11º
Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação Social de Minas Gerais (Ecomig).
Em um momento de efervescência política no país, marcado sobretudo por um período eleitoral
muito próximo à data do evento, pareceu impossível propor debates que não refletissem sobre o
campo da comunicação como ferramenta transformadora a serviço da democracia.
Em um cenário ainda de instabilidade política, pós impeachment da presidenta Dilma,
aprovação do pacote de leis trabalhistas pelo presidente não-eleito Michel Temer que flexibilizavam
os direitos garantidos pela CLT e eleições nacionais com 13 candidatos à presidência, as discussões
que levavam à grande movimentação popular tratavam principalmente de um viés político, e a
comunicação, mais especificamente os veículos de mídia, também tomavam para si um papel
central na agenda pública. Tornou-se comum o questionamento de até que ponto a mídia – e a
representação e representatividade dada por ela a determinados grupos sociais – estaria afetando os
acontecimentos.
Tendo em mente a proposta de trabalho do PPGCom/UFJF, cuja área de concentração é
“Comunicação e Sociedade”, e o contexto sócio-político vigente em 2018, o 11º Ecomig começou
a ser pensado e desenvolvido pelos alunos da instituição. Desde o início das atividades letivas, em
março de 2007, o PPGCom/UFJF busca promover estudos e pesquisas aliando as perspectivas
reflexivas e de intervenção no campo da Comunicação a partir da interação contínua entre teoria e
prática, uma vez que o fazer científico está inserido na sociedade. Neste sentido, a iniciativa de
ocupar as salas de aula, auditórios e corredores do prédio da Faculdade de Comunicação durante
dois dias de intensos debates promovidos pelo Ecomig 2018, teve como objetivo cumprir um ideal
do Programa e compreender de que forma as mídias seriam agentes na defesa da democracia.
O pluralismo e a diversidade midiática estão diretamente relacionados ao exercício da
democracia em uma nação. Quanto mais plurais forem as vozes que ecoam dos meios de
comunicação, maiores serão as possibilidades de garantir a oferta de informações de qualidade e
isentas de interesses, sejam eles políticos ou econômicos. Entretanto, o cenário de mídia brasileiro
está longe de ser exemplo neste quesito.
Assim, levando em consideração fatores como: a estrutura das mídias brasileiras ao longo
dos anos, o exercício da comunicação no país na atualidade, a recente crise na definição (e na
prática) do conceito de democracia e liberdade de expressão, a falta de verdade e precisão em
informações divulgadas em redes sociais e a desvalorização da comunicação pública, o 11º Ecomig

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se propôs a ser um espaço de reflexão crítica acerca dos processos comunicacionais presentes no
exercício da democracia no Brasil. O evento contou com a presença de pesquisadores e profissionais
que refletiram sobre o papel da comunicação na contemporaneidade, de que forma ela atua na defesa
da democracia e quais embates, disputas discursivas e resistências marcam a sociedade atual e o
cenário comunicacional vigente.
De maneira geral, onde não há uma mídia democrática a comunicação endossa narrativas e
discursos que refletem posições dominantes e tendem a excluir outras vozes e atores menos
privilegiados, ressaltando desigualdades. Este cenário é marcado por disputas discursivas e
resistências narrativas. Como ser um mecanismo de mudança neste contexto? Quem (e como) tem
feito a diferença? Quais são os veículos que têm atuado na desconstrução diária destas práticas que
acabam por perpetuar estereótipos e preconceitos presentes na sociedade racista, machista e
homofóbica em que estamos inseridos? Que formas alternativas de comunicação são possíveis?
Ressaltou-se então o desafio de abordar narrativas que caminhassem de forma distinta da
comunicação hegemônica e apresentassem iniciativas inteligentes e comprometidas com a
transformação social.
A partir destas inquietações, mais do que respostas objetivas, o 11º Ecomig proporcionou o
diálogo, a autocrítica e a troca entre os participantes, buscando vislumbrar caminhos possíveis na
busca por uma sociedade e uma mídia mais inclusivas, justas e democráticas. Tais debates foram
ainda enriquecidos pela participação dos acadêmicos nos Grupos de Trabalho que compuseram a
programação do evento. Nos quatro capítulos deste volume estão reproduzidos alguns dos trabalhos
apresentados, sendo divididos pelas temáticas: Linguagens e Narrativas; Estudos de Cinema e
Audiovisual; Jornalismo, Comunicação e Culturas Digitais; e Estudos Interdisciplinares,
respectivamente.
Com a publicação deste e-book ressaltamos que o diálogo entre as diversas vozes que
compõem o fazer comunicacional, sejam profissionais, teóricos ou sociedade civil, é essencial para
que possamos vislumbrar uma mudança estrutural no cenário midiático brasileiro. Ao propor
reflexões a partir do diálogo entre os diversos setores que constituem o corpo social, buscamos
promover retratos mais justos, compromissados e eficientes de toda a diversidade e pluralidade
presentes em nosso país.

Boa leitura!

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FOTOJORNALISMO NA DITADURA CIVIL-MILITAR:


Subversão e memória nas imagens de Evandro Teixeira publicadas no Jornal do Brasil1

Aline dos Santos Nogueira2


Universidade Federal de Ouro Preto

Resumo

O presente trabalho pretende discutir a utilização da fotografia jornalística como instrumento


de crítica ao regime militar na década de 1960. Para tal, analisa-se as imagens feitas por Evandro
Teixeira, importante fotojornalista da época, publicadas no Jornal do Brasil. Se uma das
medidas tomadas pelo regime ditatorial foi a forte censura à imprensa, para driblar a censura,
os jornais apostaram em fotografias como as de Teixeira que, através de conteúdo implícitos,
tinham tons subversivos ao regime. Além disso, procura-se levantar considerações acerca do
uso de tais fotografias posteriormente, já no período democrático, para a criação da memória
coletiva sobre a ditadura civil-militar que se instaurou no país por mais de vinte anos.

Palavras-chave: Fotojornalismo; Ditadura civil-militar; Evandro Teixeira; Memória.

PHOTOJOURNALISM ON CIVIL-MILITARY DICTATORSHIP:


Memory and subversion of Evandro Teixeira’s images published on Jornal do Brasil

Abstract

This present work intends to discuss the utilization of photojournalism as an instrument of


criticism of the military dictatorship in the 1960s. For this purpose, it is made the analyses of
images by Evandro Teixeira, important photojournalist of that time, published by Jornal do
Brasil. If one of the measures taken by the military regime was the strong censorship of the
press, to circumvent the censorship, the newspapers invested in photographs like Teixeira’s
which, through implicit content, had subversive regime tones. In addition, it aims to take into
consideration the use of such photographs afterwards, in the democratic period, for the creation
of collective memory about the civil-military dictatorship that it has been established at the
country for over twenty years.

Key-words: Photojournalism; Civil-military dictatorship; Evandro Teixeira; Memory.

Introdução
O golpe de 1964 teve início em 31 de março do mesmo ano, quando militares brasileiros
derrubaram o então presidente João Goulart e tomaram o poder do país. A partir de então, o
Brasil passou por uma ditadura civil-militar, que teve fim apenas em 1985. Ao longo desses

1
Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho 1 – Linguagens e Narrativas, do XI Encontro dos Programas de Pós-
Graduação em Comunicação Social de Minas Gerais, 18 e 19 de outubro de 2018.
2
Mestranda em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Ouro Preto
(PPGCOM – UFOP). Contato: alinesngr@gmail.com.

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vinte e um anos de governos autoritários, o país passou por um duro cenário de repressão, com
diversos confrontos entre as forças militares e os civis que eram contra o regime. Tais embates
resultaram em perseguições, prisões arbitrárias, torturas, assassinatos e desaparecimentos, além
de outras violações aos direitos humanos.
Uma das características do governo militar era a censura, que acometia a população e,
principalmente, a imprensa. Em variadas ocasiões, a produção dos veículos de mídia foi
silenciada e jornais e revistas foram proibidos de publicar reportagens, imagens ou entrevistas
que iam na contramão do regime. No ano de 1967, devido ao fato dos jornais estarem
publicando conteúdos contrários ao governo, o ditador Humberto Castelo Branco sancionou a
chamada “nova Lei de Imprensa”, impondo de forma autoritária a censura prévia, que passou a
ser exercida por agentes federais dentro das redações. Este controle por parte do governo militar
se tornou ainda mais potente com a instauração do Ato Institucional número 5 (AI-5)3, que
entrou em vigor em 13 de dezembro de 1968, no governo de Artur da Costa e Silva.
A promulgação do AI-5 previa o aumento da censura à imprensa e aos movimentos
artísticos como música, teatro, cinema, dentre outros. A partir de então, o movimento se
intensificou e quaisquer obras ou publicações poderiam ser censuradas por motivos outros que
não fossem a contraposição à ditadura. Dessa forma, a produção cultural do país, alguns artistas
e as empresas noticiosas, como jornais, revistas e programas televisivos, passaram a ser
considerados inimigos do governo, por razão dos embates e debates que podiam levar à tona –
e, de fato, determinadas produções chegaram efetivamente a levar tais discussões ao público.
Para driblar a censura, os repórteres, tanto de textos verbais quanto fotográficos, tinham
que abusar da criatividade nas pautas e na forma de abordar os temas que não agradavam ao
governo. Por muitas vezes, era mais difícil conseguir este viés contestador através dos textos
verbais, pois os censores facilmente reconheciam e detectavam os conteúdos que enfrentavam
o regime, censurando essa produção previamente. Por consequência, a saída foi investir cada
vez mais em fotografias de caráter contestador, como subversão ao regime. O presente trabalho
pretende, portanto, analisar algumas das fotografias de Evandro Teixeira, feitas na época da
ditadura civil-militar brasileira como instrumento de crítica ao regime ditatorial e discutir como
tais imagens contribuíram na construção da memória coletiva do período. Para isso, entende-se
que as fotografias devem ser tomadas em duas temporalidades distintas: a primeira, enquanto

3
Dentre as medidas, o AI-5 estabeleceu ainda mais condições para que a repressão avançasse no Brasil, com o
fechamento do Congresso Nacional e das Assembleias Legislativas e a permissão para o que governo federal
pudesse intervir nas demais esferas do poder como estados e municípios. O texto completo, com todas as
resoluções aprovadas pelo Ato Institucional número 5, está disponível em
http://www.acervoditadura.rs.gov.br/legislacao_6.htm.

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presente de outrora, ou seja, pela postura de resistência que essas imagens assumiram na época
em que foram veiculadas e a segunda, em um momento posterior à ditadura civil-militar, como
futuro de então, servindo como instrumento de criação e organização de memórias sobre os
fatos ocorridos no passado. Ambas posições se conectam no contexto do fazer memória, sendo
que para que exista o segundo momento, é necessária a existência da primeira instância
temporal.
No recorte aqui realizado, serão utilizadas imagens do fotojornalista, Evandro Teixeira
feitas na década de 1960 e publicadas no Jornal do Brasil. Tal escolha é justificada por se tratar
de um período repleto de mudanças, em que o Brasil começava a conhecer o governo que se
instaurava e por todas as proibições que ele trouxe. Além disso, é necessário considerar que
Teixeira é tido hoje como um dos maiores nomes do fotojornalismo brasileiro devido ao seu
trabalho, que se iniciou na época em questão. Com a veiculação de tais fotografias em um jornal
de grande circulação, acredita-se que as imagens possam ter chegado a um grande número de
pessoas e, consequentemente, levantado discussões acerca dos governos militares que
comandavam o país.

A construção da memória
Todos seres humanos são guiados por representações daquilo que foram um dia. Para
além de entendimentos pessoais, todas nossas concepções de vida, de tempo, de presente e
futuro, são ancoradas em vivências passadas. Quando dito isso, entende-se que não se trata
apenas de experiências individuais, mas também das noções coletivas, seja de um determinado
grupo, cidade ou país, por exemplo. “Toda representação do presente e toda orientação das
ações individuais e coletivas encontram-se sustentadas em certa percepção organizada do
passado” (REÁTEGUI, 2011, p. 362). São através de tais percepções e orientações que se
compreende como a construção social do que entendemos por memória. A memória, porém,
nem sempre está condicionada a nos guiar de forma explícita, mas
às vezes, essa percepção [...], está conformada por enunciados definidos sobre fatos
pretéritos e por interpretações e valorações específicas. Em outras ocasiões, a
memória aparece mais abstratamente, sob a forma de “estruturas herdadas de
percepção”, como se sustentou a partir de certa sociologia da vida subjetiva. Ou seja,
ela não é necessariamente um conjunto de enunciados sobre fatos concretos, mas sim
um conjunto de disposições assentadas em uma coletividade que orienta as pessoas a
perceber os fatos de um modo específico. Na esfera da violência armada e das
massivas violações de direitos humanos, esta seria a diferença entre uma memória que
descreve fatos e responsabilidades concretos e uma percepção geral do passado que
orienta a ver a violência como uma fatalidade. (REÁTEGUI, 2011, p. 362)

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Posto isto, é a partir da memória que nos organizamos no mundo. Por isso, de acordo
com Reátegui (2011), é impraticável compreendê-la apenas como uma atividade particular. A
memória faz parte do comum, do espaço público, partilhada com e por diversos grupos. É,
portanto, um entendimento que transita no “território que comunica o social com o político”
(REÁTEGUI, 2011, p. 364). Sustentados pelo alicerce da memória, constituímos socialmente
os fatos que vivemos, buscando dar sentido e significado às experiências que foram e são
vivenciadas pelas comunidades nas quais estamos inseridos. Desta forma, para o autor, a
memória se compõe como um “ingrediente da malha simbólica nas quais se sustentam nossos
ordenamentos sociais, seja se falamos de instituições oficiais, seja se falamos de interações
cotidianas entre indivíduos e coletividades” (REÁTEGUI, 2011, p. 364).
Sendo assim, falar de memória é, de certa forma, evocar em grande parte as estruturas,
hierarquias e classificações de um determinado grupo, o que se configura como as memórias
coletivas, de acordo com Pollak (1989). Para o autor, a memória coletiva corrobora com o
sentimento de pertencimento a determinadas comunidades e, portanto, é uma organização social
definida por elementos, comportamentos e outras práticas comuns a certos grupos, que os
diferencia de outros, por meio de fronteiras sócio-culturais. Consequentemente, o autor também
defende que o exercício da memória é
essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer
salvaguardar, se integra, como vimos, em tentativas mais ou menos conscientes de
definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre
coletividades de tamanhos diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões,
clãs, famílias, nações etc. (POLLAK, 1989, p. 9)

De acordo com o autor, o conceito das memórias coletivas não se trata de encarar os
fatos como coisas mas, sim, de ponderar sobre o percurso que é realizado para que estes
acontecimentos se tornem tangíveis ao imaginário coletivo, além do motivo e circunstância em
que eles são solidificados na sociedade (POLLAK, 1989). A memória coletiva, deste modo,
busca compreender os hábitos e comportamentos de determinadas comunidades, com bases em
vivências passadas.
Porém, é necessário considerar que, segundo Huyssen (2009, p, 22, tradução livre),
“jamais haverá uma memória coletiva única e totalizadora de nenhum evento histórico
traumático”. Pois, nestes casos, é preciso levar em conta que a atribuição de sentidos e as
recordações de quem vivenciou tais episódios, é diferente da percepção das pessoas que apenas
os acompanharam de longe, sem contato com os fatos. No entanto, porém, mesmo dentro desses
dois grupos – pessoas que vivenciaram os fatos ou não – existem recordações e percepções

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distintas, porque todas elas são perpassadas pelos interesses, dimensionamentos e


sedimentações próprias a cada indivíduo.
Para Huyssen (2009), o termo “memória coletiva”, como uma definição sociológica, se
trata de uma expressão que é frequentemente relacionada a um espaço nacionalmente
delimitado. Porém, de acordo com as definições de Pollak (1989, p. 3), “a nação é a forma mais
acabada de um grupo, e a memória nacional, a forma mais completa de uma memória coletiva”.
Para o autor, os conceitos de “memória oficial da nação” e “memórias subterrâneas” são
fundamentais para se estudar a memória oficial de uma nação. O primeiro, como o próprio
nome apresenta, engloba a memória de um país, que é repassada e ensinada a estrangeiros e
novas gerações. O segundo, por sua vez, trata-se da memória dos grupos minoritários, dos
marginalizados e excluídos, que nem sempre é a memória oficial e, por isso, está em grande
parte, dentro da história oral, que é contada dentro de famílias ou determinados grupos. Assim,
a memória, seja coletiva, oficial ou subterrânea, “serve para manter a coesão dos grupos e das
instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua
complementariedade, mas também as oposições irredutíveis” (POLLAK, 1989, p. 9).
Por conseguinte, considera-se que há no Brasil uma memória nacional coletiva, dos
tempos de ditadura civil-militar. É evidente que nem todos tenham a mesma concepção daquilo
que foi. Para aqueles que foram torturados, tiveram entes queridos desaparecidos e mortos, ou
àqueles que têm uma percepção mais sensível às atrocidades do regime, estes anos tem um peso
diferente do que para outros. Apesar de boa parte da população brasileira ter a consciência sobre
o horror que foram os anos de ditadura, ainda existem pessoas que teimam em “venerar
justamente aquilo que [...] se esforça para minimizar ou eliminar” (POLLAK, 1989, p. 12).
Todas as memórias dos anos de repressão no país foram criadas a partir das vivências,
da história oral e escrita, das publicações da época e as posteriores, de imagens fotográficas e
fílmicas, das músicas, livros, peças teatrais, dentre outros instrumentos. Para que estas
memórias sejam criadas e ativadas, é necessário que o tempo transcorra desde o ocorrido até o
momento em que elas são despertadas. De acordo com Feld e Mor (2009, p. 25, tradução livre),
conforme “indicado pelo sociólogo francês Maurice Halbwach, a memória se constrói no
presente; é o trabalho de recompor, mediante as ferramentas e os materiais que comprovam
hoje o que foi vivido no passado”.
Ao estimular e recompor as memórias do passado no tempo presente somos, diversas
vezes, tocados pelas imagens. A visualidade promove o resgate memória e age como
comprovação de fatos passados.

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Na chamada “cultura da memória” as imagens [...] têm um papel cada vez mais
preponderante. Através de fotos e vídeos, de documentários e programas de televisão,
o passado retorna em imagens. As imagens constroem sentidos para os
acontecimentos, ajudam a rememorar, permitem transmitir o que aconteceu às novas
gerações. Colaboram para evocar o que foi vivido e conhecer o que não foi. São, em
definitivo, valiosos instrumentos da memória social. (FELD; MOR, 2009, p. 25,
tradução livre)

Em conformidade com as autoras, Huyssen (2009, p. 15, tradução livre) diz que “não
há memória sem imagem, não há conhecimento sem a possibilidade de ver”. Para o autor, as
formas imagéticas são indispensáveis no processo de rememoração do passado, uma vez que
elas “permitem um acesso completo ao passado e a atividade de construção da memória”
(FELD; MOR, 2009, p. 32, tradução livre). Por este motivo, Blejmar, Fortuny e García (2013)
acreditam que nos últimos anos houve um evidente aumento da utilização de imagens para a
elaboração e interpretação das memórias referentes às ditaduras.
Tal importância do acréscimo ao emprego das imagens na formulação de memórias, se
deve à própria duplicidade da especificidade do meio fotográfico, que se apresenta como “traço
do real que é ao mesmo tempo metáfora; ficção que ao mesmo tempo é documento do que era”
(BLEJMAR; FORTUNY; GARCÍA, 2013, p. 13, tradução livre). Isso, porque com base no
caráter indicial, “as imagens trazem ao presente traços do que foi o passado” (FELD; MOR,
2009, p. 26).
Desta forma, podemos constatar que “as imagens se revelam como poderosos
instrumentos, não apenas para reconhecer seu passado e estudar representações que geram
novas memórias, mas também para tornar inteligíveis os complicados mecanismos da memória
social” (FELD; MOR, 2009, p. 32, tradução livre). Além disso, para Barros (2017) as formas
imagéticas, sobretudo as fotografias, têm um papel importante “na preservação e na construção
do futuro, considerando seu poder de síntese imediata que favorece um resumo interpretativo
de fatos e contextos” (BARROS, 2017, p. 150).

Fotografias como memórias de enfrentamento ao regime


Por serem portadoras dessas possíveis interpretações, as fotografias podem ser
compreendidas para além do que dizem, trazendo muitas vezes um sentido ambíguo. Por isso,
para Huyssen (2009, p. 23, tradução livre) “os arquivos nunca são estáveis”, dependem da
interpretação e dos sentidos de significação que os são empregados.
Ora, na mesma medida em que a fotografia se liga ao testemunho, liga-se também a
interpretações e a postulados: diferentemente do discurso verbal, analítico, a
fotografia não pode operar por argumentação e demonstração e seus pressupostos
sintéticos são profundamente ambíguos, o que traz consequências para a memória que

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é produzida por meio dela, favorecendo o voo da imaginação. (BARROS, 2017, p.


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As diferentes temporalidades nas quais as fotografias podem ser lidas são as principais
causadoras destas possíveis interpretações. “O presente reconfigura e molda as imagens do
passado. [...] As imagens capturadas pelas câmeras estão sujeitas a modificações e
transfigurações que os grupos e os indivíduos, do presente, exercem sobre elas” (FELD; MOR,
2009, p. 27, tradução livre). Assim, as imagens estão passíveis a terem outras interpretações de
acordo com o tempo que transcorre desde sua captura. De acordo com as autoras, as imagens
feitas no passado podem ter um novo sentido, novas edições e configurações a partir de uma
leitura do presente.
As fotografias apresentam-se desta forma dotadas de distintos sentidos a partir do meio
em que são analisadas. Além disso, as imagens, de acordo com Lissovsky (2014), podem
assumir diferentes potências poéticas em suas configurações temporais. Ou seja, as fotografias
estão suscetíveis a se manifestarem em variados graus de afetação e experimentação sentimental
e estética, a depender do momento em que são tocadas. “Apenas porque há um futuro oculto no
passado, todo arquivo está sempre vivo. E todo documento de arquivo, na oportunidade de sua
redenção poética, cintila”. (LISSOVSKY, 2014, p. 133-134).
As fotografias, pois, podem se expor de diversas maneiras, tanto no momento em que
são feitas, quanto se analisando-as tempos depois. Além disso, nem todas as pessoas observam
as fotografias da mesma forma. Alguns podem ver potênciais elementos, sentidos e ideais, que
outros não são capazes de enxergar. Acredita-se que, por este motivo, muitas das fotografias
publicadas em jornais na época da ditadura civil-militar tenham passado sem serem vetadas
pelos censores. Entendendo a multiplicidade de vertentes que as imagens podem levar, nem
todos as enxergam da mesma maneira, com sua potência informativa e opinativa. Além disso,
segundo Barbalho (2006), muitos dos profissionais que compunham as redações utilizavam
deste artefato para retratar os militares de forma crítica, sem serem censurados. Assim, muitas
vezes, os fotógrafos publicavam nos veículos impressos, imagens com tons mais criativos,
carregadas de ideologias e da visão pessoal (BARBALHO, 2006).
É o caso das imagens de Evandro Teixeira aqui analisadas. As quatro fotografias que
compõem o corpus deste trabalho são compostas por um caráter estético muito significativo.
Pode-se constatar que são subversivas aos ideais que o regime militar buscava propagar ao
público, de que aquela era a única e melhor solução para o país. Acredita-se que tais imagens
possam ter contribuído para a criação da memória coletiva de alguns grupos, referentes ao que
foi a ditadura civil-militar brasileira, em que a imprensa tinha que apelar para formas imagéticas

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artísticas e às vezes pouco objetivas, com mensagens implícitas, para driblar a censura e noticiar
o que acontecia no país.

Figura 1. Tomada do Forte de Copacabana no golpe militar. Evandro Teixeira, 1964.

A imagem primeira imagem escolhida para exame (figura 1) mostra a silhueta de um


soldado em um contraluz, que evidencia a chuva que caía. Tal fotografia foi feita na em 31 de
março de 1964, quando o golpe militar foi anunciado. Evandro Teixeira foi o único civil que
conseguiu estar no Forte de Copacabana, na cidade do Rio de Janeiro, no momento em que os
militares invadiram o local e tomaram o poder, depondo o então presidente João Goulart. As
instalações do Forte, nos anos que se sucederam o golpe, foram utilizadas pelo regime
autoritário como presídio político.
A imagem foi publicada dois dias depois, em 02 de abril de 1964, no Jornal do Brasil.
Considera-se que esta fotografia marca os instantes iniciais da ditadura que se instaurou no país
por mais de vinte anos. O carro presente na imagem, nos remete a um modelo mais antigo, que
poderia ser de décadas anteriores ao momento de captura da fotografia. Assim, a imagem
assume com ele um tom de passado, podendo nos levar de volta a um momento como a Segunda
Guerra Mundial, quando uma onda de governos ditatoriais se alastraram mundo à fora. Além
disso, os demais soldados que aparecem na imagem, junto com todo seu contexto, representam
um retrato do que viria a seguir: dias sombrios e nebulosos.
O enquadramento traz ao centro do quadro o soldado sozinho e outros aparecem apenas
no canto direito da imagem. Pode-se encarar como uma analogia para a população, que
“sozinha” lutava contra os soldados obscuros que impunham o regime militar. Além disso, o

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soldado ao centro é o ponto mais iluminado da fotografia, pelo um contraluz, graças aos faróis
do carro a frente, que também pode ser visto como o regime atropelando os ideais de um Brasil
livre de governos repressores. Coincidentemente, a chuva que caía no momento da imagem
também pode remeter a uma aura triste e pesarosa pelo o que havia acabado de acontecer à
nação.

Figura 2. A queda da moto. Evandro Teixeira, 1965.

A segunda foto (figura 2) também se trata de uma clássica imagem de Evandro Teixeira,
é a “Queda da Moto”, feita em 1965, no Aterro do Flamengo, também no Rio de Janeiro, e
publicada no Jornal do Brasil em 18 de setembro do mesmo ano. A fotografia mostra um militar
caído, em primeiro plano, enquanto metros a frente, sua motocicleta corre sozinha. De acordo
com o fotógrafo, o personagem, um batedor das Forças Armadas Brasileiras (FAB), “fazia
piruetas deixando-se ultrapassar pelo carro de reportagem do JB que seguia uma comitiva”
(TEIXEIRA, apud RIBEIRO, 2017, s/n). Teixeira, então, se posicionou, esperando para realizar
o clique, quando o militar escorrega e vai ao chão.
Durante a ditadura civil-militar, o soldado é visto como símbolo máximo de manutenção
na ordem no regime. Visto na fotografia, ao chão após uma queda, pode ser interpretado como
sinal dos traços da instabilidade do poder militar. Apesar da truculência e rigidez do governo,
a imagem simboliza sua fragilidade e pode ser vista como o desejo, por parte da população, do
retorno à democracia. A imagem foi publicada no jornal sob o título “A liberdade da

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motocicleta”, que pode ser entendido como uma metáfora para a liberdade da nação, sem as
mãos dos militares.
A fotografia, provavelmente, foi feita com alta velocidade do obturador, uma vez que
tanto o militar que vai ao chão, quanto a motocicleta que continua andando, estão congeladas,
sem qualquer borrão ou distorção da imagem. O ângulo em que o fotógrafo estava, em um carro
logo atrás do militar, favorece a tomada da imagem, mostrando toda a cena. Apesar da
fotografia ter sido feita no Rio de Janeiro, uma cidade grande mesmo durante a época da
ditadura civil-militar, é curioso que ao redor da cena do militar caído, não se vê casas, prédios
ou mesmo pessoas. Tal fator pode levar à interpretação de que os militares e demais apoiadores
do golpe estavam sozinhos na missão de governar o país dentro da ilegalidade do regime
antidemocrático.

Figura 3. Libélulas e baionetas. Evandro Teixeira, 1966.

A terceira imagem aqui analisada (figura 3), foi feita após um evento de exposição de
material bélico do exército, utilizado na Guerra do Paraguai, em 1966. Na ocasião, Evandro
Teixeira estava realizando a cobertura pelo Jornal do Brasil e fotografou as libélulas que
estavam pousadas na ponta dos fuzis, que estavam preparados para a mostra. A imagem foi
capa do jornal no dia seguinte, em 23 de maio de 1966, contando apenas no interior do periódico

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sobre a presença do ditador Costa e Silva no evento. O general, por sua vez, não gostou de não
ser o destaque na primeira página, visto que o mesmo era a autoridade máxima do evento, e
convocou o fotógrafo para uma conversa sobre o seu desrespeito ao governo, o que rendeu uma
noite de detenção à Teixeira.
A imagem, porém, pode ser encarada como uma forma simbólica de resistência ao
regime, se observada a delicadeza das libélulas, frente a dureza das armas. Poeticamente, pode
ser lida como metáfora para a fragilidade população, em contraste às duras repressões do
governo militar. Perfiladas, as armas podem ser interpretadas como se representassem os
soldados militares responsáveis por manterem o país num sistema de governo ditatorial e
autoritário. A leveza das libélulas, por sua vez, pousadas sobre os fuzis, de certa forma,
afrontam os militares e, principalmente, o general Costa e Silva. Além disso, também parecem
clamar por liberdade, frente às fortes repressões.
A fotografia, desfocada ao fundo, tem como pontos focais apenas as armas e as
libélulas. De alguma maneira, a imagem evoca um sentimento de esperança, como se todas as
repressões fossem cessar, e as libélulas, que enfrentam as armas, fossem a saída para dias
melhores.

Figura 4. Dois objetos, um objetivo. Evandro Teixeira, 1968.

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A quarta imagem presente no corpus deste trabalho (figura 4) foi feita por Evandro
Teixeira em 21 de junho de 1968 e publicada na primeira página da edição do Jornal do Brasil
do dia seguinte, 22. No dia da tomada da fotografia, que ficou conhecido como “Sexta-Feira
Sangrenta”, centenas de estudantes participaram de uma passeata em protesto contra a forte
repressão do regime militar, no centro do Rio de Janeiro. O ato aconteceu em manifestação à
prisão do líder estudantil Jean Marc von der Weid e a represália contra demais estudantes que
havia acontecido na noite anterior, na saída da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
O protesto da Sexta-Feira Sangrenta se estendeu até o início da noite e deixou um total de 28
mortos, centenas de feridos, mais de mil presos e 15 viaturas incendiadas (MEMORIAL DA
DEMOCRACIA, 2015, s/n).
A fotografia mostra um estudante caindo ao chão, no que parece uma perseguição de
dois militares contra ele. É notável que a imagem foi realizada com alta velocidade de obturador
para que o momento fosse congelado com bastante precisão. Tal fator é observado uma vez que
os personagens em movimento aparecem sem muitos borrões e também é possível ver o óculos
do estudante ainda no ar. A imagem revela uma curiosa proximidade do fotógrafo com o fato,
como um grande destemor, uma vez que no momento da repressão, algo poderia tê-lo atingido.
A imagem em si é bastante expressiva ao mostrar, de fato, a truculência dos militares
contra os manifestantes, o que é notado, além dos cassetetes em punho, pelo semblante dos
mesmos, com um tom de satisfação ao conseguir alcançar o militante. A feição do estudante
também é muito forte na imagem, por sua vez, entoando desespero. A imagem pode ser
encarada como um retrato dos dias mais violentos da repressão, tanto literalmente por se tratar
de um dia que ficou marcado na história, quanto por representar os demais momentos de embate
entre a população e os militares.
Além disso, também pode-se compreender a fotografia pela relação de poder da ditadura
civil-militar, uma vez que os militares estão em maior número e com mais violência. Do mesmo
modo, é necessário analisar o cidadão ao fundo, que observa, com tranquilidade a cena caótica
a frente, como quem se isenta da situação; postura tomada por grande parte da sociedade
brasileira no período.
As fotografias aqui apresentadas só podem ser entendidas hoje por este viés, pois foram
analisadas sob o olhar do presente atual, em que novas temporalidades já se manifestaram e
continuam se manifestando. O estudo aqui realizado é feito em um momento posterior à
ditadura civil-militar, em que já se sabe o que aconteceu e existe uma memória coletiva bem
fundamentada, mesmo que ainda tenham pessoas que veem o período sob outras perspectivas.
Dessa forma,

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no contexto da fotografia pós ditatorial pode-se constatar que a medida que nos
afastamos dos anos de chumbo e que o estabelecimento de fatos fica em segundo plano
nos debates públicos, a função documental, de denúncia e testemunho, vai cedendo
lugar a novas funções que previlegiam a construção de novos sentidos para a memória
do passado recente. (BLEJMAR; FORTUNY; GARCÍA, 2013, p. 14, tradução livre)

Além disso, também é necessário ter em consideração que tais imagens foram
publicadas antes da promulgação do AI-5. Sendo assim, antes dos momentos considerados mais
difíceis para a imprensa. Uma possibilidade que pode ser aqui levantada é a de que o controle
dentro das redações se tornou ainda maior devido a publicações como estas, que enfrentavam
o regime.
Nos dias atuais, grande parte da nossa memória coletiva sobre o período faz com que
seja evocado nas imagens o horror que foram os anos que o Brasil passou pela ditadura civil-
militar. Ao olhar as fotografias a partir de um momento em que já se sabe o que aconteceu, é
possível enxergar os traços de subversão e enfrentamento propostos pelo fotojornalista Evandro
Teixeira e do Jornal do Brasil, ao fazer e publicar, respectivamente, tais imagens.

Considerações Finais
Fundamentado nas análises das imagens de Evandro Teixeira e no que se sabe por
memória, podemos conceber que a fotografia ajuda a construir o que entendemos por memória
coletiva acerca dos fatos ocorridos na ditadura civil-militar. Ademais, é necessário ressaltar que
tais imagens são “veículos privilegiados na hora de construir e interpretar o passado, dar-lhe
sentidos e reflexionar sobre a transmissão às novas gerações” (FELD; MOR, 2009, p. 32,
tradução livre).
O trabalho da memória coletiva é, portanto, feito sob a ótica do enquadramento, que
segundo Pollak (1989), se alimenta do material fornecido pela história. De acordo com o autor,
este material pode ser interpretado na perspectiva de diversas referências. Logo, podemos
pressupor, que talvez tais fotografias não façam parte do imaginário de toda a nação, mas há
algum grupo que compartilha delas como memória dos fatos.
Para Pollak (1989) essa constante reinterpretação das imagens a favor das memórias,
conduz o passado a múltiplos olhares no presente e no futuro. Concomitantemente, Feld e Mor
acreditam que esses novos olhares sobre as fotografias colaboram para a criação de novos
sentidos e significados. “À medida em que nos afastamos dos anos de chumbo e que o
estabelecimento de fatos fica em segundo plano nos debates públicos, a função documental, de
denúncia e testemunho, cede lugar às novas funções que previlegiam a construção de novos
sentidos para a memória do passado recente” (FELD; MOR, 2009, p. 14, tradução livre).

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Em conformidade, Huyssen (2009, p. 23, tradução livre) afirma que “a memória é


indispensável para a criação de um futuro melhor”. O autor ainda acredita que o futuro só deve
ser criado a partir da consciência que existiu um passado traumático, e isto só é possível através
do acesso às memórias. Fazendo valer a máxima de relembrar para não repetir. Barros também
nos reitera que a “a memória só faz sentido se for portadora de futuro, se nos permitir sonhar
com o que ainda não está dado. Transcendida a questão da fotografia como uma realidade outra,
é na carne do próprio sonhador que a imagem fotográfica vem se inscrever” (BARROS, 2017,
p. 162).
As imagens do fotógrafo Evandro Teixeira publicadas no Jornal do Brasil aqui
analisadas assumem, por conseguinte, esta postura crítica ao regime ditatorial, com caráter
subversivo, de enfrentamento. Como já mencionado, tal posicionamento é acionado a partir do
presente em que vivemos, uma vez que o trabalho não se propõe a mapear a interpretação que
os leitores do jornal tiveram à época foi a mesma aqui apresentada.
Além disso, é necessário pontuar que a análise aqui proposta tem início com a fotografia
que simboliza o instante zero do golpe, que deu origem aos mais de vinte anos de ditadura civil-
militar no Brasil. A imagem mostra apenas os militares como personagens, um prenúncio dos
anos que estavam por vir, com os mesmos tomando o poder e assumindo o controle da nação;
a fotografia ainda traz o tom sombrio e nebuloso da noite e da chuva que coincidentemente caía
no Rio de Janeiro. O estudo perpassa pelas pequenas subversões ao regime através das imagens
publicadas no jornal (do militar caído e da dureza das armas frente à delicadeza das libélulas) e
termina com uma das fotografias mais famosas do período ditatorial. O confronto entre os
militares e o estudante corresponde às mais variadas abordagens violentas dos ditadores para
com a população. Ademais, para análise desta última fotografia, é necessário considerar que o
ano em que ela foi feita, 1968, é considerado por diversos estudiosos um dos mais violentos
não apenas da ditadura civil-militar brasileira, mas em todo o mundo. Dessa forma, é possível
extrair uma parcela do posicionamento de Teixeira, que não apoiava o regime repressivo, as
imagens feitas pelo fotojornalista, por sua vez, são dotadas de significações e visões pessoais.
“As palavras e as imagens não existem por si mesmas. São criadas com objetivos específicos,
por sujeitos imersos em um contexto social e histórico” (HUYSSEN, 2009, p, 18, tradução
livre).
A análise aqui realizada, portanto, pode ser considerada como um pequeno recorte
da linha do tempo do que foi a repressão por parte dos governos autoritários durante os mais de
vinte anos em que assolaram o Brasil. Desde o momento inicial, até o ano apontado como o
mais repressivo, aqui representado, o país viveu momentos muito mais fortes e que caíram no

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esquecimento. O estudo se faz pertinente, à vista disso, para que a lembrança dos anos de
chumbo seja suficiente para que o passado não se repita.

Referências

BARBALHO, Marcelo. O fotojornalismo político no contexto da ditadura militar. In: ENCONTRO


NACIONAL DE HISTÓRIA DA MÍDIA, 4., São Luís, 2006.

BARROS, Ana Taís Martins Portanova. Imagens do passado e do futuro: o papel da fotografia entre
memória e projeção. In: Matrizes, v. 11, n. 1, jan./abr. 2017. Disponível em:
<http://www.revistas.usp.br/matrizes/article/view/122953>.

BLEJMAR, Jordana; FORTUNY, Natalia; GARCÍA, Luis Ignacio. “Introducción”. In: BLEJMAR,
Jordana; FORTUNY, Natalia; GARCÍA, Luis Ignacio (org). Instantáneas de la memoria: fotografía y
dictadura en Argentina y América Latina. Buenos Aires: Libraría, 2013.

FELD, Claudia; MOR, Jessica Stites. Imagen y memoria: apuntes para una exploración. In: FELD,
Claudia; MOR, Jessica Stites (org). El pasado que miramos: memoria e imagen ante la historia
reciente. Buenos Aires: Paidós, 2009.

HUYSSEN, Andreas. Medios y memoria. In: FELD, Claudia; MOR, Jessica Stites (org). El pasado que
miramos: memoria e imagen ante la historia reciente. Buenos Aires: Paidós, 2009.

LISSOVSKY, Maurício. Pausas do destino: teoria, arte e história da fotografia. Rio de Janeiro: Mauad,
2014.

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n.3,
1989, p. 3-15. Disponível em:
<http://www.uel.br/cch/cdph/arqtxt/Memoria_esquecimento_silencio.pdf>.

REÁTEGUI, Félix. Introdução. In: REÁTEGUI, Félix (org). Justiça de transição: manual para a
América Latina. Brasília/Nova Iorque: Ministério da Justiça/Centro Internacional para a Justiça de
Transição, 2011. Disponível em: <justica.gov.br/central-de-conteudo/ anistia/anexos/jt-manual-para-
america-latina-portugues.pdf>.

RIBEIRO, Alfredo. Instante zero do golpe. In: Portal Instituto Moreira Salles. Novembro, 2017.
Disponível em: <https://ims.com.br/2017/11/28/instante-zero-golpe/>. Acesso em 29/09/2018

SEXTA-FEIRA SANGRENTA. Memorial da Democracia. 2015. Disponível em:


<http://memorialdademocracia.com.br/card/sexta-feira-sangrenta-28-mortos-nas-ruas>. Acesso em
03/10/2018.

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E QUE A VOZ DA IGUALDADE SEJA SEMPRE A NOSSA VOZ:


Deslizamento ficção e jornalismo para denunciar opressão contra a mulher1

Aurora Almeida de Miranda Leão2


Universidade Federal de Juiz de Fora

Resumo

O objeto de estudo deste artigo é a dialogia real X ficcional que observamos, de modo
especial, num capítulo da telenovela Liberdade, liberdade (TV Globo, 2016). Nosso objetivo é
provocar reflexões sobre temas como machismo, sociedade patriarcal, primórdios da
formação do Brasil, opressão à mulher, violência sexual, exclusão social e uma série de
problemas que acometem o cotidiano nacional, e que perpassam toda a obra em questão. Para
desenvolver nossa análise, fazemos uma revisão bibliográfica que inclui autores como
Mikhail Bakhtin, Muniz Sodré, Cristina Costa, Maria de Lourdes Motter e Luiz Carlos
Maciel, adotando uma metodologia inspirada nos movimentos propostos por Luiz Gonzaga
Motta para entender a construção narrativa.

Palavras-chave: Telenovela; Narrativa; Dialogias; Jornalismo; Ficção.

AND THAT THE VOICE OF EQUALITY ALWAYS BE OUR VOICE:


Slipping fiction and journalism to denounce oppression against women

Abstract

The object of study of this article is the dialogue between reality and fiction, especially in
chapter of may of soap opera Freedom, freedom (channel TV Globo, 2016). Our goal is to
provoke reflections about themes like machismo, patriarchal society, beginnings of the
formation of Brazil, oppression of women, sexual abuse, social exclusion and a series of
problems that affect the national daily life, and which permeate all telefiction in research. To
develop this analysis to make a critical review includes the writes Mikhail Bakhtin, Muniz
Sodré, Cristina Costa, Maria de Lourdes Motter e Luiz Carlos Maciel, adopting a
methodology inspired by movements proposed by Luiz Gonzaga Motta to understand the
narrative construction.

Keywords: Soap opera; Narrative; Dialogues; Journalism; Fiction.

Introdução
Quem estuda narrativa, sabe: toda análise pressupõe investigar qual o ângulo de visão
pelo qual a história é contada. Isto é, o foco narrativo é parte fundamental para entender a
construção do enredo. Assim, é preciso levar em conta que toda narrativa é composta da

1
Trabalho apresentado no GT Linguagens e Narrativas, do XI Encontro dos Programas de Pós-Graduação em
Comunicação Social de Minas Gerais, 18 e 19 de outubro de 2018.
2
Mestranda, PPGCOM-UFJF, e-mail:auroraleao@hotmail.com

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tensão entre duas forças: uma é a mudança – a preponderância do novo, do inexorável, do


instante inaugural; e a outra procura dar uma ordem ao curso dos acontecimentos a partir da
constatação de um ciclo constante de repetição ou semelhança dos acontecimentos (nada do
que acontece é inédito mas repete ou anuncia instantes passados ou futuros). Não há uma
força maior que a outra, mas elas acontecem em simultaneidade, conforme nos indica
Todorov.
Por esse itinerário, podem-se inferir analogias que nos apontam caminhos similares
pelos quais vida e narrativas se cruzam e se configuram como formas encontradas pelo
homem para entender sua inserção neste mundo que não entende, vindo de um passado que
não conhece em sua plenitude e rumo a um futuro do qual quase nada sabe. Ou seja: o homem
tenta organizar sua história a partir de uma tentativa de compreender o tempo, e para isso
constrói uma narrativa para sua vida.
Construindo narrativas, o homem organiza sua vida e se relaciona com os demais, a
partir de critérios que lhe definem e determinam seus valores, como nos explica Motta. No
caso deste artigo, nossa análise tem como fundamento a relação entre ficção e real,
dramaturgia e jornalismo, televisual e realidade. Tomamos um capítulo da telenovela
Liberdade, Liberdade (TV Globo, 2016) para analisar o que foi exibido na narrativa ficcional
no capítulo do dia 26 maio, no qual houve intensa dialogia entre a história contada e a história
vivida, isto é, entre a narrativa da ficção e a narrativa do jornalismo. Algo assim como um
‘sequestro do cotidiano’, um movimento de mão dupla, no qual a telenovela faz eco ao que foi
dito no noticiário, conforme aponta Cláudia Thomé em sua dissertação unindo jornalismo e
ficção.
Quem atua na área da comunicação, sabe o quanto jornalismo e ficção
trabalham, cada vez mais, com pautas que se interligam, dialogam e retroalimentam,
conforme evidencia Cláudia Thomé:
O que se observa na atualidade é que a mistura de noticiário e teledramaturgia
acontece de diversas formas, não só na dramatização de fatos reais na televisão.
Jornalismo e telenovela têm, cada vez mais, pontos de comunicação. [...] Existe,
assim, um movimento duplo de aproximação: do jornalismo em direção à ficção
televisiva, encenando o cotidiano, mostrando diferentes versões e criando
personagens para as notícias, e o movimento da ficção televisiva em direção ao
jornalismo, adotando a lógica do tempo real, assumindo uma função informativa e,
por vezes, pedagógica, oferecendo receitas de vida. Neste movimento em mão dupla,
há momentos em que os dois campos se cruzam, criando um terceiro produto
midiático, que é a mistura dos dois. (THOMÉ, 2005, p. 66)

É na percepção dessa lógica que definimos o objeto de análise deste artigo. A


constatação desse movimento dialógico que mobiliza jornalismo e teledramaturgia tem, no

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exemplo que estudamos, um paradigma importante, uma vez que, no mesmo dia, jornalismo e
ficção colocaram em relevo o abjeto crime do estupro, destacando, igualmente, a condição da
vítima: preta, pobre, em situação inferiorizada, sem condições de defesa, marginalizada e
oprimida. Portanto, a telenovela refletiu um momento histórico e interagiu com ele, fazendo
com que maior parcela do público tivesse noção da gravidade do ocorrido. Como bem define
a pesquisadora Cláudia Thomé:
O que se observa na atualidade é que a mistura de noticiário e teledramaturgia
acontece de diversas formas, não só na dramatização de fatos reais na televisão.
Jornalismo e telenovela tem, cada vez mais, pontos de comunicação. Em parte por
aspectos econômicos das emissoras, em uma retroalimentação de sua programação,
mas em parte também pela forma como alguns programas, entre eles as telenovelas,
pretendem atuar no cotidiano da sociedade e na mídia. (THOMÉ, 2005, p. 66)

Nesse viés, nosso objetivo é suscitar indagações capazes de despertar reflexão sobre a
enorme capilaridade do que foi representado pela teledramaturgia, propondo questionamentos
que nos levem a pensar sobre machismo, sociedade patriarcal, primórdios da formação do
Brasil, opressão à mulher, violência sexual, exclusão social e uma série de problemas que
acometem o cotidiano nacional, ontem como hoje.
Assim, construímos esta análise a partir de perguntas como: De que modo uma novela
ambientada no século XIX pode ter qualquer analogia com o factual do século XXI ? Que
relações com o modo de vida contemporâneo é possível inferir a partir de uma história que se
passa entre os anos de 1789 a 1808 ? Se é possível uma analogia entre épocas tão distintas ser
percebida pelo telespectador, de que modo isso se articula no enredo ficcional ?
O processo da comunicação é como um exercício, cuja tradução implica uma permuta
de signos alheios por signos próprios, como definiu Mikhail Bakhtin. E é isso o que nos
dispomos a fazer ao debruçar nosso olhar sobre a questão da dialogia entre o jornalismo e a
ficção através de um caso de estupro vivido na obra em estudo.
Para corroborar o caminho de análise que escolhemos, vejamos o que diz a
pesquisadora Daniela Jakubaszko:
A ficção televisiva, como obra cultural e artística, é unidade da comunicação
discursiva, está delimitada pela alternância dos sujeitos do discurso, revela a
individualidade do roteirista e sua visão de mundo, é um elo entre as novelas e
minisséries anteriores e as suas posteriores. Alguns temas passam a fazer parte da
memória do gênero, tornando-se recorrentes e entrelaçando as histórias passadas e
futuras, costurando uma grande teleficção. Cada vez que o tema volta à tela, recebe
novo tratamento estético e temático. Os temas se repetem, mas a forma de tratá-los
não. Entra em cena a memória da cultura e suas articulações de sentido.
(JAKUBASZKO, 2017, p. 130)

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A cena de Liberdade, liberdade escolhida evidencia um caso de violência sexual,


praticado quando o Brasil ainda vivia sob a tutela da Corte portuguesa. Trata-se da
representação de um estupro – neste caso, praticado contra uma jovem negra, escrava e
submetida a todo tipo de sofrimento, em consequência da escravidão.
No mesmo dia em que o capítulo foi ao ar, registrou-se no Rio de Janeiro, numa favela
da zona oeste, o estupro de uma jovem, também negra, vítima do abuso por diversos homens.
O caso real, obviamente, despertou o mundo para o caso de violência contra a mulher
ocorrido na capital carioca (mais um, entre tantos que o jornalismo registra cotidianamente), e
fez comunidades, organizações e entidades, nacionais e internacionais, se posicionarem contra
os agressores, pedindo imediata condenação dos criminosos.
No caso da telenovela, a cena passou quase despercebida na mídia. Daí porque a
escolhemos para tema deste artigo, acreditando que a intersecção ficção x realidade se faz de
forma muito notória no recorte escolhido. A obra mostrou outras cenas de estupro, porém a
seleção desta é por conta do agravamento que o preconceito étnico exacerba.
Há vários outros exemplos de obras da teleficção audiovisual nas quais a questão do
estupro é colocada pelos autores, e muitas delas estão documentadas pela imprensa, tais como
Verdades secretas, A lei do amor, Ligações perigosas, Justiça, O outro lado do paraíso 3, e até
mesmo outros casos de violência, cometidos mesmo em Liberdade, Liberdade, mas não
encontramos menção a essa cena específica em nenhum lugar, seja na web, na imprensa
escrita ou televisionada. E parece-nos oportuno lembrar o que disse Bourdieu:
Quando os dominados aplicam àquilo que os domina esquemas que são produto da
dominação ou, em outros termos, quando seus pensamentos e suas percepções estão
estruturados de conformidade com as estruturas mesmas da relação da dominação
que lhes é imposta, seus atos de conhecimento são, inevitavelmente, atos de
reconhecimento, de submissão. (BOURDIEU, 2012, p. 22)

Histórico da novela
A telenovela Liberdade, liberdade foi produzida e exibida pela TV Globo de 11 de
abril a 4 de agosto de 2016, com 67 capítulos. Escrita por Mário Teixeira, com colaboração de
Sérgio Marques e Tarcísio Lara Puiati, a partir de argumento de Márcia Prates, a novela tem
como tema principal a luta pela liberdade e foi inspirada no livro “Joaquina, filha do
Tiradentes”, de Maria José de Queiroz. Na direção, André Câmara, João Paulo Jabur, Pedro
Brenelli, Bruno Safadi, tendo Vinícius Coimbra assinando a direção artística. Foi a sexta
"novela das onze" exibida pela emissora, que, a partir de 2017, criou as chamadas superséries.

3
Ver matéria em https://gente.ig.com.br/sexo-tv/2017-03-23/estupro-abuso-sexual.html

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O elenco contou com Andreia Horta e Mateus Solano, os protagonistas, e ainda Caio
Blat, Marco Ricca, Sheron Menezzes, Dani Ornellas, Lília Cabral, Zezé Polessa, Maitê
Proença, Bruno Ferrari, Dalton Vigh, Ricardo Pereira, Nathália Dill, Juliana Carneiro da
Cunha e Mel Maia.
O eixo narrativo apresenta o Brasil no histórico período da Inconfidência Mineira. A
personagem principal é Joaquina (Andreia Horta), a filha de Tiradentes. A garota, ainda muito
jovem, perde o pai e, pouco tempo depois, a mãe, sendo adotada por Raposo (na vida real,
Joaquina foi adotada por Domingos de Abreu Vieira , amigo de Tiradentes e, por conta disso,
escolhido padrinho da garota). Em entrevista à época do lançamento, o autor declarou:
Temos base nos acontecimentos históricos como a Inconfidência Mineira e a vinda
da família real portuguesa para o Brasil, mas há o nosso olhar para tudo que
pesquisamos, e criamos personagens ficcionais. Bebemos nos diários de viagem, nos
livros e obras de arte para retratar o período. Dumas, um autor que muito me
inspirou, tratava a história como matéria ficcional, invertia a cronologia dos fatos,
retardava a morte de personagens reais para que eles trombassem com seus próprios
personagens na narrativa. Aprendi muito com ele. (TEIXEIRA, 2016) 4

Em outro site, Mário Teixeira explica ainda a narrativa:


a história de uma mulher que vive nesse período conturbado do país, em que o Brasil
deixa de ser colônia e passa a ser capital da coroa portuguesa. É um período de
revolução, do movimento da Inconfidência Mineira, e de outros movimentos que
desembocaram na Independência do Brasil. (TEIXEIRA,2016) 5

Sobre a novela, o jornalista João Paulo Reis escreveu quando da estreia:


Embora o foco da nova trama seja Joaquina, a filha de Tiradentes foi através do líder
da inconfidência mineira que começamos a acompanhar o desenrolar da história.
Thiago Lacerda nos mostrou um Tiradentes diferente daqueles que até então eram
retratados pela televisão. Evitando a postura de mártir, construída através de roteiros
maniqueístas, Mário Teixeira e equipe fizeram do Tiradentes de Lacerda aquilo o
que ele realmente foi: um líder revolucionário que lutava contra a exploração de
recursos naturais imposta pela coroa portuguesa, que levava as riquezas encontradas
em terras mineiras para Portugal, e visava a independência do Brasil. (REIS, 2016)6

É importante lembrar que, o reconhecido nível de qualidade técnica e artística que


alcançaram nossas telenovelas faz com que elas sejam o produto cultural brasileiro de maior
aceitação no mercado externo, o que pode ser confirmado pelos vários e relevantes prêmios
obtidos pela TV Globo (Emmy Internacional, a mais importante premiação da TV mundial) e

4
Ver entrevista com o autor Mário Teixeira, publicada em https://gente.ig.com.br/tvenovela/2016-04-13/autor-
de-liberdade-liberdade-diz-nao-temer-comparacao-com-verdades-secretas.html Acesso em 03 ago 2018.
5
Ver em https://www.dn.pt/media/interior/haja-coracao-e-liberdade-liberdade-estreiam-se-dia-5-na-sic-
5354206.html. Acesso em 03 ago 2018.
6
Ver matéria Liberdade, Liberdade! – Novela com cara de minissérie no site Observatório da televisão:
https://observatoriodatelevisao.bol.uol.com.br/critica-de-tv/2016/04/liberdade-liberdade-novela-com-cara-de-
minisserie Acesso em 05 ago 2018.

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pela quantidade de títulos vendidos em mais de 130 países, o que por si só já dá a dimensão
de seu potencial junto ao público. Neste ponto lembramos o que diz Cristina Costa:
Quando me refiro à telenovela brasileira, estou apontando para um produto que
retrata, ainda que de maneira ambígua, nossa realidade e a transfigura “até a magia”,
como define Edgar Morin em O encanto do cinema. [...] A referência constante ao
cotidiano local, a ironia e o erotismo sempre presentes, uma certa maneira de
desmitificar as instituições e os representantes das diversas camadas sociais, fazem
da nossa telenovela um produto que, ao mesmo tempo, reifica a sociedade na qual
atua e debocha de seus valores. [...] Talvez seja essa a maior característica da nossa
telenovela: a contradição, a visão dialética do mundo e a ambiguidade. (COSTA,
2000, p. 156 e 157)

Real e ficção emparelhados


Para começar este tópico, queremos deixar claro o quanto ficcional e real são
indissociáveis. Assim, achamos interessante destacar o que diz Marcelo Bulhões sobre a
relação ficção x realidade:
É preciso fazer uma importante advertência: não existe, a rigor, ficção “pura”,
exilada das referências do real palpável. Nenhuma realização ficcional está, com
efeito, totalmente desligada de alguns parâmetros que conhecemos como realidade,
pois ela não é um invólucro impenetrável, uma cápsula suspensa na imaterialidade.
De modo um tanto quanto engenhoso, pode-se dizer que a ficção só pode
transfigurar o real por tê-lo conhecido. Ao contrariá-lo de alguma maneira,
indiretamente reconhece-o e acaba, por fim, reconstruindo-o ou então reelaborando-
o. (BULHÕES, 2009, p. 22)

O contexto da ficção tem como protagonista Joaquina (Mel Maia/Andreia Horta), filha
única de Tiradentes, e aborda o período de transição que vai de 1789 a 1808, entre os séculos
XVIII e XIX, tocando em fatos que perpassam a história do Brasil. A produção adotou um
forte realismo estético, a fim de causar impacto e permitir intensa analogia com o passado.
Nesse ambiente, afloram temáticas como o preconceito, a intolerância e a violência contra a
mulher, entre tantas outras questões que também contam sobre o que se vivencia hoje no país.
A produtora Rosana Lobo é quem conta:
A trama tem início quando a Conjuração Mineira, que queria proclamar uma república
independente, é desmantelada. Havia um grupo de intelectuais, políticos, mineradores,
padres e militares insatisfeitos com a cobrança abusiva de impostos. A extração de ouro
em Minas estava em decadência, mas Portugal continuava cobrando os mesmos
impostos de sempre. Em 1808, a vinda da família Real traz, por um lado, ainda mais
endividamento, mas por outro, traz um respiro, pois com ela houve a abertura dos portos
às nações amigas, o início da imprensa no Brasil, e foram criadas algumas instituições
importantes como bancos, universidades e escolas militares. Era, portanto, um período
de muita mudança e desejo de liberdade, daí o nome da novela.7

7
Ver matéria sobre o universo histórico da novela:
http://gshow.globo.com/Bastidores/noticia/2016/04/liberdade-liberdade-entenda-o-universo-historico-da-nova-
novela-das-11.html Acesso em 02 ago 2018.

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Daquela época para cá, pouca coisa parece ter mudado em termos de comportamento,
conforme conta o autor:
Tudo isso não é novidade, já existia. Hoje estas coisas são mais divulgadas, mas elas
existiam naquela época e até com mais intensidade porque tudo era velado, tudo era em
segredo. Eram vidas passadas em segredo, vidas entre quatro paredes.8

Isso nos faz lembrar que as narrativas sempre terão muito o que falar sobre nós
mesmos, como afirma Cristina Costa:
As narrativas são maneiras de realizar e de expressar nossa temporalidade, tornando-
a tão objetiva quanto a certeza de nossa finitude e transitoriedade. São metáforas
constitutivas de ordenação, de ritmos e de sequências seriais e casuais... As
estruturas narrativas são formas de estabelecer modulações e durações, arquitetando
a temporalidade humana. São essenciais para a construção da identidade, tanto a
individual como a coletiva, pois, a partir das considerações feitas, ser para o homem
é ter uma história, é integrar durações e temporalidades. (COSTA, 2000, p.41)

Chegamos então ao epicentro de nossa análise: o caso de estupro contra uma jovem
negra. Assim na favela carioca, assim nas antigas paragens mineiras. Uma jovem - pobre,
negra, favelada – foi vítima de um estupro coletivo no Rio de Janeiro em 22 de maio de 2016.
No dia 24, ela viu a postagem de um vídeo nas redes sociais com os agressores divulgando o
caso. A partir daí, a gravidade do ato foi-se corporificando até chegar ao noticiário, ganhar
páginas nos jornais, espaço na mídia e repercussão internacional. Na novela, a violência faz
vítima a escrava Jacinta (Dani Ornellas), atacada pelo feitor Malveiro (Bruce Gomlevsky).
O autor Mário Teixeira disse em entrevista:
A intolerância sempre existiu e sempre vai existir. Tratamos de assuntos atuais usando o
panorama histórico daquela época. Do jeito deles, os personagens desta novela estão o
tempo todo lutando contra a intolerância. A intolerância política é tratada desde o
começo, com a morte de Tiradentes (Thiago Lacerda). Acho que este ambiente
corrompido pela intolerância fez com que os personagens desenvolvessem sentimentos
dignos em relação à realidade. A intolerância faz com que as pessoas se indignem, faz
com que elas queiram mudar as coisas. (TEIXEIRA, 2016)9

O que consideramos relevante registrar neste caso é a inserção da cena de estupro na


mesma data em que a notícia ganhou manchete em todo o noticiário. Porque o fato aconteceu
no domingo, 22 maio, porém, só alguns dias depois, a vítima viu o fato em vídeo – postado
nas redes sociais por um dos agressores, e repassado por outros. No dia 26, a repercussão
atingiu seu clímax jornalístico, e ver a cena de estupro de uma personagem no capítulo da
novela, teve um impacto muito maior por conta da confluência de sentidos, algo como se a
realidade estivesse imbricada na ficção. Ainda que houvesse a distancia de época, personagem

8
Ver reportagem em http://gshow.globo.com/Bastidores/noticia/2016/08/autor-de-liberdade-liberdade-
transformou-uma-historia-de-epoca-em-uma-trama-atual.html Acesso em 01 ago 2018.
9
Reportagem já citada anteriormente. http://gshow.globo.com/Bastidores/noticia/2016/08/autor-de-liberdade-
liberdade-transformou-uma-historia-de-epoca-em-uma-trama-atual.html

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e situação. Foi como um “choque de real”, segundo definição da pesquisadora Beatriz


Jaguaribe.10
Embora sabendo que a violência contra a mulher perpetua-se através dos séculos, a
confluência do assunto, do factual para o ficcional, tem um impacto ainda maior, tornando
mais potente e paradigmático o assombro mundial diante da violência absurda. E o autor diz:
Eu gosto muito de fazer ficção em cima de fatos históricos. Acho que, para um
ficcionista, escrever uma novela histórica é o melhor dos mundos. A ficção é capaz de
abolir as fronteiras do tempo. A ficção é capaz de fazer com que as pessoas sonhem.

Sobre a novela, a jornalista Vanessa Scalei escreveu:


um retrato atual do Brasil sob o pano de fundo histórico da Inconfidência Mineira. [...]
Falando do Brasil antigo, Teixeira tocou em pontos como corrupção, violência,
machismo e racismo. Nada mais atual, principalmente nesse momento em que uma onda
conservadora ganha força. A novela fez pensar e não subestimou a inteligência do
público.Além do roteiro, a caracterização dos personagens, o cenário e a fotografia foram
elementos essenciais ao bom desempenho da trama.11

E antes de passar ao próximo tópico, queremos ressaltar que nosso objeto é ficcional,
ou, como diz Michel Foucault, “A ficção consiste não em fazer ver o invisível, mas em fazer
ver até que ponto é invisível a invisibilidade do visível”.

A construção narrativa
Narrar é comunicar e, como afirma Mikhail Bakhtin, não existe comunicação sem
diálogo. Ouvir e falar são movimentos de uma mesma atividade: se alguém fala, existe
alguém que responde. Ou seja, toda palavra instala uma contrapalavra: o sentido de alteridade
está sempre presente, o que torna o outro imprescindível para a construção da linguagem.
Por sua vez, o pesquisador Luiz Gonzaga Mota destaca que “As narrativas criam
significações sociais, são produtos culturais inseridos em certos contextos históricos”
(MOTTA, 2013).
É ainda o teórico russo que define a construção da identidade por meio de
pensamentos, opiniões, visões de mundo, consciência: “Cada palavra (cada signo) do texto
leva para além dos seus limites. Toda interpretação é o correlacionamento de dado texto com
outros textos” (BAKHTIN, 2003, p. 400).

10
Choque do Real – conceito criado pela pesquisadora Beatriz Jaguaribe, e ensinado em aula ministrada no curso
de pós-graduação da ECO-UFRJ, em 2003, para designar eventos da ordem do cotidiano, produzidos com efeitos
de real, que se revelam absurdos. São fatos ancorados no cotidiano e que nos dão a sensação da experiência
(apud THOMÉ, 2005, p. 53)
11
Ver matéria "Liberdade, liberdade", novela que termina nesta quinta, acertou ao tocar em temas polêmicos. In
https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/tv/noticia/2016/07/liberdade-liberdade-novela-que-termina-nesta-
quinta-acertou-ao-tocar-em-temas-polemicos-6972498.html. Acesso em 04 ago 2018.

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Assim para desenvolver nosso estudo, seguiremos uma metodologia inspirada nas
considerações de Bakhtin, mas levando em conta os movimentos propostos por Motta para
entender a construção narrativa. Os movimentos são sete, assim estruturados:

1. A intriga como síntese do heterogêneo


2. Lógica do paradigma narrativo
3. Surgimento de novos episódios
4. Revelação do conflito dramático
5. Entender o personagem – metamorfose pessoa e persona
6. Estratégias argumentativas
7. As metanarrativas afloram

Para cada um desses, uma breve definição que nos facilite a compreender como a
metodologia proposta para o jornalismo também serve com propriedade ao entendimento dos
parâmetros da teledramaturgia. Assim temos que:

1 – O enredo é o cerne. É necessário encontrar e entender os caminhos que alinhavam a trama,


ou, indo mais fundo, perceber como o narrador construiu sua história. E assim, o analista vai
definindo um novo enredo, que favorece um melhor entendimento sobre as estratégias
utilizadas pelo narrador. O novo enredo ou roteiro é mais complexo porque vai conferindo ao
objeto outras significações. Vejamos a explicação do autor:
O analista precisa decompor recompor a estória com rigor e identificar suas partes
componentes, as sequencias básicas, os pontos de virada ou inflexões essenciais, os
limites dos episódios parciais, as conexões entre eles, os conflitos principais e
secundários, o protagonista e o antagonista principais e seus adjuvantes, como o
enredo organiza a totalidade, e assim por diante, a fim de compreender como o
narrador compôs sua estória na situação de comunicação. (MOTTA, 2013, p. 141)

2 – A narrativa é um projeto dramático de construção da realidade, ou seja, o narrador utiliza,


estratégica e astuciosamente, os recursos de linguagem para definir um discurso
argumentativo que se configure na relação com seu interlocutor:
A narrativa é utilizada para atrair, seduzir, persuadir, convencer, obter resultados,
efeitos de sentido, satisfazer a um desejo e a um projeto discursivo do narrador. [...]
os componentes da narrativa empírica precisam ser compreendidos como artifícios,
truques, artimanhas estratégicas da comunicação narrativa. (Ibid, p. 147)

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3- Novos episódios: etapa que se destina a descobrir como o narrador dispõe os personagens,
cenários, incidentes, conflitos, ou seja, como a intriga foi planejada para produzir
determinados efeitos dramáticos, tais como suspense, tensão, clímax, pontos de virada, etc.
No caso específico em estudo, a cena do estupro está nesse ponto, funcionando como produtor
de efeito dramático, embora não seja um ponto de virada pois não muda o curso da história.

4 – Revelar o conflito dramático: identificação do conflito ou conflitos dramáticos, etapa na


qual se mergulha ainda mais nos sentidos da história. Aqui está o ápice do caminho para
adquirir domínio sobre a essência dos significados da narrativa e, a partir disso, ter base para
deduzir as artimanhas e estratagemas discursivos, consciente ou inconscientemente utilizados
na narrativa. Assim, “é importante tomar o conflito dramático não como uma situação
estática, mas como um processo em transcurso, que evolui, afeta e constitui as mudanças de
estado que vão surgido em torno dele no relato” (MOTTA, p. 168).

5 – Personagem: destaque para quem faz a ação, quem faz a história seguir adiante,
lembrando que é preciso realçar “o inquestionável caráter de humano de toda e qualquer
personagem”, como esclarece Motta. Logo, a personagem é “uma figura central da narrativa,
é o eixo do conflito em torno do qual gira toda a intriga”. Assim, é neste ponto que devemos
perceber como o narrador utiliza artimanhas e quais são elas, usadas para incutir nos
interlocutores um naipe de sentimentos e desejos.

6- Estratégias argumentativas: movimento pelo qual se deve observar os relatos como jogos
de linguagem com ações estratégicas para alcançar determinados significados em contexto,
independente do caráter real ou ficcional. A narrativa como dispositivo de argumentação na
relação comunicativa entre sujeitos reais. Deve-se ter em mente os efeitos de real para se
chegar aos efeitos estéticos de sentido, tendo em vista que
Estudar toda e qualquer narrativa é descobrir os dispositivos retóricos capazes de
revelar o uso intencional de recursos linguísticos e extralinguísticos pelo narrador no
processo de comunicação. (MOTTA, p. 196)

7 – Metanarrativas: neste sétimo e último movimento, é preciso lembrar que nenhuma história
é contada sem que haja um fundo moral, uma razão ética que a situe, conforme indica Luiz
Gonzaga Motta.

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Ao seguir uma estória, sempre aprendemos algo sobre nós mesmos e nossa realidade,
como aponta Paul Ricouer, em citação de Motta. Ou seja: ao mesmo tempo em que ficamos
conhecendo um pouco mais sobre o mundo, também temos oportunidade de criar laços e
entendimentos com nossa própria história de vida. Afinal, se as situações apresentadas por
uma história sempre apontam para projetos de vida, elas também falam de nós, seres
humanos, e, portanto, elas já trazem em seu fundamento, condições de assimilação e
identificação com quem as conhece. Caberá à habilidade maior ou menos do narrador a
criação de empatia.
Vejamos então como percebemos a estruturação desses sete movimentos em
Liberdade, liberdade. No tocante à intriga (1), o principal é o mistério que ronda a morte de
Tiradentes, só desvendado no final da novela. Os recursos de linguagem (2) de que se vale o
narrador são muitos e vão desde o discurso verbal até a edição das cenas, passando pelos
figurinos, caracterização, reconstituição de época, enquadramentos, paleta de cores,
fotografia, cenários, inclusão de personagens, adequação de situações do enredo a momentos
vividos nos tempos atuais. Entender como a intriga foi planejada para alcançar determinados
efeitos dramáticos (3). Revelação do conflito dramático (4) ou definição do ponto de clímax,
conforme classificação de Luiz Carlos Maciel12. Personagem (5): entender que há um trânsito
persona-pessoa, pelo qual se define que características serão mais exploradas em cada
personagem. Estratégias argumentativas (6): aqui entram os efeitos de real, usados para dar
mais veracidade à história. É neste movimento que se insere a cena de estupro que
destacamos. A cena é incluída no mesmo dia em que a notícia estoura em todo o noticiário
nacional como um claro, oportuno e providencial efeito estético de sentido. E por último (7),
qual a razão estética que mobiliza a obra.
Por questões de espaço e por estender-se além do foco que damos a esta análise,
vamos nos ater a pontuar aqui apenas a inserção da cena do estupro e sua concomitância com
o factual exibido pela narrativa jornalística.
Sabemos que a cena já devia ter sido pensada quando da construção do roteiro. Não é
de hoje que os casos de violência sexual contra a mulher assustam e indignam. Mas a edição
da cena para o capítulo de 26 de maio, sem dúvida, deve-se à percepção clara da direção de
que o momento em que a cena teria mais impacto junto ao telespectador era aquele. Afinal, se
todo o jornalismo da emissora (seja em rádio, podcast, TV, impressos e web) dava conta do
fato na favela do Rio de forma bastante enfática, destacando a estupidez do ocorrido, pautar a

“O clímax é a realização concreta do tema em termos de um evento” in O Poder do clima, de Luiz Carlos
12

Maciel, 2017, p. 52.

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cena para o capítulo daquela data fazia com que o discurso da ficção se enquadrasse também
dentro da ambiência narrativa do jornalismo, o que causaria no telespectador, que já vinha
acompanhando a programação da emissora desde cedo, ainda mais empatia, mobilizando-o
emocionalmente pela percepção de que o estupro estava na tela tal como estava no dia-a-dia
da população, aumentando o número de vítimas entre mulheres, pobres e negras.
Nesse sentido, acerca da temática do racismo, vale ressaltar a asserção de Solange
Martins Couceiro de Lima:
A telenovela é, pois, a narrativa que veicula representações da sociedade brasileira,
nela são atualizadas crenças e valores que constituem o imaginário dessa sociedade.
Ao persistir retratando o negro como subalterno, a telenovela traz, para o mundo da
ficção, um aspecto da realidade da situação social da pessoa negra, mas também
revela um imaginário, um universo simbólico que não modernizou as relações
interétnicas na nossa sociedade. (COUCEIRO DE LIMA, 2001, p. 98)

Portanto, consideramos evidente que a concomitância da emissão do tema ‘estupro’ no


jornalismo e na teledramaturgia foi um oportuno e poderoso recurso de linguagem, e ainda
uma bela estratégia argumentativa de efeito de real produzido pelos criadores da obra (aqui
incluindo autoria, direção, fotografia, trilha e caracterização, pelo menos). Mais ou menos
como afirmou Zygmunt Bauman:
Imagens poderosas, ‘mais reais que a realidade’, em telas ubíquas estabelecem os
padrões da realidade e de sua avaliação, e também a necessidade de tornar mais
palatável a realidade ‘vivida’. A vida desejada tende a ser a vida ‘vista na TV’. A
vida na telinha diminui e tira o charme da vida vivida: é a vida vivida que parece
irreal e continuará a parecer irreal enquanto não for remodelada na forma de
imagens que possam aparecer na tela. (BAUMAN, 2001, p. 99)

Outrossim, cabem como luva as palavras do filósofo Renato Janine Ribeiro, enfatizando a
grande contribuição da teledramaturgia para desequilibrar padrões comportamentais
arraigados:
O machismo atacado, o racismo refutado são só duas faces de um esforço para
contestar o preconceito de costumes. A lista é interminável. O fato é que, na ditadura
e na democracia, a novela se concentrou em mexer nos costumes tradicionais. E
pouco importa se isso foi planejado ou não: o que conta é que assim a Globo, em
especial, captou o ar do tempo. Pois a novela é o gênero dramático em que o Brasil
melhor se saiu. Nela não ouvimos discursos: presenciamos situações. A dramaturgia
funciona mais que a palavra seca. Daí seu alcance social. Por isso é errado dizer que
a TV não educa. Ela varreu preconceitos de costumes. (RIBEIRO, 2000)13

Conclusão
No caso da teledramaturgia, para que o dialogismo e a alteridade aconteçam é
necessário que o público tenha identificação com o (s) personagem (ns) e crie empatia, para
que se sinta junto do personagem e com ele estabeleça uma relação em que há diálogo e

13
Ver artigo em http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/qtv050920002.htm. Acesso em 29 jun 2018.

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projeção. E o que a estratégia de efeito de real utilizada fez foi de extrema relevância,
sensibilidade e inteligência, ativando os mecanismos de assimilação, identificação e projeção
de modo muito contundente e eficaz.
A novela foi assim ressignificada em seu contexto, uma vez que, como definiu
Bakhtin, não existe ação realizada no vazio: tudo que acontece integra um ambiente
valorativo, um mundo vivo e também significante, possível graças ao movimento cultural
existente num determinado tempo-espaço. Outrossim, a novela, naquele dia, tornou-se mais
uma frente de denúncia e contraposição aos casos de violência contra a mulher.
O recurso do efeito de real ajudou a destacar o ambiente de significação dos casos de
violência, espaço propício para a produção de intertextualidades, ferramenta que possibilita
conexões várias entre múltiplos contextos, das mais distintas origens. Assim, novos sentidos
são produzidos, bem na esteira do que define Maria de Lourdes Motter:
Ao mesmo tempo em que reproduz hegemonias, a teleficção trabalha à sua maneira
o que é dado socialmente, construindo refrações que se desenham mais nitidamente
por meio de seu apelo constante ao cotidiano das relações sociais e familiares.
(MOTTER, 1998)

E, para não dizer que não vimos a fotografia, fundamental para a criação da ambiência,
recorremos ao emérito fotógrafo francês Gérard Castello-Lopes14:“A fotografia é uma forma
de ficção. É ao mesmo tempo um registro da realidade e um auto-retrato, porque só o
fotógrafo vê aquilo daquela maneira”.
Nessa mesma trilha, retomamos a ideia do diálogo autor-espectador, segundo as
palavras do escritor e jornalista Muniz Sodré, “a ficção literária produz-se no plano dos
símbolos, os quais se abrem para a pluralidade das significações, inventando acontecimento e
linguagem, desafiando o leitor à parceria na produção interpretativa do sentido” (SODRÉ,
2009, p. 160).
Portanto, os criadores de Liberdade, liberdade, com esta obra, promovem o escopo
teleaudiovisual e renovam a possibilidade de se acreditar que - embora num veículo de
produção industrial como a televisão, em horário de audiência reduzida pelo adiantado do
relógio -, é possível se produzir arte da melhor qualidade. Tal como afirma Arlindo Machado:
A arte de cada época é feita não apenas com os meios, os recursos e as demandas
dessa época, mas também no interior dos modelos econômicos e institucionais nela
vigentes, mesmo quando essa arte é francamente contestatória em relação a eles. Por
mais severa que possa ser a nossa crítica à indústria do entretenimento de massa, não
se pode esquecer que essa indústria não é um monolito. Por ser complexa, ela está
repleta de contradições internas e é nessas suas brechas que os verdadeiros criadores
podem penetrar para propor alternativas qualitativas. Assim, não há nenhuma razão
porque, no interior da indústria do entretenimento, não possam despontar produtos –

14
Ver https://pt.slideshare.net/beatrizlopescm/grard-castellolopes. Acesso em 11 jun 2018.

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como é o caso de Cínico TV – que em termos de qualidade, originalidade e


densidade significante rivalizem com a melhor arte “séria” de nosso tempo. Não há
também nenhuma razão porque esses produtos qualitativos da comunicação de
massa não possam ser considerados as verdadeiras obras criativas do nosso tempo,
sejam elas consideradas arte ou não. (MACHADO, 2011, p. 25)

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MEMÓRIA E HISTÓRIA:
O ofício das parteiras da Amazônia retratado pelos olhos de Eliane Brum1

Cíntia Charlene da Silva2


Universidade Federal de Juiz de Fora

Resumo
O presente artigo visa analisar como a jornalista Eliane Brum consegue, pela narrativa, revelar
ao público o mundo das parteiras dos confins da Amazônia. Brum utiliza o testemunho e as
vivências contadas por suas personagens, conhecidas pelo “dom de pegar menino”, para recriar
e resgatar a história vivida de geração em geração pelas parteiras da floresta. Assim, utilizando
os conceitos de memória individual e memória coletiva do teórico Maurice Halbwachs (2003),
consegue-se compreender como as narrativas são construídas a partir dos testemunhos dos
personagens entrevistados pela jornalista.

Palavras-chave: Parteiras; Memória; História; Eliane Brum; Amazônia.

MEMORY AND HISTORY:


The craft of the Amazon midwives portrayed by the eyes of Eliane Brum

Abstract

This article aims to analyze how the journalist Eliane Brum is able, through the narrative, to
reveal to the public the world of midwives from the confines of the Amazon. Brum uses the
testimony and experiences told by his characters, known for the "gift of picking up boy", to
recreate and rescue the story lived from generation to generation by the midwives of the forest.
Thus, using the concepts of individual memory and collective memory of the theoretician
Maurice Halbwachs (2003), one can understand how the narratives are constructed from the
testimonies of the characters interviewed by the journalist.

Keywords: Midwives; Memory; History; Eliane Brum; Amazon.

História e memória
Este trabalho aborda como a história e a memória estão interligadas na construção de
uma identidade individual e coletiva. Através das memórias e das experiências adquiridas ao
longo de sua existência, o ser humano é capaz de construir sua história. Assim, ao longo da
vida, construímos nossas memórias por meio dos acontecimentos que vivemos ou dos quais
fizemos parte. Como não é possível guardar todos os momentos, selecionamos de maneira

1
Trabalho apresentado no GT1- Linguagens e narrativas, do XI Encontro dos Programas de Pós-Graduação em
Comunicação Social de Minas Gerais, 18 e 19 de outubro de 2018.
2
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora
(PPGCOMUFJF), da linha de Competência Midiática, Estética e Temporalidade. Membro do Grupo de Pesquisa
Narrativas Midiáticas e Dialogias. E-mail: cintiacharlene@hotmail.com

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inconsciente aqueles com que mais nos identificamos ou que representam algo importante para
nossa história.
Segundo Paul Veyne (2008), a história é uma narrativa de eventos, em que todo o resto
deriva disso.Todavia, esta narrativa não deve ser confundida com a evocação de uma verdade
factual, uma vez que está sujeita a uma metodologia, que elege e recorta aquilo que se é contado.
Logo, tratar-se-ia de “um conto de acontecimentos verdadeiros.”(VEYNE, 2008). Neste
sentido, o autor compara, ainda, a história e o romance ao mostrar que ambos selecionam,
simplificam, organizam e, por fim, fazem com que um século caiba numa página, “e essa síntese
da narrativa é tão espontânea quanto a da nossa memória, quando evocamos os dez últimos
anos que vivemos.” (VEYNE, 2008, p. 18). Ele ainda completa ao dizer que “a história é
anedótica. Ela interessa porque narra, assim como o romance.” (VEYNE, 2008, p. 23).
Para Jacques Le Goff (2003), por sua vez, a história tem início a partir de um relato, em
que o indivíduo utiliza a narrativa para dizer o que viveu ou que sentimentos possuía em relação
a um determinado fato.
Esse aspecto da história-relato, da história-testemunho, jamais deixou de estar
presente no desenvolvimento da ciência histórica. Paradoxalmente, hoje se assiste à
crítica desse tipo de história, devido à vontade de colocar a explicação no lugar da
narração; mas, também ao mesmo tempo, presencia-se o renascimento da história-
testemunho por intermédio do “retorno do evento” (Nora), ligado à nova mídia, ao
surgimento de jornalistas entre os historiadores e ao desenvolvimento da “história
imediata”. (LE GOFF, 2003, p. 9)

Parte-se, então, do pressuposto de que a história é subjetiva e por isso, comporta


inúmeras perspectivas sobre um mesmo fato. O olhar de quem escreve ou de quem apenas
observa é distinto. Ambos possuem um ponto de vista e não existe certo ou errado. Todas as
versões apresentadas possuem validade, haja vista a impossibilidade de recuperação e
verificação do passado. Além disso, há que se levar em conta que a história a ser relatada
representa um recorte da realidade, uma vez que se torna inconcebível dar-se conta de toda a
totalidade do fato. “É impossível descrever uma totalidade, e toda descrição é seletiva; o
historiador nunca faz o levantamento do mapa factual. Ele pode, no máximo, multiplicar as
linhas que o atravessam”. (VEYNE, 2008, p. 44).
Assim, a história nunca dará conta de narrar todos os seus episódios ou de relatar todos
os pontos de vista dos personagens envolvidos. Haverá sempre uma seleção dos fatos a serem
narrados. O antropólogo Lévi-Strauss apud Paul Veyne (2008) aponta o paradoxo vivido pela
história:
A história é um conjunto descontínuo, formado por domínios, cada um deles definido
por uma frequência própria. Existem épocas em que numerosos acontecimentos
oferecem, aos olhos do historiador, os caracteres de eventos diferenciais; outras, ao

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contrário, em que, para ele, aconteceram poucas coisas e, por vezes, não aconteceu
nada (a não ser, certamente, para os homens que viveram esses tempos). Todas essas
datas não formam uma série, elas pertencem a espécies diferentes. Codificados no
sistema da pré-história, os mais famosos episódios da história moderna deixariam de
ser pertinentes, salvo, talvez (e, mesmo assim, não o podemos afirmar), certos
aspectos maciços da evolução demográfica, considerados em escala mundial: a
invenção da máquina a vapor, a da eletricidade e da energia nuclear. (apud VEYNE,
2008, p. 25 e 26)

Dito isto, Paul Veyne afirma que a história é uma narrativa de eventos e que esta é filha
da memória. “Os homens nascem, comem e morrem, mas só a história pode informar-nos sobre
suas guerras e seus impérios.” (VEYNE, 2008, p. 19).Afinal, as experiências e os
acontecimentos vividos pelos homens no passado são essenciais para a construção de suas
histórias que serão, consequentemente, acessadas pela sua memória. Diante desta assertiva, Le
Goff pontua que assim como o passado é objeto da história, “também a memória não é história,
mas um de seus objetos e, simultaneamente, um nível elementar de elaboração histórica.” (LE
GOFF, 2003, p. 49).
Tal relação evidencia-se mesmo antes da invenção da escrita, período no qual as
comunidades relatavam suas experiências e passavam seus conhecimentos aos seus
descendentes através da história oral. A partir daí, assim como foi com a pintura rupestre, os
relatos ultrapassaram o tempo, sobrevivendo de geração em geração até a chegada da escrita,
que revolucionou a forma como as memórias seriam armazenadas. Le Goff (2003) afirma que
a memória tem como finalidade conservar determinadas informações referentes a fatos vividos
no passado. Elas “remetem-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças
às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa
como passadas.”(LE GOFF, 2003, p. 419).
Assim, a memória funciona como uma espécie de arquivo responsável por registrar
todas as lembranças e experiências vividas ou adquiridas pelo indivíduo ao longo de sua
vivência. É graças a essas memórias que o homem pode revisitar seu passado, de modo que se
tornam também essenciais para a compreensão do processo de construção identitária tanto do
sujeito quanto de sua comunidade.
O registro das memórias, que antes eram relatadas a partir dos testemunhos das pessoas,
passa a assumir um papel importante a partir da invenção da escrita. As memórias passam a ser
documentadas e usadas como ferramenta para contar a história de determinada sociedade ou de
um acontecimento importante. Para Le Goff (2003), o controle da memória tornou-se um
mecanismo de poder entre os grupos, nos quais aquele que o detém determinam como a história
deverá ser escrita, qual grupo deverá ser protagonista e herói da narrativa a ser contada.

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A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual


ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das
sociedades de hoje, na febre e na angústia. Mas a memória coletiva é não somente
uma conquista, é também um instrumento e um objeto de poder. São as sociedades
cuja memória social é, sobretudo, oral, ou que estão em vias de constituir uma
memória coletiva escrita, aquelas que melhor permitem compreender esta luta pela
dominação da recordação e da tradição, esta manifestação da memória. (LE GOFF,
2003, p. 469)

A versão oficial dos fatos passa a ser contada pelos detentores da memória que levam
em conta apenas uma maneira particular de relatar o que deverá ser lembrando pela sociedade.
Historicamente, a versão institucionalizada dos fatos narrados foi predominantemente elitista,
branca e masculina. O cotidiano dos homens e mulheres comuns foi deliberadamente ignorado,
uma vez que não contribuía para a legitimação do discurso oficial. Deste modo, por muito
tempo, a história, bem como o uso que esta fez da memória, serviu de elemento perpetuador de
desigualdades de classe, raça e gênero, ficando em voga apenas o relato que foi imortalizado
pelo status quo. “Tornar-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes
preocupações das classes, dos grupos e dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades
históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores destes mecanismos de
manipulação coletiva.” (LE GOFF, 2003, p. 423).
Embora os ecos dessa chamada história oficial ainda se façam ouvir em muitos textos e
discussões da contemporaneidade, movimentos de reação a este paradigma podem ser
observados durante todo o século XX, com ênfase para as décadas a partir dos anos 50. Percebe-
se uma dilatação gradual a respeito dos temas dignos de relevância histórica, através da
incorporação de personagens, atores e contextos periféricos, identificados agora não apenas
pela ótica da submissão, senão enquanto produtores ativos de cultura. Destacam-se, por
exemplo, os estudos da History from below 3 que, entre outras contribuições, localizou na classe
operária inglesa um novo caminho de acesso ao conhecimento histórico de toda uma época. De
maneira semelhante, os Estudos Culturais, sobretudo nas figuras de Stuart Hall, Edward Said,
HomiBhabha entre outros, demonstraram grande êxito em diversificar as chaves de
compreensão das sociedades atuais para além dos clássicos e excludentes mecanismos da
história oficial. Assim, mulheres, camponeses, imigrantes, negros, índios, pobres e toda uma

3
History from below é um artigo publicado em 1966 por Edward Thompson. O conceito que pode ser traduzido
como a história "vista de baixo" sustentava que a história oficial deveria ser contada não apenas levando em
consideração os "grande fatos" e a versão dos heróis, mas também o relato negligenciado de outros segmentos da
sociedade excluídos do contexto social. Essa nova abordagem da história contribuiu para a expansão dos estudos
da história para aqueles cuja suas experiências haviam sido até então omitidos pela historiografia tradicional.

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gama de categorias outrora subalternizadas passam a possuir relevo narrativo, amparados por
uma metodologia cada vez mais interdisciplinar (ESCOSTEGUY, 1998).
Isso posto, a obra de Eliane Brum, que será pormenorizada no decorrer deste trabalho,
dialoga diretamente com as diretrizes metodológicas e temáticas supracitadas. A autora, hoje
internacionalmente premiada, consolidou sua trajetória ao dar voz e visibilidade a personagens
até então invisíveis da história brasileira, como as mulheres parteiras da floresta amazônica e
suas memórias, protagonistas da reportagem que será analisada posteriormente. Assim, Brum
busca “alcançar as populações ribeirinhas, aqueles homens e mulheres que definem seu corpo,
seu contorno e sua linguagem na relação com o rio.” (BRUM, 2017, p. 365).

Memória coletiva e memória individual


Para relatar um evento ou contar uma história, a primeira fonte a que podemos recorrer
é a nós mesmos (HALBWACHS, 2006). Fazemos isso, através do nosso próprio testemunho
traduzido pelo fato de termos participado de uma ação, seja como atores ou apenas como
observadores. A partir daí, recorremos a outros testemunhos para aprofundar nossos
conhecimentos sobre os acontecimentos e (re) constituir a narrativa a ser contada. Partimos das
nossas memórias pessoais em busca do acesso à memória dos outros.
Segundo Maurice Halbwachs (2006), as memórias de um indivíduo nunca são somente
suas, ou seja, assim como as lembranças, que aparentemente podem ser só suas, nenhuma
memória é somente individual, uma vez que as memórias são construídas por sujeitos
pertencentes a um grupo social, e as lembranças nunca poderão coexistir de maneira isolada da
coletividade. Nesse sentido, o homem vive em sociedade e, por isso, mesmo que, apenas ele se
lembre de um determinado fato, não significa que está sozinho ou que se trata de apenas de uma
lembrança particular.
Nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros, ainda que
se trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente
nós vimos. Isto acontece porque jamais estamos sós. Não é preciso que outros estejam
presentes, materialmente distintos de nós, porque sempre levamos conosco e em nós
certa quantidade de pessoas que não se confundem. (HALBWACHS, 2003, p. 30)

Assim, é comum conceituar-se por memória individual a experiência vivida ou o


conhecimento adquirido pelo indivíduo a partir de um fato de que ele tenha participado ou que
tenha apenas observado e que tenha sido armazenado em sua consciência. Ao lembrar-se desse
fato e ao relatá-lo a uma pessoa, este testemunho, aparentemente uma memória individual, passa
a ser uma memória coletiva, na medida em que compartilha o fato com o grupo. Ou seja, ao

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tornar o relato disponível ao outro, o mesmo se transforma em uma memória do grupo que passa
a ter acesso a essa informação, até então mantida como uma memória particular.
Para Ricoeur (2007), a memória é singular e por isso, cada indivíduo tem as suas. As
lembranças não podem ser transferidas de uma memória para outra.
Enquanto minha, a memória é um modelo de minhadade, de possessão privada, para
todas as experiências vivenciadas pelo sujeito. Em seguida, o vínculo original da
consciência como o passado parece residir na memória. Foi dito com Aristóteles, diz-
se de novo mais enfaticamente como Santo Agostinho, a memória é passado, e esse
passado é o de minhas impressões; nesse sentido, esse passado é meu passado. É por
esse traço que a memória garante a continuidade temporal da pessoa e, por esse viés,
essa identidade cujas dificuldades e armadilhas enfrentamos acima. Essa continuidade
permite-me remontar sem ruptura do presente vivido até os acontecimentos mais
longínquos de minha infância. De um lado, as lembranças distribuem-se e se
organizam em níveis de sentido, em arquipélagos, eventualmente separados por
abismo; de outro, a memória continua sendo a capacidade de percorrer, de remontar
no tempo, sem que nada, em princípio, proíba prosseguir esse movimento sem solução
de continuidade. É principalmente na narrativa que se articulam as lembranças no
plural e a memória no singular, a diferenciação e a continuidade. (RICOEUR, 2007,
p. 107 e 108)

Unindo as interpretações dos dois teóricos, pode-se perceber que a memória individual
e a coletiva fazem parte de um mesmo emaranhado, ainda que se apresentem em contextos
distintos. Ambas estão interligadas e podem ser modificadas pelas influências que o indivíduo
sofre ao estar em um grupo. “[...] Diríamos que cada memória individual é um ponto de vista
sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda segundo o lugar que ali ocupo e que
esse mesmo lugar muda segundo as relações que mantenho com outros ambientes.”
(HALBWACHS, 2003, p. 69). Diante disso, fica claro que à medida que o indivíduo participa
e sofre interferência de diferentes grupos, o mesmo se beneficia disso para construir suas
memórias, o que ocasiona sua participação nos dois tipos de memória, a individual e coletiva.
Admitamos, contudo que as lembranças pudessem se organizar de duas maneiras:
tanto se agrupando em torno de uma determinada pessoa, que as vê de seu ponto de
vista, como se distribuindo dentro de uma sociedade grande ou pequena, da qual são
imagens parciais. Portanto, existiriam memórias individuais e, por assim dizer,
memórias coletivas. Em outras palavras, o indivíduo participa de dois tipos de
memórias. Não obstante, conforme participa de uma ou de outra, ele adotaria duas
atitudes muito diferentes e até opostas. Por um lado, suas lembranças teriam lugar no
contexto de sua personalidade ou de sua vida pessoal – mas as mesmas que lhes são
comuns com outras só seriam vistas por ele apenas no aspecto que o interessa
enquanto se distingue dos outros. Por outro lado, em certos momentos, ele seria capaz
de se comportar simplesmente como membro de um grupo que contribui para evocar
e manter lembranças impessoais, na medida em que estas interessam ao grupo.
(HALBWACHS, 2003, p. 71)

Ricoeur (2007) ainda completa:


Do papel do testemunho dos outros na recordação da lembrança passa-se
gradativamente aos papéis que temos enquanto membros de um grupo; elas exigem
de nós um deslocamento de ponto de vista do qual somos eminentemente capazes.
Temos, assim, acesso a acontecimentos reconstruídos para nós por outros que não nós.

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Portanto é por seu lugar num conjunto que os outros se definem. A sala de aula da
escola é, nesse aspecto, um lugar privilegiado de deslocamento de pontos de vista da
memória. De modo geral, todo grupo atribui lugares. É desses que se guarda ou se
forma memória. (RICOEUR, 2007, p. 131)

Todavia, para recordar um fato é preciso que o indivíduo esteja em harmonia com os
pensamentos comuns do grupo, conforme pontua Halbwachs (2003). Assim, as lembranças
devem ser construídas e reconhecidas por seus membros. Neste sentido, Charles Blondel apud
Ricouer pontua que “a memória individual seria uma condição necessária e suficiente para a
recordação e o reconhecimento da lembrança.” (BLODEL apud RICOEUR, 2007, p. 131).
Todo esse aparato teórico a respeito dos desdobramentos da aplicação e compreensão
dos conceitos de memória individual e memória coletiva, embora possa embasar múltiplas
discussões, será de importância primordial para fundamentar a análise a qual nos propomos
neste trabalho. Afinal, para narrar o ofício das parteiras da Amazônia, Eliane Brum utilizou as
memórias comuns de um grupo de mulheres com o “dom de pegar menino”4 demonstrando
assim a relação desta prática com uma ancestralidade matriarcal e memorialística característica
daquela região.
Segundo Luiz Gonzaga Motta (2013), a narrativa é uma forma de contar estórias.
“Quando narramos algo, estamos nos produzindo e nos constituindo, construindo nossa moral,
nossas leis, nossos costumes, nossos valores morais e políticos, nossas crenças e religiões,
nossos mitos pessoais e coletivos, nossas instituições”. (MOTTA, 2013, p.19). Motta ainda
completa ao dizer que "a vida é uma teia de narrativas nas quais estamos enredados. "(MOTTA,
2013, p.17). Walter Benjamin (1975) discute o ato de narrar, pensando numa tradição em
cadeia, em que as experiências fazem com que possamos transmitir os acontecimentos de
geração em geração. Ele reforça esse repasse de experiências sob o viés das reminiscências ao
longo do tempo e acredita que a eternidade temporal está nas memórias e lembranças. Para ele,
“a memória é a mais épica de todas as faculdades” e a “narrativa de reminiscência”, é uma
forma de reescrever as tradições de uma comunidade. (BENJAMIM, 1975).

Eliane Brum e o “O olho da rua- uma repórter em busca da literatura da vida real”
A jornalista, escritora, documentarista e colunista do periódico El País5 Eliane Brum
coleciona mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem, entre eles o Prêmio

4
O "dom de pegar menino" na linguagem das parteiras da Amazônica equivale ao ofício dos profissionais da
saúde que ajudam a mulher a dar a luz na hora do parto.
5
De propriedade do Grupo Prisa, o periódico EL PAÍS é jornal mais lido em espanhol no mundo. Em outubro do
ano passado (2017) o jornal alcançou um recorde absoluto ao computar 100 milhões de leitores mensais, segundo
dados internos. Desse número, metade dos usuários vem de fora da Espanha, especialmente da América Latina.

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Esso, Vladimir Herzog, Ayrton Senna, Líbero Badaró, Sociedade Interamericana de Imprensa,
Rei de Espanha, Troféu Especial de Imprensa ONU, entre outros.Brum escreveu seis livros:
“Coluna Prestes, o avesso da lenda” (1994), “A Vida que Ninguém Vê” (2007), “O Olho da
Rua” (2008/2017), “A Menina Quebrada” (2013), “Meus desacontecimentos” (2014) e o
romance “Uma Duas” (2011). Além disso, também co-dirigiu os documentários “Uma História
Severina” (2005), “Gretchen Filme Estrada” (2010) e “Laerte-se” (2017). A jornalista assina
também a direção do documentário independente “Eu +1: uma jornada de saúde mental na
Amazônia”, do Projeto Clínica de Cuidado/Refugiados de Belo Monte. Uma referência entre
os profissionais de Comunicação, como disse Caco Barcellos no prefácio do livro O Olho da
Rua (2017), Brum “renasce e se recria a cada reportagem”. (BARCELLOS in BRUM, 2017,
p.9). A autora consegue através da linguagem revelar ao público um olhar sensível que enxerga
grandeza na pequenez de gestos simples que passam despercebidos. “Escrever como ato físico,
“carnal”, com obstinada busca pela precisão das palavras, distribuídas como se fossem compor
uma melodia, com ritmo e sentimento. Criar texto por música. Mas, o melhor deste livro
transcende a beleza das frases, o rigor do método, o valor dos fundamentos”, declara Barcellos.
(in BRUM, 2017, p.9). Suas obras são “imunes ao tempo” e por isso, são feitas para serem lidas
“por qualquer pessoa que goste de histórias tão reais que parecem inventadas”, especialmente
para alunos de jornalismo que tenham dúvidas sobre o ofício da profissão. (Barcellos in BRUM,
2017, p.14).
Diante de tamanha experiência e de tantos "desacontecimentos" narrados pela jornalista
ao longo de sua jornada em percorrer os vários “brasis” que compõem o mapa nacional,
defende-se a escolha da jornalista, por se tratar de uma profissional premiada e reconhecida por
seus trabalhos. Suas reportagens dão voz a pessoas simples, que nunca tiveram suas histórias
contadas, e que viram protagonistas.
Michael Pollak, em seu ensaio sobre "Memória, Esquecimento, Silêncio" (1989), fala
sobre a "memória subterrânea", aquela em que os sujeitos marginalizados são colocados de fora
da história oficial." Ao privilegiar a análise dos excluídos, dos marginalizados e das minorias,
a história oral ressaltou a importância de memórias subterrâneas que, como parte integrante das

Tal resultado coloca o jornal entre os 10 veículos mais lidos do mundo na internet, liderado pelo chinês Xinhua,
em seguida o The New York Times e em 6º o The Washington em Post . Presento no Brasil desde novembro de
2013, o periódico se transformou numa referência jornalística no país. Pelo indicador de audiência digital
ComScore, o EL PAÍS Brasil somou 6,5 milhões de leitores no mês de setembro, um crescimento de 24% em
relação a maio de 2017, e de 72% em comparação com setembro do ano retrasado. O número de páginas vistas
chegou a 23 milhões em setembro, uma alta de 22% em relação ao ano de 2016. A edição brasileira está entre os
seis jornais mais lidos do Brasil. O periódico possui redações nas cidades de Madri, Barcelona, México,
Washington e São Paulo.

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culturas minoritárias e dominadas, se opõem à "memória oficial, no caso da memória nacional."


(POLLAK, 1989, p. 4)
Em mais de duas décadas de profissão, Brum constrói suas reportagens a partir das
histórias contadas por seus entrevistados, acrescidas de suas impressões e experiências
adquiridas pela profissão de “escutadeira”, como ela gosta de descrever a si mesma. São
narrativas e cenários reais transformados em retratos da literatura da vida cotidiana.
No livro “O olho da rua- uma repórter em busca da literatura da vida real” lançado em
2008 pela Editora Globo, a jornalista traz dez histórias e ao final de cada uma delas revela os
bastidores de cada reportagem, contando seus dilemas, medos e até mesmo os seus erros,
vividos no processo do fazer jornalístico. Em 2017, a obra teve sua segunda edição ampliada e
publicada pela Editora Arquipélago. O novo exemplar conta com um texto inédito, um posfácio
intitulado “Os limites da palavra” que fala de dois desacontecimentos recentes que levaram
Brum a fazer a uma profunda investigação sobre o ofício de repórter.
Assim, diante desta obra a ser analisada no presente artigo, Brum sintetiza seu olhar
diante da vida: “Todo o meu olhar sobre o mundo é mediado por um amor desmedido pelo
infinito absurdo da realidade” (BRUM, 2008, p. 13). Ela destaca a relação entre jornalismo e
realidade ao revelar que acredita na reportagem como documento da história contemporânea,
como vida contada, como testemunho. “Exerço o jornalismo sentindo em cada vértebra o peso
da responsabilidade de registrar a história do presente, a história em movimento.” (BRUM,
2017, p. 14).

Assim, Brum é conhecida pelo estilo literário com que narra suas histórias. Em suas
reportagens explora uma linguagem que ultrapassa os limites das palavras. Linguagem esta que
utiliza como instrumento a escuta, que se faz com todos os sentidos. Logo, ela consegue traduzir
sons, cores, texturas, silêncios, hesitações, olhares e gestos em palavras que sejam capazes de
descrever e acessar o mundo contado por seus entrevistados. Para fazer isso, Brum revela que
é preciso abrir mão de ideias e pré(conceitos) para acessar a realidade das outras pessoas, ou
seja, “atravessar a larga rua de si mesmo.” (BRUM, 2017, 364)
Além disso, a busca fiel pela transcrição exata da palavra dita é uma característica da
jornalista, que afirma que transcreve para o papel exatamente aquilo que sua personagem disse.
Para ela, apesar de a palavra escrita ser um instrumento de dominação utilizado para transmitir
o conhecimento oral às pessoas, é preciso ter ainda mais cuidado e respeito pelas palavras ditas
e não ditas.
A transmissão do conhecimento, do seu ser e estar no mundo, é predominantemente
oral. A mim, como repórter, cabia escutá-los com todos os sentidos e buscar traduzi-

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los em palavras escritas – sem traí-los. Para isso, uso dois gravadores, transcrevo cada
palavra pronunciada e assinalo hesitações e silêncios, cubro os bloquinhos de
observações sobre o que não é palavra dita. Mas na trajetória destes homens e
mulheres da floresta, tanto quanto nas periferias e favelas das grandes cidades
brasileiras, a escrita aparece como aquilo que foi e ainda é: um instrumento de
dominação dos opressores. (BRUM, 2017, p. 365)

Disto isso, a prosa literária que dá início à obra, e que, será objeto deste artigo, narra
como acontecem os nascimentos nos confins da Amazônia, pelas mãos das parteiras da floresta.

A reportagem “A floresta das parteiras”


A primeira reportagem do livro e também objeto de estudo deste artigo foi publicada
em 27 de março de 2000. Trata-se da primeira reportagem de Eliane Brum publicada na revista
Época, após passar 11 anos no jornal Zero Hora, de Porto Alegre.
A matéria tem como pano de fundo a região norte do país, o estado amazônico do
Amapá. No interior da floresta Amazônica, Brum releva como as crianças vêm ao mundo em
um lugar onde tudo é difícil e as distâncias para se chegar são enormes. Graças às experiências
e aos conhecimentos adquiridos em décadas e pelo isolamento geográfico de seu berço, é que
essas mulheres desenvolveram técnicas e mecanismos próprios para exercerem seu ofício de
maneira tão simples e natural. “Para as parteiras da floresta [...] é mais fácil compreender que
um boto irrompe do igarapé para fecundar moça donzela do que aceitar que uma mulher marque
dia e hora para arrancar o filho à força”. (BRUM, 2017, p. 19)
Assim, das memórias adquiridas e das experiências vividas, as parteiras construíram
uma identidade própria capaz de sobreviver ao tempo e aos avanços tecnológicos da medicina.
“Muitas desconhecem as letras do alfabeto, mas leem a mata, a água e o céu. Emergiram dos
confins de outras mulheres com o dom de pegar menino. Sabedoria que não se aprende, não se
ensina, nem mesmo se explica. Acontece, apenas.” (BRUM, 2017, p. 19)
Esta prática antiga, reproduzida por estas amapaenses, só é realizável se levarmos em
conta o que propõe Halbwachs, ao afirmar que não é possível recordar, encontrar ou perpetuar
uma lembrança sem que o indivíduo considere o contexto social a que está submetido, neste
caso as práticas culturais típicas da região amazônica. Ao lembrar-se de algo, o indivíduo
percebe que é sempre parte de uma coletividade, já que nunca estará sozinho. Neste sentido, a
atualização de uma memória funciona a partir de dados ou noções comuns, isto é, vestígios que
estejam em nosso espírito e também nos dos outros, haja vista que estão sempre passando destes
para aquele e vice-versa. Este movimento apenas será possível “se tiverem feito parte e
continuarem fazendo parte de uma mesma sociedade, de um mesmo grupo. Somente assim

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podemos compreender que uma lembrança seja ao mesmo tempo reconhecida e reconstruída”
(HALBWACHS, 2003, p. 39).
A maioria dos habitantes do Amapá, que atualmente totaliza pouco mais de meio
milhão, veio ao mundo pelas mãos de 700 parteiras da floresta. “Encarapitadas em barcos ou
tateando caminhos com os pés, lá estão a índia Dorica, a cabocla Jovelina e a quilombola
Rossilda. São guias de uma viagem por mistérios transportados de geração para geração em
palavras que se inscrevem no mundo sem se escrever.” (BRUM, 2017, p. 19). Trata-se de
mulheres, em sua maioria, negras, índias e pobres, que mesmo não sendo letradas revelam um
grande conhecimento adquirido ao longo da vida. A partir do testemunho dessas mulheres,
Brum constata que são “analfabetos que fazem literatura pela boca”. (BRUM, 2017, p. 19).
Homens e mulheres que descansam a enxada na pedra e pousam a vara de pescar na
canoa para contar sua vida numa prosa poética que nasceu de uma experiência singular
de mundo. Contam generosamente, às vezes sem perceber que criam universos no seu
contar. (BRUM, 2017, p. 365)

Assim, por meio de uma linguagem rica e única, a parteira mais antiga do Amapá, a
Karipuna Maria dos Santos Maciel, a Dorica, de 96 anos, foi responsável por desembarcar no
mundo mais de dois mil índios. Ela revela à jornalista que o dom de trazer crianças ao mundo
é um dom que nasce com a pessoa, mas ela não gosta de possuir esse dom, no entanto, não pode
se negar a ele. Obviamente, o dom narrado pela simplicidade de Dorica não é inato ou orgânico
como ela acredita. Trata-se daquilo que evoca Le Goff (2003), ao destacar a importância
desempenhada pela memória coletiva para a evolução das sociedades, bem como seu papel na
construção de identidades. Citando Leroi- Gourhan, o autor assinala que “a tradição é
biologicamente tão indispensável à espécie humana como o condicionamento genético o é às
sociedades de insetos” (LEROI- GOURHAN, 1965 apud LE GOFF, 2003, p. 469). Assim, o
talento das parteiras do Amapá é também uma construção, amparada em séculos de rotina e
sobrevivência de práticas que dão sentido e longevidade à comunidade a que pertencem.
São muitas as vozes resgatadas por Brum. Jovelina Costa dos Santos, aos 77 anos, é a
parteira mais famosa de Ponto Grossa do Piriri, a cem quilômetros de Macapá. Risonha e de
uma “simplicidade complexa”, ela sorri, porque “apenas decidiu não ficar triste” (BRUM, 2017,
p.24). Estreou na profissão ainda menina. Marie Labonté, que ajudou a própria mãe a dar a luz
também ainda jovem, quando tinha apenas 15 anos. Maria Rosalina, que partejou a própria
criança, mesclando as dores do parto e o ofício que lhe foi atribuído. Nazira Narciso, que, além
das filhas, foi responsável também pelo parto da neta e, muito possivelmente, daquelas que
ainda estão por vir. Certamente, outras tantas histórias ficaram por narrar.

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No entanto, fica claro pelos exemplos recolhidos e selecionados pela jornalista gaúcha
que, mais que mero hábito aleatório ou atividade fortuita, a prática do partejo entre as mulheres
do interior do Amapá traduz-se como uma cultura, amparada e perpetuada pela memória, que
faz delas “guardiãs de um mistério, a elas transmitido pelas mães e avós numa corrente que se
perde nos séculos” (BRUM, 2017, p. 24). É interessante observar que a força da tradição
memorialística dessa comunidade, reforçada pelo seu isolamento geográfico, transpõe inclusive
as diferentes crenças religiosas destas mulheres. Católicas, pentecostais, espíritas ou
batuqueiras, as parteiras amazônicas se reúnem em torno de um mesmo objetivo: trazer ao
mundo os filhos da floresta. Na verdade, ao realizarem seu ofício, como coloca Eliane Brum,
elas mesmas consumam o milagre, subvertendo e resistindo às crenças que são externas à
tradição, evidenciando deste modo “que cada mulher tem um pouco de deusa.” (BRUM, 2017,
p.24)
De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2016, dos partos
realizados no Brasil, 55.51% foram feitos por cesarianas. No entanto, desde 1985, a OMS
considera a taxa ideal de cesarianas, entre 10% e 15% do total de partos realizados. Levando
em consideração a realidade brasileira, o órgão sugere que o ideal estaria entre 25% e 30%.
Índice bem acima do praticado atualmente. Essa realidade contrasta fortemente com o contexto
apresentando nas páginas deste trabalho.
Enquanto, no estado do Amapá, graças ao isolamento geográfico de seu berço, parteiras
mantêm seu ofício de trazerem ao mundo as crianças de maneira natural,respeitando o tempo
da mãe e do bebê, nas grandes cidades há uma cultura de “cortar” a mulher para que o filho
venha ao mundo. Hábito comum entre os médicos que determinam dia e hora para o
nascimento. Atitude esta que representa para a parteira Jovelina um assombro na vida. “O que
a mulherada sofre na maternidade é um golpe, minha irmã”, apavora-se. “Aqui, se o menino se
acomodou de mau jeito, a gente vai puxando, até ele se ajeitar, botar a cabeça no lugar. Aí não
precisa cortar. Médico, coitado, não sabe dobrar menino.” (BRUM, 2017, p. 24). Dorica, outra
parteira, completa: “Pegar menino é esperar o tempo de nascer”, ensina. “Os médicos da cidade
não sabem e, porque não sabem, cortam a mulher.”(BRUM, 2017, p. 21)
Essa é a realidade de grande parte da população brasileira. Enquanto para as parteiras
da floresta o nascimento é uma festa, uma celebração da vida que precisa ser respeitada, na
cidade o ritual é marcado por intervenção cirúrgica e cheiro de hospital, como destaca a
jornalista. Não se respeita a dor da mãe e a hora do parto. Este procedimento mais rápido,
eficiente e lucrativo pode muitas vezes colocar em risco a saúde dos envolvidos.

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Considerações finais
A partir das memórias das parteiras, Eliane Brum pode recontar esse ofício que
ultrapassa o tempo e se perpetua na história. Através dos relatos pode se compreender que a
vivência de cada parteira se interligava à outra e assim, sucessivamente. Nenhuma memória era
isolada, todas faziam parte de um mesmo enredo, uma mesma teia de narrativas que se
entrecruzavam. Assim, ao fazerem parte de um grupo, as mulheres da floresta recontavam suas
lembranças e suas memórias construídas há várias décadas, exercendo a atividade de partejar.
O teórico Halbwachs afirma que“ [...] um número enorme de lembranças reapareça porque os
outros nos fazem recordá-las; também se há de convir que, mesmo não estando esses outros
materialmente presentes, se pode falar de memória coletiva quando evocamos um fato que
tivesse um lugar na vida de nosso grupo e que víamos” (HALBWACHS, 2003, p. 41).
Sendo assim, nossas memórias são constituídas pelas experiências que adquirimos ao
participar de inúmeros grupos e pela influência que deles sofremos. “A sucessão de lembranças,
mesmo as mais pessoais, sempre se explica pelas mudanças que se produzem em nossas
relações com os diversos ambientes coletivos, ou seja, em definitivo, pelas transformações
desses ambientes, cada um tomando em separado, e em seu conjunto.” (HALBWACHS, 2003,
p. 69).
O presente artigo não visa esgotar todas as lacunas a serem exploradas a partir do
conceito de memória individual e coletiva, mas apresentar um recorte de como as memórias são
construídas e de que forma podem ser recontadas a partir do relato dos envolvidos. Assim, o
que se conclui é que nenhuma memória é somente individual, mas possui também um aspecto
coletivo que muda de acordo com o lugar que o sujeito ocupa e com o interesse dos envolvidos.
Além disso, é preciso ter cuidado, uma vez que o poder de contar a história está nas mãos dos
detentores das memórias. São eles que determinaram como a história deve ser escrita.

Referências
BENJAMIM, Walter. O narrador: observações acerca da obra de Nikolai Leskov. Tradução
de Sérgio Paulo Rouanet. In:______. Coleção Os Pensadores: textos escolhidos, vol. XLVIII.
São Paulo: Abril, 1975. P. 63-81.

BRUM, Eliane. O olho da rua. Uma repórter em busca da literatura da vida real. 2ª Ed rev. e ampl.
– Porto Alegre: Arquipelágo Editorial, 2017.

ESCOSTEGUY, Ana Carolina D. Uma introdução aos estudos culturais. Revista FAMECOS, Porto
Alegre, nº 9, dezembro 1998.

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HALBWACHES, Maurice. A memória coletiva. 2ª edição. Tradução de Beatriz Sidou. São Paulo:
Centauro, 2006.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Trad. Bernardo Leitão. 5ª Ed – Campinas, São Paulo: Editora
da Unicamp, 2003.

MOTTA, Luiz Gonzaga. Análise crítica da narrativa. Brasília: Universidade de Brasília, 2013.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François. – Campinas, SP:
Editora da Unicamp, 2007.

VEYNE, Paul. Como se escreve a história; Foucault revoluciona a história. Trad. de Alda Baltar e
Maria Auxiliadora Kneipp. 4ª Ed, reimpressão – Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982, 1992,
1995, 1998, 2008.

Sites acessados

Biografia.
Disponível em: <http://elianebrum.com/biografia/> Acesso em: 20 de janeiro de 2018

Brasil. Número de cesarianas cai pela primeira vez desde 2010.


Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/saude/2017/03/numero-de-cesarianas-cai-pela-primeira-vez-
desde-2010>Acesso em: 20 de janeiro de 2018

EL PAÍS. EL PAÍS chega aos 100 milhões de leitores mensais.


Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/11/04/actualidad/1509821900_271947.html>
Acesso em: 20 de janeiro de 2018

G1. Cesarianas têm leve recuo no Brasil, mostram dados do ministério.


Disponível em: <https://g1.globo.com/bemestar/noticia/cesarianas-tem-leve-recuo-no-brasil-mostram-
dados-do-ministerio.ghtml> Acesso em: 20 de janeiro de 2018

UNA-SUS. Universidade aberta do SUS.


Disponível em: <https://www.unasus.gov.br/noticia/declaracao-da-oms-sobre-taxas-de-
cesareas>Acesso em: 20 de janeiro de 2018

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A QUESTÃO DA HISTORICIDADE NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DOS


DOSSIÊS DA REVISTA CULT1

Janderson Silva2
Universidade Federal de Ouro Preto

Resumo

O artigo pretende discutir as potencialidades textuais presentes nos dossiês da Revista Cult, a
partir da recente definição do próprio periódico sobre o material. Desse modo, visa-se
compreender de que maneira a revista pretende cumprir com as definições que propõe, a partir
de uma perspectiva histórica dos processos comunicacionais que, ao dar atenção aos
atravessamentos temporais existentes nos produtos de mídia, possibilitaria maior
aprofundamento do conteúdo veiculado. Propõe-se ainda uma reflexão sobre o que na
atualidade entende-se por intelectual e como na revista estas figuras seriam responsáveis por
atuar como um “termômetro” para certas continuidades ou rupturas das configurações sociais
na duração, o que recai em nosso terceiro eixo de análise, sobre o sentido de relevância que o
periódico pretenderia conferir aos temas abordados. Com isso, esperamos compreender melhor
a dimensão dos acionamentos lançados pela revista e como esses figuram no tempo.

Palavras-chave: Revista Cult; Dossiês; Historicidade; Processos Comunicacionais;


Intelectuais.

THE QUESTION OF HISTORICITY IN THE PROCESS OF CONSTRUCTION OF


DOSSIERS OF THE CULT MAGAZINE

Abstract

The article intends to discuss the textual potentialities present in the dossiers of Revista Cult,
from the recent definition of the magazine itself about the material. In this way, the aim is to
understand how the magazine intends to comply with the definitions it proposes, from a
historical perspective of the communication processes that, by paying attention to the temporal
crossings in the media products, would allow a deeper analysis of the content conveyed. It is
also proposed to reflect on what today is understood as intellectual and how in the magazine
these figures would be responsible for acting as a "thermometer" for certain continuities or
ruptures of social configurations in duration, which falls on our third axis of analysis, about the
meaning of relevance that the magazine would want to confer on the topics addressed. With
this, we hope to understand better the dimension of the drives launched by the magazine and
how these appear in time.

Keywords: Cult Magazine; Dossiers; Historicity; Communication Processes; Intellectuals.

1
Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Linguagens e Narrativas, do XI Encontro dos Programas de Pós-
Graduação em Comunicação Social de Minas Gerais, 18 e 19 de outubro de 2018.
2
Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), membro do Grupo de Pesquisa
em Interações e Mídias Sociais (GIRO) e bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES). E-mail: silva2janderson@gmail.com.

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Introdução
Recentemente a Revista Cult disponibilizou em seu site todos os dossiês publicados em
suas edições, desde a primeira, evidenciando certa importância ao material. Segundo descrição
da própria revista, "o dossiê é um conjunto de textos aprofundados e escritos por especialistas
sobre assuntos e pensadores relevantes”. A marcação das palavras “aprofundados”,
“especialistas" e “relevantes” não foi feita deliberadamente por nós e sim pela própria revista,
em anúncio publicado no Facebook sobre o início das vendas dos dossiês, em versão digital,
em sua loja online3. Destacar estas três características foi o princípio revelador de algumas
questões que acabaram por dar corpo a este artigo já que, tão logo, o que se pretende, é analisar
de maneira sucinta se os dossiês de fato servem à sua descrição. Para tanto, algumas hipóteses
foram levantadas.
A primeira delas diz respeito ao modo como a Cult trabalha na produção dos textos
ditos aprofundados em seus dossiês: como poderia a revista conferir esta característica aos
conteúdos publicados? De que modo a publicação poderia alcançar esta marca? A proposta
para análise dessa característica que aqui lançamos consiste no que Gomes, Leal e Ribeiro
(2017) adotam por “imaginação histórica”, perspectiva que pressupõe apreender o mundo
enquanto universo histórico desvelando as relações e as lógicas temporais que o atravessam.
Partindo da proposição dos autores, poderíamos refletir sobre o universo da comunicação, mais
precisamente as produções de Cult, ao considerarmos um regime de historicidade em suas
abordagens que acabariam por explicitar o presente enquanto organismo vivo (RICOEUR,
2010) e a inserção de suas produções na duração, conferindo certo grau de aprofundamento às
suas abordagens. Para tanto, algumas figuras de historicidade seriam necessárias enquanto
categorias analíticas cujo detalhamento abordaremos posteriormente.
A segunda característica a qual vamos nos ater corresponde à questão dos especialistas.
Segundo alguns dicionários, a palavra especialista corresponde a um indivíduo que se
especializou em determinado ramo do conhecimento do qual geralmente decorre o exercício de
sua prática profissional: 1) que se dedica com grande interesse e profundidade a determinado
campo do saber e/ou a determinada ocupação profissional e/ou 2) que possui conhecimento ou
prática especial em determinado assunto, conhecedor, perito, profissional. A etimologia da
palavra especialista vem da junção da palavra especial mais o sufixo -ista (como no francês
spécialiste), cuja primeira diz de algo próprio, peculiar, privado; que tem propósito ou aplicação
particular. Já o sufixo -ista serve para designar o praticante de uma atividade ou o adepto de um

3
Os dossiês Cult estão disponíveis para compra desde junho de 2018 no site da Loja Cult (www.cultloja.com.br).

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movimento ideológico. Tais concepções acabam por gerar pistas para nossa análise, pois, reflete
algumas de nossas inquietações: como compreender a questão do especialista na
contemporaneidade? Como a figura dos especialistas é acionada em Cult?
Ocorre que, em nosso entendimento, há a necessidade de um deslocamento conceitual
(GIDDENS, 1991; BAUMAN, 2010) para se pensar a questão do especialista. Parece-nos que
esta figura opera em Cult numa uma outra chave, orquestrando mais que uma explanação
ideológica de seus afazeres particulares ou simples adesão a qualquer ideologia. Acreditamos
que a atuação dos especialistas em Cult está mais aproximadamente à perspectiva definida por
Antonio Gramsci (apud SEMERARO, 2006) sobre “intelectuais orgânicos”, que diz estes, são
organismos vivos que atuam de maneira a construir laços fortes de emancipação social a partir
da própria observação e participação na dinâmica social na qual estão inseridos/das. Partindo
dessa proposta, nos questionamos a respeito da representação do intelectual na sociedade
(SAID, 2005), pois, a que serve esta figura?
Por último, ainda em diálogo com nossa segunda questão, buscamos compreender o
processo de valorização dos especialistas/intelectuais - ainda tendo a definição dada pela revista
como pano de fundo, e das temáticas/assuntos abordadas por Cult no que ela decide qualificar
como relevantes. O que para Cult seria suficientemente relevante a ponto de ganhar espaço na
revista, sobretudo, resultar na produção de um dossiê? Qual resposta social a revista pretenderia
dar ao propor certas discussões e acionar determinados nomes? Não seria ingênuo imaginar que
várias destas escolhas partam da própria linha editorial da revista ou de sugestões de pautas
externas, mas o que buscamos investigar neste caso são os acionamentos próprios de um dado
momento e lugar específicos no curso temporal que tais pautas fariam emergir.
O material escolhido, de maneira deliberada para análise, visto que a pesquisa ainda se
encontra em construção, foi o dossiê 152 de novembro de 2010, que aborda o tema
Contracultura. O conjunto de autores que compõem o dossiê Contracultura são o professor de
filosofia da Universidade Estadual de Maringá (UEM) Robespierre de Oliveira; o poeta,
tradutor, compositor e autor do livro “Vozes e visões: Panorama da arte e cultura norte-
americanas hoje” (Iluminuras, 1996) Rodrigo Garcia Lopes; Claudio Willer, à época, pós-
doutorando em Letras pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de “Geração Beat”(L&M
Pocket, 2009); o jornalista Roberto Muggiati, que atuou na BBC de Londres nos anos 1960 e é
autor do livro “Rock: o grito e o mito” (Vozes, 1981) e Wellington Andrade, professor da
Faculdade Casper Líbero, cuja tese de doutoramento abordava os tema contracultura e teatro
brasileiro.

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Ao final, esperamos compreender melhor a maneira como a revista opera na produção


dos dossiês, se enquanto suplemento de ideias, local de apreensão de novas abordagens e
interpretações do mundo; local de apresentação ou resumo de obras, ancorada na atuação dos
especialistas/intelectuais acionados pela revista na produção de seus dossiês. Também
esperamos compreender como a revista configura e opera as distintas relações temporais pelas
quais seu produto é atravessado e como isso inside nas respostas que ela pretende fornecer aos
seus leitores por meio de sua produção.

Uma abordagem histórica para se pensar os dossiês


Como bem lembra Gomes, Leal e Ribeiro (2017) faz-se necessário nas pesquisas em
comunicação considerar a dimensão processual dos fenômenos comunicacionais. Tal
perspectiva estaria preocupada em desvelar as camadas temporais nos quais os fenômenos da
comunicação estariam atravessados, para além da dimensão instantânea do acontecimento, ao
considerar a incidência de outros “estratos do tempo” (KOSELLECK, 2014) no trânsito do
tempo presente. Esta questão vem de modo a evidenciar que há na contemporaneidade um
regime de apologia do instante, cujo resultado seria uma sensação de aceleramento do tempo
presente, de um encurtamento do espaço de experiência e de uma busca incessante pelo novo,
tendo a mídia, sobretudo o jornalismo, como responsáveis por agravar este quadro.
Evidencia-se, desse modo, uma alteração na maneira como nós configuramos o tempo,
em que o futuro toma o lugar do passado na determinação causal das coisas. Na contramão
dessa perspectiva, os autores propõem o desenvolvimento de uma “imaginação histórica”
(GOMES.; LEAL.; RIBEIRO, 2017) perspectiva que seria capaz de “descortinar as relações
temporais, a forma como há nos fenômenos que observamos uma lógica temporal, uma
apropriação e uma inserção no tempo” (p. 41). O conceito de “imaginação histórica” tem como
pano de fundo o que Ricoeur (2010) chama de “consciência histórica”, abordagem que segundo
o filósofo francês, seria da capacidade de estender o futuro para além de si mesmo oferecendo
condições de vivência do passado em um movimento de “presentificação" dos tempos idos, por
meio de uma ação humana alicerçada no espaço de experiência resultando em um movimento
reflexivo, que seria a capacidade de atuar sobre esse passado acionando-o e reconstruindo-o.
Tais acionamentos, ainda conforme formulação de Ricoeur, incidiria não só no presente vivo
da ação, mas também nas perspectivas de futuro não visto como dado.
A adoção de uma abordagem como a proposta pelos autores, portanto, possibilitaria aos
sujeitos perceberem as continuidades e as rupturas desse presente vivo nas circunstâncias das
relações sociais, culturais e políticas, a partir das ações humanas percebidas principalmente por

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meio dos produtos de mídia e cuja atenção, segundo indicam os autores, ainda não é
devidamente dada pelos estudiosos. Propõem-se, para efetivação dessas propostas, algumas
categorias pensadas e articuladas a conceitos da teoria da História que se orquestrados,
poderiam dar conta de explicar a complexa relação temporal dos processos midiáticos, já que,
dar-se conta das diferenças das circunstâncias na duração é nos situar na história: contar do
nosso existir no tempo, narrar o nosso estar no mundo; e é por meio da narrativa que podemos
tornar essas experiências alcançáveis. “Pressupor a questão da narrativa nos estudos em
comunicação é discutir a temporalidade e as convenções narrativas em regimes de historicidade
precisos” (GOMES; LEAL; RIBEIRO, 2017, p. 42).
Pressupõe a partir desta constatação a adoção de um “olhar narrativizante” (LEAL,
2006) capaz de compreender a complexidade dos vínculos sociais, pois, narrar é dar corpo aos
acontecimentos, por meio de acionamentos da memória, das experiências das pessoas ou do
Outro; é recuperar do espaço de experiência novas possibilidades de vislumbrar o presente, de
criar novos mundos possíveis, novas interpretações do real, recriar nossa realidade sempre
mutável, evidenciando distintas maneiras de compreensão do mundo. É compreender nos
vestígios inscritos no presente as diferentes conformações e vigências do social que servem de
matéria prima para a análise dos processos comunicacionais.
Para tanto, faz-se necessário o auxilio de categorias analíticas ou “figuras de
historicidade” (GOMES.; LEAL.; RIBEIRO, 2017, p. 46) que são “imagens conceituais
capazes, simultaneamente, de fazer ver diferentes problemas temporais nos fenômenos
midiáticos (uma dimensão reflexiva) e sugerir caminhos e operadores para sua apreensão (uma
dimensão operacional)”. Os autores propõe cinco figuras sendo 1) o tempo histórico 2) o
testemunho, 3) a memória 4) a experiência e 5) o gênero, a fim de responder aos desafios
teórico-metodológicos que a complexa relação temporal dos processos e produtos midiáticos
faz emergir.
É por meio desta abordagem que acreditamos ser possível conferir a devida
profundidade aos produtos midiáticos, no caso do objeto em análise, um produto jornalístico,
por possibilitar o acionamento de memórias, experiências, pois, fariam refletir o leitor da revista
com perspectivas para além do aqui e agora, evidenciando a processualidade que envolvem as
narrativas e os textos publicados nos dossiês de Cult.

Especialista ou intelectual? Acionamentos


A segunda questão do nosso percurso se detêm sobre a questão do especialista na
atualidade. Anthony Giddens (1991, p. 35) ressalta a valorização dos especialistas (ou experts)

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nas sociedades modernas a partir do que chamou de “sistemas peritos”, ou seja “sistemas de
excelência técnica ou competência profissional que organizam grandes áreas do ambiente
material e social em que vivemos hoje”. Estes sistemas peritos dependeriam da confiança e da
capacidade de abstração dos sujeitos para confiar em algo que não se pode conferir por si
mesmo. Porém, o que propomos neste estudo, é uma estratégia de trabalho intelectual que venha
de modo a romper com uma visão moderna de especialista.
A visão tipicamente moderna do mundo é a de uma totalidade em essência e
ordenada; a presença de um padrão desigual de distribuição de probabilidades
possibilita um tipo de explicação dos fatos que - se correta - é, ao mesmo tempo,
uma ferramenta de predição e (se os recursos exigidos estiverem disponíveis) de
controle. Esse controle (“domínio da natureza”, “planejamento” ou “desenho” da
sociedade) é quase de imediato associado à ação de ordenamento, compreendida
como a manipulação de probabilidades (tornando alguns eventos mais prováveis,
outros menos prováveis). Sua efetividade depende da adequação do
conhecimento da ordem “natural”. Tal conhecimento adequado é, em principio,
alcançável. (BAUMAN, 2010, p. 18)

Bauman (2010) propõe uma ruptura, uma distinção pós-moderna de intelectual, refere-
se, emerge de acordo com um número ilimitado de modelos de ordenamento do mundo gerado
pela autonomia das práticas individuais e coletivas. Tal proposição desloca a questão do
especialista para um entendimento enquanto comunidade de significados, para uma maior
relatividade do conhecimento, não depositando-o somente no exercício da perícia, explicitando
sua não totalização enquanto organismo ordenador do mundo, mas transferindo e reconhecendo
aos indivíduos sua capacidade de pensar; a possibilidade de não aceitar as coisa como dadas,
pois são capazes de distinguir e hierarquizar suas escolhas e de imaginar o mundo e a si
próprios.
Antonio Gramsci (apud SEMERARO, 2006, p. 377) distingue o intelectual
“tradicional”, mais próximo à perspectiva de Giddens, pois estes
ficavam empalhados dentro de um mundo antiquado, permaneciam fechados em
abstratos exercícios cerebrais, eruditos e enciclopédicos até, mas alheios às
questões centrais da própria história. Fora do próprio tempo, os intelectuais
tradicionais consideravam-se independentes acima das classes e das vicissitudes
do mundo, cultivavam uma aura de superioridade com seu saber livresco. A sua
“neutralidade” e o seu distanciamento, na verdade, os tornavam incapazes de
compreender o conjunto de sistemas da produção e das outras hegemônicas, onde
devia o jogo decisivo do poder econômico e político. Com isso, acabavam sendo
excluídos não apenas dos avanços da ciência, mas também das transformações
em curso na própria vida real.

Diante às três compreensões, uma possível distinção entre especialistas e intelectuais


poderia consistir-se a partir das diferentes maneiras de atuação no mundo. O intelectual,
diferentemente do especialista, não agiria unicamente a partir de uma demanda social, mas é
parte integrante dessa sociedade, estando atendo as alterações e as clivagens do social. Este é o

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ponto de partida para nossa abordagem: os especialistas, atuantes unicamente dentro de uma
lógica capitalista, no exercer de suas funções, enquanto agentes de sua profissão difere dos
intelectuais que estariam mais preocupados por democratizar o poder; na expansão dos direitos
civis; no componente reflexivo dos sujeitos; em reconhecer o funcionamento da sociedade,
desvelando os mecanismos de dominação encobertos pela ideologia dominante e os
enfrentamentos das classes na disputa pelo poder, pois, seria um modo de compreender em
profundidade os problemas humanos e de seus tempos, observando dentro e fora.
Diz Semeraro (2016, p. 376) “Gramsci valoriza com singularidade o saber popular,
defende a socialização do conhecimento e recria a função dos intelectuais, conectando-os às
lutas políticas dos ‘subalternos’”. Para o filósofo italiano, o campo de ação do intelectual
orgânico não está na sua independência, no seu agir sozinho no mundo, mas no conjunto das
relações sociais. Continua:
Deixando de considerá-lo de maneira abstrata, avulsa como casta separada dos
outros, Gramsci apresenta os intelectuais intimamente entrelaçados nas relações
sociais, pertencentes a uma classe, a um grupo social vinculado a um determinado
modo de produção. Toda a aglutinação em torno de um processo econômico
precisa dos seus intelectuais para se apresentar também com um projeto
específico de sociedade. (SEMERARO, 2006, p. 376-377)

O intelectual orgânico, na formulação de Gramsci, seriam os intelectuais que “fazem


parte do organismo vivo e em expansão” (apud SEMERARO, 2006, p. 377). Tal concepção vai
ao encontro com a formulação de Said (2005, p. 34) ao dizer que “os intelectuais pertencem ao
seu tempo”, pois, diz do comportamento do intelectual na sociedade que se vê ativo,
responsável pelo curso e alterações na história e suas narrativas, ocupante de diferentes posições
sociais no mundo, no trabalho, nas organizações políticas e em grupos, ampliando seus aspecto
crítico.
São orgânicos os intelectuais que, além de especialistas na sua profissão, que os
vincula profundamente ao modo de produção do seu tempo, elaboram uma
concepção ético-política que os habilita a exercer funções culturais, educativas e
organizavas para assegurar a hegemonia social e do domínio da classe que
representam. (GRAMSCI, 1975, p. 1518 apud SEMERARO, 2006, p. 378)

Said (2005, p. 31) por sua vez indica que “o objeto da atividade intelectual é promover
a liberdade humana e o conhecimento”. Apostamos em ambas perspectivas, uma vez que é
observável em Cult uma tentativa de expansão entre o conhecimento cientifico, da filosofia, da
psicanálise, da política, educação, entre tantas outras áreas. Se estamos de acordo com tal
formulação do sujeito intelectual como construtor, organizador, educador permanente, temos
mais uma vez, o intelectual orgânico em Gramsci, como responsável por realizar a interconexão

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entre mudos: do trabalho à ciência, passando pelas humanidades e formulações de visões sobre
as políticas.
No fim das contas, o que interessa é o intelectual enquanto figura representativa
- alguém que visivelmente representa um certo ponto de vista, e alguém que
articula representações a um público, apesar de todo tipo de barreiras. Meu
argumento é que os intelectuais são indivíduos com vocação para a arte de
representar, seja escrevendo, falando, ensinando ou aparecendo na televisão. e
essa vocação é importante na medida em que é reconhecível publicamente e
envolve, ao mesmo tempo, compromisso e risco, ousadia e vulnerabilidade.
(SAID, 2005, p. 27)

E continua (SAID, 2005, p. 33):


As representações do intelectual, suas articulações por uma causa ou ideia diante
da sociedade, não têm como intenção básica fortalecer o ego ou exaltar uma
posição social. Tampouco têm como principal objetivo servir a burocracias
poderosas e patrões generosos. As representações intelectuais são a atividade em
si, dependentes de um estado de consciência que é cética, comprometida e
incansavelmente devota à investigação racional e ao juízo moral; e isto expõe o
individuo e coloca-o em risco. Saber como usar bem a língua e saber quanto
intervir por meio dela são suas características essenciais da ação intelectual.

O agenciamento desses intelectuais em Cult se dá de maneira tímida, ao nosso ver, pois,


apesar de reivindicar uma prática, na descrição dos dossiês, no decorrer da leitura isso não nos
aparece de maneira clara. Figuram professores, filósofos, poetas, jornalistas que também são
autores de livros, dramaturgos, tal como são os autores do dossiê em questão. A proposição de
Said (2005) nos dá gancho para pensarmos a última de nossas questões que diz respeito à
relevância, tanto dada aos assuntos quanto aos pensadores que figuram nas páginas e nos textos
do dossiês da revista.
São arrebanhados [os intelectuais] pelas políticas de representação para as
sociedades massificadas, materializadas pela indústria da informação ou dos
meios de comunicação, e capaz de lhes resistir apenas contestando as imagens,
narrativas oficiais, justificações de poder que os meios de comunicação, cada vez
mais poderosos, fazem circular - e não só os meios de comunicação, mas também
correntes de pensamento que mantêm o status quo e transmitem uma perspectiva
aceitável e autorizada sobre a atualidade -, oferecendo o que Mills chama de
desmascaramento ou versões alternativas, nas quais tentam dizer a verdade da
melhor forma possível. (SAID, 2005, p. 34-35)

A perspectiva de Said (2005) nos faz ver uma movimentação entre indivíduos
intelectuais e as novas formas de comunicação contemporânea, de representação e atuação do
próprio intelectual que conjuntamente figurariam como termômetro do tempo ao pautar e captar
as demandas sociais de maneira impar. Ao estarem autorizados a oferecerem perspectivas sobre
a atualidade, a figura do intelectual em confluência com um veículo de mídia, por exemplo, dá
peso e seus argumentos que ganham relevância, podendo confabular com a sociedade em sua
tomada de consciência sobre determinados assuntos. Explanadas as proposições teóricas,

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partimos para análise que tem ancoradas nas figuras de historicidade nossa abordagem
metodológica.

Dossiê contracultura: abordagem histórica e intelectualizada


Gomes, Leal e Ribeiro (2017) propõem para a análise cinco figuras de historicidade
sendo 1) o tempo histórico 2) o testemunho, 3) a memória 4) experiência e 5) o gênero.
Para responder aos desafios teórico-metodológicos que a complexa relação
temporal presente nos processos e produtos midiáticos impõem, é essencial levar
em conta as “figuras de historicidade”, ou seja, algumas imagens conceituais
capaz, simultaneamente, de fazer ver diferentes problemas temporais nos
fenômenos midiáticos (uma dimensão reflexiva) e sugerir caminhos operadores
para sua apreensão (uma dimensão operacional). Essas “figuras de historicidade”,
portanto, têm uma dupla face: correspondem a núcleos de investigação teórica e
também servem como propulsores para a investigação metodológica. (GOMES.;
LEAL.; RIBEIRO, 2017, p. 46)

A primeira dessas figuras, o tempo histórico diz respeito a uma maneira de representar
a passagem dos tempos: de um passado não dado como morto, mas passível de ser acionado e
reconfigurado; de um presente para além do aqui e agora e de possíveis perspectivas de futuro,
tudo por meio uma observação na alteração do curso das coisas que afetam essa duração, das
diferentes porosidades que as compõe e sua relação com os agentes sofredores dessas
mudanças.
A segunda figura, o testemunho toca no modo como experimentamos o social numa
relação entre mídia e público. É por meio do testemunho que conseguimos perceber as
diferentes encenações da dimensão social da vida. Há no mundo diversas maneiras de
experiencia-lo, e o testemunho não foge a regra ocupando hoje ocupa privilegiado na
representação dos acontecimentos, como forma de apreender da realidade contada, mas não
enquanto mero meio de transmissão, mas de maneira figurativa. O testemunho é como damos
“cara” aos acontecimentos. A terceira das figuras diz respeito à memória, vista como
acionamento das experiência dos tempos idos, apoia-se na subjetividade para dar sentido à
(re)construção das vivências que se efetiva na ação presente. Segundo Gomes, Leal e Ribeiro
(2017) temos hoje os jornalistas e a mídia como importantes atores/agentes de
acionamento/construção de memórias, o que conferiria importante lugar ao acionamento das
memórias individual e coletivas.
A quarta figura, a experiência diz respeito a como no tempo as relações de natureza
histórica e estética são configuradas. Podemos entender a experiência enquanto meio onde se
percebe as relações históricas entre os sujeitos. Nos é caro, neste caso, nos estudos de
comunicação, discutir os limites e as potências que a experiência dos sujeitos evoca na

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construção/reconstrução das dinâmicas e clivagens sociais. A última das figuras, o gênero deve
ser tratado enquanto categoria por meio do qual se orientam diversos produtos midiáticos e sua
relação diante das práticas sociais atravessadas por diferentes temporalidades e estruturações
históricas, que auxilia na maneira de interpretar os contextos sociais, políticos e culturais
buscando classificá-los. É uma maneira de organizar as reverberações
políticas/culturais/culturais, seus discursos construídos, perpetuados e suas rupturas na duração,
servindo de eixo norteador para a sociedade. Nossa analise, portanto, se ancorará na apreensão
destas cinco figuras para análise, a começar no dossiê Contracultura.
“A CULT de novembro dedica seu Dossiê ao tema [contracultura]. E o faz explorando
os caminhos da filosofia, da literatura, da música e do teatro” (p. 52). O dossiê narra eventos
ocorridos há 50 anos atrás, utilizando de análises de obras de importantes figuras da
contracultura; apresenta relatos de intelectuais que se debruçam/debruçaram em uma reflexão
sobre a temática, seja para a produção do dossiê, seja em outras instâncias - institucionais, a
universidade, por exemplo, ou um veículo jornalístico; apresenta resumos ou síntese de estudos
realizados pelos autores, etc. A começar, o texto de Robespierre contextualiza os
acontecimentos da década de 1960 e destaca a importância do filósofo Herbert Marcuse para
além dos ambientes acadêmicos, como um pensador/intelectual da contracultura. O texto diz de
questões que vigoram até hoje nas sociedades: combate contra opressão econômica e política;
o debate da questão sexual, do racismo, a emancipação da mulher, os direitos humanos, a
liberdade de expressão, entre outras questões (p. 55). É um contexto 1960, transcrito em 2010,
à época da publicação, e que encontra hoje fortes lastros na atualidade, que assusta e nos alerta
por sua urgência e vigor.
O acionamento do intelectual Marcuse constata-se na sua existência e atuação para além
do ambiente acadêmico:
Herbert Marcuse tornou-se conhecido de um público para além do meio
acadêmico, por ser um defensor do movimento de libertação em todas as suas
formas: o movimento feminista, o movimento ecológico, o movimento operário,
o movimento estudantil, o movimento negro, a guerra de libertação das colônias,
a guerrilha latino-americana, o combate ao stalinismo e a luta contra o
imperialismo, entre outros. (CULT, ed. 152; 2010, p. 55)

Marcuse se encaixa na descrição de intelectual assinalada por Said (2005, p. 35) que
propõe:
No fundo, o intelectual, no sentido que dou à palavra, não é nem um pacificador
nem um criador de consensos, mas alguém que empenha todo o seu ser no senso
crítico, na recusa em aceitar fórmulas fáceis ou clichês prontos, ou confirmações
afáveis, sempre tão conciliadoras sobre o que poderosos ou convencionais têm a
dizer e sobre o que fazem. Não apenas relutando de modo passivo, mas desejando
ativamente dizer isso em público.

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Não só a postura política de Marcuse foi admirada, como também suas posições teóricas.
“Baseava-se não em suas teorias, mas nas próprias necessidades vitais dela” (CULT, ed. 152;
2010, p. 55). Não há, no entanto, no texto, explanação ou detalhamentos de uma teoria em si,
mas sua aplicabilidade enquanto pensamento e atuação (de Marcuse) que diz do decorrer de um
tempo, em uma atualidade que, inclusive, vigora: daí podemos conferir sua relevância. “O
protesto dos jovens continuará porque é uma necessidade biológica”, mais que isso, continuará
porque é uma necessidade necessidade político-histórica. Ainda no primeiro texto,
identificamos um clamor pelas memórias de uma época; do social de uma época; que encontra
ecos no presente, no fervor de transformação da realidade existente. O retorno da utopia como
algo possível, conceito caro à geração contracultura.
Enquanto uma atuação ao que tomamos por intelectual, o texto Robespierre não serve
como um resumo da obra de Marcuse, mas como uma introdução ao pensamento e aos
engajamentos políticos, sociais e ideológicos do filósofo francês. Aciona-se, por meio da
experiência de Robespierre, que é professor de filosofia, leitor de Marcuse, uma abertura ao
conhecimento, não desprovido de crítica ou de contextualizações, de forma mais clara, de
imediato profunda, pois vale-se da simplicidade para evocar a transparência da intensão.
O segundo texto, de Rodrigo Garcia Lopes, analisa a poesia de Allen Ginsberg, um dos
expoentes da geração beat, evidenciando como o poeta pertenceu a uma tradição de inovadores
no plano formal e libertários na existência; uma poesia que ia na contramão dos padrões
poéticos pois clamavam tanto por liberdade quanto à vida em grau máximo. “Podemos dizer
que Allen Ginsberg é um dos poetas centrais de nosso tempo e talvez o último representante do
poeta público.” (p. 59). Enquanto uma abordagem intelectual, Ginsberg, um poeta público, se
aproxima bastante da concepção formulada a respeito do intelectual orgânico, pois, como
aponta o texto (p. 59):
Ginsberg foi um ativista pela mais diversas causas libertárias, imerso
corajosamente, nas questões de seu tempo (a censura, a barbárie da guerra, o
preconceito sexual e racial, a liberdade de expressão) […] Homossexual, judeu,
drogado, outsider, Ginsberg foi um catalisador ou porta-voz de anseios de
oposição ou resistência cultural, bem como de padrões de comportamento e
decoro poético.

Lopes, em seu texto, diz das experiências de Ginsberg, de sua capacidade em mostrar que
o que o poeta fazia não estava restrito a ele, mas que somente existia e haveria função pelo
outro. “A poesia não como algo restrito a poucos iniciados e sim aberta e democrática, imersa
nas questões de seu tempo” (p. 60). Ginsberg nos é apresentado biograficamente: onde nasceu,
onde se formou, por onde viajou, os prêmios que ganhou; os lugares para além da poesia que

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figurou, suas memórias; sua existência, pois, narrada se torna viva, sobretudo quando evocadas
mesmo na experiência do próprio autor do texto que em 1990 realizou uma entrevista com o
poeta acionando a chave de seu testemunho, leitor de Ginsberg e o próprio Ginsberg, enquanto
ícone vivo (mais uma vez) no texto corrido. De modo geral, Lopes faz um percurso pela obra
de Ginsberg, fala de suas ações e experiências, uma especie de “resumatório”, diríamos, a
respeito do poeta e sua relação com a contracultura em detalhes que aproximam esta figura à
nossa, ponto de partida para um conhecimento mais aprofundado de sua obra.
Claudio Willer nos apresenta a obra de Jack Kerouac e tenta desvendar a mística da
marginalidade cultivada pelo escritor norte-americano em um movimento de recuperar ou
reencontrar algo do passado, verdadeiro, visando o futuro (reflexivo) como na (re)construção
de uma utopia. Seus escritos demonstram certa experiência de Willer com a obra de Kerouac,
enquanto leitor e intelectual/acadêmico que, à época da publicação, realizava seu doutoramento
em literatura pela Universidade de São Paulo (USP). Assim, como os demais textos
apresentados até agora, este também funciona de modo a apresentar a vida e obra de outro
intelectual, Kerouac, por intermédio da experiência de Willer. Desse modo, nós é apresentado
a vida e as virtudes de Kerouac; suas influências, feitos e vivências.
Roberto Muggiati, por sua vez, faz um panorama das manifestações musicais dos anos
1960, apresentando o rock como o som da fúria, do sentimento de milhões que achavam
chegada a hora de uma mudança radical. Fala das influências de Robert Allen Zimmerman, ou
Bob Dylan, da força e da efervescência da música do tempo de suas próprias experiências -
Mugiatti, à época dos acontecimentos narrados (1960), trabalhou na BBC de Londres, explicita
sua relação com as memórias e experiências e que acabam por se configurar de maneiras
parecidas com as demais narrativas; também é um especialista, tomando lugar de intelectual no
assunto, tendo publicado um livro “Rock: o Grito e o Mito” (Vozes, 1981).
Por último, Welington Andrade trata do tema da contracultura e o teatro brasileiro na
geração de 1969. A abordagem de Andrade toma a história não como lugar de fixação dos
acontecimentos, mas reconhece seu potencial de mudança. Argumenta como o espírito de um
tempo influenciou a dramaturgia, as manifestações culturais e o modo de vida no Brasil de
68/69. O que, ironicamente, são movimentações clamadas na atualidade - censura, “a crise da
palavra”; os valores da família burguesa, muito em voga hoje; a evolução sexual, a crítica ao
mundo do saber; loucuras, drogas que perduram hoje, diz de um ritmo, de uma duração, pela
qual ainda somos atravessados.

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Conclusões preliminares
Com o presente estudo pudemos observar que os textos publicados no material analisado
dossiê Contracultura (edição 152, novembro de 2010) acionam diferentes entendimentos. O
primeiro deles diz do próprio tempo da análise. Por se constituir em um material publicado há
quase 10 anos atrás, mas que guarda vestígios de uma atualidade estendida. As memórias e as
experiências acionadas pelos intelectuais que atuaram na construção do dossiê ainda são caras
ao movimento contracultural, o que assusta, pois, precisam ser discutidas sobretudo hoje.
É evidente que a construção do dossiê pode vir a figurar enquanto suplemento de ideias,
local de apreensão de novas abordagens e interpretações do mundo; local de apresentação ou
resumo de obras, ancorada na atuação dos intelectuais acionados pela revista na produção de
seus dossiês. Trata-se de um conteúdo publicado por uma revista mensal de informação, cuja
configuração é esperada para o meio, sobretudo para um veículo como Cult, que preza em
editorial pela transmissão clara de ideias, pela democratização do saber por meio de um tipo
diferenciado de jornalismo cultural. O que chama bastante atenção, no caso específico, é a
importância dada pelo periódico a produção sistemática de dossiês e os acionamentos próprios
da revista, atuação não observável nos demais veículos da categoria. Outro importante ponto a
ser levado em consideração diz respeito às distintas relações temporais pelas quais seu produto
é atravessado.
Não bastaria para Cult realizar apenas um apanhado de informações na revista, mas sim
fazer perceber em como elas operam, suas vigências e ramificações - já que as diferentes
temáticas perpassam diferentes campos do saber e conhecer; e nos diferentes tempos com o
qual a revista lida, tratando de obras e autores de outros tempos e outras épocas, mas que detêm
de suas reverberações, lastros, rastros, das melhores e das piores de suas constatações e em
como, hoje, podemos lidar com seu perdurar no tempo. Ao nosso ver, Cult parece querer
responder as demandas do social com base na alimentação do conhecimento de seus leitores e
pares, tanto na produção como na reprodução e circulação dessas informações que muito se
deve a atuação dos aqui chamados intelectuais, acionados enquanto mediadores de ideias.

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Referências

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Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora Unesp, 1991.

KOSELLECK, Reinhart. Estrato do tempo: estudos sobre história. 1. ed. Rio de Janeiro: Contraponto:
PUC-Rio, 2014.

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mídia, na rua: narrativas do cotidiano. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

Revista CULT, ed. 152. Dossiê Contracultura. São Paulo: Editora Bregantini, novembro de 2010.

RIBEIRO, Ana Paula Goulart.; LEAL, Bruno Souza.; GOMES, Itania. A historicidade dos processos
comunicacionais: elementos para uma abordagem. In: MUSSE, Christina Ferraz.; NICOLAU, Marcos.;
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RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa: tomo III. São Paulo: WMF: Martins Fontes, 2010.

SAID, Edward W. Representações do intelectual: as conferências de Reith de 1993. São Paulo:


Companhia das Letras, 2005.

SAMERARO, Giovanni. Intelectuais “orgânicos” em tempos de pós-modernidade. In: Cad. Cedes.


Campinas, vol. 26, n. 70, p. 373-391. set./dez. 2006. Acesso em: 25/06/2018. Disponível em:
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OS TENSIONAMENTOS DA GLOBALIZAÇÃO NAS ASSIMETRIAS


INTERCULTURAIS ENTRE AMÉRICA LATINA E ESTADOS UNIDOS
RELATIVAS À IMIGRAÇÃO1

Lívia Alessandra Campos Monteiro2


Universidade Federal de Ouro Preto

Resumo
O artigo busca discorrer como a globalização potencializa fluxos assimétricos de
comunicação oriundas dos Estados Unidos, tensionado culturas e identidades latino-
americanas e suas concepções sobre a imigração. Para a discussão, selecionamos três casos: a
construção do muro entre Estados Unidos e México, o encarceramento de crianças na
fronteira dos Estados Unidos e o episódio de xenofobia com refugiados venezuelanos no
Norte do Brasil. A metodologia da pesquisa é feita a partir do modelo praxiológico da
comunicação, de França (2003). Fazemos discussões sobre a economia política da cultura, de
Kellner (2001), a globalização imaginada, de Canclini (2003) os interstícios e hibridismos
culturais de Bhabha (1998) e as modernidades alternativas propostas por Huyssen (2014).
Concluímos que a alteridade é central para pensar nas identidades globalizadas, não sendo as
diferenças superáveis, devendo esta ficar sempre atrelada a subjetividade dos sujeitos, seus
afetos e experiências.

Palavras-chave: América Latina; imigração; assimetrias interculturais; globalização;


hibridação cultural.

GLOBALIZATION TENSION'S IN INTERCULTURAL ASSIMETRIES BETWEEN


LATIN AMERICA AND UNITED STADES OF AMERICA ABOUT IMMIGRATION

Abstract
The article seeks to discuss how globalization enhances asymmetric flows of communication
from the United States, stressing Latin American cultures and identities and their conceptions
about immigration. For the discussion, we selected three cases: the construction of the wall
between the United States and Mexico, the imprisonment of children on the border of the
United States, and the episode of xenophobia with Venezuelan refugees in northern Brazil.
The research methodology is based on the praxiological model of communication, from
França (2003). We discuss the political economy of culture, from Kellner (2001), imagined
globalization, from Canclini (2003), Bhabha's interstices and cultural hybridity (1998) and
alternative modernities proposed by Huyssen (2014). We conclude that alterity is central to
think about globalized identities, and that differences are not overcomig, and alterity and
differences should always be tied to subjects’ subjectivity, their affections and experiences.

Keywords: Latin America; immigration; intercultural asymmetries; globalization; cultural


hybridization.

1
Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho 1 Linguagens e Narrativas, do XI Encontro dos Programas de Pós-
Graduação em Comunicação Social de Minas Gerais, 18 e 19 de outubro de 2018.
2
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Ouro Preto,
liviaacm@gmail.com.

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Introdução
Muito além dos fluxos colonizadores, as culturas latino-americanas são continuamente
afetadas pelas trocas comunicativas e imigratórias com os Estados Unidos. Partindo das
possibilidades de interações estabelecidas pela globalização e da modernidade, o advento da
internet viabilizou a partilha ainda maior de informações, notícias, fotos, vídeos oriundos de
todos os locais com acesso à internet. Essa partilha trouxe consigo um grande intercâmbio
informacional entre locais considerados desenvolvidos e os considerados não desenvolvidos.
Encontramos o tempo e nos mais diversos locais matérias, filmes, fotos e informações que
falam de como a vida é supostamente mais justa e honesta nos países considerados
desenvolvidos, em um eterno contraste local com os Estados Unidos.
Paralelo a isso, as crises econômicas e a busca por condições ideais de trabalho, saúde
e sobrevivência levam milhões de cidadãos latino-americanos a deixarem seus países e
imigrarem. Não faltam exemplos de notícias veiculadas pela mídia sobre as crises migratórias
que acontecem em todo o mundo e, considerando o continente americano, tem seu ápice na
busca por uma vida melhor nos Estados Unidos. Para essa discussão, selecionamos três casos
recentes que tiveram grande alcance nas mídias digitais e nos quais vemos a disseminação do
ódio contra imigrantes. O primeiro exemplo é a situação em que o presidente estadunidense
Donald Trump evidencia a construção de um muro entre o México e os Estados Unidos. O
segundo, relativo às atrocidades que levaram crianças a serem presas e separadas de seus pais
na fronteira estadunidense com o México perante a justificativa de uma política migratória de
tolerância zero. Em terceiro lugar, em uma perspectiva nacional, tivemos em agosto o
episódio em que brasileiros comemoravam a volta de venezuelanos para a fronteira enquanto
cantavam o hino nacional, em meio à crise de refugiados venezuelanos na região Norte do
Brasil. Esses episódios demonstram a onda de ódio ao redor do desejo ou da necessidade de
imigração, ficando ainda mais evidentes em meio às mídias sociais, onde discursos opinativos
são disseminados.
Considerando esses fluxos informacionais na comunicação globalizada, esse artigo
pretende responder como a mídia globalizada reitera as assimetrias interculturais entre os
Estados Unidos e a América Latina em relação à imigração. Investigamos esse fenômeno a
partir das discussões sobre o modelo praxiológico da comunicação, de França (2003), a
economia política da cultura, de Kellner (2001), a globalização imaginada, de Canclini (2003)
os interstícios e hibridismos culturais de Bhabha (1998) e as modernidades alternativas
propostas por Huyssen (2014). Aqui, partimos do pressuposto que no cenário da globalização,

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a comunicação tem grande papel na produção e reprodução simbólica em relação à imigração,


reiterando assimetrias entre as trocas e gerando tensões e conflitos culturais.

A constituição de mundo através da comunicação


Na comunicação globalizada, devemos pensar em como as possibilidades de trocas entre
sujeitos pelas mídias constituem a vida social. Para tal, partimos do modelo praxiológico da
comunicação, paradigma que leva em consideração que a comunicação é “tomada como lugar
de constituição dos fenômenos sociais, atividade organizante da subjetividade dos homens e
da objetividade do mundo.” (FRANÇA, 2003, p. 43). Se pensarmos de tal forma, podemos
dizer que o mundo como o conhecemos, as premissas e características que identificamos a
respeito dos diversos países, são todas formuladas em sociedade a partir da nossa ação prática
em relação aos meios de comunicação. Nesta categoria de compreensão, as relações
midiáticas e comunicacionais inerentes à globalização são entendidas como momentos ativos
para a elaboração de sentido sobre o mundo, fazendo parte da forma como os sujeitos
compreendem, julgam, caracterizam e, assim, estabelecem suas formas de vida. A quantidade
e frequência de conteúdos midiáticos e comunicacionais que recebemos diariamente sobre os
Estados Unidos, por exemplo, demonstram uma assimetria perante o mesmo tipo de conteúdo
que recebemos sobre países da América Latina. Em nossa ação prática, lemos notícias sobre a
imigração mexicana nos Estados Unidos sob o ponto de vista estadunidense com maior
frequência do que sobre o ponto de vista mexicano, de forma que construímos mais sentido
sobre o primeiro país e nossas concepções sobre ambos afetem nossas formas de vida de
maneiras distintas.
As relações midiáticas possuem também papel na construção de uma ideia ao redor da
possibilidade de imigrar. As interações midiáticas que emergem na globalização e afetam as
lógicas da vida social através de redes sociais, blogs, vídeos, sites informativos e outros
incidiriam na produção de sentidos que ocorrem entre os sujeitos sobre todos os aspectos da
vida social, incluindo sua opinião sobre mudar para outro país ou sobre aquelas pessoas que o
fazem. Quando pensamos nos fluxos migratórios que ocorrem atualmente dentro do
continente americano, levamos em consideração que a experiência possibilitada pela mídia
globalizada possibilita determinadas elaborações de sentido sobre o mundo, sobre si e sobre
outras culturas.
Pensando nessa produção de sentidos e na reflexão sobre a ação organizante dentro da
situação comunicacional, o modelo praxiológico da comunicação possibilita pensar na
construção social da realidade. A práxis nos leva a tensionar de forma articulada nesta

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metodologia a ação reflexiva dos sujeitos no mundo. Pensamos então na comunicação como
espaço para ação e intervenção, que funciona sempre de forma articulada para a constituição
do social. Somente através desse terreno, que partilha embates e lutas, é que seria possível a
articulação do mundo, tornando-o partilhado. Assim, segundo França (2003), a comunicação
estaria inserida na ação e experiência humana. Seu papel seria constituir a subjetividade e
intersubjetividade dos sujeitos, assim como a objetividade do mundo comum e partilhado. O
atual momento político brasileiro, por exemplo, alinhado a comunicação globalizada sobre a
crise enfrentada pela Venezuela, levam certos grupos sociais a criarem uma leitura
depreciativa do social venezuelano de forma que temam que o Brasil se torne “uma
Venezuela”. Neste constante confronto com a diferença, e sempre levando em conta o
coletivo, é que os sujeitos identificam sua identidade, de forma a estar sempre articulado com
o outro mesmo que não haja uma presença física. Com isso, consideramos que os sujeitos só
podem então ser constituídos na relação com o outro e no espaço da diferença. (FRANÇA,
2003, p. 40).
A forma pela qual tal constituição de mundo se dá é pela linguagem, que seria a maneira
pela qual teríamos a oportunidade de compreender essa ação humana e criar nossa
subjetividade e espaço de alteridade. Considerada bem mais do que um meio, a linguagem
para o modelo praxiológico da comunicação é a formadora do pensamento e não
simplesmente uma ferramenta. A linguagem permite então articular, processar e organizar
nossas leituras do social, mobilizando nossas interações. Nossa experiência no mundo é
sempre perpassada e possibilitada pelo âmbito social que envolve a linguagem, levando a
ideia de França (2003) sobre a narrativa ser um “mundo de possíveis”, nos quais limitamos
nossas possibilidades de julgamento e compreensão do mundo. Assim, dentro deste mundo de
possíveis, há tanto a possibilidade de constituir socialmente ou não uma análise depreciativa
da situação política Venezuela, podendo sê-la ou não um temor para a política brasileira. A
relação entre comunicação e vida social, por sua vez, remete exatamente a forma como na
comunicação é que se constituem as ideias sobre o mundo. Uma informação não seria dada,
mas dependeria da situação comunicativa, sendo permanentemente construída no social
quando este age no mundo. Tal princípio nos leva a pensar também, no caso deste artigo,
como a notícia de crianças imigrantes presas e separadas de seus pais na fronteira dos Estados
Unidos podem gerar sentidos distintos para sujeitos latino-americanos do que podem gerar em
outros grupos sociais, como aos Estados Unidos, que recebem esses imigrantes. Podemos
pensar, portanto, que o lugar da informação e de suas significações dependem sempre das
relações comunicativas e sociais dos sujeitos.

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Pensando através das perspectivas anteriores, podemos “apreender o social pelo viés das
dinâmicas comunicativas que o constituem.” (FRANÇA, 2003, p. 43) Com isso, o modelo
praxiológico supera a lógica de estudos comunicacionais anteriores que previam que a
transmissão de informação era ligada a produção-recepção, nas quais o sujeito seria
responsável pela recepção passiva de informações dadas pela televisão, rádio ou jornal. Indo
contra tal lógica, a comunicação mostra-se como ação reflexiva, em que a apreensão do
mundo é disputada de forma subjetiva, ganhando potência e se constituindo de forma
articulada:
A compreensão da comunicação enquanto atividade organizante, de construção
(modelagem) de um mundo comum (de pontos de vista partilhados) é o viés que nos
permite apreender em que medida as interações comunicativas, instaurando um
espaço público (uma relação de troca e partilhamento simbólico entre diferentes
sujeitos), são lugares que constroem esses sujeitos — e os constroem num mundo.
(FRANÇA, 2003, p. 51)

Essas interações comunicativas que instauram o espaço público, para a construção do


mundo, vivenciam duplas afetações de forma que todas as interações sejam mutuamente
afetadas. Isso porque as interações preveem a reflexividade, que seria intrínseca aos atos
comunicacionais e que afirmam as reduplicações ligadas o tempo todo às relações
comunicativas. O modelo praxiológico da comunicação evidencia assim a duplicidade de
todos os enunciados, de forma que estes se constituam apenas dentro das interações. O hino
nacional brasileiro, cantado pelos brasileiros enquanto observavam refugiados venezuelanos
retornarem à fronteira remete a um sentido — assim como a bandeira e camisa do Brasil têm
tomado nos últimos 5 anos — e ao lugar social de grupos conservadores, diferenciando-se de
um sentido possível que teria diante de um jogo de futebol em que a seleção brasileira
jogasse. Os discursos mantem em si de forma constante uma duplicidade, dependendo de sua
relação com determinado lugar e grupo para definir seus sentidos e modalidades de posição. O
conteúdo explícito da interação inclui sempre um metaconteúdo que é alimentado, reafirmado
e articulado pelo lugar social dos participantes. Levando em conta a reflexividade, o contexto
social mostra-se como o direcionador da interpretação das interações, que possuem diversas
possibilidades de acordo com as possíveis interações. De uma perspectiva, a construção de um
muro entre o México e Estados Unidos pode ser vista como um pretexto para garantir maior
proteção e segurança aos cidadãos estadunidenses, enquanto pode ser também julgada como
um ato que aumenta a rigidez da política anti-imigração. Nenhum discurso, portanto, possui
um significado previsto, mas todos possuem um espectro de opções moduladas e controladas
dentro do social, de forma com que a cultura direcione um leque de opções sobre a produção

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de sentido. Discursos apenas passam a fazer sentido dentro de uma relação, de forma que
enunciados semelhantes possam gerar significados divergentes a diferentes grupos sociais:
É dessa convivência paradoxal que decorre o processo de auto-instituição da relação
social: a reflexividade inerente da troca social consiste no fato de que ela age sobre
si mesma, procedendo a uma dupla determinação: por um lado, reduz a
indeterminação do conteúdo proposicional, definindo seu modo de emprego ou seu
sentido; por outro, especifica uma relação interpessoal, atualizando um dos jogos de
papeis socialmente instituídos. (FRANÇA, 2003, p. 49)

Os direcionamentos das interpretações, as modalidades de posição dos sujeitos e os


espectros de sentido sobre uma fala dizem da reflexividade de segundo grau, que então
sempre ligadas ao contexto social, a mensagem e a meta mensagem. Como relações
reflexivas, as interações produzem sentido em suas trocas e permitem a compreensão do
mundo como tal a partir de estruturas geradoras do real. Quando pensamos na crise da
imigração venezuelana no Norte do Brasil, podemos questionar como o posicionamento feito
pelos brasileiros, que rejeitaram os venezuelanos, reflete um conjunto de conteúdos
comunicacionais sobre a imigração, vista muitas vezes a partir dos fluxos comunicacionais
que majoritariamente espelham o ponto de vista dos países europeus e Estados Unidos que
recebem um alto fluxo de imigrantes, ou também a partir das relações experienciadas pelos
moradores de Roraima com os venezuelanos desde que a taxa de imigração aumentou na
fronteira. A experiência humana em relação as imigrações são marcadas de diferentes formas,
muito pautada pelo lugar social dos quais os sujeitos se originam e pelos fluxos
comunicacionais que recebem. Tomando a narrativa como campo possível e articulando-a a
partir da ação organizante dos sujeitos sobre o mundo, é possível pensar que o sentido na
comunicação é apreendido ao mesmo tempo que atualiza e reforça nosso local nas relações.
Sendo o sentido ligado a relações e posicionamentos dos sujeitos, apenas considerando o
ambiente e o contexto em que a informação recebe relevância podemos falar sobre a
constituição do mundo pela comunicação.
E a partir do momento em que levamos em conta o contexto e ambiente no processo
comunicativo para constituição de mundo, não podemos deixar de nos situar no sistema
econômico e social no qual estamos inseridos e como este tensiona nossas interações
comunicacionais. O sistema capitalista reestrutura as noções de tempo, trabalho e lazer,
constitui nossas formas de consumo, estruturas e controles sociais. Além disso, ele também
implica nas possibilidades de trocas comunicativas e tangencia nossa relação com os meios na
sociedade, de forma que a “a mídia se transformou em força dominante na cultura, na
socialização, na política e na vida social.” (KELLNER, 2001, p. 26). Atentando-se a essas

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forças que tocam a vida social, mídia e cultura, Kellner (2001) promove uma rica discussão
sobre teorias dos estudos culturais e nos propõe pensar a economia política da cultura. O autor
problematiza a interconexão entre a cultura e a comunicação, gerando a cultura da mídia a
partir das instituições que a tangenciam.
Nesse sentido, o processo interativo permeado pelas tecnologias comunicacionais é
um exemplo de como a cultura da mídia é perpassada pelos interesses das grandes forças
ideológicas e econômicas. Uma forma de pensar essas forças é pautando como a indústria
cinematográfica mundial concentra suas produções em cenários como as cidades de Nova
Iorque ou Los Angeles, por exemplo. Transmitidas ao resto do mundo por filmes, tais
cenários são acompanhados de estereótipos e implicam em desejos sobre beleza, consumo,
relacionamento, moradia, trabalho, turismo e tantos outros assuntos. Cria-se, através de
produtos ficcionais, uma imagem idealizada dessas cidades e das vidas que as circundem, que
acabam por se tornar uma contrapartida a realidade latino-americana. O ideal estadunidense é
vendido diariamente não apenas pelo cinema, mas de forma diluída nos mais diversos espaços
de trocas comunicacionais de forma a exibir uma suposta segurança, qualidade de vida e
oportunidades profissionais que atraem milhões de latino-americanos. As lógicas da
comunicação não podem então ser pensadas em dissonância de sua vinculação ao poder e às
relações socioeconômicas. De forma a contribuir com a constituição de mundo, a economia
política da cultura incide nas interações como se fossem mercadorias que pudessem ser
adquiridas. Não poderíamos dizer, contudo, que exista um único eixo de potência que
buscaria a mercantilização da cultura, mas é possível considerar o esforço de diferentes
conglomerados com objetivos conflitantes para organizar a sociedade, sua subjetividade,
pautar tensões sociais, além de definir valores e objetivos sociais:
(...) a cultura veiculada pela mídia não pode ser simplesmente rejeitada como um
instrumento banal da ideologia dominante, mas deve ser interpretada e
contextualizada de modos diferentes dentro da matriz dos discursos e das forças
sociais concorrentes que a constituem (...) (KELLNER, 2001, p. 27)

Ao invés de rejeitar a cultura da mídia — o que não seria válido para os estudos
comunicacionais e nem possível já que estamos inseridos nessa realidade — devemos
problematizar a cultura da mídia a partir da identificação de como esta é ligada ao poder e
como incide em formas de dominação e resistência, lembrando que nem toda resistência é
progressista e pode apenas assegurar a sociedade já estabelecida. Na discussão desse artigo,
centrada nas concepções dissonantes sobre a imigração entre os Estados Unidos e a América
Latina, temos vários exemplos que nos fazem pensar na ligação da cultura ao poder. Embora
não diga exatamente sobre imigrações, mas sim sobre o ideal construído ao redor dos Estados

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Unidos, vimos no cenário brasileiro famílias que participaram em 2015 dos protestos a favor
do impeachment da até então presidente Dilma Rousseff com cartazes dizendo “era uma vez o
sonho Disney” em frente ao Congresso Nacional, ou “fora Dilma - quero ir pra Disney de
novo” 3. Os fluxos de conteúdo sobre “o sonho Disney” se originam em um centro de poder,
os Estados Unidos, implicando como força social e incidindo nos valores e objetivos sociais
reivindicados por esses brasileiros na manifestação.
Não podemos, contudo, pensar no exemplo do “sonho Disney” como se os sujeitos
recebessem de forma passiva os discursos da cultura da mídia e de um centro de poder como
os Estados Unidos, como se apenas aceitassem esses discursos. Precisamos pontuar a
recepção e representação dos sujeitos sobre esses fenômenos. Para isso, centramo-nos na
noção de Kellner sobre a materialização cultural, pensando em que ponto a cultura da mídia
desenvolve efeitos práticos na sociedade. “Portanto, situar os textos culturais em seu contexto
social implica traçar as articulações pelas quais as sociedades produzem cultura e o modo
como a cultura, por sua vez, conforma a sociedade por meio de sua influência sobre
indivíduos e grupos.” (KELLNER, 2011, p. 39). No caso desse ensaio, podemos pontuar
como os fluxos comunicacionais sobre a imigração oriundos dos supostos países
desenvolvidos, como Estados Unidos, geram assimetrias perante a América Latina, quando
crianças imigrantes são tratadas como se não fossem pessoas, mas como algo desumanizado
que estaria naquele espaço ilegalmente perante uma política xenofóbica e nacionalista.
Kellner (2011) afirma que a cultura veiculada pela mídia é a força dominante de socialização
e que ela produz modos de identificação e gera contradições. Se pensarmos na crise dos
refugiados venezuelanos no Brasil, podemos questionar as identificações e os efeitos práticos
gerados a partir do ódio a imigração que é disseminado pela mídia. Para pensar na mídia
como força dominante de socialização, devemos discutir sobre como a comunicação e a
cultura da mídia no mundo globalizado potencializam os fluxos assimétricos responsáveis por
valores e tensões que se materializam na cultura e na constituição de mundo latino-
americanos.

A cultura constituída na globalização: afinal, o que fazer com as diferenças?


Quando falamos no contexto da globalização e da modernidade, chegamos
rapidamente em certas premissas habituais, como a que pensa no período a partir das

3
Imagens disponíveis em: http://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/2015/10/crianca-protesta-em-brasilia-ao-
ter-ida-aos-eua-adiada-devido-ao-dolar-alto.html e https://twitter.com/5gu/status/809013547434971136. Acesso
em 03 set. 2018.

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inovações tecnológicas que permitem a interatividade entre pessoas de diferentes localidades


e por isso estão conectados mais do que nunca, pelas relações financeiras e o neoliberalismo
condicionando nossas ações e experiências em sociedade, ou mesmo na ideia da diminuição
das distâncias globais e fronteiras geográficas. Já que os acordos econômicos fluem mais
facilmente na modernidade do que acordos migratórios ou culturais, que se tornam cada dia
maiores problemas e geram conflitos, Canclini (2003) nos propõe pensar a globalização indo
além de sua noção mercadológica, mas a partir dos intercâmbios globais e locais que a
globalização permite. Assim, trazemos para o nosso debate o conceito de interculturalidade,
pensando nas tensões entre culturas locais e globais:
Como a globalização não consiste na disponibilidade de todos para todos, nem na
possibilidade generalizada de entrar em todos os lugares, é impossível entendê-la
sem os dramas da interculturalidade e da exclusão, sem as agressões ou auto-defesas
cruéis do racismo e das disputas, amplificadas em escala mundial, para marcar a
diferença entre o outro que escolhemos e o vizinho compulsório. A globalização sem
a interculturalidade é um “OCNI”, um objeto cultural não identificado. (CANCLINI,
2003, p. 46)

A interculturalidade promovida pela globalização acentua as diferenças culturais de


diferentes grupos a partir das direções e fluxos discursivos preponderantes dos símbolos da
globalização, lembrando que quase todos os esses símbolos máximos se encontram nos
Estados Unidos e no Japão, alguns ainda na Europa e quase nenhum na América Latina.
(CANCLINI, 2003, p. 49). A globalização desdobra-se em fluxos assimétricos, onde certas
narrativas potentes incidem nas sociedades de formas regulares. O grande fluxo discursivo
sobre a ilegalidade e a intolerância sobre mexicanos que vão aos Estados Unidos, assim como
o apoio à construção de um muro entre os países, reiteram que a interculturalidade está ligada
a exclusão e que a cultura das mídias, ao exibir o ponto de vista estadunidense, incide sobre as
assimetrias entre os dois países. Se a interculturalidade hoje se traduz mais por meios de
comunicação midiáticas que por movimentos migratórios (CANCLINI, 2003, p. 73), devemos
lembrar que origem dessas narrativas está alinhada à cultura das mídias, como discorremos
anteriormente, e que suas projeções tornam opacas as exclusões, diferenças e contrastes
promovidos pela globalização.
A incidência de fluxos assimétricos das narrativas sobre a imigração nas sociedades
latino-americanas diz muito da interculturalidade vivida na globalização, e “esse trânsito
globalizado pode ser muito significativo nas sociedades periféricas” (CANCLINI, 2003, p.
50). Isso porque as tensões entre local e global articulam-se ao desenvolvimento das
identidades e culturais locais, além da diferenciação perante o outro. Nesse ensaio, pensamos
especificamente nos desencaixes, tensões e rupturas projetivas nas expectativas latino-

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americanas sobre a imigração, que se veem numa condição pós-colonial que reverbera
conflitos, como a veneração idealizada perante os Estados Unidos. As afetações dos símbolos
da globalização modificam a forma que seus sujeitos entendem sua cultura e identidade:
Em suma: o cultural abrange o conjunto de processos mediante os quais
representamos e instituímos imaginariamente o social, concebemos e administramos
as relações com os outros, ou seja, as diferenças, ordenamos sua dispersão e sua
incomensurabilidade por meio de uma delimitação que flutua entre a ordem que
possibilita o funcionamento da sociedade (local e global) e os atores que a abrem ao
possível. CANCLINI, 2003, P. 57-58)

A ação dos sujeitos nessa instituição imaginária do social é crucial para entendermos
como se processa a modernidade e a globalização. O imaginário passa a ser a dimensão que
afeta as metáforas e narrativas, modificando e reconstituindo sentidos e flexionando a questão
cultural. Cada grupos sociais institui suas representações e práticas exatamente nesse campo,
como uma ação projetiva que configura a cultura, a diferença, as identidades e os estereótipos
que carregamos em relação aos demais. A representação social sobre uma criança imigrante
separada dos seus pais é construída de forma imaginária e intercultural, e o imaginário
estadunidense é configurado a partir das práticas e experiencias sociais do país. Com isso,
pensar especificamente no lugar dos sujeitos latino-americanos requer pontuar a experiência
subjetiva, as diferenças e contrastes de seus habitantes, já que tais diferenças são relevantes
para a construção de lugares e interações que geram fragmentações identitárias e imaginários
interculturais. A experiência social, as práticas e ações dos sujeitos no mundo constituem este
espaço onde o imaginário é reconfigurado. E, por isso, olhar os meios de comunicação, a
experiência dos sujeitos e a socialização é crucial para discorrer sobre a interlocução dos
fenômenos na ação dos sujeitos no mundo, pensando por exemplo em como a imigração é
muitas vezes um sonho e desejo por uma vida melhor perante os mexicanos, ou, do lado de
quem recebe os imigrantes, uma possível ameaça à vida já estabelecida dos moradores locais,
gerando assim ações xenofóbicas e que apoiam a baixa tolerância a imigrantes.
Pensando exatamente na interlocução dos fenômenos na ação dos sujeitos no mundo,
precisamos atentar como a globalização possibilita certa organicididade nas relações e uma
série de microinterações entre os sujeitos. A socialização pode ser vista nas relações
cotidianas, que acontecem no presente e durante toda a nossa vida. Bhabha (1998) se
preocupa em pensar em como esses processos originam diferenças culturais e impossibilitam
a uniformização dos indivíduos. As interações cotidianas são dessa forma os lugares nos quais
os sujeitos identificam alteridade, estruturam continuamente suas identidades e estabelecem
suas subjetividades. Assim entram em nossa discussão o conceito de interstícios, que

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emergem como a “...sobreposição e o deslocamento de domínios da diferença — que as


experiências intersubjetivas e coletivas de nação [nationness], o interesse comunitário ou o
valor cultural são negociados.” (BHABHA, 1998, p. 20) Pelos espaços intersticiais, vemos as
relações culturais como espaços de cruzamento e descontinuidade constantes dos indivíduos
ou grupos sociais perante sua subjetividade. Elas dizem de uma identidade cheia de
resistência, contornos, impasses, que está sempre ligada a um outro, a uma alteridade.
Bhabha (1998) evidencia que a articulação social da diferença trata de uma negociação
em andamento que abre as portas para hibridismos culturais. Esses hibridismos se constroem
nas relações que nutrimos com o presente, passado e futuro, porque embora as identidades
sejam constituídas no presente, ela está em constante cruzamento com o passado e futuro. O
passado diz de quem éramos, é algo sufocado que vai emergir no presente; o presente,
potencializado pelo passado, nos identifica e ajuda a estabelecer relações; e o futuro é
tensionado por tal presente. Exatamente por esse constante cruzamento, as identidades são
transicionais e não um permanecer. Mesmo podendo falar de identidades nacionais, locais ou
transnacionais, precisamos levar em consideração que estas são coletivas, transicionais e estão
em constante transição.
Dessa forma, a diferença entre grupos sociais não pode ser entendida como algo
preestabelecido, mas que se produz nos espaços intersticiais através dos afetos e tensões com
o mundo e com os outros. Neste sentido, tanto as relações instituídas entre venezuelanos
refugiados e brasileiros de Roraima, como as relações de décadas entre imigrantes mexicanos
e estadunidenses, ou mesmo os sentimentos nutridos pelas crianças presas na fronteira
estadunidense, são passíveis de ser rearticuladas a partir das tensões e afetos que suscitam. Se
as identidades são fragmentadas e negociadas pelos espaços intersticiais, é preciso reconhecer
as diferenças e as desigualdades dessas identidades. Isso acarretaria a pensar que não é
possível haver a planificação das diferenças, nem alcançar a igualdade, sendo então a
desigualdade insuperável. Esse pensamento, contudo, não pretende nos levar a polaridades
relativas a identidades superioridades ou inferiores, evoluídas ou atrasadas, e ao menos definir
que a imigração para determinados locais seria negativa ou positiva. Principalmente quando
falamos sobre assimetrias entre países, os espaços intersticiais devem nos levar ao
reconhecimento de um hibridismo cultural “...que acolhe a diferença sem uma hierarquia
suposta ou imposta.” (BHABHA, 1998, p. 22)
Para pensar o reconhecimento dessas diferenças e suas relações diretas com as
hierarquias, Huyssen (2014) desenvolve o conceito de modernidades alternativas, atentando-
se a uma mudança de perspectiva de que modelo ocidental do modernismo não é a única

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possível, nem que os Estados Unidos seriam um ponto de recebimento de grande contingente
de imigrantes por ser superior a demais países, desconsiderando que esta concepção é
constituída no passado devida a concepção de mundo dominante e é constantemente
reconstituída de forma híbrida pela mídia globalizada, algumas vezes reiterando assimetrias,
outras desenvolvendo reconhecimento sobre os hibridismos culturais. Reconhece-se com isso
a diversidade das modernidades culturais que existem ao redor do mundo e que implicam em
identidades e culturas variadas:
Então como agora, a modernidade nunca foi uma só. A nova narrativa das
modernidades alternativas, nos estudos e na antropologia pós-coloniais, nos faz
revisitar variedades de modernismo antes excluídos do cânone euro-americano como
derivadas e imitativas, e, portanto, inautências. A mudança de perspectiva é ainda
mais apropriada a medida em que pudemos compreender o colonialismo e a
dominação como a própria condição de possibilidade da modernidade e do
modernismo estético. (HUYSSEN, 2014, p. 21)

Essa mudança de perspectiva, ao sair do cânone dos Estados Unidos e outros países,
como os do continente europeu, nos possibilita pensar na modernidade latino-americana de
forma que suas dimensões culturais e suas diversificações passam a ser valorizadas. A
imigração assim — embora seja mais complexa que apenas no sentido das relações culturais e
identitárias — deixaria de ser vista como ameaça a identidade, segurança ou culturas locais. O
conceito de modernidades alternativas supera o temor sobre a globalização ser uma ameaça
que afetava as culturas de forma homogeneizante e alienada, não dando conta da
complexidade global e ignorando as relações desiguais e as negociações implícitas que vão
além da relação midiática e local. A solução para tal é pensar nas práticas da modernidade a
partir das “formas culturais transacionais que emergem da negociação do moderno com o
nativo, o colonial e o pós-colonial no mundo ‘não ocidental’”. (HUYSSEN, 2014, p. 23) Isso
nos demanda pensar na modernidade como uma linha que não é progressiva, mas que prevê
uma discussão sobre as lógicas internas e disputas de poder com as modernidades dominantes
pela organização do mundo na modernidade.
Pensar nessas lógicas de poder na modernidade nos demanda retomar as “múltiplas
camadas e hierarquias no intercâmbio cultural transnacional (HUYSSEN, 2014, p. 26) e,
como discutimos a pouco, nas assimetrias que compõem a nossa globalização cultural. Não é
possível visualizar apenas os grupos locais e negar que modernidades estadunidenses
tensionam as sociedades latino-americanas, já que há uma constante disputa pela organização
do mundo. As leituras da modernidade devem ser então complexificadas de acordo com o
contexto local, mantendo as divisões hierárquicas centradas na ideia de superior e inferior
como um paradigma que dá conta de exames comparativos sobre a globalização cultural:

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O modelo superior versus inferior, conhecido principalmente pelos debates sobre o


modernismo, pode ser repensado de maneira produtiva e relacionado com o
desenvolvimento cultural de sociedades “periféricas”, pós-coloniais ou pós-
comunistas. Na medida em que capta aspectos das hierarquias culturais e da classe
social, de raça e de religião, de relações de gênero e codificações da sexualidade, de
transferências culturais coloniais, da relação entre tradição cultural e modernidade,
do papel da memória e do passado no mundo contemporâneo, e da relação entre a
mídia impressa e os meios visuais de comunicação de massa, ele pode tornar-se
produtivo para as análises comparativas da globalização cultural de hoje, bem como
para uma nova compreensão de caminhos anteriores e diferentes, seguidos dentro da
modernidade. (HUYSSEN, 2014, p. 28-29)

Repensando a relação entre superior e inferior e o binarismo antes previsto, as


comparações sobre superior-inferior não criaria “um inimigo”. O imigrante latino-americano
passaria deixaria então de ser tomado como uma ameaça. Ainda, esse binarismo não levaria a
pensar na cultura local em detrimento ao imperialismo cultural. Quando reinscrevemos as
hierarquias na discussão sobre a globalização cultural, Huyssen (2014) traz algumas sugestões
para darmos visão ao sentido estético e político dos modernismos. Implicaria reconhecer a
ligação das modernidades alternativas ao consumo, ao reconhecimento dos mercados culturais
e às pressões mercadológicas; às hierarquias locais de valor; ao tensionamento dos meios e da
cultura midiática e os interesses políticos e econômicos que envolvem a imigração. Isso não
implicaria, contudo, no ataque as culturas de elite, mas no questionamento dos intercâmbios
transnacionais que emergem nos produtos culturais, pautando sempre as traduções implícitas
nesses produtos culturais e ligando sempre essas discussões a nova antropologia cultural.
Se as “modernidades alternativas sempre existiram e suas trajetórias continuam na
era da globalização” (HUYSSEN, 2014, p. 26), devemos romper com a ideia de que haja
apenas uma modernidade. Não podemos dizer que existem formas atrasadas ou adiantadas de
alcançar modernidade, ou que existam países ou culturas atrasadas ou adiantadas, superiores
ou inferiores, perigosas ou seguras. Pensar na modernidade não prevê um mesmo trajeto ou
destino definidos por instituições e por isso a relação entre América Latina e Estados Unidos
continuará sempre tensionada pelos sujeitos que habitam tais locais. O que é feito da
modernidade latino-americana não pode ser subjugado pelo contexto, mas deve estar sempre
atrelada aos sujeitos, seus afetos e experiências cotidianas.

Considerações Finais
Este artigo se propôs a pensar em como as assimetrias interculturais entre América
Latina e Estados Unidos se dão na globalização ao redor da temática da imigração. As
contribuições desse artigo nos mostram como a comunicação globalizada promove uma
interculturalidade cada vez mais extensa que incide nas culturas e nas identidades dos sujeitos

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de forma subjetiva, modificando a forma como veem os fluxos migratórios da atualidade e


casos como a construção de um muro entre México e Estados Unidos, as crianças presas na
fronteira estadunidense ou o ódio dos brasileiros perante os refugiados venezuelanos.
Prevendo a comunicação como constituidora dos fenômenos sociais a partir do modelo
praxiológico da comunicação, podemos pensar a ação reflexiva entre os cidadãos latino-
americanos perante a comunicação de circunstâncias relativas à imigração, que na maior parte
das vezes é atrelado a uma resistência ao recebimento dos imigrantes.
Considerando os grandes centros de produção midiática, que coincidem com os
grandes núcleos de poder, podemos fazer uma ligação entre a reflexividade inerente as
interações e a construção do latino-americano, de seu mundo, cultura e alteridade com o tipo
de conteúdo que este recebe pela mídia ao redor do ideal de vida estadunidense. As forças
ideológicas e econômicas originárias dos Estados Unidos não podem ser desvinculadas,
portanto, das lógicas de comunicação. A economia política da cultura dá origem aos fluxos
assimétricos nas relações transnacionais, já que as narrativas de grandes centros considerados
modernos possuem maior alcance e vão determinar certos desejos, medos e resistências
locais. Essas narrativas destacam aos demais grupos sociais, como os latino-americanos,
tensões entre suas identidades locais e a alteridade global.
Os esforços desses centros e conglomerados de poder sobre a construção de desejos e
visões de mundo deve ser, contudo, analisada considerando os hibridismos culturais que
acarretam nas relações comunicacionais e interacionais. Nos vemos então em um momento
que as culturas são cada vez mais transnacionais e sempre ligadas umas às outras. Já que os
sujeitos possuem potência em suas relações, ações e subjetividades, a cultura da mídia não
deve ser vista como homogeneizando os cidadãos, mas articulando a socialização dos sujeitos
aos intercâmbios e fluxos assimétricos decorrentes da globalização.
Com isso, a materialização cultural em nossos tempos deve ser pensada a partir dos
imaginários criados pelos sujeitos a respeito do social, das próprias identidades, diferenças e
desigualdades previstas na relação com o outro. No mundo globalizado, então, a ideia da
imigração latino-americana flexiona a cultura e a identidade de seus sujeitos forma projetiva e
estereotipada, que não apenas é utilizado para identificar a si, mas também para diferenciar-se
dos demais. Pensando nos locais onde as discussões sobre imigração são pautadas e
reconfiguradas, a ação dos sujeitos latino-americanos e sua relação com a comunicação
globalizada são centrais para essa discussão. É apenas pela experiência social dos sujeitos e
suas interações cotidianas que identificamos os interstícios, locais onde vemos os espaços de

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cruzamento entre grupos sociais e culturas, entre suas concepções entre o certo e o errado,
sobre a busca pelo sucesso a partir do ideal cristalizado sobre os Estados Unidos.
Dessa forma, os hibridismos culturais inerentes à globalização estarão sempre ligados
a experiência humana e suas relações, de forma com que as identidades sejam sempre
transitórias e prevejam sempre a diferença entre grupos sociais. A ideia de modernidades
alternativas é essencial, assim, para vermos que as diferenças entre América Latina e Estados
Unidos não são superáveis, mas podem ser concomitantes, assim como suas disputas na
discussão sobre imigração. Como a modernidade não está desalinhada a economia política da
cultura, as modernidades alternativas, suas culturas e identidades são de forma constante
negociadas entre o local e o global, não podendo jamais tirar o foco da potência dos sujeitos
que constituem suas identidades e culturas latino-americanas.

Referências
BHABHA, Homi K. Locais da cultura. In: ______. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998.
p. 19-42

CANCLINI, Néstor Garcia. A globalização imaginada. São Paulo: Iluminuras, 2003.

FRANÇA, V. Quéré: dos modelos de comunicação. São Leopoldo: Revista Fronteiras, v. V, n°. 2,
2003. p. 37-51

HUYSSEN, Andreas. Geografias do modernismo em um mundo globalizante. In: ______. Culturas


do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória. Rio de Janeiro: Contraponto;
MAR, 2014. p.19-38.

KELLNER, D. Guerras entre teorias e estudos culturais. In: ____________ A cultura da mídia.
Bauru: Edusc, 2001. p. 25-74

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CONVERGÊNCIA DAS IDENTIDADES DIVERSAS NO CONTEXTO DA


GLOBALIZAÇÃO1

María Valeria Giamportoni2


Universidade Federal de Ouro Preto

Resumo

O presente estudo visa refletir sobre as identidades diversas dos sujeitos no contexto da
globalização em um mundo midiatizado. O cotidiano está atravessado por afetações que são
transnacionais e que acontecem em múltiplos sentidos, por isso se torna relevante discutir a
maneira como os sujeitos estão inseridos nesse contexto midiatizado, intercultural e
mercadológico, do mesmo modo que é de suma importância reconhecer como as narrativas das
instituições de poder constroem e elaboram estratégias para sustentar os espaços de poder,
criando e reforçando as diferenças sociais. O presente ensaio apresenta discussões referentes a:
o campo do imaginário e interculturalidade, a construção das identidades diversas, a tecnicidade
como facilitadora, e a influência da lógica de mercado. Esses conceitos foram tomados das
teorias desenvolvidas pelos antropólogos Arjun Appadurai, Néstor García Canclini, Jesús
Martín-Barbero, e pela jornalista Beatriz Sarlo.

Palavras-chave: Globalização; Midiatização; Identidade; Narrativas; Diversidade.

CONVERGENCE OF DIVERSE IDENTITIES IN THE CONTEXT OF


GLOBALIZATION

Abstract

The present study aims to reflect on the diverse identities in the context of globalization in a
mediatized world. The everyday is crossed by transnational affectations which occur in
different directions, and that´s why it is relevant to discuss the way in which subjects are
embedded in a mediated, intercultural and market world, just as it is important to recognize how
the narratives of institutions shape power spaces, creating and emphasizing social differences.
The present essay presents discussions regarding: the field of the imaginary and
interculturalism, the construction of diverse identitarian convergences, the technicity as
facilitator, and the influence of the market logic. These concepts were taken from the theories
developed by the anthropologists Arjun Appadurai, Néstor García Canclini, Jesús Martín-
Barbero, and the journalist Beatriz Sarlo.

Keywords: Globalization; Mediatization; Identity; Narratives; Diversity.

Introdução
O objetivo deste trabalho consiste em refletir sobre como, nesse momento de
globalização, as identidades diversas dos sujeitos se compõem, se afetam, se desconstroem e
mudam as formas como as pessoas se relacionam, atravessadas pelas narrativas tendentes a

1
Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Linguagens e Narrativas, do XI Encontro dos Programas de Pós-
Graduação em Comunicação Social de Minas Gerais, 18 e 19 de outubro de 2018.
2
Mestranda em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Ouro Preto
(PPGCOM- UFOP), bolsista CAPES. E-mail: valeriagiamportoni@gmail.com 87
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criar e promover estereótipos e a midiatização que delimita a agenda de discursos circulantes.


Para fazer esse movimento de análise, foi utilizada a metodologia de revisão
bibliográfica, tomando os conceitos oportunamente trazidos pelos seguintes autores e autora:
Arjun Appadurai, Néstor García Canclini, Jesús Martín-Barbero e Beatriz Sarlo. A seleção
bibliográfica foi feita com a intenção de acompanhar uma discussão que ajude a refletir como
as narrativas midiatizadas são parte e afetam o modo como as pessoas interpretam e negociam
os sentidos do mundo. Essa afetação muitas vezes pode ser uma forma de limitar os discursos
vigentes, mas, outras vezes, pode colocar em discussão temas de relevância que fazem com que
os sujeitos consigam repensar globalmente a fundação e sustento das culturas, além das relações
sociais.
Os autores e a autora apresentam elementos variados que, nesse trabalho, visam abordar
umas reflexões sempre em torno da globalização, processo que modifica as experiências das
pessoas em relação ao contexto, ao ecossistema comunicativo no qual se encontram imersos. A
midiatização, nesse sentido, tem um papel fundamental nas vidas que executam esses
intercâmbios com modalidades novas e não são limitadas ao aspecto individual, senão que as
coletividades como conjuntos sociais também se encontram inseridos na trama global.
Para começar a pensar nas identidades dos sujeitos, é importante colocá-los num
contexto que dê conta das suas diversidades. Não se pode deixar de pensá-los interligados nas
suas diferenças e nas similitudes nas formas de se construir e desconstruir.
Os autores e a autora aqui citados serão de ajuda para compreender questões que
atravessam as vidas das pessoas desde a ação migratória, que provoca uma ruptura do tempo e
do espaço, mudando também as relações intersociais. O estudo está estruturado para facilitar a
organização dos conteúdos em dois eixos de discussões conceituais teóricas.
Inicialmente, a análise dos conceitos de imaginário e interculturalidade na base das
diversidades e a construção identitária, em concordância com o pensamento dos antropólogos
especializados em temáticas da globalização: Arjun Appadurai e Néstor García Canclini. O
segundo momento deste trabalho discute a influência das tecnicidades e do mercado na mutação
dos aprendizados, segundo Juan- Martín Barbero e o pensamento de Beatriz Sarlo.
O campo dos meios de comunicação social e as migrações de massa como chaves para
pensar essa ruptura do tempo e do espaço dão ao presente estudo uma contextualização para

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refletir sobre as afetações dos sujeitos a partir dessa instabilidade da vida moderna. Nesse
contexto de mesclas interculturais, aparecem novas noções de cultura que dão lugar a outros
tipos de organização dos dados da realidade e o modo como os sujeitos a percebem e se
percebem em sociedade.
Dessa forma, se dá lugar a fazer o postergado questionamento à ordem estabelecida por
parte dos grupos que foram excluídos e assolados. As afetações são de todo tipo: socioculturais,
políticas, tecnológicas, econômicas, identitárias, mas, sobretudo, são cotidianas, e organizam e
demarcam as vidas dos sujeitos.
As práticas de interação com o mundo estão interligadas, são transnacionais,
globalizadas, midiatizadas, e, portanto, afetam a maneira como os sujeitos se colocam no
mundo. Desse modo, as interligações não podem ser limitadas a um ou dois âmbitos da vida
das pessoas porque o mercado e a introdução das tecnologias não dão conta da complexa
realidade. Os espaços sociais, a dimensão cultural e a figura do Estado coexistem marcados por
essa lógica de mercado, baseada na lógica de valor.
Quando se diz convergência, se faz referência especificamente às relações
comunicativas que não são unidirecionais, senão que são convergentes. As tecnologias vêm
nesse panorama a acompanhar os novos rumos da comunicação e atender às necessidades
humanas e sociais. Por essa razão, o uso das mesmas é principalmente direcionado pela
sociabilidade, e modifica os percursos dos discursos circulantes na mídia, ao mesmo tempo que
exigem uma especial atenção ao modo em que esses conteúdos midiatizados se integram no
cotidiano.
As condições de vida desses sujeitos em permanente estado de alerta a novidades de
entretenimento; propiciam o desenvolvimento de um mercado que promete cumprir tentadoras
promessas de liberdade. Para interagir e negociar com a globalização como indivíduos
coabitantes e projetar buscas de alternativas comunitárias, é preciso reconhecer a
multiculturalidade na qual cada pessoa se encontra imersa e se situar na base das diversidades
culturais das histórias e territórios, das experiências e das memórias individuais e coletivas.

O imaginário intercultural e a construção identitária


As transformações que aconteceram nas últimas décadas podem ser interpretadas no
decorrer da história como “uma brecha profunda e sem precedentes entre passado e futuro”
(APPADURAI, 1996, p. 13).
Ainda segundo Appadurai (1996), o sujeito moderno constrói sua imaginação a partir da
influência que as mudanças no âmbito dos meios de comunicação social e a migração de

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massa exercem. Portanto, as condutas e os modos como esses indivíduos se interligavam foram
alterados e começaram a transformar também os discursos que moldam seu dia a dia e as
relações que estabelecem com a cultura e a midiatização.
A modernidade se apresenta com um caráter de persistente aceleração, de exposição
permanente dos sujeitos a um fluxo de informações, imagens e sensações que são intercedidas
pela midiatização. As particularidades da comunicação eletrônica nesse movimento global são
facilmente identificáveis nas formas das mensagens e no lugar dos espectadores, já que eles se
mantêm em constante movimento e vivenciam encontros incertos.
Acompanhando o curso variável dessas circulações, as pessoas se encontram com a
possibilidade de ampliar seus projetos de vida e os de seus sucessores nessa migração que
acontece tanto nos territórios como no campo da midiatização. Os novos modelos de construção
de uma vida própria convidam os sujeitos a se deslocarem e a adotarem novas maneiras de
viver, novas projeções de vida e novas oportunidades de desenvolvimento social.
Appadurai (1996) aponta na sua obra Dimensões culturais da globalização: a
modernidade sem peias, algumas distinções pelas quais ele afirma que a imaginação no mundo
globalizado, a partir da introdução da comunicação eletrônica, tem um papel que marca e
determina as reconfigurações das vidas dos sujeitos.
O autor afirma que a imaginação deixa esse lugar da expressão nas artes para permear
todos os campos da vida cotidiana. A segunda distinção é entre o conceito de imaginação -o
qual se encontra na dimensão da possibilidade de ação do sujeito e pode ter um sentido
projetivo- e de fantasia, que não tem uma perspectiva de acontecer na realidade. Por último,
marca o fato de que o caráter do imaginário é coletivo, em interferência com o modo em que se
pensa “o outro”, outras culturas, outras sociedades.
Para Appadurai (1996), a modernização traz consigo a possibilidade de transformações
na imaginação, ampliando também seu campo de imagináveis. Isso faz com que pensar a cultura
seja também um ato de ampliação do termo. O conceito de “cultura” na sua dimensão
substantiva já não dá conta das diferenças. A cultura como adjetivo apresenta um panorama de
diferenças que a tornam evidentemente mais útil para comparar e destacar pontos de
semelhança e contraste, e dar reconhecimento às diversas identidades no mundo. Aquelas
identidades são versadas em distintos tipos de categorias culturais, de acordo com a
conformação especifica das diferentes formas de sociedades conviventes. Deste modo, uma das
questões mais importantes que o autor coloca é o sentido de valorização das diferenças entre
sujeitos.

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O autor concorda ainda com o pensamento de Canclini (2003) em voltar o olhar para as
identidades e suas diversidades, pensar como os sujeitos se veem, como veem aos outros, como
eles entendem essas identidades que hoje em dia no mundo globalizado parecem se erguer com
mais força. A globalização muda a visão do mundo, rompe com o espaço e atravessa o tempo,
mas, na singularidade das pessoas, ela muda as relações sociais, o modo em que os sujeitos se
constroem.
Por sua parte, o argentino Canclini se foca em dar peso ao imaginário, considerando-o
este lugar em que as pessoas instituem socialmente suas práticas. Visibilizar as diferenças
culturais ajuda a entender as identidades, e são elas as que dão peso ao imaginário dos sujeitos
no mundo.
A globalização, longe de ser um paradigma de algum tipo, uma ordem social ou um
processo único, “é resultado de múltiplos movimentos, em parte contraditórios, com resultados
abertos, que implicam diversas conexões ‘local-global e local-local’.” (CANCLINI, 2003, p.
43). As ações do sujeito no mundo são constitutivas do entendimento de como a globalização
se processa. Ou seja, os sujeitos recriam o mapa do mundo a partir da ruptura do tempo e do
espaço, emergindo como protagonistas em permanente articulação de sentidos, novos e
individuais, compartilhados pelos coletivos.
As narrativas e as metáforas são elementos de comunicação, relatos de pessoas
circunscritas a histórias de vida que resultam fundamentais para ajudar a compreender estes
fenômenos. O imaginário passa a ser essa dimensão que afeta essas metáforas e essas narrativas,
que se modificam e se constituem no processo da globalização. “Quero pensar a globalização
dos relatos que mostram, junto com sua existência pública, a intimidade dos contatos
interculturais sem os quais ela não seria o que é.” (CANCLINI, 2003, p. 46).
Assim, quando se trata de teorizar a globalização, é desejável pensar a ideia da
fragmentação estrutural do mundo, já que sabemos que existe uma multiplicidade de teorias
generalistas que tentam unificar e explicar o fenômeno global, sem sucesso. As divergências
são notórias no sentido de que não contamos com uma teoria unificadora que dê conta de todos
os pontos de vista, ou consiga pelo menos explicar todas as dimensões desse processo. Isso é
também consequência da fragmentação característica do fenômeno da globalização, a exclusão
de grupos sociais.
A busca de um novo modo de articular os processos é o que permitirá reordenar as
diferenças e as desigualdades para compreendê-las, integrá-las, ver as distâncias como desafios
que colocam as tecnologias no primeiro plano porque dão uma ideia de proximidade. Canclini
(2003) lembra que “[...] a globalização não apenas homogeneíza e nos aproxima, mas também

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multiplica as diferenças e gera novas desigualdades [...] é impossível entendê-la sem os dramas
da interculturalidade e da exclusão” (p. 46).
Nesse contexto globalizante, os espaços também estão deslocados no sentido que
podemos encontrar elementos caraterísticos de um ou outro espaço cultural presentes em
qualquer outro espaço, que antes encontrávamos de forma mais localizada e culturalmente
concentrados em um lugar específico.
No caso do tempo, ele “muda” em sintonia com as mudanças dos sujeitos, podendo
apresentar um caráter moderno e tradicional ao mesmo tempo. Essas alterações ocasionadas
pela ruptura do tempo e do espaço podem ser combinadas de maneiras infinitas, e ser variáveis
em relação as condições, as possibilidades e os significados dos mesmos.
De qualquer modo, as interações não são infinitas e ainda mais: elas têm um fluxo com
direções específicas. Nas palavras de Canclini (2003):
Mas esse eventual reconhecimento do artesanato, da literatura e dos saberes
periféricos não permitem negar a “assimetria dos fluxos”, manifesta na distribuição
desigual de habilidades fundamentais e instituições modernas, de educação básica e
superior de tipo ocidental, de práticas administrativas e conhecimentos biomédicos.
Por isso Hannerz sustenta que a fluidez da circulação e contracirculação de bens e
mensagens não invalida a distinção entre centro e periferia. (p. 49)

As interações num mundo globalizado caracterizado por esses fluxos, oferecem


possibilidades de diminuir ou até quase suprimir as distâncias entre pessoas, colocar em dúvida
a rigidez das fronteiras e, nos espaços midiáticos, recompor e reconstruir as relações com os
territórios. Nesse mundo em que o mapa se torna um “mapa do mundo inteiro”, os desafios são
cada vez maiores para as democracias e as construções identitárias de pessoa em pessoa e de
espaço físico em espaço físico.
Tanto as coisas como as pessoas tendem a se desterritorializar, a sair do local de
nascimento, e assim alteram as estruturas do que antigamente eram certezas que tinham mais
condições para ficar ajustadas em tempos e espaços mais estáticos. As sensações decorrentes
abrem um panorama que parece estar numa busca permanente de características identitárias,
onde tentam de se acomodar para usufrutuar os sistemas de mercado capitalistas.
Os sujeitos podem imaginar de múltiplas maneiras as comunidades onde vivem e
articulá-las com maior liberdade com o resto do globo. Ainda assim, a acumulação multicultural
não garante que as pessoas compreendam as diferenças, nem que os estereótipos desapareçam.
Os estereótipos são persistentes, e ainda mais, não afetam somente a maneira de olhar
para o outro, mas também, como cada sujeito olha para si mesmo. As relações sociais se veem
afetadas pelas construções estereotipadas das pessoas, porque elas limitam o modo de narrarem
suas relações. O estereótipo se sustenta na base de se supor na capacidade de classificar a

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diferença sobre o outro. Longe de desaparecer, as diferenças de cultura em cultura continuam


existindo, e ainda mais, o cultural (como adjetivo) contribui para facilitar o entendimento dessa
interculturalidade.
A cultura muda seus modos de produzir, de circular, de ser consumida, refletindo esse
sentido de alterações permanentes que a interculturalidade e o mercado cultural marcam nos
percursos de seus fluxos. Em palavras do autor:
Nessa perspectiva, é evidente o papel-chave que o imaginário desempenha no cultural.
Mas o imaginário intercultural, não como mero suplemento daquilo que cada cultura
local representa do vivido na sociedade a que pertence. Em primeiro lugar, as imagens
representam e instituem o social [...]. Em segundo lugar, hoje é evidente que
representamos e instituímos em imagens aquilo que nossa sociedade experimenta em
relação a outras, porque as relações territoriais com o próprio são habitadas pelos
vínculos com aqueles que residem em outros territórios, falam conosco e enviam
mensagens que deixam de ser alheias na medida em que muitos dos nossos vivem lá.
(CANCLINI, 2003, p. 57)

A preocupação principal passa a ser como esses imaginários se reconfiguram e se


alteram nesse contexto, e como são configuradas as relações na base das diferenças existentes.
Em todo o mundo, esse imaginário é influenciado pela mídia mundial. O desafio, nesse sentido,
passa a ser pensar a estrutura das diversas culturas nesses espaços de ação que têm um caráter
projetivo. O campo das ciências da informação se vê afetado também na medida em que os
nexos entre indivíduos e coletivos, territórios e midiatizações do âmbito mundial se modificam.
Assim, o objeto da comunicação deve ser a sociedade global, diversificada, com as diferenças e
os intentos de homogeneização que se apresentam interlaçados.
A reorganização é mundial, acontece e afeta a todos os âmbitos: mobilizam-se capitais,
bens, circulam mensagens, mas são também pessoas que se deslocam. Essas pessoas estão
carregadas de experiências, e são todos coabitantes, mas isso não quer dizer que todos têm a
mesma possibilidade de acesso a esses bens e mensagens globalizados. Portanto, a dimensão
imaginada da integração global é a que não discrimina esses membros da sociedade que são
esquecidos na desigualdade de integração das redes globais de comunicação.
O quadro social sofre essa crise que questiona as identidades, desafiando para que sejam
reformuladas as prioridades no campo da ciência, mas, sobretudo, ele apresenta uma mutação
de paradigma que abre novas perspectivas de análise para repensar o que foi naturalizado. As
cristalizações que aconteceram ao longo das últimas décadas ficam em evidência, e as
condições e possibilidades de vida exigem um aprofundamento das críticas e visibilizar aquilo
que, num outro momento da história, foi normatizado.

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Influência das tecnicidades e o mercado


A mudança paradigmática que Jesús Martín-Barbero introduz em relação às discussões
esboçadas tem a ver com uma questão social. Existe um quadro social que tenciona a
globalização no âmbito da comunicação, e sua base técnica entre a tese do aprofundamento das
desigualdades e sua potencialidade como ferramenta de associação.
Abre-se a possibilidade para que a cidadania module sua relação com as instituições de
maneira que a revolução das comunicações comporte uma maior participação democrática e
permita a defesa de direitos sociopolíticos e culturais. O momento histórico, sua temporalidade
e suas tensões políticas atuais direcionam as percepções e sensações das pessoas, e,
consequentemente, as tomadas de decisões populares.
O autor declara que “pensar a relação entre técnica e cultura a partir da América Latina
implica tomar distância da nefasta combinação entre determinismo tecnológico e pessimismo
cultural.” (2014, p. 17). Para ele, o desafio está no novo paradoxo:
[...] o pensamento crítico do geógrafo brasileiro Milton Santos, que, em seu último
livro publicado em vida (Santos, 2004), traça uma visão desafiante da globalização
como ao mesmo tempo perversidade e possibilidade, paradoxo cuja vertigem ameaça
paralisar tanto o pensamento, como a ação capaz de transformar seu curso. De um
lado, a globalização fabula o processo avassalador do mercado, um processo que
uniformiza o planeta e aprofunda as diferenças locais, desunindo-o cada vez mais. Daí a
perversidade sistêmica que implica e gera o aumento da pobreza e da desigualdade, do
desemprego tornado já crônico, de enfermidades, que, como a Aids, tornam-se
epidemia devastadora nos continentes não mais pobres, e, sim, mais saqueados.
(MARTÍN-BARBERO, 2014, p. 17, 18)

O pessimismo cultural pressupõe o homogêneo, mas o uso das tecnologias que surgem
está direcionado pelo momento social que se atravessa, marcado pelas mudanças nas formas de
luta, a ruptura das lógicas prévias. Quer dizer que o cultural também pode ser pensado como
um conjunto amplo de possibilidades, sem deixar de ver a diversidade de povos, raças, culturas
e gostos, nem esquecer que as novas tecnologias estendem o campo de apropriação dos setores
subalternos para a construção de uma contra hegemonia.
Na pauta política, entram agora os esquemas da diversidade e a diferença, num intento
de ressignificar o âmbito de ação do Estado e de compreender a importância desse fenômeno de
retomada da disputa política, na potencialidade da globalização. Pensar os processos
globalizantes nos leva a pensar na dominação política, a criação de políticas públicas inclusivas,
as construções de blocos de poder, de instituições, das hegemonias e as soberanias.
As forças que se encontram articuladas nesse novo panorama podem ser convergentes
ou podem gerar novos conflitos, e com eles novos desafios. Os entrecruzamentos são de muitas
ordens, e também são transnacionais, quer dizer que atravessam e até tentam de diluir as
possíveis fronteiras e limitações de diversos tipos. O mundo do tecnológico com o

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comunicacional provoca simultaneidades dos momentos no mundo todo, as novas e velhas


tecnologias confluem, e as exigências dos mercados elevam a competitividade entre empresas.
Esses embates do tempo globalizado fazem com que as tecnologias sejam onipresentes e
afetem o modo em que os sujeitos, tanto de forma individual quanto como coletivos, se
relacionam com o presente. Nas experiências cotidianas, essa afetação é mutua e condiciona
também as formas de se movimentar no mundo. Em relação às tecnicidades, Canclini (2003)
ressalta que os meios audiovisuais, o correio eletrônico e as redes familiares revolucionaram as
condições dos imigrantes. Nesse contexto, os deslocamentos se tornaram sinônimo de
comunicações imediatas e frequentes, até no caso das distâncias intercontinentais. A esse
respeito, ele afirma que “a interculturalidade hoje se produz mais por meio de comunicações
midiáticas que por movimentos migratórios.” (CANCLINI, p. 73).
Assim sendo, a afetação dessa convergência tecnológica não é local, mas transnacional
e funciona tanto de ida quanto de volta, quer dizer que o contexto internacional afeta as relações
localizadas e vice-versa. Esse cenário traz consigo mutações nas adaptabilidades dos grupos
sociais de centro-periferia, configurando na cena a dimensão da diversidade que ajuda no
processo de reinvenção permanente das identidades.
As práticas culturais são reconfiguradas a partir da nova modalidade interacional e as
identidades e o intercâmbio se revitalizam, incorporando narrativas que trazem novas
perspectivas para olhar e reconhecer as diversidades. Os antropólogos Martín-Barbero e
Canclini concordam que os movimentos globalizantes podem e devem servir para, por meio de
políticas públicas que deem conta das diferenças, fazer circular produtos culturais. Na fala de
Martín-Barbero:
Para corroborar essa imbricação entre cultura e comunicação destacam-se os dois
processos que vêm transformando radicalmente o lugar da cultura em nossas
sociedades: a revitalização das identidades e a revolução das tecnicidades. (MARTÍN-
BARBERO, 2014, p. 23)

Martín-Barbero destaca ainda a importância de se abandonar o pessimismo cultural para


vislumbrar a profundidade das relações culturais, as quais precisam da comunicação para
crescer e se expandir. As lógicas de mercado se modificam e a cultura acompanha esse processo.
Para o autor, essas são as aprendizagens que modificam as sensibilidades, as formas de sentir e
a cognição dos sujeitos, que começam a valorizar o simbólico. Isso libera a criação de novas
realidades e narrativas em convergência, pluralidades discursivas, e se ampliam os campos de
ação e intercâmbio entre culturas. As sociedades precisam recriar os sentidos dos seus
patrimônios, significar seus espaços e dar lugar a processos de emancipação cultural para
acompanhar os processos de mudanças.

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As identidades entram na lógica do mercado para gerar novas oportunidades estratégicas


de consumo. Mas não é só o mercado e o tecnológico que controlam o processo, a globalização
também é cultural e social.
Uma crescente consciência do valor da diferença, da diversidade e da heterogeneidade
no plano das civilizações e das culturas étnicas, locais e de gênero, confronta-se com
um poderoso movimento de uniformização dos imaginários cotidianos nas modas do
vestir e dos gostos musicais, nos modelos de corpo e nas expectativas de êxito social,
nas narrativas para o grande público no cinema, na televisão e no videogame.
(MARTÍN-BARBERO, 2014, p. 28)

A jornalista e escritora argentina Beatriz Sarlo ressalta também essas mutações nas
formas de aprendizagens cognitivas e de expressão dos sujeitos, e a afetação dos movimentos
da globalização nas culturas juvenis. Ela sugere que a lógica do capitalismo é a da desigualdade
do acesso para dessa forma gerar a lógica do valor dos objetos. Nos lembra: “[...] corresponde a
uma ordenação total, mas sem deixar de, ao mesmo tempo, dar a impressão de percurso livre:
trata-se da deriva organizada do mercado” (SARLO, 2006, p. 16).
No percurso da sua obra, ela coloca a intenção mercadológica de tirar a história dos
lugares para reproduzi-los e “produzir culturas extraterritoriais das quais parece que ninguém
pode sentir-se excluído” (p. 20).
Sarlo afirma que as estruturas mercadológicas trabalham com o aprofundamento das
diferenças, e mexendo nas identidades dos consumidores. O espaço público entra em crise, mas,
por enquanto, os objetos vão ganhando poder e representatividade dos desejos das pessoas.
A rapidez com que o shopping se impôs na cultura urbana não teve precedentes em
nenhuma outra mudança de costumes, nem mesmo neste século marcado pela
transitoriedade da mercadoria e pela instabilidade dos valores. (...) em cidades que se
fraturam e se desintegram, esse abrigo antinuclear é perfeitamente adequado ao tom
de uma época. Onde as instituições e a esfera pública já não podem construir marcos
que se pretendam eternos, erige-se um monumento baseado justamente na velocidade
do fluxo mercantil. (SARLO, 2006, p. 22)

As identidades também se veem modificadas, voltando-se transitórias e afetando-se


pelos objetos que adquirem uma significação sentimental, ao mesmo tempo em que sua
mudança vertiginosa parece acrescentar seu valor. O desejo fica, então, pendente das
materialidades do exterior, que se encontram em constante renovação, mas também da não
satisfação com os próprios corpos.
A juventude e a beleza são os mitos que regem as relações das pessoas com seus corpos,
colocando-a numa competência permanente contra o próprio passo do tempo e sua construção e
(possibilidade de) desconstrução subjetiva. O mercado precisa que os corpos sejam
atravessados pela lógica de mercado para oferecer objetos com o fim de alterá-los sempre em
função da consecução dos ideais estereotípicos.

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Imaginários são apresentados pelo mercado como emancipatórios, na promessa de uma


liberdade que radique os sujeitos na lógica de consumo permanente e sem acabamento, nem
possível conformidade.
Em relação às juventudes e seus corpos cada vez mais sexualizados em função da lógica
dominante, Sarlo (2006) detecta que:
Hoje a juventude é mais prestigiosa do que nunca, como convém a culturas que
passaram pela desestabilização dos princípios hierárquicos. A infância já não
proporciona uma base adequada para as ilusões de felicidade, suspensão
tranquilizadora da sexualidade ou inocência. A categoria de “jovem”, por sua vez,
garante um outro set de ilusões com a vantagem de poder trazer à cena a sexualidade
e, ao mesmo tempo, desvencilhar-se mais livremente de suas obrigações adultas, entre
elas a de uma definição taxativa do sexo. Assim, a juventude é um território onde
todos querem viver indefinidamente. (SARLO, 2006, p. 39)

Convém ao mercado manter as pessoas abstraídas buscando uma liberdade que garanta
a exclusão, gere diferenciações sociais, mas a partir de um discurso universalista promissório e
adaptado aos desejos imaginários da totalidade das pessoas, para não perder público. “Nunca as
necessidades do mercado estiveram afinadas tão precisamente ao imaginário de seus
consumidores” (SARLO, 2006, p. 41).

Considerações finais
Analisar a diversidade à luz da globalização é necessário para entender a complexidade
e o estado de permanente construção dos sujeitos no mundo. O surgimento de múltiplas
territorialidades e deslocamentos possíveis a partir dos fluxos migratórios nos fazem pensar na
troca contínua entre sujeitos, regiões, países e continentes, e as afetações mútuas entre o
contexto transnacional e as relações localizadas.
Resulta relevante destacar os sujeitos em suas ações no mundo, como imaginam seus
projetos de vida, como pensam, sentem, se deslocam, se constroem e desconstroem, fazem todo
tipo de intercâmbios, e desse modo eles vão constituindo cotidianamente suas identidades, as
quais são diversas. Reconhecer essas ações subjetivas múltiplas que estão construindo o mundo
o tempo todo é essencial para ocupar os espaços sem ignorar o caráter dominante do poder
hegemônico, a mercadologia que domina o ambiente, e tomar as oportunidades de
problematizar as identidades e potencializar os acessos.
O direito ao deslocamento e à liberdade de se reconhecer nas diversidades culturais e
sociais é um capital que em períodos de opressão política intensifica sua busca. As identidades
como construções sociais são sempre parciais e em permanente mudança, e as identificações
das pessoas existem amarradas a muitas categorias ao mesmo tempo, que se conformam em
concordância com os contextos diversos, motivo pelo qual elas não podem ser definidas.

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Tanto as narrativas e as oralidades quanto as composições imagéticas vão se remodelar


nessas possibilidades de experiências culturais novas para reafirmar a ruptura do modelo
unidirecional de comunicação. São parte desse palco as novas formas de interação, as
conectividades, o uso que os sujeitos fazem delas e o modo como se envolvem as tecnologias,
as narrativas e a midiatização. A possibilidade de cunhar formas originais para criar e distribuir
narrativas e discursos é uma das maiores mudanças que o campo da comunicação já sofreu.
As identidades convivem entre si atravessadas por tecnologias midiáticas, as quais se
constituem como ambiências. A migração nesse contexto de tecnicidades mediáticas deixa de
ser só um movimento físico para alterar as formas de viver e as potências de imaginação dos
sujeitos, facilitando o contato com outros repertórios culturais através da mídia. A potência
estratégica desses processos globalizantes reside em reconhecer o fato de poder fazer da
convergência uma ressignificação da cultura, e aproveitar o panorama que a ruptura do espaço
e do tempo abrem para a desconstrução identitária.
Embora as pessoas tivessem a capacidade de imaginar em qualquer tempo, as
possibilidades de imaginação nesse tempo globalizado e suas condições especificas mudam por
completo a dimensão projetiva e de expectativas para suas vidas. O contexto e a imaginação
estão intimamente interligados, se afetam mutuamente porque a imaginação tem caráter social.
É dentro desse campo social que as pessoas pensam suas possibilidades e projetam suas
capacidades.
Dentro do imaginário, do não visível, produziram-se rupturas significativas que abrigam
novas dimensões de experiências das relações sociais. Incluir essa dimensão das pessoas dentro
dos processos de mudanças globalizadoras e da construção identitária é pensar a dimensão da
ação que estão envolvidas nos processos contemporâneos.
O caráter imaginário da globalização tem a ver com o fato de que, nesse mundo
globalizado, muitas pessoas não estão sendo contidas, um dos motivos pelos quais os conceitos
de homogeneidade e universalidade não são descritivos desse fenômeno. São restritos os grupos
que alcançam um bom passar econômico, âmbito onde são experimentados mais notoriamente
esses impactos de mudança.
Portanto, parece ser necessário nesse tempo movimentado: visibilizar as diversidades de
identidades, tomar as novas oportunidades de luta pelos direitos à construção de identidades
livres nas suas dinâmicas de cultivo contínuo, lidar com as desconstruções de estereótipos
limitantes, pensar as relações sociais no marco de uma cultura que se renova nas interações
mediáticas e físicas, compreender as migrações como processos de desterritorialização de
pessoas de direito, reconhecer as intervenções das instituições de poder e o poder do mercado

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e suas promessas libertárias na criação de grupos sociais privilegiados e outros excluídos por
seu caráter de “diferente” da normativa prevista.

Referências

APPADURAI, Arjun. Dimensões culturais da globalização: a modernidade sem peias. Lisboa:


Teorema, 1996.

CANCLINI, Néstor García. A globalização imaginada. São Paulo: Iluminuras, 2003.

MARTÍN-BARBERO, Jesús. Diversidade em convergência. Revista Matrizes, São Paulo, v. 8, n. 2, p.


15-33, Jul/Dez 2014. ISSN 1982-8160.v8i2p15-33.

SARLO, Beatriz. Abundância e pobreza. In: SARLO, B. Cenas da vida pós-moderna. 4. ed. Rio de
Janeiro: UFRJ, 2006. Cap. 1, p. 13-52.

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“QUEM SOMOS NÓS?”:


As prerrogativas sobre o estereótipo do Brasil e dos brasileiros em “O Olhar
Estrangeiro” 1

Felipe Reis Gasparete2


Universidade Federal de Juiz de Fora

Resumo

O presente trabalho é voltado a entender as prerrogativas e paradigmas que circundam o


documentário “O Olhar Estrangeiro” da diretora Lúcia Murat. Nesta obra, baseada no livro “O
Brasil dos Gringos: imagens no cinema”, do professor da Universidade Federal Fluminense
(UFF), Tunico Amâncio, o olhar estrangeiro sobre o Brasil e seus habitantes é questionado e
criticado, mostrando-se incômodo aos brasileiros e aos agentes da própria indústria
cinematográfica. “O Olhar Estrangeiro” aborda os clichês e as fantasias euro-americanas que
se avolumam sobre a nação. O documentário mostra qual é o tipo de visão que o cinema mundial
tem do Brasil. Filmado em diversos países, a película, através de entrevistas com os diretores,
roteiristas e atores, desvenda os mecanismos que produzem esses clichês e perpetuam
estereótipos.

Palavras-chave: Documentário; Estereótipos; Cultura; Brasil.

“WHO ARE WE?”:


The prerogatives on the stereotype of Brazil and Brazilians in “O Olhar Estrangeiro”

Abstract
The present work is aimed to understand the prerogatives and paradigms that surround the
documentary "O Olhar Estrangeiro” of director Lucia Murat. This work, based on the book
"Brasil dos gringos: imagens no cinema", professor at Fluminense Federal University (UFF),
Tunico Amâncio, look abroad about Brazil and its inhabitants is questioned and criticized,
showing if you bother to brazilians and servants of his own film industry. "O Olhar Estrangeiro"
discusses the clichés and the euro-american fantasies that are mounting up on the nation. The
documentary shows what is the kind of vision that the world cinema has of Brazil. Filmed in
several countries, the film, through interviews with directors, playwrights and actors, unveils
the mechanisms that produce these clichés and perpetuate stereotypes.

Keywords: Documentary. Stereotypes. Culture. Brazil.

1
Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Estudos do Cinema e Audiovisual, do XI Encontro dos Programas
de Pós-Graduação em Comunicação Social de Minas Gerais, 18 e 19 de outubro de 2018.
2
Mestrando em Comunicação do PPGCOM da Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail:
felipe.r.gasparete@gmail.com.

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Introdução
O documentário O Olhar Estrangeiro (BRA, 2006, 70 min), da diretora Lúcia Murat,
mostra de que forma o Brasil e os brasileiros transformam-se em personagens de ficção pelo
cinema estrangeiro, em especial por produtores estadunidenses e europeus, e como a indústria
cultural, ao produzir e/ou reproduzir determinados clichês, nos devolve uma identidade que
revela-se nem sempre aceitável entre o público brasileiro. Ela causa estranhamento e repulsa,
uma vez que não nos sentimos representados na grande tela. Para tentar melhor entender o
objetivo do documentário, dissecaremos as críticas propostas pela diretora, baseando-nos
também na obra do professor Tunico Amâncio, O Brasil do Gringos: imagens no cinema, que
também assina o roteiro do documentário, no multiculturalismo nacional e no que tange ao
papel do cinema como veículo de comunicação e construção de uma imagem do real.
Em seu livro, Amâncio (2000) afirma que a intenção da obra não é debater sobre a
identidade nacional, uma questão que dificilmente poderá ser respondida, portanto, o mais
razoável seria recorrer aos pesquisadores e escritores que já desvendaram esse tortuoso e
complexo assunto, uma vez que são muitas as opiniões sobre a controversa questão da
identidade brasileira. Conjecturar “quem somos nós”, segundo Amâncio, é uma tarefa que vai
além desta pesquisa e que não traria uma resposta satisfatória, por também não ser o objeto de
estudo. Para tanto, o autor busca localizar os traços de uma determinada região ou situação, de
longas-metragens de nacionalidades diferentes, mas que em comum, possuem a mesma e
complexa questão: a representação do Brasil. Se separados de seus contextos, estes filmes não
significam tanto, mas se agrupados a outros exemplos do mesmo período, que têm o Brasil
como referência, expõem certos tipos de padrões já estabelecidos pela indústria cinematográfica
utilizada nos mais diversos gêneros do cinema.
No documentário, Lúcia Murat afirma que em cerca de 220 filmes estrangeiros, o Brasil
é um personagem e, portanto, resolve ir atrás de quem, de alguma maneira, contribuiu para essa
representação estereotipada do país. Isto posto, entrevista diretores, atores, produtores e
roteiristas destes filmes para tentar entender de onde surgiram essas imagens. Lúcia viaja à
França (Lyon e Paris), Suécia (Estocolmo) e Estados Unidos (Nova Iorque e Los Angeles) com
a intenção de ir além dos clichês, buscando os motivos que levaram a indústria cinematográfica
a entender o Brasil dessa maneira, surpreendendo-se diante de realidades mais complexas que
as retratadas em seus filmes.
Intercalando as entrevistas com diretores, produtores e atores, a diretora também colhe
falas de pessoas comuns destes países, que por desinformação ou desinteresse pela cultura
brasileira, repetem exaustivamente os mesmos termos já associados ao Brasil: samba, carnaval,

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futebol, caipirinha, mulheres de topless, praias paradisíacas, selva, romance, dentre outros. Isso
apenas reforça a tese de que nossa imagem é mero reflexo de uma indústria que não se preocupa
em retratar o real, mas sim perpetuar elementos pré-concebidos a fim de delimitar toda uma
cultura e identidade nacional.
Tentando entender esta situação, Lúcia Murat avisa que a posição da câmera se inverte;
ela recolhe depoimentos precisos, alguns numa linha crítica e autocrítica, analista do sistema
de identificação que tira de um objeto apenas a imagem que interessa ao receptor para
reconhecê-lo. Para os estrangeiros, o Brasil sempre será um lugar apaixonante e de gente
apaixonada. Como pontua Michael Caine, protagonista de Feitiço do Rio (EUA, Stanley Donen,
1984), se essas imagens não fossem repetidas a exaustão não virariam clichês. O próprio ator
diz que a cidade do Rio de Janeiro possui uma reputação de sensualidade e, como o próprio
nome do filme diz, a maldade vem do Rio, numa tentativa de tirar a culpa do personagem
masculino e botá-la na cidade.
Pode-se notar nestes filmes a reprodução dos clichês em diferentes línguas por uma
indústria mais interessada em registrar aquilo que é diferente ou estranho ao seu cotidiano,
eliminando todo o resto a ponto de permitir-se ignorar aspectos correspondentes a própria
realidade. Nesse sentido, o cinema estrangeiro, e principalmente Hollywood, faz do latino um
sujeito único, inventando uma nova nacionalidade e ignorando todas as outras já existentes.
Reduzindo a poucas fórmulas aquilo que, na verdade, é plural e multicultural.
Isto quer dizer que in loco, ou em estúdio, o filme tem de se pautar por exigências de
verossimilhança de nenhuma maneira dispensáveis. O filme deve contar com rigorosa
observância à tradição local quanto ao imaginário social, político e artístico, o que
significa um trabalho quase etnológico de “mise-en-scène”. Nem sempre se consegue
fugir de uma tipificação, de uma folclorização ou de uma leitura redutora daquela
realidade e o cinema narrativo de ficção tem abusado deste princípio estatuído já na
suspensão da descrença que lhe é atribuída. (AMANCIO, 2000, p.46)

Um dos entrevistados de Lúcia Murat chega a afirmar que os estúdios cinematográficos


são os responsáveis por decidir o que entra em destaque nos filmes, e geralmente eles apelam
aos quesitos da sensualidade, liberdade e libertinagem. Podemos notar que para uma parte dos
Estados Unidos, existe uma identidade única entre todos os latino-americanos, desde o México
até o Uruguai, como se o subcontinente constituísse uma única nacionalidade. Hollywood
inventa uma nova identidade e nega as já existentes. A cultura, a economia, a política, os
intelectuais e os meios de comunicação dos países latino-americanos são controlados com mais
intensidade pelos EUA com a intenção de dominação e que a maior dominação se dá através
dos meios de comunicação de massa (Stam, 2008).
Os estereótipos surgem como representações equivocadas e preconceituosas da
identidade nacional. O jeitinho Brasileiro combinado à imagem do malandro, um país

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composto pela diversidade, mas retratado como exótico na construção de um país


selvagem, aporte do país tropical característico por uma Amazônia “logo ali” do lado
dos grandes centros, muitas vezes pouco civilizado ou então habitado por macacos;
representações que constantemente nos remetem ao erotismo, mulheres, bundas e
mulatas quase sempre sambando quando não estão dançando salsa ou “tcha-tcha-
tcha”, equívocos com imagens de praias de topless (que na maioria das vezes não é
permitido), um país de pessoas que não trabalham, e apenas pensam em futebol, um
país pobre, repleto de crianças carentes e favelas, onde só se pensa em sexo, no qual
bandido vem passar férias ou se esconder, etc. Caracterizando assim uma fórmula
perfeita para produzir um filme de grande bilheteria. (RASIA, 2011).

Quando isto ocorre, o olhar do espectador se perde, e o cinema deixa de ser exclusivo
de uma arte elitista e passa a interagir no espaço coletivo, sendo atingido pela propaganda,
devido a sua reprodução. É quando a imaginação individual é substituída ou contaminada por
um imaginário coletivo de estereótipos e clichês (Amâncio, 2000). São uma espécie de
transmissores de imagens, representando cidades, ações, paisagens, construindo e repassando
um imaginário coletivo feito por artistas e empresas.

As Imagens do Brasil
As relações espaciais nos filmes estrangeiros causam grande confusão sobre as cidades
brasileiras e as paisagens naturais. O país é simplificado em imagens emblemáticas, tais como
Baía de Guanabara, Floresta Amazônica, Cataratas do Iguaçu, enganando suas reais dimensões
geográficas. As fronteiras e distâncias são alteradas pela montagem cinematográfica. Isso
possibilita a manutenção do estereótipo dos antigos mitos de índios, serpentes e macacos nas
cidades brasileiras. Além disso,
Mulatas, carnaval, Pão de Açúcar e Iguaçu, índios e Amazônia, o repertório de boas
locações, de personagens típicos ou de eventos de repercussão internacional são os
ingredientes que atraem os agentes secretos às voltas com os mais diferentes
antagonistas. (AMANCIO, 2000, p.74)

Em todos esses, a escolha do Brasil se deu particularmente pelo seu exotismo,


especialmente a cidade do Rio de Janeiro. A inauguração de Brasília na década de 1950 foi uma
novidade, mas que não surgiu efeito no cinema hollywoodiano, apenas alguns cineastas
europeus se interessaram pela nova Capital Federal.
Lúcia Murat confirma a falta de conhecimento sobre as geografia do país pelos
produtores dos filmes estrangeiros. Ao entrevistar a atriz Hope Davis, protagonista do filme
Next Stop Wonderland (EUA, Brad Anderson, 1998), a personagem diz que adoraria ir à praia
em São Paulo, onde as pessoas fazem oferendas a Iemanjá na beira do mar.
Há florestas no meio das cidades e, numa das produções, “Anaconda” (1997), Jon
Voight é engolido pela cobra gigantesca do título. A população brasileira quase
sempre é toda negra e todos os negros daqui se comportam como todos os negros da
África – como se o continente africano, por sua vez, também fosse uma única nação.

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As línguas oficiais do Brasil nos filmes estrangeiros são o Inglês, o Francês e o


Espanhol. (BORDIN, 2012)

Uma outra imagem que chama atenção é a do casamento na praia, também no filme
Feitiço do Rio, em que segundo o roteirista, era para o casal protagonista se sentir estimulado
e excitado ao ver a cerimônia. Segundo o entrevistado, “é mais uma ideia cinematográfica do
que seria um casamento brasileiro”. Esse olhar limitado acaba por reduzir a cultura brasileira
como um simples referente que marca a hierarquia de uma civilização (euro-americana) perante
outra (latino-americana).
Em algum trecho do filme O Campeão (EUA, Franco Zeffirelli, 1979), o personagem
de Jon Voight diz que se ganhar o torneio de boxe irá comprar uma casa no Brasil onde poderá
ver “lindas mulheres dançando o chachachá”. Na entrevista para Lúcia Murat, o ator atesta que
esta é uma boa referência ao Brasil, apesar de esta dança não fazer parte do nosso repertório
cultural. Ele ainda alega que, de uma maneira geral, as referências brasileiras para os
americanos vêm da música e do cinema, que promovem uma exacerbação de um país feliz.
L’ Homme de Rio (FRA, Philippe de Broca, 1964), para o seu diretor, é um longa que
lembra a adolescência, “não uma imagem do Brasil, mas uma imagem imaginária de um lugar
cheio de exotismo”. Como podemos ver, mais uma vez o elemento exótico como característica
das terras tupiniquins. Além disso, podemos observar novamente poucos atores nacionais nos
filmes estrangeiros. O mesmo diretor, porém, se revela surpreso pelo filme não ter sido bem
aceito no Brasil, enquanto teve uma boa repercussão ao redor do mundo. Ao ser questionado
por Lúcia se filmes americanos rodados em Paris o incomodava, ele afirma prontamente,
dizendo que o que faz a diferença são os “detalhes imbecis”.
Por que então, os filmes filmados em Paris incomodam o diretor de cinema francês e os
rodados no Brasil não incomodariam os brasileiros?
Para tentar responder a esta pergunta, utilizaremos as comparações de identidade
nacional proposta pelo professor Robert Stam no seu livro Multiculturalismo Tropical. Segundo
o pesquisador, Brasil e Estados Unidos são nações comparáveis no quesito da construção de
uma identidade nacional, mas que divergem quanto ao tema racial. Isso significa que a mistura
de índios, negros e brancos é vista de maneira distinta pelos dois países. O eurocentrismo faz
com que os estadunidenses se voltem para “a Europa em busca de autodefinição, em vez de
olharem para as sociedades multiculturais em seu próprio hemisfério” (STAM, 2008, p. 28). O
autor vai além e afirma que
Embora tenha se tornado um lugar-comum enxergar a América Latina como um
continente “mestiço”, não é sempre que se reconhece que a cultura estadunidense
também é mestiça, misturada, híbrida, sincrética, embora em grau menor. Enquanto a

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natureza sincrética das sociedades latino-americanas é “visível”, a natureza sincrética


da sociedade norte-americana frequentemente passa desapercebida. (..) Enquanto a
visão norte-americana sobre identidade nacional tem se apoiado sub-repticiamente na
premissa de uma “brancura” não declarada, mas mesmo assim normativa, a visão
brasileira da identidade nacional tem geralmente se apoiado na noção de
multiplicidade racial. (STAM, 2008, p. 28)

Robert Stam (2008) afirma que no Brasil a miscigenação com povos indígenas era uma
política adotada pela nação, já nos Estados Unidos essas propostas a fim de assimilar os nativos
na sociedade, via casamento ou inclusão social, eram amplamente rejeitadas. Assim, “enquanto
a ideologia norte-americana promovia mitos de separação e da natureza maldita do amor entre
brancos e índios, a ideologia brasileira promovia mitos de fusão através do amor entre o europeu
e o indígena” (STAM, 2008, p. 29). Isso gerou, o que o professor classificou, de “recusa do
espelho”, ou seja, os estadunidenses recusam esta visão devido a um provincianismo e
arrogância étnica, como se fosse danoso ao orgulho nacional comparar uma nação desenvolvida
com um país do Terceiro Mundo como o Brasil.
Para o produtor sueco Bo Josson, todos esses filmes sobre o Brasil “têm uma visão
pronta do que é o Brasil”, e utilizam todos esses clichês na construção dos roteiros
cinematográficos. “Às vezes acho que querem o clichê”, diz Josson para Lúcia. De alguma
forma, eles refletem o velho estilo colonialista, não querem ir fundo na “alma brasileira,
preferem ficar na praia”, certifica o cineasta.
Outro fato que repete na grande tela são os temas das mulheres bonitas e sensuais e do
conquistador latino, mesmo que este tenha sotaque espanhol, como acontece com os filmes Next
Stop Wonderland e Amazônia em Chamas (EUA, John Frankenheimer, 1994). Este último
produzido originalmente para televisão pela rede HBO, sobre a vida do seringueiro acreano
Chico Mendes. O papel principal é interpretado pelo ator porto-riquenho Raúl Julia e rodado
no México. Não houve nenhuma relação da produção com o Brasil, exceto pela presença de
Sônia Braga (interpretando a última companheira de Chico). Os demais atores eram todos
hispânicos, e o filme é falado em inglês e espanhol.
O longa-metragem Orquídea Selvagem (EUA, Zalman King, 1990) perpassa essa
imagem de um Rio de Janeiro exótico e selvagem, como podemos observar na própria sinopse
do filme: “Para comprar um resort Claudia Dennis (Jacqueline Bisset) viaja para o Rio de
Janeiro com Emily Reed (Carré Otis), uma jovem advogada recém-contratada que é vulnerável
e inocente. Ao chegar Emily se envolve com um milionário, James Wheeler (Mickey Rourke),
que tem um estilo de vida incomum3”. Neste filmes, o produtor afirma que queria condensar

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Extraído de: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-30263/. Acesso em 18 jun. 2018.

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duas cidades brasileiras em uma só: Rio de Janeiro e Salvador. O Rio como sendo esse lugar
exótico e selvagem, mas com uma religiosidade de matriz africana como Salvador.
Essas entrevistas comprovam esta apropriação dos diretores, produtores, roteiristas e
estúdios de cinema por colocarem a cultura brasileira em segundo plano e desprezo pela
realidade dos lugares.
Mistura forçada com o filme Lambada – A Dança Proibida (EUA, Greydon Clark,
1990), em que reforça a falta de conhecimento sobre a floresta amazônica, ao retratar uma
princesa indígena branca, que fala inglês e é a melhor dançarina de lambada. Segundo o diretor
Greydon Clark, Menaham Golan, produtor executivo do filme, ouviu a música Lambada,
produzida pelo grupo musical Kaoma quando esteve na Europa. E como a canção estava no
auge das paradas europeias, Golan decidiu fazer um filme baseado na música e na dança. O
longa foi produzido às presas, pois “outras companhias também queriam fazer filmes sobre a
lambada, então ele tinha grande pressa em fazê-lo”, relata o cineasta. E como não havia história,
apenas música e dança, os roteiristas utilizaram as já antigas fórmulas estereotipadas sobre o
Brasil, como podemos observar pelo enredo da trama: “No início da década de 1990, as florestas
tropicais brasileiras estão sob a ameaça de uma grande multinacional americana. Buscando uma
solução, a princesa Nisa (Laura Harring) viaja com o xamã Joa (Sid Haig) para Los Angeles, a
fim de encontrar um modo de salvar a fauna e flora do local. Mas os planos não dão muito certo:
Joa é preso e Nisa deve encontrar, sozinha, a solução para impedir a destruição da floresta. A
salvação vem quando ela encontra um jovem dançarino, e juntos resolvem participar de uma
competição de lambada promovida por uma emissora de TV”4.
Clark afirma que foi uma mistura forçada, mas que o estúdio achou necessária pois
queriam levar a lambada aos Estados Unidos e ao mesmo tempo mostrar os problemas que
estavam acontecendo com a floresta amazônica. “Pensamos em juntar os dois, mesmo não
sendo muito correto”, afirma o cineasta. “Ainda assim a história mexeria com as pessoas. Elas
poderiam ver o filme, apreciar a música e a dança, ver o que acontece com uma jovem que vem
aos EUA, e sair sabendo que existe uma floresta amazônica e algo deve ser feito para protege-
la”, conclui.
Ao longo das últimas décadas, a imagem do Brasil apresentada pela mídia dos EUA
mudou de uma imagem “positiva” (apesar de paternalista” do país, como o cenário
vibrante do carnaval, do samba e do futebol, para uma imagem claramente negativa,
como o local cataclísmico de massacres de crianças, devastação apocalíptica de
florestas e exploração de ouro da Serra Pelada como um formigueiro. Em ambos os
casos, a “ponta de verdade” factual é transformada pelo cinema dominante e pela
indústria internacional de notícias em algo terrivelmente parcial e enganador. Filmes
como “Feitiço do Rio” e “Orquídea Selvagem” apresentam uma versão caricatural da

4
Extraído de: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-236137/. Acesso em 18 jun. 2018.

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religião afro-brasileira para temperar narrativas frouxas, enquanto “Lambada – A


Dança Proibida” mistura as culturas indígena e africana de maneiras bizarras e “Luar
sobre Parador (1988), usa o Brasil como locação para retratar todas as nações latino-
americanas como repúblicas de bananas governadas por ditadores ubuescos. (STAM,
2008, p.47)

O cinema contemporâneo pós-1980 preservou a essência de uma Amazônia mitológica


com natureza exótica e exuberante, cheia de mistérios, que incorpora várias narrativas
fantasiosas.
Indubitavelmente, o Brasil sempre esteve incluído na categoria dos países exóticos,
seja pelo seu caráter periférico frente aos centros impulsionadores da economia
capitalista ocidental ou pela sua extensão geográfica que abriga uma enorme
variedade de gentes, de cenários, de histórias, melhor dizendo, de possantes
virtualidades imaginárias. Dentro desta perspectiva, a Amazônia desempenha um
papel de especial relevância para a manutenção de uma mitologia baseada em
alternativas potencialmente ambíguas, de trânsito simbólico entre o real e o
maravilhoso. Embora este não seja um seu atributo exclusivo, porque compartilhado
com vários outros países, o Brasil sempre abrigou o olhar do estranho, do estrangeiros,
do exótico. (AMÂNCIO, 2000, p.83)

O que falta nestas representações é um Brasil como um país com elos, tal qual os Estados
Unidos, e com uma história comparável, em termos de poder.

A Indústria Cinematográfica
Em O Olhar Estrangeiro, Lúcia Murat também aborda questões acerca da indústria
cinematográfica e as normas que a regem. Como bem exemplifica a diretora, o ator Raúl Julia,
protagonista do filme Amazônia em Chamas, no qual a língua falada era o inglês com um forte
sotaque hispânico, aponta os motivos dessa escolha. Segundo o ator, entre o espanhol e o
português, os estúdios sempre preferem a língua mais falada. Como a maioria dos países da
América Latina têm o espanhol como língua oficial, e não o português, essa foi a razão pela
escolha do idioma no filme, apesar deste ser ambientado no Brasil. A língua falada nos filmes
hollywoodianos é o inglês, para o público estrangeiro. A produção cinematográfica impede que
seja na língua local, pois não atingiria muitos públicos.
O Brasil rico, industrializado não é exótico aos olhos dos gringos. Para o estrangeiro,
cidades como São Paulo e Brasília são parecidas com as grandes metrópoles euro-americanas,
com a realidade estrangeira. Falta referências ao Brasil exótico que existe na construção
imaginária.
Apesar de as histórias se passarem no Brasil, muitas companhias optam por filmar em
estúdios ou em outras locações, seja por motivos financeiros ou por dificuldades de
deslocamento. O poder de Hollywood é ilimitado, pois cria impressões culturais e as tornam
verdadeiras, fazendo que o público veja esse povo assim para sempre.

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Enquanto a produção de Hollywood é bem financiada, prolífica e disseminada


internacionalmente, o cinema brasileiro tem dificuldade de encontrar financiamento,
é precário e dominado mesmo em seu mercado doméstico, em parte devido à
hegemonia de Hollywood sobre a distribuição e a exibição no Brasil. (STAM, 2008,
p.44)

Além disso, no documentário fica claro que o peso de Hollywood tem muita influência
nas decisões dos diretores. O ator Raúl Julia afirma no documentário que as companhias
cinematográficas preferem atores americanos ou europeus, pois desta forma são mais um
atrativo econômico aos grandes estúdios. Como o mesmo diz à Lúcia Murat: “Tudo se resume
a dinheiro nos Estados Unidos”.
Outro exemplo explorado exaustivamente pela indústria cinematográfica apontado em
O Olhar Estrangeiro é a figura de Carmen Miranda. Apesar de ter nascido em Portugal (Marco
de Canaveses, 1909), foi o mais excêntrico ícone brasileiro no cinema estrangeiro. A atriz
aproximou e afastou ao mesmo tempo os latinos do cinema, como objetos exóticos.
Carmen Miranda se torna então componente e matriz de uma “iconografia histórica da
estereotipia brasileira” no cinema. Buscavam-se os clichês já estabelecidos pela indústria
cinematográfica, e ela mesma se apropria de alguns conteúdos da indústria de massa (mulher,
latina, residente do terceiro mundo) e potencializa a personagem assexuada.
Tais serão as principais marcas de Carmen: sua música, sua coreografia e a
extravagância de suas vestimentas. Sua incompetência linguística para o inglês vai ser
um falso indício, uma marca registrada de sua estratégia de sedução pela ingenuidade.
(AMÂNCIO, 2000, p.93)

Ademais, Carmen Miranda se apropria de elementos afro-brasileiros e os exporta para


Hollywood, se apresentando em musicais americanos de modo extravagante, que envolvia um
requebrar das cadeiras, excessivas expressões faciais, trajes sensuais e ao mesmo tempo
peculiares e ornamento exagerados.
Nesse sentido, a epidermicamente branca Carmen Miranda, estrela de vários musicais
dos anos 1930, desempenhava um papel ambíguo. Para os brasileiros, segundo Noel
Carvalho, ela representava ao tempo “um mal disfarçado desejo de
embranquecimento” e uma simpatia pela “cultura negra com sua vestimenta imitando
as típicas baianas negras, o samba, o batuque, os balangandãs, os instrumentos
musicais”. Para os norte-americanos, entretanto, Carmen Miranda é a “brasileira
explosiva”, um emblema burlesco porém simpático de pan-latinidade, além de um
ícone camp gay. (STAM, 2008, p.132)

Todavia, na maioria dos casos, o cinema estrangeiro trata as mulheres brasileiras com
um olhar severo, de desconfiança, como se tivessem que ser reprimidas por sua sensualidade, e
que a presença abalaria estruturas de afeto já consolidadas. A brasileira é vista por uma imagem
pré-concebida: agressividade sexual e infantilidade intelectual.

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Os brasileiros no exterior são vistos assim: malandros, novos ricos, princesas fugidas,
mulheres insaciáveis, travestis caídos na marginalidade. Através deles se pode mapear
um imaginário solidificado num confronto constrangedor entre as duas culturas
representadas. (AMÂNCIO, 2000, p.99)

Fica claro o posicionamento do Rio de Janeiro como capital sul-americana do abrigo à


contravenção. Em O Olhar Estrangeiro, Lúcia Murat aponta quem em mais de 40 filmes
estrangeiros, o Brasil serve de refúgio para criminosos. Foge-se para o Rio com mais frequência
hoje do que décadas passadas, e pelos mais distintos motivos, mas sempre em busca de um
abrigo legal à sombra do Brasil, exaltando o exótico. “Foge-se em busca de um país ‘sem fé,
nem lei, nem rei’ exalando exotismos (AMÂNCIO, 2000, p. 100).
Bianca Freire Medeiros afirma também que
A bem da verdade, os filmes comerciais norte-americanos que, a partir dos anos 1980,
colocaram novamente o Rio como personagem, apesar de sua contemporaneidade,
revelam a persistência de temas e imagens que há muito fazem parte do vocabulário
internacional sobre a cidade e seus habitantes. Mesmo quando enfocando episódios
de violência e abuso, apostam em um certo poder regenerativo peculiar à paisagem
carioca que, não seria exagerado afirmar, é tematizado em praticamente todas as
narrativas sobre o Rio desde sua fundação. (MEDEIROS, 2005, p.63)

Há uma idealização/romantização por parte da cinematografia em relação ao Rio de


Janeiro. O motivo para os bandidos das películas virem ao Brasil não é justificado e nem
motivado. Raramente os filmes explicam porque se foge tanto para cá. “O recurso ao Brasil
como etapa final de uma fuga é uma espécie de deus-ex-machina, um expediente fácil que
permite à solução dramática uma certa dose de eficiência” (AMÂNCIO, 2000, p. 104).

Clichês e Estereótipos
Em sua busca por entender os conceitos de clichê e estereótipo, Lúcia Murat faz um
jogo de palavras com os entrevistados. A partir daí fica claro o posicionamento dos clichês
sobre o Brasil e os brasileiros.
Segundo Tunico Amâncio (2000), chavão, lugar-comum, frase feita, clichê e banalidade
são sinônimos que demarcam um campo de situações de linguagem chamado “estereotipia”:
atividade que localiza na abundância do real, ou texto, um modelo coletivo cristalizado. São as
simplificações que atuam na estereotipia, compreendendo desde a ideia comum, da opinião
corrente e banal até as ideias preconceituosas e consolidadas nos discursos por um processo de
repetição.
O campo da estereotipia é instalado, assim, pelo domínio das técnicas de reprodução
gráficas, colocadas a serviço de um novo condicionamento da palavra, da imagem
pictórica, da tradição oral, da mitologia, Sintomaticamente, é neste momento que
serão definidos o clichê e o estereótipo. (AMÂNCIO, 2000, p.136)

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O conceito mais clichê sobre o estereótipo é “uma imagem em nossa mente”. Imagens
de segunda mão que mediatizam nossa relação com o real, através do que a cultura definiu
previamente. É, portanto, um objeto de estudo nas ciências sociais. “Sua vertente positiva se
assenta na construção de uma identidade social, sua vertente negativa se assenta no preconceito
e nesses dois registros repousa a tentativa de sua definição precisa” (AMÂNCIO, 2000, p. 138).
Desta maneira, as ideias sobre nacionalidades e minorias culturais são formadas pela
desvalorização das mesmas e reforço de uma imagem de diferença e inferioridade. A
representação social desses grupos é forjada a partir de um conjunto de opiniões que o
estereótipo já delimitou em um único elemento: a generalização. Um mesmo traço que é
atribuído a todos aqueles que foram afetados pela simplificação cultural.
Atravessada pela banalidade, pelo lugar-comum e pelo preconceito, a imagem do
Brasil e dos brasileiros nos filmes de ficção estrangeiros se ordena segundo
articulações históricas, procedimentos retóricos, simplificações socioculturais.
Alguns olhares com matrizes localizadas (o visitante, o emigrante, o exilado) se
expandem e se ramificam em tipificações redutoras (a mulher sensual, a travesti –
sempre ligados a um transbordamento da sexualidade e a uma regressão patológica ao
nível da saciedade dos instintos primários no contexto de uma provocação social) uma
cristalização de um modelo de comportamento social transgressor (o carnaval e o
recurso a práticas religiosas não tradicionais no ocidente). A Amazônia é a região que
se inscreve no cinema estrangeiro enquanto renovação temática e cenário singular.
(AMÂNCIO, 2000, p.140)

Já sobre a definição de clichê, Amâncio afirma ser bem próximo do estereótipo, cuja
etimologia aponta para a duplicação tipográfica. Para o professor, o cinema é uma linguagem
sem léxico, mas que emerge construções de imagens que se repetem, se consolidam e se
solidificam.
De acordo com a obra, o clichê reforça a banalidade, porém foge da forma. Ele é
modulado como estratégia discursiva de função e ação. Por assim dizer, ele é melhor aceito na
medida em que sensibiliza o espectador, produzindo um certo grau de familiaridade, sendo
depois aceito e compartilhado.
Porque se os dois termos designam uma imagem já conhecida, eles operam em níveis
diferentes: o clichê, por uma banalização de uma unidade discursiva (ligada ao que a
tradição retórica chama de elocutio, escolha e disposição das palavras na frase,
organização no detalhe, o trabalho de ‘estilo’), o estereótipo correspondendo a uma
estrutura conceitual cristalizada (ligada à inventio: assuntos, argumentos, lugares,
técnicas de persuasão e de amplificação). (AMÂNCIO, 2000, p.142)

A distância é o elemento que distingue o olhar euro-americano nos filmes


contemporâneos sobre o Brasil. Distância física e cultural, sendo a representação uma projeção
imaginária construída por várias fontes, mas todas correlacionadas. O clichê não é só um
modelo banal que reitera uma forma acreditada, também representa todo um sistema de valores.

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No campo da cultura popular de massa, as condições de produção são marcadas por


certas determinações, que implicam num sistema que cobre também a distribuição e
a exibição e que privilegia, prioritariamente, o atendimento a um público imenso e
heterogêneo. O sistema se mantém numa perspectiva de eficiência na comunicação e
na maximização de fórmulas de sucesso. Volta à tona a questão do condicionamento
dos meios técnicos sobre a linguagem, da tecnologia sobre o conteúdo da obra, já
presente na reflexão inicial sobre estereótipo. Isto quer dizer que a narrativa, no
cinema mainstream de Hollywood, é tributária de sua forma de produção, onde atuam
condicionantes financeiros poderosos. E que a repetição de determinados modelos é
exigida pelo princípio de eficiência do diálogo obra-público, que vai reverter numa
relação de intensificação das receitas. (AMÂNCIO, 2000, p.143)

Para o psicólogo social, Jean Maisonneuve (1977), os estereótipos são informações que
organizamos quando nos deparamos com o outro, e o colocamos em diferentes “gavetas”, de
acordo com a informação que recolhemos. De um certo modo, utilizamos de categorias para
classificar pessoas e organizar o meio em que vivemos. Quando estas categorias são usadas por
um grupo e os elementos deste grupo partilham essas convicções, elas se tornam estereótipos.
Os estereótipos são o conjunto de crenças, opiniões, que adquirimos durante nosso processo de
socialização e que simplificam a nossa realidade, mas que distorcem e generalizam
características, atributos e comportamentos de certos grupos, pessoas e culturas.
Ainda segundo Maisonneuve, estas características podem ser negativas, neutras, mas
também positivas. Além do mais, ele classifica os estereótipos em diversas classes, como os
relacionados ao gênero; raciais e étnicos; socioeconômicos; religiosos e profissionais.
Resumindo, os estereótipos são demasiado rígidos, generalistas e também bastante simplistas,
sendo mais uma caricatura pois evidenciam os aspectos mais salientes, ignorando as diferenças
individuais.
Os estereótipos têm duas funções primordiais (MAISONNEUVE, 1977): uma mais
sociocognitiva, em que apresentam-se como representações, ideias simplistas para guiar as
relações sociais. Categorizar a realidade social permite-nos analisar convenientemente o mundo
social em que estamos inseridos, interpretando o que está bem ou mal, o que é justo ou injusto,
o que está certo ou errado. A segunda função é a socioafetiva, na qual os estereótipos nos
ajudam com a ideia de identidade social. Isto denota que, parte do que somos está relacionado
com o fato de que pertencemos a certos grupos sociais, o que nos leva a diferenciar-nos dos
outros que interagem com grupos diferentes. Os estereótipos reafirmam a identidade de um
conjunto, permitindo a um determinado grupo definir-se, seja positiva ou negativamente, em
relação aos demais.
A distinção entre opinião particular e opinião pública, por legítima que seja, nem por
isso resolve a dificuldade, pois uma e outra interferem entre si, de maneira sutil e
movediça. A própria opinião pública, domínio de eleição do psicólogo social, tange a
um sistema de crenças fortemente enraizadas e cristalizadas, assim ao nível coletivo
como ao individual; de outra parte liga-se a processos episódicos afetados de forte

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contingência, correspondentes ao que se chama ‘a atualidade’ ou ‘as notícias’.


(MAISONNEUVE, 1977, p.111)

Um dos problemas dos estereótipos é que eles limitam as expectativas e percepções que
temos relativamente aos outros, fazendo com que ignoremos as particularidades de cada pessoa,
grupo e/ou cultura. E eles também tendem a ser duradouros, sendo muito difícil evitá-los no
meio social. Entretanto, o mais importante é impedir que os nossos estereótipos moldem
completamente os comportamentos e que se transformem em preconceitos.

Considerações Finais
O Brasil é um daqueles países que sempre despertou a imaginação popular e esteve no
imaginário coletivo como uma terra longínqua e exótica. O olhar proposto por Lúcia Murat é
aquele que busca localizar na paisagem audiovisual, especificamente no cinema estrangeiro, os
traços do Brasil e dos brasileiros representados na grande tela.
Este mesmo cinema incorporou algumas ideias, que toma por base modelos de
representação criados pela indústria cultural, impulsionada principalmente por produtos
cinematográficos. “Em se tratando de produção audiovisual, é impossível não citar a influência
da teledramaturgia na construção de todo um imaginário e na projeção de cenários brasileiros,
tanto em termos nacionais como em internacionais” (NASCIMENTO, 2009).
Essas figuras e ícones modelaram o imaginário sobre o Brasil e os brasileiros, criando
figuras por composição temática que remetem a clichês e estereótipos (AMÂNCIO, 2000). “O
clichê reforça a banalidade, mas escapa do estatuto da forma: ele é modulado como estratégia
discursiva de função e ação” (AMÂNCIO, 2000). Dispersa pelos filmes, a imagem brasileira
não chega a compor um repertório sólido de figuras de expressão, e isso pouco importa na tela
em relação à trama (AMÂNCIO, 2000).
Justifica-se a escolha do documentário O Olhar Estrangeiro como fonte para a
compreensão da produção de estudo sobre a representação da imagem brasileira, pelo poder de
alcance que o mesmo tem na sociedade, à medida que as representações cinematográficas são
tomadas como modelos a serem seguidos ou verdades incontestáveis por um grande número de
espectadores, e que possui um forte impacto quando está em destaque nas telas (computador,
cinema, televisão), influenciando os conceitos do espectador.
(...) o que conta não é tanto a popularidade dos filmes estatisticamente mensurada,
mas a popularidade de seus temas pictóricos e narrativos. A persistente reiteração
destes temas marca-os como projeções externas de desejos internos. E eles
obviamente têm muito mais peso quando ocorrem tanto em filmes populares quanto
em não populares, em filmes classe B ou em superproduções. (KRACAUER, 1988,
p.20)

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O cinema pertence ao patrimônio cultural e tem um caráter espetacular. Os filmes são


produtos de um determinado mercado como explica com Aumont e Marie.
Os filmes são produtos que se vendem num mercado específico; as suas condições
materiais, e sobretudo psicológicas, de apresentação ao público, e a cada espectador
em particular, são modeladas pela existência de uma instituição socialmente aceita e
economicamente viável. (AUMONT e MARIE, 1990, p. 17)

Os filmes passam uma imagem da realidade de uma certa sociedade e podem oferecer
mensagens de cunho político, social ou simplesmente mero divertimento. E a representação
cinematográfica retrata a qualidade de vida desse lugar, no caso deste trabalho, o Brasil,
cenário de tantos filmes estrangeiros.
Para Amâncio (2000), o cinema é a arte da representação, que também deve trabalhar
com um certo grau de verossimilhança. O filme deve conter rigorosa atenção às tradições e
costumes locais, mas nem sempre é possível fugir de uma folclorização da cultura local. “O
cinema é hoje, simultaneamente, arte, técnica, indústria e, sobretudo, mito, pois não resta
dúvida que desde seu surgimento encantou as pessoas ao criar um mundo particular recheado
de sonhos e fantasias” (NASCIMENTO, 2009).
Nascimento (2009), ainda afirma que o contexto midiático, forte plataforma para os
deslocamentos simbólicos, é um dos motivadores de deslocamentos espaciais. Mesmo que
estejamos fisicamente parados, navegamos através das poltronas, percorrendo pelos canais da
TV, mergulhando nas grandes telas dos cinemas, ou surfando na rede. Esse cenário possibilita
a realização de viagens sem que de fato tenhamos que sair de casa. O cinema, sendo
considerado como produto de arte e produto comercial, apresenta o reflexo da bagagem
cultural de seus criadores, formado a partir de suas próprias experiências.
Não há quem não resista ao clima gerado por uma boa história na telona, no escuro,
onde as pessoas podem se desligar da vida real e entrar no universo lúdico. É isso que
o público almeja, procurar novas sensações e viver aventuras semelhantes as dos
personagens fictícios. O audiovisual pode ser considerado um eficiente e criativo
diferencial estratégico até para os lugares desconhecidos para o público. No entanto,
poderiam ficar famosos se fizessem parte de uma história. (OLIVEIRA, 2013, p.6)

Portanto, O Olhar Estrangeiro nos revela que os clichês seguem como força-motora
da representação cinematográfica e comprova a dificuldade de transformar o olhar em
linguagem para revelar o outro lado das etnias na ficção cinematográfica. Conforme a diretora,
Lúcia Murat, o olhar estrangeiro pode ser marcado como aquele que aponta o que lhe é
diferente, o que lhe é estranho, excluindo o resto. E neste duelo entre as ideias que os
estrangeiros têm de nós e as que os brasileiros têm de si mesmos é que se encontra a alma do
documentário, porque fica notório que não existe uma identidade nacional bem definida.

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TV DIGITAL E O FORTALECIMENTO DA COMUNICAÇÃO PÚBLICA:


As possibilidades de interatividade na JFTV Câmara1

Helena Amaral2
Universidade Federal de Juiz de Fora

Resumo

Parte integrante de uma pesquisa de mestrado em andamento, o presente artigo se propõe a


investigar as possibilidades oferecidas pela programação da JFTV Câmara, emissora ligada ao
legislativo municipal da cidade mineira de Juiz de Fora, para o desenvolvimento de
ferramentas digitais interativas. A partir dos preceitos atribuídos à comunicação pública e das
possibilidades trazidas pelo sistema digital de tevê, analisar-se-á como o canal pode se
apropriar dos conteúdos exibidos para oferecer, por meio de recursos interativos, o acesso a
informações que contribuam com o fortalecimento da democracia e o exercício de direitos
pelos cidadãos juizforanos.

Palavras-chave: Interatividade; JFTV Câmara; Comunicação Pública; TVs Legislativas; TV


Digital.

DIGITAL TV AND THE STRENGTHENING OF PUBLIC COMMUNICATION:


The possibilities of interactivity in the JFTV Câmara

Abstract

Part of an ongoing master’s research, this article proposes to analyze the possibilities offered
by the programming of the JFTV Câmara, a TV channel linked to the municipal legislature of
the brazilian city of Juiz de Fora, for the development of interactive digital tools. From the
precepts attributed to the public communication and the possibilities brought by the digital TV
system, it will be analyzed how the channel can appropriate the contents displayed to offer,
through interactive resources, acess to information that contributes to the strengthening
democracy and the exercise of rights by the local citizens.

Keywords: Interactivity; JFTV Câmara; Public Communication; Legislative TVs; Digital


TV.

Introdução
Este artigo é recorte de uma pesquisa de Mestrado em andamento, voltada à análise da
implementação de recursos digitais interativos pela JFTV Câmara, emissora ligada à Câmara

1
Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho 2 - Estudos de Cinema e Audiovisual, do XI Encontro dos
Programas de Pós-Graduação em Comunicação Social de Minas Gerais, 18 e 19 de outubro de 2018.
2
Mestranda em Comunicação, Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) da Universidade
Federal de Juiz de Fora (UFJF), helena-amaral@hotmail.com.

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Municipal de Juiz de Fora (CMJF), município da Zona da Mata mineira. A partir de parceria
firmada com pesquisadores da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) por intermédio da
Fundação de Apoio e Desenvolvimento ao Ensino, Pesquisa e Extensão (Fadepe), o canal
objetiva estudar ferramentas interativas a serem desenvolvidas e aplicadas em sua
programação.
Tomando por base alguns dos princípios atribuídos à comunicação pública, na qual se
enquadram as emissoras de cunho estatal, a dissertação busca analisar se as propostas
comunicacionais apresentadas e os instrumentos escolhidos para serem adotados pela
emissora se constituem, de fato, como iniciativas que possibilitam a efetivação de um projeto
comunicativo na área.
A investigação da atual programação da emissora em busca de conteúdos que
possibilitem a concretização do referido projeto constitui um dos objetivos da pesquisa e
objeto do presente artigo. Por meio da análise dos programas que compõem a grade da
emissora, serão propostos caminhos para o desenvolvimento de recursos interativos.
Para tanto, serão consideradas apenas as produções próprias da JFTV Câmara, que
contemplam as transmissão ao vivo de sessões plenárias e audiências públicas, matérias de
cunho jornalístico - exibidas diariamente em um único bloco, sem horário fixo de exibição - e
um programa esportivo feito em parceria com uma Organização Não Governamental (ONG)
da cidade. O restante do tempo de programação é preenchido com conteúdos da TV
Assembleia de Minas e documentários da Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage (Funalfa).
A opção por conteúdos próprios da emissora se justifica tendo em vista que as
ferramentas interativas serão voltadas às produções locais, bem como levando em conta a
importância dessas ao abordar temáticas que afetam de forma mais direta e imediata a vida
dos juizforanos.
O recorte da presente pesquisa contempla a análise de cinco dias (de segunda a sexta-
feira) da programação do canal, na semana de 2 a 6 de julho de 2018. O período foi escolhido
considerando as restrições impostas aos agentes públicos pela legislação eleitoral, que
passaram a valer em 7 de julho3.
As análises foram feitas a partir da consulta aos vídeos disponibilizados no canal da
CMJF no YouTube.

3 A Lei das Eleições (Lei Nº9.504) prevê uma série de restrições aos agentes públicos nos três meses que antecedem o pleito
eleitoral, dentre elas a proibição do pronunciamento em cadeia de rádio e televisão, fora do horário eleitoral gratuito. O
objetivo é garantir equilíbrio na disputa e evitar o uso de cargos e funções públicas em benefício de determinadas
candidaturas e partidos.

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TVs Legislativas e Comunicação Pública


Presente em 97,2% (PNAD-2016) dos lares de todo o país, a televisão ainda figura
como o principal meio de acesso dos brasileiros às notícias, sendo apontada por 63% dos
entrevistados na Pesquisa Brasileira de Mídia (PBM) 2016 como o meio mais utilizado para
se informar sobre o que acontece no Brasil.
No contexto nacional, marcado pelo oligopólio e pela propriedade cruzada dos meios,
as emissoras de cunho não-comercial, em decorrência de sua configuração e finalidade, se
colocam como alternativa e complemento aos veículos privados. Nesse cenário, destacam-se
as emissoras do campo público, dentre as quais figuram as estatais. Estas, por sua vez, podem
ser governamentais, judiciárias e legislativas, sendo as últimas o foco da presente pesquisa.
A criação das emissoras legislativas de tevê foi possibilitada pela criação da Lei Nº
8.977 (Lei do Cabo), de 1995, que regulamenta os serviços de TV a Cabo no país. Em seu
artigo 23, a mesma determina que as operadoras do setor devem destinar, em sua área de
prestação de serviços, alguns canais básicos de utilização gratuita, dentre eles:
b) um canal legislativo municipal/estadual, reservado para o uso compartilhado entre
as Câmaras de Vereadores localizadas nos municípios da área de prestação do
serviço e a Assembléia Legislativa do respectivo Estado, sendo o canal voltado para
a documentação dos trabalhos parlamentares, especialmente a transmissão ao vivo
das sessões;
c) um canal reservado para a Câmara dos Deputados, para a documentação dos seus
trabalhos, especialmente a transmissão ao vivo das sessões;
d) um canal reservado para o Senado Federal, para a documentação dos seus
trabalhos, especialmente a transmissão ao vivo das sessões (...). (BRASIL, 1995)

Dulce Queiroz (2007) ressalta que a previsão de existência dessas emissoras no texto
da Lei do Cabo partiu de uma iniciativa do Fórum Nacional pela Democratização da
Comunicação (FNDC), entidade atuante no processo de redemocratização do país.
À época da aprovação da Lei do Cabo, na década de 1990, a maioria dos deputados
e senadores estava mais preocupada com a regulamentação do setor de TV a cabo do
que propriamente com a criação de canais de interlocução com a sociedade (...).
Deputados e senadores brasileiros só passariam a defender ostensivamente a criação
das emissoras legislativas depois que a Lei do Cabo já estava aprovada e o fizeram
movidos, principalmente, por uma grande insatisfação diante da cobertura que a
grande imprensa fazia das atividades do Congresso Nacional. (QUEIROZ, 2007,
p.20)

Assim, como ressalta Paulo Victor Purificação Melo (2014), a criação de emissoras de
TVs Legislativas no Brasil resulta de dois processos principais:
de um lado, é parte do processo de luta política de segmentos organizados da
sociedade pela democratização das comunicações, especialmente do FNDC, que - no
período de formulação da Lei do Cabo - disputaram uma concepção progressista
para a lei. De outro, é consequência da necessidade sentida pelos parlamentos
federais, estaduais e municipais de construir uma imagem positiva dos

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representantes políticos perante a população, sendo, neste sentido, as TVs


Legislativas um instrumento de diálogo entre Legislativo e sociedade nos interstícios
eleitorais. (Melo, 2014, p.130)

Conforme observado nas respectivas alíneas do artigo 23 da Lei do Cabo, a legislação


prevê apenas que esses canais sejam destinados à documentação dos serviços das casas
legislativas que representam, em especial à transmissão ao vivo de suas sessões. Mais de 20
anos após a promulgação da referida lei e da criação da primeira emissora de tevê legislativa
do país - a TV Assembleia de Minas, em 1995 -, o Brasil ainda não possui uma legislação que
estabeleça as condições de funcionamento, gestão e utilização dessas TVs (Melo, 2014,
p.130).
Ainda que carentes de regulamentação, como apontado anteriormente, as TVs
legislativas enquadram-se no campo da comunicação pública. Como ressaltam Bucci,
Chiaretti e Fiorini (2012, p.22) no material ‘Indicadores de Qualidade nas Emissoras Públicas
- Uma avaliação contemporânea’, toda emissora estatal é pública, embora nem toda emissora
pública seja estatal. Assim, faz-se necessário investigar em que medida os canais de tevê
ligados aos poderes legislativos se comprometem com alguns dos pressupostos atribuídos aos
serviços públicos de comunicação, atuando não somente como porta-vozes dos poderes que
representam.
Embora se diferenciem dos demais veículos públicos em aspectos relativos à
subordinação, compromisso e gestão, os meios de comunicação estatais também constituem
importante alternativa frente à mídia privada no tangente a oferta de conteúdos que
contribuam para a formação crítica dos cidadãos.
A partir de alguns pressupostos apontados por Bucci, Chiaretti e Fiorini (2012) no já
citado documento, bem como de princípios previstos no Manual de Jornalismo da Empresa
Brasil de Comunicação (EBC) - gestora de veículos públicos nacionais - e de outros autores e
materiais estudados pela pesquisadora como bolsista no projeto “O telejornalismo nas
emissoras públicas brasileiras” (CNPQ) durante a graduação, elenca-se a seguir algumas
diretrizes que podem ser atribuídas à comunicação pública e que, portanto, devem ser
observadas no desenvolvimentos das ações dos media legislativos de radiodifusão.
Para além de questões de natureza jurídica e de gestão, que devem estar de acordo
com o caráter não-comercial dessas emissoras, um dos primeiros preceitos que deve guiar as
políticas comunicacionais no setor é o compromisso com o cidadão, cujos interesses devem
nortear as ações dos veículos públicos. Ressalta-se que o espectador não deve ser tomado
como consumidor, mas como “componente de legitimação de regimes democráticos

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consolidados” (Rothberg, 211, p.9), que necessita, portanto, de conteúdos precisos que lhe
possibilitem exercer sua cidadania de fato.
Assim, como representantes da sociedade, os veículos do campo público devem
promover espaços de deliberação e debate de questões de relevância social, estimulando a
participação dos telespectadores. Tal inserção deve se dar de modo a permitir que os cidadãos
efetivamente participem da discussão de temáticas importantes.
Nesse tangente, destaca-se a necessidade de se garantir a pluralidade de vozes,
posicionamentos e opiniões, respeitando-se a diversidade de gênero, étnica, cultural, regional
e socioeconômica da sociedade brasileira. Além disso, ao promover espaços para a
representação dos diversos grupos identitários, os veículos públicos incorporam as minorias e
as instituições e movimentos sociais que as representam, atendendo à demandas não
contempladas pelas emissoras privadas.
A perspectiva da pluralidade também deve ser concretizada por meio da inovação nas
propostas e nos formatos narrativos, bem como na exploração das possibilidades oferecidas
pelas novas tecnologias. Por não buscarem o lucro, os veículos do campo público figuram
como espaços de experimentação, podendo voltar-se para o desenvolvimento de ferramentas
de inclusão.
A diversidade deve se refletir também na programação destes canais, que devem
abarcar temáticas e agendas não contemplados na mídia comercial. As abordagens, por sua
vez, devem se valer de uma maior contextualização e aprofundamento dos fatos,
possibilitando aos indivíduos uma melhor compreensão da realidade, da sociedade e dos
sistemas político e econômico.
A autonomia também deve ser um critério observado na gestão administrativa e da
programação dos canais públicos. Ainda que seus recursos não sejam provenientes de receitas
publicitárias, o que resulta em uma não submissão a pressões de patrocinadores, essas
emissoras são financiadas por verbas governamentais. Somado ao fato de que os veículos de
comunicação legislativos estão ligados as mesas diretoras das casas que representam, esse
cenário pode torná-los suscetíveis à interferências de grupos no poder.
Uma opção para evitar que a programação e as decisões relacionadas aos canais
públicos estejam sujeitos à tais pressões é a criação de mecanismos e marcos regulatórios, tais
como conselhos e outros órgãos de supervisão e administração. Estes devem garantir espaço
para a participação de representantes da sociedade civil organizada, fortalecendo seu caráter
de veículo público.

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Portanto, embora não contem com uma regulamentação clara a respeito de sua função,
por se tratar de um serviço público as emissoras de tevê legislativas devem estar atentas aos
princípios da pluralidade e da diversidade, oferecendo conteúdos que fortaleçam as condições
de emancipação dos indivíduos e sua inserção no debate de temas que refletem de forma
direta no exercício de seus direitos.

Sistema Brasileiro de TV Digital


Os estudos para implantação da TV Digital (TVD) no Brasil tiveram início na década
de 90, sendo retomados em 2003, no primeiro governo de Luis Inácio Lula da Silva, por meio
de incentivo a pesquisas voltadas ao desenvolvimento de um modelo de referência para o
Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD), criado por meio do decreto Nº 4.901/2003.
Três anos mais tarde foi publicado o Decreto Nº5.820, que estabeleceu as diretrizes
para a implantação do SBTVD e definiu, por fim, a adoção do padrão de sinais do modelo
japonês Integrated Services Digital Broadcasting Terrestrial (ISDB-T).
Atualmente o sistema funciona a partir da integração deste modelo com a tecnologia
do middleware Ginga, desenvolvido por pesquisadores da Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro (PUC-RJ) e da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). O Ginga consiste em
camadas de software que possibilitam interatividade, a interoperabilidade, a usabilidade, a
acessibilidade, a mobilidade e a portabilidade.
A transmissão através do sinal digital amplia o alcance dessas emissoras, inicialmente
restritas a canais de TV a Cabo. Nesse sentido, destaca-se a Rede Legislativa de TV Digital,
criada pela Mesa da Câmara dos Deputados em 2012 e cuja proposta principal é a
universalização do acesso dos brasileiros às emissoras vinculadas aos Poderes Legislativos.
Por meio de parcerias da TV Câmara com os canais de TV do Senado Federal, das
Assembleias Legislativas e das Câmaras Municipais, a Rede funciona a partir do recurso da
multiprogramação4.
A criação da Rede Legislativa de TV Digital só é possível porque a tecnologia da
TV digital oferece, entre as inovações, a multiprogramação. Desta forma, a Câmara
dos Deputados pode ceder um espaço em seu canal de radiofusão aos seus potenciais
parceiros. No sistema analógico, eram necessários seis mega-hertz para transmitir
um canal de televisão. No sistema digital, nos mesmos seis mega-herts são
transmitidos até quatro canais. (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2012)

4
Capacidade técnica oferecida pela tecnologia digital que permite dividir um canal em quatro canais independentes.
Atualmente o uso do recurso só é permitido às emissoras do campo público.

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Segundo informações do Portal da Câmara dos Deputados5, até o início de outubro de


2018 a Rede Legislativa de TV Digital encontrava-se em funcionamento em 22 capitais e 27
cidades do interior, entre elas Juiz de Fora.
No tangente à interatividade nas emissoras legislativas, a primeira experiência se deu a
partir de um projeto piloto realizado em João Pessoa, na Paraíba, entre 14 dezembro de 2012 e
30 de junho de 2013. Batizada de Brasil 4D (Desenvolvimento, Democracia, Diversidade e
Digital), a iniciativa foi desenvolvida pela EBC em parceria com pesquisadores do Núcleo
Lavid (Laboratório de Aplicações de Video Digital) da Universidade Federal da Paraíba
(UFPB).
Na ocasião, 100 famílias de cidadãos cadastrados no Programa Bolsa Família
receberam um kit contendo uma antena UHF, um controle remoto e um conversor de sinal
(set-top box), passando a ter acesso a uma programação interativa a partir do Canal de
Serviços 61.3, da EBC. Dentre outros conteúdos, os telespectadores puderam acessar
informações sobre vagas de emprego, capacitação profissional, serviços públicos em diversas
áreas, além de serviços bancários e cursos.
Com o desligamento do sinal analógico, previsto para o final de 2018, faz-se ainda
mais necessário o desenvolvimento de tecnologias que permitam o usufruto das possibilidades
trazidas pela tecnologia digital. Neste sentido, por não se voltarem à busca pelo lucro, as
emissoras do campo público figuram como veículos propícios a experiências no campo.

JFTV Câmara
A proposta de constituição de um canal de televisão do legislativo municipal de Juiz
de Fora teve início em 1997, idealizada pelo então presidente da Câmara, Paulo Rogério dos
Santos. Em agosto de 2002 foi criada a Resolução Nº 1.163, de autoria do Deputado Estadual
Isauro Calais, vereador da Casa na época. A partir da medida estava criada a TV Câmara,
emissora integrante da estrutura da Coordenadoria de Comunicação Social da Câmara
Municipal e subordinada à supervisão direta da Mesa Diretora da Casa.
Dentre outras definições, a resolução prevê a retransmissão de programação de caráter
informativo, educativo e de orientação social e a definição das atribuições e do funcionamento
da emissora à Mesa da CMJF.
Porém, em virtude de questões financeiras, a implantação da emissora não chegou a
ser concluída. Somente em 2014, na gestão do ex-vereador e presidente da Câmara, Julio

5
http://www2.camara.leg.br/comunicacao/rede-legislativa-radio-tv/tire-suas-duvidas-sobre-a-rede-legislativa-de-tv-digital

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Gasparette, foi dado início às transmissões das reuniões ordinárias e audiências públicas via
internet e canal a cabo. Um ano depois foi homologada a concessão de transmissão e
efetuadas as compras do transmissor e de alguns equipamentos.
Em fevereiro de 2017 a JFTV Câmara deu início às suas transmissões, atuando em
caráter experimental por pouco mais de dois meses e passando a ser transmitida em sinal
aberto e digital em maio daquele ano. Hoje a emissora integra a Rede Legislativa de TV e
funciona com o recurso da multiprogramação, exibindo, simultaneamente à sua grade e a
partir de subcanais, as programações da TV Câmara [dos Deputados], da TV Senado e da TV
Assembleia de Minas.
Durante sessão solene de inauguração do canal, o presidente da Câmara Municipal de
Juiz de Fora, vereador Rodrigo Mattos, destacou a importância da emissora ao possibilitar dar
mais transparência ao trabalho do Legislativo e afirmou que a mesma não seria a TV dos
vereadores. “Não é esse o propósito. Ela será a TV pública de Juiz de Fora. Na TV Câmara, a
população vai poder ver e ser vista. Os mais diferentes setores da sociedade terão espaço na
nossa programação” (CMJF, 2017).
Além do recurso da multiprogramação, a JFTV Câmara estuda possibilidades de
aplicação de ferramentas interativas em sua programação. Em estágio inicial, o projeto será
desenvolvido em parceria com pesquisadores da UFJF e visa explorar as oportunidades
trazidas pela tecnologia digital.
Durante participação no I Seminário de Políticas para Comunicação, organizado pelos
alunos do 1º período do curso de Rádio, TV e Internet da Faculdade de Comunicação da UFJF
em junho de 2018, o superintendente de Comunicação Legislativa da CMJF, Ricardo
Miranda, ressaltou ainda o compromisso da emissora legislativa em ampliar a grade de
programação a partir da abertura para veiculação de materiais produzidos por entidades da
sociedade civil organizada, desde que sem fins lucrativos, religiosos e/ou partidários.
Uma primeira experiência teve início no referido mês, com integração do programa
‘Pautando o Esporte’ a grade da emissora. Os conteúdos são produzidos a partir de convênio
com o Projeto Basquetebol do Futuro, ONG que há 24 anos atua na formação de atletas de
base em Juiz de Fora.
Conforme apontado por Miranda, a ação favorece o preenchimento da grade de
programação com materiais de viés público, para além daqueles de cunho estatal, como as
transmissões obrigatórias das ações do legislativo municipal.
Tal processo se dá no mesmo momento no qual a emissora estuda a implementação da
interatividade. Logo, espera-se que esse recurso seja desenvolvido pensando-se em estratégias

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que venham a contribuir para o fortalecimento da representação dos cidadãos juizforanos e


ampliação do acesso dos mesmos a informações essenciais ao exercício de direitos.

Possibilidades interativas na JFTV Câmara


A partir da análise de cinco dias da programação da JFTV Câmara, feita com base nos
vídeos disponibilizados no canal da CMJF no YouTube, busca-se aqui investigar as
possibilidades oferecidas pela emissora para o desenvolvimento de ferramentas digitais
interativas. Entre os dias 2 e 6 de julho de 2018, foram analisados 13 vídeos, dentre sessões
plenárias, materiais de cunho jornalístico e o já citado ‘Pautando o Esporte’.
De um total de aproximadamente seis horas de programação, a maior parte
corresponde às sessões plenárias, que no dia a dia são transmitidas ao vivo. Durante a semana
foram quatro conteúdos veiculados, da 1ª à 4ª Reunião Ordinária do 7º Período, com 49m06s,
1h29m06s, 1h03m29s e 01h00m30s, respectivamente.
Embora as transmissões ao vivo dificultem a preparação de conteúdos interativos, uma
vez que outros assuntos que não aqueles previamente definidos podem surgir ao longo da
sessão, é possível desenvolver alguns conteúdos fixos e outros baseados nas atividades
previstas para as respectivas reuniões.
No tangente a conteúdos a serem exibidos durante as transmissões de todas as sessões,
uma possibilidade é a disponibilização de materiais que esclareçam aos usuários como
funcionam os trâmites das reuniões, seja por meio de texto, áudio ou mesmo de um vídeo
animado. Informações sobre os vereadores, tais como partido ao qual são filiados, telefone e
e-mail de contato, número de seu gabinete na Casa (e endereço fora dela, se for o caso),
informações sobre as comissões das quais participa, links para projetos de sua autoria e links
para matérias relacionadas ao mesmo e publicadas no site da Câmara são algumas das opções
possíveis.
Ressalta-se que a utilização de dispositivos de segunda tela, tais como celulares e
tabletes, seria o ideal para veiculação destes conteúdos interativos, pois evitaria a poluição da
tela da tevê e permitiria que somente o espectador interessado acesse o conteúdo, sem
prejudicar, por exemplo, o acompanhamento da programação por demais membros de uma
mesma família.
A partir de informações preliminares sobre os requerimentos e projetos a serem
discutidos na respectiva sessão, também seria possível disponibilizar a quem estiver
acompanhando a transmissão informações acerca destas propostas, inclusive o link para os
textos de Projetos de Lei (PLs) que já estiverem disponíveis no site do legislativo.

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Informações sobre audiências públicas, bem como acerca de outras atividades e


eventos realizados pela Casa dentro de um dado período (como no intervalo de um mês, por
exemplo) também poderiam ser dados sempre constantes, não somente durante as reuniões,
mas ao longo de toda a programação do canal. Tais conteúdos exigiriam atenção da emissora
no tangente à atualizações, caso necessário, como em situações de alteração de datas e/ou
locais.
Os canais de comunicação com a Câmara também podem ser informações sempre
constantes durante a programação. Telefones e e-mails através dos quais os cidadãos podem
requerer algum tipo de serviço e solicitação, tanto com o Legislativo, quanto com o
Executivo, podem ser disponibilizados aos usuários. No tangente aos serviços, como a
emissão de carteira de identidade, oferecida na sede da CMJF, podem ser colocadas à
disposição do leitor informações como o setor a ser procurado, dados de contato do mesmo e
documentos que devem ser apresentados.
Os mecanismos de participação popular, como consultas públicas, enquetes sobre PLs
e sugestões para o desenvolvimento destes projetos também podem estar sempre disponíveis
aos cidadãos pelas ferramentas interativas. O mesmo vale para documentos relativos à
legislação, licitações, prestação de contas e outros relacionados à Casa e cujo acesso pode ser
feito por meio de links que direcionem para o portal da CMJF.
Um aspecto relevante a ser considerado acerca das transmissões das sessões plenárias
é que em duas das quatro analisadas representantes de entidades civis estiveram presentes
para fazer uso da Tribuna Livre ‘Natanael Elói do Amaral’, espaço que possibilita dar voz aos
problemas da sociedade juizforana e buscar soluções junto aos poderes.
É portanto, de interesse dos cidadãos, ter conhecimento sobre esse direito e acesso as
informações sobre os meios de que necessita para fazer uso do referido espaço.
Procedimentos necessários e contato para que sejam feitas as devidas marcações de data e
horário podem compor os dados sempre constantes nos materiais interativos e ser reforçados
durante a transmissão das sessões plenárias.
Como a utilização da tribuna está condicionada a inscrição prévia do interessado no
decorrer da semana anterior da data desejada, há possibilidade de que sejam preparadas
ferramentas interativas com informações sobre os oradores e/ou entidades/interesses que
representam, bem como ações da Casa na tentativa de solucionar o problema ou outros
relacionados.
Outro aspecto relevante observado na análise das reuniões é que as transmissões de
três delas foram antecedidas por entrevistas curtas com vereadores acerca de ações recentes

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nas quais os respectivos entrevistados tiveram algum tipo de envolvimento, tais como a
aprovação de projetos de lei.
Por se tratar de entrevistas previamente definidas é possível preparar conteúdos que
esclareçam sobre o tema abordado. No dia 3 de julho, por exemplo, o entrevistado foi o
vereador José Márcio Lopes Guedes (Zé Márcio Garotinho), presidente da Comissão de
Urbanismo da Câmara. O repórter destaca a participação do entrevistado, na tarde daquele
mesmo dia, na sanção do Plano Diretor de Juiz de Fora. Assim, um conteúdo possível seria o
acesso ao texto do documento, a links para matérias relacionados à elaboração do mesmo e à
participação popular durante esse processo, informações sobre a Comissão de Urbanismo e
outras envolvidas no desenvolvimento do Plano, bem como dados sobre o vereador
entrevistado e outros envolvidos de forma mais direta no respectivo trabalho.
Na semana investigada foram veiculados, ainda, sete conteúdos de viés jornalístico.
Todos os materiais tinham relação com trabalhos desenvolvidos na e por membros da CMJF:
três deles versam sobre a sanção de leis e outras diretrizes, dois são sobre projetos
desenvolvidos na Casa (a saber, Câmara Sênior e Parlamento Jovem), um fala sobre
campanha de doação de sangue realizada entre os funcionários do legislativo municipal e, por
fim, há uma matéria sobre uma das etapas do Torneio Leiteiro no município.
Um aspecto interessante sobre este último conteúdo, do dia 3 de julho, é que dois
cidadãos entrevistados são questionados sobre o que gostariam de cobrar dos legisladores.
Melhorias nas condições das estradas e mais segurança nas mesmas foram as questões
apontadas. Assim, materiais como este poderiam ser utilizados para divulgar canais de
comunicação com comissões da Casa que atuam nestes e outros âmbitos de interesse das
comunidades rurais, bem como iniciativas que estejam sendo pensadas e tomadas para a
solução de problemas enfrentados pela população destes locais.
Da mesma forma, poderiam ser disponibilizados dados sobre a Secretaria de
Agropecuária e Abastecimento do município, tais como os serviços oferecidos, atividades
desenvolvidas junto às comunidades da zona rural e canais de diálogo para demandas e
reclamações.
Com relação aos projetos Parlamento Jovem e Câmara Sênior, permitir aos cidadãos
acesso as atividades desenvolvidas por estes dois órgãos e suas contribuições as ações do
Legislativo são algumas das opções de conteúdos interativos. Em respeito ao interesse
público, poder-se-ia disponibilizar informações sobre como os cidadãos podem ingressar
nestes órgãos e/ou acompanhar suas atividades e apresentar possíveis demandas.

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Já no que diz respeito as sanções de projetos de lei e outras diretrizes sancionadas e/ou
aprovadas, além do acesso aos respectivos textos, poderiam ser disponibilizadas informações
sobre as comissões e vereadores envolvidos, acerca do processo de tramitação destas
propostas na casa e outros conteúdos jornalísticos relacionados.
A matéria sobre ação de incentivo à doação de sangue realizada entre os servidores da
Câmara Municipal de Juiz de Fora chama atenção para as possibilidades trazidas pela
interatividade na divulgação de serviços de utilidade pública. No caso em questão,
informações sobre a Fundação Hemominas, das condições para ser um doador e de meios
através dos quais as doações podem ser agendadas (tais como aplicativos, sites e/ou telefone)
poderiam ser disponibilizadas aos usuários. Tais conteúdos poderiam abarcar outros tipos de
serviços e não somente na área de saúde, e ser disponibilizados de maneira fixa.
Por fim, foram analisadas as duas edições semanais inéditas do ‘Pautando o Esporte’,
programa de entrevistas que começou a ser transmitido pela JFTV Câmara em junho. Além de
priorizar convidados de Juiz de Fora e região, observou-se uma preocupação em abordar
temas atuais e relevantes acerca do esporte. No período analisado a Copa do Mundo guiou as
discussões, sempre em diálogo com as especialidades dos convidados.
Ressalta-se que durante o intervalo do ‘Pautando o Esporte’ foram exibidas
informações acerca da história dos entrevistados. Assim, na edição que recebeu como
convidado o ex-goleiro Wellington Fajardo, por exemplo, foram veiculados dados sobre sua
carreira no Cruzeiro e no América Mineiro e acerca de suas conquistas como técnico do Tupi
e do Patrocinense, time que comanda atualmente.
Oferecer ao telespectador informações sobre a carreira do entrevistado é uma das
opções possíveis de interatividade no programa. Da mesma forma, poderiam ser
disponibilizadas, de forma contínua, informações sobre o apresentador - o jornalista Ivan
Elias -, acerca do Projeto Basquetebol do Futuro - tais como história, atuação, atividades
oferecidas, como participar, conquistas dos atletas atendidos - e sobre outros projetos e ações
desenvolvidas pelo poder público municipal nas áreas de esporte e lazer.

Considerações finais
A TV Digital trouxe não somente melhorias no alcance e na qualidade da imagem e do
som, mas também possibilidades para o desenvolvimento de ferramentas que podem em
muito contribuir para o fortalecimento das emissoras públicas. Nesse cenário destaca-se a
interatividade, cujas experiências tem demonstrado impactos positivos na vida dos cidadãos.

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É o que demonstra o relatório “Brasil 4D - Estudo de Impacto Sócio Econômico sobre


TV digital Pública Interativa” (2013, p. 104), elaborado pelo Banco Mundial a partir da
análise do já citado projeto piloto de interatividade implantando em João Pessoa (PB). Dentre
outros resultados, o estudo aponta que das 100 famílias beneficiadas, 64% reduziram as
despesas da casa e 2% obtiveram um ganho real de aumento da renda familiar a partir das
vagas de emprego e dos cursos de capacitação oferecidos.
Porém, o desenvolvimento de conteúdos interativos demanda pesquisas aprofundadas
e constantes, com fins de estabelecer as soluções que melhor se encaixem na realidade da
emissora e da população a qual atende. Tais projetos requerem ainda uma equipe voltada ao
desenvolvimento das informações que vão nutrir essas ferramentas, de forma a manter os
dados sempre atualizados e em sintonia com as atividades que estiverem sendo desenvolvidas
no momento.
É preciso também levar em conta a realidade tecnológica na qual se vai trabalhar,
considerando-se os equipamentos, softwares e estrutura de rede disponibilizadas.
A parceria entre a JFTV Câmara com pesquisadores da UFJF sinaliza boas
perspectivas ao unir profissionais da emissora com outros de áreas que são fundamentais ao
desenvolvimento de um projeto efetivo de interatividade, tais como os do jornalismo, das
engenharias e do design.
Como é possível observar, são muitas as possibilidades oferecidas pela programação
do canal e é preciso se pensar nas maneiras mais adequadas de disponibilizá-las aos
telespectadores. Há de se ressaltar, ainda, que há muitos outros conteúdos a serem oferecidos
via interatividade que não somente aqueles ligados diretamente ao legislativo municipal, tais
como demonstrado nas experiências realizadas na Paraíba.
Um possível pontapé inicial seria recorrer aos maiores beneficiários da programação
do canal, os cidadãos juizforanos - por meio de enquetes e/ou consulta pública, por exemplo -
com fins de investigar a que conteúdos e informações eles gostariam de ter acesso por meio
da tevê digital interativa. Assim, a JFTV Câmara estaria ainda mais próxima de fortalecer-se
como veículo do campo público de comunicação.

Referências

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Impacto Socioeconômico sobre a TV Digital Pública Interativa. Banco Mundial, 2013. Disponível em:
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O ENCONTRO DE EDUARDO COUTINHO:


Realismo, encenação e fabulação1

Helena Oliveira Teixeira de Carvalho2


Carlos Pernisa Júnior3
Universidade Federal de Juiz de Fora

Resumo

O documentário sempre foi visto como o “cinema do real”, aquele que, em oposição à ficção,
traz a realidade cotidiana da sociedade. Contudo, pesquisadores e críticos problematizam essa
ideia de “cinema do real”, questionando até onde vão as fronteiras entre ficção e
documentário, abordando conceitos como encenação, fabulação e representação. Nesse
contexto, no presente artigo será feita retomada histórica sobre realismo e narrativa realista,
com o objetivo de compreender a questão das narrativas de história de vida no documentário e
discutir como Eduardo Coutinho as trabalha. Além disso, o artigo também objetiva abordar a
capacidade do cineasta de transformar sensações e intensidades em filme, isto é, a construção
da fabulação, principalmente no longa-metragem As Canções (2011), um dos últimos da
carreira do diretor.

Palavras-chave: Realismo; Documentário; Depoimento; Fabulação.

THE MEETING OF EDUARDO COUTINHO:


Realism, staging and fable

Abstract

The documentary has always been seen as the "cinema of the real", the one that, in opposition
to fiction, brings the everyday reality of society. However, researchers and critics
problematize this idea of "real cinema", questioning how far the boundaries between fiction
and documentary, approaching concepts such as staging, fable and representation. In this
context, in this article will be made historical retake on realism and realistic narrative, with
the purpose of understanding the issue of narratives of life history in the documentary and
discuss how Eduardo Coutinho works them. In addition, the article also aims to address the
filmmaker's ability to transform sensations and intensities into film, that is, the construction of
fiction, especially in the feature film As Canções (2011), one of the last of the director's
career.

Keywords: Realism; Documentar; Testimony; Fable.

1
Trabalho apresentado no Estudos de Cinema e Audiovisual, do XI Encontro dos Programas de Pós-Graduação
em Comunicação Social de Minas Gerais, 18 e 19 de outubro de 2018.
2
Mestranda. PPGCOM-UFJF. helena.otc@gmail.com
3
Professor doutor. Faculdade de Comunicação-UFJF. carlospernisajr@gmail.com

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Introdução
Na sociedade contemporânea, com a disseminação de revistas, sites e blogs dedicados
a publicar a “vida real” de famosos e anônimos, com o sucesso dos reality shows, como Big
Brother Brasil (Rede Globo) e com o advento das redes sociais, onde pessoas comuns
compartilham diariamente seu cotidiano e sua vida pessoal com milhões de seguidores,
observa-se um grande interesse pelas chamadas histórias reais e pelas narrativas pessoais. O
que também tem sido bastante explorado pelo telejornalismo, através de personagens das
matérias jornalísticas, o que Iluska Coutinho chama de dramatização dos fatos, isto é, “a
estruturação do noticiário televisivo em torno de problemas, ações e disputas, guardaria
semelhanças com o que classificamos como um drama cotidiano” (COUTINHO apud
MUSSE, 2012, p.27). Pode-se pensar esse interesse pelas histórias de vida sob a perspectiva
da identificação, como destaca Mariana Musse:
[...] é necessário pensar principalmente identificação do público com as histórias e a
vida destes personagens. Quantos espectadores não sofreram com problemas graves
e se encontram desamparados como aquele personagem da matéria? Certamente,
quando assistem aos depoimentos de quem superou dificuldades, ganham ânimo
para superar os seus, pois se identificam com o que é apresentado e narrado por
pessoas ou personagens comuns. (MUSSE, 2012, p.28)

Contudo, nesse mundo em que nos deparamos diariamente com imagens fabricadas
pela televisão, publicidade, cinema e mídias em geral, há certa dificuldade em discernir o que
é verdadeiro e o que não é. É comum a manipulação da realidade nos meios audiovisuais, seja
em programas feitos para televisão, seja no cinema documentário. “Esta é uma ação inerente a
este trabalho quando o diretor seleciona imagens, as coloca na ordem que julga mais
apropriada tendo em vista criar uma pequena ou uma grande narrativa” (MUSSE, 2012, p.29).
De acordo com Consuelo Lins, dentro desse contexto, “as imagens do documentário
apresentam, de maneira mais evidente, uma tensão que encontramos em diferentes domínios:
tensão entre realidade e ficção, entre a verdade e o falso, entre a imagem e o real” (LINS,
2007, p.225). O documentário sempre foi visto como o cinema do real, aquele que, em
oposição à ficção, traz a realidade cotidiana da sociedade. Com a chegada do som direto na
década de 1960, essa ideia foi intensificada, assim como o interesse pelas narrativas realistas,
pela “vida real” de pessoas comuns, principalmente com o recurso da entrevista, que passou a
ser uma das principais estratégias narrativas do gênero. Seguindo essa tendência de
exploração de narrativas de pessoas comuns por meio de depoimentos orais, o cineasta e
diretor Eduardo Coutinho teve papel de destaque no cenário do documentário contemporâneo
nacional, devido à forma como trabalha a técnica da entrevista em seus filmes.

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Pesquisadores e críticos problematizam essa ideia de “cinema do real”, uma vez que
ao ligar a câmera e posiciona-la, não se consegue reproduzir tudo o que está acontecendo
naquele momento da filmagem. Então, é escolhida uma parte daquela realidade para ser
mostrada, é determinada certa angulação, de acordo com o ponto de vista e com a intenção de
quem está filmando ou dirigindo. Portanto, o documentário não pode ser considerado uma
reprodução, mas sim uma representação do real. Dessa forma, as fronteiras entre ficção e
documentário são questionadas com a abordagem de conceitos como encenação, fabulação e
representação.
Nesse sentido, no presente artigo será feita uma retomada histórica sobre realismo e
narrativa realista, para então compreender essa questão das narrativas de história de vida no
documentário e a relação entre o documentário e o real. A proposta é, a partir desse estudo,
discutir como Eduardo Coutinho trabalha com a realidade em seus documentários e abordar a
questão da fabulação no filme As Canções (2011), um dos últimos da carreira do diretor.

Realismos e as histórias de vida no documentário


Vera Figueiredo (2010) afirma que para entender o que se chama hoje de narrativa
realista, é necessário retomar o realismo do século XIX, época do auge do romance burguês,
“porque o romance, como observou Adorno, nasce realista, incorporando a categoria épica
fundamental da objetividade, na tentativa de ‘decifrar o enigma do mundo exterior’”
(FIGUEIREDO, 2010, p. 70). Contudo, essa objetividade buscada pelo narrador, a fim de
contar sem distorções o que aconteceu, foi encontrando cada vez mais contradições e se
tornando questionável, principalmente com a afirmação de um subjetivismo que não tolera
nada sem transformar. Nesse contexto, emerge o chamado romance moderno que, ao contrário
do romance realista típico, se posiciona “contra a mentira da representação e, na verdade,
contra o próprio narrador” (FIGUEIREDO, 2010, p.71).
A desconfiança diante da possibilidade de uma representação objetiva aumentou
durante o século XX, colocando em questão a estética realista. Junto com esse
questionamento, também levantou-se a ambiguidade presente no uso da terceira pessoa,
principal estratégia narrativa do romance realista, o que, segundo Figueiredo, soava, ao
mesmo tempo, verossímil e falso. Diante disso, o romance moderno adotou o uso da primeira
pessoa, que apresentava menor ambiguidade. Nesse sentido, o realismo era recuperado pelo
relato do outro.
A prevalência da primeira pessoa na ficção caminhará junto com a crescente
afirmação de um tipo de realismo, que, na esteira do olhar antropológico, recupera a

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categoria do real pelo viés do registro do depoimento do outro, isto é, do excluído,


das minorias, recorrendo, muitas vezes, ao testemunho. (FIGUEIREDO, 2010, p.73)

Nesse tipo de realismo, a credibilidade e a verossimilhança estão ligadas ao lugar de


fala, ou seja, ao envolvimento e à aproximação do narrador com o fato narrado, “o que
permitiria ao leitor ou espectador aproximar-se das verdades particulares, parciais. Ou seja, a
ênfase não recai num realismo da representação, mas num realismo de base testemunhal,
apoiado na narração que se assume como discurso” (FIGUEIREDO, 2010, p.74). Além do
lugar de fala do narrador, a credibilidade também está ligada à transparência dos recursos e
técnicas utilizados no registro dos depoimentos.
No início do século XX, as vanguardas, a fim de ir contra os valores burgueses da
época, trouxeram um novo tipo de realismo e passaram a valorizar o espaço em contraposição
ao tempo, priorizando a dimensão da simultaneidade em detrimento da narrativa
convencional. Nesse contexto, o cinema “ao invés de valorizar a trama, enfatizaria o efeito
sensível do espetáculo” (FIGUEIREDO, 2010, p.85), isto é, não importa mais o que está
sendo contado, mas como está sendo. Dentro dessa ideia, a técnica da montagem se torna
elemento básico para a arte vanguardista, pois permite novas maneiras de compreender e
vivenciar o espaço-tempo. Toda a carga significativa é direcionada para cada cena e não para
o conjunto todo; portanto, o que se privilegia agora é a realidade da encenação, em detrimento
da realidade da trama contada. Observou-se então uma rejeição ao personagem clássico e à
temporalidade cronológica casual, substituída por um tempo suspenso, permitido pela
montagem.
Dentro desse contexto, houve uma mudança na forma de vivenciar a temporalidade, o
que motivou “a revalorização da narrativa como instância de organização da experiência: no
lugar das macronarrativas legitimadoras dos grandes projetos coletivos [...] afirmaram-se as
pequenas narrativas, que privilegiam as pessoas comuns e a vida privada” (FIGUEIREDO,
2010, p. 88). Contudo, diferentemente do realismo do século XIX, que também valorizava as
micronarrativas pessoais, mas com destaque para o lugar de fala, como se observou
anteriormente, aqui se dá maior ênfase a encenação do indivíduo na sua narrativa.
Observa-se, nesse tipo de realismo abordado e nesse movimento de valorização de
micronarrativas de histórias de vida, a matriz de alguns documentários, principalmente
aqueles que recorrem à entrevista. Com o advento do som direto entre as décadas de 1950 e
1960, surgiu na França o chamado cinema-verdade, em que se partia do princípio de que “um
documentário não é mais do que o encontro entre aqueles que filmam e os que são filmados”
(DI TELLA, 2005, p.105-106). A expressão cinema-verdade foi criada a partir do filme

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Crônica de um verão (1961), de Jean Rouch e Edgar Morin, considerados os principais


cineastas dessa escola.
Esse novo estilo também apostava na entrevista, nas narrativas do outro. Aqui o filme
se dava no ato do diálogo, nas conversas, e acreditava-se que o diretor seria um participante
assumido com papel de mediador. O cinema-verdade, ao trazer a entrevista para o primeiro
plano, também colocou em foco a atuação das pessoas no encontro com o diretor diante da
câmera, a encenação ao contarem suas histórias. A partir de então, passou-se a acreditar que o
que era revelado não era uma realidade objetiva, mas a realidade dessa interação. “Para
Rouch, o que um documentário revela não é ‘a realidade’ em si, mas a realidade de um tipo de
jogo que se produz entre as pessoas que estão à frente e atrás de uma câmera” (DI TELLA,
2005, p.106).
O cineasta brasileiro Eduardo Coutinho também seguia nessa mesma linha de realismo
e se identificava com o modelo do cinema-verdade. Trabalhava com essa ideia de intervenção
na realidade e assumia um papel de mediador, ao invés de ser apenas um observador de uma
realidade já pronta. O diretor apostava na transparência do processo de enunciação para o
espectador como elemento de credibilidade, deixando em evidencia as técnicas e métodos
utilizados no registro dos depoimentos.
Os aparatos de filmagem são mostrados ao espectador, quebrando a ilusão de uma
comunicação direta entre ele e o entrevistado, ao mesmo tempo em que este último
fala por si e sobre o que lhe é próximo. A ideia é que cada um seja o narrador de sua
própria história, já que a interposição de um narrador em terceira pessoa, a
existência de um roteiro a impor um ponto de vida prévio, afastaria ainda mais o
espectador das experiências humanas que os filmes buscam captar. As instâncias
intermediárias são reduzidas e, tanto quanto possível, evidenciadas. (FIGUEIREDO,
2010, p. 74)

Já em Cabra Marcado para Morrer (1964/1984), considerado seu primeiro


documentário de grande sucesso, podemos ver imagens da equipe chegando ao local das
gravações e abordando os personagens, o que se tornou quase que um padrão do diretor – a
explicitação do processo de enunciação ao espectador. Em alguns filmes, revela o processo
fílmico através da narração, como em Edifício Master (2002).
Um edifício em Copacabana há uma esquina da praia. 276 apartamentos conjugados,
uns 500 moradores, 12 andares, 23 apartamentos por andar. Alugamos um
apartamento no prédio por um mês. Com três equipes, filmamos a vida do prédio
durante uma semana. (COUTINHO, Edifício Master, 2002)

Além disso, Coutinho também explicita as negociações com os entrevistados, o que


fica mais evidente em Santo Forte (1999), na cena em que mostra a produtora pagando uma
das pessoas. O diretor acredita que, evidenciando isso ao espectador, ele está admitindo e

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deixando claro que o que está sendo passado não é uma realidade objetiva, mas a verdade da
filmagem e que há uma negociação entre quem filma e quem é filmado por trás dessa verdade.
A verdade da filmagem significa revelar em que situação, em que momento ela se dá
e todo o aleatório que pode acontecer nela. Há mil formas de mostrar isso, desde a
presença da câmera, do diretor, do técnico de som, até a coisa sonora da troca de
palavras, incluindo incidentes que aparecem, como o telefone que toca, um cachorro
que entra, uma pessoa que protesta por não querer mais ser filmada ou que discute
com você diante da câmera. Então isso daí é importantíssimo porque revela a
contingência da verdade que você tem. (COUTINHO, 2013, p. 23)

Assim como o realismo do século XX, o cineasta também trabalha com um tempo
suspenso, isto é, seus filmes não seguem uma temporalidade cronológica casual; o que vemos
são pequenos fragmentos de histórias independentes, centralizando a carga significativa em
cada cena e não na obra como um todo.
Contrariamente às informações telejornalísticas, quando a lógica do texto é o que
determina a edição das imagens e o silêncio e os tempos mortos de uma conversa
não têm vez, aqui é a lógica da imagem e do que dizem ou deixam de dizer os
entrevistados que pesa na construção das sequências. O que o espectador percebe é o
resultado de uma mistura de personagens, falas, sons ambientes, imagens e
expressões, e jamais significações prontas fornecidas por uma voz em off. Por isso, a
possibilidade de interpretações múltiplas é inerente à montagem desses filmes.
(LINS, 2007, p.240)

Coutinho também se insere na tendência de explorar o real nos depoimentos pessoais,


ou seja, não procura atingir uma verdade ou alcançar uma objetividade realista. O diretor
trabalha com a ideia de que o real seria o real de cada indivíduo, valorizando mais a
encenação e a representação no ato de contar do que o conteúdo que está sendo contado.
Filmes como Santo Forte (1999) e Edifício Master (2002) são constituídos da vitalidade das
histórias de vida contadas pelos entrevistados, “das versões que cada um deles constrói sobre
si mesmo, sem dar ênfase a uma realidade objetiva que legitimasse essas versões”
(FIGUEIREDO, 2010, p.94).
Não é “a verdade” ou “a mentira” que interessam, o imaginário é o que me interessa,
quando a pessoa fala que incorpora um santo e incorpora, se conta bem contado, se
sabe contar, me interessa. Vira verdade. Se a gente não conhece o imaginário do
povo como vai querer mudar alguma coisa? Eu cito Deleuze, quero “pegar o outro
em flagrante delito de fabulação”. (COUTINHO apud FIGUEIREDO, 2010, p.94)

Portanto, o que o diretor ressalta é a veracidade que cada um coloca em seu


depoimento. Desse modo, o diferencial dos filmes de Coutinho é a prioridade dada ao
imaginário como determinante da verdade de cada um.

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As Canções e a fabulação
A partir de sua experiência com o trabalho no Globo Repórter (Rede Globo), Coutinho
passou a apostar, desde Cabra Marcado para Morrer (1964/1984), no processo de filmagem
como um produtor de acontecimentos e personagens, ou seja, passou a apostar no encontro
entre diretor e entrevistado, mediado pela câmera, como condição fundamental para que o
filme exista. “Em outras palavras, para o cineasta não se trata mais de filmar uma realidade
pronta, que preexistiria à filmagem, mas uma realidade sendo produzida no contato com a
câmera” (LINS, 2013, p.379).
Ismail Xavier (2010) afirma que Eduardo Coutinho apostava na filosofia do encontro
como forma dramática do seu documentário, criando um cenário de empatia e inclusão. O
autor destaca que para a realização desse encontro é preciso uma “abertura efetiva para o
diálogo (que não basta programar), o talento e a experiência que permitam compor a cena apta
a fazer com que aconteça o que não seria possível sem a presença da câmera” (XAVIER,
2010, p.68). Pode-se perceber que na maioria dos filmes de Coutinho há uma regra do jogo
em torno do fazer filme, que determina os elementos que irão potencializar os efeitos das
entrevistas, ou seja, o diretor cria condições ideais no momento da filmagem – locação,
cenário, iluminação, disposição dos corpos, posição da câmera – que, somadas com a
montagem, conferem uma qualidade particular aos depoimentos. Xavier destaca ainda que
cada entrevistado de Coutinho recebe “o que o cineasta julga melhor como efeito de produção
de sentido na imagem que dá conotação às falas; ora é a força do rosto, ora do gesto, ora do
ambiente, tudo dependendo da duração dos planos” (XAVIER, 2010, p.68).
Todas precisam de tempo para se por em cena, conseguir criar as condições para que
o momento se adense e seja expressivo, com surpresas e acasos, revelações nos
pormenores, seja a felicidade de uma palavra, o drama de uma hesitação ou o um
gesto extraordinário feito por mãos seguras, como o de Dona Tereza, em Santo
Forte (1999). (XAVIER, 2010, p.68)

Além disso, o diretor dá tempo ao personagem para que formule suas ideias, respeita
os silêncios, faz poucas perguntas, deixa a entrevista seguir um fluxo mais livre e,
principalmente, efetivamente escuta o que o outro tem para dizer, o que contribui para que o
entrevistado se sinta à vontade e tenha confiança no diretor para contar sua história. Lins
(2007) destaca que essas características são o que mais falta na atual produção incessante de
imagens, palavras, sons e informações, essa “escuta que possa pontuar e dar algum sentido à
fala dos personagens” (LINS, 2007, p.245).
Entretanto, Fernando Gonçalves (2012) ressalta que Coutinho não obtém essa
qualidade do vivido apoiado apenas em seu talento ou nas maquinações do processo de

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filmagem. Há algo a mais que parece se produzir através e a partir de seus procedimentos,
mas que ao mesmo tempo vai além deles. Segundo o autor, Coutinho e seus personagens se
inscrevem naquilo que Deleuze e Guattari chamaram de “função fabuladora”, em que as
intensidades que surgem do que é contado importam mais do que o que se conta.
Para esses autores, na fabulação, há como que um ultrapassamento, algo que atinge
uma qualidade particular, em que o “pequeno” se torna “gigante”, e o “menor”, mais
“poderoso”. E esse “gigante” é real, existe em sua verdade. Isso ocorreria, segundo
eles, pois na arte o trabalho intensivo com as formas expressivas permite ao artista
“exceder os estados perceptivos e as passagens do vivido”, estados esses que eles
vão chamar de “perceptos”. (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.222-223). A
fabulação seria essa operação em que o ato de narrar é parte da produção de um
“percepto”. (GONÇALVES, 2012, p.160-161).

Como se observou anteriormente, Coutinho não quer uma verdade objetiva dos fatos,
mas a invenção das narrativas, a encenação ao narrar, ou seja, “do jogo das cenas que inclui e
articula tanto a performance das personagens quanto a dos procedimentos do próprio
Coutinho” (GONÇALVES, 2012, p.161), reafirmando assim esse lugar de produção de
perceptos colocado por Deleuze e Guattari.
Segundo Deleuze (2005), a fabulação é a verdade do cinema, pois é nela que
personagens reais e cineastas se tornam outro, porém, sem serem fictícios.
A personagem não é separável de um antes e de um depois, mas que ela reúne na
passagem de um estado a outro. Ela própria se torna um outro, quando se põe a
fabular sem nunca ser fictícia. E, por seu lado, o cineasta torna-se outro quando
assim “se intercede” personagens reais que substituem em bloco suas próprias
ficções pelas fabulações próprias deles. Ambos se comunicam na invenção de um
povo. (DELEUZE, 2005, p.183)

Nesse sentido, o filme As Canções (2011), um dos últimos da carreira do diretor4,


chama a atenção por colocar em foco a capacidade de Coutinho de levar uma pessoa comum a
se tornar outro, um personagem, e provocar intensidades e sensações, traduzindo-as em filme.
“Qual é a música que marcou sua vida?” Foi a partir dessa pergunta que Eduardo
Coutinho pensou o documentário finalizado em 2011. Durante dois meses, sua equipe
percorreu as ruas do Rio de Janeiro em busca de personagens. O pré-requisito para participar
era ter uma boa história sobre alguma canção e saber cantar minimamente bem. Ao todo, 237
pessoas participaram do processo seletivo. Elas tinham que cantarolar um trecho da música e,
em seguida, explicar porque ela marcou tanto a sua vida. Algumas não foram selecionadas
porque esqueceram a letra. Outras porque cantaram mal. Desse total, apenas 42 pessoas
tiveram seu depoimento gravado. Por fim, 18 entrevistados apareceram no longa-metragem.

4
Eduardo Coutinho morreu assassinado em 2014, pelo filho Daniel Coutinho, que sofria de esquizofrenia.

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A estrutura do filme se assemelha à de Jogo de Cena (2007): as filmagens são feitas


em um teatro vazio e não há imagens externas. Entretanto, dessa vez, ao contrário do filme de
2007, o entrevistador e a equipe estão posicionados de costas para a plateia, enquanto o
entrevistado senta de frente para eles e, consequentemente, de frente para a plateia. Esse
posicionamento, juntamente com o ambiente do palco, reforçam a ideia de encenação e a
dimensão ficcional presente em cada um.
Assim como em todos os filmes, em As Canções, Coutinho também determina as
circunstâncias nas quais o filme vai acontecer, com a intenção de produzir um ambiente para
as narrativas e fazer com que elas nos contem algo que vai além delas próprias. Gonçalves
(2012) destaca que “o silêncio, a luz e a ambiência de intimidade em torno da qual se
desenrola o filme têm uma função importante e são quase personagens” (GONÇALVES,
2012, p.153). Esses elementos, juntamente com a montagem, confeririam uma qualidade
particular aos depoimentos.
Algumas pessoas já aparecem cantando sua música e depois contam sua história.
Outras já são mostradas num processo inverso, primeiro contando sua história e depois
cantando e, eventualmente, voltam a conversar com o diretor. As tomadas são feitas em plano
médio e em close. Fábio Andrade (2013) acredita que em As canções não bastam apenas as
histórias e o canto: “é frequente a intromissão de Coutinho, tentando entender o que leva as
pessoas a ocupar aquela cadeira e o que elas tiram dessa experiência” (ANDRADE, 2013, p.
654). O autor ainda destaca que a primeira conversa do filme resume todas as duas intenções,
pois há “a beleza material e bruta do embargado por lágrima cujas razões àquela altura
desconhecemos e a pergunta de Coutinho se a personagem gostou ou não de cantar”
(ANDRADE, 2013, p. 654). O filme começa com uma mulher cantando Minha namorada, de
Vinícius de Moraes. Além de demonstrar as intenções do diretor, mesmo sem diálogo, apenas
através de suas expressões ao cantar – olhos fechados e respiração profunda em alguns
momentos – a primeira conversa também já traz a força dramática do filme.
O segundo personagem do filme é Gilmar, um homem que conta que era casado com
uma mulher evangélica e que tocava na igreja onde frequentava. Porém, depois que a esposa
morreu, foi impedido de participar da banda da igreja porque conheceu outra companheira,
mas não era casado. Coutinho então pergunta qual sua música, e ele diz que era Esmeralda, de
Carlos José. Depois de cantar uma parte da canção, Gilmar explica que sua mãe cantarolava a
música enquanto trabalhava como costureira, quando ele era criança. De repente, ele chora e
se diz constrangido, pois não esperava chorar naquele momento, que não sabia o porquê da
emoção, já que a canção traz uma lembrança boa, e que sua mãe ainda é viva e está bem. Nesse

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depoimento observa-se aquilo que Coutinho mais valorizava, que são as expressões
espontâneas, inesperadas dos entrevistados. “São instantes como esse que interessam ao
realizador, pela qualidade expressiva liberada na narrativa” (GONÇALVES, 2012, p.160).
Depois de Gilmar, entra José Barbosa, que pede para ser chamado de comandante
Barbosa e conta que como era oficial da marinha, viaja muito e frequentava a zona boêmia de
várias cidades, onde conheceu e cantou com Waldick Soriano e Orlando Dias, cantarolando
uma parte de uma canção de Orlando Dias logo em seguida. O comandante segue seu
depoimento falando sobre as mulheres, que se arrepende da forma como tratava sua esposa e
que hoje tenta se redimir. Ao final, ele pergunta se deve sair triste ou feliz do palco, e decide
sair triste. Enquanto anda em direção a saída, de costas para a câmera, canta uma canção,
gesticulando com os braços. Dá uma pausa, se vira para a câmera novamente e então
“desaparece” em meio à cortina preta. O que chama atenção nesse momento é como o
personagem toma o palco para si, principalmente no momento da saída, em que fica
demarcada sua encenação. Ao olhar para câmera antes de sair, tem-se a impressão de que o
personagem encena uma saída dramática, marcante, como se tivesse se despedindo do palco e
do momento.
Observou-se anteriormente que na fabulação a personagem se transforma durante a
narrativa, tornando-se outro, mas sem se tornar fictícia. Nesse sentido, Gonçalves (2012)
destaca a participação de Sônia, mulher que aparece no início do filme cantando e que depois
volta a aparecer dando seu depoimento. O autor afirma que sua aparição no início do filme,
como abertura, e sua participação subsequente, quando conta sua história, possuem caráter
diferente – a primeira vez é representando o tom do filme, a marca, e só depois é personagem.
Pode-se dizer que em ambas as formas em que ela se apresenta, sua encenação é resultado da
circunstância que Coutinho criou para o filme e também de sua própria fabulação.
Outro depoimento que chama a atenção pela qualidade da emoção posta em cena é o
de Lídia, uma mulher separada, que tem quatro filhos e que, quando tinha seus 30 anos,
tornou-se amante de um senhor de 70 anos. Conta que teve uma filha com ele, mas que logo
depois ele perdeu o interesse por ela. Lídia se emociona ao cantar a canção que marcou sua
vida, O tempo vai apagar, de Roberto Carlos e quase chora. A cena termina com a imagem da
cadeira vazia e com o som de seu choro atrás da cortina.
O filme segue com seus personagens contando suas histórias e cantando uma canção,
alguns apenas cantam, como Nilton, que canta Olha, de Roberto Carlos. O homem canta com
expressividade e de forma tão intensa, que talvez nenhuma fala seja capaz de transmitir ou
elucidar as sensações do personagem ao cantar e a dimensão que a canção tem sobre sua vida,

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sua história. Andrade (2013) destaca que o filme se modula de maneira diferente a cada
personagem.
É interessante, inclusive, como o filme se modulará de maneira diferente para cada
uma das personagens, por vezes dando primeiro o canto, seguido do relato, por
outras invertendo a ordem, ou, em casos mais radicais, se afirmando satisfeito
apenas com as canções, sabendo que elas carregam mistério mais forte sobre aqueles
rostos do que qualquer explicação será capaz de elucidar. (ANDRADE, 2013, p.654)

O singular de As Canções (2011) é o trabalho com as sensações que impregnam as


narrativas e não com as lembranças em si. A partir dessas sensações das lembranças vividas,
“as narrativas são transformadas nessas qualidades expressivas que vão servir de base para
construção do filme” (GONÇALVES, 2012, p.151). Eduardo Coutinho provoca seus
personagens a ativarem fragmentos de suas experiências e faz com que esses fragmentos se
tornem filme. Entretanto, o que o diretor ativa e transforma em arte não são as lembranças em
si, mas as sensações que as impregnam. Seguindo o pensamento de Deleuze e Guattari,
observa-se que o que perdura das experiências vividas são “blocos de sensações” – de dor,
alegria, saudade, amor. Portanto, quando os personagens fabulam, como acontece em As
Canções e em boa parte dos filmes de Coutinho, o que ganha concretude em forma de
narrativa e cuja rememoração é o canal, são esses blocos, essas sensações e são eles que
guiam as narrativas e as tornam singulares.
Observa-se ainda que a singularidade de As Canções (2011) vai além das conversas. O
fundo negro do palco em constraste com as roupas coloridas e os rostos, também impregna
sensações, ressignificando as conversas e a imagem. O filme faz parte de um movimento de
reeducação da percepção, iniciado pelo diretor em Jogo de Cena (2007), passando por
Moscou (2009), Um dia na vida (2010) e chegando ao filme de 2011, que fez emergir outras
possibilidades de cinema.
As Canções vem totalmente contaminado dessa necessidade de uma reeducação do
olhar que parece plenamente condensada nesse fundo preto, nessa cortina de teatro
que mal vemos como cortina. Há essa imagem recorrente das personagens que vêm
e retornam a essa escuridão – terreno que é tanto o fora do film quanto o fora da vida
– e que se traduz novamente, de maneira literal, no relato : as canções que marcam
são sempre um encontro com a morte, com a dor, com algo que já foi e não é mais, e
ao qua é preciso retornar como aprendizado para seguir em frente, vivo até não se
estar mais (o filme, muito apropriadamente, termina com a cadeira vazia). Estar em
cena é, sobretudo, um rito. (ANDRADE, 2013, p.655).

A música é um elemento recorrente na obra de Coutinho. Em diversos filmes, como


Santo Forte (1999), Edifício Master (2002) e Jogo de Cena (2007), podemos ver personagens
se expressando através de canções, cantando e contando sobre músicas que marcaram suas
vidas. Em As Canções (2011) o diretor traz esse elemento para o centro da cena, sendo agora

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o tema principal do filme. No entanto, As Canções não é apenas um documentário sobre


música e memória, mas sobre sensações e intensidades que são guardadas nas lembranças das
pessoas e que, ao se transformarem em narrativas – histórias e canções –, tornam-se, aos olhos
de Coutinho, um expressivo motivo para se fazer um filme.

Considerações finais
As formas de abordar e trabalhar com o realismo foram variando historicamente. No
século XIX, a estética realista foi recuperada pelas micronarrativas em primeira pessoa,
valorizando assim o lugar de fala do narrador, sua proximidade com o fato narrado. No século
XX, o realismo passou a ser trabalhado de outra forma, agora com o foco voltado para a
atuação do narrador durante a narrativa, ou seja, o foco passou a ser a realidade da encenação
e não a do fato narrado.
Na década de 1960, o cinema-verdade trouxe essa valorização dos depoimentos orais
para o documentário. Ao colocar a entrevista em evidência, também passou a trabalhar com a
interação entre quem filma e quem é filmado e com a ideia de que a realidade levantada pelo
documentário, dito como “cinema do real”, é a realidade dessa interação, da atuação do
entrevistado nesse encontro. O cineasta Eduardo Coutinho identificava-se fortemente com o
cinema-verdade e tinha como matriz de seus documentários algumas características presentes
no realismo do início do século XX. O diretor, além de valorizar as narrativas em primeira
pessoa de indivíduos comuns, também seguia o pensamento de que o documentário não trazia
uma realidade objetiva, já pronta, mas uma realidade construída pelo encontro entre
entrevistador e entrevistado, diante da câmera. Coutinho então fazia questão de mostrar o
processo de enunciação ao espectador, como caráter de credibilidade, e se interessava mais
pela encenação durante a narrativa do que pela história contada.
Em seus filmes, Coutinho determina algumas regras e cria condições ideais no
momento da filmagem que, juntamente com a montagem, conferem uma qualidade particular
aos depoimentos, dando-os singularidade. Além disso, a maneira de o diretor conduzir a
entrevista e se relacionar com o entrevistado também contribuem para sua vitalidade.
Contudo, observa-se que não são apenas esses elementos que contribuem para o diferencial
dos documentários do cineasta. A partir da interação criada entre Coutinho e seus
personagens, emerge uma dimensão fabuladora, em que as intensidades e as sensações que
surgem das narrativas são mais importantes do que elas próprias.
A fabulação pode ser observada na maioria dos filmes de Coutinho, mas As Canções
(2011), em que pessoas narram suas experiências com determinadas músicas, chama a

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atenção por colocar isso mais em evidência, por trazer para o centro da cena, através de
canções, essas intensidades. Portanto, a partir da análise do documentário, observa-se que o
cinema de Eduardo Coutinho é sensorial. Não é apenas um cinema sobre histórias de vida de
pessoas comuns, mas sobre sensações que são transformadas em narrativas, seja em história
ou em música. É a capacidade de Coutinho de transformar sensações e intensidades em filme
que lhe confere singularidade em um mundo onde há intensa disseminação e valorização de
narrativas pessoais, de histórias de vida.

Referências

ANDRADE, Fábio. O canto dos mortos: As Canções de Eduardo Coutinho. . In: OHATA, Milton
(org). Eduardo Coutinho. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 649- 657

COUTINHO, Eduardo. O cinema documentário e a escuta sensível da alteridade. In: OHATA, Milton
(org). Eduardo Coutinho. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 21- 47

DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. Vol.2. São Paulo: Brasiliense, 2005, 344p

DI TELLA, Andrés. O documentário e eu. In: MOURÃO, Maria Dora; LABAKI, Amir (org). O
cinema do real. São Paulo: Cosac Naify, 2005, p .95-114

FIGUEIREDO, Vera Lúcia Follain de. Narrativas migrantes: literatura, roteiro e cinema. Rio de
Janeiro: PUC-Rio: 7 Letras, 2010, 284p

GONÇALVES, Fernando do Nascimento. As Canções: fabulação e ética da invenção em Eduardo


Coutinho. In: Revista Significação, nº 38, ano 39, 2012, p.147-171

LINS, Consuelo. O cinema de Eduardo Coutinho: uma arte do presente. In: BENTES, Ivana (org).
Ecos do Cinema: de Lumière ao digital. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007, p. 235-254

_____. O cinema de Eduardo Coutinho: entre o personagem fabulador e o espectador-montador. In:


OHATA, Milton (org). Eduardo Coutinho. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 375-388

MUSSE, M. F. Margens nada plácidas: documentário, entrevista, identidades e alteridade, 2012.


Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2012, 141p

XAVIER, Ismail. Indagações em torno de Eduardo Coutinho e seu diálogo com a tradição moderna.
In: MIGLIORIN, Cézar (org). Ensaios no real: o documentário brasileiro hoje. Rio de Janeiro:
Beco do Azougue, 2010, p. 65- 79

Filmografia

As Canções (2011). Direção Eduardo Coutinho

Cabra Marcado para Morrer (1964/1984). Direção Eduardo Coutinho

Edifício Master (2002). Direção Eduardo Coutinho

Jogo de Cena (2007). Direção Eduardo Coutinho

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Moscou (2009). Direção Eduardo Coutinho

Um dia na vida (2010). Direção Eduardo Coutinho

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MULHERES POR ELES E POR ELAS:


Representação feminina nas maiores bilheterias no Brasil em 2016 1

Laryssa Moreira Prado2


Caroline Marino3
Nara Reis4
Universidade Federal de Juiz de Fora

Resumo

A figura feminina está presente em grande parte das histórias que o cinema conta. Entretanto,
quando se trata de representatividade, as mulheres ainda são subjugadas tanto na telona quanto
por trás das câmeras. Embora mais da metade da população brasileira seja feminina, a Agência
Nacional do Cinema (Ancine) reconheceu a baixa participação de mulheres no audiovisual. O
presente artigo objetivou, por meio metodologia da Análise da Materialidade Audiovisual,
conceitos apresentados pelo Teste de Bechdel, Teste Russo e questões interseccionais,
investigar a representação feminina em quatro filmes nacionais, sendo as duas maiores
bilheterias dirigidas por homens e as duas maiores bilheterias dirigidas por mulheres no ano de
2016. A análise concluiu que existe maior possibilidade de representatividade feminina quando
um filme é dirigido por uma mulher, porém, não pode-se dizer que é uma regra. A construção
da personagem feminina nos filmes ainda é sexista, sejam eles dirigidos por homens ou
mulheres.

Palavras-chave: Cinema Brasileiro; Representação de Gênero; Representação Feminina; Teste


de Bechdel.

WOMEN BY THEM: Female representation at the biggest box office in Brazil in 2016

Abstract

The female figure is present in most of the stories that cinema tells. However, when it comes to
representativeness, women are still subjugated both on the big screen and behind the cameras.
Although more than half the Brazilian population is female, the Agência Nacional do Cinema
(Ancine) has acknowledged the low participation of women in the audiovisual sector. This
article aimed to investigate the representation of women in four national films, through the
methodology of the Analysis of Audiovisual Materiality, concepts presented by the Bechdel
Test, Russian Test and intersectional questions, with the two biggest box office directed by men
and the two biggest box office directed by women in the year 2016. The analysis concluded that
there is greater possibility of female representation when a film is directed by a woman, but it
can’t be said to be a rule. The construction of the female character in the movies is still sexist,
whether directed by men or women.

Keywords: Brazilian Cinema; Gender Representation; Female Representation; Bechdel Test.

1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Cinema e Audiovisual, do XI Encontro dos Programas de Pós-
Graduação em Comunicação Social de Minas Gerais, 18 e 19 de outubro de 2018.
2 Jornalista. Mestranda, UFJF-PPGCOM, laryssaprado@live.com
3 Jornalista. Mestranda, UFJF-PPGCOM, carolinemarinop5@gmail.com
4 Jornalista. Mestranda, UFJF-PPGCOM, narajack7@gmail.com

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Introdução
Como aponta Valquíria Michela John (2014), historicamente, a mulher ocupa um lugar
de inferioridade na organização social e durante quase toda a história da humanidade foi
preparada exclusivamente para criação de filhos e afazeres domésticos. “Somente nos últimos
dois séculos, sobretudo no século XX, as mulheres começaram a conquistar outros espaços até
então exclusivos do sexo masculino, como o direito ao voto e o acesso ao mercado de trabalho”
(JOHN, 2014, p. 500). Entretanto, apesar dos avanços, a equidade entre os gêneros ainda não é
vivenciada em sua plenitude na sociedade contemporânea.
Embora representem maioria numérica6 da população brasileira, as mulheres são
consideradas minoria em termos representativos, também nas narrativas audiovisuais, como o
cinema – foco de análise deste texto. Temer e Lima relembram que: “O machismo, pensamento
da supremacia masculina, baseia-se em afirmar a superioridade masculina e reforçar a
inferioridade da mulher em várias formas de discurso: filosófico, científico, religioso, jurídico
e até mesmo popular” (TEMER, LIMA, 2016, p. 4). Essa hegemonia masculina ainda se reflete
nas produções cinematográficas, que contribuem na construção da imagem de homens e
mulheres tomando por base definições tradicionais de feminilidade e masculinidade.
Neste tipo de categorização binária, é que são atribuídos papeis e valores exclusivos ao
homem e a mulher, que são repassados de geração em geração. Tais valores contribuem
significativamente para a desigualdade de gênero. Joan Scott ao conceituar o que é “gênero”
explica que o termo indica construções culturais, “uma forma de se referir às origens
exclusivamente sociais das identidades subjetivas de homens e de mulheres”. (SCOTT, 1995,
p. 75). A autora (1995, p. 82) salienta que o modo pelo qual as sociedades representam o gênero
articula relações e regras sociais, além de ser uma das referências pelas quais relações de poder
se estabelecem. Scott afirma então que “O gênero é uma forma primária de dar significado as
relações de poder. Seria melhor dizer: o gênero é um campo primário no interior do qual, ou
por meio do qual, o poder é articulado” (SCOTT, 1995, p.88).
Se pensarmos no cinema também como um espaço favorável para a circulação de
discursos, é impossível negar que as narrativas veiculadas pelo mesmo ocupam um papel
relevante nas relações de poder – inclusive nas definições de identidade e de gênero – uma vez
que o cinema é um dos responsáveis por difundir ideologias e representações que tendem a
reforçar estereótipos socialmente construídos. De acordo com John (2014), ao levar em conta
que “as relações de gênero não são naturais e sim construídas social e historicamente, o discurso
atua decisivamente na construção de nossas representações quanto ao mundo e quanto às
atribuições dos papéis de homens e mulheres” (JOHN, 2014, p. 501).

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O domínio do olhar masculino no cinema canônico


A figura feminina está presente em grande parte das histórias que o cinema conta.
Entretanto, quando se trata de representatividade, as mulheres ainda são subjugadas tanto na
telona quanto por trás das câmeras. Embora mais da metade da população brasileira seja
feminina, a Agência Nacional do Cinema (Ancine) reconheceu a baixa participação de mulheres
no audiovisual4.
De acordo com pesquisa divulgada pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação
Afirmativa (G.E.M.A.A., 2015), 86,3% dos filmes nacionais, entre 2002 e 2012, foram
dirigidos por homens, que também assinaram 72% dos roteiros. Outro levantamento, realizado
pela Ancine5, mostra que das 2.583 obras audiovisuais registradas em 2016, apenas 17% foram
dirigidas por mulheres – sem nunca ultrapassar 24% de todas as produções, recorde observado
em 2012.
Essa não é apenas uma tendência nacional. Ao avaliar as 100 maiores bilheterias de
2015 nos Estados Unidos – país líder na produção cinematográfica mundial –, a pesquisa Media,
Diversity, & Social Chance Initiative6 – realizada pela USC Annemberg School for
Communication and Journalism – chegou a um resultado semelhante. Dos 4.370 personagens
falantes ou nomeados, apenas 31,4% eram do sexo feminino. Não houve mudança significativa
deste valor desde 2007. Quando se trata da equipe de produção, a mesma pesquisa mostra que
dos 1.365 diretores, escritores e produtores desta lista composta por 100 filmes, apenas 19%
eram mulheres.
Na premiação de Cannes, realizada no dia 12 de maio de 2018, 82 mulheres fizeram um
protesto contra a desigualdade de gênero na indústria cinematográfica. A presidente do júri,
Cate Blanchett, e a diretora Agnès Varda, lideraram o grupo. O número de manifestantes fez
referência à participação feminina desde a primeira edição de Cannes, em 1946: apenas 82
filmes dirigidos por mulheres foram selecionados para a competição principal, conta 1.645
filmes dirigidos por homens. Entre os 21 títulos que competem pela Palma de Ouro em 2018,
apenas três tem diretoras mulheres. Durante o protesto, Varda e Blanchett leram um

5
Pesquisa da Ancine confirma pequena presença feminina no audiovisual. Disponível em:
http://agenciabrasil.ebc.com.br/cultura/noticia/2017-04/pesquisa-da-ancine-confirma-pequena-presenca-
feminina-na-producao. Acesso em: 20 ago. 2017.
6 Pesquisa Media, Diversity, & Social Chance Initiative. Disponível em:
http://annenberg.usc.edu/pages/~/media/MDSCI/Dr%20Stacy%20L%20Smith%20Inequality%20in%20800%2
0Films%20FINAL.ashx. Acesso em: 21 ago. 2017.

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comunicado no qual defenderam a importância da paridade salarial e de ambientes de trabalho


diversos e igualitários7.
Ao observar a predominância do sexo masculino nos mais diversos setores da produção
cinematográfica, e entendendo que “o cinema, como outras mídias, funciona como um produto
de base da sociedade contemporânea, participando da psiquê da comunidade, da consciência e
da experiência dos indivíduos” (GUTFREIND, 2006, p.2), pode-se entender que, como aponta
a diretora da Ancine, Debora Ivanov (2017), “o olhar que vai construir o imaginário de nossa
sociedade e novas gerações, é masculino”.
De acordo com Makowiecky, “a representação é uma referência e temos que nos
aproximar dela, para nos aproximarmos do fato. A representação do real, ou o imaginário é, em
si, elemento de transformação do real e de atribuição de sentido ao mundo” (MAKOWIECKY,
2003, p.4). Enquanto representação, o cinema – e aqui trata-se especialmente do modelo
canônico – ao tentar reproduzir a realidade, cria, para seu espectador, um panorama de como
esta se configura. E, ao valorar e explorar as experiências e formações que cercam o indivíduo,
o cinema acaba por ajudar a construí-lo, como também aborda Stuart Hall (2002), que defende
a identidade como uma construção histórica, e não biológica, passando por transformações
contínuas, diretamente ligadas às formas pelas quais o sujeito se vê representado nos sistemas
culturais existentes.
Sendo a cultura o espaço do qual emergem as mediações, configurando-se como espaço
privilegiado do estudo da constituição do sujeito, como também apresenta Martín-Barbero
(2001), seu conteúdo propicia uma negociação entre o receptor e o filme. O primeiro interage,
interpreta e reelabora as informações e imagens, que podem ser meios de fortalecimento da
moral vigente, de conformidade, ou de evasão, mas sempre associado a valores por meio da sua
ressignificação de discursos.
Rosa Maria Fischer (2001) complementa o que é apresentado por Hall e Martín-Barbero
ao considerar que “a mídia é um lugar privilegiado de criação, reforço e circulação de sentidos,
que operam na formação de identidades individuais e sociais, bem como na produção social de
inclusões, exclusões e diferença” (FISCHER, 2001, p. 588).
Tendo todos estes fatores em mente, e posto que a representação do feminino, na maioria
das vezes, vem pelo olhar masculino, “sendo ainda marcada por uma relação de poder em que
o homem é tido como mais forte, equilibrado e responsável pela mulher e, por outro lado, muitas

7
Agnès Varda e Cate Blanchett lideram protesto de 82 mulheres no Festival de Cannes. Disponível em:
http://mulhernocinema.com/destaques/no-tapete-vermelho-mulheres-protestam-contra-desigualdade-em-cannes-
e-no-cinema/. Acesso em: 12 maio 2018.

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vezes, o discurso feminino será considerado como menos importante” (MAGALDI;


MACHADO, 2016, p. 253), ressalta-se a importância de voltar-se ao cuidado com a
representação feminina na Sétima Arte.
O modo como o cinema representa a mulher influenciará o modo como esta é vista por
si mesma e pelos outros na sociedade. Por estes fatores é importante investigar como as
personagens femininas estão sendo representadas, tanto a partir dos olhares de homens, que
dominam o setor, como também das próprias mulheres (do qual espera-se um contraponto ao
male gaze).
A partir de uma matriz que leva em consideração o objetivo do trabalho e as teorias que
dão embasamento ao mesmo – metodologia da Análise da Materialidade Audiovisual, conceitos
apresentados pelo Teste de Bechdel e Teste Russo – o propósito deste artigo foi investigar a
representação feminina em quatro filmes nacionais, sendo as duas maiores bilheterias dirigidas
por homens e as duas maiores bilheterias dirigidas por mulheres no ano de 2016. Os filmes
analisados foram: “Os 10 Mandamentos – O Filme” (Brasil, 2016, direção de Alexandre
Avancini) e “Minha Mãe é uma Peça 2” (Brasil, 2016, direção de César Rodrigues) dirigidos
por homens, e “É fada!” (Brasil, 2016, direção de Cris D’Amato), “Um namorado para a minha
mulher” (Brasil, 2016, direção de Júlia Rezende), dirigidos por mulheres.
Como mais uma amostra da baixa representatividade feminina no cinema, entre os 20
filmes nacionais com maior bilheteria em 2016, existem apenas duas produções realizadas por
diretoras mulheres8.

Metodologias de Análise
Para a realização desta pesquisa, três metodologias embasaram o suporte teórico
analítico. Foram elas: a Análise da Materialidade Audiovisual, Teste de Bechdel e o Teste
Russo.
A escolha pela Análise da Materialidade Audiovisual, metodologia desenvolvida no
âmbito do Núcleo de Jornalismo e Audiovisual (CNPq-UFJF) mas não exclusiva a temas que
giram em torno do jornalismo, se faz pertinente já que assim seria possível a análise mais
completa acerca das especificidades da narrativa audiovisual e sua relação com as questões de
pesquisa, na medida em que não haveria uma preocupação prévia com a tradução do vídeo em
outros códigos para responder a um protocolo investigativo. Iluska Coutinho (2016) propõe que
é necessário ao escolher o objeto de pesquisa, fazer um levantamento das demandas a serem

8
“É fada!” (Brasil, 2016, direção de Cris D'Amato)”, 4ª posição; e “Um namorado para a minha mulher” (Brasil,
2016, direção de Júlia Rezende), 9ª posição.

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analisadas, de modo a construir em diálogo com os referenciais do estudo uma ficha de análise
que contenha as perguntas que respondam ao problema de pesquisa. Esse olhar integrado na
entrevista do objeto empírico permitiria assim realizar a parte da análise propriamente dita,
observando sempre a complexidade do material audiovisual. “Nessa perspectiva poderíamos
considerar que o pesquisador comporta-se em certo sentido como um telespectador
privilegiado, que desvela estratégias, modos de dizer e sentidos, explícitos ou silenciados, nas
narrativas audiovisuais que analisa”. (COUTINHO, 2016, p. 9). A autora defende ainda que
deve-se observar a unidade dos cinco elementos audiovisuais texto som + imagem + tempo +
edição a fim de se ter uma investigação mais fiel à natureza audiovisual do objeto.
O presente artigo apropriou-se desta metodologia para o recolhimento de registros que
permitam a verificação e detalhamento dos resultados adquiridos pelos objetos, como se fosse
um espelho de avaliação para ser compreendido pelo analista. Para tal, foi desenvolvida uma
tabela – matriz de avaliação – com a junção dos critérios dos Teste de Bechdel e do Teste Russo.
O Teste de Bechdel foi criado em 1985, pela cartunista Alison Bechdel, com o objetivo
de mensurar concepções de gênero integrantes do discurso cinematográfico. Para que um filme
seja aprovado no teste é necessário que ele atenda a três critérios: 1) ter ao menos duas
personagens femininas nomeadas; 2) que conversem entre si; 3) sobre algo não relacionado ao
sexo masculino.
Visto a complexidade da materialidade, adotou-se também dois itens do Teste Russo,
desenvolvido em 2013 pela Gay & Lesbian Alliance Against Defamation (GLAAD). Os
critérios adotados foram: 1) a personagem não deve ser exclusiva ou predominantemente
definida pela sua orientação sexual ou identidade de gênero; e 2) deve estar vinculada na trama
de tal forma que sua remoção teria um efeito significativo.
Para a aplicação dos métodos analíticos considerou-se personagens mulheres que, nas
produções, têm falas – dialogam – ou são nomeadas. Foram realizadas aferições quantitativas
para obtenção de resultados, levando em consideração os seguintes eixos de avaliação, gerados
a partir das metodologias já descritas: 1) Quantas personagens mulheres existem no filme? 2)
Apresenta pelo menos duas nomeadas? 3) Quantas são falantes? 4) As personagens conversam
entre si? 5) As conversas são sobre relações afetivas e domésticas? 6) As personagens são
exclusiva ou predominantemente definidas pelo seu sexo? 7) As personagens estão vinculadas
na trama de tal forma que sua remoção teria um efeito significativo?
Além das categorias de análise descritas acima, nos eixos de avaliação, serão incluídas
também questões interseccionais. Rebeca Solnit reflete acerca de diferentes tipos de
silenciamentos que permeiam o coletivo “mulheres”. Ela reforça que “a categoria mulheres é

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uma longa avenida que cruza com várias outras, entre elas classe, raça, pobreza e riqueza.
Percorrer esta avenida significa cruzar outras e jamais significa que a cidade do silêncio tem
apenas uma rua ou uma rota importante” (SOLNIT, 2017, p. 35). O exemplo das avenidas que
se cruzam apresentado por Solnit traz à tona a urgência de se evidenciar as diferenças entre
mulheres, sobretudo na questão racial.
Djamila Ribeiro (2017, p. 41), filosofa brasileira, aponta que ao se tratar a categoria
“mulher” como algo universal, sem marcar as diferenças existentes, faz-se com que somente
uma parte seja vista. Quando se pensa em representação das mulheres no cinema, é preciso
pontuar a questão racial. Onde estão as mulheres negras nas narrativas? Djamila ressalta a
importância de um olhar interseccional para estas questões.
Tirar essas pautas da invisibilidade e um olhar interseccional mostram-se muito
importantes para que fujamos de análises simplistas ou para se romper com essa
tentação de universalidade que exclui. A reflexão fundamental a ser feita é perceber
que, quando pessoas negras estão reivindicando o direito a ter voz, elas estão
reinvindicando o direito à própria vida. (RIBEIRO, 2017, p. 43).

Partindo desses referenciais teóricos, foram montados os eixos de avalição, como prevê
a análise da materialidade audiovisual.

Análise dos filmes dirigidos por homens com maiores bilheterias em 2016

Os Dez Mandamentos
O Filme “Os Dez Mandamentos” (2h), cujo gênero flutua entre Drama/Épico/Histórico,
foi lançado pela Record Filmes em parceria com a Paris Filmes, em 2016. De acordo com dados
divulgados pela Ancine, o filme obteve destaque por se tornar a obra com o maior número de
espectadores de toda a série histórica do SADIS (Sistema de Acompanhamento da Distribuição
em Salas). Com um público de 11,3 milhões, a obra ultrapassou “Tropa de elite 2”, cuja marca
não era superada desde 2010. Os dados de sua bilheteria foram alvo de diversas polêmicas, uma
vez que foi noticiado em vários veículos que igrejas adquiriram grande parte dos ingressos que
não foram totalmente repassados ao público. Portanto, o número de espectadores é uma
incógnita.
Dirigido por Alexandre Avancini, o filme é uma adaptação de uma história bíblica e da
novela homônima apresentada pela Rede Record em 2015. O enredo gira em torno de Moisés,
um Hebreu que, acolhido pela filha do faraó ainda bebê, cresce como príncipe do Egito, mas
volta-se contra sua família adotiva em favor do povo de Israel, que por ele deverá ser conduzido
à libertação.

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Por ser uma adaptação da novela, uma trama longa com muitos capítulos e
desdobramentos, o filme acelera os acontecimentos e acaba por aprofundar pouco a narrativa
na construção dos personagens. Por isso, algumas mulheres aparecem em uma ou duas cenas e
não chegam a ser nomeadas, mas possuem alguma fala ou papel na construção da sequência.
Outras são apenas figurantes que compõem o cenário, já que em alguns momentos do filme
aparecem multidão ou o palácio de Faraó, estas não entram no presente escopo de análise.
No que tange à representação feminina, o filme contabiliza 14 personagens mulheres,
sendo 13 falantes e oito nomeadas. Mas apenas quatro participam ativamente da história, sendo
elas: Joquebede – mãe biológica de Moisés –, Miriã – irmã de Moisés –, Henutmire – princesa
egípcia que adotou Moises – e Ynut – que contou a ele sua origem – , a partir disto Moisés
decide reencontrar sua família de sangue e a trama se desencadeia.
Poucos são os diálogos entre as personagens femininas e raras vezes as conversas não
giram em torno do personagem masculino. As outras personagens femininas que compõem a
narrativa não estão vinculadas na trama de tal forma que sua remoção teria um efeito
significativo. Algumas servem apenas de trampolim para que se construa a imagem dos
personagens masculinos.
A maioria das personagens femininas é definida exclusivamente pelo seu sexo. As mães
de Moisés são caracterizadas pela maternidade e Zípora e Nefertari pelo fato de serem esposas.
Miriã é definida exclusivamente pelo fato de ser mulher, uma vez que é ela quem acompanha a
mãe na gravidez e isso seria uma tarefa do “universo feminino”, já que Joquebede tem outro
filho que não participou efetivamente destes momentos. As seis irmãs de Zípora também são
necessariamente mulheres pelo contexto da época e do momento em que se encontram em cena,
Moisés as protege de homens que as insultam enquanto elas pastoreiam ovelhas. Isso não
aconteceria se uma delas fosse um homem. A única personagem feminina que não é definida
pelo sexo é Leila, uma hebreia que trabalha no palácio e faz a ponte entre Moisés e sua família
de sangue.
Não há nenhuma personagem negra na narrativa.

Minha Mãe é uma Peça – 2


Lançado em 22 de dezembro de 2016 e com direção de César Rodrigues, o filme “Minha
Mãe é uma Peça 2” (1h36minutos) foi roteirizado por Paulo Gustavo e Fil Braz. É a continuação
do filme “Minha Mãe é Uma Peça”, de 2013, baseado da peça de teatro homônima.
Dona Hermínia retorna como apresentadora de tevê, porém, sua personalidade continua
a mesma. Sempre preocupada com seus filhos e mostrando a difícil tarefa de ser mãe. Neste

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filme, Hermínia vive uma nova fase, já que seus filhos buscam a independência e ela terá que
descobrir como viver sem eles por perto.
Partindo para a análise, verificou-se 24 personagens femininas, sendo 12 nomeadas e 15
falantes. As conversas que guiam o enredo do filme são predominantemente sobre o cuidado
excessivo que Hermínia tem com seus filhos e a possibilidade da protagonista encontrar um
namorado. Em seus diálogos, Hermínia, Iesa e Lucia Helena, que são irmãs, falam
eminentemente sobre filhos e namorados. Hermínia e Tia Zélia, que tem mal de Alzheimer,
também conversam entre si e falam sobre assuntos que remetem à família.
Hermínia e sua filha Marcelina dialogam sobre a vontade da mesma se mudar do Rio de
Janeiro para São Paulo para trabalhar como atriz. A protagonista, diz que Marcelina não tem
corpo para a carreira e afirma ser contra a mudança. Outro momento de destaque na trama,
enquanto representação feminina, é quando Hermínia aceita a ida de Marcelina e vai para a
boate com os filhos. Neste ambiente de festa, começa uma busca incessante para encontrar um
homem para sua caçula. Ou seja, os diálogos mesmo que em algum momento tentam distanciar-
se de assuntos afetivos, voltam-se ao círculo de temas estereotipados.
Dentre as 24 personagens, seis são definidas pelo seu sexo. E apenas cinco personagens,
caso fossem removidas da trama, teriam algum efeito significativo. São elas: Hermínia,
Marcelina, Lucia Helena, Iesa e Tia Zélia. Também foi possível averiguar que não existe
nenhuma mulher negra dentro da trama.
Nesta análise, foi possível perceber que, por se tratar da representação de uma mãe como
protagonista, os assuntos que permeiam o universo maternal prevalecem. E por ela ser separada,
diálogos sobre namoro e casamento também são predominantes. Os filhos são a razão pelo qual
a personagem vive, e isso é evidenciado no filme. Além de Marcelina, Juliano e Garib, Hermínia
volta-se também para seu trabalho como apresentadora de um programa de TV, porém,
reforçando os estereótipos da maternidade, o mesmo é uma espécie de consultoria para mães e
donas de casa.

Análise dos filmes dirigidos por mulheres com maiores bilheterias em 2016

É Fada
Baseado no livro “Uma Fada Veio Me Visitar”, da escritora Thalita Rebouças, “É Fada”
é um filme brasileiro lançado em 06 de outubro de 2016, com a direção de Cris d'Amato.
Durante 1h25 minutos, o enredo gira em torno de Júlia (Klara Castanho) e Geraldine (Kéfera
Buchmann). Júlia é uma adolescente criada pelo pai e acaba de trocar de escola. Pouco popular,

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ela precisa lidar com as novas colegas de turma. Geraldine é uma fada atrapalhada que perdeu
suas asas após fracassar em uma série de missões. Para recuperá-las, precisa ajudar Júlia em
sua vida social e amorosa. “É Fada” marca a estreia da YouTuber Kéfera Buchmann no cinema.
A atriz totaliza mais de 30 milhões de seguidores em suas redes sociais.
A partir da matriz de análise da presente pesquisa, quando se trata da representação
feminina em “É Fada”, foram contabilizadas 18 mulheres, sendo nove nomeadas, e oito
falantes. Entretanto, a trama foca-se em apenas seis. Todas as cenas de diálogos entre mulheres
envolvem estas personagens, que, para a melhor compreensão da análise, foram divididas em
três núcleos: Geraldine e Júlia; Júlia e Alice; Júlia, Veronica, Ingridy e Priscila.
No primeiro núcleo, que ocupa a maior parte da narrativa, todos os diálogos entre
Geraldine e Júlia envolvem a ascensão social da jovem em meio a seus pares, o que se resume
a questões estéticas e relações afetivas. O segundo núcleo, composto por Júlia e Alice, apresenta
uma narrativa conflituosa entre mãe e filha, que em grande parte das vezes volta-se para a
questão da criação. No enredo, Alice abandonou Júlia para poder estudar fora, e então, a menina
foi criada pelo pai.
No terceiro núcleo, Veronica, Ingridy e Priscila compõem o grupo de meninas do qual
Júlia quer se inserir, e ao mesmo tempo, são as vilãs da trama. As cenas são majoritariamente
coletivas, apenas as duas primeiras personagens tem momentos de diálogo individuais com
Júlia, mas em suma, as meninas tratam de padrões de comportamento, relações amorosas e
questões estéticas.
Assim, é possível notar que todas as personagens de destaque, nos três núcleos, são
definidas por seu sexo: a fada, a adolescente sonhadora, a mãe e as amigas/inimigas. Este fator
leva à reprodução de estereótipos e reforço das diferenças entre homens e mulheres, fazendo
com que haja uma abordagem sexista. Já que nenhum homem poderia estar em seus lugares,
existe uma padronização da identidade das personagens.
Não há nenhuma personagem feminina negra na narrativa. Ressalta-se que a trama se
desenvolve, principalmente, em uma escola particular em um bairro nobre do Rio de Janeiro,
também transitando pela periferia. É difícil perceber até mesmo a presença de figurantes negras.

Um Namorado Para Minha Mulher


Lançado em 01 de setembro de 2016, e dirigido por Julia Rezende, o filme “Um
Namorado Para Minha Mulher” tem duração de 1h40minutos e é classificado como um longa
de ficção/comédia.

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A história é baseada no filme argentino “Um namorado Para Minha Esposa” (2008), de
Juan Taratuto, a partir do roteiro de Pablo Solarz, que já ganhou versões também na Itália e no
México. No Brasil a trama conta a vida de Chico que após 15 anos de casado com Nena, está
cansado da rotina do casamento e quer se separar. Sem coragem para pedir o divórcio, decide
contratar o “Corvo”, um homem charmoso e profissional na arte de conquistar as mulheres,
para seduzir sua esposa e fazer com que ela peça a separação em seu lugar.
Nena ameniza um pouco do machismo exacerbado do roteiro original ao se colocar na
função de YouTuber com seu discurso ácido e crítico perante temas como o descontentamento
dos grupos de WhatsApp, os estereótipos de beleza em relação a mulher com mais de 40 anos
e comportamentos pré-estipulados pela sociedade nessa faixa etária. Nota-se no filme um
avanço quando se pensa em empoderamento feminino, pois a trama sugere que a felicidade da
mulher não está única e exclusivamente ligada ao seu parceiro amoroso, porém, a também traz
um pensamento regressista quando repete o final do longa argentino: apesar de sua
independência e sucesso, a protagonista necessita do marido para sentir-se completa.
No enredo existem oito personagens femininas, sendo sete nomeadas e seis falantes. É
interessante destacar que a maioria das mulheres nomeadas são chamadas por apelidos. Quanto
aos diálogos, as mulheres falam sobre dietas, exercícios físicos, relações afetivas, com quantos
homens cada uma já transou na vida e sobre o sucesso de Nena como Youtuber.
Se observa que a relação que as personagens femininas têm entre si gira em torno do
que seria o estereótipo do “universo feminino”. Logo, elas são definidas pelo seu sexo, ou pelos
pré-conceitos que o definem socialmente.
Sobre a relevância da remoção de alguma personagem, apenas a ausência de Nena
prejudicaria o desenvolvimento da história contada, visto que se trata da sua própria história.
Todas as outras mulheres da trama são substituíveis ou irrelevantes dentro do longa-metragem,
visto as suas curtas falas, pouca aproximação com os protagonistas e com o próprio enredo.
Nena é a única personagem feminina autossuficiente que rege todo o filme e conduz a história.
Por fim, é importante também destacar a ausência de personagens negras no filme, o que
caracteriza a não representatividade dessa categoria.

Considerações Finais
O primeiro fato que chama atenção no desenvolvimento desta pesquisa é que, mesmo
antes de iniciá-la, já na escolha dos objetos de análise, a baixa representatividade feminina pode
ser percebida. A intenção de analisar seis filmes entre as maiores bilheterias no Brasil em 2016,
sendo três filmes dirigidos por homens e três por mulheres, não foi possível, visto que na lista

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produzida pela Ancine, entre os 20 maiores sucessos de bilheteria no país, apenas dois tiveram
uma direção feminina. Ou seja, 90% das maiores bilheterias de filmes brasileiros foram
produzidas a partir de um olhar masculino. Sendo assim, alterou-se o corpo de análise para
quatro filmes, dois dirigidos por homens e dois por mulheres.
Entre os dois filmes analisados que foram dirigidos por homens, nenhum seria aprovado
no Teste de Bechdel, mesmo com as alterações propostas para este artigo.
De 38 personagens femininas presentes nas narrativas, apenas 20 são nomeadas e 28
falantes. Das personagens que têm maior relevância, apenas nove causariam impacto no enredo
caso não estivessem presentes. Isso significa que 76% das mulheres que compõem as tramas
não estão vinculadas e elas de tal forma que sua remoção teria um efeito significativo. Numa
perspectiva quantitativa, 29 personagens femininas estão à frente de momentos ou situações
que não acrescentam conteúdo essencial ao desenvolvimento da narrativa.
Sobre a estereotipia do gênero, foi identificado que o fato de ser mulher é de extrema
importância na determinação da relevância da personagem na trama. As mulheres presentes nos
enredos geralmente são suportes para os/as protagonistas. Sendo assim, 19 personagens
femininas (50% do total) presentes nas duas obras são exclusiva ou predominantemente
definidas pelo seu sexo. Isto é, nenhum homem poderia assumir o papel que elas fazem, o que
caracteriza uma abordagem sexista.
Nos filmes dirigidos por mulheres, esperava-se que houvesse um avanço em termos de
representação, distanciando-se do male gaze. Porém, após as análises, bem como no caso dos
filmes dirigidos por homens, nenhum dos filmes analisados seria aprovado com honras no Teste
de Bechdel. De 26 personagens femininas presentes nas narrativas, apenas 16 são nomeadas e
14 falantes. A maior parte das conversas entre elas gira em torno de relações afetivas
heteronormativas (assim, envolvendo um homem no escopo do assunto) ou a respeito de
temáticas socialmente elencadas como do “universo feminino”: bem como dietas ou mudanças
no visual. Tais dados sugerem que garantir representação não é garantir representatividade.
Quando o critério diz respeito à relevância destas personagens nas narrativas, apenas
sete delas teriam um impacto no enredo caso não estivessem presentes, ou seja, 73% das
personagens são dispensáveis à trama. No filme “Um Namorado Para a Minha Mulher”
somente as protagonistas são essenciais.
Em relação aos estereótipos de gênero, foi identificado que o fato de ser mulher é
determinante para maioria das personagens femininas que possuem algum destaque. As
mulheres presentes nos enredos e que não estão limitadas pelo gênero são quase como
figurantes cujo papel nas narrativas serve apenas como trampolim para construir a imagem dos

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protagonistas. Sendo assim, 54% do total de personagens femininas presentes nas duas obras
são exclusiva ou predominantemente definidas pelo seu sexo, fazendo com que haja uma
abordagem sexista mesmo em filmes dirigidos por mulheres, já que nenhum homem poderia
substituí-las.
Quando pensamos em questões interseccionais, o resultado é ainda pior. Em nenhum
dos filmes há uma personagem negra em posição de poder ou relevância. Esta sub-
representação é resultado da estrutura social vigente, onde a desigualdade ainda é recorrente. O
cinema acaba por reproduzir um cenário de invisibilização presente em diversos setores da
sociedade.
Diante disso, é certo afirmar que existe maior possibilidade de representatividade
feminina quando um filme é dirigido por uma mulher. Porém, não pode-se dizer que é uma
regra. Mesmo em obras construídas por mulheres há a reprodução de estereótipos e atitudes
machistas que, infelizmente, são muito presentes nas narrativas do cinema de massa. Este
artigo, nesta perspectiva de análise, evidenciou que a construção da personagem feminina nos
filmes é sexista, e que nenhum dos filmes passou no Teste de Bechedel, nem mesmo com as
modificações que o objeto requisitou para a elaboração da análise.

Referências

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MINHA MÃE É UMA PEÇA 2. Direção: César Rodrigues. Rio de Janeiro: Globo Filmes, 2016.
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OS DEZ MANDAMENTOS – O FILME. Direção: Alexandre Avancini. Brasil: Record Filmes/Paris


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Sociedade Moderna e no Telejornalismo Goianiense. Anais INTERCOM, 2014, Foz do Iguaçu. Anais
eletrônicos... Foz do Iguaçu, PR, 2014

UM NAMORADO PARA A MINHA MULHER. Direção: Júlia Rezende. Brasil: Downtown/Paris


Filmes, 2016. 1DVD (100min), son., color., som original.

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NOVAS CONCEPÇÕES TELEVISUAIS PARA O FINAL FELIZ:


Ressignificações da morte em telenovelas brasileiras1

Marcos Vinicius Meigre e Silva2


Universidade Federal de Minas Gerais

Resumo
Este trabalho apresenta uma discussão sobre os sentidos, visuais e narrativos, em torno da
morte em três telenovelas brasileiras e como a perspectiva do espiritualismo é empregada para
referendar uma marca forte do melodrama: o final feliz do casal protagonista. Partimos do
entendimento de que a noção de morte, pelo viés espiritualista, confere às tramas um novo
formato narrativo, tornado evidente por meio de recursos estilísticos específicos – como
efeitos visuais e cenografia. Os Estudos Visuais e o estilo televisivo sustentam
metodologicamente este texto, que finaliza ponderando para a abertura de novos regimes
possíveis para o melodrama atrelado à religiosidade.

Palavras-chave: Televisão; Espiritualidade; Estilo televisivo; Estudos Visuais; Telenovela.

NEW TELEVISUAL CONCEPTIONS TO THE HAPPY ENDING:


Ressignifications of death in brazilian telenovelas

Abstract

This work presents a discussion about the senses, visual and narrative, about death in three
Brazilian telenovelas and how the perspective of spiritualism is used to refer to a strong brand
of melodrama: the happy ending of the protagonist couple. We begin with the understanding
that the notion of death, through spiritualist bias, gives the plot a new narrative format, made
evident by specific stylistic resources – such as visual effects and scenography. The Visual
Studies and the television style support methodologically this text, which ends by pondering
for the opening of new possible regimes for the melodrama linked to religiosity.

Keywords: Television; Spirituality; Television style; Visual studies; Telenovela.

Introdução
Este trabalho investiga como três telenovelas brasileiras de abordagem espiritualista
conduziram o desfecho de seus enredos centrais para figurar a lógica do “felizes para
sempre”, que subjaz como uma das mais fortes características e expectativas em torno das
narrativas ficcionais inspiradas no folhetim europeu. Os modos de leitura de um gênero

1
Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho 2 – Estudos de Cinema e Audiovisual, do XI Encontro dos
Programas de Pós-Graduação em Comunicação Social de Minas Gerais, 18 e 19 de outubro de 2018.
2
Doutorando e mestre em Comunicação Social pela UFMG, Universidade Federal de Minas Gerais,
marcosmeigre@hotmail.com

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ficcional como a telenovela envolvem não apenas as habilidades de produção assentadas na


repetição e no singular esquema de refratação da realidade cotidiana, como também as
competências desenvolvidas pelos sujeitos para atrelar tais narrativas a suas temporalidades,
experiências e vivências rotineiras (MARTIN-BARBERO, 2013).
A telenovela tem sido um universo no qual esta associação se apresenta com
exponencial eficácia ao combinar demandas dos meios de comunicação e suas lógicas
organizativas com aspectos da cultura popular-massiva (BORELLI, MIRA, 1996). As
afinidades assim construídas justificam, em alguma medida, o sucesso que as telenovelas
conquistam no panorama cultural brasileiro quando explicitam a rotina como elemento central
de identificação com as audiências, já que “há o hábito cotidiano de assistir às telenovelas e
um cotidiano dentro da telenovela, que simula um paralelismo entre rotinas: a da realidade
concreta dos espectadores e a da realidade representada dos personagens” (MOTTER, 1996,
p. 6).
A matriz melodramática oriunda do folhetim europeu encontrou, por sua vez,
caminhos de adaptação e negociação com demandas socioculturais tipicamente nacionais para
garantir seu sucesso ao longo das últimas décadas. Aliada às incorporações temáticas, a
telenovela brasileira atualizou-se também na esfera narrativa e tecnológica para, dessa forma,
sedimentar-se como um dos principais produtos audiovisuais do país. Em termos temáticos, o
presente capítulo pretende demonstrar como a narrativa melodramática da telenovela
brasileira, ao longo das últimas três décadas, investiu em apresentar, atualizar e problematizar
aspectos da crendice espiritualista fortemente arraigada no imaginário sociocultural do país.
Para tanto, selecionamos as obras A Viagem (1994), Alma Gêmea (2005/2006) e Além do
Tempo (2015/2016) a fim de analisar as últimas sequências exibidas pelas respectivas tramas
quando encerravam a história do casal principal. Com este corpus, o capítulo adensou nas
soluções empregadas nas tramas para fornecer expectativas típicas do gênero, bem como os
possíveis esquemas replicados e/ou rechaçados.
Jesús Martín-Barbero (2013) considera que uma das premissas do melodrama é não
revolver o terreno social nem incitar mudanças bruscas na ordem coletiva e, para tanto,
devolve os sujeitos a seus lugares de estabilidade. É lidar com as demandas culturais
esperadas pela audiência, obedecendo aos esquematismos que se relacionam aos processos de
identificação e reconhecimento por parte do público.
No entanto, como se fazer fiel às bases melodramáticas em narrativas cujos enredos
envolvem a morte dos personagens principais? Não haveria, portanto, uma ruptura com a
lógica estrutural melodramática ao traçar um problema desta natureza (morte)? Quais

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imaginários são evocados em torno das crenças populares ligadas à vida após a morte e
reencarnação nestas tramas? E mais: é possível refletir sobre esta estratégia narrativa como
sendo um novo esquema cognitivo para apresentar a experiência visual da morte e
ressignificar os arcos dramáticos na ficção? Tais indagações orientam a investigação aqui
apresentada. Na seção seguinte, antes de partirmos para o contato com a materialidade
abordada neste capítulo, propomos uma discussão teórico-conceitual em torno da telenovela
brasileira e suas marcas singulares de produção, construção, circulação, consumo nacional,
reverberação e fomentadora de debates sociais em torno dos mais variados aspectos – dentre
eles, uma das maiores e mais latentes matrizes organizadoras de nosso modo de existir em
sociedade: a religiosidade.

Relações intricadas entre telenovela e cultura


Desde seu aparecimento como produto audiovisual, a constituição da telenovela tem
sido de permanente diálogo com as matrizes culturais conformadoras do seio social. A
telenovela embarca em profundas problematizações temáticas a fim de acompanhar os
embates vividos em sociedade. Para tanto, ela se vale de artifícios narrativos, tais como o
desaparecimento de um filho, a troca de bebês, a disputa por uma herança, ascensão social por
vias do casamento, identidades trocadas, naquilo que Martín-Barbero denominou de drama do
reconhecimento, ou seja, na permanente busca por encontrar-se com sua própria história, com
sua própria constituição (enquanto nação que luta por conhecer a si própria). Lopes (2009)
considera a eficiência da telenovela brasileira ao tratar destas temáticas como um dos
elementos que justificam seu sucesso, repercussão e aceitação – por vezes maior que os
gêneros não-ficcionais, ao ponto de afirmar que o Brasil melhor se “vê” pela ficção do que
pelas narrativas jornalísticas.
Lopes (2009) julga que a telenovela é capaz de pautar debates no seio social e, por esta
razão, exerceria a função de agenda setting em torno das temáticas candentes à sociedade –
tais como as religiosidades. No entanto, muitas foram as ressignificações vividas pela
telenovela em termos de formato, incluindo mudanças no tocante aos modos de consumo.
Estudar telenovela é se enveredar pela trama das experiências de mercado do audiovisual a
partir das demandas sociais e das matrizes culturais que fomentam a construção deste gênero.
O domínio sobre a gramática do melodrama fez com que o gênero se consagrasse como um
dos principais fenômenos articuladores a entrelaçar demandas sociais e dinâmicas culturais às
lógicas de mercado das nossas sociedades. É também uma das ferramentas a evidenciar
anacronias e destempos característicos da América Latina, pois a telenovela é uma “uma

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modalidade de melodrama em que as mais velhas narrativas se mesclam e fazem mestiçagem


com as transformações tecnoperceptivas das massas urbanas”3 (MARTIN-BARBERO;
MUÑOZ, 1992, p. 13).

Mudanças de ordem material e imaterial são reflexos das dinâmicas socioculturais


vividas por nossa sociedade e reajustam o lugar e as funções do melodrama no contexto
brasileiro. De um início vinculado ao rádio e ao teatro até as mais recentes produções
embasadas na inovação de formatos e inserção de novos elementos técnicos e estéticos, a
telenovela se adapta às demandas sociais e acompanha as alterações históricas, políticas e
culturais do país. Lopes (2004) assegura o potencial da telenovela brasileira não apenas nos
lares do país, mas também a boa acolhida das produções em outras nações. Esta investida
transcultural, porém, não fez com que o principal produto ficcional latino-americano perdesse
sua identidade e sua caracterização notadamente regional.
A produção da telenovela representou, por sua vez, uma certa apropriação do gênero
em cada país: sua nacionalização. Pois bem, se é certo que o gênero telenovela
implica rígidos estereótipos em seu esquema dramático e fortes condicionantes em
sua gramática visual – reforçados pela lógica estandardizadora do mercado
televisivo mundial –, também o é que cada país fez da telenovela um particular
lugar de cruzamentos entre a televisão e outros campos culturais, como a literatura,
o cinema, o teatro. (MARTÍN-BARBERO, REY, 2001, p. 118, grifo dos autores)

É nesse sentido que a telenovela deve ser vislumbrada como um objeto complexo, tal
qual a TV como um todo. Mittell (2010) afirma que a televisão deve ser entendida em sua
complexidade compósita, estruturada num panorama com seis facetas interligadas diretamente
entre si. Para ele, a TV atua como representação cultural; possui uma forma textual própria; é
uma instituição democrática, ao passo que também se configura como indústria comercial; é
ainda meio tecnológico e prática cotidiana. Entendemos que analisar televisão é uma tarefa
que dispensa esforços articuladores, evitando fragmentações a segregar o meio e seu potencial
como um todo.
Coadunando com esta perspectiva, nosso movimento de pesquisa parte do meio
televisivo, entendido como prática cultural e, após a manifestação das imagens, buscamos nos
processos sociais os atravessamentos capazes de sustentar o emprego dos recursos estilísticos
na materialidade em questão. Em outras palavras: deixamos as imagens nos afetarem de modo
a reconhecer os elementos externos a elas que lhes jogam importante papel em sua
conformação, tais como a História, a política, a economia, as práticas religiosas, etc. A
televisão, enquanto meio cultural responsável por reverberar as práticas sociais, torna

3
Traduzido do original: “modalidad de melodrama en la que las más viejas narrativas se mezclan y hacen
mestizaje con las transformaciones tecnoperceptivas de las masas urbanas”.

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evidentes as mudanças processadas no âmbito da cultura. Em nossa realidade latina, é através


da televisão que a maior parcela populacional acessa costumes, apreende diretrizes cidadãs,
posiciona-se em relação a demandas políticas e sociais, dentre outras questões. É, em síntese,
pela TV que a modernidade nos é dada a conhecer, inserindo-nos numa gramática visual.
[...] as maiorias da América Latina estão se incorporando à, e se apropriando da,
modernidade sem deixar sua cultura oral, isto é, não por meio do livro, senão a partir
dos gêneros e das narrativas, das linguagens e dos saberes, da indústria e da
experiência audiovisual. (MARTÍN-BARBERO, REY, 2001, p. 47)

As práticas religiosas, pela força adquirida no cenário sociocultural brasileiro, são uma
das matrizes fundamentais na conformação dos enredos audiovisuais. Num levantamento
realizado por Junqueira e Tondato (2009), os autores identificam as diferentes religiosidades
presentes nas telenovelas brasileiras e apontam que o catolicismo, devido às questões
históricas e culturais de formação do Brasil, era a religião preponderante em quase a
totalidade dos objetos investigados. Entretanto, identificam que, com o passar das décadas, as
temáticas religiosas vão se pulverizando e a “religião oficial” cede lugar ou ao menos passa a
conviver com outras crenças no audiovisual. Se nas primeiras décadas de produção ficcional,
via-se uma forte dominação católica, “nos anos 1990, ao contrário, as abordagens das crenças
são as mais diferentes possíveis, abrangendo um amplo leque que vai do vampirismo até a
ufologia, passando pelo espiritismo, este último contando com algumas novelas que lhe foram
inteiramente dedicadas” (JUNQUEIRA, TONDATO, 2009, p. 188).
A constatação levantada pelos pesquisadores é o mote para a discussão deste capítulo.
Se antes o catolicismo imperava nas narrativas e permeava a construção de sentidos religiosos
nas tramas, não o fazia, por sua vez, de modo a centralizar a condução do enredo. O
catolicismo, portanto, surgia como um elemento narrativo de segunda ordem ou, quando
muito, definidor de momentos-chave das tramas: o padre revelando uma confissão que
promovia um importante ponto de virada; as celebrações de casamentos nas igrejas católicas,
que podiam ser bem ou mau sucedidos; as imagens sacras para as quais muitos personagens
rezavam, ajoelhavam-se e clamavam por auxílio. No caso do espiritismo, a religiosidade
deixava de ser um ponto complementar das narrativas e se alçava à condição de elemento
centralizador, assumindo-se como espinha dorsal das referidas tramas.
Nesse sentido, acompanhando a evolução da doutrina espírita na composição da
história nacional, este capítulo investiga a experiência visual em torno da espiritualidade em
três telenovelas brasileiras, veiculadas pela TV Globo e interpretadas pela audiência e crítica
especializada como “telenovelas espíritas”: A Viagem (1994, Ivani Ribeiro), Alma Gêmea

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(2005/2006, Walcyr Carrasco) e Além do Tempo (2015/2016, Elizabeth Jhin). Notamos a


proeminência de preceitos espiritualistas na composição das referidas obras, de modo que
temáticas como reencarnação e influências espirituais, por exemplo, foram abordadas ao
longo de toda a exibição destas narrativas. Seriam, de acordo com o que Junqueira e Tondato
(2009) propuseram, tramas que se dedicaram inteiramente ao espiritismo, em relação às quais
já estabelecemos esforços preliminares de investigação (MEIGRE, 2017; ROCHA, MEIGRE,
2017).
A escolha das obras levou em consideração dois aspectos principais: o primeiro deles
se refere ao interesse em coletar telenovelas veiculadas nas últimas três décadas, de modo a
captar possíveis reconfigurações na maneira de representar visualmente as manifestações
espiritualistas; e, em segundo lugar, buscamos produções de autorias distintas, a fim de
demonstrar que o debate envolvendo o espiritismo se pulverizou pela escrita de diversos
novelistas e não se tornou marca exclusiva de um único nome. A seguir, apresentamos os
traços metodológicos que orientaram a execução destas análises.

Investimentos metodológicos para mirar a televisão

Para estudar a televisualidade de nosso objeto, convocamos autores que nos convidam
a proceder sob um novo método investigativo, assentando-nos no que vem sendo chamado de
Estudos Visuais. Os Estudos Visuais são entendidos como o campo de investigação, enquanto
a Cultura Visual, à concepção de Mitchell (2005), seria o objeto de estudo. Neste campo,
Mitchell sugere um esforço de descontaminação do olhar para que as imagens possam ser
entendidas quase como seres vivos, capazes de nos dizer algo e interessadas em serem
“ouvidas”. Livramo-nas, assim, das amarras dos pré-julgamentos, muitas vezes estereotípicos
e matizados por padronizações coletivas.
Não se trata mais de um estilo de pesquisa no campo da história das imagens, e sim
de pensar nas formas pelas quais as imagens, através de interesses específicos, são
produzidas, circulam e são consumidas, com o objetivo de reforçar ou resistir a
articulações com os mais variados objetivos políticos, econômicos, culturais, etc.
[...] Os Estudos Visuais questionam como e por que as práticas de ver (visualidade e
visibilidade) têm transformado nosso universo de compreensão simbólica, nossas
práticas de olhar, nossas maneiras de ver e fazer. (PEGORARO, 2011, p. 45)

Procede-se a um giro pictorial, sugerido por Mitchell (2009), de modo a compreender


a dimensão social do visual e entender a imagem como uma realização da sociedade, intricada
num processo frequente de se dar a ver para os sujeitos. Esta visualidade, por sua vez,
encontra condicionantes – tais como o suporte técnico e o modo de contemplar, por exemplo
– mas está diretamente atrelada aos aparatos, às instituições (instâncias sociais que produzem

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as imagens e as fazem circular), aos corpos (sujeitos que assumem o lugar de observador e
completam o circuito visual – é preciso que tenha alguém para “ver”) e, por fim, a
figuralidade, que diz respeito à capacidade da imagem de representar o mundo, de figurá-lo. A
experiência visual como um todo é reveladora dos modos de interação em sociedade, podendo
inclusive nos dizer sobre a maneira como homens e mulheres assumem papéis e se projetam
no ambiente social, evidenciando a construção das relações sociais em jogo.
Para o autor, é importante distinguir imagens, objetos e meios. Imagens são figuras,
motivos ou formas (quaisquer que sejam) que apareçam nos meios. Objetos são o suporte
material onde as imagens aparecem, onde estão dentro de. E meio diz do conjunto das práticas
materiais que ligam uma imagem a um objeto para produzir uma picture. Portanto, o percurso
intelectual do autor prioriza a chegada às pictures, entendidas como “uma complexa
montagem de elementos virtuais, materiais e simbólicos”4. Num sentido mais amplo, “uma
picture se refere à situação completa em que uma imagem faz sua aparição”5 (MITCHELL,
2017, p. 14).
Numa metáfora, Mitchell salienta que as pictures querem ser beijadas, e queremos
beijá-las, nisso consiste a dialogia desta relação. Nem todas, porém, se dão nessa evidência
tão clara de seus interesses, podendo mascarar seus objetivos e construir esta interação de
maneira mais discreta – não diretamente persuasiva. A picture é, portanto, uma criatura
paradoxal, que inclui o sujeito em sua composição, é individual e simbolicamente abraça a
totalidade, é concreta ao mesmo passo em que se faz abstrata. Partir da concepção de que
estamos na picture, estamos na situação, revolve o terreno das maneiras de se abordar a
dimensão imagética.
Nesse sentido, interessa-nos um investimento televisual e cultural, de modo a entender
o meio em sua poética e considerar as pictures neste processo dinâmico e interativo. A nosso
ver, o alinhamento entre a materialidade constituinte dos objetos midiáticos e as
determinações culturais auxiliam nos estudos das formas textuais – por vezes negligenciadas
nas pesquisas do campo, como afirma Mittell (2010). Uma pesquisa interessada em
contemplar a complexidade do meio não pode minimizar a importância de uma das facetas.
Somente assim se torna viável um entendimento de toda a televisualidade conformadora do
processo comunicativo.

4
Traduzido do original: “un complejo ensamblaje de elementos virtuales, materiales y simbólicos”.
5
Traduzido do original: “una picture se refiere a la situación completa en la que una imagen ha hecho su
aparición”.

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O termo televisualidade se refere aos modos como o texto televisivo evidencia


questões da cultura (ROCHA, ALVES, 2014). Procede-se, neste capítulo, a uma análise
televisual e uma análise cultural: o primeiro passo é deixar as pictures, como nomeia Mitchell
(2005), nos interpelarem, entender o que elas têm a dizer, sem aprisioná-las em significados
dados de antemão; em segundo lugar, buscamos reconhecer e validar na dimensão social as
figurações evidenciadas pela materialidade. Em síntese, significa partir do audiovisual e ir à
cultura para ler nas matrizes culturais os sentidos investidos no produto.
Ao assumirmos um novo método, somos conduzidos à busca de uma nova
metodologia capaz de articular este jeito de olhar. Em nosso trabalho, adotamos a concepção
de Butler (2010) quanto ao estilo televisivo, entendido como todo padrão técnico de imagem-
som que exerça alguma função no texto de TV. O estudo do estilo “permite-nos entender
tanto o programa isoladamente quanto tecer especulações sobre a cultura na qual ele está
inserido” (ROCHA, 2014, p. 1089). Esta perspectiva de trabalho faz emergir a poética
televisual, pois nos leva a compreender as especificidades e demandas do meio a partir de
seus aspectos materiais e imateriais. É o que temos denominado de televisualidade, referindo-
se aos elementos intrínsecos à TV, bem como aos componentes socioculturais que sobre ela
influem.
Os componentes estilísticos são cruciais para a conformação da mensagem
audiovisual, dotados de significações embasadas na cultura, pois “[...] a televisão apóia-se no
estilo – cenário, iluminação, videografia, edição e assim por diante – para definir o
tom/atmosfera, para atrair os telespectadores, para construir significados e narrativas”
(ROCHA, 2014, p. 1089). Butler (2010) desenvolve a metodologia estilística a partir de 4
dimensões: descritiva, analítica/funcional, histórica e avaliativa. Descrever, segundo o autor, é
fragmentar a materialidade audiovisual em sintagma por sintagma, valendo-se da mesma
atenção e apuro que diretores, cinegrafistas, fotógrafos e outros profissionais tiveram ao
elaborar a peça. Este procedimento remete a uma “engenharia invertida” e é o passo básico
dos estudos estilísticos. A dimensão analítica/formal diz respeito aos propósitos exercidos
pelo estilo, podendo denotar, expressar, simbolizar, decorar, persuadir, saudar/interpelar,
diferenciar e significar imediatismo. O estilo somente é capaz de exercer funções por buscar
sustentação na conformação cultural da sociedade. Por fim, para dimensionar a evolução
histórica do estilo, é preciso retroceder em programas de um mesmo gênero a fim de
identificar as transformações ocorridas6.

6
A dimensão avaliativa é apontada por Butler (2010) como uma esfera problemática, dado que ainda não foram
estabelecidos parâmetros para julgar a materialidade televisiva sem recorrer a julgamentos e valorações sem

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Para adentrar a um objeto midiático do porte das telenovelas, primeiramente se faz


necessário delimitar o corpus empírico. Em obras ficcionais, os eventos narrativos (ROCHA,
ALVES, OLIVEIRA, 2013) vêm sendo adotados como um viável aporte de delimitação, pois
tais eventos se caracterizam como micro-histórias entrelaçadas ao enredo principal, compostas
por início, meio e fim, podendo se estender durante alguns capítulos. Assassinatos, crimes,
casamentos são exemplos de eventos narrativos. As análises em questão se voltaram para o
desfecho narrativo das tramas, coletando o último evento narrativo de cada telenovela
estudada. Nossas análises se operacionalizaram em função das telenovelas, a fim de captar a
evolução histórica da abordagem espiritualista na teledramaturgia nacional.

A Viagem
Na telenovela A Viagem, de Ivani Ribeiro, o encerramento da trama se dá numa
caverna, onde aparecem os dois personagens centrais: Otávio e Diná. A caverna é bastante
iluminada, com paredões rochosos que recebem boa iluminação. Nesse sentido, a composição
cênica denota a inserção das personagens num universo reservado apenas a elas, onde terão a
possibilidade de comunhão efetiva e duradoura.
Primeiramente é o espírito de Otávio a surgir, sob efeito visual esbranquiçado que o
modela até se formar a figura completa do personagem, enquadrado de corpo inteiro e, na
sequência, tendo o rosto em primeiro plano. Otávio olha ao longe, pelo interior da caverna, e
o plano seguinte apresenta outras dimensões do espaço, para onde ele caminha a passos
largos. Os sucessivos planos gerais que acompanham o caminhar de Otávio denotam a
diminuta proporção do sujeito perante a magnitude do composto ao entorno: vestido de
branco, Otávio se mistura ao meio, numa simbiose que quase o integra ao espaço e por vezes
dificulta reconhecê-lo. A soberania do espaço se sobrepõe, neste momento, ao intento de
singularizar o sujeito em cena, numa alusão ao que se reserva aos seres quando na dimensão
espiritual. A escolha pela evidência cênica referenda a intencionalidade de se apresentar o
plano espiritual e suas nuances.
Quando Otávio interrompe a caminhada, ele avista a chegada de Diná, que vem em
sentido oposto. A troca de olhares entre ambos segue o clássico modelo plano/contraplano,
um plano geral os reduz diante da gigantesca composição rochosa e um plano de detalhe capta
o momento em que eles se dão as mãos: o amor permanece selado no plano espiritual. A

sustentação científica. Nesse sentido, o autor não desenvolve tal dimensão e afirma que, se a pretensão é explorar
a avaliação estilística da TV, preciso será desenvolver métodos particulares para julgar sua estética – o que, por
enquanto, não é uma realidade no universo acadêmico relativo à televisão.

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gestualidade do dar as mãos não apenas simboliza a consagração do amor romântico


concretizado entre o casal de protagonistas, mas expressa a possibilidade de que tal
consagração se efetue numa dimensão etérea, espiritual, no pós-morte física.
Após, eles sorriem e se entreolham, seguros de que a afetividade os mantém em união
e partem caminhando juntos. A trilha, até então era um cântico suave, dá lugar à narração de
uma mensagem lida em off.

Figuras 1-6: O casal protagonista de A Viagem no plano espiritual

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O casal caminha e se posta lado a lado, vistos num plano geral que evidencia um feixe
luminoso surgido do alto e em direção aos dois. A tal luminosidade se intensifica, torna-se
mais esbranquiçada e envolve Diná e Otávio, que passam a ser captados em primeiro plano
enquanto se mostram cada vez mais clarificados. Tal composição visual expressa a dimensão
evolutiva dos personagens e a aura de bondade, serenidade e pacifismo que os cerca. Puros de
espíritos, podem se ver livres para seguir a marcha do amor em outra esfera. Seguem-se
planos de detalhe apresentando os personagens enquanto se olham, se admiram. O casal se
abraça afetuosamente e se fundem numa única branquidão, integram-se plenamente como se
ali se materializasse a concepção máxima do amor em plenitude. O efeito esbranquiçado se
esvai pelo ar, atinge o alto e se encerra a claridade que até então tomava conta do espaço.
Passa-se a dimensionar o lado externo da caverna, por onde a luz segue aos mais altos
extremos e atinge as estrelas. Neste espaço escuro e permeado por estrelas, está a surgir uma
grande luminosidade ao centro, que domina o quadro visual e é acompanhada pela palavra
FIM.
Em A Viagem, os dois personagens não encerram a trama tendo acabado de enfrentar a
morte. Pelo contrário, eles já se encontravam no dito plano espiritual desde meados da trama.
Neste caso, portanto, a consagração do amor romântico do casal principal já estava selada
desde momentos anteriores, ambos juntos no plano espiritual, e o que faz ocorrer neste
encerramento é a efetiva fusão dos seres, dos corpos etéreos, dos espíritos já em união
precedente. A morte, em A Viagem, já adensava o roteiro do casal central, e nem por isso
abalou os modelos narrativos da trama. Ao fim, o amor permaneceu intocável e referendou a
aura superior do sentimento que unia os protagonistas, visual e espiritualmente, dado que o
casal selou sua purificação de almas e prosseguiu aos céus, sem uma localização exata para
onde iam já transformados em feixes de luz. O amor é luz, que viaja pelo espaço quando
sacramentado entre dois seres de afeto partilhado. Em A Viagem, o amor romântico saiu
consagrado.

Alma Gêmea
Na telenovela Alma Gêmea, trama escrita por Walcyr Carrasco e originalmente
exibida entre 2005 e 2006, coletamos o momento em que Serena (Priscila Fantin) e Rafael
(Eduardo Moscovis) estão ao lado de fora da mansão do casal, após Rafael ser atingido por
um tiro disparado por Cristina (Flávia Alessandra), sua ex-esposa. Rafael, deitado ao chão,
esboça expressões de intensa angústia e sofrimento, enquanto tenta amparar o amado. Ao
redor, o plano geral capta toda a movimentação dos presentes, a casa em chamas ao fundo e o

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caos instaurado. Uma sequência plano/contraplano define a conversa derradeira entre os dois,
com primeiríssimos planos nos fazendo compactuar com a mensagem de amor final entre o
casal.
A intensa dor de Rafael sacramenta sua morte, seguido por um colapso em Serena, que
também morre ao seu lado. Ambos, caídos ao chão, comovem todos os presentes, sob trilha
funesta. De repente, os espíritos de ambos se desprendem dos corpos inertes, levantam-se e
caminham em direção à câmera, de mãos dadas, vistos sob efeito visual esbranquiçado. O
plano geral expressa que os espíritos seguem sem se influenciar pelo caos deixado para trás,
enquanto os presentes buscam entender o que acontece e tentar reanimá-los. É ainda por meio
do plano aberto que vemos, ao fundo, a casa completamente em chamas, tomando todas as
portas e janelas. Ali dentro, a vilã Cristina morrera e fora tragada pelo espelho para
acompanhar o “Diabo” que a veio buscar, já que ela lhe prometera a alma no passado. A casa,
portanto, é a materialização do imaginário social existente sobre o inferno, com suas labaredas
ardendo ininterruptamente e consumindo os maus. Caminhando em sentido completamente
oposto, Serena e Rafael sinalizam que vão a outra dimensão, destinada a seres com outro nível
evolutivo.
O casal, de mãos dadas, esvai-se por toda a tela esbranquiçada e, no plano seguinte,
surgem dentro de uma espécie de gruta ou caverna, onde há um lago no qual uma rosa está
projetada. A rosa era o símbolo de amor do casal, desde as encarnações anteriores e, estar ali,
simbolizaria a consagração do amor romântico. Frente um ao outro, pronunciam, cada um a
seu tempo, a palavra “eternidade” e uma sequência de corporeidades novas desfila pela tela:
são as encarnações pregressas de ambos, desnudadas de modo que o composto imagem/texto
se associe para provar a ideia de temporalidade estentida. Já foram índios, freiras, lordes,
ciganos, escravos, lavradores, samurais, gladiadores da Antiguidade.
Após a sucessão de encarnações apresentadas, o casal retoma as feições de Rafael e
Serena, sob efeitos esbranquiçados, dão as mãos e, unidos, tornam-se uma única luz que
ocupa o centro visual e atinge o ápice da caverna. O encerramento efetivo da trama se dá
quando, nos dias de 2006 (temporalidade da primeira exibição da novela), um casal de
crianças se encontra casualmente no parque e, no jogo plano/contraplano, revela a sintonia já
existente entre ambos. Eles sorriem mutuamente e, perguntado pela garota qual era seu nome,
o menino responde “Rafael”, ao que a trilha se intensifica, os sorrisos de ambos também e a
trama consagra uma nova existência para o casal.

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Figuras 7-12: O casal de protagonistas

Neste caso, Alma Gêmea optou por solucionar o entrave do amor impedido pela morte
num curto espaço de tempo. Enquanto A Viagem trabalhou de maneira diacrônica, Alma
Gêmea fez a diegese avançar e/ou recuar conforme os recursos estilísticos empregados: tanto
a composição de figurinos delimitava a caracterização dos tempos nas diferentes vidas como
as passagens de tempo demarcadas por geradores de caracteres e novas ambientações (é o
caso da sequência final em que se inscreve “São Paulo, março de 2006” na tela”). No
imbricado entrecruzamento de passado, presente e futuro das vidas tratadas, o principal

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objetivo é atender ao inevitável encontro entre aquelas duas almas, que não alcançaram a
plenitude do amor romântico ao longo de 227 capítulos de lutas e entraves, mas ao fim, após
a(s) morte(s), conseguiram fortalecer-se enquanto casal, unidos, sempre de mãos dadas,
atingindo o auge do roteiro melodramático.
A telenovela adensou esquemas já empregados em A Viagem no tocante às figurações
espiritualistas, reverberando efeitos visuais para apresentar seres espirituais, além de
elementos cênicos para caracterizar o plano transcendental. Em termos de atuação, a
gestualidade do “dar as mãos” também foi replicada a fim de substanciar a temática romântica
tão afeita ao melodrama. Entre replicações e repetições, Alma Gêmea e A Viagem estiveram
estilisticamente próximas nos modos de composição das tramas em torno da espiritualidade.

Além do Tempo
A última telenovela considerada, Além do Tempo, é uma obra de Elizabeth Jhin,
exibida entre 2015 e 2016 na faixa das 18 horas da TV Globo. Na sequência final da obra, o
casal protagonista, Lívia (Aline Moraes) e Felipe (Rafael Cardoso), está à beira de um
penhasco, abraçados e felizes. Há uma narração em off que acompanha o beijo do casal. Não
há outras testemunhas daquela união feliz a não ser a imensidão das montanhas ao redor e o
céu. O casal fica ao centro do quadro por longos instantes, ocorrendo sucessivas composições
imagéticas que ora singularizam cada personagem, ora integram ambos para expressar a
partilha de afetos entre o casal.
Diminutos, a ampliação do campo visual torna mais evidente o espaço físico ao
entorno e comprova visualmente que o casal está a sós. Esta atitude possivelmente se justifica
para diferenciar-se do modo como o casal vivenciou um encerramento trágico na primeira
fase da trama: em um penhasco, juntos e felizes, foram atacados por Pedro, que amava Lívia e
os matou, no século XIX. Agora, em novas vidas no século XXI, estavam finalmente a sós
para viver o amor que se viu interrompido há mais de um século.

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Figuras 13-18: Lívia e Felipe em diferentes encarnações

O casal propriamente dito não pronuncia uma única palavra, apenas abusam dos
olhares. Mas, enquanto se beijam, há flashes sucessivos que transportam o espectador ao
universo diegético do século XIX, para também acompanharmos o casal na mesma condição
– aos beijos. Apenas os elementos sonoros – um efeito tal qual rajada de vento – e a
composição de figurinos são os denotadores de que estamos imergindo em temporalidades
distintas. Neste pacto estabelecido com o público receptor, a narrativa se encerra sem remeter
ao universo de um plano espiritual ou à condução a novas esferas do mundo superior (como
se deu nas duas novelas anteriores). Tratou-se, portanto, de uma importante ruptura em termos
esquemáticos ao debater aspectos de crenças espiritualistas. Enquanto as tramas anteriores
consolidaram um repertório estilístico de figuração didático-instrucional em torno da temática
espiritualista, Além do Tempo ousou em artifícios da montagem, figurino e sonorização como
aportes para simbolizar as vidas passadas.
Além do Tempo é, narrativa e visualmente, distinta de suas predecessoras e não se
sustenta na mesma lógica de efeitos para tornar visível elementos etéreos. A resolução do
impasse de um amor interrompido em vidas pregressas é solucionado sob a lógica
reencarnacionista sem, no entanto, convocar a dimensão de mundos espirituais para a esfera
do visível. Em termos narrativos, o amor se soluciona e impulsiona o desenrolar do
melodrama de uma existência até outra. Ao fim, são ativadas estas memórias pregressas para

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consolidar a união do casal e carimbar a vitória do amor romântico como eixo central do
universo melodramático.

Considerações finais
Os mistérios em torno da morte nestas novelas não é do mesmo perfil que esquemas
clássicos encontrados ao longo da história do gênero – como “Quem matou Lineu?”, “Quem
matou Max?” ou o grande clássico “Quem matou Odete Roitman?”. Nestes casos, há uma
constatação do ato e busca-se um culpado, movimentando o arco dramático em torno do
suspense. Nas novelas ditas espíritas, a morte está sacramentada, mas não há a composição de
uma aura de mistério em torno dos personagens, pois eles ora seguem para um plano
espiritual (A Viagem, Alma Gêmea) ou reaparecem assumindo novas vidas (Alma Gêmea,
Além do Tempo). Nesse sentido, a morte deixa de ser um “problema” - entendendo o termo
como um fator condutor das narrativas - e passa a ser uma “solução” para o desenrolar das
histórias, sem impedir que personagens centrais se distanciem em função da morte. Diante da
instauração de esquemas como estes, o espectador vai se familiarizando com novos regimes
visuais que, por mais inovadores pareçam, não se afastam das convenções de gênero. Pelo
contrário, são empregadas justamente para revalidar o grande mote melodramático: o amor
realizado, consagrado, feliz e duradouro.
A condução dos melodramas evidencia uma ressignificação estrutural-estilística das
narrativas, de modo a dotá-las de um novo fôlego para atingir os objetivos primeiros do
enredo: o final feliz. Em tempos de complexificação das narrativas ficcionais (MITTELL,
2010) e reinvenção das lógicas de composição televisual, a telenovela caminha para encontrar
alternativas satisfatórias na missão de engajar seu público, despertar a curiosidade das
audiências e manter a atenção voltada para o mundo-tela. A morte não é uma das premissas
centrais a envolver o casal de protagonistas (apesar de não ser também uma esfera
intransponível), espera-se que mocinhos se reúnam e concretizem, após vencer as agruras e
tormentas impostas pelos vilões, o tão aguardado amor romântico.
Em todas elas, grutas, cavernas e penhascos estão entre a paisagem onde o espiritual
se expressa, um espiritual que ainda é obscuro, nebuloso e de difícil apreciação quando se
trata da crença em outras vidas, em reencarnação. A temática evoca uma série de
preconceitos, incertezas e levanta frentes que travam embates no campo religioso. Mesmo que
o final feliz seja alçado numa nova temporalidade, num novo espaço, ele ainda é algo
reservado a profundos debates culturais, religiosos e políticos que não estão às claras, por isso

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a figuração destes espaços rochosos, cavernosos e fechados simbolizam com maestria a


condição de existência dos debates em torno das questões espirituais.
Não afasta a audiência porque se trata de uma base melodramática fielmente
reproduzida, sem afugentar os já pedagogizados pelos saberes do melodrama. Antes de ser
entendida como “telenovela espírita”, estas obras são, em essência, telenovelas, e levantar tal
afirmativa não é mero recurso semântico redundante, mas posicionar os lugares e as
expectativas do gênero televisivo como balizadores que orientam produção e consumo destas
peças audiovisuais. Atendidas as premissas do gênero telenovela, mantendo rigor aos
preceitos do melodrama, a camada de sentido associada ao espiritismo (ou espiritualismo de
maneira geral) se acopla à estrutura narrativa e esta pode ser uma das razões para se entender
a adesão às tramas, sem maiores níveis de rejeição. A audiência ali reconhece marcas que lhe
satisfazem em torno do gênero e compreende os arcos, tessituras e tramas expostas.
Há uma espécie de regime do visível condicionado pelas experiências em torno da
imagem religiosa que dizem de um espaço-tempo precursor em nossa construção enquanto
sujeitos sociais. O repertório religioso nos é um norteador para ler e consumir imagens de
maneira ampla, direcionando nossos sentidos interpretativos acerca do sagrado, do profano,
do visível e do invisível, do bem e do mal, da salvação e da perdição, dentre outros pares
opositores. São os regimes de visualidade religiosa que, antes de conferirem legitimidade ao
melodrama, conformam nossas percepções e sensorialidades em torno do visual.
Ressignificar os sentidos da morte na telenovela só parece uma dinâmica viável por
conta da associação entre o imaginário sociocultural brasileiro sustentado no sincretismo
religioso das matrizes religiosas fundacionais de nossa existência religiosa – perpassado por
crendices populares, misticismos históricos e imaginários transmitidos de geração em geração
– atrelada a lógicas estruturantes do melodrama enquanto narrativa que concede “uma cadeia
de montagem de gratificações contínuas” (MARTIN-BARBERO, 2013, p. 193) ao seu
público receptor. Tal qual o folhetim europeu, a telenovela recompensa a audiência conforme
o sistema de expectativas criadas em torno da obra, a partir de
[...] um acordo que mascara a distância entre o verídico das situações, a realidade
dos problemas e o fantástico das soluções dadas aos conflitos. Sem a menor
descontinuidade, o surpreendente e inesperado invade o campo das soluções,
naturalizando assim as fantasias e produzindo uma sensação de movimento que
encobre a ausência de verdadeiras mudanças (MARTIN-BARBERO, 2013, p. 194).

Dessa maneira, numa sociedade altamente pluralizada em seu referencial religioso,


como o caso brasileiro, ofertar ao público soluções de cunho espiritualista não
necessariamente envolvem explicações plausíveis a apenas um ou outro segmento religioso,

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mas a um espectro da ritualidade religiosa em sentido macroestrutural, tangenciando


crendices generalizadas em torno do pós-morte e apaziguando os anseios dos consumidores
do melodrama. “Tais soluções, que o leitor saboreia como inovadoras, mas que são em última
instância tranquilizadoras, são as que ele esperava” (MARTIN-BARBERO, 2013, p. 194).
No entanto, as reconfigurações na telenovela obedecem a preceitos mercadológicos,
empresariais e sociais, de modo a não ferir parâmetros já cristalizados no modus operandi da
ficção. Inovações, até certo ponto, são bem vindas e repaginam o universo ficcional,
guardadas as devidas proporções em torno das bases constitutivas do melodrama. Por isso, o
que parece evidente em termos estilísticos é uma primeira fase de aspectos instrucionais,
didáticos, de teor repetivtivo e com meras replicações de esquemas a fim de arregimentar um
imaginário sociocultural em torno das crenças espiritualistas no universo ficcional. A Viagem
e Alma Gêmea, com suas nuances específicas na composição imagem/texto, abordaram a
espiritualidade de maneira a desbravar um campo ficcional, enquanto Além do Tempo sinaliza
para uma apropriação inovadora, com rupturas estilísticas e inserção de novos esquemas para
abordar religiosidades na dramaturgia nacional.

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A ARTE COMO POSSIBILIDADE ESTÉTICA SONORA E IMAGÉTICA NA


REPRESENTAÇÃO DE SI:
Um olhar sobre a performance e as narrativas desenvolvidas pelo artista Liniker1

Maria Gorete da Silva2


Universidade Federal de Ouro Preto

Resumo
O artigo faz uma análise qualitativa tendo como base o conceito de experiência estética em
Braga, Leal, Valverde e Picado, com vistas a estudar a performance do cantor Liniker nos três
primeiros vídeos de sua carreira divulgados e compartilhados em seu canal oficial do
YouTube. O trabalho observa a potência da arte e da performance do sujeito enquanto
potência para propor novas narrativas e provocar afetos e experiências estéticas em ambiente
on-line.

Palavras-chave: Experiência estética; Liniker; Performance.

THE ART AS AESTHETIC POSSIBILITY SOUND AND IMAGETICS IN THE SELF-


REPRESENTATION:
A look under the performance and narratives developed by the artist Liniker

Abstract

The article makes a qualitative analysis based on the concept of aesthetic experience in Braga,
Leal, Valverde and Picado. The object of study is the performance of singer Liniker in the
first three videos of his career published and shared on his official YouTube channel. This
study shows the power of the subject's art and performance as a power to propose new
narratives and to provoke affections and aesthetic experiences in an online environment.

Key words: Esthetic experience; Liniker; Performance.

Introdução
O Brasil é um país de misturas de cores, tradições e culturas . Em um mesmo estado, é
possível encontrar influências de culturas africanas, italianas, japonesas, alemães, judias,
holandesas e tantas outras. No campo das artes, essa heterogeneidade também é evidente. Há
o Brasil do axé, do samba, do maracatu, do sertanejo, do rock, do pop, da MPB, do pagode,
do soul, do tecnobrega, do forró e de outros gêneros musicais que podem ser desconhecidos

1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho GT2: Narrativas Textualidades Midiáticas. do XI Encontro dos
Programas de Pós-Graduação em Comunicação Social de Minas Gerais, 18 e 19 de outubro de 2018.
2
Mestranda em Comunicação pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de
Ouro Preto. E-mail: mariagoretesilva.6@gmail.com.

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nacionalmente, mas se concentram em suas microrregiões. É nesse contexto de multi


influências culturais que surge o cantor Liniker. Ele tem ganhado destaque no cenário
nacional. Seu talento e sua presença cênica, estética e política aliados à potência das mídias
sociais digitais fizeram com que o grande público reconhecesse o som grave da sua voz
transmitindo a cultura do soul e de suas raízes africanas.
O artista representa uma nova forma de se fazer música, utilizada não somente para
transmitir sentidos por meio de suas letras baseadas em sua narrativa histórica, mas que busca
– por meio do seu corpo, das suas vestes, dos seus brincos, seus batons lilás cintilantes, rímel
e turbantes – comunicar perspectivas políticas e sociais sobre o mundo e as ações do homem.
Este trabalho tem o artista Liniker como referência, a fim de abordar como novas
propostas para dialogar com o mundo e fazer novas narrativas são válidas, especialmente
considerando o contexto da pós-modernidade, no qual o acesso a informações e os contatos
entre indivíduos são cada vez mais velozes e efêmeros.
Ao fazer o relato de si, o cantor expõe, ainda, seu agir no mundo de uma forma
política. Ele não perpassa discursos prontos e dados pela história e veículos de comunicação,
isso pode possibilitar que outros indivíduos também ultrapassem essa leitura rasa dos signos e
significados compartilhados a nível institucional e enraizados nas mentes da sociedade. Tal
aspecto é defendido por Ricoeur e destacado por Barros (2012): “Uma narrativa histórica, ao
produzir um relato sobre a ação humana acompanhado de um discorrer sobre os seus
significados, pode contribuir para reconfigurar, em cada um dos interlocutores que a
‘compreendem’.” (BARROS, 2012, p. 10).
A problemática de estudo proposta é analisar as novas formas de representação de si,
como um potencial de afetos e experiências que buscam contribuir para as questões políticas e
sociais, proporcionando novas tramas aos processos comunicativos na contemporaneidade de
fluidez e deslocamentos temporais.
A pesquisa se dá por meio da leitura da música do artista e sua performance enquanto
presença e experiência estética, sendo desenvolvida uma análise qualitativa com base no
método netnográfico. A revisão bibliográfica sobre o tema abrange os seguintes autores:
Paulo Zumthor (1986), Reinhart Koselleck (2014), Sandra Makowiecky (2003), José
D’Assunção Barros (2012) e Stuart Hall (2006). Os referidos autores contribuem para a
contextualização e a análise do artista e de sua música nas questões relacionadas a tempo,
narrativa, textualidade, arte, política, história, experiências, identidade e afetos no mundo
contemporâneo. Para tratar da experiência estética e novas possibilidades de trasmitir
sentidos, são abordados estudiosos como Valverde (2010), Braga (2010) e Picado (2015).

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O artigo é organizado da seguinte forma: a primeira parte introduz o assunto da


pesquisa, com contextualização do artista Liniker; o segundo tópico apresenta conceitos como
tempo, narrativa, arte, política e identidade na perfomance do artista; a terceira seção trata da
experiência estética por meio do som e da perfomance do músico; já a parte final mostra a
coleta de dados nas redes sociais digitais, em específico no YouTube no canal do artista e da
banda Caramelows. Analisar tres videos que deram inico a carreira da banda
sendoevidenciado por meio do conceito de experiencia estética suas relevâncias no contexto
atual vista pelos autores já citados, e por fim a conclusão com os resultados da pesquisa.
Ao fim desse trabalho espera-se que possa abrir novos olhares sobre as questões sobre
o tempo, novas narrativas, identidades e experiencia estética na pós-modernidade.

Nasce um novo artista das redes para os palcos: Liniker e a banda Caramelows
A trajetória do artista Liniker começou antes de viralizar na internet a coletânea com
três vídeos gravados por ele e seus amigos e integrantes da banda Caramelows em outubro de
2015. O cantor conta – em entrevista (no mesmo ano) para o jornal on-line EL País3 – que já
na sexta série do colégio surpreendeu a todos cantando em homenagem ao dia das mães.
Questionado nessa reportagem porque demorou a investir na carreira, o cantor revelou
que se sentia com vergonha perante a família que era já tradicional no estilo musical samba
de raiz. O artista, que é natural de Araraquara (SP), resolveu mudar de sua cidade natal e
realizar curso de teatro, na escola livre de teatro em Santo André. Assim, Liniker começou a
ser o sujeito de sua história e passou a utilizar peças do vestuário feminino e acessórios sem
se importar com os questionamentos de terceiros. Ele evidencia que em sua cidade natal, por
ser de caráter mais tradicional, se sentia intimidado pela sociedade local, e ao sair de lá, se
sentiu liberto para ser quem realmente era.
Sobre a questão do gênero, o cantor diz que não precisa ter certeza se é “homem” ou
uma “mulher”, em entrevista a G14 também em 2015, seu corpo é um “corpo político”. Esse
conceito é muito caro ao artista, como se observa também na entrevista ao El País.
O cantor espera que, com sua forma de se expressar e agir, possa, também, transmitir a
outros indivíduos coragem para serem quem quiserem. O artista atribui à arte a
responsabilidade e o atributo de trazer possibilidades para criar discursos. Segundo o artista,

3
Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2015/11/12/cultura/1447331706_038108.html>. Acesso em:
30 set. 2018
4
Disponível em: <http://g1.globo.com/sp/sao-carlos-regiao/noticia/2015/12/de-batom-e-brincos-cantor-liniker-
tem-1-milhao-de-acessos-com-clipes.html>. Acesso em: 30 set. 2018.

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ele começou a escrever para falar de si, de tudo que o afligia e o inquietava a ponto de não
conseguir apenas ficar com elas sem traduzir em letras e música.
Liniker ganhou destaque com seus vídeos no YouTube5, em outubro de 2015, pela
potência de sua voz rouca e grave característica da música soul. Produzido com brincos,
turbante e batom em contraste com sua barba rala, seu figurino traduzia o que o artista queria
perpassar, algo íntimo e autoral. As músicas, segundo o artista, ficaram muito cênicas, assim
como o arranjo e a interpretação. As canções escolhidas para representar essa proposta do
artista foram: Louise do Brézil, Zero e Caeu.
Vindo das redes, o artista, atualmente, encontra-se mais estabilizado no cenário
musical, fez uma turnê internacional e conta com uma agenda com diversos shows pelo
Brasil. O artista segue com o olhar acerca do papel da arte por meio de sua música no sentido
de trazer novos discursos e narrativas, traduzindo seus posicionamentos em sua
performance.“O corpo é meu. Eu que tenho liberdade sobre ele. Se tenho minha inteireza, por
que você quer colocar seu bedelho em mim? Quem é você para ditar regras que eu tenho que
seguir? Cada um é cada um, cada corpo é uma história”.

Novas narrativas, textualidades, memória, identidade e arte no cenário pós-moderno


O ato de narrar está presente em diversos processos comunicativos, seja na
teledramaturgia e suas novelas ficcionais, documentários, séries, filmes, seja nas formas mais
tradicionais de narratividade, como os livros e os jornais. Não se pode ignorar, também, os
atributos já presentes nas pinturas nas cavernas como uma forma de narrar a própria história e
seu tempo. Nesse sentido, observa-se, no processo de produção de narrativas, elementos
singulares extremamente importantes, como a percepção do tempo e a apropriação da história.
No tocante à relação entre tempo e história e a construção das narrativas, Ricoeur
(2012) reflete sobre a não linearidade do tempo e pontua que os paradoxos do tempo
atravessam nossas experiências na busca dialética por sentidos entre presente, passado e
futuro. O autor menciona Santo Agostinho e a recitação de um poema; este, ao ser narrado no
presente, gera uma antecipação ou expectativa sobre seu sentido; ao longo do processo de
declamação, o futuro decresce; enquanto o passado se alarga. Essa é a dialética do tempo que
Ricoeur (2012) pontua como valorativa ao se analisar o processo de construção de uma
narrativa.

5
Disponível em: https://www.youtube.com/channel/UCMRAb0_HPDRzU0lG5kj3Nvw Acesso:30 set.2018

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A dialética da lembrança, da espera e da atenção, no interior do tríplice presente, é


desde então duplicada pela dialética entre intenção e distensão que torna o presente
‘humano, demasiado humano’, por comparação com o eterno presente de Deus, que
é o Agora absoluto em simul tota, simultâneo a tudo. [conceito de tempo em relação
ao passado, presente e futuro em Agostinho]. (RICOUER, 2012, p. 1)

Essa dialética sobre o tempo é vista pelo autor como relevante para que se discuta
acerca do processo de constituição da intriga nos textos narrativos. São diversas apropriações
de um tempo em seu sentido amplo e universal apropriado a nível singular por diversos
sujeitos que escolhem abordagens diferentes de narrar. Ao construir narrativas, os indivíduos
buscam trabalhar a dialética proposta entre passado, presente e futuro, elementos que se
tencionam na formação das narrativas, conforme aponta Ricouer: “Lendo o fim no começo e o
começo no fim, aprendemos a ler o próprio tempo ao revés, como a recapitulação das
condições iniciais de um curso de ação em suas consequências terminais”. (RICOUER, 2012,
p.2). É assim que o autor evidencia a não linearidade do tempo nas formas de contar histórias,
possibilitando novas leituras sobre o seu contexto.
O sujeito é caracterizado pelos diversos tempos e histórias contadas e ainda por contar.
“Narrar, seguir, compreender as histórias não é se não a ‘continuação’ dessas histórias não
expressadas.” (RICOUER, 2012, p. 2). Em relação ao tempo e à narrativa em Ricoeur, Barros
(2012) faz a seguinte consideração que suscita sobre a potência dos agentes no processo de
compreensão das narrativas e sua relação com a história e os processos temporais:
Emergindo do vivido, a narrativa a ele retorna, transformando-o e transformando-se
em um único movimento, de tal maneira que se pode dizer que a narrativa histórica é
uma reflexão do Vivido sobre si mesmo, através das imprescindíveis mediações do
historiador que constrói o texto e da atividade recriadora do leitor que recebe e
ressignifica a obra historiográfica, compreendendo, através dela, a si mesmo e ao
Mundo. (BARROS, 2012, p. 16)

O papel das narrativas históricas de clarear as reflexões do homem sobre si e sobre o


mundo, analisando a dialética do tempo e da história, é essencial para a constituição do
indivíduo como sujeito, fazendo-o identificar seus laços identitários e culturais. A ação de
contar histórias e, com isso, perpetuar hábitos e tradições é fundamental para se manter um
conjunto de valores simbólicos que são constitutivos de uma cultura. Dessa forma, pode se
afirmar que o ato de narrar e produzir narrativas possibilita a manutenção das memórias
coletivas.
Relevante considerar, nesse processo, o desenvolvimento dos meios de comunicação e
de registrar os processos históricos que ressaltam a temática da memória coletiva e das
narrativas nunca contadas. A sociedade e os indivíduos estão em um processo de inquietude e
de busca pela produção de suas próprias narrativas e pela construção da memória.

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A arte ganhou ainda mais destaque nesse contexto, ampliando as possibilidades de se


produzir afetos e afetar os sujeitos, por meio de diversos suportes para além dos museus de
artes e exposições. A arte conquistou as redes e os diversos públicos e se mantém como uma
mediadora entre os sujeitos e o seu mundo. Assim, ela continua a exercer sua função de
influência nos diversos setores da sociedade. Por meio dela, é possível buscar entender as
conjunturas sociais e políticas de um país, reler seu passado e questionar sobre a construção
do futuro no seu presente, conforme evidencia Ricoeur (2012). A arte propõe esse
questionamento do tempo dinâmico e dialético em constante reflexão sobre o “aqui e agora” e
sobre os outros tempos que se afetam.
Sobre o papel das representações promovidas pela arte e pela estética, Makowiecky
(2003) reflete:
Através de imagens, o homem reapresenta a ordem social vivida, atual e passada.
Há, pois, um deslizamento de sentido, uma representação do outro que não é
idêntica, porém análoga, uma atribuição de significados. Endossar essa postura
significa assumir a decifração do real pelo imaginário, ou seja, pelas suas
representações. (MAKOWIECKY,2003, p. 20)

Diversos autores, como Santaella (2005), já desenvolveram trabalhos sobre as novas


tecnologias e a arte, estudando e problematizando questões como a convergência da
comunicação e as artes, pontuando que ambas as áreas dialogam em seus sentidos primeiros.
A autora pondera: “Ao fazerem uso das novas tecnologias midiáticas, os artistas expandiram o
campo das artes para interfaces como o desenho industrial, a publicidade, o cinema, a
televisão, a moda, as subculturas jovens, o vídeo, a computação gráfica, etc.” (SANTAELLA,
2005, p. 25).
No tocante à produção e à recepção desses elementos artísticos potencializados pela
tecnologia da comunicação, Paul Zumthor (1986) analisa o papel da performance como
possibilidade de interação entre a recepção da experiência estética e de produtora da
experiência advinda das artes em geral. Embora seu olhar sobre a performance no texto
“Performance, recepção e leitura” tenha a leitura em foco, pode se associar as suas análises
para a performance a outros processos criativos, como o teatro, a dança e a música.
Ora, se a performance tem como principal atributo conceitual a ação do corpo em
perceber e experienciar determinado processo criativo, uma ação em acontecimento, e a
tradução desse processo através do corpo do sujeito criador e do sujeito receptor; logo, a
performance no conceito trabalho na leitura de textos escritos por Zunthor (1986) pode
reverberar também em outras partes.
Sobre a relação do corpo no processo de construção da performance, o autor afirma:

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O que entender aqui pela palavra ‘corpo’? Despojado como ele está em minha frase,
parece escapar, por demasiado puro e abstrato, ideal, como o ego transcendental de
Husser! No entanto, é ele que eu sinto reagir, ao contato saboroso dos textos que
amo; ele que vibra em mim, uma presença que chega à opressão. O corpo é o peso
sentido na experiência que faço dos textos. Meu corpo é a materialização daquilo
que me é próprio, realidade vivida e que determina minha relação com o mundo.
Dotado de uma significação incomparável, ele existe à imagem de meu ser: é ele que
eu vivo, possuo e sou, para o melhor e para o pior. pervertem nele seu impulso
primeiro. Eu me esforço, menos para apreendê-lo do que para escutá-Io, no nível do
texto, da percepção cotidiana, ao som dos seus apetites, de suas penas e alegrias:
contração e descontração dos músculos; tensões e relaxamentos internos, sensações
de vazio, de pleno, de turgescência, mas também um ardor ou sua queda, o
sentimento de uma ameaça ou, ao contrário, de segurança Íntima, abertura ou dobra
afetiva, opacidade ou transparência, alegria ou pena provindas de uma difusa
representação de si próprio. (ZUMTHOR, 1986, p. 23)

Observa-se uma tendência de banalização da palavra “performance”, pois se o termo


se refere a uma forma de deixar o corpo falar e se perceber no ato comunicativo com objetivos
estéticos, muitos sujeitos podem se apropriar desse discurso. Contudo, o que diferencia uma
performance em seu sentido lato são as formas e a possibilidade de realmente gerar afetos.
Isso porque muitas ações são desprovidas de sentidos performativos e acabam não tocando os
indivíduos no nível estético.
Para ter um olhar mais aguçado sobre a experiência estética6 e sua relação com a
performance e as artes, é importante antes pontuar a questão das identidades dos sujeitos na
atualidade, tendo como base os estudos de Hall (2006) sobre as identidades no contexto da
pós-modernidade. O autor pontua que, hoje, as identidades estão deslocadas e são, muitas
vezes, tensionadas em questões políticas e multiculturais, sendo um dos reflexos da
globalização e da pós-modernidade. Hall evidencia que não existem mais sujeitos como nos
tempos anteriores, mais presos a instituições e a valores imutáveis. Com o advento da
comunicação rápida e global e a interação entre diversas culturas, os indivíduos podem
assumir diversos aspectos identitários:
[...] como conclusão provisória, parece então que a globalização tem, sim, o efeito
de contestar e deslocar as identidades centradas e ‘fechadas’ de uma cultura
nacional. Ela tem um efeito pluralizante sobre as identidades, produzindo uma
variedade de possibilidades e novas posições de identificação, e tornando as
identidades mais posicionais, mais políticas, mais plurais e diversos; menos fixas,
unificados ou trans-históricas. ( HALL, 2006, p. 87)

Sob esse olhar acerca desse sujeito plural atravessado pelas características estruturais e
simbólicas de seu tempo, evidencia-se, a seguir, a potência da experiência estética por meio
da arte no contexto atual.

6
Tema tratado no próximo tópico.

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Experiência estética e comunicação na pós-modernidade


Os estudos que envolvem a comunicação e a estética estão em amplo
desenvolvimento. Autores como Braga, Leal, Picado (2015) e Valverde (2010) têm publicado
trabalhos referentes às duas áreas, tendo como ponto em comum a observação de que o campo
da comunicação e os estudos sobre estética, especificamente a experiência por meio dos
mecanismos midiáticos, ganham maior impulso com as redes de compartilhamento on-line.
Com base no livro organizado por Guimarães, Leal e Mendonça (2006) composto por
textos extraídos do Simpósio sobre Comunicação e Estética, realizado na UFMG em 2004,
Braga (2010) discute a relação da comunicação e da estética com agentes articuladores e
interligados no que tange à produção e à recepção de sentidos. O autor defende a mudança de
foco do objeto estético para a experiência estética como um processo relacional. “Com essa
perspectiva, o objeto deixa de ser o núcleo para o qual convergem as atenções e passando a
ser visto como ‘medium’ que permite aos sujeitos tomarem, consciência de sua própria
experiência.” (GUIMARÃES; LEAL; MENDONÇA, 2006, p. 8).
De acordo com Braga (2010), os processos estéticos são interacionais. Logo, se a
midiatização pode ser vista por seus aspectos centrais de interação social, o campo torna-se
fértil para as investigações e as construções de articulação entre as áreas. Picado (2015)
reforça esse olhar e pontua a relevância de se estudar as experiências estéticas em sua relação
com os meios que possibilitam a interação com o público. Para isso, ele propõe analisar a
polissemia de sentidos nesse processo. Ambos os autores pontuam que os estudos sobre
comunicação e experiência estética devem se focar nas especificidades dos meios mediadores
da experiência em seus sentidos de produção e circulação, nas possibilidades de tais
mecanismos e, principalmente, na sua recepção. Assim, o polo receptor ganha destaque nos
estudos sobre as experiências estéticas mediadas pela mídia.
Sobre as singularidades a serem consideradas sobre a mídia no processo de análise de
uma experiência estética. Braga (2010) reflete:
A mídia se oferece não como ‘focada’ mas como tendencialmente dispersa – As
possibilidades estéticas se dispersam em meio a possibilidades informacionais, de
atualidade, entretenimento, etc. [...] Por sua abrangência de atingimento, por sua vez,
não oferece ao objeto um olhar preparado (em formação prévia; ou em atitude
predisposta para o nível estético. (BRAGA, 2010, p. 77)

Para além das possibilidades de produção e compartilhamento de possibilidades


estéticas com a mídia, é necessário um olhar mais aguçado sobre algumas características
desse meio de interatividade em aspectos como os citados por Braga (2010). O autor
acrescenta que tendo os cidadãos mais possibilidades de expressar seus pensamentos e afetos

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por meio dos mecanismos midiáticos, esses elementos devem ser trabalhados com maior
cuidado e pensando na recepção dessas mensagens. Ainda sobre a importância do receptor na
ação de construção e ressignificação, Barros (2012, p. 6) afirma: “Os sentidos são
reinventados na percepção estética, no encontro do espectador com o objeto estético, em um
dado tempo histórico e lugar social, em um contexto comum, um contexto de polissemias.”
No processo de avaliação da experiência estética como algo relacional e articulado
com a mídia, Valverde (2010) descreve que o computador e a internet produzem um
deslocamento da estética, que passa a ser considerada uma teoria da experiência sem corpo.
Nesse sentido, considerando a importância do corpo como receptor da experiência sensível e,
também, responsável pelas produções das experiências, o autor destaca ser necessário um
olhar mais cuidadoso sobre as formas como o corpo é agenciado pelos novos mecanismos
interacionais. Isso porque as experiências estéticas são da ordem do sensível e é pelo corpo
que elas atravessam e reverberam.
A participação do corpo nas questões sensíveis pode ser reconhecida mesmo que não
seja tão evidente como nos séculos anteriores, nos quais a experiência ocorria em maior
ênfase nos museus e nas cidades históricas com a ação do corpo presente. No tocante à
possibilidade da participação do corpo no novo contexto virtual, Valverde (2010) argumenta
que é necessário considerar as questões intersubjetivas presentes em cada sujeito em sua
relação com o mundo e as conceituais sobre o tempo. Desse modo, na análise das experiências
estéticas na produção e na recepção, não apenaso presente é relevante, mas todos os tempos
em interação:
Não podemos reduzir a visão ao registro fotográfico do mundo exterior, ao simples
reconhecimento de sua evidência física, dada objetivamente, de modo independente
de nós, pois ela é um ato de organização que orienta as “instituições sensíveis”,
segundo um ponto de vista determinado e confere a unidade do sentido à diversidade
abstrata das sensações. Mas tal sentido não deriva de uma atitude solipsista, de uma
condição individual e solitária, pois atribuímos sentido ao mundo quando nos
quadros de uma cultura, segundo o fluxo de significações a partir das quais nossa
experiência é sempre retomada [...] só a experiência é capaz de superar a
experiência, pois é próprio da sua estrutura não só preceder-se a si mesma, mas
exceder-se a si mesma nos quadros da natureza, da cultura e da história. E é o corpo
– esse meio, ao mesmo tempo natural, cultural e histórico de transcendência – que
torna presente a possibilidade de toda experiência. (VALVERDE, 2010, p. 69-70)

Braga (2010, p. 84) também aponta para as formas de acesso à experiência estética,
embora esta seja interligada a um meio com muita diversidade, que perpassa aspectos quase
não compreensíveis, nos quais se tem essa ausência de materialidade capturável é necessário
recorrer às próprias subjetividades de cada indivíduo que apreende de acordo com suas
singularidades eminentes e tenta objetivá-las e as fazem circular.

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Sobre o risco de a análise abranger apenas os sentimentos de cada sujeito ao se estudar


um determinado objeto estético, o autor apresenta como possibilidade o seguinte percurso:
“Creio que é possível ainda propor leituras de expressões singulares da experiência,
procurando, entretanto, como ensaio e erro, testar a possibilidade de perceber, no objeto
vetores interacionais (apenas probabilísticos) entre o gesto da elaboração e o gesto de
fruição.” (BRAGA, 2010, p. 85).

A performance de Liniker e as narrativas provocadas pela representação de si


Com as possibilidades alargadas pelo desenvolvimento dos meios de comunicação e
de interação entre os sujeitos, a ação narrativa dos indivíduos também teve sua potência
aumentada. Ricoeur (2012) pontua que a questão do tempo deve ser avaliada em um processo
dialético, o qual se considera presente, passado e futuro em constante diálogo, tanto na
construção da narrativa, como no momento de decodificar os sentidos eminentes.
Ao observar as narrativas possibilitadas pelos mecanismos midiáticos na atualidade,
Resende (2009), com base em Genette (1995, pontua:
Nesse sentido, o ato de narrar, através dos meios, pode revelar legitimações, valores,
representações e faltas, dados preponderantes para o processo de compreensão e
leitura do mundo. No entanto, para que seja possível redimensionar a problemática
levantada pelo autor, há que se compreender o ato de narrar não como o que provém
tão-somente da oralidade; ele é, por excelência, fruto da necessidade que o homem
tem de contar e recontar as histórias que permeiam a vida. (RESENDE, 2009, p. 33-
34)

Para analisar o contexto atual considerando novas possibilidades de contar histórias e


transmitir valores e visões de mundo, a presente pesquisa seleciona o cantor Liniker a fim de
observar a potência desse movimento tendo as mídias digitais, a música e o empoderamento
do corpo como afirmação de conceitos e posicionamentos sociais do músico.
A opção por Liniker para avaliar as potências das novas narrativas em ambientes
interacionais, como o YouTube, leva em conta os posicionamentos em meio midiático do seu
corpo como discurso político e histórico. O cantor possibilita algo a mais que a sua própria
música, agrega, ainda, uma narrativa de sua história, seus valores e sua identidade enquanto
um corpo expressivo. Seja nas performances nos videoclipes, nas reportagens divulgadas na
mídia, nos shows apresentados com sua banda ou por sua presença em ambientes midiáticos,
Liniker é um corpo com narrativas simbólicas que estão em evidência não somente no País
como no mundo.
Em um primeiro discurso provocado, o cantor afirma que não tem um gênero
afirmativo e que essa questão não é relevante. Para ele, não faz diferença se dirigem-se a ele

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como pertencente ao universo feminino ou ao masculino, e o que propõe é justamente a


provocação de tais discussões. Depois de uma vivência em sua cidade natal em Araraquara, o
músico começa a agir segundo os seus ideais e conceitos de vida e passa a utilizar, no seu
cotidiano e em seu corpo, peças femininas e acessórios como brincos e colares, além de um
turbante, o qual ele o significa como uma coroa, lembrando suas origens históricas.
Em um segundo discurso, Liniker também coloca, ao lado das questões de gênero e
de classes, o acesso às realizações em uma sociedade segregada. Em uma entrevista ao jornal
on-line , ele diz: “ Sou negro, pobre e gay e tenho potência também”. Tal frase que virou tema
de uma entrevista divulgada no canal oficial do cantor e da banda Caramelows7. Nesse vídeo,
o cantor articula a interação entre diversos enredos históricos, sociais e culturais que objetiva
traçar com a representação de sua identidade traduzida em suas músicas (especialmente com
letras autorais) e com o seu corpo carregado de valores estéticos e simbólicos.
A fim de ter um olhar qualitativo acerca das possibilidades estéticas geradas pela
interação dos vídeos postados no canal oficial do cantor e da banda entre 2016 e 2018
noYouTube, são escolhidos os vídeos que foram citados em entrevistas no início de sua
carreira como os precursores de seu nome na mídia. A análise tem como base os conceitos
apresentados por Braga (2010), Guimarães e Leal (2006), Valverde (2010) e Picado (2015)
sobre experiência estética em ambiente interacional.

Análise dos principais vídeos postados no YouTube em seu canal oficial


Para analisar a potência da representação de si do cantor Lineker no que tange a inserir
narrativas políticas e sociais8 e avaliar como se dá a experiência estética, são estudados três
vídeos do canal da banda no YouTube, a saber: Caeu, Zero e Louíse du Brésil. Atualmente, o
canal conta com 193.597 inscritos. É feita uma análise qualitativa desses vídeos de forma a
evidenciar a interação provocada em cada uma das performances do artista, selecionadas de
acordo com características que revelam a fruição dos usuários com a produção de ordem
estética.
O primeiro trabalho do cantor foi lançado em 2015 com o nome “CRU”, ao lado dos
demais integrantes da banda Caramelows: Guilherme Garboso (bateria); Márcio Bortoloti
(trompete); Rafael Barone (baixo); Willian Zaharanszki (guitarra); Bárbara Rosa (backing
vocal); Ekena Monteiro (backing vocal); e Renata Santos (backing vocal).

7
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ozvE0STlNzg>. Acesso em: 2 out. 2018.
8
Conforme o próprio artista revela, em entrevistas realizadas no início de sua carreira, como sendo um de seus
objetivos.

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a) Caeu
Publicado em 29 de outubro de 2015, o vídeo da música Caeu circulou de forma rápida entre
os internautas. Uma das características da rede social digital YouTube é a rapidez e a
facilidade de uso das ferramentas disponibilizadas, que possibilitam inserir vídeos em sua
plataforma, criar, produzir e compartilhar em diversas outras redes sociais digitais, como
Facebook e Twitter. A Figura 1 apresenta uma imagem da banda no clipe Caeu.

Figura 1 – Print do videoclipe da música Caeu no YouTube

Fonte: Canal Liniker e os Caramelows. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=4WdTMSRd6a8>.


Acesso em: 30 set. 2018.

As vantagens promovidas pelo YouTube e a visibilidade que a plataforma possibilita a


artistas independentes (como Liniker) fazem dessa rede social uma das com mais acessos e
com alcance de públicos de diversas idades, gêneros e classes sociais. O primeiro vídeo
analisado encontra-se com 5,6 mil visualizações e com manifestação interacional que se
estende de outubro de 2015 até os dias atuais.
Na lista de comentários, destaca-se um dos primeiros itens em que o usuário
identificado como “Gabbrills” faz a seguinte afirmação: “Música boa é música boa né vey,
não é só ‘gays’ que ouvem Lineker não! Forte abraço”. Nesse trecho, observa-se uma possível

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adesão ao o desejo do cantor de construir narrativas sobre o empoderamento do sujeito que


ultrapassam um gênero único (não importando se é um homem ou mulher). Infere-se que os
usuários da rede social, em sua maioria, manifestam-se positivamente a essa mistura
conceitual que busca desmistificar a separação entre gêneros feminino e masculino. Muitos
usuários destacam a potência da voz do artista, exaltando o timbre da sua voz, o ritmo, a sua
banda e o sentido das letras como os maiores agenciadores estéticos. Os internautas ligam a
música do artista às suas vivencias pessoais e constroem novas histórias e memórias.
Em uma outra fala de um dos usuários, verifica-se a conexão de um dos
posicionamentos do artista divulgado no site El País sobre a importância de liberdade de ser
quem quiser ser e de passar essa visão ao seu público. No comentário de Jeff Nogueira é feita
a seguinte declaração: “queria tanto poder ser assim, ter essa liberdade que ele tem, Fazer o
que quer, ser o que quer sem medo. sem se preocupar com o que os outros vão pensar dizer ou
fazer. queria apenas ter essa liberdade que ele tem de ser livre”. Percebe-se uma conexão entre
os objetivos do artista e o alcance junto ao público, ou seja, o artista consegue transmitir o
afeto que declarou desejar no início de sua trajetória.
Seguindo a proposta de Braga (2010) para se verificar as possíveis formas de fruição
pelas experiências estéticas e, especificamente neste estudo, pela performance do artista e da
banda, destacam-se os seguintes pontos:
 A letra da música fala de uma história de amor que não deu certo, mas que poderia
ter tido muitas possibilidades afetivas. Ela propicia a identificação com o público e
gera interação junto aos internautas. O usuário Junior Nunes, por exemplo,
apropria-se, em seu comentário, repetindo a seguinte frase da música: “Cá eu fui
até o ponto que eu, achei que deu”.
 A forma como o artista apresenta sua identidade e sua forma de expressão por meio
de turbante, batom escuro, brincos de argolas, saia e acessórios gera reações
diversas dos internautas, que associam afetos advindos pela música e pela
representação de si feita pelo artista.
 Observa-se que o corpo é um dos principais objetos para geração de afetos e
sensibilidades, tendo em vista o artista e sua forma de se expressar ao longo do
videoclipe, empregando movimentos performáticos e ritmos que agenciam a ação
semelhante no público. Os discursos dos internautas no canal relacionam como
desencadeadoras de afetos as expressões faciais associadas à música Caeu.

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b) Louise du Brésil
O vídeo Louise du Brésil (FIGURA 2), publicado em 15 de outubro de 2015, já
conquistou 3.076.755 visualizações e obteve um número significativo de comentários, o que
possibilita fazer inferências sobre as experiências estéticas produzidas e as possíveis
narrativas agenciadas pela performance do artista.

Figura 2 – Print do videoclipe da música Louise du Brésil no YouTube

Fonte: Canal Liniker e os Caramelows. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=hqfv4Yabc40>.


Acesso em: 30 set. 2018.

A fala de um dos usuários, Filipe Amaral, demonstra a força da narrativa provocada


pelo cantor com sua performance e sua representação para estimular discursos e narrativas
sobre questões culturais e políticas:
Sonzera muito foda! Swing Brazuca muito top! Infelizmente já ouvi me
perguntarem se eu era gay por curtir o som do Liniker... Povo ACORDA! Seja ele
quem for, o som dele é demais! Por mim ele pode se pintar todo de rosa... Ele vai
continuar sendo bom demais no som, e eu continuarei sem precisar ser gay pra ser fã
de LINIKER!

Observa-se, ainda, que diversos internautas, ao assistirem a performance do artista,


resgatam outros artistas da música popular brasileira que carregam o mesmo estilo musical e a
qualidade estética. Assim, fazem um percurso narrativo citado por Ricoeur (2012) no qual o

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tempo está em constante diálogo com as produções de sentidos e as formas de se contar


histórias.
Destaca-se a fala de um internauta que faz essa avaliação temporal e relaciona a
apresentação do artista a figuras da cena musical do passado e ainda têm relevância no
presente:
Legal o som deles, mas pra galera que acha que é original a estética andrógena que
ele usa recomendo que conheça Secos e Molhados, Casa das Máquinas entre outras
bandas que já quebravam esse tabu no Brasil, ainda no comecinho dos anos 70 em
pleno regime militar, a diferença é que Ney é mil vezes mais talentoso que ele.
Detalhe é que esse apelo estético vende muito bem como podem ver, perguntem pro
Prince, Boy George, David Bowie, Ney Matogrosso, Simba (Casa das Máquinas),
Little Richard, Alice Cooper, Brian Molko (Placebo), New York Dolls e uma
porrada mais de artistas principalmente do Glam Rock que não me recordo agora.
Querem saber de um preto gay foda de verdade que encarou a hipocrisia da
sociedade mesmo? Little Richard, cantor de rock, preto, gay e andrógeno que ainda
se libertou nos anos 50 em plena segregação.

A fala desse internauta gerou diversas manifestações entre os demais usuários. Com
base na performance Liniker, observa-se que diversas tramas afetivas são produzidas, além do
resgate de memória e da tradução de símbolos em dialética com o tempo e a história.
A seguir, são apontadas algumas possibilidades afetivas e de experiência estética por
meio da performance em Louise du Brésil:
 O que diferencia as possibilidades estéticas desse vídeo do anterior é somente a
letra da música, visto que os três clipes foram gravados de uma vez só e com as
mesmas produções.
 O nome da música já busca um vínculo com os usuários ao colocar um nome
próprio na música, seguido da referência à nacionalidade brasileira. Propicia, assim,
o agenciamento de afetos junto ao público feminino e a ascensão do sentimento de
nacionalidade com a inserção do nome do País na música.
 A música é alegre e dançante, o que pode trazer uma conexão com os usuários.
 Novamente, o corpo ganha relevância de significados pela expressividade cênica do
artista, que estimula a participação do internauta.

c) Zero
O vídeo da música Zero (FIGURA 3) foi publicado no dia 23 de outubro de 2015,
conquistando mais de vinte mil visualizações. É o vídeo de maior sucesso, sendo
parabenizado, inclusive, por outro artista que fazia já sucesso naquela época, Pablo Vittar.
Isso gerou ainda mais interação com os internautas, que, em sua maioria, elogiaram Liniker,
comparando-o a Pablo Vittar. Tal associação é observada nos três vídeos.

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Figura 3 – Print do videoclipe da música Zero no YouTube

Fonte: Canal Liniker e os Caramelows. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=M4s3yTJCcmI >.


Acesso em: 30 set. 2018.

É interessante trazer uma das conversas presentes nessa interação, em que o internauta
vai ao encontro dos propósitos do cantor Liniker de valorização da arte independentemente do
gênero. A fala do usuário Gustavo Rodrigues, embora demonstre muita sinceridade, pode ser,
também, um índice da existência de uma cultura ainda bastante fechada e apegada às questões
de gênero: “Eu sou o famoso ‘hetero’ curto as parada mais masculina ta, disseram que eu não
curti pabllo vitar por que eu era ‘machista’ Mas olha a porra dessa voz cara que caralho de
voz foda Eu me arrepiei ouvindo mano Vim aki mostrar minha indignação Com esse
CANTOR FODA VELHO Essa música bem escrita, ótima música velho porra não canso de
elogiar por que é foda vi”.
Já a internauta Erika Viana já valoriza a performance do artista como uma forma de
engajamento político e social, de representatividade para outros brasileiros: “É isso Brasil!
Representatividade, empoderamento é revolucionário”.
Observa-se, em ambas as falas, a ocorrência dos objetivos propostos do artista em
gerar, com sua música e seu corpo, uma representação política e histórica capaz de tocar as
pessoas para que elas não tenham medo de expressar quem elas são. A seguir, são citados
alguns possíveis elementos de sentidos para geração de experiência estética:

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 A letra da música permite um aproximação com os usuários, pois descreve a ação


de dois amantes e as formas como impulsionadoras de afetos. Tal aspecto pode ser
evidenciado com a fala do usuário Anderson Milan que resultou 24 respostas na
rede: “Uma saudade de não sei o quê que essa música me dá”.
 Associada à letra, a interpretação do artista faz as relações e as inferências de
sentidos que podem ser transmitidas aos internautas; mais uma vez, o corpo se
torna um dos atores principais para produção de sentidos e produções de afetos.
Ressalta-se o seu olhar que busca capturar a atenção do internauta, como se
estivesse face a face.

Considerações sobre as três análises


As três produções foram gravadas no mesmo dia, mas divulgadas em períodos
distintos, em outubro de 2015. Os objetivos narratológicos de Liniker incluem ser uma
referência para que as pessoas se sintam livres para serem quem elas quiserem ser e ter, no
seu corpo, a representatividade de uma história, de uma cultura e de posições políticas. O
artista consegue transmitir esses sentidos para seu público, o qual constrói, baseado na
performance do artista, narrativas de apoio a essas ideias.
As comparações do artista com outras personalidades públicas, como Pablo Vittar,
está presente em todas publicações. Já a questão de gênero é citada em grande quantidade e
em todos os vídeos, mas ressalta-se uma avaliação positiva do artista por sua qualidade
expressiva e sonora.
Também se observa que, nos três vídeos, existiram elementos de sentidos que
propiciaram a interação junto aos usuários. Estes, por meio de seus comentários, demonstram
que foram tocados pelas performances e reverberaram sentidos a outros sujeitos, fazendo a
experiência estética circular.
Nos três vídeos, as construções simbólicas para produção de experiência estética têm,
além das letras baseadas em vivências pessoais que geram aproximação com o público, a
presença do corpo como representatividade cênica e de expressão que possibilita o surgimento
de afetos junto aos usuários.

Conclusão
No contexto atual em que a comunicação e a estética se tangenciam por meio dos
mecanismos de comunicação digitais, observa-se um caminho com grandes desafios e muitas
possibilidades. Neste trabalho, pôde ser evidenciado esses dois olhares por meio da análise de

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um artista (Liniker) que traz, na representação de si, novas perspectivas narrativas e formas de
gerar experiência estética em rede social. A pesquisa se focou em formas de perceber a
geração de experiências estéticas em um meio midiático por meio de um exemplo de uma das
redes sociais digitais mais acessadas e que é usada para reverberar sentidos e conteúdos
simbólicos: o YouTube.
A formação de narrativas e experiências estéticas no contexto midiático interacional
foi explicitada e correlacionada, destacando que, nos dias atuais, a ênfase e a condução dos
produtores dos conteúdos ou objetos estéticos se dirigem aos sujeitos que receberão os
estímulos. Tanto na performance do artista, como na escolha do ambiente para as produções,
percebe-se um direcionamento ao público.

Referências

BARROS, José D.’Assunção. Tempo e narrativa em Paul Ricoeur: considerações sobre o círculo
hermenêutico. Revista de História e Estudos Culturais, UFU, Uberlândia (MG), v. 9, p. 1-27, 2012.

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Horizonte: Autêntica, p. 73-87, 2010.

GUIMARÃES, César. SOUZA LEAL, Bruno e CAMARGO MENDONÇA, Carlos (orgs.).


Apresentação. Comunicação e Experiência Estética, Belo Horizonte: Ed. UFMG. 2006.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. TupyKurumin, 2006.

MAKOWIECKY, Sandra. Representação: a palavra, a idéia, a coisa. Cadernos de Pesquisa


Interdisciplinar em Ciências Humanas, UFSC, Florianópolis (SC), n. 57, 2003.

PICADO, Benjamim. Dos objetos da Comunicação à comunicabilidade sensível: experiência estética e


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n. 1, 2015.

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LUIZ ROSEMBERG, UM CINEASTA ÉPICO:


Análise do filme Guerra do Paraguay1

Ramsés Albertoni Barbosa2


Universidade Federal de Juiz de Fora

Resumo

O artigo analisa o filme Guerra do Paraguay, de Luiz Rosemberg, como uma metaficção
historiográfica que subverte o envolvimento mimético com o mundo, onde as noções de
realismo ou referência entre o discurso da arte e da história são modificadas através da sua
confrontação. A diegese do filme se constrói na teatralidade da encenação que determina as
composições de quadro e as orientações dos planos, valorizando-se os diálogos das
personagens que questionam a câmera e o espectador sobre a arte e a vida. Identificaram-se
seis tipos de planos-sequência que criam uma narrativa complexa que questiona as verdades
históricas e estéticas, pois o diretor questiona a demarcação da fronteira entre a arte e o
mundo, contestando as verdades da realidade e da ficção a partir da “incorporação diegética
de passados intertextuais” enquanto elemento estrutural que constitui as criações
contemporâneas, funcionando como marca formal da historicidade da obra.

Palavras-chave: Cinema brasileiro; Metaficção historiográfica; História; Ficção;


Representação.

LUIZ ROSEMBERG, AN EPIC FILMMAKER:


analysis of the film Guerra do Paraguay

Abstract

The article analyzes the Luiz Rosemberg's film Guerra do Paraguay as a historiographic
metafiction that inserts/subverts mimetic involvement with the world, where all notions of
realism or reference between the discourse of art and history are definitely modified through
their confrontation. The diegese of the film is built on the theatricality of the staging that
determines the frame compositions and the orientations of the plans, valuing the dialogues of
the characters that question the camera and the viewer about art and life. It was possible to
identify six types of plans sequence used by the director in order to create a complex narrative
that questions the historical and aesthetic truths, since the director questions the demarcation
of the frontier between art and the world, contesting the truths of reality and fiction from the
diegetic incorporation of intertextual passages as a structural element that constitutes the
contemporary creations, functioning like formal mark of the historicity of the work.

Keywords: Brazilian cinema; Historiographic metafiction; History; Fiction; Representation.

1
Trabalho apresentado no GT 2 - Estudos de Cinema e Audiovisual, do XI Encontro dos Programas de Pós-
Graduação em Comunicação Social de Minas Gerais, 18 e 19 de outubro de 2018.
2
Professor. Mestre em Poética pela UFRJ. Mestrando em Comunicação pelo PPGCOM da UFJF. Integrante do
Grupo de Pesquisa Comcime. Endereço eletrônico: ramses.albertoni@ich.ufjf.br

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Introdução
Luiz Rosemberg (Rio de Janeiro, 1943), ao lado de Júlio Bressane e Rogério
Sganzerla é um dos cineastas mais inventivos no Brasil. Rosemberg utilizou praticamente
todos os formatos de captação de imagens, desde a película de 16mm, passando pelo 35mm,
pelo vídeo e chegando ao digital nos anos 2000, fazendo filmes radicais que não tinham
penetração no mercado ou que foram censurados. O cineasta é autor de uma vasta filmografia
que soma mais de 60 títulos, entre curtas, médias e longas-metragens, cujos títulos mais
significativos são Guerra do Paraguay (2015), Dois casamentos (2014), Azougue (2014), O
santo e a vedete (1982), Crônica de um industrial (1978), Paraíso no inferno (1977),
A$suntina das Amérikas (1976), Imagens (1972), O jardim das espumas (1970).
O cineasta começou a trabalhar em meados dos anos 1960 e, além de cineasta, é autor
de um considerável número de colagens que dialogam intrinsicamente com seus filmes,
constituindo um universo único de sua obra e de seu pensamento; some-se a isso uma
prolífica atividade como ensaísta, escrevendo sobre cinema para diversos jornais e revistas.
Seus filmes muitas vezes foram interditados pela censura do regime ditatorial civil-militar e
raramente foram exibidos no circuito comercial. Em 1970, Rosemberg rodou seu longa-
metragem O jardim das espumas, filme geralmente associado ao período do Cinema
Marginal; embora interditado pela censura federal, que proíbe sua exibição comercial, o filme
teve boa repercussão crítica na época, e ficara marcado como um dos principais títulos do
cinema de cunho mais radical realizado no Brasil naquele período. A partir de 1982, o
cineasta passara para a produção de filmes em vídeo, quase sempre realizando curtas ou
médias-metragens, em busca da liberdade criativa e estética propiciada pelo menor custo de
produção. A partir de 2014, Rosemberg retorna ao formato de longa-metragem de ficção, após
um hiato de 32 anos, com o filme Dois Casamentos.
Rosemberg sempre manteve uma postura independente, nunca se filiando a grupos,
Cinema Novo ou Cinema Marginal, mesmo que constantemente associado ao segundo
período. No Brasil, o final dos anos 1960 ficaria assinalado pela ruptura entre o autoritarismo
do regime ditatorial civil-militar e a postura inconformada dos produtores culturais e da
militância estudantil. O levantamento das vozes de protestos se dará através da música, do
teatro, do cinema, da literatura e das artes plásticas. Na música, o Tropicalismo dimensionava
a problemática social ao contexto latino-americano, no teatro, Opinião, Arena conta Zumbi,
Barrela e Roda Viva expunham as mazelas da realidade brasileira. O Cinema Novo redefinia
sua poética, e cada diretor, à sua maneira, transmitia os sintomas de um país em crise. A

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explosão criativa dos jovens artistas da exposição Opinião 65 trazia uma nova figuração, com
a presença do pop e do novo realismo francês.
Nessa época, dois filmes marcaram a ruptura no cenário do cinema brasileiro e
tornaram-se o ponto de partida para uma reflexão do “cinema marginal” ou “cinema do lixo”,
quais sejam, Terra em transe (1967), de Glauber Rocha, e Bandido da Luz Vermelha (1968),
de Rogério Sganzerla. O Cinema Marginal dava voz a personagens totalmente desestruturadas
que se encontravam à margem da sociedade, porque, para além da militância política do
Cinema Novo, existiam prostitutas, bandidos, homossexuais, drogados, pervertidos,
degenerados. Era a estética do grotesco, onde o kitsch, o burlesco, as imagens sujas e
desfocadas predominavam; histórias perturbadoras com personagens estranhas, os anti-heróis
da complexa realidade brasileira.

A metaficção historiográfica no cinema


No filme Guerra do Paraguay (ROSEMBERG, 2017), finda a Guerra do Paraguai, um
soldado meio maltrapilho, mas que se sente vitorioso, se encontra com uma trupe de teatro
composta por três mulheres, a mãe e suas duas filhas, uma delas com problemas cognitivos e
dificuldade de fala, que empurram sua carroça de artistas mambembes por uma estrada vazia.
Nenhuma das personagens tem nome. Logo após o encontro dessas personagens, a mãe morre
de fome. Enquanto o soldado é uma figura do passado, as atrizes são personagens do século
XXI, sendo que uma delas possui um discurso articulado e complexo.
A Guerra do Paraguai foi o maior conflito armado internacional ocorrido na América
do Sul. Foi travada entre o Paraguai e a Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai), e se
estendeu de dezembro de 1864 a março de 1870. Entretanto, o filme Guerra do Paraguay
(ROSEMBERG, 2017) não quer narrar a “verdade” histórica, mas se constrói a partir do
conceito de “metaficção historiográfica” (HUTCHEON, 1988), cuja problematização do
conhecimento histórico se voltará para a necessidade e o risco de distinção entre ficção e
história. A metaficção historiográfica articula uma complexa rede institucional e discursiva de
variados modos culturais, porquanto
[...] esse tipo de ficção não só é auto-reflexivamente metaficcional e paródica, mas
também tem reivindicações com relação a certo tipo de referência histórica recém-
problematizada. Mais do que negar, ela contesta as “verdades” da realidade e da
ficção – as elaborações humanas por cujo intermédio conseguimos viver em nosso
mundo. A ficção não reflete a realidade, nem a reproduz. Não pode fazê-lo. Na
metaficção historiográfica não há nenhuma pretensão de mimese simplista. Em vez
disso, a ficção é apresentada como mais um entre os discursos pelos quais
elaboramos nossas versões da realidade [...] Uma das formas que toma essa ênfase é
o destaque dado aos contextos em que a ficção está sendo produzida – tanto pelo
autor como pelo leitor. Em outras palavras, as questões da história e da

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intertextualidade irônica exigem uma consideração de toda a situação “enunciativa”


ou discursiva da ficção. (HUTCHEON, 1988, p. 64)

Desse modo, conforme a autora, a metaficção historiográfica formula questões


epistemológicas e ontológicas a respeito dos “regimes de historicidade”, conceito
desenvolvido por Hartog (2013), ou seja, das maneiras de se refletir e articular passado,
presente e futuro, compondo um misto dessas três categorias, lançando dúvidas sobre a
possibilidade de qualquer consistente “garantia de sentido”, qualquer que seja sua localização
no discurso.
Assim sendo, o filme Guerra do Paraguay (ROSEMBERG, 2017) promove a
encenação da natureza problemática da relação entre a “redação da história” e a narrativa
ficcional, pois tanto a história como a ficção são sistemas de significação, cuja identidade
agencia-se por uma “pretensão à verdade”, cujos fatos históricos passaram por uma seleção e
por um posicionamento narrativo. Aos 43m02’ do filme, a atriz questiona o soldado:
- Eu vejo que o senhor ainda acredita nos discursos e nas promessas que não dizem
nada. Por que os paraguaios eram nossos inimigos? O que foi que eles nos fizeram?
- Bem... ao certo... com precisão... eu não saberia lhe responder... (ROSEMBERG,
2017)

O processo de concepção da metaficção historiográfica, no filme de Rosemberg


(2017), portanto, pretende deixar visível aquele subtexto ideológico determinante das
condições da própria possibilidade de produção e de sentido nas práticas culturais,
incorporando, desse modo, os discursos artísticos, históricos e teóricos, repensando a
reelaboração das formas e conteúdos do passado, desafiando as fronteiras entre vida e arte, ao
jogar com as margens dos gêneros.
A metaficção historiográfica insere/subverte o seu envolvimento mimético com o
mundo, onde todas as noções de realismo ou referência entre o discurso da arte e da história
são definitivamente modificadas por meio da sua confrontação. Na diegese do filme Guerra
do Paraguay (ROSEMBERG, 2017) é apresentado um novo modelo para a demarcação da
fronteira entre a arte e o mundo, contestam-se as verdades da realidade e da ficção, pois esta
não reflete a realidade, e muito menos a reproduz. Obtempera-se a separação entre o artístico
e o histórico, com a incorporação diegética de passados intertextuais enquanto elementos
estruturais que constituem as criações contemporâneas, funcionando como marca formal da
historicidade da obra.
Desse modo, a metaficção historiográfica do filme Guerra do Paraguay
(ROSEMBERG, 2017) problematiza a natureza da narrativa questionando a sua legitimidade

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enquanto projeto global de explicação. A história aproxima-se de uma fábula com uma veste
tênue que pode ser rasgada facilmente por uma lâmina chamada Agora. Ou seja, ficção e
história se confundem na escritura de uma aventura, caracterizada por tentar a produção de
uma ficção onde os mecanismos da realidade cotidiana aglutinam-se sem dificuldade alguma
às leis da criação artística.
A ficção cinematográfica é, desse modo, a história que se torna problema e que é
colocada em dúvida ou em questão pelo cinema, que leva à interrogação sobre a realidade.
Nas relações entre ficção e história é a obra que se volta para o mundo, cuja expressão
individual adquire dimensão social. A expressão individual, interpretada como um ato
sociológico que resgata a subjetividade dos agentes históricos, se torna, então, o signo de uma
tendência cinematográfica e a consequente tomada de consciência histórica pelo sujeito. Os
fenômenos sociais podem, assim, ser definidos a partir das condutas individuais, e o início da
análise sociológica se dará por meio da ação dos indivíduos, pois as estruturas sociais não têm
um sentido intrínseco; entretanto, terão o sentido que os próprios indivíduos imprimem às
suas ações.
Destarte, é possível ponderar que, no cinema, a imagem-tempo comporta o cinema de
ficção e o cinema de realidade, confundindo as suas diferenças, e, no mesmo movimento, as
narrações tornam-se falsificantes e as narrativas tornam-se simulações, pois é todo o cinema
que se torna um discurso indireto livre operando na realidade. Conforme Deleuze, é “[...] o
falsário e sua potência, o cineasta e sua personagem, ou o inverso, já que eles só existem por
essa comunidade que lhes permite dizer, nós, criadores de verdade” (DELEUZE, 1990, p. 88).
Dessa maneira, rompeu-se o vínculo do homem com o mundo, e é esse vínculo que
deve tornar-se objeto de crença, pois só ela poderá religá-lo com o que ele vê e ouve. O
cinema deverá filmar a crença no mundo, pois a natureza da ilusão cinematográfica é a de
restituir-nos a crença no mundo. Todos,
Cristãos ou ateus, em nossa universal esquizofrenia precisamos de razões para crer
neste mundo. É toda uma conversão da crença. Já foi feita uma grande guinada da
filosofia, de Pascal a Nietzsche; substituir o modelo do saber pela crença. Porém, a
crença substitui o saber tão-somente quando se faz crença neste mundo, tal como ele
é. (DELEUZE, 1990, p. 207-208)

O cinema é, desse modo, a percepção tornada linguagem integradora do homem-


discurso ao mundo natural, retratando, por conseguinte, o drama homem/mundo. Em dado
momento, aos 38m15’, uma das atrizes, em diálogo com o soldado, diz:
- Pelo menos o teatro que fazemos, por momentos nos fazem esquecer que vivemos
entre monstros como o senhor e os seus superiores.
- Volto a repetir, nossas guerras se justificam.

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- São apenas farsas sangrentas


- Farsas sangrentas... eu defendi o Império!
- Império ou República são demências vazias se não existirem contradições ou
história. (ROSEMBERG, 2017)

Em seu filme, Rosemberg (2017) se apropria do recurso do formal realism (WATT,


1957), cujo método narrativo incorpora uma visão circunstancial da vida a partir de um
conjunto de procedimentos narrativos e historiográficos. Apesar de ser uma convenção, o
formal realism possui vantagens específicas, porquanto existem diferenças importantes no
grau em que os diferentes procedimentos mimetizam a realidade, o que lhea permite uma
contrafação mais imediata da experiência individual situada num contexto temporal e
espacial.
Segundo Lukács (2000), isso vai ocorrer porque a arte se tornou independente dos
modelos clássicos e, atualmente, a narrativa cinematográfica já não é mais a cópia de um
modelo pré-estabelecido, mas sim uma totalidade criada, visto que a unidade natural das
esferas metafísicas se rompeu. O cinema estaria, outrossim, paradoxalmente condenado à
fragmentariedade e à insuficiência por um substrato histórico-filosófico, além de ser a
“narrativa de uma era” para a qual a totalidade extensiva da vida não se dá de modo evidente
e cuja imanência tornou-se problemática apesar de possuir uma intenção à totalidade.
Portanto, na poética cinematográfica de sua metaficção historiográfica, Rosemberg
(2017) agencia seu cinema semelhante a um historiador que coloca um problema a partir das
motivações de sua própria época, pois não existe uma realidade histórica que se apresente ao
historiador por si mesma; sendo assim, o historiador deve escolher diante da imensa e confusa
realidade e agenciar a construção do documento, porquanto, o fato histórico é algo inventado
e fabricado a partir de hipóteses e de conjunturas (Le GOFF, 1990). Aos 40m38’, as atrizes
dialogam com o soldado a respeito dos atos históricos de uma guerra.
- As minhas medalhas são atos heroicos.
- Ah, matar, destruir, ocupar são atos heroicos...
- Históricos!
- Histéricos, histéricos, histéricos!
- Pra que serviriam então as guerras?
- Só serviriam se fossemos trogloditas, mesmo assim...
- O que é trogloditas?
- Homens das cavernas... Escuta aqui, pequeno homem fardado, eu estou pensando e
não discursando... E se o poder é a soma de todos os discursos vazios, o melhor é a
gente ficar longe deles, pois todo o tempo que passou pertence à morte.
- É um ponto de vista questionável. (ROSEMBERG, 2017)

Ao refletirmos a respeito das intrincadas relações existentes entre o fazer


cinematográfico e a historiografia, ponderamos, conforme Ferro (1992), que o filme não deve

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ser analisado apenas do ponto-de-vista semiológico, estético ou histórico, mas sim, como uma
imagem-objeto, cujas significações ultrapassam o mero cinematográfico, pois autoriza uma
análise sócio-histórica. Assim, o filme, “[...] testemunha menos pelo que traduz do que pelo
que revela, menos pelo que é do que pelo que provoca; ele não é senão um eco, um espelho da
sociedade, uma abertura” (NORA, 1988, p. 188). Aos 51m32’, a atriz e o soldado dialogam a
respeito daquilo que conforma a existência do homem.
- Eu sou uma atriz, decadentes somos todos... Como diz um poeta que eu conheci
um dia, não se pode quebrar as cadeias quando elas não são visíveis.
- Ah, continuo não entendendo nada do que a senhora fala.
- Lhe falta uma certa aversão ao comum e adjacências... São resíduos do teatro, do
humano. Eu vivo nas palavras sonhos que não deram certo, mas que continuam aí.
Sou o produto de uma época opaca, triste, sendo permanentemente reconstruída,
destruída... (ROSEMBERG, 2017)

Dessa forma, a crítica deve se integrar ao mundo que o rodeia e com o qual se
comunica, buscando compreender a realidade que representa.
Essas questões dizem respeito aos limites da representação, e foram problematizadas
no documentário Nuit et Brouillard, de Resnais (1955), filme que surgiu a partir de uma
encomenda feita pelo Comitê Histórico da II Guerra Mundial. Resnais aceitou dirigir o filme
apenas quando o escritor francês Jean Cayrol passou a colaborar para o projeto. O diretor
pensava que apenas alguém com a experiência de ter passado por um campo de concentração
poderia dar conta de semelhante trabalho, e Cayrol foi um sobrevivente do campo de
Mauthausen. Ele escreveu sobre sua experiência no campo, no ano de 1946, em um livro
chamado Poèmes de la nuit et brouillard (CAYROL, 1997), título que viria a inspirar o nome
do filme de Resnais, assim como o texto que acompanha as imagens.
Il y a nous qui regardons sincèrement ces ruines comme si le vieux monstre
concentrationnaire était mort sous les décombres, qui feignons de reprendre espoir
devant cette image qui s’éloigne, comme si on guérissait de la peste
concentrationnaire, nous qui feignons de croire que tout cela est d’um seul temps et
d’un seul pays, et qui ne pensons pas à regarder autour de nous et qui n’entendons
pas qu’on crie sans fin. (CAYROL, 1997, p. 4)3

Lopate (1996) defende que o filme de Resnais se trata de um anti-documentário, pois


não seria possível documentar esse tipo de realidade e, nesse sentido, o filme rejeitaria as
presunções de neutralidade objetiva do tradicional documentário. Ele seria antes um esforço
de análise e compreensão do que ocorreu.

3
Temos aqueles que olham sinceramente para essas ruínas como se o velho monstro destruidor tivesse morrido
sob as ruínas, que fingem estar esperançosos diante dessa imagem que está se afastando, como se estivéssemos
curando a peste devastadora, nós que fingimos acreditar que tudo isso é de um tempo apenas e de um único país,
e não pensamos em olhar ao nosso redor e não entendemos que choramos incessantemente. (Tradução do autor).

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Por conseguinte, a questão dos limites da representação permeia os dois filmes, o de


Resnais e o de Rosemberg, assim como as implicações éticas de se abordar o tema do
Holocausto e da Guerra do Paraguai. Isso aparece não apenas no texto de Cayrol, mas também
pelas opções técnicas e estéticas dos filmes citados. O filme de Resnais (1955) procura, por
meio de documentos, contar o que aconteceu, não propriamente de modo objetivo, pois a voz
do narrador transmite ironia quando fala das pessoas que participaram da construção do
campo; transmite angústia quando fala dos trens em que as pessoas embarcavam e das
terríveis condições de viagem. Existe a busca de uma conexão entre o local, os campos em
que foram feitas as filmagens dez anos depois, e a história; entre arquitetura e morte. A
câmera parece encontrar nos campos apenas uma paisagem, uma arquitetura, mas sua busca é
atingir o que está por trás de tudo aquilo, o que se esconde na história daquele local.
Além da mera dificuldade de uma representação objetiva de um fato histórico, uma
das especificidades na representação do Holocausto e da Guerra do Paraguai é a extrema
dificuldade na correlação entre os fatos históricos singulares e a sua expressão diante do terror
e da angústia, pois os limites da representação são, igualmente, os limites da memória do
horror. As obras literárias e cinematográficas expressam constantemente a limitação das
próprias obras, pois apesar da busca por capturar a realidade dos fatos, as imagens e palavras
mostram apenas a superfície, já que a dimensão verdadeira de quem realmente viveu as
experiências não é representável por nenhuma imagem ou palavra. Assim, a (im)possibilidade
de representação do Holocausto e da Guerra do Paraguai faz parte da própria memória desses
acontecimentos, cujo paradoxo consiste em que há um dever ético de se lembrar o que
aconteceu e, ao mesmo tempo, uma impossibilidade de representá-lo.

Quando cai a quarta parede


O filme Guerra do Paraguay (ROSEMBERG, 2017) agencia sua diegética a partir do
procedimento da quebra da quarta parede, ou seja, uma barreira imaginária que separa as
personagens do público, cuja diegese acontece dentro de quatro paredes; assim, quando essa
“caixa” é rompida, acaba a ilusão, como acontece aos 43m55’ do filme, quando o soldado
pergunta para a atriz, que olha diretamente pra câmera:
- Psiu, tá falando com quem?
- Com o público, que está vendo a gente representar.
- Mas eu não o vejo.
- E quando foi que o senhor viu além de seu nariz?
- Não sou cego.
- Não parece. (ROSEMBERG, 2017)

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O cinema usa constantemente esse método como um exercício de questionamento da


própria linguagem, cujo recurso tem origem na teoria do “teatro épico”, ou “teatro não
aristotélico”, de Brecht (2005), desenvolvida para contrastar com a teoria do drama de
Stanislavski, e se refere a uma personagem dirigindo a sua atenção para a plateia, ou tomando
conhecimento de que as personagens e ações não são reais. Enquanto o teatro naturalista é
ilusionista com relação à encenação, pois, conforme Benjamin (1994), deve-se reprimir sua
consciência de ser teatro, porquanto sua finalidade é retratar a realidade, o teatro épico possui
uma consciência vital que lhe permite
[...] ordenar experimentalmente os elementos da realidade, e é no fim desse
processo, e não no começo, que aparecem as “condições”. Elas não são trazidas para
perto do espectador, mas afastadas dele. Ele as reconhece como condições reais, não
com arrogância, como no teatro naturalista, mas com assombro. Com este assombro,
o teatro épico presta homenagem, de forma dura e pura, a uma prática socrática. É
no indivíduo que se assombra que o interesse desperta; só nele se encontra o
interesse em sua forma originária. (BENJAMIN, 1994, p. 81)

Portanto, o alcance do “efeito de distanciamento” (Verfremdungseffekt), característica


do teatro épico, característica efetiva do filme analisado, envolve, maiormente, o trabalho do
ator, certa caracterização do espaço cênico e a forma de utilização da música. O efeito
causado é que a plateia se lembra de que está assistindo a uma ficção e isso pode eliminar a
“suspensão de descrença”. Muitos artistas usaram esse efeito para incitar a plateia a ver a
ficção sob outro ângulo e assisti-la de forma menos passiva. Brecht estava ciente de que
derrubar a quarta parede iria encorajar a plateia a assistir a peça de forma mais crítica,
anulando, assim, o “efeito de alienação”. Conforme o dramaturgo,
A identificação é uma das vigas-mestras sobre as quais repousa a estética dominante.
Na sua admirável Poética, Aristóteles já descreve como, por meio da mimesis, é
produzida a catarsis, isto é, a purificação da alma do espectador. O ator imita o herói
(Édipo ou Prometeu) com uma tamanha força de sugestão e uma tal capacidade de
metamorfose, que o espectador imita o imitador e toma para si o que vive o herói.
[...] O que gostaria de dizer-lhes, agora, é que toda uma série de tentativas no sentido
de fabricar, com os meios do teatro, uma imagem manejável do mundo, conduziram
a suscitar a questão perturbadora de saber se, por isso, não seria necessário
abandonar de alguma forma a identificação. É que, se não se considera a
humanidade (suas relações, seus processos, seus comportamentos e suas instituições)
como alguma coisa de dado e imutável, e se se adota em relação a ela a atitude que
se teve, com tanto sucesso desde alguns séculos, em relação à natureza, essa atitude
crítica que procura transformar a natureza, com o objetivo de a dominar, então não
se pode recorrer à identificação. Impossível identificar-se com seres transformáveis,
participar de dores supérfluas, abandonar-se a ações evitáveis. (BRECHT, 2005, p.
135)

De acordo com Vilaça (1966), o teatro épico não tem a pretensão de eliminar ou
destruir a emoção, se opondo à catarse, mas apenas à catarse como único objetivo do drama, e
que nem todas as peças épicas são não-naturalistas; além disso, o autor pondera que a

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diversão faz parte do teatro épico e que a peça épica não se confunde com a “peça de tese” ou
“peça de propaganda”; assim, “o desafio lançado pelo teatro épico é, em última análise, a
criação de um teatro responsável socialmente enquanto conteúdo e ousado artisticamente
enquanto forma” (VILAÇA, 1966, p. 273).
A criação épica, segundo Barthes (2007), aprofunda-se nos problemas sociais, cujos
[...] males dos homens estão entre as mãos dos próprios homens, isto é, que o mundo
é manejável; que a arte pode e deve intervir na história; que ela deve hoje concorrer
para as mesmas tarefas que as ciências, das quais ela é solidária; que precisamos de
agora em diante de uma arte de explicação, e não mais somente de uma arte de
expressão; que o teatro deve ajudar resolutamente a história desvendando seu
processo; que as técnicas cênicas são elas próprias engajadas; que, afinal, não existe
uma “essência” da arte eterna, mas que cada sociedade deve inventar a arte que
melhor a ajudará no parto de sua libertação. (BARTHES, 2007, p. 130-131)

Dessa forma, o espectador do “cinema épico” de Rosemberg (2017), ao se distanciar


da ficção, assume uma posição analítica perante os acontecimentos narrados nas cenas, pois a
proposta não é reproduzir condições dadas, mas desvendá-las. O “efeito de distanciamento”
(Verfremdungseffekt) ativa uma reação no espectador, tirando-o da passividade e colocando-o
no movimento da reflexão. O cinema épico, dessa forma, questiona o caráter de diversão
adjudicado ao cinema, abalando sua validade social e privando-o de sua função específica no
sistema capitalista. É possível afirmar, nesse sentido, que a quebra da quarta parede produz o
efeito contrário da empatia.

Os planos-sequência da guerra
Guerra do Paraguay (ROSEMBERG, 2017) não é um filme sobre a guerra ocorrida
no século XIX, porquanto parte de uma guerra específica para chegar às guerras atuais, ou
seja, é uma metáfora poética que procura refletir a respeito dessa doença da morte
programada, porquanto batalhas, tiros e espetáculos são apropriações histéricas de
Hollywood, já que são eles que vendem a indústria da guerra em forma de aventura,
heroísmos e espetáculo. Assim sendo, o diretor agencia a desconstrução da guerra como
espetáculo intimidatório de povos e nações, no intuito de alcançar uma dor de experiências
dentro de cada um, pela narrativa da história de um soldado raso que retorna ao Brasil após
combater na Guerra do Paraguai, no século XIX, e se encontra, dentro de uma diluição de
temporalidade, no século XXI onde encontra duas irmãs atrizes que estão na miséria, vivem
na fome e acabaram de perder a mãe, as últimas remanescentes de uma trupe de teatro
destruída pelos meios de comunicação de massa.

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Tais personagens, interpretadas pelos atores Patrícia Niedermeier, Ana Abbott,


Alexandre Dacosta, Chico Diaz e Francisca de Oliveira, encontram-se no que pode ser uma
fenda do tempo ou uma licença poética do diretor para alimentar seu filme reflexivo. Do
entrechoque dos discursos, Rosemberg (2017) articula uma reflexão sobre a arte, a história, a
guerra e o capitalismo. A mulher fala, o homem, quando intervém, carece de argumentação. A
guerra, que o soldado anuncia estar terminada e vencida, retorna, no desfecho do filme, numa
daquelas colagens que Rosemberg possui o segredo e que foram os instrumentos para que ele
passasse ativo nos longos anos em que deixou de filmar longas-metragens.
A diegese do filme Guerra do Paraguay (ROSEMBERG, 2017) se constrói na
teatralidade da encenação que determina as composições de quadro e as orientações dos
planos, principalmente os longos planos-sequência (BAZIN, 2002), valorizando-se os
diálogos das personagens que questionam a câmera e o espectador sobre a arte e a vida.
O crítico André Bazin (2002), co-fundador da revista Cahiers du Cinéma, definiu o
plano-sequência como a filmagem de uma ação contínua com longo período de duração, no
qual a câmera realiza um movimento sequencial, sem ocorrência de cortes e em apenas um
take. O autor defendia a ideia de que este recurso dava mais realismo ao cinema, evitando a
ruptura da realidade, o que acontece normalmente através das montagens de takes em uma
película.
Bazin (2002) postula uma espécie de progresso triunfal do realismo cinematográfico,
distinguindo entre os cineastas da “imagem”, que dissecaram a integridade do continuum
espaço-temporal do mundo e o segmentaram em fragmentos, e os cineastas da “realidade” que
se utilizam do plano-sequência em conjunto com a encenação em profundidade para criar uma
sensação em múltiplos planos da realidade em relevo. A partir disso, a proposta baziniana
valoriza os enredos simples e sem grandes acontecimentos, as motivações instáveis das
personagens e os ritmos cotidianos relativamente lentos, características dos cineastas Neo-
realistas, buscando penetrar no cerne do real, comprometendo-se com a honestidade de
testemunho da mise-en-scène e o respeito à integridade espaço-temporal da narratividade.
Segundo Bazin,
O que deve ser respeitado é a unidade espacial do acontecimento no momento em
que sua ruptura transformaria a realidade em sua mera representação imaginária. [...]
Enfim, no filme de puro relato, equivalente do romance ou da peça de teatro, é
provável ainda que certos tipos de ação recusem o emprego da montagem para
atingir sua plenitude. A expressão da duração concreta é evidentemente contrariada
pelo tempo abstrato da montagem. Mas, sobretudo, certas situações só existem
cinematograficamente na medida em que sua unidade espacial é evidenciada.
(BAZIN, 2002, p. 62-64)4

4
Tradução do autor.

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A proposição de Bazin se vincula a uma noção política de democratização da


percepção cinematográfica, porquanto o espectador sente-se livre para explorar os múltiplos
planos do campo da imagem em busca de sentidos. O crítico é a favor do que conceitua de
“cinema impuro”, ou seja, um misto de teatro e cinema.
Na verdade, as imagens da tela são, em sua imensa maioria, implicitamente de
acordo com a psicologia do teatro ou do romance de análise clássica. Elas supõem,
junto com o senso comum, uma relação de causalidade necessária e sem
ambiguidade entre os sentimentos e suas manifestações; postulam que tudo está na
consciência e que a consciência pode ser conhecida. Se entendemos, já com mais
sutileza, por “cinema” as técnicas de relato aparentadas com a montagem e com a
mudança de plano, as mesmas observações continuam sendo válidas. (BAZIN, 2002,
p. 90).

Bazin, contudo, jamais foi um “realista ingênuo” como o acusaram, porquanto sempre
foi consciente dos artifícios exigidos para a construção da imagem realista, dessa forma, o
crítico é um formalista que refletiu sobre a mise-en-scène cinematográfica. Segundo Xavier,
Há um ilusionismo legítimo que constitui a base para o verdadeiro realismo [...] tal
mundo íntegro e intocável que se projeta na tela, construído à imagem do real, é um
mundo de representação, imaginário [...] Bazin considera legítima a manipulação
que salva a inocência do cinema. (XAVIER, 2008, p. 83-84)

Assim sendo, no filme Guerra do Paraguay (ROSEMBERG, 2017) os planos-


sequência servem como questionamento da temporalidade narrativa e da mise-en-scène,
aproximando-se da estética do “cinema de fluxo”, onde ocorre o abandono da perspectiva
narrativa em prol de outras estratégias de relação espectatorial, privilegiando a imagem e o
som em estado puro, cujos significante e significado estão amalgamados, não estando a
serviço do enredo. Ao analisarmos o filme de Rosemberg (2017), identificamos, conforme o
movimento de câmera e a mise-en-scène, seis tipos de plano-sequência utilizados pelo diretor,
quais sejam:

1. Plano-sequência realista (câmera estática/móvel) – esse plano-


sequência abre o filme, inicia em 2m3’ e termina em 7m43’. A imagem está desfocada
no início, mas aos poucos, à medida que as personagens se aproximam da câmera,
vemos o sofrimento das três mulheres a puxarem sua carroça de artistas mambembes.
Não há nenhum diálogo nessa cena, escutamos o ranger da carroça, o som de um
helicóptero, e o barulho de tiros e explosões.
2. Plano-sequência onírico (travelling circular) – esse plano-sequência
inicia em 13m58’ e termina em 17m24’. As duas personagens homens, dois soldados,

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um brasileiro, outro paraguaio, encenam como se estivessem num estado temporal


suspenso, pois o soldado dialoga com uma de suas vítimas da guerra.
- Quem é você, homem ensanguentado?
- Não me reconhece?
- Como vou reconhecer com esse trapo sujo de sangue em volta do seu rosto?
- Rosto deformado por um tiro seu.
- Numa guerra não tem que ficar escolhendo onde se vai atirar. (ROSEMBERG,
2017)

3. Plano-sequência teatral (travelling lateral) – esse plano-sequência inicia


em 28m25’ e termina em 29m20’. As duas atrizes e o soldado interpretam como se
estivessem num palco teatral.
- Como bem diz um personagem de Molière, a hipocrisia é um vício, mas está na
moda, e todos os vícios da moda são virtudes. O personagem do bem é o mais fácil
de interpretar, qualquer hipócrita o representa com razoável perícia, mas fica difícil
saber se estamos diante de um hipócrita no papel de um homem de bem, ou de um
homem de bem que banca o hipócrita para não ser humilhado como um homem de
bem. E o que sabemos nós sobre o amor!
- Eu vindo de uma guerra bestial e a senhora me fala disso...
- Eu sou uma mulher, estou além das suas guerras.
- Minhas não, nossa! (ROSEMBERG, 2017)

4. Plano-sequência hipertextual teatral (travelling lateral) – esse plano-


sequência inicia em 32m33’ e termina em 34m18’. A cena é marcada pela
intertextualidade com peças teatrais, especificamente Shakespeare. Enquanto
escutamos sons de tiros e explosões, a atriz pega uma pedra, como se fosse Hamlet a
segurar um crânio, e dialoga com o soldado.
- Ser ou não ser uma pedra. To be or not to be a stone. O que sei eu? Todos os seres
são desgraçados, mas quantos o sabem?
- Eu não sou!
- É, é e não sabe. (ROSEMBERG, 2017)

5. Plano-sequência teatral (câmera estática) – esse plano-sequência inicia


em 48m18’ e termina em 49m42’. A cena mostra as três personagens se esforçando
para empurrarem a carroça ao longo de todo o ecrã da tela, da esquerda para a direita.
Escutamos o ranger da carroça e a voz off da atriz.
- As guerras não servem pra nada, a não ser para destruir culturas e civilizações, e só
os espertos faturam com ela. O senhor, só como soldado, fica com as medalhas e a
fome. É o tal do enigma da canja, tão pobre e fodido como eu. (ROSEMBERG,
2017)

6. Plano-sequência hipertextual cinematográfico (travelling lateral) – esse


plano-sequência inicia em 1h1m44’ e termina em 1h11m57’. A atriz e o soldado estão

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conversando, sentados diante de uma fogueira, ao fundo escutamos o barulho de tiros


e explosões. O soldado oferece à atriz um buquê de flores.
- Mas eu nunca recebi flores de ninguém. Se eu nunca recebi flores de ninguém, eu
agora me senti... mulher? E logo flores de um homem que vive de tirar a vida
humana. Vê como a vida pode ser difícil, contraditória? Quem pode ser mais odiado
que um soldado? Quem pode ser mais odiado e desgraçado que um soldado, e ainda
assim digno de um gesto delicado? (ROSEMBERG, 2017

A cena é marcada pela intertextualidade com outros filmes, especificamente Stanley


Kubrick, pois as personagens dançam abraçadas ao som do poema sinfônico Also sprach
Zarathustra, de Richard Strauss, da trilha do filme 2001: a space odyssey. Ao final do longo
plano-sequência, o soldado mata a atriz com várias cacetadas na cabeça, aludindo novamente
ao filme de Kubrick.
Essa variação nos planos-sequência deve-se às características específicas de cada cena,
em que os atores e o cenário dialogam com as formulações filosóficas propostas pelo diretor.
É preciso deixar claro que existem outros planos-sequência ao longo do filme, até mais longos
que os analisados, assim, o esquema apresentado é apenas um modelo de interpretação da
proposta de direção do cineasta. Percebe-se, nesse sentido, que Rosemberg (2017) utilizou o
plano-sequência de forma a criar uma narrativa complexa que questiona as verdades históricas
e estéticas.
Desse modo, o filme Guerra do Paraguay (ROSEMBERG, 2017), cujas significações
ultrapassam a mera criação artística, procura nos apresentar uma vida e um mundo que não
havíamos suspeitado anteriormente, porquanto a criação artística não é completa por si
mesma, só existindo dentro de um conjunto de relações que transcendem sua entidade
concreta, para integrá-la no mundo que a rodeia; preexiste à sua aparição um conjunto de
seres sobre os quais a obra projeta uma espécie de luz, convertendo-se em seu centro
unificador e constituinte de seus mundos, pois o fazer artístico faz emergir algo que só se
mostraria através da obra e que constitui o recesso poético da arte.

Referências

BARTHES, R. Crítica e verdade. São Paulo: Perspectiva, 2007.

BAZIN, A. Qu’est-ce que le cinéma?. Paris: Les Éditions du Cerf, 2002.

BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994.

BRECHT, B. O pequeno organon para o teatro. Rio de Janeiro Nova Fronteira, 2005.

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CAYROL, J. Nuit et brouillard. Paris: Éditions Fayard, 1997.

DELEUZE, G. A imagem-tempo – cinema II. São Paulo: Brasiliense, 1990.

FERRO, M. Cinema e história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

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NORA, P. O retorno do fato. In: LE GOFF, J; NORA, P. (orgs.). História: novos problemas. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1988.

RESNAIS, A. Nuit et Brouillard. Producão: Anatole Dauman. Roteiro: Chris Marker & Jean Cayrol.
Narração: Michel Bouquet. (32 minutos) 1955. Distribuidor: Paragon Multimedia. DVD.

ROSEMBERG, L. Guerra do Paraguay. Produção: Cavi Borges. Elenco: Alexandre Dacosta, Ana
Abbott, Chico Díaz, Patricia Niedermeier. (80 minutos) 2017. Brasil: Livres Filmes. DVD.

VILAÇA, M. Do teatro épico. In: Vértice – Revista de Arte e Cultura, Coimbra, Nº 271-272, p. 261-
281, abr.-mai, 1966.

XAVIER, I. O discurso cinematográfico – a opacidade e a transparência. São Paulo: Paz e Terra,


2008.

WATT, I. The rise of the novel. London: Chatto and Windus, 1957.

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ANÁLISE CRÍTICA DE DOCUMENTÁRIOS:


voz, subgêneros e risco do real1

Tatiana Vieira Lucinda2


Universidade Federal de Juiz de Fora

Resumo

O documentário é um tipo de cinema que permite uma série de experimentações e a liberdade


criativa por parte de seus realizadores. Ao longo do tempo, diversos subgêneros surgiram
explorando a potência desse cinema. Por não ter uma definição fixa e nem um modelo pronto,
o documentário não possui uma metologia de análise padrão. Contudo, através de uma revisão
bibliográfica, este artigo apresenta algumas teorias e ideias relevantes que apontam caminhos
para um olhar crítico, utilizando a obra Onibus 174, de José Padilha, como análise exemplar.
Observa-se que a voz do documentário é permeada de um sentido ideológico e que as operações
do dispositivo são capazes de revelar o risco do real, o qual pode despertar o espectador para
um novo olhar.

Palavras-chave: documentário; voz do documentário; subgêneros; real; ideologia.

CRITICAL ANALYSIS OF DOCUMENTARIES:


voice, subgenres and risk of real

Abstract
The documentary is a type of cinema that allows a series of experiences and a creative freedom
on the part of its directors. Over time, various subgenres have emerged exploring the power of
this cinema. Because it has neither a fixed definition nor a template, there is no standard analysis
methodology. However, through a bibliographical review, this article presents some relevant
theories and ideas to point the way to a critical eye, taking the film Onibus 174, by José Padilha,
as an exemplary analysis. It is observed that the documentary's voice is permeated by an
ideological sense and that the device operations are able to reveal the real risk, that arouses the
viewer to a new view.

Keywords: documentary; documentary voice; subgenres; real; ideology.

Introdução
Teóricos do documentário, ao tratar dessa modalidade cinematográfica, defendem que
não há como defini-la em termos fixos e completos. Desde o seu surgimento, concomitante com

1
Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Estudos do Cinema e Audiovisual, do XI Encontro dos Programas
de Pós-Graduação em Comunicação Social de Minas Gerais, 18 e 19 de outubro de 2018.
2
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora
(PPGCOM/UFJF), tatianavl@yahoo.com.br.

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a própria invenção do cinema, o documentário tem experimentado vários modos de filmar e de


apresentar seus temas. Seus realizadores têm explorado ao máximo as possibilidades
enunciativas e a relação que existe entre o filme e o mundo histórico.
Devido a essa variedade de manifestações e por não ter uma definição objetiva sobre o
que é, a que se preza ou como deve ser feito, o documentário acaba se esquivando também de
uma metodologia pré-determinada de análise. O que se tem, hoje, são teorias e ideias sobre
modos de fazer que servem de alicerce para um maior entendimento sobre o filme e os possíveis
efeitos nos espectadores, sabendo-se que cada espectador, na sua dimensão individual,
interpreta e acolhe a enunciação documentária conforme seus padrões e valores morais.
Podemos dizer que documentário é uma multiplicidade de experiências, mas que têm
uma voz que fala mais alto, que congrega todas as vozes que nele se expressam. É esta voz que
chega ao público e que merece ser avaliada em seus meandros, de modo que se possa
compreender melhor as afecções que provoca no espectador e o sentido ideológico que se
esconde em uma produção. Além disso, as escolhas do cineasta e operações do dispositivo
demonstram como o filme lida com o real e como ele o deixa atravessar as cenas e transformar
o planejado em inesperado, aumentando a potência desse cinema.
Desse modo, o presente artigo apresenta uma revisão bibliográfica, tratando da voz do
documentário e de seus subgêneros apresentados por Nichols (2012), bem como do risco do
real e da realidade provocada (COMOLLI, 2008) e fechando em uma abordagem sobre o
sentido ideológico, com vistas a tecer uma discussão sobre os efeitos dessa modalidade de
cinema e sobre seus modos de construção. Como objeto empírico para a aplicação das teorias
apresentadas, é tomada a obra Ônibus 174 (2002) de José Padilha, que reconta a história de um
famoso sequestro ocorrido em 2000 no Rio de Janeiro, porém sob um novo olhar, distinto do
apresentado pela mídia tradicional. Tal angulação pode servir de base para uma compreensão
sobre a missão do documentário de fazer “ver melhor”, conforme propõe Comolli (2008).

Documentários e a impossibilidade de uma definição fixa


Bill Nichols, um dos grandes estudiosos do documentário, em sua obra Introdução ao
Documentário, defende que não existe uma definição específica ou completa para esse tipo de
cinema. Em sua visão, as conceituações que já foram apresentadas e discutidas são sempre
relativas ou comparativas, tomando como referência os filmes de ficção ou filmes
experimentais e de vanguarda. Segundo Nichols (2012), os documentários seriam filmes de
representação social e o cinema de ficção se traduziria em filmes de satisfação de desejos.

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Tal distinção endossa nos documentários a sua relação com o mundo histórico, ao passo
que o cinema de ficção se ocuparia de atender às expectativas dos espectadores, deslocando-os
para um universo paralelo, sem uma obrigatoriedade em tomar a realidade social como matéria-
prima. Comolli (2008) caracteriza o documentário como um cinema em fricção com o mundo,
que investe na potência dos afetos e na duração da fala. No documentário, a palavra tem uma
importância singular, assim como a mise-en-scene dos personagens/sujeitos filmados.
Contudo, ainda que se busque definir o documentário a partir de comparações com o
cinema de ficção, não existe um guia específico de como fazer esse tipo de filme. Migliorin
(2010, p.9) endossa essa ideia ao afirmar que “o lugar do documentário é esse lugar de
indefinição de inapreensível”. Cada cineasta, à sua maneira, percorre um caminho para filmar
determinado tema, sendo que um documentário nunca será a reprodução da realidade que
escolheu para tematizar (NICHOLS, 2012; COMOLLI, 2008). Para Comolli (2008), a própria
fragilidade do documentário, de lidar com pessoas reais que têm reações distintas e
imprevisíveis, de se deparar com o acaso e com o risco de não acontecer – quando não
roteirizado, planejado ou ensaiado – o força a buscar novas formas de criação e experimentação.
Nesse sentido, pode-se dizer que os documentários não seguem um conjunto preciso de
técnicas, formas ou estilos.
A prática do documentário é uma arena onde as coisas mudam. Abordagens
alternativas são constantemente tentadas (...). Aparecem casos exemplares, que
desafiam as convenções e os limites da prática do documentário. Eles expandem e, às
vezes, alteram esses limites. (NICHOLS, 2012, p. 48)

Um mesmo tema pode ser tratado de diversas formas por documentaristas distintos. Há
quem prefira dar um tom mais explicativo e didático, com o uso da voz-over, a narração de
fundo, de modo a conferir certa credibilidade e seriedade ao discurso, aproximando, assim do
telejornalismo; outros que exploram a potência do encontro com o personagem, optando por
participar ativamente da cena ou por deixar que os sujeitos filmados sejam os protagonistas e
donos da palavra no filme; aqueles que preferem extrair um lado mais poético e abstrato do
tema; os que usam o próprio filme para levar o espectador à reflexão sobre o fazer
documentário; e, ainda, os que exploram a subjetividade do tema em questão, numa tentativa
de despertar o espectador para um novo olhar.
Alguns documentários podem oferecer uma visão de mundo pronta para aqueles que se
destinam, deixando uma marca maior do ponto de vista do cineasta sobre o tema. Outros podem
deixar certas lacunas e questionamentos que se voltam ao próprio espectador, como se não
dessem conta de abarcar aquela realidade. Tudo isso se faz através das escolhas do cineasta,
que envolvem posições de câmera, enquadramentos e planos, disposição dos elementos de som

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e imagem, cortes na sequência, montagem, linguagem utilizada, enunciação narrativa, relação


com os personagens e construção de identidades, dentre outras operações que, juntas, formam
o filme e lhe dão um caráter genuíno.
De acordo com Mombelli e Tomaim (2014), as escolhas, ou seja, os pontos de vista
utilizados no documentário, dizem muito sobre a intenção do produto e, principalmente, de seu
realizador. Coutinho, Xavier e Furtado (2005) defendem que a subjetividade do cineasta está
sempre presente, seja no momento do encontro com o sujeito filmado e na forma de abordá-lo,
ou mesmo - e, sobretudo - na montagem, quando se faz um concentrado daquilo que se julga o
melhor que se pôde extrair das gravações.
Se há certa liberdade ao realizador de percorrer caminhos novos e diferentes para tratar
de determinado assunto ou situação, e se o seu trajeto carrega uma visão de mundo, para analisar
os filmes, é preciso entender os mecanismos específicos que utilizou e os subgêneros dos quais
se aproximou (NICHOLS, 2012). Conforme ressaltam Mombelli e Tomaim (2014), a análise
fílmica de documentários é “um método interpretativo que não possui uma única fórmula a ser
seguida”, ou seja, cria-se um próprio caminho, considerando aspectos internos – elementos do
audiovisual - e externos do filme – contexto em que foi produzido.

Subgêneros do documentário segundo Nichols


De acordo com Nichols (2012), cada documentário tem a sua voz distinta, a qual
transmite uma perspectiva, o ponto de vista social do documentarista. Essa proposição significa
que as diversas vozes do filme, sejam das entrevistas, das imagens de arquivo ou das imagens
contemporâneas e da voz-over, juntas, compõem um todo que representa o argumento do filme.
Uma questão bastante levantada pelos teóricos atuais é a que de que, no documentário,
há uma espécie de “enunciação sem propriedade”, ou seja, “a fala sai de um e se torna infinita;
do um ao múltiplo” (MIGLIORIN, 2010, p. 13). Um relato colhido no documentário, ao se
juntar com os demais, perde-se em sua individualidade e atinge uma dimensão mais coletiva,
configurando uma voz que fala pelo filme.
Dessa forma, é importante pensar em como essas vozes são organizadas de modo a
conferir uma perspectiva da relação do cineasta com a realidade tematizada, seja ela expositiva,
poética, observativa, participativa, reflexiva ou performática, nomenclaturas que Nichols
(2012) usou para caracterizar os modos do documentário ou seus subgêneros.
Antes de tratar dos subgêneros, convém ressaltar que para que a voz do documentário
possa ser recebida com credibilidade, comovendo e convencendo o espectador, são utilizados
alguns mecanismos que garantem maior expressividade à mesma, definidos pelo

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documentarista (MOMBELLI; TOMAIM, 2014). A construção dessa voz do documentário é,


segundo Comolli (2008), um modo de pensamento. Para ele, o crítico deve ser perguntar, como
espectador, por quais marcas ele foi tocado no filme e o que persiste a posteriori. Em outras
palavras, trata-se de pensar no sentido que transborda após a projeção do documentário.
Ainda segundo Comolli (2008, p.21), ao analisar uma obra é importante distinguir a
marca da escrita que atravessa todas as outras e as faz significar, que “fura o conjunto das
articulações significantes”. Associando à teoria de Nichols (2012), essa marca seria a voz do
documentário, que, de acordo com o teórico, faz uso da retórica para inspirar a confiança ou
persuadir o espectador.
Ao assistir um filme, composto por vários argumentos e várias vozes, o público, ao final,
tem uma percepção da visão de mundo que lhe foi apresentada, defendida através de provas –
relatos, documentos, imagens de arquivo, fotos, cenas do cotidiano – e, em muitos casos com
um apelo à emoção. Pode ser que esse ponto de vista esteja explícito, mas também existem
casos em que ele está implícito nas escolhas do cineasta, ou seja, os espectadores inferem aquilo
que ficou subentendido (NICHOLS, 2012).
Ramos (2013) defende que, embora não sejam feitos para entreter, os documentários
podem mexer com o público de forma tão intensa como um filme de ficção. Isso se deve ao seu
caráter retórico e também pela forma escolhida para tratar o tema e apresentá-lo ao espectador,
de modo que o argumento apresentado, segundo Nichols (2012) relacione-se não somente com
o mundo histórico, mas também com o próprio envolvimento do espectador com esse mundo.
Nichols (2012) fala de seis modos - expositivo, poético, observativo, participativo,
reflexivo e performático – que foram desenvolvidos, de certa forma, consecutivamente, à
medida que um cineasta se sentia insatisfeito com um modo prévio e se propunha a
experimentar uma nova forma de fazer documentário. Para o autor, cada um desses subgêneros,
que determina uma “estrutura de afiliação frouxa”, ou seja, de apropriação com liberdades
criativas, trata-se de “uma nova forma dominante de organizar o filme, uma nova ideologia para
explicar a nossa relação com a realidade e um novo conjunto de questões e desejos para
inquietar o público” (NICHOLS, 2012, p. 138).
Nesse sentido, pode-se inferir que as formas de fazer documentário, de trabalhar um
tema e de construir o seu enunciado para o espectador, são pensadas como mecanismos de
despertar o olhar daquele para o qual o filme se projeta. Dependendo das escolhas que são feitas,
a forma de receber o argumento e de dar o sentido à obra e ao próprio tema em si pode se
diferenciar.

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O primeiro modo apresentado por Nichols (2012) é o poético, caracterizado por


enfatizar os afetos, promovendo uma fragmentação do tempo e da montagem – esta serve para
estabelecer um ritmo ou um padrão formal, com um reforço do abstrato, da ambiguidade e da
valorização estética. Os filmes nesse modo focam-se mais na construção de um tom ou estado
de espírito do que na explicação do assunto em si.
O modo expositivo reúne fragmentos do mundo histórico sob um viés retórico e com
uma lógica argumentativa. Filmes nesse modo dirigem-se diretamente ao espectador, com
legendas ou vozes que conduzem um ponto de vista, um argumento ou uma história, sendo que
as imagens ficam em segundo plano. A montagem é utilizada para dar a continuidade ao
argumento ou uma perspectiva verbal. Tem-se uma impressão de objetividade, de um discurso
bem embasado (NICHOLS, 2012).
Outro subgênero é o observativo, em que se busca o registro dos fatos que se sucedem
diante da câmera sem a intervenção do documentarista. Evitam-se comentários em voz-over,
efeitos visuais ou sonoros, legendas ou entrevistas, dando ao espectador a sensação de uma
realidade concreta e vivida. Nos filmes do modo observativo, os cineastas se comportam como
se fossem invisíveis ou, como caracteriza Nichols (2012, p. 153), como uma “mosquinha
pousada na parede”.
O modo participativo, por sua vez, é o chamado “cinema de encontro”, em que o
documentarista participa ativamente da experiência filmada, assim, o espectador tem a
sensação, passada pelo cineasta, de como é estar naquela situação tematizada e como ela se
modifica com a presença dele. Nesse sentido, o realizador do filme torna-se um ator social.
Conforme esclarece Nichols (2012), no modo participativo, o cineasta deixa a sua marca ou
entrevistando os participantes ou interagindo com eles. Os depoimentos são ligados sem a voz-
over.
Em uma perspectiva bastante diferente dos modos anteriormente apresentados, o
subgênero reflexivo fala do próprio ato de fazer documentário, ou seja, expõe seus problemas
e as questões próprios. De acordo com Nichols (2012, p. 162), no modo reflexivo “são os
processos de negociação entre cineasta e espectador que se tornam o foco de atenção”. O
realizador dirige-se ao público para chama-lo não a ver o mundo pelo documentário, mas a ver
o documentário pelo que ele é: uma construção ou ressignificação do mundo a partir de um
ponto de vista específico.
Por fim, tem-se o modo performático, através do qual enfatizam-se as características
subjetivas da experiência e da memória, direcionando a emoção e os afetos do espectador.
Filmes desse subgênero misturam o real com o imaginário livremente, chamando o espectador

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a “experimentar o que é ocupar uma posição social subjetiva” (NICHOLS, 2012, p. 171), ou
seja, procura-se fazê-lo sentir como é vivenciar determinada situação ou experiência. Há uma
combinação de técnicas expressivas com a oratória para abarcar questões sociais que não têm
uma solução definida pela razão ou ciência, por isso, conforme ressalta Nichols (2012), há um
convite ao espectador a ver o mundo com novos olhos.

Risco do real x realidade provocada


Dentre as diferenciações que são estabelecidas entre o cinema de ficção e o
documentário está a abertura ao real. De acordo com Comolli (2008), o documentário tem a
particularidade de se deixar ser atravessado pelo real, abrindo-se à ocorrência de imprevistos,
de incertezas e do inusitado. O cineasta é levado ao encontro com o outro – o sujeito filmado –
sem saber o que vai acontecer.
Embora isso que ele chama de “mundo indomável”, do qual o documentário se ocupa,
possa levar o filme ao risco de não se realizar, é exatamente ele que guarda toda a potência
desse tipo de cinema. Para Comolli (2008, p. 35) é esse mundo irredutível à programação “que
pode nos retirar do tédio das telenovelas, do apelo realista-espetacular das telerrealidades e das
ficções cada vez mais pragmáticas”.
Filmar no risco, permitindo que o real possa entrar na cena, carece, antes de qualquer
coisa, de uma disposição do cineasta em não roteirizar e não planejar a gravação. Nesse sentido,
ao escolher uma temática para tratar, espera-se que o filme tenha início logo que acontece o
primeiro contato com o local e os sujeitos tematizados. É sabido que esse encontro entre o
documentarista e a realidade é permeado de medos, seja do realizador ou daquele que irá encarar
a câmera para emitir o seu relato. No entanto, segundo Comolli (2008), o documentário precisa
experimentar esse perigo, lidar com esses temores.
Coutinho, Xavier e Furtado (2005) acreditam que o cineasta deve esquecer-se de si
mesmo antes de começar a filmar, deixando de lado a posição que ocupa na esfera política,
social e cultural e abrindo-se para um encontro em que não haja uma desigualdade de forças –
o realizador como o mais forte, por ser ele quem detém a câmera e quem faz as perguntas, como
uma espécie de um inquiridor, e o personagem como o mais fraco, à serviço de um roteiro ou
de um enquadramento pré-definido.
(...) quando falo livrar-se de si, quero dizer que devemos ir a esse encontro o mais
vazio possível de ideologias e do próprio passado, para saber realmente as razões do
outro, já que as minhas não interessam. Evidentemente que esse vazio nunca é pleno,
porque nunca chegamos ao absoluto das coisas, mas deve haver a disposição de estar
vazio. (COUTINHO; XAVIER; FURTADO, 2005, p. 131)

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Para eles, o cineasta escuta melhor quando se esquece de quem é. Além disso, a câmera,
que pode inibir, incentivar ou modificar comportamentos, precisa ser usada como um
catalizador da verdade que o sujeito pode oferecer. Ela deve estar à favor da cena, permitindo
a fluidez dos acontecimentos.
Comolli (2008) sugere uma câmera “naturalizada” na cena, ou seja, em posição próxima
àqueles que ela filma, como se fosse uma parte do espaço que os sujeitos ocupam, oferecendo-
lhes certa confiança. Além disso, o documentarista deve oferecer o risco aos personagens, ou
seja, deixa-los livres para pegá-lo desprevenido. O indivíduo filmado deve compreender que
aquele que filma não consegue visualizar o resultado, porque nem ele sabe o que vai acontecer
no encontro. Em outras palavras, o risco ao personagem envolveria a autonomia a ele cedida.
Ao contrário das operações de risco, há o que Comolli (2008) chama de “realidade
provocada”, caracterizada pela intervenção direta do diretor na cena, encenação feita por atores
sociais ou por reconstrução. É importante ressaltar que a encenação, típica do cinema de ficção,
não anula a genuinidade de um documentário. Alguns teóricos concebem-na como parte das
experimentações que vêm sendo feitas, e até mesmo, como uma forma de assumir a mediação
da realidade para o espectador, conforme aponta Renov (1993 apud DE GRANDE, 2004, p.
38): “o resultado de um documentário, não é uma apreensão direta do real, mas uma ilusão
cinemática mediada por diversas instâncias”.
Evitando a roteirização ou apelando à realidade programada, a questão principal que
Comolli (2008) defende é deixar aparecer a mise-en-scène dos personagens. Para ele, o
problema do documentário não é mais colocar os personagens em cena, mas revelar a relação
que se estabelece entre quem filma e quem é filmado. O documentário deve filmar a favor das
pessoas, por isso, sua essência e sua verdade, assim como sua entrega ao filme, precisam ser
preservadas em meio às operações do dispositivo.

Ideologias
Para além das questões formais e de escolhas sobre o risco, há que se considerar outro
aspecto nos filmes documentários: o seu sentido ideológico. Ainda que o cineasta tente “despir-
se de si” no encontro com o personagem filmado, o resultado desse momento, que é o próprio
filme, configura-se como “uma voz entre muitas numa arena de debate e contestação social”
(NICHOLS, 2012, p. 73). Desse modo, requer-se uma atenção para a posição do realizador, a
ideologia e a mensagem que o filme passa em relação ao próprio tema (PENAFRIA, 2009 apud
MOMBELLI; TOMAIM, 2014).

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Para Renov (2005), se a objetividade do documentário é uma utopia, uma vez que trata-
se de uma visão de mundo, apresentada em um discurso persuasivo e retórico (NICHOLS,
2012), é importante olhar e analisar as expressões de subjetividade. Segundo o autor, hoje em
dia há muitos motivos para se desconfiar da neutralidade esperada por quem assiste o
documentário, uma vez que “as visões particulares e os propósitos carreiristas sempre se
confundiram com os objetivos sociais confessos dos esforços do documentário” (RENOV,
2005, p. 246). Assim sendo, todo documentário carrega um sentido ideológico nas entrelinhas
de sua elocução.
Na contemporaneidade, as relações entre o cineasta, sujeito filmado e espectador
mudaram bastante. O espectador, com uma ampla disponibilidade de informação, já começa a
perceber que o mundo que se apresenta a ele no documentário é mediado; o sujeito filmado tem
mais familiaridade com a câmera, dada as novas tecnologias digitais e de maior acesso, como
os smartphones; o cineasta “concorre” com diversas mídias que têm explorado exaustivamente
produções ditas realistas. Desse modo, o documentarista de hoje enfrenta diversos desafios para
dar um sentido singular ao seu filme, tentando captar a atenção do espectador.
Amado (2005), ao tratar da obra de Michel Moore, levanta uma questão pertinente e
bastante atual:
(...) qual seria a proximidade admissível ou a distância desejável que os procedimentos
do documentário deveriam estabelecer com os meios, verdadeiros autores das agendas
cotidianas da política e, nesse sentido, promotores cada vez mais efetivos dos
horizontes do gosto e dos limites da ética de uma sociedade?

Alguns filmes podem seguir a lógica da espetacularização televisiva, outros podem dar
a ver os jogos de poder presentes na sociedade (COMOLLI, 2008), reforçar - ainda que não
intencionalmente - estigmas e estereótipos, ou dissimular sobre uma suposta não-intervenção
ou neutralidade. Porém, tudo isso tem as suas consequências, já que os espectadores, segundo
Nichols (2012), tendem a supor que o filme tem uma forte relação indexadora com o que
registrou.
Desse modo, é importante olhar para a construção fílmica buscando entender os modos
de operação dos cineastas e sua posição ideológica, a fim de avaliar o sentido que o filme gera
em seus espectadores. Para exemplificar melhor essas ideias, propomos um exercício de análise
da obra Ônibus 174 (2002), de José Padilha, apresentado no tópico a seguir.

O Ônibus 174: um exercício de análise


Cada variação no tratamento do tema e cada operação do dispositivo na criação do filme
fala sobre o estilo do cineasta, sobre o seu grau de envolvimento com o tema. Para Nichols

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(2012, p.69), “o documentário reivindica uma abordagem no mundo histórico e a capacidade


de intervenção nele, moldando a maneira pela qual vemos”.
Um exemplo que pode ser citado para essa reflexão é a obra Ônibus 174 (2002), de José
Padilha. O filme, que resgata, através de relatos e imagens de arquivo, o sequestro de um ônibus
na Zona Sul do Rio de Janeiro que culminou na morte de uma refém e do sequestrador, Sandro,
poderia reforçar a periculosidade dos bandidos da capital fluminense, a insegurança da
população ou o trabalho dos policiais. No entanto, ao mesmo tempo em que retoma o fato em
si, Padilha traz à tona o passado de Sandro, marcado por traumas, violência e abandono. Aos
dez anos de idade, Sandro assistiu o assassinato de sua mãe. Pouco depois, o menino foge de
casa e passa a viver nas ruas, quando presencia, em 1993, o episódio que ficou conhecido como
a “Chacina da Candelária”, em que oito crianças em situação de rua são assassinadas por
policiais. Sandro continua nas ruas, mas alimentando o sonho de ser um artista. Ao trazer os
vários relatos e tecer a sua narrativa, José Padilha deixa suspensa a ideia de que o sequestro,
com cobertura em tempo real pela mídia, deu ao sequestrador a chance de se fazer existir,
alimentando os seus sonhos mais recônditos.
Observa-se, na referida obra, que o enquadramento feito, ainda que faça uso das cenas
de arquivo, com traços de violência e horror, buscou trazer também um novo ângulo,
despertando o espectador para um olhar diferente daquele que a mídia tradicional apresentou.
Foi utilizado o modo expositivo, ao recontar uma história real, mas pode-se dizer que há algo
de performático, pois ao tornar o sequestrador o mote central dos relatos, resgatando momentos
traumáticos e fortes de seu passado, bem como marcas de sua personalidade que desmontam
certos estereótipos - segundo os depoimentos, Sandro não tinha um perfil violento e agressivo
-, há certo apelo à subjetividade, transformando uma história que foi contada de maneira
objetiva pelo jornalismo em uma construção com aspectos subjetivos, chamando o espectador
a ver aquela realidade com novos olhos e a repensar a sua relação com ela.
Padilha não faz uso de encenação ou de reconstituição do sequestro por atores. Como
tudo foi gravado em tempo real, quando usa as imagens como provas (NICHOLS, 2012), opta
por aquelas que foram geradas pelo telejornalismo na época da ocorrência do fato. Sua abertura
ao real poderia ser atribuída a essa escolha, mas sabe-se que a própria angulação dada pela
mídia segue certo padrão.
Para Comolli (2008), o risco está em não seguir regras, em deixar acontecer. O encontro
que faz com os sujeitos filmados – pessoas que presenciaram o sequestro, especialistas,
indivíduos que conviveram com Sandro – parece, de certo modo, ter despertado algo inusitado
no próprio cineasta, quando teve a chance de conhecer o passado do sequestrador e entender

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quais as razões que poderiam tê-lo levado ao crime e a prolongar a sua ocorrência por horas,
dado o fato de ter várias câmeras voltadas para ele e transmitindo a sua “atuação” em tempo
real.
Em entrevista concedida para o Jornal Gazeta3, Padilha assume que optou por fazer o
filme para trazer algo ao espectador que a mídia tradicional não havia apresentado. Assim,
pode-se dizer que não houve o risco direto do imprevisível, pois o cineasta sabia o que queria
e sabia que a história de Sandro tinha algo a mais do que foi apresentado pela mídia. No entanto,
como ele mesmo relata, o filme foi acontecendo à medida que a história de Sandro foi sendo
desvelada, o que traz de volta certa improvisação.
Os documentários não têm roteiros. A tarefa do diretor é construir um caminho a partir
do que está sendo dito. Depois que eu entrevistei o Luis Eduardo, como ex-secretário
de Segurança, eu entendi que tinha de filmar meninos de rua, crianças jogando bola
pra cima. Eu já tinha percebido que existiam dois comportamentos diferentes do
Sandro durante o sequestro. Primeiro ele não queria ser filmado, depois dizia: "Pode
me filmar legal, Brasil. Eu estava na Candelária." Houve um turning point do
personagem principal do filme, o Sandro. Quem me explica isso? (José Padilha).

Há também, na própria escolha de Padilha em tratar especificamente da história de


Sandro – e não da história da refém assassinada ou dos policiais, por exemplo – um sentido
ideológico, confirmado, inclusive, pelo cineasta na entrevista.
Por que, então, só peguei a história dele? Porque ela é capaz de gerar lições sobre o
Estado brasileiro, coisa que a história da minha vida, da vida da Geísa, de outras
pessoas, não faz. Sandro é um menino de rua no limite da miséria, e a história de uma
pessoa na condição dele fala sobre como o Estado lida com o problema. (...) Ao
documentar uma pessoa, documento um processo. (José Padilha)

O documentário de Padilha, dadas as suas escolhas de enunciação e enquadramento,


acaba por trazer à tona a incapacidade do poder público em lidar com os problemas sociais e as
vulnerabilidades a que muitos cidadãos estão sujeitos. Esse tom de denúncia faz o espectador
questionar aspectos que vão além da segurança pública, abarcando também a assistência social
e os direitos humanos.
Assim, a obra, ao apresentar uma nova angulação do fato e do próprio problema da
criminalidade, carrega um sentido ideológico próprio de Padilha, indo ao encontro às suas
convicções e ideias sobre a atuação falha do Estado e a falta de amparo às populações
vulneráveis como possíveis causas da violência nas grandes cidades.
Através desse exercício rápido de análise do modo como o documentário foi construído,
das escolhas do cineasta, sua posição ideológica e relação com o real é possível situá-lo frente

3
Entrevista publicada na Gazeta Mercantil, em 06 de dezembro de 2002. Disponível em:
<http://www.renatodelmanto.com.br/casper/Onibus_174_entrevista_Padilha.pdf>. Acesso em: 17 jul. 2017.

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às construções midiáticas tradicionais, buscando compreender, através desse paralelismo, qual


sentido ele gera ao espectador e se há a possibilidade de abertura para um novo olhar, o qual
carrega a potência de mobilizar o seu pensamento para a situação apresentada. Não se trata,
portanto, de fazer uma análise fílmica com foco nos aspectos técnicos, mas de tecer uma
avaliação crítica que nos dê pistas sobre as afecções geradas no espectador e a construção da
enunciação fílmica.

Considerações finais
Confirmando a tese de Nichols (2012), observa-se que a voz do documentário deixa o
seu recado no mundo, reapresentando-o sob um ponto de vista que não necessariamente é
tendencioso. Talvez a grande missão do documentário, por explorar o tempo e a duração da
fala, seja esta: de revelar novos ângulos de fatos e situações. Porém, é preciso que haja
transparência e honestidade com o espectador, deixando-o a par das operações e de que se trata
de uma narrativa em meio a tantas outras na arena social. Que a crença total no discurso não é
um imperativo para “ver melhor”.
Buscar uma compreensão sobre os processos de criação e os subgêneros, assim como
as operações do dispositivo no que tange ao encontro com o real ou à realidade programada, é
uma forma de entender essa mediação realizada pelo documentário e como ele mobiliza as
afecções e a crença do espectador. Ainda que não haja uma metodologia específica para a
análise desses filmes, com categorizações fixas, as contribuições dos teóricos oferecem uma
base importante para uma avaliação crítica e também para o aprimoramento constante do “fazer
documentário”, exercício desde sempre pautado pela experimentação, pela liberdade e pela
criatividade.

Referências

AMADO, Ana. Michel Moore e uma narrativa do mal. In: MOURÃO, Maria Dora; LABAKI, Amir
(orgs.). O cinema do real. São Paulo: Cosac Naify, 2005. p. 216-233.

COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder: a inocência perdida – cinema, televisão e documentário. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2008.
COUTINHO, Eduardo; XAVIER, Ismail; FURTADO, Jorge. O sujeito (extra) ordinário. In: MOURÃO,
Maria Dora; LABAKI, Amir (orgs.). O cinema do real. São Paulo: Cosac Naify, 2005. p. 96-141.

DE GRANDE, Airton. Sujeitos barrados: a voz do infrator em dez documentários brasileiros. 2004.
183 f. Dissertação (Mestrado em Multimeios) – Programa de Pós-Graduação em Multimeios,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004.

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MIGLIORIN, Cezar. Documentário recente brasileiro e a política das imagens. In: ______. (org.).
Ensaios no real. Rio de Janeiro: Azougue editorial, 2010. p. 8-25.

MOMBELLI, Neli Fabiane; TOMAIM, Cássio dos Santos. Análise fílmica de documentários:
apontamentos metodológicos. Revista Lumina, Juiz de Fora, v.8, n.2, dez. 2014. Disponível em: <
https://lumina.ufjf.emnuvens.com.br/lumina/article/view/323>. Acesso em: 17 jul. 2017.

NICHOLS, Bill. Introdução do documentário. 5. ed. Campinas, SP: Papirus, 2012.

RAMOS, Fernão Pessoa. Mas afinal...O que é mesmo documentário? 2.ed. São Paulo: Editora Senac
São Paulo, 2013.

RENOV, Michel. Investigando o sujeito: uma introdução. In: MOURÃO, Maria Dora; LABAKI, Amir
(orgs.). O cinema do real. São Paulo: Cosac Naify, 2005. p. 234-255.

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O CASO NARDONI:
Uma análise discursiva da cobertura da Folha de S. Paulo1

Bruna Pfeiffer Salgado2


Wedencley Alves Santana3
Universidade Federal de Juiz de Fora

Resumo

Este trabalho busca analisar as reportagens que a Folha de S. Paulo publicou diante do caso
Isabella Nardoni, que chocou o país. O artigo visa a perceber os movimentos elaborados pelo
jornal na produção, reprodução e transformação de sentidos frente ao acontecimento, levando
em conta aspectos como o caráter mercadológico da informação, abordagem da violência, ética
jornalística, formas discursivas, espetacularização da notícia e seus efeitos representativos na
sociedade. A partir de uma abordagem discursiva, o nosso objetivo é entender como a Folha
constrói a narrativa dos fatos e mantém a relação de verdade com os leitores diante de um caso
de repercussão nacional.

Palavras-chave: Jornalismo; Folha de S. Paulo; Espetacularização. Persuasão; Violência.

THE NARDONI CASE:


A discursive analysis of the coverage of Folha de S. Paulo

Abstract

This paper seeks to analyze the reports that Folha de S. Paulo published in the case of Isabella
Nardoni, which shocked the country. The article aims to understand the movements made by
the newspaper in the production, reproduction and transformation of meanings in the face of
the event, taking into account aspects such as the marketing character of information, violence
approach, journalistic ethics, discursive forms, spectacularization of news and its representative
effects in society. From a discursive approach, our objective is to understand how Folha
constructs the narrative of the facts and maintains the relationship of truth with the readers
before a case of national repercussion.

Keywords: Journalism; Folha de S. Paulo; Spectacularization. Persuasion; Violence.

1
Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Jornalismo, do XI Encontro dos Programas de Pós-Graduação em
Comunicação Social de Minas Gerais, 18 e 19 de outubro de 2018.
2
Graduada em Comunicação, Pós-graduada em Gestão Estratégica de Pessoas e Mestranda em Mídias e
Processos Sociais pela UFJF - bpfeiffer924@gmail.com
3
Professor associado da UFJF, Doutor em Linguística, Mestre em Comunicação. Atua no PPGCOM da mesma
universidade, na linha Mídias e Processos Sociais - wedencley@gmail.com

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Introdução
Este trabalho propõe uma análise do material jornalístico referente ao caso de
homicídio de Isabella Nardoni, com grande repercussão em toda a mídia brasileira. Nosso
intuito é identificar as formas discursivas que caracterizaram a cobertura da tragédia familiar
pelo jornal Folha de S. Paulo, conforme conceituação de Rippel, Bastos e Alves (2016), além
de demais aportes conceituais da Análise do Discurso, em seu percurso Pêcheux-Orlandi.
Também atentamos para a distribuição editorial das matérias no jornal, a recorrência
às fontes, os aspectos e as subtemáticas abordadas, o que contribui para a produção de efeitos
de sentidos e gestos de interpretação por parte do leitor.
A escolha da Folha para realizar esta análise levou em conta a sua popularidade: é o
jornal de maior circulação no Brasil em formato digital e terceiro no formato impresso, com
médias diárias respectivas de 189.254 e 146.641 exemplares, no ano de 2015, segundo dados
do Instituto Verificador de Circulação (IVC).
Por meio de seu acervo digitalizado, nosso objetivo foi recuperar um pouco do
percurso do julgamento do caso Nardoni na Folha, valendo-se para tal de seu acervo no período
de 30 de março, um dia após a ocorrência do crime, até 4 de abril, um dia após ser decretada a
prisão temporária do casal. Pela sua grande dimensão, constância e pela proporção que tomou
na mídia, acreditamos ser um período suficiente para traçar o perfil e o posicionamento da Folha
a respeito do caso.

Mídia e sociedade
Na recepção e apropriação das mensagens da mídia, afirma Thompson (2014), os
indivíduos são envolvidos em um processo de formação pessoal e de autocompreensão - embora
em formas nem sempre explícitas e reconhecidas como tais. Apoderando-se de mensagens e
rotineiramente incorporando-se à própria vida, o indivíduo está implicitamente construindo
uma compreensão de si mesmo, uma consciência daquilo que ele é e de onde ele está situado
no tempo e no espaço.
As pessoas estão ativamente se modificando por meio de mensagens e conteúdo
significativo oferecidos pelos produtos da mídia. Elas os usam como veículos para reflexão e
autorreflexão como base para refletirem sobre si mesmas, sobre os outros e o mundo a que
pertencem. Ainda segundo Thompson (2014), este processo de transformação pessoal não é um
acontecimento súbito e singular, mas que acontece lenta e imperceptivelmente. É um processo
no qual algumas mensagens são retidas e outras são esquecidas, algumas se tornam fundamento

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de ação e de reflexão, enquanto outras deslizam pelo dreno da memória e se perdem no fluxo e
refluxo de imagens e ideias, de acordo com o que é divulgado pela imprensa.
Dentro desse contexto, nota-se que a mídia atua de acordo com seu poder simbólico,
"poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não lhe estão
sujeitos ou mesmo que o exercem" (BORDIEU, 2006, p.4). O poder simbólico é, segundo o
mesmo autor, um potencial de construção da realidade que tende a estabelecer o sentido
imediato do mundo social.
O poder simbólico, poder subordinado, é uma forma transformada, quer dizer,
irreconhecível, transfigurada e legitimada, das outras formas de poder: só se pode
passar para além da alternativa dos modelos energéticos que descrevem as relações
sociais como relações de força e dos modelos cibernéticos que fazem delas relações
de comunicação, na condição de se descreverem as leis de transformação que regem
a transmutação das diferentes espécies de capital em capital simbólico e, em especial,
o trabalho de dissimulação e de transfiguração (numa palavra, de eufemização) que
garante uma verdadeira transubstanciação das relações de força fazendo ignorar-
reconhecer a violência que elas encerram objetivamente e transformando-as assim em
poder simbólico, capaz de produzir efeitos reais sem dispêndio aparente de energia.
(BORDIEU, 2006, p.11-12)

A destruição deste poder de imposição simbólico radicado no desconhecimento supõe


a tomada de consciência do arbitrário, quer dizer, a revelação da verdade objetiva e o
aniquilamento da crença (BORDIEU, 2006). Diante disso, Champagne (1993) aponta que a
mídia não apenas apresenta mas também representa a realidade da qual trata. Para Porto (2009),
acatar tal afirmação implica atribuir à teoria das representações sociais potencial explicativo
para a compreensão da mídia e para o entendimento da forma como esta constrói, reconstrói e
seleciona fatos sociais por meio de narrativas, que, pelas significações e prioridades a eles
atribuídas, chegam até a sociedade na condição de notícia.
Ademais, Porto (2009) ressalta o modo crescente da função pragmática da mídia de
"explicar o mundo" e produzir significado para fatos e acontecimentos sob a forma de
representações sociais. Antes de se concluir por uma intenção maquiavélica, com o premeditado
objetivo de distorcer ou ocultar fatos, vale ressaltar que está em questão, de um lado, esse efeito
de evidência acima mencionado, o qual constrói a notícia como realidade; de outro, o fato de a
mídia ser um campo de lutas, conflitos, interesses, concorrências, de busca por posições e
disputa por hegemonia, que se expressam interna e externamente ao campo (BOURDIEU,
2006).
Internamente, a concorrência entre as grandes cadeias de empresas midiáticas não se
situa unicamente na dimensão das disputas econômicas, mas também, e sobretudo, na disputa
da produção simbólica. Para Porto (2009), é nessa dupla dimensão material e simbólica que se

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joga o jogo da luta por hegemonia, considerando que está em questão uma mercadoria
grandemente perecível, ou seja, a notícia. E partindo do pressuposto de que a ética jornalística
está atrelada a esse consumo, ela assume como valores fundamentais a verdade da informação,
a objetividade, o respeito à vida privada e à humanidade.
No meio de tudo isso, confunde-se comunicação com difusão. A conseqüência
imediata deste equívoco está em reduzir a ética a uma responsabilidade individual,
monológica, como se tudo dependesse da consciência do profissional, do público ou,
então, qualquer coisa, menos responsabilidade da empresa de comunicação. Diante
disso, a maior dificuldade de qualquer profissional da mídia está em manter o público
realmente informado sobre as questões complexas de natureza política, social e
econômica. Diante disso, a única possibilidade está em usar o bom senso e buscar
sempre contar os fatos isentos de emoções e envolvimentos pessoais, pois a
parcialidade acaba com a credibilidade. (PIZZI et al, 2004, p.3)

Voltando ao pensamento de Porto (2009), a autora ressalta que é no jogo de poder desse
campo permeado por tensões, confrontos e acordos que os diferentes meios disputam o espaço
midiático e constroem sua especificidade; buscam fazer a diferença, definir seu peso relativo
em meio a um espaço de grande homogeneidade, a qual está situada em dois níveis: o do
conteúdo – as fontes são quase sempre as mesmas e só ganha relevância midiática o que já for
pautado como notícia – e o da forma – há todo um aparato de linguagem, de rotinas produtivas
do jornalismo, de economia do tempo, do espaço e da imagem para que um fato seja alçado à
condição de acontecimento e ganhe todas as mídias.
Nesse sentido, os meios alimentam-se dos meios, a partir da hegemonia da televisão,
que “age sobre os telespectadores comuns, mas também sobre as demais mídias”
(CHAMPAGNE, 1993, p.63). Jodelet (2001) conclui: a representação social "é uma forma de
conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, com um objetivo prático, e que contribui
para a construção de uma realidade comum a um conjunto social".

A espetacularização e o poder da mídia


A origem do espetáculo é muito anterior àquele presentificado nas mídias. De acordo
com Rubim (2002), antes da existência de uma sociedade ambientada e mediada, o espetáculo
tinha sua produção associada quase sempre à política e/ou religião. Somente na modernidade -
e mais exaustivamente na contemporaneidade - ele se autonomiza e ganha novos espaços
midiáticos (TAFURI, 2010).
Para Rubim (2002), espetacularizar é algo que está intrinsecamente ligado à mercadoria
e ao capitalismo. A sociedade do espetáculo seria, portanto, um prolongamento do capitalismo,
uma etapa contemporânea da sociedade capitalista. Pena (2005) entende que, no palco
contemporâneo, o espetáculo em cartaz é a vida. Todos os espectadores têm “direito” de entrar

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na intimidade dos atores, constituir alteridades e idealizar heróis, porém, não satisfeita, a plateia
quer ela mesma encenar o grande espetáculo que, para os autores, têm o nome de realidade. Ela
faz com que o pensamento ideal seja deslocado pelo pensamento imagético em função do da
ascensão da estética. Isso faz com que os leitores consumam cada vez mais as notícias pelo seu
caráter estético. (TAFURI, 2010).
Na sociedade contemporânea, a informação, a notícia, o jornal e a imprensa em geral
são estetizados, marketizados e mercadorizados. A realidade dá lugar à estética da
realidade. O esforço de objetividade dá lugar à estética da subjetividade. A
apresentação torna-se uma representação protética e artificial. (MARSHALL, 2003,
p.145).

Estas “mutações”, como define Marshall, são generalizadas e subvertem as lógicas da


comunicação e da informação. A realidade estaria sujeita à ideologia “publicitária-
mercadológica-liberal” e seria modificada na sua essência e na sua aparência (TAFURI, 2010).
O espetáculo ganha formas no instante em que a mercadoria ocupa a vida social. O mundo
presente e ausente que ele faz ver é o mundo da mercadoria dominando tudo o que é vivido. E
o mundo da mercadoria é assim mostrado como ele é, pois seu movimento é idêntico ao
afastamento dos homens entre si e em relação a tudo que produzem (DEBORD, 1997). Diante
disso, ressalta Tafuri (2010), podemos afirmar que a excelência do espetáculo concerne na
mercadoria, que é sua fonte de vida e de preservação, além de sua meta suprema: o caminho
para o lucro.
A primeira fase da dominação da economia sobre a vida social levou, na definição de
toda a realização humana, a uma evidente degradação do ser em ter. A fase presente
da ocupação total da vida social em busca da acumulação de resultados econômicos
conduz a uma busca generalizada do ter e do parecer, de forma que todo o "ter" efetivo
perde o seu prestígio imediato e a sua função última. Assim, toda a realidade
individual se tornou social e diretamente dependente do poderio social obtido.
Somente naquilo que ela não é, lhe é permitido aparecer. (DEBORD, 1997, p.18-19)

Gabler (1999) salienta que um campo onde o entretenimento ganhou amplo espaço nos
últimos anos é o jornalismo. Programas jornalísticos estão adotando a apresentação de
variedades como integrantes de sua linha editorial. A apresentação de quadros de dramaturgia,
onde se exploram desde as mais cômicas às mais perversas atitudes humanas, é vista
constantemente em programas com intuito informativo. "Esse desejo do crime é o que
encontramos regularmente - é sempre correlativo de uma falha, de uma ruptura, de uma
fraqueza, de uma incapacidade do sujeito". (FOUCAULT, 2018, p.19).
A atividade jornalística, constantemente adaptada ao espetáculo e através de sua
seleção de conteúdo, toma para si o poder de construção da realidade, garantindo a “verdade
absoluta” dos fatos que noticia. Paralelamente a isso, a necessidade da mídia de alcançar o

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"furo", a ampla divulgação e o superdimensionamento de fatos episódicos e excepcionais


sobre os crimes escolhidos levam à população a querer punir sem sequer saber detalhes do
ocorrido, criando assim uma verdade parcial do fato, o que Carvalho (2010) caracteriza como
punitivismo contemporâneo.
Segundo Guerreiro et al (2010), para Myers (2000), existem dois traços de persuasão:
os centrais e os periféricos. O apelo persuasivo central exige uma audiência analítica e
motivada, disposta a refletir sobre a questão central do assunto, levando as pessoas a
concordarem ou elaborarem um contra-argumento. Conforme salienta o autor, os argumentos
não são em si mesmos persuasivos se o caráter persuasivo estiver na capacidade de fazer as
pessoas refletirem. Já o traço periférico é capaz de explorar elementos que provocam uma
reação sem recorrer ao pensamento dos indivíduos. As imagens visuais são exemplos desse tipo
de argumento, uma vez que não provocam a reflexão, mas a simples simpatia e aceitação, ainda
que temporária. Sendo assim, o traço central é mais eficiente do que o periférico, uma vez que
as pessoas são levadas repetidamente a pensar sobre o assunto de forma mais profunda e
analítica, gerando uma concordância duradoura (MYERS, 2000). O autor destaca, ainda, que a
identidade do comunicador faz uma grande diferença em relação à aceitação da audiência e não
é apenas a mensagem central que importa, mas também a periférica, ou seja, quem diz. Deste
modo, a credibilidade do veículo perante a audiência pode determinar se a mensagem será ou
não persuasiva.
Outro traço periférico que, segundo Myers, pode se tornar um comunicador eficaz é a
atratividade. Para Guerreiro et al (2010), quando a audiência simpatiza com o comunicador, ela
tende a ouvir a mensagem que ele tem a passar (argumento central) levando assim, à persuasão.
A associação da mensagem com bons sentimentos também acentua a persuasão. “Em parte por
realçarem o pensamento positivo (quando as pessoas são motivadas a pensar), em parte por
ligarem as sensações agradáveis à mensagem” (MYERS, 2000, p.137). As pessoas, quando
estão felizes, tendem a tomar decisões rápidas e impulsivas, baseando-se mais nos elementos
periféricos. Por outro lado, as pessoas infelizes tendem a ser mais racionais, por isso são pouco
influenciadas por fatores periféricos. “Assim, se você não dispõe de argumentos fortes, é uma
boa ideia deixar a audiência animada e torcer para que se sinta bem com sua mensagem, sem
analisar cuidadosamente” (MYERS, 2000, p.138). Portanto, a eficácia de uma mensagem que
possui argumentos contrários vai depender da audiência. Por assim dizer, o traço central da
persuasão, o que importa não é a mensagem em si, mas a reação que provoca na audiência.
Portanto, se uma mensagem provoca pensamentos favoráveis, ela será capaz de persuadir.

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Para que seja considerada boa, Guerreiro et al (2010) apontam que a imprensa deve
corresponder às exigências da verdade: informações exatas, verificadas, apresentadas de modo
equânime, opiniões expostas com honestidade livre de preconceitos, relatos jornalísticos
verídicos e ciosos de sua autenticidade. Por se tratar de uma polêmica de dimensão nacional, a
cobertura do caso Isabella Nardoni foi exaustivamente explorada em todas as mídias. O
esgotamento da notícia resultou na publicação de especulações infundadas, de títulos
tendenciosos e tentativas desesperadas de garantir os índices de venda da revista.
Guerreiro et al (2010) salientam que a partir do momento em que a cobertura
jornalística se fixa em entretenimento e na desenfreada busca pela audiência, a qualidade do
jornalismo se perde e abre espaço para publicações fantasiosas, dados sem bases reais,
atualidade e para a manipulação do leitor através de frases e expressões de efeito.
Através da curiosidade do público, os meios de comunicação bombardeiam os
noticiários com espetáculos circense-criminais tão apenas para alcançar maiores índices de
audiência. Naves (2003) salienta que a espetacularização da notícia, essencial na busca pelo
entretenimento, propicia a confusão entre "interesse público" e "interesse do público",
argumento frequentemente usado pela mídia para exigir informações e justificar invasões de
privacidade. Transformou-se, portanto, a informação em mercadoria de entretenimento, com
apelos estéticos, emocionais e sensacionalistas, “onde o espetáculo em cartaz é a
vida” (PENA, 2005, p. 87).

O caso Nardoni

Apresentação do caso
O crime aconteceu na noite de 29 de março de 2008 por volta das 23h30. O pai de
Isabella, Alexandre Nardoni, 29 anos, e a esposa, Anna Carolina Jatobá, 24, voltavam de um
churrasco na casa dos pais de Anna, em Guarulhos, na grande São Paulo. Segundo a versão
do casal, ele teria deixado o carro no estacionamento do Edifício London, onde moravam, na
Vila Guilherme (SP), e subido para o sexto andar com a filha Isabella, de cinco anos,
dormindo em seu colo. Depois de colocá-la na cama, Nardoni afirma ter descido para buscar
a mulher e os dois filhos menores no carro, um com três anos e o outro com onze meses. Na
volta para o apartamento, teriam visto a tela de proteção do quarto dos filhos rasgada e, em
seguida, avistado o corpo da menina caído no jardim do prédio.
Isabella, ainda viva, foi encaminhada ao Pronto Socorro Infantil da Santa Casa. "Ela
tinha sangue coagulado no pulmão e no coração, as extremidades das unhas e da língua roxas,

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fraturas no pulso esquerdo, escoriações na perna direita e na barriga, um corte na testa,


hematomas na nuca, e a camiseta que vestia tinha um rasgo nas costas" (MENDES, 2008,
p.84). Em depoimento à polícia, o casal disse acreditar que alguém havia entrado no
apartamento e arremessado Isabella no momento em que ele desceu à garagem.
Apesar dos primeiros indícios apontarem para Alexandre e Anna Jatobá como os
principais suspeitos pela morte da menina. Na primeira matéria divulgada pela Folha, o jornal
evidencia a possibilidade de envolvimento de terceira pessoa no crime. "Segundo o delegado,
o pai e a madrasta da garota não são considerados suspeitos do crime" (Folha, 31/03/08, p.3).
No entanto, o promotor Francisco Cembranelli, representante do Ministério Público no caso,
disse, na semana posterior ao crime, que as versões não coincidiam: "Posso adiantar,
genericamente, que a história apresentada no dia do crime e nos depoimentos é fantasiosa"
(CEMBRANELLI apud AZEVEDO; Mendonça, 2008, p.88). O casal teve a primeira prisão
temporária decretada no dia 3 de abril de 2008.
Com uma equipe de aproximadamente 30 pessoas, a perícia fez a reconstituição do
crime no dia 27 de abril de 2008. O laudo final tem mais de 50 páginas e 115 fotos. Nesse
relatório a polícia afirma que Isabella foi agredida ainda dentro do carro, ao que tudo indica,
por Anna Jatobá, por um objeto como chave ou anel, o que justificaria o ferimento na testa.
O laudo também aponta como teria sido a chegada da família no apartamento: Alexandre teria
jogado a filha no chão, provocando lesões na bacia e no pulso da menina. Em seguida, Jatobá
teria iniciado a esganadura por cerca de três minutos até Isabella desmaiar. (JÚNIOR, 2011).
Na reconstituição, o mesmo autor aponta que Alexandre teria cortado a tela de
proteção do quarto dos filhos com uma tesoura da cozinha, retornado à sala, pegado a menina
no colo e então a passado pelo buraco feito na tela. Apesar de aparecer sozinho nas fotos do
laudo, os peritos afirmam que ele teve ajuda da esposa para passar a menina pela grade. A
perícia cronometrou, então, o tempo em que o casal permaneceu no prédio desde sua chegada
até a queda de Isabella: foram 12 minutos e 58 segundos. Para que a versão de Alexandre e
Jatobá fosse confirmada seriam necessários pelo menos 16 minutos e 56 segundos.
"A negativa do casal na participação do crime, inocência reforçada pela própria
família da mãe biológica, era a pitada de mistério necessária para ajudar a alavancar a 'trama'
e dar ares de ficção a um drama real" (PAGNAN, 2018, p.112). O interesse das pessoas era
ainda maior porque não se tratava da morte de uma vilã, mas de uma criança.
Assim, as pessoas buscavam nos jornais, revistas, rádios e televisão elementos que
pudessem ajudá-las a entender melhor quem eram, afinal, os vilões e os mocinhos dessa
história. Para o jornalista Daniel Castro, colunista da Folha, um dos motivos que explicou o

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grande interesse midiático deste caso é o fato de estarem presentes muitos dos ingredientes
de "alto apelo" para atração de audiência.
Um deles, assim como também se deu no caso Suzane von Richthofen, é a morte em
família. "Sempre traz inquietação quando um filho é suspeito de matar os pais, ou os pais são
suspeitos de matar os filhos". Além disso, "há a sensação de mistério envolvido numa
'investigação policial' além de julgamentos sempre interessantes e as 'reviravoltas' que o caso
precisava ter". Tudo ajuda a manter o caso na mídia durante muito tempo.

A análise
O objetivo deste artigo é identificar as formas discursivas prevalecentes que operaram na
cobertura da Folha de S. Paulo na cobertura sobre o caso Isabella Nardoni. Para isso, recorremos
a elementos da Análise do Discurso, proposta por autores como Orlandi (1995) e Rippel, Bastos
e Alves (2016). Também foram analisadas outras “entradas” discursivas como a espacialização
dos textos nas editorias, a escolha das fontes, e a distribuição das subtemáticas.
O corpus desta pesquisa se baseia na análise de 14 matérias, publicadas entre 30 de
março e 4 de abril de 2008. E partimos de alguns recortes que nos apontaram entradas de análise
e pontos de ataque.
A primeira entrada de análise permitiu a observação de como alguns espaços editoriais
textualizaram sentidos sobre o caso. A ênfase foi sobre “Cotidiano" e "Opinião". Uma outra
entrada foi a distribuição dos subtemas. Vale ressaltar que um mesmo assunto, dentro de uma
mesma editoria, pode-se valer de diversos temas. O caso Isabella, por exemplo, abordou desde
assuntos ligados à perícia, reconstituição do crime, passando pela entrega e prisão temporária
dos suspeitos até informações dos advogados do casal sobre o adiamento da entrega do
inquérito. Uma terceira e entrada foi a apreciação das formas discursivas, principalmente no
que diz respeito à possível "Espetacularização/Dramatização".
Vale então agora uma observação sobre a hipótese das formas discursivas como
economia das práticas discursivas no jornal. Rippel, Bastos e Alves (2016) alertam para o fato
de que a classificação dos produtos jornalísticos em gêneros não é o suficiente para uma
consideração mais apurada dos efeitos de sentido produzidos a partir da formulação e circulação
de discursos de mídia. E para isso elaboram a hipótese de que há ao menos cinco práticas
discursivas que predominam no âmbito jornalístico, sem desconsiderar outras possíveis: a
narrativa, a persuasiva, a expositiva, a injuntiva e a lúdica.
São práticas discursivas que podem ser identificadas numa notícia, numa reportagem,
num artigo ou mesmo num editorial. É a economia dessas práticas, o peso com que cada uma

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assume na textualização do discurso jornalístico que vai compor o que se pode chamar de
“formas discursivas” (RIPPEL, BASTOS E ALVES, 2016). Mas da mesma forma que uma
palavra só adquire sentido segundo a formação discursiva em que se insere (ORLANDI, 2005),
as práticas só podem ser lidas a partir das posições discursivas tanto dos autores quanto dos
leitores – o que pode parecer injunção num caso, será interpretada como exposição no outro.
De qualquer forma, cabe ao analista compreender estas leituras possíveis.
Mas como podemos descrever estas práticas discursivas? Seguindo ainda a
argumentação de Rippel, Bastos e Alves (2016), se a narrativa é a prática de contar histórias,
relatar; a persuasão é convencer, fazer pensar; a injunção é fazer fazer, mobilizar; a exposição
seria mostrar ou fazer ver; e a prática lúdica é jogar, divertir ou mesmo emocionar. A
espetacularização e o sensacionalismo entram nesta última prática discursiva.
Concluiu-se que das 14 matérias analisadas, 11 eram de alto cunho espetacular
(78,57%), com uso exagerado de fotos que expunham a menina na praia, sem camisa e junto à
mãe, o casal Nardoni algemado, infográficos que ilustravam a planta do apartamento junto ao
percurso que o casal teria feito na noite do crime, imagens cedidas pela perícia, com perito
simulando o pai segurando os braços da menina na janela, e a camisa usada no teste, que mostra
a marca deixada pela rede, semelhante a que estava na camisa de Alexandre, o pai.
Contra isso, apenas três (21,42%) eram de cunho unicamente narrativo. Ou seja,
prevaleceram nas notícias relacionadas ao caso as práticas da ludicidade e da persuasão. A
proeminência destas duas práticas discursivas caracterizaram a forma discursiva da cobertura
de uma modo muito específico em relação a outros temas do jornal; mas que de certa forma não
destoa da tradição jornalística quando se depara com tragédias familiares como estas.
Observamos também as "Fontes acionadas" como uma outra entrada de análise. Foram
encontradas, ao todo, 32 fontes. Criou-se, então, cinco subcategorias para facilitar a análise:
"fontes oficiais", que referem-se a alguém em função ou cargo público que se pronuncia por
órgãos do Estado, "fontes experts", geralmente fontes secundárias que o jornalista procura em
busca de versões ou interpretações específicas, "fontes testemunhais", aquelas que funcionam
como álibi para a imprensa, pois representam aquilo que viu ou ouviu, como partícipe ou
observadora, "fontes primárias", as que estão diretamente envolvidas nos fatos, normalmente
com testemunha ocular, e "fontes secundárias", tipo de fonte que contextualiza, interpreta,
analisa, comenta ou complementa a matéria jornalística. (SCHMITZ, 2014). Por fim, também
buscou-se analisar se havia notícias que apareciam ou não na capa do jornal.
Na tabela abaixo, é possível ver o resultado destas entradas de análise.

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Tabela 1: Categorias e número de ocorrências


Entradas Resultados Nº de Porcentagem
Ocorrências correspondente

Editorias Cotidiano 10 90,90%

Opinião 1 9,09%

Tema Investigação 8 19,04%

Inquérito 4 9,52%

Morte 11 26,19%

Perícia 6 14,28%

Prisão temporária do 6 14,28%


casal

Reconstituição do 1 2,38%
crime

Simulação 4 9,52%

Testemunhas 2 4,76%

Prevalência de ludicidade Sim 11 78,57%


(espetacularização/dramatização)
e persuasão Não 3 21,42%

Fontes acionadas Experts 2 6,25%

Oficiais 10 31,25%

Primárias 6 18,75%

Secundárias 10 31,25%

Testemunhais 4 12,5%

Aparece na capa Sim 11 78,57%

Não 3 21,42%

Fonte: Elaborada pela autora

A partir da análise, alguns pontos mais relevantes merecem ser citados: notou-se que
grande parte das notícias escolhidas dentro do recorte proposto eram grandes, ocupando mais
da metade da página. As menores ocupavam espaço de duas colunas ou uma nota. É provável

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que as notícias tenham ocupado parte considerável da página do jornal por ser um caso de
investigação criminal minuciosa, passível de exploração de imagens, infográficos e
depoimentos de vários envolvidos. Além disso, a maioria das matérias se tratava de suítes, em
que o caso principal sempre deve ser rememorado ao leitor para contextualização do mesmo, o
que faz com que se torne ainda maior.
Ademais, vale destacar o aparecimento das notícias na capa da Folha. Chegou-se ao
resultado de que das 14 matérias analisadas, apenas três (21,42%) ocuparam espaço na capa. A
primeira delas tem pequeno destaque, ainda que na parte superior do jornal, e sem foto para
ilustrá-la. A segunda tem posição de destaque, logo abaixo da manchete, com foto grande. A
terceira também tem destaque e foto no centro. É um fato curioso, pois por se tratar de um tema
de superdimensionamento na época, era de se esperar que houvesse um número maior de
matérias na capa. É possível, perceber, portanto, que mesmo com a repercussão do caso, o jornal
deu prioridade para colocar na capa assuntos que julgou mais relevantes na época.
Quase todas as matérias a respeito do caso Isabella estavam em "Cotidiano" (90,90%),
independente da variação de temas que sofresse, que, como vimos, foi extensa, abarcando oito
deles. A exceção esteve na matéria que abordava a opinião de um jornalista sobre a cobertura
das investigações, alocada na editoria "Opinião". As outras três não entraram nessa contagem
pois, como vimos, foram classificadas como matérias de capa em outra categoria.
A tipologia das fontes também representou uma surpresa e merece ser destacada. Só
foram encontradas duas fontes experts (6,25%). Para um caso de repercussão nacional como
este e de tantos mistérios envolvidos à época, esperava-se que a Folha fosse enriquecer suas
notícias com mais depoimentos de especialistas. No entanto, só usou o IML (Instituto Médico
Legal) e o IC (Instituto de Criminalística), que forneceram pareceres técnicos e pontuais sobre
o caso. Quando não havia novidade, praticamente os mesmos depoimentos eram repetidos na
notícia.

Considerações finais
Com o objetivo de compreender como a Folha de S. Paulo conduziu a abordagem do
caso Isabella, este trabalho problematizou seus discursos e suas características. Muito além de
sua linha editorial, cuja rigidez norteia a produção noticiosa da Folha, a análise desta pesquisa
sobre a cobertura do caso Isabella nos revelou uma forte característica do jornal ao adotar uma
voz autônoma.
A Folha, talvez com o objetivo de garantir uma postura distinta dos outros jornais, que
pré-condenavam o casal, ou na tentativa de adotar como técnica mercadológica (ou mesmo de

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linha editorial) vender por oferecer uma opinião diferente das comumente vistas, tomou para
si, de forma sutil, um posicionamento de tentar levantar outras suspeitas que levassem à não
incriminação do casal Nardoni.
Fato esse que pode ser corroborado com alguns argumentos, a saber: a) a pouca
quantidade de fontes experts usadas para falar a respeito do caso e de seus desdobramentos; b)
o uso de diversas fontes secundárias (percentual igual ao de fontes oficiais ouvidas) que
ressaltavam o bom relacionamento da menina com o pai, a madrasta e os irmãos mais novos,
que falavam sobre a vida que a família levava antes do crime, sobre como a menina era feliz e
inteligente, o perfil do casal, etc; c) o baixo índice de matérias de capa, em uma possível
tentativa de não trazer tanto alarde para o caso.
Através do uso recorrente de elementos sensacionalistas, principalmente ao fazer uso da
imagem doce da menina, o jornal tenta persuadir o leitor, mesmo que sutilmente, com narrativas
tocantes, frases e expressões de efeito, buscando comover o leitor.
Por último deve-se alertar que a adoção de aspectos quantitativos nos serviram de base
ou como ponto de partida para a compreensão da cobertura. No entanto, do ponto de vista
discursivo não estão em jogo somente “dados”, mas fatos discursivos com significativos efeitos
sobre os gestos de interpretação do leitor.

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THOMPSON, John B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia (15 ª ed). Petrópolis, RJ:
Vozes, 2014.

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O RENDEZVOUS DE ARTISTAS NA CIDADE VIRTUAL:


Os grupos de Facebook para artistas e a materialidade dos espaços comunitários
virtuais1

Duane Henrique Alves de Carvalho e Silva2


Universidade FUMEC

Resumo

As comunidades virtuais funcionam como comunidades do plano físico. A relação dos grupos
humanos com o espaço é parte integrante da sua ideia de coletivo. Para as comunidades virtuais,
os espaços são também importantes. O grupo de Facebook para artistas independentes Bate-
papo Ilustrado serviu de exemplo para a defesa de espaços virtuais como reais, criadores de
identidade. Uma pesquisa bibliográfica foi feita, a fim de compreender as comunidades virtuais
e a relação entre “espaço” e “lugar”. Foi entendido, então, que os grupos de Facebook para
artistas são mais que espaços virtuais, mas, na verdade, lugares, onde seus frequentadores
passam por processos identitários.

Palavras-chave: Comunidade Virtual; Facebook; Arte; Lugar; Espaço

THE RENDEZVOUS OF ARTISTS IN THE VIRTUAL CITY:


Facebook groups for artists and the materiality of virtual communities spaces

Abstract

Virtual communities can function as communities on the physical plane. The relations between
human groups and space is an integral part of their idea of a collective. For virtual communities,
space is also important. The Facebook group for independent artists Bate-papo Ilustrado served
as an example for the statement that virtual spaces are real, identity creators. A bibliographic
research was carried out, aiming to understand virtual communities and the relation between
space and place. It was acknowledged, therefore, that Facebook groups for artists are more than
just virtual spaces, but in fact, places, where their visitors have been go through identity
processes.

Palavras-chave: Virtual Community; Facebook; Art; Place; Space

1
Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho em Comunicação e Culturas Digitais, do XI Encontro dos
Programas de Pós-Graduação em Comunicação Social de Minas Gerais, 18 e 19 de outubro de 2018.
2
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Estudos Culturais Contemporâneos da Universidade FUMEC.
E-mail: duanealves@ymail.com.br

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Introdução
Este artigo discute os grupos de Facebook voltados para artistas independentes como
um local de encontro para troca de informações. Grupos como o Bate-papo Ilustrado, que serviu
de objeto para esta análise, são amplamente usados pela categoria dos profissionais artísticos e
servem, assim, como uma grande fonte de conhecimento e criação de relações interpessoais.
Por isso, são de grande importância para o mercado de arte brasileiro.
A discussão deste artigo trabalha a relação dos espaços virtuais com os espaços físicos,
defendendo suas semelhanças e a espacialidade das comunidades virtuais. Para tal, foi feita uma
pesquisa bibliográfica, a fim de entender como funcionam as ditas comunidades virtuais.
Assim, foi possível relacionar as relações offline com as online.
O objetivo do presente trabalho é discutir a visão a respeito dos grupos de Facebook
como um local real, apesar da virtualidade. Local este que atende às necessidades dos artistas,
ajudando-os a evoluir suas habilidades profissionais. Assemelhando-se a locais de encontro no
mundo físico, os membros de tais grupos podem discutir suas opiniões e divulgar suas
produções uns para os outros.

Comunidades virtuais como lugares


Em fevereiro de 2004, a rede social Facebook foi lançada. Em 2018, ela já passa dos 2
bilhões de usuários. No Brasil, a cada 10 pessoas conectadas à Internet, 8 possuem conta no
portal. A rede social é um espaço de aglomeração de pessoas e, como seu conceito intrínseco
de conexão, presente em seu nome, já indica, é também onde usuários da plataforma podem
interagir e trocar informações. Pela sua alta “população virtual”, ela se trata de um fomentador
de relações humanas.
Ávila3, citado por Primo (1997), explicita que uma comunidade se define por uma
determinação espacial onde seus membros possam interagir diretamente, interesses mútuos que
os levem a atingir objetivos que, de outra forma, não seriam possíveis, e a participação conjunta
em um mesmo projeto, que seria a realização desses objetivos e a união do grupo. A organização
do espaço determinado por um grupo é construída em função da necessidade de fomentar as
relações humanas (TUAN, 2015). Coletivos humanos, então, constituem sua demarcação com
o auxílio das demarcações dos espaços onde decidiram habitar.
O dispositivo espacial escolhido por uma congregação humana se torna, assim, uma
parte integrante de sua identidade. Seus membros possivelmente possuem origens múltiplas,

3
ÁVILA, Pe. Fernando Bastos. Pequena enciclopédia de moral e civismo. 2. ed.. Brasília: Fename, 1975.

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mas a localidade frequentada por aquele grupo e associada a ele se torna um fator de união entre
eles. Outro fator importante para essa identidade é a noção de que se deve proteger o espaço
daqueles que ameaçam sua integridade, tanto influências internas quanto externas (AUGÉ,
1994). Ao definir-se certas ameaças como “externas”, cria-se a ideia de uma fronteira espacial
para esse grupo, também parte da ideia da definição de uma comunidade.
A ideia de uma fronteira espacial não deve ser entendida unicamente como uma
demarcação geográfica. As identidades nacionais são formadas com base em uma ideia
fronteiriça, mas não são a totalidade do entendimento de território. Qualquer organização de
um espaço por meio de marcações claras por fronteiras pode ser entendida como parte da
definição de Território de Lévy (1999).
Visto que a questão territorial é fundamental para a organização de um grupo humano,
sua compreensão se torna fundamental para o entendimento das relações nele formadas. O
homem, como outros animais, demarca os espaços para defendê-los de outros que podem
invadi-los. Para a vida animal, um espaço se torna um lugar quando lhe atribui valor e usa-lhe
para as atividades mais privadas, como se alimentar, repousar e procriar. “Lugar” é entendido
como seguro, enquanto o “espaço” dá a sensação de liberdade. O ser humano, porém, tem uma
relação mais complexa com o “lugar” (TUAN, 2015).
“Lugar antropológico” é entendido como a construção subjetiva que é designada a um
espaço. Ele entra à categoria de “lugar” à medida em que se cria um conceito simbólico em
cima dele (AUGÉ, 1994). Os coletivos humanos, então, têm a sua relação com os lugares
baseada em conceitos abstratos de associação, valores e identidade.
Augé (1994) traz a ideia de um “estatuto intelectual” do lugar antropológico. Tem-se
por ele a ideia que os habitantes de determinado espaço têm sobre o local. Tal ideia pode ser
hiperbólica ou não, pois diz respeito à relação pessoal que cada membro daquele grupo tem
com o espaço. Ele é, por outro lado, fundamental para que essa relação ocorra e, se deixa de
existir, prejudica o indivíduo.
É a relação que o indivíduo tem com o espaço que o torna um lugar. Um espaço ainda
desconhecido e sem significado, ao passar por um processo de conhecimento e criação de valor,
se torna um lugar (TUAN, 2015). “Espaço” e “lugar” são relacionados pela questão física,
territorial, mas diferenciados pela questão identitária que o indivíduo cria ao habitá-lo.
Conhece-se um espaço através de uma experiência com ele. Esse termo diz respeito às
variadas formas pelas quais alguém cria sua noção de realidade. O “real”, então, não se trata de
algo puramente físico, concreto, já que o que um indivíduo entende do mundo é, na verdade,
um fruto do processamento das informações aprendidas através de sua experiência com os

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espaços em que habita. Essa relação tem um caráter inicialmente sensorial, mas não é trabalhada
nesse âmbito em sua totalidade, pois o lado social da emoção humana também tem participação
na criação do sentido e na personalidade atribuída a um espaço, transformado-o em lugar. A
realidade é, então, uma fabricação da experiência, criada pelos sentimentos e pensamentos de
quem a percebe, ou ainda, dos vários membros do grupo que nela vive (TUAN, 2015).
Para se experienciar o mundo e, assim, criar a noção particular de realidade e a relação
com o espaço, tanto o sentimento quanto o pensamento são formas possíveis. Apesar de, em
certo grau, serem opostos, têm funcionamentos similares, de forma que se misturam com a
experiência sensorial do indivíduo, participando ativamente do processo. Dessa forma, a
memória e a intuição da pessoa que cria sua relação com o espaço também influencia em como
ela cria sua subjetividade acerca dele, transformando-o em lugar (TUAN, 2015).
O ser humano, com seu lado social, adiciona camadas à relação com o espaço. Se torna
lugar aquele espaço onde o outro compreende as mesmas senhas e signos que se conhece
(AUGÉ, 1994). O lugar é, então, o espaço em que um membro de um grupo se sente confortável
e consegue ser compreendido dentro das referências simbólicas que ele possue. A ideia de
segurança levantada por Tuan (2015) se relaciona com esse conceito, na medida em que a
pessoa conhece o lugar e consegue conviver com ele dentro do que foi estabelecido para o
mesmo.
Sente-se “em seu lugar” quando se está ao lado de pessoas que se tem relações.
Conseguir ser compreendido sem muitas explicações e compreender os outros sem dificuldades
é um indicador de que se está em um “lugar” (AUGÉ 1994). O sentimento e o pensamento
(TUAN, 2017) são parte da experiência criadora de sentido com um espaço, então a relação
social que um indivíduo tem com seu grupo e, com a troca da noção de “realidade”
compartilhada por cada membro do grupo, a criação coletiva de uma ideia de “lugar
antropológico” transforma um espaço em um lugar, fomentador de identidade.
Um lugar ganha tal condição à medida em que seu frequentador tem sua identidade
construída através dele. As relações criadas e exercidas no espaço e a história produzida no
mesmo são também elementos fundamentais para que ele passe a ser entendido como “lugar”.
Da mesma forma, um espaço que não influencia no processo identitário do indivíduo, nem em
suas relações, nem na criação da história é entendido por Augé (1994) como um “não-lugar”.
Um espaço é, portanto, a demarcação do local e é um lugar à medida em que se cria
significado nele. A ideia de um Ciberespaço, ou espaço cibernético, virtual, é entendida como
a “rede das redes”, que funciona através da cooperação de milhares de pessoas ao redor do
mundo (LÉVY, 1999). A variedade de origens e, portanto, de experiências, presentes na Internet

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cria a ideia de um espaço onde fronteiras geográficas são facilmente atravessadas, por meio de
computadores conectados à rede mundial de computadores (LÉVY, 1999).
O Ciberespaço é visto como um lugar de encontro e troca de informações, mesmo que
virtual. Lévy, citado por Da Silva (2007), explica que o Ciberespaço pode ser visto como um
grande fluxo de informações, transmitidas e captadas através da rede mundial de computadores,
e também como as pessoas que participam de tal fluxo. É nítido, então, que se trata de um
espaço de troca de experiência e, com isso, formação de identidade.
O virtual não deve ser compreendido como falso; uma simples ilusão. Na verdade, trata-
se de um meio com potencial de mudança semelhante ao não-virtual, com a diferença primal
da não necessidade da presença física (LÉVY, 1996). A oposição entre o que seria da ordem
do virtual e do “real”, assim trabalhando a virtualização como “irreal”, traz contradições.
Se o virtual não se trata do “real”, o que é fruto de relações no Ciberespaço não
impactariam no plano físico, permanecendo estáticas por lá. Lemos 4, citado por Primo (1997),
afirma que trata-se de um espaço que está dentro da cultura contemporânea e é conectado à
realidade. O meio virtual é parte da realidade, de forma que, se não fosse, seria “desrealizante”
(LÉVY, 1996).
Argumentou-se, limitadamente, que aquilo da ordem do “virtual” seria livre de uma
existência, falso, irreal, enquanto a materialidade e tangibilidade seriam as características
determinantes do “real” (LÉVY, 1996). Por esse pensamento, retirar-se-ia dos espaços seu lado
subjetivo criado pela experiência pessoal do indivíduo (TUAN, 2015) e as conceituações
estabelecidas pelas relações sociais (AUGÉ, 1994) que dão a eles a posição de “lugar”. O caráter
material de algo, portanto, não é fundamental para sua definição de “real”.
O que ocorre no virtual não cria raízes em si próprio e carece de efeitos e consequências
reais. A virtualização, já entendida como uma extensão do real, parte integrante da realidade
contemporânea, tem a mesma irreversibilidade que o que seria entendido inicialmente como
“real”. Os acontecimentos no virtual não se fecham e tem o seu fim neles mesmos, mas, na
verdade, tem impacto no plano físico e influenciam na criação desse “real tangível” (LÉVY,
1996).
O Ciberespaço reconstrói a ideia de “localidade geográfica”, na medida em que pontos
muito distantes no globo rapidamente conseguem trocar informações e se relacionar. O tempo
é também repensado, já que a interação entre indivíduos não é necessariamente simultânea,

4
LEMOS, André. As estruturas antropológicas do ciberespaço. Textos de Cultura e Comunicação, Salvador, n.
35, p. 12-27, jul. 1996

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como no plano estritamente físico, podendo as mensagens permanecerem à espera de resposta


por um período indeterminado. Ainda assim, a ideia do virtual como “imaginário” não
contempla por inteiro como esse meio se relaciona com o dito “real” (LEVY, 1996). Se o virtual
se tratasse de uma oposição ao real, as ações tomadas nele não teriam impacto direto em como
se age fora dele, mas isso não é o que se sucede. A virtualização mudou as maneiras de se “estar
junto” e a ideia de uma comunidade, surgindo uma nova modalidade de grupo humano, as
“comunidades virtuais”(LÉVY, 1996).
O Facebook é, entre outras, uma grande comunidade virtual. Seria mais prudente, na
verdade, entendê-lo como um aglomerado de inúmeras comunidades virtuais, coexistindo no
mesmo espaço. Trata-se, portanto, de um espaço de encontro, mesmo que virtual. Sua
virtualidade não deve ser entendida como uma oposição à realidade, invalidando as relações
nele criadas. O Ciberespaço é uma parte da realidade; e não uma esfera externa e antagônica a
ela, como já foi argumentado por vários pensadores (SILVA, 2011).
No Facebook, há a possibilidade de se conectar com outras pessoas, através de seus
próprios perfis, além das ferramentas de mensagem instantânea e interação nos posts de seus
“amigos”, termo utilizado nessa rede para designar os perfis com quais se conectou. Outra
função do site é a de criação de grupos, onde se é possível adicionar amigos e, assim, criar uma
esfera um pouco mais privada para a postagem e o compartilhamento de informações. Não se
trata, necessariamente, de uma exclusão de determinadas pessoas, já que tais grupos têm a
opção de serem “abertos”, o que os classifica como abertos a novos membros, que podem,
inclusive, se voluntariar para participar. Trata-se, na verdade, de uma filtragem do conteúdo
através do tema selecionado para o grupo.
Há aqueles que usam a ferramenta de criação de grupos para unir amigos ou familiares,
mas os grupos com temáticas bem definidas são comuns. A relação entre os membros desses
grupos é, portanto, não necessariamente ligada a alguma proximidade ou intimidade criada no
mundo offline, mas, na verdade, em função de algum interesse em comum que eles possam ter.
Nessas situações, o que torna aquele espaço virtual em um espaço de encontro são as pessoas
que vão a esse espaço com o mesmo objetivo e, assim, o que promove a ideia de uma
comunidade não diz respeito à geografia e a localização no plano físico, mas sim, uma
“proximidade representacional” entre seus membros (SILVA, 2011).
Dentre os temas escolhidos para esses grupos da rede Facebook, são vários aqueles
destinados a artistas independentes. Ao se pesquisar “arte” ou “ilustração”, por exemplo, no
Facebook, filtrando-se para que encontre-se apenas grupos, os resultados são múltiplos. Nesses
grupos, onde se encontra um misto de profissionais e amadores dentro do meio artístico, os

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membros trocam informações do ramo e até divulgam o próprio trabalho. Os usuários são,
inclusive, incentivados a mostrar o que produzem e, com isso, fazerem trocas de experiência e
comentários construtivos. Um exemplo de um desses grupos é o Bate-papo Ilustrado, que conta
com pouco menos que 26 mil membros.
As comunidades no meio físico se diferem daqueles criadas no Ciberespaço por alguns
pontos. A assincronia das interações, que não necessitam da simultaneidade para ocorrerem, é
um fator. Outro é a mudança no que une seus membros, não mais sendo a proximidade física.
Os usuários das redes criam suas comunidades em função de um mesmo núcleo de interesses
(LÉVY, 1996). No caso referido, foi a arte, mais especificamente a ilustração, que trouxe todos
os participantes desse grupo a se unirem como tal.
No Ciberpespaço, todos tem o poder potencial de passar uma mensagem e, ao mesmo
tempo, de receber outra (LÉVY, 1996). Trata-se de um espaço mais aberto, onde o
compartilhamento de informações é facilitado pela democratização do conhecimento. Nesse
espaço virtual, todos os frequentadores têm a possibilidade de assumir o papel de ator, autor e
também participar ativamente da interação (PRIMO, 1997).
Na Internet a questão da difusão do conhecimento deve ser pensada de forma diferente
que no meio offline. Não só a informação é facilmente acessada na web, como também é
possível por ela se criar redes interpessoais, onde há a produção de conhecimento e ele é
amplamente difundido (SILVA, 2011). Grupos como o Bate-papo Ilustrado servem, então,
como um ponto de encontro de artistas para criação de relações interpessoais e trocas de
informações que, de outra forma, teriam limites geográficos como possível impedimento para
que ocorressem.
Wark5, citado por Primo (1997), oferece a visão de que no Ciberespaço as comunidades
virtuais não se encontram em locais físicos, como praças e boates, mas, sim, por suas próprias
conexões à Internet. O espaço offline não é mais a definição dessas comunidades, mas a ideia
de um “encontro” ainda faz parte dos grupos. O conceito de uma comunidade é recriado e
repensado, mas ainda há semelhanças com as comunidades não-virtuais.
Através de interações virtuais, os indivíduos passam por situações que pouco se diferem
da vida fora da rede, com a diferença que o local do encontro não é o espaço físico, mas, sim,
o Ciberespaço (PRIMO, 1997). Os membros dessa comunidade virtual permanecem com a ideia
de “encontros”, que somente são ressignificados pela assincronia e desterritorialização

5
WARK, McKenzie. Cyberpunk from subculture to mainstream. Manuscrito eletrônico:
http://www.Eff.org/pub/privacy/security/h...punk/cpunk_subculture_to_mainstream.pa per. 1992

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proporcionada pelo espaço virtual. Apesar de não se tratar de um local físico, os membros se
relacionam, através das ferramentas de postagem e comentário do endereço do Ciberespaço
onde se situam e, com a criação de redes interpessoais, transformam o espaço virtual em um
lugar para si.
A informática e as redes têm por objetivo auxiliar na construção de comunidades que
fomentem as potencialidades individuais de cada usuário dela. Isso se trata de uma visão utópica
que desconsidera os usos negativos que se pode fazer e efetivamente são feitos das ferramentas
digitais informáticas. Por outro lado, tendo em mente o potencial informacional e, com ele,
criador de crescimento pessoal e fomentador de identidade que a Internet possui, é
indispensável pensar que a rede mundial de computadores oferece muitas possibilidades
positivas para a humanidade. Visto isso, Lévy (1999) afirma que no século XXI teremos como
prioridade construir e organizar o espaço do Ciberespaço.
Para se referir a tal construção, Lévy (1999) faz uso do termo “projeto arquitetônico”.
Conscientemente ou não, a associação com o espaço físico é inevitável. Constrói-se em um
terreno, planejando o melhor uso do espaço ali disponível, para que posteriormente o
frequentador dele possa ter uma experiência favorável. A relação do membro do grupo que
habitará ali com o espaço em questão e, ademais, como estarão organizadas as fronteiras entre
os vários espaços, continua sendo uma preocupação. O espaço apenas deixou de ser puramente
físico e passou a ser também virtual. Ele permanece real, por outro lado.
Pode-se começar a pensar a Internet, com seus inúmeros espaços virtuais, como uma
grande cidade virtual. Uma possível Ciberpólis, com diversas localidades para se visitar, se
assim for o desejo do visitante. Em locais físicos, um transeunte se sentirá à vontade em um e
sem “lugar” em outro, em função de sua própria identidade. Na Internet não é diferente. Os
locais com que não se identifica são apenas espaços virtuais, enquanto aqueles onde se sente
“em casa” já seriam o lugar onde se pertence’.
Os caminhos que deve se seguir para visitar um site, coincidentemente ou não, são
designados “endereços”. Para se frequentar um lugar entendido como “seu”, é necessário
conhecer o caminho. O Facebook, então, poderia ser entendido como um grande bairro, de
dimensões infinitamente expansíveis, e onde encontra-se espaços criados e administrados por
grupos das mais diversas intenções. Se a venda, compra e troca de itens usados diz respeito ao
interesse do indivíduo, ele pode se filiar a um grupo que promove a atividade e passar a tomar
ações em conjunto com aquele grupo. Esse mesmo indivíduo poderia frequentar uma grande
loja de usados de seu bairro ou, se como foi o caso neste exemplo, frequentar um espaço com
a mesma finalidade, mas que não tem amarras no plano físico. Nesse grupo, ele pode se

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identificar ou não com seus frequentadores e, se não for o caso, optar por sair e procurar outro,
onde se sinta mais em seu “lugar”. Se esse indivíduo não for de acordo com os clientes ou a
gerência da loja fictícia mencionada, ele também passaria a não mais fazer suas compras ali e
procuraria outro estabelecimento.
A ideia de uma Ciberpólis, organizada em uma espécie de “Ciberurbanismo” é
fundamental para se pensar a ideia de um “lugar virtual”. A percepção de um Ciberespaço,
essencial para esse entendimento, pode ser expandida para a compreensão de vários
Ciberespaços. A criação de uma identidade através dos territórios se firma na criação de
fronteiras, onde são criadas as próprias hierarquias, regras e a definição de quais são os
membros pertencentes àquele lugar e os que não são (LÉVY, 1999). Os grupos de Facebook,
então, ao estabelecer, inclusive pela nomenclatura oficial da rede, quais são os “membros do
grupo”, criam uma barreira clara de distinção entre os participantes dele e os demais. Mesmo
os grupos que se abrem livremente para novos membros (como funcionam muitos grupos do
mundo físico, como grupos paroquiais, fã-clubes de musicistas, entre outros) ainda passam pela
fronteira da identidade, que o novo participante pode não atravessar ou bater em retirada por
não se sentir no seu “lugar”.
O comportamento dos frequentadores dos espaços virtuais não é tão diferente daqueles
do plano físico. Os interesses que moldam as comunidades virtuais e os assuntos abordados por
eles são variados, mas, em geral, são os mesmos que se tem nos grupos offline (PRIMO, 1997).
A possível ideia de que haveria grande diferença entre eles talvez venha do esquecimento de
que o frequentador do meio digital é, obrigatoriamente, também um indivíduo usufruidor do
meio físico. As vontades e interesses que levariam uma pessoa a frequentar um espaço físico
são, muitas vezes, as mesmas que a leva a frequentar um espaço virtual que tenha o mesmo
objetivo.
O ser humano organiza o espaço para atender às suas necessidades, tanto fisiológicas
quanto sociais (TUAN, 2015). Nos espaços virtuais não é diferente. Enquanto é possível se
pensar a necessidade de um planejamento em webdesign para uma melhor relação do indivíduo
com o espaço em si, para este trabalho interessa os aspectos interrelacionais humanos. A
fronteirização dos vários espaços da Ciberpólis serve às necessidades humanas de estabelecer
seus grupos, fomentando a interação entre os membros e definindo a lógica de pertença e não
pertença.
A simples demarcação dos espaços virtuais não define, automaticamente, a ideia de
lugar. São os frequentadores desse espaço, como os membros do grupo Bate-papo Ilustrado, ao
trocarem informações entre si e trabalharem relações de sentido e identidade com o próprio

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espaço que criam a ideia do grupo como um lugar. Os transeuntes que passam por uma rua,
matematicamente projetada pelo urbanista, que definem, pela sua vivência ali, que se trata de
um lugar (AUGÉ, 1994). Nas ruas em linguagem binária definidas por programação e
webdesign, são os internautas, ou “transeuntes virtuais”, que dão àquele espaço virtual o caráter
de lugar.
Grupos de Facebook para artistas independentes são como um local dentro da
“metrópole da Internet”, a Ciberpólis. Dentre suas múltiplas localidades para se visitar, nessa
se tem como certeza o “encontro” com outros artistas e a troca de experiências e referências.
No plano físico, opiniões são formadas por discussões em cafés, por exemplo. Na Internet, as
opiniões continuam a ser trabalhadas e discutidas entre seus vários frequentadores. Vê-se, então
que os espaços virtuais são representações dos territórios tradicionais (RODRIGUES, 2010).
Uma “representação”, neste trabalho, não deve ser entendida como uma ilusão, dando a
ideia da falsidade do que é virtual. Pela conceituação deste trabalho, trata-se de “representar
algo”, pois a construção dos espaços virtuais se dá por linhas de códigos em linguagem binária
que criam a Ciberpólis em uma concordância com a estruturação das metrópoles do plano físico.
A representação do mundo offline se dá à medida em que os arquitetos e moradores dos
Ciberespaços organizam suas fronteiras com uma poderosa semelhança aos espaços físicos.
Se antes da rede mundial de computadores os artistas tinham pontos de encontros
definidos pela cidade, como cafés e praças, por mais que isso ainda aconteça, esses locais de
espaço físico são transpostos para locais virtuais. Na web, não há distinção geográfica entre os
frequentadores desse espaço. É importante ressaltar que os valores associados às
territorialidades físicas, assim como as outras identidades anteriores à Internet dos membros
desses grupos, são ainda passíveis de alterar a percepção de alguns membros perante outros,
através de um pré-julgamento. Trata-se, na verdade, de uma facilitação da interação entre
indivíduos que, ligados pelos mesmos interesses, práticas e vontade de aprendizado, mas
separados por espacialidades físicas e sociais, provavelmente não poderiam se conhecer. Eles
teriam a ganhar com uma exposição de experiências pessoais e, com o uso da ferramenta e a
participação nos grupos, são possibilitados de interagir.
Ao se adentrar o grupo Bate-Papo Ilustrado, o indivíduo já passou pela primeira
fronteira desse espaço, o interesse. Percebendo que ali ele poderia encontrar pertencimento e
tendo a mesma vontade que os outros membros, ele passa a frequentar aquele espaço. Isso não
significa, necessariamente, que ele já se sente parte daquele grupo e entende aquilo como um

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lugar. Storch e Cozac6, citados por Primo (1997) mostram que ao entrar em uma comunidade
virtual, os novatos primeiramente avaliam como os veteranos do grupo se comportam, para
saber como se comportar. Isso pouco se difere de um espaço físico, onde, por exemplo, um
artista pode descobrir um bar que outros profissionais da área frequentam e fazer o mesmo, no
intuito de criar conexões e encontrar aprendizado, mas encontrar uma barreira social de
linguagem, conhecimentos e simplesmente de não reconhecido pelos membros antigos como
um deles. Com determinado tempo de comunicação a entendimento do fluxo relacional, o
indivíduo pode passar a conhecer melhor o espaço e as relações, além de se sentir mais à
vontade nesse espaço, fazendo dele um lugar para si.
Um espaço se torna um lugar à medida em que ele se torna conhecido. Tuan (2015)
exemplifica com uma anedota de um indivíduo que acaba de se mudar para uma nova
vizinhança. Ele se torna morador, mas não reconhece ainda seu bairro. Quando ele já passou
por experiências suficientes para que as ruas e as casas tenham significado e memória para ele,
ele se sente em seu lugar. Nos Ciberespaços isso não é tão diferente, na medida em que um
artista, confortável em outros ciclos de arte, ao adentrar no grupo Bate-papo Ilustrado, se sente
como um novato, um novo morador nesse bairro da Ciberpólis, o que, com um tempo de
interações entre os atuais moradores, pode levar a um conhecimento maior da região e, assim,
à noção de lugar.
Como esse grupo gira em torno de um interesse em comum, a arte, vão se aglomerando
nesse espaço aqueles que se interessam de alguma forma pelo tema, então tem-se um espaço
virtual habitado, ou frequentado, por pessoas do mesmo interesse, o mesmo nicho. Assim,
entende-se que, nessa Ciberpólis, a organização de um espaço em função de variados grupos dá
a ideia de “subúrbios virtuais”’. (DA SILVA, 2004, p. 10-11). Trata-se, portanto, de um espaço
destinado aos artistas, onde podem tratar de temas que não poderiam com aqueles que não são
da mesma área de atuação. Um espaço próprio que funciona como um encontro no mundo não-
virtual.
Grupos como o Bate-papo Ilustrado se tornam, assim, um local virtual de onde se espera
uma determinada conduta e um tipo de frequentador, o artista. Quando se acessa o grupo em
questão, procura-se conteúdo referente à arte independente, em especial, a ilustração. Nesse
sentido, esse espaço ganha um identidade própria, visto como um lugar propício para se
encontrar dicas e experiências acerca do tema trabalhado pelos participantes. Por esse lado,

6
STORCH, Léa Waidergorn e COZAC, João Ricardo. Relações virtuais: o lado humano da comunicação
eletrônica. Rio de Janeiro: Vozes, 1995.

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assemelha-se a lugares no espaço físico, como uma biblioteca ou uma reunião de artistas, pois
já se tem como ideia central desse espaço virtual que todo o seu conteúdo gire em torno de um
mesmo cerne, a arte.
Em especial, a semelhança desses meios virtuais com as bibliotecas é ainda mais
aparente. Em ambas as localidades, há a procura por informações, leitura e análise do que se
foi apreendido. Também se faz a analogia com um laboratório, pois se faz descobertas e se troca
informações. Outra analogia pertinente é com a praça pública, onde se cria uma ideia de
comunidade e se fomenta o diálogo e a mobilização política (SILVA, 2011). Em um grupo
como o Bate-papo Ilustrado, a classe artística gera conhecimento, discute-o e ainda pode
trabalhar os trâmites políticos acerca do que é ser “artista” no país.
Nos lugares da Ciberpólis, as comunidades se estruturam e se entendem como uma
unidade. Criam-se linguagens próprias e regras de conduta que, se desrespeitadas, podem levar
à expulsão. As relações entre os membros podem levar a grandes amizades e promover o
entendimento, da mesma forma que podem levar ao ódio e à violência (PRIMO, 1997). Trata-
se, então, de uma comunidade como qualquer outra, física ou virtual.
Apesar de não trabalhar diretamente com as redes sociais e, em especial, com os grupos
do Facebook, Silva (2011), explicita como espaços virtuais tomam proporções de localidades
reais, quando os internautas que visitam tais espaços adentram seu território com uma
motivação similar a locais no plano físico. No caso, espaços como o grupo Bate-papo Ilustrado
e outros grupos focados na arte independente, servem como um forte aliado do artista, pois,
através dele, é possível que se adquira conhecimento sem que se precise investir
financeiramente. Com a atividade de outros artistas membros do grupo, o internauta pode
crescer como artista e trocar contatos, criando uma rede profissional que pode futuramente o
beneficiar, o chamado “networking”. Esse pensamento é claramente explicitado na descrição
do grupo Bate-papo Ilustrado: “Este grupo tem como principal função estimular a troca de
conhecimento entre ilustradores e profissionais do mundo das artes”.
A Internet permite que pessoas situadas em pontos distantes do plano físico possam
interagir imediatamente, sem necessidade de percorrer tal distância. Dessa forma, os
Ciberespaços são espaços de interrelações humanas e de compartilhamento de conhecimentos,
criando inúmeras comunidades virtuais (LÉVY, 1999). Seria hiperbólico, porém, pensar em
uma rede universalmente conectada. Apesar da conexão de países em localidades físicas
separadas por hemisférios ser possibilitada pela web, Horn, citado por PRIMO (1997) afirma
que os coletivos virtuais tendem a se organizar em função da proximidade geográfica.
Possivelmente, a linguagem e a cultura são fatores dificultadores na criação de relações com

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outros frequentadores. O grupo Bate-papo Ilustrado não define em suas regras a nacionalidade
brasileira como pré-requisito para se participar, mas seus membros atendem a essa condição. A
territorialidade física dos espaços também impacta nos espaços virtuais, visto que estes não se
tratam de algo separado, análogo, mas, sim, de mais um espaço possível para se frequentar. As
relações de identidade intrínsecas ao plano físico são apenas migradas para a virtualidade. Dessa
forma, o networking sugerido pela descrição do grupo já é pensado, mesmo que
inconscientemente, para ser realizado entre artistas brasileiros.
As informações partilhadas nesses grupos vêm dos próprios membros. Nos
Ciberespaços e, por conseguinte, nas comunidades virtuais, há uma grande heterogeneidade de
identidades e, portanto, de experiências (DA SILVA, 2004). É a partir da variedade de bagagens
culturais e memoriais que cada membro pode transmitir ao outro e que se tem o
engrandecimento mútuo dos participantes. As várias inteligências que cada um dos membros
do grupo pode transmitir para o outro são o que une-os como um coletivo e são o grande
objetivo desses espaços da web (LÉVY, 1999).
A ideia de um espaço virtual vincula-se, também, à ideia de uma coexistência
simultânea de vários discursos que podem influenciar uns aos outros. Através de feedback, os
internautas podem opinar e impulsionar o trabalho de outros artistas (DA SILVA, 2004). A
relação dos frequentadores desse espaço é o que torna o grupo Bate-papo Ilustrado relevante,
visto que é justamente o compartilhamento dos trabalhos com outros artistas e as respostas que
eles podem dar que mantém o funcionamento do grupo. Justamente com essas respostas,
também, que se tem o engrandecimento de cada um deles e a formação de uma identidade de
“artista”.
Semelhante ao espaço físico da ágora, as várias “vozes” atuantes presentes nos grupos
virtuais argumentam e discutem em busca em um consenso. Tal consenso gera uma espécie de
união e comunhão entre os profissionais da arte e, assim, um fomento para mobilização da
classe artística. O aproveitamento dessas “ágoras virtuais” ajuda coletivos com membros
heterogêneos a se organizarem e pensarem em uma solução unificada (LÉVY, 1999), como a
própria mobilização política para a proteção dos direitos dos artistas, por exemplo.
A fim de ajudar no processo de troca de informações e experiências, os grupos mantém
regras de convivência, semelhantes a locais no plano físico, como a biblioteca, onde sons altos
não são permitidos, por exemplo. Essas convenções funcionam, principalmente, para evitar
comportamentos que são considerados nocivos para o grupo. Na descrição do grupo Bate-papo
Ilustrado, encontram-se várias regras já presentes na sociedade offline. É negado o
compartilhamento de material ilegal, como pirataria, apropriação de propriedade intelectual e

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assédio moral. É também recomendado que não se compartilhe conteúdo impróprio para
menores, a menos que seja feito com a devida indicação e em um link externo, para que apenas
os realmente interessados e habilitados tenham acesso ao material. Lá, também encontra-se
uma descrição da conduta ideal dos membros, onde se incentiva que os artistas participantes do
grupo troquem informações, experiências e conhecimento, além da divulgação do trabalho
individual de cada um.
O conjunto de regras não-oficiais de um espaço virtual é chamado de “Netiqueta”, ou
“etiqueta da Internet”, nada mais que regras convencionadas de qualquer espaço. Ela estabelece
uma conduta desejável para os membros e é criada pelo próprio grupo, tendo, assim,
flexibilidade para ser adequada às necessidade do grupo em questão (DA SILVA, 2004).
Frequentemente, o compartilhamento de material publicitário nesses espaços é mal-visto
(PRIMO, 1997), mas, pelo Bate-papo Ilustrado ter a finalidade de fomentar o intercâmbio de
trabalhos, desde que o material divulgado seja da autoria daquele que o compartilha ou de outro
artista independente, dado o devido crédito, tal comportamento é, inclusive, incentivado.
O comportamento descrito como negativo é também explicitado como suscetível a
análise e, se assim for decidido, causa de uma possível expulsão do grupo. As comunidades
virtuais se organizam de forma a se regular, como um espaço social físico faria. Em analogia,
um café onde artistas se encontram para discutir o mercado e a atuação artística estaria aberto
também a expulsão de visitantes que desrespeitam a etiqueta definida para esse espaço.
Os espaços virtuais dos grupos para artistas são uma peça importante para o mercado de
arte independente. Através desse espaço de encontro, uma espécie de praça de convivência para
esse público, os artistas podem se conhecer e transmitir seus conhecimentos uns para os outros.
Com a participação em grupos como o Bate-papo Ilustrado, os artistas têm acesso a informações
que, se não fossem as comunidades virtuais, provavelmente não encontrariam. Como o próprio
grupo se auto-proclama em sua descrição ao incentivar o compartilhamento de processos
pessoais, técnicas e trabalhos feitos, se trata de um lugar onde os profissionais da arte podem
se encontrar para crescerem dentro do mercado artístico e formar, assim, sua própria identidade.
A ideia da Internet como um espaço falso, desprovido de sentido, é redutiva. Os espaços
virtuais, apesar de sua intangibilidade, são definidos e organizados pela mesma lógica que se
estrutura os espaços físicos. Pela simples demarcação da fronteira do grupo Bate-papo Ilustrado,
aqueles pertencentes a ele tem uma noção de unidade que lhes permite se entender, por
associação, como um “artista”. Além disso, as conexões entre seus membros adicionam
camadas de sentido e de informação que dão a todos os envolvidos uma maior ideia de
pertencimento e, por consequência, de identidade.

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Um “não-lugar” leva a uma vivência de solidão e não cria identidade nem fomenta
relações, mas sim, gera a solidão e a ideia de homogeneidade (AUGÉ, 1994). Em grupos de
artistas do Facebook, como o Bate-papo Ilustrado, seus membros são incentivados a se
relacionar e a compartilhar experiências, o que implica, automaticamente, que se tratam de
experiências distintas. Sendo assim, a heterogeneidade dos frequentadores desse espaço não só
é admitida, como é considerada favorável e imprescindível.
A territorialidade é ressignificada nesses espaços, mas as comunidades nele presentes
possuem paixões, projetos, conflitos e amizades, como se têm no plano físico (LÉVY, 1996).
Tratam-se, em resumo, de comunidades como quaisquer outras, apenas alterando seu espaço de
reuniões. Um “não-lugar” não permite que haja uma comunidade orgânica (AUGÉ, 1994). Um
grupo auto-regulado e onde a criação de identidade do indivíduo é incentivada, a organicidade
está presente. O Bate-papo Ilustrado é um lugar.
À medida em que um grupo demarca um espaço e o define como dele, ele ganha
identidade. Quando membros desse grupo estabelecem regras para os frequentadores, a
identidade é adicionada. Se novos membros entram nesse espaço e, pela sua experiência com
aquilo que veem e sentem, vão aprendendo a se sentir à vontade, isso se intensifica. Essa
definição se adequa a um espaço físico e também a um virtual, independente do caráter
assíncrono e desterritorializado do segundo.
Espaços virtuais podem se tornar lugares. Grupos de Facebook para artistas
independentes são como uma localidade em um bairro de uma grande metrópole, a Ciberpólis.
Dentre os vários lugares que os artistas do Bate-papo Ilustrado poderiam escolher para fazer
seus encontros, eles escolheram fazê-lo na cidade virtual. Em um dos vários pontos de encontro
onde poderiam ter feito suas reuniões e pensado suas respectivas identidades, eles escolheram
um virtual. Ao se reunirem nele e ter dado sentido a ele, ele se elevou de um simples
Ciberespaço a um potente e relacional “Ciberlugar”.

Considerações Finais
Os espaços virtuais têm semelhanças com os espaços físicos. As comunidades virtuais
têm funcionamento semelhante ao de comunidades do plano físico. Os grupos de Facebook,
portanto, são como pontos de encontro de seus membros, que buscam encontrar naquele local
um conteúdo específico.
Nesses grupos, trocam-se informações e experiências e, assim, fomentam o mercado de
arte brasileira. São em lugares como esses que os artistas podem mostrar seu trabalho e discutir
situações por que já passaram e técnicas de produção. Esses grupos, então, muito se assemelham

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com espaços no plano físico onde artistas se encontram e são, assim, trabalhados como um lugar
real, apesar de virtual.
Os grupos incentivam que seus membros compartilhem informações e divulguem seus
trabalhos pessoais, repudiando comportamentos que interfiram na troca honesta de
conhecimento. Como a comunidade que é, o Bate-papo Ilustrado se autorregula para que seus
membros possam ter a melhor experiência do espaço. À medida que esse espaço é significado
pelos seus frequentadores e se torna fonte de identidade para eles, esse espaço virtual se torna
um lugar.

Referências

AUGÉ, Marc. Não-Lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas, SP:


Papirus, 1994. 112 p.

DA SILVA, Adelina Maria Pereira. Ciberantropologia: O estudo das comunidades virtuais. S.d.
Universidade Aberta, Departamento de Ciências Sociais e de Gestão. Lisboa, Portugal: 2007. 22 p.

LÉVY, Pierre. Inteligência coletiva: Por uma antropologia do ciberespaço (A). 2 ed. São Paulo: Edições
Loyola, 1999. 216 p.

LÉVY, Pierre. O que é o virtual? São Paulo: Editora 34, 1996

PRIMO, Alex Fernando Teixeira. A emergência das comunidades virtuais. Intercom, v. 20, 1997. 17 p.

RODRIGUES, Rosália. Ciberespaços Públicos: as novas ágoras de discussão. Universidade da Beira


Interior . Covilhã, Portugal: 2010. 31 p.

SILVA, Lídia J. Oliveira Loureiro. A Internet: a geração de um novo espaço antropológico. S.d.
Universidade de Aveiro, Escola de Ciências e Tecnologias da Comunicação. Aveiro, Portugal: 2011. 15
p.

TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar: A perspectiva da experiência. Londrina: SciELO-EDUEL, 2015. 248 p.

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A MINEIRIDADE EM QUESTÃO:
como os mineiros são representados no Jornal Nacional e no Repórter Brasil1

Gustavo Teixeira2
Iluska Coutinho3
Universidade Federal de Juiz de Fora

Resumo

O objetivo deste artigo é analisar as narrativas acerca da mineiridade que são criadas por dois
jornais de âmbito nacional: Jornal Nacional e Repórter Brasil. Partindo dos conceitos de
identidade, representação, bem como o conceito de luta por reconhecimento, pretende-se
entender como os telejornais nacionais tem representado os mineiros em suas narrativas.
Portanto, utilizaremos como metodologia, a Análise da Materialidade Audiovisual, termo
cunhado por Coutinho (2016), que trabalha com a unidade “texto + som + imagem + tempo +
edição”, e tem como principal enfoque as linguagens audiovisuais e suas particularidades, pois
assim será possível realizar uma investigação mais dissecada e detalhada dos objetos.

Palavras-chave: Mineiridade; Jornal Nacional; Repórter Brasil; Materialidade Audiovisual;


Identidade.

THE MINEIRITY IN QUESTION:


how the “mineiros” are represented in the Jornal Nacional and in the Repórter Brasil

Abstract

The objective of this article is analyse the narratives about mineirity that are created by two
newspaper in the national scope: Jornal Nacional and Repórter Brasil. Starting from the
concepts of identity, representation, as well as the concept of fight for recognition, it is intended
how the national TV news has represented the people that born or/and live in Minas Gerais (the
“mineiros”) in their narratives. Therefore, we will use as methodology, the Analyse of the
Audiovisual Materiality, term coined by Coutinho (2016), that works with the unity “text +
sound + image + time + edition”, and have how main focus the audiovisual languages and their
particularities, because so will be possible to realize a more dissected and detailed investigation
of the objects.
Key-words: Mineirity; Jornal Nacional; Repórter Brasil; Audiovisual Materiality; Identity.

1
Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho de Jornalismo, do XI Encontro dos Programas de Pós-Graduação
em Comunicação Social de Minas Gerais, 18 e 19 de outubro de 2018.
2
Aluno de Mestrado do PPGCOM da Faculdade de Comunicação da UFJF, integrante do Núcleo de Jornalismo
e Audiovisual, Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: gustavo_tfp@yahoo.com.br.
3
Doutora em Comunicação Social, professora do curso de Jornalismo e do PPGCOM da Faculdade de
Comunicação da UFJF, orientadora do trabalho, Juiz de Fora, Minas Gerais. E-mail: iluskac@globo.com.

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Introdução
O telejornalismo nacional brasileiro tem buscado se reinventar, de modo a conseguir
transmitir as principais notícias dos cenários nacional e internacional, e ainda criar um ambiente
de proximidade para com os telespectadores, tornando-os cada vez mais parte das narrativas
audiovisuais.
No Brasil convivemos com uma grande diversidade cultural, social, religiosa, étnica e
ideológica. Por isso, o grande desafio do telejornalismo é conseguir abarcar as mais variadas
perspectivas de representação do brasileiro, bem como as particularidades de cada estado ou
região.
Além disso, com a criação da Internet, e principalmente das redes sociais, há também a
abertura para mais possibilidades de interação entre as edições dos meios de comunicação e os
telespectadores, seja dentro dos telejornais, caracterizando a participação direta, como também
por meio de mensagens ou vídeos enviados para as redações, e ainda na participação de
enquetes e perguntas promovidas pelos telejornais.
Tal interação pode causar a impressão de que o público é cada vez mais representado
nas narrativas audiovisuais, e consequentemente, mais próximos dela. No entanto, é necessário
observar se a interação público e telejornal de fato é efetiva e contribui para a representatividade
do público e de suas variações, ou se é apenas uma forma do telejornal atrair mais
telespectadores, e conquistar uma maior audiência.
E é justamente a partir de questões relacionadas à identidade que o presente artigo
buscará investigar a representação social que os mineiros possuem nas narrativas audiovisuais
de dois telejornais de âmbito nacional: o Jornal Nacional, da Rede Globo e o Repórter Brasil,
da TV Brasil, a fim de identificar quais discursos vem sendo reproduzidos nas narrativas
audiovisuais acerca da imagem do mineiro.
Para tal análise, usaremos os conceitos de identidade, representação, luta por
reconhecimento e de mineiridade, já que eles se fazem importantes na discussão acerca da
representação e da representatividade do telespectador nas narrativas construídas pelas
emissoras de TV em seus principais telejornais. E para entendermos como são construídas as
imagens dos mineiros nos telejornais, utilizaremos o conceito de dramaturgia do telejornalismo,
de Iluska Coutinho (2012), que busca dar conta da dramatização feita pelos telejornais, com
personagens e história com início, meio e fim, de modo a criarem uma verdadeira história da
vida real.
A metodologia utilizada será a Análise da Materialidade Audiovisual, desenvolvida por
Iluska Coutinho (2016) para dar maior amplitude às discussões que envolvem diretamente o

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conteúdo audiovisual, pelo fato das narrativas audiovisuais possuem maior complexidade de
investigação, tendo em vista que é preciso trabalhar a dimensão do som, imagem em movimento
e edição do material, bem como questões referentes ao local de inserção da narrativa e das
escolhas feitas pelos telejornais para apresentarem seus conteúdos.

Identidade, representação e representatividade


Torna-se impossível pensarmos em uma narrativa que consiga ser próxima do cidadão
sem passarmos pelos conceitos de representação e de identidade, bem como perpassar a questão
da luta por reconhecimento, já que eles se fazem essenciais para compreendermos a relação
telespectador e redação como mutualística, já que agora o cidadão não é mais apenas um
receptor, mas é também vem se tornando um ajudante dos telejornais, podem participar das
narrativas, enviar perguntas e mandar materiais audiovisuais, auxiliando o telejornalismo a estar
até mesmo nas situações em que não é possível deslocar uma equipe a tempo de cobrir um fato.
Ao tratar a questão da representação social, Lília Junqueira (2005) destaca que é
necessário explicar a crescente importância da dimensão cultural nos fenômenos sociais de toda
ordem, já que com o avanço da tecnologia, juntamente com a globalização, mudam-se os modos
de representação social e individual.
A importância crescente do papel da tecnologia no fluxo mundial de informações,
cujo volume e velocidade atinge níveis inéditos na história da humanidade
configurando uma revolução (SHAFT, 1995) obriga os cientistas sociais a observar
as novas formas pelas quais a sociedade, os grupos e os indivíduos pensam a si
mesmos e aos outros e como, a partir disso, o consenso e o conflito, as identidades
sociais e individuais são construídos, mantidos ou transformados. (JUNQUEIRA,
2005, p. 145 e 146)

Lília Junqueira traz ainda o conceito de habitus de Bourdieu para tentar entender como
se dão os modos de representação, já que o habitus articularia, o sujeito com três esferas:
estrutura, conhecimento e realidade. E elas são dadas a partir da relação estabelecida entre
reconhecimento do indivíduo para com suas próprias experiências e visões de mundo, e seu
lugar na estrutura social.
Para Bourdieu (1998), o habitus seria um conhecimento adquirido, podendo ser
individual ou coletivo, e nesse sentido, eles podem ser antagonistas ou complementares, criando
diferentes identidades e noções de pertencimento ou não dos cidadãos para com o meio social
em que estão inseridos.
A razão e razão de ser de uma instituição (ou de uma medida administrativa) e dos
seus efeitos sociais, não está na vontade de um indivíduo ou de um grupo mas sim no
campo das forças antagonistas ou complementares, no qual em função dos interesses
associados à diferentes posições e dos habitus de seus ocupantes, se geram as vontades
e no qual se define e se redefine continuamente, na luta- e através da luta- a realidade

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das instituições e dos seus efeitos sociais, previstos e imprevistos. (BOURDIEU,


1989, p. 81)

Outro conceito chave para compreendermos como se dão as representações do cidadão


é o de identidade, já que por identidade, podemos apreender que é mais ainda do que apenas
uma forma de representar o indivíduo, é também um conjunto de características que torna uma
pessoa única, mesmo pertencendo a um grupo.
Peter L. Berger e Thomas Luckman, em livro intitulado “A construção social da
realidade” (1985), trabalham com o conceito de identidade como elemento chave da realidade
subjetiva, ou seja, os tipos de sociedade são produtos sociais que se dão a partir de uma
socialização bem-sucedida, atrelada a experiências pessoais que tornam o indivíduo único.
Os autores trabalham com a ideia de que a identidade se dá a partir da psicologia, por
meio de uma relação dialética com a sociedade, e das estruturas sociais, que fazem com que
pessoas de grupos diferentes possuam um tipo de identidade diferente.
A identidade é evidentemente um elemento-chave da realidade subjetiva, e tal como
toda realidade subjetiva, acha-se em relação dialética com a sociedade. A identidade
é formada por processos sociais. Uma vez cristalizada, é mantida, modificada, ou
mesmo remodelada pelas relações sociais. Os processos sociais implicados na
formação e conservação da identidade são determinados pela estrutura social.
(BERGER e LUCKMAN, 1985, p. 228)

Nesse aspecto, podemos tratar ainda de um terceiro tipo de identidade, intensificada


com o processo de globalização, em que o indivíduo passa a criar a sua própria identidade,
partindo de seus experiências pessoais, e daquilo que toma como positivo de outros grupos.
Em livro intitulado “Identidade e Diferença” (2005), Tomaz Tadeu da Silva, Stuart Hall
e Kathryn Woodward trabalham o conceito de identidade a partir dos Estudos Culturais. Para
os autores, identidades adquirem sentido por meio da linguagem e dos sistemas simbólicos
pelos quais elas são representadas, e nesse sentido, a representação atuaria de forma simbólica
para classificar o mundo e as relações em seu interior. Kathryn explica que as identidades
podem estar em três dimensões: simbólico-cultural, social e psíquica, não sendo unificadas.
A representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio
dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeito. É por meio
dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa
experiência e àquilo que somos. (WOODWARD, 2005, p. 17)

No entanto, por trazer a perspectiva dos estudos culturais, a autora identifica uma crise
de identidade nas sociedades atuais, potencializada pela globalização e com os deslocamentos,
fazendo com que as identidades estejam cada vez menos arraigadas nas experiências de grupo
e atreladas a noções geográficas, o que acaba por criar uma realidade cada vez mais
individualizada nas construções de identidades.

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As identidades que são construídas pela cultura são contestadas sob formas
particulares no mundo contemporâneo- num mundo que se pode chamar de pós-
colonial. Este é um período histórico caracterizado, entretanto, pelo colapso das
velhas certezas e pela produção de novas formas de posicionamento. (WOODWARD,
2005, p. 25)

Ao pensar na perspectiva da identidade multicultural, Tomaz Tadeu da Silva expande o


conceito de identidade, que passa também a ser um significado cultural e socialmente atribuído,
se tornando ainda um instrumento de poder, já que juntamente com a identidade temos a
diferença, que apriori deve ser respeitada e igualmente tratada. Porém na prática o que temos é
um grupo dominante que estabelece padrões identitários, e que excluem aqueles grupos ou
segmentos da sociedade que não se adequam a tais padrões. “A afirmação da identidade e a
enunciação da diferença traduzem o desejo dos diferentes grupos sociais, assimetricamente
situados, de garantir o acesso privilegiado aos bens sociais.” (SILVA, 2005, p. 81)
Se observarmos o telejornalismo brasileiro padrão, observamos uma maior
concentração dos meios de comunicação no eixo Rio-São Paulo, tendo Brasília como um
terceiro local de fala, muito por conta de seu valor político para o Brasil, e nesse sentido outras
tantas narrativas sociais e culturais acabam ficando de fora ou sendo estereotipada, como por
exemplo a imagem do mineiro, que é tido, a partir de estereótipos, sempre como um povo
tranquilo e acolhedor, com uma fala mansa e sempre pronto a ajudar. Além disso, vemos muitas
das vezes o mineiro representado de forma mais periférica em relação ao eixo Rio-São Paulo,
e com uma imagem mais próxima do rural, sintetizados nas imagens do pão de queijo e do
cafezinho.
Nesse sentindo, faz-se necessária a abordagem de Axel Honneth, em seu livro “Luta por
Reconhecimento”, que trabalha justamente com a ideia de representação e busca por
representatividade como forma de um indivíduo se sentir parte de um grupo. O autor trabalha
com a ideia de que o indivíduo é exterior a si, e que portanto teríamos o que ele chama de
identidade social, que é o reconhecimento a partir do outro, exemplificado a partir de três
esferas: família (amor), sociedade civil (direito) e Estado (sociedade). Já a identidade pessoal,
ou seja, o auto reconhecimento, estaria presente no reconhecimento dos direitos e deveres que
cada indivíduo possui.
A autocompreensão cultural de uma sociedade predetermina os critérios pelos quais
se orienta a estima social das pessoas, já que suas capacidades e realizações são
julgadas intersubjetivamente conforme a medida em que cooperam na implementação
de valores culturalmente definidos; nesse sentido, essa forma de reconhecimento
recíproco está ligada também à pressuposição de um contexto de vida social cujos
membros constituem uma comunidade de valores mediante a orientação por
concepções de objetivos comuns (HONNETH, 2003, p. 200)

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Para Axel Honneth, a luta por reconhecimento promove desenvolvimentos e progressos


na realidade da vida social do ser humano como força moral, e portanto busca legitimar as lutas
sociais como essenciais para que pouco a pouco se tenha de fato uma sociedade mais igualitária
e que consiga ser mais representativa.
Tanto o conceito de identidade, como também o conceito de luta por reconhecimento,
são muito importantes para pensarmos as narrativas audiovisuais que os telejornais tem feito,
principalmente para compreendermos se tem ocorrido de fato a representação das variações
culturais, sociais, étnicas, raciais e de gênero, ou se tem-se procurado padronizar os formatos
de se fazer jornalismo, inclusive deixando de fora narrativas alternativas ou minoritárias.
A partir disso, faz-se importante o conceito de Dramaturgia do telejornalismo,
desenvolvido por Iluska Coutinho (2012) e que observou que cada vez mais os telejornais tem
buscado contar histórias com começo, meio e fim, a partir das notícias, inserindo personagens,
enredo e a perspectiva do drama. “As ações, os personagens e ainda a oferta de uma mensagem
moral são também componentes essenciais de uma narrativa dramática, o que nos possibilitaria
considerar a organização das notícias em TV como dramaturgia do telejornalismo” (Coutinho,
2012, p. 199).
Iluska (2012) defende que a potencialidade da televisão de trabalhar texto, imagem, som
e edição de material, bem como o uso de elementos emocionais, tem sido cada vez mais
utilizadas pelos telejornais, que passam a criar verdadeiras histórias reais, com o objetivo de
aproximar o conteúdo dos telespectadores, e com isso, os personagens tornam-se parte da
narrativa, como forma de representação real da história criada.
Assim, o que os telespectadores acompanham nos telejornais é uma soma de pequenas
tentativas de repetição de alguns fatos, amarrados pelos textos de repórteres e
apresentadores, uma “imitação da ação” ou das ações humanas, tal como a definição
de Aristóteles para a palavra drama. O sentido de “imitação” tal como proposto pelo
filósofo abrange o de representação, no caso, de um conflito que se desenvolveria,
sempre com a busca de sua resolução, através das ações dos personagens da estória,
da narrativa (COUTINHO, 2012, p. 198 e 199)

Ainda acerca da construção de narrativas dentro dos telejornais, principalmente a partir


da perspectiva da contação de histórias da vida real, que se insere a questão da mineiridade,
principalmente por ser um padrão cultural e regional bem marcante e até mesmo conhecido que
é representado a partir da figura do mineiro. Mas será que as narrativas tem sido produzidas de
forma a serem representativas para os mineiros, os inserindo na narrativa nacional, ou a
mineiridade é apresentada de maneira estereotipada?

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Mineiridade em questão
A palavra mineiridade é definida por alguns dicionários online como qualidade,
condição ou atitude do mineiro. Talvez uma de suas primeiras citações se deu em agosto de
1957, em um texto publicado na revista “O Cruzeiro”, por João Guimarães Rosa, intitulado “Aí
está Minas: mineiridade”, em que retrata as várias faces e particularidades das muitas Minas
Gerais e características dos vários tipos de mineiros.
Em texto intitulado “Mineiridade: identidade regional e ideologia, Liana Maria Reis
(2007), retoma a discussão do sentimento de pertença muito forte do mineiro para com suas
características, já que mesmo com muitas particularidades e diferenças, a mineiridade une todos
os mineiros. “Das várias características do mineiro, duas são bastante conhecidas: é comum
ouvir que o mineiro trabalha em silêncio e é desconfiado” (REIS, 2007, p. 90 e 91).
Liana (2007), defende que mesmo sendo considerada por muitos autores como um mito,
a mineiridade é uma construção baseada na história, principalmente por uma elite política, e
por ter ganhado contornos universais, deve ser estudada a partir da identidade do que é ser
mineiro.
A questão central, entretanto, parece-me ser a reflexão de que a mineiridade foi e
continua sendo construída como elemento de identidade regional, mas,
principalmente, como ideologia. Ou seja, se podemos falar que as identidades- ideias
de pertencimento- são plurais e dinâmicas, originadas das características peculiares
da formação e vivência históricas (e aí, portanto, as várias comunidades possuem suas
particularidades locais e regionais e, nessa medida, lembram e comemoram os fatos
mais marcantes e significativos vividos coletivamente) de cada sociedade ou grupo
social, a mineiridade é uma dentre tantas outras identidades, considerando o Brasil
como um todo ou internamente, no próprio Estado de Minas Gerais (REIS, 2007, p.
90)

Outra autora que discorre a respeito da mineiridade é Simone Maria Rocha, que trabalha
com a temática desde 2001, quando defendeu sua tese de doutorado intitulada: “Mineiridade
em Questão: do discurso mítico ao discurso midiático”. Para Simone, a mineiridade se dá a
partir de duas perspectivas: da formação de identidades, que passam pela ideia de nação, região
e sentimentos de pertença; e da imagem do mineiro que é construída pela mídia, muitas vezes
com um tom humorístico e com uma imagem estereotipada do que é mineiridade.
Ao trabalhar com o discurso da mineiridade como identidade regional na televisão,
Simone Rocha (2003) buscou entender como se dão os conteúdos produzidos pela TV acerca
dos mineiros, e como se dava a recepção desse material.
Entender como uma velha identidade sobrevive e se mantém em contexto de
sociedade global, é algo bem complexo e desafiante. E a dimensão da recepção pode
auxiliar-nos nessa busca pelo entendimento de como essas construções mantêm-se
vivas e atuantes. Isso porque reconhecemos o lugar central que os meios de
comunicação exercem na estruturação da vida social tanto pelo papel que
desempenham (laço social, informação) quanto pelo real histórico múltiplo,

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contraditório que nos foi sendo revelado através da pesquisa de recepção. O discurso
da “mineiridade” é apropriado de modos variados. As maneiras de ver, viver, assistir
são construtos socialmente ancorados, o que nos mostrou que a “mineiridade” é
diversamente apropriada nas diferentes regiões culturais, ainda que tenha sido
possível identificar aqueles traços característicos que embasam a fala dos
entrevistados.(ROCHA, 2003, p. 7)

Simone Rocha (2003) afirma ainda que mesmo que o estado de Minas Gerais possui
várias regiões culturais, que tem influência direta nas particularidades, há características que
unem todas essas regiões acerca do sentimento de mineiridade. Em sua pesquisa de campo,
Simone observou que até mesmo o conteúdo midiático produzido sobre o “mineiro puro”, ainda
ligado a tradições rurais e do período colonial, mesmo que de forma estereotipada, auxiliou na
legitimação da mineiridade.
Mas, a força do discurso da “mineiridade” faz-se presente e vem até mesmo da
televisão, o que é um fato curioso. Quando fazíamos as sessões de vídeo, embora tenha
havido alguma exceção, a maioria das pessoas confirma que as personagens
representam “o mineiro” de alguma forma. Em alguns casos eles alegaram a
ridicularização, em outros consideram apenas o mineiro da zona o rural, o “mineiro
puro”, mas em geral, pudemos perceber que o estereótipo atua num plano
comunicacional de maneira positiva. Ele confirma alguns valores, alguns traços que
já fazem parte do imaginário social. (ROCHA, 2003, p. 11)

Uma terceira autora que trabalha com a ideia de mineiridade é Mila Barbosa Pernisa
(2011), que coloca como enfoque a representação do mineiro que é construída nas reportagens
de um telejornal regional. A autora trabalha com a ideia de que há três formas de representação
da mineiridade, que servem tanto para a representação do mineiro em âmbito local, como
também nacional: influenciada pela tradição histórica, principalmente da literatura; perfil
padronizado do cidadão global, que desqualifica o caráter regional; construção de uma
identidade que incorpora a diversidade de Minas.
A “mineiridade”, ou seja, a formulação de um conjunto específico de valores
atribuídos a um grupo (BOMENY, 1994, p.56) pode ser definida como o termo que
traduz a conjunção de diversos elementos que constituem um povo tais como apego à
tradição, valorização da ordem, prudência, aversão a posições extremistas e, portanto,
o centrismo, a moderação, o espírito conciliador; a capacidade de acomodar-se às
circunstâncias e, ao mesmo tempo, efetuar transações; a habilidade, a paciência como
estratégias para o alcance de objetivos políticos com menor custo. (PERNISA, 2011,
p. 53)

Mila trabalha com a ideia de que a mineiridade não é algo natural, mas sim construído,
principalmente por parte da elite política e econômica do estado, que acaba ganhando
legitimação devidos aos produtos culturais. A autora também afirma que a mineiridade surge
como um mito, utilizado para firmar uma identidade que fosse tão forte que conseguisse
competir com os demais estados da federação.
E é justamente a partir desse mito, reforçado pela literatura e pela mídia, que se cria
uma imagem muito forte do que é ser mineiro. E esses discursos passam a ser
incorporados pelos próprios mineiros, que passam a se identificar com muitas dessas

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características, muitas vezes deixando em segundo plano as muitas facetas e


diferenças entre as várias identidades do que é ser mineiro. “É curioso observarmos
esse descompasso entre a realidade narrada, que parece operar a nível do mito, e a
realidade das cidades, cada vez mais espaço de heterogeneidade, da pluralidade, das
tensões” (PERNISA, 2011, p. 67)

Tendo colocado a mineiridade em questão e entendendo um pouco melhor como


começaram a surgir os discursos acerca do que é ser mineiro é que buscaremos identificar como
essa mineiridade é representada em dois telejornais de caráter nacional, o Jornal Nacional e o
Repórter Brasil. Quais discursos são produzidos a partir do que é ser mineiro?

Jornal Nacional e Repórter Brasil


Principal telejornal da TV Globo, o Jornal Nacional estreou no dia 1º de setembro de
1969 e é transmitido de segunda-feira a sábado, às 20:30, com duração média de 45 minutos.
Atualmente o JN é apresentado por Willian Bonner e Renata Vasconcellos, que são também o
editor-chefe e a editora-executiva, respectivamente.
Em seu site, o Jornal Nacional se define como o primeiro telejornal do Brasil a ser
transmitido em rede, e “faz a cobertura completa das principais notícias no Brasil e no mundo.
Pautado pela credibilidade, isenção e ética, o JN é líder de audiência no horário nobre.” (SITE
DO JORNAL NACIONAL, 2018)
Já o Repórter Brasil, é transmitido pela TV Brasil, emissora pública, e teve sua primeira
edição no dia 3 de dezembro de 2007, apenas um dia após o começo das transmissões da TV
Brasil em rede nacional. O programa possui duas edições de segunda à sexta-feira, às 9 horas
da manhã, com 30 minutos de duração e apresentado por Luciana Barreto nos estúdios do Rio
de Janeiro, e às 20 horas, com uma hora de duração, apresentado por Pedro Pontes e Katiuscia
Neri nos estúdios de Brasília. Aos sábados, há apenas uma edição, às 20 horas.

Análise da Materialidade Audiovisual


A metodologia a ser utilizada é a Análise da Materialidade Audiovisual, desenvolvida
por Iluska Coutinho (2016), e que se apresenta como possível método de avaliação de narrativas
audiovisuais por abarcar a unidade “texto + som + imagem + tempo + edição” (COUTINHO,
2016, p. 10) e não ser necessário a fragmentação do material, o que influenciaria a análise do
conteúdo audiovisual. Tal método se apresenta como possível por ter como objetivo investigar
tanto o áudio, quanto a imagem, e as suas diversas possibilidades de linguagem, além dos
recursos de edição empregados nos materiais audiovisuais.

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Coutinho (2016) propõe a escolha do objeto de análise, e em seguida a pesquisa


bibliográfica que permeia o objeto em questão. Nesse sentido, a escolha pelo Jornal Nacional e
Repórter Brasil se deu por serem os telejornais de maior difusão em uma emissora comercial,
caso do JN, e de maior difusão em uma emissora pública, caso do Repórter Brasil.
O recorte estabelecido foi a da semana da Páscoa, de 26 de março à 01 de abril de 2018,
por ser uma semana em que a mineiridade tem maior potencialidade de aflorar devido a tradição
religiosa histórica do estado, principalmente ligado ao catolicismo, e a mesma semana do mês
seguinte, de 23 à 29 de abril escolhida ao acaso para observar a presença do mineiro nas
narrativas dos telejornais, sem que haja algum tipo de data especial que remeta ao estado.
A partir da referencial bibliográfico estabelecido, o próximo passo foi o de estabelecer
os eixos de análise do objeto em questão, e logo em seguida realizar a montagem da ficha de
leitura/avaliação do conteúdo audiovisual. (COUTINHO, 2016, p. 11)
Foram estabelecidos três eixos de análise: identidade, representação e
representatividade, a fim de identificar a presença ou não da mineiridade nas narrativas
audiovisuais dos telejornais nacionais.
No entanto, antes disso foi realizado um levantamento de todas as matérias que
ganharam espaço nos telejornais, bem como sua temática e seu tempo, a partir dos sites do
Jornal Nacional e Repórter Brasil, que foram de onde retiramos o material analisado, pois assim
seria possível se ter algumas constatações iniciais acerca da presença ou não de pautas que
envolvessem o estado de Minas Gerais, do tempo que essas matérias ocupam nos telejornais
em comparação com a totalidade dos jornalísticos, e em quais temáticas o estado de Minas
Gerais e a figura do mineiro ganham destaque nos conteúdos audiovisuais em questão.
No Repórter Brasil, em que foram contabilizadas 117 matérias nos períodos analisados,
observou-se apenas três matérias que tinham o estado de Minas Gerais ou um personagem
mineiro como importantes na narrativa audiovisual, sendo uma notícia da editoria de polícia,
no dia 28 de março, sobre uma investigação de tráfico de bebês4; uma de cultura, no dia 29 de
março, sobre a tradição de tapetes na Páscoa, em Ouro Preto5; e uma de política, no dia 26 de
abril, sobre uma abertura de impeachment contra o governador Fernando Pimentel6. Apenas a

4
Matéria veiculada no dia 28/03/2018- http://tvbrasil.ebc.com.br/reporter-brasil/2018/03/policia-de-minas-
gerais-investiga-possivel-rede-de-trafico-de-bebes
5
Matéria veiculada no dia 29/03/2018- http://tvbrasil.ebc.com.br/reporter-brasil/2018/03/em-ouro-preto-
tradicao-dos-tapetes-devocionais-e-marca-da-pascoa
6
Matéria veiculada no dia 26/04/2018- http://tvbrasil.ebc.com.br/reporter-brasil/2018/04/assembleia-de-mg-
autoriza-abertura-de-impeachment-contra-pimentel

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título de comparação, foram contabilizadas 24 matérias internacionais nos períodos de análise,


oito vezes mais do que matérias sobre que tinham o estado de Minas como enfoque.
Já no Jornal Nacional, foram contabilizadas 214 matérias nos períodos analisados, e
dentre elas, apenas oito são referentes ao estado de Minas Gerais ou de algum personagem
mineiro, distribuídas entre as editorias de justiça, com seis inserções, com cinco delas na
intersecção justiça e política, uma notícia sobre a Samarco, três sobre o político Eduardo
Azeredo7, uma sobre o governador Pimentel8, e outra sobre o senador de Minas Gerais, Aécio
Neves9; uma matéria sobre polícia, de um acidente com mortes; e uma sobre clima, referente
ao cancelamento de uma operação do Ibama na Zona da Mata Mineira.
Após tal levantamento de informações iniciais acerca dos objetos, partimos para a
análise da materialidade audiovisual do Jornal Nacional e Repórter Brasil. A ficha de avaliação
foi dividida em três eixos de análise: identidade; representação; e representatividade, e sub
dividida em perguntas que fossem pertinentes a questão da mineiridade.
No eixo da identidade, foram construídas quatro questionamentos: “A matéria conta
com cobertura in loco (Minas Gerais) ou é apenas uma nota seca ou coberta?”; “Há personagens
mineiros?”; “É possível identificar a mineiridade na matéria?”; “É possível observar fatores
culturais mineiros?”.
No eixo representação, que seria um segundo passo após a relação de identidade do
telespectador para com a narrativa construída, foram desenvolvidas outras quatro perguntas:
“Os personagens mineiros tem voz?”; “Que imagem de mineiro aparece na narrativa?”; “O
mineiro é representado na narrativa?”; “Qual discurso ou lição de moral é produzido a partir da
mineiridade?”.
E por último, buscamos analisar a representatividade, que é mais do que apesar
representar, mais também é criar uma relação de pertencimento entre produtor de conteúdo e
público. Nesse eixo foram construídas mais quatro perguntas: “A matéria dá voz ao mineiro?”;
“O conteúdo consegue ser representativo para o mineiro?”; “A matéria se preocupa com o
pluralismo?”; “E com a diversidade?”.
No eixo da identidade, observou-se que das três matérias do Repórter Brasil que tinham
o estado de Minas Gerais ou algum personagem de Minas em foco, temos uma nota coberta, na
matéria sobre o impeachment de Pimentel, o que não possibilita que tenha personagem e nem
identificação de valores culturais do mineiro, e duas matérias que houve o deslocamento de

7
Ex-governador de Minas Gerais pelo PSDB, e que à época vinha sendo julgado pelo o mensalão tucano
8
Que à época teve um pedido de impeachment contra aceito pela Assembleia de Minas
9
Que deu depoimento à Polícia Federal sobre uma investigação ao presidente Michel Temer

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uma equipe de reportagem para o local, sendo a primeira da editoria de polícia, em que apenas
o delegado é entrevistado, na figura de especialista, e os personagens sequer aparecem na
matéria, e a segunda é uma matéria produzida pela TV Top Cultura de Ouro Preto, parceira da
TV Brasil, e nela é possível observar tanto características culturais, principalmente a partir da
temática da Páscoa, já que a matéria fala sobre uma tradição de pintura de tapetes devocionais,
o que remonta a tradição religiosa do estado de Minas Gerais de igrejas católicas antigas, quanto
também há personagens mineiros, evidenciados na forma de falar e no ambiente de ruas e casas
antigas em que eles se encontram.
Já no eixo representação, as matérias sobre a abertura de impeachment do governador
Fernando Pimentel e sobre investigação de um possível tráfico de bebês não consegue nem
ouvir nenhum dos personagens, já que a primeira matéria é apenas uma nota coberta, e a
segunda o único a ter voz é o delegado do caso, como também não consegue representar e nem
mesmo produzir qualquer tipo de discurso sobre o mineiro.
Por um outro lado, a reportagem produzida pela TV Top Cultura consegue não apenas
ouvir os personagens, que são os pintores das ruas e seu professor, como também buscam dar
um olhar mais local para a matéria, valorizando a cultura mineira e sua tradição religiosa das
igrejas antigas, que é inclusive um importante espaço turístico, sugerindo uma imagem bem
marcada do mineiro do interior do estado, que é marcado pela elevada crença na religião
católica, de fala calma e tranquila, além de ser um povo acolhedor e que cria um ambiente
intimista e de aproximação para com que vem de fora, evidenciado tanto pelas pinturas nas
ruas, que também sugere um clima de tranquilidade nas ruas e cooperação entre os cidadãos,
como também no modo de falar e de receber a equipe de reportagem.
Muito por conta dessa representação que temos na matéria sobre as pinturas de tapetes
devocionais, notou-se que apenas essa reportagem consegue de fato ser representativa para o
mineiro, ainda que para uma parcela dos mineiros, já que não apenas dá voz aos personagens
da narrativa, como também se pauta na pluralidade de vozes e expressões e na diversidade
cultural, étnica e de gênero, observada na constituição da matéria, criando uma relação próxima
com a mineiridade e com o sentimento de pertencimento do mineiro para com a narrativa, ainda
que seja um mineiro erradicado em outro lugar, ou daqueles que não vivem nessas cidades de
pequeno ou médio porte mas ainda sim tem conhecimento acerca da tradição religiosa do
estado. Nas outras duas matérias analisadas, sequer conseguiram representar o mineiro e a
mineiridade presente no estado, o que não possibilita que sejam também representativas.
Dentre as oito matérias do Jornal Nacional em que o estado de Minas Gerais está em
evidência, observou-se que apenas três delas há o deslocamento de equipe de reportagem para

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o local do acontecimento, sendo uma a matéria sobre o reassentamento de famílias em Ouro


Preto e Mariana10, duas sobre o condenação de Eduardo Azeredo11 e sobre o depoimento de
Aécio Neves à Polícia Federal, que sequer ocorreu em Minas Gerais, e que há apenas a
passagem do repórter e um off cobrindo sua fala, e a outra na Assembleia Legislativa de Minas
Gerais, sobre a abertura de impeachment ao governador Fernando Pimentel12, em que há uma
entrevista com o presidente do PT e a cobertura da assembleia. Nas outras quatro, temos uma
chamada inicial do telejornal, sobre a condenação de Eduardo Azeredo, e outras três notas
cobertas, com imagens dos telespectadores.
Até pelos formatos das matérias, quase nenhuma delas é possível identificar fatores
culturais ou sociais mineiros e nem mesmo observar a perspectiva da mineiridade. Tais
perspectivas são evidenciadas apenas na matéria sobre o reassentamento das famílias em
Mariana e Ouro Preto, em que além de identificarmos o sotaque mineiro, é possível observar
características que identificam os entrevistados como mineiros. Além disso, essa é a única
matéria que se tem personagens com voz, mesmo que seja na condição de vítimas da tragédia
do rompimento das barragens da Samarco. Nas outras matérias, seis delas os personagens são
figuras políticas envolvidas em problemas com a justiça, e em uma delas não há personagens,
por se tratar de uma notícia sobre um acidente ocorrido em uma rodovia do estado.
Passando para o eixo da representação, a falta de personagens e da presença do mineiro
nas narrativas é sintomática para entendermos também que as matérias investigadas do Jornal
Nacional não conseguem dar voz aos personagens, talvez por falta de tempo ou por questões
editoriais, e as questões de imagem e representação do mineiro e da mineiridade acabam
prejudicadas, devido ao fato dos personagens não terem voz, ou pelas matérias se tratarem de
figuras políticas ligadas ao estado. A exceção novamente é a notícia sobre o reassentamento de
famílias em Mariana e Ouro Preto, em que até representam os mineiros e a realidade de muitos
mineiros, principalmente daquela região, porém acabam por produzirem um discurso de
vitimismo em relação a população local.
Último eixo analisado, a representatividade volta a esbarrar nos problemas
anteriormente citados de falta de personagens e formatos de grande parte das matérias. No
entanto, a única matéria que consegue representar o mineiro em alguma medida, não consegue

10
Matéria veiculada no dia 27/03/018: http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2018/03/mp-de-minas-cobra-
da-samarco-reassentamento-de-familias.html
11
Matéria veiculada no dia 24/04/2018: http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2018/04/tj-de-minas-
mantem-condenacao-de-eduardo-azeredo-no-mensalao-tucano.html
12
Matéria veiculada no dia 26/04/2018: http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2018/04/assembleia-de-
minas-aceita-pedido-de-impeachment-contra-pimentel.html

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ser representativa acerca da mineiridade, já que apresenta apenas o sofrimento de pessoas que
perderam praticamente tudo e estão desesperadas por uma solução, mas não busca explorar uma
imagem do mineiro em que ele não esteja na posição de vítima, e portanto contribua apenas
para reforçar o discurso transmitido pela produção, que é o de criar uma história a partir do
reassentamento de famílias na região, e assim entrevistar pessoas que estejam sofrendo com o
problema, e portanto se apresentam como potenciais personagens.

Considerações finais
A partir da análise do Repórter Brasil e do Jornal Nacional, dois dos telejornais
nacionais de uma emissora pública e privada, respectivamente, observou-se em ambos uma
grande ausência de pautas acerca do estado de Minas Gerais. Em geral, nos dois telejornais foi
possível identificar a presença de notícias que remetesse ao estado nas editorias de polícia, caso
do acidente que ocorreu em uma rodovia do estado, ou na editoria de justiça, sempre a partir de
um escândalo ou julgamento de um político mineiro que possivelmente estava envolvido em
algum esquema de corrupção.
O pequeno espaço destinado às notícias do estado de Minas Gerais se torna ainda mais
grave se compararmos com outros estados como São Paulo e Rio de Janeiro, que também estão
no Sudeste mas possuem um volume muito maior de matérias que remetam a eles, e ao Distrito
Federal, que mesmo sendo no Centro-Oeste, ganha destaque por conta da Câmara e Senado
Federais e das notícias sobre política, sendo que o estado de Minas Gerais é o quarto maior em
extensão territorial e conta com o maior número de cidades do país, 853, segundo dados do
IBGE de 2017.
Além do baixo número de matérias sobre o estado de Minas Gerais, observou-se que
dentre as matérias analisadas, poucas conseguem gerar identificação, representação e
representatividade para com o cidadão mineiro, primeiro porque grande parte delas trata de uma
personalidade política na figura de réu, e depois porque em poucas matérias foi possível notar
a presença do cidadão inserido na narrativa. A matéria que mais se aproximou disso foi a do
Repórter Brasil sobre os tapetes devocionais, mas que contou com o material de uma emissora
local para produção do conteúdo, e portanto conseguiu de fato representar o mineiro e o
conceito de mineiridade.
Outra constatação acerca da questão da mineiridade foi a de que tanto na semana da
Páscoa, em que normalmente há mais matérias relacionadas às tradições religiosas, e aí o estado
de Minas Gerais ganharia mais destaque na mídia devido às antigas igrejas católicas e tradições
do período colonial, quanto na outra semana analisada, a última do mês de abril, em que não

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tem nenhum fator destoante para um possível destaque do estado de Minas Gerais, há muito
pouco espaço para matérias sobre o estado.
Sobre a semana da Páscoa, o Jornal Nacional optou por matérias mais genéricas, que
remetesse a tradições nacionais e que acabaram representadas de forma mais genérica, e o
Repórter Brasil destinou menos de dois minutos para apenas uma matéria sobre as tradições
tipicamente mineiras na Páscoa, optando também por outras matérias que destacassem mais o
caráter comercial e nacional da data.
Por fim, podemos afirmar que mesmo com traços muito marcantes e conhecidos
nacionalmente, a mineiridade não tem aparecido nas narrativas nacionais. Primeiro porque são
poucas as inserções de matérias que tenham o estado de Minas Gerais como enfoque, e segundo
porque nas poucas que tem, normalmente não observa-se cobertura de equipes de reportagens
no estado, e nem mesmo a presença de personagens ou fontes que sejam mineiras ou cidadãos
do estado de Minas Gerais.

Referências

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conhecimento [por] Peter L. Berger [e] Thomas Luckman; tradução Floriano de Souza Fernandes.
Petrópolis, Vozes, 1985.

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de Janeiro, 1989.

COUTINHO, Iluska. O telejornalismo narrado nas pesquisas e a busca por cientificidade: A análise
da materialidade audiovisual como método possível. In: XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da
Comunicação, 2016, São Paulo, SP. Anais eletrônicos... São Paulo, USP, 2016. Disponível em:
<http://portalintercom.org.br/anais/nacional2016/resumos/R11-3118-1.pdf>. Acesso em: 10 de julho de
2018.

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emissoras de televisão de Juiz de Fora-MG. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012.

HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Tradução de
Luiz Repa. – São Paulo: Ed. 34, 2003. 296p.

JUNQUEIRA, Lília. A noção de representação social na sociologia contemporânea. Estudos de


Sociologia, Araraquara, 18/19, 145-161, 2005.

PERNISA, Mila Barbosa. A construção simbólica da identidade mineira no telejornal da Rede Minas.
Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2011.

REIS, Liana Maria. Mineiridade: identidade regional e ideologia. Cadernos de História, Belo Horizonte,
v.9, n. 11, p. 89-97, 1º sem. 2007.

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ROCHA, Simone Maria. Identidade regional, produção e recepção: A “Mineiridade” na televisão.


In: Congresso Nacional de Pós-Graduação em Comunicação– COMPÓS, 12. Recife, PE, 2003.
Disponível em: <http://www.compos.org.br/data/biblioteca_1026.PDF> Acesso em: 13/06/2018

SILVA, Tomaz Tadeu da; HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: a
perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2000.

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CULTURA DIGITAL E ALGORITMOS:


Alterações da dinâmica comunicacional1

Isabela Norton2
Soraya Maria Vieira Ferreira.3
Universidade Federal de Juiz de Fora

Resumo

No atual ecossistema digital que habitamos a comunicação unilateral perdeu lugar e o fluxo de
informações vem alterando a forma de se fazer comunicação; a presente proposta de pesquisa
parte do entendimento que o atual momento da ecologia comunicacional e posicionamento dos
atores do processo na troca informacional em rede está alterando a forma de se fazer
comunicação. Com o advento dos algoritmos e Big Data, a distribuição e circulação de
informações não depende apenas de ações humanas, mas de uma base de dados constantemente
atualizada e interpretada em busca de padrões. Entender como essas ações envolvem e engajam
o usuário-espectador nas publicações que remetem aos programas e analisar como esse tipo de
estratégia promove a interatividade com o público é o questionamento central aqui proposto.
Observar como se dá essa distribuição e circulação de conteúdo Netflix permite que
aprofundemos os estudos nas variações de aproveitamento do ambiente virtual.
Palavras-chave: Ecossistema comunicacional. Cultura digital. Netflix. Algoritmos.

DIGITAL CULTURE AND ALGORITHMS:4


Alterations of the communicational dynamics
Abstract

In the current digital ecosystem that we inhabit, unilateral communication has lost its place and
the flow of information has been changing the way communication is done; the present proposal
of research starts from the understanding that the current moment of communicational ecology
and the positioning of the actors at the process in the informational exchange in network is
changing the form of making communication. With the advent of algorithms and Big Data, the
distribution and circulation of information depends not only on human actions, but on a
database constantly updated and interpreted for patterns. Understanding how these actions
involve and engage the viewer-user in the publications that refer to the programs and analyze
how this type of strategy promotes interactivity with the public is the central question proposed
here. Observing how this distribution and circulation of Netflix content takes place allows us
to deepen our studies on variations in the use of the virtual environment.

Key-words: Communicational Ecosystem. Digital culture. Netflix. Algorithms.

1
Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Comunicação e Culturas Digitais, do XI Encontro dos Programas
de Pós-Graduação em Comunicação Social de Minas Gerais, 18 e 19 de outubro de 2018.
2
Discente do 2º ano do Mestrado em Comunicação da UFJF, Linha de Pesquisa Estéticas, Redes e Linguagens.
Bolsista UFJF, nortonisabela@gmail.com .
3
Professora orientadora, sovferreira@gmail.com
4
Paper presented at the Communication and Digital Cultures Working Group, of the XI ECOMIG, Meeting of
Postgraduate Programs in Social Communication of Minas Gerais, October 18 and 19, 2018.

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Introdução
A web 2.0 carrega a expressividade de um tempo de mudança e é entendida como a
“verdadeira metáfora de uma comunicação de baixo, voltada a revolucionar a verticalidade dos
sistemas econômicos-políticos modernos” (DI FELICCE, 2009, p.17), assim como o que
entendemos por conexão em rede, ciberespaço e trocas informacionais de dados. A ideia do
digital veio carregada de um fazer comunicacional diferente do que era praticado até então, com
a introdução de mundos e realidades sendo criadas em paralelo ao offline e à convivência social
- e aqui referimo-nos não apenas a jogo simuladores de realidade, mas majoritariamente a redes
sociais, a sites, blogs, fóruns e comunidades que contam com a participação de milhares de
pessoas construindo conhecimentos e relações antes impossibilitadas de existir. Os espaços
criados e reproduzidos foram “ambientes atravessáveis somente mediante formas de interações
técnicas”, que motivaram “o questionamento do conceito de espaço e do significado do habitar”
(DI FELICCE, 2009, p.20).
Portanto há uma ruptura no que até então entendia-se como tradicional, para múltiplas
transformações, como: comunicativas (da televisão e cinema pra interatividade), identitárias
(ideia de local, nacional sendo expandida para as identidades globais, glocais e híbridas),
tecnológicas (do analógico para tecnologias digitais), dentre outras (DI FELICCE, 2009, p.20).
Com o advento das redes sociais e Cultura Participativa a comunicação unilateral perdeu
lugar; a interatividade e posicionamento da marca fazem toda diferença para a criação de laço
sentimental do produto ou serviço que é oferecido. Shirky (2011) defende que a maior vantagem
das redes é a possibilidade de conexão entre pessoas. Potencializada pela velocidade de
produção e compartilhamento, a conexão instantânea, a todo tempo e lugar altera a forma como
habitamos o espaço social e a forma de nos comunicarmos. As mídias, a conexão e a potência
da internet não têm fronteiras. A informação pode ser originária de qualquer ponto da rede, com
emissores e receptores habitando os menos pontos. Não é possível mais determinar quem
produz e quem consome, ou até mesmo segmentar tais funções. Enxergamos isso como a grande
potência da conexão em rede da atualidade. O volume de informação é indecifrável e é a grande
chave da revolução do fazer comunicacional.
Assim como essas mudanças, o Big Data e a atuação dos algoritmos estão modificando
forma como as informações são lidas e interpretadas, enredando o consumidor em uma teia de
sugestões e automatizações. D. De Kerckhove aponta, em Di Felicce (2009, p.64) a ideia de
psicotecnologia, que pode ser aplicada aos algoritmos, quando se entende que são “tecnologias
da inteligência, que interpretam e organizam informações em simbiose com a nossa estrutura
mental”, sendo modelos que “emulam, estendem ou amplificam o poder de nossas mentes” (DE

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KERCKHOVE apud DI FELICCE, 2009, p.64). Aprofundar os estudos em estratégias e


variações de aproveitamento do ambiente virtual nos permite compreender melhor esse espaço
ainda tão pouco explorado, mas que oferece possibilidades sem fim de uso.
Como aponta Di Felice (2012), “o advento das redes sociais digitais e as suas
implicações para as transformações das nossas sociedades nos desafiam a buscar novas teorias
interpretativas capazes de narrar o dinamismo contemporâneo”. O objetivo do presente trabalho
é observar, ainda que de forma não conclusiva, e ainda em desenvolvimento, sobre o mundo
mediado por algoritmos; especialmente os sistemas lógicos de recomendação.
Buscamos entender essas ações de recomendações, transformadas em publicidade e
adequações ao perfil de cada usuário (como capa do aplicativo e trailer que aparecem de forma
automática no próprio app). Entender como essas ações envolvem e engajam o usuário-
espectador nas publicações que remetem aos programas e analisar como esse tipo de estratégia
promove a interatividade com o público é o questionamento central aqui proposto. Pierro (2018)
aponta que com o “advento do Big Data, o barateamento da coleta e do armazenamento de
quantidades gigantescas de informações, deram aos algoritmos a possibilidade de identificar
padrões imperceptíveis ao olhar humano em atividades de todo tipo”, como é o caso das
recomendações oferecidas pela Netflix para seus usuários, através do critério de “relevância”,
em uma escala de 0% a 100%, e também por indicações diretamente correlacionadas com
conteúdos já assistidos, “porque você assistiu a ...” e uma lista de recomendações de títulos
semelhantes.
A recomendação por conteúdos já assistidos se mostra ser uma classificação simples, já
que conteúdos podem ser pesquisados na plataforma também por gênero, como infantis, ação,
aventura, drama, dentre outros. Além do fato de séries médicas terem clara relação com outras
séries médicas, assim como séries que remontam a períodos históricos sigam o mesmo padrão
de correlação com séries do mesmo tipo. Já o critério de “relevância” para a recomendação
remonta a algo mais complexo. As dinâmicas de dados mostram experiências acumuladas, são
padrões de comportamentos que, apesar de variarem de pessoas a pessoa, mostram escolhas
que podem ser repetidas e padronizadas em sua individualidade. São essas informações que o
algoritmo capta, traduz e retorna para o usuário em forma de recomendação.

Os algoritmos na vida cotidiana


Ainda Pierro (2018) ressalta que os algoritmos e sua complexidade são “sistemas
lógicos que sustentam os programas de computador e têm impacto crescente no cotidiano”. Os
algoritmos são repetições matemáticas de padrões, com objetivo de resolver um problema,

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chegar a um resultado ou realizar uma tarefa automática. É a menor partícula de um processo


computacional e direciona muitos dos resultados que vemos atualmente em publicidade e
recomendações no âmbito virtual (PIERRO, 2018).
Os algoritmos são sequências de comandos bem definidos, com o uso de termos
matemáticos e de lógica, que seguem um fluxo pré-determinado em todas as suas variáveis e
que tem um fim previsto, um momento finito (não é cíclico). Quando a solução é encontrada, o
conteúdo daquele resultado é convertido na linguagem de programação, para ser lida pelos
sistemas e executada. E “cada passo é traduzido em linhas de código, com comandos
necessários para a sua execução. Há algoritmos com milhões ou até bilhões de linhas de código”
(PIERRO, 2018). Algum deles, inclusive, tão complexos, que são capazes de desenvolver
outros algoritmos, modificando códigos de programação feitos anteriormente por humanos.
Para que os algoritmos sejam eficientes, é necessário que se tenha um grande volume
de dados a serem interpretados e analisados e quanto mais variados o possível, melhor. Com o
barateamento e a possibilidade de armazenamento de quantidades gigantes de dados, tem-se o
advento do Big Data; essa massa de informação, humanamente impossível de ser analisada dá
aos algoritmos sequências de comportamentos, imagens e ações que geram padrões possíveis
de serem codificados em algoritmos. Após analisar de forma computadorizada tais dados e
definir o objetivo do algoritmo (um problema central) é iniciada a construção da sequência
lógica de passos que vai culminar em um resultado, a resolução do problema.
Entregamos diariamente infinitos dados sobre nossos desejos de compras, nossas
práticas de leitura, hábitos de consumo de audiovisual e preferências, nos mais diversos sites,
redes sociais e aplicativos acessados a todo momento. Essas informações compõem o Big Data
e fornecem às companhias detentoras desses dados padrões de comportamentos e desejos
comerciais que podem se converter em vendas, caso sejam analisados de forma
mercadologicamente proveitosa.
Mas como podemos ver esses algoritmos na rotina? A todo tempo que estamos
acessando conteúdo online diversas informações estão sendo recolhidas, mas diversas delas
estão sendo oferecidas de forma personalizada a nós. É o que acontece quando após uma
pesquisa de determinado produto online, uma mesa, por exemplo, essa mesma mesa e outras
variáveis de moveis e produtos semelhantes apareçam em publicidades no Facebook, em
aplicativos com anúncios e em vídeos no YouTube. E não só quando estamos acessando o
conteúdo, mas ao darmos permissão para os mais variados aplicativos utilizarem as câmeras,
microfones e GPS de smartphones, smartTVs, tablets, entre outros, eles estão a todo tempo

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coletando informações que serão utilizadas para compor o Big Data, com objetivo de converter
em mais consumo e uma experiência guiada do usuário.
Na rotina os algoritmos podem estar na base de dados do Facebook, por exemplo, que
personaliza o feed de cada usuário de acordo com as interações realizadas, os gostos
demonstrados, as seleções feitas pelo próprio usuário e o que a chamada “bolha” está
consumindo naquele momento. É o caso também de aplicativos de recomendação de músicas e
vídeos, como Spotify e YouTube, que se amparam em uma gigantesca base de dados de
usuários para recomendar novas músicas, playlists e vídeos que podem interessar; nem sempre
com relação direta ao conteúdo que está sendo consumido naquele exato momento, mas que se
mostrou um padrão de comportamento durante a análise da base de dados.
Mas não só no âmbito virtual que esses algoritmos são aplicados, eles podem ser
utilizados, por exemplo, na área da saúde, ao conseguir identificar, via inteligência artificial, a
presença de doenças e mutações em células do corpo. Isso só é possível porque o sistema
absorveu e padronizou diversas imagens de células saudáveis e doentes, gerando um padrão de
comportamento que pôde ser traduzido e convertido em um algoritmo que percorre o fluxo do
processo algorítmico toda vez que analisa uma nova imagem de células de pacientes. Pierro
(2018) cita o caso da startup Projeta Sistemas, de Vila Velha (ES), que criou o sistema
computacional chamado “Olho do Dono”, que é capaz de fornecer o peso de bois através de
imagens 3D dos animais, minimizando desgaste no animal e custos de transporte para a
pesagem. O sistema criado pela empresa é ancorado em uma vasta base de dados com imagens
de bois e seus respectivos pesos, alimentando os padrões que a empresa precisa para criar um
algoritmo de qualidade, com eficácia e índice de acerto cada vez maior
Informação acumulada é o poder da era do Big Data e dos algoritmos. Os padrões
automatizados só são possíveis de serem criados quando a base de dados é vasta e corresponde
à realidade de quem utiliza o espaço. Caso contrário, o algoritmo pode criar um falso resultado,
gerando prejuízos financeiros e erros de previsão que podem custar alguns milhares de reais.

O fluxo comunicacional
Di Felice (2012) apresenta o conceito de ecossistema, importado da biologia, mas que na
base conceitual exprime a ideia de um “conjunto de relações e de fluxos não apenas entre
organismos vivos, mas entre um conjunto de elementos e de realidades em contínua
comunicação” (DI FELICE, 2012, p.11). A alteração do fluxo comunicacional já é perceptível,
como aponta Ferreira (2014), ao abordar o fluxo bilateral na relação entre as tradicionais formas
de produção de conteúdo audiovisual para TVs públicas (emissor x receptor) e a presença das

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TVs atuando no ciberespaço. Di Felice, porém, vai além apresentando um “modelo de


circulação das informações em rede, no qual todos os [inter]atores desenvolvem
simultaneamente a atividade midiática de emissão e de recepção”, no qual há a alteração da
prática comunicacional e o significado do ato de comunicar. O conceito de ecologia
comunicacional, apresentado pelo autor, também importado do campo de estudos das ciências
biológicas, pressupõe um experienciar em rede, “isto é, estar inside, imerso nela, tornando-se
parte integrante comunicativa – um comembro” (DI FELICE, 2012, p.13). A ideia que perpassa
essas abordagens teóricas do ato de comunicar é graficamente representada por uma infinidade
de redes agregativas que associam grupos e coletivos compostos por atores de diversas
naturezas. A dinâmica não é centralizada, descaracterizando o modelo tradicional “emissor x
receptor” que marcou a história das mídias de massa (TV, cinema, teatro, jornais, rádios, etc) e
prescinde de conexão com quaisquer pontos da rede, independente do posicionamento dos
atores, não centralizando informação alguma, caracterizando uma arquitetura interativa, dando
a cada um dos membros poder comunicativo semelhante.
A arquitetura interativa experienciada nas redes permite a quebra de hierarquias,
incentiva uma comunicação multilateral, e reforça, ainda mais, a ideia de fluxo e conexão
constantes que modificam todo o fazer social nos âmbitos mais variados, como a arte, a
economia, a política, a publicidade, a comunicação e tantos outros mais. O conceito de cultura
da convergência (JENKINS, 2009) elucida de forma importante a ideia de fluxo entre mídias e
de conteúdo. A conversação entre as mais diversas mídias, cada uma delas sendo utilizada em
seu potencial de suporte de conteúdo, fazem surgir novas formas de comunicar, de
entretenimento e de produção de informação. O ambiente de redes delineia-se, em nível teórico
como um importante ambiente de análise, não apenas sobre a atual dinâmica comunicacional,
mas também sobre a nossa sociedade e os grupamentos sociais praticados.
Recuero (2009) ressalta que a comunicação mediada pelo computador amplifica a
capacidade de conexão, permitindo o surgimento de redes que conectam não só máquinas e
dispositivos, mas pessoas. O Facebook, por exemplo, assim como as demais redes digitais de
comunicação, apresenta uma extrapolação das relações sociais que são praticadas no “offline”5,
por vezes retomando conexões, fortalecendo laços e criando relações interpessoais, de comércio
e troca de experiências originadas no âmbito digital.
Os algoritmos desempenham, na cultura digital, o papel de conectores. Em primeiro
lugar, atuam como um filtro, selecionando que informações do Big Data são importantes e

5
Termo usado em oposição ao conceito de “virtual, online”. Abolimos aqui a dicotomia entre real versus virtual,
pois não cabe, na ideia do fluxo comunicacional, tal separação.

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relevantes em termos de padrões comportamentais. Após isso, as sequências lógicas de códigos


são capazes de criar, guiar e movimentar uma demanda de informação que, caso não existissem
os algoritmos atuando em determinado espectro, aquela dinâmica comunicacional não existiria.
É o caso da Netflix, por exemplo, e seu sistema de recomendação, que se utiliza de algoritmos
para recomendações com base em sua vasta base de dados com informações sobre o que está
sendo consumido, quando, como (através de qual dispositivo), e com que frequência. Por meio
do cruzamento de dados é possível recomendar ao usuário A o produto B, já que outros n
usuários consumiram, assim como o usuário A, os produtos C e D, e também gostaram de B.

O cruzamento de dados e a dinâmica comunicacional


A comunicação mediada é característica primeira da era digital, seja a mediação por
aplicativos, por computador, por meios eletrônicos, smartphones. As relações sociais
atravessam a mediação, as interações ocorrem em grande volume e escala na rede, gerando
movimentos sociais, políticos e de entretenimento, como os memes. Dijck (2013) mostra que,
estar desconectado da rede pode significar uma ausência de importantes dinâmicas da vida
pública.
As dinâmicas, sejam sociais ou comunicacionais estão a todos instante se renovando. São
novos fazeres comunicacionais que em determinado instante funcionam, como o meme – que
em contextos específicos possuem o humor. Algumas dessas dinâmicas se perpetram e acabam
se fixando na rotina do usuário, por serem extremamente eficientes e de complexa construção,
como é o caso da transmídia. Para Jenkins (2009, p.49) a narrativa transmídia “refere-se a uma
nova estética que surgiu em resposta à convergência das mídias – uma estética que faz novas
exigências aos consumidores e depende da participação ativa de comunidades de
conhecimento”. Para o autor, é o ato de associar dois ou mais conteúdos extremamente distintos
de forma efetiva; fazer uma deixa no caminho padrão da narrativa. Caso o consumidor não faça
as conexões necessárias, não há prejuízo, porém, caso o usuário se decida por aceitar a proposta,
o caminho toma novas vertentes, que possibilitam uma visão plural do objeto. O envolvimento
do público, apesar de ser esperado, previsto e, por vezes guiado, não perde seu caráter de
espontaneidade, justamente por ser “condição e uma das consequências das estratégias
transmídias” (FECHINE, 2014, p.12).
A interação mediada por computador é aspecto importante do cruzamento de dados
para a dinâmica comunicacional. Scannell (2000) aponta três classificações e importantes
aspectos da interação mediada. São elas: determinados tipos de mensagens só possuem sentido
para pessoas específicas. Uma mensagem de agradecimento, o vídeo da primeira palavra de um

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filho, a fotografia de um casal. Essas mensagens não são produzidas para o consumo coletivo,
mas para pessoas mais próximas, amigos e familiares a quem as mensagens dizem respeito.
Elas são decodificadas por quem possa vir a ter acesso a elas, mas essas produções só significam
algo para os receptores previstos no processo produtivo. Scannell denomina essas mensagens
como “for-someone messages6”, que podem ser reconhecidas na rotina diária como uma
ligação, mensagem ou email. Diferentemente das mensagens produzidas pela comunicação
tradicional de massa - TV, rádio, jornais, cinema, revistas - que o autor chama de “for anyone7”,
são conteúdos produzidos pensando em apenas uma direção de fluxo, direcionadas a ninguém
em particular, mas ao público em geral. Com advento dos fluxos múltiplos de mensagens e da
cultura de mídias foi necessário falar “com você”. O traço característico dos conteúdos
produzidos no contexto multiconectado do ciberespaço são possuírem um direcionamento “for-
anyone-as-someone”. São programas, falas, cortes de câmeras, encenações produzidas para o
público em geral, mas que dialogam com “você em casa”, “você que está assistindo”, “você
está no comando”. Nas redes, a atuação da Netflix no Facebook e Instagram é dotada de
comunicação “for-anyone-as-someone8”, quando produz conteúdos que fazem sentido para um
determinado público heterogêneo, mas que se sente parte de algo e peça única quando recebe
material que dialoga com a sua vivência particular e experiências anteriores de consumo de
material da plataforma. É sempre borrada a fronteira do conteúdo que está sendo produzido “for
anyone” ou “for someone”.
Assim como a comunicação mediada pode apresentar o perfil “for-anyone-as-someone”
os algoritmos desempenham também o papel de criar um espaço voltado especificamente para
aquele usuário que está, alí no momento, ligando a tv, o computador ou o smartphone para
assistir à Netflix.

Sistema de recomendação Netflix


Os serviços de transmissão de audiovisuais ocupam um espaço considerável no
comportamento do usuário da web 2.0. A Netflix, pioneira no Brasil a oferecer conteúdo via
streaming já conta com mais de 93 milhões de assinantes em mais de 190 países assistindo a
125 milhões de horas de filmes e séries por mês, incluindo séries originais, documentários e
filmes. Em 2016 e 2017 a companhia se destacou pelo alto volume de produções próprias e
agora, em 2018, vem lançando semanalmente mais e mais títulos com o selo “Original Netflix”.

6
Mensagens para alguém, em tradução livre.
7
Para qualquer um, em tradução livre.
8
Para qualquer pessoa, como se fosse para alguém, em tradução livre.

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No total, já são 753 produções catalogadas como Originais Netflix9, dentre filmes,
documentários, animações, séries, mangás, shows de stand-up comedy, reality shows, dentre
outros.
Contar histórias é característico dos seres humanos. Desde a época das cavernas,
passando pela imprensa e chegando à televisão, temos o “storytelling10”. “A Netflix está
localizada na fronteira entre o storytelling e a internet”11 e “o pilar da distribuição de conteúdo
é o sistema de recomendação direcionado, que ajuda os membros a encontrar vídeos para
assistir a cada sessão12” (GOMEZ-URIBE; HUNT, 2015, em tradução livre, p.13:1). Os autores
dessas declarações são Carlos Gomez-Uribe, vice-presidente da Netflix e responsável pela
personalização de algoritmos, e Neil Hunt, diretor de produtos Netflix. É uma valiosa fonte de
informação sobre como os algoritmos funcionam dentro da plataforma.
Os autores relatam que não há apenas um algoritmo, mas uma coleção de códigos e
sistemas que permitem criar, para cada usuário, uma “Experiência Netflix” diferenciada. Estar
navegando no ciberespaço é estar o tempo todo escolhendo o que consumir, seja um link, um
vídeo ou um texto, o tempo todo os hiperlinks estão aparecendo na tela e lançando estratégias
para chamar a atenção do usuário com o objetivo de clique. Uma das grandes mudanças da
Cultura de Massa para a Cultura das Mídias foi a possibilidade de escolha, o advento da
experiência individualizada com a TV à cabo e as locadoras de DVD, por exemplo. A Cultura
Digital é - além da força da interatividade e o gigante volume de informações - o poder da
escolha de como, quando e por que caminhos transitar entre essas informações. A Netflix
oferece isso, é um vasto catálogo com produções variadas, como filmes, séries, documentários,
animações, stan-up comedys; a plataforma oferece um valor fixo de assinatura e o usuário pode
assistir quando, onde, como e quantas vezes quiser.
Personalizar cada vez mais o algoritmo é o que faz do sistema de recomendações da
Netflix o “key pillar13” da companhia; quanto menos tempo o usuário passa tentando escolher
algo, melhor para a plataforma; e melhor ainda quando o consumidor permanece assistindo os
produtos ali dispostos. A plataforma não está interessada em informações como idade, gênero
e renda social, padrões de classificação que não representam mais as possibilidades de escolha
de conteúdo e personalização. O interesse do sistema de recolhimento de dados da Netflix é

9
Contagem manual de dados em https://www.netflix.com/br/originals. Acessado em 05/09/2018.
10
Em tradução literal, “contar histórias”. Ato de narrar de forma envolvente, desenvolvendo uma história.
11
“Netflix lies at the intersection of the Internet and storytelling” (GOMEZ-URIBE; HUNT, 2015, p. 13:1)
12
“A key pilar for our product is the recommender system that helps our members find videos to watch in every
session” (GOMEZ-URIBE; HUNT, 2015, p. 13:1)
13
“Pilar chave” em tradução livre, ou chave-mestra.

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saber que títulos chamam a atenção do usuário dentro da própria plataforma (seja para assistir,
seja para saber mais sobre), em que período do dia a série ou o filme estão sendo consumidos,
que dia da semana, em que dispositivos e com que frequência. Também interessa saber o local
em que o produto foi descoberto, se por recomendação do sistema de porcentagem de indicação
da plataforma, se por procura aleatória, se por classificações como gênero, nacionalidade, entre
tantas outras possibilidades de descoberta de produções e títulos. O sistema de recolhimento de
informações é tão complexo e detalhista que é importante “até mesmo as recomendações que
foram mostradas, mas não consumidas em cada sessão14” (GOMEZ-URIBE; HUNT, 2015, em
tradução livre, p.13:2).
Além desses sistemas de classificação, a interface apresenta ainda sugestões “em alta”,
que podem ser os lançamentos da época ou ainda agendamentos, como natal e dia dos
namorados, que fazem o consumo de produtos de nicho aumentar.
Os assinantes da Netflix não permanecem na plataforma exclusivamente pelo algoritmo
de recomendação. A equação é bem mais complexa e comporta inúmeras outras variáveis, como
indicação de amigos, tempo disponível para consumir itens do catálogo e até mesmo
identificação com as produções disponibilizadas. A facilidade de ser um assinante Netflix,
assim como deixar de ser, mostra que a companhia está interessada em oferecer uma
Experiência Netflix” de qualidade, personalizada, e que faça sentido para o consumidor.
Consumir audiovisual é parte da rotina e da dinâmica comunicacional desde o surgimento e
popularização do cinema, assim como da TV. A internet veio potencializar o espraiamento, e
as opções disponibilizadas no ambiente digital são de alta qualidade e complexidade, como a
Netflix e o YouTube. No atual cenário comunicacional a popularidade, expansão e o impacto
das redes sociais refletem a sociedade e suas transformações do século XXI (boyd, 2014).

Conclusão
A hipótese principal que norteia atualmente nossas pesquisas é que “ações de
distribuição e circulação de produtos Netflix alteram a dinâmica comunicacional”,
proporcionando ao usuário-consumidor uma experiência diferenciada de contato com os
objetos de consumo. Os algoritmos, inicialmente não previstos nessa equação, vieram somar
nas considerações e na compreensão geral do espaço hiperconectado que habitamos.
Os algoritmos alimentam e geram uma sociedade em fluxo constante. A troca
informacional é a moeda do século, e ter informação é ter poder. E não é apenas por input

14
“(…) and even the recommendations that were shown but not played in each session” (GOMEZ-URIBE; HUNT,
2015, p. 13:2)

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humano que as conexões acontecem; o poder da cultura digital e das máquinas é real e a
dinâmica se altera por conta de todas as contribuições ao processo. O advento do Big Data
proporcionou que grandes quantidades de informações pudessem ser processadas e
interpretadas; tais informações, avulsamente, são só números e dados desconexos. Mas com a
análise computadorizada, visando gerar padrões, os algoritmos são possíveis e influenciam a
rotina de tal forma, que não se consegue mais andar em uma cidade desconhecida sem o uso de
mapas de GPS apontando caminhos, caminhos estes que foram traçados por muitas outras
pessoas que ali passaram antes.
Cada interação realizada entre pessoas de uma mesma rede, é um sinal de aquilo
interessa. De que a fonte de informação interessa. E essa linguagem os algoritmos entendem.
Estar imerso no habitar comunicacional da era dos fluxos é estar em contato constante com
informação a todo instante, processando, junto com aplicativos, redes sociais e sistemas que, a
cada dia mais, estão imersos na nossa vivência enquanto seres humanos.

Referências

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A CULTURA DA CONECTIVIDADE NA EXPERIÊNCIA TELEVISIVA:


A Copa do Mundo na TV, nas ruas e nas redes1

Luiza de Mello Stefano2


Universidade Federal de Juiz de Fora

Resumo

Com mais de um bilhão de horas consumidas por telespectadores e 1,7 bilhão de impressões no
Twitter (KANTAR IBOPE MEDIA, 2018), o fenômeno da social TV se destacou durante a
Copa do Mundo de 2018. O ato de compartilhar e debater a programação televisiva nas redes
sociais, em especial no microblog, mostrou-se consolidado no consumo midiático
contemporâneo. Através de uma análise quantitativa e comparativa acerca da audiência
televisiva e do engajamento nas redes durante os jogos da Copa do Mundo, buscou-se entender
como a cultura da conectividade reconfigura e complexifica a experiência televisiva. A
repercussão que o torneio mundial obteve revela que o consumo síncrono entre TV e redes
sociais tem se tornado cada vez mais indissociável. Por outro lado, os dados analisados
apontaram divergências que nos revelam outras perspectivas a respeito do cenário da social TV
no Brasil.

Palavras-chave: Conectividade; televisão; redes; Copa do Mundo; social TV.

THE CULTURE OF CONNECTIVITY IN TELEVISION EXPERIENCE:


The World Cup on TV, on the streets and on the networks

Abstract

With more than a billion hours consumed by viewers and 1.7 billion impressions on Twitter
(KANTAR IBOPE MEDIA, 2018), the social TV phenomenon stood out during the 2018
World Cup. The act of sharing and discussing television programming in social networks,
especially in the microblog, was consolidated in the contemporary media consumption.
Through a quantitative and comparative analysis of the television audience and network
engagement during the World Cup games, we sought to understand how the connectivity culture
reconfigures and complicates the television experience. The repercussion that the world
tournament has achieved reveals that the synchronous consumption between TV and social
networks has become increasingly inseparable. On the other hand, the analyzed data pointed to
differences that show us other perspectives regarding the social TV scenario in Brazil.

Keywords: Connectivity; television; networks; World Cup; social TV.

1
Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Comunicação e Culturas Digitais do XI Encontro dos Programas
de Pós-Graduação em Comunicação Social de Minas Gerais, 18 e 19 de outubro de 2018.
2
Mestranda em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de
Juiz de Fora, luizamellost@gmail.com. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

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Introdução
Estamos vivenciando uma passagem da ideia midiática de comunicação para as
arquiteturas digitais, onde prevalecem a fundamentação complexa de ecologias conectivas (DI
FELICE, 2017). A digitalização e o surgimento de novas tecnologias fazem com que a
comunicação digital e em rede, com forte influência da cultura participativa, evolua para uma
cultura da conectividade. Segundo Van Dijck (2016), as características da conectividade se
materializam no surgimento de tecnologias de codificação que alteram a natureza das conexões,
assim como da criação e interação humana. Trata-se de um ecossistema no qual não é possível
estudar as plataformas de forma individual: os microssistemas se desenvolvem em conjunto,
hiperconectados, e reagem de maneira constante com as modificações dos demais. O resultado
ainda é transitório, mas se faz presente de forma cada vez mais visível em nosso dia a dia, como
veremos neste estudo.
Para Di Felice (2017), a conectividade possibilita que qualquer tipo de superfície ou
objeto comece a se relacionar e interagir entre si, criando uma ecologia conectiva. Portanto,
constitui-se como uma condição habitativa, ou seja, vai além da transmissão de mensagem de
um ambiente/pessoa para outro(a), mas está imersa na nossa forma de ser e agir. Com isso, não
só seres humanos, mas plataformas, redes e dados também se conectam, fazendo surgir um
fluxo no qual “[...] não é possível reconstruir uma fonte de emissão única, ou reconstruir uma
direção única, pois cada internauta, em tais habitats, construirá, de forma autônoma e única, a
sua rota de navegação” (DI FELICE, 2017, p. 100). Levamos em consideração que o atual fluxo
comunicacional é fértil, ubíquo, conectivo e vai além da ideia da unidirecionalidade que
caracterizou o paradigma da radiodifusão ou da bidirecionalidade que se fez presente com a
cultura digital. O ecossistema comunicacional contemporâneo expõe um modelo de rede
distributiva onde não há centro ou totalidade, externo ou interno, mas que prevalecem conexões.
É neste contexto que a simbiose entre televisão e web se torna mais evidente e o lugar
do usuário mais complexo e multifacetado. Partimos do pressuposto de que as características
de tal cenário, com a proliferação das redes sociais, fazem parte da ação de assistir TV,
ocasionando na impossibilidade de dissociar as duas ecologias. Dessa forma, sobressai o
fenômeno da social TV, defendido por Prouxl e Shepatin (2012) como o ato de compartilhar,
debater e divulgar a programação televisiva de maneira síncrona nas redes sociais,
principalmente no Twitter.
Sob essa perspectiva, esta pesquisa propõe colocar em debate a forma como o
ecossistema comunicacional e a cultura da conectividade têm modificado a experiência
televisiva através de um objeto de estudo mundial e midiaticamente relevante: a Copa do

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Mundo de 2018. Segundo dados divulgados pelo Kantar Ibope Media3, o jogo de estreia do
Brasil gerou 66,9 milhões de impressões no Twitter, com pico de comentários no gol de
Philippe Coutinho. Se acrescentarmos todos os jogos da primeira fase obtemos mais de um
bilhão de impressões, sendo 35% referentes aos tweets específicos sobre a seleção brasileira,
com destaque para os termos “Brasil”, “Neymar” e “Coutinho”. Os resultados da pesquisa
demonstram a força que o evento da magnitude da Copa tem nas redes.

Consumo televisivo na cultura da conectividade


A realidade que se apresenta nos dias atuais se faz possível a partir do surgimento, há
quase uma década, do quarto modelo de internet (Internet of Thing) que carrega consigo
também o Big Data. Esta evolução da internet, na verdade, é um novo tipo de conexão, que
potencializa a interação entre ambiente, superfícies e objetos, e faz emergir uma nova ecologia
interativa comunicativa que associa e conecta atores humanos e não-humanos, seres bióticos e
abióticos, juntamente com redes, plataformas e arquiteturas, criando uma quantidade
incalculável de dados que também entram em fluxo. Tais perspectivas são apresentadas por Di
Felice (2012; 2017), que defende a emergência de uma sociedade complexa em contínua
transformação feita de fluxos comunicacionais e de interações homem-máquina. Para o autor,
o processo de digitalização fez surgir uma nova situação social que acaba transformando não
só as entidades humanas, mas todo o planeta. A natureza da interação, neste contexto, não é
determinada mais pelo ambiente físico, mas pelos modelos de fluxos informativos que
atravessam esses espaços e começam a habitar toda a biosfera. Essa condição torna-se
extremamente visível com o advento e difusão dos dispositivos de mobilidade que reconfigura
fortemente a comunicação.
Os conteúdos se expandiram das mídias – puramente um meio ou ambiente que emite
informação, e estão soltos, sem origem ou destino. A sociedade está tão conectada na atualidade
que a oposição entre online e off-line, real e virtual, perdem o sentido, assim como o termo
“mídia” - se considerarmos que no cenário contemporâneo qualquer superfície está conectada
e emite informação. “Mídia” é apenas uma das expressões que se mostram incapazes de analisar
a complexidade das nossas interações com o meio ambiente e dispositivos de conexão, e,
portanto, precisam ser repensadas e ressignificadas. Di Felice (2012; 2016) sugere falarmos em
dispositivos de conexões, ecologias ou arquiteturas, nomenclaturas mais adequadas e
compatíveis para que possamos interpretar as mudanças comunicacionais a partir do advento

3
Disponível em <https://www.kantaribopemedia.com>. Acesso em: 23 ago. 2018.

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das redes sociais digitais e dos dispositivos móveis. Em resumo, o que Di Felice argumenta é
que o processo de digitalização produziu uma nova cultura ecológica, em que
[...] os sistemas informativos geográficos atribuem ao lugar e às coisas uma nova
dimensão que não pode ser mais delimitada na localidade geográfica, topográfica e
material, nem na percepção desta por parte do sujeito, mas por um conjunto de fluxos
informativos e de interações que conectam o lugar, as coisas, a banco de dados,
linkando informações e alterado continuamente, conforme os circuitos escolhidos ou
atravessados por pessoas, fluxos informativos, dados etc., o sentido do lugar. (DI
FELICE, 2012, p. 4)

Tal proposta relaciona-se com o pensamento de Santaella e Lemos (2014), que


defendem que entidades humanas e não humanas ganham poder nas redes pelo número, em
extensão e estabilidade, de suas conexões. Enquanto Van Dijck (2016, p.60, tradução nossa4)
destaca que “a sociabilidade online é cada vez mais um resultado de uma coprodução entre
humanos e máquinas”. Para Santaella (2013, p.13), a fase ecológica da comunicação começa
nos anos 2000 com a difusão e popularização da internet, da web e das redes sociais. “A
ecologia das mídias consiste de tecnologias de informação e comunicação e de todas as
comunidades culturais a que elas dão origem e nelas se desenvolvem de acordo com os
protocolos, práticas, instituições e poderes que lhes dão forma e as dinamizam”.
Para Van Dijck (2016, p. 42, tradução nossa5) a comunicação em rede e a cultura
participativa evoluem para uma cultura da conectividade: “[...] uma formação imersa em
tecnologias de codificação cujas consequências excedem a arquitetura digital das plataformas”.
A essência do conceito reside na forma como as plataformas e arquiteturas digitais coexistem,
inter-relacionam e entram em simbiose constante, trocando informações, dados e fluxos a todo
momento. Para Di Felice (2017), a conectividade se apresenta como uma condição habitativa e
vai além da passagem de informação de uma pessoa para outra ou de um ambiente para outro,
mas está na nossa na forma essencialmente de ser e agir. Van Dijck (2016) elucida o surgimento
do que denominou de “ecossistema dos meios conectivos”, no qual microssistemas se
desenvolvem em conjunto e reagem de maneira constante com as modificações e estratégias
dos demais.
A sociabilidade, a criatividade e o conhecimento são tecidos no tecido do ecossistema,
onde todas as atividades de codificação e exploração da conectividade ocorrem em
um único campo dominado pelo espírito corporativo (VAN DICJK, 2016, p 268,
tradução nossa6).

4
“La socialidad online es cada vez más el resultado de uma coproducción entre humanos y máquinas”.
5
“[...] una formación inmersa en tecnologías de codificación cuyas consecuencias exceden la arquitectura digital
de las plataformas”.
6
“La socialidad, la creatividad y el conocimiento se trenzan en la tramadel ecosistema, donde todas las
actividades de codificación y de explotación de la conectividad ocurren dentro de un mismo ámbito dominado
por el espírity corporativo”.

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Pensando na natureza do que chamou de ecossistema dos meios conectivos, Van Dijck
propõe uma teoria que fosse adequada e nos permitisse entender de que forma as plataformas e
os usuários evoluíram. Para isso, o modelo proposto trata as plataformas tanto como
construções tecnoculturais quanto como estruturas socioeconômicas. Nessa abordagem, a
autora foca na análise de três pontos importantes: a tecnologia, os usuários e o conteúdo. Para
Van Dijck (2016), os atores tecnoculturais dificilmente conseguem se separar da estrutura
socioeconômica que as plataformas operam, ou seja, de suas propriedades, questões políticas e
modelos de negócio. Entretanto, todos esses elementos, apesar de serem significativos e
importantes para o que estamos chamamos de ecossistema digital conectivo, acabam
convergindo para um só ponto: o comportamento do usuário. Para a autora, o usuário tem um
papel extremamente importante: é complexo, multifacetado e cada vez mais guia as mudanças
feitas nas outras camadas e microssistemas. É a partir daí que surgem novos modelos de
negócio, com o objetivo de se adequarem à atual revolução das arquiteturas digitais,
redimensionando o foco nos usuários e em seus conteúdos e buscando formas de monetizar a
criatividade, atenção e a sociabilidade online (VAN DIJCK, 2016).
Imersa em tamanha complexidade linguística, conceitual e paradigmática, devemos
inserir o contexto dos meios comunicacionais, tanto os tradicionais quanto os emergentes,
coexistindo. Colocando o problema sob perspectiva do objeto dessa pesquisa, a televisão e a
experiência de assisti-la hoje se faz presente em um ambiente de fluxo comunicativo em rede,
descentralizado e distributivo.
Para chegarmos ao contexto em que a simbiose entre televisão e web se torna mais
evidente e impossível de ser ignorada, se faz necessário passar pelos demais modelos de
consumo televisivo, tais quais a TV broadcast, TV pós-network e TV expandida. A primeira
tem como particularidade o modelo de consumo com hora marcada, através de uma relação
few-to-many, ou no português “pouco para muitos”, na qual prevalece o fluxo unidirecional em
que o consumidor é visto como uma audiência massiva e o conteúdo é produzido e distribuído
unicamente por grandes conglomerados e empresas comunicacionais. Tal modelo, que surge na
chamada Cultura de Massa (século XIX), começou a dar lugar para aquele que ficou conhecido
como TV pós-network. Nessa etapa, a relação de produção e consumo altera-se para a
perspectiva many-to-many (muitos para muitos) na qual as barreiras entre mídia e consumidor
começam a se dissipar e as funções a se equipararem. O telespectador não é mais visto como
uma audiência puramente quantitativa e massiva, mas prevalece a figura do público segmentado
e que possui gostos, preferências e características específicas. Com o advento das redes sociais
digitais, o consumo vai além do appointment TV, ou televisão com hora marcada, sob influência

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unicamente do fluxo proposto pela grade de programação, mas se torna sob demanda com a
possibilidade do streaming e de um fluxo bidirecional. Neste contexto, a web e a TV começam
a pautar e influenciar uma a outra. Quando as práticas próprias do universo televisivo passam
a habitar também o ciberespaço, a TV se torna muito mais complexa: ela se expande e o
aparelho tradicional deixa de ser o único meio transmissor de conteúdo. Para Ferreira (2014, p.
124) “[...] a TV, ao passar para novas plataformas, se repete, mas também reconfigura, ainda
de maneira tímida”. Mas não é só o modelo televisivo que se modifica:
[...] as possibilidades destinadas ao interator abrangem decisões que antes ficavam
fora da sua alçada: a programação de conteúdo sob demanda, o acesso à rede, a
postagem de comentários, ou até mesmo o envio de conteúdos pelo próprio interator
(CAPANEMA, 2008, p.199).

O modelo da TV pós-network tem início com a Cultura Midiática, nos anos 90, e se
firma na Cultura da Convergência, nos anos 2000. Jenkins (2009) defende que o paradigma da
convergência dos meios representa uma transformação cultural ao depender fortemente da
participação ativa dos consumidores, que antes eram passivos, silenciosos, invisíveis e
previsíveis, e tornam-se migratórios, barulhentos e conectados socialmente (JENKINS, 2009).
A transição do consumidor “passivo” para o consumidor engajado, cada vez mais interessado
no processo de produção dos programas televisivos, contribuindo e participando ativamente,
caracteriza a cultura participativa. O sujeito consumidor de conteúdo passa a ser chamado de
interator (MACHADO, 2007). Para Cádima (2006, p. 113), trata-se de um novo paradigma
comunicacional e experimental que dá “[...] a cada cidadão a capacidade de ultrapassar a sua
condição limitada de consumidor ou de espectador e passar a ser um destinatário, um sujeito
operativo, reflexivo, participativo”.
Todavia, acreditamos que o momento contemporâneo requer novas formas de pensar a
relação entre produtor-receptor, o fluxo de conteúdo, as formas de consumo e as características
do espectador. Surge então a TV expandida e outras diversas nomenclaturas que tentam traduzir
o novo momento televisivo que se apresenta imerso no ecossistema comunicacional conectivo.
Neste momento a relação entre produtor e consumidor que não era recíproca, se expande
para a perspectiva all-to-all (todos para todos), ou seja, se torna horizontalizada e extremamente
democrática em que todos os atores envolvidos exercem a função de consumidor, produtor e
podem circular e distribuir conteúdo de forma síncrona e indiscriminada. É da bilateralidade da
comunicação, ou seja, o contato das arquiteturas digitais com os meios de comunicação
tradicionais que surge a evolução da audiência. A internet, a web 2.0 e o ambiente digital coloca

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o poder nas mãos dos usuários, que participam ativamente da cultura e processos
comunicacionais.
Para Santaella (2013, p. 316) “[...] as mídias sociais abrem espaço para a criação de
ambientes de convivência instantânea entre as pessoas. Instauraram [...] uma cultura integrativa,
assimilativa, cultura da convivência que evolui de acordo com as exigências impostas pelo uso
dos participantes”. Os usuários atribuem sentido às plataformas ao procurarem construir laços
e comunidades em ambientes colaborativos e participativos. O fenômeno da convergência
midiática (JENKINS, 2009) que coloca em diálogo tradicionais e emergentes meios de
comunicação e suas formas de produção e consumo, explicita ainda mais as relações
contemporâneas de sinergia entre diversas arquiteturas e redes, proporcionando aos
consumidores diferentes maneiras de criar sua própria experiência midiática.
O perfil desse consumidor vai além das delimitações que caracterizam a audiência e o
público. Eles se tornam engajados, complexos, participativos e críticos, portanto, mais
semelhantes ao perfil dos fãs.
[...] aquele indivíduo, que antes se encontrava mimetizado à massa (culturas de massa)
e posteriormente aos grupos segmentados (culturas das mídias), emerge, pela primeira
vez, na pós-televisão, em sua individualidade. Seu papel passa a ser exercido de forma
personificada, na fronteira entre o amador e o profissional, e, desse modo, as novas
mídias passam a se relacionar com ele (CAMPANEMA, 2008, p.199).

A autora acredita que o processo de hibridização da televisão tradicional acaba


agregando novos suportes e modelos que “convergem em um único ponto: são digitais e em
rede” (CAMPANEMA, 2008, p. 194). A TV expandida reconfigura a experiência televisiva ao
possibilitar novas formas de participação, colaboração e de se consumir informação. Jenkins,
Ford e Green (2014) descrevem o atual momento televisivo como
uma passagem de um modelo baseado em assistir TV com hora marcada para um
paradigma baseado no engajamento. Sob o modelo de compromisso, os espectadores
comprometidos organizam suas vidas para estar em casa em determinado horário a
fim de assistir aos seus programas favoritos (JENKINS; FORD; GREEN, 2014, p.
152).

Essas emergentes possibilidades alinham o apointment TV do primeiro paradigma


comunicacional com o consumo sob demanda e streaming proposto no modelo da TV pós-
network e fazem surgir uma espécie de consumo ubíquo, presente em toda parte. Esse novo
modo de distribuição bem como o de circulação do audiovisual diante da conectividade
reconfigura completamente o fluxo televisivo unilateral que caracterizou a era da radiodifusão
(WILLIAMS, 2016). Ele vai além dos sentidos, lados, caminhos e torna-se conectivo,
distributivo e descentralizado.

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Para entendermos as características desse fluxo, recorremos as definições de rede


propostas por Recuero (2009). De acordo com a autora, diferente da rede centralizada que se
forma em torno de um nó central por onde acontecem e passam a maior parte das conexões, a
rede descentralizada possui vários centros que são constituídos por diversos grupos pequenos
de nós; o fluxo conectivo se faz presente nesse tipo de rede, “onde todos os nós possuem mais
ou menos a mesma quantidade de conexões” (RECUERO, 2009, p. 57), e, portanto, não há
hierarquização entre eles.
É importante destacar que tais modelos de consumo televisivo que apresentamos, apesar
de serem sequenciais, não se tratam de perspectivas evolutivas, ou seja, o surgimento de um
novo paradigma, seja ele no que diz respeito ao consumo, produção ou fluxo, não elimina o
antecedente. Na verdade, a grande mudança que a experiência televisiva revela na
contemporaneidade é a coexistência dos diversos modelos de recepção, circulação, distribuição
e perfil do telespectador. Temos que analisar a TV não em um processo evolutivo linear, mas
ecológico ecossistêmico.
Em resumo, ao falar de experiência televisiva na cultura da conectividade é preciso
destacar: 1) a aproximação entre emissor e receptor; 2) a interação entre ecologias, redes,
fluxos, dados e arquiteturas digitais; 3) a personificação de fluxo e ressignificação do consumo;
4) participação ativa, engajada e crítica dos fãs e; 5) a impossibilidade de dissociar TV e web.
No ecossistema comunicacional conectivo não há separações para que a TV saia de um
ambiente e se expanda para outro. Há o cruzamento e ligação entre as duas ecologias de forma
complexa. A televisão permanece em um ambiente conectado, em um fluxo conectivo,
recebendo influência constante dos demais atores presentes no ecossistema.

Experiência televisiva entre fluxos: social TV


Colocaremos em diálogo a ideia de fluxo que surge no cenário televisivo a partir da
perspectiva apresentada por Raymond Williams (1974) que caracteriza o fluxo presente no
paradigma da radiodifusão baseado na grade de programação. A ruptura do fluxo sequencial,
unidirecional e regular a partir da popularidade da internet, das redes sociais e novas
tecnologias, amplifica a capacidade de conexão, permitindo o surgimento de arquiteturas
digitais que não conectam somente redes, mas sobretudo pessoas, dados, conteúdos e os
próprios fluxos. No atual ecossistema comunicacional conectivo, em que TV e internet entram
em simbiose, com intensa troca de informações, as percepções de distância, linguagem e cultura
se transformam de forma ágil e dinâmica. As ideias de compartilhamento, participação e
conectividade são repensadas e potencializadas.

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O fluxo unidirecional imerso na experiência televisiva tradicional é ressignificado para


uma perspectiva bilateral e passa a fluir entre as duas ecologias (TV e internet), até o momento
em que as fronteiras entre ambas se dissipam, fazendo emergir o que estamos chamando de
fluxo conectivo. Tal conceito se apresenta ainda em discussão e amadurecimento, porém,
particulariza-se na sua fluidez e ubiquidade, fazendo com que a noção de movimento, presente
na essência do conceito de fluxo, apareça em seu sentido mais puro. Diferente das perspectivas
anteriores, o fluxo conectivo é descentralizado e materializado em sua própria circulação;
extrapola as extremidades entre os meios de comunicação e coabita as diversas formas de
consumo e produção contemporâneas.
O ecossistema comunicacional, a cultura da conectividade e o paradigma
contemporâneo imerso em tais fluxos, têm modificado a experiência televisiva. Diante dessa
realidade que nos apresenta é possível identificar fenômenos, novas formas culturais e
particularidades no ato de assistir TV, que cada vez mais têm se tornado evidente e parte
fundamental do consumo cotidiano. No momento em que televisão e web entram em diálogo,
emerge o fenômeno da social TV.
A social TV manifestou-se a partir da nova relação de complementariedade e
conectividade entre televisão, redes sociais e o público (HILL, 2012), e se refere ao ato de
compartilhar, debater e divulgar a programação televisiva de maneira síncrona nas redes sociais,
principalmente no Twitter. O público, usuário e telespectador começam a participar
efetivamente da narrativa e todos os processos comunicacionais, que vão desde a produção,
distribuição, circulação até consumo e recepção do conteúdo.
O fenômeno não é uma novidade, mas se potencializa a partir do desejo do público de
interagir, de socializar e a buscar informações extras. Teixeira e Ferrari (2016, p. 246) defendem
que tais práticas se destacam no cenário de convergência com a internet e que a social TV “se
refere ao hábito de postar comentários nas redes sociais sobre aquilo que está sendo assistido”.
O fenômeno torna a experiência de assistir TV mais complexa e interativa e ajuda a guiar o
usuário para assistir à TV e o telespectador a consumir conteúdo na internet e, mais do que isso,
contribui para que tanto usuários quanto telespectadores sejam, no final das contas, a mesma
coisa, consumindo ambas os conteúdos de forma síncrona e deslizando por esse fluxo de
maneira natural e quase imperceptível. Para Fechine e Cavalcanti (2017, p. 197), a “[...] TV
Social proporciona uma fruição de caráter mais coletivo numa temporalidade e sequencialidade
de propostas pela emissora, o que favorece, evidentemente, o modo histórico de organização da
TV baseado numa grade de programação”. A reconfiguração da experiência televisiva se

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potencializa a partir desses fenômenos, que fazem com que falar, debater e comentar sobre TV
se torne tão importante e interessante quanto assisti-la.
Neste contexto, o Twitter, criado em 2006 em resposta à mobilidade e a difusão dos
dispositivos móveis, se populariza mundialmente em pouco anos e se consolida como a rede
social preferida para se discutir televisão (SANTELLA; LEMOS, 2014; VAN DICJK, 2016;
PROUXL; SHEPATIN, 2012). A plataforma se porta como um espaço colaborativo, em caráter
conversacional no qual a temporalidade é o que impulsiona a evolução do microblogging como
linguagem específica (SANTELLA; LEMOS, 2014; VAN DIJCK, 2016). As autoras destacam
também que o usuário do Twitter, especificamente, possui e desenvolve habilidades e
competências específicas e diferenciadas comparadas aos usuários de outras redes sociais. Isso
se deve a riqueza da ecologia cognitiva da plataforma e complexidade dos fluxos
informacionais.
A plataforma construiu uma linguagem que foi disseminada para outros ambientes e
contextos na cultura digital e não somente no meio online, mas também para a TV que, por sua
vez, tem se apropriado da dinâmica, estética, linguagem e do engajamento que o Twitter
propicia. Segundo Sigiliano (2017), o uso das hashtags7 e estratégias de social TV tem o
objetivo de estimular o telespectador a ligar a TV no horário original de exibição dos programas.
Para Van Dijck (2016), as funcionalidades e características do Twitter exploram a
conectividade entre usuários e comunidades de todo o mundo, os ajudam a iniciar conversações
colaborativas e múltiplas e a criar conteúdos adequados de acordo com sua necessidade. Os
usuários são vistos como “ativos, em sua maioria jovens, que sentem que o serviço legitima sua
contribuição individual para diálogos com outras pessoas ou seus esforços coletivos para se
fazerem ouvir em debates públicos” (VAN DIJCK, 2016, p. 123, tradução nossa8). No Twitter
o engajamento é em tempo real e os internautas detêm o controle das conversas. Atualmente a
plataforma constroi redes de impacto que podem ganhar imensa visibilidade e alcance em
questão de minutos.

7
Segundo Santaella e Lemos (2014, p. 108) “As hashtags são indexadores de temas, tópicos e/ou palavras-chave
que agregam todos os tweets que as contêm em um mesmo fluxo, onde é possível observar a formação de uma
comunidade ao redor do uso específico da #hashtag. Este fluxo comum possibilita a todos os usuários
acompanhar a discussão de um tema e/ou divulgar informações pertinentes em tempo real”.
8
“activos, en su mayoría jóvenes, que sienten que el servicio legitima su contribución individual a diálogos com
otras personas o sus esfuerzos colectivos por hacerse oír em los debates púbicos”.

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Arquibancada digital e seus milhões de torcedores


Estádio lotado, redes sociais também. Durante os 30 dias de transmissão da Copa do
Mundo da FIFA de 2018, assistir aos jogos junto à família e amigos tornou-se uma experiência
incompleta. Era necessário somar à essa equação uma nova prática que tem se tornado mais
comum e que se mostrou difundida com o maior torneio esportivo do mundo: comentar e dividir
opiniões com outros milhares de espectadores espalhados por todo o mundo sobre o que estava
sendo consumindo naquele momento. Os dados que iremos expor a seguir comprovam o desejo
dos torcedores – telespectadores e usuários simultaneamente, em se tornarem comentaristas e
participantes colaborativos na rede.
A Copa do Mundo, assim como outros eventos esportivos mundiais, tem o potencial de
emocionar e engajar o público por natureza. A televisão, na mesma perspectiva, carrega consigo
um importante papel de unir e integrar seu público que se potencializa com o fenômeno da
social TV e as particularidades das redes sociais. Como resultado, observamos o surgimento de
uma arquibancada digital, onde milhares de torcedores se juntam para torcer e acompanhar suas
seleções preferidas de forma colaborativa e conectada. As conversas, antes restritas somente ao
público que estava geograficamente perto, se expandem para um ambiente que mantem limites
invisíveis e imensuráveis e passam a incluir atores de qualquer lugar do planeta. Com isso, o
consumo televisivo, há tempos, já não se restringe mais apenas aos lares dos brasileiros. Através
de um fluxo contínuo e ininterrupto, a TV transmite informação que vai se espalhar e propagar
nas redes de forma instantânea e, muitas vezes, imensurável.
As transmissões das partidas do maior evento esportivo do mundo movimentaram a
internet. Os comentários tornam-se impossíveis de serem acompanhados devido ao volume e
rapidez com que foram publicados. Segundo dados da Kantar Ibope Media9, no total, mais de
43,9 milhões de pessoas acompanharam pela televisão aos jogos da seleção brasileira na
primeira fase. Quando consideramos os telespectadores que assistiram também as outras
seleções, esse número sobe para cerca de 59 milhões de pessoas – considerando transmissões
em emissoras abertas e canais pagos.
Dentre as três partidas do Brasil, o confronto com a Sérvia foi aquele que teve maior
audiência somada das emissoras10 com 62 pontos de audiência, seguido da partida com a Costa

9
Disponível em: < https://www.kantaribopemedia.com/os-dados-da-primeira-fase-da-copa-do-mundo-2018/>.
Acesso em: 2 out. 2018.
10
A pesquisa considerou os seguintes canais: Globo, SporTV, SporTV 2 e Fox Sports em 15 mercados: Grande
São Paulo, Grande Rio de Janeiro, Grande Belo Horizonte, Grane Curitiba, Grande Porto Alegre, Distrito
Federal, Campinas, Grande Florianópolis, Grande Salvador, Grande Recife, Grande Fortaleza, Grande Vitória,
Grande Goiânia, Grande Belém e Manaus. Os números marcados com um asterisco (*) não foram transmitidos
por todas as emissoras listadas.

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Rica, 60%*, e depois o confronto com a Suiça, 55%* - este último número representa uma
audiência de mais de 25 milhões de telespectadores. Com relação aos jogos das outras seleções,
a partida acompanhada pelo maior número de telespectadores brasileiros foi o confronto entre
Alemanha e México que obteve 36* pontos de audiência11.
Expandindo o consumo para as redes sociais, o Twitter concentrou os principais
comentários, debates e produções de memes referentes ao maior torneio esportivo do mundo.
Apesar do Facebook12 ter tido um papel significativo, cada vez mais o microblogging de 240
caracteres tem caminhado para se firmar como a principal plataforma para se comentar televisão
na web. Isso se deve em grande parte às ferramentas e particularidade do Twitter, que
incentivam a formação de comunidades em torno de uma temática específica (com o uso das
hashtags) e conversações múltiplas e colaborativas. Juntando tais características com o fator
emocional, dramático e afetivo do futebol, temos um cenário perspicaz para se analisar.
Durante a fase de grupos da Copa do Mundo os números no Twitter foram expressivos,
contudo, apresentam uma perspectiva intrigante: nem sempre o engajamento nas redes nos dias
de jogos foi proporcional à sua audiência na TV. Os dados referentes à pesquisa da empresa
Kantar Ibope Media13 mostram que os dias em que houve maior audiência na TV não foram
aqueles que tiveram mais impressões14 no Twitter. Na fase de grupos, destaca-se, entre os jogos
do Brasil, a disputa contra a Costa Rica, Servia e Suíça, respectivamente (figura 1). Na TV,
como vimos, o jogo que obteve maior audiência foi entre Servia e Brasil. Por outro lado, o jogo
da seleção com menor audiência na TV manteve-se com menor repercussão no Twitter: a
partida de estreia contra a Suíça que gerou 66,9 milhões de impressões.
Se levarmos em conta as outras seleções, o confronto com maior número de impressões
no Twitter ficou com a disputa entre Portugal e Espanha que, na TV, obteve menos audiência
que o jogo da Alemanha e México que alcançou o maior número de telespectadores brasileiros
(figura 1).

11
Um ponto medido pela empresa Kantar Ibope Media equivale a 245.702 domicílios e a 688.211 espectadores.
Disponível em: < https://goo.gl/Bv4a9k>. Acesso em: 13 nov. 2018.
12
A Copa do Mundo foi o evento mais comentado na história do Facebook segundo o site
https://meiobit.com/291329/copa-do-mundo-evento-mais-comentado-historia-facebook/. Acesso em 4 out. 2018.
13
Disponível em: < https://www.kantaribopemedia.com/copa-do-mundo-2018/>. Acesso em: 2 out. 2018.
14
Número de vezes em que os tweets (publicações) relacionados ao assunto foram visualizados na plataforma.

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Figura 1 - Dados da audiência na TV e da repercussão no Twitter dos jogos da fase de grupos da Copa do
Mundo. Fonte: Kantar Ibope Media (2018).

Esse conflito nos dados da TV e da internet mostra que, apesar da hipótese levantada
nesse trabalho de que telespectadores e usuários consumam simultaneamente os dois meios,
nem sempre é isso que se materializa na prática. Os dados evidenciam que ainda há uma parte
da audiência que prefere se manter passiva frente ao conteúdo que lhe é dado, ou seja, apenas
consome e não se engaja ativamente; outros, entretanto, se transformam em interatores e, pelos
dados apontados, podem inclusive “assistir” televisão somente a partir dos comentários e das
repercussões nas redes, não necessariamente ligam à TV para consumir. Tal abordagem pode
ser uma justificativa para as divergências nos dados. Desta forma, é evidente que assistimos e
consumimos conteúdo televisivo com diferentes graus de engajamento, sendo usuários
participativos em alguns casos ou apenas audiência passiva em outros. A difusão da social TV
e novas formas de consumo não excluem as tradicionais. É mais adequado, entretanto, falarmos
em coexistência de modelos.
Coincidindo ou não os números na TV e nas redes, é fato que o ambiente de simbiose
entre as duas ecologias se mostrou movimentado durante o Mundial. Ainda de acordo com os
dados apresentados por Kantar Ibope Media (2018), se considerarmos todas as transmissões
dos jogos da primeira fase da Copa, os comentários exclusivamente no Twitter durante as

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partidas geraram um bilhão de impressões. As partidas da seleção brasileira concentraram 35%


deste total. Dentre as temáticas debatidas pelos usuários, destacam-se os termos “Brasil”,
“Neymar” e “Coutinho”, que representam fielmente o desempenho da seleção nessa etapa do
torneio.
Na segunda fase da disputa, que engloba as oitavas, quartas, semifinal, a disputa do
terceiro lugar e a final, os números mantiveram-se significativos (figura 2). O jogo do Brasil e
México rendeu 62 pontos de audiência, enquanto a disputa de maior destaque entre as demais
seleções na televisão brasileira foi entre Uruguai e Portugal, com 38 pontos. Nas quartas de
final o confronto entre Brasil e Bélgica rendeu 60 pontos de audiência, enquanto, mais uma vez,
a seleção uruguaia, agora contra a francesa, obteve a maior audiência, com 32 pontos. Após
este confronto, somente a final, entre Croácia e França, superou tal número.
Nas redes, os números que já eram expressivos, aumentaram. Nas oitavas de final, o
jogo da seleção brasileira obteve 177,4 milhões de impressões no Twitter e foi responsável pelo
maior pico de comentários durante uma partida de toda a Copa do Mundo, que aconteceu no
momento em que o jogador Firmino fez um gol. Nos outros jogos, se por um lado a maior
audiência na TV ficou com a disputa entre Uruguai e Portugal, no Twitter, os usuários se
engajaram mais durante o jogo entre França e Argentina, com mais de 60 milhões de
impressões.

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Figura 2 - Dados da audiência na TV e da repercussão no Twitter dos jogos


da fase final da Copa do Mundo. Fonte: Kantar Ibope Media (2018).

Na rodada seguinte, o cenário não se repetiu: tanto o jogo do Brasil quanto e de maior
audiência na TV de outras seleções também foram os mesmos que engajaram mais o público
nas redes. A disputa contra a Bélgica totalizou 158,2 milhões de impressões e foi a partida com
maior participação feminina na audiência, representando 52% do total. Ao levarmos em conta
o conjunto de todos os jogos, o público feminino compunha apenas 45% dos participantes nas
redes. Entre os jogos das quartas de final das demais seleções, o confronto entre Uruguai e
França rendeu 32 pontos na audiência e quase 23 milhões de impressões no Twitter, mais que
o dobro que a disputa com menos engajamento nas redes - Suécia e Inglaterra. Na semifinal o
cenário foi totalmente inverso, enquanto o jogo com maior audiência na TV rendeu 31 pontos

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e 28,9 milhões de impressões, o confronto entre Croácia e Inglaterra ficou com 29 pontos de
audiência, porém, mais de 34 milhões de impressões no Twitter.
Por fim, a grande final da Copa do Mundo da Rússia foi acompanhada por mais de 20
milhões de telespectador no Brasil15, 44 pontos de audiência, e rendeu cerca de 80 milhões de
impressões no Twitter, sendo o jogo de outras seleções com maior engajamento nas redes. O
pico de tweets foi registrado no momento em que o francês Mbappé, eleito o jogador revelação
do torneio, marcou o 4º gol da França (KANTAR IBOPE MEDIA, 2018).
Se a seleção brasileira não conseguiu o hexa, fora de campo os fãs deram um show à
parte. Em um cenário mundial, os usuários brasileiros foram o que mais tweetaram durante a
Copa em todo o mundo, totalizando mais de 17 milhões de comentários. Além disso, quatro
dos dez jogos mais comentados no Twitter foram da seleção Brasileira, com destaque para
Brasil e Bélgica que foi o jogo mais comentado de todo o mundial, com mais de 8 milhões de
tweets, número superior até mesmo a final da Copa (KANTAR IBOPE MEDIA, 2018). Esses
dados mostram uma perspectiva de crescimento do uso das redes sociais, em especial do
Twitter, para se comentar a programação televisiva e mais ainda: quando falamos em um evento
de dimensões globais, o Brasil se destaca - os usuários brasileiros são os mais engajados na rede
em todo o mundo.

Considerações Finais
O público tem feito a televisão mudar. O mercado tradicional do audiovisual, por outro
lado, não dá sinais de esgotamento. Hoje a comunicação está em todo lugar, a qualquer hora, a
um clique, a um tweet. Ela torna-se móvel, ubiqua, conectiva. A relação entre televisão e redes
sociais, materializada no fenômeno da social TV, evidencia uma nova forma de consumo: em
qualquer momento do dia, basta acessar a internet para saber o que está sendo transmitido na
TV naquele momento. Apesar de escolhermos para esta pesquisa um evento esportivo
mundialmente consumido e de grande repercussão, a conexão entre as duas ecologias já é
percebida em diversos outros gêneros, formatos e produtos televisivos, como os reality shows,
as telenovelas e séries ficcionais.
Com mais de um bilhão de horas consumidas por telespectadores e 1,7 bilhão de
impressões no Twitter (KATAR IBOPE MEDIA, 2018), a social TV se destacou durante a Copa
do Mundo da Rússia. Observou-se a construção de um ambiente que foi muito além da TV e se
fez presente nas ruas e, indiscutivelmente, na web. O grande número de comentários, memes e

15
Disponível em: < https://www.kantaribopemedia.com/mais-de-20-milhoes-de-telespectadores-assistiram-a-
vitoria-da-franca-na-copa/> Acesso em: 2 out. 2018.

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outras produções compartilhadas fez com que acessar rapidamente o Twitter fosse o suficiente
para saber o que estava acontecendo em tempo real no Mundial. Os dados apresentados nos
revelou que o atual paradigma comunicacional propõe novas formas de assistir TV a partir de
uma simbiose cada vez mais complexa e difícil de ser ignorada entre redes sociais e televisão.
O que estamos propondo ressaltar é o consumo televisivo que há algum tempo já se expande
para além da TV, sobretudo com forte participação, engajamento e influência das redes sociais.
Em meio a análise quantitativa da repercussão da Copa do Mundo no Brasil, uma
divergência entre os números que, apesar de não ter sido um padrão e ainda apresentar
contradições, levantou questões e perspectivas que devem ser aprofundadas em estudos futuros.
Se a social TV se caracteriza pelo ato de assistir TV e comentar nas redes sociais ao mesmo
tempo, a falta de sincronia entre os jogos mais assistidos na primeira tela e aqueles com maior
participação nas redes, comprova que há outros critérios que devem ser abordados e analisados
com maior atenção para que possamos entender, afinal, o que emerge do encontro entre os dois
maiores meios de comunicação da atualidade.
Obviamente não podemos desconsiderar o poder que a televisão ainda tem em todo o
mundo. Porém, é inegável o movimento que surge na “segunda tela” que têm invertido e
complexificado as preferências de consumo. Mas qual será o segredo dessa interação? Enquanto
o mercado ainda busca respostas, os usuários, fãs, espectadores, roubam a cena e mostram seu
poder frente às dinâmicas comunicacionais.

Referências

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O PROCESSO DE ABERTURA DE IMPEACHMENT DA PRESIDENTE DILMA


ROUSSEFF:
uma análise do enquadramento noticioso da Folha de S. Paulo1

Mayra Regina Coimbra2


Luiz Ademir de Oliveira3
Universidade Federal de Juiz de Fora

Resumo

O artigo analisa o posicionamento da imprensa brasileira e as imagens construídas da ex-


presidente Dilma Rousseff e de seu governo, no dia em que Eduardo Cunha acatou o pedido de
abertura de Impeachment. A análise contempla 25 notícias veiculadas no jornal Folha de São
Paulo, entre os dias 02 e 03 de dezembro de 2015. Através de uma análise de conteúdo, será
verificado qual o posicionamento do jornal em relação ao acontecimento que teve como
consequência a cassação do cargo da ex-presidente. Para tanto, será discutido como a mídia
organiza os acontecimentos e constroem narrativas políticas, através da discussão de
enquadramento midiático e a interface entre mídia e política.

Palavras-chave: Enquadramento; Impeachment; Folha de São Paulo; Dilma Rousseff

THE OPENING PROCESS OF IMPEACHMENT OF PRESIDENT DILMA


ROUSSEFF:
an analysis of the noticious framework of the Folha de S. Paulo

Abstract

The article analyzes the position of the Brazilian press and the images constructed by former
President Dilma Rousseff and his government, on the day Eduardo Cunha accepted the request
to open Impeachment. The analysis includes 25 news items published in the newspaper Folha
de S. Paulo between December 2 and 3, 2015. Through a content analysis, it will be verified
the position of the newspaper in relation to the event that had as a consequence the cassation of
the post of the former president. To that end, it will be discussed how the media organizes
events and builds political narratives, through the discussion of the media framework and the
interface between media and politics.

Keywords: Framework; Impeachment; Folha de S. Paulo; Dilma Rousseff

1
Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho 4 - Jornalismo, do XI Encontro dos Programas de Pós-Graduação
em Comunicação Social de Minas Gerais, 18 e 19 de outubro de 2018.
2
Mestre em Comunicação Social pelo PPGCOM/UFJF e Graduada em Comunicação Social pela Universidade
Federal de São João del-Rei (UFSJ). E-mail: mayracoimbra@gmail.com.
3
Luiz Ademir de Oliveira - Mestre em Comunicação Social pela UFMG, Mestre e Doutor em Ciência Política pelo
IUPERJ, docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Juiz de
Fora (UFJF) e do Curso de Comunicação Social - Jornalismo da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ).
E-mail: luizoli@ufsj.edu.br.

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Introdução
A comunicação atingiu atualmente um espaço de centralidade na vida das pessoas. O
jornalismo através de sua produção constante de notícias sobre o que acontece aqui ou do outro
lado do mundo exerce o papel de construtor da realidade. Ou seja, ele organiza o caos em que
vivemos, reúne os acontecimentos principais, pauta nossas conversas e dá sentido ao mundo. A
produção e consumo de notícias orienta os indivíduos em suas ações e em suas concepções
sociais, econômicas e políticas.
Diante da força crescente dos instrumentos midiáticos na vida em sociedade, nota-se
como os campos sociais e os indivíduos estão em constante luta pela disputa de espaço e
visibilidade. O campo político é um desses exemplos claros, no qual seus personagens
necessitam se fazer ser vistos e serem reconhecidos, a fim de que tenham legitimidade diante
de seus públicos. Nota-se portanto, que o campo midiático se transformou em uma instituição
que abriga todos os outros campos sociais, sendo função do primeiro mediar os outros campos
que recorrem a ele. Por exemplo, a política não se faz ser entendida por todos se estiver no seu
espaço. A partir do momento que ela recorre-se a mídia ela passa a fazer sentido e existe para
as outras pessoas que não tem total domínio sobre o assunto (RODRIGUES, 1990).
Uma vez dito isto, é importante compreender como os jornais, a televisão, os rádios e
qualquer outro instrumento midiático desempenham importante papel na orientação dos
assuntos públicos, que não temos condições de ter conhecimento se não fosse nesses espaços.
É eles quem pautam, enquadram, recortam, selecionam e organizam a realidade, conforme seus
valores, princípios ideológicos e normas jornalísticas. Diferentemente do que se afirmava no
passado, o jornalismo não pode ser compreendido como uma atividade objetiva, reflexo da
realidade (TRAQUINA, 2004).
Atualmente, os pesquisadores defendem a teoria do framing, ou teoria do
enquadramento. Acredita-se que a realidade é um território demasiadamente extenso e
complexo, que nem mesmo se os jornalistas quisessem conseguiriam relatar um fato em toda
sua extensão. Ele precisa fazer recortes, selecionar alguns aspectos em detrimento de outros.
Ao realizar essa tarefa, ele deixa de lado outras tantas versões e possibilidades de
enquadramento de um fato. É uma tarefa arbitrária. Através dessa prática eles acabam por
orientar a percepção pública acerca dos acontecimentos da vida social, lançando sobre elas
avaliações pessoais, ao mesmo tempo que recomenda determinadas formas de ação e
sentimento em relação ao evento enquadrado (ENTMAN,1993).
Ao tratarmos do processo da mídia como construtora da realidade e do enquadramento
midiático durante eventos sociais, o presente artigo busca compreender como o Jornal Folha de

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São Paulo se posicionou durante a decisão de Eduardo Cunha, que consistia na abertura do
processo de Impeachment da ex-presidente Dilma. Compreender quais os recortes foram
utilizados, quais fatos foram selecionados e quais foram deixados de lado são os objetivos
principais deste trabalho. Para tanto, será adotada como metodologia a Análise de Conteúdo
(BARDIN, 1977).

REFERENCIAL TEÓRICO

Crise de Representação Política


Diante de tal cenário torna-se necessário traçar o panorama da realidade brasileira e
verificar o que dizem os pesquisadores sobre a democracia representativa estar de fato em crise.
Pellenz e Bastiani (2015) argumentam que atualmente estamos vivendo uma crise no modelo
representativo proposto pela Constituição Federal. Conforme aponta os autores, diante de um
ambiente democrático, o povo tem sua vontade respeitada por meio de representantes
democraticamente eleitos. Estes, por sua vez, legislam em nome daqueles, que lhes confiaram
tal tarefa.
O povo, por sua vez, consente que estes exerçam tal função política, quando eles
participam através do voto, no processo eleitoral. Esse modelo foi amadurecendo com o passar
dos anos, no entanto recentemente começaram a surgir questionamentos frequentes que dão
conta do descrédito com as instituições democráticas, com os representantes eleitos e com a
revelação dos interesses pessoais em conflito com o jogo político e coletivo.
Ou seja, os representantes parecem não representar quem os elegeu e o povo parece não
se sentir representado por quem está no poder, configurando-se em um problema. Baquero e
Vasconcelos (2013) afirmam que um sistema democrático representativo é aquele que se
configura através de um contrato envolvendo os cidadãos e os líderes políticos eleitos por estes.
Funciona como um contrato social, ou seja, o povo apoia e vota naqueles que segundo eles
oferece determinados benefícios, enquanto os líderes políticos tentam se encaixar dentro das
exigências.
Para os autores, o debate atual não se concentra no fato de a democracia existir ou não,
mas está relacionada a que tipo de democracia é necessário para que haja um processo de
mediação política eficiente e legítimo, diante da população. Onde exista representação que leve
em conta não aspectos pessoais do político, mas o bem-estar da população como um todo. Se
esse processo de mediação entre Estado e sociedade não funciona da forma como deveria
ocorrer, podemos dizer que há um problema de crise de representação.

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Castells (2001) revela que se analisar as democracias ocidentais consolidadas, nota-se


através de seus últimos processos eleitorais uma diminuição expressiva na participação da
população. Para o autor, a democracia está, de fato, em crise. As transformações culturais,
tecnológicas do exercício da democracia, fizeram do sistema partidário instituições obsoletas.
Como resultado, verificamos a volatilidade eleitoral, o desaparecimento de partidos políticos, a
ascensão da mídia como instância decisiva nos processos eleitorais. Ao que tudo indica existe
uma crise de legitimidade, onde tudo parece indicar o decrescente voto nos partidos.

Frame: uma questão de enquadramento


Além da influência da mídia na sociedade, outra abordagem que também precisa ser
compreendida no processo de produção social é a atividade jornalística. A teoria da
comunicação que tem sido mais utilizada para compreender esse fenômeno na atualidade é a
teoria do enquadramento (framing). O desenvolvimento deste enfoque ainda é muito recente,
no entanto tem mobilizado os estudos no campo da comunicação política. Esta teoria tem
oferecido uma nova perspectiva para compreendermos o papel da mídia na atualidade. Segundo
as teorias iniciais do jornalismo, o papel da mídia era compreendido como o de informar os
cidadãos e servir a democracia, de forma objetiva e imparcial. No entanto, para Porto (2004),
esse paradigma encontra-se em declínio, pois não é suficiente para compreendermos a relação
da comunicação com o mundo exterior. Logo, enquadramento é percebido como um novo
enfoque teórico possível para superar as limitações do "paradigma da objetividade".
Para traçarmos essa nova perspectiva baseada na teoria do enquadramento, vale
resgatarmos o surgimento do conceito, que foi desenvolvido inicialmente pelo sociólogo Erving
Goffman, em sua obra Frame Analysis. Segundo Goffman (1986), enquadramentos são
princípios de organização que governam os eventos sociais e nosso envolvimento nestes
eventos. Para ele, tendemos a perceber os acontecimentos a nossa volta de acordo com os
enquadramentos que nos permitem responder à pergunta: "O que está ocorrendo aqui"? Dessa
forma, o conceito pode ser entendido como marco interpretativo mais geral construído
socialmente, permitindo com que as pessoas enxerguem sentido nos eventos e nas situações
sociais.
Segundo Porto (2004), a primeira aplicação do conceito de enquadramento nos estudos
de comunicação surgiu no livro Making News da socióloga Gaye Tuchman (1978), baseado no
enfoque dado pelo também sociólogo Goffman. Tuchman argumenta que as notícias impõe um
enquadramento, que por sua vez define e constrói a realidade social. "As notícias são um recurso

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social cuja construção limita um entendimento analítico da vida contemporânea" (TUCHMAN,


1978, p.215, apud PORTO, 2004, p.5).
Porto (2002) afirma ainda que, os enquadramentos foram compreendidos como recursos
responsáveis por organizar o discurso através de práticas de seleção, ênfase, exclusão, etc), que
tem como consequência a construção de uma, dentre várias de interpretações possíveis.
Os enquadramentos da mídia ... organizam o mundo tanto para os jornalistas que
escrevem relatos sobre ele, como também em um grau importante, para nós que
recorremos às suas notícias. Enquadramento da mídia são padrões persistentes de
cognição, interpretação e apresentação, de seleção, ênfase e exclusão, através dos
quais os manipuladores de símbolos organizam o discurso, seja verbal ou visual, de
forma rotineira. (GITLIN, 1980, p.7, apud, PORTO, 2002, p.6)

Segundo Porto (2002), outro autor que também faz uma revisão sobre os estudos de
enquadramento de mídia é Entman (1993). Ele apresenta uma definição do conceito que resume
de forma sistemática os principais aspectos desta teoria.
O enquadramento envolve essencialmente seleção e saliência. Enquadrar significa
selecionar alguns aspectos de uma realidade percebida e fazê-las mais salientes em
um texto comunicativo, de forma a promover uma definição particular do problema.
uma interpretação causal, uma avaliação moral e/ou uma recomendação de tratamento
para o item descrito. (ENTMAN, 1993, p. 294, apud, PORTO, 2002, p.7)

Uma análise da construção da imagem da presidente Dilma Rousseff e de seu governo


segundo enquadramento midiático da Folha de São Paulo

Metodologia, Corpus de Análise e Conjuntura Política


O artigo trata-se de um estudo de caso que analisa o posicionamento da imprensa
brasileira e a imagem construída da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) e de seu governo através
do enquadramento midiático feito pelo jornal Folha de São Paulo, tendo como recorte um
momento considerado crucial para o início do processo de Impeachment: a aceitação do pedido
pelo ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha, em 2 de dezembro de 2015. Considerando que
os jornais precisam seguir determinadas regras editoriais, como o prazo para o fechamento, e
grande parte dos acontecimentos são desdobrados nos dias seguintes, tornou-se necessário, para
melhor compreensão, analisar o material do jornal no dia posterior a este acontecimento. A
escolha pelo jornal Folha de S. Paulo se justifica a partir de duas vertentes: ele é um veículo de
grande referência nacional e é um dos jornais de maior circulação no país.
Para situar a análise que virá a seguir, é importante tecer algumas considerações sobre
a conjuntura política que perpassou o cenário em que se dá essa pesquisa. No dia 26 de outubro
de 2014, após a campanha mais acirrada desde a eleição de 1989, Dilma Rousseff, candidata
do Partido dos Trabalhadores (PT), foi reeleita presidente do Brasil com 51,6% dos votos

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válidos, em uma disputa acirrada com Aécio Neves, candidato do Partido da Social Democracia
Brasileira (PSDB).
A reeleição apertada deixou o país dividido. De acordo com os Institutos de Pesquisa
Ibope e Datafolha, a popularidade da presidente só foi caindo com o andamento de seu governo
e os desdobramentos da Operação Lava Jato que investigou políticos suspeitos de corrupção, a
maioria pertencente a partidos aliados do governo. A situação agravou-se ainda mais com a
eleição em primeiro turno do deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), em fevereiro de 2015, com
267 votos - mais da metade dos deputados - e o apoio de 14 partidos políticos, apesar da intensa
mobilização do Palácio do Planalto, que era contrário à eleição do peemedebista. O deputado
era considerado inimigo da presidente Dilma Rousseff, com quem sempre teve uma relação
conflituosa. A eleição de Eduardo Cunha pôs fim a um acordo de revezamento no comando da
Casa entre PMDB - PT. Conhecido por ser um ferrenho crítico da então presidente da
República, Dilma Rousseff, Cunha deu o tom de como seria a relação com o Palácio do Planalto
já no primeiro dia em que foi eleito. Durante o seu discurso afirmou que esta não seria uma
Câmara de oposição, nem mesmo uma Câmara submissa ao governo.
O bom relacionamento entre Cunha e o Planalto não durou nada, pois a medida que se
avançava a operação Lava Jato, que investiga o esquema de corrupção na Petrobrás, o nome de
Cunha apareceu como suspeito de ser beneficiado de desvio de dinheiro público. E como
resposta, ele defendia que havia uma orquestração do Ministério Público em consonância com
o governo a fim de incriminá-lo. Em um discurso oficial, Eduardo Cunha declarou o
rompimento com o governo.
O ponto alto do embate envolvendo Cunha e o governo se deu em dezembro de 2015,
quando ele aceitou o pedido de impeachment da ex-presidente Dilma. Segundo o noticiário
político, anterior a aceitação do processo, Eduardo Cunha negociava com o governo e com a
oposição na tentativa de preservar seu mandato. Como moeda de troca, no caso de ser absolvido
do processo de cassação, poderia usar seu poder para abrir ou não o processo de impeachment
contra Dilma. No entanto, o Partido dos Trabalhadores preferiu não assumir o desgaste público
e anunciou que votaria para a instauração do processo. No mesmo dia, o peemedebista
convocou a imprensa para anunciar a abertura do processo contra a presidente, apesar de negar
que este fato não tivesse relação com seu caso no Conselho de Ética.

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Uma análise quantitativa sobre o posicionamento do jornal Folha de São Paulo


Para analisar o enquadramento das matérias publicadas pelo jornal Folha de S. Paulo foi
feito um mapeamento quantitativo para identificar os principais pacotes interpretativos que se
estruturaram em quatro principais enquadramentos, como é apontado no Quadro 1.

Quadro 1- Enquadramentos apresentado pela Folha de S. Paulo no período analisado


Enquadramento: Descrição: Total de
notícias:

Impeachment crucial O Impeachment é enquadrado como um 14


fenômeno fundamental e crucial para a retomada
do país. Como o único caminho possível para que
o país volte a crescer, ofertar empregos e reduzir a
inflação e os juros.

Impeachment golpe O Impeachment é enquadrado como um 6


fenômeno inconstitucional, um golpe.
Orquestrado de maneira indevida por opositores
políticos.

Estratégias para a aprovação do Esse enquadramento refere-se às negociações 1


Impeachment firmadas em torno da aprovação do processo de
Impeachment, no qual o campo política se mostra
como um espaço de disputa entre ganhadores e
perdedores, com ênfase nas negociações firmadas
entre os parlamentares e os desdobramentos para
a realização desse processo.

Estratégias para a não aprovação do Esse enquadramento refere-se às negociações 4


Impeachment firmadas em torno da não aprovação do processo
de Impeachment, com ênfase nas negociações
firmadas entre os parlamentares e os apoios
recebidos.

Fonte: elaboração própria do autor (2018)

A partir das categorias de enquadramento elencadas anteriormente, foi feito um


mapeamento de 25 matérias. Do total, 14 enquadram-se na categoria "Impeachment crucial", o
que significa 56%. Já o enquadramento "Impeachment é golpe" compreendeu seis reportagens,
equivalente a 24%. O enquadramento "Estratégias para a não realização do impeachment"
concentrou um total de quatro matérias, 16%. Por fim, "Estratégias para a realização do
impeachment" ficou com uma matéria, representando 4%.
Nesse sentido, os dados revelam que o discurso principal do jornal após a decisão de
Eduardo Cunha, de autorizar a abertura do processo, é de reafirmar o posicionamento de que o
impeachment é crucial, ou seja, ele é a única saída para a crise política, social e econômica que

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o país se encontra. Outro dado relevante, é que ainda que o jornal tenha utilizado um
posicionamento favorável ao processo de impeachment ele deu espaço para um posicionamento
contrário4. Do total de 25 matérias, seis se enquadraram favoráveis ao discurso de que o
processo era um golpe. Possivelmente porque o processo ainda estivesse no início. Conforme
se observa abaixo, na figura 1.

Figura 1 - Enquadramentos apresentado pela Folha de S. Paulo no período analisado

Impeachment crucial
Impeachment é golpe
Estratégias para a realização do impeachment
Estratégias para a não realização do impeachment
16%
4%
24% 56%

Uma análise qualitativa do enquadramento da Folha de São Paulo

Impeachment é crucial
O enquadramento "Impeachment é crucial" apareceu em 14 matérias e foi a narrativa
mais evidente contada pelo jornal. As matérias que sustentaram o impeachment como um
fenômeno fundamental e crucial para a retomada do país foi na maioria de cunho econômico.
Somando um total de nove matérias, equivalente a aproximadamente 64%. Do total de matérias
publicadas, três eram da sessão poder (21%) e apenas duas estavam na sessão Opinião do jornal,
referente a 14%. No entanto, é possível destacar que apesar de estarem ou não enquadradas pelo
jornal na sessão Mercado, todas as matérias atrelaram, de uma forma ou de outra, a situação
econômica do país. O quadro 2 mostra as matérias presentes nesse enquadramento.

Quadro 2 - Impeachment é crucial

Data: Sessão do jornal: Título da Matéria

02/12/2015 Opinião Editorial - Colapso

4
Em pesquisas com corpus de análise mais extenso sobre o enquadramento noticioso do jornal Folha de S. Paulo
durante o processo de impeachment, identificou-se que nos momentos seguintes o jornal limitou a presença de
discursos contrários ao seus. Pouco espaço se deu para a ex-presidente Dilma Rousseff e o jornal tentou
desmistificar e contradizer o discurso de que o impeachment era um golpe.

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02/12/2015 Opinião Risco

02/12/2015 Mercado Economia brasileira cai 1,7% no 3º trimestre e prolonga recessão

02/12/2015 Mercado Construção pesada demite 11,5 mil em 12 meses

02/12/2015 Mercado Queda do Brasil é a mais forte e mais longa entre economias globais

02/12/2015 Mercado Consumo das famílias cai 1,5% com piora de emprego e renda

02/12/2015 Mercado O Brasil está em estado de choque

02/12/2015 Mercado Indicadores projetam deterioração do PIB ainda maior no 4º


trimestre

02/12/2015 Mercado Para governo federal, recessão traz risco de 'ruptura' no próximo ano

02/12/2015 Mercado Economia brasileira deve andar para trás até 2018, diz ex-presidente
do BC

03/12/2015 Poder Eduardo Cunha acata pedido de impeachment contra Dilma Rousseff

03/12/2015 Poder Caia quem caia

03/12/2015 Poder É inimaginável trocar impeachment por cassação, diz ministro do


STF

03/12/2015 Mercado Os negócios do impeachment

Fonte: elaboração própria da autora (2018)

O editorial "Colapso" refere-se a situação nunca antes presenciada na história brasileira:


um encolhimento expressivo da economia, com reflexos evidentes na degradação social, em
especial no setor trabalhista. O editorial adota uma postura crítica em relação ao governo Dilma
e seus antecessores. "Evidencia-se, pois, a precariedade do modelo petista, que se baseou
unicamente em aproveitar os bons ventos internacionais para distribuir dinheiro e obter, de
políticos e empresários, apoio mercenários a um projeto econômico primitivo. A coluna
"Risco", de Antônio Delfim Neto, soma-se à primeira ao trazer mais prognósticos negativos.
Ele destaca que as perspectivas não são nada animadoras devido a falta de protagonismo da
presidente.
O jornal faz questão de ressaltar, através de suas matérias que o nível desta crise é
diferente de todas as outras já enfrentadas pelo país e até em comparação aos outros países.
Como se observa no trecho a seguir, da matéria "Economia brasileira cai 1,7% no 3º trimestre
e prolonga recessão".
A queda no Brasil é a mais longa e a mais forte de 41 economias globais que já
divulgaram dados do PIB referentes ao período de julho e a setembro (...) Nesta base
de comparação, foi a queda mais intensa da série histórica da pesquisa, iniciada em

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1996, considerando todos os trimestres. E também a sexta queda consecutiva, a maior


sequência da série histórica. (FOLHA DE SÃO PAULO, 02 de dezembro de 2015)

No trecho da matéria "Queda no Brasil é a mais forte e mais longa entre economistas
globais", o jornal acrescenta "O resultado chama atenção porque aconteceu em um período em
que boa parte da economia mundial teve crescimento: dos 41 países analisados, 35 obtiveram
resultado positivo ou ficaram estagnados". Ou seja, nota-se um tom dramático do jornal de
apontar que a situação estava complicada especialmente para o Brasil, comparado aos outros
países. Na coluna "O Brasil em estado de choque", o jornalista Vinicius Torres Freire, torna a
dizer que esta é uma "desgraça inédita".
Para que o leitor consiga compreender o tamanho da crise e seu poder de impacto na sua
experiência de vida, nota-se uma tentativa do jornal evidenciar as situações palpáveis do
cotidiano que foram afetadas com o momento econômico do país. A matéria "Consumo das
família cai 1,5% com piora de emprego e renda" é um exemplo claro. O jornal destaca "(...) o
consumo das famílias caiu pelo terceiro trimestre seguido neste ano (...). Com dívidas e o bolso
afetado, porém, os brasileiros estão agora cortando supérfluos e gastando menos em bens e
serviços".
As matérias de cunho econômico além de ressaltar os problemas vividos pelo país
atualmente, ainda cria o discurso de medo, ao projetar situações ainda piores, caso Dilma
Rouseeff permaneça no poder. Para completar o quadro de "desgraça" ocasionado pela
administração da petista, o jornal faz questão de trazer falas de economistas que reforçam as
afirmações de que as projeções futuras não prevê melhoras, pelo contrário, os problemas serão
ainda maiores. "(...) analistas afirmam, ainda, que o cenário de deterioração deve se prolongar
em 2016". E acrescenta "Dez economistas, pesquisadores e analistas de bancos consultados pela
Folha estimam queda do PIB de até 3,8% neste ano e de 3,5% no próximo. Alguns já falam até
em 'depressão econômica'".
O próprio título de algumas matérias endossam essas perspectivas: "Para governo
federal, recessão traz risco de 'ruptura' no próximo ano, "Economia brasileira deve andar para
trás até 2018, diz ex-presidente do BC". Vale ressaltar que essas afirmações estão sempre
articuladas com a fala de alguma pessoa renomada na área, o que confere legitimidade às
informações. Não aparece nenhuma fonte governista para apontar prognóstico contrário.

Impeachment é golpe
O enquadramento "Impeachment é golpe" apareceu em seis matérias. É importante
destacar que destas seis, três foram escritas por colunistas do jornal e se enquadram na sessão

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Opinião. Do total, cinco matérias trataram do impeachment como uma ação inconstitucional
por considerar o processo resultado de uma chantagem feita pelo até então presidente da
Câmara, Eduardo Cunha, em uma possível troca de favores de membros do governo, que não
se concretizou. Uma única matéria traz o posicionamento de Dilma Rousseff através de trechos
do seu pronunciamento. O quadro 3 mostra as matérias desse enquadramento.

Quadro 3 - Impeachment é golpe


Data: Sessão do jornal: Título da Matéria:

02/12/2015 Opinião Cenas de chantagem explícita

03/12/2015 Opinião O vício contra o vício - Editorial

03/12/2015 Opinião Os efeitos da bomba

03/12/2015 Poder Dilma Rousseff se diz 'indignada' e ataca Cunha; leia


pronunciamento

03/12/2015 Poder Na encruzilhada escura

03/12/2015 Mundo O empurrão para o abismo

Fonte: elaboração própria da autora (2018)

A matéria "Cenas de chantagem explícita" foi escrita anterior a decisão de Eduardo


Cunha de abrir o processo, no entanto já demonstrava indícios de que esse seria o caminho a
ser seguido por ele. A coluna deixa claro que o peemedebista era alvo de acusações graves,
havia sido denunciado ao Supremo Tribunal Federal, sob suspeita de receber propina do
"petrolão" e omitir contas milionárias na Suíça.
O editorial intitulado "O vício contra o vício" mais uma vez aponta a figura suspeita de
Cunha, como pode se observar no trecho a seguir: "Pelas mãos suspeitíssimas do presidente da
Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha já deixava claro, nas últimas semanas, o poder de
chantagem que estava disposto a exercer". Em outro trecho, além de denunciar a figura pouco
confiável de Eduardo Cunha, o jornal também deixa claro o que considera ser problemas
estruturais do PT.
Em nome dos padrões de seriedade e ética que o petismo tem dado tantas mostras de
desprezar, eis que o processo de impeachment de Dilma se inaugura por obra um
político denunciado na Operação Lava Jato, acusado de corrupção e flagrado em pleno
controle de contas bancárias na Suíça - a respeito das quais mentira de forma
deslavada na CPI da Petrobrás. (FOLHA DE SÃO PAULO, 03 de dezembro de 2015)

Na matéria "Os efeitos da bomba", também enquadrada na sessão opinião, o jornal


destaca que Cunha prometeu e cumpriu. A retaliação foi rápida, a bomba havia estourado e que

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a abertura do processo tratava-se de uma vingança pessoal de Cunha. No entanto, nesta matéria
há uma relativização e o governo de Dilma é tratado como vítima desse processo. "O
peemedebista e sua tropa sequestraram o Congresso e aumentaram o preço do resgate a cada
votação. A oposição rasgou a bandeira da responsabilidade e sabotou o ajuste fiscal para
enfraquecer o governo".
As matérias "Na encruzilhada escura" e "O empurrão para o abismo" reafirmam a ação
chantagista de Cunha. A última matéria é mais dura e afirma que "o presidente da Câmara deu
o empurrão final, em um gesto covarde e canalha". A única matéria em que Dilma Rousseff
aparece como figura principal e tem espaço de defesa é intitulada "Dilma Rousseff se diz
'indignada' e ataca Cunha, leia pronunciamento". Ela aproveita para se defender, destaca que
está tranquila quando à improcedência desse pedido e que o povo não deve deixar que interesses
alheios possam abalar a democracia de um país. "Tenho convicção e absoluta tranquilidade
quanto à improcedência desse pedido, bem como quanto ao seu justo arquivamento. Não
podemos deixar as conveniências e os interesses indefensáveis abalaram a democracia e a
estabilidade de nosso País".

Estratégias para a não realização do impeachment


O enquadramento "Estratégias para a não realização do impeachment " apareceu em
quatro matérias. Em três delas, o jornal apresenta a mobilização de integrantes do Partido dos
Trabalhadores (PT) e de líderes de movimentos sociais para firmar alianças e barrar o processo.
No entanto, o jornal não acredita na consolidação dessa estratégia. Ele demonstra uma
fragilidade do partido, abandonado pelos seus representantes, que tenta agora, fazer o que não
conseguiu durante todo o ano para evitar o impeachment: se unir. O jornal ainda mostra um
partido dividido, que não compatibiliza os mesmos interesses. Uma única matéria, de cunho
econômico justificou um superávit na economia brasileira, que pode ser enquadrado como uma
estratégia para a não realização do processo, visto que representa um ponto positivo de seu
governo.
O quadro 4 mostra as matérias desse enquadramento.

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Quadro 4 - Estratégias para a não realização do impeachment


Data: Sessão do jornal: Título da Matéria:

02/12/2015 Poder Pressão do Planalto para salvar Cunha de cassação divide o PT

02/12/2015 Mercado Com importação em queda, Brasil tem superávit de US$1,2 bi em


novembro

03/12/2015 Poder Dilma terá de reagrupar suas tropas para barrar impeachment

03/12/2015 Poder Movimentos prometem ir à rua por Dilma

Fonte: elaboração própria da autora (2018)

A matéria intitulada "Pressão do Planalto para salvar Cunha de cassação divide o PT" é
anterior a decisão de Eduardo Cunha de abrir o processo de impeachment. O jornal apresenta
uma desorientação do Partido dos Trabalhadores (PT) em relação a "chantagem" do presidente
da Câmara em troca do fim da discussão sobre a cassação de seu mandato por suposto
envolvimento nas investigações de corrupção da Petrobrás. Como pode se observar no trecho
que se segue:
O choque ficou evidente durante o dia. Enquanto no Planalto o ministro Jacques
Wagner (Casa Civil) trabalhava para convencer os petistas votarem a favor de Cunha,
na Câmara a manobra era descrita por parlamentares de seu partido ao peemedebista.
(FOLHA DE S. PAULO, 02 de dezembro de 2015)

A matéria "Dilma terá de reagrupar suas tropas para barrar impeachment" também segue
o mesmo discurso de que a crise enfrentada pela petista também se reflete dentro de seu partido.
Trata-se de um artigo de opinião, assinado pelo jornalista diretor da sucursal de Brasília, Igor
Gielow. Já no início do artigo ele ressalta que a ex-presidente Dilma Rousseff foi abandonada
pelo cálculo de sobrevivência política de seu criador, Luiz Inácio Lula da Silva. E que ela deve
ter um trabalho imenso para "reagrupar e coordenar suas tropas". Para o jornalista, apesar de
não ser impossível barrar o processo, trata-se de um quadro demasiadamente difícil e que pelo
caminho lógico o impeachment é uma saída.
O clima é francamente desfavorável a Dilma. Sua baixíssima popularidade, a
paralisante crise econômica, a sombra da Lava Jato e a aproximação entre a oposição
e o PMDB do vice Michel Temer pintam um quadro difícil, ainda que não irreversível.
(FOLHA DE S.PAULO, 03 de dezembro de 2015)

Outro tipo de mobilização para barrar o processo é demonstrado pela matéria


"Movimentos prometem ir à rua por Dilma". A matéria apresenta falas de líderes de
movimentos sociais que afirmam ser um golpe, uma manobra sem legitimidade, orquestrado
por um suspeito de receber propina e alvo de cassação de mandato. O jornal ainda apresenta
através da fala de Vagner Freitas, presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), uma

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ameaça à figura de Eduardo Cunha. "A cassação do mandato de Eduardo Cunha é uma questão
de honra".
A matéria "Com importação em queda, Brasil tem superávit de US$ 1,2 bi em
novembro" foi a única matéria que não relatou a orquestração do partido e aliados para barrar
o processo. Esta matéria apontava um ponto positivo do governo da ex-petista, no entanto
apresentava também os prognósticos negativos da economia e os problemas enfrentados pelo
país em meses anteriores.

Estratégias para a realização do impeachment


O enquadramento "Estratégias para a realização do impeachment" foi o menos acionado
pelo jornal. Ele apareceu em uma única matéria publicada pela Folha de S. Paulo.
Possivelmente, este tema não foi amplamente trabalhado pelo jornal, pois o processo estava na
sua fase inicial e os adversários políticos de Dilma Rousseff, tivessem sido surpreendidos pela
decisão de Eduardo Cunha e ainda não tivesse definido de forma tão clara as estratégias para a
efetivação do impeachment. O quadro 5 mostra a reportagem presente nesse enquadramento:

Quadro 5 - Estratégias para a realização do impeachment


Data: Sessão do jornal: Título da Matéria:

03/12/2015 Poder Antes de ação de Cunha, Temer tratou da saída de Dilma com a
oposição

Fonte: elaboração própria da autora (2018)

A única matéria enquadrada nessa categoria intitulada "Antes da ação de Cunha, Temer
tratou da saída de Dilma com a oposição" relata a movimentação de sete senadores da oposição
em encontro pessoal na residência de Michel Temer, para discutir o afastamento da petista.
Ainda que a matéria tenha sido enquadrada como uma orquestração da oposição para o
andamento do impeachment, o jornal ressalta através das falas desses personagens a
importância da realização desse fato. A justificativa encontrada afirma que a crise política
paralisou o país e precisava de um desfecho rápido, para que fosse possível retomar e encontrar
um rumo para o Brasil.
A única fonte presente na matéria é a do ex-ministro, Moreira Franco (PMDB-RJ), um
dos homens mais alinhados a Temer dentro do partido. Sua fala reforça a importância do
impeachment para o Brasil.
Temos que ter senso de responsabilidade e espírito público. As nossas instituições
estão se liquefazendo. Isso tem um efeito catastrófico na economia e, na sociedade,

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absolutamente destrutivo. Não dá mais. Temos que ter uma solução. (FOLHA DE S.
PAULO, 03 de dezembro de 2016)

Nesse momento, portanto, o jornal não esconde o fato de que o início do debate sobre o
afastamento da petista tenha se dado pela não aceitação do acordo oferecido por Eduardo Cunha
à Dilma, para tentar salvar o próprio mandato. E que o fim de Cunha será o mesmo da petista.
"Nas palavras de um cacique do PSDB, Dilma e o presidente da Câmara, que chegaram a trocar
rusgas publicamente, agora vão 'morrer abraçados'".

Conclusão
A partir do levantamento e análises feitas nota-se que o principal meio que utilizamos
para compreender a realidade a nossa volta - a mídia, ao utilizar-se do processo de seleção e
enquadramento dos fatos, recorta os acontecimentos e os apresenta a partir de um determinado
ângulo. Se pensarmos que atualmente as pessoas vivem submersos as suas realidades e rotinas
estressantes e intensas, não tendo controle sobre o que de fato está acontecendo a nossa volta,
essa participação midiática é ainda mais decisiva.
Acrescido a este fato, nota-se um desinteresse cada vez maior para assuntos políticos
em decorrência de um descrédito à figura dos políticos e seu poder de representação. As notícias
constantes de casos de corrupção, prisões e problemas envolvendo figuras e partidos políticos
também são cruciais para aumentar essa repulsa à temas políticos. Portanto, esses fatores
acabam por diminuir a disposição das pessoas para questões públicas. Não existe uma
participação de fato, nem mesmo um interesse em se envolver com esses assuntos. Sendo
portanto, através da mídia que se constrói o imaginário de realidade, de verdade e de
acontecimento.
Desta forma, quando o jornal Folha de São Paulo adota um posicionamento arbitrário
de enquadrar negativamente as ações do governo e da ex-presidente, e assume com a produção
de 14 notícias de um total de 25 um pacote interpretativo que reafirma a posição fundamental
da realização do impeachment para recuperar fundamentalmente a economia, que está afundada
em uma crise sem precedentes, ele exclui todas as outras possibilidades de interpretações
diferentes.
A única certeza que se tem é aquela apresentada pelo jornal. O indivíduo social
consume e alimenta a ideia de que o governo está em total descontrole, é uma crise jamais vista,
a presidente não exerce mais nenhum protagonismo, está incapacitada de continuar governando.
O governo por sua vez não tem feito nada de positivo, não tem nenhuma ação com que se

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orgulhar. Logo, a saída para os problemas do País, seja ele coerente ou não, deva ser a saída da
presidente do poder.
Quando o jornal não apresenta os fatos em sua totalidade ele não está conseguindo
exercer com exatidão o papel de informar a sociedade o que acontece a sua volta. Ele está
executando uma ação arbitrária, silenciando aspectos determinantes para a formação de outras
concepções possíveis. Ao trazer a narrativa do impeachment como um golpe, ele o faz apenas
com artigos de opinião. Não existe uma matéria do jornal para explicar a crise existente
envolvendo os dois personagens principais do confronto: Eduardo Cunha e Dilma Rousseff.
Como a noção do público em relação ao que é ou não verdade, está intimamente relacionada
com aquilo que a mídia noticia ou não, o jornal acaba reforçando a ideia de que esta é a única
verdade existente.
Quando ele apresenta vozes de economistas e analistas para reafirmar os argumentos
econômicos de que a crise é insustentável e que é preciso tomar medidas para recuperação da
economia e não apresenta as vozes do governo ou da ex-presidente nas reportagens ele está
omitindo, deixando de lado uma parte da verdade e dando força a um único quadro possível: o
de que o impeachment é a saída para os problemas enfrentados.
Diante desses recortes nota-se como o jornal contribuiu na forma como o público
interpreta a realidade selecionada. É uma ação comunicativa dotada de poder, uma vez que os
enquadramentos possuem papel proeminente nos processos democráticos ao controlar a
percepção deste assunto político em questão. E auxilia na formação de compreensão de
realidade não só política, mas também social. Fundamental para a tomada de ação e a criação
de um discurso.

Referências

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TUCHMAN, Gaye. Contando estórias. In: TRAQUINA, Nelson.(Org.). Jornalismo, questões


teóricas e estórias. Lisboa: Ed. Vega, 1978

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LITERACIA DA INFORMAÇÃO NO CONTEXTO DA POLÍCIA CIVIL DE MINAS


GERAIS1

Danielle Tristão Bittar2


Gabriela Borges Martins Caravela3
Universidade Federal de Juiz de Fora

Resumo

Pretende-se avaliar como o conceito de literacia da informação vem sendo utilizado pela
Polícia Civil de Minas Gerais para formação de seu público interno e para informar a
população sobre os serviços prestados pela instituição, através de veículos como a intranet, os
diversos sistemas de uso diário dos servidores, o site da PCMG e os perfis oficiais nas mídias
sociais. É com foco no conceito de comunicação pública proposto por Mariângela Haswani
que pretende-se analisar se esses preceitos vem sendo empregados fornecendo competências
para fomentar o acesso à informação de interesse público e o entendimento de questões
relativas à corporação.

Palavras-chave: Literacia da informação; competências; PCMG.

INFORMATION LITERACY IN THE CONTEXT OF THE MINAS GERAIS CIVIL


POLICE

Abstract

The intention is to evaluate how the concept of information literacy has been used by the Civil
Police of Minas Gerais to train its internal public and to inform the population about the
services provided by the institution, through vehicles such as the intranet, various systems of
use server logs, the PCMG website, and the official social media profiles. It is focused on the
concept of public communication proposed by Mariângela Haswani that intends to analyze if
these precepts have been employed providing skills to foster access to information of public
interest and the understanding of issues related to the corporation.

Keywords: Information literacy; Skills; PCMG.

Introdução
Tradicionalmente, a expressão literacia designa conhecimento profundo, destreza da
língua, sobretudo no que diz respeito à leitura, escrita e oralidade, desempenhando papel

1
Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Estudos Interdisciplinares, do XI Encontro dos Programas de Pós-
Graduação em Comunicação Social de Minas Gerais, 18 e 19 de outubro de 2018.
2
Jornalista, pós-graduada em Comunicação Empresarial. Mestranda do curso de Comunicação e Sociedade da
Universidade Federal de Juiz de Fora. Atuou durante quatro anos, na assessoria de comunicação da 4ª Delegacia
Regional de Polícia Civil de Muriaé. E-mail: danitristao@ig.com.br.
3
Doutora em Comunicação e Semiótica (2004) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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preponderante na comunicação e na compreensão de ideias. Comparativamente, a expressão


literacia digital pretende o uso eficaz da tecnologia digital, tal como os computadores, redes e
programas informáticos.
A necessidade de literacia não é recente, embora somente há pouco as necessidades de
informação e de utilizá-las de forma eficaz tem sido uma preocupação crescente. À medida
que as tecnologias se tornaram mais acessíveis, fáceis de se utilizar, é que começamos a pensar
sobre como as instituições têm disponibilizado dados para seus públicos. O desenvolvimento
do pensamento crítico e a consciência da ética levaram a uma mudança de paradigma.
A literacia prevê que oportunidades democráticas de escolha só serão possíveis, através
do desenvolvimento de competências midiáticas. Trata-se portanto de alfabetização no acesso
às notícias e no uso dos meios de comunicação.
As políticas e estratégias da AMI4 devem se basear no fato de que as competências
midiáticas e informacionais permitem aos cidadãos conhecer seus direitos e suas
responsabilidades midiáticas e informacionais (com relação à ética e à cidadania,
conforme supradescrito) para exigir o acesso livre à informação por meio de mídia
independente e diversificada e outros provedores de informação. (UNESCO, p. 11)

Quando implementada, a literacia midiática conduz a melhorias significativas em toda


a estrutura organizacional. Propõe meios para a inclusão, através de um maior acesso à
informação. Pretende a garantia de direitos e liberdade de expressão, que ajudem o cidadão a
enveredar pelo labirinto de burocracias, comum à administração pública.
Howard Rheingold (2012) enfatiza o empoderamento sem precedentes que o know-
how digital pode conceder, criando um senso de pertença e participação nos usuários.
Possibilita aos internautas adquirir habilidades para se envolverem na vida cívica de suas
comunidades, construindo uma cultura mais democrática e diversificada. A recompensa pode
vir ainda com um emprego, um companheiro, ou mesmo, a venda de um produto ou serviço.
A literacia entende que faremos a diferença no mundo através de uma maior oportunidade
para criar e compartilhar informação. Howard Rheingold (2012) revela que a participação
plena na cultura contemporânea exige não apenas o consumo de mensagens.
Leva em conta ainda o desenvolvimento sustentável. Defende que devemos buscar
uma sociedade do conhecimento e não da informação, centrada nas pessoas e não, nas
máquinas. De acordo com Pierre Levy (2000), não se trata de substituir o homem, mas de
promover a construção de coletivos inteligentes, nos quais as potencialidades sociais de cada
um poderão desenvolver-se e ampliar de maneira recíproca.

4
Alfabetização Midiática e Informacional.

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Em sua dissertação sobre “Literacia de Informação na Polícia de Segurança Pública”,


Maria de Jesus Gomes Augusto (2013) faz uma análise sobre o grau de literacia dos policiais,
numa esquadra do Comando Metropolitano do Porto, em Portugal. Ela avalia os hábitos de
leitura, formação, elaboração de expedientes, entre diversos outros aspectos.
...o acto de ler espelha um meio de se ter acesso ao saber, de conquistar autonomia
na aprendizagem, que deve ser encarado como um processo inacabado, pois ler é um
acto que possibilita o acesso às mais estimulantes e saborosas viagens de sonho…
(AUGUSTO, 2013, p. 74)

Maria de Jesus conclui que as ações diárias são o caminho que leva a capacidades,
avaliando e usando a informação adequada na resolução de problemas. É ainda mais
significativa, na medida em que provoca um desejo de compreensão das mais complexas
matérias. Ela diz que a vontade de melhorar e a curiosidade levam à satisfação e são pré-
condições para o processo de aprendizado.
Passaremos agora a uma análise da literacia da informação no contexto da Polícia Civil
de Minas Gerais, a qual pretende dotar as pessoas para o acesso, produção e uso crítico da
informação, enquadrando-a no princípio de aprendizagem ao longo da vida. Para começar,
pretendemos uma explanação de como o conceito vem sendo empregado na instituição, onde
é possível identifica-lo e em que pontos podemos avançar.

Sobre o conceito de comunicação pública


De início, elencaremos os diversos modelos de comunicação pública propostos por
Mariângela Haswani, acreditando ser de fundamental importância para a compreensão do
trabalho a que nos propomos, pelo fato de a instituição a ser analisada dever se enquadrar
nesses preceitos.
O conceito de comunicação normativa se faz de grande utilidade para nosso estudo, na
medida em que “indica o dever das instituições de publicar as leis, normas, decretos e divulgá-
los, explicá-los e dar as instruções necessárias para utilizá-los.” (HASWANI, 2010, p.138)
Sendo a instituição responsável pela aplicação da lei penal, podemos dizer que o
conhecimento e a compreensão desta é pré-condição para uma relação consciente. Podemos
dizer de antemão que não visualizamos nas mídias analisadas disponibilização ou mesmo
links que direcionem para o Código Penal, lei Maria da Penha, dentre outros regulamentos.
A comunicação de serviço se apresenta sob dois aspectos: constituem um serviço ao cidadão,
sendo este parte integrante do que é oferecido pela administração. Pois é um dever da mesma
fornecer informações sobre regras referentes à própria atividade. Um conhecimento amplo das
atribuições da instituição só é possível com a disponibilização de dados em pelo menos um

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dos meios oficiais de comunicação e de acesso a todos os servidores. Destaca-se uma


importante iniciativa da administração, sendo ela a disponibilização de um curso ministrado
pela Acadepol com o título: “Qualidade no atendimento ao público”.
Não há ainda uma menção mais abrangente quanto às particularidades de cada função,
nem à importância de cada uma delas para a integração e realização dos processos. Também
poderiam ser dadas informações, explicando as diferenças entre os mais diversos tipos de
procedimentos, providências a serem tomadas, prazos, entre outros questionamentos. O
resultado é quase sempre de desconhecimento dos procedimentos adotados, confusão
envolvendo a natureza da atividade com outras forças de segurança pública, como a polícia
militar ostensiva, e um preconceito relativo ao lugar, estrutura.
Após o registro de uma ocorrência, o solicitante certamente será chamado para prestar
declarações, cabendo ressaltar que o trabalho dos policiais civis compõe-se não somente da
oitiva de atores, mas também de testemunhas e vítimas. A falta de conhecimento desses
trâmites desencadeia um processo de não cooperação com os trabalhos da PCMG, de receio e
consequentemente, de morosidade para conclusão dos mesmos.
O negócio, melhor dizendo, seus serviços, incluem investigação criminal indivisível,
análise da privação da liberdade dos indivíduos, identificação civil e criminal, registro e
licenciamento de veículos automotores e formação e controle de condutores. A PCMG tem
como missão realizar a investigação criminal de forma eficaz, impactando na redução da
criminalidade e sua visão é ser reconhecida pela excelência em relação a este produto ofertado.
Fruto de uma não distinção entre a natureza da atividade policial e judiciária no
passado5, uma outra dúvida refere-se ao direcionamento dos inquéritos policiais. É quando o
delegado de polícia propõe o indiciamento dos envolvidos, cabendo ou não ao promotor
público acatar o pedido, transformando os expedientes em processos judiciais, sendo estes
posteriormente julgados pelos juízes de direito. A instituição apenas cumpre ordens emanadas
do poder judiciário, sendo por isso, também chamada de polícia judiciária.
O conceito de comunicação da instituição pública proposto pela autora Mariângela
Furlan Haswani, é aquele que “assume o aspecto de uma atividade prevalentemente
informativa, limitada a auxiliar o cidadão a mover-se no labirinto da burocracia.” (HASWANI,
2010, p. 134) Muitas vezes, uma simples informação, como a necessidade de deixar seus dados

5
A “Polícia” não tinha suas funções bem definidas. Não havia uma delimitação entre as atividades executivas e
judiciárias. O intendente-geral era um juiz com funções de polícia. Os serviços se confundiam, herança do
modelo colonial português. As organizações policiais eram regidas pelas Ordenações Manuelinas, as quais eram
consideradas o primeiro corpo legislativo impresso e representam um marco na evolução do direito português,
consolidando o papel do rei na administração da Justiça.

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sempre atualizados, horário de atendimento e esquema de funcionamento das unidades de


plantão aos finais de semana e feriados, pode ser de grande valia. Seguem ainda algumas
situações que destacam a importância do conhecimento dos procedimentos adotados.
Em tempos de redes sociais e celulares de última geração, as pessoas se sentem
participantes dos acontecimentos que presenciam. Querem chegar o mais próximo possível do
local fato e compartilhar aquela experiência. A não ser que você seja um agente da lei, haja
alguém ferido ou em apuros, é fundamental, preservar os locais de crimes. Existem pessoas
trabalhando ali. Qualquer vestígio pode ser fundamental na elucidação do caso. Qualquer
intervenção pode colocar tudo a perder.
Pouco divulgado também é um procedimento que recentemente entrou em vigor, o
qual estabelece que a polícia não precisa ser acionada em caso de acidentes de trânsito sem
vítima. O registro de ocorrência pode ser feito posteriormente. Trata-se de evento de natureza
cível, o que poderá ser resolvido amigavelmente entre as partes ou com o auxílio de um
advogado. Lembrando que a polícia civil investiga apenas casos de natureza criminal.
A comunicação de uma instituição de segurança pública, subordinada ao governo do
Estado, pode estar muitas vezes contaminada pela comunicação política, que tem sua lógica
própria de interpretação, visa a construção social da realidade e se volta ao cidadão na sua
veste de eleitor. Mas isso não impede que, ainda assim, preste um serviço de interesse público,
com ética e qualidade.
Com um invólucro coletivista, como se tratasse apenas da comunicação de
solidariedade social, a comunicação social, promovida pelas instituições, abarca temas sobre
os quais é necessário sensibilizar a opinião pública, se propondo a dar elementos de
conhecimento e conscientização. A instituição não explorou o tema, visto que é de
conhecimento alguns projetos e iniciativas de servidores, desenvolvidos no âmbito das
próprias delegacias. Mesmo que com ações pontuais preventivas, visam ao engrandecimento
da imagem da instituição. A implementação de novas filosofias de atuação podem render
ótimas matérias. Como exemplo podemos citar as palestras sobre crimes cibernéticos,
ministradas para crianças de escolas públicas, da cidade de Muriaé.
Passaremos à análise de conteúdo dos veículos e sistemas de comunicação, utilizados
pela PCMG, sendo esta destinada à investigação dos fenômenos simbólicos,
permitindo o estabelecimento de alguns parâmetros culturais implícitos. Registra-se
que os dados foram coletados durante o segundo semestre de 2017.

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Site da Polícia Civil de Minas Gerais


Analisando-se as matérias postadas no site6 da Polícia Civil de Minas Gerais, constata-
se que essas ficam muito restritas aos crimes. Verifica-se grande preocupação com uma
divulgação de cunho operacional, enfocando a ação de policiais para o combate ao crime, com
a prisão de envolvidos e apreensão de materiais ilícitos, principalmente na cidade de Belo
Horizonte e região metropolitana. Há pouca disponibilização de regras sobre a própria
atividade, dificultando o cidadão a enveredar pelo labirinto de burocracias, o que poderia ser
amenizado com a adição de links, completando as informações ao direcionar para outras
matérias. Mesmo quando trata de assuntos que permeiam a atividade policial, as abordagens
são superficiais, deixando a desejar quanto ao conteúdo das mesmas.
O site da Polícia Civil de Minas Gerais é composto por abas que ligam a vários outros:
pessoas desaparecidas, delegacia virtual, Detran, Acadepol. Demonstram uma falta de
unidade. O internauta acaba se perdendo, não mais desejando voltar ao site para buscar mais
informações.
Recentemente, modificações foram feitas no site, levando a crer que as alterações
foram somente visuais (aproximando-se mais do layout de blogs, tornando as mesmos mais
sóbrios, em relação às cores) e não em relação ao conteúdo. Uma análise poderá ser feita
posteriormente.
Um primeiro produto/serviço da PCMG que trataremos é o registro de ocorrência e
posterior investigação de pessoas desaparecidas. Apesar de o número de telefone divulgado
nos cartazes (0800 2828 197) direcionar para uma Divisão Especializada de Referência da
Pessoa Desaparecida, a aba referente a este assunto no site da Polícia Civil de Minas Gerais
consta apenas de um direcionamento para outro site (http://www.desaparecidos.mg.gov.br/),
o da campanha “Minas Solidária”, levando a crer que se trata de uma ação do governo do
Estado, sem qualquer ligação com a instituição. Pouco destacada está a frase “Se você tem
informações sobre pessoas desaparecidas, ligue para a Polícia Civil”. Apesar de dados
valiosos, que poderiam ser utilizadas em quaisquer mídias, os textos estão desatualizados.
Chama a atenção, no tópico “Participe”, a sugestão de criar uma comunidade no Orkut.
Um caso solucionado consta de 2005. Também não se percebe qualquer informação sobre
como é feita a inserção de dados. Recentemente, uma campanha tem ido ao ar, no canal da TV
Globo, com fotos de pessoas desaparecidas, dando maior visibilidade ao assunto.
Sobre a Delegacia Virtual, site criado para registro de boletins de ocorrência pelos

6
www.policiacivil.mg.gov.br.

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próprios cidadãos, não há, na página inicial, informação sobre quais tipos de eventos podem
ser registrados. Como não houve uma divulgação mais ampla, as pessoas tomam
conhecimento dessa possibilidade quando já se encontram nas delegacias, causando
transtornos e aborrecimentos por conta de deslocamento.
O site do Detran7, por sua vez, abarca enorme quantidade de informações, que são
atualizadas, quase que diariamente pela assessoria de comunicação da Polícia Civil. É possível
uma busca sobre os mais diversos assuntos, relacionados a veículos, habilitação, infrações,
parceiros.
O site da Academia de Polícia Civil de Minas Gerais tem sido movimentado pelas
recentes divulgações de ciclos de debates e cursos à distância, demonstrando a preocupação
da instituição com o aprimoramento constante dos servidores. Trata-se de uma nova postura,
que vem ganhando cada vez mais crédito juntos aos diversos públicos. Porém, a instituição
falhou ao apresentar essas ações de grande valia para os cidadãos. As matérias constam de
textos com quase nenhuma informação, títulos que não explicam o que vem logo em seguida.
Quando muito, apresentam uma imagem. Nesse caso, percebe-se nitidamente um amadorismo
na forma e conteúdo apresentados. Tem-se potenciais de desenvolvimento, deixando-se passar
oportunidades de mídia espontânea.
Em tempos de velocidade dos dados é até a esses canais que os jornalistas vão para
buscar mais detalhes. No que tange a essa questão, uma grande iniciativa foi lançada no mês
de junho: a sala virtual de imprensa, sendo este mais um serviço oferecido pelo site. A mesma
trará maior oficialidade e agilidade às publicações, facilitando a comunicação com este outro
importante público.
O site apresenta descrições copiadas de documentos antigos, sem as devidas
adaptações para uma linguagem digital. Tendo em vista que seu público envolve a sociedade
como um todo, principalmente pessoas que estão procurando respostas para suas dúvidas, ou
seja, problemas que envolvem o funcionamento da instituição, esta deveria ser uma
preocupação. Como se pode notar, não são somente as operações, produtos da atividade
policial. Analisando o site de uma forma geral, não encontramos no mesmo, qualquer link ou
aba para exploração do tema investigação criminal, principal serviço da PCMG, o que poderia
ser feito de forma bastante ilustrativa, com fluxogramas, imagens, gerando grandes matérias,
aguçando o interesse de veículos de comunicação por reportagens, entrevistas.

7
www.detran.mg.gov.br

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Perfil oficial nas redes sociais


Lides bem feitos e um banner informativo chamava a atenção para a mídia social
Facebook. A comunicação para promoção da imagem tem como principais características
conquistar confiança e aprovação dos cidadãos. Neste sentido, “...a publicidade é,
provavelmente, o mais eficiente meio para comunicar dados e fatos que sejam garantias de
direitos. Para tanto, é necessário um programa que não apenas promova os feitos e a
imagem...” (HASWANI, 2010, p.143)
As estatísticas têm importante papel de prestar contas à sociedade sobre o trabalho que
vem sendo desempenhado e também de mostrar onde é preciso avançar. Destacamos no perfil
oficial da instituição a publicação do número de oitivas, atendimentos, investigações
concluídas, procedimentos instaurados por Delegacias especializadas de Belo Horizonte, o que
poderia ser também estendido a unidades do interior.
No Facebook há postagens mensais sobre pessoas desaparecidas, com a exposição de
várias fotos. Todas elas são acompanhadas de textos como o que segue: “Caso tenha qualquer
informação sobre algumas dessas pessoas desaparecidas que divulgamos, ligue para 0800
2828 197. Esse telefone da Polícia Civil de Minas Gerais funciona 24 horas. Para outras
publicações de desaparecidos, acompanhe a fanpage
https://www.facebook.com/DesaparecidosPCMG. Ajude-nos a divulgar: Curta e compartilhe!
#PCMG #Desaparecidos.”
Percebe-se o cuidado em utilizar a linguagem do meio, além de direcionar para a página
de desaparecidos, local este onde esperava-se encontrar maiores informações, mas na verdade,
trata-se apenas de uma fan page onde poderão ser encontradas outras publicações de casos
semelhantes. Não há qualquer referência ao site http://www.desaparecidos.mg.gov.br/ nem
informações gerais sobre a campanha, quantitativos, como prevenir, entre outras.
Ao aderir à mídia social Facebook8, a PCMG demonstra que vem tentando se
modernizar e se adequar às exigências de uma sociedade cada vez mais conectada. Tratou-se
nesta mídia de explorar um pouco mais do potencial da gama de serviços ofertados. Mas
quando se adentra a um meio de comunicação como esse, tem que se ter em mente que é
preciso interagir, que a comunicação não poderá continuar fluindo apenas em mão única. Os
internautas querem respostas para suas sugestões, dúvidas e críticas. A instituição deveria se
questionar até que ponto vem fazendo isso.
Como alternativa a essa política e cultura fechadas, característica da PCMG, de manter

8
https://www.facebook.com/policiacivilminasgerais/

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o fluxo de informações predominantemente em uma via, foram criados grupos dentro da


própria mídia social, que levam nomes das carreiras, sendo fundados por alguns de seus
membros, e servem para discussão de temas polêmicos ou mesmo críticas à instituição. “É a
restrição ao uso da palavra que faz com que subordinados se recuperem e se embriaguem com
palavras nos grupos informais, seja em qualquer tipo de organização.” (FREITAS, 2014, 101)
Questionam atrasos em pagamentos, deficiências na infraestrutura, não cumprimentos de
promessas do governo, entre outras questões. Demonstram como as pessoas buscam esses
meios para vocalizarem suas insatisfações, algo, muitas vezes, impensado na “vida real”.
A Polícia Civil também aderiu ao Instagram9, mas ainda não deu conta de suas
funcionalidades e potencialidades. Ele é abastecido com fotos enviadas pelos próprios
servidores em ações policiais. Não retrata ainda o contexto das delegacias, a realização de
cursos, palestras, dentre outros eventos que poderiam ser explorados. As legendas também
poderiam dizer muito sobre a instituição, criando identidade e identificação.

Intranet, WhatsApp, outros sites e aplicativos


Sendo a intranet10 um local de acesso a dados de âmbito mais interno, também se
constitui em ferramenta para os servidores. Tem demonstrado preocupação com os mais
diversos temas, englobando matérias que vão ao ar no site, informações presentes na mídia
social, com destaque para localização de pessoas desaparecidas, além de notas, avisos, elogios,
homenagens e outros. Disponibiliza ainda formulários, versões de programas e links para
acessos. Transparece ser um meio bem mais completo que os anteriores. Após pesquisa
realizada recentemente com os servidores, em que os mesmos puderam dar opiniões sobre
melhorias à respeito desse veículo de comunicação, o acesso passou a poder ser feito também
de casa.
Para consultas de cunho administrativo e sobre os rumos da política, que também
influenciam a instituição, os policiais civis ainda possuem acesso ao Portal do Servidor11, Portal
da Transparência12, Site do Governo de Minas Gerais13 e aplicativos, como o MGApp14.
O WhatsApp possibilita troca de informação em tempo real, além de uma unicidade de

9
https://www.instagram.com/pcmg.oficial/
10
extranet.pc.mg.gov.br
11
www.portaldoservidor.mg.gov.br
12
http://www.transparencia.mg.gov.br
13
http://mg.gov.br/
14
Aplicativo para dispositivos móveis. Foi construído com base em três pilares: serviços, informação e
engajamento. Pretende um aumento da participação popular nas decisões e nos projetos da administração pública
e também maior agilidade no acesso a vários serviços públicos. Fruto de uma parceria entre a Secretaria
de Estado de Planejamento e Gestão (Seplag) e a Prodemge.

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discurso. Muitas instituições, assim como a PCMG, mesmo que não oficialmente, se
apropriaram desse recurso como ferramenta de diálogo e até mesmo de trabalho. No
entendimento de Jenkins (2009), no momento, estamos utilizando esse poder coletivo para fins
recreativos, mas o modo como essas diversas transições evoluem irá determinar o equilíbrio
de poder na próxima era.
O aplicativo tem demonstrado ser uma importante ferramenta para discussão de casos,
trocas de informações sobre envolvidos, fomentando a participação de todos. Tem em vista
ainda a discussão sobre assuntos relacionados à segurança pública, ou mesmo de cunho
administrativo. Além é claro, da mobilização para ações sociais e divulgação dos trabalhos
realizados, como é o caso do grupo criado para manter contato direto com a imprensa de
Muriaé e região.

Sistemas informáticos utilizados pela PCMG


Para a resolução dos casos, a Polícia Civil trabalha com informações. Os dados são
repassados por informantes ou coletados através de documentos, servindo de base para a busca
de informações nos sistemas, alimentados como um banco de dados. Neles é possível consultar
desde a qualificação dos envolvidos (nome, endereço, filiação), até passagens policiais.
Muitas informações são repassadas durante os cursos de formação de servidores, na
Acadepol, mas o aperfeiçoamento constante ocorre mesmo nas unidades policiais, onde eles
têm de lidar com uma série de situações, em que são necessárias buscas mais aprofundadas. O
conhecimento dessas burocracias ajudará na resolução dos casos.
Módulo do Sistema de Defesa Social – SIDS, o REDS15 (Registro de Eventos de Defesa
Social) é destinado ao lançamento de ocorrências via web. Traz benefícios às organizações que
o compõem, como a padronização dos formulários, consistência dos dados, interação com
outros sistemas, transparência e produção de estatísticas com maior grau de confiabilidade.
Monitora a dinâmica da criminalidade, permitindo a otimização dos recursos operacionais
existentes e a redefinição das políticas de Segurança Pública.
Outra ferramenta utilizada pela Polícia Civil de Minas Gerais é o sistema PCNET, que
recebeu o 1º lugar na Categoria Administração Pública Eficiente e Eficaz, durante o mais
importante encontro nacional de tecnologia da informação e governança eletrônica no Brasil,
realizado em 2012. A banca composta por especialistas deu reconhecimento ao Módulo
Laudos Periciais, devido à transmissão imediata de requisições, priorização das perícias cuja

15
Foi implantado nas Polícias Civil e Militar em 2005, no município de Belo Horizonte e no decorrer de 2007 na
RMBH. Trata-se de uma versão informatizada do antigo Boletim de Ocorrência.

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materialidade seja mais transitória, o acompanhamento das etapas, padronização dos laudos,
disponibilização imediata deste após ser concluído e a possibilidade de inserção ilimitada de
imagens.
A rede INFOSEG reúne informações de segurança pública dos órgãos de fiscalização
do Brasil, através do emprego da tecnologia da informação e comunicação. Lançada em
16/12/2004, tem por objetivo a integração das informações de Segurança Pública, Justiça e
Fiscalização, como dados de inquéritos, processos, de armas de fogo, de veículos, de
condutores e de mandados de prisão. Integra um conjunto de bases de dados, sendo sua
finalidade disponibilizar as informações contidas nestas aos cerca de 120 mil usuários que
delas necessitem. Ocorre que o acesso a esse sistema é um pouco mais demorado e burocrático,
dependendo do cadastro de um computador de acesso. Diante dessas dificuldades, muitos
servidores optam por não tê-lo.
Em constante remodelação, destaca-se aqui, a criação de um grupo no Facebook, de
suporte nessa área. Os usuários trocam informações, principalmente em relação ao que há de
novo. Também é possível a sugestão de melhorias, que são encaminhadas via e-mail à
Superintendência de Informações e Inteligência Policial - SIIP. Todas essas propostas passam
por uma avaliação e se aprovadas, são implementadas.
A gestão do conhecimento tem em sua essência aproveitar os recursos existentes na
empresa/instituição. Mas em algumas situações, não se percebe ainda um uso eficaz dessa
ferramenta, com aproveitamento de todas as suas possibilidades, de forma a tratar o fenômeno
criminal geograficamente, vertente essa utilizada atualmente para o enfrentamento da
violência.
Conforme se percebe, em seu dia a dia de trabalho, o policial civil precisa aprender a
lidar com uma série de ferramentas, sendo elas os sistemas utilizados para os mais variados
tipos de consultas, até mesmo de outras instituições. Como não há ainda uma rede que conecte
os já citados, integrando os dados, o servidor precisará navegar por uma diversidade deles para
encontrar as informações de que necessita. As mesmas ainda podem estar desencontradas,
desatualizadas. Esse emaranhado de procedimentos acaba por dificultar o trabalho policial,
causando, muitas vezes, demora no atendimento.
Há ainda uma dificuldade em relação aos servidores mais antigos, que não se
atualizaram ou optaram por não se adequar às novas tecnologias, se recusando ao uso de
computadores.

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Formação dos servidores


Uma nova vertente de conhecimentos na área de investigação vem sendo incorporada
pela instituição. Trata-se de uma especialização em inteligência criminal, que prevê uma troca
constante de informações entre as diversas instituições de segurança pública. Nessa linha,
todos os servidores seriam possuidores de uma gama de experiências, capazes de um
entendimento sobre a natureza, circunstância e motivação dos crimes, elencando ainda uma
relação entre fatos aparentemente isolados ou desconexos. Esse conceito foi bastante
explorado durante o Primeiro Seminário de Inteligência e Segurança Pública, organizado pela
instituição, no mês de julho de 2017, na cidade de Barbacena.
Também é recente um intercâmbio com a Polícia da República Chinesa, visando troca
de experiências, capacitação dos servidores e um atendimento mais qualificado à população
mineira. Ao final dos dias de reuniões e visitas técnicas, foi assinado um memorando de
cooperação bilateral, estabelecendo uma plataforma de aprendizagem e comunicação. Em
desenvolvimento, esses novos conceitos e forma de gestão ainda estão muito restritos à cúpula
da instituição e a alguns grupos.
Durante os últimos cinco anos, não houve na PCMG, uma política de formação
contínua para os servidores. Fora os cursos de preparação para chefia, não se percebia qualquer
outro investimento grande nessa área. Muitos servidores passavam todo o tempo de estágio
probatório, ou mais do que isso, sem uma reciclagem.
Recentemente é que essa forma de valorização vem sendo retomada com os diversos
cursos oferecidos pela Acadepol e Departamentos de Polícia que se engajam em conferir
treinamento nas mais diversas áreas de interesse policial. Atenta às novas demandas, a
Academia de Polícia passou a oferecer a partir do primeiro semestre desse ano, para servidores
ativos, um curso de pós-graduação lato sensu em Criminologia.
Cursos da Secretaria Nacional de Segurança Pública - Senasp são oferecidos
semestralmente online aos servidores da área de segurança pública, não somente da Polícia
Civil. São conferidos certificados, aos alunos que conseguem alcançar uma nota mínima
estipulada, após a resolução de uma prova final e participação em fóruns de discussão. Não
sendo essa uma iniciativa da instituição, depende também do interesse do servidor pela busca
em se aperfeiçoar.

Conclusão
De acordo com Haswani (2010), a informação e a comunicação são instrumentos de
garantia de direitos fundamentais nos Estados democráticos. Eles são captadores e detentores

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de uma fabulosa quantidade de informação, que deve estar à disposição dos cidadãos. Órgãos
estatais deveriam ter obrigação de informar aos cidadãos sobre temas que garantem seus
direitos. Conhecendo os mesmos, poderão realizá-los, cobrar resultados.
Segundo Haswani (2010), as constituições explicitam o direito à informação, mas
ainda não há dispositivo legal que estabeleça a obrigatoriedade de levar a publicidade de
utilidade pública à população, devendo esta dispor de mecanismos para ser cobrada, quando
sua ausência significar ameaça ou desrespeito àqueles direitos, responsabilizando o Estado
pela falta deles. A qualquer momento elas podem também não ser mais divulgadas, se um
governo assim o decidir.
Para Haswani (2010), a informação que garante direitos, na maioria das vezes, não é
disseminada para toda a sociedade, permanecendo em segredo, pois uma parte dela tem como
alvo somente instituições e pessoas envolvidas profissionalmente e a outra parte compõe, as
mensagens que o Estado não faz chegar à sociedade. A aristocracia não teve a preocupação de
criar e manter canais de informação porque não necessitou da massa para conquistar e manter
seus postos. Foi cooptada pela produção de benesses governamentais desde os primórdios da
colonização.
Esses ambientes virtuais, mesmo que prometam total democratização das informações,
ainda não são acessíveis a todos. Não há diversidade de canais ou a linguagem ainda não é
apresentada de forma apropriada. As instituições de segurança pública deveriam proporcionar
mais e melhores meios de acesso à literacia da informação, como a instalação de bibliotecas,
incentivo aos policiais que aumentarem seus anos de estudos, entre outros.
Como no que defende Habermas (2003), a esfera pública deveria ser um local de
debates, mas há ainda um longo caminho a se percorrer. Howard Rheingold (2012) nos leva
a crer que os cidadãos comuns são, na maioria das vezes, travados, quando desejam participar
dos processos de produção. E se o público não tiver ideia das discussões, terá pouco ou nada
a dizer a respeito das decisões tomadas.
Oportunidades igualitárias só serão possíveis, através do desenvolvimento de
competências, tratando-se portanto, de alfabetização dos policiais e gestores no acesso e uso
dos meios, em seus locais de trabalho, para maior eficácia dos serviços prestados. Uma
dificuldade que a instituição ainda encontra é a de convencer seus servidores mais antigos a
enveredarem pelo caminho das novas tecnologias. A resistência esbarra, muitas vezes no
manuseio de ferramentas, principalmente o computador.
As instituições de segurança pública deveriam se aproveitar do fato de que os
noticiários vivem cada vez mais graças à prática desses órgãos em disseminar informações,

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tendo nos meios de comunicação excelentes veículo de exposição de suas ações, para
divulgarem matérias de qualidade, democratizando ainda mais o acesso. Dificilmente outras
instituições encontram tanto espaço para divulgar seu trabalho. De acordo com Veiga (2009),
os jornais funcionam como mediadores sociais e prática discursiva. Sistemas de representação
por excelência, são capazes não somente de relatar os fatos, mas também de demarcar papeis
sociais.
A autorregulação das mídias pretende maior independência e diversidade na difusão
de conhecimento. Questões como essa nos levam a refletir sobre o enquadramento dado às
notícias veiculadas e a função do agente de segurança pública como formador de opinião,
questionando, por exemplo, soluções policialescas para o problema da criminalidade, as quais
não consideram modificações de oportunidades no entorno.
A apropriação de temas propõe uma maior variedade de assuntos, podendo ser
explorados o desenrolar de casos de grande repercussão ou mesmo assuntos relativos à
segurança pública, sem constar de um posicionamento político, mas que esclareçam sobre os
prós e contras de determinadas questões. Demonstrará assim que a instituição não está
completamente alheia às mudanças que estão por vir.
A perícia, por exemplo, é um setor de grande valia para a instituição, visto que confere
o status de polícia técnico científica, dando aspecto de inovação, modernidade. Seus feitos e
processos deveriam ser de grande orgulho e por isso mesmo, constantemente divulgados.
Reconstituição de crimes, perícias em locais de crimes poderiam ser temas abordados em
matérias nos mais diversos meios, mesmo que de forma geral.
Percebe-se atualmente o desenvolvimento de um novo perfil de leitor/internauta. Ele
não se contenta mais com a simples divulgação de informação, a imposição de dados sem
contestação. Através da internet, o cidadão possui cada vez mais meios de debatê-la, de ir atrás
de novas fontes, versões e de chegar cada vez mais próximo da verdade dos fatos. Jenkins
(2009) conceitua cultura da convergência, dizendo que representa uma transformação cultural
à medida que consumidores são incentivados a procurar novas informações e fazer conexões
em meio a conteúdos de mídias dispersos. Despertar o interesse pela comunicação estatal pró-
ativa, através da abertura de canais para que a sociedade civil ocupe seu espaço como ator
social, é requisito para o exercício pleno da cidadania.
Conforme se vê, as matérias publicadas no site da instituição são, muitas vezes,
replicadas na mídia social, tornando este meio bem mais completo que o anterior. Há sempre
links direcionando para o site, assim como neste há direcionamento para o Facebook,
demonstrando interligação entre os canais de comunicação. Com a diferença de que neste

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último, percebemos maior liberdade para abordagens de determinados assuntos.


Como é de se notar, a intranet aparenta uma visão mais voltada para os conceitos de
comunicação pública, propostos pela autora. Abrangendo uma gama maior de assuntos, sugere
que represente um avanço em relação ao site. Acredita-se que os gestores de comunicação
encarem a mídia social como uma forma de complementação àquela.
O conceito de literacia e o proposto por Haswani (2010) como sendo o de comunicação
pública, vão ao encontro dos valores da instituição, sendo eles o compromisso com o interesse
público, promoção de Direitos Humanos, identificação dos cidadãos como sujeitos de direitos,
unidade institucional, ética nas relações internas e externas, valorização e qualificação
profissional, além de eficiência, qualidade, imparcialidade.
A literacia defende também o desenvolvimento de competências que nos permitam
conviver com as diferenças. Uma reflexão sobre a intolerância levou à criação de delegacias
especializadas, para um enfrentamento mais incisivo a esses conflitos que têm como vítimas
grupos minoritários, nos mais diversos estados do país. Verifica-se na Polícia Civil de Minas
Gerais uma crescente preocupação pela discussão desses assuntos, através de ciclos de
debates, entre outros eventos.
A literacia também tem como um de seus campos a conservação da memória de uma
nação, o que pode ser estendido à instituição, que como sabemos teve uma importante atuação,
desde o período colonial brasileiro. Como indicação de acesso a essas informações, citamos o
livro da Fundação João Pinheiro (2018), o site da Polícia Civil de Minas Gerais e uma
disciplina sobre a história da instituição, ministrada durante os cursos de formação, na
Acadepol.
A avaliação consta de aspectos positivos e negativos em relação aos veículos e sistemas
abordados. Percebe-se que em muitos pontos, de um tempo para cá, a instituição avançou. Num
momento de perda de crença na legitimidade das instituições de segurança pública, entende-se
que novas políticas ainda devem ser colocadas em prática, com constante avaliação e
monitoramento. Mudanças significativas só serão possíveis com uma nova postura, uma nova
abordagem no que diz respeito a permitir uma maior interação e interatividade de seus diversos
públicos, dando estes a oportunidade de apontarem suas demandas.

Referências

Alfabetização midiática e informacional. Disponível em:


http://unesdoc.unesco.org/images/0024/002464/246421POR.pdf. Acesso em: 13 set. 2017.

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FREITAS, Sidineia Gomes. Liderança e poder: um enfoque comunicacional. In: Liderança


e comunicação interna / Marlene Marchiori (org.). – 1. ed. São Caetano do Sul, SP: Difusão
Editora; Rio de Janeiro: Editora Senac Rio de Janeiro, 2014. – (Coleção faces da cultura e da
comunicação organizacional; v.6)

HASWANI, Mariângela Furlan. A comunicação estatal como garantia de direitos: foco no


Brasil, na Colômbia e na Venezuela/ Mariângela Furlan Haswani. São Paulo, 2010.

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Edições Loyola, 2000.

RHEINGOLD, Howard. Net Smart: How to Thrive Online. 2012.

VEIGA, Isabela Rodrigues. Coberturas jornalísticas e construção de reputação


institucional: a representação da Polícia Federal na imprensa e seus reflexos identitários. Juiz
de Fora: 2009, Universidade Federal de Juiz de Fora.

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PERSONALISMO NO CONTEXTO DE CRISE:


Análise das estratégias de comunicação dos candidatos ao governo
de Minas Gerais Anastasia (PSDB) e Pimentel (PT) no Facebook1

Deborah Luísa Vieira dos Santos2


Luiz Ademir de Oliveira3
Universidade Federal de Juiz de Fora

Resumo

O desenvolvimento dos meios de comunicação (massivos ou digitais) alterou a forma dos


sujeitos de perceber e construir a realidade e as narrativas sobre o mundo. Isto também
interfere nos campos de saberes e processos sociais, inclusive na política. Neste sentido, o
artigo aborda os recursos empregados nas campanhas para governador de Minas Gerais nas
redes sociais levando-se em conta como os dois principais candidatos na disputa – Fernando
Pimentel (PT) e Antônio Anastasia (PSDB) – constroem a narrativa do cenário de crise
vigente no estado. Para tal investigação, tomou-se a primeira semana de campanha eleitoral
permitida nas fanpages dos candidatos, que compreende de 16 a 23 de agosto de 2018, e fez-
se uma Análise de Conteúdo (BARDIN, 2011) quantitativa e qualitativa das mensagens
publicadas pelos candidatos e como os mesmos constroem a narrativa da crise de forma
diferente, de acordo com os seus interesses e objetivos de campanha.

Palavras-chave: Personalismo; Meios de Comunicação; Facebook; Eleições Estaduais;


Minas Gerais.

PERSONALISM IN THE CONTEXT OF CRISIS:


Analysis of communication strategies for government candidates from Minas Gerais
Anastasia (PSDB) and Pimentel (PT) on Facebook

Abstract

The development of the media (massive or digital) changed the way individuals perceive and
construct reality and narratives about the world. This also interferes in the fields of knowledge
and social processes, including politics. In this sense, the article discusses the resources used
in the campaigns for governor of Minas Gerais in social networks, taking into account how

1
Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Estudos Interdisciplinares, do XI Encontro dos Programas de Pós-
Graduação em Comunicação Social de Minas Gerais, 18 e 19 de outubro de 2018.
2
Mestranda em Comunicação do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, da Universidade Federal de
Juiz de Fora (PPGCom-UFJF) e bolsista do Programa de Bolsas de Pós-Graduação (PBPG-UFJF). Graduada em
Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ).E-mail:
dlvs1@hotmail.com.
3
Orientador do trabalho, Doutor em Ciência Política pelo IUPERJ, docente do Curso de Jornalismo da
Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) e professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em
Comunicação da UFJF, e-mail: luizoli@ufsj.edu.br.

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the two main candidates in the dispute - Fernando Pimentel (PT) and Antônio Anastasia
(PSDB) - construct the narrative of the scenario of crisis in the state. For this research, the
first week of the electoral campaign allowed in the candidates' fanpages, which took place
from August 16 to 23, 2018, was carried out and a Quantitative and Qualitative Content
Analysis (BARDIN, 2011) of the messages published by the candidates and how they
construct the narrative of the crisis differently according to their interests and campaign
objectives.

Keywords: Personalism; Media; Facebook; State Elections; Minas Gerais.

Introdução
Para esta pesquisa, é relevante compreender como a realidade é construída
socialmente e como os meios de comunicação interferem nesse processo de significação de
mundo (BOURDIEU, 1989; BERGER e LUCKMANN, 2007). Interessa-nos, também,
investigar como esse processo ressignificou a dicotomia público-privado, antes relacionada à
interação de co-presença e, agora, “existir” também se diferencia de “existir publicamente”.
Assim, somente existe, preferencialmente, se for noticiado, veiculado pelos meios de
comunicação (RUBIM, 2000; THOMPSON, 2008).
Esse processo de midiatização, na qual o campo midiático possui certa “semi-
independência” e interfere nos demais campos sociais (FAUSTO NETO, 2010), demonstra o
potencial da mídia de intervir nos processos sociais e na construção da realidade, o que inclui
os processos eleitorais. Nesse sentido, tem-se a mídia, tradicional ou digital, como palco para
disputas políticas. A campanha eleitoral, por sua vez, passa a ter o foco nas características
pessoais dos candidatos – qualidades e aptidões, trajetória de vida e na política –, havendo um
crescente personalismo (MANIN, 1995; SCHWARTZENBERG, 1977).
Criada para fins militares, a internet foi incorporada nas campanhas eleitorais na
década de 1990, nos Estados Unidos (AGGIO, 2011). No Brasil, somente em 2010 o Tribunal
Superior Eleitoral (TSE) permitiu oficialmente a utilização das mídias sociais em campanhas
(AGGIO, 2015). Desde então, o recurso vem sendo utilizado como mais uma ferramenta de
aproximar candidatos e eleitorado (RECUERO, 2009).
Torna-se relevante ainda entender o conceito de narrativa e como o mesmo permeia a
construção de mundo, bem como, reflete uma visão de mundo própria do sujeito. A narrativa
é comumente associada a “relato”. Todavia, há uma relação simbólica que permeia seu
significado e intenções (CARDOSO, 1997). O ato de contar histórias para significar o mundo
e passar conhecimento é próprio da natureza humana. Ou seja, “os seres humanos têm uma
predisposição cultural, primitiva e inata, para organizar e compreender a realidade de modo

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narrativo” (MOTTA, 2013, p. 71). Há uma organização discursiva nas narrativas capaz de
ligar pontos, ordenar fatos, utilizando a perspectiva causa consequência, além da possibilidade
de recriar o passado e apontar o futuro (CARDOSO, 1997; MOTTA, 2013). Por meio da
narrativa, pode-se perceber, interpretar e organizar a realidade em uma ordem cronológica de
passado-presente-futuro.
O cenário atual é também de crise em Minas gerais, marcada pelo parcelamento e
atraso do pagamento de servidores e aposentados, bem como o não repasse de verbas aos
municípios4. Portanto, torna-se interessante observar como a narrativa da crise é construída e
utilizada pelos principais candidatos ao governo do estado, que formam mais uma vez a
polarização PT versus PSDB. Enquanto Pimentel (PT) tenta a reeleição, Anastasia (PSDB)
tenta voltar ao governo de Minas em um já cargo ocupado anteriormente e ambos constroem a
narrativa da crise com vistas ao processo eleitoral.
Para tal investigação, utilizou-se a Análise de Conteúdo (BARDIN, 2011), tendo como
corpus de análise todas as postagens das fanpages dos dois principais candidatos, Anastasia
(PSDB) e Pimentel (PT), à disputa eleitoral, na primeira semana de campanha – 16 a 23 de
agosto de 2018. As categorias empregadas foram criadas a partir da repetição dos temas
encontrados nas postagens e abrangem a imagem do candidato, a causa da crise e suas
consequências, propostas de como vencer a crise, entre outras que, ordenadas em presente,
passado e futuro, constroem diferentes narrativas sobre o mesmo fato: crise econômica no
estado de Minas Gerais.

Narrativa, Mídia e a Conformação da Realidade


A narrativa é comumente associada a “relato”, todavia, há uma relação simbólica que
permeia seu significado e intenções (CARDOSO, 1997). O ato de contar histórias para
significar o mundo e passar conhecimento é próprio da natureza humana. Ou seja, “os seres
humanos têm uma predisposição cultural, primitiva e inata, para organizar e compreender a
realidade de modo narrativo” (MOTTA, 2013, p. 71). Há uma organização discursiva nas
narrativas capaz de ligar pontos, ordenar fatos, utilizando a perspectiva causa consequência,
além da possibilidade de recriar o passado e apontar o futuro (CARDOSO, 1997; MOTTA,
2013). Por meio da narrativa, pode-se perceber, interpretar e organizar a realidade em uma

4
“Sem dinheiro, Minas distribui ambulâncias e parcela salários”, publicada pelo site da Folha de São Paulo, em
13 de maior de 2018. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/05/sem-dinheiro-minas-
distribui-ambulancias-e-parcela-salarios.shtml>. Acesso em 08 out. 2018.

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ordem cronológica de passado-presente-futuro. Uma forma de se tentar responder aos grandes


“porquês” da história (HOBSBAWN, 1998).
Narrar é um processo de relatar mudanças, transformações e processos de sucessão
relacionados entre sim, em um esquema de causa-consequência e em ordem cronológica –
passado-presente-futuro ou início-meio-fim – em uma dialética de continuidade e
descontinuidade (CARDOSO, 1997; MOTTA, 2013). Narrar, portanto, “é relatar eventos de
interesse humano enunciados em um suceder temporal encaminhado a um desfecho”
(MOTTA, 2013, p. 71).
É importante salientar que a narrativa não é uma representação fiel do que aconteceu,
mas uma representação construída pelo sujeito e se dirige a alguém
(espectador/receptor/leitor), tendo-o como uma espécie de co-autor (REIS, 2006). Narrar e um
adquire um comportamento mimético (imitação), ao representar um fato acontecido
(CARDOSO, 1997; MOTTA, 2013).
Motta, em seu artigo “A Análise Pragmática da Narrativa Jornalística”, apresenta a
narrativa midiática como formas que norteiam as ações dos seus receptores, não uma mera e
despretensiosa representação da realidade. Para ele, as narrativas e narrações são ferramentas
discursivas que servem a interesses específicos, sendo formas de exercer poder e hegemonia.
O discurso, desse modo, seja ele narrativo, literário, histórico, jornalístico, ou qualquer outro,
realiza ações e performances sociais e culturais.
Müller (2007) aponta que toda narrativa apresenta e representa a realidade e pode
revelar conflitos sociais e iluminar as estruturas sociais. Quando o indivíduo escuta, vê e lê
uma estória, ele também está na estória e recria a significação da mesma, relacionando-a com
os próprios valores e memória cultural (MOTTA, 2013). A memória passa, então, a ser
modificada sempre que as novas experiências se relacionam e se integram às já existentes
(MÜLLER, 2007). As narrativas midiáticas, portanto, constituem as formas de ver e
interpretar um dado fato, participando da construção da memória sobre ele.

Centralidade da Mídia para a Política


O campo político não está alheio à interferência do campo midiático. Na política, a
interação mediada possibilita o maior contato entre os atores políticos e seus eleitores, mesmo
que eles não ocupem o mesmo tempo e espaço. Ou seja, por meio do uso dos mass media, a
interação entre político e eleitorado passa a ser mais abrangente. Ao adotar a lógica e
gramática da mídia, os agentes políticos são transformados em verdadeiros atores, utilizando

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os meios de comunicação de palco para a disputa eleitoral (HJARVARD, 2012; MANIN,


1995; SCHWARTZENBERG, 1977).
Ademais, as relações de comunicação são também relações de poder que necessitam
do capital material ou simbólico adquiridos pelos atores sociais envolvidos, os quais
colaboram para o acúmulo de poder simbólico desses agentes (BOURDIEU, 1989; MIGUEL,
2003). Assim, mesmo o campo político tendo suas especificidades e características próprias,
ele se apropria do discurso midiático para alcançar o público eleitor, construir significados e
atingir seus objetivos.
Por muito tempo, a representação esteve ligada à relação de confiança entre eleitores e
partidos políticos, uma vez que essas pessoas se identificavam com as ideologias de
determinados partidos e com os mesmos estabeleciam uma relação de fidelidade (MANIN,
1995). Esse cenário veio se alterando por uma série de fatores, como: a centralidade da mídia
para a política; as estratégias cada vez mais personalistas de campanhas; e os partidos tornam-
se cada vez mais parecidos entre si (partidos catch-all), visando abranger o maior número de
eleitores (ALBUQUERQUE e DIAS, 2002; MANIN, 1995).
Para Manin (1995), através do uso dos meios de comunicação, a “democracia de
partido” dá lugar à “democracia de público”, o que significa que em lugar da identificação
partidária, os eleitores passam a escolher o candidato por sua personalidade e aptidões
pessoais, a identidade/imagem que o mesmo constrói nos meios de comunicação. Com o
desenvolvimento dos media, o eleitorado passa a conhecer os candidatos pela utilização da
mídia e, nesse contexto, a vitória passa a ser do melhor comunicador, de quem melhor utiliza
a lógica da mídia a seu favor. (MANIN, 1995; MIGUEL & BIROLI, 2010;
SCHWARTZENBERG, 1977). Isso contribui para que o eleitor vote de forma diferente de
uma eleição para outra, dependendo do contexto no qual se insere e das personalidades dos
candidatos (ALBUQUERQUE e DIAS, 2002).
A política, outrora, eram as ideias. Hoje, são as pessoas. Ou melhor, as personagens.
Pois cada dirigente parece escolher um emprego e desempenhar um papel. Como
num espetáculo. Doravante, o próprio Estado se transforma em empresa de
espetáculos, em ‘produtor’ de espetáculos. A política se faz, agora, encenação.
Agora, todo dirigente se exibe e se dá ares de vedete. Por aí vai a personalização do
poder. (SCHWARTZENBERG, 1977, p. 9)

Para Schwartzenberg (1977), o poder, antes anônimo e abstrato, agora, ganha uma
fisionomia – a fisionomia do dirigente. Diferente do poder pessoal, o qual uma única pessoa
controla todos os poderes, a personalização do poder apresenta-se como uma máscara. O
político assume a máscara da personagem, diferencia-se dos demais, aparece diante do seu

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público e conquista seus votos, chegando assim ao poder. O poder, assim, personaliza-se, é
encarnado na personagem e ela passa a simbolizar a nação ou partido, representando o poder
do grupo que nele se encarna. Entretanto, o candidato, ao assumir um determinado papel,
deve mantê-lo até o final, mesmo que isso cause constante ensaio e vigilância. Caso contrário,
pode acabar com sua possibilidade de vitória, uma vez que o eleitorado pode achar estranho
ou se decepcionar com a mudança repentina de um candidato. A representação torna-se uma
simulação, um fingimento da realidade, capaz de seduzir e persuadir o público, com intuito de
conquistar o seu voto. Este personagem se adequa a cada situação e contexto vigente.
Desse modo, com o aparecimento dos meios de comunicação, os atores políticos e os
aspirantes a esse meio tiveram de se atentar às suas apresentações diante do público e à
imagem pessoal, agora mediada e construída pela mídia (THOMPSON, 2008;
SCHWARTZENBERG, 1977). Mesmo o campo político tendo suas especificidades e
características próprias, ele apropria-se do discurso midiático para alcançar o público eleitor,
construir significados e atingir seus objetivos. Ou seja, os atores políticos são moldados de
modo a construir uma realidade sobre si – que nem sempre coincide com o real – capaz de
gerar identificação e projeção do público.

Incorporação da Internet nas Campanhas Eleitorais


Para Figueiredo et al (1998), a retórica política é ficcional, na qual dois discursos
disputam espaço: o da situação versus o da oposição. Isto porque a retórica política se baseia
em uma forma de se decodificar o mundo, fundamentada nas percepções do real, de natureza
ficcional. Para atrair o eleitorado, os atores políticos formam um mundo atual possível.
Portanto, os argumentos discursivos passam por duas vertentes: I- o mundo atual está ruim,
mas ficará bom (argumentação da oposição), e II- o mundo atual está bom e ficará ainda
melhor (argumentação da situação).
A internet foi criada para fins militares na década de 1960, nos Estados Unidos
(CASTELLS, 1999). Nas décadas seguintes, essa rede de comunicação foi incorporada para
as mais diferentes finalidades, inclusive para as relações interpessoais e, é nesse contexto, que
surgem as redes sociais. O que sugere que “os novos princípios mais democráticos devem
estar alicerçados em uma interface cultural entre homem e novas tecnologias” (PINHEIRO,
2009, p. 101). Assim, o surgimento da rede mundial de computadores e seu desenvolvimento
impactaram o homem e os diferentes setores da sociedade, inclusive, a política.
O uso das plataformas digitais incorporadas às campanhas teve início na década de 90,
nos Estados Unidos. Somente no século XXI, com o potencial da web 2.0, que as estratégias

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de campanhas passaram a explorar questões que são próprias da internet, como a interação, a
participação em tempo real, a convergência de mídia. A disputa com maior incorporação das
redes sociais até então foram as eleições presidenciais dos EUA de 2010, na qual Obama foi
eleito (AGGIO, 2011).
No Brasil, a primeira campanha a utilizar a internet foi em 1998 e, na época, menos de
3% dos eleitores tinha acesso à internet (SOUSA e MARQUES, 2017). Todavia, somente nas
eleições de 2010 permitiu-se a utilização dos recursos digitais, como as mídias sociais
(AGGIO, 2015). No início, foram usados os websites e blogs, domínios ainda bastante
particulares, os quais permitia o controle sobre as ferramentas e dos recursos utilizados, bem
como, controle de como a comunicação se estabeleceria. Com o advento e popularização das
redes sociais, como o Facebook, perde-se um pouco esse controle, o que força os partidos e
candidatos a adaptarem suas campanhas a exploração desses ambientes nos quais os usuários
criam as regras e conferem os sentidos.
Se a democracia digital possibilita novas formas de interação e de participação
política, destacam-se os investimentos cada vez maiores em ferramentas como as redes
sociais, como é o caso do Facebook, nas disputas eleitorais. Nesse sentido é válido destacar
que o Facebook atingiu a marca de 127 milhões de usuários ativos no Brasil 5 no primeiro
trimestre deste ano. Com essa marca, a rede social supera o Whatsapp, aplicativo da mesma
empresa e o Brasil torna-se um dos cinco maiores mercados para a companhia.
As campanhas políticas têm passado por alterações devido às transformações na
comunicação, inclusive devido à utilização das plataformas virtuais, isso porque mais do que
permitir a comunicação dos indivíduos, elas ampliaram a capacidade de conexão dos sujeitos
(RECUERO, 2009; CASTELLS, 1999). Esse novo cenário acarreta novos desafios ao
planejamento das estratégias de campanha e construção da imagem pública dos candidatos,
sendo um meio integrante “da estratégia dos núcleos de comunicação das campanhas a
tentativa de atrair a militância espontânea a fim de ampliar a visibilidade da agenda defendida
pelo candidato” (MIOLA e MARQUES, 2018, p. 3-4). Isso contribui para que, mesmo em
tempos fora das disputas, os agentes políticos apresentem-se aos usuários dessas redes, tanto
em termos políticos quanto pessoais (SOUSA e MARQUES, 2017). A disputa online,
portanto, diminui o distanciamento entre a esfera civil e a política e, em temos de

5
“Facebook chega a 127 milhões de usuários mensais no Brasil”, matéria veiculada pela Folha de São Paulo,
publicada em 18 de julho de 2018. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/tec/2018/07/facebook-chega-
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representatividade, essa participação online pode ser mais rica se comparada às iniciativas
presenciais (AGGIO, 2015).
Contudo, as disputas nos meios de comunicação digitais ocupam-se de uma
abordagem mais informativa do que interativa. Isso ocorre por uma série de fatores, dentre
eles o custo em responder cada mensagem encaminhada, possibilidade da perda de controle
da agenda e a zona de conforto criada pela possibilidade do candidato se abster de discussões
sensíveis para si (STOMER-GALLEY apud MIOLA e MARQUES, 2018).
Isto posto, torna-se importante compreender como a mídia (tradicional e digital)
interfere nos processos sociais, como as disputas eleitorais, tendo como objeto as eleições
para governador de Minas Gerais em 2018. Isso porque remete a um contexto de mudanças na
legislação eleitoral, desgaste dos partidos políticos e crise econômica enfrentada pelo estado,
questões importantes para se compreender como tais propagandas e narrativas foram
construídas.

Estudo de caso: análise das fanpages de Anastasia (PSDB) e Pimentel (PT)


O estudo de casos busca investigar quais as narrativas sobre a crise econômica
construídas pelos principais candidatos a governador de Minas, Antônio Anastasia (PSDB) e
Fernando Pimentel (PT), em suas respectivas fanpages.

Metodologia e corpus de análise


Como aporte metodológico, para responder à questão principal desta pesquisa, foi
utilizada a Análise de Conteúdo, proposta por Bardin (2011). A Análise de Conteúdo permite
a classificação por meio da criação de categorias que coloquem os componentes que se
repetem (ou silenciam-se) nas mensagens, organizando-os em espécies de “gavetas”
(BARDIN, 2011).
Como corpus de análise, foram capturadas todas as publicações dos dois principais
candidatos ao governo de Minas Gerais, Anastasia (PSDB) e Pimentel (PT), por meio da
utilização do recurso de Print Screen do computador. O período coletado compreende a
primeira permitida para campanha, inclusive nas redes sociais, compreendendo o período
entre os dias 16 e 23 de agosto de 2018.
Para tal pesquisa, após a pré-análise e exploração do material, foram criadas categorias
que contemplem as duas principais características das narrativas: a organização de forma
cronológica e a relação causa-consequência, levando-se em conta a causa da crise, suas
consequências, seu início, o que a motivou, agravou e o que – ou quem – pode solucioná-la.

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Contexto Político e Econômico: A crise em Minas Gerais


Historicamente, Minas Gerais foi berço de importantes atores políticos que chegaram
a ocupar lugares de destaque no cenário nacional, como Juscelino Kubitschek, Tancredo
Neves e Itamar Franco. Tancredo Neves é considerado como um dos principais articuladores
da redemocratização brasileira e foi governador de Minas pelo PMDB de março de 1983 a
agosto de 1984. Em 1985, foi eleito presidente do Brasil em eleições indiretas, contudo,
faleceu antes de ocupar o cargo. José Sarney, na época do PFL, tomou posse em seu lugar e
governou até 1990, quando houve as primeiras eleições com a participação popular após o
período ditatorial no Brasil.
Com a saída de Tancredo Neves do governo mineiro, 1984, assumiu seu vice, Hélio
Garcia. Nas eleições de 1986, Newton Cardoso (PMDB) venceu e permaneceu no cargo até
1990, quando reassumiu seu opositor Hélio Garcia, pelo extinto Partido das Reformas Sociais.
Em 1994, Eduardo Azeredo (PSDB) foi eleito.
Em 1998, Itamar Franco (PL), antes aliado dos tucanos e participante da implantação
do Plano Real durante o governo Fernando Henrique, rompeu a aliança para disputar como
governador de Minas. Em 2002, o neto de Tancredo Neves, Aécio Neves (PSBD), venceu
para governador do estado em 1º turno com uma votação recorde de 58% dos votos válidos.
Em 2006, Aécio Neves foi reeleito em 1º turno. Em 2010, Aécio apoiou o seu sucessor e
companheiro de partido, Antônio Anastasia (PSDB). Em 2014, Fernando Pimentel (PT),
apoiado pelo PMDB, interrompeu a hegemonia tucana e derrota Pimenta da Veiga.
No pleito de 2018, têm-se nove candidatos concorrendo para governador: Antônio
Anastasia (PSDB), Romeu Zema (NOVO), Adalclever Lopes (MDB), João Batista Mares
Guia (Rede), Alexandre Flach (PCO), Claudiney Dulim (Avante), Dirlene Marques (PSOL) e
Jordano Metalúrgico (PSTU). Anastasia segue líder nas pesquisas6, com 33% da intenção dos
votos, seguido de Pimentel (PT), com 22%, mantendo a polarização PT versus PSDB no
estado.
Pimentel foi eleito em 2014 e cumpre seu primeiro mandato, entrou na militância
ainda jovem e atuou contra a ditadura. Tornou-se prefeito de BH em 2004, mandato pelo qual
foi apontado como o oitavo melhor prefeito do mundo, pelo site inglês Worldmayor7. Já

6
“Pesquisa Ibope em MG: Anastasia, 33%; Pimentel, 22%”, veiculada pelo Portal G1 em 02 de outubro de
2018. Disponíel em: < https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/eleicoes/2018/noticia/2018/10/02/pesquisa-ibope-
em-mg-anastasia-33-pimentel-22.ghtml> Acesso 03 out. 2018.
7
Biografia disponibilizada pelo site do Governo de Minas Gerais. Disponível em:
<http://mg.gov.br/governador/fernando-damata-pimentel> . Acessado em: 30 jun. 2018.

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Antônio Anastasia (PSDB)8 foi eleito vice-governador de Minas em 2006, assumindo o cargo
de governador em 2010, sendo reeleito no pleito do mesmo ano. Anastasia também é
professor universitário, tem mais de 20 anos de trajetória política e atua na administração
pública. Em 2014, venceu como senador pelo estado.
Outrossim, Minas Gerais enfrenta uma crise econômica sem precedentes. O estado
está inadimplente com municípios e, de acordo com a Associação de Municípios9, deve um
montante de quase 5 bilhões de reais, sendo o setor mais afetado o da Saúde. Sendo que esse
não repasse vem afetando o funcionamento dos próprios municípios. Ainda, os salários dos
professores e demais servidores públicos10 está sendo parcelado e sofre atrasos. Há obras
públicas paralisadas ou atrasadas por falta e recursos. Esta crise vem contribuindo para a
construção de uma imagem negativa do Governo Pimentel e sendo utilizada pelos opositores
nas suas respectivas campanhas, como na campanha de Anastasia. O candidato tucano utiliza
também o exemplo os feitos de quando ocupou o cargo de governador para construir sua
narrativa e continuar à frente nas pesquisas.
Portanto, cenário de crise em Minas está bastante presente nas discussões políticas e
influenciam nos rumos da campanha, com apropriações diferentes por cada candidato, com
vistas a beneficiar a própria campanha rumo à vitória.

Análise de Conteúdo e a Narrativa da Crise


Apenas na primeira semana de campanha permitida (16 a 13 de agosto de 2018), os
candidatos Anastasia (PSDB) e Pimentel (PT) totalizaram 126 publicações. Destas, 61 feitas
pelo candidato tucano e 65 do candidato petista.
A partir das temáticas que mais se repetiam nas mensagens postadas, foram criadas
categorias específicas para cada candidato, com a finalidade de identificar quais as narrativas
sobre a crise apresentadas pelos principais candidatos ao governo do estado, como elas se
cruzam com a narrativa da própria trajetória política dos mesmos e a crescente personalização
da política.

8
Biografia disponibilizada pelo site do Governo de Minas Gerais. Disponível em:
<http://mg.gov.br/governador/antonio-anastasia> . Acessado em: 30 jun. 2018.
9
“Governo de Minas deve R$ 4,7 bilhões a prefeituras, diz Associação de Municípios”, veiculada no G1.
Disponível em: < https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/governo-de-minas-deve-r-47-bilhoes-a-
prefeituras-diz-associacao-de-municipios.ghtml > Acessado em: 01 ago. 2018.
10
“Sem data para pagar, governo de Minas atrasa salários de novo”, veiculada no Estado de Minas. Disponível
em: < https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2018/08/01/interna_politica,977155/sem-data-para-pagar-
governo-de-minas-atrasa-salarios-de-novo.shtml > Acessado em: 01 ago. 2018.

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Antônio Anastasia (PSDB) possui pouco mais de 99 mil curtidas e quase 99 mil
seguidores em sua fanpage11. Por meio da observação e codificação do material analisado, foi
possível identificar que, das 61 publicações, 34 referiram de alguma forma à crise, ou seja,
mais da metade do que foi postado referia-se ao contexto de crise vivenciado pelo estado de
Minas Gerais. Das mensagens publicadas podem ser extraídas 5 (cinco) categorias para
identificar a narrativa da crise, sendo elas: a) Como era o estado na sua gestão como
governador; b) Culpa da crise; c) Imagem do candidato; d) Consequências da crise; e)
Experiência com crises; f) Como vencer a crise.
O segundo colocado nas pesquisas de intenção de voto, Fernando Pimentel (PT),
possui em sua fanpage12 mais de 232 mil curtidas e aproximadamente 229.600 seguidores.
Das 65 postagens realizadas na semana de análise, 20 eram referentes à crise em Minas.
Como categorias têm-se: a) Culpa da crise; b) Imagem do candidato; c) Prestação de contas;
d) Resposta às acusações do adversário; e) Como vencer a crise.
Essa diferenciação nas categorias empregadas dá-se, justamente, pelo fato das
narrativas serem diferentes. Isso ocorre por diversos fatores, dentre eles a própria trajetória de
cada candidato: Anastasia (PSDB), governador na gestão que antecedeu a de Pimentel (PT).
Conforme apontam Figueiredo et al (1998), tem-se uma disputa de retóricas – a da situação (o
mundo atual está bom ou está razoável no caso do Pimentel, mas pode ficar melhor a partir da
reeleição) e o da oposição (o mundo atual está péssimo, mas pode melhorar com a mudança
de governo).
É importante salientar que uma postagem pode se enquadrar em mais de uma
categoria, visto a dinamicidade e a característica multimodal das redes sociais.

A Narrativa da Crise de Antônio Anastasia (PSDB)


A partir da Análise de Conteúdo (BARDIN, 2011) e aplicando as categorias criadas,
obteve-se o seguinte quadro:

Categoria Número de postagens (%)


a) Como era o estado na sua gestão como governador 18 (29,5%)
b) Culpa da crise 18 (29,5%)

11
Link da página do candidato Antônio Anastasia (PSDB) em sua página do Facebook. Disponível em:
<https://www.facebook.com/AntonioAnastasiaOficial/> Acesso em 03 out. 2018.
12
Link da página do candidato Fernando Pimentel (PT) em sua página do Facebook. Disponível em:
<https://www.facebook.com/PimentelMinas/> Acesso em 03 out. 2018.

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c) Imagem do candidato 19 (31%)


d) Consequência da crise 14 (22,8%)
e) Experiência com crises 4 (6,5%)
f) Como vencer a crise 12 (19,6%)

Quadro 1: Análise de Conteúdo das postagens de Anastasia (PSDB) na 1ª semana | Fonte: Próprios autores

A partir das mensagens analisadas, é interessante fazer as seguintes observações: na


categoria “Como era o estado na sua gestão como governador”, segunda mais acionada
(29,5%), o candidato sempre reconstrói uma imagem positiva sobre si, como bom gestor,
governante e que, na época em que era governador, não havia crise. As mensagens sempre
apontam fatos para isso. Na categoria “Culpa da crise”, também segunda categoria mais
presente, ao apontar a causa da crise, Anastasia sempre acusa o adversário, Pimentel,
enquanto governador em atividade durante o agravamento ou início da mesma, colocando-o
como um mau gestor. Fator esse já utilizado para desconstruir a imagem do adversário e
tentar tirar votos do mesmo, utilizando todos os fatos recentes.
Na categoria “Imagem do candidato”, a mais utilizada (presente em 31% dos posts),
Nela, o tucano ressalta suas qualidades em enfrentar crises anteriores, como bom gestor e
possuidor de valores morais, construindo e reforçando uma imagem positiva sobre si.
Construção também presente em na categoria “Como vencer a crise”.
A terceira categoria que mais apareceu nas publicações (22,8%) foi “Consequência da
crise”. Anastasia reforça as consequências da crise, especialmente, as vivenciadas e
impossíveis de se questionar, como, por exemplo, o parcelamento e atraso do pagamento dos
salários dos servidores e aposentados e a paralisação de obras. Além disso, o candidato se
solidariza com os que sofrem pelos problemas citados e desconstrói a imagem do estado e do
mineiro, agora, desanimado nesse ambiente de crise.
Na categoria “Como vencer a crise”, presente em 19,6%, Anastasia reforça que não
existe um salvador para a crise, tentando desconstruir a imagem de possíveis adversários
outsiders ou messiânicos. Como possibilidade de vencer a crise, o tucano reforça a
importância de discutir e trabalhar a economia do estado, com geração de mais emprego e
renda e a atração de grandes empresas para o estado.
No que diz respeito à narrativa da crise construída pelo candidato tucano, pode-se
ressaltar a constante afirmação do mesmo de que no governo dele, anterior ao governo de
Pimentel, ela não existia – ou pelo menos não era tão visível. Anastasia sempre compara o seu
governo com o de agora, para reafirmar essa ideia. Ainda, o tucano acusa o adversário de se

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apropriar, de forma ilegal, do dinheiro destinado aos municípios. O candidato do PSDB


constrói, a partir do momento de crise, uma imagem sobre si de bom gestor, experiente,
liderança capaz de trabalhar com a melhor equipe – de não políticos – e competente o
suficiente vencê-la e colocar Minas de novo no caminho do progresso.

A Narrativa da Crise de Fernando Pimentel (PT)


A partir da Análise de Conteúdo (BARDIN, 2011), pode-se analisar as postagens da
fanpage do candidato a reeleição, Fernando Pimentel (PT), obteve-se o seguinte quadro:

Categoria Número de postagens (%)


a) Culpa da crise 16 (24,6%)
b) Imagem do candidato 10 (15,3%)
c) Prestação de contas 16 (24,6%)
d) Resposta ao ataque do oponente 2 (3%)
e) Como vencer a crise 9 (13,8%)

Quadro 2: Análise de Conteúdo das postagens de Pimentel (PT) na 1ª semana | Fonte: Próprios autores

As categorias mais acionadas por Pimentel foram “Culpada crise” e “Prestação de


contas”. A categoria “Culpa da crise”. Assim como o adversário tucano, está sempre
relacionada ao ataque e desconstrução da imagem do oponente. Nela, o petista acusa, não só o
adversário, mas às gestões tucanas (Aécio e Anastasia), como uma “crise herdada”, acusando-
as de terem mascarados os rombos nos cofres públicos, gastado muito com propaganda e
obras desnecessárias (como a construção da cidade administrativa). Outro fator que, de acordo
com a campanha de Fernando Pimentel, gerou e agravou a crise econômica foi o boicote feito
pelo governo federal, após Temer assumir a presidência.
Em “Prestação de contas”, o petista tenta desconstruir a ideia de uma crise
generalizada, na qual o estado está à beira de um colapso e nada funciona. Para isso, ele
apresenta uma espécie de prestação de contas, com dados, relatos e notícias, que ratifiquem
seu investimento, apesar da crise, em segurança pública e educação, especialmente.
A segunda categoria mais acionada (15,3%) foi “Imagem do candidato”. Ressaltada suas
principais qualidades a honestidade, a transparência, o diálogo contínuo e a preocupação com
os mais pobres.

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Em seguida, vem “Como vencer a crise”, presente em 13,8% das publicações. Nela,
Pimentel apresenta como está vencendo a crise e as perspectivas futuras. De acordo com a
campanha, por meio da geração de renda, emprego e atração de empresas, propostas também
apresentadas por seu adversário, a crise logo será superada. Além disso, com o povo mineiro e
suas características logo Minas sairá dessa situação.
Por fim, a categoria menos acionada (3%) foi “Resposta a ataque do oponente”.
Utilizada para tentar justificar ou esclarecer as acusações dos adversários. Geralmente, é
seguida por feitos realizados pelo governo e a versão da origem da crise.

Considerações Finais
A partir da observação das narrativas construídas a respeito da crise pelos candidatos
ao governo de Minas Gerais, Antônio Anastasia (PSDB) e Fernando Pimentel (PT), é possível
perceber que as narrativas construídas são diferentes: enquanto Anastasia (PSDB) assume o
discurso da oposição de “está ruim, mas pode melhorar”, Pimentel assume o discurso da
situação de “está bom, mas pode ficar ainda melhor”.
Entretanto, os discursos aproximam-se em alguns pontos: (1) a culpa, causa ou origem
da crise sempre está na má gestão do adversário; (2) há uma constante personalização na
política, com destaque para as qualidade ou pontos negativos dos candidatos relacionados à
trajetória pessoal, política e profissional do candidato, seja para construir ou desconstruir a
própria imagem ou do oponente; (3) parece haver um diálogo e ao mesmo tempo uma
oposição entre as duas narrativas; (4) a saída para a crise é a mesma apresentada pelos dois
candidatos, sendo ela uma maior preocupação com a gestão da economia do estado.
A primeira semana de campanha coletada, de 16 a 23 de agosto de 2018, ocorreu
quando ainda não havia a permissão para a campanha na TV e no Rádio, com o Horário
Gratuito de Propaganda Eleitoral (HGPE). Isso significa que as redes sociais já estão inseridas
nas campanhas eleitorais de forma estratégica, de modo a estabelecer e manter o contato com
o eleitorado, mesmo sem a presença na mídia massiva.
A narrativa da crise foi bastante enfatizada nas publicações desta pequena amostra,
todavia aponta perspectivas de como será e está sendo as estratégias acionadas pelos dois
candidatos que disputam as eleições. Apresenta ainda as possíveis contradições e diferentes
óticas apresentadas nas narrativas, trazendo essa característica subjetiva das mesmas e as
possibilidades de apresentar essa ordem cronológica e causal da crise.

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ESCRITA DE SI E REPRESENTAÇÕES POLÍTICAS NA LETRA DA MÚSICA


IDEOLOGIA, DE CAZUZA1

Fernando Lopes da Silva2


Universidade Federal de Uberlândia

Resumo
Em 2018, o LP Ideologia, de Cazuza, completa 30 anos. Premiado pelo Sharp como o melhor
álbum do ano, Cazuza dizia que o LP denotou uma nova concepção artística. Cazuza
justificou a notoriedade de Ideologia, frente a outros LPs, a dois motivos: o primeiro refere a
sua intimidade, já que após tratamento de saúde em Boston ele o chamava de “disco da
sobrevivência”; já o segundo motivo se refere a ser este o primeiro LP que abordou questões
políticas. Neste artigo propõe-se analisar a faixa-título do LP Ideologia, especificamente
destacar os vestígios da escrita de si na letra da canção, como também as relações da música
com as representações políticas nos anos 1980. Para tanto, a análise proposta é
contextualizada a dois conceitos teóricos: a pós-modernidade, que segundo Bauman (2011),
surge em 1980 alterando aas manifestações individuais e a contracultura, que segundo Cazuza
(1988), inspirou a sua produção artística. Espera-se que este trabalho contribua para
compreender as nuances da produção artística de Cazuza, mas também lance um olhar aos
anos 80 e o período de redemocratização.

Palavras-chave: Cazuza, Ideologia, Escrita de si, escrita referencial.

Abstract
In 2018, LP Ideologia, by Cazuza, turns 30. Awarded by Sharp as the best album of the year,
Cazuza said the LP denoted a new artistic conception. The composer justified the notoriety of
Ideology, in front of other LPs, for two reasons: the first one refers to his intimacy, since after
health treatment in Boston he called it "survival disc"; already the second reason refers to
being this the first LP that approached political questions. In this article we propose to analyze
the title track of the Ideology LP, specifically highlighting the traces of self-writing in the
lyrics of the song, as well as the relationships of music with political representations in the
1980s. For this, the proposed analysis is contextualized to two theoretical concepts:
postmodernity, which according to Bauman (2011), arose in 1980 and the counterculture,
which according to Cazuza (1988), inspired his artistic production. It is hoped that this work
will contribute to understanding the nuances of Cazuza's artistic production, but also look at
the 1980s and the period of redemocratization.

Keywords: Cazuza, Ideology, Self-writing, referentialwriting.

Introdução
No ano de 1988 foi lançado o terceiro disco solo do cantor Agenor de Araújo Miranda
Neto, consagrado com o nome artístico Cazuza. Reconhecido pelas composições musicais e

1
Trabalho apresentado GT Estudos Interdisciplinares, do XI Encontro dos Programas de Pós-graduação em
Comunicação Social de Minas Gerais, 18 e 19 de outubro de 2018.
2
Jornalista, mestre em Estudos Literários pela UFU. E-mail: fernandolopes08@gmail.com

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entrevistas polêmicas concedidas à imprensa, ele afirmou, sobre o próprio trabalho artístico,
que: “Não me considero um cantor. Levo legal o meu lero. Sou animado. Mas não passo de
um letrista que canta, que gosta de palco. (ARAÚJO, 1998, p.3543).
Em se tratando das composições musicais, Cazuza expunha pontualmente um estilo
autoral intimista, quando questionado sobre o contexto em que compôs as letras das canções.
Em depoimento sobre a música Pro dia nascer feliz4, ele cita que: “A noite é uma opção de
vida. Gosto de acordar tarde e dormir com o dia nascendo. Por isso, a música Pro dia Nascer
Feliz é a história da minha vida” (ARAÚJO, 1998, p.352)5.
Ainda que as letras das músicas de Cazuza tenham características autorreferenciais, a
partir do LP Ideologia6, o cantor passou a tratar diretamente de questões coletivas como
política e perda das referências ideológicas da geração dos anos 1980. Estas questões podem
ser observadas na letra da canção6 descrita abaixo:
Meu partido, é um coração partido
E as ilusões estão todas perdidas
Os meus sonhos foram todos vendidos
Tão barato que eu nem acredito
Ah, eu nem acredito.
Que aquele garoto que ia mudar o mundo
Frequenta agora as festas do Grand Monde
Meus heróis morreram de overdose
Meus inimigos estão no poder
Ideologia! Eu quero uma pra viver
O meu prazer agora é risco de vida
Meu sex anddrugs não tem nenhum rock 'n' roll
Eu vou pagar a conta do analista
Pra nunca mais ter que saber quem eu sou
Pois aquele garoto que ia mudar o mundo
Agora assiste a tudo em cima do muro

Ideologia tanto denota uma nova concepção artística, quanto simboliza a prevalência
de embates políticos partidários no espaço público em 1988. Esses traços estão claros nos
primeiros versos da música: “Meu partido”6, atinente às dicotomias partidárias da época,
como no fragmento “é um coração partido”6, relacionado às decepções pessoais do eu
poético7 expresso na referida música.

3
Essa frase dita por Cazuza em 1984, foi publicada no livro Cazuza, só as mães são felizes, de Lucinha Araújo,
onde há fragmentos de entrevistas concedidas pelo cantor. Araújo (1998) narra também que, antes mesmo de se
tornar vocalista do Barão Vermelho, Cazuza escrevia textos e poesias escondido em seu quarto e não as
mostrava por ser crítico com sua produção. Já Frejat, no documentário Barão Vermelho – porque a gente é
assim, diz que era hábito ir até a praia pegar as letras escritas por Cazuza; depois, acrescentar melodias.
4
CAZUZA. Pro dia Nascer Feliz. In: Barão Vermelho 2 (encarte LP). Rio de Janeiro: Polygram, 1983.
5
Frase também citada no livro Cazuza, só as mães são felizes, de Lucinha Araújo.
6
CAZUZA. Ideologia (encarte Long Play - LP). Rio de Janeiro: Polygram, 1988.
7
Optou-se por utilizar a expressão “eu poético’, mesmo ao abordar uma música, com respaldo às aproximações
entre poesia e canto, notadas desde a poesia que inicialmente era cantada no trovadorismo. No período do
modernismo, Charles Perrone propôs, no que tange à produção de Vinicius de Moraes nos anos 1960, que ele
“consegue adaptar a música ao verso, traz nova sofisticação à arte da canção, estimula a reação do público à
poesia tocada e cantada, e fornece modelos gerais de dicção e expressividade a serem imitados por outros

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O objeto de pesquisa proposto neste artigo delimita-se a composição da faixa-título do


LP Ideologia. Entretanto, ao analisar o contexto da produção artística, deve-se considerar a
relação intrínseca entre artista, objeto artístico, mundo em que a obra se insere e público que a
contempla. É preciso refletir sobre o ímpeto de atribuir intenção original a uma obra de arte, a
um texto, todas as vezes que alguém tenta decifrá-lo, concedendo-lhe sentido ou significado.
Em se tratando das diferentes produções artísticas, ao abordar as relações de
intencionalidade entre autor e texto literário, Antoine Compagnon8 (1998) considera que ela
não se traduz necessariamente em premeditação do escritor e tampouco sobrepõe, por um
lado, os significados concedidos a um mesmo texto em diferentes épocas ou ainda os variados
sentidos concedidos a uma obra lida de maneira individual. Diante das aporias de tentar
restituir a intencionalidade de um texto, o referido autor propõe aplicar a noção de coerência
sempre quando se pretende restituir a intencionalidade de uma obra. Expõe, em suas análises,
a coexistência do sentido original, ulterior e anacrônico à escrita de um texto.
Nesta pesquisa, propõe-se contextualizar a análise da letra da música Ideologia, tendo
por método a mesma perspectiva de coerência assinalada por Compagnon (1998), o que
reflete a coexistência de sentido original, ulterior e anacrônico na letra da canção. Por se tratar
de análise específica da letra, nesta pesquisa não serão abordados a melodia e os arranjos
musicais de Ideologia, feitos por Roberto Frejat. Em contrapartida, valer-se-á, com a
abordagem multiangular, da verificação pormenorizada dos versos da canção escrita por
Cazuza, da contextualização dos dados analisados sobre a produção cultural dos anos 1980 e
do amparo da análise do texto às entrevistas concedidas pelo compositor sobre a própria
produção artística. Após indicar a metodologia analítica, pretende-se sondar a presença de
duas vertentes teóricas na letra da canção investigada: a escrita referencial e a escrita de si.
Entende-se por escrita referencial os versos da canção que se relacionam ao contexto
político e social da geração dos anos 1980, amparado pelo depoimento do compositor que, a
partir do LP Ideologia, passou a tratar temas coletivos que eram citados anteriormente: “Antes
eu me sentia cronista da minha tribo, muito reduzida, por ser a tribo dos boêmios. Agora,
minha temática se tornou mais abrangente. Não que não me considere mais cronista da minha
tribo, mas a minha tribo aumentou” (ARAÚJO, 1998, p.376)9.
Em contrapartida, indaga-se até que ponto a composição de Ideologia também não foi
influenciada pelas vivências do compositor, tendo em vista que ele a escreveu quando sua

letristas” (PERRONE: 1988, p.28). Observa-se que, dos anos 1970 até o tempo atual, outros cantores também
transitaram por literatura e música, como Arnaldo Antunes e Chico Buarque. O próprio Cazuza se considerava
letrista e era denominado pelo público como poeta – o primeiro a chamá-lo assim foi Caetano Veloso.
8
Antoine Compagnon é pesquisador de literatura. Tratou as noções de autoria emO demônio da teoria.
9
Frase também citada no livro Cazuza, só as mães são felizes, de Lucinha Araújo.

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saúde estava fragilizada, algo também dito em entrevista sobre o LP: “Saí da doença com o
corpo fraco e a cabeça forte. O tratamento médico nos Estados Unidos foi tão importante
quanto a gravação do disco. Este disco [Ideologia] é da sobrevivência” (CAZUZA, 1988)10.
Compõem o referencial teórico desta análise proposta de Ideologia os pesquisadores
Zygmunt Bauman e Rejane Sá Markman, os quais estudam a pós-modernidade e a
contracultura na década de 1980; Angela de Castro e Diana Irene Klinger, que aportam
reflexões sobre a escrita de si; e, finalmente, Pierre Nora, que reflete acerca da memória.
Espera-se que a análise proposta contribua para compreender a letra de uma canção relevante
na produção artística de Cazuza, assim como a geração pós-moderna dos anos 1980.

Anos 1980: afinal, que tempos foram aqueles?


Quando questionado sobre o que seria a pós-modernidade, o sociólogo polonês
Zygmunt Bauman (2011) retoma uma passagem narrada por Ehrenberg de que a tendência
surge numa quarta-feira de outono, nos anos 1980. Na ocasião, uma mulher comum afirma, na
presença de seis milhões de telespectadores, que nunca teve um orgasmo durante o
casamento, porque o marido dela tinha ejaculação precoce. A partir da narração do episódio,
Bauman (2011) destaca que começa uma revolução cultural, em que as pessoas confessam em
público o que era outrora privado, passando a verbalizar o que antes era dito apenas para
amigos íntimos.
O termo pós-moderno é utilizado, coloquialmente, tanto para retratar os contextos
políticos e culturais contemporâneos quanto para romper com teses tradicionais anteriores,
tais como os anseios modernistas que defendiam espectros políticos e representações sociais e
ideológicas. Compagnon (1996)11 assevera que, nos anos 1980, a pós-modernidade apresenta
uma fragilidade em seu conceito: “o que seria pós-modernidade, depois da modernidade,
designado pelo prefixo, se a modernidade é inovação constante, o próprio movimento do
tempo?” (COMPAGNON, 1996, p.103).
A partir deste pressuposto, o pesquisador postula que, se a modernidade é paradoxal e
complexa, a pós-modernidade também possui as mesmas características, uma vez que, ao
romper com o moderno, ela retoma a ruptura como operação frente às estruturas anteriores.
Contudo, Compagnon (1996, p. 120) considera que “o pós-modernismo resulta de uma crise
essencial da história no mundo contemporâneo, de uma crise de legitimidade dos ideais
modernos de progresso, de razão e de superação”. Deste modo, ele menciona que a pós-
modernidade, enquanto ruptura, impactou a arquitetura, filosofia e artes (também a música)
10
Entrevista de Cazuza concedida a Maurício Stycer, publicada na Folha de São Paulo em 21 de abril de 1988.
11
COMPAGNON, Antoine. Os cincos paradoxos da modernidade. Belo Horizonte: UFMG, 1999.

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que estavam, desde os anos 1960, mais próximas da publicidade e do marketing.


Antes de abordar a música no contexto pós-moderno de ruptura proposto, deve-se
tratar a música brasileira dos anos de 1960, sobretudo a ascensão de dois estilos artísticos: a
Jovem Guarda e a Tropicália. Inferem-se as proximidades desses estilos culturais com o
marketing e a publicidade mencionados anteriormente, a Jovem Guarda, como fenômeno
midiático influenciado pelos Beatles e propagado em um programa televisivo da Rede
Record. O estilo musical liderado por Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa
influenciou o comportamento, a moda e a linguagem de vários jovens durante a década, o que
a torna indissociável da mídia.
A Tropicália, por sua vez, também surgiu na década de 1960 e foi impulsionada por
outro programa televisivo de grande sucesso: o Festival da Música Brasileira. Assim como a
Jovem Guarda, ela influenciou a moda (roupas coloridas) e motivou o público com visões
sociais alternativas às vigentes na época. Destacaram-se no movimento o cineasta Glauber
Rocha e os cantores Caetano Veloso e Gilberto Gil, e pairavam, entre os adeptos do estilo, o
sentimento de inconformismo e o rompimento com o tradicional, em favor das inovações
estéticas e da antropofagia.
A Jovem Guarda e a Tropicália perderam representatividade entre 1968 e 1969. No
que se refere à primeira, a saída de Roberto Carlos do programa televisivo fez com que muitos
cantores seguissem caminhos autônomos, enveredando por outros gêneros musicais. Já a
Tropicália foi alvo preferido da censura durante o regime militar, dado que Caetano Veloso e
Gilberto Gil chegaram a ser presos quando o Ato Institucional 5 (AI-5) entrou em vigor e, em
1969, foram exilados do país. Embora a música brasileira tenha relação com os movimentos
políticos, todos os artistas passaram a ter os trabalhos monitorados com o AI-5, o que levou
músicos a evitar temas sociais, enquanto outros compositores, como Chico Buarque,
utilizaram termos metafóricos para tentar driblar a censura. Outros intérpretes também foram
ameaçados durante o AI-5, como exemplo Elis Regina, após manifestar-se contra a ditadura.
O início dos anos 1980 carregou traços da repressão do regime militar e influenciou a
produção musical que passa a denotar algumas rupturas com as temáticas musicais dos anos
1960 e 1970:
Depois pintou o AI-5, pintou a ditadura e tudo; a música ficou mais séria. De repente
ficou cafona falar das coisas do dia a dia, das futilidades, da rapaziada e tudo. Era
uma coisa mais para Cálice [composição musical de Chico Buarque]. Houve
[referência aos anos 80] uma retomada do bom humor, de falar das coisas do dia a
dia, sem vergonha. Sabe, falar da praia que você vai, do bar, da namorada e das
besteirinhas dos jovens, que a gente vive todo dia. (CAZUZA, 2017)12

12
Transcrição da entrevista de Cazuza, citada no documentário Barão Vermelho – porque a gente é assim.

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Embora Cazuza tenha nascido em tempos ditatoriais e de canções com resistência


política, suas primeiras composições representam uma nova geração que não defendia com
afinco as ideologias dos anos 1960, como ideais marxistas versus capitalistas ou patriarcado
versus feminismo. No que concerne à geração artística dos anos 1980, da qual Cazuza fazia
parte, o produtor musical Ezequiel Neves pontua que “a meninada começou a falar o que
interessava a ela de modo mais direto. De amores desgraçados, da rua, sem ter que falar da
política de cerceamento, de ‘vamos tomar o poder’! Pra fazer o que com ele? ” (NEVES,
2004, p.78)13.
Nesse cenário dos anos 1980, em que as causas ideológicas não predominavam nas
letras das canções, surgiu o conceito de pós-modernidade assinalado por Bauman (2011), com
o deslocamento do privado para o público e com produções mais intimistas. Fossem estas
novas práticas ou um novo clichê, como assinalou Compagnon (1996), a pós-modernidade
denota um modo diferente de abordar o efêmero, o cotidiano e rompe com ideologias
anteriores.
Ainda caracterizando o cenário musical da década de 1980, segundo o jornalista
Marcelo Perrone (2014), um grupo de jovens gaúcho tentou demarcar o território urbano com
representantes da música popular e do regionalismo, lançando o LP Rock Garagem em 1984.
No mesmo ano a canção Pro dia nascer feliz ficou conhecida na voz de Ney Matogrosso e
contribuiu para o sucesso do Barão Vermelho (VILELLA, 2004), banda que Cazuza era
vocalista. Sobre um dos versos da música, “o mundo inteiro acordar e a gente dormir”, o
vocalista da banda que também compôs a letra, comenta:
Tem gente que se irrita, porque eu [Cazuza] canto que todo mundo vai pegar a sua
pasta e ir pro trabalho de terno, enquanto vou dormir depois de uma noite de
trepadas incríveis. Mas o dia-a-dia não é poético, todo mundo dando duro e a cada
minuto alguém sendo assaltado ou atropelado. Então, vamos transformar esse tédio
numa coisa maior. (ARAÚJO, 1998, p.352)

Pro dia nascer feliz, entre outras canções, ressaltam o estilo intimista expresso nas
composições de Cazuza, que ficou ainda mais evidente após ele seguir carreira solo. No
lançamento do LP Exagerado14, Cazuza (1985) aduz que “o conceito do disco para mim é o
próprio exagerado, porque eu sou muito exagerado nas coisas que faço”15.
O compositor tanto se sentia confortável em endossar a relação entre trabalho artístico e vida

13
Entrevista publicada em Quem tem um sonho não dança: cultura jovem brasileira nos anos 1980, de Bryan
Guilherme.
14
Exagerado (Long Play - LP). Rio de Janeiro: Polygram, 1988.
15
Entrevista concedida à Rádio Globo em 1985.

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pessoal, quanto demonstrou apreço à contracultura16. A música Só as mães são felizes17, do


LP Exagerado, foi proibida de ser tocada em público pela censura e, conforme o compositor,
foi inspirada em textos literários de Jack Kerouac. Cazuza explica que Só as mães são felizes
homenageia “pessoas que vivem o lado escuro da vida, as pessoas que preferem trocar o
escritório pela rua, que resolveram viver e escrever a vida” (ARAÚJO, 1998, p.365)18.
Ainda que Kerouac tenha influenciado as composições de Cazuza, sendo citados em
entrevistas sobre o LP Ideologia, as relações entre trabalho artístico, visão da sociedade e
escrita confessional não foram adotadas somente por artistas enquadrados na contracultura
dos anos 1960, tampouco são fenômenos restritos à pós-modernidade de 1980. Endossa essa
perspectiva a pesquisa de Silviano Santiago (2002, p.36), ao advertir que “o romance
brasileiro modernista já apresentava no discurso ficcional memorialista uma postura
ideológica avançada, devido ao poder de penetração social e política”.
Em momentos de pós-guerra e subsequentemente às ditaduras latino-americanas, era
comum a publicação de livros-reportagens e livros memorialistas escritos por autores que
foram vítimas dos embates. Nesse aspecto, Santiago (2001, p.36) pondera que “o crítico
falseia a intenção da obra a ser analisada se não levar em conta também o seu caráter de
depoimento, se não observar a garantia da experiência do corpo-vivo que está por detrás da
escrita”.
Na próxima seção, intitulada Escrita de si, serão tratadas as textualidades
autorreferentes presentes nas produções artísticas. Percebe-se na análise pormenorizada da
música Ideologia, que a letra da canção lança insights sobre questões que afligiam Cazuza e
articula com as experiências vividas por ele, conforme explicitado pelo cantor em
depoimentos.

Escrita de si
A respeito da produção de si, Ângela de Castro pontua que as relações entre artista, seus
arquivos e experiências propiciou o surgimento de elaborações autorreferentes e da escrita de
si, como evento que “assume a subjetividade de seu autor como dimensão integrante de sua
linguagem, construindo sobre ela a ‘sua verdade’” (CASTRO, 2004, p.14). Diversos objetos
16
Sobre a contracultura, Rejane Sá Markman (2007) a conceitua como movimento que mobilizou a juventude
urbana americana em meados do século XX, com estilo eloquente, caráter libertário, contestando a alienação e o
consumo em favor da paz, do amor, do direito de portar o corpo livremente desde que não prejudicasse ninguém.
17
CAZUZA, FREJAT, R. Só as mães são felizes. In: Exagerado (LP). Rio de Janeiro: Polygram, 1988.
18
Em se tratando de Kerouac, a literatura do escritor era inspirada nas próprias experiências: viagens, aventuras,
relações afetivas etc. Parte dessas histórias foi publicada nas obras Ontheroade os subterrâneos. A identificação
de Cazuza com o estilo de Kerouac foi declarada pelo compositor: “Quando a Brasiliense começou a lançar as
obras de Kerouac, Ginsberg, Borroughs, eu quase fiquei pirado, porque eu fazia algo ligado a eles e não sabia”
(ARAÚJO, 1998, p.367) – nesse caso, ele idolatra literatos da contracultura e da geração beat.

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compõem tais práticas culturais, como fotografias, cartões postais, diários, cartas, entre outros
que denotam o indivíduo social, com vestígios da memória e da singularidade de cada um.
A heterogeneidade do conceito proposto por Castro (2004) facilmente é notada nas
produções artísticas das últimas décadas, dentre elas as músicas de Cazuza nos anos 1980. Se
antes as músicas Pro dia nascer feliz e Exagerado denotaram a exaltação de um estilo de vida
boêmio, amparando nas vivências presentificadas do compositor, a partir do LP Ideologia,
Cazuza imprime a ideia de vida reavaliada na produção artística. O esforço dessa reflexão
sobre as memórias foi declarado pelo cantor em entrevista que assumiu não refletir sobre sua
vida até “ficar em um hospital dois meses, pensando, olhando pra uma janela, quer dizer, eu
[Cazuza] revi, fiz uma novela, pensei a minha vida toda” (CAZUZA, 1988)19.
Ideologia foi o primeiro disco a ser lançado pelo cantor após descobrir que era
soropositivo e ficar internado em hospital na cidade de Boston, nos Estados Unidos. As
menções ao período atribulado da vida de Cazuza são notadas na letra de Boas novas20 desse
LP, conforme o refrão: “eu vi a cara da morte e ela estava viva” (CAZUZA, 1988). Indagado
sobre o eu poético21 expressado na canção, ele ressalta que: “Depois que vi a cara da morte,
eu mudei [...]. Não é que eu não tenha mais medo de morrer, é que eu gosto tanto de estar
vivo que acho que vai ser um desperdício” (CAZUZA, 1988).
Assim como Boas novas, a letra de Ideologia22, faixa-título do LP, apresenta marcas
da escrita de si, a começar pelos primeiros versos da canção “meu partido”22, aludindo às
divisões partidárias eleitorais do fim dos anos 1980 e que demarca a presença do indivíduo
social, serem rompidos pela metáfora “é um coração partido”22, que denota no léxico a dor do
eu poético, a subjetividade. A repetição de uma mesma palavra (partido) e o uso com
conotações diferentes, denota o trânsito entre contextos social coletivo e os sentimentos do
indivíduo.
As razões para o coração do eu poético se partir são mostradas nos versos seguintes: as
“ilusões estão todas perdidas”22 e os “sonhos foram todos vendidos”22. É como se, por um
esforço da memória, refletindo sobre a própria trajetória e o que se acreditava, o eu poético se
sentisse intimamente confuso e angustiado com o que lembrou de si. Os versos são
intrinsecamente coerentes à entrevista de Cazuza no lançamento de Ideologia, em que ele

19
Entrevista concedida à Leda Nagle.
20
CAZUZA. Boas novas. In: Ideologia (encarte Long Play - LP). Rio de Janeiro: Polygram, 1988.
21
A perspectiva do eu poético, enquanto voz que se expressa na canção, não abandona a perspectiva da escrita
de si mencionada por Castro (2014, p.16), posição na qual o indivíduo autor não é nem anterior ao texto
(essência refletida por um objeto de sua vontade), tampouco posterior a ele (efeito, invenção do discurso que
constrói). Defende-se que a escrita de si é, ao mesmo tempo, constitutiva da identidade de seu autor e do texto,
que se criam simultaneamente por meio dessa modalidade.
22
CAZUZA, FREJAT, Roberto. Ideologia. In: Ideologia (encarte LP). Rio de Janeiro: Polygram, 1988.

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havia repensado a vida toda em uma cama de hospital, de modo que os gestos de reavaliação
amparados na memória estavam aludidos na letra da canção.
Ainda sobre os movimentos da memória, o historiador Pierre Nora ressalta que
diferente da representação histórica de um passado que não existe mais, a memória é o devir
dialético do esquecimento e da lembrança “porque é afetiva e mágica, a memória não se
acomoda a detalhes que a confortam; ela se alimenta de lembranças vagas, telescópicas,
globais ou flutuantes, particulares ou simbólicas, sensível a todas as transferências, cenas,
censura ou projeções” (PIERRE, 1993, p.9).
Em se tratando da canção Ideologia, algumas reminiscências da memória são
apresentadas como insights na letra da música. Demonstra este movimento a perda das ilusões
proclamadas pelo eu poético ser arbitrariamente retomada nos versos seguintes –“meu prazer
agora é risco de vida”22–, referindo-se à conotação negativa que as relações homossexuais
tiveram com a AIDS nos anos 1980; ou, ainda, “Meu sex and drugs não tem nenhum
rock’n’roll”22 –, referindo-se ao slogan da contracultura (“sexo, drogas e rock’n’roll”)23 ter
perdido relevância após Cazuza ser diagnosticado soropositivo.
Desde 1988, ano do lançamento do LP Ideologia, os fragmentos das entrevistas
concedidas por Cazuza revelam transformações de perspectivas e de estilo de vida
ocasionadas pelo tratamento contra a AIDS. Essas mudanças de comportamento, de
reavaliação da vida pessoal e do trabalho artístico são constatadas neste depoimento do
cantor:
Eu [Cazuza] estava aparecendo mais em coluna social com um copo de uísque na
mão do que pelo meu trabalho. Todo dia nas ruas, nas festas, querendo aproveitar
cada minuto, mas estava meio down, ou então um clone de mim mesmo. Agora, sem
beber ou tomar drogas, coisas de que sempre gostei, mas tive de parar para continuar
vivo, consegui um pouco mais de paz, o que levou a uma mudança até como letrista.
(ARAÚJO, 1998, p.380)

Cazuza tinha uma visão de tudo que havia vivido e das limitações impostas pelo
tratamento de saúde. Em outra entrevista, o compositor chegou a declarar que teria
dificuldades em escrever um livro sobre a própria história, ao justificar que era “uma pessoa
de duas vidas, de duas casas. Era durante o dia uma pessoa, e à noite tomava quinhentos mil
conhaques, e virava o Super Cazuza” (ARAÚJO, 1998, p.377). A dificuldade de lidar com
estas inconstâncias é percebida em um trecho da canção Ideologia – “eu vou pagar a conta do
analista, pra nunca mais ter que saber quem eu sou”22–, em que demonstra angustia frente as
memórias.

23
De acordo com Dutra (2010), o lema “sexo, drogas e rock’n’roll” foi utilizado no festival de Woodstock
realizado de 15 a 18 de agosto de 1969. O evento é considerado referência no movimento da contracultura e
reuniu artistas como Janis Joplin, Santana e Jimi Hendrix.

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Embora em entrevista Cazuza explique que o lançamento do LP Ideologia denota uma


nova concepção artística e provém de uma reflexão sobre a própria vida, o cantor diz que a
letra da canção Ideologia também foi feita pensando em amigos que tinham projetos e
terminaram acomodados em outros espectros sociais. Longe de essas palavras serem uma
crítica velada às histórias das pessoas que estavam à sua volta, o compositor advertiu de que
“eu [Cazuza] provavelmente seria como eles [amigos acomodados] se não tivesse pintado
esse dom que Deus me deu de saber escrever e rimar bem, e de ter ideias e de cantar”
(CAZUZA, 1988). Rememora o compositor que a falta de perspectiva, até os 22 anos, o
angustiava muito.
Desse modo, percebe-se no depoimento que a letra da canção Ideologia não trata
somente das angústias pessoais de Cazuza (embora elas tenham relevância), como trata
também de experiências observadas de um grupo de pessoas que viviam à volta do
compositor, incluindo nestas perspectivas juvenis uma geração sem ideologia, após o fim do
regime militar.
Repleta de conflitos existenciais em torno do “eu” do compositor, a letra de Ideologia
também acontece num momento em que outros brasileiros reavaliaram suas vidas e seus
papeis sociais. O cenário político refletia nitidamente as conturbações. No ano de 1988 foi
discutido, por exemplo, se seria ampliado o mandato de presidente de José Sarney para cinco
anos, mesmo com baixa aprovação popular, além de ter sido promulgada a Constituição
Federal (1988) vigente até os dias atuais. A Assembleia Constituinte mobilizou partidos
políticos que ora divergiam, ora se associavam para manter interesses dos correligionários.
Sendo assim, na próxima seção serão abordados os aspectos políticos representados na letra
de Ideologia.

Representações políticas e sociais


Se no início dos anos 1980, Cazuza caracterizou a sua geração musical repleta de
artistas que queriam, com bom humor, abarcar aspectos efêmeros do dia a dia, em 1988,
quando lançou o LP Ideologia, o compositor passou a se posicionar artisticamente de modo
distinto e lançou um novo olhar sobre a música e a sociedade brasileira. Vários fatores
contribuíram para essa nova perspectiva. Por um lado, após ser diagnosticado com AIDS,
doença considerada letal nos anos 1980, o cantor afirmou que o tratamento em Boston o levou
a repensar a própria vida por um esforço da memória; por outro, ele também declarou que
antes via o ofício como diversão, mas, a partir de Ideologia, passou a preocupar mais com a
qualidade vocal e a tratar questões sociais abrangentes, referentes à própria geração

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(ARAÚJO, 1998).
Essa mudança de perspectiva foi influenciada por outros grupos musicais, conforme é
dito por Cazuza em depoimento concedido à Marília Gabriela:
Quando o Renato Russo pintou, eu fiquei com uma inveja, [...] e meu trabalho
cresceu tanto a partir dessa inveja, que eu comecei a escrever coisas diferentes. Sair
daquela dor de cotovelo, daquele “nhem,nhem,nhem”, como diz a Rita Lee. Saí para
uma outra coisa, o Renato falava muito da geração dele, e eu disse: “vou falar da
minha geração também, vou falar do Brasil também”. (CAZUZA, 1988b)

Essa mudança pode ser percebida em várias músicas do LP Ideologia. Uma das
canções, chamada Brasil24, tratava intrinsecamente das diferenças sociais a partir do eu
poético que não foi convidado para participar de maneira ativa das decisões políticas e
tampouco usufruir os benefícios destinados a uma classe privilegiada do país que detinha o
poder aquisitivo.
Temáticas tratadas nessas músicas dialogam exatamente com a pós-modernidade, mas
em outro viés. Não se trata do evento que narra a alternância do que era privado para o
público, conforme a primeira seção deste artigo, e sim de outra face da pós-modernidade
chamada por Bauman (1998) de consciência pós-moderna ou consciência do fracasso
moderno, da perda da expectativa de transformar o mundo a partir da ciência, da
racionalidade, de um ideal de eficiência. De certo modo, a falência desses preceitos sólidos e
modernos denota indivíduos que, ao final do século XX, se viam estruturados em redes de
consumo.
Outra canção do LP Ideologia que denota a falta de perspectiva do brasileiro no fim
dos anos 1980 é Um trem pras estrela,25 feita por Cazuza e Gilberto Gil. A canção narra o dia
de um trabalhador carioca que vivia em situação social vulnerável, esperando junto a outros
trabalhadores em filas por um ônibus, sobrevivendo com baixos salários e mantendo
esperanças irreais de “se dar bem”. Para Cazuza, a música representa uma nova perspectiva
artística para o seu trabalho, conforme observa no depoimento abaixo:
Eu achava que não podia falar sobre política, por não ser uma pessoa política. Eu
tinha muito preconceito em falar no plural, achava que só falava bem do meu
mundinho. Isso começou a mudar quando fiz a letra de Um Trem pras Estrelas (...).
Depois conversando com mil pessoas, pensei: por que não mostrar a minha visão,
por mais ingênua que ela seja? (...) a maioria da população também deve ter uma
visão ingênua, então por que não me posicionar? (CAZUZA, 1988b)

Se por um lado a faixa-título do LP de Ideologia demonstra características da escrita


de si e tônica intimista, a canção também traz insights sobre questões políticas e sociais que

24
CAZUZA, ISRAEL, G, ROMERO, N. Brasil. In: Ideologia (encarte LP). Rio de Janeiro: Polygram, 1988.
25
CAZUZA, GIL Gilberto. Um trem pras estrelas. In: Ideologia (encarte LP). Rio de Janeiro: Polygram, 1988.

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afligiam a geração brasileira no fim dos anos 1980. Para Cazuza, a ditadura favoreceu uma
apatia em relação às temáticas políticas, e esse sentimento foi compartilhado pela geração dos
anos 1980. Após o AI-5, em 1968, poucas canções tratavam de questões sociais e, na maioria
das vezes, eram compostas com metáforas, para coibir a censura. De acordo com Cazuza:
Ideologia fala da minha geração sem ideologia, compactada entre os anos 60 e os
dias de hoje [1988]. Eu fui criado em plena ditadura, quando não se podia dizer isso
ou aquilo, em que tudo era proibido. Uma geração muito desunida. Nos anos 60, as
pessoas se uniam pela ideologia. ‘Eu sou da esquerda, você é de esquerda? Então a
gente é amigo’. A minha geração se uniu pela droga: ele é careta e ele é doidão. A
garotada teve a sorte de pegar a coisa pronta e aí pode decidir o que fazer pelo país,
embora do jeito que o Brasil está, haja muita desesperança. (ARAÚJO, 1998, p.381)

No início da década de 1980, acreditava-se que, quando o povo elegesse


democraticamente um representante para o governo do país, haveria melhorias, mas isso não
aconteceu de fato: os índices de inflação e desemprego continuavam exorbitantes e os líderes
políticos estavam fragmentados em seus partidos. No que tange à letra da canção Ideologia, as
desilusões ideológicas do momento após a redemocratização são citadas no verso “Porque
aquele garoto, que ia mudar o mundo”22, em que se refere ao período depois da ditadura
militar; e demonstra a mudança de perspectiva em dois versos que completam a primeira
asserção: “Frequenta agora as festas do Grand Monde”22 e “Agora assiste a tudo em cima do
muro”22.
No tocante à frustração do desejo de mudar o mundo na juventude, Cazuza comenta
que “com 18 anos você quer mudar o mundo e com 40 não quer mais. Por que isso? A gente
muda” (ARAÚJO, 1988). Na sequência, os versos são demarcados pelo que seria essa
transformação: as festas do Grand Monde que o eu poético diz frequentar se relaciona às
recepções feitas pela alta sociedade da opulência restrita a pequenas parcelas da população e
que contradizem o desejo de mudar o mundo e torná-lo mais justo. Já os versos “aquele garoto
que ia mudar o mundo, agora assiste a tudo em cima do muro” se relaciona ao sentimento de
impotência do frente ao ambiente político hostil, às divisões partidárias entre a direita e a
esquerda.
Portanto, nota-se que os versos da música Ideologia tanto denotam resquícios da
intimidade do seu compositor e da escrita de si, como revelam características políticas e
sociais compondo a sociedade brasileira no fim dos anos 1980. Em se tratando da escrita
autorreferencial, verifica-se vestígios de reavaliação nos versos em que são mencionadas as
desilusões, o risco de vida (por estar soropositivo) e a desistência em olhar para quem se
tornou. Por outro lado, percebem-se os anseios que nutriam a geração dos anos 1980 com as
divisões políticas e partidárias, os sonhos “vendidos” e a desistência de um garoto que antes

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queria mudar o mundo, mas que assiste a tudo sem se posicionar.


A falta de referência fica explicita nos versos subsequentes da canção: “Meus heróis
morreram de overdose, meus inimigos estão no poder”. Cazuza admirava artistas da
contracultura que perderam suas vidas prematuramente por conta do consumo de drogas, algo
mencionado em várias entrevistas. Cazuza chegou a criticar a ascensão dos pensamentos
conservadores no final dos anos 1980 – cumpre salientar que a contracultura contestou as
visões conservadoras e patriarcais em benefício das liberdades individuais. Para ele, a AIDS
encaixou nos discursos de moralização de setores sociais que não se preocupavam com a
promoção a saúde, apenas moralizavam pelo medo. E complementa: “Acho a direita uma
coisa mesquinha, o poder individual. Eu gosto de viver no coletivo” (ARAÚJO, 1998, p. 385).
O refrão “Ideologia, eu quero uma pra viver” foi o ápice do cenário retratado na letra
da canção, em que surge o eu poético conclamando um direcionamento para a própria vida
diante da falência das suas convicções pessoais e das convicções coletivas. Ao pensar nas
diferentes perspectivas da palavra “ideologia” que nomeia a canção analisada, depara-se com
a literalidade do conceito como ciência das ideias, mas que não exclui a relatividade de um
conceito condicionado a concepções históricas e sociais. Elucida os pesquisadores Mello e
Garcia (2016) que enquanto Marx entendia o conceito de ideologia como uma falsa
consciência que se contrapõe ao verdadeiro, outras perspectivas sociais e antropológicas vêem
a funcionalidade da ideologia ligada aos valores de cada grupo social. Alerta ainda sobre
ideologia e sua intenção discursiva que “a própria denominação intencionalidade evidencia o
caráter ideológico de um texto” (MELLO, GARCIA, 2016, p. 19).
Indo além dos pressupostos teóricos sobre a ideologia, as diferentes conotações que
lhe foram dadas por pesquisadores da pós- modernidade. Ao abordar a ideologia, Bauman
intercepta uma pluralidade de ideologias na contemporaneidade que caracterizam o mundo
humano e não se sobrepõem uma em relação à outra de modo que “a tarefa de refletir
socialmente termina quando se constata que a ideologia está por toda parte e que tudo é
ideológico. A idéia de engajamento ativo com a sociedade perde, deste modo, justificação e
urgência” (BAUMAN, 2000, p.130).
A introdução do livro Modernidade e Holocausto em que Bauman menciona
pressupostos sobre a ideologia na pós- modernidade foi escrito em 1998, dez anos após o
lançamento do LP Ideologia em 1988. A queda do muro de Berlim, que separava a Alemanha
em duas ideologias políticas antagônicas (capitalismo e socialismo), por exemplo, aconteceu
em 1989 e denota a perda e relatividade dos engajamentos políticos. Outras nações
abandonaram pressupostos socialistas nos últimos anos enquanto outros países aderiram a

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prerrogativa democrática do bem-estar social. Certamente, os versos de Cazuza antecipavam o


desuso destes pressupostos ideológicos antagônicos que caracterizaram os anos 1960, mas por
outro lado revela persistem as mesmas angústias coletivas – desigualdades sociais e
panfletagens partidárias, por exemplo – como também persistem angustias individuais
mencionadas na canção, como a desistência de entender quem você realmente é a partir da
memória ou do contexto em que estamos inseridos.
De fato, as provocações entoadas nos versos das canções de Cazuza ainda repercutem
na sociedade atual, passados 30 anos do lançamento da faixa-título do LP Ideologia. Ainda
que a canção tenha diferentes significados, mediante as mudanças políticas e sociais do país
em uma linha do tempo, ainda persiste a pluralidade de posicionamentos ideológicos, embora
as estruturas de engajamento estejam mais voláteis, em conformidade aos tempos pós-
modernos.

Considerações finais
Reitera-se que os temas tratados na faixa-título do disco Ideologia de Cazuza
permanecem relativamente atuais, passados trinta anos do lançamento da canção. Ao começar
a análise pormenorizada dos versos da canção, percebe-se que as discussões partidárias e a
perda de referências ideológicas tratadas na composição do final dos anos 1980 também são
perceptíveis nas discussões políticas contemporânea. Acrescenta ao cenário atual, o
desapontamento das pessoas com alguns pressupostos ideológicos defendidos nos últimos
anos, no tocante às divisões partidárias citadas na canção Ideologia, observa-se que tanto os
partidos da denominada “direita”, como da “esquerda”, estiveram no poder do país. Restou
destas experiências a prerrogativa popular do estado corruptível em todos os governos, desde
a redemocratização, corporificando a angustia por escapar do protótipo político convencional.
A celeridade desta deterioração e as discussões potencializadas pela mídia propiciaram até o
questionamento do sistema democrático vigente, denotando posições extremistas quando
comparadas aos anos 1980.
Ademais as representações políticas e sociais, a escrita de si também ganhou novos
significados nestes últimos anos com a popularização do ciberespaço. O culto de celebração
da vida privada anunciado por Bauman como evento a demarcar a pós-modernidade, ampliou-
se com as redes sociais e os internautas fazendo narrativas públicas sobre sua intimidade. As
manifestações artísticas e culturais contemporâneas estão demarcadas por estes eventos pós-
modernos, com manifestações virtuais que ora representam posicionamentos
autorreferenciais, ora afetam as perspectivas sociais e políticas da sociedade.

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Destarte, constata-se não apenas o valor da canção Ideologia, como também a forma
como a letra adquiriu novas conotações desde o seu lançamento. Em uma linha temporal,
nota-se que os anseios dos anos 1980 foram apenas resinificados, permanecendo discussões
em torno de uma sociedade mais justa e democrática, como também a nítida sensação que o
grito clamando por uma ideologia ecoa o imaginário social contemporâneo.

Referências

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BAUMAN, Zygmunt. Em Busca da Política. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2000.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e holocausto. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1998.

BAUMAN, Zygmunt. O que é pós-modernidade? Entrevista concedida a Fronteiras do Pensamento.


2011. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=aCdUuQycl6Q. Acesso: 28 ago. 2018.

BARÃO Vermelho –porque a gente é assim. Documentário. Rio de Janeiro: Conspiração Filmes,
2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7jGmh5clQJw. Acesso em: 8 set. 2018.

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https://www.youtube.com/watch?v=9-fE8Eba4Gg. Acesso em 01 ago. 2018.

CAZUZA. Mesmo só, Cazuza é um exagero. Folha de São Paulo. Entrevista concedida de Cazuza
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CAZUZA. O tempo não para (Long Play- LP). Rio de Janeiro: Polygram, 1988.

CAZUZA. Pro dia nascer feliz. In: Barão Vermelho 2 (encarte Long Play- LP). Rio de Janeiro:
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CAZUZA. Só as mães são felizes. In: Exagerado (Long Play- LP). Rio de Janeiro: Polygram, 1988.

CAZUZA, GIL Gilberto. Um trem pras estrelas. In: Ideologia (encarte Long Play- LP). Rio de
Janeiro: Polygram, 1988.

CAZUZA, ISRAEL, George, ROMERO, Nilo. Brasil. In: Ideologia (encarte Long Play- LP). Rio de
Janeiro: Polygram, 1988.

CAZUZA, FREJAT, Roberto. Ideologia. In: Ideologia (encarte LP). Rio de Janeiro: Polygram, 1988.

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1999.

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SANTIAGO, Silviano. Prosa Literária atual no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.

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NOVAS ELOQUÊNCIAS DO DISCURSO POLÍTICO:


Uma análise de publicações da presidenta Dilma Rousseff e da personagem fictícia
Dilma Bolada no Facebook, durante o processo de impeachment1

Jéssica Gomes de Oliveira2


Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG)

Resumo
O estudo apresenta uma análise discursiva de três posts divulgados na página oficial da
presidenta Dilma Rousseff do Facebook e de outros três posts publicados na página da
personagem fictícia Dilma Bolada, também no Facebook. Todas as publicações analisadas
foram coletadas durante o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff.
Pretendemos, por meio da análise, observar quais ethé são evocados por ambas as personagens,
no mesmo período de tempo, contribuindo para a construção das imagens projetadas de Dilma
Rousseff em diferentes situações de comunicação.

Palavras-chave: Redes sociais digitais; Discurso político; Mídia; Política; Análise do


Discurso.

NEW ELOCQUENCES OF POLITICAL DISCOURSE:


An analysis of publications by President Dilma Rousseff and the fictional character
Dilma Bolada on Facebook during the impeachment process

Abstract
The article presents a discursive analysis of three posts published in the official website of
President Dilma Rousseff of Facebook and three other posts published in the page of the
fictional character Dilma Bolada, also on Facebook. All the analyzed publications were
collected during the impeachment process of President Dilma Rousseff. We intend, through the
analysis, to observe which ethé are evoked by Dilma Rousseff and Dilma Bolada, in the same
period of time, contributing to the construction of the projected images of the president in
different situations of communication.

Keywords: Digital social networks; Political discourse; Media; Policy; Discourse analyses.

Introdução
O artigo tem como proposta apresentar diferentes nuances sobre o uso das redes sociais
digitais na veiculação do discurso político e gestão das imagens de atores políticos. Mais
especificamente, a pesquisa apresentará uma análise discursiva de três posts veiculados na

1
Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Estudos Interdisciplinares, do XI Encontro dos Programas de Pós-
Graduação em Comunicação Social de Minas Gerais, 18 e 19 de outubro de 2018.
2
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens do CEFET-MG;
jessicagomes.mtz@gmail.com.

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página oficial do Facebook da presidenta3 Dilma Rousseff e outros três posts veiculados na
página da personagem fictícia Dilma Bolada, também no Facebook. Todas as publicações
analisadas foram coletadas durante o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff.
Conforme destacam Marques, Silva e Matos (2011), se os meios tradicionais de
informação estabelecem critérios próprios de visibilidade que escapam do controle dos atores
políticos, a internet (em especial as redes sociais digitais) surge como importante canal de
comunicação direta com o cidadão. Por isso, no corpo teórico do trabalho propomos uma breve
revisão bibliográfica sobre o uso das redes sociais digitais para veiculação do discurso político.
Algumas das especificidades da linguagem utilizada nas redes sociais digitais também
serão apresentadas, através de pesquisas desenvolvidas por Recuero (2009, 2012). Entre as
especificidades apresentadas está o uso de elementos paralinguísticos numa tentativa de simular
a conversação falada.
Por fim, serão abordados alguns aspectos sobre o uso do humor em discursos políticos.
A abordagem do humor, ainda que breve, se justifica uma vez que a personagem fictícia Dilma
Bolada utiliza elementos humorísticos nas publicações analisadas. Para isso, tomaremos como
base estudo de Zepeda, Franco e Preciado (2014) sobre o humor como estratégia de persuasão,
incluindo sua utilização na difamação e caricaturização de adversários políticos. Abordaremos,
ainda, pesquisa de Lessa (2001) sobre o processo de caricaturização de atores sociais e de
Bonhomme (2016) sobre o uso de caricaturas políticas.
Como aporte metodológico predominante para esta pesquisa será adotada a Análise do
Discurso (AD) de linha francesa. Primeiramente, serão analisados os posts de Dilma Rousseff
durante o processo de impeachment. Para a análise, serão utilizados os estudos de Charaudeau
(2006) sobre a construção do ethos ou imagens de si no discurso político, bem como a descrição
proposta pelo linguista para os ethé e imagens evocadas pelos sujeitos políticos. O mesmo
procedimento de análise será realizado nos posts publicados pela personagem fictícia Dilma
Bolada. Dessa forma, pretende-se identificar os diferentes ethé (imagens de si) e estratégias
discursivas adotadas por Dilma Rousseff e Dilma Bolada nos posts analisados.
Embora sejam amplas as discussões sobre o discurso político, a pesquisa propõe como
corpus de análise discursos veiculados pela presidenta Dilma Rousseff e pela personagem

3
Na pesquisa, optamos por utilizar o termo “presidenta” em detrimento de “presidente”. Tal escolha se justifica
uma vez que a própria Dilma Rousseff reivindica o uso do termo, como estratégia de marcação do gênero
feminino.

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fictícia Dilma Bolada nas redes sociais digitais, com a expectativa de trazer novas reflexões
sobre a palavra política neste ambiente.

As redes sociais digitais e a veiculação de discursos políticos


Conforme destaca Piovezani Filho (2007), inovações tecnológicas têm trazido
mudanças para as práticas de produção e interpretação dos discursos políticos. Tais inovações,
para o autor, somadas a uma série de transformações históricas de diferentes durações, parecem
estar contribuindo para modificações tanto na produção quanto na análise da palavra política.
E é nesse contexto de mudanças que atores políticos parecem ter percebido a relevância das
redes sociais digitais para a propagação de seus discursos.
Como pontuam Marques, Silva e Matos (2011), se os meios tradicionais de informação
estabelecem critérios próprios de visibilidade que escapam do controle dos atores políticos, a
internet e, em especial, as redes sociais digitais, surge como importante canal de comunicação
direta com o cidadão. Por isso, utilizar a web como meio de visibilidade à palavra e projetos
dos sujeitos políticos tornou-se imprescindível para a construção de imagens positivas desses
atores.
Conforme aponta Maia (2008, p. 95), é possível que empresas de comunicação
estabeleçam relações de interesse com grupos de poder, comprometendo a independência e a
responsabilidade da informação. Nesse sentido, a mídia não poderia ser considerada um
“provedor neutro” de informação, mas uma instituição ao mesmo tempo política, econômica e
cultural-profissional, podendo estabelecer relações tensas e conflituosas com outros atores.
Utilizar a internet como ferramenta para agregar visibilidade às ideias e projetos de seus
candidatos tornou-se, portanto, essencial aos partidos, que têm como objetivo abranger a maior
parcela possível de eleitores. Podemos observar, assim, uma apropriação peculiar das redes
sociais digitais e seus recursos pelo campo político. (MARQUES, SILVA E MATOS, 2011, p.
347-348).
Conforme pontua Sargentini (2015), até 1998, para a veiculação do discurso contava-
se, basicamente, com panfletos e livretos contendo programas de governo, havendo a
predominância de textos escritos em relação às imagens. Estes eram publicados e distribuídos
pelos comitês de campanha, o que diminuía o alcance desses materiais. Candidatos também
contavam com filmagens feitas em comícios públicos, pronunciamentos em rádio e TV, além
do Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral (HGPE), que também integravam as estratégias
de campanha e estavam entre as poucas formas de se atingir um número expressivo de eleitores
de forma simultânea.

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Com o avanço da internet, a aproximação entre candidatos e eleitores é ampliada por


meio das diferentes redes sociais digitais existentes. Fotos e vídeos são publicados em tempo
real por atores políticos e seus assessores, permitindo aos internautas acompanharem de perto
as agendas política e pessoal de cada um. Nesse contexto, a produção do discurso político é
diversificada e suas formas de acesso e captação são facilitadas. As redes sociais digitais
oferecem esse acesso direto ao eleitorado, o que pode colaborar na humanização do candidato
e na individualização do eleitor (SARGENTINI, 2015, p. 216-217).
Para Marques e Sampaio (2011), precisamos considerar, ainda, que a propaganda
política tradicional, composta por panfletos, banners e santinhos, com alto grau de poluição
visual nos centros urbanos, perdeu a importância ao longo do tempo. Com o avanço da internet
e das redes sociais digitais, é possível observar um investimento nas estratégias voltadas para o
ambiente online. A propaganda política no rádio e na televisão por meio do HGPE manteve sua
relevância, mas sofreu mudanças devido à campanha que acontecia em paralelo nas redes
sociais digitais. O modelo de propaganda brasileiro centrado no HGPE estaria passando,
portanto, por reestruturações devido à influência do ambiente digital.
Conforme pontuam Oliveira, Maia e Mira (2014), observamos que a propaganda
realizada na internet tem tido influência considerável, especialmente por mobilizar eleitores a
criar grupos de pertencimento de determinados candidatos, com altos graus de participação e
adesão. Além disso, é um espaço para além do debate político, se tornando um movimento
acionado também por laços de sociabilidade entre os que apoiam os mesmos candidatos e
também de conflito contra os que estão na outra frente.
É preciso, portanto, conferir relevância à presença de atores políticos no ambiente
online. Mais ainda, ao papel das redes sociais digitais na construção de imagens positivas destes
atores. Tais ambientes têm se tornado importante plataforma para a disseminação de discursos
políticos das mais diversas fontes e formatos, onde práticas discursivas são ressignificadas e
características marcantes do ciberespaço são incorporadas ao discurso. Na próxima seção,
introduziremos à pesquisa estudos sobre algumas dessas práticas discursivas presentes no
ambiente online.

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Algumas especificidades sobre a linguagem utilizada nas redes sociais digitais


Conforme pontua Recuero (2009, 2012), no ciberespaço4 as redes sociais são formadas
por representações individualizadas e personalizadas dos atores sociais, que podem ser
constituídas de perfis no Facebook ou no Twitter, por exemplo. Construídas por meio de
elementos que representam os indivíduos no ambiente online, como informações em perfis das
redes sociais digitais, tais “representações do self” são cuidadosamente montadas como espaços
personalizados para transmitir determinadas impressões por meio de pequenas pistas.
Assim, segundo a autora, as redes sociais, no ambiente online, podem ser muito maiores
e mais amplas que as off-line, sem contar o potencial de informação presente nessas conexões.
Somente por meio do ciberespaço é possível manter centenas ou até milhares de contatos, que
são mantidos com a ajuda de ferramentas técnicas ofertadas pelas redes sociais digitais.
Nestes novos espaços de trocas interacionais, é possível observar uma reconfiguração
das práticas discursivas. A linguagem utilizada nas redes sociais digitais se difere, por exemplo,
da escrita típica. Observamos, no ciberespaço, o que Recuero (2012) chama de “escrita falada”
ou “oralizada”, caracterizada pelo uso dos caracteres do teclado numa tentativa de simular a
linguagem oral. Outra questão é a falta de pistas não verbais durante a troca conversacional, o
que é considerado uma limitação da conversação mediada no ambiente online.
Para solucionar essa questão da falta de pistas não verbais, são criadas convenções para
o uso de elementos paralinguísticos que vão tornar a troca conversacional mais clara no
ambiente online. O uso dos chamados emoticons5 para representar emoções, por exemplo,
podem ser considerados análogos a diversas características típicas da conversação oral, como
entonação, tom de voz e expressões faciais.
Para Recuero (2012), é possível afirmar, portanto, que a conversação nas redes sociais
digitais é capaz de simular alguns elementos da conversação oral. Nesse ambiente, são criadas
convenções para suplementar textualmente os elementos da linguagem oral, construindo uma
nova “escrita oralizada”. A conversação ocorre em rede e com a participação de muitos
indivíduos, que permanecem gerando novas apropriações da linguagem utilizada no ambiente
online e migrando entre diversas ferramentas.

4
Segundo Recuero (2006), ciberespaço é o espaço em que as interações sociais acontecem na internet. Podemos
compreender o ciberespaço, ainda, enquanto novo meio de comunicação que surge a partir da interconexão
mundial de computadores. O termo, entretanto, não se restringe à infraestrutura material da comunicação digital,
mas leva em consideração todo o universo de informações que ela abriga, além dos indivíduos que por ela navegam
e alimentam esse universo, conforme pontua Lévy (1999).
5
Segundo Recuero (2012), tratam-se das famosas “carinhas” ou “smileys”, convenções construídas por meio de
caracteres do teclado para representar emoções faciais.

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A construção de representações dos indivíduos no ciberespaço é outro ponto abordado


pela autora supracitada. Elas são construídas por meio de elementos que representam os
indivíduos no ambiente online, como informações publicadas em perfis das redes sociais
digitais. Tais “representações do self” são cuidadosamente montadas como espaços
personalizados para transmitir determinadas impressões por meio de pequenas pistas
(RECUERO, 2012).
Diante dos estudos apresentados, observamos a existência de algumas práticas
discursivas e interacionais que são exclusivas do ambiente online e que seguem em constante
transformação. Na próxima seção, apresentaremos considerações de Zepeda, Franco e Preciado
(2014), Bonhomme (2016) e Lessa (2001) sobre o uso do humor nos discursos políticos, suas
especificidades e estratégias. Tal abordagem se justifica uma vez que a personagem fictícia
Dilma Bolada utiliza o humor como elemento integrante de suas publicações.

Discurso político e humor


Conforme pontuam Zepeda, Franco e Preciado (2014), o humor sempre esteve presente
na política. Nos tempos antigos, fazia parte das estratégias satíricas e irônicas usadas pelo povo
para criticar maus governos. Posteriormente, foi introduzido como estratégia das elites
dominantes para agradar e distrair as massas, dissuadindo-as de criticar o poder.
Nesse sentido, o humor tem sido utilizado como estratégia política para persuadir,
informar e entreter as massas. Seu uso apropriado seria, inclusive, uma das marcas da
verdadeira liderança, já que o sujeito que se mostra amargo, sombrio, irritado e chato
dificilmente será seguido por um grande número de indivíduos. Além disso, o humor pode
proporcionar maior visibilidade aos atores políticos, facilitando a captação da atenção do
público. Por isso, a utilização do humor para difamar e caricaturar adversários políticos, por
exemplo, surge como importante estratégia política.
Ainda de acordo com os autores, o humor também teria a capacidade de gerar uma
atitude positiva e boa vontade entre os ouvintes, já que tem a capacidade de fazer as pessoas
rirem, agradando e seduzindo o cidadão. Ele pode, inclusive, aumentar as chances do público
de se lembrar de frases, eventos e discursos políticos em que o humor estava presente. Isso
porque o cidadão tende a se lembrar e identificar melhor o político com bom senso de humor.
O político bem humorado ajuda a elevar o humor do público, superando os momentos cheios
de tensão. Pode inclusive, superar fracassos de campanha com maior facilidade.
Para Zepeda, Franco e Preciado (2014), é possível afirmar, ainda, que o humor afeta a
orientação do voto dos cidadãos, gerando efeito sobre suas decisões e motivações políticas.

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Entretanto, para cumprir seu objetivo comunicacional, o humor precisa ser usado com
moderação e sem abusos, seguindo o perfil cultural do público. Campanhas políticas costumam
usar o humor como estratégia de comunicação, principalmente por meio da ironia e do
sarcasmo. Esse tipo de ferramenta pode ajudar o candidato a se comunicar melhor, obter maior
ligação emocional com o eleitorado e tocar em assuntos sensíveis, mobilizando emoções
primárias do público.
As campanhas encontram, no humor, terreno fértil para persuadir um público ansioso
por representações cômicas que gerem momentos de alegria e felicidade. Além disso, para ser
um bom candidato, é preciso saber contar histórias, ser divertido e fazer as pessoas rirem. Por
isso, o candidato deve saber rir da sua própria humanidade e infortúnios. (ZEPEDA, FRANCO,
PRECIADO, 2014).
Outros autores também trazem diferentes expectativas a respeito do uso do humor na
política. Um deles é Bonhomme (2016), para quem as caricaturas políticas têm sido objeto de
estudos ao longo dos últimos trinta anos, especialmente quando se trata da análise de produções
gráficas e, de forma mais esporádica, produções televisuais. Para ele, entretanto, a relação entre
a caricatura política e internet tem sido tema de poucos estudos. Sobre este tema, o autor aponta
uma espécie de consenso de que a internet renova as condições caricaturais, além da ideia de
que o ciberespaço permite uma midiatização extrema desse tipo de produção.
O autor aponta, ainda, que a atual intensificação da caricatura política na internet
favorece o surgimento de novas pesquisas sobre o assunto, que poderão avaliar de que maneira
essas formas eletrônicas de expressão contribuem para a vitalidade do debate democrático por
meio da introdução de espaços de liberdade em detrimento dos poderes vigentes.
Ainda em relação ao processo de caricaturização, Lessa (2001) nos explica que se trata
de uma espécie de acentuação de pequenos detalhes da personalidade de sujeitos sociais, uma
projeção de traços do agir ou do caráter. No caso da caricaturização de atores políticos, a
acentuação de determinadas características, positivas ou negativas, podem interferir na projeção
e construção das imagens desses atores diante do público. Nesse sentido, podemos considerar
Dilma Bolada uma espécie de caricatura da presidenta Dilma Rousseff na internet, tomando
para si características marcantes da presidenta real e intensificando-as por meio do uso do
humor.

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Criada pelo publicitário Jeferson Monteiro, a personagem fictícia Dilma Bolada surge
no Twitter6 durante as eleições presidenciais de 2010, inspirada na então candidata à presidência
Dilma Rousseff. Em 2011, Dilma Bolada ganha uma página no Facebook e passa a comentar
acontecimentos da política brasileira de forma extrovertida, carregada de humor. A personagem
foi construída a partir da apropriação de características marcantes de Dilma Rousseff, a ela
comumente atribuídas pela grande mídia ou adversários políticos, tais como seriedade e
autoritarismo. Dilma Bolada, no entanto, desenvolveu linguagem própria para construir
diálogos dotados de humor e comentar a agenda da presidenta real.

Algumas considerações sobre o ethos


Antes de iniciarmos nossa análise, consideramos pertinente apresentar, ainda que
brevemente, algumas considerações sobre o ethos e os diferentes ethé projetadas por atores
políticos. Tal abordagem se faz necessária uma vez que, no aporte metodológico predominante
para este estudo, será adotada a Análise do Discurso (AD), recorrendo, sobretudo, a Patrick
Charaudeau (2006), pesquisador da atual escola francesa dentro deste campo de saber.
Conforme descreve o autor supracitado, nenhum ato de linguagem pode existir sem que
haja a construção de uma imagem do sujeito falante. Sendo intencional ou não, a partir do
momento que falamos emerge uma imagem daquilo que somos por meio daquilo que dizemos.
E é na tentativa de construir um ethos ou imagem positiva de si próprio, que o ator político
poderá empregar uma série de estratégias discursivas que o fará construir para si um
personagem.
No caso de atores políticos o ethos se torna, ainda, resultado de uma alquimia complexa
entre traços pessoais de caráter, corporalidade, comportamentos e declarações verbais. No
discurso político, a construção do ethos é, ao mesmo tempo, voltada para si mesmo, para o
cidadão e para os valores de referência. Afinal, o sujeito político sempre se encontrará tomado
por uma dramaturgia que o faça construir para si um personagem. Nesse sentido, a construção
do ethos do sujeito político só tem razão de ser se for voltada para os cidadãos, funcionando
como um suporte de identificação de valores e desejos em comum. Por isso, o ator político
deverá mergulhar no imaginário popular mais amplamente compartilhado, atingindo o maior
número possível de pessoas e funcionando como um espelho em que se refletem os desejos uns
dos outros (CHARAUDEAU, 2006).

6
Rede social digital utilizada para enviar e receber mensagens curtas, de até 280 caracteres, conhecidas como
tweets.

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Independentemente da construção das imagens de si e dos efeitos por elas causados,


Charaudeau (2006) nos atenta para a fragilidade dessas imagens. Se hoje são adoradas, no dia
seguinte podem ser rejeitadas pelo público. É preciso, portanto, extensa cautela na construção
do ethos, escolhendo um universo de crenças específico, em função da maneira como se
imagina o público e do efeito que se espera produzir nele.
O linguista também nos alerta para o fato do ethos ser composto por imagens versáteis,
que podem se contradizer ou se complementar, produzindo ora efeitos positivos, ora efeitos
negativos, dependendo das circunstâncias. Declarações desastradas ou gafes cometidas por
atores políticos, por exemplo, podem soar como marcas de sinceridade, simplicidade e até de
honestidade. Ao contrário, figuras de virilidade sexual, de orgulho e de chefe podem produzir
efeitos negativos de arrogância, hipocrisia e autoritarismo.

Os ethé de credibilidade e de identificação


Ainda em relação ao ethos, Charaudeau (2006) elenca duas grandes ordens de valor que
seriam imprescindíveis ao projeto de fala do sujeito político, ou duas grandes categorias de
ethos: os ethé de credibilidade e os ethé de identificação. É a partir dessas duas grandes ordens
de valores, relacionadas à razão e ao afeto, que diversas figuras se aglutinam para a construção
de uma identidade política.
A credibilidade, conforme nos explica o autor supracitado, está relacionada à capacidade
que o sujeito político tem de responder a certas condições que lhes são colocadas, com a
finalidade de convencer o público de que tanto sua pessoa quanto suas ideias são dignas de
crédito. Nesse sentido, um indivíduo pode ser julgado digno de crédito se for possível verificar
que aquilo que ele diz sempre corresponde ao que ele pensa, se tem meios de pôr em prática o
que promete e se o que anuncia ou aplica é seguido de efeito.
E para responder a essas condições de credibilidade, o político precisa construir para si
o ethos de seriedade, de virtude e de competência. O ethos de seriedade é construído por meio
de uma série de índices comportamentais que revelam capacidade de autocontrole diante das
críticas, sangue frio diante das adversidades, grande energia e aptidão para o trabalho na vida
política. Já o ethos de virtude está relacionado ao sujeito político que demonstra fidelidade nas
relações humanas, lealdade aos parceiros e adversários, acrescentando a isto uma imagem de
honestidade pessoal. Por fim, o ethos de competência demanda do sujeito a capacidade de
mostrar-se possuidor de um conjunto de saberes relativos a um campo de conhecimento,
demonstrando domínio e habilidade para realizar determinadas atividades.

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Já as diferentes imagens que constituem os ethé de identificação, propostos por


Charaudeau (2006), colaboram para que o público identifique nos valores apresentados pelo
discurso político suas próprias demandas e expectativas. O cidadão precisa se reconhecer neste
espelho que lhe é mostrado, estabelecendo uma fusão de identidades entre ele e o sujeito
político.
Apesar da multiplicidade de imagens, é possível destacar algumas mais recorrentes que
caracterizam o ethos de identificação do discurso político: os ethos de potência, caráter,
inteligência, humanidade, chefe e solidariedade. O ethos de potência pode ser apresentado
mediante uma figura de virilidade sexual, nem sempre declarada explicitamente. É denotada
uma força vital, uma essência viril, algo que só poderia existir no político que age sem medo.
O ethos de caráter, por sua vez, está relacionado à capacidade do sujeito de se controlar diante
de situações perturbadoras, também sendo apresentando por meio da ideia de uma força interior
do sujeito, uma força de espírito que não estaria necessariamente relacionada à força física.
O ethos de inteligência, conforme aponta Charaudeau (2006), pode ser relacionado ao
sujeito político que tenta se mostrar culto, apresentando o capital cultural herdado de sua origem
social e formação. Já o ethos de humanidade pode ser mensurado pela capacidade de
demonstrar sentimentos e compaixão para com aqueles que sofrem, mas também pela
capacidade de mostrar suas fraquezas e gostos mais íntimos.
O ethos de chefe, por sua vez, é construído por meio das figuras de guia (guia-supremo,
guia-pastor e guia-profeta), de soberano e de comandante. A figura do guia supremo surge a
partir da necessidade de ter uma liderança capaz de manter a integridade da identidade de um
grupo social. O guia-pastor é representado pelo sujeito capaz de reunir o rebanho, que ilumina
e acompanha o caminho dos seus seguidores com tranquilidade e perseverança. Mostrando-se
sábio, consegue conduzir milhões por meio da palavra. Já o guia-profeta costuma se remeter ao
futuro em seus discursos, também recorrendo a mitos e símbolos do passado. A figura do chefe
soberano é sustentada por discursos sobre a democracia, identidade nacional, soberania do
povo, celebração do país e de seu regime institucional. Já a figura do chefe comandante é
caracterizada pelo sujeito com imagem mais agressiva e autoritária, discursos com tom belicista
e provocações a inimigos.
Por fim, o ethos de solidariedade é construído por meio da capacidade de saber ouvir
os problemas alheios, compartilhando os mesmos dramas, dilemas e conquistas. Além de estar
atendo às necessidades dos outros, o sujeito político também deve ser capaz de se tornar
responsável por elas.

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Passaremos agora, para a apresentação e análise do corpus, nos debruçando sobre as


publicações da presidenta Dilma Rousseff e da personagem fictícia Dilma Bolada.

Apresentação e análise do corpus


Nosso corpus de análise é composto por três posts extraídos da página oficial de Dilma
Rousseff no Facebook e outros três posts da página da personagem fictícia Dilma Bolada,
também no Facebook. Todas as publicações analisadas foram coletadas durante o processo de
impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Para a análise, conforme descrito anteriormente,
serão utilizados os estudos de Charaudeau (2006) sobre a construção do ethos no discurso
político, bem como a descrição proposta pelo linguista para os diferentes ethé projetados pelos
sujeitos políticos. Por meio da análise apresentada, pretendemos trazer luz à seguinte questão:
quais são os ethé projetados de Dilma Rousseff e de Dilma Bolada nas redes sociais digitais,
durante o processo de impeachment?
Iniciaremos a análise com três posts feitos na página oficial de Dilma Rousseff no
Facebook, durante o processo de impeachment. No primeiro deles, podemos observar que
Dilma Rousseff faz uma ponte com seu próprio passado, trazendo experiências dolorosas
vividas em sua juventude para integrar argumentos contrários ao processo de impeachment a
que estava sendo submetida.

Figura 1 – Facebook Dilma Rousseff

Fonte: https://goo.gl/xkufSr

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Ao trazer do passado memórias sobre as torturas pelas quais passou na juventude, a


presidenta busca projetar imagens de si baseadas em traços de caráter como coragem, força e
convicção na própria luta, que prossegue, no presente, por meio da defesa do próprio mandato.
Observamos, ainda, a construção de um ethos de mulher forte e guerreira, uma figura de
coragem com força interior suficiente para lutar e enfrentar os desafios do passado e do
presente.
O julgamento do impeachment é comparado ao julgamento a que foi submetida na
juventude, durante a ditadura militar. Há, portanto, a projeção de um ethos de vítima da
ditadura, de uma jovem que sofreu torturas, sendo julgada e condenada pelo regime. Ao
enfrentar seu segundo julgamento, a presidenta demonstra a mesma força da jovem do passado,
sendo capaz de demonstrar a coragem necessária para manter a cabeça erguida diante de seus
algozes.
Ao falar sobre o câncer no sistema linfático enfrentado em 2009, quando ainda era
Ministra-chefe da Casa Civil do então governo Lula, observamos aspectos de humanidade nas
palavras da presidenta, que também se mostra suscetível à morte, assim como qualquer outro
ser humano. Ela também diz não alimentar qualquer tipo de rancor perante seus julgadores,
demonstrando capacidade de superação e compaixão.
Na próxima publicação que analisaremos, Dilma Rousseff associa o processo de
impeachment a uma ruptura democrática, introduzindo nomeações axiológicas negativas a seus
adversários políticos.

Figura 2 – Facebook Dilma Rousseff

Fonte: http://bit.ly/2OapXim

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Ao afirmar não haver contra ela qualquer acusação de corrupção, Dilma Rousseff
constrói para si um ethos de virtude, relacionado à honestidade e ética pessoal. Qualificações
axiológicas negativas são utilizadas para se referir ao processo de impeachment e seus inimigos,
relacionados a acusações de lavagem de dinheiro e corrupção. Há, portanto, a presença do
conflito, de posições e interesses distintos.
Além das estratégias de persuasão relacionadas à construção de diferentes ethé,
podemos destacar a desqualificação do adversário como parte integrante do processo de
sedução do público por atores políticos. Para combater o inimigo é preciso revelar suas
contradições, rejeitar suas ideias e apontar as consequências negativas de suas ações para o
povo. Também é preciso rejeitar os valores opostos, mostrando a fraqueza e o perigo
representado pelo projeto do oponente.
Passaremos agora, para a análise da terceira publicação. Conforme podemos observar,
ela traz uma chamada para que a população acompanhe a defesa de Dilma Rousseff no Senado
e se mobilize em favor da democracia.

Figura 3 – Facebook Dilma Rousseff

Fonte: http://bit.ly/2OapXim

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A publicação, ao afirmar que a presidenta permanece de “cabeça erguida” diante de seus


julgadores, contribui para a construção de um ethos de virtude e de coragem, imagens que só
podem ser sustentadas por uma figura ética capaz de se manter firme diante das adversidades.
A enunciadora projeta, ainda, a imagem de um ator político ligado a um projeto democrático e
a todo um programa de governo voltado para a igualdade. Já o termo “coração valente”,
utilizado na postagem, pode ser relacionado à história discursiva7 da presidenta, cercada por
um ethos de militância e resistência durante o período em que lutou contra a ditadura militar.
A seguir, iniciaremos as análises das publicações da personagem fictícia Dilma Bolada,
em sua página do Facebook. As publicações que analisaremos integram um plano ficcional,
que utilizam o humor e a caricaturização de palavras e ações da personagem. Por isso, além de
utilizarmos o ethos como categoria de análise, introduziremos o humor como elemento de
investigação.
No primeiro post, observamos a simulação de uma situação fictícia em que Dilma
Bolada ataca os inimigos políticos de Dilma Rousseff. A publicação foi feita no dia 9 de maio
de 2016, logo após o então presidente interino da Câmara dos Deputados, Waldir Maranhão,
anular a tramitação do processo de impeachment na casa.

7
Segundo Amossy, trata-se do conjunto de informações que o pública sabe acerca da história do orador,
constituídas a partir de diversas produções midiáticas. Essas informações contribuem para construir um ethos
prévio do orador.

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Figura 4 – Facebook Dilma Bolada

Fonte: https://goo.gl/hZkMGS

No caso da publicação, observamos o uso de certa agressividade e até insultos que


resultam numa polarização extrema. Não há espaço para diálogo ou argumentação. Os
adversários são relacionados a um “mal absoluto”, o que leva a uma espécie de “demonização”
do outro. Identificamos, ainda, a tentativa de construir um ethos de potência, por meio de uma
caricaturização de palavras e ações da personagem. Por meio da simulação de um diálogo, a
personagem fictícia demonstra força e determinação no agir.
Percebemos, ainda, o uso do humor como meio de insultar e ridicularizar os adversários
políticos de Dilma Rousseff. Tal prática, conforme nos apontam Zepeda, Franco e Preciado
(2012), é muito comum na política, assim como o uso do humor para expor a incoerência das
ações dos adversários.
Além do uso do humor, destacamos a presença de verbos no imperativo, denotando que
a personagem dá ordens a seus adversários. O uso de nomeações e adjetivações axiológicas

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negativas para se referir aos “golpistas” também precisa ser observada, afinal, denota uma
espécie de atitude de enfrentamento.
Na próxima publicação que analisaremos, podemos observar a tentativa de construir um
ethos de inteligência por meio de uma montagem que traz a ideia de guerreira dotada de
perspicácia, astúcia, habilidade e malícia. Dilma Bolada assume a identidade visual da heroína
da série de filmes “Jogos Vorazes”, e, consequentemente, características a ela atribuídas.

Figura 5 – Facebook Dilma Bolada

Fonte: https://goo.gl/UCVmaS

A primeira frase da legenda “Que os jogos comecem e que a sorte esteja sempre a seu
favor”, é uma clara referência ao filme, podendo ser relacionada à disputa política do
impeachment, comparada a um “jogo”. A publicação constrói a personagem vestida como uma
guerreira dotada da malícia e inteligência necessárias para enfrentar a batalha contra o
impeachment, indo de encontro ao que Charaudeau (2006) classifica como ethos de
inteligência, relacionado ao domínio que o sujeito tem das regras do jogo, apresentando
características como malícia e astúcia.
Já a segunda parte da legenda “Se me atacá [sic], eu vou atacá [sic]. BRASIL, Inês” é
uma referência a uma frase carregada de humor comumente utilizada na internet, conferindo à
publicação um tom polêmico de luta e espera por uma batalha que está por vir.

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Por meio da publicação é possível perceber, portanto, que imagens de mulher guerreira
dotada de inteligência, astúcia e malícia são conferidas à personagem fictícia. Elementos
linguísticos como “jogos”, “sorte” e “eu vou atacá [sic]” contribuem para a projeção dessas
imagens.
A última publicação analisada contém a simulação de um diálogo fictício criado para
comentar um acontecimento do cenário político nacional.

Figura 5 – Facebook Dilma Bolada

Fonte: https://goo.gl/yg1Rm8

Novamente, observamos certa agressividade nas palavras da personagem que chama o


então vice-presidente de “Temer Golpista” e “encosto golpista”. Tal postura pode ser
relacionada a um ethos de potência, de uma “chefe” que não teme seus inimigos. Elementos
como a hashtag “não vai ter golpe” e “papo reto” ajudam a projetar tal imagem, além da
afirmação de que seria a única “que conseguiu enxotar o câncer PMDB-15 do Governo
Federal”.
A personagem utiliza a expressão “Loka [sic] sim mas de amô [sic]!”, comum entre
usuários das redes sociais digitais na época da publicação, para introduzir humor e adicionar
um tom de deboche e zombaria ao diálogo. A frase “coisa ruim a gente não perde, a gente se

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livra!” também colabora para levar o internauta ao riso, assim como a expressão “13js”, que
finaliza o diálogo sem dar chance de resposta a seu interlocutor, além de ser uma referência ao
número do PT, o partido de Dilma Rousseff. Um ar autoritário pode ser conferido a ela, que
provoca humor por meio de respostas atrevidas inimagináveis num diálogo real entre duas
personalidades políticas.

Análise dos resultados e conclusões finais


Por meio das análises, observamos que Dilma Rousseff, através das publicações feitas
em sua página do Facebook, projeta ethé de força, coragem e convicção na própria luta. Há,
ainda, a projeção de uma imagem de mulher forte e guerreira, com força interior suficiente para
lutar e enfrentar os desafios representados pelo processo de impeachment. Um ethos de virtude
também é construído, relacionado à honestidade e ética da presidenta em sua carreira pública.
Observamos, por fim, a presença de um ethos de resistência que permeia os pronunciamentos
analisados, além da projeção de uma imagem de vítima da ditadura.
De forma semelhante, através das publicações feitas na página de Dilma Bolada,
podemos observar a projeção de ethé de força e potência, de quem está pronta para enfrentar
os adversários da presidenta. A personagem toma para si a identidade de presidenta da
república, projetando imagens de perspicácia e inteligência na guerra representada pelo
impeachment. Por meio do uso do humor, o processo de impeachment é criticado, havendo,
inclusive, o uso de nomeações axiológicas negativas para se referir aos adversários políticos da
presidenta.
Podemos observar, por meio das análises, a existência de algumas semelhanças entre os
ethé projetados por Dilma Rousseff e Dilma Bolada. As publicações feitas na página da
personagem fictícia atribuem a ela traços de caráter que constituem a história discursiva de
Dilma Rousseff, tais como seriedade e autoritarismo. Tais características são comumente
atribuídas à presidenta pela grande mídia ou adversários políticos, sendo aproveitados pela
personagem, que introduziu a eles atributos próprios, tais como o uso do humor.

Referências

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2016.

CHARAUDEAU, Patrick. Discurso Político. 2.ed. Trad. Fabiana Komesu e Dilson Ferreira da Cruz.
São Paulo: Contexto, 2006.

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LESSA, Cláudio Humberto. Marcação e destituição de identidade político-discursiva em ensaios de


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DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA NAS RÁDIOS UNIVERSITÁRIAS PÚBLICAS:


conhecimento além dos muros do campus1

Rafael Medeiros2
Gláucio Antônio Santos3
Universidade Federal de Ouro Preto
Nísio Teixeira4
Universidade Federal de Minas Gerais

Resumo
As rádios universitárias públicas, embora tenham incorporado alguns aspectos das emissoras
pioneiras na radiodifusão nacional, têm se configurado com características próprias e bem
delimitadas. Uma dessas características diz respeito ao local privilegiado das emissoras
universitárias públicas para a difusão do conhecimento produzido na universidade. Este estudo
teve como objetivo analisar a produção de divulgação científica na Rádio UFMG Educativa e
UFOP Educativa. A organização metodológica do trabalho tem como base o mapeamento dos
conteúdos identificados como de divulgação científica nas duas emissoras. As rádios
universitárias prestam um importante serviço à população, decodificando a informação
científica de interesse público para uma linguagem acessível a uma audiência múltipla.

Palavras-chave: divulgação científica; rádios universitárias; Rádio UFMG Educativa; Rádio


UFOP Educativa; interesse público.

SCIENTIFIC DISCLOSURE IN PUBLIC UNIVERSITY RADIOS:


knowledge beyond the campus walls

Abstract
Public university radio, although incorporating some aspects of the pioneer broadcasters in
national broadcasting, has been configured with its own characteristics and well defined. One
of these characteristics concerns the privileged location of public university broadcasters for
the dissemination of knowledge produced at university. This study aimed to analyze the
production of scientific dissemination at UFMG Educativa Radio and UFOP Educativa. The
methodological organization of the work is based on the descriptive analysis of the contents
identified as of scientific dissemination in the two stations. University radio stations provide an

1
Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Estudos Interdisciplinares, do XI Encontro dos Programas de Pós-
Graduação em Comunicação de Minas Gerais.
2
Graduado em Jornalismo (UFMG) e em Publicidade e Propaganda (PUC Minas), Mestrando do Programa de
Pós-Graduação em Comunicação (UFOP), e-mail: rfmedeiros13@gmail.com/.
3
Graduado em Comunicação Social/Jornalismo (IES/FUNCEC), Mestrado em Educação (UFOP), e-mail:
glaucioasantos@gmail.com/.
4
Doutor em Ciências da Informação (UFMG), Professor Adjunto vinculado ao Departamento de Comunicação
Social da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, e-mail:
nisiotei@gmail.com/.

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important service to the population by decoding scientific information of public interest into a
language accessible to a multiple audience.

Keywords: scientific divulgation; university radio; Rádio UFOP Educativa; Rádio UFMG
Educativa; public interest.

Introdução
Como desdobramento de uma pesquisa mais abrangente5, o artigo tem como foco a
divulgação científica abordada enquanto um serviço das universidades públicas para a
população, como uma forma de compromisso social e de galardão ao que é investido nas
pesquisas dessas instituições. O estudo originário analisou a programação das rádios UFOP
Educativa e UFMG Educativa e encontrou três aspectos característicos das rádios universitárias
públicas: o espaço universitário (plural, democrático e abrangente), a divulgação científica e a
formação complementar.
No viés da divulgação científica, os programas veiculados pelas duas emissoras e
produzidos por diferentes departamentos das universidades foram evidenciados como
importantes meios de divulgação do conhecimento gerado nessas instituições. Aqui essas
produções serão analisadas levando em conta suas temáticas, áreas do conhecimento e
conteúdos tendo em vista o entendimento de divulgação científica enquanto “o uso de processos
e recursos técnicos para a comunicação da informação científica e tecnológica ao público em
geral”. (BUENO apud ALBAGLI, 1996, p. 397).
Através da divulgação científica, as rádios universitárias públicas conseguem aproximar
um dos aspectos mais restritivos da universidade (seja pelo acesso ou pela dificuldade de
entendimento) ao público geral. Essa aproximação ganha em importância ao verificarmos o
acercamento entre as pesquisas realizadas na universidade e a vida cotidiana da população.
A organização metodológica do trabalho é pensada com base na análise dos conteúdos
identificados como de divulgação científica na Rádio UFMG Educativa e UFOP Educativa. A
pesquisa abarca o caminho metodológico proposto por Debora López (2007) para estudo do
radiojornalismo na era digital e, assim, utiliza em primeira instância a pesquisa bibliográfica
como um meio de “conhecer, ao menos inicialmente, as características e objetivos dessas

5
A pesquisa que originou o presente trabalho analisou a programação das rádios UFMG Educativa e UFOP
Educativa buscando características que pudessem configurar as emissoras universitárias públicas como um
modelo específico de rádio dentro do sistema brasileiro de radiodifusão. Os desdobramentos já publicados da
pesquisa tratam do histórico das rádios universitárias (MEDEIROS; TEIXEIRA, 2018a), do modelo de
programação (MEDEIROS; TEIXEIRA, 2018b) e do caráter público da comunicação nessas emissoras
(MEDEIROS; TEIXEIRA, 2018c).

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emissoras [...] no momento de sua criação” (LÓPEZ, 2007, p. 7). Nesse sentido, o histórico das
emissoras é indicado destacando as configurações inerentes às iniciativas de divulgação do
conhecimento universitário que ajudaram a formatar a identidade dessas rádios.
Quando colocada em contexto dos tempos de emissão e dos tempos sociais, a segunda
fase é importante para entender os modelos de programação e produção de conteúdo das
emissoras porque é o momento de “imergir no objeto, buscando nele e fora dele seus dados –
através de distintas estratégias metodológicas –; detalhando e questionando teorias e autores
através da pesquisa bibliográfica;” (id. ibid). Nessa fase foi feita a análise da programação das
duas emissoras atualizada a partir de levantamento realizado preliminarmente na pesquisa
inicial através da escuta sistematizada e de documentos fornecidos pelas rádios.
A terceira fase propõe para o “pesquisador cruzar e analisar os dados obtidos nas etapas
anteriores através de técnicas de pesquisa qualitativa e análise das variáveis detectadas”
(LÓPEZ, 2007, p. 12). Aqui a pesquisa bibliográfica, a escuta sistematizada e análise
documental foram reunidas para possibilitar o viés analítico da pesquisa a partir da descrição
do conteúdo de divulgação científica veiculado pelas rádios UFMG Educativa e UFOP
Educativa. Nas duas emissoras observadas, os conteúdos de divulgação científica são, em sua
maioria, veiculados em programetes6 produzidos pela comunidade acadêmica e pelas próprias
equipes das emissoras.

Divulgação científica: bases históricas de programação das rádios universitárias


Apesar das modificações observadas ao longo da história da radiodifusão educativa de
maneira geral é possível afirmar que as emissoras universitárias têm definidos desde o começo
seus objetivos e constituem suas grades de programação com bases nas características já
experimentadas pelas primeiras emissoras educativas, acrescidas de suas próprias missões e das
configurações das universidades às quais se vinculam.
As bases de programação das primeiras emissoras universitárias eram constituídas de
programas culturais e educativos. Criadas inicialmente com o objetivo de servirem como
laboratórios para prática do conteúdo apreendido em sala de aula, a divulgação científica esteve
presente já nas programações das rádios universitárias pioneiras. A primeira rádio universitária
brasileira foi inaugurada em 18 de novembro de 1957, mas desde 1950, quando funcionava de

6
Programetes são programas de curta duração com temas especializados. Mesmo que não haja um manual técnico
que indique as configurações desse tipo de conteúdo, por convenção são definidos como “pílulas” com menos
de cinco minutos de duração. Na Rádio UFOP Educativa é estabelecido que essas produções tenham no máximo
três minutos, já na Rádio UFMG Educativa a duração é variável.

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maneira amadora, a Rádio da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS) tinha
estabelecida uma programação que privilegiava a divulgação do conhecimento produzido na e
temas específicos de educação e cultura. “Desse modo, uma das primeiras características das
emissoras universitárias públicas é o reconhecimento da pluralidade cultural através de espaços
destinados para diferentes públicos”. (DEUS, 2005, p. 91).
Conforme destaca documento oficial da UFRGS, citado no trabalho de Zuculoto (2012),
inicialmente a programação da rádio “era constituída tão somente de boletins informativos
sobre as atividades acadêmicas, formaturas, boletins astronômicos e assuntos diversos ligados
à Universidade. Posteriormente começaram as irradiações de música [...]” (UFRGS apud
ZUCULOTO, 2012, p. 128-129).
Embora a divulgação científica esteja presente no jornalismo de forma geral é preciso
destacar a condição privilegiada das rádios universitárias no sentido de proximidade com a
produção científica e assim a possibilidade de explorar o conteúdo e decodificar de maneira
mais correta e responsável a informação técnica que será transmitida ao ouvinte. Ao decodificar
essa informação pensando nos diferentes tipos de ouvintes que elas abrangem, as rádios,
enquanto públicas e universitárias, têm o reconhecimento de seu papel dentro da própria
universidade e, sobretudo, entre a população. Herrera Huérfano (2001) destaca a função que as
emissoras universitárias devem desempenhar como rádios dedicadas a conteúdos de interesse
público:
Pensar em diferentes públicos e, sobretudo, nestes como grupos capazes de se
desenvolverem e crescer implica assumir, a partir da produção radiofônica, o objetivo
de informar, educar (mais que simplesmente entreter) e assumir um sistema de
radiodifusão como serviço de interesse público. (HERRERA HUÉRFANO, 2001, p.
66, tradução nossa7)

Os estudos sobre divulgação científica (ALBAGLI, 1996, 2005; BUENO, 2010)


mostram uma evolução das iniciativas seguindo o próprio avanço da ciência e também a partir
da observação da importância de popularizar a ciência para um público mais diverso e
heterogêneo possível. Esse aspecto dentro da universidade (não só nas rádios) tem um sentido
limítrofe entre divulgação institucional e serviço público.
Para Albagli (1996),
a população leiga mais necessita ter acesso a informações científicas que se
relacionam com problemas da sua vida cotidiana, como saúde e higiene, nutrição, uso
de fertilizantes e pesticidas etc, bem como que a instrumentalize para assimilar

7
Pensar en diferentes públicos y, sobre todo, en éstos como grupos capaces de desarrollarse y crecer implica
asumir, desde la producción de radio, el objetivo de informar, educar (más que el de simplemente entretener) y
asumir un sistema de radiodifusión como servicio de interés público.

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criticamente e contribuir criativamente para o avanço científico-tecnológico da


humanidade em geral. (ALBAGLI, 1996, p. 403)

Ora, mais uma vez fica visível a função pública e social das emissoras universitárias
federais, sua aproximação com a população, com as próprias características potenciais das
universidades públicas - abrangentes, democráticas, múltiplas. No mesmo sentido, Bueno
(2010) considera que a divulgação científica cumpre função primordial:
Democratizar o acesso ao conhecimento científico e estabelecer condições para a
chamada alfabetização científica. Contribui, portanto, para incluir os cidadãos no
debate sobre temas especializados e que podem impactar sua vida e seu trabalho, a
exemplo de transgênicos, células tronco, mudanças climáticas, energias renováveis e
outros itens. (BUENO, 2010, p. 5)

Nas rádios UFMG Educativa e UFOP Educativa a noção de divulgação científica como
instância do caráter público das emissoras é bastante relevante. Como será verificado adiante
na análise descritiva dos programetes, existem conteúdos de diversas áreas do conhecimento
que realizam esse papel de democratizar o acesso ao conhecimento científico e levar informação
relevante em linguagem simples para abranger o maior número de ouvintes.
A partir da exposição da importância da divulgação científica para a comunidade e do
estado privilegiado em que se encontram, mais que uma escolha, “as rádios universitárias têm
o dever e a responsabilidade social de informar e esclarecer a população sobre as pesquisas
científicas produzidas nas universidades” (ASSUMPÇÃO, 2003, p. 44).

A Rádio UFMG Educativa


A Rádio UFMG Educativa entrou no ar oficialmente em 6 de setembro de 2005 com
uma linha editorial pensada como um “tripé”. São três conceitos que funcionam como eixos
centrais de filosofia de trabalho e bases norteadoras na constituição da programação da rádio
de maneira geral, são eles: visibilidade, formação complementar e alternativa8. Segundo Elias
Santos (2014, p. 10), esses conceitos partiram de uma análise do papel que a Rádio deveria
desempenhar enquanto emissora pública universitária, buscando uma programação coerente
com os princípios de uma universidade pública.
A vertente destacada no presente artigo é a da visibilidade, que diz respeito à divulgação
do conhecimento que é produzido na UFMG e também tido como uma maneira de informar a

8
A vertente que trata da formação complementar se refere à possibilidade da Rádio UFMG Educativa servir como
espaço laboratorial para alunos e para colaboradores externos que produzem conteúdo na emissora. Já a base que
expressa o caráter alternativo da emissora evidencia que o conteúdo de sua programação e os formatos dos
programas devem ser diferente dos veiculados por emissoras comerciais. Conforme destacam Medeiros e
Teixeira (2018b), a emissora consegue seguir de maneira bastante satisfatória as convenções do “tripé editorial”.

390
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comunidade em geral dos projetos desenvolvidos na Universidade, que são abertos a um público
que nem sempre tem acesso a essa informação.
Dentro da ideia de que esta é uma universidade pública, precisamos mostrar para a
sociedade os projetos de pesquisa, ensino e extensão que compõem a missão desta
instituição e também o que esta Universidade tem a dizer sobre os assuntos do nosso
cotidiano. (SANTOS, 2014, p. 10)

A Rádio UFMG Educativa opera em FM 104,5 e foi instaurada já com o slogan “A


estação do conhecimento” com objetivo bem demarcado de ser uma emissora que evidenciaria
o conhecimento produzido na Universidade, mas com consciência de que suas funções
precisavam ir além dos muros do campus. A Diretora do Centro de Comunicação (CEDECOM)
da UFMG, Maria Céres Pimenta Spínola de Castro, sublinha como aspecto fundante da
construção da Rádio UFMG Educativa a necessidade de “disponibilizar informações sobre a
Universidade, que é pública por natureza, para um público com o qual ainda não temos um
canal direto de comunicação” (CASTRO apud SANTOS, 2014, p. 8). Esse trecho, rememorado
da época de fundação da emissora, demonstra ainda que desde o começo se tinha uma noção
do espaço híbrido da universidade e que as bases norteadoras de programação deveriam se
atentar também a isso.

Divulgação científica na Rádio UFMG Educativa


Os programetes de divulgação científica veiculados pela Rádio UFMG Educativa são
produzidos, em sua maioria, por membros da comunidade acadêmica, sejam professores,
servidores técnico-administrativos ou alunos. Enquanto na Rádio UFOP Educativa existe uma
recente padronização da duração dos programetes, na emissora de Belo Horizonte esse tempo
de duração é variável, mesmo que, por convenção, não seja longo e por isso possa ser
enquadrado como programete. Os conteúdos desse tipo veiculados na Rádio UFMG Educativa
são exibidos em horários pré-definidos na grade de programação e a maioria deles faz parte dos
programas principais da emissora9.
Os programetes não são a única forma de divulgação da produção científica universitária
presente na rádio, mas é importante ressaltar sua relevância como possibilidades de exploração
direta dos conteúdos técnicos explicados pelos próprios especialistas, ou sob supervisão deles,
para o entendimento dos ouvintes, representando também um dos veios de democratização
desse tipo de informação pública. O quadro abaixo elenca os programetes de divulgação

9
O trabalho apresenta como programas principais aqueles de longa duração, com fôlego de produção, que
incorporam outros conteúdos em sua matriz ou que são transmitidos ao vivo. Na Rádio UFMG Educativa eles
são quatro: Universo Literário, Conexões, Expresso 104,5 e Noite Ilustrada.

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científica veiculados pela Rádio UFMG Educativa e descreve simplificadamente seus


conteúdos.

Quadro 1 – Programetes de divulgação científica veiculados pela Rádio UFMG


Educativa

Programete Produção/Vinculação Conteúdo

Aspectos históricos sobre uma


Projeto de Ensino, Pesquisa e
canção específica, seu contexto
Conte uma canção Extensão do Departamento de
temporal, letra e relação com a
Comunicação Social da UFMG
biografia do compositor.

Projeto de Extensão da Escola Informações sobre o cuidado com a


Cuidarte
de Enfermagem da UFMG saúde e dicas sobre bem estar.

Colegiado de Licenciatura em Diferentes abordagens de assuntos


Dança para ouvir e
Dança da Escola de Belas referentes à dança e suas relações
pensar
Artes da UFMG enquanto área acadêmica.

Projeto República, do Questões políticas e históricas


Decantando a república Departamento de História da brasileiras a partir de temas tratados
UFMG por canções populares.

Professora da Faculdade de
Direito da UFMG e Questões gerais sobre o direito a
Direito é música Desembargadora do Tribunal partir temáticas de músicas
Regional do Trabalho de Minas populares.
Gerais

Drops de história da Professor aposentado do


História de astrônomos, cientistas e
astronomia e ciências Departamento de Física da
suas descobertas.
afins UFMG

Leitura desdramatizada de textos de


Projeto de Extensão da
Migalhas literárias diversos autores da literatura
Faculdade de Letras da UFMG
nacional e internacional.

Projeto de Extensão do curso


Informações gerais sobre temas
Na onda da aquacultura de Aquacultura da Escola de
relacionados à aquacultura.
Veterinária da UFMG

Projeto de Extensão Ciência no


Divulgação científica de temáticas
Na onda da vida Ar, vinculado ao Instituto de
cotidianas envolvendo biologia.
Ciências Biológicas da UFMG

Departamento de Nutrição, da Informações gerais de nutrição e


Nutrisanas
Escola de Enfermagem saúde.

Núcleo de Direitos Humanos e Discussões acerca de temáticas que


Prisma
Cidadania LGBT da UFMG impactam a população LGBT.

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Assuntos relativos aos cuidados com


Projeto de Extensão da Escola
Prosa de bicho os animais e a convivência das
de Veterinária da UFMG
pessoas com os animais.

Projeto de Extensão Ciência no Curiosidades e informações


Ritmos da ciência Ar, vinculado ao Instituto de científicas através de temáticas
Ciências Biológicas da UFMG abordadas em músicas.

Assessoria de Comunicação
Informações e orientações gerais
Saúde com ciência Social da Faculdade de
sobre saúde e bem estar.
Medicina da UFMG

Professora da Faculdade de Declamação de poesias e


Toque de poesia
Letras da UFMG informações sobre autores.

Universidade das Projeto de Extensão vinculado Divulgação científica com linguagem


crianças a diferentes cursos da UFMG. infantil.

Fonte: Elaborado pelos autores com dados da pesquisa.

Como é evidenciado no quadro acima, uma vez que as produções são feitas por
diferentes agentes de variegados núcleos da Universidade há igualmente uma diversidade de
temáticas abordadas que impactam de maneira direta a vida dos ouvintes ou exteriorizam o
conhecimento produzido dentro desses núcleos para além dos muros do campus. Essa função
dos programas de divulgação expõe uma das características fundantes das rádios universitárias
públicas conforme aponta Sandra de Deus (2003), a partir das reflexões de Herrera Huérfano
(2001):
a função social de uma rádio universitária é oferecer uma produção que cubra a maior
parte dos setores da população. Isso não significa somente que deve atingir o maior
número de ouvintes, mas oferecer uma programação que corresponda aos interesses
de diferentes setores da população. Significa que as rádios universitárias públicas não
podem estar voltadas à divulgação de uma só forma de expressão, cultura, arte ou
pensamento, mas sim, especialmente, a todas aquelas que os modelos de radiodifusão
comercial ignoram. (DEUS, 2003, p. 310-311)

Dentro dessa diversidade temática, modos de produção e de colaboradores, existem


programetes de divulgação científica que são produzidos por alunos elaborados como
atividades acadêmicas de disciplinas dos cursos de origem. São eles: Na onda da vida, Ritmos
da ciência, Na onda da aquacultura, Prosa de bicho e Conte uma canção. É importante destacar
essa forma de produção porque evidencia a função laboratorial das rádios universitárias e a
abertura dessas emissoras ao experimentalismo e conteúdos alternativos.
O site do projeto de extensão que mantém os programas Na onda da aquacultura e Prosa
de bicho reitera o que foi evidenciado anteriormente quanto aos objetivos da divulgação
científica através do rádio: “o programa objetiva informar e instruir cidadãos comuns sobre
diversos temas que estão relacionados à aquacultura, utilizando um vocabulário simples e direto

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e oferecendo uma visão multidisciplinar sobre o assunto” (ESCOLA DE VETERINÁRIA,


2018).
Desde o seu começo a emissora colocou como características de sua produção a
diversidade de temas de todos os programas, conforme notabiliza a reportagem de Ana Maria
Vieira publicada no Boletim da UFMG no segundo ano da emissora:
a diversidade de temas que abordam e a expertise de seus produtores são algumas das
características mais marcantes dos programas feitos com colaboradores. Sem domínio
da linguagem da mídia, eles recebem noções da equipe da UFMG Educativa e acabam
desenvolvendo projetos surpreendentes em áreas como música, filosofia, meio
ambiente, economia, direito, veterinária, história, poesia e educação. (VIEIRA, 2007,
p. 8)

Os demais programetes são produzidos por professores e núcleos das mais diversas
áreas do conhecimento, tratando de temas como astronomia, saúde, nutrição, história, dança,
direito, música, literatura, direito da população LGBT e administração. Como será possível
verificar adiante, a Rádio UFOP Educativa também privilegia a diversidade temática e a
participação da comunidade universitária na produção desse tipo de conteúdo.

A Rádio UFOP Educativa


A concessão pública da Rádio UFOP é da Fundação Educativa de Rádio e TV Ouro
Preto (FEOP), entidade de apoio à Universidade Federal de Ouro Preto. A emissora de rádio
foi criada em 21 de agosto de 1998 e desde o seu surgimento conta com a participação de
professores, técnicos-administrativos e estudantes da Universidade para elaboração de sua
programação.
O seu quadro de trabalho é formado por quatro funcionários da FEOP: jornalista,
locutor, radialista e técnico de áudio. Mantida no ar 24 horas, a presença da comunidade
acadêmica é um diferencial para a manutenção da grade. Estão diretamente ligados à emissora
dez estudantes-bolsistas dos cursos de Jornalismo, Museologia, Artes Cênicas e História, além
de docentes e técnicos da UFOP. A programação conta ainda com produtos cedidos por
emissoras públicas: Rádio Cultura de São Paulo, Rádio França Internacional, Rádio UFMG
Educativa, Rádio Câmara e Rádio Senado.
Integrante da Central de Comunicação Pública-Educativa da Coordenadoria de
Comunicação Institucional da UFOP, a Rádio UFOP baseia suas produções no Projeto
Acadêmico e de Desenvolvimento Institucional para o Sistema de Comunicação Integrada na
UFOP (Resolução CUNI nº 1079) e no Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI 2016-

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2025). O primeiro documento norteia à linha editorial dos veículos de comunicação da FEOP à
serviço da UFOP:
(...) têm como princípio servir de interlocução entre a academia e a comunidade como
um todo. Para isso, deve-se utilizar os veículos de mídia eletrônica, de rádio, de
televisão e de novas tecnologias para a difusão de programas voltados para educação,
cultura... preservação da memória, da história regional e nacional, veiculação de
produção musical de qualidade, incentivo ao debate e à reflexão, divulgação de
projetos e de resultados de pesquisa científica, campanhas de conscientização e de
cidadania. (UFOP, 2010)

Com base nestas orientações, a Rádio UFOP busca priorizar divulgações institucionais
da Universidade e a produção de conteúdo de interesse das populações das regiões onde a
Universidade Federal de Ouro Preto está inserida. A divulgação científica, por exemplo, é
pensada a partir de situações cotidianas das cidades de Ouro Preto e Mariana, onde a instituição
de ensino mantém campi10. Atualmente, a equipe de trabalho da emissora está dividida da
seguinte forma: Núcleo de Programação: Conteúdo e Entretenimento, Núcleo de Comunicação
Pública Científica, Núcleo de Jornalismo Educativo e Núcleo de Captação de Áudio, Edição e
Sonoplastia.

Divulgação científica na Rádio UFOP Educativa


A partir de levantamento feito pelo Projeto Memória11 da emissora referente às duas
décadas de existência concluiu-se que o tema ciência perpassa em diversos programas de curta
duração, que variam entre 1 e 10 minutos. Foram produzidos 662 programetes entre os anos de
2001 e 2018 com base na divulgação científica. Conforme exemplifica o quadro 2, os temas são
variados e incluem discussões sobre acessibilidade, saúde, primeiros cuidados com os bebês,
conservação de bens e astronomia.

Quadro 2 - Programetes de divulgação científica veiculados pela Rádio UFOP Educativa

Programete Produção Conteúdo

Acessibilidade em
2016/2017 Informações sobre direitos das pessoas com deficiência
Debate

Alô Pediatria 2017/2018 Informações sobre os primeiros cuidados com os bebês

10
Um terceiro campus está instalado em João Monlevade – MG, distante 150 km de Ouro Preto. No entanto, o
sinal da Rádio UFOP Educativa não chega até essa cidade.
11
O Projeto Memória Rádio UFOP tem como objetivo construir e preservar a memória da emissora. Através de
depoimentos e documentos, o projeto possibilitou a construção de um inventário das produções e a investigação
das origens da Rádio UFOP Educativa.

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Informações sobre direitos das pessoas com deficiência, sobre


Áudio-descrição 2015/2016
acessibilidade no campo audiovisual.

Conserva Ação no Ar 2012/2014 Informações sobre preservação de bens culturais e memória.

Drops de Saúde 2017 Informações gerais sobre saúde.

Infonutri 2004/2018 Dicas de saúde a partir da nutrição.

Indígenas, Povos Informações sobre as culturas indígenas do Brasil a partir da


2018
Originários do Brasil desconstrução de mitos sobre os Povos Originários.

Mãos à obra 2009 Informações sobre a Construção Civil.

Memória da Ciência e Informações sobre o Museu da Ciência e Técnica da Escola


2011/2015
da Técnica de Minas, em Ouro Preto.

Marteladas Geológicas 2011/2018 Informações sobre conformações e efeitos naturais do solo.

Minuto Astronômico 2001/2017 Informações sobre astronomia.

(continuação)

Mutatis Mutandis: à Divulgação Científica das produções da UFOP e de outras


2018
procura do saber instituições de pesquisa (edital 07/2015 - Fapemig).

Sintonia Ambiental 2010/2018 Informações sobre o Meio Ambiente.

Rádio Ciência 2018 Divulgação Científica da UFOP e de outras instituições.

Viva Mais 2017/2018 Informações e dicas de saúde.

Fonte: Elaborado pelos autores com dados da pesquisa.

Considerando a constituição identitária da emissora em produzir conteúdo voltado para


a divulgação da ciência, no início de 2017, a direção da rádio constituiu o Núcleo de
Comunicação Pública e Científica. Trata-se de uma equipe de trabalho multidisciplinar para
promover atividades de formação de professores, técnicos-administrativos e estudantes da
Universidade Federal de Ouro Preto, que estejam envolvidos em atividades relacionadas à
pesquisa.

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Além dessas ações, o Núcleo de Comunicação Pública e Científica é responsável por


sugerir pautas, revisar e propor adequação de roteiros e textos para a linguagem radiofônica,
orientar a postura de gravação, desenvolver workshop de aquecimento de voz. A ideia da equipe
multidisciplinar (formada por jornalista, radialista e estudantes bolsistas de Artes Cênicas,
História, Jornalismo e Museologia) é oferecer aos pesquisadores das diversas áreas do
conhecimento dentro da Universidade a possibilidade de produzir conteúdo que possa ser
apreendido pelos diversos públicos no rádio e na internet. As atividades formativas se apoiam
naquilo que Ferraretto (2010) destaca sobre a “alfabetização midiática dos cientistas”.
Anterior à constituição deste grupo de trabalho, a produção (não somente à relacionada
à divulgação científica) ocorria de forma isolada por parte de colaboradores da emissora. No
caso da divulgação científica, os pesquisadores redigiam seus textos, sem nenhuma
contribuição de profissionais da Comunicação Social ligados à emissora, gravavam e os
colocavam no ar. A nova metodologia de trabalho da emissora também impactou a duração dos
programetes. Se antigamente eles duravam até 10 minutos, com a atuação do Núcleo agora não
ultrapassam três minutos para veiculação no rádio.
Para facilitar a atuação dos colaboradores foi constituído um Manual de Produção de
Conteúdo Educativo com diversas dicas. Neste documento são temas centrais: a divulgação da
ciência, a educação não formal por meio do rádio, o rádio educativo e a produção de podcasts.
Sobre essas mudanças, a professora e pesquisadora, Debora Cristina López, gestora da
Coordenação de Comunicação Institucional da UFOP, setor sob o qual à Rádio UFOP está
vinculada, faz a seguinte análise:
A principal importância é que a Rádio está começando a pensar como é que ela faz
rádio a partir também do desenvolvimento acadêmico. A Rádio se construiu nesses 20
anos de uma maneira muito sólida. Ela passa por algumas etapas que são mais fortes
em um determinado tipo de produção ou em outra. Nesse momento, a experimentação,
a ciência, à tecnologia e a cultura estão entrando com muita força no conteúdo da
Rádio UFOP Educativa. E a ideia é que realmente ela possa ser, por mais estereotipado
que seja isso, e realmente é um estereótipo, um celeiro de boas ideias. Que a gente
possa efetivamente pensar o rádio. Não se ater às restrições que o mercado de rádio já
traz para quem produz rádio. (LÓPEZ apud RÁDIO UFOP EDUCATIVA, 2018)

Ao compreender a sua relação com a ciência ao longo de quase duas décadas, as


mudanças feitas pela emissora buscam estabelecer parâmetros para que as produções produzam
maior diálogo com o seu público dentro e fora da Universidade Federal de Ouro Preto. As
produções realizadas nesta sólida trajetória sólida agora recebem apoio sistemático e reflexivo
em diálogo com os campos da Comunicação Social e da própria Educação. Neste sentido, a
atuação do Núcleo de Comunicação Pública Científica permite, além da revisão de roteiros,

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repensar formatos, linguagens e desenvolver experimentações, tendo como foco o ouvinte e o


usuário da internet.
A partir dessas reflexões e experiências um novo produto foi constituído pela equipe
multidisciplinar. Se nos outros conteúdos a ciência perpassa pelos programetes de forma
despercebida com orientações sobre os cuidados com os bens culturais, sugestões e cuidados
com os bebês, por exemplo, o Rádio Ciência surge no primeiro semestre de 2018 com a proposta
de dar visibilidade mais diretamente às produções científicas da Universidade Federal de Ouro
Preto. Seja por meio de reportagens ou entrevistas, o programa de rádio busca explorar as
pesquisas em andamento dentro da instituição. Além disso, divulga editais relacionados à
produção científica no Brasil e no exterior.
Outra produção nova em andamento, que se distancia dos modelos vigentes na emissora,
são os programetes “Mutatis Mutandis: à procura do saber”. O projeto de pesquisa ciência e
audiovisual é realizado a partir de premiação conquistada no edital 07/2015 da Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig), que teve como objetivo a
popularização da ciência, da tecnologia e da inovação. Trata-se de uma produção educativa
audiovisual e multiplataforma, que incluiu produções para televisão e para a internet,
coordenada pelo professor e pesquisador Adriano Medeiros da Rocha.
Naquilo que cabe à emissora de rádio, Mutatis Mutandis tem sido produzido a partir de
contextos cotidianos dos estudantes bolsistas da UFOP Educativa nas cidades de Ouro Preto e
Mariana, em Minas Gerais. Os roteiros são elaborados pelo Núcleo de Comunicação Pública
Científica e buscam apresentar aos ouvintes e internautas a ciência como parte do cotidiano das
pessoas e demonstrar ao público como ela está presente nos mais diversos espaços e atividades
relacionadas à vida humana.
Embora cada roteiro tenha um redator responsável, sua escrita e revisão é sempre feita
de forma conjunta, assim como os ensaios para testar os textos. Para a linguagem radiofônica,
a produção se aproxima das antigas radionovelas, recorre à linguagem dos jovens universitários,
dialoga com o humor e com o drama na expectativa de prender à atenção do seu público alvo:
estudantes do Ensino Médio. São abordados os seguintes temas: ciência, saúde, dengue,
eletrônica, sustentabilidade, energia, sociedade, aplicativos.

Participação ativa da comunidade acadêmica


Os programetes na Rádio UFMG e na Rádio UFOP são em sua ampla maioria produções
da comunidade acadêmica, conforme evidenciado abaixo (Gráfico 1). Isso se justifica pelo
acertado uso do formato na divulgação do conhecimento produzido na Universidade. Embora

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a divulgação científica também seja feita através dos programas jornalísticos, de entrevistas na
programação geral das emissoras, os programetes, quase em sua totalidade, têm esse papel
dentro das rádios.
No caso das duas emissoras em questão, a participação ativa da comunidade acadêmica
aponta também para um modelo diferenciado do fazer rádio a partir de uma atuação
colaborativa entre profissionais da comunicação e não profissionais da comunicação. Se por
um lado existe o desafio dos cientistas em levar ao público a sua produção de conhecimento,
por outro lado pode haver também por parte dos profissionais da comunicação determinada
falta de domínio para tratar da diversidade de temas.
Embora essa última questão não seja tema central deste estudo é possível afirmar que o
público das emissoras públicas educativas é beneficiado pela difusão do conhecimento
produzido em ambas as universidades a partir de um trabalho conjunto que se completa.

Gráfico 1 - Origem dos programetes na Rádio UFMG e na Rádio UFOP

Fonte: Elaborado pelos autores com dados da pesquisa.

Considerações finais
As experiências de divulgação científica no rádio universitário estão presentes desde o
início dessas emissoras ainda na década de 1950. Se primitivamente o interesse da divulgação
científica nas rádios universitárias era dar visibilidade à universidade em ações limítrofes entre

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comunicação institucional e comunicação de caráter público, as iniciativas foram se


diversificando e incorporando as funções precípuas das universidades federais: democratização
do conhecimento, popularização da ciência,
Como um espaço em constante transformação e sofrendo diversas influências de agentes
internos e externos, sejam estes de ordem política, econômica, de organização, entre tantos
outros, o espaço da Universidade e seus arranjos interferem diretamente no trabalho realizado
por suas mídias. Um exemplo dessa interferência é inerente tanto aos modelos de programação
quanto de produção de conteúdo, considerando que entre as bases das rádios UFOP Educativa
e UFMG Educativa está a de dar visibilidade às experiências produzidas na Universidade. Ora,
se é produzido mais ou menos conhecimento em um determinado período de tempo, o trabalho
de divulgação precisa se adequar a essas variantes, influenciando diretamente no dia a dia dos
funcionários e estagiários.
As duas emissoras têm a visão sistêmica da importância dos programas de divulgação
científica enquanto marcos de visibilidade do conhecimento produzido pela universidade e,
principalmente, enquanto fontes de conhecimento para uma população diversificada e muitas
vezes carente de acesso a temáticas como as discutidas pelos programetes de divulgação
científica.

Referências

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informação, Brasília, v. 25, n. 3, p. 396-404, 1996.

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PT, MEMÓRIA HISTÓRICA E A ÊNFASE NA LIDERANÇA DE LULA: uma análise


da Propaganda Partidária Gratuita (PPG)1

Vinicius Borges Gomes2


Mariane Motta de Campos3
Luiz Ademir Oliveira4
Universidade Federal de Juiz de Fora

Resumo

A Propaganda Partidária Gratuita (PPG) foi, até 2017, o principal instrumento de


comunicação dos partidos políticos no Brasil, quando o Congresso Nacional decidiu excluí-la
do rito democrático. Entretanto, as peças exibidas desde 2014, ano da última eleição
presidencial, registraram aspectos de grande relevância, uma vez que se deram em meio a
uma crise política sem precedentes. O artigo propõe-se a um análise das propagandas do
Partido dos Trabalhadores exibidas no período de 2014 a 2017. A simbiose entre os campos
da comunicação e da política e o conceito de campanha permanente constituem a
fundamentação teórica. No escopo da análise, um olhar crítico sobre como um dos maiores
partidos do país desenvolveu suas narrativas em meio a uma rejeição para com a legenda e
também para com todo sistema partidário, tomando como base a Análise de Conteúdo
(Bardin, 2011).

Palavras-chave: Propaganda Partidária Gratuita; Comunicação Política; Campanha


Permanente; Partido dos Trabalhadores.

PT, HISTORICAL MEMORY AND THE EMPHASIS IN LULA'S LEADERSHIP:


an analysis of Free Party Advertising

Abstract

Free Party Propaganda (PPG) was, until 2017, the main instrument of communication of
political parties in Brazil, when the National Congress decided to exclude it from the
democratic rite. However, the pieces exhibited since 2014, the year of the last presidential
election, recorded aspects of great relevance, since they occurred amid an unprecedented
political crisis. The article proposes an analysis of the advertisements of the PT exhibited in
the period from 2014 to 2017. The symbiosis between the fields of communication and
politics and the concept of permanent campaign constitute the theoretical foundation. In the
scope of analysis, a critical look at how one of the largest parties in the country developed

1
Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho 5 (Estudos Interdisciplinares), do XI Encontro dos Programas de
Pós-Graduação em Comunicação Social de Minas Gerais, 18 e 19 de outubro de 2018.
2
Doutorando em Comunicação pela Universidade Paulista – UNIP e mestre em Comunicação pela Universidade
Federal de Juiz de Fora - UFJF. E-mail: vini-bg@hotmail.com.
3
Mestranda em Comunicação pela Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail:
marianemottadecampos@hotmail.com.
4
Professor orientador. E-mail:luizoli@ufsj.edu.br.

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their narratives amid a rejection of the legend and also of every party system, based on
Content Analysis (Bardin, 2011).

Keywords: Free Party Propaganda; Political Communication; Permanent Campaign; PT.

Introdução
Ao analisar a democracia brasileira, Santos (1993) afirma que o país se estruturou a
partir de uma institucionalização precária, já que as regras mudam facilmente e de acordo com
os interesses dos grupos dominantes. Além disso, o processo democrático brasileiro passou
por vários momentos de ruptura, como os golpes militares em 1937 e 1964. Em 1985, iniciou-
se finalmente o processo de consolidação democrática e o fato de termos chegado à sétima
eleição presidencial (1989, 1994, 1998, 2002, 2006, 2010, 2014) parecia indicar o
fortalecimento da democracia, porém a política brasileira ainda sobre interferências de grupo
dominantes e de interesses dos mesmos.
Nessa democracia marcada pela instabilidade institucional, Souza (2016) trata o
impeachment da presidente como um golpe orquestrado desde as manifestações de 2013 pelas
elites. O sociólogo analisa como a direita apropriou-se das Jornadas de Junho naquele ano e a
partir daí estruturou-se uma tomada de poder a partir de uma conjugação de forças políticas de
direita oposicionistas aos governos do PT, de movimentos sociais conservadores que surgiram
na onda do ativismo digital como o “Movimento Brasil Livre” (MBL) e o “Vem pra Rua”, de
fortes grupos econômicos (como a Fiesp), além de respaldo em agentes do Judiciário.
Para o presente artigo, serão analisados seis programas da Propaganda Partidária
Gratuita do PT que foram ao ar de 2014 a 2017, que acabaram influenciadas, de modo central,
pelos fatos atípicos verificados no período. Para isso, será utilizada a Análise de Conteúdo
(BARDIN, 2011).
É notório como a interface comunicação e política tornou-se um assunto relevante,
principalmente em função do atual contexto político no qual o Brasil está inserido. Diante de
um processo de impeachment, decorrente de acusações de manipulação a diferentes mídias e
face à consolidação de mídias digitais do ciberespaço (Mídia Ninja, por exemplo) e diante
uma crise política e de representação discutir esse tema torna-se importante. O estudo traz
uma abordagem que busca compreender a comunicação política, tendo em vista a importância
da Propaganda Partidária Gratuita sob o aspecto da Campanha Permanente. A partir disso, é
importante discutir o fim da PPG que pode representar um enfraquecimento da democracia,
na medida em que retira comunicação partidária dos meios massivos e impede que haja uma

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maior prestação de contas, bem como discutir quais foram as estratégias do Partido dos
Trabalhadores no PPG durante esse período de instabilidade política.

A relação simbiótica entre mídia e política em tempos de crise de representação


Muitos estudos apontam para a centralidade da comunicação para a política, em que a
primeira imprime toda uma série de ritos, linguagens e fundamentos das quais a segunda se
apropria, o que também é recíproco. Miguel & Biroli (2010) apontam quatro dimensões
básicas dessa relação, baseando-se na crescente midiatização da sociedade e sua relação com
as disputas políticas. Os autores apontam como primeira dimensão a mídia como instrumento
de contato entre a elite política e os cidadãos. Desta forma, as estruturas tradicionais de
discussão política são substituídas pelas mediações dos novos meios. Outra dimensão
apontada tem a ver com o discurso político. Ele se adapta à lógica midiática e assume novas
características que se adéquam aos novos espaços de emissão. Miguel e Biroli (2010)
lembram que os meios de comunicação colocam as figuras políticas reféns da superexposição.
Este fenômeno acaba por desmistificá-los, porque mostra também suas fraquezas gerando,
atualmente, uma carência de grandes líderes nos eleitores.
A terceira dimensão apontada é a produção da agenda pública. Os temas destinados ao
debate e à discussão são aqueles que permeiam o noticiário e, portanto, pautam os discursos
políticos. Isso se dará no PPG, quando determinados temas, especialmente a crise política,
acabam por permear os produtos. A quarta dimensão tem a ver com a gestão de visibilidade.
Tenta-se, a todo custo, promover fatos políticos adequados à lógica midiática, garantindo
visibilidade a determinadas lideranças e/ou grupos. Percebe-se, portanto, que a imagem é
importante capital político.
Outra dimensão importante diz respeito à dimensão espetacular e personalista da
política em face da interface com o campo midiático. Portanto, entender até que ponto a
espetacularização influencia na constituição do PPG é um dos objetivos que se apresentam
neste artigo.
Ao transitar no circuito da comunicação de massa - tendo se submetido, portanto, à
lógica midiática – os materiais políticos tornam-se de algum modo homogêneos em relação
aos outros habitantes e conteúdos da atualidade midiática e obedecem aos valores do
entretenimento ali predominantes, a saber, a ruptura com a regularidade, a diversão e
dramaticidade (GOMES, 2004, p. 330).
Quanto ao personalismo, Manin (1995) trabalha com a concepção da democracia de
público, centrada nos líderes personalistas e no declínio dos partidos políticos. Leal (2002)

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compartilha desta visão e usa o termo “americanização” para tratar do fenômeno do


personalismo nas disputas eleitorais do mundo todo. Para ele, o modelo americano, que
concentra a disputa eleitoral na TV, tem se difundido e influenciado as disputas. Tal
fenômeno não se restringe às disputas dos sistemas presidencialistas, em que geralmente as
eleições são majoritárias, mas podem ser observados até em sistemas parlamentaristas, onde
teoricamente os partidos teriam maior relevância.
Hoje, em função do modelo híbrido de consumo de mídias – tanto massivas quanto
digitais bem como a utilização nas campanhas eleitorais, autores trabalham com o conceito de
midiatização. Braga (2012) afirma que a midiatização da vida social propicia uma
intensificação das maneiras pelas quais os indivíduos interagem com a sociedade. O autor faz
uma ressalva de que é um conceito “em construção”, mas que envolve tanto questões
tecnológicas referentes às mídias como nuances culturais. Braga afirma que, em contraponto
aos campos sociais consolidados como o campo político, os novos circuitos informativos e
comunicacionais, gerados, principalmente, no ciberespaço, pelas redes sociais geram a
transição para uma sociedade midiatizada em que o modelo linear de comunicação dá espaço
para formas mais horizontais de interação. Se, por um lado, isso explica, de certa forma, a
perda de capital político nas eleições municipais mais recentes em 2016 e 2018, em que as
mídias massivas perderam espaço para as mídias digitais, não há como negar que o campo
político ainda se mantém estruturado no sentido de ter suas estruturas bem definidas e
hierarquizadas. Mas se trata de um processo em transformação.

Campanha permanente e a propaganda partidária gratuita (PPG)


A Propaganda Partidária Gratuita (PPG), embora fosse um instrumento legal dos
partidos para exposição de seus programas, tornou-se um espaço também para defesa de
governos e ataques. As raízes desta propaganda remontam a 1965, com a Lei Orgânica dos
Partidos, que concedeu o direito aos partidos políticos de transmitirem congressos e encontros
em cadeias de rádio e TV. A lei 9.096 (1995) que, dentre outras questões, regularizava a PPG,
dispõe sobre o acesso gratuito ao rádio e à televisão. O texto delimitava de forma clara a
motivação para a concessão da propaganda, sendo a divulgação do programa partidário a
principal delas. Em seu Título IV, “Do Acesso Gratuito ao Rádio e à Televisão”, o texto
elucidava os objetivos: (I) difundir os programas partidários; (II) transmitir mensagens aos
filiados sobre a execução do programa partidário, dos eventos com este relacionados e das
atividades congressuais do partido; (III) divulgar a posição do partido em relação a temas
político-comunitários; (IV) promover e difundir a participação política feminina dedicando às

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mulheres o tempo que será fixado pelo órgão nacional de direção partidária, observado o
mínimo de 10% (dez por cento).
No entanto, a PPG foi extinta em 2017. A Lei n°13.487, de 6 de outubro de 2017, em
seu art. 5º, extinguiu a propaganda partidária no rádio e na televisão a partir de 1º de janeiro
de 2018, ao revogar os artigos 45, 46, 47, 48, 49 e o parágrafo único do artigo 52 da Lei dos
Partidos Políticos (9096/95). A motivação dos congressistas foi a possibilidade de aumentar
os recursos do fundo partidário, uma vez que as emissoras dispunham de isenção fiscal para a
exibição da PPG.
A comunicação de quem ocupa o poder ou de quem está na oposição está atrelada à
luta pela manutenção e conquista do mesmo. A campanha eleitoral não se encerra no
escrutínio, mas prossegue no exercício do governo. O nome dado a esta característica é de
Campanha Permanente.
Se observarmos o accountability feito por governos e governantes no espaço do PPG,
percebe-se que as ações comunicativas não se resumem a uma republicana prestação de
contas, mas atuam como propaganda do partido em vista de sua legitimação para obter apoio
popular e a concretude do voto em vindouras eleições.
Heclo (2000) aponta seis características da simbiose entre as ações de governo e ações
de campanha: (1) a mudança dos papeis de partidos políticos – mais fracos em mobilização e
recrutamento de candidatos e mais intensos nas ideologias, peculiaridades sociais e ataques;
(2) expansão de um sistema aberto e extenso de grupos de interesses políticos; (3) as novas
tecnologias de comunicação de uma política moderna; (4) as novas tecnologias políticas,
especialmente as relações públicas; (5) a crescente necessidade de financiar a política; (6) o
aumento das expectativas para todos os atores, no ativismo do governo.
Noguera (2001) lembra que o fortalecimento dos meios de comunicação e a
consequente midiatização da sociedade acabaram por transformar as relações entre governos e
sociedades. Os fluxos comunicativos substituem velhas estruturas hierárquicas e faz com que
os governantes estabeleçam uma comunicação constante com o público, abandonando ações
autoritárias.
A aproximação entre esses campos e a espetacularização da vida política contribuem
para um novo olhar sobre o que podemos chamar de campanha permanente. A mídia, segundo
Heclo (2000), também contribui para a percepção de um estado de permanente disputa. A
imprensa desmistifica determinadas ações e desvela os reais significados de ações políticas,
historicamente sempre voltadas à disputa pelo poder. Porém, essas disputas saem dos
bastidores e ganham palco e voz nos meios de comunicação.

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Análise da propaganda partidária gratuita (PPG) do PT


Nesta seção, são apresentadas metodologia, corpus de análise, contexto político e a
análise quantitativa e qualitativa dos 6 (seis) programas da Propaganda Partidária Gratuita do
PT que foram ao ar de 2014 a 2017.

Metodologia e Corpus de análise


A pesquisa utiliza como técnica metodológica a pesquisa bibliográfica sobre a relação
de simbiose entre mídia e política, campanha permanente, propaganda política e literatura
mais específica sobre o PT e o “lulismo”. Em seguida, foram elencados os seis programas da
Propaganda Partidária Gratuita de 2014 a 2017, sendo que em 2014 e 2016 foi exibido apenas
o programa do primeiro semestre por serem anos eleitorais. Partiu-se, então, para a Análise de
Conteúdo, com base em Bardin (2011). Feita a pré-análise, foram elencadas 10 categorias
para análise quantitativa (1) Imagem do partido; (2) Imagem do país, (3) Ataque, (4)
Bandeira/Estatuto, (5) Personagem, (6) Vinheta, (7) Reforço Institucional, (8) Desconstrução
Institucional, (9) Temas Políticos e (10) Participação Feminina.
Destes dados, foram definidas sete categorias de análise qualitativa, procurando
articular teoria com evidências empíricas: (1) Liderança e Personalismo: ênfase no lulismo,
(2) Ideologia e Memória Histórica, (3) Campanha Permanente e Disputas pelo poder, (4)
Imagem do país, (5) Propaganda Negativa, (6) Reforço ou desconstrução das instituições
políticas, (7) Dimensão teatral e espetacular.

Contexto Político: crise de representação


As peças exibidas entre 2014 e 2017 acabaram influenciadas, de modo central, pelos
fatos atípicos verificados no período. No ano de 2014 o Brasil já vivenciava um
descontentamento por parte dos eleitores contra o sistema político. Tudo isso evidenciado
pelas Jornadas de junho de 2013. No entanto, o ano eleitoral ainda conservou alguma
normalidade, embora tenha desaguado em uma disputa altamente polarizada entre Dilma
Rousseff (PT) e Aécio Neves (PSDB).
A piora nos índices econômicos, verificada já no fim das eleições, fez com que a
situação política ficasse instável. O governo Dilma negou-se a apoiar o emedebista Eduardo
Cunha para a presidência da Câmara dos Deputados, o que culminou numa crise com a base
aliada. A impopularidade do governo fortaleceu grupos favoráveis ao impeachment da
presidenta. Manifestações populares e uma articulação entre vários setores do país, incluindo
a mídia, judiciário e movimentos políticos, acabaram levando à deposição de Dilma.

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O PT sofreu grande rejeição e migrou para a oposição ao governo Temer, acometido


logo de início com uma série de denúncias e dono de impopularidade histórica. Para Souza
(2016) e Santos (2017), a deposição de Dilma constituiu-se num golpe de estado, uma vez que
descumpriu ritos democráticos e teve um teor casuístico no jogo político.

Análise Quantitativa: a ênfase na construção da imagem do país


As propagandas do PT mostram a prevalência da categoria “imagem do país” ao longo
do período analisado. A estratégia se dá na narrativa de um Brasil que mudou devido à ação
dos governos petistas.

Quadro 1: Análise quantitativa da PPG do PT por tempo em segundos


Propaganda 2014 2015/1 2015/2 2016 2017/1 2017/2 Total
Categoria
Imagem do Partido 27 89 52 59 54 04min41s
Imagem do País 543 292 336 415 107 176 31min09s
Ataque 53 19 32 32 129 140 06min45s
Bandeira/estatuto 30 178 24 04min52s
Personagem 55 79 183 05min17s
Vinheta 53 53s
Reforço Institucional
Desc. Institucional
Temas Políticos 51 180 03min31s
Participação Fem. 22 39 154 101 57min08s

Constata-se no Quadro 1, em termos de tempo de conteúdo, que predominou com


bastante ênfase a construção da imagem do país, tendo em vista que até 2016 o PT ainda
estava no governo e procurou construir o discurso da situação – de que o mundo atual estava
bom e para melhorar deveria seguir na mesma linha, conforme apontam Figueiredo et al
(1998) sobre as retóricas de campanhas. As outras categorias aparecem muito próximas, como
ataque aos adversários (2º lugar), personagem (3º lugar), bandeira/estatuto (4º lugar) e
imagem do partido (5º lugar), mas todas entre 6 e 4 minutos no total de todos programas
analisados. O Quadro 2 traz estes números em termos percentuais, mostrando esta grande
diferença.

Quadro 2: Análise quantitativa da PPG do PT por percentual


Propaganda 2014 2015/1 2015/2 2016 2017/1 2017/2 TOTA
Categoria L
Imagem do Partido 4,5% 14,8% 8,6% 9,8% 9% 7,7%
Imagem do País 90,5% 48,7% 56% 69,2% 17,8% 29,3% 51,9%
Ataque 8,8% 3,2% 5,3% 5,3% 21,5% 23,3% 11,2%

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Bandeira/estatuto 5% 29,6% 4% 6,4%


Personagem 9,2% 13,2% 30,5% 8,8%
Vinheta 8,8% 1,4%
Reforço Institucional
Desc. Institucional
Temas Políticos 8,5% 30% 6,4%
Participação Fem. 3,6% 6,5% 25,6% 16,8% 8,75%

A predominância da categoria “imagem do país” correspondeu a 51,9% do tempo total


das seis peças analisadas. Isso está ligado à estratégia majoritária de defesa das imagens dos
governos Lula/Dilma e à exaltação das políticas públicas e programas implementados nesse
período. O uso da categoria também sustenta a tese da Campanha Permanente, uma vez que
há uma solidificação da imagem dos governos do partido sempre em comparação com os
governos dos principais adversários do PSDB. A estratégia repete momentos eleitorais e
busca consolidar a imagem do PT para outras disputas, inclusive com a antecipação do nome
de Lula como pré-candidato (HECLO, 2000; NOGUERA, 2001).
Após o impeachment, há mudança na proporcionalidade das estratégias usadas.
Embora a defesa dos governos continue presente de modo expressivo, há um deslocamento de
prioridades para “ataque” e “foco em personalidades”. Isso se dá, especialmente, nas duas
propagandas de 2017. No primeiro caso, há um reposicionamento político no campo da
oposição, pois o partido deixa o governo após um período de 13 anos. Já na perspectiva da
defesa dos personagens, a ideia é preservar e fortalecer a figura de Lula, inclusive com a
prospecção de tê-lo como candidato nas eleições presidenciais de 2018. Tudo isso faz a
categoria “ataque” (11,2%) ser a de segunda maior proporção do período, bem como “foco
em personalidade” (8,8%) vir logo depois.
O PT, embora construa a narrativa da existência de um golpe contra o partido e contra
a então presidenta Dilma Rousseff, não utiliza uma desconstrução institucional, elencada
como categoria nesta análise. A culpabilidade, embora tenha elementos de crítica à fragilidade
institucional do País, recai narrativamente nos adversários políticos. Assim, ao invés de um
ataque frontal ao Judiciário ou ao sistema político, fazem-se críticas diretas aos partidos e
figuras notórias, como o próprio Michel Temer e o senador Aécio Neves. O não debate sobre
a situação institucional também ajuda a fortalecer a ideia de antecipar o debate eleitoral de
2018.
A categoria “defesa de bandeira ideológica e/ou programa/estatuto” soma 6,4% no
período analisado, mas o destaque fica para a concentração dessa categoria na primeira
propaganda de 2015 quando ocupa 29,6% do tempo. Embora o governo Dilma tenha iniciado

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com uma política econômica caracterizada pela austeridade fiscal e calcada em medidas
impopulares5, o PT busca associar sua imagem às bandeiras históricas e às pautas que, mesmo
polêmicas, dialogam com as bases do partido.

Análise qualitativa: as narrativas do PT na PPG

Lideranças políticas e personalismo: ênfase no lulismo


Na categoria “lideranças políticas/personalismo”, discutem-se quais foram as
incidências de características notadamente ligadas à construção narrativa de líderes políticos
sobrepostos aos discursos partidário e político de modo a dramatizar seus discursos, históricos
e participação nas ações partidárias. Trabalha-se com a perspectiva de que há uma crescente
personalização da vida política e que os meios de comunicação massivos favorecem essa
incidência (GOMES, 2004; MANIN, 1995; LEAL, 2002).
De todas as incidências do chamado personalismo nas propagandas do PT, a principal
delas se dá na figura de Lula. O ex-presidente, além de ser o principal porta-voz da legenda,
ganhou status de pré-candidato após o impeachment de Dilma Rousseff. Acometido por
notícias negativas na mídia, o político alcança espaço de destaque para que sua imagem seja
defendida, já que ela é associada à do próprio partido: defender Lula é defender o próprio PT.
Singer (2009) analisa o que chama de bases do “lulismo”, segundo as quais haveria
um reordenamento no eleitorado do PT a partir do primeiro mandato do ex-presidente (2003-
2006). Na perspectiva do autor, as ações governamentais da gestão Lula criam, pela primeira
vez, um ordenamento na representação da classe mais numerosa do País: os mais pobres com
ganhos de até cinco salários mínimos. O eleitorado do petista, antes formado por estratos da
classe média – intelectuais, estudantes e funcionalismo público –, agora muda totalmente seu
perfil.
As propagandas petistas entre 2014 e 2017 utilizam a figura de Lula em todos os
momentos. A então presidenta Dilma Rousseff só tem destaque na peça de 2014, mesmo
assim, de modo dividido com a principal estrela da legenda. Dilma é apresentada como a
continuidade do que Lula começou e, mesmo no pior momento da crise da imagem da petista,
o partido não se compromete em defendê-la. Há uma nítida preocupação com a imagem do
partido, muito mais do que com a do governo. Por isso, a peça fala em “governos do PT”, e
não em “governo Dilma”.

5
Uma das medidas mais impopulares do segundo governo Dilma foi a revisão da regra do seguro desemprego.
Ao invés de um mínimo de seis meses de carteira assinada para que o trabalhador tenha o direito ao benefício, o
período foi ampliado para um ano e seis meses.

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Ideologia e Memória Histórica


Os partidos políticos no Brasil devem registrar, junto ao TSE, seus estatutos. Os
documentos contêm as perspectivas programáticas para sua atuação, bem como indicam o
campo ideológico de cada legenda. A PPG tem, dentre seus principais atributos, a função de
difundir esse estatuto, que acaba subsidiando o posicionamento de cada partido na sua relação
com assuntos variados.
A memória é resultado de um jogo de poder que interpreta e reinterpreta a história por
meio de instituições autorizadas para tal. Mas o resultado da memória coletiva é também fruto
do conflito entre o enquadramento que nasce desse escopo, onde se insere a mídia, e aquilo
que resiste às margens como questões presentes em manifestações, pensamentos e vivências.
Pollak (1989) lembra esse fato salientando que os enquadramentos de memória se alimentam
daquilo que a história oferece como subsídio – esta também lida de modo direcionado por
parte de quem detém maior grau de poder em registrá-la, recortá-la e difundi-la.
Huyssen (2000) discorre sobre o papel da mídia como instituição que tem o papel de
garantir que a sociedade não sofre de amnésia. Há uma prática constante de fixação de alguns
fatos que acabam consolidando-se em graus de importância e de interpretações. O que se
replica sobre o papel dos partidos políticos no Brasil é, também, um reforço midiático e uma
construção de memória feita ao longo dos anos. PT, PSDB e PMDB estão no cenário político
do Brasil por tempo suficiente para que deles se depreenda aspectos fortemente enquadrados e
consolidados no imaginário – características que podem ser, a depender da estratégia,
mobilizadas pelos mesmos nas narrativas feitas sobre si.
É preciso, porém, diferenciar esse conceito de memória do que se entende por
memória discursiva. Embora o foco do presente trabalho não seja o estudo do discurso,
cumpre registrar sua importância na compreensão da temática. Pêcheux (1999) sustenta que
esse tipo de memória surge num discurso formado por discursos pré-constituídos. A leitura,
portanto, nunca é homogênea e unilateral, mas multifacetada e descontínua.
A memória discursiva seria aquilo que, face a um texto, que surge como
acontecimento a ser lido, vem reestabelecer os implícitos (quer dizer, mais
tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-
transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao
próprio legível (PÊCHEUX, 1999, P. 52).

A memória é o terreno da disputa de sentido. Por não ser individual ou psicológica,


mas social e coletiva, está sempre sujeita pela mobilidade de sentidos entrecruzados que
surgem no complexo jogo de teias que se revelam no interdiscurso. O sujeito, neste contexto,

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não é a origem do discurso, mas enquanto sujeito discursivo, traz as marcas históricas e o
contexto social – aspectos extremamente relevantes em qualquer formação discursiva.
Além da memória, aspectos ligados a fatores ideológicos implicam esta categoria.
Como apontado por Bobbio (1995), parte-se da perspectiva de compreender o espectro direita
e esquerda sob o prisma da raiz das desigualdades: enquanto uma visão de que elas são
fenômenos naturais, estão mais ligadas à direita; à perspectiva de que elas são frutos das
conjunturas sociais, aproximam-se da esquerda.
Há uma percepção de tendência centrípeta com relação aos grandes partidos. Estes são
chamados de partidos catch all (KIRCHMER, 1966). Na perspectiva de atingir todo
eleitorado, as legendas tendem a não radicalizar seus discursos. Se essa é uma tendência, vale
aferir se esta foi mantida no período analisado. O PT utilizou a PPG de modo a retomar
bandeiras historicamente ligadas à sua origem. Tido como maior partido de esquerda do país,
a legenda caminhou para a centro-esquerda após a eleição de Lula em 2002. O partido
também se aliou a partidos de direita e compôs uma coalizão bastante diversificada.
Se a opção em 2014 foi defender o governo Dilma e passar longe de pautas polêmicas
e bandeiras ideológicas, a partir de 2015 o partido voltou a evocar seu histórico e a defender
bandeiras polêmicas, o que também reflete um aceno às suas bases num momento de forte
crise da imagem da legenda. A primeira propaganda de 2015, exibida em 5 de abril, apresenta
um grupo de pessoas erguendo cartazes, no que representa uma manifestação, exibindo
posicionamentos do partido.
Contra a impunidade e em favor do combate incessante à corrupção. Contra a volta
da inflação e em favor do crescimento econômico. Contra a redução da maioridade
penal e a favor da igualdade de gêneros. Contra a terceirização e em defesa dos
direitos trabalhistas (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 5 de abril de 2015).

As bandeiras apresentadas contrapõem outras propostas trazidas no início do


programa, que são mostradas como lutas do passado. Elas falam do fim da fome e da miséria
além de pedir por mais democracia. Na narrativa, essas lutas foram superadas e deram lugar a
novas frentes de reivindicações, que são expressas nas bandeiras transcritas anteriormente. O
partido recorre à grande força motora de sua atuação inicial: a defesa dos direitos trabalhistas.
Além disso, assume duas pautas ligadas ao campo da esquerda e que geram polêmica no
debate público: a redução da maioridade penal e a questão da igualdade de gênero.

Campanha Permanente e disputas pelo poder


Observa-se a ocorrência de estratégias narrativas que indicam a confluência entre
comunicação governamental, partidária ou de oposição e comunicação eleitoral, conforme

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abordado anteriormente. No que diz respeito à construção eleitoral da imagem de Lula, a


propaganda partidária do PT, exibida em 15 de maio de 2014, fez o accountability do
mandato de Dilma Rousseff, já apresentada como pré-candidata à reeleição. Porém, fatos
bastante atípicos do período de crise política fizeram as propagandas seguintes, exibidas nos
anos de 2015, 2016 e 2017, expressarem narrativas ligadas à manutenção do poder do partido
ou à sua conquista após o impeachment.
Lula é tratado, durante todo o período, como o maior quadro da legenda. A partir de
2017, é apresentado declaradamente como pré-candidato à Presidência em 2018. Chama a
atenção o fato de que Dilma foi sublimada das peças com exceção de 2014 e de alguns poucos
momentos nas peças seguintes.
A Campanha Permanente não ignora o fato de que há uma complexa rede de
engrenagens que funcionam no desenrolar de fatos políticos. Dessa forma, a luta contra o
impeachment não foi um tópico principal nas propagandas petistas. A disputa não se travou na
arena da comunicação partidária, embora tenha havido denúncias ao que foi considerado um
golpe pelo PT, e nas advertências ao risco de uma crise política. Mesmo com a intensidade do
período de crise do governo, as disputas políticas ficaram mais nos bastidores das negociações
do que no campo comunicacional.

Imagem do país
A categoria “imagem do país” refere-se à construção ou desconstrução da ideia de
Brasil de acordo com o posicionamento de cada partido nas determinadas conjunturas. A
formulação da realidade brasileira atende aos interesses mais ligados ao governismo –
imagem positiva – e ao oposicionismo – imagem negativa. É na propaganda partidária que
ressoam temáticas específicas e conjunturais, agendadas pela influência midiática e abordadas
pelas legendas.
Há uma clara diferenciação entre o Brasil antes dos governos do PT e o Brasil após a
chegada do partido ao poder. O PT se apoia sempre nos principais programas das gestões do
partido. Essas marcas são exaustivamente utilizadas e constituem uma visão ufanista do
Brasil. O partido explora a autoestima do brasileiro e sempre cria a ideia de que o que já está
bom pode ser ainda melhor. Dessa forma, vai solidificando a imagem de um país que vence os
desafios e que se torna grande por intermédio de seu povo trabalhador.

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Propaganda Negativa
Tenório (2011) identifica o ataque como uma das ênfases principais da PPG, o que
também leva esta análise a considerar o tópico como uma categoria qualitativa. Noguera
(2011), como citado no item sobre Campanha Permanente, lembra a existência do chamado
marketing de oposição, ou seja, a propaganda engendrada por forças políticas para criticar
governos de partidos adversários.
Os ataques presentes nas propagandas petistas foram direcionados, em grande medida,
de modo indireto. Isto é, não houve citação objetiva de partidos ou pessoas, mas uma
referência ao universo do “eles” contra o “nós”. Colocando-se como partido que se identifica
com o povo, o PT cria a ideia de que todos que lutam contra o partido também estão contra a
população. Ao unificar o ataque num grupo genérico, o partido evita tornar o debate
complexo e garante um discurso ligado ao maniqueísmo e que favorece a narrativa de defesa
dos governos petistas, já que faz comparações com períodos anteriores, identificados de modo
negativo.
O ataque indireto foi a tônica geral, que passou a dividir espaço com as citações
diretas ao governo Temer. O PT constrói a narrativa de disputa entre o próprio partido e várias
forças que se unem contra ele. É uma estratégia também de defesa, já que a legenda foi a mais
alvejada pelos opositores no período de crise – o partido sofreu o impeachment e luta para
garantir a candidatura de seu principal quadro.

Reforço ou desconstrução das instituições políticas


O reforço das instituições do país ou a desconstrução destas atendem a interesses
diversos, dadas as posições que cada partido ocupa no cenário político. Num cenário de crise
de representação, o questionamento do funcionamento das instituições passa a ser uma
temática de ainda maior relevância. Como exposto na análise quantitativa, o PT não fez
nenhuma menção principal à questão institucional do País. Embora ela não aparecesse de
modo objetivo, foi tema transversal de outros assuntos e mostraram uma postura da legenda
com relação à situação do funcionamento das instituições.
Para o PT, embora a narrativa do golpe fosse presente, a estratégia foi de não adotar
um tom aberto de denúncia. Ela ocorre apenas antes do impeachment, quando a sigla alerta
para os riscos de uma crise política. Após a deposição, ao invés de manter uma denúncia do
processo sofrido por Dilma, inicia-se o fortalecimento da imagem de Lula, tratado como pré-
candidato à eleição presidencial.

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Ao vislumbrar a viabilidade eleitoral de Lula, o partido evita a desconstrução


institucional, seja do sistema político, seja do judiciário. Há críticas esparsas direcionadas à
mídia e aos adversários e, como exposto na categoria de “propaganda negativa”, uma
generalização dos opositores ao PT.
O partido também expõe que há uma tentativa de barrar a candidatura de Lula, mas
não especifica de onde parte essa ação e a alude sempre aos opositores. Ao defender o nome
de Lula, o partido mostra que sua maior estratégia está na institucionalidade da regra eleitoral
ainda que mostre receio quanto a isso. Esse tom toma lugar da narrativa do golpe, que parece
ser um tema superado nas propagandas petistas, embora o tema seja fonte de debates
acadêmicos e mesmo da militância.

Dimensão teatral e espetacular


Como abordado anteriormente, a política, em sua simbiose com o campo da
comunicação, adquire elementos na linguagem que dão um tom espetacular. Vale lembrar que
o espetáculo não é uma característica exclusiva do campo comunicacional, mas é algo
amplificado na medida em que as narrativas políticas adquirem as características da mídia
(GOMES, 2004; RUBIM, 2002). O tratamento a respeito da imagem de Lula foi uma tônica
muito presente nas propagandas analisadas. Além de uma abordagem personalista, criou-se
uma narrativa de modo a blindar Lula como um herói e, a partir disso, construir todo um
enredo de perseguição ao maior líder petista.
Schwartzenberg (1977) aborda essa figura como a construção de um mito intocável,
capaz de acolher para si todas as necessidades dos protegidos e representar uma salvação para
a nação. Isso ocorre quando a propaganda mostra o ex-presidente nas caravanas pelo Nordeste
e quando defende sua imagem em tom dramático – o herói é intocável.
Para o PT, o antigo metalúrgico agora é uma referência política. O herói está em vias
de ser atacado por uma série de inimigos que querem tirar-lhe a honra. Essa narrativa é mais
forte, inclusive, do que a do golpe. Com relação a Dilma, o tom da abordagem é mais político,
enquanto com Lula o tom parte para o drama espetacular, já que não se discute o conteúdo das
denúncias, a fim de rebatê-las. O foco é a abordagem maniqueísta: o presidente do povo está
sendo perseguido por inimigos que querem, inclusive, tirá-lo da eleição. Gomes (2004)
lembra que a dramaticidade é uma abordagem característica da mídia e absorvida pela política
na medida em que imita os cenários fílmicos ou novelescos. Chama a atenção e simplifica a
mensagem.

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Considerações finais
O enredo principal do período de análise das propagandas foi o impeachment de Dilma
Rousseff. O PT, partido da presidenta eleita, constrói a narrativa do golpe parlamentar. Seu
foco se dá, sobretudo, antes da conclusão do processo, quando alerta para o risco de uma crise
política associada à crise econômica. No entanto, de modo surpreendente, o partido não foca
sua narrativa na condenação do processo, que é tratado de maneira apenas secundária e
superficial. Considerando os aspectos citados da Campanha Permanente, o foco do PT é
pensar no próximo escrutínio quando pretende lançar Lula como candidato. Dessa forma, o
destaque para a figura do pré-candidato, já tratado como nome da legenda para a Presidência,
é a tônica central. Mesmo no período em que Dilma estava no governo, a defesa da imagem
do partido prevalece com relação à defesa da desgastada imagem da governante, que aparece
de modo muito tímido nas propagandas de 2015. A sobrevivência do partido prevalece acima
da sobrevivência do governo.
Contrariando perspectivas de que o desgaste dos partidos políticos implicaria num
distanciamento do discurso político tradicional, o PT voltou sua narrativa para a memória
histórica e afetiva da legenda, tanto ao recuperar traços do trabalhismo histórico, como ao
destacar ainda mais a figura de Lula. Nota-se a prevalência da narrativa do “Brasil do PT” e a
consolidação discursiva do partido como representante dos mais pobres.
Este fenômeno pode ser explicado tanto pelos interesses eleitorais da legenda,
calcados no “lulismo”, quanto na necessidade de reafirmar a posição da sigla no cenário
político desgastado. Como partido com lastro histórico, o PT precisa se dirigir à militância e
simpatizantes a fim de solidificar sua imagem e reafirmar à sociedade a razão de sua
existência, num momento em que todos os partidos políticos vivenciam uma crise de
representação.
O fim da PPG representa um enfraquecimento da democracia, na medida em que retira
a comunicação partidária dos meios massivos e impede que haja uma maior prestação de
contas. Embora sejam constatadas características que fogem do objetivo central da
propaganda, há a prevalência do foco no partido, como aponta Tenório (2011) e como
também esta análise verifica. O fortalecimento da democracia passa pela ampliação dos
espaços de consolidação do debate político.

Referências

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A HEGEMONIA DA GLOBO NA TV BRASILEIRA:


O Jornal Nacional como padrão1

Vitor Pereira de Almeida2


Iluska Maria da Silva Coutinho3
Márcio de Oliveira Guerra4
Universidade Federal de Juiz de Fora

Resumo

O trabalho visa discutir, à luz do conceito de Gramsci, a hegemonia da Rede Globo de


Televisão, considerando hegemonia como uma forma de produzir consenso. Ainda, apresenta
e disserta sobre questões relativas à cultura do brasileiro de assistir televisão e o nascimento
comercial da TV no Brasil terem dado condições para que a TV seja hegemônica entre os meios
de comunicação atualmente. O trabalho de pesquisa apresenta, também, reflexões sobre a
“cultura” televisiva do brasileiro; o conceito de cultura e seu surgimento. A partir disso, discute-
se a hegemonia cultural como um conjunto de ideias dominantes de uma determinada
conjuntura social, política, cultural e econômica. À pesquisa bibliográfica se associa a análise
da materialidade audiovisual de uma edição do Jornal Nacional. A questão principal que busca
ser respondida nesse trabalho é como se construiu a hegemonia da Rede Globo de Televisão.
Palavras-chave: Hegemonia; Rede Globo; Televisão; Jornal Nacional; Cultura.

THE GLOBE HEGEMONY ON BRAZILIAN TV:


The National Journal as standard

Abstract
The work aims to discuss, in the light of Gramsci 's concept, the hegemony of Rede Globo de
Televisão, considering hegemony as a way of producing consensus. In addition, he presents and
discusses issues related to the Brazilian culture of watching television and the commercial birth
of TV in Brazil have given conditions for the TV to be hegemonic among the media today. The
research also presents reflections on the television "culture" of the Brazilian; the concept of
culture and its emergence. From this, cultural hegemony is discussed as a set of dominant ideas
of a certain social, political, cultural and economic conjuncture. Bibliographic research is
associated with the analysis of the audiovisual materiality of an edition of Jornal Nacional. The

1
Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho 5 – Estudos Interdisciplinares, do XI Encontro dos Programas de
Pós-Graduação em Comunicação Social de Minas Gerais, 18 e 19 de outubro de 2018.
2
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora. Bolsista
Capes. E-mail:vitoralmeida_cefet@hotmail.com.
3
Orientadora do trabalho. Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade
Federal de Juiz de Fora, e-mail: iluskac@uol.com.br.
4
Orientador do trabalho. Professor Doutor da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora,
e-mail: márcio.guerra@ufjf.edu.br.

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main question that seeks to be answered in this work is how the hegemony of Rede Globo de
Televisão was built.

Keywords: Hegemony; Rede Globo; Television; Jornal Nacional; Culture.

Introdução: Hegemonia sob a luz de Gramsci


Hegemonia, segundo o dicionário de Português online é uma influência dominante ou
superioridade exercida sobre alguém. “Trata-se de uma dominação total e incontestável, que
pode ser social, cultural, econômica ou ideológica e que impõe a autoridade de um grupo, de
um país ou de um estado, sobre outro(s)” (Dicionário de Português online, 2018). Além disso,
é um substantivo feminino que significa: 1. Qualquer forma de superioridade ou poder absoluto
de alguém ou de alguma coisa sobre outra(s); supremacia e 2. Domínio ou predominância
exercida por uma cidade, por um país ou um povo sobre outras cidades, países ou povos:
hegemonia política.
Para o intelectual Antônio Gramsci, que refletiu sobre a hegemonia cultural a partir de
sua vivência na Itália dos séculos XIX e início do século XX, a hegemonia era uma construção
do senso a partir do alto (Gramsci, 2001). A Itália, com sua industrialização tardia, permitiu
que Gramsci olhasse para a História de forma diferente de Marx. O Estado usaria as instituições
culturais para conservar o poder. Esse poder é garantido pela hegemonia cultural que as classes
dominantes exercem sobre as classes dominadas; através de controles dos veículos de
comunicação, do sistema educacional e das instituições religiosas. Usando desse poder, as
classes dominantes educam as classes dominadas e sufocam as sementes da revolução (possível
forma de romper o sistema, segundo Marx); tornam a dominação “natural”. “A hegemonia
cultural é, portanto, um conjunto de ideias dominantes de uma determinada conjuntura social,
política, cultural e econômica. Ela não é permanente, mas o Estado, e seus líderes, são o
resultado desse somatório de forças em disputa” (InfoEscola, 2015).

Cultura: origens e a “cultura televisiva”


O termo cultura, na Roma antiga, definia o ato de “cultivar” ou “realizar atividades
agrícolas”. Com o passar do tempo, assumiu significado de “cultivar a mente”. Hoje, entende-
se cultura como um complexo que inclui o conhecimento, a arte, o popular, as crenças,
tradições, os costumes e todas as manifestações artísticas, culturais, linguísticas, sociais e
comportamentais de uma comunidade.

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Raymond Williams define cultura como “relações entre elementos em um modo de vida
global” (WILLIAMS, 2001, p. 63). Ainda, como o modo e a forma como a sociedade é
concebida e vivida pelas pessoas. Além disso, relacionando comunicação e cultura, ele diz que
não são apenas formas, mas meios de produção uma vez que a comunicação e seus
meios materiais são intrínsecos a todas as formas humanas de trabalho e de
organização social, constituindo-se, assim, em elementos indispensáveis tanto para
forças produtivas quanto para as relações sociais de produção. (WILLIAMS, 2001, p.
69)

A partir do conceito de cultura, passa-se a analisar a cultura de massas. Ela pode ser
definida como o conjunto de produtos da chamada indústria cultural. Essa cultura de massas
inclui todos os tipos de expressões culturais feitas para atingir a maioria da população, gerando
produtos para o consumo; em um claro viés capitalista na lógica da produção e consumo em
grande escala. O capitalismo industrial utiliza a cultura de massa para padronizar e
homogeneizar os produtos, que são consumidos pela maioria das pessoas. No capitalismo
tardio, a cultura se converte em mercadoria, e a televisão entra nesse aspecto por ser um veículo
de comunicação de massas.
A televisão é um sistema de reprodução de imagens e sons.
Funciona a partir da análise e conversão da luz e do som em ondas eletromagnéticas
e de sua reconversão. As câmeras e microfones captam as informações visuais e
sonoras, que são em seguida convertidas de forma a poderem ser difundidas por meio
eletromagnético ou elétrico, via cabos; o televisor capta as ondas eletromagnéticas e
através de seus componentes internos as converte novamente em imagem e som.
(CyberCollege, 2003)

No Brasil, em 18 de setembro de 1950, foi inaugurada a televisão por Assis


Chateaubriand. Ela nasce de forma comercial. Chateaubriand instalou vários aparelhos
televisivos pela cidade de São Paulo para que as pessoas pudessem ver o que era a nova forma
de se comunicar. A primeira rede de televisão foi a TV Tupi.
A televisão é concebida, no Brasil, como um rádio com imagens, por falta de
conhecimento e de lida com a imagem naquele momento. Em 1952, a televisão trouxe do rádio
o Repórter Esso. Um ano depois é inaugurada a TV Record, que se alia em 1955 à recém criada
TV Rio. Dois anos depois, em 1957 um link entre a TV Rio e a TV Record ligou as cidades de
São Paulo e Rio de Janeiro. Em 1959 surge a TV Continental canal 9 no Rio de Janeiro, trazendo
a novidade do vídeo-tape para o Brasil. Em 1960 é inaugurada a primeira TV Excelsior em São
Paulo, a segunda viria em 1963 no Rio de Janeiro.
O futebol começou a ser transmitido em 1954, pela TV Record; no mesmo ano foi
noticiada a morte do presidente Getúlio Vargas. Ainda em 1954, a PRF 3 de São Paulo estreou

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sua produção infantil, o Sítio do Pica-Pau Amarelo, baseado em obra de Monteiro Lobato,
exibido uma vez por semana, e reapresentado também na emissora dos Associados no Rio de
Janeiro.
Em Minas Gerais, a televisão começou a operar em 8 de setembro de 1955, com a TV
Itacolomi canal 4 de Belo Horizonte.
Em 1956, Victor Costa, proprietário da TV Paulista, encomenda a Manuel da Nóbrega
um programa humorístico para competir com as concorrentes, usando o elenco que já existia
na Rádio Nacional. Assim, surgiu a “Praça da Alegria”, formato que está no ar até hoje com o
nome de “A Praça é nossa”.
Praça da Alegria, um dos marcos do humor na televisão brasileira, foi criada em 1956
por Manoel da Nóbrega. Sentado no banco de uma praça, inspirada em milhares de
outras espalhadas pelo país, ele era observador, ouvinte e interlocutor de personagens
cômicos que se tornaram ícones do imaginário brasileiro, como a Velha Surda (Rony
Rios) e Pacífico (Ronald Golias), entre muitos outros. O humorístico estreou na TV
Paulista e, em 1958, passou a ser exibido na TV Rio. Em 1963, mudou-se para a TV
Record, que o exibiu até 1970. Em 1977, um ano após a morte de Manoel da Nóbrega,
a Globo voltou a exibir o programa, como forma de homenagear seu criador. O
primeiro Praça da Alegria teve direção de Mário Lúcio Vaz, e os seguintes foram
dirigidos por Carlos Alberto Loffler. Carlos Alberto da Nóbrega (filho de Manoel da
Nóbrega) era responsável pela redação final do programa. O tema de abertura de Praça
da Alegria era o mesmo das versões anteriores: a canção A Praça, composta por Carlos
Imperial e gravada por Ronnie Von. Os versos da música pareciam ter sido escritos
para proclamar a longevidade do programa: “A mesma praça/ o mesmo banco/ as
mesmas flores/ no mesmo jardim”. O espírito da Praça era o mesmo, mas dessa vez
quem ocupava seu banco era Luís Carlos Miele. Era ele quem contracenava com os
personagens antológicos do programa, que ainda conservavam intacto seu apelo
popular. No final de 1977 e em janeiro de 1978, além dos humoristas cariocas que
contracenavam com Miéle, também os paulistas e pernambucanos passaram a
participar do programa. No banco de São Paulo, o homem da praça era Carlos Alberto
da Nóbrega; em Pernambuco, Aldemar Paiva. A Praça da Alegria repetiu na Globo o
sucesso dos tempos de Manoel da Nóbrega, mas saiu da programação em 1978. A
partir de 1987, sob o comando de Carlos Alberto da Nóbrega, o programa voltou a ser
exibido pelo SBT, com o nome de A Praça é Nossa. (Memória Globo, 2013)

Em 30 de junho de 1959, foi inaugurada no Rio de Janeiro a TV Continental canal 9, de


propriedade da Rádio Continental. E, em 1959, no dia 20 de dezembro, foi inaugurada a TV
Piratini de Porto Alegre, a primeira emissora de televisão do sul do país, pertencente às
Emissoras Associadas. Em 21 de abril de 1960, é inaugurada a nova capital Brasília e lá
estreiam novas emissoras de televisão, a TV Brasília canal 6 das Emissoras Associadas e a TV
Alvorada canal 8, pertencente à TV Rio; no dia da inauguração da cidade. Em 6 de junho entra
no ar a TV Nacional canal 3, também de Brasília. Em junho de 1960, entram no ar no Recife, a
TV Rádio Clube de Pernambuco, operando no canal 6, e a TV Jornal do Commercio, no canal
2. Em São Paulo, no dia 18 de setembro de 1960, entrou no ar o canal 9 TV Excelsior, com

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estúdios arrendados da Companhia Cinematográfica Vera Cruz na Vila Guilherme e o auditório


funcionando no Teatro Cultura Artística. Em 20 de setembro, passa a funcionar a TV Cultura
canal 2, das Emissoras Associadas. Em 1962, novas emissoras vão ao ar em todo o país, dentre
elas a TV Alterosa canal 2 em 13 de março, criada por iniciativa de jornalistas mineiros, sendo
repassada às Emissoras Associadas em 1964, passando a ser a segunda emissora dos Associados
na cidade, e a TV Gaúcha canal 12 de Porto Alegre, em 29 de dezembro, que associou-se às
Emissoras Unidas. Também em 1963, o grande destaque foi a estreia em 22 de julho da primeira
telenovela brasileira diária, pela TV Excelsior em São Paulo, 2-5499 Ocupado, estrelada por
Tarcísio Meira e Glória Menezes. Com o golpe militar de 1964, a censura começou a operar no
país. Canais foram cassados e fechados. Nesse contexto, surge a Rede Globo de Televisão;
como explicitado adiante no texto.
Todos esses canais e TVs criadas contribuíram para a cultura do Brasileiro de ver TV.
Dados atuais mostram que a televisão constitui o mais importante veículo de comunicação de
massas no Brasil, mesmo com o acesso à internet se popularizando cada vez mais. Dados do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística revelam que 97,2% dos brasileiros tem um
aparelho de televisão no lar (IBGE, 2015). O canal mais visto pelos brasileiros, em se tratando
de TV aberta, é a Rede Globo. Esses dados demonstram o poderio da televisão no Brasil, na
medida em que, apenas 2,8% dos brasileiros não tem um aparelho televisor em casa. A cultura
de ver TV e o nascimento da televisão no Brasil sendo comercial, criaram condições para que,
hoje, a TV seja hegemônica como meio de comunicação de massas no Brasil.
Ainda sobre a televisão, ao longo de décadas se perpetuou no país um sistema
inteiramente comercial. Seguindo os moldes americanos de concessão, consolidou-se a
exploração das concessões de radiodifusão por parte do Estado a grupos privados; nesse ponto
o Brasil se difere da Europa, onde a televisão nasce pública e os setores comerciais só entram
posteriormente. Assim, os grupos televisivos no Brasil tiveram uma facilitação para concentrar
grande e forte influência política, econômica e social.

A Rede Globo de Televisão


A Rede Globo de Televisão é uma das emissoras de TV aberta do país; ela nasceu e
cresceu durante a ditadura militar. A TV Globo foi oficialmente fundada, pelo jornalista
Roberto Marinho, no dia 26 de abril de 1965 (apesar de a concessão ter sido dada pelo
presidente Juscelino Kubitscheck em 1957) com a transmissão do programa infantil Uni Duni

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Tê. Com sede no Rio de Janeiro, a emissora apostou em programas infantis para conquistar o
público. Também estavam na programação dos primeiros dias a série infantil Capitão Furacão
e o telejornal Tele Globo, embrião do atual Jornal Nacional.
Os primeiros meses de atuação da TV Globo não foram bem sucedidos. Após a
contratação de Walter Clark para a direção geral, houve uma guinada rumo à liderança de
audiência. Em janeiro de 1966, o Rio de Janeiro sofreu uma das suas piores inundações; mais
de cem pessoas morreram e aproximadamente vinte mil ficaram desabrigadas. A cobertura da
tragédia feita ao vivo pela TV Globo foi um marco na história da emissora, que fez uma
campanha comunitária para arrecadação de doações em dois estúdios (Memória Globo).
A Globo interrompeu sua programação para cobrir os estragos da chuva no verão de
1966 no Rio. A emissora também promoveu campanha para ajudar os desabrigados.
Em janeiro de 1966, o Rio de Janeiro sofreu uma das piores enchentes da sua história.
As chuvas transbordaram rios, alagaram a cidade e causaram transtornos à vida do
carioca. Cinco dias de temporal deixaram mais de 200 mortos e 50 mil desabrigados
(Memória Globo, 2013).

Segundo o site Memória Globo, ainda em 1966, a TV Globo chegou ao estado de São
Paulo com a aquisição do canal 5, antiga TV Paulista. Em 5 de fevereiro de 1968, foi inaugurada
a terceira emissora, em Belo Horizonte, e as retransmissoras de Juiz de Fora e de Conselheiro
Lafaiete, além de um link que ligava o Rio de Janeiro a São Paulo.
O governo militar, centralizado em Costa e Silva, começou a subsidiar a compra de
aparelhos de televisão com um sistema de crédito. Além disso, criou o Ministério das
Comunicações. Outro impulso foi um decreto elaborado pelo ministro Delfim Neto que isentou
as empresas de rádio e televisão de imposto de importação sobre equipamentos, isto permitiu à
empresa se renovar e ao mesmo tempo utilizar a cotação oficial do dólar para reduzir suas
despesas de importação (Gaspari, 2016). Essas medidas auxiliaram no começo da popularização
da televisão no Brasil.
Com todos esses incentivos por parte do governo militar, a TV Globo começa a expandir
sua grande rede de afiliadas e o jornalismo foi o carro chefe que impulsionou essa
movimentação. A partir de então, a tecnologia disponível à época começa a ser utilizada para
melhorar a transmissão e o sinal da Rede Globo. Em 1970, durante a copa do México, a
emissora recebeu sinais experimentais da Embratel a cores e dois anos depois, a transmissão da
Festa da Uva de Caxias do Sul é transmitida a cores. Em 28 de abril de 1974, o Jornal Nacional
passou a ser transmitido em cores, três dias após ter iniciado suas coberturas internacionais pela
Revolução dos Cravos (Memória Globo, 2013). Em 1975, a TV Globo passou a exibir parte de

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sua programação para todo o Brasil, consolidando-se como rede de televisão. Surge o Padrão
Globo de Qualidade, que é o conjunto de regras que norteia a produção da Rede Globo. Bucci
afirma que “o "padrão Globo de qualidade" era uma função ideológica” (BUCCI, Folha de São
Paulo, 2002). Esse padrão serviu para construir a hegemonia, o senso a partir do alto, da Rede
Globo como maior emissora de TV do brasil. Ao criar um padrão que é seguido pelas outras
emissoras, a Rede Globo começa a deter hegemonia no campo televisivo brasileiro, como
disserta Cardoso.
No Brasil, a TV Globo conseguiu, desde sua origem, agregar um grupo de
profissionais de produção, entre eles cenógrafos, capazes de criar uma imagem da
emissora que serviu de modelo para todas as outras concorrentes. Impôs-se, com esse
sistema de produção, o que passou a ser chamado de Padrão Globo de Qualidade. Não
só o seu Padrão Globo de Qualidade, como seu modelo de grade vertical e horizontal,
passaram a ser adotados pela grande maioria dos canais abertos, em especial as
emissoras generalistas (Cardoso, 2008, p. 34).

Hoje, segundo a própria Rede Globo, o sinal da TV Globo atinge quase 100% do
território brasileiro. Outro fator que ressalta sua hegemonia no cenário nacional.
A TV Globo alcança atualmente 99,47% dos telespectadores potenciais, praticamente
toda a população brasileira. Ostenta uma grande capacidade de segmentação, graças
à sua rede de afiliadas. Anunciantes de todos os tipos, tamanhos e ambições têm
espaço em nossas 121 emissoras, 116 delas afiliadas, que levam a programação a
98,53% dos municípios e a mais de 183 milhões de brasileiros. São 29 grupos de
comunicação e 9.600 profissionais estampando a diversidade brasileira por dezenas
de sucursais e micro-sucursais. As afiliadas podem usar até 13 horas semanais para
levar notícia e entretenimento ao público de sua localidade. A maior produção é a
jornalística, com um pouco mais de 58 mil horas por ano (média de 4.856 horas por
mês), mas há cerca de outros 90 programas locais, em 12 gêneros diferentes
(entrevista, culinário, educativo, rural, saúde, show, esporte e turismo), somando mais
de 17 mil horas de exibição. São cerca de 600 equipes de reportagem nas emissoras.
É a maior equipe de jornalistas do país, com mais de 3.000 profissionais, que levam
ao ar a grande notícia: o Brasil. (Site da Rede Globo, 2018)

Além do telejornalismo, a dramaturgia ganhou muito espaço, chegando a emissora a ser


lembrada por algumas de suas novelas como Senhora do Destino, Terra Nostra, Avenida Brasil
e outras. Em se tratando de telenovelas, a Rede Globo também é hegemônica. Em 1976, a
emissora exportou suas primeiras telenovelas para fora do país. Em 1977, toda a programação
da emissora passou a ser em cores, antes restrita a telenovelas e telejornais. Em 1990, enfrenta,
pela primeira e única vez, desde o fim da Rede Tupi, concorrência na teledramaturgia com o
sucesso da telenovela Pantanal da Rede Manchete. Nos anos 1990, a Globo realizou as
primeiras experiências interativas da televisão no Fantástico e no Você Decide. Recordes de
audiência são conseguidos com as telenovelas Mulheres de Areia, A Viagem e A Próxima
Vítima. Desde o início dos anos 2000, apesar de sucessos como Mulheres Apaixonadas,

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Senhora do Destino, Alma Gêmea e Da Cor do Pecado, a Globo tem perdido audiência.
Atualmente, a Rede Globo recuperou audiência com a telenovela Segundo Sol.

O Jornal Nacional: Padrão do telejornalismo brasileiro


O Jornal Nacional é o principal telejornal da Rede Globo e o mais antigo telejornal ainda
em circulação na TV brasileira. É líder de audiência entre os telejornais na TV aberta. O JN é
exibido desde 1º de setembro de 1969 e foi o primeiro programa gerado em rede nacional. Ele
é o principal responsável pelo conteúdo telejornalístico da TV Globo.
Na década de 70, o Jornal Nacional começou a dar destaque à cobertura internacional.
Em 1977, Glória Maria se torna a primeira repórter a entrar no ar ao vivo. Nos anos 90, a
emissora preza pela cobertura intensa, como nos episódios da Favela Naval, a entrevista com
PC Farias, o escândalo dos precatórios e outros. Em 1991, pela primeira vez foi transmitida
uma guerra (Memória Globo, 2013).
Algumas polêmicas ocorreram ao longo da existência do telejornal. A mais conhecida
delas foi nas eleições de 1989, onde o Jornal Nacional editou o debate no segundo turno de Lula
x Collor de forma a, aparentemente, favorecer o último. A emissora fez uma retratação anos
depois.
Os responsáveis pela edição do Jornal Nacional afirmaram, tempos depois, que
usaram o mesmo critério de edição de uma partida de futebol, na qual são selecionados
os melhores momentos de cada time. Segundo eles, o objetivo era que ficasse claro
que Collor tinha sido o vencedor do debate, pois Lula realmente havia se saído mal.
(Memória Globo, 2013)

Houve danos à reputação do telejornal, apesar de mantidos os altos níveis de audiência.


Hoje, a emissora não edita debates.
Por isso, hoje, a emissora adota como norma não editar debates políticos; eles devem
ser vistos na íntegra e ao vivo. Concluiu-se que um debate não pode ser tratado como
uma partida de futebol, pois, no confronto de ideias, não há elementos objetivos
comparáveis àqueles que, num jogo, permitem apontar um vencedor. Ao condensá-
los, necessariamente bons e maus momentos dos candidatos ficarão fora, segundo a
escolha de um editor ou um grupo de editores, e sempre haverá a possibilidade de um
dos candidatos questionar a escolha dos trechos e se sentir prejudicado. (Memória
Globo, 2013)

O Jornal Nacional, pelo êxito de audiência, se tornou um padrão jornalístico a ser


seguido pelas outras emissoras. Desde 1996, é apresentado por William Bonner, que atualmente
é o editor chefe. Ele afirma em várias entrevistas que o Jornal Nacional apresenta “o que de
mais importante aconteceu no Brasil e no mundo”. Suas duplas de bancada, que já foram Lillian

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Witte Fibe, Fátima Bernardes, Patrícia Poeta e Renata Vasconcellos, à exceção da primeira
também ocuparam o cargo de editora-executiva. Porém, Coutinho (2009) destaca que
No caso das edições do Jornal Nacional as imagens dos acontecimentos, tal como
veiculadas, parecem ser apresentadas no discurso dos apresentadores-editores
sobretudo como mediadoras dos fatos, com a construção de uma representação do real
pela semelhança. (Vizeu; Porcello e Coutinho, 2009, p. 69)

Além dos apresentadores oficiais existem os apresentadores eventuais, como Chico


Pinheiro, Heraldo Pereira, Sandra Annenberg, Monalisa Perroni e outros. A previsão do tempo,
desde 2015, é feita por Maju Coutinho.
Em 2017, após muitos anos no mezanino da redação da Globo no Rio de Janeiro, o JN
passou a ser apresentado dentro de uma nova newsroom construída especialmente para o
telejornal e o G1 (Portal de notícias).
O Jornal Nacional tem um padrão desde sua criação: em uma bancada dois jornalistas
sentados apresentam as notícias. Esse padrão também é seguido pelas outras emissoras, quando
se trata de um telejornal voltado ao horário nobre. Para que seja possível analisar como esse
padrão está levando a informação aos telespectadores, passa-se à análise da materialidade
audiovisual sobre uma edição do Jornal Nacional.

Um olhar sobre o Jornal Nacional a partir da análise da materialidade audiovisual


Para ser possível compreender o objeto empírico pelo método da análise da
materialidade audiovisual, foi necessário elencar parâmetros que permitissem a realização de
inferências nas narrativas audiovisuais estudadas e definir a criação de eixos para tomar como
objeto de análise as unidades de texto+som+imagem+tempo+edição. Entende-se que o objeto
de estudo traz um amplo e requintado conteúdo informacional, com vários olhares e inferências
possíveis. Esse artigo apresenta os resultados iniciais de pesquisa ainda em desenvolvimento.
A edição analisada é de seis de outubro de 2018. Ela foi escolhida por ser a última antes
do primeiro turno das eleições de 2018; portanto, decisiva no quesito informação. Na escalada,
destacam-se a intenção de votos dos brasileiros na véspera da abertura das urnas e as pesquisas
de intenção de votos. Em 1 hora, 11 minutos e 35 segundos (excluindo-se os intervalos); os
primeiros 47 minutos e 7 segundos foram dedicados à eleição. Posteriormente, o tema volta a
ser falado.
Para a análise, de cunho qualitativo, foram realizadas inferências acerca de três eixos
considerados: A - Pluralidade, B - Diversidade e C - Cidadania/Autonomia.

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No eixo A, que trata da pluralidade, são consideradas as participações e seu grau de


representatividade e pluralismo. São analisados os setores sociais representados; as temáticas
de cada matéria; quais são os partidos políticos citados; se há presença do governo (e de que
forma ele eventualmente é tratado); quais são as perspectivas de mundo enunciadas; se existem
elementos regionais fora do eixo padrão (sul e sudeste) e se há presença de sotaques.
No eixo B, que trata da diversidade, é trabalhada a inclusão. Busca-se evidenciar como
ocorre a inclusão do cidadão na narrativa (e de que forma ela se dá, via personagens?), se existe
direito à voz. São analisadas, também, as fontes e o tratamento dado a elas; quais fontes
aparecem, se as fontes tem autoridade atribuída e direito à voz. Ainda no eixo B são analisados
a temática (abordagens, como o tema é tratado, se o enfoque é diferenciado ou se recorrem a
narrativas e modelos convencionais).
O eixo C trata de cidadania/autonomia. Nele são analisados a existência de
contextualização dos fatos e inserção de desdobramentos possíveis inclusive para o cidadão, se
a narrativa insere ou tem presença de estímulos à ação do telespectador e como essa convocação
é feita, se há inclusão do cidadão comum como agente da narrativa se o cidadão age e
transforma a realidade do fato narrado. E, ainda, se a matéria possui um viés formativo, de
perspectiva ou tom educativo.
Aplicando os eixos de análise à edição do Jornal Nacional, foram observados os
seguintes resultados.
No eixo A - Pluralidade percebe-se que não são muitos os setores sociais representados.
As fontes que tem mais direito à voz são os especialistas. A temática foi dominada pela eleição,
ocupando 66,20% do tempo total da edição. Partidos políticos são mencionados diretamente
nessa edição, principalmente no quesito eleições. A presença do governo também não é
explicitada diretamente; há referências ao Estado por meio da informação sobre leis referentes
à votação e o que é permitido ou não; que envolveriam diferentes poderes, em especial o
judiciário. Elementos regionais e presença de sotaque, que deveriam ser prezados no
telejornalismo, não estão presentes. Na maioria dos casos a contextualização dos fatos é dada.
Na edição analisada, percebe-se um enquadramento plural, preocupado em informar ao público
a importância da votação. Falta pluralidade, por exemplo, com exibição de um maior número
de matérias em outros estados fora do eixo Sudeste-Sul.
No eixo B - Diversidade percebe-se que a inclusão não é trabalhada. As narrativas
auxiliam pouco a insersão do público na interpretação da edição. As fontes são variadas. As
fontes específicas sobre o tema são as que mais possuem tempo de fala. A temática das eleições

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é tratada da forma padrão, seguindo, inclusive, a padronização do formato de reportagens. Na


edição analisada, nota-se que a polifonia de vozes não está muito representada. Existem poucos
entrevistados ao longo de toda a edição, possivelmente pela temática das eleições.
No eixo C - Cidadania/Autonomia percebe-se que a explicação do contexto dos fatos
nem sempre se dá ao cidadão leigo. Alguns temas precisam ser mais bem explicados e
detalhados para a compreensão geral; por exemplo qual a participação e as responsabilidades
dos cidadãos que não votam? Como o voto pode ser dado de forma consciente? Esses e alguns
outros questionamentos ficaram em aberto. Os desdobramentos possíveis não são explorados.
A narrativa não insere o telespectador nem o convida à ação. O tempo todo o telespectador só
é informado das notícias. Ele é um “consumidor passivo”, não sendo agente da narrativa. O viés
é apenas informativo. Nessa edição analisada, o tema é geral e não faz distinção de região
geográfica ou cultural; permitindo assim, uma boa representação e identificação do
telespectador com a informação exibida – visto que a eleição é nacional; inclusive com o tema
sendo dividido em vários conteúdos para uma maior compreensão da informação por parte dos
telespectadores; apesar da necessidade de olhar para as realidades locais; informações especiais
sobre regiões – quais zonas eleitorais foram desfeitas? Onde o cidadão pode esperar mais filas?
O voto será rápido?

Considerações Finais
O presente trabalho discutiu, à luz do conceito de Gramsci, a hegemonia da Rede Globo
de Televisão, considerando hegemonia como uma forma de produzir consenso. O trabalho de
pesquisa apresentou, também, reflexões sobre a “cultura” televisiva do brasileiro; o conceito de
cultura e seu surgimento. A partir disso, discutiu-se a hegemonia cultural como um conjunto de
ideias dominantes de uma determinada conjuntura social, política, cultural e econômica.
Para o intelectual Antônio Gramsci, a hegemonia era uma construção do senso a partir
do alto (Gramsci, 2001). A Itália, com sua industrialização tardia, permitiu que Gramsci olhasse
para a História de forma diferente de Marx. A hegemonia se dá como uma concordância do alto
passada a todos os membros da sociedade. Pôde-se perceber que a Rede Globo, ao criar o seu
Padrão Globo de Qualidade, estabelece o padrão, a forma a ser seguida. Ela cria uma
concordância do que deveria ser o nível de qualidade passado aos telespectadores e, a partir
disso e atrelada a sua grande audiência, se torna hegemônica no campo da televisão. Sua
fórmula foi copiada por todas as outras emissoras.

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A cultura de massas pode ser definida como o conjunto de produtos da chamada


indústria cultural. Ela inclui todos os tipos de expressões culturais feitas para atingir a maioria
da população, gerando produtos para o consumo; em um claro viés capitalista na lógica da
produção e consumo em grande escala. O capitalismo industrial utiliza a cultura de massa para
padronizar e homogeneizar os produtos, que são consumidos pela maioria das pessoas. No
capitalismo tardio, a cultura se converte em mercadoria, e a televisão entra nesse aspecto por
ser um veículo de comunicação de massas.
No Brasil, em 18 de setembro de 1950, foi inaugurada a televisão por Assis
Chateaubriand. Ela nasce de forma comercial. Chateaubriand instalou vários aparelhos
televisivos pela cidade de São Paulo para que as pessoas pudessem ver o que era a nova forma
de se comunicar. A principal rede de televisão do país é a Rede Globo.
A Rede Globo de Televisão é uma das emissoras de TV aberta do país; ela nasceu e
cresceu durante a ditadura militar. A TV Globo foi oficialmente fundada, pelo jornalista
Roberto Marinho, no dia 26 de abril de 1965 (apesar de a concessão ter sido dada pelo
presidente Juscelino Kubitscheck em 1957) com a transmissão do programa infantil Uni Duni
Tê. Com sede no Rio de Janeiro, a emissora apostou em programas infantis para conquistar o
público. Também estavam na programação dos primeiros dias a série infantil Capitão Furacão
e o telejornal Tele Globo, embrião do atual Jornal Nacional.
O Padrão Globo de Qualidade serviu para construir a hegemonia, o senso a partir do
alto, da Rede Globo como maior emissora de TV do brasil. Ao criar um padrão que é seguido
pelas outras emissoras, a Rede Globo começa a deter hegemonia no campo televisivo brasileiro.
O Jornal Nacional é o principal telejornal da Rede Globo e o mais antigo telejornal ainda
em circulação na TV brasileira. É exibido desde 1º de setembro de 1969 e foi o primeiro
programa gerado em rede nacional. É o principal responsável pelo conteúdo jornalístico da TV
Globo.
O Jornal Nacional, pelo êxito de audiência, se tornou um padrão jornalístico a ser
seguido pelas outras emissoras. Desde 1996, é apresentado por William Bonner, que atualmente
é o editor chefe. Ele afirma em várias entrevistas que o Jornal Nacional apresenta “o que de
mais importante aconteceu no Brasil e no mundo”. Suas duplas de bancada, que já foram Lillian
Witte Fibe, Fátima Bernardes, Patrícia Poeta e Renata Vasconcellos, à exceção da primeira
também ocuparam o cargo de editora-executiva.
Por todo o apresentado, é possível inferir que a Rede Globo de Televisão exerce não só
a hegemonia na audiência como a hegemonia cultural das emissoras de televisão no Brasil. O

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Padrão de Qualidade Globo e o padrão telejornalístico criado pelo Jornal Nacional são metas a
serem atingidas por suas concorrentes.
Ainda que a audiência oscile nas telenovelas, na atual “novelas das 9”, houve uma
guinada no aumento. Porém, mesmo com a oscilação, a liderança da audiência em telenovelas
continua sendo da Rede Globo. É possível pensar em uma hegemonia cultural da Rede Globo
de Televisão.
Nos eixos de análise, percebe-se que na pluralidade não são muitos os setores sociais
representados. As fontes que tem mais direito à voz são os especialistas. Elementos regionais
e presença de sotaque, que deveriam ser prezados no telejornalismo, não estão presentes. Falta
pluralidade, por exemplo, com exibição de matérias em outros estados fora do eixo Sudeste-
Sul. Na diversidade, percebe-se que a inclusão não é trabalhada. As narrativas auxiliam pouco
a insersão do público na interpretação da edição. As fontes são variadas. As fontes específicas
sobre o tema são as que mais possuem tempo de fala. Na cidadania/autonomia percebe-se que
a explicação do contexto dos fatos nem sempre se dá ao cidadão leigo. Alguns temas precisam
ser mais bem explicados e detalhados para a compreensão geral. A narrativa não insere o
telespectador nem o convida à ação. O tempo todo o telespectador só é informado das notícias.
Ele é um “consumidor passivo”, não sendo agente da narrativa.

Agradecimentos
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. Os autores
gostariam de agradecer à Capes e ao CNPq.
This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior – Brasil (CAPES) – Finance Code 001. The authors would like to thank Capes
and CNPq.

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COMUNICAÇÃO, POLÍTICA E MEIO AMBIENTE:1


o conceito de hegemonia e contra-hegemonia pela ótica do desastre
de Mariana-MG na fanpage de Marina Silva (REDE)

Viviane Amélia Ribeiro Cardoso2


Universidade Federal de Juiz de Fora

Resumo

O presente artigo analisa os conteúdos referentes ao desastre socioambiental de Mariana-MG


presente na rede social de Marina Silva (REDE), a fim de discutir o conceito de hegemonia e
contra-hegemonia, o agendamento midiático do tema e sua influência na agenda pública atual
como proposta de campanha. Foram levantadas todas as postagens na página oficial da
candidata durante o período de 2015-2018 pelo aplicativo Netvizz, obtendo uma análise quanti-
qualitativa. O agendamento midiático se faz presente a partir de uma constante visibilidade do
tema dada pela candidata durante o período de 2015 e 2016, o que diminui em 2017 e quase
nenhuma menção durante o ano de 2018. Suas postagens iniciais denunciam como um crime,
ao mesmo tempo em que seu programa eleitoral argumenta uma defesa ao Projeto de Lei que
flexibiliza os processos de licenciamento, legitimando o discurso do setor privado sobre as
questões apresentadas antes como causas do desastre.

Palavras-chave: Comunicação, Política, Hegemonia, Contra-hegemonia, meio ambiente.

COMMUNICATION, POLICY, AND ENVIRONMENT:


The concept of hegemony and counter-hegemony in the perspective of
the Mariana-MG disaster in Marina Silva (REDE) fanpage

Abstract
This article analyzes the contents related to the socio-environmental disaster of Mariana-MG
present in the social network of Marina Silva (REDE), in order to discuss the concept of
hegemony and counter-hegemony, the mediatic scheduling of the theme and its influence on
the current public agenda as a campaign proposal. All postings on the official page of the
candidate during the 2015-2018 period were collected by the Netvizz application, obtaining a
quantity-qualitative analysis. The mediatic scheduling comes from constant visibility of the
theme given by the candidate during the period of 2015 and 2016, which decreases in 2017 and
almost no mention during the year 2018. Its initial posts denounce as a crime, at the same time
during which time its electoral program argues a defense to the Bill that loosens the licensing
processes, legitimizing the private sector's discourse on the issues presented before as causes of
the disaster.

Keywords: Communication, Politics, Hegemony, Counter-hegemony, Environment

1
Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho (Estudos Interdisciplinares), do XI Encontro dos Programas de
Pós-Graduação em Comunicação Social de Minas Gerais, 18 e 19 de outubro de 2018.
2
Mestranda em Comunicação pelo PPGCOM, UFJF, vivianearcardoso@gmail.com.

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Introdução
O debate ambientalista perpassando pela interface midiática, possui uma multiplicidade
de interesses e demandas entre seus atores envolvidos. O embate narrativo existente nas
diferentes formas em se falar de uma tragédia, desastre ou acidente possui características que
buscam legitimar uma produção econômica de exploração e invisibilizar os grupos minoritários
com pequenas possibilidades de se fazer ouvir suas demandas por direito.
A ideia de "natureza" engendra posicionamentos distintos e distintas formas de
representação (LAYRARGUES, 1998). É necessário, então, desconstruir a falsa noção de que
as práticas da sustentabilidade presentes na sociedade contemporânea se expandem em todos
os sujeitos sociais sem encontrar resistências e obstáculos (ACCIOLY & SANCHEZ, 2012),
reproduzindo uma concepção de sociedade como espaço da harmonia e ausência de conflitos e
interesses, em que o caminho para a sustentabilidade se dá apenas por um processo de
conscientização (LAYRARGUES, 2010).
No dia 05 de novembro de 2015, o rompimento da barragem de Fundão, na região
reconhecida como Quadrilátero Ferrífero em Minas Gerais, na região de Mariana-MG e
pertencentes à mineradora Samarco/Vale do Rio Doce/BHP Billiton, marcou no Brasil o fim
do megaciclo das commodities e apresentou a manifestação de organizações que adotam
discursos e narrativas a ações ecológicas pela "sustentabilidade" simultaneamente a um
"antiecologismo", movidos por interesses privados e com influências políticas para construir
uma certa visão de mundo e sustentar uma agenda pública (EHRLICH,1996 apud ACCIOLY
& SÁNCHEZ, 2012).
Tendo em vista a centralidade midiática na contemporaneidade e as relações de poder
se configurando pelas produções simbólicas existentes na comunicação política, o presente
artigo procura analisar os conteúdos produzidos na fanpage oficial de Marina Silva (REDE)
sobre o desastre de Mariana-MG a partir dos conceitos de hegemonia e contra-hegemonia. A
candidata a Presidência da República possui uma trajetória que envolve uma atuação efetiva
sobre as questões ambientais, que colocam sua campanha e seu partido comprometido com a
“sustentabilidade”, fazendo-se necessário contextualizar o agendamento midiático presente em
seus posicionamentos e a influência na agenda pública como propostas de campanhas políticas
apresentadas.

Meios de comunicação como meios de produção


Compreender a dialética da realidade é inserir a dinâmica e as contradições da vida
social em sua relação micro e macro principalmente nos estudos de comunicação, considerando

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assim os sujeitos como seres sociais e relacionando seus discursos e práticas à sociedade onde
se vive (GROHMANN, 2013, p. 227).
Hoje, os estudos marxistas visam compreender as forças produtivas e as relações de
produção em escala global e seus efeitos conflituosos sobre as relações sociais, para um olhar
crítico da realidade contemporânea (GROHMANN, 2013 p. 217 apud THERBORN 2012). Por
essa perspectiva materialista, a comunicação enquanto mediação de produção e trabalho são
fatores de desenvolvimento da linguagem, e por essa visão é um meio de socialização da
consciência gerada pelas condições históricas que determinam à práxis (GROHMANN, 2013,
p.221 apud RUDIGUER, 2011, p.78).
A comunicação é produção de sentido, que sé da na relação e não na mera transmissão
de informações, pois ela estabelece um processo de compreensão mediada entre os indivíduos
(GROHMANN, 2013, p.221 apud RUDIGER, 2011, p.88). Por isso, os processos
comunicativos devem ser vistos não como atividades isoladas, mas constitutivos de realidades
históricas e relacionados à estrutura de poder e ao modo de produção da sociedade
contemporânea (GROHMANN, 2013, p. 221).
A circulação do discurso na sociedade em que, especialmente no Brasil, está entorno de
uma lógica capitalista globalizada, deve ser compreendida a partir de um sistema que funcionam
as ideologias de uma narrativa culturalista, permitindo legitimar privilégios e ajudando a manter
hegemonias, colocando os méritos na conta dos indivíduos, tanto quanto as capacidades inatas
quanto suas responsabilizações e culpabilização. O Estado então é visto como ineficaz,
atrasado, onde o mérito corresponderia ao mercado, ajudando na modernização e contra a
corrupção (GROHMANN, 2016 p.148 apud JESSÉ SOUZA, 2015).
Dessa forma, a realidade social não é visível a olho nu e o mundo social não é
transparente a nossos olhos. A hegemonia contribui para a permanência da ocultação da
realidade e em que as categorias científicas passam a consumir uma ciência tornada meramente
ideológica (GROHMANN, 2016, p.148 apud SOUZA, 2015).
Segundo Bourdieu (1998) o indivíduo não é refém apenas de uma estrutura social, além
de não ter ampla autonomia, carrega sempre marcas da estrutura social ao qual está vinculado.
Os espaços de múltiplas relações sociais dão continuidade às estruturas ou, por um processo de
transformação, estabelecem a ruptura nos contextos de crise (BOURDIEU, 1998). Esta
neutralização dos processos de dominação resulta na violência simbólica, que escondem os
processos históricos e sociais que deram origem as tais formas de dominação (BOURDIEU,
1998).

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Por assim dizer, os conglomerados da mídia acabam por apresentar-se como parte
central das formas de organização impostas pela era moderna, estão marcados pela globalização
da economia e mundialização da cultura, criando novos agentes sociais e políticos e
emergências de novos processos sociais, construindo novas formas de conexão e reconexão
entre ações individuais e estruturas socializadoras. Os campos simbólicos constituídos de
espaços hegemônicos de atuação, devem ser pensando a partir de uma contra-hegemonia
necessária para superar e romper com as estruturas consolidadas que agregam o poder simbólico
ao poder coercitivo e político e o poder econômico, se estabelecendo a partir dos meios de
comunicação, uma análise do conhecimento e comportamento humano, concentrando-se sobre
o produto, o conteúdo e as mensagens para se estabelecer uma sociologia da comunicação.

A indústria cultural
Martín-Barbeiro (2009) nos apresenta reflexões sobre o conceito de indústria cultural
que nasce em um texto de Horkheimer e Adorno publicado em 1947, e busca pensar a dialética
histórica que, partindo da razão ilustrada, desemboca na irracionalidade que articula
totalitarismo político e massificação cultural com as duas faces de uma mesma dinâmica
(MARTÍN-BARBEIRO, 2009, p.65). Deve-se pensar o conceito não de forma isolada, mas
como uma reflexão de um sistema que se regula, produz e dispersa. A unidade de sistema é uma
análise da lógica da indústria: cultura de produção em série, produção de coisas e produção de
necessidades e a racionalidade da técnica que é hoje a racionalidade do domínio (MARTÍN-
BARBEIRO, 2009, p.65). A nova sensibilidade das massas é a da aproximação, não só de uma
consciência acrítica, mas de uma longa transformação social, a da conquista do sentido para o
idêntico no mundo (MARTÍN-BARBEIRO, 2009, p.74).
A partir dos anos 1960, a cultura popular urbana passa a ser tomada por uma indústria
cultural cujo raio de influência se torna cada vez mais abrangente, o que se comporta a partir
de uma globalização e de uma estrutura econômica capitalista. A proposta cultural se torna
sedução tecnológica e incitação ao consumo, homogeneização dos estilos de vida desejáveis,
banimento do regional, local e nacional para o "limbo anterior ao desenvolvimento tecnológico"
e incorporação dos antigos conteúdos sociais, culturais e religiosos à cultura do espetáculo
(MARTÍN-BARBEIRO, 2009, p.268).
Por outro lado, surge também um pensamento prolongado que vai tomar como eixo a
crise entendida como emergência do acontecimento, contracultura, implosão do social, morte
do espaço público ou impasse na legitimação do capitalismo. Em torno desse conceito vai se
desenvolver um esforço importante para pensar o sentido dos novos movimentos políticos, dos

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novos sujeitos-atores sociais e dos novos espaços nos quais, irrompe a cotidianidade, a
heterogeidade e conflitividade do cultural (MARTÍN-BARBEIRO, 2009, p.64).
Mas é nos meados dos anos 1970 que o discurso cientificista reconstrói o modelo
informacional hegemônico, como um "revival positivista que proíbe a problematização de tudo
aquilo que não tivesse a correspondência de um método" (MARTÍN-BARBEIRO, 2009, p.
279). Ou seja, a comunicação definida como transmissão de informação em uma teoria de
referências a conceitos precisos, delimitações metodológicas e propostas operacionais
(MARTÍN-BARBEIRO, 2009, p.280), mas sustentado a uma fragmentação do processo que se
torna convertida em garantia de rigor e critério de verdade (MARTÍN-BARBEIRO, 2009,
p.281). Esta racionalidade dissolve o político enquanto realidade conflitiva e cambiante e a luta
pela construção de sentido da convivência social. A centralidade dos processos de comunicação
em nossa sociedade significa, para a racionalidade informática, a dissolução da realidade do
político (MARTÍN-BARBEIRO, 2009, p.282).
As relações de poder, tal qual estão configuradas em cada formação social, não são mera
expressão de atributos, e sim produto de conflitos concretos, batalhas travadas no campo
econômico e no terreno do simbólico (MARTÍN-BARBEIRO, 2009, p.284). É necessário
entender os interesses econômicos que movem as empresas de comunicação, mas também a
redefinição da cultura como compreensão da natureza comunicativa. O processo produtor de
significações não é somente a circulação de informações, em que o receptor é um simples
decodificador da mensagem, mas sim um produtor (MARTÍN-BARBEIRO, 2009, p. 287).

Conceito de hegemonia e contra-hegemonia


O conceito de hegemonia apresentado pelo filósofo marxista Antonio Gramsci traz
contribuições possíveis de se compreender as produções simbólicas existentes na comunicação
política a partir das disputas de sentido e de poder em conformação com o imaginário social
(MORAES, 2010 p.54).
Segundo Gramsci, o conceito de hegemonia parte do consenso de uma política-
ideológica e uma liderança cultural unificada por suas bases econômicas em que abarcam tanto
as diferenças de percepções e juízos de valores quanto o princípio entre sujeitos da ação política
(MORAES, 2010 p.54).
Para o filósofo, a concepção da hegemonia vai além de uma vinculação apenas a
estrutura econômica e política, a hegemonia para se concretizar, deve estar submersa a um plano
ético-cultural e se relacionar a nossa expressão de saberes, práticas, modos de representação e

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modelos de autoridade que se legitimam e se universalizam. Como um consentimento social de


convicções entre as normas e regras de conduta e percepções de mundo.
Para haver hegemonia há o consenso, e o consenso parte de um aparelho de coerção que
nesse sentido, o filósofo diferencia entre a sociedade civil da sociedade política nas suas
funções. Sendo elas: função da sociedade civil em exercer a organização da vida cotidiana e a
reprodução das relações de poder. É a partir dessa função que as classes procuram seus aliados
para a direção do consenso. A função da sociedade política é onde as classes impõem uma
dominação fundada na coerção. A soma entre a sociedade política e sociedade civil consolida
a hegemonia revestida de coerção.
O caminho do consenso e da coerção é o domínio das formas morais e intelectuais que
se manifestam como a supremacia de um grupo social dominante. Por esse entendimento de
hegemonia proposta por Gramsci, podemos relacionar as diferentes formas de se dizer sobre as
questões ambientais que legitimam dentro de um processo econômico pautado no
neoliberalismo e contrariam os problemas por ela ocasionados como as desigualdades sociais e
os desastres socioambientais.
Quando analisamos as emergências que se situaram durante os processos econômicos e
sociais existentes a partir dos anos 1970, observamos a eminências das questões ambientais
sobressaindo nas relações políticas e econômicas. Segundo Coutinho (2006, p.41) o enfoque
gramsciano demonstra que o terceiro setor se situa entre os interesses do Estado e do mercado,
em que a sociedade civil exerce um lugar de relações sociais expressas pelo próprio mercado.
Gramsci apresenta também o conceito de contra-hegemonia, caracterizado como um
movimento possível de se produzir uma conversão além do plano econômico-corporativo, junto
a um plano ético-político, ético na dimensão intelectual e moral e político pelo controle do
aparato do Estado. A contra-hegemonia deve partir dos grupos apresentados como subalternos,
e aqui entendido como os dominados, atingidos por grandes empreendimentos e relacionados
às consequências neoliberais.
É nesse sentido que damos o enfoque aqui presente neste artigo sobre os conteúdos
produzidos que se relacionam as questões ambientais na mídia, especificamente ao considerado
maior desastre socioambiental da história do país, ocorrido em novembro de 2015, precisamente
na cidade de Mariana-MG atingindo toda a bacia do Rio Doce. Os discursos produzidos são
formas de legitimar uma posição e consenso se manifestando nas agendas políticas e públicas.
Partindo do pressuposto que o discurso midiático interfere na cartografia do mundo
coletivo, na medida em que propõe óticas argumentativas sobre a realidade, aceitas por amplos
segmentos sociais, dentro de uma lógica de identificação e correspondência (MORAES, 2010

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p.67) e pensando na sociedade midiatizada contemporânea atravessada por fluxos hipervelozes,


saturada de imagens e aparentemente conformada em expressar aspirações através do consumo,
é possível relacionar os conceitos de hegemonia e contra-hegemonia apresentados por Gramsci
(MORAES, 2010 p.67) presente nos conteúdos referentes a temática ambiental por uma ótica
de critérios de regulamentação da opinião pública e agendamento midiático sobre o que merece
ênfase, incorporação ou esvaziamento e silenciamento.
No ponto de vista das corporações midiáticas, a regulamentação da opinião social
através de critérios exclusivos de agendamento dos temas que merecem ênfase, incorporação,
esvaziamento ou extinção, entende-se a centralidade midiática em transmitir conteúdos que
ajudem a organizar e a unificar a opinião pública em torno de princípios e medidas de valores.
Por isso, formar a opinião é uma operação ideológica "estreitamente ligada à hegemonia
política, ou seja, é o ponto de contato entre a sociedade civil e a sociedade política entre o
consenso e a força". (MORAES, 2010 p. 67 apud, GRAMSCI, 2000b. p.265)

Agendamento midiático, mídia digital e política


Levando em consideração a linguagem emergindo das relações sociais e os conflitos
existentes entre os campos simbólicos e de poder, a produção de um discurso pode resultar-se
também da capacidade da mídia em agendar temáticas influenciando na opinião pública, o que
acaba por silenciar outros possíveis sentidos de representação e de significados.
Os aspectos estudados por McCombs (2009) a cerca da concepção da mídia como
centralidade e destaque para determinados temas específicos compõem a “Teoria da Agenda”,
descrita pelo autor:
A ideia teórica central é que os elementos proeminentes na imagem da mídia
tornam-se proeminentes na imagem da audiência. Aqueles elementos
enfatizados na agenda da mídia acabam tornando-se igualmente importantes
para o público. (McCOMBS, 2009, p. 111)

Por esse aspecto, salienta-se a hipótese da visibilidade dada ao tema socioambiental


sobre o rompimento da barragem de Fundão em Mariana-MG pelos representantes políticos das
regiões atingidas apenas no momento em que ganha destaque na audiência na mídia, e que por
essa razão, se mobilizaram para atender as demandas iniciais e manter os vínculos com seus
representantes e representados, logo depois silenciando-se sobre a temática e os atingidos.
Se a mídia destaca e determina os aspectos para o público, estes contribuem quanto à
relevância do acontecimento a partir do consumo da notícia, por essa premissa a mídia também
mantém a opinião pública, essa teoria é destacada por McCombs (2009) e foi inicialmente

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estudada por Lippmann (1922), considerando que o mundo com o qual devemos nos envolver
politicamente está fora do alcance, fora da visão, indisponível à mente (McCOMBS, 2009,
p.17). Para o autor, as preocupações da agenda pública são tratadas de uma realidade
secundária, uma realidade construída e estruturada pelos relatos jornalísticos que destacam
determinados eventos e situações focando nossa atenção e influenciando nas percepções
daquilo que se torna mais importante para o momento.
Por essa concepção, os veículos noticiosos são nossas janelas para entender e
compreender o mundo além de nossa experiência direta e determinam nossos mapas cognitivos
daquele mundo específico, em que a opinião pública responde sobre este pseudoambiente
construído pelos veículos noticiosos (McCOMBS, 2009, p.19 apud LIPPMANN, 1922).
A sociedade mediada tem como consequencia suas convergências de conexão em que,
todos os aspectos das nossas vidas são tocados pela mídia, desse modo adquirem-se assim a
capacidade de comunicar ideias entre diferentes e múltiplos canais de comunicação. Levando
em consideração que todos os eventos são eventos midiáticos, na medida em que o que importa
tem tanto a ver com a sua forma de cobertura e a maneira que impactam os fluxos discursivos
existentes, quanto como o que 'realmente acontece' no mundo real (JENKINS, 2016, p. 216), a
consolidação das mídias digitais promoveu a ampliação do espaço público e transformou em
um campo estratégico para os atores políticos, onde a mídia digital tornou-se fundamental para
que os atores políticos estabeleçam suas conexões eleitorais e tenham a capacidade de investir
na construção de suas imagens, além de consolidar o seu capital político por meio do poder
simbólico concentrado (OLIVEIRA & LEAL & PEREIRA, 2016).
As mídias digitais são incluídas como um instrumento fundamental na sedimentação
das relações entre essas instâncias e a sociedade. As disputas eleitorais estão envoltas com o
uso de todo tipo de estratégia, incluindo a criação de perfis de candidatos nas redes digitais e a
divulgação de suas propostas em páginas oficiais dos partidos e dos políticos (MARTINO, 2015
p. 85). Em um sentido mais amplo, a política das mídias digitais relaciona-se também com as
diversas manifestações e afirmações de identidade, na disputa pela chance de chamar a atenção
de outras pessoas para problemas sociais diversos, procurando não apenas o engajamento, mas
também a visibilidade (MARTINO, 2015 p. 85).

Marina Silva trajetória


Marina Silva é candidata à Presidência da República nas eleições de 2018 pela Rede
Sustentabilidade (REDE), partido político liderado pela candidata com obtenção de registro
concedido em setembro de 2015. A candidata apresenta uma carreira política com boa parte

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entre movimentos e partidos de esquerda. Antes de filiar-se a qualquer partido político, esteve
ao lado de Chico Mendes no Acre, em ações contra o desmatamento ilegal fundando e estando
como vice-coordenadora da CUT (Central Única dos Trabalhadores) até o assassinato do líder
seringueiro, em que o crime político ocorrido em 1988 foi fundamental para a entrada definitiva
de Marina na política. Marina Silva já esteve filiada a outros três partidos: PT (Partido dos
Trabalhadores) entre os anos de 1986 até 2009, depois ao PV (Partido Verde) entre os anos de
2009 a 2011, PSB (Partido Socialista Brasileiro) durante 2013 a 2015, até fundar a Rede
Sustentabilidade (REDE). Foi pelo Partido dos Trabalhadores (PT) que a candidata passou a
maior parte de sua carreira e se elegeu vereadora, deputada estadual e duas vezes senadora
(CASTRO, 2018).
Marina fez um mandato pautado pela defesa do meio ambiente e ganhou destaque
internacional. Com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, foi convidada
para assumir o Ministério do Meio Ambiente. Ela deixou a pasta em 2008, depois de
desgastes causados por divergências internas no governo, inclusive com a então
ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff. A Casa Civil, responsável por alguns dos
principais projetos de infraestrutura do país, cobrava mais agilidade do Meio
Ambiente na concessão de licenças. Marina perdeu a maioria dos embates com Dilma
e voltou ao Senado em 2008. Lula escolheu a titular da Casa Civil como sua sucessora,
e a ambientalista acabou deixando o PT em 2009. (CASTRO, 2018, matéria
disponível no site NEXO JORNAL, 08 de agosto de 2018)

Nas eleições mais recentes, Marina Silva se abriu para ideias economicamente liberais,
com pronunciamentos em questões a privatizações no geral, está associada a um
conservadorismo por sua religiosidade, mas defende e diz que sua religião não interferirá no
governo. A rede por ser um partido novo, não apresenta capilaridade nos Estados com pouca
representatividade no Congresso. Por outro lado, a candidata não apresenta envolvimento em
suspeitas de corrupção, possui uma história de vida de superação e avanços em cargos
importantes no posto de disputa política, mas possui uma posição pouco clara com relação a
temas e comportamentos e liberdades individuais (CASTRO, 2018).

Metodologia
Utiliza-se neste artigo a Análise de Conteúdo (AC) de Bardin (2008) para analisar as
postagens referentes ao desastre socioambiental de Mariana-MG ocorrido em novembro de
2015, presente na fanpage oficial de Mariana Silva durante os anos de 2015 a 2018. A partir da
Análise de Conteúdo (AC) torna-se possível mensurar de maneira quali-quantitativa o número
de postagens vinculadas na página oficial da candidata, destacando seu programa de campanha
de 2018 e seu posicionamento frente ao considerado "Maior desastre socioambiental do País",

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discutindo assim o conceito de hegemonia e contra-hegemonia, o agendamento midiático do


tema e sua influência na agenda pública atual.
As ferramentas de análise de conteúdo (AC) oferecidas por Bardin (2008) serão úteis
no que diz respeito ao objeto proposto, isto porque a autora sugere ferramentas metodológicas
qualitativas e quantitativas para os procedimentos de investigação, o que garante um estudo
sistemático a respeito dos conteúdos e formatos das mensagens.
Como corpus de análise foram levantadas todas as postagens na página oficial da
candidata durante o período de 2015-2018 pelo aplicativo Netvizz3, sendo possível o recorte das
postagens que se relacionam ao desastre socioambiental obtendo uma análise quanti-qualitativa.
Neste contexto possível fazer as inferências necessárias definindo as seguintes categorias de
análise: (01) visibilidade ou silenciamento (02) denúncia de um crime ou contingência de um
desastre (03) crime hediondo ou legitimação neoliberal.

Análise de dados
Marina Silva (REDE) apresentou no total 1.338 postagens entre 03 de novembro de
2015 a 22 de agosto de 2018. Dessas, 32 correspondem ao desastre de Mariana-MG, sendo 06
postagens presentes no ano de 2015, 22 no ano de 2016, 02 postagens no ano de 2017 e 02 até
então no ano de 2018.

Visibilidade ou Silenciamento
Levando em consideração o número de postagens recorrentes sobre o caso na página
oficial da candidata, é possível perceber que o ano de 2016 foi mais repercutido as questões que
se relacionam ao desastre socioambiental ocorrido em novembro de 2015. Marina Silva, em um
primeiro momento alerta em suas postagens sobre a flexibilização da legislação ambiental que
tramitava pelo Senado, associando-se a "tragédia de Mariana-MG" o alerta sobre os riscos que
a aprovação da flexibilização podem causar. Contudo, sua visibilidade sobre o caso acontece a
partir da apresentação de um projeto de lei proposto pelo partido que pretendem considerar os
crimes como o rompimento da barragem de Fundão, como crime hediondo:
Os parlamentares da REDE logo reiniciem as atividades no Congresso vão apresentar
um projeto de lei para que crimes dessa natureza sejam considerados hediondos.
(MARINA SILVA, 2016) 4

3
Acesso ao aplicativo Netvizz https://apps.facebook.com/netvizz/
4
https://www.facebook.com/marinasilva.oficial/photos/a.144793905532248/1136269889717973/?type=3

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Marina Silva mantém sobre o tema vinculação de notícias de diversos sites de notícias,
entre eles o G1 com cinco notícias vinculadas e o Valor Econômico onde escreveu quatro textos
relacionados ao desastre. Dentro dessas vinculações são comuns a associação de denúncia pelo
crime ambiental e busca por justiça. Porém, suas contribuições refletem mais sobre a ótica do
que se repercute na mídia e não como um programa de campanha política, já que a partir de
2017 diminui os números de postagem sobre o caso e seus posicionamentos políticos com base
das mudanças propostas na legislação ambiental apresentando assim um silenciamento da
questão.

Denúncia de um crime ou contingência de um desastre


Mesmo apresentando uma relação de silenciamento mais aprofundado da questão que
envolve o crime ambiental no decorrer do tempo, a todo momento Marina Silva denuncia a
negligência do Estado e a ganância econômica da Empresa em suas postagens, alertando que
“a precaução deve ser sempre lembrada quando se faz um empreendimento com essa magnitude
e capacidade de impacto”5 em entrevista concedida para o G1 no dia 13 de novembro de 2015.
A associação de suas postagens ao tema partem muitas vezes do que se apresenta da mídia, com
muitas postagens de compartilhamento de outros sites de notícias que prestaram o papel de
denúncia e de cobranças por respostas como “Precisamos de uma operação lava jato para crimes
contra a natureza”6 , notícia esta divulgada em sua rede social no dia 21 de janeiro de 2016
presente na Revista Época. Apesar de apresentar tais posicionamentos, suas considerações não
se repercutem como proposta de campanha política presente no ano de 2018 mesmo que a
candidata apresente em seu site oficial uma compilação de seus posicionamentos sobre o caso
como “combate a fake news”7, referente a divulgações enganosas sobre a candidata não ter se
pronunciado sobre o caso, em que o cerne das suas divulgações envolvem a questão sobre as
problemáticas referentes a legislação ambiental.

Crime hediondo ou legitimação neoliberal


Esta categoria de análise apresenta maior aprofundamento sobre os posicionamentos da
candidata enquanto crime ambiental em sua rede social e suas propostas de campanha política

5
Postagem realizada no dia 13 de novembro de 2015. Acesso em:
https://www.facebook.com/marinasilva.oficial/photos/a.144793905532248/1094946813850281/?type=3
6
https://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/blog-do-planeta/noticia/2016/01/lama-de-mariana-revela-crise-da-
gestao-ambiental-no-brasil.html
7
Marina não se posicionou sobre Mariana-MG? Disponível em: https://marinasilva.org.br/por-que-marina/se-
posicionou-sobre-o-crime-ambiental-em-mariana-mg/

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em 2018. Considerando que grande parte do conteúdo divulgado por Marina Silva em sua rede
social passa pela divulgação da proposta do seu partido em considerar crimes como o
rompimento da barragem de Fundão como crime hediondo, divulgação de notícias em formato
de denúncias sobre a negligência do Estado e o acompanhamento da votação no Senado sobre
a flexibilização da legislação ambiental, levando a crer que tais apresentações estariam
presentes como propostas e por consequência sendo necessário analisar seus principais pontos
de referência em sua campanha política, a candidata apresentou em contrapartida anunciações
sobre pontos principais de desenvolvimento neoliberal, como a privatizações, abertura da
economia e incentivos no aumento da capacidade de exportação (MARINA SILVA, 2018,
p.29). Sua proposta de campanha apresentado como "O Brasil na economia do futuro com
sustentabilidade, inovação e emprego" não considera os problemas por ela mesmo apresentadas
como intrínsecos as problemáticas ambientais e suas consequências, e em nenhuma ocasião se
faz referência as questões da legislação ambiental e nem a consideração dessas
responsabilizações como crime hediondo.

Considerações finais
Das categorias de análise proposta é possível perceber que durante o ano de 2015 e
2016, Marina Silva manteve uma visibilidade sobre o caso e principalmente uma defesa contra
o Projeto de Lei que flexibiliza os processos de licenciamentos ambientais discutidos no
congresso na época. Porém, a partir de 2017 segue com poucas ou quase nenhuma postagens
referente ao tema, levando a crer que exista uma co-relação a sua campanha a presidência da
república no ano de 2018 em que o caso tornou-se uma pauta secundária com uma maior
silenciamento.
É possível perceber o agendamento midiático presente a uma constante visibilidade do
tema dado pela candidata durante o período de 2015 e 2016, principalmente relacionando suas
postagens a divulgação de notícias vinculadas pela mídia em torno de denúncias,
responsabilizações e revolta pelo ocorrido quando o mesmo poderia ter sido evitado e assim
apresentando propostas de precauções.
Mariana Silva (REDE) apresenta uma trajetória política envolta de uma diferenciação
do mesmo, devendo ser respeitado sua luta política e atuação enquanto representante das
questões ambientais, porém seus posicionamentos se esvaziam enquanto conceito de
“sustentabilidade” como apropriação e visibilidade, já que sua nova proposta de campanha não
apresenta condições que garantem uma mudança na estruturação das problemáticas ambientais
e prioriza o desenvolvimento econômico, esse mesmo contraste está presente nos discursos

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hegemônicos sobre o meio ambiente, que responsabilizam o indivíduo, ou silenciam suas


estruturas para priorizarem um sistema de atuação neoliberal e de poder. A candidata a partir
de 2018 defende abertamente a privatização e o aumento da capacidade de exportação, sem a
referida questão da legislação ambiental, esses pontos defendidos são os mesmos apresentados
como críticas e antes apontadas como causadoras do desastre socioambiental que assolou a
região de Mariana-MG e impactou toda a bacia do Rio Doce, entrando em uma profunda
contradição.

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ISBN:978-85-93128-37-0

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