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Manoel de Barros: Livro Sobre Nada

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 MANOEL
   DE BARROS
 LIVRO SOBRE
      NADA

ªprova Livro sobre nada   3 20/09/2016   4ªprova


Copyright © 1996, 2016 by herdeiros de Manoel de Barros
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa
de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.
Organização das fotos e documentos
Martha Barros
Curadoria
Italo Moriconi
Auxiliar de pesquisa
Tania Freire
Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica
Regina Ferraz
Imagem de capa
Martha Barros, Das formigas, 2016, acrílica sobre tela, 45 x 44 cm,
reprodução de Jaime Acioli / Coleção particular
Créditos das imagens
Todas as fotos e documentos reproduzidos no livro pertencem ao
acervo pessoal do autor. As fotos das páginas 61, 78-81 foram reproduzidas
por Jaime Acioli.
Textos de contracapa e orelha
Italo Moriconi
Revisão
Fernando Nuno
Huendel Viana

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)


(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Barros, Manoel de, 1916-2014


Livro sobre nada / Manoel de Barros. – Rio de Janeiro :
Alfaguara, 2016.
isbn 978-85-5652-028-9
1. Poesia brasileira I. Título.

16-07120 cdd-869.1

Índice para catálogo sistemático:


1. Poesia : Literatura brasileira  869.1

[2016]
Todos os direitos desta edição reservados à
editora schwarcz s.a.
Praça Floriano, 19 — Sala 3001
20031-050 — Rio de Janeiro — rj
Telefone: (21) 3993-7510
www.objetiva.com.br

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Um lápis na península 7
Berta Waldman

LIVRO SOBRE NADA 11

Pretexto 13

1a parte – Arte de infantilizar formigas 15

2a parte – Desejar ser 31

3a parte – O livro sobre nada 47

4a parte – Os Outros: o melhor de mim sou Eles 53

Cronologia 63

Fotografias e documentos 71

Relação de obras 83

Bibliografia sobre Manoel de Barros 85

Índice de títulos e primeiros versos 97

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Um lápis na península

“O que eu mais gostaria de fazer é um livro sobre nada”,


escreveu Gustave Flaubert a uma amiga em 1852. Mais
de um século depois, o desejo de um escritor transfor-
ma-se em mote de outro, embora o que Flaubert preten-
desse fosse distinto daquilo que Manoel de Barros pro-
põe. O que o poeta procura?
Composto de quatro partes (“Arte de infantilizar for-
migas”, “Desejar ser”, “O livro sobre nada” e “Os Outros:
o melhor de mim sou Eles”) e antecipado por um “Pre-
texto” explicativo, o livro de Manoel começa oferecendo
ao leitor as coordenadas de sua poesia, embora de modo
cifrado: “De tudo haveria de ficar para nós um senti-
mento/ longínquo de coisa esquecida na terra —/ Como
um lápis numa península”.
Nesses versos, o autor transmite a desproporção en-
tre o pequeno objeto, um lápis, e a amplidão de uma
península. Nessa disposição, torna-se difícil encontrar o
potencial do instrumento de escrita, tornando impro­
vável o seu uso. Mas a necessidade move o poeta, que
aproxima mão e lápis à espera de um segundo passo:
sobre o que escrever? A demanda não visa à coisa algu-
ma, nem à utilidade, nem à metafísica, nem à expressivi-
dade, nem à rima. Assim mesmo, germinam sentidos
inusitados:

“[...] Eu pendurei um bem-te-vi no sol...”


“Ela era acrescentada de garças concluídas.”
“Besouros não trepam no abstrato.”
“De noite o silêncio estica os lírios.”

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Os sentidos surreais acionam, por sua vez, um movi-
mento em que se “avança” para trás, uma espécie de rio
que corre para a nascente; às vezes, o poeta cria oposi-
ções apaziguadas, que convivem lado a lado, como no
verso “Só o obscuro nos cintila”, ou ainda em uma se-
quência de frases em que a primeira corresponde a uma
lógica comum, logo rompida na terceira: “Nossa mãe
comprava arnica e bolachinhas./ [...]/ Meu avô abastecia
o abandono”.
Na segunda parte do livro, o sujeito lírico retoma
seus alicerces: “Só as coisas rasteiras me celestam” ou
“Eu tenho cacoete pra vadio”. Interessado em “coisas ras-
teiras”, no desnecessário e sem esplendor, o sujeito lírico
lê avencas, mas também Proust; ouve aves, mas também
Beethoven. Natureza e cultura, natureza e sonho são os
alicerces dessa escrita, fonte primordial à qual se jun-
tam outros elementos, constituindo todos eles o desenho
emblemático e movediço do Pantanal. Uma rã num talo,
semelhanças de pessoas com a natureza vegetal, perfa-
zem essa poesia:

Retiro semelhanças de pessoas com árvores


                                de pessoas com rãs
                                de pessoas com pedras
[...]
(Sabedoria vegetal é receber com naturalidade uma
rã no talo.)

Também a máquina, símbolo da produção, perde sua
função ao ser transformada em destroços, em inutilida-
des — engenhos que lembram as máquinas autodestrui-

Livro sobre nada   8 20/09/2016   4ªprova Livro s


doras do artista plástico Jean Tinguely e que funcionam
no sentido contrário ao da produção. Assim, o que não
tem ou perdeu seu valor de troca, é matéria de poesia.

Prefiro as máquinas que servem para não funcionar:


quando cheias de areia de formiga e musgo — elas­
podem um dia milagrar de flores.

A terceira parte parece soar redundante, pois as duas


anteriores giram em torno desse mesmo tema, mas aqui
a disposição do texto é outra. Frases curtas, entrecorta-
das, aforismos distribuem sabedoria em cápsulas:

“Tudo que não invento é falso.”
“Tem mais presença em mim o que me falta.”
“Não saio de dentro de mim nem pra pescar.”
“Do lugar onde estou já fui embora.”

A quarta e última parte do livro é apresentada pelo


poeta, que conta ao leitor que, antes de conhecer Picas-
so, viu, na aldeia boliviana de Chiquitos, perto de Co-
rumbá, uma pintura primitiva de Rômulo Quiroga, ar-
tista que produzia, ele mesmo, suas tintas. Entre outras
coisas, ele mostrou ao poeta a pintura de um ancião de
cara verde. Este teria retrucado: “Mas verde não é a cor
da esperança? Como pode estar em rosto de ancião?”.
“A minha cor é psíquica”, teria o pintor respondido. “E as
formas incorporantes.”
O poeta lembrou que Picasso, após conhecer as for-
mas bisônticas na África, rompeu com as formas natu-
rais, com os efeitos de luz natural, com os conceitos de

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espaço e de perspectiva, e, depois, quebrou planos; ao
lado de Braque, propôs a simultaneidade das visões, a
cor psíquica e as formas incorporantes. Além disso, o
poeta viu nos traços de Quiroga a presença de Paul Klee.
Portanto, a apresentação de Manoel de Barros a “As
lições de R.Q.” explicita sua familiaridade com a pintura
e com a escultura contemporâneas, das quais a sua poe-
sia se aproxima.
Leitor dos clássicos portugueses (Vieira, Camões,
Ca­milo Castelo Branco) que lhe emprestam muitas vezes
o léxico e a sintaxe, Manoel de Barros mimetiza o culto
e o folclórico e parte para ousadas combinações, sonori-
dades, neologismos, fazendo sua poesia interagir, neste
sentido, mais com a prosa poética de Guimarães Rosa do
que com a poesia propriamente dita da Geração de 45.
A exploração das dimensões pré-conscientes do ser
humano, da memória, a fala inovadora, a psique infantil,
o sonho, a loucura, o sertão “do tamanho do mundo”,
compõem um registro com o qual a poesia de Manoel
de Barros está relacionada. Mas do interior dessa inter-
locução, feita de múltiplas vozes, flui a voz do poeta
igual a si própria.
Chegados ao fim do caminho, fica a sensação de que
se está diante de um objeto em fuga, e, desse modo, a
intenção de apresentar não se completa. Mas o corpo
inteiro da poesia só se dá mesmo na experiência funda
e insubstituível da leitura. É a hora e a vez do leitor.

Berta Waldman

10

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LIVRO SOBRE NADA

11

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PRETEXTO

O que eu gostaria de fazer é um livro sobre nada. Foi


o que escreveu Flaubert a uma sua amiga em 1852.
Li nas Cartas exemplares organizadas por Duda Ma-
chado. Ali se vê que o nada de Flaubert não seria o
nada existencial, o nada metafísico. Ele queria o livro
que não tem quase tema e se sustente só pelo estilo.
Mas o nada de meu livro é nada mesmo. É coisa ne-
nhuma por escrito: um alarme para o silêncio, um
abridor de amanhecer, pessoa apropriada para pedras,
o parafuso de veludo, etc. etc. O que eu queria era fa-
zer brinquedos com as palavras. Fazer coisas desúteis.
O nada mesmo. Tudo que use o abandono por dentro
e por fora.

13

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1a parte

ARTE DE INFANTILIZAR FORMIGAS

15

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1.

As coisas tinham para nós uma desutilidade poética.


Nos fundos do quintal era muito riquíssimo o nosso
dessaber.
A gente inventou um truque pra fabricar brinquedos
com palavras.
O truque era só virar bocó.
Como dizer: Eu pendurei um bem-te-vi no sol…
O que disse Bugrinha: Por dentro de nossa casa
passava um rio inventado.
O que nosso avô falou: O olho do gafanhoto é sem
princípios.
Mano Preto perguntava: Será que fizeram o beija-flor
diminuído só para ele voar parado?
As distâncias somavam a gente para menos.
O pai campeava campeava.
A mãe fazia velas.
Meu irmão cangava sapos.
Bugrinha batia com uma vara no corpo do sapo e ele
virava uma pedra.
Fazia de conta?
Ela era acrescentada de garças concluídas.

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2.

O pai morava no fim de um lugar.


Aqui é lacuna de gente — ele falou:
Só quase que tem bicho andorinha e árvore.
Quem aperta o botão do amanhecer é o arãquã.
Um dia apareceu por lá um doutor formado: cheio
de suspensórios e ademanes.
Na beira dos brejos gaviões-caranguejeiros comiam
­caranguejos.
E era mesma a distância entre as rãs e a relva.
A gente brincava com terra.
O doutor apareceu. Disse: Precisam de tomar
­anquilostomina.
Perto de nós sempre havia uma espera de rolinhas.
O doutor espantou as rolinhas.

18

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3.

À mesa o doutor perorou: Vocês é que são felizes


porque moram neste Empíreo.
Meu pai cuspiu o empíreo de lado.
O doutor falava bobagens conspícuas.
Mano Preto aproveitou: Grilo é um ser imprestável
para o silêncio.
Mano Preto não tinha entidade pessoal, só coisal.
(Seria um defeito de Deus?)
A gente falava bobagens de à brinca, mas o doutor
falava de à vera.
O pai desbrincou de nós:
Só o obscuro nos cintila.
Bugrinha boquiabriu-se.

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4.

Apenas de mês em mês aparecia uma carreta de


mascate, puxada por 4 juntas de bois no fim daquele
lugar. Levava caramelos, bolachinhas, pentes, argolas
para laço, extrato Micravel, peças de algodoim para
fazer saia branca, filó de mosqueteiro, vidros de
arnica para curar machucaduras, brincos de
pechisbeque, — essas coisinhas sem santidade…
Nossa mãe comprava arnica e bolachinhas.
Dona Maria, mulher do Lara, comprava brincos e
extrato Micravel.
Meu avô abastecia o abandono.
De tudo haveria de ficar para nós um sentimento
longínquo de coisa esquecida na terra —
Como um lápis numa península.

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Livro sobre nada   20 20/09/2016   4ªprova Livro s

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