Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                

Livro-Historia e Historiografia MIOLO

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 336

HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA

PERSPECTIVAS E ABORDAGENS
Antonio Gilberto Ramos Nogueira
Antonio Luiz Macêdo e Silva Filho
organizadores

HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA
PERSPECTIVAS E ABORDAGENS

Fortaleza – 2012
© 2012 Copyright by autores

Revisão: Karoline Viana Teixeira e Luciana Andrade de Almeida


Revisão da edição: Antonio Luiz Macêdo e Silva Filho
Editoração Eletrônica: Carlos D. Von L. Minini
Capa: Carlos D. Von L. Minini

Catalogação na Fonte: Bibliotecária Perpétua Socorro Tavares – CRB 3/ 801

História e historiografia: perspectivas e abordagens / Antonio


Gilberto Ramos Nogueira e Antonio Luiz Macêdo e Silva Filho
[organizadores].- Fortaleza: Programa de Pós-Graduação em História
- UFC; Expressão Gráfica e Editora, 2012.
336 p.
ISBN: 978-85-420-0097-9
1. Historiografia- Brasil I. Nogueira, Antonio Gilberto Ramos
II. Silva Filho, Antonio Luiz III. Título
CDD: 920

Apoio:
Sumário

Apresentação .................................................................................................................07

Parte 1 – Temporalidades na história


Nouvelle histoire e Lévi-Strauss
Richard Marin .............................................................................................................11
História e Fenomenologia: uma crítica às “temporalidades” da História Nova
Leandro Duarte Rust ....................................................................................................24
As injunções do tempo presente no relato histórico. Experimentar a contemporaneidade
Regina Beatriz Guimarães Neto ....................................................................................41
Tempo, patrimônio e políticas de preservação no Brasil
Antonio Gilberto Ramos Nogueira .................................................................................60

Parte 2 – Escritores e escritas da história


Escrita da História na Antiguidade Tardia: reflexões para um debate com a historiografia
contemporânea
Marcus Cruz ................................................................................................................70
Os diários íntimos como fonte de pesquisa histórica
Márcio Couto Henrique ................................................................................................85
Escritores entre fronteiras: diálogos de uma geração
Ana Amélia de Moura Cavalcante de Melo.....................................................................95
Lima Barreto e Oswald de Andrade: trajetórias no processo de atualização artística
brasileira (1900-1930)
Irenísia Torres de Oliveira ...........................................................................................107
O progresso de outrora: anotações sobre temporalidade e experiência urbana (Fortaleza,
1920-1940)
Antonio Luiz Macêdo e Silva Filho ..............................................................................124

Parte 3 – Metodologias da história


O historiador e o patrimônio cultural: perspectivas metodológicas
Isabel Cristina Martins Guillen ...................................................................................142
O golpe militar e civil de 1964: questões metodológicas sob a ótica dos paradoxos
Antonio Torres Montenegro ..........................................................................................151
Notas sobre a “fortuna crítica” do intelectual Alceu Amoroso Lima
Cândido Moreira Rodrigues.........................................................................................163
Documentação e práticas arquivísticas no Governo da Província do Ceará
Ana Carla Sabino .......................................................................................................176
História e documento: os silêncios da história e a heteroglossia da publicidade
Jailson Pereira da Silva ...............................................................................................194

Parte 4 – Espaços, redes e migrações


Espaços afro-indígenas no mapa Brasilia qua parte paret Belgis
Bartira Ferraz Barbosa/José Luis Ruiz-Peinado Alonso ..................................................208
“Este é um país que vai pra frente”. As migrações para o Mato Grosso após 1970
Vitale Joanoni Neto ....................................................................................................228
Pernambuco e Brasil nas rotas do tráfico atlântico
Marcus J. M. de Carvalho ...........................................................................................239

Parte 5 – Memória, política e ensino de história


Entre Palmares e Vila Rica: os percursos da memória de Zumbi e tiradentes nos livros
didáticos de História do Brasil (Séculos XIX e XX)
Renilson Rosa Ribeiro ..................................................................................................264
Silêncios de gênero em livros didáticos de História de Mato Grosso
Ana Maria Marques ...................................................................................................286
Disputa e ação política nas memórias de ex-militantes do Movimento Feminino pela
Anistia (MFPA) no Brasil
Ana Rita Fonteles Duarte ............................................................................................298
Conflitos políticos, crise econômica e “descaminhos” na Capitania do Ceará (1780-1822)
Marilda Santana da Silva ...........................................................................................313
Memórias da escravidão, memórias da abolição: um campo de estudo comparativo entre
a França e o Brasil
Franck Ribard ............................................................................................................324
Apresentação

Este livro veio a lume por ocasião do III Seminário Internacional História e
Historiografia, realizado em Fortaleza, de 1º a 3 de outubro de 2012, pelo Programa
de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Ceará, em parceria
com os Programas de Pós-Graduação em História das Universidades Federais de
Pernambuco, Pará e Mato Grosso. É fruto do esforço de quatro Programas de Pós-
Graduação em História que aceitaram o desafio de propor um projeto coletivo para
enfrentar os desafios e os impasses que envolvem a consolidação e a produção do
conhecimento histórico em rede de investigação. Trata-se de uma ousadia que acabou
por se constituir em iniciativa ainda pouco usual na história da Pós-Graduação deste
país, ao lançar em seus propósitos a formação de uma rede de investigação e produção
do conhecimento que compreende as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
A tomada de consciência da relação do historiador com a multiplicidade das
dimensões temporais vem conduzindo ao entendimento segundo o qual, longe de
qualquer pretensa natureza mimética do real, o discurso apoiado no trabalho de
interpelação das fontes e elaboração escrita requer a problematização contínua de
seus próprios procedimentos, escolhas e filiações.
Assim, ganha pertinência o exame crítico dos modos pelos quais, ao longo
do tempo, a história se tornou um campo de conhecimento, com normas, rigores
e interdições específicas. Amplia-se, portanto, o interesse em abordar a memória
disciplinar como objeto de estudo, recusando sua cristalização canônica. Indagar e
reconstruir as condições que, num dado presente, favoreceram a emergência de certas
narrativas sobre o passado, em sintonia com as projeções de futuro, é uma forma de
sublinhar a historicidade constitutiva do saber histórico.
O livro História e Historiografia: perspectivas e abordagens não constitui uma
transcrição direta das apresentações de seus autores nas conferências, mesas-redondas
ou simpósios temáticos; antes, e ainda no espírito e calor do tempo dos debates
acadêmicos, apresenta e representa os diversos olhares dos pesquisadores sobre
questões cruciais que envolvem o fazer da história e o ofício do historiador no século
XXI.
Os textos desta coletânea foram organizados em cinco eixos temáticos: 1 –
Temporalidades na história, 2 – Escritores e escritas da história, 3 –Metodologias
da história, 4 – Espaços, redes e migrações e 5 – Memória, política e ensino de

7
história. São contribuições advindas de reflexões que, independentemente da escala
de abordagem (local, regional, nacional ou internacional), têm em comum os desafios
do jogo polissêmico que envolve os termos História e Historiografia.
Ao suscitar o debate acadêmico no campo historiográfico potencializado
pelos diálogos e o estabelecimento de balanços sobre novas abordagens e tendências
da investigação dos historiadores, o livro objetiva contribuir para a renovação da
historiografia das regiões compreendidas, ao mesmo tempo em que incentiva a
cooperação científica e cultural e a consolidação de grupos de pesquisa institucionais.

Antonio Gilberto Ramos Nogueira

Antonio Luiz Macêdo e Silva Filho

8
Parte 1
Temporalidades na história
Nouvelle histoire e Lévi-Strauss*

Richard Marin**

Na segunda metade da década de 1960, nos tempos da Nouvelle histoire, cujo


nome foi formalizado em 1978 pelo trabalho coletivo de mesmo nome dirigido por
Jacques Le Goff, Roger Chartier e Jacques Revel, emerge o campo da antropologia
histórica. Não demorou muito para ocupar um lugar de destaque dentro da disciplina,
enquanto a história econômica e social perdia a posição dominante que tinha desde
os anos 1950, com Fernand Braudel e Ernest Labrousse como figuras de proa. A
gênese e o desenvolvimento deste novo campo, que acrescenta o nome de Clio à
disciplina associada a Lévi-Strauss, conduz naturalmente a interrogarem a influência
da principal figura do estruturalismo sobre os historiadores.
No entanto, como mostraremos na primeira parte, o estruturalismo de Lévi-
Strauss é caracterizado pela sua a-historicidade, quando não a sua anti-historicidade.
Portanto, nada surpreendente a aproximação que se esboça entre antropologia e
história, analisada em seguida, cheia de insinuações, mal-entendidos e ambiguidades.
Para finalizar, o estudo da gênese, dos métodos e dos objetos da antropologia
histórica leva a destacar a diversidade das suas filiações, sendo o autor de Tristes
Trópicos apenas uma delas.

A obra de Lévi-Strauss: uma negação da história?

O estruturalismo antropológico de Lévi-Strauss se inscreve na linhagem da


linguística de Ferdinand Saussure e, sobretudo, de Roman Jakobson, que conheceu
em Nova York, em 1941. Para a linguística estruturalista, cada idioma é uma variação
a partir de uma estrutura, um sistema composto de elementos interdependentes de tal
forma que cada um depende do outro e não pode ser entendido independentemente
do seu relacionamento com eles.
Apropriando-se o pensamento estruturalista para aplicá-lo à antropologia,
Lévi-Strauss pretende chegar à compreensão científica do espírito humano destacando
* Tradução e adaptação do artigo: MARIN, Richard. La nouvelle histoire et Lévi-Strauss. Caravelle, Cahiers du
monde hispanique et luso-brésilien, n° 96, juin 2011, p. 165-178.
** Professor da Universidade de Toulouse, Laboratório France Méridionale et Espagne (FRAMESPA).

11
nele elementos universais entendidos como partes irredutíveis e como fora do tempo.
Em sua tese sobre As estruturas elementares do parentesco (LÉVI-STRAUSS, 1949a) e
seus estudos sobre os mitos (LÉVI-STRAUSS, 1964; 1967; 1968; 1971a), destaca a
recorrência de algumas formas elementares. Ele conclui que, por trás da diversidade das
culturas, existem invariantes que se referem a uma unidade psíquica da humanidade.
A seu ver, todas as civilizações se contentam de combinar os mesmos elementos
básicos em um número limitado de classificações disponíveis. Como escreveu em
seu famoso artigo sobre “História e Etnologia”: “a atividade inconsciente do espírito
impõe formas a um conteúdo” (LÉVI-STRAUSS, 1949b). Estas formas são iguais
em todas as sociedades, sejam elas antigas ou modernas, “primitivas” ou “civilizadas”.
Ao oposto dos historiadores, não escolhe a abordagem genética. Segundo ele,
a gênese de uma estrutura se confunde com o seu funcionamento e sua origem não
pode ser considerada “causa”. Esta radicalização da noção de sistema e de modelo,
às vezes matematizado como as estruturas de parentesco, justifica, ao seu ver, a
incontestável superioridade da antropologia sobre a história. Por isso, estabelece
uma espécie de hierarquia implícita que reproduz o debate entre a sociologia
de Durkheim e os historiadores da Belle Époque. Ele conclui que, como pesquisa
conceitual, a antropologia é muito superior à história, confinada ao empirismo. Esta
última é apenas uma simples crônica do câmbio, uma disciplina idiográfica e não
nomotética, bem incapaz de identificar as permanências, os invariantes, sem os quais
não pode existir uma ciência social. Enquanto a antropologia, com a sua abordagem
estruturalista, tem acesso ao inconsciente das práticas sociais, a história apenas é capaz
de organizar os dados em relação às expressões conscientes.
Assim, Lévi-Strauss não esconde a ambição hegemônica da antropologia no
campo das ciências sociais ée tece duras críticas contra a história e os historiadores. O
que explica uma certa desconfiança dos historiadores em relação a ele. Por exemplo,
ele escreve, em 1955: “uma hora gasta com um contemporâneo de Platão, nos daria
mais informação sobre a coerência ou a incoerência da civilização grega que todo
o trabalho de nossos historiadores” (LÉVI-STRAUSS, 1955). Braudel lhe retruca:
“Sim, é verdade, mas porque essa viagem foi preparada pela leitura de todas estas
obras de história” (BRAUDEL apud ÉRIBON, 1988). Em 1962, em O Pensamento
Selvagem (1962a), Lévi-Strauss, comentando A crítica da razão dialética de Sartre,
aproveita a oportunidade para um ataque contra a história. Ele a qualifica como o
último mito das nossas sociedades, uma manipulação arbitrária para inventar uma
visão global do universo, uma elaboração muito parecida à dos “primitivos” quando
elaboram seus mitos. Ou, ainda, em 1964, em O cru e o cozido, escrevendo que
“mitologia como música são máquinas para abolir o tempo”.
Anos depois, o antropólogo tem insistido muito sobre os seus desentendimentos
com os historiadores. Ele o fez em particular tanto no artigo “História e Etnologia”
(LÉVI-STRAUSS, 1983) como nas suas conversas com Didier Éribon, em 1988.

12
Nelas exibe uma paixão pela história, apresentada como “o principal objeto da sua
atividade de leitor” (ÉRIBON, 1988, p. 175). Continua, considerando que foi erro
de interpretação dos seus leitores considerarem as chamadas “sociedades frias” como
sendo fora da história. Em realidade, acrescenta, é pura ilusão delas que se sonham
como primitivas, paradas no início dos tempos e fora da história, no estado em que
os deuses as criaram.
Ele também lembra que, contra os antropólogos como Bronislaw Malinowski,
que só acreditavam no trabalho de campo, sempre defendeu o necessário conhecimento
do passado das populações objeto de estudo.
Aos “marxistas” ou “neo-marxistas”, que o acusam de ignorar a história, Lévi-
Strauss responde:
São vocês que a ignoram, ou melhor que lhe viram as costas, porque vocês colocam no
lugar da história real e concreta as grandes leis do desenvolvimento que existem apenas em
sua mente. O meu respeito para a história, o gosto que eu sinto para ela, vem da sensação
que […] o acontecimento, em sua contingência, parece ser um dado irredutível (ÉRIBON,
1988, p. 176).

Da mesma forma, se ele diz que concorda com a “velha noção de natureza
humana”, observando que “o cérebro humano é feito em todos os lugares da mesma
maneira”, acrescenta imediatamente que problemas com os quais se depara surgem
como formas extraordinariamente diversas, condicionadas pelo ambiente geográfico,
o clima, o estado de civilização e, ao final, a história das sociedades.
No entanto, indo ainda mais longe, Lévi-Strauss parece reabilitar a história
cujo uso, cada dia mas frequente pelos etnólogos, lhe parece ótimo. Curiosamente, a
história que parece ter ao seu favor não é a dos Annales, mas a velha história-evento,
precisamente porque considera que ela permite recolher, a partir de um amontoado
de datas e de anedotas, alguns dos materiais com os quais pode ser construído o
conjunto das ciências humanas.
Em sua entrevista de 1988, com Didier Éribon, volta para a questão nestes
termos:
No início, a escola dos Annales afastou-se da velha história, a dos cronistas e dos
memorialistas, para se concentrar nos movimentos profundos, demográficos, econômicos,
ou das ideias, embora os etnólogos tomavam o caminho oposto. Porque é a história de
eventos e até mesmo anedótica que instrui sobre a maneira como, outrora, as alianças
matrimoniais se concluíam, se constituíam as redes de parentesco, se transmitiam os bens,
seja nas famílias reais ou nobres, seja nos meios camponeses tradicionais. Tomando as coisas
desta forma, somos capazes de detectar cruzamentos, articulações, que permitem comparar
sociedades distantes e exóticas como estados antigos da nossa própria sociedade. Mais uma
vez, os caminhos da história e da antropologia se cruzam, mas agora podemos esperar que
seja para seguir o mesmo caminho a partir deste cruzamento (ÉRIBON, 1988, p. 172).

13
Assim se verifica que Lévi-Strauss não está muito longe da visão de Durkheim,
que atribuía à história o papel de simples fornecedora de materiais, agora colocada
a serviço da antropologia em posição forte! No entanto, apesar de todas essas
incompatibilidades e forte rivalidade entre as duas disciplinas, um diálogo e uma
aproximação se esboçam ao final dos anos 1950.

Entre a antropologia estrutural e a história, não haverá guerra

Em 1971, escrevendo o editorial “A guerra entre história e estruturalismo não


vai acontecer” (BURGUIÈRE, 1971), para a edição especial dos Annales dedicada à
“História e Estrutura”, André Burguière deu toda a medida das novas relações que
estavam se estabelecendo com a antropologia estruturalista – relações mais pacíficas
e cooperativas do que no passado. Vista do lado dos historiadores, essa combinação
mostrou, é claro, a atração do estruturalismo, mas também uma estratégia dos
historiadores capaz de disputar com a antropologia o campo das ciências sociais.
Entre as duas disciplinas, o primeiro grande debate tinha ocorrido ao final dos
anos 1950, quando Fernand Braudel, em resposta à Antropologia Estrutural (1958)
de Lévi-Strauss, escreveu nos Annales o artigo “História e ciências sociais. A longa
duração” (BRAUDEL, 1958). Os dois homens já eram líderes, cada um no seu
campo. O autor da tese-monumento O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na
época de Filipe II, de 1947 (BRAUDEL, 1949), tinha recolhido todo o legado de seu
mestre, Lucien Febvre. Em 1947, ele herdou da direção dos Annales, que já tinham
uma fama internacional, a cátedra de Febvre no Collège de France (1949) e a direção
da sexta seção da Escola Prática de Altos Estudos (EPHE), em 1956. Entre 1950 e
1955, ele atuou como presidente do júri do concurso da agregação de história, uma
posição-chave para fazer evoluir a sua disciplina e dar-lhe rumos diferentes da velha
Sorbonne, com a qual andava brigado.
Em comparação, a posição institucional de Lévi-Strauss não é tão forte. Diretor
de estudos na quinta seção da Escola Prática de Altos Estudos, ocupando a cadeira
que foi de Marcel Mauss, ainda não fora eleito ao Collège de France. Mas ele já
tem grande prestígio intelectual e, tal qual o Mediterrâneo, imediatamente percebido
pelos historiadores como uma revolução epistemológica, suas Estruturas elementares
do parentesco, publicadas em 1949, são um evento importante na história intelectual
do pós-guerra. Sua tese, destacando a proibição do incesto como um universal
em todas as sociedades humanas, é o grande texto fundador do estruturalismo
antropológico. Além disso, com Tristes Tropiques (1955), uma meditação desiludida
sobre a civilização moderna e o desaparecimento dos povos indígenas, imbuída de
uma sabedoria próxima dos Essais de Montaigne (1955), ele ganha uma verdadeira
reputação literária, bem além do círculo estreito das ciências sociais.

14
Por terem convivido entre 1935 e 1937 no Brasil, na Missão Francesa que
participou da fundação da Universidade de São Paulo, os dois homens se conhecem
bem e se respeitam, sem nunca terem tido muita aproximação. O historiador Maurice
Aymard, amigo de Braudel, conta que Braudel manteve ligações estreitas com o
economista François Perroux e o sociólogo Georges Gurvitch, mas poucas com Lévi-
Strauss, a quem nunca tratava com informalidade. Além disso, em suas conversas
com Didier Éribon, Lévi-Strauss sugere, não sem causticidade, a percepção que ele
tinha de Braudel quando de sua estada em São Paulo:
Braudel era seguro de si, da diferença de idade, de sua posição já mais alta na hierarquia
universitária [...]. Era mais velho, mais avançado que nós em sua carreira e em sua tese. Ele
ainda não a tinha escrito, mas levava com ele os materiais. Antes de alugar uma casa, ele
tinha precisado de um quarto de hotel a mais para as suas fontes! [...] ele nos tratava de um
pouco alto (ÉRIBON, 1988, p. 37).

No entanto, Lévi-Strauss, que quase foi mandado embora para França por não
ter dado papel suficiente ao positivismo de Augusto Comte nos seus cursos, agradece
a tomada de posição de Braudel, que colocou “todo o seu peso na balança” para que
ele pudesse ficar – e ficou.
Na sua resposta à Antropologia estrutural, Braudel, embora sendo muito
consciente do maior peso institucional da história, não subestima a disciplina
concorrente. Ele entende muito bem a força de atração desta nova ciência e a sedução
dos modelos matemáticos utilizados por Lévi-Strauss, que tenta instalar a antropologia
no lugar de unificadora do campo das ciências sociais.
Neste confronto epistemológico cortês, anterior a dez anos à aproximação
entre as duas disciplinas, Braudel, primeiro, paga uma homenagem a Lévi-Strauss por
ter sabido entender a linguagem subjacente às estruturas elementares de parentesco,
aos mitos, às trocas econômicas. Mas é para afirmar, em seguida, que a história é
a única a ter capacidade de unificar todas as abordagens do homem graças à longa
duração, que é um pouco como o equivalente da estrutura antropológica de Lévi-
Strauss.
Desse modo, Braudel conceitua uma história estrutural, quase imóvel,
insensível ao tempo dos homens. Uma história que muitos historiadores
recusaram. Ela é uma história lenta e de pouca mudança, com muitos retornos
e ciclos,
um conjunto, uma arquitetura e, mais ainda, uma realidade que o tempo mal desgasta
e mantém durante muito tempo. Determinadas estruturas, de longa duração tornam-se
elementos estáveis para uma infinidade de gerações: bloqueiam a história, a atrapalham e,
portanto, dirigem o seu fluxo (BRAUDEL, 1958).

Ao lado dessa longa duração, secular e até milenar que ele opõe aos antropólogos,
os dois outros níveis de temporalidade definidos – o “tempo social” das economias,

15
dos Estados e das empresas e o “tempo individual”, tempo breve da história factual e
tradicional – têm pouco interesse na ofensiva contra o estruturalismo.
No entanto, não nos deixemos enganar: se Braudel apoiou o conceito de
estrutura, a sua visão difere muito da de Lévi-Strauss. A estrutura do historiador é
uma realidade concreta, inserida no tempo e totalmente na história. Ao contrário,
para a antropologia estruturalista, ela permanece fora da história.
Introduzido por Braudel, o debate entre história e estruturalismo ocupa,
porém, pouco lugar nos Annales durante os anos 1960. Apenas encontramos um
breve artigo de Annie Kriegel (1964) e uma longa resenha de tese, feita por Nathan
Wachtel (1966), ambos convidando para o diálogo entre as duas abordagens, além de
dois artigos sobre literatura e estruturalismo (YOSHIDA, 1962; 1964).
À luz dessa escassez, “Histoire et structure”, edição especial dos Annales,
de 1971, assinala uma real mudança da revista. Como o estruturalismo já está em
declínio – em maio de 1968, em Paris, não foram as estruturas que desceram as
ruas! –, a situação parece favorável para a história recuperar algum terreno perdido.
Em sua apresentação, André Burguière, que reconhece a influência do estruturalismo
na pesquisa histórica, ao mesmo tempo, enfatiza que “o refluxo para a história [da
antropologia] é esboçado já” (BURGUIÈRE, 1971).
Porta-voz da linha editorial da nova direção dos Annales, ele defende o uso
de um estruturalismo aberto, adaptado às necessidades dos historiadores, também
capazes de acessar o inconsciente das práticas coletivas. Em sua conclusão, ele se atreve
a escrever: “Se um pouco de estruturalismo afasta da história, muito estruturalismo
nos traz de volta a ela” (BURGUIÈRE, 1971).
Três dos quatro artigos do dossiê dedicado ao estudo dos mitos são de
antropólogos: Claude Lévi-Strauss (1971b), Maurice Godelier (1971), Dan Sperber
e Pedro Smith (1971). O último artigo, dos historiadores Emmanuel Le Roy
Ladurie e Jacques Le Goff, sobre o mito da fada Mélusine (1971), é uma espécie de
homenagem à etnográfia e a Lévi-Strauss, com referências a Totemismo hoje (1962b)
e as Mitológicas (1964), citados na bibliografia. O artigo é uma prova convincente da
antropologização do discurso histórico e da vontade de instituir boas relações entre
as duas disciplinas, além de anunciar as seduções da “História imóvel” – para usar o
título da palestra de Emmanuel Le Roy Ladurie quando da sua lição inaugural no
Collège de France, em 1973 (LADURIE, 1974).

Os tempos da antropologia histórica nos anos 1970

Os anos 1970 são os de uma história acadêmica no seu auge, na qual se destaca
o setor da chamada “história das mentalidades” que, em grande parte, se sobrepõe
à antropologia histórica. A história reúne então um vasto público de leitores, quase

16
impensável hoje. Assim, Montaillou: cátaros e católicos numa aldeia francesa – 1294-
1324, de Emmanuel Le Roy Ladurie (1975), teria alcançado quase dois milhões de
compradores, incluídas as traduções (Cf. BOUCHERON, 2001).
Não há dúvida de que o uso pelos historiadores do termo da antropologia
(preferido ao da etnologia), deva-se à forte ascendência de Claude Lévi-Strauss e
sua escola, que impuseram a terminologia anglo-saxã da antropologia social. Mas
evitemos, contudo, superestimar a influência do pai do estruturalismo sobre a Nouvelle
histoire. Como veremos, este uso é muito mais o resultado de um encaminhamento
interno do pensamento histórico.
Conforme André Burguière (2008), a pesquisa antropológica dos historiadores
investe então em quatro áreas principais: a antropologia material e biológica (história
dos hábitos alimentares, condições de vida, história de atitudes em relação ao
corpo e ao ambiente biológico), antropologia econômica (difusão de tecnologias
agrícolas, mecanismos da economia camponesa...), antropologia social (estruturas e
comportamentos da família, organização de parentesco) e, finalmente, a antropologia
cultural (crenças, religiões populares, cultura popular, cultura política).
Estes novos rumos da disciplina histórica estão em relação com o momento
histórico e fatores específicos à universidade. O fascínio pelo “tempo imóvel” das
“sociedades frias” tem muito a ver com o “fim da era ideológica” (FURET, 1967), que
combina a crise do sentido da história, as dúvidas sobre a ideia de progresso indefinido
e o poder explicativo do marxismo. Crece muito, então, o interesse pelas culturas pré-
industriais, um equivalente dos mundos exóticos e pobres dos antropólogos, entre os
muitos historiadores que sentiam nostalgia deste “mundo que perdemos” (a fórmula
é do historiador: LASLETT, 1969).
Em 1969, o câmbio de geração nos Annales, com a chegada de uma nova
liderança coletiva – André Burguière, Marc Ferro, Jacques Le Goff, Emmanuel Le
Roy Ladurie, Jacques Revel – leva, de um lado, a marginalizar Fernand Braudel e
a história econômica e social e, do outro, abre espaço para novos projetos. Várias
edições especiais da revista atestam de modo eloquente este entusiasmo: “Família e
Sociedade” (nº 4-5/1972), “História e sexualidade” (n° 4/1974), “Para uma história
antropológica” (n° 6/1974), “História do consumo” (n° 2-3/1975), “Em torno do
morto” (n° 1/1976), “Antropologia da França” (n° 4/1976), “História e antropologia
das sociedades andinas” (n° 5-6/1978) e outros.
É na sexta seção da Escola Prática de Altos Estudos (EPHE) – seção que, em
1975, dá à luz a Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS) – que se localiza
o cadinho mais fértil da inovação. Aqui, a história confrontada aàs outras ciências
sociais (sociologia, antropologia, linguística) empresta suas ferramentas e algumas de
suas problemáticas. Portanto, não é surpreendente que Jacques Le Goff, diretor da
sexta seção da EPHE e, depois, da EHESS (1972-1977), tenha, com Emmanuel Le
Roy Ladurie, um papel de destaque no desenvolvimento da “antropologia histórica”,
quase equivalente, para eles, à Nouvelle histoire (Cf. HAR-PELED, 2010).

17
Segundo Misgav Har-Peled, a conversão antropológica de Jacques Le Goff
ocorreu de forma gradual, como evidenciado pelo título de seus seminários. Em
1965, o seu seminário é intitulado “História e Sociologia do Ocidente Medieval”. Em
1973, ele se torna “Antropologia Cultural do Ocidente Medieval”. No ano seguinte,
o seminário e o grupo de estudos mudam de nome para “Antropologia Histórica
da Europa Medieval”. Em 1978, Jacques Le Goff funda o Grupo de Antropologia
Histórica do Ocidente Medieval (GAHOM), que dirige até 1992, antes de entregá-lo
a Jean-Claude Schmitt.1 Em 1993, agrega-se ao GAHOM o Grupo de Antropologia
escolástica dirigido por Alain Boureau. Da mesma forma que Levi-Strauss, com a
antropologia, queria “redimir” o passado colonial da etnologia, Le Goff, um ex-
militante do Partido Socialista Unificado (PSU), teria reproduzido uma abordagem
semelhante no campo da história.
Se, tanto para Lévi-Strauss como para Le Goff, fazer antropologia significava
“descolonizar as ciências sociais” (HAR-PELED, 2010), o parentesco não significava
a adesão de Le Goff às concepções de Lévi-Strauss. Não somente o historiador usou
muito raramente os conceitos antropológicos como desconfiava da abordagem
antropológica que podia conduzir ao beco sem saída de uma história universal e
imóvel. Em 1988, em sua apresentação do livro La Nouvelle histoire, versão resumida
do original de 1978, Le Goff, significativamente, justifica a escolha que foi feita, na
primeira edição, das biografias selecionadas: Georges Dumézil e Marcel Mauss, mas
não Claude Lévi-Strauss, sobre o qual expressa algumas reservas: “Poderíamos ter
juntado Claude Lévi-Strauss, cujo estruturalismo mantém com a história relações
de ambiguidade [...], mas também legou aos historiadores do mito e dos textos um
método de análise frutífera” (LE GOFF, 1988, p. 26-27).
Além disso, quando a maioria dos historiadores recorre à antropologia, muitas
vezes desviam da “religião estruturalista” e “manifestam um grande oportunismo,
emprestando, de acordo com suas necessidades, métodos, conceitos, elementos
temáticos do questionário etnológico” (BURGUIÈRE, 1995, p. 172) – e o de Lévi-
Strauss sendo um entre outros. Para os historiadores, a opção antropológica tem mais
a ver com os objetos escolhidos que com os próprios métodos da disciplina.
Talvez o melhor exemplo seja o de Georges Duby, um dos historiadores que
mais mobilizou, de modo muito eclético, as ferramentas antropológicas. Na sua
tese de doutorado La société en Maconnais aux XIe et XIIe siècles, de 1953, a parte
consagrada ao estudo da origem das linhagens, base do sistema de dominação, tem
clara inspiração nas Estruturas Elementares do Parentesco, de Lévi-Strauss. Porém,
em Guerreiros e camponeses (DUBY, 1973), a influência mais forte foi a do longo
artigo de Marcel Mauss (1924), “Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas
sociedades arcaicas”, que versa sobre os métodos de troca nas sociedades tidas como

18
primitivas e as noções de reciprocidade, intercâmbio e contrato. Para As três ordens
do imaginário do feudalismo (1978), Duby empresta ao filólogo e mitógrafo francês
Georges Dumézil a hipótese trifuncional que postula que os povos protoindoeuropeus
formaram sociedades divididas em três castas ou classes sociais: a sacerdotal (clero), a
guerreira (nobreza) e a trabalhadora (plebe), que correspondem, respectivamente, às
funções sagrada, marcial e econômica.
Em Montaillou, Le Roy Ladurie trabalha com as fontes clássicas do historiador
(registros da Inquisição), mas com forte inspiração da literatura etnológica, referindo-
se a Radcliffe Brown, Van Gennep, Leach, Evans Pritchard, Mauss, Polanyi ou
Chayanov. No entanto, nos seus importantes desenvolvimentos relativos à família e ao
parentesco, Lévi-Strauss é citado somente com Tristes Trópicos! O Carnaval de Romans
(1979), do mesmo historiador, se refere duas vezes a Lévi-Strauss na bibliografia,
com Totemismo hoje e a Introdução à obra de Marcel Mauss (LÉVI-STRAUSS,
1966). Quanto ao L’argent, l’amour et la mort en Pays d’Oc (1980), muito se refere
às Mitológicas. Raoul Girardet, historiador do contemporâneo, no seu clássico Mitos
e mitologias políticas (1986), reconhece a sua dívida com Mircea Eliade e George
Dumézil, mas também a Antropologia estrutural e as Mitologicas de Lévi-Strauss
(GIRARDET, 1986, p. 195).
No entanto, a história antiga é, sem dúvida, a área que mais se renovou graças
às contribuições da antropologia. Ela tem forte presença nos trabalhos de Pierre
Lévêque, Marcel Detienne, Pierre Vidal Naquet e Jean-Pierre Vernant. Mas, se eles
usam muito a noção de estrutura, o fazem como historiadores. Jean-Pierre Vernant
que, de um lado, dedicava uma verdadeira admiração por Lévi-Strauss, do outro,
sempre disse as suas reservas sobre sua a-historicidade. Aliás, nos seus estudos sobre
a Grécia, as principais referências não são as de Lévi-Strauss mas de seu mestre, Louis
Gernet, de Marcel Mauss e da psicologia comparativa de Ignace Meyerson.
Se não há dúvida de que o contato bastante livre dos historiadores com a
antropologia e seus objetos ajudou no surgimento da Nouvelle histoire, ela, de acordo
com André Burguière, deve muito mais a uma filiação interna à disciplina que tem
origem na primeira geração dos Annales (Cf. BURGUIÈRE, 1999). Segundo ele,
a antropologia histórica é o ponto culminante da noção de mentalidade tal que a
imaginaram, de modo bem diferente, Lucien Febvre e Marc Bloch.
Para Lucien Febvre, referindo-se aos trabalhos de Lévy-Bruhl sobre “as
mentalidades primitivas” (LÉVI-BRUHL, 1910; 1927), a história das mentalidades
consiste em um exercício de psicologia histórica preocupado em resgatar o sistema
de representações de um período. Para consegui-lo, Febvre privilegia biografias
de personalidades incomuns como Rabelais (FEBVRE, 1968a [1942]) e Lutero

19
(FEBVRE, 1968b [1928]), supondo que elas são portadoras de todas as “ferramentas
mentais” de seu tempo.
Marc Bloch, muito mais influenciado pela sociologia de Durkheim, nunca
separa o estudo do mental do seu substrato social. Em Os reis taumaturgos (1924), a
obra seminal da antropologia histórica influenciada por Frazer e Lévy-Bruhl, Bloch
tenta entender como uma realidade social a crença no poder de cura dos reis da França
e da Inglaterra, com o toque de escrófula, no dia da coroação. Da mesma forma, na
Sociedade feudal (1940), ele explica o desprezo da vida na Idade Média por meio da
predominância da nobreza e sua ideologia, cuja bravura e violência são constitutivas.
Na década de 1960, Philippe Ariès e Robert Mandrou, figuras eminentes
da Nouvelle Histoire, totalmente estrangeiros à antropologia e à herança de Bloch,
reivindicam a herança de Lucien Febvre. Aliás foi a partir das notas deixadas por
Lucien Febvre que Robert Mandrou redigiu sua Introduction à la France moderne,
1500-1640 (1961).
Também a constituição do campo da história antropológica pode ser explicada
como sendo uma extensão e uma superação da história econômica e social quantitativa,
dominada durante os anos 1950 e 1960 pela figura de Ernest Labrousse, professor na
Sorbonne de 1945 a 1967. Assim, em muitos casos, são os estudos quantitativos de
demografia histórica, realizados a partir do método da “reconstituição das famílias”,
inventado por Louis Henry e Serge Fleury (1956), que abriu o caminho, mais tarde,
para pesquisas sobre a sexualidade, o amor, o casamento e a morte.
Da mesma forma, as práticas da história quantitativa e serial, constitutivas
da história econômica e social, foram depois mobilizadas para que o historiador,
de acordo com a feliz fórmula de Michel Vovelle, passasse “do porão ao sótão”,
ou seja, das infraestruturas às superestruturas. O itinerário de Michel Vovelle, tal
qual ele o lembra, é, de certo modo, representativo de boa parte da sua geração:
“historiador quantitativista formado pela escola de Ernest Labrousse, sempre tive,
para a análise das atitudes coletivas, a preocupação de pesquisar de acordo com a
famosa fórmula ‘conte, meça e pese’” (VOVELLE, 1980). Em sua tese: Piété baroque
et déchristianisation en Provence au XVIIIe  siècle (VOVELLE, 1978), graças ao uso
em série de milhares de testamentos, consegue evidenciar a descristianização da
Provence, meio século antes da Revolução. Posteriormente, realizará vários livros
sobre a morte combinando dimensão histórica e antropológica. Maurice Agulhon,
dirigido por Ernest Labrousse, ao invés de realizar uma monografia clássica, escreveu
uma primeira tese de doutorado, em 1966, La Sociabilité méridionale, na qual destaca
a especificidade da sociabilidade regional2 preparando o caminho para seus futuros
trabalhos sobre a antropologia histórica da cultura ou do político.
Ao final, será que podemos realmente falar de uma dívida contraída pela
Nouvelle histoire em relação a Lévi-Strauss? A resposta só pode ser muito sutil. Óbvio

20
que sua reputação, mesmo depois do declínio do estruturalismo, tem contribuído
muito para a banalização e o uso, pelos historiadores, do conceito de estrutura de
modo pouco antropológico. Embora, olhando de perto, desde a década de 1950,
eles já estivessem muito familiarizados com a noção que ocupava um lugar especial
na história marxista de Labrousse. Inúmeras eram, na verdade, as teses de história
organizadas em torno da relação entre conjuntura e estrutura econômica. Se Lévi-
Strauss teve influência sobre os historiadores, ela foi provavelmente muito indireta.
Não é de excluir que a sua influência intelectual tenha sido capaz de desenvolver
um maior interesse dos historiadores para a etnologia e seus objetos no contexto da
descolonização, da emergência do Terceiro Mundo e do desaparecimento acelerado
da França camponesa.
Para concluir, acreditamos que, como já tentamos mostrar, toda uma vertente
da Nouvelle histoire, com base no tempo quase imóvel que não desagradaria aos
antropólogos, tem os seus fundamentos na própria história e, particularmente, a dos
fundadores dos Annales.

Notas
1 No EHESS, entre 1978 e 1980, 14 seminários foram dedicados à antropologia histórica.
2 A tese de M. Agulhon foi publicada com o título: Pénitents et francs-maçons de l’ancienne Provence, Paris,
Fayard, 1968.

Referências Bibliográficas

AGULHON, M. Pénitents et francs-maçons de l’ancienne Provence. Paris: Fayard, 1968.


BLOCH, Marc. Les Rois thaumaturges. Étude sur le caractère surnaturel attribué à la puissance royale particu-
lièrement en France et en Angleterre. Strasbourg: Faculté des lettres de l’Université de Strasbourg, 1924
[Os reis taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder régio em França e Inglaterra. São Paulo: Cia das
Letras, 1993].
BOUCHERON, P. Le dossier Montaillou. L’Histoire, n° 259, 11/2001.
BRAUDEL, Fernand. La Méditerranée et le monde méditerranéen à l’époque de Philippe II. Paris: A. Colin, 1949
[O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Filipe II. São Paulo: Martins Fontes, 1984].
______. Histoire et sciences sociales. La longue durée. Annales ESC, n° 4, 1958, p. 725-753 [História e ciências
sociais. A longa duração. In: Escritos sobre a história. São Paulo: Perspectiva, 2005].
BURGUIÈRE, André. Histoire et Structure. Annales ESC, n° 3-4, 1971.
______. L’Anthropologie historique. In: L’Histoire et le métier d’historien en France, 1945-1995. Paris: Editions
de la Maison des Sciences de l’Homme, 1995, p. 171-186.
______. L’anthropologie historique et l’école des annales. Les Cahiers du Centre de Recherches Historiques, 22,
1999. URL: http://ccrh.revues.org/index2362.html.

21
______. Anthropologie historique. Encyclopédie Universalis, édition 2008.
DUBY, Georges. Guerriers et paysans, VIIe - XIIe siècles: premier essor de l’économie européenne. Paris: Galli-
mard, 1973 [Guerreiros e Camponeses. Os primórdios do crescimento económico europeu. Lisboa: Coleção
Nova História, Editorial Estampa, 1993].
______. Les trois ordres ou imaginaire du féodalisme. Paris: Gallimard, Bibliothèque des Histoires, 1978 [As três
ordens ou o imaginário do feudalismo. Lisboa, Editorial Estampa, 2ª edição, 1994].
ÉRIBON, Didier. De près et de loin: entretiens avec Claude Lévi Strauss. Paris: Points Seuil, 1991.
FEBVRE, Lucien. Rabelais ou le problème de l’incroyance au XVIe siècle. Paris: Albin Michel, 1968a [1942].
______. Un destin: M. Luther. Paris: PUF, 1968b [1928] [Martinho Lutero, um destino. Lisboa: Edições Asa,
1994].
FLEURY, M.; HENRY, L. Des registres paroissiaux à l’histoire de la population. Manuel de dépouille-
ment et d’exploitation de l’état civil ancien. Paris: Institut national d’études démographiques, 1956.
FURET, François. Les intellectuels français et le structuralisme. Paris: Preuves, 1967.
GIRARDET, R. Mythes et mythologies politiques. Paris: Seuil, 1986. Collection L’Univers historique [Mitos e
mitologias políticas. São Paulo: Cia das Letras, 1987].
GODELIER, M. Mythe et histoire: réflexions sur les fondements de la pensée sauvage. Annales ESC, n°3-4,
1971, p. 559-586.
HER-PELED, Misgav. Décoloniser l’histoire occidentale: Les naissances politiques de l’anthropologie histori-
que. L’Atelier du Centre de recherches historiques. URL: http://acrh.revues.org/index1914.html. Consulta:
28 de novembro de 2010.
KRIEGEL, A. Structuralisme et histoire. Annales ESC, n° 2, 1964.
LADURIE, Emmanuel Le Roy; LE GOFF, Jacques. Mélusine maternelle et défricheuse. Annales ESC, n°3-4,
1971, p. 587-622.
LADURIE, Emmanuel Le Roy. L’histoire immobile. Annales ESC, n° 3, 1974, p. 673-676.
______. Montaillou, village occitan de 1294 à 1324. Paris: Gallimard, 1975 [Montaillou: cátaros e católicos
numa aldeia francesa. 1294-1324. Lisboa: Edições 70, 2008].
LASLETT, Peter. Un Monde que nous avons perdu: les structures sociales pré-industrielles. Paris: Flammarion,
1969.
LE GOFF, Jacques. La nouvelle histoire. Bruxelles: Complexe, 1988.
______. Montaillou, village occitan de 1294 à 1324. Paris: Gallimard, 1975 [Montaillou: cátaros e católicos
numa aldeia francesa. 1294-1324. Lisboa: Edições 70, 2008].
LÉVY-BRUHL, L. Les fonctions mentales dans les sociétés inférieures. Paris: PUF, 1910.
______. La Mentalité Primitive. Paris: Alcan, 1927.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Les Structures élémentaires de la parenté. Paris: PUF, 1949a [As estruturas elementares
do parentesco. Petrópolis: Vozes, 1982].
______. Histoire et Ethnologie. Revue de Métaphysique et de Morale, 1949b [História e Etnologia. In: Antropo-
logia Estrutural. 6ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003].
______. Diogène couché. Les Temps modernes. n° 110, mars 1955, p. 1186-1220.
______. Anthropologie structurale. Paris: Plon, 1958 [Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1967].
______. La pensée sauvage. Paris: Plon, 1962a [O Pensamento Selvagem. Campinas, Papirus, 1989. 5ª edição,
2005].
______. Le totémisme aujourd’hui. Paris: P.U.F., 1962b.
______. Mythologiques. tomo I: Le Cru et le Cuit. Paris: Plon, 1964 [O cru e o cozido - Mitológicas 1. São Paulo:
Cosac & Naify, 2004].

22
______. Introduction à l’œuvre de M. Mauss. In: Marcel Mauss. Sociologie et anthropologie. Paris: PUF, 1966
[Introdução: A obra de Marcel Mauss. In: MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU/
EDUSP, 1974, p. 1- 36].
______. Mythologiques. tomo II: Du miel aux cendres. Paris: Plon, 1967
______. Mythologiques. tomo III: L’Origine des manières de table. Paris: Plon, 1968
______. Mythologiques. tomo IV: L’Homme nu. Paris: Plon, 1971a.
______. Le temps du mythe. Annales ESC, n° 3-4, 1971b, p. 533-540.
______. Histoire et ethnologie. Annales, économies, sociétés, civilisations (Annales ESC), n° 6, 1217-1231, 1983.
MANDROU, R. Introduction à la France moderne. Essai de psychologie historique. Paris: Albin Michel, 1961.
MAUSS, Marcel. Essai sur le don. Forme et raison de l’échange dans les sociétés archaïques. L’Année sociologi-
que, seconde série, 1923-1924 [Ensaio sobre a dádiva. In: MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São
Paulo: Cosac & Naify, 2003].
SPERBER, Dan; SMITH, Pedro. Mythologiques de Georges Dumézil. Annales ESC, n° 3-4, 1971, p. 559-586.
VOVELLE, Michel. Piété baroque et déchristianisation en Provence au XVIIIe siècle. Les attitudes devant la mort
d’après les clauses de testaments. Paris: Seuil, 1978.
______. De la cave au grenier. Introduction. Québec: Serge Fleury Éditeur, 1980.
WACHTEL, Nathan. Structuralisme et histoire: à propos de l’organisation sociale de Cuzco; Annales ESC,
1966, n° 1, p. 71-94.
YOSHIDA, Atsuhiko. Analyse structurale d’un roman chinois: le Si Yeou-Ki. Annales ESC, 1962, n° 4, p.
647-662.
______. Le Punyavantajâtaka: analyse structurale d’un jâtaka, Annales ESC, 1964, n°4, p. 685-695.

23
História e Fenomenologia: uma crítica
às “temporalidades” da História Nova

Leandro Duarte Rust*

A temporalidade é sujeito na medida em que o sujeito é a


temporalidade.
Paul Ricoeur, 1992

Os historiadores servem-se da palavra “temporalidade” de maneiras dúbias.


Embora o seu tão antigo ofício consista em uma “ciência do tempo”, os usos que
fazem desta palavra emblemática nem sempre são claros. Ao menos dois grandes
modelos de aplicação conceitual confundem-se com frequência na Escrita da História.
Por vezes esta é a palavra reservada para nomear a sensibilidade dos próprios agentes a
respeito do tempo, o modo como o vivenciam e imaginam. Quando isso ocorre, ela é
empregada para designar as maneiras de pensar e falar a respeito do tempo, referindo-
se aos pontos de vista e valores assumidos perante sua ação. Por outro lado, é comum
encontrarmos obras que recorrem ao mesmo termo para definir os ritmos de ruptura
e permanência de diversos aspectos da vida social. Trata-se, neste caso, de recorrer ao
vocábulo para fazer ver situações, demarcando os instantes em que algo ficou para
trás nas relações coletivas, convertido em passado, substituído por um novo presente:
temporalidade é, aqui, sinônimo de historicidade.
Os dois usos embaralham-se nas perspectivas historiográficas, ora
silenciosamente e às cegas, ora de forma gritantemente evidente e nítida. Seja como
for, não é incomum que eles formem uma grande área cinzenta nas explicações
sobre o passado: uma verdadeira nebulosa teórica causada pela frequência com que
os autores saltam de uma aplicação para a outra num movimento quase anárquico,
aparentemente desprovido de critérios e justificativas adequados. Com isso, os próprios
historiadores costumam borrar as linhas de diferenças que distinguem o pensamento
dos agentes sociais das estruturas de realidade que os cercam, sempre em vias de
objetivação. Nós mesmos criamos e alimentamos a tendência em confundir a ideia

* Professor Doutor, Pós-Doutorando – Departamento de História e Programa de Pós-Graduação em História –


Universidade Federal do Mato Grosso. E-mail: leandrorust@yahoo.com.br.

24
de tempo com o tempo como duração do mundo. Aqui “temporalidade” é sinônimo do
contexto em que os vivos estão abrigados, acolá de uma representação de contornos
inteiramente psicológicos. Aqui ela é estrutura social, lá é constructo subjetivo.
A contradição é, de fato, sensivelmente aguda. Os historiadores reverenciam
Jacques Le Goff pelo pioneirismo de explorar as diferentes “temporalidades” presentes
nas sociedades históricas, reconhecendo seu mérito em desvendar as tramas simbólicas
e hermenêuticas com as quais as diferentes categorias sociais tecem a inteligibilidade
das relações de poder. Neste caso, a “temporalidade” é veiculada, essencialmente,
como fenômeno de psicologia coletiva, tal como delineada por Lucien Febvre. Ou
seja, como sinônimo de “representação de tempo” (GUREVICH, 2003, p. 181;
BURGUIÈRE, 1993, p. 8. Ainda: REVEL & SCHMITT, 1998). Trata-se de um
arquétipo, uma estrutura simbólica que, praticada e reformulada socialmente, confere
inteligibilidade intersubjetiva ao universo infinito de aspectos e relações chamadas
de “realidade”. Argumentação fortemente influenciada por Claude Lévi-Strauss e
sua etnologia, fiadores da premissa de que as várias formações sociais da História
dependeram dos mesmos sistemas inconscientes. Os significados previamente
assentados por sistemas como o mito ou o parentesco assegurariam a eficácia simbólica
da interação humana, condição necessária para a comunicação, as trocas e todas as
demais formas de entrosamento social. “Temporalidade” seria o nome cabível e uma
dessas complexas matrizes simbólicas. Ao analisá-la, o historiador teria diante de si
uma questão antropológica e necessitaria de ferramentas da Psicologia Social para
dissecá-la.
Entretanto, os mesmos círculos intelectuais que amparam seu pensamento
nas obras de Le Goff acolhem e, portanto, estendem sua aprovação tácita a uma
compreensão distinta – e, para dizer o mínimo, discrepante – deste mesmo vocábulo.
Caso protagonizado pela definição apresentada por François Hartog no célebre livro
Regimes de Historicidade. Sua posição foi marcada com uma clareza meridional.
Segundo ele, ao:
Falar de temporalidade mais do que historicidade, eu veria o inconveniente de evocar o
modelo de um tempo exterior, como se encontra em Fernand Braudel, no qual as diferentes
durações se medem todas em relação com um tempo “exógeno”, o tempo matemático, o da
astronomia (que nomeia também o “tempo imperioso do mundo”) (HARTOG, 2003, p. 16).

A mesma noção explorada pelo autor d’O Nascimento do Purgatório como um


elo das mentalidades coletivas salta para outro plano epistemológico: desta vez, ela é
apontada como uma propriedade da matéria, um modo de ser do mundo. Pelo que se
pode ler neste trecho não é absolutamente necessária a presença humana para existir
“temporalidade”. Ela não é um traço antropológico. A acepção que a fundamenta está
mais próxima do entendimento estampado por Ladurie em Histoire du Climat depuis
l’An Mil que da compreensão embasada nas páginas d’O Imaginário Medieval (a

25
adesão, simultânea, às ideias de Le Goff e Hartog pode ser encontrada, por exemplo,
em: FERRO, 1984).
Vista em seu conjunto, a historiografia revela uma ambivalência notável:
o conceito de “temporalidade” tanto se refere a um fenômeno instaurado a partir
da consciência, que jorra de dentro para fora da subjetividade, quanto pode ser
empregado para descrever realidades que, aparentemente, preexistem à vida humana
como algo inerente ao mundo, uma espécie de ocorrência exterior à qual os homens
e mulheres devem se adaptar, conformando suas ações e relações.
Estes dois sentidos paradigmáticos se misturam, confundem-se formando
uma grande área cinzenta, uma verdadeira nebulosa teórica. Isso ocorre especialmente
na escrita daqueles historiadores situados em um capítulo singular da historiografia
francesa: embora tenham se autoproclamado mestres de uma “História Nova” (LE
GOFF, 1998), é mais comum encontrá-los sob a identificação de integrantes da
“Terceira Geração dos Annales” (BURKE, 1998, p. 79; REIS, 2003, p. 80; IGGERS,
2012, p. 61). Jacques Le Goff, que assumiu o papel de porta-voz da “geração” em
diversas ocasiões, escreveu páginas perceptivelmente marcadas por esta oscilação.
Observemos o amplamente conhecido História e Memória: não somente o emprego
da palavra “temporalidade” oscila entre os dois sentidos-fortes mencionados, mas,
em alguns trechos, o seu significado aparece como inteiramente intercambiável com
a própria noção de tempo. O célebre medievalista aparentemente serviu-se dos dois
vocábulos como sinônimos imediatos (LE GOFF, 1998, p. 211, 221, 374, 473, 483).
Com isso, ele enquadrou o hercúleo problema do tempo dentro dos limites essenciais
de um difícil entrosamento entre a memória coletiva e os calendários. Nestes casos,
uma complexa e inesgotável realidade, na qual vemos trançada uma miríade de
questões físicas, astronômicas, biológicas, psicológicas e filosóficas, ganha uma versão
simplificada.
Georges Duby (1994; 2009) e Emmanuel Le Roy Ladurie (1997) parecem
não ter tido dúvidas: “temporalidade” é a tradução conceitual oferecida pelos
historiadores para as várias durações e os distintos ritmos da história. Comportando-
se à maneira teórica braudeliana, eles apresentam-na como uma tentativa de apreensão
intelectual dos movimentos de permanências e rupturas que englobaram e regeram
a existência dos agentes sociais. Ainda assim, é possível encontrar Ladurie (1984, p.
343) escorregando nas páginas de Montaillou e deixando escapar entre dedos a escrita
de uma frase como esta: “a temporalidade das gentes humildes foi apenas em parte
açambarcada pela Igreja”.
Philippe Ariès (1989) e Pierre Nora (1984), por sua vez, instruíram os leitores
dos Annales a conceber a mesma ideia como definida por características diferentes.
Seus textos encorajavam a ver na “temporalidade” uma profundidade inconsciente,
pois temporalizar é uma maneira coletiva de lidar com certos patrimônios culturais.
Trata-se do processo pelo qual os grupos sociais selecionam sua própria linguagem,

26
seus valores, gestos, experiências, atitudes, ideias, trajetórias: condenando alguns ao
esquecimento, ressignificando outros para a perpetuação. “Temporalidade” é, sob
este prisma, uma modalidade de engajamento coletivo no mundo. É a arquitetura
temporal que demarca no fluxo incessante da vida os lugares do passado e do presente,
o enquadramento da memória e da morte.
Talvez a maior prova de como estes annalistes dos anos 1960-1980 realizavam,
no conjunto de sua produção intelectual, um movimento pendular entre uma e outra
conceituação do vocábulo “temporalidade” encontre-se na maneira como seus escritos
oferecem aos autores respaldo para desfraldar acepções divergentes. Observemos estes
dois exemplos:
O fenômeno da cultura histórica remete, sempre, a uma narrativa do passado, capaz de
atribuir significados positivos ou negativos a períodos, personagens, eventos. Trata-se de
construir um modo de lidar com a temporalidade capaz de expressar o que Jacques Le
Goff definiu como aquilo que uma dada sociedade pensa que é ou que gostaria que fosse (In:
ABREU et alii, 2007, p. 251, grifo meu).

A Escola dos Annales de historiografia provou sugestivamente, especialmente a obra de


Fernand Braudel (1960) e Jacques Le Goff (1980) [o sentido da temporalidade]. A chave,
como eles deixam claro em termos concretos, é compreender o tempo não meramente
como duração, mas como um compromisso de diferentes formas temporais. Neste sentido,
por exemplo, a história da longue durée difere da histoire événementiell não tanto por sua
maior duração como por seu profundo e amplo enquadramento dos fatores relacionados à
formação e transformação das estruturas sociais (RUGGIE, 1998, p. 133-134, grifo meu).

Como um efeito ótico, a imagem do medievalista francês se duplica e vemos


a silhueta de dois “Jacques Le Goffs”. O primeiro, mais próximo de Lévi-Strauss,
endossa uma acepção culturalista da “temporalidade”, delineando-a como uma
síntese coletiva de pensamento, algo que lembra uma versão sociológica da ilustre
definição kantiana do tempo como continuum de predicados humanos intuídos, uma
“faculdade da imaginação produtiva”. O segundo Le Goff cerrou fileiras com Braudel
em seu empenho pela redefinição da apreensão historiográfica das “temporalidades”:
ele manteve viva a alma teórica d’O Mediterrâneo e continuou a calibrar a linguagem
dos historiadores, reabilitando-a para capturar a abrangência e a complexidade das
estruturas exteriores que formam o mundo. O primeiro Le Goff estimulou seus
leitores a ver o mundo pelos olhos dos vivos de outrora; o segundo encorajou seus
interlocutores intelectuais a buscar uma escrita que retratasse em alta resolução
os ritmos objetivos da realidade. Aquele via a “temporalidade” como uma retina
simbólica e comunicativa de refração da vida; este a vislumbrava como uma faceta
palpável de mundo e, por isso mesmo, verificável, mensurável. Sob este pequeno jogo
retórico está nosso argumento de que a forte ambivalência teórica dos usos annalistes
deste conceito-chave permitia que ele fosse incorporado de maneira coerente por
diversas perspectivas, até mesmo por aquelas opostas.
As duas dimensões temporais – a objetiva/exterior e a subjetiva/interior –

27
estão sempre entrelaçadas no tecido da realidade. Mas isso não significa que sejam
a mesma coisa ou que uma está subsumida no interior da outra. Elas não são
perfeitamente intercambiáveis ao ponto de significarem algo idêntico e fazerem jus ao
mesmo nome. Designá-las não é simples jogo de palavras, nem querela nominalista
sem fito. Se a semântica do vocábulo “temporalidade” remete a fenômenos dotados
de certos formatos ontológicos estáveis – como permanências e continuidades que
se estendem por anos, décadas ou mesmo séculos – e capazes de dotar um grande
arco de relações sociais de uma direção, como os avanços ou retrocessos vinculados
a certas causalidades factuais, então lidamos com uma modalidade de narrativa
historiográfica de estruturas reais. Na medida em que exprime esta geometria
temporal, uma “temporalidade” diz respeito ao historiador e à construção do tempo
histórico, não aos agentes sociais em seus caleidoscópios de experiências coletivas a
respeito do tempo. Não deixemos nos enganar pela sufocante realidade imposta pela
superfície da Modernidade: a condição de ser no tempo não se resume a questões
de calendário, relógios e outras “crono-logias”. Na senda do cotidiano, ela é matéria
viva, instável, aberta a possibilidades infinitas, selada pela organicidade de tal modo
que raramente assumem tal vetorialidade ou mensurabilidade. Talvez tenha sido esta
a grande contribuição da fenomenologia aos estudos históricos. Vejamos.
“O tempo não é uma linha, mas uma rede de intencionalidades”. A frase, uma
das muitas que moldam o conceito de vivência de tempo delineado por Merleau-
Ponty (1994, p. 558), tem algo de preciso e, igualmente, de perigoso. A precisão
fica a cargo da habilidade com que ela sintetiza, como num só fôlego, a ideia de que
o tempo não é grandeza material ou substância fluente. Alerta-nos para que não o
tomemos por uma estrutura de real observável, possuidora de uma totalidade passível
de ser presa em fórmula irretocável, em coerência permanente ou modelo palpável. O
teor de perigo, por sua vez, rompe como tempestade no horizonte na medida em que
esta mesma frase se presta à insinuação de que o tempo é um constructo psicológico.
Todavia, quando a restituímos às ideias maiores da Fenomenologia da Percepção,
tal risco se dissipa em nuvens passageiras. Certamente, o filósofo não deixaria de frisar
que esta definição implica em discernir certos “fatos psíquicos” em uma experiência
de tempo. Porém, tais fatos não pressupõem saberes conscientemente formulados,
operações de pensamento – e sim perceptibilidade –, ou seja, as impressões pré-
reflexivas de significados do ser, sobre o ser. Característica definidora do que Merleau-
Ponty, seguindo de perto Edmund Husserl, compreendia como “campo fenomenal”:
Este campo fenomenal não é um “mundo interior”, o “fenômeno” não é um estado de
“consciência” ou um “fato psíquico”, a experiência dos fenômenos não é uma introspecção

28
ou uma intuição (...). O retorno aos “dados imediatos da consciência” tornava-se assim
uma operação sem esperança (...). A dificuldade não era apenas a de destruir o prejuízo
do exterior, (...) ou a de descrever o espírito em uma linguagem feita para traduzir coisas.
Ela era muito mais radical, já que a interioridade definida pela impressão, por princípio,
escapava a qualquer tentativa de expressão (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 90).

Isso equivale a admitir que o pensamento não esteja fechado nas significações
que ele deliberadamente constrói ou reconhece. Os contatos travados pela existência
humana com o mundo antecedem o cogito, o “eu penso”. Este, ao ocorrer, modula os
sentidos extraídos de relações e dimensionamentos que não são os do pensamento,
mas os de uma inserção dos objetos, das coisas-em-si, em um universo incorporado
como domínio da existência humana. Cada vínculo pelo qual o ser captura aquilo que
o rodeia é um acontecimento de humanização do exterior, uma eclosão de percepção.
Esta consiste no feixe de relações que abrem uma coisa como parte da vida humana
e reafirma a preexistência do mundo como universo a ser explorado e colonizado
pelas propriedades do ser. Os campos fenomenais são parcelas de real dotadas de
uma familiaridade primordial que o pensamento extrai, exprime e refigura em único
movimento (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 155-156). Logo, “nem o Espírito nem a
Natureza são fundantes: ambos são manifestações de uma ‘terceira dimensão’, abaixo
deles e que os constitui. Essa terceira dimensão é a do Ser Bruto ou Selvagem, anterior
à objetividade e à subjetividade” (MERLEAU-PONTY, 1975, p. 430).
A racionalidade rediz um mundo percebido e significante anteriormente,
segundo princípios que ela reencontra, mas que não funda ou cria: “o sentido do
percebido já é a sombra transposta das operações que nos preparamos para executar
sobre as coisas, não é senão nosso cálculo sobre elas, nossa situação em relação a
elas” (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 157). Uma rede de intencionalidade é um feixe
de sentidos dotado de posições frente ao mundo, é a gama de significados que as
operações lógicas e representacionais recuperam, interiorizam e possuem a partir da
percepção, que lhes escapa e ultrapassa. Ela é um imenso horizonte aberto de relações
a construir pelo “eu”, com o “eu”, sobre o “eu”. Um inesgotável face-a-face do ser com
o mundo murmura sentidos ao pensamento.
Recolocada sob este prisma, eis nossa ideia-chave: uma experiência de tempo
é uma rede de sentidos de mobilidade, transcurso e mudança que a grande prosa da
existência humana inscreve no mundo e a partir dos quais o “eu” realiza condutas, ações
e escolhas. Essa rede é tecida por relações de presença, anterioridade e porvir; tramas
de começo, meio e fim que não brotam do psiquismo, mas jorram incessantemente
da vida para o mundo e daí para a consciência (Ver: HONDA, 2004, p. 417-427).
Falar em “percepção do tempo” não quer dizer, como alertou Maurice
Merleau-Ponty (1994, p. 88-98), atos reflexivos ou processos de significação
que implicam em psiquismos de um Ego meditante. “Perceber” é integrar algo
nos campos de sentidos que constituem nossa existência; é estabelecer vínculos

29
de co-presença com as coisas. Ao “sentir”, o ser comunica-se com o mundo,
instituindo um tecido sensitivo “mais velho do que o pensamento” e o qual
passará o restante da vida decompondo em ideias, escolhas, aptidões, condutas.
O perceptível é, primordialmente, pré-objetivo. Ele está aquém de uma ordem
do pensar, não pressupõe uma centralidade e unicidade da consciência. Toda
percepção é um sentido-sobre-um-irrefletido que emerge do pertencimento
mútuo estabelecido entre os seres e o mundo (Ver ainda: ALEXANDRE E
CASTRO, 2008, p. 179-190). A perceptibilidade não anda lado a lado com a
subjetividade: ela a excede e trespassa.
O tempo inscrito na trama diária da vida não é categoria do intelecto ou
fato psíquico. Tampouco é a linha ou o círculo que aprisiona acontecimentos. Ele é
uma rede de presenças incessantemente elaboradas e reconstruídas. Dizemos que o
tempo passa, escoa. Guiados pela metáfora heraclitiana, falamos dele como um rio.
Contudo, adverte-nos Merleau-Ponty (1994, p. 551), a experiência da mudança e do
transcorrer não emerge, per se, do próprio mundo: “a mudança supõe um certo posto
onde eu me coloco e de onde vejo as coisas desfilarem, não há acontecimento sem
alguém a quem eles advenham”. O tempo não é como um rio, pois ele pressupõe um
referencial, um testemunho que, mais do que registrar, constrói o curso seguido pelas
águas do devir: “não é um processo real, uma sucessão efetiva que eu me limitaria
a registrar. Ele nasce de minha relação com as coisas”. Porém, isto não faz dele um
imperativo interior ao intelecto ou uma continuidade intuitiva, como quiseram Kant
e Bergson:
O passado e o porvir não podem ser simples conceitos que nós formaríamos por abstração
a partir de nossas percepções e de nossas recordações, não podem ser simples denominações
para designar a série efetiva de “fatos psíquicos”. (...) Não digamos mais que o tempo é
um “dado da consciência”, digamos, mais precisamente, que a consciência desdobra ou
constitui o tempo. (...) É em meu campo de presença (...) que tomo contato com o tempo,
que aprendo a conhecer o curso do tempo (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 555-557).

O tempo é uma síntese de sentidos elaborada pelos homens a respeito da


presença do mundo e “do outro”, vividos na mobilidade de suas existências. Não é
criação subjetiva, nem realidade material, mas a grande área fenomenal de interseção
entre ambos. Ele é, portanto, um domínio do existir reconhecido em suas diferenças
e a constante oscilação entre o ser e o não-ser. Se preferirmos a elegante definição de
Merlau-Ponty, ele é a maneira pela qual os seres humanos “modulam sua existência
no tecido do mundo objetivo e dos acontecimentos em si” (1994, p. 574).
Quando se trata dos homens e mulheres do passado, o tempo e as
formas de vivenciá-lo assemelham-se mais a nuvens em movimento do que a
formatos perfeitamente discerníveis. Como estes descritos por um conhecido
medievalista brasileiro:

30
Por que as viradas de século e, com mais razão, de milênio, geraram e ainda geram
sentimentos exacerbados? A resposta parece estar na concepção de tempo do Cristianismo,
que começa com a Criação e termina no Juízo. Tempo, portanto, linear e irreversível, mas
que surgido em contexto pagão e agrário não podia escapar a certa circularidade, presente
em pelo menos dois aspectos da vida medieval. Um, a liturgia (...); outro, o ciclo das
estações (...). O tempo medieval, mais do que linear, era espiralado, caminhava para seu fim
absoluto, porém não de forma direta, e sim por meio de oscilações repetitivas (FRANCO
JR., 1999, p. 8).

Tais imagens – “linear”, “cíclico”, “espiralado” – podem corresponder àquilo


que os sujeitos históricos pensaram e disseram sobre o tempo, mas elas não abarcam
a espontânea fluidez e a imprevisível multidirecionalidade de suas experiências
temporais. Quando se trata dessas últimas, esses formatos têm escassa plausibilidade
real: eles antes as mutilam de modo imperdoável. Uma das razões que levam os
historiadores a incorrer em tais simplificações e estereótipos conceituais consiste,
aparentemente, em confundir a percepção humana do tempo com a “temporalidade”.
Ou seja, projetar sobre o “campo fenomênico” as características que compõem o
tempo histórico, aprisionando aquele na condição de refletir a geometria temporal
com que fundamentamos a inteligibilidade das sociedades no tempo.
O caso mais emblemático desta formatilização/estilização da vivência do tempo
foi protagonizado pela “Terceira Geração dos Annales”: referimo-nos ao popularizado
binômio “tempo da Igreja e tempo do Mercador”. Estamos às voltas, mais uma vez,
com o nome de Le Goff e dois artigos escritos em meados do século XX: Na Idade
Média: tempo da igreja e tempo do mercador, de 1960, e O Tempo de Trabalho na
“Crise” do Século XIV: do tempo medieval ao tempo moderno, de 1963 (ambos presentes
em: LE GOFF, 1995a). Tais estudos veicularam a imagem de um conflito de tempos
no final da Idade Média.
De um lado, havia o tempo sacramental e cósmico dos teólogos cristãos – o
tempo da igreja; do outro, estava o tempo racional e pragmático de mercadores – o
tempo do mercador. O primeiro, seguindo de perto o rastro das demarcações bíblicas e
patrísticas, consistia no rebaixamento ontológico do tempo real, ele próprio denegrido
como símbolo do transitório e do efêmero a ponto de possuir valor apenas ao ser
revestido de predicados transcendentais. Para os clérigos medievais, segundo Le Goff,
o tempo estava eclipsado na imagem da eternidade e era vivido fundamentalmente
como a duração histórica e litúrgica dos assuntos da alma. Já os mercadores – ainda
de acordo com o autor –, vivenciavam o tempo de maneira oposta, ao considerá-
lo um artefato profano. Eles o exteriorizavam para manipulá-lo, conquistavam-no,
tratavam-no como um índice de cálculos, de projeção de riscos, de realização de
lucros. Eis aí um tempo domesticado por maquinismos, talhado em medidas pela
“inteligência, habilidade, experiência e manha do mercador” (LE GOFF, 1995a, p.
54). De um lado, havia um tempo repleto de densidade teológica e moral; do outro,

31
um estimado como viés de domínio sobre o mundo material e vetor de secularização.
Um tempo sagrado versus um tempo profano. Um tempo agrário versus um tempo
urbano. Um tempo “medieval” versus um tempo “moderno”. Eis o conflito entre
Igreja e mercadores recolocado em toda sua amplitude histórica.1
Mas o próprio Le Goff logo soube que esta questão o conduzia a outra ainda
maior. Afinal, como a força hegemônica das “maneiras medievais de sentir” – a Igreja
– lidou com o tempo quantitativo e objetivável que a Modernidade fez triunfar no
Ocidente? Nas obras posteriores veio a resposta: a Igreja tomou parte deste triunfo,
mas não de todo. Somente algumas alas clericais, nascidas do grande progresso material
e urbano que florescia no “mundo feudal” do século XII, teriam desempenhado este
papel. O medievalista refere-se aos grupos eclesiásticos que, em sua interpretação,
readequaram a hegemonia religiosa ao turbulento universo citadino. Ou seja, os
“intelectuais” (LE GOFF, 1989a; 2001a; 2003a)2 e as ordens mendicantes (LE
GOFF, 2001b),3 considerados articuladores privilegiados da crença no Purgatório (LE
GOFF, 1995b, p. 272. Ver ainda: 1994, p. 118). Secularizados, imersos na vivência
da mudança, solidários à valorização de um devir manipulado como grandeza métrica
e individual, estes grupos se transformaram, aos olhos de nosso autor (LE GOFF
& SCHMITT, 2002, p. 537), em verdadeiras vanguardas clericais, círculos que
cooperaram para a difusão de novas atitudes perante o tempo.4 Em síntese, a equação
proposta pelo autor consiste em dispor, de um lado, a “Igreja tradicional”, guardiã
de uma temporalidade rural e arcaica; do outro, os centros urbanos mercantis,
portadores de um tempo secularizado e modernizador; e, transitando entre eles na
busca por uma interseção de valores temporais, os escolásticos e mendicantes.
O “conflito de temporalidades” desvendado por Le Goff fez um estrondoso
sucesso entre os historiadores (Ver, entre outros: GUREVITCH, 1990; MARTIN,
1996; DORN-VAN ROSSUM, 1996; SCHMITT, 2001; ENGAMMARE, 2004;
SENNETT, 2006; NEGREY, 2012). O tema do confronto entre o “tempo medieval”
e o “moderno” foi coroado como uma chave-de-ouro para as explicações do surgimento
da Modernidade. Repetido à exaustão, ele ganhou ares de mantra intelectual. E não
foi sem razão. A abordagem legoffiana subitamente tornou inúmeras compreensões
do tema obsoletas, ultrapassadas, historicamente desbotadas. Finalmente, quase vinte
anos após Lucien Febvre (2009, p. 338) desbravar as desconexões existentes entre o
flutuante tempo vivido e o tempo parado da cronologia, alguém demonstrou que as
relações sociais com o tempo iam muito além do compasso de relógios, da métrica dos
calendários e do sentido trágico da brevidade da vida. Para entendê-las a fundo, era
preciso alargar a perspectiva psicológica, mapear a cartografia sociológica dos sentidos
de duração e finitude, realçando tudo com pinceladas de relativismo antropológico.

32
Ficava claro que o tempo não é ao algo inato ao intelecto, tampouco ocorrência
natural que se impõe, de fora para dentro, na sensibilidade dos sujeitos: ele é uma
construção mental complexa, crivada de práticas sociais, posicionamentos de poder.
A Idade Média permitia aos historiadores tomarem consciência de algo fundamental:
na mesma sociedade podem coexistir representações de tempo tão numerosas e
díspares quanto os próprios grupos sociais:
Convém partilhar a opinião de Jacques Le Goff a respeito da ausência, na Idade Média,
de uma representação única do tempo e da pluralidade de tempos como realidades da
consciência medieval. (...) O tempo social não é apenas diferente para culturas e sociedades
diferentes, ele distingue-se também no interior de cada sistema sociocultural, em função da
estrutura interior deste último (GUREVITCH, 1990, p. 171).

Porém, ainda assim, não podemos escapar à constatação de que o medievalista


francês nos apresentou vivências de tempo abstratas, estilizadas. Note-se a
controversa consistência dos critérios com que ele as recortou. Jacques Le Goff nos
apresenta uma Idade Média plural quanto às experiências temporais, distribuídas
não apenas em “tempo da igreja” e “tempo do mercador”, mas igualmente em
“tempo senhorial”, “tempo do príncipe” etc. Porém, não fica claro o que justifica
tais separações. Vejamos o “tempo da igreja”: certamente sua delimitação não
obedece a critérios sociológicos, já que sua vigência plurissecular a torna indiferente
à heterogeneidade social e à regionalização que marcavam a ecclesia medieval. Haja
vista como o autor recrutou seus porta-vozes nas mais diversas épocas e ambientes
sociais: em Para Um Novo Conceito de Idade Média, surgem, num só fôlego,
Agostinho, Gregório I, Hincmar, Oto de Freising, Hugo de Saint-Victor e outros
(LE GOFF, 1995a, p. 48). Apesar do que possam sugerir os artigos publicados
em 1960 e 1963, nem sempre o traçado que distingue os tempos acompanha a
posição ocupada pelos agentes sociais nas malhas do poder e da dominação social.
Afinal, não vemos nomes da Patrística figurando lado a lado com os goliardos como
integrantes do “tempo dos clérigos da Idade Média”, em A Civilização do Ocidente
Medieval (LE GOFF, 2005a, p. 160-161)? As análises de Le Goff encontram-se
atravessadas pelo risco de fazer com que extratos sociais dinâmicos e heterogêneos
surjam como um grupamento social ou ideológico comum.
Além disso, em uma sociedade marcada por tantas acomodações entre os
ritmos da economia senhorial e a ordenação litúrgica do calendário, distinguir um
“tempo da Igreja” e outro “senhorial” é tarefa assaz arriscada. Pois, como e até que
ponto se pode individualizá-los conceitualmente, quando ambos estavam imbricados
nas mesmas cadeias de dominação? Cabe ainda outro questionamento: como
sustentar esta separação entre um tempo da igreja, sagrado e prodigioso, e outro
mercantil, racionalizado e prático? Será possível conferir à igreja pré-escolástica as
propriedades de uma poderosa instituição e vetar-lhe a experiência de um tempo
minimante utilitário e estratégico como aquele atribuído ao mercador?

33
Por fim, resta-nos questionar a leitura impressionista que o autor de O
Nascimento do Purgatório faz do “tempo da igreja”, revestido de um teor hierofânico
sofrivelmente favorável à racionalização. Le Goff moveu sua atenção para as vivências
eclesiásticas de tempo como quem buscou descobrir o estranho. Sua postura de
“revalorizar na história os elementos mágicos, os carismas” (LE GOFF, 1990, p.
182-186), levou-o a destacar no passado aspectos mais próximos da imagem de um
mundo perdido. Fez do “tempo da igreja” não apenas algo prodigioso e embriagado
de apelos ao metafísico, mas uma temporalidade incapaz de assimilar a dinamização
da existência cotidiana e os desafios práticos da intervenção sobre o mundo. Sob o
olhar de Le Goff a representação de tempo dos clérigos medievais retém pouco da
condição de “ser-no-mundo” e muitíssimo da de um “ser-para-o-eterno”. Restam,
ademais, as dúvidas: será que esta condição teria sido capaz de conferir sentido e
potencializar todas as práticas e atividades exercidas no âmbito da ecclesia? Em toda a
multifacetada e complexa malha eclesial que recobria o Ocidente, apenas “intelectuais”
e mendicantes puderam adequar suas experiências temporais às transformações dos
séculos XI-XIII?
A dubiedade com que a chamada “Terceira Geração dos Annales” empenhou a
noção de “temporalidade” cobrou seu preço aos estudos legoffianos. “Tempo da Igreja”
e “Tempo do Mercador” são, acima de tudo, duas tematizações do tempo histórico: o
primeiro é o retrato humano de dinâmica social lenta, dominada pela continuidade,
pelas amarras da tradição; já o segundo é a expressão e a voz de uma aceleração das
transformações, das forças da ruptura, dos movimentos da substituição e sucessão.
Com o traçado abstrato, as duas caracterizações figuram na escrita sobre o passado
medieval como metáforas de sentidos totalizantes do devir social: vistas em conjunto,
elas denotam duas etapas de uma macro-narrativa aparentemente herdeira de uma
Filosofia da História. Expliquemos um pouco mais.
Note-se que os diferentes aspectos de cada uma delas parecem gravitar em redor
de uma mesma propriedade: o “Tempo da Igreja” recobre um leque de experiências
e sensações dominadas pela espacialidade; o “Tempo do Mercador” distingue-se por
reunir percepções e práticas coletivas vetorializadas. Os usos que a “História Nova”
fez do primeiro primam por um sentido de ordenação, de localização e visualização
de referenciais de tempo e ontologia. Atribuem ao passado características como a
regularidade, a extensão e a lentidão. Neste caso, o vivenciar o tempo surge como
uma experiência profundamente intra-temporal: ele é, acima de tudo, uma espécie
de “onde”, um ambiente dentro do qual os agentes históricos se situam e tendem a
permanecer. Temporalizar é sinônimo de estabelecer uma relação de pertencimento,
de inserção, de adentrar e ser absorvido por um algum conjunto específico de relações.
Neste caso, o ser mergulha no tempo, que o rodeia e pressiona como um cerrado
cinturão de círculos concêntricos:

34
O domínio do tempo pela Igreja podia durar tanto quanto correspondia ao ritmo lento,
medido da vida da sociedade feudal. Ligar-se às gerações, aos reinados dos soberanos, aos
pontificados papais, tinha mais importância para os homens desta época do que medir com
precisão fatias de tempo curtas, mas sem conexão com os acontecimentos religiosos ou
políticos (GUREVITCH, 1990, p. 173, grifos meus).

Le temps a partie liée avec l’espace. Vraie em général, cette affirmation s’applique particulièrement
au Moyen Âge où le temps uniforme, le même tous et partout, est certes connu à partir du
XIIIe siècle aux lecteurs d’Aristole, mais seulement comme un concept théorique auquel
ne correspond aucune réalité vécue. (...) Que les temps soient liés aux groupes humains et
aux espaces qu’ils occupent est aujourd’hui un constant que semble aller de soi (POMIAN,
1998, p. 76, grifos meus).

Embora associado a um espaço singular – as cidades medievais –, o segundo


“tempo social” transparece na escrita do medievalista como um modo de pautar a
existência por certa desterritorialização: a experiência temporal deixa de ser vista como
forma de integração a um lugar para ser retratada como uma torrente de fenômenos
que arrebatam e deslocam a vida. Aqui, predomina sobre a escrita uma enunciação
da condição humana como dramaticamente extra-temporal: o “tempo do mercador”
emerge como um constante módulo de variação das coisas, uma vertiginosa sucessão
de segmentos orientados para fins amiúde provisórios, em permanente deslocamento,
um fluxo exterior ao ser, um trânsito vivo e, aparentemente, autorregulado de
momentos. Vivê-lo é a saga de persegui-lo sem descanso, pois este tempo não se
detém, não estaciona em lugar algum. Não são todos os grupos sociais capazes
de permanecer em seu encalço, apenas aqueles que enfrentam o desafio de medir
e controlar esse movimento das coisas e do mundo. Sentido em sua exterioridade,
como uma incessante rajada de vento da passagem das coisas, a ação temporal é um
efeito de arrasto, que pode acumular ou dispersar o ser:
Da mesma forma que o camponês, o mercador está submetido, na sua atividade profissional,
em primeiro lugar ao tempo meteorológico, ao ciclo das estações, à imprevisibilidade das
intempéries e dos cataclismos naturais. Neste aspecto, e durante muito tempo, ele só
necessitou de submissão à ordem da natureza e de Deus e só teve, como meio de ação, a
oração e as práticas supersticiosas. Mas quando se organiza uma rede comercial, o tempo
torna-se objeto de medida. A demora de uma viagem (...), o problema dos preços que (...)
sobem ou descem, aumentam ou diminuem os lucros, a duração do trabalho (LE GOFF,
1995a, p. 51, grifos meus).

O mercador medieval faz do deslocamento temporal o esteio da ordem das


coisas. Ele provoca uma revanche do tempo sobre o espaço e anuncia a instauração
de um novo mundo:
Se o feudalismo é caracterizado por uma “dominação espacial”, isso não ocorre mais
hoje. No mundo contemporâneo, é o tempo que parece constituir o ponto nodal da
organização social (...). Inversamente, na sociedade medieval, o coração da organização
social e das relações de produção dependia da relação com o espaço: a primeira condição

35
de funcionamento do sistema feudal era a fixação dos homens (...). Poder-se-ia dizer que
a deslocalização torna-se uma característica geral do mundo contemporâneo, na medida
em que a extensão sem limites do mercado tende a eclipsar a dimensão espacial e fazer
desaparecer a relação com o próprio lugar como traço fundamental da experiência humana.
(...) Coerção principalmente espacial de um lado, coerção essencialmente temporal do
outro: aí está, dito de modo muito esquemático, uma das marcas de distinção radical entre
o mundo medieval e o mundo contemporâneo (BASCHET, 2006, p. 372-373).

É notável o sentido teleológico destas construções conceituais. Pensemos não


somente na citação acima, mas no conjunto das ideias recrutadas ao longo deste
texto junto aos “novos historiadores”. Eles deixam uma forte impressão de que a
“Igreja Medieval” – figura-síntese de um genérico passado feudal – forma com os
mercadores um contraste necessário para fazer a História marchar rumo ao futuro que
sabemos ter ocorrido: a hegemonia da sociedade das relações de mercado capitalista.
A atmosfera intelectual destes argumentos está carregada de sinais de que o passado
medieval deve antecipar o futuro moderno. Visto de perto, o mercador legoffiano tem
a fisionomia de uma versão minoritária e mal-acabada do capitalista industrial:
On the basis of Le Goff ’s discussion, I shall briefly suggest how the work bells might have
played an important role in the emergence of a system of constant time units and, relatedly,
of the mechanical clock. The work bells themselves were an expression of a new social form
that had begun to emerge, particularly within the medieval cloth-making industry. This
industry did not produce primarily for the local market, like most medieval “industries”,
but, along with the metal industry, was the first that engaged in large-scale production for export
(POSTONE, 1993, p. 209, grifos meus).

“Se um autor reivindica o prestígio de Jacques Le Goff para respaldar suas


conclusões, como fez Moishe Postone no trecho acima, isto não nos dá o direito de
cobrar ao annaliste a responsabilidade pelas consequências desta utilização”. Esta,
provavelmente, seria a resposta oferecida por um partidário da “Terceira Geração”,
que prosseguiria: “o teor teleológico desta argumentação é consequência da leitura
marxista empreendida por Moishe; trata-se, portanto, de uma apropriação indevida”.
Esta não é nossa opinião e nos parece perfeitamente plausível avaliar a questão
por outro prisma. Se um hábil marxista como Postone descobriu afinidades entre
a teoria crítica de Marx sobre as formas capitalistas de dominação social, por um
lado, e os estudos do medievalista francês sobre o surgimento do tempo mecânico
no século XIV, por outro, isto pode ser tomado como indicador de que Le Goff
orientou sua compreensão sobre a figura do mercador para uma antecipação das
relações de mercado características das épocas industriais. Arriscamo-nos a ir mais
longe: esta história orientada para a Modernidade está composta na forma de uma
teoria da secularização ou, se se preferir, de uma filosofia da secularização da História.
Prossigamos.
Nas páginas da Nouvelle Histoire, a batalha entre “O Tempo da Igreja” e o
“Tempo do Mercador” foi mais do que um sonoro atrito entre os aparelhos mentais

36
de dois grupos sociais diferenciados por suas práticas sociais. Ela figura como o difícil
entrosamento dialético de um progresso, uma evolução histórica cujo enredo não é
outro senão a transição do sagrado para o profano: a passagem de uma atmosfera
cultural firmemente atada à convicção da existência do Além para outra, dominada
pela imperiosa urgência das necessidades deste mundo.
Primeiramente, observemos que a representação atribuída ao clero feudal
possui traços de uma sacralidade durante décadas qualificada pela antropologia como
primitiva. Ela instaura um tempo forte e superior, dominado pelo enrijecimento da
constância cíclica, sempre avesso às mudanças e orientado por uma firmeza original
inabalavelmente mantida pela repetição dos ritmos agrários e o regresso dos ritos
litúrgicos. Infiltrado na profundidade do inconsciente, mergulhado na naturalidade
do hábito, este tempo instila a submissão: pela repetição e pelo caráter absoluto de seus
agentes (o céu, a morte, o rito), ele funciona como uma pedagogia da conformação
humana ao já estabelecido. O “tempo da Igreja” parece resultar no predomínio de uma
consciência introspectiva sobre o curso das condutas: um estado mental estático e, por
isso mesmo, perdurável, vigorosamente armazenado pelo inexorável eterno retorno
dos ciclos da vida agrária, das festividades e das datas santas, da sempre-presente
realidade da morte e da busca pela salvação. Trata-se de uma consciência imediata,
que não deriva de correntes de raciocínio tanto quanto depende de inferências
marteladas pelas tradições e pela pulsação da vida rural até serem registradas como
padrões cognitivos de reconhecimento do mundo.
Já o modo como os mercadores representam o devir parece despi-lo destas
roupagens tecidas com o absoluto para revelar sua nudez mundana, seu corpo
constituído de durações simples: o tempo que a Igreja reverenciava como semeador e
ceifador da vida cede lugar a um tempo-passagem, ao movimento tangível pelo qual
as coisas correm rumo ao reencontro umas das outras (gerando a acumulação) ou
em direção à separação (ocasionando a dispersão). Um tempo, enfim, que a mente
captura na forma do ontem, do hoje e do amanhã. A representação temporal surge
como eixo estruturante de uma consciência operante: estado mental definido para a
produção de conhecimentos sempre interessados em algo singular como modalidade
de assegurar para o ser o acesso a ocorrências do mundo. Uma consciência laboriosa,
orientada para categorizar o contato entre seres objetos nos termos de disposições e
tendências causais, faculdade pela qual é alcançado o controle direto do pensamento
e da ação, superando padrões interiorizados pela maçante rotina dos costumes.
O clérigo medieval sentia-se observado pelo tempo, vigilante misterioso da
salvação. O mercador vivia como espectador do tempo, aprisionado por ele nos

37
ponteiros do relógio. O primeiro agia para ser absorvido pela redenção que jaz no
tempo; o segundo, para conquistá-lo em prol de suas necessidades. Em conflito, eles
formam uma perfeita metáfora do progresso geral colocado no altar da História pelos
pensadores iluministas: no homem das trocas está o protótipo da sociedade altiva,
que venceu as barreiras da superstição e se impôs ao mundo que a abriga, senhora até
mesmo das maiores forças naturais; no homem de religião identificamos os limites e
obstáculos que a soberania do sagrado interpunha ao brio tecnológico, reprimido por
ignorar que o tempo não é coisa, mas uma vontade caprichosa, justa e implacável.
Aí está um dos resultados de emoldurar as vivências de tempo com os contornos
de uma temporalidade: encapsular os agentes históricos nos modelos de construções
generalistas e modelá-los como exemplares individuais de grandes configurações
sociológicas: os micro-cosmos das formações sociais tematizadas.
O magnetismo lógico de conceituações como aquelas oferecidas pela
“História Nova” é efeito de domesticação teórica. É consequência do modo como
nossos olhares teorizantes repousam facilmente sobre as imagens de experiências de
tempo domadas, simplificadas conceitualmente, desenhadas com as linhas gerais e
coletivistas que competem aos “tempos históricos”, à realidade das mudanças em
escala societal, em suma, às temporalidades. Tais classificações são implausíveis não
porque sejam inadequadas ou improcedentes, mas porque engessam a versatilidade,
a reversibilidade e a adaptabilidade da percepção temporal humana. Clérigos,
mercadores, camponeses, reis: às identidades sociais não correspondem identidades
precisas de tempo, pois todos eles viveram, em diferentes momentos da existência,
“redes de intencionalidades” diversas. Se esta característica ontológica seminal
esteve ausente da escrita da “Nouvelle Histoire” era porque, ao que tudo indica, seus
integrantes tomavam as próprias temporalidades construídas por eles como sujeitos
históricos.

Notas
1 “Medir o tempo tornava-se para o mercador uma necessidade, enquanto a Igreja revelava-se inábil nesse
mister” (LE GOFF, 1991, p. 109-110). Ver ainda: LE GOFF, 1992, p. 194; LE GOFF, 2005a.
2 “O mercador, acusado primeiro de vender o tempo que não pertencia senão a Deus, (...) forma uma espécie
de par com o mestre universitário” (LE GOFF, 2007a, p. 173-174).
3 “A Igreja tradicional acusa-os [mercadores] de praticar a usura e de vender o tempo (...). As ordens mendicantes
legitimam o essencial da atividade dos universitários e dos mercadores” (BERLIOZ, 1996, p. 236-237).
4 Ao longo da leitura das obras de Le Goff fica-nos a forte impressão de que mendicantes e intelectuais – e a
crença no Purgatório – são antes veículos de experiências do “citadino”: “... o citadino existe. (...) Na cidade,
aprende-se a conhecer o valor do trabalho e do tempo (...). O intelectual (...) é um homem de escola e de escola
citadina” (LE GOFF, 1989b, p. 19-20). Ver também LE GOFF, 2004.

38
Referências Bibliográficas

ABREU, Martha; SOIHET, Rachel & GONTIJO, Rebecca (org.). Cultura Política e Leituras do Passado: histo-
riografia e ensino de história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
ALEXANDRE E CASTRO, Paulo. A Onto-fenomenologia do mundo em Merleau-Ponty ou o (im)pensado de
Husserl. Uma proposta de leitura a partir de O Filósofo e sua Sombra. Estudos e Pesquisas em Psicologia,
vol. 8, n. 2, 2008, p. 179-190.
ARIÈS, Philippe. O Tempo da História. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989.
BERLIOZ, Jacques (org.). Monges e Religiosos na Idade Média. Lisboa: Terramar, 1996.
BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a revolução francesa da historiografia. São Paulo: Editora da
UNESP, 1998.
DORN-VAN ROSSUM, Gerard. History of the Hour: clocks and modern temporal orders. Chicago: The Chi-
cago University Press, 1996.
DUBY, Georges. As Três Ordens ou o Imaginário do Feudalismo. Lisboa: Editora Estampa, 1994.
______. (org.). História da Vida Privada: da Europa feudal à Renascença. São Paulo: Cia das Letras, 2009.
ENGAMMARE, Max. L’ordre du Temps: L’invention de la Ponctualité au XVIe Siècle. Genebra: Droz, 2004.
HARTOG, François. Regímenes de Historicidad: presentismo y experiencias del tiempo. Cidade do México:
Universidad Iberoamericana, 2003.
HONDA, Hélio. Intencionalidade e sobredeterminação: Merleau-Ponty leitor de Freud. Psicologia em Estudo,
vol. 9, n. 3, 2004, p. 417-427.
FEBVRE, Lucien. O Problema da Incredulidade no Século XVI: a religião de Rabelais. São Paulo: Cia das Letras,
2009.
FERRO, Marc. The Use and Abuse of History, or, How the Past is Taught. Nova York: Routledge, 1984.
GUREVITCH, Aaron. As Categorias da Cultura Medieval. Lisboa: Caminho, 1990.
IGGERS, Georg G. Historiography in the Twentieth Century: from scientific objectivity to the Postmodern Chal-
lenge. Middletown: Wesleyan University Press, 2012.
LADURIE, Emmanuel Le Roy. Montaillou: cátaros e católicos numa aldeia francesa (1294-1324). Lisboa: Edi-
ções 70, 1984.
______. Os Camponeses do Languedoc. Lisboa: Estampa, 1997.
LE GOFF, Jacques. La Baja Edad Media. Madrid: Siglo XXI, 1989a.
______. (dir.). O Homem Medieval. Lisboa: Presença, 1989b.
______. O Maravilhoso e o Quotidiano do Ocidente Medieval. Lisboa: Ed. 70, 1990.
______. O Apogeu da Cidade Medieval. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
______. O Imaginário Medieval. Lisboa: Estampa, 1994.
______. Para um Novo Conceito de Idade Média. Lisboa: Estampa, 1995a.
______. O Nascimento do Purgatório. Lisboa: Estampa, 1995b.
______. A História Nova. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
______. Por Amor às Cidades. São Paulo: UNESP, 2001a.
______. São Francisco de Assis. Rio de Janeiro: Record, 2001b.
______. A Civilização do Ocidente Medieval. Bauru: EdUSC, 2005a.
______ & SCHMITT, Jean-Claude (org.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: Imprensa
Nacional; Bauru: EDUSC, 2002.
MARTIN, Hervé. Mentalités Médiévales. Paris: PUF, 1996.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Textos Escolhidos. São Paulo: Abril, 1975.
______. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

39
______. A Prosa do Mundo. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
NEGREY, Cynthia L. Work Time: conflict, control, and change. Cambridge: Polity Press, 2012.
NORA, Pierre (dir.). Les Lieux de Mémoire. Paris: Gallimard, 1984.
POMIAN, Krzysztof. Temps, espace, objets. In: REVEL, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude (Org.). L’Ogre
Historien: autour de Jacques Le Goff. Paris: Gallimard, 1998.
POSTONE, Moishe. Time, Labor, and Social domination: a reinterpretation of Marx’s critical theory. Cambri-
dge: Cambridge University Press, 1993.
REIS, José Carlos. História e Teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. Rio de Janeiro: Edi-
tora FGV, 2003.
RUGGIE, John Gerard. Constructing the World Polity. Nova Yotk: Routledge, 1998.
SCHMITT, Jean-Claude. Le Corps, les Rites, les Rêves, le Temps. Paris: Gallimard, 2001.
SENNETT, Richard. Carne e Pedra: o poder e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro: Record, 2006.

40
As injunções do tempo presente no relato
histórico. Experimentar a contemporaneidade

Regina Beatriz Guimarães Neto*

Tudo o que foi ordena-se de outro modo, alinha-se, como se


alguém estivesse ali comandando, e o presente está com toda
a insistência presente, como que de joelhos rezando por você
(RILKE, 2006, p. 25)

Entre os debates suscitados por este rico seminário, promovido pelos programas
de pós-graduação de história das universidades federais do Ceará, Pará, Mato Grosso
e Pernambuco, o tema desta mesa-redonda, “Temporalidades”, remete a questões
cruciais para a historiografia.
Uma delas, concernente ao debate sobre o tempo presente, discute o relato
histórico visto em sua relação singular com o tempo. Operar com um tempo
especificamente histórico é uma condição da experiência moderna: “Não só do ponto
de vista da técnica de apresentação, mas também do ponto de vista epistemológico,
exige-se do historiador que ele ofereça não uma realidade passada, mas sim a ficção
de sua facticidade.” (KOSELLECK, 2006, p. 249). Não há, nesse sentido, uma
coincidência entre o acontecimento passado e o relato que se faz dele. E, nessa
linha, Paul Ricoeur afirma que o relato cumpre sua função de ocupar “o lugar de”:
lieutenance (1994).
Diante de tais implicações, o que mais importa destacar neste texto que ora
apresento? Entre muitas possibilidades, prefiro argumentar a favor de uma noção
complexa de presente que nos informe acerca de nosso pertencimento tanto do passado
quanto do futuro e, também, simultaneamente, de toda ordem de interpolações, em
constante mutação. O presente, visto como ponto de interseção temporal entre o
futuro e o passado, orienta os historiadores a optar por uma concepção que complique
(no sentido latino de dobrar/enrolar) a definição do tempo presente e do sentido

* Professora da Universidade Federal de Pernambuco, Departamento de História/Programa de Pós-Graduação


em História (UFPE), com bolsa produtividade (2) do CNPq. Sou muito grata às sugestões críticas e correções
que recebi generosamente de Antônio T. Montenegro (UFPE), Elizabeth Madureira Siqueira (UFMT), Airton
dos Reis Pereira (UEPA) e Ana Maria de Souza (doutoranda UFPE).

41
que podemos conferir a nossa contemporaneidade1. Assim, novas perguntas e novas
demandas estarão a exigir uma reescrita do passado e do futuro, atribuindo, com
base em novas relações, um sentido inédito aos conceitos (KOSELLECK, 2006) e às
palavras (FARGE, 1989; 2011).
Ao pontuar essas questões, utilizo como ponto de partida a indagação tão
importante para Koselleck: Por agora esta história do tempo presente e não aquela ou
já não aquela? (KOSELLECK, 2001, p. 115). Problema central para as pesquisas
que desenvolvo neste momento, no projeto com apoio do CNPq, situadas na
temporalidade presente.
Para o historiador alemão, o conceito de “tempo presente” foi sendo
experimentado, definido e continuamente redefinido ao longo da história. Trata-se
de destacar uma longa tradição, um legado à historiografia ocidental que remonta
a Heródoto e Tucídides (Cf. também MOMIGLIANO, 2004). Contrariamente às
pretensões generalizadoras e às naturalizações de toda sorte, a denominação “tempo
presente” nos escapa por entre os dedos e é de difícil apreensão. Tal denominação
se transforma, troca de conteúdo, experimenta novas formas de ser “presente”. São
significados novos que se integram aos já estabelecidos, num movimento de concreção,
adensamento ou materialização, conforme assinala Koselleck, tornando o conceito
sempre novo. E a pergunta que, para ele, insistentemente aparece formulada é: “Por
qué ahora esta historia del tiempo presente y no aquélla o ya no aquélla?” Assim,
poder-se-ia considerar que a primeira dificuldade se dimensiona nas perguntas acima
e também nas que se seguem: Tem alguma pertinência a indagação sobre onde começa
o tempo presente e seus limites? Ad aeternum? Um presente que se desdobra sem cessar
para o futuro? Um presente que se estende numa dimensão sincrônica? É aquele que
se refere à contemporaneidade? Ou, dito de outro modo, esta contemporaneidade
se constitui numa expressão concentrada de todos os passados? É apenas a ponta
do fio que nos conduz a uma dimensão diacrônica? Questões fundamentais que se
apresentam para os historiadores e produzem uma miríade de impactos e ressonâncias.
Em que sentido específico, então, pode-se falar em tempo presente?
Simplificaríamos qualquer resposta ou escolha se não considerássemos que os
atributos do tempo presente podem nos levar a reflexões aparentemente antitéticas.
O presente pode ser, por um lado, aquela dimensão condenada à desaparição, porque,
como ponto de interseção entre o passado e o futuro – um eixo temporal imaginário
(como nos diz Koselleck) marca um tempo que ainda não é (o futuro) ou já é (e se
torna passado). Assim, para este autor “La actualidad se convierte en una nada pensada
que siempre nos indica nossa pertenencia tanto al pasado como al futuro. Se convierte
en aquel momento que continuamente se escapa” (KOSELLECK, 2001, p. 116).
Por outro lado, o presente pode ser pensado de forma inversa: “Así como el
presente desaparece entre el pasado y el futuro, la idea también se puede inverter
hasta el extremo: todo tiempo es presente en sentido propio. Pues el futuro todavía

42
no es y el pasado ya no es. Sólo hay futuro como futuro presente y pasado como
pasado presente”, conforme reflete Koselleck (2001, p. 117). Na trilha aberta por
Santo Agostinho, observa: “Las tres dimensiones del tiempo se anudan en el presente
de la existencia humana” (KOSELLECK, 2001, p. 117). Assim, o tempo presente
condensa o passado e o futuro. E, dessa maneira, afirma o historiador alemão: “El
tiempo sólo está presente en una continua retirada: el futuro en la expectatio futurorum
y el pasado em la memoria praeteritorum” (KOSELLECK, 2001, p. 117).
Esta complexidade que envolve o uso do conceito de “tempo presente” como
uma dimensão temporal entre a memoria praeteritorum e a expectatio futurorum,
que condensa e ou escapa – e que só pode ser entendida nessa relação marcada
pela simultaneidade –, é crucial para os historiadores. Incita-nos a quebrar as
homogeneizações temporais e mesmo cronológicas, sobretudo quando pensamos
com Koselleck que “el presente se hace con todas las dimensiones del tiempo”
(KOSELLECK, 2001, p. 117), em um incessante jogo “entre” passado e futuro,
orientando-nos a pensar a escrita da história e a leitura dos documentos. Neste ponto,
remeto-me também a Henri Bergson (1990). Pode-se dizer, como ele, que o presente e
o passado estão continuamente envolvidos, implicados e complicados no movimento
incessante das relações virtuais que mantêm entre si, ou melhor, a coexistência virtual
do passado no presente, entendendo que, para ele, o passado se conserva em si.
Situados cada vez mais no âmbito desse debate, muitos historiadores operam
com uma concepção de passado que não se situa “fora do presente”, na perspectiva
pensada por Koselleck, ao afirmar que todas as histórias são histórias do tempo presente
(vistas no presente que se dissolve e/ou no presente que condensa), entendendo que
isso também significa imprimir uma dimensão mais dilatada à história do tempo
presente. A discussão historiográfica que contempla as interseções metodológicas
dessa problemática não se atém apenas à noção da presença incorporada do futuro/
passado no presente. Mas remete à reflexão acerca das relações que se estabelecem
entre presente e futuro, presente e passado e, especialmente, “como” essas próprias
relações se constituem. As questões suscitadas por todo esse conjunto de análises
levam também a debater uma concepção de contemporaneidade, avaliando-a na
perspectiva do entrelaçamento que se deve estabelecer entre as dimensões sincrônica
e diacrônica do tempo histórico.
Nessa tensão, torna-se fundamental observar atentamente as palavras de Roger
Chartier para expressar afirmativamente, como uma referência positiva, o fato de que:
O historiador é contemporâneo de seu objeto e, portanto, partilha com aqueles cuja
história ele narra as mesmas categorias essenciais, as mesmas referências fundamentais”
(CHARTIER, 1996, p. 216). Regina Horta Duarte, em instigante ensaio, no qual centra
sua análise em Castoriadis, aponta para a positividade dessa perspectiva: “O fato de sempre
compreendermos o passado através de nossas próprias categorias não é um limite, mas uma
promessa: pode abrir o caminho para a relativização das certezas aparentes, capacitando-nos
a superar a sujeição à racionalidade determinista. Pode instaurar, decisivamente, sentidos
políticos para a escrita da história (DUARTE, 2012, p. 71).

43
Essa proposição conduz ou desdobra-se em outra questão, aos significados
políticos dos acontecimentos, dos discursos e dispositivos que provocam o historiador
a debater pequenos e grandes temas que o cercam. O que implica, indubitavelmente,
na reflexão acerca dos usos políticos da memória e da história segundo as regras do
fazer historiográfico (FERREIRA, 2012; CÉZAR, 2012). Nessa trilha, o tema da
memória e da história ganha especial relevância para os estudos sobre as identidades
nacionais e a construção de novas identidades, abrangendo grupos sociais diversos
(o que acaba por colocar em questão a própria noção de identidade) e trazendo
à luz importantes leituras sobre o papel que a etnicidade tem nas relações sociais
constituídas e em constituição (WEBER, 2011). Irrompem, nesse âmbito, disputas
pelos direitos, incluindo o direito à memória, sobretudo como estratégia de poder. Da
mesma forma, na linha das pesquisas que contemplam a produção das “identidades
nacionais”, muitos trabalhos assinalam as relações entre ensino de história, políticas
públicas, discursos históricos e uso das imagens. Somam-se a essas análises as
discussões que tratam das relações entre cultura política, memória e historiografia,
que revelam deslocamentos metodológicos no que tange à relação entre a história
política e a história cultural, debatendo como as leituras do passado estão imbricadas
a interesses e experiências do presente.2
Talvez seja neste caminho, buscando enfrentar os desafios historiográficos
contemporâneos, que possamos recolocar ou retomar a indagação de Koselleck: “Por
que agora esta história do tempo presente e não aquela ou já não aquela?” Penso que,
de certo modo, há o imperativo de uma tomada de posição em relação ao presente
– não a um “presentismo” comprometido com reconstituições causais, sequenciais,
num continuísmo obcecante, mas a um presente que indica “nossa pertença tanto
ao passado quanto ao futuro” (entrelaçando perspectivas temporais diacrônicas
e sincrônicas), instigados que somos pelas questões fulcrais de “nosso tempo”, no
sentido de ser contemporâneo a ele. Giorgio Agamben (2009) amplia largamente
essa reflexão. Segundo ele, “ser contemporâneo” é “tornar-se” contemporâneo, e nem
todos o são. Não há, do ponto de vista teórico desse autor, uma condição natural que
assegure a contemporaneidade, mas esta seria “uma singular relação com o próprio
tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias” (AGAMBEN, 2009,
p. 59). Tal afirmação implica também discutir, numa perspectiva historiográfica, as
condições de produção do conhecimento histórico e a competência do historiador
em relatar o passado, estabelecendo com ele uma relação que o torna contemporâneo
do presente. E, sobretudo, acionar nossa capacidade de “citar” ou convocar o passado
(BOLLE, 2006, p. 1158; BENJAMIN, 1985), como em W. Benjamin e também
em Agamben, para pensar a contemporaneidade nesse elo tão complexo que coloca
“em ação uma relação especial entre os tempos” (AGAMBEN, 2009, p. 71). É no
âmbito do tempo, portanto, matéria da história, que indagamos sobre as suas várias
dimensões e as relacionamos aos acontecimentos presentes.

44
Giorgio Agamben escolhe falar em termos de contemporaneidade porque a
inscreve no presente. Dessa forma, projeta outra visão, outra consideração crítica
do mundo em que vivemos, numa perspectiva de quem “vê” as sombras e o escuro,
podendo distinguir “o facho de trevas que provém do seu tempo” (AGAMBEN,
2009, p. 64). Especialmente, declara-se pelo modo intempestivo que deve ter a
nossa presença nesse tempo ou no “nosso tempo”. Citando as “Considerações
intempestivas”, observa:
Nietzsche situa a sua exigência de “atualidade”, a sua “contemporaneidade” em relação ao
presente, numa desconexão e numa dissociação. Pertence verdadeiramente ao seu tempo,
é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem
está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas exatamente por
isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que
os outros, de perceber e apreender o seu tempo (AGAMBEN, 2009, p. 58).

Considero que, ao analisar os acontecimentos e os discursos que os significam


e os apresentam na ordem do dia como verdadeiros, atrelados a diversos dispositivos
políticos, seja necessário desfazer evidências e criar, instituir outras maneiras de ver, dizer
e se dar conta do universo histórico no qual estamos inseridos. Sem apaziguamentos
e reconciliações podemos (capacidade de potência) desconectar intempestivamente
(no sentido nietzschiano) nosso olhar das luzes da história do progresso.

A pesquisa histórica

Uma pesquisa é o lugar onde atua uma pluralidade de procedimentos


metodológicos, e o meu objetivo é trazer, à luz da discussão que foi desenvolvida
até este momento, problemas e questões concernentes a ela. O importante é como
tais reflexões atuam, interferem e, sobretudo, dialogam com o caminhar da pesquisa;
portanto, as análises teóricas não se encontram dissociadas das práticas metodológicas:
são propriamente ações.
Para que se possa melhor indicar o percurso metodológico nos marcos de uma
paisagem mais ampla da pesquisa, efetuo uma dupla interrogação, tentando precisar
suas relações mútuas: 1. A especificidade do tema e os pontos de referência entre
os quais as abordagens inscrevem análises e debates, desconstruindo evidências e
linearidades. Procuro estabelecer, em especial, a concatenatio causarum – uma rede de
causalidades entrecruzadas (VEYNE, 2011, p. 54) – entre os aspectos especialmente
visados pela pesquisa e as práticas, experiências e discursos que se constituem a todo
o momento, configurando sua singularidade ou possibilidades históricas; 2. Os
procedimentos metodológicos: diante de uma pesquisa que se projeta em temáticas
múltiplas – constelação de fragmentos significativos – os questionamentos se imbricam
na pertinência e na emergência de novas fontes documentais, que produzem, por sua
vez, implicações sobre o próprio modo de narrar a história.

45
1. O tema do trabalho na Amazônia: relação
com a contemporaneidade

As análises acerca do trabalho na Amazônia, no período mais recente,


considerando as três últimas décadas do século XX, implicam relacioná-las
historicamente aos dispositivos que colocaram em prática a ocupação de seu
território, sob a direção de políticas, planos e programas governamentais como o
PIN (Plano de Integração Nacional, em 1970/71). Nesse aspecto, é preciso ressaltar
que os estados que compõem a Amazônia3 compartilharam e compartilham
determinadas práticas econômicas, sociais e políticas, como o desenvolvimento do
agronegócio e a consolidação da grande propriedade. Esta, muitas vezes, resulta da
grilagem (apropriação ilegal de terra) e de várias formas de compra e venda irregular
de milhares de hectares para alargar ou mesmo constituí-la. Tais práticas apareceram
e aparecem conjugadas à exploração de trabalhadores e marcadas por atos de violência
física e simbólica, quando não acompanhadas de assassinatos, torturas, prisões etc.
Não se deve esquecer de que essas unidades federativas dividem entre si o ranking
dos maiores índices de desmatamento e crimes ambientais. São esses espaços sociais
que se interconectam aos amplos circuitos migratórios no próprio espaço amazônico
e se estendem a outras regiões brasileiras, configurando um “território-rede”. Helión
Póvoa Neto (2005) enfatiza um aspecto ainda pouco explorado nas análises sobre
as redes migratórias que se fazem presentes no País, mesmo considerando que seu
objeto de estudo esteja voltado para as “migrações globais”: “[...] o caráter coletivo
dos deslocamentos migratórios”. E acrescenta:
De fato, não se pode mais entender a migração simplesmente como o empreendimento
aventureiro de um indivíduo, expulso de sua terra e atraído para outra pela esperança de
ascensão social: todo o deslocamento migratório, mesmo o de sujeitos aparentemente
isolados, compõe uma imensa teia pela qual circulam pessoas, informações, dinheiro,
através de redes formais e informais (PÓVOA NETO, 2005, p. 307).

Essas interconexões têm uma existência bastante definida, várias vezes,


comandadas por empreiteiros que aliciam trabalhadores, provenientes sobretudo da
região Nordeste para a Amazônia; e são alimentadas por redes clandestinas sobre as
quais as autoridades fazem vista grossa ou não revelam real interesse em fiscalizar.
Diante desse quadro, torna-se imperativo que se avalie criticamente o custo social
dos deslocamentos migratórios que envolvem redes de trabalhadores de todas
as categorias e de grandes grupos sem trabalho e sem terra, vivendo em situação
extremamente precária.
Analisar a história do Brasil focalizando as últimas décadas exige passar pela
lógica assumida pelo capitalismo no Brasil, que utilizou e utiliza meios de produção
com base em uma tecnologia altamente sofisticada associada a práticas arcaicas, como

46
o chamado “trabalho escravo contemporâneo”. Esse legado político que deu e dá
sustentação à superexploração do trabalho no Brasil hoje, não apenas está incrustado
em nosso tempo presente, mas metamorfoseia-se em outras formas de exploração
atualizadas, permitindo apropriações políticas diversas que conformam o desenho
da nossa contemporaneidade. Não quero com isso delimitar o período dos governos
militares ou de governos anteriores como origem, longe disso. Cada momento
histórico no Brasil foi marcado por um tipo de funcionamento das oligarquias
agrárias e dispositivos políticos que reproduziram e ampliaram as relações de poder.
Mas o imbricamento político-jurídico deve ser contextualizado e associado às práticas
históricas nas suas dimensões macro e microssociais, como também a questão
agrária, as redes migratórias e a configuração do trabalho nos velhos e novos espaços
econômicos. A pergunta recorrente é: como se realizam ou se atualizam as relações
entre governos, grandes e médios proprietários com trabalhadores rurais, posseiros,
seringueiros e grupos indígenas? Como se deu e se dá o exercício da violência? Esse
“como” é histórico. E o seu legado se encontra em diversas práticas no campo, no
seio da política agrária, a pleno vapor no regime democrático, que sucedeu a ditadura
militar e civil no Brasil.
Os historiadores, ao analisarem essas questões, entendem que estas não se
circunscrevem ao passado, mas ocupam lugar no presente. Não como repetição ou
retorno do mesmo, mas trazendo elementos que, relacionados às situações que se
apresentam, experimentam novas formas de existência, novas formas de governar,
novas apropriações políticas, econômicas e culturais, indicando sua pertença ao
presente. Imagens do passado que alcançam legibilidade no presente.
O interesse no tema que a (re)ocupação recente da Amazônia oferece não
apenas acentua um encontro entre temporalidades diversas, mas sinaliza um campo
de estudos da contemporaneidade que permite nomear a violência à contrapelo
de uma história fundada na ideia de progresso, desfigurando o “país do futuro” e
tornando visível, mesmo através das sombras, aqueles que não mais têm futuro.
Segundo Agamben, o que está em questão nesses contextos políticos, marcados
pelos assassinatos de trabalhadores e de suas lideranças, são “[...] uma violência
que interrompe e depõe o direito”.4 É a prática da impunidade, mas que não corre
sozinha – pelo contrário, encontra resistência de vários setores sociais (GOMES,
2007; RODEGHERO, DIENSTMANN, TRINDADE, 2011; REIS FILHO,
FERREIRA, 2007). A questão agrária no Brasil é o ponto crucial dos conflitos sociais
e da violência no campo (PEREIRA, 2012; MARTINS, 2011; FIGUEIRA, 2004).
Contudo, mulheres e homens trabalhadores combatem e protagonizam vários
conflitos no campo, mesmo que essa luta signifique uma possível morte anunciada,
de ambas as partes, ou muitas vezes decretada por aqueles que usurparam e se
apoderaram da terra no Brasil. No entanto, a resistência à impunidade se organiza
em diferentes instâncias: nos sindicatos, nas associações, nas pastorais sociais, no

47
meio universitário, entre intelectuais e artistas, além de algumas ONGs, entre outros
diferentes segmentos da sociedade civil e religiosa. Não poderia deixar, ainda, de
destacar a importância, o reconhecimento e o combate legal e político ao trabalho
análogo ao de escravo, empreendido pelos poderes Judiciário e Executivo, sobretudo
por meio das ações desencadeadas pelos magistrados da Justiça Federal e da Justiça
do Trabalho, do Ministério Público do Trabalho (MPT) e do Ministério do Trabalho
e Emprego (por meio de seus auditores).
Nesse ambiente social e histórico, reavaliamos as categorias com as quais
operamos, discutimos e problematizamos o presente. As relações de trabalho se
modificaram e as análises acerca do significado da exploração e as mais diversificadas
formas de seu uso pontuam outras referências históricas. As próprias designações
“trabalho degradante” e “análogo ao de escravo”, coexistindo com as tecnologias de
ponta, geram outros desafios teóricos. Elencar/descrever as várias modalidades de
trabalho é tarefa fadada ao insucesso, absolutamente insuficiente, porque as pesquisas
apontam para um campo de análise complexo, que exige flexibilizar os conceitos
num movimento “entre categorias”, redescobrindo ou apresentando novas práticas
de trabalho. Um quadro social que mobiliza abordagens inovadoras no enfoque do
tema do trabalho e da exploração de trabalhadores em relação aos setores produtivos
e ao regime fundiário e que levanta um dos pontos mais cruciais da história política
no Brasil contemporâneo.
Nos últimos anos cresce a participação dos estudos e pesquisas historiográficas
na produção do conhecimento que interroga acerca dos conflitos sociais no campo e,
sobretudo, referentes à utilização do “trabalho escravo contemporâneo” (designação
da OIT) ou trabalho análogo ao de escravo, assinalado no código penal brasileiro. Vêm
destacando-se, exemplarmente, os estudos de Ângela de Castro Gomes (2008; 2012),
que enfrenta o desafio de recolocar em outros termos teóricos essa problemática, sua
conceituação e as implicações de seu uso em contextos históricos específicos:
[...] compreender o fenômeno social designado como trabalho análogo a de escravo como
um fato novo da história recente do Brasil que, se de um lado tem relações com práticas
seculares de exploração do trabalhador, de outro possui singularidades próprias ao contexto
das últimas quatro décadas de sua emergência e disseminação (GOMES, 2008, p. 12).

Nessa trilha, a questão social do “trabalho escravo” no Brasil contemporâneo


e demais modalidades da superexploração do trabalho rural tomam força política
como foco de análise, sobretudo para historiadores que apresentam uma produção
intelectual, de modo geral, mais recente,5 somando-se às relevantes contribuições das
ciências sociais e do direito (CERQUEIRA, 2008; ESTERCI, 1994; FIGUEIRA,
2004; PLASSAT, 2005 e 2009; Conflitos no campo, CPT, 2009, 2010; PRADO,
2002; VIEIRA e ESTERCI, 2003). As análises operadas nesse campo de interesse
não se restringem às condições sociais dos trabalhadores da Amazônia, mesmo que

48
ela constitua uma referência fundamental, mas ampliam-se para contribuir com as
investigações sobre o mundo do trabalho no Brasil contemporâneo, ocupando lugar
central nos debates atuais.

2. Desfazer explicações causais, gerais e evidentes.


Constelação de fragmentos e narrativas múltiplas

Em razão do leque de estudos que envolvem as pesquisas que venho


desenvolvendo acerca da política de (re)ocupação recente da Amazônia Legal – que
se sobrepõe a territórios já ocupados –, a partir das últimas décadas do século XX,
torna-se necessário pontuar escolhas metodológicas.6
As reflexões e as narrativas, dialogando com as fontes documentais, deslocam-
se pelas categorias e conceitos que operam com o fluxo, o movimento, a mudança e a
grande diversidade das experiências, atentando para as relações econômicas, políticas e
culturais implicadas a elas e historicamente constituídas. O objetivo é não incorrer em
homogeneizações que poderiam construir uma visão simplificada do universo social,
no qual, e apenas nele, conceitos e categorias adquirem pleno significado histórico.
Nessa senda, torna-se decisivo apreender as práticas sociais que se dão no
ambiente cultural, econômico e político do mundo rural e das pequenas cidades
e vilas – com fronteiras pouco delimitadas entre esses espaços. Práticas essas
que circunscrevem a vida de homens e mulheres “migrantes” que se deslocam,
particularmente, do Sul e do Nordeste, mas também de outras regiões do Brasil rumo
à Amazônia. As análises nucleares estão voltadas às condições de trabalho, de moradia,
às interações com o meio ambiente ligadas à mobilidade espacial dos trabalhadores
rurais7 desterritorializados e, sobretudo, às circunstâncias que desencadeiam conflitos
e disputas pela terra. A noção de desterritorialização nesses contextos é fundamental
para minhas investigações porque as novas práticas e as condições de vida e trabalho
denotam diversas camadas de ruptura com os elos culturais constituidores da família,
do grupo social e dos valores que estão a mediar as relações sociais. Assim, para
analisar a concepção de desterritorialização, parte da minha compreensão encontra
sustentação em Gilles Deleuze e Félix Guattari (1997, p.11-110 e p. 215-232). Esses
autores, entre outras análises pertinentes ao debate específico proposto pela pesquisa
que ora enfoco e a sua discussão teórica, problematizam de maneira muito instigante
as noções de migrantes e nômades:
O nômade não é de modo algum o migrante, pois o migrante vai principalmente de um
ponto a outro, ainda que este outro ponto seja incerto, imprevisto ou mal localizado. Mas o
nômade só vai de um ponto a outro por consequência e necessidade de fato; em princípio,
os pontos são para ele alternâncias num trajeto. Os nômades e os migrantes podem se
misturar de muitas maneiras, ou formar um conjunto comum; não deixam, contudo, de ter
causas e condições muito diferentes [...] (DELEUZE e GUATTARI, 1997, p. 51).

49
Numa linha muito próxima, lanço mão das análises realizadas por Rogério
Haesbaert. Este autor valoriza em suas pesquisas estudos bastante esclarecedores sobre
territorialidade e desterritorialização – ultrapassando o leque das diversas dicotomias
–, relacionados aos processos sociais migratórios em suas múltiplas dimensões
culturais e econômicas. Deste modo, procura apontar na direção de uma múltipla
territorialidade, compreendendo uma simultaneidade de experiências e vivências em
espaços de fluxo e territórios-rede (rizomática).8
É mencionando esta complexidade que as abordagens realizadas em meu
trabalho não têm a pretensão de abarcar todas as questões que fazem parte idealmente
de um mesmo quadro nem eleger uma continuidade/contiguidade temporal e espacial.
Este mundo não se deixa abraçar por inteiro, abrange um universo pluridimensional
e multiterritorial, descontínuo, simbólico e material. Nesse sentido, as análises são
pontuais e projetam uma constelação de fragmentos significativos (para inspirar-
me em um procedimento metodológico caro a W. Benjamin) que se contrapõem às
explicações causais, lineares, deterministas e que primam pelas continuidades ideais
(BOLLE, 2006, p. 1.142-1.159).
O interesse central deste texto é, pois, considerar como determinadas propostas
de investigação – alicerçadas em um acervo documental que agrega constantemente
novos registros e informações,9 muitas vezes lançando mão de pesquisas de cunho
etnográfico – são importantes para as reflexões historiográficas contemporâneas.
Propostas que procuram atualizar um tema de pesquisa ainda pouco explorado no
campo da história e que se voltam para discutir os conflitos sociais nas disputas pela
terra e no mundo do trabalho/migrações na Amazônia, dando primazia aos agentes
sociais como personagens da história. Nessa trilha, observando práticas discursivas
que instituem e nomeiam esses personagens, buscam desnaturalizar evidências
desenvolvimentistas. Permitem, ainda, observar de forma substantiva o que está em
jogo no mundo social e cultural da Amazônia, a fim de estabelecer complexas relações
de sentido com outras experiências históricas nas mais diversas temporalidades e
espacialidades. Nesse aspecto, os historiadores são também beneficiados com o
diálogo – constitutivo deste texto – com outras áreas do conhecimento, como as
ciências sociais, a geografia e a filosofia, não esquecendo a literatura.
Nessa configuração da pesquisa é que se inscreve também a necessária e
inadiável argumentação política que expressa a posição do historiador diante da
história de seu tempo. Marieta de Moares Ferreira (2012, p. 101-124), em artigo
publicado recentemente, procura refletir com argúcia acerca das demandas sociais da
história. Mesmo diante da indeterminação de tais demandas, a autora avalia os desafios
que as novas solicitações exigem, problematizando a abordagem e o tratamento,
sobretudo do tema da memória (entre o dever de memória e os abusos da memória) e
do estatuto dos testemunhos individuais e coletivos, em que procura alertar contra os

50
vícios ou hábitos incorporados das análises que incorrem em vitimização social. Tais
questionamentos são referências para as análises que hoje gravitam em torno de certos
acontecimentos traumáticos, como a tortura política nas ditaduras latino-americanas
na segunda metade do século XX.
No caso dos trabalhadores rurais, ressalta-se a violência a pessoas e lideranças,
massacres e chacinas a comunidades e grupos sociais, assassinatos e várias outras
modalidades de violência que ferem a constituição dos direitos humanos nos países
democráticos. No entanto, mesmo nesses casos, grupos sociais, como trabalhadores
rurais, seringueiros e povos indígenas, entre outros, são vistos e tratados em seu pleno
poder de ação. Os estudos distinguem, assim, os enfrentamentos políticos, seja pela
disputa da terra, ou pelos combates para alcançar posições de lideranças nos sindicatos
dos trabalhadores rurais (em oposição a candidatos indicados pelos grandes e médios
proprietários), além de atuações importantes nos movimentos sociais. Contudo, os
interesses convergem para enfatizar, em especial, a luta por todas as formas de direitos.
Com relação à análise crítica dos testemunhos, privilegio um conjunto de
questões metodológicas e implicações políticas e éticas, sobretudo as que relevam
diferenças entre a investigação judiciária e a historiográfica, contrapondo as figuras
do juiz e a do historiador (GINZBURG, 2012; CEZAR, 2012; MONTENEGRO,
2011). Contudo, para captar a sua importância, levando em conta os objetivos de
minha pesquisa, sobretudo ao entrevistar importantes lideranças ameaçadas de morte,
procuro inserir as apreciações dos testemunhos nas circunstâncias históricas nas quais
foram formuladas. Além disso, busco refletir, pontualmente, acerca das pressões
presentes que as conduziram, além de seus usos públicos. Carlo Ginzburg corrobora
com suas análises ao avaliar criticamente os testemunhos, indicando como são
reveladores de situações, experiências, condutas e acontecimentos, “[...] que liga[m]
o caso específico ao contexto, entendido aqui como possibilidades historicamente
determinadas” (GINZBURG, 2007, p. 316).
Decorre daí que as inter-relações de circunstâncias de toda ordem, informando
um cruzamento de variáveis sociais/históricas abrem-se à exploração de certos aspectos
levantados, tendo em vista suas especificidades, no caso da pesquisa em foco, a disputa
pela terra, as pressões migratórias e a superexploração do trabalho que apontam para
novas perguntas sobre os testemunhos. Nesse aspecto, parece-me significativo refletir
sobre a operação historiográfica e a memória, avaliando as diferenças entre a memória/
testemunho e o documento/história (DE CERTEAU, 1982; RICOEUR, 2006).
Podemos recorrer a Paul Ricoeur (2007), quando nos apresenta a memória
como testemunho direto, ligada indissoluvelmente aos relatos de memória, relativa às
reminiscências que têm como referência aqueles que narram os acontecimentos nos
quais se encontram envolvidos. A memória que tem como referência a declaração
direta de quem a dá é testigo, testemunho que pode ser reconhecido, identificado

51
(base fiduciária). Já o documento, segundo Ricoeur, perde a identificação, ou melhor,
a correspondência direta com a memória individual, podendo vir a ser uma memória
de todos, uma memória dos tempos, uma memória dos conflitos humanos, numa
espécie de “testemunho-arquivo” (base indiciária).
Nessa perspectiva, podem-se armar os fios desse debate a uma ampla tessitura,
relacionados aos interesses da pesquisa que realizo ou com a sua preocupação basilar,
que se volta para discutir a produção de um corpus documental com base nos relatos
de memória oral de expressivas lideranças sindicais que atuam na Amazônia Legal.
Sem apagar o seu estatuto discursivo, os relatos transcritos são analisados tendo em
vista o cruzamento com outras fontes documentais, além das questões relacionadas
às condições sociais de produção desses relatos, compreendendo códigos, regras e
convenções que orientaram as análises teóricas e metodológicas. Um conjunto de
procedimentos que coloca as fontes orais em relação a uma série de outros documentos,
de outros escritos/textos de historiadores e de outros autores das ciências sociais, os
quais também participam de sua validação. De modo cada vez mais frequente, os
historiadores vêm trabalhando com fontes orais entrecruzando múltiplos indícios.
Há no Brasil uma contribuição significativa daqueles que utilizam relatos
orais e contribuem para refletir acerca dos procedimentos historiográficos que
as fontes orais exigem (ALBERTI, 2004; DELGADO, 2010; FERREIRA, 2002;
FERREIRA e AMADO, 1996; GUIMARÃES NETO, 2012 e 2010; JANOTTI,
2010; LAVERDI et al, 2012; MONTENEGRO, 2010 e 2002; GOMES, 2007;
PORTELLI, 2010; SCHMIDT, 2012), e não apenas elas. Reivindica-se também
um tratamento rigoroso às mais diversas fontes (PINSKY, 2005). Destaca-se, ainda,
no âmbito das discussões metodológicas e, especialmente, dos interesses que movem
minhas pesquisas em relação às fontes orais, um aspecto crucial, ou seja, o papel do
entrevistador e suas relações com os entrevistados, considerando as orientações – nada
neutras – direcionadas pelos entrevistadores aos entrevistados e a posição narrativa –
discursiva e gestual – destes diante do entrevistador. Alessandro Portelli (2010) assinala
a relação entre história e memória na experiência da pesquisa de campo por meio
de entrevistas, sublinhando o ato da entrevista como resultado do trabalho comum,
do diálogo estabelecido entre o entrevistador e o entrevistado ou os entrevistados.
Para ele, saber reconhecer as diferenças sociais e culturais entre os envolvidos em
uma entrevista é um primeiro passo para romper com os lugares dispostos em
uma concepção positivista, ou seja, com os tradicionais papéis de sujeito e objeto,
observador e observado. Além de outras implicações teóricas e mesmo técnicas, como
evitar respostas contidas nas perguntas – anulando a força de um testemunho –, deve-
se problematizar os significados impressos e capturados nas narrativas, e também estar
atento, no ato da entrevista, ao estatuto político dos testemunhos (JANOTTI, 2010).
Desde já, é possível acessar uma produção intelectual e, sobretudo,

52
historiográfica do Brasil, que não tem mais a ingênua pretensão de “dar voz aos
oprimidos” ou de “resgatar a experiência passada”. Nessa mesma trilha, Marieta
de Moraes Ferreira (2002, p. 321) aponta com muita lucidez outros pontos
ineludíveis:
Essa perspectiva que explora as relações entre memória e história possibilitou uma abertura
para a aceitação do valor dos testemunhos diretos, ao neutralizar as tradicionais críticas e
reconhecer que a subjetividade, as distorções dos depoimentos e a falta de veracidade a eles
imputada podem ser encaradas de uma nova maneira, não como uma desqualificação [...].

As subjetividades, nesse sentido, não se contrapõem à dimensão da objetividade;


pois não se trata de operar com polos opostos, estabelecendo dicotomias; nem de
sublinhar inconsistências, mas de compreendê-las na tessitura mais ampla da narrativa,
com suas estratégias de produção de sentido e interesses subjacentes que organizam
as experiências vividas (SCHMIDT, 2012). Nessa trilha, é importante reafirmar, os
relatos que os historiadores elegem como fontes documentais, estruturando a sua
narrativa, passam pela crítica, como nos chama a atenção Arlette Farge:
Uma história que fosse feita apenas com testemunhos não criticados e retrabalhados seria
uma história que perderia sua coerência e vericidade. Uma história que não levasse em
conta a testemunha e a irrupção de singularidade de sua situação seria uma história que
recusaria o excesso, o desvio, o deslocamento, as paixões sangrentas, grandiosas ou infames
(FARGE, 2011, p. 22).

Inscrevendo dessa maneira as narrativas que decorrem das entrevistas, somos


instigados a valorizar as histórias plurais de homens e mulheres que se encontram em
situação relacional – sempre social –, compondo uma constelação de histórias que
atravessa as várias linhas do tempo e que também possibilita inscrever as experiências
nos espaços habitados (RICOEUR, 2007, p. 156-162).
Por isso, ao analisar as entrevistas, penso também nos contextos nos quais os
relatos orais vão sendo elaborados, produzindo-se enquanto narrativas que não se
estruturam em espaços e tempos contínuos e que, portanto, não devem ser diluídos
em uma “história geral” ou quadros e contextos gerais. Longe disso, o desafio
constante que se apresenta à prática historiográfica é operar com as individualidades
sem reduzi-las ao indivíduo a partir do qual se recomporiam os grupos. Entendo
assim, na perspectiva de Michel de Certeau, que “[...] cada individualidade é o
lugar onde atua uma pluralidade incoerente (e muitas vezes contraditória) de suas
determinações relacionais” (DE CERTEAU, 1994, p. 38).
Percorrer o universo polissêmico dessas histórias narradas pelos diversos
trabalhadores/as e lideranças sindicais, agentes de uma história do trabalho, da
violência e das migrações/desterritorializações, torna-se imperativo em meus estudos

53
acerca da Amazônia.10 Contudo, as narrativas no campo historiográfico que se
elaboram com base nesta documentação não têm a pretensão de “recriar o real” ou
corresponder diretamente a uma “cópia do real”; não são tratadas “ilustrando um
contexto” ou “uma realidade”, mas são vistas como práticas discursivas e produtoras
de diferentes pontos de vista, oferecendo importantes elementos para pensar esse
complexo mundo do trabalho e do trabalhador na Amazônia Legal, hoje.
Tais experiências de pesquisa determinaram tratamentos inéditos que
envolveram a utilização das fontes orais, escritas e imagens visuais, que têm o poder de
multiplicar, como num caleidoscópio, novas configurações. Contudo, toda pesquisa,
mesmo aquela que se dá nos espaços dos arquivos, deve considerar as circunstâncias
e as variadas injunções de tempo, lugar, pessoas, interesses, disputas e negociações
que se encontram envolvidas nos registros levantados. Derrida, em seu texto Mal
de arquivo (2001), chama a atenção para a rede de comprometimentos que envolve
os processos de arquivamento dos mais variados registros, os quais obedeceram a
injunções de seu próprio tempo, regras, leis, costumes, circunstâncias, imposições
e as mais diferentes exigências. Os discursos que colhemos nos textos produzidos
no passado, por sua vez, também seguiram interesses determinados. Por outro lado,
as ações dos pesquisadores apontam estratégias e práticas que devem ser analisadas;
sem dúvida, elas interferem, modificam e produzem resultados bastante diferentes
assinalados pelos objetivos iniciais anunciados pelas investigações. O ato da pesquisa
não é neutro e as evidências não brotam do terreno dos arquivos, fazem parte da
operação historiográfica.

***

As práticas de pesquisa e da escrita também acabam por inscrever outras


histórias e projetar redes de resistência e poder quase desconhecidas e, com elas,
outras personagens. É preciso avaliar as fontes documentais levando em conta a
especificidade da situação na qual foram produzidas e que as tornou possíveis, assim
como o relato fabricado nas oficinas da história. Observa-se ao mesmo tempo um
processo constante de transformação: os relatos orais, por exemplo, abandonam seu
estatuto oral (sem perder sua referência primeira com a memória) e se constituem,
por sua vez, em relatos escritos. Tornam-se parte constitutiva da arquitetura do texto
historiográfico.
A escrita da história opera ritmos diversos do tempo (dilatando, condensando,
pausando...) numa coexistência com a disposição dos espaços ou um mosaico de

54
espaços-tempos; atua numa narrativa, numa linguagem, numa relação entre palavras
que interferirá decididamente na produção múltipla de significados, que dizem respeito
ao novo e à diferença (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007; MONTENEGRO, 2010;
GUIMARÃES NETO, 2012). É nessa perspectiva que se torna pertinente explorar
a produção da escrita da história na relação com as práticas de produção das fontes
documentais, denotando como os textos – construção narrativa – carregam as marcas
das experiências historiográficas das quais são resultados. Mais do que isso, Michel
de Certeau enfatiza que o trabalho da escrita opera uma inversão da ordem, inicia
no ponto de chegada ou de fuga da pesquisa, é uma passagem que conduz da prática
ao texto (DE CERTEAU, 1982, p. 94) ou, como nos inspira a dizer o poeta R. M.
Rilke, “Tudo o que foi ordena-se de outro modo, alinha-se, como se alguém estivesse
ali comandando...” (RILKE, 2006, p. 25).

Notas
1 Proponho também dialogar, sobre a concepção de contemporaneidade, com as considerações teóricas
desenvolvidas por Agamben em seu texto Che Cos’è Il contemporâneo, traduzido no Brasil: O que é o contemporâneo?
e outros ensaios, 2009.
2 Gostaria de salientar, entre outras publicações, as valiosas contribuições das análises realizadas pelas coletâneas
organizadas por: VARELLA, MOLLO, PEREIRA, DA MATA, 2012; BARBOSA, 2012; FERREIRA, 2010;
AZEVEDO, ROLLEMBERG, BICALHO, KNAUSS, QUADRAT, 2009; FERREIRA, BEZERRA, DE
LUCA, 2008; GOMES, 2007; FERREIRA e AMADO, 1996.
3 Por meio de um dispositivo legal, a Lei 1.806 de 06.01.1953, a Amazônia brasileira passou a ser denominada
de Amazônia Legal, criada pelo Plano de Valorização Econômica da Amazônia (sob a coordenação da SPVEA).
Integra os estados do Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e parte do
Maranhão (oeste do meridiano de 44º). 
4 A política de profanação. Entrevista de G. Agamben a Vladimir Safatle: Folha de São Paulo,
18/09/2005. Disponível em: www1.folha.uol.com.br/fsp/.../fs1809200505.htm Acesso: 09 jun. 2012.
5 Destaco, entre várias e importantes produções científicas apresentadas pelos programas de pós-graduação
em história, no Brasil, sobre o tema do trabalho rural no período contemporâneo, aquelas desenvolvidas
pelos historiadores do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso que
enfocam a questão do trabalho e do “trabalho escravo contemporâneo” em Mato Grosso, na segunda metade
do século XX, em especial cf. JOANONI NETO, Vitale. Da histórica dominação sobre vidas prescindíveis. As
muitas faces da violência sobre trabalhadores migrantes no nordeste de Mato Grosso do final do século XX
(2009). Ver também: BARROZO et al. (Orgs.). Mato Grosso: Do Sonho à Utopia da Terra (2008). Alguns
historiadores do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco que, com
o Arquivo do TRT – Tribunal da 6ª Região do Trabalho –, desenvolvem várias pesquisas sobre a questão do
trabalho rural e urbano, orientam mestrados e doutorados nesse campo temático. Consultar as publicações dos
professores do PPGHIS/UFPE, no que se refere ao tema do trabalho e política para o período contemporâneo:
MONTENEGRO, GUIMARÃES NETO, ACIOLI (Orgs.), 2011; ABREU E LIMA, 2005; RUFINO, 2007;
ACIOLI, ASSIS, 2011.
6 As reflexões que exponho aqui acompanham pari passu problemas e questões apresentados pela minha
pesquisa/CNPq: Memória e história plural: mundos do trabalho, territórios das migrações e microcosmos da
violência. Entre práticas e relatos de trabalhadores do Centro-Sul e Nordeste e de lideranças sindicais em espaços
da Amazônia.

55
7 A designação “trabalhador rural”, por mais abrangente que seja, tem pontualmente, neste texto e em
minha pesquisa, como referência uma determinada politização dessa categoria, incluindo trabalhadores não
provenientes do mundo rural ou que não se constituíram em sua história de vida na “lida ou labuta com a terra”,
mas que, ao migrarem para as áreas da Amazônia (ou outras áreas), envolveram-se diretamente na disputa pela
terra, ligados a movimentos e entidades civis e religiosas como o MST e a CPT, entre outros. Consultar para essa
discussão o inovador trabalho de PEREIRA, 2012.
8 Ver, deste autor, entre seus vários trabalhos sobre esta temática, O mito da desterritorialização: do “fim dos
territórios” à multiterritorialidade, 2004; cf. também “Migração e desterritorialização”, 2005. Além disso,
Giorgio Agamben nos oferece, ainda, oportunas discussões teóricas que nos ajudam a problematizar sob novas
perspectivas o conceito de cidadania no mundo atual, trazendo para primeiro plano a categoria “refugiado”:
“Mais além dos direitos do homem”. Disponível em: http://claudioulpiano.org.br.s87743.gridserver.
com/?p=4416#more-4416 Acesso: 10 de janeiro de 2011.
9 Destaco a importância dos acervos da Pós-Graduação da Universidade Federal de Mato Grosso, sob a
coordenação do historiador Vitale Joanoni Neto, dos quais, num primeiro momento, fiz parte da sua formação
e organização. É muito conhecida a riqueza do arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia (Disponível em:
http://www.prelaziasaofelixdoaraguaia.org.br) e dos arquivos e diversos acervos das unidades das CPTs nos
diferentes estados e na sede nacional (Disponível em: http://www.cptnacional.org.br), fundamentais à consulta
dos pesquisadores em geral.
10 É importante assinalar: o arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia, em Mato Grosso, guarda uma
memória da luta contra grandes latifundiários e novos empresários das agropecuárias que recortavam a parte
nordeste de Mato Grosso, encaminhada pelo bispo católico Pedro Casaldáliga, desde os primeiros anos da
década de setenta, no regime militar e civil; ainda, pode-se contar com os arquivos das CPTs regionais, como
também ter acesso aos arquivos de jornais de grande circulação, especialmente, no que toca ao “trabalho
escravo”, como o Jornal do Brasil.

Referências Bibliográficas

ABREU e LIMA, M. S. Construindo o Sindicalismo Rural. Lutas, Partidos, Projetos. Recife: Oito de Março,
2005.
ACIOLI, Vera Lúcia Costa; ASSIS, Virgínia Maria Almoedo de. A justiça e o direito como estratégia de resistên-
cia ao trabalho escravo em Pernambuco. In: MONTENEGRO, Antonio Torres; GUIMARÃES NETO,
Regina B.; ACIOLI, Vera (orgs.). História, cultura, trabalho: questões da contemporaneidade. Recife: Ed.
da UFPE, 2011.
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009.
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval. História: A arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da história.
Bauru, SP: EdUSC, 2007.
ALMEIDA, Alfredo W. B. de. Antropologia dos archivos da Amazônia. Rio de Janeiro: Casa 8/ Fundação Uni-
versidade do Amazonas, 2008.
AZEVEDO, Cecilia; ROLLEMBERG, Denise; BICALHO, Maria Fernanda; KNAUSS, Paulo; QUADRAT,
Samantha Viz (orgs.). Cultura política, memória e historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2009.
BARBOSA, Cibele (org.). Teoria da história e historiografia: debates pós-68. Recife: Fundação Joaquim Nabuco,
Massangana, 2012.
BENJAMIN, Walter. Passagens. Organização da edição brasileira Willi Bolle; colaboração na organização da
edição brasileira Olgária Chain F. Matos. Belo Horizonte: Ed. UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2006.

56
______. Sobre o conceito da História. In: Obras Escolhidas. Magia e técnica, arte e política. v. I. São Paulo:
Brasiliense, 1985.
BERGSON, Henri. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
BOLLE, Willi. Um painel com milhares de lâmpadas. Metrópole & Megacidade (Posfácio à edição brasileira).
In: BENJAMIN, Walter. Passagens. Organização da edição brasileira: Willi Bolle; colaboração na orga-
nização da edição brasileira: Olgária Chain F. Matos. Belo Horizonte: Ed. UFMG; São Paulo: Imprensa
Oficial do Estado de São Paulo, 2006.
CEZAR, Temístocles A. C. A emergência do presente na escrita da história pós-1968. In: BARBOSA, Cibele (org.).
Teoria da história e historiografia: debates pós-68. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Massangana, 2012.
CHALHOUB, Sidney. História em cousas miúdas: capítulos de história social da crônica no Brasil. Campinas,
SP: Editora da Unicamp, 2005.
______. Vira mundo, vira mundo: Trajetórias nômades. As cidades na Amazônia. Projeto História: revista do
Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da Pontifícia Universi-
dade Católica de São Paulo. EDUC, 2003, p. 49-69.
CHARTIER, Roger. A visão do historiador modernista. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaí-
na. Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996.
DABAT, C. Rufino. Moradores de Engenho. Relações de trabalho e condições de vida dos trabalhadores rurais
na zona canavieira de Pernambuco segundo a literatura, a academia e os próprios atores sociais. Recife:
Editora Universitária da UFPE, 2007.
DE CERTEAU, Michel. A escrita da história. 1ª edição, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.
______. A invenção do cotidiano. Artes de fazer. Vol. I, 5ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
DELGADO, Lucília de Almeida Neves. História oral: memória, tempo, identidade. 2ª ed. Belo Horizonte:
Autêntica, 2010.
DELGADO, Lucília de Almeida Neves; FERREIRA, Jorge (orgs.). O Brasil Republicano. 4 vol. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2011.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia. v. 5. São Paulo: Editora 34,
1997.
DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma interpretação freudiana. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2001.
DUARTE, Regina Horta. História e autonomia: Cornelius Castoriadis e os círculos virtuosos. In: BARBOSA,
Cibele. Teoria da história e historiografia: debates pós-68. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Massangana,
2012.
FARGE, Arlette. Lugares para a história. Tradução Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.
______. Le Cours ordinaire des choses dans la cité du XVIIIe siècle. Paris: Seuil, 1989.
FERREIRA, Antônio Celso; BEZERRA, Holien Gonçalves; LUCA, Tania Regina de (orgs.). O historiador e seu
tempo: encontros com a história. São Paulo: UNESP: ANPUH, 2008.
FERREIRA, Marieta de Moraes. Demandas sociais e história do tempo presente. In: VARELLA, Flávia;
MOLLO, Helena Miranda; PEREIRA, Mateus Henrique de Faria; DA MATA, Sérgio (orgs.). Tempo
presente & usos do passado. v.1, Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012, p. 101-124.
______. Memória e identidade Nacional. Rio de Janeiro: FGV, 2010.
______; AMADO, Janaína. Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996.
FICO, Carlos. Como eles agiam: os subterrâneos da Ditadura Militar: espionagem e polícia política. Rio de
janeiro: Editora Record, 2001.
FIGUEIRA, Ricardo Rezende. Pisando Fora da Própria Sombra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar e Eduardo
Brandão. São Paulo: Cia das Letras, 2007.
GOMES, Angela de Castro. Repressão e mudanças no trabalho análogo a de escravo no Brasil: tempo presente
e usos do passado. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 32, nº 64, 2012, p. 167-184.

57
______. Trabalho análogo a de escravo: construindo um problema. História Oral: Revista da Associação Brasi-
leira de História Oral, v. 11, n. 1-2, jan- dez. Rio de Janeiro: Associação Brasileira de História Oral, 2008.
______. (org.). Direitos e cidadania: memória, política e cultura. Rio de Janeiro: FGV, 2007.
GUIMARÃES NETO, Regina B. Historiografia, diversidade e história oral: questões metodológicas. In: Rob-
son Laverdi et al. (orgs.). História oral, desigualdades e diferenças. Santa Catarina: EdUFSC; Recife: EdU-
FPE, 2012.
______. História, trabalho e política de colonização no Brasil contemporâneo: discursos e práticas. Amazônia
Legal. In: MONTENEGRO, Antônio Torres; GUIMARÃES NETO, Regina B; ACIOLI, Vera (orgs.).
História, cultura, trabalho: questões da contemporaneidade. Recife: Ed. da UFPE, 2011.
______. A lenda do ouro verde. Política de Colonização no Brasil contemporâneo. Cuiabá/MT: Ed. Unicem
(Apoio Unesco), 2002.
______. Personagens e memórias: territórios de ocupação recente na Amazônia. In:
HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
______. Migração e desterritorialização. In: Cruzando fronteiras disciplinares: um panorama dos estudos migra-
tórios. Rio de Janeiro: Revan, 2005.
HEYMANN, Luciana. O devoir de mémoire na França contemporânea: entre memória, história, legislação e
direitos. In: GOMES, Angela de Castro (org.). Direitos e cidadania: memória, política e cultura. Rio de
Janeiro: FGV, 2007, p. 15-44.
JANOTTI, Maria de Lourdes. A incorporação do testemunho oral na escrita historiográfica: empecilhos e
debates. História Oral: Revista da Associação Brasileira de História Oral, v. 13. Rio de Janeiro: Associação
Brasileira de História Oral, 2010.
KOSELLECK, Reinhart. Los estratos del tiempo: estudios sobre la historia. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica,
2001.
______. Futuro passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio do Janeiro: Contraponto, Ed-
Puc-Rio, 2006.
MARTINS, José de Souza. A política do Brasil: lúmpen e místico. São Paulo: Contexto, 2011.
______. Fronteira: a degradação do Outro nos confins do humano. São Paulo: Hucitec, 1997.
MOMIGLIANO, Arnaldo. As raízes clássicas da historiografia moderna. Bauru, SP: EDUSC, 2004.
MONTENEGRO, Antonio Torres; ARAÚJO, Maria Paula N.; RODEGHERO, Carla. Marcas da memória:
história oral da anistia no Brasil. Recife: Ed. Universitária da UFPE (no prelo).
MONTENEGRO, Antonio Torres. História Oral e Memória. São Paulo: Contexto, 2007.
______. História, metodologia, memória. São Paulo: Contexto, 2010.
______. Ação trabalhista, repressão policial e assassinato em tempos de regime militar. Rio de Janeiro, Topoi, v.
12, n. 22, jan.-jun. 2011, p. 228-249.
PEREIRA, Airton dos Reis. A luta pela terra no sul e sudeste do Pará. Migrações, conflitos e violência no campo.
Recife: Universidade Federal de Pernambuco, Programa de Pós-Graduação em História, 2012. Tese de
doutorado.
PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005.
PLASSAT, Xavier. Erradicação do trabalho escravo? Ficou para outra vez. In: Conflitos no Campo, Brasil-2005.
Goiânia: Comissão Pastoral da Terra, 2006, p. 146-151.
______. Trabalho escravo: 25 anos de denúncia e fiscalização. In: CANUTO, Antonio; LUZ, Cássia Regina
da Silva; WICHINIESKI, Isolete (coords.). Conflitos no campo 2009/CPT. São Paulo: Expressão Popular,
2010, pp. 90-100.
PORTELLI, Alessandro. Ensaios de história oral. São Paulo: Letra e Voz, 2010.

58
PÓVOA NETO, Helión; FERREIRA, Ademir Pacelli (orgs.). Cruzando fronteiras disciplinares: um panorama
dos estudos migratórios. Rio de Janeiro: Revan, 2005.
PRADO, Adônia Antunes. (coord.). Terra e Trabalho Escravo. Violência e Impunidade. Niterói: UFF-Centro
de Estudos Sociais Aplicados, 2002.
PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. Amazônia, Amazônias. São Paulo: Contexto, 2001.
RILKE, Rainer M. Cartas sobre Cézanne. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.
______. Tempo e narrativa. t. 1. Campinas, SP: Papirus, 1994.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço. Técnica e tempo. Razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1996.
VARELLA, Flávia; MOLLO, Helena Miranda; PEREIRA, Mateus Henrique de Faria; VIEIRA, Maria Anto-
nieta da Costa; ESTERCI, Neide. Trabalho escravo no Brasil: os números, as lutas e as perspectivas em
2003. In: COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no Campo. Brasil-2003. CPT, Goiânia, 2004.
VEYNE, Paul. Foucault: seu pensamento, sua pessoa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
WEBER, Regina. Estudos Étnicos no Rio Grande do Sul: análise historiográfica. In: HEREDIA, Vania Beatriz
M.; RADÜNZ, Roberto (org.). História e Imigração. Caxias do Sul, RS: Educs, 2011, p. 269-283.

59
Tempo, patrimônio e políticas
de preservação no Brasil

Antonio Gilberto Ramos Nogueira*

Como historiador e, particularmente, como historiador envolvido nas lides


do patrimônio cultural, minha intenção é propor uma reflexão que contribua para
esta terceira edição do Seminário História e Historiografia tomando como espaço/
tempo a própria história das práticas da preservação do patrimônio cultural no Brasil.
Partindo desta perspectiva e lugar social de fala (Grupo de Estudos e Pesquisas em
Patrimônio e Memória - GEPPM), busco investigar a historicidade do conceito de
patrimônio cultural e das políticas públicas a ele relacionadas enquanto práticas
sociais historicamente construídas. Neste itinerário, os conceitos, os instrumentos e as
políticas de preservação conformam a configuração atual do campo do patrimônio e
se constituem em campo fértil para a compreensão dos jogos do tempo que envolvem
o patrimônio, a memória e a história.
Seguindo esse raciocínio, encontro na contribuição do historiador Reinhart
Koselleck a medida necessária para pensarmos a ressemantização do conceito moderno
de patrimônio cultural a plasmar a experiência temporal. Para Koselleck:
ao longo da história de um conceito, tornou-se possível investigar também o espaço da
experiência e o horizonte da expectativa associados a um determinado período, ao mesmo tempo
em que se investiga também a função social e política desse mesmo conceito (2006, p. 104).

Na arqueologia das palavras e das coisas, tão importante quanto interrogar o


seu significado temporal próprio é entender as transformações desses significados –
indicadores importantes para compreender as transformações sociais e políticas. Nesse
movimento, penso que devemos meditar sobre qual é o sentido de patrimônio que
estamos construindo no século XXI. Como as categorias meta-históricas “experiência”
e “expectativa” nos ajudam a compreender as experiências temporais e a lógica que
envolve o universo do patrimônio? Qual o regime de historicidade que atravessa o
fenômeno da patrimonialização na atualidade? Aqui não estou falando somente da

* Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal


do Ceará.

60
historicidade do conceito, mas também das políticas públicas e dos instrumentos
de classificação e valoração como o tombamento e o registro, só para ficar nestes
exemplos. Afinal, na dialética do lembrar e do esquecer, do que deve ser preservado
ou destruído, é sempre explícita uma relação com o tempo.
Patrimônio e memória constituem-se palavras-chave da experiência temporal
contemporânea. Ao mesmo tempo em que são sintomas e traduzem aquilo que
somos hoje, cumprem uma função de proteção e refreamento ao mal-estar causado
“pela nossa profunda ansiedade com a velocidade de mudanças e um contínuo
encolhimento dos horizontes de tempo e espaço” (HUYSSEN, 2000, p. 28). Na
condição de testemunhos das incertezas ou da crise da ordem presente do tempo,
seriam elas fundadoras de um novo regime de historicidade, centrado no presente,
como ensinou François Hartog?
Na era da fugacidade, caracterizada pela explosão da informação e excesso de
presente, a noção de “Regime de historicidade” cunhada por Hartog nos possibilita
compreender tanto o sentido “como uma sociedade trata o seu passado”, quanto
“a mobilidade de consciência de si de uma comunidade”. Ou seja: “maneiras de
ser no tempo”. Se entendemos a ideia de patrimônio como uma construção social
indissociável de um regime de historicidade postulado pelos valores que lhes são
atribuídos em diferentes momentos e espaços, as narrativas ou representações
patrimoniais operam “modos de relação ao tempo” (HARTOG, 2006, p. 263).
Da lição de Koselleck sobre o processo de construção do mundo moderno,
aprendemos que este foi pautado no conceito de progresso único e universal, que
retratava uma nova ordem do tempo como expressão hegemônica das experiências
históricas desde o século XVIII. Já a noção de regime de historicidade de Hartog se
constitui como sua antípoda na medida em que procura articular a multiplicidade
das experiências temporais em sua complexidade. Nesta acepção, o tempo universal
e linear se complexifica ante as singularidades e assimetrias de um tempo íntimo/
múltiplo e saturado de presente (PEREIRA, 2009, p. 187).
A extensão (e contrição) maior da categoria do presente fez vacilar as
identidades ameaçadas colocando na ordem do dia a necessidade da memória. Nunca
se falou tanto em patrimônio e memória como nos dias atuais. O medo da amnésia
(coletiva e individual) e a vontade de nada esquecer desenvolveram simultaneamente
a compulsão compensatória em tudo guardar e preservar. Essa preocupação com
a conservação tornou-se o novo imperativo a operar sobre os deslocamentos das
sensibilidades temporais. É nesse horizonte de dilatação do conceito de patrimônio
e memória que Pierre Nora traz o conceito de lugares de memória. Em seu refinado
diagnóstico da história francesa, falava da patrimonialização da história e da memória.
Hoje, falamos da patrimonialização da cultura. E a museificação?
Nos deslocamentos da memória ela se tornou plural. Hoje, outras vozes,

61
narrativas, apropriações e sentidos informam e conformam a memória de si e a
memória nacional. É só olharmos para a multiplicação das “instituições de memória”,
como museus, centros de memória, arquivos, memórias de bairros, de partidos, de
igrejas, de grupos sociais etc. Sem esquecer a moda retrô, os documentários e novelas
de época. O que dizer, então, do retorno das biografias, que tanto têm seduzido os
historiadores, e da autobiografia, que se impõe como forma recorrente de expressão
na arte contemporânea?
Da mesma forma, o conceito de patrimônio cultural tem recebido diferentes
significados. Transcendendo os adjetivos que recebeu ao longo do tempo (histórico,
artístico, móvel, imóvel, tangível, intangível, material, imaterial, paisagístico,
genético etc.), a ressemantização do conceito de patrimônio é, em si, sinalizadora das
concepções de tempo, lugar social de produção, perspectiva teórica e metodológica e
sentido político. Segundo Dominique Poulot, “o patrimônio não é o passado, já que
sua finalidade consiste em certificar identidades e afirmar valores, além da celebração
de sentimentos, se necessário, contra a verdade histórica” (POULOT, 2009, p. 12).
Nesta perspectiva, o conceito de patrimônio deve ser pensado em termos de uma
prática social construída histórica e culturalmente em consonância com a busca de
identidade e as demandas de “vontade de memória” no tempo presente.
Em suas origens, o sentido primeiro da ideia de patrimônio esteve associado
à natureza mesma dos monumentos, ou melhor, à noção moderna de monumento
histórico e artístico. Instigada pelo texto seminal de Alois Riegl, Der Moderne
Denkmalkultus (O culto moderno dos monumentos), Françoise Choay pratica
a etimologia da palavra “monumento” para referir-se ao seu caráter de universal
cultural manifestado em artefatos vários de culturas distintas. Enquanto “uma arte da
memória”, sua nítida intenção é nos tocar a lembrança. Já “a invenção do monumento
histórico é solidária daquela dos conceitos de arte e história” (CHOAY, 2006, p. 10).
A teoria dos valores postulada por Riegl, no início do século XX, vai ser de
fundamental importância para superar a ideia de que os monumentos são constituídos
de categorias fixas e imutáveis. Segundo Choay, ao “empreender o inventário dos
valores não ditos e das significações não explícitas, subjacentes ao conceito de
monumento histórico”, Riegl, encontrou, na Renascença, o distanciamento – que as
culturas antiga e medieval ignoraram – para apreender a historicidade de tais valores
em sintonia com as novas concepções de tempo e de espaço. Tal distanciamento,
assentado na teoria dos valores, permitiu perceber os deslocamentos dos dispositivos
mnemônicos em sua relação com o tempo.
Se, no monumento, passado e presente estão entrelaçados em sua destinação
memorial, no monumento histórico as relações com a memória viva e a duração são
determinadas pela emergência da “consciência histórica” (RUSEN, 2001). Ao ser
considerado objeto de conhecimento, se insere numa concepção linear do tempo,

62
uma vez que o valor cognitivo o reporta ao passado e à história em geral ou ainda
à história da arte. Já na condição de objeto de arte, é o valor de sensibilidade que o
torna “parte constitutiva do presente vivido, mas sem a mediação da memória e da
história” (CHOAY, 2001, p. 26).
Ainda segundo Choay, essas relações que se mantêm com o tempo, a memória
e o saber é que vão determinar uma diferença maior quanto à conservação dos
monumentos e dos monumentos históricos, respectivamente (CHOAY, 2001, p. 26).
Foi no contexto da Revolução Francesa e da construção das culturas nacionais
que a ideia de nação veio conferir status ideológico ao conceito de patrimônio e
assegurar, por meio da institucionalização de práticas específicas, a sua preservação.
Se a possibilidade de conhecimento e o amor à arte não foram suficientes para
garantir a sua preservação, o medo da destruição e da perda fez colocar no centro do
debate a necessidade de sua preservação. Nessa perspectiva histórica, a constituição
dos patrimônios tem seu momento fundador ligado à formação dos Estados
modernos e à construção de uma identidade nacional. No papel de testemunhos
do passado, conformadores de um tempo nacional, consubstanciaram igualmente
uma escrita da história política e ideologicamente comprometida com o projeto
de construção da nação no século XIX. Neste contexto, a operação histórica (DE
CERTEAU, 2000) se valeu dos adjetivos histórico, artístico e nacional como valores
de testemunho, documentos de uma verdade que se buscava comprovar “tal como
realmente aconteceu”. Ou seja, monumentos, edificações e obras de arte passaram
a ser sacralizados e preservados, investidos que estavam do poder de reificar a nação
localizando-a no tempo e no espaço.
Essa perspectiva francesa de patrimônio monumental, fundada nos valores
nacional, estético e didático, passou a figurar como paradigma na constituição de
políticas públicas de preservação do patrimônio no Ocidente. A criação do Serviço
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN, em 1937, hoje IPHAN, e
de seus congêneres em vários países da América Latina é exemplar.
No Brasil, a fundamentação de um tempo nacional conduzida pelas narrativas
modernistas terá como um de seus correspondentes ao projeto de construção da
brasilidade a definição de uma noção de patrimônio cultural e a formulação de
uma política de preservação. A fundamentação de um tempo nacional deve ser
entendida em consonância com a peculiaridade do movimento modernista em seu
desejo de integrar o Brasil no “concerto das nações civilizadas” (JARDIM, 1978,
p. 71). Empreendido o movimento de renovação estética que marcou a primeira
fase do Modernismo (ruptura com o passado), todo o esforço foi direcionado
para a construção de um projeto de cultura nacional assentado na dialética do
local e do universal (CANDIDO, 2000). Na perspectiva de um nacionalismo
universalista, foi-se delineando um passado a partir daquilo que nos individualiza

63
e nos singulariza, ou seja: a consciência do sentido de uma arte e de uma cultura
nacionais levou os modernistas ao encontro dos testemunhos do passado colonial
como signo do Brasil moderno.
Nas representações da brasilidade procurada, o passado reelaborado é o
tempo de origens da nação. Ali onde se encontra a tradição, os modernistas elegeram
Minas Gerais e o barroco como berço da nação civilizada. Não é à toa que Mário de
Andrade, já em 1919, fez sua primeira viagem às cidades históricas do século XVIII,
desconfiado que estava de que ali existiu uma primeira manifestação artisticamente
brasileira. Fato este que será depois compartilhado pelos outros modernistas em suas
viagens de descoberta do Brasil a Minas Gerais (1924). Ali a nação se barroquizou.
A partir de então, surgiu um movimento de defesa e proteção dos monumentos
históricos e artísticos nacionais que culminou, na década de 1930, no processo de
institucionalização das práticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil em
nível federal. Em 1936, o anteprojeto que Mário de Andrade elaborou, a pedido do
ministro da Educação e Saúde Gustavo Capanema, serviu de base para o decreto-lei
25/37 de criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Antes
disso, é preciso dizer que outras iniciativas já vinham se processando com vistas à
preservação, como é o caso da fundação do Museu Histórico Nacional (1922), da
criação das Inspetorias Estaduais de Monumentos Históricos – Minas Gerais (1926),
Bahia (1927) e Pernambuco (1928) –, até a criação da Inspetoria de Patrimônios
Nacionais, em 1934, subordinada à direção do Museu Histórico Nacional,
representada por Gustavo Barroso.
A elevação de Ouro Preto à categoria de monumento nacional pelo decreto
nº 22.928, de 12 de julho de 1933, promulgado por Getúlio Vargas, foi um marco
importante para a história do pensamento preservacionista no Brasil. Não só porque
veio assegurar que aquele passado histórico e estético, sagrado e cívico fosse protegido,
mas também porque revelou uma concepção de patrimônio que elegeu como nosso
primeiro monumento o espaço/tempo da cidade, sacralizado o lugar fundador da
nação civilizada. Aqui, a ideia de nação civilizada manifestada no barroco colonial
mineiro colocou no centro do debate a natureza mesma do “ser histórico” e os usos
do passado na construção de um Brasil moderno.
A criação do SPHAN, em 1937, deve ser entendida no contexto de um
conjunto importante de atos políticos que marcou o projeto ideológico do Estado
varguista na construção simbólica da nação. Ainda que o decreto-lei 25/37 tenha
restringido a concepção de arte patrimonial de Mário de Andrade, a vitória dos
modernistas – para quem o passado é fundamental para o referenciamento da
brasilidade procurada –, foi construída a partir de disputas, conflitos e negociações
no interior do próprio projeto do Estado na condução de uma política de preservação.
O referido decreto trouxe, junto com a concepção de patrimônio assentado
nos valores de monumentalidade e excepcionalidade, o tombamento e o restauro

64
como instrumentos de preservação. O inventário, embora constasse do decreto,
ficou relegado a um segundo plano, como reconheceu o próprio Rodrigo Melo
Franco de Andrade, diretor do SPHAN (1937-1967). O tombamento, por sua vez,
ganhou centralidade e contribuiu para a construção de um conceito hegemônico de
patrimônio nacional que marcou a chamada fase da “sacralização da memória em
pedra e cal” (NOGUEIRA, 1995).
O tombamento, mais que um instrumento jurídico e administrativo que veio
impedir a evasão das obras, objetos de arte e de história da nação, foi a solução
normativa para os impasses que envolviam os bens móveis e imóveis patrimonializados
na complexa relação entre público e privado. Para além de seu caráter técnico e legal,
é preciso percebê-lo como um dispositivo que tem o poder nomeador de construir
uma representação da nação – a partir das escolhas e dos valores atribuídos a bens
patrimonializados – fundada em um continuum temporal. Segundo Julia Wagner
Pereira, “ao recontextualizar o bem, remetendo-o simbolicamente a um espaço-tempo
histórico-mítico, o tombamento acrescenta-lhe novos significados, que permitem
transcender sua existência comum, passando a pertencer concomitantemente ao
passado e ao presente” (PEREIRA, 2012, p. 166).
A conformação de um quadro simbólico de legitimação da nação foi se
delineando, no interior da política de preservação do patrimônio cultural do
SPHAN, à medida que o rito do tombamento (KERSTEN, 2000, p. 49-50) conferia
ao conjunto do patrimônio cultural selecionado status de documentos da nação –
passíveis, portanto, de uma releitura do passado em articulação com um futuro a ser
construído. Nesse processo, o resgate do passado para lançar-se ao futuro aproximou-
se do ideário estado novista. Conhecer o passado e a tradição passou a ser visto como
determinante para o projeto de construção de uma nova consciência para o futuro
(OLIVEIRA, 2008, p. 122).
Se entendemos que, na representação da nação construída por um repertório
de bens de excepcional valor, foram igualmente os conceitos clássicos de história e de
cultura – respectivamente a oficial e a erudita – que caracterizaram sobremaneira a
“fase heróica” do SPHAN e a “sacralização da memória em pedra e cal” (NOGUEIRA,
1995), é notória a perspectiva elitista e redutora desenhada pela herança europeia
decorrente da seleção dos exemplares arquitetônicos e artísticos do período colonial.
Afinal, era preciso “autenticar” o Brasil como forma de garantia da entrada do País
na “história universal das civilizações” (CHUVA, 2009).
A partir da década de 1970, uma nova concepção de patrimônio cultural
começa a se delinear, influenciada por uma visão antropológica de cultura. Esta
nova perspectiva vai possibilitar a ampliação do Brasil, uma vez que as diferenças, as
singularidades e os valores que referenciam as práticas culturais de diversos grupos
sociais passaram a ser reconhecidos. Neste movimento, a relação do patrimônio
cultural com as identidades foi redimensionada pelos deslocamentos trazidos pela

65
questão da diversidade cultural. Negros, índios e imigrantes, assim como a chamada
tradição popular, com seus saberes e fazeres, festas e folguedos, passaram a ser
incorporados na história das práticas preservacionistas no Brasil.
Os primeiros indícios dessas mudanças, sobretudo no que tange à identificação
da diversidade cultural e ao registro do popular, podem ser localizados na criação do
Centro Nacional de Referência Cultural – CNRC (1975), posteriormente integrado
à Fundação Nacional Pró-Memória (1979) por Aloisio Magalhães. Mostrando
ressonância ao projeto andradino para o patrimônio, distingue-se deste à medida
em que opera com o conceito de bem cultural que identifica toda a dinâmica
cultural como patrimônio. Nessa trajetória do CNRC, é notável o distanciamento
de uma noção de patrimônio assentada na atribuição de valores e sentidos aos bens
patrimoniais em si para uma concepção mais preocupada com os sujeitos produtores
desses bens culturais. Preservar processos e não mais produtos ou objetos culturais
tornou-se, então, o desafio e o dilema da prática preservacionista.
Todo esse processo de mudanças pelo qual passa a questão do patrimônio está
inserido num contexto mais amplo de transformações histórico-políticas da sociedade
contemporânea em nível internacional e nacional. Aqui valemo-nos mais uma vez da
história dos conceitos de Kosellek para situar a emergência da dimensão intangível
do patrimônio cultural como sinalizadora de novos horizontes de expectativas. Em
paralelo às orientações internacionais da UNESCO, que no Brasil coincidem com o
surgimento dos movimentos sociais, acompanhada da renovação historiográfica, a
nova concepção de patrimônio colocou o valor cultural como determinante das novas
orientações de uma política pública de preservação mais inclusiva.
Nota-se que não se trata apenas de uma ressemantização do conceito
em si, mas da abrangência que seu sentido passou a ter segundo sua concepção
antropológica de cultura. Nesse processo, “a luta pelos conceitos adequados ganha
relevância social e política”, transformando-se em “conceito engajado”, como
observou Kosellek (2006, p. 100-101) ao defender a valorização do patrimônio
cultural como um direito cultural, no qual o direito à memória tornou-se seu
substrato. Todo esse percurso do debate poderá ser acompanhado, no âmbito da
UNESCO, pelas “cartas” e “recomendações” (Convenção do Patrimônio Mundial,
1972; Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular do
Mundo, 1989; Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial, 2003). Já
no Brasil, o debate será respaldado pelo artigo 216 da Constituição de 1988, que
define a atual concepção de patrimônio cultural.
A desmaterialização do patrimônio cultural com o decreto 3.551, de 2000,
trouxe mudanças significativas à concepção atual de patrimônio cultural e imprimiu
uma nova configuração aos paradigmas preservacionistas até então em vigor. Ao
instituir o Registro e o Inventário do Patrimônio Cultural de Natureza Imaterial como

66
novos instrumentos legais e administrativos para a identificação, (re)conhecimento e
promoção dos bens culturais em seu processo dinâmico e processual, novos desafios
de ordem epistemológica e política se impuseram mediante a necessidade de abarcar
os diferentes suportes da memória, manifestados num conjunto de práticas culturais
cujas medidas de salvaguarda visam à preservação de festas e celebrações, saberes
e ofícios, formas de expressão e demais referenciais constitutivos da memória,
identidade e formação da sociedade brasileira.
Respaldados pela concepção de continuidade histórica – condição necessária
à identificação das experiências temporais dessas manifestações, em oposição à noção
de autenticidade e imobilismo, conforme observou Marcia Sant’Anna (2006) –, tais
instrumentos se valem da história para produzir conhecimento sobre determinados
bens e práticas, conferindo-lhes status de patrimônio nacional de natureza imaterial.
Nessa releitura do passado, o que se tem observado, no entanto, é que a noção de
continuidade histórica tem resvalado para uma filiação naturalizada de tempo linear,
herdeira de uma tradição iluminista de história.
Como é sabido, os tempos da memória são múltiplos, conflituosos e carregam
no jogo das dinâmicas identitárias as marcas do presente. O tempo da memória é o
presente porque são as demandas do presente que mobilizam a memória. Ou seja,
é necessário perceber como os referenciais identitários de grupos, comunidades e
segmentos sociais são cotidianamente criados, recriados e negociados em suas práticas
sociais. Afinal, o tempo do saber e do saber-fazer, dos ofícios e dos mestres é o tempo
da tradição. O tempo do transmitir e do receber é atravessado de presente e pelo
presente.
Ao documentar a memória de determinados bens e práticas culturais no tempo
e no espaço, o registro e o inventário constituem-se, assim como o tombamento, em
um importante dispositivo de construção de uma representação da nação igualmente
assentado num continuum temporal. Não obstante a substituição de um imperativo
tempo monumental – remanescente de uma memória histórica e identidade nacional
que pouco referia-se à maioria da população – por um tempo social – importante
testemunho das temporalidades sociais que compõem as múltiplas experiências vividas
por indivíduos e grupos em seu processo de reelaboração das identidades na sociedade
contemporânea –, interessa perceber a historicidade do conceito de patrimônio
cultural construída a partir dos valores que o poder público e os sujeitos atribuem a
bens e práticas culturais, definidos a partir de um regime de temporalidades inserido
na lógica do lembrar e do esquecer.

67
Referências Bibliográficas
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Publifolha, 2000 (Coleção Grandes Nomes do Pen-
samento Brasileiro).
CHOAY, Françoise. Alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade: UNESP, 2001.
______. A propósito de culto e de monumentos. In: O culto moderno dos monumentos: sua essência e sua gênese.
Goiânia: Editora da UFG, 2006.
CHUVA, Marcia. A História como Instrumento na Identificação do Bens Culturais. In: Inventários de Identifi-
cação: um panorama da experiência brasileira. Rio de Janeiro: IPHAN/Minc, 1998.
______. O ofício do historiador: sobre ética e patrimônio cultural. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional: Anais da I Oficina de Pesquisa. A pesquisa histórica no IPHAN. Rio de Janeiro: IPHAN/
COPEDOC, 2008.
______. Os arquitetos da memória: sociogênese das práticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil. Rio
de Janeiro: Ed. UFRJ, 2009.
DE CERTEAU, Michel. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.
FONSECA, Maria Cecília L. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil.
Rio de Janeiro: UFRJ\IPHAN, 1997.
HARTOG, François. Tempo e patrimônio. Varia Historia. Belo Horizonte, vol. 22, n. 36, 2006.
HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela Memória: Arquitetura, Monumentos, Mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano,
2000.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Con-
traponto/PUC, 2006.
KERSTEN, Maria Scholz de A. Os rituais do tombamento e a escrita da história: Bens tombados no Paraná entre
1938-1990. Curitiba: UFPR, 2000.
MORAES, Eduardo Jardim de. A brasilidade modernista: Sua dimensão filosófica. Rio de Janeiro: Graal, 1978.
MOTTA, Lia. Ouro Preto: de monumento nacional a patrimônio mundial. In: “Salvemos Ouro Preto”: A cam-
panha em benefício de Ouro Preto 1949-1950. Rio de Janeiro: IPHAN/COPEDOC, 2008.
NOGUEIRA, Antonio Gilberto R. Por um inventário dos sentidos: Mário de Andrade e a concepção de patrimô-
nio e inventário. São Paulo: Hucitec\FAPESP, 2005.
______. O Centro de Referência Cultural – CERES (1976-1990) e o registro audiovisual da memória popular
do Ceará. In: Futuro do pretérito: Escrita da história e história do museu. Fortaleza: Instituto Frei Tito
Alencar, 2010.
______. Patrimônio cultural e novas políticas de memória. In: Em tempo: História, Memória, Educação. Forta-
leza: Imprensa Universitária, 2008.
______. O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e a Redescoberta do Brasil: A sacralização da me-
mória em pedra e cal. São Paulo: PUC-SP, 1995. (Dissertação de Mestrado)
NORA, Pierre. Entre Memória e História: A problemática dos lugares. Projeto História: História & Cultura.
São Paulo: PUC, n. 10, 1993.
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Cultura é patrimônio: Um guia. Rio de Janeiro: FGV, 2008.
PEREIRA, Julia Wagner. O tombamento: de instrumento a processo na construção de uma ideia de nação. In:
Patrimônio cultural: políticas e perspectivas de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X: Faperj,
2012.
PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. Presentismo, pós-modernidade e dever de memória: notas a alguns dos
dilemas conceituais do tempo presente. In: Cidadania, memória e patrimônio: as dimensões do museu no
cenário atual. Belo Horizonte: Crisálida, 2009.
POULOT, Dominique. Uma história do patrimônio no ocidente. São Paulo: Estação Liberdade, 2009.
RUSEN, Jorn. Razão histórica: Teoria da história: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora UnB,
2001.
SANT’ANNA, Márcia. A face imaterial do patrimônio cultural: os novos instrumentos de reconhecimento e
valorização. In: Memória e Patrimônio: Ensaios Contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

68
Parte 2
Escritores e escritas da história
Escrita da História na Antiguidade
Tardia: reflexões para um debate com
a historiografia contemporânea

Marcus Cruz*

A cada ano, quando desço de minha cátedra, quando vejo


a multidão escoar, mais uma geração que não voltarei a ver,
meu pensamento retorna a mim... Interrogo meu ensinamento,
minha história...a cada vez que nesta época do ano meu
ensino me cansa, e o trabalho pesa, e a estação se adensa...
(MICHELET, 1989, p.15, grifo nosso)

As palavras, sempre eloquentes, de Jules Michelet no prefácio de 1847 da sua


História da Revolução Francesa inspiram e instigam, a nós professores e historiadores,
a refletir acerca do nosso ensinamento. Para um docente que ministra disciplinas da
área de Teoria e Metodologia da História, o pensamento se volta para examinar o
lugar das questões de ordem teórica e conceitual e para a importância dos problemas
inerentes aos procedimentos metodológicos do conhecimento histórico na formação
do jovem historiador, seja do bacharel, seja do licenciado. A conclusão que se impõe
após este íntimo e pessoal certame é de que, por um lado, as discussões dos aspectos
teóricos e metodológicos da História são essenciais não apenas para os neófitos, mas
para todos os integrantes do campo historiográfico. No entanto, por outro lado,
é incontestável a pequena frequência e a baixa densidade do debate conceitual e
epistemológico entre os historiadores.

* Professor Doutor – Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História - Universidade


Federal de Mato Grosso. E-mail: marcuscruz@uol.com.br.

70
Em um texto do final do século XX, que serve de introdução à coletânea
Passados Recompostos. Campos e Canteiros da História, Jean Boutier e Dominique Julia
afirmam: “Em que pensam os historiadores? A questão parecerá a muitos uma piada
pois, ao contrário do que ocorre com os filósofos, não se espera dos historiadores
que sejam virtuoses do conceito, nem que elaborem complexas arquiteturas teóricas”
(BOUTIER, 1998, p. 21). A visão dos autores corrobora nossa perspectiva de que
o debate teórico, conceitual e metodológico no campo historiográfico tem sido
sistematicamente relegado a um segundo plano pelos historiadores ou até mesmo, o
que é pior, sequer tem sido enfrentado pelos artesãos da oficina da História.
Esta não é uma postura nova e, portanto, não pode ser atribuída apenas aos
historiadores contemporâneos, como podemos notar nas palavras de Henri Berr no
livro La Synthèse en Histoire. Essai critique et théorique, publicado em 1911: “A crise
da História [...] o estado inorgânico dos estudos históricos [...] provém do fato de que
um número excessivo de historiadores jamais refletiu sobre a natureza de sua ciência”
(BERR, 1911, p. 15). A análise do fundador da Revue de Synthèse Historique, apesar
de centenária, infelizmente, continua atual e válida.
Tal situação vivenciada e característica do campo historiográfico data dos
primórdios do estabelecimento deste, nas primeiras décadas dos oitocentos. É quando
o historicismo, no bojo da tradição histórica alemã, na busca de fundar uma ciência
histórica, rejeita firmemente a filosofia da História – especialmente aquela formulada
por Georg Wilhelm Friedrich Hegel. A opção hegemônica na historiografia do
século XIX foi afirmar que o historiador não é um teórico e que sua ocupação não
é filosofar, mas sim, uma vez retirados dos documentos, narrar os acontecimentos
como realmente aconteceram (“wie es eigentlich gewesen”), na célebre e sempre
citada fórmula de Leopold von Ranke.
Apesar da postura extremamente crítica em relação à produção histórica
realizada pelos historiadores historicistas e metódicos, as correntes historiográficas
do século XX mantiveram uma resistência quase instintiva às questões teóricas e
conceituais inerentes ao conhecimento histórico. Podemos citar como exemplo deste
posicionamento o grupo dos Annales. Braudel, na aula inaugural do Collège de France
em 1950, afirma sobre a filosofia da história: “Certamente, não nessa falência da
filosofia da história, preparada muito tempo antes e em cujas ambições e conclusões
precoces ninguém mais aceitava, mesmo antes do início deste século” (BRAUDEL,
1978, p. 21). A preocupação central dos historiadores ligados ao programa annalista
se centrava em questões de ordem metodológica, ou seja, estabelecer procedimentos
para o ofício do historiador, como podemos perceber nesta outra passagem retirada
da mesma aula inaugural citada há pouco:

71
Uma história nova só é possível pelo enorme levantamento de uma documentação que
responde a essas novas questões. Duvido mesmo que o habitual trabalho artesanal do
historiador esteja na medida de nossas atuais ambições. Com o perigo que isso pode
representar e as dificuldades que a solução implica, não há salvação fora dos métodos do
trabalho em equipes (BRAUDEL, 1978, p. 26).

As declarações de outro ilustre representante dos Annales, Georges Duby,


são ainda mais reveladoras acerca do lugar secundário, ou mesmo do não-lugar, da
reflexão teórica nesta perspectiva historiográfica. Em entrevista a Guy Lardreau, o
medievalista francês marca bem claramente sua posição: “Tentemos ver como é que
se trabalha. Você é filósofo, eu sou historiador; não tenho muito gosto pelas teorias;
o meu ofício, faço-o, e não reflicto por aí além sobre ele. Penso que temos que partir
do concreto, da maneira de fazer, de trabalhar – na oficina” (DUBY, 1989, p. 36).
Essa atitude, porém, não se limita aos Annales – ela se encontra disseminada
mesmo entre autores que se debruçam sobre a história da escrita da história. Na
introdução de sua obra bastante conhecida sobre a historiografia, Charles Olivier
Carbonell afirma:
O objetivo desta curta síntese é expor de um ponto de vista histórico – isto é situando-a
constantemente no seu contexto – a diversidade dos modos de representação do passado
no espaço e no tempo. Assim, falar-se-á mais de Heródoto do que de Platão, de Suetónio
do que de Cícero, de Mabillon do que de Rousseau, de Mommsen do que de Dilthey, de
Lucien Febvre do que de Raymond Aron [...] (CARBONELL, 1987, p. 6).

Em suma, entendemos ser uma marca distintiva, tanto na constituição,


quanto na consolidação do campo historiográfico, da marginalização do debate
epistemológico. No entanto, a crise paradigmática que atingiu o pensamento histórico
no último quartel do século XX pode se apresentar como uma oportunidade para o
adensamento das discussões teóricas entre os historiadores. Diante da demolidora e
desconstrutora crítica que atingiu e abalou o paradigma historiográfico iluminista,
na denominação utilizada por Ciro Flamarion Cardoso, mais do que necessário,
é urgente que a comunidade acadêmica histórica proponha e realize um intenso e
franco debate – se não para estabelecer um novo paradigma historiográfico, pelo
menos para refletir acerca do ofício dos historiadores no que parece ser um novo
regime de historicidade.
A questão que podemos nos colocar, após aceitar a necessidade da realização
deste debate, é: Qual o escopo dessas discussões? Entendemos que a reflexão
historiográfica deve privilegiar a construção de um aparato conceitual, ou seja,
a elaboração de um conjunto de instrumentos analíticos que possibilitem aos

72
historiadores se dedicarem ao objetivo primordial, qual seja, a explicação dos processos
históricos de transformação social.
Marc Bloch, na sua derradeira obra, Apologia da História ou o Ofício de
historiador, já clamava pela necessidade do pensamento histórico estabelecer o que ele
denomina de nomenclatura:
Pois toda análise requer primeiro, como instrumento, uma linguagem apropriada capaz
de desenhar com precisão os contornos dos fatos, embora conservando a flexibilidade
necessária para se adaptar progressivamente às descobertas, uma linguagem sobretudo sem
flutuações nem equívocos (BLOCH, 2001, p. 135).

A preocupação central de Bloch é com a mobilidade da significação


dos vocábulos ao longo do tempo e as dificuldades que isto traz para o trabalho
historiográfico. No entanto, podemos observar também a percepção do autor de que,
além das questões do sentido das palavras, estas remetem a algo mais profundo, a uma
problemática que o historiador não pode se furtar de enfrentar:
Estimar que a nomenclatura dos documentos possa bastar completamente para fixar a
nossa seria o mesmo, em suma, que admitir que nos fornecem a análise toda pronta.
A história, nesse caso, não teria muito a fazer. Felizmente, para nossa satisfação, não é
nada disso, eis por que somos obrigados a procurar em outro lugar nossas grandes estruturas
de classificação. Para fornecê-las, todo um léxico já nos é oferecido, cuja generalidade
se pretende superior às ressonâncias de qualquer época particular. Elaborado, sem seu
objetivo preestabelecido, pelos retoques de várias gerações de historiadores ele reúne
elementos de data e de proveniência muito diversos (BLOCH, 2001, p. 143, grifo nosso).

Bloch, portanto, afirma a necessidade de os historiadores buscarem nossas


grandes estruturas de classificação. Mas o que seriam elas? Em nossa interpretação,
entendemos que o autor salienta a necessidade de a pesquisa histórica construir um
instrumental analítico. Em outras palavras, um conjunto de conceitos que permita a
explicação dos processos históricos.
A constituição de um campo de conhecimento ocorre, na maioria das vezes,
concomitantemente com a construção dos conceitos que irão não somente estabelecer
os parâmetros analíticos da disciplina – em algumas situações, a partir de complexos
sistemas formais –, mas também individualizar a área de saber em relação às demais.
Como afirma Julio Aróstegui:
Dessa forma, sempre que um certo tipo de estudo da realidade define com a devida clareza
seu campo, seu âmbito, seu objeto, quer dizer, o tipo de fenômenos a que se dedica, e se
vai desenhando a forma de neles penetrar, ou seja, seu método, surge a necessidade de
estabelecer uma distinção, pelo menos relativa, entre esse campo que se pretende conhecer
– a sociedade, a composição da matéria, ávida, os números, a mente humana, etc. – e o

73
conjunto acumulado de conhecimento e de doutrinas sobre tal campo. A criação de um
vocabulário específico para uma determinada área de conhecimento começa aí: na forma
de diferenciar na linguagem um certo objeto de conhecimento e a disciplina cognoscitiva
(científica que dele se ocupa) (ARÓSTEGUI, 2006, p. 27).

Paradoxalmente no momento em que a História se estabelecia enquanto


um campo de conhecimento, isto é, ao longo do século XIX, a rejeição radical da
filosofia da história limitou ou mesmo afastou as discussões teóricas e epistemológicas
do processo de constituição da área do saber. Isso faz com que os historiadores
dos oitocentos se voltassem fundamentalmente para a criação de procedimentos
metodológicos que garantiriam a cientificidade e a legitimidade da História.
É candente, portanto, a necessidade de os historiadores se lançarem
destemidamente ao debate teórico e ao refinamento conceitual de seus instrumentos
de análise. No entanto, essas discussões precisam superar certa atitude bastante
comum na historiografia do século XX que, muitas vezes, sob o manto legitimador da
interdisciplinaridade, a rigor, faz saquear ou importar, sem uma reflexão crítica mais
aprofundada, conceitos de outras ciências sociais. Foi o que aconteceu, por exemplo,
com o conceito de conjuntura oriundo da economia, ou o de estrutura, tomado do
estruturalismo levistraussiano, ou mais recentemente com a noção de cultura da
antropologia simbólica, especialmente aquela proposta por Clifford Geertz.
O debate teórico que se impõe não pode ser realizado sem o estabelecimento
de diretrizes, capazes de não somente nortear as discussões, mas também criar as
condições para um certame frutífero e produtivo. Um caminho que nos parece
particularmente fecundo, visando atingir o objetivo de adensar o debate teórico do
campo histórico, é o proposto por Arno Wehling – ou seja, a história da escrita da
história se constituir como “laboratório” de uma epistemologia histórica. Nas palavras
do próprio autor:
Laboratório, sem nenhum travo fisicalista, porque se trata da possibilidade de aplicação das
categorias e dos procedimentos epistemológicos a determinados tipos de fontes - as obras
historiográficas – com caráter de exercício intelectual, que contribua para o refinamento
teórico do campo (WEHLING, 2006, p. 175).

Esta proposta apresenta-se como de grande interesse pela própria tipologia


do conhecimento histórico, que possui um caráter autorreflexivo que o diferencia no
conjunto das Ciências Sociais, ou seja, o trabalho do historiador exige um contínuo
e constante exercício de memória e de retomada da produção do conhecimento
já produzido acerca da temática da pesquisa. Ao contrário de um físico que lê o
Philosophiae naturalis principia mathematica de Newton, publicado em 1687, nos
dias de hoje apenas por curiosidade, um historiador contemporâneo lê, por exemplo,
History of the Decline and Fall of the Roman Empire, de Edward Gibbon, publicado
entre 1776 e 1788, com interesse historiográfico. Significa dizer que, em decorrência

74
da característica autorreflexiva de conhecimento histórico, os historiadores dialogam
com as obras históricas do passado. Os historiadores que nos antecederam ainda são
nossos interlocutores, o que torna pertinente e fecunda a perspectiva de investigação
da história da escrita da história como campo de debate da teoria da história.
Desta forma, a história da escrita da História passaria a ser integrada à história
da ciência, assumindo a condição de locus por excelência de formulação de uma
epistemologia histórica. Pois, como afirma Wehling:
O “território do historiador”, assim como o dos demais campos científicos é composto
por uma rede em que interagem questões epistemológicas, metodológicas e empíricas, só
seccionáveis e distintas por artifício lógico; mas é inegável que as questões de natureza
epistemológica, nos diferentes campos científicos, por sua vez articulam-se, como
epistemologias “setoriais” que são a epistemologia geral e dão o tom da abordagem científica
do campo (WEHLING, 2006, p. 175).

Neste momento se impõe uma nova questão, qual seja a concernência da


proposta de tomar a história da escrita da história como um laboratório para a
discussão e refinamento teórico da história no que tange a sua abrangência. Ela é
válida para todos os períodos nos quais se produziu uma escrita histórica ou deve se
restringir ao momento em que o campo histórico tornou-se uma ciência, em que a
escrita da história se tornou historiografia?
Limitar a analise epistemológica da produção da história tida como ciência
social, excluindo as demais manifestações da escrita da história, se justificaria pelo fato
de que o processo de construção do conhecimento histórico em outros momentos do
devir da civilização ocidental possuía finalidades substancialmente diferentes daquelas
que encontramos na proposta cientificista, mesmo considerando as mutações desta ao
longo dos séculos XIX e XX.
No entanto, devemos considerar que, na ciência social moderna, questões de
natureza ontológica, ética ou simplesmente ideológica frequentemente surgem na
história e nas demais ciências sociais. Elas envolvem complexos e sofisticados esforços
de delimitação, neutralização ou mesmo desmascaramento. Então, por que não
considerar úteis e fecundos os estudos que tenham por objeto as escritas da história
em sociedades e culturas diferentes nas quais essas questões também estão presentes?
Nesta segunda perspectiva, objetivamos nos interrogar acerca das contribuições
que a escrita da história ao longo da Antiguidade Tardia pode oferecer para o debate
historiográfico contemporâneo.
Como defendemos a necessidade imperiosa do aprofundamento do debate
teórico no campo historiográfico, da mesma forma entendemos que essas discussões
devem obrigatoriamente contemplar a construção do aparato conceitual do
conhecimento histórico. Por isso, não podemos nos furtar a precisar e definir o que
entendemos por Antiguidade Tardia.

75
No caso específico, o conceito de Antiguidade Tardia tem origem alemã.
Em 1853, em sua obra sobre a época de Constantino, Jacob Burkhadt emprega o
termo Spätantike para designar este momento histórico. No entanto, a Antiguidade
Tardia entendida como um período histórico específico e próprio é, sem dúvida,
uma contribuição de outro historiador da arte alemão, Aloïs Riegl. Em 1901, na
introdução de um catálogo do Österreichischen Museum acerca dos produtos têxteis
do Egito antigo, ele lança essa ideia.
A expressão foi bem sucedida e, no início do século XX, foi usada para
descrever uma nova fase da evolução artística que traz consigo uma “nova noção de
espaço” e começou a afirmar-se na era de Constantino. A novidade fundamental na
arte deste período é determinada por uma original “Kunstwollen”, vontade artística,
que é em si uma síntese expressiva dos desejos e sensibilidades enraizados na tradição
clássica, mas, evidentemente, separados desta.
A “Antiguidade Tardia” como um período possui uma história complexa, com
momentos em que as questões a ela relativas se intensificam. Um destes momentos
foi, sem dúvida, o entreguerras, alcançando seu ápice em 1923, durante o Congresso
Internacional de Ciências Históricas, em Bruxelas. Os trágicos acontecimentos
que sacudiram a Europa tiveram um impacto profundo sobre a historiografia. A
continuidade da existência da civilização ocidental era discutida ardorosamente. É
um momento marcado pela hegemonia dos conceitos de decadência e de crise, como
podemos perceber nas obras de estudiosos como Spengler e Ortega y Gasset. Eles
não somente explicam os recentes acontecimentos do mundo, mas sua presença e
influência também podem ser percebidas nas discussões sobre as causas do fim do
Império Romano.
Uma obra deste momento, por exemplo, é The Social and Economic History of
the Roman Empire, de Rostovtzeff, anunciada naquele congresso de 1923. A grande
ênfase da interpretação de Rostovtzeff está na ideia de um grande declínio irreversível
do Império Romano a partir do terceiro século.
Ainda no período entreguerras, a obra de Marrou propôs enaltecer a literatura
e os valores artísticos da Antiguidade Tardia. O “retractatio” incluído por Marrou na
segunda edição do seu livro, Saint Augustin et le fin de la culture antique, afirma que a
noção de declínio não se sustenta quando aplicada à cultura antiga tardia.
É este julgamento que eu creio ser necessário retificar hoje; o distanciamento me permite
perceber as raízes do meu erro: ele repousa sobre uma análise insuficiente dos conceitos em
minha obra. Quero reagir contra uma abordagem negativa que os neo-clássicos impuseram
a um longo tempo aos estudos franceses que continuam a manifestar no termo vagamente
pejorativo de Baixo Império. Porém acabei abordando aquele estudo com noções oriundas
desta tradição com a qual eu pretendia romper. Este é o caso, para começar, da noção de
decadencia (MARROU, 1958, p. 663-664).1

76
No final dos anos 1950, por seu turno, Arnaldo Momigliano, na abertura
de um famoso ensaio, apresentado no Instituto Warburg em Londres, em 1959,
começou sua intervenção com a observação de que a noção de Declínio e Queda do
Império Romano era universalmente aceita: “Eu talvez possa começar com uma boa
notícia. Em 1959 ainda pode ser considerado uma verdade histórica que o Império
Romano declinou e caiu”. A noção de decadência continuava elemento central dos
estudos relativos à Antiguidade Tardia.
O debate tornou-se mais intenso nos anos 1960, quando Santo Mazzarino
escreveu um ensaio em que propõe a chamada “cultura della democratizzazione”
como uma chave interpretativa para a Antiguidade Tardia. O historiador italiano
recusa o conceito de decadência, que considera subjetivo e estéril para entender a
realidade política e social deste momento, ainda que admitisse a existência de um
declínio efetivo em certos domínios. Esta perspectiva é retomada e desenvolvida na
obra de Arnold Jones, The Later Roman Empire 284-602.
No entanto, é a obra de Peter Brown que irá recolocar este debate em outros
e novos termos, especialmente na obra The Making of Late Antiquity, considerada
paradigmática acerca da concepção do historiador irlandês – ainda que The World of
Late Antiquity from Marcus Aurelius to Mohammad. AD 150-750 seja anterior e já
apresente as principais ideias acerca da Antiguidade Tardia, que serão posteriormente
retomadas e desenvolvidas. A obra de Brown é ponto de referência necessária na
discussão concordando-se com ele ou não. Se Peter Brown não é o Pai da Antiguidade
Tardia, certamente ele é o gênio a que preside. Diante da importância do autor para
o debate, é necessário discutir mais detidamente suas concepções.
Apesar de não ter sido sua primeira obra publicada, The World of Late Antiquity
from Marcus Aurelius to Mohammad. AD 150-750 é aquela que torna Peter Brown
conhecido nos círculos acadêmicos dedicados ao estudo da Antiguidade. A obra
apresenta logo em seu parágrafo inicial o escopo do seu trabalho:
Ocupamo-nos, neste livro, da evolução da sociedade e da cultura. Queremos que o leitor
saiba como, quando e porque é que o último período do mundo antigo difere da civilização
“clássica”, porque é que as grandes transformações deste período determinaram, por sua
vez, a evolução da Europa do Ocidente e do Levante (BROWN, 1972, p. 7).

A proposta do autor apresenta-se como uma abordagem social e cultural do


período, ressaltando o legado deste momento para as sociedades bizantina, islâmica
e medieval.
As duas principais ideias que norteiam a argumentação nesta obra são, por um
lado, compreender a Antiguidade Tardia não como um momento de decadência e
declínio, mas como uma época de grande criatividade e inovação, que se manifestam
principalmente na religião e na cultura: “O sentimento de uma ‘explosão’ da energia
divina no mundo interior do indivíduo tem efeitos revolucionários. Em muitos

77
homens e mulheres humildes despertam, subitamente, o poder formativo da cultura
clássica e as sanções habituais do comportamento” (BROWN, 1972, p. 55). Por outro
lado, na afirmação da existência de uma continuidade com o passado, a Antiguidade
Tardia é a legítima herdeira do legado clássico e irá perpetuar essa herança:
Grupo algum de romanos idealizara jamais Roma tão entusiasticamente como os poetas
e oradores do fim so século IV e começos do século V. O mito de Roma, que havia de
obcecar os homens da Idade Média e do Renascimento – Roma æterna, Roma concebida
como clímax da civilização, destinado a continuar sempre -, não foi criado pelos homens
do Império Romano clássico; foi um legado direto do forte patriotismo do mundo latino
do fim do século IV (BROWN, 1972, p. 55).

The World of Late Antiquity from Marcus Aurelius to Mohammad. AD 150-750


se estrutura a partir de uma tensão entre continuidade e ruptura. A Antiguidade Tardia
é conceituada como um momento histórico em que se estabelece uma dialética entre
a inovação e a conservação: “Quando nos ocupamos do último período do Mundo
Antigo, vemo-nos entre a contemplação saudosa das velhas ruínas e as aclamações
esperançosas de um mundo novo” (BROWN, 1972, p. 7). A originalidade do período
se encontra nesta dinâmica entre o antigo e o novo. A sua essência é ser uma época
de transição.
A abordagem de Peter Brown da Antiguidade Tardia abandona os conceitos
de decadência e de declínio, substituídos pelos de transformação e transição. O
pessimismo do final do século XIX e do entreguerras havia sido substituído pelo
otimismo advindo da vitória dos valores civilizacionais ocidentais na II Guerra
(democracia e capitalismo), pela reconstrução da Europa e, principalmente, pela
forte expansão do capitalismo do pós-guerra. A civilização ocidental não se encontra
mais em risco no início da década de 1970. Os problemas a serem enfrentados
são de outra ordem, contemplando, fundamentalmente, a forma e a maneira de
incorporação de novos grupos a esta civilização: os imigrantes oriundos do processo
de descolonização, as mulheres do movimento feminista e os jovens estudantes do
maio de 68, entre outros. Esta passagem de The World of Late Antiquity from Marcus
Aurelius to Mohammad. AD 150-750 nos parece paradigmática:
Como aproveitar um grande passado sem uma modificação aniquiladora; como mudar
sem destruir as raízes; e sobretudo, como proceder, com desconhecidos pelo meio, com
homens postos de lado por uma sociedade aristocrática tradicional, pensamentos privados
de expressão por uma cultura rotineira, necessidade alheadas de uma religião convencional,
estrangeiros de paragens distantes – tais são os problemas que toda a sociedade civilizada se
vê obrigada a defrontar (BROWN, 1972, p. 8).

Peter Brown está se referindo ao mundo tardo antigo, mas suas palavras bem
poderiam ser aplicadas, como ele próprio afirma, a toda a sociedade civilizada –
portanto, ao Ocidente contemporâneo.

78
A inovadora leitura da Antiguidade Tardia proposta por Brown
teve um grande impacto, levando Averil Cameron a falar, em termos inequívocos,
de um “modelo browniano” ou “Visão browniana”. A influência da abordagem do
historiador irlandês pode ser medida a partir de três elementos. Em primeiro lugar,
a repercussão intelectual da obra: a contribuição do autor é, sem dúvida, a mais
relevante e de maior impacto neste campo de estudos. O segundo critério é de cunho
institucional. A obra de Peter Brown criou condições para a aproximação de grupos
de pesquisadores que trabalhavam com temáticas ligadas ou ao fim do mundo antigo
ou ao início da Idade Média. Nas palavras de Hervé Inglebert: “A Antiguidade Tardia
era um conceito, ela se tornou uma disciplina universitária, com suas cadeiras, suas
revistas, seus colóquios [...]” (INGLEBERT, 2011, p. 406). O terceiro elemento é de
cunho metodológico. A abordagem temática e metodológica de Brown influenciou
diversos historiadores, tais como Averil Cameron, Aline Rouselle, Charles Piétri,
Andrea Gierdina, Mario Mazza e Alexandre Demantdt, entre outros. No entanto,
é importante ressaltar que, fora das temáticas religiosas, culturais e artísticas, a
abordagem de Peter Brown não apresenta a mesma influência.
Os anos 70 do século XX marcaram também, em relação aos estudos da
Antiguidade Tardia, uma retomada da produção marxista sobre a temática. A reflexão
do materialismo histórico está centrada na discussão da passagem, da transformação
de uma formação econômica e social para outra. Nesse sentido, a Antiguidade Tardia
é compreendida como o momento da transição entre o escravismo e o feudalismo.
É entendida como uma época de revolução social na qual se opera a profunda
transformação da formação econômica e social antiga para a medieval. Tal abordagem
entende que as relações sociais refletem em última instância as relações de produção
de uma formação econômica e social concreta. No caso da Antiguidade Tardia, o
fenômeno da revolução social surgirá como resultado necessário dos desajustes das
relações sociais existentes no mundo tardo antigo.
O materialismo histórico enquanto perspectiva analítica da Antiguidade
Tardia coloca importantes e fundamentais questionamentos acerca das realidades
econômicas e sociais do mundo tardo romano. No entanto, essa abordagem
precisa resolver um importante problema teórico, isto é, a validade da utilização
do conceito de revolução, cunhado para analisar os processos revolucionários
burgueses, para entender os fenômenos da sociedade tardo antiga. Apesar de
sua importância na contribuição da abordagem marxista da Antiguidade Tardia,
sua influência e impacto no campo de estudos têm sido bastante restritos diante
da clara hegemonia da perspectiva analítica aberta e consolidada pelas obras de
Peter Brown.
É, portanto, no bojo da Antiguidade Tardia, período fortemente marcado
pela dialética entre a continuidade e a ruptura, em que profundas e aceleradas
transformações no âmbito do mediterrâneo convivem com a permanência de hábitos,

79
costumes e formas de organização social. Nossa hipótese é que neste momento começa
a se configurar um novo horizonte de cognoscibilidade, que traz consigo uma nova
forma de escrita da história na medida em que se estabelece uma nova relação entre
presente e passado.
Como afirmou Arnaldo Momigliano “A revolução do século IV, trouxe consigo
uma nova historiografia [...]. Em geral, os cristãos empreendem sua escrita criativa
antes dos pagãos. Os cristãos atacam. Os pagãos estão na defensiva” (MOMIGLIANO,
1983, p. 102). Apenas para exemplificar e corroborar as afirmações do historiador
italiano, podemos citar que a História eclesiástica de Eusébio de Cesareia, em sua
primeira versão, surge por volta de 312, enquanto a História de Amiano Marcelino
surge no final do século. A questão não é apenas de ordem cronológica, mas também,
e principalmente, pelo fato de que a obra de Eusébio inaugura um nova temática
historiográfica, assim como novos procedimentos metodológicos. Já a obra de
Amiano Marcelino apresenta-se como um epígono da tradição tucidideana de escrita
da história. Um obra que nada deve à tradição historiográfica romana e mesmo grega,
mas que não encontrou seguidores entre os historiadores tardo antigos e da primeira
Idade Média.
A escrita da história durante a Antiguidade Tardia teve que se adaptar à
realidade surgida após as dramáticas transformações ocorridas no mundo romano
a partir do século III, ou seja, o surgimento de um novo grupo dirigente que tinha
dificuldade para recordar e se identificar com os fatos da história romana.
Os homens novos, oriundos das fileiras do exército, das províncias menos
romanizadas como a Germânia ou a Trácia, estavam ascendendo socialmente,
adquirindo riqueza e poder – e precisavam possuir algum conhecimento do glorioso
passado romano. Por outro lado, este grupo social estava se integrando e se fundindo
com a aristocracia tradicional romana, para a qual o conhecimento da história e das
antiguidades era um componente essencial da sua formação e da sua identidade.
Essa situação explica o surgimento dos breviaria, isto é, uma obra de
recompilação de datas e fatos históricos de pequenas dimensões. A obra sobre a
história romana de Eutropio, por exemplo, possuía 77 páginas, enquanto a de Festo,
apenas 20.
É interessante destacar que a historiografia cristã não produziu nenhum
breviaria comparável aos de Eutropio e Festo ao longo do século IV. Teremos que
esperar Sulpício Severo, no início do século V, para encontrar uma obra que, ao
fazer a combinação entre os cronógrafos cristãos e o texto bíblico por um lado e os
historiadores pagãos de outro, se aproxima da proposta do breviaria.
Podemos entender essa lacuna na medida que o problema que se colocava aos
cristãos era de outra espécie: a conversão significava o descobrimento de uma nova
história, que se iniciava com a criação do mundo adâmico. No entanto, esta nova

80
história não podia suprimir a antiga, isto é, era necessário, de alguma forma, conciliar
Adão e Enéas, Abraão e Rômulo, Moisés e Tarquínio, o soberbo.
A escrita da história na Antiguidade Tardia, portanto, criou novas formas
de expressão do pensamento histórico, explorou novas temáticas, experimentou
procedimentos metodológicos inéditos em sua busca da elaboração de um discurso
que fosse adequado e, principalmente, intérprete dos processos sociais inerentes a este
período da História.
Da mesma forma que a Antiguidade Tardia se apresenta como uma época
marcada pela tensão entre a continuidade e a ruptura no discurso histórico produzido
neste momento, também encontramos essa dialética entre o novo e o antigo. Dentre
os aspectos de continuidade devemos salientar o uso da retórica na escrita da história.
Desde os seus primórdios, escrever história no mundo antigo era produzir um
discurso persuasivo, capaz de convencer a audiência, o público. No seu livro Authority
and tradition in ancient historiography, John Marincola afirma que os historiadores do
período clássico tinham que convencer seus leitores dos méritos da sua obra através da
apresentação desta (MARINCOLA, 1997). Para compreender a afirmação do autor,
basta lembrar as palavras iniciais da obra de Heródoto:
Ao escrever sua história, Heródoto de Halicarnasso teve em mira evitar que os vestígios
das ações praticadas pelos homens se apagassem com o tempo e que as grandes e
maravilhosas explorações dos Gregos, assim como as dos Bárbaros, permanecessem
ignoradas [...] (HERÓDOTO, 1.1).

Ou, ainda, as afirmações de Tucídides:


O ateniense Tucídides escreveu a história da guerra entre os peloponésios e os atenienses,
começando desde os primeiros sinais, na expectativa de que ela seria grande e mais
importante que todas as anteriores, pois via que ambas as partes estavam preparadas em
todos os sentidos; além disso, observava os demais helenos aderindo a um lado ou ao outro,
uns imediatamente, os restantes pensando em fazê-lo. Com efeito, tratava-se do maior
movimento jamais realizado pelos helenos, estendendo-se também a alguns povos bárbaros
– a bem dizer a maior parte da humanidade (TUCÍDIDES, 1.1).

Na Antiguidade Tardia os historiadores, tanto pagãos quanto cristãos,


continuam a ter que demonstrar aos seus leitores o valor e a confiabilidade de suas
obras. O método mais tradicional era convencer o público da importância e da
grandeza das ações que iriam ser tratadas no texto. Podemos citar como exemplo a
seguinte passagem de Procópio de Cesareia, historiador pagão do VI século:
Porém agora me direciono para outra tarefa, de certo modo árdua e terrivelmente dificil de
realizar, as vidas de Justiniano e Teodora, resulta que me encontro tremendo e considero,
em boa medida, que o que escreverei, neste momento, pode parecer incrível ou inverossímil
às futuras gerações: especialmente, quando o tempo, em seu longo fluxo, tenha envelhecido
meu relato, temo colher a reputação de um mitógrafo ou ser incluído entre os poetas
trágicos (CESAREIA, 1.4).

81
Este procedimento não é exclusivo da historiografia pagã. Os historiadores
cristãos se utilizam do mesmo expediente. Vejamos o que escreve Teodoreto logo no
início da sua História Eclesiástica:
Quando os artistas pintam em painéis nas paredes os eventos da história antiga, seu objetivo
é tanto deleitar os olhos como para manter viva a memória do passado. Os historiadores
substituem os painéis por livros, os pigmentos pela brilhante descrição para manter a
memória do passado forte e permanente, pois a arte dos pintores é arruinada pelo tempo. É
por esta razão que eu preservo por escrito acontecimentos da história eclesiástica até então
omitidos, pois é não lícito olhar para frente quando o esquecimento rouba acontecimentos
nobres e úteis sua devida fama (TEODORETO 1.1.1-2).

Podemos observar, desta forma, que tanto autores pagãos quanto cristãos
buscam convencer o público da importância dos fatos a serem narrados em seus
escritos, em um procedimento de cunho retórico que data das origens do conhecimento
histórico com Herodoto e Tucídides – e que perpassa o discurso histórico produzido
no mundo antigo.
A importância da retórica na escrita da história durante toda a Antiguidade
nos obriga a refletir acerca do lugar e do papel da arte da argumentação no
conhecimento histórico antigo. A retórica pode ser definida como o estudo dos
discursos públicos, ou seja, o estudo da oratória e, por conseguinte, da arte da
argumentação e da persuasão. A partir dos sofistas os procedimentos retóricos
converteram-se no método de ensino por excelência da educação superior no
mundo antigo, o que inevitavelmente significou que estes passaram a exercer uma
grande influência na escrita da história. Influência que tendeu a crescer na medida
em que a história e a retórica eram entendidas como perseguindo o mesmo objetivo:
a formação da opinião pública. Como afirma Michael Grant: “Em toda caso parecia
que a história somente podia atingir esse objetivo recorrendo a um ‘estilo oratório’
construindo um todo ordenado e artístico” (GRANT, 2003, p. 46).
Um autor como Cícero, por exemplo, afirmou a estreita relação entre história
e retórica concebendo que a escrita da história era um tipo de retórica, pois dependia
desta a sua elegância e estilo. Tito Lívio, por seu turno, também adotou os recursos
retóricos, mesmo que isso significasse o sacrifício do rigor. Poderíamos citar outros
autores, como Plutarco, Tácito ou Amiano Marcelino, para os quais a retórica
desempenha um papel central na escrita da história. Como afirma Marrou:
A maioria dos leitores modernos, a menos que sejam especialistas, não podem captar nem
sequer intuir as sutilezas da antiga arte da retórica [...] que domina com total tirania a
educação e a literatura clássica. Isto é benéfico ou prejudicial? Hoje em dia o adjetivo
“retórico” se utiliza somente com conotações pejorativas, como sinônimo de pomposo e
artificial [...] Temos que reagir a essa visão negativa de algo que parece ser meramente
formal (MARROU, 1981, p. 16).

82
Esta passagem de Henri-Irenée Marrou nos permite colocar a derradeira
questão deste texto. Ela se dá a partir dos pressupostos tanto de caráter autorreflexivo
do conhecimento histórico quanto da proposta de Arno Wehling de utilizar a escrita
da história como um laboratório para o debate teórico e conceitual da historiografia,
mas também parte da importância da retórica na escrita da história ao longo de toda
a Antiguidade, especialmente no seu período tardio. O objetivo, portanto, é propor a
discussão sobre os procedimentos retóricos no seio da historiografia contemporânea.
Não pretendemos oferecer uma resposta definitiva para tal questão, mas
levantar possibilidades de reflexão que nos parecem especialmente pertinentes, em
um momento no qual os problemas relativos à narrativa assumiram, desde o ultimo
quarto do século passado, uma relevância central para o campo historiográfico.
Discutir os aspectos retóricos da escrita da história é questionar uma concepção
de conhecimento eminentemente cartesiana, na qual o verossímil é entendido como
falso – ora, o espaço da argumentação é o lugar por excelência do verossímil e do
plausível. Por sua vez, conhecimento histórico possui o que poderíamos chamar de
lógica argumentativa de comprovação de suas hipóteses.
Nesse sentido, retomar a discussão acerca dos procedimentos retóricos da escrita
da história é trazer para o debate historiográfico questões acerca dos mecanismos de
comprovação da verdade das proposições. O abandono de uma teoria da evidência
não significa necessariamente o abandono do debate com as forças irracionais, os
instintos, a sugestão ou a violência.
A construção de uma teoria da argumentação ocorre a partir de uma discussão
do lugar da retórica na escrita da história, tendo como objeto principal o estudo
das técnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão às teses que
se apresentam ao assentimento. Esse esforço teórico nos parece ser a possibilidade
da historiografia responder, por um lado, aos desafios lançados pela perspectiva
narrativista ao estatuto científico da história e, por outro, responder de forma
efetiva às afirmações acerca das limitações indevidas (e perfeitamente injustificadas)
aos campos, como o historiográfico, onde intervém a faculdade de raciocinar e os
procedimentos de comprovação não experimentais ou formais.

83
Nota
1 A obra de Henri-Irenée Marrou foi publicada em 1938 e a retratactio, em 1949. No ano de 1958, na nova
edição de Saint Augustin et le fin de la culture antique, encontramos os dois textos reunidos. Edição esta utilizada
na redação deste artigo.

Referências Bibliográficas

ARÓSTEGUI, Julio. A Pesquisa Histórica. Teoria e Método. Bauru, SP: Edusc, 2006.
BERR, Henri. La Synthèse en histoire. Essai critique et théorique. Paris, Félix Alcan, 1911.
BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Ofício de Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
BOUTIER, Jean; JULIA, Dominique. Em que Pensam os Historiadores? In: BOUTIER, Jean; JULIA, Do-
minique (orgs.). Passados Recompostos. Campos e Canteiros da História. Rio de Janeiro: Editora UFRJ:
Editora FVG, 1998.
BRAUDEL, Fernand. Posições da história em 1950. In: BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a Historia. São
Paulo: Editora Perspectiva, 1978, p.17-38.
BROWN, Peter. O Fim do Mundo Clássico. De marco Aurélio a Maomé. Lisboa: Editorial Verbo, 1972.
CARBONELL, Charles Olivier. Historiografia. Lisboa: Teorema, 1987.
CESAREIA, PROCÓPIO DE. História secreta. Madrid: Editorial Gredos, 2000.
DUBY, Georges; LARDREAU, Guy. Diálogos sobre a Nova História. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1989.
GRANT, Michael. Historiadores de Grecia y Roma. Madrid: Alianza Editorial, 2003.
HERÓDOTO. História. Lisboa: Ediçoes 70, 1997.
INGLEBERT, Hervé. Peter Brown. In: SALES, Véronique (Org.). Os Historiadores. São Paulo: Editora Unesp,
2011. p. 393-409.
MARROU, Henri-Irenée. Saint Augustin et la Fin de la Culture Antique. Paris: E. De Boccard, 1958.
______. Ancient Greek Historiography. In: FINLEY, Moses. The Legacy of Greece. A New Appraisal. Oxford:
Claredon Press, 1981.
MICHELET, Jules. História da Revolução Francesa. Da Queda da Bastilha à Festa da Federação. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
MOMIGLIANO, Arnaldo. Historiografia pagana e historiografia Cristiana en el siglo IV. In: MOMIGLIANO,
Arnaldo. Ensayos de historiografia antigua y moderna. México: Fondo de Cultura Económica, 1993, p.
95-111.
TEODORETO. The ecclesiastical history. Kila: Kessinger Publishing, 2010.
TUCÍDIDES. História da guerra do Peloponeso. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982.
WEHLING, Arno. Historiografia e epistemologia histórica. In: MALERBA, Jurandir (Org.). A História Escrita.
Teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006. p. 175-189.

84
Os diários íntimos como fonte
de pesquisa histórica

Márcio Couto Henrique*

A história dos diários

Na obra O coração desvelado: a experiência burguesa da Rainha Vitória a Freud,


Peter Gay (1999) discute o processo de “peregrinação ao mundo interior” ou “tendência
à introspecção”, que ocorreu na Europa do século XIX, época do Romantismo. Nesse
período, há uma verdadeira profusão de diários íntimos, confissões escritas, cartas
confidenciais, missivas de amor e ruminações religiosas como expressão do intenso
desejo de autoconhecimento que marcou a chamada “era vitoriana”. Mas a origem da
escrita de diários íntimos é bem anterior a tudo isso. Pode-se perceber seus primeiros
sinais ainda no século XVI, como desdobramento das transformações ocorridas a
partir do início da Modernidade.
Nesse sentido, o surgimento da imprensa favoreceu o desenvolvimento da
alfabetização e da leitura, ampliando a prática da leitura silenciosa, que cada vez mais
tornou-se alternativa para a leitura em voz alta, até então única maneira de ler. Também
as novas formas de religião surgidas a partir da Reforma protestante desenvolveram
formas de devoção interior tais como o exame de consciência. Nos países protestantes,
inclusive, a prática da escrita de diários íntimos foi muito desenvolvida em função do
incentivo dado à prática da leitura, necessária para o livre acesso à Bíblia.
Todas essas experiências permitiram ao indivíduo a possibilidade de se
isolar, de se conhecer melhor através da leitura individual e da escrita, contribuindo
decisivamente para o surgimento da “literatura autógrafa”, que terá como suporte os
diários, as cartas e as confissões de um modo geral. A princípio, uma das dificuldades
era encontrar suporte adequado para a escrita dos diários, sendo que muitos autores
começaram escrevendo nas margens laterais dos almanaques. Outros surgiram a
partir dos chamados Livros de Razão, nos quais se costumava escrever e guardar as
prescrições, receitas, fórmulas medicamentosas e maneiras de tratamento, para que
não fossem esquecidas ou sofressem alterações que acabassem por inviabilizar seu uso.
* Professor Doutor – Faculdade de História e do Programa de Pós-graduação em História - Universidade Federal
do Pará. E-mail: marciocouto@ufpa.br

85
A partir da industrialização, no século XVIII, o desenvolvimento da fabricação
de papel e das técnicas de encadernação tornou possível a venda de volumes
encadernados próprios para os registros íntimos. Hoje, qualquer papelaria vende
cadernos específicos para esse fim, com variedade de tamanhos, cores e formatos,
muitos ostentando na capa os dizeres “meu diário”.
Conforme demonstro em meu livro Um toque de voyeurismo: o diário íntimo
de Couto de Magalhães (1880-1887) (HENRIQUE, 2009), a partir da Modernidade
cada vez mais os homens passaram a perceber que os rumos da experiência humana
na terra não estavam absolutamente definidos a priori num plano divino exterior
e superior ao próprio homem e que parte considerável de sua vida constituía uma
aventura a ser inventada e reinventada por eles próprios. Estabelecendo novo e tenso
diálogo com as regras e os legados da tradição, o indivíduo moderno começa a se
constituir enquanto sujeito responsável por seu próprio destino.
De maneira geral, pode-se dizer que a escrita de diários íntimos ajuda o
indivíduo a se situar nesse novo mundo, na medida em que o registro de situações
cotidianas favorece o autoconhecimento e contribui para a constituição do que
Pierre Bourdieu (1995) chamou de “ilusão biográfica”: a crença de que somos
pessoas coerentes, que nossa vida é ordenada, que nosso “eu” é coerente e contínuo.
Acreditar nisso ajuda o sujeito moderno a conviver melhor com os sinais de sua
incompletude e de sua fragmentação. Por isso se diz que o sujeito que escreve diário
íntimo inventa uma vida para si, na medida em que os registros íntimos conferem
à sua vida uma coerência que muitas vezes não condiz com a realidade (GOMES,
2004). Em todo caso, é importante frisar que isso não se dá de maneira consciente;
nem sempre os autores de diários íntimos sabem dizer necessariamente porque
escrevem diários e, entre os que sabem, são muitas as motivações.

Os diários na história

Na Europa, as décadas de 1960 e 1970 constituem um marco do interesse


de historiadores, principalmente franceses, pelas chamadas fontes privadas. No
Brasil, muito embora Gilberto Freyre fizesse uso de diários em 1933, em seu Casa
Grande e Senzala (2003 [1933]), poucos historiadores utilizam esse tipo de fonte,
mais comum em pesquisas entre profissionais de Pedagogia e Letras. Mesmo com
a ampliação da noção de fontes históricas a partir da chamada Nova História, são
poucos os historiadores que atentaram para a riqueza dos diários. Em parte, por conta
da dificuldade em lidar com a especificidade desse tipo de fonte que, pelo fato de ser
escrita de forma espontânea, na esfera da intimidade e em primeira pessoa, possui um
“efeito-verdade” que a muitos assusta.
A percepção da especificidade dos diários ainda está se consolidando, a
partir das pesquisas atuais. São poucos os livros escritos a partir de diários íntimos

86
específicos. O mais comum são coletâneas de artigos tratando de diversos diários
e cartas. Por isso, um dos tópicos do meu livro, Um toque de voyeurismo, se chama
“Como tratar os diários?”, em que procuro refletir sobre a metodologia de análise
desse tipo de fonte histórica, a partir de pesquisas realizadas em diferentes áreas.
Duas importantes instituições de guarda de arquivos privados no Brasil
surgiram nos anos 1970: o CPDOC, na Fundação Getúlio Vargas, destinado a
guardar os papéis privados de homens públicos da política brasileira do pós-1930, e o
Arquivo Edgard Leuenroth, na Unicamp, que guarda a documentação de lideranças
do movimento sindical.
Minha coleção particular compreende cerca de 15 diários íntimos doados por
pessoas diferentes, todos escritos em fins do século XX ou no início do século XXI.
São pessoas comuns, desconhecidas, mas que aceitaram de bom grado a ideia de ver
seus escritos íntimos sendo devassados em pesquisas acadêmicas. Assim como eu,
diversos outros pesquisadores Brasil afora mantêm a guarda de documentos ligados
à escrita de si, além da documentação sob guarda dos próprios autores/escritores de
cartas e diários íntimos, por exemplo. Urge a necessidade de se criar um arquivo de
guarda de diários íntimos, cartas, memórias pessoais, confissões e todo tipo de escrita
de si, tornando-os disponíveis para a pesquisa.
Nos últimos anos, os diários íntimos que sobreviveram ao tempo têm sido
alvo de crescente interesse por pesquisadores de diferentes áreas. Historiadores
(GOMES, 2004), antropólogos (HENRIQUE, 2009), pedagogos (MIGNOT,
2000) e psicólogos (CALLIGARIS, 1998), além dos pesquisadores da área de Letras
(BASTOS, 2002; SCHWARZ, 1997), têm abordado esse suporte da escrita de si a
partir de diferentes ângulos, evidenciando a riqueza dos diários íntimos enquanto
fonte de pesquisa.

A dimensão social dos diários

Apesar de escritos na esfera da intimidade, pode-se dizer que, mesmo os diários


escritos sem a intenção de serem publicados esboçam um desejo de comunicação.
Muitas vezes os autores escrevem sobre temas que gostariam de falar ou tornar públicos,
mas, em função de uma série de fatores, não se sentem à vontade para isso. Ler o diário
de alguém já falecido, portanto, não deixa de ser uma forma de ouvir seus segredos e
tentar avaliar corretamente os motivos. Como afirmou Peter Gay (1999), os diários
geralmente evidenciam, paradoxalmente, um desejo de ocultação-revelação do “eu”.
Penso que é possível aos historiadores fazerem uma leitura desses registros
íntimos que não agrida a privacidade do autor. O grande desafio é fugir da abordagem
que valorize apenas as excentricidades ou que trate os temas de forma jocosa. No fim
das contas, o que o autor revela sobre seu tempo e lugar é muito mais importante

87
do que ele revela sobre si. A riqueza maior está no diálogo do autor com seu tempo.
É o que chamo de dimensão social dos diários. Por outro lado, muitos outros tipos
de fontes históricas poderiam implicar nessa ideia de “invasão de privacidade”:
fotografias, cartas, vestimentas, objetos pessoais... E os historiadores as utilizam
geralmente sem “pedir licença”. Mesmo a ideia do que se refere à “privacidade” se
constrói socialmente.
Como se configura a dimensão social dos diários? A começar pela linguagem
que o autor utiliza, construída socialmente. Mesmo quando os autores utilizam códigos
pessoais, tais códigos são referentes ao que se considera permitido ou proibido, certo
ou errado, moral ou imoral em determinado tempo e lugar. Diz respeito, portanto, às
relações sociais. Se concordamos com Marc Bloch (2001), quando ele diz que fonte
histórica é tudo aquilo que fala sobre o homem, qualquer reflexão produzida pelo
homem interessa mais do que a ele próprio.
Por outro lado, nem sempre é fácil saber quando um autor de diário escreve
pensando em manter apenas uma conversa consigo ou quando ele tem pretensões
de levar ao conhecimento público. Rousseau (1959), ao escrever suas Confissões, o
fez pensando em publicá-las. Ele se considerava interessante demais para não ser
conhecido na posteridade. Acreditava que o registro de sua vida poderia ajudar muitas
pessoas a conhecerem a si próprias. O mesmo pode ser dito de Gilberto Freyre, que
escreveu sua autobiografia em forma de diário, claramente escolhendo a imagem que
gostaria que a posteridade tivesse dele. Revelador desse desejo de revelar-se é o fato
de que determinados autores de diários emprestam seus registros íntimos para que
outros leiam (ARENDT, 1994).
Nos diários do século XIX, era comum os autores dizerem que começaram a
escrever para a edificação dos filhos ou a pedido médico, mas muitas vezes isso era
apenas forma de evitar ser chamado de narcisista. A questão é que aquilo que o autor
acreditava ser da esfera da intimidade também faz parte da composição do sujeito. Ele
não é nem só o que sua imagem pública mostrava, nem só o que o diário revela. E daí
resulta uma das grandes vantagens do diário como fonte de pesquisa: a possibilidade
de situarmos as pessoas numa esfera mais “humana”. No caso de Couto de Magalhães,
mostrar um herói de carne e osso. No caso de Getúlio Vargas, que também escreveu
diários, mostrar que por trás da imagem de homem forte, dominador, havia um ser
humano que também tinha receios e inseguranças (D’ARAUJO, 1996). Atualmente,
vários diários escritos por personagens conhecidos de nossa história estão publicados, a
exemplo dos diários do imperador D. Pedro II (BEDIAGA, 1999), dos abolicionistas
Joaquim Nabuco (NABUCO, 2006) e André Rebouças (REBOUÇAS, 1938) e do
literato Lima Barreto (BARRETO, 2001).
Em se tratando de pessoas comuns, a análise de diários íntimos nos permite
mostrar o que parece óbvio, mas às vezes é esquecido: que pessoas comuns também

88
têm história e histórias muitas vezes cheias de heroísmo, acomodação, capacidade
de superação, diálogo tenso com seu mundo, assim como as histórias dos “grandes”.
Atualmente existem interessantes pesquisas sobre diários mais recentes, escritos por
pessoas comuns. E eles são tão ricos em possibilidades de pesquisa quanto qualquer
diário escrito por personalidades famosas.
Exemplo disso é o diário escrito por uma mulher pobre, negra, que não chegou
a concluir a terceira série do ensino básico. Vivia catando papel para alimentar a si e a
seus filhos numa favela de São Paulo, na década de 1950. Um jornalista a descobriu e
decidiu publicar seu diário, com o título de “Quarto de despejo” (JESUS, 2006), hoje
traduzido para várias línguas. Trata-se de diário extremamente rico em informações
sobre a constituição e o cotidiano das favelas paulistas, a miséria dos trabalhadores
e a memória da escravidão, entre outros temas registrados por uma personagem que
por pouco não caiu em esquecimento como a grande maioria das pessoas que não
são consideradas “historicamente marcantes”. Além de ser pessoa “comum”, pobre
e negra, atributos de população historicamente marginalizada no Brasil, trata-se da
possibilidade de evidenciar o protagonismo histórico de uma mulher. Essa mulher
pobre e negra, semianalfabeta, expressa em seu diário íntimo uma visão de mundo
extremamente crítica e consciente das mazelas que explicavam o lugar que ela ocupava
na sociedade.
Conforme Lejeune (1997, p. 105), “escrever um diário foi sempre uma
atividade característica das filhas da nobreza e da burguesia, mas, em certa medida,
a prática se espalhou ‘para baixo’, de modo análogo ao sistema educacional”. Foi
graças a isso que mulheres pobres, socialmente marginalizadas, como Carolina de
Jesus, puderam ter acesso à escrita de si nos diários íntimos, evidenciando, por meio
de prática surgida entre os que escreviam a “história vista de cima”, a perspectiva da
“história vista de baixo” (SHARPE, 1992).
Como disse antes, poucos historiadores brasileiros têm utilizado os diários
como fontes de pesquisa. Mas certamente existem milhares de diários íntimos
guardados nos porões, nas gavetas e em muitos outros compartimentos das casas –
muitos dos quais terão como destino o fogo ou o lixo. Qualquer diário, de qualquer
época, pode ser fonte de pesquisa para o historiador. Muitas das grandes obras da
historiografia surgiram a partir de pesquisas com fontes tidas como menores ou sem
importância. Isso faz parte da dinâmica de construção do conhecimento histórico.

O diário de um general

Minha pesquisa sobre diários íntimos surgiu meio por acaso. Em 2003,
enquanto cursava o mestrado, escrevi um artigo (HENRIQUE, 2004) a partir
do Diário íntimo de Couto de Magalhães, publicado pela Companhia das Letras

89
em 1998. Apresentei esse artigo no XI Encontro de Ciências Sociais do Norte
e Nordeste, realizado em Aracaju, Sergipe. Depois disso, decidi transformar o
artigo em minha proposta para ingressar no doutorado em Ciências Sociais/
Antropologia, junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFPA
(PPGCS). O diário original do general foi encontrado pela historiadora Maria
Helena P. T. Machado no Arquivo do Estado de São Paulo. Em 2007, estive em
São Paulo a fim de fazer a leitura do diário original, conforme discuto no livro.
José Vieira Couto de Magalhães nasceu em Diamantina, Minas Gerais, em
1837, e faleceu no Rio de Janeiro, em 1898. Era Bacharel em Direito, foi condecorado
herói da Guerra do Paraguai (1864-1870), além de presidente das províncias de
Goiás, Pará (1864-1866), Mato Grosso e São Paulo. Procurou construir uma imagem
pública de homem forte, soldado (foi condecorado general por sua participação na
Guerra do Paraguai), sendo sempre retratado como general nas diversas imagens que
ficaram dele.
No entanto, escrevia diários íntimos nos quais sobressai a imagem de homem
frágil, hipocondríaco ao extremo, ansioso, com medo de envelhecer, medo de ficar
pobre. Seu diário registrava ainda seus sonhos, muitos deles eróticos, vários sonhos
homoeróticos ou homossexuais, com índios, negros, brancos, cuja descrição ele fazia
em seu diário detalhadamente, sem qualquer tipo de julgamento ou sentimento de
culpa. As partes mais comprometedoras ele registrava em nheengatú, para dificultar
o acesso de possíveis curiosos.
Couto de Magalhães (1998), a princípio, escrevia apenas para si. Mas ele
escreveu em seu diário que não gostaria de cair no esquecimento. E mais: nomeou
paisagens pelo Brasil com seu próprio nome, como é o caso da “Ilha Dr. Couto”,
batizada em 1863 no rio Araguaia, a qual ele se refere no Diário Íntimo como “minha
solitária ilha” (MAGALHÃES, 1998, p. 172). Além disso, encomendou imponente
retrato de si com o maior pintor brasileiro de sua época, Almeida Jr., e parecia
conviver bem com a ideia de que era herói nacional. Muito embora escrevesse certos
trechos em nheengatú, sabemos que àquela altura muitos brasileiros sabiam falar e
ler nessa língua. Por outro lado, ele não destruiu seus diários, nem registrou qualquer
desejo de que isso fosse feito após sua morte. Até o presente momento, dois deles
foram encontrados: o que analisei, que cobre o período entre 1880-1887, e outro
que já havia sido publicado na década de 1970, cobrindo o período de 1887-1890
(MAGALHÃES, 1974).
Em se tratando de homem rico e político importante do Brasil do século
XIX, os registros feitos no diário constituem tenso diálogo com as questões daquela
época, supostamente marcada pelos rigores da ciência médica, que defendia o ideal
de família higiênica e burguesa, com o homem chefe de família vivendo no mesmo
lar com sua mulher e filhos. Couto de Magalhães teve várias mulheres, três filhos,

90
mas nunca co-habitou com nenhuma delas – e, em seu diário, falava das mulheres e
do casamento sempre em tom de desprezo. São estas questões que discuto em meu
livro, fazendo uso do diário escrito pelo general como espécie de janela para o tempo
e lugar em que ele viveu, o Brasil da segunda metade do século XIX.

Como tratar os diários

De certo modo, o diário íntimo requer dos historiadores o mesmo tipo


de preocupação diante de qualquer outro tipo de fonte. Não se pode acreditar
ingenuamente que o que o autor escreve é verdade apenas porque ele escreve, a
princípio, para si mesmo ou porque está sendo sincero. Existem mentiras sinceras.
Portanto, é preciso cotejar as informações registradas nos diários com outros tipos
de fontes da mesma época. Pode-se verificar como determinado tema aparece nas
discussões do período, na imprensa, em outros diários e nos romances, entre outros.
Por outro lado, é preciso estar atento ao fato de que os diários íntimos estão
sujeitos a, pelo menos, dois tipos de edição. Uma edição primeira é realizada pelo
autor/escritor do diário, que escolhe o conteúdo a ser registrado, o conteúdo a ser
codificado e o que compreenderá a esfera do não-dito. A segunda edição ocorre
em muitos diários antes de serem publicados, momento em que entram em ação
familiares expurgando passagens consideradas comprometedoras da imagem do autor
ou da família, ou editores profissionais que, em certos casos, alteram o conteúdo
original – fato ocorrido com os diários de Couto de Magalhães (1974; 1998), André
Rebouças (1938), Joaquim Nabuco (2006) e Maria Carolina de Jesus (2006). Como
qualquer outro documento histórico, o diário íntimo exige que o pesquisador reflita
sobre as condições de sua produção, sobre sua historicidade.
O fundamental na pesquisa com esse tipo de fontes é não cair na armadilha de
entender os diários íntimos como expressão da verdade interior de quem os escreve.
Essa é uma questão crucial. Foi Rousseau quem inaugurou essa noção da verdade
como sinceridade. Em suas Confissões, ele buscava a verdade de seu coração, que não
se confundia com o que chamamos hoje de realidade factual (DAMIÃO, 2006).
Escrevia Rousseau (1959, p. 11) em suas confissões: “[d]ou começo a uma empresa de
que não há exemplos, e cuja execução não terá imitadores. Quero mostrar aos meus
semelhantes um homem em toda a verdade da natureza; e serei eu esse homem”.
Rousseau defendia que estava sendo verdadeiro todas as vezes que falava de
forma sincera, quando dizia ser verdadeiro aquilo que acreditava sê-lo. Ocorre que
a pretensa “sinceridade” ostentada pelos autores de diários faz parte do que Lejeune
(1975) chamou de “pacto autobiográfico”: a ideia de que o conteúdo dos registros
íntimos é verdadeiro se baseia na noção de que o autor está sendo “sincero”. Trata-se
de promessa de sinceridade, de desnudamento completo de si.

91
A noção de que a verdade de um indivíduo está em seu coração, em seu
interior, foi muito valorizada à época do Romantismo. Daí muitos, hoje, pensarem
que o diário corresponde à verdade do sujeito que escreve, posto que o sujeito escreve
apenas para si e não teria razões para enganar a si próprio. Como se o diário íntimo
encerrasse a essência do indivíduo, como se mostrasse aquilo que o sujeito realmente
“é”. Outros pensam o diário como uma máscara, o que não deixa de ser complicado
por dar a entender que, por trás dessa máscara, seria possível localizar a verdade do
indivíduo. Por trás de uma máscara há sempre outra máscara.
O mais importante do ponto de vista da história não é saber se o autor estava
sendo sincero ou verdadeiro, ou se ele estava mentindo, mas compreender como ele
constrói suas verdades em diálogo com as questões de seu tempo e lugar. Importa
compreender qual o lugar que as confissões, verdadeiras ou não, ocupam no processo
de construção da identidade do indivíduo. Como mostrou Janaína Amado em
seu texto O grande mentiroso (1995), mesmo as mentiras possuem significados. A
leitura dos diários íntimos recupera fatos históricos do ponto de vista de indivíduos
específicos, registrados muitas vezes no “calor da hora”. Eles muitas vezes revelam
informações que dificilmente são encontradas em outros tipos de fontes. Mas a
verdade não está apenas dentro ou fora dos diários e é do confronto entre esses dois
mundos que a riqueza de significados sobressai.
Para os historiadores que trabalham com esse tipo de fonte, o diário íntimo
mostra muito mais o que o sujeito pensa que é ou o que ele gostaria de ser. Por isso
se entende o autor de um diário como o editor de sua própria vida (GOMES, 2004).
Assim como qualquer entrevista é editada antes de ser veiculada para o grande
público, o autor do diário íntimo também o faz com relação aos fatos de sua vida
que julga dignos de serem registrados. Isso implica em esquecimentos, omissões,
alterações e atribuição de sentidos que muitas vezes não existem fora da edição. Todo
e qualquer diário íntimo mostra a verdade do sujeito em eterno devir.
Os diários não guardam nenhum tipo de essência, de verdade maior do
indivíduo. O que importa não é dessacralizá-los, não é negar a verdade construída
pelo sujeito, mas compreender como essa verdade é construída, quais os vínculos
sociais que eles apresentam. É necessário tratá-los como diários-monumentos
(HENRIQUE, 2009), “(...) resultado do esforço das sociedades históricas para impor
ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si próprias”
(LE GOFF, 1996, p. 548).
Para isso, o fundamental é que o historiador tenha clareza sobre os objetivos
de sua pesquisa. Ele não pode, por exemplo, afirmar além daquilo que o diário
lhe permite afirmar. O fato de estar devassando a intimidade alheia não isenta o
pesquisador de uma conduta ética.
Prática cultural iniciada na chamada Modernidade (HENRIQUE, 2009), a

92
escrita de diários acompanhou as mudanças ocorridas ao longo do tempo. Ainda hoje
constitui prática recorrente entre adolescentes e jovens, seja no formato tradicional
com cadernos específicos para esse fim, seja em agendas ou nos formatos mais recentes
dos blogs e páginas de relacionamento da rede mundial de computadores, suportes
da escrita de si on-line, indicadora de novas noções de intimidade e de constituição
de identidade. Todos os formatos utilizados para a escrita de si registram o diálogo
muitas vezes tenso dos indivíduos com seu tempo e lugar. É essa dimensão social dos
diários que justifica seu uso como fonte de pesquisa.
Os diários no formato tradicional dividem espaço, atualmente, com outros
tipos de suportes para a escrita de si, os diários de si on line. Tenho visto jovens que
possuem blogs ou outras páginas de relacionamento na internet, mas não abrem mão
dos diários tradicionais. E são muitos. Alguns registram no diário de papel situações
ocorridas no mundo virtual da internet. Chama atenção a permanência do formato
tradicional diante de tantas alternativas virtuais. Por outro lado, a proliferação de
diários virtuais mostra o quanto essa prática cultural continua mobilizando as pessoas
em torno da construção de uma identidade estável para si.
Talvez muitas das pessoas que possuem páginas nas redes virtuais não se sintam
escrevendo um diário íntimo. No entanto, os diários virtuais evidenciam o mesmo
desejo de constituição de uma “ilusão biográfica”: o desejo de apresentar-se único,
original, coerente, diferente, com estilo, culto; o desejo de perpetuar determinada
imagem de si, o uso da página virtual como local de desabafo, forma de se sentir
ouvido. Da mesma forma, nota-se um misto de revelação-ocultação de si. Tenho
visto circulando na internet questionários virtuais que em muito lembram aqueles
curiosos cadernos da década de 1980, que corriam de mão em mão entre amigos,
cada um deixando registrado seu nome, idade, cantor preferido, música preferida,
entre outros.
É verdade que hoje existem outras formas de registros de si. Mas o que mais
mudou foi a noção de intimidade, de privacidade. Os autores de diários virtuais
vivem num mundo real em que a noções de intimidade e privacidade se constroem
na relação com outras pessoas. O olhar do outro é fundamental para a construção e
afirmação da identidade do sujeito. Isso é muito diferente dos diários escritos até fins
do século XIX, ainda resguardados pela esfera do secreto, espaço tido como inviolável.
Por outro lado, a intimidade tornou-se hoje algo rentável, é possível tornar-se famoso
e ganhar muito dinheiro com a exposição de sua vida e existe todo um mercado
produtor e consumidor disso.
Acredito que os diários íntimos estão saindo dos porões da historiografia e
subindo para prateleiras mais visíveis. Espero ter demonstrado que há muito mais a
aprender do que a temer com a utilização de diários nas Ciências Humanas.

93
Referências Bibliográficas

AMADO, Janaína. O grande mentiroso: tradição, veracidade e imaginação em história oral. História. São Paulo:
UNESP, 1995, v. 14, p. 125-136.
ARENDT, Hannah. Rahel Varnhagen: judia alemã na época do romantismo. Rio de Janeiro: Relumé-Dumará,
1994.
BARRETO, Lima. Diário Íntimo: fragmentos. Editora: Mercado Aberto, 2001.
BEDIAGA, Begonha. (org.). Diário do Imperador D. Pedro II. Petrópolis: Museu Imperial, 1999.
BLOCH, Marc. Apologia da história ou o Ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaína (orgs.). Usos
e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 2005, p. 183-191.
CALLIGARIS, Contardo. Verdades de autobiografias e diários íntimos. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.
11, n. 21, 1998.
DAMIÃO, Carla Milani. Sobre o declínio da sinceridade: filosofia e autobiografia de Jean Jacques Rousseau a
Walter Benjamin. São Paulo: Loyola, 2006.
D’ARAUJO, Maria Celina. O fio da meada no diário de Vargas. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 9, nº
17, 1996, p. 185-203.
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal.
São Paulo: Global, 2003 (1933).
______. Tempo morto e outros tempos. Trechos de um diário de adolescência: 1915-1930. São Paulo: Global;
Recife, PE: Fundação Gilberto Freyre, 2006.
JESUS, Maria Carolina de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2006.
GAY, Peter. O coração desvelado: a experiência burguesa da Rainha Vitória a Freud. São Paulo: Companhia das
Letras, 1999.
GOMES, Ângela Maria de Castro (org.). Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: FGV, 2004.
HENRIQUE, Márcio Couto. E o pulso ainda pulsa: corpo, saúde e doença em Couto de Magalhães (1880-
1887). In: XI CISO. Anais de Trabalhos Completos. Aracajú: NPPCS/UFS, 2004. CD ROM.
______. Um toque de voyeurismo: o diário íntimo de Couto de Magalhães (1880-1887). Rio de Janeiro:
EdUERJ, 2009.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1996.
LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiographique. Paris: Seuil, 1975.
MAGALHÃES, José Vieira Couto de. Diário do General Couto de Magalhães (1887-1890). Revista de História,
São Paulo, 1974.
______. (organização Maria Helena P. T. Machado). Diário Íntimo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998
(Coleção Retratos do Brasil).
MIGNOT, Ana Chrystina Venâncio et al. Refúgios do eu: educação, história e escrita autobiográfica. Florianó-
polis: Mulheres, 2000.
NABUCO, Joaquim. Diários. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2006.
REBOUÇAS, André. Diário. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1938.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. As confissões. São Paulo: Atena Editora, 1959.
SCHWARZ, Roberto. Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
SHARPE, Jim. A história vista de baixo. In: BURKE, Peter. A escrita da História: novas perspectivas. São Paulo:
UNESP, 1992, p. 39-62.

94
Escritores entre fronteiras:
diálogos de uma geração

Ana Amélia de Moura Cavalcante de Melo*

Introdução

Nas comemorações dos 90 anos da Semana de Arte Moderna no Brasil,


diversos artigos e reportagens foram escritos e divulgados na imprensa. Chamou-
me a atenção um deles, em especial, que afirmava quase inexistir um intercâmbio
entre os artistas e escritores das vanguardas latino-americanas. No artigo, excetuava-
se Mário de Andrade, que lia Vicente Huidobro.1 A constatação não é nova nem
inusitada. Jorge Schwartz, em Abaixo Tordesilhas, tenta demonstrar o quanto o Brasil
é “estrangeiro” na América Latina. Para exemplificar, lembra o caso de Gabriela
Mistral. Suas experiências no Brasil, afirma, “não passaram de anedóticas e pessoais,
tendo o Brasil pouco influenciado suas reflexões” (SCHWARTZ, 1993, p. 12).
Estas considerações serviram-me como ponto de partida para as reflexões
que aqui proponho. Entretanto, o objeto de minhas considerações, neste artigo,
não está voltado para a análise dos modernistas de 1920, tampouco das vanguardas
latino-americanas (SCHWARTZ, 1995). Proponho-me a pensar uma geração mais
a frente e que, de uma forma ou de outra, é devedora destas vanguardas. Busco
examinar a geração de escritores dos anos 1930 e 1940. Indispensável, porém, será
retomar as duas primeiras décadas do século XX e o diálogo que se estabelece entre
uma e outra geração. Vale ainda destacar que, nos limites deste texto, me deterei
preferencialmente nas trocas intelectuais existentes entre Brasil, Chile e Argentina.
Este recorte é resultado de questões apresentadas em diversas fontes consultadas.2
Nelas, tornam-se visíveis a circulação e as trocas entre escritores destes três países.
Obviamente isto não significa menosprezar ou ignorar o interesse por outros países
e sua importante presença no Brasil. Vale lembrar o caso do México que, nos anos
1930, teve como embaixador no Brasil o escritor Alfonso Reyes. Sua presença
foi fundamental na aproximação e nas trocas intelectuais entre os dois países

* Professora doutora do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História Social da


UFC. Email: anameliademelo@gmail.com.

95
(ELLISON, 2002). Em anos anteriores, lembramos os escritos de José Enrique
Rodó, cuja importância apareceria entre os escritores brasileiros em publicações
como América Brasileira, além de ser uma referência para intelectuais como Sérgio
Buarque de Holanda (NEWCOMB, 2011, p. 183).
No estudo da atuação e das trocas entre os escritores, tomo como proposta de
abordagem a perspectiva de história intelectual sustentada por Sirinelli. Em primeiro
lugar, o intelectual é considerado aqui como ator do político. Este historiador francês
tem realizado estudos sobre os intelectuais franceses da primeira metade do século
XX articulando três noções, a meu ver, bastante apropriadas para o objetivo aqui
levantado: o estudo dos itinerários, a observação das estruturas de sociabilidade
e a noção de geração (SIRINELLI, 1986, p. 97). O estudo dos itinerários faz-se
possível através da pesquisa biográfica ou de um grupo homogêneo. Da mesma
forma, considera-se a “estrutura de sociabilidade” um agrupamento permanente ou
não, com uma diversidade institucional, do qual o intelectual escolhe participar; e,
finalmente, quando se fala em geração, considera-se o compartilhamento por um
grupo etário flexível de certo patrimônio cultural.
A história dos intelectuais, acrescenta Jean-François Sirinelli, faz-se na
interseção entre o político, o social e o cultural (REMOND, 2003, p. 242). Ou
seja, é possível pensar duas acepções para a categoria de intelectuais: “uma ampla e
sociocultural, englobando os criadores e os mediadores culturais, e outra mais estreita
baseada na noção de engajamento”. Esta última, no entanto, não deve ser autônoma,
visto que o engajamento ou a legitimação da atuação do intelectual na sociedade
advém precisamente de sua especialização e de um reconhecimento que privilegia essa
especialização como marco para a intervenção política (REMOND, 2003, p. 242).
Nos anos 1930 e 1940, especialmente nos finais da Segunda Guerra, o
engajamento como posição ética e ideológica em favor de alguma causa política
impulsiona grande parte dos escritores e intelectuais, em diversas partes da Europa e
América, a assumir um compromisso claro – e, mais do que isso, a pensar seu lugar
na sociedade. A Europa tinha sua figura de proa em Sartre (BENOÎT, 2002, p. 9).
A escritura e produção de livros no Brasil seria, a partir dos anos 1930,
marcadamente acentuada pelo que Antonio Candido chamaria de “um engajamento
político, religioso e social no campo da cultura”, que daria “um contorno especial ao
período” (CANDIDO, 1984, p. 27). É tomando essa reflexão indicada por Antonio
Candido que busco pensar essa relação de troca e estabelecimento de uma estrutura
de sociabilidades que vai além do Brasil. Busco aplicar essa noção nesse sentido. Ou
seja, esse engajamento de que fala Candido pode ser pensado e usado como elemento
definidor dos laços de um grupo de escritores da América Latina? Há um projeto
intelectual dessa geração que abrange não apenas a literatura? Espero, ao cabo deste
artigo, poder demonstrar que sim.

96
Escritores entre fronteiras

Os intelectuais da América Latina que viveram durante os anos 1930 e


1940 estavam, em sua grande maioria, convictos de que eram capazes de transformar
o mundo. A partir das experiências políticas que vivenciavam, construíram uma
complexa rede de sociabilidade na qual articulavam a luta ideológica através da troca
de cartas, da publicação de revistas e jornais, assim como a partir de organizações de
associações e ligas.
No Brasil, assim como na Argentina e no Chile, criaram-se organizações
de escritores como a Associação Brasileira de Escritores, ABDE, em 1943; a Alianza
de Intelectuales en Defensa de la Cultura (1937-1944), no Chile; e a Agrupación de
Intelectuales, Artistas, Periodistas y Escritores, AIAPE (1935-1942), na Argentina.
Estas agrupações se assemelham pela perspectiva política que orienta os escritores
nela reunidos. Estavam imbuídos da necessidade e da importância de sua atuação
na transformação do mundo. Contudo, se por um lado surgem como parte de uma
conjuntura política específica – como foi a luta antifascista –, por outro sua estrutura
de sociabilidade começa a se constituir ainda nos anos 1920, quando muitos destes
escritores estão começando a definir melhor seus projetos literários e intelectuais.
Lembramos que é nos anos 1920, mais precisamente em 1922, que se realiza a Semana
de Arte Moderna de São Paulo. O movimento modernista será fundamental na
formação desses escritores. Segundo Antonio Candido, a geração de 30 “normaliza” e
“generaliza” os fermentos renovadores de 20 (CANDIDO, 1984, p. 29).
No Brasil, no movimento modernista, situado já na década de 1910, tem
sido identificada uma rede de sociabilidade que não se reduzia apenas a São Paulo.
Em cidades como Rio de Janeiro, era significativa a existência de pequenos grupos
de intelectuais relacionados entre si e que mantinham laços com os paulistas. Esta
rede é identificada também em Minas Gerais. Mário de Andrade atuaria como um
grande interlocutor entre alguns grupos intelectuais fora de São Paulo, exercendo
influência e estabelecendo contatos entre eles. Em Minas tinha ligações com uma
geração renovadora reunida em torno de A Revista, publicação de intelectuais jovens
modernistas como Carlos Drummond de Andrade, Gustavo Capanema, Abgar
Renault etc. Seria também interlocutor dos intelectuais cariocas reunidos em torno
da revista D. Quixote (BOMENY, 1994).
Neste período, não obstante a grande importância e relevo dos modernistas
de São Paulo, é possível identificar outros circuitos de trocas intelectuais. Interessa-
nos aqui especialmente aqueles voltados para a aproximação com os países vizinhos.
No Rio de Janeiro, entre 1922 a 1924, circulou a revista América Brasileira: Resenha
da atividade nacional publicada por Elysio de Carvalho (1880-1925). Ele era
vinculado à boemia dourada do Rio, apontado também como anarquista. Escreve

97
nos anos 1920 sobre literatura e cultura brasileiras. É considerado, sobretudo, um
ensaísta (NEEDELL, 1993, p. 244). Em América Brasileira, pretendia por um lado
valorizar a tradição luso-brasileira em conjunto também com a difusão da produção
literária hispano-americana, vinculando uma à outra (PIAZZA, 2007, p. 47). A
revista dedica-se intensamente, através do trabalho de seu editor, a debater e difundir
obras de escritores como o nicaraguense Rubén Dario (1867-1916), assim como do
venezuelano Rufino Blanco-Fombona (1874-1944). Este escritor venezuelano seria
mais tarde diretor e proprietário da Editorial América de Madrid, que publicaria
obras de latino-americanos. Entre eles, autores brasileiros como Machado de Assis,
José Veríssimo e Oliveira Lima.
Nas páginas desta revista, além de artigos de literatos da América hispânica,
resenhas e comentários sobre suas obras, seriam publicados também, com grande
relevo, escritores brasileiros que conheciam a produção literária dos países vizinhos,
como era o caso das impressões de viagens de Ronald de Carvalho ao México. O
editor destacaria o que afirma ser “a missão intelectual” de Ronald de Carvalho e
publicaria suas conferências realizadas na Universidade do México.3
O editor Elysio Carvalho empenha-se em romper as fronteiras linguísticas,
aproximando os países do continente sul-americano, seja difundindo o debate
intelectual que se realizava entre escritores hispano-americanos, seja publicando a
produção brasileira voltada para a América hispânica (PIAZZA, 2007, p. 50). Esse
intercâmbio, por sua vez, criava, a partir dessas trocas, uma rede de sociabilidade
que permitia que do outro lado prosperassem também o interesse e a divulgação da
produção intelectual brasileira.
No período até aqui indicado ainda devemos destacar, nesse projeto de
interação, a atuação de Monteiro Lobato. O editor de Revista do Brasil em 1918,
procura entrar em contato com Manuel Gálvez, editor e escritor argentino. O
propósito era estabelecer um contato com o objetivo de ampliar o mercado editorial
para escritores brasileiros no país vizinho. Assim como Lobato, Gálvez tinha uma
forte atuação na vida cultural da Argentina, difundindo ideias e livros. Seria Gálvez
que, em 1921, publicaria pela Biblioteca de Novelistas Americanos a obra Urupês,
de Lobato (ARTUNDO, 2004, p. 42). As trocas entre ambos estendem-se ainda
às revistas Nosotros de Buenos Aires e Revista do Brasil. Artigos e comentários sobre
escritores reforçam e aproximam a produção literária de um e outro país. Vale
lembrar ainda que as trocas literárias entre Brasil e Argentina já se faziam sentir no
início do século. Euclides da Cunha menciona, na Academia Brasileira de Letras,
a obra de Domingo Faustino Sarmiento. A indicação do conhecimento que tinha
o escritor brasileiro de Facundo: civilização e barbárie torna-se enfática em dois
textos: À Margem da História, publicado em 1909, e Contrastes e confrontos, de
1907. Euclides escreveria as seguintes palavras sobre Sarmiento em “Viação Sul-
Americana”, estudo que faz parte de À Margem da História:

98
Domingos Sarmiento, ao cerrar as páginas comovidas de “Civilização y Barbarie” - páginas
admiráveis de um dos maiores livros sul-americanos, ressoantes ao tropear das cavalarias
disparadas dos Quiroga e dos Chachos –, prognosticou o declíneo inevitável da tirania
revolucionária dos caudilhos [...] (CUNHA, 1922, p. 142).

A comparação com nosso vizinho e, certamente, o interesse pela Argentina


não ficaria por aí – estaria presente também em Mário de Andrade. O encontro do
escritor paulista com a literatura Argentina pode ser localizado nesses anos 1920,
através dos escritores Luis E. Soto e Pedro J. Vignale (ARTUNDO, 2004, p. 42 ).
Mário de Andrade seria um escritor atento à cultura dos países vizinhos e, importante,
nesse sentido, na identificação dessas trocas intelectuais. O interesse pelos escritores
do continente e a criação de laços amplia-se também ao Chile através de Gabriela
Mistral. Segundo ele nos diz, conhecera a poetisa chilena em 1927, quando ela foi a
São Paulo pela primeira vez. Posteriormente em 1940, Mário escreve um artigo no
Estado de São Paulo que revela um conhecimento de sua poesia e de suas preocupações.
Ao deter-nos em suas palavras, podemos identificar, por um lado, a construção de
laços de uma geração orientada por preocupações políticas e sociais. Especificamente
Mistral, com a educação e a difusão da leitura. Mário de Andrade chama a atenção
para a preocupação da escritora com os destinos do continente, com a identificação
de uma cultura e natureza da América (PIZARRO, 2005, p. 103). Nesse período,
entre os anos 1940 e 1945, Gabriela Mistral atuava no Brasil como consulesa do
Chile. A premiação do Nobel em 1945 seria a celebração não só de sua trajetória
pessoal, como simbolicamente a coroação de uma escrita da América. Já em 1940, o
embaixador do Chile falaria ao Jornal do Brasil sobre a candidata ao Prêmio Nobel de
1940. A Academia Brasileira de Letras aprovaria por unanimidade sua indicação, bem
como o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro. Em nota, acompanhada de foto,
o jornal apresentaria a chamada com o título: Gabriela Mistral, cidadã da América.4

Edições e traduções: os espaços de uma sociabilidade intelectual

A aproximação dos escritores brasileiros com outros escritores da América


Latina não pode ser pensada sem que tomemos em conta o espaço editorial, com
os agentes e as relações próprias desse campo particular, aproximando-nos de uma
história editorial e literária capaz de trazer à luz um sistema estruturado de interesses
que torna possível a tradução e edição de determinadas obras (SORÁ, 2002).
Dentro dos países da América Latina de língua espanhola, a tradução de
escritores brasileiros será pioneiramente feita por editoras argentinas. Segundo
estudo de Sorá, será a partir dos anos 1930 e, especificamente, de 1937, que autores
brasileiros serão publicados na Argentina de modo sistemático. Na construção desta
rede de sociabilidade é possível estabelecer alguns pontos de união que permitiam e

99
motivavam um intercâmbio e solidariedade entre alguns escritores. Graciliano Ramos,
em uma de suas cartas escritas em 1935, quando ainda vivia em Maceió trabalhando
como diretor da Instrução Pública, exercendo seu ofício de escritor nas horas vagas,
comentava com sua esposa Heloisa Ramos o envio de um conto ao editor argentino
Benjamin Garay. Segundo dizia, havia o interesse de algumas revistas de Buenos
Aires (RAMOS, 1982). Este editor argentino tinha uma presença bastante destacada
no mundo das letras do Brasil, atuando como um dos maiores encorajadores das
trocas culturais entre ambos os países. Benjamim Garay, já nos anos 1920, visitara
São Paulo estabelecendo relações com o grupo A Colmeia, formado por Monteiro
Lobato e Affonso Schmidt, entre outros. Nos anos 1930, atua como um dos maiores
tradutores da literatura brasileira ao dirigir a Biblioteca de Novelistas Brasileños, da
editora Claridad. Garay editava, traduzia, organizava glossários e prefácios de livros
de autores brasileiros publicados na Argentina.
O pesquisador Gustavo Sorá nos apresenta dados sobre a publicação de
escritores brasileiros na Argentina que são reveladores. Entre 1900 e 1930, apenas
nove livros seriam publicados pela casa editorial Biblioteca La Nación, ao passo que,
de 1931 a 1940, o número pula para 20 títulos realizados por duas editoras: Editora
Claridad e Editora do Ministério de Justiça e Instrução Pública. De 1941 a 1950,
seriam 85 livros e três editoras: Americalee, que publicaria 25 títulos; Santiago Rueda,
com 10 títulos; e Claridad, com 8 títulos. Deteremos-nos aqui nos anos 1930 e 1940.
Nesse processo de ampliação da presença de escritores brasileiros nos países de língua
espanhola, o ano de 1937 será marcante com a aparição de duas coleções consagradas
a autores brasileiros: a Biblioteca de Novelistas Brasileños e a Biblioteca de Autores
Brasileños Traducidos al Castellano. Cada uma tinha projetos editoriais distintos.
A coleção de Autores Brasileños Traducidos al Castellano fazia parte de um acordo
bilateral entre o governo brasileiro e argentino. A aproximação entre estes dois países
seria concretizada com as visitas de Agustin Justo ao Rio de Janeiro, em 1933, e de
Getúlio Vargas à Buenos Aires em 1935, quando são criados os institutos de cultura
argentino e Brasileiro nas respectivas cidades. É no âmbito desse acordo que surge
a coleção de autores brasileiros, assim como no Brasil se cria a coleção de autores
argentinos (SANTOS, 2009). Deve-se destacar ainda que, ao largo dos anos 1930 a
1950, houve uma intensa aproximação política entre ambos os países, impulsionada
por diversos fatores como a crise geral do liberalismo e capitalismo nos anos 1930,
que faz perceber a necessidade de maior cooperação regional. No caso específico de
Brasil e Argentina, acrescenta-se a identidade política de perfil conservador entre
Augustín Justos e Vargas.
No Chile, durante esses anos pós crise de 1929, o mercado editorial também
alcança grande profusão. Considerada “la época de oro de la industria editorial y del
libro en Chile” (SUBERCASEAUX, 2010, p. 567), os anos 1930 a 1950 registram um

100
crescimento sem precedentes na edição e publicação de livros nacionais e estrangeiros.
Serão especialmente editoras como Zig-Zag, fundada em 1934 pelos proprietários do
periódico El Mercúrio, e a Editorial Ercilla, fundada em 1933, que levam a dianteira
no negócio de livros, assim como a Editorial Nascimento. O estudo dos catálogos
do Editorial Zig-Zag e da Nascimiento esclarecem, em alguma medida, os tipos de
leituras e autores mais frequentes. Em sua maioria, registram-se autores europeus
além de alguns nomes hispano-americanos e chilenos. Nos catálogos consultados de
1949 e 1931, não constam nomes de autores brasileiros.5 Entretanto, deve-se apontar
que as primeiras traduções para o espanhol de Jorge Amado seriam publicadas entre
1935 e 1936. Cacau e Mar Morto saem pela editoria Claridad, da Argentina, e Suor
pela editora Ercilla do Chile. O escritor baiano reforça a ideia de um interesse pela
literatura brasileira nos países vizinhos, quando afirma ser entre esses dois países que
mais cresce o mercado editorial (AMADO, 2001, p. 93). Jorge Amado, ainda com
apenas 24 anos, no mesmo ano que publica seus livros em Buenos Aires, escreveria
no periódico Pan da Argentina um artigo polemizando com o modernismo no Brasil
(DUARTE, 2002, p. 232).

Escritores da América Latina

A aproximação dos escritores brasileiros com os países vizinhos durante os


anos 1930 e 1940 tem como elemento de identificação da estrutura de sociabilidade
a postura de engajamento na vida política como princípio necessário e definidor
do ser intelectual. No Brasil, um grupo de escritores e intelectuais formado por
Manuel Bandeira, Levi Carneiro, Rubem Braga, Josué Montello, Francisco de Assis
Barbosa, Roberto Alvim Correia, José Honório Rodrigues, Wilson Louzada, Aydano
do Couto Ferraz, Antonio Simões dos Reis, Vinícius de Morais, Peregrino Junior,
Graciliano Ramos, Wilson Rodrigues, Carlos Drummond de Andrade, Fernando
T. de Souza, Marques Rebelo, Genolino Amado, Melo Lima, Aurélio Buarque
de Hollanda, Astrojildo Pereira, Osvaldo Alves, Odylo Costa Filho, Enil Farhat,
Arnaldo Damasceno Vieira e Pinheiro de Lemos assinaria o estatuto de fundação da
Associação Brasileira de Escritores em 1943.6 Em seu estatuto, afirmava tratar-se de
uma associação voltada para a regulamentação e cuidado dos interesses específicos
do escritor – porém, o momento político de sua criação e o caráter das preocupações
de muitos destes escritores sublinhavam a questão política refletindo, especialmente,
sobre o papel do escritor no mundo contemporâneo. Um momento central de atuação
da ABDE será o I Congresso Brasileiro de Escritores, realizado em São Paulo em
1945. O encontro teria importância política e cultural inquestionável. Diariamente
a imprensa acompanhava suas atividades e debates durante a semana de 22 a 27 de
janeiro daquele ano. Paralelo ao evento, seria realizada uma programação cultural na
cidade voltada para os congressistas visitantes, assim como para o público em geral,
com apresentação do Grupo Teatro Experimental, exposição de artes, visitas e festejos.

101
O grupo ligado à ABDE é identificado a partir de um ponto de convergência
importante na época: a luta antifascista. Entre seus membros, não apenas existia o
contato e o interesse particular com outros escritores da Argentina ou do Chile, como
a própria organização da ABDE segue a mesma estrutura organizativa e os propósitos
de engajamento dos escritores semelhantes a suas congêneres vizinhas. Nesse sentido,
eram as associações de escritores e intelectuais que funcionavam como um locus
privilegiado. Quase sempre, como na ABDE, tinham uma relação estreita com os
Partidos Comunistas da região. De modo geral, na América Latina os escritores ligados
a estas associações tinham como orientação as diretrizes do Komintern, que a partir
de 1932 imprime uma direção de mobilização dos intelectuais que fosse além das
fronteiras do Partido. Por outro lado, evocam o exemplo de escritores franceses que,
desde o Caso Dreyfus, torna evidente a definição de intelectual não apenas pelo que
ele é, mas por sua atuação no campo da política. Vale recordar ainda que será também
sob orientação do Komintern que, em 1932, é criada na França a Association des
Écrivans et Artistes Révolutionnaires e, nesse mesmo ano, realiza-se em Amsterdam
um congresso mundial contra a guerra no qual foram reunidos nomes como Albert
Einstein (SIRINELLI, 1986, p. 96). Será nessa mesma perspectiva de solidariedade
na luta antifascista que também Einstein enviaria saudações para os congressistas
reunidos em São Paulo, em 1945.
Nos anos 1930 e 1940, a circulação de escritores brasileiros faz-se
especialmente via Argentina. Com a decretação do Estado Novo, em 1937, alguns
brasileiros como Jorge Amado iriam exilar-se em Montevidéu ou Buenos Aires. Em
suas memórias, Jorge Amado fala em diversas passagens de um grupo de brasileiros
exilados (AMADO, 1992). Ele é bastante significativo como escritor desta geração,
juntamente com Pablo Neruda. Ambos desenvolvem uma atividade literária como
arma de luta política e estabelecem contatos com outros escritores e entidades latino-
americanas semelhantes a ABDE. Pela segunda vez, em 1941, Jorge Amado voltaria
a se exilar em Buenos Aires. Nesse período escreveria constantemente para Sud e La
Crítica. Também publicaria pela editora Claridad a biografia de Luiz Carlos Prestes
(DUARTE, 2002, p. 234).
A partir da segunda metade da década de 1930, a Guerra Civil espanhola
mobilizou diversos escritores latino-americanos na defesa da República, chegando
a constituir-se no continente sul um grupo de escritores e poetas profundamente
vinculados aos chamados Poetas de La Guerra Civil Espanhola, como Garcia Lorca
e Miguel Hernandez. No Chile, Pablo Neruda é o poeta emblemático somando-se à
luta antifascista e escrevendo o livro de poemas España en El Corazón, publicado em
1937. Neruda, exilado em Paris, organiza com um grupo de escritores liderado por
Aragón um congresso de escritores antifascista a ser realizado em Madri (NERUDA,
1980, p. 127).

102
No Brasil, Drummond fala da fundação de uma associação civil e cultural
chamada de Ateneu Garcia Lorca. Fundada em julho de 1946, presidida por Aníbal
Machado, também presidente da ABDE, pretendia identificar-se com o “sentimento
democrático do povo Espanhol” (DRUMMOND, 1985, p. 62). A simbologia dos
poemas de Neruda é mais tarde recordada, na visita do poeta ao Brasil em 1945.
Num discurso de recepção na Academia Brasileira de Letras, Manuel Bandeira coloca
em destaque a atuação do poeta e o valor de sua poesia atrelada a esse engajamento.
Manuel Bandeira não se furta de criticar a Academia “freqüentemente acoimada de
passadistas e reacionários”, para destacar “a poesia reivindicadora” do poeta chileno.7
Manuel Bandeira explicita os diferentes espaços de reconhecimento e atuação
intelectual a partir de um ponto de vista da função social do intelectual e escritor,
de seu engajamento. Esta diferenciação seria também mencionada por Drummond,
referindo-se a uma reunião realizada em 1943 pela diretoria da ABDE, quando se
discute a redação de uma declaração na qual “se estabelece não entrar jamais na
Academia Brasileira” (DRUMMOND, 1985, p. 10). Está clara aqui a proposta de
se instituir uma diferenciação entre a ABDE e a ABL, agremiações de escritores que
institucionalizam o campo intelectual com proposições distintas.
As associações funcionam, como nos fala Sirinelli, como lugares de
convergências e solidariedades. A similaridade destas organizações de intelectuais
e escritores está relacionada, por um lado, à conjuntura política de guerra e à
compreensão destes intelectuais de que seu papel se define a partir de sua atuação na
sociedade, de sua intervenção no terreno da política. Como intelectuais, eles se veem
como portadores de um valor e, portanto, com uma função a cumprir (SIRINELLI,
1986, p. 9).
Na Argentina, em 1935, é fundada a Agrupación de Intelectuales, Artistas,
Periodistas e Escritores, organizada por Aníbal Ponce. A AIAPE se constituiu como
agremiação de intelectuais na luta contra o fascismo, muito semelhante à ABDE, e
atuava em diversas outras localidades do interior de Argentina. Sua atuação recolocava
em debate o papel do intelectual na cultura argentina, propondo uma redefinição dos
valores culturais, tanto de um ponto de vista universal quanto específico, uma vez
que o fascismo se configurava como a anti-cultura. Organização no mesmo molde
surge também no Chile – liderada por Pablo Neruda que regressava de Paris, onde
participara do Congresso de Nações Americanas, em 1937, é fundada, no mesmo
espírito da AIAPE da Argentina e da ABDE no Brasil, a Alianza de Intelectuales en
Defensa de la Cultura (CELENTANO, 2006).
Esta percepção e posicionamento estão presentes nos discursos e textos que
estes grupos elaboram. Na Declaração Programática divulgada pela AIAPE, em 1935,
faz-se o apelo ao engajamento na luta antifacista. A Declaração inicia com a chamada
dirigida aos intelectuais da América Latina, em um tom semelhante à Declaração

103
da ABDE feita dez anos depois. Trata-se do apelo ao engajamento dos escritores:
“Ha llegado el momento en que no basta crear cultura. Es menester aprestarse a
defenderla”.8 Na Argentina, Gonzales Tuñón e Anibal Ponce, ligados a AIAPE, são
portadores do discurso sobre a necessidade do engajamento.
Um dos elementos essenciais compartilhado pela grande maioria deste grupo
de escritores foi a vinculação com os Partidos Comunistas nesses países. De fato, entre
os anos 1930 e 1940, os PCs têm uma preocupação permanente com a formação de
seus militantes e com a difusão de seus princípios ideológicos. No Brasil, a Associação
Brasileira de Escritores, apesar de não ser, de início, um órgão do Partido, terá entre
seus membros um grande número de comunistas e simpatizantes. Da mesma forma
ocorreu no Chile, com a Alianza de Intelectuales en Defensa de La Cultura cuja
liderança era Pablo Neruda; e na Argentina, com a Agrupación de Intelectuales,
Artistas, Periodistas y Escritores.
A participação dos Partidos Comunistas nestas organizações é, até 1945,
marcadamente definida por uma política aberta de alianças na luta antifascista.
Embora muitos dos membros dessas associações fossem comunistas, estas não eram
órgãos do Partido, como aconteceria mais tarde, depois de 1945 e no início da
guerra fria. No Brasil, no caso da ABDE, cria-se uma forte tensão entre aqueles que
defendiam uma vinculação mais forte com o Partido e outros que eram a favor de
uma associação independente. No caso da AIAPE argentina, algo semelhante pode
ser apontado. Inicialmente falava-se em uma entidade plural, aberta e voltada para o
combate das expressões fascistas no campo da cultura. Posteriormente, entre 1941 e
1943, a associação é hegemonizada pelos comunistas (PASOLINI, s/d., p. 7).
Neste esboço, foi possível identificar a existência de trocas intelectuais e
de um circuito de sociabilidade que se estabelecia entre um grupo de intelectuais
que fez da intervenção no mundo da política a chave de articulação e construção
de uma sociabilidade intelectual, concretizada em associações, projetos editoriais e
publicações de revistas e jornais, bem como na realização de congressos. Houve um
esforço de aproximação fundado numa história partilhada pelos países da região.
Pretendemos aqui refletir sobre a posição de engajamento de um grupo de escritores
em torno de um projeto de aproximação entre os países da América Latina. Através
de algumas indicações de trajetórias de um pequeno grupo de escritores, unidos em
torno de um projeto político, buscamos determinar a natureza e as características das
vinculações, seu lugar espacial e social. O objetivo foi o de apontar o funcionamento
de uma rede de sociabilidade intelectual definida ideologicamente e que teve como
inexorável a relação entre o intelectual e a política. Tratou-se, portanto, de esboçar
quais eram estes campos de atuação.

104
Notas

1 O Globo, Caderno Prosa & Verso. 4 de fevereiro de 2012, p. 3.


2 Fontes consultadas: Revista América Brasileira, Jornal Dom Casmurro, Anais da ABDE no acervo da BN,
Boletins da ABDE disponibilizados pelo CEDEM/UNESP, cartas e discursos depositados nos Arquivos Pessoais
de Escritores Brasileiros (APEB) da FCRB, além de memórias de escritores e intelectuais.
3 Revista America Brasileira, n. 22, Out. 1923. Periódicos da Biblioteca Nacional.
4 Jornal do Brasil, 02 de fevereiro de 1940, p. 06.
5 Catálogo nascimiento: sección literatura. Santiago, 1931. Lista de obras: diciembre de 1949. Santiago,
Catálogo Empresa Editorial Zig-Zag, Chile, 1949. Consultados em10/04/2011.
6 Estatuto da ABDE, 12/02/1943. Arquivo Astrojildo Pereira, Centro de Documentação e Memória (CEDEM)
da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
7 Manuel Bandeira. Discurso proferido em 26 de julho de 1945 na Academia Brasileira de Letras. Acervo
localizado na Fundação Casa Rui Barbosa (FCRB).
8 Declaração Programática, Buenos Aires, AIAPE, 1935. Consultado em: 20/09/2012.

Referências Bibliográficas

AMADO, Jorge. A ronda das Américas. Antelo, R. (org.) Salvador: Fundação Casa Jorge Amado, 2001.
_____. Navegação de cabotagem. Rio de Janeiro: Record, 1992.
ANDRADE, Carlos Drummond de. O Observador no Escritório. Rio de Janeiro: Record, 1985
ARTUNDO, Patrícia. Mario de Andrade e a Argentina: um país e sua produção cultural como espaço de refle-
xão. São Paulo: Edusp, 2004.
BENOÎT, Denis. Literatura e engajamento: de Pascal a Sartre. Bauru, SP : EDUSC, 2002.
BOMENY, Helena. Guardiões da razão: modernistas mineiros. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1994.
CANDIDO, Antonio. A Revolução de 1930 e a cultura. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, v.2,4, p. 27-36, abril
1984.
CELENTANO, Adrian. Ideas e intelectuales en la formación de una red sudamericana antifacista. Santiago,
Literatura y Lingüística, n.17, 2006, pp.195-218.
CUNHA, Euclides. À margem da História. Lisboa: Livraria Chandron, 1922.
DUARTE, Eduardo de Assis. Jorge Amado, exílio e literatura. Revista Aletria. UFMG, 2002.
ELLISON, Fred P. Alfonso Reyes e o Brasil. Um mexicano entre os cariocas. Rio de Janeiro: Topbooks, 2002.
GOMES, Angela de Castro. Essa gente do Rio: os intelectuais cariocas e o modernismo. Estudos Históricos, Rio
de Janeiro, vol. 6, n.11, 1993, p. 62-77.
NEEDELL, J. Belle Époque Tropical. Sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do século. São
Paulo: Cia das Letras, 1993.
NERUDA, Pablo. Confesso que vivi. Memórias. São Paulo: Difel, 1980.
NEWCOMB, Robert Patrick. Sérgio Buarque de Hollanda. Obscured Roots of Rodó in Raízes do Brasil. In:
Nossa and Nuestra América: Inter-American Dialogues. Purdue University Press, Indiana, 2011.
PASOLINI, Ricardo. Intelectuales antifascistas y comunistas durante la década de 1930. Un recorrido posible:
entre Buenos Aires e Tandil. In: http://www.unsam.edu.ar/escuelas/politica/centro_historia_politica/ma-
terial/Pasolini%201.pdf. Última consulta: 16 de Setembro de 2012.
PIAZZA, Maria de Fátima Fontes. Tal Brasil, qual América? A América brasileira e a cultura ibero-americana.
Diálogos Latinoamericanos, Nov. n. 12, Universidad de Aarhus.
PIZARRO, A. Gabriela Mistral y el proyecto de Lucila. Santiago: LOM, 2005.

105
RAMOS, Graciliano. Carta de 14 de dezembro de 1935. In: Cartas. Graciliano Ramos. Rio de Janeiro, Record,
1982.
REMOND, René. Os intelectuais. In: Por uma história política. Rio de Janeiro: FGV, 2003, p. 242-243.
SANTOS, Raquel Paz dos. Relações Brasil-Argentina: cooperação cultural como instrumento de integração
regional. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 22, n. 44, p. 355-375, julho-Dez. 2009.
SCHWARTZ, J. Abaixo as Tordesilhas! Estudos Avançados 7(17), 1993.
______. Varguardas Latino-americanas: polêmicas, manifestos e textos críticos. São Paulo : Ed. da Universidade
de São Paulo/Iluminuras, 1995.
SIRINELLI, J.F. e ORY, P. Les intellectuels en France. De l’Affaire Dreyfus à nos jours. Paris: Armand Colin,
1986.
SIRINELLI, Jean-François. Le hasard ou La nécessité? Une histoire en chantier: histoire des intellectuels. In:
Vingtième Siècle. Revue d’histoire. n. 9, janvier-mars 1986, p. 97-108.
SORÁ, Gustavo, Un échange dénié. La traduction d’auteurs brésiliens en Argentine. Actes de la recherche en
sciences sociales. 2002/5, n. 145, p. 61-70 DOI: 10.3917/arss.145.0061.
SUBERCASEAUX, Bernardo. Editoriales y círculos intelectuales en Chile (1930-1950). In: ALTAMIRANO,
C. História de los intelectuales en América Latina. Madrid: Katz, 2010
ZILLY, Berthold. A barbárie: antítese ou elemento da civilização? Do Facundo de Sarmiento a Os Sertões de
Euclides da Cunha. In: De sertões, desertos e espaços incivilizados. Rio de Janeiro: Faperj; Ed. Mauad, 2001.

106
Lima Barreto e Oswald de Andrade:
trajetórias no processo de atualização
artística brasileira (1900-1930)

Irenísia Torres de Oliveira*

A aproximação entre Lima Barreto e Oswald de Andrade, com as devidas


mediações, fornece um ângulo por onde pensar a vida literária e cultural das primeiras
décadas do século XX, nos dois principais centros urbanos do país. A crítica à literatura
academicista, que ambos empreenderam – o primeiro como voz minoritária, quase
isolada, e o segundo como um dos pilares do movimento modernista –, foi valorizada
e confirmada pelas grandes mudanças nos valores estéticos do período. Ambos
criticaram a literatura elitista e convencional, mas trilharam caminhos diferentes.
Pensar esses caminhos, ou seja, como cada um realizou sua crítica também no campo
da criação literária, traz à luz dificuldades próprias daquele momento, os caminhos
possíveis, os diferentes contextos de produção da arte e como a literatura se relacionava
com os problemas políticos, sociais e culturais da época.
A aproximação entre ambos acontece, numa primeira visada, pelo que eles
têm muito forte em comum, que é a abordagem pela sátira e o humor. De fato,
lembramos logo do Lima satírico e do Oswald piadista, do tom corrosivo e sarcástico
com que trataram as elites carioca e paulista, bem como o ambiente social, político e
intelectual estreito que eles afrontaram com suas obras. Entretanto, há especificidades
no humor dos dois. Lima afirma que “a ironia vem da dor”, enquanto, para Oswald,
“a alegria é a prova dos nove”.
De fato, os dois têm trajetórias e personalidades muito diferentes. Lima nasceu
em 1881, no Rio de Janeiro, filho de pais mulatos, uma professora primária e um
tipógrafo. Estudou regularmente graças à proteção de seu padrinho, o Visconde de
Outro Preto, homem forte do Império, e chegou a ser admitido e frequentar a Escola
Politécnica, sem se formar. Por causa da doença mental do pai, ele largou a escola
superior e entrou no serviço público, para um cargo modesto que lhe garantiria a
sobrevivência até o fim da vida, aos 41 anos incompletos. Esse tempo, de abandono
* Professora Doutora – Departamento de Literatura e Programa de Pós-Graduação em História Social –
Universidade Federal do Ceará. E-mail: irenisia@ufc.br.

107
dos primeiros planos de vida e de boemia nos cafés, foi também o de sua queda no
alcoolismo. Não se casou, nem teve relacionamentos amorosos conhecidos e viajou
pouco, apenas para lugares próximos ao Rio de Janeiro.
Já Oswald nasceu em 1890, nove anos depois de Lima, em São Paulo, filho de
uma família abastada de fazendeiros de café. Estudou em bons colégios e tornou-se
bacharel em Direito, depois de um período de interrupção. Teve uma vida amorosa
bastante movimentada, casou-se várias vezes e teve quatro filhos. Viajou doze vezes
à Europa; numa dessas ocasiões, em 1923, permaneceu lá durante todo o ano. Em
1929, foi atingido pela crise financeira internacional. Aderiu ao comunismo em 1931
e rompeu com ele em 1945, por discordâncias com a linha política de Luís Carlos
Prestes. Enfrentou dificuldades financeiras no final da vida. Faleceu em 1954.
São trajetórias de vida muito diferentes, que trazem consigo preocupações e
perspectivas também muito distintas. Entretanto, como intelectuais, eles têm pontos
de contato; a inserção deles na vida intelectual do período é semelhante e confirma a
estreita ligação entre jornalismo e literatura na época.
Lima Barreto iniciou sua vida intelectual escrevendo crônicas para um
pequeno jornal de estudantes, A Lanterna, no tempo em que ainda era aluno na
Escola Politécnica. Essas primeiras crônicas não são satíricas. Uma delas lamenta a
falta de público para a boa música produzida por nossos compositores e a outra faz
o necrológio de Manuel Vitorino, falecido em 1902, que havia sido vice-presidente
na época de Prudente de Morais e destacara-se como defensor do ensino universal,
infelizmente sem muito sucesso. Já nas crônicas de 1903, publicadas no jornal
humorístico O Tagarela, dos caricaturistas Raul Pederneiras e Calixto Cordeiro (K.
Lixto), encontramos a ironia que viria a caracterizar a literatura posterior de Lima
Barreto. Ele ridiculariza a campanha sanitarista, em sua caça aos mosquitos, e também
o Teatro Lírico, criticado pelo improviso do prédio (seria ópera ou circo?) e pelas
novas elites burguesas que o frequentavam.
Depois que Lima abandonou a Escola Politécnica, o meio de contato com
outros intelectuais foram os cafés do Rio de Janeiro, com suas rodas de boêmios.
Tanto que, em 1907, sendo já funcionário público, fundou a revista Floreal junto
com outros intelectuais – Bastos Tigre, Domingos Ribeiro Filho, Calixto Cordeiro,
Gil – que se encontravam normalmente no Café Papagaio e formavam o chamado
“Esplendor dos amanuenses”. A revista se propunha como uma alternativa aos
“mandarinatos literários”, espaço aberto aos novos. Lima Barreto publicou no
número de inauguração o primeiro capítulo do romance Recordações do escrivão
Isaías Caminha, que José Veríssimo chegou a elogiar. Mesmo começando de maneira
positiva, tendo chamado a atenção de um crítico respeitado, a revista duraria apenas
quatro números.
Oswald de Andrade também começaria escrevendo em jornal. Por alguns
meses, em 1911, foi redator da coluna “Teatros e salões”, do Diário Popular (jornal

108
de anúncios para pequenos negócios, existente desde 1884). No mesmo ano, fundou
com o caricaturista Voltolino o periódico semanal O Pirralho, com a proposta
principal, embora não exclusiva, de repensar a arte brasileira. A amizade de Oswald
com Washington Luís (prefeito e depois governador de São Paulo) fez com que o
semanário, de início despretensioso, ganhasse projeção e renome como veículo
político. De 1911 a 1915, Oswald fez viagens frequentes ao Rio de Janeiro e teve
contatos com a boemia intelectual, na roda dos escritores Emílio de Menezes, João do
Rio e Olegário Mariano. A presença de Emílio de Menezes no periódico O Pirralho
era frequente.
Como se percebe, o começo de vida dos dois tem semelhanças. Ambos
começaram escrevendo em jornais pequenos, contribuíram para a imprensa
humorística e fundaram revistas. Mas a condição social fez diferença. A revista de
Lima Barreto e seus amigos foi muito mais efêmera, obscura e modesta que O Pirralho,
de Oswald. Os dois participaram das rodas boêmias cariocas, no mesmo período, mas
em grupos diferentes. A classe social de Oswald abriria para ele a boêmia dourada
dos salões, distante da boêmia de tipo antigo, mal alimentada e frequentemente do
contra. Enfim, como se percebe, eles se movem no mesmo ambiente dividido, entre os
mesmos valores confrontados, em posições que ora se aproximam, ora se distanciam.
De onde quer que viessem, o jornal era a porta de entrada para a vida intelectual e o
Rio de Janeiro, o lugar onde estavam (e de onde emanavam) as esferas nacionais de
reconhecimento intelectual.
O trabalho do jornalismo literário, que cria as novas condições para a existência de uma
vida intelectual, adquire importância nesse processo [de transformação social entre 1870 e
1930], fato que não passou despercebido ao inquérito de João do Rio, no qual grande parte
dos entrevistados via o jornalismo como fator favorável à atividade literária (MARTINS,
2001, p. 27).

Rubens Martins refere-se à série de entrevistas feitas por João do Rio com
intelectuais seus contemporâneos, intitulada Momento literário em 1900. Destaca,
entre elas, a de Silvio Romero, que via na imprensa a possibilidade de estreia literária
e de aprendizado da escrita para os jovens literatos.
Corroborando a visão de Sílvio Romero, a imprensa teve um papel importante
no início da vida intelectual dos dois, como oportunidade de participação e exercício
da escrita. E teve também um papel formativo para além desse início, uma vez
que a irreverência transitou do periódico (jornal ou revista) para dentro de suas
obras literárias. No caso de Lima Barreto, a sátira praticada nos romances é quase
diretamente aquela que publicava nas páginas dos jornais, ajustada como arma de
crítica social, e a linguagem mais próxima da coloquialidade, que tem resistido bem ao
envelhecimento, é possível que tenha ensaiado e aprendido nas páginas da imprensa.
Na crônica “Ópera ou circo?”, de 1903, referida acima, o Lírico é apresentado
satiricamente:

109
Deveras, a princípio aquelas barras hercúleas de ferro, que atravessam a sala, lado a lado,
surpreenderam-me e, na flagrante adaptação aos trapézios que se adivinham nelas, lobriguei
perceber um circo; mas, ao mesmo tempo, aquele ar petulante e faustoso da sala; aqueles
heráldicos dragões sopesando o espadagão da república que tão bem se justapôs à esfera
armilar do Império; as lojas presidenciais; deram-me a impressão de ópera (BARRETO,
2004, p. 66).

No romance Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, que começou a ser escrito


por volta de 1905, o Teatro Lírico é apresentado a partir do mesmo estranhamento.
Antes de começar o espetáculo, o narrador Augusto Machado nota que o prédio
tem alguma coisa de vulgar e de falso. E vê as barras de ferro, como na crônica: “O
teto sempre me intrigou. Com os seus varões de ferro atravessados, supus que se
destinassem a trapézios e outras coisas de acrobacia. Ópera, ou circo? Entretanto, eu
estava no ponto mais elegante do Brasil” (BARRETO, 1956d, p. 154).
A dúvida tem um efeito derrisório sobre o teatro, como compete a toda
sátira, mas não se esgota nisso. Ela é também uma forma de apreensão do real, em
pleno direito. Tanto que na crônica, ante à indefinição (É circo... É ópera...), surge
uma conclusão na metade do texto: “Nada disto. É tudo isto dosado e combinado,
adaptado ao final às exigências da nossa civilização” (BARRETO, 2004, p. 66).
Já no caso de Oswald, o ideário de vanguarda funcionou como uma chance
de atualização e potencialização da irreverência que admirava na boemia carioca,
projetando-a de maneira relevante no cenário de modernização e redescoberta do
País.1 Mais adiante veremos isso melhor, a propósito do primeiro romance de Oswald.
Por agora, indique-se que, nas obras dos dois autores, há um trabalho literário
específico da sátira, que reduz nela o que há de (pode-se até dizer constitutivamente)
circunstancial, sem dispensar sua função de combate.
Oswald e Lima têm em comum ainda a maneira como estrearam na literatura,
propriamente. Ambos iniciaram publicando romances que ficcionalizavam memórias2
e estavam muito relacionados à sua própria experiência: Recordações do escrivão Isaías
Caminha (1909), de Lima Barreto, e Memórias Sentimentais de João Miramar (1924),
de Oswald de Andrade. O primeiro conta a história de um rapaz pobre e mulato que
abandona seus ideais de estudo e formatura devido ao preconceito e empreende, na
voz do ex-repórter, uma sátira corrosiva à grande imprensa; o segundo é a história
satírica de um paulistano de classe alta, um boa vida que, na falta de uma “ocupação
nobilitante”, lança-se à aventuras amorosas e de negócios, em meio à intrigas
de família e viagens à Europa. O livro de Lima tem um registro realista, embora
resvale em boa parte para a sátira, para ridicularizar as “superioridades” da época,
gravitando em torno da imprensa, no meio intelectual estreito. O de Oswald é um
livro vanguardista, composto em fragmentos, utilizando diferentes gêneros – cartas,
poemas, cartões postais etc. – e retrata com sarcasmo o provincianismo, as negociatas
e a estreiteza mental da burguesia paulistana.

110
Embora os dois livros contem histórias muito diferentes, estas se aproximam
na disposição de afrontar diretamente o meio mais próximo, sem contemporizações.
E enfrentaram depois a resposta desse meio. Para Lima, devido à fragilidade social,
as consequências foram mais duras. O escritor receberia uma espécie de veto branco
dos jornais, na forma de indiferença. Um escândalo em torno do livro teria talvez
gerado um movimento, mas a desconversa negou-lhe a repercussão que merecia. É
certo que recebeu críticas importantes – uma privadamente, de José Veríssimo, que
reconhecia o talento do autor, mas condenava no texto o fato de ser “pessoalíssimo”
e de não “idealizar” situações e personagens, ou seja, não transcender a situação
imediata (BARRETO, 1956a, p. 203-205). E outra, de Medeiros e Albuquerque, que
se apegou a um argumento semelhante, considerando que o formato de roman à clef
(romance com chave) até adequaria o romance à curiosidade de seus contemporâneos,
mas o impediria de avançar no tempo (BARRETO, 1956a, p. 197-199). Os críticos
não percebiam o que havia de representativo naqueles personagens que lhe pareciam
tão “particulares”.
Já as Memórias sentimentais de João Miramar foram esperadas com ansiedade.
Já antes, havia o comentário nas rodas modernistas que o autor estava escrevendo
algo para colocar em prática as novas ideias (CAMPOS, 1990b, p. 5). Entre seus
admiradores, o romance tendeu a ser lido como poesia (principalmente pela
proximidade da publicação de Pau Brasil, um ano depois), enquanto os opositores
viram no livro apenas “piada”. Numa entrevista pouco antes de morrer, Oswald
reclama a consideração a sério da pesquisa literária, social e estética proposta em
seus escritos. “O que desconcertava meus adversários é que minha literatura fugia
ao padrão cretino então dominante. E chamavam a isso de ‘piada’...” (ANDRADE,
1990a, p. 249).
Na verdade, o projeto inicial das Memórias nem sempre teve a feição
vanguardista e corrosiva que Oswald lhe daria depois da Semana de Arte Moderna,
como exemplo da prosa libertada que defendia em seus programas. Em 1916, Oswald
publicou alguns trechos do seu primeiro romance n’O Pirralho e em outros períódicos
da época. No número 223 daquele semanário, de 30 de setembro de 1916, podemos
encontrar um capítulo do romance intitulado “Vida provinciana”:
Eu molhara os olhos no rever o grande monte acorcundado e verde, que, pela sua forma de
tambor bárbaro, dera o nome de Caxambu à villasinha que abriga.

No pateo da “gare”, atada à ponta da fita vermelha, que se desenvolve até às ruas habitadas,
abraçamos, eu e mamãe, duas velhas sob chales pretos. Eram as parentas.

Tomamos quartos no casarão do “Palace Hotel”, que, por ser tempo de repouso, entre as
duas estações do anno, estava deserto e parecia maior.

111
Todas as manhans, eu acompanhava mamãe às fontes. Demais, visitava, a cavallo, os amigos
que me haviam conhecido creança e que me repetiam histórias de papae, nas salas nuas das
fazendas, antes do almoço nacional de lombo e tutu de feijão. Pela tosca cancella, via-se
o terreiro batido de sol, onde vaccas paravam. À noite, o meu quarto, onde a luz da vela
movia grandes sombras, parecia-me descomunal.
E tomara o hábito de esperar, à tarde, como se espera um amigo, o trem que chegava sempre
em atraso, sob um penacho recurvo de fagulhas.
Uma vez, o dia morreu sob a chuvarada larga que batia os campos. Só às 8 horas ouvi o
apito longínquo annunciando o comboio. Esperei à janela do meu quarto, até ver passarem,
patinhando na lama, à luz que jorrava do alto dos postes, os trolys rústicos e os carreiros de
hotel, na volta da procura inutil de hospedes (ANDRADE, 1916, p. 4).

Nesse capítulo, a “vida provinciana”, com direito a cavalos, vacas e tutu de


feijão, é recordada num tom nostálgico e lírico. O trem se destaca na recordação, não
com significado de máquina e modernidade, mas com o valor de uma afeição, o amigo
que se espera a certa hora da tarde. Nas Memórias sentimentais publicadas em 1924, o
trecho reaparece (é possível reconhecê-lo), mas muito modificado. Lembremos que,
nos oito anos de 1916 a 1924, tinha havido a exposição de Anita Malfatti, o encontro
com Mário de Andrade e Di Cavalcanti e a Semana de Arte Moderna. Além disso, o
romance havia sido concluído em 1923, naquele período de um ano na Europa, em
que Oswald entra em contato com a vanguarda francesa e conhece Blaise Cendrars.
O capítulo recebia um novo título, “Nova-Lombardia”, e ficava assim:
Molhei secas pestanas para o rincão corcunda que vira nascer meu pai.
A ponta vermelha da gare de Aradópolis era numa fita de coqueiros.
Fordes quilometraram açafrões de ocaso.
E a noite pichada empinou terreiros brasílicos por entre cafezais e papagaios de estrelas
(ANDRADE, 1990b, p. 63).

A narrativa constrói-se agora de maneira muito sintética, e o tom nostálgico


e lírico, quase descansado, desaparece para dar lugar a um registro mais direto e
imagético. O parágrafo da fazenda é eliminado, mas se mantém a ordem cronológica
do narrado, tarde e noite, sendo que a tarde vai se ligar não mais ao trem, mas ao
carro, ao forde. E a noite não vem mais com a chuvarada que atrasa o trem, mas com
estrelas e papagaios, em “terreiros brasílicos”. A prosa de exportação nasce, como se
vê, antes da poesia de exportação, a poesia Pau Brasil, cujo livro apareceria em 1925.
Poderíamos ir muito adiante na análise desse capítulo. Também seria
interessante examinar outros trechos do romance publicados em 1916 – trechos
menos líricos, em que se trata da vida urbana contemporânea, com um tom mais
empertigado e irônico. Para o momento, basta registrarmos que Oswald modificou
profundamente o projeto de seu primeiro livro no período de formação do grupo

112
modernista inicial em São Paulo e de contato com a vanguarda francesa, tendo partido
de uma concepção relativamente tradicional de narrativa e chegado a uma realização
muito interessante das ideias do primeiro Modernismo. Sabemos, além disso, que
nem todos os romances de Oswald são escritos nesse nível de experimentação. Apenas
o Serafim Ponte Grande faz par com o romance inicial. Outros volumes, como os de
Os condenados (escritos de 1917 a 1921, mais próximos do decadentismo) ou de
Marco Zero (escritos de 1933 a 1945, mais tendentes ao naturalismo), são narrativas
sem tantas novidades e surpresas verbais.
O primeiro livro de Lima Barreto, Recordações do escrivão Isaías Caminha,
é também uma ficcionalização de memórias, mas não é um livro nostálgico. A
recordação serve antes para denunciar e desmentir um preconceito e empreender
a crítica social, fortemente satírica em alguns momentos, embora, em outros, um
lirismo contemplativo ou melancólico também se instale. Em Oswald, a diferença de
oito anos de experiência vivida intensamente expressa-se na substituição do lirismo
pela sátira mordaz, enquanto, em Lima Barreto, esses dois tons forcejam por viver
juntos dentro de uma mesma obra. Nas Recordações, muitos trechos dão exemplo
dessa convivência. Transcrevo abaixo um momento dominado pelo lirismo, que traz
as impressões do narrador na travessia de barco da estação de trem até o porto, no
centro do Rio de Janeiro:
Havia um brando ar de sonho, e eu fiquei todo penetrado dele. Andamos. Agora a barca
movia-se ao longo de uma comprida ilha pejada de edifícios. Mais perto, mais longe,
pequenas lanchas corriam, erguendo para a pureza do céu irreverentes penachos de fumo;
na linha do horizonte, havia uma terra baixa, ao fundo, onde dolentemente agitado pela
viração, um esguio coqueiro, firme e orgulhoso, crescia solitário; grandes cascos escuros
de saveiros e galeras ruminavam placidamente; e botes velozes, cruzando as respectivas
derrotas, brincavam sobre as ondas como crianças travessas.

(…)
Antes de atracar, a noite caiu de todo.
Na cidade, longos riscos de fogo brilharam, juntos e espaçados, retos e curvos, paralelos e
emaranhados... Chegamos (BARRETO, 1956c, p. 62).

Convivendo com este trecho, podem ser encontradas cenas satíricas muito
leves e pouco interiorizadas, como a seguinte, que envolve o revisor do jornal onde
Isaías trabalha, um purista da língua:
– Doutor Lobo, como é certo: um copo d’água ou um copo com água?
O gramático descansou a pena, tirou o pince-nez de aros de ouro, cruzou os braços em cima
da mesa e disse com pachorra e solenidade:
– Conforme: se se tratar de um copo cheio, é um copo d’água; se não estiver perfeitamente
cheio, um copo com água. Explanou exemplos, mas não pôde levá-los à dezena, pois alguém
apontou na porta, o que mereceu uma exclamação do Aires d’Ávila: o Veiga! (BARRETO,
1956-c, p. 169-170).

113
Comparando os dois escritores, no que tange ao uso da sátira, percebe-se
que Oswald, embora tenha dividido a obra em duas vertentes, uma vanguardista-
humorística e outra, por assim dizer, séria e mais tradicional do ponto de vista
da linguagem, assumiu um tom único em cada uma das obras. Lima Barreto, ao
contrário, tendeu a misturar o tom sério e reflexivo à sátira. Todos os seus romances
possuem, em maior ou menor grau, essa mistura. Apenas algumas de suas obras são
puramente sátira, como Os Bruzundangas.
No livro Modernismo no Rio de Janeiro, Monica Velloso considera o humorismo
satírico praticado por escritores e caricaturistas das rodas de boêmios cariocas como
iniciador de uma “cultura do modernismo” (VELLOSO, 1996). A autora referencia
o livro O Moderno e o Modernismo, de Frederick R. Karl, para quem “localizou-se
na história ocidental, num período de trinta ou quarenta anos, uma cultura muito
marcadamente definida do moderno e do modernismo, e essa cultura liga-se em
profundidade a nossa expressão de nosso sentimento de tempo e espaço através do
uso de novas linguagens” (KARL, 1988, p. 35). Para o crítico, os nomes que iniciavam
essa cultura, constituindo a vanguarda do processo, eram Picasso, Braque, Kandinski
(abstração); Schönberg (música atonal, depois serial); e Joyce (fluxo de consciência e
livre associação). A vanguarda era “o ponto em que o moderno surge ou se cumpre
em sua linguagem particular”; depois de absorvida, ela deixava de ser vanguarda para
tornar-se parte do Modernismo (KARL, 1988, p. 35).
A abordagem do livro de Monica Velloso é surpreendente e arma um debate
relevante, mas ficam algumas perguntas no fim. A autora considera a sátira e a
caricatura praticadas pelos boêmios cariocas como um modernismo, recorrendo à
concepção de Frederick R. Karl, mas parece haver pouca afinidade entre o que ela e o
crítico americano consideram como obras “modernistas”. Além disso, sente-se falta de
que o humor da boemia carioca seja abordado também como parte de uma tradição
satírica da imprensa brasileira, não apenas referido a Baudelaire e Daumier. Fica a
indagação sobre se haveria uma especificidade histórica no humor da virada do século
XX em relação àquele da época da regência (O carapuceiro, O Novo Carapuceiro),
por exemplo, ou do Segundo Reinado (Sessão “Pacotilha”, do Correio Mercantil,
Diabo Coxo, O Cabrião).3 Ainda que o tema seja o da modernização do período
republicano, seria preciso pensar em que a produção satírica difere da anterior em
termos expressivos, encarecidos por Karl, para ganhar nesse momento individualidade
como uma espécie de Modernismo.
Entretanto, a autora tem razão quando considera que os satiristas e humoristas
da boemia carioca chegaram a criar uma linguagem melhor adaptada às novas
condições. O exemplo mais sugestivo dado pela autora é de como estes tenderam a se
tornar profissionais da propaganda. “No Salão dos Humoristas fica clara a relação que
se estabelece entre os caricaturistas e o universo publicitário”. A primeira página do
catálogo do salão trazia uma propaganda na forma de uma “performance humorística”,
intitulada Aviso.

114
Havia um projeto para ser colocado aqui nesta página um anúncio e este seria o da Casa Leivas,
rua dos Ourives, nº 9, onde se faz chapéus tão bons que é da gente perder a cabeça; porém
à última hora, ficou resolvido que aqui não se anunciará nada (VELLOSO, 1996, p. 73).

Disso, ela conclui: “Cada vez mais, a arte tendia a se aproximar do cotidiano,
integrando-o como dimensão da vida moderna”. No salão, pesquisas com novas
associações de palavras e objetos juntavam-se às caricaturas dos membros da
Academia Brasileira de Letras e de políticos, que faziam rir aos próprios caricaturados
(VELLOSO, 1996, p. 73).
A ideia de uma adaptação à vida moderna não está contemplada na noção de
modernismo de Frederik R. Karl. Este comenta que, em 1945, Arnold Schoenberg,
então com setenta anos, tivera um pedido de bolsa negado pela Fundação Guggenheim.
E explica a negativa considerando que o compositor “minara” as sensibilidades
auditivas do comitê de conselheiros da fundação, ao apresentar-lhes algo que não
podiam simplesmente assimilar. A força do estranhamento causado, àquelas alturas,
“significava que, como todos os artistas modernos, ele era um educador: educando a
audição dos ouvintes, forçando-os a responder a arranjos perturbadores, ameaçadores,
de uma nova linguagem de sons” (KARL, 1988, p. 13).
Nada mais distante, portanto, da ideia de acompanhamento do espírito do
tempo (de rapidez e automatização) e integração na vida moderna. É certo que,
também, caricaturistas e satiristas da imprensa posicionaram-se contra as aparências
de progresso – um sopro de rebeldia, sem dúvida, mas expressaram isso num
escopo expressivo já existente, sem questionar propriamente os limites do sistema.
O humor, por mais ácido que fosse, não atingia as formas literárias de prestígio,
com as quais conviveu e manteve uma relação “cordial”, no sentido proposto por
Sérgio Buarque. Para Monica Velloso, entre a Academia e a boemia vigoram “relações
de reciprocidade, complementaridade e também de hostilidade. Mas, no conjunto,
predomina o aspecto da absorção e da complementaridade” (VELLOSO, 1996,
p. 151). Essa convivência ou complementaridade pressupunha que cada tipo de
produção (séria e humorística) ficasse no seu devido lugar. O caso de Lima Barreto dá
sinais, à contrapelo, desse acordo tácito. Ele passa a ser vetado na imprensa quando
inclui no romance, uma forma séria, a sátira ao jornal. Portanto, mistura os canais
e encurta a distância estabelecida entre seriedade e humor. Além disso, contraria as
expectativas da crítica quando pretende que a experiência do indivíduo e os problemas
sociais vividos no cotidiano sejam matéria válida para a literatura. O “aprendizado da
escrita” nos jornais, de que fala Sílvio Romero, tem uma importância formativa na
literatura de Lima Barreto, mas ela não é suficiente para explicar a modernidade do
autor (no sentido mesmo de F. R. Karl, ou seja, como desafio à percepção rotinizada
do público), como se depreende de suas próprias declarações no primeiro número
da Revista Floreal, em 1907. A revista era um meio de divulgação possível diante do
fechamento do jornal ao pensamento dos novos, ou ao pensamento simplesmente.

115
Pouca gente sabe também que o nosso jornal atual é a cousa mais ininteligente que se
possa imaginar. É alguma cousa como um cinematógrafo, menos que isso, qualquer cousa
semelhante a uma féerie, a uma espécie de mágica, com encantamentos, alçapões e fogos-de-
bengala, destinada a alcançar, a tocar, a emover o maior número possível de pessoas, donde
tudo o que fôr insuficiente para êsse fim deve ser varrido completamente (BARRETO,
1956b, p. 182).

Mesmo assim, para circular, a revista precisava fazer concessões: “E de tal forma
sentimos que o público (tão habituado anda êle aos processos jornalísticos!) nos era
inaccessível se não lhe déssemos aqui alguma cousa do jornal, que fomos buscar numa revista
estrangeira um modêlo que participasse das duas cousas” (BARRETO, 1956b, p. 183).
O desconcertante (ou o moderno) na obra literária de Lima Barreto só se
explica quando se leva em conta a disposição crítica em relação a tudo que o formara
intelectualmente: primeiro, uma tradição literária, depois os “processos jornalísticos”.
Isso não quer dizer que abriria mão deles. A disposição radical de estar à altura dos
problemas da época e de empreender uma reflexão mais complexa – desmistificadora
– sobre a realidade do País exigia uma escrita menos abstrata e evasiva que a linguagem
literária da época. O autor se valeu, para isso, tanto da linguagem mais direta do
jornal, quanto do alto poder comunicativo da sátira nele veiculada. Mas sabia que
a literatura almejada por ele, a literatura militante, era contra a corrente e tinha de
passar além do que havia de meramente apelativo na linguagem do jornal.
Então talvez seja possível pensar a relação entre a sátira, a caricatura e a
modernidade brasileira a partir de outro ponto, considerando a situação de nossa
vida ideológica. Roberto Schwarz considera que, na época de Machado de Assis, a
realidade desmentia de maneira tão flagrante as ideias liberais, as mais prestigiosas do
tempo, que a desconfiança das ideologias entre nós podia ser intuitiva, dispensando
um esforço de reflexão mais profundo. Diferente da Europa, por exemplo, onde
o mesmo ceticismo pressuporia uma “verdadeira façanha da crítica” (SCHWARZ,
2000, p. 26-27). Em 1822, esse raciocínio ainda é bastante válido, se levarmos em
consideração as muitas sátiras e caricaturas dedicadas à Exposição do 1º Centenário
da Independência, que Monica Velloso comenta em seu livro. O trecho de uma delas
é ilustrativo da estratégia de funcionamento da sátira:

Que maravilha, emocional simétrica


De luz elétrica e cimento armado
A entrada dela é a célebre Avenida
Mas a saída é a Praça do Mercado
(VELLOSO, 1996, p. 189).

Os versos satíricos denunciam as pretensões de progresso no pavilhão,


contrastando a ostentação de luzes e cimento, a entrada pela avenida elegante recém-

116
aberta, com a saída que dá para o cotidiano de pobreza da cidade. A sátira praticada
na imprensa faz par com aquele ceticismo de que fala Schwarz, pois, como toda sátira,
pressupõe que a realidade mesma tenha providenciado o contraste entre ideal e real,
tornando possível imediata ou intuitivamente o desmascaramento das ideologias.4
Entretanto, a sátira, assim como o ceticismo corrente em nossa vida ideológica,
não tem sempre o mesmo valor expressivo e problematizante, ou seja, não pode ser
avaliada em bloco. Ela pode variar desde visões superficiais e cordatas5 até disposições
mais radicalmente críticas.
Resumindo, a escrita satírica e a caricatura tiveram um papel importante no
desenvolvimento e exercício de uma linguagem mais ágil e menos auratizada. Como
eram fortes no quesito comunicação, o que terminaria empurrando a caricatura
para a propaganda, elas também tiveram importância no contraste com a linguagem
literária fortemente convencionalizada e alienada da época. Entretanto, a convivência
de humor e tradicionalismo em dois canais separados não favorecia uma mudança
radical de valores, a chegada a um ponto de inflexão mais ou menos definido. Além
disso, é preciso ter em mente que essa convivência não acontecia obviamente na
forma de um laissez-faire, de um contrato liberal, em que haveria lugar para todos; ao
contrário, sabe-se que existia nessa época um controle muito estreito e hierarquizado
das instâncias de consagração de autores e do acesso às editoras. Lima Barreto,
na apresentação da revista Floreal, em 1907, fala em “mandarinatos literários”
(BARRETO, 1956b, p. 181). Estes sustentavam os valores de um tradicionalismo
academicista, combinado às tendências diletantes do momento. A expressão “sorriso
da sociedade”, cunhada por Afrânio Peixoto para definir a literatura de sua época,
sintetizou-os de maneira exemplar. Na relação com a república oficial das letras, a
boemia persistente viu-se enfraquecida pela cooptação, de um lado, e pela exclusão
completa, de outro, que diluíam as tentativas mais radicais de renovação (MARTINS,
2001, p. 31). Entretanto, foram justamente as investidas radicais, o desafio à percepção
dos leitores entediados, que caracterizaram o Modernismo como movimento artístico
definido no processo mais amplo, e certamente contraditório, de modernização das
relações sociais, inclusive a linguagem.
Processo contraditório, portanto, em que se inserem as tendências da sátira e da
caricatura, de avanço no sentido de depuração e eficácia da linguagem na imprensa, de
denúncia do discurso do progresso, que contribuem na superação do academicismo e
corrosão das ideologias, mas também podem ser aproveitadas pelo mercado, seguindo
o curso da modernização capitalista – portanto, não em proveito de uma percepção
mais aguda do mundo em redor, mas pesando no prato do fetichismo da mercadoria.
De qualquer forma, embora haja avanços de modernização da linguagem,
conflitos e divergências, o sistema heterogêneo e complexo que compreende a
Academia e a boemia, na vida literária do Rio de Janeiro do começo do século XX,

117
é uma ordem estável. Nele não se indica ainda se não um ponto de ruptura, ao
menos um ponto de inflexão, a partir do qual se perceba a vigência de novos valores
artísticos. Porque a questão sobre o papel do Modernismo na renovação artística não
está em saber se o movimento paulista iniciou, realizou ou liderou essa renovação
– que obviamente já estava acontecendo de diversas formas em diversos pontos
e em diversas artes pelo Brasil afora, inclusive em São Paulo –, mas em saber se
esse movimento foi capaz de estabelecer-se como um ponto fora do sistema estável
vigente no Rio de Janeiro, de gerar um desequilíbrio e criar, em condições históricas
específicas, um ponto de inflexão nos valores dominantes de produção e consagração
literárias; além disso, se teve relevância na afirmação dos novos valores, por quê e
como. Os vários estudos que têm sido feitos sobre a história do Modernismo nos
estados vão acabar formando um desenho bastante detalhado de como se deu esse
encontro das ideias modernistas com o substrato cultural nesses lugares, juntando-se
aos embates e combinações locais entre tradição e modernidade.
Lima Barreto empreendeu uma campanha cerrada contra o academicismo,
tanto em suas obras literárias, quanto na militância das crônicas. Ele entendeu de
maneira muito precisa o que estava em jogo e o que devia ser combatido. Mas nenhum
movimento se formou em torno de suas ideias, porque, do lugar em que estava, social
e literário, não conseguia gerar um ponto de desequilíbrio no sistema, sendo ora
absorvido, ora excluído por ele. A boemia carioca não constituiu um movimento,
nem sequer um grupo afinado de intelectuais em torno de determinados valores.
Mesmo quando fundaram revistas juntos, a atuação de cada um era individualizada,
às vezes até programaticamente, como na revista Floreal, dirigida por Lima Barreto.
Em sua apresentação, o escritor negava que fosse uma “revista de escola” ou que
revelasse “uma estética novíssima e apurada”, em tempos considerados sobretudo de
abalo dos saberes estabelecidos e dos dogmas arraigados. A publicação nascente será
antes “uma revista individualista, em que cada um poderá, pelas suas páginas, com
a responsabilidade de sua assinatura, manifestar as suas preferências, comunicar as
suas intuições, dizer os seus julgamentos, quaisquer que sejam” (BARRETO, 1956b,
p. 181-182). No entanto, era uma revista de combate, motivo pelo qual ele, “o mais
aparentemente ativo” e “o mais ostensivamente lutador”, teria sido escolhido entre
seus colegas para dirigi-la.
Também havia entre os boêmios francas aversões ideológicas. Lima Barreto
teria repelido, por exemplo, qualquer tentativa de aproximação intelectual com João
do Rio, a quem considerava partícipe e comensal dos mandarinatos literários da
cidade. Mas é certo que a boemia, a sociabilidade dos cafés, forneceu um lugar de
entrosamento e iniciação na vida intelectual, que foi o caso tanto de Lima Barreto
quanto de Oswald de Andrade, apesar de todas as suas diferenças. Por essa sociabilidade
não ter diretamente o poder de consagração e contratação, pôde admitir os começos

118
auspiciosos ou ainda inseguros, publicados em revistas consolidadas ou nascentes,
e tendeu a ser mais aberta e menos hierarquizada (embora depois, no cenário
modernizado da cidade, também se estratificasse entre a boemia dourada dos salões e
a dos cafés). Na relação com as instituições – Academia, grandes jornais, editoras –,
revelavam-se de fato as diferenças sociais, políticas e ideológicas dos atores da boemia,
essa camada meio flutuante de intelectuais em que a liberdade de pensamento e
de movimentos podia oscilar entre a rebeldia marginal e a disponibilidade para a
cooptação.
A trajetória de Oswald de Andrade seria marcada, não apenas antes mas
também durante o movimento modernista, por uma atuação fora das instituições,
por um desejo de autonomia que se apoiava nos “vestígios de uma herança da
vida intelectual da boêmia carioca” e na “especificidade de sua posição de classe”
(MARTINS, 2001, p. 9). A gradual perda de prestígio que atingiu essa boemia,
no início do século, teria afetado também a consideração de seus instrumentos
de rebeldia, principalmente a sátira, que seria tolerada apenas nos momentos
“negativos”, de combate, “sendo privilegiada sua função iconoclasta em detrimento
de sua dimensão crítica criadora” (MARTINS, 2001, p. 32). Em entrevistas dadas
pouco antes de morrer, Oswald reclama da tendência de parte da crítica de reduzi-
lo a um piadista, diminuindo seu papel “construtivo” no Modernismo. A trajetória
de Oswald como intelectual carregaria portanto os sinais da iniciação na boemia e
seria afetada por seu desprestígio. A veia vanguardista do escritor pode ter figurado,
no momento de consolidação institucional das ideias novas e mesmo antes, como
um matiz da boemia. Esta oferecia a facilidade de estar mais próxima da experiência
intelectual brasileira. Mas a irritação de Oswald com a “leitura” de uma pela outra
tem sentido, não apenas porque assim se reduzia ao episódico sua contribuição para
o movimento, mas porque se retomava (separando de novo os canais da seriedade
e do satírico, do construtivo e do radical) a possibilidade de conciliação com o
tradicionalismo estético, o que de fato aconteceria na geração de 45.
Nas primeiras duas décadas do século XX, Lima Barreto e Oswald de Andrade
começaram a escrever romances, simulando memórias, com linguagem e tom muito
parecidos. Nos trechos aqui citados, até a fumaça, que sai de um barco, no texto de
um, e de um trem, no do outro, é descrita na forma de um “penacho”. A sequência
narrativa tarde/noite também se repete, tanto é comum o repertório de vocábulos e
imagens à disposição do escritor naquele momento. Isso indica que, apesar das origens
sociais muito diferentes, ambos tiveram um período formativo inicial relativamente
comum, alimentados por uma cultura literária francesa, principalmente, e começando
a vida de intelectual em periódicos.
Vimos que a imprensa, com sua ênfase em comunicação, pôde funcionar como
um elemento de atualização da linguagem literária alienada da época, convencional

119
e elitista, embora ela também sofresse reversamente os efeitos dessa linguagem. Lima
Barreto se insere aí, em sua busca de uma linguagem eficaz. Entretanto, a atualização
de linguagem pôde também acontecer na forma de uma melhor acomodação às
novas formas de alienação, como na propaganda. A exigência da arte modernista,
para estar atualizada com o seu tempo, foi fazer jus aos dois aspectos, posicionando-
se problematicamente diante do academicismo tradicionalista e dos automatismos
da vida moderna. A sátira praticada nas revistas, no começo do século no Brasil,
tem uma trajetória própria que não se confunde com o Modernismo, nesses termos.
Entretanto, ao dar corpo ao ceticismo resultante da desilusão com a República,
certamente influiu nos rumos de uma atualização cultural e literária que, no Rio de
Janeiro, devido à estabilidade do sistema, não podia indicar um ponto de inflexão
nos valores estéticos. Isso aconteceria a partir de São Paulo. Oswald de Andrade se
insere aí, com o substrato boêmio, por um lado, e o recurso à vanguarda europeia,
por outro, com vistas a um localismo não provinciano que buscava inserir o País na
atualidade do mundo. Para Roberto Schwarz, na poesia Pau Brasil, o boêmio salvara
o vanguardista, o qual, a despeito do “valor crítico e transformador” do projeto e da
“felicidade de suas fórmulas de sete léguas”, tendia a aproximar-se do “progressismo
conservador da burguesia cosmopolita do café”.
Articulado assim, o parti pris de ingenuidade e de “ver com olhos livres” algo tem de
uma opção por não enxergar, ou melhor, por esquecer o que qualquer leitor de romances
naturalistas sabia. Daí que os achados da inocência oswaldiana paguem a sua plenitude,
muito notável, com um quê de irrealidade e infantilismo. Mas sendo Oswald um artista
grande e esperto, providenciava contrapesos à sua decisão de colocar no “presente do
universo” – e com sinal energicamente positivo! – o nosso provincianismo e as nossas
relações rurais atrozes: deu a tudo um certo ar de piada (SCHWARZ, 1987, p. 27-28).

Referindo-se aos livros de prosa, o par Miramar-Serafim, Antonio Candido


também atribui ao sarcasmo oswaldiano uma espécie de antídoto contra o
tradicionalismo. O crítico lembra uma frase de Oswald no prefácio do Serafim, na qual
o escritor admitia ser o sarcasmo uma “fonte sadia” que jorrava de seu “fundamental
anarquismo”. O anarquista (não seria o boêmio?) salvava o escritor. É essa mesma a
palavra usada por Candido, para explicar o abismo entre a Trilogia do exílio (livros
sérios) e o par de livros vanguardistas, que usam os mesmos recursos de composição
e foram escritos no mesmo período (entre 1915 e 1930): “sempre que acertava o tom
na craveira do sarcasmo, da ironia ou da sátira, é como se ligasse a corrente salvadora
que comunica à sua escrita um frêmito diferente; quando desafina naquele tom, ou
escreve a sério, a tensão baixa” e o texto é sufocado pela herança retórica, decadentista
ou naturalista (caso de Marco Zero). O sarcasmo de Oswald, entretanto, não seria
apenas sarcasmo, mas um sarcasmo-poesia (CANDIDO, 2004, p. 53).
Para o nosso assunto, dois aspectos podem ser desdobrados, a partir dos
argumentos de Antonio Candido. Um é que o sarcasmo, assim como a retórica, pode

120
ter sido, ao lado de inclinações pessoais, também resultado de uma “herança”, esta
advinda de sua relação com a boemia, que teria tido assim, para Oswald, um papel
formativo, como vínhamos pensando. Outro é a mediação da poesia que o crítico
estabelece como diferenciação do sarcasmo-sarcasmo, possivelmente identificado à
sátira mais intuitiva praticada na imprensa. Candido ressalta, no humor de Oswald
de Andrade, o trabalho propriamente estético, que via menos em Lima Barreto e
cuja ironia considerava superficial (talvez por ser mais próxima àquela sátira).
(CANDIDO, 2000, p. 115)
Na obra de Lima Barreto, o humor também foi uma maneira de escapar
ao tradicionalismo que fazia parte de sua formação. Deu-lhe um instrumento de
aproximação crítica da realidade, com que discerniu e atacou as “dosagens” e
“combinações” de “ópera e circo” implicadas na modernidade brasileira, a começar
pela vida intelectual. O valor estético da sátira de Lima Barreto está no fato de que
o autor reconheceu certas tendências duradouras dessas combinações e fixou-as em
linhas simples, com um poder revelador que a permanência das situações aumenta.
Nesse sentido, foi um boêmio, mas igualmente um militante, para quem nenhuma
arte que valesse a pena podia prestar-se ao desfrute e à exaltação da burguesia.
Convicção que o aproxima do momento posterior e mais fortemente politizado da
década de 1930.
São muitas as correntes e tendências que se entrecruzam na vida intelectual do
período, como é possível ver pelas trajetórias de Lima Barreto e Oswald de Andrade.
Além delas, dois processos interligados, mas não inteiramente coincidentes: um de
atualização da linguagem e da literatura, que é mais lento, difuso e variado; outro de
atualização dos valores e critérios de apreciação artística, que tende à concentração de
esforços para chegar a pontos de inflexão e em que o movimento modernista de São
Paulo teve um grande peso.
Para finalizar, gostaria mais uma vez de chamar a atenção para o exemplo de
Lima Barreto, que esteve também envolvido nos dois processos. No caso da mudança
propriamente artística, já discutimos como sua obra participa de uma atualização
da linguagem literária, pela busca da eficácia da língua contra a estética alienada da
época. No segundo, em que estão em jogo diretamente os valores, Lima tentou influir
quando publicou crônicas, principalmente entre 1918 e 1921, nas quais defendeu um
programa literário com alguns valores razoavelmente bem definidos, inclusive alguns
muito próximos do Modernismo, por essa época já em andamento (OLIVEIRA, p.
2004, 141-148). Entretanto, essas crônicas são escritas no tom defensivo do ponto de
vista esmagado, em que se pressupõe não apenas a militância “individual” do artista,
mas o seu isolamento, no meio imediato, na defesa daquelas posições. Nenhum grupo
de apoio jamais se reuniu em torno delas, fosse porque Lima não tivesse convocado

121
outros intelectuais (convicção do isolamento?) ou porque eles espontaneamente não
se houvessem apresentado. Em condições que Lima Barreto não admitiria (apoio
da elite cafeicultora, certa euforia do progresso), o movimento modernista (com
Oswald) contribuiu para a atualização dos valores artísticos e para a criação de um
ambiente intelectual mais favorável às obras do militante solitário.
Os processos de modernização/atualização no Brasil são extremamente
complexos, cheios de contradições, motivo pelo qual as generalizações rápidas deixam
de fora aspectos fundamentais. Em vista disso, o presente trabalho procurou se dedicar
à maior discriminação histórica do período, acreditando que é necessário persegui-la
muitas vezes até as trajetórias individuais dos autores, às especificidades estéticas das
obras e a relação deles com seu público.

Notas
1 “Além da poesia em prosa e dos poemas, Oswald de Andrade fundamenta-se num estilo documentário, que
é também poético, reproduzindo cartas, discursos, participações e mensagens, trocados entre os personagens.
E o fato de tal estilo ser essencialmente poético pode ser observado em Pau-Brasil, onde Oswald selecionou
cuidadosamente fragmentos de cartas históricas e documentos relacionados à descoberta do Brasil pelos
seus efeitos poéticos nos leitores comuns. Tal poesia fundamenta-se na sátira e nos significados inesperados”
(JACKSON, 1978, p. 49). Nesse “humorismo de choque”, existe, entretanto, para Roberto Schwarz, uma
questão de poder: “Seja como for, e sem prejuízo dos lances de gênio, a valorização modernista do Brasil antigo
ou popular incluía muito humorismo de choque e procedia com a desenvoltura e a autoridade de quem, num
país de broncos, andava atualizado com a moda internacional” (SCHWARZ, 1997, p. 129).
2 Luís Augusto Fischer considera que as memórias ficcionais são uma tendência do romance brasileiro: “Os
principais romances produzidos no país, desde sempre até hoje, simulam ser livros de memórias” (FISCHER,
1998, p. 128). E lança uma hipótese a respeito: “Talvez precisamente por saberem que não temos memória,
nossos melhores romancistas resolveram então criar a memória” (FISCHER, 1998, p. 129).
3 No ensaio “Dialética da malandragem”, Antonio Candido mostra a aproximação entre as Memórias de um
sargento de milícias e a produção cômica e satírica publicada em jornais nos períodos da Regência e início
do segundo reinado. “Escritas de 1852 a 1853, elas seguem uma tendência manifestada desde o decênio de
1830, quando começam a florescer jornaizinhos cômicos e satíricos, como O carapuceiro, do Padre Lopes Gama
(1832-34; 1837-43; 1847) e O Novo Carapuceiro, de Gama e Castro (1841-42). Ambos se ocupavam de análise
política e moral por meio da sátira de costumes e retratos de tipos característicos, dissolvendo a individualidade
na categoria, como tende a fazer Manuel Antônio”. O crítico afirma ainda que não seria necessário recorrer à
influência de Balzac, aí pelos anos de 1840 e 1850, “para encontrar a fonte eventual de uma moda que era pão
quotidiano nos jornais” (CANDIDO, 1998, p. 29-30).
4 “A tarefa da figuração satírica, portanto, é a seguinte: tornar ideologicamente conscientes os pressupostos
‘espontaneamente naturais’ da sátira e representá-los de modo a que ganhe um impacto sensível o que foi
ideologicamente clarificado. Em outras palavras: esta tarefa consiste em figurar como necessário, sob a forma de
uma evidência imediata, o que surgiu apenas ‘por acaso’ na realidade” (LUKÁCS, 2011, p. 174).
5 Para Schwarz, o descompasso explícito entre ideias e realidade “facilitava o ceticismo em face das ideologias,
por vezes bem completo e descansado, e compatível aliás com muito verbalismo” (SCHWARZ, 2000, p. 26-27).

122
Referências Bibliográficas
ANDRADE, Oswald de. Vida provinciana (Das Memorias sentimentaes de João Miramar). In: O Pirralho. São
Paulo, 30.09.1916, n. 223, p. 4. Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bi-
b=213101&pasta=ano%20191&pesq=. Acesso em 15.10.2012.
________. Os dentes do dragão: entrevistas. São Paulo: Globo; Secretaria de Estado da Cultura, 1990a.
________. Memórias sentimentais de João Miramar. São Paulo: Globo; Secretaria de Estado da Cultura, 1990b.
BARRETO, Lima. Correspondência (ativa e passiva). São Paulo: Brasiliense, 1956a, tomo I.
________. Impressões de leitura. São Paulo: Brasiliense, 1956b.
________. Recordações do escrivão Isaías Caminha. São Paulo: Brasiliense, 1956c.
________. Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. São Paulo: Brasiliense, 1956d.
________. Toda crônica. Organização Beatriz Resende e Rachel Valença. Rio de Janeiro: Agir, 2004, v. I.
CAMPOS, Haroldo de. Miramar na Mira. In: ANDRADE, Oswald de. Memórias sentimentais de João Miramar.
São Paulo: Globo; Secretaria de Estado da Cultura, 1990b.
CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem. In: O discurso e a cidade. 2ª ed. São Paulo: Duas Cidades,
1998, p. 19-54.
________. Literatura e cultura de 1900 a 1945 (Panorama para estrangeiros). In: Literatura e sociedade. 8.ed.
São Paulo: T. A. Queiroz, 2000, p. 109-138.
________. Digressão sentimental sobre Oswald de Andrade. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades; Rio
de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004, p. 33-61.
FISCHER, Luís Augusto. O ventre e a linhagem das memórias. In: Para fazer diferença. Porto Alegre-RS: Artes
e Ofícios, 1998, p. 128-136.
JACKSON, Kenneth D. A prosa vanguardista na literatura brasileira: Oswald de Andrade. São Paulo: Perspec-
tiva, 1978.
KARL, Frederick R. O Moderno e o Modernismo: a soberania do artista, 1885-1925. Trad. Henrique Mesquita.
Rio de Janeiro: Imago, 1988.
LUKÁCS, Georg. A questão da sátira. In: Arte e sociedade: escritos estéticos 1932-1967. Organização, apresen-
tação e tradução de Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011,
p. 163-191.
MARTINS, Rubens de Oliveira. Um ciclone na Paulicéia: Oswald de Andrade e os limites da vida intelectual em
São Paulo (1900-1950). São Paulo: Unibero, 2001.
OLIVEIRA, Irenísia Torres de. O programa de Lima Barreto para a literatura brasileira: o livro Impressões de
leitura. In: HELENA, Lucia. Nação-invenção: Ensaios sobre o nacional em tempos de globalização. Rio de
Janeiro: Contracapa/CNPq, 2004, p. 141-148.
SCHWARZ, Roberto. A carroça, o bonde e o poeta modernista. In: Que horas são? Ensaios. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 1987, p. 11-28.
________. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. 3ª ed. São Paulo, 1998.
VELLOSO, Monica Pimenta. Modernismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996.

123
O progresso de outrora: anotações
sobre temporalidade e experiência
urbana (Fortaleza, 1920-1940)

Antonio Luiz Macêdo e Silva Filho*

O progresso como questão

O progresso é um tema antigo. Não raro foi mobilizado como traço concreto
ou pressuposto filosófico para sedimentar interpretações diversas sobre a passagem
do tempo e as transformações das sociedades, como também serviu a tentativas,
conduzidas sobretudo por pensadores, políticos e governantes, de prover a história
de um sentido e um vetor no curso das épocas. Fosse na esteira de um alinhamento
a projetos renovadores, fosse na defesa da manutenção de estruturas herdadas, a
referência ao progresso assinalava, como enunciação de uma evidência, o registro
de mudanças variadas. Demarcava ainda fronteiras entre os que se punham na
condição de seus adeptos e aqueles contrários ou reticentes a respeito de sua alegada
positividade.
Em nossos dias é notório o esmaecimento, quando não a recusa, do
prestígio antes conferido ao progresso. Sua apropriação como dispositivo retórico
para conferir legitimidade a propostas de incremento socioeconômico se traduziu
frequentemente no aprofundamento da desigualdade entre os membros de uma
coletividade. Sua convicção quanto à virtual continuidade do aprimoramento
material e moral nas relações entre os homens foi confrontada com o espectro
de catástrofes humanitárias, estendendo-se das crises de fome e das epidemias
resultantes do domínio colonialista à invenção do extermínio em massa nas
instituições concentracionárias, impossível sem a convergência de dois elementos
basilares da vida moderna – a indústria e a administração burocrática. À evocação do
progresso como categoria central para a inteligibilidade dos nexos entre sociedades
dotadas de experiências históricas distintas sucederam críticas que recusaram a
hegemonia das chamadas metanarrativas, pelo comprometimento com elementos

* Professor Doutor – Departamento de História e Programa de Pós-Graduação em História – Universidade


Federal do Ceará. E-mail: aluizmacedo@yahoo.com.br.

124
universalistas decantados da civilização ocidental, os quais atuariam na formulação
etnocêntrica de padrões hierárquicos e excludentes no que tange à percepção das
diferenças culturais (ROSSI, 2000). A própria ênfase contemporânea na memória
e a valorização hipertrofiada do passado denotam a perda do privilégio dado ao
futuro – dimensão que magnetizava a preocupação dos espíritos envolvidos com o
ideário modernizador e o discurso progressista (HUYSSEN, 2004). Em que pese
o atual desapreço, a indiferença ou mesmo a hostilidade lançada sobre essa visão
ascendente da história, o modo pelo qual as gerações precedentes configuraram suas
experiências e sensibilidades diante do tempo dificilmente pode ser compreendido
sem ter em conta a referência ao progresso.1
Em linhas gerais, aludir ao progresso implica organizar a multiplicidade dos
eventos e das durações, de tal maneira a identificar, no cotejo entre períodos anteriores
e o momento contemporâneo, sinais de avanço, notações do aperfeiçoamento
conquistado à medida que o tempo passa. Estabelecendo a compreensão de
uma diferença qualitativa entre as épocas, na qual o presente se afirma por um
distanciamento crescente (e positivo) em face do passado, o progresso constitui um
poderoso índice de temporalização nas sociedades modernas. A consciência de se
viver num período que não é apenas cronologicamente posterior ao dos ancestrais,
mas dotado de particularidades outrora desconhecidas e imprevistas, tende a
favorecer atitudes de liberação quanto ao peso sacrossanto das tradições e ao caráter
supostamente exemplar dos fatos já transcorridos. É então possível beneficiar-
se dos saberes, descobertas e invenções precedentes, desenhando no presente uma
trajetória dirigida para o futuro como um campo de possibilidades pautado pela ação
humana. Essa sensibilidade temporal está no cerne da modernidade. Aí o progresso
é apreendido como uma força impessoal e transformadora (por vezes irresistível),
um órgão de performance dos acontecimentos situado acima e além das iniciativas e
vontades individuais.
Contudo, para que esse modo de compreensão da dinâmica temporal ganhasse
pertinência, foi preciso tanto suplantar as concepções cíclicas da história quanto
operar uma quebra com certa imagem cristã de progresso, a qual o definia como o
caminho espiritual para a salvação da alma, em sintonia com a expectativa do fim do
mundo e o advento do Reino de Deus. A experiência de um tempo novo, condensada
num único termo – progresso – requisitou ainda a desnaturalização das metáforas
da idade: o crescimento deixou de ser concebido nos termos de um curso natural
que necessariamente levaria da juventude à velhice; a par e passo, o envelhecimento
irreversível do mundo foi perdendo a antiga conotação de decadência biológica e
moral. Portanto, a consolidação do conceito moderno de progresso, em referência a
um processo social inteiro e conduzindo para a abertura rumo a um futuro melhor, foi
correlata à destituição de visões do tempo que inviabilizavam a interpretação secular
do porvir como produto do agir humano (KOSELLECK, 2002; LE GOFF, 1996).

125
No entanto, comentários e observações em torno do progresso, seus reveses
e interrupções, seu ritmo e sua “marcha” não estiveram circunscritos ao discurso
das autoridades, ao jogo das forças políticas e aos debates intelectuais. A própria
assiduidade com que o termo aparece em jornais, revistas, crônicas, romances e
anúncios das primeiras décadas do século XX assinala as diferentes maneiras pelas
quais o progresso ganhou destaque e pertinência junto à opinião pública. Já não se
trata então de oferecer definições prontas ou quadros analíticos com base em princípios
abstratos, mas sobretudo de lidar com o progresso nos termos de algo constantemente
percebido, evocado, disputado, esperado ou temido, ponto de crítica ou objeto de
exaltação por homens e mulheres de uma determinada coletividade. Nesse sentido,
uma reflexão histórica que se detenha sobre manifestações e impressões concernentes
ao progresso, em dado tempo e lugar, pode convertê-lo numa via interpretativa para
investigar dimensões da vida cotidiana, alterações nos sentidos do corpo e na cultura
material. Delineia-se portanto uma possibilidade de exame sobre esse conceito tão
caro ao imaginário das sociedades ocidentais, sem necessariamente inscrevê-lo numa
crítica das ideologias; interessa entender de que modo e sob quais circunstâncias ele
pôde servir como chave de leitura para apreender processos de transformação e situá-
los num quadro abrangente, sobretudo quando estes se mostraram especialmente
céleres ou intensos para alguns indivíduos e grupos sociais.
Parte dessas indicações conduz o presente artigo, tendo como foco a cidade
de Fortaleza, nas décadas de 1920 e 1930. Contudo, operar a referida delimitação
não implica a sugestão de um corte em face de práticas socioculturais ocorridas
alhures, pois um dos aspectos subjacentes à noção de progresso repousa na articulação
complexa entre lugares e temporalidades diferentes. À medida que análises e discursos
variados apontam para o ambiente urbano como centro privilegiado de realizações
humanas e catalisador do potencial de mudança, projetando sua identificação com
forças voltadas ao melhoramento das condições de vida em sociedade, não é raro que
um jogo de contrastes faça emergir aquilo que passa a ser caracterizado como seu
avesso: espaços de atraso, sociabilidades rústicas, modos de vida subjugados à pressão
da inércia e da rotina. Portanto, falar da cidade é também amiúde uma forma de se
referir a outros lugares (WILLIAMS, 1989). Por seu turno, o pensamento sobre a
cidade não se constitui isoladamente; ao contrário, parte de imagens em formação
no entrecruzamento das referências herdadas e das experiências pessoais. Assim, a
elaboração de ideias e impressões sobre a cidade, longe de estar confinada ao mundo
urbano, pode mesmo fornecer indícios a respeito de concepções e valores sobre a
cultura e a sociedade (SCHORSKE, 2000).

126
Vislumbres do avanço

Ao longo das primeiras décadas do século XX, as capitais brasileiras passaram


por uma série de transformações em sua infraestrutura e no conjunto dos serviços
disponíveis, nas formas de regulação do espaço e das atividades urbanas, na prescrição
de padrões de comportamento adequados aos traços de sociabilidade prevalecentes
nos centros dinâmicos do capitalismo. Essa mescla de investimentos técnicos,
codificações normativas e injunções cotidianas exerceu pressão considerável sobre os
modos de vida de populações situadas nas principais cidades do País, especialmente
os segmentos pobres, marcados pela precariedade material, a privação de direitos,
a instabilidade do ganho e da moradia, a improvisação de táticas de sobrevivência
(MARINS, 1998). Nos princípios do regime republicano, o torvelinho de iniciativas
dedicadas à remodelação espacial e à refiguração das clivagens sociais, sob a égide das
autoridades e das elites dirigentes, denotava estreita articulação com dois processos
complementares: a maior integração do Brasil no mercado internacional, como
receptáculo de vagas migratórias, mercadorias, empréstimos e fluxos de capitais das
potências industriais, e como produtor especializado de gêneros primários exportáveis
para o atendimento das demandas de massa em ascensão nas regiões temperadas da
Europa e da América do Norte; o afã da instauração simbólica de um novo tempo,
expresso na busca de ruptura com imagens, valores e hábitos associados ao passado
colonial e imperial, a qual seria traduzida na crescente marginalização e perseguição
de práticas, rituais e festividades provenientes das tradições populares (FAUSTO,
1995; SEVCENKO, 1998b).
Com a implementação da nova ordem política e social, as grandes capitais
assumiram preeminência nas preocupações de gestores, técnicos e membros das classes
abastadas: sua condição de pontos articuladores dos quadros de produção interna com
o circuito da economia mundial se somava à urgência de dotar compulsoriamente
esses núcleos urbanos de equipamentos, condições sanitárias e regras de convívio
social alinhados à imagem de país civilizado, portanto capaz de atrair pessoas e
recursos financeiros das nações avançadas. A variedade de formas assumidas por essa
experiência moderna nas principais cidades brasileiras se aglutinou em torno de três
dimensões principais: a valorização da atitude individualista; a relação assídua com as
novas tecnologias; a associação com símbolos cosmopolitas, notadamente plasmados
nas metrópoles dos países industrializados (SEVCENKO, 1998a). Nessa aspiração
dos grupos dominantes por redimir o sentimento de descompasso do Brasil em face
dos centros hegemônicos, não foi incomum a incidência de aproximações entre certas
noções difusas que projetavam o horizonte a ser supostamente perseguido: assim,
“moderno”, “civilização” e “progresso” escaparam largamente a suas acepções estritas
para engendrar um jogo de espelhamentos, uma palavra reenviando às demais,

127
amiúde em apoio recíproco, tecendo um reticulado de sentidos com a auréola dos
novos tempos e um vetor dirigido para o futuro.2
Quando se tratou de avaliar o grau de progresso, as narrativas a respeito da
capital cearense nas décadas de 1920 e 1930 tenderam a enfatizar a presença de
incrementos tecnológicos, a multiplicação das máquinas nos espaços de abrangência
pública e a emergência de uma paisagem marcada pela verticalidade e escala grandiosa
de algumas edificações. Esses traços mal seriam discerníveis numa descrição acerca do
aspecto geral das habitações de Fortaleza por volta de 1910:
As casas são, no geral, de um só pavimento, cobertas de telha vã, pavimentadas a tijolos
vermelhos; de porta e uma ou duas janelas, possuem sala de visitas, um ou dois quartos,
sala de jantar e cozinha; da sala da frente para a de refeições vai um longo corredor, para o
qual dão as portas das camarinhas. Muitas vezes a inclinação do telhado é pequena e este se
agacha sobre os cômodos, sendo preciso instalar telhas de vidro, que vêm dar alguma luz às
sombrias alcovas. Construídas quase sempre em terrenos com cinquenta metros de fundos
– meio quarteirão – as casas possuem nos quintais árvores de fruta, fossa sanitária, banheiro
e cozinha; a felicidade é que ninguém acredita em contaminação, e a possível existência de
micróbios apenas perturba aos mais cultos (FERNANDES, 1977, p. 240).

A modéstia do casario, interrompida por sobrados e palacetes pouco numerosos


em vista do montante edificado, indicava o apego a formas antigas de uso do solo
urbano, dividido em lotes estreitos e profundos, com a fachada das casas geralmente
erguida no alinhamento das ruas. Numa época em que o recuo da face frontal das
residências sugeria a valorização normativa da distância entre as vivências privadas e
o mundo público, essa proximidade física das moradas com os logradouros tendia a
ser vista como sinal de atraso. As telhas livremente expostas ao olhar dos transeuntes
denotavam acanhamento e, pior ainda, pareciam atestar a persistência de traços do
passado colonial em plena República. O rigor das orientações higiênicas tentava então
se afirmar com base na notabilidade da ciência moderna e no confronto com tradições
construtivas pouco afeitas à ingerência do poder público sobre as propriedades e as
habitações. Todavia, além de fomentar reclamações contra a falta de arejamento e
iluminação natural dos cômodos, a maioria das residências da capital cearense no
início do século XX apresentava outra característica gradativamente associada à falta
de progresso: a importância dos quintais no funcionamento do ambiente doméstico,
reunindo atividades tão diversas quanto o preparo dos alimentos, o cultivo de frutas
e hortaliças, a criação de pequenos animais, as necessidades fisiológicas e o acúmulo
dos dejetos. A convergência de banheiro, cozinha, fossa, bichos e plantas no quintal
não apenas afrontava as recomendações de médicos e autoridades sanitárias –
solidárias à especialização de funções dentro da moradia –, mas também sugeria
experiências de privacidade não confinadas sob o teto das casas, portanto menos
ciosas dos resguardos doravante reconhecidos como marca de civilidade e respeito à
dimensão íntima de cada um.

128
Se o espaço construído parecia transmitir, a certos habitantes e adventícios,
uma impressão de atraso, desordem e inadequação às exigências da vida urbana, o
próprio visual arquitetônico poderia ser investido da capacidade de exprimir um
ritmo e um vetor de mudança, anunciando (ou já testemunhando) o progresso
de um aglomerado humano. Nas memórias do historiador Raimundo Girão, o
mérito concedido à gestão do prefeito Tibúrcio Cavalcanti recaiu especialmente na
constituição de um novo aparato normativo para a capital cearense em 1932:
Reformulou, modernizando-o, o Código das Posturas, dentro deste o das Construções.
Rejuvenesceu a legislação municipal em linhas novas, lógicas, tirando-a de avelhantados
dispositivos, geradores do atraso da cidade em vários de seus aspectos. Proibiram-se as
construções de casas unidinhas umas às outras, compridas, com lá dentro interminável, sem
aeração, sem luz franca, sem qualquer conforto sanitário, as privadas lá no fim do quintal,
em casinholas imundas. Obrigaram-se as construções isoladas e recuadas; e as áreas laterais
livres, quando muito conjugadas as casas duas a duas. Bastava essa medida para demonstrar
a clarividência do novo gestor; e os resultados dela transformaram a fisionomia da cidade,
até então de ruas com as casas paredes-meias numa sucessão de caixas de fósforos ou caixas
de calçados em prateleiras da sapataria (GIRÃO, 1972, p. 168).

As disciplinas implantadas pela edilidade tiveram, na apreciação desse


intelectual, efeitos vantajosos na transformação da paisagem urbana. A sintonia
com o progresso implicava tanto um corolário de melhorias quanto a abertura de
uma distância mais larga e mais veloz em relação ao passado. Liberar-se dos padrões
tradicionais de construir e habitar configuraria então um triunfo diante de obstáculos
à renovação do uso do solo. Vitória das prescrições do higienismo, a exigência de recuo
lateral para as casas consagrava o primado da circulação dos ares e reforçava ainda a
suplantação das sequências encadeadas de pequenos imóveis, tidas como insalubres e
monótonas à luz dos experimentos arquitetônicos erigidos nas metrópoles modernas.
O novo dispositivo regulador atingia aspectos diversos da vida urbana:
construções e suas respectivas licenças, projetos, demolições, exames, vistorias e
autorizações, materiais e medidas; instruções de trânsito; registro de veículos de carga
e de passageiros; costumes; comércio, anúncios, divertimentos e feiras; procedimentos
para a limpeza pública; asseio dos estabelecimentos particulares e higiene das
habitações; inspeção sanitária da comercialização de gêneros alimentícios; serviço
de estatística municipal etc. Esse ímpeto normativo indicava a busca do Estado por
estabelecer modalidades mais abrangentes e sistemáticas de controle sobre a existência
cotidiana dos moradores. O próprio documento pontificava, em suas primeiras
linhas, a ausência de um novo código como fator de “sérios embaraços ao progresso
do município e à urbanização metódica da cidade”. Em face da obsolescência das
antigas posturas e da alegada falta de uma orientação de conjunto para o crescimento
da capital, à nova lei se atribuía o papel de instrumento a serviço do alcance do
“adiantamento e conforto exigidos pelo bem estar da comunidade”. Parecia haver

129
aí o entendimento de uma autoridade coerciva como requisito fundamental para a
conquista do progresso.
A minudência da legislação municipal fustigava elementos assíduos nos
prédios de Fortaleza, desde então proibidos, como telhados sem platibanda em sua
face dianteira e jacarés ou serpentões (orifícios abertos no alto das fachadas por onde
se dava o escoamento das águas pluviais para a via pública). As construções, em sua
quase totalidade, não poderiam ocupar mais de dois terços do terreno, ficando o
restante destinado a áreas, pátios, jardins e quintais para iluminação e aeração dos
diversos recintos, assim especificados:
Art. 233 – Os compartimentos de um prédio, particularmente os destinados à
habitação, devem ser, quanto possível, banhados pelos raios solares e ventilados
convenientemente, para o que serão estabelecidas aberturas para o exterior e para
áreas descobertas ao centro, em torno e no fundo (FORTALEZA, 1933, p. 62-63).

Providências desse gênero não deixaram porém de receber críticas por parte
de indivíduos que entendiam ser o progresso uma aquisição concretizada em outros
marcos do conforto doméstico. Num jornal de Fortaleza foi publicada matéria
contrária às alterações no desenho das casas exigidas pelo órgão sanitário, afirmando
que as ditas áreas abertas nada mais seriam que enormes goteiras:
Por mais justo que pareça e tenha sido a intenção a melhor possível (de bem intencionados
está o inferno cheio!), não deixa de ser uma asneira grossa a exigência da Saúde Pública,
que, sem consultar a técnica, obriga a todos os proprietários de pardieiros que se desalugam,
que mandem abrir áreas, admitam ou não as condições do prédio tal inovação.

Com essa medida, julga a Saúde Pública tornar habitáveis sórdidas baiucas que no Ceará,
erradamente ou para justificar a extorsão que sofre o inquilino, chamam de casas.

[...] Casas que possuem esses buracos (imensa goteira!), que a Saúde Pública teima
em chamar de área, não se alugam, principalmente no inverno, em que as chuvas os
transformam em verdadeiras cachoeiras, como há poucos dias sucedeu com o temporal.

O que a Saúde Pública devia exigir era o assoalhamento de madeira e a forração do teto com
tábuas de todas as casas, como se usa em toda parte onde existe alguma noção de higiene e
vaga ideia do que seja conforto, porque o que se aluga por aí, por preços de palacetes, não
passa de imundos estábulos, ainda impróprios para gado de raça... (CORREIO DO CEARÁ,
11 jan. 1934, p. 5).

Conforme a opinião do autor desse artigo, o progresso almejado pelas


autoridades requeria conhecimento técnico, e não apenas vontade legisladora.
Modificações em imóveis antigos poderiam gerar transtornos ainda maiores que
aqueles atribuídos à escassez de ventilação, sobretudo para inquilinos às voltas com

130
a precariedade das habitações e o custo abusivo dos aluguéis. Assim, um avanço
qualitativo na forma de morar seria assegurado não pelo imperativo higienista da
livre circulação dos ares, mas pelo emprego de assoalhos e forros. Essa prioridade,
hoje tornada inusual, era pertinente em lares modestos, onde improvisos e gestos de
zelo buscavam atenuar o peso de certas rusticidades. Um memorialista recorda que
durante os anos 1930, na casa de sua família, um pano trançado com finas hastes de
madeira fazia as vezes de forro. Confeccionado com sacos vazios de farinha de trigo,
não conseguia resistir ao assédio das goteiras: “Era enfeite e proteção contra os ciscos
que podiam cair do telhado, mas bastante vulnerável a estragos pelas chuvas. Quando
chegava a estação das águas, uma tragédia. [...] eu me distraía contando o número de
goteiras. Bastavam três ou quatro para arruinar aquele possível conforto doméstico”
(CAMPOS, 1996, p. 59). Rodapés pintados com alcatrão lembravam a guerra
permanente contra baratas e cupins. E o piso de muitas habitações não conhecia a
impermeabilidade da madeira e do ladrilho hidráulico, apresentando-se inteiramente
desnudo (chão de terra batida) ou com revestimentos humildes, a exemplo do tijolo
e do cimento (CAMPOS, 1998, p. 13). A raridade de superfícies lisas nas moradas
pobres podia causar mais incômodos do que os ocasionados por infiltrações e poças
de água, em razão de intempéries e telhados mal protegidos: durante a infância no
fim da década de 1920, uma moradora de Fortaleza era anualmente engajada, com
irmãos e tios, nos cuidados para a festa de aniversário do avô, quando muitas pessoas
afluíam à residência: “Os preparativos eram intensos e envolviam toda a família, Ester
e Giselda lavavam toda a casa, Luís e Afonso iam à praia pegar areia para cobrir todo
o piso que era de tijolo vermelho, pois como a turma em geral não era muito educada
e muitos cuspiam no chão, esse era o meio encontrado para diminuir o problema”
(CASTRO, 2001, p. 35).
Se as benesses do progresso pareciam distantes da existência concreta de pobres
e remediados, nem por isso seu brilho deixava de afirmar-se em realizações portentosas.
Uma delas foi a construção do então mais alto prédio da capital cearense, com térreo
e sete andares: o Excelsior Hotel. Situado numa extremidade do mais importante
logradouro de Fortaleza – a praça do Ferreira –, o novo edifício, inaugurado em
1931, não tardou em ser transformado numa expressão do desenvolvimento técnico
e econômico da cidade. Seu tamanho e elevação foram suficientes para identificá-lo a
um símbolo prestigioso do imaginário da metrópole: o arranha-céu. Sua localização
privilegiada favoreceu a impressão quanto à centralidade simbólica que passava a
ocupar na paisagem urbana. Sendo um hotel, contribuía para a integração da cidade
em um circuito ampliado de viagens, negócios e investimentos, além de funcionar
como um catalisador de movimento, destinado a abrigar provisoriamente indivíduos
sempre em trânsito, de passagem, em geral desconhecidos entre si (SILVA FILHO,
2002).3 O progresso se mostrava então alinhado à valorização do anonimato e da
impessoalidade. Um anúncio do estabelecimento divulgava seus maiores atrativos:

131
EXCELSIOR – Hotel de 1ª classe
Fone, 1743 – Direção teleg. Excelsior – Cx. Postal, 339
Os melhores aposentos de luxo a preços equitativos. 150 aposentos, todos com luz e
ventilação direta, água corrente e telefone. Servido por dois rápidos elevadores Otis. Água
gelada em todos os andares. Americano terraço-bar, Barbearia, Manicure etc. Central
telefônica, ligada em todos os aposentos. Situação distinta à Praça do Ferreira – Fortaleza
– Ceará – Ramon & Cia. Ltda. (ALMANAQUE DO CEARÁ PARA O ANO DE 1940,
1939, p. 227).

A sugestão de requinte se revelava na farta disponibilidade de equipamentos


caros e de usufruto pouco disseminado. Com a emergência da verticalidade
arquitetônica, surgia a necessidade de veículos para o transporte rápido, cômodo
e seguro entre os pavimentos. Mas movimentar-se sem maior esforço não basta:
num prédio de grandes dimensões, a comunicação fácil e eficiente é requisito
indispensável aos hóspedes – o telefone organiza o contato privado e instantâneo
entre seres fora da vista um do outro. O acesso à água corrente estava longe de um
alcance generalizado, pois somente a partir de 1926 Fortaleza passou a contar com
um sistema de distribuição de água potável; encontrá-la gelada, a poucos passos do
próprio aposento, era então um autêntico privilégio. O Excelsior Hotel sobressaía
pela pujança de suas formas e a concentração de tecnologias, para fruição de poucos.
Outros lugares e eventos reforçariam, entre diversos habitantes, a sensação de que o
progresso – e seu correlato: o mundo moderno – era não apenas tingido com as cores
do exclusivismo, mas também desenhava um cenário de perecimento e destruição.

Sob o signo da perda

Num romance ambientado em Fortaleza no princípio dos anos 1910, o


escritor Gustavo Barroso fez a seguinte descrição:
Nas ruas esburacadas para assentamento da rede de água e esgotos, as valas
bocejavam, escuras, ladeadas pelos grandes tubos de ferro. Traçavam-se por
cima os fios da Light & Power do Ceará: luz, força e bondes. A cidade progredia.
Felizmente as ruas eram linheiras e largas, não havendo necessidade de demolições
e alargamentos, para a passagem do progresso, que, no dizer de Camilo Castelo
Branco, é barrigudo e precisa de espaço (BARROSO, 1961, p. 137-138).

Essa representação literária ecoa alguns motivos acerca do progresso: ele supõe
o movimento; consiste numa força cuja passagem deixa marcas; seu raio de ação
envolve a implantação de novos serviços e tecnologias; sob os pés dos homens e
acima de suas cabeças, ele suscita fluxos de matéria e energia. Pressuroso e espaçoso,
o progresso demonstra intolerância com a escala modesta da cidade de outrora, abre
caminho a novos meios de transporte e comunicação, recusa a persistência de vias

132
estreitas, pouco afeitas ao olhar vigilante das autoridades e ao imperativo da circulação.
O imaginário do progresso requer, ainda, um princípio constante de
atualização e superação de seus próprios marcos de referência. Numa publicação de
1939, voltada a divulgar informações e estudos sobre o Ceará, um texto acentuava a
notória diferença entre a Fortaleza de 1910 – quando circulou por suas ruas o primeiro
automóvel – e aquela da década de 1930: “De lá para cá, as coisas mudaram”. Essa
comparação dramatizava o aprimoramento e a grandeza da cidade recente, impelida
por forças e estruturas que moldaram a alteração do ritmo e do espaço cotidiano:
O espírito do progresso a empolgou numa quase alucinação e ela se expandiu, nivelou os
seus passeios, modernizou os seus calçamentos, construiu bangalôs mimosos e levantou
arranha-céus, intensificou as transações do seu comércio e ensinou ao seu povo novas
necessidades e exigências.

A existência calma de antanho trocou-a por uma febricitação, cada qual procurando
chegar primeiro, vencer primeiro, numa labuta constante, todos mais apressados, mais
preocupados, mais atormentados.

Para realizar o ideal da pressa, ou melhor, para obedecer ou acompanhar as imposições


da pressa teve que recorrer aos meios de transporte rápidos, às comunicações rápidas e,
consequentemente, as suas praças se encheram de automóveis, de ônibus, de carros de toda
a espécie que se alinham e movem, cadenciadamente, como glóbulos de sangue, dentro nas
artérias das avenidas e das ruas, para passarem todos no coração da urbs – a praça do Ferreira,
que não cessa de bater e palpitar, e daí seguirem o rumo fisiológico das rodagens, em busca
dos arrabaldes, dos lugares vizinhos, das cidades mais distantes dos centros hinterlândicos,
avigorando-lhes a vida, acelerando-lhes o desenvolvimento (GIRÃO e MARTINS FILHO,
1939, p. 446, grifos no original).

Nesse comentário positivo a respeito das mudanças na vida diária, a capital


cearense foi convertida numa mescla ambígua de palco e personagem: já não há como
saber se ela ganhou o perfil de um agente coletivo, dotado de vontade própria, ou se
constituía o ambiente sobre o qual o “espírito do progresso” erigia sua obra. Marcas
variadas desse impulso transformador – nas calçadas e edificações, no comércio e
no trânsito, na conduta dos moradores – convergiam, segundo o entendimento em
apreço, para a afirmação de analogias consagradas entre a cidade e o corpo: uma
praça, ruas e estradas recebem assim a imagem do coração, das artérias e veias cujo
vigor, regularidade, desobstrução e largo alcance eram tidos como imprescindíveis
ao funcionamento ordenado e dinâmico da sociedade transfigurada em imenso
organismo. Se a suspensão do movimento parecia insinuar um prenúncio de morte,
uma ruptura desvitalizante, a celeridade no deslocamento se tornava, mais que traço
de urbanidade, uma exigência incontornável.
Entre os elementos cuja aparição recente foi crescentemente identificada
ao imaginário da cidade moderna nas décadas iniciais do século XX, o automóvel
assumiu um lugar destacado. Seu alto custo de obtenção e manutenção, sua

133
procedência dos centros industriais avançados, o status social projetado sobre seus
usuários e proprietários, o nexo estabelecido entre esse veículo e um estilo de vida
sofisticado e “esportivo”, a capacidade de travessia de longas distâncias em tempo
reduzido com base num padrão tecnológico de velocidade – todos esses atributos
favoreceram a emergência simultânea do automóvel como artefato e símbolo de um
mundo novo, à base de potenciais e energias desencadeadas pelo saber científico e o
maquinismo (SEVCENKO, 1998a).
Se a visibilidade pública gradativamente adquirida pelo automóvel teve
incidência, em especial, nas grandes cidades brasileiras, ali também os efeitos desse
meio de transporte foram percebidos com maior abrangência. Em Fortaleza não
faltaram adesões entusiasmadas e manifestações de defesa quanto ao desenvolvimento
econômico que seria resultante da ampliação continuada do uso de carros e caminhões.
A essa gama de discursos, emanados sobretudo da imprensa local, se somava a
enumeração de problemas para os quais eram requeridas providências efetivas: se
o automóvel era sinônimo de progresso, caberia portanto atuação sistemática do
governo no sentido de promover a construção de estradas e o alargamento de vias.
Porém, durante os anos 1920 e 1930, é também possível encontrar cidadãos reticentes
quanto à positividade das mudanças acarretadas pelos veículos motorizados: sua
presença ameaçava, por exemplo, a sobrevivência econômica de meios tradicionais
de deslocamento em municípios do interior do Ceará – os carros de bois –, para os
quais se solicitava redução nas taxas cobradas pelo poder público (BEVILÁQUA,
2012). Mas o entendimento da consequência nociva de certos aparatos tecnológicos,
tão solidários à imagem de um futuro melhor e mais próspero, não se limitava ao
questionado menosprezo de objetos, condutas e valores associados ao passado,
portanto doravante considerados incompatíveis com as formas modernas de agir e
pensar. O imperativo do progresso trazia consigo um custo social intolerável, já no
presente, para quem não concebia o tempo como avanço indefinido:
Hoje [1936] Fortaleza os conta [os atropelamentos] diariamente. Dizem certos entusiastas
que os desastres de rua estão na razão direta do progresso das cidades e que são o índice (ou
termômetro) pelo qual se avalia o progredir de cada terra. Quanto mais os nossos carros
matarem gente, tanto melhor, porque tais acidentes mostram que a Fortaleza tem vida, tem
gente, movimento e progride (NOGUEIRA, 1980, p. 166).

Na reflexão do engenheiro e pesquisador João Nogueira sobressai a discordância


do otimismo técnico prevalecente entre seus contemporâneos. Além disso, o
cronista, dedicado ao registro de acontecimentos e costumes da capital cearense nos
séculos XVIII e XIX, flagrava, na multiplicação de atropelamentos, mais que uma
decorrência da expansão dos automóveis: os desastres constituíam a evidência da
relação estreita entre progresso e morte. Uma noção temporal dirigida ao vislumbre
de um aperfeiçoamento contínuo do gênero humano era assim contrariada, ou ao
menos contestada, em face da enunciação de suas vítimas anônimas.

134
Outras circunstâncias da vida diária poderiam oferecer elementos à observação
e comentário de letrados mais sensíveis ao ritmo das mudanças. Um evento,
aparentemente banal, integrado à narrativa crítica do progresso em Fortaleza foi a
derrubada de uma árvore centenária na região do centro. O chamado oitizeiro do
Rosário, situado ao fundo da igreja homônima, era ponto de encontro, descanso e
conversa entre diversos moradores que, no transcurso diário pelas ruas, ali faziam
pausa para fruir da sombra e da brisa sob os galhos extensos. Dizia-se mesmo que, no
passado, ele dera frutos que faziam o regalo de crianças e adultos. O espécime seria
posteriormente alçado a um grupo seleto de “árvores que falam”, em razão do lugar
eminente que alegadamente tivera na memória partilhada da cidade (GIRÃO, 1959).
Em 1929, a administração municipal decidiu pôr abaixo o oitizeiro, justificando a
necessidade de facilitar o tráfego de automóveis naquele ponto da capital. Artigos de
jornal, crônicas e memórias deram ao fato uma ressonância que permitiu, ao longo das
décadas, a lembrança singularmente duradoura não apenas da árvore, como também
de sua eliminação do tecido urbano – intervenção que alguns letrados qualificaram de
“atitude antipatriótica”. O poeta e pintor Otacílio de Azevedo escreveu, em seu livro
de memórias, um relato em torno dessa efeméride, no qual conclui:
O verdadeiro algoz do Oitizeiro foi o progresso [e não o então prefeito Álvaro Weyne],
em nome do qual se cometem tantos crimes... O velho Oitizeiro já não era mais que um
intruso, um trambolho que impedia o embelezamento da cidade que crescia. Começavam
a aparecer os automóveis que deveriam transitar por todas as artérias da cidade. A queda
do Oitizeiro do Rosário marcou o desmoronamento de mais uma tradição, para dar lugar
às correrias desenfreadas dos novos habitantes da pacata urbe – os bêbados da gasolina
(AZEVEDO, 1992, p. 118).

A supressão do oitizeiro foi transferida da esfera dos atos corriqueiros da gestão


municipal para o âmbito do crime; teria se tratado de ação ofensiva não propriamente
a uma lei formal, mas à comunidade dos cidadãos (ou a uma parte dela). Por outro
lado, a responsabilidade por tal delito não caberia a um indivíduo ou ao ocupante de
um cargo público, e sim a essa força implacável da mudança histórica – o progresso. A
narrativa do memorialista salienta a perda, mas recusa isolá-la: a derrubada da árvore
teria um sentido de ruptura, de quebra com a tradição urbana; simultaneamente,
essa destruição é inscrita num processo social difuso, sob a égide da aceleração do
presente, da disseminação das máquinas e de uma nova forma de embriaguez – não
aquela dos boêmios, arredios que eram ao tempo regrado do trabalho, mas a dos
motoristas, devotos de um culto moderno: a velocidade.

Deslocamentos

A relação do progresso com a vida cotidiana não se restringiu à produção de


uma linha imaginária, separando adeptos e críticos em trincheiras hermeticamente

135
confinadas. Na medida em que os sinais de melhoramento da existência coletiva
mantiveram algum tipo de contato com a disseminação de aparatos tecnológicos,
tornou-se possível apreender o progresso em termos outros que aqueles pautados por
ideologias opostas. Já não estava em jogo necessariamente a convicção do avanço ou
a veemência da perda, a euforia com um vórtice de transformações ou a denúncia de
um presente cada vez mais decadente porque distante dos valores e traços do passado.
Experiências urbanas bastante diversificadas ajudaram a plasmar uma compreensão
do progresso como alteração dos sentidos corporais.
Existem vestígios esparsos da maneira pela qual os objetos técnicos lançaram
uma gama de desafios às convenções perceptivas dos habitantes de Fortaleza na
primeira metade do século XX. Nesse sentido, para o historiador em busca de
pormenores significativos, um anúncio publicitário ou um texto de ficção podem
ser tão eloquentes e relevantes quanto um conjunto de leis, um relatório oficial, uma
tabela estatística ou a fala de uma personalidade eminente.
Carlos Câmara, que se notabilizou na escrita de peças teatrais bastante
apreciadas pelo público da capital cearense, não deixou de aludir aos efeitos
desorientadores produzidos pelos aparelhos modernos. Na peça Alma de artista, que
ficou inacabada com sua morte em 1939, o autor criou uma situação em que um
personagem sertanejo, em visita a Fortaleza, foi exposto a um meio de comunicação
que lhe era completamente alheio:
GONTRAN – E então? Como vai passando essa bizarria?
GASTÃO – Dormiu bem?
EUFRÁSIO – Ah!... Admiravelmente. Estava com o corpo moído da viagem, e adormeci
logo. Aquilo foi enquanto o cão [o diabo] esfrega um olho. E, por sinal, que adormeci ao
som mavioso de uma modinha tão saudosa que me fez sonhar coisas do outro mundo.
GASTÃO – Antes assim.
EUFRÁSIO – Estava dormindo, e estava ouvindo... Ou vozinha melodiosa!... (OUTRO
TOM, PARA GASTÃO) Mas menino, aonde diabo estava cantando aquela créatura?
GASTÃO – Quem sabe?
GUIOMAR – No Rio de Janeiro, em Pernambuco, no Pará... ou noutra parte qualquer
do planeta.
(ADMIRAÇÃO DE EUFRÁSIO)
GONTRAN – Talvez até em algum país da Europa ou da América do Norte.
EUFRÁSIO (FORMALIZADO) – Vocês querem m’imbromar ou estão pensando que eu
tou mentindo?
GUIOMAR – Nem uma cousa, nem outra, senhor Eufrásio... É que o senhor adormeceu
ouvindo o rádio do vizinho.
GASTÃO – Que é, realmente, de primeira ordem.
EUFRÁSIO – Mas então, hoje em dia, podem cantar até no inferno que se ouve aqui?

136
GONTRAN (SORRINDO) – Assim existam lá estações irradiadoras.
GUIOMAR – Perfeitamente.
EUFRÁSIO – Sim senhor! Mas que invenção mais danisca!
GASTÃO – O progresso é um fato.
FEBRÔNIO (2° PLANO) (À PARTE) – Le monde marche!
GUIOMAR – Nada, absolutamente, nos deverá hoje causar admiração.
EUFRÁSIO – Minina, nós vamos caminhando... para o fim do mundo. O Anticristo vem
aí. E não demorará muito não. Quando menos se esperar, ele rompe por aí alvoroçado,
pintando o Simeão e a saracura. (BENZENDO-SE) Vade retro! (TODOS RIEM) Riam!...
Riam!... E depois não vão chorar (CÂMARA, 1979, p. 665-666).

O “encurtamento da distância”, propiciado pela emissão radiofônica,


despertou no adventício um misto de surpresa e temor. Contudo, ao invés de
endossar a opinião geral sobre o caráter invencível e irrefreável do progresso, o
sertanejo tendeu a considerar esse invento como prenúncio do fim do mundo. A
tonalidade cômica pretendida no diálogo da peça pode sugerir uma contraposição
estereotipada entre o mundo rural e a vida na cidade. Todavia, importa reconhecer
que, para homens e mulheres cuja forma de contato social exigia sobretudo a palavra
falada diretamente ao interlocutor, a descoberta da produção da voz humana sem a
presença de corpos humanos poderia desencadear sensações de ameaça, insegurança
e desorientação. O rádio, analogamente ao disco e ao gramofone, tornou possível
essa “desmaterialização” do som, ou melhor, a separação no tempo e no espaço
entre algo dito ou cantado e as circunstâncias específicas de sua escuta, por meio da
reprodução mecânica (GUMBRECHT, 1999).
A sensação de progresso também se insinua no convívio mais assíduo com
produtos fabricados em escala industrial, atestando os prodígios do conhecimento
científico e a variedade de suas aplicações técnicas. Paralelamente, a impressão geral
de uma diferença inevitável entre o presente e as épocas anteriores pôde fomentar
atitudes de curiosidade a respeito do modo pelo qual, no passado, o progresso teria
sido experimentado. Na década de 1930, o escritor Raimundo de Menezes, cujas
crônicas eram publicadas num jornal matutino e lidas em programa radiofônico,
foi interpelado a respeito da introdução do telefone na cidade:
Como Fortaleza conheceu o seu primeiro telefone?
Essa a pergunta que me foi remetida em carta assinada por um radiouvinte da PRE-9. Na
época atual, quando o telefone automático anda no cartaz, embasbacando muita gente por
aí além – diz-me o missivista – seria deveras interessante saber como e quando Fortaleza
teve o seu primeiro telefone.
A capital cearense falou pela primeira vez ao telefone em 11 de fevereiro de 1883.
[...] A novidade do telefone trouxe em Fortaleza uma série de confusões humorísticas, bem
como um infindável rosário de piadas as mais impagáveis.

137
Contava-se, então, que o negociante Jesuíno Lopes de Maria, ao comunicar-se com a Casa
Boris, tivera o seguinte diálogo com o empregado da firma:
– Vocês têm pregos aí? – perguntara.
– De que tamanho? – interpela o caixeiro.
– Destes aqui – respondera Jesuíno, do outro lado do fio (MENEZES, 2000, p. 66, 68).

O interesse do ouvinte de rádio talvez fosse comum a outras pessoas: se ao


longo dos anos o telefone se constituiu em importante articulador da comunicação
entre pontos distantes do espaço urbano, conhecer as circunstâncias de sua aparição
ajudava a acentuar o contraste entre antes e agora. A anedota reforça a estranheza ou o
despreparo vivido por antigos usuários do aparelho: ao invés de descrever verbalmente
as características de uma mercadoria que pretendia adquirir, o cliente teria se limitado
a mostrá-la, como se o atendente pudesse vê-la do outro lado da linha telefônica. A
dissociação física entre os interlocutores, tão evidente a qualquer pessoa familiarizada
com o telefone, era um fenômeno menos acessível àqueles que relacionavam a escuta
da voz ao alcance da visão.
A maior rapidez na produção e difusão das informações também imprimiu
mudanças nos comportamentos e repertórios perceptivos dos indivíduos. Rachel
de Queiroz, que em 1927 acompanhava, pelos jornais de Fortaleza, o desenlace de
um famigerado caso judicial nos Estados Unidos – o processo, sentença e execução
dos anarquistas italianos Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti –, recordou o impacto
daquele evento em sua juventude:
Eu já era muito politizada e o grande escândalo político da época fora a execução, nos
Estados Unidos, dos anarquistas Sacco e Vanzetti. Mamãe e eu acompanhávamos, pelos
jornais (não havia rádio ainda lá em casa), os telegramas que chegavam, via Western, pelo
cabo submarino. [...]

Na noite da execução, nós sabíamos que na hora tal os dois seriam mortos na cadeira
elétrica. Não fizemos o desconto do fuso horário, nem nos lembramos disso. Ficamos
numa espécie de vigília esperando a meia-noite, ou seja, a hora da execução. E deu-se
então uma coincidência muito curiosa: a luz elétrica de repente apagou, lá em Porangaba
[bairro de Fortaleza], onde morávamos. E os jornais diziam que a luz teria que baixar, no
presídio americano, por causa da grande carga que a cadeira elétrica exigia. Tivemos então a
impressão de que eles estavam morrendo e eu me pus a chorar, aos soluços. Ainda recordo,
com força, essa cena de choro e essa emoção (QUEIROZ e QUEIROZ, 1998, p. 127-128).

A leitura dos telegramas internacionais publicados na imprensa da cidade


possibilitava estar ao corrente de acontecimentos vividos em lugares remotos. Mas
foi a notícia do emprego da força elétrica na execução dos condenados, combinada
à interrupção de energia em sua casa, que levou a futura escritora a imaginar uma
conexão imediata entre eventos não apenas distantes, mas não simultâneos. A

138
momentânea impressão de abolição das diferenças de tempo e espaço teria sido
implausível sem a velocidade da comunicação de massa e o sistema elétrico em rede,
sujeito a variações em cada um de seus pontos a partir da inserção num mesmo
circuito técnico. Nesse episódio se percebe como as tecnologias vieram desempenhar
uma mediação crescente entre os indivíduos e a dimensão coletiva, garantindo que
um fato de larga repercussão viesse a marcar, de forma duradoura, o envolvimento
emotivo e as lembranças de uma jovem. Parte considerável das experiências privadas
se veria doravante afetada pelo ritmo e o alcance da esfera pública.
As reflexões aqui esboçadas guardaram um caráter fluido, sem a pretensão
de conduzir a análises exaustivas. Procurou-se apenas sublinhar a pertinência de
uma abordagem do progresso como via fecunda para o entendimento das formas
heterogêneas pelas quais indivíduos e grupos atribuíram sentido aos processos de
mudança experimentados em determinado período. Para além de recusas e adesões, o
progresso pôde também ser investigado como índice das metamorfoses da percepção
ocorridas no contato entre os homens e novos dispositivos técnicos que passaram a
figurar no cotidiano da cidade de Fortaleza.

Notas

1 Jacques Le Goff adverte que a ideia de progresso contém dois registros: um pressupõe a existência de certa
direção dada à história, outro denota o assentamento de um juízo de valor. Dessa dupla composição emergem
acepções diferentes e por vezes rivais, operando a distinção entre progresso técnico e científico e progresso moral.
Alguns traços comuns sustentam o conceito moderno de progresso: “[é] uma interpretação da história que
considera que os homens avançam mais ou menos depressa, mas em geral bastante lentamente, numa direção
definida e desejável (implica pois como finalidade a felicidade) e supõe a indefinida continuação desse progresso.
Esta evolução assim valorizada repousa na natureza psíquica e social do homem e não deve estar à mercê de uma
vontade exterior, excluindo portanto a intervenção de uma providência divina. Finalmente, esta ideia requer que
o homem tenha muito tempo à sua frente, que o fim do mundo não esteja próximo” (LE GOFF, 1996, p. 264).
2 Nas primeiras décadas da República brasileira, a convergência assinalada entre as noções de civilização,
progresso e mundo moderno exprimiu, entre os grupos beneficiados com a nova ordem política e institucional,
sentimentos de confiança quanto às mudanças que alimentavam a crença na eliminação ou no obscurecimento
de traços sociais herdados da formação colonial e do período monárquico; em paralelo, essas projeções de futuro
implicaram novos dispositivos de subordinação dos segmentos pobres e acentuaram a composição de assimetrias
sociais: “[...] se havia muita dúvida no ar, a atmosfera geral era de euforia, assim como pairava a certeza, por
parte das novas elites que ascenderam com a República, de que o Brasil ‘andava a braços’ com os novos ditames
do capitalismo, do progresso e da civilização. Não por acaso, o novo regime inscreveu na bandeira da nação os
dísticos ‘ordem e progresso’, refletindo não só a filiação ao positivismo como a noção de que o progresso era
certo, único, derradeiro, evolutivo e ordeiro; grande utopia desse momento, dado a máquinas voadoras (como
o 14 Bis de Santos Dumont) e a projetos amplos e abrangentes de higienização. Civilização e controle eram as
palavras de ordem do período, que vivenciou a globalização mundial e um dinamismo jamais experimentados.
[...] O progresso parecia inevitável, mas certamente não se aplicava a todos. Se ele era mesmo obrigatório e dele
não se escapava, para países como o Brasil mais parecia uma danação” (SCHWARCZ, 2012, p. 39, 41).
3 “A grande realização final do ecletismo arquitetônico no Ceará seria o Excelsior Hotel. Figurava como o
primeiro exemplar da arquitetura deliberadamente hoteleira e, com os seus oito pavimentos, surgia como o
primeiro arranha-céu da cidade” (CASTRO, 1987, p. 243).

139
Referências Bibliográficas
AZEVEDO, Otacílio de. Fortaleza descalça: reminiscências. 2. ed. Fortaleza: Casa de José de Alencar – UFC,
1992.
BARROSO, Gustavo. Mississipi. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1961.
BEVILÁQUA, Leonardo Ibiapina. O automóvel e o ideário moderno em Fortaleza nas décadas de 1920 e 1930.
Revista de História – Universidade Federal da Bahia, Salvador, vol. 4, n. 1, 2012.
CÂMARA, Carlos. Alma de artista. In: ______.Teatro: obra completa. Fortaleza: Academia Cearense de Letras, 1979.
CAMPOS, Eduardo. O inventário do quotidiano (Breve memória da cidade de Fortaleza). Fortaleza: Fundação
Cultural de Fortaleza, 1996.
______. A volta do inquilino do passado (Segunda locação). Fortaleza: Casa de José de Alencar – UFC, 1998.
CASTRO, Aldenora Rodrigues de. A Fortaleza de minha vida: reminiscências autobiográficas. Fortaleza: Insti-
tuto Brasileiro de Qualidade & Gestão Pública, 2001.
CASTRO, José Liberal de. Arquitetura eclética no Ceará. In: FABRIS, Annateresa (org.). Ecletismo na arquite-
tura brasileira. São Paulo: Nobel; Edusp, 1987.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 1995.
FERNANDES, Yaco. Notícia do povo cearense. Fortaleza: Imprensa Universitária – UFC, 1977.
FORTALEZA. Prefeitura Municipal. Código de posturas do município de Fortaleza – 1932. Fortaleza: Tipografia
Minerva, 1933.
GIRÃO, Raimundo. Geografia estética de Fortaleza. Fortaleza: Imprensa Universitária, 1959.
______. Palestina, uma agulha e as saudades. Fortaleza: Imprensa Oficial do Ceará, 1972.
______; MARTINS FILHO, Antônio. O Ceará. Fortaleza: Ed. Fortaleza, 1939.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Em 1926: vivendo no limite do tempo. Rio de Janeiro: Record, 1999.
HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. 2. ed. Rio de Janeiro: Aero-
plano, 2004.
KOSELLECK, Reinhart. “Progress” and “decline”: an appendix to the history of two concepts. In: ______. The
practice of conceptual history: timing history, spacing concepts. Stanford: Stanford University Press, 2002.
LE GOFF, Jacques. Progresso/reação. In: ______. História e memória. 4. ed. Campinas: Ed. Unicamp, 1996.
MARINS, Paulo César Garcez. Habitação e vizinhança: limites da privacidade no surgimento das metrópoles
brasileiras. In: SEVCENKO, Nicolau (org.). História da vida privada no Brasil 3: República: da Belle
Époque à era do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
MENEZES, Raimundo de. Coisas que o tempo levou: crônicas históricas da Fortaleza antiga. 3. ed. Fortaleza:
Demócrito Rocha, 2000.
NOGUEIRA, João. Fortaleza velha: crônicas. 2ª ed. Fortaleza: Ed. UFC; Prefeitura Municipal de Fortaleza, 1980.
QUEIROZ, Rachel de; QUEIROZ, Maria Luíza de. Tantos anos. São Paulo: Siciliano, 1998.
ROSSI, Paolo. Naufrágios sem espectador: a ideia de progresso. São Paulo: Ed. Unesp, 2000.
SARLO, Beatriz. Modernidade periférica: Buenos Aires 1920 e 1930. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
SCHORSKE, Carl. A ideia de cidade no pensamento europeu: de Voltaire a Spengler. In: _____. Pensando com
a história: indagações na passagem para o modernismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. População e sociedade. In: ______. (org.). A abertura para o mundo: 1889-1930.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.
SEVCENKO, Nicolau. A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio. In: ______ (org.). História da vida
privada no Brasil 3: República: da Belle Époque à era do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998a.
______. Introdução. O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso. In: ______ (org.).
História da vida privada no Brasil 3: República: da Belle Époque à era do rádio. São Paulo: Companhia
das Letras, 1998b.
SILVA FILHO, Antonio Luiz Macêdo e. Paisagens do consumo: Fortaleza no tempo da Segunda Grande Guerra.
Fortaleza: Museu do Ceará – Secretaria de Cultura e Desporto do Estado do Ceará, 2002.
WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

140
Parte 3
Metodologias da história
O historiador e o patrimônio cultural:
perspectivas metodológicas

Isabel Cristina Martins Guillen*

O fenômeno da crescente patrimonialização de “bens” culturais, a que se


assiste nas duas últimas décadas, tem suscitado entre historiadores – e cientistas
sociais de modo geral – intensa reflexão. Na esteira do que Pierre Nora (1993)
chamou de “lugares de memória”, a onda patrimonialista foi tema de reflexão de
historiadores como François Hartog (2003; 2006), que se dedica a refletir sobre o
tempo e o patrimônio, para sinalizar que este fenômeno pode ser compreendido no
interior da onda presentista assistida na contemporaneidade – e que talvez este fervor
seja indício de um novo regime de historicidade.
Os historiadores no Brasil têm estado atentos a estas questões, pois
aumentaram as demandas sociais a eles submetidas, bem como aquelas oriundas das
políticas públicas que passaram por intensa revitalização, principalmente as voltadas
ao patrimônio imaterial. Estes temas têm acalorado o debate intelectual em torno do
patrimônio no Brasil e de sua história, bem como em torno da inserção do historiador
enquanto um profissional que necessita responder a pleitos acerca do patrimônio
cultural. O historiador tem sido desafiado a participar deste campo interdisciplinar
sem perder as especificidades de seu métier, ou seja, respondendo a novos temas,
objetos e desafios profissionais.
Ainda que pareça jocoso mas, via de regra, quando um leigo pensa sobre o
papel do historiador na área de patrimônio cultural, pode ser tentado a evocar uma
imagem tradicional do historiador fuçando os arquivos em busca de documentos que
“comprovam” a autenticidade de obras artísticas ou verificando a data de fundação e/
ou construção de um edifício que precisa ser tombado (de cuja decisão política ele não
teria participado!). Não foi, e não é bem assim, é preciso acentuar. Durante décadas
o historiador atuou na área de patrimônio material, discutindo e constituindo, junto
com arquitetos e artistas, o conjunto do patrimônio artístico e arquitetônico do
Brasil, além de histórico. Não se trata, portanto, de uma área nova para a atuação do
profissional de história.

* Doutora em História pela Unicamp, professora do Departamento de História da UFPE e do Programa de


Pós-Graduação em História da UFPE. E-mail: iguillen@uol.com.br.

142
As questões que se lançam na contemporaneidade sobre o patrimônio cultural
e as políticas públicas a ele dirigidas abarcam não só o trabalho do historiador.
Arquitetos, antropólogos e outros profissionais de outras áreas envolvidas no que
constituiu durante décadas o patrimônio cultural do Brasil, bem como os critérios
que nortearam essa escolha que, invariavelmente, considerou como patrimônio os
bens culturais relativos à história oficial do Brasil, também estão sendo instados a
discutir e redefinir seus métodos e posicionamentos.
A constituição do patrimônio no Brasil confirmava essa história oficial, que
se referia a uma história política e feita por uma elite econômica. A escolha do que
compunha o patrimônio cultural do Brasil não foi obra exclusiva do historiador,
mas fruto de um processo político e ideológico que tem sido corroído ao longo
das décadas por uma nova concepção de história, bem como de patrimônio. O
patrimônio não pode ser entendido como uma entidade natural, mas como resultado
de uma seleção historicamente explicável, localizada em instituições criadas para tal
fim e autorizadas por um contexto sociocultural, não isento de conflitos e disputas.
Patrimônio é um locus para o qual afluem práticas e representações que encontram
correspondência em diversas políticas públicas, consubstanciadas em instituições que
objetivam preservar e/ou mesmo instituir o que é patrimônio, a exemplo do próprio
IPHAN e de diversos museus (CHUVA, 2009). É neste sentido que podemos falar
de políticas culturais patrimonialistas e da invenção de objetos aptos a se tornarem
patrimônio cultural. Esse processo histórico, analisado por Márcia Chuva, define os
lugares e as competências dos profissionais de diversas áreas, passando pelo arquiteto
e pelo historiador.
Contudo, se por muito tempo o trabalho do historiador foi assim considerado
e ocupou um lugar marginal na discussão do processo de patrimonialização cultural,
nos dias atuais o papel do historiador precisa ser entendido de modo mais complexo,
na medida em que tem assumido novas tarefas desafiadoras, pois tem aberto um
novo campo de trabalho. Mais do que isso, tem proporcionado a oportunidade
de discutirmos a inserção do historiador na construção de um saber que atua nas
fronteiras disciplinares. E este novo saber, quase sempre, tem se referido ao patrimônio
imaterial. Durante décadas restrito ao trabalho dos folcloristas e, posteriormente, dos
antropólogos, o campo da cultura popular tem recebido nos últimos anos intensa
atuação de historiadores, que vêm contribuindo para a definição da identidade
cultural do Brasil, bem como para a preservação e sustentabilidade dos bens de
natureza intangível.
Nos últimos anos, historiadores que se dedicavam ao estudo da cultura
popular e da cultura negra foram instados a entrar neste debate em decorrência da
legislação brasileira sobre o patrimônio imaterial. A crescente patrimonialização
de bens culturais nesta área tem envolvido diversos historiadores em trabalhos de

143
inventário e salvaguarda. Parece-me que a recepção do tema patrimônio deva vir
acompanhada de um questionamento dessa emergência, para além de simplesmente
apontar os modismos acadêmicos que tornaram a história cultural a bola da vez.
O estudo da história das culturas populares não se restringe mais a fazer uma
identificação e descrição das manifestações existentes no passado. Hoje, busca-se
entender as formas de organização e estruturação de um dado grupo social e, no bojo
desse processo, compreender as manifestações culturais constitutivas de identidade ou
estrategicamente postas como mecanismos de luta. Interessa-nos adentrar ao âmago
dos sentidos dessas manifestações culturais para compreender seu mundo simbólico e
material, bem como as redes que fomentam e permitem que esses grupos estabeleçam
interconexões culturais, sociais e políticas.
Apesar do crescente processo de espetacularização, a cultura popular ainda
não estabelece vínculos diretos com a indústria cultural – e este aspecto a distingue.
Também não estabelece ainda relações e vínculos com as instituições voltadas ao
patrimônio cultural nem se encontra, nesse sentido, completamente subordinada a
um poder hegemônico ou normatizador das práticas culturais.
As implicações desse envolvimento acadêmico com tais práticas culturais e
políticas necessitam de posicionamento definido. As reflexões de Kirshenblatt-
Gimblett (2003) sugerem que muitas das ponderações presentes nas diretrizes acerca
do patrimônio imaterial formuladas pela Unesco estão eivadas de preocupações que
nos parecem ingênuas à primeira vista. Postulam que é preciso salvaguardar as práticas
culturais em risco de desaparecimento diante das modificações que ocorrem com o
mundo globalizado. Advertem para uma indiscutível perda de diversidade cultural e
consequente empobrecimento ou perda de práticas ou heranças imemoriais. Podemos
pensar estas questões na mesma direção proposta por De Certeau, Julia e Revel
(2003), no instigante artigo “A beleza do morto”, no sentido de que a preocupação
salvacionista se daria num momento em que estas práticas culturais não mais
estariam em condições de confrontar a norma. Ou seja, podem ser transformadas em
patrimônio sem perigo de confrontar a ordem social e política?
O estatuto da diferença e da preservação dessa diferença é capaz por si só
de desviar a atenção das desigualdades sociais imbricadas nas práticas culturais
e no processo de patrimonialização? Ou poderíamos pensar que o processo de
patrimonialização pode ser entendido como estratégia para impedir que a desigualdade
venha à tona, acobertada pelo discurso de preservação da diversidade? A atuação dos
intelectuais, intensamente requerida nos processos de inventário, pode ser pensada,
como sinaliza Tony Bennett (1999), como condição de possibilidade para a cultura
na era globalizada – e a ação dos intelectuais pode ser pensada como ações de
governamentalidade que criam cidadãos conformes às regras e normas? Maria Cecília
Londres Fonseca observa que

144
falar de uma política pública de preservação supõe não apenas levar em conta a
representatividade do patrimônio oficial em termos de diversidade cultural brasileira
(...), como também as condições de apropriação desse universo simbólico por parte da
população (FONSECA, 2009, p. 29).

Como aqueles que são detentores de bens culturais considerados patrimônio


cultural do Brasil têm se apropriado das políticas públicas voltadas para o patrimônio?
De que modo essas políticas têm mudado as vidas dessas pessoas, bem como sua
inserção no debate, enquanto cidadãos? Isto porque, passados já alguns anos dos
primeiros processos de patrimonialização dos bens da cultura imaterial, pouco se tem
discutido sobre como se deu o processo de apropriação dos bens patrimonializados
e das políticas públicas voltadas ao patrimônio imaterial. Não nos interessa apenas
discutir a ampliação do conceito de patrimônio ou dos bens patrimonializados, mas
buscar entender como ou se este processo tem redundado em uma nova cultura
política e, ainda, como o historiador tem contribuído para este papel.

Políticas públicas para o patrimônio intangível

As políticas públicas que normatizam a patrimonialização da cultura


intangível no Brasil, apontadas na constituição de 1988, se concretizaram a partir do
decreto lei 3.551/2000. O processo que instrui o registro de um bem cultural como
patrimônio imaterial do Brasil deve evidenciar que determinada forma de expressão,
lugar, celebração ou saber é referência cultural para aqueles que a produzem. Ou
seja, que ela remete à identidade e à memória de determinada comunidade ou grupo
social. O decreto 3.551/2000 também estabelece que “a inscrição em um dos livros
de Registro terá sempre como referência a continuidade histórica do bem e sua
relevância nacional para a memória, identidade e formação da sociedade brasileira”.
No IPHAN, a Câmara do Patrimônio Imaterial estabeleceu que um bem cultural é
historicamente importante para a definição das identidades culturais quando aquele
bem é referência para, pelo menos, três gerações, ou seja, 75 anos. Mas a observância
desses detalhes técnicos seria suficiente? O que pode ser entendido como história e
memória de um grupo, ou mesmo de uma nação, tem demandado intensas reflexões
aos historiadores.
O patrimônio imaterial rompe com uma noção de patrimônio que estava
naturalizada e interiorizada por todos nós, e esta nova noção que emerge nos permite
repensar o que deve ou não ser valorizado e preservado como cultura e história
nacionais. Emergem com essa noção de patrimônio novas formas de valorizar e
conservar memórias do passado antes desvalorizadas e até mesmo encobertas por
uma noção elitista e excludente de história e cultura. Temos a oportunidade de
constatar que estamos diante de novas políticas da memória e de novas formas de

145
administração institucional do passado. É fundamental destacar o fato de que novas
políticas da cultura têm nos dado a oportunidade de criar novas culturas políticas
para a construção da identidade, memória e história nacional. Diferentes grupos
sociais estão tendo a chance, pela primeira vez na História do Brasil, de registrar uma
memória do seu passado, essencial para a definição das identidades. E são justamente
aqueles grupos que foram considerados tradicionais e em grande medida silenciados,
até então, na construção da memória nacional. Têm se criado novos canais de expressão
cultural que se apresentam como ocasião ímpar para colocar em discussão as políticas
de construção da memória nacional. Esse processo não tem se dado evidentemente
sem tensões, conflitos, resistências e adesões – e é pleno de ambiguidades. O que não
se pode, no entanto, é banalizar o processo ou as manifestações culturais que têm
sido objeto de discussão, registro e inventário, além da forma como contribuíram e
contribuem para uma reescrita da história e da identidade nacional.
A definição de cultura imaterial utilizada pelo IPHAN e por muitos cientistas
sociais é o resultado de um longo e complexo debate nacional e internacional acerca
da noção de patrimônio e do alargamento do seu sentido. A recente legislação
acerca do patrimônio imaterial e as políticas públicas que o cercam demandam uma
profunda reflexão, pois “a escolha do que constitui o patrimônio de uma nação –
seja ele material ou intangível – é uma das operações políticas mais importantes
para a consolidação de uma determinada história, memória e cultura comuns”
(ABREU, 2007, p. 353). Esta, por sua vez, relaciona-se intrinsecamente com a
definição das identidades culturais, principalmente com a identidade nacional que,
muitas vezes, aparece como natural e portadora de uma essência. De fato, em torno
da história da identidade nacional travou-se uma disputa político-cultural que há
muito vem sendo estudada por historiadores e cientistas sociais.1 A cultura popular
ganhou um inusitado reconhecimento institucional. Objeto de interesse exclusivo
dos estudiosos do folclore até bem recentemente, era entendida como em constante
risco de desaparecimento devido às tranformações aceleradas do mundo moderno.
Nesse sentido, era preciso preservar (no museu) e manter sua autenticidade sem
descaracterizá-la. Na mesma direção, a cultura popular e o saber-fazer de muitos
mestres e mestras populares não eram reconhecidos nem como patrimônio cultural,
nem como integrantes da história nacional.
O debate e as políticas públicas em questão têm nos dado oportunidade de
refletir sobre a nossa responsabilidade nas escolhas do que deve ou não ser valorizado
e eleito como patrimônio nacional, além de refletir sobre as disputas políticas que
ocorrem em termos culturais e participar delas – não só no sentido de garantir que
as políticas culturais criem uma nova cultura política, mas também para que desta
resultem outras práticas de cidadania.2 Nesse sentido, acreditamos que colocar em
circulação uma outra memória, registrá-la e preservá-la não é apenas um processo
técnico restrito ao mundo acadêmico. Afinal, nesse momento, estamos tendo a

146
oportunidade de registrar memórias daqueles que fazem a cultura popular no Brasil
e criar registros históricos e documentais, ampliando a participação dos grupos em
questão na re-elaboração da história brasileira.
Destaque-se nessa discussão que a noção de patrimônio imaterial está
respaldada pela de referência cultural, que busca valorizar a pluralidade étnica e social,
bem como a produção cultural das camadas populares. Esta produção constitui um
conjunto de importantes valores simbólicos, na política e na dinâmica cultural, e
gera relevantes valores materiais na economia. A noção de patrimônio imaterial traz
a ideia de que essas referências culturais compõem a riqueza acumulada por gerações
passadas de uma dada comunidade – e que pode se tornar disponível como recurso.
Referências são as práticas e os objetos por meio dos quais os grupos representam,
realimentam e modificam a sua identidade e localizam a sua territorialidade. (...) É com
referências que se constrói tanto proximidade quanto distância social, a continuidade da
tradição assim como a ruptura com uma condição passada ou a diferença em relação a
outrem (ARANTES, 2001, p. 129-139).

Para Arantes, no processo de reconhecimento dos bens culturais passíveis de


serem patrimonializados, devem-se focalizar os atores sociais e suas práticas, assim
como as configurações espaço-temporais produzidas pela vida cotidiana e pelo ritual,
valorizando os aspectos dinâmicos da realidade e a história. Isto porque, ao entender
o patrimônio como referência, há que se considerar os aspectos simbólicos que
estruturam a memória coletiva e o modo como essa cultura participa da política de
identidade e dos jogos de mercado. É nesse sentido que a constituição de acervos
documentais e a realização de inventários culturais têm se colocado como outra forma
de inserção do historiador no campo do patrimônio.

Constituindo acervos sobre o patrimônio intangível

Em primeiro lugar, é importante salientar que o próprio pedido de registro


de um determinado bem da cultura imaterial deve vir acompanhado de uma miríade
de documentos que atestam que o bem em questão é referência cultural para um
grupo e, como tal, tem uma continuidade histórica. Essa documentação nem sempre
é fácil de obter ou, mesmo quando obtida, em alguns casos, é extremamente precária.
Algumas fotografias ou vídeos, meia dúzia de artigos ou reportagens não constituem,
na maioria das vezes, documentação suficiente para dar suporte ao pedido de registro
de um bem como patrimônio cultural do Brasil.
Não obstante, esta é a situação de muitos destes bens Brasil afora.
Paradoxalmente, a cultura imaterial no País – ou a velha cultura popular – foi
intensamente estudada desde meados do século XIX por um campo específico do saber,
o folclore. Quando nos detemos a analisar a produção deste campo do saber durante

147
décadas, observamos que, em grande medida, os estudos de folclore produziram
textos generalizantes e, muitas vezes, superficiais. Não era preocupação do folclore
nem dos folcloristas deter-se nos aspectos históricos de um bem em estudo, uma vez
que se considerava que a tradição era imemorial. Tampouco o foco destes estudos
estava dirigido a quem produzia ou fazia uma determinada manifestação cultural,
ou seja, aos sujeitos e seu universo simbólico. Sem cair em generalizações, os estudos
de folclore ao longo do século XX não se preocuparam com os aspectos históricos
dos bens sobre os quais se debruçavam, preocupados que estavam em caracterizá-los
genericamente.
Ainda assim, o historiador tem nos estudos de folclore um grande acervo
documental que, apesar de lacunar e muitas vezes indiciário, é de fundamental
importância para o estudo histórico de alguns dos bens da cultura intangível no
Brasil. Contudo, não podemos nos conformar com essas lacunas. O grande desafio do
historiador tem sido o de produzir, através da história oral, documentação que, ainda
que não preencha essa ausência, possa mitigá-la. Através da história oral podemos
centrar foco nos sujeitos do fazer cultural, enquanto sujeitos de suas práticas e não
como meros repetidores de uma tradição sem sentido. Podemos aceder ao universo
simbólico que orienta essas práticas e tradições, além de registrar a memória e fazer a
história desses grupos que encontram nos bens culturais, muitas vezes considerados
meras brincadeiras ou folguedos, um locus para a reprodução de uma rica experiência.
As pesquisas em história oral têm contribuído sobremaneira para que bens
da cultura intangível no Brasil, até recentemente parcamente conhecidos, adquiram
densidade histórica e passem a ser vistos como importantes referências culturais.
Podemos mencionar, como exemplo, o caso do jongo, estudado por Hebe Mattos e
Martha Abreu, através da combinação de recolha de depoimentos orais e de trabalho
sério e árduo nos arquivos históricos. Foi nesse sentido que, através de alguns projetos
de pesquisa, estamos constituindo no LAHOI (Laboratório de História Oral e da
Imagem da UFPE) um importante acervo documental sobre os maracatus nação e a
cultura negra em Pernambuco.
Portanto, o trabalho do historiador não é meramente acessório, mas adquiriu
um locus próprio no qual é possível estabelecer um frutífero diálogo com outras
áreas do conhecimento. Ao mesmo tempo, contribui para que as discussões sobre o
patrimônio imaterial ou intangível alcancem uma complexidade que só tende a tornar
o debate mais denso. As contribuições do historiador vão além de simplesmente
fazer um histórico dos bens, mas podem vir a fornecer ricas reflexões sobre a própria
história da patrimonialização, suas dimensões políticas e simbólicas. Afinal, abordar
um mesmo tema por diversos prismas, ressaltando que as diferentes abordagens
realçam aspectos nem sempre perceptíveis em outros vieses, parece-me que só tende
a enriquecer o debate.

148
Não obstante os vários aspectos positivos apontados, alguns posicionamentos
críticos precisam ser firmados. Sem sombra de dúvida, um dos grandes contributos
da participação do historiador numa equipe de inventário é ressaltar a importância
de formar acervos documentais sobre práticas culturais parcamente documentadas e/
ou registradas anteriormente. O historiador é o profissional que vai alertar a equipe
como um todo para que não se deixem iludir sobre a documentação existente e
produzida num passado em que a compreensão dessas práticas culturais não levava
em consideração os agentes sociais e as inserções desses sujeitos em redes sociais e
culturais.
A formação desses acervos documentais demanda tempo e elaboração crítica,
que se amplia em toda a equipe à medida que o próprio trabalho de campo vai
se desenvolvendo. Via de regra, a aplicação do Inventário Nacional de Referências
Culturais (INRC) não permite à equipe como um todo a maturação necessária para
a compreensão da história do bem, seja pela própria compreensão de história que
permeia a metodologia, seja pela forma como os questionários e fichas requerem do
entrevistado e do entrevistador dados específicos que não contribuem para a formação
de acervos em que os aspectos históricos do bem sejam minimamente contemplados.
Inquirir o entrevistado rapidamente – pois é assim que aparecem nos questionários
propostos pelo INRC as questões sobre a história, como uma informação ligeira –
sobre a história do grupo ou do bem cultural não fornece à equipe a justa ou mínima
compreensão do processo histórico que uma metodologia de história oral forneceria.
Se os pesquisadores se atêm às orientações do INRC, de seus questionários e fichas,
o que irão obter nas entrevistas e no trabalho de campo será uma compreensão de
história ainda bastante pobre e insuficiente para compreender a dinâmica histórico-
cultural da manifestação cultural pesquisada.
Em síntese, podemos apontar este aspecto como uma (ou mais uma) das
grandes limitações do uso do INRC. Um trabalho de pesquisa que redundará em
um inventário cultural deveria abordar os aspectos históricos de forma mais ampla
e complexa, não restrito ao âmbito do INRC, mas utilizando metodologia própria
já elaborada por historiadores, realizando entrevistas específicas com os sujeitos
sociais que visem entender a dinâmica das transformações e das permanências que
perpassam o fazer cultural dos grupos e bens inventariados. Desta forma, se estar-se-
ia contribuindo para a formação de acervos mais ricos e complexos, assim como para
uma compreensão mais rica e diligente do bem cultural que está sendo inventariado.
Afinal, não se pode compreender a dinâmica cultural sem levar em consideração
como os sujeitos as têm feito, negociando mudanças e permanências ao longo desse
fazer. Ou seja, sem uma justa compreensão dos processos históricos dos quais são
sujeitos e aos quais são sujeitados.

149
Notas
1 Em torno do debate acerca da identidade nacional há uma rica produção bibliográfica. Ver: ORTIZ, 1994;
ALBUQUERQUE JR, 1999; DANTAS, 1988; VIANNA, 2002.
2 Ver, nesse sentido, o conjunto de artigos sobre a questão em ABREU E CHAGAS, 2003.

Referências Bibliográficas

ABREU, Martha. Cultura imaterial e patrimônio histórico nacional. In: ABREU, Martha (org.). Cultura polí-
tica e leituras do passado: historiografia e ensino de história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
ABREU, Regina; CHAGAS, Mário. Memória e patrimônio. Ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A,
2003.
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez; Recife: Ed.
Massangana, 1999.
ARANTES, Antonio A. Patrimônio imaterial e referências culturais. Tempo Brasileiro, n. 147, outubro a dezem-
bro de 2001, pp. 129-139.
BENNETT, Tony. Putting policy into cultural studies. In: DURING, Simon (ed.). The cultural studies reader.
London: Routledge, 1999, pp.479-491.
BLOCH, Marc. Apologia da história ou o Ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
CHUVA, Márcia. Os arquitetos da memória. Sociogênese das práticas de preservação do patrimônio cultural no
Brasil (anos 1930-1940). Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2009.
DANTAS, Beatriz G. Vovó Nagô e Papai Branco. Usos e abusos da África no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
DE CERTEAU, M.; JULIA, D.; REVEL, J. A beleza do morto. In: CERTEAU, Michel de. A cultura no plural.
Campinas: Papirus, 2003.
FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo. Trajetória da política federal de preservação no
Brasil. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2009.
HAFSTEIN, Valdimar. The making of Intangible cultural heritage: tradition and authenticity, community and
humanity. Berkeley: University of California, 2004.
HARTOG, François. Tempo e Patrimônio. Vária História. Belo Horizonte, vol. 22, n. 36: p. 261-273, jul/dez
2006.
______. Régimes d´historicité. Présentisme et expériences du temps. Paris: Seuil, 2003.
KIRSHENBLATT-GIMBLETT, Bárbara. El patrimônio inmaterial como producción metacultural. Museum
(UNESCO) n. 221-222, 2003, p. 52-67.
LIMA, Ivaldo Marciano de França. Entre Pernambuco e a África. História dos maracatus-nação do Recife e a
espetacularização da cultura popular (1960-2000), 2010. 420f. Tese (Doutorado em História). Programa
de Pós-Graduação em História, Área de História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo: PUC-SP. N°
10, p. 12. 1993.
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1994.
POULOT, Dominique. Uma história do patrimônio no Ocidente. Séculos XVIII-XXI. São Paulo: Estação Li-
berdade, 2009.
RIOS, Ana Lugão; MATTOS, Hebe. Cativeiro da memória. Trabalho, identidade e cidadania no pós-abolição.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
VIANNA, H. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

150
O golpe militar e civil de 1964: questões
metodológicas sob a ótica dos paradoxos*

Antonio Torres Montenegro**

Introdução

A escrita deste texto projeta-se num campo minado por múltiplas relações.
Sem estabelecer qualquer hierarquia, não posso deixar de iniciar situando que o tema
da história e da memória das lutas sociais e políticas anteriores e posteriores ao golpe
militar e civil de 1964 tem sido objeto de minhas pesquisas, orientações de mestrado e
doutorado e escrita de artigos e livros, há mais de uma década.1 Ao mesmo tempo esse
texto foi sendo pensado na medida em que desenvolvia o trabalho de entrevistas para o
projeto Marcas da Memória da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, quando,
após um convênio celebrado com a UFPE, foram realizadas quarenta entrevistas de
história de vida com homens e mulheres perseguidos pelo regime militar e civil que
se instalou em março de 1964.2
Por outro lado, ao coordenar este projeto no Departamento de História da
UFPE,3 não pude deixar de ter presente a preocupação do significado de desenvolver
um projeto de construção de uma coleção de registros de memórias orais de vida
para uma instância do Estado brasileiro, o Ministério da Justiça. Afinal, foi também
essa instância do poder do Estado que ofereceu suporte jurídico ao arbítrio que se
instalou a partir do golpe militar e civil de 1964 e segue até o final desse regime com
as eleições indiretas para presidente da República do Brasil, em 1985. Nesse aspecto,
destaco a análise de Maria José de Resende, apoiada numa reportagem, de 1965, da
revista Visão:
Ficava estabelecido com a posse de Juracy Magalhães, em 1965, que a tarefa de concretizar
os suportes objetivos democráticos do golpe militar pertencia ao Ministério da Justiça.

* Este texto é uma versão modificada e reduzida do capítulo “História e Memória de lutas políticas”, publicado no
livro Marcas da Memória: História Oral da Anistia no Brasil (MONTENEGRO, ARAUJO, RODEGHERO,
2012).
** Professor Titular do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal de Pernambuco

151
O referido ministro estaria incumbido de resolver a crise institucional para se alcançar
a estabilidade política, o saneamento moral, o equilíbrio financeiro, o desenvolvimento
econômico e o progresso social (REZENDE, 2001, p. 81-82).

Dessa maneira, é possível recuperar como o regime militar e civil de 1964


buscou construir suportes jurídicos e aliou estratégias de legalização do regime às
práticas de censura aos meios de comunicação, de cassação arbitrária de mandatos
parlamentares e dos direitos políticos, de repressão, de sequestro, de tortura e de
assassinato de opositores.4
No entanto, será o Ministério da Justiça que, em 2001, por meio de medida
provisória, cria a Comissão de Anistia.5 O texto produzido pela Comissão de Anistia
do MJ e que norteia o trabalho do Projeto Marcas da Memória define como um dos
seus objetivos “promover a reparação de violações a direitos fundamentais praticadas
entre 1946 e 1988”.6 E acrescenta que essa iniciativa permite romper com a tendência
do senso comum em considerar anistia como sinônimo de esquecimento. Logo, o
Estado, por meio desse projeto, não só reconhece seus erros como trabalha para que
a sociedade conheça, compreenda e por extensão repudie as violações aos direitos
humanos.7 O projeto de história oral como um dos desdobramentos do Marcas da
Memória opera na direção contrária ao perdão que a Lei da Anistia aprovada em 1979
implicou, que em seu bojo implicava negação ou a proibição da recordação.
O memorial que está sendo organizado com esses relatos de história de
vida e mesmo aqueles que ainda serão produzidos com relatos de memória em
diversos outros estados do Brasil se configuram como um passo importante no
sentido de evitar o silêncio e o apagamento de uma das experiências históricas mais
marcantes e traumáticas da história do Brasil no século XX. Porém, ao mesmo
tempo, não se pode deixar de assinalar que, ao longo dessas últimas décadas,
muitos documentos, reportagens, obras historiográficas, livros autobiográficos e de
entrevistas, além de dissertações e teses estudaram, analisaram e reescreveram esse
período da história do Brasil.8 Talvez o diferencial seja que essa iniciativa do Estado
brasileiro, após décadas de pressão da sociedade civil, vem sendo construída por
meio de muitos embates e negociações desde 2002, com a criação da Comissão de
Anistia do Ministério da Justiça.9 Esta revela uma força ou tendência de repensar e
reavaliar a responsabilidade do Estado em relação às torturas, aos assassinatos e aos
desaparecidos, inicialmente com novos julgamentos e indenizações, mas sem perder
de vista que se reabre o debate sobre esses crimes. A recente criação da Comissão
Nacional da Verdade e também a criação de semelhante comissão em diversos
estados do Brasil — como é o caso de Pernambuco, São Paulo, Rio Grande do
Norte, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, entre outros — apontam que, em razão
de pressões internas e externas (como pressão da OEA), o Brasil está, de maneira
oficial, se voltando sobre esse passado e trazendo a público novos documentos e,
por extensão, recolocando o debate acerca dos crimes e torturas praticados por
agentes do Estado naquele período de 1964 a 1985.10

152
No entanto, parece-me importante assinalar que o discurso de que os
documentos tirarão do silêncio e do esquecimento as torturas, os crimes e o destino
dos desaparecidos durante o regime ditatorial não deve ser pensado como se a
divulgação dessas coleções de documentos se constituísse no único objetivo de todo
esse trabalho. Afinal, quero destacar que é a sociedade, por meio dos seus diversos
agenciamentos discursivos e práticos, quem nomeia e atribui significados ao passado.11
As Comissões da Verdade, criadas nos níveis federal e estadual, têm uma
missão importante que é trazer à luz uma documentação que, sem dúvida, ajudará
a ampliar o conhecimento acerca deste período. No entanto, diferente do senso
comum, hoje nenhuma área do conhecimento que tem nos documentos sua referência
epistemológica opera como se os mesmos falassem por si.12 Se eles são fundamentais,
prestando-se como ponto de partida de análises, estudos e pesquisas, sabemos como é
complexa a operação historiográfica que irá articular em outra ordem de significado,
bem como em outra temporalidade, novas questões e novos problemas. Dessa forma,
o passado que esses documentos possibilitam atualizar se projeta num campo minado,
em que a batalha para retirar do esquecimento foi parcialmente ganha; no entanto,
muitos desafios ainda se apresentam a essa caminhada.
Nesse cenário é que se podem analisar as recentes decisões do Supremo
Tribunal Federal, em 2010 e 2012, validando a lei da anistia de 1979. Estas
apresentam um entendimento jurídico e político acerca dos crimes cometidos
pelos agentes do Estado, que contraria a leitura e o entendimento da OAB, do
Ministério Público Federal e da Corte Interamericana de Direitos Humanos.13

O regime de 1964 através da lente dos paradoxos

Neste texto, analiso alguns aspectos da atuação do general Geisel como


estratégia para colocar em debate o regime militar e civil que se instalou no Brasil
a partir do golpe de 1964, colocando em destaque os dispositivos e discursos que
acionam o aparato policial e militar que engendraram a repressão, o sequestro, as
prisões arbitrárias, as torturas e as mortes.
A estratégia narrativa alongando fios historiográficos e metodológicos instaura
uma leitura de paradoxos e dobras como forma de operar os deslocamentos analíticos.
Contempla o estudo da complexa teia de discursos e práticas que instituíram a
política de arbítrio e violência, indissociáveis do projeto de governabilidade do
regime militar e civil que se instaurou com o golpe de 1964.
A análise do testemunho de um membro do PC do B — Alanir Cardoso14 —
que foi preso em Recife, em setembro de 1974, é bastante reveladora. A referência
à sua história de militância, à sua prisão e às inúmeras sessões de tortura de que

153
foi alvo não difere de centenas de outros da perspectiva da violência. Em diversos
momentos esteve no limiar entre a vida e a morte. No entanto, o sequestro de Alanir
e as subsequentes sessões de tortura adquiriram uma dimensão diferenciada, em razão
do fato de terem sido rapidamente noticiadas na mídia internacional, especialmente
dos EUA, tornando do conhecimento público o nome dos torturadores (GREEN,
2009, p. 431-437). Assim, o aparato de tortura do regime era frontalmente exposto
por meio de um discurso que apontava provas — amplamente reconhecidas — das
práticas de violência, que tanto o governo brasileiro negava.
Refletir sobre essa prisão, na vigência da presidência do general Ernesto
15
Geisel, possibilita pensar e mais propriamente repensar uma série de questões. Em
primeiro plano, investigar as estratégias do regime militar e civil durante mais de uma
década em tentar negar as torturas e os assassinatos cometidos por agentes do Estado
(FICO, 2004, p. 76). Ao mesmo tempo, militares e civis foram urdindo e ampliando
o regime autoritário/repressor, quer fazendo uso de órgãos e instituições existentes,
ou criando novos.16

Este organograma17 (ainda em fase de elaboração) revela como depois do golpe


de 1964 a rede militar e policial se amplia e se complexifica de maneira considerável.
São então criados outros locais de tortura e execução, além das delegacias de polícia,
das dependências dos Dops e dos inúmeros edifícios do exército, da marinha e da
aeronáutica já amplamente denunciados por essas práticas.

154
Por outro lado, a história de vida de Alanir Cardoso ajuda também a refletir
acerca da forma como a historiografia e mesmo a grande imprensa, ao comentarem as
ações de diversos militares, nomeava-os com os rótulos de linha dura ou moderada.
Do meu ponto de vista, essa classificação não contribui para desnaturalizar as
ações e o papel desses agentes na construção do estado de exceção. É nesse sentido que
o historiador Carlos Fico já alertava:
De fato, a clássica divisão entre linha dura e moderados não dá conta da diversidade de
clivagens que configuravam os diversos grupos militares. Basta lembrar, por exemplo, que
nem todo integrante da linha dura praticava tortura, como é óbvio... De outro lado, supostos
moderados, como o castelista Ernesto Geisel, aceitavam a tortura (FICO, 2004, p. 81).

Assim, proponho nesse texto pontuar alguns acontecimentos relacionados à


atuação política do general Geisel, para, dessa forma, pensar ou repensar como este
concorreu para a institucionalização da tortura, ainda em 1964. Ao mesmo tempo,
em 1º de janeiro de 1979, à véspera de transmitir o cargo de presidente ao General
João Batista Figueiredo, publicou o decreto que extinguiu o AI-5, embora fosse
mantida a Lei de Segurança Nacional.18 Para o jurista Heleno Fragoso, apenas a Lei
de Segurança Nacional, a que foi promulgada em 1983, após intensa campanha dos
partidos de oposição e de entidades populares, romperia com a filosofia das Leis de
Segurança que estiveram em vigor desde 1967.19
O general Ernesto Geisel, quando ocupava a chefia da Casa Civil do
governo Castelo Branco, foi enviado para investigar acusações de tortura em São
Paulo, na Guanabara, em Pernambuco e no Rio Grande do Sul. Retornou da sua
viagem de averiguação negando qualquer procedência daquela acusação.20 A charge
abaixo dá a ver como a negação das torturas praticadas pelo regime e endossadas
pelo general são apresentadas à opinião pública pelo jornal Última Hora.21

155
Por outro lado, a leitura da coluna diária do jornalista Carlos Castello Branco,
publicada no matutino carioca Jornal do Brasil, ajuda a refletir como uma parte da
imprensa da época apresentava as denúncias de violência cometidas pelo regime e,
ao mesmo tempo, a expectativa que era criada, de que o governo estava empenhado
em resolver o problema. Escrevia ele, no dia 15 de setembro de 1964, que o General
Ernesto Geisel estava deixando Brasília em missão especial do Presidente da República
“destinada a averiguar a procedência de denúncias sobre maus tratos físicos e morais
infligidos a presos políticos.” Afirma ainda o jornalista que o Marechal Castelo Branco,
“diante das denúncias, já agora de fatos concretos, decidiu adotar as providências
cabíveis, inclusive fiscalizar a execução de medidas já ordenadas” (BRANCO, 1977,
p. 130). Assim, este jornalista noticia que o presidente militar resolveu adotar a
medida de enviar seu chefe da Casa Civil àqueles estados, porque não havia mais
como negar a prática de “maus tratos físicos e morais infligidos a presos políticos”.
É possível avaliar que em certo meio jornalístico e político havia uma expectativa de
que esse quadro de violência contra os presos políticos fosse efetivamente controlado
e encerrado. Nesse sentido, ainda no dia 16 de setembro, o jornalista Carlos Castello
Branco registrou em sua coluna:

156
O líder do PSD, Sr. Martins Rodrigues, declarou ontem que a nota do Governo anunciando
providências para apurar as denúncias de violência em São Paulo, Guanabara, Pernambuco
e Rio Grande do Sul foi a melhor coisa que poderia ter acontecido, desde há muito tempo,
pois a ciência de que estavam sendo violadas as regras comezinhas de respeito à pessoa
humana criava invencível constrangimento aos deputados desejosos de cooperar com a
obra do governo revolucionário, através da votação das medidas solicitadas pelo Presidente
da República (BRANCO, 1977, p. 130-131).

Dessa forma, o constrangimento causado pela violência contra os presos


políticos era motivo até mesmo de pressão por parte dos partidos que apoiavam os
militares. No entanto, o resultado da missão que negara a existência de qualquer
anormalidade no trato com os presos políticos não foi mais alvo de comentários
na coluna do referido jornalista. Por outro lado, o atestado do general Ernesto
Geisel, ainda em 1964, da insuficiência de provas (BRANCO, 1977, p. 60) pode
ser considerado como um dos marcos simbólicos da adoção oficial dessa prática de
violência como instrumento de governabilidade.
Logo, classificar ou nomear esse general como moderado, da perspectiva de
análise do presente texto, significa não contemplar a complexidade exigida pelo estudo
do estado de violência, que vinha sendo montado desde antes do golpe; e que tem na
complexa organização dos órgãos de informação e tortura – após 1964 –, associada
à crescente censura aos meios de comunicação, alguns dos seus pilares.22 Significa
ainda não contemplar os múltiplos discursos e ações do referido general em face das
pressões e denúncias da sociedade política e civil de que foram alvo. Por essa razão se
apresentam, em nossa leitura, paradoxais. Por outro lado, a necessidade constante de
estabelecer nomes e adjetivações, tanto por parte da imprensa do período e mesmo da
historiografia, projeta armadilhas que são reforçadas pelos movimentos de fundação
de identidades fixas.
Para romper essas veredas identitárias, a literatura — através de Pirandello
— pode ajudar a construir outro entendimento: “O aspecto trágico da vida está
precisamente nessa lei a que o homem é forçado a obedecer, a lei que o obriga a ser
um” (PIRANDELLO, 2001, p. 223). Na perspectiva da historiografia, é possível
perceber uma forte tendência em definir o que os líderes, homens públicos ou mesmo
as pessoas simples foram ou são, instituindo identidades fixas, em lugar de pensá-las
nas suas múltiplas e diversas relações, discursos e ações. Nesse aspecto, a identidade
fixa se projeta como transhistórica ou mesmo a-histórica.
E será novamente pelas mãos da literatura, especialmente de Lewis Carrol e sua
Alice, que podemos pensar os paradoxos do general Geisel. Afinal, foi ele quem, ainda
em 1964 — como já assinalei —, contribuiu para a institucionalização da tortura;
porém, quando presidente, irá exonerar o general Ednardo d’Ávila Melo, em janeiro
de 1976, responsabilizando-o pela morte, por tortura, do operário Manoel Fiel Filho.
Contudo, em toda sua vida, defendia e ao mesmo tempo dizia não justificar a tortura.

157
Seu próprio discurso sobre a tortura, em entrevista para o CPDOC, é uma peça
de paradoxos: “a tortura em certos casos torna-se necessária, para obter confissões.
Não justifico a tortura, mas reconheço que há circunstâncias em que o indivíduo
é impelido a praticar a tortura, para obter determinadas confissões e, assim, evitar
o mal maior” (D’ARAUJO e CASTRO, 1997, p. 225). Por meio das reflexões de
Gilles Deleuze, talvez seja possível construir outro entendimento sobre esse discurso
em defesa da tortura que, ao mesmo tempo em que a justifica, diz não a justificar. O
filósofo, ao analisar a produção de paradoxos, afirma:
O bom senso é a afirmação de que, em todas as coisas, há um sentido determinável;
mas o paradoxo é a afirmação dos dois sentidos ao mesmo tempo... do futuro e
do passado, da véspera e do amanhã, do mais e do menos, do demasiado e do
insuficiente, do ativo e do passivo, da causa e do efeito (DELEUZE, 2000, p. 1 e 3).

Em face do exposto, indago se não foi esse o comportamento e o discurso de


Geisel em relação à tortura. Diz que não justifica a tortura, mas ao mesmo tempo
defende a tortura, ou seja, justifica nos casos em que acredita evitar um mal maior.
Justifica a tortura, mas diz que não justifica.
Ainda na perspectiva dos paradoxos é que tendo a ler a análise apresentada
pela cientista política Maria Celina D’Araujo, ao estudar a forma de atuação do
Ministério da Justiça durante o governo Geisel. Segundo ela, o presidente militar
que se apresentava encaminhando o fim daquele regime, ou mais propriamente
que se destacou na busca pela “normalidade institucional”, gerava de certa forma
a expectativa de que a pasta da Justiça se convertesse em espaço relevante para o
processo do que se nominou de abertura política:
No entanto, quando se examinam os documentos relativos ao Ministério da Justiça que
integram o arquivo do ex-presidente, a impressão que fica é bem diferente. Segundo esses
registros, as medidas de endurecimento do regime teriam prevalecido sobre aquelas que
preconizavam a democratização (D’ARAUJO, 2002, p. 22).

Em face do exposto, o paradoxo se apresenta como um conceito que permite


realizar deslocamentos analíticos em relação ao período do governo do general Ernesto
Geisel e, sobretudo ao seu discurso sobre a tortura, rompendo com a lógica dualista ou
binária. Dessa maneira, esse texto procurou desenvolver uma breve leitura do regime
militar e civil de 1964 operando rupturas com discursos identitários e fundadores, em
busca de estabelecer movimentos analíticos que foquem as práticas e os discursos de
forma a romper com os apriorismos, que projetam sentidos e significados históricos
atemporais.

158
Notas
1 Ao longo desta última década desenvolvi, como bolsista de Produtividade do CNPq, os seguintes projetos:
de 2003 a 2009 - Memórias da Terra: a Igreja Católica, as Ligas Camponesas e as Esquerdas: 1950-1970; de
2009 a 2012 - Produções do Medo: História e Política no Nordeste: 1955-1964; e atualmente desenvolvo o
projeto Justiça do Trabalho e o Regime Militar: 1963-1974. Publiquei artigos e livros, entre os quais destacaria:
As Ligas Camponesas às Vésperas do Golpe de 1964. Revista Projeto História: Revista do Programa de Estudos
Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC/SP. São Paulo, n. 29, t. 2, 2004; Ligas
Camponesas e sindicatos rurais em tempo de revolução. In: Ferreira, Jorge; Delgado, Lucília Almeida Neves
(Org.). O Brasil Republicano. O tempo da experiência democrática: da democratização de 1945 ao golpe civil-
militar de 1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003; Lutas políticas em Pernambuco... A Frente do
Recife chega ao poder (1955-1964) [em coautoria com Taciana Mendonça dos Santos]. In: Ferreira, Jorge; Reis,
Daniel Aarão (Org.). As Esquerdas no Brasil. Nacionalismo e reformismo radical; 1945 – 1964. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2007; História, Metodologia, Memória. São Paulo, Contexto, 2010. Entre os trabalhos
de orientação destacaria as dissertações premiadas e publicadas em livro: PORFÍRIO, Pablo F. de A. Medo,
Comunismo e Revolução. Pernambuco (1959-1964). Recife: EdUFPE, 2009. CAVALCANTI, Erinaldo. Relatos
do Medo. Recife: EdUFPE, 2012. Também orientei a tese publicada em livro: GOUVEIA, Oserias. Os (dês)
caminhos da utopia. Glória e derrocada do comunismo na memória política de militantes nos anos sessenta.
Recife: EdUFPE, 2004.
2 Quero agradecer às historiadoras Regina Beatriz Guimarães Neto (UFPE), Elizabeth Madureira (UFMT)
e Vera Lúcia Costa Acioli (UFPE) pela leitura e as inúmeras sugestões para a melhoria deste texto. Também
registro meus agradecimentos à equipe de graduandos em história da UFPE que integrou o projeto Marcas
da Memória: Ermano Oliveira, Felipe Genú, Felipe Pedrosa Aretakis, Iana Araújo, Mariana Rodrigues, Pedro
Dantas, Rebecca Batista de França, Suzane Batista de Araújo, Tásso Araújo. E também aos pós-graduandos
Pablo Porfírio (UFRJ), Giuliana da Matta, Helder Remigio, Monique Vitorino, Saionara Leandro (UFMG).
O trabalho de entrevistas, transcrições e edições de toda essa equipe foi fundamental para a escrita desse texto.
3 Este projeto de entrevistas com perseguidos políticos do regime de 1964 também foi desenvolvido na UFRJ
sob a coordenação da Profa. Maria Paula Araújo e na UFRGS sob a coordenação da Profa. Carla Simone
Rodeghero.
4 Numa perspectiva de análise semelhante à de Maria José Rezende se encontra o texto de Maria Celina
D’Araujo: Ministério da Justiça, o lado duro da transição (2002. p. 22).
5 Em 2001 foi criada a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça por meio de medida provisória; passou a
integrar em definitivo a estrutura do Estado brasileiro no ano de 2002, com a aprovação de Lei n. 10.559, que
regulamentou o artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
6 http://www.ufrgs.br/nph/arquivos/Projeto_Marcas_da_Memria_-_TEXTO.pdf. p. 01.
7 http://www.ufrgs.br/nph/arquivos/Projeto_Marcas_da_Memria_-_TEXTO.pdf. p. 01.
8 O historiador Carlos Fico, em seu livro Além do Golpe: versões e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar
(2004), apresenta um detalhado levantamento de livros, dissertações e teses produzidos até 2004, relacionados
ao tema do regime militar e civil que se instalou em 1964. Também realiza uma compilação de importantes
documentos produzidos entre 1961 e 1970. Em 2004, no campus da Universidade Federal de São Carlos, foi
organizado o Simpósio Internacional “Quarenta anos do golpe de 1964: novos diálogos, novas perspectivas”.
Posteriormente, 14 palestrantes desse simpósio tiveram seus textos publicados no livro O Golpe de 1964 e o
Regime Militar: novas perspectivas, organizado por João Roberto Martins Filho (2006). Também destaco o livro
O golpe: a ditadura militar 40 anos depois (1964-2004), organizado por Daniel Aarão Reis, Marcelo Ridenti e
Rodrigo Patto Sá Motta (2004).
9 Por meio de medida provisória, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça passou a integrar em definitivo
a estrutura do Estado brasileiro, no ano de 2002, com a aprovação de Lei n. 10.559, que regulamentou o artigo
8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

159
10 No período em que redigia esse texto, o coronel da reserva Carlos Alberto Brilhante Ustra, apontado por
organizações de direitos humanos como o mais notório torturador dos tempos do regime militar, teve negado
seu pedido à justiça para reformulação da sentença em que foi reconhecido como torturador. Esta é a primeira
vez que uma decisão envolvendo a tortura no regime militar é referendada por um colegiado de segunda
instância. “Foi uma conquista inédita na Justiça brasileira”, comemorou o advogado Fábio Konder Comparato,
representante da família Teles, autora da ação, ao deixar o Tribunal, na Praça da Sé, centro de São Paulo. http://
www.estadao.com.br/noticias/nacional,justica-de-sao-paulo-reconhece-ustra-como-torturador,916432,0.htm.
11 Em artigo O joio e o trigo, publicado na revista Carta Capital, de 10 de julho de 2012, (http://www.
cartacapital.com.br/politica/o-joio-%E2%80%A8e-o-trigo/) a jornalista Cynara Menezes aponta alguns casos
de denúncias de tortura e execução, cuja veracidade parece não suportar uma avaliação mais criteriosa. Os
exemplos que aponta em seu artigo só reforçam a importância da atuação da Comissão Nacional da Verdade,
bem como das Comissões Estaduais e, ao mesmo tempo, o rigor e a importância no cruzamento com outras
fontes, pois “Quanto mais informações foram checadas, mais difícil será para os mitômanos plantarem falsas
denúncias...”.
12 Michel de Certeau, em seu texto A operação historiográfica, que marca sua resposta à polêmica obra de
Paul Veyne, Como se escreve a história, no tópico em que analisa o lugar social da produção histórica, afirma:
“Há quarenta anos, uma primeira crítica do ‘cientificismo’ desvendou na história ‘objetiva’ a sua relação com
um lugar, o do sujeito. Analisando uma ‘dissolução do objeto’ (R. Aron) tirou da história o privilégio do qual
se vangloriava, quando pretendia reconstituir a ‘verdade’ daquilo que havia acontecido. A história ‘objetiva’,
aliás, perpetuava com essa ideia de uma ‘verdade’ um modelo tirado da filosofia de ontem ou da teologia de
anteontem; contentava-se com traduzi-la em termos de ‘fatos’ históricos... Os bons tempos desse positivismo
estão definitivamente acabados” (DE CERTEAU, 2000, p. 67).
13 Vide reportagem em http://noticias.r7.com/brasil/noticias/stf-deve-julgar-lei-de-anistia-nesta-
quinta-20120326.html.
14 Entrevista com Alanir Cardoso para o Projeto Marcas da Memória, em 28 de novembro de 2011.
15 O general Ernesto Geisel exerceu o cargo de presidente do Brasil de 15 de março de 1974 a 15 de março de
1979.
16 Talvez o caso mais insigne seja o da criação do SNI, que teve como idealizador o general Golbery do Couto
e Silva, ainda no governo do marechal Castelo Branco (ALVES, 1987, p. 72-74).
17 Este organograma da estrutura da repressão no Brasil se constitui numa versão ainda em elaboração,
gentilmente cedida pela Profa. Dra Heloisa Murgel Starling, coordenadora do Projeto República: núcleo de
pesquisa, documentação e memória/UFMG.
18 No período em estudo o Brasil aprovou diversas leis relativas à segurança nacional. É importante destacar que
em dezembro de 1978 foi promulgada a Lei de Segurança Nacional (Lei de n. 6.620). Esta alterava o decreto-
Lei de 29 de setembro de 1969, a Lei de Segurança Nacional que mais tempo esteve em vigor durante o regime
militar. Em dezembro de 1983, o presidente general João Figueiredo sancionou a Lei de Segurança Nacional,
n. 7.170, que continua em vigor até a presente data. http://www.historiabrasileira.com/brasil-republica/lei-de-
seguranca-nacional/(15/10/2012)
19 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_67/indices/IndiceTextosClassicos.htm (v. 5, n. 58,
Março/2004).
20 Segundo Maria Helena Moreira Alves, “a investigação foi arquivada por insuficiência de provas, porém a
tortura ficou temporariamente sob controle” (1987, p. 60).
21 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A ditadura nos discursos verbais e visuais da grande imprensa: 1964-1969. Charge
apresentada no texto do Seminário do concurso de professor titular do Departamento de História da UFMG,
em 30 de agosto de 2012.
22 O livro dos jornalistas José Amaral Argolo, Kátia Ribeiro Teixeira e do professor e engenheiro Luiz Alberto
Machado Fortunato (1996) apresenta uma vasta e importante documentação acerca da atuação dos grupos

160
terroristas de direita no Brasil nas décadas de 1960 e 1970. E que muitos desses personagens já atuavam nas
décadas de 1940 e 1950.

Referências Bibliográficas
ALVES, Marcio Moreira. Tortura e torturados. Rio de Janeiro: Composto e impresso nas oficinas jornalísticas da
empresa PN S.A., 1996.
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Trad. Clóvis Marques. Petrópolis:
Vozes, 1987.
ARAÚJO, Maria Paula do Nascimento. A utopia fragmentada: as novas esquerdas no Brasil e no mundo na
década de 1970. Rio de Janeiro: EdFGV, 2000.
_____. Lutas democráticas contra a ditadura. In: REIS FILHO, Daniel Aarão e FERREIRA, Jorge. As esquerdas
no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
ARGOLO, José Amaral; RIBEIRO, Kátia e FORTUNATO, Luiz Alberto. A direita explosiva no Brasil. Rio de
Janeiro: Mauad, 1996.
BASTOS, Joaquim Justino Alves. Encontro com o tempo. Porto Alegre: Globo, 1965.
CAMPOS, Antônio. A comissão da verdade e a operação Condor. Recife: Carpe Diem, 2012.
CASTRO, Celso; D’ARAÚJO, Maria Celina; ABREU, Alzira Alves de; GOMES, Ângela de Castro; SAR-
MENTO, Carlos Eduardo; BOMENY, Helena; PINHEIRO, Letícia; FERREIRA, Marieta; ALBERTI,
Verena (Orgs.). Dossiê Geisel. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002.
CAVALCANTI, Erinaldo Vicente. Relatos do medo: a ameaça comunista em Pernambuco [Garanhuns – 1958
– 1964]. Recife: EdUFPE, 2012.
COELHO, Fernando. Direita volver: o golpe de 1964 em Pernambuco. Recife: Bagaço, 2004.
COUTO, Ronaldo Costa. História indiscreta da ditadura e da abertura: Brasil, 1964-1985. Rio de Janeiro:
Record, 1998.
D’ARAUJO, Maria Celina; SOARES, Gláucio Ary Dillon; CASTRO, Celso. Introdução e organização. Visões
do golpe: a memória militar de 1964. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
_____. Os anos de chumbo: a memória militar sobre a repressão. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
_____. A volta aos quartéis: a memória militar sobre a abertura. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
D’ARAUJO, Maria Celina e CASTRO, Celso (Orgs.). Ernesto Geisel. Rio de Janeiro: EdFGV, 1997.
DE CERTEAU, Michel. A escrita da história. Trad. Maria de Lourdes Menezes. Rev. Tec. Arno Vogel. São Paulo:
Forense Universitária, 2000.
_____. A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
FARGE, Arlette. Lugares para a história. Trad. Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.
FERREIRA, Jorge, REIS, Daniel Aarão (Orgs.). As esquerdas no Brasil. v.3. Revolução e democracia (1964 - ...).
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
FICO, Carlos. Além do golpe. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Rio de Janeiro: Record,
2004.
_____. Como eles agiam. Os subterrâneos da Ditadura Militar: espionagem e política. Rio de Janeiro; São Paulo:
Record, 2001.
FROTA, Sylvio. Ideais traídos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
_____. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

161
_____. A ditadura derrotada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
GOMES, Angela de Castro (Coord.). Direitos e cidadania: justiça, poder e mídia. Rio de Janeiro: FGV, 2007.
GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. São Paulo:
Ática, 1987.
GOUVEIA, Oserias. Os (Des)caminhos da utopia. Glória e derrocada do comunismo: memória política de mi-
litantes dos anos sessenta. Recife: EdUFPE, 2004.
GREEN, James N. Apesar de vocês. Oposição à ditadura brasileira nos Estados Unidos, 1964-1985. Trad. S.
Duarte. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
GUERRA, Cláudio. Memória de uma guerra suja. Depoimento a Marcelo Netto e Rogério Medeiros. Rio de
Janeiro: Topbooks, 2012.
LEAL, Murilo. À esquerda da esquerda: trotskistas, comunistas e populistas no Brasil contemporâneo (1952-
1966). São Paulo: Paz e Terra, 2003.
MACIEL, Wilma Antunes. O capitão Lamarca e a VPR. Repressão judicial no Brasil. São Paulo: Alameda, 2006.
MARTINS FILHO, João Roberto. O golpe de 1964 e o regime militar: novas perspectivas. São Carlos: EdUFS-
CAR, 2006.
LORENZETTI, Ricardo Luis y KRAUT, Alfredo. Derechos humanos: justicia y reparación. Buenos Aires: Su-
damericana, 2011.
NOSSA, Leonencio. MATA! O major Curió e as guerrilhas no Araguaia. São Paulo. Companhia das Letras, 2012.
PORFÍRIO, Pablo F. de A. Medo, comunismo e revolução: Pernambuco (1959-1964). Recife: EdUFPE, 2009.
REIS, Daniel Aarão. A revolução faltou ao encontro. São Paulo: Brasiliense, 1991.
________e MORAIS, Pedro de. 1968, a paixão da utopia. 2ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: EdFGV, 1998.
________e SÁ, Jair Ferreira de (Orgs.). Imagens da revolução: documentos políticos das organizações clandesti-
nas de esquerda dos anos 1961 – 1971. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2006.
REZENDE, Maria José de. A ditadura militar no Brasil: Repressão e Pretensão de Legitimidade 1964-1984.
Londrina: EdUEL, 2001.
RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. 2ª ed. rev. e ampliada. São Paulo: EdUNESP, 2010.
RODEGHERO, Carla Simone; DIENSTMANN, Gabriel; TRINDADE, Tatiana. Anistia ampla, geral e irres-
trita: história de uma luta inconclusa. Santa Cruz do Sul: EdUNISC, 2011.
ROIO, José Luiz Del. Zaratini. A Paixão Revolucionária. São Paulo: Ícone, 2006.
SANTOS, Cecília Macdowell; TELES, Edson; TELES, Janaina de Almeida (Orgs.). São Paulo: Aderaldo &
Rothschild, 2009.
SERBIN, Kenneth P.. Diálogos na sombra. Bispos e militares, tortura e justiça social na ditadura. Trad. Carlos
Eduardo Lins da Silva & Maria Cecília de Sá Porto. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
SMITH, Anne-Marie. Um acordo forçado. O consentimento da imprensa à censura no Brasil. Rio de Janeiro:
EdFGV, 2000.
SOARES, Samuel Alves. Controle e autonomia. As forças armadas e o sistema político brasileiro. (1974-1999).
São Paulo: EdUNESP, 2006.
STARLING, Heloisa M. M.. Os senhores das gerais: os novos inconfidentes e o golpe de 1964. Petrópolis: Vozes,
1986.
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo, 1964-1985. Trad. Mário Salviano Silva. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1988.
VALLE, Maria Ribeiro do. 1968: o diálogo é a violência – movimento estudantil e ditadura militar no Brasil.
2ª ed., Campinas, SP: EdUnicamp, 2008.

162
Notas sobre a “fortuna crítica” do
intelectual Alceu Amoroso Lima*

Cândido Moreira Rodrigues**

Será difícil apontar influência intelectual maior do que a sua,


no Brasil, influência que não é apenas literária, mas cultural,
espiritual, envolvendo todo o País. (...) Um mestre grave,
que encarava a atividade intelectual como coisa séria, que
compromete todo o ser e não apenas as suas superficialidades
epidérmicas, aleatórias.
(COUTINHO, 1980).

Este texto tem por objetivo apresentar, brevemente, um esboço de análise sobre
parte da chamada fortuna crítica sobre o intelectual Alceu Amoroso Lima, produzida
no período de 1970 a 2010, procurando mapeá-la e descrevê-la, com a finalidade de
oferecer ao leitor uma visão sintética sobre as produções em questão, com destaque
para teses e dissertações.
Alceu Amoroso Lima nasceu no Rio de Janeiro em 11 de dezembro de 1893,
filho de Manuel José Amoroso Lima e Camila da Silva Amoroso Lima. Aos sete anos
de idade, em 1900, faz sua primeira viagem à Europa. Em 1909 inicia seus estudos na
área jurídica e faz a segunda viagem à Europa. Em dezembro de 1912 vai pela terceira
vez à Europa. No ano seguinte, conclui o curso de Direito e vai assistir, em Paris, às
aulas do filósofo francês Henry Bergson. No ano de 1917, Alceu Amoroso Lima vai
trabalhar no Itamaraty e em 1918 casa-se com Maria Teresa de Faria, na cidade de
Petrópolis. É no ano seguinte, em 1919, que ele inicia a atividade de crítico literário,
em O Jornal, o que se dá especificamente no dia 17 de junho, sob o pseudônimo de
Tristão de Athayde. Sua correspondência com Jackson de Figueiredo tem início em
1919 e vai até 1928, ano de sua conversão ao catolicismo, em cujo final Alceu se torna
diretor de A Ordem e passa também a presidir o Centro Dom Vital, após a morte de
Jackson nesse mesmo ano.
* Uma versão preliminar desta pesquisa foi publicada em Territórios & Fronteiras. 2012. V.5, n.01,2012.
** Professor Doutor. Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História – Universidade
Federal de Mato Grosso. E-mail: candidorodrigues2024@gmail.com.

163
Em 1932, ajuda a fundar o Instituto Católico de Estudos Superiores e, em
1933, é levado ao cargo de secretário-geral e, posteriormente, presidente da Liga
Eleitoral Católica. O ano de 1935 demarca sua definição como presidente da Ação
Católica Brasileira e a sua eleição na Academia Brasileira de Letras. Em 1937, Alceu
Amoroso Lima viaja ao Uruguai, Argentina e Chile, sendo que no ano de 1938 ele se
tornará Reitor da Universidade do Distrito Federal. Em 1940, torna-se professor de
Literatura Brasileira da Universidade do Brasil e da Universidade Católica. Em 1944,
funda a Livraria AGIR Editora. Em 1945, deixa a presidência da Ação Católica. No
ano de 1947, faz uma viagem à Montevidéu e, em 1949, ajuda a fundar o movimento
democrata-cristão. Nesse mesmo ano viaja à Europa. No período de 1951 a 1953,
exerce o cargo de Diretor do Departamento de Cultura da OEA (Organização dos
Estados Americanos). Em 1954 vai, como delegado do Brasil, à Conferência de
Caracas. Em 1962, é o delegado brasileiro na abertura do Concílio Vaticano II. Em
1967, torna-se membro da Pontifícia Comissão Justiça e Paz, ano em que é eleito
para a Academia de Ciências Morais e Políticas do Instituto de França. No período de
1967 a 1972, Alceu Amoroso Lima faz viagens à Roma para as reuniões da Pontifícia
Comissão de Justiça e Paz. Em 1968, a 28 de outubro, ele toma posse na Academia
de Ciências Morais e Políticas, em Paris. Em 1977, recebe o Prêmio Nacional de
Literatura da Fundação Cultural de Brasília, no Palácio do Buriti, onde profere
discurso em defesa da liberdade. Alceu Amoroso Lima morre em 14 de agosto de
1983, em Petrópolis (VILLAÇA, 1985, p. 05-07).

Alguns estudos sobre Alceu Amoroso Lima

Jean François-Sirinelli, no artigo “Os intelectuais”, em Por uma História


Política, de René Rémond, discute as condições de produção dos estudos sobre os
intelectuais na França da década de 1960 e 1970. Revela um aumento significativo
dos trabalhos neste campo a partir de pesquisas que começaram a pensar as ações
dos intelectuais na ótica de estratégias de poder (Bourdieu) ou a partir de redes
ou estruturas de sociabilidade. Nessa lógica, Sirinelli questiona as abordagens que
pretendem tomar as ações dos intelectuais tão somente como redutíveis aos interesses
e estratégias, não deixando espaço para a “contingência, o inesperado, o fortuito”.
A seu ver, o meio intelectual guarda estruturas elementares de sociabilidade, descritas
por muitos como redes “mais difíceis de perceber do que parece”, desvendadas ou
expressas, por exemplo, “em torno da redação de uma revista ou do conselho editorial
de uma editora”. Em síntese, Sirinelli tenta compreender o agir do intelectual a partir
do inusitado, do fortuito e das redes, a fim de buscar uma explicação que ele considera
ser a mais profunda a respeito da complexidade das suas relações e atitudes.
Todo grupo de intelectuais organiza-se também em torno de uma sensibilidade ideológica
ou cultural comum de afinidades mais difusas, mas igualmente determinantes, que fundam

164
uma vontade e um gosto de conviver. São estruturas de sociabilidade difíceis de apreender,
mas que o historiador não pode ignorar ou subestimar (SIRINELLI, 1996, p. 248).

A produção a respeito de Alceu Amoroso Lima no Brasil não é tão elevada,


mas conta com trabalhos importantes entre os quais dissertações de mestrado e teses
de doutorado. Alguns merecem atenção especial por trazerem elementos importantes
que contribuem para pensar nosso objeto de estudo; entretanto, não tomam como
fonte de estudo as cartas enviadas por Alceu Amoroso Lima à sua filha Madre Maria
Teresa e aquelas recebidas de presos políticos e seus familiares. Esses estudos nem
mesmo analisam, de modo específico, as suas obras de caráter político escritas no
período, algumas delas compostas por artigos lançados em jornais como Folha de
São Paulo, Jornal do Brasil, O Jornal. Esse assunto aparece, quando muito, de forma
secundária nos trabalhos em questão.
Entre os trabalhos sobre Alceu Amoroso Lima que abordamos aqui está
Alceu Amoroso Lima. Pressupostos filosóficos antropológicos, de autoria de Nivaldo Luiz
Pessinatti, originalmente apresentado como exercitação para a Licença em 1979, na
Focoltà di Filosofia da Università Pontificia Salesiana, em Roma. Nesse trabalho, o
autor se dedicou a estudar os pressupostos filosóficos e antropológicos do pensamento
de Alceu Amoroso Lima, dando atenção especial à sua relação com o padre Leonel
Franca, com Jackson de Figueiredo e, de modo bem inicial, com Jacques Maritain.
No decorrer do seu trabalho, Pessinatti trata da presença de Alceu Amoroso Lima
no pensamento brasileiro e dá atenção, num primeiro momento, para sua ação na
Igreja junto da hierarquia, à frente do movimento leigo, dirigindo o Centro Dom
Vital e a revista A Ordem. Em seguida, Pessinatti aborda aspectos da antropologia
tomista e o processo de sua inserção no Brasil; a partir daí caminha para a tentativa de
compreensão do lugar que temáticas como homem, família, Estado, trabalho, educação
e Deus ocupam no pensamento de Alceu Amoroso Lima (PESSINATTI, 1979).
Nesses termos, segundo o próprio trabalho de Pessinatti, Alceu Amoroso Lima
era uma das “importantes vozes”, ao lado da hierarquia da Igreja, na defesa dos direitos
mais fundamentais do homem no período pós-1964. A seu ver, Alceu Amoroso Lima
buscava na filosofia os elementos sólidos e necessários para a contestação da situação
política instituída pela ditadura militar. Alguns de seus livros seriam exemplos disso,
entre os quais se encontram Revolução, reação ou reforma, de 1964, Pelo humanismo
ameaçado, de 1965, A experiência reacionária, de 1966, Os direitos do Homem e os
homens sem direitos, de 1974, e Em busca da liberdade, de 1974. Segundo a ótica de
Pessinatti, era no tomismo que Alceu Amoroso Lima encontrava as soluções para as
questões e problemas enfrentados e procurava pistas para a reflexão a propósito dos
problemas impostos pela realidade do momento pós-1964. Tomismo que se apresenta
a Alceu Amoroso Lima por meio de Jacques Maritain (PESSINATTI, 1979, p. 28-42).

165
Ao lado desses livros mencionados acrescentem-se outros mais, inclusive
artigos em O Jornal, Jornal do Brasil e na Folha de São Paulo. Em outros termos, para
Pessinatti, naquele momento histórico para quem desejava a construção de uma
nova realidade através da violência e da destruição, as posições de Alceu Amoroso
Lima não se apresentavam atrativas. Ao trabalhar com essas temáticas, Pessinatti
contribuiu de forma importante para a compreensão de aspectos relevantes do
pensamento de Alceu Amoroso Lima. Entretanto, não elege como preocupação
central estudar suas posições frente ao regime militar no Brasil pós-1964.
Outro trabalho que se dedica a pensar Alceu Amoroso Lima é resultado de um
mestrado em Educação defendido em 1980 na PUC-Rio de Janeiro, de autoria de
Fernando Soares Moreira, intitulado Identidade e evolução em Alceu Amoroso Lima.
Um estudo de Política comparado a escritos posteriores. Em sua pesquisa, o autor se
dedicou a estudar o livro Política, lançado em 1932, e os elementos dele que poderiam
ser encontrados em textos mais tardios de Alceu Amoroso Lima. Com isso, Moreira
tentou “perceber uma identidade e uma evolução” das ideias de Alceu Amoroso
Lima. Portanto, na construção do seu trabalho, Moreira procurou apontar o que
definiu como os três momentos de Alceu Amoroso Lima, passando pelo seu “Adeus à
disponibilidade”, por sua conversão religiosa e política e pela luta em favor da liberdade.
A outra parte do trabalho se desenvolve a partir desses pontos indicados como centrais,
de onde o autor procura observar — mesmo que superficialmente — as principais
categorias do pensamento de Amoroso Lima: a questão da Burguesia, do Capitalismo/
Comunismo, da Revolução, da Autoridade e das Elites (MOREIRA, 1980).
Ainda segundo este autor, foi na obra Política que Alceu Amoroso Lima
expressou sua visão a respeito da necessidade de superação do que ele acreditava ser
a crise pela qual o Brasil passava; de onde, a seu ver, surgia a necessidade de uma
“reordenação da vida política” a partir do “bem comum” como centro de orientação do
mundo social. Segundo Moreira, Amoroso Lima acreditava que se deveria igualmente
eleger “o regime cristão em oposição aos regimes socialistas, liberal e nacionalista”. O
autor aponta que no processo de mudança de Amoroso Lima há um caminho que o
faz ver os “benefícios parciais” do liberalismo e do socialismo, procurando reunir os
seus elementos de justiça social e liberdade para formular um sistema que se figura
no meio dessa linha. Na visão de Moreira, é sobretudo a partir do Concílio Vaticano
II que Alceu Amoroso Lima vai caminhar para um “socialismo democrático”. Em
decorrência, Moreira vai concluir que o pensamento de Alceu Amoroso Lima, em
termos globais, construiu-se “sobre as ruínas da civilização burguesa” e se organizou
a partir de um projeto de “nova era para a humanidade”. Assim, segundo Moreira, o

166
intelectual Amoroso Lima defendia a postura segundo a qual os “novos tempos” só
seriam plenamente realizáveis se fossem “criados sob o signo do humanismo e sem
esquecer a importância do cristianismo na reconquista de liberdade”. Mas seria uma
liberdade reconquistada não ao preço da Autoridade – nem da Igreja ou do Estado –,
mas a partir da ação das massas (MOREIRA, 1980, p. 31-45).
Outro trabalho importante é a tese de doutoramento de João Francisco Régis
de Morais, de 1984, com o título Alceu Amoroso Lima e a Cultura Brasileira. Trejatória
de pensamento e contribuição pedagógica. Nesse trabalho, o autor aborda o pensamento
e as posições de Alceu Amoroso Lima num estudo de conjunto, passando pelo
período definido como reacionário (década de 1930), com destaque para o universo
da Educação. Num segundo momento, o autor analisa a sua contribuição à formação
dos debates educacionais em torno da constituição da Universidade no Brasil e
mesmo de sua presença como educador e pensador. Por outro lado, Morais aponta
muito brevemente a atuação decisiva de Amoroso Lima no pós-1964, em defesa da
liberdade e da democracia; neste campo, o autor fala sobre os caminhos trilhados pelo
intelectual, mas não elege como seu objetivo aprofundá-los, dado que sua intenção
maior foi a de estudá-lo nas questões educacionais. Assim, pode-se dizer que Morais
elaborou um trabalho muito bem escrito e com solidez invejável na argumentação e
reunião de fontes, estando atento, sobretudo, para a compreensão da contribuição
de Amoroso Lima às mais diversas áreas da cultura brasileira. Dada a sua densidade
científica, o trabalho de Morais é referência para a compreensão tanto do pensamento
como da trajetória de Alceu Amoroso Lima, sobretudo no período pós-1964.
João Francisco Regis de Morais dá um depoimento sobre o sentido da luta de
Alceu Amoroso Lima contra a ditadura no pós-1964:
A luta de Amoroso Lima terá sido só um sectarismo apaixonado? Terá sido uma briga de
antipatias? Ora, se fosse isso não teria a repercussão que teve e nem provocaria os medos
que provocou. Ocorre que sua luta refletia a conquista de toda uma vida, a evolução de
um pensamento desde a defesa do primado da autoridade até a luta pelo primado da
liberdade. Foi por isto que, abordado por um alegre e irreverente entrevistador do Pasquim
com a pergunta: “Então, Alceu, qual é a tua?”, pôde calmamente responder: “A minha é a
liberdade e a justiça” (MORAIS, 1984, p. 133).

Outro trabalho que tomou como foco de estudo Alceu Amoroso Lima é
Evolução do pensamento político-social de Alceu Amoroso Lima, de autoria de Silvio Bez
Birolo. O autor procurou demonstrar a trajetória do pensamento político de Alceu
Amoroso Lima dos anos 1920 a 1960 e, para tanto, deu ênfase ao estudo do que o
próprio Alceu Amoroso Lima chamou de “naturalismo moderno”, nos anos 1930, e à
sua busca de um ideal democrático a partir do abandono de posições marcadamente

167
autoritárias. Birolo abordou, embora superficialmente, elementos da posição crítica
que Alceu Amoroso Lima exerceu ao regime militar no Brasil pós-1964. Com isso,
o autor avaliou que no período de 1928 a 1942 esse intelectual esteve mais ligado ao
“apostolado oficial” e à hierarquia, o que se modificou após a indicação do conservador
Dom Jaime de Barros Câmara à sucessão de Dom Leme. Segundo Birolo, Alceu
Amoroso Lima começava a tomar posições mais autônomas em relação à hierarquia
e aquele era o maior motivo da mudança operada por ele para o lado da democracia,
com maior expressão a partir do decênio de 1960 (BIROLO, 1990).
Birolo demonstra que Alceu Amoroso Lima, baseado na democracia cristã,
propunha um regime que fosse a síntese do capitalismo e do comunismo, a partir
da convergência dos dois sistemas e da depuração dos seus erros. Conforme Birolo,
Alceu Amoroso Lima apostava sempre na defesa da liberdade e da justiça.
Se o privilegiamento de um destes elementos em detrimento do outro é um desequilíbrio
inadmissível, a ausência de ambos é sumamente injustificável. Por isso mesmo, será no
período pós-64 da vida brasileira que Alceu é levado à indignação maior, em função do
desrespeito aos mais elementares direitos individuais e públicos, com as arbitrariedades
que se foram praticando durante o regime autoritário e repressivo então implantado e que
passou a implantar uma política econômica concentracionista da renda, em nome de um
desenvolvimento que não contempla a simultaneidade do crescimento da riqueza nacional
e sua distribuição (BIROLO, 1990, p. 91-92).

O estudo de Norma Monteiro, Alceu Amoroso Lima. Idéia, vontade, ação


da intelectualidade católica no Brasil, de 1991, toma como parâmetro os trabalhos
mencionados anteriormente e elabora uma análise distinta daquela que estava proposta
como objetivo central no escopo do próprio trabalho: demonstrar que no Brasil de
fins do século XIX e inícios do XX surge uma intelectualidade católica que quer dar
respostas ao “desencantamento do mundo” e às consequências da separação entre
Igreja e Estado. Segundo Monteiro, isso ocorre desde a Questão Religiosa, passando
por ações consequentes e históricas com o Padre Julio Maria, Dom Leme e com mais
organicidade em Jackson de Figueiredo. Na análise de Monteiro, esse processo de
constituição da intelectualidade católica organizada culmina com a entrada de Alceu
Amoroso Lima nessa frente e, nesse quadro, ele “encontra respostas positivas que
permitem ao catolicismo nos anos 1930 reafirmar o domínio religioso como eixo
normativo e organizador da sociedade brasileira” (MONTEIRO, 1991).
Nesse particular, talvez fosse o caso de sugerir que o catolicismo tentou
encontrar respostas às demandas da sociedade e procurou defender seus interesses no
meio político-social (inclusive educacional), com o auxílio dos intelectuais liderados
por Alceu Amoroso Lima em comunhão com os interesses da Igreja. De qualquer
forma, o trabalho de Monteiro estuda parte do pensamento de Alceu Amoroso Lima

168
tendo como marco cronológico o período de 1928 a 1935, onde procura demonstrar
que ele foi um dos intelectuais que defenderam a Igreja contra as contradições do
processo de secularização da sociedade brasileira.
Waldir Cauvilla, na dissertação de mestrado O pensamento político de Alceu
Amoroso Lima (Tristão de Athayde) na década de 30 (1992), pretendeu estudar
o pensamento autoritário de Alceu nos anos 1930. O período abordado, mais
especificamente, é o compreendido entre 1928 e 1937, e o autor toma como fonte
de estudos algumas obras do intelectual produzidas nesse período e outros tantos
artigos seus lançados na revista A Ordem. Cauvilla toma, ainda, como fontes “mais
confiáveis” as memórias de Alceu Amoroso Lima publicadas em livros como Memórias
Improvisadas, de 1973, e Memorando dos 90. Por outro lado, Cauvilla não percebe a
mudança no pensamento de Alceu Amoroso Lima para o campo da democracia e
da liberdade, dado que seu estudo se restringe até o ano de 1938 e o processo de
mudança em Amoroso Lima se evidencia mais claramente no início dos anos 1940.
Somam-se a esses trabalhos outros mais recentes que surgem a partir do ano
2000. São eles, pela ordem: de autoria de José Raimundo Batista Bechelaine, a tese de
doutoramento em Filosofia defendida na Pontificia Università Gregoriana de Roma,
em 2001, com o título Ética e política na obra de Alceu Amoroso Lima.
Em 2003, Marcelo da Silva Timotheo da Costa defendeu a tese de
doutoramento em História, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro,
com o trabalho Um itinerário no Século: Mudança, Disciplina e Ação em Alceu Amoroso
Lima.
Outro trabalho foi o mestrado em Ciência da Religião, de autoria de Luiz
Henrique Eiterer, defendido no ano de 2004, denominado A noção de despersonalização
em Alceu Amoroso Lima. O trabalho de Eiterer chama atenção para o princípio da
despersonalização em Alceu Amoroso Lima, estudando-o no período de 1920 a
1983. Segundo Eiterer:
Na medida em que Alceu declara que o homem é tanto pessoa quanto indivíduo, as alusões
a caminhos, a itinerários, viagens e peregrinações, bem como, a sua própria conversão, se
refere ao processo de personalização e libertação de um estado de despersonalização. O
evidenciar da proclamação da vitória do indivíduo na modernidade refere-se à tentativa de
eliminação da pessoa no mundo moderno que aprisiona o homem à condição de indivíduo
de dispositivos que o dominam. Portanto, o tema da despersonalização parece elucidar
tanto a crítica à modernidade feita por Alceu, servindo de aporte também para explicação
de sua conversão e do uso do heterônimo Tristão de Athayde (EITERER, 2004).

Há outra dissertação de mestrado interessante que se constitui em uma


tentativa de estudo acerca da sociabilidade de Alceu Amoroso Lima, por meio de
sua correspondência. Trata-se de Sociabilidade intelectual católica na correspondência

169
de Alceu Amoroso Lima, 1928-1945, de autoria de Valéria Jacó da Silva, defendida no
ano de 2004 na Unesp de Assis.
Em tese recente, demonstrou-se que Alceu Amoroso Lima passou, no período
que vai de 1928 a 1946, por um processo que o levou do conservadorismo ao
pensamento progressista, à democracia. Isso ocorreu de forma gradual, com conflitos
internos e revisão de posições. Alceu Amoroso Lima foi abandonando os elementos
conservadores do seu pensamento – elementos do pensamento conservador europeu
advindos de Edmund Burke, Louis de Bonald, Juan Donoso Cortés e sobretudo Joseph
de Maistre –, substituindo-os pelos referenciais da filosofia católica democrática de
Jacques Maritain (RODRIGUES, 2006).
Os destacados são trabalhos de doutorado e de mestrado que complementam,
cada um a seu modo, os estudos mencionados anteriormente. Entretanto, cumpre
dar atenção especial à tese Um itinerário no Século..., de Marcelo da Silva Timotheo
da Costa, principalmente pela riqueza das informações apresentadas, a partir das
entrevistas feitas pelo autor, expondo os comentários de personalidades sobre Alceu
Amoroso Lima, entre as quais Maria Yedda Linhares, Carlos Heitor Cony e D. Paulo
Evaristo Arns, entre outros de igual importância.
Para auxiliar o leitor, elencamos ainda um rol de trabalhos recentes tendo
Alceu Amoroso Lima como objeto de estudo, direta ou indiretamente, os quais
apresento em seguida: 1 - Alessandro Garcia da Silva, O Pensamento Econômico de
Alceu Amoroso Lima na década de 1930, mestrado defendido no final de 2008 no
IUPERJ, cujos objetivos maiores são “além expor e comentar as críticas de Alceu
Amoroso Lima aos dois grandes sistemas econômicos que marcaram o século XX,
comunismo e capitalismo, é comentar a proposta cristã para a economia defendida por
este autor e elaborada através da síntese do pensamento de autores como Chesterton,
Maritain e Sombart”; 2 – Djalma Rodrigues Andrade, Diálogo dos extremos: tensão
história-transcendência em Alceu Amoroso Lima, tese em Teologia defendida no final
dos anos 1980 na PUC-Rio; 3 – Eduardo José Crochet, A revista A Ordem e o
pensamento católico no Brasil (1921-1948), dissertação defendida em 2003, na UFRJ,
tendo por objetivo central “demonstrar como esta publicação, não só através de seu
conteúdo mas também de suas formas, permite compreender o período considerado,
conhecido como sendo da ‘Restauração Católica’, em que a Igreja passa por uma
série de mudanças na sua estrutura, articuladas pela presença e atuação do laicato, em
especial, dos intelectuais”; 4 - Evanize Martins Sydom, Alceu Amoroso Lima e o regime
militar — 1964-1968, dissertação produzida na FGV-RJ em 2007, numa tentativa
de estudo da correspondência de Alceu Amoroso Lima com sua filha Madre Maria

170
Teresa; 5 - Guilherme Ramalho Arduini, Em busca da Idade Nova: Alceu Amoroso
Lima e os projetos católicos de organização social (1928-1945), mestrado defendido
na UNICAMP em 2009, cujo teor reside no estudo das razões que levaram este
pensador a uma mudança gradativa do campo reacionário para a defesa da liberdade
e como isto influenciou “suas ações e escritos sobre o problema da organização das
classes trabalhadoras de acordo a Doutrina Social da Igreja”; 6 - Leandro Garcia
Rodrigues, Alceu Amoroso Lima: Cultura, Religião e Vida Literária, doutorado em
Letras defendido em 2009 na PUC-Rio, onde se procurou “compreender o contexto
católico brasileiro do início do século XX, as relações Igreja-Estado, a imprensa
religiosa e a missão exercida pelos intelectuais católicos em ‘recristianizar’ o país”.
Podemos listar ainda: 7 - Leandro Luiz Cordeiro, Alceu Amoroso Lima e as
posturas políticas na Igreja Católica Brasileira (1930-1950), mestrado defendido em
2008 na UEM-Maringá, cujo escopo reside na tentativa de “examinar a trajetória do
intelectual católico Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde), entre 1930 e 1950”;
8 – De Marcelo Lucena Diniz, Os caminhos da intelectualidade católica na década de
1930: católicos e “pioneiros” na construção da ordem pública varguista, temos a dissertação
defendida em 2009 na UNESP-Franca, cujo cerne reside no estudo do “pensamento da
intelectualidade católica ligada ao Centro D. Vital, entre 1928, ano em que a direção
do Centro é alterada e 1938, início do afastamento da intelectualidade católica do
governo Vargas rumo à consecução da Universidade Católica”; 9 – Mencione-se ainda
Marcelo Rocha Campos, com Integralismo e Catolicismo: Proximidades Doutrinárias
e Divergências Políticas, dissertação defendida em 2003 na UNESP-Franca, onde o
autor procurou “mostrar como o movimento integralista (1932-1937) liderado por
Plínio Salgado, no objetivo de construir um ‘Estado centralizador’ lançou sua teoria
de ‘Estado Integral’, apoiando-se no cristianismo, principalmente na doutrina social
católica e no pensamento conservador de seus intelectuais”; 10 – Registre-se ainda
o mestrado de Renata Duarte Simões, Integralismo e Ação Católica: Sistematizando
as Propostas Políticas e Educacionais de Plínio Salgado, Jackson de Figueiredo e Alceu
Amoroso Lima no Período de 1921 a 1945, defendido e 2005 na PUC-SP, com o
intuito de fazer um “exercício de sistematização do pensamento político e educacional
dos autores Jackson de Figueiredo e Alceu Amoroso Lima, representantes católicos
de destaque no período de 1921 a 1945, e de Plínio Salgado, Chefe Nacional do
movimento social de grande repercussão política que emerge no Brasil na década
de 30: a Ação Integralista Brasileira (AIB)”; 11 – Por fim, outro trabalho de Waldir
Cauvilla, Alceu Amoroso Lima e a Democracia: em busca da proporção, sua tese de
doutorado defendida na Faculdade de Educação da USP em 2000.

171
Considerações finais

Além desses trabalhos descritos, há dois estudos clássicos que demarcam bem
o campo das análises sobre Alceu Amoroso Lima, principalmente por partirem de
pressupostos de análise diferentes. São os livros: 1930: a crítica e o modernismo, de
João Luiz Lafetá (2000), e O perfeito escriba: política e letras em Alceu Amoroso Lima,
de Vera Lúcia dos Reis (1998).
De acordo com João Luiz Lafetá, durante a década de 1920 a influência de
Alceu Amoroso Lima no desenvolvimento da literatura foi decisiva, devendo-se a
esse período sua fama de “crítico, inteligente e imparcial”. Mas isso mudaria com
sua conversão ao catolicismo em 1928, momento que atua, na interpretação de
Lafetá, como um divisor de águas na sua vida intelectual e na maneira como ele era
encarado até então (2000, p.77-78). Lafetá acredita ainda que a influência de Alceu
Amoroso Lima declina em relação a alguns “setores da vida literária”, mas continua
progressivamente forte e atuante no meio católico, levando-o a outros campos
como a política, a filosofia, o direito e a economia. Do período de 1928 ao final da
década de 1930, principalmente, a posição de Alceu Amoroso Lima caracteriza-se
por uma recusa veemente ao materialismo, definido por ele como “naturalismo”;
caracteriza-se ainda por uma crítica ao liberalismo visto como o “erro essencial do
mundo contemporâneo” e também como origem de todos os males que afligiam os
homens. Por essa razão, na visão de Lafetá, Alceu Amoroso Lima entendia que todos
os problemas deveriam ser subordinados a uma ação filosófica e religiosa que fosse
fundamentada em princípios morais. Por isso, ele, Alceu, definia a filosofia como o
elemento central contra o que considerava ser os males de um mundo moderno e
decadente (LAFETÁ, 2000, p. 93).
Do mesmo modo, para Lafetá, embora durante os anos de 1920 e quase toda
a década de 1930 as posições de Alceu Amoroso Lima fossem as de um “direitista”,
ou mesmo “extremamente reacionária e tradicionalista” – passando pela crítica ao
comunismo, liberalismo e sua aproximação com o movimento integralista –, essas
posições começam a modificar-se rumo à Liberdade e ao abandono da Autoridade,
principalmente “com a guerra e a revelação dos horrores cometidos pelos nacional-
socialistas” (LAFETÁ, 2000, p.112-113). Cabe lembrar que o período no qual Alceu
Amoroso Lima é estudado por João Luis Lafetá, com maior atenção, é o que vai de
1920 a 1940.
Por outro lado, Vera Lúcia dos Reis toma como objeto de estudo o
posicionamento de Alceu Amoroso Lima em relação à literatura e à política a
partir da análise de alguns de seus escritos produzidos no período compreendido
entre 1916 e 1945, pretendendo, em essência, divergir da análise feita por Lafetá.
Em suas próprias palavras, a autora se propõe a demonstrar que, “mesmo antes da

172
conversão religiosa, o pensamento de Alceu Amoroso Lima já continha as marcas
do pensamento conservador, não tendo, portanto, havido transformação quanto à
escolha de sua ideologia” (1998, p. 18). Nesse sentido, a autora pretendeu ultrapassar
os estudos que ela considerou terem feito mera utilização de “critérios externos” e
de uma “visão generalizante” no conhecimento do agente. A partir daí ela afirma,
contrariando Lafetá, que a carreira de Alceu Amoroso Lima não estaria cindida em
dois momentos (no antes e no depois da conversão), mas sim “radicalizada depois
de 1928, na medida em que se associa a um novo grupo e a uma Instituição – a
Igreja –, empregando todo o seu esforço para recuperar o prestígio e se aproximar da
República” (REIS, 1998, p. 18).
Entretanto, a autora deixa de levar em consideração o fato de que, embora a
conversão de Alceu Amoroso Lima seja o resultado de um processo anterior a 1928,
ela representa algo de extrema densidade em sua visão de mundo e em sua conduta.
Isso em razão da conversão operar nele, além de uma mudança interior, o surgimento
de uma crença íntima em valores cristãos até então à margem do seu pensamento.
O que pode ser constatado na medida em que observamos, entre outras coisas, as
leituras que Alceu Amoroso Lima havia feito de Spencer, Proust, Nietzsche, Gide; a
participação nos cursos de Bergson, em 1913; e, mais adiante, seu contato com os
pensadores conservadores, notadamente Joseph de Maistre, por meio das indicações
do intelectual Jackson de Figueiredo.
Outro dado a ser elencado é o famoso Adeus à disponibilidade, de 1928, que,
segundo o próprio Alceu Amoroso Lima, era um adeus ao ceticismo e à indiferença
de até então, e que demarcava, ainda, sua entrada no cenário da ação prática, a partir
do momento em que ele assumia a frente da intelectualidade católica laica, no Centro
Dom Vital e na revista A Ordem, acima de tudo como um intelectual convertido.
Portanto, embora Vera Lúcia dos Reis afirme que as posições de Alceu
Amoroso Lima vinham de antes de 1928, incluindo aí a sua relação com os autores
conservadores, ela limita-se a mencioná-los. Não apresenta os conceitos nos quais
Alceu Amoroso Lima se baseava para formar suas posições conservadoras e nem mesmo
um esboço de análise das principais obras dos chamados autores conservadores, ou
mesmo as matizes interiores a esse tipo de pensamento.
O mesmo se dá quando Vera Lúcia dos Reis avalia que Alceu Amoroso Lima
não havia apoiado a Revolução de 1930, ou mesmo a posição dele em relação à
ditadura estadonovista, sua crítica ao liberalismo, ao comunismo, suas propostas para
a educação. Assim, embora o trabalho de Reis seja relevante, ela não elege entre as suas
preocupações centrais o que, a nosso ver, é uma questão decisiva para a compreensão
da trajetória de Alceu Amoroso Lima: o fato de que suas posições mudam em relação
a todas essas temáticas, diferenciando-se nos anos de 1940 daquelas defendidas
anteriormente na década de 1930.

173
Como se observa, os trabalhos acadêmicos a respeito de Alceu Amoroso Lima
se voltam, até o presente momento, para o estudo da sua vida e obra nos mais diversos
aspectos e períodos históricos, com predominância das análises voltadas para a sua
relação com o catolicismo e sua ação política. Somente recentemente os estudos
acadêmicos estão sendo aprofundados no que se refere à atuação de Amoroso Lima
no pós 1964, com ênfase nos seus escritos jornalísticos sistematizados em livros e em
suas correspondências, especialmente com presos políticos, com vultuoso acervo a ser
estudado no Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade (CAALL).

Referências Bibliográficas

ANDRADE, Djalma Rodrigues. Diálogo dos extremos: tensão história-transcendência em Alceu Amoroso Lima.
Rio de Janeiro, 1989, 324 fl. Tese (Doutorado em Teologia) – Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro, 1989.
ARDUINI, Guilherme Ramalho. Em busca da Idade Nova: Alceu Amoroso Lima e os projetos católicos de
organização social. (1928-1945). Campinas, 2009, 145fl. Dissertação (Mestrado em História) - Univer-
sidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2009.
BECHELAINE, José Raimundo Batista. Ética e política na obra de Alceu Amoroso Lima. Roma, Vaticano, 2001,
Tese (Doutorado em Filosofia) – Pontifícia Università Gregoriana, 2001.
BIROLO, Silvo Bez. Evolução do pensamento político-social de Alceu Amoroso Lima. São Paulo, 1990, 119 fl.
Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1990.
CAMPOS, Marcelo Rocha. Integralismo e Catolicismo: Proximidades Doutrinárias e Divergências Políticas.
Franca, 2003, 135fl. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual Paulista – UNESP,
2003.
CAUVILLA, Waldir. O pensamento político de Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde) na década de 30. São
Paulo, 1992, 173 fl. Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
1992.
______. Alceu Amoroso Lima e a Democracia: em busca da proporção. São Paulo, 2000, 200fl. Tese (Doutorado
em Educação) – Universidade de São Paulo – Faculdade de Educação, 2000.
CORDEIRO, Leandro Luiz. Alceu Amoroso Lima e as posturas políticas na Igreja Católica Brasileira (1930-1950).
Maringá, 2008, 223fl. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual de Maringá, 2008.
COSTA, Marcelo da Silva Timotheo da. Um itinerário no Século: Mudança, Disciplina e Ação em Alceu Amo-
roso Lima. Rio de Janeiro, 2003, 288 fl. Tese (Doutorado em História) – Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro, 2003.
COUTINHO, Afrânio. Tristão de Athayde, o crítico. Rio de Janeiro: Agir, 1980.
CROCHET, Eduardo José. A revista A Ordem e o pensamento católico no Brasil (1921-1948). Rio de Janeiro,
2003, 101fl. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2003.
DINIZ, Marcelo Lucena. Os caminhos da intelectualidade católica na década de 1930: católicos e “pioneiros” na
construção da ordem pública varguista. Franca, 2009, 159fl. Dissertação (Mestrado em História) – Uni-
versidade Estadual Paulista – UNESP, 2009.
EITERER, Luiz Henrique. A noção de despersonalização em Alceu Amoroso Lima. Juiz de Fora, 2004, 139 fl.
Dissertação (Mestrado em Ciência da Religião) - Universidade Federal de Juiz de Fora, 2004.
LAFETÁ, João Luiz. 1930: a crítica e o modernismo. 2ª ed. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2000.

174
MONTEIRO, Norma G. de M. do Rego. Alceu Amoroso Lima. Idéia, vontade, ação da intelectualidade católica
no Brasil. Rio de Janeiro, 1991, 290 fl. Dissertação (Mestrado em História) – Departamento de História
– Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 1991.
MORAIS, João Francisco Regis de. Alceu Amoroso Lima e a Cultura Brasileira. Trajetória de Pensamento e
Contribuição Pedagógica. Campinas, 1984, 214 fl. Tese (Doutoramento em Educação) – Faculdade de
Educação – Universidade Estadual de Campinas, 1984.
MOREIRA, Fernando S. Identidade e evolução em Alceu Amoroso Lima. Um estudo de Política comparado a
escritos posteriores. Rio de Janeiro, 1980, 134 fl. Dissertação (Mestrado em Educação) – Departamento
de Educação – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 1980.
PESSINATTI, Nivaldo Luiz. Alceu Amoroso Lima. Pressupostos filosóficos antropológicos. Roma, 1979, 138 fl.
Exercitação (Licença em Filosofia) – Facoltà di Filosofia de Roma – Università Pontificia Salesiana, 1979.
REIS, Vera Lúcia dos. O perfeito escriba: política e letras em Alceu Amoroso Lima. São Paulo: Annablume, 1998.
RODRIGUES, Cândido M. Alceu Amoroso Lima: matrizes e posições de um intelectual católico mili-
tante em perspectiva histórica, 1928-1946. Assis, 2006, 318fl. Tese (Doutorado em História)
– Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Estadual Paulista – UNESP – Assis,
2006.
RODRIGUES, Leandro Garcia. Alceu Amoroso Lima: Cultura, Religião e Vida Literária. Rio de Janeiro, 2009,
206fl. Tese (Doutorado em Letras) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro-PUC-Rio, 2009.
SILVA, Alessandro Garcia da. O Pensamento Econômico de Alceu Amoroso Lima na década de 1930. Rio de Janei-
ro, 2008, 93fl. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Instituto Universitário do Rio de Janeiro, 2008.
SILVA, Valéria Jacó da. Sociabilidade intelectual católica na correspondência de Alceu Amoroso Lima, 1928-1945.
Assis, 2004, 142 f. Dissertação (Mestrado em História) – Departamento de História – Faculdade de Ci-
ências e Letras de Assis, Universidade Estadual Paulista, 2004.
SIMÕES, Renata Duarte. Integralismo e Ação Católica: Sistematizando as Propostas Políticas e Educacionais
de Plínio Salgado, Jackson de Figueiredo e Alceu Amoroso Lima no Período de 1921 a 1945. São Paulo,
2005, 159fl. Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-PU-
C-SP, 2005.
SIRINELLI, Jean François. Os intelectuais. In: RÉMOND, René (Org.). Por uma história política. Rio de
Janeiro: UFRJ/FGV, 1996.
SYDOM, Evanize Martins. Alceu Amoroso Lima e o regime militar - 1964-1968. Rio de Janeiro, 2007, 103fl.
Dissertação (Mestrado) – Fundação Getúlio Vargas-FGV, 2007.
VILLAÇA, Antônio Carlos. Alceu Amoroso Lima. Rio de Janeiro: AGIR, 1985.

175
Documentação e práticas arquivísticas
no Governo da Província do Ceará*

Ana Carla Sabino**

Relatórios e Papéis da Secretaria

A partir da segunda metade do século XIX, Fortaleza busca efetivar-se como


capital da província do Ceará. Entre os desafios de ordem econômica, urbanística e
social da “Fortaleza de Nossa Senhora de Assunção”, ressalto a estrutura administrativa
necessária para a consolidação da autonomia do Governo da Província do Ceará.
A presidência da província do Ceará e as demais presidências provinciais serão
regimentadas com o Ato Adicional de 1834, através da Lei n° 40 de 3 de outubro de
1834. E para cumprir com todas as suas obrigações e impor autoridade, cria-se em
1836 mais uma repartição, a “Secretaria do Governo” ou “Secretaria da Presidência”,
a fim de “cuidar” dos empregados, das demais repartições e dos mandos do governo
geral e provincial. A finalidade era instaurar uma identidade administrativa para
a província e manter informado o poder executivo local e central por meio do
arquivamento, que passa a ser, ao longo do século XIX, uma prática de construção do
Estado brasileiro, a exemplo das tradições administrativas e arquivísticas de Portugal,
como assegura o presidente da província do Ceará, Enéas de Araujo Torreão, em
1888, fins do período monárquico: “(...) Assim, confirmo ainda uma vez o honroso
juizo, que, a seu respeito, têm externado diversos de meus antecessores, de um e outro
partido político, em relatórios existentes no archivo...”.1
O resultado deste “organograma” de governo foi a produção de inúmeros e
belos relatórios, os conhecidos “Relatórios de Presidente de Província” preparados
pelo secretário, chefe de seção e/ou oficial maior da secretaria de governo por ocasião
do discurso de abertura dos trabalhos da “Assemblea Legislativa Provincial do Ceará”,

* Este artigo, com algumas alterações, representa os itens 2.1 e 4.2 da minha tese de doutorado defendida em
junho de 2012 no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (PPGH-
UNISINOS), Rio Grande do Sul, sob orientação do Prof. Dr. Paulo Roberto Staudt Moreira. A tese intitula-se:
“Archive-se!” História, Documentos e Memória Arquivística no Ceará (1835-1934).
** Professora Doutora – Departamento de História – Universidade Federal do Ceará. E-mail: anacarlasabino@
ig.com.br

176
cuja cópia passa a ser acumulada e arquivada pelo arquivista da secretaria em local
criado para este fim, o arquivo da secretaria:
Regulamento n. 6 de 29 de Dezembro de 1836. O presidente da província, autorizado pelo
art. 4° da lei provincial de 26 de Setembro de 1836, ordena o presente regulamento para
a organização da secretaria do governo provincial. (...) Art. 4°. O secretario do governo
e o ajudante de ordens são obrigados a manter a ordem e dirigir o serviço, cada um na
secção da secretaria de que é chefe, e na falta deles fará suas vezes o oficial mais graduado
da respectiva secção. (...) Art. 10. Os despachos dos requerimentos que dependerem de
decisão do presidente serão escriptos pelo secretario e pelo ajudante de ordens, segundo
a natureza do negocio em conformidade com a divisão da secretaria em duas secções (...).
(OLIVEIRA; BARBOSA, 2009, p. 120-122).

(...) Os trabalhos da segunda Secção da Secretaria, graças á atividade e perícia da maior


parte de seus Empregados se achão em dia: infelizmente porem o mesmo não acontece
a primeira, onde a quantidade imensa de registros atrasados não tem permitido igual
pontualidade. (...). (Falla que recitou o Excellentissimo Felisardo de Sousa e Mello
Presidente de Provincia na ocasião da abertura da Assemblea legislativa Provincial no
1° de Agosto do corrente anno, 1838, p. 1. Disponível em: <http://www.crl.edu/brazil/
provincial/cear%C3%A1>. Acesso em: 23 fev. 2012).

A necessidade de conservação dos Relatórios representava a materialização e


perpetuidade do relato das atividades anuais realizadas pelo presidente da província e
o registro da discórdia devido ao trabalho não executado pelos presidentes do governo
anterior, quase sempre opositores político-partidários.
Esta espécie de documento, portanto, era a síntese dos demais documentos
oficiais, fossem estes dispositivos normativos, de ajuste ou correspondência, ou
documento testemunhal (BELLOTTO, 2008, p. 22 e 23). Ou seja, oriundo dos
negócios eclesiásticos, da justiça e do executivo imperial (Ministérios do Império),
primeira seção da secretaria, e das resoluções internas (instrução pública, obras
públicas e força pública da província), segunda seção, e ainda do expediente do
governo preparado pelo ajudante de ordens.
Era, ainda, a prova de que “as ordens do dia” (nas primeiras décadas do
período regencial) estavam sendo cumpridas e registradas, mesmo que o tempo entre
o documento expedido e o documento recebido fosse um, o dos vapores, correios
marítimos e terrestres e o do acúmulo de despachos, registros atrasados, e o da
execução da determinação ou solicitação fosse outro, mensurado pelo tempo dos
interesses a serem barganhados pela presidência:
Regulamento n. 30 de 4 de Fevereiro de 1854. O presidente da província, autorizado pela
Lei Provincial n. 30 de 5 de Novembro de 1852, ordena que a secretaria do governo se
dirija pelo seguinte Regulamento. (...) Art. 8. O ajudante de ordens da presidência extrahirá
também, para o mesmo fim, o resumo das ordens do dia relativas ao cumprimento de avisos
imperiais (OLIVEIRA; BARBOSA, 2009, p. 597 e 598).

177
Por meio da lógica “extrativista” das ordens do dia, segundo os Relatórios, como
o de 1836, os ofícios e avisos imperiais se resumiam a temas, espécies documentais
“inventadas” para contemplar o cotidiano provincial dividido em seções, ao molde
das seções da secretaria de governo e do seu arquivo, como: segurança pública e
administração judiciária, casa de correção, guarda nacional, força policial, instrução
pública, obras públicas, população, repartição eclesiástica, finanças e comércio.
Embora diplomaticamente confuso,2 pois não segue o escopo textual padrão
de sua espécie documental, este tipo de Relatório foi o documento de informação
entre o poder legislativo provincial e geral. Nessa perspectiva, falar de Relatório no
governo monárquico pressupõe um espaço onde estão acumulados e registrados os
documentos recebidos e expedidos, as leis provinciais e mais documentos de cunho
político e administrativo da província e do governo central.
Em questão, nestas “fallas”, a pungência da província do Ceará diante da
obediência ao programa político e administrativo do governo central do Império no
Rio de Janeiro. As bases de governabilidade impostas às províncias pelo imperador
e pela cúpula dos poderes executivo, judiciário e legislativo eram pautadas,
especialmente, na burocracia e na hierarquia, e perduraram durante todo o período
monárquico.
Duas outras questões devem ser destacadas no que se refere ao processo de organização do
governo e da administração fluminense. A primeira questão diz respeito à escassez de estudos
sobre a organização politico-administrativa das províncias no Brasil do século XIX. Pouco
tem sido produzido sobre o assunto, tornando-se muito difícil estabelecer parâmetros de
comparação entre os diferentes padrões de organização politico-administrativa provincial
no Brasil oitocentista (GOUVÊA, 2008, p. 80).

Os Relatórios foram os meios eficientes, em parte, para que o governo


imperial forjasse os ideais de autonomia e ordem pública provincial e a reciprocidade
entre Corte e Província, instituídos com o Ato Adicional de 1834, e mantivesse,
via deputados provinciais, o controle das ações dos presidentes e de seus secretários,
estando estes vivenciando ou não momentos de tensões, rebeliões ou revoltas.
Os pressupostos de criação do Estado autoritário, a subordinação, o
partidarismo e a representatividade, ao serem disseminados em várias regiões do
país, consolidaram cinco vieses como instrumento do poder público: a Secretaria
do Governo, o Relatório, as Leis Provinciais, o Livro de Registro e o Arquivo da
Secretaria do Governo Provincial.
A Secretaria do Governo era o principal aliado do imperador, de seus agentes
e dos presidentes de província no mando das comarcas do interior e da capital da
província. Fossem liberais ou conservadores, os presidentes da província do Ceará
reconheciam as funções da Secretaria e os afazeres dos seus funcionários como o
meio e o fim das suas atribuições, uma vez que não se sabia, embora nomeado pelo

178
imperador e tendo o cargo regulamentado por lei imperial, quais as competências e
trabalhos a serem executados in loco pelo presidente de província.
Maria de Fátima Gouvêa, ao tratar da política e administração da província
do Rio de Janeiro no século XIX, ressalta a importância da Secretaria de Governo na
organização da máquina administrativa do Estado brasileiro, a partir de 1822.
Para estabelecer e organizar esse complicado conjunto de instituições administrativas e
políticas, o governo central progressivamente editou um complexo conjunto de leis. (...).
É importante observar de antemão que, tendo em vista o processo de centralização política
estabelecido por aquela legislação, muito pouco foi deixado sob a responsabilidade das
instituições políticas e administrativas provinciais, que ficaram completamente restritas em
termos de tentar inovar, criar ou mudar qualquer coisa relativa à organização político-
administrativa de suas províncias. Dentre as poucas áreas de atuação deixadas a cargo dos
cuidados provinciais estavam a educação, a organização e a aprovação dos orçamentos
provinciais e municipais (GOUVÊA, 2008, p. 76).

Segundo Gouvêa, a partir do estudo da Secretaria da Presidência é possível


compreender a administração provincial, uma vez que ela daria assistência geral ao
presidente, caso da Secretaria da Província do Rio de Janeiro, instituída em 1835.
E subordinado à Secretaria estava o Arquivo Estatístico, em 1850. Entre 1855 e
1856, é criada por lei uma terceira seção ligada à Secretaria, que ficou responsável
pelas estatísticas provinciais e pelo Arquivo. Em 1876: “(...) A principal inovação, no
entanto, foi o fato de que a Presidência Provincial teve sua competência aumentada,
ganhando poder sobre vários órgãos administrativos menores, como o Arquivo
Estatístico...” (GOUVÊA, 2008, p. 90).
O toque pessoal de cada presidente do Ceará, frente à necessidade de governar
por meio de uma secretaria de governo, dava-se através dos novos regulamentos, das
leis e decretos para a execução dos trabalhos da Secretaria e de seus empregados,
além do processo de instituição do arquivo como seção da secretaria, em 1836; e,
após 1865, além desse arquivo da secretaria, fora criado um arquivo público, órgão
vinculado à biblioteca pública provincial.
A análise da legislação provincial ao longo do século XIX, um dos principais
documentos presentes no arquivo da Secretaria, revela as sutis alterações acerca
do modo como cada um dos presidentes governa a província e a importância da
organização da burocracia administrativa, ou seja, o ordenamento do serviço público,
que incluía o trabalho dos empregados junto aos papéis do governo provincial e
central, espelho do bom funcionamento da secretaria e, consequentemente, da
eficiência do presidente.
Nos anos de 1836, 1854, 1855, 1863, 1872 e 1884, a secretaria e seus papéis
arquivados — relatórios, leis provinciais, ofícios e avisos — tornaram-se o “tema” das
“ordens do dia” na administração provincial. Isto porque aos documentos produzidos
e arquivados pelo pessoal da secretaria é atribuído o conceito de “documento de
arquivo”, enaltecidos do valor de prova. Por valor de prova, entende-se:

179
Os valores inerentes aos documentos públicos modernos são de duas categorias: valores
primários, para a própria entidade onde se originam os documentos, e valores secundários,
para outras entidades e utilizadores privados. Os documentos nascem do cumprimento dos
objetivos para os quais um órgão foi criado – administrativos, fiscais, legais e executivos.
Esses usos são, é lógico, de primeira importância. Mas os documentos oficiais são preservados
em arquivos por apresentarem valores que persistirão por muito tempo ainda depois de
cessado seu uso corrente e porque os seus valores serão de interesse para outros que não
os utilizadores iniciais. (...) Pode-se determinar mais facilmente os valores secundários de
documentos oficiais se os analisarmos em relação a dois aspectos: a) a prova que contêm
da organização e do funcionamento do órgão governamental que os produziu; e b) a
informação que contém sobre pessoas, entidades, coisas, problemas, condições, etc. com
que o órgão governamental haja tratado. (...) (SCHELLENBERG, 2006, p. 180 e 181).

O Arrumamento da Secretaria e do seu Arquivo

(...) Esta também é a causa por que não proponho o aumento dos mesquinhos ordenados
dos Officiais da Secretaria, não podendo todavia esquivar-me a pedir-vos decreteis
uma gratificação para aquelle d’entre os mesmos, que for encarregado, na qualidade de
Cartorario, do arrumamento, e ajustada disposição dos papeis do Archivo...3

Só a partir do Regulamento n. 30 de 4 de fevereiro de 1854, que trata da


reforma da secretaria e legisla sobre o arquivo desta, é que o pedido do Presidente de
Província do Ceará, José Joaquim Coelho, quanto à gratificação para o empregado
a ser incumbido do arrumamento do arquivo será paulatinamente cumprido. Como
também o apelo do presidente Fausto Augusto Aguiar, em 1849, acerca da “falta de
uma pessoa especialmente encarregada” para o arquivo da repartição.
Em 1854, funcionará, portanto, um “archivo” como parte integrante da
Secretaria do Governo com determinações específicas. Este feito é decorrente de outra
ordem, a lei provincial n. 515 de 1850, na qual o presidente da província, Fausto
Augusto de Aguiar (1848-1850), autoriza a liberação dos custos necessários para que
os documentos da ouvidoria e do “archivo” da Câmara de Aquiraz fossem enviados
para a Secretaria da Presidência:
Lei n. 515 de 16 de Julho de 1850.
Sanccionada pelo presidente Fausto Augusto de Aguiar.
Art. 1. O governo da província fica autorizado a despender a quantia que fôr necessária,
com a transferencia para a secretaria da presidencia, de todos os papeis e livros do
cartorio da extincta ouvidoria e do archivo da camara municipal do Aquiraz, escripturado
anteriormente á lei da creação das camaras.
Art. 2. Ficão revogadas quaisquer disposições em contrario (OLIVEIRA; BARBOSA,
2009, p. 178).

Esta transferência representa a posse do registro dos fatos da Vila de Aquiraz,


que até 1726 fora sede administrativa da capitania do Siará-Grande. Só após esta

180
data a sede do governo passa a ser Fortaleza e, consequentemente, a inauguração,
mais de um século depois, de um novo centro e referencial administrativo a partir da
legalidade jurídica da presidência e da secretaria de Fausto Aguiar.
Ao contrário dos parâmetros territoriais e familiares que compuseram
a formação das demais vilas cearenses, os papéis e livros do cartório da ouvidoria
e do arquivo da câmara de Aquiraz, agora sob a guarda da secretaria do governo,
significavam a tomada da “memória perdida” para dar lugar à memória arquivística
(JARDIM, 1995, p. 2), meio pelo qual se acomoda a verdade documental e histórica
das repartições e administrações suprimidas e daquelas que estavam nascendo.
Representa, ainda, a prova do controle e da coação dos grupos da elite política
provincial, que percorriam com “atraso” o longo caminho até o palácio do governo.
A ideia de atraso e lonjura é reflexo do pensamento civilizatório para as
províncias do norte no século XIX, uma ruptura com a trajetória particular da
formação das cidades e o controle dos trabalhadores no sertão do Ceará (séculos XVII
e XVIII) a partir das relações econômicas e sociais oriundas da pecuária, da “sociedade
do gado”, dos interesses de fazendeiros. Assim tanto a obliteração das tensões entre o
público e privado nesta “sociedade” que, mesmo com a presença de administradores
coloniais e do Conselho Ultramarino, são dadas pelas relações de força e trabalho
pautadas por conflitos e compromissos, como (e não apenas) aqueles estabelecidos
entre pessoas ditas “criminosas” e os senhores de poder e prestígio (GOMES, 2006,
p. 136).
O arquivo da secretaria servirá como porão para a guarda dos documentos
de Aquiraz e de outras antigas vilas cearenses, escalpelados em nome do tempo e
da história. Mera “utopia arquivística” (COLOMBO, 1991, p. 69 a 72) esta que
acreditava ser possível arquivar o tempo e a memória social.
As empreitadas para tal feito se articulavam com vários saberes das ciências
exatas, puras e humanísticas, como o enciclopedismo, para expressar como “lógica
arquivística” (MASTROPIERRO, 2008, p. 222) as transferências de documentos,
ou seja, as usurpações documentais que ocorreram no Ceará a partir do século XIX.
Para estes fins, a Secretaria, em 1854, é dividida em duas seções seguindo
uma “fórmula” temática definida por assunto, a qual se denominava as pastas dos
ministérios do império. A primeira seção era responsável por todos os documentos
expedidos e o registro dos documentos recebidos dos Ministérios dos Negócios da
Justiça e da Guerra. A segunda seção, por sua vez, tratava e protocolava os documentos
dos Ministérios dos Negócios do Império, Fazenda, Marinha e Estrangeiros.
As cópias e registros de leis provinciais e cópias de relatórios ficavam a cargo
da seção menos atarefada.
Para visualizar melhor os trabalhos e trabalhadores desta Secretaria e os papéis
a serem arquivados, é preciso acompanhar a estrutura de pensamento vertical e

181
horizontal da burocracia e administração provincial. E, para isso, o melhor texto é
um quadro. Ver a seguir o quadro, elaborado por mim, da Secretaria do Governo da
Província do Ceará, 1854.
Secretaria do Governo da Província do Ceará, 1854.
1° Secção Função Empregados Competências
Ministérios dos Registro e protocolo 1° Escriturário Um dos Amanuenses
Negócios da Justiça e da dos Documentos (Chefe da Secção) é encarregado do
Guerra. expedidos e recebidos 2° Escriturário fecho e da numeração
pelos Ministérios. Amanuense dos ofícios e ajuda
E ordenamento dos na escrituração dos
documentos produzidos registros, trabalho do 1°
para o expediente da Escriturário.
Secção.
2° Secção
Ministérios dos Registro e protocolo 1° Escriturário É o Oficial-Maior
Negócios do Império, dos Documentos (Chefe da Secção) quem designa os
Fazenda, Marinha e expedidos e recebidos 2° Escriturário segundos escriturários,
Estrangeiros. pelos Ministérios. Amanuense os amanuenses e o
E ordenamento dos amanuense encarregado
documentos produzidos do fecho do documento.
para o expediente da
Secção.
O Secretário é quem
tem poder para fazer
alterações quanto a estas
designações.
O oficial-maior
distribuirá os papéis
com a anotação de 1° ou
2° secção.
Archivo “Haverá no archivo Archivista Incumbe ao arquivista:
da secretaria os “Escripturar os livros
seguintes livros: 1. O que devem existir
de inventario geral de no arquivo, segundo
todos os papeis nelle este Regulamento.
existentes, que será Emmassar em ordem
escripturado segundo chronologica todos os
o modelo dado pelo papeis segundo a secção
secretario. 2. O de a que pertecerem, pôr-
numeração de todos lhes rótulos, e fazer tudo
os officios que forem que tenda a facilitar a
archivados. (...) Haverá achada deles, tendo-
também no archivo os em boa guarda.
um quadro geral de Organizar e ter à mão o
todos os empregados da quadro geral e o especial
província, e em especial dos empregados”.
dos empregados da
policia”.

182
Fonte: OLIVEIRA, Almir Leal de; BARBOSA, Ivone Cordeiro (Org.) Leis Provinciais: Estado e Cidadania
(1835-1861). Compilação das leis provinciais do Ceará - Comprehendendo os annos de 1835 a 1861 pelo Dr.
José Liberato Barroso. Edição Fac-similar da de 1863. Fortaleza: INESP, 2009, p. 597 a 601.

Todo o trabalho dos empregados das seções era supervisionado pelo Oficial-
Maior e coordenado pelo 1° Escriturário, que mantinha uma “taboleta” na qual se
anotava quando foi distribuído, a data em que se iniciou o registro do documento
nas seções competentes e tomava nota dos trabalhos que não eram urgentes.
Os serviços do pessoal das seções eram como o de uma orquestra, sendo estes
os músicos que decifram as partituras (documento oficial); mas, neste caso, o mérito
da canção é apenas do regente, presidente de província. Os “músicos” faziam com
que o presidente da província cumprisse e acompanhasse as demandas provinciais e
do governo central, sem que ele tivesse que ler e escrever algo, trabalho que cabia ao
Ajudante de Ordens da presidência que, como dito anteriormente, resumia as ordens
do dia relativas ao cumprimento de avisos imperiais. Era, enfim, da competência do
secretário do governo e do oficial maior a escrita dos despachos presidenciais.
A Secretaria geraria com esta nova regulamentação uma série de tipos
documentais provenientes de ofícios e avisos dos Ministérios do Império e dos Livros
de Registro dos trabalhos da própria secretaria. Serão Livros de Registro de Ofícios e
Avisos Ministeriais; Cópias e Livros Registros de Leis Provinciais; Cópias de Relatórios;
Resumos de Expedientes, Despachos de Pagamentos e dos Avisos Imperiais, Livros de
Registros de Provisões de Empregados Gerais e Provinciais.
Além de acumular papéis e livros do cartório da ouvidoria e do arquivo da
câmara de Aquiraz e de intermediar a arrecadação dos arquivos das vilas dos índios
de Soure (atual município de Caucaia-CE) e Arronches (atual Parangaba, bairro
de Fortaleza), que em 1835 foram unidos à capital Fortaleza, para a Câmara de
Fortaleza. Posteriormente, esses papéis deveriam ser recolhidos ao arquivo público da
província, após 1865, procedimento que pode não ter ocorrido nessa data, mas que
hoje compõe o acervo do Arquivo Público do Estado do Ceará:
Lei n. 2 de 13 de Maio de 1835. Sanccionada pelo presidente José Martiniano de Alencar.
Art. 1. Ficão suprimidas as villas dos Indios de Soure e Arronches, e seus municípios unidos
ao da capital. Art. 2. O governo da província fica autorizado a fazer arrecadar o archivo e mais
pertences das duas municipalidades extinctas para se reunir ao archivo da câmara da capital;
e igualmente os cartorios respectivos serão remettidos aos escrivães competentes. Art. 3.
Ficão revogadas as leis e disposições em contrario (OLIVEIRA; BARBOSA, 2009, p. 50).

Até a data de 1854, a Secretaria teria em suas 1ª e 2ª seções cerca de 30 anos


de avisos de cada um dos seis Ministérios Imperiais criados a partir de 1822, ou
seja, acumulava aproximadamente 180 anos de documentos oficiais, soma total do
montante de cada Ministério.

183
O Registro das Palavras

Estamos diante de um ponto importante: o lugar da historicização do fazer


arquivístico e das operações arquivísticas dos empregados públicos provinciais na
construção do arquivo do governo da província. Entendendo “fazer arquivístico”
como um conceito da arquivística que, segundo o estudioso do assunto Miguel Angel
Esteban Navarro, em trecho citado por Renato Sousa, é:
A disciplina dedicada à investigação dos fundamentos científicos e o desenvolvimento das
técnicas de planejamento, construção, uso, gestão e avaliação das habilidades e ferramentas
empregadas nos sistemas documentais para o armazenamento, tratamento e recuperação
dos documentos criados pela humanidade para testemunhar seus atos e conservar e
transmitir seu saber, com o fim de garantir sua conservação em informação capaz de gerar
novo conhecimento e de auxiliar o homem na tomada de decisões.4

Assim, penso que o objeto material do quefazer arquivístico é o Registro; o


registro como protocolo ou a cópia de documentos que dizem sobre os fatos e atos
administrativos ou jurídicos. Sem o registro dos documentos não teria como provar
e ter conhecimento das ações sociais, de direito ou da finalidade pública que gera
um fato administrativo ou legal, bem como dos efeitos resultantes das determinações
inscritas em documento diplomático, meio de atuação do poder público que tem o
objetivo de manter a ordem pública.
O registro de documentos no Ceará, seguido do método de arquivamento,
entre 1835 e 1865, delineou o fazer do arquivo na secretaria do governo, que se define
pelo assentamento das palavras ditas pelos representantes da política provincial e
imperial receptadas pelo arquivo, a quem coube o juízo final, a passagem do processo
de razão pública em processo documental:
Se llama proceso documental a la serie de fases em que sucesiva y ordenadamente se
desarrolla la confección de um documento. La finalidad de todo documento es o consiste
en recoger por escrito um determinado acto o negocio jurídico, entendiendo el primero, e
lacto, como el resultado de una actuación voluntaria consciente y exteriorizada, capaz de
crear, modificar o extinguir relaciones de Derecho de conformidad con la Ley... Cuando
cualquiera de estos actos o negocios haya de verterse por escrito en un documento, el
proceso documental,... es función que corresponde a una persona especializada y autorizada
para ello. Esta persona en la Ciencia Diplomática se conoce con el nombre de rogatorio,
y puede ser también persona única o varias personas, o bien una institución cuya esencial
actividad es precisamente la confección y libranza de documentos escritos (TAMOYO,
1996, p. 61).

O arquivo era o lugar do registro e também, concomitantemente, regido por


ele. O registro como elemento identitário do documento de arquivo, ao mesmo
instante em que ordenava as escrituras e os manuscritos, mantinha a dinâmica do
expediente da secretaria da presidência (arquive-se!). Era também motivo de grande

184
pesar por parte do presidente de província, dos secretários, oficiais-maior e chefes
de seção, pois o tempo da expedição e recebimento de documentos era diferente do
prazo e da urgência em dar providência ao fato/ato do documento (cumpra-se!) e,
mais ainda, distinto do tempo da escrita e dos gestos da coleta (FARGE, 2009, p.
57-58), protocolamento, inventariação ou cópia de documento (registre-se!). Como
é possível observar na fala dos presidentes de província em relatório de 1838 e 1849:
(...) 1° de agosto do corrente anno. 1838. Secretaria da Presidencia. (...) Os trabalhos da
segunda Secção da Secretaria, graças á atividade e pericia da maior parte de seus Empregados
se achão em dia: infelizmente porem o mesmo não acontece a primeira, onde a quantidade
imensa de registros atrasados não tem permitido igual pontualidade.

(...) Em 1° de julho de 1849. (...) Os registros que se achavão em grande atrasamento,


quando tomei conta da administração desta província, como tive a honra de communicar-
vos em meu anterior relatório estão em dia com uma ou outra exceção de leve importancia.
Outro tanto, porém, ainda não vos posso dizer a respeito do archivo desta repartição: o
grande abandono, em que tem estado desde longa data, e a falta de uma pessoa especialmente
encarregada desse trabalho impossibilitando um prompto e facil melhoramento fazem
com que continue elle a estar ainda desorganizado. (...) Estou, porém, convencido de
que pouco se poderá fazer, em quanto não fôr creado o lugar de archivista... (Falla que
recitou o Excellentissimo Felisardo de Souza e Mello, Presidente de Provincia na ocasião
da abertura da Assemblea Legislativa Provincial no 1° de agosto do corrente anno, 1838;
Relatorio apresentado à Assemblea Legislativa Provincial do Ceará pelo excellentissimo
senhor doutor Fausto Augusto de Aguiar, presidente da província, em 1° de julho de 1849.
Ceara, Typ. Cearense, 1846, p.24. Disponível em: <http://www.crl.edu/brazil/provincial/
cear%C3%A1>. Acesso em: 21 mar. 2012).

A desorganização dos documentos do arquivo, consequência do atraso


no registro dos documentos, causava prejuízo tanto à uniformidade quanto ao
cumprimento dos avisos e decretos imperiais por parte da província do Ceará, caso
do aviso enviado pelo Ministério dos Negócios do Império em 19 de janeiro de 1850
solicitando que a secretaria da província do Ceará passasse todos os esclarecimentos
ao governo imperial acerca do aldeamento de índios, o que só poderia ser feito com
a identificação dos documentos correspondentes nos registros e a fácil “achada deles”
no arquivo.
A desordem implicava em uma organização que, nesse contexto arquivístico,
remetia à necessidade de classificação dos documentos, segundo o presidente de
província, Joaquim Marcos de Almeida Rego, que reitera o diagnóstico do seu
antecessor, Fausto Augusto de Aguiar, em 1849 e 1850:
(...) 1° de Outubro de 1851. (...) Outro tanto porém vos não posso dizer a respeito do
archivo, porque não se tendo authorisado o governo a montal-o como convém, e como
havia sido proposto meu antecessor o Exmo. Sr. Dr. Fausto Augusto de Aguiar, em um
de seus relatórios, mediante uma gratificação á um empregado da casa, que melhormente
habilitado, podesse fazer a classificação dos papeis que estão sem ella, conserva-se no mesmo
mao estado que vos foi então referido, e sobre o que espero providenciareis. (Relatorio

185
com que o excellentissimo senhor doutor Joaquim Marcos de Almeida Rego, presidente
da provincia do Ceará, na abertura da 2° sessão ordinária da 8.a. legislatura da Assemblea
Legislativa da mesma província no dia 1° de outubro de 1851. Ceará, Typ. Cearense, 1851,
p. 28. Disponível em: <http://www.crl.edu/brazil/provincial/cear%C3%A1>. Acesso: em
21 mar. 2012).

A classificação dos papéis, citada pelo presidente, tem por base a metodologia
diplomatista e, por fim, o arquivamento, o qual, segundo Renato Sousa, pode ser
conceituado do seguinte modo:
Percebeu-se que, para aprofundar o conhecimento sobre a classificação em arquivos, é
necessário estabelecer o significado e uso de importantes conceitos relacionados ao processo
classificatório. São eles: classificação, ordenação, arquivamento, codificação e instrumento
de classificação. E, também, a denominação dos níveis de classificação. A partir desse ponto,
estaremos utilizando o termo “classificação” para identificar a ação intelectual de construir
esquemas para agrupar os documentos a partir de princípios estabelecidos. A “ordenação”
como forma de disposição dos tipos documentais dentro das divisões estabelecidas no
esquema de classificação. O “arquivamento” como ação física de colocar os documentos
em pastas ou caixas orientadas pelo esquema de classificação e pela ordenação definida
(SOUSA, 2008, p. 85).

Aurelio Tanodi explicita com clareza a tríade classificação/metodologia


diplomatista/arquivamento na realização do fazer arquivístico. Em especial a
diplomática, que é a ciência aplicada na análise classificatória do documento na
condução dos trabalhos do arquivo. Vale dizer que o uso da diplomática aí é distinto
do que é feito pelos historiadores das datas e dos fatos que voltaram os olhos para a
crítica interna e externa dos documentos, comparando-os visando à verificação da
autenticidade e da fidedignidade do conteúdo, o que faz pensar sobre a abrangência e
a atualidade da diplomática como ciência para o estudo da história, do arquivo e do
seu material, o documento.
Funciones de la diplomática. Em su sentido amplio, la diplomática desempeña varias
funciones: 1) crítica; esta función es especialmente importante para los historiadores
porque les permite discernir los documentos autênticos, falsos y sub-reptícios; entre los
falsos aquelles que son falsificaciones materiales, formales o totales; para determinar em
qué grado los documentos son fidedignos como fuentes históricas o testimonios jurídicos;
2) jurídica; determinando las classes documentales como instrumentos jurídicos, que
comprueban los derechos o traten negócios jurídicos; 3) classificadora; estableciendo las
clases o grupos documentales, en base a la relación con la entidade productora, y estructuras
externas e internas, facilitando uma terminologia adequada e uniforme. (...) Aplicación
en los archivos. En los archivos, se aplica la diplomática en diversas actividades: en la
apreciación y, por conseguiente selección y elemininación de archivalia, determinando que
clases de documentos tienen mayor o menor valor probatorio... (TANODI, 1961, p. 121).

A fórmula discursiva que engloba a diplomática, a classificação e o arquivamento


dá-se como fruto da percepção e da consciência escriturária, do registro escrito e
documentalista, não somente do presidente de província, mas, especialmente,

186
do amanuense, do escriturário e do arquivista, que interpreto como “sistemas de
enunciados” (FOUCAULT, 2007, p. 146) ao pensar o arquivo. Saberes que passam
pela teoria e prática arquivística, respectivamente, nos séculos XVIII e XIX, ou seja,
pela influência do enciclopedismo, da Revolução Francesa e da formação do Estado-
Nação e da história-ciência e disciplina (MASTROPIERRO, 2008, p. 222-235).
A sociabilidade desses enunciados, que dizem sobre o quefazer do arquivo,
existe e coexiste a partir de situações pré-arquivísticas vivenciadas em outros espaços
que não apenas no arquivo do governo, como nas escolas públicas primárias do Ceará
em 1855, nas quais o professor deveria saber e ensinar: História Sagrada; Elementos
de História Geral; História e Geografia do Brasil, Leitura de impressos e manuscritos;
Tipos de Escrita: bastardo, bastardinho, cursivo em letras ordinárias e maiúsculas e
Elementos de gramática e cálculo (OLIVEIRA; BARBOSA, 2009, p. 715-717).
Restava a necessidade de criar um método para mensuração e sumarização
dos métodos dos registros dos documentos de arquivo como escala de análise do
discurso proferido nos relatórios provinciais. A “escala documental” é, por oportuno,
sistematizada a partir de cálculos numéricos que, em seu total, apontam para
resultados no campo fenomenológico da escrita, como letra e voz do poder público,
e para as razões pelas quais se constituíram as séries, os conjuntos, as coleções de
documentos conservados em arquivo:
Relatorio que apresentou o exm. senhor doutor Francisco de Sousa Martins, presidente
desta província...1° de agosto de 1840 (...) Mas com estes novos empregados a Secretaria
se acha em estado de dar cumprimento as suas multiplicadas tarefas. Muito se tem
adiantando os registros em atraso de sorte, que (segundo o calculo) se acharão em dia
com o expediente quando muito athe Outubro do corrente anno. (...). (Relatorio que
apresentou o exm. senhor doutor Francisco de Sousa Martins, presidente desta provincia,
na ocasião da abertura d’Assemblea Legislativa Provincial no dia 1° de agosto de 1840.
Ceará, Typ. Constitucional, 1840. Disponível em: <http://www.crl.edu/brazil/provincial/
cear%C3%A1>. Acesso em: 21 mar. 2012).

Com quantos documentos se faz um arquivo?

O volume da correspondência documental e o registro feito por meio de


uma “ajustada disposição” foram questões pertinentes nos regulamentos para o
“arrumamento” do arquivo (em 1854 e 1855), que desaguou na resolução de 1865,
que diz sobre um arquivo público provincial e uma biblioteca pública.
Desse modo, as operações de arquivamento, na segunda metade do século
XIX no Ceará, onde “o momento do arquivo é o momento do ingresso na escrita da
operação historiográfica” (RICOUER, 2007, p. 176), dá-se a ler através de sentenças
resultantes das operações matemáticas, ou seja, da multiplicação de documentos,
efeito da ampliação do campo de jurisdição da administração da província; da soma,

187
documentos gerando outros documentos, os livros de registros ou da “ocorrência
de um documento dentro de outro documento” (BELLOTTO, 2008, p. 89), os
“anexos”, melhor, os decretos, relatórios que acompanhavam os avisos imperiais,
ofícios imperiais e provinciais; da divisão, os documentos direcionados a seções a
que lhes dizem respeito, seguidos da classificação pela ordem de arquivamento da
secretaria; e da subtração, perda fortuita, eliminação ou “desaparecimento” intencional
ocasionado pelo não-registro em arquivo de documentos-testemunho (RICOUER,
2007, p. 170) de ou sobre algo, alguém a quem não se poderia declarar em atenção
ao “bem estar” da esfera política e pública. O documento-testemunho é, portanto, a
súmula da memória arquivada e um dos maiores desafios historiográficos.
Os resultados dessas operações, os quais precedem à historiográfica, são,
primeira e obviamente, os números, as letras e a interpretação estatística sobre a
serventia e operacionalidade dos empregados da secretaria, destacadamente do
arquivista (cargo recém-criado na província do Ceará, em 1852) e do secretário,
José Júlio de Albuquerque Barros, que teve a iniciativa sagaz, em 1864, de mandar
os chefes de seção (Oficiais-Maiores) preparar relações e mapas para inventariar
o arquivo, os documentos em situação de arquivamento e testemunhar acerca da
burocracia provincial, pois, com os números bem arrolados, instaurava-se o saldo
positivo ou negativo dos registros realizados e dos documentos existentes:
Mapeamento descritivo e quantitativo dos trabalhos realizados na seção central da Secretaria do Governo da
Província do Ceará entre outubro de 1863 e setembro de 1864, elaborado pelo chefe da seção, Felix José de Souza
Junior. Parte integrante do Relatório apresentado à Assembleia Legislativa da Província do Ceará pelo Presidente
Lafayette Rodrigues Pereira, por ocasião da instalação da mesma Assembleia no dia 10 de Outubro de 1864.

Fonte: Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa Provincial do Ceará pelo excellentissimo senhor dr.
Lafayette Rodrigues Pereira, por occasião da installação da mesma Assembléa no 1º de outubro de 1864. [n.p.]
Typ. Brazileira de Paiva & Comp., 1864. Disponível em: <http://www.crl.edu/brazil/provincial/cear%C3%A1>.
Acesso em: 21 mar. 2012.

A secretaria, em 1864, estava dividida em três seções — a central, a primeira e


segunda seção —, sendo a central composta por um oficial maior, Felix José de Sousa
Junior, chefe da seção, e dois segundos oficiais-maiores, responsáveis pelo expediente
interno de interesse da presidência da província. A primeira seção, sob a chefia de

188
Joaquim Mendes da Cruz Guimarães, na qual se acumulavam os ofícios expedidos
para os Ministérios e de órgãos dos poderes legislativo e judiciário. A segunda seção
era dirigida por Estevão Sabino de Moura, que ordenava o envio de ofícios para
diferentes ministérios do império e para repartições ligadas ao executivo provincial.
O secretário do governo do Ceará, como os chefes de seção, acompanha
todo o círculo envolto da linguagem manuscrita e documental, incluindo o delicado
momento do registro, que acontecia, em parte, na secretaria — caso das cópias dos
documentos expedidos — e, em outro momento, no arquivo, no qual existiam dois
tipos de livros de registros “... o de inventario geral de todos os papeis nelle existentes,
que será escripturado segundo o modelo dado pelo secretario; o de numeração de
todos os officios que forem archivados” (OLIVEIRA; BARBOSA, 2009, p. 598).
Estes foram os primeiros números da secretaria e do seu arquivo apresentados
por José Julio de Albuquerque Barros, em 1864, referente ao período de outubro de
1863 a setembro de 1864:

Listagem dos órgãos para os quais foram expedidos documentos pela 1° seção da secretaria do governo da
província do Ceará e dados acerca do andamento dos registros dos documentos dessa seção, elaborados pelo chefe
da seção, Joaquim Mendes da Cruz Guimarães Junior. Parte integrante do Relatório apresentado á Assembleia
Legislativa Provincial por Lafayette Rodrigues Pereira, por ocasião da instalação da mesma Assembleia no dia
10 de Outubro de 1864.

Fonte: Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa Provincial do Ceará pelo excellentissimo senhor dr.
Lafayette Rodrigues Pereira, por occasião da installação da mesma Assembléa no 1o de outubro de 1864. [n.p.]
Typ. Brazileira de Paiva & Comp.,1864. Disponível em: <http://www.crl.edu/brazil/provincial/cear%C3%A1>.
Acesso em: 21 mar. 2012

189
Assim, os empregados públicos do segundo escalão da presidência do Ceará,
uma vez treinados, construíam sua carreira política5 com o instrumento do documento
e em nome da fé pública. Caso do bacharel cearense José Julio de Albuquerque Barros,
o Barão de Sobral, que foi secretário do presidente Lafayette Rodrigues Pereira (1864-
1865) e de Francisco Ignacio Marcondes Homem de Mello (1865-1866), em seguida
deputado geral pelo Ceará (1867-1870) e que “triunfa” em 1878, quando é nomeado
por Carta Imperial para a presidência da província do Ceará e para a província do Rio
Grande do Sul, entre 1883-1885 (STUDART, 1913, p. 131 e 132).
O registro que significava mais que a “... inscrição ou transcrição de atos,
descrição de fatos, título e documentos a fim de autenticá-los” (BELLOTTO,
2008, p. 66), no fazer arquivístico do Ceará, ou melhor, a dimensão histórica
de experiências humanas, rendia-se, em 1865, à cultura histórica antiquária,
colecionadora (GUIMARÃES, 2007, p. 21) e institucional. Rendia-se, portanto,
à combinação “lógica” entre documento-texto e arquivo-contexto, dos laureados
eruditos historiadores-documentalistas, prestes a desenvolver e sistematizar um longo
projeto de história no Instituto do Ceará (1887), e dos presidentes de província,
sucumbidos pela ode ao arquivo público como memória e poder.
No ano de 1865, por força da resolução n. 1186 de 8 de setembro, e no
decorrer dos anos de 1866 e 1867, o arquivo da secretaria do governo do Ceará
passa receber recursos, na condição de arquivo público, e um coordenador, o
tenente-coronel José Nunes de Mello (oficial-maior aposentado da secretaria),
além da reincorporação do arquivista e da colaboração do porteiro ajudante de
arquivista:
Resolução n°1186 de 8 de Setembro de 1865. N° 36. Fixando a despeza provincial para o
anno financeiro que decorre do 1° de janeiro ao ultimo de dezembro de 1866.
(...)Instrucção Publica. (...)

23. Para uma biblioteca publica e um archivo, ficando o governo, desde já, autorizado a
dar o regulamento sobre sua organização e criar um bibliothecario com vencimentos, três
contos de réis. 3:000$000.

Collecção de Leis da Província do Ceará no anno de 1866 (...) Despeza provincial (...)
Instrucção Publica (...) 21. Para uma biblioteca e um archivo publico. 3:000$000 (Collecção
Leis da Provincia do Ceara. Tomo XXXI, Parte XXI. Fortaleza: Typ. Cearense, 1865, p. 203;
Collecção Leis da Provincia do Ceara, no anno de 1866. Fortaleza: Typ. de O. Colás, 1867,
p. 67).

Outro aspecto, fruto das novas feições a que se acometeriam as operações de


arquivamento da memória, será o valor histórico agregado aos documentos, tido como
suprimento para as previsões históricas, que decantavam no arquivo à espera do tempo
da neutralidade do historiador e dos silêncios dos documentos-testemunho no futuro
do pretérito que se aproximava, como relata o presidente de província João Antonio
de Araujo Freitas Henriques, com base no relatório do secretário do governo em 1869:

190
(...) O archivo que contém importantes documentos, não acha-se em bom estado, pelo
que chamo vossa atenção para o que expõe a esse respeito o digno secretario interino em
seu relatorio anexo. (...) Devo, porém, dizer que muitos melhoramentos seriam ainda
para desejar, mesmo em relação ao archivo, que sendo uma fonte, onde se devem colher
quase todas as noticias sobre a marcha dos negocios publicos, onde se devem estudar os
antecedentes do governo, e onde finalmente a historia mais tarde virá recolher os dados
necessarios para bem descrever os acontecimento, e caracterizar as ephocas, não dispensa
um methodo mais apurado, uma ordem, que está longe de ter. (...). (Relatorio apresentado
à Assembléa Legislativa Provincial do Ceará pelo presidente da mesma provincia, o exm.
sr. desembargador João Antonio de Araujo Freitas Henriques, no dia 1º de setembro de
1869. Fortaleza, Typ. Constitucional, 1869. Disponível em: <http://www.crl.edu/brazil/
provincial/cear%C3%A1>. Acesso em: 21 mar. 2012).

Decerto, há controvérsias entre a história pretendida a partir do documento


de arquivo em 1865 e o arquivo acontecimento, quatro anos depois, no “querer-
fazer” arquivístico da secretaria do governo, visto que:
(...) o pessoal de que dispõe o archivo esse melhoramento não poderá obter... Se é cedo
ainda para prover a esta necessidade, constituindo o archivo no pé em que ele deveria estar...
cuidando-se simplesmente de uma biblioteca, ficou esquecida a parte, quiça mais importante
da lei, o archivo anexo...(Relatorio apresentado à Assembléa Legislativa Provincial do Ceará
pelo presidente da mesma provincia, o exm. sr. desembargador João Antonio de Araujo
Freitas Henriques, no dia 1.o de setembro de 1869. Fortaleza, Typ. Constitucional, 1869.
Disponível em: <http://www.crl.edu/brazil/provincial/cear%C3%A1>. Acesso em: 21 mar.
2012).

O arquivo público da província do Ceará, embora ganhando alguma


repercussão entre os papéis impressos, “reclame” do “Almanack Administrativo,
Mercantil e Industrial da Província do Ceará”, era para os seus sujeitos algo estranho,
um “monstro”, sem teto, sem pé, nem cabeça, pois não lhe tocava o método, a
classificação, o registro, enfim, o arquivamento apreendido na tarefa documental-
administrativa. Nos documentos expedidos e recebidos, nada havia sobre os dissabores
do regime de historicidade (GUIMARÃES, 2007, p. 15) alicerçado à construção
de um arquivo público à revelia do “velho” arquivo da secretaria do governo, do
arquivista que passaria a conversar, com voz embargada, com “um homem de certa
ilustração”, a quem seria designada a coordenação do “novo” arquivo em fins do
século XIX (Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa Provincial do Ceará pelo
presidente da mesma provincia, o exm. sr. desembargador João Antonio de Araujo
Freitas Henriques, no dia 1° de setembro de 1869. Fortaleza, Typ. Constitucional,
1869. Disponível em: <http://www.crl.edu/brazil/provincial/cear%C3%A1>. Acesso
em: 21 mar. 2012.)
Resta saber quais e quantos documentos foram alinhados nas estantes e
armários na sala do tal arquivo, suporte da “moderna” classificação e escrituração/
registro dos documentos, a do tipo labiríntica (Relatorio com que o execellentissimo

191
senhor comendador João Wilkens de Mattos abriu a 1ª sessão da 21ª legislatura
da Assembléa Provincial do Ceará no dia 20 de outubro de 1872. Fortaleza, Typ.
Constitucional, 1873, p. 59. Disponível em: <http://www.crl.edu/brazil/provincial/
cear%C3%A1>. Acesso em: 21 mar. 2012).
A especulação de que o documento e o arquivo serviriam à história visava, em
síntese, dar um tom local ao diálogo acerca dos fazeres políticos do poder Executivo
da Corte do Rio de Janeiro e da Província do Ceará em torno de vários fatos,
futuros conteúdos históricos, em fins do século XIX, que “saltavam” de documento
em documento, como os termos legais da abolição da escravidão (o Ceará aboliu
a escravidão em 1884), as comissões de socorros públicos em combate à seca no
Ceará entre 1877-1880, os preparativos das exposições universais que envolviam as
províncias do norte, as transgressões do militar Pinto Madeira no Ceará (1831), a
participação da guarda nacional destacada no Ceará na Guerra do Paraguai (1864).
Associando tais acontecimentos aos processos de governabilidade do
Império brasileiro, da escrita da história e da identidade da nação, que incluíam,
fundamentalmente, a construção de um conjunto documental oficial, devidamente
numerado, rubricado, aberto, encerrado e passível de arquivamento da parte de uma
província que tinha, até este ponto, muita história para contar em seus documentos
e arquivos.

Notas
1 Relatorio com que o exm. Sr. Dr. Enéas de Araujo Torreão passou a administração da província do Ceará ao
exm. Sr. Dr. Antonio Caio da Silva Prado no dia 21 de Abril de 1888. Fortaleza, Typographia Constitucional,
1888, p. 50. Disponível em: <http://www.crl.edu/brazil/provincial/cear%C3%A1> Acesso em: 23 fev. 2012.
2 Relatório enquanto espécie documental é um “documento não-diplomático testemunhal de assentamento,
ascendente. Exposição de ocorrências, fatos, despesas, transações ou de atividades realizadas por autoridade
com a finalidade de prestar conta de seus atos a autoridade superior. Protocolo inicial: título: Relatório. Nome,
títulos e cargos do destinatário. Texto: introdução, desenvolvimento e conclusão do assunto objeto do relatório,
trazendo, se for o caso, a recomendação de providências. Protocolo final: datas tópica e cronológica, assinatura,
nome e cargo do autor do relatório” (BELLOTTO, 2008, p. 32 e 67).
3 Discurso recitado pelo exmo. Senhor brigadeiro José Joaquim Coelho, presidente e comandante das armas
da província do Ceará, na abertura da Assemblea Legislativa Provincial, no dia 10 de setembro de 1841.
Pernambuco, Typographia de Santos e Cia, 1842, p. 25. Disponível em: <http://www.crl.edu/brazil/provincial/
cear%C3%A1>. Acesso em: 14 abr. 2012.
4 Renato Sousa cita Miguel Angel Esteban Navarro (NAVARRO, 1995, p.65-90) para afirmar que o
desenvolvimento da classificação arquivística, peça fundamental do fazer arquivístico, carece de um amplo
diálogo com disciplinas como a história e a diplomática contemporânea, no sentido de ampliar os esquemas de
classificação dados sobremaneira pelo princípio da proveniência e da ordem original (SOUSA, 2008, p. 83).
5 Analisando a burocracia como vocação na formação do Estado Imperial, José Murilo de Carvalho trata do
papel do funcionalismo público e apresenta especificidades no que se refere à sua ação e atuação burocrática
quanto aos setores, níveis, salários e ascensões políticas. O secretário de governo enquadra-se, segundo fonte
de pesquisa de Carvalho, no segmento da Burocracia Diretorial e sua movimentação entre a carreira política

192
e tarefas administrativas ocorria da seguinte maneira: “A burocracia diretorial era a antecâmara do topo da
pirâmide, e isso valia especialmente para o setor dos magistrados. Daí, a grande busca da carreira judiciária nas
fases iniciais do Império como trampolim para os postos mais altos, administrativos e políticos. O setor civil não
judiciário tinha menores oportunidades de chegar ao topo, pois a educação superior era aí atributo de minoria.
A preocupação em conquistar ou manter posições resultava em intensa competição e em generalizado servilismo.
A chegada ao topo era possível, mas a luta era árdua e maior a necessidade do patronato e dos empenhos. Daí,
também, a menor coesão desse estrato e ausência de atuação política própria” (CARVALHO, 2003, p. 151).

Referências Bibliográficas

BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Diplomática e tipologia documental em arquivos. Brasília: Briquet de Lemos
Livros, 2008.
CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial/teatro das sombras. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
COLOMBO, Fausto. Os arquivos imperfeitos. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991.
FARGE, Arlette. O sabor do arquivo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009.
FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
GUIMARÃES, Manuel Luís Salgado. Vendo o passado: representação e escrita da história. Anais do Museu
Paulista. São Paulo: n° 2. vol. 15, p. 11-30, jul-dez, 2007.
GOMES, José Eudes Arrais Barroso. Vagabundos e ladrões, assassinos e fascinorosos. Violência, crime e impuni-
dade na capitania do Ceará (século XVIII). Documentos. Revista do Arquivo Público do Estado do Ceará.
Fortaleza: Secretaria de Cultura do Estado do Ceará. Número 04, 2006.
GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. O Império das Províncias. Rio de Janeiro, 1822-1889. Rio de Janeiro: Civi-
lização Brasileira, 2008.
JARDIM, José Maria. A invenção da memória nos arquivos públicos. Revista Ciência da Informação. Vol. 25,
número 2, 1995. Disponível em: <http://revista.ibict.br/ciinf/index.php/ciinf/article/viewFile/439/397>.
Acesso em: 14 abr. 2012.
MASTROPIERRO, María del Carmen. Archivos Públicos. Buenos Aires: Alfagrama, 2008.
NAVARRO, Miguel Angel Esteban. La representación y la organización del conocimiento en los archivos:
los linguajes documentales ante los processos de classificación, ordenación y descripción. In: MARCO,
Francisco Javier García (ed). Organización del conocimiento en sistemas de información y documentación.
Zaragoza: Libreria General, 1995, p.65-90.
OLIVEIRA, Almir Leal de; BARBOSA, Ivone Cordeiro (org.). Leis Provinciais: Estado e Cidadania (1835-
1861). Compilação das leis provinciais do Ceará - Comprehendendo os annos de 1835 a 1861 pelo Dr.
José Liberato Barroso. Edição Fac-similar da de 1863. Fortaleza: INESP, 2009.
RICOUER, Paul. A memória, a história e o esquecimento. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.
SCHELLENBERG, Theodore R. Arquivos Modernos. Princípios e técnicas. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2006.
SOUSA, Renato Tarciso Barbosa de. A classificação como função matricial do que-fazer arquivístico. In: SAN-
TOS, Vanderlei Batista dos. (Org). Arquivística. Temas contemporâneos. Classificação, Preservação Digi-
tal e Gestão do Conhecimento. Distrito Federal: SENAC, 2008.
STUDART, Guilherme. Dicionário Bio-Bibliográfico Cearense (vol. 2). Fortaleza: Tipo-litografia a vapor, 1913.
TAMOYO, Alberto. Archivística, diplomatica y sigilografia. Madrid: Ediciones Catedra, 1996.
TANODI, Aurelio. Manual de Archivologia hispanoamericana. Teorias y principios. Córdoba, Buenos Aires:
Universidad Nacional de Cordoba. Direccion General de Publicidad, 1961

193
História e documento: os silêncios da
história e a heteroglossia da publicidade*

Jailson Pereira da Silva**

Apresentação

Não há historia que não seja, em si, uma busca de significados. O historiador
persegue e constrói, valida e questiona sentidos para nossa existência. Atravessar os
tempos é o seu ofício. Nesse movimento, constantemente, ele se depara com paisagens
inevitáveis em suas viagens. As reflexões sobre as categorias “tempo” e “documento”
são encruzilhadas incontornáveis nos caminhos do historiador. Impossibilitado
de desviar desses desafios que são, de uma só vez, conceito e matéria fundante da
prática historiográfica, o historiador vê-se obrigado a radicalizar a própria noção de
historicidade e, assim, questionar os conceitos e as suas significações, problematizar
os usos e as apropriações que deles se fazem.
Cada vez mais aquilo que consideramos “tempo” e “documento” estão sendo
discutidos por historiadores das mais diversas linhas teórico-metodológicas. A noção
de tempo linear, que colocava o passado como o inconteste produtor do presente,
parece não mais satisfazer às nossas inquietações. Nos nossos dias, dificilmente,
aceitamos a tese de que, para entender o presente, basta voltar o olhar em direção ao
passado. Por outro lado, o excesso de presentismo sofre críticas porque pode simplificar
a dinâmica entre as diferentes temporalidades, homogeneizando as experiências ao
colocá-las como o resultado imediato dos olhares do presente e das relações de força
que atuam no hoje, como se essas forças estivessem descoladas do ontem.
Do mesmo modo, a percepção do “documento” como o receptáculo do
passado, como prova inconteste do acontecimento, também não nos contenta mais.
Por isso, problematizar as concepções de “tempo” e “documento” é, em grande

* O presente trabalho é fruto do aprofundamento dos estudos desenvolvidos como parte das atividades de
pesquisa vinculadas ao Grupo de Pesquisa “História e Documentos: reflexões sobre fontes históricas”, da base de
Diretórios de Pesquisa do CNPq. Algumas das ideias aqui apresentadas são retomadas desde a realização do VI
Simpósio Nacional de História Cultural, ocorrido em Teresina- PI, em junho de 2012.
** Professor adjunto do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail:
jailsonpereirasilva@uol.com.br

194
medida, questionar a própria visão da História, exibindo o nosso infinito desejo de
saber um pouco mais sobre como nos tornamos o que somos.
No que concerne ao problema do documento, especificamente, de fato,
percebe-se que as inovadoras posturas teórico-metodológicas, tributárias das
transformações que se deram no campo da historiografia ao longo do século XX,
acabaram por ampliar infinitamente o rol de documentos com o qual o historiador
dialoga na elaboração dos seus trabalhos. Mas, em grande medida, permanece uma
visão simplificadora do documento que acaba, muitas vezes, por naturalizá-lo. Assim,
o historiador questiona as verdades históricas, busca versões, coloca-as em disputa,
mas tem ainda dificuldade em questionar o documento.
Quase sempre, quando se encontra um documento, o discurso historiográfico
vibra como se tivesse diante de uma porta mágica, uma janela inconteste, através
da qual cintilam claros pedaços do passado. Nesse caminho de entendimento,
simplificando a relação mesma entre a fonte histórica e a História, entre o registro e
sua historicidade singular, o historiador acaba por entender o documento como um
eco do passado. Assim, como nos alerta Michel Foucault, o documento passa a ser
visto como “uma linguagem de uma voz agora reduzida ao silêncio: seu rastro frágil
mas, por sorte, decifrável” (1987, p. 7).
A crítica ao documento, obviamente, não deve ser confundida com o trabalho
desenvolvido, no século XIX, pelos historiadores positivistas. Não se trata mais,
unicamente, de inquirir o documento sobre suas verdades internas e externas, sobre
sua oficialidade, seu caráter inconteste. Trata-se de perceber as relações de forças, as
disputas, que do campo da História lutam para exibir, validar e fazer permanecer
esses restolhos do tempo. Não nos satisfazem as concepções de documento que o
interpretam como “receptáculo da História”, como queriam os positivistas; nem,
apenas, como “vestígio do tempo”, como propõem alguns defensores da Nova História.
Para exemplificar tais dilemas que interpelam os historiadores acerca do seu
ofício e do seu trato com as fontes documentais, nesse trabalho, debruçamo-nos
sobre um corpus documental específico: publicidades produzidas e veiculadas pela
televisão e pelo cinema brasileiro entre as décadas de 1960 e 1980. Muito embora os
historiadores tenham ampliado o rol de documentos a partir do qual operam, campos
imagético-discursivos, como o publicitário, ainda estão longe dos olhos de Clio.
Acreditamos que ao menos três tropos argumentativos justificaram essa
postura silenciosa e que ainda marca o distanciamento dos historiadores no que
concerne às interfaces entre produção publicitária e o texto historiográfico. Em
primeiro lugar, parece existir a noção de que as peças publicitárias são fragmentos
demasiado pequenos da História. Sendo assim, não seria aconselhável fazermos
injunções históricas a partir delas.
Em segundo lugar, a percepção de que a publicidade é uma fonte transparente,

195
cujo sentido indisfarçável (e único?) é, sempre, o de promover os valores do capital,
por isso não haveria o que decifrar nesse documento.
Por fim, pode-se afirmar que existe uma compreensão da publicidade como
uma linguagem polifônica e sinuosa, cujas singularidades linguísticas impedem ou
dificultam uma hermenêutica fundamentada em problemas e métodos pertinentes à
ciência histórica. Somada ao argumento anterior, essa linha de raciocínio pode levar
a crer que o estudo das interfaces história-publicidade exigiria do historiador muito
esforço para alcançar conclusões já conhecidas de partida.
Questionar, introdutoriamente, essas argumentações que ajudam a entender
os silêncios da História diante da heteroglossia da publicidade, refletir sobre o papel
e a feitura dos documentos históricos, considerar alguns aspectos do que se apresenta
em cena nos debates sobre o historiador e seus diálogos com as fontes, enfim, é o que
nos interessa nesse trabalho.

1. A História e os documentos no tempo do fim das certezas

Queremos iniciar pelas arestas, pelo o que é quase consensual nas discussões
teórico-metodólogicas sobre produção dos discursos da História. Nesse tempo em que
as verdades parecem duvidar de si mesmas, guardar certezas é uma arte apreendida
somente pelos que observam o labor da aranha, que sabe que os fios da teia – que
darão sentido e existência à rede – estão guardados dentro dela mesma.
Por isso, nesse tempo de “o fim das certezas”, na expressão de Ilya Prigogine,
precisamos retomar o fôlego e, antes de louvarmos acriticamente o relativismo,
perceber algo do que resta de inconteste em nosso campo de atuação, no nosso caso,
na produção historiográfica.
Comecemos, pois, reafirmando três certezas, que acreditamos consensuais,
e que são pertinentes ao campo da História. Primeiramente, como é óbvio, nossas
certezas estão diminuindo. É cada vez mais raro encontrá-las dentro dos textos
dos historiadores. As mudanças vividas no campo das ciências, graças à teoria da
relatividade, sobretudo, exigiram uma (res)significação das nossas formas de
compreensão do mundo.
Ao que tudo indica, caminhamos para uma nova racionalidade que ultrapassa
o paradigma cartesiano moderno e a História não está imune a essas transformações.
O historiador percebe que não há como alcançar uma verdade que seja, calmamente,
posta como um monumento à eternidade, sob pena de, ao pensar assim, anular a
própria historicidade das coisas, do mundo. A História percebe seus limites e sabe
que não deve compreender as criações humanas como se fossem invenções de duração
infinita. Isso significaria anular a mudança, a transformação, o movimento e, por
consequência, o aprisionamento da história num tempo de fixidez onde o inesperado,
o inexplicado e o surpreendente não podem habitar.

196
Como resultado dessas transformações, e da sua percepção, as produções
historiográficas são sinalizadas com expressões que apontam para o aceitável, o
legítimo, o verossímil. Os textos são atravessados por marcas de escritas que apontam
para a suspeição e, em cada página, encontramos um “talvez”, um “é possível que”, um
“acredita-se que”, um “provavelmente”. Isso não significa, porém, que o historiador
evite afirmações incisivas para não se comprometer. Claro que os que lidam com o
saber histórico têm consciência de que assumem posições quando escrevem; claro que
sabem que precisam assumi-las. As reticências e as interrogações que se insinuam nos
seus textos resultam menos do abandono do aspecto ideológico da sua escrita e mais
da percepção dos limites do seu trabalho como historiadores.
A segunda certeza, já esboçada acima, diz respeito ao fato de que não se
consegue ser historiador sem uma aproximação e um diálogo com as categorias tempo
e documento. É claro que a compreensão dessas categorias está, como tudo, sujeita às
modificações trazidas pela própria historicidade que lhes é inerente. Dito de outro
modo, a passagem do tempo, a História, se preferirem, altera de forma significativa
aquilo que, historicamente, se entende por tempo e por documento.
Não nos parece ser fundamental, aqui, discorrer sobre alguns momentos ou
transformações que marcam a história dessas categorias conceituais com as quais
opera o historiador. Basta-nos dizer que essas transformações não são consensuais
nem lineares. Os labirintos da História e as esquinas do tempo guardam sentidos
sempre indecifráveis.
Pensamos que, por enquanto, o essencial é perceber que o rol de documentos
com os quais os historiadores executam o seu ofício ampliou-se de forma exponencial.
É essa, enfim, a terceira certeza que temos relacionada ao trabalho com a História.
É senso comum entre os que lidam com o saber histórico que novos problemas, novos
objetos e novas abordagens acabaram por desembocar em novos documentos. Na
ressonância da onda de mudanças que se vinculam aos Annales, houve uma explosão
no número e no tipo de fontes documentais que são interlocutoras do historiador na
elaboração das suas pesquisas, dos seus textos e das suas injunções sobre o passado e
o presente.
Os cruzamentos possíveis nesse universo de neofilia são infinitos. Novas
abordagens podem, por exemplo, ajudar numa nova educação do olhar sobre velhos
problemas e vice-versa. O que salta aos olhos é que a explosão dos documentos parece
só fazer sentido quando associada à concomitante explosão dos objetos.
É bem possível que Lucien Febvre tenha razão ao afirmar que “todas as
ciências fabricam seu objeto” (1978, p. 106). Essa habilidade de objetivação que tem
a História ainda está em expansão. Objetivação não como antítese de subjetivação,
nem como ato de distanciamento, de secura, diante do objeto. Mas, ao contrário,
como a capacidade de moldar os objetos, de transformar o mundo em objeto da
pesquisa histórica, de inventar infinitamente os objetos. Porque tudo o que é

197
significado pelo homem tem história, o historiador converte esse tudo em campo,
em objeto da história. E não são tantos os campos de saber que podem se valer desse
potencial de resiliência e de inventividade.
Expostas nossas três certezas, gostaríamos, agora, de apresentar duas dúvidas.
Em primeiro lugar, somos compelidos a indagar: diante dessa expansão dos objetos
descrita acima, pode o historiador transformar tudo, qualquer elemento que
supostamente se relacione com o passado, por mais insignificante que possa parecer
à primeira vista, em documento? Independentemente de ser ou não afirmativa a
resposta à primeira dúvida, uma segunda pergunta se impõe: existe uma legitimidade
inerente aos documentos, existe um status primordial pertinente a alguns registros
históricos que lhes permite ser, quase automaticamente, alçados à condição de
documento da História?
É claro que não possuímos respostas definitivas para tais questões. Mas
julgamos ser possível expor algumas ideias acerca dessas problemáticas. De partida,
podemos retomar as palavras de Leandro Karnal e Flávia Galli Tatsch para quem “o
documento não é um documento em si, mas um diálogo claro entre o presente e o
documento” (2011, p. 12). Se, por um lado, uma vertente de historiadores defende
que qualquer traço da passagem humana é, em si, um documento, uma fonte,
capaz de movimentar a engrenagem do fazer historiográfico, deve-se ter em mente,
por outro lado, que relações de força atuam incessantemente não apenas sobre a
significação histórica desses traços, mas sobre a sua aceitação e assunção à condição
de válido registro do fluir do tempo. Quer dizer, muda não apenas a compreensão
que temos de um mesmo registro em uma dada realidade histórica. Pari passu a essa
mudança, pode ocorrer a validação ou a anulação de outros traços do tempo.
As marcas da passagem humana pela vida resultam de diálogos nem sempre
claros entre os dispositivos que fazem essas mesmas marcas atravessar os tempos. É fácil
supor que os discursos proferidos pelos presidentes das nações, por exemplo, ficarão
guardados em alguma instituição - como um arquivo, um museu, uma biblioteca
ou uma universidade - por dezenas ou centenas de anos. De um modo geral, nossa
compreensão de poder e de História, apesar das transformações que sofre, ainda
naturaliza a preservação desses registros porque os entendemos como enunciados que
dizem respeito aos grandes interesses da história das nações, ao destino dos países.
O mesmo não se pode afirmar, por exemplo, acerca de uma publicidade
de cerveja que se aproprie de uma frase de um presidente para criar um slogan de
campanha. Nada pode garantir que aquela campanha ainda esteja disponível aos
historiadores, decorrido algum tempo desde a sua publicação, embora ela também
seja elemento de comunicação e, portanto, de significação do imaginário histórico e
social dos sujeitos que dialogaram com ela quando da sua publicação.
Para muitos dos que criticam a visão histórica que deseja ampliar infinitamente
os objetos e os documentos da História, o perigo de tal procedimento consiste no fato

198
de que ele pode contribuir para o esvaziamento do sentido e do compromisso do saber
histórico, fazendo-o desembocar num conhecimento anódino, mais preocupado com
o divertimento e a curiosidade do que com consciência e a reflexão crítica.
Seja como for, o fato é que muitos dos registros históricos ainda estão distantes
do texto historiográfico. Pensando particularmente no universo das produções visuais,
por exemplo. É fato que alguns registros imagéticos, como a fotografia e o cinema,
estão consolidados como objetos e fontes de estudo dos trabalhos do historiador.
No Brasil, a exemplo do que ocorre em muitas outras partes do mundo a partir
da década de 1970, quase a totalidade das pesquisas históricas pautadas no diálogo
com as imagens volta-se para essa produção. Por razões diversas, mas nem sempre
esclarecidas, o historiador quase emudece diante de outros registros visuais, embora
perceba as suas presenças e os seus impactos sobre o cotidiano das sociedades.1
Entre os muitos suportes audiovisuais diante dos quais o historiador tem
permanecido em silêncio encontram-se as publicidades.2 Os anúncios comerciais
divulgados em diferentes veículos como o rádio, a TV, o cinema e o jornal estão ainda
distantes da centralidade das reflexões historiográficas.
Além disso, nos incomuns casos em que aparecem nos trabalhos históricos, as
publicidades ocupam comumente um espaço secundário, servindo como uma fonte
ilustrativa que funciona como um elemento de confirmação das injunções feitas
pelo historiador e fundamentadas, primeiramente, em outras fontes de pesquisa.
As peças publicitárias, aliás, têm dificuldade de se encaixar também em outros
espaços, para além dos já referidos textos historiográficos. Muito se tem discutido
sobre sua finesse e suas fissuras, sobre as formas de encaixe da publicidade entre as
produções culturais que pontuam o cotidiano das sociedades contemporâneas. De
fato, a publicidade é uma produção que, por vezes, anseia ser uma arte. Outras
vezes ela disputa espaços com outras artes. As discussões sobre a aceitação ou não da
publicidade entre as produções artísticas ocupam muitas páginas e aquecem acaloradas
discussões.3 Mas, independentemente desses embates, por hora, o que interessa é
entender algumas faces da poliédrica relação da publicidade com a História, com as
fontes históricas, particularmente.

2. Publicidade, História e Fonte histórica

Ninguém parece duvidar de que a publicidade seja uma presença constante


no fluir das sociedades contemporâneas, onde imperam as “modernas técnicas de
produção”, para usar uma expressão bastante conhecida dos que lidam com a reflexão
sobre a História. De diversas formas, viajando em múltiplos veículos, ela se encaixa
em nosso cotidiano, ocupando os lugares mais amplos do nosso dia a dia. Ela está no
lar e no lazer; no trabalho e no descanso. Ela atravessa mesmo os intervalos, temporais

199
e espaciais, que divisam cada um desses instantes da existência ordinária. Com
suas mensagens, ela satura nossos olhos e ouvidos, preenchendo nossas vidas com
promessas de soluções mágicas para os mais complexos dilemas que enfrentamos.
Como um discurso cuja voz se ouve em praticamente todos os espaços sociais,
a publicidade irrompe sem cerimônias além das fronteiras entre o público e o privado,
entre a elite e o povo. Ela herda e opera, em alguma medida, com um sistema de mitos,
com a estrutura das mitologias característica dos tempos modernos (KELNNER,
2001; BARTHES, 2005). Sua materialidade, sempre tão fugidia, não impede que se
torne marca totêmica do nosso tempo.
Por tudo isso, parece claro que a publicidade é sempre um discurso temporalizado
– consequentemente histórico – e isso em diversas medidas. Inicialmente, porque é
um grão que se manifesta em relação a um imaginário social, que se prende a uma
temporalidade específica. Ou seja, a atenção, o trato e o diálogo com o imaginário
social no qual atua é condição inerente à mecânica do discurso publicitário. Se
não estiver atenta ao up-to-date das modas e suas relações com as sensibilidades e
subjetividades, a publicidade tem séria chance de vir ao mundo como um produto
natimorto. Portanto, se um produto cultural como a publicidade não se descuida
do tempo no qual atua, ele traz, potencialmente, indícios desse tempo no qual foi
produzido. Obviamente esses indícios não são uma manifestação natural da passagem
do homem através do tempo. São antes, como dissemos, resultados de disputas, de
atos de validação e anulação dos registros históricos. Seja como for, acreditamos que
o historiador, com sua imaginação, pode encontrar nas publicidades um polissêmico
interlocutor capaz de movimentar as suas injunções sobre seus temas e objetos.
Além disso, outra dimensão histórico-temporal do discurso publicitário se
apresenta porque a publicidade opera a ruptura do tempo ao se comprometer com
a possibilidade de “trazer” o futuro para o presente. Uma das marcas estruturantes
da mecânica discursiva da publicidade é sua constante promessa – via aquisição dos
bens e serviços gerados pelo esforço da sociedade em prol da plena realização dos
indivíduos – de felicidade imediata. A publicidade empenha suas forças para nos fazer
acreditar que o futuro já está ao nosso alcance. Por isso, em certa medida, a lógica da
promessa4 é componente relevante no funcionamento da lógica publicitária.
Por tudo isso, pela sua constante interface com a temporalidade, e também
pelo espaço que ocupa no fluir das ações ordinárias das sociedades contemporâneas,
a publicidade, defendemos, é digna de ser percebida pelo olhar do historiador.
Acreditamos, como nos lembram Leandro Karnal e Flávia Galli Tatsch, que “o
documento histórico é um texto no meio do caminho entre o arbítrio de historiador
(e de uma sociedade) e seu próprio conteúdo. Assim, não é tão autônomo como
sonhavam positivistas, nem tão submisso como defende parte do pós-estruturalismo”
(2011, p. 2). Para nós está claro que as produções publicitárias estão no meio desse

200
caminho entre a prática historiográfica e o conteúdo documental. Mais do que
o conteúdo, porém, precisamos estar atentos às significações que, a partir desse
encontro - do historiador com o documento -, podem ser dadas a existir.

3. Por uma leitura histórica da publicidade

Mas, a despeito da percepção de que a publicidade é um produto cultural


carregado de relações temporais, sua visualização e seu diálogo com a disciplina
histórica – para que ela se consolide como documento – precisam ser cotejados
com as experiências advindas de outras áreas de estudo que se dedicam à análise do
fenômeno publicitário, como a sociologia, a antropologia, a psicologia, a filosofia e a
economia, por exemplo.
O destaque da publicidade como produto característico da nossa cotidianidade
já foi anotado por diversos autores como Henri Lefebvre, por exemplo. Para ele,
a publicidade pode ser entendida como uma ideologia da contemporaneidade.
Linguagem e arte de disseminar os objetos, sempre atenta ao imaginário coletivo,
os anúncios indicam a apropriação, mas não para uma determinada necessidade
classificada, isolada, como tal, mas todo o conjunto da vida social. A publicidade
é uma ideologia num mundo que se diz desideologizado. Mas as ideologias apenas
mudaram de nome (cientificismo, estruturalismo, positivismo, funcionalismo).
Portanto, o discurso do “fim das ideologias”, apenas é um engodo. Prosseguindo, ele
afirma que
a publicidade faz parte dos “fenômenos da linguagem” que pedem um exame atento. Ela
apresenta numerosos problemas. O problema de sua eficácia, da natureza e do alcance
de sua influência não é o menor. (...) a publicidade assume uma parte do papel antigo
das ideologias: encobrir, dissimular, transpor o real, ou seja, as relações de produção
(LEFEBVRE, 1991, p. 99 e segs.).

Talvez, por isso, muito tem sido dito sobre o mundo publicitário e suas relações
com a contemporaneidade, sobre esse mundo e suas imbricações com aspectos da
temporalidade na qual atuam. Assim, cada vez mais, olhares variados, lançados a
partir dos mais diversos campos de saber, fitam o fenômeno publicitário. Nestes
gestos decifradores, os olhos das ciências e dos saberes querem construir caminhos
interpretativos que possibilitem um diálogo e uma crítica mais profunda acerca do
papel e do sentido que as produções publicitárias ocupam no universo histórico e
social no qual atuam.
Obviamente cada uma das imagens que esses saberes emitem traz consigo as
singularidades das lentes que lhes possibilita a projeção. Querer, a priori, que um
semiólogo analise o fenômeno publicitário com os mesmos parâmetros que um

201
economista, por exemplo, seria correr o risco de simplificar por demais as fronteiras
entre os saberes. É certo que essas fronteiras não são fixas, mas é inegável que existem
dimensões próprias que garantem a identidade de cada campo de conhecimento.
Só faz sentido falar em trans-multi-inter-disciplinaridade se tomarmos, antes, como
pressuposto, que existem as disciplinas e suas respectivas particularidades.
A captura da publicidade, portanto, não é um processo simplificado. A
rigor, porque é alvo das problematizações levantadas pelo historiador, nenhuma
fonte histórica se deixa capturar facilmente. Além disso, entre as dificuldades que
o historiador enfrenta quando diante do fenômeno publicitário, particularmente
no caso dos comerciais de TV, está a de localizar as publicidades entre os gêneros
televisivos. É próprio do fazer televisivo, através dos gêneros, transformar o mundo
em fragmentos consumíveis numa sequência temporal, organizando a programação
cotidiana em unidades que se relacionam.
A definição do gênero como um dos mais importantes elementos do fazer
televisivo tem impactos profundos na experiência de ver TV. Segundo Jost, o gênero
permite à TV agir sobre o telespectador no interior de um quadro semântico porque
“o gênero é uma moeda de troca que regula a circulação dos textos ou dos programas
audiovisuais no mundo midiático” (2004, p, 27). O que vale dizer que apresentação de
um gênero, por parte da TV, e sua aceitação, por parte do telespectador, estabelecem
os parâmetros imediatos dos campos conceituais nos quais as promessas circularão.
Mas a publicidade é uma linguagem anterior à própria TV. Ela dialoga com a
TV. Mas não é comédia, nem drama, nem ficção, nem realidade. Querer compreendê-
la dentro da lógica do gênero tornar-se-ia um procedimento superficial e inócuo.
Pouco interessa ao historiador saber o que é a publicidade. Vale mais entender e
questionar o que ela diz sobre a história; e, mais ainda, o que é possível dizer, a partir
dela, sobre a História.
É claro que a maneira como a sociedade lida com o discurso publicitário indica
o que ela é para essa sociedade. Todos percebemos que na sua história a publicidade
apresenta-se como uma apaixonada pela neofilia. Aliada às novas tecnologias, como o
rádio e a televisão, amante das parafernálias de toda espécie, a publicidade chegou ao
lar, trocando, em certo sentido, o ambiente público pelo privado. Agora, percebendo
que suas exposições, seus festivais, seus debates deixaram de ser meros espaços de
autorreferência, deseja o museu; quer enclausurar-se nesse espaço criado como local
sagrado reservado aos grandes feitos da nossa sociedade.
Uma arte exala um ar de santidade, de criação diferenciada — por mais
mercadológica que possa ser — porque está associada à criatividade. Mas ainda é
comum pensar a arte como um toque do mundo divinal, sua manifestação. Não
apenas a publicidade luta para ascender à condição de arte. Quadrinhos e fotografia,
por exemplo, disputam as mesmas batalhas para serem aceitas, sem questionamentos,
na condição de arte.

202
A publicidade e seus defensores sabem que o reconhecimento como arte dá a
qualquer produção um caráter distintivo, uma dimensão de superioridade. Ser arte
é colocar-se num grau superior das capacidades humanas. Tornar-se arte é, enfim,
ascender ao altar reservado às deidades criadas pela humanidade. Diferentemente dos
quadrinhos e da fotografia, no entanto, a publicidade sofre ataques que desviam o foco.
Para muitos, ela é apenas uma mercadoria. Um produto para vender outros produtos.
Para outros ela é uma técnica. Embora atravessada pela criatividade, a publicidade é
um modo de fazer produtos, com desejos imediatos e instrumentalizados e, por isso,
ela não seria uma arte.
Não se questiona apenas o aspecto estético das publicidades, mas também
sua condição de existência dentro do mundo capitalista, sua relação siamesa com o
mercado. Para Barthes,
Quando nossa sociedade se interroga de um modo mais ou menos geral sobre a publicidade,
é sempre, ao que parece do ponto de vista moral ou estético. Ora, a publicidade é acusada
de pactuar com o capitalismo (...) é lançada no descrédito geral a que se relega toda a
cultura de massa. (...) o que não se aceita na publicidade é a presença imediata e como que
cínica do dinheiro.” (...) guardadas as devidas proporções, a publicidade hoje é tão suspeita
quanto poderia sê-lo um poema composto sob encomenda e no qual se teria a obrigação de
ostentar o nome e as benfeitorias de quem o tivesse encomendado: prática normal outrora,
mas incompatível hoje com mito da arte ‘desinteressada’, isento de contato com a coisa
financeira (BARTHES, 2005, p. 98-99).

Seja como for, seja o que for a publicidade (arte, técnica ou mercadoria),
interessa ao historiador questionar e romper os limites dos usos das publicidades
como fonte histórica. Isso significa, em primeiro lugar, aceitar que uma publicidade
é um fragmento demasiado pequeno da História. Mas isso não quer dizer que seja
impossível fazer injunções históricas a partir de um comercial de cigarros produzidos
na década de 1970, por exemplo. Insistir nesse raciocínio é acreditar que a acumulação
de fontes seria em si a própria reflexão historiográfica. Perseguir esse caminho poderia
levar a confundir a fonte com a produção historiográfica em si, como se a fonte falasse
por si mesma.
A problemática da fonte sempre foi ponto incontornável no fazer dos
historiadores, como nos alerta François Cadiou, porque entre outras questões a
explicitação da lista de documentos nos trabalhos historiográficos confere uma maior
legitimidade aos enunciados. A exibição do documento é, portanto, uma explicitação
do poder. Nas palavras de Cadiou,
em qualquer bibliografia acadêmica, os autores distinguiam fontes (origem da informação)
de trabalhos (na teoria, baseados nas fontes). O termo “documento” (documentum: “o que
serve para instruir”, do verbo docere, que deu origem à palavra “doutor”) veio a designar
qualquer escrito que servisse de prova ou informação (CADIOU, 2000, p. 120-21).

203
Para avançar no processo de aceitação da publicidade como fonte histórica, é
preciso, também, superar a noção de que ela é um produto transparente, cujo sentido,
por mais disfarçado que esteja pelas camadas discursivas, é sempre o mesmo: ela se
destina à venda de mercadorias e ao clamor pelo nosso enquadramento na lógica
do establishment capitalista. Essa visão, a despeito do que se possa nela encontrar de
válido, simplifica e anula a dimensão poliédrica da produção publicitária, tornando
imperceptíveis outras possibilidades de diálogo entre a publicidade e a História.
É preciso dizer que nenhum documento se entrega inocentemente ao trabalho
do historiador. Como nos informa Marcos Napolitano, a problematização da
transparência das fontes
é uma tendência cada vez mais forte entre os historiadores, que vêm questionando
a transparência dos documentos, mesmo os documentos escritos, tradicionalmente
considerados “objetivos” e diretos, para o caso dos documentos de natureza audiovisual e
musical, tal abordagem deve ser mais cuidadosa ainda, pois os códigos de funcionamento
de sua linguagem não são tão acessíveis ao leigo quanto parece, exigindo certa formação
técnica. Mesmo que o historiador mantenha sua identidade disciplinar e não queira se
converter em comunicólogo, musicólogo ou crítico de cinema, ele não pode desconsiderar
a especificidade técnica de linguagem, os suportes tecnológicos e os gêneros narrativos que
se insinuam nos documentos audiovisuais, sob pena de enviesar a análise (NAPOLITANO,
2005, p. 237-38).

Daqui, talvez, resulte um terceiro ponto que precisa ser enfrentando para uma
maior aproximação entre os trabalhos historiográficos e a produção publicitária: a
heteroglossia das publicidades. Os próprios publicitários associam suas produções a
uma infinidade de áreas de saber que vão da literatura à matemática.5 Todos sabemos
que, para empreender uma análise histórica de um registro cultural, precisamos estar
atentos às especificidades que marcam a elaboração desse registro.
A especificidade da linguagem publicitária pode, portanto, ser uma porta de
entrada para uma aproximação com diversas questões da cotidianidade. Os anúncios de
oportunidade, por exemplo, podem ser bons interlocutores para se conhecer os desejos
pontuais que marcavam a sociedade brasileira nos anos 1960-1970, por exemplo.
Se por um lado essa polifonia pode prejudicar a análise historiográfica das
publicidades, por outro ela pode ser um elemento fascinante para o trabalho do
historiador na medida em que explicita o caráter de síntese, de ponto de confluência
social, que a produção publicitária pode ocupar em nossa realidade histórica e social.

4. Conclusão

Até aqui, estivemos a nos aproximar dos diálogos sobre a maneira como os
historiadores transam sua relação com os documentos. Tomando a produção de
publicidades como ponto de partida das nossas argumentações, defendemos que é

204
preciso aprofundar as problematizações que a História tem feito às fontes históricas
com as quais trabalhamos.
Em primeiro lugar, pensamos que, apesar dos questionamentos que se fazem
às noções de verdade e de objetividade quando diante dos documentos, a maioria
dos trabalhos historiográficos amolece as críticas, tomando o documento como uma
natural expressão do tempo, que resistiu à passagem dos dias.
Em segundo lugar, discutimos que uns documentos monumentalizam-se
constantemente no rol de fontes históricas, enquanto outros registros são esquecidos
pelos historiadores. Buscamos exemplificar tal realidade explicitando que o campo
publicitário compõe um corpo de documentos ainda desconhecido dos historiadores.
Todo nosso esforço, enfim, é um convite para que o historiador não se
comporte de forma ingênua diante dos documentos.

Notas
1 Apenas como uma pequena ilustração dessa realidade de destaque dos estudos sobre cinema e fotografia
quando se trata da relação história-imagem nas pesquisas históricas, podemos citar os dados recolhidos nos
anais do III Simpósio Nacional de História Cultural, ocorrido em 2006, cuja temática era especificamente sobre
“mundos das imagens”. Dos 205 trabalhos listados, 65 eram sobre cinema e 49 sobre fotografia. Havia apenas
seis trabalhos sobre televisão, enquanto o somatório de outros suportes visuais (mapas, HQ’s, folders, cartões
postais etc.) era 23. Para maiores detalhes, ver: SILVA, 2010, p. 71.
2 “Publicidade” é uma palavra polissêmica. Seu significado pode ser associado à propaganda, anúncio, comercial,
reclame, por exemplo. Provavelmente por confusões decorrentes das traduções, no Brasil, “publicidade”
e “propaganda” foram utilizadas de maneira vaga, dificultando a compreensão das suas singularidades. O
pesquisador francês Guy Durandin, metodologicamente, apresentou o seguinte estratagema para separá-las:
“Compre isso” é mensagem publicitária; enquanto “Vote em mim” é mensagem propagandística. Ou seja, a
propaganda está para a política como a publicidade está para o mercado. O próprio Durandin percebe e admite
os limites e os riscos dessa distinção. Mesmo assim, ela nos ajuda a esclarecer que para nós o corpo de produções
publicitárias, de anúncios comerciais, portanto, não está ainda sendo considerado como um foco do olhar dos
historiadores, quando refletem sobre fontes e documentos históricos.
3 Num texto produzido em parceria com o professor Edwar Castelo Branco, esboçamos alguns elementos que
pontuam as discussões sobre o possível papel artístico da publicidade. Na ocasião, o objetivo era entender alguns
dos argumentos e estratégias discursivas que defendiam ou condenavam a ascensão da publicidade ao status de
arte (BRANCO; SILVA, 2012).
4 A expressão “lógica da promessa” foi utilizada pelo professor de semiologia François Jost para esclarecer
as relações entre emissão e recepção, particularmente, nas transmissões televisivas. Para Jost, essa “lógica da
promessa” se contrapõe à “lógica do contrato”, modelo interpretativo mais comum nas análises sobre o papel da
televisão nas sociedades porque “um quadro comparativo entre contrato e promessa evidencia que o primeiro
é bilateral e co-assinado. Contrariamente à perspectiva do modelo de contrato que é instantâneo, sincrônico, o
modelo da promessa é um modelo que ocorre em dois tempos. O telespectador deve fazer a exigência de que a
promessa seja cumprida” (JOST, 2004. p. 19).
5 Segundo Everardo Rocha, “o discurso ‘nativo’ aproxima a publicidade principalmente dos seguintes campos
de conhecimento: Literatura, Sociologia, Desenho, Física, Psicologia, Teatro, Estatística, Cinema, Matemática,
Fisiologia, Economia e Pintura. De uma forma ou de outra, com mais ou menos ênfase, os publicitários falam

205
de uma dúzia de campos de saber dos mais importantes em nossa sociedade. Esses campos de saber seriam os
componentes de ‘ciência’ e de uma ‘arte’ publicitárias” (ROCHA, 1990, p. 52-53).

Referências Bibliográficas

ALBUQUERQUE JR. Durval Muniz. Para que serve a história? Recife-João Pessoa: [s.n.], 2001.
BARTHES, Roland. Inéditos, vol. 3: Imagem e moda. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Coleção Roland Barthes.
BRANCO, Edwar de Alencar Castelo; SILVA, Jailson Pereira da. Finesse e fissura: a publicidade e as disputas
intelectuais em torno de sua nomeação. In: RAMOS, Alcides Freire; COSTA, Cléria Botelho da;
PATRIOTA, Rosangela. Temas de História Cultural. São Paulo: HUCITEC, 2012.
CADIOU, François... [et al.] Como se faz a história: historiografia, método e pesquisa. Petrópolis- RJ: Vozes,
2000.
FEBVRE, Lucien. Contra a história historizante. In: Mota, Carlos Guilherme (org.). Lucien Febvre. São Paulo:
Ática, 1978.
FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense-universitária, 1987.
JOST, François. Seis lições sobre a televisão. Porto Alegre: Sulina, 2004.
KARNAL, Leandro; TATSCH, Flávia Galli. Documento e História: a memória evanescente. In: LUCA, Tania
Regina de; PINSKY, Carla Bressanezi. (orgs.) O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2011.
KELLNER, Douglas. A cultura da Mídia: estudos culturais, identidade e política entre o moderno e o pós-mo-
derno. Bauru-SP: EDUSC, 2001.
LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana do homem moderno. São Paulo: Ática, 1991.
NAPOLITANO, Marcos. Fontes audiovisuais: A história depois do Papel. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.).
Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005.
ROCHA, Everardo P. Guimarães. Magia e Capitalismo: um estudo antropológico da publicidade. 2. ed. São
Paulo: Brasiliense, 1990.
SILVA, Jailson Pereira da. Um Brasil em pílulas de 1 minuto: história e cotidiano em publicidades das décadas de
1960-80. Recife: EDUFPE, 2010. p. 71

206
Parte 4
Espaços, redes e migrações
Espaços afro-indígenas no mapa
Brasilia qua parte paret Belgis

Bartira Ferraz Barbosa e José Luis Ruiz-Peinado Alonso*

Durante o período colonial, os interesses por mapas geopolíticos e planos


urbanos sobre diferentes regiões da América estavam, sobretudo, relacionados
a aspectos históricos enredados às fronteiras econômicas estabelecidas a partir
da expansão marítima de estados e reinos europeus modernos. Portanto, rotas
de navegação, mercadorias, contatos entre diferentes regiões e assentamentos
populacionais são alguns dos temas encontrados na cartografia histórica produzida,
em geral, por solicitação de autoridades metropolitanas e coloniais ávidas por
descrições geográficas, memórias históricas e documentação comprobatória sobre
conquistas efetivadas em territórios na América (KANTOR, 2010, p. 302).
A costa Nordeste do Brasil foi uma das primeiras regiões americanas a
ser desenhada em mapas do período colonial e a receber um grupo de cientistas,
financiado pela Companhia das Índias Ocidentais, para desenvolver pesquisas em
diferentes campos: da geografia, da cartografia, da botânica, da astronomia, do
desenho, da pintura, da medicina e de outros. A missão científica desenvolvida, nesse
período, teve apoio no comércio atlântico e no trabalho de cientistas que permitiu a
Johanes de Laet, geógrafo e diretor da Companhia das Índias Ocidentais (WIC), a
edição de alguns estudos e escritos como os de Willen Piso e Georg Marcgraf na obra
Historia Rerum Naturalius Brasiliae (Historia Natural do Brasil), datada de 1648.
Sobre o duplo enfoque comercial e científico da WIC, Evaldo Cabral de Mello
(2010) afirma terem tido os neerlandeses os recursos financeiros tanto para a ocupação
do Nordeste do Brasil como para o financiamento de importante desenvolvimento
cartográfico, iniciado no século XVI. Textos holandeses e portugueses, mapas e
descrições pormenorizadas da costa, estudos econômicos das plantações de açúcar e
o custo das invasões foram alguns dos aspectos enfocados por uma ampla e variada
documentação histórica produzida no século XVII.

* Professora Doutora, Departamento de História e Programa de Pós-graduação em História —Universidade


Federal do Pernambuco. E-mail: bartiraferraz@yahoo.com.br. Professor Doutor, Departamento de
Antropología Social e Historia de América y África – Universidad de Barcelona. E-mail: luigiruizpeinado@
ub.edu. Pesquisadores do grupo de estudos CINAF.

208
Em Portugal, desde o início do século XVI, documentação e cartografia
vieram a ser produzidas, mas foi na Holanda, a partir de 1580, que a cartografia
mais detalhada sobre a América passou a ser desenvolvida. Willem Janszoon Blaeu
cria, com base na projeção de Mercator, um padrão que será seguido nos mapas
sobre as Índias Ocidentais da época, posteriormente também utilizado por Georg
Marcgraf, Johan Laet e Jean Blaeu, entre outros. A demanda por esse gênero de
imagem leva da cidade de Antuérpia para Amsterdã a liderança das publicações de
mapas, relatos de viagens e textos científicos. Ainda que os grandes cartógrafos e
cosmógrafos das monarquias ibéricas se encontrassem em Lisboa, Sevilha, Amberes
e, depois da independência dos Países Baixos, em Antuérpia e Amsterdã, os novos
conhecimentos cartográficos também passaram a ser impressos em outras partes do
mundo.1 Como exemplo, podemos citar o Atlas Universal de Fernão Vaz Dourado,
feito em Goa. Fernão, um mestiço de português com uma indiana, é o autor das 17
cartas náuticas reunidas neste atlas, considerado, hoje, um dos melhores cosmógrafos
do Renascimento (GRUZINSKI, 2010, p. 214-215).

A escolha do mapa mural

O mapa mural Brasilia qua parte paret Belgis vem sendo estudado por
especialistas de vários campos da história e da geografia como uma das obras
financiadas pela Companhia das Índias Ocidentais (WIC) das mais avançandas
para sua época.2 Comemorando, em 2012, os 365 anos da sua primeira publicação,
realizada em 1647, pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco e da
Universidade de Barcelona reuniram-se para uma investigação sobre os espaços
indígenas e sobre os espaços com presença de africanos, de mestiços e de afro-
descendentes nele representados. Neste trabalho, os textos e os desenhos contidos
no mapa serviram como base para a realização das interpretações históricas sobre
os territórios ocupados por portugueses, holandeses, indígenas e afro-descendentes.
Portanto, foram incluídos todos os espaços colonizados e os ainda não colonizados,
isto é, os contíguos aos já dominados pelos europeus, apresentados neste mapa como
espaços indígenas com presença de africanos e de afro-descendentes colocados fora
do domínio colonial.
Os mapas e os textos que se fizeram sobre essas relações interétnicas focavam
principalmente as áreas coloniais conquistadas e seus contornos, onde viviam
populações nativas ainda em liberdade. Sobre esta periferia dos espaços coloniais,
portugueses, castelhanos e holandeses, aproveitaram os saberes nativos recolhidos
por informações orais e por imagens nas quais eram representados os espaços
socioculturais e as toponímias de maneira própria e suscetível a serem compreendidas
por europeus. Sem os lançados, pombeiros ou tangomaus, com vivências na costa

209
da África, ou sem os chamados “lenguas ou línguas”, nativos conhecedores de vários
idiomas existentes na América espanhola e na portuguesa, qualquer indagação teria
fracassado (GRUZINSKI, 2010, p. 241). Os detalhes das informações apontam
para uma fundamental participação de indígenas, afro-indígenas, caboclos e afro-
americanos como intérpretes, intermediários, colaboradores, informantes locais e
testemunhas oculares.
Apesar de utilizar aspectos gerais encontrados na cartografia da época, o mapa
Brasilia qua parte paret Belgis reúne de maneira original e com mais complexidade
e quantidade de informações temas envolvendo distintas culturas em espaços de
fronteiras do mundo colonial e o ainda não colonizado, localizados no Nordeste do
Brasil, no século XVII. Seu poder de comunicação chama atenção quanto ao uso
de símbolos e paisagens que seguem ideais de ordem, riqueza, beleza e sentimentos.
Muitos entendimentos parecem seguir propositalmente uma ordem de importância.
Traduzindo seu título colocado em latim temos uma primeira explicação sobre o
que mais importa comunicar neste mapa mural, ou seja: a parte do Brasil que cabia
aos Países Baixos. Título que, portanto, nos dá a entender tratar-se de um mapa que
reúne vários interesses envolvendo grupos do e no Brasil e nos Países Baixos. Uma
segunda questão refere-se à explicação sobre o ano em que o mapa foi gravado (1646)
e o ano de sua publicação (1647) por Joan Blaeu. Datas que se relacionam ao final
do período do governo de João Maurício de Nassau-Siegen, no Brasil, e à publicação
de outras duas obras: a de Caspar van Baerle (1584-1648), ou Gaspar Barleus, como
veio a ser conhecido no Brasil, intitulada O Brasil Holandês sob o Conde João Maurício
de Nassau, com primeira edição no ano de 1647 (BARLEUS, 2005) e a obra Historia
Rerum Naturalius Brasiliae, de Piso e Marcgraf, publicada em 1648, cuja edição
foi subvencionada por Nassau. O mapa mural de Marcgraf inclui, por sua vez, um
número significativo de ilustrações atribuídas a Frans Post e de Albert Ekhout. As
três obras citadas destacam-se pela iconografia inédita sobre o Nordeste brasileiro
produzida no século XVII. A importância artística e científica contida no conjunto
de informações reunidas por Barleus, Piso e Marcgraf sobre a riqueza da fauna e da
flora da terra de um Brasil até então conhecido pelos Países Baixos parece justificar os
investimentos coloniais.
Quanto ao sentido geral encontrado em mapas do século XVII, o mapa mural
de Marcgraf parece não ir além, ele apresenta elementos cartográficos, paisagísticos,
heráldicos, etnográficos, zoobotânicos, geopolíticos e textuais dados em um mesmo
documento, como de costume para a época. O que o difere dos demais é o esforço da
justaposição ou colagem de diversas imagens com paisagens mais detalhadas e ricas
em elementos etnográficos nativos e em relação à localização de aldeias indígenas,
engenhos, caminhos, portos, currais, salinas e missões, entre outros elementos. Trata-
se de um mapa mural extraordinário pelo seu conjunto de detalhes, composto por
nove pranchas somando dois mapas; um de Joan Bleau, de menor tamanho, que

210
aparece na parte inferior com o título Maritima Brasiliae Universae, e um grande
mapa de Marcgraf que ocupa a maior parte das 9 pranchas que o compõe. A Bleau
foi confiada a primeira edição (1647) do mapa mural Brasilia qua parte paret Belgis.
O número de edições com os mapas de Marcgraf em primeiro plano e com o mapa
de Bleau em segundo, surgido posterior ao ano de 1647, demonstra ter sido esta
uma obra de relevância também para a sua época. Por outro lado, seus diferentes
gravadores nos fazem pensar em como o campo da cartografia crescera junto com
a profissionalização nas oficinas de impressões existentes nos Países Baixos. Um
dos gravadores do mapa mural pode ter sido Jan Brosterhuitzen, responsável pelas
gravuras dos trabalhos de Frans Post para o livro de Barleus (LAGO, 2009, p. 413-
415).3 Nas diferentes edições do Brasilia qua parte paret Belgis, os mesmos desenhos
das vinhetas atribuídos a Frans Post foram utilizados. São desenhos sobre paisagens
do Nordeste do Brasil, nas quais não aparece a assinatura do seu autor, ao contrário
do que pode ser observado na obra de Barleus, anteriormente citada.
As diferentes edições apresentam pequenas diferenças quanto às adaptações e
às costuras dos desenhos de Frans Post. Na edição de 1664, editada por Clemendt de
Jonghe, por exemplo, o formato segue composição feita com nove folhas medindo
121 x 160 cm cada uma (Bibliothèque Nationale de France); na edição de 1659, o
formato tem o mesmo conjunto de pranchas apenas mudando de tamanho, nesta
mede cada prancha 159 x 115 cm, somando no total 5,10 metros de largura por 3,95
metros de altura. Todas as edições exibem título, Notularum Explicatio, girlandas e
escudos iguais. O que há de diferente entre elas? Algumas modificações nos detalhes
existentes nas gravuras das paisagens e subtração de detalhes completos em outras.
Os desenhos com paisagens atribuídos a Frans Post vão compor seis cenas, todas
elas referindo-se ao mundo sociocultural colonial envolvendo população escrava
africana, índios livres em diferentes situações, trabalho escravo em engenho de
açúcar e na casa de produção de farinha de mandioca; índios saindo para guerra,
indígenas tapuias praticando o canibalismo, pescadores negros nas lagoas e animais
em meio à flora brasileira.
O mapa está recheado de textos e palavras em mais de cinco línguas como
o latim, o português, o tupinambá, o cariri e o holandês. Os termo utilizados de
línguas indígenas carecem de estudo mais aprofundado para verificar sua origem e
entendimento. Os textos em geral refletem a complexidade dos espaços culturais
tratados e comunicam, principalmente, descrições vividas em expedições transformadas
em textos e imagens relacionados às políticas defendidas por estrategistas da República
das Províncias Unidas dos Países Baixos. Principalmente, quanto aos resultados da
expansão do império marítimo batavo para o Atlântico, apresentando portos, rotas
comerciais e terras que possibilitaram a construção de espaços coloniais. Mas o que
nos move fundamentalmente nesta pesquisa é a pergunta sobre o que aparece no
mapa mural Brasilia qua parte paret Belgis indicando ou envolvendo afro-indígenas

211
dentro ou fora das rotas europeias e seus sistemas territoriais que possibilitaram a
construção de espaços coloniais. Portanto, além de suas qualidades técnicas e suas
dimensões, o mapa mural se difere dos mapas do seu tempo nas informações precisas
que sugerem refletir detalhes sobre a participação de afro-indígenas nas estratégias
políticas e militares e nas ações científicas voltadas ao controle territorial e suas
comunicações. Entre os caminhos indígenas que ligam aldeias e missões, os caminhos
entre engenhos, currais, cacimbas e os caminhos ao longo dos rios indicados, se
destacam os caminhos usados por Felipe Camarão e Henrique Dias para atacar e
defender os territórios portugueses.

Espaços afro-indígenas

Informações sobre indígenas brasileiros foram registrados desde o início do


século XVI. Durante o período colonial, mapas, textos manuscritos, iconografias
e impressos reuniam ideias e imagens sobre aspectos da natureza e da população
autóctone. Interesses políticos e econômicos das metrópoles europeias encontravam
em elementos da paisagem e de culturas indígenas existentes no Brasil, no século XVI
e no XVII, as bases para o início da ocupação e posterior colonização (AMADO e
FIGUEREDO, 2001). Alianças entre chefes indígenas e donatários das capitanias
hereditárias, ataques aos índios não aliados e escravidão para os sobreviventes,
assim como o auxílio de missões religiosas responsáveis pela redução e submissão de
populações nativas aliadas; muitas foram as formas de relações interétnicas existentes,
inclusive entre indígenas de grupos diferentes e escravos africanos no Brasil. Dos
indígenas observam-se palavras e termos linguísticos usados para designar lugares,
objetos e sistemas de produção. Sobre indígenas, mestiços e negros, a ideia dada neste
mapa é de existir espaços e territórios onde o contato de culturas foi determinante.
No mapa foram dados espaços geopolíticos com superposição de objetos culturais
indígenas, europeus e afro-americanos. Incluem-se nestes espaços, portanto, os
contatos entre culturas estando em jogo distintos grupos étnicos de três áreas do
atlântico: uma referente a duas regiões europeias, a da Península Ibérica e a das
Províncias Unidas dos Países Baixos, outra área referente às populações indígenas do
Nordeste brasileiro e, a terceira, a da costa ocidental e da área centro africana.
A introdução de escravos africanos significou contato entre culturas tanto no
trabalho de produção do açúcar e no dos currais, pelo interior dos “sertões tapuias”.
Cada vez mais as fazendas, os caminhos e as missões mudavam com a intervenção
colonial surgindo novas paisagens com afro-indígenas. Neste mapa diferentes povos
africanos e indígenas envolvidos na produção colonial foram forçados a deslocamentos
dentro e fora do Brasil. As diferentes experiências foram amalgamadas na encruzilhada

212
de múltiplas relações entre os diversos povos africanos, povos indígenas e europeus
que estiveram em contato.
Os escravos fugitivos criaram o quilombo dos Palmares em Pernambuco (atual
Alagoas) mas, também, outros se aliaram nas lutas contra os portugueses, como na
chegada dos holandeses a Pernambuco, oferecendo seus serviços militares: “com arcos
e flechas, antigas espadas espanholas, escudos redondos e armas de fogo, e celebravam
as vitórias sobre seus antigos proprietários com batucada e dança”, logo os portugueses
ofereciam a liberdade aos escravos que servissem contra os holandeses (ALDENBURG
apud THORTON, 2004, p. 363). Eles também fizeram parte do novo mundo que
estavam construindo, deixando palavras e termos linguísticos usados para designar
lugares, objetos e sistemas de produção. Participaram com suas práticas religiosas, seus
conhecimentos mágico-religiosos, tecnológicos e artísticos na interseção com povos
indígenas e europeus no mundo colonial, incluindo os mocambos criados por eles.
A coroa portuguesa, os donatários, os caciques e seus guerreiros indígenas,
negros escravos e quilombolas, holandeses e franceses faziam das lutas um meio de
controlar os espaços políticos e geográficos. Para os nativos, as missões com padres
jesuítas e, posteriormente, as de outras ordens religiosas passaram a desenvolver
trabalhos de catequese e controle dos índios do Brasil. Os mesmos jesuítas
“apregoavam” a entrada de escravos africanos para abastecer de mão-de-obra as
suas fazendas e missões como alternativa ao trabalho forçado dos indígenas. No
Nordeste brasileiro, durante os dois primeiros séculos do período colonial, também
ocorreram missões de catequese calvinista, como as ativadas com a ocupação
holandesa em Pernambuco que visavam manter alianças com indígenas, necessários
na luta contra os portugueses (VAINFAS, 2008, p. 49). Às populações nativas foi
imposto o cristianismo com aulas de catecismo, de leitura e escrita, mas, sobretudo,
ensinava-se a defender os territórios portugueses de indígenas e a atacar os territórios
indígenas a serem conquistados. Os nativos catequizados foram utilizados em lutas
e sempre estavam guiados por um capitão de índios, que poderia ser o superior da
missão. Lutaram neste período contra invasores europeus e populações indígenas
livres ou de escravos rebelados sob o comando, ora de militares portugueses,
ora de holandeses (BARBOSA, 2007, p. 85-130). Líderes indígenas, africanos e
afro-descendentes foram fundamentais para o mantenimento das alianças. Seus
conhecimentos poderiam passar por vários campos como do geográfico às línguas
e formas de comunicação em uso na época. Várias foram as formas de submissão
de negros e índios. Os africanos, por exemplo, recebiam o “batismo” católico nas
costas da África antes de partir para as Américas, mas com a salvação de sua alma
vinha a escravidão do corpo. Também os holandeses utilizaram o calvinismo para
atrair a população escrava, para manter a servidão e submissão de escravos no Brasil

213
holandês, para afiançar as alianças políticas e econômicas com os reis africanos, mas
também para contar com eles nas guerras no Brasil e na África holandesa.
Saber como os índios e negros participaram neste processo com seus
conhecimentos e suas ações ou reações pode ser novo ou velho, mas imprescindível
para compreender melhor o mundo colonial. Sabemos que para os nativos não aliados
e rebeldes estava designada a morte ou a escravidão e a tomada de seus territórios;
o mesmo passou aos quilombolas que, por não se subjugarem ao colonialismo
eram atacados por guerras justas nas quais os quilombolas voltavam como escravos
para engenhos, fazendas e indústrias (PERRONE-MOISÉS, 1992, p. 115-132).
Acreditamos que se tratava de quilombos afro-indígenas, pois a busca pela liberdade
entre negros e índios escravizados levaram muitos a formarem os quilombos pelo
Brasil setecentista, em lugares onde era necessário manter estratégias de comunicação
e de alianças com os nativos.
Quebrar a historiografia sobre as elites europeias e voltar o campo de
análise para documentos históricos produzidos por indígenas, mestiços e negros,
quando da transformação da paisagem dos seus territórios, vem a ser um desafio.
Fronteiras, aldeias indígenas, missões religiosas, mocambos, plantações, colonos,
guerras, escravidão, muitos foram os elementos responsáveis por esta transformação
nos antigos territórios dos nativos cariri, potiguar, tabajara, caetés, do Nordeste do
Brasil. Mas, temos também que incluir os territórios quilombolas dos palmarinos,
com minas, guinés, entre outros africanos que nele conviveram. Não contar com a
existência de uma história territorial indígena e afro-indígena quando da colonização
e continuar acreditando que todos participaram apenas como escravos ou aldeados
em missões no processo da formação colonial é apagar suas raízes e estratégias de luta
em defesa de seus territórios. Pensar a presença africana como os restos das plantações
e dos quilombos arrasados é também apagar a resistência negra nesse amplo território.
Por outro lado, ações diferentes ocorriam nos espaços trabalhados por
nativos e africanos no litoral do Brasil, onde se viviam tempos de rotas mercantis
e de produção para os diferentes mercados internos e externos. No Brasil do século
XVII, mais precisamente no litoral do Nordeste, o porto do Recife figurava como
o porto holandês mais importante para a saída do açúcar em direção às refinarias
localizadas nos Países Baixos. No porto, onde se armazenava o açúcar bruto para
exportação, estava uma sociedade composta pelas relações de escravidão e de trabalho
livre necessário ao funcionamento do porto, da administração colonial e do comércio
local. Como bem documentado por Jean Blaeu, em gravura de 1643, feita para a
Companhia das Índias Ocidentais (WIC), a empresa com maior número de ações
comercias destinadas ao Atlântico português, o Recife passou a ser o porto mais
focado nos mapas e portulanos detalhados do período por ser o porto de entrada para
a capital do Brasil holandês. Porto utilizado pelos portugueses e antes pelos indígenas

214
caetés, o local está carregado de histórias de sistemas de trocas, de rotas fluviais e
marítimas e de conquistas. Recife aparece no mapa mural de Marcgraf refletindo
os tempos de Nassau e de seus cientistas e artistas, tempo no qual as obras, e esta
em particular, parecem querer resumir em quadros algumas das ações humanas em
cenas de convivências pacíficas. Nas paisagens desenhadas para o mapa de Marcgraf
as cenas de lutas apenas aparecem nas guerras tribais indígenas colocadas fora das
áreas produtoras de cana, nos espaços ainda não conquistados. Nestas cenas, os índios
foram colocados como selvagens e como antropófagos. Aparecem organizados apenas
quando ligados à área de missões e saindo para guerra formando terços militares. O
mapa Brasilia qua parte peret Belgis quer nos contar muitas historias. Sua atração está
na soma dos vários elementos representados: nos desenhos figurativos, na cartografia
geopolítica da ocupação holandesa e nos textos e palavras soltas que integram
subconjuntos.

Os intermediários

O cartógrafo Hessel Gerritsz registra em coleção geográfica que os


apontamentos fornecidos a Kilian van Resenlaer, no ano de 1628, em Amsterdã,
pelos nativos Gaspar Paraupaba, do Ceará, 50 anos, André Francisco do Ceará, com
32 anos, potiguar da Bahia da Traição, Antonio Guirawassanay, Antonio Francisco e
Luiz Gaspar, também da Bahia da Traição, foram utilizados para a realização de mapas
referentes ao Nordeste do Brasil (MAIOR, 1912, p. 26-61). Também acreditamos
que Pedro Poty, aliado dos holandeses como comandante das tropas indígenas da
Paraíba e parente de Felipe Camarão, o Capitão-Mor dos Índios do Brasil português,
estaria entre os nativos que dariam informações para a invasão holandesa realizada
em 1630. Ele estava na Bahia da Traição quando da passagem dos holandeses após
a perda da guerra em Salvador da Bahia e teria viajado para a Holanda juntamente
com mais outros nativos. Localizados em Amsterdã e Leiden, ele e os outros indígenas
citados aprendem a falar e a escrever holandês, tornam-se informantes, calvinistas,
líderes nativos e estrategistas militares entre os holandeses, quando da preparação e
invasão à capitania de Pernambuco, em 1630. Além disso, eles passariam uma visão
importante das relações entre indígenas e do mundo colonial no qual participavam.
No século XVII, muitos cartógrafos, como João Teixeira Albernaz da Casa da
Índia e da Guiné, atuante entre 1602 a 1649, responsável por 400 cartas náuticas e 19
atlas, assim como Hessel Gerritsz, Joan Blaeu, Joan Vingboons e Georg Marcgraf, os
últimos contratados pela WIC, teriam tido informações de nativos para composições
de topografia com localização de áreas indígenas. Certo é que, sem essas informações

215
obtidas no Brasil ou na Europa, não se poderia ter chegado a tantos detalhes para se
fazer as conquistas geográficas e para o desenho de mapas com a grande quantidade de
topônimos indígenas e africanos como os apresentados em documentação do século
XVII. Cartas e relatos de indígenas potiguares, produzida a partir da língua tupi e
da escrita chamada “Língua Geral da Costa do Brasil” integram documentos deste
período. A participação nativa na produção documental e seu conteúdo demonstra que
houve uma importante captação do conhecimento e poder de liderança indígena nas
capitanias do Nordeste do Brasil. O mapa de Marcgraf Brasilia qua parte paret Belgis
faz referências aos topônimos indígenas dos territórios colonizados com seus apoios e
confirmam que o conhecimento nativo da geografia foi importante para a construção
de uma nova paisagem e da cartografia histórica do período colonial. Mas, os índios
não foram os únicos; Domingos Fernandes Calabar, um escravo negro, participou de
várias expedições pelo sertão pernambucano acompanhando tropas portuguesas entre
1625 a 1630. Francisco Dias d’Avila, em uma entrada pelo sertão, na qual participou
Calabar, obteve informações sobre as trilhas e os caminhos essenciais usados pelos
holandeses no Brasil, como aparece nas informações do relatório de Walbeeck dado
a WIC, em 1633 (PUNTONI, 2000, p. 31). Seus conhecimentos geográficos
somavam-se aos das relações com outros escravos envolvidos nas táticas de luta contra
seus antigos donos. Calabar passou de escravo do mundo colonial português para
ser um “traidor” aos olhos dos luso-brasileiros quando se aliou aos holandeses no
século XVII. Capturado pelos portugueses, eles não o pouparam, desmembraram-no
e penduraram as partes do seu corpo, depois da entrega de Porto Calvo pelas tropas
holandesas. As importantes informações dadas pelos potiguares que viveram por
conta da WIC na Holanda, pelos judeus sefarditas envolvidos no tráfico de escravos
e nas plantações de açúcar na África, no Nordeste do Brasil e nos Países Baixos, pelos
espiões e, posteriormente, pelos desertores como o jesuíta Manuel de Moraes, deram
a base para a construção do mapa de Marcgraf. Toda informação foi, por fim, reunida
por estratégia da WIC e pelas mãos de um importante geógrafo e diretor desta,
Johan de Laet, editor deste mapa mural. As redes de informações eram vitais para a
sobrevivência dos grupos nativos e afro-americanos, como se constata no diário de
viagem do capitão Blaer, chefe da expedição holandesa contra Palmares em 1645: “…
ainda mataram os nossos brasilienses dois ou três negros no pântano vizinho; disseram
ainda os negros pegados que o seu rei sabia da nossa chegada por ter sido avisado
das Alagoas” (CARNEIRO, 1988, p. 256). Apresentamos aqui a ideia de utilizar
os mapas, os informes e as cartas como uma “linguagem” viva, com possibilidade
de servir para uma história social dos câmbios e continuidades na sociedade e na
paisagem colonial brasileira. Uma história sobre o contato entre natureza, europeus,
indígenas e africanos ocorrido durante a conquista e a ocupação da costa do Brasil.
Portanto, neste exemplo de Marcgraf sobre a cartografia das conquistas holandesas,

216
diferentes ações ocorridas nos espaços conquistados podem ser acompanhadas. Temas
envolvendo escravidão, monoculturas, expedições e conquistas estavam inseridos
nesta época considerada de ouro para a cartografia holandesa. Sendo, durante muitos
séculos, a mais precisa das representações geográficas da costa do nordeste brasileiro.

As diferentes paisagens e visões no mapa mural

Observamos que as vinhetas de Frans Post colocam paisagens de uma maneira


que podemos inferir uma relação estreita entre elas e a cartografia de Georg Marcgraf.
O situar do engenho próximo à área que correspondia à produção açucareira, por
exemplo, leva-nos a concluir que a paisagem de Post funcionou como uma inclusão
de marco visual na construção imagético-discursiva do espaço geográfico. Em uma
das paisagens, é possível ver o engenho em toda sua força producente: a moagem
da cana, o carro de boi sendo descarregado por escravos e as fornalhas depurando
o caldo para preparação do açúcar, tendo como pano de fundo desta imagem uma
casa-grande.
Os espaços urbanos assinalados por símbolos não receberam desenhos
especiais. As gravuras usadas seguindo desenhos de Frans Post representam um
engenho real, um engenho de farinha e uma missão de índios. Ilustram, portanto,
aspectos da arquitetura voltada para produção do açúcar, da farinha e para os
cuidados religiosos oferecidos aos nativos. As vilas do litoral, os engenhos e os portos
aparecem em número menor que a soma de aldeias com missões, aldeias tapuias e
aldeias indígenas dos índios da costa. Estas aparecem ainda em maior número que
as casas de moradores espalhadas pelo litoral e ribeiras de rios e riachos pelo interior.
Portanto, como espaços de usos e trabalho afro-indígena, podemos contar tanto
com os engenhos, onde trabalhavam como escravos ou fornecedores de alimentos e
cerâmicas ou outros utensílios, como com os espaços de missões e os de aldeias sem o
controle direto da administração colonial.
Em seu mapa mural, Marcgraf assinala várias expedições que podem ser
seguidas, principalmente a de Felipe Camarão, líder potiguar aliado dos portugueses
que comandava um terço armado de índios contra os holandeses. Mas, também,
as rotas de deslocamentos de Henrique Dias e seus terços de negros na fuga para a
Bahia após a queda de Pernambuco, partindo ele pelas mesmas trilhas e nos mesmos
momentos com Felipe Camarão e o resto das tropas luso-brasileiras. Os espaços
do interior das capitanias de Sergipe, Pernambuco, Itamaracá, Paraíba e do Rio
Grande do Norte aparecem controlados por grupos armados indígenas. Os negros
em liberdade aparecem em espaço antigo nativo, assinalado pelo termo Tapera de
Angola, certamente um espaço baseado em alianças com diferentes grupos indígenas
instalados em aldeias e ainda livres. Negros aparecem pescando nas lagoas e nos

217
engenhos do litoral. Possivelmente, também, estariam nos currais do litoral e interior
do agreste e do sertão.
Os espaços nas fronteiras entre as áreas de produção colonial e as áreas de
vivência apenas nativa também apresentam elementos híbridos; veja-se a cena de caça
ao gado nos sertões representando o aproveitamento da criação solta sem os cuidados
do vaqueiro. Também observam-se as embarcações indígenas utilizadas pelos negros
em atividades de pesca no interior e embarcações nativas colocadas no litoral. Nos
espaços indígenas ainda sem o controle colonial pelos sertões aparecem cenas de lutas
entre nativos tapuias, festa comemorativa com canibalismo e redes em campina para
o descanso de um grupo de homens e mulheres. As crianças indígenas aparecem
em número pequeno e as crianças de escravos negros não constam nos desenhos do
mapa. À típica cena da família cristã não foi dada importância. Comidas e bebidas
são levadas em cestos, panelas e cabaças, como demonstram as cenas sobre os nativos
pelos sertões.
As armas indígenas parecem pouco amedrontadoras, nenhum destaque foi
dado ao mundo da defesa ou sobre os ataques de tapuias ao mundo colonial do
litoral, como se eles estivessem longe das fronteiras coloniais e fora de combate. O
combate entre os brancos portugueses e holandeses só aparecem no mar e em pontos
ao longo do litoral. Na guerra entre holandeses e portugueses pelo domínio da região
em destaque, os caminhos indígenas parecem ter sido mais um meio a ser conhecido,
o “Caminho de Camarão” forma uma rota importante entre pontos de povoamento
indígena, engenhos, fontes de água, missões e currais. Destaca-se ainda uma possível
rede de trocas e informações que acompanhavam as rotas internas entre os diferentes
assentamentos populacionais incluindo, neste mapa, uma provável área de negros
e índios livres vivendo no interior indicado pelo local que chamaram de Tapera de
Angola, como mencionado anteriormente, deve ter sido um dos pontos desta rede.
Este seria um ponto de interesse para o sistema colonial tanto português quanto
holandês. É necessário ressaltar, portanto, a presença dos mocambos e das fugas dos
escravos africanos e indígenas para os territórios pertencentes aos sertões da capitania
de Pernambuco.4 Buscando explicação sobre a utilização e localização do termo
Tapera de Angola, chegamos à conclusão de que sua localização no mapa indica o
lugar que corresponde a uma área de fronteira, pois foi colocado onde se apresenta
uma das linhas verticais como marco de separação das capitanias do Brasil. Fixado ao
lado de um desses marcos separatórios, a inscrição “Tapera de Angola” pode indicar,
traduzindo o termo tapera, um local de maloca indígena em ruína ou sítio indígena
abandonado. Sobre o termo Angola encontramos uma referência em documentação
portuguesa do século XVII, na qual, em São Tomé e Príncipe, aparecem revoltas
de escravos e formação de um importante quilombo que chamavam de “Angola do
Pico”. Vale salientar que nestas ilhas ocorreram as primeiras experiências de engenhos
de açúcar com trabalho escravo africano do Atlântico e, associado a eles, as primeiras

218
fugas e revoltas de escravos. Citando parte de texto desta documentação: “...escaparam
a maior parte dos ditos escravos, e fizeram a sua aldeia num Pico. E foram-se
multiplicando de tal sorte, que, sem receio, com armas de flechas, destruíram muitos
engenhos, e no mesmo ano [1574] (...). Desbaratando-os os soldados e apelidando
a vitória, desanimaram os negros Angola do Pico”. Mais tarde, em 1599, voltam a
aparecer nos documentos: “Não bastando, para emenda, os incêndios passados como
também não só o levantamento dos Angolas do Pico” (PINTO, 2006, p. 71-78).
Talvez, em terras pernambucanas, o termo Tapera de Angola tenha sido usado em
relação à fusão de escravos africanos fugidos com antigo assentamento indígena Tupi.
Observando o mapa no sentido do litoral para o interior verificamos que
ele apresenta duas concepções distintas para representar os espaços enfocados; esta
bipolaridade permite ver o litoral com um olhar de cima apontando para acidentes
geográficos e estabelecimentos construídos pelos homens ao longo da costa e com
outro olhar em voo de pássaro, o mapa nos apresenta vinhetas colocadas em espaços
deixados em branco que correspondem ao interior e regiões que compreendem, hoje,
ao Agreste e ao Sertão nordestino. Nestas vinhetas as cenas em forma de paisagens nos
informam sobre um engenho de açúcar, com moenda de três cilindros, movido à roda
d’água, e à sua esquerda, a casa-grande e a senzala. Outra vinheta indica casas e capela de
uma missão indígena organizada por religiosos, a exemplo das jesuítas. Nessa imagem,
índios organizados em um terço marcham armados para a guerra: “(...) rancho, numa
só fileira (...)”, como observou Barleus. Destacam-se nesta saída também a presença
de mulheres e crianças carregando utensílios e um índio entre os guerreiros levando
a bandeira tricolor com as insígnias da WIC. Daniel Vieira se refere sobre a cena:
enquanto o espectador percorre a superfície superior do mapa, como que adentrando,
na direção oeste, no vasto sertão (aqui com a acepção seiscentista de interior) do
território brasileiro, uma casa de farinha pode ser vista, por entre plantações. A cena
se completa com o acréscimo da representação de um extenso espelho d’água, onde
alguns escravos afro-descendentes aparecem pescando (VIEIRA, 2011, p. 13-14).
Esta representação tem sido associada ao famoso quilombo dos Palmares, com as
práticas de pesca para a sua sobrevivência e atalaia como elemento defensivo de um
possível ataque inimigo, mas, também, pode ser visto como uma das alternativas
que tiveram os holandeses para conseguir comida através da utilização de pescadores
escravos ou livres no sul da capitania de Pernambuco. Seguindo uma tradição de
feitorias de peixe salgado, estes escravos abasteciam o mercado de Recife sitiado por
luso-brasileiros. Nos documentos holandeses, Verdonch fala da grande produção de
peixe seco “que todo é trazido para Recife”. Mais tarde, em 1674, Pedro de Almeida
informou aos oficiais da Câmara que pretendia fazer um ataque à Palmares e, para
isso, necessitava de mantimentos, 300 alqueires de farinha e todo o peixe que se
fizesse com o fim de ajudar na entrada ao quilombo (CURVELO, 2012, p. 54).
A imagem com uma atalaia aparece também numa pintura de Ekhout,

219
representando uma mulher africana escrava. A obra é uma mistura de elementos
africanos e americanos, de plantas, comidas, vestimentas e, ao fundo, a atalaia, mas
desta vez colocada ao lado do mar. A escrava desenhada está referida como mulher
do Congo ou escrava e no esboço desenhado pelo pintor ele a apresenta com a marca
N no peito esquerdo, dando a significar que era a escrava de Maurício de Nassau
(PARKER, 2010, p. 158-159).

O Engenho do açúcar de Frans Post

A franja costeira do Nordeste do Brasil havia sucedido São Tomé e Príncipe


como principal centro exportador de açúcar e a espetacular decolagem da produção
de cana no Brasil pode ser considerada como o início da revolução açucareira das
Américas. Em seguida, durante os séculos XVI e XVII, o Nordeste baseou sua
economia na produção e exportação de açúcar e o fenômeno açucareiro foi o principal
responsável pelo desenvolvimento do comércio escravista em grande escala (KLEIN,
1986, p. 43).
O fato de todas as pinturas (os óleos) de Frans Post sobre engenhos serem
de engenhos movidos à água não parece ser uma casualidade. Existe uma clara
diferenciação entre os engenhos movidos por água (hidráulicos) chamados Reais,
com tecnologia mais avançada por serem mais rentáveis, e os movidos por tração
animal (bois). Nenhum dos óleos de Post, tampouco o desenho para o mapa de
Marcgraf, mostram engenho movido à tração animal. Maiores ou menores, mais
ricos ou mais pobres, ele pintou apenas engenhos movidos à água mostrando nos
exemplos pintados as alternativas tecnológicas da época para este tipo de engenho.
Falando dos primeiros anos do século XVIII, Andreoni informa que alguns
engenhos têm a “realeza” de moerem com água, à diferença de outros que “moem
com cavalos e bois e são menos providos e aparelhados”. Ainda segundo Andreoni,
os que moem com roda d’água são chamados “engenhos reais”. Sua descrição toma
como base o engenho de Sergipe do Conde, segundo ele, “quase rei dos engenhos
reais”.  Os engenhos reais foram os mais importantes, tecnologicamente falando,
dos engenhos do século XVII (SOARES, 2009, p. 5-6).
Tecnologia antes conhecida nas ilhas do Atlântico da Madeira até São Tomé e
Príncipe, chegaram à Pernambuco e à Paraíba aperfeiçoados pelos holandeses para a
produção de açúcar, de lá depois implantados no Suriname e no Caribe, convertendo-
se, posteriormente, em um referencial na tecnologia açucareira. O fato de todos os
engenhos pintados por Post mostrarem moendas movidas à água, portanto apenas
engenhos reais, é uma informação fundamental para o conhecimento, em detalhe, do
funcionamento desses engenhos no século XVII.
Nos desenhos e pinturas de Post sobre os engenhos no Brasil, índios e escravos

220
negros em atitude de descanso são raros, mas eles aparecem conversando, trocando
mercadorias e dançando. Por outro lado, os índios não foram retratados trabalhando
na produção do açúcar, mas figuram nos desenhos e quadros frequentemente nas
estradas e caminhos que levavam aos engenhos, indicando que o artista deve tê-
los visto enquanto eles se deslocavam entre as áreas com engenhos levando cestos
e crianças (SOARES, 2009, p. 7). Caminhadas de um engenho a outro também
devem ter sido feitas pelo artista, que pintou índios e índias, geralmente em grupos,
vestidos com panos de algodão em modelos diferentes aos usados pelos negros por ele
retratados. Segundo Parker, para atrair a atenção do artista, os índios deviam existir
em grande número no período em que ele esteve pintando em Pernambuco (2010,
p. 151-167).
Apesar de a exploração do trabalho escravo indígena não aparecer em sua
obra, a do escravo africano foi pintada e desenhada em quase todos os quadros
com engenho e produção de açúcar como temática. Nestes quadros, assim como
no desenho escolhido para o mapa mural de Marcgraf, os negros escravizados estão
trabalhando sem a sombra de ameaças e de castigos, mas explorados ao ritmo das
moendas movidas pela água constante que as move, portanto sem espaço para
o ócio. Os maus-tratos existentes, as condições de trabalho e as relações com os
administradores dos engenhos, se retratados, dariam uma imagem negativa da cultura
calvinista do trabalho como se pode ler na descrição do própio Maurício de Nassau,
feita para uma exposição oferecida a Luis XIV da França. A descrição acompanhava
uma das 34 pinturas de Post e oito de Eckhout que compuseram a exposição levada
pelo pintor Paul de Mily, encarregado da entrega das pinturas e de um guia que as
descrevia para serem expostas. Um dos quadros descritos por Nassau neste guia não
tinha título, mas estava marcado com as letras GG e vinha assim descrito no texto
guia: “Um engenho de açúcar pela levada, com os seus fornos onde se cozinha o sumo
da cana de que é feito o açúcar. À beira do forno, o fogo é tão ardente que os escravos
negros preferem morrer, envenenando-se, que suportar este calor. Os portugueses,
para impedi-los de fugirem, cortam-lhes o tendão” (MELLO, 2010, p. 325-326).
Por esta observação sobre o quadro, não duvidamos ter sido esta uma das práticas de
violência usadas pelos portugueses e pensamos que a violência deve ter sido comum
entre colonizadores escravistas para com negros e índios neste período — incluindo
os holandeses.
Noutra paisagem desenhada por Post e impressa no mapa mural de Marcgraf,
um engenho de farinha de mandioca ganha destaque, pois tratava sobre o produto
nativo consumido por todos os índios e que servia de sustento para quase todos
os habitantes do Brasil colonial holandês, como se refere em relato Hamel, Bas e
Bullestraste, todos administradores da WIC, no Recife. No mesmo relato se observa
que o alimento também era muito apreciado pelos portugueses, brasilianos, negros

221
e outros europeus que viviam no interior. Durante a guerra entre portugueses e
holandeses, a produção de farinha começou a escassear, implicando em um forte
aumento de seu preço no mercado do Recife. Nos territórios do Brasil holandês,
senhores de engenhos, administradores e mercadores não conseguiam a farinha
necessária para alimentar escravos, tropas holandesas e população livre em geral.
Todos os problemas pela falta da farinha de mandioca e do trigo, que não chegava
regularmente para abastecer todo mercado existente neste território, obrigou os
proprietários de terras a destinar parte de seus cultivos anuais ao plantio de mandioca
no sentido de abastecer o mercado colonial holandês no Brasil. Segundo este informe,
a obrigação dos plantios de mandioca foi efetivada e estava sujeita a inspeções por
parte dos agentes holandeses da colônia. Com ela se pretendiam abastecer o Recife e o
interior da capitania, assim como depender cada vez menos das importações de trigo
procedentes da metrópole (MELLO, 2010, p. 294-295).
Nassau ditava uma série de determinações sobre a distribuição da farinha.
Na primeira delas, em cada comarca, dever-se-ia declarar a extensão de terra que
cada um possuía, com a finalidade de cobrar do proprietário a obrigação de plantar
mandioca, proporcionalmente a essa extensão (BARLEUS, 2005, p. 188). Dada a
importância adquirida para a alimentação, a farinha de mandioca passou a ser um
tema de sobrevivência a ser cuidado e foi ela quem alimentava a fome também dos
artistas e cientistas nas diferentes viagens realizadas pelo litoral e interior, como as
realizadas por Marcgraf e Frans Post pelo interior da capitania e pelos engenhos
que visitaram. Por essa razão aparece um engenho de farinha no mapa, que pode
ser visualizado com clara diferença quando comparado ao engenho de açúcar; mais
simples na construção principal da casa de farinha, apresenta um piso coberto com
telhas sendo sua prolongação coberta por telhado de palha. É importante destacar
que o processo de beneficiamento da mandioca não se realiza nesta imagem através da
tecnologia indígena. Não se utilizam raspadores manuais feitos da cortiça de palmeiras,
mas, sim, a partir de uma roda dentada que permite aumentar consideravelmente a
produção, mesmo que esta resulte mais perigosa para o escravo. Tampouco se utiliza o
tipiti indígena para espremer o caldo venenoso da mandioca; em lugar dele é utilizada
uma prensa hidráulica que também permite obter uma produção maior. Por último,
o forno de barro é de uma dimensão importante para permitir tostar a farinha em
grandes quantidades a ser armazenada e distribuída. Este tipo de engenho exigia que
as plantações de mandioca estivessem ao redor dele e que a coleta e o transporte dos
bulbos de mandioca correspondesse a um sistema diferente do praticado nas aldeias
indígenas que a produziam apenas para o sustento de seus moradores. Portanto, parte
do terreno produtor de cana-de-açúcar passou a ser revertido para a plantação de
mandioca, que passou a ser realizada por escravos negros e não só por indígenas como
antes. Negros e europeus adaptam o paladar para a farinha de mandioca, um alimento
indígena desconhecido na África e na Europa, e as exigências de uma produção em

222
grande escala faz com que o sistema indígena de produção da farinha de mandioca
também fosse alterado. De produto de subsistência de base tecnológica indígena
passou a ser um produto comercializado e exportado, produzido e transportado com
tecnologia europeia. O mapa ressalta a política de Nassau implementada para suprir
as necesidades alimentares do Brasil Holandês, mas também podemos imaginar
como o alimento vinha a ser transportado por barcos negreiros em direção aos portos
africanos, ali esta farinha elaborada pela mão escrava negra servia para alimentar os
africanos capturados e embarcados rumo à América (ALENCASTRO, 2000). As
culturas da cana e da mandioca coexistiram muitas vezes na mesma propriedade. A
produção do açúcar dependeu da produção de farinha para alimentar escravos e toda
a população dos engenhos, vilas, aldeia e missões.
A alimentação deste período também contava com as carnes de gado e de
porco. O termo “curral” se relaciona com a exportação e utilização estratégica do gado
para os objetivos colonizadores. Não só é importante como fonte de alimentação,
indústria do couro, transporte de carga e força animal nos engenhos; também
representa uma frente da colonização, ocupando espaços interiores fronteiriços e
exercendo, ao mesmo tempo, uma constante pressão (estábulos abertos) sobre as
populações indígenas. Veja-se no mapa mural os futuros espaços a ocupar onde o
gado é caçado por nativos ainda livres da escravidão e das missões.
Acreditamos que a implantação das fazendas de gado na costa e a reprodução
massiva do gado, no mapa marcados como currais, que aparece de forma extensiva
no sertão, abriram as portas para o extermínio dos índios que viviam nas fronteiras
agropecuárias do Nordeste. A introdução de escravos africanos não relegou a
utilização do trabalho escravo indígena, nem de sua força nos trabalhos que prestava
no sistema colonial como o de fabricação de fibras, cordas, linhas de pesca, cerâmica
e militar, entre outros. A pilhagem das costas africanas precipitou a extinção das
aldeias indígenas: os índios também foram vítimas da atividade do trafico negreiro
(ALENCASTRO, 2000, p. 74).
Na descrição feita por Daniel Vieira sobre os territórios mais distantes do
litoral está indicado que no mapa há um acampamento de indígenas, por entre a
mata com as altas colinas no fundo. Ainda subindo o olhar pela superfície do mapa
sertão adentro, o olhar do espectador encontra várias cenas em meio à vegetação
arbustiva, não obstante a presença de palmeiras. Isto poderia corresponder aos espaços
não controlados pelo mundo colonial. Essas cenas parecem se ocupar de paisagens
“selvagens”: onde a vegetação predomina, a arquitetura desaparece, e os únicos sinais
de presença humana sugerem cenas de guerra entre diferentes grupos indígenas, a
caça às emas e o festim canibalesco. Essas imagens criavam uma hierarquização dos
grupos étnicos que compunham a sociedade colonial no Brasil holandês, de forma
a evidenciar uma visão neerlandesa a partir de um ranking de gradações que iam da
civilização à selvageria, passando pela barbárie, e tendo a indumentária como atributo
de (in)civilidade para cada tipo étnico (VIEIRA, 2011, p. 14).

223
A respeito dos nativos foi imposta e divulgada uma imagem de homens nus,
antropófagos e selvagens, imagens que se transformaram em argumentos fortes para
a defesa do uso de métodos para a conversão dos indígenas, política colonialista
adotada em todo o litoral e, depois, pelos sertões, e para a utilização de nativos como
escravos, adquiridos em guerras justas ou nas entradas usadas para a aquisição de
braços para trabalhos nos engenhos e nas vilas. A produção de imagens de homens
antropófagos não era nova para os europeus. Selvagens, nus, hostis e canibais, estas
foram as etiquetas de apresentação que, pretendendo captar a atenção de um público
europeu ávido por notícias e descrições sobre as novas terras americanas, vão fixar o
imaginário europeu de uma visão nada positiva dos indígenas brasileiros. Em todo
caso, será uma imagem que justificará e facilitará as tarefas da conquista e colonização
que levaram a cabo, portugueses, franceses ou holandeses.
O Padre Cadornega, em sua História Geral das Guerras Angolanas (1680),
justificará o resgate de cativos e o tráfico de escravos africanos para o Brasil nas
práticas canibais que realizavam os “bárbaros” africanos. Segundo ele: “e com estes
resgates se evitam não haver tantos açougues de carne humana; e instruídos da Fé de
Nosso Senhor Jesus Cristo indo batizados e catequizados se embarcam para as partes
do Brasil ou para outras que têm uso católico” (CADORNEGA, 1972, p. 13-14).

Marcgraf como cientista/expedicionário

Marcgraf esteve no Brasil entre 1638 e 1643; coube a ele um levantamento


topográfico meticuloso realizado em sete expedições ocorridas entre 1640 e 1642, nas
quais percorreu 800 km pela costa e 80 km pelo interior. Tanto Piso como Marcgraf
tiveram muito interesse por botânica e cartografia. Nas suas entradas pelo Nordeste
descrevem a fauna e flora do Brasil a serviço do então governador-general da Nova
Holanda, João Maurício Nassau-Siegen (BARLEUS, 2005).
Georg Marcgraf esteve no Brasil contratado por Maurício de Nassau para
trabalhar na sede do governo holandês no Recife como astrônomo, sob a orientação do
médico Willem Piso (1611-1678). Neste período serviu aos interesses da Companhia
das Índias Ocidentais (WIC), realizando trabalhos de classificação e descrição de
habitantes, plantas, animais e das estrelas do hemisfério sul; produziu obra cartográfica
meticulosa, desenhos e diário. Expedições exploratórias e entradas para apresamento
de índios, realizadas entre 1639 e 1642, foram uns dos meios para seus trabalhos de
levantamentos descritivos. Sua primeira viagem foi acompanhando uma expedição
exploratória e de apresamento de índios pelo interior do Ceará composta por 250
brasileiros, 150 tapuias e 15 brancos. Ele percorreu nesta expedição 750 km entre

224
junho e agosto de 1639 (BOOGAART e PARKER, 2002, p. 7). Teria conhecido
mais de 800 km da costa do Nordeste, entrando 80 km pelo interior em alguns
pontos (STORMS, 2011, p. 37-39).
Como cartógrafo, realizou levantamentos e localização de topônimos,
engenhos, currais, salinas, aldeias de índios, cacimbas, fontes de água e caminhos.
Os estudos e as descrições demonstram um olhar curioso sobre as culturas das
regiões pesquisadas, como consta nas obras divulgadas após sua morte: os quatro
volumes dos Libri Pictuari A32-35 (chamados também Libri Principis) eram uma
coleção de desenhos avulsos que, em 1652, foram enviados por Maurício de Nassau
a Frederico Guilherme de Branderburgo. Os desenhos atribuídos a Albert Eckhout
foram compilados e receberam o nome de Theatrum Rerum Naturalium Brasiliaes,
no Livro de Barleus sobre os feitos de Nassau no Brasil holandês (PETRONELLA,
1985, p. 251). Os trabalhos Marcgraf foram reunidos por Nassau após sua morte e
entregues a Johannes de Laet, um dos diretores da Companhia das Índias Ocidentais,
que confiou a Joan Blaeu a primeira edição do mapa mural Brasilia qua parte paret
Belgis com os mapas de Marcgraf sobre o litoral do Nordeste.

Notas
1 A produção de mapas impressos em Amsterdã com financiamento da Companhia das Índias Ocidentais teve
trabalhos dirigidos por Jean Bleau, Georg Marcgraf e Johannes de Laet, entre outros. De Laet, a Novus Orbis,
publicada em francês em 1640, tinha uma missão de colocar resumidamente os espaços holandeses entre os
continentes do globo. O mapa mural gravado em 1646 por Joan Blaeu (embora só publicado no ano seguinte)
continha levantamento e desenho cartográfico de Georg Marcgraf de 1643 com vinhetas de paisagens sobre
habitantes do Brasil, atribuídas a Frans Post. O primeiro mapa sobre o litoral brasileiro foi publicado pela WIC
em 1632; intitulado Caerte vande Custe van Brasiijl, é atribuido ao capitão Geleijn van Stapels e trata sobre o
litoral entre o rio Formoso e o Rio Grande do Norte. Também fazem parte dele quatro desenhos sobre parte da
costa perfilada e aquarelada. Stapels compõe o mapa a partir de antigas informações e medições próprias. Outros
mapas foram posteriormente impressos no livro publicado por Caspar Barleus, e os do Atlas de Vingboons (c.
1665); todos revelam avanços técnicos representativos do domínio geopolítico sobre a região do Nordeste do
Brasil conquistada. Grande parte da documentação original e de cópias guardadas na Holanda passou a ser
divulgada através do atlas De Oude WIC, 1621 – 1674, publicado, em 2011, na Holanda.
2 O exemplar do mapa mural Brasilia qua parte paret Belgis utilizado por nosso grupo de pesquisadores para
projeção e publicação de textos referentes ao projeto Rotas Afro-Indígenas de Pernambuco foi o da mapoteca
da Biblioteca da Universidade de Leiden/Holanda, datado de 1659, que está arquivado sob o código COLLBN
004-08-025/032. Vejam-se todas as edições deste mapa nas Referências Cartográficas deste texto. Estudos
recentes de pesquisadores brasileiros e holandeses, como Teensma, Storms, Van der Boorgart, Teixeira Leite, entre
outros; e, mais recentemente, os de Beatriz Bueno e Daniel Viera, como citados nas referências bibliográficas,
reúnem interpretações sobre o mapa Brasilia qua parte paret Belgis e seu principal cartógrafo, Georg Marcgraf
(1610-1644). Os cartógrafos Gerritsz e Vingboons nos forneceram diferentes pontos de vista que possibilitaram
cruzamento de dados para sustentar o argumento de que o mapa de Marcgraf se baseia em informações e
observações bem apuradas.
3 A data que confirma a realização das gravuras, assinalada no próprio texto do mapa para o ano de 1646, sugere
que Frans Post deve ter trabalhado nas composições para as vinhetas ao mesmo tempo (ou logo em seguida) em

225
que executava os desenhos, datados de 1645, e que serviram como base para as gravuras que ilustrariam a edição
do Rerum per octennium in Brasilia, de Gaspar Barlaeus, em 1647. De fato, Frans Post deve ter se beneficiado da
intensa atividade cartográfica da WIC, voltada para o Recife, e dos palácios de João Maurício. Também, o pintor
flamengo Albert Eckhout teria se beneficiado das viagens ao Brasil holandês para pintar nativos, instrumentos
e objetos etnográficos. O “ciclo de pinturas” que Albert Eckhout executou para que João Maurício delas fizesse
uso político, ao exibi-las no palácio de Vrijburg, nos deixa uma ideia sobre a imagem vista pelos holandeses e a
que eles tinham dos índios, mestiços e negros no Brasil.
4 Chama a atenção a utilização do genérico “Indiarum” como conceito aplicado aos grupos tupinambá
da costa colonizada, em contraposição às aldeias dos tapuias como espaços povoados fora ainda do marco
colonial. A diferença é levada aos termos em latim: Domus Indiarum, a casa/morada fixa dos índios tupinambá
reduzidos e Domicilium Tapijyurum como sede/domicílio dos itinerantes tapuias do interior. A etiqueta de
“lugar despovoado” ou “domicilia deserta” indicaria zonas ou aldeias anteriormente ocupadas por grupos que,
ou acabaram sendo reduzidos as aldeias missionárias ou grupos que, ante a pressão portuguesa ou holandesa,
fugiram para as áreas de refúgio no interior, lembrando-nos dos estragos das epidemias que assolaram o território
e que poderiam explicar alguns despovoamentos.

Referências Cartográficas
STAPELS, Geleijn van. Caerte van de Custe van Brasiijl – 1632.
GERRITSZ, Hessel.‘Passcaert van de ghelegenheyt van Pernambuc’ – 1630, por H.C. Lonck. Biblioteca Uni-
versidade de Leiden, (UBLCKA_COLLBN 004-08-001).
VINGBOONS, Joan, Atlas da Costa do Brasil, c. 1665. Coleção Acervo do Instituto Histórico Arqueológico,
Histórico e Geográfico de Pernambuco.
LAET, Johannes de. Novus Orbis publicada em Francês – 1640.
GROTE ATLAS VAN DE WEST-INDISCHE COMPAGNIE. I De Oude WIC, 1621 – 1674, Bea Brommer
& Henk den Heijer (Ed.). Atlas Maior, Holanda, 2011.
MARCGRAF, Georg. Mapa Brasilia qua parte paret Belgis:
1ª a) Joan Blaeu, (1647 )– 4 folhas in Barleus, ‘Rerum…..
1ª b) Joan Blaeu, (1647 – 1659 ) – Mapa mural em 9 folhas. Atlas des Grossen Kurfursten, 1659, Fundo da
Staatsbibliothek zu Berlin.
2ª Joan Blaeu, ( 1662) – 4 folhas.
3ª Huych Allard, (1659) – 9 folhas. Universiteitsbibliotheek Leiden ( COLLBN 004-08-025/032)
4ª Clement de Jonghe, (1664) Mapa mural em 9 folhas. Ministério das Relações Exteriores, Rio de Janeiro.
5ª Pieter Mortier, (1700) – 4 folhas. Coleção particular.
6ª Covens e Mortier,( 1721 ) – 4 folhas. Coleção particular.

Referências Bibliográficas
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2000.
AMADO, Janaina; FIGUEREDO, Luiz Carlos. Brasil 1500 – Quarenta Documentos. Brasília: Editora UnB; São
Paulo: Imprensa Oficial de São Paulo, 2001.
BARBOSA, Bartira Ferraz. Paranambuco: poder e herança indígena. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2007.
BARLEUS, Gaspar. O Brasil Holandês sob o Conde João Maurício de Nassau: História dos feitos recentemente
praticados durante oito anos no Brasil e noutras partes sob o governo do Ilustríssimo João Maurício Con-
de de Nassau, etc., ora governador de Wesel, Tenente-General da cavalaria das Províncias-Unidas sob o
Príncipe de Orange. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2005.
BIBLIOTHÈQUE NATIONALE DE FRANCE, département Cartes et plans, CPL GE DD-2987 (9505 B).

226
BOOGAART, Ernst van den e PARKER, Rebecca. Informações do Ceará de Georg Marcgraf (junho-agosto de
1639). Rio de Janeiro: ed. Index, 2002.
CADORNEGA, Antônio de Oliveira de. História Geral das Guerras Angolanas (1680). 3 vols. Lisboa: Editora
Agência-Geral do Ultramar, 1972.
CURVELO, Arthur. Pescaria e Bem Comun: Pesca e Poder Local em Porto Calvo e Alagoas do Sul (Séculos
XVII e XVIII). In: Alagoas colonial: Construindo economias, tecendo redes de poder e fundando adminis-
trações. Recife: Editora Universitária UFPE, 2012.
GRUZINSKI, Serge. Las cuatro partes del mundo. Historia de una mundialización. México: F.C.E., 2010.
HISTORIA NATURALIUS BRASILIAE: in qua non tantum plantae et animalia, sed et indigenarum morbi,
ingenia et mores describuntur et iconibus supra quingentas illustrantur. Piso, Wille, Lugduni Batauorum ;et
Amstelodami: apud Lud.: apud Franciscum Hackium Elzevirium, 1648. Fondo de reserva, Universidad
de Barcelona
KANTOR, Iris. Usos geopolíticos da memória toponímica na formação do Estado Brasileiro. In: Mapas de
Metade do Mundo. A Cartografia e a Construção Territorial dos Espaços Americanos Século XVI e XIX. Ed.
Centro de Estudos Geográficos, Universidade de Lisboa e Inst. De Geografia, Universidade Nacional
Autónoma de México. 2010.
LAGO, Pedro e Bia Corrêa do. Frans Post (1612-1680). Obras Completas. Rio de Janeiro: ed. Capivara, 2009.
MAIOR, Pedro Souto. “Dous Índios Notáveis e Parentes próximos Pedro Poty e Philippe Camarão”. Revista do
Instituto Arqueológico, Geográfico e Histórico de Pernambuco. n. 15. Recife, 1912.
MELLO, Evaldo Cabral de. O Brasil holandês (1630-1654). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
PARKER, Rebecca. Albert Eckhout, Visões do Paraíso Selvagem. Obras Completas. São Paulo: Capivara Editora,
2010.
PETRONELLA, Albertin. Arte e Ciência no Brasil Holandês, Theatrum Rerum Naturalium Brasiliaes: um
estudo dos desenhos. Revista Brasileira de Zoologia. São Paulo 3(5) 249-326. 28.vi. 1985: 251.
PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Índios Livres e Índios Escravos, Os princípios da legislação indigenista do perío-
do colonial (século XVI a XVIII). In: CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos Índios do Brasil. São
Paulo: Companhia das Letras/Secretaria Municipal de Cultura, Fapesp, 1992.
PINTO, Manuel do. Relação do Descobrimento da ilha de São Tomé. Lisboa: CHAM, 2006 [1696].
PUNTONI, Pedro. A guerra dos Bárbaros. Povos indígenas e a colonização do sertão no nordeste do Brasil (1650-
1720). São Paulo: Editora Huitec, 2000.
SOARES, Mariza. Engenho sim, de açúcar não. O engenho de farinha de Frans Post. Varia hist. [online]. 2009, vol.
25, n. 41, p. 61-83. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-87752009000100004.
STORMS, Martijn. De kaart van Nederlands Brazilie door Georg Marcgraf. Caert Thresoor Tijdschrift voor de
Geschiedenis van de Kartografie, n. 2. Den Haag, 2011.
THORTON, John. A África e os africanos na formação do mundo Atlântico, 1400-1800. São Paulo: Editora
Campus, 2004.
VAINFAS, Ronaldo. Traição. Um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 2008.
VIEIRA, Daniel Souza Leão. Corografia, Etnocentrismo e Geopolítica no Mapa Mural Brasilia qua Parte Paret
Belgis, 1643-1648. In: III Encontro Internacional de História Colonial, 2010, Recife-PE. Caderno de
Resumos – 3º Encontro Internacional de História Colonial. Recife: Editora Universitária UFPE, 2010.
v. único. p. 1-181.
__________. A topografia Ausente: A Paisagem Política da Nieuw Holland nas Vinhetas de Frans Post para o
Mapa Mural Brasilia qua parte paret Belgis, 1643-1647. Clio. Revista de Pesquisa Histórica. 29.1. Recife:
Editora Univervisitária da UFPE, 2011. http://www.revista.ufpe.br/revistaclio/index.php/revista

227
“Este é um país que vai pra frente”. As
migrações para o Mato Grosso após 1970

Vitale Joanoni Neto*

As diferentes faces da migração para a Amazônia Meridional

A reocupação do norte de Mato Grosso está intimamente ligada ao Estado


Ditatorial Brasileiro e às suas iniciativas de integrar o país. Chama a atenção, em
todo esse processo, a força da iniciativa privada e o estímulo por ela recebido para
protagonizar o avanço sobre o que se chamou de “área vazia”.
Em 1971 o governo Federal criou o Programa de Redistribuição de Terras e
de Estímulos à Agroindústria do Norte e do Nordeste (Proterra). Tal medida, entre
outras, permitiu em última análise a aquisição de grandes faixas de terras públicas por
empresários que desenvolveram projetos privados de colonização. No Estado de Mato
Grosso, dezenas de empresas de colonização e agropecuárias espalharam-se por sua
extensa faixa norte predominantemente visando os migrantes vindos do sul e centro
sul do país para a colonização e usando trabalhadores braçais “peões” como mão-de-
obra. Segundo Guimarães Neto (2002, p. 142), dados do Incra (1981) comprovam
que das 101 empresas de colonização autorizadas inicialmente a funcionar no país
(inclusive aquelas cujos registros foram cancelados), entre 1970 e 1981, 42% estavam
localizadas em Mato Grosso. Dos 125 projetos autorizados a funcionar, 60% estavam
no Estado. As rodovias federais funcionaram como corredores norteadores da
migração. Os maiores projetos privados de colonização aconteceram muito próximos
dessas rodovias, 49% deles (75 projetos), ao longo da Cuiabá-Santarém. Esta, mais a
BR-158 e o complexo 364 /174, criadas durante o governo militar, tinham a intenção
de abrir um território pouco conhecido à exploração econômica.
Desde meados da década de setenta, empresas como a Sociedade
Imobiliária Noroeste do Paraná (SINOP) — que já haviam promovido projetos
de colonização no Paraná durante as décadas de 50 e 60 — receberam extensas

* Doutor em História. Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Mato Grosso


(UFMT). E-mail: vjneto@uol.com.br

228
áreas estaduais ou federais, nas quais desenvolveram seus projetos e passaram a
trabalhar para atrair interessados.
Essas empresas patrocinaram forte campanha publicitária no sul e sudeste do
país e seu público-alvo foram os minifundiários, pequenos produtores capitalizados
que, vendendo seus dez, por vezes cinco alqueires no Paraná, podiam comprar até
200 alqueires no Mato Grosso.
A propaganda garantia terras férteis, falava das possibilidades de progresso e
lucros. O que a propaganda não falava era que a região estava, em alguns casos, mal
cortada por “picadões”, trilhas nas quais só se passava a pé, sem nenhuma estrutura
de apoio aos colonos como postos de saúde, escolas para as crianças, estradas para o
escoamento da produção:
(...) quando eles mudavam para esses lugares aí era precário. O colono fazia aqueles
ranchinhos de lona de folha de coqueiro até tinha muito aqueles pedacinhos abertos uns
daqui outros dali a gente chegava estava tudo revirado, gente ia conversar com eles ali,
a molecada já rodeava a gente, perguntando, molecada toda curiosa, daí tudo cheio de
pau, aquelas madeiras pretas sapecadas de fogo, era um horror mesmo. Na época a gente
se virava mesmo com carne de bicho não tinha carne de vaca por aí afora. Assim iam
plantando milho, mandioca e os primeiros que chegavam iam plantando um pouquinho
de feijão e depois foram vivendo do custeio próprio do pessoal (DEPOIMENTO 1, 2000).

Uma vez atingido seu destino, os lavradores passavam a enfrentar as


dificuldades do lugar. Além da esperada saudade de sua região de origem, dos amigos
e parentes, entre outros desdobramentos dessa adaptação, estavam também os perigos
desconhecidos. A malária, responsável por verdadeiros surtos e pouco conhecida pelos
lavradores do sul, chegou a atingir mais de 40% das pessoas nesses projetos. Cento e
cinquenta morreram em Rondônia em 1981 (SCHAEFER, 1985, p. 141). Muitos
outros perigos rondavam os colonos. A tarefa de derrubada das matas, por exemplo,
tirou muitas vidas. O uso de armas de fogo, a leishmaniose, a água imprópria que
provocava hepatite, gastrenterite, diarreia. Algumas narrativas expõem tristeza e
amargura ao tratar da chegada e da adaptação à nova terra, contrastando com o que
deveria ser o momento de esperança e recomeço:
(...) fomos facilmente ludibriadas pela empresa colonizadora (...) A compra foi feita por
minha mãe, sem ao menos vir olhar as terras (...) Mesmo assim, ela fez negócio no mês
de abril do ano de 1983 (...) chegamos em Vila Rica (...) a quase 3.800 km de distância
da minha terra, do meu lugar O desespero era grande, casas, pessoas, mosquitos, tudo
hostil, tudo diferente... que lugar era esse? Que pessoas eram essas? Tão ressequidas tão
queimadas pelo sol? De olhar distante na estrada procurando algo ou alguém que nunca
chegava. Que comida era essa que queimava a boca, a garganta? Geladinha, pamonha,
pequi? Que língua era essa falada nesse trajeto, que cada vez mais se distanciava de casa,
da nossa casa? (...) Ao chegarmos fomos direto procurar nossa mudança, que havia saída
na frente uns oito dias, ela estava praticamente jogada numa casa da colonizadora, casa
esta sem energia, água, esgoto. O pior foi ficarmos em duas famílias num espaço que mal
dava para uma. (...) Ir para roça, impossível. Não havia ponte, isso impossibilitava nossa

229
partida. Ela havia queimado na última temporada de queimas da região. (...) Ficamos todos
juntos, espremidos. A primeira noite, quase ninguém dormiu, mosquitos demais, parecia
enxame. Revolta demais, que lugar era esse? (...) No outro dia fomos procurar colégio com
transferência em mãos, não consegui vaga (...) A primeira grande perda, um ano inteirinho
jogado na sarjeta (DEPOIMENTO 2, 2000).

Aqui o narrador expõe seu estranhamento para com o caminho, a chegada,


o lugar, a comida, o linguajar, enfim, todos os aspectos ligados ao novo aparecem
tratados com um tom triste. Há também o ressentimento para com a empresa que
vendeu o lote para a família, uma sensação de terem sido logrados, os descuidados
com a mudança e com sua chegada. Vemos a dor das expectativas frustradas por não
poder ir para o lote, pela falta de vaga na escola e, ao final, a constatação de que essas
foram as primeiras das muitas perdas que se seguiriam.
É importante lembrar, no entanto, que esse relato foi dado 17 anos depois
da chegada e, como sabemos, a memória é refém do tempo presente. Os sucessos
ou insucessos alcançados nessas novas terras, as percepções e questionamentos sobre
a experiência vivida influenciam na presentificação da memória, na sublimação ou
destaque dos momentos vividos. Essa família faz parte de um grupo que migrou em
condições privilegiadas, ou seja, está entre aqueles que compraram terras, que vieram
com destino certo.
A propaganda atingia a todos os lavradores da região sul e sudeste do país,
porém apenas os que tivessem capital para a aquisição de terras é que tiveram a
possibilidade de responder ao chamado das empresas privadas. Aos demais restava
migrar como mão-de-obra, ou tentar um lote em um projeto de colonização do Incra.
O acesso às áreas dos projetos privados era restrito e controlado. Na balsa que
levava os colonos ao projeto Alta Floresta da empresa Integração, Desenvolvimento
e Colonização S/A (INDECO), através do rio Teles Pires, “os passageiros de ônibus
eram revistados, os dados de sua carteira de identidade anotados por um soldado, e o
passageiro tinha que provar a finalidade da sua viagem a Alta Floresta” (SCHAEFER,
1985, p. 149).
Um dos relatos de expulsão foi dado por um padre da região de Juina, transcrito
pela imprensa local:
A missão recebida me fez parar em Castanheira no dia 22 de dezembro de 1979 (...) me
lembro que terminada a missa o homem da Rural que me trouxe (...) me colocou naquela
famigerada casa onde havia um correntão [controle de acesso instalado pela colonizadora
para impedir acesso aos projetos]; eu não sabia o que era aquilo. Lá estava uma família,
um casal e cinco filhos embaixo da chuva. Eu perguntei: “Quem são vocês? O que vocês
estão esperando?”. “Estamos esperando uma condução que nos leve em Juina, perto do Rio
Perdido, porque nós fomos expulsos das nossas terras; nós somos do grupo de posseiros
e hoje fomos expulsos”. (...) Perguntei ao motorista “o que é isso?”. Ele me respondeu:
“essa gente é invasora de terra; essa gente tem que sair da terra que não é deles”. Sim, mas
esta terra é de Deus, que queria dar aquela família, e aos trezentos outros que tinham sido

230
expulsos; e eu não sabia, estava em Vilhena, onde a propaganda era para mandar mais gente
para cá, que havia terra MARAVILHOSA, que produzia, como a bíblia diz “Leite e mel”.
Eu me recusei de subir novamente na rural e pedi que levassem aquela família, e que não a
deixassem na chuva, e nem desamparada em Juina. Fui depois conferir. Outra família pobre
e humilde, que então começou um barraco na Vila Operária tinha dado um barraco àquela
família.(...) O famigerado Ramon “Paraguaio” tinha ordem de Juina, ordem de Cuiabá,
para impedir a entrega da terra de Deus, que Deus queria dar aos seus filhos que chamou
do Sul, que chamou do Norte e Nordeste do Brasil(...).1

O padre relata um fato ocorrido havia nove anos. É possível perceber os


meios usados pelas empresas colonizadoras para manter as suas terras valorizadas e
ao mesmo tempo reproduz uma visão idealizada, sacralizada, desses lugares por meio
de uma imagem bíblica. Ramon Paraguaio era oficialmente funcionário da empresa,
mas nos muitos relatos colhidos ele aparece como pessoa perigosa, pistoleiro, credor
de muitos serviços prestados a pessoas poderosas. O aparecimento de seu nome
ligado a uma operação de “limpeza” de uma área ou retirada de “invasores” nessa
narrativa expõe a memória das lutas travadas entre diferentes grupos e as profundas
marcas deixadas. Padre Duílio foi o responsável pela articulação das Comunidades
Eclesiais de Base e na condição de pároco organizou a Igreja Católica local, para o
enfrentamento aos interesses da empresa e dos grandes proprietários, definindo sua
atuação naquele campo político conforme a uma postura da Católica denominada
Teologia da Libertação. Chama a atenção o fato de na mesma narrativa aparecerem
lado a lado elementos como a ideia da “terra para quem nela trabalha” e do chamado
de Deus para que aquelas pessoas ocupassem a terra sob a promessa do “leite e mel”.
A colonização da Amazônia foi assimilada, no discurso oficial, a uma reforma
agrária. Afirmava-se a colonização como redistribuição de terras aos camponeses
de modo a evitar que abandonassem o campo, provendo-lhes os incentivos e a
infraestrutura necessários. O Estado de Mato Grosso não fugiu a essa regra. Por vezes,
diante da desconfiança e do insucesso de seus projetos de colonização, os órgãos
governamentais buscaram formas para superar a resistência, caso, por exemplo, do
Projeto de Assentamento Conjunto, que usava a credibilidade das cooperativas de
vários pontos do país para referendarem as iniciativas de ocupação da floresta.
O sul do Brasil foi escolhido, pois ali existia grande número de pessoas que
haviam realizado a acumulação de capital e aquelas áreas, principalmente no Paraná,
estavam valorizadas, daí serem considerados colonos ideais. Nos projetos privados as
empresas destinavam à ocupação por lavradores apenas uma parte da área total do
projeto. No caso da Indeco e do projeto Alta Floresta, menos da metade da área foi
destinada ao loteamento, o que segundo Guimarães Neto era apenas o pano de fundo
para a implantação de um grande empreendimento econômico e sedimentação de
um projeto político de dominação social que impossibilitava o sucesso do pequeno
proprietário. Com o tempo os lotes foram fracionados em parcelas cada vez menores

231
e o lavrador, que havia trocado sua terra no sul por uma propriedade maior no Mato
Grosso, via-se agora novamente às voltas com poucos hectares para sustentar sua
família. Gradativamente haviam voltado à condição de pequenos proprietários,
minifundiários. “Os colonos foram verdadeiros peões da colonização” (GUIMARÃES
NETO, 2002, p. 87).
No Mato Grosso, houve uma grande operação para comercialização de
terras, adquiridas em condições muito favoráveis por grandes empresas privadas ou
repassadas a companhias estatais que agiam seguindo os modelos bem sucedidos
daquelas primeiras e repassadas aos pequenos proprietários rurais a preços e condições
de pagamento atraentes, o que ocultava a falta de infraestrutura e o verdadeiro
caráter dos projetos. Essa operação, a que se atribuía o mérito de fixar o homem
na terra, de integração nacional, de ocupação de espaços vazios e que a propaganda
se encarregou de consolidar como o equivalente a uma reforma agrária, serviu para
desviar as atenções e aliviar as tensões (econômicas, sociais e políticas) nas áreas que
estiveram sob sua influência, além de auferir polpudos lucros a um pequeno grupo
de empresários, denominados hoje no norte de Mato Grosso como “Bandeirantes
Modernos”, “Desbravadores” ou “Pioneiros”.

A migração como peregrinação

A Igreja Católica estendeu sua presença pelo Mato Grosso graças aos projetos
de colonização que viabilizaram o surgimento de novas cidades e a fixação de milhares
de pessoas naqueles locais.
A fé acompanhou os lavradores em sua migração. As empresas colonizadoras
e o governo fizeram farta propaganda da Amazônia, como sendo região de terra em
abundância, fértil, sem geadas (um problema gravíssimo para os colonos do sul). Essa
propaganda somou-se à imagem da floresta amazônica, gravada no senso comum,
como sendo o eldorado, terra de belezas e de fartura, distante e inóspita.
Essas características somadas, mundo distante e ao mesmo tempo terra de
fartura, facilitaram a conexão entre a paisagem e o sagrado. A santidade natural-
mágica incorporada pela floresta amazônica e a crença do indivíduo culminaram por
fixar nela um poder santificador e de atração sobre o crente, levando-o a peregrinar
em busca da redenção; o que o levou a recriá-la com outro significado, ou seja, esse
espaço deixou de ser um local concretamente existente e passou a ser outro, ligado a
valores imateriais presentes no imaginário daquela pessoa (FICKELER, 1997, p. 8).
Essa migração das terras do sul para o centro-oeste foi para muitos lavradores
uma peregrinação em busca da terra prometida, ou seja, da solução para seus problemas.
Sua chegada ao novo destino foi a chegada ao lugar do sonho, da utopia, constituída
dos anseios que carregavam: possuir a terra, trabalhar para si, fugir da proletarização,

232
mais a propaganda que afirmava serem esses os locais onde a concretização desse
sonho seria possível.
Para o fiel, o sagrado é bastante real e não exige provas para ser crível. Os
migrantes que reocuparam o norte de Mato Grosso acreditaram encontrar ali a
redenção material e espiritual e isso lhes deu forças para suportarem as dificuldades. Os
momentos ruins vividos no início da estada nos locais de chegada foram sublimados.
A memória guardou apenas as boas lembranças, ou as guardou como se fossem boas.
“Quando o orgulho está em causa, a memória prefere ceder” (JUNG, 1977, p. 36).
Observando os vários projetos de colonização, notamos a presença da Igreja
Católica ora relacionando-se bem com as empresas, ora não aparecendo de forma
significativa nas análises, ora reproduzindo os padrões mais tradicionais da instituição.
D. Henrique Froehlich veio para o Mato Grosso atuar na Missão Anchieta em
Utiariti em 1956. Foi ordenado bispo da Prelazia de Diamantino em 1971, ficando
posteriormente em Sinop, após uma divisão administrativa. Sobre suas relações com
as colonizadoras particulares disse:
(...) viria posteriormente a fazer doações generosas às paróquias de Vera, Claudia, e à igreja
de Carmem (...) nunca negaram qualquer terreno para as paróquias, para as capelas, para a
Cúria Diocesana (uma quadra inteira) e para outras obras sociais. Além disso, deram uma
chácara para a construção do Centro Pastoral e mais duas chácaras à Diocese de Sinop,
como brinde (...) O Sr. Ariosto da Riva, que colonizou Alta Floresta, forneceu-nos terrenos
para três paróquias e trinta capelas da cidade e grande parte das capelas rurais. Doou ainda
áreas para a construção de dois Centros de Pastoral (FROEHLICH, 1999, p. 48).

Nos projetos de colonização particulares Carlinda, Colíder, Nova Canaã do


Norte, Paranaíta, Apiacás, Nova Bandeirantes e Terra Nova, bem como no Projeto de
Assentamento Braço Sul, a Igreja ou não apareceu de forma significativa nos relatos e
análises, ou apareceu com dificuldades na organização dos colonos em comunidades
católicas, ou ainda como aliada das empresas colonizadoras.
No PAC Peixoto de Azevedo em Guarantã do Norte, o deslocamento dos
colonos foi visto (também) como estratégia de rompimento de sua organização
política por reforma agrária, financiamento agrícola e outras reivindicações. A
Igreja, o Incra e a Cooperativa foram importantes instrumentos usados pelo governo
federal para reorganizar a vida dos assentados em todos os seus aspectos (cultural,
econômico, político), evitando assim que nascessem do seio desse grupo organizações
legítimas e que viessem a recriar as instâncias organizativas de seus lugares de origem,
quebradas com seu deslocamento. Da mesma forma, no PAC Ranchão, os assentados
estavam ligados à cooperativa (94%), mas a tinham como um órgão patronal, cujas
exigências deveriam ser cumpridas, não havia participação nas decisões. Havia um
sindicato rural na área do projeto. Mas 50% dos colonos não sabiam de sua existência
e apenas 21,6% estavam a ele filiados. Para a não participação nas atividades da
igreja e associações comunitárias, os colonos alegavam a falta de transporte coletivo
(CASTRO et al, 2002, p. 171 e 217).

233
Chama a atenção aqui o fato de esses projetos serem de assentamento, ou seja,
os lavradores haviam recebido o lote em condições diferentes daquelas praticadas nos
projetos privados. O não contato com a Igreja e com o padre não significa menos fé
ou menos crença no sucesso do projeto. Os registros nos mostram práticas domésticas
ou coletivas de expressão religiosa como, por exemplo, rezas, novenas, festas para
santos de devoção, simpatias, benzimentos.
No Projeto Lucas do Rio Verde, vemos a valorização da prática religiosa pelos
colonos e, ao mesmo tempo, a distância entre estes e a igreja. Ao que nos parece, o
representante da instituição neste projeto não se preocupou com a proximidade ao
cotidiano dos colonos. Estes referem-se a ele como “o padre”, ele não tem nome,
revelando uma aparente relação de indiferença entre ambos. Alguns afirmaram que o
clérigo ignorava sua presença naquele local. Mesmo assim os colonos não abriam mão
da religião na reconstrução de seu espaço.
(...) as dificuldades eram superadas pela união. Era sofrido, mas era divertido. Sofria, mas
era gostoso, a gente se unia. Mesmo para rezar a gente não tinha igreja. O padre nem sabia
que a gente tava aqui, então a gente se reunia em cada final de semana numa casa e fazia o
culto, fazia novena, era dessa forma que a gente fazia (ZART, 1998, p. 148).

No Projeto Canarana, Água Boa e Querência, a presença de luteranos foi


importante. O mentor dos projetos foi o Pastor Norberto Schwantes que, à frente
da Cooperativa de Colonização 31 de Março Ltda., trouxe colonos do Rio Grande
do Sul para essa área ao leste de Mato Grosso na primeira metade dos anos 1970.
Vale notar no centro da cidade de Canarana a presença das igrejas Luterana e
Católica, ambas de frente para a praça central da cidade. Apesar disso, nas conversas e
documentos levantados, não vemos menção a padres ou a atuação da instituição entre
aqueles colonos. A organização inicial do projeto, em comunidade e com trabalho em
mutirão, começou a ser abolida logo nos final do primeiro ano da estada ali.
Esse grupo de luteranos (com notável presença católica) foi organizado em
cooperativa por Norberto Schwantes. O carisma luterano pautou a presença das igrejas
e a fé encontrou aí sua forma de manifestação. As circunstâncias de seu deslocamento
para Canarana também são importantes elementos para que se possa entender aquela
organização. Esse grupo foi composto pelos remanescentes de duas outras tentativas
frustradas de fixação, primeiro em Dourados (MS) e depois em Altamira (PA). O
leste de Mato Grosso foi para eles a alternativa possível. As terras lhes foram vendidas
com a intermediação da Cooperativa a preços acessíveis.
Nas áreas de fronteira a comunidade de vizinhança foi a forma de organização
mais comum entre as pessoas, os pequenos proprietários, posseiros, colonos. Foi
a reprodução em microescala da instância pública. A comunidade é a tutora do
bem comum, através dela direcionam-se os esforços coletivos para a construção
e manutenção de escolas, igrejas, lazer, garantias de direitos frente ao Estado ou

234
a outros interesses exteriores ao grupo. As regras de convivência podem variar de
acordo com as exigências e os contextos dados pela situação do grupo, mas de modo
geral o trabalho em mutirão, o cuidado e a educação dos filhos, o zelo e respeito para
com as famílias, estão presentes nestes grupos como tarefas de todos.
O que determinou seu surgimento foi a extrema carência daquelas pessoas,
a ausência do poder público e a proximidade física, mas esses fatores não são fixos.
No caso de Juina, o poder público estava presente, mesmo que precariamente, por
meio da empresa colonizadora, ligada ao governo estadual. As distâncias entre as
pessoas por vezes resultavam em empecilhos para a agregação. Nesse momento a
Igreja Católica se colocou como elo oferecendo o pretexto para a constituição dos
grupos. As rezas foram inicialmente usadas para a sua formação, daí seguia-se o
trabalho em mutirão para a construção de escolas, o lazer, a convivência. Relações
tão necessárias que suplantaram as diferenças de origem, políticas e religiosas.
Maranhenses, baianos, mineiros, paulistas, paranaenses, gaúchos reuniram-se nessas
comunidades animadas pelo padre e com sua ajuda estabeleceram metas comuns
que, por vezes, contrariavam os interesses e os planos da colonizadora. A presença
de evangélicos históricos ou pentecostais foi percentualmente inexpressiva na fase
inicial. Pelo pequeno número uniram-se às comunidades católicas.
No levantamento documental realizado no noroeste de Mato Grosso,
a presença de denominações evangélicas ou de religiões não cristãs detectada no
período inicial da colonização foi pequena. Esta realidade mudou paulatinamente
com o crescimento do núcleo urbano. As denominações estabeleceram-se na região
de meados da década de 1980 em diante, e praticamente sua totalidade na área
urbana, sendo que somente depois de consolidadas ali é que as maiores e mais
estruturadas, como a Assembleia de Deus ou a Deus É Amor, começaram a se fixar
nas linhas rurais e nas vilas de garimpo. Some-se a isso que havia colonos ligados às
comunidades católicas pela necessidade da convivência e pela conveniência da troca
de apoio. Entre 1980 e 1996, a população rural cresceu 15,65% e a urbana, 382%.
Esse crescimento urbano inclui o deslocamento campo/cidade de famílias inteiras.
Para Juina, os dados disponíveis para o ano de 1989 nos mostram uma igreja
matriz católica na área urbana, com mais 106 capelas e três padres para atender a todas.
Havia também 18 igrejas evangélicas (CARDOSO, 1989, p. 158). Não encontramos
menção sobre quais as denominações estavam presentes, ou sobre a localização destas
igrejas (se centrais ou periféricas, se rurais ou urbanas). Em 2000 o levantamento de
dados nos mostrou 39 igrejas evangélicas pertencentes a 16 diferentes denominações
apenas na área urbana. Há que se notar que algumas dessas igrejas têm uma influência
apenas local, como a Igreja Evangélica Pentecostal Só o Senhor É Deus, a Igreja
Testemunho da Fé ou a Igreja Evangélica Pentecostal Só o Senhor É Deus Universal,
que ocupam pequenos salões nos bairros periféricos com um núcleo de seguidores.

235
Quanto à Igreja Católica, em 2000, havia registros de oito templos só na área
urbana e 83 comunidades nas duas paróquias da cidade. Em toda a nova diocese
(fundada em 1998), existiam 233 Comunidades Eclesiais de Base e 443 Grupos de
Reflexão (214 só nas duas paróquias de Juina), com quatro padres para atender a toda
a diocese (DALLA VALLE, 1998, p. 11). O acentuado crescimento demográfico
entre 1980 e 2000 e o redirecionamento desse fluxo migratório para as áreas urbanas,
somados a um êxodo rural verificado durante a década de 1990, são boas hipóteses
para se explicar o crescimento e as mudanças em seu perfil.
As comunidades formaram-se na área rural tendo sido posteriormente levadas
pelo padre para o núcleo urbano nascente, contando a princípio com forte participação
dos seus primeiros moradores e influindo nos rumos da cidade, mesmo que mediante
enfrentamento com a colonizadora ou outros interesses. Com a consolidação do
modo de vida urbano, administração pública, serviços essenciais, escolas, comércio
local, prestação de serviços, as comunidades passaram a atuar mais restritamente junto
à igreja prenunciando a institucionalização que viria. No meio rural tal fato também
ocorreu, porém mais lentamente, na medida em que as influências urbanas foram se
impondo, diminuindo as distâncias entre o campo e a cidade, de onde se depreende
a transitoriedade desta forma de organização comunitária, ou seja, seu equilíbrio
fragilíssimo que não resistiu à emersão do individualismo inerente ao modo de vida
urbano que trouxe consigo o modo de vida privado, negação do comunitário.
O que viabilizou a constituição do comunitarismo em alguns casos estudados
foram as exigências ditadas pela extrema necessidade somadas ao impulso decisivo
da presença da igreja, muitas vezes personificada na figura do padre ou de um
religioso, o que conferiu às comunidades uma especificidade notável. Recriadas as
condições de existência tanto urbanas como rurais dentro das possibilidades dadas
pelos novos locais, recriados os laços de sociabilidade, a organização comunitária
recuou e restringiu-se a esferas específicas, por exemplo, os clubes de lazer como os
CTGs (Centros de Tradições Gaúchas), sindicatos e, entre os católicos, os “grupos de
oração” ou os “grupos de rua”.
A Teologia da Libertação e as CEBs em algumas áreas pesquisadas nessa
fronteira foram utilizadas como mecanismos de integração para a superação da
anomia. A criação da CEB foi uma alternativa de integração bem sucedida, mas não
exclusiva; existiram outros espaços (associação de moradores, time de futebol, etc.).
Tais comunidades constituíram-se em únicos espaços de reunião das famílias recém-
chegadas. Outros espaços de agregação foram escassos no início, ou simplesmente não
existiram. Passados 20 ou 30 anos, vemos as festas juninas realizadas nas paróquias ou
nas escolas, ou a festa do padroeiro na igreja matriz, como eventos que movimentam
a cidade. Com frequência são festas esperadas que ocorrem por todo o fim de semana

236
(iniciam na sexta-feira à noite e terminam no domingo à tarde), o baile na noite do
sábado e o almoço no domingo. A festa tem sempre um caráter beneficente: reúne
os jovens, as famílias, trabalhadores do meio rural, todos no mesmo espaço (o pátio
da igreja ou da escola). Uma tradição trazida pelos migrantes, mas transformada em
espaço de convivência entre o fazendeiro e o peão, o comerciante e o comerciário — e
espaço privilegiado de reconstrução dos laços de socialização e identidade.

Considerações finais

No estado de Mato Grosso a Igreja se fez presente em áreas de reocupação


de formas muito diferentes. Se pudéssemos, não sem cometer injustiças, observar
as reações da instituição às demandas dos diferentes grupos de migrantes a partir da
década de 1970, teríamos que as regiões Noroeste e Nordeste as viveram de modo
distinto daquelas do eixo da BR-163.
Juina nasceu como paróquia, ligada à diocese de Ji-Paraná (RO). As orientações
recebidas de Dom Antonio Possamai pautaram ali a organização da igreja, tornando-a
central entre aquelas pessoas que chegavam de diferentes pontos do país, mesmo
entre os não católicos.
No nordeste de Mato Grosso, a criação da Prelazia de São Félix do Araguaia
e a chegada de Dom Pedro Casaldáliga tornou essa igreja uma referência na luta
pelos direitos humanos, na defesa dos mais pobres, das causas indígenas. O histórico
de violência contra os membros da Prelazia nos mostra o preço que essas pessoas
pagaram ao assumirem esses compromissos.
No eixo da BR-163, o centro norte do Estado, a Igreja apresentou uma
presença com outro perfil. Organizou-se evitando as intervenções sociais e pensou
ser possível não tomar partidos, mantendo boas relações com as autoridades locais,
recebendo doações em áreas das empresas de colonização para a construção dos
templos e demais dependências, reproduzindo o modelo de organização das áreas de
urbanas tradicionais.
Gramsci, no texto publicado no Brasil com o título Concepção Dialética
da História, afirma que “toda a religião, inclusive a Católica (sic), é na realidade
uma multidão de religiões distintas, frequentemente contraditórias” (1989, p. 144).
Para esse autor a Igreja Católica sempre lutou por sua unidade interna para impedir
uma religião culta e outra popularesca, mesmo com um alto custo para ela própria.
Nessa linha de raciocínio, talvez pudéssemos ver as CEBs como uma concessão. Uma
tentativa de manter a unidade que custou à Igreja a formação de grupos com atuação
pouco conveniente aos interesses globais da própria igreja e que foram controlados
paulatinamente.

237
Para os migrantes essa forma de organização tem diferentes significados e
importância distinta. Da defesa inconteste do pequeno proprietário, do posseiro
e do índio, do enfrentamento dos interesses dos grandes latifundiários, passando
pela referência identitária e apoio na reorganização da vida privada que teve nas
comunidades um marco inicial e certa centralidade, sendo posteriormente recolocada
em seu lugar social.

Nota

1 Dom Antonio convida Pe. Duilio para dar uma palavra, 1988, p. 8.

Referências Bibliográficas

CARDOSO, José Soares. Mato Grosso em foco. Cuiabá: Guiapress, 1989.


CASALDÁLIGA, Pedro. Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social. São
Félix: 10 de outubro de 1971. Disponível em http://alternex.com.br/prelazia/igreja.htm. Acesso em 30
de maio de 2003.
CASTRO, Sueli Pereira; BARROZO, João Carlos; COVEZZI, Marinete e PRETI, Oreste. A colonização oficial
em Mato Grosso: A nata e a borra da sociedade. 2ª edição. Cuiabá: EdUFMT, 2002.
COMBLIN, José. As grandes incertezas na Igreja Atual. Revista Eclesiástica Brasileira, 265, Jan. 2007, p. 36-58.
DALLA VALLE, D. Franco. Apresentação da nova Diocese de Juina (Mato Grosso-Brasil). [Juina], 1998, mimeo.
DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994.
DEPOIMENTO. Vila Rica, 25 mar. 2000.
Dom Antonio convida Pe. Duílio para dar uma palavra. O poder noticioso. Juina, 2ª quinzena, maio 1988, p. 8.
FICKELER, Paul. Questões fundamentais na geografia da religião. Espaço e Cultura. Rio de Janeiro: UERJ,
janeiro/junho de 1999, n. 7.
FROEHLICH, D. Henrique. O bispo da floresta. Autobiografia. Ceilândia: Idea Editora, 1999.
GRAMSCI, Antonio. Concepção Dialética da História. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1989.
JUNG, Carl G. Chegando ao inconsciente. In: JUNG, Carl G. (Org.). O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1977.
MARTINS, José de Souza. A vida privada nas áreas de expansão da sociedade brasileira. In: SCHWARCZ, Lilia
Moritz. História da vida privada no Brasil. Volume 4, São Paulo: Cia. das Letras, 1998.
SANCHIS, Pierre. O campo religioso será ainda hoje o campo das religiões? In: HOORNAERT, Eduardo
(Org.). História da Igreja na América Latina e no Caribe. Petrópolis: Vozes, 1995.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço. São Paulo: Hucitec, 1999.
SCHAEFER, José Renato. As migrações rurais e implicações pastorais: um estudo das imigrações campo/campo
do sul do país em direção ao norte do Mato Grosso. São Paulo: Loyola, 1985.
ZART, L. Desencanto na nova terra. Assentamento no município de Lucas do Rio Verde/MT na década de 80.
Florianópolis, 1998. 189p. Dissertação (Mestrado em Sociologia Política) – Programa de Pós-Graduação
em Sociologia Política da UFSC.

238
Pernambuco e Brasil nas rotas
do tráfico atlântico*

Marcus J. M. de Carvalho**

A escravidão é uma das instituições mais antigas da humanidade.


Provavelmente, na maior parte do mundo, a propriedade de uma pessoa sobre outra
é anterior à propriedade privada da terra. Em diferentes locais e épocas, houve povos
que comerciaram cativos, escravizaram vizinhos e até gente do seu próprio meio —
mas não conheceram a propriedade privada da terra. Além de antiga, a escravidão
é uma das instituições mais duradouras da História, tanto que o último país a
fazer sua abolição legal foi a Mauritânia em 1984, o que não quer dizer que tenha
desaparecido, como bem mostram os relatórios online da Anti-Slavery Society, sediada
em Londres, talvez a ONG humanitária em atividade há mais tempo no mundo.
Isso mesmo se descontarmos os usos da expressão “escravidão” como um eufemismo
para formas de exploração do trabalho alheio inaceitáveis para a moral dominante na
contemporaneidade. Escravidão no seu senso estrito significa que uma pessoa, ou um
grupo, possua direitos de uso e abuso sobre o corpo de uma outra pessoa. E não é uso
temporário, mas ininterrupto. Não é apenas a apropriação dos frutos do trabalho, ou
uso temporário, mas a propriedade permanente sobre o próprio corpo de alguém, que
pode ser repassado, vendido e castigado. Acrescentam os estudiosos que, regra geral,
o escravo é um estrangeiro, pois ele não compartilha os direitos comuns aos demais
membros da comunidade. Em sociedades organizadas em linhagens, ele é alguém de
fora dos sistema, ele não pertence. Devemos acrescentar também que os primeiros
cativos foram mulheres e crianças. Assim, a escravidão provavelmente nasceu junto
às instituições formativas daquilo que chamamos de dominação masculina (DAVIS,
1984; FISHER e FISHER, 1971; MEILLASSOUX, 1986; MIERS e KOPYTOFF,
1977; THORNTON, 1992; LERNER, 1983; ROBERTSON e KLEIN, 1983).

* Palestra proferida no dia 02/10/2012 no III Seminário Internacional História e Historiografia, realizado na
Universidade Federal do Ceará. Agradeço ao CNPq pelo apoio à pesquisa da qual resultou este ensaio e ao
PPGH-UFC pela oportunidade de apresentá-lo.
** Professor Doutor – Universidade Federal de Pernambuco.

239
No Brasil independente, a escravidão há muito deixara de ser apenas um
sistema econômico; tornara-se um modo de vida, uma forma de perceber, entender
o mundo e agir sobre ele. Era uma instituição ubíqua. Ser um escravo era um
infortúnio pessoal de quem o era, mas algo normal para os demais que tinham ou não
escravos. Não quero dizer que fosse justo ou aceitável, apenas normal, como é hoje
em dia, haver crianças de rua no Brasil. Regra geral, comprar escravos era o melhor
investimento até bem perto da abolição, inclusive para aqueles que haviam saído da
escravidão para o mundo dos libertos. Pernambuco não escapa a essas regras gerais
e serve de modelo para sociedades escravistas do Atlântico escravista por motivos
simples e diretos. Primeiro, não é a mais antiga sociedade do novo mundo a receber
cativos da África. Está longe disso em comparação com a América argentífera, o Alto
Peru, a Nova Espanha e o Caribe de Colombo. Mas uma vez rotinizado, o comércio
atlântico de escravos no final do século XVI permaneceu intenso até metade do XIX,
quando já havia se esvaído em várias partes da América, inclusive na antiga América
argentífera. Foi em 1542 que o donatário Duarte Coelho pediu à coroa autorização
para ir buscar cativos na Guiné para sua capitania.1 Foi bem sucedido. O resultado é
que Pernambuco é o terceiro maior local de desembarque de cativos africanos de todo
o Brasil. Numa perspectiva mais ampla, é o quinto das Américas (SILVA e ELTIS,
2008). Vale salientar que há poucos locais que receberam gente na mesma escala que
Pernambuco, bem distribuídos por três séculos seguidos. Só a Bahia compartilha esta
inglória constatação, pois o maior de todos os portos, o Rio de Janeiro, entrou até
cedo na rota do tráfico, mas apenas como entreposto do comércio de cativos para o
rio da Prata, o caminho fluvial para o litoral argentino e dali para o mundo andino.
A antiga capitania de Duarte Coelho serve, portanto, de modelo para
avaliarmos as articulações entre a história da conquista do Brasil e expansão do
sistema de plantation com a história política da África atlântica, de onde vieram para
as Américas mais de 12 milhões e meio de pessoas como escravos. O estudo dessas
articulações permite ainda uma melhor compreensão do trajeto entre o cativeiro e
escravização dos aborígenes até sua substituição por africanos. É essa inserção de
Pernambuco no tráfico atlântico, provocando a substituição dos cativos indígenas
por cativos africanos e consolidando o sistema de plantation, que vamos abordar aqui.
Nunca é pouco lembrar que antes da chegada de gente da África, a mão-
de-obra escrava indígena já estava sendo empregada em larga escala. Quando a
Companhia das Índias Ocidentais tomou Pernambuco em 1630, supõe-se que já era
africana a maioria dos escravos na cana-de-açúcar. Mas isso ainda é uma suposição
e, mesmo que baseada em indícios vários, não quer dizer que não houvesse mais
indígenas no cativeiro. Longe disso. É impossível precisar quantidades exatas, mas
é sabido que ainda havia um contingente significativo de índios escravizados às
vésperas da invasão holandesa em 1630. Tanto que, quando tomaram o Maranhão, os
próprios holandeses trouxeram índios escravizados do norte do país para a produção

240
açucareira. Escravizar o gentio, portanto, já era uma atividade rotinizada. Periodizar a
transição do trabalho escravo indígena para o africano é uma questão que preocupa a
historiografia brasileira há muito tempo e não é de fácil solução (HEMMING, 1978;
MONTEIRO, 1994; CUNHA, 1992).
O problema começa com o próprio termo “transição”, herança do modelo dos
“modos de produção”, que sugere a falsa ideia de que, num determinado momento
meio que exato, os povos nativos deixaram de ser escravizados, sendo substituídos
por africanos. Nas capitanias mais antigas, sabemos que a escravidão indígena e
africana conviveram durante muitas décadas, como demonstra uma historiografia
também já antiga. O que houve, portanto, foi um aumento gradual da chegada de
africanos em meio à diminuição da população indígena escravizável, seja por morte,
fuga ou simplesmente pela incorporação às missões ou à população pobre livre,
como moradores de engenho e fazendas ou mesmo habitantes das povoações do
interior. Nos censos apareceriam às vezes como caboclos; outras, talvez até mais, no
meio dos pardos. Tal como a imensa maioria dos afrodescendentes livres e libertos,
ingressaram na massa da clientela urbana e rural. Assim, talvez seja mais exato falar
de um processo de desescravização paulatina da população indígena do que de uma
transição propriamente dita. O processo de abolição da escravidão indígena ocorreu
um século antes da abolição da escravidão africana, mas também foi lento e gradual
como bem demonstrou Muriel Nazzari (1999).
A periodização desse processo está articulada a um outro problema: a
quantificação do tráfico. Quantificação complicada, como há muito alertou Philip
Curtin, que inaugurou o uso de métodos quantitativos rigorosos para avaliar o tráfico
e, mesmo assim, não deixou de apontar o perigo de reduzir o problema a números
apenas. O estudo de Curtin foi muito lido, muito criticado, mas foi a partir dele que
surgiu um debate historiográfico propriamente dito sobre a questão da demografia
do comércio de escravos - tanto o atlântico, como o interno na África e mesmo nas
Américas. O tráfico atlântico era um negócio complicado, que envolvia o transporte
de gente do ponto de escravização para os locais de embarque no litoral africano e
dali para o novo mundo, de onde muitas vezes eram encaminhados para mercados
interior adentro. Nunca se saberá exatamente quantos sobreviveram a todos esses
percursos, vindo efetivamente a trabalhar nas Américas, como bem apontou David
Henige. É por causa dessa dificuldade que Philip Curtin, no seu célebre estudo de
1969, com arguta ironia chamou os gráficos e tabelas que ele mesmo elaborou de
numbers game, já que game tanto quer dizer jogo como brincadeira de criança. Nesse
sentido, é um alento para nós, hoje em dia, poder contar com o site slavevoyages.org,
com um censo em permanente atualização, o qual utilizaremos no correr deste artigo
(CURTIN, 1969; HENINGE, 1987; LOVEJOY, 1982).
Claro que, como há muito indicou Curtin, há processos cuja quantificação
precisa ainda é uma possibilidade distante, mas na maioria dos casos já é possível

241
indicar volumes com razoável grau de confiabilidade e, principalmente, apontar
tendências gerais e proporções com mais precisão ainda. Hoje sabemos muito mais
do que na época de Curtin, devido a inúmeras pesquisas realizadas nesses quarenta
anos. Curtin, em 1969, chegou a uma cifra total para o tráfico de pouco menos de 9,6
milhões de pessoas. Hoje, no momento em que estou aqui falando, o slavevoyages.
org indica mais de 12,6 e este volume tem aumentado. Não obstante, as proporções
observadas por Curtin, entre quanta gente veio para o Brasil ou para o Caribe, por
exemplo, ou que proporção do total de pessoas vieram em diferentes séculos, foram
ajustadas mas não radicalmente, exceto para uma ou outra localidade específica,
quando a falta de dados levou Curtin a especular equivocadamente, mesmo que
tenha cometido menos equívocos do que outros que vieram, como apontou Paul
Lovejoy ainda na década de 1980 (1982).
O comércio atlântico de cativos africanos é anterior à colonização do Brasil. A
Casa dos Escravos já funcionava em Lisboa em 1486, para regulamentá-lo não só para o
mundo mediterrâneo e Europa, mas também para as ilhas do Atlântico onde Portugal
produzia açúcar de cana, dominando o mercado na época em que Cabral chegava
ao Brasil. Na década de 1480, Antuérpia já era o principal mercado consumidor,
centralizando a indústria de refinamento do produto. Em 1513, a produção da Ilha
da Madeira era tão importante que o rei de Portugal presenteou o papa com estátuas
sua e dos 12 cardeais, todas de açúcar em tamanho natural (PINTO e CARREIRA,
1979; CURTIN, 1969; GALLOWAY, 1989; SAUNDERS, 1982; VERLINDEN,
1970; ALENCASTRO, 2000).
Os portugueses tinham feito várias experiências de ocupação, exploração
e administração no ultramar antes de se instalarem no Brasil. Não é destituída de
razão a hipótese, também já antiga, de Charles Verlinden de que a colonização do
Novo Mundo foi uma adaptação de instituições adotadas anteriormente em outros
lugares. Verlinden apontava para uma linha de continuidade entre os modelos da alta
Idade Média e a Era das Navegações. Este modelo sofreu muitas críticas, afinal de
contas, as experiências, o aprendizado por tentativa e erro nas Américas resultaram
em mudanças institucionais qualitativas, mesmo que alguns eixos fundamentais
tenham sido mantidos, como inclusive já havia sido apontado por Freyre e Buarque
de Holanda para o caso brasileiro. Mudanças cada vez maiores, à medida em que o
tempo passava e os desafios exigiam respostas cada vez mais complexas. Mas é certo:
a escravidão africana e o tráfico já estavam estabelecidos quando Duarte Coelho veio
para Pernambuco. Os colonos do Brasil não tinham cabedais para começar por si o
tráfico se ele já não existisse e fosse um negócio lucrativo. É por essa razão que é um
paradoxo compreensível, a também já antiga ideia de Fernando Novais de que foi o
tráfico que acarretou a escravidão africana no Brasil e não o contrário (HOLANDA
[1936], 1978; FREYRE [1933], 1980; MARCHANT, 1942; NOVAIS, 1978;
VERLINDEN, 1970).

242
Supõe-se que os primeiros africanos escravizados trazidos para o Novo Mundo
teriam sido trabalhadores especializados e semiespecializados, provavelmente ladinos
das ilhas atlânticas, principalmente de São Tomé, talvez até da Europa, pois para as
rotinas mais brutas eram empregados escravos indígenas, enquanto havia nativos em
massa para escravizar. Também houve gente trazida da África especialmente para fins
paramilitares. Argumenta James Lockhart que, na América hispânica, toda vez que se
buscava fazer guerra aos índios, eram empregados negros. O mesmo aconteceria no
Brasil. Não temos como saber as funções desempenhadas pelos primeiros africanos
que vieram para Pernambuco, mas não há razão para pensar que tenha sido diferente
do resto do novo mundo. Os negros vindos da Senegâmbia eram principalmente
artesãos e trabalhadores domésticos, segundo estudos para o resto das Américas. Mas
também deve ter vindo gente com outras funções específicas. Um dos primeiros
documentos a mencionar a presença africana no Nordeste, a descrição de Hans
Staden dos defensores de Itamaracá em 1548, diz que havia 30 negros entre eles, além
de vários aborígenes (“escravos brasileiros”) e “noventa cristãos”, combatendo juntos
contra o cerco indígena, que chegou a durar um mês, segundo o célebre mercenário
europeu. Posteriormente, índios seriam utilizados para combater quilombos e negros
para combater índios durante a conquista do interior (CARVALHO, 1998; CURTIN,
1969, 1990; LOCKHART, 1983; STADEN [1557], 1974; THORNTON, 1992).
É razoável supor, todavia, que logo no começo não vieram cativos diretamente
da África para Pernambuco. Talvez até tenha chegado um ou outro navio, afinal de
contas, Pernambuco é o ponto mais perto do Congo e Angola de toda a América.
Mas, se isso aconteceu, deviam estar a caminho de Cartagena ou Veracruz e pararam
em busca de água, víveres frescos ou em arribada forçada. Como bem demonstrou
Pierre Chaunnu, a navegação atlântica na primeira metade do XVI ainda era mais
aventura do que ciência. Incerteza encarece custos, ainda mais num momento em
que os mercados mais certos estavam noutros lugares – e não falo aqui apenas da
América argentífera, capaz de pagar sem problemas pela compra de africanos, mas
das ilhas atlânticas que ainda viviam seu esplendor açucareiro e ficavam bem mais
perto da costa africana. A produção da Ilha da Madeira seria alcançada por São Tomé
na década de 1540. Muito próximo do reino do Congo, São Tomé se tornaria o
principal entreposto de escravos a serem reexportados para as Américas. Seria também
o primeiro exemplo de outras histórias mimeticamente repetidas através dos tempos:
açúcar, escravidão, desastre ecológico, rebelião escrava, baixa produtividade, declínio.
Em 1548, muitos navios saíam do Congo para lá. Cada um com “400 peças e daí
para cima”. O regime epidemiológico, todavia, era hostil aos europeus, como aliás
toda a África. O crescimento da população cativa e sua superexploração resultariam
em rebeliões a partir da década de 1580 que, junto com ataques holandeses cada
vez mais frequentes depois de 1590, terminaram inviabilizando a produção da ilha
de solos férteis e mão-de-obra de sobra (CHAUNNU, 1977; GALLOWAY, 1989;

243
MARQUES, 1986, vol. 1; CURTIN, 1969, 1991; PINTO E CARREIRA, 1979;
THORNTON, 1992; SAUNDERS, 1982; ALENCASTRO, 2000).
Ressalte-se ainda que, a partir da conquista dos impérios Asteca e Inca e
após a descoberta das principais minas na América hispânica (1544-1546), tudo se
direcionaria para lá (CURTIN, 1991; KLEIN, 1978; KNIGHT, 1990; LOCKHART,
1983; SCHWARTZ, 1985). Da perspectiva portuguesa isso fica claro até em mapas
dos séculos XVI e XVII, na qual o rio da Prata — caminho do contrabando para
Potosí — aparece muitas vezes superdimensionado. A escala da sua importância
supera em muito a realidade geográfica. Os traficantes portugueses lucrariam com o
asiento espanhol e com o contrabando de negros para o mercado platino, passando por
Sacramento. O Rio de Janeiro aos poucos foi se tornando um importante entreposto
nessa rota, tímida até a década de 1580, intensa no começo do XVII (CRESPI, 2001).
Apesar de todo o esforço na conquista do território, a “Nova Lusitânia” de
Duarte Coelho demorou a se tornar um importante mercado receptador de cativos
africanos. A fragilidade do nascente complexo açucareiro ainda era clara em 1559,
pois foi naquele ano que o Rei de Portugal autorizou o governador de São Tomé a
permitir a saída de 120 peças para cada senhor de engenho do Brasil, com a isenção
de 2/3 das taxas que normalmente decorreriam desse tipo de transação (ANDRADE,
1962; GALLOWAY, 1989; MARCHANT, 1942; COSTA, 1983-1985, vol. I). A
coroa, portanto, subsidiou o açúcar, como estratégia para aumentar a rentabilidade
do negócio, garantindo a ocupação da colônia. Esta medida, portanto, indica que, na
mesma época em que Pernambuco começava a se aproximar da Ilha da Madeira em
termos de volume de exportações, os senhores de engenho ainda precisavam de apoio
da coroa para importar cativos africanos, o que não ocorria com a América argentífera
apesar da viagem muito mais longa a partir da África.
Pela lógica da navegação atlântica, Pernambuco e secundariamente a Bahia
estavam no meio do caminho para os navios que saíam da Europa para a África, ou
da África para a América platina. Era ponto de parada para navios avariados, ou com
qualquer outro problema, principalmente aqueles que vinham de Angola e Congo.
A capitania de Duarte Coelho entra realmente no mercado atlântico de escravos
na década de 1560, quando recebeu 1.365 africanos, ou seja, 84% dos cativos que
entraram no Brasil naquela década, mas apenas 5% do total desembarcado nas
Américas como um todo, segundo os dados do site slavevoyages.org. Assim, numa
época em que ainda eram poucos os africanos no Brasil, eles já eram muitos na rica
América hispânica. Em 1545, os quilombos já haviam se tornado um problema
para a administração espanhola no Alto Peru. Isso mesmo levando-se em conta a
grande distância da África, o que acarretava uma imensa mortalidade na viagem,
encarecendo o preço do cativo no local de destino. Nesse começo, o tráfico para o
Novo Mundo ainda não era um negócio totalmente especializado. Lembra Lockhart
que, entre 1530 e 1560, a maior parte dos cativos levados para o Alto Peru vinham

244
com outras mercadorias, não eram a única carga dos navios, como depois. Segundo
Curtin, o tráfico da África direto para as Índias Ocidentais espanholas só começa em
1532. A expansão foi rápida. Na década de 1560, quando 28.745 pessoas vieram
da África para as Américas, havia pelo menos um negro para cada espanhol no Alto
Peru. A maioria eram escravos para uso pessoal dos senhores, incluindo aí artesãos e
serventes domésticos.
Na Nova Espanha, a situação era semelhante. A distância desses mercados,
inclusive por terra, uma vez desembarcados, dificultava a especialização do tráfico
no século XVI. Como a prata era o maior negócio do Novo Mundo, é de supor
que se desse preferência a cativos ladinos — os mais caros —, não apenas por se
comunicarem em alguma língua europeia e estarem adaptados e treinados nos
novos ofícios, mas também por estarem há mais tempo naquela condição. Ou seja,
sobreviveram à viagem desde o ponto em que foram escravizados ou aprisionados.
Haviam, portanto, resistido a diferentes regimes epidemiológicos desde a África até
as Américas. Não morreriam tão facilmente como os recém-chegados de diferentes
origens, inclusive africanos, ou os aborígenes do “novo mundo”, novo para todos,
inclusive para os aborígenes, como disse Leopoldo Zea (1991), pois foram invadidos
e submetidos a novas formas de organização social e política e brutais epidemias.
Para o trabalho direto nas minas e depois nas obrajes, com jornadas intermináveis
e altíssima mortalidade, eram empregados majoritariamente índios, embora sempre
houvesse cativos africanos, principalmente na extração de ouro e em funções mais
especializadas na extração da prata e nas vilas. A população indígena no Alto Peru
e Nova Espanha foi empregada em vários arranjos de trabalho servis e semisservis,
da escravidão pura e simples à encomienda e ao repartimiento, culminando com o
trabalho “livre”, ante a falta de alternativas de sobrevivência da população destituída
pela conquista. Na produção açucareira quinhentista na planície peruana, o negro
crioulo ou africano, mesmo quando cativo, nem sempre era um trabalhador do eito,
mas o capataz, o carpinteiro, o servidor doméstico. Nos engenhos do México central,
todavia, já se pediam africanos à coroa desde 1524. Em 1534, já eram empregados nas
operações de refino nos engenhos de Hernan Cortez. A plantation no Novo Mundo,
portanto, começou com a conquista. Escravos especializados certamente vieram das
ilhas atlânticas e mesmo já encomendados com essa finalidade na costa da África,
onde a nobreza local, salvo exceções, viu no tráfico uma excelente oportunidade
de negócios. Em Pernambuco, Duarte Coelho, em carta de 1549, mencionou que
trouxe para Pernambuco gente das Canárias, ilha cujo apogeu açucareiro já havia
passado. Quem sabe, alguns dos primeiros mestres do açúcar, feitores e negros ladinos
estariam entre essas pessoas (BARRET, 1970; MELLO e XAVIER, 1967; KLEIN,
1978; LOCKHART, 1983; PALMER, 1976).
Pode-se dizer, portanto, que na maior parte do século XVI era caro para
os senhores de engenho da América portuguesa comprar cativos africanos e difícil

245
competir com os importadores da América hispânica, capazes de pagar em prata e
ouro por suas compras. A Ilha da Madeira, por sua vez, também foi um mercado
importador relevante. Pernambuco, como vimos, só alcançaria Madeira no final da
década de 1560, tornando-se o principal produtor de açúcar do mundo atlântico na
década seguinte, ou ao menos alcançou o intenso e rápido surto da ilha de São Tomé.
De tão perto do Congo, São Tomé já nasceu recebendo cativos do continente até a
inviabilização da sua indústria açucareira que, como vimos, começou com as rebeliões
escravas, de 1574 a 1586, seguidas de ataques de corsários holandeses no final do
século e sucessivas pandemias que ceifaram a vida de todos. O banimento para São
Tomé foi bastante usado pela coroa lusitana como punição por crimes graves. Era
quase uma pena de morte, só que lenta. Se o condenado não morresse, a coroa ganhava
um funcionário, um aliado disposto a tudo para reverter sua situação. A produção
açucareira da ilha já importava 4 a 5 mil cativos anualmente por volta de 1516. No
final do século XVI, entrara em colapso. Pernambuco fechava o século XVI como o
maior produtor de açúcar do mundo e a capitania que mais comprava gente da África
(PINTO e CARREIRA, 1979; GALLOWAY, 1989; JOHNSON, 1984; MILLER,
1988; MARQUES, 1986, vol. II; SCHWARTZ, 1985; THORNTON, 1992).
De forma resumida, essas são algumas das variáveis atlânticas da equação.
Mas há ainda duas outras definições fundamentais para se entender o nascimento
e desenvolvimento de um fluxo permanente de imigrantes forçados da África para
Pernambuco. A primeira é a própria história dos locais de onde vieram os cativos para
as Américas. A segunda, a história da resistência indígena no Nordeste e da catástrofe
demográfica dos povos autóctones. Há correlações temporais entre o andamento do
processo de conquista do território indígena e o aumento gradual da importação de
cativos africanos para o Nordeste.
A escravidão era onipresente na África subsaariana, aponta Alberto da Costa e
Silva (2002). Na ausência de um sistema prisional e sendo as relações sociais baseadas
em sistemas de linhagem com variadas formas e escalas de dependência pessoal, o
cativeiro de estrangeiros capturados em guerra, ou que se ofereciam por fome, ou a
exclusão de alguém da linhagem por delitos diversos resultavam em escravidão. John
Thornton (1992) e Patrick Manning (1990) indicaram duas questões que também
ajudam a entender a permanente oferta de gente à venda na maior parte da costa
África subsaariana entre os séculos XVI e XVIII.
De acordo com Thornton, na maior parte da África subsaariana pré-colonial,
a noção de propriedade privada da terra não se desenvolveu plenamente. Para aquele
autor, essa foi uma das principais razões por que a população do continente serviu
perfeitamente para o tráfico internacional, tanto atlântico quanto pelo Oceano
Índico e pelo Saara. Lembra Thornton que, a rigor, ser dono de terra é ser dono
de areia, que por si nada vale. A propriedade privada da terra, basicamente, é uma
abstração para explicar a possibilidade de se forçar alguém a trabalhar para outra

246
pessoa: o dono da terra. Na maior parte da África subsaariana essa abstração foi
dispensada. O que importava era o controle direto sobre pessoas e não sobre a terra.
Guerras na Europa e no Oriente resultavam em conquistas territoriais. Guerras na
África resultavam em cativos disponíveis para venda, troca e emprego em diversas
atividades, principalmente domésticas e suntuárias. O escravismo permeou também
as relações tributárias entre mandantes e súditos. Muitas comunidades que nunca
conheceram a noção de propriedade territorial não somente tinham escravos como
participaram ativamente do comércio interno e internacional de cativos. Como
havia sempre comerciantes ávidos para comprar quem estivesse à venda, o comércio
externo de escravos continuou por muitos séculos (DAVIS, 1969, 1984; MIERS e
KOPYTOFF, 1977; PATTERSON, 1982).
Patrick Manning (1990), por sua vez, explica que, devido à baixa produtividade
agrícola na maior parte da África subsaariana, regra geral, para aqueles que controlavam
o acesso à terra e possuíam cativos, era melhor negócio vender o trabalhador do que
empregá-lo localmente. O produto do seu trabalho não trazia a mesma rentabilidade
da sua venda. Assim, tanto o tráfico transaariano quanto o atlântico continuaram
rentáveis para a nobreza africana até sua extinção.
Vale salientar todavia que, desde os tempos mais remotos, geralmente a
escravidão era mais uma instituição social do que econômica. Em sociedades
organizadas em linhagens, uma pessoa excluída do sistema, por qualquer razão que
fosse, tornava-se um estrangeiro, alguém que não pertencia, alguém excluído do
conjunto de direitos e atribuições que hoje em dia chamamos de cidadania. Esse era o
primeiro passo para a escravidão. Os escravos eram empregados em muitas atividades
mas, regra geral, não produziam para o mercado. Executavam principalmente
serviços pessoais para o(a) senhor(a). A escravidão nas Américas teve a singularidade
de ter sido um sistema voltado principalmente para a produção de mercadorias, o que
acarretou numa maior intensidade da exploração e dos maus-tratos. O contraponto,
todavia, foi a possibilidade de se comprar a alforria, algo comum a cativos envolvidos
no mercado e praticamente inexistente na África, como indica Alberto da Costa
e Silva. Apesar disso, houve escravos desempenhando outros tipos de atividade
no Novo Mundo, inclusive de caráter suntuário, como as mucamas e pajens por
exemplo. Havia escravos no Brasil em posições de poder a mando de seus senhores
e até cativos que tinham cativos, como aquele cativo encontrado por Henry Koster
em um engenho dos frades beneditinos (DAVIS, 1969; FINLEY, 1986; FREYRE
[1933], 1980; PATTERSON, 1982; SILVA, 2002; KOSTER [1816], 1978).
O tráfico transaariano duraria até o século XX. É muito difícil quantificá-
lo, mas sabemos que após conquista árabe no século VII ampliou-se, trazendo
milhões de pessoas para o Mediterrâneo. O que ocorreu no litoral da “Guiné” dos
portugueses quinhentistas (ou “África Ocidental”, para usar um anglicismo muito em
voga atualmente) foi o aparecimento de uma nova linha de escoamento do comércio

247
interno de escravos, que existia com maior ou menor intensidade em cada lugar,
mas era praticamente onipresente. O período em que os portugueses caçaram gente
no litoral — o filhamento de escravos no século XIV e XV — foi curto. Cedo as
comunidades costeiras aprenderam a se defender. Era bem mais fácil comprar gente do
que capturar. O próprio infante Dom Henrique, aventureiro mor do reino, pensava
assim. O resultado é que os comerciantes europeus e mestiços dos povoados e feitorias
no litoral aliaram-se ao fornecedores locais. Aos poucos, principalmente na chamada
“Costa dos Escravos”, surgiram unidades políticas mais amplas com fortes conexões
com o tráfico atlântico. Mas mesmo em casos extremos, como Daomé, havia outros
interesses econômicos em jogo além do tráfico. Eram a nobreza e os comerciantes
africanos quem controlavam a oferta e não os negociantes europeus. Nos períodos de
guerras, secas ou carestia de víveres em geral, não faltava gente para ser exportada. Em
épocas de relativa abundância e paz, ou mesmo quando os preços pagos no mercado
interno eram mais atrativos, os navios negreiros demoravam para completar a carga. A
oferta de cativos nem sempre respondia imediatamente à demanda atlântica. Houve
portos prolíficos em gente que fecharam suas portas por motivos internos, como os
reinos do Benin e do Congo, entre a metade do século XVI e o começo do XVII. Em
cada local da costa, havia negócios e interesses específicos, tanto que os portugueses
chegaram a vender escravos na chamada Costa do Ouro (onde hoje fica Gana) em
troca de ouro, tornando-se traficantes dentro da própria África. Com o tempo a
nobreza africana foi sofisticando sua demanda, exigindo produtos mais refinados do
que cachaça ou fumo de rolo. Davam inclusive preferência a quem podia pagar em
ouro ou prata pelos cativos. (CURTIN, 1969, 1990; LOVEJOY, 1983; MANNING,
1990; MILLER, 1988; MARQUES, 1986, vol. II; THORNTON, 1992; LOPES,
2008; STABEN, 2008).
Quando Duarte Coelho fundou sua Nova Lusitânia, o principal ponto
do tráfico era o reino do Congo, cujo manicongo cristianizara-se. A aliança seria
consolidada a partir do reinado do seu filho, que adotou o nome de Afonso I e
reinou de 1505 a 1543. Nunca saberemos ao certo até onde, em seu foro íntimo,
fora sincera sua conversão. Mas sabemos que a adoção de uma religião monogâmica
com liturgia e divindades próprias era um golpe contra a aristocracia e os sacerdotes
tradicionais. O catolicismo não era apenas uma religião, mas um código de conduta
embebido de uma cultura mercantil e política. Ao tornar-se Afonso I, o manicongo
se desvencilhava de toda uma série de tradições e laços políticos que não pretendia
manter. Em suas guerras internas ganhava ainda um aliado com o qual podia adquirir
armas e vários outras mercadorias relevantes no comércio interno. Isso sem falar dos
soldados aventureiros europeus que, bem armados, entendiam a possibilidade da
morte como cruzados, ou seja, um martírio, uma redenção. Livravam-se também dos
prisioneiros, sem precisar imolar os filhos e maridos das mulheres cativas assimiladas
aos haréns dos vencedores. Pouco a pouco, todavia, a nobreza costeira sob a suserania

248
dos manicongos percebeu ali uma oportunidade. Não precisavam do rei para negociar.
Bastava ter um porto para vender gente. Os negociantes atlânticos afluíram para esses
portos, enquanto o reino do Congo afogava-se cada vez mais em guerras externas e
conflitos de sucessão que, a longo prazo, iriam levar a seu esfacelamento (PINTO e
CARREIRA, 1979; CURTIN, 1991; LOVEJOY, 1983; MARQUES, 1986, vol. II;
THORNTON, 1992).
Podemos supor que vieram africanos para Pernambuco para implantar
engenhos nos moldes das ilhas atlânticas. Deviam ser poucos no começo, mas,
em 1551, o padre Nóbrega mencionou a presença de muitos negros na capitania,
provavelmente ladinos vindos das ilhas ou mesmo de Portugal. A massa dos cativos
era formada por indígenas até a última década do XVI. Os primeiros cativos
indígenas foram fornecidos pelos próprios aborígenes que trocavam seus prisioneiros
por utensílios europeus, da mesma forma como faziam com o pau-brasil. Os
colonos, portanto, num primeiro momento, puderam se beneficiar dos conflitos já
existentes entre as sociedades indígenas. Contudo, o açúcar precisava de mais mão-
de-obra do que essas guerras forneciam. Mesmo porque havia limites ao escambo.
Não interessava aos índios negociar na escala exigida pelo capital mercantil. Duarte
Coelho queixou-se em 1546 que os nativos não queriam mais trabalhar porque já
possuíam os utensílios europeus de que precisavam para suas atividades diárias e isso
lhes bastava. A culpa, segundo o donatário, era dos contrabandistas de pau-brasil que
repassavam os produtos mais variados, até armas de fogo. Como os índios não tinham
uma ideologia de acumulação de riqueza na escala dos colonos, nem um “mercado”
propriamente dito, contentavam-se com o suficiente para suas rotinas, basicamente
aquilo que podiam carregar consigo (HEMMING, 1978; MARCHANT, 1942;
MELLO e XAVIER, 1967; HEMMING, 1978).
Atrair os nativos para o trabalho voluntário na cana era obviamente
impossível. No século XVII, surgiu um ditado no Caribe: a cana mata. Com suas
rotinas de plantio, limpas, transporte e moagem era, e é, trabalho duríssimo, sem
nenhuma vantagem simbólica ou material correspondente para as populações
nativas. Cedo começou a caçada de gente. Na década de 1540 já havia lanchões
pela costa que entravam pelos rios adentro, apreendendo gente para depois vender
aos colonos (MELLO e XAVIER, 1967; HEMMING, 1978; KNIGHT, 1990;
GALLOWAY, 1989). Não queriam apenas homens para o eito. Queriam também
mulheres. Aliás, foi justamente pela onipresença delas nas casas que o Padre Nóbrega
afirmou que não era preciso mandar mulheres para o Brasil (JOHNSON, 1984). É
impossível avaliar a dimensão desse “filhamento” de índios. Culturas inteiras foram
devastadas, mesmo porque os europeus foram hábeis diplomatas, manipulando
as inimizades entre diferentes povos, armando e apoiando seus aliados contra os
outros, que se tornavam caça. E para onde iam, levavam doenças para as quais os
nativos não tinham defesa. Isso independia de intenções. Um frade franciscano
desarmado trazia as mesmas epidemias que um bandeirante.

249
Como sempre na história, as pessoas precisam justificar suas ações no plano
moral. Por mais absurdas que pareçam as justificativas para os grandes crimes da
história aos olhos dos observadores posteriores, elas faziam sentido para muitas
das pessoas que viveram o momento. Era isso que importava para os colonos. Foi
então utilizado o mesmo pretexto já empregado na América espanhola. Em tese,
qualquer índio capturado por índios poderia vir a ser objeto de sacrifício em festas
e rituais religiosos. Assim, o argumento legitimador da escravização era “resgatá-
los” da morte, surgindo então um eufemismo: o “resgate de índios” — ou rescate de
indios, na América espanhola. O apogeu dessa prática no Nordeste brasileiro ocorreu,
aproximadamente, entre a metade da década de 1540 e os primeiros anos do século
XVII, levando caçadores e negociantes de escravos cada vez mais longe de Olinda em
direção ao interior e ao norte da América portuguesa.
O resgate seria proibido pela coroa em 1570, em 1595 e em 1609. Proibições
frouxas, pois era difícil de ser aplicada pelo interior afora e havia sempre exceções à
regra, sendo que a lei de 1609 — a mais avançada de todas — gerou tanto protesto
entre os colonos que acabou sendo modificada por uma outra, em 1611, que permitia
o “resgate” de canibais, reabrindo portanto a clássica exceção de sempre. Isso significa,
portanto, que na mesma época em que se intensificava o comércio de cativos da
África, continuava intensa também a escravização das populações autóctones.
A gente da terra e os europeus lutaram ferozmente pela Nova Lusitânia. A
vantagem tecnológica dos portugueses era grande, mas não suficiente para uma vitória
fácil. As armas de fogo demoravam muito a serem recarregadas, as armaduras eram
pesadas e quentes. Pode-se dizer que, pelo menos até o começo da década de 1550,
os colonos portugueses estavam ainda na defensiva. A vitória era incerta. Olinda
e Igarassu foram cercadas e quase destruídas no final da década de 1540. Tiveram
sorte os colonos, pois todas as capitanias foram devastadas, exceto Pernambuco,
Ilhéus, São Vicente e Itamaracá. O donatário do Espírito Santo, que chegou rico ao
Brasil, terminou pobre, vivendo da caridade pública, segundo um cronista coevo.
O capitão de São Tomé perdeu seu dinheiro e um olho na luta contra os índios,
retomando a vida como simples comandante de navio. Porto Seguro foi varrida pelos
botocudos, que voltariam a ser combatidos ferozmente já no período joanino, sendo
inclusive escravizados em meio à Independência do Brasil. A capitania da Bahia foi
desmantelada pelos índios e por essa razão retomada pela coroa que instalou ali o
governo geral em 1549. Era um esforço final de conquista. Se tivesse fracassado,
seria o fim. A partir de Mem de Sá, o “truculento Mem de Sá”, diria Capistrano de
Abreu, a guerra foi brutal, sem quartel. Não faltam casos demonstrando a destreza
militar dos habitantes originais do continente (PRADO, 1939; ANDRADE, 1962;
HEMMING, 1978; MARCHANT, 1942; COSTA, 1983-1985, vol. I; JONHSON,
1984; STADEN [1557], 1974).
A Nova Lusitânia só se consolidaria depois de 1550, com o ataque geral liderado

250
por Jerônimo de Albuquerque contra os habitantes da várzea do rio Capibaribe. Foi
incalculável o número de gente escravizada. Mas os índios resistiram e conseguiram
parar o avanço português naquela que foi a primeira das grandes batalhas no morro
dos Guararapes. Durante as guerras da década de 1550, e até nas décadas seguintes,
foi fundamental para os lusitanos as alianças com os próprios aborígenes, que muitas
vezes os percebiam como possíveis aliados contra seus adversários históricos. Depois
de séculos guerreando entre si, era difícil para a gente da terra perceber que, na
realidade, eram os colonos os principais inimigos. Foi com a colaboração de Tabajaras
e Potiguares que os portugueses conseguiram exterminar, e escravizar é claro, os caités,
que haviam devorado o Bispo Sardinha e outros cento e tantos náufragos. Enquanto
isso, nas feitorias e povoações coloniais, aos poucos formava-se uma comunidade
mestiça, luso-indígena, não assimilada às comunidades indígenas, mas inserida nos
laços clientelares da sociedade colonial (PRADO, 1939; ANDRADE, 1962; COSTA,
1983-1985, vol. I; SOARES DE SOUZA [1587], 1987).
A década de 1560 definiu a conquista da zona da mata pernambucana. Foi o
apogeu da escravidão indígena na capitania. Logo no começo da década, houve uma
daquelas secas que de vez em quando abrasam o Nordeste. Comunidades inteiras
buscaram o litoral a procura de água, como sempre faziam em tempos de seca. Só que
agora os portugueses e seus aliados nativos e luso-indígenas ocupavam as várzeas dos
rios. Dizem os cronistas que os aborígenes vendiam até seus filhos. Se é verdade, vale
a pena perguntar, será que eles tinham uma noção das consequências legais desse ato?
Uma coisa é certa, desde tempos imemoriais, pais esfomeados vendem seus rebentos.
Não apenas para sobreviverem mas também para garantir o mesmo para os vendidos.
Nesse contexto brutal, os colonos atacaram os habitantes do entorno do Cabo de
Santo Agostinho, porto natural importante para a expansão da indústria açucareira
(PRADO, 1939; ANDRADE, 1962; COSTA, 1983-1985, vol. I).
Depois da conquista do Cabo, partiram para escravizar os índios da várzea do
rio Serinhaém, mais ao sul, os quais, dizem os cronistas, haviam aproveitado a confusão
para devorar os adversários dos portugueses e terminaram devorando também alguns
aliados. Ao serem advertidos, não se curvaram aos mensageiros da Nova Lusitânia, que
aliás deveriam estar apenas procurando algum pretexto para escravizá-los e tomar-lhe
a terra. Os índios mandaram dizer que nada tinham contra os portugueses, mas que
se estes quisessem, não temeriam guerreá-los também. E devorá-los, claro. A luta foi
terrível. Derrotados, os nativos se retiraram do combate em formações organizadas,
protegendo sempre suas mulheres, velhos e crianças. Estava consolidada a conquista
do litoral. A partir de então, inúmeros indígenas se entregavam sem luta, de tal forma
que muita gente era trazida amarrada — “índios de corda”, como se diria depois no
sertão pernambucano — e vendida nas feiras livres. Custavam pouco: o preço de um
carneiro. No final da década de 1560 já saíam bandeiras de Olinda sertão adentro,
caçando e comprando gente. Provavelmente mais caçando do que comprando. Houve

251
até um padre, que sabia fazer um pouco de mágica, que se especializou no comércio
de índios. Enriqueceu, mas terminou apanhado pela inquisição em 1571 (PRADO,
1939; ANDRADE, 1962; COSTA, 1983-1985, vol. I).
Foi a escravização maciça da população indígena que alavancou o açúcar ao
ponto da capitania alcançar a Ilha da Madeira ainda nos anos 1560. Pernambuco só
tinha um engenho em 1542 e cinco em 1546. Passou a ter 23 por volta de 1570,
na mesma época, portanto, em que a coroa portuguesa proibiu pela primeira vez
a escravização indiscriminada do gentio (PRADO, 1939; ANDRADE, 1962;
GALLOWAY, 1989; HEMMING, 1978; JOHNSON, 1984; ABREU, 1976). Mas
é justamente entre o final da década de 1560 e os anos 1570 que aparecem problemas
com o fornecimento de mão de obra. A fonte não era inesgotável. Era preciso ir
cada vez mais longe para encontrá-los, pois os que estavam aldeados, “descidos”
na marra inclusive, ao menos legalmente não podiam ser escravizados. E quando
se conseguiam escravos, eles morriam. Morriam tentando fugir. Morriam porque
reagiam ao trabalho forçado. Humilhação dobrada para os homens, já que nas suas
comunidades a agricultura era tarefa de mulheres e não de guerreiros (como aliás
também na maior parte da África subsaariana). Morriam de torturas e maus-tratos,
mas morriam principalmente das doenças trazidas do Velho Mundo.
A principal razão do extermínio dos índios foram os micro-organismos
trazidos pelos europeus e africanos, causando doenças para as quais a população local
não tinha a menor imunidade, como a varíola, a febre amarela, o tifo, a malária, a
tuberculose, o cólera, a sífilis e até os surtos de gripe mais fortes que também matavam.
Ensina Alfred Crosby que, quando dois povos se encontram, as trocas microscópicas
são bem maiores do que as trocas culturais. Isso se aplica em escala mundial, inclusive
no Velho Mundo. Isolados do resto dos homens por milhares de anos, os habitantes
das Américas tinham uma imensa desvantagem imunológica. Morreram aos milhões
(CROSBY, 1972; CURTIN, 1968, 1991).
Nessa guerra microscópica, os africanos levavam vantagem tanto sobre os
índios como sobre os europeus que morriam rapidamente na África. Os africanos
conviviam com as moléstias europeias desde a costa da África, e com outras tantas
doenças tropicais que atingiam muito menos os povos ao norte do Mediterrâneo por
razões ecológicas. Convém ressaltar que, quem chegava com vida nas Américas, havia
antes atravessado grandes distâncias dentro da África, sofrendo todo tipo de violência,
fome e sede, convivendo com centenas de pessoas na mesma situação, vindas de
várias outras aldeias. Era, portanto, gente com altíssima imunidade. A experiência no
navio negreiro catalisava este processo. Os que tinham imunidade baixa morriam em
algum desses percursos. Além disso, boa parte da população africana tinha imunidade
genética à malária, um possível resultado de milhares de anos de seleção natural
beneficiando a longo prazo os que não pegavam a doença. Por último, uma das
vacinas mais antigas do mundo foi inventada na África, ao se descobrir que se uma

252
pessoa for inoculada com o pus de um doente de varíola, poderá contrair uma forma
menos maligna da doença, ficando imunizado. Dizem os especialistas no assunto que
em torno de 2% das pessoas inoculadas dessa forma adquiriam a doença com todos
os seus riscos. Sem a inoculação, o contágio era quase certo e a mortalidade, altíssima.
Um quarto dos enfermos não escapavam. Foi o que aconteceu com o império Inca,
onde a varíola chegou antes de Pizarro, subindo os Andes de doente em doente
desde os assentamentos espanhóis no litoral. A falta de defesa dos europeus contra
o regime epidemiológico africano inviabilizou as tentativas de conquista, ocupação
e colonização da África até a segunda metade do século XIX, quando ocorreu a
revolução científica iniciada por Pasteur, ao descobrir que os micróbios eram os
causadores das doenças e daí entender o contágio e a necessidade de se ferver a água.
Logo apareceram mais vacinas. Não é à toa que as potências europeias esperaram
tanto tempo para invadir a África efetivamente, repartindo-a como se fosse um bolo
(CROSBY, 1972; CURTIN, 1968, 1991; HEMMING, 1978).
Pode-se dizer que, logo no começo da experiência colonial nas Américas,
nenhuma das populações teve um crescimento vegetativo positivo. A não ser um
ou outro grupo isolado dos demais. Regra geral, morria-se mais do que se nascia nas
primeiras décadas de existência da Nova Lusitânia. E os que nasciam também partiam
cedo. Levou tempo para que o crescimento natural fosse positivo. A população
aumentava nas localidades ocupadas pelos europeus devido ao permanente influxo
de imigrantes, livres ou cativos. Os índios eram o grupo em maior desvantagem.
Em poucas décadas, regiões intensamente habitadas — em alguns casos até para os
padrões europeus — foram totalmente devastadas. Pernambuco não foi exceção. Não
se sabe exatamente quando a varíola chegou ao Brasil mas, entre 1562 e 1565, o
sistema colonial já estava bastante estruturado para documentar uma epidemia que
atingiu a costa brasileira, junto com um surto de influenza — gripe braba: pneumonia
para muitos índios. Não se sabe quantos faleceram país afora. Nas missões da Bahia,
de um terço a metade da população indígena aldeada pereceu. Pode-se inferir que
no interior a coisa não deve ter sido muito diferente. Lembra Flávio Guerra que,
antes de 1566, os portugueses não se atreviam a sair de Olinda por mais de uma ou
duas léguas. Depois daquele ano já se largavam interior adentro num raio de vinte.
Foi somente no começo do XVII que a população indígena sob o jugo espanhol
voltou a crescer naturalmente. No Brasil talvez isso nunca tenha acontecido antes
do final do século XX. Escrevendo em 1585, o Padre Anchieta disse que dos 40 mil
índios cristianizados que viviam nas missões, só restavam uns 10 mil. O resto havia
morrido devido às epidemias. Não é sem razão que os ianomâmis acreditavam que
a doença era algo que não existia antes. Foi trazida pelo homem branco (PRADO,
1939; MARCHANT, 1942; SÁNCHEZ-ALBORNOZ, 1984; HEMMING, 1978;
CROSBY, 1972; CURTIN, 1991; WACHTEL, 1984; GUERRA, 1970).
Essas diferenças em termos de imunidade ajudam-nos também a entender

253
alguns dados sobre o comércio de escravos nas Américas. No Brasil e nas minas do
Alto Peru e do México, um africano valia mais ou menos quatro ou cinco índios
lá entre a segunda metade do século XVI e o começo do XVII (LOCKHART,
1983; SCHWARTZ, 1985). Essa relação, 4 ou 5 por 1, como se fosse uma “taxa de
câmbio”, expressava a maior mortalidade indígena. É por isso que os africanos eram
mais valorizados. Dizer que os africanos eram mais valorizados porque praticavam
a agricultura e os índios do Brasil não, é ignorar a sofisticada agricultura de várias
comunidades autóctones que passavam anos no mesmo lugar plantando uma enorme
variedade de produtos, mesmo sem dispor da estrumação resultante da criação de gado.
Inventaram inclusive a farinha de mandioca, a “farinha de guerra” dos portugueses
quinhentistas, fundamental para o sucesso da própria empresa colonial. Alegar que
os africanos eram preferíveis porque os índios fugiam mais facilmente só pode ser
razoável para os primeiros momentos de ocupação. Não há por que subestimar a
capacidade de resistência dos africanos, afinal de contas o primeiro africano fugitivo
veio na segunda viagem de Colombo, como bem apontou Richard Price (1979).
Finalmente, é preciso não esquecer que sob o estalo do chicote qualquer pessoa
aprende qualquer tipo de trabalho, mesmo admitindo que os mais bravos protestam,
resistem e que há sempre os que morrem lutando.
As definições fundamentais para um rápido incremento da vinda de africanos
para Pernambuco aconteceram ainda na década de 1560, quando, segundo os dados
do slavevoyages.org, entraram 1.365 cativos africanos na capitania.2 Poucos, portanto,
mas representavam 84% de todos os que vieram para o Brasil naqueles anos. Na década
seguinte, vieram 2.612, praticamente o dobro. Representavam 79% dos africanos
desembarcados na América portuguesa e 12% de todos os cativos que vieram da
África para o novo mundo nos anos 1570. Nessa década, a caça indiscriminada da
chamada “gente da terra” tornara-se ilegal, o que não impediu a saída de bandeiras
interior afora cativando gente para trabalhar nos canaviais. Só que, pertinho do litoral
já não devia haver tantos índios escravizáveis. Os que restavam estavam na tocaia,
ariscos. Os portugueses então voltaram-se contra seus antigos aliados, os tabajaras,
que por volta da metade da década de 1570 finalmente aliaram-se a seus adversários
seculares, os potiguares, e passaram a guerrear juntos contra os portugueses pelo resto
do século XVI (PRADO, 1939; ANDRADE, 1962; COSTA, 1983-1985, vol. I).
Muitos devem ter sido escravizados nessa guerra. Mas, àquela altura,
aconteceram também mudanças no tráfico atlântico que ajudaram a aumentar o fluxo
de cativos africanos para Pernambuco. Foi em 1570 que Paulo Dias de Novais recebeu
Angola como capitania. Claro que isso era uma ficção. Os portugueses demorariam
séculos para dominar efetivamente a maior parte do território angolano, se é que
algum dia conseguiram. Mas a consolidação do porto de Luanda para o tráfico foi
uma virada importante, mesmo porque em 1570 começam guerras civis em Angola
e Congo, cujo resultado seria o aumento significativo de pessoas escravizadas para

254
serem exportadas pelo atlântico. Assim, no momento em que o tráfico a partir do
reino do Congo estancava, mais ao sul aumentava. Pernambuco consolidava-se como
o principal produtor de açúcar do mundo atlântico. Assim, num momento em que
aumentava a oferta de cativos para o tráfico em Angola, São Tomé deixava de ser um
importador para se tornar um entreposto do comércio para as Américas. Devem ter
vindo muitos cativos ladinos de lá para a capitania.
Os 23 engenhos de 1570 transformaram-se então em 66 em 1585. A segunda
capitania mais rica era a Bahia, com 36 engenhos nessa época. Diziam os cronistas
que, na década de 1580, um terço dos escravos da capitania de Duarte Coelho era
de origem africana. Anchieta falou que havia uns 10 mil africanos em Pernambuco.
Um outro jesuíta confirmou este número (PRADO, 1939; ANDRADE, 1962).
Os dados do slavevoyages.org indicam que 5.005 cativos africanos entraram em
Pernambuco na década de 1580. Outros 9.589 na década seguinte. Mais 18.658
na primeira década do século XVII. E mais de 35 mil nos anos 1620. Isso significa
que as importações de cativos da África praticamente dobraram a cada dez anos,
desde 1560 até 1620. Esse tendência só seria quebrada nos anos 1620, quando
42.494 cativos entraram em Pernambuco. Não era o dobro dos 35.202 africanos
que entraram entre 1611 e 1620, mais ainda assim representavam um incremento
de 21%. Em 1623, já eram 137 os engenhos de cana em Pernambuco. Mais que o
dobro dos 66 contados em 1585. Os índios, todavia, não foram deixados em paz
no último quarto do século XVII. Só que as populações mais próximas ou haviam
sido exterminadas, ou haviam migrado. Os que ficaram dificilmente escapavam das
epidemias. Nos anos oitenta do século XVI, as bandeiras que saíam de Olinda para
caçar gente alcançaram o Ceará, o Maranhão, talvez o Pará. Ao terminar o século
XVI, aponta H. Johnson, Pernambuco era o lugar mais rico do Brasil. Em 1593,
representava 56% da renda da colônia. O custo humano dessa riqueza é imensurável
(PRADO, 1939; ANDRADE, 1962; HEMMING, 1978; JOHNSON, 1984;
SCHWARTZ, 1985).
Entre 1600 e 1630, 96.354 cativos vieram da África para a capitania.
Representavam 41% de todos os cativos que vieram da África para a América portuguesa
e 29% de todos os que desembarcaram nas Américas (slavevoyages.org). Em termos
relativos, os vínculos de Pernambuco com a África nunca mais seriam tão fortes.
Um influxo assim tão intenso de cativos da África, concentrados numa nesguinha
de terra tão fina como a zona da mata pernambucana, teria profundas consequências
futuras. A escravidão como modo de vida, as relações senhoriais-escravistas as
mais brutais, consolidaram-se muito cedo na Nova Lusitânia de Duarte Coelho.
Há um dado muito simples, que costuma ser relegado e que ajuda a explicar
esse nexo Pernambuco-África. A capitania era mais perto de Angola do que
qualquer outro porto na América continental. Assim, a parte do preço do cativo
que representava o pagamento do frete era proporcionalmente menor. Os estudos

255
de Curtin, Klein, Verger demonstraram que a principal causa da mortalidade era
o tempo de viagem. Mais tempo, maior o contágio, maior a sede, maior a fome e
o consumo de víveres e água estragados. Uma travessia curta, portanto, significava
uma alta taxa de sobrevivência e uma remuneração alta. Devemos lembrar ainda
que, apesar da maior intensidade do comércio a partir do eixo Congo/Angola, vinha
muita gente também da África Ocidental, tanto que a área do Golfo da Guiné e de
Benin já aparecia nos mapas dessa época com o nome de “costa dos escravos”. De lá
também veio gente para Pernambuco, tanto que na guerra contra os holandeses havia
uma tropa só de “pretos Minas” (PINTO e CARREIRA, 1979; CURTIN, 1969;
MELLO, 1954; MILLER, 1976; THORNTON, 1992).
A destruição da indústria açucareira causada pela invasão holandesa trouxe
um declínio imediato no tráfico. A recuperação só viria no apogeu da experiência
holandesa. Somente entre 1636 e 1645, entraram mais de 24 mil africanos na
capitania, dos quais 5.465 desembarcaram em1644, o último ano de Nassau. Com
o acirramento da guerra, o tráfico novamente entrou em declínio (MELLO, 1978;
POSTMA, 1990). Convém ressaltar que, como o tráfico estava consolidado antes
da invasão, não há por que pensar que os senhores de engenho luso-brasileiros
não tivessem trazido, por sua própria conta, alguns navios carregados diretamente
da África naqueles anos. Esse fluxo direto da América portuguesa para a África se
consolidaria no século seguinte. O site slavevoyages indica que Pernambuco voltou a
ser um grande importador de cativos nos anos 1640, trazendo então 18.964 pessoas
da África. Representavam 27% de todos os cativos que vieram para o Brasil e 19%
dos que vieram para as Américas.
Na segunda metade do século XVII, dois dos governadores régios de Luanda
teriam papel preponderante na recuperação do tráfico para Pernambuco. João
Fernandes Vieira e André Vidal de Negreiros, heróis da guerra contra os holandeses,
sucederam-se no governo de Angola, entre 1658 e 1666. Foi no governo de Negreiros
— nome por sinal bastante sugestivo para um intermediário do tráfico de escravos
— que se armou uma expedição em 1665 contra o Congo. A violência foi tamanha
que marcou definitivamente o declínio daquele reino, iniciando um longo período de
guerras civis que iria durar até 1718, aumentando muito o fluxo de gente escravizada
para as Américas (POSTMA, 1990; MARQUES, 1986, vol. II; THORNTON, 1992).
Apesar da ajuda dos governadores vindos de Pernambuco, a década de 1660 foi
ruim para os produtores de açúcar do Brasil, que agora enfrentavam a concorrência
caribenha. As Antilhas tinham terra nova à vontade e ainda uma vantagem adicional,
a viagem em direção à Europa era mais curta. Aumentou também a concorrência
nos portos africanos. Mais capitalizados, os ingleses, franceses e holandeses também
levavam vantagem. Podiam pagar o que a nobreza africana, cada vez mais exigente,
demandava. Apesar de tudo isso, o tráfico de escravos para Pernambuco continuou
crescendo depois da restauração até ao menos a Guerra dos Mascates. A descoberta

256
das minas (1695) não quebrou essa tendência. Pelo contrário, nas décadas de 1690
e 1710, Pernambuco recebeu o dobro do número de cativos que vieram nas décadas
de 1670 e 1680 (slavevoyages.org). Convém lembrar que essa também foi a época
da chamada “Guerra dos Bárbaros”, que sangrou os sertões entre 1686 e 1720
(HEMMING, 1978; PIRES, 1990; PUNTONI, 1998). Além da tomar as terras dos
nativos, foi um pretexto para o cativeiro indígena numa época em que eles rareavam
na zona da mata.
Durante o XVIII, Angola continuou sendo o principal local de procedência
de gente escravizada para o Brasil. As relações entre os negociantes brasileiros e seus
contatos em Angola tornaram-se cada vez mais estreitas. Este predomínio do tráfico a
partir de Angola solidificou-se mais ainda depois de 1815, quando a Inglaterra impôs
tratados proibindo o comércio de escravos ao norte da linha do Equador. Depois de
tanto tempo, os núcleos luso-africanos em Angola só eram colônias portuguesas no
nome. Tudo girava em torno do comércio com o Brasil. No século XIX, tanto em
Angola como em Moçambique, surgiu um “partido brasileiro” durante o processo de
independência brasileira. A administração lusitana temia que suas colônias se aliassem
à nova nação independente, formando uma federação (CAPELA, 1979; DIAS, 1981;
REBELO, 1970).
Voltemos ao XVIII. A competição entre os traficantes era feroz àquela altura.
Sugere Miller que talvez os traficantes de Pernambuco tenham se mudado para o norte,
concentrando seus negócios em outros portos, como Ambriz, contornando assim a
hegemonia dos comerciantes do Rio de Janeiro, capazes de pagar em ouro (KLEIN,
1978; MILLER, 1988). Apesar disso, a capitania continuaria sendo um importante
nexo do tráfico, pois o açúcar nunca deixou de ser rentável e os ventos e as correntes
beneficiavam Pernambuco, que assim podia servir de ponto de redistribuição para
outras capitanias. De acordo com Carreira, na época das Companhias de Comércio,
Pernambuco intermediava o tráfico tanto para o Maranhão quanto para as minas
(1969).
No último quarto do século XVIII, Pernambuco começou a perder espaço na
Costa da Mina, área dominada por traficantes baianos, e em Benguela, dominada
por comerciantes do Rio de Janeiro. O tráfico para Pernambuco se concentraria
em Luanda. Apesar da concorrência, os dados do tráfico mostram que Pernambuco
foi capaz de se beneficiar da conjuntura favorável para seus produtos. Estava
havendo, portanto, um ajuste nas redes mercantis e não uma crise nas importações
pernambucanas de cativos. No final do XVIII, o tráfico para Pernambuco volta a se
expandir aceleradamente. 27.256 pessoas vieram da África na década de 1780. Nos
anos 1790, quando o algodão empinava, houve um aumento de 50% no tráfico.
Não menos do que 37.730 pessoas foram para a capitania naquela década. Na
primeira década do século XIX, 53.869 pessoas vieram da África para Pernambuco
na condição de escravos. Na década seguinte, 1811-1820, esse número subiu para

257
81.460 (slavevoyages.org). É o maior pico de toda a história de Pernambuco. Se
houve uma crise comercial do “antigo sistema colonial” no resto do Brasil, essa
regra não se aplica a Pernambuco. Os revolucionários de 1817 atuaram numa época
em que os produtores rurais estavam investindo maciçamente em seus negócios.
Confiavam, portanto, no retorno dos seus investimentos. Se depois as expectativas
não se realizaram é um outro problema. O fato é que havia confiança e investiu-
se muito em escravos na década de 1810 (MILLER, 1988; THORNTON, 1992;
STABEN, 2008; LOPES, 2008; CARVALHO, 1997).
Aqui, peço licença para esquecer um pouco volumes e pensar em termos
proporcionais. Isso tem uma lógica. A demografia do tráfico tem demonstrado que
os dados apresentados por Curtin em 1969 subcontavam em mais de 20% o volume
do tráfico que agora, em 2012, temos à disposição. Passaram-se mais de 40 anos. Ora,
como ainda faltam dados principalmente sobre o comércio para o Brasil, justamente
o maior mercado comprador de cativos da África, é razoável supor que, daqui a
outros 40 anos, teremos volumes bem mais gordos dos que esses que aqui apresento.
Todavia, como há muito indicou Paul Lovejoy, as proporções encontradas nos dados
do slavevoyages.org, regra geral, não estão muito distantes daquelas apresentadas por
Curtin, ao menos da perspectiva de alguém como eu, que neste caso não espera uma
margem de erro menor do que 10% a 15% de qualquer dado apresentado. Ou seja,
admito a fragilidade da especulação que aqui faço. Então, vamos a ela. Em termos
percentuais, Pernambuco recebeu 66% de todos os africanos que entraram no Brasil
no século XVI, 27,5% dos que chegaram no XVII, 15,4% dos que desembarcaram
no XVIII. No XIX, recebeu apenas 10% dos africanos que chegaram ao Brasil como
escravos.
Esses dados sobre o tráfico negreiro — especulativos, vale a pena repetir —
ajudam ainda a entender um outro problema que há muito aflige os historiadores:
até quando teriam sido os índios a maioria dos escravos na Capitania de Duarte
Coelho?
O processo de substituição do escravo indígena pelo africano foi lento.
Trabalharam lado a lado por muito tempo. Baseados numa pintura holandesa,
Albuquerque e Lucena sugerem que é possível que tenha havido uma divisão do
trabalho durante a dominação batava, ficando os índios encarregados da produção
de subsistência e os cativos africanos com a cana de açúcar (1997). Várias estratégias
devem ter sido empregadas através dos séculos, mesmo porque, até bem adiante no
século XIX ainda escravizavam-se índios no interior de Pernambuco sob os mais
variados pretextos. Eram os “índios de corda” ou “índios pegos a dente de cachorro”.
Todavia, a proporção deles em relação aos africanos cedo começou a ceder. Apesar
dos testemunhos de Cardim, Anchieta e Nóbrega sobre a forte presença negra em
Pernambuco, a imensa caçada humana promovida pelos colonos na costa e no interior
do Brasil, aliada ao ritmo do tráfico atlântico, permite supor que os índios deviam ter

258
sido a maioria até pelo menos a última década do século XVI, ou mesmo começo do
XVII, quando a saída de São Tomé do mercado e a efetiva organização de um fluxo
permanente para o Brasil permitiram a vinda de milhares de pessoas anualmente. Os
nexos entre o porto do Recife e a costa da África estavam firmes e consolidados, e
assim continuariam pelos séculos seguintes.

Notas
1 Carta de Duarte Coelho, 27/04/1542 (MELLO e ALBUQUERQUE, 1967, p. 86).
2 Os volumes apresentados neste estudo indicam apenas o número de pessoas efetivamente desembarcadas e não
o volume de gente embarcada na costa da África, segundo os dados do site slavevoyages.org.

Referências Bibliográficas

ABREU, Capistrano de. Capítulos de História Colonial. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1976.
ALBUQUERQUE, Marcos e LUCENA, Veleda. Arraial Novo do Bom Jesus: Consolidando um processo, ini-
ciando um futuro. Recife: CNPq-FACEPE/Graftorre, 1997.
ALENCASTRO, Luiz Felipe. A Interação Européia com as Sociedades Brasileiras entre os Séculos XVI e XVIII.
In: DIAS, Jill (Org.). Brasil nas Vésperas do Mundo Moderno. Lisboa: Comissão Nacional para as Come-
morações dos Descobrimentos Portugueses, 2000, p. 97-119.
ANDRADE, Manoel Correia. Economia Pernambucana no Século XVI. Recife: Arquivo Público, 1962.
BARRET, Ward. The Sugar Hacienda of the Marquesado del Valle. Minneapolis: Univ. of Minnesota Press, 1970.
CAPELA, José. As Burguesias Portuguesas e a Abolição do Tráfico da Escravatura, 1810-1842. Porto: Afronta-
mento, 1979.
CARREIRA, Antônio. As Companhias Pombalinas de Navegação, Comércio e Tráfico de Escravos entre a Costa
da África e o Nordeste Brasileiro. Bissau: Centro de Estudos da Guiné Portuguesa/ Centro de Estudos de
Antropologia Cultural, 1969.
CARVALHO. Marcus J. M. de. O “cálculo dos traficantes”: O tráfico atlântico de escravos para Pernambuco,
1831-1850. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: 1997, 158 (396), p. 907-
942.
__________. Liberdade: Rotinas e Rupturas do Escravismo Urbano, Recife, 1822-1850. Recife: UFPE, 1998.
CHAUNNU, Pierre. Sevilha e América nos Séculos XVI e XVII. São Paulo: Difel, 1977.
CONTI. L. A igreja católica e o tráfico negreiro. In Tráfico de Escravos Negros, Sécs. XV-XIX. Lisboa, Unesco/
Edições 70, 1979.
COSTA, Francisco Augusto Pereira da. Anais Pernambucanos. Recife: Fundarpe, 1983-1985, 10 volumes.
CRESPI, Liliana. Comercio de esclavos en el Rio de la Plata durante el siglo XVII. In: CÁCERES, Rina (Com-
piladora). Rutas de la esclavitud en África y América Latina. San José: Editorial da Universidad de Costa
Rica, 2001, p. 101-114.
CROSBY, Alfred. The Columbian Exchange: Biological and Cultural Consequences of 1492. Westport: Green-
wood Press, 1972.
CUNHA, Manuela Carneiro da (Org). História dos Indios no Brasil. São Paulo: Companhia de Letras, 1992.
CURTIN, Philip. Epidemiology and the Slave Trade. Political Science Quaterly, vol. 83, 1968, p. 190-216.

259
_______. The Atlantic Slave Trade: A Census (1969). Madison: University of Wisconsin Press, 1975.
_______. The Rise and Fall of the Plantation Complex: Essays in Atlantic History. Cambridge: Cambridge Uni-
versity Press, 1990.
DAVIS, David Brion. Slavery and Human Progress. Nova York e Oxford: Oxford University Press, 1984.
DIAS, Jill R. A Sociedade Colonial de Angola e o Liberalismo Português (c. 1820-1850). In: PEREIRA, Miriam
Halpern; FERREIRA, Maria de F. S. M.; SERRA, João B. (Orgs.). O Liberalismo na Península Ibérica na
Primeira Metade do Século XIX. Lisboa: Sá da Costa, 1981, p. 267-286.
DOMINGUES, Ângela. Ameríndios do Norte do Brasil nas Segunda Metade do Século XVIII: As Contradi-
ções da Liberdade. Revista da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica, vol. 12, 1997, p. 17-30.
FISHER, Alan; FISHER, Humphrey. Slavery and Muslim Society in Africa: the Institution in Saharan and Su-
danic Africa and the Trans-Saharan Slave Trade. Nova York: Doubleday, 1971.
FINLEY, Moses. Ancient Slavery and Modern Ideology. Nova York: Penguin Books, 1986.
FLORENTINO, Manolo Garcia. Em Costas Negras: Uma História do Tráfico Atlântico de Escravos entre a
África e o Rio de Janeiro, Séculos XVIII e XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1993.
FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.
GALLOWAY, J. H. The Sugar Cane Industry: An Historical Geography from its Origins to 1914. Cambridge:
Cambridge University Press, 1989.
GUERRA, Flávio. Evolução Histórica de Pernambuco. Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 1970.
HEMMING, John. Red Gold: The Conquest of the Brazilian Indians, 1500-1760. Cambridge: Harvard Uni-
versity Press, 1978.
HENIGE, David. Measuring the Immeasurable: The Atlantic Slave Trade, West African Populations and the
Pyrrhonian Critic. Journal of African History, 1987, vol. 27, p. 295-313.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978.
JOHNSON, Harold B. The Portuguese Settlement of Brazil. In: BETHELL, L. The Cambridge History of Latin
America. Cambridge: Cambridge University Press, 1984, vol. 1, p. 119-143.
KLEIN, Hebert. The Middle Passage: Comparative Studies in the Atlantic Slave Trade. Princeton: Princeton
Univ. Press, 1978.
KNIGHT, Franklin. The Caribbean: The Genesis of a Fragmented Nationalism. Nova York: Oxford University
Press, 1990.
LERNER, Gerda. Women and Slavery. Slavery and Abolition, Dez. 1983, vol. 4, 3. p. 174-177.
LOCKHART, James. Spanish Peru, 1532-1560: A Colonial Society. Madison: University of Wisconsin Press,
1983.
LOPES, Gustavo Acioli. Negócio da Costa a Mina e Comércio Atlântico: Tabaco, Açúcar, Ouro e Tráfico de Es-
cravos: Pernambuco (1654-1760). Tese de Doutorado-USP, 2008.
LOVEJOY, Paul. The Volume of the Atlantic Slave Trade: A Synthesis. Joumal of African History, (1982), n. 23
p. 473-501.
________. Transformations in Slavery: A History of Slavery in Africa. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1983.
MANNING, Patrick. Slavery and African Life: Occidental, Oriental and African Slave Trades. Cambridge:
Cambridge University Press, 1990.
MARCHANT, Alexander. From Barter to Slavery: The Economic Relations of Portuguese and Indians in the
Settlement of Brazil, 1500-1580. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1942.
MARQUES, Antônio H. de Oliveira. História de Portugal. Lisboa, Palas, 1986, 3 vols.
MARTÍN, Gabriela. Pré-História do Nordeste do Brasil. Recife, UFPE, 1990.
MEILLASSOUX, Claude. Anthropologie de l’Esclavage: Le Ventre de Fer et d’Argent. Paris: Presses Universitaires
de France, 1986.

260
MELLO, José Antônio Gonsalves de. Tempo dos Flamengos. Recife: Sec. de Educação, 1978.
_______; ALBUQUERQUE, Cleonir Xavier de (Orgs.). Cartas de Duarte Coelho a El Rei. Recife: Imprensa
Universitária, 1967.
MIERS, Suzanne e KOPYTOFF, Igor. Slavery in Africa. Madison: University of Wisconsin Press, 1977.
MILLER, Joseph. King and Kingsmen: Early Mbundu States in Angola. Oxford: Clarendon Press, 1976.
_______. Way of death: merchant capitalism and the Angolan slave trade, 1730-1830. Madison: The University
of Wisconsin Press, 1988.
MONTEIRO, John. As Populações Indígenas do Litoral Brasileiro no Século XVI: Transformação e Resistência.
In: DIAS, Jill (Org.). Brasil nas Vésperas do Mundo Moderno. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemo-
rações dos Descobrimentos Portugueses, 1994, p. 97-119.
NAZZARI, Muriel. Da escravidão à liberdade: a transição de índio administrado para vassalo independente
em São Paulo colonial. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (Org.). Brasil: colonização e escravidão. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, p. 28-44.
NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial. São Paulo: Hucitec, 1979.
PALMER, Colin. Slaves of the White God: Blacks in Mexico, 1570-1650. Cambridge: Harvard Univ. Press,
1976.
PATTERSON, Orlando. Slavery and Social Death: A Comparative Study. Cambridge: Harvard University
Press, 1982.
PINTO, Françoise Latour da Veiga; CARREIRA, Antônio. A Participação de Portugal no Tráfico Negreiro. In:
O Tráfico de Escravos Negros, Sécs. XV-XIX: Documentos de Trabalho e Relatório da Reunião de Peritos
organizada pela UNESCO, em Port-au-Prince, Haiti, em 31 de janeiro a 4 de fevereiro de 1978. Lisboa:
Edições 70, 1979, p. 153-190.
PIRES, Maria Idalina da Cruz. A Guerra dos Bárbaros: Resistência Indígena e Conflitos no Nordeste Colonial.
Recife: Fundarpe, 1990.
POSTMA, Johannes M. The Dutch in the Atlantic Slave Trade, 1600-1815. Cambridge, Cambridge University
Press, 1990.
PRADO, J. F. de Almeida. Pernambuco e as Capitanias do Nordeste do Brasil (1530-1630). Coleção Brasiliana,
vol. 175. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939.
PRICE, Richard (Org.). Maroon Societies: Rebel Slave Communities in the Americas. Baltimore: John Hopkins
University Press, 1979.
PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: Povos Indígenas e a Colonização do Sertão do Nordeste do Brasil,
1650-1720. USP, Tese de Doutorado, 1998.
REBELO, Manuel dos Anjos da Silva. Relações entre Angola e Brasil, 1808-1830. Lisboa: Biblioteca Nacional,
1970.
ROBERTSON, Claire C.; KLEIN, Martin A (Orgs.). Women and Slavery in Africa. Madison: The University
of Wisconsin Press, 1983.
RODRIGUES, José Honório. Brasil e África: Outro Horizonte. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
RODRIGUES, Jaime. De costa a costa: escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao
Rio de Janeiro (1780-1860). São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
SÁNCHEZ-ALBONOZ, Nicolás. The Population of Colonial Spanish America. In: BETHELL, L. The Cam-
bridge History of Latin America. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1984, vol. 2, p. 3-35.
SAUNDERS, A.C.M. A Social History of Black Slaves and Freedmen in Portugal, 1441-1555. Cambridge: Cam-
bridge University Press, 1982.
SCHWARTZ, Stuart. Sugar Plantations in the Formation of Brazilian Society, Bahia, 1550-1835. Cambridge:
Cambridge University Press, 1985.
SILVA, Alberto da Costa e. A manilha e o libambo: A África e a escravidão, de 1500 a 1700. Rio de Janeiro:
Editora Nova Fronteira/Fundação Biblioteca Nacional, 2002.

261
SILVA, Daniel Barros Domingues da; ELTIS, David. The slave trade to Pernambuco, 1561-1851. In: ELTIS,
David; RICHARDSON, David (Eds). Extending the Frontiers: Essays on the New Transatlantic Slave
Trade Database. New Haven: Yale University Press, 2008, p. 95-129.
SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Coleção Brasiliana, vol. 117. São Paulo: USP,
1987.
STABEN, Ana Emilia. Negócio dos Escravos: O comércio de cativos entre a Costa da Mina e a Capitania de
Pernambuco (1701-1759). Dissertação de Mestrado-UFPR, 2008.
STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil, São Paulo: Itatiaia/USP, 1974.
THORNTON, John. Africa and Africans in the Making of the Atlantic World, 1400-1680. Cambridge, Cam-
bridge University Press, 1992.
VERLINDEN, Charles. The Beginnings of Modern Colonization: Eleven Essays with an Introduction. Ithaca e
Londres: Cornell Univ. Press, 1970.
VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo de Benin e a Bahia de Todos os Santos dos séculos
XVII a XIX. São Paulo: Corrupio, 1987.
WACHTEL, Nathan. The Indian and the Spanish Conquest. In: BETHELL, L. The Cambridge History of Latin
America. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1984, vol. 1, p. 207-248.
ZEA, Leopoldo. El Descubrimiento de America y su Impacto en la Historia. Cidade do México: Fondo de Cultura
Economica, 1991.

262
Parte 5
Memória, política e ensino de história
Entre Palmares e Vila Rica: os percursos
da memória de Zumbi e Tiradentes
nos livros didáticos de História do
Brasil (Séculos XIX e XX)

Renilson Rosa Ribeiro*

Miserável país aquele que não tem heróis. Miserável país


aquele que precisa de heróis.
Bertold Brecht (1898-1956)

Para liquidar os povos, começa-se por lhes tirar a memória.


Destroem-se seus livros, sua cultura, sua história. E uma
outra pessoa lhes escreve outros livros, lhes dá outra cultura e
lhes inventa uma outra História.
Milan Kundera (1929- )

1. O panteão da nação nos livros didáticos de História

“Oh! E agora quem irá me defender?”, pergunta a pobre vítima, geralmente


uma mulher indefesa nas mãos de um vilão. “Eu!”, responde Chapolin Colorado,
personagem interpretado pelo ator mexicano Roberto Gómez Bolaños, saindo de
algum lugar como num passe de mágica.
Esta cena do seriado mexicano Chapolin, transmitido pelo SBT desde os anos
1980, é apenas uma dentre os muitos exemplos de heróis que frequentam o universo
infanto-juvenil. O herói aparece sempre nas horas de crise ou perigo e salva a mocinha
ou a humanidade. Não é muito difícil encontrar entre este público referências aos seus
super-heróis favoritos. Há aqueles que marcaram gerações como Batman e Robin,
Superman e Homem Aranha.

* Doutor em História Cultural pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor do Departamento
de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).
Coordenador de Gestão de Processos Educacionais do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência
– PIBID/UFMT/CAPES Edital 2011. E-mail: rrrenilson@yahoo.com

264
Há também os personagens do esporte e da música que se transformaram em
ídolos por seus feitos, criando uma legião de fãs entre as crianças e adolescentes, como
é o caso, por exemplo, do piloto Ayrton Senna, tricampeão de Fórmula 1, e do cantor
Renato Russo, líder da banda de rock Legião Urbana. Além destes exemplos podemos
citar muitas outras personalidades que habitam as histórias em quadrinhos, os livros,
os seriados, as minisséries, as novelas e os filmes.
O herói, em suas múltiplas versões, revela-se ao mundo por intermédio de
feitos fantásticos, realizando atos de coragem, salvando vidas ou até mesmo oferecendo
a sua própria por uma causa maior. E por seu gesto de nobreza torna-se um exemplo
a ser lembrado e seguido. Quem na infância nunca teve vontade ser um bombeiro ou
um dos Superamigos?
As aulas de História não fogem a esta regra e também trazem nas suas narrativas
a presença de heróis, lideranças que se destacaram em determinadas situações ou
eventos. As lições de História do Brasil por muito tempo se notabilizaram pelo relato
de datas e feitos de grandes personagens, geralmente homens de Estado ou políticos,
responsáveis pela edificação e defesa da nação em diferentes contextos.
No livro Por que estudar a história? (2007), voltado para alunos do ensino
médio, o historiador Caio César Boschi afirma que esta concepção de história esteve
em voga no século XIX, consagrada pelo escritor escocês Thomas Carlyle (1795-
1881) no seu livro Os heróis: o culto dos heróis e o heroico na História. Escrita em
1841, a sua obra defendia que a história da humanidade seria fruto dos grandes
homens. Eles seriam os símbolos de todas as lutas e conquistas.
Na tradição didática brasileira a figura dos heróis sempre teve cadeira cativa
nos livros didáticos e de leitura, nas festas e comemorações cívicas, tornando-se peça
fundamental das engrenagens de manutenção de determinadas visões de mundo e de
história.1 Em muitas destas narrativas a exagerada glorificação destes agentes históricos
era envolvida pelo discurso ficcional e místico-religioso (BITTENCOURT, 2009, p.
53-92; FONSECA, 2003).
A saga destes grandes homens do passado, que compõe o enredo temático
e temporal da história da nação, foi uma marca dos livros didáticos de História do
Brasil desde meados do século XIX. Essa pedagogia da história privilegiava, no caso
do período colonial, os episódios mais emblemáticos ligados aos descobrimentos
portugueses, organização administrativa e expansão geográfica, as lutas contra os
estrangeiros, os embates com a metrópole e o processo de independência (RIBEIRO,
2008, p. 43-77).
O culto aos heróis nacionais, em diferentes situações e com interesses e fins

265
diversos, esteve associado ao processo de recuperação de um passado comum glorioso.
Um dos princípios básicos deste pensamento era o da ação individual em nome do
coletivo, o do sacrifício em prol da nação. Quem nunca teve de fazer as famigeradas
pesquisas escolares ou responder questionários nos livros didáticos sobre as biografias
de personagens como Pedro Álvares Cabral, José de Anchieta, Tiradentes ou D. Pedro
I? Nesse sentido, o livro didático de História é por excelência o território onde estas
figuras ganham vida e diferentes representações.
No primeiro parágrafo do livro As falsificações da História (s.d.), o historiador
francês Marc Ferro afirma que “a imagem que nós temos dos outros povos ou de nós
mesmos é associada à história que nos foi contada quando éramos crianças”. Ele, nesta
citação sempre referenciada nos trabalhos sobre o ensino de História, argumenta que
mesmo que a essas imagens outras venham se misturar ao longo do tempo, são as
primeiras que permanecem constituindo-se em traços marcantes de nossas primeiras
curiosidades, desejos e emoções.
Na construção dessas primeiras imagens sobre os mais diversos temas
históricos é impossível ignorar o papel desempenhado pela tríade escola, livro
didático e professor. Embora saibamos, por exemplo, que a mídia, por meio de
filmes, novelas, séries e documentários, influencie nas interpretações das pessoas
sobre os conteúdos históricos, a História ensinada nos tempos escolares continua a
assumir importante papel na formação da noção de história presente nas vivências
da maioria das pessoas (MICELI, 2009, p. 43-44). E o livro didático tem sido a
grande referência para as narrativas históricas que povoam o universo cultural dos
indivíduos.
Objeto de investimento e, ao mesmo tempo, de interesses, este artefato do
cotidiano escolar tem gerado debates dentro e fora das instituições (ministérios,
secretarias, escolas, editoras, universidades) sobre a sua relevância na constituição
de identidades – um lugar privilegiado de jogo de identidades (RIBEIRO, 2007,
p. 42-43).
Nele, existem diferentes personagens e modelos de interpretações em jogo.
Assim como o currículo, numa afirmação de Tomaz Tadeu da Silva (2001), o livro
didático é lugar, espaço, território. Objeto de relações de poder por ser trajetória,
viagem, expedição, percurso na formação de gerações de leitores-alunos. Ele é
autobiografia, nossa vida, nosso curriculum vitae: neste espaço se fabrica nossa
identidade. O livro didático é texto, discurso, documento. É um documento de
identidade, uma colônia identitária; objeto de desejo de vários grupos, projetos e
políticas (HALL, 2002).

266
Com base nestas observações, analisaremos aqui a trajetória das narrativas
sobre Zumbi e o Quilombo dos Palmares, produzidas pelos livros didáticos de
História do Brasil, fazendo um exercício de comparação com as narrativas fabricadas
sobre Tiradentes e a Inconfidência Mineira. A estratégia é perceber como os discursos
didáticos forjados ao longo dos séculos XIX e XX, por intermédio do uso do conceito
de raça, nação e Estado, constituíram as imagens de Zumbi como uma personagem
(herói) étnica/racial e as de Tiradentes como uma personagem (herói) nacional.2
A disponibilidade de fontes e as possibilidades de abordagem sobre o tema
são amplas para os limites deste ensaio. Ao longo da história da produção e circulação
dos livros didáticos no Brasil se notabilizaram importantes autores, nomes como
José Inácio de Abreu e Lima (1794-1869), Joaquim Manuel de Macedo (1820-
1882), Silvio Romero (1851-1914), João Ribeiro (1860-1934), Olavo Bilac (1865-
1918), Rocha Pombo (1857-1833), Jonathas Serrano (1855-1944), Joaquim Silva
(1880-1966), Armando Souto Maior (1926-2006), Borges Hermida (1917-1995),
Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), Julierme de Abreu e Castro (1931-1983),
entre outros. Esses autores produziram obras didáticas que forjaram interpretações
sobre o passado brasileiro e marcaram gerações de estudantes e professores nas suas
maneiras de ser, sentir e pensar a nação.
Por esta razão, realizamos um recorte que permitisse uma análise do tema das
representações de Zumbi e Tiradentes, privilegiando a análise de livros didáticos de
História do Brasil representativos dentro da história do ensino de História no Brasil,
ou seja, textos que foram consagrados como referência em suas épocas de produção
e usos e assumiram lugar de cânone pela literatura dedicada ao assunto.3

2. Entre Palmares e Vila Rica: Zumbi e Tiradentes


nos livros didáticos de História do Brasil

Os primeiros livros didáticos de História foram publicados no Brasil ao


longo do século XIX. Eles se inspiravam nos manuais europeus de história universal,
sobretudo nos franceses, que apresentavam uma concepção europeia e cristã da
história, na qual as crianças e jovens brasileiros deveriam se espelhar. A partir do
século XIX, nas palavras de François Furet, a história passou a ser entendida como “a
árvore genealógica das nações européias e civilização de que são portadoras” (FURET,
s.d., p. 135).
Segundo Circe Bittencourt, a força da ideia da história como uma pedagogia
do cidadão – de preferência das classes dirigentes – era evidente não apenas no

267
currículo da escola elementar e secundária, mas também “nos exames preparatórios
das faculdades de Direito, de Medicina, da Escola Militar, Escola Politécnica, Escola
de Minas de Ouro Preto, no Colégio Naval” (BITTENCOURT, 2008, p. 105).
Nos colégios frequentados pelos filhos da “boa sociedade”, chegava-se a adotar
as próprias edições originais desses textos. Um dos autores de destaque era Victor
Duruy (1811-1894), historiador que chegou ao posto de ministro da França. No
final do século XIX, em meio às reformas educacionais conduzidas pelo regime
republicano, outro francês, Charles Seignobos (1854-1942), era o autor preferido.
Nestes dois manuais, o conceito de civilização era recorrente: o imperialismo europeu
conquistava os territórios africanos e asiáticos, tornando necessário enfatizar a missão
de levar a “civilização” aos povos “bárbaros” e “selvagens” (SAID, 1995).
De acordo com Maria Aparecida Bergamaschi, o conceito de civilização
adquiriu sentidos mais evidentes na Europa a partir do século XVII, trazendo sua
vinculação com a moral cristã e constituindo-se em um conjunto de valores para
ser ensinado às crianças e jovens das elites no espaço escolar. Neste sentido, o termo
civilização
expressa o lugar da pessoa distinta nas novas relações sociais que se configurou na sociedade
da modernidade européia, em geral vinculado à corte, em contraposição ao homem
simples, que, na sua forma mais extrema, assume o lugar do selvagem, imagem também
identificada com o indígena. De forma mais geral, podemos deduzir que o sentimento de
civilização predominante no Ocidente nos últimos três séculos parte de uma autoimagem
de superioridade diante das demais sociedades. Esse sentimento tem correspondência em
alguns setores das elites não européias, como no caso brasileiro, em que a perspectiva de
progresso, de desenvolvimento, se colocou na esteira do processo civilizatório europeu.
Nesse modelo de civilização não cabe o índio, não cabe o negro e não cabe o mestiço,
referências que as elites, de distintas formas, quiseram apagar, encobrir, entulhar, deformar,
tanto na história, como na escola (BERGAMASCHI, 2010, p. 156).

Os primeiros capítulos da história dos livros didáticos de História do Brasil


foram marcados por episódios de embates e polêmicas. O Compêndio de história do
Brasil, de 1843, elaborado pelo general José Inácio de Abreu e Lima, foi um dos
pioneiros na tarefa de uma escrita da história escolar nacional. Este autor havia
participado das guerras da independência na América do Sul com Simon Bolívar
e era conhecido por ter pensamentos considerados controversos à época, como o
de separar a Igreja do Estado e defender o casamento civil. Apesar disso, e também
das suas divergências com o historiador-diplomata sorocabano Francisco Adolfo de
Varnhagen (1816-1878), o livro didático do general Abreu e Lima foi usado durante
anos no Imperial Colégio Pedro II e em diversas instituições do país (GASPARELLO,
2004, p. 85-98).
Nos anos 1850 a História do Brasil se tornou disciplina independente da

268
História Universal, o que exigiu a produção de livros escolares específicos utilizados
também pelos professores dos liceus e dos cursos preparatórios para o ensino superior
(BITTENCOURT, 2008, p. 141).
Nesta época, quem elaborava os programas e livros didáticos eram os letrados
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), muitos dos quais eram
professores do Colégio Pedro II, cujo sistema de ensino era modelo para todas as
escolas secundárias do Império:
ser professor de uma instituição tão sólida e renomada era sinônimo de competência
intelectual, não apenas nos anos imediatamente posteriores à sua fundação, mas durante
todo o período (...). Muitas vezes, o trabalho junto ao magistério serviu como ponte para
confecção de obras didáticas, que engrossavam substancialmente as rendas minguadas do
autor. De fato, muitos professores de história do colégio eram nomes de projeção no país
em vários meios: Justiniano José da Rocha, Gonçalves Dias, Francisco Inácio Marcondes
Homem de Mello, futuramente barão, Joaquim Manuel de Macedo, José Maria da Silva
Paranhos – o barão do Rio Branco –, Escragnolle Doria, Capistrano de Abreu, Matoso
Maia e João Ribeiro (CALLARI, 2001, p. 68).

Durante o período imperial, observou-se na história oficial produzida pelo


IHGB a depreciação do episódio palmarino. As revoltas coloniais eram interpretadas
como atentados à unidade da futura nação (GUIMARÃES, 1988, p. 5-27; RIBEIRO,
2009). Neste caso, deu-se destaque para a atuação, por exemplo, dos bandeirantes na
destruição do Quilombo de Palmares, garantindo a integridade da Colônia. Segundo
Flávio dos Santos Gomes,
A historiografia do século XIX – com Varnhagen e outros – pouca atenção daria ao tema.
Paradoxalmente, nas revistas dos institutos históricos foram publicados pequenos artigos e,
principalmente, considerável documentação manuscrita sobre Palmares (GOMES, 2005,
p. 33).

Assim como no caso de Zumbi e do Quilombo de Palmares, houve certo


silenciamento sobre o movimento dos inconfidentes. Procurou-se destacar
Tiradentes e a Inconfidência Mineira como uma conjuração ou conspiração
contra a ordem estabelecida pela Coroa portuguesa. Destacar a história desta
revolta de outra maneira seria incorrer no perigo das ameaças republicanas no
Império.
O tema era abordado de certa forma positiva pela elite intelectual, pós-
independência, na medida em que remetia para a idéia de uma tentativa de libertação
nacional. Para João Pinto Furtado, a Inconfidência Mineira se constituía “em um ‘pré-
grito do Ipiranga’, que teria ecoado distante ainda em 1822 e servido de inspiração

269
a d. Pedro I, neto da rainha que havia condenado seus protagonistas” (FURTADO,
2002, p. 32). Já a agenda radical republicana do movimento era condenada.
Joaquim Manuel de Macedo, professor do tradicional Colégio Pedro II, no
seu Lições de História do Brasil (1865), ao retratar Zumbi e Palmares, privilegiou
os instantes finais dos quilombos que apareceram ao longo das guerras holandesas,
na região da Serra da Barriga, em Alagoas. Não teve a preocupação em descrever e
comentar os quilombos por dentro como faria Rocha Pombo, décadas mais tarde, em
sua História do Brasil (Curso superior).
Ao narrar as operações de ataque, Macedo, sem fugir das orientações do
mestre Varnhagen, ressaltava o valor dos paulistas – os bandeirantes – e a valentia
dos atacados e, após muita luta, a vitória da ordem. Quanto aos líderes do quilombo,
entre eles Zumbi, o autor anotou que eles preferiram a morte à escravidão, atirando-
se do alto de um penhasco.
Na perspectiva do “Doutor Macedinho”, Palmares, assim como a Inconfidência
Mineira, representava uma linha de ruptura e de contestação do passado colonial
português, do qual o Império brasileiro era descendente e tributário. Destacar as
lutas da Serra da Barriga e de Vila Rica de forma negativa ou silenciar-se era uma
estratégia para se preservar o discurso de elogio à colonização. Zumbi e Tiradentes
foram apresentados como exemplos de lideranças problemáticas, embora corajosas,
que cometeram o crime de lesa-majestade e a macularam o discurso da unidade do
território – bandidos coloniais.
Embora considerado criminoso perante a lei, Tiradentes adquiriu notoriedade
na escrita de Macedo pelo seu martírio, o que o transformou em herói pela religião do
patriotismo da população. O seu desfecho trágico, sem a misericórdia do poder régio,
produziu julgamentos morais por parte do professor-autor, que se rendeu à nobreza
do único do movimento condenado à pena capital. Devemos, todavia, destacar que
tal posição de Macedo não implicou na absolvição da causa dos conspiradores da
Conjuração Mineira.
Nesse sentido, a narrativa de Macedo não se distanciou da abordagem feita
pelo polêmico consócio Abreu e Lima, nos anos 1840, sobre os mesmos episódios.
Ao abordar o quilombo de Palmares no seu compêndio, o general destacou a bravura
dos seus habitantes na resistência contra as investidas dos bandeirantes. Embora
registrasse a coragem do povo negro, o seu relato os associava às situações de rebeldia
e violência no passado colonial e na história recente do Império. Segundo Arlette
Medeiros Gasparello,
o tema da escravidão negra foi, em geral, inexistente nos livros didáticos do Império.
Embora presentes no cotidiano das pessoas do oitocentos, os escravos são invisíveis para a

270
elite cultural que pensa e escreve o Brasil. Em geral, aparecem referências sobre a escravidão
indígena e os conflitos e dificuldades daí derivados. O movimento do Quilombo de Palmares
é o único sobre os escravos que, por suas características de longevidade, conflito armado e
expressão de valentia, tornou-se referência obrigatória nos compêndios (GASPARELLO,
2004, p. 140).

Quanto à Inconfidência Mineira, a sua biografia de homem de armas dedicado


à causa de Simón Bolívar (1783-1830) – El Libertador – sucumbiu diante da sua
lealdade pela monarquia constitucional brasileira, optando por descrevê-la como
um projeto insensato de rebeldes. Ao contrário do que faria com os revolucionários
pernambucanos, o general-historiador não promoveu a exaltação dos eventos
ocorridos em Minas Gerais no final do século XVIII. Tiradentes, para o autor, era um
sujeito carente de astúcia e, por isso, pagou com a própria vida na forca pelo delírio
dos seus companheiros.
Com o alvorecer da República, as preocupações se dirigiram para a exaltação
do novo regime, por meio da busca de mitos fundadores e heróis no passado que
o legitimasse naquele presente, e o prestígio e o elogio da colonização portuguesa
sofreram alguns reveses. O passado colonial passou a ser visto como um triste fardo
para o projeto de modernização do país, ou seja, fonte de corrupção e atraso. No
entanto, as orientações metodológicas básicas, a cronologia e os enredos temáticos
propostos pelos homens de letras do IHGB se preservaram até, pelo menos, o começo
dos anos 1930 do século passado. Enfim, segundo Thais Nívia de Lima e Fonseca,
continuou-se a produzir uma história centrada nos fatos políticos, nos feitos dos grandes
homens, nos episódios grandiosos da expansão da colonização e da ocupação do território
brasileiro e, sobretudo, na valorização da idéia de unidade nacional (FONSECA, 2001b,
p. 93).

Neste período começou a se pensar Palmares como símbolo da liberdade,


e posteriormente o seu reconhecimento como o maior feito da raça africana no
Brasil. Zumbi foi retratado como liderança negra, entretanto, representante de
um movimento inexperiente de liberdade. Nesse contexto houve uma forte leitura
abolicionista pelos livros didáticos da história de Palmares e de Zumbi.
Para Flávio dos Santos Gomes, essa condição coadjuvante de Zumbi e de
Palmares no discurso didático na história do Brasil contrastaria com os escritos da
militância política nas primeiras décadas do século XX. Após a Abolição em 1888,
Palmares e Zumbi transformaram-se em símbolo e referência em sua narrativa:
“associações operárias, partidos comunistas e a chamada ‘imprensa negra’ retomam
em títulos, inscrições e pequenos textos nas décadas de 1920 e 1930 o que chamavam
de ‘Epopéia de Zumbi’” (GOMES, 2005, p. 33).
Embora próximos nas suas lutas e nos seus destinos trágicos, Zumbi e
Tiradentes tiveram destinos diferentes na constituição da memória histórica a partir

271
deste período. Sob a constelação da era republicana, Tiradentes encontraria seu lugar
no panteão dos heróis nacionais como símbolo do novo regime, enquanto Zumbi
teria participação secundária, quando não omitida, no discurso histórico didático.
De acordo com Thais Nívia de Lima e Fonseca, os republicanos, após
1889, operaram uma inversão significativa na abordagem dada à Inconfidência
Mineira, elevada agora à condição de movimento símbolo da luta republicana. A
figura de Tiradentes foi entronizada como seu herói e mártir, numa construção
de fundamentação religiosa bastante evidente. Os livros didáticos, até pelo menos
meados do século XX, manteriam essas construções, parte importante das concepções
educacionais da época, de formação cívica e moral das crianças e jovens brasileiros.
Civismo e moral – não obstante a progressiva laicização dos conteúdos de ensino
– estabeleciam o laço entre política e religião, visível também no discurso político,
sobretudo, entre as décadas de 1930 e 1940 (FONSECA, 2001a; FONSECA, 2003).
A História do Brasil (Curso Superior), lançada em 1900, do professor e
filólogo João Ribeiro, inovou na organização dos conteúdos, ao apresentar, além
da história nacional, novas unidades temáticas, como as que o autor denominou de
história comum e de história local. Nesse modelo de história, inspirado na proposta
apresentada nos anos 1840 pelo naturalista bávaro Friedrich Philipp von Martius
(1794-1868), o autor procurou demonstrar que o Brasil derivou do colono, do
jesuíta e do mameluco, da ação dos índios e dos escravos negros, todos personagens
principais da sua obra didática. Embora crítico da obra colonial, dedicou grande parte
do livro didático para os seus temas: descobrimento, colonização, administração,
invasões, ocupação, revoltas entre outros (HANSEN, 2000).
O quilombo de Palmares, tão comentado pelo manual escolar do ensino
secundário de Macedo, recebeu de João Ribeiro apenas esparsos comentários no
sétimo capítulo – “Formação do Brasil”. Ao falar da constituição da capitania das
Alagoas, em 1818, o autor relatou que esta região foi cenário da guerra holandesa e
aterrorizada pela formação de quilombos ou aglomerações de negros que, “fugindo
ao cativeiro, viviam de pilhagem e roubos, tanto mais frequentes e cruéis quanto
eram os escravos perseguidos pelos capitães do mato” (RIBEIRO, 1935, p. 268).
Responsabilizou as invasões holandesas pela desestruturação das lavouras açucareiras
e, consequentemente, pela formação dos quilombos de escravos que, assim como seus
senhores, fugiam pelo sertão.
Para dar fim aos quilombos, destacou João Ribeiro, foi contratado um
experimentado chefe desses capitães do mato, o paulista Domingos Jorge Velho, com
escolta numerosa. O autor não fez uma crítica ao bandeirante, pois este representava

272
um elemento chave na sua obra: o mameluco. Em seguida, ele alertou os seus alunos-
leitores para a necessidade de se apurar uma série de exageros e lendas criadas acerca
do quilombo de Palmares e do seu líder Zumbi (RIBEIRO, 2004, p. 252-253). Na
esteira do que fez Macedo, não deu muito destaque à organização social e política do
quilombo de Palmares, optando apenas por relatar sua destruição.
Quanto ao movimento de 1789 em Minas Gerais, João Ribeiro enfatizou o
seu significado como símbolo do projeto republicano de governo. Os conspiradores
de 1789 foram os “precursores” de um ideal que seria concretizado cem anos depois
(1889). Neste sentido, o autor enfatizou a importância da figural do homem de letras
como agente de transformação social – representado pelos poetas árcades que desejam
quebrar “as cadeias da escravidão colonial”.
Nas páginas do referido manual escolar, o martírio e abnegação de Tiradentes
receberam atenção especial, enfatizando suas virtudes como homem religioso e leal. O
seu trágico destino, ao contrário do esperado pelo poder metropolitano, nas palavras
do historiador sergipano, transformar-se-ia em exemplo de liberdade para memória
nacional (republicana).
Rocha Pombo, professor do Colégio Pedro II e da Escola Normal, no seu
famoso livro didático História do Brasil (Curso superior), publicado nos anos 1920, ao
abordar o tema da Inconfidência Mineira, num relato dramático, ampliou também
progressivamente o espaço dedicado a Tiradentes, cuja atuação foi narrada no sentido
de torná-lo o líder da conspiração e o herói sacrificado pela pátria, o que não era feito
com a figura de Zumbi, rapidamente comentado na parte sobre os quilombos de
Palmares.
Mesmo valorizando a luta dos quilombolas, para o autor, o episódio de Palmares
era o lamentável exemplo que poderia separar ao invés de unir por ser um conflito de
uma raça. No entanto, na sua leitura, era necessário relatar eventos como este para
fazer justiça à História. Trazer a tragédia de Palmares para o palco da História era o
caminho para mostrar aos seus leitores-alunos os males que a colonização portuguesa
provocou com a instituição da escravidão e a ausência de uma unidade entre as partes
em nome da pátria. A violência dos quilombolas, na visão do abolicionista Rocha
Pombo, surgia em decorrência do mal maior que era a escravidão. Por isso o projeto
de Tiradentes, para ele, era mais completo, uma vez que propunha a construção de
um projeto nacional.
O período pós-1930 foi de consolidação do discurso da “democracia racial”
pelo Estado, o que influenciou profundamente a produção didática. Houve certo
silêncio sobre as revoltas populares como a de Zumbi dos Palmares. A ideia era
defender o Brasil como a mistura harmônica das três raças. A ausência das revoltas
populares do passado era uma forma de se calar sobre as do presente.4
Foi a época de consolidação da figura de Tiradentes no panteão dos heróis

273
nacionais como símbolo da República. Figura cultuada e amplamente representada
na memória nacional, recebeu destaque nos livros didáticos, visto como o mártir da
Inconfidência Mineira, defensor do projeto republicano e nacional-desenvolvimentista,
retardados pela obra colonial (o peso do legado do Brasil arcaico). Sua imagem oscilava
entre Jesus Cristo e um militar – o alferes – nos relatos e na iconografia.
Entre o período Getúlio Vargas e a ditadura militar pós-1964, João Pinto
Furtado identificou diversas apropriações e usos da imagem da Inconfidência Mineira
e de Tiradentes:
após a revolução de 1930 temos, sobretudo no discurso das elites urbanas, o resgate da
proposta industrializante dos inconfidentes e mesmo a anacrônica insinuação de Tiradentes
como precursor da luta antioligárquica. Já no período populista, sob a batuta de Juscelino
Kubitschek, a Inconfidência Mineira simboliza a conciliação entre modernidade e ordem,
tão caras aos gestores da política desenvolvimentista. Não por acaso, Brasília foi inaugurada
num 21 de abril. Por fim, nos anos que precederam imediatamente o golpe de 1964, alguns
dos conspiradores mineiros se auto-intitulavam os “novos inconfidentes” e se postulavam
como defensores de uma suposta vocação democrática ameaçada pela radicalização popular
trabalhista. Assim, durante toda a vigência do regime militar, o fervor cívico de Tiradentes
será cultuado e tornado exemplar com vistas à legitimação do regime, sendo os livros
didáticos da extinta disciplina escolar “Educação Moral e Cívica” paradigmáticos nesse
sentido (FURTADO, 2002, p. 32).

Escrevendo nos anos 1940 sua História do Brasil para a primeira série ginasial,
livro didático amplamente adotado durante o período militar pós-1964, o professor
sorocabano Joaquim Silva, ao relatar a luta contra a Coroa portuguesa, apontou a
Inconfidência Mineira como seu ápice, bem de acordo com a tradição republicana.
Todo o seu discurso caminhou para a exaltação do martírio de Tiradentes, sacrificado
pela violência e pela crueldade da (in)justiça portuguesa. Sua narrativa sobre o suplício
de Tiradentes estava repleta de sensibilidade.
Ao tratar da história da escravidão e de Zumbi e Palmares, amparado no discurso
da “democracia racial”, Joaquim Silva afirmou que não era a escravidão que provocava
a rebeldia dos negros como defendia Rocha Pombo, e sim os excessos cometidos
pelos feitores a mando dos senhores. Nesse sentido, o autor optou por passar bem
superficialmente sobre a história dos quilombos no Brasil, em especial Palmares.
Já na sua História do Brasil para o curso médio (primeira e segunda série), Joaquim
Silva dedicou no capítulo sobre a formação do povo brasileiro uma longa nota sobre
o episódio dos quilombos de Palmares. De maneira semelhante ao que fez Rocha
Pombo, ele descrevia a localização geográfica dos quilombos, sua organização social
política, seus meios de sobrevivência, as lutas de conquista por parte das autoridades
locais, as expedições do bandeirante paulista Domingos Jorge Velho e destruição final
com o assassinato do líder Zumbi.

274
O autor, sem o romantismo e a empatia de Rocha Pombo, definiu da seguinte
maneira a organização do referido quilombo:
A organização dos Palmares era equivalente à dos Estados selvagens dos sertões africanos; lá
se tornavam livres os negros que fugiam dos senhores, mas eram escravos que se traziam à
força das roças; castigavam-se com morte os que, abandonando Palmares para voltar a seus
antigos donos, fossem de novo apanhados (SILVA, 1969, p. 72).

Para Joaquim Silva, os eventos ocorridos na Serra da Barriga no século XVII


deveriam ser relegados ao baú do esquecimento da história, uma vez que poderiam
representar uma fratura à desejada unidade territorial e étnica da nação, seja no
passado colonial, seja no presente (do autor). Os conflitos entre senhores e escravos
apareciam de forma marginal no seu texto didático, preferindo pensar uma imagem
menos nociva e pesada da instituição da escravidão. A opção por passar este tipo de
imagem estava vinculada à forte ideia do país como paraíso racial presente na cultura
brasileira, em especial nas propagandas do Estado tanto na era Vargas, quanto na
ditadura militar pós-1964.
Os livros didáticos deste autor ultrapassaram épocas, sendo amplamente
utilizados durante o regime militar instaurado no Brasil pós-1964. Alguns de seus
livros chegaram a atingir a marca de 100 edições durante os anos 1960 (PINTO
JUNIOR, 2010, p. 166-167).
Desde 1945 até o seu falecimento, o professor Antonio José Borges Hermida
dedicou a sua vida à produção de livros didáticos de História para o primeiro e
segundo graus.
O seu livro didático de História do Brasil seguiu na mesma linha nacionalista
de interpretação histórica de Joaquim Silva. Nele, o autor deu especial relevo para os
eventos dos descobrimentos portugueses do século XV; a mistura das raças (índios,
portugueses e negros); os jesuítas representados como os “amigos dos índios”; a
epopeia dos bandeirantes adentrando o interior do país; os ciclos econômicos (pau-
brasil, cana-de-açúcar e ouro); as invasões holandesas; a Inconfidência Mineira e a
exaltação da figura do mártir Tiradentes.
Ao abordar o episódio palmarino, Borges Hermida incluiu o tema no capítulo
dedicado à formação do povo brasileiro. Após expor os motivos econômicos [e até
de aptidão física] para a incorporação da mão-de-obra escrava negra africana na
Colônia, em especial nas atividades do engenho e da mineração, o autor destacou a
influência do negro nos costumes do povo brasileiro – nas danças, festas, crenças e
alimentação. Nas suas palavras, “os escravos eram em geral bem tratados no Brasil”,
embora houvesse práticas de castigos cruéis (HERMIDA, 1965, p. 70).

275
O evento na Serra da Barriga foi tratado de forma genérica como resultado
da confusão causada pela guerra e clima de instabilidade política decorrente da
invasão holandesa, em 1630. Borges Hermida descreveu as tentativas de destruição
do quilombo e a resistência guerreira do seu líder – Zumbi dos Palmares. Poucas
informações foram fornecidas acerca da vida chefe do quilombo.
Em relação à Inconfidência Mineira e seu mártir Tiradentes, Borges
Hermida – fazendo coro com os demais autores do período republicano – não
poupou detalhes, evidenciando no fato ocorrido em Vila Rica as sementes do
sentimento nacional e do projeto republicano. Borges Hermida ressaltou as
inspirações da Inconfidência Mineira na independência dos Estados Unidos,
em 1776. A narrativa dos eventos repetiu o percurso do destino trágico dos
seus líderes, com destaque para Tiradentes – o único que de fato foi executado:
conspiração – traição – prisão – julgamento – sentença. O alferes enforcado e
esquartejado era tido pelo autor como “grande brasileiro” (HERMIDA, 1965, p.
174-175).
Para Borges Hermida, a Inconfidência Mineira e Tiradentes, ao lado dos
movimentos de Pernambuco em 1817, eram os sinais do desejo de independência
do Brasil da sua condição de colônia que começava a se manifestar entre os seus
habitantes.
Cabe registrar que a propaganda nacionalista, a partir do período do
Estado Novo (1937-1945), espraiou-se por meio de diversos mecanismos como a
radiodifusão (cf. DANGELO, 1998, p. 15-26), o cinema, e o ensino de História,
mediado pelos livros didáticos. A força desse discurso nacionalista foi tão poderosa
que deixou raízes profundas no sistema educacional brasileiro, não tendo sido alterado
substancialmente até os anos 1980 (ABUD, 1998, p. 103-104).
Inspirados nas lutas da militância e nas proposições de autores de tradição
marxista, como o intelectual uruguaio Eduardo Galeano (1940-) e o jornalista norte-
americano Leo Huberman (1903-1968), a produção didática dos anos 1980 e 1990
privilegiou Zumbi como o rei palmarino, que imprimiu uma resistência quilombola
contínua contra o poder colonial. Priorizou a história de Palmares mediante os
aspectos político e revolucionário, ou seja, privilegiaram a descrição das estruturas
políticas e militares do Quilombo. Zumbi constitui-se muito mais como um herói
(da raça) negro do que nacional. Era um símbolo de uma história (didática) engajada
e militante. Mas, não foi pensado como herói de um sentimento nacional.
Destacou-se pela presença de um forte discurso de exaltação ao martírio
de Tiradentes, sacrificado pela violência e pela crueldade da justiça portuguesa

276
(autoritarismo). Houve a construção de um herói popular nacional – o pobre alferes,
portador dos sentimentos nacionais de justiça, liberdade, democracia. Era o símbolo
da nova República das “camisas amarelas”. Tiradentes era restaurado como o herói
das Diretas Já, símbolo de uma liderança das esperanças do povo.
O livro didático História & Vida, dos irmãos e professores de História Nelson
e Claudino Piletti, publicado nos anos 1980, lamentou a violência praticada em
Palmares porque este era um exemplo de espaço de liberdade e respeito dentro da
Colônia corrompida. Ao contrário de outros autores, os Piletti ressaltaram com
maiores detalhes a figura de Zumbi, o líder dos quilombos, reforçando sua imagem
heroica, por meio de sua bravura e da forma como este morreu lutando por seus
ideais. A narrativa da morte de Zumbi aproximou-se muito, em alguns aspectos, da
feita sobre Tiradentes.
A partir da construção do fim destes dois heróis elaborada pelos irmãos Piletti,
podemos traçar algumas comparações para fins analíticos:

1º - os dois pertenceram a movimentos que, de alguma maneira, defendiam


ideias de liberdade e se opunham à ordem estabelecida (autoridades coloniais),
tendo o primeiro lutado pela liberdade de uma raça, os negros, da escravidão
e da violência do castigo, o segundo contra a opressão do governo português,
inspirados pela Revolução Francesa (Liberdade, Igualdade e Fraternidade) e a
cobrança excessiva de impostos (a derrama);
2º - o primeiro pertenceu a um espaço de resistência (os quilombos) que
travava uma luta armada longa e incansável contra os coloniais durante
décadas; o segundo participou de um grupo de revolucionários que pretendia
proclamar a República, pondo fim ao poder da Coroa sobre a Colônia, no
entanto o projeto não foi consumado;
3º - ambos tiveram um papel, de acordo com os autores, de relevância dentro
dos movimentos dos quais faziam parte. Zumbi era o líder dos quilombos de
Palmares (de escravos) e Tiradentes era um dos participantes mais destacados
dos inconfidentes, por estar sempre viajando pela região na busca de adesões
para a revolução. Um comandava um grupo (negros escravos fugidos) contra
os coloniais no ataque direto, o outro buscava congregar apoios (na elite
colonial) a favor da revolução que iria acontecer;
4º - tanto Zumbi quanto Tiradentes foram vítimas de um ato de traição. O
primeiro foi entregue por um amigo que nas mãos dos coloniais, sob tortura,
informou o esconderijo do seu líder; o segundo foi traído também por alguém
de dentro do grupo dos revolucionários, mas este traiu por interesses próprios
(dívidas);

277
5º - os dois foram capturados e tomados como exemplo para colocar fim ao
movimento de que faziam parte. Segundo os Piletti, Zumbi e Tiradentes foram
assassinados de forma cruel e utilizados como instrumentos de demonstração
do poder da autoridade da Coroa, pois tiveram seus corpos esquartejados e
expostos em locais públicos;
6º - os dois tornaram-se símbolos para a posteridade pelos ideais que
representavam, seja pela luta direta no campo de batalha, seja pelos projetos
idealizados. Zumbi, um herói racial, Tiradentes, um herói nacional. Zumbi
lutando contra a escravidão de seu povo, Tiradentes defendendo a liberdade
da Colônia e proclamação de uma república.

Na leitura dos Piletti, Zumbi e Palmares representavam exemplos de luta


contra as injustiças presentes no passado colonial nacional que precisavam ser
exaltados. Narrar sua história seria denunciar o mito da “democracia racial” e a ideia
da escravidão amena e benigna, tão ressaltada por autores como Joaquim Silva e
Borges Hermida. Tiradentes e a Inconfidência Mineira continuariam, para eles, a ser
um exemplo de luta contra a colonização portuguesa e as suas atrocidades – a semente
do projeto republicano.
Diante da exaltação da figura de Tiradentes, eleito o representante do
sentimento nacional no passado colonial brasileiro, restou o silêncio ou um papel
secundário ao líder dos quilombos de Palmares por parte da memória oficial nacional
do século XX presente nos livros didáticos de História do Brasil. Zumbi estaria ligado
ao heroísmo de uma raça (os negros) e de um modelo de rebeldia que incomodava a
ordem estabelecida. Zumbi seria a lembrança de um passado de conflito racial, uma
mácula para o discurso da “democracia racial”. Zumbi e Palmares não seriam um
exemplo para o contrato social, como defendia Rocha Pombo, necessário à construção
da nação brasileira. Eles separavam, não uniam. Tiradentes e a Inconfidência Mineira
uniam, não separavam. Era o interesse nacional (da República) acima de todas as
diferenças. Era a libertação da Colônia do jugo da Coroa portuguesa (um projeto
nacional).
Em linhas gerais, para representar a luta pela libertação dos escravos, os livros
didáticos publicados até a década de 1980 elegeram a figura dos abolicionistas, em
especial Joaquim Nabuco5 e a princesa Isabel, a “redentora”, que assinou a Lei Áurea,
em 13 de maio de 1888, deixando Zumbi e Palmares em segundo plano (RIBEIRO,
2004).
Nas produções didáticas mais recentes inspiradas nas novas propostas dos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e da historiografia contemporânea,

278
identificamos a preocupação em trabalhar com os alunos a ideia de como os heróis e
mitos são historicamente construídos. Os professores Andrea Montellato, Conceição
Cabrini e Roberto Catelli Junior, na coleção didática História Temática (2000), no
volume “Diversidade Cultural e Conflitos”, procuraram mostrar as articulações entre
a criação de mitos e a memória histórica, enfatizando os usos políticos e ideológicos
no enaltecimento de heróis por povos e nações.
Ao tratarem do caso de Tiradentes, por exemplo, os autores analisaram sua
imagem a partir do contexto da Inconfidência Mineira, mas também como parte da
invenção do panteão nacional republicano. Zumbi dos Palmares foi outra personagem
a ganhar relevo na narrativa das resistências escravas ao cativeiro no período colonial.
Os autores tiveram a preocupação de demonstrar como a sua história tem sido
apropriada como símbolo da luta contra o racismo pelo movimento negro.
A valorização dos heróis nacionais, segundo os autores da coleção História
Temática, no ensino de História é tão marcante que podemos perceber sua presença
no nosso cotidiano nomeando cidades, ruas, praças, bairros e monumentos. Sua
presença é tão acentuada nestes lugares de memória que parece que seria impossível
narrar a história do Brasil sem eles. O Brasil, por esta lógica, não existiria sem seus
heróis.
A reflexão acerca da construção histórica dos heróis e símbolos nacionais,
em pesquisas recentes como a desenvolvida por Thais Nivia de Lima e Fonseca, no
livro História & Ensino de História (2003), têm apontado para a necessidade de se
pensar os sujeitos na História não centrados apenas em personagens que realizaram
feitos individuais ou tidos como heroicos, como autoridades ou figuras políticas. As
tramas da história não podem ser entendidas como sendo dependentes do destino de
poucos, de façanhas ou vontades individuais de lideranças, em que pouco se destaca
a dimensão coletiva das lutas por mudanças ou da resistência exercida por grupos em
defesa de seus direitos.
Essa perspectiva de compreensão da história e dos seus atores se contrapõe
àquela imagem tradicional “martelada” em corações e mentes infanto-juvenis nos
bancos escolares. De acordo com Paulo Miceli,
Houve um tempo em que a História era doutrinação e se destinava, antes de tudo, a formar
e manter os valores da nacionalidade, e a disciplina acabava se transformando no espaço
cultural mais adequado à reprodução desses sentimentos. Na escola, a pátria era grande, a
raça era forte, os governadores – menos alguns tiranos – amavam o povo e eram amados
por ele, não havia sangue, nem lutas, nem desavenças... Todos, afinal, se entendiam na
doce harmonia de um magnífico paraíso tropical, desenhado graças à ação dos excepcionais
heróis imortalizados no panteão da pátria (MICELI, 2009, p. 47).

279
Os sujeitos históricos, como apresentam os próprios PCN, seriam vistos
como todos aqueles que, em determinados contextos históricos, mostraram suas
especificidades, sendo líderes de lutas para transformações ou permanências na
sua realidade, atuando em grupo ou de forma isolada. Eles seriam trabalhadores,
mulheres, crianças, escravos, camponeses, religiosos, intelectuais, políticos, entre
outros. Nestas narrativas sai a névoa da mística e da celebração dos heróis nacionais e
entra em cena o exercício reflexivo e crítico sobre a ação social de indivíduos, grupos
ou classes sociais, por vezes, à margem das páginas dos livros didáticos de História.6
No caso da crescente presença de Zumbi nas recentes produções didáticas,
Carolina Vianna Dantas destacou que este fato não seria apenas fruto dos avanços
teóricos e metodológicos da historiografia e dos novos currículos de História, mas
também da ação política do movimento negro no Brasil. Com o fortalecimento do
movimento negro, na década de 1970, houve um investimento na figura de Zumbi
dos Palmares “como ícone do racismo, do próprio movimento e da sua proposta de
resistência e libertação” (DANTAS, 2007, p. 213).
A valorização da história, da cultura e de personagens africanos e afro-
brasileiros, defendida por esses grupos reivindicatórios e pela produção acadêmica
na área nas últimas décadas, pode ser traduzida na formulação e aprovação da Lei n.
10.639/03, que prevê a inclusão da temática africana e afro-brasileira no currículo
escolar e acadêmico (MATTOS, 2003, p. 127-136; FLORES, 2006, p. 65-81). Mas
esta é outra história a ser contada com suas muitas abordagens, polêmicas e dilemas.

3. Quem precisa de (super) heróis?

A eleição dos heróis do panteão nacional envolve uma série de questões


políticas e jogos de interesses dos grupos dominantes no poder, bem como daqueles
que estão à margem dele. Esta escolha não é neutra. Definir aqueles que traduziriam
os sentimentos nacionais ou dos grupos nos remete à reflexão sobre as polêmicas em
torno das disputas de identidade.
Fazer esta escolha significa produzir a composição do retrato e dos valores que
se deseja instituir para a população. Em síntese, procura-se forjar modelos a serem
seguidos e exaltados. A constituição de um calendário de festas e comemorações,
assim como o culto aos heróis do passado, geralmente tidos como os “construtores”
ou “fundadores” da nação ou de um movimento revolucionário, faz parte do processo
de legitimação de um regime político ou das lutas de reivindicações de grupos
minoritários, por exemplo.

280
Acreditamos que o desafio do ensino da História não esteja na identificação
dos brasileiros com esses “grandes” heróis, e sim na necessidade de os brasileiros
se identificarem consigo mesmos, aprendendo a pensar que esta “comunidade
imaginada” denominada Brasil é composta pela diversidade cultural, não sendo
fruto de decisões de sujeitos superiores, detentores do futuro do país nas mãos.
Defendemos que se traga para a esfera pública, como por exemplo, a sala de aula,
a atuação de diferentes sujeitos e grupos na construção de projetos de sociedade.
Talvez seja mais interessante trazermos, para o cenário das nossas tramas histórias,
experiências políticas, sociais e culturais que possam contribuir para a prática de uma
cidadania mais participativa e reflexiva, que estimule o protagonismo das pessoas.
Necessitamos, como nos alerta o professor István Jancsó (1938-2010), em entrevista
na edição de abril de 2009 da Revista de História da Biblioteca Nacional, vencer nossa
resistência em relação aos “heróis populares”, contudo sem mistificá-los.
A escrita e o ensino de história, além de entreter, têm o compromisso de
alimentar o nosso desejo de envolvimento com as questões que fazem parte dos
dilemas do nosso cotidiano. Neste sentido, sem celebrações e misticismos, acreditamos
que o sociólogo Betinho [Herbert de Souza] (1935-1997) e o ambientalista Chico
Mendes (1944-1988) tenham mais a nos dizer acerca dos problemas atuais que
devemos resolver como a fome e a má distribuição de renda e a destruição das nossas
florestas. Esses são exemplos (dentre outros possíveis) que dialogam com as questões
do nosso tempo e servem de ponto de partida para o nosso protagonismo – reflexão
na ação. E não para ficarmos na contemplação de figuras fantásticas, despossuídas da
sua humanidade, que apenas nos trilham para a eterna espera do “salvador da pátria”.

Notas

1 Segundo Lucia Lippi Oliveira, no artigo “As festas que a República manda guardar”, “bandeiras, hino, datas
comemorativas, cerimônias, procissões, marchas, festas para a deusa da razão e heróis objetivavam garantir
a obediência, a lealdade e a cooperação dos súditos, ainda mais quando estes se tinham tornado cidadãos”
(OLIVEIRA, 1989, p. 173).
2 Para saber sobre a produção da memória sobre os episódios de Palmares e da Inconfidência Mineira, ver REIS,
2004; GOMES, 2005; FUNARI e CARVALHO, 2005; CARVALHO, 1990; FONSECA, 2001; FURTADO,
2002.
3 Nesse sentido, consultamos as obras didáticas privilegiadas nos seguintes estudos: FRANCO, 1982; TELLES,
1984; BITTENCOURT, 1990; REZNIK, 1992; MATTOS, 1998; FONSECA, 2001, p. 91-121; FONSECA,
2003; GASPARELLO, 2004; BITTENCOURT, 2008; OLIVA, 2010.
4 Entre as décadas de 1940 e 1980, contrariando os discursos recorrentes nos livros didáticos de História do
Brasil, foram publicados livros e artigos – acompanhados de transcrições de documentos – sobre Palmares de

281
autores como o historiador alagoano Alfredo Brandão, o historiador português Ernesto Ennes, o escritor e
militante comunista Edison Carneiro, o antropólogo Arthur Ramos, o sociólogo e historiador Clóvis Moura, o
historiador e jornalista Décio Freitas, o ativista e político Abdias do Nascimento, entre outros (GOMES, 2005,
p. 34-40; CARVALHO, 2004).
5 A imagem heroica dos abolicionistas como os “homens” que possibilitaram a “libertação escrava” foi também
profundamente divulgada pelos livros didáticos. No entanto, é preciso observar que eles foram os responsáveis
por propostas de controle social sobre os ex-escravos com o objetivo de devolver aos fazendeiros esta mesma
força de trabalho que lhes escapava pelas mãos; porém, na condição de mão-de-obra assalariada. Ainda hoje os
abolicionistas são considerados heróis por um número significativo de historiadores, especialmente por aqueles
devotos de “São Nabuco”, de acordo com o artigo de Celia Maria Marinho de Azevedo (2001, p. 85-97). Segundo
a autora, inúmeros abolicionistas como Joaquim Nabuco, embora “comovidos” com a situação difícil do negro
escravo, dirigiam a sua propaganda exclusivamente para os escravocratas, compartilhando a preocupação em
preservar o negro à disposição dos proprietários dos meios de produção. Ver também AZEVEDO, 1996, p.
51-67.
6 Para uma reflexão sobre os mitologias e heróis nacionais no ensino de história, ver MICELI, 1994;
CARVALHO, 2006, p. 14-22; RIBEIRO, 2008, p. 82-85.

Fontes

HERMIDA, A. J. B. Compêndio de História do Brasil. 48ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1965.
LIMA, J. I. A. Compêndio de história do Brasil. Rio de Janeiro: Eduardo & Henrique Laemmert, 1844.
MACEDO, J. M. de. Lições de História do Brasil para uso das escolas de instrucção primaria. 10ª ed. Rio de
Janeiro: H. Garnier, 1907.
MONTELLATO, A. et al. História Temática: Diversidade Cultural e Conflitos. 6ª série. São Paulo: Scipione,
2000.
PILLETI, N. & PILLETI, C. História & Vida – Brasil: Da Pré-História à Independência. 5ª série. 4ª ed. São
Paulo: Ática, 1991.
POMBO, J. F. R. História do Brasil (Curso superior). 6ª ed. São Paulo: Companhia Melhoramentos, 1952.
RIBEIRO, J. História do Brasil (Curso Superior). 17ª ed. revista e completada por Joaquim Ribeiro. Rio de
Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1935.
SILVA, J. História do Brasil para a primeira série ginasial. 8ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1951.
___________. História do Brasil para o curso médio (primeira e segunda série). 22ª ed. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1969.

Referências Bibliográficas

ABREU, M et al. (orgs.). Cultura política e leituras do passado: historiografia e ensino de história. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2007.
ABREU, M. e SOIHET, R. (orgs.). Ensino de História: conceitos, temáticas e metodologia. Rio de Janeiro: Casa
da Palavra; FAPERJ, 2003.

282
ABUD, K. M. A formação da alma e do caráter nacional: o ensino de História na Era Vargas. Revista Brasileira
de História. São Paulo, vol. 18, n. 36, p. 103-114, 1998.
AZEVEDO, C. M. M. Quem Precisa de São Nabuco. Estudos Afro-Asiáticos. Rio de Janeiro, ano 23, n. 01, p.
85-97, jan./jun. 2001.
__________. Imagens da África e da Revolução do Haiti no Abolicionismo dos Estados Unidos e do Brasil.
Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, n. 116, p. 51-67, 1996.
BARROSO, V. L. M et al. (Orgs.). Ensino de história: desafios contemporâneos. Porto Alegre: EST; Exclamação;
ANPUH-RS, 2010.
BERGAMASCHI, M. A. Povos indígenas e ensino de história: a Lei 11.645/2008 como caminho para a inter-
culturalidade. In: BARROSO, V. L. M et al. (Orgs.). Ensino de história: desafios contemporâneos. Porto
Alegre: EST; Exclamação; ANPUH-RS, 2010, p. 151-166.
BITTENCOURT, C. M. F. As “tradições nacionais” e o ritual das festas cívicas. In: PINSKY, J. (org.). O ensino
de História e a criação do fato. Ed. rev. e atualizada. São Paulo: Contexto, 2009, p. 53-92.
__________. Identidade nacional e ensino de História do Brasil. In: KARNAL, L. (org.). História na sala de
aula: conceitos, práticas e propostas. São Paulo: Contexto, 2003, p. 185-204.
__________. Livro didático e conhecimento histórico: uma história do saber escolar (1810-1910). Belo Horizon-
te: Autêntica, 2008.
__________. Pátria, Civilização & Trabalho: o ensino de história nas escolas paulistas (1917-1939). São Paulo:
Edições Loyola, 1990.
BOSCHI, C. C. Por que estudar a história? São Paulo: Ática, 2007.
CALLARI, C. R. Os Institutos Históricos: do Patronato de D. Pedro II à construção de Tiradentes. Revista
Brasileira de História. São Paulo, vol. 21, n. 40, p. 59-83, 2001.
CARVALHO, A. V. As múltiplas identidades de Palmares: as construções da História e Arqueologia. Revista
eletrônica história e-história. Campinas, de 17 de setembro de 2004.
CARVALHO, J. M. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 1990.
__________. O Brasil e seus nomes. Revista de História da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, n. 15, p. 14-22,
dez. 2006.
DÂNGELO, N. Ouvindo o Brasil: o ensino de história pelo rádio — décadas de 1930/40. Revista Brasileira de
História. São Paulo, vol.18, n. 36, p. 15-26, 1998.
DANTAS, C. V. Cultura histórica, República e o lugar dos descendentes de africanos na nação. In: ABREU,
M et al. (Orgs.). Cultura política e leituras do passado: historiografia e ensino de história. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2007, p. 229-248.
ENTREVISTA – István Jancsó: Oxente, sou professor. Revista de História da Biblioteca Nacional. Rio Janeiro,
n. 43, p. 48-53, abr. 2009.
FERRO, M. Falsificações da História. Lisboa: Europa-América, s/d.
FLORES, E. C. Etnicidade e ensino de história: a matriz cultural africana. Tempo. Rio de Janeiro, vol. 11, n.
21, p. 65-81, jun. 2006.
FONSECA, S. G. Caminhos da História Ensinada. Campinas: Papirus, 1993.
FONSECA, T. N. L. e. Da infâmia ao altar da pátria: memória e representações da Inconfidência Mineira e
de Tiradentes. 2001. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História Social,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001a.
__________. História & ensino de História. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
__________. Os heróis nacionais para crianças: ensino de história e memória nacional. In: ROCHA, H. et al.
(Orgs.) A escrita da história escolar: memória e historiografia. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2009, p. 107-126.

283
__________. “Ver para compreender”: arte, livro didático e história da nação. In: SIMAN, L. M. C. e FON-
SECA, T. N. L. e (Orgs.). Inaugurando a História e construindo a nação: discursos e imagens no ensino de
História. Belo Horizonte: Autêntica, 2001b, p. 91-121.
FRANCO, M. L. P. B. O livro didático de História do Brasil. A versão fabricada. São Paulo: Global, 1982.
FUNARI, P. P. A.; VIEIRA, A. C. Palmares: ontem e hoje. São Paulo: Jorge Zahar, 2005.
FURET, F. A oficina da história. Lisboa: Gradiva, s.d.
FURTADO, J. P. O manto de Penélope: história, mito e memória da Inconfidência Mineira de 1788-9. São
Paulo: Companhia das Letras, 2002.
GASPARELLO, A. M. Construtores de identidades: A pedagogia da nação nos livros didáticos da escola secundá-
ria brasileira. São Paulo: Iglu Editora, 2004.
GOMES, F. S. Palmares. São Paulo: Contexto, 2005.
GUIMARÃES, M. L. S. Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o
projeto de uma história nacional. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 1, p. 05-27, 1988.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 7ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
HANSEN, P. S. Feições e fisionomia: A História do Brasil de João Ribeiro. Rio de Janeiro: Access, 2000.
JESUS, N. M. et al (Orgs.). Ensino de História: trajetórias em movimento. Cáceres: Ed. da UNEMAT, 2007.
KARNAL, L. (Org.). História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. São Paulo: Contexto, 2003.
MATTOS, H. M. O ensino de História e a luta contra a discriminação racial no Brasil. In: ABREU, M.;
SOIHET, R. (Orgs.). Ensino de História: conceitos, temáticas e metodologia. Rio de Janeiro: Casa da
Palavra; FAPERJ, 2003, p. 127-136.
MATTOS, I. R. (Org.). Histórias do ensino da História no Brasil. Rio de Janeiro: Access, 1998.
MATTOS, S. R. O Brasil em Lições: A história como disciplina escolar em Joaquim Manuel de Macedo. Rio de
Janeiro: Access, 2000.
MICELI, P. C. O mito do herói nacional. 5ª ed. São Paulo: Contexto, 1994.
__________. Uma pedagogia da História?. In: PINSKY, J. (Org.). O ensino de História e a criação do fato. Ed.
rev. e atualizada. São Paulo: Contexto, 2009, p. 37-52.
OLIVA, A. R. Reflexos da África. Idéias e representações sobre os africanos no imaginário ocidental, estudos de
caso no Brasil e em Portugal. Goiânia: Ed. da PUC-Goiás, 2010.
OLIVEIRA, L. L. As festas que a República manda guardar. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 02, n. 04,
p. 172-189, 1989.
PINSKY, J. (org.). O ensino de História e a criação do fato. Ed. rev. e atualizada. São Paulo: Contexto, 2009.
PINTO JUNIOR, A. Joaquim Silva, um autor da história ensinada do Brasil: livros didáticos e educação moder-
na dos sentidos (1940-1951). 2010. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em
Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010.
REIS, A. M. B. Zumbi: historiografia e imagens. 2004. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-
Graduação em História, Universidade Estadual Paulista, Franca, 2004.
REZNIK, L. Tecendo o amanhã (A História do Brasil no ensino secundário: programas e livros didáticos, 1931
a 1945). 1992. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Uni-
versidade Federal Fluminense, Niterói, 1992.
RIBEIRO, R. R. Colônia(s) de Identidades: discursos sobre a raça nos manuais escolares de História do Brasil.
2004. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Es-
tadual de Campinas, Campinas, 2004.
__________. “Destemido bandeirante em busca da mina de ouro da verdade”: Francisco Adolfo de Varnhagen,
o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e invenção do Brasil Colônia no Brasil Império. 2009. Tese
(Doutorado em História Cultural) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Estadual de
Campinas, Campinas, 2009.
__________. Exóticos, infantis e submissos na colônia identitária: as representações dos negros nos livros didá-
ticos de História do Brasil. História & Perspectivas. Uberlândia, n. 38, p. 43-77, jan./jun. 2008.

284
__________. Livros didáticos de História: trajetórias em movimento. In: JESUS, N. M. et al (orgs.). Ensino de
História: trajetórias em movimento. Cáceres: Ed. da UNEMAT, 2007, p. 41-53.
__________. Os superbrasileiros. Revista de História da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, n. 36, p. 82-85,
set. 2008.
ROCHA, H. et al. (Orgs.) A escrita da história escolar: memória e historiografia. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2009.
SAID, E. W. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
SILVA, T. T. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. 2ª ed. Belo Horizonte: Autên-
tica, 2001.
SIMAN, L. M. C. e FONSECA, T. N. L. e (Orgs.). Inaugurando a História e construindo a nação: discursos e
imagens no ensino de História. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
TELLES, N. A. Cartografia Brasilis ou: está história está mal contada. São Paulo: Edições Loyola, 1984.

285
Silêncios de gênero em livros didáticos
de História de Mato Grosso

Ana Maria Marques*

Nos livros didáticos de História de Mato Grosso, é evidente a ausência de


abordagens que contemplem uma historiografia mais recente metodologicamente
pensada a partir das teorias feministas. Não muito diferente do que acontece em obras
didáticas de História do Brasil, ou mesmo de História Geral. Todavia, é recorrente
essa constatação em se tratando das obras dedicadas à história local (de cada estado
da federação). A história dos governantes, de heróis e, consequentemente, de homens
é a tônica de uma história positivista que se consagrou nos livros didáticos há mais
de um século.
Ao refletir sobre a tradição positivista, presente nos livros didáticos, recorro à
afirmação de Joana Maria Pedro:
A antiga forma de escrever a história, costumeiramente chamada de “positivista”, ou às
vezes “empirista”, dava destaque a personagens, em geral masculinos, que tinham de alguma
forma participado dos governos e/ou guerras. Para muitas pessoas, esta era uma forma de
“imortalidade”. Pertencer a esta grande narrativa significava, e ainda significa, prestígio
(PEDRO, 2005, p. 83).

A História produzida nos livros didáticos, herdeira dessas tradições


historiográficas, mesmo que nem sempre produzida a partir de pesquisas acadêmicas,
é resultante de produções autorizadas a falar pela História (pois nem toda obra
didática é escrita por historiadores de formação). Essas produções, em sua grande
maioria, estão muito distantes das discussões de gênero, pois ainda ocupam lugar
marginal nas academias. Na região Centro-Oeste, as pesquisas nessa área ainda têm
pouco volume e poucas(os) pesquisadoras(es). Pensar e escrever de uma perspectiva
de gênero não é, pois, enaltecer as mulheres, como em geral fez as Histórias de
Mulheres; é sim pensá-las nas relações sociais, junto com os homens; é também
entender por que elas foram silenciadas ou não tiveram vozes nessa produção,
mesmo quando escrita por mulheres.

* Professora doutora do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da


Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail:anamariamarques.ufmt@gmail.com

286
Há feministas, especialmente as francesas, que consideram a categoria Gênero
um tanto problemática. Nicole-Claude Mathieu (2009) aponta quatro problemas no
uso exclusivo do termo “gênero”: o primeiro seria o ocultamento do “sexo” e o possível
esquecimento da escala assimétrica que constituem suas elaborações simbólicas;
o segundo é o risco do uso de um termo como uma “bicategorização inofensiva”;
o terceiro, que o gênero pode se tornar um eufemismo; por fim, a tendência dos
estudos de gênero para a teoria queer que, inspirados no pós-modernismo, reprovam
movimentos feministas. Inspiradas nessa suposição de que os estudos de gênero
podem “despolitizar”1 o feminismo, as feministas francófonas preferem utilizar o
termo “relações sociais de sexo”, considerando que:
(...) todo movimento social é “sexuado”, não somente em função do sexo biológico de seus/
suas participantes, mas antes de tudo porque reflete – e às vezes questiona – a divisão social
e sexual do trabalho e as relações de poderes entre homens e mulheres na sociedade. Essa
compreensão é tida também por historiadores norte-americanos (TRAT, 2009, p. 152).

Mesmo com todas as críticas e alertas sobre a utilização do termo gênero,


considero que as referências sobre estudos de gênero no Brasil, com as quais me
identifico e cito neste trabalho, não estão contaminadas por esses riscos. Muito do que
se fala sobre gênero diz respeito ao sexo. Não se trata de definir ou separar homens de
mulheres ou de ligar genitália a identidade sexual, mas antes é importante entender
como se constroem as diferenças entre homens e mulheres, e também entre homens
e homens, mulheres e mulheres. Utilizando as palavras de Guacira Louro: “Para que
se compreenda o lugar e as relações de homens e mulheres numa sociedade, importa
observar não exatamente seus sexos, mas tudo o que socialmente se construiu sobre
os sexos” (1999, p. 21).
Tomo a definição de gênero como sugerida por Joan Scott: “O gênero é um
elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas
entre os sexos e o gênero é um primeiro modo de dar significado às relações de poder”
(1995, p. 86). Dessa forma, a possibilidade de ampliação da categoria Gênero não
está fechada na oposição da diferença com os homens e, sim, na perspectiva relacional
e perceptiva. Gênero é, pois, percepção. E percepção se desenvolve, constrói-se.
Lembro a emblemática fala de Simone de Beauvoir, em 1949, ao iniciar seu polêmico
livro O segundo sexo: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”.2 O aspecto relacional
é condição para não fecharmos ou limitarmos as discussões de gênero aos nichos ou
guetos. Fugir da possibilidade de relação e conflitos é escapar do sentido primeiro do
seu conceito.
Os estudos de gênero apontam três linhas teóricas bem distintas: a do

287
universalismo, baseada no universal Homem, uno, em cujo sujeito está contido
a mulher; a do diferencialismo, que faz uma crítica à dominação masculina e
propõe uma resistência ao uno, fálico e masculino; e a do pós-modernismo, que
propõe uma indissociabilidade do masculino/homem e feminino/mulher, o que
implica o entendimento de um feminino ou masculino que poderia ser assumido
indiferentemente por homens ou mulheres (COLLIN, 2009).
Há que se compreender também o universalismo das igualitaristas que pregava
uma sociedade de mulheres e homens iguais partindo do referencial Homem – o
que especialmente algumas autoras chamam de “primeira onda” do feminismo, cujas
reivindicações estavam no carro-chefe do movimento sufragista, seguido pela inserção
crescente de mulheres no mercado de trabalho urbano/capitalista. As essencialistas do
diferencialismo, por sua vez, utilizaram-se de características biológicas para construir
discursos de afirmação de uma identidade feminina: a maternidade e a sensibilidade,
por exemplo, tornaram-se próprias das mulheres e condição de empoderamento,
num segundo momento. A maternidade e a sensibilidade foram construídas como
elementos da “condição feminina”, da “natureza da mulher”, e esses pressupostos
marcaram também uma historiografia brasileira pioneira nos Estudos de Gênero,
quando eles nem assim eram nomeados ainda. Cito como exemplos os trabalhos de
Rachel Soihet (1989) e Marina Maluf (1995).
O trabalho aqui apresentado resulta de pesquisa cujo objetivo era indagar os
silêncios das mulheres na História, especialmente na de Mato Grosso, posta em livros
didáticos, e destacar algumas personagens, na perspectiva dos estudos de gênero.
Trata-se de estudo cujo objeto principal foi um conjunto de três obras didáticas
de Elizabeth Madureira Siqueira. São estas: O processo histórico de Mato Grosso
(1990), Revivendo Mato Grosso (1997) e História de Mato Grosso: da ancestralidade
aos dias atuais (2002). Esses livros didáticos não escapam da tradição positivista,
com uma abordagem cronológica que privilegia os “grandes acontecimentos” e
nomes que marcaram a trajetória histórica do estado. Nessa perspectiva, trata-se
de uma história de homens, pois as mulheres, quando aparecem, são coadjuvantes
ou estão ali para indicar algum aspecto cuja participação feminina foi destacada,
em geral no que diz respeito à cultura erudita e à arte no seu aspecto geral – a
exemplo de Dunga Rodrigues e Zulmira Canavarros.
Dunga Rodrigues recebeu um destaque de meia página em História de Mato
Grosso: da ancestralidade aos dias atuais (SIQUEIRA, 2002, p. 255), onde assim
é qualificada: “Além de pesquisadora, foi exímia pianista, professora de francês,
português e de piano, compositora e personalidade de destaque na cultura de Mato
Grosso”. As oito páginas seguintes à anteriormente citada exploram temáticas das

288
quais ela tratava: estilos e instrumentos musicais, danças e festas locais.
Zulmira Canavarros é referenciada em meia página (SIQUEIRA, 2002, p.
197). Ela é definida como “uma das mulheres mais ativas no cenário cultural mato-
grossense, na primeira metade do século XX”. Além de sua atuação no campo da
literatura e da música, Zulmira também trabalhou na dramaturgia: fazia apresentações
de teatro de bonecos e liderou um grupo teatral em Cuiabá. Era ainda amante do
futebol e sua paixão pelo esporte rendeu a composição do hino de um dos times mais
tradicionais da cidade, na década de 1930, o Mixto Esporte Clube. Zulmira também
foi considerada a “madrinha do rádio” em Cuiabá, pois foi do quintal de sua casa que
saíram as primeiras transmissões radiofônicas da cidade nos idos de 1944.
O interesse pela obra didática da Professora Elizabeth Madureira Siqueira
surgiu pelo conhecimento de sua própria produção e da inserção que seus livros têm
nos espaços escolares e acadêmicos. Elizabeth Madureira Siqueira possui graduação
e licenciatura em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho” (1969), é mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (1990) e
doutora em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso (1999). A professora
construiu carreira acadêmica na Universidade Federal de Mato Grosso e atualmente,
embora aposentada, atua no mundo literário. Nos últimos anos da carreira acadêmica,
Elizabeth Siqueira foi coordenadora da Editora da UFMT (por cinco anos até 2009),
foi professora do Departamento de Educação e pesquisadora do Grupo de Estudo
Memória e História da Educação, ao qual ainda está ligada. Atualmente integra a
diretoria do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso (IHGMT), onde é
curadora, e ocupa cadeira na Academia Mato-Grossense de Letras.
Entre os autores clássicos de livros didáticos de História de Mato Grosso e
anteriores a ela, frequentemente revisitados, estão: Estevão de Mendonça (1906),
Rubens de Mendonça (1979), filho de Estevão, e Lenine Campos Póvoas (1985) —
filho de Nilo Póvoas e sobrinho de Isaac Póvoas, homens que ocuparam secretarias
executivas, prefeitura, câmaras e instituições políticas. Vale enfatizar que os três autores
também foram membros do IHGMT. A narrativa por eles produzida é uma história
de sucessões de poderes políticos. Esse tipo de historiografia criou uma tradição
que por décadas foi imperiosa e também pode ser percebida a força inspiradora nos
trabalhos de Elizabeth M. Siqueira. Ela, contudo, a partir do seu entorno literário da
produção advinda do meio acadêmico, incluiu outras temáticas às suas narrativas,
como, por exemplo, as pesquisas sobre a escravidão em Cuiabá de Luiza Volpato e
os estudos sobre representação de Mato Grosso resultantes da tese de doutorado de
Lylia Galetti.
O processo histórico de Mato Grosso (SIQUEIRA; COSTA; CARVALHO, 1990)
foi escrito sob visível influência do marxismo. Há que se reconsiderar o momento
pós-ditadura militar pelo qual o Brasil passava e o ostensivo trabalho das comissões

289
que se formam para avaliar livros didáticos apontando “erros crassos e distorções”
nos livros de História para o 1º grau (MUNAKATA, 2007, p. 273). Nas primeiras
páginas do referido livro, então, as autoras fazem um apanhado geral da história
dos movimentos sociais do Estado de Mato Grosso, das revoltas e da economia. No
capítulo sobre “Movimentos Sociais” foi mencionada a “rainha Teresa” do Quilombo
do Piolho, localizado no entorno de Vila Bela da Santíssima Trindade, na região oeste
de Mato Grosso. Teresa teria assumido a coroa após a morte de seu marido, José
Piolho, mas morreu de desgosto após a ocupação do quilombo por uma bandeira
(SIQUEIRA; COSTA; CARVALHO, 1990, p. 135). Mesmo nas quadrinhas de José
de Mesquita, grande expoente da literatura mato-grossense da primeira metade do
século XX, reforça-se a ideia de que até mulheres pertencentes à elite aparecem nos
fazeres cotidianos da produção. Francisco de Paula Magessi é o Pai Chico, último
governador da capitania, quando administrada em Vila Bela, no início do século
XIX, e a Mãe Rita era sua esposa: “Minha gente, venham ver.../O que ver aqui terão:/
Pai Chico cortando sebo,/Mãe Rita fazendo sabão!” (MESQUITA apud SIQUEIRA;
COSTA; CARVALHO, 1990, p. 97).
Ainda no mesmo capítulo mencionado, uma personagem controversa,
chamada Laurinda Lacerda Cintra, conhecida como Doninha, teria tido visões
de uma santa; ela arrebatava muitos seguidores com suas curas e profecias, em
1931. Todavia, um grande arranjo político incomodava políticos locais de outra
legenda contrária à família de Doninha. Nesse episódio a dimensão política de
um movimento religioso torna-se importante para perceber que as separações de
esferas de poder se confundiam. A personagem foi detida pela polícia a mando do
prefeito e julgada inocente das acusações, isso sem mencionar várias perseguições
que Doninha e membros da sua família sofreram. Esse episódio de Tanque Novo, na
região de Poconé, é citado nos três livros de Elizabeth Siqueira. O fato, que revela
uma resistência política ao governo varguista, recebe destaque com a participação
de Laurinda Cintra, a Doninha, citada como uma “santa vidente” cujas revelações
e capacidade de agregar seguidores provocaram sua detenção policial: “Movimento
armado, ocorrido em 1933 no município de Poconé, mais especificamente na região
do Tanque Novo. Na ocasião os habitantes do arraial foram perseguidos e presos por
questões políticas, tendo sido apenas Doninha submetida a julgamento” (SIQUEIRA;
COSTA; CARVALHO, 1990, p. 184). E foi absolvida em 1934, mudou-se com a
família para Cáceres e, depois de receber como herança grande quantidade de terras
na região de Tanque Novo, retornou para lá, onde viveu até 1974.

290
Uma mulher mineradora é citada: dona Joana Francisca de Jesus estava em
seus afazeres domésticos quando encontrou um primeiro e maior diamante da
região (SIQUEIRA; COSTA; CARVALHO, 1990. p. 177). Embora as referências
às mulheres sejam breves e poucas, nota-se que elas estavam sempre participando na
história regional e não alheias à vida pública e produtiva junto aos homens.
O outro livro didático, Revivendo Mato Grosso,3 retoma a cronologia da
história política clássica, organizado em três capítulos que tratam respectivamente
de: Colônia, Império e República. Neste, Siqueira (1997, p. 87) faz referência
a Carolina Amélia Castro Câmara como proprietária do Colégio Imaculada
Conceição, escola particular de ensino primário, em 1870. Na página 133, há
menção a Maria Joana (proprietária de uma fazenda agrícola) – que teria auxiliado
mineiros no início da garimpagem, na região de Nova Marilândia, em 1959.
Mulheres donas de lavras também são acrescidas aos nomes que estas recebiam
no século XVIII: “lavras de Ana Vaz, Tanque do padre, Tanque do Arinos, Tereza
Botas e Lavras do Meio” (1997, p. 22). Sem citar nomes, a página 145 lembra as
muitas agremiações literárias que existiram em Mato Grosso, e destaca o “Grêmio
Literário Júlia Lopes”, que “congregava, exclusivamente, elementos femininos.
Além dos saraus lítero-musicais, essa associação imortalizou sua produção através
da revista ‘A VIOLETA’, periódico que circulou por 35 anos”.
Dos três livros didáticos estudados, apenas o último continua sendo
comercializado; os demais estão esgotados, não foram reeditados e poucos exemplares
são passíveis de consulta – tornaram-se obras raras. De modo geral, enfatizam a política,
os eventos que contam a História de Mato Grosso, numa perspectiva cronológica,
pelos seus “desbravadores”, colonizadores e governantes – os que trabalharam nos
processos de “fundações” de vilas e cidades, desconsiderando-se os habitantes que lá
viviam. Essa não é uma história que privilegia mulheres, por sua própria metodologia.
Ao contrário, é uma narrativa do e no masculino, numa perspectiva universalizante –
pela força do gênero gramatical e pela participação efetiva de homens nesses cenários.
Ao analisar parcialmente textos e imagens nos livros didáticos selecionados,
reverberam-se os silêncios ou a pouca visibilidade que as mulheres têm na
historiografia: raras aparecem nos episódios considerados importantes, pois, numa
tradição positivista, são os governantes, os homens da política e de mando, que tomam
a frente dos fatos marcantes da história oficial. Essa tradição se perpetuou, mesmo
que eventualmente algumas poucas mulheres aparecessem. Em geral, as mulheres,
quando surgem, são anônimas, em papéis importantes porque dizem respeito à
sobrevivência e manutenção de seus pares.

291
Professores de História e suas relações com os livros

Também como resultado da pesquisa, investigou-se como alguns professores


de duas escolas públicas de Mato Grosso se posicionam frente aos desafios dos estudos
de gênero. O campo de investigação foram duas grandes escolas estaduais localizadas
na capital mato-grossense: a E.E. Presidente Médici e o Liceu Cuiabano. A primeira é
considerada a maior escola pública do estado, inaugurada na década de 1970 para ser
modelar; a segunda carrega a tradição de primeira escola pública de ensino secundário
(desde 1880) e atualmente dedica-se unicamente ao Ensino Médio em três turnos
(matutino, vespertino e noturno). Nessas duas escolas foram aplicadas entrevistas
direcionadas com o objetivo de investigar sobre a formação dos(as) professores(as),
quais as apropriações sobre os estudos de gênero e o tratamento relacionado às obras
que são objetos dessa pesquisa. Nessa perspectiva metodológica da utilização de fontes
orais, considera-se a subjetividade dos depoimentos como bem menciona Alessandro
Portelli: “A subjetividade, o trabalho através do qual as pessoas constroem e atribuem
o significado à própria experiência e à própria identidade, constitui por si mesmo o
argumento, o fim mesmo do discurso” (PORTELLI, 1996, p. 60).
Através de entrevista direcionada, questionou-se o conhecimento desses
professores sobre as obras pesquisadas e como eles buscam pedagogicamente soluções
para introduzir temáticas de gênero no ensino de História. Quatro professores
de História, dois de cada escola, aceitaram participar e colaborar respondendo às
perguntas previamente elaboradas. Todos preferiram respondê-las por escrito ou
concordaram que a bolsista4 transcrevesse suas palavras enquanto falavam e depois
davam sua concordância com o depoimento.
O questionário foi igual para todos. No cabeçalho deveria constar: nome do
professor, idade, formação (ano/curso/instituição), cidade onde nasceu, tempo de
magistério (público, estadual, municipal e/ou privado), tempo que leciona História
(no Ensino Fundamental e/ou Médio). Depois, seguiam-se as questões: “Utiliza
livro didático como material de apoio nas aula: ( ) Sempre ( ) Às vezes”; “Quais
os autores de livros didáticos você mais gosta e/ou utiliza?”; “O que você valoriza
na escolha do Livro Didático ou não costuma opinar sobre as escolhas da escola?”;
“Conhece algum Livro Didático de História de Mato Grosso de Elizabeth Madureira
Siqueira? Qual(is)?”; “Que outros Livros Didáticos de História de Mato Grosso
você utiliza ou indica aos alunos? Por quê?”; “Já fez alguma discussão de Gênero em
suas aulas? Sim ou Não? Relate uma Experiência”; “Considera que o Livro Didático
favorece discussão de Gênero? Sim ou não e por que ou em que sentido?”; “Os alunos

292
demonstram interesse por discutir Gênero? A que atribui o interesse (ou a falta de)
deles?” e “O que falta para que esse debate sobre Gênero seja melhorado nas escolas,
de um modo geral, em sua opinião?”
Embora os professores tivessem declarado e registrado seus nomes completos
nas entrevistas, reservo-me a opção de referi-los apenas por parte do primeiro nome
de cada um. Considerando que em ambas as escolas foram ouvidas homônimas,
diferencio-as como Maria do Médici e Maria do Liceu (uma referência às escolas
onde elas lecionam), e os outros dois: Claudia e João. Todos são professores bastante
experientes na docência – o tempo de trabalho varia entre 15 a 22 anos no magistério
– na Educação Básica. São também experientes de vida, pois a faixa etária deles
regula entre 42 e 51 anos de idade. Os dois professores da Escola Estadual Presidente
Médici tiveram experiência não só na rede pública, mas também na privada – o
João tem mais tempo de experiência em escola privada (17 anos) do que pública
(12 anos). Todos são licenciados em História, no Estado de Mato Grosso: a Claudia
do Liceu e o João, na UFMT; a Maria do Médici em uma universidade privada
(UNIC – Universidade de Cuiabá); e Maria do Liceu, na UNEMAT (Universidade
do Estado de Mato Grosso). Todos concluíram suas graduações há mais de 13 anos
e não fizeram mestrado. Embora nem todos sejam cuiabanos de nascimento, como
Maria do Médici e Cláudia, já moram na cidade de Cuiabá há mais de uma década –
o que implica acreditar que são conhecedores da história do estado por viverem nele
há tempo considerável.
Sobre o uso de livros didáticos nas aulas, com exceção de Maria do Médici,
os demais utilizam sempre, até mesmo porque todos os alunos têm o livro adquirido
pela escola por meio do PNLEM (Programa Nacional do Livro Didático para o
Ensino Médio).5 Especificamente sobre os livros de Elizabeth Siqueira citados nesta
pesquisa, todos declararam conhecer o mais recente. Todavia, os professores da E.E.
Presidente Médici dizem preferir outros didáticos de Mato Grosso, embora não citem
quais livros, enquanto as professoras do Liceu Cuiabano declaram utilizar o História
de Mato Grosso (2002).
Acerca das possibilidades de discutir “gênero” em sala de aula, as respostas são
variadas. Maria do Liceu relata: “(...) foi muito bom quando os alunos demonstraram
a valorização pela mulher, outros pontos sobre sexualidade, ainda são polêmicos nos
dias de hoje”. A Claudia afirma que já fez discussões de gênero: “Sim, durante o
1º ano até o 3º ano é realizada uma linha de tempo, mostrando a caminhada das
mulheres através da história”. Maria do Médici afirma: “Já fizemos várias discussões
mas de forma bem superficial”. Sobre o interesse dos alunos acerca das discussões de

293
gênero, João relata: “Não, não possuem interesse a nada ‘culto’”. Esse depoimento
faz crer que, no entendimento do professor, o debate esteja ainda circunscrito aos
fóruns intelectuais e pouco disseminados no cotidiano escolar, embora este seja
permeado de preconceitos sexistas, de moralismos que historicamente construíram
relações de gênero.
Quando indagados sobre a contribuição dos livros didáticos ao debate sobre
“gênero”, as respostas apontam para uma negativa. Maria do Liceu pondera: “Às vezes
sim, mas nós fazemos acontecer as discussões em relação às questões de gênero e o
preconceito existente nas mentalidades”. Já a Claudia diz: “Não. Os livros didáticos
não apresentam essa discussão com clareza”. Maria do Médici denuncia: “Não, porque
quase não é relatada na história de Mato Grosso”. E João complementa: “Falta um
avanço cultural da população, das famílias e da academia (UFMT)”.
Os breves relatos apresentados nos dois parágrafos anteriores apontam dois
problemas cruciais para a introdução dos estudos de gênero no ensino de História:
o despreparo de professores e alunos e a ausência do tema nos livros didáticos que,
por sua vez, são reflexos da falta de pesquisas e produções acadêmicas nesse campo
epistemológico.
Além da proposição já colocada pelo João, também Maria do Médici sugere
melhorar a biblioteca e treinar professores. Concorda Maria do Liceu que é preciso
“Formação continuada aos profissionais de educação”. Claudia denuncia e propõe:
“Que haja interesse entre os professores para realizar debates, trabalhos e/ou projetos
sobre o assunto”.
Todos concordam que o interesse é fundamental para que haja o debate, tanto
da parte dos alunos como de professores, mas dificilmente nos interessamos pelo que
desconhecemos ou pelo que não foi despertado a conhecer. E, se os livros didáticos
não o fazem, ainda assim o papel do professor como fomentador do debate e da
pesquisa é importantíssimo para que o trabalho se desenvolva e dê resultados.
Não se pode ter a ilusão de que o livro didático vá informar ou instruir sobre
determinado assunto por si só, mesmo que consideremos o peso e o uso frequente
dessa ferramenta em sala de aula. Vale ressaltar que em outras e muitas realidades
diferentes da pesquisada, o livro didático é, não raro, a única fonte de instrumentação
conteudística para as aulas de História. Todavia, o livro não fala por si, ele depende
da interlocução com o leitor, neste caso, professores e alunos. Nessa via de mão dupla,
são os elementos formativos das pessoas que vão interagir com o livro. Então, nunca
haverá um livro completo ou o melhor, porque é característica desse artefato a falta.
E o que falta no livro pode, deve e é completado ou modificado pelo leitor. Podemos
também considerar para alunos o que Maurice Tardif coloca para professores:

294
Os professores dispõem, evidentemente, de um sistema cognitivo, mas eles não são somente
sistemas cognitivos, coisa que é muitas vezes esquecida! Um professor tem uma história de
vida, é um ator social, tem emoções, um corpo, poderes, uma personalidade, uma cultura,
ou mesmo culturas, e seus pensamentos e ações carregam as marcas dos contextos nos quais
se inserem (TARDIF, 2007, p. 264).

Ainda considerando-se a subjetividade do texto na relação estabelecida com os


leitores, é importante citar Roger Chartier:
Dentro do território textual disponível, os leitores assumem o comando, dão significado às
obras e as investem com suas próprias expectativas. Os recursos técnicos nunca tiveram uma
significação unívoca. Eles podem ser dotados de diferentes usos e efeitos. Contra qualquer
forma de determinismo tecnológico, temos que lembrar que as técnicas são aquilo que
os produtores e usuários fazem delas. Tal afirmação abriu caminho para perspectivas que
consideram os consumos culturais como forma de “produção” que, certamente, não fabrica
objetos, mas que cria usos e representações, nunca idênticos àqueles que os produtores
dos artefatos culturais almejavam. Aparentemente passiva e submissa, a leitura é, em si,
inventiva e criativa (CHARTIER, 1999, p. 31).

Os depoimentos dos professores confirmaram que existem, nos livros


didáticos, temáticas que possibilitam uma análise de gênero, como fazer perceber que
mulheres atuaram ativamente na história, não como meras reprodutoras e dedicadas
aos ambientes domésticos, o que obviamente não as desqualifica, mas que estavam
também na vida ativa das cidades como proprietárias, donas em funções de mando e
liderança, ou exercendo trabalhos que normalmente se associam a homens, como a
atividade das lavras. Também é possível discutir porque tão pouco se fala de mulheres
nos livros, ou seja, o silêncio dos livros é também decorrente das fontes documentais
ou da própria perspectiva de historiadores que “não conseguem ver” no material
empírico as relações de gênero constituídas historicamente.

À guisa de conclusão

Não é uma história das mulheres que está por ser escrita, é uma história que
inclua as mulheres ou, ainda, uma história na qual as mulheres não sejam apenas
heroínas ou vilãs, como o efeito produzido pelas narrativas universalistas. Ou
exploradas e dominadas, como na perspectiva das teóricas do patriarcado. A história
das mulheres não operou uma ruptura epistemológica, como sustenta Michelle Perrot:
Seu reconhecimento acadêmico é frágil e suas estruturas institucionais ainda bastante
insuficientes. Sua transmissão, particularmente no ensino primário e secundário, e sua
continuação não são asseguradas. No entanto, ela se impôs, e doravante é impossível “uma
história sem as mulheres” (PERROT, 2009, p. 115).

295
Existe uma perspectiva crescente de inserção das novas temáticasno campo
historiográfico, desde os Annales e especialmente com o avanço da História Cultural,
a partir dadécada de 1980. As teorias feministas e os estudos de gênero certamente
operarão (no futuro, porque as mudanças, embora sentidas, são ainda pouco
expressivas) modificações nos livros didáticos. Muito ainda se tem a questionar
sobre mulheres nos livros didáticos. Será que para ganhar visibilidade elas precisam
estar atreladas à ideia de heroísmo, ou presas a uma “condição feminina”, cuja
importância se meça por uma suposta relação de submissão unilateral? Talvez outras
mulheres, “comuns”, possam também ser percebidas e compreendidas nas relações
de força e poderes construídos socialmente – o que não pode ser assegurado apenas
pela obra didática, mas pelo papel formador fundamental exercido pelos professores
nesse modelo, ainda moderno, de escola que temos.

Notas
1 As aspas foram colocadas por conta de uma proposição feita por Judith Butler (2003, p. 35) criticando as
tentativas de dar coesão política à categoria gênero. Concordo com ela que é um equívoco pensar que a ação
política exija uma unidade.
2 Frase inicial da primeira parte do volume 2 (BEAUVOIR, s/d).
3 Dentre as três obras de Elizabeth M. Siqueira, esta é a menos conhecida entre professores e raramente
encontrada nas bibliotecas. Acreditamos que por ter sido originalmente produzida em formato de brochura e
especialmente para professores da Educação de Jovens e Adultos, da Secretaria da Educação de Mato Grosso.
4 Jerusa Doring Volff, entre agosto de 2011 e julho de 2012, foi a bolsista PIBIC/CNPq que
participou deste projeto, cujo cadastro na PROPEQ/UFMT recebeu o número 122/CAP/2011. A
pesquisa também foi financiada pelo CNPq através do Edital 20/2010 (processo n. 402216/2010-5).
5 O Programa Nacional do Livro para o Ensino Médio, em 2009, foi estendido para todo o Brasil, para
atender às disciplinas de História e Geografia – um recorde de distribuição: 103 milhões de livros didáticos
foram entregues gratuitamente para alunos de 140 mil escolas públicas brasileiras de Educação Básica (Revista
Veja, ed. 2.104, 18 de março 2009). Estamos falando aqui dos livros didáticos de História Geral e não dos de
História de Mato Grosso, que ficam restritos ao uso das bibliotecas e acervos particulares reproduzidos, por
vezes, para relacionar conteúdos gerais com a história local.

Referências Bibliográficas

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 7ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d.
BUTLER, Judith. Problemas de Gênero. Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasi-
leira, 2003.
CHARTIER, Roger. As revoluções da leitura no ocidente. In: ABREU, Márcia (Org.). Leitura, história e história
da leitura. Campinas: Mercado das Letras, 1999.

296
COLLIN, Françoise. Diferença do sexos (teorias da). In: HIRATA, Helena et al. (Orgs.). Dicionário crítico do
feminismo. São Paulo: Unesp, 2009.
LOURO, Guacira L. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. 5ª ed. Petrópolis: Vozes,
1999.
MALUF, Marina. Ruídos da memória. São Paulo: Siciliano, 1995.
MATHIEU, Nicole-Claude. Sexo e gênero. In: HIRATA, Helena et al. (Orgs.). Dicionário crítico do feminismo.
São Paulo: Unesp, 2009.
MENDONÇA, Estevão de. Quadro chorographico de Mato Grosso. Cuiabá: Escolas Profissionais Salesianas,
1906.
MENDONÇA, Rubens de. História de Mato Grosso. Cuiabá: Instituto Histórico de Mato Grosso, 1979.
MUNAKATA, Kazumi. História que os livros didáticos contam depois que acabou a ditadura militar no Brasil.
In: FREITAS, Marcos Cezar de (Org.). Historiografia brasileira em perspectiva. 6ª ed. São Paulo: Contexto,
2007.
PEDRO, Joana Maria. Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica. Revista História,
São Paulo, v. 24, n. 1, p. 77-98, 2005.
PERROT, Michelle. História (sexuação da). In: HIRATA, Helena et al. (orgs.). Dicionário crítico do feminismo.
São Paulo: Unesp, 2009.
PORTELLI, Alessandro. A filosofia e os fatos. Revista Tempo. Rio de Janeiro, v. 1. n. 2, dez. 1996.
PÓVOAS, Lenine C. História de Mato Grosso. Cuiabá; São Paulo: Resenha Tributária, 1985.
SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação e Realidade, Porto Alegre, v.
20, n. 2, jul./dez., 1995.
SIQUEIRA, Elizabeth Madureira; COSTA, Lourença Alves da; CARVALHO, Cathia Maria C. O processo
histórico de Mato Grosso. Cuiabá: Guaicurus/UFMT, 1990.
______. Revivendo Mato Grosso. Cuiabá: Seduc, 1997.
______. História de Mato Grosso: da ancestralidade aos dias atuais. Cuiabá: Entrelinhas, 2002.
SOIHET, Rachel. Condição feminina e formas de violência: mulheres pobres e ordem urbana (1890-1920). Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 1989.
TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. 8.ed.Petrópolis: Vozes, 2007.
TRAT, Josette. Movimentos sociais. In: HIRATA, Helena et al. (Orgs.). Dicionário crítico do feminismo. São
Paulo: Unesp, 2009.

297
Disputa e ação política nas memórias de
ex-militantes do Movimento Feminino
pela Anistia (MFPA) no Brasil

Ana Rita Fonteles Duarte*

O Movimento Feminino pela Anistia (MFPA) foi criado no Brasil em 1975,


por iniciativa de mulheres de classe média, em São Paulo. Os principais objetivos
foram lutar pela libertação dos presos políticos e pelo retorno dos exilados e banidos
pela ditadura militar estabelecida pelo Golpe de 1964.
Além de preparar um manifesto pela anistia, de conteúdo conciliador, em
defesa da paz e da família, o MFPA foi organizado em núcleos em todo o país. O
núcleo do Ceará, que analisamos mais de perto, é o terceiro a ser criado, em março
de 1976. Sua origem se deve a reuniões de familiares de presos políticos no ano
anterior, na cidade de Fortaleza, para discutir formas de intervenção e defesa de
familiares presos pela ditadura. O trabalho de mães, irmãs, esposas, namoradas atrai
outras mulheres sem familiares presos. Estas viam no Movimento a possibilidade de
continuar a militância política interrompida pela repressão, ou, simplesmente, de
solidarizarem-se com a luta dos perseguidos, presos, exilados, banidos e suas famílias.
Esta configuração é essencial para compreender os vários caminhos construídos
pelos núcleos e a pluralidade de atuação em diversos estados brasileiros. Enquanto para
algumas participantes tratava-se de atuar de forma convencional, usando um léxico
tradicional sobre o feminino, a fim de garantir uma ação em segurança frente aos
militares, para outras mulheres a participação no Movimento significava a retomada
de militâncias proibidas pela repressão e a luta contra o estado autoritário ou mesmo
contra o sistema capitalista.
Assim, temos, nos dias atuais, memórias em disputas marcadas pela defesa
de afeto familiar como princípio de ação política ou pelo compromisso social com
ideologias de esquerda que explicam comportamentos. Estas memórias misturam

* Professora Doutora. Programa de Pós-Graduação em História — Departamento de História da Universidade


Federal do Ceará.

298
experiências vividas entre os anos de 1970, além de vivências de outros momentos
até os dias de hoje e que guardam relações com as posições políticas e subjetivas
dessas mulheres.
As disputas estão localizadas nas narrativas sobre as motivações para entrar
no MFPA, mesmo que haja pontos comuns nos relatos como a tentativa, muitas
vezes espontânea, das narradoras em explicar sua relação com a política ou com
movimentos engajados naquele momento histórico. Essa é uma marca da geração dos
“anos de chumbo”.
Entre 15 militantes entrevistadas, entre os anos de 2004 e 2008, é possível
observar, através das narrativas, formas diferentes de ingresso em atividades políticas
que ajudam a entender as formas de participação das mulheres, em contextos de
repressão ditatorial, nas décadas de 1960 e 1970.
A história oral como forma de conhecer e analisar as ações de militantes, antes
de inseri-las em discurso homogêneo, ao contrário, mostra a pluralidade de vozes
possíveis de um mesmo grupo de mulheres, o que faz pensar, além das marcas de
gênero, em outras clivagens — geração, classe, cultura, ocupações, crenças religiosas
e políticas atuais e experiências diversificadas — também atuando na elaboração de
relatos sobre suas trajetórias de vida.
Portelli (2002, p. 127) lembra que, apesar da importância das memórias
coletivas ou grupais para o discurso histórico, a elaboração da memória e do ato de
lembrar são sempre individuais, posto que feitos por pessoas e não por grupos. Em
sociedades modernas, as memórias são extraídas da variedade de grupos e organizadas
de forma idiossincrática.
Esse dado faz com que tenhamos cautela, como afirma Salvatici (2005, p. 32),
ao fazer afirmações abrangentes sobre relações entre gênero e memória, procurando
não compactuar com o lugar comum da divisão sexual da memória. O MFPA, nesse
sentido, é pródigo em vozes e pensamentos plurais, a começar pelas familiares, que
compõem segmento importante no MFPA, até hoje reivindicando a iniciativa de sua
constituição. Entre elas, é possível identificar a necessidade de defesa dos membros
da família como motivação mais forte para ingresso nas ações do MFPA, o que não
exclui, no entanto, histórias de engajamento, com causas defendidas pelos familiares,
principalmente pais, maridos e irmãos.
Na família de longa trajetória de militância comunista, com quatro membros
em prisões e torturas de diferentes matizes, a narrativa de ingresso na luta política e
no MFPA mistura relatos de necessidade quase compulsória de defesa dos familiares,
mas também da valorização de vocação de núcleo parental para a luta, em trajetórias
pessoais. Dona Lourdes Miranda, 86 anos, viúva de ex-militante do Partido Comunista
Brasileiro (PCB) e chefe de família de nove filhos, busca na própria herança familiar
e em elementos de sua personalidade, explicações da resistência e disposição em

299
defender filhos e causas. Exerce, através de memórias, a concretização de identidade
de “mãe da anistia”. Observa-se o que acontece em espaços de comemorações públicos
de anistiados que, de certa forma, se repete ou é reforçado pelas narrativas de forma
mais individualizada em que a construção da imagem do núcleo familiar está sempre
em questão:
O pai realmente teve influência porque ele conversava muito em casa, mas eles seguiam
o que quisessem. Ele nunca mandou que o filho fizesse uma coisa ou não. A minha mãe
também era uma mulher comunista, mas também nunca me mandou seguir. Só que eu,
desde criança, vejo a verdade, a revolta, eu vejo tudo isso. Com 10 anos, eu tomei um
comunista da mão da Polícia Federal. Essa pessoa tinha passado 20 anos presa e, depois de
solto, a polícia veio e prendeu. E aí, eu não deixei, me agarrei com ele e não deixei a polícia
levar. Eu toda vida fui assim.1

Dentro da própria família, os relatos tomam diferentes contornos, mesmo em


narrativas de outras mulheres. Na fala da filha Neidja Albuquerque, 52, dos quadros do
MFPA, é possível sentir mais liberdade de narrativa da história familiar e motivações
para a luta, o que indica menos necessidade de corresponder a expectativas sociais,
pois não é solicitada como mãe pelo grupo de anistiados. Seu engajamento político,
no período, não parece ter sido dado como escolha ou traço de personalidade, mas
selado pela influência e fiscalização familiar. Sua filiação política é afirmada como dado
biográfico tão automático quanto o do lugar de origem, nos primeiros momentos da
entrevista: “Eu nasci em Fortaleza, numa família totalmente de esquerda. Eu nasci já
sabendo que eu tinha de ser de esquerda (risos). E eu tenho mais oito irmãos. Meu pai
era do Partido Comunista, minha mãe também era ligada ao Partido Comunista”.2
A formação política é atribuída às coisas que viu e ouviu na própria casa. As
interdições paternas no círculo de amizades e namorados, pela necessidade de que se
identificassem ideologicamente com a família e agressões da polícia política ao núcleo
familiar, intensificadas a partir de 1968, com a busca e prisão dos irmãos mais velhos,
são marcas mais fortes dos relatos de apreensão do que é a política:
A minha adolescência foi muito conflitante, por conta disso. E com a prisão dos meninos
lá em casa se complicou mais ainda. O Mário foi preso muito novinho e isso mexeu demais
com a gente. Você acordar de manhã pra ir pra aula e, antes de você acordar, a polícia já ter
entrado na sua casa, ter invadido, ter vasculhado tudo e você ter que tomar café e sair pra
aula... Isso era constantemente.3

A compreensão de Neidja da política, ao contrário dos irmãos mais velhos


perseguidos pela ditadura, não passa pelo engajamento em grupos legais ou
clandestinos, pela discussão de textos em células, nem mesmo pelo movimento
estudantil, como é comum, mas pelas vivências familiares e pela necessidade de defesa

300
da família, da casa e da colaboração com os irmãos, mesmo quando feita de forma
sutil e compreendida tempos depois. O MFPA representava a continuidade coletiva
da luta pelo núcleo familiar
Experiências e motivações para ingresso na luta pela anistia, pelo MFPA,
somadas a sentimentos e desejos na construção de memórias de ex-militantes do
Movimento, comuns a testemunhos orais (SCHWARZSTEIN, 2001, p. 73),
colocam em evidência, em falas entrecortadas de mágoas, pedidos de sigilo, críticas,
ironias e lembranças divertidas, o cotidiano de disputas que marcaram a ação política
do MFPA e marcam memórias de ex-integrantes. A pluralidade de memórias, em
momentos concorrentes, aproxima o grupo formador do MFPA de tantos outros.
Segundo Candeau (1996, p. 72), a filiação de indivíduos a uma variedade
de grupos na sociedade moderna torna impossível a construção de uma memória
unificada e provoca uma fragmentação de memórias. Algumas vezes, permanecem
guardadas com os próprios sujeitos, em reminiscências pessoais, ou em espaços
restritos, mas aquelas verdadeiramente conhecidas são frutos de batalhas públicas,
numerosas e sempre renovadas.
Não foi possível observar em mais de quatro anos de pesquisa e acompanhamento
de atividades da Associação 64-68, que reúne os anistiados cearenses, nem mesmo nos
meios de comunicação ou em outras formas de divulgação, a manifestação pública
de dissidências e conflitos de ex-integrantes do MFPA, em relação à forma como são
representadas em solenidades, e pelas discordâncias dentro do mesmo grupo, embora
sentimentos diferenciados de experiência tenham sido identificados.
Explicações podem ser pensadas sobre a relação específica de militantes com
o movimento de anistiados, de forma mais geral. Dizem respeito às dificuldades de
contestação da memória comum, construída sobre o enfrentamento e resistência à
ditadura pela Associação 64-68.
A exemplo de associações e sindicatos, a memória tem o objetivo de tornar o
grupo coeso e defender fronteiras do que lhe é comum. Na Associação, a memória
tem objetivos instrumentais, como nos lembra Gonçalves (2006, p. 70), uma vez
que possibilita reparações de pessoas prejudicadas pela ditadura militar. Na ação de
forjar uma imagem para si mesmo, é realizado o trabalho de enquadramento das
memórias, como afirma Pollak (1989, p. 9), alimentado pela história. Nesse contexto,
a diversidade de testemunhos pode transparecer a ideia de inautenticidade dos fatos,
enfraquecendo mitos e coesões. Contestar esforços colocados de forma clara ou
subliminar podem constituir constrangimento.
As entrevistas transformaram-se em espaço de expressão de conflitos. Os
relatos aparecem espontaneamente nas memórias das entrevistadas, de diferentes

301
identificações ideológicas e níveis de participação no MFPA. As diferenças estabelecem-
se, inicialmente, pelas narrativas que disputam a origem do Movimento, no Estado,
diferentes nas falas de familiares e não-familiares. Posteriormente, as falas de conflitos
estendem-se sobre os objetivos do Movimento e sobre a memória das ações realizadas.
Questão central permeia as narrativas de conflitos e está na origem das causas:
discordâncias nos objetivos e alcance do MFPA, no momento histórico. Se para os
familiares, de forma homogênea, o foco do Movimento, em primeiro instante, é a
luta pela anistia ampla e geral — o que significava libertação dos presos políticos
e a volta de exilados e banidos — para a maior parte do grupo, que considerava
ações e motivações como “políticas”, era importante que o MFPA se engajasse na luta
contra a ditadura e se envolvesse em questões mais amplas, apoiando movimentos
sociais emergentes ou em reorganização. A divisão do grupo, diante desse objetivo,
é explicitada, de forma valorativa, pelo depoimento da professora Marília Brandão:
(...) As famílias tinham uma visão muito pouco politizada. Elas queriam aquela coisa
imediata, que eles saíssem. Elas não tinham a visão processual daquilo. Nós tínhamos a
visão processual. As pessoas que eram de fora usavam aquilo mais como uma denúncia da
coisa da ditadura, pra denunciar a tortura, a situação do País. A gente usava essa situação
como denúncia e força de transformação.4

Mesmo entre as “politizadas”, havia divergências quanto aos objetivos que


norteiam ações, fazendo com que, em diversos momentos ou em quase todo tempo
do MFPA, algumas militantes se aliassem ao grupo de familiares, em votações e
tomadas de decisão. É importante salientar que a separação em grupos que aparece
no texto é dada pelas narrativas das entrevistadas. É comum encontrarmos termos
tais como: “o meu grupo”, “a minha equipe”, “os familiares” e “o Grupo da Maria
Luíza”, “povo da Maria Luíza” ou “Grupo da Maria”. Os três últimos são utilizados
por familiares e pessoas-membros. Entender a recorrência das falas e sua construção é
fundamental para a compreensão dos conflitos.
Maria Luíza é professora universitária aposentada da Universidade Federal
do Ceará (UFC), ex-deputada estadual e federal e ex-prefeita de Fortaleza. Figura
popular e carismática da política cearense, militava em movimentos de esquerda antes
do Golpe, integrante da JEC, posteriormente da Ação Popular, quando estudante de
Serviço Social. De regresso dos Estados Unidos, onde faz mestrado em Sociologia,
alia-se a militantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB),5 à época, organização
política de esquerda hegemônica no movimento estudantil cearense e, quase
simultaneamente, ajuda na organização do MFPA-CE.
O ingresso na política formal, aliás, está vinculado diretamente ao engajamento
no MFPA. Candidata à deputada estadual, em 1978, pelo Movimento Democrático

302
Brasileiro (MDB), em primeira eleição, vincula-se à causa da anistia, como forma de
divulgá-la e, ao mesmo tempo, para maior visibilidade, protegendo-se da repressão. A
eleição, nesse mesmo ano, é apontada, junto a de outras mulheres, como Heloneida
Studart (RJ) e Irma Passoni (SP), como indicadora da participação de mulheres
“comprometidas com o povo e a democracia”6 na política brasileira.
A denominação “Grupo da Maria” ou “Grupo da Maria Luíza” pode ser
analisada sob dois prismas: o da personalização própria de sociabilidades da esquerda,
que constitui grupos de militância unidos por laços de solidariedade em torno de
lideranças. O carisma pessoal de Maria Luíza é responsável pela polarização do grupo
ao seu redor; e da tentativa de desqualificação do agrupamento pela direção do PC
do B, no início da década de 1980 quando já não se reconheciam os militantes como
representantes políticos (CARVALHO, 1999, p. 132).
O grupo é formado no MFPA e atua de forma coordenada, passando pela
anistia, o período de abertura e redemocratização, com forte presença na gestão de
Maria Luíza, na Prefeitura de Fortaleza, e chegando até os dias de hoje, depois de
percorrer, segundo Bezerra (2007, p. 72), dez siglas políticas, num histórico de rachas
que forma imagens consolidadas do agrupamento publicamente.
Expande-se no final da década de 1970 e início dos anos de 1980, para além
das fronteiras do MFPA, com forte inserção no movimento estudantil e movimentos
populares, polarizando fortemente com o PC do B mais ligado ao diretório nacional.
A força de sua militância caracterizava-se pela capacidade de agregamento e disposição
de colocar-se na linha de frente das mobilizações populares registradas. Hoje, os
militantes do núcleo histórico do MFPA compõem o Grupo Crítica Radical que
defende “o fim do trabalho”, “o fim da política” e o “combate às relações fetichistas
entre os sexos”.
Do antigo grupo, alguns membros permaneceram, outros continuaram em
partidos políticos. Mesmo contra a política e as eleições, ocasiões em que mais aparece
no espaço público, hoje, pregando a greve do voto, o Grupo guarda comportamentos
tradicionais de esquerda em reivindicações de trabalhadores e estudantes, apesar de,
por opção política, não ocupar mais cargos em sindicatos e organizações estudantis.
Durante a militância no MFPA, o grupo identifica-se como do PC do B,
embora atribua diferenciações ao Partido e aponte atuação mais independente com
relação à agremiação responsável pela Guerrilha do Araguaia. Os embates do Partido,
na verdade, aconteciam nacionalmente, com visões divergentes sobre o fracasso
da Guerrilha. Segundo Gorender (2007, p. 257), a direção do PC do B escondia
dos militantes, até o final de 1976, a derrota sofrida no Araguaia. As tentativas de

303
autocrítica do movimento por ex-guerrilheiros e dirigentes é abafada e os dissidentes
punidos com expulsão do Partido. Posteriormente, a divergência com o PCdoB dá
origem no começo dos anos de 1980, ao Partido Revolucionário Comunista (PRC),
integrado pelo “Grupo da Maria”.
Maria Luíza Fontenele aponta orientações, principalmente, do PC do B da
Bahia, com quem se identificava politicamente. O Grupo engajado num movimento
mais amplo teria visto na fundação do MFPA a possibilidade de criar e articular
outros movimentos sociais no período. Essa, na verdade, é a orientação do Comitê
Central do PC do B, desde janeiro de 1975, quando define bandeiras: assembleia
constituinte livremente eleita, abolição de todos os atos e leis de exceção e a anistia
geral. Para o PC do B, o fortalecimento do movimento pela anistia poderia levar
os militares à derrota e por isso a mobilização deveria reunir diversos segmentos da
sociedade, principalmente populares, até a conquista plena da liberdade política e
derrota do regime.
Dado que sinaliza, nesse momento de articulação, são as eleições parlamentares
de 1974, em que o MDB (Movimento Democrático Brasileiro) consegue boa atuação
nas urnas. É o que relata Maria Luíza Fontenele: “Não tinha eleição para presidente,
mas a eleição que ocorreu nesse período, a votação majoritária dos candidatos foi do
MDB. A gente já começou a perceber que tinha de fazer um movimento bem maior”.7
Mas o agrupamento reunido em seu entorno e presente no MFPA já demonstrava o
desejo de extrapolar, também, as bandeiras fixadas pelo comitê central do PC do B
para aquele momento. Suas memórias reforçam a imagem de coesão de seu “Grupo”:
A gente falava em ditadura e ainda dizíamos que não queríamos só acabar com a ditadura
militar, mas acabar com o sistema cruel e desumano que era o sistema capitalista. Isso aí era
coisa ideologicamente mais bem formulada e era um núcleo. E isso daí não era a maioria. A
maioria dentro do Movimento queria a anistia ampla, geral e irrestrita. Mas tinha também
um núcleo que não queria só a luta da anistia, não só derrubar os militares, mas derrubar o
sistema capitalista. E nós somos os remanescentes dessa linha de pensamento (Maria Luíza
Fontenele).8

Mas o “Grupo da Maria Luíza” não era o único a atuar no Movimento.


As memórias de ex-militantes, não identificadas como familiares, fornecem dados
sobre outra vivência do MFPA que extrapolava a questão da anistia e mostrava
um cotidiano em que as disputas entre grupos políticos estão presentes, fazendo
do Movimento base importante e concorrida para atuação, conforme narrativa da
professora Rosa da Fonseca, do “Grupo da Maria Luíza”, hoje, do Grupo Crítica
Radical:

304
E tinha também posições políticas diferentes. Tinha a gente que era vinculada ao PC do B,
tinha o povo que era do PC do B anterior e terminou ficando. Era a coisa mais engraçada.
Depois é que essa história veio à tona, porque a gente dizia que tinha duas estruturas no
PC do B: uma estrutura que a gente tinha organizado, através do contato que tinha sido
passado pra gente do Jorge e a estrutura que era a anterior, com a qual a gente tinha uma
comunicação. Era mais no Movimento, ninguém sabia que existia uma outra estrutura
de partido funcionando. Eu não sei se eles sabiam. Mas como era tudo muito apavorado
e a orientação do Partido era a gente se fingir de morto e nós nunca cumprimos essa
orientação... Depois que a Guerrilha do Araguaia foi derrotada e que foi tanta gente presa
e morta, o pessoal lá da Lapa9 foi quase todo mundo assassinado, quem sobrou deu a
orientação que era pra gente se fingir de morto. Ou seja, o Partido morreu, acabou, até
criar condições para colocar a cara no sol de novo. E começamos a fazer as coisas todinhas
através desse núcleo da anistia. Mas havia pessoas que eram ligadas a outras correntes. (Rosa
da Fonseca).10

Outros grupos ou correntes políticas são assumidos por entrevistadas que


não participam do “Grupo da Maria”. É possível identificar pessoas ligadas ao PC
do B, o mais próximo do Comitê Central, e áreas de influência do Movimento
Comunista Internacionalista (MCI), de orientação trotskista. Em geral, quando
falas de familiares e de militantes não enquadradas no Grupo referem-se ao
“desvirtuamento” dos objetivos do MFPA ou às tentativas de “manipulação
política”, costumam apontar apenas o agrupamento citado. Identificadas as formas
de manifestação de ressentimentos em memórias das ex-militantes, é preciso pensar
o que desencadeia tais sentimentos, para Ansart (2004, p. 21), explicar a quais
comportamentos eles servem de fonte e que atitudes e condutas eles inspiram.
Indícios podem ser usados para pensar a questão do MFPA. Numericamente,
o Grupo de Maria Luíza, cerca de cinco a seis pessoas, alcança boa proporção para se
sobressair em votações e articulações no Movimento que reúne, em núcleo engajado,
cerca de 15 a 20 pessoas. É possível pensar que, em momentos, a prática política
adquirida dos movimentos de esquerda de que participaram e participavam fê-
las articuladas, persuasivas e explícitas, nos ideais de expansão da luta do MFPA,
constrangendo boa parte das participantes — menos familiarizadas com o tipo de
ação —, a exemplo do queria evitar a presidenta nacional do Movimento, Therezinha
Zerbini, ao vetar a presença de homens no Movimento, de acordo com o Estatuto
do MFPA.
Mães da Praça de Maio, na Argentina, vivenciaram a experiência de embate
com membros da Liga Argentina por los Derechos del Hombre, acostumados com
práticas políticas formais da esquerda. O “Grupo da Maria” provoca o mesmo
estranhamento e insegurança em integrantes do MFPA? É provável que sim, como
se depreende na fala da professora Josenilde Cunha, esposa de ex-preso político:

305
Geralmente nas reuniões a gente tinha muitos conflitos, sabe? Muito pro final as reuniões
eram bem conflituosas. E a gente sempre acabava por vencida, vamos dizer. A Maria Luíza
e a Rosa toda vida foram pessoas da política, né? Políticas partidárias, vamos dizer assim.
Então, elas tinham muita força nas colocações. Eu realmente não tinha o conhecimento pra
competir com a abordagem política que elas tinham. Eu sou muito honesta em dizer isso.
Então, elas acabavam vencendo, você está entendendo? Sempre era assim.11

A eleição de Maria Luíza e sua atuação como parlamentar pela militância,


com apoio ou participação do seu Grupo, muitas vezes confundem as ações
parlamentares com as do MFPA, o que nem sempre era bem visto, conforme
relatos. Por fim, pode-se pensar em discordâncias políticas e pessoais, acumuladas
ao logo dos anos, uma vez que a ação do “Grupo de Maria” extrapola o período
de duração do MFPA, passando por diversas experiências, até hoje, sendo uma
das mais marcantes e polêmicas a eleição para a Prefeitura de Fortaleza, em
1985, de que militantes não identificadas com o Grupo participaram direta ou
indiretamente.
A “Administração Popular”, liderada por Maria Luíza Fontenele, enfrenta
problemas de diversas ordens, como boicote financeiro dos governos federal e estadual,
à época, comandados pelo presidente José Sarney (PMDB) e pelo governador Tasso
Jereissati (PSDB). O diálogo era dificultado pelas diferenças políticas e ideológicas,
mas os problemas não se davam apenas externamente. A administração é pautada
por diferenças e conflitos internos, desencadeados, em boa parte, pelas diferenças
entre o Partido dos Trabalhadores (PT), pelo qual Maria foi eleita, e o grupo político
do qual ela fazia parte antes de ingressar no PT, o “Grupo da Maria”, identificado
como Partido Revolucionário Operário (PRO), que comanda politicamente a gestão
municipal. As divergências suscitaram críticas, na imprensa local, e culminaram com
a expulsão de Maria Luíza e demais pertencentes do grupo de apoio do PT.
Carvalho (1999, p. 135), que analisou a constituição e atuação do “Grupo”
durante a campanha para a eleição de Maria Luíza para a Prefeitura de Fortaleza, em
1985, fornece elementos para pensar as divergências, ao apontar como característica
do agrupamento a “visão instrumental da política”, capaz de fazê-lo adotar o
pragmatismo que justifica o trânsito no campo político institucional para extrair
resultados úteis à causa revolucionária.
Como exemplo de “pragmatismo”, ela aponta o ingresso do Grupo no PT para
obtenção de legenda para a disputa, o que não implica que os membros se tornem
petistas ou que não isolem instâncias do Partido na tomada de decisões. Cita-se ainda
a rendição do Grupo aos “encantos” do mercado de imagens políticas e à linguagem
publicitária de programas eleitorais, uma vez que a campanha de TV da candidata
Maria Luíza é pioneira na introdução de padrão publicitário midiático de campanhas
políticas majoritárias na fase de redemocratização brasileira.

306
A “visão instrumental da política” identificada pela pesquisadora é lembrada
pelas ex-companheiras do MFPA, ligadas a agrupamentos políticos, de forma
incômoda e desencadeadora de rompimentos. A tentativa de articulação de
movimentos sociais pelo Grupo, ou “dirigismo”, como nomeado por algumas delas,
ou “utilização” do Movimento “para outros fins”, não era bem aceita, mas demonstra
a atuação do Grupo para além dos limites do MFPA:
Eles fizeram um grupo de coordenação que seria dos movimentos populares daqui. Imagina,
eles queriam coordenar e juntar tudo o que fosse movimento ambientalista, movimento da
anistia, os movimentos que existiam de esquerda! Houve a criação dessa coordenação pela
Maria Luíza e eu acho que já devia ser influência do Jorge Paiva nessa tentativa de fazer um
engessamento dos movimentos, segundo a visão política dele. Nessa época houve um corte
muito grande entre eu e ela, um corte forte, que significava entre eu e o Movimento. Aí, eu
saio, muito como uma reação. (Marília Brandão).12

Quem queria dirigir era a ala da Maria Luíza que era a ala do PRC. A ala da Nildes
(Alencar), que era a ala do MDB, tinha o apoio do pessoal da Angélica (Monteiro), da
(Maria) Duarte, da dona Lourdes, da família do Pedro que é muito grande, da dona Branca,
da Valda, da Laura. A gente estava para apoiar o movimento mais consequente. (...) Quem
usou o Movimento para continuar o movimento da mulher como entidade foi o PRC. Não
teve nenhum outro movimento de mulheres que eu conheça que a Nildes fundou. A Tota
queria fundar mais para a gente se encontrar, no sentido da gente se juntar, já que o outro
lado se juntava separadamente. (Valda Albuquerque).13

Entre as familiares a atuação do “Grupo da Maria”, no MFPA, é vinculada a


ações de “pessoas mais alteradas” que geram medo por “ousadas” demais e poderem
comprometer as reivindicações de libertação de parentes. A atuação do Grupo é
constantemente vista como extemporânea do objetivo fundador do núcleo, o que
reforça a memória da origem familiar do Movimento e condena o seu desvirtuamento.
O MFPA, de acordo com as narrativas, teria atravessado o período de
redemocratização, não fosse a “pressa” em ampliar as ações. A importância da questão
política não é descartada, o que talvez seja a avaliação do presente, mas a discussão
sobre o respeito e a escolha do “tempo” certo para a realização de determinados
atos marcam a memória das familiares, de maneira indelével, assim como a crítica
às formas de obtenção da visibilidade política por parte do “Grupo da Maria”. As
narrativas demonstram um “jeito certo” para fazer as coisas acontecerem, o que não
teria sido respeitado pelas não familiares “politizadas”.
(...) Eu defendia que tinha de ser pela libertação dos presos. Porque as coisas vinham. Você
não podia panfletar demais para que a coisa acabasse ali mesmo. Você tinha que fortalecer.
Os familiares eram a base daquilo ali. Se os familiares saíssem, não ia ter mais nada. E, eu
dizia assim: “Tem gente que é doida para ser presa”. Eu criticava assim: “Tem gente que é

307
louco para ser preso. Me prenda que eu quero ser preso”. Eu criticava muito isso. A gente não
pode panfletar uma coisa e depois não assumir. Como é que você, em nome do Movimento
Feminino pela Anistia, vai lutar por outras coisas se já tem outras pessoas lutando? Você
pode apoiar, pode dar apoio financeiro, pode dar apoio de gente para ajudar, mas não a
gente. Não era a hora. Depois chegou a hora, que a abertura ficou melhor e podia falar do
nosso Movimento Feminino pela Anistia, (o) assumindo. E todos os movimentos podiam
assumir a gente, porque nós éramos um movimento pacífico. Nós éramos guerreiras, mas
éramos um movimento pacífico. A gente não estava pegando em arma, a gente não estava
fazendo quebra-quebra. A gente estava indo pelos meios legais, bem comportadas. E a gente
não podia, de jeito nenhum, acabar com o Movimento Feminino pela Anistia. Era muito
bonito, naquela essência dele, defender os presos políticos. (Neidja Albuquerque).14

(...) Era para participar não sei de quê, alguma coisa, um movimento. Está bem, a
gente concorda, mas, talvez, não fosse aquele o momento ainda. Não que isso não fosse
importante, mas, talvez, naquele momento, ainda não, por a gente não achar ainda o
grupo fortalecido. Mas a gente deu uma contribuição, porque realmente o movimento aqui
tomou força. Depois que a coisa ficou mais fortalecida, a gente saiu um pouco daquele
foco afetivo pra um foco político, claro. Mas isso demanda um tempo que eu acho que
não foi respeitado. A gente não teve esse tempo para amadurecer politicamente. Porque
tudo é uma questão de maturidade Eu acho que a gente não teve isso porque a gente
surgiu – o Movimento - pela empolgação. Vamos fazer, vamos lutar, vamos conseguir, está
entendendo? (Josenilde Cunha).15

Dessa forma, é possível perceber que a expressão de ressentimentos, em


narrativas, no MFPA, funciona como fator de cumplicidade e solidariedade para o
grupo – em maior parte, formado pelas familiares e mulheres de grupos políticos
divergentes do “Grupo da Maria” – disposto a disputar as memórias do Movimento
Feminino pela Anistia no Ceará.
Esse comportamento parte do sentimento de desvantagem com relação
ao processo de construção da memória em que o Grupo da Maria, hoje Crítica
Radical, tem-se saído melhor por ainda atuar politicamente e garantir mais espaços
de visibilidade e de fala que o outro. As conversas mantidas antes das entrevistas
reforçam esse entendimento, pois quase sempre questionam o que integrantes do
“Grupo da Maria” dizem e se propõem a contar a “verdadeira história”.
Por outro lado, apesar da imagem de “mais fortes”, na disputa, as integrantes
do “Grupo da Maria” preocupam-se em reforçar a ideia de hegemonia na condução
política do Movimento, considerada “diferente” em relação a outros núcleos, por
extrapolar a reivindicação pela anistia, tornando-se “exemplo” de luta. A condução
só era possível devido à ação de pessoas com “maior entendimento político”. Nesse
sentido, a necessidade de apontar o grupo como vencedor ou mais consequente,
nas ações do Movimento, torna-se, para militantes, elemento central da disputa
de memórias:

308
A linha do movimento era mais uma tendência moderada mesmo. Eu acho que a linha
moderada nem venceu, não, mas acho que se a gente tivesse ido por uma linha mais
moderada talvez esse movimento tivesse se transformado até em alguma coisa. Eu acho
que depois ele se esvaziou, nem sei se posso lhe dizer, por conta de uma ousadia maior
que não era para ser naquele momento, porque acho que tudo tem seu momento (Nílvea
Amorim).16

(...) O Movimento Feminino pela Anistia foi marcante aqui em Fortaleza e foi referência
em nível nacional porque nós estivemos em vários momentos. A gente ia para Recife, para
João Pessoa, estivemos em São Paulo, várias vezes, justamente pelo posicionamento do
Movimento. (...) Eu quero frisar que nós extrapolamos. Por isso que a gente foi referência
em nível nacional, porque a gente foi além da questão da anistia ligada aos presos (Raimunda
Zélia Carvalho).17

(...) A gente ganhava nas disputas porque a gente era maioria. O outro ganhava no grito ou
desfazia (Valda Albuquerque).18

A manifestação de reminiscências discordantes e conflituosas mostra tentativa


de organizar e reorganizar um passado marcante para as mulheres que possuem, de
maneira geral, poucas chances de expressá-lo. A organização não pretende apenas
ajudar a “resgatar” histórias mais ou menos verdadeiras. O passado já passou, como
escreveu Ricoeur (1999, p. 49). O que se pretende é interferir na construção de seu
sentido, de acordo com expectativas de futuro.
De um lado, grupo mais coeso que, apesar de condenar a política em
modos formais, hoje busca fortalecer sua identidade e narrativa de origem,
importantes para sua consolidação no espaço da cidade. Do outro, mulheres que
pouco aparecem ou se manifestam, em muitos casos, pela primeira vez, mediante
entrevistas e desejam ter suas atuações registradas ainda que individualmente. A
intenção das falas é estabelecer, convencer, transmitir uma narrativa que possa
ser aceita.
A possibilidade de expor as memórias, evidenciando um processo de disputa,
situa as ex-militantes do MFPA entre outros grupos sociais que experimentaram
situações históricas autoritárias e que encontram, no silêncio, não o esquecimento
do passado, mas a resistência aos discursos oficiais, aguardando o momento
propício para, de acordo com Pollak (1989, p. 5), “redistribuírem cartas políticas e
ideológicas”.
Na verdade, as narrativas, apesar de não popularizadas em publicações e de
não estarem presentes em solenidades de anistiados, circulam em espaços reservados
às relações familiares e afetivas das mulheres. Em geral, situadas nos mesmos espaços,
ex-militantes de diferentes posicionamentos não costumam expor ou reivindicar
disputas, transparecendo um discurso homogêneo sobre o Movimento, em que

309
se destaca a importância de conquista da anistia e união de pessoas em torno da
democratização do País.
Se não existe enquadramento de memórias, na busca de objetivo comum,
como na relação com a Associação 64-68, razões podem ser apontadas, na tentativa
de compreender o silêncio público com relação à ação específica do MFPA. O medo
de ferir a imagem do Movimento que, embora tenha pouca visibilidade na atualidade,
baseia-se em valores como solidariedade e coragem, fator de garantia de lugar de
importância para as pessoas na história recente. Há, notadamente, ainda, receio por
parte das narradoras em se indispor publicamente com militantes e ter de sustentar
possível polêmica. Por último, é possível pensar a falta de escuta, interessada nessas
histórias. A condição é fundamental para que a pessoa relate sofrimentos e, no caso,
ressentimentos e mágoas.
Pode-se ainda fazer a leitura da manifestação de disputas nas entrevistas
como tentativa de contraposição à memória única, disseminada e controlada pela
reorganização dos anistiados que enquadra a atuação do MFPA no campo da ação
“natural” esperada para mulheres. Mas para Portelli (2002), não se pode limitar a
análise dos embates somente entre campos da memória, sendo necessário pensar sobre
os conflitos estabelecidos dentro desses campos, identificando e contextualizando o
que ele chamou e, no caso do MFPA tão bem se aplica, como “memórias divididas”,
por seu caráter plural e diferenciado, mesmo dentre as que se identificam como do
mesmo campo ideológico.

310
Notas
1 ALBUQUERQUE, Maria de Lourdes Miranda, 82 anos. Depoimento, agosto de 2004. Entrevistadora: Ana
Rita Fonteles Duarte. Acervo da autora.
2 GÓIS, Neidja Miranda de Albuquerque, 50 anos. Depoimento, junho de 2006, Fortaleza. Entrevistadora:
Ana Rita Fonteles Duarte. Acervo da autora.
3 GÓIS, Neidja Miranda de Albuquerque, 50 anos. Depoimento, junho de 2006, Fortaleza. Entrevistadora:
Ana Rita Fonteles Duarte. Acervo da autora.
4 BRANDÃO, Marília Lopes, 58 anos. Depoimento, janeiro de 2008, Fortaleza. Entrevistadora: Ana Rita
Fonteles Duarte. Acervo da autora.
5 Maria Luíza tornou-se, no Ceará, o principal contato e apoio de militantes clandestinos do PC do B,
propiciando-lhes suprimento de carências materiais e apoio moral. Entre esses militantes estavam Célia Zanetti
e Jorge Paiva, estudantes paulistas que fugiram para o Ceará, depois de terem passado por Minas Gerais, São
Paulo, Bahia e Recife, e Rosa da Fonseca e Raimunda Zélia de Carvalho. Estas duas últimas também compõem
o grupo de entrevistadas para essa pesquisa. Posteriormente, engajaram-se ao grupo outras militantes do já
formado MFPA, como Socorro Saldanha e Cristina Fonseca, irmã de Rosa.
6 Movimento, 27/11 a 03/12/78, p.09.
7 FONTENELE, Maria Luíza Menezes, 64 anos. Depoimento, junho de 2006, Fortaleza. Entrevistadora: Ana
Rita Fonteles Duarte. Acervo da autora.
8 FONTENELE, Maria Luíza Menezes, 64 anos. Depoimento, junho de 2006, Fortaleza. Entrevistadora: Ana
Rita Fonteles Duarte. Acervo da autora.
9 Ela se refere ao episódio conhecido como Massacre da Lapa, no qual o Exército e a polícia de São Paulo, em 16
de dezembro de 1976, invadiram uma casa e metralharam, sem chance de defesa, duas das principais lideranças
do PC do B, nacionalmente, Pedro Pomar e Ângelo Arroyo (POMAR, 2006).
10 FONSECA, Rosa Maria Ferreira da, 57 anos. Depoimento, junho de 2006, Fortaleza. Entrevistador: Ana
Rita Fonteles Duarte. Acervo da autora.
11 CUNHA, Maria Josenilde Costa, 62 anos. Depoimento, janeiro de 2007, Fortaleza. Entrevistador: Ana Rita
Fonteles Duarte. Acervo da autora.
12 BRANDÃO, Marília Lopes, 58 anos. Depoimento, janeiro de 2008, Fortaleza. Entrevistadora: Ana Rita
Fonteles Duarte. Acervo da autora.
13 ALBUQUERQUE, Maria Valda de, 61 anos. Depoimento, julho de 2006, Fortaleza. Entrevistadora: Ana
Rita Fonteles Duarte. Acervo da autora.
14 GÓIS, Neidja Miranda de Albuquerque, 50 anos. Depoimento, junho de 2006, Fortaleza. Entrevistadora:
Ana Rita Fonteles Duarte. Acervo da autora.
15 CUNHA, Maria Josenilde Costa, 62 anos. Depoimento, janeiro de 2007, Fortaleza. Entrevistador: Ana Rita
Fonteles Duarte. Acervo da autora.
16 AMORIM, Nílvea Maria de, 50 anos. Depoimento, agosto de 2004, Fortaleza. Entrevistador: Ana Rita
Fonteles Duarte. Acervo da autora.
17 CARVALHO, Raimunda Zélia Roberto de, 57 anos. Depoimento, agosto de 2004, Fortaleza. Entrevistadora:
Ana Rita Fonteles Duarte. Acervo da autora.
18 ALBUQUERQUE, Maria Valda de, 61 anos. Depoimento, julho de 2006, Fortaleza. Entrevistador: Ana
Rita Fonteles Duarte. Acervo da autora.

311
Referências Bibliográficas
ANSART, Pierre. História e memória dos ressentimentos. In: BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia (Orgs).
Memória e (res)sentimento. Indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Editora Unicamp, 2004.
BEZERRA, Glícia Maria Pontes. Greve do voto: a política da anti-política nas eleições municipais de 2004 em
Fortaleza. Natal, 2007. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais), Universidade Federal do Rio Grande
do Norte.
CANDAU, Joel. Anthropologie de la mémoire. Paris: Presses Universitaires de France, 1996.
CARVALHO, Rejane Vasconcelos Accioly de. Transição democrática brasileira e padrão midiático publicitário da
política. Campinas, SP: Pontes; Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 1999.
GONÇALVES, Danyelle Nillin. O preço do passado: anistia e reparação de perseguidos políticos no Brasil. For-
taleza, 2006. Tese (Doutorado em Sociologia). Universidade Federal do Ceará.
GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. 3ª ed. São
Paulo: Editora Ática, 1987.
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro: [s.n.], vol.2, n. 3,
1989.
POMAR, Pedro Estevam da Rocha. Massacre na Lapa — Como o Exército liquidou o Comitê Central do PC
do B — São Paulo, 1976. 3ª ed, São Paulo: Editora Perseu Abramo, 2006.
PORTELLI, Alessandro. O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana, 29 de junho de 1944): mito e polí-
tica, luto e senso comum. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína (orgs). Usos e abusos da
história oral. 5ª ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2002.
RICOEUR, Paul. La lectura del tiempo pasado: memoria y olvido, Madrid: Arrecife-Universidade Autônoma
de Madrid, 1999.
SALVATICI, Silvia. Memórias de gênero: reflexões sobre a história oral de mulheres. In: História Oral, v.8, n.1,
[s.l.: s.n.], janeiro-junho de 2005.
SCHWARZSTEIN, Dora. História oral, memória e histórias traumáticas. In: História Oral, São Paulo, n. 4,
junho de 2001, pág. 73-83.

312
Conflitos políticos, crise econômica
e “descaminhos” na Capitania
do Ceará (1780-1822)

Marilda Santana da Silva*

Este texto apresenta alguns desdobramentos do projeto de pesquisa intitulado


O Governo nas Capitanias do Norte da América portuguesa: criação das vilas no Ceará
nas últimas décadas do século XVIII e início do século XIX, que está sendo desenvolvido
junto ao Departamento de História da Universidade Federal do Ceará. Busca-se
analisar alguns conflitos políticos estabelecidos entre integrantes da “elite” econômica
e administrativa atuante na vila de Fortaleza, como, por exemplo, vereadores da
câmara municipal, funcionários da Alfândega, entre outros, estabelecidos na sede do
governo da capitania do Ceará, com autoridades nomeadas pela Coroa portuguesa
para administrar a capitania nas últimas décadas do século XVIII e início do século
XIX, período marcado por uma crise econômica e “descaminhos”.
Ao longo de quase três séculos da colonização da América portuguesa, a
capitania do Siará Grande foi considerada periférica1 “aos olhos da Coroa portuguesa”
no contexto da exploração econômica em larga escala. A produção algodoeira,
nas últimas décadas dos setecentos, acabou por tornar a capitania mais relevante
para a metrópole portuguesa, seguindo a lógica do desenvolvimento do comércio
mercantil Atlântico. Isto ocorreu, especialmente, devido à maior demanda provocada
pelo crescimento da produção industrial inglesa e pelo contínuo desabastecimento
do fornecimento pela colônia norte-americana, com a guerra da independência
travada entre os anos de 1774 e 1783, possibilitando de certa forma, em 1799, a sua
emancipação administrativa da capitania do Pernambuco. Mas é necessário destacar
que a autonomia política e administrativa ocorreu apenas após um longo processo
de negociação política estabelecida entre os produtores de algodão, representados
pelos vereadores, ouvidores e governadores da capitania, com a metrópole portuguesa
(GIRÃO, 2000, p. 213-240).

* Professora doutora. Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História — Universidade


Federal do Ceará. E-mail: marota1500@yahoo.com.br

313
Desde o ano de 1786, por exemplo, o ouvidor nomeado pela Coroa
portuguesa para administrar a justiça na capitania do Ceará, Manoel de Magalhães
Pinto e Avelar de Barbado, reclamava ao rei que, devido à condição da capitania do
Siará ser subordinada à capitania do Pernambuco, um terço do valor do produto
do algodão gerado no interior da capitania do Ceará teria que ser pago na praça
de Pernambuco, o que ocasionava prejuízos não só para os comerciantes cearenses,
como para a Coroa portuguesa. Visto que a produção algodoeira era de primeira
grandeza para o reino, solicitava o estabelecimento da navegação e comércio direto
da capitania do Ceará com a metrópole (GIRÃO, 2000, p. 213-240).
Nuno Camarinhas, pesquisador português que estuda a atuação destes
magistrados (ouvidores), nos diz que se tratavam de oficiais nomeados pelo rei de
Portugal para atuar na primeira instância da justiça. Segundo Camarinhas, por vezes,
“as nomeações para os lugares ultramarinos mais longes eram definidas por um período
de seis anos, sendo que os magistrados designados acumulavam frequentemente
diferentes ofícios no lugar para onde eram enviados”. No caso específico da atuação
destes magistrados na capitania do Siará, estes tinham que lidar com situações, por
vezes, extremas de debilidades econômicas. Isto ocorreu, por exemplo, quando houve
uma longa estiagem no período anual das chuvas, isto é, uma seca de quatro anos
(1791-1794) que se abateu sobre a região, destruindo grande parte da pecuária (gado
vacum e cavalar) e da produção agrícola.
Este período irregular das chuvas gerou uma severa crise econômica e um
crônico desabastecimento de alimentos na capitania. A fome vitimou grande parte
dos habitantes que, além de ter que conviver com o pagamento de vários impostos,
comuns para toda a América portuguesa — tais como o subsídio literário (pagamento
dos professores régios), subsídio de sangue (dízimo cobrado pela metrópole portuguesa
para o abate do gado nos açougues públicos), subsídio militar (manutenção das
tropas), as fintas (impostos extraordinários) e, por vezes, a cobrança de impostos
atrasados, como a derrama —, ainda teriam que suportar os abusos praticados por
algumas autoridades nomeadas pela Coroa portuguesa para administrar a capitania.
As ordens emanadas do outro lado do Atlântico pelos “ministros” do rei2
para aquele período de estiagem, seca e fome acabavam negligenciando a penúria
econômica que assolava a capitania, incentivando apenas a busca por descobertas
de recursos minerais nas mais vastas e distantes regiões da capitania. Eis a principal
estratégia utilizada pela metrópole para resolver a crise econômica. Esta atitude
sempre foi incentivada pela Coroa portuguesa, mesmo em anos anteriores a esta
grande seca (1791-1794), como, por exemplo, a pedido dos oficiais da câmara da
vila de Fortaleza de Nossa Senhora d’Assunção, no ano de 1786, um morador da

314
vila providenciou uma lista dos minerais existentes na capitania com as devidas
localidades geográficas, que foi enviada posteriormente para a metrópole portuguesa.
Eis as informações relatadas por Custodio Francisco de Azevedo, que percorreu em
1786 toda a capitania do Siará Grande e territórios fora da sua jurisdição:
(...) Tem Minas de Ouro por todo o Rio Salgado ate o Icó e outras partes. Tem muitas
couzas raras as que eu sei são as seguintes: tem umas pedras transparentes que se parecem
como Cristal de Irlanda, e he grande que se pode fazer dela o que quiserem; e quem lhe
sabe dar polimento consegue que da pedra fique bem diáfana, mas hé muito penozo
este trabalho cuja fiz obra dela, porem não sei o lugar visto aonde o hâ. Tem também a
pedra camada Amianto ou Abesto. Há Minas de oiro no lugar chamado Sure na Ribeira
do Acarau Freguesia de Gonçalo da Serra dos Cocos. Neste mesmo lugar tem no Morro
chamado Fuzil hua pedra duríssima de cor verde e pintas brancas que paresse ser Diasporo
verde. Na serra tem huas pequenas que servem de capa a outras que tem dentro varias tintas
vermelhas, azul e amarela. Em alguns lugares desta Capitania tem Minas de Ferro como seja
no lugar chamado Otatuba e outros (...).3

Já se sabe que no caso da capitania do Ceará a descoberta e extração dos metais


preciosos, sobretudo o ouro, a prata e as pedras preciosas nos séculos XVI, XVII
e XVIII, acabou sendo um malogro. Paradoxalmente, no último quartel do século
XVIII, como destacamos anteriormente, os colonos continuavam sendo incentivados
a mapear o território em busca de riquezas minerais. Mas, enquanto o fausto não
era descoberto, incentivava-se também a procura de minerais menos nobres, pois
os minerais metálicos como o ouro e a prata, quando encontrados ocorriam em
pequenas quantidades e com baixos teores do minério, não sendo viável a extração.
Na virada do século, por exemplo, mais especificamente em 1801, já passados
os anos mais difíceis da grave seca dos quatro anos (1791-1794), o juiz da alfândega
da vila de Fortaleza Joaquim Lopes d’Abreu também percorreu grande parte da
capitania do Ceará na busca pelos minerais. Seguiu, inicialmente, as instruções da
metrópole portuguesa para examinar o salitre da serra de Baturité, próxima da vila
de Fortaleza, sede da capitania. O salitre (nitrato de potássio), apesar de não ser tão
nobre como o ouro, a prata, os cristais da Irlanda e os diamantes, era a matéria-prima
básica para a fabricação de pólvora negra, utilizada nas armas de fogo. Desde o século
XVII a extração do salitre serviu para o processo de devassamento e colonização do
sertão das capitanias do Norte da América portuguesa. Havia minas de salitre na
região do médio do São Francisco, sertão da Bahia no século XVI e no sertão do
Pernambuco no século XVII (PUNTONI, 2002, p. 29-31).
Mas, com grande desânimo, o juiz relatou que na região da Serra do Baturité
encontrou apenas sal marinho. Talvez para mostrar serviço para a Coroa portuguesa,
resolveu prosseguir viagem e percorreu regiões bem mais distantes da sede da capitania
do Ceará. Viajou até o sítio da Tatajuba, localizado cerca de 25 léguas, em direção à
porção sul da capitania. Nesta região predominava o relevo mais montanhoso, que

315
fazia divisa com as cabeceiras extremas do rio Caracuru. O presidente da alfândega
visitou uma localidade denominada Serrote do Rozário e foi justamente nesta região
mais distante que o juiz teve a oportunidade de encontrar em uma fazenda uma mina
de salitre. As amostras, após serem examinadas, foram entregues ao governador da
capitania para serem remetidas para Portugal.
Uma longa carta foi redigida por Joaquim Lopes d’Abreu no ano de 1801. A
carta que, inicialmente, deveria apenas relatar a extração do salitre, também serviu
como estratégia utilizada pelo presidente da alfândega da vila de Fortaleza, com a
ajuda dos oficiais da câmara da vila de Fortaleza, para denunciar o estado de miséria
que assolava as mais vastas e distantes regiões do Ceará. Mesmo passados sete anos
da grande seca dos anos de 1791 e 1794, segundo o juiz da alfândega, a produção
agrícola e a pecuária estavam arruinadas. A situação agrava-se ainda mais porque os
contratos do arremate do gado no interior da capitania eram altos e quando eram
negociados na praça da capitania do Pernambuco os impostos eram duplicados,
devido à obrigação do pagamento do subsídio militar. Vejamos um fragmento da
carta escrita por Joaquim Lopes d’Abreu,
(...) Encontrei huma fazenda Mina de Salitre cujas amostras com as do resultado de seu
exame constante de rellaçam inclusa, têm entregado ao governador desta capitania para
remeter a V. Ecia e não me sendo disto este fique inteiramente estagnado, porque já havendo
grande abundancia de gados, como antes da seca havia, na maior parte das Ribeiras não tem
extração e senão fosse o novo subsidio virão os negociantes como dantes fazer matanças de
gado para carregarem suas embarcações; porém vendo estes que matando três mil bois para
carga de hum barco e pagando para cada cabeça oitocentos e sessenta e quatro Reis vem a
importar em mais de seis mil cruzados, tendo a certeza em que chegando a Pernambuco
infalivelmente outro subsídio militar ao contratador que remata trienalmente este contrato
aquém se paga para cada uma arroba cento e sessenta Reis, ficando o comerciante sem
utilidade. Outrossim, como se poderia regimentar a agricultura sendo este o principal ramo
que o pais floresce o comércio e sustentar a Monarquia se os lavradores curvados com o
preço de tão oneroso subsídio se vê na precisão de pagar por um garrote ou vitela pouco
mais valha, bem como um carneiro, ou seja, grande ou pequeno paga sessenta e cinco Reis
de ambos os subsídios. Parece senhor couza dura que hum miserável lavrador, e ainda a
maior parte dos habitantes desta Capitania, estejão areando este gênero de gado para reunir
a sua necessidade pague o mencionado subsidio, o que não sé em colônia alguma dos
domínios de Vossa Alteza Real e menos nas Províncias do Reino existe semelhante ônus e
nem proibição de exportação do gado de huma para outra província sem que pague algum
penção e só neste continente se vê praticado desde janeiro do corrente ano (...).4

É notório nessa correspondência enviada à metrópole pelo juiz da alfândega


que o estado de miséria da capitania estava relacionado ainda no início do século
XIX com a grande seca dos anos 1791 e 1794. As debilidades agrícolas, os prejuízos
dos proprietários de gados e os altos impostos eram as mazelas mais profundas dos
habitantes da capitania do Ceará na visão do arguto juiz. Além da penúria econômica
a situação era agravada devido às arbitrariedades praticadas pelo provedor da Fazenda

316
e pelo governador da capitania, Bernardo Manoel de Vasconcelos, nomeado pela
Coroa portuguesa para administrar a capitania independente do Ceará.
Na carta enviada para a metrópole datada no ano de 1801, o juiz da alfândega
da pauperizada vila de Fortaleza de Nossa Senhora d’Assunção, Joaquim Lopes
d’Abreu, lamentava sobre a cobrança de altos impostos e, especialmente, a arrecadação
dos dízimos reais realizada pela repartição da Fazenda, estabelecida na capitania do
Ceará após a autonomia da capitania de Pernambuco, em 1799. A Junta da Real
Fazenda do Ceará era administrada por um provedor, um escrivão, um escriturário e
um almoxarife e presidida pelo capitão-mor governador da capitania. Segundo o juiz,
o provedor da Junta da Real Fazenda do Ceará, subordinada diretamente ao Erário
Régio de Portugal, tinha estabelecido na primeira arrecadação dos dízimos reais o valor
da propina (ordenado) de quinze contos de reis, alegando que o aumento dos dízimos
deveu-se à sua administração, considerada pelo próprio provedor como muito boa, e
devido ao florescimento e o aumento da agricultura na capitania. Mas, para Joaquim
Lopes d’Abreu, este aumento era exorbitante, pois o dízimo estabelecido na capitania
antes da criação da Junta da Fazenda era de menos de cinco mil cruzados e, devido à
total decadência e ruína que se abateu sobre a capitania, era impossível cumprir com
estes valores na arrecadação.
Outra questão relatada pelo juiz Joaquim Lopes d’Abreu, na longa carta
endereçada ao rei, refere-se ao aumento do valor dos dízimos que as câmaras
municipais deveriam cobrar dos habitantes da capitania do Ceará, a mando do
novo governador, nomeado pela Coroa portuguesa para administrar a capitania
independente do Ceará, no período compreendido de 1799-1802, Bernardo José de
Vasconcelos, devido à distribuição de novas patentes militares na busca de garantir a
segurança da capitania (tropas de milícias).
Nas colônias portuguesas, os cargos de governadores estavam hierarquicamente
ordenados apenas abaixo do vice-rei. Oriundos da nobreza militar, e em alguns casos
da pequena nobreza provinciana, eram escolhidos considerando-se que assumiriam
um cargo de responsabilidade e confiança política. Caio Prado Júnior considerou
o governador como uma figura híbrida na administração colonial portuguesa, uma
vez que grosso modo reunia as funções dos “Governadores das Armas” das províncias
metropolitanas e, um pouco também, as funções dos outros órgãos da administração
em representação do monarca (PRADO JÚNIOR, 1999, p. 301).
Vê-se, portanto, outro fragmento da carta de Joaquim Lopes d’Abreu que nos
mostra as lamentações do juiz da alfândega da vila de Fortaleza com relação à atuação
do governador capitania do Ceará, Bernardo José de Vasconcelos:

317
(...) teremos com a glória e antecipação fazer conhecer e mostrar o vosso tão Pio Clemente
e Augustíssimo Príncipe a origem della, não obstante factar-se a Junta ter crescido a
arrematação dos Dízimos perto de quinze contos de Reis, atribuindo esta a sua boa
administração, ao florescimento e aumento que esta Capitania ia tendo e se tem visto uma
total decadência de huma e outra couza, vendo-se muitos donos de gado procurar vendê-los
por diminuto preço a fim de se mudarem. Está reduzida esta Capitania a tal ponto mizeria
não só pelas razões ponderadas, como pelo imenso cabedal que o actual Governador tem
tirado destes povos pela Patente, disto isto fique inteiramente estagnado, porque havendo
foi grande abundancia de gados, como antes da seca havia, na maior parte das Ribeiras
não tem extração (...). Outrossim, como se poderá arregimentar a agricultura sendo este
o principal ramo que faz florescer o comercio e sustentar a Monarquia da confirmação
que tem feito passar a todos os corpos de milícia e ordenanças por preço arbitrario sem se
regular pelo regimento fazendo para este fim com o pretexto da independência da capitania
recolher todas as Patentes dos mencionados corpos que tinham se passados pelos Generais
de Pernambuco, e Governadores deste continente e que totalmente tem feito desaparecer
o dinheiro nesta Capitania, ficando o comércio e a agricultura em tais circunstancias que
sendo o gênero algodão o ramo de maior comercio e interesse e procurado sempre com
dinheiro adiantado, prezentemente tem os lavradores experimentado o contrário porque
nem com o algodão a vista acham quem lhe pague o dinheiro, não obstante gozar em
Pernambuco e Lisboa de vantajosos preços (...).5

Percebe-se que Joaquim Lopes d’Abreu reclamou ao rei que o governador da


capitania utilizava o argumento de que o aumento na cobrança dos dízimos seria
necessário para distribuir novas patentes militares e assim assegurar o bom governo
da capitania do Ceará, que conquistou a emancipação da capitania do Pernambuco.
Não podemos nos esquecer de que as forças militar, fiscal e judicial em toda a América
portuguesa encontravam-se interligadas, sendo que a administração militar era muito
importante para a defesa, preservação e segurança das vilas e cidades coloniais.
No caso específico da capitania do Ceará, após a emancipação de Pernambuco
não cabia mais a esta capitania arcar com as despesas destes funcionários. Assim
o governador Bernardo de Vasconcelos, nomeado pela Coroa portuguesa para
administrar a capitania independente do Ceará, fidalgo da Casa Real e Cavaleiro da
Ordem de Cristo, argumentou que o aumento na cobrança dos dízimos era necessário
para a segurança dos colonos da capitania do Ceará.
Mas, para o juiz da alfândega, o governador agindo desta forma acabava por
inviabilizar ainda mais o comércio do gado que já estava muito reduzido, bem como
o renascimento da agricultura no Ceará com o plantio do algodão. Os plantadores
de algodão, gênero tão importante para a Monarquia portuguesa, estavam com
dificuldades de escoar a produção, até mesmo no interior da capitania do Ceará,
pois faltavam compradores das colheitas. Vê-se, assim, que o dinheiro circulante
no interior da capitania estava escasso e, mesmo assim, o provedor da fazenda e o
governador negligenciavam as orientações do oficial da alfândega, corroborados pelos
oficiais camarários da vila de Fortaleza de Nossa Senhora d’Assunção, para diminuir o

318
valor da cobrança dos dízimos reais, que estavam deixando os habitantes da capitania
em situação cada vez maior de penúria econômica.
É curiosa a atitude de resistência tomada pelo governador Bernardo José de
Vasconcelos neste momento de crise econômica que se abateu sobre o Ceará. Vê-
se que a autoridade máxima da capitania não atendia às reivindicações do juiz da
alfândega da capitania, juntamente com os oficiais da Câmara de Fortaleza. Diante
da falta de negociação e da tentativa de cercear o poder político do governador e
da Junta Real da Fazenda da capitania, o juiz da alfândega e os oficiais da Câmara
da vila de Fortaleza resolveram recorrer ao rei e apelar para a sua “benevolência” na
tentativa de interceder para a diminuição da cobrança dos impostos, dos dízimos
reais e na diminuição da distribuição de novas patentes militares.
Mas, os oficiais da câmara da vila de Fortaleza não eram os únicos que sofriam
com a crise econômica e reclamavam da cobrança dos dízimos. Na segunda metade
do século XVIII, no contexto da administração do marquês de Pombal e do Diretório
Pombalino (1755-1777), foram criadas várias vilas na capitania do Ceará, originárias
de sete povoações de antigas aldeias indígenas, como, por exemplo, as vilas dos índios
de Arronches, Viçosa e Soure, em 1759; a vila Messejana, no ano seguinte, em 1760;
Crato e Monte-Mor-o-Novo, em 1764. Posteriormente, na década de setenta do
século XVIII, foram criadas outras vilas de brancos na capitania, tais como, a vila de
Sobral, em 1773, de Granja, em 1776, Quixeramobim, em 1789, e Vila Nova d’ El
Rey, em 1791 (SILVA, 2003, p. 84-88; 137-139; 173-201).
Recentemente o português Antônio Manoel Hespanha, ao analisar um modelo
político para a atuação das câmaras municipais do Império português, argumentou
que as câmaras municipais resistiam ao poder do centro, e seus conflitos com os
governadores eram difusos. Segundo o autor, no caso específico do Brasil,
nenhuma das câmaras municipais teve uma missão diplomática similar à de Macau, o papel
desempenhado pelas câmaras municipais era quase o mesmo, seja porque elas quase que
administravam totalmente os assuntos locais, seja porque atuavam com sucesso contra as
políticas centralistas ditadas pela coroa, seja por seus representantes” (2010, p.70).

Acreditamos que, no caso específico da colonização do Siará colonial, a criação


das novas câmaras municipais no período compreendido entre 1755 e 1791, com
a nomeação dos seus representantes locais, acabou por enraizar cada vez mais os
interesses econômicos dos produtores rurais, dos proprietários de fazenda de gado
e dos criadores e beneficiadores das carnes secas. Não podemos nos esquecer das
considerações pioneiras do brasilianista Stuart B. Schwartz, que anunciava há mais de
trinta anos, ao analisar a magistratura e a burocracia no período colonial, que

319
(...) apesar das possessões ultramarinas portuguesas serem subordinadas ao sistema
administrativo da Coroa, e o regime colonial ter conseguido manter a Colônia ligada à
pátria mãe por mais de três séculos, as razões do êxito desse regime estavam não só em
suas realizações, mas também em suas falhas e nos contornos peculiares da sociedade e da
economia colonial (SCHWARTZ, 1979, p. 195-251).

Assim, seguindo esta perspectiva, as novas câmaras municipais criadas


não apenas no Siará colonial, mas em toda a América portuguesa no contexto da
administração do Marquês de Pombal (1750-1777), provinham do reconhecimento
e satisfação de certas exigências coloniais. Exigências essas que, como bem ressaltou
Schwartz, “mantinham a burocracia teoricamente aberta para os nascidos na colônia
e, enquanto pudesse ser ‘abrasileirada’, a elite local aceitava-a como se fosse sua”
(SCHWARTZ, 1979, p. 251-295).
Nas últimas décadas dos setecentos e início do século XIX, devido ao aumento
populacional, a necessidade de dinamizar a economia no interior do território,
reestruturar seu espaço geográfico e jurisdicional após a emancipação da capitania
do Pernambuco, tornou-se necessário criar outras vilas na capitania do Ceará. Neste
novo contexto, foram criadas no ano de 1801 as vilas de São Bernardo das Russas e
São João do Príncipe. Em 1814, foi criada a Vila de Santo Antônio do Jardim e, em
1816, a Vila de São Vicente das Lavras da Mangabeira. Apesar de muitas vilas terem
sido criadas seguindo os caminhos das boiadas, esta atividade produtiva encontrava-
se em franca decadência no início do século XIX (STUDART, 2001, p. 313 e 359).
Segundo relatos de alguns viajantes e engenheiros militares, nos primeiros
anos do século XIX muitas vilas encontravam-se arruinadas economicamente e
despovoadas, o que acabava por impossibilitar o pleno trabalho de fiscalização e
cobrança dos dízimos pelos provedores nomeados para o assento da Real Fazenda do
Ceará. O engenheiro militar João da Silva Feijó, que viajou pela capitania do Ceará
em 1812, contabilizou 150 mil habitantes livres. Em 1822, ano da independência, o
número da população saltou para 240 mil pessoas. Porém este substancial acréscimo
populacional em apenas dez anos pode ter ocorrido devido ao fato de o censo deste
ano ter contabilizado o total da população da província, isto é, livres e escravos (Ver
Revista do Instituto Histórico do Ceará. Fortaleza. Anno III, 1889).
Segundo ainda os relatos contidos na Descrição Geográfica Breviada da
Capitania do Ceará, redigida pelo coronel e engenheiro militar Antônio José da Silva
Paulet, a vila de Fortaleza, criada em 1726, sede da capitania do Ceará, estava em
estado lastimável no início do século XIX. Havia uma casa de Câmara arruinada,
não tinha cadeia e as autoridades civis serviam numa cadeia militar. “O porto da vila
era sofrível”, o comércio era menor do que o da vila de Aracati. Não havia na vila de
Fortaleza de Nossa Senhora d’Assunção uma casa de sobrado, as terras eram muito
inferiores, devido ao solo de areia solta. O tijolo, a cal e as madeiras eram caras. Havia
no assento do governo apenas um batalhão de tropas regulares, um juiz de fora, que

320
era auditor da tropa e o juiz da alfândega (“Memória sobre a Capitania do Ceará,
escripta pelo Sargento Mor João da Silva Feijó. Revista do Instituto do Ceará, Anno
III, 1889, p. 1-27).
As questões relacionadas à justiça também eram precárias na capitania
independente do Ceará, devido ao fato de esta capitania ter tido apenas uma
comarca até o início do ano 1816. Assim a jurisdição da ouvidoria, que controlaria a
receita e despesas das câmaras municipais das novas vilas criadas nas duas primeiras
décadas dos oitocentos, era sempre deficitária. Apesar de Nuno Camarinhas declarar
que “do ponto de vista estritamente profissional o serviço da ouvidoria nas colônias
representava uma aceleração da progressão na carreira, ou, mais precisamente, uma
diminuição do número de nomeações antes do acesso da carreira de desembargador”
(2010, p. 301), no caso da jurisdição da capitania do Ceará esta ascensão poderia
ser prejudicada, devido ao fato de o ouvidor ter que fiscalizar uma longa extensão
de terras, que fazia divisa com as capitanias do Piauí e do Pernambuco. Além das
imensas áreas territoriais que estavam sob a jurisdição desta comarca, já havia neste
período 17 vilas na capitania do Ceará que estavam sob a ingerência do ouvidor,
prejudicando sobremaneira uma administração satisfatória.
Vê-se, portanto, que a uniformidade das práticas administrativas era difícil
de ser aplicada na administração da América portuguesa provida de capitanias com
perfis econômicos, sociais e escravocratas tão adversos. As relações de domínio entre
os representantes nomeados pelo rei para administrar as capitanias e os funcionários
da administração local não poderiam recorrentemente estar em posições opostas,
pois como bem argumentou o português Antônio Manuel Hespanha “a centralização
unilateral não sustentava a unidade e nem a manutenção do Império colonial
português” (1994, p. 269).
A lógica do Antigo Regime português era outra, pelo menos até a metade dos
setecentos, quando os impasses e rivalidades persistiam; cabia aos “ministros do rei”
(Conselho Ultramarino) resolver as disputas do além-mar e o rei deveria agir como
o fiel da balança. A metrópole portuguesa, como outras nações europeias na época
moderna, não possuía recursos econômicos e humanos para manter as suas vastas
possessões coloniais, dependiam do apoio econômico, político e administrativo das
elites coloniais. Para a manutenção dos vínculos coloniais e a integridade do Império
colonial português, era necessário estar aberto à negociação com as elites locais.
As dificuldades administrativas eram recorrentes no governo das capitanias
da América portuguesa, devido ao tamanho descomunal da colônia, sua diversidade,
distâncias geográficas, dificuldades de comunicação, insuficiência de recursos e de
funcionários para administrar as vastas possessões de terras. Cabia aos representantes
do rei, em momentos agudos de crise, flexibilizar as ordens metropolitanas em terras
americanas e afrouxar a cobrança dos dízimos reais e de outros inúmeros subsídios e
taxas que recaíam sobre os colonos.

321
Esta pesquisa, que se encontra em curso, mostra que estas atitudes eram
necessárias com relação à recente capitania independente do Ceará, para assim
evitar descontentamentos mais generalizados com os “homens bons”, isto é, as elites
locais detentoras de terras, gados, algodões, cargos camarários e patentes militares,
garantindo a própria manutenção e a unidade dessa nova capitania do Norte da
América portuguesa.
Os poderes periféricos representados pelas elites locais cearenses reivindicavam
cada vez mais o apoio da metrópole na tentativa de alcançar os seus objetivos e
atenuar algumas arbitrariedades políticas e administrativas realizadas por autoridades
nomeadas pelo reino para administrar a capitania do Ceará. Neste momento de
impasse, e diante das visíveis insatisfações dos colonos do Ceará, vassalos do rei, os
discursos das autoridades locais voltavam para as retóricas sobre crise econômica e
“descaminhos” praticados por funcionários régios na capitania. Acreditamos que
cabia à monarquia portuguesa atender aos clamores dos povos conquistados, dos
principais da terra, e assim legitimar a própria política imperial e a manutenção deste
novo espaço político e administrativo, que compunha as denominadas Capitanias do
Norte da América portuguesa.

Notas
1 O conceito de periferia utilizado é tributário das reflexões desenvolvidas por Edward Shils (1992, p. 53-71).
2 O Conselho Ultramarino era o órgão colegiado da metrópole portuguesa responsável pelas questões coloniais
e agia como consultor do rei; exceção feita às matérias de justiça, incumbência das duas Casas das Relações
instaladas na América portuguesa e dos respectivos tribunais metropolitanos (Casa da Suplicação e Desembargo
do Paço), sendo que as questões eclesiásticas eram da competência da Mesa de Consciência e Ordens.
3 Arquivo Histórico Ultramarino. Lista dos minerais existentes na capitania do Ceará. Brasil-Ceará. Carta, ano de
1786. Caixa 11, Doc. n. 639. CD-ROM.
4 STUDART, Guilherme. Arquivos do Barão de Studart. Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico do
Ceará (Org.). Documentos Manuscritos Digitalizados. 2010. Álbum 10. p. 30-34. CD-ROM.
5 Idem.

322
Referências Bibliográficas

CAMARINHAS, Nuno. Juízes e Administração da Justiça no Antigo Regime. Portugal e império colonial, séculos
XVII e XVIII. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.
GIRÃO, Raimundo. História Econômica do Ceará. 2ª ed. Fortaleza: Casa José de Alencar/UFC, 2000.
HESPANHA, Antônio Manuel. As Vésperas do Leviathan: Instituições e Poder Político em Portugal no Século
XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994.
__________. O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Estampa, 1998, vol. 4.
__________. Antigo Regime nos Trópicos? Um debate sobre o modelo político do império colonial português.
In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.). Na Trama das Redes. Política e Negócios no
Império Português, Séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
LEMENHE, Maria Auxiliadora. As Razões de uma Cidade: conflitos de hegemonias. Fortaleza: Stylus, 1991.
“Memória sobre a Capitania do Ceará, escripta pelo Sargento Mor João da Silva Feijó, naturalista encarregado
por S. A. R. das investigações philosophicas da mesma”. In: Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza. Anno
III, 1889, p. 1-27. CD-ROM (1887 - 2004).
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. 23ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1999.
PUNTONI, Pedro. Guerra dos Bárbaros: Povos Indígenas e a Colonização do Sertão Nordeste do Brasil, 1650-
1720. São Paulo: Ed. Hucitec; Fapesp, 2002.
SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1979.
SHILS, Edward. Centro e Periferia. Lisboa: Difel, 1992.
SILVA, Isabelle Braz Peixoto da. Vilas de Índios no Ceará Grande: dinâmicas locais sob o Diretório Pombalino.
Tese de Doutorado em Ciências Sociais. IFCH/Unicamp, 2003.
STUDART, Guilherme. Datas e Factos para a História do Ceará. Tomo I: Ceará colônia. Fortaleza, 1896.

323
Memórias da escravidão, memórias
da abolição: um campo de estudo
comparativo entre a França e o Brasil

Franck Ribard*

Quando, no começo da organização deste Seminário, estávamos refletindo


sobre as temáticas das mesas-redondas, sugeri o título desta: “Rotas e redes do
Mundo Atlântico”, meio inspirado pelo nome da linha da pós-graduação de
Pernambuco, intitulada “Norte, Nordeste e Mundo Atlântico” e já pensando nas
contribuições possíveis dos colegas e amigos que estão presentes a meu lado. Porém,
não sabia que, pelo jogo da representação dos diferentes programas em cada mesa,
acabaria por participar desta. Real desafio e grande prazer ter contado ao meu lado
com figuras tão qualificadas como Marcus Carvalho e Otaviano Vieira.
Então, na perspectiva de contribuir com este debate e na medida em que, ao
contrário dos colegas da mesa, não tenho realmente uma pesquisa empírica voltada
às relações transatlânticas, decidi aprofundar o tema do projeto Capes/Cofecub
que apresentamos (aqui, Eurípedes Funes e eu), junto com a Pós-Graduação de
Pernambuco (Marcus Carvalho e José Bento) e a Universidade de Toulouse-Le Mirail,
representada aqui por Richard Marin.
Este projeto, intitulado: “Construção e elementos memoriais atuais em jogo
em torno da escravidão e do tráfico no Brasil e na França. Estudo comparativo de
dois sistemas memoriais” (UFC/UFPE/UTM), foi depositado em julho deste ano e
estamos esperando uma resposta da Capes. As reflexões propostas aqui se situam na
perspectiva de aproveitar este momento, inclusive a presença dos colegas do projeto,
para começar a aprofundar algumas pistas de trabalho. Saliento, então, que os
elementos apresentados aqui, e peço desculpas por isso, longe de constituir resultados
de pesquisa, correspondem a premissas de uma problemática que, alimentando-se
de elementos diversos não sistematizados, aponta mais para ensaios iniciais de uma
análise colocada em perspectiva.

* Professor Doutor. Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História — Universidade


Federal do Ceará (UFC).

324
Desta maneira, o presente texto pretende operar a partir de uma lógica de
“olhares cruzados” entre o Brasil e a França, voltados para as temáticas da escravidão,
do tráfico, do abolicionismo e do antiescravagismo. Devido à natureza das posições
históricas específicas das duas nações em relação aos temas descritos, trata-se de
combinar abordagens comparativas e perspectivas, podendo revelar conexões bem
como, de forma geral, a circularidade cultural e as influências existentes.
Mais especificamente e além das dinâmicas históricas em si, a atenção se volta
para a produção de significados, de valores e de imaginários associados aos elementos
históricos nos termos da produção discursiva e na dinâmica de “referencialidade”
próprios à problemática da memória na atualidade.
Assim, fundamentalmente, trata-se de perceber o perfil geral da escravidão, do
processo abolicionista nas duas sociedades, para poder problematizar os elementos
implicados e as modalidades de desenvolvimento dos sistemas memoriais no
contexto contemporâneo. Vale ressaltar que, neste âmbito, a memória, garantindo
um continuum passado-presente que é revertido pela preeminência das instâncias
do tempo presente, é mobilizada na legitimação de demandas, na visibilidade de
questões cujo sentido, muitas vezes político, emerge dentro da análise das dinâmicas
que caracterizam o campo de tensão associado a um determinado período histórico
das sociedades abordadas.
Claro, se o meu exame me leva a abordar inicialmente aspectos históricos
relacionados aos temas apreendidos, tentando privilegiar elementos que definem o
perfil geral e o posicionamento de cada uma das duas sociedades nessas questões,
num segundo momento o foco privilegiado e a principal preocupação será a avaliação
dos termos da realidade sociopolítica atual que presidem e explicam as dinâmicas e
os embates na manutenção e instrumentalização de memórias conflitantes. Por fim,
terei a oportunidade de sistematizar algumas pistas da pesquisa.

1. Articulações gerais e “lugares” das duas sociedades no “sistema-


mundo” da escravidão, do tráfico e dos processos de abolição
a. Termos gerais deste sistema
As relações transatlânticas inauguradas a partir do final do século XV, entre
a Europa, a África e o continente americano, foram determinantes na perspectiva
do estabelecimento de novas dinâmicas geopolíticas, principalmente no Ocidente,
e modificaram drasticamente as realidades vivenciadas pelas populações de cada um
desses continentes.
A natureza extremamente complexa do processo de emergência dessa
plataforma de interface tri-continental pode ser revelada pela profusão das abordagens

325
possíveis de tal fenômeno, podendo privilegiar, entre outros, dados ligados à circulação
das pessoas (migrações voluntárias ou forçadas), dos bens (comercio) e das ideias
(culturas, religiões...). Nesse sentido, os desdobramentos são infinitos e enfatizam o
advento de um novo período na história mundial.
Nesse largo contexto, o tráfico negreiro e a instituição da escravidão, pela
abrangência nunca vista e alcançada no período (séculos XVI-XIX), revestem-se
de uma importância fundamental, permitindo alcançar em grande parte as lógicas
e dinâmicas do processo colonial americano e os termos do relacionamento entre
os diferentes sujeitos envolvidos. Vale lembrar que tanto o tráfico negreiro quanto
a escravidão não apareceram nesse período e se a escravidão já estava presente na
antiguidade europeia e no continente africano desta época, a noção de tráfico parece
poder ser associada, inicialmente, ao processo de expansão muçulmana (PÉTRÉ-
GRENOUILLEAU, 2003, p. 2), a partir do século VII, configurando um tráfico oriental.
Mesmo assim, o tráfico negreiro ocidental, relacionado originalmente à
implantação do sistema da plantation nas Américas, por suas implicações econômicas
e políticas, aparece como um fenômeno duradouro e de larga escala, fundamental
para a compreensão das dinâmicas transatlânticas. De fato o enfoque escolhido
aqui não aborda o tráfico de maneira quantitativa, mas se interessa pelas condições,
argumentações, ideais, discursos, representações que, dos dois lados do Atlântico,
permitiram, sustentaram ou, ao contrário, se opuseram a este “infame negócio”.
b. Colônia e potência colonial
Um primeiro elemento importante que permite situar, de forma diferenciada,
o lugar específico das duas sociedades na economia escravocrata reside, evidentemente,
no fato de o Brasil se constituir como um dos principais destinos das rotas da escravidão.
A França, por seu turno, aparece com uma das nações agentes fundamentais no
comércio e na deportação dos africanos para a América, em particular para as suas
colônias do Caribe (Guiana, ilhas de Martinica, Guadalupe e São Domingo — futura
Haiti) e na Ilha Bourbon (Reunião). É claro que o Brasil teve um papel importante,
cada vez mais estudado, no tráfico e que a França, por sua vez, recebeu alguns escravos
no seu território metropolitano, mas, fundamentalmente, emerge uma consequência
marcante: o Brasil, enquanto colônia, estruturou-se sobre a instituição da escravidão,
incorporando milhões de africanos que fizeram da sociedade brasileira uma sociedade
predominantemente negra, enquanto a França, concentrando os seus escravos nas
colônias, associou os problemas da escravidão e da participação negra às regiões
periféricas do seu sistema.1 Essa diferenciação radical do estatuto e das dinâmicas
populacionais entre as colônias e a metrópole francesa teve uma importância notável
quando se tratou da aplicação das Leis e princípios constitutivos da República (depois
da Revolução Francesa) entre os sujeitos do reino e os sujeitos d’outre mer.2 Bem

326
antes da revolução, percebia-se já a dicotomia total existente entre as colônias, onde
o Código Negro valia, e a metrópole onde “a ordem pública do reino não admitia a
presença de escravos no solo francês” (CASTALDO, 207, p. 5).

c. Dos códigos negros aos processos abolicionistas:


comparação e colusões
Do ponto de vista do funcionamento geral do regime escravagista nas
colônias francesas e no Brasil, e apesar das diferenças notáveis tanto do ponto de
vista espacial como em relação às máquinas administrativas portuguesas e francesas,
pode ser traçado um largo paralelo. Assim, no Brasil — onde a legislação aplicada
apoiava-se em grande parte, até 18303 e mesmo depois, nas Ordenações Filipinas e
no Direito Romano —, nunca existiu uma regulamentação unificando a condição
do escravo, tal como o Código Negro4 francês. Apesar disso, o tratamento do escravo
e as relações senhor/escravo não parecem ter sido, de forma geral, muito diferentes
nas colônias francesas e no Brasil. Da mesma forma, o risco constante de revoltas e
a ampla mobilização dos escravos parecem ter, nos dois casos, favorecido em grande
parte movimentos que iriam culminar na abolição da escravidão.

I. Movimentos abolicionistas e revoltas dos escravos


Conhecidamente, o Brasil, por sua dependência estrutural em relação
ao regime escravagista e a defesa dos interesses dos proprietários, optou por uma
modificação progressiva da sua legislação, “assegurando” uma abolição definitiva
que só aconteceria, bem tardiamente, dentro do contexto internacional, em 1888.
Além da pressão exercida pelos escravos para essa conquista cada vez mais presente
na historiografia, destaca-se, em geral, a atuação dos movimentos abolicionistas que,
ao exemplo do caso cearense celebrado como “Terra da Luz” por seu pioneirismo na
questão, se pautaram em grande parte nos valores iluministas e numa referência clara
ao legado universalista da revolução francesa, associado ao projeto de nação civilizada.
A fraqueza do abolicionismo francês, por sua vez, caracterizado por alguns
pelo “imobilismo” em comparação “à força e ao dinamismo das sociedades e comitês
abolicionistas britânicos- e mais tarde norte-americano” (SCHMIDT, 2005, p. 322,
tradução minha) encontra o seu corolário no complexo processo de idas e voltas em
direção à extinção da escravidão. Assim, a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, de 26 de agosto de 1789,5 apresentando-se como universal, reforçada pelo
decreto de 4 fevereiro de 1794,6 parecia assegurar o fim da escravidão nas colônias,
apesar das tergiversações da Constituinte, preocupada com os interesses dos colonos,
entre as duas datas.7 Mas a chegada de Bonaparte significou, a partir de 1802, o
restabelecimento progressivo da escravidão nas colônias, sendo abolido de fato o
tráfico em 1831 e a própria escravidão, de forma definitiva, pelo Governo Provisório,

327
em 1848, fruto do trabalho de uma comissão chefiada por Victor Schoelcher,
“defensor incansável dos direitos dos Negros” (CASTALDO, 2007, p. 27-28).8
Concernente ao teor geral dos discursos abolicionistas, quer sejam de natureza
social, política ou religiosa e nas diferentes partes da América e da Europa, aparece
o caráter quase generalizado de inferioridade dos escravos, usada por aqueles que
pretendiam defendê-los (SCHMIDT, 2005 p. 325).
Interessante notar como essas abolições, tornando-se símbolos da manifestação
superior da nação, desencadearam, nos dois casos, uma dinâmica de auto-celebração
e de constante comemoração, pautada na cristalização da memória em torno de
elementos e de figuras (Nabuco, Princesa Isabel, Victor Schoelcher, Dragão do Mar)
que adquiriram, em certa medida, uma dimensão mítica. Nesse processo, aparece
de forma clara o ocultamento da própria escravidão, bem como das condições
complexas que favoreceram as abolições, em particular o papel preponderante
das lutas escravas. A título de exemplo, o decreto de 4 de fevereiro de 1794 pode
ser compreendido como uma consequência mais ou menos direta da situação de
violência que se alastrava em São Domingos. Aliás a revolução e a independência do
Haiti (1791-1804) tiveram um impacto profundo sobre a política colonial francesa
posterior, bem como nas múltiplas revoltas escravas brasileiras do século XIX, sobre
o imaginário das elites e dos proprietários no Brasil.
d. Contextos pós-abolicionistas. As repúblicas: políticas
colonialistas versus políticas de construção da nação. A
eterna questão do “outro”
Outro aspecto que pode ser generalizado é a implementação de novas
modalidades de servidão sucedendo à abolição da escravidão. Nas colônias europeias
do Caribe, bem como no Brasil, apareceram mecanismos de coerção e de controle
dos ex-escravos, que tinham como principal função manter uma exploração social
garantindo os interesses dos colonos no Caribe e dos antigos senhores no Brasil. Essa
preocupação, ponto importante dos debates anteriores sobre a abolição, se estendeu
inclusive a outras populações, como os pobres livres e os novos migrantes que foram
introduzidos nas duas regiões.
De forma geral, é importante notar que a abolição da escravidão abriu
a possibilidade para a França desenvolver um “sistema econômico global de
exploração colonial”, “uma política colonial de grande escala, ela mesmo ligada a
outro sistema de servidão batizado com o nome de ‘trabalho forçado’” (SCHMIDT,
2005, p. 327). Se esta afirmação se revela pertinente para o contexto caribenho,9
ela toma uma dimensão muito mais abrangente quando relacionada ao processo
imperialista na África.
De fato, é revelador que a colonização da África Ocidental, celebrada por

328
muitos antigos abolicionistas e figuras importantes como Victor Hugo, se fez, entre
outros, erguendo a bandeira da liberdade e do antiescravagismo, demostrando
assim a relação direta entre abolição e colonização. Desse ponto de vista, não existiu
contradição entre a rejeição, a luta contra a escravidão e a exploração dos recursos
naturais e das populações forçadas a integrar, entre outros, sistemas de impostos10
e de trabalho forçado, tais como as “corveias” e as “prestações”, em troca de salários
miseráveis, prática que se estendeu até o final dos anos 1950, na verdade, até as
independências africanas (SCHMIDT, 2005, p. 296).

I. A questão da raça
Não resta dúvida que o processo de partilha da África, subsequente à
Conferência de Berlim, se tinha como pano de fundo interesses econômicos e
geopolíticos claros e a prevalência de uma ideologia liberal radical, pautou-se também
numa concepção racialista e racista da humanidade, reificando a inferioridade dos
africanos.
Essa ideia não era nova, já que o argumento bíblico da condenação eterna
de Cham e dos seus descendentes tinha selado, alguns séculos antes, o destino dos
africanos na escravidão bem como no tráfico negreiro.11 A visão da inferioridade negra
nunca tinha sido desmentida, com algumas exceções,12 pelo pensamento dominante
europeu e em particular francês, mesmo no auge do período iluminista,13 como
mostram, por exemplo, os escritos de Montesquieu (1689-1755):
Aqueles de quem se trata são negros da cabeça até os pés; e eles têm o nariz tão chato que é
quase impossível ter pena deles.

Não se pode vir ao espírito que Deus, que é um ser muito sábio, tenha colocado uma alma,
sobretudo uma alma boa, num corpo todo negro (...)

É impossível supor que essa gente sejam homens, por que se os supomos como homens,
começaríamos a acreditar que não somos, nós mesmos, cristãos (MONTESQUIEU, 1995, p.5).14

Essa visão antiga adquire, no século XIX, outros contornos e uma nova
argumentação, permitindo uma adaptação do discurso racial ao quadro da época,
do ponto de vista dos elementos em jogo na política colonial francesa e nas questões
postas pela abolição da escravidão no Brasil. As apropriações e o impacto das teorias
neo-evolucionistas no contexto das duas nações se deram de maneira diferenciada,
devido, de um lado, ao caráter central que elas adquiriram nas discussões em torno
do futuro de uma nação brasileira de formação social multirracial, marcada pela
“mancha” da escravidão negra e, de outro, às contingências externas dessas questões
na França, fundamentalmente ligadas à produção de um imaginário destinado a
legitimar a situação colonial.
Essas diferenças iriam, inclusive, encontrar outros desdobramentos, por

329
exemplo no advento e hegemonização da ideologia da democracia racial, pautada
no mito e na “fábula das três raças” (DAMATTA, 1981), do lado brasileiro e, no
caso francês, pela modificação do imaginário e das imagens associadas ao negro e ao
africano, quando, entre outros casos, da participação importante dos contingentes
militares das colônias (sobretudo africanos) nas duas guerras mundiais, sob a bandeira
nacional francesa.15

2. Nação, sociedade multicultural e diversidade etno-


racial: problemas sociais e a problemática das memórias
nacionais e alternativas na França e no Brasil

Retomando agora esses elementos históricos na perspectiva da manutenção


atual das memórias sobre a escravidão e a abolição, à luz das duas problemáticas
nacionais, pode ser enfatizado que as sociedades francesa e brasileira, desde alguns
anos, revelam, de maneira diferente e certamente por motivos diversos, preocupações
claras relacionadas a uma renovação das perspectivas sobre a escravidão, seu papel na
formação social e o seu peso na história nacional. Concomitantemente, as relações
transatlânticas, a história com o continente africano e, sobretudo, as representações
sobre o negro, o africano, o immigré e as relações etnorraciais emergem como questões
importantes neste âmbito.

a. Os limites do modelo assimilacionista francês face aos


desafios da “France plurielle” e da crise identitária e
social dos immigrés: embates memoriais em torno do “re-
conhecimento”
Na França, por exemplo, num contexto de progressão constante do voto de
extrema direita e de debate sobre a identidade nacional e a imigração, Jacques Chirac,
presidente da República na época, estabeleceu, em 2006, o dia 10 de maio16 como dia
das Mémoires de la traite négrière, de l’esclavage et de leurs abolitions.17 Este fato, entre
outras coisas, pretendeu pôr termo à polêmica sobre um artigo de Lei enfatizando o
papel positivo da colonização francesa (TAUBIRA, 2007, p. XXVIII), artigo muito
controvertido e que motivou uma mobilização na sociedade civil e por parte dos
docentes e pesquisadores, em particular, historiadores das universidades francesas. De
forma mais geral, podemos dizer que, à luz dos problemas atuais de convívio social e
da famosa questão da “integração/assimilação” dos imigrantes e dos seus descendentes,
quando as relações com o continente africano continuam marcadas pelo legado da
“Françafrique”, é revisitado um passado republicano que revela as ambiguidades de
uma nação berço dos ideais revolucionários e de uma visão universalista dos direitos

330
humanos, mas que teve dificuldades em abolir a escravidão e que se configurou como
uma nação marcada por uma política imperialista e colonialista.
Esse contexto de tensão social recorrente contra os representantes do Estado
nas periferias das grandes cidades, que se constituem em áreas marginalizadas e
ocupadas em sua maioria por imigrantes e franceses oriundos da imigração, revela
os limites dos princípios republicanos e jacobinos de Liberté, Égalité, Fraternité, bem
como questionam — através da revolta contra o confinamento social, econômico e
identitário — o lugar do “outro” na República e face à memória cristalizada da “nação
dos direitos do homem”.
A perene invisibilidade do passado escravagista e colonial francês e
concomitantemente do lugar específico ocupado pelos descendentes das populações
envolvidas nesse “passado escamoteado” foi o ponto de partida de ações coletivas e
de movimentos em defesa do “re-conhecimento” que, certamente, encontraram um
marco importante na passeata silenciosa de 40 mil pessoas em Paris no dia 23 de maio
de 1998 que, 150 anos depois da abolição, homenageava as vítimas da escravidão e
reivindicava o dever de memória da nação.
Se essa dinâmica encontrou um eco — além da promulgação da Lei de
2001(Lei Taubira) e do dia comemorativo (10 de maio) — numa série de dispositivos
institucionais, museológicos, monumentais, educativos e artísticos, em particular nos
antigos portos negreiros (Bordeaux, La Rochelle, Nantes), os desdobramentos dessa
mobilização encontram-se em diferentes movimentos e organizações. O CRAN18
(Conselho Representativo das Associações Negras), fundado em 2005, que reúne
120 associações e federações de associações, luta contra a discriminação e a memória
da escravidão e da colonização; o CM9819 (Comitê Marcha do 23 de maio de 1998),
fundado em 1999, voltado às problemáticas identitárias e memoriais das populações
dos territórios e departamentos de além-mar, na perspectiva de melhorar a sua
inserção no seio da República; Les “Indigènes20 de la République”21 (Os Indígenas
da República), aparecido em 2005, de protestação antirracista e antissionista, são
alguns destes movimentos. Esses, de maneiras diferentes, representam forças atuantes
que articulam a valorização de “memórias esquecidas”, a mobilização em torno da
luta contra a discriminação e em prol de novas políticas de inserção das populações
— dos seus filhos, netos, bisnetos, na sua maioria de nacionalidade francesa —
oriundas de migrações recentes ou antigas, vindas das antigas colônias e dos “povos
franceses do além-mar”, rotulados, de forma genérica, pelo termo homogeneizante
e estigmatizante de immigrés.22
b. A lei 10639 e os impasses brasileiros sobre a questão da
desigualdade racial e do preconceito: além da memória da
escravidão... e da abolição: em busca de novas memórias...
331
O Brasil, por sua vez, teve na escravidão — e de maneira mais ampla na relação
com a África — um pilar de seu processo de formação social, presente como forma
institucionalizada tanto no período colonial quanto no Império. Desde a década de
1970, o campo de estudos sobre escravidão ganhou um claro relevo, constituindo-se
em tema clássico da historiografia nacional. Mesmo assim, num contexto nacional
em que a ideologia da democracia racial continua firme na opinião pública, os temas
da África e suas relações com o Brasil, apesar de terem ganhado certo destaque na
atualidade, continuam representando questões marginais, exóticas, abordadas muitas
vezes de formas confusas. Essa constatação encobre uma realidade mal conhecida
ou pouco valorizada: a formidável importância do continente africano e das suas
populações no processo histórico de formação da sociedade brasileira. Não por
acaso, configura-se como tendência, na historiografia mais recente, a consciência da
subestimação do caráter fundamental do eixo Brasil/África, para a história do Brasil,
inscrito nas rotas atlânticas, e da necessidade correspondente de colocá-lo ao lado da
relação do Brasil com Portugal, como elemento primordial da análise da colonização
brasileira.23 Da mesma forma, o desenho em “sentido único” do comércio triangular
está hoje ultrapassado. Essa consciência alimenta-se cada vez mais da observação da
participação direta dos brasileiros no comércio com os africanos.
Mesmo assim, e apesar da luta histórica dos movimentos negros, das pesquisas
acadêmicas e das políticas públicas, as representações dominantes sobre o negro
brasileiro e o seu passado continuam, em grande medida, alimentadas pelas imagens
inferiorizantes e altamente simbólicas da condição de escravo e do barco negreiro.
Podemos inferir que o racismo e a desigualdade racial encontram apoios sólidos
na perenidade de valores negativos associados ao negro, quer seja na sua versão do
“negro perigoso” ou de “negro vítima” (como no caso da reificação comemorativa
do discurso abolicionista que, muitas vezes, tem o escravo por objeto da sua ação
humanista e redentora).
Essa relação no imaginário veiculada pela memória coletiva assume, em certos
casos, como aqui no Ceará, uma configuração radical na medida em que a negação
da existência hoje do negro cearense aparece, no dispositivo discursivo, como uma
consequência da abolição pioneira da escravidão. Por outro lado, associa-se a suposta
ausência do negro ao caráter pouco abrangente da escravidão. Tais argumentos se
completam e se reforçam para criar a ideia do caráter indissociável entre as categorias
de “escravo” e de “negro”, tidas como meros sinônimos, sobretudo, quando se remete
ao “tempo da escravidão”.
Percebe-se a força de uma memória que, apontando para Portugal como ponto
de origem da trajetória brasileira e salientando a abolição como marco e símbolo
central do processo de construção da ideia de nação, não deixa, por isso, de perceber
o negro (bem como o índio) como um “outro”.

332
As dificuldades enormes e os problemas estruturais encontrados na aplicação
da Lei 10.639 de 2003 remetem, evidentemente, à falta de qualificação e de
formação específicas dos profissionais educadores, mas apontam também o tamanho
da dificuldade que representa a superação das estruturas simbólicas existentes e a
aceitação da valorização da participação negra e afrodescendente no processo de
formação social brasileiro.

3. Reflexões intermediárias e encaminhamentos para a pesquisa

Como podemos observar, as posições diferentes que ocupavam a França e o


Brasil na visão tradicional e linear do comércio triangular explicam as problemáticas
muito diversas envolvendo as duas nações do ponto de vista da questões que nos
interessam.
Apesar disso, podemos verificar nos dois casos a existência de uma memória
oficial que, autocelebrando os valores de liberdade e de civilização da nação, encontra
na abolição um símbolo importante. Vale notar a possibilidade de uma leitura
que enfatiza a ideia comum de libertação, tanto do jugo colonial e da mancha da
escravidão na versão redentora da abolição brasileira e, em particular, cearense, como
da monarquia e da opressão escravocrata na vertente revolucionária francesa. Não se
trata de uma genealogia comum das memórias mas muito mais o “empréstimo” e a
colusão de metáforas e dispositivos discursivos baseados nesta ideia de “libertação”,
elemento a ser aprofundado em outra ocasião. Essa memória consolidada e oficial
encobre outras memórias, subterrâneas, do cativeiro, do racismo e da condição
subalterna da população afro-brasileira; do tráfico, da escravidão nas colônias, da
colonização e do sacrifício dos colonizados e dos imigrados pela nação francesa.
Os contextos sócio-políticos atuais nos dois países ajudam a entender a
natureza diferenciada das movimentações e os elementos em jogo na mobilização
para fazer emergir outras imagens e outras memórias nas histórias nacionais.
Assim, do lado brasileiro, depois de décadas de lutas do movimento negro e
em face da dificuldade de superar a desigualdade e um racismo ancorado na imagem
estigmatizada do negro, a tendência não me parece mais de visibilizar e valorizar
unicamente a história e a experiência dos escravos. Trata-se mais, a meu ver, de
abrir a possibilidade de outros olhares sobre a negritude e a contribuição africana
e afrodescendente no processo de formação social deste país, através da valorização
da riqueza das matrizes culturais africanas e da força dos povos africanos trazidos
para cá. Essa abertura voltada para o continente africano e o legado histórico da
relação com a África encontram desdobramentos no reposicionamento econômico e
diplomático do Brasil no continente e na vinda, em números crescentes, de africanos,
em particular de estudantes, para cá.

333
Na França, os limites do modelo assimilacionista e republicano numa
sociedade que desde o fim da Segunda Guerra Mundial encontra-se cada vez mais
multicultural e multiétnica, são revelados pelas tensões comunitárias e a constatação
da marginalização, ou pelo menos, da dificuldade de inserção de populações diversas
oriundas dos territórios além-mar e das antigas colônias chamadas de immigrés. As
reivindicações e a busca pelo reconhecimento dessas populações se traduzem então
numa mobilização que busca reabilitar a memória esquecida da escravidão e da
exploração colonial vivida pelos antepassados como mecanismo de legitimação da
luta pelo direito à igualdade e ao respeito da diferença cultural e identitária.
As reflexões propostas aqui são apenas premissas de fenômenos complexos e
dinâmicos que abordei de forma genérica e tendo como objetivo apenas mapear alguns
elementos que poderiam, inicialmente, nortear a problemática geral de uma pesquisa
em desenvolvimento. Estas questões, no entanto, devem ainda ser aprofundadas e
apreendidas de forma sistemática.

Notas
1 Mesmo que, comprovadamente, o tráfico negreiro tenha definido o papel preponderante e a riqueza de
cidades portuárias francesas como Nantes ou Bordeaux.
2 Além-mar.
3 Código Criminal do Império. Lei de 16 de dezembro de 1830. Ver http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/
lim/lim-16-12-1830.htm. Acesso em 24 de setembro de 2012
4 Ver, por exemplo, o Code noir de mars 1685, édit du Roi sur les esclaves des îles de l’Amérique, signé par Louis XIV
e o Code noir de décembre 1723, édit du Roi sur les esclaves pour les îles de France et de Bourbon, signé par Louis XV
(TAUBIRA, 2007, p. 37-65).
5 Particularmente no seu artigo 1º, com o seu famoso: “Os homens nascem e são livres e iguais em direitos...”.
Para ver o texto na íntegra: http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/direitos-
humanos/declar_dir_homem_cidadao.pdf. Acessado em 26 de setembro de 2012.
6 Ver http://www.legifrance.gouv.fr/affichTexte. do?cidTexte=JORFTEXT000000844525&dateTexte. Acesso
em 26 de setembro de 2012.
7 Ver, entre outros, o Decreto de 8 de março de 1790.
8 Texto que forneceu as informações contidas nesta parte do artigo.
9 Ver o excelente filme Rue Cases-Nègres (1983), clássico de Euzhan Palcy, adaptado do romance autobiográfico
La Rue Cases-Nègres (1950), do escritor martiniquense Joseph Zobel.
10 Sobre o imposto dito de “capitation”, ver HAMPÂTÉ BÂ, Amadou. Amkoullel, l’enfant peul. Mémoires (I).
Paris: BABEL/Actes Sud, 1991, p. 84-85.
11 A “situação dos negros” no século XIX, valendo inclusive como comprovação retrospectiva desta profecia,
nos exemplos citados por GRAVATT, Patricia. L’église et l’esclavage. Paris: L’Harmattan, 2003, p 117.
12 Ver, entre outros, o ensaio “Réflexions sur l’esclavage des nègres” (1781) de Condorcet, publicado sob
pseudônimo (BRETEAU; LANCELIN, 1998, p. 55-61).
13 O chamado “século das luzes”, correspondendo ao período de maior intensidade do tráfico negreiro atlântico.
14 Tradução minha de “Ceux dont il s’agit sont noirs depuis les pieds jusqu’à la tête; et ils ont le nez si écrasé
qu’il est presque impossible de les plaindre. On ne peut se mettre dans l’esprit que Dieu, qui est un être très sage,
ait mis une âme, surtout une âme bonne, dans un corps tout noir (…) Il est impossible que nous supposions
que ces gens-là soient des hommes ; parce que, si nous les supposions des hommes, on commencerait à croire
que nous ne sommes pas nous-mêmes chrétiens”.

334
15 Ver o livro do historiador francês Pascal Blanchard, La France Noire (2001), e também o documentário de
Arnaud Ngatcha e Jérôme Sesquin, intitulado Noirs, l’identité au cœur de la question noire (2006).
16 Data da adoção pelo parlamento francês da Lei de 2001, reconhecendo a escravidão e o tráfico negreiro como
crimes contra a humanidade, elaborada a partir da contribuição da então deputada da Guiana, hoje “Garde des
sceaux”, Ministra da Justiça, Christiane Taubira.
17 “Memórias do tráfico negreiro, da escravidão e das suas abolições”. Comité pour la Mémoire de l’Esclavage.
30 janvier 2006.
18 http://lecran.org/
19 http://www.cm98.fr/
20 Não confundir com o filme homônimo Indigène. Este filme álgero-belgo-franco-marroquino realizado por
Rachid Bouchareb (2006), que teve uma grande audiência e provocou várias polémicas na França, problematiza
a discriminação e a desilusão dos engajados magrebinos nas forças armadas de liberação durante a Segunda
Guerra Mundial. Indigène era o termo usado até o final da segunda guerra mundial para designar os soldados,
oriundos das colônias, que lutaram contra as “forças do eixo”.
21 http://www.indigenes-republique.fr/
22 Imigrado. As controvérsias e resistências em torno da figura do “immigré” (entendido sobretudo como
oriundo da África, mas não somente) podem ser verificadas, por exemplo, pela dificuldade do cumprimento
da promessa de campanha do então candidato, hoje presidente da República (2012), François Hollande, de
dar o direito de voto para as eleições locais aos estrangeiros não europeus, presentes no solo francês desde, pelo
menos, cinco anos.
23 Ver por exemplo os trabalhos de Florentino (1997), Silva (2003) e Alencastro (2000).

Referências Bibliográficas
ALENCASTRO, Luiz Felipe de, O trato dos viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII. São
Paulo: Companhia das Letras, 2000.
BLANCHARD, Pascal. La France Noire, trois siècles de présences. Paris: Editions La Découverte, 2011
BRETEAU, Jean; LANCELIN, Marcel. Des chaînes a la liberte: Choix de textes français sur les traites négrières
et l’esclavage de 1615 à 1848. Paris: Editions Apogée, 1998.
CASTALDO, André. Présentation. In: TAUBIRA, Christiane. Codes Noirs. De l’esclavage aux abolitions. Paris:
Éditions Dalloz, 2007.
DA MATTA, Roberto. Relativizando – uma introdução à Antropologia Social. Petrópolis: Vozes, 1981.
FLORENTINO, Manolo. Em Costas Negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janei-
ro. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
GRAVATT, Patricia. L’église et l’esclavage. Paris: L’Harmattan, 2003.
HAMPÂTÉ BÂ, Amadou. Amkoullel, l’enfant peul. Mémoires (I). Paris: BABEL/Actes Sud, 1991.
MONTESQUIEU (Charles Louis de Secondat). De l’esprit des lois. Livre VX: Inutilité de l’esclavage parmi
nous. Genève: Imprimeur Jacques Barillot, 1748. Réédition Paris: Gallimard Folio essais, 1995.
PÉTRÉ-GRENOUILLEAU, Olivier. Les traites négrières. Paris: La Documentation française, 2003.
SCHMIDT, Nelly. L’abolition de l’esclavage: Cinq siècles de combat (XVIème-XXème siècle). Paris: Fayard, 2005.
SILVA, Alberto Costa. Um Rio Chamado Atlântico. A África no Brasil e o Brasil na África. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira; Ed. UFRJ, 2003.
TAUBIRA, Christiane. Codes Noirs. De l’esclavage aux abolitions. Paris: Éditions Dalloz, 2007.

335
3464.2222

Você também pode gostar