Raúl Brandão - Os Pescadores-Ebook
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Os Pescadores
Título: Os Pescadores
Autor: Raul Brandão
Editor: Neolivros | www.neolivros.com
info@neolivros.com
Texto original: Paris: Aillaud, 1923; Biblioteca Nacional de
Portugal
Revisão e paginação: João Carvalho
Ano da edição original: 1923
Ano de edição: 2018
Capa: Christian PARREIRA, rede em homenagem aos pescadores
(CC BY-ND 2.0) — goo.gl/rrJsPW
À MEMÓRIA
MEU AVÔ, MORTO NO MAR
_
Quando regresso do mar venho sempre estonteado e cheio de luz que
me trespassa. Tomo então apontamentos rápidos — seis linhas —
um tipo — uma paisagem. Foi assim que coligi este livro,
juntando-lhe algumas páginas de memórias. Meia dúzia de esboços
afinal, que, como certos quadrinhos do ar livre, são melhores quando
ficam por acabar.
Estas linhas de saudade aquecem-me e reanimam-me nos dias de
Inverno friorento. Torno a ver o azul, e chega mais alto até mim o
imenso eco prolongado… Basta pegar num velho búzio para se
perceber distintamente a grande voz do mar. Criou-se com ele e
guardou-a para sempre. — Eu também nunca mais a esqueci…
_
FOZ DO DOURO
Maio – 1921
Junho – 1921
É que tudo, até as coisas, num dado momento, foram para mim
seres de uma vida extraordinária: um ser esplêndido, o rio, a que
me entrego dentro de quatro tábuas; o cabedelo cheio de
mistério, onde ponho os pés com terror; o largo, o profundo
mar, que me levou alguns dos meus, constante preocupação
desta gente, e que de quando em quando os mata à minha vista.
As figuras em sonhos tornam-se a debruçar para mim,
estendendo-me outra vez as mãos… E é sonhando também que
me recordo de certas coisas sem importância: do jeito que era
preciso dar às portas manhosas, para as poder abrir, de uma
expressão de que me separam léguas de esquecimento, de
pequenos nadas que duram um segundo, um olhar ou um sorriso
molhado de ternura. Acontece que às vezes acordo tendo diante
Os Pescadores 15
ESTA nossa terra portuguesa vai pela costa fora sempre de braços
abertos para o mar, estreitando-o amorosamente contra si.
Começa em Caminha até ao forte de Âncora — de Âncora ao
extremo do monte da Gelfa, e daí ao farol de Montedor, em três
largas reentrâncias, que têm como pano de fundo a cadeia
azulada dos montes, de onde emerge um ou outro cone
transparente… Todas as povoações são viradas para o mar. O sol
doira uma janela, uma eira, um espigueiro, o campo de milho
alimentado a sargaço que tem os pés na água. E o biombo cor de
lousa desenrola-se sempre ao lado do comboio…
12 de Agosto
13 de Agosto
14 de Agosto
31 de Agosto
3 de Setembro
20 de Setembro
PORES-DO-SOL
O NEVOEIRO
REDES
PARAMOS
NO CABEDELO
Ninguém aqui vem que não fique seduzido, e noutro país esta
região seria um lugar de vilegiatura privilegiado. É um sítio para
contemplativos e poetas: qualquer fio de água lhes chega e os
encanta. É um sítio para sonhadores e para os que gostam de se
aventurar sobre quatro tábuas, descobrindo motivos imprevistos.
É-o para os que se apaixonam pelo mar profundo, e para os
medrosos que só se arriscam num palmo de água — porque a ria
é lago e mar ao mesmo tempo. Com meios muito simples, um
saleiro e uma barraca, tem-se uma casa para todo o verão.
Pesca-se. Sonha-se. Toma-se banho. E esquece-se a vida prática e
mesquinha. Dorme-se ao largo, deitando-se a fateixa ou abica-se
ao areal: um fogaréu, uma vara, a caldeirada… Começam a luzir
Os Pescadores 51
8 horas da manhã
24 de Julho
HÁ três dias que ando metido na ria, com a barba por fazer, sujo
como um ladrão de estrada, e fora de toda a realidade.
Afigura-se-me que vivo num país estranho — amplidão, água e
sonho. Pelo areal os palheiros da Costa Nova, de S. Jacinto e da
Torreira… Que me importa! Estonteado, encharcado de azul,
cheio de sol e de luz, esqueci o passado e esqueci o presente. A
vida é navegar na ria, comer da caldeirada de enguia e tainha,
que os homens cozinham à proa, aproveitando-lhes entre as
tripas a marsola para lhe dar mais gosto. É dormir no barco,
abicar aos areais e vogar sempre, sentindo a pancada das águas
que fogem em tinta cobalto de um lado, em tinta cinzento do
outro. É sair desta amplidão para a descoberta do charco, do
canal, da gota de água, dos sítios escondidos e ignorados. É
assistir à transformação das águas e navegar à vela ao pé das casas
e no interior das casas.
Distingo um fundo muito roxo — o recorte dos montes. Aqui
a ria, mais larga, aumenta ainda e divide-se, de um lado até Ovar,
do outro até Salreu. É além, é além… Casinhas num reprego da
encosta, onde apetece viver, perdidas no mundo e esquecidas do
mundo. Mesmo à beira de água e reflectida na água, a Murtosa,
aureolada de oiro: algumas casas brancas reluzindo, algumas
árvores muito verdes em contraste e um canalzinho de abrigo
Os Pescadores 55
4 horas da tarde
OS SÍTIOS IGNORADOS
5 de Julho
MAS o que tem para mim um grande encanto são os sítios
ignorados da ria, onde a água cismática encharca, embebida no
céu e reflectindo meia dúzia de ervas e dois barcos encalhados.
Água esquecida ou pedaço do céu translúcido?... Acolá um
borrão azul empoçado diante de uma trincheira verde. E este azul
entranha-se na terra baixa e empapada, infiltra-se no subsolo,
58 Raul Brandão
8 de Julho
1 de Agosto
5 horas da tarde
15 de Julho
escorrem…
O BARCO
OS PESCADORES
dispersos pelo Brasil e pelo mar, e ainda ganha para comer com a
canastra. A Joaquina das Coxas não sei dela… A sanjoaneira traz
a casa lavada, e melhor do que lavada, trá-la asseada. É o hábito
antigo, do navio. E esperta. Governa o homem e dirige o
negócio. Vende, apregoa e remenda. Não se deixa dominar pela
desgraça. Conserva as redes lavadas e encasca-as. Trabalham
tanto e mais que os pescadores. Conheci muitas que, ficando
com os filhos por criar, aguentaram a família numerosa,
vendendo peixe nas estradas.
Sento-me nos degraus da minha velha casa e sei a vida toda
desta gente. Ali defronte são os tanques, onde vinte, trinta
mulheres de saias arregaçadas lavam a roupa suja. Gritos, rixas,
alarido. Um momento de silêncio e ouve-se o bater compassado
da maré que vai, vem e lhes molha as pernas nuas. Pegada à
minha casa fica a do Moutinho — viela escura, trapos, peixe e
dez famílias numerosas. E do outro lado a fonte de granito, para
onde passam as raparigas com as mãos na cinta e o cântaro de
barro equilibrado à cabeça sobre a rodilha.
Sei tudo. A vida vem para a rua a cada passo. Gritos de
mulheres, descomposturas… E depois de se atirarem os podres à
cara umas das outras, acabam por se engalfinhar pelos cabelos,
enquanto o rapazio forma roda e as açula. Separam-nas. E
desgrenhadas, excitadas, é o momento em que dizem os últimos
palavrões… — Saibam todos… — Sejam muito boas
testemunhas… — Acodem as do tanque e as da fonte. A vida é
ali exposta. Mais gritos. Enrodilham-se atirando os braços ao ar.
Ninguém se entende já. Vai haver mortes com certeza — e cada
uma parte para seu lado, com os filhos agarrados às saias. Daí a
bocado começam a passar as amigas, para casa duma e doutra,
com a caneca de café debaixo do avental…
Outra vez reboliço — agora é na fonte.
Balbúrdia. Algumas são desbocadas, e aquela no auge da fúria
curva-se o bate palmadas em certo sítio, sobre as saias — quando
80 Raul Brandão
PEIXES
LUZ E COR
AVES
suando de aflição. Mas era tanta a ternura nos seus olhos, que se
estabelecia entre nós dois uma espécie de comunicação
magnética… Tenho perdido tudo. Deixei passar por mim as
melhores coisas da vida quase sem dar por elas. Também perdi,
com indiferença, a cópia dessas extraordinárias cartas de amor
dum poveiro a uma poveira. Ele trazia na cesta, com o pão e o
conduto, o papel bordado para a carta e sentava-se na minha
frente, com a cabeça vermelha de ruivo apertada entre as mãos
como cepos. E olhava-me numa imensa aflição: — Ponha lá,
senhor Arriúlo — à espera que eu encontrasse as palavras mágicas
com que havia de enternecer o coração da Josefa Perneta.
— Queres que diga mais alguma coisa, José?
Ele, fascinado, acenava com a cabeça que sim.
— Mais alguma coisa... Ponha lá, senhor Arriúlo.
Isto estabeleceu entre nós, que pouco tínhamos que
comunicar, porque o José só sabia a meia dúzia de palavras
necessárias à sua profissão e à sua vida muito simples, uma
amizade que só acabou quando o poveiro partiu para
Mossâmedes, já casado. Bateram um dia à porta da viela: era ele
que vinha despedir-se — e que tomava todo o espaço das
ombreiras, com um saco do conchas, um bicheiro novo e duas
pescadas enormes. As pescadas comi-as, deitei fora as conchas, e
o bicheiro conservo-o a um canto do meu quarto, a espera de ver
que destino Deus lhe reserva…
Agosto — 1919
25 de Agosto
7 horas
A CHATA E A NETA
— Do norte! do norte!
Lá em cima, um a um, largam a corda e tornam abaixo a
correr. O velho resfolga e a criança de colo desata a chorar.
— Vá lá a ver, gente! Vá lá a ver, por Deus, nomes!
Ao longe puxam-se outras netas. São seis ou sete que
trabalham por dia. Mais para o fundo os montes todos roxos
saem do mar esverdeado. Ao norte o paredão parece maior e mais
escuro… Gritos. Palmas. Viu-se o saco boiar, sinal de que vem
cheio.
— Arriba! arriba! força!
Dois, três homens entram no mar, deitam-lhe as mãos num
grande arranco e a onda inunda-os dos pés à cabeça.
— Arriba, gente!
— Ah rapazes!
E aí vem o saco pela areia acima por entre gritos e o derradeiro
esforço das mulheres, dos homens, do pequeno que mal chega à
corda, já entregue às mãos rudes que o hão-de afeiçoar, da
rapariga com o filho seguro pelo chalé, e do velho desdentado,
que já não pode mais e que enterra os pés na areia — três figuras
para um grupo de trabalho, todas três dobradas a arrastar a
mesma cruz da vida.
É noite, mas toda a noite se pesca. O peixe, trinta chalavaras,
vai ser aleiloado e vendido… Não tiro os olhos do quadro e vejo
atrás destas figuras outras figuras e outras gerações. Foi sempre
assim. Os mortos entregaram aos vivos este fardo para carregar.
Era assim, com a nobre arte da xávega, que os nossos pais
tiravam o ventre de misérias.
— Venha arriba, com o Corpo de Deus, homes!
A MULHER
O SÍTIO
Agosto — 1922
SARDINHA! SARDINHA!
Agosto — 1922
a cartola na cabeça:
— Compadre, vamos nós à procissão?
— Ventania rija, vagalhão de meter medo na barra… — Por
cima da água ou por baixo da água, vamos sempre. — E iam.
Marítimos extraordinários, não usaram nunca agulha de marear:
sabiam onde estavam pelo cheiro.
Outro barco, o do navego, comprava géneros em Almeria e
Gibraltar, palma na Barberia (Marrocos), ou ia a S. Martinho
buscar o pêro que tem fama, levando do Algarve o figo, a
alfarroba e o peixe seco para vender. Mas o grande negócio de
Olhão foi sempre o contrabando. Não é contrabandista quem
quer: é preciso inteligência e astúcia, arrojo, o alerta dum chefe
selvagem e a imaginação dum poeta. Conheço um
contrabandista famoso, o senhor Mendinho, que ainda hoje faz
na sua goleta a carreira de Gibraltar. Tem setenta e dois anos, um
grande engenho, e promete levar a Alcácer Quibir todos os
poetas portugueses. Agora que criou os filhos, repousa de uma
vida cheia de peripécias, num sítio romântico entre figueiras, e
começa a escrever as suas memórias. É um mestre reputado.
Duma vez um grande temporal assolou a costa algarvia:
naufrágios, gritos, mulheres cercando o telégrafo dia e noite, toda
a povoação em alvoroço. — Que é de fulano? — Não se sabe!
não se sabe!... — Pouco e pouco foram aparecendo derreados,
hoje um, amanhã outro — só do senhor Mendinho não havia
notícias. — Isso morreu… — Passaram-se dois dias, mais três
dias negros. — Morreu com certeza. — Mas uma tarde correu o
grito em Olhão: — O barco do Mendinho está na barra!... —
Era a goleta efectivamente — mas em que estado! Os mastros
partidos, uma amurada deitada abaixo e as velas em farrapos.
Desceu tudo à praia. Meteram-se em barcos e trouxeram-no para
a terra abraçado, festejado, aclamado. Quem em semelhante
ocasião, depois de tantos perigos corridos, se lembraria de visitar
a goleta? Até a guarda fiscal chorava. — O Mendinho! o
Os Pescadores 149
*
Sigo por um novelo de ruas pelos dois bairros típicos, o da
Barreta e o da banda do Levante. A boca negra dum arco e outra
rua tortuosa onde a luz não penetra. Algumas têm nomes que as
pintam: a rua dos Abraços, a rua dos Sete Cotovelos. Vive-se ao
ar livre, come-se ao ar livre, dorme-se ao ar livre. A rua, fedorenta
e animada, pertence aos pobres. Abancam no meio das vielas.
Mulheres curvam-se sobre as sertãs frigindo peixe. O azeite
152 Raul Brandão
por dia e uma percentagem sobre a pesca, que no cerco vai até
quinze por cento. Além disto, distribuem-se duas chalavaras para
cada três homens, peixe do rancho, que lhes dá para comer e para
vender. E sobretudo há a furtança, que é uma instituição.
Ninguém o ignora. Eles próprios o dizem. Sabem-no os patrões:
o peixe é tanto e dá tanto dinheiro que fecham os olhos. A
tarrafia, isto é, o logro, é corrente e de todos os dias. A furtança é
geral. Roubam os homens, que escondem o peixe nos cestos, nos
cantos do barco, onde podem. Roubam as mulheres e os rapazes.
E até gente de certa categoria o furtava nas ruas. Era talvez por
isso que o Tarraço, homem do campo avarento, dizia: — Esta
gente do mar nasce roubando e morre pedindo.
Agosto — 1922.
vivíssima.
Atravesso Portimão de olhos postos no castelo de Arade, onde
o velho poeta sonha com O Fausto, e talvez como ele em
recomeçar a vida. A luz é cada vez mais viva. Um homem com
dois cabazes apregoa na rua: é um tipo seco e tisnado de mouro,
de camisola azul e perna nua. Passa uma carrinha guizalhando, e
logo atrás outro burro com bilhas de água fresca. É
extraordinário o que este pobre jerico inocente e peludo, de
olhos límpidos, trabalha no Algarve. É ele que leva a fruta ao
mercado e tira a água das noras. Lavra as terras calcinadas,
transporta pelas estradas solheirentas, adornado com cordões
vermelhos, quase uma família a dorso. Vai às Caldas buscar as
grandes bilhas vermelhas que transpiram, mata a sede da gente e
a sede da terra — e não sei se embala os berços. Produz muito e
contenta-se com pouco.
Detenho-me um instante na cenográfica praia da Rocha,
extasiado nos dois grandes penedos destacados e num fio de areia
doirada ao pé da água azul — tudo pintado por Manini agora
mesmo. A um lado a ponta do Altar entra decidida pelas águas;
do outro, o esfumado Lagos mal se entrevê muito ao longe…
Duas impressões se fixam no meu espírito para sempre: a noite
extraordinária, a luz maravilhosa. A luz sustenta. Basta esta luz
para se ser feliz. É ela que encanta o Algarve. É ela que produz os
figos orjais, os coitos, os bracejotes, todos eles amarelos, a estalar
de sumo, e destilando um líquido perfumado, e o figo preto de
enxaire que se mete na boca e sabe a mel e a luz perfeita. É ela a
criadora destas agonias doiradas que vão esmorecendo e passando
por todos os tons até morrer a muito custo. E as noites mágicas e
caladas, as noites sem lua, muito mais claras que as noites do
norte, em que se distingue a brancura voluptuosa das casas e se
vêem as estrelas enormes reluzindo através das amendoeiras.