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Junho | 2019

ISSN 1984-7556

FÓRUM de LITERATURA BRASILEIRA


CONTEMPORÂNEA

21

UFRJ
FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS VERNÁCULAS
SETOR DE LITERATURA BRASILEIRA
MARIO CESAR NEWMAN DE QUEIROZ
ARTIGOS

MAURICIO CHAMARELLI GUTIERREZ


MORGANA CHAGAS FERREIRA
THAIS KUPERMAN LANCMAN

CLARICE GOULART PEDROSA


ENSAIOS

MARINA BEATRICE FERREIRA FARIAS & IZABELA GUIMARÃES GUERRA LEAL


MAURA VOLTARELLI ROQUE
TAINARA QUINTANA DA CUNHA

ANDRÉIA DELMASCHIO
ENTREVISTAS

por Vitor Cei

TCHELLO D’BARROS
por Renata Barcellos

ALEXANDRE BRAGA
RESENHAS

MARIA INÊS PINHEIRO CARDOSO


MARINA RUIVO
PAULO FERRAZ
WLADIMIR SALDANHA
Junho | 2019

ISSN 1984-7556

FÓRUM de LITERATURA BRASILEIRA


CONTEMPORÂNEA

21

FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS VERNÁCULAS
SETOR DE LITERATURA BRASILEIRA
Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea
www.forumdeliteratura.com
Publicação do Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da UFRJ

Organizadora deste número Conselho Consultivo


Anélia Pietrani, UFRJ, Brasil Alckmar Luiz dos Santos, UFSC, Brasil
Editor-chefe Antonio Carlos Secchin, UFRJ, Brasil
Dau Bastos, UFRJ, Brasil Célia Pedrosa, UFF, Brasil
Evando Nascimento, UFJF, Brasil
Editoras-adjuntas Friedrich Frosch, Universidade de Viena,
Anélia Pietrani, UFRJ, Brasil Áustria
Maria Lucia G. de Faria, UFRJ, Brasil
Gustavo Bernardo, UERJ, Brasil
Editores-seniores Hans Ulrich Gumbrecht, Universidade de
Alcmeno Bastos, UFRJ, Brasil Stanford, EUA
Rosa Gens, UFRJ, Brasil Italo Moriconi, UERJ, Brasil
Editores-assistentes Jacqueline Penjon, Universidade Sorbonne,
Ricardo Vieira Lima, UFRJ, Brasil França
Rodrigo Lopes da Fonte, UFRJ, Brasil Joachim Michael, Universidade de
Thaís Velloso, UFRJ, Brasil Hamburgo, Alemanha
Equipe de Revisão Karl Erik Schøllhammer, PUC-Rio, Brasil
Bruno Santos Pereira, UFRJ, Brasil Leonardo Tonus, Universidade Sorbonne,
Felipe Ribeiro, UFRJ, Brasil França
Gustavo Rocha, UFRJ, Brasil Lucia Helena, UFF, Brasil
Lyza Brasil Herranz, UFRJ, Brasil Luiz Costa Lima, PUC-Rio, Brasil
Marcelo Maldonado, UFRJ, Brasil Pedro Meira Monteiro, Universidade de
Pedro Vieira de Castro, UFRJ, Brasil Princeton, EUA
Sthefane Pinheiro, UFRJ, Brasil Regina Dalcastagnè, UnB, Brasil
Equipe Técnica Silviano Santiago, PUC-Rio, Brasil
Designer e webmaster
Oyama Sanz, UFRJ, Brasil Faculdade de Letras da UFRJ
Diagramação Avenida Horácio Macedo, 2.151, Sala F-319
Wal Pinto, UFRJ, Brasil CEP: 21941-917, Rio de Janeiro, RJ
Consultoria 55 21 3938-9750
Elir Ferrari, UERJ, Brasil fdeliteratura@gmail.com

CATALOGAÇÃO NA FONTE
Biblioteca da Faculdade de Letras da UFRJ
F745 Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea ‒ Rio de Janeiro : UFRJ,
Faculdade de Letras, 2009-
Semestral
ISSN 1984-7556
1. Literatura brasileira ‒ Séc. XX-XXI ‒ História e crítica. 2. Escritores brasileiros ‒
Séc. XX-XXI ‒ Crítica e interpretação. 3. Escritores brasileiros ‒ Séc. XX-XXI ‒
Entrevistas. 4. Poetas brasileiros ‒ Séc. XX-XXI ‒ Crítica e interpretação. 5. Poetas
brasileiros ‒ Séc. XX-XXI ‒ Entrevistas. I. Universidade Federal do Rio de Janeiro,
­Faculdade de Letras
ICDDB 869.09005
SUMÁRIO

Apresentação
7

Artigos
De onde vem tanta vagina? Xibunguismo e
perversão na poesia vaginal de Glauco Mattoso
Mario Cesar Newman de Queiroz
15
Roberto Correa dos Santos: a traça, o traçado da obra
Mauricio Chamarelli Gutierrez
31
Contornos de A palavra nunca:
o gênero conto em Eric Nepomuceno
Morgana Chagas Ferreira
49
Mira Schendel: personagem e propositora de
reflexões na ficção de Rodrigo Naves
Thais Kuperman Lancman
69

Ensaios

O perseguidor na construção do sujeito marginalizado:


leitura de tensões sociais a partir dos contos “O perseguidor”,
de Julio Cortázar, e “Espiral”, de Geovani Martins
Clarice Goulart Pedrosa
81
O canto de Eliane Potiguara em Metade cara, metade máscara
Marina Beatrice Ferreira Farias e
Izabela Guimarães Guerra Leal
107
Ninfa volátil: as meninas escorregadias e
inacabadas de Donizete Galvão
Maura Voltarelli Roque
131
Memória e imaginação em O risco do bordado, de Autran Dourado
Tainara Quintana da Cunha
157
Entrevistas
Andréia Delmaschio
por Vitor Cei
187
Tchello d’Barros
por Renata Barcellos
207

Resenhas
Ruínas da diáspora
Outro lugar, de Luís S. Krausz
Alexandre Braga
225
O poeta e seus deltas: onde nasce a poesia?
O retorno de Bennu, de Majela Colares
Maria Inês Pinheiro Cardoso
229
Contos para Caio F.
O que resta das coisas, organizado por Ricardo Barberena
Marina Ruivo
241
Arquitetura para escombros
Migalha, de André Luiz Pinto
Paulo Ferraz
259
Lirismo amoroso hoje
O amor curvo, de Daniel Gil
Wladimir Saldanha
267
APRESENTAÇÃO

Anélia Pietrani*

Nossa revista inicia sua segunda década de existência com


a diversidade e a vitalidade de sempre. Sua força advém do fato de
que a literatura resiste nas salas de aula, nas editoras e livrarias, nas
bancas de jornal e na internet, nas teses e dissertações, nos livros
e e-books, nos periódicos e nos suplementos literários impressos e
eletrônicos, nas ruas e nos muros da cidade, nos saraus e nas oficinas,
na militância dos coletivos.
A literatura resiste em poesia, em prosa, em política – como a
leitora e o leitor poderão constatar nos textos desta edição, avaliados
por pareceristas ad hoc e preparados com a seriedade que os estudos
literários merecem.

Artigos
No primeiro artigo, Mario Cesar Newman de Queiroz
discute Poesia vaginal (2015), de Glauco Mattoso, famoso pelas
tiradas transgressivas e pornográficas, autointitulado podólatra e
praticante do que chama de estética xibunguista. Segundo a leitura
empreendida por Newman, esse livro de cem sonetos aponta para
questões relevantes, como a formulação de Lacan de que “a relação
sexual não existe” e acerca das angústias da incompletude. Assim,
o termo “vaginal” assume sentido mais amplo que o vocábulo
“vagina”, referindo-se, em última instância, a todas as faltas da
sexualidade humana.

*
Professora associada de Literatura Brasileira na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Fórum Lit. Bras. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, nº 21, pp. 7-12, jan.-jun. 2019.
8 Apresentação

Mauricio Chamarelli Gutierrez observa que a obra de Roberto


Correa dos Santos desafia os limites de gênero e convoca nomes de
autores e obras alheias (Clarice Lispector, Luiza Neto Jorge, Oswald
de Andrade, Artaud) para os títulos e o corpo da escrita. Esse gesto
de inscrição rasurada do outro é lido pelo articulista em ressonância
com la trace derridiana: tanto como rastro originário que desconstrói
a divisão presença/representação da herança e a reafirmação da crí-
tica, quanto como tradução de la trace que lhe preservasse o gênero
feminino do francês. A traça – inseto desconstrucionista frequente na
obra do autor – é compreendida em sua transversalidade antropofá-
gica, deglutindo e perfazendo, por entre as obras alheias, seu traçado.
Enquanto a leitura da obra de Roberto Correa dos Santos
conduz à reflexão sobre a rasura da divisão tradicional dos gêneros
e dos limites entre texto literário e crítico-teórico, a que vem a se-
guir traz à baila o gênero conto exatamente para compreender os
procedimentos que fazem o conto ser um conto. Com esse objetivo
em mente, Morgana Chagas Ferreira lê, em detalhes, “Telefunken”,
“O último” e “Um senhor elegante”, de Eric Nepomuceno, publicados
no livro A palavra nunca (1985), em diálogo com os escritos de Julio
Cortázar e os estudos de Wolfgang Iser, por sua proposição de uma
visão libertária a respeito da ficção.
O artigo de Thais Kuperman Lancman transita pela ficção
de Rodrigo Naves em O filantropo (1998), que surge permeado pela
busca de uma filosofia de vida afeita ao universo plástico, crivada de
elementos biográficos, especialmente a partir da incidência do foco
do autor sobre a produção de Mira Schendel, artista suíça radicada
no Brasil. A articulista ressalta a originalidade desse fazer literário
e a profícua interação entre as dimensões formal e temática de uma
escrita que se propõe a conciliar teoria e prática, de modo que a
reflexão moral de Naves conflui esteticamente com uma ética que
toma a própria Schendel como propositora dessa postura.

Fórum Lit. Bras. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, nº 21, pp. 7-12, jan.-jun. 2019.
Apresentação 9

Ensaios
Julio Cortázar torna a aparecer nesta edição, agora como
autor do conto “O perseguidor”, publicado em 1959. Clarice Gou-
lart Pedrosa destaca que, desde o início do século XX, a produção
literária latino-americana vem se abrindo aos espaços periféricos
e os sujeitos que os habitam, construindo uma ficção povoada por
diferentes representações dos subalternos e marginalizados. A par-
tir daí, analisa a figura do perseguidor criada pelo autor argentino
para além do sentido de personagem que problematiza o papel do
artista e, ao estabelecer correlação com as formas de ver e ser visto
do sujeito marginalizado, traça paralelo com o protagonista de “Es-
piral”, conto de O sol na cabeça (2018), livro de estreia do brasileiro
Geovani Martins.
A reflexão sobre a figura do subalterno – como criador e
criatura – enseja outro ensaio, no qual se pergunta que lugar a
literatura indígena ocupa na atualidade. Marina Beatrice Ferreira
Farias e Izabela Guimarães Guerra Leal investigam as contribuições
literárias e culturais da publicação de Metade cara, metade máscara
(2004), de Eliane Potiguara, para a literatura contemporânea. Sob a
luz do conceito de entre-lugar, de Silviano Santiago, as pesquisadoras
traçam um panorama do que constitui a poesia indígena brasileira e
ressaltam a necessidade de se olhar para a trajetória construída por
Potiguara e sua poesia.
“Ruminadouro”, de Ruminações (1999), e “Os olhos de
Charlotte Rampling”, de Pelo corpo (2002), dois poemas de Donizete
Galvão, são o objeto de estudo de Maura Voltarelli Roque em ensaio
que pretende pensar as figurações da Ninfa como “forma feminina em
movimento”, tal como vista por Aby Warburg e Georges Didi-Huber-
man. Autor de uma poesia atravessada pela tensão entre delicadeza e
profundidade, corpo e cosmo, morte e vida, construção e inspiração,
Galvão entrevê essas imagens como poética do desejo e, ao mesmo

Fórum Lit. Bras. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, nº 21, pp. 7-12, jan.-jun. 2019.
10 Apresentação

tempo, do resíduo – o que passa diante dos olhos como um fantasma,


um sintoma errante e convulsivo a inquietar os tradicionais modelos
de temporalidade. Essa conjunção de sentidos traz à luz vínculos
entre a contemporaneidade poética e a cultura literária fin-de-siècle.
A seção de ensaios finaliza com a leitura de O risco do bordado
(1970), de Autran Dourado. Após apresentar o autor e sua extensa
obra, tanto ficcional quanto ensaística, Tainara Quintana da Cunha
empreende sua interpretação do romance autraniano, destacando
a memória e a imaginação como tecelãs das lembranças do prota-
gonista João, na qualidade de escritor de si, a partir do referencial
teórico de Paul Ricœur acerca das duas categorias.

Entrevistas
A primeira entrevista desta edição foi feita por Vitor Cei
com a ensaísta e ficcionista Andréia Delmaschio, professora de lite-
ratura do Instituto Federal do Espírito Santo, cuja obra se compõe
de vários volumes de crítica, conto, crônica e prosa infanto-juvenil.
Nessa conversa, ocorrida em março de 2017, no âmbito do projeto
“Notícia da atual literatura brasileira: entrevistas”, coordenado pelo
entrevistador, Andréia reflete sobre seu processo criativo, discute o
problema do machismo, alerta para o sucateamento da educação,
comenta as dificuldades na formação de leitores e compartilha re-
flexões sobre o quadro político da atualidade.
O olhar crítico sobre a arte contemporânea, o acesso à edu-
cação e à leitura, as questões políticas envolvidas nesse processo e as
leis de incentivo à cultura ganham relevo na entrevista concedida a
Renata Barcellos pelo multiartista Tchello d’Barros. Sua obra transita
por várias linguagens das artes visuais (desenho, pintura, gravura,
fotografia, vídeo, instalação), constituindo-se ainda de uma produção
literária bastante diversificada, que inclui prosa (contos, crônicas,
artigos) e poesia (versos livres, sonetos, haicais, poesia visual, cor-

Fórum Lit. Bras. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, nº 21, pp. 7-12, jan.-jun. 2019.
Apresentação 11

déis). Não à toa, o entrevistado é visto como um dos maiores nomes


da Poesia Visual no Brasil e no mundo.

Resenhas
Em Outro lugar (2017), de Luís Sérgio Krausz, o caráter
dialógico da memória individual e coletiva comparece por meio de
flashes do processo de democratização do Brasil. Eis o ponto de
partida de Alexandre Braga em seu esquadrinhamento do romance
do autor paulista, em que tempo e lugar se definem por camadas que
se sobrepõem reciprocamente e conduzem o narrador a uma viagem
catabática, paradoxalmente, de ruínas e pertencimentos.
Leitora aplicada da poesia de Majela Colares, Maria Inês
Pinheiro Cardoso resenha O retorno de Bennu (2018), não sem antes
apresentar, em detalhes, o poeta e sua obra, que contam com uma
vasta fortuna crítica. Nesse novo livro, os poemas transitam entre o
lirismo e algumas incursões pelo humor; entre a artesania poética e
a simplicidade da linguagem; entre a suave melancolia de um sorriso
breve e uma viagem profunda ao infinito, no tempo e no espaço.
Marina Ruivo empreende um longo passeio pelos 28 contos
que compõem o livro O que resta das coisas (2018), organizado por
Ricardo Barberena em homenagem aos setenta anos de nascimento
de Caio Fernando Abreu. Ao realçar passagens de boa parte das nar-
rativas, a resenhista chama a atenção para a riqueza da coletânea,
constituída de textos de ficcionistas em atividade que tinham o autor
gaúcho em alta conta e o abordam de uma maneira sempre singular.
Paulo Ferraz realiza uma leitura atenta e minuciosa dos poe­
mas de Migalha (2019), de André Luiz Pinto. O entulho da marca
gráfica de dois anos inesquecíveis lampejará nos olhos do leitor do
livro e da resenha: 2013 e 2016 marcam traumaticamente a história
de um Brasil que parecia haver recebido alguma migalha de melhoria
coletiva. Em resistência tonificada pelo talento, André Luiz Pinto

Fórum Lit. Bras. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, nº 21, pp. 7-12, jan.-jun. 2019.
12 Apresentação

conseguiu a proeza de fazer poesia de qualidade a partir da tristeza


implantada pelo golpe.
Finalmente, o amor. A última resenha desta edição, assinada
por Wladimir Saldanha, trata de O amor curvo (2018), de Daniel Gil,
para nos lembrar a urgência desse sentimento, infelizmente fora de
moda para muitos. Pode ser que esteja na curva do caminho, mo-
vendo o sol e as outras estrelas; pode ser que o poeta nos diga que
devemos nos curvar a ele com todas as letras do abecedário. Mas é
sempre ele, o amor.

Convite
A pluralidade de temas, gêneros e formas críticas convida a
leitora e o leitor à palavra-chave dos escritos aqui reunidos: demo-
cracia. Nossa revista tem acesso gratuito e circulação ilimitada. Os
revisores, preparados criteriosamente, se afinam cada vez mais no
cuidado de cada volume. Os diagramadores se empenham na orga-
nização, alegria e beleza do site. Professoras e professores, alunas
e alunos de vários níveis de ensino e pesquisa – tanto de graduação
quanto de pós-graduação –, vinculados a universidades de diferentes
cantos do Brasil e do exterior, compõem o conjunto de articulistas,
ensaístas, resenhistas e entrevistadores das edições lançadas até
o momento. O corpo editorial está sempre aberto ao diálogo, de
modo que os próximos passos se beneficiem da aragem do caminho
já percorrido.
Sabemos quão fundamental é o espírito democrático para a
criação, a pesquisa e o ensino. Consoante essa necessidade, a litera-
tura brasileira contemporânea pode ter certeza de que tem aqui um
veículo afeito às suas múltiplas e mutantes faces.

Fórum Lit. Bras. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, nº 21, pp. 7-12, jan.-jun. 2019.
ARTIGOS
ESCRITOS SOBRE ASPECTOS
DA LITERATURA
De onde vem tanta vagina? Xibunguismo e
perversão na poesia vaginal de Glauco Mattoso

Mario Cesar Newman de Queiroz*

Este ensaio, mais do que artigo, não fará o percurso elegante-


mente acadêmico de apresentar o poeta, contextualizá-lo antecipada
e docemente para o leitor. Para isso, nas “Referências”, remeteremos
diretamente o leitor a sites que tratam do autor. Trataremos de uma
questão que nos surge com a publicação do livro Poesia vaginal, por
Glauco Mattoso, autoproclamado podólatra. Assim, este artigo busca
um golpe a fegatello. Apresentada a questão, vem a busca de uma
resposta. Os dados contextuais sobre o autor serão levantados na
medida da necessidade na apresentação e tratamento da questão. Ao
assim proceder, busca-se abreviar o artigo e poupar o leitor do que
muitos outros já possam ter feito melhor com mais espaço.
Conforme fica bem destacado na excelente entrevista que
Caio Cagliardi e Pedro Marques realizaram com o poeta, no site aca-
demia.edu, o próprio poeta diz que sua postura temática é bastante
anticonvencional: xibunguista, como ele diz. Xibungo, no Nordeste,
é o homossexual masculino “passivo”. A palavra sempre aponta para
um sentido pejorativo, o xibungo é um porcaria, um desqualificá-
vel. Nessa estética assumidamente xibunguista, esse pejorativo se
mantém e se revira como numa fita de Moebius. Assim diz o poeta
na entrevista constante nas referências:

*
Professor associado no Departamento de Letras e Comunicação da Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).

Fórum Lit. Bras. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, nº 21, pp. 15-30, jan.-jun. 2019.
16 Artigos

Se considerarmos a estratégia xibunguista como um


mecanismo de transgressão ética e estética, bem como o
fetichismo andropodólatra nos sonetos mais explícitos, a
resposta é sim. Alguns acadêmicos nos States e na Europa
estão analisando minha obra à luz das teorias mais recentes,
como a da sensibilidade “queer”, e concluem que já nem se
trata, no meu caso, duma reafirmação da identidade gay
como questionamento da heterossexualidade, mas sim
duma proposta alternativa (portanto mais que pós-mo-
derna) que desvia o foco das territorialidades erógenas
(falocentrismo, penetracionismo, analidade etc.) e aponta
para uma diversidade mais “neutra” ou degenérica – afinal,
o pé em si não tem sexo...

Portanto, qual o lugar que a vagina, objeto do desejo por ex-


celência, pode ter como tema nessa estética xibunguista? Conforme o
próprio poeta afirma, sua estética é mais deslocadora do desejo para
fora do registro sexual genital do que vinculável a um grupamento
sexual gay, daí o canto à podologia, “porque pés não têm sexo”. Então,
como vieram esses 100 “sonetos sacanas” exatamente a essa Dona
do registro genital, à vagina?

Poesia vaginal, um pornologos?


Poesia vaginal é publicado em 2015, com o subtítulo “cem
sonnetos sacanas”. Nem o título, nem o subtítulo enganam. Todos
os poemas têm, diretamente ou de algum modo vagina no seu corpo,
todos são sonetos, são cem e todos são sacanas.
A partir da vagina como base, primeiro ponto temático a
observar será a da transgressão. A vagina aqui não se insere num

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De onde vem tanta vagina? Xibunguismo e perversão na poesia vaginal de Glauco Mattoso 17

universo lírico de enaltecimento ao feminino, como seria esperável


num universo erótico da lírica luso-brasileira. Ela não aparece reves-
tida de elevada espiritualidade. Discutível, no entanto, a nosso ver é
se são poemas pornográficos, pois não se fazem na obscenidade do
desnecessário apelativo. Esses poemas se enquadram naquela cate-
goria que Gilles Deleuze situou as obras de Sade e Sacher-Masoch,
pornologia (Deleuze: 1973, 17), mas por outros modos?
Deleuze retoma Sade, na verdade, ao distinguir o pornolo-
gista do pornográfico. Sade opõe o sangue frio do pornologista ao
entusiasmo do pornógrafo. Ao acompanhar a leitura de Deleuze,
pode-se dizer que o pornográfico, a descrição pornográfica em Sade
se faz necessária pois tem na descrição um seu modo. Diversamen-
te, em Masoch a descrição pornográfica é dispensável, pois “não
as comporta essencialmente” (Deleuze: 1973, 25). Mas, tanto em
Sade como em Masoch, o pornográfico não se basta em si, um logos
atravessa essas descrições, essas cenas detalhadas. Esse logos faz
da matéria dos corpos uma nova causa dos corpos, por isso, antes
da psicanálise, não se bastam no prazer e disjungem este do gozo.
Capturar algo desse logos glaucânico é o que se busca aqui: que é
esse discurso vaginal?

Vagina e falo, falo da vagina


Os poemas de Poesia vaginal, longe de apontarem para um
canto lírico ao amor heterossexual ou tão somente às práticas sexuais
genitais, estão mais afinados à formulação lacaniana de que “não há
relação sexual”. Há sexualidade, não sexo, porque não há ato sexual.
Todo ato é significante e, no caso do ato sexual, o que se tem é a falta
do significante. “A inexistência do ato sexual é o que Lacan define
como o sentido lógico (entenda-se como sendo o sentido o cume

Fórum Lit. Bras. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, nº 21, pp. 15-30, jan.-jun. 2019.
18 Artigos

do sem-sentido, do nonsense) da castração” (Rabinovich: 1996, 77;


tradução nossa).
Essa formulação lacaniana retoma o nascimento da psica-
nálise, do discurso das histéricas a que ninguém dava ouvido. Elas
diziam que nenhum homem as satisfazia. A histérica não sabe viver,
pois busca “gozar” um gozo que as satisfaça e culpa o outro por isso
não se dar. Freud deu atenção a essa fala, viu a verdade que está ali
repetidamente dita: que a relação sexual entre homem e mulher não
combina, nunca combinou e nunca combinará. Porque nascemos
bicho, mas somos humanos por essa incompletude fundadora que
nos faz ser um bicho incompleto, falante-ser da falta. “Coitada da
Dolô! Quem dera fosse / dotada duma mansa passarinha! / Mas não!
É uma nymphomana precoce!” (Mattoso: 2015, 31).
Por mais que tenhamos atividade sexual, não há propriamente
relação, pois não há complementaridade entre os sexos humanos. Nun-
ca amamos completamente o que desejamos e entre amor e desejo só
conseguiremos possíveis acertos. “Boceta existe só para aguçar / a fome
dos caralhos em jejum. / Queremos bedelhar, fuçar, buçar!” (Mattoso:
2015, 29). Para dar conta disso, Lacan insiste na separação de três ter-
mos: necessidade, demanda e desejo. A necessidade é suprível com direta
pureza. Quem tem fome come; quem tem sono dorme; quem tem sede
bebe água. Mas na cultura ocorre uma formulação da necessidade em
demanda. Nunca isso se dá de forma pura, uma vez que a carne que mata
a fome será cozida, preparada, temperada, comida com garfo e faca. Essa
formulação da necessidade denomina-se demanda e ela introduz a ordem
simbólica, simultaneamente transformando a necessidade em algo opaco,
impreciso. Com a sofisticação da cultura, cada vez mais necessidade e
demanda se distanciam. Nessa brecha corre o desejo. O desejo se faz ali
onde a demanda produz sobre a necessidade.

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De onde vem tanta vagina? Xibunguismo e perversão na poesia vaginal de Glauco Mattoso 19

Dessa produção uma reversão se dá, não importa mais tanto


o objeto dado, mas quem o dá. Dirá assim Gerard Miller: “No hori-
zonte de toda demanda, há o amor, o ser daquele que dá, e que não
pode cercar senão como alguma coisa diferente de tudo que é dado,
senão como uma falta” (1989, 61). Assim, no poema “Sonneto sobre
uma paixão cega [2933]”.

Só louco pode amar desta maneira,


querendo bem e, ao mesmo tempo, sendo
escravo, mergulhado neste horrendo
inferno tenebroso da cegueira!

Paixão tão masochista, é certo, beira


a própria insanidade! Estou vivendo
aos pés duma mulher! Não me defendo
dum golpe, com o salto ou a biqueira...

Até que uma attitude tem, materna,


minha dominadora, raramente,
mas, quasi sempre, apenas me governa...

Pisando-me no rosto, está contente.


Meu corpo é mero appoio à sua perna.
Eu sinto amor: prazer é o que ella sente.
(Mattoso: 2015, 111)

O desejo desloca para o singular, para o único, um objeto que


passa a não ter comparação com nada mais. Algo que não se pode
trocar, nem comprar. Esse objeto diferenciado de todo o restante do

Fórum Lit. Bras. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, nº 21, pp. 15-30, jan.-jun. 2019.
20 Artigos

mundo é denominado por Lacan de “pequeno a”, surge dessa certeza


de que algo nos ameaça com sua falta. Como um falo a ser perdido
por uma castração sempre iminente.
O menino que descobre que nem todos têm pênis e se dá
conta de que quem não tem pênis é castrada: as mulheres são
castradas, nelas falta. É com essa dificuldade de lidar com a pos-
sibilidade de castração que se funda o complexo de castração. O
falo se faz como significante de toda falta, ele nunca assegurará
nenhuma completude. O falo não é o pênis, não é um órgão, é
“significante do desejo”, um substitutivo que está por toda falta.
“O falo permanecendo o emblema de toda perda, o princípio da
disjunção que distribui no mundo nossos objetos estimados”
(Miller: 1989, 62).
Homem e mulher são marcados pela castração. Para o
menino, a castração surge com a constatação de que existe aquela
castrada, o temor da castração é real e ele se marca igual aos demais
(“o homem é sempre o mesmo”, “todo homem é igual”), excetua-se
a mulher, esse outro que define o dentro de ser homem. No homem,
há um limite que faz uma borda, um desenho onde se circunscrever.
Não castrável porque já castrada a mulher não existe, ela precisa
sempre se comparar com outras e se reafirmar. Ela é outra com re-
lação ao homem e outra com relação às outras mulheres. “A” mulher
não existe, mas “as” mulheres não cessam de existir, sempre mais
uma, e mais uma, e mais uma... sem jamais fechar a borda que as
circunscrevam. Daí esses poemas vaginais serem de matéria tão
diversa, pois se a vagina é uma determinação biológica, o vaginal
de que tratam os poemas de Glauco Mattoso são algo mais. Matéria
de prazer, matéria de gozo?

Fórum Lit. Bras. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, nº 21, pp. 15-30, jan.-jun. 2019.
De onde vem tanta vagina? Xibunguismo e perversão na poesia vaginal de Glauco Mattoso 21

O gozo enfim?
Joel Birman lembra que, em Três ensaios sobre a teoria da se-
xualidade, Freud esboçou sua primeira teoria das pulsões e mergulhou
na questão da sexualidade. Com esses pensamentos e formulações,
Freud desconstruía as concepções de sexo e psiquê oriundas das ciên-
cias do século XIX e as movia do plano orgânico para o plano mental.
Ali ele se dava conta de que “a sexualidade seria essencialmente per-
verso-polimorfa”, formada por entrechoques de pulsões anárquicas
e parciais que buscavam o prazer e o gozo (Birman: 2014, 273-4).
“Eu, ouvindo o que ella conta, / no logar me vejo, prompta /
minha bocca à dura lida...” (Mattoso: 2015, 185). Se a relação sexual
não encaixa, o falante-ser é sempre solitário em seu ato sexual, em
seu prazer, pois nem mesmo o prazer se encaixa no gozo. Os poemas
de Poesia vaginal são cheios de perversões, transgressões, baixarias,
coprofilia, sodomia, podologia, estupros, violências, personagens
sádicos, masoquistas, cegos, aleijados, dominatrix, prostituição,
pedofilias realizadas ou tentadas, masoquista fantasiado de bebê,
masturbações, zoofilias... É preciso repetir, nos cem sonetos de Poesia
vaginal, nem todos eles tratam diretamente da vagina, mas de algo
mais amplo, que é o vaginal.
E como Glauco Mattoso constrói esse vaginal? Ele é
construído como espaço de transgressão, de perversão, que é o
resultado da distinção psíquica da sexualidade entre homem e
mulher, da “castração” e do ilimitado da castrada que com a cas-
tração advém. Com isso, Glauco Mattoso escava como nenhum
outro poeta brasileiro o espaço da transgressão, da perversão.
Rompendo com qualquer fronteira de discurso politicamente
correto, o discurso pornológico de Glauco Mattoso atua em prol
de uma política de corpos muito mais livres: entre outras coisas,

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22 Artigos

ela busca também identificar no heteronormativo o espaço “na-


turalizado” da perversão.
Para Freud, há dois princípios de funcionamento psíquico.
Inicialmente, somente o prazer move o sujeito. O aparelho psíquico
é movido pela busca de prazer e pela evitação do desagradável. Essa
é uma ideia constante que percorre toda a obra de Freud (Laplanche
& Pontalis: 1992, 364-5). Mas onde está esse princípio quando o ma-
soquista xibunguista ou uma mulher busca a dor ou a humilhação?
Pergunte-se ao soneto “Fedido por fedido [3185]”, que finda assim
numa evocação à porcaria e a quem a encare:

Calhou de achar mulher que fosse escrava


A poncto de aceitar seja o que for
Na bocca... E ele inda manda o asseio à fava!

“Mas si ella achou que sujo é que eu lhe calho!


P’ra que lavar? Ahi que eu me emporcalho!”
(Mattoso: 2015, 121)

Depois, Freud identifica um segundo princípio, o princípio


de realidade, que será o responsável pela identificação no aparelho
psíquico do que é a realidade, por mais desagradável que ela seja.
Esse princípio suplanta o princípio do prazer e ensina o sujeito a
se adaptar para sobreviver. No entanto, o princípio do prazer está
lá, o princípio de realidade o supera, mas não o contradiz, o sujeito
sempre estará na busca do prazer. Diante das dificuldades percebidas
pelo princípio de realidade, a sexualidade se estrutura e entra em
latência. A sexualidade excluída do princípio de realidade continua
a buscar ser regida pelo princípio de prazer. Mas essa solução não é

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De onde vem tanta vagina? Xibunguismo e perversão na poesia vaginal de Glauco Mattoso 23

tranquila, pois ela mesma é abalada por aquela incompletude, por


aquela falta fundadora, pelo não-encaixe. O inconsciente não se
comanda pelo princípio de prazer que fica recalcado pelo princípio
de realidade. E sim pelo de sofrimento.
Dessa forma, a busca pelo prazer é ainda uma busca cons-
ciente, mas a busca inconsciente é pelo gozo e ele não está afastado
do desprazer, da dor. Daí a formulação da psicanálise: “você não sabe
onde você goza”. Solal Rabinovitch observa que “os pensamentos só
são conscientes porque utilizam palavras; são necessárias palavras
para saber o que se pensa” (2001, 78). O gozo não se insere no registro
do consciente. Daí Lacan afirmar que “o gozo é o momento que não
posso dizer” (apud Miller: 1989, 66). Pode-se dizer do prazer, do que
nos traz prazer, não do que nos faz gozar. O soneto “Um magote de
camarote [4027]” deixa entrever essa dificuldade entre o gozo e a
consciência, o inconsciente e a palavra:

Demora no banheiro. Ou caga, ou toca


Punheta. A mãe advisa: “A virgem tá
Te vendo, hem? E Jesus, hem? Olha lá!”
Pellado, elle se encolhe em sua toca.

Demora mais um pouco. A mãe provoca:


“Cuidado, hem? Satanaz tá vendo!” Dá
Nos nervos e elle quasi que diz “Va
Tomar no cu!” Mas cala-se, o boboca.

Depois elle matuta: “Porra, é todo


um bando me assistindo? Que platéa!
Eu quero ter sossego e só me fodo!”

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“Estavam, junctos, tendo a mesma idéa?


A virgem e Satan? É porra a rodo!
Quem sabe se é mamãe a mais athéa!”
(Mattoso: 2015, 159)

O gozo nada tem a ver com o prazer. E ele é sempre sinô-


nimo de possíveis complicações: nada o explica e seu imperativo se
opõe à felicidade, uma vez que em seu caminho há o sofrimento. Ele
se deslinda do apolíneo e se volta para o dionisíaco, de que falava
Nietzsche. É um perder-se. O gozo é interditado pelas leis da palavra,
pelo nome do pai, mas sempre algo dele escapa. Sempre um algo dele
aflora, passa pela estrutura significante, mas essa substância não será
sexual. Para Lacan, a libido sexual está vinculada à castração e à falta.
O que se busca no corpo do outro, portanto, é o restinho
de gozo que um objeto perdido nos propicie, falos que suplantem a
nossa falta, ali onde um pornologos vaginal atue.

Vaginal, o objeto a deambula


Poesia vaginal é um livro de evidenciar que a mulher é toda
falicizada, como dizia Lacan. É um canto à castração e suas perver-
sões. Um objeto “a” que deambula pelos corpos, pois não é apenas
de mulher que é feita a matéria vaginal desses poemas. No “Sonneto
sadomita [1105]”, não apenas há o deslizar do vaginal da vagina para
o ânus, como pelo trocadilho do título de Sade com sodomita. O 4º e
o 12° versos permitem uma leitura, que enfatizam uma voz poética
homossexual masculina:

O coito anal é o symbolo mais vivo


do sadomasochismo, pois, emquanto

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De onde vem tanta vagina? Xibunguismo e perversão na poesia vaginal de Glauco Mattoso 25

gargalha quem penetra, resta o pranto


àquelle que assumiu papel passivo.

Na mesma proporção em que me privo


do máximo prazer e me quebranto
em dores, sei que um pênis eu levanto
com meu gemido agônico e afflictivo

O macho que cavalga-me e me enraba


questão não faz siquer de vaselina:
eu mesmo o pau lhe unctei com minha baba!

Colloca-me de quatro, de menina


me chama emquanto fode e, assim que acaba
e esporra, ainda em minha boca urina!
(Mattoso: 2015, 39)

Se “Jogos frutais” dá título a um dos mais belos poemas de


João Cabral de Melo Neto, é de outra natureza o jogo frutal que se
faz nesse livro com o soneto “Propriamente desfructando [3958]”,
novamente um deslizar genital da genitália feminina para outro
lugar, dessa vez para fora do corpo humano:

Já deu filme nacional


Essa história, mas me fala
Um amigo que é normal
O costume de estupral-a!

À mulher ninguém “faz mal”:


Neste caso: o que se entalla

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É o caralho na fatal
Melancia... é só fural-a!

Si no cu leva a cenoura
Uma bicha, que lhe estoura
Todo o recto, por que não...?

Uma abobora ou moranga


Faz papel, quando balanga
Da mulher, tendo tesão!
(Mattoso: 2015, 151)

Vista assim, da leitura do vaginal o xibunguismo surge como


uma de suas faces possíveis, não menos perversa que a mais estrita
heterossexualidade.
Na contrafolha de rosto de Raymundo Curupyra, há uma in-
formação importante sobre a opção ortográfica do poeta. Diz em nota
que o livro não está conforme o acordo ortográfico Brasil-Portugal
vigente desde 1º de janeiro de 2009. E sim opta por uma ortografia
etimológica havida desde a época clássica até 1940. Mas, se isso pode
servir como explicação, há algo mais ali.
A ortografia em Glauco Mattoso é também uma marca trans-
gressiva da norma, da regulação da lei (pois os acordos ortográficos
no Brasil são matéria de lei), um prazer estético de buscar a forma
apreciável e destacada da escrita. O significante que não se basta,
nem morre no significado. Objeto vaginal. Mais interessante ainda
porque é uma transgressão de um cego para o deleite de quem vê,
desejo direcionado ao desejo do outro.

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De onde vem tanta vagina? Xibunguismo e perversão na poesia vaginal de Glauco Mattoso 27

Se pode se aproximar a perversão ao mal, e é assim que a


sociedade costuma encarar aquilo a que ela denomina de perverso,
como o mal, deve-se observar o que Freud aponta como o mal para
o Eu no interior da sociedade, em O mal-estar na civilização:

Com frequência o mal não é, em absoluto, uma coisa no-


civa ou perigosa para o Eu, mas, pelo contrário, algo que
ele deseja e lhe dá prazer. Aí se mostra, então, a influência
alheia; ela determina o que será tido por bom ou mau. [...]
Inicialmente o mal é aquilo devido ao qual alguém é amea-
çado com a perda do amor (2015, 70).

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Referências

BIRMAN, Joel. Mal-estar na atualidade. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 2014.
DELEUZE, Gilles. Sade, Masoch. Lisboa: Assírio e Alvim, 1973.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Tradução de Paulo César
de Souza. São Paulo: Penguin; Companhia das Letras, 2015.
LAPLANCHE, Jean & PONTALIS, Jean-Bertrand. Vocabulário da
psicanálise. Tradução de Pedro Tamen. São Paulo: Martins
Fontes, 1992.
MATTOSO, Glauco. Poesia vaginal. São Paulo: Hedra, 2015.
______. Raymundo Curupyra, o caypora. São Paulo: Tordesilhas, 2012.
MILLER, Gérard (org.). Lacan. Tradução de Luiz Forbes. Rio de Ja-
neiro: Zahar, 1989.
RABINOVICH, Diana S. Sexualidad y Significante. Buenos Aires:
Manantial, 1996.
RABINOVITCH, Solal. A foraclusão. Tradução de Lucy Magalhães.
Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
SALLUM, Jorge. “A grande sacanagem histórica de ainda escrever
sonetos”. In: MATTOSO, Glauco. Poesia vaginal. São Paulo:
Hedra, 2015.

Sites:
www.academia.edu/13638898/Entrevista com Glauco Mattoso,
acesso em 30/07/2018.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Glauco_Mattoso, acesso em
12/04/2019.
www.enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa4836/glauco-mattoso,
acesso em 12/04/2019.

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De onde vem tanta vagina? Xibunguismo e perversão na poesia vaginal de Glauco Mattoso 29

Resumo

Um poeta que se autointitula podólatra e praticante de uma es-


tética xibunguista, um poeta famoso por seus aspectos transgressivos,
pornográficos, lança um livro de cem sonetos sobre o ícone maior da se-
xualidade heterossexual e genital. Há uma contradição nesse novo livro
em relação à obra anterior do poeta? Uma traição de suas propostas de
cantor de sexualidades desviantes? Pelo sim, pelo não, como pensar esse
livro? Pornográfico? Este trabalho busca empreender uma pequena com-
preensão do livro Poesia vaginal, de Glauco Mattoso. O que uma leitura
psicanalítica pode dizer sobre esse conjunto de poemas? Poesia vaginal é
um livro de poemas que aponta para questões constitutivas da sexualida-
de humana, como a formulação de Lacan de que “a relação sexual não exis-
te” e as angústias dessa incompletude humana. Vê-se que o termo vaginal
trata de algo muito mais amplo que o termo vagina, em última instância,
de todas as faltas da sexualidade humana.
Palavras-chave: Poesia vaginal; poesia brasileira; Glauco Mattoso;
poesia e psicanálise.

Abstract

A poet who calls himself a podiatrist and a practitioner of a


xibunguista aesthetic, a poet famous for its transgressive, pornographic
aspects, launches a book of one hundred sonnets for the greatest icon of
heterosexual and genital sexuality. Is there a contradiction in this new
book in relation to the poet’s earlier work? A betrayal of his proposals
as a singer of deviant sexualities? But to be on the safe side, what to
think about this book? Is it pornographic? This work aims to undertake
a comprehension of the book Poesia vaginal, by Glauco Mattoso. What a
psychoanalytic reading can say about this set of poems? Poesia vaginal is a
book of poems that points to constitutive issues of human sexuality, such
as Lacan’s formulation that “sexual intercourse does not exist” and the
anguish of this human incompleteness. It is seen that the term vaginal

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deals with something much wider than the term vagina, and ultimately
all the faults of human sexuality.
Keywords: Vaginal poetry; Brazilian Poetry; Glauco Mattoso;
poetry and psychoanalysis.

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Roberto Correa dos Santos:
a traça, o traçado da obra

Mauricio Chamarelli Gutierrez*

“Os inacreditáveis entendem o viver


se habitando o buraco do morto”.
Roberto Correa dos Santos e André Monteiro

No dia 4 de maio de 2016, em um aula pública na Faculdade


de Letras da UFJF, o professor Luiz Fernando Medeiros propunha
uma tradução inventiva e/ou traidora para uma palavra que será meu
mote aqui. Na ocasião, dizia o professor, para que se preservasse o
gênero do substantivo, o conceito da trace derridiana deveria ser tra-
duzido não pelo masculino e mais correto rastro (nem, obviamente,
pelo falso cognato traço), mas pelo substantivo feminino traça. O
argumento da preservação do gênero é, me parece, estratégico, no
sentido de que abre uma possibilidade de leitura mais abrangente do
que promete. Primeiramente, promete-se uma correspondência de
gênero à qual se chega por uma curiosa proximidade sonora, habi-
tualmente sacrificada na tradução mais precisa por rastro. Por outro
lado, trace-traça não deixa de ressoar a inaudível (e intraduzível) troca
do ‘e’ pelo ‘a’ na famosa différance derridiana e não somente na troca
da marca do feminino em francês (‘e’) pela marca equivalente em
português (‘a’): aqui, a troca se faz, talvez, audível, de uma língua a
outra (talvez na medida em que a pronúncia das vogais pós-tônicas

* Pós-doutorando em Teoria Literária na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

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no português costuma se apagar: trace... traça... deixando a cargo


da pronúncia do ‘r’ a troca de línguas); mas mesmo essa escuta se
dá somente na medida em que se deseja silenciar aquilo que fala na
voz da tradução, a troca dos gêneros la trace – o rastro. Além disso,
a proximidade sonora esconde – dessa vez totalmente inaudível – a
diferença entre o ‘ç’ e o ‘c’, ambos, nas duas línguas, pronunciados
como fricativa alveolar surda [s]. A différance [s]/[s] escreve – ou
antes desenha – aqui o corpo mesmo do inseto, como se a ‘cedilha’,
a cobrinha que se estende para baixo do ‘c’ no ‘ç’, fosse o símile grá-
fico – quase um caligrama – do pequeno corpo que se dispõe para
fora do casulo, elíptico e achatado, da Phereoeca Uterella, corpo que
se retrai e se estende conferindo, assim, o movimento de minhoca
pelo qual, antes da fase adulta, a traça-das-paredes se locomove le-
vando consigo seu casulo – pequena casa onde se protege seu futuro
de pupa e de voo, como que uma diminuta arché dessa arquitraça;
origem contemporânea de seu caminho, agora ainda um túnel, uma
passagem mais do que uma fonte (na medida em que se abre para
os dois lados); por outro lado, origem de um evento por vir, a pupa,
e que é, ainda, desde sempre atravessada pelo rastro, o resto e as
cinzas de outras passagens: a traça-das-paredes tece seu casulo com
terra, poeira e dejetos de outros insetos.
Entre os restos da fala cujas provocações reconstituo aqui,
paira, no entanto, uma dúvida. A de que a traça visada por Luiz
Fernando Medeiros não fosse talvez a acima descrita, a Phereoeca
uterella, chamada traça-das-paredes em Portugal e, ao menos no
dialeto habitual brasileiro, referida simplesmente como traça (da
família Tineidae, ordem dos lepidópteros, ou seja, na verdade um
tipo de mariposa, um papillon que em francês também é, me parece,
referida como mite); mas a Lepisma saccharina, a traça-dos-livros

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Roberto Correa dos Santos: a traça, o traçado da obra 33

(na França, poisson d’argent como, em Portugal, bicho-da-prata ou


peixinho-de-prata). De todo modo, pondo de lado qualquer intenção
supostamente original (do professor Luiz Fernando), é nesta traça
que penso quando me ocorre que aquela ruptura de sentido que a
tradução trace-traça produzia parece em certo sentido falsa: ao me-
nos na representação temerosa dos bibliômanos que somos, a traça
é um rastro, é tão somente o furo que deixa atrás de si mesma, cuja
visibilidade, cuja vida e sobrevivência excede em muito o diminuto
1cm e os raros 4 anos a que pode chegar o seu corpo. Chego à con-
clusão de que nunca vi uma Lepisma saccharina (que, de acordo com
o que pude descobrir, não tem casulo ou pupa nem chega a voar).
Mesmo assim, convivi ao longo de dias, semanas e de muitas páginas
com a espessura perturbadora daqueles pequeninos furos – rastros
de uma passagem que nunca acontecera, que nunca fora senão
rastro –, buraquinhos que violavam, por sua vez, os livros, esses
livros velhos, mais velhos do que eu e do que o tempo em que os li,
herdados, na maior parte das vezes, dos pais, dos avós ou do bisavô
(Essas heranças – furadas, como toda herança – vinham, não raro,
datadas e recheadas de rasuras e inscrições, ora o carimbo nominal
do bisavô, ora as anotações paternas, ora os sublinhados maternos).
A traça é, em mais de um sentido, o inseto da desconstrução.
Rasura a herança, lê a tradição perfurando-a, cavando talvez o seu
caminho na convivência entre o que se disse e o que se mostrou – ou
pode se mostrar – de contrário; ela o faz, ainda, de acordo com uma
outra linearidade, ou uma não linearidade, subvertendo a progres-
são grafemática da palavra, da frase e da linha em uma transversal
de profundidade do objeto livro, de trás para frente ou não, indo e
vindo, saltando de página a página, tecendo sua constelação como
quem cita – ao revés (assim como a sericicultura do bicho-da-seda,

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nem a citação nem a bibliomania são coisa do homem) – e deglutindo


a matéria escrita sem qualquer remissão a uma ‘voz’ (sua boca é toda
deglutição, corpo pura fome).
É nesse sentido que me utilizo da provocação de Luiz Fer-
nando – atrelada a uma leitura talvez apressada de Derrida, leitura
transversal, leitura de traça... – para ler algo da obra de Roberto
Corrêa dos Santos. Primeiramente, o desafio aí constantemente
lançado à possibilidade da separação entre o que é obra considerada
crítico-teórica e o que é obra dita literária parece se dar a ler em rela-
ção com a provocação derridiana contida na ideia de rastro originário.
A escrita de Roberto trabalha sempre em um limiar entre gêneros
(‘poema visual’, ‘ensaio’, ‘livro-de-artista’, ‘livro-instalação’...); mais
importante do que isso, no entanto, me parece a suspensão da divi-
são tradicional entre texto (suposto) primeiro – literário (“colorido”,
como celebrizou Pucheu se contrapondo a Antonio Candido. Cf.:
Pucheu: 2007, 11-26) – e texto (suposto) secundário – crítico-teó-
rico (cinzento, segundo o já referido texto de Pucheu). Essa divisão,
sobre a qual se fundamenta certa prática e certo conceito de crítica
(a que me refiro aqui como ‘tradicional’, por falta de palavra melhor),
parece, por sua vez, repousar sobre a cisão presença/representação,
e não parece ser senão essa cisão o que se herda e se reafirma a cada
vez em que se opõe o texto literário “primeiro” e sua paráfrase, ex-
plicação ou análise críticas. Trata-se aqui, para certa crítica, de uma
existência parasitária, no sentido daquela “lógica do parasita” que a
escrita obrigava a reconsiderar na primeira parte de Da gramatologia
(Derrida: 1973, 66).
Ora, se algo se pode dizer da obra de Roberto é que ela teima
em desarticular e impossibilitar essa separação e essa lógica. Desde
muito cedo, Para uma teoria da interpretação; semiologia, literatura e

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Roberto Correa dos Santos: a traça, o traçado da obra 35

interdisciplinaridade (1989) já formulava a demanda de fazer “do ler


um gesto criador”, e de aproximar a crítica e o estudo da literatura
da “espessura da produção artística” (Dos Santos: 1989, 71). Esse
gesto era aí pensado, inclusive, em relação com a prática da cópia
nas Belas Artes, prática que se caracterizava, de todo modo, por uma
produção ativa, de tal maneira que, em Roberto, estudar é um fazer
ativo, tanto quanto repetir é produzir uma diferença. É, no entanto,
nos anos 2000 que essa proposta parece se radicalizar.
Tal radicalização se torna sensível a partir principalmente de
dois livros que me parecem paradigmáticos nesse sentido: O livro fúcsia
de Clarice Lispector (2001) e Luiza Neto Jorge: códigos de movimento
(2004). O primeiro poderia nos levar a repensar a inscrição do nome
alheio no título de qualquer livro de crítica literária, quero dizer, a ins-
crição do nome do objeto de estudo no título – prática comum em que
qualquer hospitalidade parece estancada ou encapsulada – dá aqui a
volta sobre si mesma, como também percebeu Alberto Pucheu (2014):
O livro fúcsia é de Clarice Lispector ou de Roberto Correa dos Santos?
O livro fúcsia de Clarice Lispector, de Roberto Correa dos Santos – a
vírgula assegurando aqui a menor divisão possível entre um e outro,
entre Roberto e Clarice; a vírgula podendo ser abolida ou rasurada
– O livro fúcsia de Clarice Lispector de Roberto Correa dos Santos – e os
nomes invertidos – O livro fúcsia de Roberto Correa dos Santos de Clarice
Lispector. Ou, ainda, a vírgula podendo ser acatada enquanto mais um
caligrama do diminuto corpo sinuoso da traça. Vírgula vermícula, no
francês ver-gule, deglutindo-se a si mesma e devorando, por dentro
e pelo meio, a separação dos nomes, sobrepondo-os. O livro sobre,
sobre Clarice, sobre esse nome, põe, em Roberto, nome sobre nome,
um sobre um outro, como rasura ou, ainda, como cavalgadura: um
cavalga o outro que o recebe como em uma experiência mediúnica de

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possessão. Por ocasião da organização de uma coletânea de frases de


Clarice, Roberto, desgostoso dos rumos excessivamente comerciais
que a edição tomava, defendia sua posição, ao telefone com o filho
da mesma Clarice, dizendo ser seu cavalo, aquele que a recebe, que é
possuído por ela. (Na metáfora religiosa ressoa, aliás, o animal, figura
reincidente nos livros de Clarice: ao menos, salvo engano, no Livro
dos prazeres e em Perto do coração selvagem.)
Muito além do título, O livro fúcsia de Clarice Lispector não é
um livro de crítica no sentido tradicional e talvez não o seja em sentido
nenhum. Há, parece, citações não indicadas, referências, mas o tom
passa longe do teórico e a coisa toda se parece muito mais com uma
encenação na qual Clarice, Roberto e o leitor figuram como persona-
gens. O livro traz todas as páginas pares em branco (como costuma
acontecer em pequenos livros de poemas) e é composto de fragmentos
em prosa, de tamanho desigual, mas nunca ultrapassando 7 linhas. En-
tre esses textos passa um traço que se estende por duas linhas e ainda
pelo afastamento de parágrafo na terceira, e que não vem no espaço
debaixo da linha, onde passaria a marcação de um trecho sublinhado,
mas na altura do texto mesmo, tracejando o silêncio, desrecalcando o
espaço em branco da página. Essa linha – a tentação é ver nela outro
caligrama da traça – pareceria talvez querer invadir o texto, rasurá-lo
ou carcomê-lo (como propôs, mais uma vez, Pucheu):

Desenhos incertos regulam vossa subjetividade racional.


O excesso inibe (Clarice, a mesa farta). Clarice, não rapida-
mente, impossível. A Senhora ressoa, prossegue no coração
de outros órgãos. Envolver-nos resta-nos. Clarice, vinde
por cá. Sede silenciosa, obediente; não useis agora a água
de colônia de Coty.

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Roberto Correa dos Santos: a traça, o traçado da obra 37

À primeira palavra dita, afunda-se o pé. Mais outra e afun-


da-se mais um pouco. Depois, já não se sabem as razões;
está-se irremediavelmente submerso. Afogai-nos na por-
tátil máquina de escrever Olympia apoiada no movediço
sobre-as-pernas-de-mulher-de-grandes-mãos (Dos Santos:
2001, 11).

O excesso inibe, o excesso daquela Senhora – também cha-


mada Madame, Soberana, Majestade. E escrever se dá entre submergir
ou afogar-se nesse impossível, passando por entre linhas soberanas,
asfixiantes. É, então, o inverso daquela tentação que se mostra, é o
texto que rasura a linha e não o contrário: essa linha plana, total e
inteira, idêntica a si mesma, sem furos ou vazios – o texto se faz sua
traça, o gosto sinuoso dos volteios e curvas indo e vindo por entre
a retidão do linear, o texto entrando e passando nas entrelinhas,
abrindo furos e um caminho por onde talvez se respira:

Tomar fôlego. À faca, abrir espaço nos imaginários carrega-


dos de áspera verbalidade. Assim não há como excursionar;
nem como facilmente sair: a selva, o âmago convulso. Entre
as sensações ágeis, vigilância. Firme e lógica, a Dama grita:
acorde, reconheça seu desejo, vire-se de modo frontal à
trêmula vida. E ponto (Dos Santos: 2001, 21).

Em Roberto, ‘escrever sobre’ se dá sempre tão somente


como ‘escrever’, assim como ‘escrever’ se dá sempre como ‘escrever
sobre’; o nome do outro, os nomes de outros estão, de alguma forma,
sempre presentes – ou antes, assombram sempre na impossibili-
dade espectral de decidir entre sua presença ou sua ausência; são

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38 Artigos

fantasmas que invadem qualquer solidão, rasgam qualquer escrita


supostamente autônoma.
No exemplar de que disponho do livro Humana história do
rosto – estudos de setas e retratos egográficos (2011), por exemplo,
consta uma dedicatória enigmática: “querido, acolha este ensaio
sobre, talvez, Artaud”. O talvez é significativo: nada no livro parece
reenviar a Artaud (ao pouco ou quase nada que acesso por esse nome).
O nome sequer aparece no corpo do texto e o tom não é nem de
longe o tom esperado de um ensaio. Talvez o que importe aqui não
seja se perguntar o quanto de Artaud há nessa Humana história do
rosto – mas o quanto de outro há em toda egografia, em toda escrita
e em todo ‘ego’, o quanto de seta em todo rosto (flecha mais do que
maçã) o quanto de tiro em todo retrato (para o disparo da câmera se
diz em inglês to shoot). O que interessa é talvez assumir o risco de
que não sobre nada daquilo sobre o que Roberto escrevia, o risco de
que talvez ‘escrever sobre’ seja escrever a sobra, escrever enquanto
sobra ou resto, fazer da sobra – e já do sobre – a escrita.
O livro ‘sobre’ Luiza Neto Jorge não parece possuído por
esta. Antes, parece que ali é Roberto o sujeito da possessão, é ele
quem cavalga seu objeto, Luiza (mas seria preciso pensar, sobre-
tudo, a indiscernibilidade desses dois movimentos, dessas pos-
sessões-desapropriações). Aqui Roberto escreve, sim, sobre Luiza,
com violência literal, entre coito e soterramento: Luiza aparece (?)
rasurada, entremeada de desenhos, tem suas frases recortadas, seu
retrato retocado e a quebra entre alguns de seus versos subvertida
ou totalmente desconsiderada. O livro se apresenta como uma xerox,
como um original que é desde sempre cópia e repetição de si mesmo,
encadernado na horizontal (como se se tratasse de deitar Luiza, de
se deitar com ela ou sobre ela). O corpo do livro segue quase sempre

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Roberto Correa dos Santos: a traça, o traçado da obra 39

em uma série dupla, as páginas pares se compõem de imagens, fotos,


desenhos misturados a versos de Luiza recortados e colados; sobre
essas imagens Roberto desenha, rabisca, rasura e, com frequência,
repete à mão as citações datilografadas. As páginas ímpares, por sua
vez, trazem o texto de Roberto (?) espaçado e atravessado eventual-
mente por travessões ou traços extensos. Essa série é interrompida
pelo que é introduzido como o adagiário: uma compilação de citações
traidoras de Luiza (a maior parte presente em outras partes do livro),
divididas em duas séries a que correspondem duas colunas paralelas,
após o que a divisão anterior é retomada.
Mais uma vez, escrever aqui – mais do que escrever contra – é
escrever sobre e por sobre, em um gesto que implica, sim, a violência
de rasuras, quebras, voltas e inversões. Essa violência é sobretudo
sensível no momento em que o texto narra o encontro com o texto
de Luiza. (Reproduzo aqui, mal, o texto escrito, deixando de lado seu
espaçamento peculiar e sua horizontalidade na página; ele é, além
disso, interrompido duas vezes pelas páginas pares, compostas de
imagens e grafismos que não reproduzo aqui, sinalizando, no entan-
to, com barras duplas o momento desses cortes):

[Viu-lhe as fotos na edição em xerox de Poesia (1960-1989),


organizada e belamente // prefaciada pelo Senhor Fernando
Cabral Martins]. Olhando-a na reprodução escurecida das
fotocopiadoras, não resiste. A fotocópia gesta-se em ime-
diato parentesco com o desenho a carvão; assim, dedica-se
ele, também senhor, selecionado o lápis, a retocar-lhe os
olhos, um pouco descidos (o que lhes dá uma tristeza cam-
pesina), aumentando-lhes o traço a certa altura; retirada a
linha curva, fez, conforme uma das regras dos textos lidos

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40 Artigos

(ser reto na expressão), rejuvenescer e iluminar-se todo o


rosto, alongando ainda os lábios inferiores, grossos e con-
centrados, de modo a reduzir o desequilíbrio provindo da
força que se enfraquece por deixar tombar (desconsiderando
o conjunto), o peso em um sítio predominante. Cobre-lhe o
homem as orelhas com o escuro cabelo, como se com o tem-
po // pudesse ter crescido. Tudo fazer (qual um apaixonado
retratista) para conciliarem-se alma e letra. Ao suavizar
levemente o queixo e o nariz, quase então reconhece sob
o desenho: Clarice (assim diz por consentimento pessoal).
No entanto deixa de modificar a inegável visível – embora
súbita e assustadora de um homem outro, ali retido, mas
prestes a assaltar-lhe a face de uma vez por todas: Artaud.
Necessário será dar o contraveneno imprescindível para
proteger, não o rosto de Luiza, a Senhora Dona Luiza, porém
a sua escrita; protegê-la da exorbitante loucura iluminada,
os entrecortes de lucidez daqueles seus quase pares. Então.
Então simplesmente a fiz sorrir, um pouco doce, meio serena
(Dos Santos: 2004, 19-23)..

Mais uma vez, ressai o teatral, o cênico. A narrativa, sim, mas


iniciada por uma indicação entre colchetes como uma rubrica. Assim,
o jogo em Roberto entre essas possessões que desmantelam qualquer
origem ou originalidade, a ação entre senhores, entre os soberbos
senhores dessa escrita – não os sujeitos, donos, que supostamente
os antecederiam, mas a escrita mesma, que impõe sua violência e
se gesta, assim, entre golpes de lápis. A narrativa do acesso ao livro
de poemas por meio da xerox se radicaliza em um livro que é, ele
mesmo, xerocado; o jogo com essas fotocópias ocupa largamente

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Roberto Correa dos Santos: a traça, o traçado da obra 41

ainda as páginas pares, onde as imagens e os versos que, cortados


e colados, são muito provavelmente fotocopiados. No que toca ao
retrato, é curioso que os retoques, que se dizem mobilizados pelo
projeto de uma correspondência impossível com uma origem supe-
rior (conciliação entre alma e letra), acabem resultando no oposto
de um radical alheamento: ao rosto assomam outros rostos, como
assombrações.
Luiza é também Senhora, Senhora Dona Luiza Neto Jorge, Se-
nhora-da-Letra. Ela toma, ocupa, invade. É preciso matar Luiza, matar
Luiza para poder escrever, para escrever sobre ela ou – a tentação
aqui seria dizer: para escrever simplesmente, caso isso fosse possível,
caso a escrita não fosse em Roberto sempre dobrada por um outro,
não se dobrasse sempre a um outro, a algo de outro, como se escrever
não fosse A arte de ceder (título de um livro de 1992). Ceder aqui é
tornar-se quem cede, quem sedia, é tornar-se a sede de outros, muitos
outros, mas é também ceder à fome, ceder à sede de degluti-los, de
bebê-los e embriagar-se com eles. Comer – ou como diz a gíria: traçar,
por analogia com a devoração destrutiva das traças – opera sempre
uma certa violência. É preciso quebrar as cadeias proteicas – as linhas
de Proteu desses poemas, sempre prontos a tornarem-se outros e
outros e outros ainda –, é preciso desmontar e reacoplar, recortar e
colar. Comer, como diz a terminologia biológica, envolve uma certa
queima, atear fogo, deixar arder... toda uma alquimia:

Poemas (aparelhos) pedem, como seres, auxílio, pois care-


cem do emprego de uma poderosa pragmática: poemas há
que obtêm circuito por intermédio da imobilidade gerada
pelo claustro e pela retenção. Outros, por explicitarem sua
vontade nômade e gregária, saindo da casa, indo à rua. Não

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42 Artigos

importando, contudo, em um caso como no outro, o fato de


que se encontrem quase sempre sob o risco – por opção ou
por inevitabilidade (e assim é) – de (por aparelhos serem):
queimarem. Ou (em pouco uso) sofrem enormes danos.
Morrer (ser outro) pode ser o objetivo de toda arte: a morte
não para tornar-se comentada, mas vivida. E a morte, a dos
aparelhos, não é, definitivamente, problema deles (assim
como a nossa). Leiamos os mortos poemas (mas que, sábios,
despertam à noite)! destituamos. Poemas ganham quando
explodem ou ARDEM. Quando recusam. Ou cedem (por
destemor). Deles recolheremos as partes, peças a acoplar
a outras partes e a outras peças de outros, outros, outros.
Reatualizam-se terceiros: torná-los O.U.T.R.Í.S.S.I.M.O.S..
Nós; nós largaremos a função de operadores. Seremos
também O.U.T.R.Í.S.S.I.M.O.S.. (Dos Santos: 2004, 71-3).

Matar, arder, explodir, reatualizar, recortar, acoplar... ler


é ter com as cinzas, assim como escrever é descobrir-se uma traça
cavando furos por entre as letras de outros, como pontos entre as
letras dos O.U.T.R.Í.S.S.I.M.O.S.. É também nesse sentido que não
cabe distinguir a escrita ‘crítica’ da ‘poética’: há sempre um nome,
mesmo que silenciado, há sempre um outro. Ou mais precisamente:
é sempre desde “obras anteriores”, é sempre com elas que se escreve
nessa Clínica de artista. Em Roberto, retorna sempre essa dinâmica
entre “erguer”(-se?), “saltar” (por sobre? por entre?) e “seguir” na
esteira desses treze mil vezes treze mil vezes treze mil ossos (jogo aqui
com títulos de seções do referido livro: erguer, saltar, seguir...). Aí,
sim, os mortos, os cadáveres ou as cinzas do que queimou – mas,
sobretudo se no plural, todo um ossuário em meio ao qual a linha de

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Roberto Correa dos Santos: a traça, o traçado da obra 43

Roberto se cava, escava, revolve. Talvez não caiba falar aqui em verso
a tratar da escrita daquele que recusa o poema-forma e dessas linhas
inquietas que não se isolam à esquerda da página, mas dançam pela
sua superfície, se espaçam de um canto a outro, com vazios no meio,
saltando de um lado para o outro, como se quisessem esgarçar ou
rasgar seu suporte. Como se tecessem seu caminho em meio a uma
página cinza, acinzentada, sempre atravessada, rasurada por muitos
restos e outros ossos; como se mais do que escrever, se tratasse de
abrir a frase como um vão em meio a que – como uma galeria dessas
que cavam e habitam os cupins, as formigas e, mais uma vez, as tra-
ças. Roberto é um desses Animais de galeria de que fala um poema
de Clínica de artista (Dos Santos: 2011b, 81); e a metáfora insectoide
não pode ser deixada de lado para manter a ambiguidade do termo
‘galeria’ e ver nela a inversão do espaço interior (espaço privilegia-
do da arte, ao menos em sua exposição mercantil) em exterior, em
furo e vazio carcomendo toda interioridade – perscrutando o fora
de todo dentro. O jogo entre interior e exterior retoma, por sua
vez, outro poema de Clínica de artista, que leva o significativo título
de “obras anteriores” e encena a permeabilidade da escrita a esses
ossos de obras:

obras anteriores

nos domínios do obsedante artístico o menino encontra-se.


percebe mas não se importa com a sabedoria existencial da
arte. nem com a violência afetiva do cubo que abriga esse
indiferente pequeno homem agora.
no cubo em que entrou
sem saber
perscruta-se o fora de seu dentro.

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algo pelo olho fisga-o. conduz-se assim o olho até à direita


da linha do quadro. volta à esquerda. está tomado.

quer sair.

recusa ainda no que pode


o fato de ter de se cuidar.
onde se entra quando se entra é o que perguntaria antes de
se contorcer em obra.
(Dos Santos: 2011b, 74)

A cena descrita é ao mesmo tempo a cena da leitura do texto ele


mesmo, e o menino envolve-se no cubo que é já o quase cubo do livro ou
a página quadro quadrilateral que o leitor tem diante de si. Esse relevo é
realçado pelo lance isomórfico que joga o leitor – como já o menino – da
extrema direita da página à extrema esquerda da linha que recomeça.
O texto formula o que me parece uma poética de Roberto Correa dos
Santos e que se desenha resumidamente no trecho “está tomado. // quer
sair.”; mas isso de tal maneira que aquilo que constantemente aparece
dividido se indiscerne: entrar no cubo, ser ocupado ou deixar-se obsedar
por ele é ao mesmo tempo esvair-se, e descobrir-se lançado fora daquilo
que, em formato de cubo, se pretendia continente. O dentro é aqui o
fora – onde se entra quando se entra quando entrar se dá antes de mais
nada no movimento da traça? O animal de Roberto, por excelência, é
este por meio do qual o dentro se reverte em fora e furo e “os domínios
do obsedante artístico” – o que nessas senhoras, nesses senhais senhoris
há de asfixiante – se mostram vão de passagem, ou ainda: imperativo
de um movimento aberrante no qual não se pode mais decidir pelo fora
ou pelo dentro.

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Roberto Correa dos Santos: a traça, o traçado da obra 45

Referências

DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Tradução de Miriam Schnaider-


man e Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Perspectiva; Edusp,
1973.
______. Spectres de Marx. L’état de la dette, le travail du deuil et la
nouvelle Internationale. Paris: Galilée, 1993.
DOS SANTOS, Roberto Correa. A arte de ceder. Rio de Janeiro:
EdUERJ, 1992.
______. Clínica de artista I: face ao reto o lobo. Rio de Janeiro: Circuito,
2011a.
______. Clínica de artista II: seis livros treze mil vezes treze mil vezes
treze mil ossos. Rio de Janeiro: Circuito, 2011b.
______. Humana história do rosto: estudos de setas em retratos egográ-
ficos. Rio de Janeiro: Museu do Mundo, 2011c.
______. O livro fúcsia de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Otti, 2001.
______. Luiza Neto Jorge, códigos de movimento. Rio de Janeiro: Ang,
2004.
______. Para uma teoria da interpretação; semiologia, literatura e inter-
disciplinaridade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.
PUCHEU, Alberto. Pelo colorido, para além do cinzento; a literatura e
seus entornos interventivos. Rio de Janeiro: Beco do Azougue,
2007.
______. “Roberto Correa dos Santos: o poema contemporâneo en-
quanto “‘ensaio teórico-crítico-experimental’”. In: ______.
Apoesia contemporânea. Rio de Janeiro: Beco do Azougue,
2014, pp. 183-248.

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46 Artigos

Resumo

A obra de Roberto Correa dos Santos desafia os limites de gênero,


situando-se em um limiar onde talvez não importe mais a determinação
de uma obra como ‘poema’, ‘ensaio’ ou ‘livro-de-artista’. A convocação de
nomes de autores e obras alheios (Clarice Lispector, Luiza Neto Jorge,
Oswald de Andrade, Artaud), para os títulos e o corpo dessa escrita, pare-
ce ainda querer situá-la no horizonte de uma crítica literária anômala, na
medida em que rasura a divisão tradicional entre texto (suposto) primeiro
– literário – e texto (suposto) secundário – crítico-teórico. Interessaria
ler esse gesto de inscrição rasurada do outro em ressonância com la trace
derridiana talvez em mais de um sentido. Primeiramente, enquanto rastro
originário que desconstrói a divisão presença/representação que a críti-
ca, como concebida habitualmente, herda e reafirma por meio da divisão
texto primeiro/paráfrase, explicação ou análise crítica. Mas, sobretudo,
gostaríamos de acatar uma provocação verbal do professor Luiz Fernando
Medeiros, que propunha pensar la trace em uma tradução traidora que
preservaria na palavra o gênero feminino do francês: enquanto a tra-
ça – esse inseto desconstrucionista – figura frequente, aliás, na obra de
Roberto – que percorre os livros em transversal antropofágica, deglutindo
e escrevendo, por entre as obras alheias, o seu traçado tracejado.
Palavras-chave: crítica literária; rastro; Derrida; Roberto Correa
dos Santos.

Abstract

Hardly classified under any literary genre, the work of Roberto


Correa dos Santos tends to remain under a threshold where the essential is
no longer the definition of a text as ‘poem’, ‘essay’ or ‘artist-book’ (concept
created and adopted by the referred author). Provoking us to consider his
work as a sort of aberrant literary criticism, dos Santos summons to his
titles and to his own work the names of other authors (such as the Brazilian
writers Clarice Lispector and Oswald de Andrade, or the Portuguese

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Roberto Correa dos Santos: a traça, o traçado da obra 47

poet Luiza Neto Jorge or even Antonin Artaud), blotting the classical
separation between the (allegedly) ‘original’ text – that is: literature; –
and the (allegedly) ‘secondary’ text – that is: its critical paraphrase or
analysis in theory. This paper seeks to understand this gesture of blotted
inscription of the other in resonance with the Derridian concept of ‘trace’,
in more than one sense. Foremost, we mean to understand ‘trace’ as the
‘originary trace’ or ‘archi-trace’ that deconstructs the classical separation
presence/representation – separation that literary criticism itself inherits
and emulates by means of the separation between original/paraphrase,
interpretation or critical analysis. But above all we seek to incorporate
a verbal incitement by Professor Luiz Fernando Medeiros, and think ‘la
trace’ as moth (in Portuguese: ‘traça’, in a perverted translation that,
supported on a phonetic similarity, preserves the feminine gender of
the original French and radically changes its meaning). The moth: the
insect of deconstruction – frequently figured, by the way, in the work of
dos Santos – that roams through books and texts of other authors in an
anthropophagic cross-cut, writing and eating away its own trajectory,
amid foreign works.
Keywords: literary criticism; trace; Derrida; Roberto Correa dos
Santos.

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Contornos de A palavra nunca:
o gênero conto em Eric Nepomuceno

Morgana Chagas Ferreira*

“Is this the real life?


Is this just fantasy?”
Queen1

O que é o conto? Essa é a pergunta-embrião a partir da qual


Nádia Battella Gotlib concebeu a sua obra Teoria do conto (1990).
Reunindo diferentes teorias e escritores que refletiram sobre os
aspectos do conto, como Edgar Allan Poe, Julio Cortázar, Mário
de Andrade e Machado de Assis, a autora empenha-se em traçar
uma história da teoria do conto que vai desde as estórias sem re-
gistro escrito, que serviam para transmitir ensinamentos, mitos
e ritos em tribos primitivas, até os séculos mais atuais, quando
as estórias começam a ter maior enfoque em entabular um perfil
estético. Afirma Gotlib:

Embora o início do contar estória seja impossível de se lo-


calizar e permaneça como hipótese que nos leva aos tempos
remotíssimos, ainda não marcados pela tradição escrita, há
fases de evolução dos modos de se contarem estórias. Para
alguns, os contos egípcios – os contos dos mágicos – são

* Mestranda em Literatura Brasileira na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).


1 A banda Queen se apresentou no Brasil em 1985, mesmo ano de lançamento do livro de contos
aqui analisado. A música “Bohemian rhapsody”, lançada em 1975, foi a 22ª no setlist do show.

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50 Artigos

os mais antigos: devem ter aparecido por volta de 4.000


anos antes de Cristo. Enumerar as fases da evolução do
conto seria percorrer a nossa própria história, a história
de nossa cultura, detectando os momentos da escrita que
a representam (1990, 5).

Se por um lado podemos percorrer e enumerar os momentos


da escrita e da evolução do conto, por outro, é preciso um trabalho
atento, uma vez que tratar dos aspectos formais que englobam o
conto é correr o risco de ter uma teoria elaborada que aniquila a sua
própria existência. Contudo, é uma luta em que vale a pena entrar,
porque o resultado do enfrentamento entre teoria e escrita é o conto
em si, “um tremor de água dentro de um cristal”, assim como lembra
o escritor argentino Julio Cortázar:

Se não tivermos uma ideia viva do que é o conto, teremos


perdido tempo, porque um conto, em última análise, se
move nesse plano do homem onde a vida e a expressão
escrita dessa vida travam uma batalha fraternal, se me for
permitido o termo; e o resultado dessa batalha é o próprio
conto, uma síntese viva ao mesmo tempo que uma vida
sintetizada, algo assim como um tremor de água dentro
de um cristal, uma fugacidade numa permanência. Só
com imagens se pode transmitir essa alquimia secreta que
explica a profunda ressonância que um grande conto tem
em nós, e que explica também por que há tão poucos contos
verdadeiramente grandes (apud Gotlib: 1990, 10).

Para Cortázar, o conto ocupa um lugar sui generis na teoria


da literatura, dado que os primeiros estudiosos dispuseram da ati-

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Contornos de A palavra nunca 51

vidade dupla de criar o conto de forma artística ao mesmo tempo


que refletiram, criando um acúmulo de saberes sobre a estrutura, a
densidade e a extensão desse tipo de narrativa, de modo a estabelecer
uma combinação entre a teoria e a criação literária.
Em Valise de cronópio (1993), Cortázar é cirúrgico tratando
da extensão – um dos argumentos fundamentais para a tentativa de
encaixar o conto em algum lugar de maior estabilidade. Ao falar do
conto contemporâneo, mais precisamente daquele que nasce com
Edgar Allan Poe, defende a economia de meios, isto é, a criação de um
pequeno ambiente onde seja permitido aprofundar as questões que
teriam sido pensadas previamente. É o que ele chama de “sentimento
de esfera”, que, dito de outro modo, é aquilo que deve preexistir ao
ato de escrever, como se o narrador, dependente da forma que as-
sume, trabalhasse do interior para o exterior, potencializando um
mínimo de elementos e provando que certas situações ou terrenos
narrativos privilegiados podem ser traduzidos numa narrativa de
projeções tão vastas como o mais elaborado romance. Tal como
a fotografia, o conto possibilitaria uma leitura para além daquilo
que foi já dito ou retratado, colocando o leitor como componente
de destaque na percepção da magnitude da narrativa – escrita ou
fotografada. Além disso, segundo Cortázar, a intensidade e a tensão
são fundamentais para prender o leitor ao texto: “a tensão do conto
nasceu dessa eliminação fulgurante de ideias intermédias, de etapas
preparatórias, de toda a retórica literária deliberada, uma vez que
estava em jogo uma operação de algum modo fatal que não tolerava
perda de tempo” (Cortázar: 1993, 231). Assim sendo, nota-se que a
extensão, a tensão, a interação com o leitor e o tempo são questões
imprescindíveis para Cortázar. E parecem ser também para o escritor
carioca Eric Nepomuceno.

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52 Artigos

Renomado como jornalista e como tradutor de diferentes


autores latino-americanos, Nepomuceno tem em seu repertório de
tradução nomes como Jorge Luis Borges, Gabriel García Márquez,
Eduardo Galeano e o já citado Julio Cortázar.2 Entretanto, ainda
que opere em seus contos o trabalho impecável com a linguagem
e suas obras tenham circulação em grandes editoras, o ofício de
contista move-se quase desapercebido. Aqui, buscaremos expandir
o acesso, o conhecimento e a crítica a respeito da obra desse autor
brasileiro contemporâneo, retirando-o do lugar imerecido de quase
olvidamento dos estudos de literatura.
Em 1985, Nepomuceno publica o livro A palavra nunca, pela
Nova Fronteira, reunindo 24 contos divididos em cinco partes: Histó-
rias da primavera (6); Histórias do inverno (6); Histórias sem tempo
(1); Histórias do outono (5); Histórias de um tempo qualquer (6).
Por ser um livro de contos, torna-se mais difícil a tarefa de encontrar
uma unidade entre eles; no entanto, o título e a divisão apontam
para o labor minucioso do escritor com o tempo. Em primeiro lu-
gar, a palavra “nunca” que obrigatoriamente se contrapõe ao termo
“sempre”, que funciona como normalidade ou como status quo, é
uma ausência sentida dentro de um sempre tão naturalizado e, mais
que isso, configura também a impossibilidade ou a delimitação das
ações. Em segundo lugar, as diferentes partes que compõem o livro
representam a passagem do tempo de modo sazonal e indicam uma
evolução no modo como o livro é construído. Há, ainda, datações
diferentes para cada conto, que vão do ano de 1973 até 1982, o que

2 Em prefácio da edição brasileira de Conversas com Cortázar, organizada por Ernesto González
Bermejo e com tradução de Luís Carlos Cabral (Zahar: 2002), Nepomuceno avalia positiva-
mente a construção da ficcionalidade de Cortázar: “Sua visão do conto, gênero em que ele
brilhou de forma especial, continua sendo uma das mais nítidas lições do ofício de escrever”.

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Contornos de A palavra nunca 53

demonstra que talvez o livro não tenha sido escrito de um só fôlego.


Vejamos, então, como essas características aparecem nos textos.
Iniciando o livro, “Telefunken”3 é narrado na primeira pessoa
do singular a partir do olhar de um menino de dez anos que, ouvindo
um rádio, conta as suas percepções sobre a vida. O uso da primeira
pessoa chama atenção para o eu, mais ainda, para uma interiorida-
de forjada. O rádio funciona como uma moldura, porque, além de
representar a importância simbólica que a voz possui, é no enqua-
dramento das considerações sobre esse aparelho que a construção da
narrativa acontece. Temos ciência do espaço da casa, do microcosmo
do menino, das pessoas que participam da sua existência e daquilo
que ele projeta para seu futuro:

A gente até que tem um rádio bacana em casa, e a mãe às


vezes põe uma toalhinha em cima dele e um vasinho com
uma flor dentro [...]. Eu vou querer um rádio parecido com
o nosso. Só não quero de madeira escura: vou querer um
rádio branco. Não sei se isso é bom: rádio branco deve ser
que nem calça branca: suja muito. Por isso, é melhor não
deixar ninguém chegar perto do rádio. Vou gostar tanto
do meu rádio que se minha mulher tiver um filho que nem
minha mãe teve eu, vou dizer para ela não deixar ele mexer
no rádio (1985, 14).

Além disso, a realidade que o menino conhece é, para ele, a


realidade universal, aplicável a todos os indivíduos. O que é visto,

3 Fundada em 1903, a Telefunken foi uma empresa alemã que fabricava diferentes tipos de
eletrônicos, entre eles, rádios e televisores.

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54 Artigos

percebido e experimentado torna-se automaticamente concreto. É


o que se percebe neste outro trecho:

A vizinha Eulália não é mãe de ninguém. Vai ver que eu caso


e minha mulher não vira mãe de ninguém. Porque eu sei que
se minha mulher virar mãe, morro depois de dois meses.
Aqui em casa aconteceu isso: eu nasci e meu pai morreu
depois de dois meses (1985, 14).

No ambiente vivenciado pelo garoto, o nascimento está ne-


cessariamente atrelado à morte, pois, quando a mãe dá à luz, o pai
morre. Essa tensão marca a vida do menino de tal maneira que ele se
vê tendo um destino traçado independentemente de suas vontades e
ações. Assim como o seu pai, uma vez que ele se case e tenha filhos, a
morte estará determinada. A repetição da marcação temporal, “dois
meses”, enfatiza que a criança está fadada à perda: seja a sua própria
ou a de não poder ter filhos. É a impossibilidade de acontecimento,
de ação. Outra questão relevante é o conto abordar o tema infância
e pertencer à primeira parte do livro, “Histórias da primavera”. A
primavera, além de ser considerada a estação do desabrochar das
flores, é também sinônimo de juventude, de época primeira, o que
justificaria a escolha desse texto, e não de outro, para abrir o livro.
Já a narrativa de “O último”, situado na parte “Histórias do
outono”, curiosamente considerada a estação da colheita, é desen-
volvida na vida adulta de um homem. O termo “último” traz a ideia
de ordenação dentro de um limite de tempo – aquilo que aconteceu
por último – mas também indica aquele que vem depois de todos
os demais em uma sequência. Ambas as acepções são fundamentais
para compreender o universo desse conto, pois elas estão presentes

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Contornos de A palavra nunca 55

por toda a narrativa, sugerindo que o autor pensou previamente


na estrutura do texto, ou ainda, retomando a ideia de sentimento
de esfera descrito por Cortázar, que o autor trabalhou o tema de
tal modo que as projeções a respeito dele foram múltiplas. Assim,
o texto provocará de maneira incessante uma complexa gama de
representações.
Também na primeira pessoa do singular e com um narrador
masculino, o conto é subdividido em 15 partes e sua organização
lembra um diário de relato de viagens. Inicia-se com uma marca-
ção temporal, “antes”, situando o discurso no tempo anterior ao
da enunciação da narrativa, ao passo que mostra imediatamente a
perspectiva do sujeito que vai narrar: um eu que se dividiu em dois,
o do presente e o do passado.

Antes, eu pensava: “Cada vez que sinto cheiro de pasto e de


mijo de vaca, cada vez que sinto frio e fome, me pergunto: de
quem foi a culpa?”. Depois percebi que trazia comigo o cheiro
de pasto molhado e de mijo de vaca, onde quer que eu fosse.
E também frio e sempre um resto de fome (1985, 112).

O cheiro de pasto e mijo acompanhando todos os lugares


é uma marca determinante da memória olfativa e a repetição
funcionaria não só como uma forma de rememorar ou de atuar
como um procedimento estético, mas também de incomodar e
chamar a atenção do leitor para o texto. Essa interação entre o
texto e o leitor é essencial para compreender como funcionam
as projeções interpretativas em um conto. Não à toa o tema
recebeu atenção dos estudos literários a partir dos anos 1960,
mais especificamente com o surgimento da estética da recepção.

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56 Artigos

Wolfgang Iser, um dos precursores dessa pesquisa,4 afirma que é


necessário que existam espaços vazios entre os dois componen-
tes da interação, pois é só a partir dessa assimetria entre texto
e leitor que se originará a comunicação no processo de leitura
e, mais que isso, para que a obra seja constantemente recriada.
Segundo ele, a interação fracassa quando o leitor enclausura a
sua interpretação do texto independentemente do que a obra
traz. Nas palavras de Iser:

A interação fracassa quando as projeções mútuas dos partici-


pantes não sofrem mudança alguma ou quando as projeções
do leitor se impõem independente do texto. O fracasso aí
significa o preenchimento do vazio exclusivamente com
as próprias projeções. Como, entretanto, o vazio mobiliza
representações projetivas (projektive vorstellungen), a relação
entre texto e leitor só pode ter êxito mediante a mudança
do leitor (1979, 88).

Isto é, as interpretações literárias serão tão ou mais plurais,


uma vez que as próprias relações humanas o são, devido, inclusive,
à relação inerente do ser humano com a ficcionalização. É o jogo
do imitar e simbolizar. No prefácio de O fictício e o imaginário (Iser:
2013), Dau Bastos descreve a maneira como Iser enxerga que a fic-
cionalidade faz parte da condição humana:

4 Junto a Iser, outros nomes também foram importantes para a estruturação dos estudos sobre
a estética da recepção. São eles: Hans Robert Jauss, Karlheinz Stierle e Hans Ulrich Gumbrecht.
Em 1979, Luiz Costa Lima fez com que esses autores começassem a circular no Brasil, ao organizar
uma coletânea de ensaios intitulada A literatura e o leitor – textos de estética da recepção.

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Contornos de A palavra nunca 57

Independentemente das configurações que assuma, a fic-


cionalidade nasce da necessidade de o homem se mostrar
a si mesmo. Consciente de sua própria natureza e, parado-
xalmente, incapaz de acessá-la, a pessoa tem na encenação
a oportunidade de estar simultaneamente em si e fora de
si, o que lhe faculta vivenciar sua própria dualidade, dis-
tanciar-se de si mesma, colocar-se em perspectiva, criar-se
(apud Iser: 2013, 12).

Deste modo, retomando o conto de Nepomuceno, a perspec-


tivação das ações do narrador-personagem a respeito de si mesmo,
que são feitas no hoje sobre um ele do passado, acabam por constituir
uma dualidade e um modus operandi na narrativa. O eu-presente fala
sobre um sempre que corresponde ou teve início com o eu-passado
– “cada vez que” – e entre eles parece haver uma trajetória de auto-
conhecimento ou, ainda, de autocrítica.
Na história das artes visuais, a noção de perspectiva surge
como um recurso gráfico e reproduz o universo tridimensional da
realidade em uma superfície plana, dando a sensação de espaço e
interação entre os três planos. Criando um ponto de fuga na pin-
tura ou no desenho, a perspectiva permitiu representar o mundo
em profundidade e podemos, igualmente, utilizar essa concepção
para o estudo do conto de Nepomuceno. O narrador, ao colocar a si
próprio e aos outros em perspectiva, aprofunda o debate sobre as
múltiplas possibilidades de existir e de (re)criar-se que não tinham
sido pensadas anteriormente, como fica evidente neste fragmento:

Talvez se Emílio fosse menos corajoso, ou menos louco.


Talvez se eu não tivesse confiado tanto em Enrique e em

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todos os outros. Se não tivesse chovido tanto aquela noite,


a primeira. Se eu não tivesse nunca saído de casa para ir
defender aquilo que diziam ser defendido (1985, 112).

Ao sair de casa mais por uma vontade alheia do que a sua


própria, o narrador apresenta insatisfação consigo e faz a primeira
crítica ao ambiente no qual acontecerá todo o percurso narrativo: a
guerra. É também a partir da incompreensão do porquê da guerra
que ocorre a identificação e aproximação entre o eu-passado e o
eu-presente: “Tenho fome e quero que tudo vá para o diabo, esta
merda de guerra que até hoje não entendi” (1985, 114). Aliás,
é no deslocamento físico do homem e de seus companheiros de
combate que a história se desenrola: “De manhã, faz muito frio,
quando saímos para procurar a trilha de baixo, que vai costeando
a colina” (1985, 114). A estrada trilhada compõe o percurso nar-
rativo e vice-versa.
Num primeiro momento, a guerra não corresponde à ex-
pectativa do imaginário popular, pois ela é descrita a partir de uma
violência mais simbólica do que corporal. Não há jorro de sangue,
nem enfrentamentos com baionetas. Exemplo disso é a arma que
nunca foi disparada – “este mosquetão que não disparei nenhuma
vez” (1985, 114) – e a desumanização/humanização dos soldados
por causa do uso ou não de sapatos. Uma das primeiras passagens
em que isso fica evidente é quando o narrador diz que era a segunda
vez que usava sapatos na vida e o motivo era exclusivamente porque
ele ocupava a função de soldado. A polissemia do sapato, podendo
indicar, inclusive, o pertencimento a determinada classe social, dá
humanidade ao homem, mas também pode tirá-la à medida que ele
usufrua de um poder maior:

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Contornos de A palavra nunca 59

O negro Raul é duro e forte e alto. Vem dos vales, onde as


gentes são mais altas e alegres. Não pode comigo na garrafa
de cana nem nas noites de cantoria. Não posso com ele na
porrada. Nem Emílio, o bravo, pode. Ele insiste: “Se eu não
paro, não para ninguém”. Ele sempre teve sapatos (1985,
119).

O cansaço coletivo, fruto do deslocamento a pé pelas trin-


cheiras, não é suficiente para comover e fazer parar Raul. Todos os
seus companheiros possuem sapato na guerra, contudo, como ele
sempre teve sapatos, usará de seu privilégio e diferença para ser
categórico e amedrontador, impedindo que os demais descansem.
Algumas dessas imagens e construções – o mosquetão, o uso
do sapato, as muitas marcações temporais etc. – se repetem ao longo
do conto, tornando a narrativa cíclica, do mesmo modo que os cami-
nhos dos próprios soldados nos campos de batalha. Essas constantes
voltas para o mesmo lugar apontam uma impossibilidade de saída
tanto do espaço físico como das memórias que insistem em retornar
coladas a objetos, a detalhes que aparecem independentemente do
querer do narrador. O ciclo só se rompe quando há uma aceleração
no ritmo da narrativa e as ações dos personagens acontecem em
sequência; a violência também sofre mudança, passando a ser mais
concreta e menos simbólica.

Jorge, por direito, é o primeiro. A índia se debate e grita


e uiva. E morde: Jorge se levanta mostrando a marca dos
dentes no braço. A índia fica no chão. Vai levantar, é a vez
de Andrés: chuta a índia na barriga. Ela cai, Andrés salta
em cima e cumpre. [...] “Anda, é você agora”. O negro Raul

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sussurra: “Anda”. E me olham todos outra vez. E eu vou. Fui


o último (1985, 122-4).

A cena forte do estupro da índia remonta à representa-


ção tanto da imagem da mulher como a do indígena na literatura
brasileira. De modo geral, as duas figuras são representadas por meio
de um olhar vertical, estando submetidas corriqueiramente ao com-
portamento passivo e facilmente violável. Assim, a índia simboliza o
encontro com o local seguro, com as origens, já que eles estavam em
guerra e a presença da mulher os levaria para uma possível aldeia.
Contudo, o que se sucede é uma escalada bestial, principalmente do
narrador. Ele não queria ser como todos ao seu redor e nem realizar
o que realizavam, entretanto “cumpre”, escolha estética que faz refe-
rência ao estupro, tornando-se igual aos demais. Aqui a distância que
o narrador a todo momento buscava ter de seus colegas de combate
desaparece, transformando-o em alguém tão diferente que nem ele
mesmo se reconhece. Mais uma vez o eu-passado e o eu-presente
se distanciam. É também neste mesmo instante que desvendamos
uma das acepções prováveis para o título do conto, dando a ele toda
a carga de violência possível dentro do universo gráfico: o último foi
aquele que encerrou uma sequência de atos violentos.
Tanto em “Telefunken” como em “O último”, o trabalho com
a linguagem permitiu criar dois universos completamente distintos:
a casa e a guerra, respectivamente. Além disso, no primeiro conto,
é narrada a infância de um menino que ama o rádio e tem medo de
morrer e, no segundo, a trajetória de um homem que rememora sua
ida para a guerra – reconhecidamente um local de morte. Ou seja,
em ambos os casos a finitude da vida está presente, o que unirá esses
dois contos ao último que será trabalhado neste artigo.

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Contornos de A palavra nunca 61

Encerrando o livro, o conto “Um senhor elegante” integra


a quinta parte, “Histórias de um tempo qualquer”, e aborda as per-
cepções de um homem a respeito de sua vida e de sua atual condição
de idoso. Contando as aventuras amorosas da juventude para a sua
interlocutora, Maria, o narrador – assim como nos outros dois contos
analisados, é em primeira pessoa – parece querer reviver o frescor
primaveril de quando era jovem. Contudo, seu corpo dá indícios das
intermitências da vida. Seu medo de dormir é um exemplo disso:

– Esse é outro sintoma – expliquei. – Não durmo quase


nunca. Como se tivesse pânico de dormir e não despertar,
ou medo de sonhos dolorosos (1985, 162).

O “outro sintoma” é o da decadência, por meio da qual ele


vai descobrindo seu corpo e as dores que sente, quase como um
efeito dominó:

Ela sorriu e continuou girando devagar o copo de vinho


enquanto eu contava como, aos poucos e cheio de espanto e
angústia, fui descobrindo o corpo: primeiro o fígado, depois
os rins, mais tarde os pulmões, um dia o estômago, outro
os joelhos, e depois comecei a zelar de maneira especial e
inútil pelos dentes, e contei como fui entendendo que os
olhos que sempre falharam estavam secando, e então passei
a descobrir os terríveis ruídos do ser humano, uma espécie
de lenta, lentíssima de demolição (1985, 161).

O processo de envelhecimento é recebido com surpresa pelo


narrador, porque, ao que tudo indica, ele não estava preparado para

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62 Artigos

lidar com a passagem do tempo. No entanto, observar e sentir a ruína


de seu corpo faz com que ele dê mais atenção para áreas da sua vida
que anteriormente não recebiam seu olhar, como a escolha mais acu-
rada do vestuário. Para ele, vestir-se bem disfarçaria a sua decadência:

Passei a dedicar uma atenção cada vez maior a meus gestos,


minha maneira de escolher a roupa, de apurar com cuidado
quase místico as gravatas, aparar com rigor os cabelos,
de reparar cuidadosamente no ciclo de cada camisa para
evitar repetições, falhas imperdoáveis. Descobri, enfim,
que a elegância pode ser, mais do que qualquer outra coisa,
a melhor defesa, o disfarce mais eficaz para a decadência
(1985, 160-1).

Outro ponto importante no conto é a maneira como a me-


mória é trabalhada. Ela é usada pelo narrador de modo a ficcionalizar
sua própria história. Em conversa com Maria, ele relembra casos
amorosos antigos, mas os conta como se não fossem seus:

E depois perguntou-me de todas as mulheres de todos os


meus tempos e contei histórias minhas como se fossem
histórias de outros: um quarto de hotel em La Habana, uma
praça em Barcelona, um terraço em cima do mar do Rio de
Janeiro (1985, 165).

Esse artifício de inventar a própria vida remonta a uma outra


característica da ficção que não havia sido citada até agora: como um
processo de autoconhecimento, a ficção surge da necessidade do ho-
mem de entender a si mesmo, de dar conta do seu interior inacessível;

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Contornos de A palavra nunca 63

é o fictício “como instância apta a tornar o imaginário ‘acessível para


além de seu uso pragmático’” (Bastos apud Iser: 2013, 14-5). Isso se
aplica tanto para o personagem como para quem, se nos for permitida
a expressão, deu-lhe a vida. Ao escrever sua ficção, o escritor, plena-
mente consciente de que existe “a inacessibilidade da realidade para
o pensamento” (Bastos apud Iser: 2013, 12), constrói narrativas que
esmiúçam aquilo que vivenciamos empiricamente no mundo. Porém,
a criação literária não precisa passar pelo crivo do real para ser consi-
derada relevante para o conhecimento, uma vez que ela possui uma
lógica estética interna própria. A respeito disso, Gotlib faz a seguinte
provocação: “a realidade contada literariamente, justamente por isto,
por usar recursos literários segundo as intenções do autor, sejam estas
as de conseguir maior ou menor fidelidade, não seria já uma invenção?”
(2006, 12). Já em Iser, a invenção estaria atrelada aos modos como os
atos de fingir atuam numa narrativa. Como bem disse Bastos:

Neste retorno à baila, as atividades de seleção, combinação


e autoindicação reafirmam tanto o vínculo com o real, como
a relação de transgressão que com ele mantêm. Da mesma
maneira, reiteram o próprio cunho operacional, graças ao qual
se ligam ao imaginário com o objetivo de produzir a ficção.
Completamente distintos, fictício e imaginário nutrem entre
si uma parceria profícua, pautada pelo jogo. [...] Iser faz a
defesa da literatura que presta atenção a si mesma, mas não
a aponta como vértice de suposta hierarquia fundamentada
na ideia de progresso artístico (apud Iser: 2013, 15).

Se a ficcionalidade persiste porque o ser humano não con-


segue se definir e, portanto, se encena, o ficcionista é, por sua vez:

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Um ser humano condicionado pelo espaço e tempo que,


todavia, em algum momento decide se entregar ao labor de
escolher, entre os elementos que lhe acorrem à mente, aque-
les que constituirão uma narrativa e os articula da maneira
que lhe parece conveniente (Bastos apud Iser: 2013, 10).

Isso significa dizer que a seleção de determinados cami-


nhos e não de outros aponta para certa intencionalidade do texto,
possibilitando que o impalpável se torne presente ainda que não
necessariamente existente.
Refletir sobre como foi o percurso da vida não tem o obje-
tivo de decifrar o que acontece entre o nascimento e a morte,5 mas
permite que se acesse aquilo que estava oculto ou, ainda, inacessível,
evidenciando a plasticidade da qual somos dotados. Ao ficcionalizar
a própria história, o narrador-personagem do conto de Nepomuceno
faz o esforço de conquistar, de algum modo, a perenidade que possi-
bilitaria a ele esquecer-se de seu próprio fim, de sua própria ruína,
ao passo que reconstrói toda uma rede de histórias, reconfigurando
suas próprias memórias.
Assim sendo, os três contos que foram analisados confirmam
a evolução sazonal que foi antevista na distribuição dos textos pelo
livro. A infância, a vida adulta e a velhice representam o início, o meio
e o fim das diferentes fases da vida e cada uma delas é interpenetrada
pela outra. Para exemplificar: se a infância é o primeiro estágio da
existência de todos, ela também precisará acabar e, consequente-
mente, ceder lugar para a próxima fase da vida. Inclusive, talvez
seja por isso que os contos são transpassados pela pulsão de morte.

5 Ideia trabalhada por Bastos apud Iser: 2013, 23.

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Contornos de A palavra nunca 65

No primeiro, a morte associada a um acontecimento (a morte do


pai do menino). No segundo, previamente marcada pelo ambiente
hostil (a guerra). E, finalmente, no terceiro, a morte é tratada como
inevitável (a idade avançada). Não à toa este conto pertence à parte
“Histórias de um tempo qualquer”, evidenciando que a morte acon-
tece independentemente do tempo e da parte da vida em que nos
encontramos – a morte é, somente, o encerramento de um ciclo.
Não se tratando apenas disso, todos os contos são burilados
dentro de uma estética própria que dialoga e faz jus aos procedi-
mentos de construção de narrativas, principalmente daquilo que
engendra um gênero tão instável – conforme nos apresentou Gotlib
e aprofundou Cortázar – como o conto. Eric Nepomuceno não é ape-
nas um bom contador de histórias, mas é também, principalmente,
um completo ficcionista. Ele concebe o seu universo ficcional ex-
perimentando espaços, tempos, personagens e tensões múltiplas,
trabalhando a linguagem de modo a criar diferentes chaves de leituras
e caminhos interpretativos e, consequentemente, possibilitando de
modo frequente o prazer estético. Sobre a experiência estética, Luiz
Costa Lima comenta que ela acontece a partir de uma atividade de
conhecimento, diferente do conhecimento conceitual, que permite
que o sujeito do prazer (estético) se reconheça em um outro, trazen-
do a alteridade dele para si ao passo que se projeta também nesta
alteridade. Nas palavras de Costa Lima:

A experiência estética, portanto, consiste no prazer origi-


nado da oscilação entre o eu e o objeto, oscilação pela qual o
sujeito se distancia interessadamente de si, aproximando-se
do objeto, e se afasta interessadamente do objeto, aproxi-
mando-se de si. Distancia-se de si, de sua cotidianeidade,

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66 Artigos

para estar no outro, mas não habita o outro, como na


experiência mística, pois o vê a partir de si (apud Jauss et
al.: 1979, 19).

Buscamos, neste artigo, aprofundar os estudos a respeito da


obra de Eric Nepomuceno naquilo que tange a sua vertente de ficcio-
nista ou, ainda, de competência para ficcionalização de uma voz que
vai guiar a elaboração da narrativa de um conto (Gotlib: 2006, 13-4).
Tivemos como meta também a ampliação do número de leitores e
críticos de suas obras literárias. Além disso, ao elegermos o conto
como objeto, pudemos colocar no centro das discussões alguns dos
estudos existentes a respeito do tema.

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Contornos de A palavra nunca 67

Referências

BASTOS, Dau. “Wolfgang Iser e a ficcionalidade como disposição


humana”. In: ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginário: pers-
pectivas de uma antropologia literária. Tradução de Johannes
Kretschmer. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013, pp. 7-24.
CORTÁZAR, Julio. Valise de Cronópio. Tradução de Davi Arrigucci Ju-
nior e João Alexandre Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 1993.
GOTLIB, Nádia Battela. Teoria do conto. São Paulo: Ática, 2006.
LIMA, Luiz Costa. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia
das Letras, 2006.
JAUSS, Hans Robert et al. A literatura e o leitor – textos de estética da
recepção. Coordenação e tradução de Luiz Costa Lima. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1979.
NEPOMUCENO, Eric. A palavra nunca. Rio de Janeiro: Nova Fron-
teira, 1985.

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68 Artigos

Resumo

Desenredando os procedimentos daquilo que faz um conto ser


um conto e empenhando-nos em trazer à baila uma parte da literatura
contemporânea que quase não tem visibilidade, analisaremos neste tra-
balho três contos de Eric Nepomuceno publicados no livro A palavra nun-
ca (1985): “Telefunken”, “O último” e “Um senhor elegante”. Para isso,
será necessário transitar pelos escritos de Julio Cortázar, uma vez que
o escritor e crítico argentino contribuiu de forma contundente para a
compreensão desse gênero literário cuja forma gera grande debate. Os
questionamentos sobre o conto levantados por Nádia Battella Gotlib tam-
bém serão trazidos para discussão. Recorreremos por fim aos estudos de
Wolfgang Iser, que propõe uma visão libertária a respeito da ficção.
Palavras-chave: Eric Nepomuceno; conto; morte; ficção.

Abstract

Unraveling the procedures of what makes a tale a tale and


striving to bring to light a part of contemporary literature that has
almost no visibility, we will analyze in this work three short stories
by Eric Nepomuceno published in the book A palavra nunca (1985):
“Telefunken”, “O último” and “Um senhor elegante”. To accomplish this
goal, it will be necessary to go through the writings of Julio Cortázar,
since the Argentinian writer and critic contributed in a decisive way to the
understanding of this literary genre whose form generates great debate.
Equally relevant, the questions about the tale raised by Nadia Battella
Gotlib will also be brought into consideration. In the end we will turn to
the studies of Wolfgang Iser, who proposes a libertarian view of fiction.
Keywords: Eric Nepomuceno; tale; death; fiction.

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Mira Schendel: personagem e propositora de
reflexões na ficção de Rodrigo Naves

Thais Kuperman Lancman*

O filantropo, primeira obra de ficção do crítico de arte Rodrigo


Naves, foi publicada pela primeira vez em 1998. Trata-se de uma obra
de difícil classificação. Na orelha da primeira edição, João Moura Jr. já
afirma que há uma “promiscuidade de gêneros” (1998, s.p), responsável
pela sensação de estranheza que a obra provoca. Talvez essa sensação
tenha sido a força-motriz que levou diversos críticos e estudiosos da
área de literatura a produzirem artigos sobre O filantropo, principal-
mente estabelecendo relações pertinentes entre a trajetória de Naves
como autor de importantes ensaios sobre artes visuais brasileiras e sua
ficção. Buscando suscitar novos debates, iremos nos aprofundar nessas
relações, destacando a artista plástica Mira Schendel como elemento
de ligação entre a produção crítica e ficcional do autor.
O filantropo é composto por 38 textos curtos, dos quais
apenas sete não são narrados em primeira pessoa: quatro biografias;
“Fábula”, cujo título é autoexplicativo; “Mangas Cavadas”, “que tem
o tom objetivo e distanciado de um hipotético catálogo de vestimen-
tas femininas” (Moura Jr.: 1998, s.p); e “Altivez”, sobre os hábitos
sexuais de uma mulher. Os 31 textos narrados em primeira pessoa
“contam uma história com princípio, meio e fim, apesar de muitos
buracos e de algumas armadilhas bem dissimuladas” (Arêas: 2000,
429). De acordo com Vilma Arêas,


Doutoranda em Literatura Comparada na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Fórum Lit. Bras. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, nº 21, pp. 69-78, jan.-jun. 2019.
70 Artigos

os relatos são ao mesmo tempo autônomos e enlaçados


uns aos outros por fios de resistência variada. O mais
consistente deles define o tema geral do volume que é,
repito, sua ruminação ética, razão de ser do título, e que
vem unida à busca de um ritmo, acentuação da forma
(2000, 431).

Por “resistência variada” é possível entender as variações


de dados biográficos dos narradores. Em um extremo, temos
“Alvura”, narrado por uma freira, e, em outro, formando o núcleo
mais consistente a que Vilma Arêas se refere, uma voz narrativa
que rumina uma elucubração ética, ou, ainda, um “personagem
reconhecível como o Filantropo” (Goldfeder: 2010, 167). Trata-se
da voz de alguém obcecado por medidas e modelos de conduta,
desejando por meio de ações – como cuidar das árvores de sua
rua, pagar o dentista de um porteiro ou até mesmo dar bons
conselhos a amigos – estabelecer uma mediação controlável e
previsível com o entorno a partir do que se entende por um
comportamento ético.
O título e a escolha feliz da imagem de uma régua na capa
da primeira edição, de 1998, apontam na direção de medidas,
semelhantes a uma forma esvaziada e pronta de agir, de ser
correto, de fazer o bem. Ao mesmo tempo, as menções a peso e
leveza, luz e sombra, superfície e profundidade, transparência e
opacidade, que permeiam os mais diferentes textos, constituem
um arcabouço empírico para as ruminações a que Vilma Arêas
se refere, sendo essa plasticidade também um fio que arremata
os textos, mesmo aqueles que escapam à voz narrativa central
de O filantropo.

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Mira Schendel: personagem e propositora de reflexões na ficção de Rodrigo Naves 71

A articulação de uma estruturação “plástica” com uma


composição verbal potencializa tanto possibilidades lite-
rárias quanto possibilidades plásticas e resulta em uma
obra que explora de maneira original e altamente profícua
a interação entre as dimensões formal e temática (Goldfe-
der: 2010, 178).

A ideia de um universo plástico que dialoga com o filosófico


parece ser central para Naves. “Como se trata de ficção, e ficção
radical, o fulcro filosófico, universal, será trabalhado em suas
particularidades concretas, escapando assim à abstração do conceito,
estranha à construção estética” (Arêas: 2000, 431).
Temos, então, em O filantropo, uma filosofia que opera sem
jamais se desligar do concreto, e isso aparece tanto na forma adotada
por Naves (os textos curtos, formando a manga gráfica em blocos
encaixotados na página como quadros expostos em uma galeria de
arte) quanto na maneira como ele trabalha os personagens, aliando
as reflexões em primeira pessoa com hábitos, observações do entor-
no, trânsitos pela cidade, tudo que faz referência à matéria na qual
se moldam o cotidiano e as relações interpessoais. Além disso, o
próprio fazer ficcional como abstração também é o que Naves parece
evitar, estabelecendo conexões com a sua bagagem de crítico de artes
visuais, aspecto em que Mira Schendel ocupa um lugar importante,
uma vez que foi tema de diversos ensaios e textos produzidos por ele,
consistindo uma “via de entrada privilegiada para a interpretação de
uma obra de ficção concebida a partir de um lugar híbrido e original”
(Goldfeder: 2010, 169).
Em A calma dos dias, obra posterior à O filantropo, Naves afir-
ma: “os trabalhos de arte tendem a ampliar o campo de experiência

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72 Artigos

e capacidade perceptiva dos indivíduos e considero essa vocação da


arte algo tão fascinante que, dentro das minhas possibilidades, re-
solvi voltar a ela” (2014, 13). Nessa nota introdutória, explica como
a prosa lhe traz uma satisfação que a crítica de arte não alcança. A
seu modo, acaba sendo uma conciliação da teoria e da prática, con-
siderando que este é o caminho proposto por ele para a construção
de experiências de vida significativas. Também é reconhecível que o
autor explora em sua obra literária “certa propriedade fundamental
da obra de artes plásticas, que, construindo um conjunto único e
simultâneo de enunciados, podem ativar a reverberação de diversas
camadas de significado” (Goldfeder: 2010, 185).
Se Naves estabelece relações entre o fazer artístico indepen-
dentemente do suporte, sendo que para qualquer artista a produção
mais elevada se dá quando a arte explora possibilidades de apreensão
da realidade, então é válido observarmos o ápice desse diálogo em
O filantropo, que é a menção a Mira Schendel em uma das notas
biográficas que compõem a obra.
Em “Mira Schendel (1919-88)”, uma dessas notas biográfi-
cas, há apenas uma breve menção ao seu trabalho artístico: “Seus
desenhos são também isso: traços discretos, breves, mas de uma
intensidade assombrosa” (1998, 58). Um leitor desinteressado jamais
saberia que se trata de alguém continuamente estudada pelo autor.
No restante do texto, Naves opta por descrever as relações de Mira
com sua funcionária, sua maneira de falar e de se vestir. Entretan-
to, o modo como se refere aos desenhos parece se identificar com
o projeto literário do autor. Os textos são breves e à primeira vista
tratam de momentos banais, porém sob as narrativas fragmentadas
se revela a intensidade de pensamentos complexos e tortuosos e uma
humanidade que teme desesperadamente perder-se na banalidade

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Mira Schendel: personagem e propositora de reflexões na ficção de Rodrigo Naves 73

cotidiana. A oposição entre brevidade e intensidade, por fim, remete


à noção de experiência pessoal e transformadora já abordada, em
que o indivíduo busca uma certa clareza para enxergar momentos
que, aos moldes dos desenhos, podem se revelar decisivos apesar de
sua duração exígua.
Na Mira descrita em O filantropo, destacam-se as menções a
seu corpo e autoimagem, retratando não uma artista, mas uma mu-
lher que “precisava de lugares que dessem a seu corpo a possibilidade
simultânea de afirmação e cerceamento, sem que as desproporções
de escala a ameaçassem com uma desenvoltura excessiva” (1998, 57).
Não é à toa que a palavra “escala” é utilizada aqui. “Escala” é
um termo recorrente na produção de Naves, com destaque para um
dos textos de O filantropo, que tem justamente esse título. Consis-
te, portanto, em um liame que perpassa essa obra e a trajetória do
autor. Em “Escala”, o texto, o narrador em primeira pessoa fala de
desproporções. Ele observa a vista de sua varanda em uma cidade
litorânea e afirma: “Se meus olhos se detêm ali ou mais além, sinto
corporalmente as mudanças de escala, expando-me, contraio-me,
sou o que há entre mim e o que eu vejo” (1998, 58). Há uma relação
entre Schendel e esse narrador. Um corpo sujeito às mudanças de
escala, transparecendo a necessidade de controle do externo para
conviver de forma harmônica consigo mesmo. O narrador opta por
observar de longe as mudanças na paisagem, na repetida busca
por controle. Mira pratica o mesmo por meio da afirmação e do
cerceamento. A relação fica marcante pelo seguinte trecho: “Seu
corpo confrontado com os prédios distantes, com o horizonte da
cidade” (1998, 58). Ao imaginar Mira na janela, pensando sobre seu
isolamento diante da paisagem, Naves a aproxima do narrador de
“Escala”, construindo a imagem de uma mulher que “retira medidas”

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74 Artigos

daquele isolamento, como o Filantropo em seu desejo de contro-


le. Já a artista, como analisada em “Mira Schendel: pelas costas”,
ensaio incluído na coletânea O vento e o moinho, realiza desenhos
sem “nenhum intimismo, o elogio de uma escala que nos garantisse
segurança e abrigo” (2007, 269).
O narrador, a quem chamamos “o Filantropo”, traz consigo
uma Paris no coração, referindo-se a medidas; é, afinal, aquele que
deseja clareza do seu lugar no mundo e se orgulha de jamais se des-
cuidar de sua conduta moral. Ele busca afirmar sua individualidade
e, ao mesmo tempo, impor-se uma ética clara, um cerceamento
nascido na aprovação externa. Trata-se de uma aplicação mundana
de uma ética enxergada tanto nos trabalhos de Mira quanto em
sua personalidade, e é justamente essa dubiedade que O filantropo
parece explorar.
O convívio com o mundo e a concomitante separação dele
parecem ser a tônica da relação que Mira Schendel explora nos lu-
gares em que transita, como se pode notar na passagem destacada
acima. Sobre sua produção artística, Naves explica que ela “queria era
potencializar a presença das coisas por meio de operações delicadas
e altamente incisivas” (2007, 116), o que é, aparentemente, a mes-
ma lógica que o Filantropo pratica em sua vida quando descreve,
por exemplo, seu costume de dormir com a luz acesa: “o contraste
do amarelado da iluminação elétrica com a claridade filtrada da
manhã desperta em mim um sentido de operosidade indescritível”
(1998, 45).
Como o Filantropo que não descuida de sua moral – ou pelo
menos assim ele diz e ao mesmo tempo reconhece seus dilemas –, as
obras de Mira Schendel, segundo Naves, problematizam a vontade
de ordenação excessiva do mundo, sem negá-la:

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Mira Schendel: personagem e propositora de reflexões na ficção de Rodrigo Naves 75

Por vezes, elas suspendem todo o peso da existência, como


se um Fred Astaire habitasse nossa casa. Em outras ocasiões,
um pouco mais austeras, ordenam serenamente as coisas,
exigindo delas um comedimento quase oriental (2007, 269).

O filantropo não deixa de ser uma manifestação do interesse


de Naves pela produção de artistas como Schendel e Guignard, ou
ainda outros como Amílcar de Castro, cujas propostas “não se atêm
à sua capacidade de produzir soluções originais para problemas
técnicos, mas volta[m]-se justamente para o sentido dessas soluções
de colocar em ação uma problematização artística acerca de sua
relação com o mundo” (Goldfeder: 2010, 171).
Ao construir uma ficção permeada pela busca de uma filosofia
de vida ao universo plástico, somada a elementos biográficos que
também contemplam essas duas frentes, Rodrigo Naves acaba por
oferecer uma proposta de projeto literário que se consagra também
no que ele mais valoriza no universo das artes visuais. As escolhas
que Rodrigo Naves faz em O filantropo, portanto, são mais do que
coerentes com sua trajetória como escritor e crítico; são laboratórios
de suas experiências, sejam as experimentações artísticas tanto na
ponta do que ele considera o maior valor da arte, quanto na tomada
de consciência das relações com o mundo capazes de tornar a vida
mais rica por meio do sensível. Naves estabelece, acima de tudo, uma
proposição filosófica em que o esforço do contínuo em manter-se
alerta para as experiências que a vida proporciona são o comporta-
mento ético em si, em oposição a um modelo estabelecido de Bem,
Correto ou Justo. Explorar a materialidade do mundo, como fazem
o Filantropo, Guignard e Schendel, é o único comportamento moral
possível e, por fim, aquele que Naves reproduz na sua obra literária,

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inserindo no texto a plasticidade como elemento de apreensão e


reflexão.
Assim, Mira Schendel surge em O filantropo como uma nota
biográfica aparentemente descompromissada, mas se nota sua pre-
sença quase fantasmagórica em diferentes momentos do livro, a
partir da ideia de que a artista, como retratada na produção crítica de
Naves, insere em sua obra as questões morais e filosóficas que são tão
caras para o autor. Uma vez que nota essa potencialidade das artes
visuais e valoriza os artistas capazes de estabelecer por meio de di-
ferentes materiais e técnicas, uma reflexão sobre sua própria relação
com o mundo, Naves aproveita desse conhecimento para construir
sua própria trajetória como artista, na literatura. Essa transposição
acaba por ser um epítome da sua originalidade, inseparável da sua
capacidade de leitura da arte brasileira.

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Mira Schendel: personagem e propositora de reflexões na ficção de Rodrigo Naves 77

Referências

ARÊAS, Vilma. “Além do princípio da superfície: O filantropo, de


Rodrigo Naves”. Veredas, v. 3, dez. 2000, pp. 429-40.
GOLDFEDER, “Entre mim e o que vejo: uma leitura de O filantropo”.
Literatura e Sociedade, v. 15, nº 13, jun. 2010, pp. 166-85.
MOURA JR., João. “Orelha de livro”. In: NAVES, Rodrigo. O filan-
tropo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
NAVES, Rodrigo. O filantropo. São Paulo: Companhia das Letras,
1998.
______. A forma difícil: ensaios sobre arte brasileira. São Paulo: Ática,
2001.
______. O vento e o moinho: ensaios sobre arte moderna e contemporâ-
nea. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
_______. A calma dos dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

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Resumo

Como crítico de arte, focado especialmente na produção moder-


nista brasileira, Rodrigo Naves estudou e analisou em diversas situações
a produção de Mira Schendel, artista suíça radicada no Brasil. Como fic-
cionista, em O filantropo, o autor insere uma biografia fragmentada de
Schendel, em meio a uma obra que aborda muito mais questões morais
do sujeito do que o fazer artístico. Uma análise desse texto, bem como dos
ensaios que Naves produziu a respeito de Mira, sugere a presença da artis-
ta em O filantropo como um indício de que a reflexão moral de Naves é, ao
mesmo tempo, estética, tendo Schendel como propositora dessa postura
ética. A produção de Mira Schendel reflete uma forma de estar no mundo
e interagir com ele, e isso emerge tanto nos textos narrados em primeira
pessoa de O filantropo quanto no projeto literário de Rodrigo Naves, que
pausou a carreira de crítico para exercitar uma ficção radical.
Palavras-chave: literatura contemporânea; arte contemporânea;
li­te­ratura brasileira.

Abstract

As an art critic, focused mainly on Brazilian Modernism, Rodrigo


Naves studied and analyzed in many occasions the works of Mira Schendel, a
Swiss artist who spent most of her life in Brazil. As a fictionist, in O filantropo,
the author inserts a fragmentary biography of Schendel, composing a piece
of literature that is much more about moral issues than about the artistic
process. A comparative analysis of this text with Naves’ essays about Mira and
the latter’s presence in O filantropo suggests that Naves’ moral reflection is at
the same time aesthetic, and Mira stands in it as a statement. Mira Schendel’s
production is a way of being present in the world and interacting with it. This
is made clear not only in first-person narrated texts in O filantropo but also in
Rodrigo Naves’ literary project as a whole, since he paused his career as an art
critic to work on a radical fiction.
Keywords: contemporary literature; contemporary art; Brazilian
literature.

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ENSAIOS
REFLEXÕES DE FÔLEGO
O perseguidor na construção do sujeito
marginalizado: leitura de tensões sociais a partir
dos contos “O perseguidor”, de Julio Cortázar, e
“Espiral”, de Geovani Martins

Clarice Goulart Pedrosa*

Na introdução ao livro Modos da margem: figurações da mar-


ginalidade na literatura brasileira (2015), os organizadores apontam
que “a amplitude da noção de marginal percorre uma ampla gama
de lugares discursivos que vai desde a escolha estética, que se mani-
festa por uma recusa voluntária do cânone literário, até a escolha do
temário da violência e da marginalidade urbana como foco central
das obras” (Faria et al.: 2015, 26). Aqui, eles se referem fundamen-
talmente ao contexto literário brasileiro – tema principal do livro em
que se apresenta tal introdução – no qual a literatura marginal surge
nos anos 80 e passa a integrar o âmbito literário transfigurando-se
em “literaturas marginais” ao longo do tempo.
Apesar de os organizadores apresentarem uma reflexão
acerca da literatura brasileira, é possível que pensemos também
como esse fenômeno se dá na literatura mundial, analisando “não
apenas a literatura que está à margem, mas aquela que se coloca
à margem enquanto proposta de intervenção literária que busca
lançar uma sombra na modelação do sujeito burguês” (Patrocínio:
2013, 644). Fazendo-se um rápido panorama literário, podemos
perceber a existência de diversas obras (apesar de não serem ainda


Mestranda em Letras Neolatinas na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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82 Ensaios

hoje a maioria) que buscam representar “aquele que se desvia das


regras do grupo” (Becker: 2009, 17), apresentando questões acerca
da alteridade e da diferença que permeiam a vivência de mulheres,
pobres, negros, homossexuais, ou seja, de todos aqueles que ocupam
o espaço do outsider.
Em nossa análise, que se dará nas páginas seguintes, iremos
nos ater ao que consideramos uma das categorias de marginalidade:
a dos perseguidores, pensando principalmente em suas represen-
tações urbanas e individuais, de que são exemplos o personagem
principal do conto “William Wilson”, de Edgar Allan Poe, ou ainda
a figura de Frankenstein, inaugurada em 1818 no livro homônimo
de Mary Shelley. Percebe-se que ambos são sujeitos atormentados e
obsessivos que, através da perseguição, buscam a fuga daquilo que
os persegue.
Pensando mais detidamente no contexto literário latino-
-americano, nota-se, sobretudo a partir do início do século XX, um
aumento do número de narrativas nas quais são postos em foco
sujeitos que atuam de maneira perseguidora. É o caso dos contos
fantásticos “O vampiro”, de Horácio Quiroga, e “Em memória de
Paulina”, de Adolfo Bioy Casares, ou ainda o conto policial “A morte
e a bússola”, de Jorge Luis Borges. É importante apontarmos para
essa recorrência do uso da literatura fantástica (e suas vertentes)
como o lugar no qual é possível falar desses sujeitos para além de
uma escrita de testemunho. Esses seres, normalmente silenciados
por seu caráter periférico, frente à “evidência de uma cena complexa
e insólita” (Calvino: 2004, 13), podem “coincidir às vezes [...] com
outro que também não coubesse direito nos próprios documentos”
(Cortázar: 2008, 37), ou seja, coincidir com aquilo que também não
sói existir, mesmo que seja uma narrativa.

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O perseguidor na construção do sujeito marginalizado 83

É nesse cenário que se encontram, enfim, as duas narrativas


literárias que nos servirão de base para reflexão acerca desse tipo de
figura: os contos “O perseguidor” (1959), de Julio Cortázar, no qual o
autor propõe uma perseguição metafórica e sutil, de maneira a criar
um ser perseguidor que, diversas vezes ao longo da narrativa, é tido
como sujeito perseguido, e “Espiral” (2018), do estreante Geovani
Martins, em que, através de uma perseguição literal, é promovida
“uma compreensão acerca das relações sociais que se estabelecem
no fluxo entre centro e periferia” (Patrocínio: 2013, 647). Essas
relações na obra são observadas, porém, não mais por sujeitos que
exercem poder na sociedade, mas sim através do olhar daquele que
é posto à margem – fato que tem sido possibilitado pela crescente
visibilidade que a literatura periférica vem ganhando desde a última
década do século XX.
Dessa forma, nos propomos a investigar neste trabalho a
figura do perseguidor, literal ou metafórico, estabelecendo uma
correlação com as formas de ver e de ser visto do outsider, buscando
um maior entendimento de sua condição a partir do lugar que as-
sume nos contos. O diálogo entre os dois textos nos permite pensar
a condição problemática de um sujeito que se encontra incluído na
sociedade de forma perversa. Afinal, por mais que não esteja excluído
– como afirma Paulo Roberto do Patrocínio ao refletir que classificá-
-los como excluídos seria conceber “os territórios periféricos como
não pertencentes à cidade [...], como detentores de uma população
não atuante em sua esfera pública, apartados da cidade” (2013, 640)
–, é frequentemente estigmatizado por ocupar a periferia.
Contudo, é também esse o lugar no qual ele pode se ressig-
nificar, lançando mão do medo que a diferença desperta para poten-
cializar um novo olhar capaz de desestabilizar o modo pelo qual as

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relações sociais são representadas, uma vez que “o poder de definir a


identidade e de marcar a diferença não pode ser separado das relações
mais amplas de poder” (Silva: 2007, 81). Portanto, quando novos
sujeitos ganham poder de discurso, o ganham também socialmente,
mesmo que isso se dê num longo e árduo processo. Dessa forma,
entendemos que o aumento de visibilidade dado a discursos que
partem da margem é capaz de desconstruir gradativamente o que
Tomaz Tadeu da Silva chama de “a força da identidade normal”, a
qual “nem sequer é vista como uma identidade, mas simplesmente
como a identidade” (2007, 83; grifos do autor).
Para realizarmos nossa análise, porém, é preciso que antes
façamos uma breve contextualização acerca de mais algumas ques-
tões sociológicas e antropológicas que se encontram diretamente
relacionadas à temática de sujeitos tidos como subalternos e mar-
ginalizados.

Sobre não estar de todo


Para buscarmos um melhor entendimento acerca dos sujeitos
perseguidores que se manifestam nos dois contos a serem analisa-
dos, é preciso primeiramente observar a forte relação que pode ser
assumida pelo par de opostos Perseguido x Perseguidor, que gera em
algum nível uma alteração – mesmo que essa não seja inicialmente
percebida – nas relações de poder, desconstruindo a polaridade
atribuída a esses conceitos e criando um novo lugar muito mais ne-
buloso, onde todos ocupam, de certa forma, ambas as posições. Para
alcançarmos esse espaço de desconstrução, entretanto, é necessário
que primeiro olhemos para o lugar dado ao diferente para que depois
possamos fazer uma análise acerca dos contos e de sua fuga à visão
estereotipada do perseguido, que, ao se tornar sujeito e ter agência,

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O perseguidor na construção do sujeito marginalizado 85

gera fissuras naquela ordem anterior – que até então se consolidava


como a única possível – fazendo emergir talvez uma nova ordem.
Segundo Luis Alberto Romero, os grupos subalternos “não
são, em realidade, mas estão sendo [...], não são um sujeito históri-
co, mas sim uma área da sociedade em que se constituem sujeitos”
(1987, 15-6 apud García Canclini: 2000, 280; grifos do autor). Logo,
são seres presentes em diferentes contextos sociais e caracterizados
cada um por seus traços específicos, mas que de alguma forma ocu-
pam um espaço similar na sociedade: o espaço da diferença, que os
torna “’eles’ ao invés de ‘nós’” (Hall: 2016, 145).
Entender, portanto, esse local da diferença ocupado por seres
tidos como outsiders, marginalizados ou subalternos é fundamental
para pensar as representações dessas figuras nos contos de Cortázar
e Martins, tendo em vista a noção de que qualquer sujeito é consti-
tuído não apenas de suas próprias características e convicções, mas
também daquilo que a sociedade lê a partir delas, criando através da
différance1 “marcas da presença do poder” (Silva: 2000, 81). Sendo
assim, consideramos pertinente à nossa pesquisa a reflexão acerca
da “diferença”, que é apresentada no livro Cultura e representação
(2016), buscando-se entender de que forma esse tipo de sujeito sobre
o qual nos debruçamos neste trabalho está presente na sociedade.

Os limites simbólicos são centrais para toda a cultura. A


marcação da “diferença” leva-nos, simbolicamente, a cer-
rar fileiras, fortalecer a cultura e a estigmatizar e expulsar
qualquer coisa que seja definida como impura e anormal. No

1 Conceito desenvolvido por Jacques Derrida em que “o signo é caracterizado pelo diferimento
ou adiamento (da presença) e pela diferença (relativamente a outros signos)” (Silva: 2000, 79).

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86 Ensaios

entanto, paradoxalmente, também faz com que a “diferença”


seja poderosa, estranhamente atraente por ser proibida,
por ser um tabu que ameaça a ordem cultural. Assim, “o so-
cialmente periférico está, com frequência, simbolicamente
centrado” (Babcock: 1978, 32 apud Hall: 2016, 157).

É nesse espaço dicotômico – que será potencializador da voz


desses sujeitos, mas ao mesmo tempo os estabelecerá como outsiders
em sua comunidade – que nos deparamos com a figura do persegui-
dor. Antes de voltarmos nossa análise a ela, porém, é necessário nos
aprofundarmos no conceito de outsider, que apresentamos de forma
breve anteriormente.
O outsider pode ser definido, conforme dito acima, como
aquele que não segue as regras impostas pela sociedade. Porém, tal
como aponta o sociólogo Howard S. Becker em seu livro Outsiders:
estudos de sociologia do desvio (2009), essa definição não expressa
muita informação por si só, pois diversos fatores são imprescindíveis
para que se possa entender a rotulação de qualquer sujeito como
desviante. Uma das questões que se apresenta como mais relevante
para a relativização do status de desviante aplicado a qualquer sujeito
é o fato de que “o desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa
comete, mas uma consequência da aplicação por outros de regras
e sanções a um ‘infrator’. O desviante é alguém a quem esse rótulo
foi aplicado com sucesso; o comportamento desviante é aquele que
as pessoas rotulam como tal” (Becker: 2009, 22). Sendo assim, para
existir um desvio, e consequentemente um outsider, será sempre
posto em questão o “filtro” da comunidade dominante que produz
a noção de desvio. Entendemos, portanto, que os sujeitos são per-
cebidos como outsiders ou como sujeitos marginais, não por terem

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quebrado qualquer regra, mas sim por se situarem fora dos grupos
que estão em posição de poder.
Sykes e Matza propõem a ideia de que “o delinquente se
aproxima de uma concepção de si como uma ‘bola de bilhar’, vê a
si mesmo como irremediavelmente impelido para novas situações”
(1957, 667-9 apud Becker: 2009, 39). Essa colocação dos autores
aponta para comportamentos que podem ser observados ao anali-
sarmos homicidas, stalkers2 e até mesmo artistas. Julio Cortázar,
conhecido por seu caráter desviante, afirma em um pequeno texto
nunca ter admitido “uma clara diferença entre viver e escrever”
(2008, 34), reforçando o que Becker diz ao apontar a incapacidade
de certos sujeitos de fugirem de seus instintos, estando, portanto,
em oposição – e frequentemente em embate – à “pessoa ‘normal’
[que], quando descobre em si um impulso desviante, é capaz de
controlá-lo pensando nas múltiplas consequências que ceder a ele
lhe produziria. [Que] já apostou demais em continuar a ser normal
para se permitir ser dominada por impulsos não convencionais”
(Becker: 2009, 38).
A partir dessa colocação de Becker, podemos perceber que
o que parece diferenciar outsiders de pessoas tidas como comuns é
a incapacidade de negar impulsos em prol do que foi estabelecido
como norma pela sociedade. Levando em consideração os dados
sociológicos e antropológicos levantados até aqui, propomos em
seguida um diálogo com as figuras ficcionais que protagonizam os
dois contos escolhidos como objetos de pesquisa, a fim de analisar
como eles correspondem a esse grupo social dos outsiders, como se

2 Aqui a palavra stalker é utilizada com o intuito de marcar apenas a perseguição literal, visto que
a palavra em português está sendo usada por nós tanto de modo denotativo como conotativo.

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dá sua convivência com outros personagens dos textos e, também,


com as próprias regras sociais.

Sobre perseguidores e perseguidos


Em um conto que aparece como um ponto de virada de sua
obra, Julio Cortázar explora os limites da noção de perseguição.
“O perseguidor” (1959) traz um enredo que problematiza desde o
título esses papéis supostamente fixos que se estabeleceram nas
interações sociais. No primeiro momento da leitura, a relação de
perseguidor e perseguido se estabelece entre o jornalista Bruno e
um famoso saxofonista de jazz, Johnny Parker, que se encontra em
momento de “decadência” tanto em sua carreira, quanto em sua vida
pessoal. Pensado a partir da figura concreta do músico americano
Charlie Parker, Johnny é apresentado como um gênio do jazz, mas
ao mesmo tempo como uma figura subversiva a qual parece pouco
dada a firmar qualquer relação de compromisso.
É importante apontar, contudo, que a representação cons-
truída do saxofonista, assim como o juízo de valor aplicado as suas
atitudes chegam ao leitor, na maior parte do texto, a partir do olhar
de Bruno, que além de amigo é responsável por escrever a biografia
de Johnny Parker. Sendo assim, acompanhamos a trajetória do
músico tendo como “filtro” as percepções de alguém que se pauta
pelas regras da sociedade e não a partir do olhar de um outsider, fato
que será fundamental para uma leitura não apenas do sujeito que
entendemos aqui como um perseguidor, mas também da sociedade
na qual ele está inserido.
A abordagem dicotômica, apontada na sociologia por Becker
quando discorre sobre a relação entre o outsider e o cidadão comum,
é evidente ao observarmos a interação entre os personagens Johnny

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O perseguidor na construção do sujeito marginalizado 89

e Bruno. O jornalista, que no conto representa o sujeito que está


de acordo com a ordem social de sua comunidade, mostra-se cons-
tantemente atravessado por sentimentos conflitantes em relação a
Johnny. Podemos observar essa questão no seguinte fragmento, em
que Bruno discorre inicialmente sobre o saxofonista e sua namorada,
Dédée, e em seguida foca seu discurso no músico:

Invejo um pouco essa igualdade que os aproxima, que os


torna cúmplices com tanta facilidade; do meu mundo puri-
tano [...] vejo-os como anjos enfermos, irritantes por causa
da irresponsabilidade [...]. Invejo Johnny, esse Johnny do
outro lado, sem que ninguém saiba exatamente o que é esse
outro lado. Invejo tudo menos a sua dor, coisa que ninguém
deixará de compreender, mas mesmo em sua dor deve haver
o vislumbre de algo que me é negado. Invejo Johnny e ao
mesmo tempo me dá raiva que esteja se destruindo pelo
mau emprego dos seus dons, pela estúpida acumulação
de insensatez que a pressão da sua vida requer (Cortázar:
2012, 34-5).

Nessa passagem, nos deparamos com um Bruno que, além


de apresentar sentimentos contraditórios em relação a Johnny, é
marcado por um não entendimento da figura do saxofonista, que lhe
parece frequentemente alguém que fala outra língua, afinal, para o
jornalista, “Sempre se está mais fora de Johnny do que de qualquer
outro amigo. [...] a diferença de Johnny é secreta, irritante por ser
misteriosa, porque não tem nenhuma explicação” (pp. 54-5). Aqui o
incômodo causado pelo desconhecido se mostra claro. É a diferença
atuando como definidora de um “outro”, que não cabe totalmente na

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sociedade em que está inserido, incômodo que, à medida que causa


irritação, gera também fascínio.
Ainda pensando nessa convivência conflituosa entre tipos
de sujeito que Cortázar nos apresenta em “O perseguidor”, é im-
portante apontarmos quais são as consequências práticas geradas
a partir das ações desse sujeito comum. Em algumas passagens do
texto, Bruno parece aproximar-se mais do pensamento apresenta-
do pelo saxofonista e chega até a mostrar-se avesso à forma como
outros personagens olham para Johnny, conforme fica evidente no
seguinte fragmento:

A marquesa, por exemplo, acredita que Johnny teme a


miséria, sem perceber que a única coisa que Johnny pode
temer é não encontrar uma costeleta ao alcance do garfo
quando tem vontade de comê-la, ou uma cama quando tem
sono, ou cem dólares na carteira quando lhe parece normal
ser proprietário de cem dólares (p. 42).

Apesar de expor um olhar mais consciente em relação a


esse outsider, frequentemente participa de ações que contribuem
para cercear as ações “incomuns” do músico, motivado pela noção
da importância do sucesso de Johnny para sua própria carreira de
biografista, ou pela tentativa de adequá-lo àquilo que a sociedade
espera dos sujeitos nela inseridos.
As tentativas de Bruno em “trazê-lo à realidade” (p. 54),
mesmo questionando-se sobre o conceito de “realidade”, mos­tram-
se frequentes. Ao longo do conto, transfiguram-se em tentativas
frustradas de “salvar” alguém que não tem noção da necessidade
de ser salvo – e que, talvez, em seu próprio mundo esteja menos

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desconfortável que o próprio Bruno, afinal, como aponta Becker,


“aquele que infringe a regra pode pensar que seus juízes são outsi-
ders” (2009, 15). A tentativa do jornalista de “salvar” o saxofonista
é representada também na cena em que Johnny ajoelha-se e chora
em sua frente, e Bruno – narrador do conto – afirma: “no final eu é
que fiz papel ridículo, porque não há nada mais lamentável do que
um homem se esforçando para mover outro que está muito bem do
jeito que está, que se sente perfeitamente bem na posição que lhe
dá vontade” (p. 67).
Até esse momento nos debruçamos sobre a diferença que
entendemos existir na constante oposição entre o homem “comum”
e o outsider. Porém, para que possamos falar sobre a figura de Johnny
Parker como sendo um perseguidor, é preciso entender de que modo
e através do que se dá essa perseguição.
Ao longo do conto, percebe-se que o saxofonista é um sujeito
que surge sempre em oposição aos demais personagens, caracterizan-
do-se (e sendo caracterizado) como o diferente. Esse dado torna-se
perceptível não apenas através do olhar do narrador Bruno, mas
também por meio de diálogos, nos quais o próprio Parker exprime
diretamente esse lugar incômodo que ocupa. Johnny é estabelecido,
portanto, como aquele que, se “pudesse orientar essa vida [...], talvez
acabasse na pior, na loucura completa, na morte” (p. 35). É o sujeito
que “jamais teve a ideia do que é esperar nada” (p. 30), “obcecado por
algo que sua pobre inteligência não alcança” (p. 39). Percebe-se que, já
no começo do conto, o autor nos fornece dicas da conclusão que será
alcançada pelo narrador posteriormente: Johnny é um perseguidor
e não um perseguido. A negação da espera, tal qual a obsessão são
traços marcantes na figura de um perseguidor. Afinal, uma vez que
seu “alvo” é definido, é impossível negar-se ao impulso de buscá-lo.

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Consideramos necessário chamar atenção para o fato de


que a perseguição – literal ou metafórica – pode se dar a partir de
múltiplos gatilhos. Na literatura e no dia a dia, encontramos figuras
marcadas por diferentes tipos de obsessões e vícios, desde homens
que seguem mulheres e cometem atos criminosos em relação a elas,
até viciados em trabalho, que estão a todo momento buscando uma
oportunidade para crescerem em suas carreiras. Johnny não se
estabelece como nenhuma dessas figuras, mas sim como uma que é
constantemente associada a uma perseguição metafórica: a figura
do artista.
Desde as primeiras páginas do conto de Cortázar, nota-se
a conexão do personagem com o mundo através da música. É ela a
responsável por seus momentos de genialidade e também seus lapsos
de descontrole, já que é a partir dela que ele busca entender-se e é
para onde sempre caminha. O jazz torna-se urgência, obsessão. Logo
na primeira cena em que temos contato com a sua figura, Johnny
afirma que tem “de tocar e acabou-se” (p. 10). Sua genialidade e seu
destempero aparecem nesse contexto como algo que Bruno vai cha-
mar de “fachada, algo que todo mundo pode chegar a compreender
e admirar, mas que encobre outra coisa, e essa outra coisa é a única
que deveria importar para mim, talvez porque é a única que importa
verdadeiramente para Johnny” (p. 40).
Essa outra coisa da qual Bruno fala – mas que observamos
como algo que ele não consegue alcançar – é aquilo que Johnny per-
segue. Talvez a perfeição, talvez a singularidade, mas concretamente
sua obsessão.

sua música era uma confirmação e não uma fuga. [...] Esse
estilo que merece nomes absurdos sem necessitar de ne-

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nhum, prova que a arte de Johnny não é uma substituição


nem um completamento. [...] e quando Johnny se perde,
como nessa noite, na criação contínua da sua música, sei
muito bem que não está escapando de nada. Ir a um encon-
tro não pode ser nunca escapar (pp. 40-1).

O fragmento acima é ponto crucial na narrativa, pois marca


um dos poucos momentos em que o narrador discorre sobre Johnny
de maneira mais empática, buscando um olhar que não esteja apenas
reproduzindo aquele pertencente à massa de sujeitos comuns. Depa-
ramo-nos, portanto, com um Johnny inteiro, mas que não cansa de
perseguir – a si mesmo, ou talvez àqueles que tentam dizer-lhe que
não se encaixa, ou ainda a uma realidade diferente, na qual não seja
tachado de excêntrico ou louco por fazer arte – através de sua música.
Após todas essas “pistas” criadas por Bruno, atinge-se o
clímax do texto quando o narrador finalmente enxerga tudo aquilo
que está a sua frente, tal qual a pessoa que percebe que é perseguida
na rua por um estranho após algumas quadras. Sua nova percepção
acerca de Johnny o invade:

Johnny não é uma vítima, não é um perseguido como todo


mundo acredita [...] agora sei que não é assim, que Johnny
persegue em vez de ser perseguido, que tudo que lhe está
acontecendo na vida são azares de caçador e não de animal
acossado. Ninguém pode saber o que é que Johnny perse-
gue, mas é assim, está aí, em amourous, na marijuana, em
seus discursos absurdos sobre tantas coisas, nas recaídas,
no livrinho de Dylan Thomas, em todo pobre-diabo que
Johnny é, e que o engrandece e o converte em um absurdo

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vivo, num caçador sem braços e sem pernas, numa lebre


que corre atrás de um tigre que dorme (p. 58).

A partir daí, seu insight o atinge de tal forma que pela pri-
meira vez no conto é ele, e não Johnny, a perder de certa forma o
controle de suas ações. De início, é alcançado por “uma vontade de
vomitar, como se isso [o] pudesse [...] livrar dele, de tudo que nele
vai contra [Bruno] [...] e contra todos” (p. 59), como se o próprio
Johnny finalmente tivesse conseguido chegar até ele em sua eterna
perseguição de quem não sabe exatamente o que quer, nem o que
persegue. Em seguida, são os outros personagens que passam a
incomodá-lo, talvez por invejar sua ignorância por não enxergarem
a verdadeira faceta de Johnny, que ele agora vê claramente.
Entendemos, portanto, quais são as características do per-
sonagem de Johnny Parker que o tornam um potente outsider, um
sujeito subversivo e habilitado como perseguidor nato. Sua veia
artística é estabelecida no conto como a ponte que lhe entrega um
olhar diferenciado, capaz, por consequência, de o levar a ocupar um
outro lugar, “sem ocupar nenhum lugar” (p. 85). O caminho traçado
por ele, tal como o “lugar” que pretende atingir mostram-se por fim
como uma mancha borrada, que não consegue ser vista claramente
pelos leitores, por Bruno nem pelo próprio Johnny, que evidencia
isso ao falar que o que toca “é Bee morta, sabe, enquanto o que eu
quero, o que eu quero...E por isso às vezes piso em cima do sax e as
pessoas pensam que passei um pouco da conta na bebida” (pp. 82-3),
e, posteriormente, chegar a conclusão de que vai “morrer sem ter
encontrado...sem...” (p. 83).
Essa dedução exposta pelo músico põe uma lente de aumento
sobre um sujeito que até então parecia agir apenas por impulso. O

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Johnny apresentado nesse momento não se opõe à figura com a qual


nos chocamos por todo o texto, mas é marcado por um dado extra:
uma sobriedade ao perceber que seus atos lhe são intrínsecos, mas
ao mesmo tempo o desafiam e o frustram.
Apesar de não chegarmos, portanto, a uma conclusão fe-
chada acerca do que está sendo perseguido a todo momento por
Parker, torna-se claro ao final do texto que, para a perseguição,
nem sempre se precisa estabelecer um alvo específico, ou até mes-
mo qualquer alvo. Toda a perseguição depende, principalmente,
de alguma figura – ainda mais se essa (ou essas) for detentora de
alguma espécie de poder em sua comunidade – sentir-se perseguida
por alguém ou até mesmo por sua ideologia. Encerramos o texto
com a percepção de que Johnny, de fato, nunca chegará ao que
persegue, porém atinge não só aqueles a sua volta, como também
toda uma convenção social quando se estabelece como perseguidor.
Dessa forma, mesmo não alcançando, aparentemente, nenhum
objetivo, balança as estruturas sociais, trazendo novas reflexões
e novas formas de buscar um entendimento acerca da “realidade”
para a sociedade na qual está inserido. Essa questão fica explícita
no seguinte fragmento:

Ele [Johnny] é realmente o chimpanzé que quer aprender a


ler, um pobre sujeito que dá com a cara contra as paredes,
e não se convence, e volta a começar.

Ah, mas se um dia o chimpanzé se põe a ler, que falência


geral, que desarrumação, que se salve quem puder, eu em
primeiro lugar. É terrível que um homem sem grandeza
alguma se atire desse jeito de encontro à parede. Ele nos

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denuncia a todos com o choque dos seus ossos, nos transfor-


ma em migalhas com a primeira frase da sua música (p. 62).

O jogo da perseguição
Em “Espiral” (2018), de Geovani Martins, nos deparamos
com uma estrutura que de começo já se apresenta diferente daqui-
lo que havíamos observado em “O perseguidor”. O primeiro dado
relativo a isso, e talvez o menos relevante, diz respeito à extensão
do conto: enquanto o texto de Cortázar é particularmente longo,
pensando-se na média para esse formato de textos, o de Martins é o
contrário, um texto sucinto. É importante salientar que tal questão
não influencia a qualidade de nenhum dos dois textos, apenas pode
gerar experiências de leitura diferentes.
A segunda questão que distancia os dois contos refere-se ao
modo de narração. Apesar de notar-se a presença de um narra­­­dor-
personagem em ambos os casos, os tipos de sujeitos representados
por cada um deles são diferentes. Em “O perseguidor”, assistíamos
a todas as ações do tipo perseguidor a partir do “filtro” de alguém
considerado um cidadão comum. Já, em “Espiral”, é o próprio per-
seguidor que fala ao leitor, fato que nos apresenta uma outra pers-
pectiva e permite a percepção de que o personagem que persegue
nesse conto tem consciência de seus atos – afinal, ele afirma: “nunca
esquecerei da minha primeira perseguição” (Martins: 2018, 18) –,
o que não se pode deduzir no conto de Cortázar, mas o narrador
supõe não acontecer.
Pode-se dizer, ainda, que o conto de Geovani Martins nos
fornece outra representação da figura do perseguidor. Isso ocorre,
pois o outsider que coordena a perseguição nesse texto parte de um
outro lugar de marginalidade. Enquanto Johnny diferenciava-se dos

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demais por sua veia artística que era seu único foco, o personagem
de Martins – que não possui nome – opõe-se aos outros personagens
com quem interage por questões de classe: ele é o homem pobre e
morador de comunidade que desperta o medo nos habitantes da área
nobre da cidade; quando era avistado, “uma velha segurava a bolsa
e atravessava a rua” (p. 17).
Esse incômodo que o personagem causa em figuras com
poder aquisitivo superior ao seu, a princípio, o diverte. Isso se dá,
talvez, por perceber-se em certa posição de poder pela primeira vez,
já que não possuía os privilégios daquela elite que agora o temia e,
no colégio, ele e seu “bonde” não metiam “medo em ninguém” (p.
17). Essa visão positiva frente à posição ocupada por si na socieda-
de, porém, logo se transfigura em outra, causada pela percepção do
“abismo que marca a fronteira entre o morro e o asfalto” (p. 18).
Talvez seja essa nova perspectiva adotada pelo personagem
que o faça tomar ações que mais uma vez o afastarão do personagem
de Johnny Parker. Como mencionado anteriormente, Johnny pode
ser entendido como um perseguidor metafórico. Apesar de gerar a
sensação de perseguição para certos sujeitos dominantes e até mesmo
para a “instituição” sociedade, não persegue nada literalmente, ao
contrário do jovem de “Espiral”, que atuará como stalker de sujeitos
que representam tudo aquilo que o oprime, que o coloca na posição
de marginalizado.
Pensando na evolução do personagem de Geovani Martins,
observamos o amadurecimento de um jovem que busca, através da
perseguição, uma forma de alterar o sistema no qual está inserido.
Inicialmente, percebe-se esse narrador como o sujeito que é perse-
guido de alguma forma. Ele afirma que “tudo começou do jeito que
[...] mais detestava: quando eu, de tão distraído, me assustava com

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o susto das pessoas e, quando via, era eu o motivo, a ameaça” (p.


18), apontando para o fato de que, a seu modo de ver, todas as suas
atitudes posteriores estariam funcionando como respostas a esses
olhares maldosos que o seguiam.
Sua decisão de tentar mudar as “regras do jogo” surge, então,
como um impulso, algo que “não entendia bem” (p. 18), mas que o
faz seguir uma senhora sem que pensasse em mais nada. Essa perse-
guição, em um primeiro momento, gera no personagem sentimentos
contraditórios, assim como os que Bruno nutria por Johnny, evi-
denciando um sujeito fragmentado, que percebe as regras impostas
pela sociedade, mas se vê interpelado pela necessidade de escapar
delas indo ao seu encontro, chocando-se contra elas. Esse primeiro
momento de confusão interna pode ser observado no fragmento:

Passado o turbilhão, fiquei com nojo de ter ido tão longe,


lembrando da minha avó, imaginando que aquela senhora
também devia ter netos. Porém, esse estado de culpa durou
pouco, logo lembrei que aquela mesma velha, ­que tremia
de pavor antes mesmo que eu desse qualquer motivo, com
certeza não imaginava que eu também tivera avó, mãe,
família, amigos, essas coisas todas que fazem nossa liber-
dade valer muito mais do que qualquer bolsa, nacional ou
importada (p. 19).

Apesar desse discurso em que menciona a importância de


manter sua liberdade, o texto vai se desenrolando de forma a cons-
truir um sujeito perseguidor que atua como refém de seus próprios
impulsos, afinal, “sentia que não poderia parar” (p. 19). Torna-se, as-
sim como Parker, um sujeito que enxerga para além do que os outros

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veem, passando a ocupar lugar nenhum, não cabendo mais em seu


“bonde”, nem fazendo parte daquela elite que perseguia pelas ruas.
A perseguição de algo que parece não saber exatamente o
que é – mas que vai além daqueles seres que transitam pelas ruas
da zona nobre da cidade – torna-se, portanto, um retrato de si mes-
mo. Perseguir essa obsessão, com o passar do tempo, “foi ganhando
forma de pesquisa, estudo sobre relações humanas. [...] começava
a entender com clareza meus movimentos, decifrar os códigos dos
meus instintos” (p. 19).
Assim como Johnny busca alcançar algo em sua música, algo
que já não sabe o que é e que ninguém compreende, o perseguidor
construído por Martins vai aos poucos aprimorando suas técnicas
para que sua perseguição corresponda melhor àquilo que espera
sentir ao fazê-la. É importante marcar, porém, que, apesar de per-
cebermos uma busca por suprir suas necessidades individuais – da
mesma forma que faz o personagem de Cortázar e tantos outros –,
existe uma forte presença em “Espiral” de uma motivação social,
que funciona como uma denúncia a essa “realidade” tão incômoda
ao narrador. Não podemos afirmar com certeza seu objetivo final,
porém se nota uma tentativa clara de subverter certos valores sociais
à medida que o outsider toma as rédeas da situação e se coloca em
posição de poder frente à sociedade dominante, mesmo que isso só
ocorra nos momentos em que persegue alguém.
Caminhando para o final do conto, o perseguidor parece esta-
belecer em seu próprio jogo uma lógica que se aproxima mais daquilo
que espera alcançar. Passa, então, a focar-se em apenas um alvo, que
se encaixa não apenas no sujeito comum que segue as regras da so-
ciedade, mas também nessa elite responsável por fazer julgamentos
e definir padrões. Mais uma vez, nota-se no conto uma crítica a esse

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tipo de sujeito quando a perseguição não é percebida, apontando para


uma sociedade que invisibiliza sujeitos que não estão encaixados nos
padrões dominantes, de forma a justificar-se o ato do perseguidor.
Apesar disso, eventualmente, o jovem é percebido pelo homem perse-
guido. “Três meses. Até o dia em que li em sua expressão o horror da
descoberta” (p. 21). A expressão marcada pelo horror assemelha-se ao
choque do jornalista do conto de Cortázar ao se dar conta de que aquele
sujeito que pensava ser perseguido era, na realidade, um perseguidor.
É o choque do medo, mas ao mesmo tempo o choque de alguém que se
percebe não soberano e, portanto, ameaçado pela inversão de poder.
Por fim, assim como a morte de Johnny reorganiza o âm-
bito em que vive, restabelecendo os valores e detentores de poder
naquela “realidade”, o desfecho de “Espiral” se dá como uma reto-
mada de poder por parte do sujeito comum. “Mário, completamen-
te transtornado, segurava uma pistola automática. Sorri pra ele,
percebendo naquele momento que, se quisesse continuar jogando
esse jogo, precisaria também de uma arma de fogo” (pp. 21-2). Essa
frase finaliza o conto – tal como ocorre em “O perseguidor” após a
morte do saxofonista –, já que a perseguição, que atuava como foco
do texto, não pode ter continuidade, o que aponta para a dificulda-
de que outsiders encontram ao tentarem deslocar de certo grupo o
domínio da sociedade.

Conclusão
Após analisarmos os personagens dos contos de Julio Cor-
tázar e Geovani Martins, conseguimos estabelecer algumas questões
que nos parecem caracterizar a figura que chamamos de perseguidor,
por mais que tenhamos apontado diferenças entre os textos e os dois
personagens responsáveis por algum tipo de perseguição.

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A principal dessas questões, que conduzirá a construção


de um sujeito perseguidor em ambas as narrativas, diz respeito à
marcação desses indivíduos como representantes de uma “catego-
ria” outsider, ou seja, do ser que quebra as regras estabelecidas pela
sociedade dominante. Percebemos em nossa análise não apenas que
essa categoria pode ainda subdividir-se quanto ao tipo de espaço
marginalizado ocupado pelo personagem – sendo Johnny um artista
e o jovem de “Espiral” um representante da periferia, mesmo que
esteja geograficamente próximo ao “centro” –, mas também ao que
concerne à própria ideia de perseguição. Afinal, nos deparamos com
um perseguidor metafórico e outro literal.
Apesar dessa última diferença apontada, percebe-se que
dentro dos textos, muitas vezes, metáfora e literalidade se confun-
dem. Johnny persegue algo abstrato, mas, ao fazê-lo, gera naqueles
à sua volta a sensação de estarem sendo perseguidos e de terem seus
valores violados, ao passo que o personagem do conto de Martins
consegue perseguir um ideal diferente de sociedade ao se tornar
stalker de sujeitos da elite de sua cidade.
Esse efeito é gerado, pois os dois personagens não são defi-
nidos como perseguidores no sentido pejorativo da palavra, embora
em certos momentos atuem como tais. Não se caracterizam como
sujeitos perversos que perseguem o “cidadão de bem” ou que simples-
mente não demonstram respeito pelas regras, mas sim como tipos
que assustam esses sujeitos dominantes por perseguirem algo que
não é palpável: a possibilidade de existir e ocupar espaço na sociedade
sem que sejam oprimidos, possuindo voz.
Dessa forma, propomos que em ambos os casos aqui apre-
sentados o conceito de perseguição possa ser redefinido em algum
grau. O que antes era tido como um ato de agressividade, de remoção

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do direito à privacidade, pode significar nesse âmbito libertação e


mudança. Os sujeitos apontados como outsiders e marginalizados
não serão caracterizados como perseguidos, como Bruno pôde notar
em “O perseguidor”, mas tampouco são transfigurados em vilões,
afinal, nem se encontram em posição de poder para tal.
Sendo assim, mais uma vez ocupam um entre-lugar, o qual
gera desconforto para aqueles acostumados ao seu espaço de privi-
légio e convertem-se assim – aos olhos desses sujeitos comuns – em
perseguidores, e realmente o são. Perseguidores de uma nova forma
de se experienciar a vida, de estabelecer relações e de se olhar o que
está ao redor, para muitos vistos como revolucionários e para tantos
outros como baderneiros, desordenadores e ameaçadores.

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Referências

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104 Ensaios

Resumo

Desde o início do século XX, a produção literária latino-ameri-


cana vem se debruçando com mais atenção sobre os espaços periféricos
e os sujeitos que os habitam, apresentando como resultado uma ficção
povoada por diferentes representações dos subalternos e marginalizados.
Nesse contexto, destaca-se Julio Cortázar, que, em 1959, cria a figura do
“perseguidor” em conto homônimo. O sujeito marginalizado de Cortázar
acaba por subverter a imagem que os demais fazem dele, sendo ao final
visto não como um ser perseguido pela sociedade, mas sim como um ele-
mento ameaçador por colocar em xeque as formas de vida que imperam
na realidade em que está inserido. Notamos, porém, que a significação
dessa figura não se encerra na mera condição de um personagem literário
que problematiza o papel de um artista, podendo ser lida também como
um status do ser marginalizado, seja ele oriundo de qualquer esfera ou
campo da vida social. Dessa forma, o presente trabalho propõe analisar a
figura do Perseguidor para além do conto no qual aparece, estabelecendo
uma correlação com as formas de ver e de ser visto do sujeito subalter-
no. Para alcançar uma visão mais ampla da figura de que tratamos aqui,
traçaremos um paralelo entre a narrativa de Cortázar e o conto “Espiral”,
publicado em O sol na cabeça (2018), livro de estreia do autor brasileiro
Geovani Martins. O diálogo entre os dois textos nos permite pensar o
lugar problemático de um sujeito à margem da cidade e da sociedade, lu-
gar onde é invisibilizado mas que é também onde pode se ressignificar,
lançando mão do medo que a diferença desperta a fim de potencializar um
novo olhar para as relações sociais.
Palavras-chave: perseguidor; marginal; Cortázar; Martins.

Abstract

Since the beginning of the twentieth century Latin-American


literature production has been musing more thoroughly on peripheral
spaces and their inhabitants, offering productions whose characters

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are marginal subjects. In this context, Julio Cortázar stands out for
presenting, in 1959, the persecutor character in one of his short stories
called “O perseguidor”. In this tale, the character subverts his image,
being seen, at the end, as a persecutor, instead of a persecuted, due to his
ability to change the normative way of life. However, we notice that what
the persecutor’s image represents is not only what this tale shows, but
can also be seen as a status of the marginal. Therefore, the present article
proposes an analysis of the persecutor as a status of the subordinate
subject. In order to achieve our purpose we analyse Cortázar’s tale
together with “Espiral”, a Brazilian tale published in Geovani Martins’s
book called O sol na cabeça (2018). The debate between the tales allows us
to get closer to the borders of the city and the society, understanding this
place where the characters remain unseen, but at the same time enhance
their ability to see social relations in a different way.
Keywords: persecutor; marginal; Cortázar; Martins.

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O canto de Eliane Potiguara em
Metade cara, metade máscara

Marina Beatrice Ferreira Farias*


Izabela Guimarães Guerra Leal**

Atualmente, vivenciamos uma maior visibilidade e valori-


zação da literatura como porta-voz das minorias sociais, fruto de
diferentes contextos, etnias e origens. Esse olhar, dirigido a outros
caminhos e outras histórias que não fazem parte do contexto clássico
do homem branco eurocêntrico, vem se manifestando pelas várias
publicações no mercado editorial voltadas para escritores indígenas.
Dentre elas, destaca-se o livro Metade cara, metade máscara, da fic-
cionista e poeta Eliane Potiguara, publicado em 2018.
A publicação de livros cuja autoria seja atribuída a lideran-
ças e escritores indígenas é de suma importância para a resistência
desses povos. No caso de Eliane Potiguara, sua trajetória é marcada
pela violência da colonização que obrigou seus antepassados a
migrarem de sua aldeia para a cidade, o que fez com que a autora
passasse a maior parte da infância enclausurada em um quarto pela
avó, em uma tentativa de protegê-la e manter vivos os costumes
passados de geração a geração. Portanto, a voz de Eliane Potiguara
configura uma entre tantas vozes de indígenas desaldeados. Daí a
importância de uma pesquisa que se ponha à escuta dessa voz. No
livro Desocidentada: experiência literária em terra indígena (2009), a


Graduanda no Curso de Licenciatura em Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA).
∗∗
Professora adjunta de Literatura Portuguesa da Universidade Federal do Pará (UFPA).

Fórum Lit. Bras. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, nº 21, pp. 107-29, jan.-jun. 2019.
108 Ensaios

pesquisadora Maria Inês de Almeida explica qual a importância da


escrita para os povos indígenas:

Como discurso político, o livro demanda e provoca uma es-


cuta. Antes da posse dos instrumentos da escrita, os índios
não puderam impor sua fala, porque não havia condições de
possibilidade para uma leitura do texto oral. Agora, as falas
contidas nos livros indígenas recém-publicados encontram,
embora transformadas, a forma visível. Os próprios índios
passam a configurar, através das formas impressas (letras
e desenhos), seus traços culturais e suas diferenças mais
marcantes (p. 91).

Além da escuta, se faz necessário investigar o lugar que a


poesia de Eliane Potiguara constrói na literatura, já que a produção
escrita de autoria indígena constitui um acervo ainda pequeno, como
afirma Cláudia Neiva Matos no artigo “Textualidades indígenas do
Brasil”: “no universo da comunicação verbal indígena [...] a quase
totalidade desse patrimônio foi constituída na tradição oral. A pro-
dução de literatura escrita, por autores individualizados, é caso ainda
muito excepcional” (2012, 9). Isso se explica, nas palavras de Maria
Inês de Almeida, pelo fato de que “os índios não precisam da escola
e da escrita para contar suas histórias [...]. Eles precisam dela para se
representarem, representando seu universo, para o mundo fora da
aldeia” (2009, 78). Esse é o lugar da trajetória de Eliane Potiguara, em
que o “estar em casa” é sempre uma ausência, e a identidade se torna
o limiar conflituoso entre povos, um rasgo, uma fronteira, como fica
explícito nos versos do poema Pankararu: “Não somos daqui / Nem
de acolá... / Estamos sempre ENTRE / Entre este ou aquele / Entre

Fórum Lit. Bras. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, nº 21, pp. 107-29, jan.-jun. 2019.
O canto de Eliane Potiguara em Metade cara, metade máscara 109

isto ou aquilo!” (2018, 62). O conceito de “entre-lugar”, proposto por


Silviano Santiago no ensaio “O entre-lugar do discurso latino-ame-
ricano”, busca explicar de que forma o discurso latino-americano se
inscreve no Ocidente:

A América Latina institui seu lugar no mapa da civilização


ocidental graças ao movimento de desvio da norma, ativo e
destruidor, que transfigura os elementos feitos e imutáveis
que os europeus exportavam para o Novo Mundo. Em vir-
tude do fato de que a América Latina não pode mais fechar
suas portas à invasão estrangeira, não pode tampouco
reencontrar sua condição de “paraíso”, de isolamento e de
inocência, constata-se com cinismo que, sem essa contribui-
ção, seu produto seria mera cópia – silêncio. [...] O silêncio
seria a resposta desejada pelo imperialismo cultural, ou
ainda o eco sonoro que apenas serve para apertar mais os
laços do poder conquistador. Falar, escrever, significa: falar
contra, escrever contra (2000, 17).

A partir desse conceito, percebe-se que a poesia de Eliane


Potiguara cria um novo espaço na literatura brasileira, que obede-
ce historicamente a uma tradição ocidental e europeia, e que, de
forma ainda recente, está sendo ocupado pela escrita feminina e
indígena. Esse lugar é marcado por uma trajetória pessoal repleta
de dor causada pela violência colonizadora e pela ausência das terras
tradicionais dos antepassados da escritora. Porém, é justamente
através da escrita em língua portuguesa, instrumento consolidado
por meio da colonização, que Eliane encontra um refúgio, um meio
de se expressar, um instrumento de luta por direitos e uma forma de

Fórum Lit. Bras. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, nº 21, pp. 107-29, jan.-jun. 2019.
110 Ensaios

resgate da ancestralidade e da espiritualidade indígenas. Portanto,


o conceito de entre-lugar se mostra como o mais adequado para
compreender o espaço ocupado pela poesia de Eliane Potiguara na
contemporaneidade.

O lugar do canto indígena


O livro Metade cara, metade máscara, de Eliane Potiguara, foi
publicado pela primeira vez pela editora Global em 2004. Sua segun-
da edição foi feita em janeiro de 2018, pela UK’A, editora vinculada
ao Instituto UK’A – Casa dos Saberes Ancestrais, uma organização
sem fins lucrativos e de caráter educativo e cultural, formada por
indígenas e não indígenas. Após a primeira publicação de Metade
cara, metade máscara, Potiguara escreveu e publicou outros livros,
como O coco que guardava a noite (2012), O pássaro encantado (2014),
A cura da terra (2015), entre outros. Assim como Eliane Potiguara,
outros autores indígenas se destacam na atualidade, como Kaká Werá
Jecupé, Daniel Munduruku, Lia Minapoty, Olívio Jecupé, Márcia
Wayna Kambeba e Graça Graúna.
Apesar da quantidade significativa de escritores indígenas
de destaque na atualidade, a poética de autoria indígena é marco
recente na literatura brasileira de forma geral. Historicamente, os
cantos indígenas raramente eram documentados, já que, desde o
período da colonização, os cronistas que primeiro registraram os
costumes indígenas deram prioridade para as impressões visuais.
São vastas as descrições sobre as vestimentas, pinturas corporais,
ornamentos, aspectos físicos e instrumentos utilizados. Os cantos
e outras formas de expressão verbal indígena vinham em último
plano. Além da questão da documentação, existem divergências
entre pesquisadores da área da Literatura e de outras áreas afins,

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O canto de Eliane Potiguara em Metade cara, metade máscara 111

sobre os cantos sagrados serem considerados poética. Fato é que a


publicação escrita e individual da poesia de autoria indígena se con-
solidou apenas nos anos noventa, ou seja, somente há trinta anos.
Cláudia Neiva de Matos, no artigo citado, discute os possíveis
motivos de a expressão verbal indígena apresentar pouquíssimos
registros nos relatos dos colonizadores. O primeiro motivo seria
o fato de que as informações visuais eram mais evidentes em um
primeiro contato, como em vários relatos se destaca a descrição da
nudez e das pinturas, do comportamento etc. Outra razão seria a
barreira linguística, um empecilho para que a compreensão verbal
ocorresse. Matos explica, a partir da análise dos relatos coloniais,
que alguns cronistas reagiam de forma escandalizada diante dos
cantos e afirmavam serem cantos sem palavras, visto que não con-
seguiam perceber melodias em um padrão que se assemelhasse às
suas referências musicais. Portanto, a barreira linguística “não ex-
plica em todo o seu sentido a espécie de afasia que ataca a imagem
do índio nessa história, nesse texto que [...] só deixa de registrar,
justamente, o texto indígena: sua fala, sua palavra autenticada, seu
nome próprio” (2012, 1).
No caso dos registros feitos pelos missionários da Com-
panhia de Jesus, são raros os materiais que se deparam com as
tex­tualidades de autoria indígena. A maior parte dos estudos está
voltada para as línguas e sua gramática descritiva, com o intuito
de usá-las a serviço da evangelização. Nos séculos XVIII e início
do XIX, as descrições sobre os cantos indígenas aparecem de
forma depreciativa, sendo adjetivados como “canto desentoado”,
“vozear sem palavras”, “abominável berreiro” (Matos: 2012, 2-3).
Foi com a independência do Brasil e a busca dos românticos por
uma identidade nacional, que a visão sobre os indígenas mudou

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112 Ensaios

de tom. Dessa vez, de bárbaros sem capacidades poéticas para


a figura idealizada do guerreiro, nos moldes do Romantismo
europeu.
O poeta e antropólogo Antônio Risério, em seu Textos e tri-
bos (1993), remonta ao início do Romantismo brasileiro como um
momento em que a historiografia literária começa a ser desenhada,
principalmente com as figuras de Gonçalves de Magalhães, o Vis-
conde de Uruguai. Atribui-se a ele a publicação de Suspiros poéticos
e saudades, em 1836, o marco de início do romantismo poético. Foi
nesse período que “instalou-se também o tema ou problema do índio
como sujeito (e não apenas como objeto) da criação textual no Brasil”
(Risério: 1993, 57). Nesse contexto, tanto Gonçalves de Magalhães
quanto o escritor romântico Joaquim Norberto se destacam porque
“souberam localizar, na ‘poesia dos índios’, o início da criação textual
em nossos trópicos” (p. 58).
São evidentes os esforços de Magalhães, em alguns de seus
textos, para desmistificar a visão negativa do índio criada pelos
cronistas. Ele até mesmo critica a violência imposta no processo de
colonização e o não registro da poética indígena. Porém, Antônio
Risério aponta para a seguinte questão:

Há, por fim, um outro aspecto que não pode ser deixado à
margem. Embora Magalhães diga, no Discurso, que os índios
“foram e são” poetas, o caso é que, no fim das contas, ele e
Norberto acabaram encarando a prática textual ameríndia
como algo pertencente, em definitivo, ao passado. Represa-
ram para consumo próprio, na imperfeita fantasia mental
que foram tecendo, um segmento – mais imaginado do que
conhecido – do fluxo da vida indígena (p. 65).

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O canto de Eliane Potiguara em Metade cara, metade máscara 113

O antropólogo vai além e critica o fato de que ambos os


escritores, mesmo lamentando o desinteresse dos missionários do
período colonial em registrar os textos tupinambás, “não se mos-
traram dispostos, eles mesmos, a recolher textos entre os índios
seus contemporâneos – coisa que poderia ter sido feita através de
extensas regiões do país, no coração das numerosas nações indígenas
do século XIX” (p. 67).
São perceptíveis as contribuições de Joaquim Norberto e
Gonçalves de Magalhães para o período no qual a visão do homem
branco sobre os indígenas foi sendo paulatinamente alterada, visto
que ambos abriram caminho para que a literatura se debruçasse sobre
a figura do índio e reconhecesse a existência de uma poética indígena.
Essa poética, no entanto, permaneceu sem registros, e somente nas
últimas décadas do século XIX se iniciou uma pesquisa sistemática
por parte de antropólogos, etnógrafos, folcloristas e historiadores
sobre as narrativas indígenas.
No início do século XX, boa parte da documentação foi am-
pliada, com um enfoque na mitologia e na cosmologia de diversas
etnias. Muitas lendas serviram de material para a escrita de algumas
obras do Modernismo brasileiro, que se inspirou largamente na cultura
indígena. Temos como exemplo Macunaíma, de Mário de Andrade, e a
própria ideia da Antropofagia, recriada por Oswald de Andrade com um
viés artístico e cultural, que foi o cerne do movimento de vanguarda
brasileiro e até hoje é considerada por Augusto de Campos como única
filosofia original brasileira. Mesmo assim, ainda não se trata de uma
produção literária de autoria indígena. Para Cláudia Neiva,

as lentes pelas quais nos foi dado a ler o índio brasileiro ope-
raram via de regra de modo desfocado e lacunar, promoven-

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114 Ensaios

do, quer pela estilização literária, quer pelo tratamento da


documentação histórica, uma dupla exclusão. [...] Quanto à
poesia dos índios, permaneceu quase desconhecida para nós;
sobre ela formaram-se pouco mais que hipóteses, esboços
hesitantes que a empobreceram e estereotiparam (pp. 5-6).

Inúmeros são os desafios quando se trata de registrar a poé-


tica indígena. O primeiro deles deve-se ao fato de que a maioria das
populações indígenas brasileiras são de tradição oral. Portanto, as
textualidades em versos se apresentam na forma de cantos, quase
sempre ligados a uma expressividade corporal, configurando uma
performance. Esses aspectos extralinguísticos, que desempenham
papel essencial em muitos cantos, são de difícil registro por escrito.
Nas últimas décadas, os estudiosos de etnomusicologia
foram capazes de desenvolver diversos projetos que registraram
cantos de diferentes nações, mas os textos propriamente ditos,
além de serem de difícil acesso, dependem muitas vezes da tradução
de antropólogos. O antropólogo Pedro Niemeyer Cesarino, que se
propôs a fazer a tradução de cantos em seu livro Oniska, poética do
xamanismo na Amazônia (2011), é rara exceção. Além dele, pode se
mencionar Araweté – o povo do Ipixuna (1992), de Eduardo Viveiros
de Castro, que possui o canto de um pajé, algumas canções interca-
ladas nas narrativas Suruí publicadas por Betty Mindlin em Vozes da
origem (1996) e trechos de cantos de cipó analisados por Cláudia N.
de Matos em A canção da serpente: poesia dos índios Kaxinawá (1999).

O canto de Eliane Potiguara e o entre-lugar


Na década de 90, houve a primeira publicação de um livro de
autoria indígena: Todas as vezes que dissemos adeus (1994), de Kaká

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O canto de Eliane Potiguara em Metade cara, metade máscara 115

Werá Jecupé. Essa publicação consiste em relatos do autor sobre a


sua experiência de vida desde a infância entre dois mundos, o mun-
do da aldeia em que vivia e o mundo branco, onde foi alfabetizado
e aprendeu a escrever. No prefácio da segunda edição (2002), Kaká
afirma que durante muito tempo a cultura indígena foi conhecida
por meio da “voz” de antropólogos e cientistas sociais, através do
olhar estrangeiro, e que pela primeira vez, com a publicação de seu
livro, o universo Guarani, ao qual ele pertence, pôde ser conhecido
a partir da expressão de quem está dentro.
Não há dúvida de que Jecupé abriu caminho para a publica-
ção de outros projetos literários de autoria indígena. Dez anos mais
tarde, Eliane Potiguara seria a primeira mulher indígena a publicar
um livro de poesia. Interessante perceber que a história de ambos os
autores apresenta similaridades. Tanto Eliane quanto Kaká cresce-
ram em contato com o mundo branco, frequentaram escola, foram
alfabetizados, e hoje fazem da escrita um instrumento de reconheci-
mento e valorização da cultura indígena. Para eles, a escrita tem papel
fundamentalmente político, não só por a utilizarem como forma
de expressão em uma sociedade que permanece de olhos vendados
para as questões indígenas, mas também porque a utilizam visando
à preservação ambiental e cultural.
Maria Inês de Almeida, no livro Desocidentada, experiência
literária em terra indígena (2009), relata um episódio em que um
professor da etnia Xacriabá foi capaz de expressar a dor de ser órfão
durante a confecção de um livro. Acerca da função da escrita, Maria
Inês faz a seguinte reflexão:

Se não é, entretanto, a serviço da dominação, para que os


índios teimam em escrever? O exemplo Xacriabá nos leva

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116 Ensaios

a pensar numa motivação política, mas de outra ordem,


relativa à libertação, ao desrecalque de vidas passadas e
presentes, de línguas emudecidas, de formas subjacentes...
Como diria Maria Gabriela Llansol: “não há literatura.
Quando se escreve, só importa saber em que real se entra e
se há técnica adequada para abrir caminho a outros” (p. 78).

Kaká Werá Jecupé abriu caminho para a publicação de outros


escritores indígenas, e Eliane Potiguara soube muito bem como utili-
zar a escrita para se libertar, expressando a dor carregada de geração
em geração pelas mulheres de sua família. A obra que constitui o
corpus desta pesquisa se divide em sete capítulos, sendo o primeiro
deles chamado “Invasão às terras indígenas e a migração”, o qual se
inicia abordando as causas que historicamente levaram os povos
indígenas a serem dizimados ao longo do processo de colonização
até a atualidade.
As figuras históricas de Sepé Tiaraju, líder indígena de Sete
Povos das Missões e sua esposa Juçara são resgatadas, assim como
a batalha contra a invasão portuguesa e espanhola que ocorreu no
sudoeste do Rio Grande do Sul, em 1756, que assassinou Sepé e mais
dez mil indígenas da etnia Guarani. Para Potiguara, o assassinato de
Tiaraju, que deixou sua esposa Juçara viúva e a filha recém-nascida
órfã de pai, é um marco histórico do início da solidão das mulheres
indígenas, causada pela violência, pelo racismo e por todas as formas
de intolerância, que atingiu a própria família e linhagem da poeta.
Já no século XX, dois séculos após os acontecimentos ci-
tados acima, outro homem, identificado como X, foi brutalmente
assassinado a mando de uma família latifundiária do Nordeste.
Esse homem era o bisavô de Eliane Potiguara. Suas quatro filhas e

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O canto de Eliane Potiguara em Metade cara, metade máscara 117

o restante da família migraram para Pernambuco. Uma das filhas,


Maria de Lourdes, engravidou aos 12 anos, vítima de violência sexual.
Ela e sua filha Elza migraram novamente, dessa vez para o Rio de
Janeiro. O tempo passou e Elza cresceu, casou-se, e teve dois filhos.
Infelizmente a morte dos homens da família voltou a se repetir, seu
marido morreu atropelado por um bonde. Por conta disso, a menina
Eliane, filha de Elza, foi criada pela avó Maria de Lourdes.
Para que os costumes indígenas fossem mantidos e a menina
pudesse ser protegida da violência e exploração sexual que circun-
davam o bairro em que viviam, a avó Maria de Lourdes a criou em
uma espécie de cativeiro domiciliar, no qual a menina apenas ia para
a escola e permanecia confinada em um quartinho onde moravam.
Lá a avó podia repassar as narrativas de seu povo, contar a história
das mulheres da família, que eram todas migrantes das terras tra-
dicionais, e desenvolver suas práticas de cura, tratando problemas
de saúde da neta e de moradores próximos.
Dessa forma, a autora traça um paralelo, nesse primeiro capí-
tulo, entre os acontecimentos históricos que atingiram várias etnias
indígenas e a sua história pessoal. De forma que a raiz dos males de
sua linhagem é identificada pela autora como a invasão do território
tradicional de seu povo, o assassinato de seu bisavô e a consequente
migração da família. As marcas da violência vivida pelas mulheres
de sua família ao longo das gerações estão fortemente presentes na
poesia de Eliane, como no poema “Invasão”, que vem após os relatos
da autora: “Quem diria que viriam de longe / E transformariam teu
homem / Em ração para as rapinas” (2018, 30). Nesses versos, fica
evidente que a invasão das terras indígenas foi o motivo de todo
sofrimento. A ave de rapina, animal caçador e predatório, se torna
um símbolo metafórico do homem colonizador, que se apropria

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das terras, fazendo delas um objeto de exploração e utilizando os


povos que nela viviam como mão de obra escrava. Na continuidade
do poema, os seguintes versos “Cenário macabro te é reservado. /
Para que lado tu corres, / se as metralhadoras e catanas e enganos
/ Te seguem e te mutilam?” ainda revelam a violência sofrida pelas
mulheres indígenas, como se a dor fosse uma herança repassada de
geração a geração, a dor da perda dos filhos e companheiros.
Além disso, existe uma problemática ligada ao espaço onde
os indígenas desaldeados vivem, já que o meio urbano é altamente
hostil, como a própria história dos antepassados da escritora revela.
Nos versos finais do mesmo poema, “Quem são vocês que podem
violentar / A filha da terra / E retalhar suas entranhas?” (p. 31),
percebe-se que o corpo das mulheres indígenas está fortemente vin-
culado à própria terra, e que a invasão das terras indígenas significou
a invasão do corpo feminino, a violência sexual; riscos constantes no
contexto de vulnerabilidade social em que a maioria dos indígenas
desaldeados se encontra.
Quando a menininha criada pela avó se tornou uma mulher
adulta e formada, finalmente pôde conhecer outros lugares, inclusi-
ve os que foram palco dos conflitos entre portugueses, espanhóis e
indígenas no século XVIII, e onde assassinaram o líder Sepé Tiara-
ju. No segundo capítulo do livro, intitulado “Angústia e desespero
pela perda das terras e pela ameaça à cultura e às tradições”, Eliane
Potiguara relata:

Eu senti um enorme calafrio andando pelas ruínas das


missões, em Santo Ângelo, no Rio Grande do Sul, em 1978.
Parecia que, nos entroncamentos, se ouviam os gritos de dor
ecoando pelos ares e que as paredes estavam impregnadas

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O canto de Eliane Potiguara em Metade cara, metade máscara 119

do suor da escravidão e do racismo. Assim senti quando


estive lá! Meu coração esquentava de dor e minha imagina-
ção era um pesadelo. O mesmo aconteceu quando visitei as
ruínas da igreja de São Miguel e o cemitério indígena, já na
área Potyguara, no estado da Paraíba, em 1979. A voz dos
oprimidos ecoa igualmente em qualquer parte do mundo.
E temos de ouvi-la para que a justiça se faça a qualquer
momento da história (p. 46).

Nesse contexto, a poesia e os relatos de Eliane Potiguara


ecoam como essa voz dos oprimidos. Por meio da poesia, Elia-
ne consegue recriar a voz que outrora não foi ouvida, como no
poema “Sepé Tiaraju”, cujos versos dizem “Eu sou rebelde / E
faço questão de o ser / Tenho fome, tenho ódio / E não me deem
uma metralhadora”. No dizer de Maria Inês de Almeida, a escrita
“funciona como uma arma [...] que detona com um certo poder:
a língua enquanto instituição” (2009, 91). Portanto, a língua é
a arma poética, porque,

como discurso político, o livro demanda e provoca uma es-


cuta. Antes da posse dos instrumentos da escrita, os índios
não puderam impor sua fala, porque não havia condições de
possibilidade para uma leitura do texto oral. Agora, as falas
contidas nos livros indígenas recém-publicados encontram,
embora transformadas, a forma visível (p. 91).

E, tratando-se de instituição, em 1987, Eliane estava à


frente da articulação do Grupo Mulher – Educação Indígena, criado
com o intuito de ouvir a voz das mulheres de diferentes etnias. O

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120 Ensaios

Grumin,1 além de se pôr à escuta das mulheres, tinha o objetivo de


levar informações para conscientização da população indígena, in-
centivar a preservação dos saberes tradicionais e buscar soluções para
problemas encontrados. Após alguns anos de trabalho, seminários,
cursos de capacitação e projetos de desenvolvimento comunitário,
o Grumin recebeu o II Prêmio Cidadania Internacional, em 1996.
Para Eliane Potiguara, a preservação da natureza só poderá
acontecer se inicialmente os direitos indígenas forem reconhecidos
e as mulheres respeitadas.

O meio ambiente, o território, o planeta Terra estão intrin-


secamente ligados ao ventre da mulher indígena, da mulher
selvagem nos dois sentidos (primeira cidadã do mundo e
intuitiva) e, por isso, não haverá defesa ambiental se não se
destacar a influência e o conhecimento milenar da mulher,
do ser que habita esse meio ambiente. [...] Se a natureza
deve ser respeitada no seu ciclo de existências e valorizadas
as fases da Lua, da maré, do florescimento das árvores, da
correnteza dos rios, do nascer e do pôr-do-sol, da colheita,
as mulheres indígenas devem ter o mesmo tratamento
(Potiguara: 2018, 57-8).

Para além dos trabalhos políticos e sociais, Eliane vê no ato


de criação por meio da arte uma forma de cura individual e coletiva,
a cura por meio da expressão interior, capaz de libertar o ser humano

1 O Grumin, Grupo Mulher – Educação Indígena surgiu em 1987 no Rio de Janeiro e, pos-
teriormente, foi ampliado na Paraíba, com o objetivo de promover cursos, seminários sobre
cidadania e projetos de desenvolvimento em aldeias indígenas de vários lugares do Brasil.
Atualmente, faz parte de modo integrado da Rede de Comunicação Indígena.

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O canto de Eliane Potiguara em Metade cara, metade máscara 121

dos traumas e amarras psicológicas. Quando ela se refere à ideia da


mulher selvagem, afirma que “nada tem a ver com historiografia,
mas sim com interior humano, âmago, essência espiritual, ser sutil,
a casa da alma, a ancestralidade e a intuição” (p. 59). Portanto, a
ideia de selvagem e primitividade, que historicamente sustentou o
massacre dos povos indígenas e era utilizada como justificativa para
o etnocídio cultural, é ressignificada por meio do livro Mulheres que
correm com os lobos (1999), de Clarissa Pinkola Estes, o qual Eliane
Potiguara cita algumas vezes.
Interessante observar que a mesma visão histórica sobre os
povos indígenas prevaleceu sobre sua poética. Por muito tempo, na
esfera da ideologia evolucionista, acreditou-se na existência de uma
“poesia primitiva” e que as poéticas dos povos tradicionais estariam
em estado embrionário, enquanto a poesia clássica, europeia, oci-
dental seria mais sofisticada. No capítulo “O mito da poesia primi-
tiva”, de Textos e tribos, Antônio Risério desmistifica essa ideia que
sobreviveu até a atualidade e afirma que “não devemos chamar poesia
alguma de ‘primitiva’. São muitos os caminhos da linguagem poética.
Plurilineares. [...] insistir na existência de uma ‘poesia primitiva’ é
cultivar uma superstição etnocêntrica” (1993, 32).
Quando Eliane Potiguara enaltece a mulher selvagem e o ato
de criação, é no sentido de “mulher primeira”, que se mantém em
sintonia com a terra e com os ciclos naturais, que é subversiva e resis-
tente, que não tolera os abusos e a exploração do patriarcado, como
no poema Desilusão, cujos versos dizem: “Por que concordar tanto /
se o que se tem que dizer agora É NÃO! / NÃO à morte da família /
NÃO à perda da terra / NÃO ao fim da identidade” (2018, 67). Nesses
versos, fica evidente que a busca por direitos indígenas perpassa pela
demarcação de terras e pela preservação dos territórios tradicionais.

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122 Ensaios

No ensaio “O entre-lugar do discurso latino-americano”, Silviano


Santiago cita Montaigne, que questiona, no ensaio Dos canibais, a ideia
ocidental do que seria o “homem bárbaro”. Nas palavras de Montaigne
sobre os povos do Novo Mundo, “não há nada de bárbaro e selvagem
nessa nação, pelo que dela me relataram, senão que cada um chama de
bárbaro o que não é de seu uso” (2009, 51). Santiago retoma a ideia de
Montaigne acerca do conceito de selvagem engendrada pelo colonizador,
que assim nomeia negativamente o homem autóctone da mesma forma
que são os frutos que a natureza dá, quando deveria ser considerado
selvagem o que se altera por meio de técnicas e artifícios. A inferioridade
dos indígenas aos olhos dos colonizadores, e que era relacionada ao es-
tado de natureza, na realidade está no objeto fabricado, no desequilíbrio
científico que é fruto dos que controlam o poder.
Santiago coloca em xeque o processo de dominação da Amé-
rica Latina, ao argumentar que “os etnólogos [...] concordam em
assinalar que a vitória do branco no Novo Mundo se deve menos às
razões de caráter cultural do que ao uso arbitrário da violência e a
imposição brutal de uma ideologia” (2000, 11). Na visão dos colo-
nizadores, a dominação se dava pela superioridade cultural, quando
o real motivo era o nível de brutalidade imposta sobre os povos
tradicionais. Montaigne reconhecia essa realidade, ao afirmar, já no
século XVI, que “podemos chamá-los de bárbaros em vista das regras
da razão, mas não em vista de nós mesmos, que os ultrapassamos
em toda espécie de barbárie” (2009, 62).
A questão do lugar de pertencimento é algo recorrente na
poesia de Potiguara. A dor da perda das terras e a denúncia do des-
caso da sociedade em relação aos povos indígenas se apresenta com
frequência. O poema “Órfã”, por exemplo, denuncia a situação de
muitas crianças indígenas:

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O canto de Eliane Potiguara em Metade cara, metade máscara 123

Não adianta fugir dessa realidade


Quando te trazem aos braços
Uma criança que nem dois anos completos tem
E tua boca que gargalhadas davam
Ao sabor do álcool
Se cala
E emudece de vez
E te desarma
É uma criança faminta
Doente
Órfã de pais
Órfã de país
(pp. 35-6)

Ser “órfã” de país significa viver em uma sociedade que não


reconhece a importância dos povos tradicionais e os enxerga de forma
preconceituosa. Interessante observar a repetição de palavras nos
versos finais desse poema, e a semelhança entre as palavras “pais” e
“país”. Inúmeras são as comunidades que foram destruídas ao longo
do processo de colonização, porém muitos descendentes dos povos
tradicionais também sobreviveram, resistiram e migraram para locais
distantes dos seus lugares de origem. Os versos citados acima evocam
a reflexão sobre o destino desses descendentes dos povos tradicionais,
crianças que perderam seus pais, que talvez tenham sido adotadas por
famílias de origem étnica diferente, e assim a cultura e o contato com
seu povo de origem se perderam. Não se sabe ao certo o destino des-
ses descendentes. No caso de Eliane Potiguara, esse contato pôde ser
mantido vivo e posteriormente resgatado, graças à sua avó Maria de
Lourdes, a quem Potiguara dedica o livro Metade cara, metade máscara.

Fórum Lit. Bras. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, nº 21, pp. 107-29, jan.-jun. 2019.
124 Ensaios

Porém, sabe-se que esse legado ancestral permaneceu vivo às custas


do isolamento de Eliane durante a infância e adolescência.
São inúmeros os descendentes dos povos tradicionais
desaldeados que até hoje habitam as grandes cidades e que após
gerações perderam sua identidade étnica. Para essas pessoas restou
apenas o testemunho vivo de seus traços físicos, lembrança distante
do pertencimento de um povo que já não existe mais. É possível
ir além na interpretação dos versos de Potiguara, quando se trata
do conceito de “órfão”, porque nesse caso trata-se tanto da criança
que perdeu seus pais, e que não encontra a proteção e acolhimento
necessário da sociedade, quanto dos descendentes dos povos tra-
dicionais, que também são órfãos do seu lugar de origem, da sua
comunidade primeira. O poema “Pankararu” também apresenta a
questão do lugar:

Sabe meus filhos...


Nós somos marginais das famílias
Somos marginais das cidades
Marginais das palhoças...
E da história?

Não somos daqui


Nem de acolá...
Estamos sempre ENTRE
Entre este ou aquele
Entre isto ou aquilo!

Até onde aguentaremos, meus filhos?

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O canto de Eliane Potiguara em Metade cara, metade máscara 125

Nesse poema, a questão do lugar vai além das terras tra-


dicionais ou do lugar físico que o indígena desaldeado ocupa na
sociedade, mas diz respeito a um lugar ideológico e cultural. Silvia-
no Santigo constata que o colonialismo instituiu-se por meio da
“cópia, simulacro que se quer mais e mais semelhante ao original”
(p. 14), sendo a cultura europeia, na visão colonizadora, o original
que deve ser imitado. Porém, a nova sociedade formada a partir da
mistura entre o elemento europeu e o elemento autóctone tem como
principal característica o desvio da norma instituída e do ideal de
pureza. Temos como exemplo o código linguístico e o código religioso,
sistemas impostos por meio da dominação, que sofreram profundas
mudanças nos territórios do novo mundo em contato com os povos
tradicionais. Por isso, para Silviano Santiago

a maior contribuição da América Latina para a cultura


ocidental vem da destruição sistemática dos conceitos de
unidade e pureza: estes dois conceitos perdem o contorno
exato de seu significado, perdem seu peso esmagador, seu
sinal de superioridade cultural, à medida que o trabalho de
contaminação dos latino-americanos se afirma, se mostra
mais e mais eficaz. [...] Em virtude do fato de que a Amé-
rica Latina não pode mais fechar suas portas à invasão
estrangeira, não pode tampouco reencontrar sua condição
de “paraíso”, de isolamento e de inocência, constata-se com
cinismo que, sem essa contribuição, seu produto seria mera
cópia – silêncio (2000, 16; grifos do autor).

Nesse sentido, o canto poético de Eliane Potiguara se firma


dentro dessa contribuição, como o canto-lugar dos latino-americanos

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que têm sua origem ancestral nos povos tradicionais, que perderam
seu território e que lutam para resgatá-lo. Trata-se do lugar da margi-
nalidade, relegado muitas vezes aos indígenas desaldeados que vivem
nas cidades, e seus descendentes. Quando criança, Eliane Potiguara
e a avó Maria de Lourdes, vivendo em um bairro tomado pela pros-
tituição, ocupavam esse lugar descrito no poema “Pankararu”, nos
versos “Nós somos marginais das famílias / Somos marginais das
cidades / Marginais das palhoças /... e da história?” (2018, 62). Como
poeta, Potiguara ocupa o silencioso espaço em branco da literatura
brasileira que nunca se pôs à escuta da voz indígena, sobretudo das
mulheres.
Partindo da visão de Santiago, pode-se perceber que os
poemas de Eliane Potiguara trabalham a serviço da “contamina-
ção” literária, visto que não seguem o padrão da poesia clássica. O
próprio livro Metade cara, metade máscara atende a uma estrutura
pluralizada, ao unir poemas e relatos de vida. O poema “Na trilha
da mata”, que diz “Não me importo / Se o que escrevo / São ilusões
/ Não me importo / Se o que escrevo / Não são versos, / Rimas /
Redondilhas...” revela uma postura própria do “entre-lugar”, que
desobedece ao modelo clássico de poesia e destrói sistematicamente
a norma instituída pela tradição literária.

Considerações finais
Metade cara, metade máscara constitui a primeira obra de
poesia publicada por uma mulher indígena, portanto, é enorme a
contribuição literária de Eliane Potiguara para a literatura brasileira
contemporânea, tendo em vista que as publicações de autoria indí-
gena ainda são recentes. Por muito tempo, a poética indígena não
teve visibilidade nos registros feitos pelos colonizadores, por serem

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O canto de Eliane Potiguara em Metade cara, metade máscara 127

cantos sagrados que não eram compreendidos, ou que até recente-


mente eram considerados objeto de estudo somente de áreas como
a Antropologia.
Nesse caso, o canto de Potiguara oferece uma nova escuta,
por meio da poesia escrita e do relato de vida da autora, que evoca
reflexões sobre o processo de perda das terras tradicionais e o lugar
ocupado atualmente pelos descendentes desses povos. A partir do
conceito de entre-lugar proposto por Silviano Santiago, pode-se
chegar à conclusão de que esse lugar é cultural e ideológico. Tra-
ta-se, afinal, da desestruturação sistemática da cultura europeia
e dos conceitos de unidade e pureza trazidos pelo homem branco
colonizador, que sofreram profundas mudanças em contato com a
cultura dos povos nativos da América Latina. Nesse sentido, a poesia
de Eliane Potiguara abre caminho para a escrita feminina de autoria
indígena, que até quinze anos atrás, data da primeira publicação de
Metade cara, metade máscara, constituía um espaço em branco na
literatura brasileira.

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128 Ensaios

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O canto de Eliane Potiguara em Metade cara, metade máscara 129

Resumo

O presente artigo se propõe a investigar as contribuições da pu-


blicação de Metade cara, metade máscara para a literatura contemporânea
brasileira. Atualmente vive-se um movimento de valorização dos textos
de autoria indígena, fato que ocasiona a necessidade de se olhar para a tra-
jetória construída por Eliane Potiguara e sua poesia. Sob a luz do conceito
de entre-lugar, de Silviano Santiago, pode-se compreender o lugar no qual
a poética de Eliane Potiguara se inscreve e traçar um panorama do que
constitui a poesia indígena na contemporaneidade.
Palavras-chave: poesia indígena; entre-lugar; trajetória;
con­­­­­­­tem­poraneidade.

Abstract

The present article proposes to investigate the contributions


brought by the publication of Metade cara, metade máscara to Brazilian
contemporary literature. Nowadays, with the growing interest in
texts of indigenous authorship, Eliane Potiguara stands out as a very
representative author, whose work invites an appreciation. In the light of
Silviano Santiago’s concept of entre-lugar, one can understand the place
in which her poetry is inscribed and draw a panorama of what indigenous
poetry means in contemporary times.
Keywords: indigenous poetry; threshold; trajectory; contemporary
times.

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Ninfa volátil: as meninas escorregadias e
inacabadas de Donizete Galvão

Maura Voltarelli Roque*

Os versos do poema “Quase”, presente em Azul navalha,


primeiro livro de Donizete Galvão, parecem conter em sua aparente
simplicidade todo universo poético do autor mineiro de Borda da
Mata. Logo podemos reconhecer em “e no meio do problema havia
um x” o verso célebre de outro mineiro, Carlos Drummond de An-
drade, “no meio do caminho tinha uma pedra”, quase como voz que
perfura por dentro o verso de Donizete.
Os dois dísticos finais do poema trazem ainda aquele que
talvez seja o verso mais trágico da poesia brasileira em que se vê,
disfarçada em meio ao humor de “Pneumotórax”, de Manuel Ban-
deira, “a vida inteira que podia ter sido e que não foi”. A funda tris-
teza do verso bandeiriano, sua melancolia, sua constante sensação
de perda e frustração são, não por acaso, lugares fundamentais na
obra poética de Donizete Galvão. Como lembra o crítico Eduardo
Sterzi, Donizete segue de perto a trilha deixada por Bandeira da
chamada “poesia menor”, “daquela poesia que se recusa ao espe-
táculo, que sobretudo não cabe na lógica da espetacularização e da
mercadoria […]; poesia que insiste em olhar para as coisas miúdas
e para os seres à margem, que sabe que o poeta é fiel sobretudo ao
que se perdeu” (2015).

* Doutoranda em Teoria e História Literária na Universidade Estadual de Campinas (UNI-


CAMP).

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Não por acaso, Donizete Galvão é referido por Paulo Octa-


viano Terra no prefácio de As faces do rio (1991) como “antropófago
da memória”. “Para não morrer de fome, ele devora os despojos dos
seus mortos, como verdadeiro antropófago da memória daqueles
que a correnteza levou” (1991, 8).

No trabalho poético que suspende os dias, retorna tudo aquilo


que o tempo já roeu e que, por isso mesmo, ficara guardado
como fonte da criação: a memória individual, por certo,
mas também, na sequência dos poemas, a doméstica cena
familiar, a gente miúda, a história dos pequenos, as lições
da terra, do boi, do estrume e do berne, a amora e a bosta
da vaca (Rabello: 2003, 83; grifo nosso).

Às voltas com a permanência residual do passado, vemos se


desenhar na poesia de Donizete Galvão um “jogo de perda e salvação”,
como descreveu Eduardo Sterzi, que terminaria por configurar aquilo
que o crítico chamou um “tenso enlace” a atravessar sua obra poética:

A poesia, para Donizete Galvão, foi antes de tudo um


incessante drama de perda e salvação. Daí a melancolia
duradoura e os fulgurantes êxtases, daí o sentimento trá-
gico que não elimina o humor, daí o tenso enlace – aos seus
olhos, em suas palavras – de decrepitude e beleza, pobreza e
religiosidade, trabalho e poesia, cidade e natureza, solidão
e comunidade (2015).

Tal regime duplo que desde logo nos sugere uma instabilida-
de, uma recusa em simplesmente se deixar fixar, nos lança ainda uma

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Ninfa volátil: as meninas escorregadias e inacabadas de Donizete Galvão 133

vez no lugar de onde parece partir a poesia de Donizete, ou, para lem-
brar novamente Eduardo Sterzi, na fidelidade do poeta “ao que desde
o início já estava perdido, ao que nunca se teve realmente, àqueles
objetos e situações que só se dão a ver, outrora e para sempre, como
perda: devoradora, devastadora – no limite, aniquiladora” (2015).
O espaço da morte, contido nessa dimensão da perda, se
mostra essencial a Donizete, que, de forma muito próxima a Ban-
deira, também surge assombrado pela morte na sua melancolia
funda, no seu apego à noite, no seu homem desintegrado, cindido,
inacabado, na sua “obra insone” rodeada por aparições e fantasmas.
Poderíamos então nos perguntar: o que seriam esses objetos
e situações que, como disse Eduardo Sterzi, “só se dão a ver, outrora
e para sempre, como perda?”. E poderíamos talvez esboçar uma
resposta: seriam objetos e situações que já estão, a rigor, mortos.
Dessa forma, diante de uma poética na qual a dimensão da perda e da
ausência é fundamental, a experiência amorosa só poderia também
se dar a partir da experiência da perda, e a imagem feminina que
habitaria os versos deveria ser, assim como foi Eurídice para Orfeu,
e mesmo Beatriz para Dante, uma que já estivesse morta, uma mu-
lher desde sempre perdida, fugidia e provisória, em cuja passagem
efêmera se imprimisse também a passagem de todas as coisas e do
próprio tempo a agir sobre a carne, cuja experiência de desejo fosse
também uma experiência de morte.
Em “Ruminadouro”, poema publicado no livro Ruminações
(1999), o jogo duplo de desejo e morte e a figuração de um “corpo
em convulsão” se encenam de modo particular, invocando uma
imaginação plástica, repleta de detalhes e sutilezas. O próprio
poema em sua estrutura formal se abre em dois, feito “duas vozes
que eroticamente se cruzam no corpo da página” (Rabello: 2003,

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134 Ensaios

98). Trata-se, no movimento geral, de uma dança, outro momento


de intensidade rápida que antecede, anuncia e, ao mesmo tempo,
precipita a chegada da morte.
O poema parece se valer de um famoso episódio histórico:
a invasão dos bárbaros e a consequente queda do Império Romano.
Antes da queda, no entanto, acontece a dança, e tal dança, exposta
em sua ambiguidade, é o motivo central do poema, desdobrando-se
também ela em duas, dando origem às duas partes do poema que
parecem corresponder a dois tempos distintos: o do acontecimento
e o da lembrança.
A primeira parte do poema, situada à esquerda, mantém
certo distanciamento em relação à cena que se desenrola. Os versos
curtos, muitas vezes formados por uma única palavra, contribuem
para acentuar o ritmo ágil da cena, surgindo quase como um corte ao
mesmo tempo sutil e abrupto. Os vários enjambements igualmente
acentuam o suspense e a expectativa em relação ao acontecimento do
poema. Ao explorá-los de modo expressivo, esse poema não apenas
“esboça uma figura de prosa”, para lembrar Agamben (1999, 32),
mas também um “movimento de dança”.
Podemos dividir essa primeira parte em três momentos
distintos, facilmente localizáveis em função do tom narrativo mais
acentuado. O primeiro momento descreve o espaço e o instante que
antecede a entrada da dançarina. Os versos finais desse primeiro
momento criam uma particular atmosfera para o desenrolar do ins-
tante seguinte. Cheiro e luz, ambos vaporosos, diáfanos, instauram,
ao mesmo tempo, algo de desejo (no perfume dos lírios) e morte (nas
luzes que se apagam).
O segundo momento é aquele no qual “irrompe a bailarina”.
O movimento da irrupção, da aparição, é criado no poema pelo uso

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do verbo “surgir”. Ao mesmo tempo, tal aparição assume ares fan-


tasmáticos sugeridos pelo detalhe dos “braços brancos” e da “luz da
lua”, a única a iluminar a “forma feminina em movimento” que surge
como um clarão na escuridão. A menção à lua nesse momento do
poema, assim como aquela feita às flores, convoca um imaginário
mitológico que, como mostrou Porfírio (1893), associa a lua a certos
personagens femininos, entre eles, as ninfas.
Os versos desse segundo momento descrevem, sensual­
mente, a dança da bailarina. Tal sensualidade é produzida
formalmente pela aliteração em “s” que faz com que os versos
deslizem, eles mesmos silvando como as serpentes sagradas sob
o comando da dançarina. O verso “toca com os pés nus a laje”,
tal como a mão de um artista que se detém em um detalhe, ou
uma câmera de cinema que captura uma pausa rápida no interior
de um frenético movimento, transborda desejo e plasticidade.
A forma plástica assumida pela escrita poética não nos traz a
imagem das mênades pagãs, o detalhe de seus pés suspensos
entre a terra e o ar?
A partir do diálogo de formas que parece se encenar nos
versos, poderíamos esboçar diante deles o clássico gesto cherchez la
femme, ou ainda nos perguntar, como outrora fez o historiador da
arte alemã Aby Warburg: onde está a Ninfa?
Foi ao ver uma figura feminina em movimento em um dos
afrescos de Domenico Ghirlandaio, O nascimento de São João Batista,
na igreja de Santa Maria Novella, em Florença, que Warburg reconhe-
ceu, naquele tecido esvoaçante cujas dobras se alongavam, perdiam-
-se e giravam em pleno ar, a sobrevivência das mênades dançantes
esculpidas nos vasos, sarcófagos e baixos-relevos da antiguidade
pagã. Em Ninfa fiorentina (2012), texto que se apresenta como uma

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correspondência fictícia com o linguista André Jolles, este último


expõe a perturbação que lhe foi causada por aquela bela aparição.

Pela porta aberta, eis que corre, não, voa, não, paira, o objeto
dos meus sonhos, que, pouco a pouco, começa a adquirir as
proporções de um delicioso pesadelo. Irrompe no quarto,
com o véu adejando, uma figura fantástica, não, uma criada,
não, uma ninfa clássica, trazendo na sua cabeça um tabulei-
ro com magníficos frutos meridionais (Warburg: 2012, 3).

Essa proliferação de ninfas pagãs no centro de um cenário


religioso critica, como lembra o filósofo e historiador da arte Georges
Didi-Huberman em “Ao passo ligeiro da serva” (2011), ao menos duas
lógicas territoriais: uma delas é a da igreja enquanto lugar sagrado
e enquanto comunidade de crenças, valores e tabus; a outra seria a
própria lógica burguesa representada pela família Tornabuoni.

É quase indecente ver surgir, em tal contexto, um corpo


tão sensual, […] esse corpo que desafia toda a gravidade,
de pés nus e passo dançante. Desde logo e por si só, o traje
all’antica não impõe uma imagem de deusa ou de ninfa
pagã nessa cena consagrada ao casto precursor do Verbo
encarnado? (2011, 22).

Nesse sentido, com a entrada dessa que Warburg chamou


uma “deusa pagã no exílio” (apud Agamben: 2012, 49), um outro
tempo se infiltra na imagem, escapa pelas suas bordas, fraturando
toda suposta unidade da cena. No afresco de Ghirlandaio, Warburg
encontrou a expressão máxima daquilo que ele chamou Nachleben,

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a vida póstuma das imagens, a sobrevivência do antigo que conhe-


ce então uma vida fantasmática. O que Warburg percebe e propõe
é uma migração das imagens, um deslocamento constante. Estas
teriam um funcionamento que se aproxima da lógica do sintoma
freudiano – aquilo que foi recalcado, o que deveria permanecer
oculto e, no entanto, retorna –, protagonizando um movimento que
acontece no subterrâneo, nas regiões obscuras do inconsciente. A
Ninfa, enquanto um “acidente anacrônico da imagem”, atua como
uma tempestade das formas e dos saberes, dos estilos e das tempo-
ralidades, reconfigurando a superfície das imagens e a atitude que
se tem diante delas.
As formas sobreviventes, que atravessam o tempo, entre as
quais encontramos aquela da Ninfa, foram chamadas por Warburg
de Pathosformeln, as fórmulas de páthos, a expressão de um desejo,
de uma emoção, por meio de um gesto que se repete. A Pathosformel
surge como um conceito em si mesmo dialético porque combina em
uma mesma formulação potências opostas. Como escreveu Giorgio
Agamben no ensaio “Aby Warburg e a ciência sem nome”, presente
em A potência do pensamento, “em um conceito como o de Pathos-
formel, não é possível distinguir entre forma e conteúdo porque ele
designa um indissolúvel entrelaçamento de uma carga emotiva e de
uma fórmula iconográfica” (2015, 112-3).
É preciso compreender que o gesto que se repete no tempo
contém em si mesmo a sua diferença. As Pathosformeln são, antes de
tudo, singularidades e não universais eternos, arquétipos situados em
um além da história. Estão, dessa forma, muito próximas da imagem
dialética tal como foi vista por Walter Benjamin, essa constelação
formada pelo choque do Outrora com o Agora. “Não é que o passado
lança sua luz sobre o presente ou que o presente lança sua luz sobre o

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passado; mas a imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora


num lampejo, formando uma constelação” (2006, 504).
A mesma Pathosformel Ninfa mostra-se ora como uma serva
florentina ou um anjo protetor, ora como uma Salomé mortífera ou
uma Madalena delirante no seu luto orgiástico (Didi-Huberman:
2013). Os mesmos gestos trazem sempre a possibilidade de uma
inversão do páthos. O tema da Ninfa, simultaneamente dinâmico
e arqueológico, como disse Didi-Huberman (2011), revela-se alta-
mente ambíguo. A morte surge apenas como um reverso do desejo,
polaridades entre as quais se debate a ninfa, seja enquanto perso-
nagem mitológico, seja enquanto forma. Não por acaso, muitas das
mênades antigas eram esculpidas sobre sarcófagos, como se elas
emprestassem a exuberância tão viva daquela que Warburg chamou
a sua brise imaginaire – índice de desejo nas imagens renascentistas
– para homenagear a morte.
A ambiguidade da ninfa se imprime no seu próprio corpo
figurado – se expressa morfologicamente. Nesse sentido, sua apa-
rição nas imagens do Quattrocento é ao mesmo tempo marginal e
central na distribuição da cena, e ela surge com as feições do rosto
quase sempre impassíveis, indiferentes a qualquer emoção, em
contraposição às suas vestes e aos seus cabelos que surgem incen-
diados pelo movimento, configurando aquilo que Warburg chamou
de os “acessórios em movimento” da imagem. Nesse jogo de paixão
e impassibilidade, o páthos é deslocado para as extremidades, mas
de modo algum se ausenta da imagem.
No seu monumental projeto de toda a vida que permaneceu
inacabado com a morte de Warburg, o Atlas Mnemosyne, várias são
as Pranchas dedicadas ao tema da Ninfa. Em uma delas, a Prancha
46, pode-se ver quase como uma constelação, uma montagem de

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imagem e tempo, a dama com vestes esvoaçantes do afresco de


Ghirlandaio, a carregadora de água de Rafael, um relevo romano an-
tigo com a imagem da Portadora, e mesmo uma camponesa toscana
fotografada pelo próprio Warburg em Settignano. Ainda em outra
Prancha do Atlas, a Prancha 39, que igualmente gira em torno da
Pathosformel Ninfa, pode-se ver a “forma feminina em movimento”
em O nascimento de Vênus e A primavera, de Botticelli, onde Warburg
identificou a presença de fórmulas antigas – all’antica – a que os pin-
tores do Renascimento recorriam quando precisavam representar as
formas da vida intensificada.
No poema de Donizete Galvão, a dança segue esculpida
em seus detalhes pela forma poética que busca registrar e mesmo
reproduzir o movimento da bailarina. O poema, como a dançarina,
também se trans-figura, se concebe plasticamente quando não se
contenta em simplesmente “ruminar” de diversas formas, sob di-
versos ângulos, uma cena de dança, mas também se faz ele mesmo
uma dança, suas imagens são gestos, suas palavras são sons, seus
versos estão em movimento.
A primeira parte do poema se encerra no seu terceiro mo-
mento, ainda narrativo, com imagens de dor e desespero, atravessa-
das por uma sensação de morte. O mugido do homem feito boi, ou,
para lembrar Drummond, dos “seres-bois” que, mortos, “mugidora-
mente se abençoam” (1973, 301), não por acaso vem dos subterrâ-
neos, dos infernais lugares sombrios onde se alojam os fantasmas,
somando-se às velas negras dos navios que trazem consigo, feito
um presságio, a destruição da cidade. O poema ainda menciona os
afrescos do palácio que serão queimados com a destruição da cidade,
apontando para uma destruição das imagens e, talvez, dos próprios
poemas “trans-figurados”, poemas-imagens. O palácio que arde ao

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140 Ensaios

final, explorando a ambiguidade do verbo “arder” – arde-se de dor,


mas também de desejo –, é metáfora da morte para a qual a dança
exuberante da bailarina ardilosamente conduzia a todos.
O segundo movimento do poema é destacado graficamente
do primeiro apenas pelo emprego do itálico. O aspecto narrativo
ordenado e objetivo que predominava na primeira parte cede lugar a
outro mais desviante, em que as impressões se borram e o inconscien-
te parece ocupar o lugar da descrição distanciada da primeira parte.
Os detalhes saltam do rio contínuo de imagens formado
pelo poema. Um deles, as “vestes azuis”, não havia sido mencionado
anteriormente e, agora, surge quase como um daqueles detalhes
gravados de forma aleatória pela memória. Na primeira parte, são
citados apenas os braços e os pés da bailarina. Na segunda, não só
os adornos do corpo, mas o próprio corpo ganha um destaque maior.
O poema detalha os cachos de cabelo, os lábios, o corpo esguio, as
coxas. A brancura associada aos braços na primeira parte, como
um registro visual, sobrevive como traço de lembrança na segunda,
sendo, no entanto, deslocada para os dentes.
Outro deslocamento que se dá na segunda parte é aquele que
vai de um hipotético observador distanciado, que apenas descreve os
gestos da mulher em movimento, para alguém que recorda e, nos sub-
terrâneos da memória, é capaz de ocupar o lugar daquela que dançava,
imaginando suas sensações, angústias e sonhos enquanto dançava.
A sutileza da memória substitui a laje pelo mármore frio do
palácio, sendo minuciosa em alguns pontos, enquanto se esquece de
outros. As metamorfoses da “forma feminina em movimento” agora se
dão de modo muito mais direto, sem mediações. Como em um sonho, a
linguagem se desmancha, não se mostra racional e lógica, as pontuações
quase não aparecem, o poema se torna um fluxo vertiginoso de desejo.

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Tempestuosas, as imagens irrompem, à maneira da dan-


çarina, como um sintoma perturbador e inesperado. Assim surge
a “maresia”, que varre a “forma feminina” com um sopro de mar,
os “latejos”, os “desejos”, em uma música hipnótica que o poeta
habilidosamente compõe, explorando sons familiares para gerar
sentidos insuspeitados e, ainda que seja inconscientemente, produzir
vínculos e conexões que rasgam o tecido poético e embaralham as
linhas do tempo.
Os versos deixam vir à tona a sombra de morte que per-
passa a dança convulsa da bailarina do início ao fim e que, ao final,
materializa-se no incêndio da cidade. O poema enumera as imagens
visionárias da destruição, mas tais imagens não surgem, como na
parte anterior, apenas no final, elas acorrem à superfície em dife-
rentes momentos da segunda parte, como em um jogo de espaço e
tempo em que o futuro já está contido no presente – haverá sacrifí-
cios – e o presente traz, para o bem ou para o mal, a sobrevivência
do passado.
“Frêmito”, “ardor”. A ardência da cidade, a destruição pelo
fogo, é apenas o reverso da ardência da dançarina a queimar em êx-
tase, como quando se diz: ardo de desejo. O incêndio “é o embate” de
desejo e morte. Que outra dança – com seu “jogo de cabelos e coxas”
– não era justamente uma dança de feições demoníacas na qual o
desejo servia à morte? Não vemos nesse poema de Donizete também
algo do festim, da dança e da degolação que divide o episódio bíblico
de Salomé de modo que a dança erótica da jovem filha de Herodíade
termina por atuar de alguma forma nos versos de “Ruminadouro”?
Nesse redemoinho de tempos e imagens, como não ver na
suposta e anônima dançarina romana do poema, forma cindida em
si mesma, feita da tensão permanente entre as coisas ditas hetero-

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gêneas que nela se misturam, se enroscam feito as serpentes nos


seus braços em um jogo de animalização e antropomorfização, a
criada de vestes azuis e passo ligeiro, na qual Warburg reencontrou
as mênades convulsas da antiguidade pagã, chamando-a então pelo
seu nome grego de Ninfa?
Na móvel superfície líquida do sonho em que parece se de-
senrolar o acontecimento poético de “Ruminadouro”, a Ninfa irrompe
como “forma submersa” que vive em silêncio nas “profundidades
tranquilas” (Bandeira: 1974, 285),1 tal como uma cidade submersa
à espera de ser explorada pelos escafandristas.2
Não nos caberia, então, pensar os efeitos que a irrupção, em
um poema contemporâneo, de uma hipotética dançarina romana –
cuja figuração no texto poético recorda, a um só tempo, as mênades
pagãs e a Salomé bíblica –, gera em nossos tradicionais modelos de
temporalidade e, particularmente, em nossa historiografia poética
marcada pelo discurso da ruptura e da superação?
O último verso do poema, que ata as duas partes, localizado
justamente no meio de ambas, no “meio do caminho”, na “travessia”,
é um verso que, como o instante da dança, também se suspende no
limiar da morte, na fronteira não mais entendida enquanto lugar
que divide, mas enquanto linha desfiada que borra.
A respeito do aproveitamento do tema da Salomé bíblica
no poema de Donizete, que nos é sugerido morfologicamente pelos
diversos elementos que compõem a figuração da “forma feminina
em movimento” no poema, é interessante lembrar o que afirma
José Paulo Paes em texto sobre o pré-modernismo e o art nouveau,

1 Imagem do poema “O rio”, de Manuel Bandeira, presente em Belo belo.


2 Fazemos referência à canção “Futuros amantes”, de Chico Buarque, do álbum Paratodos
(1993).

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ao dizer que “uma das atualizações mais comuns do tema da dança e


da vertigem no nosso pré-modernismo é o bailado de Salomé, motivo
vincadamente artenovista” (1985, 78). Paulo Paes ainda vai dizer
que Salomé nada mais é do que a “personificação da femme fatale”,
a célebre “belle dame sans merci”. Trata-se do conhecido tema arte-
novista do “eterno feminino” a sofrer metamorfoses. No contexto
da estética artenovista, o tema do “eterno feminino”, escreve José
Paulo Paes, “esplende no estereótipo da mulher moderna, liberta
dos preconceitos da vida burguesa […], do estigma da inferioridade
e convertida em dominadora” (pp. 72-8).
O motivo bíblico da Salomé de fato conheceu um aprovei-
tamento expressivo no final do século XIX, início do século XX, des-
dobrado do tema feminino central na estética artenovista. Estudos
como O festim, a dança e a degolação, de Onestaldo de Pennafort, re-
fletem sobre o aproveitamento do tema e suas variações, lembrando
obras um pouco anteriores ao final do século como a novela Hérodias,
de Gustave Flaubert, publicada em 1877, Salomé, de Oscar Wilde,
publicada em 1893, e “Salomé”, de Eugênio de Castro, poema publi-
cado em 1896. “Hérodiade”, o célebre poema de Mallarmé, também
“fixou a figura ambígua e sinuosa da filha de Herodias, simbolizando
nela o mito da virgem” (Pennafort: 1975, 26; grifo nosso).
Nas artes plásticas do período, como diz o próprio Onestaldo
de Pennafort, o aproveitamento do tema não é menos expressivo.
Basta lembrar o exuberante quadro de Gustave Moreau, Salomé
tatuada, de 1876, em que o corpo feminino se destaca quase como
um ponto de luz contra o fundo escuro, expondo uma profusão de
ornamentos inscritos sobre a pele muito branca.
Quando tal tema tipicamente artenovista, explorado, como
disse Paulo Paes, principalmente no contexto do “pré-modernismo”,

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surge em um poema contemporâneo, instala-se um ponto problemá-


tico que inquieta e convulsiona a temporalidade tradicional, linear,
evolucionista, ao estabelecer vínculos insuspeitados com um período
muito anterior de nossa cultura literária.
Em outro poema de Donizete Galvão, a presença da “forma
feminina em fuga” novamente se insinua em uma rede de imagens
tão emaranhadas entre si como as diferentes temporalidades que o
poema convoca. “Os olhos de Charlotte Rampling”, poema publicado
no livro Pelo corpo, irrompe como um violento fluxo de imagens que
se montam de modo a compor um retrato dos olhos da atriz britânica
Charlotte Rampling.
Na impossibilidade de se apresentar como uma linha única,
“Os olhos de Charlotte Rampling” parece ter escolhido continuar o
máximo que lhe fosse possível. Assim, no lugar da linha única, surge
um único bloco de texto concentrado, quase prestes a rebentar. Em
seu desenho latente, o poema poderia ser quase como um rio, o rio
que “é a atração para o fatal dos abismos e das obsessões” (1991,
7), como disse Paulo Octaviano Terra a propósito do rio múltiplo e
fugitivo de As faces do rio.
É necessário se deter na natureza das imagens cuidadosamen-
te escolhidas para descrever tais olhos líquidos que, em sua profusão,
deixam trair a obsessão do eu poético. Quantas imagens são necessá-
rias para dizer tais olhos? Em quantas imagens cabe uma obsessão?
Em “Os olhos de Charlotte Rampling”, a poesia parece “recorrer a
todos os nomes, em sua ânsia por nomear o perdido” (Rabello: 2003,
96). As imagens são, em sua maioria, de natureza evanescente – luz,
nuvem, lampejo, vento –, lançando-nos em uma dimensão etérea que
traduz o caráter fugidio de tais olhos, a impossibilidade de tocá-los e,
mais ainda, a impossibilidade de que esses olhos possam olhar, possam

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retribuir o olhar, figurando aquilo que Benjamin chamou o “declínio


da aura” (1989, 141) em seu texto sobre Baudelaire. No mesmo texto,
no entanto, Benjamin lembra que Baudelaire “insiste no fascínio da
distância” (p. 143), o que termina por sugerir um peculiar jogo, ou
uma relação dialética, entre aura e declínio da aura.
Diante do encanto dos olhos de Charlotte, algo se quebra,
algo simplesmente não se dá, a experiência é vivida como frustra-
ção e perda, em um movimento que nos recorda alguns poemas de
Manuel Bandeira. Não por acaso, o poema traz imagens como a da
tela que se “esgarça”, dos “rasgos” de luz, dos olhos “interrogativos”
que, por estarem sempre a perguntar, são olhos que nunca se fe-
cham na pacificação das respostas, restando-se, assim, como olhos
sempre atormentados e que atormentam em um movimento que é
de abertura, de abandono.
Importante destacar a precisão vocabular do poema, possível
de ser estendida para toda obra poética de Donizete, atravessada
pelo que Ivone Doré Rabello chamou um “desejo de polimento”, um
trabalho nas palavras que busca chegar à “lapidação concisa dos ma-
teriais concentrados” (2003, 81). O verbo “esgazear”, que compõe a
imagem “esgazear de folhas”, lança o poema nas paragens da loucura,
nessa região limítrofe muito próxima da experiência da possessão.
Esgazear significa justamente “abrir demasiadamente os olhos, sem
os fixar em qualquer ponto, como louco”. O verbo consegue então, ao
mesmo tempo, dizer da fugacidade desses olhos que não se fixam em
nada e da sua loucura, esboçando um quadro em que os olhos fogem
porque atravessados por uma instabilidade, uma não conformidade
que impede que eles sejam fixados.
Os olhos convulsivos de Charlotte são também virtuais –
lançados ao infinito da memória – e fundam um paradoxo que o

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próprio poema de Donizete busca reproduzir, seja na sua forma,


seja nas suas imagens. No seu jogo com diversos paradoxos, o poema
monta imagens como “a textura do efêmero”, “nuvem contrapelo”,
talvez como forma de traduzir a inquietação que nasce justamente
da ambiguidade em que se encerram os olhos de Charlotte. Nesse
tensionamento da própria imagem, denuncia-se ainda a tentativa
de captura do olhar que, no entanto, termina por se revelar inútil
já que a lógica do contrapelo é a de um movimento que vai em di-
reção oposta à desejada, àquela que seria previsível, conveniente.
Os olhos, ao invés de se voltarem para aquele que os deseja, o que
seria o esperado de toda experiência onde há uma reciprocidade no
olhar, fogem, ou, para acompanhar a reiteração do poema, “os olhos
continuam fluidos”, continuam a escorrer, sem se fixar em nada ou
ninguém, continuam em delírio.
Na teia de imagens, a sensação da textura do efêmero equi-
valeria ao impossível de ser olhado por essa outra estrela distante.
Não se toca o efêmero, antes se é tocado. As interrogativas em que
se desespera ainda mais o poema diante da indiferença marcada
pela ausência de um simples gesto de aceno – onde um vento? um
gesto? – não trazem em si mesmas a pergunta sem resposta dos
versos de Bandeira: onde está a estrela da manhã? E ainda, “vento e
gesto”, como em um vínculo inesperado, um diálogo inconsciente de
formas e imagens a inquietar os tempos e as obras, não nos trazem o
vento que levantava as vestes da Ninfa de Warburg, enrugando o seu
vestido, e onde se imprimia o seu gesto dançante, de vida e morte, o
gesto intensificado que denunciava a sobrevivência das ninfas pagãs?
A espessura desse poema de Donizete não está somente no
seu modo particular de montar as imagens, novamente produzindo
uma intensidade concisa, mas também no seu modo de montar dife-

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rentes temporalidades de modo que não só as imagens, mas também


vários tempos se acumulam em camadas no poema.
Há um diálogo com a tradição clássica que percebemos pela
recorrência de imagens de água para descrever os olhos inapreen-
síveis de uma figura feminina cuja condição de inacessibilidade não
deixa de ser sugerida por se tratar de uma atriz, alguém que pertence
ao mundo do espetáculo, alguém que, em alguma medida, conver-
te-se em imagem – “feixe de sentidos rebeldes à explicação” (Paz:
1982, 141). Na tradição clássica, água e figuras femininas ambíguas
e inacessíveis nos lançam de imediato ao território das ninfas e de
Vênus, justamente uma estrela que também é uma mulher.
Não podemos esquecer que as imagens de água a que o poema
se refere são, em sua maioria, ligadas ao movimento e a metamor-
foses, a água sendo em si mesma um veículo de metamorfose. O
poema fala em maré, quebra de onda, tons do mar, o que nos abre
um território de figuras móveis, instáveis, múltiplas, de onde não
está ausente uma dimensão de violência e perigo. A imagem “gaze dos
musgos”, sendo o musgo uma espécie comum em habitats úmidos e
sombrios, e a caverna marinha tematizam justamente a sombra, o
perigo, a umidade que é índice do desejo e é também uma pista de
onde podemos encontrar as ninfas. Também não podemos esquecer
que a caverna era, na tradição grega, “o mais comum dos lugares de
culto das ninfas […] e também eram usadas na antiguidade como
convenientes lares para as abelhas” (Larson: 2001, 8). As cavernas,
segundo Larson, também apareciam na mitologia antiga como locais
de nascimento, casa das divindades e dos monstros, e também locais
de relações sexuais.
Além da tradição clássica, as imagens do poema sugerem
ainda um vínculo com outra época ou, mais especificamente, com

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uma estética que talvez possamos chamar uma “estética do desejo”:


o art nouveau.
A imagem do pavão que abre seu leque, quase como uma
mulher que se mostra em toda sua exuberância, nos transporta
para um cenário fin de siècle onde a exuberância das formas e dos
detalhes, característica de um estilo como o art nouveau, fez com
este elegesse o pavão como uma espécie de ave símbolo. O vidro,
igualmente lembrado em pelo menos dois momentos do poema, foi
igualmente um material usado de forma expressiva pelos artistas do
art nouveau em sua estilização das formas da natureza. O próprio
esverdeado das esmeraldas e dos musgos, reflexo da cor do perverso
“olhar floral” de Charlotte, remete ao polêmico estilo do final do
século, visto por nomes como Paul Morand como algo que ia na
contramão do progresso:

O que o Sr. Arsène Alexandre então chama de “o encanto


profundo das serpentinas agitadas pelo vento” é o estilo
polvo, a cerâmica verde e mal cozida, as linhas forçadas e
esticadas em ligamentos tentaculares, a matéria torturada
em vão... A moranga, a abóbora, a raiz de malva, a voluta
de fumaça inspiram um mobiliário ilógico sobre o qual vem
pousar a hortênsia, o morcego, a angélica, a pena de pavão,
invenções de artistas presos à má paixão pelo símbolo e
pelo poema... Numa época de luz e de eletricidade, o que
triunfa é o aquário, o esverdeado, o submarino, o híbrido,
o venenoso (apud Benjamin: 2018, 899-900).

A partir dos vínculos subterrâneos entre o poema de Do-


nizete e a estética fin de siècle, não parece distante pensar que a

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figura fluida a ocupar o centro desse “vórtice de imagens” que é “Os


olhos de Charlotte Rampling” traz em si a lembrança daquela que
aparecerá como um dos temas recorrentes do art nouveau, surgindo
em cartazes, construções arquitetônicas, móveis, objetos da toilette
feminina e imagens de todo tipo.

As composições florais, na sua graça ondulante, encerram


uma sensualidade e delicada suavidade que evocam natu-
ralmente a mulher. E tão naturalmente que a mulher acaba
por se unir à flor nas representações cênicas do panorama
da Arte Nova. Os longos cabelos desdobram-se em volutas
que seguem os movimentos dos braços torneados. Os tipos
femininos libertam-se, quer representando danças felizes,
como nos cartazes de Chéret, quer nas elegantes estilizações
de Mucha ou na morbidez de Klimt. […] E se se pode dese-
nhar um protótipo de mulher Arte Nova, ele é, sobretudo
em França, uma mulher sensual, livre, feliz de viver. Por
alturas de 1900, a parisiense mundana ou semimundana,
sempre de uma elegância fulgurante, espiritual e luxuosa,
tortura os homens e é a vedeta (Champigneulle: 1984, 94-8).

Nas “formas femininas fluidas”, às quais a exuberância dos


ornamentos e o cruzamento quase delirante das linhas emprestam
um sutil movimento, desabrochando “em saias que se abriam como
corolas de flores” (Champigneulle: 1984, 12), não é possível reco-
nhecer a sobrevivência de outra forma? Podemos nos perguntar
em que medida as vestes ondeantes das mênades esculpidas sobre
vasos e sarcófagos da antiguidade já não trazem aquela que será a
exuberância ornamental do art nouveau, de modo que um dos princi-

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pais procedimentos formais da arte nova já estava dado, em alguma


medida, nos gestos intensificados da antiguidade. Teríamos então
nesta que é uma das figuras centrais da estética artenovista – esté-
tica que não por acaso toma como motivos típicos e recorrentes as
libélulas e as borboletas, aplicando-se, como diz Champigneulle, a
“exprimir o fugidio”, a “mobilidade do líquido”, “agarrar a fragilidade
do ser transitório transformando-o em matéria sólida” (pp. 102-4)
– “a sobrevivência de uma forma do passado” que chega ao início do
século XX em toda vitalidade do seu desejo: aquela da Ninfa.
A dimensão da perda, inerente ao tipo da femme fatale que
vemos através dos olhos de Charlotte, é habilidosamente apresenta-
da nos versos finais do poema de Donizete. A imagem “o frescor do
dia se vai” é ainda um gesto ambíguo no centro do poema, pois não
é apenas o dia que termina, mas a possibilidade do olhar (da aura)
que, para o poeta, está perdida para sempre.
A dor que atravessa as imagens finais é a dor do que se perdeu
e, mais ainda, a dor do que desde o início já estava perdido. Os olhos de
Charlotte Rampling são não só os olhos de Charlotte Rampling, mas
também os sonhos tão ardentemente desejados que passaram... porque
ainda uma vez se trata de passagens, movimentos furtivos, em que o
amor é sempre “à última vista” (Benjamin: 1989, 118), em que o gesto a
ser feito é o de “Amar, depois de perder” (Drummond: 1973, 265).
Uma imagem como “dói-me mais a beleza em fuga da mu-
lher” também se abre em sua ambiguidade, pois fala não só dessas
mulheres em fuga que passam, que aparecem apenas para desapa-
recer, mas também do tempo que passa sobre elas, da beleza que
escorre no tempo, feito água. No entanto, esse poema realiza, com a
beleza que têm as coisas melancólicas, mas também com a força que
têm os nossos desejos, um elogio ao amor que se cultiva por certa

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imagem e nos acompanha por toda a vida, porque é maior do que


nós, porque está dentro de nós.
Assim parece se dar com a “potência do feminino” que – em
trânsito – sobrevive no tempo, tal como uma “imagem-peste” que se
alastra, pois esses olhos de Charlotte trazem latentes tantos outros.
Nesse sentido, “tudo se foi sem gesto de adeus” nos inunda com a
tristeza de tudo que não pode ser, porque tragado pelo tempo, mas
também nos submerge no delírio da “convulsão das formas” que não
se despedem em definitivo, porque sempre estão a retornar.

Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. […] Traziam não sei que


fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para
dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de res-
saca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes
vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados
pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda
que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando
envolver-me, puxar-me e tragar-me (Assis: s/d, 53).

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Resumo

Este trabalho tem como objetivo pensar as figurações da Ninfa


enquanto forma feminina em movimento, tal como vista por Aby Warburg
e Georges Didi-Hubermam, em dois poemas de Donizete Galvão: “Os
olhos de Charlotte Rampling”, de Pelo corpo (2002), e “Ruminadouro”, de
Ruminações (1999). Mineiro de Borda da Mata, Donizete Galvão construiu
uma poesia atravessada pela tensão entre delicadeza e profundidade,
corpo e cosmo, morte e vida, construção e inspiração. “Antropófago da
memória”, como observou Paulo Octaviano Terra, a infância e os mortos
ocupam um lugar fundamental nessa “poesia menor” atenta aos fragmen-
tos, aos resíduos e ruínas, à poeira das coisas desgastadas e levadas pelo
tempo. Seguindo de perto os rastros de Drummond e, em alguns aspectos,
os de Bandeira, a dimensão da “vida que podia ter sido e que não foi” tam-
bém ocupa um lugar de destaque nessa poética do desejo, mas que deseja
antes de tudo o perdido, o entrevisto, o que apenas passa diante de nossos
olhos como um fantasma, um sintoma errante e convulsivo que inquieta
nossos tradicionais modelos de temporalidade, deixando vir à tona víncu-
los insuspeitados entre a contemporaneidade poética e aquela que talvez
possamos chamar uma cultura literária fin de siècle.
Palavras-chave: poesia contemporânea; Donizete Galvão; ninfa;
imagem.

Abstract

This work aims to think the figurations of the Nymph as a feminine


moving form, as seen by Aby Warburg and Georges Didi-Hubermam, in
two poems of Donizete Galvão: “Os olhos de Charlotte Rampling”, from
Pelo corpo (2002), and “Ruminadouro”, from Ruminações (1999). Natural
from Borda da Mata, Donizete Galvão built a poetics crossed by the
tension between delicacy and depth, body and cosmos, death and life,
construction and inspiration. “Anthropophagus of memory”, as observed
Paulo Octaviano Terra, the childhood and the dead occupy a fundamental

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place in this “minor poetry” attentive to fragments, waste and ruins, to


the dust of things worn and taken by time. Closely following Drummond’s
footsteps and, in some aspects, Bandeira’s, the dimension of “life that
could have been and has not” also holds a prominent place in this poetic
of desire, but which first of all desires the lost, the vaguely seen, what we
catch by mere glimpse, that thing that only passes before our eyes like a
ghost, a wandering and convulsive symptom that disturbs our traditional
models of temporality, bringing to light uncovered links between poetic
contemporaneity and that which we may perhaps call a fin de siècle literary
culture.
Keywords: contemporary poetry; Donizete Galvão; nymph; image.

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Memória e imaginação em
O risco do bordado, de Autran Dourado

Tainara Quintana da Cunha*

“Eis-me nos campos da minha memória, nos seus antros


e cavernas sem número, repletas, ao infinito, de toda a
espécie de coisas que lá estão gravadas, ou por imagens,
como os corpos, ou por si mesmas, como as ciências e as
artes, ou, então, por não sei que noções e sinais, como os
movimentos da alma, os quais, ainda quando a não agitam,
se enraízam na memória, posto que esteja na memória tudo
o que está na alma”.
Livro X – Santo Agostinho

“Você vai juntando essas histórias, depois tira a limpo. É


capaz de não valer a pena, o que resta é apenas fumaça,
desilusão. Mas de um homem sempre alguma coisa fica,
quando nada nas lembranças, esperando a ressurreição.
Feito dizem: Deus é que sabe por inteiro o risco do bordado”.
Dr. Alcebíades – personagem de O risco do bordado

Antes de prosseguir na investigação dos desdobramentos


da memória e da imaginação em O risco do bordado (1970), o tra-
balho literário de Autran Dourado não pode ser ignorado. Autran

* Doutora em História da Literatura pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG).

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158 Ensaios

Dourado (1926-2012) foi um profícuo escritor e jornalista minei-


ro, cuja expressiva atividade artística favoreceu a longevidade de
sua literatura. O autor é relevante para a historiografia literária
brasileira tanto pela qualidade estética de seus textos quanto pela
quantidade de obras publicadas. Entre os principais títulos está
o romance de estreia Teia (1947), com destaque para Uma vida
em segredo (1964), Ópera dos mortos (1967), O risco do bordado
(1970), Os sinos da agonia (1974), Uma poética de romance: matéria
de carpintaria (1976), O meu mestre imaginário (1982), Um artista
aprendiz (2000), Breve manual de estilo e romance (2003), compondo
suas últimas publicações.
Na observação do ofício do escritor, sobressaem alguns dos
signos que regem suas narrativas e são recorrentes na obra a ser
abordada. Entre as peculiaridades que singularizam o ofício do autor,
destaca-se o trabalho com a palavra escrita, minuciosamente cuidada,
exercício aperfeiçoado ao longo de sua vida literária, principiada no
final dos anos 40 do século XX e que chegaria ao século XXI com a
publicação de O senhor das horas (2006).
Sob a influência das tendências literárias modernistas
formadas entre os anos 1940 e 1970, Dourado traz, no conjunto
de seus escritos, traços que o identificam como tal. Um deles
consiste na elaboração de textos em que as personagens, mais
que habitar o universo regional, cuja ênfase é o Brasil essen-
cialmente oligárquico e rural, promovem a incursão pelo seu
próprio íntimo e conduzem o leitor pela descoberta vertical da
narrativa. Apesar de dedicar poucas linhas a Autran Dourado em
sua História concisa da literatura brasileira, as palavras do crítico
literário Alfredo Bosi, sobre o perfil das narrativas elaboradas
no período, ilustram esse movimento:

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Memória e imaginação em O risco do bordado, de Autran Dourado 159

Aparecem a partir dos anos 70 vários narradores para os


quais é a apreensão das imagens do seu universo regional que lhes
serve de bússola o tempo todo. [...] Chama igualmente atenção o
gosto, que essa mesma concepção de literatura cultiva, de verticalizar
a percepção de seu objeto, examinando-o com o olhar em retrospecto
(2006, 436).

Na qualidade de criador de textos cuja dinamicidade admite


várias perspectivas de leitura, Autran Dourado não permite um
olhar unilateral sobre seus escritos. Antes, os romances, os contos
e as novelas induzem o leitor a adaptar a visão de maneira multi-
dimensional, não linear, a fim de captar a riqueza entranhada nas
minúcias, no não dito das linhas. Em suas criações, predomina a
estrutura organizada em blocos distintos, dando forma a compo-
sições multifacetadas. Formuladas ao modo de um caleidoscópio,
as narrativas abertas permitem interpretações várias, caso dos ro-
mances O risco do bordado (1970) e Os sinos da agonia (1974), entre
outros. Segundo a pesquisadora Liduína Maria Vieira Fernandes, o
processo criativo de Autran Dourado é uma construção consciente
e bem elaborada: “De estrutura labiríntica, seus romances são
desmontáveis, feitos em blocos, permitindo múltiplas leituras”
(2006, 15).
Não raro, o escritor enfatiza questões que dizem respeito ao
comportamento do sujeito nas mais variadas situações em que situa
suas personagens: veja-se a loucura de Donguinho e as armadilhas de
Malvina em Os sinos da agonia, em tudo diversa ao recato, aos votos
de pobreza, a solidão de prima Biela em Uma vida em segredo, ou,
ainda, os desvãos da memória por onde se perde no tempo resgatado
da infância a personagem João em O risco do bordado.

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160 Ensaios

De acordo com Dourado, em suas obras, “o importante é o


movimento e a linguagem” (1976, 22). Essa afirmativa o motiva a
seguir na busca pelo aperfeiçoamento de cada vocábulo empregado,
repetido e reutilizado. Num texto que se abre para a estrutura em
abismo, essencialmente barroca, o autor encadeia vários planos
narrativos intrincados e indissociáveis entre si.
Em O risco do bordado, a identificação dos capítulos em sete
blocos distintos encobre o tônus da narrativa, o que é compreensí-
vel na medida em que o leitor atenta para as repetições, voltas para
trás, saltos para frente, insinuações, alternâncias e fusão de vozes
distintas ao longo da obra. Nesse sentido, assim como as recorda-
ções da personagem João, a narrativa não está colocada de maneira
linear. É usual na prosa autraniana o discurso que obedece ao fluxo
corruptível e, por isso, não confiável da memória das personagens,
cabendo ao leitor organizá-lo. Cada uma das partes compreende um
microcosmo em aparência independente dos demais, mas que, ao
fim, revelam um universo meticulosamente organizado.
O próprio Autran Dourado corrobora a ideia de que, por
trás do texto, subjaz outra narrativa, encoberta, que obriga o leitor
a aprofundar verticalmente o olhar a cada releitura. São suas as
palavras que seguem acerca de O risco do bordado: “a simplicidade e
limpidez no meu caso são enganosas, conseguidas a duras penas, há
sempre um alçapão ou esparrela escondidos” (2006, 15).
Não por acaso, no romance em questão, a divisão dos ca-
pítulos permite/exige mais de uma leitura porque essa última é
labiríntica, para empregar os termos autranianos. Ao imergir na
narrativa pelas divagações da personagem João, o leitor se embrenha
no labirinto das palavras, dos gestos, das lembranças e das memórias
ditas e repetidas ao modo de uma interminável ciranda. Ao sabor

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Memória e imaginação em O risco do bordado, de Autran Dourado 161

das recordações daquele que narra: ora o neto, ora o avô, ora a voz
do neto pela boca do avô, as personagens se embrenham no tempo
e anseiam resgatar o passado. Além disso, o vaivém da memória,
num percurso temporal não identificável, confunde o olhar menos
acostumado à escrita de Dourado.
Destacando esses movimentos como articuladores no con-
junto da estrutura em O risco do bordado, o presente estudo se dedica
ao reconhecimento da memória e da imaginação enquanto elementos
norteadores da leitura do romance.

Das impressões da memória


Embora haja dificuldades na concatenação das partes em O
risco do bordado, a aparente desordem não é sinônimo de autonomia,
tão menos de superficialidade da obra. A tônica no encadeamento
da narrativa é perceptível na medida em que o leitor atenta para o
jogo lúdico implícito na urdidura do texto. Esse mecanismo permite
que o objeto literário mude de perspectiva de acordo com o ângulo
de observação. O dinamismo e a multiplicidade de elementos em-
pregados na história fazem com que mais de um tema sobressaia em
suas linhas. Assim, por exemplo, o romance em questão pode ser
apreendido a partir da investigação de seus caracteres míticos, ou do
trabalho com a temporalidade, ou ainda, com base nos intertextos
distribuídos pela obra.
A despeito dessas hipóteses de investigação e tendo em
atenção as sugestões de Dourado em Uma poética de romance (1976),
acerca de como o leitor poderá proceder na interpretação de O risco
do bordado, ingressamos na narrativa pelo viés da memória do pro-
tagonista João, tendo em vista que a personagem projeta suas lem-
branças na escrita, esta última alimentada pela imaginação. É graças

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162 Ensaios

à interação desses elementos que o texto se forma. Nesse sentido, a


reflexão registrada por Santo Agostinho em suas Confissões e citada
na epígrafe, bem como a fala de uma das personagens da narrativa
vêm ao encontro da proposta de investigação deste trabalho.
Junto à obra literária enfatizamos a maneira como o resgate
das lembranças assalta o protagonista João, na condição de sujeito
escritor de si. Essa premissa aponta para as questões concernentes
aos desvãos da recuperação mnemônica e seus desdobramentos,
tendo em atenção a não linearidade com que a personagem expõe
suas recordações. Trata-se daqueles acontecimentos dissolvidos
nas lembranças, por intermédio dos quais o protagonista busca
uma ligação entre o passado, irrecuperável em sua integralidade, e
o presente, não menos fugidio.
As histórias contadas por vovô Tomé, as desavenças de
família, os cuidados de vovó Naninha com João, ainda menino, lem-
branças da casa dos avós e dos tios Zózimo, Margarida e Alfredo, as
recordações da cidade de Duas Pontes, os mistérios da Casa da Ponte
são impressões que povoaram a infância do menino, revisadas, no
presente, pelo olhar do homem. Conforme observava Santo Agos-
tinho no Livro X, os subterrâneos por onde a memória se desdobra,
“nos seus antros e cavernas sem número” (2004, 276), guardam
infinitas coisas, oriundas de toda a ordem de efeitos sentidos ou
imaginados por aquele que as experimenta. Na intersecção entre
passado e presente, tudo são sensações reavivadas no espírito de
João, cujo esforço da memória, empenhada no não esquecimento,
se miscigena à imaginação, ambas incidindo sobre o sujeito como
tecelãs das lembranças.
Porém, a tarefa de dissertar acerca das manifestações da
memória junto ao texto literário não se mostra simples. Tendo

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Memória e imaginação em O risco do bordado, de Autran Dourado 163

c­ ons­ciência disso, concentramo-nos em delinear as reflexões empre-


endidas pelo teórico francês Paul Ricœur, engajado na compreensão
mais profunda acerca desse assunto. De seus estudos, fazemos
alusão, sobretudo, à obra A memória, a história, o esquecimento, cuja
tradução brasileira data de 2007, especialmente no que concerne à
exploração da memória pessoal e da memória e imaginação, temas
enfatizados na interpretação do texto de Autran Dourado.
No romance O risco do bordado, João da Fonseca Nogueira,
natural da cidade imaginária de Duas Pontes, volta ao lugar de onde
partira há mais de vinte anos: “depois de uma ausência de muitos
anos, homem feito, João voltava a Duas Pontes” (Dourado: 1999,
189). Numa tentativa de fuga do próprio esquecimento, o protagonis-
ta se empenha no registro das lembranças, retornando ao sítio natal.
No regresso a Duas Pontes, a personagem rumou para o consultório
do Dr. Alcebíades, uma das personalidades resgatadas do passado:

Agora João estava de novo diante da porta do consultório.


Custou a bater, temendo interromper a conversa de um
médico e um menino lá dentro faz muitos anos. João sorriu
diante da lembrança daquele menino. Era a mão do menino
ou a mão do homem que ia bater agora naquela porta, ele
se indagava (p. 190).

Entre a mão suspensa no ar e a distância que a separa da


porta, afloram as recordações de outro tempo, tocadas pela projeção
do homem no menino de outrora, que, agora, repete o mesmo gesto
da infância. João vai ao encontro de um universo mítico, fundacional,
reavivando o tempo passado e os lugares por onde andara na cidade
de Duas Pontes.

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No percurso, emergem da memória as recordações de famí-


lia, memórias revisitadas: “vovó Naninha no crochê, tia Margarida
jogando paciência ou lendo sempre o mesmo livro, sá Milurde plan-
tada numa banqueta, os olhos perdidos na meditação abobalhada
dos velhos, à espera” (p. 153). Dos amigos: “Tuim, por exemplo, com
Tuim não tinha graça nenhuma. João logo se entediava, com Zito é
que era gostoso” (p. 11) e dos amores: “Terezinha Virado, Terezinha
Virado, ai Terezinha Virado!” (p. 10); “Valentina era ruiva, tinha a
cara toda pintadinha de sarda coberta de pó de arroz, mas talvez
por isso mesmo comecei a achar ela linda” (p. 73). Elementos com
os quais a personagem liga-se intimamente no decorrer dos sete
capítulos da obra.
As personalidades evocadas e as histórias que se erguem
em torno delas são algumas das estratégias narrativas empregadas
pelo escritor na obra, a fim de conceder veracidade às recordações
vividas pelo protagonista.
No entanto, a distância temporal que separa o menino que
ficou no passado e o homem do presente é suficiente para trans-
formar o olhar daquele que retorna às suas raízes. As lembranças
atualizadas no tempo presente não têm a mesma cor das impressões
sentidas ou imaginadas por João menino:

Visão de menino é assim mesmo, disse tio Alfredo quando


João lhe contou como ele menino via Xambá. Não digo que
menino não veja as coisas direito. São as névoas nos olhos,
feito você diz. É que menino vê muito, vê até demais da
conta. Só que vê de través, junta o que sentiu e as coisas que
aconteceram mesmo. Visão de menino é que nem visão de
santo, tem lume nas bordas, pinga estrelas. Olho de menino

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vive cheio de neblina, depois com o tempo clareia, ou se


apaga, não sei. Depois a gente vê melhor, melhor não digo,
vê diferente, a força de antes vai minguando no decorrer do
tempo. Tudo em menino é girândola, grito, susto, foguetó-
rio, brumado de sonho (p. 200).

Ao voltar a Duas Pontes, João refez os caminhos que per-


correra quando mais jovem, mas as imagens retidas pelo olhar do
menino não são as mesmas projetadas na visão do homem. Com o
auxílio dos cinco sentidos – tato, olfato, paladar, audição e gustação
–, João constrói, pela imaginação, um mundo de fantasias através da
memória. O menino “junta o que sentiu e as coisas que aconteceram
mesmo” em movimentos sinestésicos por meio dos quais a memória
e a imaginação dão origem a uma infância de sonhos. É pela retina,
pelas “névoas nos olhos”, que a personagem retém as impressões que
lhe sobram da infância neste universo:

A julgar pela sala de espera, nada parecia ter mudado na casa


do dr. Alcebíades. A parede cinza, a gravura de Pasteur dando
injeção num menino (devia ser a mesma de quando menino
ele olhava espantado, depois mais crescido enquanto esperava
que o dr. Alcebíades pudesse atendê-lo e lhe emprestasse
alguns livros, devia ser a mesma gravura, de tão desbotada,
de tão velha, ou ele depois mudou para uma outra igualzinha,
será que uma gravura dura tanto tempo assim? ou será que
não era a mesma gravura, ele estava fazendo confusão?), o
tapete de linóleo estragado nos cantos. A porta de vidro fosco
onde ele esperava (antes e agora, diversas ansiedades) ver
surgir a sombra do dr. Alcebíades (p. 191).

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Na medida em que o protagonista avança em idade, essas


sensações se modificam: “depois a gente vê melhor, melhor não
digo, vê diferente, a força de antes vai minguando no escorrer do
tempo”. As memórias fazem parte unicamente das recordações
de João e somente ele poderá recuperá-las. Elas guardam uma
essência em comum, capturável, exclusivamente pela memória de
João. As recordações da infância pertencem à personagem e não a
outrem, de modo que o leitor tem acesso somente àquilo que João
deseja relatar.
Para Ricœur, três aspectos são distintivos no caráter pri-
vado da memória própria do indivíduo, sobre os quais, segundo
o autor, a tradição do olhar interior se edificou desde Santo
Agostinho. O teórico assinala que a memória é dotada de um
caráter individual e intransferível: “minhas lembranças não são
as suas” (2007, 107); ela está situada no passado do indivíduo:
“a memória é passado e esse passado é o de minhas impressões”
(p. 107). Além disso, seu sentido de orientação na passagem do
tempo pode ir tanto do passado para o futuro como do futuro
para o passado:

Orientação de mão dupla do passado para o futuro, de trás


para a frente, por assim dizer, segundo a flecha do tempo da
mudança, mas também do futuro para o passado, segundo o
movimento inverso do trânsito da expectativa à lembrança
através do presente vivo (p. 107).

Essas considerações revelam que a memória pertence


exclusivamente ao indivíduo, sem que possa ser transmitida para
outrem. Além disso, ela se refere ao passado, ao pretérito da própria

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memória daquele que a sente. As recordações trazidas ao presente


pela memória de João não constituem a veracidade dos fatos ocor-
ridos no passado, antes, elas são a recordação da memória sentida
ou imaginada pelo menino em outro tempo.
A memória reflete sobre a própria memória e, assim, per-
manece afastada do tempo cronológico ordinário. Ao contrário, o
indivíduo é marcado em sua trajetória de vida pela passagem do
tempo cronológico, mas sua memória não obedece a essa cronologia,
na medida em que as lembranças são resgatadas em um passado
incomensurável, o passado da memória. Se João recorda, o faz
sobre as sensações que anseia recuperar de seu passado. É desse
tempo que ele fala quando se refere às impressões que guarda da
família, dos amigos e da cidade que ficara na infância. É no resgate
das lembranças, através da memória, que ele rompe a distância do
tempo que o separa dessas sensações e se vê outra vez menino, nas
constantes idas e vindas, no tempo incomensurável da memória,
“trabalho de uma aranha meticulosa, as batidas de uma pêndula
invisível” (p. 192).
Olhar para dentro implica autoconhecimento e revelação
do homem ao próprio homem através do desvelamento de suas
múltiplas faces, num processo doloroso, dilacerante que traz em
seu âmago alegrias, mágoas, ressentimentos, remorsos e dores, que
afloram aos borbotões: “o menino ia e voltava, ia de novo e voltava,
até que um dia se foi de vez. Vendo a velhice, a devastação, o trabalho
do tempo no rosto enrugado, na cabeça branca, João disse mais de
vinte anos” (p. 192).
Nesse ínterim, os fatos ocorridos tornam-se menos importantes
no momento da recordação porque cedem o protagonismo às impressões
sobre esses mesmos fatos. Por sua vez, a memória os faz emergir da massa

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funda do tempo na forma de lembranças que perduram pela existência


do sujeito empenhado em chafur­dá-la. Dessa maneira, uma noção de
passagem do tempo não poderá ser negligenciada. É no afastamento
temporal que a alteridade se impõe, possibilitando que o indivíduo veja
a si mesmo como outro, num tempo que, por um lado, não é mais o
presente e, por outro, é distinto do tempo cronológico.
Não haverá memória se as lembranças não forem registradas
no tempo que passou, na juventude, na infância ou mesmo em um
recorte aparentemente aleatório que o sujeito possa fazer sobre sua
existência. É o passado que alimenta as lembranças e a memória só
se realiza nele: “a memória é do passado”. É o contraste com o futuro
da conjetura e da espera e com o presente da sensação (ou percepção)
que impõe essa caracterização primordial (Ricœur: 2007, 35). Por
conseguinte, falar da memória implica discorrer sobre as lembranças
que por meio dela se realizam.

De um lado as lembranças distribuem-se e se organizam


em níveis de sentido, em arquipélagos, eventualmente se-
parados por abismos, de outro, a memória continua sendo
a capacidade de percorrer, de remontar no tempo, sem que
nada, em princípio, proíba prosseguir esse movimento sem
solução de continuidade. É principalmente na narrativa
que se articulam as lembranças no plural e a memória no
singular, a diferenciação e a continuidade. Assim, retrocedo
rumo à minha infância, com o sentimento de que as coisas
se passaram numa outra época (Ricœur: 2007, 108).

É graças à memória, “movimento sem solução de con­


tinuidade”, nas palavras de Ricœur, que João tenta recuperar, no

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tempo da juventude, as lembranças em que subjazem as impressões


sobre os acontecimentos que o constituíram. Essas lembranças não
estão distribuídas nem linear nem uniformemente na memória da-
quele que as recupera, porque se reúnem em “arquipélagos” formados
a partir daquilo que a memória do sujeito empenha-se em resgatar.
Ricœur destaca também que a narrativa é um dos instru-
mentos pelo qual as recuperações mnemônicas buscam uma orga-
nização, no anseio de reconstituir e conferir alguma linearidade às
lembranças. Contudo, torna-se impossível recuperar integralmente
o passado através das lembranças selecionadas pela memória. Elas
não são lineares nem totalmente confiáveis, posto que constituam
as impressões do que o indivíduo julgou sentir ou, ainda, que ele
imagina ter sentido. Porém, na acepção de Ricœur, “não temos nada
melhor que a memória para designar que algo aconteceu, ocorreu, se
passou antes que declarássemos nos lembrar dela” (2007, 40). Disso
sobressai a atribuição de um caráter falacioso à memória, já que “a
memória, reduzida à rememoração, opera na esteira da imaginação”
(p. 25), do ideal, do possível.1
É curioso observar que, em meio à narrativa de O risco do
bordado, João executa um movimento análogo àquele empreendido
pela personagem Bento Santiago no relato de suas memórias em Dom
Casmurro (1899), de Machado de Assis. A exemplo de seu predeces-
sor, trata-se da tentativa da personagem criada por Autran Dourado

1 Acerca da memória e da imaginação, Paul Ricœur, no capítulo intitulado “Da memória e


da reminiscência”, parece atribuir um caráter pejorativo à imaginação, ao passo que tende a
considerar certo grau de veracidade à memória. Que o comprove a “Nota de orientação” na
abertura do período assinalado: “Ora, a imaginação, considerada em si mesma, está situada
na escala inferior da escala dos modos de conhecimento, na condição das afecções submetidas
ao regime de encadeamento das coisas externas ao corpo humano” (2007, 25).

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de “atar as duas pontas da vida”, revisá-la por meio da escrita e, com


ela, acertar contas, a partir do que recorda, ou do que se esforça em
fabular acerca de sua vida pregressa. Na esteira dessas considerações,
passemos à investigação da imaginação junto à memória, uma vez
que parecem elementos indissociáveis e separá-los seria comprome-
ter o entendimento de ambos.

Da imaginação na memória
Revisados os desdobramentos da memória em O risco do bor-
dado, dizemos que João procura registrar o que recorda da infância
e da adolescência vividas entre Duas Pontes e o Colégio São Mateus
por meio da palavra escrita: “ele comparava, ele ouvia, ele sem saber
anotava para depois, quando mais tarde” (Dourado: 1999, 185).
A recuperação integral das lembranças não se realiza nem
pela memória, nem pela narrativa. Nessa perspectiva, Ricœur inves-
tiga as ligações entre o que é lembrado e a projeção imagética das
lembranças na memória, de onde conclui que as lembranças não
fogem à ficcionalização porque um de seus constituintes é a imagem e
esta, por sua vez, é ficção. Transplantada para o âmbito da literatura,
a imagem do passado, seja projetada pela memória, seja transcrita
para o papel, tende a ser puramente ficcional.
A trajetória de João rumo ao pretérito revela, no risco do
bordado–texto, o ofício da escrita executado por ele mesmo: “o dr.
Alcebíades tinha umas três estantes de livros de literatura e foi ali
que João fez a sua iniciação, quando lhe despertou o desejo de ler”
(p. 189). A maneira livre, despreocupada, íntima e alimentada pela
imaginação como o protagonista se afeiçoou à biblioteca do médico
contrasta com a forma clássica, vernácula e recrudescida como lhe
ensinaram a escrever, concomitantemente, no internato:

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Cuidado com as frases longas demais, por causa da concor-


dância e da regência, dizia o professor. Só os clássicos, só
os mestres do vernáculo. Só um Vieira, um Euclides, um
Rui, um Camilo podem dar-se ao privilégio das grandes
e cadenciadas frases, era o que dizia o professor. Cuidado
com os quês, com os verbos auxiliares, com as repetições,
procurem uma sinonímia rica. O nosso idioma é um ma-
nancial inesgotável. Era uma merda escrever assim (p. 60).

A intimidade com a linguagem coloquial contribui para a


imersão de João no passado de fantasias, através da escrita alimenta-
da pela biblioteca do médico, sempre ao alcance das mãos do menino.
A negação do vocabulário rebuscado permite que o menino-homem
faça uso da linguagem corrente dos ditados populares. João emprega
no texto um tom que conota intimidade e afeto, elementos caros no
reavivamento de sua infância e que o aproximam do passado. Ao
repudiar os padrões tradicionais da escrita canônica por meio da
personagem João, Dourado tece uma crítica ao rebuscamento e à
rigidez da língua vernácula, conforme suas palavras:

Até então eu só pensava em trocar um verbo por outro


verbo, conforme tinham me ensinado, a fim de evitar re-
petições (“uma língua tão rica como a nossa”, “procure uma
sinonímia variada”, era o que mais me diziam), cheio de
preconceitos, mesmo gramaticais de “arte de escrever” o que
eu viria a satirizar nesse meu O risco do bordado (1976, 22).

Além disso, é através da afeição com o linguajar mais simples


que João fala de si. A personagem seleciona as lembranças que deseja

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relatar ao leitor e o faz, na narrativa, por intermédio da conversa


despreocupada, rica em fabulação, no consultório do dr. Alcebíades:

E passaram a tarde inteirinha rememorando Duas Pontes


antigamente: as boas histórias e as histórias tristes. E a
tarde se encheu de sombras e de lembranças, de gotas de
óleo pingado. E as histórias, boas e alegres e tristes, à luz da
distância, na sombra da tarde, perdiam o brilho, ganhavam
a lucidez dos fantasmas, o tom cinza esbranquiçado, tinham
o mofo das coisas velhas. O velho limpando meticuloso os
óculos, será que ele agora chorava? Ou era ilusão do tempo,
da lembrança, do coração? (1999, 191).

Não há garantias de que os relatos sejam verdadeiros, uma


vez que esse terreno é da ficção. Não por acaso, a epígrafe de aber-
tura do romance O risco do bordado traz a seguinte reflexão extraída
de um trecho de Autobiografia de Mark Twain (1924), do escritor e
humanista norte-americano de mesmo nome:

Quando eu era mais jovem podia lembrar-me de qualquer


coisa, tivesse ou não acontecido; mas agora as minhas
faculdades estão decaindo e em breve só serei capaz de me
lembrar das coisas que realmente aconteceram (Twain: 1924
apud Dourado: 1999).

Essa passagem reveladora, colocada nas primeiras páginas
do texto de Dourado, explicita uma alusão ao gênero autobiográfico,
pois se refere a um “eu” que escreve: “quando eu era mais jovem...”.
O trecho conota uma referência à memória: “podia lembrar-me de

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qualquer coisa...”, à imaginação: “tivesse ou não acontecido...” e


“[à]s coisas que nunca aconteceram...”. Por conseguinte, faz referên-
cia à passagem do tempo, opondo dois momentos compreendidos
entre um “antes” e um “agora”.
Nessa perspectiva, a obra de Dourado encontra ressonância
no gênero autobiográfico, hipótese que enriquece a trajetória de in-
terpretação da obra literária abordada. Assim como Twain remexe o
passado por meio da escrita de si em sua autobiografia, demarcando
desde o tempo da juventude a distância temporal que o separa da
mesma, João procura, através da imersão no passado, desvendar os
mistérios das raízes que o constituíram como tal. Essa aproximação
destaca traços em comum entre o texto autobiográfico de Twain e
a trajetória da personagem João, na medida em que ambos estão à
procura de si através da recuperação das memórias e por intermédio
da palavra escrita. Graças à imaginação, tanto a personalidade biogra-
fada como João se volvem em personagens ficcionais na construção
de um texto narrativo sobre si mesmo.
Todavia, na construção de O risco do bordado, Dourado
não se vale unicamente do discurso em primeira pessoa, como
é usual na maioria dos textos autobiográficos. O autor cria uma
personagem puramente ficcional que funde diferentes discursos
em sua própria voz, formada pelo coro das vozes dos antepas-
sados. Por esse motivo, João se constitui pelas dores, remorsos
e desavenças da família, recordando episódios nos quais essas
sensações são recorrentes.
Além disso, se faz sentir a voz de um narrador onisciente,
cujo discurso se dá em terceira pessoa, erguida paralelamente à voz
do protagonista. Mesmo que João goze de certa autonomia na or-
questração do plano narrativo, o narrador desconhecido incorpora a

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voz da personagem, inclusive na excursão pelo passado desta última.


Nada lhe escapa, nem mesmo as sensações mais íntimas do menino.
Que o comprove a descrição da ida à casa da Ponte: “na ponte, João
sentiu uma vontade apertada de mijar. Tinha de mijar logo, podia
ficar pinga-pinga, as calças molhadas na frente das mulheres, um
vexame” (1999, 24).
Em meio às recordações, tocadas pela mão do narrador, João
vai ao encontro das raízes mais longínquas de sua família, sempre
com a visão filtrada pelo afastamento temporal que o distancia do
olhar do menino de outrora. Entre as lembranças selecionadas, a
personagem recupera os ancestrais da família patriarcal, pessoas que
ele conhecera apenas de ouvir falar, pela boca dos parentes. O bisavô
Zé Mariano, pai de vovô Tomé e de seu Teodomiro; tio Maximino,
irmão de vovó Naninha; os tios Zózimo, Margarida e Alfredo. Pilares
fundadores de uma estirpe marcada por conflitos que acompanham
o protagonista pela vida afora, um dos motivos que o levaram a
revisitar seu passado.
A personagem principal faz parte da geração mais jovem dos
Nogueira da Fonseca. João é filho de Tonico, por sua vez, filho de
vovô Tomé. Pertence a João a incumbência de manter vivo o nome
dos seus ao longo do tempo: “diga ao doutor que é o João, filho do
finado Tonico Nogueira, neto de seu Tomé, disse ele remedando o
tio que assim o apresentava às pessoas” (p. 190). Ao sabor das recor-
dações, a dor, a morte e o remorso são elementos de ligação entre as
personagens masculinas – Zé Mariano, vovô Tomé, tio Maximino,
Tonico, Zózimo, Alfredo e João –, homens taciturnos, ensimesmados,
marcados pelo silêncio, pelas palavras não ditas e pelas insinuações
ao longo da narrativa.

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E entre as personagens femininas – dona Pequetita, vovó


Naninha e Gilda –, a mãe de João. Mulheres impositivas e castradoras
que, por meandros e sutilezas, não hesitam em afrontar a autori-
dade patriarcal dos maridos. Os conflitos que culminam na pessoa
de João têm origem com os bisavôs Zé Mariano e dona Pequetita,
por ocasião de um filho que o ancestral da família tivera com uma
desconhecida, antes do casamento:

A mulher não ficou sabendo da existência daquele Teodo-


miro por vias transversas, ele mesmo é quem contou antes
de se casar. [...] Na aparência ela mostrava que conhecia o
seu lugar, obedecia o mando do marido, fazia conforme o
seu desejo. Mas a mãe não era nada disso, a mãe era uma
onça de braba (pp. 117-8).

Foi a braveza e o orgulho da mãe de vovô Tomé que a


impediram de conceder o perdão a Zé Mariano, seu marido. Ine-
briada pelo ódio, dona Pequetita manipula o próprio filho e o faz
voltar-se contra o pai, fato que o avô de João relembra, carregado
de mágoas: “ficava imaginando agora: tivesse ele ficado ao lado do
pai, assistindo ele todo dia, se as coisas não tinham tomado outro
rumo” (p. 134).
Marcado pelo remorso e pela dor, vovô Tomé lamenta sua
degeneração em relação ao pai: “um homem de sombra e eito, de terra
e água, de pedra e fogo, dizia. Tem gente que suspeita que eu sou
que nem ele, do mesmo barro, reafirmava. Mas só viam o por fora,
não viam o de dentro, das fibras escondidas” (p. 115). Ele recorda,
pela boca de João, as circunstâncias da morte de Zé Mariano: “se
afastou um pouco para tomar fôlego, o pai de costas para ele. E de

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repente avançou, deu um empurrão no pai, o velho caiu dentro do


rio” (p. 143). O rio do tempo, que persiste pela memória de vovô
Tomé, assassino do pai:

Vovô Tomé agora acordava assustado no meio da noite: era


o pai aquele braço levantado fora d’água, as duras palavras
do xingamento. Vovô Tomé tapava os ouvidos, mas da boca
aberta do velho iam brotando os nomes com que ele próprio
se apelidava no purgar da culpa (p. 114).

As palavras de escárnio proferidas pelo patriarca dos No-


gueira da Fonseca são semelhantes àquelas que, mais tarde, Alfredo
ouve de Zózimo, seu irmão: “tudo bem seu cachorro! É você mesmo
que eu quero pegar”! (p. 192). E também lembram como dona Pe-
quetita escarnece o marido: “quem fugiu de casa foi ele, quem está
nas vascas da morte é ele, é ele que deve estar mijando pelas pernas
abaixo, na bobeira da caduquice. Teu pai está é caduco, Tomé, vai
morrer à mingua” (p. 132).
Por sua vez, Zózimo é o filho pródigo de vovó Naninha e
vovô Tomé, o mesmo da parábola bíblica que, andarilho pelo mun-
do, às tantas volta à casa paterna. Supostamente sofrendo com
problemas mentais, ele não hesita em descarregar a arma contra
o próprio ouvido. É pela boca de Zito que João recorda as palavras
desta confissão:

Olha, João, aquilo foi tiro. Um dia seu tio sapecou um tiro
no ouvido. O tiro explodiu no ouvido do menino, ficou zu-
nindo no ar, sem fim. Ele tonto, aquele som redondo feito
o chocar de dois mundos, o ribombar de um trovão quando

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Memória e imaginação em O risco do bordado, de Autran Dourado 177

uma tarde de chumbo de repente no pasto de seu Luquinha


ele sozinho, abandonado, perdido (p. 195).

O tiro que atingira o ouvido de Zózimo é o mesmo que fere


Xambá, personagem mítica cercada por histórias resgatadas pelo
dr. Alcebíades que, segundo João, afirmou ter atendido o baleado:
“nas primeiras apalpadelas, vi que o ferimento era profundo, a bala
ainda estava entranhada” (p. 195).
Na esteira desse emaranhado de histórias que constituem
João, as personagens femininas são personalidades fortes com um
lugar bem demarcado na narrativa. Diferente de dona Pequetita, vovó
Naninha aparece como apaziguadora dos conflitos. A personagem
espera pela reconciliação entre o irmão, tio Maximino, e vovô Tomé,
marido daquela:

Mesmo assim, através de impressões e recuos, de meias-tin-


tas e nebulosas, João ficou sabendo que, antes de ele nascer,
há mais de vinte anos, tio Maximino e vovô Tomé tinham
quase se matado por uma questão de terra, da herança que
tinha ficado com a morte do pai de vovó Naninha. Deste,
até o nome o tempo já tinha engolido. [...] Quando vovó
Naninha ouvia os passos de vovô Tomé, cortava pelo meio o
caso que ia contando, mudava para outro a fim de que ele não
reparasse que ela estava falando de tio Maximino (p. 43).

Por fim, Gilda, mãe de João, guarda alguma semelhança com


dona Pequetita. A certa altura, a personagem mostra-se perturbada
com a excitação do filho e com o alheamento do marido: “voltou a
comer, a mãe procurava agora observar melhor o filho. Ela buscou

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178 Ensaios

apoio no marido. O marido parecia indiferente à inquietação da


mulher. Como o marido não atendesse ao seu apelo, você já reparou
como este menino está hoje?” (p. 20).
Na medida em que brotam na memória de João, as persona-
gens formam entre si uma teia narrativa em que as vozes e os acon-
tecimentos do passado ecoam na memória do homem no presente.
O risco do bordado avança e regride. Nas idas e vindas das costuras
narrativas, as referências a dor, sangue, remorso, morte e sacrifício se
repetem incessantemente, de maneira que as personagens ligam-se
umas às outras, construindo o bordado do texto autraniano.
A oralidade das histórias entre pai e filho, caso de Zé Mariano
e de vovô Tomé, entre o avô e o neto, caso de vovô Tomé e de João,
carrega os motivos pelos quais João revisa o passado através da me-
mória: para purgar a culpa que ele próprio carrega, há pelo menos
duas gerações da família. O reencontro de João com o passado, por
meio do texto, forma uma narrativa cuja estrutura entrecruzada
parece obedecer ao fluxo consciente do protagonista.
As lembranças revigoradas sob esse signo concedem movi-
mento ao texto e permitem a fusão das personagens na pessoa de
João em O risco do bordado. Ele é o fruto das desavenças, dos remorsos
e das dores sofridas pela família, circunstâncias que traçam o risco
do bordado da própria existência.
A fuga do destino inexorável lhe escapa, por isso João se co-
loca como personagem da história que protagoniza e, no exercício da
escrita, se esforça em revigorar as lembranças, através da memória,
passando a limpo suas vivências.

Das últimas considerações


A trajetória de leitura empreendida ao longo deste estudo
permite destacar que, no romance O risco do bordado, os desdo-

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Memória e imaginação em O risco do bordado, de Autran Dourado 179

bramentos da memória e o trabalho com a imaginação são uma


constante na confecção do texto de Autran Dourado. Através
desses artifícios empregados na narrativa, o autor dá vida a uma
personagem autobiógrafa que procura revisitar seu passado a
fim de, com ele, acertas contas. Nessa medida, Dourado cria uma
autobiografia imaginária em que a personagem se constrói ao
mesmo tempo em que se descreve através do texto, no resgate
de seus antepassados.
Diferente do que é corrente nas autobiografias convencio-
nais, frequentemente pautadas pela existência de personagens reais
volvidas em ficção, a narrativa de Dourado apresenta João, uma
personagem ficcional que se autoficcionaliza na recuperação das
lembranças, entre as quais estão dores, culpas e remorsos de sua
família. Assim, o romance é também uma narrativa de memórias
cuja permanência no tempo João – fabulador e personagem – busca
perpetuar através da escrita.
No âmbito da historiografia literária brasileira, O risco do
bordado está inserido na tradição da narrativa de memórias em
que figura o já citado Dom Casmurro (1899), assim como Memó-
rias póstumas de Brás Cubas (1881), ambos de Machado de Assis,
e também os romances Memórias sentimentais de João Miramar
(1924), de Oswald de Andrade, e Memórias do cárcere (1953), de
Graciliano Ramos, entre outros. Em comum as obras elencadas
guardam um sujeito que procura descobrir-se e entender-se por
meio da tentativa de recuperar as lembranças num determinado
recorte extraído de sua existência, através da memória e a partir
das sensações vividas ou imaginadas.
Nos meandros pelos quais se desdobra, a obra de Autran
Dourado é de primeira grandeza quanto à estrutura e à riqueza de

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sentido do texto literário. Essa opinião está assentada em Afrânio


Coutinho e Galante de Sousa, que lembram:

A. D. é citado ao lado de Clarice Lispector, João Guimarães


Rosa, Geraldo Ferraz, Adonias Filho como um dos reno-
vadores do romance brasileiro, pelo lado da construção
técnica e pelo tratamento artístico da linguagem. Cada
romance é uma novidade, uma pesquisa, onde realidade
e imaginação se irmanam, na grande equação do destino
humano (2001, 612).

Dessa maneira, O risco do bordado aparece no seio da litera-


tura brasileira dos anos 1970, marcada tanto pela abertura à revisão
nos padrões do romance clássico como pelo entendimento do sujeito
sobre si. No anseio de compreender o mais íntimo de sua pessoa, o
homem necessita contemplar o interior do outro. No texto de Dou-
rado, João é o outro que impele o sujeito para dentro de si mesmo,
um dos motivos pelos quais a obra O risco do bordado permanece viva
na contemporaneidade.

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Memória e imaginação em O risco do bordado, de Autran Dourado 181

Referências

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al. São Paulo: Nova Cultural, 2004.
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João Miramar. Serafim ponte grande. Rio de Janeiro: Civiliza-
ção Brasileira, 1975.
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Paulo: Ática, 2000.
______. Dom Casmurro. [1899]. São Paulo: Ática, 2000a.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo:
Cultrix, 2006.
COUTINHO, Afrânio & SOUSA, J. Galante de. Enciclopédia de litera-
tura brasileira. São Paulo: Global, 2001.
DOURADO, Autran. Uma vida em segredo. Rio de Janeiro: Expressão
e Cultura, s/d.
______. Uma poética de romance: matéria de carpintaria. São Paulo;
Rio de Janeiro: DIFEL, 1976.
_____. Os sinos da agonia. Rio de Janeiro: DIFEL, 1997.
_____. O risco do bordado. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
_____. “Teia”. In: ______. Novelas de aprendizado. Rio de Janeiro:
Rocco, 2005.
_____. O senhor das horas. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.
FERNANDES, Liduína Maria Vieira. O traçado das personagens negras
na costura autraniana. João Pessoa, 2006. Disponível em:
<http: //www.cchla.ufpb.br/ppg/imagens/LiduinaMaria.
pdf>. Acesso em 4 de março de 2019.

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182 Ensaios

RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. São Paulo: Record, 1982.


RICŒUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução de
Alain François et al. Campinas: Editora da UNICAMP, 2007.
TWAIN, Mark. Mark Twain’s Autobiography. Austrália: Project Gu-
tenberg, 2002, v. 1. Disponível em <http://gutenberg.net.au/
ebooks02/020051h.html>. Acesso em 3 de janeiro de 2019.

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Resumo

Este ensaio origina-se na leitura do romance O risco do borda-


do (1970), de Autran Dourado (1926-2012). Na interpretação do texto,
destacam-se a memória e a imaginação como tecelãs das lembranças da
personagem protagonista João, na qualidade de escritor de si. A primei-
ra parte consiste numa apresentação do autor e da obra identificada com
traços do Modernismo, bem como num mapeamento das características
recorrentes na literatura autraniana. A segunda e a terceira partes são de-
dicadas à análise dos desdobramentos da memória e da imaginação em O
risco do bordado, tendo como referência a teoria do pesquisador francês
Paul Ricœur, acerca das duas categorias. Na quarta parte, demonstra-se
que o narrador personagem João mistura as memórias do passado com
os fatos imaginados na infância pelo menino que volta à cidade natal de
Duas Pontes. O percurso revela um ideário de sonhos, de acontecimentos
pretéritos atravessados pela composição familiar e pelas demais persona-
gens reavivadas ora pela memória, ora pela imaginação daquele que narra.
Palavras-chave: O risco do bordado; Autran Dourado; memória;
imaginação.

Abstract

This essay originates in the reading of the novel O risco do bordado


(The Thread of Embroidery) (1970), by the Brazilian writer Autran Dourado
(1926-2012). In our interpretation of the text, memory and imagination
stand out as weavers of the recollections of the protagonist character João,
as a writer of himself. The first part of our study consists on a presentation
of the author and the work, in which we identify traits of Modernism, as
well as of a mapping of recurrent characteristics in Autranian literature.
The second and third parts are devoted to the analysis of the unfolding of
memory and imagination in the novel, with the support of Paul Ricœur’s
theory about the two categories. In our fourth part we demonstrate that
the narrator João mixes his memories of the past with the facts imagined

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in the childhood of the boy who returns to the hometown Duas Pontes.
The character’s itinerary reveals a fabric of ​​dreams, past events crossed by
family composition and by other characters revived either by memory or
by the narrator’s imagination.
Keywords: O risco do bordado; Autran Dourado; memory;
imagination.

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ENTREVISTAS
CONVERSAS DO CAMPUS COM A CIDADE
Andréia Delmaschio

“Luto todos os dias contra as imposições de um mundo


que quer nos enclausurar no universo do trabalho,
ao mesmo tempo que nos distrai de toda tarefa mais
lúdica e lenta, que exija tempo, dedicação, algum grau
de recolhimento e mesmo de solidão, como é a escrita”.

Andréia Delmaschio nasceu em Vitória, onde vive e


desenvolve uma obra que já se compõe de vários volumes de
crítica, conto, crônica e prosa infanto-juvenil. Desde 1994
trabalha como professora de Literatura em Língua Portuguesa
do Instituto Federal do Espírito Santo, atuando no curso de
Graduação e no Mestrado Profissional em Letras.
A conversa a seguir ocorreu em março de 2017, no
âmbito do projeto “Notícia da atual literatura brasileira:
entrevistas”, coordenado pelo entrevistador, Vitor Cei,* e
desenvolvido por pesquisadores da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte (UFRN), Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte (UERN), Instituto Federal do Espírito Santo
(IFES) e Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
Andréia reflete sobre seu processo criativo, discute
o problema do machismo, alerta para o sucateamento
da educação, comenta as dificuldades na formação de

*
Professor adjunto do Departamento de Línguas e Letras da Universidade Federal do Espírito Santo
(UFES).

Fórum Lit. Bras. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, nº 21, pp. 187-206, jan.-jun. 2019.
188 Entrevistas

leitores, avalia a recepção de sua obra e compartilha outras


reflexões éticas e estéticas, tanto sobre a literatura brasileira
contemporânea quanto acerca do quadro político e cultural da
atualidade.

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Andréia Delmaschio 189

Vitor Cei – Cada escritora possui um modus operandi, por assim


dizer... Fale um pouco sobre seu processo criativo. Houve um momento
inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida
você se percebeu escritora?

Andréia Delmaschio – Meu modus operandi é aproveitar todo o


tempo livre que tiver para escrever, no miolo da rotina com aulas
e filhos e afins. Daí resulta que raramente consigo trabalhar num
texto por muitas horas seguidas, sem interrupção, quase sempre
tendo de anotar ideias nos cantos de papel ou mesmo ditar trechos
inteiros ao gravador do celular. Não acredito que ter muito mais
tempo livre me trouxesse, automaticamente, melhores condições de
escrita, porque a parte técnica do trabalho demanda, sim, reescrita,
reestruturação, reelaboração, mas ela se alimenta da vida, então a
situação de quem escreve é, até certo ponto, paradoxal. É claro que
as experiências também demandam uma reelaboração, mas esta
não se faz somente de olho na letra do texto. De modo geral, já me
adaptei a essa vida de escrever mentalmente enquanto dirijo e de
aproveitar as madrugadas de insônia diante do PC. A verdade é que,
hoje, ou é assim ou é de modo nenhum, e ficar sem escrever nunca
me passou pela cabeça. Como tenho sido, até agora, eminentemente
cronista e contista, não me é impossível ir planejando, esboçando,
registrando e revisando, aos poucos e sempre.
Quanto à outra pergunta, aos nove anos tive pela primeira vez
a certeza de ter escrito algo diferente das cartas que minha mãe
me ditava para os parentes distantes, e que invariavelmente se
iniciavam com “Saudações a todos”, e das redações obrigatórias
das aulas de Língua Portuguesa. O texto que escrevi era algo

Fórum Lit. Bras. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, nº 21, pp. 187-206, jan.-jun. 2019.
190 Entrevistas

que imaginava que meus colegas gostariam de ler. Era um conto


de ficção científica intitulado “O dia em que a gravidade acabou
na Terra”, de exatas onze páginas datilografadas (lembro que
os últimos parágrafos saíram em vermelho, porque o lado preto
da fita tinha acabado). Meu pai tinha recebido a velha máquina
de escrever como pagamento de uma dívida. Era daquelas cujas
teclas exigiam muita força nos dedos – ou então ela já estava meio
enferrujada pela falta de uso, não sei. Para mim ela era como um
baú do tesouro, era meu playground. Numa metáfora que faz mais
sentido para as crianças de hoje, aquela máquina de escrever era
meu XBox. Não devia ter deixado que aquela história se perdesse
vida afora. Imagine que peça curiosa ela não seria hoje! Acontece
que, desde aquela época, já tinha o hábito de queimar originais. Até
hoje conservo essa mania, apago diligentemente todos os rastros
deixados até a publicação de um texto.
Quando dei por terminado o trabalho, os meus dedos brancos de
menina magrinha doíam, mas foi assim que, em minha cabeça,
começou a se formar a noção de literatura. Melhor dizendo: a ideia
de que também podia escrever, o que significa muito, muito mais
do que se pode imaginar, para uma criança educada por pais não
alfabetizados, ex-agricultores empurrados para as palafitas dos
subúrbios de uma cidade toda ela suburbana, e em pleno domínio
da ditadura militar no Brasil. Nessa época já tinha acesso aos
clássicos que os meus irmãos mais velhos apanhavam emprestados
na biblioteca do ginásio. Quando li Dom Casmurro e O tronco do ipê,
percebi que eu mesma não vinha fazendo um grande trabalho (risos),
mas isso não me inibiu. Pelo contrário: começava a ter consciência
do que significava a passagem do tempo, no que toca à escrita. Esse

Fórum Lit. Bras. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, nº 21, pp. 187-206, jan.-jun. 2019.
Andréia Delmaschio 191

foi um momento inaugural para mim, bem na intimidade de minha


relação com as letras. No mais, o caminho continua, desde então, se
fazendo, gradualmente. Quando surgir um último degrau (não no
sentido de um desenvolvimento qualitativo, porque não creio nessa
curva inequívoca na prática da escrita, mas na vida mesmo), então
será a hora de entornar tudo de volta para adubar a terra.

Vitor – O que mudou na (e para a) literatura depois da internet? No


caso de seu Aboio de Fantasmas (SECULT, 2014), qual é a relação do
blog com o livro?

Andréia – Penso que só com um tempo maior de afastamento


vamos poder avaliar de fato a transformação que a internet tem
representado, nessas últimas décadas, para as artes em geral e para
a literatura especificamente, sem falar nas mudanças em outros
campos de interesse para a humanidade. Estamos presos a este
tempo – que já vai longe, é verdade – cuja superação só se pode
considerar por meio de uma verdadeira mudança de paradigma.
Assim, não temos como considerar, compreender e avaliar o que se
passa de fato – no entanto estamos aqui, dando nossa contribuição.
De todo modo, no caso de quem escreve ficção (uso o termo
no sentido geral de criação ficcional, texto literário em prosa),
o que percebo de mais impactante é o fato de podermos
publicar um texto imediatamente após a escrita – ou mesmo
concomitantemente a ela, a depender do caso. Isso significa poder
ter uma resposta também imediata. Por um lado, cria-se uma
aceleração estimulante no tempo do processo que vai da escrita
à leitura, o que pode significar aumento da demanda, incremento

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192 Entrevistas

na discussão das ideias e, inclusive, ampliação do desejo de


continuar produzindo, por parte do escritor. No entanto, trata-se
de uma faca de dois gumes, porque está claro que escrever mais e
mais rápido vai interferir diretamente nos modos de reflexão e de
expressão, como declarei anteriormente sobre as condicionantes
de meu próprio processo de escrita. Todavia, não é um processo
que se deva refrear, é claro, porque é o que há, é o que pode ser
neste tempo em que vivemos.
O blog Aboio de Fantasmas, que inaugurei há quase dez anos,
surgiu justamente da necessidade que tive, num período de grande
turbulência em minha vida pessoal, de dar a ler com rapidez, e
justo porque necessitava de estímulo para continuar escrevendo.
Assim, o criei como um blog de crônicas, que com o tempo foi
assumindo novas facetas, mas todas elas dentro do campo literário,
como a poesia e a novela dividida em capítulos. O Aboio chegou a
ser bastante acessado, na época em que eu postava diariamente,
e foi justamente a aceitação do público que me deu a ideia de,
posteriormente, publicar algumas daquelas crônicas no papel. Daí
resultou o Aboio de fantasmas, meu segundo livro de crônicas [o
primeiro foi Mortos Vivos, de 2008].

Vitor – A autoficção (gênero que se tornou uma forte tendência na


literatura contemporânea) é um elemento bastante presente em seus
livros. Tanto Aboio de fantasmas (2014), narrado em primeira pessoa,
quanto Tem uma lua na minha janela (SECULT, 2015), que apresenta
diálogos entre seus filhos gêmeos Francisco e Flora, embaralham as
categorias de biografia e ficção. Como você lida com a fronteira entre a
ficção e a realidade?

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Andréia – Esta pergunta é excelente e muito difícil de responder,


porque o caso talvez não seja exatamente de lidar com essas
fronteiras que você nomeia, mas antes de perguntar-se se elas
de fato existem. Mais: se elas existem, por que é que as criamos
e mantemos? Por que sentimos necessidade dessas delimitações?
Também não sei responder, mas penso que reelaborar o vivido,
para falar de um modo bastante simples de uma operação que de
simples não tem nada, é uma necessidade que todos temos. Como
diz Antonio Candido, em “O direito à literatura”, todo ser humano
sente a necessidade de fabular. Alguns fazem fofoca, mentem sobre
os acontecimentos que vivenciam no dia a dia, para se vangloriar ou
despertar a piedade dos demais; outros produzem memes, piadas,
e assim por diante. Dessa mesma necessidade de reelaboração das
experiências felizes ou dolorosas surgem os escritores. Os puristas
não vão aceitar o que direi a seguir, mas não vejo uma diferença
radical entre um modo de fabulação e outro. Vejo, sim, a diferença
que existe na elaboração, no estilo ou como queiram chamar, que se
baseia, entre outros elementos, no tempo dedicado ao trabalho de
escrita, num certo cultivo da sensibilidade e no domínio, mais ou
menos vasto, dos materiais que constituem o idioma. Este último
elemento, que, a longo prazo, resulta da prática daqueles outros
dois, talvez seja o principal, mas sozinho não será suficiente para
que alguém escreva uma obra de interesse.
Não se deve, contudo, esquecer que, no fundo, há sempre uma base
material que envolve e condiciona escritor e escrita. Trata-se de
um trabalho a cujo desenvolvimento nem sempre são ofertadas as
condições mínimas. Por outro lado, condições máximas, digamos
assim, muitas vezes minam, paradoxalmente, algumas das fontes

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de reflexão que podem funcionar como motor da escrita. É o caso


das experiências dolorosas, a que me referi acima. Esse pensamento
me faz retornar à primeira pergunta que você me fez, sobre modus
operandi... Se o maior problema do homem é ele mesmo, há uma
parcela de experiências que não pode ser sufocada por quem escreve.
Toda fantasia necessita, em menor ou maior grau, dos materiais e
ferramentas conhecidos e palpáveis. Que base maior pode haver,
para a criação literária, que a experiência do próprio escritor?
E aí você me pergunta sobre minha autoficção... Como costuma
acontecer, no início não sabia que estava fazendo autoficção; só
fazia. Wilberth Salgueiro, na apresentação de Aboio de fantasmas,
denomina-o “livro de memórias”, o que de fato é, e não é. Pode-
se muito bem escrever sobre uma estada em Marte sem que se
tenha estado lá; não, contudo, sem que se tenha realizado uma
pesquisa com o material escrito sobre Marte ou, mais importante:
sem que se conheça muito bem um outro lugar qualquer, cujas
idiossincrasias se possa aproveitar numa reelaboração escrita
em que aparecerá, ao final, um lugar que será denominado
“Marte”. Algum nível de experiência é preciso que se tenha, o
que não significa que tenha de se tratar, inequivocamente, de
uma experiência de nível físico ou sensorial. Creio que é possível
escrever bons livros apenas com base na leitura de bons livros.
Isso também é experiência. Porém, de um modo geral, tendo a
acreditar que tanto mais interessante para outros humanos se
torna um texto literário quanto mais experimentador em todos
os sentidos (físico, pessoal e como leitor) for aquele que escreve.
Aqui já caminhamos para um terreno de nuances muito sutis, que
demandam uma exemplificação mais farta.

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O que acontece no Aboio de fantasmas, tanto quanto em meu


terceiro livro de crônicas, intitulado Tem uma lua na minha
janela, é esse aproveitamento de um conjunto de experiências
de observação e memória: físicas, psíquicas, sensórias, emotivas
e também literárias (os jogos intertextuais estão presentes
todo o tempo, de modo consciente ou não). Já o Tem uma lua é
resultado de uma experiência que ainda me fascina, e que, para
mim, é perene. Trata-se da reelaboração, em pequenas crônicas,
de diálogos com crianças e entre elas, uma fonte inesgotável
de poesia e de questionamentos sobre o ser. É um livro acerca
do qual colho sempre respostas muito positivas. As pessoas se
sentem estimuladas inclusive a fazer o mesmo tipo de registro,
atentando mais para a conversa dos pequenos, em que habitam
o poeta e o filósofo, experiência que vimos perdendo pelo
caminho.

Vitor – Como você define sua obra?

Andréia – Labuto diariamente com o material expressivo de que


disponho, tentando ampliá-lo na medida do possível, e luto todos
os dias, também, contra as imposições de um mundo que quer
nos enclausurar no universo do trabalho, ao mesmo tempo que
nos distrai de toda tarefa mais lúdica e lenta, que exija tempo,
dedicação, algum grau de recolhimento e mesmo de solidão, como é
a escrita. Minha produção é o resultado possível dessa luta e dessa
labuta. Hoje não conseguiria defini-la de outro modo.

Vitor – Como você vê a recepção de sua obra?

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Andréia – A recepção é um caso complicado de se avaliar.


Raramente alguém diz “não gostei de seu livro”, não é mesmo?
E tem um outro aspecto: à exceção dos livros de crítica literária,
que são originariamente minha dissertação de mestrado e tese
de doutorado, publicados respectivamente em São Paulo e no Rio
de Janeiro (Entre o palco e o porão, Annablume, 2004 e A máquina
de escrita (de) Chico Buarque, 7Letras, 2014), meus demais livros
(biografias, contos e crônicas) foram todos publicados em Vitória
– ES. Os três livros de crônicas foram contemplados com o Prêmio
Secult, um importante meio de publicação para quem vive no
Espírito Santo. Contudo, a circulação dessa produção, que é anual,
acaba ficando restrita ao próprio estado, devido à ausência de
divulgação e distribuição fora daqui.
Considerada essa dificuldade de circulação, em geral fico muito
contente em colher comentários de leitores de círculos variados...
Como leciono na graduação e no mestrado de Letras, acabo tendo um
público interessado, e de certo modo especializado, que lê, comenta,
recomenda... Fora desse pequeno universo privilegiado de leitores, é
sempre uma surpresa feliz conhecer alguém que leu e foi marcado por
um texto meu. Além disso, jamais recuso os convites para participar
de círculos de leitura de textos meus, para dar palestras, oficinas ou
bater papo com alunos de quaisquer níveis de escolaridade. Desse
modo, tento auxiliar na ampliação dos modos de recepção.

Vitor – O que você está escrevendo no momento?

Andréia – Acabo de ser contemplada com o prêmio Secult-ES para


publicação de um livro infanto-juvenil [Nas águas de Lia, 2018]. É minha

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estreia nessa seara, embora os personagens e narradores que com mais


afeto alentei, em minha ficção, tenham sido sempre crianças.
Até o final do ano, pretendo finalizar um romance em que venho
trabalhando no modus operandi “formiga” há alguns anos. Penso que
essa primeira narrativa de maior fôlego seja mais inequivocamente
aquilo a que se chama autoficção, e tem me dado muito trabalho,
tanto pela constante reescrita que o texto me solicita, quanto pelo
fato de envolver eventos e pessoas que tenho que retirar daquele
planeta imaginário, de que falei antes, para conduzi-los até um
planeta real, na narrativa. Ou será o contrário?

Vitor – Quais os principais desafios para a edição de novos escritores


no Brasil de hoje?

Andréia – Por um lado, os tentáculos de um mercado viciado e,


aparentemente, inflado – mas que é sempre um mercado. Onde a
palavra-chave é lucro, a preocupação com a elevação dos níveis de
produção só interessa na medida em que a demanda exija isso. Eu
mesma, por razões ideológicas, não me furto a reconhecer em meu
trabalho de escrita o fato de ele ser um produto – mas ele pode
ser um produto que se faz meramente para vender, somente para
lucrar... ou não. Se um escritor publica um texto que corresponde
aos seus anseios e ainda por cima consegue viver desse trabalho,
está mais que certo. Afinal, vivemos numa sociedade capitalista. O
problema que vejo é reduzir-se a literatura a um produto como outro
qualquer. Com isso já não concordo. Apenas de um determinado
ponto de vista a escrita é um trabalho como os demais. Considerada
a recepção e outros elementos que a envolvem, temos de levar em

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conta também uma certa especificidade que faz da arte um produto


diferencial. É uma dimensão que seria lamentável que se perdesse
completamente. Porém, se há hoje claros sintomas dessa produção
viciada, que traz em seu rastro, entre outros “fenômenos”, o do
autor como celebridade, suspeito que o descaso com a educação, no
Brasil, seja uma das razões, porque afinal a preparação de leitores
passa por aí.
Por outro lado, percebo uma crise do que e do como dizer,
provavelmente também resultante, ao longo do tempo, desse
contexto de sucateamento da educação, mas cujas origens têm de
ser estudadas de modo mais detido. Qualquer afirmação sobre isso
feita durante uma curta entrevista seria leviana. Dos resultados
dessa crise, porém, falo como alguém que tem participado, nos
últimos anos, de bancas de avaliação de contos, romances e livros
infanto-juvenis para publicação em prêmios de abrangência
nacional.

Vitor – O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos?


Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a poesia
brasileira atual como um todo: o que você vê?

Andréia – Do mesmo modo que acontece com a prosa, na poesia


brasileira atual também há muita gente escrevendo sem publicar,
enquanto há outros que, ao contrário, seria melhor que não
publicassem e dedicassem, talvez, um tempo maior à maturação
da própria escrita. Ocorrem fatos muito curiosos nessa área, como
pessoas “publicando-se” praticamente sem escrever. Imagine que
até o presidente ilegítimo (Michel Temer) se condecorou poeta, com

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uns versos que dão até vergonha. Amo a poesia, mas é um território
em que a ilusão, melhor dizendo, o delírio de simplicidade que o
formato verso oferece faz com que algumas pessoas se enganem
muito. Nada tenho contra cada um escrever o que quiser, como
quiser, onde quiser... Mas aí também vou reafirmar meu direito
de leitora: não gosto de perder tempo com pós-neo-parnasianos,
a pieguice romântica me entedia e a autoajuda em versos me irrita
do mesmo modo que poetas natimortos, incensados nas fraldas, e
egos maiores que as obras. Tenho, por outro lado, conhecido muita
coisa boa, principalmente poetas mulheres apresentadas a mim
por amigos e por meus jovens alunos através da internet. Algumas
dessas poetas são letristas de bandas que fazem um belo trabalho
com o verso, acompanhado ou não de instrumentos musicais.

Vitor – Você considera importante que uma professora de literatura


também seja escritora?

Andréia – De modo algum. São tarefas muito distintas. A um


professor é indispensável conhecer aquilo que ensina. Entretanto,
no caso da literatura, abranger essa produção na totalidade é uma
tarefa impossível, por razões óbvias de amplitude do universo já
existente, além da constante renovação da produção – mesmo que
se considere apenas o cânone de um determinado país ou idioma.
Para além disso, conhecer não é a única tarefa de um professor de
literatura, que se desdobra em crítico e – creio estar aí seu papel
principal – em pedagogo: saber acolher, criar empatia para poder
conduzir e orientar e assim despertar o interesse do aluno pela
literatura – é isso o que diferencia, no fundo, um professor de um

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mero sabedor e reprodutor de conteúdos. Juntamente com isso,


eu destacaria a capacidade de leitura crítica de texto e de mundo,
algo que também não basta que o professor exercite, mas que é
fundamental que mostre aos seus alunos como fazer. Sem isso, o
professor será antes um replicador de ideologias, perigo a que, de
verdade, nunca escapamos completamente, mas contra o qual o
embate deve ser diário.
Quanto a escrever, sinto que quem escreve experimenta um outro
lado da textualidade, que pode até abrir possibilidades de um
entendimento maior de certas instâncias da escrita. Porém, fazer
com que isso reverta em ganhos para uma turma de educandos não
creio que seja um caminho inequívoco. Alterando um pouco sua
pergunta, posso inclusive formular uma outra, que parece ter uma
resposta mais fácil: um escritor será melhor professor de produção
de texto que um professor que não escreve? Não obrigatoriamente.
Alguns relatos que tenho colhido mostram o contrário. E pelas
mesmas razões que aleguei antes, sobre os traços que acredito que
deve ter um bom professor.

Vitor – Você percebe de imediato aqueles alunos que têm talento para
escrever e podem se tornar escritores?

Andréia – Um professor, em qualquer nível da educação, costuma


conviver com os alunos durante anos. Se ele não estiver ali somente
aguardando a hora de ir embora ou a data da aposentadoria (esse
termo antiquado no Brasil pós-golpe), decerto consegue perceber
muita coisa. Percebe-se quando um aluno tem uma vida tão
conturbada que dificilmente algo que você diga em aula oferece

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Andréia Delmaschio 201

a ele um antídoto, ainda que temporário. Percebe-se também, ao


contrário, quando aqueles momentos que ele passa ali, podendo
fruir uma arte, que é a literatura, talvez sejam o refúgio necessário
a um cotidiano repleto de impedimentos e tribulações difíceis de
imaginar, mesmo para uma mente criativa. Às vezes a gente erra na
percepção, também. Para o bem e para o mal.
Em meio a isso tudo, desde que a oportunidade de contato e elaboração
de uma escrita criativa lhes seja dada, muitos alunos terão sua iniciação
na escrita literária nas aulas de Língua Portuguesa – não tenho a menor
dúvida. Devemos apenas ter cuidado para, no rastro de um talento que
se revela, não nos esquecermos de que o nosso papel, como professores,
não é o de descobrir futuros talentos para a literatura, mas o de auxiliar
e incentivar os pequenos talentos de superação das dificuldades básicas
com o aprendizado, que a maioria dos alunos traz. É por esses alunos,
mais que tudo, que trabalhamos. Me sinto infinitamente mais realizada
quando percebo uma pequena melhora naquele que traz grandes
dificuldades do que quando noto em sala um aluno promissor. Estes
necessitam um pouco menos do professor que há em nós. Ambas as
situações são perceptíveis com muita frequência na vida de quem já
leciona há quase trinta anos, como é meu caso.

Vitor – Historicamente, presenciamos um silenciamento da voz da


mulher. Como o machismo presente na sociedade brasileira afeta sua
escrita?

Andréia – O verbo afetar foi muito bem escolhido para esta


pergunta. Quero entendê-lo aqui em suas diversas acepções, para
poder formular minha resposta.

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202 Entrevistas

O fato de vivermos em uma sociedade machista afeta a mulher


desde seu nascimento, quando ela começa a ser tornada mulher.
Ser cobrada no sentido da assunção daquilo que a sociedade
determina que deve compor esse papel e enredada na infinita
rede de idiossincrasias que o compõem no imaginário dos homens
(e das mulheres) numa sociedade assim já é um peso demasiado
grande. Daí decorre a série de injustiças e violências, de todos
os tipos imagináveis, a que nós, mulheres, somos submetidas
cotidianamente, em todas as instâncias e cenários sociais,
com agravo para as mulheres negras, as mulheres pobres e as
homoafetivas.
Poderia falar sobre isso durante horas e não esgotaria o rol de
exemplos de situações discriminatórias com que me deparo no dia
a dia, e que afetam a mim ou às mulheres com as quais convivo.
Porém, nesta ocasião gostaria de destacar um aspecto específico,
que sua pergunta tangencia: assim como acontece nas demais áreas
de atuação, também na literatura, é claro, é preciso matar um leão
por dia.
Primeiro porque escrita é pensamento, e a parcela mais tacanha
da nossa sociedade continua esperando da mulher que ela pense
diferente do homem em vários aspectos, para dizer o mínimo. Daí
resulta que parte do público leitor se encaminhe para os textos
escritos por mulheres esperando encontrar algo como o que se
chamou, um dia, a “escrita feminina”, ou o tal “universo feminino”
– esse país não constava de meu Atlas.
Para piorar, muitas mulheres, por razões as mais diversas, ajudam
a compor o painel opressor sobre outras mulheres mais ativas,
sobre aquelas que não se submetem às normas patriarcais (que

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em tudo coincidem – quanta coincidência! – com as imposições do


mercado, aquelas feitas pelo universo da moda, por exemplo, que
dita comportamentos e modos de consumo etc.).
Além do mercado, têm um papel muito importante na reprodução
desse esquema repressor as religiões em geral, em especial as de
expressão fundamentalista, e a escola.
Justo a escola, que poderia ser o lugar de uma educação libertadora,
sendo um tentáculo do estado ou do mercado, além de receber,
direta ou indiretamente, a influência das religiões dominantes, é
sexista e, obviamente, reproduz a sociedade machista em que nos
debatemos aqui fora. Num país como o nosso, as escolas em geral
ensinam às crianças, desde a mais tenra idade, que há universos e
papeis reciprocamente excludentes para homens e mulheres. E isso
segue assim por todos os níveis da educação.
Vou dar apenas alguns singelos exemplos do que observo no
cotidiano dos meus filhos: a escola adota uniformes diferenciados
para meninas e meninos; meninas e meninos seguem em filas
diferentes (já é bastante impressionante que em algumas escolas
ainda sigam em filas, hasteiem a bandeira e cantem o hino nacional!)
no deslocamento entre os espaços dentro da escola. Apenas mais
um detalhe, para não alongar muito esta resposta: os pais dos
coleguinhas dos meus filhos, quando dão festas de aniversário,
convidam apenas os meninos para as festas dos meninos (que
costumam ser um jogo de futebol) e apenas as meninas para as
festas das meninas (que costumam ser decoradas, em cor de rosa,
com a inovadora temática da princesa).
Assim sendo, se você me pergunta como o machismo afeta minha
escrita, tenho de responder que o machismo afeta, deturpa, estraga

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204 Entrevistas

e diminui a vida das mulheres. Se a escrita passa pela vivência, então


ela deve carregar as marcas de todo esse histórico de opressão, nas
suas formas e nos seus conteúdos.
Faço só mais este adendo sobre o assunto: a professora Maria
Amélia Dalvi (UFES) tem realizado uma importante pesquisa
sobre a presença feminina em um certo âmbito da literatura, que
é a crítica literária acadêmica. Analisando o número de mulheres e
homens ingressantes nos programas de pós-graduação em Letras
da universidade em que atua e comparando-o com o objeto de
estudo escolhido (obras de autores ou de autoras), a pesquisadora
concluiu que mesmo as pesquisadoras mulheres, que são maioria
nos cursos de mestrado e doutorado, demonstram pouco interesse
pela literatura feita por mulheres, sejam estas últimas brasileiras
ou estrangeiras, clássicas ou contemporâneas, incluídas ou não nos
cânones correntes.
Enfim, a luta é constante e seu território é vasto...

Vitor – Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma


onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e
homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde
estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco
crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos
hoje? O que você imagina ou espera como coda do atual estágio da
humanidade?

Andréia – São perguntas que eu mesma me faço todos os dias: o


mundo piorou rapidamente ou eu é que estava dormindo? Creio que
eu não estivesse dormindo, mas sim que o agravamento dos quadros

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de intolerância, violência e ameaça à vida em geral tenham se tornado


mais visíveis nos últimos anos, em diversos níveis, e espalhado por
inúmeros pontos do globo, o que indica sim uma nova onda. Uma
nova onda de pensamento e atitudes velhas, que muitos de nós, talvez
ingenuamente, imaginávamos, ao menos em parte, superados.
Não sei de alguém que consiga explicar muito bem de onde vêm,
volta e meia, no percurso da história humana, essas ondas, mas,
em minha modesta, porque limitada, análise, nunca desprezei o
aspecto ideológico (essa palavra cujo sentido a direita, no Brasil,
vem tentando esvaziar). Se o capital é internacional, alguns
aspectos da ideologia dominante também o são. Assim se dá que
o mal rompa as fronteiras continentais, que ele vença as barreiras
dos idiomas... O mal tem livre circulação no mercado.
Todos os dias, quando desperto, me vêm à lembrança,
imediatamente: a ameaça de uma guerra nuclear, a situação política
do Brasil e meu próprio envelhecimento, que se insinua. Não
necessariamente nessa ordem, risos.
Não é fácil olhar para trás e ver que, há algum tempo, vínhamos
pregando, por exemplo, a ideia da solidariedade em substituição
ao conceito inadequado de tolerância... que nos alegrávamos
em pensar a hospitalidade como um valor importante a reger as
novas políticas de imigração entre os povos, para agora termos de
retroceder ao apelo mais elementar de respeito à vida.
Fome, guerras, desrespeito aos direitos das minorias, ataques
cruentos a etnias fragilizadas ao longo do processo de mundialização
do capital, com o retorno de movimentos fundamentalistas,
nazistas e de matizes neofascistas compõem o quadro que temos
de enfrentar hoje, sem saber ao certo como.

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206 Entrevistas

Como resultado da sanha dominadora do império estadunidense, no


Brasil, como vem ocorrendo em diversos outros países da América
Latina, a frágil democracia pela qual tanto se lutou, de um golpe
foi lançada na lata do lixo, da maneira mais inescrupulosa e cínica,
por uma casta política representante das elites e do mercado, que
em 2016 tomou de assalto o poder, depois de ter sido rechaçada nas
urnas por quatro eleições consecutivas, em que o povo, por meio do
voto direto, escolheu o Partido dos Trabalhadores para representá-lo.
Enfim, imaginar-me saindo do mundo e deixando às novas gerações
tão duro legado entristece e angustia, mas todos os dias é preciso
seguir fazendo, seguir falando, escrevendo, lutando.

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Tchello d’Barros

“Uma obra de arte não precisa ser outra coisa senão


um elo entre duas almas com afinidades estéticas”.

Nascido em Brunópolis (SC) em 1967, Tchello d’Bar-


ros morou em quinze cidades brasileiras, realizou atividades
culturais em todos os estados do Brasil, deambulou por vinte
países e, desde 2013, está radicado na cidade do Rio de Janeiro,
onde trabalha como desenhista, editor, palestrante e curador.
Sua formação também se deu em diferentes localidades:
na Universidade Regional de Blumenau (SC), foi aluno ouvinte
de Literatura e Pintura; na Fundação Joaquim Nabuco (PE),
cursou História da Arte; já na UFRJ (RJ), fez Comunicação
Social. Assim, pôde lecionar nas Faculdades Senac (SC) e nas
Faculdades Integradas Hélio Alonso – Facha (RJ). Também
ministra oficinas literárias (conto, crônica, poesia, roteiro,
narrativa ficcional) em eventos e instituições culturais.
Tchello d’Barros transita por diversas linguagens nas
artes visuais (desenho, pintura, gravura, fotografia, vídeo,
instalação) e tem uma produção literária bastante diversificada,
que inclui prosa (contos, crônicas, artigos) e poesia (versos li-
vres, sonetos, haicais, poesia visual, cordéis). Com seis volumes
de poemas publicados até o presente, tem contos, crônicas e
artigos em mais de 50 coletâneas, antologias e livros didáticos.
Conhecido pelos “olhos de lince”, firmou-se sobretudo
como poeta visual que adentra o universo das linguagens ver-
bal, não verbal e paraverbal, para perceber diferentes possibi-

Fórum Lit. Bras. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, nº 21, pp. 207-22, jan.-jun. 2019.
208 Entrevistas

lidades de desconstrução de palavras, assim como de criação


de formas variadas de letras e imagens. Suas investidas nessa
vertente da literatura atravessam fronteiras: apenas com a mos-
tra Convergências, que faz uma retrospectiva de sua produção
em Poesia Visual, já visitou dez estados; com suas diferentes
obras visuais, participou de mais de 150 exposições no Brasil
e exterior. O alcance de sua produção cresceu ainda mais no
momento em que fundou, na internet, o Museu de Poesia
Visual/Visual Poetry Museum.
A entrevista aqui publicada comprova que “multiar-
tista” é uma denominação mais que justificada para alguém
que se firmou como um dos maiores nomes da Poesia Visual
no Brasil e no mundo. As reflexões expostas nesta conversa
oferecem um panorama de sua trajetória, sempre submetida
a um olhar salutarmente crítico.
Renata Barcelos*


Professora do Centro Universitário Carioca (UniCarioca), faz pós-doutorado em Literatura
Brasileira na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Fórum Lit. Bras. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, nº 21, pp. 207-22, jan.-jun. 2019.
Tchello d’Barros 209

Renata Barcellos – A partir deste pensamento de Airton Ortiz: “Somos


o resultado dos livros que lemos, das viagens que fazemos e das pessoas
que amamos…”, defina quem é você.

Tchello d’Barros – Diria que é até mesmo prazeroso estar de acordo


com o Airton Ortiz, escritor e viajante que conheço pessoalmente,
com quem já me apresentei em algumas ocasiões no Congresso Bra-
sileiro de Poesia, no Rio Grande do Sul. Esse moço sabe das coisas,
sabe da vida. É atribuído a diversos filósofos o axioma “o homem é um
produto do meio” e também já se disse que “somos a soma de todas
nossas experiências mais o dia de hoje”. A pessoa limitadíssima que
ora responde a esta pergunta talvez seria ainda mais limitada, não
fossem os mais de mil livros lidos, as viagens por todos os estados do
Brasil e pelos vinte países percorridos. Mas acredito que as pessoas
que passam por nossas vidas são o que há de mais importante. São
os afetos que nos atravessam e nos fortalecem nas confluências e
convergências desta vida, as pessoas com as quais dividimos mo-
mentos, experiências e esplendores. Talvez nosso coração seja essa
morada de memórias afetivas, de sentimentos de permanência, de
entrelaçamento das relações. Agora, definir-me seria mais que uma
ousadia, talvez uma vaidade, já que, na realidade, não somos como
nos vemos, mas como os outros nos percebem. Sei que sou percebido
de maneiras contraditórias e até aprecio essa multifacetação, pois
já me chamaram de tanta coisa... O baiano Almandrade, por exem-
plo, me acusa de ser “um desbravador de códigos que desorganiza
o verbal e o alfabeto e os submete à lei da visualidade”, enquanto o
português Fernando Aguiar me delata como “um observador mordaz
e implacável da realidade que o rodeia, e devolve a essa realidade
as idiossincrasias próprias da mesma, filtradas pela capacidade

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210 Entrevistas

de interpretar poeticamente o referido contexto”, ao passo que a


argentino-chilena Maria Angélica Carter Morales me aponta como
“um guerrilheiro-prestidigitador, um monge-guerreiro, um agen-
te-narrativo, objeto-sujeito, do mundo fenomênico, das palavras e
das coisas”. Sabe-se lá o que esses meus amigos andaram bebendo...

Renata – É fato que o cânone literário reúne as obras reconhecidas como


as de maior qualidade dentro desse universo. Entretanto, conforme afirma
Pierre Bourdieu em As regras da arte: gênese e estrutura do campo lite-
rário, quem decide o valor da obra de arte “não é o artista, mas o campo de
produção enquanto universo de crença que produz o valor da obra de arte
como fetiche ao produzir a crença no poder criador do artista”. Ele aponta
ainda que a obra só existe enquanto objeto simbólico dotado de valor “se
é conhecida e reconhecida, ou seja, socialmente instituída como obra de
arte por espectadores dotados da disposição e da competência estéticas
necessárias para a conhecer e reconhecer como tal”. Você concorda com
a afirmativa de Bourdieu? Como você classifica um produto como arte?

Tchello – Naturalmente, é muito fácil concordar com um pensador


da estatura de um Pierre Bourdieu, especialmente ele que, com sua
Teoria dos Campos Sociais, nos ajudou a entender melhor o funcio-
namento da sociedade, das instituições e até mesmo as motivações
humanas. No livro citado – que li há muitos anos –, ele nos lembrava
de uma “ética para uma revolução estética”. Penso que um poema
não é compreendido como tal só porque alguém escreveu, só porque
alguém publicou, há que conter poesia nesses versos, e mais que
isso: há de se ter uma aceitação pelos pares, uma legitimação pelo
leitorado, uma difusão pelas mídias por onde aquele texto transita,
a crítica especializada, os resenhistas, editores antologistas, pes-

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Tchello d’Barros 211

quisadores acadêmicos, professores etc. As pessoas que compõem a


chamada cadeia produtiva do livro aos poucos vão internalizando a
força de um poema e assim se consolida um texto como “No meio do
caminho”, o mesmo ocorrendo com uma peça como O beijo no asfalto,
um quadro como Abaporu, um filme como O bandido da luz vermelha.
Assim, essas obras passam a fazer parte do imaginário de um povo,
da cultura de uma nação. Pessoalmente, valho-me de critérios muito
subjetivos para classificar algo como arte. Para mim, o fator principal
é se, em contato com a obra, a mesma me causa reações estéticas.

Renata – De acordo com Joseph M. Luyten, a literatura de cordel é


considerada arte de segunda categoria pela sua origem sociorracial: “Ao
contrário de outros países, como México e Argentina, onde esse tipo de
produção literária é normalmente aceita e incluída nos estudos oficiais de
literatura – por isso poemas como ‘La cucaracha’ são cantados no mundo
inteiro e o herói de cordel argentino Martin Fierro se tornou símbolo da
nacionalidade platina –, as vertentes brasileiras passaram por um longo
período de desconhecimento e desprezo, devido a problemas históricos
locais, como a introdução tardia da imprensa no Brasil (o último país das
Américas a dispor de uma imprensa) e a excessiva imitação de modelos
estrangeiros pela intelectualidade”. A partir desta citação, o que você
tem a declarar sobre a exclusão do cordel do cânone literário? Quais
ações deveriam ser feitas para garantir seu lugar não só nos manuais de
literatura brasileira como também em sala de aula?

Tchello – É oportuna a menção do Luyten, embora talvez exagerada


em seu ufanismo platino. Lembro que o Martin Fierro chegou a mim
não por conta dessa suposta popularidade mundial, mas por conta
dos ensaios de Jorge Luis Borges, o mais erudito dos argentinos.

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212 Entrevistas

Oportuna também, pois estamos especialmente num momento em


que a literatura de cordel vem cada vez mais se firmando como traço
da identidade brasileira. Para mim e para muitos, essa modalidade
literária é como o samba e a feijoada, que, embora tenham nascido
aqui ou acolá, hoje são praticados em todos os estados do Brasil. Em
todo lugar tem alguém fazendo cordel, especialmente na internet.
Mas urge fazermos um mea culpa: essa arte ainda é considerada uma
“arte menor” por nossa descabida adesão ao que é de fora, aos pro-
dutos literários vindos de países hegemônicos e que continuam nos
colonizando mentalmente pelos meios de comunicação de massa,
incluídas aí as literaturas estrangeiras. Porém, há ótimas iniciativas:
lembro que, no final da vida de Patativa do Assaré, uma universidade
vinha compilando suas criações; a obra do imbatível Jessier Quirino
vem sendo analisada em mestrados e doutorados; a produção com-
pleta de um Leandro Gomes de Barros está toda republicada, hoje
com domínio público; artistas como Glauber Rocha, Renato Russo e
Ferreira Gullar também escreveram cordéis. O seu Gonçalo Ferreira,
criador da Academia Brasileira de Literatura de Cordel – cujo acervo
conta com mais de 20 mil exemplares –, sempre atende convites para
palestrar em faculdades. Pululam por aí iniciativas criativas de pro-
fessores entusiastas que dão seu jeito de trazer o cordel para a sala de
aula. Eu mesmo já dei palestra sobre o tema em quatro universidades,
incluindo a UFRJ, que tem vários exemplares de minha autoria em
seu sistema de bibliotecas. As coisas mudarão para melhor cada vez
que perguntarmos numa livraria ou numa biblioteca: “Tem cordel?”

Renata – Você iniciou sua carreira pelo Teatro do Absurdo, cujo prin-
cipal autor, Eugène Ionesco, afirmou que “pensar contra nosso tempo é
um ato de heroísmo. Mas dizê-lo é um ato de loucura”. Também propôs

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Tchello d’Barros 213

o mergulho sem limites “no espanto e na estupefação, desse modo podes


ser sem limites, assim podes ser infinitamente”. O que instiga você nesse
tipo de teatro? Qual o espaço dele na atualidade?

Tchello – O Teatro do Absurdo, essa vertente tão especial das artes


cênicas, nunca se consolidou no Brasil, um tanto pela verve jocosa
de nossas plateias e outro pela tendência escapista pela qual preferi-
mos comédias pastelão ou dramalhões em que possamos reconhecer
rostos conhecidos das teledramaturgias populares. Mas, quando em
Teatro, estamos falando de Arte, assim com A maiúsculo, não dá
para não lembrar que o Teatro do Absurdo oferece um campo fértil,
por sua perspectiva experimental, por suas dramaturgias ousadas,
pelo tom crítico que oferece, por seu descompromisso com público
numeroso ou sucesso comercial, por sua pegada por vezes surrea-
lista, por suas infinitas possibilidades conceituais nas montagens.
Ionesco é a principal referência, por certo, mas para mim a principal
influência é Fernando Arrabal; até participei como ator numa versão
de seu já clássico Piquenique no front. Pontuei várias referências do
Teatro do Absurdo em minhas duas dramaturgias curtas que foram
montadas em Belém do Pará: Feminilidades e Outra jaula para Pound.
Atualmente venho criando algumas performances, sendo que umas
eu mesmo apresento, outras passo os textos para artistas convidados.
Morrerei com o desiderato de que, após minha passagem, as pessoas
continuem montando tais esquetes e performances.

Renata – Conforme Henrique Piccinato Xavier, em estudo intitulado “A


evolução da Poesia Visual: da Grécia Antiga aos infopoemas”, a Poesia
Visual é tratada “como uma escrita tácita que em si já é forma carregada
de sentido. A página não é mais um depósito frio de letras, mas um su-

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214 Entrevistas

porte espacial ativo, como a tela de uma pintura”. O que você tem a dizer
sobre essa visão?

Tchello – Palmas para o moço aí, que se esforçou para delimitar


um contorno conceituador para a Poesia Visual! Esse tem sido um
instigante desafio para os formuladores de Teoria da Literatura, para
pesquisadores, críticos e acadêmicos em geral. Fico pasmo que um
campo rico como esse ainda tenha tão poucas pesquisas no Brasil,
embora a Poesia Visual venha se infiltrando aos poucos nos livros
didáticos. E note-se que o Brasil sempre contribuiu com nomes
significativos para a Poesia Visual no mundo. Para mim a referência
mais sólida ainda é a tese de doutorado do paulistano Philadelpho
Menezes, que resultou no livro Poética e visualidade. Ainda assim,
tanto no Brasil quanto no exterior, os limites conceituais da Poesia
Visual são bastante elásticos, como uma zona cinza. As tentativas
são quase sempre frases poéticas, por se tratar de um campo de
muita experimentação, de Poesia Expandida, e que alguns teóricos
situam no campo da chamada Poesia Experimental. Porém, não
vejo isso como um problema, ao contrário, há toda uma beleza nes-
sas fronteiras borradas e híbridas e que o tempo todo tangenciam
outras linguagens artísticas. Mas é incrível que ninguém tenha, por
exemplo, escrito uma tese sobre a participação feminina brasileira
no cânone da Poesia Visual, com nomes como Ana Aly, Neide de Sá,
Regina Vater, Regina Pouchain e as mais recentes, Fátima Queiroz,
Gab Marcondes e Claudia Li, entre outras.

Renata – Segundo E. M. de Melo e Castro (1993), a Poesia Visual apa-


rece de uma forma consistente quatro vezes na história da arte ocidental:
durante o período Alexandrino, na Renascença carolíngia, no período

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Tchello d’Barros 215

barroco e no século XX. Para Henrique Piccinato Xavier, observa-se ainda


que “cada um desses surtos de Poesia Visual se relaciona com o fim de um
período histórico e começo de uma nova época”. Com base nessa afirmativa
e no fato de estarmos no século XXI, para você, que faz parte da produção
visual da atualidade, qual o espaço dela na arte contemporânea? E seu
papel em relação a ela?

Tchello – Já tive ótimas conversas sobre poesia com o mestre


português E. E. de Melo e Castro, esse nome seminal da Poesia Ex-
perimental. Algumas correntes chamam de poemas figurados essas
diversas experimentações visuais na história, em que os símbolos
de comunicação são utilizados na construção de tais imagens. São
considerados poemas visuais – dentro do campo da Poesia Visual
/ Visual Poetry – os trabalhos que foram surgindo inicialmente na
Europa da metade do século passado, a partir do trabalho consistente
e programático do catalão Joan Brossa e seus companheiros de gera-
ção. A Visual Poetry surge, como movimento, não como manifesto,
quase junto com o Concretism, com a Concret Poetry. No meu caso,
cometi meus primeiros poemas visuais em 1993 d.C., portanto no
milênio passado, num momento pré-internet, mas já na era digital, e
desde então venho produzindo uma média de apenas quatro poemas
visuais por ano. Minha contribuição, ainda que modesta, tem sido
disseminar o segmento com minhas palestras, oficinas, projeções,
exposições da mostra itinerante Convergências e as curadorias que
tenho realizado, trazendo ao Brasil obras de autores de cerca de 50
países. Dizem que as mesas-redondas que tenho organizado sobre o
tema também são uma forma de pensarmos coletivamente em que
direção queremos caminhar com a Poesia Visual brasileira e interna-
cional. Já o setor da assim chamada Arte Contemporânea, este circo

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216 Entrevistas

por vezes bizarro que ora se rende ao mercado, ora aos interesses
políticos via aparelhos de Estado, tem se submetido a essa forma de
arte antes considerada tão marginal, tão alternativa e até mesmo
subversiva – “quanto mais à margem hoje, mais canônico amanhã”.
Não falo apenas de galerias privadas que vêm contemplando seus
públicos com individuais e coletivas de Poesia Visual, ou da presença
de poemas visuais nas consagradas feiras Art Rio ou na SP-Arte; falo
de grandes mostras como Obranome, no Museu Nacional de Brasília
e que passou pelo Parque Lage; da grande retrospectiva de Wlademir
Dias-Pino no MAR e sua sala especial na Bienal de 2016; da mostra
internacional Imagética no CCBB do Rio, entre outras, e do crescente
colecionismo de poemas visuais. O fato é que é muito difícil que as
pessoas bem informadas e de comprovado senso estético fiquem
imunes à beleza e à contundência daqueles poemas visuais que têm
o que dizer. E tudo vai se ampliar muito, anotem aí!

Renata – Para Siegfried J. Schmidt, a Poesia Visual é “o espanto do


falante perante a própria língua”. A grande questão a ser refletida sobre
o limiar entre a obra plástica e a obra poética é: o que legitimaria uma
obra como literária ou como plástica, já que a imagem não se restringe
ao artista e a palavra não se limita ao poeta?

Tchello – Antes é preciso considerar que, nunca antes na história


desta galáxia, os artistas visuais utilizaram tanto a palavra como
recurso para a criação de suas pinturas, instalações, vídeos e perfor-
mances. Em boa parte dos casos, os resultados têm se mostrado um
tanto duvidosos, mas oxalá continuem explorando os limites entre
imagem e texto. O mesmo fenômeno, por assim dizer, podemos
constatar nas tatuagens, já que, nesta segunda década do século XXI,

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Tchello d’Barros 217

tem havido um deslocamento dos textos das páginas e das telas para
os corpos das pessoas, mormente poemas e sentenças filosóficas. É
a pele como página, como tela, como veículo emissor de mensagens.
Com essas duas manifestações, há muitas outras certamente, nosso
inconsciente coletivo está tentando nos dizer algo. Talvez o turbilhão
de imagens a que somos expostos diuturnamente já não dê conta
de nossas demandas mais subjetivas, assim temos mergulhado aos
poucos numa dimensão mais simbólica, onde a escrita, a palavra, a
mensagem textual, estabelece uma dimensão mais poética junto ao
nosso imaginário. Uma obra literária pode ser assim considerada
quando um romance, um conto, uma crônica, um poema etc. nos
causa estesia, enlevo e alumbramento. O mesmo se dá no campo
das Artes Visuais e de qualquer linguagem artística. Já no âmbito
da Poesia Visual, é importante considerar que esta é uma categoria
situada no âmbito da Literatura e não das Artes Visuais. No gênero
da Poesia, temos aí o subgênero da Poesia Experimental, que tem na
Poesia Visual uma de suas vertentes. É um tipo de obra criado por
poetas em sua imensa e quase total maioria. Esse lugar de fala per-
tence aos poetas, principalmente aos assim chamados poetas visuais.
Não será demais lembrar que a maioria dos poetas visuais exerceu
ou exerce também a escrita de poemas em linguagem convencional.

Renata – Uma pesquisa realizada pela Federação do Comércio do Estado do


Rio de Janeiro (Fecomércio – 2017) sobre os hábitos culturais dos brasileiros
revelou que 56% dos entrevistados frequentaram pelo menos uma atividade
cultural no ano passado. Isso correspondente a cerca de 86 milhões de pessoas.
Dentre as atividades culturais, a mais citada foi a leitura de livros. De acordo
com a pesquisa, a prática é adotada por 37% dos entrevistados. A segunda
atividade mais citada foi o cinema, presente em 34% das respostas. O ranking é

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218 Entrevistas

completado pelos shows musicais: pelo menos 29% dos entrevistados revelaram


frequentar esses espetáculos. Outra atividade cultural destacada é o teatro. Os
frequentadores de peças, segundo o levantamento, aumentaram 11%. Sobre
os museus, que foram integrados na pesquisa a partir de 2015, as respostas
totalizaram 10%, mostrando avanço de três pontos percentuais. Esse resultado
evidencia quão pouco o brasileiro ocupa os espaços culturais (principalmente
os gratuitos). A que você atribuiu isso? Até que ponto isso passa pelas noções
de identidade e pertencimento? O que pode e deve ser feito?

Tchello – A Fecomércio mostra com números percentuais o imenso


abismo que existe entre nossa diversidade artística e o acesso aos
bens culturais, cujas políticas públicas têm aí a oportunidade de es-
tabelecer uma conexão mais eficiente entre artistas e sociedade, ela
que tem direito ao usufruto dessa produção, sobejamente conhecida
como uma das mais instigantes do planeta. Além do azar cósmico
de vivermos num país que ainda não aprendeu a manter no poder
pessoas comprometidas com educação, estamos sob um projeto de
nação que parece querer nos manter colonizados por países hegemô-
nicos. Com menos educação, com menos leitura, temos menos acesso
à cultura, mesmo que ela esteja ali, disponível e de graça. Imagine
um centro cultural de uma cidade do interior que, em vez de gerido
por uma pessoa qualificada, com formação específica, oferece tais
cargos a partidários ou parentes de quem alcança o poder localmen-
te, geralmente aqueles sujeitos que não servem para nada. Na hora
da partilha do bolo do poder, enfiam um traste desses para cuidar
de bibliotecas, espaços expositivos e projetos ditos culturais, como
shows eleitoreiros, editaizinhos de cartas marcadas e oportunismos
de ocasião. Há quem deixe de ir à praça assistir gratuitamente a uma
apresentação de Jongo da Serrinha para permanecer em casa assis-

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Tchello d’Barros 219

tindo a algum enlatado audiovisual. Há quem nunca tenha ouvido o


dedilhado da pantaneira Helena Meireles, lido um poema do nortista
Max Martins, assistido a algum filme do sulino Sílvio Back, mas sabe
de cor a letra da última canção pop estadunidense. Não estamos
falando de xenofobia, mas é fato que nossa identidade é construída
coletivamente e se acentua na medida em que aderimos às criações
dos artistas que nos representam e as internalizamos. Devemos
adensar nossa noção de pertencimento consumindo e desfrutando
bens culturais de nossos artistas, e votar em pessoas comprometidas
com nossa identidade cultural.

Renata – No cenário cinematográfico, houve um crescimento acele-


rado de produção brasileira, que chegou ao patamar de 140 filmes por
ano. Em contrapartida, de acordo com o professor Carlos Augusto Calil
(ECA-USP), há dificuldade de cumprimento da cota de 16% de consumo
de filmes nacionais. Para ele, o cinema “vira refém da política... a lei de
incentivo à cultura é um desastre”. Já para o produtor Rodrigo Teixeira,
hoje, “não existe um mecanismo para você ter benefício, um incentivo
por ter colocado dinheiro em filme”. E de acordo com Manoel Rangel, o
maior desafio é a “expansão e diversificação da economia audiovisual”.
O que você pensa sobre estas considerações acerca da atual conjuntura
do cinema brasileiro?

Tchello – O cinema brasileiro, que mais recentemente vem sendo


chamado com este nome menos poético, Audiovisual, continua
tentando encontrar seu caminho a duras penas, mesmo com o ba-
rateamento dos equipamentos, com os editais de fomento, com as
2.300 salas de exibição, com as novas janelas de exibição, inclusive
as plataformas na web. As três considerações da pergunta são ins-

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220 Entrevistas

tigantes e são moedas com vários lados. As ditas Leis de Incentivo


à Cultura, em suas esferas federais, estaduais e municipais, estão
aquém do ideal, é verdade, mas é o que melhor se conseguiu construir
até o momento, com muita luta, com muita pressão na obnubilada
classe política. É similar à Lei Rouanet, que apesar dos estapafúrdios
comentários equivocados, emitidos por leigos que desconhecem
seu funcionamento, é o que de mais apurado conseguimos produzir
até agora, portanto o que é necessário nesses casos são ações para
aprimorar tais mecanismos, privilegiando não o meio político ou as
empresas, mas o público, para o qual os produtos audiovisuais devem
ser destinados. Quem coloca dinheiro num filme, coisa raríssima, em
geral obtém retornos se o produto é bom, seja com premiações em
festivais, seja com venda para o circuito televisivo ou para o consumo
on demand nos sites de download. Diria que o desafio mais urgente
para a produção brasileira é ocupar nossas telas, sejam físicas, sejam
digitais, com uma presença mais acentuada. O brasileiro quer, sim,
se ver nas telinhas e telonas.

Renata – No Brasil, o desenvolvimento da Videoarte remete à expansão


das pesquisas nas Artes Visuais e à utilização cada vez mais frequente,
a partir dos anos 1960, de recursos audiovisuais por artistas como An-
tonio Dias (1944), Arthur Omar (1948) e Hélio Oiticica (1937-1980).
A introdução do vídeo como meio de expressão estética trouxe novos
elementos para o debate sobre o fazer artístico. O que você tem a dizer
sobre isso? Por favor, comente Penélope e Devorável, que recentemente
participaram de festivais fora do Brasil.

Tchello – A Videoarte chegou para ficar e está aí para se expandir,


haja vista suas ramificações em Videodança, Videopoemas, Video-

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Tchello d’Barros 221

performance, Videoinstalações, Filmes de Artista e as inovações em


Cinema Expandido, Realidade Virtual, Realidade Aumentada e toda
sorte de experimentação em novas tecnologias. Minhas principais
referências são os videoartistas Nam Jun Paic, Bill Violla e Mathew
Barney. Sou desses que celebra quando a nova geração brasileira
ocupa espaços em festivais do gênero mundo afora. Comemoramos
também quando meu projeto Banco de Roteiros tem realizado alguns
Argumentos, em especial nesse campo experimental da Videoarte.
Recentemente tive o privilégio de roteirizar e também dirigir traba-
lhos como Devorável, Evanescências e Penélope, entre outros, que têm
sido exibidos não apenas em espaços convencionais, mas também em
instituições culturais, galerias, congressos e festivais fora do país. Já
está em fase de pós-produção, para estreia em 2019, o videopoema
Partes de mim, que, além da veiculação nesses circuitos citados, de-
verá ter uma versão para a web. Apesar de a maioria da produção do
audiovisual contemporâneo ser direcionada para projetos comerciais
e/ou para o entretenimento, para mim a Videoarte é um espaço onde
o público pode também ser tocado pela criação puramente artística.

Renata – Para finalizar, nas últimas décadas a literatura aparece


em novos suportes além do impresso. Conforme Beatriz Rezende, está
ocorrendo o fenômeno da “desterritorialização” da literatura, ou seja,
“absorção dos recursos midiáticos na construção de um texto”. Como você
vê esse movimento, o hipertexto, a construção coletiva textual e a questão
da autoria nesse caso?

Tchello – Ergamos nossas taças num sonoro brinde à libertação


dos textos de suas amarras das páginas impressas! Bem-vinda, ó era
digital, com sua multiplicação de telas, proliferação de meios e pro-

Fórum Lit. Bras. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, nº 21, pp. 207-22, jan.-jun. 2019.
222 Entrevistas

fusão de oportunidades de encontro das obras criativas com pessoas


ávidas pela transcendente experiência artística! – Evoé! A literatura,
com seus gêneros, modalidades da prosa, formas fixas da poesia e
toda sua inquietante verve criadora, jamais teve tantos olhinhos e
outros sentidos conectados com as letras, com o mundo das palavras,
com o âmbito poético. Nunca tivemos tantos leitores, nunca houve
tantos escritores. Apesar da pirataria, apesar da necessidade da co-
nectividade, apesar de todo o lixo literário produzido diariamente,
as páginas virtuais e redes sociais fizeram com que a obra literária
chegasse a um número muito maior de leitores, pesquisadores, crí-
ticos, editores, professores, bibliotecas digitais, fãs, todas as pessoas
que fazem girar a roda da literatura. Este é um tempo precursor de
novas formas do fazer literário, seja com os hipertextos, com as
hibridizações de linguagens, com as fanfics, as autopublicações, as
autorias coletivas e as autorias anônimas, com seus nicknames e
avatares, a cultura remix, as apropriações e ressignificações de texto
e assim por diante. É claro que existem problemas também, como
os plágios, os direitos autorais violados, mas é instigante estarmos
aqui neste momento histórico, testemunhando e em certa medida
protagonizando este novo tempo, em que a literatura parece não ter
limites. Este é um tempo para seguirmos em frente, descortinando
os limites da linguagem, encontrando novos sentidos e vivências
para o fenômeno poético.

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RESENHAS
ANÁLISES DE LIVROS
DE FICÇÃO E POESIA
Ruínas da diáspora

Outro lugar, de Luís S. Krausz

Alexandre Braga*

O ano era 1984 quando o narrador do romance Outro


lugar, de Luís S. Krausz, adquiriu uma passagem para Nova
York, dando início a um périplo simultaneamente geográfico e
psicológico pelos meandros da memória judaica, coletivamente
construída e preservada, mas individualmente assimilada por
um hábil ficcionista, cujas palavras são responsáveis não só por
erguer testemunho subjetivo de um pertencimento cultural,
mas também por comunicar o sentimento de busca por abrigo
ou refúgio perante um cenário de crise e ruína.
É precisamente em seu caráter dialógico que a memória
comparece à tessitura da escrita de Krausz: não se elabora me-
mória individual fora do âmbito de uma memória coletiva, da
mesma forma que a memória coletiva não se constitui alheia às
imagens organizadas pela esfera da memória subjetiva. Nesse
sentido, se o narrador de Outro lugar toma de empréstimo as
reminiscências de amigos, familiares, colaboradores e demais
participantes dos relatos, contribui, em movimento recíproco,
para uma permanente reconstrução imagética coletiva.
A recriação da memória de um Brasil em processo de rede-
mocratização – dinâmica pontuada desde o primeiro capítulo da


Mestrando em Literatura Brasileira na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Fórum Lit. Bras. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, nº 21, pp. 225-8, jan.-jun. 2019.
226 Resenhas

narrativa – dispara ricas reflexões do narrador a respeito do espírito


do tempo, fator de fundamental importância na reconstituição de
fatos passados. Como é típico da narrativa em primeira pessoa,
o desdobramento do narrador em eu narrante e eu narrado gera
um distanciamento cronológico entre a persona que apresenta ao
leitor os relatos e o homem que viveu experiências em um tempo
remoto, fazendo incidir sobre a matéria linguística um olhar ine-
xoravelmente crítico. Nessa lógica, camadas de vivências distintas
acumulam-se no ato de plasmar a memória, tornando a narração
do passado refém do ponto de vista do presente – aspecto que,
paradoxalmente, enriquece a literatura.
Neste presente de transições em que se insere, o nar-
rador de Krausz deixa a nostálgica São Paulo em que se criou
– “fastest growing city in the world”, como enfatiza, a todo
tempo, o livro de fotografias carregado pelo parceiro de viagem
René Liviano – para se aventurar no cosmopolitismo nova-ior-
quino, perpetuando o movimento de deslocamento geográfico
intrínseco à história de todo o seu povo. Também seus pais,
judeus do Leste Europeu, precisaram migrar para o Brasil
devido à ameaça antissemita em seu local de origem. Embora
a viagem para a Big Apple não tenha as mesmas motivações,
dispara uma fatal diáspora, que se constitui marco inicial de
um consistente projeto literário que, ao saber de onde partiu,
entende bem aonde quer chegar: um turvo, porém pulsante
limiar entre ficção e memória.
Ao transpor distâncias continentais a bordo de um
avião das Aerolineas Argentinas, o narrador faz um pacto com
o desconhecido, abraçando as incertezas de seu “exílio” no mais
prototípico cosmopolitismo. Assim, descortina-se na crise uma

Fórum Lit. Bras. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, nº 21, pp. 225-8, jan.-jun. 2019.
Outro lugar, de Luís S. Krausz 227

oportunidade: a de tatear, no corpo social urbano, para o qual


esse narrador é estrangeiro, seu lugar no mundo; definindo as
fronteiras da diáspora perpetuada pela sua jornada, mapear seu
próprio desterro. Forasteiro em terras estranhas, ele pertence,
paradoxalmente, ao mundo inteiro.
Nesse aspecto, o protagonista de Outro lugar só conse-
gue empreender uma viagem catabática a seu próprio núcleo
pelo amálgama com o outro. Apartado de sua origem, entre-
ga-se a digressões sobre seu amigo René Liviano, sobre a atriz
do Opium, sobre a amiga húngara de São Paulo, sobre Herr
Winternigg – em suma, sobre todos aqueles que, em oposição
a seus traços e suas percepções, ajudaram a constituir sua
identidade. Perdendo-se para se encontrar, o narrador tece
o romance à custa da costura de retalhos, fragmentos, que,
como em um mosaico de patchwork, compõem uma imagem
plural em pontos de vista; atravessada à agulha do ficcionista,
a implacável linha do tempo.
Tamanho estranhamento, provocado pelo salto no
abismo, não poderia encontrar correspondência mais pre-
cisa do que na forma literária adotada pelo narrador, que,
entregue à ânsia de narrar, traduz o impulso de busca de
um refúgio. A verborragia de extensos períodos, atraves-
sados por muitas vírgulas, a perder de vista seus pontos,
assinala o fluxo de consciência a partir do qual é mediada
a experiência desse narrar, encontrando, no abrigo seguro
da literatura, um lugar precioso para a ruína memorial. O
atravessamento de ideias e associações, bem como a in-
serção de comentários parentéticos, marca uma prosa de
inigualável vazão e ímpeto, engenhosamente organizada

Fórum Lit. Bras. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, nº 21, pp. 225-8, jan.-jun. 2019.
228 Resenhas

em capítulos que restituem ao leitor o fôlego esgotado no


avançar dos parágrafos.
Outro recurso explorado com êxito pela narrativa é a
fotografia. Presente desde os primeiros capítulos do romance,
sob a participação do amigo René Liviano nas reflexões do
narrador sobre São Paulo, a fotografia também encerra o últi-
mo relato, a respeito de Herr Winternigg, profissional outrora
reconhecido no ramo, mas destinado a morrer no anonimato
em uma casa de repouso em Petrópolis. Consciente de que a
fotografia evoca memória, distorcendo e esgarçando relações
lineares de espaço-tempo, Winternigg, a partir de seus sen-
síveis registros, eternizou as ruínas de um mundo que já não
mais existe. Nesse mesmo espírito de resistência à corrosão do
tempo, a ficção de Krausz se inscreve em um lugar de esclarecido
tributo à memória.
Essa profunda consciência do fazer literário encontra
seu fulgor máximo no preciso desfecho do derradeiro capítulo
de Outro lugar: “Ali [os livros] sucumbem, inexoravelmente, ao
completo esquecimento, à perfeição consumada do oblívio”.
Ciente da nova temporalidade em que se processam os fatos
em nossa pós-cultura, em que se fragiliza a espontaneidade
da memória coletiva, Krausz assume a urgência de construir,
intencionalmente, um lugar de memória, de modo a perpetuar
identidades e fixar valores. Assim, o ficcionista recusa o apa-
gamento e a perecibilidade de relatos tantos que, enfrasados
pelos procedimentos linguísticos de um saber quase intuitivo,
firmam uma genuína escrita da ruína, a qual, ao contrário da
histórica diáspora do povo judeu, marca um ponto de confluên-
cia – refúgio – de afetos e pertencimentos.

Fórum Lit. Bras. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, nº 21, pp. 225-8, jan.-jun. 2019.
O poeta e seus deltas: onde nasce a poesia?

O retorno de Bennu, de Majela Colares

Maria Inês Pinheiro Cardoso*

Não são muitos os poetas que operam mudanças na ordena-


ção íntima das palavras. Foi isso o que me aconteceu ao ler, por pri-
meira vez, um poema de Majela Colares, em cujo título “Minha aldeia
e meus chinelos” reuniam-se “aldeia” – palavra primitiva e poderosa,
capaz de transmutar poeticamente o lugar onde o homem habita – e
“chinelos”, palavra sem entrada em meu pequeno dicionário poético.
Eis, no entanto, que aqueles “chinelos” arrastavam o mundo e muito
mais. Assim, em meu dicionário, “chinelos” ganhou verbete.
Daí em diante, além de As cores do tempo (2007), onde li “Mi-
nha aldeia e meus chinelos”, encontrei-me com a poesia de Majela
Colares em A linha extrema (1999); O silêncio no aquário (2004), em
edição bilíngue português-alemão; Confissão de dívida e outros poe-
mas (2001); Quadrante lunar (2005); O soldador de palavras (1997);
Outono de pedra (1994), e persegui as posteriores, reunidas em
Memória líquida (2012) e em Margeando o caos (2013), este último
em edição bilíngue português-catalão, traduzido por Joan Navarro,
como Vorejant el caos.
Nessas incursões desatentas à cronologia das obras, encon-
trei-me sempre com um poeta maduro, arraigado às suas experiên-
cias e ao seu entorno, a lançá-los – e a si mesmo – ao encontro do

*
Professora adjunta do Departamento de Letras Estrangeiras da Universidade Federal do
Ceará (UFC).

Fórum Lit. Bras. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, nº 21, pp. 229-39, jan.-jun. 2019.
230 Resenhas

mundo. Esse desejo de unir-se ao outro através do fio noveloso da


vida e da seiva da humanidade, que é, no final, o que nos traspassa
e une a todos, e o chamamento da palavra poética e seu domínio
transformam-no em fino tecelão, naturalmente votado à amplidão
harmoniosa dos bordados e rendido às epifanias que traduzem tal
desejo. O retorno de Bennu (2018) diz da busca abissal do lugar da
palavra e do espírito da poesia: “Foi o grito da ave Bennu na criação
do mundo que marcou o início dos tempos” (p. 17), esclarece o autor.
Mas diz sobretudo que o homem e a poesia são as matérias do tempo.
Os tempos do verbo e da natureza.
Majela cria metáforas e também cultiva mangas, ofícios
que, afinal, não distam tanto entre si. Reconhecer as fases da ma-
durez da fruta, o dulçor e o amarelo certos de sua polpa, à hora
da colheita, requer sensibilidade, como o transitar pelos diversos
veios do rio da poesia. Travessia segura que já garantiu ao poeta
contundente fortuna crítica. Esta reúne nomes de distintas ge-
rações e ascendências, e de indiscutível autoridade e rigor crítico
no cenário literário brasileiro e fora deste, entre os quais figuram
Fábio Lucas, Fernando Py, Fausto Cunha, Caio Porfírio Carneiro,
César Leal, Foed Castro Chamma, Francisco Carvalho, Ivan Jun-
queira, Hildeberto Barbosa Filho, Janilto Andrade, Jorge Tuffic,
José Alcides Pinto, Antonio Carlos Secchin, Alexei Bueno, Marco
Lucchesi, Paulo Ferraz, André Seffrin, entre outros críticos, escrito-
res e ensaístas brasileiros, além de Xosé Lois García, poeta, crítico
literário e professor da Universidade de Barcelona; do escritor e
tradutor alemão Curt Meyer-Clason, responsável pela tradução
para o alemão das obras de Guimarães Rosa e do livro de Colares
O silêncio do aquário / Die Stilleim Aquarium (2004); do crítico lite-
rário Francisco Soares, professor da Universidade de Évora; e da

Fórum Lit. Bras. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, nº 21, pp. 229-39, jan.-jun. 2019.
O retorno de Bennu, de Majela Colares 231

poeta, ensaísta e crítica literária Norma Pérez Martín, professora da


Universidade de Buenos Aires.
Alexei Bueno, que incluiu o autor cearense, nascido em Li-
moeiro do Norte – ou na Ribeira do Rio das Onças (Rio Jaguaribe),
como ele prefere dizer –, em sua Uma história da poesia brasileira
(2007), é autor de “A específica experiência vital de Majela Colares”,
texto crítico que prefacia O retorno de Bennu. Ao apresentar o livro e
suas quatro seções – “Percepções”, “Alumbramentos”, “Confluências”
e “Lampejos” –, Bueno se refere aos “poemas em prosa, de irretocável
andamento rítmico” (2018, 21), que compõem a primeira seção como
um pórtico do livro. Os cinco poemas que constituem “Percepções”
são, de fato, um portal, belo e delicadamente construído, através do
qual se chega ao coração do cantor e de sua poesia.
Não apenas pela vertigem da viagem ao coração do poeta, essa
primeira seção do livro, incursão de Majela pela prosa poética, mere-
ce mais vagar. Nela, o autor abandona um aspecto insistentemente
elogiado de sua poesia: a composição formal, de perfeito arremate,
aberta a uma multiplicidade que se ajusta, não a caprichos do poeta,
mas à “demanda” do próprio poema. Esse mérito da composição está
selado por expressões a ele atribuídas, tais como “alvanel da palavra”,
segundo Janilto Andrade (2009, 189), ou “verdadeiro arquiteto”, em
palavras de Xosé Lois García (2009, 210), capaz de erguer enorme
monumentalidade poética. Outras expressões remetem à capacidade
laboriosa do autor de beneficiar mesmo a matéria menos dócil, que se
traduz, segundo Foed Castro Chamma, em um “sentido metalúrgico
conferido ao uso da palavra” (2005, 10). A versatilidade do autor no
tocante às formas é patente para a crítica. Norma Pérez Martín chama
a atenção para a “fluidez e o ritmo ajustado em composições com es-
trutura canônica (como o soneto), da mesma forma que em estruturas

Fórum Lit. Bras. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, nº 21, pp. 229-39, jan.-jun. 2019.
232 Resenhas

modernas e livres” (2009, 186; tradução minha).1 Francisco Soares


atenta para o destemor de Majela em relação à forma clássica e para
a habilidade múltipla de sua poesia, “etérea e corpórea” (2007, 200).
De forma mais abrangente, Fernando Py declarou, quando o então
jovem autor publicou seu quarto livro, que Majela, sempre consciente
de seu fazer poético, era poeta por excelência que já gravara seu nome
na história de nossa literatura (2009, 180). Esse mérito, que a poesia
de Majela lhe assegura, de “consumado poeta lírico, oscilando com
notável liberdade, entre a forma fixa e o verso livre” (Bueno: 2018,
20), constata-o o leitor, mais adiante, na segunda seção de seu livro.
Embora obra do escritor maduro, O retorno de Bennu oferece, já
em sua primeira seção, um novo terreno onde a poesia, cuidadosa, mas
honestamente, deixa-se fluir na aparente liberdade da prosa. Liberdade,
desejo-ensonhação de Baudelaire, capturado pela epígrafe escolhida. Inau-
gura, pois, a seção e o livro, “Manuscrito”, poema que sela uma promessa.
O diálogo entre o pensamento e a escrita é uma carta de intenção da “mão
relutante” que se move ao papel somente, e apenas somente, porque busca
penetrar o segredo da arte – capaz de provocar uma estrela, apenas para
deixar no poeta um cheiro do céu. Mesmo sob o risco da condenação de
“dois terços de ano-luz sem tocar em qualquer objeto que pudesse servir-
-lhe para rascunhar um manuscrito” (p. 32), o poeta acorda os filhos de
sua fantasia, que dormiam em silêncio, esperando que a arte os vestisse da
palavra para poder apresentar-se bem na cena do mundo, como escreveu,
sobre a poesia, Gustavo Adolfo Bécquer (1974, 9).2 E prossegue.

1 Texto original: “fluidez y ajustado ritmo en composiciones con estructura canónica (como el
soneto) al igual que en estructuras modernas y libres”.
2Texto original: “Por los tenebrosos rincones de mi cerebro, acurrucados y desnudos, duermen
los extravagantes hijos de mi fantasía, esperando en silencio que el arte los vista de las palabras
para poderse presentar decentes en la escena del mundo”.

Fórum Lit. Bras. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, nº 21, pp. 229-39, jan.-jun. 2019.
O retorno de Bennu, de Majela Colares 233

Em seu percurso, no qual se irmanam lírica e música,


­segue-se “Cantata”, melodiosa ode aos poderes da infância e das
estrelas – faróis luminosos, através dos quais o poeta chega aos seus
sons, cheiros e sabores do passado. Talvez para não esquecer quem
é e ao que é chamado a ser. A poesia de “Cantata” ora desliza sibi-
lante, ora brinca saltitante, em um concerto afinado de sonoridades
evocativas, até bater-se contra o peito insensível de quem nunca se
habitou por grilos e estrelas. Os versos tão íntimos parecem ecoar
uma popular marchinha dos carnavais recifenses em que também
havia uma vez “um pequenino grão de areia”.
Ao retirar o espelho do tempo de frente de si, e diante da
inquietude que permanece, o céu se torna a medida do sonho em “Mi-
ragem”, quando o poeta revisita Centaurus, Andrômeda, Cão Maior e
a Via-Láctea, percurso estelar constante do inventário galáctico que
domina. Mas, sequestrado pelo alheamento, deixa-se evocar pela
“luzazuli lampejante IC 110, quanticamente aquática” que amplia a
vastidão de um céu que julgava conhecer, rumo a outras existências.
Ainda assim, também a humanidade que nos habita é coisa grande
como o céu, e no abraço que acolhe o irmãozinho, amigo e camarada,
o poeta se projeta na extensão indevassada, guiado sempre pela luz
que alumia novas possibilidades, rumo à infinidade cósmica, onde
quer que a vida pulse.
É em “Mormaço”, ao final, onde a memória rende o autor e
ocupa todo o espaço da poesia, que faz parada em cada instância da
alma e dos sentidos: cheiros, texturas, balidos, sabores e lampejos.
Imagens. Fulgurações. Sinfonia: “Do fundo da memória vieram-me
essas imagens, [...] galopando por entre o mormaço aflorado nas
primeiras chuvas e o verde pelúcia entressonhado no olfato das
minhas revivências infindas” (p. 35). Nenhum recuo, nada menos

Fórum Lit. Bras. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, nº 21, pp. 229-39, jan.-jun. 2019.
234 Resenhas

que amálgama das coisas no ser do poeta, corpo e alma preenchi-


dos, mapeados, datados e dotados da permanência dessas marcas
evocadas ciclicamente.
“Cantata”, “Miragem”, “Mormaço”, poemas em prosa que
parecem epístolas, do adulto ao menino que foi, ou o inverso disso,
do menino que cisma sobre o homem que será.
“Ruminanças” é o último arco do portal, de onde se vislum-
bram geografias do sertão, reino do sol esfomeado que tudo cobre. Na
poesia, bafeja o hálito sertanejo desse sol que, desabando escuridão
adentro, invade a noite emprenhando de fome os que nela se movem,
silenciosamente, carregando sua sombra por um outubro, lá longe de
chuva. Bichos, terra, sol, homens, num só novelo, emaranhado viven-
te da paisagem austera e melancólica da seca, no sertão e no poeta.
O sol cai esfomeado de luz na noite sombria e o poeta, em
incessante busca de luz, insiste nas epifanias possíveis da poesia
e compõe um caudaloso rio de palavras, formas e intenções, na
sequência, segunda seção do livro, que, não por acaso, recebe o
nome de “Alumbramentos”. Os sessenta e um poemas que se se-
guem irmanam-se na disposição do verso e mostram o trabalho de
ourivesaria artesanal, de uma arte que não se dá por satisfeita e
busca sempre a forma e a expressão justas para cantar o mundo, a
natureza, o homem.
Entre poemas que transitam entre um lirismo profundo
e sublime, e algumas incursões por despretensioso e inteligente
humor, que pretere o chiste fácil e surpreende pela revelação ou
pela simplicidade de uma língua aldeã, há um poeta que igualmente
transita entre a suave melancolia – e o sorriso breve – e uma exten-
sa viagem, em busca do infinito, no tempo e no espaço. O vento é
seu amigo e aliado, e o vizinho assobio leve sopra mais forte e mais

Fórum Lit. Bras. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, nº 21, pp. 229-39, jan.-jun. 2019.
O retorno de Bennu, de Majela Colares 235

longe, cartografando adustas terras do Oriente. Cultora de letras,


de ventos, de terras, de águas – e do fogo revivescente de Bennu –, a
poesia atravessa o Atlântico em busca do Mediterrâneo, sem deixar
para trás sua aldeia, quiçá, pelo atávico eco da herança arábica, não
apenas do alfabeto, que impregna o Nordeste profundo e reverbera.
Memória ancestral.
Sempre, sempre verdadeiro, o autor derrama sobre a palavra
a percepção mais íntima de si: “Minha vida é feito a lua / decifrada em
seus quadrantes / [...] // minha vida é feito a rua // [...] / de sussurros
confidentes... // minha vida é feito instantes // [...] / que guardam
em mim segredos: / a ternura dos meus dedos... // meu tenso ran-
ger de dentes” (“Cantiga do instante sóbrio”, p. 67); e de seu lugar
mais próximo, onde cultiva flores em jardins e, destemidamente,
bananas em quintais: “Em meu quintal [...] / respira-se liberdade...
in natura / de flores e espinhos... mão futura / [...] O mundo inteiro
[...] diz-se exposto... / meu quintal dá bananas... vira o rosto / pra
vileza do mundo em tosca ideia” (“O meu quintal”, p. 85). Quando
ama, reconhece-se vassalo: “Quando amo, meu sonho pervagueia /
num delírio, sem fim, pelo universo... / impossível pintar tudo num
verso / quanto escrever no mar, grafando areia / quando eu amo, o
avesso fica inverso” (“Quando amo”, p. 104).
Sua aldeia o convoca, uma e outra vez: “Voltei a minha al-
deia... // a bem dizer / minha aldeia ordenou: retorne // – coisas de
aldeia” (“Eu e minha aldeia”, p. 49). Ela se expande nas aldeias outras
do mundo: “Vai amigo vento, vai / e diz para aquela aldeia longínqua
/ antiga e minha sempre, sempre”, convertendo-o, a cada volta, em
um infinito “filho pródigo” (“Missiva de um filho pródigo”, p. 105).
Majela se move, sem hesitação, pela poesia lírica, sem se
prender às formas estróficas. Seus versos, reunidos em duos, trios

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236 Resenhas

ou quartetos, ou dispostos em sequências irregulares, atendem


mais à sua sensibilidade que ao vasto domínio que tem das formas,
tão elogiado pela crítica aqui citada. Ao “Poemeto inocente”, rima
abraçada em versos tetrassilábicos: “Demais amor / atemporal / um
vendaval / de luz e cor” (p. 88). No entanto, a “trilha umbilical re-
mota” que o poeta percorre longamente pede a extensão dos versos
e da forma, livres: “Busco no tempo as inevitáveis renascenças de
Bennu // [...] busco todo esse passado longínquo / para entender,
ainda que o mínimo possível / a eterna memória líquida das infinitas
galáxias” (p. 41).
O poema que dá nome ao livro é, nas palavras de Alexei
Bueno em sua introdução, o texto central da obra. Trata-se

de um desses raros poemas totalizadores, um desses ainda


mais raros momentos em que a visão do poeta, confundido
com Bennu/Fênix, a que renasce eternamente das próprias
cinzas, procura abarcar a Humanidade num único relance
[...]. Trata-se enfim, de um poema de uma ambição quase
inencontrável na poesia brasileira contemporânea (2018,
21-2).

Por isso mesmo, deve-se respeitosamente nada mais dizer


sobre ele, antes deixá-lo falar:

As águas mansas e sábias do grande Nilo consagram à sua foz


uma inebriante calmaria, incomum às tardes comuns

descendo rumo ao Mediterrâneo, desde a Floresta Nyungwe...


depois Jinja, beira norte do lago Vitória

Fórum Lit. Bras. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, nº 21, pp. 229-39, jan.-jun. 2019.
O retorno de Bennu, de Majela Colares 237

fluindo, fluente para o longínquo delta bifurcado


para oeste
o canal de Roseta
para leste
o canal de Damieta
onde o enigmático rio
transfigura-se em imensidões de mar oceânicas
quanto mistério, quanto mistério quanto...

tudo é, silenciosamente, rotina de margens e espumas.


(Colares: 2018, 44)

Seguindo o curso das águas, do vento e da memória, o poema


se desdobra em muitos. E esse Bennu renascido pelo poeta é verbo,
poema e esperança.
Entre a vida e a palavra, feito um dito, aparece, em “Con-
fluência”, uma espécie de súmula da “profissão de fé” de Majela
(pequenos presentes para transcrever em papeizinhos e distribuir
sem comedimento ou esconder em livros, só para achá-los depois).
Popular e erudito, Majela, como aedo, recorre ao estilo formular:
seus poemas breves ou aforismos líricos tocam o sublime, mesmo
refletindo sobre a simplicidade da vida, só para nos lembrar de que a
poesia, ah, a “poesia torna a vida bela, ampla e completa. No mundo
da poesia não existem impossibilidades!” (p. 123). “Quando quero
acarinhar o infinito, uso a poesia” (p. 141).
Sêneca conclama, na epígrafe de “Confluência”: “Falemos o
que sentimos, sintamos o que dizemos: que a palavra concorde com
a vida” (p. 113). É isso o que dizem esses textos, pequenas centelhas
de sabedoria, coloridos de diferentes tonalidades e unidos pela brevi-

Fórum Lit. Bras. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, nº 21, pp. 229-39, jan.-jun. 2019.
238 Resenhas

dade da forma e por algumas constâncias temáticas, o tempo, entre


elas, e que também parafraseiam Jesus. O poeta chama a atenção do
leitor para uma verdade com a qual se implica e por isso ela merece
reflexão: “Em verdade vos digo: a plena liberdade é inversamente
proporcional à intolerância plena” (p. 128).
Na derradeira seção do livro, Majela compõe um índice de verbe-
tes, nos quais infunde o sentido que lhes reconhece ou que lhes concede,
como artista da palavra. Cumpre, assim, sua sina de alquimista, como
antecipa Octavio Paz na epígrafe de “Lampejos”: “A palavra poética jamais
é completamente deste mundo” (p. 147). Nessa seção final, há uma exe-
gese de seu fazer poético, lugar onde reúne noções essenciais da poesia e,
à luz da razão, como humanista que é, revela sobre que andaimes edifica
sua arte. Seus substantivos constituem um dicionário preservado da
corrupção. Assim, destacam-se verbetes como “Homem”, “Consciência”,
“Poesia”, “Poema”, “Poeta” (é imprescindível para a grandeza do espírito
que se cantem as paixões...), “Crítico”, “Livro”, “Beleza”, “Inspiração”,
“Angústia”, “Revivência”, “Esfinge”, “Medo”, “Hipocrisia”, dentre outros.
Cito “Convicção”, último dos verbetes e última página da obra:

há muito, o tempo é o meu maior aliado. Sigo seu galope no


mesmo compasso – guardo suas marcas, vibro suas cores –
tanto em momentos claros de felicidade quanto em turvos
momentos de desencanto... E assim, ao longo da vida, em
combate nenhum, sequer imaginei e sequer imagino ser
derrotado, por mais tenebroso e obscuro que se mostre o
conflito. Eu e o tempo afrontamos o próprio tempo.
(p. 178)

Majela Colares, com a poesia, penetra o tempo. Não é essa a


missão da poesia, habitar o tempo e com ele confundir-se?

Fórum Lit. Bras. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, nº 21, pp. 229-39, jan.-jun. 2019.
O retorno de Bennu, de Majela Colares 239

Referências

ANDRADE, Janilto. “Alvenaria de palavras”. In: COLARES, Majela.


As cores do tempo. 2ª edição. Rio de Janeiro: Calibán, 2009,
pp. 189-91.
BÉCQUER, Gustavo Adolfo. Rimas y leyendas. Madri: Espasa-Calpe,
1974.
BUENO, Alexei. “A específica experiência vital de Majela Colares”. In:
COLARES, Majela. O retorno de Bennu. Cotia: Ateliê, 2018.
CHAMMA, Foed Castro. In: COLARES, Majela. Quadrante lunar. Rio
de Janeiro: Calibán, 2005.
GARCÍA, Xosé Lois. “Unha obra que conmemora a vida”. In: COLA-
RES, Majela. As cores do tempo. 2ª edição. Rio de Janeiro:
Calibán, 2009, pp. 210-2.
MARTÍN, Norma Pérez. “Vertientes de la poesía de Majela
Colares”. In: COLARES, Majela. As cores do tempo. 2ª
edição. Rio de Janeiro: Calibán, 2009, pp. 184-8.
PY, Fernando. “A poesia existencial de Majela Colares”. In:
COLARES, Majela. As cores do tempo. 2ª edição. Rio de
Janeiro: Calibán, 2009, pp. 179-80.
SOARES, Francisco. In: COLARES, Majela. As cores do tempo.
Rio de Janeiro: Calibán, 2007.

Fórum Lit. Bras. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, nº 21, pp. 229-39, jan.-jun. 2019.
Contos para Caio F.

O que resta das coisas, organizado por Ricardo Barberena

Marina Ruivo*

Muitas são as portas de entrada para o trabalho com o ar-


quivo de um escritor ou de uma escritora. E tantas, que podemos
sem dificuldade nos perder diante da fartura de material acumulada
ao longo de uma vida. Um ponto que logo se percebe, porém, é que
é preciso sair da esfera mais tradicionalmente frequentada pelos
estudos literários e abrir-se para o diálogo com outras áreas do
conhecimento e mesmo com outras artes, muitas vezes também
presentes em tais arquivos.
E então, avançando entre riscos e com um ponto de chegada
que se metamorfoseia a cada passo, o pesquisador ou a pesquisadora
inicia seu caminho e, quase sempre, é acometido pelo que Reinaldo
Marques, pesquisador do Acervo de Escritores Mineiros da Uni-
versidade Federal de Minas Gerais (UFMG), chama de “compulsão
arquivística”, debruçando-se de forma quase obsessiva sobre a varie-
dade de materiais encontrada, seduzido pelos “prazeres do arquivo”
(2003, 155), tão múltiplos e infindos.
De imediato, ao adentrar, nosso interesse é despertado
para os itens que dialogam mais de perto com a literatura e, deles,
o primeiro a nos atrair geralmente são seus originais. Além deles,
queremos localizar suas correspondências, as cartas que trocou com

* Professora adjunta do Departamento de Educação da Universidade Federal de Rondônia (UNIR).

Fórum Lit. Bras. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, nº 21, pp. 241-58, jan.-jun. 2019.
242 Resenhas

colegas, familiares, amigos, outros escritores. E ainda seus rascunhos,


os esboços interrompidos de poemas, contos ou romances, suas
várias anotações e diários.
Em um momento posterior, há também espaço para os
objetos que podemos chamar de extraliterários, a partir das suges-
tões de Maria da Glória Bordini (2005), ou seja, aqueles que não
podem ser considerados como sua produção literária nem mesmo
protoliterária, ainda que possam estar relacionados à sua atividade
com a escrita (como sua máquina de escrever, sua mesa de trabalho,
os prêmios que ganhou ao longo de sua trajetória, mas também
lembranças de viagens, fotografias, os quadros de sua casa etc.).
Tais objetos ajudam a pensar sobre o escritor ou escritora, sobre
suas circunstâncias de trabalho, sobre o momento em que viveu e
como produziu. E, assim, vêm sendo utilizados também como fonte
de pesquisa para os estudos literários.
Podemos extrair muitas informações a partir desses ob-
jetos extraliterários e, muitas vezes, extratextuais, pensando-os
inclusive em suas relações com as obras literárias produzidas por
aquele que os possuiu. Mas um movimento parece ser inevitável
nesse processo: olhar para eles é, acima de tudo, imaginar como
foi a vida da pessoa que conviveu com eles. No escritório de traba-
lho de Carlos Heitor Cony,1 encontro, por exemplo, enquadrados
na parede em frente à sua escrivaninha de trabalho, alguns dos
prêmios que ganhou, e imagino como seria sentar-se para escre-
ver tendo diante de si aqueles papéis emoldurados mostrando
seu reconhecimento. Por um lado, acredito que o encorajavam.

1 Desde março deste ano, desenvolvo, no Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas


da UFRJ, sob a supervisão do professor Godofredo de Oliveira Neto, uma pesquisa de pós-
-doutorado sobre o arquivo de Carlos Heitor Cony.

Fórum Lit. Bras. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, nº 21, pp. 241-58, jan.-jun. 2019.
O que resta das coisas, organizado por Ricardo Barberena 243

Por outro, será que o assombravam, provocando o medo de não


ser considerado apto a ganhá-los novamente? São suposições,
evidentemente, mas se configuram como fortes tentações quando
miramos esses objetos.
Nesse sentido, diante das várias atitudes que podemos tomar
ao entrar em contato com um arquivo de um escritor ou escritora,
uma delas é justamente a da imaginação, deixando a mente livre para
fantasiar como seria, quem seria, onde estaria hoje, o que estaria
fazendo o escritor ou a escritora se ainda continuasse vivo. E, no
campo da imaginação que se constrói com as palavras, nada melhor
do que outros escritores para tecê-la. Foi um exercício desse tipo
que Ricardo Barberena, que também é escritor, além de professor
da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS),
propôs a 28 autores brasileiros contemporâneos para o livro O que
resta das coisas, publicado pela Zouk em 2018: não exatamente re-
criar a vida do dono dos objetos, mas imaginar vidas e trajetórias
justamente para as coisas que fazem parte do Acervo Caio Fernando
Abreu, guardado e mantido pelo Delfos/Espaço de Documentação
e Memória Cultural da PUCRS. Fazer essas coisas ganharem vida
novamente – e uma vida apenas muito lateralmente ligada à que
tiveram com Caio.
Tais coisas – sua boina, sua bandana, suas fitas cassete, seus
vinis, seu notebook, sua máquina de escrever, seu álbum de bebê,
sua identidade estudantil, suas runas e cartas de tarô, dentre outras
– funcionaram apenas como um estímulo para a criação dos autores
convidados, ou “gatilhos poéticos”, como define seu organizador (p.
16).2 Partindo do pressuposto de que “viver entre objetos é viver en-

2 Ao longo deste texto, usa-se a indicação entre parênteses das páginas apenas para os trechos
extraídos do livro resenhado, cuja referência completa está ao final.

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tre coletâneas de narrativas” (p. 12), O que resta das coisas propõe-se,
dentro da diversidade de caminhos que podem ser trilhados a partir
do arquivo de um escritor ou de uma escritora, e dos vários diálogos
dos estudos literários com outras áreas do conhecimento, a criar
“uma interface entre a escrita criativa e os Acervos do Delfos” (p.
15), especificamente o Acervo de Caio Fernando Abreu.
Uma interface que não costuma ser muito buscada, por
isso se apresenta com o frescor da novidade, em gatilhos poéticos
que nos fazem imergir em espaços-tempos variados e esbarram nos
mundos de Caio (ou não) das formas mais diversas possíveis. Temos
personagens que são grandes admiradores de Caio, como a jovem
estudante Débora em “A história ainda não acabou”, de Gustavo
Melo Czekster, ou personagens que acreditam ser o próprio Caio F.,
como o narrador de “Tá aqui, ó... nº 12 778 – UGES”, de Godofredo
de Oliveira Neto, que ostenta a carteira estudantil do autor para
comprovar, a todos que dela duvidem, sua identidade.
Há narradores que constroem seu texto como uma espé-
cie de diálogo com a figura de Caio, sabendo-o morto e por isso
sem qualquer possibilidade de lhes responder, mas que o fazem
porque é preciso “alguém que viveu sem julgar e, sobretudo,
preciso de alguém que teve a bravura de ser sensível em meio à
vida bruta”, sintetizando: “Se te escrevo é porque escrevo para
aquilo que de ti vive em mim” (p. 192), como diz a narradora
de “Sob a pele abissal das pedras rúnicas”, de Julia Dantas. Há
ainda personagens que imaginam Caio no mundo de hoje, e
imaginam-se dividindo um cigarro com ele, como a narradora
de “Imagino Caio”, de Natália Borges Polesso. Mas há também
personagens que não falam nem pensam sobre Caio F., como o
cachorro de Cristiano Baldi, ou como o narrador de “Castanhos”,

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de Arthur Telló, por exemplo, ambos contos extremamente fortes


e perturbadores.
Às vezes aparecem referências a Caio, mas cabe dizer que elas
podem ser mais explícitas ou menos e, até mesmo, bastante sutis,
como em “Criaturas das estrelas”, de Valesca de Assis, cujo narrador
foi, na infância, um menino alto, magro, desengonçado e virginiano
(mesmo signo do escritor e também do narrador de “A viagem da
boina”, de Dau Bastos, narrativa presente no livro) chamado Caio. O
conto, contudo, não se constitui como busca de recriar a infância do
escritor, e faz do Jabuti que Caio F. ganhou (em duas ocasiões, uma
em 1984, outra já em 1996, ano em que faleceu) um jabuti literal,
bicho mesmo, companheiro do menino Caio que também se muda
para a capital gaúcha para continuar os estudos, como o escritor.
A referência ao universo de Caio Fernando Abreu pode ainda
ser bastante discreta e pontual, como em “A grama não era tão macia
quanto poderia ser a grama da memória”, de Schariza Barberena, cuja
narradora recebe das mãos de um colega de faculdade um exemplar
de Morangos mofados, para que ela o devolva à biblioteca. Mas, por
outro lado, o universo desse conto é o do desejo da escrita, ao qual
voltaremos adiante, e que nos leva também a Caio, afinal.
Se voltarmos a pensar no arquivo, no que ele é, logo notamos
que é parte indissociável dele a noção de um diálogo entre temporali-
dades. Guardamos coisas que trazem marcas do que estamos vivendo,
e o fazemos tendo em vista a projeção de um tempo futuro no qual,
de alguma forma, acreditamos que iremos gostar de lembrar e de
ter objetos materiais que nos farão recordar do que vivemos, como
a anotação que encontro em meu diário de menina, lá do início dos
anos 1990, em meio a adesivos, suvenires de viagem e tampinhas de
refrigerante: “Sabe, Agenda, acho importante escrever isso porque

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depois, adulta, vou ler e achar legal, chato, engraçado, sei lá, vou
achar alguma coisa”.
Ao mesmo tempo, ao guardar as coisas em um arquivo
pessoal, selecionamos o que vale a pena ser mantido e o que não,
segundo critérios que não são facilmente determináveis e, ademais,
são fluidos, mutáveis. Coisas que em um primeiro momento pareciam
valer a pena ser guardadas, em outro podem parecer sem importância
e, por isso, dignas de serem jogadas fora, ou doadas, se alguém lhes
puder encontrar forma de uso.
Uma coisa, porém, parece ser fato: a conversa entre passados,
presentes e futuros é constituinte inexorável da prática que podemos,
com Philippe Artières, chamar de “arquivamento de si” (1998, 21),
e é este jogo de temporalidades que me parece ser o eixo central a
unir os contos reunidos em O que resta das coisas. Centralidade que
está manifesta desde o título do livro, com o verbo restar ecoando
seus sentidos de “ficar, existir depois da destruição, da repressão ou
da dispersão de pessoas ou coisas, sobrevir”, e ainda “ficar de sobra,
sobrar, sobejar” e “subsistir como resto ou remanescente”, como
indica o Houaiss (2009). O diálogo entre temporalidades faz-se ainda
mais nítido ao lermos a apresentação e compreendermos a proposta
que une os contos. Nas palavras de Ricardo Barberena, “cada escritor
retirou do seu objeto uma potência imaginária. Nesse reviver a Coisa,
percebemos uma infinita rede de fabulações e apropriações. Neste
ano o escritor gaúcho faria setenta anos. Esta visita aos seus objetos
configura também outra forma de viver-junto com o Caio: [...]” (p. 17).
Mas tal centralidade aparece também, muito intensamente,
nos próprios contos, sob a forma de conversas entre um tempo ido,
em que Caio Fernando Abreu ainda vivia, e o mundo que surgiu de-
pois dele. Muitas vezes, essa busca de aproximação se constrói por

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meio dos laços e rupturas entre o tempo ainda predominantemente


analógico habitado por Caio e nosso presente digital, manifestando-
-se desde pequenos comentários, como este de “Caio e Lídia (Uma
história de formação)”:

Em 1994, três coisas aconteceram e minha vida deixou os


trilhos para percorrer um caminho imprevisto de acidentes
e descarrilamentos. Todas as três tinham uma vaga relação
entre si, mas quando olho para o passado procurando dar
peso e textura a essa rede de conexões, o que vejo são ima-
gens dispersas, como trechos brevíssimos de filmes antigos
se repetindo com a circularidade de um gif, um tipo de
comparação que eu jamais poderia ter feito naquele tempo
em que eu não havia descoberto nem a internet (p. 76).

E passando pela busca de acessar o conteúdo de um note-


book de Caio F., antigo e danificado, em que qualquer tentativa de
recuperar os dados pode resultar em sua completa destruição – e,
assim, os dados estão e não estão no computador, pois estão lá mas
não podem ser acessados. No conto, os arquivos do notebook de Caio
(e a palavra que usamos para os documentos digitais é significativa,
são os nossos arquivos) só podem ser acessados mediante o recurso
a um procedimento que soa como um misto de ficção científica e
suave ironia, na medida em que se trata de um microscópio, esse
aparelho tão antigo, que é acoplado ao computador e permite não a
extração dos dados, mas a visão de seus zeros e uns transformados
em imagens visuais e textuais, como num sonho a embaralhar cenas
das narrativas de Caio F. e suas palavras em seu estado de latência,
esboço de mundos, rabiscos.

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Arquivos de computador, aliás, que podem guardar todo


tipo de coisas, como nos fala Alexandra Lopes da Cunha em seu
“Criptografia”: podem ser vídeos pornôs, fotografias de viagem ou
de família, planilhas de gastos e mil e outras coisas. Alexandra olha
com ternura para esses arquivos, vendo-os em sua faceta de nossa
“memória auxiliar, uma memória fora do corpo, presa a uma carapaça
plástica, que funciona não sei como (nem me interessa), disponível
para ajudar-me com aquilo que gostaria de guardar em outro lugar,
e protegida como a principal, a guardada dentro da minha caixa
craniana”. E defendendo suas vantagens: “A vantagem da memória
auxiliar é ser codificada em sequências de zeros e uns e guardada
em placas de silício. O risco de alguém indesejado as acessar existe,
claro, mas é menor” (p. 47).
O último conto do livro, “Aula 18”, de Reginaldo Pujol Filho,
leva-nos por sua vez a um irônico futuro em que nem as cidades e
países existem mais, e no qual os alunos (em uma aula a distância,
evidentemente) recebem didáticas explicações sobre o que era, no
passado remoto, este tão estranho objeto, a carta, examinando-o
desde sua composição externa: o envelope, seu invólucro, e então “a
carta propriamente dita” (p. 283). É preciso depois definir sua fun-
ção, para só aí ver seu funcionamento e a que objetivos ela atendia.
Vejamos sua função, que já nos dá ideia da ironia ácida do conto:

Vamos em frente: vocês devem estar se perguntando, tá


bem, a carta tinha envelope e folhas dentro. Mas para que é
que servia? Grande pergunta, não é mesmo? Para que é que
servia a carta? A carta, gente, vamos lá, era um mecanismo
de comunicação muito usado até meados do século passado.
Pegaram? Através dela se mandavam informações, se conta-

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vam coisas, se enviavam comunicados, propagandas, de um


lado para outro. Já imaginaram isso, hein? Não? Ninguém?
Já pensaram que a humanidade já teve outras formas de se
comunicar? As pinturas nas cavernas, os mensageiros, o
telégrafo e a carta, que existiu, acreditem, durante muitos,
muitos séculos. É verdade, pessoal. Que tal, hein? (p. 284)

Mas, mesmo sem essa projeção irônica ao futuro, o desejo de


aproximação entre temporalidades tão diversas, que parecem com-
provar a existência de um corte irreparável entre o antes e o depois,
aparece em várias narrativas do livro, como no conto “Imagino Caio”,
já mencionado, de Natália Borges Polesso, em que um Caio redivivo
pede que a narradora grave o mundo dela, o mundo de hoje, nas
fitas cassete, para que ele tenha uma amostra e procure entender o
que é isso de viver em meio a fragmentos, ainda mais incompletos
e inconclusos, num presente que não parece agradá-lo muito e o faz
desejar ir logo embora.
A presença que se perpetua no tempo, por meio das coisas,
mas nele também se faz fissura, é uma das sensações mais fortes
que temos, como leitores desses contos. Uma presença que não é
apenas a de Caio ou a de suas coisas, vindas do passado para nosso
presente, mas uma presença que interliga vários passados ficcionais
ao nosso presente, real e ficcional, e faz questionamentos sobre eles,
como no trecho a seguir de “A pedra abissal das pedras rúnicas”, de
Julia Dantas, a que fizemos menção, que se refere inclusive ao golpe
contra a presidenta Dilma Roussef:

Caio, eis o que gostaria de te dizer: pouco depois de 2016, o


ano que é melhor não relembrar, começou a revolução. Por

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um tempo tinha parecido que o mundo não dava mais pé, mas
então houve o levante das mulheres negras, das brancas, das
lésbicas, das indígenas, junto das bichas, dos lgbt, de todas as
siglas, a revolta tomou as ruas e se espalhou para as escolas,
para as universidades, para dentro das empresas e para os
órgãos públicos. Em poucos anos, as instituições ruíram sob
seu próprio peso morto, e o povo tomou o poder. Isso é o que
eu gostaria de te dizer, mas ainda não posso. [...] Gostaria
que nós te deixássemos orgulhoso. Pelo menos, Caio, acho
que tu ficaria feliz de saber que faz alguns anos que Raul e
Saul poderiam se casar, se quisessem, quem sabe adotar uma
criança. Não é um levante, mas é revolucionário (p. 197).

Ou o conto de Marcelino Freire, “Identidade estudantil”, que


também faz menção à nossa história recentíssima, comentando o
malfadado MBL (Movimento Brasil Livre): “Hoje tem tanta gente
velha estudando. Pensei sobre o MBL. E eu que não vou gastar as-
sunto com isto” (p. 248).
Os passados com que os contos dialogam são múltiplos, mas
deles se destaca um tempo de juventude, um tempo “em que tudo
era ao mesmo tempo mais caótico e mais simples” (p. 76), como diz
Carlos André Moreira em “Caio e Lídia (Uma história de formação)”,
até porque, “quando se é jovem, a linha do horizonte é translúcida e
mítica. Porque há tempo para tudo” (p. 31), diz a narradora de Sha-
riza Barberena em “A grama não era tão macia quanto poderia ser a
grama da memória”. Um tempo de juventude que não pode ser visto
pela perspectiva do saudosismo, pois é um tempo como o são todos
os tempos, conflituoso, angustiado, e em que pessoas morriam de
Aids sem chance de se curarem.

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Outro aspecto que chama a atenção são as fissuras do tempo


do antes, fortes e que fazem ver sonhos não realizados, como nos
mostra mais uma vez a narradora de Shariza, que sempre quis ser
escritora, mas se vê, no presente, sucumbindo ante os compromissos
da sobrevivência, como mãe, profissional, mulher, e sentindo-se mor-
rer: “Mas e quando a gente morre a cada dia que não se manifestou
na própria criação?” (p. 40).
Esse tempo do antes não é historicamente uno, tampouco, e
é localizado ora no início dos anos 1980, com o declínio da ditadura
militar, como vemos no conto de Dau Bastos, “A viagem da boina”,
que faz referência às narrativas dos exilados que passaram a regressar
ao país com a lei da anistia, às discussões, já antigas, sobre o patru-
lhamento ideológico da esquerda e em que há uma barreira policial
que faz os integrantes do fusca em que está o narrador-personagem
gelarem de pavor com a possibilidade de ser descoberto o que havia
no porta-malas do carro. O clima ainda era de medo, apesar dos
passos lentos da chamada abertura.
O passado dos contos às vezes se localiza na década seguinte,
os anos 90, “tempos de roque grunge, cabelos compridos e certezas”
(p. 77), nas palavras do narrador de Carlos André Moreira, década
mencionada também no conto de Luisa Geisler, “Um rádio para ouvir
estática”: “Minha família era bastante católica. Quer dizer, é. Não
sei a quantas andam. Mas nos anos noventa, isso queria dizer que
minha mãe recortava a seção de horóscopo do jornal e tapava os olhos
do próprio filho” (p. 215). Mas ambas as décadas, com suas tantas
diferenças, aproximam-se pelo fato de configurarem um tempo
analógico, um tempo em que não éramos habitados completamente
pelos fragmentos, para voltar à forte imagem presente no conto de
Polesso, acentuando o excesso de informações, um excesso que se

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faz impossível de ser abarcado, e por isso ficamos, cada vez mais,
com os fragmentos.
Nesse diálogo entre tempos, vemos Caio surpreso com o tan-
to de coisas que veio depois dele e nos pegamos pensando no tanto
que virá depois de nós, e que farão nossos smartphones parecerem
tão dinossauros quanto o notebook do Caio, ampliando a percepção
concreta da finitude, de nossa pequenez diante do mundo, conforme
acentuado na narrativa de Natália Borges Polesso:

Imagino Caio encarando a noite, me perguntando, tu sabe


o que vem depois? Depois do quê, replico. Depois de você.
Depois de mim? É, depois de você, no mundo, o que vem?,
porque depois de mim veio tanto!, e eu pensei que tinha
visto de tudo na vida, eu que ingenuamente pensei que –
(p. 133).

A maioria dos escritores convidados por Ricardo Barberena


vem desse tempo do antes, mas tem que se equilibrar neste mundo
de hoje, um mundo que mudou tanto e, ao mesmo tempo, muitas
vezes parece o mesmo, como diz a narradora de Julia Dantas: “Às
vezes tenho a sensação de que vivemos tempos antigos. Exceto, é
claro, que tu não vives mais, Caio” (p. 191). Mas, mesmo parecendo
o mesmo, os personagens desses contos sabem que não se trata
mais do mesmo, e nem os cigarros são mais os do passado recente,
como se vê novamente no conto de Julia: “Queria um Free, mas
ela me disse que esses não existem mais. Olhei para o expositor
de marca sem reconhecer nenhuma. Me dá qualquer um, disse” (p.
192). Por outro lado, o presente é mais e mais inapreensível, como
a narradora de Luci Collin nos faz ver: “Conto como se pudesse

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definir o que é o presente” (p. 199). Mas não pode, decididamente


não pode.
Outro elemento também bastante presente é o desejo da
escrita, um desejo que não é somente humano, mas até mesmo das
máquinas – ampliando ao máximo o pressuposto do livro, de que
as coisas guardam narrativas e memórias: “Se escrevesse sozinha,
talvez a máquina pudesse explicar a razão mecânica que leva as mãos
ao toque, a razão que é só desejo, que não encontra o que explicar”
(p. 66), vemos no conto “A engrenagem”, de Altair Martins, falando
da máquina de escrever.
O desejo da escrita move muitos narradores e personagens,
e assim temos, por exemplo, no conto de Marcelino Freire, um nar-
rador construído como sendo o próprio Marcelino, organizador da
Balada Literária, escritor procurado por estudantes, autor com vários
compromissos ligados à divulgação da literatura, viajando a trabalho
para palestras e eventos, e que precisa escrever um conto para uma
antologia, organizada no Rio Grande do Sul, a partir das coisas de Caio
Fernando Abreu, fazendo de seu conto uma narrativa sobre essa ne-
cessidade. Uma necessidade que há que cumprir, mas que se faz plena
de afeto, como a última fala do narrador acentua: “Eu diria facilmente
‘eu amo você, Caio’, desde sempre, desde jovem, eu diria” (p. 250).
Ou o personagem louco de Godofredo Oliveira Neto, que
declama trechos das narrativas de Caio F. mas acaba por trocar
palavras, confundindo-se e encontrando a seguinte explicação para
tais atrapalhações: “Acho que é porque sou o Caio antes da escrita,
quando ele ainda está bolando as frases, ainda está no inconsciente
e o inconsciente não dá nomes”(p. 240).
Já a narradora de Júlia Dantas é uma mãe de um bebê, dese-
jando ardentemente escrever: “Faz poucos dias, uma amiga me disse

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que se escreve com o corpo todo. Eu também quero escrever com o


corpo todo, mas não sei como fazer para escrever com o estômago,
com a unha do pé, com os rins, o clitóris, os pelos do nariz e a lín-
gua. É inevitável escrever com o corpo todo, ela me diz, e eu queria
entender, mas não entendo, eu finjo entender, mas não entendo” (p.
192). Sua busca é por essa inteireza na escrita, dificultada pela fase
dos cuidados intensos com o bebê: “Meu filho ainda se julga parte de
mim, não entende que não posso escrever com o corpo todo enquanto
ele insistir em fazer parte desse corpo” (p. 193).
O conto de Dau Bastos, jogando com a autoficção como o
de Marcelino, traz um narrador jovem que é escritor e cujo “jeito
jeans fará muito bem” à “exitosa coleção de bolso” (p. 101) de seu
editor, na primeira metade dos anos 1980. Tendo entregue um livro
de contos para a editora, o personagem pretendia agora lançar-se
à escrita do romance “para cujo enfrentamento começava” a se
“preparar” (p. 101). O que o move é a criação literária, uma escrita
intensa e nascida do sangue: “Pra mim, escrever é quebrar toda a
matéria-prima feito cabra-cega, acariciar os cacos até sentir os dedos
sangrarem e, depois de descartar as partes imprestáveis, valer-me
da legitimidade dos insatisfeitos crônicos pra usar as escolhidas na
criação de estranhices” (p. 102).
No conto de João Anzanello Carrascoza, “Seis de ouros”,
o narrador relembra uma fase anterior de sua vida em que era
escritor: “Naquele tempo, eu escrevia romances – e acreditava
nas cartas do tarô” (p. 163). Uma fase que ficou para trás junto
com o tarô, depois do prêmio que ele chegou tão perto de ganhar,
que lhe traria a consagração definitiva. Prêmio que a narradora
de Shariza Barberena busca ardentemente, mas busca ainda mais
conseguir escrever:

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Porque você está explodindo, não é boa o suficiente, não


tem grana praqueles cursos fodões, não tem cacife, mas
tem uma chaleira apitando seca e quente na tua cabeça. Te
enlouquecendo. Não é mais o ego da comparação. Aí é que
está a coisa, é a ânsia de algo como: para e escreve. Se não
publicar, ok, só não enlouqueça. É essa voz (p. 39).

E ainda o jovem de 17 anos que narra “Aos 17, no Rian”, de


Carlos Gerbase, tímido no convívio social, mas que consegue lidar
com as palavras quando escreve: “Sou um péssimo mentiroso quando
falo, por isso é que minto escrevendo prosa ou poesia, tanto faz” (p.
236). E o(a) jovem do conto de Luisa Geisler, que foi se envolvendo às
escondidas da família com o misticismo e chegou inclusive a escrever
“histórias espíritas em folhas de caderno”, distribuindo-as para os
colegas de classe “durante aulas chatas” (p. 216).
Os caminhos escolhidos pelos autores foram muitos e diver-
sos, naturalmente, mas sentimos, durante a leitura, que passamos a
respirar e a viver no universo de Caio sem estar lendo seus livros, e
essa me parece ser a maior mágica do livro, talvez auxiliada pelas car-
tas de tarô ou pelas runas do escritor. Falando sem brincar, contudo,
é realmente incrível como o livro nos leva a andar pelo mundo de Caio
sabendo que não estamos nele, tampouco lemos autores que buscam
imitar Caio, muito ao contrário. Estamos lendo sua atmosfera, esta
é a sensação geral que o livro nos passa, ainda que cada autor tenha
seu próprio estilo e esses estilos sejam diferentes entre si.
Há um conto, entretanto, que desde o título nos remete di-
retamente ao universo do escritor: não mais a crônica “A morte dos
girassóis”, publicada em março de 1995 no jornal Zero Hora, mas “A
segunda morte dos girassóis”. Cintia Moscovich, com delicada ou-

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sadia, retoma palavras e frases tal como a crônica de Caio Fernando


Abreu, fazendo da figura do escritor gaúcho o amigo inominado da
narradora, que aprendeu com ele a cuidar de girassóis e, sobretudo,
a nunca desistir deles. A intertextualidade constrói-se pela reapro-
priação praticamente completa do texto original, entremeando-o
com pequenos trechos relativos ao amigo misterioso da narradora.
Porém, caso o leitor não conheça o texto original com que dialoga este
“A segunda morte”, se tiver alguma familiaridade com a trajetória
de Caio, ainda que vinda de leituras esparsas e informações variadas
sobre sua doença, seu recolhimento no interior e seus cuidados com
o jardim, vai reconhecer que há em Moscovich um diálogo intenso
com a figura do escritor. E se, movido pela curiosidade, pesquisar
um pouco mais, descobrirá que o escritor escreveu sobre girassóis
e então alcançará a leitura de seu texto, fazendo com que a narrati-
va de Cintia reverbere ainda mais, dando mais peso à figura desse
amigo misterioso.
E há o conto de Regina Dalcastagné, “Refúgio”, que também
se constrói em diálogo com textos de Caio F., o que é perceptível
desde suas primeiras linhas, com a imagem dos cachorros loucos
e do chá de ervas do campo, presentes na novela “Dodecaedro”, do
livro Triângulo das águas, de Caio, imagens que vieram, por sua vez,
do poema de Henrique do Valle, “Uma flor num buraco da calçada”.
Cachorros loucos que irrompem em meio às muitas imagens geradas
por esses contos de autores tão diversos como os que já mencionamos
aqui e ainda Verônica Stigger, Ricardo Lísias, Diego Grando, Luís
Henrique Pellanda, Michel Yakini, Leonardo Tonus e Moema Vilela.
Imagens que partem das “Coisas do Caio” – como o lenço que surge
onde não deveria estar, no conto de Cláudia Laitano, “O lenço ou
Desdêmona”, a revelar a traição do companheiro – e, a partir delas,

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promovem o que Ricardo Barberena chamou de “encontro entre o


humano (escritoras/escritores) e o humano-Coisa (objetos do Caio)”
(p. 19), um encontro que nos penetra fundo, despertando a vontade
de ler mais textos desses 28 autores, de reler Caio, e levando-nos a
olhar com mais vagar para as coisas todas que nos cercam, com suas
narrativas e sua ênfase.

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Referências

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RANDA, Wander Melo & SOUZA, Eneida Maria de.
Arquivos literários. São Paulo: Ateliê, 2003, pp. 151-6.

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Arquitetura para escombros

Migalha, de André Luiz Pinto

Paulo Ferraz*

Há diversas possibilidades de se começar a análise de um


livro, pois são alguns os pontos de partida que nos são oferecidos: o
título, a imagem escolhida para a capa, um argumento apresentado
na orelha ou no posfácio, uma epígrafe e, claro, algum poema para-
digmático ao redor do qual orbitam os demais. Contudo, no caso de
Migalha (2019), último conjunto de poemas de André Luiz Pinto,
não há como deixar para um segundo momento a presença gráfica
de dois anos que todo leitor saberá identificar como cruciais para o
estabelecimento do mal-estar dos dias atuais, 2013 e 2016, que em
seu livro marcam duas seções e, de certo modo, lhe conferem um
mesmo tom, como se os poemas entrassem por um e saíssem pelo
outro impregnados de insatisfação e desencanto: “Só mais uma coisa
e eu prometo lhe esquecer; só dessa vez e nunca mais perturbar:
adianta?” (p. 32). Depois de 2013 e 2016, alguma coisa adianta?
Nesses dois marcos temporais, o Brasil se revelou mais
uma vez o embuste que sempre foi, ao romper um ciclo que, mesmo
com travas estruturais, propiciava alguma expectativa de melhoria
coletiva. O que vivemos ali foi uma grande sabotagem no já frágil
arranjo democrático, obrigando-nos a viver entre os escombros
físicos e éticos de um projeto programado para o malogro. Gestos de

*
Doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo (USP).

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esperança são cada vez mais escassos, alguns dos quais não passam
de ingênuos apelos à resistência, pois a impressão geral é a de que
fomos derrotados em todas as instâncias. Para um poeta que desde
cedo compreendeu que poesia não tem muito a ver com esperança
ou consolo, os entulhos que se tornaram visíveis a partir de 2013 e
2016 não são obstáculos capazes de impor-lhe o silêncio, ainda que
lacerem suas palavras.
Em Migalha, em vez de uma aglomeração aleatória de ruínas,
avistamos uma espécie de arquitetura que as organiza com o propósito de
nos conduzir por um cenário de desolação, como os que se seguem a um
atentado ou a uma catástrofe, a despeito de não ir além da representação
de nosso cotidiano. A leitura de cada fragmento, uns bastante isolados,
quase estilhaços de algo maior que se perdeu, e outros justapostos em
um mesmo texto, como se tivessem colidido, nos permite identificar as
particularidades de cada poema, em especial o contexto de seu fracasso
como linguagem, tanto em seu aspecto comunicativo quanto no poéti-
co. Mensagem e empatia raramente chegam inteiras ao leitor, somente
espectros delas, pois, mal uma frase ou um verso se configuram como
ideia ou imagem, são de imediato atropelados pelos acontecimentos. De
algum modo, é como se a linguagem estivesse sempre correndo atrás
dos fatos, mas continuamente impedida por eles. A escrita de Migalha
tem relação direta com uma prostração generalizada, expressa por nos-
sa incapacidade de reagir, uma vez que uma perda sequer é assimilada
e já somos assolados por uma nova catástrofe ou por um novo crime.
Os riscos corridos por André Luiz Pinto não são pequenos, pois, apesar
de o fracasso ser parte integrante de sua poética, o livro não pode ele
próprio fracassar. É preciso que as ruínas estejam organizadas de tal
forma que preservem as marcas físicas do que existia antes e registrem
simultaneamente a violência do que as pôs no chão.

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Já na abertura do livro (desconsiderando a epígrafe nem um


pouco animadora, colhida por Freud em Goethe, e não se trata de
nada próximo do “mais luz”, mas de uma citação que reduz nossa
existência a um simples “peido”), o leitor é interpelado por três
palavras: “Creio / desde que” (p. 11), e a reação quase involuntária
é a de nos perguntar se estamos diante de um poema, dado o grau
de mutilação da oração aí estampada, pois sem seus complemen-
tos um verbo e uma conjunção podem ser só palavras num papel.
Entretanto, é justamente nessa sensação de incompletude que a
experiência poética se mostra. A impossibilidade de se preencher
as lacunas nos aflige e nos incomoda, pois seguiremos livro adentro
com a impressão de que os valores morais (o emprego do verbo “crer”
não pode, em hipótese alguma, ser tomado como desinteressado),
que o lado em que nos colocamos, não são suficientes por si sós,
não se bastam nem se sustentam, já que haverá alguma condição
oculta para que se efetivem. Persistirá como uma dúvida que a cada
poema desestabiliza a veracidade do que é exposto como comentário,
opinião ou julgamento.
Num país marcado por privilégios e exclusões como o nosso,
o campo de liberdade de escolha é dos mais reduzidos; por conseguin-
te, o padrão de comportamento observado é o de se conformar com as
regras que vêm de fora, embora sejam declaradamente desfavoráveis
e injustas, daí que resignar-se acaba se convertendo num meio de se
evitar derrotas maiores. É provável que muitos até confundam não
ficar pelo caminho com alguma forma de êxito, senão com a própria
felicidade, e o que não faltam em nossas vidas são estímulos diários
para que essa confusão deliberada se concretize.
Migalha é escrito do ponto de vista do derrotado, de quem
está entre os destroços, mas ciente de não ter se deixado ludibriar,

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pois, para quem aprendeu “a não esperar grande coisa” (p. 15),
nenhuma ilusão servirá de escape de uma realidade embrutecida e
viciada, nem mesmo a promessa de felicidade: “Querer sempre agir
/ corretamente não traz felicidade” (p. 13); “Se acabei acordando,
se fui acordado, foi por um comprimido, não pela felicidade” (p.
48); nem mesmo o conforto do amor: “Como explicar o amor / o
mal que ele faz” (p. 13); nem mesmo o cultuado encantamento da
poesia, que para André “rola de acontecer na hora do café” (p. 50). A
autodepreciação parece aqui se associar a um cansaço ou a um certo
esgotamento do poeta como agente político de relevância, visto que
sua voz não encontra eco algum fora do meio literário, ou ao me-
nos não encontra na forma como tradicionalmente é manifestada.
Antes mesmo desse estado de calamidade em que vivemos, o poeta
já estava reduzido a uma migalha social. Justamente no poema que
dá título ao livro, vemos alguém relatando que cortou “o poeta / em
versos” e os espalhou “em um prédio abandonado / numa caixa d’água
vazia / pra ninguém saber” (p. 34). A triste suposição que nos cabe
levantar é a de que praticamente todos os poetas/poemas caberiam
esmigalhados no vazio dessa caixa d’água e ninguém sentiria a falta.
Ao enfrentar esse esgotamento, André Luiz Pinto logra dar
a seus poemas um efeito contraideológico, na medida em que as
ilusões são desfeitas. Tomemos o caso das manifestações de rua (e
de gabinete) que trouxeram de volta o chauvinismo que achávamos
ter sido extinto com a redemocratização: André não poupa a compa-
ração, ao descrevê-las como “ESSA DOENÇA // Está verde e amarelo
/ como vômito e pus” (p. 24). É o bastante para nos reconhecermos
habitando, se não um cadáver, ao menos um moribundo, cuja falên-
cia se experimenta no dia a dia, nesse processo infeccioso que são
as relações sociais, nas quais os agentes rivalizam entre si por uma

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dose maior de antibióticos, nem que o tecido putrefato se amplie,


nem que partes do corpo gangrenem, não importa, o que conta é que
não seja a sua. Pode parecer uma metáfora, mas não é, a realidade se
tornou ela própria um pesadelo permanente para quem a recebe a
cada segundo (uma sucessão de execuções, incêndios, rompimentos
de barragens, chacinas, desabamentos, enchentes, milícias, perda
de direitos, desemprego), é de tal modo agressiva e invasiva que o
sono (ou a morte) seriam os único meios de contê-la, como vemos
em: “são dias sem dormir / e que saudade dos pesadelos” (p. 29), e:
“acabo deitando mais cedo / quando consigo / Em que sinto / que o
melhor é curtir os pesadelos / em vez de acordar” (p. 56).
O Brasil nos obriga a interpretar o que somos todo o tempo,
e quase sempre chegamos a conclusões imprecisas, parciais ou pro-
visórias, pois a impressão é a de que estamos em algum ponto entre
ser e não ser, por certo que percebemos um fenômeno semelhante
a esse trem sucateado do subúrbio, com “gente batendo na trave”
(p. 28), mas que jamais se deixa conhecer em sua totalidade, o que
implica impedir que seja contraditado. Portanto, para aqueles que
têm no espírito crítico uma ferramenta capaz de corrigir falhas ou
defeitos, este país é uma frustração incessante. Assim, está mais
para um ente fantasmagórico, que ameaça tomar forma em algumas
ocasiões, mas que se dissolve em seguida, voltando a uma bruma de
incerteza por onde permanecerá por um bom tempo. Talvez porque
em nossa formação histórica implique sermos metrópole e colônia
de nós mesmos – tanto que independência, abolição da escravidão,
proclamação da República e restauração da democracia não mudaram
nossa essência –, o país exista para servir a uma elite predatória que
se vê como senhora exclusiva do que aqui se produz, de pau-brasil a
títulos da dívida, todos os demais estão subordinados a essa estru-

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tura. Enquanto essa elite extrativista se farta com o melhor, com as


riquezas, o poder, a educação e as artes, o povo, mais objeto do que
sujeito, quando muito se sacia com as sobras, os rejeitos, os refugos
e os chorumes.
Fazer arte dessa quase incapacidade de se autoidentificar
– afinal possuímos todos algo de opressores e oprimidos – tem
nos permitido, em alguns momentos, vislumbrar esse espectro, às
vezes aprisionando-o numa alegoria, outras explorando os conflitos
de quem anseia alcançar um objeto que está fadado ao desacerto.
É difícil escapar do vício de fazer do poema uma espécie de visão
da vida alheia, seja ele um condutor de bonde, um seringueiro na
floresta ou um homem catando comida no lixo. Essa perspectiva,
em certa medida, ainda se preserva em alguma poesia brasileira
comprometida em denunciar as agruras da cidade, de cujos efeitos
o poeta costuma estar a salvo, a não ser que não esteja na zona de
proteção de gênero, classe e cor.
É nesse ponto que uma mudança vem se operando nos últi-
mos anos, e André Luiz Pinto foi um dos primeiros, desde seu Flor à
margem (1999), a falar de dentro dos problemas. Tal deslocamento
há de abalar certos preceitos da poesia, pois tanto atinge quem
escreve e fala, que antes estava silenciado, quanto aquele que lê e
ouve, que jamais cogitou a possibilidade de outra expressão literá-
ria. Não se trata de nenhuma inovação formal, de nenhum recurso
técnico transferido da periferia para o centro, mas, antes disso, de
uma reformulação do sujeito poético. É o que se lê em “Prazer, esse
sou eu”, um dos mais contundentes poemas, não apenas entre os
de Migalha, mas entre os da produção dessa nova poética nascida
da provisória mobilidade social que permitiu aos moradores das
periferias se expressarem à revelia dos meios oficiais de legitimação:

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“obrigado a amar / patrões como avós / sem direito de herança. / Uma


coisa aprendi: / a ler livros e a me irritar / com facilidade” (p. 61).
Os poetas que estão fora do centro também foram obrigados a amar
o cânone e também se viram alijados de qualquer reconhecimento.
A poesia, preferencialmente, sempre foi um campo de ação da
subjetividade, ainda que nunca tenha sido legítimo confundir poeta
com eu lírico – mais ou menos como não se confundia autor com
narrador, até alguém tirar da cartola a autoficção –, mas o flerte entre
ambos vez ou outra se manifesta, com uma linha divisória muitas
vezes tênue e muitas vezes deliberadamente ultrapassada, a partir
da qual se reelaboram elementos autobiográficos, como os trezentos
Mário de Andrade, o Carlos a quem o poema pede para que sossegue
ou o questionamento sobre quem seria a loura donzela chamada Ana
Cristina. Agora, a dinâmica das redes sociais talvez esteja criando
um meio adequado para a redefinição dessa fronteira, pela qual
transita uma nova subjetividade literária que se expressa cotidiana-
mente num suporte que não podemos qualificar como estritamente
público e impessoal, como é o livro, pois a relação com os leitores,
em boa parte próximos ao escritor, se dá num clima de intimidade
que mais tem a ver com a esfera privada. Os textos nascidos dessa
interação vão além da mera opinião e ganham ares ora ensaísticos,
ora poéticos, mesmo sendo extremamente efêmeros. É uma nova
fruição do texto poético, que permite ao autor se pôr no poema, um
eu empírico em pé de igualdade com o eu lírico, num jogo textual em
que as metáforas não são mais tão necessárias: “Não preciso mais das
metáforas. Poderia inventar até algumas agora, mas chega” (p. 35).
Numa época em que artistas são tratados como adversários
políticos, é salutar que respondam transformando sua arte, traçando
estratégias capazes de manter seu fim, que é o de modificar aqueles

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que dela se acercam. No meio de toda essa ruína que virou o Brasil,
Migalha é a ruína pensada como poesia. Nesse sentido, a seção mar-
cada pelo ano 2016 é exemplar, pois após atravessar os poemas de
2013, em vez de outra série de poemas há somente uma foto, indício
da permeabilidade entre os sujeitos, de André na companhia de
filho Tales – presente nominalmente também na dedicatória e num
poema em que ele tem sua experiência de reconhecimento desse
mundo dos sentidos interrompida por um morador que arranca uma
folha para lhe dar de presente, quando ele só queria tocá-la (p. 19),
descobrindo que a violência se exprime de muitas formas –, na qual
se veem os dois em uma viagem a Minas Gerais, mas em vez de arte
barroca encontram uma igreja fechada, um portão trancado e um
céu carregado de nuvens. Barrados, só lhes resta olhar para o nada.
Na sequência, um texto datado de 1º de janeiro de 2017 questiona
se aquela cena era um presságio de suas vidas (p. 39). Uma fotografia
do país tirada neste instante também nos registraria olhando para
o nada. Que ano. Que país. Que a poesia de André lhes seja dura.

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Lirismo amoroso hoje

O amor curvo, de Daniel Gil

Wladimir Saldanha*

De um livro de lírica amorosa na contemporaneidade se


espera a reiterada afirmação poética da instabilidade das relações
– os amores líquidos de que falava Bauman – e, no plano formal, o
correlato da implosão das formas que, desde as vanguardas do final
do século XIX, consagraram o verso livre como principal veio da
expressão em poesia. Este, já longe de toda a pauta rítmica de suas
modalidades iniciais – seja a da matriz inglesa, salmodiada, seja a
da francesa, derivada de liberdades na métrica silábica –, tornou-se
quase que somente seu subtipo “verso livre prosaico”, radicalizado
por Laforgue e outros, mas perdido hoje até mesmo da inteligibili-
dade e do ritmo da prosa.
Resulta disso que a lírica amorosa acabou se tornando o
espaço por excelência da fragilidade das relações na sociedade de
consumo, veiculada por fragmentos de discurso coloquial sem ritmo,
não por busca da dissonância, mas por desconhecimento da asso-
nância. Cenário reificante onde um livro como O amor curvo (2018),
de Daniel Gil, faz grande contraste. Temos aqui a vivência de um
amor que, ao contrário dos líquidos, confronta o amante poeta com
a fidelidade, essa virtude fora de moda:

* Doutor em Literatura e Cultura pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).

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Novamente a manhã se enrosca


No quarto

A luz do azul acende


Os vidros

Venho ter com a fidelidade entre


O mar e o sol

Morrem juntos
Nascem juntos.
(p. 13)

Com este pequeno poema se abre o livro. É intitulado com


a letra “A”, seguindo-se todo o alfabeto até “Z”. Organicidade de
abecedário: o poeta abre aqui muitas possibilidades de leitura. Pre-
ferimos uma metáfora estrutural do aprendizado, aquele sentido de
“inteligência do amor” de que fala Dante na Vida nova. E este será
um aprendizado em curva, que por sua vez toma o périplo do sol,
do amanhecer à noite, como metáfora segunda. Chegando a “Z”, o
mar que nos mostrou o poeta em “A” se ausenta e não é substituído.
Uma grande noite se alastra; o mar radicalmente morre. Subversão
na imagem mais corrente do mar, que tem no movimento de ir e vir
das marés a regra da mudança, da substituição.
A curva, portanto, começa como retorno da experiência
amorosa, com o pacto de fidelidade e com o final definitivo pela
morte. É uma subjetividade amplamente avessa ao caráter líquido das
relações, a desse poeta com seu mar: um mar de certo modo antigo,
mas vivido com intensidade de novo, compreendendo inclusive os

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medos – o medo do feminino, que corresponde a um primeiro está-


dio do desenvolvimento masculino, como se vê no poema “B”: “Os
homens receiam Deus / Amiga. Eu / Receio a ti” (p. 16).
Aqui cabe uma reflexão: ao largo de bandeiras que, à
força de situar subjetividades reprimidas por injunções sociais,
acabam tornando o indivíduo aquele “menos que um” de que
fala Joseph Brodsky1 – conduzem a “certezas” de um escritor,
padronizando as individualidades –, O amor curvo, sendo lírica
amorosa de fundo heterossexual – para quem prefira: binário
–, tem seu eixo antes no amor como experiência vital. Nisso se
inclui, a meio da obra, a antevisão ou desejo de um filho, mas não
interessa ao poeta fazer bandeira do que para si é a consequência
do próprio amor.
O que parece faltar em tantas vozes da contemporanei-
dade é precisamente essa dimensão individual, de pequenos
sonhos e tensões: a necessidade última de sua expressão, mas
não no sentido gregário, que, ao fim das contas, também é con-
ceitual – aquilo que (em outros termos, evidentemente) faz de
Beatriz, na Comédia, personagem menos popular e dialogável do
que Francesca. Um crítico hoje esquecido, De Sanctis, coloca o
problema, ao afirmar que,

já não mais conceito, ou tipo, ou personificação, mas pessoa


real e efetiva, em toda a sua liberdade, é Francesca; [...]

1 Se você trabalha em um banco ou pilota um avião, sabe que, depois de adquirir uma quan-
tidade substancial de conhecimento especializado, tem mais ou menos garantido o lucro,
ou um pouso seguro. Já na profissão de escritor, o que se acumula não é um conhecimento
especializado, mas incertezas” (Brodsky: 1994, 20).

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não é o divino, mas o humano e o terrestre, um ser frágil,


apaixonado, capaz de culpa e culpável, e por isso em uma
situação tal que todas as suas faculdades são postas em
movimento, com contrastes profundos que geram emoções
irresistíveis. E isto é vida (1993, 46-7).

Beatriz, ao contrário, é mais que mulher, é “angeletta bela


e nuova”, e por isso mesmo, paradoxalmente, menos que mulher:
“é gênero ou tipo, não indivíduo”. São ainda palavras de De Sanctis,
no século XIX, para a grande obra do século XIV, mas podemos tirar
delas a lição de que, embora amesquinhado – grande distância vai de
Beatriz e seu cantor para nossos atamancados termos de comparação
–, o risco do conceito continua a rondar a poesia, subvertendo o
indivíduo em “gênero ou tipo”. Esse me parece ser o desafio da lírica
amorosa contemporânea, que assiste à emergência dos “amores que
não se deixavam dizer”.
Desafio dos desafios: como falar do amor outrora consen-
sual, de homem e mulher, neste contexto? Outra é a parábola de O
amor curvo. Aqui, não há senão indivíduos. No plano da linguagem,
há variedade formal: um verso livre sincopado convive com metros
e a forma fixa do soneto. Há poemas de muita inteligibilidade, como
esses dois iniciais citados, mas há outros de imagística hermética,
com referências externas, e até momentos de certo preciosismo.
Lembrando as três antigas categorias do trovadorismo, poderíamos
dizer que esse amoroso contemporâneo, o trovador Daniel Gil, can-
ta seu amor em trobar clus (linguagem hermética, deliberadamente
obscura), trobar rie (caracterizado pelo preciosismo e pela elipse)
e trobar ciar, pian ou leu (primando pela clareza, simplicidade e
leveza).

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O amor curvo, de Daniel Gil 271

Já demos dois exemplos do trobar leu. Do trobar clus, o poema


de sentido mais fechado, poderíamos citar “J”, quando remissões
a Verdi, à cantora chilena Violeta Parra e ao asteroide 557 têm em
comum o tema da flor/cor violeta (em Verdi, por La traviata, com a
personagem Violetta; no asteroide, por ser dessa cor e assim apeli-
dado, como nomeado é em Parra). Todo o poema é construído com
recurso à anáfora negativa (“Nem eram violetas de Verdi / [...] / Nem
violas d’amore e seus / Olhos vendados e / [...] / Nem eram, especial-
mente, / As violetas no vaso / Invioláveis”, p. 31), para se resolver
com a atenção lírica sobre “violetas no chão / Ao pé dos passantes”
(p. 31). Assim, o jogo de remissões, nesse trobar leu, submetido ao
avesso das negativas, conduz a percepção, em estado amoroso, para
a flor ínfima desprezada. É hiperestesia amorosa, mas ironicamente
revertendo o hermetismo em abertura para o mundo das insignifi-
câncias. A subversão faz com que a eventual perda de referências não
se prejudique; é o que acontece também em um dos mais longos – e
mais bem realizados – poemas do livro, o intitulado “L”, quando são
utilizadas remissões ao personagem Philip Pirrip, de Dickens, e ao
incêndio que na década de 1960 vitimou o Gran Circus Americano,
em Niterói. Vale transcrever o trecho:

A lona incandescente
Caía como gotas de fogo
O bombeiro bradava “quem está vivo levanta a mão”
A elefanta esmagou crianças e adultos, em disparada
A elefanta salvou centenas ao
Abrir um rombo na lona incandescente
O país virou referência em cirurgia plástica
A mãe reclamou que os três chegaram

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272 Resenhas

Sujos de fuligem
A sobrevivente conta que recebeu a extrema-unção
Voluntários enterravam os mortos em um
Cemitério construído às pressas
Um pequeno empresário obteve uma revelação divina
Deixou a mulher, quatro filhos
Virou profeta.
(p. 36)

Não é necessário conhecer a tragédia do Gran Circo Norte-


-Americano, muito menos saber que, se o país virou referência em
cirurgia plástica, foi porque um então jovem médico, Ivo Pitanguy,
iria engajar-se no socorro a queimados e desenvolver técnicas de
cirurgia reparadora que o tornariam famoso antes do boom estético;
pode-se ler o poema como um devaneio intercalado à história amoro-
sa de Pip, que por sua vez serve de máscara ao próprio sujeito lírico.
Elipses e preciosismos eventuais, a modo de trobar rie, ocor-
rem em todo o livro, mas há peças concentracionárias, como o soneto
“C”, que justapõe adjetivos (“O enigmático sério modesto cinético /
Insuspeito diurno servil específico / Adequado comum contestável
feíssimo / Contraído casmurro pançudo diabético”, p. 18). Também
aqui, o poeta brinca com a dificuldade criada, conduzindo sua lira
amorosa para ridicularizar a própria linguagem: “Abatido cansado
sombrio patético / Impotente (in)feliz inaudível poético / Fragmen-
tado enigmático vão indivíduo” (p. 18).
Outras vezes, o procedimento se nota na inserção de versos
aparentemente banais, verdadeiros clichês, em meio à imagística
sofisticada. Coisas como “amor da minha vida” (p. 26), que pode
ser localizado no último verso do poema “G”, ganham um efeito

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de contraste após o complicado percurso do amor ali descrito, que


compreende o “policarbonato / A matéria magnética dos discos /
Kubricks, polanskis, a anteposta luz” (p. 25) – nítida referência à
canção e ao cinema – e vai até o âmbito doméstico (“Chaves, página,
tábua de cortar”, p. 25) e as escolhas pessoais, de esporte e acessórios
(“Boxe, da vida oculta dos cabides”, p. 26), chegando à linguagem: “Do
juramento inabalável” (p. 26). Uma enumeração caótica a redundar
no “amor da minha vida” final, corriqueiro, porém sem sonegar ao
leitor as opacidades do percurso.
A aproximação com o trovadorismo não é estranha ao pró-
prio discurso poético: não é uma construção crítica. No soneto “D”,
lemos: “Minha amiga, não chame o seu amigo / De ‘amigo’. Antes,
dê-lhe uma facada / No abdômen e tire fora o seu umbigo” / Mas
‘amigo’ é palavra atormentada” (p. 19). Aqui o jogo se estabelece
com o termo preferencial do lirismo cortês, mas repugna ao con-
temporâneo trovador: “Os homens, minha amiga, têm o mal / De
perturbar aquilo que é normal / E um dia se perturbam com o amor
// E noutro com a palavra...” (p. 19).
É, portanto, uma lírica amorosa que se abre constantemente
ao diálogo com a tradição, sem abdicar da percepção de seu próprio
tempo, compondo, aliás, efeitos de bem-humorado contraste: os
primeiros versos são também reescritas do samba de breque “Na
subida do morro”, de Moreira da Silva.2 A dimensão intertextual
desse livro vai do cancioneiro popular (brasileiro ou estrangeiro),
como ainda na reescrita de “Valsinha”, parceria de Chico Buarque
e Vinicius de Moraes (veja-se o tragicômico poema “S”), até uma
tradução de Neruda, a do poema “Alianza (sonata)”, cujos versos são

2 “Vou dar-lhe um castigo / Meto-lhe o aço no abdômen / E tiro fora o seu umbigo”.

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274 Resenhas

rearranjados no poema “P”. A mais interessante recriação, porém,


não se deixa notar facilmente: no poema “Q”, Daniel Gil retoma a
tópica da velhice da mulher amada, de Ronsard e Yeats, e escreve uma
das raras apóstrofes do livro: “Vou embora sabendo / Seus passos
possuem / Meu ritmo! meus / Cantos para sempre / Em seus olhos
vão / Acontecer” (pp. 46-7).
O sujeito poético se imagina morto e persistente, não por sua
escrita, como no modelo ronsardiano,3 em que a amada lê poemas de
amor a ela dedicados, nem pelo conselho de sonhar com os antigos
olhos que despertaram amor, como na retomada de Yeats.4 Dá-se
uma completa entrega, um aniquilamento subjetivo que pretende a
vida para o outro e, na sequência, a vida no outro, em seus órgãos de
visão. Na curva amorosa, voltemos a Dante, quando ressalta o poder
do olhar de Beatriz na Vita nuova: “Ne li occhi porta la mia donna
Amore” – “Em seus olhos a minha dama leva Amor”.

3 Cf. “Soneto XXIV”, de Sonetos para Helena(1578).


4 Cf. o poema“When youareold”(“Quandoforesvelha”).

Fórum Lit. Bras. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, nº 21, pp. 267-75, jan.-jun. 2019.
O amor curvo, de Daniel Gil 275

Referências

BRODSKY, Joseph. Menos que um. Tradução de Sergio Flaksman.


São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
DE SANCTIS, Francesco. “Francesca di Rimini”. In:______. Ensaios
críticos. Tradução de Antônio Lázaro de Almeida Prado. São
Paulo: Nova Alexandria, 1993.

Fórum Lit. Bras. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, nº 21, pp. 267-75, jan.-jun. 2019.

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