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A perda que carregamos, um mar para vadear. Sexta-feira | 19 Março 2021 | publico.pt/culturaipsilon
ESTE SUPLEMENTO FAZ PARTE INTEGRANTE DA EDIÇÃO Nº 11.284 DO PÚBLICO, E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE
“Q
uando amanhece, perguntamo-nos/ ‘onde defendendo o cruzamento com o mercado literário e
Será preciso ter a mesma encontrar luz nesta interminável sombra?’/ cultural, de forma a que possamos responder à pergunta:
cor, o mesmo género, A perda que carregamos, um mar para
vadear. Enfrentámos a barriga da besta./
quem e quantos são os poetas, tradutores, livreiros, edi-
tores negros em Portugal?
o mesmo perÄl para Aprendemos que sossego nem sempre é Ou seja, o debate é importante “em toda a sua contro-
paz,/ e as normas e noções de ‘justo’ nem vérsia e complexidade, mas acima de tudo o reconheci-
traduzir ou interpretar se
sempre são de justiça.” São os seis primeiros versos do mento da sua génese, para que paremos de relativizar,
alguém? Quem fala? Quem po
poema de Amanda Gorman The Hill We Climb, que Ra-
qu Lima traduziu a convite da Casa Fernando Pessoa.
quel
exacerbar ou negar as diferenças estruturais que estão
na sua origem e para que encontremos soluções igual-
pode falar? As perguntas “O maior desafio foi a tentativa de preservar a força da
Amanda, o seu sentido de humor, eloquência, inteligên-
Am
mente estruturais.”
Na origem disto, aponta, estão “as raízes complexas
no debate sobre tradução, cia, sensibilidade e, acima de tudo, confiança sobre a sua
cia do racismo sistémico nas várias sociedades e as formas
participação poético-política na sociedade. Para tal con-
pa como actua em diversos sectores que obrigam a uma
literatura e identidade siderei o seu ritmo, a ênfase nas palavras e pausas, os
sid ética para a poesia, para a tradução e para a literatura
a partir da polémica ge
gestos, a cadência, as rimas, a respiração e a hesitação,
so
socorrendo-me por vezes da pergunta ‘como é que eu
em geral, enquanto espaços políticos por natureza que
se reconfiguram para cumprir o papel reparador que a
suscitada pela tradução diria isto em palco se o poema fosse meu?’”. É assim que
dir poeta Amanda Gorman anuncia.”
Raquel explica ao Ípsilon o método usado para traduzir
Ra Mas de que falamos quando falamos do poema de
do poema de Amanda um poema que está no centro de uma discussão que Amanda Gorman e do debate que encetou a sua tradu-
Gorman. ult
ultrapassa a literatura e se situa no campo das políticas
de identidade.
ção, onde se juntam, meio soltos, conceitos como o de
diversidade, o lugar do outro, lugar da fala, raça, femi-
A pergunta de Raquel é a de uma intérprete, função nismo, liberdade da leitura, segregação, representativi-
ind
indissociável de quem traduz, de quem lê e de quem dade, identidade, ideias que, fora de contexto, parecem
Isabel Lucas também faz da leitura acto público. De quem tem palco
tam
e imagina
Ca
i o grande palco que teve Amanda Gorman no
Capitólio a 20 de Janeiro, na tomada de posse de Joe
colidir com a mensagem desse poema que em Portugal
tem por título A Colina Que Subimos? Com o caso holan-
dês, entrou no domínio público um debate não só sobre
Biden como 46º presidente dos Estados Unidos, ao dizer
Bid quem deve ou não, quem pode ou não traduzir Amanda
os 78 versos que escreveu para aquele momento. Mas Gorman, mas entre tradução e políticas de identidade.
nã
não é só. Essa pergunta, diz Raquel, “surge de um es- A polémica começou a 23 de Fevereiro, quando a
paço de identificação e empatia por sermos ambas poe-
pa poeta de spoken word e activista Zaire Krieger contestou
tas de spoken-word, mulheres negras e estudantes de a decisão da casa editorial Meulenhoff. Marieke Lucas
Sociologia e ambas nas lutas feminista e anti-racista. Isso
So Rijneveld, 29 anos, pessoa não binária que em inglês
facilitou alguns detalhes óbvios como o contorno dos
fac usa o pronome they, poeta, escritora, a autora mais jo-
ma
masculinos universais da língua portuguesa, a opção vem de sempre a ganhar o Man International Booker
po
por palavras já debatidas desde uma perspectiva deco- Prize — em 2020 — com o romance The Discomfort of
lon
lonial como ‘escravizados’ em vez de ‘escravos’, entre Evening iria traduzir para neerlandês The Hill We Climb,
ou
outros aspectos.” que Amanda Gorman, 23 anos, escreveu e interpretou
Poeta, performer, arte-educadora, licenciada em Es- na tomada de posse de Joe Biden. Além disso, foi anun-
tudos Artísticos e doutoranda em Estudos Pós-Coloniais,
tud ciado que seria também a tradutora da primeira colec-
Raquel Lima nasceu em Lisboa em 1983, está a trabalhar
Ra tânea de poemas da norte-americana na Holanda. Na
na tradução da primeira colectânea de poemas de sua conta de Twitter, Krieger escreveu qualquer coisa
Amanda Gorman a publicar em Portugal com uma chan-
Am como “vou soar muito salgada, ao nível de um Mar
cela ainda mantida em segredo.
ce Morto, ao dizer que toneladas de mulheres artistas ne-
Afrodescendente, mulher, negra, activista, poeta de gras de spoken-word (Babs Gons, Lisette Maneza, etc.)
sp
spoken-word, conhecedora da língua inglesa, terá um poderiam fazer isso melhor?”
pe
perfil pouco questionável à luz dos argumentos que le- As palavras de Zaire Krieger tornaram-se virais e fize-
va
varam a que outra tradutora do poema de Gorman de- rem com que a Meulenhoff justificasse a sua decisão. “O
sis
sistisse da tarefa e lançaram uma discussão “urgente e facto de Amanda Gorman e a sua equipa terem respon-
ne
necessária”, na opinião de Raquel, “porque aprofunda dido imediatamente de forma positiva à nossa proposta
o debate
d sobre a interseccionalidade, as alianças políti- foi para nós uma confirmação de que tínhamos encon-
ca
cas, o poder do mercado editorial e de quem pode ou trado a tradutora ideal em Marieke Lucas Rijneveld”, e,
nã
não traduzir. Contudo, a polémica não pode ser o prin- entretanto, faziam uma espécie de paralelismo de perfis
KEVIN LAMARQUE/REUTERS
cíp
cípio e o fim da questão pois trata-se também de um entres as duas autoras, ambas muito jovens, internacio-
de
debate secular mais alargado em torno das continuida- nalmente reconhecidas, activistas em causas com vista
de
des históricas do colonialismo, desigualdades raciais, à promoção de uma sociedade mais inclusiva. Na nota
fal
falta de representatividade negra, autoridade, poder, da editora havia ainda outra mensagem que teve o efeito
po
políticas de reparação, medidas de acção afirmativa, contrário ao que a casa pretendia: a Meulenhoff garantia
en
entre outras assimetrias que ganham cada vez mais visi- que a tradução de Rijneveld seria acompanhada por lei-
bilidade mediática, mas que têm a sua origem há séculos.
bil tores experientes e sensíveis. Isso foi lido como a prova
Nesse sentido, acredito que a tradução mais importante
Ne de que Rijneveld não estava dentro do contexto da es-
que temos a fazer neste contexto é a que transpõe este
qu crita de Gorman e não reunia as condições para fazer a
debate para políticas governamentais concretas que nos
de tradução. Que condições?
permitam conhecer e equilibrar a nossa sociedade”.
pe Dois dias depois a activista e jornalista Janice Deul as-
Por exemplo, através do levantamento de dados étni- sinava um artigo no diário holandês Volskrant com o tí-
co-raciais, algo que não existe em Portugal e que Raquel
co tulo: “Um tradutor branco de poesia de Amanda Gor-
conta que já foi solicitado juntos de entidades oficiais,
co man: incompreensível”, considerava “uma oportu- e
e nidade perdida” e escrevia: “Nada contra Marieke ideal’?” Sugeria: “Nada a apontar às qualidades de Rijne-
Lucas Rijneveld, mas essa escritora não é a melhor pes- veld, mas por que não escolher um escritor que — como
soa para traduzir poesia de Amanda Gorman: os artistas Gorman — seja um artista de spoken word, jovem, femi-
negros de spoken-word são importantes, também os do nino e: sem desculpas, negro?”
no nosso próprio solo.” Falando da “sistemática margi- As características físicas a que Deul alude vêm no
nalização” das mulheres negras, punha em causa uma poema de Gorman, assim traduzidas por Raquel Lima:
escolha que não se adequava ao perfil da norte-ameri- “Nós, os herdeiros de um país e de um tempo, onde uma
cana, quando, na Holanda, não faltavam artistas com miúda negra magricela descendente de escravizados/ e
contexto mais próximo. “A aluna de Harvard, Gorman, criada por uma mãe solteira pode sonhar tornar-se pre-
criada por uma mãe solteira e rotulada como uma criança sidente, e logo ver-se a declamar para um.”
com ‘necessidades especiais’ devido a problemas de fala, A discussão subiu de tom e a decisão de Rijneveld não
descreve-se como uma ‘rapariga negra magricel’. E o seu tardou. “Estou chocada com o alvoroço em torno do meu
trabalho e a sua vida são coloridos pelas suas experiên- envolvimento na divulgação da mensagem de Amanda
cias e identidade como mulher negra. Então não é — para Gorman e compreendo as pessoas que se sentem feri-
dizer o mínimo — uma oportunidade perdida a de con- das”. As palavras vieram no Twitter nesse mesmo dia,
tratar Marieke Lucas Rijneveld para este trabalho? Ela é 25. Marieke Lucas Rijneveld desistia de traduzir e a Meu-
branca, não binária, não tem experiência na área, mas lenhof emitia nova declaração. Ia procurar uma equipa
de acordo com Meulenhoff ela ainda é a ‘tradutora de tradutores em vez de um tradutor único e concluía
com o desejo de aprender com a experiência.
O caso estava nas redes sociais e nos jornais. A tónica
era colocada na raça e as opiniões extremaram-se. Era
NUNO FERREIRA SANTOS
pela editora catalã, a Univers, contavam ao El País que rar que sou branco, poder ignorar que sou homem. Posso
os representantes de Gorman recomendavam “uma mu- ignorá-lo, porque ninguém no dia-a-dia me chama a aten-
lher jovem, de origem africana ou que tivesse um perfil ção para esse facto.” Conclui: “Tudo o que separa e sub-
activista”. trai acaba por empobrecer. E todos os confinamentos
O poema foi, entretanto, traduzido para castelhano me incomodam. Em matéria de tradução, como em to-
pela madrilena Nuria Barrios, tradutora de Joyce ou de dos os outros domínios da vida, quanto mais barafunda,
John Banville. Branca e sem historial activista, o seu tra- melhor. Homens a traduzir mulheres, mulheres a tradu-
balho para a editora Lumen não foi posto em causa pelos
agentes de Gorman. No mesmo jornal, num artigo de
opinião, Barrios foi explícita quanto à sua posição sobre
zir homens, negros a traduzir brancos, brancos a tradu-
zir negros, homossexuais a traduzir heterossexuais e
heterossexuais a traduzir homossexuais, todas as com-
“Até que ponto
o debate marcado pelo que chamou “a lógica de Deul”,
“A verdade simples é que Deul não está a falar de tradu-
ção, está a falar de política. Ela confunde ‘direito moral’
binações possíveis e imaginárias, de preferência.” Para
ele, “talvez” estejamos a assistir às “inevitáveis dores do
parto de um mundo novo que nasce, mais justo, mais
é que a política
com qualidade literária, ignorando o facto de que a ima-
ginação é o que torna possível a tradução e a arte em
geral”. E concluía: “a vitória de Deul é a vitória das polí-
inclusivo.”
“Continuo a pensar nisto”, insiste Margarida Vale de
Gato, falando da hibridização e do contágio como ine-
de identidade
ticas de identidade sobre a liberdade criativa.”
ENRIC VIVES-RUBIO/ARQUIVO
ceber todas as pontas da argumentação que beliscam o direito de aceitar ou recusar traduções desta, ou outra,
que é a essência da tradução. Como Raquel Lima, reco- natureza”, afirma, tocando um ponto em que todos
nhece a utilidade de um debate “que obriga a pensar em parecem estar de acordo: o da falta de diversidade que,
coisas que nunca tinham sido pensadas antes”. no entanto, para alguns escritores, não tem a ver com
“Mas a verdade é que a primeira reacção que tive como o outro que traduz.
tradutora foi: ‘o que é que se está a passar com a noção O debate é complicado, polémico, mas necessário,
de tradução?’ Eu falo do ponto de vista da profissão. defende Inocência Mata, especialista em Estudos Pós-
Onde é que está uma reflexão sobre a actividade em si?”, coloniais, professora da Faculdade de Letras da Univer-
continua, diante de um debate onde parece ser necessá- sidade de Lisboa, na área de Literaturas, Artes e Culturas.
rio formular as perguntas certas. Afirma que é uma questão ética e é “má fé dizer que é
Esse exercício é um dos desafios lançados aos escrito- uma questão racista”. “São muito injustos os ataques à
res, tradutores, artistas, académicos, historiadores ou- activista holandesa. Ela referia-se a uma poesia em con-
vidos neste artigo. “Uma pergunta que faço é esta: a creto, o spoken word, um poema que surgiu em determi-
literatura tem cor? A tradução tem cor? Na minha pro- nado momento, que tem muito a ver com o movimento
posta, no meu entender, é que sim. Acho que a literatura BlackLivesMatter e com uma experiência social, étnica,
tem cor e a tradução também. Tem cor, tem género, tem racial. São várias experiências em concreto que penso
tudo, tem corpo. A pessoa tem um corpo e o corpo está que foram misturadas. O que me parece em causa não é
enraizado numa identidade cultural. Que convém mudar. o facto de um branco traduzir um negro ou um negro
O que é a política de identidade? Nós queremos identi- traduzir um branco, mas aquele poema e o que signifi-
dade? Para mim também é uma questão”, pergunta e cava a poesia de Amanda Gorman.” Na sua opinião não
responde Margarida Vale de Gato esperando poder es- está em causa que Chimamanda Ngozi Adichie possa ser
cutar perguntas e repostas de outros. traduzida por brancos, como tem sido. “No caso de
Outro tradutor, Paulo Faria, responde à mesma per- Amanda Gorman faz sentido falar de oportunidade per-
gunta. “Sou homem e sou branco. Mas, se me pergunta- dida. O discurso de que não importa a cor é um discurso
rem o que faço, direi apenas que sou escritor e tradutor. que foi sempre usado para perpectuar o estado de su-
Não me passa pela cabeça apresentar-me como um es- balternidade dos profissionais não brancos.” E elege
critor e tradutor branco, do género masculino. Tenho como tema aqui a questão da diversidade e da represen-
perfeita consciência que se trata de um luxo poder igno- tatividade que ultrapassa a mera estética ou com- e
lugar de uma mulher negra, a partir da sua experiência, caria ser o outro. Ora, quando uma conversa se desloca
mas o que ela tem a comunicar é importante para todos para o terreno da fulanização, do bacteriologicamente
os humanos. Exigir que um tradutor tenha a mesma ori- puro, chegamos a um beco sem saída do qual dificil-
gem ou origem semelhante à do autor é extremado. Não mente saímos.”
consigo compreender”. Como ficamos? ”Podemos e devemos fazer um esforço
Itamar chama o audiovisual para a conversa. Fala da para compreender o outro e para nos pormos no lugar
tentativa da produção de um musical sobre Dona Ivone dele, sabendo que nunca seremos plenamente capazes.
Lara (1922-2018), cantora e compositora brasileira conhe- Mas não é essa a essência da tradução? Tentar com-
cida como a “rainha do samba”. Para o papel foi escolhida preender plenamente o outro, sabendo que vamos fra-
a cantora Fabiana Cozza. “Fabiana Cozza é uma mulher cassar, e depois tentar de novo. A tradução é, parece-me,
MIGUEL MANSO
negra, mas tem um tom de pele mais claro do que o de o lugar supremo da compreensão do outro, necessaria-
Dona Ivone Lara e houve uma polémica grande. Fabiana mente condenada ao perpétuo fracasso, porque hu-
é uma activista, mas uma parte do movimento negro se mana. Não entender isto é não entender nada de litera-
voltou contra ela. E ela disse: ‘eu fui dormir uma mulher tura, parece-me.”
negra e acordei uma mulher inimiga para alguns’. Viam-na
como ameaça porque não tinha o tom de pele de Dona A fala e o poder
Ivone Lara. Ela escutou, compreendeu e desistiu do pa- A sequência de perguntas e repostas que Paulo Faria faz
pel. Isso mostra que há uma linha muito delicada, como sintetiza a complexidade de um debate que, na perspec-
se ser negro fosse algo homogéneo e não é. Dentro da tiva da História, não é novo, como salienta Diogo Ramada
própria negritude há diferenças. Uma pessoa negra de Curto. “Essa questão não é relevante do ponto de vista
pele mais clara tende a sofrer menos preconceitos, tende da história. É uma questão estafada que foi hiper-discu-
a conseguir galgar lugares mais altos na sociedade. As tida nos anos 50, nomeadamente nos Estados Unidos
pessoas mais retintas sofrem um racismo diferente. O quando se começou a falar do direito de fazer a história
racismo não é homogéneo entre os negros.” dos afro-americanos”. Historiador, professor catedrático
Paulo Faria, que assinou traduções de Cormac no departamento de Estudos Políticos da Faculdade de
McCarthy, James Joyce ou Don DeLillo, já passou para Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de
português autores negros, entre eles a norte-americana Lisboa, refere o trabalho do sociólogo norte-americano
Fran Ross com o romance Oreo. É a partir dessa expe- Robert Merton (1910-2003). “Ele escreveu um artigo,
riência que, agora, se interroga: “O que teria feito se, Insiders and Outsiders, que é tributário de toda a litera-
quando traduzi Oreo, alguém tivesse lançado à Antígona tura antropológica acerca de quem tem capacidade para
as mesmas críticas que Janice Deul lançou aos responsá- analisar uma sociedade ou um grupo. Se são os de dentro
veis da editora holandesa que convidaram Marieke Lucas se os de fora. E a conclusão a que chegou é simples: é que
Rijneveld?” Tem resposta: teria feito o mesmo que Rijne- tanto os de dentro são capazes de ter leituras enviesadas
veld. Ou seja, teria abdicado de traduzir. “Porque, for- como os de fora. O problema não está na autoridade que
mulado nos termos em que Janice Deul o faz, deixa de pode ser alocada aos de fora ou aos de dentro. Está na
haver debate possível. Se, confrontado com uma crítica capacidade de perceber as coisas e de as explicar. No
daquele teor, eu teimasse em vincar o meu direito a fazer caso de uma tradução, é uma questão de mediação, de
a tradução, todos os argumentos a que lançasse mão estabelecimento de sentido. O que é que me interessa
pareceriam meras desculpas para afirmar o meu direito que seja um negro a traduzir a obra de um negro?”
ao privilégio: o privilégio do homem, o privilégio do O livro de Grada Kilomba, Memórias da Plantação,
branco. Na nota em que se desvincula do projecto, Rijne- originalmente escrito em inglês, foi traduzido para por-
veld diz qualquer coisa como: ‘Dou-me conta de que o tuguês de Portugal por um branco, Nuno Quintas, e, no
meu estatuto me permite pensar e sentir coisas que mui- Brasil, por uma mulher negra, queer, Jess Oliveira. “Foi
tos outros estão impedidos de pensar e sentir.’ Uma to- um tema que discutimos muito tempo: quem é que deve
mada de consciência formulada nestes termos, põe fim traduzir? Achei muito problemático o meu livro ser tra-
ao debate, porque, no limite, ninguém se consegue pôr duzido por um homem branco. Não que ele não seja um
verdadeiramente no lugar do outro, porque isso impli- extraordinário tradutor, mas quando leio as duas e
“Sou homem boca. Foi muito bom ver a continuação dessa conversa
e perceber que depois ela escreveu um livro sobre o lugar
da fala.” E de onde veio essa interrogação nesse livro?
essência. Mas deixa uma nota sobre a dificuldade da
conversa. “Não estamos a caminhar para um mundo em
que só uma pessoa com o mesmo corpo pode entender
e sou branco. Mas, “Escrevi essa primeira parte muito inspirada em [Gaya-
tri] Spivak [crítica e teórica indiana], que faz a pergunta:
quem fala? Quem pode falar? Onde a subalterna falar?”
o mesmo corpo, até porque, como exemplifica o recente
e triste caso de Marcelino da Mata, é possível ter o mesmo
corpo e não entendê-lo, ou entendê-lo como se ele não
apenas que sou Unidos. Faz parte da equipa que em 2012 criou ali o
novo programa de doutoramento em Estudos do
Mundo em Língua Portuguesa. “Concordo que isto
nação, cada esquina a que chamamos país,/ o nosso
povo, diverso e belo, irá emergir, flagelado e belo./
Quando amanhecer, nós saímos da sombra, ardentes e
cabeça apresentar-me ceiro, que, desde que pensada num registo crítico,
impede a polarização. Mas seria ligeireza e irrespon-
sável da nossa parte menorizar a questão da raça. A
foram alvo os seus antepassados, independentemente
de ser essa a sua vontade. Não é uma escolha, é uma
condição em sociedades em que o legado da escravatura
J
á alguma vez sentiu que o gem e semelhança de um outro in- nós, onde somos assobiadas, inter- dos talvez seja o maior de todos os
smartphone é demasiado divíduo — um homem. rompidas, tratadas com paterna- défices informacionais de género”,
grande para a sua mão? Que Mulheres Invisíveis — Como os dados lismo, apalpadas, assediadas.” Uma escreve a autora, questionando a sua
tem de ir fazer musculação configuram o mundo feito para os ho- mensagem que ecoa, por estes dias, omissão na formulação do produto
para o ginásio (em máquinas mens, o segundo livro da jornalista e nas sonoras reacções à morte de Sa- interno bruto (PIB) de cada país.
também elas demasiado al- activista Caroline Criado Perez, che- rah Everard, a mulher de 33 anos que
tas) só para empurrar a porta do gou há poucos meses ao mercado foi assassinada quando regressava Das notas às estátuas
escritório? Que o sistema de reco- português, com chancela da Relógio sozinha a casa, ao final do dia, em Distinguido com o Royal Society
nhecimento de voz tem um fraqui- d’Água (tradução de Maria Eduardo Londres. Science Book Prize de 2019, Mulheres
nho por tons mais graves? Ou que o Cardoso), e estará em destaque no Para isso, Caroline mostra dados Invisíveis pode não ser um livro con-
GPS não tem lá muito em conta o sábado, 27 de Março, no Heróides — (ou a falta deles) e 1001 exemplos de sensual — por nem sempre explorar
desconforto que é atravessar um Clube do Livro Feminista, da actriz e um mundo assente no que chama de a interseccionalidade de causas, a
parque mal iluminado à noite? Há encenadora Sara Barros Leitão. Um “défice informacional de género”, diversidade de corpos e identidades.
uma grande probabilidade de uma abre-olhos que põe a descoberto a tanto analisando filas para casas de Mas Caroline Criado Perez também
pessoa do sexo feminino se reconhe- desigualdade de género que está na banho como a participação política. não o é.
cer em algumas (todas?) estas ques- base de tantas coisas apenas aceites. Obliterado o papel da mulher na Nascida em 1984 no Brasil, vive em
tões. Acrescentamos: não é culpa Como aquelas no arranque do texto. história da evolução humana, na Londres com a cadela Poppy, pre-
sua, mas de um mundo feito à ima- Equipamentos concebidos com base arte, na ciência, no planeamento sença assídua em entrevistas e na
urbano, nos transportes, na econo- sua newsletter, onde recentemente
DR
serem vistas”,
minismo a pessoas que não o enten- vezes com desculpas que são “dema- Gillian Wearing. “Se as nossas histó-
diam”, disse Caroline Criado Perez siado complicadas para serem men- rias não forem contadas, os governos
ao The Scotsman. “Especialmente se suráveis”, tornam-se hipervisíveis que fazem as políticas não pensam
for um homem, para entender o que noutros aspectos: como alvos de vio- em nós”, evidenciou ao Guardian em
Amanda Ribeiro É um alerta em forma de livro. tou à revista The Booksellers, é uma
resposta mais prática à pergunta que
Mulheres Invisíveis, de Caroline todos lhe colocam: “Como é que re-
solvemos isto? O que podemos fa-
Criado Perez, dispara números zer?” Porque é tempo de “mudar de
e estudos para dizer: este é um perspectiva”, como escreve na intro-
dução. “Está na altura de as mulhe-
mundo feito de e para os homens. res serem vistas.”
As pequenas
perguntas que
descobrem
grandes males
M
uitas vezes, é graças às Ao levar para palco perguntas e
“pequenas perguntas” respostas “demonstrativas da ma-
que desvendamos alguma neira como se vivia, como se pen-
coisa sobre os outros e — sava, como se sentia” naquele pe-
não esquecer — sobre nós ríodo, o encenador André Amália
próprios. Durante o pro- sabe que está a semear essas mesmas
cesso de investigação de Os Filhos do questões em cada espectador. A
Mal, segundo movimento de um ciclo (eventual) diferença evidente para
da companhia Hotel Europa (criada com estes seis intérpretes é que as
por André Amálio e Tereza suas histórias — e que justificam a sua
Havlícková), houve uma série dessas presença em palco — estão ancora-
perguntas colocadas aos seis intér- das numa clara riqueza de testemu-
pretes, escolhidos entre os vários nhos. E na sua disponibilidade de-
participantes nos workshops prepa- sassombrada para as partilharem.
ratórios, que se infiltraram no texto Rita é bisneta do proprietário de
final. “Tinham alguma fotografia de uma fábrica de limas que empregava
Salazar em casa?”, “A vossa família quase toda a população de Vieira de
tinha criados?”, “Quantas casas ti-
nham?”, “O 25 de Abril foi bem rece-
bido pela vossa família?” são as pri-
meiras que escutamos serem pergun-
tadas e respondidas em palco por
Ana Rita Ferreira, Ana Sartóris, João
Esteves, Marta Salazar Fernandes Todos responderam
(nenhum parentesco com o outro
senhor que adornava alguns lares), a uma chamada da
Paulo Quedas e Rita Tomé, no espec-
táculo que a sala virtual do Teatro São Hotel Europa
Luiz apresenta de 24 a 31 de Março.
Tais pedaços de inquirição avulsa revisitarem histórias “Tinham alguma fotografia de Salazar em casa?”, “A vossa família tinha criados?”, “Quantas
que escutamos serem perguntadas e respondidas em palco por Ana Rita Ferreira, Ana Sartóris,
são um resquício das sessões de tra-
balho, daquilo que André Amálio familiares de
tentava extrair destes filhos, netos,
sobrinhos de famílias que apoiaram apoiantes e
ou se opuseram à ditadura do Estado
Novo, mas são também uma forma opositores da Leira (e sendo o patrão era também
o presidente do sindicato dos meta-
ocasiões ao lado de José Afonso ou
José Mário Branco.
seus criadores perante o Estado
Novo, mas funciona também como
de confrontar cada um com a sua
própria história. No fundo, é essa a ditadura, remexendo lúrgicos local); João cresceu numa
família de produtores de vinho pri-
Todos responderam a uma cha-
mada da Hotel Europa para traba-
desafio para que aqueles que esta-
vam nas trincheiras ideológicas ou
matéria de trabalho de Os Filhos do
Mal — o passado íntimo, familiar, nas memórias para vilegiada, com governanta, jardi-
neiro e retrato de Salazar a abençoar
lharem sobre a premissa de revisitar
histórias familiares de apoiantes e
de conveniência social e económica
do regime se confrontem com a sua
afectivo, quando se cruza com a His-
tória inscrita nos livros. “De re- perceber como é o lar, tendo por tio um dos soldados
que acompanhava Salgueiro Maia no
opositores da ditadura, remexendo
nestas memórias e nestes relatos
própria história.
Orgulho e repugnância
pente”, partilha André Amálio com
o Ípsilon, “duas ou três perguntas que as gerações 25 de Abril; Ana Rita é neta de um
operacional da LUAR (Liga de Uni-
para perceber como é que as gera-
ções crescidas (e mesmo nascidas) Não é mero capricho artístico que
posicionam-nos socialmente de ime-
diato e marcam territórios. E acha- crescidas dade de Acção Revolucionária), par-
ticipante no célebre assalto ao Banco
no pós-25 de Abril se relacionam
hoje com os 48 anos de ditadura que
André Amálio fale da importância de
integrar o processo no espectáculo
mos interessante trazer sempre um
pouco do nosso processo para os no pós-25 de Abril de Portugal na Figueira da Foz, em
1967, com o propósito de recolher
André Amálio não hesita em classi-
ficar como “um período do mal”.
final. Já no anterior Os Filhos do Co-
lonialismo, a investigação desenro-
espectáculos. Porque o processo é
tão rico como a cena super polida e se relacionam hoje fundos para o combate ao regime;
Ana é filha de um membro do PCP,
“Há algo muito sombrio que ainda
não é discutido e acreditamos que
lada com a cumplicidade dos intér-
pretes levara a que os próprios pro-
trabalhada.” Sendo parte do pro-
cesso, este dispositivo transforma-se com os 48 anos preso e torturado pela PIDE; Marta
é sobrinha-bisneta de um membro
esse mal não se vê apenas nas pes-
soas que apoiavam a ditadura, mas
tagonistas se vissem, de repente,
com um pretexto válido para ques-
também numa investigação pessoal.
O questionário preparado por André
e Tereza dava assim espaço para que
de ditadura da Federação da Juventude Comu-
nista, enfermeiro na Prisão do Aljube
e que ajudou a concretizar uma fuga
também nas pessoas que lhe resis-
tiam”, defende. “Pessoas que, ao
terem de lutar contra esse mal, tam-
tionar os familiares sobre temas si-
lenciados ao longo dos anos. Nesse
espectáculo estreado em 2019, o pri-
os intérpretes se questionassem en- dos calabouços a dois presos políti- bém foram apanhadas por ele, por meiro da Hotel Europa em que já não
tre si e reflectissem no quanto as suas cos, fugindo depois para o México; toda essa negatividade e essa pres- havia actores profissionais mas ape-
respostas esculpiam a sua imagem Paulo é filho de dois cantores de in- são.” O nome do espectáculo, natu- nas aqueles que carregavam as his-
diante dos restantes. tervenção que actuaram em muitas ralmente, posiciona desde logo os tórias no próprio corpo, as entrevis-
Gonçalo
Liga da Justiça
I
sto nunca aconteceu. É assim res dizem ao mundo que o poder é Este é o prémio para milhares de dores caseiros de um filme que em
que começa a pergunta do Ípsi- do povo, ou que campanhas revisio- fãs que começaram uma campanha 2017 custou cerca de 300 milhões e
lon a Zack Snyder que, como o nistas podem resultar? em hashtag que se organizou para que foi considerado um flop por ter
próprio nome indica, é o realiza- Este é momento especial na histó- inundar qualquer comunicação da rendido apenas 732 milhões de eu-
dor de Liga da Justiça de Zack ria do cinema de massas. Nesta en- Warner, para enviar enxurradas de ros em todo o mundo (aos quais se
Snyder, o mais recente blockbus- cruzilhada estão “os fãs”, ou o “fan- e-mails e pagou outdoors, um painel devem subtrair a parte dos exibido-
ter de super-heróis que pela primeira dom” anglo-saxónico, o monoteísmo luminoso na Times Square de Nova res, o marketing e os honorários da
vez se estreia apenas em streaming do super-herói e uma pandemia que Iorque e até um avião com uma faixa nova equipa de autores e novas ce-
mas que é, acima de tudo, um direc- fechou milhares de salas de cinema. que repetia “Release The Snyder Cut” nas. Agora, os efeitos visuais e a pós-
tor’s cut único na história do cinema. Há também uma tragédia pessoal, o que sobrevoou a Comic Con de 2019. produção custou cerca de 70 mi-
Porque director’s cuts há muitos, e suicídio de uma das filhas adoptivas “Este cut do filme é o que eu termi- lhões de dólares ao estúdio, disse
realizadores em divergência com o de Zack Snyder, Autumn, a quem nei logo quando voltámos”, diz Snyder, que mantém que este é o seu
estúdio substituídos por colegas este cut é dedicado. A sua morte em Snyder. “É a primeira versão, a mais “pequeno filme”, de “boutique”.
também. Mas é inédito que uma ma- Março de 2017, durante as querelas fresca, mais optimista, menos pro- Não recebeu mais nesta segunda
jor como a Warner Brothers devolva com a Warner sobre Liga da Justiça, cessada.” Policia-se. “Fora o pro- volta. Só quis autonomia.
o filme ao seu autor original depois foi um ponto de não-retorno. cesso de filmar, onde foram feitas
de uma primeira versão já se ter es- O estúdio queria mais leveza nos concessões ao estúdio aqui e ali”, “Toxic fandom”
treado. Ainda mais depois de uma
campanha organizada de fãs que
seus filmes sobre “meta-humanos”
e uma inflexão no estilo negro que
reconhece. Um estúdio “reactivo,
melindroso”, relata, belicoso até ao
Zack Snyder, de 55 anos, é o arqui-
tecto que escolheu Gal Gadot ou Ja- Este é o chamado
exigiram durante anos #Relea-
seTheSnyderCut. “Isto é que algo
Snyder imprimira aos dois filmes que
já tinha feito com Super-Homem e
fim de uma luta que acabou por ga-
nhar. “Dito isto, adoro estes actores
son Momoa como protagonistas
inesperados para Mulher-Maravilha “Snyder Cut”.
que nunca deveria ter existido”, diz
a produtora Deborah Snyder aos
Batman. Os seus filmes não estavam
a ganhar tanto dinheiro quanto os da
e este material. Baixei a cabeça e
bola para a frente. Sou uma perso-
ou Aquaman e que construiu em es-
tilo neoclássico no universo que há O que significa esta
jornalistas. “Ainda não devia exis-
tir”, interrompe-a o marido, Zack,
Marvel, mais divertidos.
Snyder abandonou o projecto e
nagem subversiva, não consigo con-
trolar-me. Não tenho a intenção de
décadas começou com o gótico de
Tim Burton. nova relação entre
sorridente. “E começou com os fãs”,
resume Deborah.
levou consigo um portátil com qua-
tro horas, a preto e branco, do filme
ser um provocador. [Nestas situa-
ções] no fim espero conseguir con-
O vislumbre de um canto do es-
critório dos Snyder faria as delícias Hollywood e os fãs,
Este é o chamado “Snyder Cut”. O
que significa esta nova relação entre
que nunca terminou. Liga da Justiça
(2017) está creditado a Snyder como
vencer-vos de que tinha razão o
tempo todo e que deviam ter-me
dos fãs. Há uma katana, uma espin-
garda antiga, um capacete de legio- entre o streaming
Hollywood e os fãs, entre o strea-
ming e os cinemas, para o futuro? “É
realizador, mas este nunca o viu. Foi
terminado por Joss Whedon, que
deixado fazer as coisas assim à par-
tida. Isso já me criou problemas,
nário a evocar 300 (2006). E uma
pilha de livros de capa dura com os e os cinemas,
um caso tão único...”, começa Zack
Snyder numa noite de Março que é
manhã em Los Angeles. “Sim, acho
refez mais de dois terços do filme,
mudou grande parte da história e
introduziu piadas. Foi arrasado por
mas aqui estamos.”
Aqui estamos, potenciais especta-
seus esboços dos seus filmes, de O
Renascer dos Mortos (2004) ao e para o futuro?
que terá algum tipo de efeito. Mas se fãs e crítica. Snyder chama-lhe “o
se investigar bem este movimento ‘cut’ que não será nomeado” e, na
em particular e tudo o que ele envol- mesa redonda no Zoom, fala das fil-
veu, acho que as implicações dora- magens com Whedon como “o hor-
vante podem ser menores do que ror de fazer as salsichas”, fabril.
‘este é um mundo novo em que os Agora, Zack tem o seu momento de
fãs decidem o que é feito’. Não sei se redenção.
é o resultado final neste caso, mas
sei que os serviços de streaming “Um pequeno Älme” #SÃO
como a HBO Max dão-nos opções O que é, afinal, o Snyder Cut? São CARLOS
que de outra forma não seriam pos- quase quatro horas de filme, dividi-
VOLTA A
Concertos
síveis em termos de um cenário de das em seis partes e um epílogo, com
estreia”, responde ao Ípsilon.
“Isto é uma experiência social”,
a gravidade habitual do realizador
que filma histórias aos quadradinhos
SUA CASA
BRANDEBURGUESES
diria depois ao New York Times, um como mitos fundadores da civiliza-
filme “feito à medida, a percepção de ção — não há espaço para a subtileza TRANSMISSÃO ONLINE
que, mais do que nunca, o filme foi ou realismo e a história que conta é
BWV 1046-1051
feito singularmente para si” — para bem diferente da do filme de 2017. O
ver em casa, depois da luta digital. Super-Homem veste negro e a ban- TNSC.BOL.PT/LIVE
O que há três anos parecia um mo- da-sonora tem a solenidade trágica
vimento quixotesco desemboca esta de Snyder, desta feita embebida pela
semana com as quatro horas do sua perda real. JOHANN SEBASTIAN BACH
Snyder Cut a estrearem-se em vários This Mortal Coil, Nick Cave e a ver-
países nas plataformas digitais da são de Hallelujah de Leonard Cohen
HBO (detida pela Warner e seu im- cantada no funeral da sua filha são
portante peão nas guerras do strea- as notas sonoras de um filme com as
ming). Ao contrário da história do habituais câmaras lentas para a pose
19 MAR 2021 às 21H
cavaleiro andante, os moinhos foram e o bullet time cromado do realiza-
derrotados. Quem são eles? Depende dor. Jeremy Irons ensina a Mulher-
de quem pergunta. Maravilha a fazer chá e uma nova Concerto Brandeburguês n.º 1 em Fá Maior
Zack Snyder é o afável realizador cena foi filmada de raiz com o Joker Concerto Brandeburguês n.º 2 em Fá Maior
Concerto
que abre a sua janela de Zoom aos de Jared Leto. Há novos heróis e vi- Concerto Brandeburguês n.º 3 em Sol Maior
jornalistas reunidos numa mesa re- lões. O filme, que o Ípsilon já viu, com a
donda virtual para mostrar os livros está no formato 4:3 porque um dia ORQUESTRA
de capa negra onde desenha cada o realizador sonha que possa ser SINFÓNICA
filme antes de o fazer. É um “under- visto em IMAX. A nova cena foi fil- PORTUGUESA 21 MAR 2021 às 16H
dog”, um homem com uma visão mada em plena covid-19 e nem todos e
moído por um estúdio intrometido puderam juntar-se fisicamente. “Fil- SOLISTAS OSP
Concerto Brandeburguês n.º 4 em Sol Maior
e injustamente afastado do cargo de mámos ao longo de três dias, o Ezra
arquitecto do universo cinematográ- [Miller, o Flash] estava em Inglaterra ANA PEREIRA Concerto Brandeburguês n.º 5 em Ré Maior
fico da DC Comics? Ou é um “bro”, a fazer [o filme] Fantastic Beasts. A Violino e direção Concerto Brandeburguês n.º 6 em Si bemol Maior
um poderoso proponente do cinema equipa deles filmou-o e o Zack diri-
de heróis deificados num mundo de giu-o por Zoom”, exemplificou De- O IDEALISTA APOIA O TNSC PARCEIRO PARA A COMUNICAÇÃO
ratos e homens? Os seus admirado- borah Snyder. SAOCARLOS.PT
#CULTURAÉIMAGINAÇÃO
e próximo Army of the Dead (para por causa da minha opinião sobre o juntaram meio milhão de dólares”. Perguntam aos Snyder se Liga da
a Netflix). Snyder Cut”. Kayleigh Donaldson, Zack Snyder sorri: “O objectivo é um Justiça (2017) será expurgado do câ-
Fiona Zheng é uma dessas fãs e foi que escreve no site Pajiba, conta os milhão”. none DC/Warner. É uma decisão “do
a primeira a escrever no Twitter, em ataques de que foi alvo e garante: estúdio” e do “consumidor”, dizem
2017, sobre a existência de uma ver- “Quase todos os críticos ou pessoas Monocultura do na janelinha do Zoom. “Mas gosto
são quase terminada de Liga da Jus- que escrevem sobre cultura pop que blockbuster dessa forma de pensar, de o expur-
tiça de Snyder e a apelar: “Temos de conheço teve pelo menos uma má “Dura há muito este processo dura- gar dos registos, isso soa cool. Se
lutar por ela”. Administradora de experiência com certos fãs do DCEU douro em que os fãs ganham atenção houvesse uma espécie de vírus em
uma clínica na China, desencadeou [o universo cinematográfico da DC], cultural, em que ganham influência que se carregasse num botão e o apa-
uma tempestade, tornada petição normalmente nas redes sociais, ou e consciência de como usar essa in- gasse todas as cópias que encon-
no ano seguinte pelo porto-rique- com emails nefastos, comentários e fluência e agora vêmo-lo mais porque trasse. Mas não vejo isso a acontecer.
nho Roberto Mata (banido depois mensagens”. “O tribalismo”, escre- os media estão num momento em Mas gosto da maneira como estás a
do movimento por extremismo). veu, “torna-se tóxico muito de- que o colocam em frente ao nosso pensar. É cool”, diz Zack Snyder, sar-
Nascia o que o casal Snyder classi- pressa”. Para Carey, “o legado deste nariz”, diz Nancy Baym, que estuda dónico, sobre mudar a história e os
fica como “um movimento”. Snyder filme está ensombrado em toxici- o comportamento dos fãs na Inter- seus registos.
começou a partilhar excertos do dade e negatividade” e o estúdio net, no New York Times. “O fandom e Esta semana, na HBO Portugal, A
“seu” filme na rede social Vero. Em pagou 70 milhões de dólares “só para o ser espectador têm-se tornado som- Liga da Justiça de Zack Snyder é tam-
2019, Gal Gadot e Ben Affleck parti- apaziguar o toxic fandom”. briamente possessivos à medida que bém um momento para o streaming.
lharam a hashtag. O coro subia de Zack Snyder elogia os que lhe de- o país se tem dividido violentamente. “Não estaríamos aqui se não fosse
tom. Snyder mostrou “os analytics”, volveram a sua obra e nas últimas Há um campo de fãs — que tendem a por um serviço de streaming”, diz
as menções nas redes sociais, à War- semanas passou de não reconhecer ser brancos e homens, tal como os Deborah Snyder, e as opções que ele
ner. A Warner convidou-o a voltar a existência do “fã tóxico” para o tradicionais fazedores de cânones — permite. Que sinal projecta então o
— em plena pandemia, o estúdio condenar. Na semana passada, no que não querem a sua obra aberta ou Snyder Cut no céu para a indústria?
decidiu estrear muitos dos seus fil- Zoom, Deborah Snyder disse aos desapropriada. Não querem um de- Tony Gonçalves, um dos responsá-
mes em simultâneo na HBO Max; o jornalistas que “atacar alguém não safio à tradição”, escrevia no final de veis pelo desenvolvimento do strea-
Snyder Cut é um exclusivo online é apropriado em cenário algum”, 2020 o crítico cultural Wesley Morris ming da HBO e Warner, diz ao aus-
muito especial. direccionando a conversa para os no mesmo jornal. traliano Vergecast: “Não significa
No novo filme, o vilão Steppenwolf benfeitores do grupo. “O movimento E depois há aquilo em que o ci- que vamos refazer todos os filmes
diz a certa altura: “É tóxico. Isso é Snyder Cut pode ter incluído um nema se tornou. Uma “monocultura que já fizemos. Mas temos mesmo
bom”. #ReleaseTheSnyderCut é tam- pequeno grupo que foi tóxico mas a do blockbuster. O público não está a de ter o ouvido no chão e escutar
bém sinónimo de “toxic fandom” — maioria dos fãs fez uma coisa espan- ver um conjunto diversificado de atentamente”.
há uma facção agressiva que mostra tosa. Não só fizeram com que um filmes. Em grande parte, estes fãs só
como na última década o tom da ad- estúdio lhes prestasse atenção — eles estão a ver o MCU ou Star Wars por
miração e sentimento de posse dos permitiram que este filme fosse feito isso o seu investimento nesses filmes
fãs mudou. — mas também fizeram tanto pela é que eles sejam exactamente o que É inédito que uma major como a Warner Brothers
A Guerra dos Tronos ou os novos prevenção do suicídio. Cada dólar querem. Para eles não há espaço devolva o filme ao seu autor original depois de
filmes Star Wars geraram petições a que angariaram para os cartazes ou para a subversão ou desafio”, se- uma primeira versão já se ter estreado. Ainda
exigir que fossem refeitos. Alguns o ecrã gigante em Times Square, gundo Alexei Toliopoulos, crítico de mais depois de uma campanha organizada de fãs
actores de Star Wars foram alvo de metade desse dinheiro puseram cinema australiano, ao ABC. O câ- que exigiram durante anos
ataques racistas e sexistas nas redes numa associação de prevenção e já none é desafiado, revisto. #ReleaseTheSnyderCut
sociais. Um fã fez mesmo uma ver-
são de Os Últimos Jedi sem mulheres.
S
e glosasse o Génesis bíblico, pelo patriarca: “O meu avô Aníbal entre namorados ou amigos. O dar e
Membros activos esta história podia resumir- Fandango, que já não é vivo. Era o às vezes não saber perdoar.” E há,
dos aveirenses se assim: E viveram Fan-
dango e Floripes, que gera-
único músico da família, tinha projec-
tos musicais, tocava concertina e foi
depois de várias peripécias: Os deva-
neios da avó Floripes, com uma sub-
Moonshiners, ram Manel, Zé e Clementina; fundador de um rancho folclórico. O versão de ditos populares, como “O
e casou Manel com Rosa e nome é verdadeiro, e o da avó Flori- rato roeu a rolha do rei da Rússia”
Susie e Vítor geraram Aníbal, Chico e Sara; e casou pes também.” Ao todo, são 17 perso- transformado em “A rolha roeu a Rús-
criaram um duo Família
Fandango
Clementina com Edmundo e geraram
Maria e Quim; e casou Aníbal com
nagens. E o disco conta com 18 músi-
cos e artistas (incluindo Susie e Vítor),
sia do rato do rei”; os dilemas de
Chico; ou a partida de Sara, que de-
com nome de doce Siricaia
edição de autor
Beatriz e geraram Benjamim; e casou
Maria com Sebastião e geraram Eva;
entre os quais se incluem Quiné Teles
(percussões), Jorge Loura (guitarra
pois “volta de Londres socialista e
vegetariana/ na companhia da namo-
alentejano e hoje e casou Quim com Ana; e todos vive- eléctrica), Artur Fernandes (dos Dan- rada, uma pintora italiana”.
lançam Família mmmmn ram, enquanto Zé, Chico e Sara se- ças Ocultas, na concertina), Luís Pei- Para tudo terminar no Jantar de
guiam seus caminhos. E viveu Fan- xoto (cavaquinho), Xavier Marques família em Aldeia do Chão, “após um
Fandango, onde dango todos esses dias, até que mor-
reu (e chegou ao fim o disco).
(sintetizador Moog) e dois músicos
que também integram os Moonshi-
longo período de confinamento”,
onde se acertam contas e memórias
blues, rock, folk, Mas Família Fandango, o primeiro ners, Carlos Lázaro (teclados) e Ga- num “banquete de abraços”. Isto
álbum do duo Siricaia, tem mais que briel Neves (saxofones). antes do bebé começar a andar e da
country e música se lhe diga. É um disco que traz con- despedida de Fandango, a fechar: “O
“Banquete de abraços”
portuguesa se sigo, não apenas uma história (a de
uma família inventada a partir de per- Musicalmente, Família Fandango tira
Escondidinho fechou/ a aldeia inteira
anoiteceu/ só Benjamim não chorou/
misturam em sonagens reais, e próximas de quem
as criou), mas também os traços mu-
partido do um cruzamento entre so-
noridades: “Não podemos fugir às
no dia em que Fandango morreu”.
Susie: “Sabemos que um fim ante-
perfeita alquimia. sicais da formação dos seus músicos: nossas origens e todas elas vêm da cipa sempre um início e o início traz
Susie Filipe (voz e bateria) e Vítor música anglo-saxónica: rock’n’roll, sempre um fim, como é o fim deste
Hugo (voz e guitarras eléctricas e blues, folk, country. Mas como o pri- disco e também desta personagem,
A fabulosa
acústicas), ambos integrantes da meiro disco deste projecto retratava que morre quando nasce mais um
banda aveirense Moonshiners, que a vida de um seio familiar tipica- bisneto.” O relato da canção replica,
em 2022 completará dez anos de exis- mente português, achámos que havia de certo modo, o que sucedeu com
tência e vai celebrá-los com novo ál- aqui um entrosamento com algum Aníbal Fandango, avô de Susie: “O
contada
mos, são os nossos amigos e as nossas der logo o ouvinte à história. E se ao (no concelho de Anadia).
famílias, evidentemente”, diz Susie longo do disco há sempre uma base O jantar de família retratado na
ao Ípsilon. “Quando começámos a portuguesa (“com uma roupagem canção evoca um outro encontro
pensar o que é que seria a Família mais tradicional”) sentem-se influên- adiado, o dos artistas e músicos com
DARYANDORNELLES
udo começou em Kansas
City, Missouri, Estados Uni-
dos. Estávamos em 2018
quando a artista multimédia,
escultora e fotógrafa brasi-
leira Lúcia Koch, que traba-
lha muito a alteração da experiência
dos lugares e dos ambientes, desa-
fiou Domenico Lancelloti para com-
por música original para uma insta-
lação artística a ser implementada
num bairro negro da cidade norte-
americana. Foi a partir desse pro-
jecto a dois que o músico brasileiro,
a viver em Lisboa desde há ano meio,
deu início ao longo processo de pro-
dução de Raio, o primeiro lança-
mento, a ser efectuado na próxima
sexta-feira, pela nova editora portu-
guesa Arruada.
“É isso mesmo, foi aí que tudo
teve início, nesse projecto que tinha
muito a ver com a terra, com o lugar,
o espaço”, reconhece Domenico, 48
anos, carioca de ascendência ita-
liana, já com dois álbuns anteriores
a solo (Cine Privê de 2011 e Serra dos
Órgãos de 2017), para além de ter
integrado o projecto +2, ao lado de
Moreno Veloso e Alexandre Kassin,
ou a banda rock experimental Mu-
lheres Q Dizem Sim, e colaborado
com Adriana Calcanhoto, Caetano
Veloso ou Gal Costa, ou participado
em ideias colectivas como a Orques-
tra Imperial. Agora aí está Raio,
magnífico álbum onde parte das
raízes da música popular brasileira
para compor canções onde subtis
elementos electrónicos e motivos
percussivos (Domenico é multi-ins-
trumentista mas é conhecido essen-
Domenico Lancelloti
na feitura do novo trabalho, diz, re-
sultou da convivência com alguns
indígenas do Acre, estado no no-
roeste do Brasil, na floresta amazó-
nica. “Antes de vir para Portugal,
através de várias oficinas, partilhas
e convívios, encontrei essa possibili-
dade de conhecer a música do povo
Huni Kuin e de entender a sua ma-
neira de se relacionar com todas as
coisas e aprendi imenso. Isso me in-
Como chegámos a esse labirinto?, interroga-se o músico brasileiro, numa
fluenciou imenso, a sua música e a
forma como interagem com a natu-
obra de canções que deixam a luz entrar, inspiradas em aprendizagens da
reza. Então esse disco partiu dessas cultura indígena.
duas dimensões: o projecto artístico
de Kansas City e a convivência com
os indígenas Huni Kuin.”
Em todas as canções se sente uma
ligação profunda com elementos Vítor Belanciano
Em todas
como a terra ou o mar, numa zona
de confluência onde a procura de as canções
se sente
xão com esse outro lado do espelho.
É a esse lugar que quero chegar com “Às vezes a melhor Em Portugal, ainda não existiram
grandes hipóteses de colaboração
uma tranquilidade interior não é dis-
sociável da consciência colectiva do uma ligação
profunda
a música. Esse lugar que te faz ter
força, que faz mover coisas, que faz forma de nos com músicos locais, “até porque che-
guei num momento muito difícil”,
mundo exterior. Às tantas, em Ondas
do mar, Domenico canta que “somos com
elementos
dançar. E sim, tem a ver com esse
renascimento, essa mudança de pa- conectarmos afirma, “e logo depois, quando me
estava adaptando, surgiu a pande-
o mar”. E é isso. Não existe a natu-
reza de um lado e os seres humanos como a terra
ou o mar,
radigma, até para sobreviver a esse
sítio confuso e estranho onde agora é desconectar”, mia e fiquei sem a possibilidade de
tocar.” Ainda assim já desenvolveu
de outro. Somos natureza.
“O Brasil é uma loucura! Tem um numa zona de
confluência
chegámos.”
Para Domenico estamos no labi- resume. “Ou pelo algumas experiências. “Conheci uma
turma de angola, relacionada com o
montão de coisas coexistindo ao
mesmo tempo”, tenta justificar, re- onde a
procura
rinto. Utilizamos linguagem militar
quando nos referimos à pandemia, menos, fazendo-o Kalaf Ângelo e o [escritor] Agualusa,
e acabei dando um concerto com o
flectindo sobre os ensinamentos da
cultura indígena. “Nessas oficinas, de uma
tranquilidade
como se estivéssemos em guerra
com o vírus, mas neste caso, como de outra forma. angolano Toty Sa’ Med, e também fui
assistir a uns fados na Mesa de Fra-
encontros e rituais onde participei
não foi apenas a música que me in- interior não é
dissociável da
noutros, trata-se de saber coabitar.
“Essa é a única solução para a espé- O momento des. Ao mesmo tempo tenho traba-
lhado com o artista plástico Tomás
teressou, mas também a ligação in-
dígena com a terra, com o sagrado. consciência
colectiva
cie humana nesse momento. O que
pode nos salvar é esse olhar, outras conflituoso que da Cunha Ferreira, que foi o meu
primeiro amigo português quando
Mas, claro, a música é muito bonita
e antiga, não tem percussão, o que do mundo
exterior
perspectivas de mundo e de cosmo-
visões.” E para isso é necessário estamos a viver ainda estava no Brasil, fazendo ses-
sões de improviso com electrónicas
faz com que tenha alguns traços de
música contemporânea ao mesmo
preservar culturas como as indíge-
nas que, mesmo sendo alvo de con- no planeta exige e imagens. Temos até uma banda
chamada Comum.”
tempo e seja muito dinâmica e ac-
tiva. É música que tem como finali-
tínuas agressões, acabaram por so-
breviver. “Essa ligação com o sa- uma renovação, Como outros brasileiros, da mú-
sica ou das artes, Domenico fez as
dade chamar espíritos, forças e ener-
gias. É música muito forte mesmo.”
grado é algo que essas culturas
ancestrais ainda conseguem preser- um ressurgimento, malas para Portugal depois de Bol-
sonaro ter ganho as eleições. E para
É música poderosa, mas serena. A
tranquilidade que só advém da sabe-
var. Na Europa, por exemplo, sinto
que é difícil encontrar uma relação uma nova já não vê forma de regressar. Nem o
aparente retorno ao activo do ex-pre-
doria. São assim a maior parte das
canções de Raio, com muitos ele-
mentos circulando, entre motivos
com o tambor e com uma música
que seria a essência desse lugar. Ou
seja, é muito difícil encontrar mani-
perspectiva de vida” sidente Lula da Silva o deixa crente
no futuro mais próximo. “Tem ainda
muita coisa para a gente sofrer, até
acústicos e digitais, mas é um dina- festações que ainda preservam, por tirar esses bandidos do poder. Não
mismo de tom pausado e envolvente, exemplo, aquilo que seria a Europa tenho muita esperança a curto prazo.
aquele que nos é devolvido. No tema antes da igreja católica. Mas em al- O Lula traz uma esperança que é di-
final, Newspaper, existem alusões ao guns lugares do mundo, como o ferente do resto da esquerda – que
mundo contemporâneo, onde esta- Brasil, ainda tem isso, graças aos faz parte do mesmo problema sisté-
mos conectados a toda a hora. “Às povos nativos, mas não só. E isso é mico porque têm algumas pessoas
vezes a melhor forma de nos conec- um colosso de aprendizagem. Mas que vêm de uma classe média-alta
tarmos é desconectar”, resume. “Ou uma parte significativa da classe mé- com agenda própria – mas ele está
pelo menos, fazendo-o de outra dia brasileira prefere ver a novela muito sozinho. Mas, sim, o que me
forma. O momento conflituoso que das oito. E não quer nem saber.” dá ainda alguma esperança no Brasil
estamos a viver no planeta exige uma Aprender com o que é perene, o é o movimento Sem Terra e a figura
renovação, um ressurgimento, uma que se manteve, o que ficou, para lá do Lula. Mas é difícil. O que aconte-
nova perspectiva de vida.” das atropelos cometidos, para me- quem colaboro até hoje, onde essa ceu, a tomada do poder por bandi-
Em todos os nós por desatar da lhor desenhar um espaço de futuro. ideia de cooperação era incentivada. dos ligados aos militares, é um pro-
vida contemporânea está presente Ir à raiz, para perceber em que mo- A música é uma alegria que reside cesso complicado.”
a ligação difícil com o meio am- mento o caminho começou a dar nessa possibilidade de você poder Para já, no horizonte ainda que
biente. Mais uma vez isso está a ser errado. “Esse é o momento de olhar conviver. Por isso, quando tenho al- não particularmente límpido pelo
constatado através da pandemia. para isso. Aprender. Porque está guma ideia de melodia, ou de harmo- contexto actual está o ensejo de
Mas ainda existe dificuldade em claro: deu errado! Então vamos vol- nia, com o violão, fico pensando logo apresentar o álbum ao vivo. “Tenho
aceitar que a relação predatória e Raio tar atrás e perceber o que se man- com quem aquilo combina, tanto esperança que se abra a possibili-
extractivista encetada pelo homem Domenico teve. Vamos ver no Renascimento, podendo ser o Moreno, como o dade de voltar a tocar que é o que
na sua relação com o planeta nas Lancelloti por exemplo. Vamos ver em termos Bruno Di Lullo, meu grande par- gostamos de fazer”, diz, lembrando
últimas décadas tem de mudar de Edi. Arruada colectivos como é que a gente vai ceiro, que está em quase todas as que em Lisboa há uma série de mú-
rumo. O que exige um novo tipo de fazer. Como chegamos a esse labi- músicas deste disco. É um baixista e sicos que fazem agora parte da sua
entendimento da realidade. mmmmn rinto? Como é que nos acercamos compositor incrível.” banda. Alguns chegaram durante a
“Quando dizemos ‘a nossa relação dessa crise que estamos a viver de Conheceram-se quando andavam pandemia e outros já cá estão há
com a natureza’ já estamos a encetar forma colectiva?” em digressão com Gal Costa, tendo algum tempo. “É o caso do Ricardo
uma separação, a criar uma barreira, É uma tarefa colectiva, faz questão aí começado a fazer música juntos. Dias Gomes, que tocava com Cae-
como se existíssemos nós e do outro de vincar, tal como a criação musi- “Às vezes faço uma harmonia, mas tano, e que mora aqui faz anos, ca-
lado do espelho a natureza. Do cal. Este é um álbum a solo, mas ele sou baterista, não sou tanto da har- sado com uma portuguesa.” E não
ponto de vista indígena não existe a diz que no processo de feitura das monia assim, e então eu envio para é só o tocar, é também o viajar,
palavra natureza. Nem sociedade. É canções é impossível não imaginar ele e ele me abre outras possibilida- aquilo de que mais sente falta. “O
uma coisa só. Está tudo misturado. outros intervenientes. “Gosto de tra- des. Trabalhamos muitas vezes jun- disco vai ser lançado também em
Sempre retive isso comigo de forma balhar em conjunto, essa coisa da tos. Depois, por norma, levo para o Espanha, por isso espero poder ir
intuitiva, mas depois desse convívio banda. Venho de uma experiência estúdio onde vão surgindo outras tocar por aí, a Madrid, Paris, Lon-
comecei a valorizar mais. Para eles de escola, onde conheci o Moreno ideias. É um processo muito em dres e por esse Portugal.” Para já o
tudo é sagrado, exigindo uma cone- Veloso, ou o Pedro Sá, músicos com aberto.” Brasil pode esperar.
H Ao
ALYSSE GAFKJEN
á dez anos, ainda no liceu,
Julien Baker tinha uma
banda de indie-rock, The
Star Killers. Em 2015, lan-
çou um disco “a solo bas-
tante esparso”, só para, diz,
“se divertir e gravar algo”. As pessoas terceiro
gostaram de Sprained Ankle e foi ati-
rada para uma carreira na música.
“Fiz uma digressão e acabei por me disco,
Julien
tornar um produto do meu am-
biente, habituei-me a canções mais
esparsas e minimalistas”, explica ao
Ípsilon via Zoom a partir de Na-
shville, Tennessee, onde vive, para
falar do novo disco, Little Oblivions,
o seu terceiro. Baker
descobre
“Quando estava a fazer este disco
tentei livrar-me de algumas limita-
ções que tinha construído para mim
própria, que talvez não fossem reais
para mais ninguém”, conta. Por isso,
este terceiro álbum da cantora-com-
positora tem um som de banda com-
pleta, com mais rock, baterias, ex-
plosões, reverb, distorção e outros
quem é
efeitos, mesmo que a maioria dos
instrumentos sejam tocados pela
Oblivions é o
própria Baker — com a ajuda do en- novo álbum da
genheiro de som Calvin Lauber, que
a ajudou a produzir e toca “umas cantora-
baterias e umas guitarras”.
O disco saiu no final de Fevereiro
-compositora do
e, como é óbvio, atravessando o Tennessee, em
mundo uma pandemia, Baker ainda
não o tocou ao vivo. Apesar de já ter que abraça o som
actuado com banda completa em
programas como Late Night with
de uma banda metalcore da sua cidade, Bartlett,
subúrbio de Memphis. “Era filha
romper com o ideal feminino. Ela
tem a capacidade formal de ser boa
Seth Meyers ou CBS This Morning. A
frustração de não poder tocar não se
depois de álbuns única, os meus pais ouviam hair-me-
tal, não tive um caminho para o punk
cantora, mas fazia intencionalmente
sons feios e disruptivos e foi rece-
prende só com a pandemia. É que mais esparsos. a sério, mais antigo”, confessa. Foi bida de forma diferente dos ho-
Baker, 25 anos, deu o seu último con- descobrindo “música mais pesada” mens, houve uma questão diferente
certo em 2019. Tirou um ano sabá- e a ficar “cada vez mais investida” de autenticidade à volta dela que
tico, que acabou por se transformar, nela, a ler livros “sobre a história do me pareceu injusta para ela.”
contra a sua vontade, em dois, para
voltar a estudar, acabar a faculdade
Rodrigo emo, do hardcore, do punk” e “auto-
biografias de músicos de que gos-
O único lançamento de boygenius,
um EP homónimo de 2018, serviu
e parar um bocado. “Tem sido sau-
dável passar muito mais tempo em Nogueira tava”. Ganhou uma “apreciação
histórica” por Kathleen Hanna, de
para três mulheres “abertamente
amigas” andarem em “digressão jun-
casa e perceber quem sou como pes- Bikini Kill e Le Tigre, e começou a tas” e “lançarem discos ao mesmo
soa quando não estou em constante gostar da sua música dela, já mais tempo”, mostrarem às pessoas que
movimento”, comenta. velha. “É algo de que me arrependo, a única razão pela qual as compara-
Depois de uns anos em que, ainda toda a hora. Em vez de tocar as can- porque adorava ter tido uma vam era porque eram “todas mulhe-
nova, tinha sido posta na estrada, a ções que as pessoas já tinham ouvido, Kathleen Hanna para admirar, mas res que fazem música com guitarras
tocar, a fazer música, sem parar, que- ou o que era esperado de mim, estava o tipo de música que me estava a ser e cantam”.
ria perceber quem era. “Tinha deci- só a tocar música que me preenchia dado pelos meus amigos e os media “Não tem de haver comparação
dido quem eu era e que os meus e me fazia feliz. Talvez não feliz...”. era só de rapazes”, lamenta. entre todas as mulheres que fazem
comportamentos e os princípios por É que a música que faz é “bas- É algo que se liga à ideia por detrás indie-rock, são só pessoas a fazerem
que me regia eram o que me definia tante” triste, diz a própria, sobre os do nome de boygenius, o trio a que o seu tipo de música”, afirma.
enquanto pessoa. Eu sou a Julien, o problemas emocionais, o passado e Baker pertence com Phoebe Bridgers A Julien Baker que queria ter tido
que é que me torna a Julian? Sou ve- recaídas do abuso de substâncias, e e Lucy Dacus, que tem que ver com uma Kathleen Hanna para admirar
gan e straight edge [não bebe nem erros no geral. “Uso a música como a forma como os tais “rapazes” das em nova é agora ela própria alvo de
toma drogas], tenho todos estes uma forma de ter uma conversa co- bandas que ouvia em nova são facil- admiração.
comportamentos específicos, mas e migo própria sobre as minhas emo- mente considerados génios. “As mu- “Tenho a minha própria descon-
se eu parasse de os ter e deixasse de ções e uma forma de perceber como lheres têm tido, historicamente, um fiança sobre essas questões. A repre-
ir em digressão, onde é que estaria a articular coisas que não conseguiria número limitado de formas como sentatividade é sem dúvida muito
minha identidade?”, perguntou-se. dizer numa conversa nem perceber podem ser vistas como geniais, importante, e ter mais pessoas mar-
“Sinto que se tornou bem mais sozinha. Este disco é feito de histó- quando brilham na música de ma- ginalizadas a fazerem arte é necessá-
fluída. Pus muita da minha auto-va- rias deste período de muita auto-e- neira muito específica. Muitas vezes, rio. Mas também desconfio quando
lorização e identidade nos princípios xaminação, de admitir coisas que fiz isso está ligado a um ideal feminino, uma ideologia se torna moda”, diz,
por que me regia, ao invés de decidir que são humilhantes, embaraçosas como cantar de forma bonita”. adicionando que é algo que, “nos
os meus princípios com base no que e nocivas”. É um período que, subli- Kathleen Hanna não era assim. “Era últimos cinco anos”, tem sido cada
é saudável”. nha, “nunca acaba”. por isso que era tão controversa, vez “mais fácil” do que há dez.
Nesse tempo que tirou, continuou está só a gritar e a tocar aquela gui- “Posto isto, é assim tão mau que
a tocar música, já não se sentindo Ter uma Kathleen Hanna tarra louca e as pessoas, porque ela agora faça parte da consciência cul-
“obrigada a ser um tipo de pessoa para admirar é mulher, não lhe dão o mesmo re- tural procurar intencionalmente
consistente”. “Quando tirei este Quando tinha bandas, em adoles- conhecimento artístico que, sei lá, mais artistas queer, trans, mulheres,
tempo da estrada não estava a pôr-me cente, ouvia o que os amigos lhe uns Black Flag, uns Ramones ou uns que não sejam cisgénero? Não acho
no contexto de alguém que actua a mostravam, o que eram bandas de Minor Threat. Porque ela está a que seja”, conclui.
Câmara Escura
Vasco Câmara
Francis Ford Coppola , o soldadinho de chumbo
U
m acontecimento cinéfilo em plena terceira
vaga da pandemia covid-19: o regresso a
Francis Ford Coppola. Haverá razões para
suspeitar que pode ter sido também um
acontecimento criado pela pandemia, como
efeito colateral das restrições e perdas que
andam a constrangir o épanouissement do desejo. Que
precisa de ser libertado. Foi assim que, subitamente,
no final do Inverno passado, em França — país onde o
impulso cinéfilo ainda deixa registo nos sismógrafos —,
estando as salas fechadas, o que, para além da
infelicidade social não é menos do que uma
humilhação para a forma como os franceses gostam de
olhar para si próprios (veja-se a cerimónia dos Césares
de sábado passado...), e estando a chover no coração
dos espectadores (idem), ainda assim o cinema teimou
em encenar o seu espectáculo. Colocou Francis como
tema de ensaios críticos e na capa de revistas. Não por
causa de mais uma metamorfose de Apocalypse Now
(1979), esse bicho que em quatro décadas se foi
aproximando de nós com outra(s) pele(s). Não devido
a uma reabilitação de Do Fundo de Coração/One From
the Heart (1981), cintilante affair electrónico cuja
incompreensão e clamoroso flop, à sua época, são
parte integrante da mística de um objecto entretanto
entronizado.
Não. Francis Ford Coppola apareceu na capa de
Fevereiro dos Cahiers du Cinéma (com o seu vinho,
fotografado pela filha Sofia em Napa Valley), afagado
nas páginas do interior por amigos e cúmplices, como
o músico e actor Tom Waits ou o director artístico
BETTMANN/GETTY IMAGES
Dean Tavoularis, e por pupilos, como o cineasta James
Gray (que no papel como na película é um esmerado
aprendiz), não por causa do filme que é uma trip nem
por causa do musical que sonhou com o live cinema; Jardins de Pedra é o seu ritual funerário. Sendo também, nas
mas por causa da edição em DVD e Blu-Ray, pela
Carlotta Films, de Peggy Sue Casou-se/Peggy Sue Got bagarres entre James Caan e James Earl Jones, a mais fordiana
Married (1986) e Jardins de Pedra/Gardens of Stone
(1987). das suas obras. Uma das maiores, entre o filme secreto
Repare-se: são dois dos títulos da fase menos
unânime do cineasta, os anos 80 e 90, aquela em que a e a confissão impúdica, o que em 1986 poucos seriam capaz
sua filmografia foi preenchida por encomendas,
objectos recebidos como “menores”, que eram ofertas
que Coppola não podia recusar se queria comprar a
de defender
sua sobrevivência, se queria aliviar a catástrofe
financeira do pós-One From the Heart, o filme que O regresso a Peggy Sue Casou-se e Jardins de Pedra, dois títulos da fase mais problemática de Francis
mandou o sonho da comunidade de artistas sonhado Coppola, os anos 80
pelos estúdios da Zoetrope pelo cano abaixo.
Foi período de ressaca para o realizador. E para os
que tinham encontrado num cineasta megalómano,
mas que se entregava desarmado às suas emoções os Cahiers intercedam pela terceira parte da saga O 70, gritava-se: “Francis has the power, we will rule
(mais do que qualquer dos outros da sua geração), o Padrinho, a mais discutível, aquela que nunca pôde Hollywood, we will rule Hollywood”.
mapa da sua viagem de espectadores. Sentimos todos igualar-se à monumentalidade glacial da parte II, por Mas Francis foi, em vez disso, aquele que teve a mais
com os filmes o arrefecimento de uma utopia, o final exemplo. Vem isto a propósito de uma nova conturbada (des)adequação ao sistema quando
do reinado dos autores — em suma: que a brincadeira montagem, intitulada The Godfather Coda: The Death Hollywood se reconfigurou através de corporações,
acabara — embora fôssemos demasiado miúdos ou of Michael Corleone, e Coppola explica, para além da blockbusters e tops dos fins-de-semana de bilheteiras.
sem a distância suficiente para o verbalizar. Isso foi o variação do título, a razão e as decisões tomadas neste Ou seja: quando as aspirações dos movie brats foram
que aprendemos a fazer ao longo das décadas regresso ao final da trilogia dos Corleone. São, derrotadas. Scorsese, por exemplo, que também teve
seguintes: a decepção, o luto. fundamentalmente, as mesmas que o levaram a o seu One From the Heart no arrebatador New York New
“mexer” em Apocalypse Now: colocar-se hoje perante York de 1977 (Peter Bogdanovich teve-o com o sublime
We will rule Hollywood o objecto de forma livre das pressões que o They All Laughed, em 1981, o ano de Heaven’s Gate, de
No primeiro parágrafo do editorial dos Cahiers, constrangiram na época. Michael Cimino...), foi-se adaptando ao estado das
Francis Ford Coppola é “o maior cineasta americano Foi o primeiro da sua geração, os movie brats, a coisas e tem hoje o estatuto exemplar de cineasta
dos últimos cinquenta anos”.É menos um combate entrar na indústria, como argumentista de This oficial norte-americano. Nada disso pode Coppola
para impor um estatuto mítico do que uma operação Property is Condemned, de Sidney Pollack, Is Paris ostentar. Atravessou metamorfoses várias que
de pacificação. Como se fosse necessário lamber as Burning?, de René Clément, ambos de 1966, e de rimaram com o retrato que o amigo e rival George
feridas da obra, resgatá-la, para o mito poder ser Patton, 1970, de Franklin J. Schaffner. Antes de fazer Lucas lhe tirou: “De todas as pessoas que conheço é
unificador e não sinal de turbulência, de uma perda. 40 anos já era o mais poderoso da Nova Hollywood. Francis que tem o maior ego e as maiores
Para ficarmos em paz com as contradições de Francis Fez-se ouvir de forma tonitruante entre O Padrinho I inseguranças”.
Ford. Não é por acaso que ao lado do novo olhar que (1972, 3 Óscares), O Padrinho II (1974, 6 Óscares) e Do ego ficámos servidos com Apocalypse Now, o
Peggy Sue Casou-se e Jardins de Pedra agora despertam, Apocalypse Now (1979, 2 Óscares). Nas festas, nos anos filme a propósito do qual a própria mulher, e
ípsilon | Sexta-feira 19 Março 2021 | 19
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Coppola, soldadinho de chumbo, sonha em Jardins de Pedra com as suas guerras, lamenta os seus mortos (o filho, Gian-Carlo, desaparecido por essa altura
num acidente), lembra-se do passado. É o seu ritual funerário. Sendo também, nas bagarres entre James Caan e James Earl Jones, o mais fordiano dos seus
filmes
A melancolia de Jardins de Pedra e de Peggy Sue Casou-se pode desajustes. Mesmo que o espectador não saiba o que é
que o realizador teve de fazer tecnicamente para pôr
ser hoje mais justamente valorizada. E o filme da viagem no tempo de pé este plano que de outra forma seria impossível,
sentirá que ali se concentra uma gravitas. A abertura
com Kathleen Turner, não sendo um dos inesquecíveis Coppola, de Peggy Sue Casou-se, investida desta fulgurante
discrição, se assim se pode dizer, é então o mais belo
mas tendo-se cumprido como sucesso comercial, mostra-se hoje momento do filme.
Se no final a heroína parece ter encontrado uma
mais decisivo no desacerto em relação ao seu tempo qualquer paz, esse final é o caderno de encargos da
encomenda. Substituindo Peggy Sue por Francis Ford
Coppola, até para seguir o mito (talvez) de que é nas
obras em relação às quais são mais exteriores que os
artistas menos escondem a sua biografia, então
Turner enceta a viagem à década de 60 com o seu Palma), e o movimento da câmara faz-se em sentido sabemos o que temos diantes dos olhos. Peggy Sue
corpo, de quarentona, dos anos 80, permanecendo contrário, do reflexo (do mundo dos sonhos) recuando Casou-se: um filme sobre a impossibilidade de
sempre uma estranha da sua “viagem”. Dificulta-se o até à realidade. Num e noutro caso, os reflexos não o pacificação entre a imagem do presente e a do
flashback revivalista porque a coisa se torna reflexiva, são verdadeiramente. Nem existe espelho sequer. De passado.
filosófica. outra forma, e devido ao enquadramento frontal, a Lembramo-nos do que Francis Coppola nos disse,
Começa logo na sequência de abertura (e na câmara e a equipa e o plateau apareceriam no ecrã. em entrevista, o ano passado: “Espero que tanto
simétrica sequência final), quando Turner/Peggy Sue Num brilharete de artesanato, um realizador a quanto possível os meus filmes sejam filmes de família
se maquilha para a festa de reencontro do liceu e a apoderar-se do território da encomenda através do pessoais”. Ouvimos o rumor de Apocalypse Now: numa
câmara avança em direcção ao seu reflexo no espelho virtuosismo, Coppola coloca em cena duplos no papel das versões do filme, Aurore Clément, depois de uma
— tal como na sequência final o filme regressa do de “reflexo” das personagens. A coreografia, por mais noite de amor com Martin Sheen, dizia-lhe, falando
flashback, regressa da festa (que tem, já agora, um ensaiada que seja, nunca é perfeita. Mas a câmara está provavelmente também sobre Francis Coppola, “There
momento com um bizarro odor a Carrie de Brian de ali para captar, e não para disfarçar, os pequenos are two of you”.
já contar com Orlando Furioso de autonomia expressiva dos seus Seria especialmente forçado num tempo específico que
Poesia Ludovico Ariosto (Cavalo de Ferro, poemas, a imponência medidativa estabelecer o paralelo entre Dante, antecipava já os desenvolvimentos
2007, trad. Margarida Periquito; a do sua versificação, o seu que toma por guia Vergílio, na do Renascimento que dariam
Suíte Italiana editora publicou, no ano passado,
uma antologia da mesma epopeia
afastamento dos modelos mais
cifrados (e revistos) do
Comédia, e Eliot, que parece
receber o testemunho, assim
origem ao maneirismo. De “doçura
e força, prazer com surpesa” falou
comentada por Italo Calvino). provençalismo, tornam singular a fazendo de Dante o seu próprio Walter Pater, ao reflectir sobre a
Estão, finalmente, ao nosso Desde 2019, ao magno poema que sua posição no panteão dos guia? Por certo que não, se nos poesia de Miguel Ângelo, na qual o
alcance traduções de alguns relê a gesta de Carlos Magno primeiros poetas italianos. Ezra lembrarmos de quanto o grande crítico pôde destacar “uma
dos mais fulgurantes cumes juntou-se uma edição da poesia de Pound — que magistralmente modernismo de Eliot, como outras energia de concepção que parece,
da poesia italiana que se Miguel-Ângelo, traduzida por João traduziu e estudou o poeta — castas modernistas, o foi também a cada momento, prestes a romper
Ferrão. posicionava Cavalcanti “entre enquanto releitura lúcida e com todas as condições de forma
produziu entre a Idade Média A poesia italiana não começou, todos aqueles que cantaram, não emancipada do legado clássico. adequada, e que recupera, a cada
e o Renascimento. Hugo Pinto certamente, com Guido Cavalcanti. todos os modos da vida, mas Seria inevitável que, em Itália, os toque, um encanto apenas
dos Santos Para tal, seria preciso que não alguns deles; aqueles que, no seu mitos da Antiguidade e a geralmente encontrado nas mais
tivessem existido, entre outros, S. campo de escolha ou fatalidade, perenidade do universo clássico simples coisas naturais” (The
Rimas Francisco, Ciecco Angiolieri, não baixaram a cerviz a ninguém” imprimissem marcas das mais Renaissance: Studies in Art and
Forese Donati ou Sordello — o (Poems and Translations, The decisivas — anda que nunca estas Poetry). Desculpe-se a extensão do
Michelangelo Buonarroti
último dos quais inspirou um longo Library of America, 2003). É ainda deixassem de estar sujeitas a passo citado, para recordar uma
(Trad. João Ferrão)
IN-CM poema filosófico de Robert Pound quem nos diz: “Nenhum permanentes reformulações —, na escrita como esta, que alcaçou
Browning. Dante Alighieri, que foi psicólogo das emoções foi melhor História e na cultura daqueles alguns dos voos mais altos e
mmmmm amigo de Cavalcanti — até com ele no seu entendimento, mais preciso territórios. As sucessivas admiráveis da poesia universal —
se incompatibilizar, na refrega dos na sua expressão, do que Guido aproximações e reenquadramentos “Oh, falaz esperança dos amantes!
Rimas conflitos entre Guelfos e Gibelinos Cavalcanti; não temos nele um feitos ao legado clássico foram Como pode ser dissímile e díspar/ a
—, escreveu: “Guido, eu queria que retórico, mas sempre uma deixando esse timbre identitário infinita beleza, o arrogante lume/
Guido Cavalcanti
tu e Lapo e eu/ fôssemos tomados delineação verdadeira, seja da dor em camadas ciclicamente de todos os meus costumes,/ que
(Trad. A. Ferreira da Silva)
IN-CM por encantamento,/ e postos numa em si mesma, seja da apatia que acrescentadas. Quer nos em mim ardendo, não ardem de
nave que a qualquer vento/ surge quando as emoções e concentremos na Idade Média, no um parecido?” (Rimas, p.289)
mmmmm andasse pelos mares a vosso gosto possibilidades de emoção se Renascimento, ou no que se Miguel Ângelo é um culminar
e meu” (Rimas, p.193). Dante viria a esgotam, ou aquele estranho designou por Risorgimento — e não soberbo para esta cronologia do
Vida Nova. Rimas inscrever a letras de ouro, na estado em que o sentimento, pela é mais do que uma das versões génio italiano. Acerca de um dos
Divina Comédia, a crucial acção sua intensidade, ultrapassa a nossa italianas do romantismo —, o leito primeiros nomes desse friso,
Dante Alighieri
poética não de um, mas de dois capacidade de o suportar, e nós de todos os rios alberga o mesmo Dante, escreveu ele: “De Dante
(Trad. Jorge Vaz de Carvalho e
Guidos. Destes, Cavalcanti foi o parecemos ficar de fora, a ouro, constantemente procurado e falo, que mal conhecidas/ foram
António Mega Ferreira)
IN-CM segundo — “assim tirou a um o observar, enquanto ele aflui, revolvido no lodo das eras: a suas obras pelo povo ingrato/ que
outro Guido/ a glória desta língua” atravessando aquilo ou aquele com harmonia greco-romana, o cânone só aos justos priva de favores.” (id.,
mmmmm (Divina Comédia, “Purgatório”, XI, o qual já não nos identificamos.” dos seus autores, os princípios da p.559) Que, meio milénio depois,
97-8). Guinizeli teve precedência (id.) E pense-se, ainda, que o expressão lapidar e perfeita, que se este sombrio diagnóstico faça cada
Podemos hoje sobre Cavalcanti, mas porventura poema de Cavalcanti em cujo perde na indefinição das eras e das vez menos sentido, eis o que
percorrer, em apenas na cronologia. Porque não incipit se lê: “Pois perdi já origens. Guido Cavalcanti releu podemos esperar.
edição o levaria de vencida: nem na esperanças de tornar” (Rimas, Aristóteles (e Averróis). Dante
portuguesa, uma amplitude de espectro da sua p.103) viria a ser revitalizado, reinterpretou Aristóteles e Cícero. A Colecção Itálica, da Imprensa
das mais expressão, nem na robustez das volvidos séculos, por nada menos Petrarca foi a figura central na Nacional-Casa da Moeda (IN-CM),
grandiosas suas temáticas, tão-pouco na que T.S. Eliot — “Porque eu não actualização dos clássicos que arrancou em 2019 com a edição de
veredas da poesia espessura reflexiva, de uma espero voltar de novo/ Porque eu prefigura o Humanismo de Guido Cavalcanti e de Miguel
universal. abrangência filosófica, dos não espero/ Porque eu não espero Quatrocentos, o antepassado Ângelo. Era a primeira vez que os
Porque, ao fim de considerandos de Guido Cavalcanti voltar” (Poemas Escolhidos, Relógio nominal de todo o ímpeto dois poetas conheciam em Portugal
vários anos, — no Decameron, Boccaccio tem-no D’Água, 2016, trad. Rui Knopfli). renascentista. Através da sua obra, volumes integralmente dedicados à
estão, por “um dos melhores lógicos e um Significativamente, o mesmo Eliot e por meio da sua acção, se sua poesia. Em 2020, foi a vez da
finalmente, ao excelente filósofo natural”. Na abre “A Canção de Amor de J. filtraram e modelaram muitos dos edição de Vida Nova e Rimas. Ao
nosso alcance alquimia, enfim, que era a de uma Alfred Prufrock” com uma citação princípios, parâmetros e influxos primeiro poema, que já fora vertido
traduções de sonoridade que se faz música, e da da Comédia. Seis versos que distantes que a por Vasco Graça Moura, juntava-se
alguns dos mais verbalização que se converte em evocam mais um episódio do contemporaneidade ainda ecoa. a colectânea Rimas, até então
fulgurantes fluência entranhável. Em De conflito que opôs Guelfos e Ariosto apropriou-se, genialmente, inexistente no nosso país.
cumes da poesia Vulgari Eloquentia, Dante chamou Gibelinos e que, portanto, abalou e do que postulara a poesia de Neste ano de 2021, quando passam
italiana que se ao outro Guido “maximus Guido dividiu aqueles territórios entre os Matteo Boiardo, subjectivamente 7 séculos sobre a morte de Dante
produziu entre a Guinizelli” — e, segundo Ezra partidários do poder papal e os revendo essa matéria com toda a Alighieri, a IN-CM publicará uma
Idade Média e o Pound, a Itália nunca mais teve defensores do Imperador do Sacro carga de um autor autónomo e nova tradução da Divina Comédia,
Renascimento. O crítica literária geral depois deste Império: “Pudesse eu crer minha altamente reagente. Tasso e Miguel a cargo de Jorge Vaz de Carvalho. Na
que é o mesmo breve tratado —, mas coube a resposta fosse/ a pessoa que um dia Ângelo, por seu turno, assimilaram mesma colecção sairá uma seleção
que dizer: desde Cavalcanti ser um dos poetas torne ao mundo,/ não daria esta e reinterpretaram a herança do de peças de Luigi Pirandello, edição
o dolce stil nuovo italianos que mais chama tanto couce;/ mas dado que mundo helénico e latino, coordenada por Jorge Silva Melo, e,
de Guido engenhosamente mesclaram a jamais deste fundo/ vivo se cunhando sobre essa matéria ainda no corrente ano, Vida de Um
Cavalcanti até releitura das matrizes clássicas, a regressou, se és verdadeiro,/ sem fundente a novidade da sua própria Homem, de Giuseppe Ungaretti,
uma das reflexão filosófica e a inventividade ter medo de infâmia te secundo.” experiência de artistas surgidos traduzido por Vasco Gato
realizações literária e luminosa do seu próprio lirismo — DR DR
humanamente mais instigantes de “Um espírito desceu do céu,
toda a história da poesia — como a então,/ quando me quis aquela
que escreveu esse artista total que dama olhar,/ e veio-me pousar no
foi Miguel Ângelo Buonarroti. pensamento;// de amor me vai
Dispomos, neste momento, da falando tão a tento,/ que as suas
tradução das Rimas de Guido glórias posso contemplar/ tal como
Cavalcanti, a cargo de A. Ferreira se lhe visse o coração.” (Rimas,
da Silva. Vasco Graça Moura já p.75). É claro que será sempre por
traduzira a Divina Comédia mera conveniência e facilidade de
(Quetzal, 2011) e Vita Nuova de expressão que aqui se fala em
Dante (Bertrand, 2001), mas “Itália”, ou em “poetas italianos”,
também As Rimas (Quetzal, 2018) e tantos séculos antes da tardia e
Os Triunfos (Bertrand, 2004) de complicadíssima unificação (já em
Petrarca. Mas àquele título Oitocentos) de um território que
dantesco juntam-se, agora, além de sempre se balcanizou.
uma nova edição de Vida Nova, de Ainda que não tivesse cabido a
Dante (trad. Jorge Vaz de Vaz de Guido Cavalcanti esse simbólico Estão, finalmente, ao nosso alcance traduções de alguns dos mais fulgurantes cumes da poesia italiana
Carvalho), as suas Rimas (trad. papel de “inaugurar” a poesia que se produziu entre a Idade Média e o Renascimento, de Michelangelo Buonarroti a Guido Cavalcanti
António Mega Ferreira). Podíamos italiana, a verdade é que a
ípsilon | Sexta-feira 19 Março 2021 | 23
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VERA MARMELO
embora uma e outra se não tanto dela se fala —, hélas, ainda a ferver dos 80), Owusu é
Opinião
Moda
Filomena Silvano*
em temp
O uso generalizado de máscaras trouxe
consigo uma alteração substancial das formas
de apresentação de si, e essa alteração foi mais
MATTHEW SPERZEL/GETTY IMAGES
A
pandemia que se iniciou em Wuhan, na
China, nos finais de 2020, afetou o mundo da
moda de diversas maneiras. Para lá da
desaceleração, comum a outras atividades,
ela trouxe consigo uma alteração imediata
dos grandes rituais celebrativos que eram,
até então, as Fashion Week e, dentro delas, os desfiles
de moda, bem como alterações nos modos de vestir,
sendo o uso massivo de máscara a mais evidente. Em
Fevereiro de 2020, enquanto a Fashion Week de Milão
decorria, a informação relativa ao número de casos de
pessoas infetadas por Covid-19 na Lombardia começou
a tornar-se preocupante. O desfile de Giorgio Armani
estava marcado para dia 23, mas, nesse mesmo dia, o
criador de 86 anos cancelou os convites e anunciou
que o evento seria transmitido em direto no site da
O uso de máscaras com marca e nas redes sociais. Foi o primeiro efeito direto
objectivos que não visam da pandemia sobre o mundo da moda. As Fashion
questões de saúde pública Week eram um complexo ritual no interior do qual os
começou antes da pandemia, desfiles apareciam como os momentos performativos
pelo que será necessário ler mais densos. Mobilizavam milhares de pessoas e
a inserção deste acessório correspondiam a muitos milhões de euros de retorno
no vestuário contemporâneo para cidades como Milão, Paris e Nova Iorque. A 3 de
a partir de outros ângulos, abril, o patriarca italiano que se tinha revelado
para entender o papel que ele prudente ao cancelar o evento, publicou uma carta
assume na construção aberta no Women’s Wear Daily em que dava conta de
das identidades todas as contradições que o mundo da moda estava a
26 | ípsilon | Sexta-feira
a-feira 19 Março 2021
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apo deepandemia
vestir
viver e que, num momento de pandemia, deveriam,
segundo ele, ser equacionadas e enfrentadas Os personagens políticos tecidos em estoque; diminuição das viagens e revisão
dos desfiles.
[...] O declínio do sistema de moda como o conhecemos
começou quando o segmento de luxo adotou os métodos que se opuseram, durante Em Maio de 2020, Alessandro Michele, o diretor
criativo que tinha conduzido a Gucci para uma
operacionais da fast fashion, mimetizando o ciclo
interminável de entrega deste último na esperança de a pandemia, violentamente faturação, no ano anterior, de 8750 milhões de euros,
anunciou, numa conferência de imprensa digital, que
vender mais, mas esquecendo que o luxo leva tempo,
para ser atingido e para ser apreciado. O luxo não pode e ao uso de máscaras — Donald a marca ia reduzir o número de desfiles de cinco para
dois, que continuaria a trabalhar no sentido de
não deve ser rápido. [...]
Eu não trabalho assim e acho imoral fazê-lo. Sempre Trump ou Jair Bolsonaro — são, abandonar a distinção entre roupa masculina e
feminina, bem como as tradicionais apelações
e
acreditei numa ideia de elegância intemporal, que não é
apenas um código estético preciso, mas também uma tal como quem os seguiu nas Primavera/Verão e Outono/Inverno. No mesmo
ípsilon
íps
ííp
psiililo
ps llo
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Se
Sexta-feira
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xt -feira 19 Março 2021 | 27
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e período, a Saint Laurent tinha anunciado que 2021/2022), Jeremy Scott optou por um filme em que procedimento — como nas práticas de mecenato
sairia do calendário dos desfiles e faria as num teatro desfilam manequins reais cuja roupa é levadas a cabo nas últimas décadas pelas Fundações das
apresentações segundo uma agenda que conviesse ao comentada, numa referência ao modo de proceder dos marcas de luxo —Cartier, Louis Vuitton, Prada. Mas,
trabalho da marca e Marc Jacobs tinha defendido primeiros desfiles, por uma apresentadora. O filme mais uma vez, a pandemia, não tendo criado um
também a existência de apenas dois desfiles. termina com a artista de burlesque Dita Von Teese a movimento novo, parece ter vindo a adensar uma
Durante um ano, os sucessivos confinamentos desfilar com um vestido de noite vermelho, com prática já existente de interseção com o mundo da arte.
obrigaram por si só à desaceleração do ritmo de aplicações de pequenos corações pretos e uma abertura O confinamento conduziu a um uso suplementar da
produção e de venda de roupas. No início da em forma de coração sobre as nádegas, que nos é internet e, consequentemente, ao adensamento da
pandemia, algumas marcas disponibilizaram, em revelada no plano final. A também italiana Miuccia preponderância das imagens; nesse quadro, as marcas
função das suas possibilidades financeiras e técnicas, Prada encomendou, para apresentar a coleção Multiple passaram a usar as suas próprias plataformas para
as suas fábricas de perfumes e de têxteis para Views (Primavera/Verão 2021), cinco filmes realizados difundir conteúdos artísticos e conceptuais, o que
confecionar gratuitamente gel desinfetante, roupas e por cinco artistas de países diferentes (Terence Nance, promoveu uma consolidação do papel cultural da
máscaras de proteção para o pessoal médico, produtos Joanne Pio Trowska, Martine Syms, Juergen Teller e moda. Neste novo contexto, as marcas são levadas a
que na altura faltavam na Europa. Mas muitas houve Willy Vander-Perre). A concepção do espaço da coleção definir de forma mais precisa os seus universos
que pararam ou foram forçadas a desacelerar a Outono/Inverno 2021/2022 é da autoria do arquiteto culturais e, em consequência disso, observa-se uma
produção porque as marcas diminuíram ou anularam Rem Koolhaas (também responsável pelo projeto da ainda mais forte semantização das roupas. A roupa da
as encomendas. Por enquanto, pouco se poderá dizer sede da Fondazione Prada, em Milão) e a realização do Gucci não pode ser hoje isolada do universo cultural,
sobre o impacto que, mesmo a curto prazo, a crise filme do realizador negro norte-americano Lee Daniels. com contornos cívicos, ideológicos e políticos bem
pandémica e a crise económica que a acompanha Para a marca francesa Dior, o realizador Matteo Garrone definidos, presente nos sete episódios realizados por
terão sobre o sector, mas não há dúvidas que a filmou figuras míticas a quem são mostradas pequenas Gus Van Sant e Alessandro Michele.
pandemia se articulou de forma direta com as bonecas vestidas com as propostas da coleção (também
contradições que muitos dos agentes do sistema já numa evocação das bonecas que no início do século XX Usar máscara
vinham mencionando. Pode-se por isso enunciar a difundiam os modelos de moda). Do ponto de vista do vestir, a pandemia trouxe para o
hipótese de ela ter potenciado e acelerado mudanças Esta tendência, de produção de obras onde se quotidiano do globo a presença massiva da máscara,
que já anteriormente estavam a tomar forma. cruzam as criações das grandes marcas de roupa com o uma peça de vestuário cujo uso estava circunscrito aos
Os desfiles de moda, que eram uma peça essencial do trabalho de arquitetos, atores e realizadores cujas obras espaços medicalizados e aos espaços públicos de alguns
funcionamento do sistema, mas estavam a ser sujeitos a são reconhecidas à escala global, concretizou-se, na sua países asiáticos. A sua saída do mundo restrito dos
numerosos questionamentos, foram profundamente forma mais complexa e elaborada, nos 7 episódios da cuidados de saúde remonta ao início do século XX.
impactados pelas múltiplas restrições resultantes da série Ouverture of something that never ended, Durante a pandemia de gripe pneumónica de 1918, o
pandemia. Depois de Milão, as apresentações das realizados por Alessandro Michele (o diretor criativo da uso de máscaras no espaço público colocou, tal como
coleções Outono/Inverno 2020/2021 nas fashion week Gucci) e por Gus Van Sant (uma figura de culto do agora, problemas, conduziu, tal como agora, a
que se seguiram foram também afetadas. Umas cinema de autor americano). Os episódios seguem um discussões e até mesmo a protestos. Posteriormente,
aconteceram como previsto, outras passaram, como já personagem central, representado pelo performer nalguns países asiáticos o seu uso tornou-se corrente,
havia acontecido com a da Armani, a um registo digital Silvia Calderoni, que se vai cruzando, na cidade de como meio de proteção sanitária das populações
mais ou menos improvisado. A partir dessa estação, as Roma, com pessoas também vestidas com peças da (contra a propagação de vírus e também contra a
marcas viram-se forçadas a procurar outros formatos marca Gucci. Quase todas são figuras reconhecíveis da poluição, um problema mais recente). No Japão, na
que pudessem responder à necessidade de, em cultura contemporânea. O filósofo feminista China e na Coreia o uso de máscara por razões
simultâneo, apresentar as coleções aos consumidores e transgénero Paul B. Preciado interpela Silvia de dentro sanitárias tornou-se num costume. No resto do mundo,
dar forma a eventos performativos congregadores das de um écran televisivo onde profere uma conferência as boas práticas sanitárias implementadas durante a
comunidades que participavam nos desfiles que fala sobre género, patriarcado e poder. O ator e epidemia de 1918 perderam-se no tempo. Este pequeno
presenciais. Para as apresentações das coleções de dramaturgo Jeremy O. Harris ajuda Silvia a descontrair historial conduz-nos facilmente para interpretações que
Primavera/Verão de 2021 foi por isso preciso reinventar. o corpo antes de participar numa coreografia que a opõem o mundo ocidental ao mundo oriental, um
A intensificação da relação entre o trabalho dos bailarina e coreógrafa Sasha Waltz está a ensaiar num caminho minado pelos orientalismos e pelos
diretores criativos das marcas e atores culturais palco de um teatro. A cantora, poetisa e compositora ocidentalismos, modos de pensar dicotómicos e
exteriores ao mundo da moda surge como uma das Arle Parks conversa numa mesa de café com Silvia. A essencialistas que ofuscam, mais do que esclarecem, o
consequências da pandemia que vai provavelmente cantora Billie Eilish canta uma canção. O crítico de arte real. Mas o facto é que o uso generalizado de máscaras
marcar o futuro do funcionamento da indústria, no Achille Bonito Oliva tem uma conversa telefónica com o trouxe consigo uma alteração muito substancial das
sentido de uma lógica de fusão com o mundo da arte. cantor Harry Styles (ex-membro dos One Direction) formas de apresentação de si, e essa alteração foi mais
A marca italiana Moschino, com direção criativa do sobre a contemporaneidade e as relações entre a moda contestada nas zonas do globo que não deram
americano Jeremy Scott, apresentou o filme de um e a arte — a moda veste a humanidade, a arte põe-na a nu continuidade à prática de saúde pública que havia sido
pequeno teatro de marionetas em que estas estão e a música é uma massagem no músculo atrofiado da iniciada na Europa no princípio do século XX. Essa
vestidas com miniaturas das roupas da coleção (citando sensibilidade coletiva. Digamos que a nossa época é uma diferença é inegável, o que não quer dizer que resulte
os primórdios da moda, quando pequenas bonecas época de contaminação, onde prevalece uma de formas substantivamente distintas de conceber a
com os modelos das casas de costura circulavam pela desconfiança no futuro, mas também uma apreciação do relação entre o individuo e a sociedade. Numa situação
Europa). Uma marioneta representando o próprio presente. pandémica como a do covid-19, o uso de máscara
Jeremy Scott faz as honras da casa e pequenos bonecos Os cruzamentos entre o mundo da moda e o mundo correspondeu simplesmente a uma prática de saúde
sentados na assistência transportam para o filme da arte estiveram sempre presentes, tanto no próprio pública que levou em consideração a existência de
personagens centrais do mundo da moda, como a processo de conceção das roupas e dos acessórios — o outros humanos. Furtar-se ao uso da máscara, qualquer
diretora da Vogue americana Anna Wintour e a editora trabalho de Elsa Schiaparelli, que colaborou com que seja o contexto cultural em que isso aconteça,
de moda do NewYork Times Vanessa Friedman. Para a Salvador Dali, Alberto Giacometti e Jean Cocteau, será equivale à negação de princípios societais elementares
coleção seguinte (Jungle red — Outono/Inverno talvez o exemplo histórico mais evidente desse e universais.
A pandemia trouxe consigo uma inversão das prioridades que podia ser, desde há muito, real para as vedetas c
comum: fez com que o rosto perdesse importância no espaço público físico (dado que passou a
(dado que passou a ser o único sítio em que ele é integralmente visível)
s cinematográficas (cuja existência esteve, desde sempre, ancorada nas imagens), mas não o era para o cidadão
u a andar tapado) e fez com que o rosto ganhasse mais importância no espaço público virtual
)
Contra a onda de indignações e exclamações presumidamente inteligentes às atitudes das a mim, que nunca me deu para a poesia,
que se ergueram publicamente por causa do pessoas obviamente estúpidas. A partir desta ficaram-me as aulas ao ar livre a ver o Tejo
episódio da tradução, em neerlandês, do poema dicotomia, não há discussão, não há razão crítica, onde aprendi a distinguir as folhas das plantas
de Amanda Gorman, lido pela autora na há apenas interjeições públicas transformadas pelo seu recorte. Registei até hoje, vá lá
cerimónia da tomada posse de Joe Biden, como em discurso. Ora, as coisas são muito mais saber-se porquê, as oblongas, falciformes e
presidente dos Estados Unidos, Daniel Blaufuks complicadas. É o que mostra Daniel Blaufuks lanceoladas. A memória é um mistério mais
aplica-se a ver a questão de outro modo que tem neste artigo que, para além disso, tem o efeito de intrincado do que o plano de vacinação
os seus riscos, mas tem a grande vantagem e tornar visível uma reversibilidade: o politicamente contra a covid-19!
inteligência de colocar as questões noutro incorrecto tornou-se a suprema manifestação do Na verdade, o que mais me fascinava no
patamar que não é o da reacção das pessoas politicamente correcto. E vice-versa. jardim (projectado por ocasião da Grande
Exposição do Mundo Português em 1940), só
era realmente visível à noite, quando a fonte
luminosa lançava, qual alquimia do fogo, os
FICHA TÉCNICA: DIRECTOR MANUEL CARVALHO EDITOR VASCO CÂMARA DESIGN MARK PORTER, SIMON ESTERSON DIRECTORA seus jactos de água em direcção ao céu, numa
dança de cores que, parecendo magia,
DE ARTE SÓNIA MATOS DESIGNER ANA CARVALHO E SOFIA ESPADINHA MARTINS E-MAIL IPSILON@PUBLICO.PT resultava afinal da manipulação humana de
30 | ípsilon | Sexta-feira 19 Março 2021
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se cada coisa tem o seu tempo — ainda assim, desempregada”. Mas vai-se mais longe: uma criatividade em que trabalhava sem parar (nem falar,
abençoados frigoríficos! — há que lembrar que pessoa com deficiência deixa de ser ou comer) de manhã até à noite. E nem mesmo
o citado Muro começou a ser destruído no dia deficiente, podendo apenas ser referida como abrandou quando Paul Gauguin o foi visitar.
em que, eufóricos, os alemães dum lado e “pessoa com deficiência”, os idosos deixam Por aqui e para mim, que não sou artista mas que
doutro puderam reunir-se sem risco de serem de ser idosos, embora possam ser — e devam escrevo, a rotina de sair todas as manhãs para ir tomar
mortos. Quanto ao Padrão, na sua versão em ser — “pessoas idosas”. Supõe-se, café fora deixou de existir. Sento-me à minha mesa,
cantaria e pedra, está lá desde 1960 e não naturalmente, que as pessoas possam que dá para os logradouros das traseiras numa capital
PAUL BRUINOOGE/PA
consta que nenhum movimento continuar a serer pessoas… meio rural, quase sem automóveis nem aviões. A
revolucionário o tenha querido deitar abaixo niversidade de Manchester
Lá fora, a Universidade ameixeira já floriu, e as galinhas dos vizinhos avisam,
avis
nos últimos sessenta anos. nçou recentemente a esta
também se lançou por volta do meio-dia, que
Todo este chinfrim ridículo e triste (mas ndável) tarefa de neutralizar a
notável (e infindável) puseram um ovo. Abro o
sempre grandiloquente) fora já assinalado alguns casos dourando a pílula:
linguagem, nalguns computador.
pelo escritor Ruben A. (que não me canso de ofra de cancro”, por exemplo,
“pessoa que sofra
citar). Numa Lisboa sonolenta, assim dá por passa a “pessoaoa que vive com cancro”.
terminado mais um dia de trabalho o eduz-se que “pessoa que
Neste caso, deduz-se
protagonista de O Outro que Era Eu: ncro” passe a “pessoa que
morreu de cancro” L
Por Luísa
“Arrumava os canivetes, punha o lápis ncro até ao fim”, o que fará
viveu com cancro So
Soares
vermelho dos devedores e o azul dos credores uma enorme diferença ao morto. Oli
de Oliveira
na lata que tinha borrachas, apara-lápis e A novilíngua a de Orwell vai pois de
clips, e com a secretária bem limpa, fechado à vento em popa. a. Fora o resto. E nós que
chave o livro da facturação, espedia-me do o queríamos era vacinas. De
senhor Sousa até ao dia seguinte, uma ero, desde que
qualquer género,
despedida com que nos comovíamos todos, eficazes.
não fosse algum partir para o Oriente”. Em vez disso,o, na União
A obsessão com o derrube de estátuas em Europeia, onde de também não
tempos de paz não é nova (cf. o exemplo cratas encartados,
faltarão burocratas
caseiro da estátua do Padre António Vieira o ualmente sobre
medita-se actualmente
ano passado). Mas talvez a situação mais a emissão de um “passaporte
caricata e absurda — e que nos devia fazer verde” (tinha de ser!) que,
reflectir não só sobre a utilidade de derrubar ertificado
servindo de certificado
estátuas, mas também sobre os seus sanitário aos eleitos,
resultados práticos — teve lugar, também em permitirá salvarar o turismo
2020, em Londres, quando Winston Churchill nge vai, pois, o
no Verão. Longe
se viu enjaulado, em risco de vir abaixo sob a tempo em que e a minha avó
acusação de racismo, ao mesmo tempo que dizia: “Quem tem vagar, faz
era defendido por musculados militantes colheres”.
ípsilon | Se
Sexta-feira 19 Março 2021 | 31
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