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Ipsilon 20210319

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‘onde encontrar luz nesta interminável sombra?


Os direitos de propriedade intelectual de todos os conteúdos do Público – Comunicação Social S.A. são pertença do Público.
Os conteúdos disponibilizados ao Utilizador assinante não poderão ser copiados, alterados ou distribuídos salvo com autorização expressa do Público – Comunicação Social, S.A.

A perda que carregamos, um mar para vadear. Sexta-feira | 19 Março 2021 | publico.pt/culturaipsilon
ESTE SUPLEMENTO FAZ PARTE INTEGRANTE DA EDIÇÃO Nº 11.284 DO PÚBLICO, E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

Enfrentámos a barriga da besta.


Aprendemos que sossego nem sempre é paz,
e as normas e noções do “justo” nem sempre são justiça.
Porém, a aurora é nossa antes de sabermos.
De alguma forma a fazemos.
De alguma forma resistimos e testemunhamos
uma nação que não está falida, mas simplesmente interrompida.
Nós, os herdeiros de um país e de um tempo, onde uma miúda negra magricela descendente
de escravizados e criada por uma mãe solteira pode sonhar em tornar-se presidente, e logo
ver-se a declamar para um.
E sim, estamos longe da polidez, longe da limpidez,
mas isso não significa que lutamos por uma união perfeita.
Nós lutamos para forjar a nossa união com propósito.
Compor um país comprometido com todas as culturas, cores, feitios e condições humanas.
E assim não erguemos o nosso olhar para o que está entre nós,
mas para o que está diante de nós.
Fechamos o fosso porque colocar o nosso futuro em frente,
implica antes colocar as nossas diferenças de lado.
Baixarmos as armas para nos abraçarmos mutuamente. A tradução
Não queremos magoar ninguém, mas harmonia para toda a gente.
Deixemos o globo, se nada mais, dizer que isto é verdade: tem cor?
Que mesmo enquanto sofríamos, crescíamos.
Que mesmo enquanto doía, tínhamos esperança.
Que mesmo durante o cansaço, tentávamos.
A identidade
Que permaneceremos para sempre em união e vitória.
Não porque nunca mais vamos conhecer a aniquilação,
importa?”
mas porque nunca mais vamos semear a divisão.
As escrituras sugerem que imaginemos que cada pessoa se poderá sentar
Excerto do poema de Amanda Gorman que Raquel Lima traduziu para português: The Hill We Climb/A Colina Que Subimos

debaixo da sua própria vinha e figueira e ninguém a conseguirá assustar.


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“Q
uando amanhece, perguntamo-nos/ ‘onde defendendo o cruzamento com o mercado literário e
Será preciso ter a mesma encontrar luz nesta interminável sombra?’/ cultural, de forma a que possamos responder à pergunta:
cor, o mesmo género, A perda que carregamos, um mar para
vadear. Enfrentámos a barriga da besta./
quem e quantos são os poetas, tradutores, livreiros, edi-
tores negros em Portugal?
o mesmo perÄl para Aprendemos que sossego nem sempre é Ou seja, o debate é importante “em toda a sua contro-
paz,/ e as normas e noções de ‘justo’ nem vérsia e complexidade, mas acima de tudo o reconheci-
traduzir ou interpretar se
sempre são de justiça.” São os seis primeiros versos do mento da sua génese, para que paremos de relativizar,
alguém? Quem fala? Quem po
poema de Amanda Gorman The Hill We Climb, que Ra-
qu Lima traduziu a convite da Casa Fernando Pessoa.
quel
exacerbar ou negar as diferenças estruturais que estão
na sua origem e para que encontremos soluções igual-
pode falar? As perguntas “O maior desafio foi a tentativa de preservar a força da
Amanda, o seu sentido de humor, eloquência, inteligên-
Am
mente estruturais.”
Na origem disto, aponta, estão “as raízes complexas
no debate sobre tradução, cia, sensibilidade e, acima de tudo, confiança sobre a sua
cia do racismo sistémico nas várias sociedades e as formas
participação poético-política na sociedade. Para tal con-
pa como actua em diversos sectores que obrigam a uma
literatura e identidade siderei o seu ritmo, a ênfase nas palavras e pausas, os
sid ética para a poesia, para a tradução e para a literatura
a partir da polémica ge
gestos, a cadência, as rimas, a respiração e a hesitação,
so
socorrendo-me por vezes da pergunta ‘como é que eu
em geral, enquanto espaços políticos por natureza que
se reconfiguram para cumprir o papel reparador que a
suscitada pela tradução diria isto em palco se o poema fosse meu?’”. É assim que
dir poeta Amanda Gorman anuncia.”
Raquel explica ao Ípsilon o método usado para traduzir
Ra Mas de que falamos quando falamos do poema de
do poema de Amanda um poema que está no centro de uma discussão que Amanda Gorman e do debate que encetou a sua tradu-
Gorman. ult
ultrapassa a literatura e se situa no campo das políticas
de identidade.
ção, onde se juntam, meio soltos, conceitos como o de
diversidade, o lugar do outro, lugar da fala, raça, femi-
A pergunta de Raquel é a de uma intérprete, função nismo, liberdade da leitura, segregação, representativi-
ind
indissociável de quem traduz, de quem lê e de quem dade, identidade, ideias que, fora de contexto, parecem

Isabel Lucas também faz da leitura acto público. De quem tem palco
tam
e imagina
Ca
i o grande palco que teve Amanda Gorman no
Capitólio a 20 de Janeiro, na tomada de posse de Joe
colidir com a mensagem desse poema que em Portugal
tem por título A Colina Que Subimos? Com o caso holan-
dês, entrou no domínio público um debate não só sobre
Biden como 46º presidente dos Estados Unidos, ao dizer
Bid quem deve ou não, quem pode ou não traduzir Amanda
os 78 versos que escreveu para aquele momento. Mas Gorman, mas entre tradução e políticas de identidade.

não é só. Essa pergunta, diz Raquel, “surge de um es- A polémica começou a 23 de Fevereiro, quando a
paço de identificação e empatia por sermos ambas poe-
pa poeta de spoken word e activista Zaire Krieger contestou
tas de spoken-word, mulheres negras e estudantes de a decisão da casa editorial Meulenhoff. Marieke Lucas
Sociologia e ambas nas lutas feminista e anti-racista. Isso
So Rijneveld, 29 anos, pessoa não binária que em inglês
facilitou alguns detalhes óbvios como o contorno dos
fac usa o pronome they, poeta, escritora, a autora mais jo-
ma
masculinos universais da língua portuguesa, a opção vem de sempre a ganhar o Man International Booker
po
por palavras já debatidas desde uma perspectiva deco- Prize — em 2020 — com o romance The Discomfort of
lon
lonial como ‘escravizados’ em vez de ‘escravos’, entre Evening iria traduzir para neerlandês The Hill We Climb,
ou
outros aspectos.” que Amanda Gorman, 23 anos, escreveu e interpretou
Poeta, performer, arte-educadora, licenciada em Es- na tomada de posse de Joe Biden. Além disso, foi anun-
tudos Artísticos e doutoranda em Estudos Pós-Coloniais,
tud ciado que seria também a tradutora da primeira colec-
Raquel Lima nasceu em Lisboa em 1983, está a trabalhar
Ra tânea de poemas da norte-americana na Holanda. Na
na tradução da primeira colectânea de poemas de sua conta de Twitter, Krieger escreveu qualquer coisa
Amanda Gorman a publicar em Portugal com uma chan-
Am como “vou soar muito salgada, ao nível de um Mar
cela ainda mantida em segredo.
ce Morto, ao dizer que toneladas de mulheres artistas ne-
Afrodescendente, mulher, negra, activista, poeta de gras de spoken-word (Babs Gons, Lisette Maneza, etc.)
sp
spoken-word, conhecedora da língua inglesa, terá um poderiam fazer isso melhor?”
pe
perfil pouco questionável à luz dos argumentos que le- As palavras de Zaire Krieger tornaram-se virais e fize-
va
varam a que outra tradutora do poema de Gorman de- rem com que a Meulenhoff justificasse a sua decisão. “O
sis
sistisse da tarefa e lançaram uma discussão “urgente e facto de Amanda Gorman e a sua equipa terem respon-
ne
necessária”, na opinião de Raquel, “porque aprofunda dido imediatamente de forma positiva à nossa proposta
o debate
d sobre a interseccionalidade, as alianças políti- foi para nós uma confirmação de que tínhamos encon-
ca
cas, o poder do mercado editorial e de quem pode ou trado a tradutora ideal em Marieke Lucas Rijneveld”, e,

não traduzir. Contudo, a polémica não pode ser o prin- entretanto, faziam uma espécie de paralelismo de perfis
KEVIN LAMARQUE/REUTERS

cíp
cípio e o fim da questão pois trata-se também de um entres as duas autoras, ambas muito jovens, internacio-
de
debate secular mais alargado em torno das continuida- nalmente reconhecidas, activistas em causas com vista
de
des históricas do colonialismo, desigualdades raciais, à promoção de uma sociedade mais inclusiva. Na nota
fal
falta de representatividade negra, autoridade, poder, da editora havia ainda outra mensagem que teve o efeito
po
políticas de reparação, medidas de acção afirmativa, contrário ao que a casa pretendia: a Meulenhoff garantia
en
entre outras assimetrias que ganham cada vez mais visi- que a tradução de Rijneveld seria acompanhada por lei-
bilidade mediática, mas que têm a sua origem há séculos.
bil tores experientes e sensíveis. Isso foi lido como a prova
Nesse sentido, acredito que a tradução mais importante
Ne de que Rijneveld não estava dentro do contexto da es-
que temos a fazer neste contexto é a que transpõe este
qu crita de Gorman e não reunia as condições para fazer a
debate para políticas governamentais concretas que nos
de tradução. Que condições?
permitam conhecer e equilibrar a nossa sociedade”.
pe Dois dias depois a activista e jornalista Janice Deul as-
Por exemplo, através do levantamento de dados étni- sinava um artigo no diário holandês Volskrant com o tí-
co-raciais, algo que não existe em Portugal e que Raquel
co tulo: “Um tradutor branco de poesia de Amanda Gor-
conta que já foi solicitado juntos de entidades oficiais,
co man: incompreensível”, considerava “uma oportu- e

Amanda Gorman na escadaria do Capitólio a 20 de Janeiro, na tomada de posse de Joe Biden


como 46º presidente dos EUA, dizendo os 78 versos que escreveu para o momento

ípsilon | Sexta-feira 19 Março 2021 | 3


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e nidade perdida” e escrevia: “Nada contra Marieke ideal’?” Sugeria: “Nada a apontar às qualidades de Rijne-
Lucas Rijneveld, mas essa escritora não é a melhor pes- veld, mas por que não escolher um escritor que — como
soa para traduzir poesia de Amanda Gorman: os artistas Gorman — seja um artista de spoken word, jovem, femi-
negros de spoken-word são importantes, também os do nino e: sem desculpas, negro?”
no nosso próprio solo.” Falando da “sistemática margi- As características físicas a que Deul alude vêm no
nalização” das mulheres negras, punha em causa uma poema de Gorman, assim traduzidas por Raquel Lima:
escolha que não se adequava ao perfil da norte-ameri- “Nós, os herdeiros de um país e de um tempo, onde uma
cana, quando, na Holanda, não faltavam artistas com miúda negra magricela descendente de escravizados/ e
contexto mais próximo. “A aluna de Harvard, Gorman, criada por uma mãe solteira pode sonhar tornar-se pre-
criada por uma mãe solteira e rotulada como uma criança sidente, e logo ver-se a declamar para um.”
com ‘necessidades especiais’ devido a problemas de fala, A discussão subiu de tom e a decisão de Rijneveld não
descreve-se como uma ‘rapariga negra magricel’. E o seu tardou. “Estou chocada com o alvoroço em torno do meu
trabalho e a sua vida são coloridos pelas suas experiên- envolvimento na divulgação da mensagem de Amanda
cias e identidade como mulher negra. Então não é — para Gorman e compreendo as pessoas que se sentem feri-
dizer o mínimo — uma oportunidade perdida a de con- das”. As palavras vieram no Twitter nesse mesmo dia,
tratar Marieke Lucas Rijneveld para este trabalho? Ela é 25. Marieke Lucas Rijneveld desistia de traduzir e a Meu-
branca, não binária, não tem experiência na área, mas lenhof emitia nova declaração. Ia procurar uma equipa
de acordo com Meulenhoff ela ainda é a ‘tradutora de tradutores em vez de um tradutor único e concluía
com o desejo de aprender com a experiência.
O caso estava nas redes sociais e nos jornais. A tónica
era colocada na raça e as opiniões extremaram-se. Era
NUNO FERREIRA SANTOS

uma questão política e social além de artística ou literá-


ria e o papel da tradução ganhava uma relevância como
poucas vezes na história da literatura. No Guardian, o
escritor britânico de origem indiana Kenan Malik dizia:
“A raça não deve ser um princípio para transpor a poesia
de Amanda Gorman para neerlandês”. E o francês Libé-
ration destacava as palavras da romancista, dramaturga
e cineasta Alice Zeniter — vencedora do Renaudot em
2015 e do Goncourt em 2017 — ao canal France 5. “Toda
a gente pode traduzir toda a gente. Não é esse o pro-
blema”, afirmava, respondendo a outro escritor, o fran-
co-congolês Alain Mabanckou, que vira na questão ho-
landesa uma “forma de racismo”. O problema, para
Zeniter, estava, em vez disso, na “gritante falta de diver-
sidade no mundo editorial” que — complementa a notí-
cia do Figaro sintetizando as palavras da escritora — “con-
duz a tão controversas atribuições de identidade”.
Pouco depois chegava da Catalunha a notícia de que
o poeta e tradutor Victor Obiols fora rejeitado pelos agen-
tes norte-americanos de Gorman como hipótese para
traduzir The Hill we Climb para catalão, “por não ser uma
mulher negra”, lia-se no ABC que, à frente do nome do
poeta, acrescentava uma lista de autores por ele tradu-
zidos, entre os quais Shakespeare ou Oscar Wilde. “Como
a holandesa, fui vítima da nova Inquisição”, escreveu
Obiols nas redes sociais. Pouco depois, a responsáveis

“É um debate secular mais alargado em torno das continuidades


históricas do colonialismo, desigualdades raciais, falta de
representatividade negra, autoridade, poder, políticas de reparação”
Raquel Lima, poeta, performer, licenciada em Estudos Artísticos e doutoranda em Estudos Pós-Coloniais

4 | ípsilon | Sexta-feira 19 Março 2021


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pela editora catalã, a Univers, contavam ao El País que rar que sou branco, poder ignorar que sou homem. Posso
os representantes de Gorman recomendavam “uma mu- ignorá-lo, porque ninguém no dia-a-dia me chama a aten-
lher jovem, de origem africana ou que tivesse um perfil ção para esse facto.” Conclui: “Tudo o que separa e sub-
activista”. trai acaba por empobrecer. E todos os confinamentos
O poema foi, entretanto, traduzido para castelhano me incomodam. Em matéria de tradução, como em to-
pela madrilena Nuria Barrios, tradutora de Joyce ou de dos os outros domínios da vida, quanto mais barafunda,
John Banville. Branca e sem historial activista, o seu tra- melhor. Homens a traduzir mulheres, mulheres a tradu-
balho para a editora Lumen não foi posto em causa pelos
agentes de Gorman. No mesmo jornal, num artigo de
opinião, Barrios foi explícita quanto à sua posição sobre
zir homens, negros a traduzir brancos, brancos a tradu-
zir negros, homossexuais a traduzir heterossexuais e
heterossexuais a traduzir homossexuais, todas as com-
“Até que ponto
o debate marcado pelo que chamou “a lógica de Deul”,
“A verdade simples é que Deul não está a falar de tradu-
ção, está a falar de política. Ela confunde ‘direito moral’
binações possíveis e imaginárias, de preferência.” Para
ele, “talvez” estejamos a assistir às “inevitáveis dores do
parto de um mundo novo que nasce, mais justo, mais
é que a política
com qualidade literária, ignorando o facto de que a ima-
ginação é o que torna possível a tradução e a arte em
geral”. E concluía: “a vitória de Deul é a vitória das polí-
inclusivo.”
“Continuo a pensar nisto”, insiste Margarida Vale de
Gato, falando da hibridização e do contágio como ine-
de identidade
ticas de identidade sobre a liberdade criativa.”

A identidade deve importar?


rentes à ideia de hetero-tradução, a tradução do outro,
do diferente. “Até que ponto é que a política de identi-
dade estrangula a hibridização? E se sim, isso é bom ou
estrangula
“Não me parece que vamos entrar num cenário de Fare-
nheit [Farenheit 451, o romance de Ray Badbury sobre a
queima de todos os livros e o fim da literatura]. É muito
não? Porque acho muito interessante a mestiçagem.
Ser mestiço é uma identidade, ser não-binário é uma
identidade. É que corremos o risco do discurso se tor-
a hibridização? E se
fácil discutirmos a questão com esse tipo de argumentos
radicais, como os do tradutor catalão que veio dizer que
isto é uma nova inquisição. Isso é muito perigoso de dizer
nar circular. Não podes falar do não binário se fores
binário.”
A discussão chega num momento marcado pela luta
sim, isso é bom ou
mas percebo que ele esteja muito irritado”, refere Mar-
garida Vale de Gato, poeta, tradutora, professora de
tradução Literária na Faculdade de Letras da Universi-
de muitos sectores por maior visibilidade. Quantos tra-
dutores literários negros existem em Portugal? Ninguém
parece saber. Quantos escritores ou artistas negros exis-
não? Porque acho
dade de Lisboa. A 11 de Março publicou neste jornal um
artigo com o título Raça de Escritores onde argumentava
que a acusação de Janice Deul feria “a própria possibili-
tem em Portugal? Ou não brancos? A resposta poderia
estar no levantamento de que fala Raquel Lima. “Acho
desonesto introduzirmos a muleta do ‘politicamente
muito interessante
dade de tradução” e acrescentava: “Preocupa-me, antes,
que o argumento de Deul retire à tradução a possibili-
dade de comunicação intercultural que justifica a sua
correcto’, da ‘abolição da tradução’, de um ‘arco-íris
de tradutores’ ou a extrapolação sobre a retirada ‘à tra-
dução da possibilidade de comunicação intercultural’
a mestiçagem”
existência e a sua necessidade. Ou seja, no limite, só Gor- para que continuemos a ignorar as assimetrias raciais
man teria legitimidade para traduzir Gorman”. nos acessos a determinadas funções na sociedade, e Margarida Vale de Gato, poeta, tradutora
Dois dias depois da publicação, Margarida continuava que continuarão a existir enquanto não se garantir es-
a pensar no assunto, assumindo cautelas, tentando per- paço para que mais tradutores negros exerçam o seu

ENRIC VIVES-RUBIO/ARQUIVO
ceber todas as pontas da argumentação que beliscam o direito de aceitar ou recusar traduções desta, ou outra,
que é a essência da tradução. Como Raquel Lima, reco- natureza”, afirma, tocando um ponto em que todos
nhece a utilidade de um debate “que obriga a pensar em parecem estar de acordo: o da falta de diversidade que,
coisas que nunca tinham sido pensadas antes”. no entanto, para alguns escritores, não tem a ver com
“Mas a verdade é que a primeira reacção que tive como o outro que traduz.
tradutora foi: ‘o que é que se está a passar com a noção O debate é complicado, polémico, mas necessário,
de tradução?’ Eu falo do ponto de vista da profissão. defende Inocência Mata, especialista em Estudos Pós-
Onde é que está uma reflexão sobre a actividade em si?”, coloniais, professora da Faculdade de Letras da Univer-
continua, diante de um debate onde parece ser necessá- sidade de Lisboa, na área de Literaturas, Artes e Culturas.
rio formular as perguntas certas. Afirma que é uma questão ética e é “má fé dizer que é
Esse exercício é um dos desafios lançados aos escrito- uma questão racista”. “São muito injustos os ataques à
res, tradutores, artistas, académicos, historiadores ou- activista holandesa. Ela referia-se a uma poesia em con-
vidos neste artigo. “Uma pergunta que faço é esta: a creto, o spoken word, um poema que surgiu em determi-
literatura tem cor? A tradução tem cor? Na minha pro- nado momento, que tem muito a ver com o movimento
posta, no meu entender, é que sim. Acho que a literatura BlackLivesMatter e com uma experiência social, étnica,
tem cor e a tradução também. Tem cor, tem género, tem racial. São várias experiências em concreto que penso
tudo, tem corpo. A pessoa tem um corpo e o corpo está que foram misturadas. O que me parece em causa não é
enraizado numa identidade cultural. Que convém mudar. o facto de um branco traduzir um negro ou um negro
O que é a política de identidade? Nós queremos identi- traduzir um branco, mas aquele poema e o que signifi-
dade? Para mim também é uma questão”, pergunta e cava a poesia de Amanda Gorman.” Na sua opinião não
responde Margarida Vale de Gato esperando poder es- está em causa que Chimamanda Ngozi Adichie possa ser
cutar perguntas e repostas de outros. traduzida por brancos, como tem sido. “No caso de
Outro tradutor, Paulo Faria, responde à mesma per- Amanda Gorman faz sentido falar de oportunidade per-
gunta. “Sou homem e sou branco. Mas, se me pergunta- dida. O discurso de que não importa a cor é um discurso
rem o que faço, direi apenas que sou escritor e tradutor. que foi sempre usado para perpectuar o estado de su-
Não me passa pela cabeça apresentar-me como um es- balternidade dos profissionais não brancos.” E elege
critor e tradutor branco, do género masculino. Tenho como tema aqui a questão da diversidade e da represen-
perfeita consciência que se trata de um luxo poder igno- tatividade que ultrapassa a mera estética ou com- e

ípsilon | Sexta-feira 19 Março 2021 | 5


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“Imaginar que só uma mulher negra pode traduzir o que escrevo


sugere que só uma negra poderá compreender essa tradução e,
portanto, que só posso ser entendida por leitoras negras”
Djaimilia Pereira de Almeida, escritora
RUI GAUD|ENCIO

zir livros de autoras negras e, quando se trata de escolher


tradutores para os meus livros, basear-me nesse critério
seria uma ingenuidade sem cabimento e um paradoxo.
Imaginar que só uma mulher negra pode traduzir o que
escrevo sugere que só uma mulher negra poderá com-
preender essa tradução e, portanto, que só posso ser
entendida por leitoras negras. Considero tão difícil fazer-
me entender a uma tradutora negra como a um tradutor
branco. A tradução representa uma esperança na possi-
bilidade de ser compreendida por aqueles que não se
assemelham comigo. A tradução constitui a semelhança.
Aproxima-nos. Sou feita do que li, graças a muitos tra-
dutores: o seu género e cor de pele são indiferentes. O
pronunciamento em questão preconiza na verdade uma
hostilidade à literatura: é contra a possibilidade de a
imaginação criativa romper as inibições, o ponto de vista
e a sensibilidade limitada do ‘eu’.”
Nenhum discurso sobre o tema fica tão-só pela questão
literária talvez porque, afirma Margarida Vale de Gato,
“a arte é política”. E refere outra das características do
acto de traduzir. “A tradução será sempre imperfeita”.
Exemplifica com uma conversa que teve com uma tra-
dutora com experiência na tradução de migrantes a
quem perguntou o que achava do assunto. “Ela respon-
deu: se virmos isso como uma oportunidade de pensar
as ecologias da tradução e de acesso paritário à activi-
dade deve haver a discussão e se calhar ela tem que ser
forçada por uma coisa como esta. Mas se a discussão for
um baralho de cartas onde elas se distribuem sem se
e petência tradutória.” No caso, mais uma vez, subli- pensar, corremos o risco de perder as nossas melhores
nha a essência do spoken word, que tem a ver “com ritmo ferramentas políticas”. E repete: “a arte é política, para
corporalidade”. unir trincheiras, para não as cavar.”
Um caso a ter em conta, defende, quando se entra num “Acho que essa exigência ergue muros”, afirma o es-
debate com
como este, onde muitas vozes têm sublinhado critor brasileiro Itamar Vieira Junior, autor de Torto
que o acto de traduzir não deve estar dependente da Arado: “Fico imaginando o que Amanda Gorman pensa
identidade do tradutor. disso tudo. Em princípio eu não me importo com quem
É esta, aliás,
a a posição autora de Esse Cabelo ou traduz o meu livro. Importa é que seja um tradutor que
Luanda, Lisboa
Lis Paraíso, Djaimilia Pereira de Almeida. “A crie um vínculo com a história, que tenha afinidade, que
ideia de que
qu autores negros não devem ser traduzidos quando for necessário possa também ouvir o autor. Va-
por brancos
branco implica uma posição recíproca inaceitável: mos pensar num livro como Torto Arado, com protago-
a de que, como
c mulher negra, não me é reconhecida a nistas negros, escrito por um homem de cor. Se for tra-
capacidade (mais ainda, o direito) de traduzir, por exem- duzido na China vou exigir um tradutor negro?”
plo, Rousseau
Rousse ou Flaubert. Essa é uma capacidade lite- Dá o seu testemunho enquanto leitor. Leu toda a obra
rária. O género,
gén a cor, o meu contexto familiar não são o de Toni Morrison traduzida no Brasil por um branco, o
que me qualifica
qua para traduzir Toni Morrison, nem o que escritor e dramaturgo José Rubens Siqueira, tradutor
me desqualifica
desqua para traduzir Pushkin. Não me sinto também de Shakespeare, J. M. Coetzee, Rushdie ou Han-
numa posição
posiç intrinsecamente privilegiada para tradu- nah Arendt. “Amanda escreve a partir de um lugar, o
KEVIN LAMARQUE/REUTERS
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lugar de uma mulher negra, a partir da sua experiência, caria ser o outro. Ora, quando uma conversa se desloca
mas o que ela tem a comunicar é importante para todos para o terreno da fulanização, do bacteriologicamente
os humanos. Exigir que um tradutor tenha a mesma ori- puro, chegamos a um beco sem saída do qual dificil-
gem ou origem semelhante à do autor é extremado. Não mente saímos.”
consigo compreender”. Como ficamos? ”Podemos e devemos fazer um esforço
Itamar chama o audiovisual para a conversa. Fala da para compreender o outro e para nos pormos no lugar
tentativa da produção de um musical sobre Dona Ivone dele, sabendo que nunca seremos plenamente capazes.
Lara (1922-2018), cantora e compositora brasileira conhe- Mas não é essa a essência da tradução? Tentar com-
cida como a “rainha do samba”. Para o papel foi escolhida preender plenamente o outro, sabendo que vamos fra-
a cantora Fabiana Cozza. “Fabiana Cozza é uma mulher cassar, e depois tentar de novo. A tradução é, parece-me,

MIGUEL MANSO
negra, mas tem um tom de pele mais claro do que o de o lugar supremo da compreensão do outro, necessaria-
Dona Ivone Lara e houve uma polémica grande. Fabiana mente condenada ao perpétuo fracasso, porque hu-
é uma activista, mas uma parte do movimento negro se mana. Não entender isto é não entender nada de litera-
voltou contra ela. E ela disse: ‘eu fui dormir uma mulher tura, parece-me.”
negra e acordei uma mulher inimiga para alguns’. Viam-na
como ameaça porque não tinha o tom de pele de Dona A fala e o poder
Ivone Lara. Ela escutou, compreendeu e desistiu do pa- A sequência de perguntas e repostas que Paulo Faria faz
pel. Isso mostra que há uma linha muito delicada, como sintetiza a complexidade de um debate que, na perspec-
se ser negro fosse algo homogéneo e não é. Dentro da tiva da História, não é novo, como salienta Diogo Ramada
própria negritude há diferenças. Uma pessoa negra de Curto. “Essa questão não é relevante do ponto de vista
pele mais clara tende a sofrer menos preconceitos, tende da história. É uma questão estafada que foi hiper-discu-
a conseguir galgar lugares mais altos na sociedade. As tida nos anos 50, nomeadamente nos Estados Unidos
pessoas mais retintas sofrem um racismo diferente. O quando se começou a falar do direito de fazer a história
racismo não é homogéneo entre os negros.” dos afro-americanos”. Historiador, professor catedrático
Paulo Faria, que assinou traduções de Cormac no departamento de Estudos Políticos da Faculdade de
McCarthy, James Joyce ou Don DeLillo, já passou para Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de
português autores negros, entre eles a norte-americana Lisboa, refere o trabalho do sociólogo norte-americano
Fran Ross com o romance Oreo. É a partir dessa expe- Robert Merton (1910-2003). “Ele escreveu um artigo,
riência que, agora, se interroga: “O que teria feito se, Insiders and Outsiders, que é tributário de toda a litera-
quando traduzi Oreo, alguém tivesse lançado à Antígona tura antropológica acerca de quem tem capacidade para
as mesmas críticas que Janice Deul lançou aos responsá- analisar uma sociedade ou um grupo. Se são os de dentro
veis da editora holandesa que convidaram Marieke Lucas se os de fora. E a conclusão a que chegou é simples: é que
Rijneveld?” Tem resposta: teria feito o mesmo que Rijne- tanto os de dentro são capazes de ter leituras enviesadas
veld. Ou seja, teria abdicado de traduzir. “Porque, for- como os de fora. O problema não está na autoridade que
mulado nos termos em que Janice Deul o faz, deixa de pode ser alocada aos de fora ou aos de dentro. Está na
haver debate possível. Se, confrontado com uma crítica capacidade de perceber as coisas e de as explicar. No
daquele teor, eu teimasse em vincar o meu direito a fazer caso de uma tradução, é uma questão de mediação, de
a tradução, todos os argumentos a que lançasse mão estabelecimento de sentido. O que é que me interessa
pareceriam meras desculpas para afirmar o meu direito que seja um negro a traduzir a obra de um negro?”
ao privilégio: o privilégio do homem, o privilégio do O livro de Grada Kilomba, Memórias da Plantação,
branco. Na nota em que se desvincula do projecto, Rijne- originalmente escrito em inglês, foi traduzido para por-
veld diz qualquer coisa como: ‘Dou-me conta de que o tuguês de Portugal por um branco, Nuno Quintas, e, no
meu estatuto me permite pensar e sentir coisas que mui- Brasil, por uma mulher negra, queer, Jess Oliveira. “Foi
tos outros estão impedidos de pensar e sentir.’ Uma to- um tema que discutimos muito tempo: quem é que deve
mada de consciência formulada nestes termos, põe fim traduzir? Achei muito problemático o meu livro ser tra-
ao debate, porque, no limite, ninguém se consegue pôr duzido por um homem branco. Não que ele não seja um
verdadeiramente no lugar do outro, porque isso impli- extraordinário tradutor, mas quando leio as duas e

“Amanda [Gorman] escreve a partir de um lugar, o lugar


de uma mulher negra, a partir da sua experiência, mas o que ela tem
a comunicar é importante para todos os humanos”
Itamar Vieira Junior, escritor brasileiro

ípsilon | Sexta-feira 19 Março 2021 | 7


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e traduções — para o português do Brasil e para o por-


RUI GAUDÊNCIO

informação contrasta com a desistência da leitura em


tuguês de Portugal — vejo diferenças e tivemos de fazer profundidade, em que é possível partilhar-se instanta-
muitas correcções porque ele usou uma linguagem mas- neamente e com milhares de pessoas uma opinião for-
culina, branca e masculina. Usa termos como ‘arrancá- mada a partir de um título, gerando ondas de indignação
mos este projecto’. ‘Arrancar’ é um verbo típico usado sem sustentação factual e, em tantos casos, sem a preo-
por homens, que uma mulher não usa. Nós ‘começa- cupação de estabelecer a verdade dos factos.” Dito isto,
mos’, ‘iniciamos’ um projecto. Há nuances em que se afirma: “Neste debate, o meio é a própria mensagem, a
percebe: isto é traduzido por um homem branco. Vê-se controvérsia não se gera a partir da discussão das posi-
na linguagem e na terminologia.” ções em contencioso, até porque tantas vezes essas po-
Dado o exemplo, pergunta-se à escritora, artista inter- sições não chegaram ainda a ser articuladas de forma
disciplinar, professora, nascida em Lisboa com raízes clara quando a controvérsia estala. Só por isso é que um
em Angola e em São Tomé e Príncipe, radicada em Ber- debate que deveria ser sobre a representatividade e o
lim, que indagações lhe suscita o debate à volta da tra- direito a ela, sobre o que as sociedades contemporâneas
dução da obra de Amanda Gorman. “É uma coisa tão e que têm a democracia e os direitos humanos como
grande! Às vezes não temos a resposta imediata. É im- matriz e/ou horizonte precisam de fazer para assegurar
portante que haja uma reconfiguração de poder. Para o exercício desse direito em igualdade para todos os seus
ter uma reconfiguração do que é o conhecimento tem cidadãos, se transforma instantaneamente num debate
de se ter uma reconfiguração do poder também. Ou seja, sobre cancelamento e intolerância.”
quem produz conhecimento tem também de estar re- Não destoa dos que aqui defendem que a discussão
flectido nas estruturas de poder. Uma coisa não funciona sobre um tema tão complexo exista, “desde que se to-
sem a outra. Não basta traduzir Amanda Gorman. E todo mem as cautelas necessárias para que não escorregue
o capital à volta da obra? Tudo isso mantém como base por um alçapão que obscureça esta evidência: o atiça-
uma estrutura colonial e patriarcal. Temos de ter uma mento da indignação sem âncora, em sociedades onde
diversidade nas posições de poder que reflictam as obras a representatividade é na melhor das hipóteses uma mi-
que queremos colocar nessas plataformas. Esse é um ragem, resulta quase sempre na legitimação de um re-
dos exercícios mais difíceis. O exercício da diversidade. vanchismo da posição que já detém poder despropor-
E muito delicado.” cional nessas sociedades, e que é a posição dos que
Remete para a expressão o “lugar da fala”, desenvol- consideram que o actual statu quo é não só aceitável
vida pela brasileira Djamila Ribeiro. “Ela entrevistou-me como desejável, e preferível a qualquer mudança.”
no Brasil e falámos muito do primeiro capítulo das Me- Como Margarida Vale de Gato, Pedro Schacht Pereira
mórias da Plantação, sobre quem fala, e da máscara na não acha que se caminhe para o fim da tradução na sua

“Sou homem boca. Foi muito bom ver a continuação dessa conversa
e perceber que depois ela escreveu um livro sobre o lugar
da fala.” E de onde veio essa interrogação nesse livro?
essência. Mas deixa uma nota sobre a dificuldade da
conversa. “Não estamos a caminhar para um mundo em
que só uma pessoa com o mesmo corpo pode entender

e sou branco. Mas, “Escrevi essa primeira parte muito inspirada em [Gaya-
tri] Spivak [crítica e teórica indiana], que faz a pergunta:
quem fala? Quem pode falar? Onde a subalterna falar?”
o mesmo corpo, até porque, como exemplifica o recente
e triste caso de Marcelino da Mata, é possível ter o mesmo
corpo e não entendê-lo, ou entendê-lo como se ele não

se me perguntarem Sobre isto em particular, diz Inocência Mata: “O lugar


da fala de per si não diz nada e sempre foi reconhecido.
O que se reivindica é o poder da fala. O poder dos não-
existisse. Esta é uma conversa que, neste momento, não
é possível ter em Portugal.”
É o vasto campo da possibilidade ou impossibilidade

o que faço, direi brancos poderem traduzir.”


Pedro Schacht Pereira é professor de Estudos Por-
tugueses e Ibéricos na Ohio State University, Estados
do debate que envolve muitas variáveis, muitos temas
que se tocam e geram posições extremadas. Amanda
Gorman escreveu: “Cada recanto conhecido da nossa

apenas que sou Unidos. Faz parte da equipa que em 2012 criou ali o
novo programa de doutoramento em Estudos do
Mundo em Língua Portuguesa. “Concordo que isto
nação, cada esquina a que chamamos país,/ o nosso
povo, diverso e belo, irá emergir, flagelado e belo./
Quando amanhecer, nós saímos da sombra, ardentes e

escritor e tradutor. extravasa a questão da negritude, da raça, e até a da


representatividade das minorias. É uma questão que
convoca um pensamento sobre a linguagem, o teste-
sem medo.” Não há um modo certo de ler estas palavras.
“Nem sempre o testemunho é discursivo, muitas vezes
ele é silencioso e envolve algo no corpo que não tem

Não me passa pela munho e as condições em que ele é possível, sobre


quem pode testemunhar em nome de quem, e, claro,
sobre a tradução, que é desde logo a questão do ter-
direito à palavra. As pessoas racializadas estão na con-
dição de inerentemente testemunharem do silencia-
mento e da violência de que são alvo constante e de que

cabeça apresentar-me ceiro, que, desde que pensada num registo crítico,
impede a polarização. Mas seria ligeireza e irrespon-
sável da nossa parte menorizar a questão da raça. A
foram alvo os seus antepassados, independentemente
de ser essa a sua vontade. Não é uma escolha, é uma
condição em sociedades em que o legado da escravatura

como um escritor questão da raça é central se levarmos em conta a forma


como o debate se tem processado, e o que ela indica
sobre como as sociedades ocidentais lidam com o pre-
e do colonialismo permanece intratável”, diz Pedro
Schach Pereira.
“Uma coisa em que vou pensar é nos meus alunos”.

e tradutor branco, sente envenenado desse legado.”


Para Schacht Pereira uma questão central neste debate
é “o questionamento crítico que é necessário fazer sobre
conclui Margarida Vale de Gato. “Quando digo que não
conheço nenhum tradutor literário negro, é estranho
sobretudo para mim, que sou professora de tradução

do género masculino” o meio em que o debate ocorre.” Elenca: “sobre como


os jornais de hoje cavalgam títulos sensacionalistas e
reproduzem versões sem contraditório, provenientes
literária. Já tive alunos negros, não sei o que estão a fazer
agora. Mas se calhar vou tentar acompanhar mais de
perto e estar sensível a isto para equipar o maior nú-
de agências noticiosas e/ou das redes sociais; de como, mero possível de pessoas diferentes a terem acesso à
Paulo Faria, escritor e tradutor num tempo em que a abundância aparente de fontes de profissão”.

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J
á alguma vez sentiu que o gem e semelhança de um outro in- nós, onde somos assobiadas, inter- dos talvez seja o maior de todos os
smartphone é demasiado divíduo — um homem. rompidas, tratadas com paterna- défices informacionais de género”,
grande para a sua mão? Que Mulheres Invisíveis — Como os dados lismo, apalpadas, assediadas.” Uma escreve a autora, questionando a sua
tem de ir fazer musculação configuram o mundo feito para os ho- mensagem que ecoa, por estes dias, omissão na formulação do produto
para o ginásio (em máquinas mens, o segundo livro da jornalista e nas sonoras reacções à morte de Sa- interno bruto (PIB) de cada país.
também elas demasiado al- activista Caroline Criado Perez, che- rah Everard, a mulher de 33 anos que
tas) só para empurrar a porta do gou há poucos meses ao mercado foi assassinada quando regressava Das notas às estátuas
escritório? Que o sistema de reco- português, com chancela da Relógio sozinha a casa, ao final do dia, em Distinguido com o Royal Society
nhecimento de voz tem um fraqui- d’Água (tradução de Maria Eduardo Londres. Science Book Prize de 2019, Mulheres
nho por tons mais graves? Ou que o Cardoso), e estará em destaque no Para isso, Caroline mostra dados Invisíveis pode não ser um livro con-
GPS não tem lá muito em conta o sábado, 27 de Março, no Heróides — (ou a falta deles) e 1001 exemplos de sensual — por nem sempre explorar
desconforto que é atravessar um Clube do Livro Feminista, da actriz e um mundo assente no que chama de a interseccionalidade de causas, a
parque mal iluminado à noite? Há encenadora Sara Barros Leitão. Um “défice informacional de género”, diversidade de corpos e identidades.
uma grande probabilidade de uma abre-olhos que põe a descoberto a tanto analisando filas para casas de Mas Caroline Criado Perez também
pessoa do sexo feminino se reconhe- desigualdade de género que está na banho como a participação política. não o é.
cer em algumas (todas?) estas ques- base de tantas coisas apenas aceites. Obliterado o papel da mulher na Nascida em 1984 no Brasil, vive em
tões. Acrescentamos: não é culpa Como aquelas no arranque do texto. história da evolução humana, na Londres com a cadela Poppy, pre-
sua, mas de um mundo feito à ima- Equipamentos concebidos com base arte, na ciência, no planeamento sença assídua em entrevistas e na
urbano, nos transportes, na econo- sua newsletter, onde recentemente
DR

mia, considerou-se “que as vidas dos confessou ter sofrido um aborto,


homens representavam as vidas da apelando a que o serviço de saúde
generalidade dos humanos”, escreve britânico permita que as mulheres
a autora no prefácio. O que, subli- grávidas sejam acompanhadas nos
nha, não é “mal-intencionado ou cuidados médicos durante a pande-
sequer deliberado”: “É simples- mia. Até 2010, era “o tipo de mulher
mente o resultado de uma forma de que odiaria”, uma “anti-feminista”,
pensar que prevalece há milénios e contou à editora Penguin. Um livro
que, em consequência, é uma espé- (Feminism and Linguistic Theory, de
cie de não pensar.” E consumada Deborah Cameron) mudou-a na fa-
porque as mulheres nem sempre culdade — e fê-la começar “a ficar
estão nos centros de decisão para zangada”.
mudar este chip. De zanga em zanga, começou a
Apesar de não ser propositada, lutar. Em 2012, co-criou o The Wo-
esta falta de dados desagregados por men’s Room, um site para aumentar
sexo pode ser perigosa, ou até fatal. a presença de mulheres nos media.
Porque elas, muitas vezes, não têm o Um ano depois, estava a liderar uma
“ataque cardíaco à Hollywood” (com campanha, amplamente apoiada,
dores no peito e no braço esquerdo), que pôs uma mulher, Jane Austen, a
logo os seus sintomas são considera- figurar na nova nota de dez libras.
dos “atípicos” e não são correcta- Não seria a primeira opção da acti-
mente diagnosticadas (a descoberta vista, mas apreciou a ironia, apontou
que inspirou a escrita deste livro). então ao The Guardian: “Todos os
Porque têm 47% mais probabilidade seus livros são sobre mulheres en-
de sofrer ferimentos graves num aci- curraladas e pouco representadas. É
dente de automóvel — será porque muito triste que ela o dissesse há 200
não se está a ter em conta as medidas anos e que eu continue a ter de o di-
do corpo feminino, quer no design zer hoje.”
automóvel, quer nos testes de segu- Na sequência desta acção, recebeu
rança? Porque se confia em estudos prémios (como a Ordem do Império
de radiação feitos apenas no “Ho- Britânico), mas também ameaças,
numa mão e num corpo, tomados mem Referência” (caucasianos entre com claros impactos na sua saúde
como universais; algoritmos envie- os 25 e os 30 anos com cerca de 70 mental. O caso chegou aos tribunais

Está “na altura


sados porque se alimentam de bases quilos cujo “superpoder é ser capaz e obrigou o Twitter a rever os proce-
de dados igualmente enviesadas, de representar a humanidade como dimentos para lidar com os abusos
dominadas por homens. um todo”), quando os níveis seguros online. Uns tempos depois, uma cor-
São quase 400 páginas (48 só de para uns não o são para outros — ou- rida por Londres com Poppy fê-la

de as bibliografia) cheias de factos, estu-


dos e muitos, muitos números, que
já estão a encorajar organizações e
tras, aliás, que o masculino genérico
da língua, nomeadamente no portu-
guês, também revela o poder do
“perder a cabeça”: reparou que nas
11 estátuas da Praça do Parlamento
só havia homens. Lá foi ela outra vez

mulheres governos (como o da Escócia) a to-


mar medidas. “Achei que era uma
maneira muito boa de explicar o fe-
“masculino por defeito”.
E se, por um lado, as mulheres são
invisíveis na recolha de dados, muitas
e, em dois anos, erguia-se no local a
sufragista Millicent Fawcett, escul-
pida também por uma mulher,

serem vistas”,
minismo a pessoas que não o enten- vezes com desculpas que são “dema- Gillian Wearing. “Se as nossas histó-
diam”, disse Caroline Criado Perez siado complicadas para serem men- rias não forem contadas, os governos
ao The Scotsman. “Especialmente se suráveis”, tornam-se hipervisíveis que fazem as políticas não pensam
for um homem, para entender o que noutros aspectos: como alvos de vio- em nós”, evidenciou ao Guardian em

não? as mulheres estão a dizer sobre como


nos sentimos quando estamos a na-
vegar num mundo que é hostil para
lência sexual ou na sua sina de cuida-
doras. “A incapacidade de medir os
serviços domésticos não remunera-
2018. “E se as mulheres não se vêem
representadas, elas não são se valo-
rizam devidamente.”
Encontra-se neste momento a es-
crever o follow up deste Mulheres
Invisíveis. Vai chamar-se Now You See
Us, no título original, e, segundo con-

Amanda Ribeiro É um alerta em forma de livro. tou à revista The Booksellers, é uma
resposta mais prática à pergunta que
Mulheres Invisíveis, de Caroline todos lhe colocam: “Como é que re-
solvemos isto? O que podemos fa-
Criado Perez, dispara números zer?” Porque é tempo de “mudar de
e estudos para dizer: este é um perspectiva”, como escreve na intro-
dução. “Está na altura de as mulhe-
mundo feito de e para os homens. res serem vistas.”

ípsilon | Sexta-feira 19 Março 2021 | 9


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As pequenas
perguntas que
descobrem
grandes males
M
uitas vezes, é graças às Ao levar para palco perguntas e
“pequenas perguntas” respostas “demonstrativas da ma-
que desvendamos alguma neira como se vivia, como se pen-
coisa sobre os outros e — sava, como se sentia” naquele pe-
não esquecer — sobre nós ríodo, o encenador André Amália
próprios. Durante o pro- sabe que está a semear essas mesmas
cesso de investigação de Os Filhos do questões em cada espectador. A
Mal, segundo movimento de um ciclo (eventual) diferença evidente para
da companhia Hotel Europa (criada com estes seis intérpretes é que as
por André Amálio e Tereza suas histórias — e que justificam a sua
Havlícková), houve uma série dessas presença em palco — estão ancora-
perguntas colocadas aos seis intér- das numa clara riqueza de testemu-
pretes, escolhidos entre os vários nhos. E na sua disponibilidade de-
participantes nos workshops prepa- sassombrada para as partilharem.
ratórios, que se infiltraram no texto Rita é bisneta do proprietário de
final. “Tinham alguma fotografia de uma fábrica de limas que empregava
Salazar em casa?”, “A vossa família quase toda a população de Vieira de
tinha criados?”, “Quantas casas ti-
nham?”, “O 25 de Abril foi bem rece-
bido pela vossa família?” são as pri-
meiras que escutamos serem pergun-
tadas e respondidas em palco por
Ana Rita Ferreira, Ana Sartóris, João
Esteves, Marta Salazar Fernandes Todos responderam
(nenhum parentesco com o outro
senhor que adornava alguns lares), a uma chamada da
Paulo Quedas e Rita Tomé, no espec-
táculo que a sala virtual do Teatro São Hotel Europa
Luiz apresenta de 24 a 31 de Março.
Tais pedaços de inquirição avulsa revisitarem histórias “Tinham alguma fotografia de Salazar em casa?”, “A vossa família tinha criados?”, “Quantas
que escutamos serem perguntadas e respondidas em palco por Ana Rita Ferreira, Ana Sartóris,
são um resquício das sessões de tra-
balho, daquilo que André Amálio familiares de
tentava extrair destes filhos, netos,
sobrinhos de famílias que apoiaram apoiantes e
ou se opuseram à ditadura do Estado
Novo, mas são também uma forma opositores da Leira (e sendo o patrão era também
o presidente do sindicato dos meta-
ocasiões ao lado de José Afonso ou
José Mário Branco.
seus criadores perante o Estado
Novo, mas funciona também como
de confrontar cada um com a sua
própria história. No fundo, é essa a ditadura, remexendo lúrgicos local); João cresceu numa
família de produtores de vinho pri-
Todos responderam a uma cha-
mada da Hotel Europa para traba-
desafio para que aqueles que esta-
vam nas trincheiras ideológicas ou
matéria de trabalho de Os Filhos do
Mal — o passado íntimo, familiar, nas memórias para vilegiada, com governanta, jardi-
neiro e retrato de Salazar a abençoar
lharem sobre a premissa de revisitar
histórias familiares de apoiantes e
de conveniência social e económica
do regime se confrontem com a sua
afectivo, quando se cruza com a His-
tória inscrita nos livros. “De re- perceber como é o lar, tendo por tio um dos soldados
que acompanhava Salgueiro Maia no
opositores da ditadura, remexendo
nestas memórias e nestes relatos
própria história.

Orgulho e repugnância
pente”, partilha André Amálio com
o Ípsilon, “duas ou três perguntas que as gerações 25 de Abril; Ana Rita é neta de um
operacional da LUAR (Liga de Uni-
para perceber como é que as gera-
ções crescidas (e mesmo nascidas) Não é mero capricho artístico que
posicionam-nos socialmente de ime-
diato e marcam territórios. E acha- crescidas dade de Acção Revolucionária), par-
ticipante no célebre assalto ao Banco
no pós-25 de Abril se relacionam
hoje com os 48 anos de ditadura que
André Amálio fale da importância de
integrar o processo no espectáculo
mos interessante trazer sempre um
pouco do nosso processo para os no pós-25 de Abril de Portugal na Figueira da Foz, em
1967, com o propósito de recolher
André Amálio não hesita em classi-
ficar como “um período do mal”.
final. Já no anterior Os Filhos do Co-
lonialismo, a investigação desenro-
espectáculos. Porque o processo é
tão rico como a cena super polida e se relacionam hoje fundos para o combate ao regime;
Ana é filha de um membro do PCP,
“Há algo muito sombrio que ainda
não é discutido e acreditamos que
lada com a cumplicidade dos intér-
pretes levara a que os próprios pro-
trabalhada.” Sendo parte do pro-
cesso, este dispositivo transforma-se com os 48 anos preso e torturado pela PIDE; Marta
é sobrinha-bisneta de um membro
esse mal não se vê apenas nas pes-
soas que apoiavam a ditadura, mas
tagonistas se vissem, de repente,
com um pretexto válido para ques-
também numa investigação pessoal.
O questionário preparado por André
e Tereza dava assim espaço para que
de ditadura da Federação da Juventude Comu-
nista, enfermeiro na Prisão do Aljube
e que ajudou a concretizar uma fuga
também nas pessoas que lhe resis-
tiam”, defende. “Pessoas que, ao
terem de lutar contra esse mal, tam-
tionar os familiares sobre temas si-
lenciados ao longo dos anos. Nesse
espectáculo estreado em 2019, o pri-
os intérpretes se questionassem en- dos calabouços a dois presos políti- bém foram apanhadas por ele, por meiro da Hotel Europa em que já não
tre si e reflectissem no quanto as suas cos, fugindo depois para o México; toda essa negatividade e essa pres- havia actores profissionais mas ape-
respostas esculpiam a sua imagem Paulo é filho de dois cantores de in- são.” O nome do espectáculo, natu- nas aqueles que carregavam as his-
diante dos restantes. tervenção que actuaram em muitas ralmente, posiciona desde logo os tórias no próprio corpo, as entrevis-

10 | ípsilon | Sexta-feira 19 Março 2021


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Gonçalo

FOTOGRAFIAS DE ESTELLE VALENTE


fundamental que o espectáculo in-
tegrasse estes olhares sobre famílias
que apoiaram ou beneficiaram do

Frota regime. Desses casos emerge, por


vezes, um “conflito familiar”, natural
entre aqueles que viveram e herda-
ram estas histórias. “Nós somos os
filhos disto”, lembra Amálio, “não
Com estreia estivemos lá, não vivemos, não sen-
timos. A nossa relação é com estas
virtual no Teatro memórias que são transmitidas, o
que nos permite ter uma certa dis-
São Luiz, de 24 tância em relação àqueles que as vi-
a 31 de Março, veram e podem ter dificuldade em
se libertar de uma série de dogmas
Os Filhos do Mal que os acompanharam a vida toda.”
O objectivo foi sempre, por isso, o de
investiga a “colocar estas diferentes genealogias
relação dos em palco e pô-las a conversar”. Tanto
assim que, admite o criador e ence-
crescidos no nador, teria levado a busca pelo lado
da História de apoio ao regime “até
pós-25 de Abril à exaustão”, caso os três workshops
não tivessem peneirado nenhum
com o passado caso dentro deste enquadramento.
familiar. Um “Estamos à procura de mostrar como
a História é múltipla, como pode ser
diálogo entre vivida e sentida, como pode entrar-
se na luta de formas diferentes.”
descendentes Até porque a a confluência desses
de apoiantes dois lados da “barricada” numa visão
crítica do passado, consubstanciada
e resistentes numa defesa comum da democracia,
pretende não desviar o olhar ao en-
ao Estado Novo. frentar esse passado complexo, mas
também espantar qualquer tentação
de a ele voltarmos. Em 48 anos de
privação de direitos fundamentais,
lembra André Amálio, “às vezes o que
custa é dizer que isso não é normal,
que não se deve viver dessa forma e
é preciso lutar contra isso”. Afinal, a
cebook. Mas também, agora, graças relação aziada que Portugal mantém
às perguntas que se sentiu autori- com esta História prefere quase sem-
zada a colocar durante a criação de pre o silêncio à discussão de todas as
Os Filhos do Mal. temáticas satélites que obriguem a
A revisitação destes passados não revisitar tempos de tortura, de opres-
é, por isso, algo em que se mergulha são, de subjugação, tantas vezes ar-
de ânimo leve. Revolver nas memó- rumadas de olhos fechados na ideia
rias pode destapar verdades difíceis confortável de que se tratou de “uma
de digerir. Também, naturalmente, ditadura branda”. “Isso é algo que me
nos casos em que isso implica o con- arrepia”, diz Amálio. “Branda para
s casas tinham?”, “O 25 de Abril foi bem recebido pela vossa família?” são as primeiras fronto com defensores da ditadura e quem? Quem é que diz que é branda,
, João Esteves, Marta Salazar Fernandes, Paulo Quedas e Rita Tomé dar a cara por esse património fami- de onde vem essa voz, essa noção
liar em palco. “Obviamente o nú- completamente inscrita na nossa so-
mero de pessoas com histórias de ciedade?” Num momento em que o
apoio à ditadura [que se apresentou país se polariza de novo, com a emer-
tas de preparação para o espectáculo nos três workshops de selecção dos gência de uma extrema-direita popu- Estas histórias
acabaram por estremecer (e mesmo protagonistas] foi menor [em relação lista, o encenador diz que na prepa- aconteceram,
desarranjar) as biografias marcadas àqueles que levavam consigo relatos ração do espectáculo falaram repeti- foram
pelo colonialismo português. Per- de resistência], porque é ainda difícil damente de “como é urgente voltar traumáticas e
guntar abre portas, como sugería- falar sobre isto, é difícil olhar para a olhar isto de frente, não fingir, não fazem parte
mos no início deste texto. Perguntar aquilo que os nossos pais e os nossos pintar, não romantizar”. daquilo que
com um propósito que excede a ne- avós fizeram”, diz Amálio. Sendo Estas histórias aconteceram, fo- estes seis
cessidade pessoal permite rasgar o histórias todas elas marcadas pelo ram traumáticas e fazem parte da- intérpretes,
pudor ou o medo de aceder a inter- sofrimento, é menos conflituoso afir- quilo que estes seis intérpretes, nas- nascidos
ditos e esgravatar em memórias que mar o orgulho num combatente pela cidos entre 1971 e 1997, herdaram das entre 1971
só a custo são verbalizadas. democracia do que relevar, como o suas famílias. E porque continuam a e 1997,
“Ser Filho do Mal”, diz às tantas faz João, “marcas de uma certa re- compor-nos, individual e colectiva- herdaram das
Ana Sartóris, “é descobrir sobre a pugnância” ao saber que os seus bi- mente, os seis recriam em vários suas famílias
tortura do teu pai num vídeo do Fa- savós foram próximos da anfitriã do momentos algumas das fotografias
cebook.” Para ela, que cresceu a encontro histórico entre os dois di- que pediram emprestadas aos álbuns
sentir que os colegas de escola — e tadores fascistas, Salazar e Franco, lá de casa e vemos agora projectadas
até mesmo os professores — “olha- quando em 1950 o espanhol veio pe- em palco. Estas fotografias, vinca,
vam com muita desconfiança para a dir que Portugal intercedesse pela André Amálio, não saíram de livros
prisão dele” e para quem se tornou entrada de Espanha na NATO. de História. São as histórias íntimas
mais pacífico omitir com frequência A “repugnância” é uma palavra- das pessoas que vemos diante de
que o seu pai fora um preso político, chave neste relato. Para a Hotel Eu- nós, dando corpo e carne ao nosso
o contacto mais próximo com essa ropa, “era importante a capacidade passado. São histórias que desperta-
fase dorida da vida daquele que a de olhar criticamente para este pas- rão hoje, talvez, menos perguntas.
criou aconteceu através do vídeo sado fascista” e, por conseguinte, Ou, pelo menos, que permitirão per-
aparecido num qualquer feed de Fa- “não negar ‘o mal’”. Mas era também guntas novas.

ípsilon | Sexta-feira 19 Março 2021 | 11


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Liga da Justiça

CLAY ENOS/ 2016 WARNER BROS


de Zack
Snyder, o mais
recente
blockbuster
de super-
-heróis que
pela primeira
vez se estreia
apenas em
streaming; é
um director’s
cut único

CORTESIA DE WARNER BROS. PICTURES


na história
do cinema

A Warner divorciou-se de Zack Snyder e deu o seu Älme a outro em 2017.


Os fãs uniram-se numa hashtag, alguns tornaram-se tóxicos, e venceram.
O estúdio devolveu Liga da Justiça ao seu realizador original.
Em streaming, esta semana, um novo modelo de oferta e procura
em Hollywood?
Joana Amaral Cardoso

CORTESIA DE WARNER BROS. PICTURES

Director’s cuts há muitos,


mas isto nunca aconteceu
12 | ípsilon | Sexta-feira 19 Março 2021
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I
sto nunca aconteceu. É assim res dizem ao mundo que o poder é Este é o prémio para milhares de dores caseiros de um filme que em
que começa a pergunta do Ípsi- do povo, ou que campanhas revisio- fãs que começaram uma campanha 2017 custou cerca de 300 milhões e
lon a Zack Snyder que, como o nistas podem resultar? em hashtag que se organizou para que foi considerado um flop por ter
próprio nome indica, é o realiza- Este é momento especial na histó- inundar qualquer comunicação da rendido apenas 732 milhões de eu-
dor de Liga da Justiça de Zack ria do cinema de massas. Nesta en- Warner, para enviar enxurradas de ros em todo o mundo (aos quais se
Snyder, o mais recente blockbus- cruzilhada estão “os fãs”, ou o “fan- e-mails e pagou outdoors, um painel devem subtrair a parte dos exibido-
ter de super-heróis que pela primeira dom” anglo-saxónico, o monoteísmo luminoso na Times Square de Nova res, o marketing e os honorários da
vez se estreia apenas em streaming do super-herói e uma pandemia que Iorque e até um avião com uma faixa nova equipa de autores e novas ce-
mas que é, acima de tudo, um direc- fechou milhares de salas de cinema. que repetia “Release The Snyder Cut” nas. Agora, os efeitos visuais e a pós-
tor’s cut único na história do cinema. Há também uma tragédia pessoal, o que sobrevoou a Comic Con de 2019. produção custou cerca de 70 mi-
Porque director’s cuts há muitos, e suicídio de uma das filhas adoptivas “Este cut do filme é o que eu termi- lhões de dólares ao estúdio, disse
realizadores em divergência com o de Zack Snyder, Autumn, a quem nei logo quando voltámos”, diz Snyder, que mantém que este é o seu
estúdio substituídos por colegas este cut é dedicado. A sua morte em Snyder. “É a primeira versão, a mais “pequeno filme”, de “boutique”.
também. Mas é inédito que uma ma- Março de 2017, durante as querelas fresca, mais optimista, menos pro- Não recebeu mais nesta segunda
jor como a Warner Brothers devolva com a Warner sobre Liga da Justiça, cessada.” Policia-se. “Fora o pro- volta. Só quis autonomia.
o filme ao seu autor original depois foi um ponto de não-retorno. cesso de filmar, onde foram feitas
de uma primeira versão já se ter es- O estúdio queria mais leveza nos concessões ao estúdio aqui e ali”, “Toxic fandom”
treado. Ainda mais depois de uma
campanha organizada de fãs que
seus filmes sobre “meta-humanos”
e uma inflexão no estilo negro que
reconhece. Um estúdio “reactivo,
melindroso”, relata, belicoso até ao
Zack Snyder, de 55 anos, é o arqui-
tecto que escolheu Gal Gadot ou Ja- Este é o chamado
exigiram durante anos #Relea-
seTheSnyderCut. “Isto é que algo
Snyder imprimira aos dois filmes que
já tinha feito com Super-Homem e
fim de uma luta que acabou por ga-
nhar. “Dito isto, adoro estes actores
son Momoa como protagonistas
inesperados para Mulher-Maravilha “Snyder Cut”.
que nunca deveria ter existido”, diz
a produtora Deborah Snyder aos
Batman. Os seus filmes não estavam
a ganhar tanto dinheiro quanto os da
e este material. Baixei a cabeça e
bola para a frente. Sou uma perso-
ou Aquaman e que construiu em es-
tilo neoclássico no universo que há O que significa esta
jornalistas. “Ainda não devia exis-
tir”, interrompe-a o marido, Zack,
Marvel, mais divertidos.
Snyder abandonou o projecto e
nagem subversiva, não consigo con-
trolar-me. Não tenho a intenção de
décadas começou com o gótico de
Tim Burton. nova relação entre
sorridente. “E começou com os fãs”,
resume Deborah.
levou consigo um portátil com qua-
tro horas, a preto e branco, do filme
ser um provocador. [Nestas situa-
ções] no fim espero conseguir con-
O vislumbre de um canto do es-
critório dos Snyder faria as delícias Hollywood e os fãs,
Este é o chamado “Snyder Cut”. O
que significa esta nova relação entre
que nunca terminou. Liga da Justiça
(2017) está creditado a Snyder como
vencer-vos de que tinha razão o
tempo todo e que deviam ter-me
dos fãs. Há uma katana, uma espin-
garda antiga, um capacete de legio- entre o streaming
Hollywood e os fãs, entre o strea-
ming e os cinemas, para o futuro? “É
realizador, mas este nunca o viu. Foi
terminado por Joss Whedon, que
deixado fazer as coisas assim à par-
tida. Isso já me criou problemas,
nário a evocar 300 (2006). E uma
pilha de livros de capa dura com os e os cinemas,
um caso tão único...”, começa Zack
Snyder numa noite de Março que é
manhã em Los Angeles. “Sim, acho
refez mais de dois terços do filme,
mudou grande parte da história e
introduziu piadas. Foi arrasado por
mas aqui estamos.”
Aqui estamos, potenciais especta-
seus esboços dos seus filmes, de O
Renascer dos Mortos (2004) ao e para o futuro?
que terá algum tipo de efeito. Mas se fãs e crítica. Snyder chama-lhe “o
se investigar bem este movimento ‘cut’ que não será nomeado” e, na
em particular e tudo o que ele envol- mesa redonda no Zoom, fala das fil-
veu, acho que as implicações dora- magens com Whedon como “o hor-
vante podem ser menores do que ror de fazer as salsichas”, fabril.
‘este é um mundo novo em que os Agora, Zack tem o seu momento de
fãs decidem o que é feito’. Não sei se redenção.
é o resultado final neste caso, mas
sei que os serviços de streaming “Um pequeno Älme” #SÃO
como a HBO Max dão-nos opções O que é, afinal, o Snyder Cut? São CARLOS
que de outra forma não seriam pos- quase quatro horas de filme, dividi-
VOLTA A
Concertos
síveis em termos de um cenário de das em seis partes e um epílogo, com
estreia”, responde ao Ípsilon.
“Isto é uma experiência social”,
a gravidade habitual do realizador
que filma histórias aos quadradinhos
SUA CASA
BRANDEBURGUESES
diria depois ao New York Times, um como mitos fundadores da civiliza-
filme “feito à medida, a percepção de ção — não há espaço para a subtileza TRANSMISSÃO ONLINE
que, mais do que nunca, o filme foi ou realismo e a história que conta é

BWV 1046-1051
feito singularmente para si” — para bem diferente da do filme de 2017. O
ver em casa, depois da luta digital. Super-Homem veste negro e a ban- TNSC.BOL.PT/LIVE
O que há três anos parecia um mo- da-sonora tem a solenidade trágica
vimento quixotesco desemboca esta de Snyder, desta feita embebida pela
semana com as quatro horas do sua perda real. JOHANN SEBASTIAN BACH
Snyder Cut a estrearem-se em vários This Mortal Coil, Nick Cave e a ver-
países nas plataformas digitais da são de Hallelujah de Leonard Cohen
HBO (detida pela Warner e seu im- cantada no funeral da sua filha são
portante peão nas guerras do strea- as notas sonoras de um filme com as
ming). Ao contrário da história do habituais câmaras lentas para a pose
19 MAR 2021 às 21H
cavaleiro andante, os moinhos foram e o bullet time cromado do realiza-
derrotados. Quem são eles? Depende dor. Jeremy Irons ensina a Mulher-
de quem pergunta. Maravilha a fazer chá e uma nova Concerto Brandeburguês n.º 1 em Fá Maior
Zack Snyder é o afável realizador cena foi filmada de raiz com o Joker Concerto Brandeburguês n.º 2 em Fá Maior
Concerto
que abre a sua janela de Zoom aos de Jared Leto. Há novos heróis e vi- Concerto Brandeburguês n.º 3 em Sol Maior
jornalistas reunidos numa mesa re- lões. O filme, que o Ípsilon já viu, com a
donda virtual para mostrar os livros está no formato 4:3 porque um dia ORQUESTRA
de capa negra onde desenha cada o realizador sonha que possa ser SINFÓNICA
filme antes de o fazer. É um “under- visto em IMAX. A nova cena foi fil- PORTUGUESA 21 MAR 2021 às 16H
dog”, um homem com uma visão mada em plena covid-19 e nem todos e
moído por um estúdio intrometido puderam juntar-se fisicamente. “Fil- SOLISTAS OSP
Concerto Brandeburguês n.º 4 em Sol Maior
e injustamente afastado do cargo de mámos ao longo de três dias, o Ezra
arquitecto do universo cinematográ- [Miller, o Flash] estava em Inglaterra ANA PEREIRA Concerto Brandeburguês n.º 5 em Ré Maior
fico da DC Comics? Ou é um “bro”, a fazer [o filme] Fantastic Beasts. A Violino e direção Concerto Brandeburguês n.º 6 em Si bemol Maior
um poderoso proponente do cinema equipa deles filmou-o e o Zack diri-
de heróis deificados num mundo de giu-o por Zoom”, exemplificou De- O IDEALISTA APOIA O TNSC PARCEIRO PARA A COMUNICAÇÃO
ratos e homens? Os seus admirado- borah Snyder. SAOCARLOS.PT
#CULTURAÉIMAGINAÇÃO

ípsilon | Sexta-feira 19 Março 2021 | 13


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e próximo Army of the Dead (para por causa da minha opinião sobre o juntaram meio milhão de dólares”. Perguntam aos Snyder se Liga da
a Netflix). Snyder Cut”. Kayleigh Donaldson, Zack Snyder sorri: “O objectivo é um Justiça (2017) será expurgado do câ-
Fiona Zheng é uma dessas fãs e foi que escreve no site Pajiba, conta os milhão”. none DC/Warner. É uma decisão “do
a primeira a escrever no Twitter, em ataques de que foi alvo e garante: estúdio” e do “consumidor”, dizem
2017, sobre a existência de uma ver- “Quase todos os críticos ou pessoas Monocultura do na janelinha do Zoom. “Mas gosto
são quase terminada de Liga da Jus- que escrevem sobre cultura pop que blockbuster dessa forma de pensar, de o expur-
tiça de Snyder e a apelar: “Temos de conheço teve pelo menos uma má “Dura há muito este processo dura- gar dos registos, isso soa cool. Se
lutar por ela”. Administradora de experiência com certos fãs do DCEU douro em que os fãs ganham atenção houvesse uma espécie de vírus em
uma clínica na China, desencadeou [o universo cinematográfico da DC], cultural, em que ganham influência que se carregasse num botão e o apa-
uma tempestade, tornada petição normalmente nas redes sociais, ou e consciência de como usar essa in- gasse todas as cópias que encon-
no ano seguinte pelo porto-rique- com emails nefastos, comentários e fluência e agora vêmo-lo mais porque trasse. Mas não vejo isso a acontecer.
nho Roberto Mata (banido depois mensagens”. “O tribalismo”, escre- os media estão num momento em Mas gosto da maneira como estás a
do movimento por extremismo). veu, “torna-se tóxico muito de- que o colocam em frente ao nosso pensar. É cool”, diz Zack Snyder, sar-
Nascia o que o casal Snyder classi- pressa”. Para Carey, “o legado deste nariz”, diz Nancy Baym, que estuda dónico, sobre mudar a história e os
fica como “um movimento”. Snyder filme está ensombrado em toxici- o comportamento dos fãs na Inter- seus registos.
começou a partilhar excertos do dade e negatividade” e o estúdio net, no New York Times. “O fandom e Esta semana, na HBO Portugal, A
“seu” filme na rede social Vero. Em pagou 70 milhões de dólares “só para o ser espectador têm-se tornado som- Liga da Justiça de Zack Snyder é tam-
2019, Gal Gadot e Ben Affleck parti- apaziguar o toxic fandom”. briamente possessivos à medida que bém um momento para o streaming.
lharam a hashtag. O coro subia de Zack Snyder elogia os que lhe de- o país se tem dividido violentamente. “Não estaríamos aqui se não fosse
tom. Snyder mostrou “os analytics”, volveram a sua obra e nas últimas Há um campo de fãs — que tendem a por um serviço de streaming”, diz
as menções nas redes sociais, à War- semanas passou de não reconhecer ser brancos e homens, tal como os Deborah Snyder, e as opções que ele
ner. A Warner convidou-o a voltar a existência do “fã tóxico” para o tradicionais fazedores de cânones — permite. Que sinal projecta então o
— em plena pandemia, o estúdio condenar. Na semana passada, no que não querem a sua obra aberta ou Snyder Cut no céu para a indústria?
decidiu estrear muitos dos seus fil- Zoom, Deborah Snyder disse aos desapropriada. Não querem um de- Tony Gonçalves, um dos responsá-
mes em simultâneo na HBO Max; o jornalistas que “atacar alguém não safio à tradição”, escrevia no final de veis pelo desenvolvimento do strea-
Snyder Cut é um exclusivo online é apropriado em cenário algum”, 2020 o crítico cultural Wesley Morris ming da HBO e Warner, diz ao aus-
muito especial. direccionando a conversa para os no mesmo jornal. traliano Vergecast: “Não significa
No novo filme, o vilão Steppenwolf benfeitores do grupo. “O movimento E depois há aquilo em que o ci- que vamos refazer todos os filmes
diz a certa altura: “É tóxico. Isso é Snyder Cut pode ter incluído um nema se tornou. Uma “monocultura que já fizemos. Mas temos mesmo
bom”. #ReleaseTheSnyderCut é tam- pequeno grupo que foi tóxico mas a do blockbuster. O público não está a de ter o ouvido no chão e escutar
bém sinónimo de “toxic fandom” — maioria dos fãs fez uma coisa espan- ver um conjunto diversificado de atentamente”.
há uma facção agressiva que mostra tosa. Não só fizeram com que um filmes. Em grande parte, estes fãs só
como na última década o tom da ad- estúdio lhes prestasse atenção — eles estão a ver o MCU ou Star Wars por
miração e sentimento de posse dos permitiram que este filme fosse feito isso o seu investimento nesses filmes
fãs mudou. — mas também fizeram tanto pela é que eles sejam exactamente o que É inédito que uma major como a Warner Brothers
A Guerra dos Tronos ou os novos prevenção do suicídio. Cada dólar querem. Para eles não há espaço devolva o filme ao seu autor original depois de
filmes Star Wars geraram petições a que angariaram para os cartazes ou para a subversão ou desafio”, se- uma primeira versão já se ter estreado. Ainda
exigir que fossem refeitos. Alguns o ecrã gigante em Times Square, gundo Alexei Toliopoulos, crítico de mais depois de uma campanha organizada de fãs
actores de Star Wars foram alvo de metade desse dinheiro puseram cinema australiano, ao ABC. O câ- que exigiram durante anos
ataques racistas e sexistas nas redes numa associação de prevenção e já none é desafiado, revisto. #ReleaseTheSnyderCut
sociais. Um fã fez mesmo uma ver-
são de Os Últimos Jedi sem mulheres.

CORTESIA DE WARNER BROS. PICTURES


Um “fan cut” misógino. Estas ver-
sões da fanfiction, quando os fãs
continuam pelas próprias mãos as
suas histórias preferidas, incluem a
vontade de corrigir o que conside-
ram erros no que vêem no cinema.
Jason Satterlund vê o seu filme ama-
dor Kenobi como uma “oportuni-
dade de resgatar” Star Wars, que
sente que está a ser “violado”. No
meio musical, os fãs de estrelas pop
unem-se para combater fãs de ou-
tras estrelas, como Ariana Grande,
Lady Gaga, os BTS ou Taylor Swift.
“Resume-se tudo a emoções, uma
coisa que não levamos suficiente-
mente a sério na nossa cultura.
Quando as pessoas são tão passio-
nais quanto a algo ao ponto de se
identificarem com isso, e de isso se
tornar parte de si — seja um partido
político, um político ou uma celebri-
dade — vão discutir”, disse Paul
Booth, professor de Estudos dos Me-
dia na DePaul University, em 2020
ao New York Times. Na última dé-
cada, discute-se no Twitter ou nas
críticas do site Rotten Tomatoes.
O grupo #ReleaseTheSnyderCut
teve mesmo de criar um código de
conduta porque também foi “uma
campanha maciça de bullying”,
como lhe chama Kevin Carey, do blo-
gue I Am Geek. “Recebi a minha
quota parte de assédio na Internet,
de ameaças de morte e de ataques

14 | ípsilon | Sexta-feira 19 Março 2021


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S
e glosasse o Génesis bíblico, pelo patriarca: “O meu avô Aníbal entre namorados ou amigos. O dar e
Membros activos esta história podia resumir- Fandango, que já não é vivo. Era o às vezes não saber perdoar.” E há,
dos aveirenses se assim: E viveram Fan-
dango e Floripes, que gera-
único músico da família, tinha projec-
tos musicais, tocava concertina e foi
depois de várias peripécias: Os deva-
neios da avó Floripes, com uma sub-
Moonshiners, ram Manel, Zé e Clementina; fundador de um rancho folclórico. O versão de ditos populares, como “O
e casou Manel com Rosa e nome é verdadeiro, e o da avó Flori- rato roeu a rolha do rei da Rússia”
Susie e Vítor geraram Aníbal, Chico e Sara; e casou pes também.” Ao todo, são 17 perso- transformado em “A rolha roeu a Rús-
criaram um duo Família
Fandango
Clementina com Edmundo e geraram
Maria e Quim; e casou Aníbal com
nagens. E o disco conta com 18 músi-
cos e artistas (incluindo Susie e Vítor),
sia do rato do rei”; os dilemas de
Chico; ou a partida de Sara, que de-
com nome de doce Siricaia
edição de autor
Beatriz e geraram Benjamim; e casou
Maria com Sebastião e geraram Eva;
entre os quais se incluem Quiné Teles
(percussões), Jorge Loura (guitarra
pois “volta de Londres socialista e
vegetariana/ na companhia da namo-
alentejano e hoje e casou Quim com Ana; e todos vive- eléctrica), Artur Fernandes (dos Dan- rada, uma pintora italiana”.

lançam Família mmmmn ram, enquanto Zé, Chico e Sara se- ças Ocultas, na concertina), Luís Pei- Para tudo terminar no Jantar de
guiam seus caminhos. E viveu Fan- xoto (cavaquinho), Xavier Marques família em Aldeia do Chão, “após um
Fandango, onde dango todos esses dias, até que mor-
reu (e chegou ao fim o disco).
(sintetizador Moog) e dois músicos
que também integram os Moonshi-
longo período de confinamento”,
onde se acertam contas e memórias
blues, rock, folk, Mas Família Fandango, o primeiro ners, Carlos Lázaro (teclados) e Ga- num “banquete de abraços”. Isto
álbum do duo Siricaia, tem mais que briel Neves (saxofones). antes do bebé começar a andar e da
country e música se lhe diga. É um disco que traz con- despedida de Fandango, a fechar: “O
“Banquete de abraços”
portuguesa se sigo, não apenas uma história (a de
uma família inventada a partir de per- Musicalmente, Família Fandango tira
Escondidinho fechou/ a aldeia inteira
anoiteceu/ só Benjamim não chorou/
misturam em sonagens reais, e próximas de quem
as criou), mas também os traços mu-
partido do um cruzamento entre so-
noridades: “Não podemos fugir às
no dia em que Fandango morreu”.
Susie: “Sabemos que um fim ante-
perfeita alquimia. sicais da formação dos seus músicos: nossas origens e todas elas vêm da cipa sempre um início e o início traz
Susie Filipe (voz e bateria) e Vítor música anglo-saxónica: rock’n’roll, sempre um fim, como é o fim deste
Hugo (voz e guitarras eléctricas e blues, folk, country. Mas como o pri- disco e também desta personagem,

A fabulosa
acústicas), ambos integrantes da meiro disco deste projecto retratava que morre quando nasce mais um
banda aveirense Moonshiners, que a vida de um seio familiar tipica- bisneto.” O relato da canção replica,
em 2022 completará dez anos de exis- mente português, achámos que havia de certo modo, o que sucedeu com
tência e vai celebrá-los com novo ál- aqui um entrosamento com algum Aníbal Fandango, avô de Susie: “O

história dos bum, já em preparação.


Mas este “atalho” para um caminho
paralelo, criando os Siricaia, quise-
folk, algum country, mais virado para
a música tradicional portuguesa.” E
isso fica bem demonstrado logo no
que sentiu no seu funeral foi algo de
muito semelhante, sim, porque era
uma pessoa de certa forma emble-

Fandango ram dá-lo Susie e Vítor porque tinham


em mente uma história. “O que nos
influencia, o que nós somos e faze-
arranque, na canção Fandango, cons-
truída como uma suite embalada em
vários andamentos, capaz de pren-
mática e conhecida na aldeia onde
vivia.” Não na Aldeia do Chão, nome
inventado, mas em Paredes do Bairro

contada
mos, são os nossos amigos e as nossas der logo o ouvinte à história. E se ao (no concelho de Anadia).
famílias, evidentemente”, diz Susie longo do disco há sempre uma base O jantar de família retratado na
ao Ípsilon. “Quando começámos a portuguesa (“com uma roupagem canção evoca um outro encontro
pensar o que é que seria a Família mais tradicional”) sentem-se influên- adiado, o dos artistas e músicos com

pelos Siricaia Fandango, fomos olhar para as pró-


prias pessoas das nossas famílias. As
mais emblemáticas, evidentemente,
as que nos marcam mais. Há sempre
um bocado de surrealismo, mas todas
cias do blues, country, folk e rock,
rondando até o rock progressivo.
E tudo isso vai dando cor à histó-
ria. Se o disco abre com o chama-
mento da avó Floripes ao avô Fan-
os seus públicos, devido à pandemia.
“O momento do espectáculo é talvez
o mais importante para nós”, diz Su-
sie. “É dos momentos em que tiramos
mais prazer da música e onde co-

Nuno Pacheco estas personagens são inspiradas em


pessoas da nossa família.” A começar
dango (que continua a tocar na tasca
da aldeia, alheio ao passar das ho-
ras), há também instrumentais a
munga todo este trabalho, seja ele
gráfico, de composição, de estúdio,
de ensaio. Se ele não existe, há uma
acompanhar a frenética pedalada de espécie de não-realização.”
JOÃO RODRIGO

Zé na bicicleta (Yé-yé) pela fictícia Enquanto se refazem as agendas,


Aldeia do Chão, discussões conjugais na esperança de que esse contacto
(Clementina vs Edmundo), sexo (A regresse logo que possível, o que o
noite em que Maria perdeu a virgin- disco proporciona não se fica pelas
dade; com uma só frase: “Foi a minha canções. Há também um trabalho
opção”) ou o momento em que co- gráfico, com ilustrações de João Fino
meça a caminhar um bebé (Os pri- e design de Ricardo Miranda, ao
meiros passos de Benjamim). longo de todo o disco. “Temos edi-
Tudo o resto tem letras, escritas na ção em vinil, com um livro que tem
totalidade por Vítor Hugo (“uma pes- a função de complementar a histó-
soa bastante ligada à literatura”, diz ria. Todas as músicas têm uma ilus-
Susie), embora as músicas sejam com- tração, que é a nossa imagética pla-
postas por ambos. E se no início deste neada e pensada para elas. Quando
texto se glosou o Génesis, não foi em as compusemos, pensámos nos de-
vão. Vítor socorre-se, a dado passo, senhos e nas cores que gostávamos
da Bíblia, numa citação do versículo de lhes associar e também no que as
17 do livro de Samuel, quando David imagens poderiam contar, para além
diz a Saul (antes de enfrentar o gi- das letras e da melodia.”
gante Golias): “Não posso caminhar Família Fandango chega, assim,
com esta armadura” (em Não posso esta sexta-feira às plataformas digi-
mais). Esse tema, diz Susie, “está re- tais, estando também disponível em
lacionado com a entrega, qualquer formato físico (LP, CD, livro) no
que seja a relação: de mãe para filhos, Bandcamp e nas lojas de discos.

ípsilon | Sexta-feira 19 Março 2021 | 15


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DARYANDORNELLES
udo começou em Kansas
City, Missouri, Estados Uni-
dos. Estávamos em 2018
quando a artista multimédia,
escultora e fotógrafa brasi-
leira Lúcia Koch, que traba-
lha muito a alteração da experiência
dos lugares e dos ambientes, desa-
fiou Domenico Lancelloti para com-
por música original para uma insta-
lação artística a ser implementada
num bairro negro da cidade norte-
americana. Foi a partir desse pro-
jecto a dois que o músico brasileiro,
a viver em Lisboa desde há ano meio,
deu início ao longo processo de pro-
dução de Raio, o primeiro lança-
mento, a ser efectuado na próxima
sexta-feira, pela nova editora portu-
guesa Arruada.
“É isso mesmo, foi aí que tudo
teve início, nesse projecto que tinha
muito a ver com a terra, com o lugar,
o espaço”, reconhece Domenico, 48
anos, carioca de ascendência ita-
liana, já com dois álbuns anteriores
a solo (Cine Privê de 2011 e Serra dos
Órgãos de 2017), para além de ter
integrado o projecto +2, ao lado de
Moreno Veloso e Alexandre Kassin,
ou a banda rock experimental Mu-
lheres Q Dizem Sim, e colaborado
com Adriana Calcanhoto, Caetano
Veloso ou Gal Costa, ou participado
em ideias colectivas como a Orques-
tra Imperial. Agora aí está Raio,
magnífico álbum onde parte das
raízes da música popular brasileira
para compor canções onde subtis
elementos electrónicos e motivos
percussivos (Domenico é multi-ins-
trumentista mas é conhecido essen-

Somos o mar com


cialmente como baterista e percus-
sionista) rodeiam a voz e o som do
violão, retratando sentimentos de
reconstrução, renascimento e cone-
xão que ele diz serem essenciais
num tempo de grandes impasses.
Um outro acontecimento decisivo

Domenico Lancelloti
na feitura do novo trabalho, diz, re-
sultou da convivência com alguns
indígenas do Acre, estado no no-
roeste do Brasil, na floresta amazó-
nica. “Antes de vir para Portugal,
através de várias oficinas, partilhas
e convívios, encontrei essa possibili-
dade de conhecer a música do povo
Huni Kuin e de entender a sua ma-
neira de se relacionar com todas as
coisas e aprendi imenso. Isso me in-
Como chegámos a esse labirinto?, interroga-se o músico brasileiro, numa
fluenciou imenso, a sua música e a
forma como interagem com a natu-
obra de canções que deixam a luz entrar, inspiradas em aprendizagens da
reza. Então esse disco partiu dessas cultura indígena.
duas dimensões: o projecto artístico
de Kansas City e a convivência com
os indígenas Huni Kuin.”
Em todas as canções se sente uma
ligação profunda com elementos Vítor Belanciano

16 | ípsilon | Sexta-feira 19 Março 2021


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Em todas
como a terra ou o mar, numa zona
de confluência onde a procura de as canções
se sente
xão com esse outro lado do espelho.
É a esse lugar que quero chegar com “Às vezes a melhor Em Portugal, ainda não existiram
grandes hipóteses de colaboração
uma tranquilidade interior não é dis-
sociável da consciência colectiva do uma ligação
profunda
a música. Esse lugar que te faz ter
força, que faz mover coisas, que faz forma de nos com músicos locais, “até porque che-
guei num momento muito difícil”,
mundo exterior. Às tantas, em Ondas
do mar, Domenico canta que “somos com
elementos
dançar. E sim, tem a ver com esse
renascimento, essa mudança de pa- conectarmos afirma, “e logo depois, quando me
estava adaptando, surgiu a pande-
o mar”. E é isso. Não existe a natu-
reza de um lado e os seres humanos como a terra
ou o mar,
radigma, até para sobreviver a esse
sítio confuso e estranho onde agora é desconectar”, mia e fiquei sem a possibilidade de
tocar.” Ainda assim já desenvolveu
de outro. Somos natureza.
“O Brasil é uma loucura! Tem um numa zona de
confluência
chegámos.”
Para Domenico estamos no labi- resume. “Ou pelo algumas experiências. “Conheci uma
turma de angola, relacionada com o
montão de coisas coexistindo ao
mesmo tempo”, tenta justificar, re- onde a
procura
rinto. Utilizamos linguagem militar
quando nos referimos à pandemia, menos, fazendo-o Kalaf Ângelo e o [escritor] Agualusa,
e acabei dando um concerto com o
flectindo sobre os ensinamentos da
cultura indígena. “Nessas oficinas, de uma
tranquilidade
como se estivéssemos em guerra
com o vírus, mas neste caso, como de outra forma. angolano Toty Sa’ Med, e também fui
assistir a uns fados na Mesa de Fra-
encontros e rituais onde participei
não foi apenas a música que me in- interior não é
dissociável da
noutros, trata-se de saber coabitar.
“Essa é a única solução para a espé- O momento des. Ao mesmo tempo tenho traba-
lhado com o artista plástico Tomás
teressou, mas também a ligação in-
dígena com a terra, com o sagrado. consciência
colectiva
cie humana nesse momento. O que
pode nos salvar é esse olhar, outras conflituoso que da Cunha Ferreira, que foi o meu
primeiro amigo português quando
Mas, claro, a música é muito bonita
e antiga, não tem percussão, o que do mundo
exterior
perspectivas de mundo e de cosmo-
visões.” E para isso é necessário estamos a viver ainda estava no Brasil, fazendo ses-
sões de improviso com electrónicas
faz com que tenha alguns traços de
música contemporânea ao mesmo
preservar culturas como as indíge-
nas que, mesmo sendo alvo de con- no planeta exige e imagens. Temos até uma banda
chamada Comum.”
tempo e seja muito dinâmica e ac-
tiva. É música que tem como finali-
tínuas agressões, acabaram por so-
breviver. “Essa ligação com o sa- uma renovação, Como outros brasileiros, da mú-
sica ou das artes, Domenico fez as
dade chamar espíritos, forças e ener-
gias. É música muito forte mesmo.”
grado é algo que essas culturas
ancestrais ainda conseguem preser- um ressurgimento, malas para Portugal depois de Bol-
sonaro ter ganho as eleições. E para
É música poderosa, mas serena. A
tranquilidade que só advém da sabe-
var. Na Europa, por exemplo, sinto
que é difícil encontrar uma relação uma nova já não vê forma de regressar. Nem o
aparente retorno ao activo do ex-pre-
doria. São assim a maior parte das
canções de Raio, com muitos ele-
mentos circulando, entre motivos
com o tambor e com uma música
que seria a essência desse lugar. Ou
seja, é muito difícil encontrar mani-
perspectiva de vida” sidente Lula da Silva o deixa crente
no futuro mais próximo. “Tem ainda
muita coisa para a gente sofrer, até
acústicos e digitais, mas é um dina- festações que ainda preservam, por tirar esses bandidos do poder. Não
mismo de tom pausado e envolvente, exemplo, aquilo que seria a Europa tenho muita esperança a curto prazo.
aquele que nos é devolvido. No tema antes da igreja católica. Mas em al- O Lula traz uma esperança que é di-
final, Newspaper, existem alusões ao guns lugares do mundo, como o ferente do resto da esquerda – que
mundo contemporâneo, onde esta- Brasil, ainda tem isso, graças aos faz parte do mesmo problema sisté-
mos conectados a toda a hora. “Às povos nativos, mas não só. E isso é mico porque têm algumas pessoas
vezes a melhor forma de nos conec- um colosso de aprendizagem. Mas que vêm de uma classe média-alta
tarmos é desconectar”, resume. “Ou uma parte significativa da classe mé- com agenda própria – mas ele está
pelo menos, fazendo-o de outra dia brasileira prefere ver a novela muito sozinho. Mas, sim, o que me
forma. O momento conflituoso que das oito. E não quer nem saber.” dá ainda alguma esperança no Brasil
estamos a viver no planeta exige uma Aprender com o que é perene, o é o movimento Sem Terra e a figura
renovação, um ressurgimento, uma que se manteve, o que ficou, para lá do Lula. Mas é difícil. O que aconte-
nova perspectiva de vida.” das atropelos cometidos, para me- quem colaboro até hoje, onde essa ceu, a tomada do poder por bandi-
Em todos os nós por desatar da lhor desenhar um espaço de futuro. ideia de cooperação era incentivada. dos ligados aos militares, é um pro-
vida contemporânea está presente Ir à raiz, para perceber em que mo- A música é uma alegria que reside cesso complicado.”
a ligação difícil com o meio am- mento o caminho começou a dar nessa possibilidade de você poder Para já, no horizonte ainda que
biente. Mais uma vez isso está a ser errado. “Esse é o momento de olhar conviver. Por isso, quando tenho al- não particularmente límpido pelo
constatado através da pandemia. para isso. Aprender. Porque está guma ideia de melodia, ou de harmo- contexto actual está o ensejo de
Mas ainda existe dificuldade em claro: deu errado! Então vamos vol- nia, com o violão, fico pensando logo apresentar o álbum ao vivo. “Tenho
aceitar que a relação predatória e Raio tar atrás e perceber o que se man- com quem aquilo combina, tanto esperança que se abra a possibili-
extractivista encetada pelo homem Domenico teve. Vamos ver no Renascimento, podendo ser o Moreno, como o dade de voltar a tocar que é o que
na sua relação com o planeta nas Lancelloti por exemplo. Vamos ver em termos Bruno Di Lullo, meu grande par- gostamos de fazer”, diz, lembrando
últimas décadas tem de mudar de Edi. Arruada colectivos como é que a gente vai ceiro, que está em quase todas as que em Lisboa há uma série de mú-
rumo. O que exige um novo tipo de fazer. Como chegamos a esse labi- músicas deste disco. É um baixista e sicos que fazem agora parte da sua
entendimento da realidade. mmmmn rinto? Como é que nos acercamos compositor incrível.” banda. Alguns chegaram durante a
“Quando dizemos ‘a nossa relação dessa crise que estamos a viver de Conheceram-se quando andavam pandemia e outros já cá estão há
com a natureza’ já estamos a encetar forma colectiva?” em digressão com Gal Costa, tendo algum tempo. “É o caso do Ricardo
uma separação, a criar uma barreira, É uma tarefa colectiva, faz questão aí começado a fazer música juntos. Dias Gomes, que tocava com Cae-
como se existíssemos nós e do outro de vincar, tal como a criação musi- “Às vezes faço uma harmonia, mas tano, e que mora aqui faz anos, ca-
lado do espelho a natureza. Do cal. Este é um álbum a solo, mas ele sou baterista, não sou tanto da har- sado com uma portuguesa.” E não
ponto de vista indígena não existe a diz que no processo de feitura das monia assim, e então eu envio para é só o tocar, é também o viajar,
palavra natureza. Nem sociedade. É canções é impossível não imaginar ele e ele me abre outras possibilida- aquilo de que mais sente falta. “O
uma coisa só. Está tudo misturado. outros intervenientes. “Gosto de tra- des. Trabalhamos muitas vezes jun- disco vai ser lançado também em
Sempre retive isso comigo de forma balhar em conjunto, essa coisa da tos. Depois, por norma, levo para o Espanha, por isso espero poder ir
intuitiva, mas depois desse convívio banda. Venho de uma experiência estúdio onde vão surgindo outras tocar por aí, a Madrid, Paris, Lon-
comecei a valorizar mais. Para eles de escola, onde conheci o Moreno ideias. É um processo muito em dres e por esse Portugal.” Para já o
tudo é sagrado, exigindo uma cone- Veloso, ou o Pedro Sá, músicos com aberto.” Brasil pode esperar.

ípsilon | Sexta-feira 19 Março 2021 | 17


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H Ao

ALYSSE GAFKJEN
á dez anos, ainda no liceu,
Julien Baker tinha uma
banda de indie-rock, The
Star Killers. Em 2015, lan-
çou um disco “a solo bas-
tante esparso”, só para, diz,
“se divertir e gravar algo”. As pessoas terceiro
gostaram de Sprained Ankle e foi ati-
rada para uma carreira na música.
“Fiz uma digressão e acabei por me disco,
Julien
tornar um produto do meu am-
biente, habituei-me a canções mais
esparsas e minimalistas”, explica ao
Ípsilon via Zoom a partir de Na-
shville, Tennessee, onde vive, para
falar do novo disco, Little Oblivions,
o seu terceiro. Baker
descobre
“Quando estava a fazer este disco
tentei livrar-me de algumas limita-
ções que tinha construído para mim
própria, que talvez não fossem reais
para mais ninguém”, conta. Por isso,
este terceiro álbum da cantora-com-
positora tem um som de banda com-
pleta, com mais rock, baterias, ex-
plosões, reverb, distorção e outros
quem é
efeitos, mesmo que a maioria dos
instrumentos sejam tocados pela
Oblivions é o
própria Baker — com a ajuda do en- novo álbum da
genheiro de som Calvin Lauber, que
a ajudou a produzir e toca “umas cantora-
baterias e umas guitarras”.
O disco saiu no final de Fevereiro
-compositora do
e, como é óbvio, atravessando o Tennessee, em
mundo uma pandemia, Baker ainda
não o tocou ao vivo. Apesar de já ter que abraça o som
actuado com banda completa em
programas como Late Night with
de uma banda metalcore da sua cidade, Bartlett,
subúrbio de Memphis. “Era filha
romper com o ideal feminino. Ela
tem a capacidade formal de ser boa
Seth Meyers ou CBS This Morning. A
frustração de não poder tocar não se
depois de álbuns única, os meus pais ouviam hair-me-
tal, não tive um caminho para o punk
cantora, mas fazia intencionalmente
sons feios e disruptivos e foi rece-
prende só com a pandemia. É que mais esparsos. a sério, mais antigo”, confessa. Foi bida de forma diferente dos ho-
Baker, 25 anos, deu o seu último con- descobrindo “música mais pesada” mens, houve uma questão diferente
certo em 2019. Tirou um ano sabá- e a ficar “cada vez mais investida” de autenticidade à volta dela que
tico, que acabou por se transformar, nela, a ler livros “sobre a história do me pareceu injusta para ela.”
contra a sua vontade, em dois, para
voltar a estudar, acabar a faculdade
Rodrigo emo, do hardcore, do punk” e “auto-
biografias de músicos de que gos-
O único lançamento de boygenius,
um EP homónimo de 2018, serviu
e parar um bocado. “Tem sido sau-
dável passar muito mais tempo em Nogueira tava”. Ganhou uma “apreciação
histórica” por Kathleen Hanna, de
para três mulheres “abertamente
amigas” andarem em “digressão jun-
casa e perceber quem sou como pes- Bikini Kill e Le Tigre, e começou a tas” e “lançarem discos ao mesmo
soa quando não estou em constante gostar da sua música dela, já mais tempo”, mostrarem às pessoas que
movimento”, comenta. velha. “É algo de que me arrependo, a única razão pela qual as compara-
Depois de uns anos em que, ainda toda a hora. Em vez de tocar as can- porque adorava ter tido uma vam era porque eram “todas mulhe-
nova, tinha sido posta na estrada, a ções que as pessoas já tinham ouvido, Kathleen Hanna para admirar, mas res que fazem música com guitarras
tocar, a fazer música, sem parar, que- ou o que era esperado de mim, estava o tipo de música que me estava a ser e cantam”.
ria perceber quem era. “Tinha deci- só a tocar música que me preenchia dado pelos meus amigos e os media “Não tem de haver comparação
dido quem eu era e que os meus e me fazia feliz. Talvez não feliz...”. era só de rapazes”, lamenta. entre todas as mulheres que fazem
comportamentos e os princípios por É que a música que faz é “bas- É algo que se liga à ideia por detrás indie-rock, são só pessoas a fazerem
que me regia eram o que me definia tante” triste, diz a própria, sobre os do nome de boygenius, o trio a que o seu tipo de música”, afirma.
enquanto pessoa. Eu sou a Julien, o problemas emocionais, o passado e Baker pertence com Phoebe Bridgers A Julien Baker que queria ter tido
que é que me torna a Julian? Sou ve- recaídas do abuso de substâncias, e e Lucy Dacus, que tem que ver com uma Kathleen Hanna para admirar
gan e straight edge [não bebe nem erros no geral. “Uso a música como a forma como os tais “rapazes” das em nova é agora ela própria alvo de
toma drogas], tenho todos estes uma forma de ter uma conversa co- bandas que ouvia em nova são facil- admiração.
comportamentos específicos, mas e migo própria sobre as minhas emo- mente considerados génios. “As mu- “Tenho a minha própria descon-
se eu parasse de os ter e deixasse de ções e uma forma de perceber como lheres têm tido, historicamente, um fiança sobre essas questões. A repre-
ir em digressão, onde é que estaria a articular coisas que não conseguiria número limitado de formas como sentatividade é sem dúvida muito
minha identidade?”, perguntou-se. dizer numa conversa nem perceber podem ser vistas como geniais, importante, e ter mais pessoas mar-
“Sinto que se tornou bem mais sozinha. Este disco é feito de histó- quando brilham na música de ma- ginalizadas a fazerem arte é necessá-
fluída. Pus muita da minha auto-va- rias deste período de muita auto-e- neira muito específica. Muitas vezes, rio. Mas também desconfio quando
lorização e identidade nos princípios xaminação, de admitir coisas que fiz isso está ligado a um ideal feminino, uma ideologia se torna moda”, diz,
por que me regia, ao invés de decidir que são humilhantes, embaraçosas como cantar de forma bonita”. adicionando que é algo que, “nos
os meus princípios com base no que e nocivas”. É um período que, subli- Kathleen Hanna não era assim. “Era últimos cinco anos”, tem sido cada
é saudável”. nha, “nunca acaba”. por isso que era tão controversa, vez “mais fácil” do que há dez.
Nesse tempo que tirou, continuou está só a gritar e a tocar aquela gui- “Posto isto, é assim tão mau que
a tocar música, já não se sentindo Ter uma Kathleen Hanna tarra louca e as pessoas, porque ela agora faça parte da consciência cul-
“obrigada a ser um tipo de pessoa para admirar é mulher, não lhe dão o mesmo re- tural procurar intencionalmente
consistente”. “Quando tirei este Quando tinha bandas, em adoles- conhecimento artístico que, sei lá, mais artistas queer, trans, mulheres,
tempo da estrada não estava a pôr-me cente, ouvia o que os amigos lhe uns Black Flag, uns Ramones ou uns que não sejam cisgénero? Não acho
no contexto de alguém que actua a mostravam, o que eram bandas de Minor Threat. Porque ela está a que seja”, conclui.

18 | ípsilon | Sexta-feira 19 Março 2021


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Câmara Escura
Vasco Câmara
Francis Ford Coppola , o soldadinho de chumbo
U
m acontecimento cinéfilo em plena terceira
vaga da pandemia covid-19: o regresso a
Francis Ford Coppola. Haverá razões para
suspeitar que pode ter sido também um
acontecimento criado pela pandemia, como
efeito colateral das restrições e perdas que
andam a constrangir o épanouissement do desejo. Que
precisa de ser libertado. Foi assim que, subitamente,
no final do Inverno passado, em França — país onde o
impulso cinéfilo ainda deixa registo nos sismógrafos —,
estando as salas fechadas, o que, para além da
infelicidade social não é menos do que uma
humilhação para a forma como os franceses gostam de
olhar para si próprios (veja-se a cerimónia dos Césares
de sábado passado...), e estando a chover no coração
dos espectadores (idem), ainda assim o cinema teimou
em encenar o seu espectáculo. Colocou Francis como
tema de ensaios críticos e na capa de revistas. Não por
causa de mais uma metamorfose de Apocalypse Now
(1979), esse bicho que em quatro décadas se foi
aproximando de nós com outra(s) pele(s). Não devido
a uma reabilitação de Do Fundo de Coração/One From
the Heart (1981), cintilante affair electrónico cuja
incompreensão e clamoroso flop, à sua época, são
parte integrante da mística de um objecto entretanto
entronizado.
Não. Francis Ford Coppola apareceu na capa de
Fevereiro dos Cahiers du Cinéma (com o seu vinho,
fotografado pela filha Sofia em Napa Valley), afagado
nas páginas do interior por amigos e cúmplices, como
o músico e actor Tom Waits ou o director artístico
BETTMANN/GETTY IMAGES
Dean Tavoularis, e por pupilos, como o cineasta James
Gray (que no papel como na película é um esmerado
aprendiz), não por causa do filme que é uma trip nem
por causa do musical que sonhou com o live cinema; Jardins de Pedra é o seu ritual funerário. Sendo também, nas
mas por causa da edição em DVD e Blu-Ray, pela
Carlotta Films, de Peggy Sue Casou-se/Peggy Sue Got bagarres entre James Caan e James Earl Jones, a mais fordiana
Married (1986) e Jardins de Pedra/Gardens of Stone
(1987). das suas obras. Uma das maiores, entre o filme secreto
Repare-se: são dois dos títulos da fase menos
unânime do cineasta, os anos 80 e 90, aquela em que a e a confissão impúdica, o que em 1986 poucos seriam capaz
sua filmografia foi preenchida por encomendas,
objectos recebidos como “menores”, que eram ofertas
que Coppola não podia recusar se queria comprar a
de defender
sua sobrevivência, se queria aliviar a catástrofe
financeira do pós-One From the Heart, o filme que O regresso a Peggy Sue Casou-se e Jardins de Pedra, dois títulos da fase mais problemática de Francis
mandou o sonho da comunidade de artistas sonhado Coppola, os anos 80
pelos estúdios da Zoetrope pelo cano abaixo.
Foi período de ressaca para o realizador. E para os
que tinham encontrado num cineasta megalómano,
mas que se entregava desarmado às suas emoções os Cahiers intercedam pela terceira parte da saga O 70, gritava-se: “Francis has the power, we will rule
(mais do que qualquer dos outros da sua geração), o Padrinho, a mais discutível, aquela que nunca pôde Hollywood, we will rule Hollywood”.
mapa da sua viagem de espectadores. Sentimos todos igualar-se à monumentalidade glacial da parte II, por Mas Francis foi, em vez disso, aquele que teve a mais
com os filmes o arrefecimento de uma utopia, o final exemplo. Vem isto a propósito de uma nova conturbada (des)adequação ao sistema quando
do reinado dos autores — em suma: que a brincadeira montagem, intitulada The Godfather Coda: The Death Hollywood se reconfigurou através de corporações,
acabara — embora fôssemos demasiado miúdos ou of Michael Corleone, e Coppola explica, para além da blockbusters e tops dos fins-de-semana de bilheteiras.
sem a distância suficiente para o verbalizar. Isso foi o variação do título, a razão e as decisões tomadas neste Ou seja: quando as aspirações dos movie brats foram
que aprendemos a fazer ao longo das décadas regresso ao final da trilogia dos Corleone. São, derrotadas. Scorsese, por exemplo, que também teve
seguintes: a decepção, o luto. fundamentalmente, as mesmas que o levaram a o seu One From the Heart no arrebatador New York New
“mexer” em Apocalypse Now: colocar-se hoje perante York de 1977 (Peter Bogdanovich teve-o com o sublime
We will rule Hollywood o objecto de forma livre das pressões que o They All Laughed, em 1981, o ano de Heaven’s Gate, de
No primeiro parágrafo do editorial dos Cahiers, constrangiram na época. Michael Cimino...), foi-se adaptando ao estado das
Francis Ford Coppola é “o maior cineasta americano Foi o primeiro da sua geração, os movie brats, a coisas e tem hoje o estatuto exemplar de cineasta
dos últimos cinquenta anos”.É menos um combate entrar na indústria, como argumentista de This oficial norte-americano. Nada disso pode Coppola
para impor um estatuto mítico do que uma operação Property is Condemned, de Sidney Pollack, Is Paris ostentar. Atravessou metamorfoses várias que
de pacificação. Como se fosse necessário lamber as Burning?, de René Clément, ambos de 1966, e de rimaram com o retrato que o amigo e rival George
feridas da obra, resgatá-la, para o mito poder ser Patton, 1970, de Franklin J. Schaffner. Antes de fazer Lucas lhe tirou: “De todas as pessoas que conheço é
unificador e não sinal de turbulência, de uma perda. 40 anos já era o mais poderoso da Nova Hollywood. Francis que tem o maior ego e as maiores
Para ficarmos em paz com as contradições de Francis Fez-se ouvir de forma tonitruante entre O Padrinho I inseguranças”.
Ford. Não é por acaso que ao lado do novo olhar que (1972, 3 Óscares), O Padrinho II (1974, 6 Óscares) e Do ego ficámos servidos com Apocalypse Now, o
Peggy Sue Casou-se e Jardins de Pedra agora despertam, Apocalypse Now (1979, 2 Óscares). Nas festas, nos anos filme a propósito do qual a própria mulher, e
ípsilon | Sexta-feira 19 Março 2021 | 19
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próprio filme quisera denunciar. O desfasamento


entre a sala e o palco era flagrante. A decepção passara
a ser a marca da relação. Coppola parecia ter desistido
Foi o primeiro do seu passado.
da sua
geração, ConÄssões e melancolia
os movie À sua época, Jardins de Pedra parecia mesmo não
brats, a entrar querer falar, defendendo-se com a reserva. Ouvia-se
na indústria, apenas no som, tambores ao longe, o Vietname. Esse
como silêncio, depois da exuberância de Apocalypse (ou do
argumentista. fôlego de O Caçador, de Michael Cimino), fora
Antes de fazer escutado como retirada. O soldado tinha sido
40 anos derrotado, estava manietado.
já era o mais Mas Apocalypse Now foi-se mexendo ao longo de 40
poderoso da anos. Apresenta-se aos espectadores que hoje somos
Nova de forma mais íntima, como um home-movie, um
Hollywood gigantesco home movie, auto-retrato de um cineasta na
BETTMANN/GETTY IMAGES
sua loucura. Absorveu para dentro de si a família
Coppola, prolongou-se pelos diários de Eleanor sobre
e Eleanor, anotou o paralelismo entre a viagem de “independente” e “intimista”, metamorfose: a “a filmmaker’s apocalypse”, alimentou-se da
Willard (Martin Sheen) em direcção a Kurtz (Marlon linhagem de Chove no meu Coração/The Rain People convivência entre ficção e documentário, deixou ficar
Brando), a embriaguez do poder, e a transformação do (1969) e The Conversation (1974), caminho de que, um rasto das tormentas, ataques cardíacos e tufões,
realizador na rodagem nas Filipinas. Tudo começara dizia, fora desviado pela saga de O Padrinho. Quando que se abateram sobre a rodagem. Apocalypse Now
com Francis a fazer parte do sistema, tal como Willard. apresentou Tetro (2009) na abertura da Quinzena dos está hoje mais perto de Jardins de Pedra. Filme que
Por exemplo, a dirigir Fred Astaire em Finian’s Realizadores de Cannes, defendeu o cinema de também se moveu. Willard/Martin Sheen está agora
Rainbow (1968) fazendo de contas que acreditava num argumento, “os pequenos filmes”, reclamou essa mais próximo do jovem soldado Jackie Willow/D.B.
género, o musical, e num sistema de estúdios já com família como sua, mas não havia como esconder que a Sweeney (até foneticamente). Como se este, ansioso
sinais de rigor mortis. multidão que enchia a sala estava pouco interessada por combater no Vietname mas destacado para a
Depois, o último hurrah, a seguir o tal musical que por aquela história a preto e branco filmada na Guarda de Honra que coreografa as homenagens aos
levou à falência da Zoetrope, e a queda e a travessia do Argentina, saga de dois irmãos e da influência de um que tombaram no outro lado do mundo e velando pelo
deserto. Onde tanto parecia conformar-se ao penchant sobre o outro, como em Rumble Fish (1983) — em túmulo do Soldado Desconhecido no cemitério de
revivalista dos eighties (Cotton Club, 1984, Peggy Sue..., ambos, ecos da relação entre Francis e o irmão, de Arlington, fosse a versão daquele antes do coração ser
Tucker, um Homem e o seu Sonho/Tucker: The Man and novo — e queria sobretudo viver as suas memórias e lançado às trevas.
his Dream, 1988) como se anulava (Jack, 1996, The aclamar os seus mitos. Exactamente no cenário onde Ouvem-se de novo os Doors (não The End, agora
Rainmaker, 1997). Não resolveu os dilemas com o se forjaram: Cannes, quando ali disse, em 1979, que Break on Through). Regressam Larry Fishburne e Sam
Padrinho III (1990). Deu-lhe às tantas para compensar Apocalypse Now não era um filme sobre o Vietname, Bottoms, depois de terem dançado e feito ski aquático
com o sublinhar do excesso e do romantismo um tudo era o Vietname, quando ali entrou carregado com os ao som de (Can’t Get no) Satisfaction. Um filme de
nada rebuscados (Bram Stoker’s Dracula, 1992). filhos como mochilas a confirmar que encarnara na família. Jardins de Pedra: melancólico, espectral teatro
Nos anos 2000, apresentou-se como selva o espírito de potentado imperialista que o kabuki a partir do que desaparceu, memórias de uma
obra e uma vida. Os acordes musicais anunciam a
DANIEL SIMON/GAMMA-RAPHO VIA GETTY IMAGES GEORGE ROSE/GETTY IMAGES
presença de Carmine Coppola. Trazem ecos de O
Padrinho. Uma família recomposta ( James Caan e
Angelica Huston; James Earl Jones e Lonette McKee)
esboça o seu teatrinho de câmara, algo que, seis anos
antes, tivera fôlego de fábula e fora incendiado a neón
na Las Vegas inventada em estúdio. Coppola,
soldadinho de chumbo, sonha em Jardins de Pedra
com as suas guerras épicas, lamenta os seus mortos (o
filho, Gian-Carlo, desaparecido por essa altura num
acidente). É o seu ritual funerário. Sendo também, nas
bagarres entre James Caan e James Earl Jones, o mais
fordiano dos seus filmes. Um dos seus maiores, entre o
filme secreto e a confissão impúdica, algo que em 1986
pouca gente ou mesmo ninguém seria capaz de
defender.
A melancolia de Jardins de Pedra e de Peggy Sue
A apresentação ao mundo da utopia da Zoetrope: Casou-se pode ser hoje mais justamente valorizada. E o
a Las Vegas em estúdio de Do Fundo do Coração filme da viagem no tempo com Kathleen Turner, não
RON GALELLA COLLECTION VIA GETTY IMAGES
sendo um dos inesquecíveis Coppola, mas tendo-se
cumprido como sucesso comercial, mostra-se hoje
mais decisivo no desacerto em relação ao seu tempo —
a personagem principal debate-se, aliás, com a
dificuldade de pertença. O que o livra de ser apenas
um ersatz de Regresso ao Futuro (1985, Robert
Zemeckis).
Começa, aliás, esse desacerto pela própria presença
de Turner (em substituição de Debra Winger, quando
o projecto transitou de Penny Marshall para Coppola),
que é filmada como um miscast ambulante, um
incómodo permanente no espectador, algo perto do
grotesco, que mina insidiosamente os planos. Se
Michael J. Fox, em Regresso ao Futuro, tinha um corpo
capaz de anular a idade (a geração eighties,
recordem-se ainda Richard Dreyfuss ou Tom Cruise,
Copolla, com a mulher, Eleanor, e os filhos Francis com Roman (à esquerda) e Gian-Carlo, distinguiu-se por uma capacidade, digamos, omnívora
(Roman, Sofia, Gian-Carlo), na apresentação de que morreu num acidente na altura da produção de metabolizar todas as idades e de cavalgar a
Apocalypse Now em Cannes de Jardins de Pedra perpetual nervousness dos sem idade), já Kathleen
20 | ípsilon | Sexta-feira 19 Março 2021
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SUNSET BOULEVARD/CORBIS VIA GETTY IMAGES SUNSET BOULEVARD/CORBIS VIA GETTY IMAGES

Coppola, soldadinho de chumbo, sonha em Jardins de Pedra com as suas guerras, lamenta os seus mortos (o filho, Gian-Carlo, desaparecido por essa altura
num acidente), lembra-se do passado. É o seu ritual funerário. Sendo também, nas bagarres entre James Caan e James Earl Jones, o mais fordiano dos seus
filmes

A melancolia de Jardins de Pedra e de Peggy Sue Casou-se pode desajustes. Mesmo que o espectador não saiba o que é
que o realizador teve de fazer tecnicamente para pôr

ser hoje mais justamente valorizada. E o filme da viagem no tempo de pé este plano que de outra forma seria impossível,
sentirá que ali se concentra uma gravitas. A abertura

com Kathleen Turner, não sendo um dos inesquecíveis Coppola, de Peggy Sue Casou-se, investida desta fulgurante
discrição, se assim se pode dizer, é então o mais belo

mas tendo-se cumprido como sucesso comercial, mostra-se hoje momento do filme.
Se no final a heroína parece ter encontrado uma

mais decisivo no desacerto em relação ao seu tempo qualquer paz, esse final é o caderno de encargos da
encomenda. Substituindo Peggy Sue por Francis Ford
Coppola, até para seguir o mito (talvez) de que é nas
obras em relação às quais são mais exteriores que os
artistas menos escondem a sua biografia, então
Turner enceta a viagem à década de 60 com o seu Palma), e o movimento da câmara faz-se em sentido sabemos o que temos diantes dos olhos. Peggy Sue
corpo, de quarentona, dos anos 80, permanecendo contrário, do reflexo (do mundo dos sonhos) recuando Casou-se: um filme sobre a impossibilidade de
sempre uma estranha da sua “viagem”. Dificulta-se o até à realidade. Num e noutro caso, os reflexos não o pacificação entre a imagem do presente e a do
flashback revivalista porque a coisa se torna reflexiva, são verdadeiramente. Nem existe espelho sequer. De passado.
filosófica. outra forma, e devido ao enquadramento frontal, a Lembramo-nos do que Francis Coppola nos disse,
Começa logo na sequência de abertura (e na câmara e a equipa e o plateau apareceriam no ecrã. em entrevista, o ano passado: “Espero que tanto
simétrica sequência final), quando Turner/Peggy Sue Num brilharete de artesanato, um realizador a quanto possível os meus filmes sejam filmes de família
se maquilha para a festa de reencontro do liceu e a apoderar-se do território da encomenda através do pessoais”. Ouvimos o rumor de Apocalypse Now: numa
câmara avança em direcção ao seu reflexo no espelho virtuosismo, Coppola coloca em cena duplos no papel das versões do filme, Aurore Clément, depois de uma
— tal como na sequência final o filme regressa do de “reflexo” das personagens. A coreografia, por mais noite de amor com Martin Sheen, dizia-lhe, falando
flashback, regressa da festa (que tem, já agora, um ensaiada que seja, nunca é perfeita. Mas a câmara está provavelmente também sobre Francis Coppola, “There
momento com um bizarro odor a Carrie de Brian de ali para captar, e não para disfarçar, os pequenos are two of you”.

SUNSET BOULEVARD/CORBIS VIA GETTY IMAGES BOULEVARD/CORBIS VIA GETTY IMAGES

Em Peggy Sue Casou-se, Kathleen Turner enceta


uma viagem à década de 60 com o seu corpo, de
quarentona, dos anos 80. Permanece então
sempre uma estranha da sua própria “viagem”.
Dificulta-se o flashback revivalista porque a coisa
se torna reflexiva, filosófica

ípsilon | Sexta-feira 19 Março 2021 | 21


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BERNADINE JONES
justiça ao material de origem — o

Cinema conto de 1927 A Cor Vinda do Espaço


— ao mesmo tempo que dá corpo ao
mal-estar existencial dos Gardner,
Livros
moderna família disfuncional que se
mudou para a província mas está a
dar um bocado em doida com o
isolamento (não vale a pena ir
Estreia buscar o vírus, o filme é de 2019). Ficção
O que se liberta do meteorito que
Alpacalypse cai na propriedade remota dos
Gardner é uma “cor” alienígena,
A escassez
Now algo de intangível e indefinível que da água
transforma tudo aquilo em que toca,
Nicolas Cage como criador de ao mesmo tempo que traz ao de O escritor galês, no seu
cima os profundos ressabiamentos
alpacas numa adaptação de de uma família em constante atrito.
habitual registo poético
Lovecraft rodada em Sintra A segunda metade do filme propõe e sóbrio, volta a dissecar
— um eficaz filme de género ideias inspiradas e horripilantes de mecanismos de
que faz justiça ao espírito body horror algures entre sobrevivência, mas desta vez
Cronenberg e Carpenter (e não
apocalíptico do escritor. estamos só a pensar nas alpacas
do nosso próprio mundo,
Jorge Mourinha criadas pelo pai Gardner, um Nicolas como ainda não o
Color Out of Space Cage mais contido do que é seu conhecemos. José Riço
hábito). Mas o que ganha Color Out Direitinho
De Richard Stanley
Com Nicolas Cage, Joely of Space é o modo como o
Richardson, Madeleine Arthur sul-africano Richard Stanley alinha Estilicídio
as convenções clássicas do filme de
Cynan Jones
mmmnn terror e dos sustos programados,
(Trad. Manuel Alberto Vieira)
com os pés no cinema de terror dos Elsinore
Uma das figuras centrais da anos 1980 — entre Poltergeist, Veio do
literatura fantástica, H. P. Lovecraft Outro Mundo, Hellraiser e mmmmn Apesar do ambiente pós-apocalíptico, Cynan Jones consegue
(1890-1937) tem provado ser um Re-Animator — sem abdicar do lado dar uma tocante dimensão humana às personagens
escritor razoavelmente resistente ao atmosférico, uma progressão Durante o Verão
cinema — apesar, por exemplo, do implacável e paciente de um de 2019, a BBC
Re-Animator de Stuart Gordon, os mal-estar claustrofóbico e Radio4 emitiu essencial, a água. Cynan Jones, previsto pela companhia das águas.
horrores cósmicos e ancestrais que apocalíptico. semanalmente, como já o fizera nos seus livros Para o realojamento, a Câmara
o americano criou prestam-se mais Stanley foi literalmente “banido” ao domingo à anteriores, torna a dissecar com prevê “a reutilização de
à imaginação multiforme do leitor. de Hollywood depois de ter sido tarde, as doze precisão cirúrgica alguns contentores dos estaleiros navais
No entanto: aqui está uma despedido de A Ilha do Dr. Moreau, e histórias que mecanismos de sobrevivência. Em desactivados”, são “uma solução
adaptação de Lovecraft que faz esteve 25 anos sem rodar antes de meses antes tinha A Cova (Cavalo de Ferro, 2016), por económica e flexível, e com um
Color Out of Space. É um regresso em encomendado ao exemplo, o leitor assiste aos impacto ambiental residual”. O
boa forma e também o melhor dos escritor galês Cynan Jones (n. 1975); movimentos que levam ao volume de água potável para
seus três filmes, com uma certa foram lidas aos microfones por um isolamento de um dos abastecimento das cidades não é
dispersão narrativa a ser conjunto de actores, com o devido protagonistas, ao ser desenhado suficiente, e os icebergues
compensada pelo controlo cuidado enquadramento de sonoplastia. As uma espécie de mapa cartográfico tornaram-se uma fonte de água
da encenação e pela inteligência dos narrativas tinham, dada a sua que apenas serve para deixar à pronta a usar e mostraram-se
efeitos visuais. Há uma curiosidade natureza radiofónica, de funcionar vista a anatomia da sua dor. O eficazes no abastecimento de
adicional: Color Out of Space é uma como unidades autónomas, mas mesmo acontece em A Baía (Cavalo cidades.
co-produção com a portuguesa Bro, deixando sempre antever um todo de Ferro, 2017), com a ressalva que Apesar do ambiente quase
rodada em Sintra (que imita bem as maior. Aos poucos, foi sendo tecida a memória do passado está agora pós-apocalíptico, Cynan Jones
florestas ancestrais do uma rede, com pouco mais de meia ausente do protagonista. E como consegue dar de imediato uma
Massachusetts), mas ficou por dúzia de personagens que se ligam também já acontecia nestes dois tocante dimensão humana às
estrear em cinema, aparecendo entre si quase apenas pelo livros referidos, o escritor galês personagens, ora através de um
directamente nos canais TVCine e ambiente e condições do lugar torna a não dar ao leitor (quase gesto ou de um pensamento. Como
no videoclube NOS. Teria merecido onde vivem. Ao resultado final, nenhumas) informações sobre as os da mãe e filha que continuam a
o grande ecrã, mas não é por isso Cynan Jones chamou-lhe romance personagens — quer que o leitor fazer flores de papel para
Faz justiça ao espírito que vamos deixar de recomendar e deu-lhe o título de Estilicídio. faça o seu trabalho de imaginação e venderem, apesar do cenário em
de Lovecraft esta adaptação que faz justiça ao (Antes de mais, esta palavra pouco de construção na relação íntima que se movem, em que das árvores
espírito de Lovecraft. usual significa “queda de água gota que mantém com a leitura. e dos arbustos em redor pendem
a gota”, “gotejamento” —, por Em Estilicídio, devido à escassez “estranhos sacos translúcidos”,
curiosidade, o Código Civil de água, os habitantes da cidade pois é nestes inesperados e
As estrelas Jorge
Mourinha
Luís M.
Oliveira
Vasco
Câmara
dedica-lhe um artigo, o 1365º.)
A acção de Estilicídio decorre
fazem a higiene diária
pulverizando o corpo com uma
bizarros “frutos de plástico” que é
recolhida a água da
num futuro possível em que as substância, o “alcobanho”, e evapotranspiração vegetal. Os
alterações climáticas fizeram já limpam os dentes com uma cidadãos vivem em
subir o nível das águas do mar, são pastilha dentífrica — o chá é feito “casas-cápsula”, com paredes
construídas estruturas de defesa com água cinzenta esterilizada. feitas de “ecolâminas”, com vista
Emma mmmnn — — costeira com painéis feitos “a partir Depois da destruição das antigas para destroços de antigos edifícios
Color Out of Space mmmnn — — de pás de turbinas eólicas condutas, a cidade é abastecida na costa, ao mesmo tempo que
desactivadas”, os icebergues pelo Comboio da Água, recordam um velho coreto
Fireball mmmnn — mnnnn
começaram a desprender-se “imponente” e “inexpugnável”, engolido pelo oceano.
Malcolm & Marie mmnnn — mmnnn facilmente da calote polar (para que transporta diariamente 45 A escrita de Jones é enérgica e
Notícias do Mundo mmnnn mnnnn mnnnn que não derretam no mar são milhões de litros de água, e armas poética, sóbria, pouco adjectivada
conduzidos através do mar para de defesa instaladas que disparam — as frases parecem esculpidas
Uma Noite em Miami mmnnn — mmnnn
cidades), e a escassez de água automaticamente. Os ataques ao como versos longos, quase como
Palmer — mmnnn mmnnn potável tornou-se um problema comboio são comuns devido a num poema, a isso ajuda também a
Pieces of a Woman mmnnn — mnnnn grave. Não é um romance distópico movimentos sociais que contestam mancha do texto, com parágrafos
no sentido canónico de as vidas dos a construção da Doca do Gelo e do curtos que raramente ultrapassam
A Sun — mmmnn mmnnn
cidadãos estarem tomadas por um grande canal, “um rasgão aberto as três linhas, e com espaçamento
Tudo Acaba Agora — mnnnn mnnnn regime totalitário ou autoritário, através da cidade para a passagem entre eles. “O icebergue produziu
Tudo Pelo Vosso Bem — mmnnn mnnnn mas a leitura de distopia pode ser do icebergue”. Isto porque o um estrondo desesperado, um
feita pelas condições de desespero número de famílias desalojadas estrangulado som de dor que
a Mau mnnnn Medíocre mmnnn Razoável mmmnn Bom mmmmn Muito Bom mmmmm Excelente
e de extrema privação de um bem será significativamente superior ao ecoou por sobre a água.”
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já contar com Orlando Furioso de autonomia expressiva dos seus Seria especialmente forçado num tempo específico que
Poesia Ludovico Ariosto (Cavalo de Ferro, poemas, a imponência medidativa estabelecer o paralelo entre Dante, antecipava já os desenvolvimentos
2007, trad. Margarida Periquito; a do sua versificação, o seu que toma por guia Vergílio, na do Renascimento que dariam
Suíte Italiana editora publicou, no ano passado,
uma antologia da mesma epopeia
afastamento dos modelos mais
cifrados (e revistos) do
Comédia, e Eliot, que parece
receber o testemunho, assim
origem ao maneirismo. De “doçura
e força, prazer com surpesa” falou
comentada por Italo Calvino). provençalismo, tornam singular a fazendo de Dante o seu próprio Walter Pater, ao reflectir sobre a
Estão, finalmente, ao nosso Desde 2019, ao magno poema que sua posição no panteão dos guia? Por certo que não, se nos poesia de Miguel Ângelo, na qual o
alcance traduções de alguns relê a gesta de Carlos Magno primeiros poetas italianos. Ezra lembrarmos de quanto o grande crítico pôde destacar “uma
dos mais fulgurantes cumes juntou-se uma edição da poesia de Pound — que magistralmente modernismo de Eliot, como outras energia de concepção que parece,
da poesia italiana que se Miguel-Ângelo, traduzida por João traduziu e estudou o poeta — castas modernistas, o foi também a cada momento, prestes a romper
Ferrão. posicionava Cavalcanti “entre enquanto releitura lúcida e com todas as condições de forma
produziu entre a Idade Média A poesia italiana não começou, todos aqueles que cantaram, não emancipada do legado clássico. adequada, e que recupera, a cada
e o Renascimento. Hugo Pinto certamente, com Guido Cavalcanti. todos os modos da vida, mas Seria inevitável que, em Itália, os toque, um encanto apenas
dos Santos Para tal, seria preciso que não alguns deles; aqueles que, no seu mitos da Antiguidade e a geralmente encontrado nas mais
tivessem existido, entre outros, S. campo de escolha ou fatalidade, perenidade do universo clássico simples coisas naturais” (The
Rimas Francisco, Ciecco Angiolieri, não baixaram a cerviz a ninguém” imprimissem marcas das mais Renaissance: Studies in Art and
Forese Donati ou Sordello — o (Poems and Translations, The decisivas — anda que nunca estas Poetry). Desculpe-se a extensão do
Michelangelo Buonarroti
último dos quais inspirou um longo Library of America, 2003). É ainda deixassem de estar sujeitas a passo citado, para recordar uma
(Trad. João Ferrão)
IN-CM poema filosófico de Robert Pound quem nos diz: “Nenhum permanentes reformulações —, na escrita como esta, que alcaçou
Browning. Dante Alighieri, que foi psicólogo das emoções foi melhor História e na cultura daqueles alguns dos voos mais altos e
mmmmm amigo de Cavalcanti — até com ele no seu entendimento, mais preciso territórios. As sucessivas admiráveis da poesia universal —
se incompatibilizar, na refrega dos na sua expressão, do que Guido aproximações e reenquadramentos “Oh, falaz esperança dos amantes!
Rimas conflitos entre Guelfos e Gibelinos Cavalcanti; não temos nele um feitos ao legado clássico foram Como pode ser dissímile e díspar/ a
—, escreveu: “Guido, eu queria que retórico, mas sempre uma deixando esse timbre identitário infinita beleza, o arrogante lume/
Guido Cavalcanti
tu e Lapo e eu/ fôssemos tomados delineação verdadeira, seja da dor em camadas ciclicamente de todos os meus costumes,/ que
(Trad. A. Ferreira da Silva)
IN-CM por encantamento,/ e postos numa em si mesma, seja da apatia que acrescentadas. Quer nos em mim ardendo, não ardem de
nave que a qualquer vento/ surge quando as emoções e concentremos na Idade Média, no um parecido?” (Rimas, p.289)
mmmmm andasse pelos mares a vosso gosto possibilidades de emoção se Renascimento, ou no que se Miguel Ângelo é um culminar
e meu” (Rimas, p.193). Dante viria a esgotam, ou aquele estranho designou por Risorgimento — e não soberbo para esta cronologia do
Vida Nova. Rimas inscrever a letras de ouro, na estado em que o sentimento, pela é mais do que uma das versões génio italiano. Acerca de um dos
Divina Comédia, a crucial acção sua intensidade, ultrapassa a nossa italianas do romantismo —, o leito primeiros nomes desse friso,
Dante Alighieri
poética não de um, mas de dois capacidade de o suportar, e nós de todos os rios alberga o mesmo Dante, escreveu ele: “De Dante
(Trad. Jorge Vaz de Carvalho e
Guidos. Destes, Cavalcanti foi o parecemos ficar de fora, a ouro, constantemente procurado e falo, que mal conhecidas/ foram
António Mega Ferreira)
IN-CM segundo — “assim tirou a um o observar, enquanto ele aflui, revolvido no lodo das eras: a suas obras pelo povo ingrato/ que
outro Guido/ a glória desta língua” atravessando aquilo ou aquele com harmonia greco-romana, o cânone só aos justos priva de favores.” (id.,
mmmmm (Divina Comédia, “Purgatório”, XI, o qual já não nos identificamos.” dos seus autores, os princípios da p.559) Que, meio milénio depois,
97-8). Guinizeli teve precedência (id.) E pense-se, ainda, que o expressão lapidar e perfeita, que se este sombrio diagnóstico faça cada
Podemos hoje sobre Cavalcanti, mas porventura poema de Cavalcanti em cujo perde na indefinição das eras e das vez menos sentido, eis o que
percorrer, em apenas na cronologia. Porque não incipit se lê: “Pois perdi já origens. Guido Cavalcanti releu podemos esperar.
edição o levaria de vencida: nem na esperanças de tornar” (Rimas, Aristóteles (e Averróis). Dante
portuguesa, uma amplitude de espectro da sua p.103) viria a ser revitalizado, reinterpretou Aristóteles e Cícero. A Colecção Itálica, da Imprensa
das mais expressão, nem na robustez das volvidos séculos, por nada menos Petrarca foi a figura central na Nacional-Casa da Moeda (IN-CM),
grandiosas suas temáticas, tão-pouco na que T.S. Eliot — “Porque eu não actualização dos clássicos que arrancou em 2019 com a edição de
veredas da poesia espessura reflexiva, de uma espero voltar de novo/ Porque eu prefigura o Humanismo de Guido Cavalcanti e de Miguel
universal. abrangência filosófica, dos não espero/ Porque eu não espero Quatrocentos, o antepassado Ângelo. Era a primeira vez que os
Porque, ao fim de considerandos de Guido Cavalcanti voltar” (Poemas Escolhidos, Relógio nominal de todo o ímpeto dois poetas conheciam em Portugal
vários anos, — no Decameron, Boccaccio tem-no D’Água, 2016, trad. Rui Knopfli). renascentista. Através da sua obra, volumes integralmente dedicados à
estão, por “um dos melhores lógicos e um Significativamente, o mesmo Eliot e por meio da sua acção, se sua poesia. Em 2020, foi a vez da
finalmente, ao excelente filósofo natural”. Na abre “A Canção de Amor de J. filtraram e modelaram muitos dos edição de Vida Nova e Rimas. Ao
nosso alcance alquimia, enfim, que era a de uma Alfred Prufrock” com uma citação princípios, parâmetros e influxos primeiro poema, que já fora vertido
traduções de sonoridade que se faz música, e da da Comédia. Seis versos que distantes que a por Vasco Graça Moura, juntava-se
alguns dos mais verbalização que se converte em evocam mais um episódio do contemporaneidade ainda ecoa. a colectânea Rimas, até então
fulgurantes fluência entranhável. Em De conflito que opôs Guelfos e Ariosto apropriou-se, genialmente, inexistente no nosso país.
cumes da poesia Vulgari Eloquentia, Dante chamou Gibelinos e que, portanto, abalou e do que postulara a poesia de Neste ano de 2021, quando passam
italiana que se ao outro Guido “maximus Guido dividiu aqueles territórios entre os Matteo Boiardo, subjectivamente 7 séculos sobre a morte de Dante
produziu entre a Guinizelli” — e, segundo Ezra partidários do poder papal e os revendo essa matéria com toda a Alighieri, a IN-CM publicará uma
Idade Média e o Pound, a Itália nunca mais teve defensores do Imperador do Sacro carga de um autor autónomo e nova tradução da Divina Comédia,
Renascimento. O crítica literária geral depois deste Império: “Pudesse eu crer minha altamente reagente. Tasso e Miguel a cargo de Jorge Vaz de Carvalho. Na
que é o mesmo breve tratado —, mas coube a resposta fosse/ a pessoa que um dia Ângelo, por seu turno, assimilaram mesma colecção sairá uma seleção
que dizer: desde Cavalcanti ser um dos poetas torne ao mundo,/ não daria esta e reinterpretaram a herança do de peças de Luigi Pirandello, edição
o dolce stil nuovo italianos que mais chama tanto couce;/ mas dado que mundo helénico e latino, coordenada por Jorge Silva Melo, e,
de Guido engenhosamente mesclaram a jamais deste fundo/ vivo se cunhando sobre essa matéria ainda no corrente ano, Vida de Um
Cavalcanti até releitura das matrizes clássicas, a regressou, se és verdadeiro,/ sem fundente a novidade da sua própria Homem, de Giuseppe Ungaretti,
uma das reflexão filosófica e a inventividade ter medo de infâmia te secundo.” experiência de artistas surgidos traduzido por Vasco Gato
realizações literária e luminosa do seu próprio lirismo — DR DR
humanamente mais instigantes de “Um espírito desceu do céu,
toda a história da poesia — como a então,/ quando me quis aquela
que escreveu esse artista total que dama olhar,/ e veio-me pousar no
foi Miguel Ângelo Buonarroti. pensamento;// de amor me vai
Dispomos, neste momento, da falando tão a tento,/ que as suas
tradução das Rimas de Guido glórias posso contemplar/ tal como
Cavalcanti, a cargo de A. Ferreira se lhe visse o coração.” (Rimas,
da Silva. Vasco Graça Moura já p.75). É claro que será sempre por
traduzira a Divina Comédia mera conveniência e facilidade de
(Quetzal, 2011) e Vita Nuova de expressão que aqui se fala em
Dante (Bertrand, 2001), mas “Itália”, ou em “poetas italianos”,
também As Rimas (Quetzal, 2018) e tantos séculos antes da tardia e
Os Triunfos (Bertrand, 2004) de complicadíssima unificação (já em
Petrarca. Mas àquele título Oitocentos) de um território que
dantesco juntam-se, agora, além de sempre se balcanizou.
uma nova edição de Vida Nova, de Ainda que não tivesse cabido a
Dante (trad. Jorge Vaz de Vaz de Guido Cavalcanti esse simbólico Estão, finalmente, ao nosso alcance traduções de alguns dos mais fulgurantes cumes da poesia italiana
Carvalho), as suas Rimas (trad. papel de “inaugurar” a poesia que se produziu entre a Idade Média e o Renascimento, de Michelangelo Buonarroti a Guido Cavalcanti
António Mega Ferreira). Podíamos italiana, a verdade é que a
ípsilon | Sexta-feira 19 Março 2021 | 23
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VERA MARMELO
embora uma e outra se não tanto dela se fala —, hélas, ainda a ferver dos 80), Owusu é

Música confundam), alastrou rapidamente


e em força, fazendo vítimas nos
quatro cantos do globo. Com um
identidade (mas o que interessa a
identidade artística, ou algo
remotamente próximo de uma
esse errante black dog — variação,
apunkalhada e politicamente
emancipada, do familiar caprino —
índice de transmissibilidade assaz ideia de autor, no meio de tudo o que, com as suas dores de
elevado e sem vacina conhecida até resto, não é?). É neste estado de crescimento, os traumas e as fobias
aos dias de hoje, o vírus eclético coisas que o LP de estreia de (os de sempre e os próprios da sua
alojou-se na cabeça de promotores Genesis Owusu (depois do geração), vai vagabundeando com
Jazz e publicists (sem dúvida os prometedor EP Cardrive, em 2017), ironia, humor e, assinale-se, um
superspreaders), artistas, público nascido no Gana e emigrado na sentido artístico invariavelmente
O jazz revolto e, pior, crítica (numa
confrangedora demissão do
Austrália, faz um autêntico
brilharete, provando, como diria
superior (visualmente, também),
mais próprio de gente com outra
que veio pensamento de fundo), todos Jean-Luc Godard, como a cultura é rodagem (Prince, André 3000 ou
A música de Brandão foi juntos à volta da fogueira na a regra e a arte a excepção. Com Pharrel Williams, de quem “I Don’t
do norte inspirada por Eisenstein celebração da ideia — na verdade, apenas 22 anos, assina um See Colour”, soando aos tempos
vendendo-a, porque do que se portentoso, surpreendentemente áureos dos Neptunes, conserva
Inspirado pelo filme trata, no fim do dia, é de uma maduro, disco de estreia que, ecos) do que propriamente de um
O Couraçado Potemkine, de forma fluida. A música evolui, operação de marketing na latejando diferentes sensibilidades rapaz de vinte e poucos anos
entre momentos solo e colectivos, conquista da maior fatia possível do e influências (punk e pós-punk, oriundo de uma sossegada cidade
o saxofonista portuense João até chegar a turbulência enérgica, “mercado” — de que um artista é electro, hip-hop, soul, synth-pop ou australiana. Não está, porém,
Pedro Brandão traz um jazz em regime de free jazz aceso (dos 22 tão mais talentoso quantos mais funk, nisto lembrando o Dear Annie sozinho nesta bela empreitada
revolto. Nuno Catarino minutos aos 30 minutos) — sempre géneros ou “tendências” conseguir de um outro miúdo, Rejjie Snow, (mesmo numa canção mais
Trama no Navio com Brandão no centro, a lançar as empilhar num álbum. A porém menos dotado), nunca as redundante como “A Song About
chamas. Segue-se a bonança, e o “versatilidade”, enfim, como fim exibe como parangonas ou Fishing”, as palavras e a
João Pedro Brandão
Trem Azul navio vai navegando em em si mesmo e pináculo do ofício habilidades de circo, antes interpetação compensam a escuta),
tranquilidade, até ao final. do músico (algo, de resto, confluindo, muito naturalmente, que certamente não seria a mesma,
mmmmm A liderança e condução de sintonizado com a estrutura laboral quase imperceptivelmente, num nem teria os orelhudos e viciantes
Brandão, aliada à qualidade do mundo de hoje, em que já organismo sólido, coeso, com pés e ganchos, sem o excelente trabalho
Em 2019 a individual dos intervenientes — ninguém faz apenas uma coisa, cabeça, e de manifesto bom gosto. do produtor Andrew Klippel
Orquestra Jazz de Moreira, Carvalhais e Cavaleiro —, prática arcaica e mal-vista à luz da Não é coisa pouca. As provas dadas (igualmente responsável pelas
Matosinhos (OJM) resulta num magnífico disco de jazz produtivista lógica do em Smiling With No Teeth (o facto teclas) e da banda que este montou
apresentou um criativo, que pode funcionar como multitasking). O diagnóstico é de Owusu trajar grills, hábito propositadamente em torno de
espectáculo de acompanhamento às imagens da conhecido: trabalhos frequente entre rappers que Owusu para gravar e fazer estrada.
música original revolta dos marinheiros, mas vai confrangedores em que se quer ir a procuram mostrar na dentição o Não sobrevenham acidentes de
para acompanhar o filme O mais além. É uma música que vale todo o lado e a lado algum se chega, que lhes falta na pena, só torna percurso — nem tentações víricas
Couraçado Potemkine de Sergei por si própria, um jazz moderno e uma salada-de-frutas anónima e tudo mais curioso) são tão (ou virais, entre elas venha o Diabo
Eisenstein. A orquestra desafiou vivo com espaço para a intervenção desinspirada em que cada tema é evidentes que é impossível passar e escolha) — e por aqui andará um
alguns compositores e ao individual, que se abre à uma espécie de destacável (ou ao lado de um caso de talento puro caso sério para acompanhar nos
saxofonista João Pedro Brandão foi improvisação e ganha com essa descartável), bandeirinha para (não dizemos em bruto porque a próximos anos. E que, não fosse o
atribuída a segunda parte do filme, abertura. Neste tempo em que o assinalar que o artista “também delapidação já teve lugar) como o outro vírus, estaria muito
Drama no Navio — os restantes racismo não tem medo de sair da consegue fazer isto”. Fenómeno que aqui se perfila, e que vem, aliás, provavelmente a fazer os maiores
convidados foram João Guimarães, toca, talvez seja altura de seguir os pós-moderno, converteu-se, na na sequência de um importante, festivais deste Verão. Para já, é um
Paulo Perfeito, Pedro Guedes e marinheiros do couraçado: fazer a última década, num autêntico ainda que não muito falado, caudal dos acontecimentos da música
Telmo Marques. Brandão decidiu rebelião, lutar pela igualdade. Já fetiche (em business plan, de refrescantes músicos da cena anglófona de 2021.
reaproveitar as suas composições, temos a banda sonora. também), não havendo hoje artista australiana hip-hop/funk/R&B, de
adaptou a música para quarteto e emergente (sobretudo nas cenas que o seu próprio irmão (Citizen
reuniu um grupo para interpretar hip-hop/R&B/pop de raíz africana e Kay), os Hiatus Kaiyote, Kaiit,
esta música. A João Pedro Brandão Pop latino-caribenha) que não apareça Sampa The Great, Polographia e, Vagabundagem
(saxofone alto, saxofone e soprano a dizer, com foros de bom-tom, que acima de todos, Winston Surfshirt de Äno quilate
e flauta), juntaram-se Ricardo
Moreira (piano e órgão Hammond), Um black dog “se sente bem em qualquer
género”, recusando estar “preso a
são exemplos a seguir com atenção.
Eis, então, uma postura e atitude
Ben Chasny (Six Organs of
Hugo Carvalhais (contrabaixo) e
Marcos Cavaleiro (bateria).
na terra dos etiquetas” mas “aberto a tudo”.
Este “tudo” tem significado, na
fortíssimas, uma pujante voz capaz
de se entregar com verve e raiva Admittance) e Donovan
O saxofonista já é uma das cangurus esmagadora maioria dos casos, por caminhos punk (conferir a Quinn (Sixgreen Leopards)
grandes forças criativas do norte de uma mão cheia de nada, produtos versão ao vivo de “Anarchy In The
encontraram-se numa casa
Portugal, liderando a associação Disco longo, rico, cheio de de terceira ou quarta categoria UK”, na qual Owusu aponta, com
Porta-Jazz. Nascido em 1977, despidos de personalidade e — argúcia, como no mundo ocidental em São Francisco para
Brandão integra a OJM desde 2009 sumo, superiormente coisa irónica, numa era em que de um negro sempre se espera, ou retomar um diálogo iniciado
e integra diversas formações, como interpretado: podia ser de exige, um perfil nobre ou há sete anos. Mário Lopes
o grupo Impermanence de Susana um veterano mas pertence magnânimo, implicitamente se lhe
Santos Silva, o trio Bode Wilson, o um miúdo de 22 anos. vedando a possibilidade, ou a Last Time I Saw Grace
quarteto de Lucía Martínez ou o AP dignidade, de se expressar como
Quinteto. Na qualidade de líder, a
Francisco Noronha homem-em-fúria) e electro-new
New Bums
Drag City; distri. Flur
sua produção musical tem estado wave (“Black Dogs!”, “Whip
DANIELA FEDERICI

Smiling With No Teeth


especialmente focada no grupo
Genesis Owusu Cracker”, The Other Black Dog”, mmmmn
Coreto, que já editou quatro álbuns: House Anxiety Records/OURNESS “Drown” ou “On The Move!”,
Aljamia (2012), Sem Chão (2015), canção-abertura na qual, acaso o Antes de Marc
Mergulho (2014) e Analog (2017). mmmmn destravanço fosse maior, a coisa Bolan ter
Para este disco, o primeiro poderia evoluir para uns Death recorrido ao
assinado simplesmente com o seu Como é sabido, Grips). Mas capaz, outrossim, de diminutivo, os T.
nome, a música original de ainda antes da destilar doçura em baladas soul Rex eram
Brandão terá nascido inspirada actual pandemia, (fazendo ponte entre Al Green e uns Tyranossaurus
pela rebelião do navio de guerra, uma outra Vulfpeck), por vezes de travo Rex e a sua fórmula era,
mas ganha nova vida, simplificada grassava, há já doo-wop (“Smiling With No Teeth”, aparentemente, simples. Guitarras
e transformada pela dinâmica de uns bons anos, no canto e palavra-falada acerca dessa acústicas (sobretudo, que as
grupo — até no título, o Drama meio — ou, talvez mais apropriado irremediável doidice humana em eléctricas apareciam também aqui
passa a Trama. O quarteto trabalha neste contexto, na “indústria” — ambicionar sol na eira e chuva no e ali), congas a servir de base
uma faixa única de cerca de 40 musical: a pandemia do nabal, ou a magnífica “No Looking rítmica e uma voz com tremolo
minutos: o disco arranca numa “ecletismo”, agudo vírus cujo Back”, sax e trompete a fazerem “élfico” e a desdobrar-se em
toada lenta, com o quarteto a primeiro caso conhecido, embora das tristezas forças), ou de flectir harmonias psicadélico-celestiais. A
abordar um tema melódico sem data definida mas talvez para terrenos mais oníricos (o Toro fórmula, continuemos, era
devagar, com o sax de Brandão ao identificável ali sensivelmente pelos Um caso sério para acompanhar y Moi de Boo Boo está aqui bem aparentemente simples.
leme, e a música vai crescendo, anos 90 (possivelmente à boleia do nos próximos anos acompanhado). Solar, feroz, boogie Transformava-se uma imagem
atravessando diferentes ambientes, espírito de fusão da década, (“Easy”, love story colonial saída banal do quotidiano em cenário de
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APOLLO

Os New Bums, “o duo que ninguém pediu”, como se apresentam


Ben Chasny e Donovan Quinn

fantasia e o Chateau in Virginia ou as cordas de aço a ressoarem e


Waters deixava de ser residência reverberarem naquele ponto
campestre inglesa para ganhar aura exacto de encontro entre raga
de algo deliciosamente fora deste oriental e poeira norte-americana
mundo. Pegava-se num par de que é a magnifica Hermitage song,
acordes de Chuck Berry, deixava-se canção que Ben Chasny tinha
a electricidade em fundo, qual guardada desde anos 1990. Tudo
memória de qualquer coisa que se isso é o cenário em que se
pressentia, mas que assomava mais desenrola este, dizem-no os
como sugestão que presença de autores, “rock’n’roll acústico” — e
corpo inteiro, e “One inch rock” assim regressamos a Marc Bolan.
tornava-se celebração caseira, tão Mas, ao contrário de Bolan,
inspirada quanto informal, do Donovan Quinn, autor das letras
espírito rock’n’roll. dos New Bums, não nos oferece
Os New Bums, “o duo que fantasia, sonhos cósmicos e
ninguém pediu”, como se escapismo. Pelo contrário, elas
apresentam de foram estão mais próximas da devastação
bem-humorada Ben Chasny (Six emocional do Oar de Skip Spence,
Organs of Admittance) e Donovan banda-sonora do colapso de um
Quinn (Skygreen Leopards), dois homem, ou das almas
nomes charneira da “weird new atormentadas que Hank Williams
America” que, no arranque deste tão bem cantou.
século, recuperou e deu novas As personagens de Last Time I
formas, psicadélicas e Saw Grace têm “Spanish Inquision
exploratórias, às tradições folk eyes” e dizem coisas como “kiss the
americanas, têm algo de apocalypse on my face”. Aqui, os
Tyranossaurus Rex. Não na criação coros celestiais exortam o narrador
de um mundo de fantasia a partir a prosseguir em direcção ao
de banalidades do quotidiano, mas furacão (“onward to devastation!”),
na forma como canalizam um certo há gente a atravessar cidades
espírito (o rock’n’roll, a folk fantasma em busca de um lar, sem
exploratória, o psicadelismo) saber o que isso é, histórias
através de um formato despojado, trágico-cómicas de bandas de
quase informal. Banda bissexta, versões (“we started with ‘Back in
lançou um primeiro álbum em black’, ended with ‘Candle in the
2014, Voices in a Rented Room, pela wind”) a tentarem cumprir sonhos
simples e muito meritória razão de que nunca chegarão (“loneliness
1) Ben e Donovan se admirarem rules the day”).
mutuamente; 2) se terem Numa casa em São Francisco,
descoberto a morar a dois passos dois músicos dotados retomaram
um do outro num bairro de São um diálogo deixado inacabado há
Francisco. Sete anos depois sete anos. Música desligada do seu
regressam, tal como antes, sem tempo, ou melhor, despreocupada
pompa e sem circunstância, sem do tempo, música nascida de uma
outra motivação além de ideia simples — rock’n’roll acústico,
prosseguirem um diálogo que se expressão que soa terrivelmente
revelara frutuoso. Chegam, porém, mal no papel, até pela proximidade
no tempo certo. ao filão Unplugged de tempos idos
Talvez seja fruto destes tempos — e que se alimenta de um bem
confinados, agora lentamente a doseado jogo de contrastes: a
desconfinar, mas esta música de electricidade mais sugerida que
espaços abertos e paisagens amplas real (apesar da explosão final,
(é a isso que soa, apesar de ter sido distorcida, de Wild dogs), a vastidão
gravada, em grande parte, num da planície, ou de um céu
quarto da casa de Donovan Quinn), densamente estrelado, imaginada
ganha agora uma ressonância na exiguidade de um quarto na
especial: a voz doce e arrastada, cidade, a delicada pureza das vozes
com os coros a fazerem-se delícia como veículo para histórias de dor,
etérea (estamos em Billy, God perversidade e desalento,
damn!, a primeira), a guitarra slide matizadas por bem doseadas doses
a indicar o caminho de melancolias de humor. Vagabundagem de fino
de Marlene left California, o tão
discreto quanto eficiente
quilate, livre e descomprometida,
belíssima viagem com dois
GULBENKIAN.PT
sintetizador atmosférico que povoa contadores de histórias em som e
o storytelling country de Wild dogs, palavra.
ípsilon | Sexta-feira 19 Março 2021 | 25
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Opinião

Moda
Filomena Silvano*

em temp
O uso generalizado de máscaras trouxe
consigo uma alteração substancial das formas
de apresentação de si, e essa alteração foi mais
MATTHEW SPERZEL/GETTY IMAGES

contestada nas zonas do globo que não deram


continuidade à prática de saúde pública que
havia sido iniciada na Europa no princípio
do século XX.

A
pandemia que se iniciou em Wuhan, na
China, nos finais de 2020, afetou o mundo da
moda de diversas maneiras. Para lá da
desaceleração, comum a outras atividades,
ela trouxe consigo uma alteração imediata
dos grandes rituais celebrativos que eram,
até então, as Fashion Week e, dentro delas, os desfiles
de moda, bem como alterações nos modos de vestir,
sendo o uso massivo de máscara a mais evidente. Em
Fevereiro de 2020, enquanto a Fashion Week de Milão
decorria, a informação relativa ao número de casos de
pessoas infetadas por Covid-19 na Lombardia começou
a tornar-se preocupante. O desfile de Giorgio Armani
estava marcado para dia 23, mas, nesse mesmo dia, o
criador de 86 anos cancelou os convites e anunciou
que o evento seria transmitido em direto no site da
O uso de máscaras com marca e nas redes sociais. Foi o primeiro efeito direto
objectivos que não visam da pandemia sobre o mundo da moda. As Fashion
questões de saúde pública Week eram um complexo ritual no interior do qual os
começou antes da pandemia, desfiles apareciam como os momentos performativos
pelo que será necessário ler mais densos. Mobilizavam milhares de pessoas e
a inserção deste acessório correspondiam a muitos milhões de euros de retorno
no vestuário contemporâneo para cidades como Milão, Paris e Nova Iorque. A 3 de
a partir de outros ângulos, abril, o patriarca italiano que se tinha revelado
para entender o papel que ele prudente ao cancelar o evento, publicou uma carta
assume na construção aberta no Women’s Wear Daily em que dava conta de
das identidades todas as contradições que o mundo da moda estava a

26 | ípsilon | Sexta-feira
a-feira 19 Março 2021
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apo deepandemia
vestir
viver e que, num momento de pandemia, deveriam,
segundo ele, ser equacionadas e enfrentadas Os personagens políticos tecidos em estoque; diminuição das viagens e revisão
dos desfiles.
[...] O declínio do sistema de moda como o conhecemos
começou quando o segmento de luxo adotou os métodos que se opuseram, durante Em Maio de 2020, Alessandro Michele, o diretor
criativo que tinha conduzido a Gucci para uma
operacionais da fast fashion, mimetizando o ciclo
interminável de entrega deste último na esperança de a pandemia, violentamente faturação, no ano anterior, de 8750 milhões de euros,
anunciou, numa conferência de imprensa digital, que
vender mais, mas esquecendo que o luxo leva tempo,
para ser atingido e para ser apreciado. O luxo não pode e ao uso de máscaras — Donald a marca ia reduzir o número de desfiles de cinco para
dois, que continuaria a trabalhar no sentido de
não deve ser rápido. [...]
Eu não trabalho assim e acho imoral fazê-lo. Sempre Trump ou Jair Bolsonaro — são, abandonar a distinção entre roupa masculina e
feminina, bem como as tradicionais apelações
e
acreditei numa ideia de elegância intemporal, que não é
apenas um código estético preciso, mas também uma tal como quem os seguiu nas Primavera/Verão e Outono/Inverno. No mesmo

abordagem ao design e à confeção das roupas que sugere


uma forma de as comprar: para as fazer durar. Pela suas proposições criminosas
mesma razão, acho um absurdo que, no meio do
inverno, só se encontrem nas lojas vestidos de linho e, no de recusar o uso de máscaras,
verão, casacos de alpaca [...].
Esta crise é uma oportunidade para desacelerar e os representantes de um
realinhar tudo; para definir uma paisagem mais
paradigma identitário fixado
EDWARD BERTHELOT/GETTY IMAGES

significativa. [...] também é uma oportunidade para


restaurar o valor da autenticidade: chega de moda como
pura comunicação, chega de desfiles cruzeiro ao redor
do mundo para apresentar ideias aprazíveis e entreter
de forma simplista
com espetáculos grandiosos que hoje parecem um pouco
inadequados e até um pouco vulgares [...] Por influência
O momento que vivemos é turbulento, mas também da cultura pop
nos oferece a oportunidade única de corrigir o que está asiática — e
errado, de recuperar uma dimensão mais humana. para
(Armani 2020) responder ao
A 12 de Maio, surgiu uma outra carta aberta — em mercado a ela
resultado de discussões via Zoom em que associado — o
participaram, entre outros, os designers Dries Van mundo da
Noten (belga), Marine Serre (francesa), Craig Green moda já
(inglês), Joseph Altuzarra e Tory Burch (americanos) — iniciara a
onde são identificados os mesmos problemas e em que produção e o
se apela para alterações muito concretas: retorno de consumo de
apenas duas estações coincidentes, respetivamente, máscaras,
com o Inverno (de Agosto a Janeiro) e com o Verão (de como
Fevereiro a Julho), e com um período de saldos apenas acessórios,
no fim de cada uma; desaceleração do ritmo de alguns anos
apresentação de novidades; diminuição da produção antes da
de produtos desnecessários; menos desperdício de pandemia

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xt -feira 19 Março 2021 | 27
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e período, a Saint Laurent tinha anunciado que 2021/2022), Jeremy Scott optou por um filme em que procedimento — como nas práticas de mecenato
sairia do calendário dos desfiles e faria as num teatro desfilam manequins reais cuja roupa é levadas a cabo nas últimas décadas pelas Fundações das
apresentações segundo uma agenda que conviesse ao comentada, numa referência ao modo de proceder dos marcas de luxo —Cartier, Louis Vuitton, Prada. Mas,
trabalho da marca e Marc Jacobs tinha defendido primeiros desfiles, por uma apresentadora. O filme mais uma vez, a pandemia, não tendo criado um
também a existência de apenas dois desfiles. termina com a artista de burlesque Dita Von Teese a movimento novo, parece ter vindo a adensar uma
Durante um ano, os sucessivos confinamentos desfilar com um vestido de noite vermelho, com prática já existente de interseção com o mundo da arte.
obrigaram por si só à desaceleração do ritmo de aplicações de pequenos corações pretos e uma abertura O confinamento conduziu a um uso suplementar da
produção e de venda de roupas. No início da em forma de coração sobre as nádegas, que nos é internet e, consequentemente, ao adensamento da
pandemia, algumas marcas disponibilizaram, em revelada no plano final. A também italiana Miuccia preponderância das imagens; nesse quadro, as marcas
função das suas possibilidades financeiras e técnicas, Prada encomendou, para apresentar a coleção Multiple passaram a usar as suas próprias plataformas para
as suas fábricas de perfumes e de têxteis para Views (Primavera/Verão 2021), cinco filmes realizados difundir conteúdos artísticos e conceptuais, o que
confecionar gratuitamente gel desinfetante, roupas e por cinco artistas de países diferentes (Terence Nance, promoveu uma consolidação do papel cultural da
máscaras de proteção para o pessoal médico, produtos Joanne Pio Trowska, Martine Syms, Juergen Teller e moda. Neste novo contexto, as marcas são levadas a
que na altura faltavam na Europa. Mas muitas houve Willy Vander-Perre). A concepção do espaço da coleção definir de forma mais precisa os seus universos
que pararam ou foram forçadas a desacelerar a Outono/Inverno 2021/2022 é da autoria do arquiteto culturais e, em consequência disso, observa-se uma
produção porque as marcas diminuíram ou anularam Rem Koolhaas (também responsável pelo projeto da ainda mais forte semantização das roupas. A roupa da
as encomendas. Por enquanto, pouco se poderá dizer sede da Fondazione Prada, em Milão) e a realização do Gucci não pode ser hoje isolada do universo cultural,
sobre o impacto que, mesmo a curto prazo, a crise filme do realizador negro norte-americano Lee Daniels. com contornos cívicos, ideológicos e políticos bem
pandémica e a crise económica que a acompanha Para a marca francesa Dior, o realizador Matteo Garrone definidos, presente nos sete episódios realizados por
terão sobre o sector, mas não há dúvidas que a filmou figuras míticas a quem são mostradas pequenas Gus Van Sant e Alessandro Michele.
pandemia se articulou de forma direta com as bonecas vestidas com as propostas da coleção (também
contradições que muitos dos agentes do sistema já numa evocação das bonecas que no início do século XX Usar máscara
vinham mencionando. Pode-se por isso enunciar a difundiam os modelos de moda). Do ponto de vista do vestir, a pandemia trouxe para o
hipótese de ela ter potenciado e acelerado mudanças Esta tendência, de produção de obras onde se quotidiano do globo a presença massiva da máscara,
que já anteriormente estavam a tomar forma. cruzam as criações das grandes marcas de roupa com o uma peça de vestuário cujo uso estava circunscrito aos
Os desfiles de moda, que eram uma peça essencial do trabalho de arquitetos, atores e realizadores cujas obras espaços medicalizados e aos espaços públicos de alguns
funcionamento do sistema, mas estavam a ser sujeitos a são reconhecidas à escala global, concretizou-se, na sua países asiáticos. A sua saída do mundo restrito dos
numerosos questionamentos, foram profundamente forma mais complexa e elaborada, nos 7 episódios da cuidados de saúde remonta ao início do século XX.
impactados pelas múltiplas restrições resultantes da série Ouverture of something that never ended, Durante a pandemia de gripe pneumónica de 1918, o
pandemia. Depois de Milão, as apresentações das realizados por Alessandro Michele (o diretor criativo da uso de máscaras no espaço público colocou, tal como
coleções Outono/Inverno 2020/2021 nas fashion week Gucci) e por Gus Van Sant (uma figura de culto do agora, problemas, conduziu, tal como agora, a
que se seguiram foram também afetadas. Umas cinema de autor americano). Os episódios seguem um discussões e até mesmo a protestos. Posteriormente,
aconteceram como previsto, outras passaram, como já personagem central, representado pelo performer nalguns países asiáticos o seu uso tornou-se corrente,
havia acontecido com a da Armani, a um registo digital Silvia Calderoni, que se vai cruzando, na cidade de como meio de proteção sanitária das populações
mais ou menos improvisado. A partir dessa estação, as Roma, com pessoas também vestidas com peças da (contra a propagação de vírus e também contra a
marcas viram-se forçadas a procurar outros formatos marca Gucci. Quase todas são figuras reconhecíveis da poluição, um problema mais recente). No Japão, na
que pudessem responder à necessidade de, em cultura contemporânea. O filósofo feminista China e na Coreia o uso de máscara por razões
simultâneo, apresentar as coleções aos consumidores e transgénero Paul B. Preciado interpela Silvia de dentro sanitárias tornou-se num costume. No resto do mundo,
dar forma a eventos performativos congregadores das de um écran televisivo onde profere uma conferência as boas práticas sanitárias implementadas durante a
comunidades que participavam nos desfiles que fala sobre género, patriarcado e poder. O ator e epidemia de 1918 perderam-se no tempo. Este pequeno
presenciais. Para as apresentações das coleções de dramaturgo Jeremy O. Harris ajuda Silvia a descontrair historial conduz-nos facilmente para interpretações que
Primavera/Verão de 2021 foi por isso preciso reinventar. o corpo antes de participar numa coreografia que a opõem o mundo ocidental ao mundo oriental, um
A intensificação da relação entre o trabalho dos bailarina e coreógrafa Sasha Waltz está a ensaiar num caminho minado pelos orientalismos e pelos
diretores criativos das marcas e atores culturais palco de um teatro. A cantora, poetisa e compositora ocidentalismos, modos de pensar dicotómicos e
exteriores ao mundo da moda surge como uma das Arle Parks conversa numa mesa de café com Silvia. A essencialistas que ofuscam, mais do que esclarecem, o
consequências da pandemia que vai provavelmente cantora Billie Eilish canta uma canção. O crítico de arte real. Mas o facto é que o uso generalizado de máscaras
marcar o futuro do funcionamento da indústria, no Achille Bonito Oliva tem uma conversa telefónica com o trouxe consigo uma alteração muito substancial das
sentido de uma lógica de fusão com o mundo da arte. cantor Harry Styles (ex-membro dos One Direction) formas de apresentação de si, e essa alteração foi mais
A marca italiana Moschino, com direção criativa do sobre a contemporaneidade e as relações entre a moda contestada nas zonas do globo que não deram
americano Jeremy Scott, apresentou o filme de um e a arte — a moda veste a humanidade, a arte põe-na a nu continuidade à prática de saúde pública que havia sido
pequeno teatro de marionetas em que estas estão e a música é uma massagem no músculo atrofiado da iniciada na Europa no princípio do século XX. Essa
vestidas com miniaturas das roupas da coleção (citando sensibilidade coletiva. Digamos que a nossa época é uma diferença é inegável, o que não quer dizer que resulte
os primórdios da moda, quando pequenas bonecas época de contaminação, onde prevalece uma de formas substantivamente distintas de conceber a
com os modelos das casas de costura circulavam pela desconfiança no futuro, mas também uma apreciação do relação entre o individuo e a sociedade. Numa situação
Europa). Uma marioneta representando o próprio presente. pandémica como a do covid-19, o uso de máscara
Jeremy Scott faz as honras da casa e pequenos bonecos Os cruzamentos entre o mundo da moda e o mundo correspondeu simplesmente a uma prática de saúde
sentados na assistência transportam para o filme da arte estiveram sempre presentes, tanto no próprio pública que levou em consideração a existência de
personagens centrais do mundo da moda, como a processo de conceção das roupas e dos acessórios — o outros humanos. Furtar-se ao uso da máscara, qualquer
diretora da Vogue americana Anna Wintour e a editora trabalho de Elsa Schiaparelli, que colaborou com que seja o contexto cultural em que isso aconteça,
de moda do NewYork Times Vanessa Friedman. Para a Salvador Dali, Alberto Giacometti e Jean Cocteau, será equivale à negação de princípios societais elementares
coleção seguinte (Jungle red — Outono/Inverno talvez o exemplo histórico mais evidente desse e universais.

A pandemia trouxe consigo uma inversão das prioridades que podia ser, desde há muito, real para as vedetas c
comum: fez com que o rosto perdesse importância no espaço público físico (dado que passou a
(dado que passou a ser o único sítio em que ele é integralmente visível)

28 | ípsilon | Sexta-feira 19 Março 2021


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HARRY KERR/BIPS/GETTY IMAGES


Genericamente, pode dizer-se que a afirmação das começavam nos 260 euros), a Palm Angels, a Bathing
identidades pessoais passa universalmente pelo rosto, Ape e a Fendi também produziram máscaras nos
uma parte do corpo sujeita a um trabalho constante de últimos anos. Em Janeiro de 2020, quando nada ainda
modulação culturalmente enquadrada. Cada sociedade fazia prever que o Covid-19 se espalhasse pelo mundo,
tem os seus ideais de beleza e cada sociedade tem as Billie Eilish apresentou-se na gala de entrega dos
suas técnicas para os atingir. A possibilidade Grammys com uma máscara, feita de um tecido leve
tecnológica de se auto fotografar ampliou, nas últimas coberto com o monograma da Gucci. Justificou-se com
décadas, o papel cultural do retrato — mais uma afirmação libertária — o meu corpo não é
propriamente, do auto-retrato — e sobre-determinou as propriedade pública — que a posiciona contra a
formas de modelação dos rostos. As maquilhagens são corrente exibicionista do corpo que domina a cultura
hoje mais feitas em função dos seus efeitos nas imagens pop contemporânea. O uso de máscaras com objetivos
fotográficas do que dos seus efeitos sobre os rostos (um que não visam questões de saúde pública começou
rosto preparado para ser fotografado não é, antes da pandemia, pelo que será necessário ler a
necessariamente, um rosto agradável se for visto ao inserção deste acessório no vestuário contemporâneo
vivo). O mesmo se pode dizer da cirurgia plástica, que a partir de outros ângulos, para entender o papel que
se viu compelida a desenvolver técnicas especializadas ele assume (e assumirá) na construção das identidades.
em efeitos selfie. A pandemia trouxe consigo uma Neste quadro, em que se vislumbram alterações das
inversão das prioridades que podia ser, desde há muito, formas de construção dos rostos e das identidades,
real para as vedetas cinematográficas (cuja existência surgem alguns cruzamentos explícitos com o campo
esteve, desde sempre, ancorada nas imagens), mas não da ideologia e da política. A ocultação do rosto no
o era para o cidadão comum: fez com que o rosto espaço público manifesta componentes que se
perdesse importância no espaço público físico (dado prendem com a forma como cada sociedade concebe,
que passou a andar tapado) e fez com que o rosto simultaneamente, a questão da liberdade individual e
ganhasse mais importância no espaço público virtual a questão das obrigações de transparência para com o
(dado que passou a ser o único sítio em que ele é coletivo. Nas sociedades liberais essas duas questões
integralmente visível). são complementares, embora talvez de forma
Ao mesmo tempo, e dado que a copresença física paradoxal: todos têm a liberdade de mostrar o rosto e,
continua a existir na vida social, o trabalho de simultaneamente, todos têm o dever de o fazer,
modelação do rosto concentrou-se nos olhos, a única assumindo dessa forma publicamente os seus atos.
parte visível que assim passou a assumir sozinha o Segundo esses dois princípios, ocultar uma parte do
papel de representar a identidade do indivíduo. Um rosto pode resultar de um hábito culturalmente
pouco à semelhança do que acontecia já nas determinado que menoriza a existência pública da
sociedades em que as mulheres usam o nicabe, a pessoa — o combate ao uso do nicabe no seu seio, por
maquilhagem dos olhos foi aprimorada. Nalguns parte de algumas sociedades europeias, insere-se
estabelecimentos comerciais, houve mesmo nessa leitura — ou de uma fuga do indivíduo às suas
recomendação explicita para as funcionárias obrigações de transparência para com o coletivo — nos
procederem nesse sentido. Mas este não é o fenómeno EUA, tapar a cabeça com o capuz de um hoodie pode,
mais relevante, visto que se insere na continuidade das por si só, levar a uma intervenção policial.
práticas anteriores, concentradas na apresentação Os personagens políticos que se opuseram, durante
física do rosto. a pandemia, violentamente ao uso de máscaras —
A construção de si parece, pois, ter sido em parte Donald Trump ou Jair Bolsonaro — são, tal como quem
transferida do rosto físico para a sua representação e os seguiu nas suas proposições criminosas de recusar
essa deslocação terá hoje algo de universal. Começou o uso de máscaras, os representantes de um
antes da pandemia e está provavelmente mais paradigma identitário fixado, de forma simplista,
relacionada com as possibilidades da tecnologia do nestes princípios. Para essas pessoas, a construção de
que com o Covid-19. Integra o movimento cultural si baseia-se na recusa de qualquer constrangimento de
mais extenso da supremacia das imagens e é uma das origem coletiva e na defesa de uma expressividade
suas manifestações ao nível da construção das verbal e física que não admite qualquer tipo de
identidades pessoais. mediação. Violenta, se preciso for, mas nunca
Eventualmente por influência da cultura pop asiática ocultada por uma máscara.
— e para responder ao mercado a ela associado — o Em tempos de conflito político, o uso de máscara
mundo da moda já tinha iniciado a produção e o pode ainda inserir-se numa estratégia coletiva de
consumo de máscaras, como acessórios, alguns anos proteção — por via da ocultação da identidade — de
Durante a pandemia de gripe pneumónica de 1918, o uso antes da pandemia. Masha Ma, uma designer chinesa pessoas ameaçadas pelo poder instalado. Pouco tempo
de máscaras no espaço público conduziu, tal como agora, que desfila em Paris, incluiu máscaras adornadas com antes da pandemia, as máscaras negras dos habitantes
a discussões e até mesmo a protestos. Posteriormente, nalguns pedras Swarovski na sua coleção Outono/Inverno de Hong Kong, que foram um instrumento de proteção
países asiáticos o seu uso tornou-se corrente 2014/2015, a Off-White, de Virgil Abloh, marca de cidadãos ameaçados por um poder autoritário, já se
emblemática da street culture global, comercializa, tinham transformado, para o mundo inteiro, num
desde 2018, máscaras negras com as faixas brancas do símbolo de luta pela democracia e pela liberdade.
logotipo da marca, Marine Serre customizou máscaras
Airinum anti-poluição (vendidas a preços que *Antropóloga, Nova FCSH

s cinematográficas (cuja existência esteve, desde sempre, ancorada nas imagens), mas não o era para o cidadão
u a andar tapado) e fez com que o rosto ganhasse mais importância no espaço público virtual
)

ípsilon | Sexta-feira 19 Março 2021 | 29


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Acção Paralela Crónica


António Guerreiro Ana Cristina Leonardo
Bem-vindos os poetas Os Novos Virtuosos
U C
m anúncio publicitário, nos jornais, do (imagens, sons, romances, teorias, etc.), excepto a omo diria o Almirante, a pandemia
Instituto Superior de Economia e Gestão poesia. Não existe nem nunca existiu mercado de covid-19 deixou imensas pessoas
da Universidade de Lisboa (ISEG), fornece para a poesia. O grande poeta e ensaísta alemão com imenso tempo livre, com
matéria para a interminável discussão Hans Magnus Enzensberger escreveu em tempos excepção daquelas a quem não
sobre os paradoxos da poesia: porque é um artigo em que desenvolvia a ideia de que a deixou. Talvez por isso, durante o
que ela é ao mesmo tempo inútil e tão poesia é o único produto da actividade intelectual último ano, e enquanto íamos
persistente? Que mistério se esconde no facto de os dos homens que está imunizado contra a confinando/ desconfinando/ confinando/
escritores de poemas serem muito mais exploração comercial. E a sua conclusão era esta: desconfinando, houve finalmente
numerosos do que os leitores de poesia? Não “Ser invendável é um privilégio”. O grande oportunidade para se travarem algumas
parece plausível que um estabelecimento de paradoxo, escreveu ele, é que essa actividade que importantes batalhas.
ensino superior de Economia se intrometa (ainda não é rentável e com um público muito minoritário Se 2018 foi tempo para se discutir, não sem
por cima, através de uma mensagempublicitária) tem ao seu serviço um sumptuoso aparelho acirramento, o nome a atribuir a um museu
nestes mistérios de uma anacrónica actividade do (composto por academias, fundações, festivais, inexistente, embora, como bem viu o físico
espírito, mas foi o que aconteceu na semana institutos culturais) para acolher acontecimentos Richard Feynman, seja completamente
passada. O anúncio, tentando construir uma relacionados com a poesia e para os quais os diferente “knowing the name of something and
imagem da instituição capaz de destruir poetas são chamados a fazer leituras públicas ou a knowing something” — uns queriam Museu dos
estereótipos e alargar o universo dos potenciais falar da sua obra poética para um público que não Descobrimentos, outros das Descobertas,
clientes-alunos, continha esta frase de exortação os lê. E, no seu estilo iónico e divertido, outros ainda da Expansão ou da Viagem
(em inglês, com tradução em letras minúsculas): Enzensberger formula uma lei a que ele chama (havia também, talvez os mais sensatos, os
“Poets are welcome”. É uma expressão de precisamente “constante de Enzensberger”. que não queriam museu nenhum…) —, já sob
indulgência e de hospitalidade, como as que se têm Segundo essa lei de validade universal, isto é, os efeitos da pandemia foi por causa de uns
emrelação aos estrangeiros. Os poetas são aqui independente das modas, dos tempos, e das canteiros ali aos jardins de Belém que estalou
evocados como “estrangeiros”. E, vindos de um diferenças entre as comunidades linguísticas , “o o verniz.
país distante, abrem e alargam as fronteiras do número de leitores que lêem um bom livro de Vivi em criança em Belém. Todas as visitas
Instituto. É uma visão ingénua, mas conforme às poesia acabado de publicar é mais ou menos 1354”. de estudo da escola incluíam
ideias vagas que circulam sobre poetas e poesia. Seja na Islândia, que tem 250 mil habitantes, seja obrigatoriamente ida aos Jerónimos e passeio
Os autores deste anúncio (criado certamente por nos Estados Unidos, que tem 250 milhões. pelos jardins da Praça do Império que só
uma agência publicitária, mas submetido à Esta declaração de amor aos poetas (e, muito mais tarde vim a saber chamar-se
aprovação das instâncias directoras do ISEG) presume-se, também à poesia), vinda do ISEG e assim.
teriam sido menos ingénuos, mais convincentes e publicitada nos jornais, tem atrás de si uma longa Atravessávamos de mãos dadas a estrada
até irónicos se tivessem decidido citar o poeta história em que um dos capítulos mais importantes que separa o antigo mosteiro da praça
americano Wallace Stevens: “Money is a kind of é o ódio pela poesia (sobre este tema, há um livro já ajardinada, batas brancas imaculadas de
poetry”. Teriam assim encontrado maneira de traduzido em Portugal, do poeta e ficcionista peitilho de folhos engomados — a escola só
poetizar a economia, com a caução de um grande americano Ben Lerner, chamado Ódio à Poesia). aceitava meninas — sob a batuta do director,
poeta do século XX. Ou então, se não quisessem Um poema de Marianne Moore, chamado Poetry, é um reformado da marinha que, hirto e sisudo,
sair dos seus territórios disciplinares, poderiam ter uma via de entrada para este capítulo dir-se-ia reviver antigas e arrojadas glórias da
recorrido às páginas de O Capital, onde Marx inconveniente, que serviria para sabotar o belo Índia ao som do apito com que mandava
explica o que é a mercadoria e o seu carácter de anúncio do ISEG. É assim o primeiro verso desde parar os carros.
fetiche. São páginas de grande densidade poética. poema: “I, too, dislike it”. Poesia e ódio pela poesia Na memória não me ficaram os canteiros. A
O anúncio do ISEG pode ser lido como um são, desde a modernidade, consubstanciais, cada um as suas recordações. Se a Pessoa, do
convite à deslocação do dinheiro (enquanto inextricáveis. A excepção é talvez a União maestro e da batuta, lhe ficou um maravilhoso
medium da economia) para os lados da poesia. Soviética, sob Estaline, se acreditarmos no poema sobre a infância que começa assim:
Não é uma tarefa impossível. Muito mais difícil é testemunho da mulher do poeta Ossip
fazer o contrário: converter a poesia em dinheiro e Mandelstam, que teria ouvido do marido estas “O maestro sacode a batuta,
fazê-la sair da sua dimensão “heterológica”, palavras: “Não te podes queixar, em mais nenhum E lânguida e triste a música rompe…
exterior a uma economia da utilidade. A razão sítio há tanto respeito pela poesia, até se mata por
capitalista conseguiu converter tudo ao mercado causa dela”. Lembra-me a minha infância, aquele dia
Em que eu brincava ao pé dum muro do
quintal

Livro de recitações Atirando-lhe com uma bola que tinha dum


lado
“Se não existem tradutores, ou escritores, negros, não precisamos nem de O deslizar de um cão verde, e do outro lado
os procurar, nem de os acarinhar, nem de os entender” Um cavalo azul a correr com um jockey
Daniel Blaufuks, “Tentativa vã de equilibrar o desequilíbrio”, in PÚBLICO, 16/03/2021 amarelo….”

Contra a onda de indignações e exclamações presumidamente inteligentes às atitudes das a mim, que nunca me deu para a poesia,
que se ergueram publicamente por causa do pessoas obviamente estúpidas. A partir desta ficaram-me as aulas ao ar livre a ver o Tejo
episódio da tradução, em neerlandês, do poema dicotomia, não há discussão, não há razão crítica, onde aprendi a distinguir as folhas das plantas
de Amanda Gorman, lido pela autora na há apenas interjeições públicas transformadas pelo seu recorte. Registei até hoje, vá lá
cerimónia da tomada posse de Joe Biden, como em discurso. Ora, as coisas são muito mais saber-se porquê, as oblongas, falciformes e
presidente dos Estados Unidos, Daniel Blaufuks complicadas. É o que mostra Daniel Blaufuks lanceoladas. A memória é um mistério mais
aplica-se a ver a questão de outro modo que tem neste artigo que, para além disso, tem o efeito de intrincado do que o plano de vacinação
os seus riscos, mas tem a grande vantagem e tornar visível uma reversibilidade: o politicamente contra a covid-19!
inteligência de colocar as questões noutro incorrecto tornou-se a suprema manifestação do Na verdade, o que mais me fascinava no
patamar que não é o da reacção das pessoas politicamente correcto. E vice-versa. jardim (projectado por ocasião da Grande
Exposição do Mundo Português em 1940), só
era realmente visível à noite, quando a fonte
luminosa lançava, qual alquimia do fogo, os
FICHA TÉCNICA: DIRECTOR MANUEL CARVALHO EDITOR VASCO CÂMARA DESIGN MARK PORTER, SIMON ESTERSON DIRECTORA seus jactos de água em direcção ao céu, numa
dança de cores que, parecendo magia,
DE ARTE SÓNIA MATOS DESIGNER ANA CARVALHO E SOFIA ESPADINHA MARTINS E-MAIL IPSILON@PUBLICO.PT resultava afinal da manipulação humana de
30 | ípsilon | Sexta-feira 19 Março 2021
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O que me passa pela cabeça


Em Março de 2020, Luísa Jacinto, artista plástica, teve
de mudar as suas rotinas. Com dois filhos pequenos a
estudar online, reveza-se com o marido para os
acompanhar em casa. Ainda hoje, não pode passar
tantas horas no atelier como talvez precisasse. Já teve
exposições anuladas.
Um outro caso de figura é o de Rui Chafes, que

s considera que este período foi um dos mais felizes da


sua vida. Vive no atelier durante a semana, e regressa
à casa de Lisboa à sexta para estar com a mulher e os
filhos. Sem interrupções, sem eventos sociais, sem
viagens nem obrigações públicas de qualquer
um engenho localizado no subsolo, um par de neo-nazis! O mundo anda confuso, to say the espécie, fez o mais gostava: trabalhar e pensar. No
duendes brincalhões, imaginaria a criança least. Verão de 2020, José Pedro Croft confidenciava que se
que fui se na altura alguém mo tivesse Reforço a hipótese optimista: talvez seja do tinha fechado em casa durante todo o confinamento,
explicado. excesso de tempo livre derivado da pandemia. em vez de se por a fazer “coisas”, como dizia. Todos
Mas a guerra agora foi por causa dos A linguagem tornou-se noutro campo de estes casos nos falam do corpo do artista e das
canteiros. Rasgaram-se vestes que, quanto aos batalha. Nós por cá podemos, aliás, falar com artimanhas que inventa para fazer face às
referidos, o seu estado já era há muito outro à-vontade do tema. Não foi há muito que contingências do mundo. A rotina, a repetição, surge
lastimável. Portugueses fechados em casa, vimos tanta gente considerada insuspeita a sempre como a estrutura segura e formal que impede
alguns deles ilustres, fizeram abaixo-assinados defender uma impensável revisão ortográfica a desordem crua.
em defesa da botânica e dos brasões florais. em nome do progresso e democratização da A repetição dos gestos tem sempre um fito óbvio:
Invocaram a “Portugalidade”, palavra que me língua. Morte ao latim e a quem o apoiar, domesticar o tempo para servir os propósitos mais
recorda sempre a sessão amnésica de Zeinal parecia ser a palavra de ordem. básicos da vida, e um outro quase mágico: aprisionar
Bava que, chamado ao Parlamento a depor A chamada “linguagem inclusiva”, por a angústia, e a pior angústia de todas para um criador,
numa comissão de inquérito em 2015, após exemplo, tem feito o seu caminho. Por que é a impossibilidade de criar. Há um livrinho de
massacrar sem se rir os deputados com uma decreto, naturalmente, que não há mente Mason Currey, Daily Rituals. How artists work,
enxurrada de estrangeirismos, salta em defesa burocrata que não pense que o mundo se (Knopf, 2013), que continua a ser a leitura mais
da pátria: “A PT, ao contrário dos seus molda aos seus altos e sempre meritórios completa sobre o assunto. Currey, que começou por
concorrentes em Portugal, sempre apostou na desígnios, desde que passados ao papel. manter um blog sobre o tema, elenca aqui mais de
portugalidade. Sempre apostou na Há dias, foi apresentado ao Conselho uma centena de rotinas, não apenas de artistas, mas
portugalização dos seus conteúdos. É um Económico e Social (CES) português, um de filósofos, políticos, escritores e realizadores, entre
termo português errado, mas que eu uso, organismo que tem como objectivo promover outros. Ficamos a saber, por exemplo, que Marina
facilita-me explicar as coisas…” “a participação dos agentes económicos e Abramovic se submeteu a um treino físico
Se é um facto que um cachimbo às vezes é sociais nos processos de tomada de decisão intensíssimo para conseguir levar a cabo a
mesmo só um cachimbo, o simbolismo dos dos órgãos de soberania”, uma proposta performance The artist is present, que se propôs
buxos, assim como já acontecera como o nesse sentido, um novo manual de estilo que realizar no MoMa de Nova Iorque, em 2010, e que
simbolismo do nome do museu inexistente, substituía o actual (sexista?), pugnando por consistia em estar sentada numa mesa, sem beber
foi-se sobrepondo a qualquer conversa termos mais neutros e inclusivos. E o que mais nem urinar, durante todo o tempo em que a
racional sobre o assunto, erigindo-se em mais poderá apaixonar um burocrata do que o exposição esteve aberta; que Proust viveu num
um tema fracturante da sociedade sonho de uma linguagem descarnada onde, quarto forrado a cortiça enquanto escreveu o À
portuguesa. estabelecido que 2+2=5 nunca 2+2 poderá ser procura do tempo perdido, alimentando-se quase só
Entretanto, e sem largar Belém, haveria de igual a 4? a croissants e leite, dormindo de dia e escrevendo à
chegar a sugestão de demolir o Padrão dos Por exemplo, para evitar a chatice do noite; que Victor Hugo, no exílio em Guernsey,
Descobrimentos. De novo, um barulho dos pronome masculino aquando de escrevia de manhã num anexo vidrado no terraço da
diabos! E neste caso, esquecida por instantes a generalizações, “os contribuintes”, passariam casa, e a seguir tomava um duche de água fria numa
“portugalidade”, houve quem invocasse em “a população contribuinte” e “os banheira exterior para gáudio e coscuvilhice da terra.
seu favor a destruição do muro de Berlim. Ora desempregados” a “população Ou que Van Gogh tinha períodos de intensa
BRUINOOGE/PATRICK MCMULLAN VIA GETTY IMAGES

se cada coisa tem o seu tempo — ainda assim, desempregada”. Mas vai-se mais longe: uma criatividade em que trabalhava sem parar (nem falar,
abençoados frigoríficos! — há que lembrar que pessoa com deficiência deixa de ser ou comer) de manhã até à noite. E nem mesmo
o citado Muro começou a ser destruído no dia deficiente, podendo apenas ser referida como abrandou quando Paul Gauguin o foi visitar.
em que, eufóricos, os alemães dum lado e “pessoa com deficiência”, os idosos deixam Por aqui e para mim, que não sou artista mas que
doutro puderam reunir-se sem risco de serem de ser idosos, embora possam ser — e devam escrevo, a rotina de sair todas as manhãs para ir tomar
mortos. Quanto ao Padrão, na sua versão em ser — “pessoas idosas”. Supõe-se, café fora deixou de existir. Sento-me à minha mesa,
cantaria e pedra, está lá desde 1960 e não naturalmente, que as pessoas possam que dá para os logradouros das traseiras numa capital
PAUL BRUINOOGE/PA

consta que nenhum movimento continuar a serer pessoas… meio rural, quase sem automóveis nem aviões. A
revolucionário o tenha querido deitar abaixo niversidade de Manchester
Lá fora, a Universidade ameixeira já floriu, e as galinhas dos vizinhos avisam,
avis
nos últimos sessenta anos. nçou recentemente a esta
também se lançou por volta do meio-dia, que
Todo este chinfrim ridículo e triste (mas ndável) tarefa de neutralizar a
notável (e infindável) puseram um ovo. Abro o
sempre grandiloquente) fora já assinalado alguns casos dourando a pílula:
linguagem, nalguns computador.
pelo escritor Ruben A. (que não me canso de ofra de cancro”, por exemplo,
“pessoa que sofra
citar). Numa Lisboa sonolenta, assim dá por passa a “pessoaoa que vive com cancro”.
terminado mais um dia de trabalho o eduz-se que “pessoa que
Neste caso, deduz-se
protagonista de O Outro que Era Eu: ncro” passe a “pessoa que
morreu de cancro” L
Por Luísa
“Arrumava os canivetes, punha o lápis ncro até ao fim”, o que fará
viveu com cancro So
Soares
vermelho dos devedores e o azul dos credores uma enorme diferença ao morto. Oli
de Oliveira
na lata que tinha borrachas, apara-lápis e A novilíngua a de Orwell vai pois de
clips, e com a secretária bem limpa, fechado à vento em popa. a. Fora o resto. E nós que
chave o livro da facturação, espedia-me do o queríamos era vacinas. De
senhor Sousa até ao dia seguinte, uma ero, desde que
qualquer género,
despedida com que nos comovíamos todos, eficazes.
não fosse algum partir para o Oriente”. Em vez disso,o, na União
A obsessão com o derrube de estátuas em Europeia, onde de também não
tempos de paz não é nova (cf. o exemplo cratas encartados,
faltarão burocratas
caseiro da estátua do Padre António Vieira o ualmente sobre
medita-se actualmente
ano passado). Mas talvez a situação mais a emissão de um “passaporte
caricata e absurda — e que nos devia fazer verde” (tinha de ser!) que,
reflectir não só sobre a utilidade de derrubar ertificado
servindo de certificado
estátuas, mas também sobre os seus sanitário aos eleitos,
resultados práticos — teve lugar, também em permitirá salvarar o turismo
2020, em Londres, quando Winston Churchill nge vai, pois, o
no Verão. Longe
se viu enjaulado, em risco de vir abaixo sob a tempo em que e a minha avó
acusação de racismo, ao mesmo tempo que dizia: “Quem tem vagar, faz
era defendido por musculados militantes colheres”.
ípsilon | Se
Sexta-feira 19 Março 2021 | 31
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